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Bíblia VIII - Teologia do Novo Testamento

Outubro / 2021
Professor autor: Dr. Flávio Henrique Oliveira Silva
Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Depto. Marcon
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Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


86055-670 Tel.: (43) 3371.0200
SUMÁRIO - Bíblia VIII - Teologia do Novo Testamento

UNIDADE I - O Reino de Deus no Evangelho de Marcos


1. A Síntese da Pregação de Jesus - Mc 1,14-15............................................................04
2. Parábolas e Chamado......................................................................................................08
3. Sujeitos do Reino..............................................................................................................12
4. Lei e Esperança................................................................................................................18

UNIDADE II - O Messias Jesus: Um olhar paulino


1. Questões introdutórias.....................................................................................................27
2. O Messias em Filipenses................................................................................................36
3. O Messias em Romanos.................................................................................................44
4. O Messias em 2 Coríntios..............................................................................................51

UNIDADE III - Síntese da Teologia Paulina nas cartas aos Tessalonicenses


Introdução.......................................................................................................57
1. Contexto.............................................................................................................................58
2. Esperança em meio as Provações – 1 TS 3,1-5..........................................................65
3. Fé e Amor em meio as Tribulações – 1 TS 3,6-13.......................................................71
4. Exortação à Santidade – 1 TS 4,1-12............................................................................76

UNIDADE IV - Aspectos da Escatologia do NT


Introdução..............................................................................................................................85
1. Daniel 7 e a Vinda de Deus...........................................................................................86
2. A missão de Jesus e a Escatologia.............................................................................94
3. A vinda de Deus confronta a morte e gera a ressurreição........................................99
4. O Deus vindouro e os novos céus e nova terra.......................................................106

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UNIDADE I - O Reino de Deus no Evangelho de Marcos
O tema principal da pregação de Jesus, nos Evangelhos Sinóticos, é o
Reino de Deus. Em sua pregação, porém, Jesus jamais explica o conceito
do Reino, mas amplia e ressignifica os aspectos principais da noção da
realeza de YHWH nas Escrituras judaicas. Basicamente, a frase grega
significa o domínio real de Deus - o que inclui: local do domínio, povo
sob domínio, poder para dominar, o tipo de legitimação do domínio. Para
mostrar como os conceitos de reino de Deus podem ser compreendidos,
estudaremos algumas das principais passagens sobre o tema nos
Sinóticos, baseando-nos no Evangelho de Marcos

1. A Síntese da Pregação de Jesus - Mc 1,14-15.


Depois de João ter sido entregue, Jesus foi para
1,14

a Galileia, pregando o evangelho de Deus, 15 dizendo:


O tempo tem sido cumprido, e o reino de Deus está
próximo; convertei-vos e crede no evangelho.

Esta perícope serve como encerramento do Prólogo ou Introdução do


Evangelho e como transição para a narrativa sobre o ministério de Jesus.
Sua forma é a de um sumário da atividade querigmática de Jesus – ou
seja, expressa a interpretação de Marcos a respeito do ministério de
pregação de Jesus. Os verbos indicam o caráter genérico da ação de
Jesus, ou seja, não se trata de uma pregação em particular, mas de seu
hábito querigmática enquanto tal. Se deixarmos de lado as considerações
relativas ao Prólogo de Marcos como um todo (Mc 1,1-15) e focarmos
nossa atenção nesta perícope final do mesmo, encontraremos uma série
de elementos conceituais importantes.

(1) O caráter messiânico da perícope, indicado pela sua sentença “depois


de João ter sido entregue” (João, nos versos anteriores, é caracterizado
como pregador de conversão a Israel e como precursor do Messias [1,2-
8]). Esta sentença inicial já prenuncia o vínculo entre 1,14 e 1,1: na abertura
do Evangelho se trata do evangelho a respeito do Messias Jesus, o Filho

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de Deus, de quem João é precursor. Ainda não está claro, porém, que tipo
de Messias é Jesus;

(2) O caráter emancipatório ou libertador da perícope, sugerido pela


oração principal do verso 14: “Jesus foi para a Galileia...”. A partir de Isaías
(9,1-2 - citado por Mateus), e da tradição sobre a Galiléia no Judaísmo
da época de Jesus, constatamos que a ida de Jesus, o Messias, para
iniciar seu ministério na Galiléia (e não em Jerusalém), aponta para o
que foi chamado de a opção galileia de Jesus. Para o Judaísmo oficial,
a Galileia era considerada terra impura, cuja população, por sua mescla
de judeus e gentios, era também impura e não teria, portanto, acesso ao
reinado libertador de Deus. Ao dirigir sua pregação inicial aos galileus,
Jesus estaria se opondo à visão oficial do Judaísmo sobre a impureza da
população galileia;

(3) Explicitado na segunda oração do verso: “pregando o evangelho de


Deus” – na Galileia o Messias anuncia a boa-notícia de Deus, uma expressão
cujas origens teológicas estão em Isaías 40-66 – e significa basicamente
o anúncio da vinda de Deus, como rei, para libertar seu povo da dominação
imperial. Aqui, ‘evangelho de Deus’ pode ter um duplo significado: a boa
notícia cuja origem é Deus e cujo conteúdo é a vinda de Deus;

No verso 15 encontramos a explicitação mais densa da pregação de


Jesus na perícope. O verso é composto por quatro orações que formam
um quadrado temático, conforme abaixo

(a) uma vez que o tempo tem sido cumprido, é hora de ‘conversão’;
(b) uma vez que “o reino de Deus está próximo”, é hora de crer no
evangelho.
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(4) o caráter escatológico-apocalíptico da perícope: “o tempo tem sido
cumprido, e o reino de Deus está próximo”. O tempo tem sido cumprido:
como é sabido, o grego possuía duas palavras para ‘tempo’: kronos (que
indica mais o aspecto cronológico do tempo) e kairós (que indica mais
o aspecto cultural ou existencial do tempo). No tocante à palavra aqui
usada, questiona-se se ela se refere a um ‘momento específico’ do tempo
cronológico: uma ‘ocasião especial’, um ‘momento significativo’; ou se se
refere a um período de tempo. Parece-me melhor entender esta sentença
inicial como se referindo ao fim de um período de tempo – a ‘velha era’: na
linguagem apocalíptica judaica – ou a uma fase da história das relações entre
Deus e seu povo. Simultaneamente ao encerramento do tempo ‘passado’, a
nova era messiânica está atuante no tempo cronológico humano.

SAIBA MAIS
O reino de Deus chegou ou está próximo (virá)? O texto bíblico do
evangelista Marcos (1,14-15), narra o início do ministério de Jesus.
De imediato, a mensagem do reino de Deus aparece no centro
de seu discurso. “Depois de João ter sido preso, foi Jesus para
a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está
cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede
no evangelho”. Outras traduções aparecem da seguinte forma:
“O tempo está cumprido, e é chegado a vós o reino de Deus...”.
Já na bíblia de estudo interlinear, grego-português (2004, p.129),
cuja tradução parece mais precisa o texto aparece assim: “Está
cumprido o tempo e aproximou-se o reino de Deus...”. Pode-se
recorrer ainda a recursos gramaticais. O verbo aproximar (�γγ�ζω
- �γγικεν - ēngiken) aparece no tempo perfeito, o que indica “o
processo de uma ação e, ao mesmo tempo, a existência real dos
seus resultados” (REGA; BERGMANN, 2004, p.26).

Com base nas anotações acima, percebe-se a ideia de que o reino,


no texto marcano, já é uma realidade. Chegou! Existem ainda outros
argumentos em harmonia com esta preposição. Paulo Lockmann (1987,
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p.21) explica que “o verbo (eggizo = chego – aproximo) usado por Marcos
tem sua tradução orientada pelo outro verbo (pleróo: completo – cumpro
– cheio – encho)”. Desse modo, para o autor, “não podemos aceitar os que
traduzem eggizo por está próximo. [...] Pois, se o tempo está pleno, o reino
não está próximo, mas é chegado”. O autor entende que “o reino é uma
realidade histórica” fugindo, assim, de todas as interpretações “triunfalistas,
alienadoras e desencarnadas da realidade concreta que o anúncio do reino
quis e quer apontar”. Reza Aslan (2013, p.139) não discute as questões
verbais ou de tradução, mas entende que “Jesus não apresenta o reino de
Deus como um reino futuro distante, a ser estabelecido no fim dos tempos.
Quando Jesus diz “o reino de Deus está próximo”, está apontando para a
ação salvadora de Deus naquele momento, em seu tempo presente”. O
tempo está cumprido e o reino já é fato.

(5) o caráter emancipatório-libertador da perícope é novamente


enfatizado: “convertei-vos e crede no evangelho”. Ora, uma vez que o
reino está ‘vindo’, é preciso responder à sua vinda. E a resposta solicitada
por Jesus é uma só, embora descrita de modo dual no verso: (a)
‘convertei-vos’ – um verbo grego comumente usado pelos profetas do
Antigo Testamento para exortar o povo ou sua liderança voltar a Deus,
voltar a viver como Deus deseja. Aqui tem este sentido: uma vez que o
Deus-Rei está se aproximando, é hora de mudar o rumo da vida e seguir
o rumo do novo rei; (b) ‘crede no evangelho’, simultaneamente à ‘meia-
volta’, o Rei que vem chama seu povo à fidelidade à boa-notícia de que
Ele está chegando. Pistis, no grego, como na tradição hebraica, significa
muito mais do que meramente ‘fé’ ou ‘crer’, significa fundamentalmente
ser fiel a – entrar em um relacionamento e permanecer nele, formar uma
parceria, uma aliança.

Ao dar meia-volta para receber o Rei que vem, a pessoa também se


compromete a viver em aliança com esse Rei, compromete-se a ser
cidadã de seu reino. Se o povo vive sob a dominação do Império Romano
e sob o estigma da impureza da Lei judaica, a aproximação de um novo
rei só pode ser vista como libertação – do império e da Lei. Assim, a
proximidade do Reino é sempre a realização de um convite, de uma
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convocação, de um chamado: vire-se; dê meia-volta; converta-se. Um
chamado que se repete a cada instante, a cada momento da vida.

2. Parábolas e Chamado
2.1. Parábolas: Mc 4,10-12
Quando Jesus ficou só, os que estavam ao redor
4,10

dele, junto com os doze, o interrogaram a respeito das


parábolas. 11 Ele lhes respondeu: A vós é dado o mistério
do reino de Deus; mas, aos de fora, tudo ocorre em
parábolas, 12 para que, “vendo, vejam e não enxerguem;
e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não
venham a converter-se, e haja perdão para eles”.

A perícope gira ao redor de dois grupos distintos de pessoas: (a) “os que
estavam junto dele com os doze”; e (b) “aos de fora”; e sua significação é
oferecida mediante uma citação do livro de Isaías (6,9-10) (estamos em
um ambiente mental apocalíptico judaico, com sua divisão do mundo em
dois grupos de pessoas). Ao prestarmos atenção, porém, não se trata de
uma questão de facilidade ou dificuldade ‘intelectual’ de interpretação,
mas de uma questão de compromisso com o Messias como caminho
para a compreensão do que ele diz.

Note que não se diz “mas aos de fora Jesus ensinava em parábolas”, e,
sim, “aos de fora tudo ocorre parabolicamente”, ou seja, tudo o que Jesus
faz parece um enigma insolúvel, pois não querem olhar para Jesus como
o Messias, pois sua visão do Messias já estava previamente definida e
Jesus, indo à cruz, não se encaixava nela – por isso até os discípulos
tinham dificuldade de compreender Jesus e, efetivamente, somente após
a ressurreição é que de fato o compreenderam como Messias portador
do Reino de Deus. O contraste, então, tem a ver como o modo de agir de
Deus: é Deus quem dá aos seguidores de Jesus ‘o mistério do Reino de
Deus’ e é o próprio Deus que, aos de fora, faz tudo parecer enigmático.

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A questão é “quem são os de fora”? No contexto do evangelho de Marcos
devem ser os líderes do Judaísmo ‘oficial’ e os demais judeus que
seguem a sua visão do Messias e da Torá. A citação de Isaías reforça
esta hipótese – assim como no passado YHWH enviou um profeta cuja
pregação não seria aceita, novamente YHWH envia um profeta, desta vez,
mais do que um profeta, o próprio Messias e sua pregação também não
foi aceita. Para receber o mistério do reino de Deus é preciso renunciar
à ‘Torá’ como caminho de salvação, de outro modo, ouvirão mas não
entenderão.

Não podemos nos esquecer, porém, da qualificação mais importante


presente na perícope. O reino é mistério. Não há reino de Deus sem
mistério. O que nos é dado não é o Reino em si, mas o mistério do Reino.
A natureza do Reino é mistério. É possível que Marcos, aqui, esteja se
aproveitando da noção paulina de mistério – o evangelho é a revelação
do mistério de Deus e este oculto por séculos. A revelação do mistério
que não o descobre totalmente, mas o mantém enquanto mistério. “A
vós é dado o mistério do reino de Deus” – jamais se esqueçam de que
o Reino é mistério. Jamais se apropriem inteiramente do Reino, ou ele
deixará de ser de Deus e se tornará apenas mais um reino. Proximidade,
então, talvez seja sinônimo de mistério – e vice-versa.

2.2. Chamado: Mc 8,34-9,1


Então, convocando a multidão e juntamente os seus
8,34

discípulos, disse-lhes: Se alguém quer seguir após


mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-
me. 35 Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e
quem perder a vida por causa de mim e do evangelho
salvá-la-á. 36 Que aproveita ao ser humano ganhar o
mundo inteiro e perder a sua vida? 37 Que daria um ser
humano em troca de sua vida? 38 Porque qualquer que,
nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar
de mim e das minhas palavras, também o Filho do

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Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de
seu Pai com os santos anjos. 9,1 Dizia-lhes ainda: Em
verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram,
alguns há que, de maneira nenhuma, provarão a morte
até que tenham visto o reino de Deus ter chegado
poderosamente.

Esta perícope é, literariamente, uma coleção de cinco ou seis ditos ou


provérbios que, isoladamente, produzem sentidos muito distintos do
sentido que produzem como um todo literário. A chave teológica é a
exortação de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue,
tome a sua cruz e siga-me”. A terminologia usada na exortação é técnica
e pertence ao âmbito da educação rabínica, ao campo do discipulado. A
exortação inicia com uma oração condicional: “se alguém quer me seguir”
e indica o desejo de se tornar discípulo(a) de Jesus. Este dito de Jesus
foi colocado estrategicamente por Marcos aqui, logo após a revelação
de Jesus aos discípulos de que ele, o Filho do Homem, deveria ser
preso, condenado e executado. Revelação à qual os discípulos reagiram
negativamente, especialmente Pedro que veementemente adverte Jesus
e, em troca, é severamente advertido pelo Mestre.

Agora as condições do discipulado de Jesus estão claras: não se trata


de seguir um pregador que faz milagres, expulsa demônios e, de algum
modo, iria libertar poderosamente Israel da dominação romana. O
Messias Jesus afirma com toda a clareza: ele não se livrará da morte, ele
não matará para libertar, ele morrerá para libertar (ressuscitará, sim, mas
antes deve morrer). Então, como o discípulo partilha da vida do Mestre,
Jesus exorta os que estão ao seu redor, inclusive seus ‘discípulos’: “vocês
querem continuar me seguindo? Ótimo! Estejam prontos para morrer
junto comigo”.

As três orações coordenadas que formam o núcleo da exortação formam


um crescendo. (1) ‘Negue-se a si mesmo’: ou seja, abra mão de seus
direitos e expectativas messiânicas. (2) ‘Tome a sua cruz’: linguagem
parcialmente metafórica (a expressão se refere ao fato de um condenado
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ter de carregar parte da cruz até o local da execução), mas no contexto
da fala e da vida de Jesus sua dimensão literal não pode ser descartada,
já que seguir um condenado à morte pode significar ser condenado com
ele. (3) ‘Siga-me’: então, e somente então, sabendo bem quais são as
circunstâncias que envolvem o seguimento de Jesus, vem o convite
(‘siga-me’, ou, se preferirmos, “torne-se meu discípulo”).

A sequência da perícope enfatiza o custo do discipulado: quem dá valor


à sua própria vida (física), acima do valor dado à vida com Deus, morrerá.
Que valor pode ter esta vida (física) quando comparada com a vida com
Deus (‘eterna’)? Qual é o valor da vida ‘eterna’? Existe algo neste mundo
que possa valer tanto quanto ela?

Os ditos que se acumulam operam a partir da dialética entre a vida física


e a vida eterna, entre a vida ‘deste kronos’ e a vida do kairós messiânico.
Ser discípulo de Jesus significa fazer uma escolha radical (nova raíz):
deixar de viver de acordo com os padrões do kronos e passar a viver de
acordo com os padrões do kairós messiânico. E esses padrões incluem
a possibilidade de sofrer o mesmo tipo de rejeição e condenação sofrido
pelo Messias.

É preciso enxergar além do kronos: “qualquer que, nesta geração adúltera


e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o
Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai
com os santos anjos”. O kronos do Filho do Homem, no momento de sua
fala aos discípulos, é o da vergonha – e não havia maior vergonha no
mundo romano do que a de ser executado na cruz. O kairós messiânico,
porém, aponta para um tempo de glória (o contrário da vergonha), assim,
quem se envergonha agora, será envergonhado no kairós, quem aceita a
desonra, agora, receberá a honra no kairós.

Tendo dito todas estas coisas apavorantes, Jesus conclui com uma
promessa: “Dizia-lhes ainda: Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se
encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, provarão a morte até que
tenham visto o reino de Deus ter chegado poderosamente”. A promessa
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de Jesus, no contexto, é simples: dentre os que estão seguindo a Jesus, e
estão sujeitos ao mesmo tipo de morte que Jesus sofrerá, alguns, porém,
sobreviverão e verão a chegada poderosa do Reino.

O reino de Deus está vindo na pessoa de Jesus e está vindo poderosamente.


A manifestação explícita desse poder foi a própria execução de Jesus na
cruz – o poder do Reino não é o poder de assassinar, destruir, conquistar.
O poder do Reino é o poder da auto-entrega, do auto-sacrifício, conforme
o próprio Jesus ensinará em Mc 10,42-45. A chegada do Reino com poder
e glória ocorre tanto na crucificação quanto na vinda do Filho do Homem
na glória do Pai com os santos anjos. Uma chegada qualifica a outra
e ambas constroem mutuamente o seu sentido. A chegada gloriosa
é chegada crucificada – doutra forma o reino de Deus se torna o seu
oposto: dominação, violência, conquista e destruição do outro.

3. Sujeitos do Reino
3.1. As crianças e o Reino: Mc10,13-16
Então, lhe trouxeram algumas crianças para que as
10,13

tocasse, mas os discípulos os repreendiam. 14 Jesus,


porém, vendo isto, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir
a mim as crianças, não as impeçais, porque das tais
é o reino de Deus. 15 Em verdade vos digo: Quem não
receber o reino de Deus como uma criança de maneira
nenhuma entrará nele. 16 Então, tomando-as nos braços
e impondo-lhes as mãos, as abençoava.

No arranjo literário de Marcos, (a) Jesus já utilizara uma criança como


símbolo da atitude correta de quem o segue (9,33-37); e (b) a atitude das
crianças é contrastada com a atitude do homem rico que se aproxima de
Jesus e lhe pede instruções sobre como receber a ‘vida eterna’ (v. 17),
que Jesus interpreta como o reino de Deus (v. 23).
12 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
A perícope está em uma sequência do Evangelho na qual a questão do
poder e prestígio é marcante, de modo que essa temática deve nortear
nossa leitura da passagem. Temos, ainda, de levar em conta o status
da criança no mundo judaico da época de Jesus para não impormos
noções modernas de inocência, obediência, docilidade, etc. Para evitar
especulações sem sentido, o nosso foco deve recair sobre o lugar da
criança na estrutura de poder e prestígio do Judaísmo, centrada como
estava no cumprimento da Lei, seja na visão farisaica, seja na dos
saduceus (ou de essênios).

Nessa estrutura de poder e prestígio (honra), a criança estava excluída,


pois não podia cumprir a lei de Deus. Não se trata de ser inocente ou
não, de ser obediente ou não, mas, sim, do simples fato de que antes dos
12 anos a criança era considerada excluída do mundo da Torá, por sua
incapacidade de cumprir a Lei. Assim, a criança fazia parte, junto com
pobres, portadores de deficiência e outros tipos de pessoas consideradas
impuras, do grupo dos marginalizados e excluídos no Judaísmo oficial.
Elas estavam entre o grupo priorizado pelo reino de Deus na pregação de
Jesus. Essa prioridade não se deve a alguma virtude do grupo em si, mas
à própria natureza ou dinâmica do reino de Deus.

SAIBA MAIS
... sobre as crianças no contexto da época:

“Em geral, era estranho ao Judaísmo o apreço pelas crianças. Elas


não eram vistas como imagem da inocência, mas como tipo da
imaturidade. Sobretudo, não possuíam ainda o conhecimento da
lei, imprescindível para a salvação segundo a doutrina rabínica”.

SCHMID, Josef. El Evangelio según San Marcos. Barcelona: Herder,


1967, p. 272. (Comentário de Ratisbona al Nuevo Testamento)

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“A indignação de Jesus e sua declaração de que ‘o reino de Deus
pertence a tais como estes’ indica não somente que as crianças
são incluídas no reino de Deus, mas também que elas representam
o tipo de pessoa que está especialmente associado com o reino
de Deus (cf. Mc 9,33-37). A perspectiva aqui é análoga à expressa
nas bem-aventuranças de Lucas e Mateus. Em Lc 6,20-21 o reino
de Deus pertence especialmente ao pobre, ao faminto e aos que
choram. Em Mt 5,5, pertence, entre outros, aos mansos.

COLLINS, Adela Y. Mark: A Commenatry. Minneapolis: Forterss,


2007, p. 472. (Hermeneia).

Que diferença há, se é que há, entre ‘receber’ o reino e ‘entrar’ no reino?
O reino é dom, é dádiva, como tal deve ser recebido e, na medida em
que a natureza do reino é vir, assim como se o ‘recebe’ nele se entra.
Receber e entrar não representam os polos passivo e ativo da relação
humana com o reino de Deus, mas, se quisermos fazer uma distinção
desse tipo, os polos temporal e espacial = receber (o tempo do Reino)
e entrar (no espaço do Reino). A recepção do reino de Deus deve ser
vista como uma atividade, envolvendo a decisão de acolher e hospedar
o rei que está chegando, aceitando a sua soberania e preparando a casa
adequadamente para sua estadia. A entrada no reino de Deus também
é ‘ativa’, só que ao invés de agir como hospedeiro, a pessoa que entra
no reino age como hóspede, que recebe a hospitalidade do outro como
dádiva e bênção.

3.2. Um homem rico e o Reino: Mc10,17-31


A interpretação desta perícope tem girado ao redor da questão se
os ricos podem ou não entrar no reino de Deus. Costumeiramente os
comentaristas trabalham a partir de uma tentativa de leitura das paixões
humanas envolvidas: (a) o apego às riquezas versus (b) o desapego

14 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


de tudo, o ‘negar-se a si mesmo’ como condição para entrar no reino
de Deus. Nessa forma comum de interpretar a passagem, a pregação
de Jesus acaba se tornando prisioneira da lógica da dívida e do dever
que estão na base da crítica de Jesus, ao invés dessa pregação ser
devidamente situada na lógica da dádiva e da gratuidade que perpassam
toda a mensagem de Jesus em Marcos. Mesmo no caso dos discípulos,
a interpretação se mantém sob a lógica da dívida-dever: a entrada no
reino demanda uma condição legal, um dever, que se constitui, também,
em uma dívida para com Deus e para com o próximo.

O rico não quis aceitar essa condição. Os discípulos, porém, aceitaram


a condição e se consideram como já tendo entrado no reino de Deus. A
resposta de Jesus é irônica: a recompensa neste mundo é imensa (cem
vezes mais), mas vem acompanhada de perseguição – o que torna a
recompensa, na prática, inútil. Todavia, a recompensa que importa está
no futuro: a vida eterna (assim o texto volta ao seu começo). Aqui a
ironia alcança seu clímax: na vida eterna as posses (ou a ausência de)
não possuem qualquer significado! Assim, se quisermos efetivamente
compreender esta perícope precisamos lê-la sob a lógica da dádiva-
gratuidade, e não sob a lógica do dever-dívida, como costumeiramente
ainda se faz.

Vista sob este ângulo, a chave para entender a perícope está no dito do
verso 27: “Para os homens é impossível; contudo, não para Deus, porque
para Deus tudo é possível”. A questão não está no lado do ser humano
– seu status econômico, social, religioso, cultural, etc. A dificuldade está
no lado do próprio reino de Deus, cuja lógica é radicalmente distinta da
lógica que rege o ‘reino dos seres humanos’ e torna impossível a um ser
humano conquistar a salvação.

Temos uma perícope marcada por ironia e por inversões: o rico procura
Jesus entusiasmadamente, mas sai de sua presença indignado; ele
chama Jesus de ‘bom’, mas Jesus recusa o qualificativo, afirmando que
só Deus é bom (mas Jesus é Deus...); Jesus responde à pergunta sobre
a vida eterna como se fosse um escriba, e não como o pregador do reino
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 15
de Deus; esta é a única passagem em Marcos na qual se diz que Jesus
‘amou’ uma pessoa e é exatamente essa pessoa que rejeita o ensino e o
amor de Jesus. Jesus afirma que é difícil entrar no reino de Deus, de fato,
que é impossível para um ser humano (com posses?) entrar no reino,
mas, no final das contas, para Deus tudo é possível; o discípulos ficam
assombrados e estupefatos com a explicação de Jesus, mas Pedro,
imediatamente após a fala de Jesus sobre a impossibilidade de entrar no
reino, imediatamente se qualifica, juntamente com os demais discípulos,
como alguém que abriu mão de tudo para entrar no reino; ao que Jesus
responde ironicamente com a promessa de recompensa e perseguição.
A perícope encerra com um dito de Jesus sobre a inversão final – ‘muitos
primeiros serão últimos, últimos serão primeiros’.

A unidade da perícope é marcada pelo uso da expressão ‘vida eterna’ no


início (v. 17) e final (v. 30) da mesma. São as duas únicas ocorrências
de ‘vida eterna’ no evangelho de Marcos. Um termo que não é típico
da pregação de Jesus nos Sinóticos (pertence, sim, ao evangelho de
João), que Jesus identifica com o reino de Deus em sua explicação aos
discípulos. A perícope inicia com um homem, não-identificado, correndo
para falar com Jesus, preocupado com a sua ‘vida eterna’. Jesus lhe
responde como se fosse um escriba (não antes, porém, de recriminar
o homem por tê-lo chamado de ‘bom’): ‘conheces os mandamentos’,
todavia, menciona apenas mandamentos relativos às relações entre seres
humanos, deixando de citar o ‘primeiro e mais importante’ mandamento,
o de amar a Deus acima de todas as coisas, ou, na forma do Decálogo,
“não terás outros deuses diante de mim’.

A resposta do homem é confiante: ‘tenho guardado tudo isto desde a


minha juventude’ – provavelmente esperando, da parte de Jesus, uma
decisão positiva a seu respeito: ‘então, você já tem a vida eterna’. Ao
contrário, porém, Jesus – depois de fitar atentamente o homem e ‘amá-
lo’ – faz uma afirmação inusitada: “uma coisa te falta” – e essa lacuna é
descrita como a venda de todas as posses, sua distribuição aos pobres
e, depois, seguir a Jesus.

16 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


A resposta deixa o homem indignado e muito triste, e só então ficamos
sabendo que ele era proprietário de muitos bens. Esta primeira parte
da perícope respira ironia. À pergunta de uma pessoa interessada por
sua salvação Jesus responde segundo a lógica do dever: cumpra os
mandamentos. Diante da resposta do homem, que afirma guardar os
mandamentos; Jesus então sai da lógica do dever e usa a da dádiva:
‘vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres’, algo que não era exigido pela
Lei. A resposta de Jesus incomoda o homem por que ele não consegue
entender a radical troca de lógicas na fala de Jesus. Ele ainda pensa
como um típico judeu: mediante o cumprimento do dever é possível
herdar a vida eterna, enquanto Jesus respondeu como um judeu atípico:
não basta cumprir a Lei para herdar a vida eterna; há que se ir além da Lei.

