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Estudos Gerais Série Universitária • Clássicos qe Filosofia

Santo Agostinho

,
DIALOGO
SOBRE A ORDEM
Tradução, introdução e notas de Paula Oliveira e Silva

Revisão da tradução de Paulo Farmhouse Alberto

Edição bilingue

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA


Estudos Gerais Série Universitária • Clássicos de Filosofia
APRESENTAÇÃO

É esta a primeira vez que o Diálogo sobre a Ordem de Santo


Agostinho vem a público em língua portuguesa, ficando, assim,
disponível à comunidade lusófona o conteúdo desta obra do
filósofo de Hipona.
Sendo verdade que a nossa civilização dela se separa, no
tempo, mais de 1600 anos, também o é a perene actualidade
das questões aí debatidas e a constatação de que a obra do
Hiponense, bem como o pensamento por ela veiculado, é in-
dissociável do solo cultural português.
Independentemente da consciência que a comunidade
lusófona hodierna possa ter desse facto, a obra de Agostinho
penetrou a tal ponto na tradição portuguesa que impregna ain-
da hoje as linhas de fundo da mentalidade e da cultura pro-
duzida no espaço geográfico que constitui o país que é Portu-
gal, difundindo-se, igualmente, além-fronteiras, onde quer que
se encontre um indivíduo ou uma comunidade que, por algum
motivo, se considere em comunhão cultural com a pátria de
Camões.
Reflectindo sobre o percurso que permitiu trazer à luz este
escrito e interrogando sobre qual o motor que permitiu levar a
bom termo a feitura desta obra, porventura encontrar-se-á res-
posta na própria noção em causa, dando razão a Agostinho.
Em última instância, se esta obra vê a luz do dia, isso deve-se
à ordem das coisas, que se empenhou em executá-la. Como
poderá comprovar quem, não se detendo nestas primeiras li-
nhas, persistir na leitura do e-<crito, uma vez mais se cumprem

7
os vaticínios dos intervenientes no Diálogo, quando vêem esta gustinienne (vol. 412, Paris, 1997). Foi assim que o lnstitut
obra de Agostinho projectada ao longo e ao largo, até alcançar d'Études Augustiniennes veio ao encontro de mais esta exigên-
a fama dos homens. cia da ordem.
A ordem das coisas, sabiamente, como lhe convém, reuniu A obra já poderia estar completa, mas não o impulso que
as circunstâncias que perm.itiram levar a bom porto a publica- levara à sua feitura. Tratava-se de trazer a público o texto e,
ção deste volume. A ordem, como principal autora, antes de para este fim, a ordem mais não poderia fazer do que entre-
mais encarregou-se de imprimir à Dr.ª Paula Silva, enquanto gar-se à complexa maquinaria do mercado de edição. Encon-
bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia, a força de trou este trabalho acolhimento favorável junto do presente edi-
um apelo vital que impelia a trazer a público a versão portu- tor. Muito lhe deve agradecer a ordem, pois, tratando-se de um
guesa de De Ordine. Neste intuito, fez coincidir, no tempo, esse escrito em português, dirigido à comunidade lusófona sem ou-
impulso - oportet! -, com a revitalização do Centro de Estu- tro intuito do que o de lhe prestar alimento na medida em que
dos de Filosofia da Universidade de Lisboa. Aí, a ordem tirou ela o queira receber, de facto o Diálogo sobre a Ordem não
partido do dinamismo indissociável da identidade do então Di- poderia achar-se em melhores mãos.
rector do Centro, o Prof. Joaquim Cerqueira Gonçalves, sempre Esta ocultíssima ratio urde uma imensa trama de. circuns-
pronto a acolher novos projectos. A ordem dispôs, então, o lu- tâncias, conjuga um sem-número de esforços e vontades e fá-
gar próprio para a feitura desta obra: o núcleo de investigação -las convergir para uma única harmonia. Precisamente porque
em Filosofia Medieval, c~ordenado pela Prof.ª Maria Leonor ela ultrapassa infinitamente os seus feitores, torna-se impossí-
Xavier. · vel mencionar - ou, sequer, identificar - tudo e todos aqueles
4fas a ordem exigia mais. Procurava alguém que, dominan- que, como tessitura de fundo, alicerçam a presente obra.
do a força da gramática, pudesse avaliar a qualidade do escri- Basta tão-somente apelar para uma verificação de facto.
to. Com efeito, o Centro de Estudos Clássicos da Universidade O texto está, a partir de agora, disponível a quantos quei-
de L.isboa, na pessoa do Prof Aires do Nascimento, acolheu com ram refiectir, de preferência a sós com Agostinho, acerca da
generosidade o desafio e encontrou no Prof. Paulo F. Alberto o imensa fioresta de questões que envolve, no claro-escuro que a
elemento decisivo de que a ordem se serviria para o «trabalho caracteriza, a interrogação sobre a ordem das coisas.
de revisão», expressão paupérrima se com ela se quiser desig- Então - dir-se-á com ·Agostinho-, a própria ordem não há-
nar a relação criativa que se estabeleceu entre o trabalho da -de, também por este facto, ser louvada?
filósofa e o do filólogo na busca da palavra certa, na pondera-
ção do melhor modo de preservar o sentido original do discurso,
no diálogo - por ·vezes silencioso, mediado apenas pelo vaivém Lisboa, 7 de Julho de 2000.
do texto escrito -, visando a interpretação mais certeira. Pro-
vando que tal colaboração é possível, a ordem fê-la convergir
em um labor fecundo e harmónico, há muito desejado, mais
ainda, sentido como necessidade.
Por último, a ordem queria trazer para esta sua obra o tex-
to latino de que se partira para a tradução. Como se ela, razão
omnipotente; desconhecesse as dificuldades de aquisição de di-
reitos de reprodução de texto, mormente para as designadas
línguas mortas! Mas já que a ·obra se entregara. aos caprichos
da ordem, soube· esta colocar, inopinadamente, na encruzilhada
da sua execução, o Prof. G. Madec. Tão oportuno encontro
viabilizaria finalmente aquela exigência, tornando possível re-
produzir neste volume a versão latina de De Ordine, esta-
belecida por J. Doignon e publicada pela Bibliotheque Au-

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Siglas e abreviaturas

BV - De Beata Vita
CA - Contra Academicos
CCL - Corpus Christianorum, Series Latina
Civ. Dei -De Civitate Dei
Conf. - Confessionum Libri XII
CSEL - Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum
Diál. Ord. - Diálogo sobre a Ordem
DM-De Musica
Doct. Christ. - De Doctrina Christiana
DT - De Trinitate
Enn. - Enneades
Gen. ad Litt. - De Genesis ad Litteram
LA - De Libero Arbitrio
M - De Magistro
Nat. Deorum - De Natura Deorum
PL - Patrologia Latina
Retract. - Retractationum Libri II
Solil. - Soliloquia

11
I

INTRODUÇÃO
A-A TEMÁTICA DA PROVIDÊNCIA

A temática da Providência ou a questão da Ordem das coi-


sas não é, obviamente, de inovação augustiniana. Não o são,
sequer, quaisquer das formulações propostas no Diálogo sobre
a Ordem 1, nem mesmo os ensaios de resolução das aporias a
que ele conduz.
Na verdade, desde o início desta obra Agostinho invoca as
teses ímpias que, não obstante serem claramente insatisfató-
rias, são as únicas propostas pela cultura clássica para resol-
ver a questão que se oculta no coração da filosofia: como en-
contrar solução racional para a evidência do mal?
Em busca de superar paradoxos, a razão concluíra, com os
epicuristas, que não há Deus, despreocupando-se de interro-
gar acerca da racionalidade do real. A morte de Deus é a se-
pultura da filosofia: se não há nenhuma garantia para a racio-
nalidade do cosmos, é ociosa e vã a tarefa de construir uma
explicação coerente para o universo em que nos integramos.
A razão respondera, em outras formulações, que a providência
não é universal: Deus não se imiscui nos assuntos dos homens

1 De Ordine, texto estabelecido por J. Doignon, reproduzido em Oeuures


de Saint Augustin, Bibliotheque Augustinienne, 412, Institut d'Études Au-
gustiniennes, Paris, 1997, pp. 69-329. Assumimos doravante a referência a
esta obra de acordo com o título adaptado para a tradução portuguesa (Diá-
logo sobre a Ordem), seguido da divisão em livros, capítulos e parágrafos.

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e entrega estes ao curso da causalidade material. Esta tese No dia 25 de Novembro ter-se-ia posto termo ao Diálogo,
poderia ser defendida pelos partidários de um estoicismo radi- segundo esta distribuição: Livro II, 1, 1, a II, 6, 18 (discussão
cal ou mesmo, por contraditório que pareça, pelos defensores durante a manhã, interrompida para almoço); Livro II, 7, 19,
do neoplatonismo. Em qualquer caso, Agostinho considera-a a II, 20, 54, até ao anoitecer.
claramente ímpia pois desvaloriza a noção de divindade. Um Estas referências, porém, só esclarecem a nossa questão
tal Deus não é nem omnipotente nem atencioso, não sendo quando unidas a um outro conjunto de dados significativos. São
digno de adoração nem de piedade. Por último, caberia consi- eles a consideração da formação de cada um dos intervenien-
derar a hipótese aberrante de Deus ser causa do mal, tese que tes e as referências de Agostinho à bibliografia que utilizara
encarna a posição maniqueísta, de todas a mais ímpia2. nesta época.
O Diálogo sobre a Ordem recolhe a discussão em torno a Quanto ao primeiro aspecto, Agostinho apresenta como to-
este conjunto de problemas, enunciado com clareza na Dedica- mando parte activa no Diálogo sobre a Ordem um conjunto de
tio do texto a Zenóbio. Uma estratégia possível para compreen- personagens de formação divergente: Trigécio, amante da histo-
der o modo como, no interior deste Diálogo, a abordagem augus- riografia, como todo o oficial do exército; Licêncio, companheiro
tiniana da temática da Providência se cruza com as soluções das Musas; Alípio, dedicado às Leis; Zenóbio, censurado por
que a cultura tardo-antiga pusera à disposição da razão con- andar sempre excessivamente ocupado, sem tempo para o ócio
siste em recorrer à situação cronológica d:J. referida obra no dos sábios; por último, Mónica, conhecedora dos livros dos filó-
contexto da produção augustiniana. sofos e leitora assídua da Escritura. Quanto ao segundo as-
O Diálogo sobre a Ordem integra-se na trilogia dos diálo- pecto, Agostinho revela que a pequena escola de Cassicíaco
gos filosóficos tidos por Agostinho em Cassicíaco, da qual fa- tinha também ao seu dispor «muitas coisas nos Livros» 7• O con-
zem parte ainda o Diálogo contra os Académicos3 e o Diálogo teúdo dessa pequena biblioteca pode ser reconstituído sem
acerca da Vida Feliz 4 • A mais recente reconstrução de uma demasiado esforço, atendendo às informações disponíveis nos
cronologia possível para estes Diálogos pode colher-se em O. escritos de Agostinho que reportam à época de Cassicíaco. Aí
Perler, que os dispõe do seguinte modo 5 : entre a tarde de 10 encontramos a autoridade de Cícero: Hortensius é referido expli-
de Novembro e a tarde de 15 de Novembro de 386 teriam de- citamente em Contra os Académicos 8 e a defesa contra a cons-
corrido os diálogos que compõem o Livro I de Contra os Aca- piração de Catilina está bem presente na memória de Trigé-
démicos e os que correspondem ao Diálogo acerca d~ Vida Feliz, cio9. Virgílio era lido ao serão 10 e declamado explicitamente 11
que se inicia no dia do 32.º aniversário natalício de Agostinho, e Pitágoras era referência habitual, introduzida pela autori-
celebrado a 13 de Novembro de 386. dade de Varrão 12 .
Depois de alguns dias de interrupção6 dedicados à leitura Por sua vez, sabemo-lo pelas Confissões 13 , a mente de Agos-
de Virgílio ter-se-ia iniciado o Diálogo sobre a Ordem, o qual tinho prestava então particular atenção aos Libri Platonicorum,
pode organizar-se de acordo com as seguintes etapas: cuja leitura intercalava com a meditação do texto bíblico. Para
Desde a madrugada de 20 de Novembro até à manhã do
dia 21: Livro I, 3, 6, a I, 8, 26.
No dia 21 de Novembro: Livro I, 9, 27, a I, 11, 33. 7 Diál. Ord., I, 2, 5.
2
B Cf. CA, !, 1, 4 (CCL 29, p. 5); III, 4, 7 (CCL 29, p. 39); III, 14, 31
Cf. Diál. Ord., I, 1, 1. A mesma formulação do problema é retomada (CCL 29, p. 54).
em LA, III, 2, 5 (CCL 29, p. 277). ' Cf. Diál. Ord., II, 7, 22.
3
CA, CCL 29, 1970, pp. 3-61. 10 Cf. Diál. Ord., !, 8, 26.
4
BV, CCL 29, 1970, pp. 65-85. 11 Cf. Diál., Ord., II, 12, 34.
5
O. Perler, Les Voyages de Saint Augustin, Paris, 1969, pp. 190-191. 12 Cf. Diál. Ord., II, 20, 54.
6
Sete dias, segundo CA, II, 4, 10 (CCL 29, p. 23). 1a Conf, XIII, CCL 27, 1981, pp. 1-273.

16 17
além destas indicações imediatamente evidentes na leitura do subconjunto de uma racionalidade mais ampla. O ser humano
Diálogo sobre a Ordem, a biblioteca completava-se seguramente não é o cume nem o centro do universo e por isso não é em
com outros textos e autoridades - uma vez que Licêncio não função dessa pequena parcela do mundo que a ordem das coi-
prescindia dos seus poetas, entre os quais Ovídio e Terêncio sas pode ser descortinada. Obteríamos, assim, para a defini-
são referidos explicitamente - e enriquecia-se progressivamente ção do conceito de providência, uma proposição cara ao estoi-
com a produção literária de Cassicíaco. São testemunha deste cismo, segundo a qual o Mundo é melhor do que o Homem e a
facto o poema de Zenóbio, incitando Agostinho a escrever so- racionalidade deste estará em função da Razão Eterna daquela
bre a ordem das coisas, e o próprio registo dos Diálogos ocor- realidade soberana que se chama Cosmos. Isto mesmo se pode
ridos neste período da vida de Agostinho que corresponde ao ler em De Natura Deorum, quando Crisipo expõe os argumen-
retiro propedêutico antecedente à recepção do baptismo em tos a favor da existência de Deus, identificando esta última
Milão, na Vigília Pascal de 24 para 25 de Abril do ano 387. noção com o Mundo ou a Razão Cósmica 16 . A mesma tese é
De entre este elenco de autoridades, Platino e Cícero, cada confirmada pela fala de Zenão: se o Mundo é o melhor dos bens,
um a seu modo, ocuparam-se da temática da Providência e nos então ele contém todas as perfeições, entre as quais a Razão e
bastidores do Diálogo sobre a Ordem poder-se-iam encontrar a Sabedoria17. A Alma do Mundo é a sua razoabilidade e o
sem dificuldade vestígios de textos como as Enneades, de Plo- movimento eterno desta Vida justifica todos os fenómenos intra-
tino14, ou como o Diálogo sobre a Natureza dos Deusesl5 de cósmicos, nos quais se integra a vivência humana com as suas
Marco Túlio. ' brisas benévolas e os ímpetos abalos de ventos tumultuosos,
Com efeito, a tese de Licêncio tal como é exposta por ele umas e outros predefinidos e incontornáveis. Estes vaivéns mais
próprio no início do Diálogo - «nada se faz fora da Ordem» - não são do que uma expressão da Vida cósmica, integrando-se ·
pode ser tomada como porta-voz do estoicismo que defendia até a actividade humana na sucessão ordenada das causas, deter-
à exaustão o necessitarismo da conexão causal intracósmica e minada pela Alma do Mundo.
é sabido que a mente do jovem poeta estava próxima do ideá- No Diálogo sobre a Ordem, I, 5, 12, é clara a decisão de
rio da Nova Academia. Se em Contra os Académicos se mostra Licêncio a favor de uma ordem descentralizada em relação ao
defensor acérrimo do cepticismo - e não obstante ele próprio ser humano e com o epicentro na Natureza ou Cosmos. A cone-
afirmar, já no Diálogo sobre a Ordem, ter abandonado esta xão das causas é tão firme que permite concluir que todos os
posição epistémica -, é fácil concluir que, por ora, se apegara acontecimentos têm um significado intrínseco, predeterminado
à tese estóica da harmonia mundi.
Ao defender a identidade entre a ordem e a causalidade 16 Nat. Deorum, II, 6, 16: «Etenim si di non sunt, quid esse potest in

universal, Licêncio afirma que essa razoabilidade do real trans- rerum natura homine melius? in eo enim solo est ratio, qua nihil potest
cende o mero conhecimento humano da conexão das causas. esse praestantius; esse autem hominem qui nihil in omni mundo melius
esse quam se putet desipientis adrogantiae est; ergo est aliquid melius; est
A ordem das coisas não se identificaria, assim, com a compreen- igitur profecto deus» (ed. Heinemann, p. 138). Em II, 7, 18, depois de con~
são que se possa ter de um fenómeno, seja qual for a sua siderar os diferentes modos de existir, Crisipo conclui: «atqui certe nihil
natureza, pois quando referimos a razão ou ordem do real não omnium rerum melius est mundo nihil praestabilius nihil pulcrius, nec so-
lum nihil est sed ne cogitari quidem quicquam melius potest. Et si ratione
queremos necessariamen_te indicar uma construção razoável de
et sapientia nihil est melius, necesse est haec inesse in eo quod optimum
argumentos que permitam justificar, por via demonstrativa, a esse concedimus» (ed. Heinemann, pp. 140-142).
causa de um fenómeno. A razão do real transcende, portanto, 17 Nat. Deorum, II, 8, 21: <1Quod ratione utitur id melius est quam id

a esfera da lógica humana, vindo esta última a integrar-se como quod ratione non utitur; nihil autem mundo melius; ratione igitur mundus
utitur. Similiter effici potest sapientem esse mundum, similiter beatum, si-
militer aeternuµi; omnia enim haec meliora sunt quam ea quae sunt his
14
Plotino, Enn. (ed. Émile Bréhier), Belles Lettres Paris 19895. carentia, nec mundo quicquam melius. Ex quo efficietur esse mundum deum»
15 ' ,
Cícero, Nat. Deorum, Heinemann, Londres, 1966, pp. 1-383. (ed. Heinemann, pp. 142-144).

18 19
e inalterável. Precisamente por estar dotada destas carac- sarnente por se apresentar como um axioma necessano à ra-
terísticas, uma tal conexão pode ser eventualmente conhecida zoabilidade do real, torna-se impossível atribuir-lhe valor.
por alguém que sobre ela reflicta actualmente, exercitando-se A ordem, afirma Licêncio, não é boa nem má: é indiferente a
em alguma arte ou saber. Todavia, ela será certa e inviolavel- essas noções por ser um factum, cuja natureza e curso são
mente conhecida por aquele que possua o dom da adivinha- incontornáveis 19 . Bondade e malícia são categorias que têm por
ção. Este saber mais não é do que uma forma excelente de referência o ser humano. Ora Licêncio colocou a questão para
participação na razão cósmica, pois permite conhecer antecipa- além do bem e do mal, num plano cósmico onde o curso do
damente o desenrolar da Vida do Mundo. Esta, por ser eterna real decorre, necessária e fatalmente, à margem das livres de-
e inalterável, está desde sempre definida. Ora a adivinhação cisões do homem e da solução para o desejo universal de feli-
é a forma mais perfeita de conhecimento e por isso essa arte cidade, para a questão do fim último do homem ou da existên-
é o saber que mais aproxima e assemelha a razão humana e cia do mal.
a divindade, pois permite que aquela primeira penetre no A ordem cósmica é noção soberana e a ela tudo se subor-
âmago da ordem das coisas, apreendendo a racionalidade da dina. Esta posição não é contrária à religião, entendida esta
própria sucessão causal, independentemente das circunstâncias como a relação entre Deus e o Mundo, pois afirma a existên-
inopinadas onde esta última se inscreve. Por seu turno, o facto cia de uma precognição da Razão sobre o curso dos aconteci-
da adivinhação é entendido de per se como um argumento a mentos. Dependendo da presciência de uma Razão Universal,
favor da providência universal, pois se não existisse essa cone- o Mundo e o que nele ocorre tem com ela uma ligação de
xão causal intrínseca entre os factos não se explicaria o conhe- embriogénese. Se assim não fosse, o Universo seria irracional
cimento de presciência. Licêncio quase chega a convencer-nos e caótico. Mas a sua própria existência apela à razoabilidade
da validade deste argumento quando, referindo-se à própria da causa, pois nada se faz sem um princípio eficiente de cau-
obra em feitura - Diálogo sobre a Ordem - lhe configura o salidade, sendo este axioma a máxima garantia da universali-
destino: «[ .•. ] se estas coisas que foram ditas por nós, uma vez dade da ordem.
postas por escrito como tu determinastes, se espalhassem um São estes os parâmetros em que se desenvolve a noção de
pouco mais longe até alcançar a fama dos homens, não é ver- providência assumida por Licêncio. Contudo, no interior desta
dade que isto pareceria uma coisa importante, de modo que proposta de uma religação cósmica, dificilmente se encontrará
qualquer grande adivinho ou Caldeu, consultado acerca dela, uma resposta razoável para o mistério do mal. Igual dificul-
deveria respo!lder muito antes de que tivesse acontecido?» 18 dade encontrará qualquer mente que se empenhe em defender
A perfeição do Cosmos, a beleza da sua forma, a perpetui- a natureza eminentemente boa da Ordem ou Providência, bem
dade do seu movimento, pode contemplar-se de modo privile- como a condição essencialmente livre das acções humanas.
giado na natureza dos astros, onde a relação entre o Universo A posição de Licêncio será, por isso, facilmente reconduzi-
e o Homem se expressa sublimemente. Por isso, a adivinhação da à aporia, mais ainda quando o jovem poeta, defensor da
e a astrologia são saberes que necessariamente se cruzam, fi- Racionalidade do Mundo e, portanto, também da matéria, se
cando o exercício da liberdade humana e a própria conquista vir confrontado com os problemas que decorrem do eclectismo
de uma vida virtuosa ou viciada ao sabor do determinismo filosófico reinante. Na verdade, se não é possível predetermi-
astral, identificado com ·as noções de fortuna ou fatum. nar um valor para o real e se o mundo material é ordenado,
Numa tal mundividência, a providência divina é sinónimo por que motivo o conhecimento verdadeiro resulta apenas de
da inalterável conexão causal dos fenómenos cósmicos. Preci- uma actividade pura do entendimento, devendo a alma do sá-
bio arredar-se de todo o contacto com a sensação? Afinal, qual

18 Diál. Ord., I, 5, 14. 19 Cf. Diál. Ord., I, 6, 15.

20 21
a natureza desta ordem ou cosmos defendidos por Licêncio? lugar do ser humano no conjunto do Universo. Com efeito, se
Será a Alma do Mundo um princípio imaterial, podendo a só existisse a Ordem ou a Providência, nada mais existiria.
Razão ser reconduzida ao fogo, o mais subtil dos elementos, Sobre que realidades, então, haveria aquela de providenciar?21
como propunha Zenão? Ou, corroborando a proposta de Hera- Uma vez mais, a questão incide sobre o modelo de relação que
clito, a Ordem há-de constituir-se no eterno conflito entre o se estabelece entre o Mundo e o Princípio Ordenador e a exi-
bem e o mal, integrando-os dialecticamente, ao mesmo tempo gência de encontrar a racionalidade de um Universo que ne-
que os supera? cessita de integrar a diferença dentro do movimento que o
Sem negar o facto da Providência e da sua universalidade , constitui por natureza. No caso dos seres vivos - e, parti-
a questão da ordem das coisas atinge progressivamente o cer- cularmente, no caso do ser humano - porque se movem es-
ne da filosofia, pois trata-se de decidir sobre o modo como Deus pontaneamente, podem.inclinar-se para o bem ou para o ma122.
e o Homem se relacionam com vista a tornar acessível a aspi- A Providência seria aquela inteligência soberana e divina que,
ração essencial do ser humano: como alcançar a felicidade num apesar da imprevisibilidade do exercício de uma liberdade que
mundo onde o sofrimento e o mal emergem por toda a parte, se integra num universo diferente, tudo reconduziria à ordem
a seu bel-prazer? Em última análise, a proposta de uma provi- e harmonia convenientes.
dência universal de cariz determinista conduz a uma atitude Esta solução é a que apresenta Trigécio, quase com as mes-
de resignação ante um destino que, não sendo cego ou irracio- mas palavras de Plotino, ao identificar a providência universal
nal, é superior e tirânico. A única forma de libertação que resta com a justiça distributiva. A tese agrada sobremaneira a Agos-
ao ser humano é a da penetrar, pela gnose, nos desígnios fa- tinho que, entusiasmado com a conclusão do amigo, chega a
tais, procurando decifrá-los junto das autoridades competentes: enunciar ipsis uerbis o exemplo plotiniano da providente fun-
os sábios ou adivinhos. O comum dos mortais, depois de infor- ção do carrasco no seio de uma cidade bem ordenada23 .
mado acerca do seu horóscopo, conformar-se-á com o curso Sem dúvida, a hipótese é aparentemente satisfatória, pois
causal, religando-se-lhe através da prática de todas as formas neste contexto a relação do homem com Deus - cerne da filo-
de superstição ou procurando quanto antes diluir-se nessa vida sofia e essência da interrogação acerca da ordem das coisas -
anímica do cosmos pela prática do nirvana e a consecução da resolve-se favoravelmente para ambos os termos. Preservando
ataraxia ou, em caso limite, do suicídio voluntário, na espe- a liberdade humana e contornando o fatalismo estóico, é dado
rança de uma nova encarnação ou de uma comunhão definiti- ao homem aceder, por movimento próprio, à virtude ou ao ví-
vamente empática com a Alma do Mundo. cio. Em conformidade com os seus actos, seguem-se o mérito
Se atendermos à influência que as fontes neoplatónicas te- ou o castigo. Assim, seja qual for a actuação da Providência,
rão exercido sobre este Diálogo no que se refere à noção de ela é justa. A um tempo, ficam garantidas a justiça de Deus e a
providência, comprovamos que Plotino consagrara já um lugar felicidade do ser humano que resulta necessariamente do cum-
à liberdade humana dentro da Providência universa120. Sendo primento daquela. Ora a justiça divina é eterna, o que significa
omnipresente e omnipotente, a Providência não pode anular o que o ajuste de prémios e castigos também o é. Daí que a
harmonia universal, resultado desta distribuição, seja um efeito
necessário da justiça divina. Por seu turno, o ser humano, res-
°
2
Cf. Platino, Enn., III, 2, 7. O autor recolhe a frase de República X
ponsável pelos seus actos, tem aquilo que lhe é devido, obtendo
617e, incluída no relato platónico do mito de Er. A reencarnação das' al~
mas, pela qual começa para elas um novo ciclo mortal, depende do arbítrio o fim intentado e inscrevendo-se deste modo na ordem.
da~uelas: (<Não é um daimon que vos escolherá, mas vós que escolhereis o
daimon.» Contudo, esta eleição insere as almas no ciclo da Necessidade
definido pelo movimento dos astros, e submete-as à acção das Moirai (cf. 21 Cf. Plotino, Enn., III, 2, 9.
Platão, República, X, 617a-c. Trad. Maria Helena Rocha Pereira, Fundação 22 Cf. Plotino, Enn., III, 4-5.
23 Cf. Diál. Ord., II, 4, 12. (V., também, Plotino, Enn., III, 2, 17 .)
Calouste Gulbenkian, Lisboa, 19968, p. 493).

22 23
Da proposta de uma tal teodiceia resulta, na prática, uma Contudo, este Mundo está dotado apenas de realidade e
relação de tipo comercial entre Deus e o Homem. É esse mo- consistência relativas, já que contém em si a multiplicidade e
delo que gere, afinal, a actividade humana e que envolve vir- a diferença. Integrando a actividade espontânea - e mesmo
tudes como a piedade ou a devoção. A liberdade exerce-se por livre - dos seres que nele se geram e corrompem, a realidade
temor ao castigo ou pela paixão pelo bem. Neste horizonte, não do universo não se esgota no cenário visível, pura figuração.
teria qualquer sentido considerar a natureza de um acto hu- O verdadeiro Mundo é aquele onde tudo é Uno e Bom e onde,
mano que emerge da pura gratuitidade, pois uma tal acção em por definição, toda a diferença se anula. Nesse Mundo, a Pro-
nada contribuiria para a perfeição do indivíduo ou do todo. vidência torna-se desnecessária pois, como bem faz notar Li-
De igual modo, não se vê como pode o mundo assemelhar-se cêncio, «Onde tudo é bom não há ordem. Há, na verdade, uma
ao divino, uma vez que Deus-Uno cria o múltiplo por uma ne- suma igualdade que não precisa de nenhuma ordem» 24 . Para
cessidade intrínseca à sua própria perfeição: sem a diversidade, lá deve convergir a inteligência do sábio. Nesse esforço, a acti-
o Uno ficaria incompleto. vidade da conquista da sabedoria adquire dimensões soterioló-
A solução neoplatónica para a relação entre a Ordem e o gicas, pois permite que o sábio se separe progressivamente de
Mundo é razoável, harmónica, universal, mas claramente parca toda a realidade onde se mescle o visco da matéria.
de possibilidades de resposta para a questão essencial: se Deus Assim, se a Ordem é divina, todavia ela não é Deus. Se a
existe, qual a razão de ser do sofrimento? Com efeito, fica por Ordem está no Universo, ela não é universal. Com efeito, Ple-
explicar a origem do mal, relegando-a para uma fatalidade nitude e Divindade são atributos do Uno transcendente com o
inerente a toda a natureza que necessite do contacto com a qual a alma do sábio deseja unir-se, abandonando este univer-
imperfeição da matéria para se formar. so de aparências, onde por toda a parte brotam os conflitos,
A Ordem das coisas integra os bens e males, sobrepondo-se consequência da dispersão do real no múltiplo. A providência
aquele conceito ao conflito entre estas duas realidades. Neste emana directamente de Deus mas não é essencialmente divina.
contexto, o Uno, hipóstase Soberana, situar-se-ia acima da Aderir a ela de modo activo através do exercício das virtudes
Providência, sendo esta apenas uma realidade demiúrgica. não significa, portanto, identificar-se com Deus ou caminhar
Assim se entende a insistência plotiniana na metáfora do tea- na direcção da semelhança com o divino. Esta mira conseguir-
tro, o grande palco do mundo. Os conflitos - o sofrimento e a -se-á, porventura, por meio da Providência e certamente não se
desordem - são meramente aparentes, uma vez que toda a atingirá sem o seu concurso. Mas a alma do sábio deve orien-
realidade sensível intracósmica, tudo o que sucede neste mun- tar-se no sentido de superar a sua relação com o Mundo e a
do, mais não é do que representação. O Universo é uma reali- Ordem, anulando o desperdício de ser que se dá nas diferenças.
dade dramática no interior da qual cada ente desempenha o Para compatibilizar a Providência divina e o sofrimento
seu papel. humano parece restar, no interior do Diálogo, a solução de Mó-
Tarefa por excelência confiada à Providência é a de reorien- nica: e se o mal foi introduzido no tempo pela liberdade do
tar as imperfeições do organismo, de tal modo que a função de homem, tendo sido por Deus obrigado e forçado a entrar na
cada membro se desenrole, no teatro de operações, de acordo Ordem?25 Se for possível encontrar razoabilidade para esta tese,
com a Inteligência Ordenadora. A Providência vai burilando e salvar-se-á, por uma parte, a omnipotência divina, que possi-
relimando as imperfeições, ajustando o real aos seus lugares bilita o mal mas recupera o senhorio sobre ele pela mediação
próprios. Há ordem quando cada coisa está no lugar que lhe da Ordem e, por outra, a liberdade humana, que se torn~,
compete. Ora só a Inteligência Soberana conhece efectivamen- efectivamente, capaz de contrariar o curso dos acontecimentos.
te esse posto porque tem visão de conjunto. Por isso necessità
do castigo - o sofrimento e o mal - para reconduzir tudo ao 24 Diál. Ord., 11, 1, 2.
equilíbrio, dando a cada um aquilo que lhe é devido. 25 Cf. Diál. Ord., 11, 7, 23.