Na segunda parte da perícope Jesus, ironicamente, se dirige aos discípulos


e faz três afirmações que arrancam duas respostas intensamente
emocionais dos discípulos: “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus
os que têm propriedades! 24 Os discípulos estranharam estas palavras;
mas Jesus insistiu em dizer-lhes: Filhos, é difícil entrar no reino de Deus!
25
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar
um rico no reino de Deus. Eles ficaram sobremodo maravilhados, dizendo
entre si: Então, quem pode ser salvo?” A primeira reação dos discípulos é
a de ‘estranhamento’, provavelmente em função da crença comum de que
a posse de bens é sinal da bênção de Deus. Ora, se quem já é abençoado
por Deus tem dificuldade para entrar no reino de Deus, que será dos
demais? Diante da reação dos discípulos Jesus intensifica sua resposta,
com dois ditados que deixam os discípulos ‘extremamente admirados’.
O segundo ditado é uma hipérbole que indica a impossibilidade de um
rico entrar no reino de Deus – é mais fácil um camelo passar pelo fundo
de uma agulha – aqui, camelo e agulha são literais e definem o caráter
hiperbólico da afirmação de Jesus. É a fala anterior de Jesus, porém, que
serve como chave da perícope, mas, que, provavelmente, os discípulos
não entenderam: Jesus afirma, pura e simplesmente, que é difícil entrar
no reino de Deus.

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 17


Diante da nova reação dos discípulos e de sua pergunta sobre ‘quem
pode ser salvo’, Jesus responde ironicamente, subvertendo tudo o que
fora dito até então: ‘para o ser humano é impossível, mas para Deus
tudo é possível”. A nova resposta de Jesus não é compreendida pelos
discípulos, pois Pedro imediatamente volta ao tema das posses e afirma
confiantemente que ele e seus colegas fizeram o que o rico não fora
capaz de fazer. A resposta de Jesus é solene, introduzida pela expressão
“Em verdade”, e enuncia um princípio genérico: quem, por amor a Jesus
e ao evangelho, deixar família, bens, etc., receberá cem vezes mais
o que deixou nesta vida – mas não enquanto propriedade privada, e,
sim, enquanto convivência comunitária – mas essa ‘recompensa’ será
acompanhada de rejeição, perseguição, lutas.

Finalmente, Jesus responde à pergunta do homem rico – quem fez isso,


no futuro, herdará a vida eterna. Quem fez o que? Quem agiu por amor –
ou seja, quem não seguiu a lógica do dever-dívida, quem foi além da Lei,
quem ouviu a boa-notícia de Jesus e simplesmente a aceitou. De fato, o
que é impossível ao ser humano, é possível para Deus: viver sob a lógica
da dádiva-gratuidade – e o próprio Deus empodera o ser humano para
viver sob o signo da impossibilidade. Que fazer para entrar no reino de
Deus? Nada! Ou, melhor, tudo!

4. Lei e Esperança
4.1. A Lei e o Reino: Mc 12,28-34
12,28
Chegando um dos escribas, tendo ouvido a
discussão entre eles e vendo como Jesus havia
respondido bem, perguntou-lhe: ‘Qual é o primeiro
de todos os mandamentos’? 29 Jesus respondeu: ‘O
primeiro é: Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o
único Senhor! 30 Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de
todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu
entendimento e de toda a tua força. 31 O segundo é:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro
18 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
mandamento maior do que estes’. 32 Disse-lhe o escriba:
‘Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que ele é
o único, e não há outro senão ele, 33 e que amar a Deus
de todo o coração e de todo o entendimento e de toda
a força, e amar ao próximo como a si mesmo excede
a todos os holocaustos e sacrifícios’. 34 Vendo Jesus
que ele havia respondido sabiamente, declarou-lhe:
‘Não estás longe do reino de Deus’. E já ninguém mais
ousava interrogá-lo.

A perícope pertence a uma seção iniciada em 11,27 e concluída em 12,44.


A seção é constituída primariamente de controvérsias das autoridades
judaicas que tramavam para se livrar de Jesus sem atrair contra si a
ira da população da cidade. As duas perícopes finais situam Jesus no
Templo e ele ensina a respeito da identidade do Messias e da hipocrisia
de alguns tipos de adoradores de YHWH no Templo.

O que mais chama a atenção na perícope, na seção a que pertence, é


o fato de que este escriba não interroga Jesus como um inimigo, ao
contrário, age como um simpatizante de Jesus. Do ponto de vista da
forma literária esta perícope é peculiar, pois ao invés de uma disputa
ela se apresenta como um diálogo amistoso. A perícope serve como
guia para interpretar a seção, direcionando o seu impacto de sentido e
controlando a tentação de considerar o Judaísmo, como uma ‘religião’
em sua totalidade, enquanto oponente do Reino de Deus. A polêmica de
Jesus se dirige contra as lideranças político-religiosas e contra a elite
econômica de Israel, que, segundo Jesus, tiram proveito da aliança com
YHWH para o seu próprio benefício e para a satisfação de seus próprios
interesses, não considerando a justiça da aliança.

Do ponto de vista da teologia do Reino, é notável na perícope o vínculo


entre o amor a Deus e ao próximo (como a essência da Torá) e o Reino
de Deus. Diante da concordância entre Jesus e o escriba (provavelmente
um fariseu) no tocante ao amor como cumprimento da Torá (e, na
reação do escriba, como superior aos sacrifícios), Jesus afirma que o
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 19
escriba não está longe do Reino de Deus. É esta afirmação de Jesus que
ocupará nossa atenção aqui – de modo que não discutiremos o tópico
central do diálogo entre o escriba e Jesus: a essência do cumprimento
da Torá. Antes de nossa conclusão sobre o tema, vejamos algumas das
interpretações da frase na pesquisa.

O Shemá e o reino de Deus já estavam relacionados no


pensamento judaico, onde recitar o Shemá e o ‘primeiro
mandamento’ dele correlato era entendido como assumir
sobre si o jugo do reino. A declaração de Jesus de que o
escriba ‘não está longe’ do reino é uma afirmação positiva,
jamais repetida a qualquer outra pessoa na narrativa
marcana. Todavia, o escriba [ainda] não está ‘no’ Reino,
que, para Marcos, é uma realidade escatológica, ainda
futura. A linguagem de estar ‘no’ reino só é encontrada
uma vez em Marcos, acerca de sua consumação futura
(14,25: cf. o Excurso: Reino de Deus em 1,15). O escriba
está na mesma situação de José de Arimatéia, outro
líder judeu que responde simpaticamente a Jesus: ele
está preparado para o reino e pode entrar nele quando
chegar (15,43). Todavia, nem o escriba, nem José, são
chamados ‘discípulos’, que depende não somente de
uma avaliação positiva dos ensinos de Jesus, mas de
uma resposta ao próprio Jesus.1

A interpretação de Boring é, em grande medida, adequada. Entretanto, sua


afirmação de que o Reino é uma ‘realidade futura’ e que, consequentemente,
a ‘entrada’ nele só ocorrerá no futuro, não corresponde à tensão espaço-
temporal do Reino no evangelho de Marcos. O erro de Boring é típico
de um hábito da pesquisa histórica: o excesso de concentração na
temporalidade e a consequente negligência da espacialidade. Vejamos
uma segunda interpretação da frase:

1 BORING, M. Eugene. Mark. A Commentary. Louisville: Westminster John Knox


Press, 2006, p. 370. (The New Testament Library)
20 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
A proximidade do escriba ao reino de Deus e seu destino
não são resolvidos no relato. Ele ‘não está longe do
reino de Deus’, no sentido de que ele está na presença
daquele que trouxe o reino de Deus, entende o sentido
e o espírito dos ensinos de Jesus e conhece o caminho
para o reino. Ele, porém, amou a Deus totalmente, de
modo que estivesse disposto a se ‘arrepender e crer no
evangelho’? (1,15); deixar tudo e seguir a Jesus (1,18.20);
negar a si mesmo, tomar a sua cruz e seguir a Jesus?
(8,34). O relato termina sem nos dizer. Isto pode ser
intencional, pois Marcos poderia ter desejado que seus
leitores lutassem com a questão ‘será que eu entrei no
reino de Deus’? A ‘proximidade’ ao reino não é suficiente.
Chegar perto pode ser bom em alguns esportes (arco
e flecha, bocha, etc.), mas é tragicamente inadequado
com respeito ao reino de Deus.2

A visão da temporalidade do Reino, em Stein, é mais adequada do que em


Boring. Todavia, a interpretação de Stein acerca da ‘proximidade’ ao Reino
não considera a dimensão espacial do Reino de Deus que ‘está próximo’.
Ao entender que a ‘proximidade’ não é suficiente (de fato, é tragicamente
insuficiente), ele já definiu que é possível estar ‘dentro’ do Reino e que
estar ‘dentro’ do Reino só é possível para quem segue a Jesus, tornando-
se seu discípulo. Fica a questão, se o Reino ‘está próximo’, por que seria
tão tragicamente insuficiente ‘não estar longe’ dele? Uma interpretação
um pouco mais antiga também vale a pena ser lida:

A resposta de Jesus nos coloca novamente diante de


uma declaração enigmática sobre o reino de Deus. A
ideia é, certamente, de um ambiente no qual a vontade
soberana de Deus será inquestionada e seu reino não
2 STEIN, op. cit., p. 564. Em nota de rodapé ele afirma: “o reino de Deus é retratado
aqui como uma realidade presente, não em sua forma consumada do futuro, pois o fato
de o escriba estar ‘perto’ se refere, não à proximidade cronológica, mas ao fato de que o
escriba estava perto, às portas de entrar no reino que Jesus anunciava como já presente
(ver 1,15). Idem.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 21
desafiado. Mas neste contexto, a frase ‘não estás longe
do Reino de Deus”, deve ser entendida em um sentido
futuro, escatológico, ou Jesus queria que o reino fosse
entendido como uma realidade presente, ou quase
presente? Parece estranho sugerir que o homem
estivesse no caminho de ser considerado aceitável e
pronto para quando o Reino de Deus chegasse, e este
escritor considera impossível resistir à conclusão de
que o Reino de Deus é apresentado por Jesus como
uma realidade presente. O escriba não está longe
do reino de Deus em dois sentidos: ele reconhece a
demanda total da soberania de Deus e, moralmente,
já se submetera a suas demandas, e, também (visto
que o Reino está quase às portas) ele está pronto para
sua manifestação. De considerável importância, em
um nível diferente, é a própria compreensão de Jesus
sobre a chegada iminente do Reino de Deus. Não há,
como dissemos, razão para disputar a autenticidade
deste diálogo. Todavia, entender a resposta de Jesus
como implicando uma escatologia ‘futurista’ parece
estender o sentido de modo insuportável. Portanto,
somos confrontados com mais um dito que acarreta
implicações claras de escatologia ‘realizada’. A
interpretação lucana, e interpretações posteriores, em
termos de uma parousia adiada, entraram na tradição
da teologia cristã, mas não devem ser uma boa razão
para ser recuada até o ensino de Jesus.3

Novamente, a concentração exclusiva na temporalidade complica a


interpretação da perícope. Agora, o autor descarta a possibilidade de, no
evangelho de Marcos, o reino possuir uma dimensão futura e o considera
como totalmente presente ou próximo. Sua apreciação positiva da
‘proximidade’ ao reino, da parte do escriba, é mais interessante do que as
3 MANN, C. S. Mark. A New Translation with Introduction and Commentary. New
York: Doubleday, 1986, p. 481-82. (The Anchor Bible)
22 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
apreciações negativas anteriormente citadas, mas a sua argumentação
ainda não me parece totalmente convincente – devido, primariamente,
à ausência da espacialidade em sua compreensão do ensino de Jesus
sobre o Reino de Deus.

Passemos a duas interpretações que destacam o significado do texto


para a compreensão da messianidade de Jesus.

O encontro se encerra com uma nota irônica: o escriba,


ostensivamente, veio julgar Jesus, mas é Jesus quem
julga o escriba. O escriba está autorizado e equipado
para emitir juízos sobre a lei, mas Jesus possui uma
autoridade maior. Em outra manifestação de sua
soberana autoridade, Jesus declara: ‘tu não estás longe
do reino de Deus’. Esta é uma afirmação impressionante
porque o tema da conversa era a Torá e não o reino de
Deus ou a vida eterna. É difícil imaginar um escriba
comum ou um rabi presumindo emitir juízos sobre tais
assuntos. O escriba pode julgar se uma pessoa é ou não
fiel à Torá. Jesus, porém, que afirma a essência da Torá,
também vai além da Torá – assim como transcende
toda e qualquer formulação confessional ou credal.
Uma pessoa não se aproxima do reino de Deus por
sua teologia apropriada, mas, sim, por se aproximar de
Jesus. Jesus exibe sua autoridade filial e messiânica
ao declarar quem está na soleira do reino de Deus, que
está presente, não na Torá, mas nele mesmo.4

O problema com esta interpretação é a afirmação de que o escriba estava


ostensivamente julgando Jesus e manifestando, assim, sua autoridade.
O escriba se aproxima de Jesus por considerar sua interpretação correta
e tira proveito dessa afinidade – não está emitindo um juízo, mas
iniciando um diálogo. Da mesma forma, Jesus não precisa estabelecer

4 EDWARDS, James R. The Gospel according to Mark. Grand Rapids: Eerdmans,


2002, p. 309. (The Pillar New Testament Commentary)
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 23
sua autoridade messiânica ao pronunciar um juízo sobre a condição
do escriba. A interpretação de Edwards revela muito mais a sua própria
teologia e ambiente eclesiástico do que uma compreensão contextual do
diálogo presente na perícope. Sua ideia de que um escriba pronunciaria
juízos sobre a Torá e que tais juízos não teriam a ver nem com o Reino
de Deus nem com a vida eterna é uma visão equivocada da relação entre
estes três temas e da autoimagem que escribas tinham a respeito de
si mesmos como ‘juízes’ de Israel ou dos gentios. Ora, se alguém não
cumpre a lei, está fora do Reino e fora da vida eterna – é claro, na visão
do Judaísmo oficial de fariseus e saduceus. Em contraste com a visão de
Edwards temos a interpretação de Cranfield:

οὐ μακρὰν εἶ ἀπὸ τῆς βασιλείας τοῦ θεοῦ. Um indício


do segredo do reino de Deus, calculado, sem dúvida,
para estimular a reflexão. Teria o escriba sido capaz
de entender a afirmação como expressando que ele
não estava longe do Reino de Deus porque estava na
presença de e, aparentemente, já de alguma forma
atraído àquele em cuja pessoa e atividade o reino se
aproximara do ser humano, daquele que é, ele mesmo,
aὐto βασιλεία (ver sobre 1,15).5
Cranfield não se preocupa com questões de autoridade (como Edwards),
nem com questões de temporalidade (como as outras citações acima).
Ele vê o diálogo como um encontro entre duas pessoas com uma forte
afinidade em sua compreensão da Torá, duas pessoas que recomendam
uma à outra e reconhecem mutuamente seu lugar perante a palavra de
YHWH. Finalizo com uma citação de Moloney, que procura situar melhor
a perícope no conjunto do evangelho de Marcos:

Este é o único lugar no Evangelho onde um líder


concorda com Jesus. A aceitação das palavras de
Jesus, e sua interpretação delas, mostra que ele

5 CRANFIELD, Charles E. B. The Gospel according to Saint Mark. An Introduction


and Commentary. Cambridge: Cambridge University Press, 1959, p. 380. (The Cambridge
Greek Testament Commentary)
24 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
respondeu ‘sabiamente’. Jesus anuncia ao escriba:
‘não estás longe do reino de Deus’ (12,34ª). De acordo
com a agenda estabelecida em 1,15 (‘arrependei-vos e
crede no evangelho’), a aceitação da palavra de jesus
pelo escriba o aproxima do reino. Dentro do contexto
literário de hostilidade entre Jesus e os líderes judeus,
o movimento deste escriba em direção ao reino mostra
que os judeus, como tais, não estão excluídos do reino.
Eles também são chamados a ouvir a palavra e aceitá-
la. À medida em que o Evangelho chega a seu fim, esta
‘proximidade’ também pode estar relacionada à vinda
iminente do reino com poder na morte e ressurreição
de Jesus, prometida a ‘alguns que aqui estão’, em 9,1. O
escriba, ao aceitar a palavra de Jesus, une-se a outros
enquanto o reino se aproxima.6

A interpretação de Moloney é, a meu ver, a mais adequada. A frase


de Jesus pode ser vista como uma figura de linguagem que “consiste
em atenuar a expressão do pensamento sem o prejudicar em sua
essência; a forma mais comum de lítotes consiste em sugerir uma ideia
pela negação do seu contrário”.7 Ele é um dos poucos intérpretes que
compreendem que a ‘vinda do reino com poder’ não se refere à parousia,
mas, primariamente, à morte e ressurreição de Jesus, e esta é a chave
para entender a espaçotemporalidade do Reino e, consequentemente, a
‘entrada’ das pessoas no âmbito do poder soberano de Deus.

Ao situar a leitura da perícope na sua subseção no Evangelho, Moloney


também nos ajuda a enfrentar o problema de considerar o Cristianismo
como a religião verdadeira que substitui a falsa religião do Judaísmo. No
contexto de escrita e leitura do Evangelho, certamente o conflito com o
Judaísmo era intenso e seria necessário reafirmar que seguir a Jesus
não significava romper com o Judaísmo, mas romper com o pecado e
assumir a soberania libertadora de Deus.

6 Moloney, Francis J. SDB. The Gospel of Mark: A Commentary. Grand Rapids:


Baker, 2002, l. 9209-9216. Edição do Kindle.
7 Dicionário Michaelis, http://michaelis.uol.com.br busca?r=0&f=0&t=0&palavra=l%C3%ADtotes
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 25
4.2. A esperança do Reino: Mc 14,22-25
14,22
E, enquanto comiam, tomou Jesus um pão e,
abençoando-o, o partiu e lhes deu, dizendo: Tomai, isto
é o meu corpo. 23 A seguir, tomou Jesus um cálice e,
tendo dado graças, o deu aos seus discípulos; e todos
beberam dele. 24 Então, lhes disse: Isto é o meu sangue,
o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de
muitos. 25 Em verdade vos digo que jamais beberei do
fruto da videira, até àquele dia em que o hei de beber,
novo, no reino de Deus.

Esta perícope, do ponto de vista de nossa reflexão sobre o reino de


Deus, é de espantosa simplicidade. Jesus afirma que, em um futuro
desconhecido, ele irá beber vinho novamente ‘no Reino de Deus’. O Reino
é uma realidade liminar, sua espaço-temporalidade é a da presença-
ausência - dele não podemos afirmar literalmente que ‘ainda não veio’,
nem que ‘já está aqui’. A proximidade caracteriza a natureza do Reino
anunciado por Jesus. Vivemos nele, mas não deixamos de ter esperança
em uma vida ainda mais plena e ampla nele. Não como uma negação dos
limites da vida aqui e agora. Não como uma negação do futuro mediante
uma eternidade estática eternamente presente a si mesma.

A esperança é a nossa vitória contra a tirania do presente-presença, da


presença-presente. A esperança é a vitória contra o enclausuramento do
passado no passado, ou seu aprisionamento no presente. Na esperança
conjugamos os verbos em sua ampla temporalidade: passado, presente
e futuro. Mais, talvez melhor ainda: conjugamos os verbos em sua trans-
temporalidade – o agir como aoristo (literalmente: sem limites), onde
(e aqui o espaço se encontra com o tempo) passado, presente e futuro
se mesclam, um tanto quanto caoticamente, no viver fiel ao reino que
sempre está próximo.

26 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


UNIDADE II - O Messias Jesus: Um olhar paulino

1. Questões introdutórias
1.1. Como estudar
Nosso tema agora será o conceito de Messias nos escritos paulinos.
Na linguagem mais tradicional da teologia, nosso tema é a cristologia
paulina. Ao estudar o tema do Messias, é importante partir do Novo
Testamento para o Antigo, já que os conceitos do Novo Testamento
são construídos a partir do Antigo e os conceitos do Antigo são relidos
em o Novo Testamento. Embora a Teologia Bíblica tenha seu foco no
significado teológico de temas da própria Escritura, não podemos deixar
de refletir sobre esse significado para os nossos dias e para nossa
própria vida. Por isso, além de estudar o conceito nos tempos bíblicos,
refletiremos sobre como viver messianicamente hoje!

Não custa lembrar você que, ao ler textos paulinos hoje, não temos como
evitar que vinte séculos de história da igreja se coloquem entre nós.
Inevitavelmente, nossa compreensão do texto já é marcada pelo ‘que
sabemos’. Ora, o ideal da teologia bíblica é voltar ao sentido dado pelo
autor do texto. Isso, porém, não quer dizer que a cada vez que lemos os
textos de Paulo temos de começar de novo, como se essa história fosse
meramente uma história de fracassos. Bem o contrário disso! Não é mais
possível voltar à pureza original do texto, como se fôssemos fariseus
rigoristas discutindo as mãos tornadas impuras pelo trabalho com o
texto. De uma forma ou de outra, o que aprendemos ao longo desses
vinte séculos permanece conosco quando lemos os textos que servem
de fonte para a nossa tradição. No caso da cristologia, essa tradição
possui alguns elementos que devem ser trazidos à tona, a fim de que o
mundo de pensamento paulino fique um pouco mais claro para nós.

(1) Cristo, que para nós é um nome próprio, ou, às vezes, um título, era
uma designação de honra nos tempos paulinos, quer fosse usado como
nome, quer como título;
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 27
(2) Cristo, para nós, é identificado como a segunda pessoa da Trindade,
mas nos tempos de Paulo essa identificação conceitual ainda não existia;

(3) Cristo, para nós, é o salvador da humanidade e fundador das Igrejas


Cristãs, de modo que sempre associamos o seu nome a uma história
institucional religiosa, história que, obviamente, sequer havia começado
nos tempos paulinos;

(4) citando Emmanuel Levinas: “várias páginas deste capítulo, de


fato, apresentam uma profusão de teses que lidam com a noção de
messianismo. Esta noção é complexa e difícil; somente a opinião
popular a considera simples. O conceito popular do Messias – traduzido
inteiramente em termos de percepção concreta, no mesmo nível da nossa
relação diária com as coisas – não satisfaz o pensamento. Falhamos
em dizer algo significativo sobre o Messias se o representamos como
uma pessoa que vem colocar um fim miraculoso à violência no mundo,
à injustiça e contradições que destroem a humanidade, mas têm sua
fonte na natureza da humanidade, e, simplesmente, na Natureza. Porém
a opinião popular retém o poder emocional do ideal messiânico, e
abusamos diariamente deste termo e de seu poder emocional”. (LEVINAS,
Emmanuel. Difficult freedom: essays on Judaism. Baltimore: JHU Press,
1997, p. 59.)

Assim, ao estudarmos a noção de Messias, devemos estar abertos a


aprender com as fontes, a nos surpreender com as mesmas, ao invés de
enxergarmos nelas apenas aquilo que já sabemos.

1.2. Messias na Escritura e na Tradição Judaica


Na Escritura judaica (nosso Antigo Testamento), a palavra messias
praticamente não é usada ainda como substantivo, mas como adjetivo
– a pessoa ungida, de modo que o verbo e a forma nominal apontam
primariamente para uma função específica para a qual a pessoa é ungida,
e não para a pessoa enquanto tal, ou para uma função propriamente
messiânica. A ideia messiânica é mais tipicamente parte da tradição

28 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


judaica pós-bíblica no período do Segundo Templo, enquanto na Escritura
se aplica mais à atuação de um novo rei que acede ao trono (e é ungido
para reinar).

O verbo mshh significa ungir, normalmente com óleo, ou seja, molhar


uma parte do corpo da pessoa com o líquido apropriado. Embora haja
um número significativo de usos litúrgicos para o termo, a utilização mais
comum tem a ver com a unção para reinar. Com menor frequência se fala
da unção do sumo-sacerdote e de sacerdotes em geral (cf. Lv. 4,3.5.16;
6,15; Dn 9,25s.f; Êx 2,41; 30,30; Lv 7,36; etc.), uma vez apenas com relação
a profetas (1Rs 19,16; cp. Is 61,1); bem como objetos sagrados (Êx 29,36;
Lv 8,11; Nm 7,1.10.84.88). Já o termo messias, propriamente dito, é usado
38 vezes no AT, sendo 30 referências ao rei, seis ao sumo-sacerdote, e
duas vezes aos “pais” e, no caso dos reis, predominante o termo é usado
com referência a Davi e sua dinastia. Em Is 45,1 ressalta a atribuição
do termo ao persa Ciro, rei que conquista a Babilônia e mantém Israel
subjugado ao seu Império.

No caso dos reis, já desde o período anterior à dominação babilônica


podemos ver nos textos bíblicos a noção de que um rei davidida irá libertar
Israel da dominação estrangeira e iniciar um período de prosperidade e
paz – ideia presente principalmente nos chamados Salmos reais (2, 21,
89, 110, 132), e no livro de Isaías, no qual 9,5 parece ser o mais antigo
texto real-messiânico do AT. A ideia de um rei davidida que libertará o
povo de Deus é mais rara em Jeremias e Ezequiel, e reaparece em Ageu e
Zacarias, já após a dominação babilônica. Ou seja, no período do Segundo
Templo, com o fim da dinastia davídica sobre o trono em Judá, a função
messiânica se descola do rei e passa a assumir contornos próprios –
mesmo quando o substantivo não é usado.

No caso da tradição e escritos judaicos não canônicos do período do


Segundo Templo, a ideia do Messias como um libertador de Israel se torna
proeminente (e será objeto de vários textos a seguir), e, normalmente, “se
a referência é a um futuro redentor, o que está em vista é um indivíduo
comissionado divinamente que desempenhará um papel na realização da
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 29
salvação esperada. Se, porém, a referência é a um Messias, então o que
temos é um futuro salvador ou redentor que é descrito expressamente
como ‘o ungido’ nos textos” (TDNT). Embora o termo se aplique também
a sacerdotes e profetas no período, ainda é ao rei que o termo se aplica
primariamente, de modo que a expectativa messiânica fundamental tem a
ver com a libertação político-social de Israel mediante a força militar de um
monarca, de modo que a ideia de Messias (e o consequente messianismo)
possui uma conotação predominantemente política e nacionalista.

Entretanto, já na Escritura a ideia de um Messias não-político não é de


todo ausente, e mesmo na tradição rabínica posterior ao segundo século
d.C. pelo menos um rabi, Hillel (não o famoso rabi com o mesmo nome no
primeiro século), afirma que “não haverá Messias para Israel, porque eles
já o desfrutaram nos dias de Ezequias”. Levinas entende essa afirmação
do seguinte modo:

sua tese se conforma a uma antiga tradição. Não estou


dizendo que essa é a única tradição do Judaísmo. Quer
o Messias seja um homem, quer um rei, salvação pelo
Messias é salvação por procuração. Na medida em
que o Messias é um rei, a salvação pelo Messias não é
uma em que cada pessoa é salva individualmente, pois
ela supõe que entremos no jogo político. Salvação pelo
rei, mesmo se ele for o Messias, não é ainda a salvação
suprema aberta ao ser humano. O messianismo é
político, e sua plenitude pertence ao passado – esta é a
força da posição do R. Hillel”. (LEVINAS, E. op. cit., p. 83.)

Assim, vemos que a noção básica presente no termo Messias está ligada
ao exercício de uma função, divinamente apontada, e que essa função é,
primariamente, a do rei – guerrear as guerras de libertação de seu povo,
em nome de Deus. Entretanto, as Escrituras e a tradição judaica em geral,
possuem abertura suficiente para dar à ideia do Messias uma pluralidade
de aspectos, conforme veremos no decurso desta disciplina.

30 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


1.3. A ideia do Messias em Paulo
A noção de Messias, em o Novo Testamento, possui uma variedade de
nuanças, assim como no caso do Judaísmo. A pesquisa neotestamentária
teve momentos em que chegou até a questionar a viabilidade do uso
da categoria, ou, então, apontou para um messianismo quase que
exclusivamente não-monárquico. Na maior parte dos casos, a pesquisa
se concentrou no próprio Jesus (histórico e dos Evangelhos), mas com
uma boa quantidade de textos tratado do tema nos escritos paulinos.
O debate continua, mas “a discussão recente sobre o Messias tende,
mais e mais, a endossar a imagem do Messias davídico ou real como
uma imagem predominante, embora, em vários graus, não negligencia
as dimensões profética, sacerdotal e serviçal” (PORTER, Stanley E.
“Introduction”. In: PORTER, Stanley E. (ed.) The Messiah in the Old and
New Testaments. Grand Rapids: Eerdmans, 2007, p. 4.). De modo similar,
a visão messiânica de Paulo tem sido retomada na pesquisa filosófica
europeia recente, especialmente em escritos da chamada filosofia
política.

1.3.1. A confissão do Senhorio do Messias Jesus


Um dos temas centrais da teologia paulina é a confissão de que o Messias
é Senhor, o único Senhor sobre céus e terra. Essa confissão, no período da
vida de Paulo, evocava sentidos distintos para judeus e gentios. (1) Para
judeus, a palavra grega kyrios (Senhor) trazia à lembrança o nome inefável
do próprio Deus de Israel (YHWH), que, na Septuaginta era traduzido pela
palavra Senhor; (2) para gentios, o termo Senhor era um dos títulos de
governantes regionais e de imperadores romanos, que podiam exigir de
qualquer habitante do Império a confissão pública “César é o Senhor”,
como prova de lealdade; (3) para judeus e gentios, igualmente, a palavra
Senhor também lembrava o “dono de escravos”, que era assim tratado
pelos que o serviam. É em diálogo com esse contexto que Paulo constrói
teologicamente o sentido do Senhorio do Messias. Vejamos uma síntese
do uso do termo kyrios entre os gentios da época de Paulo:
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 31
Além dos soberanos, altos oficiais também podiam
receber este título (Senhor). [...] kyrios se empregava
a respeito dos deuses quando, no pensamento e na
conversa populares contemporâneas eram referidos
como “senhores”. [...] Onde kyrios se empregava acerca
de um deus, o servo que assim falava ficava numa
relação pessoal de responsabilidade para com o deus,
que, da sua parte, exercia a autoridade pessoal. [...] Os
deuses individuais eram adorados como senhores das
suas comunidades cultuais, e dos membros individuais
da confraternidade. Não se excluía a adoração a
outros senhores, pois nenhum deles era visualizado ou
adorado como senhor universal.” Alguns imperadores
romanos usavam o título kyrios, “o título, de si mesmo e
por si, não chama o imperador de deus; quando, porém,
ele é adorado como divino, o título Senhor também
conta como predicado divino”(BROWN, Colin (ed.).
Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984, vol.
IV, p. 423s.).

Note, agora, o uso do termo kyrios na LXX (você se lembra desta


sigla? Significa Setenta e se refere à tradução grega da Bíblia Hebraica,
conhecida como Septuaginta):

Na maioria esmagadora dos casos, porém, kyrios


substitui o nome próprio hebraico de Deus, o
tetragrama YHWH (as letras do nome de Deus, que
os judeus não pronunciavam em voz alta). [...] Onde
kyrios representa ‘adon ou ‘adonay, houve tradução
genuína; onde, do outro lado, representa Javé, é uma
circunlocução interpretativa de tudo quanto o texto
hebraico subentende com o emprego do nome divino:
Javé é Criador e Senhor da totalidade do universo, dos
32 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
homens, Senhor da vida e da morte. Acima de tudo,
é o Deus de Israel, o Seu povo da aliança. [...] Como
criador do mundo, também é Senhor dele, com controle
ilimitado sobre ele” (BROWN, Colin (ed.). op. cit., vol. IV,
p. 424s.).

O uso do termo kyrios por Paulo é bastante amplo. Vejamos apenas dois
exemplos:

O primeiro exemplo vem de um hino: “Tende em vós aquele sentimento


que houve também no Messias Jesus: o qual, subsistindo em forma de
Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar,
mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se
semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a
si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que
também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre
todo nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que
estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que
o Messias Jesus é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2,5-11).

Neste hino messiânico, vemos o percurso peculiar da noção paulina do


senhorio: para ser Senhor sobre toda a criação, o Filho Jesus passou pelo
auto-esvaziamento de sua condição divina; assumiu a condição humana;
tornou-se dentre os humanos o mais rebaixado e injustiça; morreu
pelos pecadores. A sua ressurreição não anula os passos anteriores do
percurso, pelo contrário, os confirma. Jesus é Senhor porque se tornou
o último.

O segundo exemplo vem de uma discussão teológica: “Mas na realidade


o Messias foi ressuscitado dentre os mortos, sendo ele as primícias dos
que dormem. Porque, assim como por um homem veio a morte, também
por um homem veio a ressurreição dos mortos. Pois como em Adão
todos morrem, do mesmo modo no Messias todos serão vivificados.
Cada um, porém, na sua ordem: Messias as primícias, depois os que são
do Messias, na sua vinda. Então virá o fim quando ele entregar o reino a
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 33
Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio, e toda autoridade e
todo poder. Pois é necessário que ele reine até que haja posto todos os
inimigos debaixo de seus pés. Ora, o último inimigo a ser destruído é a
morte. Pois se lê: todas as coisas sujeitou debaixo de seus pés. Mas,
quando diz: Todas as coisas lhe estão sujeitas, claro está que se excetua
aquele que lhe sujeitou todas as coisas. E, quando todas as coisas lhe
estiverem sujeitas, então também o próprio Filho se sujeitará àquele que
todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos” (I Co
15,20-28).

Aqui, o percurso do senhorio do Messias é descrito a partir da ressurreição.


Ela é um passo necessário na constituição de sua soberania, na medida
em que ela é a vitória definitiva sobre a morte e, simultaneamente, é a
expressão mais evidente de sua submissão ao Pai. Senhor, então, não
é aquele que comanda – é aquele que serve e, servindo, outorga vida a
toda a criação.

1.3.2. As dimensões do Senhorio do Messias Jesus


No discurso teológico paulino sobre o senhorio de Jesus, podemos
perceber, então, diferentes dimensões da soberania do Messias:

Dimensão Político-Identitária
A afirmação de que Jesus é o Senhor destaca a divindade do Messias
Jesus. Ele é o próprio YHWH, o Deus de Israel e de todas as nações.
De modo semelhante, afirma a soberania do Messias sobre todos os
poderes e senhorios da “criação” e mostra que é um senhorio de tipo
diferente do exercido pelos imperadores e pelos donos de escravos, pois
é a soberania do amor libertador divino. Jesus é Senhor porque morre na
cruz pelos inimigos de Deus – não é Senhor porque derrota os inimigos
na batalha. A identidade do Messias Jesus é uma identidade soberana,
do soberano que liberta. Como kyrios, Jesus é o imperador de toda a
criação. Ao invés de César, somente Jesus é kyrios, somente Ele é o
Senhor de todas as pessoas e de todas as coisas. Diferentemente do
34 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
senhorio de César, o senhorio do Messias Jesus não se realiza mediante
a dominação e a morte, mas mediante a libertação e a oferta de vida.

Dimensão Escatológica
O Messias exerce Seu senhorio em completa obediência ao Pai, a quem
entregará o Reino após ter destruído todos os seus inimigos: o pecado, a
carne, Satanás e, por fim, a morte. Que o Senhor seja, ao mesmo tempo,
obediente, nos revela a verdadeira natureza do poder: servir a Deus,
trazendo vida à Sua criação. Que a morte seja o último dos inimigos
a ser destruído pelo Filho nos revela a predileção de Deus pela vida e
vida plena para a Sua criação. O reconhecimento universal de que o
Messias é o Senhor é a razão da esperança cristã. Aguardamos, ansiosa
e alegremente, o glorioso dia em que todo joelho se dobrará e toda língua
confessará que o Messias Jesus é o Senhor. Esse reconhecimento
universal será mais um testemunho do Senhorio do Messias Jesus, que
sendo Deus, esvaziou-se a Si mesmo, e assumiu a natureza humana e a
condição de escravo, obediente até a morte e morte de cruz.

Dimensão Soteriológica
O percurso do senhorio, iniciado na encarnação, possibilita ao escravo
Messias criar as condições para que o mundo criado por Deus possa
experimentar a liberdade nele. O reconhecimento de que uma pessoa se
tornou cristã é medido pela fidelidade ao Messias-Soberano, pela entrega
da sua própria subjetividade e identidade ao único Senhor que possibilita
uma nova vida. A confissão de que o Messias é o Senhor, publicamente
expressa pelo crente através de palavras e obras, é o sinal de sua
conversão e entrada no Reino do Filho amado. Consequentemente, a
espiritualidade cristã tem como cerne, ou núcleo, a entrega de vida ao
Messias, o andar nEle. Ser espiritual significa, basicamente, viver e morrer
para o Messias e como o Messias Jesus – mediante a ação do Espírito
de Deus em nós e através de nós. Sendo Ele o único Senhor podemos
viver em plena e perfeita liberdade.

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 35


Para sua reflexão:
Assim como a noção paulina da universalidade do Evangelho é
peculiar no universo discursivo helenístico, também a noção do
senhorio do Messias é peculiar no mesmo universo. Assim como
corremos o risco de confundir a universalidade do Evangelho com a
expansão da Igreja, podemos confundir o Senhorio do Messias com a
expansão do poder religioso ou eclesiástico. O senhorio do Messias
reinventa a noção e o exercício de poder, fazendo dele uma ação
emancipadora e não dominadora. Quando a Igreja faz do Senhorio
do Messias uma arma de conquista, está negando a teologia bíblica
do poder libertador do soberano do universo.

2. O Messias em Filipenses
2.1. A cidadania messiânica - Fp 1,27-2,4
1,27
Vivei a vossa cidadania, acima de tudo, de modo
digno do evangelho do Messias, para que, ou indo ver-
vos ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros,
que estais firmes em um só espírito, como uma só alma,
competindo juntos em prol da fidelidade do evangelho,
28
e que em nada estais intimidados pelos adversários.
Pois o que é para eles prova evidente de perdição é,
para vós outros, de salvação, e isto da parte de Deus.
29
Porque vos foi concedida a graça de padecerdes pelo
Messias e não somente de crerdes nele, 30 pois tendes
o mesmo combate que vistes em mim e, ainda agora,
ouvis que é o meu.

Se há, pois, alguma exortação no Messias, alguma


2,1

consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se


há entranhados afetos e misericórdias, 2 completai a
36 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
minha alegria, de modo que penseis a mesma coisa,
tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo
o mesmo sentimento. 3 Nada façais por partidarismo
ou vanglória, mas por humildade, considerando cada
um os outros superiores a si mesmo. 4 Não tenha cada
um em vista o que é propriamente seu, senão também
cada qual o que é dos outros.

É o prisioneiro Paulo que exorta as comunidades messiânicas de Filipos


a exercer sua cidadania de modo digno do evangelho do Messias. A
ironia é fina e sutil – um prisioneiro não é, em tese, bom cidadão, mas
exatamente por ser prisioneiro do Império, por amor ao Messias, é
que Paulo pode apresentar sua vida como exemplo de cidadania e, a
partir de seu próprio testemunho, exortar as comunidades ao exercício
da cidadania messiânica. O foco da exortação paulina recai sobre a
cooperação e a unidade das comunidades. No caso da cooperação, o
pensamento é construído a partir da metáfora da competição atlética.
No estilo de vida messiânico a comunidade deve agir como um time –
em cooperação mútua, todos atuando para chegar ao mesmo objetivo,
seguindo adequadamente as regras da competição. Neste caso, a
competição é o testemunho cidadão do evangelho do Messias.

Podemos imaginar a cena entre duas equipes disputando os jogos


olímpicos, cada qual representando a sua cidade (polis), dando o melhor
de si para alcançar a coroa da vitória (a medalha de outro, hoje em dia).
Assim é a vida da comunidade messiânica – no que tange à vida e
missão da igreja, os interesses pessoais devem ser deixados de lado,
e o projeto comunitário deve ser assumido e desenvolvido por todos os
membros, sem exceção. A ação missionária da comunidade, como a
de Paulo, certamente sofrerá oposição, os adversários tentarão de tudo
para vencer, mesmo usando de recursos ilegais ou antiéticos. Na arena,
o atleta sofre para conseguir realizar a sua prova, assim também na
vida cotidiana a comunidade messiânica sofre a oposição dos que não
desejam viver a cidadania messiânica, contentando-se com a cidadania
de seu próprio tempo, sem considerar as injustiças nela presentes.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 37
Aqui, como em vários outros lugares de suas cartas, Paulo aponta o fato
de que seguir o Messias implica em sofrer, em passar por perseguições,
privações, problemas de todos os tipos causados pelos confrontos entre
a ética do amor e as éticas do dever ou do poder nas sociedades em que
as comunidades estão inseridas. É evidente, porém, que esse sofrimento
só existirá se a comunidade for efetivamente messiânica, ou seja, se
seu estilo de vida não se conformar com o estilo de vida deste mundo.
Doutra forma, ao invés de sofrimento, a comunidade receberá os elogios
do mundo ao seu redor. O critério da cidadania messiânica é a fidelidade
do Evangelho – e podemos tirar proveito da ambiguidade da construção
genitiva no grego: (a) a fidelidade gerada pelo evangelho, e (b) a fidelidade
cujo conteúdo é o evangelho. Assim, a cidadania messiânica não se
contrapõe às cidadanias terrenas, mas as impregna, imanentemente,
com uma nova qualidade: a do serviço ao próximo.

A exortação se encerra com um apelo apaixonado pela unidade da


comunidade, pelo que podemos supor que houvessem discórdias entre
os cristãos. Como disputar a competição se o time está desunido, cheio
de rivalidades internas, cada um buscando o seu próprio lucro? Sabemos
bem o que ocorre com um time quando há tal quadro – é derrota e
rebaixamento na certa. Assim, o primeiro vislumbre que temos do estilo
de vida messiânico é o da cidadania cooperativa em prol do evangelho
e de modo digno do evangelho. O testemunho do Messias Jesus é o
eixo ao redor do qual podemos construir o estilo de vida messiânico –
desta forma, fazem pouco sentido as distinções classificatórias entre
ética, espiritualidade e missão. No estilo de vida messiânico as três são
componentes de uma e a mesma realidade: viver como o Messias viveu!

2.2. O Hino Messiânico: Fp 2,5-11


“Tende em vós o mesmo pensamento que houve também no Messias
Jesus: O qual, existindo em forma de Deus, não julgou como usurpação
o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma
de escravo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em
figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à
morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou acima de tudo
38 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de
Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda
língua confesse que o Messias Jesus é Senhor, para glória de Deus Pai.”

Esta é uma das passagens mais belas das cartas paulinas em sua
descrição da messianidade de Jesus. Não poderemos discutir todos os
aspectos exegéticos e teológicos da mesma, por isso focaremos aqui
na natureza da messianidade. Aqui é estabelecido um contraste entre
a vida terrena de Jesus e sua vida após a ressurreição. O contraste não
tem a ver com a origem (davídica), mas com o modo em que o Messias-
Deus vem à terra e aqui vive na carne. Vejamos: “antes, a si mesmo se
esvaziou, assumindo a forma de escravo, tornando-se em semelhança
de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou,
tornando-se obediente até à morte e morte de cruz”. Está pressuposto,
aqui, conforme o verso anterior, que Jesus existia, antes da encarnação,
como Deus – é claro que ainda não temos aqui uma expressão conceitual
clara da “trindade”, mas podemos perceber claramente a pluralidade
interna do modo de ser de YHWH.

Encontramos dois verbos que explicam a ação do Deus-Filho com


vistas a sua atuação como o Messias Jesus: esvaziou-se e humilhou-
se. Ambos os verbos estão sendo usados em uma voz gramatical
que destaca Jesus como agente e não como paciente dessas ações.
Estes verbos, especialmente o primeiro, possuem uma longa história
na teologia cristã, servindo como bases da reflexão sobre a kenosis
do Filho – o esvaziamento ou auto humilhação. Não cabe, na pesquisa
exegética, especular (no bom sentido) sobre o objeto do verbo esvaziar-
se (da natureza divina, da glória divina, do poder divino), o texto do hino
aponta para o esvaziamento da morphe theou (forma essencial de Deus),
correlata à assunção da schemati anthropos (forma exterior do humano).
Normalmente se interpreta o verbo como referência à encarnação (cp. Jo
1,14ss), mas no contexto do hino certamente se refere a todo o evento-
Messias: sua encarnação, vida, morte, ressurreição e ascensão. O Deus-
Filho se fez humano, plenamente humano! Ou, como disse um antigo pai
da Igreja: “humano assim só podia ser Deus”.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 39
Três orações subordinadas completam o sentido do esvaziamento e
humilhação do Messias: assumindo a forma de escravo, tornando-se em
semelhança de homens e tornando-se obediente até à morte e morte
de cruz. O esvaziamento-humilhação do Filho de Deus foi tão completo
que ele assumiu, não só a condição humana, mas, dentro da condição
humana, a posição de escravo – ou seja, a condição de nada (podemos
pensar no escravo como o ser humano esvaziado de todos os seus direitos
e identidade). Como humano-escravo, foi obediente a Deus a ponto de
morrer na cruz. O rebaixamento foi completo – e assim se encerra a
primeira parte do hino. Para cumprir suas promessas a Abraão, em prol
de toda a humanidade, Deus mesmo se torna ser humano e morre para
libertar a humanidade da escravidão e do pecado. O destaque à expressão
“morte de cruz” aponta para a condição dessa morte como uma execução,
como fruto de uma maldição . A ‘morte de Deus’ é a vida da criação.

Uso propositadamente uma frase paradoxal e ambígua. Não quero, com ela,
dizer que o Pai morreu, mas que Deus foi crucificado (na pessoa ou na forma
do Filho). Uma leitura interessante da kenosis (palavra grega que significa
‘esvaziamento’), em viés filosófico, tem sido feita por Gianni Vattimo.
De acordo com ele, a kenosis representa o despojar de
Deus de todos os atributos que o caracterizavam como
supremo, onipotente, distante e inacessível à razão. Na
kenosis está presente toda noção de distanciamento
do sagrado e de perda de religiosidade. Mas nela está
presente também outra informação importante para a
construção da noção de desecularização vattimiana,
a saber, a historização da salvação. Deus, ao se fazer
homem em Jesus, trouxe a salvação para o contexto
da história. A kenosis, portanto, é a expressão
máxima da secularização de Deus e, por conseguinte,
se torna também, no paradigma de toda forma de
enfraquecimento. (SILVA, Marcos P. N. “Kenosis e
secularização no pensamento de Gianni Vattimo”.
In: http://pt.scribd.com/doc/79963288/Kenosis-e-
secularizacao-no-pensamento-de-Gianni-Vattimo.)
40 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
Na segunda parte do hino temos a inversão da condição rebaixada do
Messias (vemos aqui o mesmo movimento de Rm 1,3-4, contrastando as
condições terrena e pós-terrena do Messias Jesus). Como consequência
de sua obediência, ele foi exaltado pelo Pai, e recebeu nome acima de
todo nome (para o escravo-nada, sem nome próprio, essa é a forma mais
elevada possível de recompensa), de modo que reassume sua condição
como Senhor de toda a criação – um Senhor diferente dos senhores
deste mundo: um Senhor libertador (Ef 1,20-23; Hb 1,1ss).

A confissão de que Jesus é Senhor, no verso 11, é formulada a partir


da citação de Is 45,23. A singularidade de YHWH como Deus criador e
Senhor de todos os povos é “transferida” para o Filho, Messias singular,
Senhor de todos os poderes, nos céus e na terra. Este é um bom lugar
para encerrar a descrição paulina da messianidade de Jesus. Jesus é um
Messias único, não é à toa que muitos, em seu tempo, não o reconheceram
como tal – como ver no escravo-nada o Messias-Senhor? Como ver no
homem-morto o Deus-vivo?

2.3. Alegria e Reflexão: Fp 4,4-9


4
Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-
vos. 5 Seja a vossa equidade conhecida por todas as
pessoas. Perto está o Senhor. 6 Não andeis ansiosos de
coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante
de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica,
com ações de graças. 7 E a paz de Deus, que excede todo
o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa
mente em Cristo Jesus. 8 Finalmente, irmãos, tudo o que
é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo,
tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa
fama, se alguma virtude há e se alguma honra existe, seja
isso o que ocupe o vosso pensamento. 9 O que também
aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim,
isso praticai; e o Deus da paz será convosco.

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 41


O texto parece uma lista desconexa de imperativos, porém, como destaca
Hansen, “estes mandamentos estão integralmente relacionados com os
grandes temas da carta e com as condições específicas da igreja em Filipos.
Estas diretrizes guiam a igreja para ser ‘um corpo alternativo, governado
por um diferente Senhor, ao corpo político constituído pelos cidadãos
de Filipos sob o domínio de César’. O conselho prático de Paulo orienta a
formação espiritual dos cidadãos do céu” (HANSEN, Walter G. The Letter to
the Phillipians. Grand Rapids: Eerdmans, 2009, p. 260.). Em nossos termos,
eu diria que estes conselhos dão uma pequena mostra do que significa
construir uma nova subjetividade messiânica, um novo modo de ser e de
viver no mundo sob a força e a mentalidade do Messias. Vejamos em que
consistem, basicamente, esses pequenos tijolos do novo estilo de vida.

Alegrai-vos sempre no Senhor. Alegria, contentamento, felicidade, são


estados passionais que todo ser humano busca, deseja e se esforça por
atingir e manter. A alegria é a paixão humana que nos mantém motivados
para viver e agir, com contentamento, disposição, satisfeitos. O que
caracteriza a alegria messiânica, porém, é que ela tem como critério
e ambiente o próprio Senhor. Ou seja, o motivo da alegria não são as
circunstâncias mutáveis da vida cotidiana, mas o permanente amor
libertador do Senhor de todos os céus e terra. É alegria, assim, duradoura, e
não efêmera. Não é uma alegria que dependa de objetos, mas sua realidade
é constante e permanente – porque está no Senhor e é o próprio Senhor!

Seja a vossa equidade conhecida por todas as pessoas. O termo grego


traduzido por equidade possui várias conotações, que vão desde a
mansidão e tolerância, até a bondade e a gentileza. Optei pelo termo
equidade a fim de ressaltar essa pluralidade de sentidos da palavra. Uma
pessoa equitativa não luta por direitos que não lhe cabem, mas também
não se deixa subjugar por injustiças. Não exagera em suas convicções,
nem desmerece as de outras pessoas, mas sabe enxergar as diferenças
e tolerá-las sempre que possível e necessário. É gentil, generosa, convive
bem com todos os tipos de pessoas – e é essa universalidade de
disposição para bons relacionamentos que o texto ressalta.
42 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
Não andeis ansiosos de coisa alguma ... A ansiedade é o oposto da alegria.
A paixão da ansiedade ocorre quando não conseguimos os objetos ou
objetivos que desejamos. Entretanto, quem vive na alegria do Senhor, não
precisa, nem deve, ficar ansioso, preocupado (cf. o conselho de Jesus
no Sermão do Monte), ou assoberbado pelas coisas da vida. Antes, ao
invés de ficar ansioso, pode dirigir suas orações ao Senhor – suplicando
e agradecendo (esse duplo tom de pedido suplicante e gratidão alegre
está presente nos Salmos de lamento na escritura). Orar não é mero
substituto para a ansiedade, é, sim, prevenção contra a ansiedade. Mas
o será desde que a oração não seja vista como o equivalente ao esfregar
a lâmpada mágica de Aladim. Não é a resposta à oração que importa, é
o simples fato de orar, de manter comunhão com Deus que é a resposta
à ansiedade. A oração, tão mal praticada em tempos como os nossos,
é parte integrante do estilo de vida messiânico, na medida em que ela é
o reconhecimento de que nossa vida está debaixo de um Senhor, que é
Senhor de todas as coisas e de todos os tempos e espaços.

Entremeados com os imperativos, temos uma condição e uma


consequência da prática desses valores messiânicos. A condição: o Senhor
está próximo! A frase, curta e certeira, retoma o final do cap. 3, versos 20-
21 – a esperança de que os sofrimentos do tempo presente cessarão está
próxima. A consequência: quem vive no estilo de vida messiânico terá
o shalom de Deus em seu coração e mente – ou seja, viverá em plena
harmonia consigo mesmo, com o mundo e com Deus. Essa paz ‘excede
todo entendimento’ e acompanha as pessoas que vivem como Jesus viveu
– não porque suas vidas são um mar de rosas, mas porque não importa
a circunstância, o Senhor está próximo e em nós. Quem escreveu estas
palavras o fez da prisão, como não perceber o valor das mesmas?

Na sequência encontramos uma exortação mais genérica. Podemos


dizer que ela é uma exortação à práxis, ou seja, ao pensamento unido
com a ação, à ação unida com o pensamento. Com a mente em paz,
podemos pensar de modo messiânico. A lista contém sete adjetivos e
dois substantivos. Os adjetivos sugerem que se deva pensar no próprio
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 43
estilo de vida messiânico – não faria sentido discutir termo por termo,
mas captar o seu sentido como um todo: que é verdadeiro, amável, puro,
etc. é, em síntese, o modo messiânico de viver – poderíamos dizer que
são as próprias características do Messias: fidelidade (verdade), amor,
pureza, bondade, digno. Essas coisas, enfim, são exemplos do que é, em si,
virtude e honra – termos importantes na ética helenística. O pensamento
dos seguidores do Messias deve estar centrado na ética messiânica –
desde que entendamos a ética aqui como indissoluvelmente ligada à
espiritualidade e à teologia.

A exortação finaliza com o esclarecimento de Paulo quanto ao sentido do


que deve ocupar o pensamento dos cristãos. “O que também aprendestes,
e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai”. Quer saber
o que significa o mandamento de Paulo? Olhe para a vida dele e você
descobrirá. Ouça sua pregação, leia suas cartas, e você saberá. Mas quer
saber mesmo, de fato? Pratique essas coisas. Aprendemos a teologia
quando praticamos a teologia. Aprendemos a ética quando praticamos a
ética. Aprendemos a espiritualidade quando praticamos a espiritualidade.
Erramos quando separamos pensamento e ação. Acertamos quando
mantemos unidas estas duas dimensões inseparáveis da vida. Pensar e
agir. A práxis do estilo messiânico de vida.

3. O Messias em Romanos
3.1. O Messias Rei: Rm 1,1-7 –
1
Paulo, escravo do Messias Jesus, chamado para ser
apóstolo, separado para o evangelho de Deus, 2 o qual
foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus
profetas nas Sagradas Escrituras, 3 com respeito a seu
Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de
Davi 4 e foi designado Filho de Deus em poder, segundo
o espírito de santidade, pela ressurreição dos mortos, a
saber, o Messias Jesus, nosso Senhor, 5 por intermédio
de quem viemos a receber graça e apostolado por amor
44 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os
gentios, 6 de cujo número sois também vós, chamados
para serdes do Messias Jesus. 7 A todos os amados
de Deus, que estais em Roma, chamados para serdes
santos, graça a vós outros e paz, da parte de Deus,
nosso Pai, e do Senhor Jesus, o Messias.

O que mais ressalta, do ponto de vista da messianidade de Jesus em


Paulo, nesta perícope, é seu caráter único. Somente aqui (e em Rm
15,12) Paulo descreve explicitamente o Messias em termos davídicos,
mas o faz integrando essa característica na linguagem comum paulina
sobre o Messias (Evangelho, Filho de Deus, Senhor). Esta é uma das
razões porque se cogita a possibilidade de Paulo estar citando aqui uma
declaração credal das comunidades primitivas, que poderia ser percebida
no seguinte arranjo ABBA de parte desta abertura da carta, explicando o
evangelho de Deus:
(A) Com respeito a seu Filho,
(B) o qual, veio da descendência de Davi,
segundo a carne,
(B’) e foi designado Filho de Deus em poder,
segundo o espírito de santidade, pela ressurreição dos mortos,

(A’) o Messias Jesus, nosso Senhor

A messianidade de Jesus está, assim, inserida na história das promessas


de YHWH a seu povo, especialmente no anúncio dos profetas, que falaram
a respeito do Filho de Deus (obviamente uma leitura ‘cristã’ do anúncio
profético sobre o Messias, que não usa diretamente o título Filho para se
referir ao Messias). A estrutura da declaração nos ajuda a descrever o
caráter do Messias nesta perícope.