24 25
Na verdade, a Providência divina, submetendo-se ao tempo, não racionalmente este vislumbre seria obra de toda a vida. Por
significa a total determinação do real numa direcção unívoca ora, Agostinho .assume a tese da Racionalidade Universal, a
e predeterminada. tal ponto a sua mente está mergulhada na mundividência
O desafio proposto por Mónica à inteligência é francamente neoplatónica, fazendo confluir naquela a razão individua] e a
ambicioso e digno dos elogios rasgados que Agostinho tece à racionalidade que inere na produção das artes. A Ordem será
sabedoria de sua mãe e à vocação da mente dela para a filoso- ainda por alguns anos definida pelo filósofo como a medida de
fia26. O mestre de Cassicíaco ter-se-á apercebido da imensa todas as coisas, o tecido de fundo que garante consistência às
fioresta de coisas que necessitaria aprofundar e descortinar para multíplices expressões de realidade, num optimismo que insa-
tornar explícita a intuição de Mónica. Por isso, no Diálogo em tisfaz a razão e que vai contornando as angústias que resulta-
causa limita-se a enunciar os problemas que colidem com a riam de um enfrentamento directo da questão essencial: por-
solução da magna quaestio e a apontar uma metodologia: a quê este universo de sofrimento e injustiça se existe Deus, Bem
dedicação da razão às liberales artes, podendo aquela faculda- Soberano?28 Como é possível que, tomando Deus o cuidado das
de humana usufruir de peculiar proveito tanto no exercício da coisas humanas, haja tanta perversidade nos assuntos dos
Ciência dos Números como no da Dialéctica. homens? Agostinho considera não haver nenhuma outra ques-
Na verdade, para retirar todo o rendimento da intuição de tão que mais. transtorne o espírito humano e o lance na procura
Mónica, Agostinho teria de encontrar racionalidade para a da Verdade. Contudo, a solução exige tilmpo, maturidade, es-
questão que está no âmago da filosofia: o modo como se esta- forço dialéctico, meditação, amplitude de vista: só ao homem
belece a relação entre o Uno, divino, e a multiplicidade e dife- sábio é dado aceder à resposta.
renciação do real, onde o ser humano se inscreve. O percurso será trilhado paulatinamente em obras poste-
A proposta 'neoplatónica é sofrível e Agostinho adopta-a, riores. Agostinho apercebeu-se, já no Diálogo sobre a Ordem,
retirando dela todo o benefício. Contudo, já em Cassicíaco o da necessidade de ligar definitivamente o Ser e os seres, atra-
filósofo sabe que ela não é exaustiva e nas Confissões 27 apon- vés da compreensão da acção criadora de Deus 29 . Todavia,
ta-lhe os limites. Se pode colher do neoplatonismo a ideia de encontrar um modelo racional para a metafísica judeo-cristã
um universo espiritual, de um mundo de realidades inteligfveis da criação significaria remover na raiz o solo cultural do seu
ao qual os anos de profissão maniqueísta lhe vedaram o acesso, tempo, o qual, embora seguindo modelos diversos, considerara
o filósofo de Hipona notara, nos Libri Platonicorum, a ausência o ser como necessário. Agostinho dedicará anos de vida a co-
de referência ao Verbo que, sendo hipóstase de uma divindade mentar o Genesis 30 , contrapondo-se às teses maniqueístas e de-
onde se recolhe, numa mesma substância, a Unidade e a Trin- fendendo a bondade e magnificência de toda a realidade exis-
dade, também se fez carne. Curiosamente, já no Diálogo sobre tente sobre o Universo.
a Ordem se multiplicam as referências a este Logos, mas
direccionam-se num apelo à adesão fiducial aos mistérios por
ele revelados. A compreensão destes últimos é, aliás, apontada 28 As soluções apresentadas em Acerca da Música (De Musica, PL 32,
por Agostinho como cume e meta do saber filosófico. O mestre 1082-1194), tal como no Diál. Ord., mantêm a resposta np mesmo horizon-
de Cassicíaco intui que na inteligibilidade do cristianismo se te: a ordem é medida das coisas, existe sempre porque as coisas são feitas
com medida e com número. Mas esta solução deixa sem resposta duas ques-
encerra o modo mais pleno de compreensão da temática da Pro-
tões essenciais: 1. O que é o mal e como se compatibiliza com a existência
vidência ou da ordem das coisas. Todavia, a tarefa de expor de Deus; 2. Como garantir um efectivo exercício da liberdade, compatibi~i­
zando-o com a afirmação da omnipotência divina.
20 Cf. Diál. Ord., II, 17, 46.
" Cf. Diál. Ord., I, 11, 31-33. 30 De Genesis contra Manicheos, PL 34, 173-220; De Genesis ad Litte-
27 Cf. Conf, VII, 9, 13 (CCL 27, p. 101); VII, 20, 26 (CCL 27, p. 109); ram Liber Imperfectus, CSEL 28-1, pp. 459-503; De Genesis ad Litteram,
VIII, 9, 21 (CCL 27, pp. 126-127). CSEL 28-1, pp. 1-435.

26 27
Por outra parte, o mistério do mal só se poderia descorti- riamente pela apreensão do conteúdo do seu Tratado sobre a
nar levando a cabo uma analítica das acções humanas, de modo Trindade 33 , onde de algum modo se desvenda o mistério da
a despistar definitivamente a sua origem em um princípio unidade na diferença, inscrito no seio da divindade e respeita-
subsistente e marginal face à única origem de todo o ser, a do no plano da criação.
bondade de Deus. No Diálogo sobre o Livre Arbítrio 31 , depois Porque para o Hiponense o ser é essencialmente relação, o
de uma extensa argumentação a fim de mostrar a identidade filósofo procurará mostrar como se torna possível, desejável e
entre Deus e a noção Soberana de Bem, o mal viria a ser con- imensamente enriquecedora a coabitação, num mesmo univer-
siderado como privação de forma. Já assim era, tanto para so, das diferentes liberdades, sempre que as vontades venham
Plotino como para Aristóteles, mas Agostinho acrescenta-lhe o convergir num único fim: a união, cujo efeito é a paz. A Provi-
facto de que essa privação resulte de uma liberdade, introdu- dência é aquela dinâmica da acção divina que não abandona
zindo a dinâmica da actividade humana na construção da for- nunca os seres dos quais é origem. Sendo essa a sua caracterís-
ma dos entes. Na verdade, a privação de forma, em sentido tica - presença eterna nos seres de que é causa eficiente-, a
aristotélico ou plotiniano, identificara-se com o conceito de Providência é, afinal, a garantia da perene subsistência destes.
matéria-prima. Ora esta noção, revisitada por Agostinho, sig- A imutabilidade é, igualmente, um dos seus atributos, na me-
nificará, a um tempo, a disponibilidade para a aquisição de dida em que, querendo a existência de cada criatura, não mais
forma e a dependência do Princípio de Ser. Dela não pode pode deixar de a querer nem nela pode irromper uma decisão
derivar, portanto, nada substancialmente mau. A priuatio em contrária àquela de que depende a existência de cada ser no
que consiste o mal virá a ser definida por Agostinho como tempo34 . Contudo, esta imutabilidade não significa a prefixa-
ção de um destino. A forma dos seres livres é configurada pela
resultado da defectibilidade de uma vontade que, podendo fa-
existência de cada um e a sua maior ou menor densidade on-
zer melhor, se demitiu, arbitrária e conscientemente, dessa ta-
tológica gere-se pelo princípio da resposta livre ao chamamen-
refa. Esse é o único espaço. possível para a desordem. Contu- . 35 . p or outra parte, como a actividade humana
t o a' ex1s
. t'encia
do, pela dependência ontológica da própria vontade face ao
faz uso de um imenso universo de realidades disponíveis, ela
Princípio de Ser, o único resultado dessa actividade é a dimi-
influi e intervém directamente na construção da ordem das
nuição do esplendor do real, no tempo. Por isso Agostinho in-
coisas, elevando-as ou degradando o lugar que ocupam na hie-
tui que a operatividade da sua mundividência não podia alhear-
rarquia dos seres. A providência conta, portanto, com o con-
-se de uma reflexão sobre o tempo, pois o Ser não se esgota
curso das actividades livres para se configurar progressivamen-
na dimensão temporal.
te e Agostinho terá de encontrar argumentos para esclarecer
Ora no exercício da História convivem, num mesmo com-
uma noção de criação continuada.
passo, acções que se inscrevem numa dinâmica de eternidade,
Levado ao limite, o mistério da coexistência entre providên-
por terem o seu princípio na união com o divino, e acções que cia e o mal só se descortina na noite escura do espírito, quando
irrompem da arbitrariedade a que o ser humano está sujeito a razão se confronta com o irrazoável e cede à compreensão
(acções verdadeiramente livres e dotadas de sentido e acções
realizadas ao arrasto das paixões, o que as torna contraditó-
33De Trinitate, CCL 50-50A, 1968, pp. 1-535.
rias). A dinâmica destas acções e a sua confluência para a 34Já em Diál. Ord., II, 17, 46, se afirma ser proibitivo pensar que em
ordem das coisas será porventura uma das mensagens centrais Deus tenha alguma vez existido uma nova decisão, pois uma tal concepção
de A Cidade de Deus 32 • Contudo, a compreensão cabal desta obrigaria a introduzir o movimento, propriedade dos corpos, na essência divina.
35 Gen. ad Litt., l, 5, 10 (CSEL 28-1, p. 9): ~<Principium quippe creatu-
proposta de Agostinho para o mistério da Ordem passa necessa-
rae intellectualis est aeterna sapientia; quod principium manens in se in-
commutabiliter, nullo modo cessat occulta inspiratione uocationis loqui ei
31 De Libero A;bitrio, CCL 29, 1970, pp. 221-321. creaturae cui principium est, ut conuertat ad id ex quo est, quod aliter for-
32 De Civitate Dei, CCL 47-48, 1955, pp. 1-866. mata ac perfecta esse non possit.»

28 29
da Verdade pela humildade da inteligência. Neste patamar,
Agostinho exige a coerência com o princípio epistémico da in-
teligência da fé: «Se não acreditardes, não compreendereis».
Na verdade, o aparente conflito entre a existência de Deus e
o sofrimento humano, sobretudo quando se inflige sobre os ino-
centes, virá a justificar-se, por uma parte, pela coerência en-
tre um Deus que cria liberalidades defectíveis e que suporta
as consequências dos seus actos e, por outra, pela coerência
entre um Deus providente que não deixa de socorrer a falibi-
lidade humana com a sua omnipotência. Na verdade, as acções
divinas manifestam sempre a plenitude do seu ser eterno: à
magnificência da criação sucede-se o esplendor da redenção.
B - O DIÁLOGO SOBRE A ORDEM
A liberdade humana é, no horizonte de uma metafísica cris-
tã, real e irredutível, podendo efectivamente, em toda a força
da sua finidade, contrariar a omnipotência do Criador. Contudo,
a coerência divina no acto da criação é perene, pois de outro 1 - A ordem das coisas
modo seria necessário negar a eternidade do Princípio. Por isso,
de modo desconcertante por excesso de razoabilidade, o Cria- 1.1 - Posição do problema
dor faz-se criatura, a eternidade inscreve-se no tempo e torna
possível uma real redenção da liberdade individual36 . No con- Segundo uma insistente advertência do mestre de Cassicía-
texto da solução para a ordem das coisas, o momento em que co, a ordem das coisas parece ser uma noção que não se deixa
o tempo atinge a sua plenitude - a Incarnação do Verbo - facilmente domesticar pelo entendimento. De facto, ela surge
assume posição central na mundividência augustiniana37. Ele como a questão mais universal e inquietante, aquela com a
inscreve uma nova dinâmica para o curso dos tempos, enquan- qual inevitavelmente todo o espírito alguma vez se confrontou
to, simultaneamente, concretiza uma soteriologia que preserva desde o alvorecer dos primeiros passos na apreensão do real
a identidade na diferença, contra todas as gnoses defensoras até ao anoitecer da sua existência sobre esta terra de emigra-
de uma dissolução do indivíduo no Uno Cósmico ou propaga- ção. Esta mesma condição rebelde e resvaladiça da ordem per-
doras de uma noção de bem que se projecta para além do ser, mite captar o alcance que Agostinho, já em Cassicíaco, lhe
escapando· ao alcance humano. A dinâmica redentora explici- atribui. A ordem recolhe a essência do Universo e permite
tada por Agostinho e inerente à metafísica cristã não se efec- desvendar a natureza do Princípio sem princípio de todas as
tivará, todavia, sem a livre disponibilidade do indivíduo ao coisas, em cuja compreensão consiste, afinal, o término da ac-
concurso da graça, pela qual se torna possível a elevação das tividade do filósofo3B. Deste modo é possível antever o lugar
acções humanas, no tempo, a uma dimensão de eternidade. central que uma tal noção virá a ocupar na obra do filósofo de
Hipona.
Ao dedicar o texto a Zenóbio, Agostinho coloca o amigo de
36 No Diál. Ord., II, 5, 16, Agostinho penetra por adesão fiducial :á.o sobreaviso: «Seguir e observar a ordem das coisas, Zenóbio [... ],
mistério da Incarnação e afirma a sua centralidade na resolução das apo- é muito difícil e raro para os homens.» De facto, trata-se de
rias em torno à ordem das coisas.
37 V. g. LA, III, 10, 29-31 (CCL 29, pp. 293-294) onde o filósofo refere a
função mediadora do Verbo incarnado na restauração da justiça ante o po-
der relativo do mal. as Cf. Diál. Ord., II, 5, 16.

30 31
uma noção tão essencial para o pensamento como o ar para a !idade de cada ser e com a racionalidade do universo, sendo
respiração, pois está imiscuída em tudo e por toda a parte se esta última mais contestável porque menos evidente.
manifesta o que, aliás, mais não é do que a natural conse- Assumindo a facticidade da ordem, mesmo que essa noção
quência da sua universalidade. A ordem surge com evidência se venha a reconduzir a uma ocultissima ratio e não obstante
apodíctica ante o olhar mais desprevenido, para imediatamen- o carácter aporético do Diálogo sobre a Ordem, Agostinho urde
te se ocultar quando a razão se dedica ao esforço de a apreen- sub-repticiamente uma resposta: no próprio decurso do Diálogo
der. Qual Proteu, assume uma e outra vez diferentes rostos e nenhum acontecimento - quer os que dependem da vontade
não esgota o seu modo de ser em nenhum deles. Como o gato dos intervenientes, quer os que escapam às suas decisões li-
sorridente de Chershire no conto que relata a atribulada vida vres por se sujeitarem ao curso dos tempos ou por fazerem
de Alice no País das Maravilhas 39 , a ordem emerge quando parte dos fenómenos de que a natureza física é responsável -,
menos se espera, envolvida numa esfera de mistério, para in- absolutamente nada emerge sem ordem, desde a insónia colec-
dicar caminhos. Mas se lhe procuramos racionalidade, imedia- tiva que dá origem à discussão nocturna sobre a causa da al-
tamente se volatiliza, tudo se enreda e confunde. De facto, é ternância do rumor do curso das águas, até à redacção minu-
essa a convicção inabalável de Agostinho: «nada mais há em ciosa de todos os acontecimentos que envolveram os dias
qualquer lugar para a nossa consideração do que a medida das dedicados à elaboração deste Diálogo. Inclusivamente as reali-
coisas, que ninguém pode não apreciar; apreendê-la, porém, dades omissas têm o seu cabimento na ordem das coisas, tais
quando se realiza algo com empenho, é muito difícil e raro» 4 º. como as ausências - absoluta, como a de Zenóbio, ou esporá-
A condição problemática da noção de ordem decorre, afinal, dica, como a de Alípio e Navígio -, os esquecimentos do pró-
do facto de que a indagação acerca da sua natureza coincide prio Agostinho ou as distracções de Licêncio. Nada se faz fora
com a questão que ocupa o cerne da filosofia e que se resume da ordem é a convicção que, proferida por Licêncio no início
na compreensão do modo como se relacionam o uno e o múlti- do Diálogo, se mantém como inconcussa certeza, quer nos mo-
plo. Há uma ordem própria de cada um e há uma coerência mentos de maior aperto, quer nas explanações mais lúcidas que
do conjunto. Se é verdade que - nas partes, como no todo - o compõem esta obra. Contudo, se a equivocidade do emprego
universo é ordenado, qual a chave que confere capacidade à da noção de ordem abona em favor da adesão intuitiva por
mente humana para decifrar a razão de ser de uma tal con- parte da escola de Cassicíaco à universalidade de um tal con-
formidade? Este modo de posicionar a questão da ordem su- ceito, a tarefa do filósofo não se pode eximir de obter, para
põe assumi-la como um factum, identificando-a com a razoabi- um assunto tão importante, a máxima clareza e a melhor elu-
cidação que a razão possa edificar para definir os contornos
39
desta noção. Porém, ante a grandeza do assunto, igualmente
Este texto de ficção literária tem a peculiar característica de não
se compreende a radical impossibilidade de o esclarecer cabal-
obedecer ao esquema maniqueísta que subjaz como modelo de racionalidade
na maioria dos tradicionais cõntos infantis: o eterno conflito entre bons e mente num pequeno livro. Sendo a ordem a noção em torno à
maus. Em nosso entender, a obra de L. Carrol respeita a regra de-Macró- qual se configura o cogito augustiniano, elucidá-la, trazendo à
bio segundo a qual a filosofia não recusa todos os niitos mas também não luz todo o esplendor do edifício, viria a constituir, para o filó-
os aceita todos. As fábulas foram inventadas quer para produzir apenas o sofo, tarefa de toda a vida.
prazer de quem as escuta, quer porque se !he acrescenta uma exortação a
conseguir bons frutos. Esta segunda espécie de fábulas admite uma subdi- Na Dedicatio do Diálogo a Zenóbio, Agostinho identifica com
visão: a das que relatam acções vergonhosas - e que os filósofos preferein exactidão o problema que gravita em torno da defesa da uni-
ignorar - e a das que revelam um conhecimento das coisas sagradas de versalidade da ordem. Se Deus toma a seu cargo os assuntos
modo piedoso e honesto (cf. Macróbio, ln Somnium Scipionis, 1, 2, 6-20, Ed. dos homens, como se justifica o mal que por toda a parte afli-
Willis, Lipsiae, 1963, pp. 5-6). A estas últimas deve o filósofo prestar aten-
ção. Sobre o valor que Agostinho atribui à ficção literária, v. pp. 73 e 169.
ge os humanos? Todo o espírito que, livre de preconceitos e
'º Diál. Ord., I, 8, 26. honestamente, observe a sua vida e a dos que o rodeiam rapi-

32 33
damente concluirá que o mundo está mal organizado. Na ver- Na verdade, a questão sobre a ordem das coisas apresenta-
dade, não é razoável atribuir à actividade divina uma tão -se à razão sob forma de disjunção exclusiva: ou existe um
imprudente governação. Tal hipótese está eivada de impiedade, princípio ordenador cujo alcance não é universal, ou existe um
pois mesmo um escravo, rude e inculto, o último dos homens, tal princípio que, para abranger a totalidade do real, deverá
seria capaz de fazer melhor, caso lhe fosse conferido um tão assumir a responsabilidade do próprio mal. Se, como acontece
.grande poder41 . no Diálogo em causa, a harmonia universal é identificada com
O problema da ordem das coisas articula-se, na mente de a providência divina, a questão sobre a ordem das coisas ver-
Agostinho e dos seus interlocutores, por uma parte, em torno sa necessariamente sobre a natureza dessa divindade, sendo a
da convicção da existência de uma administração do real à disjuntiva reformulada do seguinte modo: «OU a providência
qual - em vista de uma universalidade que se pode verificar divina não chega aos pormenores mais recônditos e ínfimos ou,
facilmente tanto na constância dos fenómenos físicos como na certamente, todos os males derivam da vontade de Deus»45 .
possibilidade de constituir leis que estratifiquem a sua com- Esta a temática central que se debate no Diálogo sobre a Ordem,
preensão, traduzindo-os em diferentes saberes - é atribuída principalmente pondo à prova as convicções sobre a natureza
condição divina. Por outra parte, a razão humana, incapaz de da ordem sustentadas por Licêncio, claramente, em termos
negar a beleza e a harmonia do universo e de a recolher ca- intelectuais, filho do seu tempo. As respostas incorrem uma e
balmente no discurso das diferentes artes ou saberes, confron- outra vez nas angústias do aporema, revelando que o patrimó-
ta-se com o limite da sua própria capacidade quando, dirigin- nio cultural disponível aos interlocutores é insuficiente para
do o olhar para os escolhos e tempestades da vida, se depara resolver tão obscuro assunto.
com o escândalo do mal, sendo este identificado não tanto com Ora se a razão entra em perplexidade quando, confrontada
as contradições da própria natureza42 mas sobretudo com o com a existência do mal, incorre na formulação de uma disjun-
sofrimento humano, essencialmente contrário ao desejo univer- ção exclusiva na qual ambos os termos conduzem a soluções
sal de felicidade 43 • É ao deparar-se com o paradoxo enunciado aporéticas, porventura cabe a hipótese de considerar que o
no Diálogo sobre a Ordem - os membros de uma pulga estão equívoco reside na formulação do problema, efeito da ignorân-
dispostos e distribuídos admiravelmente, enquanto a vida hu- cia ou estreiteza de mente. Acaso estará em causa a necessi-
mana decorre e flutua entre inumeráveis atribulações 44 - que dade de reformular as vias de acesso à própria sabedoria, rede-
a razão humana se defronta de modo mais radical com a sua finindo o ideal do homem sábio e estabelecendo novos princípios
própria impotência. que permitam à mente humana abeirar-se de uma visão de
conjunto coincidente com a universalidade da ordem. Esta ta-
41 refa - que no Diálogo parece ser o objectivo da discussão em
Cf. Diál. Ord., I, l, 1.
42 Cf. Diál. Ord., II, 5, 15. A razão interroga-se sobre a causa dos capri- torno da definição de ordem disponibilizada por Licêncio - não
chos da natura que levam os Ítalos a suplicar por Invernos serenos enquanto encontrará, também, no interior deste Diálogo, a sua resposta
a infeliz Getúlia anseia, gretado o solo, a dádiva da chuva. cabal. Contudo, se a indefinição das respostas corresponde, apa-
43
Cf. Diál. Ord., II, 5, 14. De facto, a razão humana não consegue ex- rentemente, a uma ausência de soluções viáveis, ela pode consi-
plicar facilmente a causa de semelhantes aporias: quem deseja ter filhos
não os tem, sendo outro atormentado pela excessiva fecundidade da sua mu-
derar-se igualmente como uma realidade inerente à mundivi-
lher; o que estava disposto a dar com liberalidade, vive na escassez de bens, dência augustiniana. Na verdade, para o filósofo de Hipona a
enquanto o homem rico, sumamente avaro, empresta a juros; os que têm sabedoria está em permanente construção tanto no percurso
imensos patrimónios vivem no luxo e na abundância, enquanto um men- de cada ser humano como na dinâmica da História. A narra-
digo, durante um dia inteiro, a custo consegue com lágrimas uma pequena
moeda; os que têm uma conduta indigna são exaltados pela honra e os que
brilham pelos seus costumes ocultam-se entre a multidão.
4 4 Cf. Diál. Ord., I, 1, 2. 45 Diál. Ord., !, 1, L

34 35
tiva aberta será, neste contexto, a que potencia maior ampli- dem» - com que se inicia, noite entrada, o debate. Esta inaba-
tude de sentido, constituindo este último a própria finalidade lável convicção cai por terra quando confrontada com um sem-
intentada pelo sábio. -número de dificuldades, as quais emergem, por sua vez, de
modo assistemático no decurso do Diálogo.
Se Agostinho e Licêncio assumem como propriedade comum
1.2 - Aporias sobre a universalidade da ordem
a verdade segundo a qual «nada se faz fora da ordem», porém
1.2.1 - As convicções de Licêncio o termo ordem não é por ambos usado em sentido unívoco.
Licêncio identifica a noção com o princípio de razão suficiente,
O acto filosófico que dá início à discussão sobre a Ordem segundo o qual «todo o efeito tem uma causa». Mas a causali-
das coisas é a admiração de Agostinho ante a alternância do dade universal proposta por Licêncio apenas dá resposta à
som do curso das águas junto aos banhos 46 . A irregularidade origem do fenómeno na sua circunscrição física, isto é, à razão
do rumor veio ao encontro dos ouvidos do filósofo, vigilante alta de ser da sua presença no mundo como efeito, revelando-se
madrugada, entregue ao diálogo da razão consigo mesma, e incapaz de alcançar a percepção da sua finalidade. Licêncio
chamou-lhe mais a atenção do que de costume. À perplexidade explicita o âmbito ao qual se distende a sua convicção sobre a
de Agostinho - cur ita esset? - Licêncio, igualmente em vigi1ia, universalidade da ordem: a natureza que gera os fenómenos
combatendo, no seu leito, uns ratos importunas, remete a res- físicos de nenhum modo é temerária, sendo a actividade da-
posta para o âmbito dos fenómenos naturais: «folhas que caem quela definida pela sucessão exacta dos nós que estreitam as
no rio». Agostinho prolonga a sua reflexão em busca da causa, relações necessárias estabelecidas entre os diferentes fenóme-
acabando por considerar que, não encontrando outra, a solução nos. A causalidade universal defendida por Licêncio não ultra-
de Licêncio se pode inscrever no âmbito das sentenças prováveis. passa o domínio da matéria no qual se inscreve e ao qual se
De facto, os níveis de exigência de resposta são, para estes subordina a própria actividade humana50 . Deste modo, a res-
dois interlocutores, claramente distintos 47 • Para o primeiro, é posta dada pelo jovem à pergunta «em função de que bem a
insólito e digno de admiração que alguma realidade não siga o natureza procriou (no caso concreto em discussão, árvores)?»
curso da ordem manifesta, isto é, que aquilo que deveria acon- apenas pode manifestar a recusa a investigar sobre a natu-
tecer de modo natural ou que, pelo menos, acontece de modo reza da causalidade final.
habitual seja capaz de sofrer alteração; para aquele último, a Licêncio contorna a dificuldade proposta por Agostinho res-
ordem manifesta é apenas um subconjunto de uma ordem mais tringindo o horizonte do seu conceito de ordem. Dado que há
ampla, de uma ocultíssima razão da natureza que, embora um sem-número de realidades cuja utilidade para os homens é
profundamente latente para os sentidos humanos, se inscreve ínfima ou nula, a investigação sobre a finalidade do real é irre-
no percurso inalterável da lei da causalidade física 48 • levante: a razão humana apenas pode interrogar acerca da cau-
A primeira discussão que rege o Diálogo sobre a Ordem gira salidade eficiente. O horizonte mental de Licêncio é, portanto,
em torno das convicções de Licêncio, mais do que de uma de- voluntariamente restrito, e o seu referente último é o sujeito
finição por ele assumida49 . De facto, esta última só lhe é soli- humano enquanto dotado de apetites a satisfazer. Só neste
citada depois de todo um dia de labor, dedicado a pôr à prova âmbito faz sentido interrogar a ordem das coisas e para este
a certeza inconcussa de Licêncio - «nada se faz fora da or- domínio de compreensão basta a resposta sobre a causa efi-
ciente dos fenómenos51.
46 Cf. Diál. Ord., I, 3, 7.
47 Cf. Diál. Ord., I, 3, 7-8. so Cf. Diál. Ord., I, 4, 11, e I, 5, 14.
48 Cf. Diál. Ord., I, 4, 11. 51
A intervenção de Agostinho em I, 5, 13, aparentemente retórica, pode
" Cf. Diál. Ord., I, 10, 29. interpretar-se como admoestação a Licêncio para que esteja atento a tudo

36 37
Todavia, a convicção de Licêncio é ambiciosa pois para t~­ dos acontecimentos, o que lhe confere, tal como à verdade, o
mar conhecimento de uma tal causa exige-se que o entendi- estatuto de maximamente ordenado.
mento alcance aquilo que o jovem poeta considera ser a pleni- Licêncio superou o cepticismo académico, para regozijo de
tude do saber: a arte da adivinhação ou a presciência humana. Trigécio. Agora adere a uma verdade que sustenta como ina-
Na verdade, este poder da razão mais não é do que aquela movível: «todo o efeito tem uma causa e nada se faz fora deste
forma de saber que é capaz de se dilatar no curso dos tempos, princípio». Contudo, uma tal mundividência contém, ainda, o
pela auscultação da ocultissima ratio que envolve os fe_'.l_óme- germe das perplexidades já enunciadas, a que outras se virão
nos naturais, alcançando, assim, o encadeamento e conexao das acrescentar.
relações de causa-efeito 52 • Porém, o limite das convicções de
Licêncio sobre a difusão da noção de ordem manifesta-se cla-
1.2.2 - A ordem contém os bens e os males
ramente quando Agostinho lhe solicita um juízo de valor sobre
a noção em causa. Licêncio não é capaz de decidir se a _ordem Ao alargar a convicção de Licêncio provando-a no âmbito
é um bem ou um mal precisamente porque a colocou a mar- da causa final, o mestre de Cassicíaco introduz a noção de
gem de· toda a valoração, atribuindo-lhe uma certa indiferença ordem no horizonte de uma teleologia. Agostinho não nega que
ontológica53 • . o real seja um factum. Contudo, a própria presença dessa rea-
A tese de Licêncio circunscreve a investigação sobre a or- lidade reclama a interrogação pelo termo ad quem, sendo esta
dem ao âmbito do factum. Tal como são ou estão, as coisas porventura mais decisiva para que se compreenda a natureza
têm uma razão de ser mesmo que, por qualquer motivo igual- do real e, inclusivamente, para que se ilustre a essência da
mente razoável presentemente se desconheça qual a causa de causa eficiente. Daí o carácter radical da interrogação agos-
um determinad~ efeito. Esta, mundividência, embora permitindo tiniana, ao versar sobre a utilidade e a bondade dos seres 54 .
assumir a universalidade da ordem, não deixa de encerrar os Deste modo, Agostinho faz notar a Licêncio que, ao assu-
acontecimentos num circuito fatal, fomentando a preguiça da mir como definição de ordem o princípio de razão suficiente,
razão que deixa de inquirir o porquê, e a inércia da vontade ser-lhe-á exigida, acima de tudo, uma tomada de posição so-
que se exime de alterar o curso da História, reconfortada na bre a natureza da causa final. De contrário, o factum torna-se
sua fatídica cegueira ante um destino cuja razão, a existir, não completamente irrazoável. Se a ordem é a causa que faz coi-
é dado penetrar senão a um número privilegiado de homens. sas, importa maximamente compreender para que as faz, sem
Num tal universo, o sábio é o adivinho e· o conhecimento das o que a sua actividade será, em si mesma, irracional e, por-
leis está entregue aos vaticínios dele. tanto, desprovida de ordem. Licêncio ter-se-á apercebido deste
Licêncio propõe a construção de uma mundividência onde a ardil e por isso não teima em prescindir da investigação sobre
ordem não tem contrário, considerando tudo o que é como in- qual a relação entre a ordem das coisas e o valor do real, con-
discriminadamente válido, uma vez que é o próprio real que, cedendo, finalmente, que a ordem integra os bens e os males.
na sua indiferença, atribui igual valor a todas as suas expres- Todavia, esta formulação colide directamente com o problema
sões. Com efeito, neste universo não há, sequer, real distinção crucial da natureza do Princípio e atinge o alvo.
entre o erro e a verdade, porque aquele terá seguramente al- Trigécio não perde a oportunidade de levar ao absurdo a
guma causa eficiente, pela qual se inscreve no curso exacto tese de Licêncio. Identificando a noção de ordem com a reali-
dade mais universal, a cujo governo todas as outras estão su-
aquilo que lhe pode ser ensinado pela ordem das coisas, desde que se man- jeitas, Licêncio julga ter alcançado a natureza da divindade.
tenha unido a ela pela cadência das próprias questões.
52 Cf. Diál. .Ord., I, 5, 14.
53 Cf. Diál. Ord., I, 6, 15. " Cf. ibid.

38 39
Mas de que modo é possível entender que Deus integre e sus- Para que a justiça, administração, ordem ou providência divina
tente, no seu governo, o próprio mal, sem atribuir à divindade sempre se tenha exercido, é necessário postular a eterna exis-
a autoria deste último? Ou como não estabelecer uma diferença tência do mal, o que equivale a afirmar a sua subsistência como
entre a ordem e a divindade, remetendo aquela para um domí- co-princípio, a sua coexistência eterna com o bem. Licêncio
nio sectário, negando-lhe, assim, o atributo da universalidade? encarna agora, de modo chão, a tese maniqueísta.
No esforço de elaborar uma resposta para tais perplexida- O Diálogo sobre a Ordem recolhe as soluções culturalmen-
des, Licêncio - emaranhado na confusão das palavras e das te disponíveis à razão dos interlocutores para enfrentar seme-
proposições - enuncia indiscriminadamente as teses neoplató- lhante imbróglio. Trigécio intui que a justiça divina não pode
nica e ·maniqueísta para a solução do problema. Se a ordem é ser um atributo que dependa de outras realidades tais como a
o facto de «Deus amar os bens e não amar os males», então existência do mal. Na verdade, ela subsiste em identidade com
ela é resultado e efeito de uma acção divina, sobrepondo-se à o ser divino, eterno e imutável. Para melhor elucidar o que
própria divindade. Por um lado, afirma-se que Deus gera har- quer dizer, serve-se do exemplo das qualidades morais de Cí-
monia, ao compatibilizar os contrários. Neste caso, a ordem cero. Na verdade, não fora a conspiração de Catilina que, ao
surge como noção derivada da acção organizadora de Deus, contrariar a ordem da República, as teria determinado. Con-
transcendendo ela própria essa actividade de policiamento. frontado com semelhante projecto de destruição da Urbe, Cí-
Deste modo, garante-se o ·primado da ordem como soberano bem cero apenas se servira das qualidades que já possuía para re-
mas Deus emerge com características demiúrgicas. Por outro conduzir aquele à ordem. Se o autor das Catilinárias não
lado, se a ordem exige a contradição do bem e do mal para possuísse tais virtudes, não poderia sequer ter-se apercebido
que Deus exerça a sua justiça, então o bem e o mal são alheios do conluio. Por analogia, tendo o mal brotado no mundo não
a Deus. Ora se o bem pode, sem dificuldade, derivar de Deus, se sabe como, Deus serviu-se de uma qualidade própria, a jus-
quem justificará a natureza do mal? tiça, exercendo-a distributivamente56 •
Considerada a ordem como efeito de uma harmonia de con- Licêncio assiste, com espanto e de alma aflita, à derrocada
trários, legitima-se a .substancialidade do mal e a condição da sua tese. O mal começou a existir fora da ordem, razão pela
eternamente bélica do real, por exigência da própria subsis- qual esta noção não é causa eficiente universal. Inversamente,
tência do Princípio de Ser. É a própria eternidade da justi- se quiser admitir que a ordem existiu sempre e o mal brotou
ça - identificada pela harmonia de contrários e entregue a um no seu interior, então é necessário confessar que Deus é autor
deus· menor - que exige a subsistência do mal, pois onde não dos males, fazendo emergir o espectro desta ímpia opinião 57 .
há distinção e diferença (onde todas as coisas são boas) Licên- Mónica, que fora a primeira a vir em socorro deste imbró-
cio é incapaz de encontrar uma forma de exercício para aquela glio, é também a que melhor penetra na questão e a que con-
virtude soberana. A não existirem, como eternamente subsis- segue uma resposta de sentido mais amplo, não obstante o
tentes, os contrários e antíteses, no entender deste jovem não ·carácter intuitivo da sua exposição, mais do que demonstrati-
se vê como há-de Deus distribuir a cada um aquilo que lhe é vo. Com efeito, a eterna justiça de Deus, identificada com a
próprio 55 • .definição clássica da virtude moral que se exerce distribuindo
A discussão deste conjunto de convicções, abandonada neste a cada um o que lhe corresponde, não exige a eterna subsis-
estado no final do Livro I, é retomada no Diálogo em II, 7, 22. tência do mal. O juízo divino sobre bons e maus é contempo-
O que aí está em análise é a identidade entre ordem e justiça. râneo da emergência do mal, mas daí não se pode concluir a
A esta última atribui ·se, como propriedade divina, a eternidade. eterna subsistência desta realidade negativa. O mal pode ter

56 Cf. Diál. Ord., II, 7, 22.


" Cf. Diál. Ord., I, 7, 19. '' Cf. Diál. Ord., II, 7, 23.

40 41
tido um início, distinguindo-se da eterna subsistência de Deus do aniversar10 natalício de Agostinho 58 . Confrontado com a
precisamente por esse motivo. incapacidade dialéctica de Licêncio, o mestre de Cassicíaco, a
A intervenção de Mónica sugere que uma reflexão sobre a pedido do jovem, defme quais as realidades que estão com Deus,
categoria da temporalidade ou da origem dos seres poderia des- obtendo, como formulação do agrado daquele, a proposição:
cortinar o mistério do mal e a natureza da ordem. Além do «está com Deus tudo o que entende Deus». Assim, o problema
mais, sendo a emergência daquele coeva, não da essência de da relação da divindade com o mundo é reconduzido à análise
Deus mas do exercício da sua actividade judicativa sobre o da actividade intelectual do sábio, de modo que a questão do
mundo; poder-se-ia afirmar a eterna justiça de Deus, distin- sofrimento humano, iló górdio de todas as perplexidades da
guindo-a do seu exercício distributivo. Assim, seja qual for o razão quando discorre sobre a ordem das coisas, se resolva,
modo como o mal tenha brotado no mundo, desde sempre ele uma vez mais, em função da definição do que vem a ser a
está submetido ao poder da eterna rectidão do ser divino. sabedoria, em cuja posse reside a felicidade, e das proposta de
Mónica antevê as condições de possibilidade para a solução da vias de acesso a tão imenso bem.
relação, aparentemente conflituosa, entre. a universalidade da A posição de Licêncio sobre a natureza do sábio conduzi-
ordem e a existência do mal: a justiça divina não permitiu que -lo-á, mais uma vez, a uma dificuldade insolúvel. Se só ao sábio
o mal, uma vez nascido, estivesse desordenado, mas recondu- é dado estar com Deus, todo o que não é sábio estará sem Deus.
ziu-o à ordem, obrigando-o a que se lhe submetesse. Licêncio assusta-se ante estes contrários, pois não se vê de que
Agostinho enuncia também a sua convicção. Na hipótese de modo pode alguém estar nem sem Deus nem com Deus 59 . Toda-
a ordem ser posterior ao surgimento do mal, este não é cau·sa via, neste temor encontra-se porventura um dos seus mais fe-
daquela. Visto ser um bem, a ordem esteve sempre junto de cundos contributos para o esclarecimento da obscura questão
Deus. Por isso, ou sempre existiu nada a que se chame mal sobre a universalidade da ordem.
ou, se o mal teve um começo, ele aconteceu estando contido na Na verdade, Licêncio, assumindo a distinção de Mónica
ordem. Mais ainda, se a ordem sempre esteve junto de Deus, entre esse cum Deo e habere Deum, intui o alcance radical do
ela própria é Deus e será necessário alcançar uma noção sufi- primeiro disjunto. Esse cum Deo é uma condição comum aos
cientemente ampla de divindade de modo que, sem corromper sábios e aos estultos. A diferença está em que os primeiros o
a sua unidade, nela se integrem as diferenças. assumem activamente, até à fruição de Deus que deriva do
facto de o possuírem, enquanto os últimos se limitam a ser
possuídos por Ele, sendo essa relação a que lhes garante so-
2 - Sabedoria e felicidade
brevivência, embora os conduza a uma certa indiferença onto-
2.1 - Posição do problema lógica. Com efeito, os estultos não estão bem com Deus mas
também não estão sem Ele.
No decurso da investigação sobre a natureza do Princípio Uma questão desta índole não se pode esclarecer sem defi-
ordenador, o Diálogo sobre a Ordem sofre, em II, 2, 4, uma nir os moldes de participação entre Deus e as coisas, prestan-
aparentemente abrupta inversão de sentido. do particular atenção ao modo de relação entre Deus e os
A análise da definição de ordem proposta por Licêncio
- «ordem é aquilo pelo qual Deus tudo conduz» - forçara-o a
elucidar a natureza das coisas conduzidas por Deus, o modo 58 Cf. BV, 4, 34 (CCL 29, p. 84). A medida soberana é necessariamente
como elas dependem do divino e como se relacionam com ele. uma Medida verdadeira, pois nunca houve verdade sem medida nem medi-
da s~m verdade. Todo aquele que alcançar a Medida soberana através da
É assim que se regressa à distinção entre estar com Deus (esse
Verdade é feliz, possui Deus e desfruta Dele. Os demais espíritos, embora
cum Deo) e possuir Deus (habere Deum), sobre a qual já se sejam possuídos por Deus, não têm Deus.
discorrera abundantemente, sob a mestria de Mónica, no dia ' 9 Cf. Diál. Ord., II, 7, 20.

42 43
homens. O próprio Licêncio, ocupado em defender· a imutabili- cuja solução é necessária para validar a própria actividade fi-
dade da mente do sábio, não terá tomado consciência do al- losófica: a existência da verdade, objecto de busca. Em torno a
cance da sua perplexidade. Por isso o curso do debate incide este problema se reúne a pequena escola de Cassicíaco enfren-
de modo peculiar sobre a natureza do conhecimento do sábio, tando, em Contra os Académicos, os ardis do cepticismo da
questão que parece irromper a despropósito num Diálogo onde Nova Academia. Sendo Licêncio quem manifesta maior reni-
se discute o cerne da filosofia: a relação entre a universali- tência ante os argumentos contra a consistência do cepticis-
dade da ordem e a existência do mal. Contudo, a filosofia é mo, todavia no Diálogo sobre a Ordem declara ter já superado
definida por Agostinho, já desde o primeiro Diálogo de que dei- a sua indeterminação. Com efeito, assumir a verdade da pro-
xou constância escrita60 , como a relação entre a necessidade posição universal «nada se faz fora da ordem» exige-lhe ter
do saber acerca da verdade e a possibilidade de ser feliz 61 • Por superado a incerteza sobre a possibilidade de encontrar a ver-
isso, se a descoberta da verdade sobre a ordem das coisas está dade, embora a forma como o expresse manifeste ainda algu-
no âmago da actividade filosófica, a sua condição primordial ma insegurança nesse seu afastamento da dúvida65 •
na construção de uma mundividência advém do contributo que O Diálogo contra os Académicos enuncia desde o primeiro
esta presta à possibilidade de alcançar a beatitude, tornando- momento as questões a tratar para construir um universo de
-se a investigação sobre a finalidade do homem indissociável sentido em torno à relação entre sabedoria e felicidade:
daquela que incide sobre a natureza da sabedoria. «Trigécio - É certo que queremos ser felizes. Se pudermos
Independentemente da posição que se possa assumir a par- alcançar isso sem a verdade, a verdade não deve ser procura-
tir das palavras do próprio Agostinho sobre a influência da da por nós.
leitura de Cícero no eudemonismo do filósofo 62 , o amor à sabe- - Como é isso? - disse eu. - Julgais que podemos ser fe-
doria, que define etimologicamente a actividade filosófica, é in- lizes mesmo sem ter encontrado a verdade?
separável da posse da felicidade 63 • Na verdade, não há nenhu- Então Licêncio disse:
ma outra razão para que o homem se dedique à filosofia senão - Podemos, se investigarmos o verdadeiro [... ]
o desejo de felicidade. - Impressiona-me - disse Navígio - o que foi dito por Li-
Esta formulação - que Agostinho recupera para a explicitar cêncio. De facto, talvez possa acontecer que ser feliz seja isso
num escrito de maturidade64 - , é o fio condutor de toda a sua mesmo: viver na procura da verdade.
obra e verifica-se de modo peculiar nos três Diálogos a que - Define, portanto, - disse Trigécio - o que é a vida fe-
dedica a quase totalidade do mês de Novembro da sua estância liz, para que a partir disso eu veja o que convém responder.
em Cassicíaco. Neles, a discussão sobre qual a relação entre sabe- - Que pensas tu que é viver feliz, senão viver de acordo
doria e felicidade toma a seu cargo uma primeira dificuldade, com aquilo que há de melhor no homem? - disse eµ.
Ele retorquiu:
- Não foi ao acaso que eu disse aquelas palavras. Na ver-
6° CA: Cassicíaco, 10 de Novembro, ano 386. dade, o que seja o melhor, é isso mesmo que eu julgo que deve
61 CA, I, 2, 5: <1A - Numquidnam dubitatis, inquam, uerum nos scire ser definido por ti>,66.
oportere? [... ] A - Quid, si, inquam, etiam non conprehenso uero beati esse Sendo.º desejo universal de felicidade confirmado por todos
possumus, necessariam ueri conprehensionem arbitramini?,> (CCL 29, p. 5.)
62 Cf. Conf, III, 4, 7 (CCL 27, p. 30). desde o início do primeiro escrito de Cassicíaco, importa saber
'ª Cf. Diál. Ord., II, 11, 31. se esse desiderato se pode alcançar sem a investigação da ver-
6 4 Civ. Dei, XDC, 19, 1 (CCL 48, p. 659): «Quando quidem nulla est
homini causa philosophandi, nisi ut beatus sit; quod autem beatum facit,
ipse est finis bani; nulla est igitur causa philosophancli, nisi finis bani:
quam ob rem quae nullum bani fmem sectatur, nulla philosophiae secta di- 65 Cf. Diál. Ord., I, 4, 10.
cenda est.» 66
CA, I, 2, 5 [CCL 29, p. 6 (sub. n.)].

44 \ 45
dade, caso em que esta última actividade se poderia banir 2.2 - Licêncio define
definitivamente da vida dos humanos.
De facto, Licêncio assume a posição dos Académicos ao dis- Na confusão das palavras e das coisas, Agostinho solicita a
tinguir a posse da verdade e a busca do verdadeiro. Sendo a Licêncio uma definição que possa esclarecer o modo como o jo-
primeira inviável, esta última seria efectivamente possível e vem entende que se estabelece a relação entre Deus e a ordem.
nela consistiria a actividade do filósofo. Mas a ser assim, Na- Neste ponto reside, afinal, o enredo desta discussão. «Ordem é
vígio perturba-se, pois a felicidade viria a consistir numa acti- aquilo pelo qual são conduzidas todas as coisas que Deus estabe-
vidade sobremaneira instável, coincidindo com o permanente 1eceu» 68' "do que resulta do esforço argumentativo do
, e o enuncia
desassossego de uma pesquisa cujo conteúdo se desacredita. jovem amante das Musas, convertido em aprendiz de filósofo.
Ora a questão, aparentemente circular, só se resolve ante o A análise da definição de Licêncio - que será o fio condu-
esclarecimento do que se entende por felicidade. Esta noção tor dos restantes debates - faz que o Diálogo incida, a partir
vem a ser definida brevemente por Agostinho como a posse do de agora, de modo patente sobre a natureza de Deus e a com-
que de melhor há no homem. O tema, diferido em Contra os possibilidade entre a sua existência e a do mal, discussão que
Académicos para o Diálogo sobre a Vida Feliz, abre caminho à decorre a par do estabelecimento das condições de possibilida-
questão da Ordem: em que consiste, afinal, o melhor dos bens, de para conhecer a essência da divindade.
aquele que todos buscam e que abrange toda a realidade? A noção de Deus assumida pelos intervenientes não é uní-
No Diálogo sobre a Vida Feliz, rearrendo à metáfora do voca nem demasiado explícita. Se a definição de Licêncio inci-
banquete, de larga tradição literária, a beatitude é entendida dir sobre a noção cristã de Deus-Trindade, como se intenta em
como alimento da alma, enquanto as iguarias preparadas por I, 10, 29 ao analisar o facto de, na proposição enunciada, se
algum cozinheiro para o festim de aniversário de Agostinho se supor que Deus é conduzido, surge de novo a dificuldade ine-
referem ao alimento do corpo. A imagem da nutrição, aplicada rente à condição demiúrgica da divindade, agora aplicada à
à alma, elucida sugestivamente que esta se relaciona com re- pessoa do Filho de Deus, Cristo, no interior da relação trinitá-
alidades de tipo imaterial, em função de cuja posse se define ria. Ora esta é a posição defendida pelos arianos e não pode
a qualidade que lhe é própria. Assim, a alma será estulta se passar incólume no seio de um Diálogo que decorre num espa-
for indigente face aos bens inteligíveis. Inversamente, será ço rural que pouco dista de Milão, poucos meses após acesos
sábia se os possuir em plenitude67 . confrontos entre cristãos ortodoxos e arianos. Com efeito, os
O Diálogo sobre a Vida Feliz conclui pela identidade entre cristãos milaneses, com o bispo Ambrósio à cabeça, tinham-se
as noções de Plenitude e Medida, condensando ao extremo a envolvido em conflitos com a frente adepta de Justina, mãe do
paridade entre a Medida e o Melhor dos Bens, temática sobre jovem Imperador Valentiniano, convertida ao arianismo69.
a qual virá a incidir, a seu modo, o Diálogo sobre a Ordem. Embora a questão teórica subjacente não ultrapasse, aqui,
Contudo, para que o problema não mergulhe na total obscuri- o plano da pura enunciação, o problema está latente. Conside-
dade ou se entregue a uma indefinição dos conceitos que o rada a Trindade de Deus, assumindo por adesão fiducial a
equacionam, importa esclarecer qual o tipo de relação que se verdade da essência trinitária da divindade, nem por isso a
estabelece entre a alma do sábio e a Sabedoria, de modo que noção de ordem se esclarece mais facilmente. De facto, impor-
se possa entender até que ponto pode a alma aceder à posse ta decidir sobre se a ordem é Deus ou apenas atributo de uma
da Medida, sendo esta assumida, no contexto do Diálogo sobre das p.essoas da divindade - neste caso, o Fi~- pelo qual se
a Vida Feliz e não sem paradoxo, como Supremo Bem. identifica a relação entre Deus e o mundo. Se assumirmos a

68 Diál. Ord., I, 10, 28.


67 Cf. BV, IV, 35 (CCL 29, p. 84). 69
Cf. Conf., IX, 7, 15 (CCL 27, p. 141).

46 47
verdade do segundo disjunto, estabelece-se uma divergência de Com efeito, se todos os bens estão junto de Deus e a ordem
operações no seio da Trindade, o que permite afirmar que o não afecta Deus porque dele estão ausentes os males, então
Pai e o Filho não comungam da mesma natureza e brota a há um universo amplo de realidades que não são administra-
polémica entre arianos e católicos acerca da consubstanciali- das pela ordem, a saber, todo o conjunto de bens que estão em
dade das Duas Pessoas. Deus. Ora, que resta do universo? Os males - uns piores que
Negando a divindade plena do Filho, questiona-se toda a outros - para os quais é necessária a ordem de Deus. É este
acção redentora de Cristo, fazendo entrar em descrédito a mundo de malícia, intrinsecamente hostil, que está contido na
natureza soteriológica do cristianismo, ao mesmo tempo que tese inicial de Licêncio, sendo a razão suficiente de todas as
se restringe o âmbito da noção de ordem à relação entre um coisas um princípio efectivamente mau e daí resultando uma
deus menor e um mundo caótico no qual é necessário alguma noção negativa de toda a forma de existência. Na verdade, é
fiscalização para que uma universal catástrofe não elimine o porque há bens, dependentes de Deus, em combate com ma-
que aí pulula de bom, visto que não é de todo irracional con- les, dependentes não se sabe de que princípio, que Deus e a
ceber a existência de um Bem Supremo, sempre que ele não Ordem coincidem. Esta última noção significa aquele meio do
se relacione de nenhum modo com a matéria tenebrosa de que qual Deus se serve para administrar, neste mundo caótico,
o Todo está composto. De facto, para preservar a inefabilidade aquilo que é seu, preservando as suas posses de entrar em
de Deus e a sua sublime perfeição, não se lhe pode permitir desgaste ou de sofrer corrupção.
que se imiscua nas relações intramundanas. Obtemos, portan- Para além deste imbróglio, a definição de Licêncio inclui
to, uma divindade alheada dos assuntos dos homens, regres- ainda outra dificuldade, a necessitar de explicitação, uma vez
sando à opinião ímpia enunciada na Dedicatio, a qual nem o que ela atribui a Deus algum movimento, a saber, aquele pelo ·
recurso à noção de Deus-Trino parece descartar. qual Deus conduz os bens. Estes, se estão no mundo, são afec-
Assim, definida a ordem como «aquilo pelo qual Deus tudo tados pela deslocação no espaço. Contudo, Licêncio não quer
conduz», importa investigar de que modo o faz Deus, isto é, admitir nenhum tipo de movimento em Deus, o que retira
interpelar a noção de divindade, concretamente na sua activi- razoabilidade à sua definição. De facto, há coisas que estão
dade providente. neste mundo, são boas e movem-se. Mas estas, precisamente
A tese de Licêncio exposta no Diálogo em II, 1, 2, afirma a porque são boas, estão com Deus, e nesse caso não deveriam
não identidade entre Deus e a Ordem, já que esta última no- mover-se porque tudo o que está com Deus é, como ele, imó-
ção só se pode exercer onde houver distinção entre o bem e o vel. Inversamente, tudo o que se move não está com Deus, tese
mal, proposição que supõe ser incompassível a existência do que exclui definitivamente a presença de Deus deste mundo,
mal e de Deus. caracterizado pelo movimento, mesmo se eterno. É assim que
Onde tudo é bom, afirma Licêncio, não há ordem. Deste desaba a convicção de Licêncio acerca da universalidade ~
modo fica confirmada a sua convicção acerca da necessidade ordem.
do mal e torna-se manifesta a convicção do jovem segundo a Independentemente da posição que se venha a assumir sobre
qual, para que exista a ordem, se exige a condição apriorística a possibilidade de, no mundo em que habitamos, existirem rea-
daquele. A ordem estaria condicionada à prévia existência do lidades imutáveis, o certo é que, sendo o movimento a afecção
bem e do mal, mas Licêncio não discerne o alcance da sua mais evidente das realidades que estão neste mundo, a maior
afirmação senão quando, para seu espanto, a tese inicial se- parte das coisas se move e, portanto, não pode estar com Deus.
gundo a qual «nada se faz fora da ordem» lhe vem a escapar Em causa está o modo de relação do real com a divindade,
subitamente e contra a sua vontade70 . . sendo a resposta, uma vez mais, adiada para melhores dias.
Na verdade, ela exige reformular toda uma ontologia, obtendo
uma definição de Ser capaz de incluir o movimento e o repouso,
'º Cf. Diál. Ord., II, 7, 23.

49
48
o que supõe, igualmente, a redefinição destas duas noções, bio com o divino. Se o Uno que se quer Supremo não estives-
tarefas que Agostinho considera demasiado ambiciosas para tão se, de algum modo, relacionado com outras ideias, o conheci-
parco Diálogo. mento não seria possível. O Uno supõe, portanto, uma certa
implicação de dois princípios, exige que a alteridade se inte-
gre, de algum modo, na sua mesmidade72 . Mesmo que estes
2.3 - Está com Deus a estultícia? dois princípios constitutivos, em último termo, se reconduzam
à mútua implicação do Uno e do múltiplo, a conclusão perma-
Licêncio afirmara que está com Deus aquilo que o sábio nece incontornável: esse Deus, a que o sábio está unido, não
entende. Nessa condição unitiva, específica da sabedoria, resi- passa de uma realidade intermédia, não subsistindo por si
diria, igualmente, o autoconhecimento. Deste modo, Deus é mesmo mas antes pela própria relação que estabelece com 0
proposto como termo final e objecto próprio do conhecimento
múltiplo. Para lá de Deus restará, para sempre cerrado na sua
do sábio. Contudo, esta afirmação - não obstante ser a aspi- incognoscibilidade e negando-se egocentricamente a toda a re-
ração do ideal de sabedoria e de todas as propostas onde, ao lação com o mundo, o Bem, a um tempo fonte de sabedoria e
tempo de Agostinho, convergem escolas filosóficas e religiões desiderato universal.
mistéricas -, relevando mais do horizonte da fé do que da pró- Mesmo restringindo à análise da natureza do conhecimen-
pria razão, arrasta consigo um vício pernicioso, precisamente to o âmbito desta perplexidade a que Agostinho conduz o ar-
por se alhear da agudeza da inspecção racional. Com efeito, se gumento de Licêncio, a problemática inicial mantém-se: de
está com Deus tudo o que o sábio conhece e se, para que seja acordo com a definição de sábio obtida no Diálogo, sendo esse
sábio, há-de conhecer o erro e a ignorância precisamente a fim
homem aquele em cuja mente convergem a sabedoria e o seu ·
de os evitar, é inevitável associar Deus a estas realidades contrário, uma vez que ele está unido a Deus, com Deus esta-
daninhas. rá também o flagelo da ignorância. Ora nesta última consiste
Estando a natureza da divindade e a posse da sabedoria o mal do entendimento, afinal o supremo mal que se pretende
mutuamente implicadas, a perplexidade a que Agostinho con- fazer conviver harmonicamente com o soberano bem.
duz as proposições de Licêncio supõe uma concepção determi- Uma vez que o debate não permitiu que se progredisse na
nada de cada um dos termos desta relação. Reflectindo sobre compreensão do modo como a mente do sábio está unida a
a natureza da divindade, a proposta de Licêncio viria a assu- Deus, a análise do argumento virá a incidir sobre a noção de
mir a compossibilidade da coexistência dos contrários em Deus. estultícia. A dificuldade é confiada à agudeza de Alípio que
A tese, que não é inovadora, estaria embrionariamente conti- depois de resistir quanto pôde, propõe finalmente uma solu'.
da nas primeiras asserções de Licêncio, uma vez que ele pró- ção. Na verdade, se um homem conhece a estultícia como algo
prio defendera a convicção segundo a qual só há ordem na que deve ser evitado, ainda não se lhe pode chamar sábio, uma
harmonia dos contrários n. vez que a si mesmo tem presente a estultícia. Quando a estul-
Incidindo sobre a natureza do Uno imutável, a discussão
não pode deixar de recordar o argumento platónico da alter-
nância cíclica dos contrários, inalienável do próprio Ser, a partir
72 Cf. Platão, Sofista, 256d-264a (Ed. Diés, Belles Lettres, Paris, 1969').
do qual, em Fedon, 70c-72e, se quer deduzir a imortalidade da
A questão das relações mútuas entre os géneros supremos fora discutida
alma. O inteligível puro, embora ausente de composição, diver- atentamente neste Diálogo platónico, entre o Estrangeiro e Teeteto (v. g.
gindo, por isso mesmo, de todos os outros níveis de realidade ' 254b/c-256d).? problema resume-se em 259a-b, na síntese disponibilizada
não pode ser simples, se queremos falar de uma união do sá- . pe_lo Estrangeiro: o ser não é um género, situando-se para além das multí-
p:1ces rel~ções. Q.e mesmidade-alteridade operadas entre aqueles. De contrá-
no reduz1r-se-1a aquela categoria soberana a essas mesmas relações ins-
71 Cf. Diál. Ord., !, 7, 18. crevendo-a no ciclo das realidade mutáveis. '

50 51
tícia já não se contar entre as coisas que ele entende, então ontológico à estultícia. Nessas circunstâncias, a ignorância mais
será sábio e estará unido a Deus 73 . não seria do que a indigência de que padece o homem falho
O raciocínio de Alípio é claro e Agostinho limita-se a fazer de sabedoria76 , como acontece a quem discorre sobre aquilo que
um pequeno reparo, uma vez mais procurando arreigar este desconhece77 ou, no exemplo de que o próprio Trigécio se so-
alienado sábio à comunidade dos humanos, confrontando-o com corre, o que sucede a quem deseja ver as trevas, estas mais
a actividade pedagógica que lhe é própria. Como encontrare- não sendo do que a ausência de luz 78 • Na fala que profere a
74
mos então um mestre que ensine o que é a sabedoria? Com este propósito, Agostinho identificará a estultícia com as «tre-
efeito se aiguém que se diz sábio não conhece a estultícia, há vas da mente».
uma ~ealidade essencial na busca da sabedoria que ele não Apesar da dificuldade referida por Alípio e inerente à acti-
conhece. Como há-de um tal homem ensinar a outros o cami- vidade pedagógica do &ábio - de que modo aquele que desco-
nho da sabedoria se, para que o possa fazer, terá de encami- nhece a estultícia poderá ensinar alguém a evitar esse mal,
nhar aqueles que se lhe confiam num percurso que decorre encaminhando-o para o saber-, Agostinho, a ter de optar, tor-
desde a ignorância ao saber? A questão é paradoxal. Por um na-se preferentemente partidário da intuição de Trigécio se-
lado, tal homem não conhece parte da realidade e, portanto, gundo a qual a estultícia é a ausência de compreensão daque-
deve ser convidado a procurar o saber. Contudo, confrontado las realidades que se podem entender. Esse vício, que tem
com esta proposta, esse pretenso sábio apelidará os outros assento na alma, estará presente a alguém não pelo facto de
homens de ignorantes e recorrerá, para tal, ao discurso sobre ter conhecido a natureza das trevas - o que é impossível, por
um tão grande mal cuja natureza, como ele próprio. ar;rn_ia, contraditório - mas antes porque a presença daquelas impede
desconhece. Ora como haveremos de conferir valor ep1stem1co qualquer mente de aderir com lucidez às realidades que pode
• ?75 R t
ao discurso de um homem que fala sobre o que ignora. es a, conhecer. A estultícia e o erro mais não são do que a ausência
portanto, a afirmação inicial, segundo a qual a estultícia está das qualidades próprias do entendimento, defeito que inere na
unida a Deus, como condição de possibilidade da existência da mente de todo aquele que, possuindo porventura um imenso
sabedoria. saber, ignora a verdade. Agostinho prepara deste modo a dis-
Trigécio tem uma última proposta para a solução do im-
bróglio. Recordando porventura o que se afirmara no Diálogo
tinção entre a posse de uma multiplicidade de saberes e a
adesão à sabedoria, ao mesmo tempo que atribui ao mal do
)
sobre a Vida Feliz, considera a possibilidade de retirar valor entendimento uma condição defectiva, mais do que uma enti-
dade real.

73 Cf. Diál. Ord., li, 3, 8.


74 A questão da busca do mestre prende-se, neste Diálogo, co1:1" .ª neces- 2.4 - Esse cum. Deo: aporias sobre a mente do sábio
sária ordem da aprendizagem. Se a ordem é universal e a act1vidade do
sábio se supõe maximamente ordenada, o acto de aprender terá também a Tendo confiado ao magistério de Agostinho a tarefa de de-
sua ordem própria. Deste modo, escreve o filósofo: (([ ... ] porque nenh~m finir, Licêncio rejeita a identificação entre a ordem e a natu-
homem se torna conhecedor a não ser a partir da ignorância e nenhum ig-
norante conhece como se deve entregar aos mestres e qual o género de vida
reza de Deus, para se manter coerente com as afirmações que
que 0 toma apto para se instruir facilmente, acontece que só a autoridade ele próprio antes proferira. Adere, contudo, sem maior objec-
abre a porta da aprendizagem de tão grandes e velados bens a todos aque-
les que os desejam11 (Diál. Ord., II, 9, 26). Apresentada n~stes te:~os, a
questão da busca do saber prende-se com a da solução da ra1z defm1t1va da 76 Cf. BV, 4, 29 (CCL 29, p: 81).
autoridade do mestre, a qual só ficará esclarecida quando se encon~r..ar a 11 Cf. Diál. Ord., II, 3, 8.
origem última do discurso. Agostinho reserva esta tarefa para o Dialogo 78 A discussão baseia-se no que «foi dito nos livros dos sábios)). Não obs-
sobre o Mestre (M, CCL 29, 1970, pp. 157-203). tante a convergência de muitas escolas na mente dos interlocutores em um
" Cf. Diál. Ord., li, 3, 9. século de viragem cultural para o qual Agostinho contribui copiosamente,

52 53
ção, à proposta augustiniana da tese neoplatónica sobre a con- Em definitiva, a natureza do sábio exige que este só conhe-
vivência entre a alma do sábio e o divino: «Está com Deus o ça aquela sua parte pela qual se une a Deus, onde reside,
que entende Deus»79 • Todavia, nem por isso Licêncio padecerá segundo Licêncio, a autognose. Tudo o que transcenda este
menores angústias, se quiser defender convincentemente esta horizonte epistémico excede o âmbito da actividade sapiencial,
posição ante o seu mestre. razão pela qual a este sábio se exige que ignore tudo e todos,
Na verdade, se está com Deus quem entende Deus e esse em defesa da sua própria sageza. Na verdade, é este ensimes-
homem é sábio, com Deus estará tudo aquilo que o sábio en- mamento do sábio que Licêncio postula, encarnando a proposta
tende, incluindo-se neste saber tanto o autoconhecimento como de todas as gnoses. Do mesmo modo, é esta promessa de uma
o universo das realidades sensíveis, necessárias à vida material sabedoria sectária unida a uma felicidade incomunicável que
desse homem a quem foi atribuída a qualidade de sábio. Com Agostinho rejeita, conduzindo uma tal hipótese ao absurdo, uma
Deus estarão, portanto, quer as realidades mutáveis, quer a vez que ela contraria a exigência de universalidade que se
própria ignorância que o sábio não pode desconhecer a fim de supõe tanto para a natureza da sabedoria como para o desejo
a evitar, pois de outro modo não poderá alcançar a sabedoria. de felicidade.
Colocada nestes termos, a solução do imbróglio deverá orientar- A proposta assumida por Licêncio sobre a natureza do conhe-
-se, por uma parte, para o esclarecimento da actividade mental cimento implica, como faz notar Agostinho, a divisão da alma
do sábio e, por outra, para a elucidação da natureza da igno- em partes, sendo estas incomunicáveis entre si. Com efeito,
rância e da relação que com ela estabelece a mente do sábio. dividir o âmbito da percepção !:!ntre um universo de realida-
Sobre a actividade mental do sábio, Licêncio assume a tese des, sensíveis e inteligíveis, não supõe afirmar que a realidade
neoplatónica que, conferindo partes à alma, reserva para a se apresente dissecada por esses mesmos referentes, mas ape-
actividade noética, por congeneridade, a percepção do divino. nas que uma tal distinção é possível na análise do acto de
O conhecimento da túnica, da toga e de outras realidades onde percepcionar, sendo a alma o sujeito da percepção. Por isso,
o movimento e a matéria se encontrem amalgamados, isto é, quando, como quer Licêncio, se opera uma incomunicabilidade
toda a actividade da alma que envolva a percepção sensível, entre o universo sensível e o inteligível, é necessário supor a
não poderá ter qualquer relação com a sabedoria. Aprovando composição dual da alma ou a posse de uma alma dupla, ques-
a distinção de Trigécio entre a actividade cognitiva e a per- tão que, embora enraizada na mundividência neoplatónica,
cepção sensível, reservando apenas àquela primeira valor epis- arrasta consigo o espectro do maniqueísmo8 1, ao mesmo tempo
témico80, Licêncio afirma ainda que o sábio só conhece pela que faz emergir a interrogação sobre a unidade do sujeito cog-
actividade do espírito, a tal ponto que, alheando-se desta, dei- nitivo.
xará de estar não só com Deus mas também consigo mesmo. Contornando a dificuldade de definir a natureza íntegra da
Esta convicção será explanada pela análise que ele próprio alma - assumindo, portanto, que se possa falar da alma como
elabora acerca do entendimento do sábio. de um todo-, Licêncio distingue nela uma parte superior e
outra inferior, sendo aquela primeira a que o sábio tem domi-
J. Doignon identifica, neste passo de Diál. Ord., dois textos de Platino: Enn.,
nada pelas virtudes e esta outra a que ele usa para o seu
V, 3, 5, onde se afirma a congeneridade entre o acto de contemplação e a relacionamento com o mundo. Nesta última parte, a memória
realidade contemplada para que se possa falar de inteligência, e Enn., I, 8, viria a desempenhar uma função peculiar. Servindo de media-
9, onde a inteligência que pretende ver o que não lhe é próprio é compara- ção entre aqueles dois domínios, a memória estaria, contudo,
da ao olho que se esforça por ver as trevas (cf. J. Doignon, «Le De Ordine, absolutamente ausente do ·uso que o sábio pode fazer da alma,
son déroulement, ses thêmes», L'opera letteraria di Agostino tra Cassicia-
cum e Milano, Palermo, 1987, pp. 127-128).
" Cf. Diál. Ord., II, 2, 4. 81
Cf. Diál. Ord., II, 2, 6. Agostinho dedica uma das suas obras à aná-
ao Cf. Diál. Ord., II, 2, 5. lise da questão [cf. De Duabus animabus (PL 42, 93-112)].