Na seção (A)+(A’), Jesus é nomeado Messias – (1) filho de Deus e (2)


nosso Senhor. Filho e Senhor indicam em que consiste a messianidade
de Jesus: ele é Deus, mas em forma filial, ele é o Senhor (YHWH) na forma
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 45
de Filho, e por isso Paulo pode se auto-nomear escravo do Messias Jesus
(evocando os cânticos do escravo oprimido em Is 40-55). Na Escritura
judaica, o título filho se aplicava a Israel, a reis, a anjos – mas sem a
conotação da divindade desses usuários do termo. No caso de Jesus, a
filiação é peculiar: ele é simultaneamente filho e senhor – deus. Ressalte-
se, aqui, que Paulo destaca que o Messias Jesus é senhor dos gentios,
enquanto em outros lugares ele também fala do Messias para os judeus
– indicando assim a universalidade da ação messiânica, cf. Gl 4,5 (o Filho
veio libertar os judeus ‘debaixo da lei’); e Rm 5,10 e 8,32 que apontam
para a universalidade da reconciliação messiânica.

Na seção (B)+(B’) o destaque é dado à descrição do Filho mediante


o contraste entre sua filiação terrena (segundo a carne) e sua filiação
celestial (segundo o espírito de santidade). Esse contraste, porém,
funciona para realçar o conteúdo da teologia messiânica: segundo sua
descendência física, Jesus é Filho de Deus-Rei, mas em fraqueza, não
na força militar do monarca. Somente segundo sua designação celeste,
após a ressurreição, ele é Filho de Deus-em poder, para governar sobre
toda a criação. Como já mencionado, somente aqui e em 15,12 (“Também
Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar
os gentios; nele os gentios esperarão”). A expectativa de um messias
davídico estava amplamente presente na tradição judaica.

Que o rei davídico recebesse o epíteto de Filho de Deus na teologia da corte


judaíta (cf., e.g., Sl 2; 110), serve para ressaltar o senhorio do Messias e
faz a ponte óbvia entre o uso do título Filho de Deus e a realeza de Jesus
na tradição cristã primitiva. Mas Jesus é descendente de Davi apenas
segundo a sua condição terrena, e foi um rei inusitado – na medida em
que viveu como escravo (cf. Fp 2,5ss) e morreu em prol de seus inimigos
(cf., e.g., Rm 5,1-11).

Para usar um termo preferido de Paulo em 2 Coríntios, Jesus foi um


Messias-Rei em fraqueza – e isso é contrastado aqui pela declaração
“designado filho de Deus em poder” após a ressurreição. Em fraqueza
não se podia enxergar o senhorio do Messias sobre todos os poderes (Cl
46 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
1,15ss), somente após sua ressurreição a sua messianidade é exercida de
modo poderoso – mas um poder que não anula a sua fraqueza. Fraqueza,
porém, que é força, na medida em que destrói todos os inimigos de Deus
que impedem a vida de sua criação. Temos, aqui, em forma sintética o
contraste presente em forma ampliada em Fp 2,5-11. Destaque-se que,
sem a vida terrena, o poder do Filho pós-ressurreição não teria sentido!

Tendo em vista que a expressão ‘em poder’ poderia ser vinculada


gramaticalmente ao verbo designar, duas breves citações para indicar a
pertinência de sua ligação ao termo filho de Deus. “Jesus foi declarado
ser filho de Deus ‘em poder’. Esta frase parece se referir tanto ao poder
de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos e que, daí em diante, declarou
sua identidade como Messias, e à natureza poderosa de sua filiação,
mediante a qual ele confronta todos os poderes do mundo, incluindo a
própria morte, com a boa-nova de um tipo de poder totalmente diferente
e mais efetivo”. E, “em poder era, presumivelmente, importante para
Paulo. Indica que a filiação divina de Jesus (v.3) havia sido ‘ampliada’ ou
‘premiada’ pela ressurreição, de modo que ele partilhava mais plenamente
no próprio poder de Deus.

Como Filho de Deus, Jesus é messias poderoso – para libertar toda a


criação do cativeiro ao pecado. Em particular, segundo a vocação paulina,
é messias para gentios, incluindo toda a humanidade no povo único do
Deus único – unicidade internamente plural, tanto quando falamos de
Deus, como quando falamos do povo de Deus. É no Messias plural em
sua singularidade que o propósito universal de Deus para a criação se
concretiza historicamente.

3.2. O Messias vem de Israel: Rm 9,1-5


Digo a verdade no Messias, não minto, testemunhando
comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência:
tenho grande tristeza e incessante dor no coração;
porque eu mesmo desejaria ser anátema, separado do
Messias, por amor de meus irmãos, meus compatriotas,

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 47


segundo a carne. São israelitas. Pertence-lhes a adoção
e também a glória, as alianças, a legislação, o culto e
as promessas; deles são os patriarcas, e também deles
descende o Messias, segundo a carne, o qual é sobre
todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!

A perícope está na abertura de uma complexa seção de Romanos na


qual Paulo discute o lugar de Israel no plano de Deus. Depois de destacar
a igualdade entre judeus e gentios – como pecadores e como objetos
da ação do Messias - ao longo da carta, Paulo retoma a questão da
identidade dos judeus e destaca as peculiaridades dessa identidade:
“São israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alianças,
a legislação, o culto e as promessas; deles são os patriarcas ...”. Nesta
breve listagem de características identitárias podemos supor a narrativa
teológica subjacente do Judaísmo – embora todas essas marcas de
identidade, nos textos paulinos, sejam subsumidas no Messias e abertas
à inclusão dos gentios – ao invés de serem lidas como excludentes
(como o faziam os oponentes de Paulo, por exemplo).

No conjunto da seção (em Romanos), o foco recai sobre a fidelidade


de Deus que cumprirá suas promessas ao Israel ‘carnal’ (isto é, aos
descendentes de Abraão segundo a carne), e o fará no fim dos tempos
– enquanto no tempo atual ‘o tempo que resta’, a dor de Israel abre as
portas para a felicidade dos gentios por poderem participar do Messias.

De destaque para nossos interesses é a expressão “também deles descende


o Messias” (v. 5), que completa a lista das marcas da identidade israelita
na visão paulina. O Messias vem de Israel, ele é israelita, ele cumpre em si
as promessas de Deus para seu povo – ou seja. a fidelidade do Messias ao
Pai, em favor dos pecadores, também é expressão da fidelidade do Pai ao
seu povo eleito – os israelitas. Isto deve ficar claro para os gentios: a sua
inclusão no povo de Deus não pode ser vista como exclusão dos judeus do
povo de Deus. Por isso a rejeição do Messias por Israel é vista por Paulo
como abertura para os gentios! Os gentios recebem, assim, o privilégio de
se tornar parte da história do povo de Deus.
48 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
O Messias é a personificação humana da fidelidade de Deus – mediante
a fé-fidelidade nele, a universalidade do propósito libertador de Deus se
concretiza no dia-a-dia das comunidades de seguidores do Messias.
Uma comunidade inclusiva, como o Israel inclusivo no Messias, é o ideal
messiânico de Deus para a humanidade.

3.3. O Messias refém e anfitrião: Rm 15,1-8


Ora, nós que somos fortes devemos suportar as
debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos.
Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é
bom para edificação. Porque também o Messias não
se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: ‘as
injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim’. Pois
tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi
escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação
das Escrituras, tenhamos esperança. Ora, o Deus da
paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir
de uns para com os outros, segundo o Messias Jesus,
para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao
Deus e Pai de nosso Senhor, o Messias Jesus. Portanto,
acolhei-vos uns aos outros, como também o Messias
nos acolheu para a glória de Deus. Digo, pois, que o
Messias foi constituído servo da circuncisão, em prol
da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas
aos nossos pais e para que os gentios glorifiquem a
Deus por causa da sua misericórdia, como está escrito:
‘Por isso, eu te glorificarei entre os gentios e cantarei
louvores ao teu nome’.

A perícope está na seção final da discussão paulina sobre a unidade


da comunidade, com foco sobre a necessidade de comunhão entre os
fortes e os fracos na fé. Os dois primeiros versos formam uma exortação
à unidade, a partir da ideia de apoio mútuo – neste caso, os fortes
dando aos fracos na fé o suporte necessário para o seu crescimento
(edificação). A partir do verso 3 vem a justificativa teológica para a
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 49
unidade da comunidade: (a) “Porque também o Messias não se agradou
a si mesmo; antes, como está escrito: ‘as injúrias dos que te ultrajavam
caíram sobre mim’”. A citação vem do Sl 69,9 (68,10LXX) e tem como
característica peculiar o fato de que parece que o próprio Messias está
fazendo a afirmação presente no texto bíblico. A noção de não agradar
a si mesmo é importante em Paulo no contexto – tanto da unidade da
comunidade, quanto no da cristologia. A passagem mais evidente que
vem à mente é Fp 2,1-11, em que a exortação à unidade (1-4) é seguida
pelo hino cristológico (5-11), que destaca a vida do Messias como uma
vida que agradou ao Pai e não a si mesmo.

O contraste estabelecido é simples: se o Messias agradasse a si mesmo, faria


o que se esperava dele em sua cultura – no caso do judaísmo, a libertação
política da nação de Israel (cp. o relato da tentação em Mateus). Como não
agradou a si mesmo, sofreu perseguição e afronta da parte do seu próprio
povo. Embora a citação seja de um salmo, a frase certamente remete o
leitor conhecedor da Escritura aos textos do escravo oprimido em Is 40-55.
Jesus é um Messias que sofre afrontas e injúrias em prol da libertação de
seu povo. Essa é a sua identidade, um Messias fiel ao Pai e solidário com
os pecadores. Após essa justificativa, Paulo menciona a importância das
Escrituras para a edificação da comunidade, trazendo uma nova exortação
à unidade, que conclui com a afirmação: “acolhei-vos uns aos outros, como
também o Messias nos acolheu para a glória de Deus”.

Mais uma vez há o vínculo entre a ação do Messias e a da sua comunidade.


O Messias é aqui descrito como anfitrião – ele nos hospedou na casa
de Deus. O Messias é o exemplo e modelo do messias (comunidade).
Assim como ele é o autor e consumador da hospitalidade aos inimigos,
também a comunidade messiânica é chamada a ser hospitaleira – e não
somente para os amigos. Esse é o sentido forte da hospitalidade: acolher
o estranho, o outro ameaçador, e não apenas o amigo, o companheiro em
quem confiamos. Jesus é Messias que acolhe e hospeda em sua casa os
inimigos de Deus, reconciliando-os!
50 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
4. O Messias em 2 Coríntios
4.1. O Messias e o messias: 2 Coríntios 1,19-22
“Porque o Filho de Deus, o Messias Jesus, que foi, por
nosso intermédio, anunciado entre vós, isto é, por mim,
e Silvano, e Timóteo, não foi sim e não; mas sempre
nele houve o sim. Porque quantas são as promessas de
Deus, tantas têm nele o sim; porquanto também por ele
é o Amém para glória de Deus, por nosso intermédio.
Mas aquele que nos estabelece, convosco, para o
Messias e nos ungiu é Deus, o qual também nos selou
e nos deu o penhor do Espírito em nossos corações”.

Dois aspectos gramaticais ressaltam nesta passagem: (a) é o único uso


do verbo chrio nos escritos paulinos; (b) o uso da preposição eis com a
palavra Messias – indicando direção a, ou seja, incorporação no Messias.
Martin Hengel comenta sobre estes aspectos gramaticais, especialmente
o primeiro: “o quão consciente é Paulo do sentido presente no nome
cristos – que implica o agir de Deus em e com Jesus – pode ser visto no
jogo de palavras de 2 Co 1,21 [...] Ele usa [o verbo] para mostrar a conexão
entre os ‘ungidos’ com o Espírito de Deus e aquele que é o Messias, isto
é, o Ungido par excellence”.1

O artifício literário (retórico) de Paulo destaca o aspecto corporativo de


sua noção de Messias: Paulo (Silvano e Timóteo) pregaram o evangelho
aos coríntios e, por isso, foram estabelecidos com eles, para formar o
Messias (mais ou menos equivalente à “para formar um corpo” de 1 Co
12), ou seja, para formar a comunidade messiânica – que é o Messias.

Quanto à difícil frase incorporativa eis Criston, cf. Rm 16,5 [...] “saudai
meu amado Epêneto, primícias da Ásia eis Cristo”; Fm 6: [...] “de modo
que a comunhão de vossa fé possa ser efetiva no conhecimento de todas
as boas coisas em nós eis Cristo”. Provavelmente a frase se relaciona
1 HENGEL, Martin. “Jesus, the Messiah of Israel”. In: Studies in Early Christology.
Edinburgh: T. & T. Clark, 1995, p. 6.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 51
com a expressão baptizo eis Criston “batizo para (formar) o Messias”
(Rm 6,3; Gl 3,27); cf. 1Co 1,13.15: [...] “fostes batizados em (eis) nome de
Paulo”; 1Co 10,2 [...] “todos foram batizados em (eis) Moisés”.

Em o Novo Testamento, somente em 1Jo 2,18–27 encontramos uma


linguagem semelhante a esta. Enquanto em 1 João a questão é relativa
à verdadeira confissão, que indica a permanência na comunidade, nos
textos paulinos em que o verbo ou o substantivo são usados, o foco recai
sobre a formação da comunidade e seu crescimento. Neste sentido, o
comentário de Wright a Fm 6 é pertinente aqui:
Sugiro, em outras palavras, que Paulo usa ‘Cristo’ aqui
como um modo abreviado de se referir àquela unidade,
completude e participação mútua que pertencem
à igreja que se encontra ‘em Cristo’, isto é, de fato, o
povo do Messias. Isto não significa, como muitos ainda
sugerem, que as frases en Criston e eis Criston sejam
sinônimos. Estando já ‘em Cristo’, a igreja deve crescer
mais plenamente ‘em direção a ele’, isto é, deve explorar
e concretizar mais completamente o que a verdadeira
maturidade corporativa cristã significa na prática.2

Assim como em Gálatas, Paulo destaca o aspecto corporativo da


identidade messiânica. Complementar, aqui, é a menção ao Espírito de
Deus, o selo da aliança e o penhor da promessa recebidas no Messias.
Em outras palavras, com base na fidelidade do Messias, os que exercem
fé-fidelidade no Messias anunciado, se tornam messias nele e para
serem como ele – escatologicamente falando – sendo abençoados pelo
Espírito como a presença de Deus para concretizar, neste tempo que
resta, a identidade messiânica na prática e no pensamento.

4.2. O Messias reconciliador: 2Co 5,11-21


A pluralidade discursiva desta perícope é evidente: é usada linguagem
da tradição profética judaica (do Servo de YHWH em Is 53), da noção
2 WRIGHT, Nicholas T. The Climax of the Covenant. Christ and Law in Pauline Theology.
Londres: T & T Clark, 1991, p. 54.
52 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
de martírio, e da descrição da criação (Gn 1, etc.); bem como há diálogo
interdiscursivo com a mentalidade religiosa grega (temas da reconciliação
e da novidade) e da linguagem da diplomacia romana. O foco semântico
desta doutrina em Paulo também é a fidelidade - reconciliadora - e gira ao
redor da morte do Messias por todos, como representante de Deus para
fazer a paz com a criação.

(a) Uma representatividade inclusiva:

“Pois o amor do Messias nos constrange, julgando nós isto: um morreu


por todos; logo, todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que
vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles
morreu e ressuscitou” (v. 14-15). Não há distinção, aqui, entre amor e
fidelidade – são sinônimos plenos. O Messias é caracterizado, não pelo
poder, mas pelo amor – ou, para apimentar o contraste, pelo amor que
é o poder messiânico! Ele, sendo um, morreu por todos, para que todos
possam entrar em um novo projeto de vida, no qual não vivem mais, cada
um para si mesmos, mas vivam para o Messias – ou seja, vivam uns para
os outros, assim como o Messias viveu e morreu por todos.

A morte do Messias é descrita como morte representativa inclusiva:


nele todos morreram (linguagem que será retomada em Romanos 5 e
ressignificada mediante o diálogo com o pecado de Adão). Para que
todos ‘morreram”? Morreram para o projeto de vida fundado na inimizade
contra Deus e contra a sua criação – ou seja, um projeto de vida centrado
na obrigação, ou, diríamos também, na legalidade como critério da justiça
(ou seja, nas lógicas do dever e da dívida).

O amor do Messias é o fundamento da vida, ética e justiça dos seus


seguidores. Nesta nota autobiográfica, Paulo afirma ser constrangido
pelo amor do Messias – não como obrigado por sua lei, ou seu poder,
ou sua autoridade. O verbo συν�χω, usado apenas duas vezes nas cartas
paulinas, aparentemente não combina bem com a ideia de amor, pois
indica uma espécie de opressão, de imposição, noção que o verbo
‘constranger’ captura adequadamente. Entretanto, o casamento é ideal,
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 53
na medida em que, com o verbo, Paulo destaca o sentimento ‘interno’ de
compromisso para anunciar o amor do Messias – uma vez que o verbo
também é usado na cultura antiga para indicar um relacionamento intenso,
de pertença mútua. Se, quando ‘fariseu’ Paulo se sentia compelido, pela
Lei, a perseguir os hereges, agora, como seguidor do Messias amoroso,
sente-se compelido a comunicar a nova amizade com Deus em que está
situado.

(b) O Messias é o agente da nova criação divina:

“E, assim, para quem está no Messias, nova criação; as coisas antigas já
passaram; eis que se fizeram novas” (v. 17). A linguagem é paralela à da
agência do Messias como primogênito da ressurreição em Cl 1,15ss. Ele
não só é o agente da criação, mas também o da nova criação de Deus.
De fato, o Messias é a própria nova criação, pois estar nele é também
estar nela. A noção judaica de corporeidade solidária faz eco aqui: quem
participa do ser-Messias participa da nova criação-Messias. A estrutura
sintática do verso 17 chama a atenção por causa da ausência de verbo
em relação com a expressão ‘nova criação’.

Versões e comentaristas normalmente demandam que o verbo seja


suprido, mas prefiro manter a forma elíptica da frase, que pode ser
traduzida como uma fórmula: estar no messias = nova criação. Tal leitura
nos permite entender o estar em Cristo não só de modo comunitário,
mas, principalmente, de modo não ‘subjetivo’ – a morte e ressurreição do
Messias já criaram, ‘neste tempo que resta’, uma nova realidade em que
se pode viver de forma distinta da forma como se vive na ‘velha criação’.
Aqui e no próximo tópico se destaca a espacialidade messiânica.
Não se trata apenas de uma nova temporalidade, mas de uma nova
espacialidade: estar no Messias é entrar em um novo espaço de vida,
sem sair dos lugares da vida comum.

(c) O Messias como lugar (agente) divino da reconciliação:

“Deus estava no Messias reconciliando consigo o mundo” (v. 19).


54 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
Destaca-se aqui a representatividade especial do Messias. Não só é o
embaixador de Deus, mas, sim, o próprio espaço onde Deus reconcilia
a criação consigo mesmo. Não se pode, portanto, falar de mudança de
atitude de Deus para com os pecadores como fruto da morte de Jesus,
pois na vida do Messias o próprio Deus está presente reconciliando o
mundo (‘vida’ que inclui a morte e a ressurreição do Messias). Desta
forma, Deus, no Messias, gera uma nova ‘aliança=criação’, uma nova
relação de fé-fidelidade entre os seres humanos e ele mesmo. De novo,
não se trata de alterar a disposição divina, mas alterar a disposição de
toda a criação.

(d) O Messias como pecado:

“Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós” (v. 21). Esta
afirmação é ousada e pode ser interpretada de duas maneiras pelo menos:
(1) o Messias foi feito oferta pelo pecado, à luz do fato de que no hebraico
a mesma palavra se refere tanto ao pecado quanto ao sacrifício que o
expia; ou (2) o Messias foi feito pecado, ou seja, foi colocado na condição
de maldito (pecador), mesmo que não tenha transgredido ou pecado.

Poderíamos, ainda, ver na afirmação a presença de ambos os aspectos,


à luz de Isaías 52,13-53,12 (talvez isto esteja na base do pensamento
de aos Hebreus): o Messias, solidário com os pecadores, morre por eles
(oferta pelo pecado), tendo sua morte valor especial porque o Messias foi
amaldiçoado (foi feito pecado) em prol da libertação dos pecadores. “Para
que, nele, nos tornássemos justiça de Deus”. Aqui também a linguagem
é radical e formulaica: Messias=pecado humano; nós=justiça de Deus. O
pecado é constitutivo da ‘velha’ criação, enquanto a justiça é constitutiva da
‘nova’ criação. Assim como somos escravos do pecado na velha criação,
somos escravos da justiça de Deus na nova criação. Escravidão que é, de
fato, verdadeira liberdade. Se, no envio o Messias é representante de Deus,
na existência terrena o Messias é representante da humanidade.

Destarte, na reconciliação messiânica os pecados humanos são


perdoados (não imputados): ou seja, Deus rompe com a lógica da dívida
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 55
e estabelece a lógica da dádiva: não é preciso aplacar a ira de Deus, o
que é preciso é libertar a humanidade da sua escravidão à infidelidade,
provocada pela sua submissão às lógicas do dever e da dívida. A
‘imputação’ do pecado=crime só faz sentido dentro do sistema legal, em
que a cada transgressão deve corresponder uma punição. Também é
importante notar aqui a inoperância da lógica da retribuição pelo crime
cometido (expectativa da retribuição punitiva pelo crime cometido). O
ato de reconciliar olha para a frente, não para trás. É necessário romper
definitivamente o ciclo de violência legal punitiva e assumir a fidelidade a
um novo projeto. A reconciliação da criação com Deus, e da humanidade
com Deus, elimina a necessidade de retribuição pelo pecado humano. Ao
reconciliar consigo mesmo o mundo Deus reconciliou todas as criaturas
que transgrediram sua ‘lei’, que foram infiéis a ele.

A ação reconciliadora-anistiadora de Deus, no Messias, torna inoperante


a lógica do dever-dívida que demanda a punição das transgressões
e, simultaneamente, rompe com a lógica sacrificial subordinada. Ao
apresentar o Messias como ‘cordeiro sacrificial’ e ‘bode expiatório’ – morre
pelos pecados e afasta, em si, os pecados – Paulo adota a linguagem
sacrificial a fim de torna-la inoperante. Ao anistiar as transgressões o
império da legalidade é destronado, a demanda de retribuição sacrificial é
invalidada, e a solidariedade da graça é instaurada. Assim, não podemos
ver o perdão como um ‘comércio’ entre Deus e os seres humanos, mas
como um convite (palavra) de Deus aos que se consideram seus inimigos
ou se sentem ameaçados por seu poder. Por isso, Paulo vê a si mesmo a
aos seguidores do Messias como embaixadores de Deus – no ministério
concretizamos a restauração da amizade das pessoas com Deus. Ao
invés de conquistadores, somos embaixadores, pessoas que centram
a sua atividade profissional na construção de pontes, na construção da
amizade entre inimigos (reais ou potenciais). Deus não está separado dos
transgressores, não precisa ser ‘aplacado’ em sua ira para se aproximar
justamente (retributivamente) dos transgressores. Deus sempre toma
a iniciativa de convidar à fé-fidelidade nele e com Ele, sua disposição
amorosa é imutável e inegociável.

56 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


UNIDADE III - Síntese da Teologia Paulina nas cartas
aos Tessalonicenses
Introdução
Uma boa leitura das cartas de Paulo aos tessalonicenses passa,
necessariamente, pela compreensão do protagonismo do Império
romano – e também do judaísmo, conforme veremos mais à frente – em
suas várias facetas, bem como a reflexão sobre as influências e relações
do mesmo nos escritos do apóstolo e outros textos, bíblicos ou não, da
época. O Império romano, no primeiro século, não é uma instituição
neutra, é, pelo contrário, conforme Miguez (1990, p.80), “um ator principal,
pois constitui a estrutura social básica, “os poderes e principados deste
mundo”, com os quais a nascente comunidade se confronta”. Portanto,
antes de mais nada, é importante sublinhar alguns detalhes que retratam
qual era a identidade do Império e sua forma de atuação. Esses detalhes
certamente trarão luz sobre os textos analisados em seguida.

Além da perseguição causada pelo modelo administrativo romano,


veremos nesta unidade que a perseguição que sobrevinha sobre os cristãos
era causada também pelos judeus, aliados ao poder romano. Estudiosos
defendem, inclusive, que estes foram os primeiros perseguidores. Diante
deste ambiente, veremos que a resposta de Paulo resume-se em três
perícopes centrais na primeira carta que escreveu aos tessalonicenses.
(1) fortalecimento e encorajamento em meio as provações – 1 Ts 3,1-
5; (2) fé e amor em meio as tribulações – 1 Ts 3,6-13]; (3) exortação à
santidade – 1 Ts 4,1-12]. Força, coragem, fé, amor e santidade. Estes eram
os fundamentos para que a comunidade, então, resistisse e continuasse
a trilhar um caminho alternativo - um estilo de vida alternativo à luz do
evangelho - ainda que isso lhes custasse a própria vida. Esta escolha
colocaria a comunidade na mesma rota de seu Senhor: o servo sofredor.
Exposta ao sofrimento, portanto, mas reagindo a partir dos paradigmas
do evangelho de Jesus Cristo (paradigmas = força, coragem, fé, amor
e santidade) encontraria na imitação de seu Senhor (discipulado) sua
identidade e significado para sua própria jornada.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 57
1. Contexto
A inclinação expansionista e o desejo pelo domínio e magnitude
certamente estiveram presentes em toda a história do Império romano.
Ou seja, convencido de sua força e aptidão à grandeza, brotava no
coração do Império o anseio pelo poder e pela conquista, centro de suas
motivações e ambições. Os caminhos da colonização romana, no auge
do Império, se traduzem por um movimento desumano de normatizações
de políticas de exploração e violência generalizada contra os povos
subjugados. Eles condenavam os povos dominados e são lembrados na
história pela sua capacidade de fazer vítimas. Tácito (apud Reimer, 2006,
p.73-74), historiador romano, faz menção da situação vivida pelos povos
dominados e dá um testemunho na perspectiva dos mesmos:
Mais perigosos do que todos são os romanos. [...]
Esses ladrões do mundo, depois de não mais existir
nenhum país para ser devastado por eles, revolvem até
o próprio mar. [...] Saquear, matar, roubar – isto é o que
os romanos falsamente chamam de domínio, e ali onde,
através da guerra, criam um deserto, isto eles chamam
de paz. [...] As casas são transformadas em ruínas, os
jovens são recrutados para a construção de estradas.
Mulheres, quando conseguem escapar das mãos dos
inimigos, são violentadas por aqueles que se dizem
amigos e hóspedes. Bens e propriedades transformam-
se em impostos; a colheita anula dos campos torna-se
tributo em forma de cereais, sob espancamentos e
insultos, nossos corpos e mãos são massacrados na
construção de estradas através de florestas e pântanos.

A violação a que se refere o historiador não era apenas um exercício de


força física - muito embora, conforme destacou Wengst (1991, p.25), a
expansão romana fosse sinônimo de “sangue e cadáveres”. Quando se
avaliam as circunstâncias pelas lentes da justiça e da igualdade entre
semelhantes, facilmente percebe-se outras formas de abuso. Por violência
58 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
entende-se qualquer ação, originada por uma pessoa ou estrutura, que,
porventura, cause sujeição à liberdade, dignidade ou integridade de uma
pessoa ou grupo. Em outros termos, conforme sintetizou Horsley (2010,
p.19), trata-se do “uso ilegítimo ou não autorizado de poder contra a
vontade ou o desejo de outros”. Esta afirmação está baseada na origem
etimológica da própria palavra violência e no entendimento do tema a
partir de um sentido básico de valores.