54 55
por conter a recordação das imagens captadas pelos sentidos. porém, não cede facilmente neste aspecto, pois prescindir desta
Onde a memória se exerça não se dará o exercício do entendi- definição de sabedoria obrigaria a atribuir algum movimento
mento puro e, portanto, não se poderá falar de uma relação ou actividade à alma do sábio. Assim, caberia a possibilidade
directa do sábio com Deus. Esta tese, assumida por Licêncio, da desunião daquela com Deus - caso em que a validade do
revela definitivamente a natureza do seu ideal de sabedoria. conhecimento seria posta em dúvida, fazendo regredir Licên-
O sábio permanece imóvel em si mesmo, o que só pode fazer cio ao cepticismo académico - ou de introduzir em Deus qual-
pela actividade pura do entendimento, na perfeita união com quer espécie de movimento, caso em que se afastaria do di-
Deus, à margem de toda a percepção sujeita ao tempo, medi- vino o atributo da perfeição suprema. A primeira hipótese
da do movimento e afecção das realidades registadas pela arrasta consigo, ainda, a negação da imortalidade da alma; a
memória. Para Licêncio, a actividade unitiva entre o sábio e segunda, a da eternidade de Deus, atributo essencial que ga-
Deus exige um conhecimento de tipo presencial, dispensando, rante a absoluta transcendência do divino. Assumindo os parâ-
por isso mesmo, toda a recordação. metros racionais da cultura antiga, Licêncio não encontra saída
Confrontado com esta proposta, Agostinho tem apenas dois para as interpelações de Agostinho.
reparos a fazer que se diriam de somenos quando comparados O ideal extático de sabedoria - proposto pelo neoplatonis-
com as consequências práticas de uma mundividência erguida mo como pelas diferentes expressões gnósticas - não é viável
sobre tais fundações. Por um lado, a transmissão da sabedo- para o ser humano, entendido este como um composto harmó-
ria - actividade que o sábio há-de exercer por excelência, pois nico de corpo e alma. Confiada aos eleitos, a sabedoria torna-
assim convém à benevolência que o caracteriza, uma vez que -se sectária, alheada a tal ponto da vida humana que mais se
ele possui a essência da virtude e que o bem é por si difusi- diria ser própria da alma separada do corpo, isto é, de uma
vo - exige o uso da memória, tendo em conta o carácter dis- forma de conhecimento específica da presumível persistência
cursivo da dialéctica, arte cujo manejo compete por excelência da alma depois da morte. A possibilidade da subsistência da
ao homem dotado de sageza. Agostinho sabe que o esclareci- alma separada deve, por sua vez, ser cuidadosamente ponde-
mento cabal do problema exigiria uma longa análise da rela- rada, exigindo uma reflexão sobre a natureza e imortalidade
ção que se estabelece, no interior da mente, entre a memória da alma85 • Todavia, mesmo supondo que uma tal sabedoria
e a inteligência, faculdades da alma produtoras de conhecimento, fosse possível, qual seria a finalidade de um tão grande es-
tarefa diferida por exigência do curso do Diálogo82 • Por outro lado, forço? Uma vez mais as convicções de Licêncio - que encarna,
a união entre o corpo e a alma, uma vez que é exigida ao sábio, agora, o modelo gnóstico de sageza - suspendem a interroga-
dificulta a compreensão de um uso puro do entendimento, de ção sobre a natureza da causa final.
tal modo que este último permaneça imóvel enquanto o sábio se Agostinho lança ainda uma tábua de salvação ao seu jo-
desloca de um lado para o outro, ou conversa com os homens. vem interlocutor, permitindo-lhe considerar a hipótese de que
Agostinho faz notar que, se para nos ensinar a sabedoria, a relativa imobilidade da mente do sábio subsista em função
permanecendo em si mesmo, o sábio não deve estar no corpo, da omnipresença de Deus. Se considerarmos que Deus está em
provavelmente estamos perante um defunto sábio ao qual deve- toda a parte, porventura o sábio poderá encontrar-se com Ele
mos, portanto, entoar harmonicamente um canto fúnebre 83 • Esta de modo habitual, para onde quer que se dirija. Mas Licêncio
objecção obriga Licêncio a confessar que se o seu ensimesmado não pretende uma relativa imobilidade para a mente do sábio
sábio existe, para todos os efeitos ele está morto84 • O jovem, nem quer, de nenhum modo, compatibilizar a sua actividade
de ser vivo entre os homens com a sabedoria. Se a mente 'é
82 Cf. Diál. Ord., II, 2, 7.
83 Cf. Diál. Ord., II, 6, 19.
84 Cf. ibid. 85
Diál. Ord., II, 6, 19.

56 57
sábia, não se desloca de um lado para o outro, mesmo que o se esforçam por chegar os que discutem e o que é por eles
sábio o faça. Esta convicção, para além .de dificultar o modo exposto acerca _da tarefa que empreenderam90 . Feita a sonda-
de conceber a relação entre o corpo e a alma no composto gem encontrar-se-á, porventura, uma resposta única, com duas
humano - até ao ponto de se poder considerar, no caso con- vertentes: a natureza da felicidade, desejo universal, em cone-
creto em análise, que o sábio possa cavalgar, permanecendo xão directa com a resposta que a razão possa dar tanto à in-
imóvelB6 -, torna impossível associar a conduta moral ao ide- terrogação sobre a natureza do fim último do homem como à
al de sageza 87 . Assumida como modus vivendi, esta é, efecti- que incide sobre a existência de Deus.
vamente, uma posição cómoda, uma vez que desresponsabiliza Levada ao limite, a questão acerca da ordem - cuja origem,
o sábio dos efeitos da sua própria actuação ou, na melhor das como a de toda a interpelação, é o desiderato irrecusável de
hipóteses, dispensa-o da vida comunitária. Contudo, no inte- beatitude~ coincide com a interrogação acerca da natureza de
rior deste Diálogo, a análise do problema fica mais uma vez Deus. Nesta medida, Agostinho inscreve este seu Diálogo no
adiada «para que um assunto tão obscuro e que deve ser tra- âmbito de uma teodiceia, tentando fazer convergir, numa só
tado com mais tempo e diligência não entrave, presentemente, mundividência, a definição da natureza do Supremo Ser e do
8
0 nosso propósito» B. O debate regressa, portanto, à investiga- Fim do Homem.
ção sobre a misteriosa convivência entre a universalidade da Para o Hiponense, uma vez desvendada a natureza do divi-
ordem e a emergência do mal. no, tudo o mais - a integração dos bens e dos males na or-
dem - se soluciona harmonicamente. Com efeito, no interior
do Diálogo, assumindo Agostinho os argumentos dos homens
3 - Alicerces para uma nova mundividência cujas doutrinas estão impregnadas de subtilezas e habilida-
des91, Licêncio será posto à prova, e a sua mente, se quer afiri
3.1- No cerne da noção de Ordem mar a universalidade da ordem sem incorrer em contradições,'
terá de ser capaz de sustentar uma versão de Deus absoluta-
A magna quaestio sobre a natureza da Ordem reside, pre- mente ampla e ilimitada92 . Toda a concepção raquítica acerca:
cisamente, na ilustração racional do modo como se hão-de po- do Supremo Bem faz que a mente incorra nas dificuldades
der conciliar estes três elementos - a existência de uma di- enunciadas na dedicação do texto a Zenóbio: ou a providência
vindade providente, o bem e o mal - numa mundividência de Deus não é universal, alheando-se do cuidacfo ·dos assuntos
una89 . Para tal é necessário tomar posição sobre cada uma humanos, ou os bens e os males derivam da vontade de Deus,
dessas três noções, aparentemente opostas, identificando a s.ua apresentando-se ambas as soluções como ímpias por contrárias
natureza. à razão. Agostinho considera possível uma resolução positiva
Seguindo os conselhos indicados pelo mestre de Cassicíaco e racional do problema enunciado e por isso desafia os seus a
para retirar de cada escrito o melhor partido, se assumirmos procurarem a inteligibilidade de tão imenso Deus. Deste modo \
como orientação de leitura as referências propostas no Diálogo, postula, a um tempo, se não a cognoscibilidade do divino, ao
importa perscrutar qual a origem da questão, verificar onde menos a possibilidade de construir um discurso razoável para }
compreender a relação entre Deus e o mundo 93 .
ss Cf. Diál. Ord., II, 6, 18.
87 Cf. Diál. Ord., II, 6, 19.
86 Diál. Ord., II, 7, 20. 90 Cf. Diál. Ord., !, 11, 31.
89 Retract., I, 3, 1: «Per idem tempus, inter illos quidem qui de Acade- 91 Cf. Diál. Ord., !, 4, 11.
micis scripti sunt duos etiam libras de ordine scripsi, in quibus quaestio 92 Cf. Diál. Ord., !, 7, 20.
magna uersatur, utrum omnia bona et mala divinae providentiae ordo con- 93 Em Diál. Ord., 1, 9, 27, Agostinho manifesta a sua convicção da proxi-
tineat» (CCL 57, p. 12, sub. n.). midade dos seus jovens interlocutores com o divino, ao confiar que o hão-de

58 59
Na verdade, todas as aporias a que são conduzidos os in- O recurso literário à metáfora permite a Agostinho contor-
terveniente no Diálogo - como o seria qualquer ser humano nar a versatilidade da noção de ordem, revelando simultanea-
que discorresse sobre um assunto tão misterioso quanto irre- mente a convicção de que, mais do que na limitação de um
cusável, identificado comummente com o escândalo do mal - único conceito, o filósofo considera que aquela mítica noção se
derivam de um único tormento: a ignorância ou estreiteza de deixa colher de preferência pela dinâmica da imagem96. A com-
mente. O modo como este flagelo afecta a compreensão da or- paração vivifica o conceito e defronta a razão com um univer-
dem das coisas é caracterizado, numa primeira abordagem, por so de relações. De facto, na imagem do pavimento de mosaico
recurso ao estilo metafórico, de acordo com a imagem do pavi- as pedras embutidas só podem ser contempladas na relaçã~
mento de mosaico ou com a da circunferência e do seu cen- que estabelecem entre si. Só assim fazem brilhar, pela cor, pela
tro94. Para solucionar os paradoxos da relação das partes com forma, pela configuração, um acordo de fundó, revelador de uma
o Todo, sugere Trigécio que a razão descubra os lugares dispos- beleza uniforme. Contudo, se a ordem do pavimento não está
tos para cada coisa, numa percepção tão ampla que seja capaz numa só peça, ela não está, também, na tessitura do fundo.
de iluminar, simultaneamente, a totalidade do real 95 . Para Na verdade, Agostinho visa uma beleza fundamental, mas sabe
Agostinho, o que está em causa sem sombra de dúvida é a que ela só brilha pela relação entre cada peça e o Todo. Por
construção de uma solução inteligente para a relação entre o i~s~, a atenção da razão que discorre sobre o acerto da compo-
Uno e o múltiplo, ou seja, a construção de uma resposta basea- s1çao das peças do mosaico não será nem à parte, claramente
da numa racionalidade capaz de contornar as disformidades redutora da perspectiva, nem ao Todo, que, por definição, não
das visões parcelares do real, por ter sabido integrar correcta- se deixa abarcar. A mente deverá tomar a seu cuidado a natu-
mente cada parte na harmonia do conjunto. reza da relação: nela e por ela - paulatina e atentamente -
De acordo com a metáfora do pavimento de mosaico, a di- se há-de descobrir, sempre com novos matizes, a fundamental
ficuldade de conquistar esta meta advém à razão justamente beleza. Assim, a proposta metodológica de Agostinho para a
pelo facto de ela não ter contemplado o desenho a partir da comp:eensão da natureza das coisas vem a ser a de uma pro-
consideração da totalidade das peças. Fixando-se apenas numa gressiva abertura de espírito, correspondendo a uma sucessiva
das parcelas, a mente não vislumbra toda a realidade, obten- universalização da compreensão do mundo e do ser humano.
do dela uma visão desintegrada. Deste modo, considerando cada A ordem revelar-se-á nesse percurso, o que significa que não
um dos mosaicos como se fosse o todo, torna-se ininteligível a está ::ealizada em nenhum trajecto particular. De facto, ela
beleza da forma, a harmonia das cores e a função de cada um própria engloba todas as vias possíveis, se é verdade que nada
dos elementos, uma vez que eles surgem como mónades des- se faz fora da ordem.
vinculadas ·do conjunto. Como na elaboração de um puzzle, o As aporias sobre a incompossibilidade entre a existência de '
sentido de cada peça só se pode estruturar na relação com as Deus ~ ~o mal, uma_ vez que_ se articulam c~Il'1:..~-§.ese~P~!1110
outras múltiplas partes. Quando cada ladrilho estiver no seu da activ1dade da r~., relac10nam-se directamente com 0 rec-
lugar surgirá, então, harmoniosa e cheia de sentido, a figura to pos1ci~ê!1tQ...t;lo_§,êr hu1Ilª1J.o-1ace ao conjunto. Daí que
de fundo. Agostinho atribua a causa da ignorância ,;;· um-Ín;ólito facto: o
homem é para si mesmo um desconhecido97 . Na verdade, tam-

96 Est a coz;ivic?ªº
· - ·e ~º:1'º borada por Trigécio, para quem a comparação
alcançar em breve. Contudo, uma vez que igualmente afirma a inefabili-
dade de Deus (cf. Diál. Ord., II, 16, 44), o filósofo necessitará de explicitar p~re:e. essencial a exphc1tação do que entende ser a ordem das coisas:
em que consiste, para cada ser humano, a relação com o divino, pois fica {(E fa~1l responder a :sse teu dilema mas falta-me, presentemente, uma com-
patente que ela não se restringe à actividade cognitiva. paraçao pela qual ve30 que se deve defender e ilustrar a minha afirmação»
94 Cf. Diál. Ord., I, 1, 2. (Diál. Ord., II, 4, 11).
97
95 Cf. Diál. Ord., II, 4, 11. Cf. Diál. Ord., I, 1, 3.

60 61
bém o ser humano, dotado de racionalidade, faz parte de um compreenderia a decisão do filósofo de substituir a sua adesão
universo que o transcende, bem como à sua capacidade de lhe a uma visão sectária do mundo - a proposta maniqueísta, com
conferir razoabilidade. Esta consciência da sua condição de os seus postulados e práticas de vida - por uma outra mundi-
«pedra embutida» é essencial na proposta augustiniana de acesso vidência, se esta última em nada contribuísse para disponibi-
à sabedoria. Sem ela, o sábio incorrerá no erro profundo de lizar um universo de verdade mais amplo, alargando, desse
considerar a sua como a única forma possível de solução para modo, o sentido das respostas às suas inquietações.
a relação do Uno e do múltiplo, assumindo a mundividência Com efeito, é uma razão de ordem que conduz Agostinho a
por ele construída o lugar do Supremo Bem. Para responder à aderir ao cristianismo. Depois de um longo e conturbado per-
questão inicial - utrum omnia bona et mala divinae provi~n­ curso intelectual e existencial, opta pela racionalidade cristã,
tiae ordo contineat -Agostinho tem consciência da necess1da- certo de que nela se contêm os melhores argumentoses. Contu-
/ de de reformular a própria cultura do seu tempo. Esta elabo- do, se a fé inconcussa e inabalável nos mistérios se pode re-
1 rara uma estreita concepção do divino porque se fixara apenas servar apenas para a conduta de vida no caso dos que não
i: em um dos termos da relação uno-múltiplo, a saber, aquele têm a seu cargo a actividade filosófica - tome-se Mónica como
que estabelece as _c:ondições de p_ossi~i)id11.<l<i__df'--~ªªç,g11s!í-o d.o paradigma -, o exercício desta última coincide, na prática, com
homem a Deus. Os alicerces culturais d1spomve1s a Agosti- a arte da dialéctica, exigindo o tempo da construção dos argu-
iillo - ond~· um sem-número de escolas filosóficas e de religiões mentos, a par do recolhimento, crisol onde maduram. Se, como
mistéricas entram em comunhão, a ponto de se tornarem difi- crê Agostinho, há uma vera sophia, ela liberta a custo um
cilmente identificáveis na sua pureza original - apenas con- pequeno número e fá-lo na demora do raciocínio. Do mesmo
templam um dos termos da relação e por isso encerram qual- modo, a racionalidade do acto de adesão fiducial de Agostinho
quer ideal de sabedoria no âmbito da conjectura, identificando ao cristianismo, na medida em que exprime a inserção do filó-
a verdade com a certeza subjectiva. Deste modo, torna-se válida, sofo na ordem das coisas pela escolha do melhor, só se revela-
porque sublimemente razoável, a atitude céptica da Nova Aca- rá progressivamente, tanto no que se refere à construção de
demia. À luz de tais pressupostos não é possível falar de uma um corpus doctrinae como no que atende à prática de vida
relação real do ser humano com o divino, uma vez que o mo- caminhando esta última a par da produção literária do futur;
vimento inverso - de Deus parª o .home.m - permanece uma bispo de Hipona. Projectando-a num plano mais universal que
incógnita. O ideal de-sabedoria e, com ele, o desiderato de fe- transcende a existência do filósofo, a racionalidade da adesão
licidade humana como posse da Plenitude, é minado na raiz. de Agostinho ao cristianismo manifestar-se-á no curso dos tem-
Para fundar uma real abertura do espírito humano a Deus pos, a par da interpretação da sua obra na história da cultura.
e ao mundo, Agostinho necessitaria de reformular visceralmente No Diálogo sobre a Ordem, ao mesmo tempo que se assiste
os padrões culturais seus coevos, tarefa a que dedicaria o cur- ao adiamento consecutivo de questões que obrigariam a uma
so dos seus dias. Os Diálogos de Cassicíaco são já reveladores reflexão parcelar, é possível traçar o rastro dos ingredientes
dos germes das novas fundações, ainda que_- no caso concre- e.ssenciais que confeccionam a genuína filosofia. A esta, Agos-
to do Diálogo sobre a Ordem e quase irritantemente - Agosti- tinho confia a resolução de todas as perplexidades da razão.
nho, conduzindo uma e outra vez os seus interlocutores à apo- Com efeito, se o filósofo considera razoável - ou seja, executa-
ria, decida permanentemente diferir· as questões. do conforme a razão - que se construam canais para a água
a fim de satisfazer diferentes necessidades do ser humano não
3.2 - Germana Philosophia é de crer que esta razoabilidade se possa restringir à d;fini-

Agostinho sabe que o cristianismo contém a melhor resposta 98


Agostinho descreve este percurso de conversão intelectual em Conf
à questão sobre a ordem das coisas. Se assim não fora, não se VII-VIII. .,

62 63
1
ção da causalidade eficiente que Licêncio oferece ao enu.nciar O debate que envolve a noção de ordem e a natureza da
0
princípio de razão suficiente. Esta concepção da causahdade sabedoria tem por finalidade, da parte de Agostinho, desfazer
é ainda estreita e necessita ser reformulada para poder conter precisamente a tese segundo a qual só uma parte do ser hu-
tamanho Deus. Se a intuição de Licêncio não vai além da afir- mano, a saber, a dimensão noética da razão, está unida a Deus.
mação irrecusável da existência da relação de causal~dad~ A ser assim, o sábio entregar-se-ia a uma contemplação do
física Agostinho deseja conhecer a natureza dessa causa, mqm- mundo inteligível, inactiva e demissionária, à qual só ele acede.
rindo' acerca da racionalidade dos seus actos, exigindo que nela Não obstante Agostinho não recusar consistência ontológica a
se inscreva a própria razoabilidade da actividade humana e, um tal mundo, para o filósofo de Hipona a sabedoria há-de
ortanto colocando a questão da natureza da causalidade num ser efeito do empenhamento pleno do ser humano na sua rela-
P , . ·1w
universo mais amplo do que o estritamente matena . ção com a totalidade do universo. Aquela meta ideal há-de
De facto, a única definição de Ordem que Agostinho pro~e­ integrar a relação harmónica da actividade racional no inte-
re explicitamente ao longo do Diálogo estabelece a_ conexao rior da própria substância humana, dotada de corpo e alma,
entre a possibilidade de alcançar Deus e a preserva?ªº da ?r- inscrevendo nela as virtudes individuais e cívicas a que Agos-
dem na vida100. Se 0 enunciado é suficientemente mdefimdo tinho continuamente exorta os convivas de Cassicíaco, limitan-
para desiludir as expectativas do leitor que dele se a~eire na do-se a seguir fielmente, neste aspecto, a tradição 102 • Para o
esperança de desmistificar a noção de ordem, confermdo-l'.1e filósofo, a sabedoria não pode alhear-se da experiência da pró-
rosto, contudo ele não deixa de sublinhar o alcance ex1stenc1~l pria existência que se recolhe na memória, nem da actividade
que Agostinho confere a esta noção, ao mesmo tempo que evi- de conduzir outros ao vértice da filosofia. Há-de, portanto, in-
dencia a íntima relação entre a prática de uma conduta or- tegrar, no seu exercício, o uso daquela faculdade da alma, ain-
denada e a possibilidade de aceder à compreensão do Ser Su- da que para tal importe reformular o conceito de anamnese,
premo. redefinindo os seus domínios específico,s. A sabedoria, por últi-
No estranho enunciado do mestre de Cassicíaco, a ordem mo, não se pode alhear da escolha do que é melhor, confiando-
é postulada como o elemento de mediação através do qual se -se assim de modo irrecusável à vontade humana. A não ser
alcança Deus, devendo aquela concretizar-se na vida d~ cada implicando a totalidade do ser humano, o sábio é um ser etéreo.
ser humano. Acessível a todos porque em tudo se manifesta, Uma vez projectado o conteúdo da sabedoria num «outro
a ordem exige a integração da vida do homem no conjunto mundo», o sábio ou está morto, como propusera Licêncio, exi-
das realidades que compõem aquela e é, simultaneamente, _o gindo para a sabedoria o alheamento de toda a realidade ma-
caminho para a posse de Deus, expoente máximo da sabedo- terial na qual se inclui, necessariamente, o próprio corpo do
ria. Neste· contexto se entende a exortação dirigida por Agos- sábio, ou a sua actividade, depois de esclarecido o modo como
tinho a Zenóbio. Escolhendo o melhor, isto é, ajustando-se e
inserindo-se na ordem, ele será indubitavelmente conduzido 102 Cf. Diál. Ord., II, 10, 28. As normas de vida que Agostinho propõe
à meta tão sofregamente desejada: entender a ordem das são as que repletam os livros dos sábios. Na verdade, por um lado, o filó-
sofo tem consciência de que a sua conduta não se adequara até então àque-
coisas 101 . las normas e quer ser, para os seus, uma autoridade apenas pela razão.
Por outro, as qualidades, a cujo exercício exorta, estão no espírito e por
isso facilmente erra aquele que, acerca delas, julga pelas aparências. Com
99 Diál. Ord., I, 4, 11: «Esta natureza [... L em função de que bem pro- efeito, escreve, <(daqui resulta que nós julgamos que muitos não são tais
criou as árvores?» . como eles se conhecem a si próprios e como os conhecem, os seus amigos.
100 Diál. Ord., I, 9, 27: <(Ordem é aquilo que, se conservarmos na VI<la, Este erro deriva desta causa não insignificante, a saber, que não poucos se
nos conduzirá a Deus; e não chegaremos a Deus a não ser que a conserve- convertem de repente a uma vida boa e digna de admiração e que, até que
mos na vida.)) isso se manifeste por alguns factos mais evidentes, se continua a acreditar
101 Cf. Diál. Ord., I, 2, 4. que eles são tal como eram)) (Diál. Ord., II, 10, 29).

64 65
se relaciona com o corpo, exigira um esforço dialéctico reser- Verbo Eterno de Deus e fonte de sabedoria - é central na
vado a algIImas inteligências privilegiadas,. ou, ainda, a sabe- exposição augustiniana da natureza do acto cognitivoIDs. De igIIal
doria será efeito de uma eleição divina, remetendo-se a sua modo, ele servirá para elaborar uma análise da natureza di-
causa eficiente para o capricho dos deuses, donde resulta que nâmica da acção humana, uma vez que a Verdade, contempla-
ser humano se pode demitir definitivamente da actividade de da como supremo Bem, virá a ser entendida pelo filósofo como
0
busca do saber e que a sabedoria, em todo o caso, não corres- motor da rectidão do agir e fonte de libertação 109• Com efeito,
ponde a um desiderato universal mas a uma actividade de elite. a filosofia fora definida, no Diálogo, por uma união com o In-
Agostinho, cansado de seitas, não obstante afirmar a con- telecto110. Assim, poder-se-ia entender que Agostinho mais não
dição vocacional da sabedoria - o que exige peculiar atenção faz do que adoptar o modelo neoplatónico de sabedoria. Con-
à recusa daquilo que, no ser humano, dela diverge, como é o tudo, já no texto citado, a natureza dessa relação surge em
º
caso do amor próprio 1 3 -, quer pôr a sabedoria ao alcance de analogia com a união esponsal, assumindo o intelecto condição
todos, pois de outro modo ela não pode nem ser universal no pessoal e sendo inclusivamente esse princípio quem toma a ini-
seu conteúdo, nem universalizada, encarnando em todos os ciativa do encontro unitivo 111 . O texto prossegIIe sem solução
homens. Para tal, o filósofo necessita reformular a dinâmica de continuidade, descrevendo o espectáculo da luta de galos,
das próprias funções da alma, explicitando o peculiar modo de no qual se pode observar, de modo esplêndido, a razão do alto
relação destas com o divino 1 4 . º que governa e modera todas as coisas, conferindo-lhes estabi-
lidade, medida e harmonia 112 . Deste modo, Agostinho sugere a
É verdade que a sabedoria supõe a existência de um mun-
do diferente, apartado da percepção sensível e que só pode ser identificação entre o intelecto antes mencionado e a lei uni-
105 versal que é a própria razão de ordem.
alcançado pelos que se afastam da multiplicidade . Contudo,
a esse mundo pode aceder-se no tempo, uma vez que ele não No Livro II do mesmo Diálogo, a relação entre o intelecto e
supõe apenas a ascese da razão ao Intelecto mas também a a lei universal surge numa disposição inversa. Em primeiro
descida do Intelecto à razão 106 . lugar, vindo Agostinho ao encontro da intuição de Trigécio
Colocando a questão nestes termos, duas conclusões se se- segIIndo a qual cada coisa tem o seu lugar próprio, a noção de
gIIem necessariamente. Por um lado, a t;,mática da ordem identi- ordem é analisada a partir da necessidade de nela se incluir a
fica-se, no horizonte intelectual deste Diálogo, com a reflexão diferença. A ordem, tanto a que é própria de cada coisa como
sobre a natureza da religião, sendo este o tema do escrito ela- a que diz respeito ao conjunto, exige a disparidade, ainda que
borado transcorridos cerca de quatro anos, Acerca da Verdadei- a natureza desta última fique por explicar neste Diálogo 113.
ra Religião101, texto dedicado a Romaniano, pai de Licêncio. Por
108
outro, já no Diálogo sobre a Ordem - de modo velado mas in- Cf. LA, II, 11, 32-12, 33-34, onde a luz da suprema verdade é causa
contornável - a genuína filosofia é identificada com a sabedo- da inteligibilidade das notiones impressae (CCL 29, pp. 259-260). M, XIV,
45-46, onde se afirma que a Luz de Cristo-Verbo é fonte e origem de todo
ria , sendo esta essencialmente a verdade cristã, pois Cristo é o discurso verdadeiro (CCL 29, pp. 202-203).
motor principal daquela actividade. Este postulado - Cristo, 109 Cf. LA, II, 13, 37 (CCL 29, p. 262).
110 Cf. Diál. Ord., I, 8, 24.
111 Cf. Diál. Ord., I, 8, 24; Diál. Ord., II, 5, 15.
10a Cf. Diál. Ord., I, 10, 29. 112 Cf. Diál. Ord., I, 8, 25. A nova referência ao combate de galos em
104 Agostinho terá de construir uma teoria da percepção que dê conta Diál. Ord., II, 4, permite estabelecer conexão entre os dois textos.
da sua concepção da actividade cognitiva. Servindo-se, também neste as- 113 Cf. Diál. Ord., II, 4, 12-5, 15. A ordem, encontrando-se por toda a

pecto, da tradição neoplatónica, no Diál. Ord. deixa-a enunciada (cf. Diál. parte, inclui a diferença, para que o real possa manifestar-se na sua identi-
Ord., II, 2, 3; II, 3, 10), explicitando-a posteriormente (v. g. DM, VI; LA, II). dade própria. O contrário é a pura indeterminação, a qual, mesmo se consi-
105 Cf. Diál. Ord., I, 11, 31. derada em virtude de um excesso de densidade ontológica, como acontece com
106 Cf. Diál. Ord., I, 8, 24. a proposta neoplatónica sobre a natureza do supremo Bem, não permite que
101 De Vera Religione, CCL 32, 1962, pp. 186-260. cada ente evidencie a sua bondade específica, confundindo todas as coisas.

66 67
Em seguida, o mestre de Cassicíaco elucida a essência da filo- da inteligibilidade da fé, supondo a adesão fiducial como base
sofia no modo específico que esta tem de se relacionar com o da construção do percurso 118. Sendo Cristo o centro da metafí-
Intelecto114. Este Princípio é a divindade proclamada nos mis- sica augustiniana - a secretíssima razão que inspira uma dis-
térios do cristianismo como Una e Trina. Nela permanece um ciplina profunda, a própria lei de Deusl19 -, o filósofo de Hi-
intelecto grandioso com funções soteriológicas que procede de pona terá de reformular nas fundações os elementos disponíveis
Deus para o Mundo sem abandonar a sua condição divina, e na cultura do seu tempo para justificar esta mundividência
que se dignou, «por nossa causa, assumir e levar um corpo do conquistando para a filosofia uma nova interpretação sobre ~
nosso género» 115 . A genuína filosofia é a que se pratica pela natureza do Ser e do Pensar120.
união a este intelecto, simultaneamente divino e humano, cons-
truindo uma visão do mundo onde se integrem racionalmente
3.3 - Artes liberais e filosofia
todos os dados fornecidos por essa inteligência soberana116 . Por
outra parte, essa lei da harmonia universal que é o próprio A acrescentar à obscuridade que acompanha a investigação
entendimento divino, transcreve-se nas almas sábias, permi- acerca da natureza da ordem e em íntima conexão com ela
tindo-lhes o acesso ao Princípio de Totalidade, razão eficiente Agostinho regista outra arduidade, experimentada por ele pró'.
de tudo o que existe117 . Deste modo, Agostinho considera que prio no decurso do Diálogo. Com efeito, ainda que alguém ve-
a filosofia verdadeira assume a seu cargo, essencialmente, a nha a superar as angústias dos que se embrenham na expla-
tarefa de encontrar formas racionais para o sustentáculo da nação de tão misteriosa noção, terá de contar com a falta de
sua intuição de base, segundo a qual a natureza do real e, aceitação por parte dos ouvintes, esta última em estreita co-
portanto, a natureza da mente pela qual aquele é compreen- nexão com a posse das virtudes intelectuais e morais que cons-
dido é, acima de tudo, relacional. tituem o ideal do homem sábio.
A proposta agostiniana quer para a natureza do real, quer Confrontado com a inépcia dos seus interlocutores que, por
para a essência do conhecimento humano como parte da reali- não observarem a ordem das disciplinas121 , são capazes de
dade, consiste essencialmente em conceber ambos como sus- deitar tudo a perder, perturbando o Todo para defender a pró-
tentados pela relação ao Deus-Homem, entidade que garante . d 122
pna or em , Agostinho profere um longo excurso sobre a
toda a inteligibilidade, por ser entendimento gerado pelo Prin-
cípio sem princípio de todas as coisas. Esta proposta coincide, 1 8
. ~ O princí~~o de inteligência da fé supõe a condição progressiva da
todavia, com o âmago dos mistérios cristãos. Ora se à filosofia act1vidade cognitiva e é chave hermenêutica do pensamento agostiniano
compete ensinar mistérios, sendo ela por excelência actividade sendo de recorrência habitual mesmo nos escritos que não incidem directa~
racional, é necessário concluir que Agostinho supõe a inteligi- mente sobre a questão. O filósofo resume-o, de modo frequente, na frase de
bilidade plena do cristianismo, conferindo à actividade filosófi- Is. 7 · 9: «nisi credideritis non intellegetisn. Abranger o seu alcance exige
compreender o modo como o pensamento augustiniano articula os domínios
ca a tarefa de descortinar os mistérios. Já neste Diálogo Agos- da autoridade e da razão no processo cognitivo, questão que já se deixa
tinho esboça para a filosofia todo um programa de conquista antever no Diál. Ord.
119
Cf. Diál. Ord., II, 7, 24-8, 25. Agostinho terá de construir um dis-
curso que justifique esta relação da alma com o divino, capaz de garantir,
114 Cf. Diál. Ord., II, 5, 16. a um tempo, a transcendência do Princípio e a sua presença na alma.
115 Cf. ibid. 120
Para além dos elementos que disponibiliza já em LA sobre a natu-
116 Cf. Diál. Ord., II, 9, 26-27. 86 depois do berço da autoridade a razão rez~ do Se~ e a estrutura relacional de todas as formas de ser, Agostinho
segue com firmeza a própria lei universal e divina, o entendimento no qual dedicar-se-a com empenho a comentar o Livro do Génesis. Igualmente, a
estão todas as coisas e que é, ele próprio, todas as coisas, sendo, simultanea- estrutura da mente humana e a compreensão da actividade cognitiva terão
mente, um princípio que as excede. Este mesmo princípio é a autoridade de ser reformuladas, tarefa a que consagra boa parte de DT.
divina de Deus feito Homem. 121
Cf. Diál. Ord., II, 5, 17.
117
Cf. Diál. Ord., II, 9, 26. 122
Cf. Diál. Ord., II, 4, 11, e II, 7, 24.

68 69
ordem da erudição, convicto da sua eficácia como via ascética 128
das coisas . Ora esta ignorância é absolutamente desprovida
da mente que quer progredir das realidades corpóreas às in- de pretexto. Com efeito, até aqueles que se atêm às realidades
corpóreas123. Na verdade, para o filósofo a importância das que os sentidos captam podem verificar nelas mesmo sem se
diferentes artes consiste em que, nelas, a razão manifesta a ded~carem ao esforço dialéctico, o poder e a for~a da razão. Dir-
sua mestria na arte de ensinar a sua própria natureza, a fim -se-ia que para Agostinho a racionalidade é indissociável da
de que, sendo esta última identificada com o inteligível por condição fenoménica do real. Sendo assim o ser humano só
essência, possa igualmente vir a ser contemplada ditosamente não atenderá nesta qualidade se se esforç~r por contrariar a
pelos que se dedicam ao cultivo das realidades da alma 124. natureza das coisas.
Nesta ascese da alma para o inteligível os saberes adqui- Depois de explanar a condição razoável da percepção sensí-
rem um carácter instrumental. Agostinho não propõe uma méra vel no que se refere à visão e à audição, o mestre de Cassicía-
aquisição de conhecimentos movido por um frívolo afã de eru- co encontra razoabilidade inclusivamente na causa do próprio
dição mas procura mostrar como a racionalidade se manifesta deleite sensível1 29 . Com efeito, o real é radicalmente significa-
em cada uma das artes. Na verdade, é a natureza da razão tivo e a m~n~ humana está essencialmente aberta a interpre-
que o filósofo intenta tornar patente, corroborando a tese se- tar essa s1~1ficação, atenta a recebê-la sempre que os senti-
gundo a qual a ordem se identifica com a inteligência artífice dos se relac10nam com as coisas 13º. Desta feita, 0 filósofo conclui
de todas as coisas. que o carácter razoável do real se manifesta, pelo menos nes-
Na exposição sobre as artes liberais é essa lei universal de tes três domínios: as acções humanas, sempre referenciadas a
ordem que - de acordo com a realidade dada de modo razoá- um fim, as palavras e o deleite. Embora Agostinho afirme que,
vel, a saber, a que é dita ou feita conforme a razão - se vai para levar a cabo a sua exposição sobre a ordem dos saberes
revelando progressivamente ao espírito. é importante prestar atenção, de modo peculiar, ao uso da~
O excurso agostiniano sobre as artes inicia-se, precisamen- palavras, pelo qual se ensina convenientemente, e ao deleite,
te, definindo a razão como aquela moção da mente que subjaz pelo qual se acede à contemplação ditosa, o filósofo não exclui,
em toda a aprendizagem e que é condição do exercício de to- obviamente, a razoável finalidade do seu próprio discurso. Na
dos os saberes125 . Sendo ela a força motriz de toda a activida- verdade, ~le não se faz ao acaso mas pronuncia-se precisamente
de humana, contudo a maior parte dos que a empregam des- para manifestar o modo como o que é racional no ser humano
conhecem a natureza da razão 126. Uma vez que Agostinho se revela na constituição dos diferentes saberes.
assume a definição clássica do ser humano como animal racio- A distinção entre o racional e o razoável- que Agostinho esta-
nal mortal1 27 , esta ignorância da natureza da razão converge, belece de comum se~tir com «homens muitíssimo sábios»1a1 _ pre-
necessariamente, para o autodesconhecimento que é a causa tende exactamente isolar estas três realidades: a razão, a alma
máxima dos erros gerados em torno da compreensão da ordem
. . ~
12
e:.
Diál. O~d:, II, 11, 31. Torna-se agora mais explícito o alcance da
msistencia augustin.1ana sobre a necessidade de autoconhecimento. Não se
123 Retract., I, 3, 1: «Sed cum rem uiderem ad intellegendum difficilem trata ~e um conhecimento subjectivo, de cariz psicológico, ou das aptidões
satis aegre ad- eorum perceptionem, curo quibus agebam, disputando posse pessoais, _mas da, descoberta da essencial característica do real, isto é, da
perduci, .de ordine studendi loqui m"alui, quo a corporalibus ad incorporalia sua rela?ªº especifica com uma racionalidade universal. Este conheciment
potes profici» [CCL 57, p. 12 (sub. n.)]. P~rspectivado a partir do princípio de universalidade é também 0 que per~
124 Cf. Diál. Ord., II, 12, 35. .. mite um recto posicionamento da própria identidade
129
12 Cf. Diál. Ord., II, 11, 32. .
5 Diál. Ord., II, 11, 30: «A razão é a moção da mente capaz de distin-
guir e relacionar as coisas que se aprendem.»
13
131
°Cf. Diál. Ord., II 11 34.
' '
12
' Cf. Diál. Ord., .II, 11, 30. _ En: E:z.~., VI, 7, 3-4, Platino opera também uma distinção entre a
Razao, Pnnc1pio supremo de inteligibilidade (voucr) e 0 razoável (À.oyoç)
127
Em Enn.~ VI, 7, 4, Platino discute a essênd.a do ser humano procurando
atingir uma definição mas sem chegar a nenhuma conclusão satisfatória. [ªc~ldade da alma ~~mana, ficando por decidir o m~do como ambos se re~
acionam e por explicitar o modo como confluem no composto humano.

70 71
ra, uma vez que ambas mais não são do que o registo da lin-
dita racional (isto é, aquela que, possuindo a razão, dela se
serve) e aquilo que é feito ou dito segundo a razão, como acon- guagem, confiado à memória 135 . Contudo, se a gramática é 0
tece no caso das disciplinas liberais 132 . Estas últimas são, na saber que acolhe e regista em primeira mão a expressão natu-
verdade, razoáveis, mas o princípio que as gera é absolutamen- ral da razão que é a palavra, ficando garantido o seu carácter
te universal, divergindo da· alma que o usa e daquilo que este de disciplina racional, a historiografia e a literatura parecem
uso produz. Por isso, tomando em consideração qualquer acti- ameaçar a convivência entre a gramática e a razão.
vidade humana ou qualquer parcela da realidade seria possí- Com efeito, os escritos de que se ocupa a gramática incluem
vel elucidar estas diferenças e os seus respectivos domínios de muitas vezes, no seu âmbito, o carácter fictício da narrativa'.
operatividade. Todavia, uma vez que aqueles que o mestre de tornando difícil o discernimento entre o verdadeiro e o falso.
Cassicíaco tem agora a seu cargo são jovens estudantes, nada Esta objecção à essência racional da gramática volta ao
mais adequado para levar a cabo o seu propósito do que um espírito de Agostinho ainda em Cassicíaco, nos seus Soliló-
quios136, onde regista (por escrito e por imposição da própria
discurso exortativo aos seus pupilos para que descodifiquem a
133 Razão) o debate no qual o filósofo enfrenta directamente aquela
linguagem universal da razão, geradora das artes .
potência. Nesse diálogo, a sós com a Razão, esta interroga Agos-
tinho sobre as suas convicções acerca da gramática: ocupando-
3.3.1 - A razão nas artes -se esta arte da ficção literária será verdadeira do mesmo modo
que o é a dialéctica? De facto, aquela parece ter como objecto
Sendo a gramática a ciência que recolhe em regras fixas as o falso, que esta última não suporta137• Agostinho contorna a
normas da comunicação linguística, Agostinho mostra como a dificuldade, explicando que não é a gramática, enquanto disci-
razão, lei universal de ordem, necessitou de a construir para plina, que torna falsas as fábulas. «Toda a fábula é uma ficção
estabelecer o vínculo ele união precisamente entre aquela rea- exposta com vista a alguma utilidade ou ao prazer.» Pelo con-
lidade que é comum aos seres humanos: o facto de possuírem trário, "ª gramática é a ciência guardiã da palavra articulada
uma dinâmica espiritual cuja vida escapa à percepção sensí- e que lhe atribui regras» 138 . Portanto, não é a gramática, en-
vel. Esta disciplina, por sua vez, tendo construído um conjunto quanto disciplina, que constrói a falsidade das fábulas mas
de sinais significantes, tornaria possível o relacionamento hu- sim aquela arte que ensina e estabelece, para a compr:ensão
mano, pois a confiança, base da união em sociedade, só seria dos textos, um método verdadeiro e operativo na interpretação
possível se o conteúdo das mentes, ,por natureza inteligível, dos signos 139• Assim, nesta mesma arte que permite a comuni-
fosse, de algum modo, comunicável134• Agostinho integra tam-
bém, como partes da gramática, a historiografia e a literatu-
135 Cf. Diál. Ord., II, 12, 35-37. Embora considerada como parte da gra-

_mática e submetida ao seu juízo, a poesia tem lugar à parte, neste excurso
de Agostinho (cf. Diál. Ord., II, 14, 40).
132 Cf. Diál. Ord., II, 11, 31. 136 Solil., PL 32, 869-904.
133 Sabemos por Retract., I, 1, 6 (CCL 57, p. 17) que Agostinho tinha 137 Cf. Solil., II, 11, i9 (PL 32, 894).
em mente compor um manual de artes liberais. Mas é o filósofo quem nos 138 Cf. Solil., II, 11, 20 (PL 32, 894).
informa que aPenas escreveu um texto, De Gramatica, o qual teria já per- 13s Cf. lbid. Também em Solil., a propósito da fábula do voo de Dédalo
dido das· suas prateleiras, e seis livros, De Musica. Os demais livros que
tinha intenção de escrever (De Dialectica, De Rethorica, De Geometria, De
A~o~t~o refere que a gramática não se empenha em demonstrar que ess~
h1stona tenha efectivamente sucedido, e por isso não ensina nada que seja
Arithmetica e De P.hilosophia) só ficaram nos começos. Agostinho informa
falso. Mais ainda, pelo próprio facto de ser uma disciplina, isto é, de ensi-
que os iniciou em Milão mas que perdeu esses textos. O De Musica, escrito
nar alguma coisa, a gramática é verdadeira, pois o falso não é ensinável.
já em África, teve melhor destino e preservou-se. Sobre os Disciplinarum
Este carácter sempre verdadeiro das disciplinae é reiterado em LA I 1
Libri de Santo Agostinho, v. H.-1. Marrou, Saint Augustin et la Fin da la
2-3 (CCL 29, p. 212). Anos mais tarde, em Conf, I, 16, 25-26 (CéL '21'
Culture Antiqu~, Paris, 1958 4 , pp. 570-579. PP· 14-15), Agostinho censura as falácias dos mitos e fábulas, como aliás fa~
134 Cf. Diál. Ord., II, 12, 35.

72 73
cação entre os homens, a razão reparou que, tendo construído finalidade despertar na alma a aspiração a deleitar-se nos bens
um sistema de símbolos linguísticos, estabelecera simultanea- inteligíveis.
mente a possibilidade de distinguir entre o uso verdadeiro ou Concluída, assim, a fabricação da arte de aprender e de
falso que se poderia fazer dela própria. A partir da gramática ensinar, segue-se, como fora anunciado no Diálogo 143 , a inves-
gerou a disciplina a que chamou dialéctica e que contém o saber tigação do que é razoável através da contemplação. Tal como
por antonomásia, já que é ela que dita as regras sobre as quais antes fizera para a determinação das três artes que encontram
se exerce o próprio poder da razão14 º. o razoável no discurso, confrontada uma vez mais com a gran-
No conjunto das disciplinas, a dialéctica surge, portanto, deza da tarefa, a razão, fazendo uso da sua capacidade analí-
como aquela arte que atinge a essência da produção do saber tica, constrói degraus para si própria. Para os estabelecer,
e, simultaneamente, como a que constitui apenas o segundo retrocede para ponderar o terreno já conquistado. Regressa à
degrau no ciclo dos saberes. De facto, por ela a razão conhece- consideração do som que se integra no universo sensível, já
-se a si própria, pondera quanto vale, descobre o seu verdadeiro dominado nos anteriores saberes. Deste modo, entregando o
poder. Por isso o objecto próprio da dialéctica não é já qual- registo do som aos sentidos, a razão fica disponível para ana-
quer realidade sensível mas "ª própria maquinaria e equipa- lisar o significado daquele, definindo o ritmo e a proporçã 0 144.
mento da razão»: os meios de que se serve no exercício da sua O resultado desta tarefa é a geração da música, disciplina que,
actividade que é o ensino. Só a dialéctica pode e sabe como partindo do interior da própria percepção sensível, permite
fazer homens sábios, porque nela a razão conhece o modo pró- ascender dos sons à razão inteligível da harmonia, residindo
prio de se exercitar na produção do saber141 . · esta na proporção estabelecida entre aqueles. No excurso so-
A retórica, que complementa a dialéctica, viu-se necessária bre as artes, a música encerra, ainda, uma outra virtualidade
pela ignorância dos homens. Na verdade, o estado de estultí- da razão, uma vez que congrega em si a contemplação do eter-
cia e de indisciplina em que se encontram aqueles a quem se no - o número, causa da proporção - e a condição pretérita
dirige a dialéctica não lhes permite aderir à verdade proposta do som. Deste modo ela estabelece a união entre a eternidade
por esta arte sem que ela lhes seja apresentada de modo grato, (atribuída ao pai dos deuses, Júpiter) e o tempo (confiado à
através de um uso apurado da eloquência. Esta última tarefa deusa Memória), permitindo compreender de modo privilegia-
foi confiada pela razão à retórica, «mais por necessidade do do que a natureza da ordem consiste na relação entre a Uni-
que pela pureza,,142 . Consequência da debilidade da mente dos dade eterna de Deus e a multiplicidade dos seres, esta última
ouvintes, o efeito da retórica não é catártico, como o será o da difundida no tempo 145 . Ora o que permitira à razão estabele-
música ou da geometria, mas meramente sedutor, tendo por cer proporções no âmago da sonoridade sensível - na qual se
integra o próprio discurso e, com ele, a primeira trilogia das
reparar continuamente a Licêncio ao longo do Diál. Ord. Todavia, a poesia,
a gramática, a música, consideradas formalmente enquanto disciplinas, são
143 Cf. Diál. Ord., II, 11, 31.
instrumento privilegiado para uma propedêutica de ascese da alma ao Uno.
14 0 Cf. Diál. Ord., II, 13, 38. , ~44 Cf. Diál. Ord., II, i4, 39. Recorde-se que o Diálogo em questão emerge
141 Hadot comenta com acerto o motivo pelo qual a dialéctica assume precisamente da admiração ante uma realidade audível: a alteração do som
lugar central no ciclo agostiniano das artes: «[ ... ] la constitution de la dia- do curso das águas. Agostinho interroga-se sobre a realidade de que esse
lectique se présente comme le résultat d'une réflexion de la Raison sur elle- facto é sinal, enquanto para Licêncio nada há nele de insólito.
145
-même, sur ses instruments et ses moyens. La dialectique correspond dane Cf. Diál. Ord., II, 14, 41. Agostinho confere grande importância à
à l'activité de la pure Raison sans la participation des sens. [... ] C'est dane música no ciclo das artes. Essa disciplina, que concerne o ritmo do som e a
la dialectique qui, par sa méthode purement rationelle, assure le caractere que o filósofo consagrará todo um tratado, identifica-se, na prática, com a
scientiphique des autres sciences ou disciplinae)> (1. Hadot, Arts libéraux et poesia, cuja análise se submete aos gramáticos. Sendo o número a essência
philosophie dans la pensée antique, Paris, 1984, pp. 115-116). da música, uma vez mais se reforça a convicção segundo a qual o número
142 Diál. Ord., II, 13, 38. é reitor em todas as disciplinas.

74 75
artes - fora a quantidade numérica, motivo pelo qual os nú- universo de problemas cujo esclarecimento se confia ao homem
meros se tornam, desde este quarto degrau da razão, a um instruído, entre os quais se inclui a questão central do Diá-
tempo, a meta a atingir pelo saber e a razão que o unific~; logo: o desafio feito à razão para que entenda o modo como se
Uma vez explorados os recursos dos ouvidos e tendo-os Jª conjugam a bondade e a omnipotência divinas com a existên-
submetido ao seu domínio através da construção das discipli- cia do mal 148 . Contudo, para Agostinho a coluna dorsal do
nas correspondentes, a razão empenha-se em prosseguir para homem erudito forja-se numa dupla ciência: a de bem discutir
as virtualidades da visão. Também aí, ao considerar a beleza ou a da potência dos números. Na essência, uma de ambas
do céu e da terra, ela se fixará na proporção das figuras e basta à erudição de um ser humano, uma vez que as duas
formas e estabelecerá o confronto entre o universo inteligível convergem na simplicidade de uma única noção: a Verdade.
que ela contempla com a mente e aquele outro, sensível, do Ora a sabedoria incide precisamente sobre essa noção Una.
qual partira, ao atender àquilo que o órgão físico da visão regis- Sendo o Uno o objecto da filosofia, o limite do percurso das
tara. Considerada a pureza, a harmonia e a perfeição do pri- disciplinas confina com o início da filosofia 149. No término desta
meiro, opta por se fixar nele, ao concluir que aquilo que a exposição sobre as disciplinas, Agostinho conclui que a erudi-
mente contempla é melhor do que tudo o que se possa ver com ção e a filosofia coincidem no objecto: a busca do Uno simples.
os olhos do corpo. Deste modo, optando pelas formas inteligí- Contudo, divergem no modo como a razão se exerce para o
veis, a razão mais não faz do que agir de acordo consigo mesma. alcançar.
Distinguindo as linhas e o equilíbrio das formas, a razão
gerou a geometria. Aplicando esta distinção ao movimento do
céu, deu à luz a astronomia, sendo esta também uma arte 3.3.2 - O amor à sabedoria
sublime e um excelente meio para elucidar a natureza da or-
dem. Na verdade, esta disciplina estabelece a relação entre a Na busca do Uno, seu objecto próprio, a razão ocupa-se de
imutabilidade da forma geométrica e o movimento dos astros 146 . uma dupla questão - investigar a natureza de Deus e da alma.
Exercitando ainda o seu poder analítico, a razão fixou-se no O produto desta pesquisa é a filosofia. Definida como amor à
que encontrara de comum na realidade audível e visível e lhe sabedoria, a filosofia diverge claramente dos saberes ou artes
permitira formar as três disciplinas que partem da realidade porque nela a razão exerce não tanto o seu poder de discernir
sensível. Identificou o número, pois verificara que a proporção e analisar quanto o seu carácter unitivo.
do ritmo ou da figura, causa da harmonia, mais não era do O exame que a alma faz de si mesma no exercício da acti-
que o efeito de uma disposição numérica 147 . A razão conside- vidade filosófica levá-la-á a concluir que aquilo que a razão
rou então que poderia mostrar qual a natureza da alma, pro- busca é sempre o Uno. Na verdade, separar e unir. são os ac-
gredindo até provar a sua imortalidade. Deste modo, é a disci- tos da razão quando gera o saber, mas o que ela conhece so-
plina que se ocupa do número - uma vez que incide sobre a bre si própria no exercício da aprendizagem é a convergência
causa de toda a ordem ou harmonia da razão e antevê a imor- destas duas actividades, aparentemente opostas, numa só1so.
talidade da alma - a que recolhe, já sem mediações, o uni- Assim, quando produz as artes, a razão reconhece a sua acti-
verso de problemas que dizem respeito à instrução. vidade analítica. Ao conhecer progressivamente as realidades
Uma vez alcançada a aritmologia, Agostinho considera o ser que foi identificando como razoáveis, a razão separa delas o
humano apto para que se lhe atribua o nome digníssimo de que nelas diverge da natureza do Uno. Constrói, assim, um
erudito. O mestre de Cassicíaco passa a enunciar o infindo
148
Cf. Diál. Ord., II, 17, 46.
Cf. Diál. Ord., 15, 42. 149
146 Cf. Diál. Ord., II, 18, 47.
Cf. Diál. Ord., 15, 43. 150
147 Diál. Ord., II, 18, 48.

76 77
universo de realidades inteligíveis, onde se conjugam harmo- definindo-a como específica da alma racional e modelo da acti-
nicamente o racional e o razoável. Inversamente, quando con- vidade filosófica. Com efeito, organizar o real de acordo com
grega todos os saberes numa única ·noção, reconduzindo-os à uma proporção é comum aos animais e ao homem. Mas só o
perfeição da harmonia gerada pela proporção do Número, a ser humano pode reconhecer a razão da harmonia e superar o
razão persegue a integridade do Uno, procurando captá-lo na plano puramente técnico da produção ou execução de realida-
des harmónicas 152 .
sua perfeição própria.
Separando ou unindo, há na razão um desiderato funda- Este poder de conhecer a ordem ou medida das coisas é
mental: ela quer o Uno, ama o Uno, porque busca aquela rea- atribuído por Agostinho à natural racionalidade da alma hu-
lidade que é condição da sua própria subsistência. Percorren- mana. O reconhecimento da harmonia é aprendido com a mes-
do todos os níveis de realidade, Agostinho ilustra o modo como ma naturalidade do que a fala 153 , de tal modo que se pode
a unidade é imprescindível à subsistência de cada coisa. Re- empregar aquela sem conhecer a força da qual emerge, igno-
correndo a exemplos retirados de cada um dos graus de ser, rando, portanto, a racionalidade que lhe subjaz. Esta é a situa-
fazendo convergir, de modo intuitivo, a natureza hierárquica ção dos homens estultos 154 e o Hiponense considera que a condi-
do real com a procura da sua fonte unitária, Agostinho mos- ção deles não deixa de ser paradoxal: "[ ... ] esforçando-se por
tra que toda a realidade sobrevive pela coesão interna dos ele- agir racionalmente mesmo nas coisas falaciosas, ignoram abso-
mentos que a constituem. lutamente o que é e como é a própria razão. Parece surpreen-
Nos exemplos recolhidos pelo Hiponense, a unidade não se dente mas de facto a realidade é esta,,155. Ora só quando o
emprega em sentido unívoco. Com efeito, aquela que se mani- homem identifica a razão - causa final da harmonia de todo o
festa na pedra, na árvore ou no animal significa a exacta pro- ser e de todo o agir e cuja presença na alma define a natureza
porção dos membros, ou seja, a integridade de um corpo pela humana -, só então se poderá dizer que o ser humano se ante-
qual ele se pode identificar como um indivíduo determinado. põe aos animais. Dotado de uma força que transcende a desin-
Por sua vez, a unidade é entendida, já na relação de amizade, tegração dos membros, própria da morte corporal, é necessário
como o efeito de uma força espiritual: o desejo de união entre concluir que, naquilo que tem de racional, o homem é imortal.
os amigos. A amizade sustenta-se - tal como a coesão de um Como justificar, então, a consagrada definição dos sábios,
povo, cidade ou exército - porque se verifica, entre os indiví- segundo a qual o homem é um animal racional mortal? Na
duos implicados nessas relações, um único sentir, uma finali- verdade, a razão, no exercício próprio da actividade amorosa
dade comum, um objecto intencional único, em função do qual em que consiste a filosofia entendida como forma de saber
se congrega e forma uma só realidade. Agostinho encontra na unitivo, separa do Uno o que não é próprio dele e conclui: «se
união dos corpos dos que se amam o exemplo que melhor ilus- a razão é imortal e eu, que separo ou reúno todas estas coisas,
tra este sentido da unidade. Com efeito, é a intenção de um sou racional, aquilo pelo qual me chamo mortal não é meu».
mesmo fim, o desejo de fusão num só, que move à cópula os Ora a imortalidade da razão pode verificar-se pela imutabili-
que se relacionam corporalmente. Esta mesma é a definição dade das proporções numéricas que a alma contempla como
de amor: fazer-se um só com a realidade amada 151. Similar há- sempre verdadeiras, mesmo quando as confronta com a infini-
-de ser a identificação da razão com a Sabedoria, para que, no
plano da unidade inteligível - portanto, mais sublime - se 152 Cf. Diál. Ord., II, 19, 49.
153 Por isso a gramática, ciência que recolhe o uso natural da lingua-
possa falar de filosofia.
Destas duas formas de união - a individuação e a conver- gem, é a primeira na ascese das artes, uma vez que ela recolhe o uso na-
tural da razão.
gência num único fim - o filósofo atribui primazia à segunda, 154 Diál. Ord., II, 19, 49: «Isto desconhece-o o indouto mas fá-lo traba-
lhando a natureza.» ' '
155 Diál. Ord., II, 11, 30.
1s1 Cf. Diál. Ord., II, 18, 48.

79
78
ta mutabilidade da matéria. Assim, torna-se necessário consi- próprio, resolvendo a questão sobre qual seja 0 seu modo de
derar que a alma é uma realidade difere/J,te desta razão que o relação com o divino.
ser humano contempla como elemento constituinte da sua vida. E~cla~ecido este intuito, duas conclusões são necessárias.
A alma é, por conseguinte, inferior à razão, pois existem ou- A primeira, de foro teórico, evita ao filósofo as perplexidades
tras formas de vida incapazes de descodificar a significação do que advêrr_i à me'.1te pela consideração da aparente contradição
real. A vida anímica é comum aos animais e ao homem e nes- ante a umversahdade da ordem e a existência do mal. Vendo
ta medida este será, porventura, como aqueles, morta1iss. Con- todas as realidades à luz da convergência no Uno, nenhuma
tudo, cabe à alma a possibilidade de se imortalizar, se a razão da~ parcelas_ surgirá desajustada. A segunda, de foro prático,
aderir àquilo que nela existe de melhor: a forma imutável. exige do sáb10 uma conduta conforme à harmonia que contem-
Uma vez mais é uma razão de ordem que garantirá a asce- pla. Com· efeito, verificando o concurso da ordem universal tanto
se da alma ao Uno. A sabedoria, tendo elevado a alma a este na natureza física .como nos assuntos dos homens, só 0 sábio
nível de conhecimento, exigirá que se exerça a ordem do agir. terá valor para resistir aos escolhos e tempestades da vida com
Com efeito, para Agostinho, o homem que se dedicou às disci- a fortaleza própria do rochedo. A luz do conselho de Pitágoras
plinas liberais tenderá a agir razoavelmente, isto é, de acordo o Diálogo encerra com a sentença do mestre: a prática da filo~
com aquilo que nele há de melhor, procurando unir-se à razão sofia, porque integra uma visão de conjunto, é inseparável da
imortal. O filósofo sublinha, a este propósito, o carácter con- fortaleza ante as contrariedades da vida e os paradoxos da
traditório da sabedoria de um homem que, afirmando-se douto razão. Só assim o ser humano estará apto para exercitar qual-
por ser um bom técnico, capaz de produzir harmonicamente quer, tarefa de gov~r~ação. Na verdade, a arte de bem gover-
um conjunto de realidades - a boa métrica do seu verso ou a nar ~ um modo pr'.v~legiado de se assemelhar ao divino, pois ·
consonância da sua cítara-, não repara na desordem cujo consiste numa participação directa na providência universaJ158.
efeito é a desintegração do seu próprio ser, abandonada a alma
racional ao domínio do corpo mortali57. A sabedoria consiste,
para Agostinho, nesta harmonia entre a razão, a alma e o
corpo, efeito do exercício de todas as qualidades, intelectuais e
morais.
A proposta agostiniana para a filosofia distancia-se, de modo
patente, de um edifício fundado numa aglomeração de sabe-
res. Ainda que o percurso pelas disciplinas liberais possa re-
velar-se uma boa metodologia para exercitar a alma no discer-
nimento entre o sensível e o inteligível, a finalidade das
disciplinas é clara: permitir que o ser humano se conheça a si

156 Esta dificuldade de explicar a relação entre a ratio e o animus per-


manecerá para Agostinho. Distinguindo a alma e a razão, o filósofo neces-
sitará de demonstrar a imortalidade daquela, pois não basta a consideração
da presença de uma razão universal na alma para garantir a perenidade
desta última. Ao mesmo tempo, sem esta garantia, o desejo de felicidade e
a busca da sabedoria tornam-se um absurdo existencial. Importa a Agosti-
nho conseguir uma explicação para a individualidade da alma, mas a pere-
ne inquietação do filósofo versará sobre a origem das almas.
158
1s1 Diál. Ord., II, 19, 50. Cf. Diál. Ord., II, 20, 54.

80 81
II

DIÁLOGO SOBRE A ORDEM

TEXTO E TRADUÇÃO
LIVRO I
LIBER PRIMVS LIVRO I

I, 1. Ordinem rerum, Zenobi, cum sequi ac tenere cuique I, 1. Seguir e observar a ordem das coisas, Zenóbio, a que
proprium, tum uero uniuersitatis, quo coercetur hic mundus é própria de cada um, e ver e tornar clara a que respeita ao
et regitur, uel uidere uel pandere difficillimum hominibus at- conjunto, que contém este mundo e o governa, é muitíssimo
que rarissimum est. Huc accedit quod, etiamsi quis haec pos- difícil e raro para os homens.
sit, non illud quoque ualet efficere, ut dignum auditorem tam A isso se acrescenta o facto de que, mesmo que possa ha-
diuinis obscurisque rebus uel uitae merito uel habitu quodam ver quem o faça, não conseguirá encontrar um ouvinte que,
eruditionis inueniat. Nec tamen quicquam est, quod magis p~lo mérito da vida e por um certo hábito de erudição, seja
auide expetant quaeque optima ingenia magisque audire ac digno de assuntos tão divinos e obscuros.
discere studeant, qui scopulos uitae huius et procellas uelut E, no entanto, não há nada que as pessoas mais dotadas
erecto, quantum licet, capite inspiciunt, quam quomodo fiat, se empenhem com maior avidez em ouvir e aprender - tal
ut et Deus humana curet et tanta in humanis rebus peruersi- como aqueles que observam os escolhos e as tempestades des-
tas usque quaque diffusa sit, ut non diuinae sed ne seruili ta vida tanto quanto possível de cabeça erguida - do que 0
quidem cuipiam procurationi, si ei tanta potestas daretur, tri- modo como acontece que, tomando Deus o cuidado das coisas
buenda esse uideatur. Quamobrem illud quasi necessarium his humanas, haja tanta perversidade nos assuntos dos homens
quibus talia curae sunt, credendum dimittitur, aut diuinam espalhada a tal ponto que não parece dever atribuir-se à admi'.
prouidentiam non usque in haec ultima et ima pertendi aut nistração divina, nem mesmo à de um escravo, se lhe fosse dado
certe mala omnia Dei uoluntate committi; utrumque impium, um tão grande poder.
sed magis posterius. Quamquam enim desertum Deo quicquam Por isso é admissível que aqueles que estão atentos a estas
coisas sejam necessariamente levados a acreditar que a provi-
dência divina não chega a· estes pormenores mais recônditos e
ínfimos, ou que, certamente, todos os males derivam da von-
tade de Deus.
As duas coisas são ímpias, mas mais a última.

86 87
credere cum imperitissimum, tum etiam periculosissimum ani- Com efeito, ainda que seja para o espírito1 uma extrema
mo sit, tamen in ipsis hominibus nemo quemquam non potuisse ignorância, e até mesmo um enorme perigo, acreditar que há
aliquid criminatus est. N eglegentiae uero uituperatio multo est alguma coisa abandonada por Deus, contudo, entre os próprios
quam malitiae crudelitatisque purgatior. Itaque uelut compel- homens, ninguém é incriminado por não ter sido capaz de fa-
litur ratio tenere non immemor pietatis aut ista terrena non zer alguma coisa: realmente, a censura da negligência é muito
posse a diuinis administrari aut neglegi atque contemni po- mais indulgente do que a da malícia e crueldade. E é assim
tius quam gubernari, ut omnis de Deo sit mitis atque incul- que a razão - quando não esquece a piedade - é como que
panda conquestio. levada a pensar que as coisas terrenas não podem ser admi-
nistradas pelo divino ou que elas são negligenciadas e despre-
zadas, mais do que governadas, de tal maneira que toda a
queixa acerca de Deus seja indulgente e inculpável.