Com os avanços de Roma, a violação do outro – em sua dimensão mais


ampla, conforme as definições acima - era facilmente verificada em
todas as relações interpessoais e em todas as estruturas que cercavam
a vida humana, sejam elas: sociais, políticas, econômicas, artísticas,
literárias, legislativas, ideológicas e religiosas. É o que alguns estudiosos
costumam chamar de violência estrutural. Para Horsley ( 2010, p.21).

A violência estrutural foi construída e inserida na


própria estrutura da sociedade e manifesta-se como
um poder desigual e, consequentemente, como
chances desiguais na vida. [...] Essa compreensão
de violência estrutural tem suas raízes naturalmente
na atenção para condições históricas concretas. Se
pessoas morrem de fome quando isso é claramente
evitável, então violência é cometida, e se essas mortes
são o efeito do sistema social e financeiro existente,
então temos violência estrutural, ou respectivamente,
estruturas violentas.

Em terras alheias, as elites locais compravam o discurso legitimador dos


romanos para suas táticas habituais. Entre as justificativas mais comuns
estava o argumento do progresso e o argumento da riqueza através
do desenvolvimento da capacidade comercial de cada região. É o que
explica Edward Said (apud Elliot, 2010, p.71) ao se referir aos modelos
imperialistas na antiguidade e a esse tipo de discurso - sempre esteve
presente na pauta dos poderosos. Para ele “a retórica do poder produz
com demasiada facilidade uma ilusão de benevolência”. Por outro lado,
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 59
a história precisa ser contada também pela ótica dos vencidos. No caso
de Tessalônica, mais especificamente pela ótica dos trabalhadores que
viabilizaram as idealizações dos romanos através do pagamento de altas
taxas de impostos e mão de obra escrava. Proporcionando, assim, os
meios necessários para a execução dos projetos de desenvolvimento dos
conquistadores. Nesse sentido, as perspectivas de Wengst (1991, p.19)
merecem destaque. Para ele, “olhar a partir de cima sobre o brilho de Roma
não faz perceber toda a realidade”. Por isso a necessidade de “inverter
a perspectiva numa percepção a partir de baixo, para que a realidade
experimentada como sofrimento não seja entregue ao esquecimento
através da glorificação e para que os vencedores da história não triunfem
novamente sobre suas vítimas”.

A aparente benevolência a que se refere Edward Said ganha força graças


as condições de Tessalônica. Uma cidade promissora, que se encaixava
perfeitamente no discurso imperial de progresso e, por isso, levou os
romanos a potencializarem seu interesse pela exploração da mesma.
Além de ser uma cidade portuária, parte das estradas mais importantes
da região passavam por lá. Isso sem contar com um solo fértil para
mineração e com um forte esquema de “cunhagem de moedas”, conforme
explica Ferreira (1991, pp.10-14). Tudo isso colocava Tessalônica sob
o status de uma cidade próspera e sob boas perspectivas de avanço,
assim como pregavam os dominadores. Todavia, é preciso enfatizar,
como fez Ferreira, que se “por um lado, havia desenvolvimento devido
à localização da cidade, por outro, havia a exploração e a especulação,
o que favoreceu o aparecimento de classes, onde a desigualdade era
gritante”. Neste cenário as pessoas mais vulneráveis da sociedade
- a igreja de Tessalônica, ao que tudo indica, era composta por essas
pessoas - eram a força motora para que a roda do poder continuasse
girando e favorecendo aqueles que se beneficiavam dessa situação.

Entre os principais favorecidos do sistema estavam as elites. Elas se


beneficiavam com as condições propícias de Tessalônica e com as
políticas de exploração e extorsão dos romanos. Por uma questão de
conveniência e pensando em sua própria sobrevivência, sem negar
60 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
o domínio imperial e seus desdobramentos nocivos, as elites locais
conformavam-se a situação aliando-se aos dominadores. Portanto,
essa camada da sociedade deve ser analisada como parte integrante e
reprodutora do sistema sócio-político romano.

Como as garantias legais em prol do povo eram cada vez mais


insignificantes e ineficientes, e havia uma espécie de normatização
quanto à negação do direito e da justiça para todos, as elites se favoreciam
e consolidavam seus caminhos de exploração. O método utilizado para
o seu monopólio se assemelhava ao modelo administrativo romano.
Isto é, de forma organizada, além de manipulação ideológica, abusavam
da força física explorando a classe trabalhadora e servindo-se da mão
de obra escrava. Os benefícios deste grupo podem ser traduzidos pela
concentração de recursos e riquezas.

Em contrapartida, as elites estavam a serviço do Império e cabia a elas parte


do controle sobre os povos dominados. Entre as táticas de coerção estava
o vigilantismo. Um mecanismo capaz de impor limites comportamentais
e que visava manter o equilíbrio, a lei e a ordem na sociedade, mesmo
que se necessário fosse usasse métodos violentos. Surgiu para manter
o status quo contra rebeldes, criminosos e pecadores e para reforçar as
bases estruturais, além de apoiar as regras instituídas a fim de manter
os privilégios e a paz para os detentores do poder e sustentar o fluxo
administrativo deliberado pelo Império. Em outras palavras, conforme
Malina (2004, pp.49-60): “Consiste em atos ou ameaças de coerção na
violação dos limites formais de uma ordem sociopolítica instituída com
os quais, entretanto, os violadores pretendem defender essa ordem de
alguma forma de subversão”. O autor explica que:

O vigilantismo quase sempre tinha o respaldo dos


reivindicadores da elite para a manutenção do status quo,
isso porque era somente a elite que podia prontamente
processar os desviantes. [...] O vigilantismo sempre
revelará uma orientação conservadora. Ele persegue o
fraco, o humilde, o impopular, pessoas menos capazes
de resistir ou de retaliar.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 61
Em alguns lugares o vigilantismo era desnecessário, já que não havia
resistência e muitos povos conquistados entendiam a dominação
como algo, até certo ponto, benéfico. Ou seja, não entendiam a invasão
estrangeira como algo negativo e nem se sentiam subjugados. Miguez
(1990, p.88) explica que “a classe fundamental conseguia impor seu
domínio como legítimo, ou ao menos como necessário, conveniente ou
inevitável, e articular esta concepção dentro da sociedade política sem
necessidade de recorrer continuamente à força militar”.

De que forma, todavia, argumentos, tão claramente contraditórios,


conseguiam legitimação? Além da imposição militar/armada e da
divulgação da pax romana, havia a premissa da “vontade do destino
divino”, conforme explica Wengst (1991, p.28). Entre os fundamentos
deste discurso, conforme Brunt (2004, p.33), estava a justificativa de que
“o domínio que os romanos exerciam era determinado pelos deuses, cujo
favor Roma merecera por causa de sua piedade e justiça, sendo praticado
em favor dos interesses de seus súditos”.

Através desse enunciado, conforme mencionamos na unidade anterior,


os romanos tentavam ludibriar os povos conquistados legitimando suas
ações e conquistas com base no desejo dos deuses e no bem que isso
poderia gerar, inclusive para os que estavam sendo subjugados. A partir
desta tese, não é difícil concluir que, além da imposição, como diz Elliot
(2010, p.63), “a ideologia do Império romano, não menos que a ideologia
imperial contemporânea, estava preocupada com o desafio de ganhar os
corações e as mentes dos povos conquistados”.

Acatar de forma submissa as imposições dos poderosos, portanto, se


tornava legítimo uma vez que os deuses estavam ao lado deles. Ou seja,
entrava em jogo uma espécie de ideologia religiosa capaz de conduzir
os subjugados por um caminho de alienação. Tal discurso se construía
segundo os interesses de Roma, que se associava a religião oficial local
de cada província usando-a como instrumento de manipulação.

62 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


A religião dos romanos era politeísta e sofria influência de várias
crenças gregas. Quanto a religião dos povos conquistados, os romanos
se apropriavam de crenças e rituais quando estes lhes serviam para
manipulação ideológica - conforme vimos nos parágrafos anteriores.
Além disso, havia liberdade de culto e até mesmo respeito desde que,
(1) de alguma forma, contribuísse com as estratégias do Império;
(2) não houvesse qualquer movimento deslegitimador do discurso
imperial.

O Judaísmo se serviu desta lacuna e em Tessalônica chegou a implantar


uma sinagoga (cf. At 17,1). Não era uma relação sem interesses. Os judeus
que imigraram para a cidade o fizeram, segundo Ferreira (1991, p.10), “com
a intenção de enriquecerem” e para isso, claro, serviam-se dos meios que
lhes interessavam. Ao que tudo indica logo se estabeleceram na cidade
ocupando posições de destaque e com boas condições econômicas
e sociais. Em contrapartida, se conformaram, em vários aspectos, aos
valores do Império e denunciavam quem a estes valores não aderissem ou
os negasse – uma espécie de vigilantismo -, como era o caso dos cristãos.

Em Tessalônica, além do rótulo de subversivos, a posição adotada pelos


cristãos, lhes custou um caminho de perseguição, sofrimentos e, em
muitos casos, a própria vida. Ao mencionar a perseguição que sofriam
os cristãos, Ferreira (1991, p.19) defende que “os judeus aliados ao poder
romano, eram os primeiros perseguidores”; e que além disso, “criavam
dificuldades aos cristãos na defesa de seus interesses”.

Neste ponto, é preciso lembrar que no mundo antigo não havia separação
entre questões sócio-políticas e questões religiosas – posição comumente
adotada pela mentalidade ocidental moderna. A fé e as práticas religiosas
não estavam alienadas das demais áreas da vida, antes, lançavam luz
sobre elas. Saldarini (2005, p.17) explica que no Império “a religião achava-
se incrustada na estrutura política e social da comunidade. [...] Assim, o
envolvimento com a religião é, em si mesmo, compromisso político e social
no sentido amplo de tais termos”. Esse detalhe nos indica, conforme já
mencionei na unidade anterior, que a perseguição que sofriam os cristãos

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 63


não era apenas religiosa, conforme nossa compreensão de religião na
atualidade, mas sim sócio-política-religiosa.
Para encerrar nossa primeira aula desta unidade, vale citar que a passagem
do apóstolo Paulo por Tessalônica (cf. At 17, 1-15), anunciando o Senhorio
de Cristo (v.3), é uma amostra dessa realidade de perseguição. Vejamos
algumas indicações do texto a respeito da reação dos judeus diante do fato:
(1) Inflamaram a multidão - segundo alguns estudiosos, trata-se de
um grupo utilizado como massa de manobra para os interesses dos
detentores do poder e daqueles que se privilegiavam dele - contra Paulo
e Silas (v.5 e v.8);
(2) Acusaram os cristãos de procederem contra os decretos de César,
dizendo haver outro rei, Jesus (v.7);
(3) Recorreram/provocaram as autoridades (composta pelas elites) da
cidade(v.8).

SAIBA MAIS
Tessalônica era a capital da Macedônia, e aí residia o governador
romano. A cidade gozava de autonomia administrativa e tinha seus
magistrados próprios. Era centro comercial importante, concentrando
grande população e abrigando, como em toda grande cidade, a
mistura de culturas e opções religiosas. A colônia judaica devia ser
numerosa, visto que possuía até uma sinagoga. A sinagoga era ponto
de partida da ação evangelizadora. [...] O que Paulo pregava? [no
texto de Atos 17, 1-15] Lucas é muito sucinto: o Messias dos judeus
devia morrer e ressuscitar; Jesus é esse Messias. Ora, Messias em
grego Cristo, soava como “príncipe” ou “rei”, e Senhor, em grego
Kyrios, soava como “imperador”. [...] Os judeus, certamente, reagem
negativamente. [...] Qual o teor da acusação? Transtorno social e
subversão política. [...] Em outras palavras, o título Messias-Rei é
posto em confronto com a autoridade romana, e a prática cristã é
vista como sublevação da ordem social.
Fonte: STORNIOLO, Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos: o Caminho do evangelho.
2. Ed. São Paulo: Paulus, 2008, pp.146-147.

64 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


2. Esperança em meio as Provações – 1 TS 3,1-5
Hoje vamos tentar compreender a mensagem de Paulo aos
Tessalonicenses, lendo e comentando alguns textos (todos na primeira
carta) que sintetizam os dilemas enfrentados por essa comunidade.
Vamos começar pelo texto de 1 Ts 3,1-5 que diz:
1
Por isso, não podendo mais esperar, pensamos que o
melhor seria ficar sós em Atenas; 2 e vos enviar Timóteo
nosso irmão, colaborador de Deus na pregação do
Evangelho de Cristo, 3 a fim de vos fortalecer e encorajar
na fé, para que ninguém seja abalado em meio às
provações presentes, pois bem sabeis que a isso
somos destinados. 4 Quando estávamos entre vós, vos
preveníamos de que seria necessário sofrer provações
e foi o que aconteceu, como sabeis. 5 Foi por isso que,
não podendo mais esperar, mandei saber notícias da
vossa fé, temendo que o Tentador já vos tenha tentado
e que nosso trabalho tenha sido inútil.

Para a compreensão da primeira perícope estudada é necessário voltar


alguns versículos (1 Ts 2, 17-20) onde o apóstolo Paulo demonstra
seu desejo em estar com irmãos da comunidade em Tessalônica, mas
se diz impedido por Satanás. Satanás é “sinônimo de adversário”, é a
“personificação do mal” e não se trata de “uma força abstrata”. Ferreira
(1991, p.73) esclarece que “concretamente, na carta aos tessalonicenses,
o satanás (2,18) e o peirázon (tentador: 3,15) são claramente os “judeus”
e, de modo velado, o “Império romano” que fazem o mal crescer e alastrar-
se, criando uma situação irremediável para os cristãos de Tessalônica”. O
autor explica que, “sejam os judeus (raça política e religiosamente forte),
sejam os romanos (o Kyrios não é o Imperador), quem é adversário de
Deus é literalmente chamado de satanás. É uma palavra de conotação
ideológica muito forte”.

Estando, portanto, nessas condições e não podendo mais esperar,


conforme inicia o capítulo 3, Paulo envia e recomenda Timóteo. A
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 65
apresentação de Timóteo e suas credenciais são uma autenticação
de que a mensagem será proferida por alguém cujo adjetivo é: um
colaborador (que cumpre uma tarefa em nome de) de Deus – “servo
de Deus” em alguns manuscritos antigos -, e cujo teor da mensagem
é o evangelho de Cristo. Nota-se em outras cartas que Paulo se refere
a Timóteo como sendo seu colaborador (Rm 16,21 p. ex.). Aqui ele vai
além, Timóteo é colaborador do próprio Deus, isto é, cumpre sua missão
em nome do próprio Deus – missão: pregar o evangelho de Cristo “a fim
de vos fortalecer e encorajar na fé, para que ninguém seja abalado em
meio às provações presentes”.

Vale também mencionar a discussão a respeito da expressão evangelho


(“evangelho de Deus”, em alguns textos paulinos, “evangelho de Cristo”),
pois alguns estudiosos levantam dúvidas gramaticais a respeito da
mesma. Trata-se de um genitivo objetivo ou um genitivo subjetivo? Para
Hawthorne (2008, p.520).

• “Se considerada genitivo objetivo, Deus e Cristo são o conteúdo da


mensagem evangélica (“o evangelho a respeito de Deus/Cristo”)”;

• “Se considerada subjetiva, a ênfase está na variação da autoria ou


fonte (e.g., “o evangelho oriundo de Deus/Cristo”)”

Parece-me mais coerente com a teologia paulina considerar a expressão


como sendo um genitivo objetivo (por meio de). Aplicando ao nosso texto,
a referência paulina é de que o evangelho de Cristo seja uma menção a
pessoa de Cristo como sendo o próprio conteúdo do evangelho. Em outros
termos a encarnação da própria mensagem. Este detalhe é extremamente
significativo. A trajetória de Cristo (nascimento-vida-morte-ressurreição),
sendo ele, portanto, o próprio conteúdo do evangelho, diante da realidade
que assolava a igreja em Tessalônica, deveria lançar luz à comunidade a
respeito:

(1) Da identidade de Jesus Cristo;

66 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


(2) Das posições que ele assumiu;

(3) De suas ações-reações frente aos desafios que enfrentou.

É preciso destacar que Paulo, já no início da carta (1 Ts 1,6), afirma que


a vocação da comunidade é justamente a imitação. Haviam muitas
semelhanças entre o contexto em que viveu e atuou o homem de Nazaré
e o contexto da comunidade nascente, uma vez que ambos estavam
minados pelo poder imperial romano – e seus aliados: elite imperial e a
religião judaica. Isto, portanto, deveria facilitar a correlação entre o modelo
de Jesus e a comunidade cristão em Tessalônica, no seu modo de agir.

Nesse sentido são muitas as questões a serem abordas e a maioria delas


fogem ao escopo desta aula. Para exemplificar, vale citar a identificação da
comunidade com os sofrimentos de seu Senhor, em nome das opções que
assumiu em defesa da vida. Em outras palavras, a comunidade exposta ao
sofrimento encontrava no exemplo do servo sofredor um modelo (modelo
regulador). Isso, de alguma forma, certamente os animou. É possível
avaliar outros exemplos mencionados por Horsley (2004, p.111-131). Ele
apresenta uma séria de ações de Jesus que muito provavelmente serviram
de norte para a trajetória das comunidades. “Jesus

(1) “Atuava no sentido de sanar os efeitos do Império”;

(2) “Atuava no sentido de conclamar o povo à reconstrução da sua vida


comunitária”;

(3) “Propôs insistentemente um programa de revolução social para


restabelecer relações econômico-sociais igualitárias justas e de apoio
mútuo nas comunidades”;

(4) “Lançou uma missão não somente para curar os efeitos debilitantes da
violência militar romana e da exploração econômica, mas também para
revitalizar e reconstruir o espírito cultural e a vitalidade comunitária do povo”.

Outra consideração importante a respeito da expressão “evangelho de


Cristo”, e de seu possível impacto na comunidade de Tessalônica, é o fato
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 67
de que evangelion era um termo contraditoriamente tomado pela religião
imperial. Havia uma tentativa de relacionar o conceito a identidade-ação
do Imperador. Estudiosos, como Brown e Coenen (2000, pp.758-761),
por exemplo, explicam que “as notícias do nascimento do soberano
divino, da sua maioridade, ou sua entronização, bem como dos seus
discursos, decretos e atos são boas novas que trazem o cumprimento,
há tanto tempo almejado, aos anseios do mundo pela felicidade e a paz”.
Sendo assim, segundo os autores, seria “razoável supor que nas igrejas
primitivas, esta terminologia se desenvolvera por analogia com aquela,
que se associava com o evangelho do culto ao Imperador, embora esteja
em oposição consciente àquele” A atribuição desse substantivo a Cristo,
seria, portanto, uma indicação do verdadeiro soberano divino de quem se
poderia esperar a verdadeira boa nova, cujos fundamentos são, de fato,
amor, fraternidade e paz.

Pois bem, seguindo pelo texto, nota-se que a questão


central é o cuidado de Paulo com a comunidade, levando-
se em conta que a mesma estava exposta ao “Tentador”
e consequentemente às “provações presentes”.
Diante de tal possibilidade o intuito do apóstolo ao
enviar Timóteo, “colaborador de Deus na pregação do
evangelho de Cristo”, era “fortalecer” e “encorajar” seus
irmãos em Tessalônica, para que permanecessem na
fé, ainda que em meio aos sofrimentos.

Por volta do ano 50-51, Paulo, Silvano e Timóteo fundaram a igreja


em Tessalônica (cf. At 17). Os cristãos convertidos, que começaram
a fazer parte da comunidade em Tessalônica, eram, em grande parte,
pertencentes à classe dominada. Nas palavras de Ferreira (1991, p.11-
25), “era uma Igreja revolucionária. [...] Surgida dos pobres explorados
e oprimidos, que viviam num contexto econômico, social, político
e ideológico massacrantes”. Uma Igreja que nasce através de uma
mensagem de esperança e automaticamente se torna sinalizadora de
esperança para todos que estão à margem
68 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
• Do sistema imperialista romano;

• De uma sociedade injusta e discriminadora;

• De uma religião opressora.

Fiel a sua vocação, essa igreja, nas palavras de Ferreira (1991, pp.11-25),
“questionava as estruturas de poder da época” e assumia uma postura
de resistência não-violenta, mas de valores. Por esta razão, conforme
o autor, “começava a ser, aos olhos dos dominantes, uma organização
de cunho subversivo”. Nas palavras de Ferreira: “A perseguição aos
tessalonicenses aconteceu porque a pequenina Igreja que surgia estava
subvertendo o esquema reacionário e opressivo do Império romano”.
Em contrapartida, para os romanos, permitir qualquer contestação seria
relativizar o próprio poder. O Império (e seus aliados), então, fazia questão
de tornar evidente sua autoridade, respondendo através de medidas que
intensificavam a perseguição.

A resposta de Paulo não é alienante quanto a realidade. Isso fica evidente


em duas frases do apóstolo, ao se referir as provações/tribulações (a
angústia causada por circunstâncias adversas, como a guerra ou
perseguição):

• (v.3) “... bem sabeis que a isso somos destinados...”;

• (v.4) “... seria necessário sofrer provações...”.

Paulo reconheceu que o sofrimento seria uma experiência inerente aos


cristãos, visto que viviam em um mundo hostil aos valores que norteavam
suas vidas, e que acompanharia os que com fidelidade seguissem
trilhando os passos de seu Senhor. O apóstolo, então, envia Timóteo com
o intuito de fortalecê-los (estabilizar para permanecer na mesma direção)
e encorajá-los (consolar, fortalecer, exortar, instruir, ensinar, confortar) a
permanecerem na fé.
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 69
Não se trata apenas de ajudá-los a manter suas convicções
(teorias, crenças e discursos), mas principalmente de encorajá-los a
permanecerem fiéis em suas aflições. Entre os estudiosos existem os
que defendem que o sentido mais adequado para a palavra fé seria
“lealdade” ou ainda “resistência”. Essa hipótese de tradução parece bem
razoável, levando-se em consideração que o contexto em que estavam
inseridos os destinatários da carta exigia exatamente isso. Na próxima
aula, na sequência do texto, veremos as reações da comunidade diante
do quadro até aqui descrito.

SAIBA MAIS
Fortificar e Exortar
O trabalho dos três evangelistas não era só de ajudar a comunidade
a nascer na fé, mas também de sustenta-la firmemente para se
tornar madura. A maturidade é “testada” nas provas. Aqui, no
caso, a ekklesia tem sofrido duras adversidades. Corria o risco
de ser esmagada pelas forças repressoras de Tessalônica ou do
império romano. No perigo para a fé engajada desta comunidade
perseguida, aparece a “Palavra” que fortifica e exorta. É Timóteo, o
colaborador de Deus, o portador. Ele é enviado a Tessalônica para
ajudar os novos cristãos a serem fortes nas “tribulações” (thlipsis)
por causa do evangelho. Esta palavra “thlipsis”, que é utilizada nas
cartas paulinas mais que em todo o Novo Testamento, é a força
cristã de vida. [...] A thlipsis (tribulação, perseguição) aconteceu
porque o sistema opressivo do império estava sendo subvertido.
Fonte: FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos
Tessalonicenses: a Igreja surge como esperança dos oprimidos.
Petrópolis: Vozes, 1991, p.30.

70 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


3. Fé e Amor em meio as Tribulações – 1 TS 3,6-13
6
Agora, Timóteo acaba de chegar da vossa comunidade
e nos trazer a boa notícia da vossa fé e do vosso amor;
ele diz que guardais sempre boa lembrança de nós e
que desejais nos rever tanto quanto nós desejamos vos
rever. 7 Assim, irmãos, encontramos em vós um consolo,
graças à vossa fé, no meio de todas as nossas angústias
e provações, 8 e agora revivemos, pois vos mantendes
firmes no Senhor. 9 Que ação de graças poderíamos
render a Deus a vosso respeito, por toda a alegria que
experimentamos por causa de vós diante do nosso
Deus, 10 quando noite e dia rogamos com insistência,
para que nos seja dado rever-vos e completar o que
falta à vossa fé? 11 Queira o mesmo Deus, nosso Pai, e
nosso Senhor Jesus dirigir nosso caminho para vós. 12
Que o Senhor faça crescer e abundar o amor que tendes
uns para com os outros e para com todos, à imagem de
nosso amor para convosco. 13 Que ele fortaleça assim
vossos corações numa santidade irrepreensível diante
de Deus, nosso Pai, por ocasião da vinda de nosso
Senhor Jesus com todos os seus santos.

Nota-se no texto que a reação da comunidade diante das adversidades é a


fé. Paulo celebra as boas notícias que recebe de Timóteo em seu retorno,
constatando que, “apesar de privações e tribulação”, os alicerces da fé
estavam nos seus devidos lugares, ainda que houvessem deficiências
(v.10). Fé, como vimos anteriormente, é sinônimo de resistência e
lealdade. Lealdade ao verdadeiro Senhor e, consequentemente, a
sua proposta de vida que lhes fora anunciada e que lhes servia como
paradigma para a construção de sua própria caminhada. Manter-se fiel
exigia perseverança-resistência em reação as hostilidades a que estavam
sujeitos. A fé da comunidade nascente imediatamente mostrou seus
efeitos ao animar o apóstolo em sua jornada. “Nós fomos encorajados/
consolados por você através de sua fé” (v.7). Isto é, a notícia da fé e
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 71
fidelidade dos tessalonicenses, apesar das adversidades, encorajou
Paulo em sua própria experiência de angústia e aflição.
Indivisível a fé, a esperança estava presente no discurso paulino, ainda que
não apareça literalmente no texto – fé, esperança e amor fazem parte de
uma tríade bem conhecida nos escritos de Paulo; é inclusive mencionada
na própria carta aos tessalonicenses (1,3). A mensagem cristã de fé e seu
modo de propor uma nova vida, através de uma comunidade de iguais e
responsáveis uns pelos outros, gerava no coração do povo a esperança
de um modelo alternativo de vida.

A assimilação da fé, como resposta a situação da sócio-política-religiosa


da comunidade, ganhou ainda mais vigor graças a tônica apocalíptica, e
esta compreendia pelas lentes de uma mensagem de esperança. Alguns
estudiosos, como Hawthorne (2008, p.1193), por exemplo, defendem que
“o estudo sociológico de grupos concentrados na escatologia enfatiza que
uma nova experiência de privação relativa, originada de mudanças nas
estruturas e nos padrões de relações da sociedade, em geral, estão por
trás desse tipo de interesse escatológico”. Essa ideia está em harmonia
com a realidade em Tessalônica, portanto, para o autor, “o anúncio
paulino do evangelho oferecia exatamente essa fé escatológica” Para
Ferreira (1991, p.93), “a literatura apocalíptica foi escrita como expressão
de uma consciência crítica intensa. Diante do poderio dos impérios da
terra, os apocalípticos, como muita fé e compromisso, apresentavam
alternativas de sobrevivência para resistir à violência”. Ferreira (1991,
pp.19-25) entende que,

com os baixos salários, a fome aumentando e a falta


de recursos dos proletários urbanos, o anúncio do
cristianismo, especialmente do apocalipticismo,
se torna fácil de ser assimilado. [...] O evangelho
apocalíptico passava a ser uma esperança para as
massas exploradas. [...] Uma legião de trabalhadores e
marginalizados, pela primeira vez, em séculos, começou
a sentir que a novidade do evangelho era endereçada a
eles. A apatia deu lugar a esperança.
72 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
De fato, a orientação escatológica-apocalíptica é inegável na literatura
paulina – embora, na atualidade, seu significado sofra uma séria de
distorções e reducionismo. Para ilustrar, verifica-se em nossa perícope o
uso da expressão “vinda de nosso Senhor Jesus” (v.13). Uma expressão
carregada de significado político e que, por isso, descarta a tentativa
de algumas correntes teológicas em minimizar aspectos centrais deste
gênero literário. Vejamos outros termos nas palavras de Stroher (2007, pg.
63), que explica que Paulo, “toma termos políticos usados oficialmente
e os re-significa teologicamente; reafirmando que parusia, como paz e
segurança é direcionada a Cristo, não às ordens imperiais”.