2. Sed quis tam caecus est mente, ut quicquam in mouen- 2. Mas quem será tão cego de mente que hesite em atri-
dis corporibus rationis, quod praeter humanam dispositionem buir ao poder e à administração divina toda aquela ordem que,
ac uoluntatem est, diuinae potentiae moderationique dare dubi- no que se refere ao movimento dos corpos, escapa à disposição
tet, nisi forte aut casibus tam rata subtilique dimensione uel e à vontade do homem? A menos que seja por circunstâncias
minutissimorum quorumque animalium membra figurantur fortuitas que os membros de todos os animais, mesmo dos mais
aut, quod casu quis negat, possit nisi ratione factum fateri aut pequeninos, estão configurados de modo tão exacto e subtil· ou
que, quem negue o acaso, possa confessar que tal tenha sido'
uero per uniuersam naturam, quod in singulis quibusque re-
bus, nihil arte humana satagente, ordinatum miramur, alie- feito a não ser pela razão; ou que, aquilo que realmente nos
nare a secretíssimo maiestatis arbítrio ullis nugis uanae opi- causa admiração pelo modo como está ordenado em cada coisa
nionis audebimus? At enim hoc ipsum est plenius quaestionum, particular sem nenhuma intervenção da arte humana, se sub-
quod membra pulicis disposita mire atque distincta sunt, cum traia, no conjunto da natureza, ao secretíssimo arbítrio da au-
interea humana uita innumerabilium perturbationum incon- toridade divina, como ouvimos dizer a algumas opiniões frívo-
stantia uersetur et fluctuet. Sed hoc pacto, si quis tam minu- las e vãs. E isto põe ainda mais problemas porque, na verdade,
tum cerneret, ut in uermiculato pauimento nihil ultra unius os membros de uma pulga estão dispostos e distribuídos admi-
tesserae modulum acies eius ualeret ambire, uituperaret arti- ravelmente enquanto a vida humana decorre e flutua na incons-
ficem uelut ordinationis et compositionis ignarum eo, quod tância das suas inumeráveis perturbações.
uarietatem lapillorum perturbatam putaret, a quo illa emble- E assim, se alguém tivesse um discernimento tão estreito
mata in unius pulchritudinis faciem congruentia simul cerni que, num pavimento de mosaico, não pudesse abranger com 0
conlustrarique non possent. Nihil enim aliud minus eruditis olhar nada mais do que a superfície de uma só peça, acusaria
hominibus accidit, qui uniuersam rerum coaptationem atque o artífice de ignorar a ordem e a composição; e, por isso, pen-
saria que a variedade das pedras estava alterada, razão pela
qual aquelas pedras embutidas não poderiam ser contempla-
das em conjunto e fazer brilhar a figura, pela concordância,
numa beleza única.
Com efeito, nenhuma outra coisa acontece aos homens muito
falhas de erudição. Não sendo capazes de considerar e contem-

1
V. nota complementar 1, <<Anima, animus, spiritus».

88 89
concentum imbecilla mente complecti et considerare non ua- plar a concordância universal das coisas, pela debilidade da
lentes, si quid eos offenderit, quia suae . cogitationi magnum mente, se alguma coisa os choca porque é difícil para o seu
est, magnam rebus putant inhaerere foeditatem. conhecimento, pensam que inere nas coisas uma grande dis-
formidade.

3. Cuius erroris maxima causa est, quod homo sibi ipse est 3. A razão principal deste erro é que o homem é para si (
incognitus. Qui tamen ut se noscat, magna opus habet consu- mesmo um desconhecido. Contudo, para que este se conheça, (
etudine recedendi a sensibus et animum in se ipsum conligen- há-de dar-se ao trabalho, com grande persistência, de se afastar
di atque in se ipso retinendi. Quod hi tantum adsequuntur, dos sentidos, de recolher o espírito para si mesmo e de o conser-
qui plagas quasdam opinionum, quas uitae cotidianae cursus var em si próprio. A um tal ponto só chegam os que se retiram
infligit, aut solitudine inurunt aut liberalibus medicant disci- para a solidão ou os que, pelas artes liberais, curam umas certas
plinis. chagas das opiniões que o decurso da vida quotidiana inflige.

II. Ita enim sibi animus redditus, quae sit pulchritudo II. Deste modo, o espírito recolhido em si mesmo entende o
uniuersitatis, intellegit, quae profecto ab uno cognominata est que é a beleza do universo, que seguramente se chama assim
idcircoque illam uidere non licet animae, quae in multa proce- a partir da palavra unum. E por isso mesmo, à alma que avan-
dit sectaturque auiditate pauperiem, quam nescit sola segre- çou para o múltiplo, não lhe é permitido vê-la. Sofregamente,
gatione multitudinis posse uitari. Multitudinem autem non ela vai no encalço da indigência que ignora que só se pode evi-
hominum dica, sed omnium quae sensus adtingit. Nec mirere tar afastando-se da multidão. Falo não da multidão dos homens
quod eo egestatem patitur magis, quo magis adpetit plura com- mas de tudo aquilo que os sentidos captam. Nem é de admi-
plecti. Vt enim in circulo quamtum uis amplo unum est me- rar que, quanto mais coisas queira abarcar, maior miséria sofra
dium, quo cuncta conuergunt, quod centron geometrae uocant, por isso.
et quamuis totius ambitus partes innumerabiliter secari que- Com efeito, tal como num círculo, seja qual for a sua am-
ant, nihil tamen est praeter illud unum, quo cetera pariliter plitude, há um único ponto médio para o qual todas as coisas
dimetiantur et quod omnibus quasi quodam aequalitatis iure convergem (a que os geómetras chamam centro), embora as
dominetur, hinc uero in quamlibet partem si egredi uelis, eo partes de todo o contorno possam dividir-se inumeravelmente,
amittuntur omnia, quo in plurima pergitur, sic animus a se contudo nada está fora daquele ponto único, pelo qual todas
ipso fusus immensitate quadam diuerberatur et uera mendici- as outras partes são medidas de igual modo, e que domina
tate conteritur, cum eum natura sua cogit ubique unum quae- todas com uma certa igualdade de direito; e, de facto, se qui-
rere et multitude inuenire non sinit. sermos partir dali para qualquer parte, tudo se perde, na
medida em que se dirige para o múltiplo; do mesmo modo, o
espírito, disperso de si próprio, desgarra-se numa espécie de
imensidade e consome-se numa verdadeira penúria, uma vez /
que a sua natureza o obriga a procurar o uno onde quer que 1
seja, e o múltiplo não permite que o encontre.

4. Sed et haec, quae dixi, qualia sint et quae causa extet 4. Meu Zenóbio, compreenderás certamente qual o valor das ·[
erroris animarum quoque modo et in unum congruant atque coisas que disse, e qual a causa do erro das almas; de que
perfecta sint cuncta et tamen peccata fugienda sint, adseque- modo todas as coisas concorrem para o uno e são perfeitas e,
ris profecto, mi Zenobi; sic enim mihi notum est ingenium tuum contudo, como devemos evitar os pecados.

90 91
et pulchritudinis omnimodae amator animus sine libidinis Na verdade, eu reconheço o teu talento, assim como 0 modo
immoderatione atque sordibus; quod signum in te futurae sa- como o teu espírito ama a beleza que há em todas as coisas ,
pientiae perniciosis cupiditatibus diuino iure praescribit, ne sem exorbitância nas paixões e sem vícios. Isto, que é em ti sinal
tuam causam deseras falsis uoluptatibus inlectus, qua prae- de futura sabedoria, exige, por direito divino e tendo em conta
uaricatione nihil turpius et periculosius inueniri potest. Adse- os maus desejos, que não abandones a tua causa pela escolha
queris ergo ista, mihi crede, cum eruditioni operam dederis, de falsos prazeres, pois não pode haver prevaricação mais torpe
qua purgatur et excolitur animus nullo modo ante idoneus, cui e perigosa do que essa. Hás-de conseguir ganhá-la, acredita-me,
diuina semina committantur. Quod totum cuius modi sit et quando te dedicares ao trabalho da erudição, pelo qual a alma
quem flagitet ordinem quidue studiosis et bonis ratio promit- é purificada e cuidadosamente cultivada. Antes, de nenhum
tat qualemque uitam nos uiuamus, carissimi tui, et quem fruc- modo é idónea para que se lhe confiem as sementes divinas.
tum de liberali otio carpamus, hi te libri satis, ut opinor, edo- Qual o modo de ser desta questão, qual a ordem que ela
cebunt nomine tuo nobis quam nostra elaboratione dulciores, exige, o que a razão promete aos homens estudiosos e bons a
praesertim, si te in ipsum ordinem, de quo ad te scribo, me- vida que nós, teus grandes amigos, levamos, e os frutos que '
liora eligens inserere atque coaptare uolueris. colhemos deste ócio em liberdade: estes livros, mais queridos
para nós pelo teu nome do que pelo nosso trabalho, devem
ensinar-te estas coisas de maneira satisfatória, segundo creio,
sobretudo se te quiseres - escolhendo o melhor - ajustar e in-
serir na própria ordem, acerca da qual te escrevo.

5. Nam cum· stomachi dolor scholam me deserere coegisset, 5. Assim, uma vez que uma dor de estômago2 me forçara a
qui iam, ut seis, etiam sine. ulla tali necessitate in philosophi- abandonar o ensino, eu que, como sabes, já costumava refugiar-
am confugere moliebar, statim me contuli ad uillam familia- -me na filosofia mesmo sem ser induzido por aquela necessi-
rissimi nostri Verecundi. Quid dicam, eo libente? N osti optime dade, retirei-me de imediato para a quinta do nosso queridíssi-
hominis cum in omnes tum uero in nos beniuolentiam singu- mo amigo Verecundo.
larem. lbi disserebanius inter nos, quaecumque uidebantur Que direi que seja do seu agrado? Conheces perfeitamente
utilia, adhibito sane stilo, quo cuncta' exciperentur, quod uide- a sua singular benevolência para com todos, mas sobretudo
bam conducere ualetudini meae. Cum enim nonnulla loquendi para connosco.
cura detinerer, nulla inter disputandum inrepebat immoderata Aí discutíamos entre nós todas as coisas que nos pareciam
contentio, simul etiam, ut si quid nostrum litteris mandare ú~eis, nã.o sem pôr por escrito tudo o que ia sendo dito, porque
placuisset, nec aliter dicendi necessitas nec labor recordatio- via que isso faria bem à minha saúde. Como tinha de ter al-
nis esset. Agebant autem ista mecum Alypius et Nauigius, gum cuidado no falar, nenhuma contenda excessiva se levan-
tava sub-repticiamente durante a discussão. E também, ao mes-
mo tempo, para que, se fosse do agrado pôr por escrito alguma
das nossas coisas, não fosse necessário dizê-las de outro modo
nem fazer um esforço de memória.

2
Santo Agostinho lamenta frequentemente a sua fragilidade física. Em
~onf, 9, 2, 4, re~ere os efeitos do desgaste da profissão, o ensino da retó~
nca: dores de peito e afonia. A mesma referência a uma dor de peito em
CA, 1, 1, 3, e em BV, 1, 4.

92 93
frater meus, et Licentius repente admirabiliter poeticae dedi- Estas discussões tinham-nas comigo Alípio, Navígio, meu
tus; Trygetium item nobis militia reddiderat, qui, tamquam irmão, e Licêncio, que repentinamente se dedicou à poesia de
ueteranus adamauit historiam; et iam in libris nonnihil habe- modo admirável. O exército também nos devolvera Trigécio que,
bamus. como veterano, ficou com gosto pela historiografia. E também
tínhamos bastantes coisas nos livros.

III, 6. Sed nocte quadam, cum euigilassem de more mecum- III, 6. Mas certa noite, estando acordado como de costume
que ipse tacitus agitarem, quae in mentem nescio unde ueni- e pensando comigo mesmo, em silêncio, acerca das coisas que
ebant; nam id mihi amare inueniendi ueri iam in consuetudi- me vinham à mente sem saber de onde: de facto, este meu
nem uerterat, ut aut primam, si tales curae inerant, aut certe amor por encontrar a verdade tinha-se tornado para mim já
ultimam, dimidiam tamen fere noctis partem peruigil quodcum- um hábito, de tal modo que, se eu tinha dentro de mim tais
que cogitarem, nec me patiebar adulescentium lucubrationibus preocupações, ou passava acordado a primeira parte da noite
a me ipso auocari, quia et illi per totum diem tantum age- ou então, certamente, a última, ocupando pelo menos metade
bant, ut nimium mihi uideretur, si aliquid etiam noctium in da noite em vigília, a pensar no que quer que fosse; e não con-
studiorum laborem usurparent, et id a me ipsi quoque prae- sentia que me afastassem de mim próprio as elucubrações dos
ceptum habebant, ut aliquid et praeter codices secum agerent jovens, porque eles trabalhavam tanto durante todo o dia que
et apud sese habitare consuefacerent animum. Ergo, ut dixi, me parecia excessivo que a ocupação dos estudos lhes usur-
uigilabam, cum ecce aquae sonus pane balneas, quae praeter- passe também alguma parte da noite; eles próprios tinham de
fluebat, eduxit me in aures et animaduersus est solito adten- mim esta indicação, de que fizessem por si mesmos alguma
tius. Mirum admodum mihi uidebatur, quod nunc clarius nunc coisa para além da leitura dos livros e habituassem o espírito
pressius eadem aqua strepebat silicibus inruens. Coepi a me a morar na sua própria casa. Portanto, como eu disse, estava
quaerere quaenam causa esset. Fateor, nihil occurrebat, cum acordado; eis que o som da água que corria junto aos banhos
Licentius lecto suo importunas percusso iuxta ligno sorices veio ao encontro dos meus ouvidos e chamou-me mais a aten-
terruit seseque uigilantem hoc modo indicauit. Cui ego: Ani- ção que de costume. Tornou-se para mim motivo de admiração
maduertisti, inquam, Licenti (nam uideo tibi Musam tuam porque a mesma água, correndo sobre as pedras, ressoava ora
lumen ad lucubrandum accendisse), quomodo canalis iste in- com mais nitidez ora mais abafada.
constanter sonet? - Iam, inquit, mihi hoc non est nouum. Nam Comecei a perguntar a mim próprio qual seria a causa.
desiderio serenitatis cum expergefactus aliquando aurem ad- Confesso, nada me ocorria, quando Licêncio afugentou uns ratos
importunas, batendo na sua cama com um pau, mostrando,
deste modo, que também ele estava acordado.
Digo-lhe eu:
- Licêncio, já reparaste - pois já vejo que a tua musa te
iluminou para que trabalhasses de noite 3 - como se ouve cor-
rer este canal de modo inconstante?
- Já - disse ele. - Isso para mim não é estranho. Com
efeito, um dia, tendo despertado e desejando o bom tempo,

3 Cf. Retract., !, 3, 2 (CCL 57, p. 12). O filósofo lamenta as referências


feitas às Musas neste Diálogo tratando-as como divindades, embora afirme
que o tivesse feito de maneira jocosa.

94 95
mouissem, ne imber ingrueret, hoc agebat aqua ista quod aguçara o ouvido, não fosse vir um aguaceiro. E a água fazia
nunc. -Adprobauit Trygetius. Nam et ipse in eodem conclaui 0 mesmo que agora.
lecto suo cubans uigilabat, nobis nescientibus; erant enim te-· Trigécio concordou também. Na verdade, ele próprio estava
nebrae, quod in Italia etiam pecuniosis prope necesse est. acordado, no mesmo quarto, deitado na sua cama, sem nós
sabermos. De facto, estávamos às escuras, o que, em Itália,
mesmo para os ricos, é quase uma necessidade.
7. Ergo ubi uidi scholam nostram, quantacumque aderat 7. Então, quando eu vi o nosso grupo de alunos - pelo me-
(nam et Alypius et Nauigius in urbem ierant) etiam illis horis nos todo o que estava presente (na verdade, Alípio e N avígio
non sopitam et me cursus ille aquarum aliquid de se dicere tinham ido à cidade) - ainda por adormecer àquelas horas, e
admonebat: Quidnam uobis, inquam, uidetur esse causae, quod uma vez que, de facto, aquele curso das águas me instava a
sic alternat hic sonus? Non enim quemquam putamus his ho- dizer alguma coisa sobre ele, perguntei:
ris uel transitu uel re aliqua lauanda totiens illum meatum - Qual vos parece ser a causa de que este som se alterne
interpellare. - Quid putas, inquit Licentius, nisi alicubi folia assim? Porque, na verdade, não pensamos que a estas horas
cuiuscemodi, quae autumno perpetuo copioseque decidunt, haja alguém que, ao atravessar ou lavando alguma coisa, in-
angustiis canalis intertrusa euinci aliquando atque cedere, ubi terrompa tantas vezes aquele curso.
autem unda, quae urgebat, pertransierit, rursum colligi atque - Que pensas tu que é - disse Licêncio - senão folhas
stipari aut aliquid aliud uario casu foliorum natantium fieri, metidas nalgum sítio obstruindo o canal - como aquelas que,
quod ad illum fluxum nunc refrenandum nunc emittendum no Outono, caem continuamente e em abundância - que, a
similiter ualeat? - Visum est mihi probabile aliud non habenti certa altura, são vencidas e cedem, deixando, então, passar a
confessusque sum laudans ingenium eius nihil me inuenisse, água que estava retida e, depois, novamente, se juntam e
cum diu quaesissem, cur ita esset. acumulam? Ou então acontece alguma outra coisa pela queda
fortuita das folhas que flutuam que contribui igualmente para
que aquele fluxo ora se entrave ora se acelere.
Pareceu-me provável, não tendo encontrado outro motivo, e
confesso que, louvando o seu talento, nada mais me ocorrera,
ainda que tivesse procurado durante bastante tempo por que
motivo aquilo seria assim.

8. Tum; interposito modico silentio: Merito, inquam, tu nihil 8. Então, passado algum tempo de silêncio, eu disse:
mirabaris et apud Calliopam te intus tenebas. - Merito, in- - Com razão tu de nada te admiravas e conservavas o teu
quit, ille, sed modo plane dedisti mihi magnum mirari. - Quid- íntimo junto de Calíope.
nam hoc est?, inquam. - Quod tu, inquit, ista miratus· es. - - De facto, era com razão - disse ele. - Mas tu também
Vnde enim solet, inquam, oboriri admiratio aut quae huius me deste, de modo evidente, um grande motivo de admiração.
uitii mater est nisi res insolita praeter manifestum causarum - Que motivo é esse? - perguntei.
- Que te tenhas admirado com essas coisas - disse ele.
- Com efeito, onde é que a admiração costuma ter ori-
gem - ou qual a mãe deste vício 4 - a não ser no facto de que

4 Cf. Retract., I, 3, 2 (CCL 57, p. 12). O filósofo retracta-se de ter con-

siderado este espanto como um vício.

96 97
ordinem? - Et ille: Praeter manifestum, inquit, acc1p10; nam uma coisa insólita esteja fora da ordem manifesta das cau-
praeter ordinem nihil mihi fieri uidetur. Hic ego erectior spe sas? - disse eu.
alacriore quam soleo esse, cum aliquid ab his requiro, quod - Fora da ordem manifesta - disse ele - aceito. Na ver-
rem tantam et tam subito heri paene ad ista conuersus adu- dade, não me parece que nada se faça fora da ordem.
lescentis animus concepisset, nulla unquam de his rebus inter Neste momento ergui-me por uma esperança mais viva do
nos antea quaestione agitata: Bene, inquam, bene, sed pror- que é meu costume quando os interrogo acerca de alguma coi-
sus bene multum sensisti, multum ausus es. Hoc, mihi crede, sa, pelo facto de o espírito de um jovem ainda apenas ontem
longo interuallo transcendit Heliconem, ad cuius uerticem tam- voltado para estes assuntos ter concebido uma coisa tão im-
quam ad caelum peruenire conaris. Sed peruellem adesses huic portante e tão subitamente, sem nunca antes se ter tratado,
sententiae; nam eam labefactare temptabo. - Sine, inquit, entre nós, nenhum assunto referente a esta questão.
modo me mihi, quaeso te; nam ualde in aliud intendi ani- - Muito bem - disse eu - muito bem! Captaste perfeita-
mum. - Hic ego nonnihil metuens, ne studio poeticae penitus mente muita coisa, foste muito ousado. Podes crer em mim,
prouolutus a philosophia longe raperetur: Inritor, inquam, abs isto ultrapassa muito amplamente Hélicon, cujo cume te es-
te uersus istos tuos omni metrorum genere cantando et ulu- forças por alcançar como se fosse o céu. Mas quero que defen-
lando insectari, qui inter te atque ueritatem immaniorem das melhor esta afirmação. Na verdade, tentarei destruí-la.
murum quam inter amantes tuos conantur erigere; nam in se - Peço-te que me concedas algum tempo - disse ele. -
illi uel molita rimula respirabant. Pyramum enim ille tum Realmente, o espírito está extremamente ocupado em outra
canere instituerat. coisa.
Então eu, com algum medo de que o estudo da poética o
arrebatasse para longe da filosofia, disse:
- Irrito-me quando estou ao pé de ti e te vejo, cantando e
ululando, ir no encalço de todos esses teus versos, de todo o
género de metros, que erguem entre ti e a verdade um muro
mais impenetrável do que entre ·esses teus amantes. Com efeito,
esses, ao menos, ainda trocavam suspiros, tendo encontrado a
custo uma pequena fresta. Realmente, nesse momento ele ti-
nha decidido cantar Píramo.

9. Quod cum seueriore quam putabat uoce dixissem, subti- 9. Como eu tivesse dito isto num tom de voz mais severo
cuit aliquantum. Et ego iam reliqueram coepta et ad me redi- do que ele pensava, ficou algum tempo calado. E eu já tinha
eram, ne frustra occupare praeoccupatum atque inepte uellem. abandonado o assunto e tinha regressado para mim mesmo,
Tum ille: Egomet meo indicio quasi sorex, inquit, non dictum não querendo ocupar em vão um espírito disperso e inapto,
est commodius apud Terentium quam nunc dici a me de me quando ele disse:
potest; sed sane illud ultimum fartasse in contrarium uerte- - Infeliz de mim, que me traí a mim próprio como um rato 5 •
tur; quod enim ait ille: Hodie perii, ego forte hodie inueniar. Isto não foi dito de modo mais apropriado em Terêncio do
que agora pode dizer-se a meu respeito. Mas talvez aquilo que
se diz no fim se converta no contrário. Na verdade, ele diz:
«Hoje estou perdido!» E eu talvez hoje me venha a encontrar.

5 Terêncio, Eunuco, 1024.

98 99
Nam si non contemnitis, quod superstitiosi solent etiam de Com efeito, se não desprezardes o que as pessoas supersti-
muribus augurari, si ego illum murem uel. soricem, qui me tibi ciosas costumam pressagiar até pelos ratos, se, pelo ruído que
uigilantem detulit, strepitu meo commonui, si quid sapit redire eu fiz, admoestei aquele rato ou ratazana, que te deu assim a
in cubile suum secumque conquiescere, cur non ego ipse isto conhecer que eu estava acordado - se é que há sensatez -, a
strepitu uocis tuae commonear philosophari potius quam can- regressar para o seu buraco e a ficar quieto; por que razão
tare? Nam illa est, ut tibi cotidie probanti iam coepi credere, não posso eu, pelo estrépito da tua voz, ser admoestado a filo-
uera et inconcussa nostra habitatio. Quare, si tibi molestum sofar mais do que a cantar? Na verdade, esta é - como já co-
.non est atque id fieri debere arbitraris, roga quod uis; defen- meço a perceber pelas provas diárias que tu nos dás - a nos-
dam, quantum possum, ordinem rerum nihilque praeter ordi- sa morada verdadeira e inconcussa.
nem fieri posse adseram. Tantum enim eum animo imbibi at- Assim, se isso não é para ti um incómodo e se pensas que
que hausi, ut, etiamsi me quisquam in hac disputatione o deves fazer, pergunta o que queres. Defenderei, tanto quan-
superarit, etiam hoc nulli temeritati, sed rerum ordini tribuam. to possa, a ordem das coisas e hei-de sustentar que nada pode
Neque enim res ipsa, sed Licentius superabitur. ser feito fora da ordem. Na verdade, tenho o espírito tão im-
pregnado e haurido nisso que mesmo se alguém me vencer
nesta disputa também não o atribuirei a nenhuma temeridade
mas à ordem das coisas. Nem mesmo assim será vencida a
própria ordem, mas Licêncio.

N, 10. Ego rursum gaudens eis me restitui. Tum Trygetio: N, 10. Eu, com alegria, entreguei-me de novo a eles. Então,
Quid, inquam, tibi uidetur? - Faueo quidem, inquit, ordini disse a Trigécio:
plurimum, sed incertus sum tamen et rem tantam diligentis- - Que te parece?
sime discuti cupio. - Fauorem, inquam, tuum illa ergo pars - Na verdade, sou muito a favor da ordem - respondeu. -
habeat; nam quod incertus es, etiam Licentio ac me ipso tibi Contudo, não estou certo, e desejo que um assunto tão impor-
puto esse commune. - Prorsus, ait Licentius, ego huius sen- tante seja discutido com toda a diligência.
tentiae certus sum. Quid enim dubitem parietem, cuius men- - Que aquela parte tenha, portanto, o teu favor - disse
tionem fecisti, antequam plane se erexit, diruere? Non enim eu. - Com efeito, quanto à tua incerteza, penso que é comum
uere poetica tantum me auertere a philosophia potest quan- também a Licêncio e a mim próprio.
tum inueniendi ueri diffidentia. - Tum Trygetius gaudentibus - Eu estou absolutamente certo daquela afirmação. De fac-
uerbis: Habemus, inquit, iam quod plus est, Licentium non to, por que é que hei-de hesitar em destruir o muro de que
Academicum (eos enim ille studiosissime defendere solebat). - fizeste menção antes de ele estar completamente construído?
Haec modo, inquit, omitte quaeso, ne me hoc uafrum quiddam Na verdade, certamente não pode a poética afastar-me tanto
et captatorium a nescio qua diuina re, quae mihi se ostentare da filosofia quanto a desconfiança de encontrar o verdadeiro.
Então Trigécio, com palavras de alegria, disse:
- Temos já Licêncio não Académico, o que é melhor! De
facto, ele costumava defendê-los com o maior empenhos.
- Peço-te - disse ele - esquece essas coisas, para que esta
espécie de astúcia e sedução não me afaste e me aparte de

6
Cf. BV, II, 15 (CCL 29, p. 73).

100 101
coepit et cui me inhiantem suspendo, detorqueat atque disrum- não sei que realidade divina que se começou a manifestar para
pat. Hic ego multo uberius cernens abundare laetitias meas mim e à qual me agarro com avidez.
quam uel optare aliquando ausus sum, uersum istum gestiens Neste momento, apercebendo-me de que a minha alegria
effudi: Sic pater ille deus faciat, sic altus Apollo / incipias. Per- transbordava com mais abundância do que alguma vez ousei
ducet enim ipse, si sequimur, quo nos ire iubet atque ubi po- esperar, exultante, deixei escapar este verso:
nere sedem, qui dat modo augurium nostrisque inlabitur ani- «0 Pai dos Deuses assim faça, o sublime Apolo permita que
mis. Nec enim altus Apollo est, qui in speluncis, in montibus, comeces 7/»
in nemoribus nidore thuris pecudumque calamitate concitatus Ele próprio, que nos dá o augúrio e penetra nas nossas
implet ·insanos, séd alius profecto est, alius ille altus ueridicus almas, nos conduzirá, se O seguirmos, até onde nos manda ir
atque ipsa (quid enim uerbis ambiam?) ueritas, cuius uates e onde quer que fixemos morada.
sunt quicumque possunt esse sapientes. Ergo adgrediamur, Ele, na verdade não é o «sublime Apolo» - que satisfaz os
Licenti, freti pietate cultores et uestigiis nostris ignem perni- insensatos - incitado pelo odor do incenso e pelo sacrifício dos
ciosum _fumosarum cupiditatum opprimamus. animais, nas montanhas, nas cavernas, nos montes e nos bos-
ques; mas é seguramente um outro, Aquele que é verdadeira-
mente sublime e que é (porque hei-de falar com rodeios?) a
própria Verdade, cujos profetas são todos aqueles que podem
ser sábios. Portanto avancemos, Licêncio: como adoradores con-
fiados na piedade, esmaguemos com os nossos pés o fogo sufo-
cante e pernicioso das paixões.

11. Iam, inquit, interroga, oro te, si possim hoc tantum 11. Agora - disse Licêncio - peço-te que me interrogues,
nescio quid explicare et uerbis et meis. - Hoc ipsum, inquam, - para que eu explique, se puder, por palavras minhas, alguma
mihi responde, primo unde tibi uideatur aqua ista non temere coisa do que tanto desconheço.
sic, sed ordine influere. N am quod ligneolis canalibus superla- - Responde-me, em primeiro lugar, a isto - disse eu. - De
bitur et ducitur usque in usus nastros, potest ad ordinem per- onde vem o teu parecer segundo o qual esta água não corre ao
tinere. Factum est enim ab hominibus ratione utentibus, ut acaso mas segundo uma ordem? Com efeito, pode pertencer à
uno ~ius itinere simul et biberent et "lauarent, et pro· locorum ordem que ela corra por canais de madeira e seja conduzida
opportunitatibus consequens erat ut ita fieret. Quod uero ilia, até nós para nos servimos dela. Isto foi feito assim pelos ho-
ut dicis, folia sic inciderunt, ut hoc quod admirati sumus eue- mens usando a razão, a fim de, por uma só conduta, se lava-
niret, quo tandem ordine ac non casu potius factum putabi- rem e beberem, e era lógico que se fizesse assim, aproveitando
mus? - Quasi uero, inquit ille, aliter atque ceciderunt debuisse a vantagem dos terrenos. Mas o facto de que, como tu dizes,
aut potuisse cadere cuiquam uideri potest serenissime intuenti as folhas tenham caído assim - como, com admiração, vimos
que acontecia - por que é que o havemos de atribuir à ordem
das coisas e não antes ao acaso?
Ele retorquiu:
- Mas isso é como se pudesse parecer - a alguém que vê
com toda a serenidade que nada se pode fazer sem uma cau-

7
VirgHio, Eneida, 10, 875-876.

102 103
nihil posse fieri sine causa. Quid? iam uis persequar situs sa - que elas devessem ter caído ou pudessem cair de outro
arborum atque ramorum ipsumque pondus, quantum natura modo. O quê? Agora queres que eu saiba a localização geográ-
foliis imposuit? Quid? aeris uel mobilitatem, qua uolitant, uel fica das árvores e dos ramos e o próprio peso que a natureza
mollitiem, qua descendunt, uariosque lapsus pro adfectione deu às folhas? O quê? Como hei-de obter esses dados sobre
caeli, pro onere, pro figuris suis ceterisque innumerabilibus qual seja o vento e o movimento com que voam, ou a agilida-
atque obscurioribus causis quid me adtinet quaerere? Latent de com que descem, caindo de vários modos conforme o estado
ista sensus nastros, penitus latent; illud tamen, quod adgres- da atmosfera, o peso, a sua configuração e outras causas inu-
sae quaestioni satis est, nescio quo modo animum non latet, meráveis e obscuras? Estas coisas ocultam-se aos nossos sen-
nihil fieri sine causa. Potest enim odiosus percontator pergere tidos, escondem-se profundamente. Contudo, há algo que bas-
quaerere, quae causa erat, ut ibi arbores ponerentur. Respón- ta para abordar a questão (ignoro de que modo não se oculta
debo secutos esse homines uber terrae. Quid, si fructuosae ao espírito): que nada se faz sem causa. Pode acontecer que
arbores non sunt ac temere natae sunt? Et hic respondebo nos um importuno inquiridor nos pergunte: «Que causa havia para
parum uidere; nam temerariam quàe illas genuit nequaquam se terem posto ali árvores?» Responderei que os homens terão
esse naturam. Quid plura? Aut aliquid sine causa fieri docear seguido a fertilidade do terreno. E se não forem árvores de
aut nihil fieri nisi certo causarum ordine credite. fruto mas árvores que nasceram por acaso? Então, responde-
rei que é pouco o que nós vemos. Com efeito, a natureza, que
as gerou, de nenhum modo é temerária. Que mais direi? Ou
me mostrais que alguma coisa se faz sem causa, ou acreditai
que nada se faz sem uma exacta ordem das causas.

V, 12. Cui ego: Licet, inquam, me odiosum percontatorem V, 12. Eu respondi-lhe:


uoces (uix enim possum non esse, qui expugnaui, ne cum Pyra- - Ainda que me chames importuno inquiridor - de facto,
mo et Thisbe conloquereris), pergam tamen quaerere abs te. dificilmente poderia não· o ser, eu que lutei para que não con-
Natura ista, quam uis uideri ordinatam, cui bano, ut de cete- versasses com Píramo e Tisbe -, contudo persistirei em inter-
ris rebus innumerabilibus taceam, istas ipsas arbores, quae rogar-te. Esta natureza, que te quer parecer que está ordena-
fructus non adferunt, procreauit? - At illo cogitante, quid di- da, em função de que bem - já para não falar de tantas outras
ceret, ait Trygetius: Numquidnam usus ·arbustorum in solis coisas sem conta - procriou estas mesmas árvores que não dão
fructibus praebetur hominibus? Quanta sunt alia, quae umbra, fruto?
quae lignis, postremo quae ipsis frondibus seu foliis fiant? - Estando ele a pensar no que havia de dizer, disse Trigécio:
Noli, obsecro, inquit ille, interrogationibus eius haec reddere. - Não é verdade que não é só pelos frutos que as árvores
Innumerabilia sunt enim quae proferri possunt, ex quibus nulla ·são úteis para os homens? Quantas outras vantagens se tiram
est hominibus utilitas aut certe ita latet uel imbecilla est, ut da sombra, da madeira, enfim, das próprias ramagens ou das
ab hominibus, praesertim nobis, erui defendiue non possit. Ipse .folhas?
potius nos doceat, quomodo aliquid fiat, quod non causa prae- - Peço-te - disse Licêncio - que não dês essas respostas
cesserit. - Post, inquam, ista. uidebimus. Non enim iam me às perguntas dele. Na verdade, são inumeráveis as coisas que
se podem apontar em que não há nenhuma utilidade para os
homens ou em que, certamente, esta se oculta, ou é tão pe-
quena que não pode ser desvendada e defendida pelos homens,
especialmente por nós. Ele que nos ensine, antes, de que modo
se faz alguma coisa que não esteja precedida por uma causa.

104 105
necesse est esse doctorem, cum tu, qui iam tantae rei te cer- - Veremos essas coisas depois - disse eu. - Na verdade já
tum esse professus es, adhuc me nihil docueris nimium disce- não é necessário que eu faça de mestre, quando tu, que decla-
re cupientem et propter hoc solum dies noctesque uigilantem. ras já estar certo de um assunto tão importante, a mim, que
tanto desejo aprender e que só por causa disso passo noites e
dias de vigília, ainda nada me ensinaste.