• Parusia (vinda, chegada): “relacionada à vinda ou à visita de


personagem ilustre, do rei ou de um dirigente, e na linguagem da
corte refere-se à chegada de César”.

• Kyrios (Senhor): “usado de forma ampla para o senhor da casa


(oikos), na parte oriental do Mediterrâneo, no entanto, refere-se aos
imperadores romanos”.

Em outros textos (cartas) o tom escatológico-apocalíptico aparece como


resposta ao sofrimento e visivelmente conclamam à esperança:

(1) “Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser


comparados com a glória que em nós será revelada” (Rm 8,18);

(2) “Pois os nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo


para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles (2 Cor, 4,17).

É bem provável que essa dimensão escatológica-apocalíptica da fé,


conforme entende Hawthorne (2008, p.1193), “fosse grande o bastante
para motivar acusações de subversão política”, uma vez que, além da
ressignificação de termos políticos, fomentava temas como o da justiça,
por exemplo. A dimensão da justiça era semeada através do discurso de
uma intervenção de Deus no mundo, na construção de um sistema justo em
oposição a injustiça intrínseca ao sistema instituído e seus desdobramentos
de poder violento. É importante salientar que um dos fundamentos desse
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 73
discurso era o de que essa ação divina já havia irrompido na história: o Deus
justo liberta dos poderes opressores e de falsos deuses, e forma uma nova
comunidade à luz dos termos da justiça, segundo seus próprios desígnios -
amor, igualdade, solidariedade, serviço e fraternidade.

Uma das marcas essenciais da fé – de uma fé viva/substancial - é o


amor. O amor, nas palavras de Hawthorne (2008, p.68), “representa
a fortificação ética da justiça. [...] Desse modo, há uma correlação
necessária entre a fé em Cristo e o amor pelos outros”. Nota-se no texto
que é exatamente o amor o outro caminho encontrado pela comunidade,
em reação a perseguição e as tribulações a que estavam vulneráveis
– “Timóteo acaba de chegar da vossa comunidade e nos trouxe a boa
notícia da vossa fé e do vosso amor” (v.6). Paulo já havia reconhecido
que o amor fazia parte da comunidade em Tessalônica (1: 3). Agora,
além de reconhecer o amor como resposta ao ambiente desfavorável,
intercede para que o amor de uns para com os outros possa “crescer” e
“abundar” (v.12). É interessante notar no texto que a oração do apóstolo
é para que o amor não seja restrito a própria comunidade cristã, mas para
que a comunidade tenha também uma disposição caridosa e a devida
preocupação com o bem-estar de todos.

A palavra “amor” (ágape) mencionada pelo apóstolo no texto indica


caridade, a partir de uma iniciativa (ação) nem sempre subordinada
ao que se sente – conforme tende-se a pensar na atualidade. Paulo,
portanto, não estava fazendo referência a categorias subjetivas/abstratas.
Pelo contrário, referia-se a um conteúdo concreto, visível e com ações
verificáveis na história. A compreensão mais adequada para o termo
era de um movimento que reagia a opressão, convidando as pessoas a
assumirem um novo compromisso umas com as outras para a construção
de um ambiente comunitário baseado no cuidado mútuo. Nesse sentido,
a pratica do amor foi se tornando um testemunho de resistência, não
armada, visto em ações de solidariedade. Em outros termos, o amor que
movia a comunidade se traduzia em experiências de partilha despertando
muitos a compartilharem seus recursos uns com os outros.
Se o Império romano e seus aliados articulavam um ambiente opressor,
74 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
responsável pela multiplicação de vítimas, a comunidade que nascia,
tendo como paradigma fundamental a própria vida de seu Senhor, ainda
que ameaçada, respondia com expressões de amor, à luz das instruções
que receberá. Para, Stroher (2007, p.61), isso significava “viver em paz
uns com os outros, consolar os desanimados, amparar os fracos, ser
generosa com todas as pessoas, não retribuir mal por mal”.

Pois bem, a temática do amor segue pela perícope seguinte e vamos


observá-la na próxima aula, onde outras observações nos ajudarão a
compreender melhor sua relevância para o contexto em que estavam
inseridos os cristãos de Tessalônica.

SAIBA MAIS
A relação dos missionários com os tessalonicenses retoma força.
Timóteo foi em missão a fim de averiguar, animar e confortar a
Igreja perseguida. Ele retorna trazendo alegres notícias sobre
a fé e a prática perseverante da comunidade. A carta agora
é expressão do entusiasmo, usando até o verbo “evangelizo”
(pregar o Evangelho) – palavra do Novo Testamento, reservada
para anunciar a boa-nova de salvação – expressando a união
dos remetentes com os tessalonicenses e vice-versa. [...] Num
segundo momento, os missionários pedem crescimento e riqueza
no amor aos tessalonicenses. O Senhor pode aumentar este amor,
o qual Timóteo testemunhou, de modo que esta agápe (amor) seja
não só um laço que os une em uma fraternidade comum, mas
também com todos os homens. Se existem falhas na comunidade
(3,10), é no amor que ela deve superar as dificuldades. O amor é,
primeiramente, fraterno (4,9). Isto gera na comunidade comunhão,
unidade, capacidade de organização e resistência contra o mal.
Fonte: FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos
Tessalonicenses: a Igreja surge como esperança dos oprimidos.
Petrópolis: Vozes, 1991, pp.77-79.

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 75


4. Exortação à Santidade – 1 TS 4,1-12
1
Do resto, irmãos, eis nossos pedidos e nossas
exortações no Senhor Jesus: vós aprendestes de nós
como proceder para agradar a Deus, e é assim que
procedeis; fazei ainda novos progressos. 2 Sabeis, de
fato, as instruções que vos demos da parte do Senhor
Jesus. 3 A vontade de Deus é a vossa santificação, que
vos abstenhais da imoralidade, 4 que cada um de vós
saiba casar-se para viver com santidade e honestidade, 5
sem se deixar levar pela paixão, como fazem os pagãos
que não conhecem a Deus; 6 que ninguém prejudique
seu irmão, nem lhe cause dano nesta matéria, pois
o Senhor se vinga de tudo isso, como já dissemos e
testemunhamos. 7 De fato, Deus não nos chamou para
viver na impureza, mas nos chamou para a santidade. 8
Assim, pois, aquele que rejeita esses ensinamentos não
é um homem que rejeita, mas o próprio Deus que vos dá
o seu Espírito Santo. 9 Sobre o amor fraternal, não tende
necessidade de que se vos escreva, pois vós mesmos
aprendestes de Deus a vos amardes uns aos outros; 10
aliás, é o que fazeis, a respeito de todos os irmãos, na
Macedônia inteira; nós vos exortamos, irmãos, a que
façais ainda novos progressos: 11 tomai a peito viver
uma vida tranquila, ocupar-vos com vossos negócios e
trabalhar com vossas próprias mãos, como ordenamos,
12
para que vossa conduta seja decorosa aos olhos dos
estranhos e não tenhais precisão de ninguém.

O texto acima indica alguns caminhos, e reforça outros, para um estilo de


vida alternativo e de resistência. Para Boring (2015, p.357), um estilo de
vida “resumido como santidade e amor”. Ao longo das reflexões até aqui
propostas, nesta unidade, ficou evidente que a comunidade cristã em
76 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
Tessalônica nasceu em um ambiente hostil - composto por instituições
de poder injustas e por relações desumanas - diametralmente oposto
àquilo que estava sendo desafiada a construir, tendo como paradigma o
modelo de vida de seu Senhor.

Na construção de seu argumento o apóstolo menciona a vontade de


Deus, e esta como sendo a santificação da comunidade (v.3). A partir daí,
associa o conceito de santificação com algumas relações comunitárias,
que serviriam como testemunho e identificariam a comunidade cristã
como um movimento singular, distinto de qualquer grupo naquele
contexto. Boring (2015, p.357) reforça a tese da relação intrínseca
entre santidade e vida comunitária – contrapondo várias escolas de
interpretação que desassociam uma coisa da outra, tratando o tema
como uma questão privada. Ele explica que “como é o caso da ética
bíblica em geral, a ética de Paulo é explicada como fazendo a vontade
de Deus. Quanto a Jesus, bem como quanto a Paulo, o viver correto é
uma questão de responsabilidade para com Deus e cuidado para com
os outros”. Esse também é o argumento de Ferreira (1991, p.86). Para
o autor: “a santidade acontece quando os homens e mulheres se inter-
relacionam numa linha de respeito, convivência e transformação, para
um mundo novo, sendo conduzidos pelo Espírito da vida”.

No texto, a primeira relação a ser revisitada, à luz de uma vida “santa”, é a


relação conjugal – “que cada um de vós saiba casar-se” (v.4). Ao que tudo
indica esta exortação é reflexo da desigualdade entre homem e mulher
naqueles dias. As mulheres, no contexto imperial do primeiro século,
sofriam toda espécie de discriminação, abuso e buscavam sobrevivência
em um mundo marcado pelo modelo patriarcal hierarquizado, onde a
subordinação da mulher ao homem era uma realidade construída através
da ideia de que esses eram seres superiores. Na relação conjugal, o
homem estava amparado pela lei, a ponto de repudiar a sua mulher. Isto
é, deixá-la à margem em condições indignas, sem qualquer prova que a
desqualificasse. Para Ferreira (1991, p.84) o discurso exortativo de Paulo,

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 77


pela santificação nas relações matrimoniais, denunciava que “a violação
dos direitos matrimoniais é injustiça que pede a Deus vingança”. O autor
lembra que “a palavra vingador é atribuída nos salmos sempre ao Deus
que toma partido dos oprimidos (Sl 99,8 e 94,1) contra os opressores
(ímpio) para fazer justiça”. Ele entende que no contexto da comunidade
em Tessalônica, o uso do termo “é semelhante ao dos salmos”; e que,
portanto, ninguém “pode ser violado ou desrespeitado”.

Seguindo pelo texto, o ponto seguinte ressaltado por Paulo é a relação


entre irmãos: “que ninguém prejudique seu irmão, nem lhe cause dano
nesta matéria” (v.6). Aqui o apóstolo, segundo Ferreira (1991, p.84-85),
está “condenando energicamente a apropriação dos bens materiais
alheios, ou seja, a ganância, a ambição ou ganho”. Ao que tudo indica,
“Isto era típico da vida comercial do Império romano e, aqui, no caso de
Tessalônica. Este tipo de vida leva ao individualismo egoísta, destruidor
de qualquer possibilidade de organização comunitária”.

É preciso destacar o uso da palavra “irmão” no texto. Sigo com Ferreira (1991,
p.84-85) que explica que “é na ótica do irmão, da vida comunitária, que os
cristãos precisam agir e viver”, levando-se em conta que no Império romano
as relações estavam marcadas por hierarquias, traduzidas por toda sorte de
violação do mais forte contra o mais fraco. Trilhar caminhos de santidade
significava a reconsideração do outro, olhando-o como um igual. Para o autor:

Em todos os ângulos da vida, em qualquer situação


adversa ou não, os cristãos têm que mudar o modo de
ver as coisas. Sua visão é bem diferente da visão do
Império romano e das religiões que faziam o seu jogo.
Os cristãos têm diante de si o Ressuscitado que os
anima, e têm uma tarefa importante pela qual lutar: o
empenho por um mundo de irmãos.

Por fim, na sequência do texto, reaparece a temática


do amor. O que não é de se estranhar já que para os
estudiosos, como Hawthorne (2008, p.67), por exemplo,

78 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


“todo conceito paulino de vida santa é dominado pelo
amor” Santidade e amor andam de mãos dadas, o que
torna inadequada a ideia de uma vida santa que seja
solitária, fria, desumana e alienada das vivências do
amor. O texto bíblico diz:

Sobre o amor fraternal, não tende necessidade de que se


vos escreva, pois vós mesmos aprendestes de Deus a vos
amardes uns aos outros; aliás, é o que fazeis, a respeito de
todos os irmãos, na Macedônia inteira; nós vos exortamos,
irmãos, a que façais ainda novos progressos.

Note que ainda que apóstolo julgue desnecessário aprofundar-se na


questão, uma vez que o amor já era uma realidade na comunidade, reafirma
a necessidade de progressos. Mas o que enxergou Paulo a ponto de
reconhecer a realidade do amor fraterno na vida da comunidade? Bem, na
perícope anterior vimos que o amor foi uma das respostas/reações dadas
pela comunidade ao sistema imperial romano e suas práticas de desamor.
Para Ferreira (1991, p.86-88), sem amor fraterno não existe comunidade,
daí sua afirmação: “é da vida de amor fraterno que surge a Igreja. É a
grande experiência de solidariedade, de unidade. Ninguém vive isolado,
porque existe comunidade”. Além disso, é o sinal visível que identifica e
legitima o pressuposto de ser uma “comunidade cristã”, em razão de ser o
“amor fraterno o que concretiza a adesão da comunidade a Jesus Cristo”.

Além de testemunhar estes sinais na vida da comunidade o apóstolo


presenciou o cuidado e o compromisso da mesma com os mais
vulneráveis, àqueles (as) a quem estavam aprendendo a chamar de
“próximo”. Theissen (2009, p.99) lembra que o conceito de amor ao
próximo, já se encontrava no Antigo Testamento (prescrito na lei de
santidade – Lv 19). O autor entende que esse amor liga-se a um “etos-
de-misericórdia oriental comum, que vale para fracos, as viúvas e os
órfãos, portanto, para pessoas que possuem condições ou marginais”.
Schillebeeckx (2008, p.242) reforça a tese de Theissen de que o “próximo”

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 79


se referia ao compatriota pobre ou mais humilde, o socialmente mais
fraco, o menor que precisa de proteção.

A comunidade de Tessalônica compreendia e experimentava essa


dinâmica e, por isso, tornou-se um ambiente de resistência, esperança e
paz. Uma paz, claro, em oposição a ilusão da pax romana. Paz, segundo
Bingemer (2001, p.68), conforme a dinâmica da paz neotestamentária.
Isto é, “inseparável da dinâmica do amor”.

SAIBA MAIS
A comunidade de Tessalônica foi chamada a “viver de maneira
digna de Deus, que os chama ao seu reino e à sua glória”. É
o “andar” e o “agradar” a Deus. [...] Andara para agradar a Deus,
significa dirigir-se sob o olhar de Deus, para um alvo certo (o próprio
Deus). O “agradar a Deus” completa esta imagem, sugerindo que os
cristãos tessalonicenses, em todo o seu agir, precisam procurar a
face de Deus. Os tessalonicenses receberam “instruções”, ou seja,
as orientações ou as diretrizes, para a sua vida comunitária “em
nome do Senhor Jesus”. [...] A base para a vida comunitária é a
santificação dos tessalonicenses. Já no Antigo Testamento, em Lv
11,44s, Deus disse: “... Vocês serão santos porque eu sou santo”.
É exatamente esta a vontade de Deus”. Deus sendo santo, partilha
sua santidade com os membros do seu povo. Isto que aconteceu no
Antigo Testamento, acontece agora com os cristãos. A santificação
vem de Deus (5,23), de Cristo (3,13), é ação do Espírito Santo (4,8).
Nessa comunhão, é tarefa da ekklesia (4,7) ser santa. É a santidade
que fará a comunidade cristã ser diferente dos outros grupos da
época (4,5.12; 5,6).

Fonte: FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos


Tessalonicenses: a Igreja surge como esperança dos oprimidos.
Petrópolis: Vozes, 1991, p.825. Elogios e Desafios

80 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


Para concluir esta unidade veremos aqui uma brevíssima síntese da
teologia paulina nesta magnifica carta. Estudiosos defendem a tese
de que algumas temáticas teológicas da primeira carta de Paulos aos
tessalonicenses devem ser lidas a partir dos elogios do apóstolo à
comunidade, bem como aos desafios que apresenta a mesma.

Elogios

No início da primeira carta que escreveu aos tessalonicenses, Paulo


faz questão de destacar a fidelidade da comunidade, mesmo em meio
à perseguição e as tribulações. A atitude dos cristãos em Tessalônica
serviam, portanto, de exemplo para os demais cristãos na Macedônia
e na Grécia. Para destacar a atitude da comunidade, Paulo usou uma
conhecida tríade de virtudes: fé; amor e esperança (I Ts 1:3). Vejamos
uma breve síntese dos desdobramentos teológicos dessa afirmação:

1. Fé que gera Obras: operosidade da vossa fé - obras que resultam da fé:

A fé não é conceitual, antes, pressupõe comprometimento que se traduz


na construção de estruturas e relacionamentos baseados na ação em
direção ao próximo. Infelizmente, para muitos, em nossos dias, a fé se
tornou sinônimo de confissão de crenças. Trata-se apenas uma área da
vida (ligada à religião) e, por isso, não se constitui como fundamento que
determina os movimentos da vida. Para a comunidade em Tessalônica,
entretanto, a fé era dinâmica, estava em movimento, gerava algo de
produtivo à luz dos paradigmas do reino de Deus (fé encarnada).

2. Amor que gera Sacrifícios: o esforço motivado pelo amor:

Quando falamos em amor nossa tendência imediata é pensa-lo a partir


daquilo que se sente (sinônimo de sentimentos). Na Bíblia, entretanto,
quando se menciona a caridade (amor), o “sentimento” não é a palavra
de ordem e os textos paulinos confirmam esta tese. Ao se referir ao
amor (caridade), Paulo pressupõe uma ação concreta que passa pela
ideia de sacrifício. Sacrifico, todavia, não segundo o modelo ritualista
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 81
do judaísmo, conforme o Antigo Testamento, nem nos moldes de uma
negação piedosa de si mesmo sem relação com “o outro”. Antes, porém,
segue o modelo de sacrifício de Jesus Cristo. Aquele que se sacrificou
para que “o outro” não precisasse mais ser sacrificado. No cotidiano
da comunidade, este princípio relacional era fundamental. O exercício
mutuo do amor sacrificial sugeria o sacrifício próprio nas relações (que
até então eram relações de poder que terminavam no sacrifico do outro)
para que o outro, então, não fosse mais sacrificado.

3. Esperança que gera Responsabilidade - paciência proveniente da


esperança:

Lembre-se, o elogio de Paulo nasce em um contexto de sofrimento,


tribulação e perseguição. Ao fazer referência a esperança, o apóstolo
menciona uma energia que fundamentava a vida daquela igreja. Não se
tratava de mero futurismo, ou de uma esperança alimentada pela fuga da
realidade (embora alguns assim a entendiam) para um mundo de sonhos.
A esperança no amanhã era a base para a construção da vida no presente
da comunidade. Vida com responsabilidade diante de tantos desafios.
Esperança, portanto, em algo concreto e que luta pela transformação do
presente pautado em categorias do futuro.

Desafios
Além dos elogios, essa carta destaca algumas instruções práticas de
Paulo frente aos desafios que enfrentava a Igreja no cotidiano. Vejamos:
(1) Moral Sexual e Matrimonial: 1Ts 4:3-8; (2) Amor Fraterno: 1Ts 4:9-
12; (3) Vida Comunitária: 1Ts 5:12-22. Os desdobramentos da vida
comunitária no texto são:

• Reconheçam e respeitem seus líderes


• Vivam em Paz! (Paz não é um sentimento ou uma sensação de
ausência de guerra. Antes, o desafio da construção de uma vida
pautada pela justiça como direito de todos); (c) Advirtam os ociosos,
confortem os desanimados, auxiliem os fracos, sejam pacientes com
todos, não retribuam o mal com o mal, sejam bondosos.
82 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
• Alegrem-se sempre (mesmo com as tribulações);
• Orem sempre (como exercício de relação com Deus e não de interesse
pelos seus favores);
• Deem graças em todas as circunstancias (gratidão deve ser a
superação de toda e qualquer circunstância contraditória);
• Não apaguem o Espírito (não permitam que os movimentos da vida
sejam dados sem o fôlego da vida, que é o Espírito);

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84 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA


UNIDADE IV - Aspectos da Escatologia do NT
Introdução
Costumamos pensar na escatologia como o estudo do fim dos tempos, das
coisas que irão acontecer na proximidade da “consumação dos séculos”.
Em parte, isto é correto. Entretanto, a escatologia, enquanto tema teológico,
é muito mais abrangente e seu foco principal é outro. Nas pesquisas da
Teologia Bíblica no final do século XIX e começo do século XX, percebeu-
se com bastante clareza que os textos escatológicos do Novo Testamento
não se referem apenas ao “fim dos tempos”, mas ao tempo final, definitivo.
Para a escatologia bíblica, o tempo possui duas dimensões: quantitativa
e qualitativa. A dimensão qualitativa é a mais importante, e a ela está
subordinada a dimensão quantitativa. Esta descoberta fez com que a
teologia passasse a tratar da escatologia de forma diferente, focando
mais na qualidade do tempo escatológico do que nas questões ligadas à
quantidade, ou cronologia, dos tempos do fim.

No final do século XIX e em boa parte do século XX (e até hoje ainda


há correntes teológicas deste tipo), algumas correntes teológicas se
ocuparam na construção de uma “agenda do fim”, ou seja, procuraram
nas Escrituras textos “proféticos” que poderiam descrever os
acontecimentos mundiais que antecederiam a volta de Cristo. As duas
principais correntes teológicas que fizeram isso foram o pré-milenismo e o
dispensacionalismo. É claro que dentro dessas duas correntes há muitas
formas diferentes de fazer tal agenda, algumas bastante exageradas, e
que deram motivo para uma forte desconfiança em relação a esse tipo de
ideias teológicas. No tocante à cronologia do fim, sempre é bom lembrar
daquilo que Jesus falou aos discípulos: “Mas a respeito daquele dia e
hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai” (Mt
24,36); “então os que estavam reunidos lhe perguntavam: Senhor, será
este o tempo em que restaures o reino a Israel? Respondeu-lhes: Não
vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou para sua
exclusiva autoridade” (At 1,6-7).
| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 85
Com estas advertências de Jesus em mente, a escatologia deverá
estar muito mais preocupada com os temas da esperança, em sua
relação com a espiritualidade cristã, e da missão, em sua relação com a
ressurreição e a parusia de Jesus. Em relação à esperança discernidora
e ativa dos cristãos, vejamos, por exemplo: “Por isso, ficai vós também
apercebidos; porque à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá”
(Mt 24,44); “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora” (Mt 25,13);
e a conclusão da resposta de Jesus aos discípulos, em At 1,6-8: “mas
[ao invés de receber conhecimento sobre o fim dos tempos] recebereis
poder ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas
tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins
da terra”. E em relação à missão, podemos notar “Aquele, porém, que
perseverar até o fim, esse será salvo. E será pregado este evangelho do
reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então virá o
fim” (Mt 24,13-14). Este será o foco nesta disciplina: estudar a escatologia
para crescermos na esperança e na prática da missão cristã.

A escatologia do NT é uma releitura da apocalíptica veterotestamentária, por


isso, iniciaremos nossa discussão com uma reflexão sobre Daniel 7, um dos
textos fundamentais para a construção da escatologia dos autores do NT.

1. Daniel 7 e a Vinda de Deus


Textos apocalípticos judaicos e cristãos são caracterizados, entre
outras coisas, por falar do fim – fim dos tempos, fim das dores, fim do
pecado, fim dos impérios. Mas também textos filosóficos e políticos não-
religiosos falam do fim. O mais famoso texto político-filosófico do final
do século passado foi o publicado por um funcionário do governo norte-
americano, Francis Fukuyama, em que ele anunciava o “fim da história”.
Para ele, o fim da história significava, não o fim dos acontecimentos, mas
o fim das utopias, das possibilidades de mudança estrutural, de término
do capitalismo. Em sua visão extremamente otimista ele considerava
que o melhor dos mundos possíveis já estava existindo, e nada mais era
necessário a não ser expandir esse “melhor mundo possível” para todas
as nações pobres e para as não democráticas.
86 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
A linguagem apocalíptica de Fukuyama é fruto de uma secularização da
apocalíptica judaico-cristã em sincretismo com a linguagem exaltada da
ideologia real mesopotâmica, especialmente da Babilônia. O discurso
capitalista do fim da história é a versão secular do louvor babilônico:
“Eu sou, e fora de mim não há nada! Não me tornarei viúva, nem ficarei
desfilhada” (Is 47,8), mesclada com a visão apocalíptica do fim dos
tempos. Esta é a linguagem do imperialismo, dos impérios políticos,
ou econômicos, que se consideram tão superiores aos demais povos
que vivem em segurança e arrogância ideológicas. Assim como no
passado distante do Antigo Oriente, também hoje os impérios divulgam
a sua mensagem do fim – agora com a televisão e demais meios de
comunicação massiva – do fim da resistência, do fim da oposição, do
fim da utopia. Esta é a relevância da leitura de textos apocalípticos hoje:
resistir contra as crenças seculares no fim da história, resistir contra o
fim da esperança, do desejo de um mundo diferente e melhor.

1.1. Interpretando a apocalíptica judaico-cristã canônica


No passado distante, como agora, a apocalíptica judaico-cristã da
Escritura é a expressão da resistência dos enfraquecidos e dominados
contra a arrogância ideológica imperial. Naquele tempo, como agora,
a interpretação da apocalíptica é parte da luta pela liberdade e pelo
futuro. Uma veneranda tradição cristã interpreta os textos apocalípticos
de forma ahistórica. É uma interpretação que assume como literal a
lógica apocalíptica que divide o tempo em duas metades: o velho e o
novo, e anuncia a consumação do velho e a chegada do novo, enviada
unicamente por Deus à terra. Uma leitura que podemos chamar de
espiritualizante, pois retira o ser humano do palco das ações e o coloca
na plateia – transforma o ser humano em espectador passivo de um
drama celestial conduzido e orquestrado por Deus e seus anjos, na luta
contra o Diabo e seus demônios. Como nada podemos fazer, a não ser
esperar e orar, essa interpretação dos textos apocalípticos resulta em
uma fuga da história, em uma visão da missão cristã apenas em termos
“espirituais” e individuais.

| Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA | 87


Outra tendência de interpretação dos textos apocalípticos enfatiza
a secularização dos símbolos da apocalíptica. Entende que a lógica
temporal da apocalíptica é apenas simbólica e não pode ser usada como
uma chave para a interpretação da história. Vê a apocalíptica como um
grito desesperado, como a expressão quase irracional de pessoas que não
sabem como enfrentar a perseguição e a opressão. Por isso, se refugiam
no sonho, nas visões e nas especulações dos textos apocalípticos. Esta
interpretação não é espiritualizante, mas em sua versão secularizada, não
deixa de ser uma interpretação puramente existencial e individualista. Vê
os textos apocalípticos como expressão da incapacidade religiosa de
interpretar a história a não ser em termos religiosos e pessoais.

Uma terceira forma de interpretação também tem uma longa história,


mas uma história abafada, silenciada ao longo dos tempos. Uma história
retomada nas últimas décadas do século passado pela leitura popular
latino-americana. Nesta visão interpretativa, a apocalíptica é uma literatura
de resistência, uma expressão do grito utópico (não desesperado) de um
povo, ou de comunidades cristãs, subjugado por impérios militarmente
poderosos e religiosamente autoritários. A linguagem simbólica dos
textos apocalípticos é vista como uma espécie de código secreto para
proteger as pessoas e comunidades dominadas da perseguição e da
prisão. É uma linguagem subversiva, por isso deve ser ocultada dos
dominadores, e aberta apenas para aquelas pessoas e grupos que
sofrem a dominação. Como todo código, é preciso ter a chave certa para
descobrir o seu significado. Essa chave é a chave da resistência contra
o império, da resistência contra o desânimo, da esperança utópica na
construção de um novo e melhor futuro.

Comentando sobre o capítulo 7 de Daniel, Collins afirma: “a função de


Daniel 7 é exortar e consolar os judeus perseguidos, mas esta função é
desempenhada indiretamente, mediante a apresentação de uma visão
do mundo como a arena de forças sobrenaturais, e mediante a antevisão
de um julgamento celestial para a resolução do conflito” (COLLINS John
J. Daniel with an introduction to Apocalyptic Literature. Grand Rapids:
Eerdmans, 1984, p. 82).

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1.2. Daniel 7 como expressão de resistência e esperança
Daniel está sonhando, diz o texto, e em seu sonho teve visões que o
transtornaram: visões de bestas-feras monstruosas, que culmina na
visão de um pequeno chifre com olhos e boca de gente (Dn 7,1-8). A
estas visões “abestadas”, segue-se uma visão palaciana: tronos são
arrumados, e um ancião senta-se em um deles, feito de fogo, servido
por incontável multidão. No fogo, a besta com chifres é queimada, mas
as outras bestas são poupadas por um tempo determinado (7,9-12). O
sonho visionário termina com a imagem de alguém parecido com um ser
humano (“um como filho de homem”) que se aproxima do ancião e recebe
o poder e o reino para sempre (7,13-14). Se você não entendeu nada,
não se preocupe, pois Daniel também não sabia o que fazer com essas
visões noturnas de seu sonho, e no próprio sonho pede ajuda exegética
a um dos servos do ancião (7,15-16), e ouviu a interpretação do sonho
(7,17-27). Acordado, Daniel permanece pensativo, inquieto, ansioso. E
guardou o sonho e sua interpretação na memória (7,28).

O sonho de Daniel é semelhante aos sonhos de Nabucodonosor (capítulos


2 e 4 de Daniel), não na sua simbólica, mas na sua visão da história.
Daniel 7 é uma interpretação da história do povo de Israel. As bestas
(como a estátua e a árvore de Dn 2 e 4), são símbolos de reis poderosos
(cf. 7,17). Em Daniel 7, quatro reis são descritos, não em sucessão
histórica, mas como se fossem contemporâneos. O mais terrível desses
é o quarto (interpretado como “reino” em 7,23s), do qual surgirão dez reis,
seguidos por um que “será diferente dos primeiros e abaterá três reis”
(7,24), que não só dominará política e economicamente, mas também
tentará acabar com a própria Torá e a fé em Javé (7,25). O que se destaca
na visão e sua interpretação é que cada rei e reino tinham suas próprias
características, e que, apesar de sua força, cada um deles chegou ao
fim – e o reino e o poder foram entregues ao povo de Javé. Sendo assim,
porque Daniel teria ficado inquieto a ponto de perder a cor do rosto (7,28)?
Aparentemente porque, antes do fim da última besta, o povo judeu ainda
iria sofrer e muito!
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Segundo a interpretação atualmente predominante na exegese
acadêmica, o texto de Daniel foi escrito durante o reinado de Antíoco
IV Epífanes (c. 175-163a.C.), como expressão da resistência dos judeus
contra a helenização forçada por esse rei, que culminou na profanação do
templo de Jerusalém. As três primeiras bestas seriam, em sequência, os
impérios babilônico, meda e persa. A última besta seria uma descrição da
conquista do Oriente por Alexandre, o Grande, e a posterior divisão de seu
império entre os seus generais. Antíoco IV, um dos sucessores desses
generais, teria sido o responsável pela blasfêmia contra o Altíssimo (ao
profanar o templo) e pela provação do povo de Deus, ao impor a religião
helênica como religião “oficial” na Judá por ele dominada. Esta é uma
interpretação plausível, e provavelmente a melhor possível em uma
perspectiva histórica.

O capítulo 7 de Daniel ocupa um lugar central no livro. É o último capítulo


em aramaico e o primeiro em forma tipicamente apocalíptica. Como texto
aramaico, se une aos capítulos 1-6; como texto de gênero tipicamente
apocalíptico, liga-se aos capítulos 8-12. O capítulo é a narrativa de um
sonho e sua interpretação. É através de sonhos e visões que os textos
apocalípticos destacam que um determinado conteúdo tem valor de
verdade e está revestido da aprovação divina.

O relato do sonho inicia com duas afirmações espaciais importantes:


Daniel viu “os quatro ventos do céu” que “agitavam o grande mar” (7,2b).
Os quatro ventos indicam principalmente a universalidade, marcam os
quatro limites da terra – norte sul, leste e oeste; enquanto o mar indica
principalmente o lugar da revolta contra Deus, o lugar da desordem e do
caos. É do mar que surgem as bestas (3), indicando que os reis e seus
impérios são, acima de tudo, expressão da desobediência e deslealdade
a Javé, e representam um projeto contrário ao projeto libertador do Deus
dos hebreus.

A descrição das bestas utiliza elementos provenientes de tradições


cananitas e mesopotâmicas, nas descrições de seus deuses, não só
nos textos teológicos, mas também nos estandartes e monumentos
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públicos. Vem também de tradições bíblicas, particularmente de Os 13,4-
8 – embora em Oséias seja Javé quem é descrito como leão, leopardo,
ursa e leoa e como quem vem julgar o seu povo pecador. Aqui, as bestas
são inimigas de Javé e do povo de Deus (cf. Is 27,1; 51,9-11; Ez 34). Mais
importante do que entender os detalhes da descrição de cada besta é
captar o senso de poder e brutalidade dos reis que se insurgem contra
Javé e seu povo. A visão é perturbadora porque os inimigos do povo
de Deus são terríveis, poderosos e destruidores. As bestas não agem
sozinhas, mas representam as divindades destruidoras;

A última besta, além do enorme poder destruidor, também é caracterizada


como tendo o poder da propaganda – com seus olhos podia enxergar bem
a realidade e com sua boca podia proferir “palavras arrogantes” (8), ou seja,
falar de projetos grandiosos de dominação e conquista (cf. Dn 11,36; Is 37,23;
Sl 12,3; Ob 12) - “as ‘coisas grandes’ que Antíoco fala (7,8b), auto divinizando-
se, correspondem à práticas políticas e realizações que pretendem impor
‘paz e segurança’ para o projeto imperial, mas que significam medo e
insegurança para os vassalos que necessariamente têm que optar entre o
servilismo ou a perseguição” (CROATTO, José S., “O discurso dos tiranos em
textos proféticos e apocalípticos”. In: Revista de Intepretação Bíblica Latino-
americana. Número 8. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 41).

Em contraste com esta terrível e assustadora descrição de bestas


destruidoras, o sonhador tem uma nova visão (9-10) – que o move do espaço
turbulento do mar agitado pelos ventos do céu, e o coloca em um espaço
calmo e seguro da sala do trono. Calmo, mas poderoso, pois caracterizado
pelo fogo destaca o poder destruidor e purificador do Deus de Israel. Este,
descrito como um ancião, de cabelos e barba brancos, e de vestes brancas,
que é servido por incontável multidão, e assume o trono para julgar.

A descrição em termos humanos contrasta com a bestialidade dos


inimigos de Israel, e ressalta a bondade, a sabedoria e a paz que emanam
de um ancião. O julgamento proferido pelo ancião derrota as bestas (11-
12), sendo que a quarta besta é morta por causa de sua arrogância, e
consumida pelo fogo que saía do trono divino. A descrição da sala, com
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vários tronos, remete a antigos textos cananitas que descrevem a corte
celestial. As outras três bestas recebem alguma clemência no juízo, pois
não foram executadas imediatamente, mas tiveram uma sobrevida por
“uma data e um tempo determinados”, indicando a soberania de Deus
sobre a história das nações. Por mais destrutivas e aterrorizantes que
fossem as bestas, seu poder sequer se poderia comparar ao poder e à
autoridade de Javé, o deus de Israel.

Os versos 13-14 estão entre os mais comentados e discutidos de toda a


Bíblia, não só no ambiente judaico, mas principalmente na tradição cristã,
dada a utilização da expressão “filho do homem”, em o Novo Testamento,
para se referir a Jesus. Não podemos entrar em detalhes aqui. Devemos
destacar alguns pontos: (1) o texto não diz que a figura era um “homem”,
mas um “como filho de homem”, ou seja, alguém com aparência humana.
Esta figura, uma das incontáveis que serviam ao Ancião, é descrita como
“vindo sobre as nuvens do céu”, que se adiantou e se aproximou do ancião
e recebeu dele o domínio e poder e a honra. Em contraste com o domínio
das bestas, transitório e válido apenas por tempo determinado, esta figura
quase humana recebe o poder para todo o sempre (14).

Inquieto, Daniel busca ajuda – duas vezes – para interpretar suas


visões (15.19-22) e uma das figuras que servia ao ancião lhe passou a
interpretação das visões em duas fases (16-18.23-27). Na interpretação,
fica claro que as bestas são reis que se insurgem contra Javé e guerreiam
contra o seu povo e lhe causam grande transtorno e sofrimento. A
quarta besta é descrita como um reino que não só dominará política e
economicamente sobre o povo de Javé, mas que também se esforçará
para mudar a fé e a identidade do povo de Deus (23-26). O domínio das
bestas sobre Israel, inclusive o da quarta besta, é concedido apenas “por
um tempo, tempos e metade de um tempo” (25), expressão que indica
o caráter temporário, transitório e outorgado desse domínio. Não é
necessário tentar traduzir a expressão em anos e décadas. Basta notar
que é Javé quem domina sobre os dominadores de seu povo, e não
permite que tal dominação dure mais do que o devido.
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O aspecto polêmico na interpretação desta seção do capítulo se refere
à identidade dos “santos do Altíssimo” (18.22.25.27). Há indícios
importantes de que tais “santos” sejam reconhecidos como seres
angelicais – uso bastante comum na literatura apocalíptica, e no próprio
livro de Daniel (4,10.14.20; 8,13). Se a melhor interpretação for essa, a
seção deve ser interpretada como Javé dando o poder aos anjos que
representam seu povo nos lugares celestiais, talvez o próprio Miguel
(12,1ss), que representa Israel na batalha celestial e derrota os anjos
inimigos. A maior dificuldade desta interpretação são os versos 24 e 27
que apontam, mais provavelmente, para o povo de Israel (cf. Sl 34,10;
I Enoque 100,5) – pois este é o povo que é tentado a abandonar a fé
em Javé (24) e é este povo que receberá os reinos “sob todos os céus”
(27). A polêmica, porém, pode ser dissolvida sem maiores problemas
se reconhecermos o caráter simbólico dos textos apocalípticos. Se os
santos do Altíssimo são seres angelicais, eles representam o povo terreno
de Israel, de modo que, no final das contas, não há diferença significativa
na compreensão do texto.

O tema da seção é que Javé, rei dos reis e deus dos deuses, irá exercer sua
soberania e, mais uma vez, libertar seu povo da dominação estrangeira.
Como um deus fiel à sua aliança e promessas, Javé outorgará a Israel
mais uma vez a liberdade e estabelecerá seu povo como o povo mais
importante da terra (cf., especialmente, Isaías 40-55). Esta mensagem
de resistência e esperança é que ressoa no capítulo 7. Por mais terrível e
tremenda que seja a situação, Javé é soberano e justo, e levará a história
em sua correta direção. Devemos cuidar, porém, para não anularmos o
caráter simbólico do texto, nem a perspectiva pactual da ação de Javé,
que nunca age sozinho, transformando a história como que por um passe
de mágica. O poder de Javé é exercido em parceria (aliança) com seu
povo. A fidelidade de Javé demanda a fidelidade de seu povo, de modo
que a história não é o efeito da ação solitária de Deus ou de seus anjos no
céu, mas da ação conjunta de Deus e seu povo na face da terra.

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SAIBA MAIS
Daniel 7, como a literatura apocalíptica canônica, é um convite
à reflexão sobre o poder opressor e seus limites. É um convite à
resistência contra toda dominação e à esperança da transformação
das realidades opressoras, injustas e excludentes. Resistência e
esperança baseadas na fé em Javé, e concretizadas na fidelidade
ao Senhor, mediante ações de justiça na terra. Daniel 7 não oferece
um programa político, mas a motivação para cada geração do povo
de Deus construir seus projetos políticos em fidelidade à política
libertadora e justa de Javé. Neste nosso tempo de globalização e
dominação ideológica que se auto identificam como definitivas,
Daniel 7 é lembrança de que todo poder terreno terá fim – e mais
cedo do que os poderosos imaginam. E se o poder terá fim, Daniel 7
nos convida a seguir a Javé na ação política e solidária que faz o fim
acontecer. O fim da história é o fim dos impérios, o fim das opressões,
o fim das exclusões. É o início, o nascimento de uma sociedade justa
e libertadora. É o desafio de manter a justiça nas sociedades.

2. A missão de Jesus e a Escatologia


2.1. A missão de Jesus: fundamento da esperança e da
missão do povo de Deus
“Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando
o evangelho de Deus, dizendo: o tempo está cumprido e o reino de
Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,14-15).
Este resumo da pregação de Jesus nos ajuda a começar a entender a
escatologia do Novo Testamento, e nos ajuda também a construir nossa
própria compreensão do tempo do fim. Repare no paradoxo (duas ideias
que se contradizem, mas são igualmente verdadeiras) entre a afirmação
de que “o tempo está cumprido” e “o reino de Deus está próximo”. Em
outras palavras, o tempo do fim já começou, mas o Reino de Deus ainda
não chegou definitivamente, nem está consumado.
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Um dos teólogos que mais se ocupou do estudo do significado do tempo
na Bíblia foi Oscar Cullmann. Desde seus primeiros livros, a maioria dos
teólogos e teólogas cristãos, de várias correntes e tendências teológicas,
tem reconhecido que a compreensão neotestamentária do tempo possui
essa característica paradoxal, do fim já iniciado, mas não consumado. A
expressão já e ainda não se tornou uma expressão comum nos escritos
sobre escatologia, e resume a visão bíblica de que, com a encarnação de
Jesus os tempos do fim já começaram – a Igreja foi fundada e vive nos
tempos do fim – mas ainda não estão consumados: ou seja, os tempos
do fim são o tempo da igreja e sua missão, o tempo em que Deus, na
sua misericórdia, abre oportunidade a toda a humanidade para ouvir o
Evangelho, arrepender-se de seus pecados, e entregar-se ao senhorio de
Jesus Cristo.

Vejamos outros textos que apontam para o mesmo paradoxo


temporal. Começamos com textos que falam dos últimos dias como já
acontecendo: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas
maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo
Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também
fez o universo” (Hb 1,1-2). Para o autor da epístola aos Hebreus, a época
em que ele escreveu a carta (por volta de 80-100 d. C.) já é a época dos
últimos dias – e até hoje continuamos a viver nos últimos dias.

No livro de Atos, Lucas relata a primeira pregação pública de Pedro, no


Pentecostes, na qual Pedro interpreta a profecia de Joel como estando
sendo cumprida em seus dias: “E acontecerá nos últimos dias, diz o
Senhor, que derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos
e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão
vossos velhos” (At 2,17). Para Lucas, a chegada de Pentecostes e a
fundação da Igreja são marcas dos últimos dias – que já estão iniciados,
mas não consumados. Por outro lado, há passagens neotestamentárias
que usam a expressão últimos dias para se referir ao futuro, à época
da proximidade da parusia de Jesus, a um tempo que ainda não está
completo. Por exemplo: “Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão

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tempos difíceis” (II Tm 3,1), “tendo em conta, antes de tudo, que, nos
últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando
segundo as próprias paixões” (II Pe 3,3).

2.2. A missão de Jesus: fundamento da nova temporalidade


escatológica
É a missão de Jesus que faz com que os autores do Novo Testamento
reinterpretem as noções de tempo futuro que existem no Antigo
Testamento. Duas são as principais noções do futuro nos escritos
do Antigo Testamento. A primeira é a noção profética – para a qual,
o presente é um tempo de pecado contra Javé e desobediência à Lei
de Deus, mas que pode ser transformado mediante o arrependimento
e a conversão do povo de Deus no dia do Senhor (e.g. Am 5,18-20; Is
13,6ss; 11,1-9; etc.). O dia do Senhor era, para os profetas pré-exilicos de
Israel, o dia do julgamento dos pecadores de Israel, do perdão para os
arrependidos e da restauração do povo de Deus. Dessa forma, o dia do
Senhor não era visto como uma data fixa, definitiva, mas como uma data
sempre adiante do povo de Deus se este estivesse vivendo em pecado.

A segunda concepção veterotestamentária do tempo futuro é a da


apocalíptica (a palavra vem de apocalipse, revelação, e se refere à literatura
bíblica que, usando uma linguagem altamente simbólica e codificada, se
refere à transformação futura do mundo, finalizando o período do pecado).
Para os textos apocalípticos do Antigo Testamento, principalmente no livro
de Daniel, o tempo é dividido em duas épocas: a era presente, marcada pelo
pecado; e a era futura, que será marcada pela justiça de Deus vivida pelo
povo. A noção apocalíptica do tempo é uma revisão da noção profética.
Para a apocalíptica, o “dia do Senhor” marcaria uma data fixa, na qual a
história do pecado chegaria a seu fim, e uma nova história do povo de Deus
começaria, marcada por justiça e fidelidade.

Em o Novo Testamento, essas duas concepções de tempo foram


reunidas e reinterpretadas à luz da missão de Jesus Cristo. George E.
Ladd (importante teólogo evangélico que se especializou em teologia
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bíblica e escreveu vários livros sobre o reino de Deus e a teologia
do Novo Testamento como um todo), fala da concepção de tempo
neotestamentária como profético-apocalíptica. Para ele, o dia do Senhor
pode ser entendido como uma referência a dois tempos distintos e
interligados: a encarnação de Jesus e a parusia de Jesus. Assim, a noção
profética de dia de restauração é retomada e reinterpretada: Deus irá
perdoar todo aquele que invocar o nome de Jesus; bem como a noção de
juízo: na parusia de Jesus, o juízo final será realizado (e.g. Mt 25,31ss).
O dia do Senhor, então, marca o tempo do já (está aberta a nova era da
salvação, a era definitiva em que Deus realizou a salvação da humanidade
em Cristo, que na cruz bradou “está consumado”), e do ainda não (não
está ainda consumada a nova era da salvação, pois Deus aguarda na sua
misericórdia a conversão das pessoas, antes da conclusão deste tempo
na parusia de Jesus: II Pedro 3,9-10; etc.).

Assim, uma nova forma de interpretar a noção veterotestamentária


de povo de Deus é criada: o povo de Deus não é mais composto por
descendentes físicos de Abraão, mas pelos descendentes de Abraão em
Jesus Cristo (a epístola aos Gálatas trata dessa temática em profundidade
nos capítulos 1-3, e na carta aos romanos Paulo retoma o tema, com
outra ênfase, nos capítulos 9-11). Dessa maneira, os autores do Novo
Testamento afirmam que a Igreja é agora o povo de Deus: “E a todos
quantos andarem de conformidade com esta regra, paz e misericórdia
sejam sobre eles e sobre o Israel de Deus” (Gl 6,16). Em I Pedro 2,9-10 a
identidade da Igreja é definida como a identidade do povo de Deus e em
Efésios 2,11-22 Paulo enfatiza a união de judeus e gentios, em Cristo,
formando um só povo de Deus.

Do ponto de vista da escatologia, há aqui uma implicação importantíssima:


as profecias veterotestamentárias relativas à restauração de Israel
passam a ser interpretadas como se referindo à Igreja, o novo povo
de Deus – já vimos como Pedro fez isso no sermão de Pentecostes,
aplicando Joel 2 à fundação da Igreja. E mais, passam a ser enquadradas
no novo esquema escatológico do Novo Testamento – o esquema do já
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e ainda não. Isto é um alerta contra as tentativas especulativas de usar
profecias do Antigo Testamento para fazer uma agenda dos tempos do
fim. Permanece, porém, o mistério da salvação de Israel, de que Paulo
trata em Romanos 9-11, onde expressa a sua esperança de que “no fim,
todo Israel será salvo” - sem, porém, especular sobre os acontecimentos
relativos a esse “fim” e, especialmente, sem se preocupar com Israel
enquanto nação, mas com Israel enquanto povo.

A missão de Jesus, portanto, inaugura o tempo definitivo da salvação,


o tempo escatológico da salvação. Nada mais há a ser feito para
que a humanidade possa alcançar a salvação, pois a obra de Cristo é
completa e consumada. Entretanto, exatamente porque a obra de Cristo
está consumada, a da Igreja está iniciada: para que a salvação chegue
aos confins da terra, é necessário que o povo de Deus permaneça fiel
ao Senhor e trabalhando pelo seu Evangelho: “Portanto, meus amados
irmãos, sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do
Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (I Co 15,58).
Por mais que não consigamos enxergar a transformação do tempo e da
humanidade, o nosso trabalho não é vão no Senhor, ao contrário, é eficaz
no poder de Deus para levar a humanidade e a criação de volta para Deus:
“para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível,
segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim” (Cl 1,29).
Para encerrar esta reflexão, destaco uma consequência importante
desta concepção escatológica para a vida cristã: o reconhecimento
de que, enquanto ainda não está consumada a salvação, os cristãos
permanecem sob os efeitos do pecado, por isso, ainda adoecem, sofrem,
morrem, são injustiçados, etc. Mas, em todas essas situações, são “mais
do que vencedores” (cf. Rm 8,31-39). A verdadeira esperança cristã nos
motiva, portanto, a: (1) viver na certeza e na tranquilidade da salvação
que é consumada em nós pelo próprio Deus (Rm 8,24-25); (2) realizar
a missão de Deus, anunciando e vivendo o Evangelho do Reino (Mt
24,14); e (3) perseverar na fidelidade a Deus e na busca da sua santidade,
resistindo a todo pecado e maldade (Mt 24,13; I Pedro 4,12-19).

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3. A vinda de Deus confronta a morte e gera a ressurreição
3.1. Que é morrer?
Nas Escrituras, temos diferentes sentidos para a palavra morte. Em
primeiro lugar, é preciso distinguir entre morte física e morte existencial. A
morte física é o falecimento da pessoa, a cessação de sua respiração, de
sua participação na vida física – experiência que marca a vida de toda e
qualquer pessoa. A morte existencial (ou espiritual, desde que não usemos
a palavra espiritual de modo dualista) é a vida alienada de Deus, é a vida sem
Cristo, incapacitada de vencer o pecado, a carne, o mundo e o diabo. Em
segundo lugar, a morte existencial é apresentada em dois sentidos distintos
e complementares: a morte experimentada aqui e agora na vida sem Cristo,
e a “segunda morte”, ou seja, a condenação final, a vida totalmente distante
de Deus, também chamada de condenação eterna, inferno, trevas sem fim.
Na escatologia, tratamos da morte física e da segunda morte – a morte
existencial é discutida na soteriologia e na espiritualidade.

Tradicionalmente, na teologia cristã se discute a morte física a partir


de afirmações bíblicas da morte como consequência do pecado, como,
por exemplo: “Tomou, pois, o SENHOR Deus ao homem e o colocou no
jardim do Éden para o cultivar e o guardar. E o SENHOR Deus lhe deu esta
ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela
comeres, certamente morrerás” (Gn 2,15-17); também: “Porque, quando
éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça. Naquele
tempo, que resultados colhestes? Somente as coisas de que, agora, vos
envergonhais; porque o fim delas é morte. Agora, porém, libertados do
pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para
a santificação e, por fim, a vida eterna; porque o salário do pecado é a
morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso
Senhor” (Rm 6,20-23). Que significam estes textos? Devemos interpretá-
los como dizendo que, se não fosse o pecado, os seres humanos não
morreriam? Será que devemos compreender a relação entre pecado e
morte física como uma relação de causa-efeito?
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Bem, vejamos. Em Gênesis 3 há o relato sobre o pecado de Adão e Eva
e sua expulsão do paraíso. Eles comeram do fruto proibido, mas não
sofreram imediatamente a morte física. Em Romanos 6, o contraste é
feito entre a morte e a vida eterna, e não entre a morte física e a vida
física. Não temos, nestes textos, uma relação direta e imediata entre
o pecado e a morte física. Como interpretá-los, então? Uma categoria
que pode explicar melhor a morte física e sua relação com o pecado é a
categoria da finitude. Somente Deus é infinito, ou seja, somente Deus não
está preso a limites de tempo e espaço, somente Deus é eterno e imortal.
Todas as criaturas são finitas, ou seja, no mínimo, têm um começo no
tempo – não são eternas. O mundo é finito, porque foi criado por Deus
“no princípio”, e tudo o que existe no mundo criado por Deus partilha
da finitude da criação. Nem todas as criaturas finitas são mortais – na
Bíblia, por exemplo, não se fala da morte física de anjos nem da morte
de demônios, seres finitos, mas não fisicamente mortais – mas todas as
criaturas são finitas.

A partir desta categoria, podemos perceber melhor o sentido dos textos


acima citados. A morte física é, para os seres humanos, uma consequência
indireta do pecado. Se o ser humano não pecasse, não estaria afastado
de Deus e viveria para sempre – uma vida com começo, mas sem fim.
Essa situação, porém, está totalmente fora de nossa experiência humana,
e não é à toa que a Bíblia afirma a relação entre pecado e morte física.
Nós, seres humanos, experimentamos a morte física e as Escrituras
interpretam a morte como consequência de nossa alienação de Deus:
porque pecamos, fomos expulsos da presença vivificadora de Deus, e
estamos sujeitados à morte. Esta forma de compreender nos ajuda,
também, a interpretar melhor os textos que falam sobre a possibilidade
de algumas pessoas não experimentarem a morte.

No Antigo Testamento encontramos duas exceções no tocante à morte


física: Enoque e Elias não passaram pela morte física, foram, por assim
dizer, arrebatados diretamente para a comunhão com Deus (Gn 5,21-
24; II Reis 2,9-14). Em I Coríntios 15,51-52 Paulo fala sobre a situação
que alguns cristãos experimentarão quando da parusia: “Eis que vos
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digo um mistério: nem todos dormiremos, mas transformados seremos
todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última
trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e
nós seremos transformados”. Repare que ele usa o termo mistério para
se referir a esse acontecimento! No tocante aos seres não-humanos da
criação, eles são simultaneamente finitos e mortais, mas a criação é
mortal por causa do pecado humano – segundo Rm 8,16ss, texto que
já vimos várias vezes, a criação foi sujeitada à vaidade e à morte por
causa do pecado humano, e geme, ansiosa, aguardando também a sua
redenção, ou seja, a sua libertação da morte – mas não da finitude,
porque, no fim dos tempos, continuará sendo criação – nova, sim, mas
ainda criação de Deus.

3.2. Que é ressuscitar?


Devemos ver a morte como um fim? Segundo a Escritura, sim e não. A
morte é o fim de um determinado tipo de vida, mas não é o fim de toda a
vida, nem o fim da pessoa. Fisicamente morta, a pessoa, porém, continuará
vivendo – seja na presença de Deus, vida eterna; seja alienada de Deus, a
segunda morte, condenação eterna. Para os seres humanos, a morte é o
fim de uma existência corpórea caracterizada pela corruptibilidade, pela
alma (I Co 15,35-49). Como consequência do pecado, o corpo humano
é um corpo mortal, cuja fonte de vida está em si mesmo (na sua alma,
conforme Paulo usa o termo em I Co 15,44-46 – traduzido por “natural” em
algumas versões), e por isso mesmo não pode durar para sempre, pois é
criatura finita (veja, também, Rm 8,10-11). Apesar do uso tradicional do
termo, a Escritura não fala em salvação da alma (no sentido de alma
como a dimensão espiritual da pessoa), mas fala em salvação da pessoa
e ressurreição do corpo. Este e o segundo grande tema da escatologia
pessoal: a ressurreição do corpo.

A ideia de que a alma é uma substância imaterial, distinta do corpo e dele


prisioneira, sendo salva ao ser libertada do corpo, não vem da Bíblia, mas
do pensamento de Platão, um antigo filósofo grego, que viveu alguns
séculos antes de Cristo. Como vimos em outras disciplinas, essa é uma
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ideia dualista, inadequada para entender e explicar os textos bíblicos
sobre o corpo, a carne, a alma e o espírito. Em I Co 15, a alma é equivalente
à energia da vida separada de Deus, por isso, finita, corruptível, mortal.
O nosso corpo presente é corpo mortal, anímico (da alma), e morrerá
porque está afastado de Deus. Salvos, porém, somos libertados – não da
corporeidade – mas da mortalidade corporal.