13. Quo me mittis? inquit. An quia leuius te sequor quam 13. Onde é que me queres levar? --,.- disse ele. - Ou será
illa folia uentos, quibus in profluentem aquam iaciuntur, ut porque eu te sigo com mais ligeireza do que estas folhas se-
eis cadere parum sit, nisi etiam trahantur? Nam quid aliud guem os ventos que as lançam na corrente, embora, para elas,
erit, cum Licentius et Augustinum et ea quae sunt in media fosse coisa pouca o cair- se não fossem, também, arrastadas?
philosophia docet? - Noli obsecro, inquam, aut te tantum abi- De facto, que outra coisa acontecerá quando Licêncio instrua
cere aut me extollere. Nam et ego in philosophia puer sum et Agostinho precisamente acerca daquelas coisas que estão no
non nimis curo, cum interrogo, per quem mihi ille respondeat, cerne da filosofia?
qui me cotidie querulum accipit, cuius te quidem credo quando- - Peço-te - disse eu - que não te rebaixes tanto, ou que não
que uatem futurum; neque hoc «quandoque» forsitan longum me eleves tão alto. Na verdade, também eu sou uma criança
est. Sed tamen alii quoque multum sepositi ab huius modi na filosofia e não me importa nada, quando interrogo, em nome
studiis docere aliquid possunt, cum disserentium societati quasi de quem me responda aquele que recebe todos os dias os meus
uinculis interrogationum coartantur. Idem autem aliquid nem queixumes. Creio que tu, seguramente, virás algum dia a ser
est nihil. An non uides (tuo enim simili utar libentius) ilia seu profeta 8. E talvez que esse «algum dia» não esteja longe.
ipsa folia, quae feruntur uentis, quae undis innatant, resis- Contudo, mesmo os que estão muito afastados desta espé-
tere aliquantum praecipitanti se flumini et de rerum ordine cie de estudos podem ensinar alguma coisa, quando são força-
homines commonere, si tamen hoc, quod abs te defenditur, dos, pelo vínculo das interrogações, a unir-se à comunidade dos
uerum est? que discutem. Ora esse·mesmo algo não é nada. Ou tu não
vês - sirvo-me, de propósito, do teu próprio exemplo - que
aquelas mesmas folhas que são levadas pelo vento e flutuam
nas águas resistem, durante algum tempo, à corrente, e adver-
tem os homens acerca da ordem das coisas, se todavia aquilo
que tu defendes é verdadeiro?

14. Hic ille lecto etiam exiliens prae laetitia: Quis neget, 14. Então Licêncio, dando um salto de contentamento na
Deus magne, inquit, te cuncta ordine administrare? Quam se cama, disse:
omnia tenent! Quam ratis successionibus in nodos suas urgen- - Quem negará, Deus poderoso, que tu administras todas
tur! Quanta et quam multa facta sunt, ut haec loqueremur! as coisas com ordem? Como se mantêm todas as coisas! Como
Quanta fiunt, ut te inueniamus! Vnde enim hoc ipsum nisi ex se estreitam nos seus nós por sucessões exactas! Quão impor-
rerum ordine manat et ducitur, quod euigilauimus, quod illum tantes e numerosas coisas aconteceram para que as narremos!
Quantas coisas acontecem para que te encontremos! Na ver-
dade, de onde vem isto mesmo, a não ser que decorra e prove-
nha da ordem das coisas: que estivéssemos acordados, que

8 V. nota complementar 2, «Adivinhação/ profeciai>.

106 107
sonum aduertisti, quod quaesisti tecum causam, quod tu cau- ouvisses aquele som, que tenhas investigado contigo próprio a
sam tantillae rei non inuenisti? Sorex etiam prodiit, ut ego sua causa, que não tenhas encontrado a causa de uma coisa
uigilans prodar. Postremo tuus etiam ipse sermo, te fortasse tão simples? Até apareceu um rato, para que eu me mostrasse
id non agente (non enim cuiquam in potestate est, quid ueniat acordado. Por fim, até o teu próprio discurso, que talvez tu
in mentem), sic nescio quo modo circumagitur, ut me ipse não quisesses fazer (com efeito, o que vem à mente não está
doceat, quid tibi debeam respondere. Namque oro te, si haec em poder de ninguém), não sei de que modo levou a que me
quae a nobis dieta sunt, litteris, ut instituisti, mandata per- ensinasse a mim próprio o que havia de responder.
uagentur paulo latius ad hominum famam, nonne ita res mag- E, de facto - pergunto-te-, se estas coisas que foram di-
na uidetur, ut de iÜa consultus aliqui uates magnus aut Chal- tas por nós, uma vez postas por escrito, como tu determinaste,
daeus respondere debuerit, multo antequam euenit? Quod si se espalhassem um pouco mais longe até alcançar a fama dos
respondisset, ita diuinus diceretur, ita ecferretur laudibus homens, não é verdade que isto pareceria uma coisa impor-
omnium, ut tamen ex eo nemo quaereret, cur folium ex arbore tante, de modo que qualquer grande adivinho ou Caldeu, con-
ceciderit aut utrum mus oberrans iacenti homini molestus fue- sultado acerca dela, deveria responder muito antes de que ti-
rit. Numquidnam enim talia futura quisquam illorum aut per vesse acontecido? Se tivesse respondido, dir-se-ia, de facto, que
se dixit aliquando aut a consultore coactus est dicere? Atqui era divino, e seria colmado dos louvores de todos sem que, por
si futurum quendam librum non ignobilem diceret et id neces- isso mesmo, ninguém ousasse perguntar-lhe por que é que uma
sario euenturum uideret (non enim posset aliter diuinare), pro- folha caiu da árvore, ou se um rato, que andava à volta de
fecto quicquid uolitatio foliorum in agro, quicquid uilissima um homem deitado, tinha sido importuno. Com efeito, porven-
bestiola in domo facit, tam sunt in rerum ordine necessaria tura algum desses disse alguma vez, por sua iniciativa ou
quam illae litterae. His enim uerbis fiunt, quae sine illis prae- coagido por um cliente, que tais coisas haviam de acontecer?
cedentibus uilissimis rebus nec in mentem uenire possent nec Ora, se ele dissesse que, futuramente, um certo livro não
ore procedere posterisque mandari. Quare iam, rogo, nemo ex havia de ser desprezado, e se se visse que esse acontecimento
me quaerat, cur quidque fiat. Satis est nihil fieri, nihil gigni, era necessário - com efeito, de outro modo não se pode adivi-
quod non aliqua causa genuerit ac mouerit. nhar-, de certeza que todo aquele esvoaçar das folhas no cam-
po, tudo aquilo que um desprezível animalejo faz numa casa,
está tão integrado na ordem necessária das coisas quanto es-
tes escritos. Com efeito, eles estão feitos com palavras que, sem
aqueles antecedentes absolutamente insignificantes, não podiam
vir à mente, nem sair pela boca, nem ser transmitidas à pos-
teridade.
Portanto, peço que ninguém me pergunte por que é que cada
coisa acontece. Basta que nada se faça, nada se gere sem que
alguma causa o tenha gerado e movido.

VI, 15. Hic apparet te, inquam, nescire, adulescens, quam VI, 15. Já se vê, rapaz, como tu desconheces quantas coi-
multa et a qualibus uiris contra diuinationem dieta sint. Sed sas, e por que homens, foram ditas contra a adivinhação -
responde nunc, non utrum fiat aliquid sine causa (nam id iam disse eu. - Mas responde agora não sobre se alguma coisa se
uideo te nolle respondere), sed ordo iste susceptus tuus bonu- faz sem causa - porque já vejo que a isto não queres respon-
mue quicquam an malum tibi esse uideatur. - Et ille submur- der - mas se esta ordem que tu sustentas te parece ser um
bem ou um mal.

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murans: Non, inquit, sic rogasti, ut unum e duobus queam E ele, em murmúrio, disse:
respondere. Vídeo hic enim quandam medietatem. Nam ordo - Assim como perguntaste - se uma das duas coisas - não
mihi nec bonum nec malum uidetur. - Quid saltem censes, posso responder. Com efeito, vejo aqui um certo meio termo. Na
inquam, ordini esse contrarium? - Nihil, ait ille; nam quomo- verdade, a ordem não me parece ser nem um bem nem um mal.
do esse quicquam contrarium potest ei rei, quae totum occu- - Ao menos - digo eu - o que é que pensas que seja con-
pauit, totum obtinuit? Quod enim erit ordini contrarium, ne- trário à ordem?
cesse erit esse praeter ordinem; nihil autem esse praeter - Nada - disse ele. - De que modo algo pode ser o con-
ordinem uideo; nihil igitur ordini oportet putari esse contra- trário daquilo que tudo ocupou, que tomou posse de tudo? Com
rium. - Ergone, ait Trygetius, contrarius ordini error non efeito, o que fosse contrário à ordem necessariamente estaria
est?- Nullo modo, inquit; nam neminem uideo errare sine fora da ordem. Ora eu vejo que não há nada fora da ordem.
causa; causarum autem series ordine includitur et error ipse Portanto, é necessário pensar que nada é contrário à ordem.
non solum gignitur causa, sed etiam gignit aliquid, cui causa - Então - disse Trigécio -, o erro não é contrário à ordem?
sit. Quamobrem quo extra ordinem non est, eo non potest or- - De modo nenhum - respondeu. - Na verdade não vejo
dini esse contrarius. ninguém errar sem causa. Ora, a série das causas está contida
na ordem e o próprio erro não só é gerado por uma causa como
também gera alguma coisa, para a qual é causa. Precisamente
porque não está fora da ordem, não pode ser contrário à ordem.

16. Et cum tacuisset Trygetius egoque me ipsum non cape- 16. E, tendo-se calado Trigécio, e eu próprio não cabendo
rem gaudio, quod uidebam adulescentem, carissimi amici fi- na minha alegria porque via que o jovem, filho de um amigo
lium, etiam meum fieri, nec solum, uerum in amicum quoque meu caríssimo, se tinha tornado também meu, e mais ainda
iam mihi surgere atque grandescere et, cuius studium uel in por ver que já nascia e crescia para mim como um amigo; e
medíocres litteras desperaueram, quasi respecta possessione que aquele de quem eu tinha desesperado que se entregasse
sua, toto impetu in mediam uenire philosophiam, quod dum aos estudos literários medianos se lançava agora no cerne da
tacitus miror et exaestuo in gratulationem, subito ille quasi filosofia com todo o ímpeto e como se se tratasse de algo pró-
mente quadam correptus exclamat: O si possem dicere quod prio; assim, enquanto eu, em silêncio, me admirava e exultava
uolo! Rogo, ubi estis, uerba, succurrite. Et hona et mala in or- de agradecimento, de repente, ele, como num arrebate de men-
dine sunt. Credite, si uultis, nam quomodo id explicem nescio. te, exclamou:
- Oh, se eu pudesse dizer o que quero! Rogo-vos; palavras,
onde quer que estiverdes, vinde em meu auxílio! Tanto os bens
como os males estão na ordem! Acreditai, se quiserdes; com
efeito, não sei como o hei-de explicar.

VII, 17. Ego mirabar et tacebam. Trygetius autem, ubi ui- VII, 17. Eu estava admirado e em silêncio.
dit hominem paululum quasi digesta ebrietate adfabilem fac- Trigécio, porém, quando viu o homem um pouco mais afá-
tum redditumque conloquio: Absurdum, inquit, mihi uidetur, vel - uma vez digerida aquela espécie de embriaguez - e ca-
Licenti, et plane alienum a ueritate quod dicis; sed quaeso paz de retomar o diálogo, disse:
patiare me paululum nec proturbes clamitando. - Dic quod uis, - Parece-me absurdo, Licêncio, e claramente oposto à ver-
dade, o que tu dizes. Mas peço-te que tenhas um pouco de
paciência e que não me incomodes com os teus clamores.

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ait ille; non enim metuo, ne me auferas ah eo quod uideo ac - Diz o que quiseres - disse ele. - Não tenho medo que
paene teneo. - Vtinam, inquit, ah eo quem defendis ordine me afastes daquilo que eu vejo e que estou quase a ponto de
deuius non sis! Non tanta in Deum feraris, ut mitius loquar, alcançar.
incuria. Quid enim potuit dici magis impium quam etiam mala - Oxalá - retorquiu Trigécio - não te desvies daquele cuja
ordine contineri? Certe enim Deus amat ordinem. - Vere amat, ordem defendes! Não lançarias sobre Deus tamanhas incúrias
ait ille; ah ipso manat, et cum ipso est et, si quid potest de re para falar com moderação. Quem pode dizer coisa mais ímpi~
tantum alta conuenientius dici, cogita, quaeso, ipse tecum. N ec do que até os males estarem contidos na ordem? Com efeito,
enim sum idoneus, quite ista nunc doceam. - Quid cogitem?, seguramente Deus ama a ordem.
inquit Trygetius, accipio prorsus quod dicis satisque mihi est -Ama-a, na verdade - disse ele. - Dele procede e com Ele
in eo quod intellego. Certe enim et mala dixisti ordine conti- está e, se alguma coisa mais conveniente pode ser dita acerca
neri et ipsum ordinem manare a summo Deo atque ab eo di- de um assunto tão elevado, pensa tu contigo próprio, peço-te.
ligi. Ex quo sequitur ut et mala sint a summo Deo et mala Eu, que agora te ensino estas coisas, não sou idóneo.
Deus diligat. - Que hei-de pensar? - disse Trigécio. - Aceito muito bem
o que tu. dizes e basta-me o que entendo. Na verdade, segura-
mente disseste que os males estão contidos na ordem e que a
própria ordem procede do supremo Deus e é amada por ele.
Donde se segue que os males estão no supremo Deus e que
Deus ama os males.

18. ln qua conclusione timui Licentio. At ille ingemescens 18. Nesta conclusão, eu temi por Licêncio. E ele, gemendo
difficultate uerborum nec omnino quaerens quid responderet, pela dificuldade das palavras, e sem procurar de todo 0 que
sed quemadmodum quod respondendum erat promeret: Non respondesse mas o modo como exprimiria aquilo que havia de
diligit Deus mala, inquit, nec oh aliud nisi quia ordinis non responder, disse:
est, ut Deus mala diligat; et ordinem ideo multum diligit, quia - Deus não ama os males não por outra causa a não ser
per eum non diligit mala. At uero ipsa mala qui possunt non porque não pertence à ordem que Deus ame os males. Por isso,
esse in ordine, cum Deus ilia non diligat? N am is te ipse est ama muito a ordem, porque é por ela que não ama os males.
malorum ordo, ut non diligantur a Deo. An paruus rerum ordo E, realmente, os próprios males, uma vez que Deus não os ama,
tibi uidetur, ut et hona Deus diligat et non diligat mala? Ita como é que podem não estar na ordem? Na verdade, esta
nec praeter ordinem sunt mala, quae non diligit Deus, et ip- mesma é a ordem dos males, que não sejam amados por Deus.
sum tamen ordinem diligit. Hoc ipsum enim diligit, diligere Ou parece-te pouca ordem das coisas que Deus ame os bens e
hona et non diligere mala, quod est magni ordinis et diuinae não ame os males? Assim, não estão fora da ordem os males
dispositionis. Qui ordo atque dispositio quia uniuersitatis con- que Deus não ama e, todavia, Ele ama a própria ordem. coU:
gruentiam ipsa distinctione custodit, fit ut mala etiam esse efeito, Ele ama isso mesmo: amar os bens e não amar os ma-
necesse sit. Ita quasi ex antithetis quodam modo, quod nobis les, o que é de uma grande ordem e de disposição· divina. Esta
etiam in oratione iucundum est, ex contrariis omnium simul ordem e disposição, porque conserva a congruência do conjun-
rerum pulchritudo figuratur. to pela própria distinção, torna necessário que também exis-
tam os males. Assim, é como se fosse de algum modo a partir
·de antíteses, que nos agradam até no discurso, a partir dos
contrários, qúe se configura, a um tempo, a beleza de todas as
coisas.

112 113
19. Post haec intersiluit modice et repente sese erigens, qua 19. Depois disto, guardou algum tempo de silêncio e, de re-
Trygetius lectum habebat: - Nam quaero ex te, quaeso, inquit, pente, erguendo-se para o lado onde Trigécio tinha a cama,
iustusne sit Deus? - Tacebat ille nimis, ut postea retulit, ad- disse:
mirans et horrens subito condiscipuli et familiaris sui adfla- - De facto, pergunto-te e quero que me digas se não é
tum noua inspiratione sermonem. Quo tacente, ille ita secutus verdade que Deus é justo.
est: Si enim Deum iustum non esse responderis, tu uideris quid O outro calava-se profundamente, admirando-se e espan-
agas, qui me dudum impietatis arguebas. Si autem, ut nobis tando-se, como depois referiu, com o discurso subitamente in-
traditur nosque ipsius ordinis necessitate sentimus, iustus est fundido a um seu condiscípulo e amigo por uma insólita inspi-
Deus, sua cuique distribuendo utique iustus est. Quae autem ração.
distributio dici potest, ubi distinctio nulla est? Aut quae dis- Calando-se ele, Licêncio prosseguiu deste modo:
tinctio, si bona sunt omnia? Quidue praeter ordinem reperiri - Com efeito, se tiveres respondido que Deus não é justo,
potest, si Dei iustitia bonorum malorumque meritis sua cui- tu, que agora mesmo me acusavas de impiedade, verás o que
que redduntur? Iustum autem Deum omnes fatemur; totum fazes. Se, porém, como nos é transmitido e como nos apercebe-
igitur ordine includitur. Quibus dictis, relisit se strato et iam mos por necessidade da própria ordem, Deus é justo, então é
lenior uoce, cum ei uerbum nemo faceret: Nihilne mihi, inquit, distribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio que Ele é justo.
uel tu, qui compulisti ad ista, respondes? Ora de que distribuição se pode falar onde não existe nenhu-
ma distinção? Ou de que distinção, se todas as coisas são boas?
E o que é que se pode encontrar fora da ordem se, pela justiça
de Deus, se confere a cada um dos bons e dos maus aquilo ·
que é próprio dos seus méritos? Na verdade, todos confessa-
mos que Deus é justo: portanto, tudo está contido na ordem.
Tendo dito isto, deixou-se cair no leito e, já com voz mais
suave, como ninguém lhe dirigia a palavra, disse:
- Mesmo tu, que me empurraste para estas coisas, nada
me respondes?

20. Cui ego: Noua nunc religio istaec in te incessit, cedo, 20. Eu retorqui-lhe:
inquam. Sed quod uidebitur, per diem respondebo, qui mihi - Vejamos, «este insólito escrúpulo religioso surgiu agora
iam uidetur redire, nisi lunae est ille qui fenestris fulgor in- em ti» diz9 ! Mas, segundo parece, responder-te-ei durante o dia,
duitur. Simul et tacendum est, ne tanta bona tua, Licenti, que já parece estar de volta; a não ser que seja da lua aquele
absorbeat obliuio. Quando enim nostrae litterae non sibi haec raio cujo fulgor entra pela janela. Ao mesmo tempo, Licêncio,
mandari flagitent? Dicam plane tibi quod sentio. Disputabo deve-se fazer silêncio, para que o esquecimento não absorva
aduersus te, quantum possum; non enim mihi, si me uiceris, tanta riqueza tua. Na verdade, como não hão-de exigir estes
maior triumphus dari potest. Si autem uel calliditati uel acuto nossos escritos que ela lhes seja confiada? Dir-te-ei claramen-
cuidam errori hominum, quorum partes suscipere temptabo, te o que penso. Argumentarei contra ti quanto possa. Na ver-
dade, se me venceres, não me poderá ser dado maior triunfo.
Se, porém, a tua debilidade tiver cedido pela habilidade ou por
algum erro subtil dos homens cuja posição tentarei defender,

9 Terêncio, Andria, 730.

114 115
cesserit imbecillitas tua, quae minus pasta eruditione discipli- e se, por não estar suficientemente nutrida pela erudição das
narum tantum Deum fartasse sustinere non poterit, res te ipsa disciplinas, não puder, talvez, sustentar tão imenso Deus, este
commonebit, quantae tibi uires, ut in eum firmior redeas, pa- mesmo facto te advertirá sobre quantas forças tens de apres-
randae sint, simul quia et istam disputationem nostram eli- tar para que te tornes mais firme em relação a Ele, também
matius uolo prouenire; non enim grossis auribus eam debeo. porque eu quero que esta nossa discussão decorra com mais
Nam Zenobius noster multa mecum saepe de rerum ordine refinamento. Na verdade, não a devo a ouvidos grosseiros. De
contulit, cui alta percontanti numquam satisfacere potui seu facto, o nosso Zenóbio discutiu muito comigo, e com frequên-
propter obscuritatem rerum seu propter temporum angustias. cia, acerca da ordem das coisas e eu nunca pude satisfazer
Crebrarum autem ille procrastinationum usque adeo fuit im- quem me fazia perguntas tão profundas, quer por causa da
patiens, ut me, quo diligentius et copiosius respondere coge- obscuridade dos assuntos, quer pela escassez do tempo. A tal
rer, etiam carmine prouocaret, et bono carmine, unde illum ponto ele se tornara impaciente pelos frequentes adiamentos
magis ames. Sed neque tunc tibi legi potuit ab istarum rerum que, para me obrigar a responder com mais diligência e abun-
studio remotíssimo neque nunc potest. Nam profectio eius tam dância, até me provocaria com um poema. E um bom poema,
repentina et perturbata fuit tumultu illo, ut nihil istorum ue- razão para que o ames ainda mais. Mas nem então te podia
nire nobis in mentem potuerit. N am id relinquere mihi res- ter sido lido, porque tu estavas muitíssimo afastado do estudo
ponsuro statuerat et multa concurrunt, cur ei sermo iste mit- destes assuntos, nem agora pode. Com efeito, a partida dele
tatur. Primum est, quia debetur, deinde quia, cuius modi nunc foi tão repentina e conturbada· por todo aquele tumulto que
uitam ducamus, etiam sic indicari eius in nos beneuolentiae nenhuma destas coisas nos teria podido vir à mente. Na ver-
decet, postremo quod in gaudio de spe tua nemini cedit. Nam dade, resolvera deixar-mo para eu haver de responder, e mui-
et cum praesens esset, pro familiaritate patris tui uel potius tas coisas confluem para que este diálogo lhe seja enviado. Em
omnium nostrum multum sollicitus erat, ne ingenii tui quae- primeiro lugar, porque se lho deve. Depois, porque, pelo modo
dam scintillae, quas diligenter animaduertebat, non tam con- como agora levamos a nossa vida, é mister que seja mencio-
flarentur cura mea quam tua extinguerentur incuria; et cum nada a sua benevolência para connosco. Por último, porque nin-
te poeticae quoque studiosum esse cognouerit, sic gratulabitur, guém o supera na alegria de ter esperança em ti. De facto,
ut eum mihi gestientem uidere iam uidear. quando estava presente, por amizade para com o teu pai, ou
melhor, para com todos nós, estava muito atento, com receio
de que algumas centelhas do teu talento, a que prestava muita
atenção, estivessem menos avivadas pelos meus cuidados do
que extintas pela tua incúria. E quando souber que também
tu te dedicas à poesia, de tal módo há-de rejubilar que já o
vejo exultar de alegria.

VIII, 21. Nihil mihi quidem gratius facies, inquit. S.ed siue VIII, 21. Nada farás que me possa ser mais grato - disse
mobilitatem meam et puerilem leuitatem ridebitis siue aliquo ele. - Mas, quer vos riais pela minha inconstância e levian-
uere diuino nutu et ordine fit in nobis, non uobis dubitem di- dade pueril, quer isso aconteça em nós por algum outro sinal
cere: pigrior sum ad ilia metra subito effectus; alia, longe alia e ordem divina, não duvidarei em dizer-vos: de repente tornei-
nescio quid mihi nunc luce resplenduit. Pulchrior est philoso- -me mais indolente para aqueles versos. Uma luz diferente,
phia, fateor, quam Thisbe, quam Pyramus, quam ilia Venus muito diferente, que eu desconheço, brilhou agora para mim.
et Cupido talesque omnimodi amores. Et cum suspirio gratias Mais bela é a filosofia, confesso, do que Tisbe, do que Píramo,
do que aquela Vénus e Cupido e toda essa espécie de amores.

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Christo agebat. - Accepi ego haec, quid dicam libenter aut quid E, suspirando, dava graças a Cristo.
non dicam? Accipiat quisque, ut uolet, nihil curo nisi quod forte Eu aceitei isto de bom grado: hei-de dizê-lo? Mas por que
immodice gaudebam. não.º havia de dizer? Que cada um o aceite como quiser, nada
me importa, a não ser, talvez, o facto de que me alegrava em
excesso.

22. Interea post paululum dies sese aperuit. Surrexerunt 22. Entretanto, um pouco depois surgiu o dia. Eles levanta-
illi et ego inlacrimans multa oraui, cum audio Licentium suc- ram-se e eu rezei muito, em pranto. Então ouço Licêncio, com
cinentem illud propheticum laete atque garrule: Deus uirtu- alegria e estridência, cantando repetidamente aquele verso
tum, conuerte nos et ostende faciem tuam, et salui erimus. Quod profético: «Deus das Virtudes, converte-nos e mostra-nos a tua
pridie post cenam cum ad requisita naturae foras exisset, paulo face, e seremos salvos 1º.»
clarius cecinit quam ut mater nostra ferre posset, quod illo loco Na véspera, depois do jantar, tendo saído por uma necessi-
talia continuo repetita canerentur. Nihil enim aliud dicebat, dade natural, cantou com uma sonoridade um pouco maior do
quoniam ipsum cantilenae modum nuper hauserat et amabat, que a nossa mãe podia admitir que fossem cantadas tais coi-
ut fit, melas inusitatum. Obiurgauit eum religiosissima, ut seis, sas naquele lugar, repetidas continuamente.
femina ob hoc ipsum quod inconueniens locus cantico esset. Na verdade, ele não dizia nenhuma outra coisa, visto que
Tunc ille dixerat iocans: Quasi uero, si quis hic me inimicus ainda ,há pouco haurira o modo próprio da cantilena e que,
includeret, non erat Deus exauditurus uocem meam. como e costume, gostava de uma melodia inusitada.
Ela - mulher muito religiosa, como sabes - repreendeu-o
por isto mesmo, por ser um lugar inconveniente para esse
cântico. Nessa altura, ele dissera-lhe, em tom de gracejo: «Como
se Deus, se algum inimigo meu me fechasse aqui, não esti-
vesse disposto a ouvir a minha voz),,

23. Ergo mane cum regressus esset solus - nam uterque 23. Portanto, de manhã, uma vez que ele tinha regressado
ob eandem causam processerat -, adcessit ad lectulum meum: sozmho - com efeito, ambos tinham saído pela mesma causa -
Verum mihi dic, inquit, ita fiat nobis quod uis, quid de me aproximou-se da minha cama e disse:
existimes. Atque ego adulescentis dexteram adprehendens: - Diz-me, na verdade - e faça-se em nós o que tu quei-
Quid, inquam, existimem, sentis, credis, intellegis. Neque enim ras-, o que pensas de mim.
arbitrar te frustra heri tam diu cecinisse, ut uirtutum Deus E eu, pegando na mão direita do jovem, digo-lhe:
conuerso tibi se ostendat. -At ille cum admiratione recorda- - O que eu penso, tu sabes, crês e entendes. De facto, jul-
tus: Magnum, inquit, dicis et uerum. Non enim me ipsum go que não foi em vão que cantaste ontem durante tanto tempo
parum mouet, quod modo tam aegre auocabar a nugis illis para que o Deus das Virtudes se manifestasse tendo-te con-
vertido. '
E ele, recordando-se com admiração, disse:
- Dizes uma grande verdade! Com efeito, a mim próprio
também não me impressiona pouco o modo como ainda recen-

1
º SI. 79,8.

118 119
carminis mei, et iam redire ad eas piget et pudet; ita totus in temente tão a custo me afastava daquelas frivolidades do meu
quaedam magna et mira subuehor. Nonne hoc est uere in poema. Agora já me pesa e me dá vergonha regressar para
Deum conuerti? Simul et illud gaudeo, quod frustra mihi scru- elas, a tal ponto sou transportado inteiramente para essas
pulus superstitionis iniectus est, quod tali loco talia cantita- coisas tão grandes e admiráveis. Não é isto converter-se ver-
bam. - Mihi, inquam, neque hoc displicet et ad illum ordinem dadeiramente a Deus? Ao mesmo tempo também me alegro
puto pertinere, ut etiam hinc aliquid diceremus. Nam illi can- porque em vão me foi lançado o escrúpulo da superstição, por
tico et locum ipsum, quo ilia offensa est, et noctem congruere cantarolar tais coisas em tal sítio.
uideo. A quibus enim rebus putas nos orare ut conuertamur - Isso a mim não me desagrada - disse eu -, e penso que
ad Deum eiusque faciem uideamus, nisi a quodam caeno cor- pertence àquela ordem, para que disséssemos alguma coisa até
poris atque sordibus et item a tenebris, quibus nos error inuo- desse lugar. De facto, parece-me que àquele canto - que a
luit? Aut quid est aliud conuerti nisi ab immoderatione uitio- ofendeu - convêm tanto a noite como o próprio lugar. De que
rum uirtute ac temperantia in sese adtolli? Quidue aliud est coisas pensas que rogamos para nos convertermos a Deus e
Dei facies quam ipsa, cui suspiramus et cui nos amatae mun- vermos a sua face, a não ser de uma certa lama e sujidade do
dos pulchrosque reddimus ueritas? - Melius dici non potest, corpo e também das trevas, nas quais o erro nos envolve? Ou
inquit exclamans; deinde suppressius quasi ad aurem: Vide, que outra coisa é converter-se, senão elevar-se sobre si mesmo
quaeso, quanta occurrerunt, ut credam erga nos aliquid iam desde a imoderação dos vícios até à virtude e à temperança?
prosperiore ordine fieri. E que outra coisa é a face de Deus senão a própria verdade, à
qual aspiramos e por cujo amor nos tornamos limpos e belos?
- Não se pode dizer de melhor modo - exclamou ele. E de-
pois, mais baixo, como se falasse ao ouvido: - Repara, peço-
-te, quantas coisas ocorreram para que eu acredite que algo
acontece para connosco segundo uma ordem muito favorável!

24. Si ordinem, inquam, curas, redeundum tibi est ad ilias 24. Se te ocupas da ordem deves encaminhar-te novamente
uersus. Nam eruditio disciplinarum liberalium modesta sane para aqueles versos - disse eu. - Na verdade, a erudição das
atque succincta et alacriores et perseuerantiores et commotio- disciplinas liberais, bem preparada e moderada, suscita aman-
res exhibet amatores amplectendae ueritati, ut et ardentius tes mais perseverantes, alegres e fervorosos para abraçar a
adpetant et constantius insequantur et inhaereant postremo verdade, a fim de a desejarem com mais ardor, a perseguirem
dulcius, quae uocatur, Licenti, beata uita. Qua nominata, om- com mais constância e, por fim, aderirem a ela com maior
nes sese erigunt et quasi adtendunt in manus, utrum habeas doçura. Esta chama-se, Licêncio, a vida feliz. Ao seu nome,
quod dare possis egentibus uariisque morbis impeditis. Qui- todos se levantam e como que te olham nas mãos, para ver se
bus sapientia cum praecipere coeperit, ut medicum perferant tens alguma coisa que possas dar aos indigentes e aos que estão
seque cum aliqua patientia curari sinant, in pannos suos reci- paralisados por diversas enfermidades. Estes, quando a sabedo-
dunt, quorum concalefactione tabificati scabiem uoluptatum ria lhes tiver começado a prescrever que suportem o médico e
aerumnosarum scalpunt libentius quam ut monita mediei pau- que se deixem curar com alguma paciência, voltam a cair nos
lum dura et morbis onerosa perpetiendo atque subeundo uale- seus andrajos. Contaminados por esse ardor, irritam com majs
tudini sanorum lucique reddantur. ltaque illo summi Dei no- agrado a lepra daqueles prazeres torturantes do que - pade-
cendo e sublevando as advertências do médico, um pouco du-
ras e pesadas pela própria doença - regressam para a luz e
para o bem-estar dos que têm saúde.

120 121
mine ac sensu tamquam stipe contenti uiuunt miseri, uiuunt E assim, satisfeitos pela compreensão e pelo nome daquele
tamen. Alias autem uiros uel, ut uerius )oquamur, alias ani- supremo Deus .como pequeno óbolo, vivem miseravelmente e,
mas, dum hoc corpus agunt, iam thalamo suo dignas coniunx contudo, vivem. Outros são os homens ou, para falar com mais
ille optimus ac pulcherrimus quaerit, quibus non uiuere, sed verdade, outras as almas que, enquanto movem este corpo,
beate uiuere satis est. Vade ergo interim ad illas Musas; ue- aquele cônjuge magnífico e formosíssimo procura como dignas
rum tamen seis, quid te facere uelim? - Iube, ait, quod pla- do seu tálamo, para as quais não basta apenas viver mas ter
cet. - Vbi se, inquam, Pyramus et illa eius super inuicem, ut uma vida feliz.
cantaturus es, interemerint, in dolore ipso, quo tuum carmen Vai, então, entretanto, ao encontro daquelas Musas. Toda-
uehementius inflammari decet, habes commodissimam oppor- via, sabes o que eu gostaria que tu fizesses?
tunitatem. Adripe illius foedae libidinis et incendiorum uene- - Manda o que for do teu agrado - retorquiu ele.
natorum execrationem, quibus miseranda illa contingunt, dein- Eu disse:
de tatus adtollere in laudem puri et sinceri amoris, quo animae - Quando Píramo e aquela que estava com ele se deram à
dotatae disciplinis et uirtute formosae copulantur intellectui morte um e outro, como tu hás-de cantar, nessa mesma dor
per philosophiam et non solum mortem fugiunt, uerum etiam em que convém inflamar apaixonadamente o teu poema, tens
uita beatissima perfruuntur. Hic ille tacitus ac diu considera- uma excelente oportunidade. Ataca a imundície daquela pai-
tione nutans motato capite abscessit. xão hedionda e dos encantamentos abrasadores que confinam
com aquela morte infeliz. Depois, eleva-te inteiramente em
louvor do amor puro e sincero, pelo qual as almas dotadas de
erudição e ornadas pela virtude se unem ao intelecto 11 pela
filosofia. Elas não só escapam à morte como também gozam
uma vida extremamente feliz.
Então, ele ficou calado, em longa reflexão e, hesitante, foi-
-se meneando a cabeça.