A vida eterna é vida em um novo corpo, um corpo “espiritual” (I Co


15,44.46), por isso, um corpo que não experimentará mais a morte física,
pois a sua fonte de vida é celestial, é o próprio Deus, de quem está ao
lado em permanente comunhão, por isso não morre mais fisicamente.
A fé cristã afirma a salvação integral do ser humano e da criação, e não
apenas a salvação da “alma”, ou da parte imaterial, incorpórea do ser
humano. Salvação integral, ressurreição do corpo! Ressurreição que já é
experimentada enquanto primícias e penhor, na vida do Espírito em nós.
Ressurreição que será consumada na parusia de Cristo.

Note a variedade de metáforas usadas por Paulo (I Co 15,35ss) para


tentar explicar algo que nenhum de nós experimentou e que, tendo
experimentado, não poderia voltar ao mundo e contar para os vivos: ele fala
em corpo celestial, corpo de poder, corrupção versus incorrupção, desonra
versus honra. Como explicar algo de que somente temos esperança, e
não experiência? Certamente, os primeiros cristãos formularam suas
ideias sobre a ressurreição humana a partir da ressurreição de Cristo.
Os relatos das aparições do Cristo ressurreto, nos Evangelhos, mostram
que ele continuava tendo um corpo, mas não estava totalmente limitado
a essa corporeidade. Tomé pode reconhecer o corpo ferido de Cristo (Jo
20,24-31), mas esse corpo não estava limitado espacialmente, podendo
“aparecer” na sala onde os discípulos se reuniam (Lc 24,36ss), ou na
estrada de Emaús para caminhar com dois discípulos (Lc 24,13ss).

Não devemos especular sobre a forma futura de nossos corpos


espirituais (se teremos a mesma aparência atual, se poderemos escolher
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a idade corpórea, etc.), devemos, sim, reconhecer que estes textos do
Novo Testamento indicam que é a mesma pessoa que ressuscita com
Cristo na parusia. Eu mesmo ressuscitarei, continuarei sendo a pessoa
que sou hoje, mas vivendo uma nova forma de vida, vivendo em uma
nova e distinta dimensão de comunhão com Deus e com a sua criação.
Este é o terceiro tema da escatologia pessoal: a vida após a morte física.
Moltmann escreveu uma bela passagem sobre a vida dos ressurretos,
que serve como uma linda paráfrase teológica de Apocalipse 22:

Despertamento para a vida eterna significa que,


para Deus, nada se perdeu, nem as dores desta vida
nem os momentos de felicidade. O ser humano
reencontrará junto a Deus não só o último instante,
mas toda a sua história, só que a história reconciliada,
retificada, curada e consumada da vida. Aquilo que é
experimentado nesta vida será plenificado na glória.
A morte é o poder da divisão, tanto temporalmente
como fluxo de transitoriedade quanto objetivamente
como desintegração da forma de vida do ser humano,
como também socialmente como isolamento. O
despertamento para a vida eterna é, em contraposição,
a força da união, temporalmente como reunião de
todos os instantes temporais no presente eterno,
objetivamente como cura visando à inteireza da forma
de vida e socialmente como integração na comunhão
do amor eterno. Por levarmos aqui uma vida social, não
existe ressurreição ‘individual’, mas sempre somente
uma ressurreição social para dentro de uma nova
comunhão. Se não fosse assim, a ‘vida eterna’ não
poderia ser amor. Vida eterna é a cura definitiva desta
vida rumo a uma totalidade perfeita para a qual ela é
destinada. (MOLTMANN, Jürgen. A vinda de Deus. São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2001, p. 87)

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3.3. Que acontece entre a morte e a ressurreição?
Por fim, a escatologia pessoal trata das questões ligadas à vida das pessoas
entre a sua morte e a parusia. Dois conceitos são importantes nesta temática:
o de estado intermediário e o conceito católico-romano do purgatório.
Comecemos por este último. A doutrina do purgatório parte da premissa de
que é necessário, ao ser humano, ser plenamente purificado de suas faltas
terrenas. Mesmo perdoado dos pecados, em Cristo, na morte o cristão ainda
não está plenamente purificado de seus pecados, pelo que necessita passar
pelo purgatório – que é descrito como mais uma expressão da graça de
Deus para consumar a salvação da pessoa: “existe um purgatório, isto é, um
estado de punição e de purificação, em que são purificadas aquelas almas
que ainda estão afetadas por pecados venais e penas temporais pelos
pecados” (papa Benedito XII, citado por MOLTMANN, Jürgen, op. cit., p.
115s.). No purgatório, as pessoas podem ser ajudadas pelos vivos, através
de suas orações e de indulgências – a comunhão dos santos é estendida,
assim, a todas as temporalidades vividas pela pessoa, e não só ao tempo da
vida física. Enfim, o purgatório oferece uma última e final oportunidade de
salvação àquelas pessoas que não foram salvas ainda.

Para os reformadores, e para os protestantes em geral, a doutrina do


purgatório não faz sentido. Ela não leva em conta que a obra de Cristo
nos dá pleno perdão e purificação nesta vida, não havendo necessidade
de qualquer complemento pós-morte. Desde os reformadores, as igrejas
protestantes entendem a doutrina católico-romana do purgatório como uma
consequência do conceito de salvação pelas obras e, por isso, rejeitam-na.

Para os protestantes, então, o que acontece com a pessoa no tempo entre


a sua morte física e a parusia de Cristo? Uma das maneiras de entender
esse tempo é a do estado intermediário, especialmente baseada em II Co
5,1-10. O estado intermediário seria uma condição provisória, anterior à
ressurreição do corpo, na qual a pessoa continua a existir, está de alguma
forma na presença de Deus, mas não está completa, falta-lhe o corpo
ressurreto. Outra maneira é a do sono (ou repouso) da alma, baseada
principalmente em Ap 9,9-11 – na espera pela consumação dos séculos,
a pessoa salva fica em repouso, aguardando a consumação dos séculos.

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Outra maneira, ainda, baseada principalmente em Fp 1,21-24, descreve
esse período como de ausência de tempo, após a morte, a pessoa salva
passa imediatamente a estar com Cristo (ressurreta, ou não). Uma
interpretação mais recente (deste e de outros textos), compartilhada
também por teólogos católico-romanos, entende que a ressurreição
ocorre no momento da morte (uma versão da escatologia eternizada)
– nesse caso, não haveria nenhum tempo entre a morte e a vida eterna
para as pessoas salvas. Claramente, esses textos bíblicos usados para
basear as opções listadas acima, são de difícil interpretação, e recaem
na categoria de textos cuja interpretação exata é impossível – na medida
em que também são textos que tratam de realidades futuras, e não de
conhecimentos baseados na experiência humana conhecida.

Não é possível ter certeza sobre os detalhes ligados a esta questão, mas
a fé cristã afirma, com certeza, que a pessoa morre uma só vez – não
precisa voltar à vida física para pagar pecados, ou para se aperfeiçoar,
ou para qualquer outra finalidade. Salva pela graça, a pessoa também
não necessita de um período, após a morte, para completar a sua
salvação individual, pois a redenção foi consumada escatologicamente
(experimentada nesta vida, mas sempre em antecipação e esperança)
em Cristo, não existindo dois estágios de ressurreição, ou vida pós-
morte para os salvos. Não conhecemos detalhes, mas a Escritura nos
afirma que a pessoa morta em Cristo está na presença do Senhor, o que
é incomparavelmente melhor do que a vida em pecado, na carne. A forma
dessa comunhão com Deus não pode ser descrita com nossa linguagem,
mas a esperança da vida na presença de Deus pode e deve ser fonte de
consolo e coragem para lidar com a morte física, especialmente com a
morte que ocorre “fora de hora” (se é que existe “hora” para a morte). É
na esperança da ressurreição do corpo, como consequência do triunfo
de Deus, que os cristãos experimentam o luto e a dor pela perda. A dor
da perda não é eliminada, nem diminuída – mas o consolo de Deus nos
faz experimentá-la tomados por uma força maior do que nós mesmos.

Animados pela esperança da ressurreição, não entendemos a morte como


o fim, mas como uma transição para uma nova realidade, para uma nova
dimensão de vida com Deus. Animados pela esperança da ressurreição,
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experimentamos a perda dos entes queridos não com desespero, mas
com gratidão a Deus pela vida que compartilhamos com eles, e pelo
reencontro futuro nos novos céus e nova terra. Animados pela esperança
da ressurreição, somos desafiados a anunciar o Evangelho a toda
criatura, para que todas as pessoas tenham acesso ao conhecimento
dos propósitos de Deus para a Sua criação. Animados pela esperança
da ressurreição, somos desafiados também a não perder a memória
histórica, especialmente a memória dos mártires cristãos e das pessoas
que sofreram mortes injustas e/ou violentas.

A comunhão dos santos ultrapassa os limites do tempo, não só em relação


ao futuro, mas também em relação ao passado – e somos chamados
ao arrependimento e solidariedade para com as vítimas da injustiça e
violência, e para a celebração da vitória de Deus sobre a morte. Por isso,
vivenciamos liturgicamente a morte de forma peculiar – solidariedade
e conforto para as pessoas enlutadas, mas também encorajamento e
celebração, na esperança do triunfo de Deus em Cristo Jesus. Celebramos
a Deus, na certeza regozijante expressa por Paulo, em I Co 15,55-57: “Onde
está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? O aguilhão
da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Graças a Deus, que nos
dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo”.

4. O Deus vindouro e os novos céus e nova terra


Entramos no tema da escatológica cósmica, que trata das questões
relativas ao fim dos tempos e ao destino do Universo. Há questões
bastante controversas relacionadas à escatologia cósmica, controvérsias
que não tencionamos resolver. Assim, ao invés de oferecer um longo
debate sobre as grandes tendências teológicas da escatologia cósmica,
apresentamos um texto que visa encorajar à prática da espiritualidade e
da missão – e, assim, encorajar à continuidade dos estudos.

4.1. A consumação da história


Mesmo sem adentrar em especulações sobre a agenda do fim dos
tempos, a teologia cristã desenvolveu quatro formas importantes de

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interpretação do fim dos tempos, à luz das afirmações neotestamentárias
sobre o milênio (a expressão “mil anos”, em sentido escatológico, ocorre
apenas em Ap 20,1-10. A outra referência neotestamentária a “mil anos”
está em II Pedro 3,8 e não tem sentido escatológico, apenas indica que
para Deus o tempo é totalmente diferente do que para nós). Outro texto
que apresenta uma espécie de agenda do fim é o de I Co 15,20-28 – o
qual fala exclusivamente das vitórias de Cristo e da entrega do reino, por
Ele, ao Pai. As quatro formas são conhecidas como: amilenismo, pós-
milenismo, pré-milenismo e dispensacionalismo. Não é possível, aqui,
apresentar e discutir detalhadamente essas posições, podemos apenas
mencioná-las e vinculá-las à questão da espiritualidade e da missão.

O amilenismo é a tendência teológica que interpreta o milênio de Ap 20


como sendo exclusivamente simbólico, não ocorrendo no tempo histórico,
mas referindo-se ao reino eterno de Cristo. O pós-milenismo interpreta o
milênio de Ap 20 como se referindo ao período da Igreja, e tem tanto uma
vertente política, quanto uma vertente eclesiástica – a política defende
que a Igreja deve governar o mundo; a eclesiástica separa o governo das
nações do governo da igreja –, o governo eclesiástico é exclusivamente
espiritual, não interferindo nas questões seculares.

O pré-milenismo interpreta o milênio de Ap 20 como um tempo que irá ocorrer


no futuro, em que o povo de Deus, com Cristo, irá governar sobre toda a terra
de forma predominantemente espiritual. O dispensacionalismo é um tipo
de pré-milenismo, que difere do pré-milenismo típico por sua ênfase sobre
Israel como o povo de Deus que reinará durante o milênio. Nas correntes
pré-milenistas (incluindo o dispensacionalismo), também há divisões no
tocante à relação entre a volta de Cristo e o arrebatamento da Igreja –
as tendências pré-tribulacionista (a Igreja é arrebatada antes da grande
tribulação), pós-tribulacionista (a Igreja passa pela grande tribulação toda)
e mid-tribulacionista (a Igreja só passa por metade da grande tribulação).

Tendo em vista o caráter altamente simbólico e codificado do livro do


Apocalipse e da maior parte dos textos bíblicos que são usados para
construir as interpretações sobre os tempos do fim, nenhuma certeza pode
ser expressa com referência aos acontecimentos que acompanharão a

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volta de Cristo. Não é possível, do ponto de vista exegético, ter prova
definitiva de qualquer uma dessas quatro formas de interpretação do
milênio propriamente dito. A opção por qualquer uma delas é baseada em
uma complexa organização de textos bíblicos bastante diversos entre si,
muitos dos quais são suficientemente complicados para que tenhamos
certeza quanto à interpretação exata.

Em casos assim, o povo de Deus precisa exercer tolerância e cuidado.


Pode-se defender apaixonadamente uma interpretação específica,
mas não condenar os que têm outra interpretação sobre o milênio,
tribulação, arrebatamento, etc. Mais importante do que definir qual dessas
interpretações do milênio é correta, é perceber que o livro do Apocalipse é
principalmente uma convocação à adoração a Deus, à fidelidade a Cristo,
e ao cumprimento da missão, na força do Espírito. A esperança cristã, em
tempos de perseguição e sofrimento do povo de Deus – como foi a época
da escrita do Apocalipse – reafirma a soberania de Deus, a graça salvífica
em Cristo e a presença carismática do Espírito Santo. Seja qual for a sua
interpretação sobre o milênio e os acontecimentos do fim dos tempos, não
podemos perder de vista que a nossa vocação é a de reino sacerdotal, de
povo missionário de Deus (Ap 1,4-6; 4,1-5,14) que, em adoração e gratidão
ao Pai, se identifica com o filho nos seus sofrimentos e missão, e vive
fielmente a Deus e sua vocação, na força do Espírito Santo.

4.2. Novos céus e nova terra


A esperança cristã é uma esperança cósmica. Cremos, com os escritos
bíblicos, que Deus, na consumação dos tempos, irá criar novos céus e
nova terra, irá restaurar e renovar toda a sua criação, e não apenas a
humanidade (cf. Rm 8,18-25; II Pd 3; Apocalipse, etc.). A crença nos novos
céus e nova terra deve, portanto, nos conduzir a um maior amor à criação
divina, a um maior compromisso com o cuidado e a preservação de mundo
sobre o qual Deus nos colocou como mordomos. Se os tempos do fim já
começaram, então a nova criação também já começou e, é claro, ainda
não está consumada. A fé cristã deve afirmar que somos salvos com a
criação (o mundo enquanto cosmos, enquanto a totalidade da criação de
Deus), e não da criação. Não somos salvos para deixarmos de habitar na

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terra, ou para deixarmos de sermos humanos. A visão do Apocalipse fala
de novo céu e nova terra, bem como da nova Jerusalém que desce do
céu e transforma a terra (Ap 21). Em certas tradições cristãs, a ideia de
céu ficou reduzida à dimensão geográfica. O céu, nos escritos do Novo
Testamento, possui tanto a dimensão geográfica, quanto a qualitativa:
céu é o lugar onde a vontade de Deus é plenamente realizada; céu é o
lugar da morada de Deus (e como Deus é onipresente, a sua morada
inclui a criação). Porque o céu “é um lindo lugar”, Deus fará novos céus e
nova terra, que terão a qualidade celestial – na consumação dos tempos,
o mundo todo será um céu para os que creem em Cristo Jesus.

Devemos evitar, por isso, um tipo pessimista de interpretação do fim dos


tempos, que teve muita força entre alguns círculos cristãos no século
passado. Devemos evitar o tipo de interpretação que espera que o mundo
vá de mal a pior, pois quanto pior o mundo, mais próxima estará a volta
de Jesus (interpretação errônea, baseada nos “sinais dos tempos” no
sermão escatológico de Jesus: Mc 13; Mt 24). A doutrina escatológica
não nos leva ao pessimismo e à resignação, mas à coragem e à missão.
Porque sabemos, com certeza, que Deus cumprirá suas promessas
e consumará a salvação em Cristo, é que vivemos na esperança, nos
identificamos com a misericórdia de Deus e sua graça derramada em
Cristo Jesus, e somos o povo que segue nos passos de Jesus, amando a
toda a criação, a toda a humanidade, e pregando o Evangelho com toda
determinação e compaixão.

A esperança escatológica não pode ser vivida pessimistamente, mas


missionariamente. Semelhantemente, devemos evitar todo tipo de
triunfalismo escatológico – seja em relação à igreja, seja em relação a
Israel, seja em relação a qualquer outra nação que se considere povo
de Deus. A escatologia aponta para o triunfo de Deus, e não da Igreja,
de Israel ou de nossa nação. O povo de Deus não é melhor do que a
criação, nem do que as pessoas que ainda não fazem parte dele. O povo
de Deus é o povo de pecadoras e pecadores que se entregaram a Jesus
Cristo. Como pecadores já salvos, mas ainda não totalmente livres do
pecado, nos colocamos debaixo da graça de Deus, para que possamos
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perseverar e permanecer firmes até o fim. Cremos, sim, no triunfo de
Deus e, por isso, temos esperança e abandonamos todo medo, covardia
e conformismo (II Tm 1,6-14; Hb 2,14-15; I Jo 4,16-18).

No século passado, outra discussão sobre o tempo do fim passou a


tomar força, juntamente com as discussões mais antigas, descritas
brevemente acima. Essa nova discussão levantou a hipótese de que
devamos interpretar o fim dos tempos em sentido qualitativo, e não
quantitativo. Ou seja, considerar o fim, não como algo que irá ocorrer
depois do ano X, mas como algo que já está ocorrendo – outra dimensão
temporal, na qual o ser humano entra no momento de sua morte. Essa
nova forma de interpretação tenta, ao mesmo tempo, levar a sério o
testemunho bíblico sobre o fim, quanto superar os limites e problemas
das interpretações anteriores sobre os tempos do fim. Podemos dizer
sobre esta nova forma de interpretação o mesmo que devemos dizer
sobre as tradicionais: não temos a experiência do fim, por isso, toda
tentativa de explicação de tempos que ainda não ocorreram deve ser
considerada parcial e hipotética, e não deve ser motivo de condenação
ou divisão entre cristãos.

Não podemos perder o foco: a escatologia é a doutrina do tempo definitivo


de Deus, do triunfo de Deus sobre o pecado, da consumação do reino de
Deus sobre toda a criação – como e quando irá acontecer, foge à nossa
possibilidade de compreensão, como Jesus nos advertiu. Moltmann
faz a seguinte admoestação sobre as distintas formas de interpretar o
tempo escatológico, destacando que a qualidade do agir de Deus é mais
importante do que a dimensão cronológica do tempo:

Na escatologia temporalizada, que chamava a si mesma


de ‘consequente’, o porvir (Zukunft) foi equiparado ao
futuro (Futur). Ela não conhecia a categoria novum.
Porém, com o passar do tempo, a vida apenas fica
velha, mas não jovem nem nova. Para isso, é necessária
a esperança no Deus que promete: “Eis que eu faço
tudo novo”. Aqueles que esperam neste Deus “ganham
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força, de tal modo que sobem com asas como águias”
(Is 40,31). na escatologia eternizada, o ‘instante’ atual
é o ‘repentino’, imprevisível, o salto, o milagre. Porém,
ele não é o ‘instante escatológico’ e não é situado
dentro da categoria novum, mas permanece sendo ‘a
exceção’, a ‘interrupção’. O conceito de eternidade que
está na sua base impossibilita a percepção da categoria
novum. Porém, a categoria novum necessariamente
faz parte da experiência do Deus vindouro e do coração
adventício do tempo, porque aquela é inaugurada
por estes. (MOLTMANN, Jürgen. A vinda de Deus.
Escatologia Cristã. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2003, p. 46, itálicos do autor.)

Muitos temas da escatologia ‘cósmica’ poderiam ser estudados e ou


aprofundados. Muitas questões têm se manifestado sem resposta
comum, e várias são as ‘escatologias’ das diferentes Igrejas e de
diferentes Teologias. A mais importante questão escatológica é,
porém, a questão da práxis cristã: “vivemos na novidade de Deus, ou na
caducidade do mundo” (Rm 6,1-14)? Viver em esperança e perseverança
é o que podemos fazer. Quanto às questões escatológicas ainda não
consensuais, que vivamos em liberdade e respeito mútuo.

4.3. O Deus Vindouro e a espiritualidade da resistência


Para encerrar nossa discussão sobre escatologia escolhi um tema que
mescla responsabilidade e alegria. O tema final de nosso estudo é a
espiritualidade. Veremos uma importante dimensão da vida cristã: a
resistência (tema que já mencionado na terceira unidade). A resistência
é uma virtude cristã para os tempos difíceis. O livro do Apocalipse é o
livro da resistência. Os cristãos antigos enfrentaram tempos difíceis,
chegaram até a ser exilados – como João. Assim, as lutas que eles
enfrentaram servem para nos ajudar a enfrentar as lutas de hoje.

Nosso texto fundamental é Apocalipse 1,9: “Eu, João, irmão vosso e


companheiro na tribulação, no Reino e na resistência em Jesus, achei-

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me na ilha chamada Patmos, por causa da pregação da palavra de Deus
e de dar testemunho de Jesus.” (Ap 1,9). João, após a visão do Senhor
ressurreto, recebe a comissão para escrever cartas às sete igrejas da
Ásia Menor. Nestas cartas João exorta (parênese = exortação) as
igrejas a permanecerem firmes na fé. Não estudaremos as cartas, mas
a motivação de João ao escrever as cartas. Essa motivação é a mesma
que anima a espiritualidade da resistência hoje.

Espiritualidade de resistência é espiritualidade comunitária


João se apresenta como irmão e companheiro. Suas credenciais não
são derivadas de cargos ou posições que ele ocupava na Igreja ou em
qualquer outra instituição. Sua credibilidade vem de sua relação pessoal
com Deus e de sua solidariedade com a comunidade cristã. Suas
credenciais são as credenciais da vida em comunidade:

(1) ele é irmão, ou seja, é um dos filhos de Deus, uma das pessoas que
encontrou a verdade e a vida na mensagem do Evangelho e se submeteu
ao Senhor Jesus Cristo - por isso, tornou-se membro de uma nova família,
a Igreja, comunidade de irmãos e irmãs - na qual os valores e as posições
ocupadas no mundo perdem sua razão de ser, e todos se tornam um,
“porque Cristo é tudo em todos”! (Gl 3,26-29; Cl 3,9-11). “João não usa o
termo adelphos (irmão, irmã) com frequência, mas quando ele o usa, o
faz nos pontos críticos do livro que indicam uma relação não-hierárquica
de testemunho. Em 6,11 todos são membros da mesma família da fé que
sofre por causa de seu testemunho do senhorio de Deus e de Cristo. Em
12,10, essas mesmas testemunhas-parentes conquistam o dragão com
a força do testemunho. Mesmo anjos, quando servem a Deus, atuam
como co-servos dos crfentes e não como superiores hierárquicos (19,9-
10; 22,8-9)” (BLOUNT, Brian K. Revelation: A Commentary. Louisvlee:
Westminster, 2009, p. 41).

(2) João é companheiro, co-participante, é um irmão presente, que está


junto com sua família e enfrenta junto com ela todas as lutas da vida, e
experimenta junto com ela as alegrias da vida. João, irmão e companheiro,
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em Jesus! O ponto de referência da vida de João é Jesus. Só por causa
de Jesus João pode ser irmão e companheiro. É porque participa da vida
de Jesus, que João participa da vida dos irmãos e irmãs; e é por causa de
Jesus que João está exilado.

Espiritualidade de resistência é espiritualidade subversiva

João estava em Patmos, uma ilha próxima à costa da Ásia Menor, a


província romana na qual ficavam as “sete igrejas”. Por que um homem de
Deus estava exilado? Porque fora considerado um criminoso político, um
subversivo, um agitador (cf. At 17,7). O exílio era a pena para criminosos
políticos. Por que João foi considerado um subversivo? Porque ele
pregava a palavra de Deus e dava testemunho de Jesus Cristo. Não parece
estranho? Por que a pregação do Evangelho seria considerada crime
político? Não é a religião algo separado da política? Não é a comunidade
cristã uma comunidade obediente às autoridades (cf. Rm 13,1)?

Pregar o Evangelho era crime político no tempo de João porque era o


anúncio de que há um só Senhor sobre a face da terra: Jesus Cristo. Isso
era crime, pois o Império Romano afirmava exatamente o contrário: há
muitos deuses e as pessoas podiam crer em quantos deuses quisessem,
e adorá-los como bem entendessem - desde que reconhecessem que há
um só Senhor na terra: o Imperador romano! (Em várias moedas do Império
Romano, a efígie do imperador era rodeada pelos ditos: filho de Deus e
Salvador!) Os cristãos do tempo de João não se recusavam a obedecer
aos governantes - com uma exceção, porém: quando a obediência ao
governante exigia algo que só se podia dar ao Senhor Jesus Cristo!
Lealdade absoluta, obediência permanente e constante, fidelidade e
discipulado somente ao Senhor Jesus. João seguiu o exemplo de Pedro e
João (ele mesmo, ou outro João?) que anunciaram corajosamente diante
das autoridades judaicas que os haviam prendido: “E não há salvação
em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome,
dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos.” (At 4,12)

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Espiritualidade de resistência é espiritualidade da fidelidade
missionária
João é pregador do Evangelho e testemunha do Senhor Jesus. João, o
exilado na ilha de Patmos, é nosso irmão e companheiro na tribulação,
no Reino e na resistência. Tribulação, porque perseguido, condenado
e exilado. Tribulação provocada pelo ódio do Império, pela rejeição do
mundo ao senhorio de Jesus Cristo. Não a tribulação individualista de
hoje em dia (não conseguir comprar isto ou aquilo, não receber o amor que
se queria receber, não ter ...). Tribulação experimentada pela comunidade
cristã, proibida de dar testemunho e intimidade pelo poder do Império
através da prisão de seu líder. Tribulação provocada pela submissão ao
Reino de Deus. Reino é uma ideia importante no Apocalipse. Veja, por
exemplo, Ap 1,6 “e fez de nós reino e 5,10 A linguagem aqui e na linha
seguinte vem de Êx 19,6 e Is 61,1, conforme também Ap 5,10 “e para
nosso Deus os fizeste reino e sacerdotes”. Ser um reino não significa
que podemos conquistar povos e nações. Significa, sim, que somos
sacerdotes – testemunhas de Deus neste mundo. Significa, também, que
não temos outro Senhor a não ser Jesus Cristo.

Somente Deus reina, somente a Ele damos nossa lealdade e somente Ele
conduz nossas vidas! Nenhum imperador aceita isto: seja o imperador
romano, seja o imperador dinheiro, seja o imperador consumo, seja o
imperador prazer, seja o imperador poder! Diante da perseguição, da
intimidação, o que faz a comunidade cristã? Resiste, não se amedronta, não
se acovarda. Fica firma. A palavra resistência, também pode ser traduzida
por paciência ou perseverança. É resistência perseverante, e perseverança
resistente. Nos tempos de João, a palavra era usada para se referir aos
soldados que, na hora do combate, não fugiam do campo de batalha!

A espiritualidade da resistência é missionária, porque é a espiritualidade


de quem não foge do mundo, o nosso campo de batalha, ao mesmo tempo
em que não se conforma com ele. De quem não desiste de anunciar a
Palavra e de dar testemunho de Jesus, não importa o custo! Em Ap 13,10
114 | Bíblia VIII - Teologia do NT | FTSA
e 14,12 João reforça o sentido missionário e corajoso da resistência
cristã. A resistência cristã é resistência contra toda e qualquer forma
de idolatria (cf. Ap 20,4), especialmente a idolatria que não tem cara de
religião - a fidelidade ao sistema econômico e político do mundo. Nas
palavras de outro Juan Stam, “João parece estar convicto de que a Igreja
é chamada a uma missão de tenacidade, resistência e contracultura
dentro do sistema corrupto que a rodeia” (“La misión de la iglesia en el
Apocalipsis” in PADILLA, Carlos R. (org.). Bases Bíblicas de la Misión.
Buenos Aires: Nueva Creación, 1998, p. 378).

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