25. Deinde ego surrexi redditisque Deo cotidianis uotis ire 25. Em seguida levantei-me. Tendo oferecido o dia a Deus,
coeperamus in balneas (ille enim locus nobis, cum caelo tristi tínhamos começado a dirigir-nos para os banhos. Na verdade,
in agro esse minime poteramus, aptus ad disputandum et fa- quando o céu estava sombrio e não podíamos de todo estar no
miliaris fuit), cum ecce ante fores aduertimus gallos gallinati- campo, aquele lugar era-nos propício para a discussão, e tornou-
cos ineuntes pugnam nimis acrem. Libuit adtendere. Quid enim -se familiar. E eis que, dirigindo-nos para fora, reparámos que,
non ambiunt, qua non peragrant oculi amantum, ne quid un- mesmo diante, uns galos estavam envolvidos numa luta muito
deunde innuat pulchritudo rationis cuncta scientia et nescien- acesa. Aprouve-nos prestar atenção. Na verdade, que coisas não
tia modificantis et gubernantis, quae inhiantes sibi sectatores hão-de pretender alcançar os olhos dos que amam, por onde
não hão-de penetrar onde quer que lhes acene a beleza da razão
que governa e modera todas as coisas dotadas ou não de conhe-
cimento? Ela atrai para si os que a perseguem com avidez e
manda-os em sua demanda, em toda a parte e no que quer
que seja. Com efeito, de onde ou em que lugar não pode ela

11 V. nota complementar 3, «lntellectus/ratio»,

122 123
suas trahit quacumque atque ubique se quaeri iubet? Nam unde dar sinal? Assim era dado ver nestes mesmos galos: as cabe-
aut ubi non potest signum dare, ut in eisdem ipsis gallis erat ças esticadas para diante, as penas eriçadas, os golpes insis-
uidere intenta proiectius capita, inflatas comas, uehementes tentes, as esquivas com toda a precaução; e em todo o movi-
ictus, cautissimas euitationes et in omni motu animalium ra- mento dos animais desprovidos de razão, nada havia sem
tionis expertium nihil non decorum, quippe alia ratione desu- decoro, seguramente porque uma outra razão do alto modera-
per omnia moderante, postremo legem ipsam uictoris, super- va todas as coisas. Por último, a própria lei do vencedor, com
bum cantum et membra in unum quasi orbem collecta uelut o seu canto soberbo e os seus membros todos reunidos, como
in fastum dominationis; signum autem uicti, elatas a ceruice numa cidade conquistada ou no fasto da soberania. E o sinal
pennulas et in uoce atque motu deforme totum et eo ipso na- do vencido: as penas arrancadas da cabeça, todo disforme na
turae legibus nescio quo modo concinnum et pulchrum? voz e no movimento e, por isso mesmo, não sei de que modo,
belo e harmónico pelas leis da natureza.
26. Multa quaerebamus, cur sic omnes, cur propter domi-
nationem in subiectas sibi feminas, cur deinde nos ipsa pug- 26. Interrogávamo-nos sobre muitas coisas: por que razão
nae facies aliquantum et praeter altiorem istam consideratio- todos eram assim; por que o faziam para dominar as fêmeas
nem duceret in uoluptatem spectaculi, quid in nobis esset, quod que lhes estão sujeitas. Além disso, por que razão o próprio
a sensibus remota multa quaereret, quid rursum, quod ipso- aspecto da luta, para além destas considerações mais profun-
rum sensuum inuitatione capereretur. Dicebamus no bis ipsis: das, nos terá, de algum modo, conduzido ao prazer do espectá-
Vbi non !ex? Vbi non meliori debitum imperium? Vbi non culo: que haveria em nós que aspirasse a coisas tão afastadas
umbra constantiae? Vbi non imitatio uerissimae illius pulchri- dos sentidos e, inversamente, que haveria que fosse atraído pelo
tudinis? Vbi non modus? Atque inde admoniti, ut spectandi convite dos próprios sentidos 12? Dizíamos a nós próprios: onde
modus esset, perreximus, quo propositum erat, atque ibi, ut não haverá lei? Onde não é devido o domínio ao melhor? Onde
potuimus, sane diligenter (nam et recentes res erant et quan- não há uma sombra de estabilidade? Onde não há uma imita-
do poterant tam insignita trium studiosorum memoriam effu- ção daquela beleza tão verdadeira? Onde não há medida? E até
gere?) omnia nostrae lucubrationis opuscula in hanc libelli por isso advertidos para ter medida no que se estava a ver,
partem contulimus nihilque a me aliud actum est ilia die, ut seguimos caminho até onde nos tínhamos proposto. E aí, como
ualetudini parcerem, nisi quod ante cenam cum ipsis dimidium pudemos, com muita atenção - na verdade, as coisas estavam
uolumen Virgilii audire cotidie solitus eram, nihil nobis ubi- recentes; e como se poderiam apagar realidades tão significa-
que aliud quam rerum modum considerantibus, quem non pro- tivas da memória de três estudiosos?-, reunimos todos os
pequenos resultados da nossa vigília nesta parte do livro.
E nada mais me foi dado fazer nesse dia para preservar a mi-
nha saúde a não ser o que me era costume: ouvir com eles,
todos os dias, antes de jantar, uma parte de um livro de Vir-
gi1io13. Com efeito, nada mais há em qualquer lugar para nossa
consideração do que a medida das coisas, que ninguém pode

12 Cf. Retract., I, 3, 2 (CCL 57, p. 12). O filósofo critica-se por não ter
acrescentado sempre a expressão «do corpo» quando se refere aos sentidos
corpóreos. Este pode ser um dos passos ilustrativos, dado que noutras cir-
cunstâncias esta distinção é explícita, v. g. em Diál. Ord., II, 2, 5; II, 3, 10.
13 Cf. CA, 1, 5, 15 (CCL 29, p. 12).

124 125
bare nemo potest, sentire autem, cum quisque aliquid studio- não reconhecer. Contudo, apreendê-la, quando alguém se em-
se agit, difficillimum atque rarissimum .. penha em fazê-lo, é muitíssimo difícil e raro.

IX, 27. Deinde postridie berre mane alacres ad solitum lo- IX, 27. No dia seguinte, de manhã cedo, voltámos alegres
cum conuenimus in eoque consedimus. Et ego adtentis in me para o lugar habitual e sentámo-nos. Tendo a atenção de ambos
ambobus: Hic esto, inquam, Licenti, quantum potes, et tu qui- posta em mim, disse assim:
dem, Trygeti: nec enim parua res agitur: de ordine quaerimus. - Licêncio, faz tudo o que puderes para estar aqui. E tu
Quid ego nunc quasi in schola ilia, unde me quoquo modo também, Trigécio, pois não se trata de um assunto de pouca
euasisse gaudeo, constitutus copiose atque ornate uobis ordi- monta. Investigamos acerca da ordem. O que é que acontece
nem laudem? Accipite, si uultis, immo facite ut uelitis, quo para que eu - como naquela escola da qual, de certo modo,
neque quicquam de huius laude breuius neque, ut mihi uide- me alegro de ter saído - tenha resolvido louvar agora para vós
tur, uerius dici potest. Ordo est, quem si tenuerimus in uita, a ordem, abundantemente e com esmero? Escutai, se quiser-
perducet ad Deum et quem nisi tenuerimus in uita, non peru- des - ou melhor, fazei por querer - aquilo que me parece que
eniemus ad Deum. Peruenturos autem nos iam, nisi me ani- não pode ser dito de modo mais verdadeiro nem mais breve
mus de uobis fallit, praesumimus et speramus. Diligentissime em seu louvor. Ordem é aquilo que, se conservarmos na vida,
igitur inter nos ista quaestio uersari debet atque dissolui. nos conduzirá a Deus; e não chegaremos a Deus a não ser que
Vellem adessent ceteri, qui nobiscum his negotiis solent inte- a conservemos na vida. Ora, nós confiamos e esperamos que
resse; uellem, si fieri posset, non istos tantum, sed omnes sal- havemos de nos aproximar Dele dentro em breve, a não ser
tem familiares nostros, quorum semper admiror ingenium, nunc que o meu espírito me engane acerca de vós. Portanto, esta
mecum habere quam uos estis intentos, aut certe ipsum tan- questão deve ser tratada e resolvida entre nós com a maior
tum Zenobium, quem de hac re tanta molientem numquam pro diligência. Queria que estivessem aqui presentes todos os ou-
eius magnitudine otiosus accepi. Sed quia id non euenit, le- tros que costumam tratar connosco estes assuntos. Queria, se
gent litteras nostras, quoniam instituimus iam de istis rebus fosse possível, ao menos ter agora aqui comigo, tão atentos
uerba non perdere resque ipsas a memoria fugaces scriptorum como vocês estão, não só estes mas todos aqueles nossos ami-
quasi uinculo, quo reducantur, innectere. Et sic fortasse ordo gos cujo talento eu não deixo de admirar; ou, ao menos, apenas
ipse poscebat, qui eorum procurauit absentiam. Nam et uos o próprio Zenóbio que, ocupado em assunto tão importante, eu
profecto in rem tantam, quia solis perferenda imponitur nobis, nunca tive vagar de ouvir, por causa da grandeza dele 14.
Mas como isto não acontece, eles lerão os nossos textos,
porque nós já decidimos não perder as palavras sobre estes
assuntos e prender estas mesmas coisas que escapam à memó-
ria com o vínculo da escrita, pela qual elas lhe são restituídas.
E assim talvez a própria ordem, que se ocupou da ausência deles,
o exigisse. Com efeito, certamente não só vos lançareis a um
assunto tão importante com espírito mais arrojado - porque se
impõe que deve ser levado a cabo só por nós - como também

14 A Epist. 2, dirigida por Agostinho a Zenóbio, mostra-o como homem

de negócios, sempre ocupado nescio qua necessitate. Nela convida o amigo a


regressar a Cassicíaco e discutir com Agostinho alguns assuntos que con-
cernem à filosofia (cf. CSEL 34, 1-3).

126 127
erectiore animo insurgitis et, cum illi legerint, qui nobis maxi- quando aqueles que merecem a nossa maior estima os lerem,
ma cura sunt, si quid eos mouerit ad contradicendum, alias se alguma coisa os mover a contradizer-nos, esta discussão há-
nobis disputationes disputatio ista procreabit seque ipsa suc- -de gerar outras discussões entre nós, e essa mesma cadeia de
cessio sermonum in ordinem inseret disciplinae. Sed nunc, ut diálogos há-de inserir-se na ordem da erudição.
promiseram, Licentio, quantum res patitur, aduersabor, qui Mas agora, como tinha prometido, tanto quanto o assunto
totam causam iam pene confecit, si possit eam defensionis muro o permita, opor-me-ei a Licêncio, que terá quase terminado toda
stabiliter firmeque uallare. a sua causa se a puder fortificar, estável e firmemente, com
um muro de defesa.

X, 28. Hic ubi eos silentio, uultu, oculis, suspensione atque X, 28. Então, quando eu os vi, pelo silêncio, pelo rosto, pelo
immobilitate membrorum et rei magnitudine satis commotos olhar, pela contenção e imobilidade dos membros, não só bas-
et audiendi desiderio inflammatos esse conspexi: Ergo, inquam, tante sensibilizados para a grandeza do assunto como infla-
Licenti, si tibi uidetur, conlige in te quicquid uirium potes, mados no desejo de ouvir, disse:
elima quicquid habes acuminis et ordo iste quid sit definitione - Portanto, Licêncio, se te parece, reúne em ti todas as
complectere. - Tum ille ubi se ad definiendum cogi audiuit, forças que puderes, esmera toda a agudeza que possuis e abran-
quasi aqua frigida adspersus exhorruit et turbatiore uultu me ge com uma definição o que é esta ordem.
intuens atque, ut fit, ipsa trepidatione subridens: Quid hoc est Então ele, quando ouviu que era obrigado a definir, como
rei? Quid quasi tibi uideor, inquit, adnuere? Nescio quo aduen- se tivesse sido borrifado com água fria, horrorizou-se e, olhan-
titio spiritu me credis inflatum. Statimque sese animans: Aut do-me com a perturbação no rosto, sorrindo pela própria atra-
fartasse, ait, aliquid mecum est. - Paululumque siluit, ut in palhação, como acontece, disse:
definitionem, quicquid illi de ordine notionis erat, conducere- '---Que é isto? Achas que te dei alguma anuência? Não sei
tur, deinde erectior: Ordo est, inquit, per quem aguntur om- por que estranho espírito me julgas inspirado.
nia, quae Deus constituit. E, imediatamente, animando-se a si mesmo, diz:
- Ou talvez algo está comigo ...
Fez um breve momento de silêncio para condensar numa
definição tudo o que estava na noção de ordem. Depois, co-
brando ânimo, disse:
-A ordem é aquilo pelo qual são conduzidas todas as coi-
sas que Deus estabeleceu.

29. Quid? Ipse Deus, inquam, non tibi uidetur agi ordine? - 29. E o próprio Deus, não te parece ser conduzido pela or-
Prorsus, inquit, uidetur. - Ergo agitur Deus? ait Trygetius. - dem? - perguntei eu.
Et ille: Quid enim? inquit. Christum Deum negas, qui et ordine - Sim, claro que me parece.
ad nos uenit et a Patre Deo missum esse se dicit? Si igitur - Portanto Deus é conduzido - disse Trigécio.
Deus Christum ordine ad nos misif et Deum Christum esse E o outro:
non negamus, non solum agit omnia, sed agitur etiam Deus - Então, o quê? Negas que Cristo - que não só veio até
ordine. - Hic Trygetius addubitans: Nescio, inquit, quomodo nós pela ordem, mas se diz ter sido enviado por 'Deus Pai - é
Deus? Portanto, se Deus nos enviou Cristo pela ordem e nós
não negamos que Cristo é Deus, não só conduz todas as coisas
mas também Deus é conduzido pela ordem.

128 129
istuc acc1piam. Deum enim quando nominamus, non quasi Então Trigécio, duvidando, disse:
mentibus ipse Christus occurrit, sed Pater. Ille autem tunc - Não sei como hei-de aceitar isto. Na verdade, quando
occurrit, quando Dei Filium nominamus. - Bellam rem facis, nomeamos Deus, não nos vem à mente o próprio Cristo, mas o
inquit Licentius. Negabimus ergo Dei Filium Deum esse? - Pai. Aquele, porém, ocorre quando nomeamos o Filho de Deus.
Hic ille, cum ei respondere periculosum uideretur, tamen se - Fazes uma bela coisa - diz Licêncio. - Negaremos, en-
coegit atque ait: Et hic quidem Deus est, sed tamen proprie tão, que o Filho de Deus é Deus?
Patrem Deum dicimus. - Cui ego: Cohibe te potius, inquam; Então Trigécio, embora lhe parecesse arriscado responder-
non enim Filius improprie Deus dicitur. At ille religione com- -lhe, contudo esforçou-se e disse:
motus cum etiam uerba sua scripta esse nollet, urgebat Licen- - Este certamente que é Deus mas, em todo o caso, pro-
tius, ut manerent, puerorum scilicet more uel potius hominum, priamente dizemos ser Deus o Pai.
pro nefas!, paene omnium, quasi uero gloriandi causa inter nos Eu disse-lhe:
illud ageretur. Cuius motum animi cum obiurgarem grauiori- - Sê mais comedido. Na verdade, o Fillio não se diz Deus
bus uerbis, erubuit. Qua eius perturbatione animaduerti riden- impropriamente.
tem laetantemque Trygetium et ambobus: Itane agitis? inquam. E como Trigécio, movido por um escrúpulo religioso, não
Nonne uos mouet, quibus uitiorum molibus atque imperitiae queria que as suas palavras fossem escritas, Licêncio insistia
tenebris premamur et cooperiamur? Haecine est illa paulo ante para que ficassem, reagindo como é costume das crianças ou,
uestra, de qua ineptus laetabar, adtentio et in Deum ueritatem- talvez - ó vergonha! - de quase todos os homens, como se a
que surrectio? O si uideretis uel tam lippientibus oculis quam questão fosse tratada entre nós para nossa glória. Tendo eu
ego, in quibus periculis iaceamus, cuius morbi dementiam ri- repreendido com palavras mais sérias aquela atitude, ele corou.
sus iste indicet! O si uideretis quam cito, quam statim quan- Desta sua atrapalhação, reparei que Trigécio se ria e se
toque productius eum uerteretis in fletus! Miseri, nescitis ubi alegrava, e disse a ambos:
sumus? Demersos quidem esse animos omnium stultorum in- - É assim que vocês actuam? Não vos impressiona que
doctorumque commune est, sed non uno atque eodem modo estejamos esmagados pelos fardos dos vícios e completamente
demersis opem sapientia et manum pcirrigit. Alii sunt, credite, cobertos pelas trevas da ignorância? Acaso é esta aquela vos-
alii sunt, qui sursum uocantur, alii qui in profundo laxantur. sa atenção, o vosso nascimento para Deus e para a verdade,
Nolite, obsecro uos, geminare mihi miserias. Satis mihi sint de que eu ainda há pouco me alegrava indevidamente? Oh, se
uulnera mea, quae ut sanentur, paene cotidianis fletibus Deum vísseis com os olhos tão infectados como eu, em que perigos
rogans indigniorem tamen esse me, qui tam cito saner quam nos lançamos, a mórbida demência de que esse riso é sinal!
uolo, saepe memet ipse conuinco. Nolite, obsecro, si quid mihi Oh, se o vísseis! Quão rapidamente, nesse mesmo instante, esse
riso se converteria em pranto! Infelizes, não sabeis onde esta-
mos? Ter o espírito submerso é comum a todos os estultos e
indoutos, mas a sabedoria não estende a sua mão e a sua ri-
queza de um único e mesmo modo a todos os que estão sub-
mersos. Acreditai, há uns que são chamados para as coisas do
alto e há outros que são abandonados nas profundezas. Peço-
-vos que não queirais acrescentar as minhas misérias. Já me
bastam as minhas feridas que quase todos os dias, com lá-
grimas, peço a Deus que se curem, embora me convença a
mim próprio, muitas vezes, que não sou suficientemente me-
recedor de me curar tão depressa quanto eu quero. Não o

130 131
amoris, si quid necessitudinis debetis, si intellegitis, quantum queirais fazer, peço-vos, se algum amor me tendes, se me de-
uos diligam, quanti faciam, quantum me cura exagitet morum veis algum afecto, se entendeis quanto vos amo, tudo o que
uestrorum, si dignus sum quem non neglegatis, si denique Deo faço por vós, quanto me atormenta o cuidado pelos vossos cos-
teste non mentior, nihil me plus mihi optare quam uobis, re- tumes! Se sou digno de que não me desprezeis, se, enfim, ten-
pendite mihi beneficium, et si me magistrum libenter uocatis, do Deus por testemunha, não minto ao dizer que não há ne-
reddite mihi mercedem: boni estote. nhuma riqueza que eu queira mais para mim do que para vós,
e se de bom grado me chamais vosso mestre, retribui-me o
favor: sede bons!

30. Hic ubi, ne plura dicerem, lacrimae mihi modum impo- 30. Chegados a este ponto, as lágrimas apossaram-se de
suerunt, Licentius molestissime forens, quod omnia scribeban- mim para que não dissesse mais nada. Licêncio, muito incomo-
tur: Quid enim, ait, fecimus, oro te? - Adhuc, inquam, nec fa- dado que fossem escritas todas estas coisas, disse:
teris saltem peccatum tuum? Tu nescis in ilia schola grauiter - Na verdade, o que é que nós fizemos, pergunto-te?
me stomachari solitum, quod usque adeo pueri non utilitate - Nem ainda agora és capaz de confessar o teu pecado? -
ac decore disciplinarum, sed inanissimae laudis amore duce- digo eu. - Tu não sabes que naquela escola eu costumava estar
rentur, ut quosdam etiam aliena uerba recitare non puderet sempre gravemente indisposto precisamente porque os rapa-
exciperentque plausus, ô ingemiscendum malum!, ab eisdem zes se deixavam guiar, não pela utilidade e pelo esplendor das
ipsis, quorum erant ilia quae recitabant. Ita uos, quamuis nihil disciplinas, mas por um amor absolutamente vão aos louvo-
unquam, ut opinor, tale feceritis, tamen et in philosophiam et res, a ponto de alguns deles não terem mesmo qualquer pudor
in eam uitam, quam me tandem occupasse laetor, aemulatio- de recitar palavras e de receber aplausos - ó mal deplorável! -
nis tabificae atque inanis iactantiae ultimam sed nocentiorem daqueles mesmos de quem era o discurso que recitavam. As-
caeteris omnibus pestem introducere ac proseminare conamini sim também vós, embora, julgo eu, nunca tal tenhais feito,
et fortasse, quia uos ab ista uanitate morboque deterreo, pi- contudo, tentais introduzir e espalhar, tanto na filosofia como
griores eritis ad studia doctrinae et ah ardore uentosae famae naquela vida à qual me alegro de por fim me ter dedicado, a
repercussi in torporem inertiae congelabitis. Me miserum, si inveja corrupta e a vã jactância, que é o último de todos os
necesse erit tales etiam nunc perpeti, a quibus uitia decedere flagelos mas o mais nocivo. E talvez porque eu vos afasto des-
sine aliorum uitiorum successione non possint! Probabis, ait sa vaidade e dessa doença sejais mais indolentes para os estu-
Licentius, quam purgatiores futuri simus. Modo illud obsecra- dos da doutrina e, levados pelo ardor de uma fama balofa,
mus per omnia quae diligis, ut ignotum nobis uelis atque ilia estejais embotados no torpor da inércia. Infeliz de mim, se
omnia deleri iubeas, simul ut parcas etiam tabulis, quas iam ainda agora for preciso suportar semelhantes que não possam
non habemus. Non enim aliquid in libros translatum est eo- ser afastados dos vícios sem que outros vícios se sucedam.
rum quae a nobis multa disserta sunt. - Prorsus, inquit Tryge- - Verás - disse Licêncio - como haveremos de ser mais
tius, maneat nostra poena, ut ea ipsa quae nos inlicit fama purificados. Mas pedimos-te, por tudo quanto amas, que nos
flagello proprio a suo amore deterreat. Vt enim solis amicis et queiras perdoar e que mandes apagar todas essas coisas, até
porque já são poucas as tábuas que temos. Na verdade, não
há nada que não tenha sido transcrito para os livros, daque-
las muitas coisas que foram discutidas por nós.
- Pelo contrário - disse Trigécio - permaneça o nosso
castigo, para que essa mesma fama que nos atrai, pelo seu
próprio flagelo nos afaste do amor que lhe temos. De facto,

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familiaribus nostris litterae istae innotescant, non parum de- para que estes livros sejam conhecidos só dos nossos amigos e
sudabimus. -Adsensus est ille. dos que nos são mais íntimos, haveremos de não suar pouco.
O outro concordou.

XI, 31. Atque interea mater ingressa est quaesiuitque a XI, 31. Entretanto, entrou a minha mãe e perguntou-nos
nobis, quid promouissemus; nam et ei quaestio nota erat. Cuius em que tínhamos avançado. Com efeito, a questão era do seu
et ingressum ·et rogationem cum scribi nastro more iussissem: conhecimento. E como eu tivesse determinado, como de costu-
Quid agitis ? inquit. Numquidnam in illis quos legitis libris me, que ficassem registadas tanto a sua chegada como a sua
etiam Ieminas umquam audiui in hoc genus disputationis in- pergunta, ela disse:
ductas? - Cui ego: Non ualde, curo, inquam, superborum Ím- - Que fazeis? Alguma vez ouvi, nesses livros que estais a
peritorumque iudicia, qui similiter in legendos libras atque in ler, que as mulheres tomassem também parte neste género de
salutandos homines inruunt. Non enim cogitant, quales ipsi, discussões?
sed qualibus induti uestibus sint et quanta pompa rerum for- Eu digo-lhe:
tunaeque praefulgeant. Isti enim in litteris non multum adten- - Não me preocupo muito com os juízos dos soberbos e dos
dunt, aut unde sit quaestio aut quo peruenire disserentes ignorantes, que se precipitam do mesmo modo para a leitura
moliantur quidue ab eis explicatum atque confectum sit. ln dos livros e para as saudações dos homens. Com efeito, eles
quibus tamen quia nonnulli reperiuntur, quorum animi con- não pensam na qualidade dos mesmos, mas sim na roupa com
temnendi non sunt (aspersi sunt enim quibusdam condimentis que se vestem e na grande pompa das posses e bens que os
humanitatis et facile per aureas depictasque ianuas ad sacro- faz ?rilhar. Na verdade, esses não prestam muita atenção, nos
sancta philosophiae penetralia perducuntur) satis eis fecerunt escritos, à origem da questão, ou onde se esforçam por chegar
et maiores nostri, quorum libros tibi nobis legentibus notos esse os que discutem ou, sequer, àquilo que por eles é explicado e
uideo; et his temporibus, ut omittam caeteros, uir et ingenio levado a cabo.
et eloquentia et ipsis-insignibus muneribusque fortunae et, Contudo, como entre eles se encontram alguns cujos espíri-
quod ante omnia est, mente praestantissimus Theodorus, quem tos de nenhum modo se devem desprezar - de facto, estão pene-
bene ipsa nosti, id agit, ut et nunc et apud posteros nullum trados por uns certos condimentos de humanidade e facilmen-
genus hominum de litteris nostrorum temporum iure conque- te , se deixam conduzir, através de portas áureas e adornadas ,
ratu~. Mei autem libri, si quorum forte manus tetigerínt lecto- ate penetrar nos santuários da filosofia: os nossos antepassa-
que meo nomine non dixerínt: Iste quis est? codicemque proi- dos, cujos livros vejo que tu conheces quando os lemos, bastante
ecerint, sed uel curiosi uel nimium studiosi, contempta uilitate fizeram por nós. E, nestes tempos, um homem, para não falar
liminis, intrare perrexerint, me tecum philosophantem non de outros, que se distingue pelo talento e pela eloquência, pelos
moleste ferent nec quemquam istorum, quorum meis litteris seus notáveis bens de fortuna e, acima de tudo, pela mente - 0
i~ustríssimo Teodoro, que tu própria bem conheces - agiu as-
sim, de modo que, agora e para a posteridade, nenhum género
de homens há-de lamentar, com razão, os escritos dos nossos
tempos.
Quanto aos meus livros, se acaso chegarem às mãos dos
que, lendo o meu nome, não disserem: «Este, quem é?», dei-
tando fora os escritos, mas, por curiosidade ou por esmero
pelo estudo, sem se fixar na pobreza da porta, persistirem em
entrar, não acharão mal que eu filosofe contigo, e talvez não

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sermo miscetur, fortasse contemnent. Sunt enim non solum desprezem nenhum daqueles cuja palavra se junte aos meus es-
liberi, quod cuiuis disciplinae liberali, nedum philosophiae satis critos. De facto, eles não são apenas livres - o que basta a
est, sed summo apud suos loco nati. Doctissimorum autem qualquer disciplina liberal e, com maior razão, à filosofia -, mas
hominum litterae etiam sutores philosophatos et multo uiliora também ocupam, junto dos seus, um lugar supremo, por nas-
fortunarum genera continent, qui tamen tanta ingenii uirtu- cimento.
tisque luce fulserunt, ut bona sua cum qualibet huiusce modi Ora, os escritos dos homens mais doutos até encerram sa-
nobilitate nullo modo uellent, etiamsi possent, ulla condicione pateiros que filosofam e géneros de fortunas muito mais des-
mutare. Nec deerit, mihi crede, tale hominum genus, cui plus prezíveis que, contudo, brilharam com tão grande luz pelo ta-
placeat hoc ipsurh, quia mecum philosopharis, quam 'si quid lento e pela virtude que de nenhum modo nem sob nenhuma
hic aliud aut iucunditatis aut grauitatis inuenerit. Nam · et condição quereriam trocâr os seus bens por qualquer outro tipo
feminae sunt apud ueteres philosophatae .et philosophia tua de nobreza, mesmo que pudessem.
mihi plurimum placet. Nem faltará, acredita em mim, um tal género de homens a
quem este mesmo facto - que tu tenhas filosofado comigo -
agrade mais do que se encontrasse aqui algo de prazenteiro
ou sério. Na verdade, também entre os antigos as mulheres
fizeram filosofia e a tua filosofia agrada-me muitíssimo.

32. Nam ne quid, mater, ignores, hoc graecum uerbum, quo 32. Assim, para que nada ignores, mãe, esta palavra
phi!osophia nominatur, !atine amor sapientiae dicitur. Vnde grega pela qual a filosofia é designada, em latim diz-se amor
etiam diuinae scripturae, quas uehementer amplecteris, non à sabedoria. Daí que também as Escrituras divinas, que hás-
omnino philosophos, sed philosophos huius mundi euitandos -de abraçar com veemência, não prescrevam que se devem
atque inridendos esse praecipiunt. Esse autem alium mundum evitar e ridicularizar todos os filósofos, mas apenas os filó-
ab istis oculis remotissimum, quem paucorum sanorum intel- sofos deste mundo. Ora; que existe um outro mundo, muitís-
lectus intuetur, satis Christus ipse significat, qui non dicit: simo afastado destes olhos, que o intelecto de uns poucos que
Regnum meum non est de mundo, sed: Regnum meum non est têm saúde pode ver, o próprio Cristo o indica suficientemente.
de hoc mundo. Nam quisquis omnem philosophiam fugiendam Ele não diz: «O meu reino não é do mundo», mas sim: «0 meu
putat, nihil nos uult a!iud quam non· amare sapientiam. Con- reino não é deste mundo. 15,, Assim, quem pensa que se deve
temnerem te igitur in his litteris meis, si sapientiam non evitar toda a filosofia não quer outra coisa senão que não
amares, non autem contemnerem, si eam mediocriter amares, amemos a sabedoria. Portanto, menosprezar-te-ia nestes
multo minus, si tantum, quantum ego, amares sapientiam. meus escritos se não amasses a sabedoria; ora, não te havia
Nunc uero cum eam multo plus quam me ipsum diligas et ·de menosprezar se a amasses mediocremente e muito menos
nouerim, quantum me diligas, cumque in ea tantum profece- se a amasses tanto como eu. Mas agora , na verdade, como tu
ris, ut iam nec cuiusuis incommodi fortuiti nec ipsius mortis, .a amas muito mais do que a mim próprio - e como eu co-
nheço quanto me amas; e uma vez que progrediste tanto
nela que já nem te atemorizas por receio dos infortúnios do

15 Jo. 18,36. Cf. Retract., !, 3, 2 (CCL 57, p. 12). O filósofo retracta-se


de ter assumido esta distinção de Platão ou dos platónicos como própria,
sem dela se distanciar criticamente. V. nota complementar 4, «Üs dois
mundos>>.

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quod uiris doctissimis difficillimum est, horrore terrearis, quam acaso 16 nem da própria morte, coisa muito difícil mesmo para
summam philosophiae arcem omnes esse confitentur, egone me os· homens mais doutos e que todos confessam ser o vértice
non libenter tibi etiam discipulum dabo? supremo da filosofia - não me hei-de eu confiar a ti, de bom
grado, também como discípulo?

33. Hic illa cum blande ac religiose numquam me tantum 33. Então, como ela me dissesse, com ternura e piedade,
mentitum esse dixisset et uiderem tam multa nos uerba fudis- que nunca eu tinha mentido tanto, e eu visse que já tínhamos
se, ut neque scribenda non essent et iam libri modus esset pronunciado tantas palavras que não deviam deixar de se es-
neque tabulae reliquae forent, placuit quaestionem differri, crever; e uma vez que já tinha a forma de um livro, ·' já não
simul ut meo stomacho parcerem. Nam eum plus quam uel- restavam tábuas, aprouve adiar a questão, também para pre-
lem commouerant ea quae mihi euomenda in illos adulescen- servar o meu estômago. Na verdade, fora mais abalado do que
tes necessario uisa sunt. Sed cum abire coepissemus: Memen- eu queria por aquela reprimenda que me pareceu necessário
to, inquit Licentius, quam multa et quam necessaria nobis abs fazer àqueles jovens.
te accipienda per occultissimum illum diuinumque ordinem, Mas, quando começávamos a ir embora, disse Licêncio:
etiam te nesciente, subministrentur. - Video, inquam, et in- - Lembra-te quantas coisas que recebemos de ti - e quão
gratus Deo non sum uosque ipsos, qui haec aduertitis, oh id necessárias! - nos terão sido prestadas através daquela ocul-
ipsum praesumo fore meliores. - Hoc fuit tantum illo die ne- tíssima e divina ordem, mesmo sem tu saberes.
gotium meum. - Estou a ver - disse eu - e não sou ingrato para com
Deus. Quanto a vós próprios, que reparais nisso, presumo que
por esse mesmo motivo vos tornareis melhores.
Este foi todo o meu trabalho naquele dia.

16 Cf. Retract., I, 3, 2 (CCL 57, p. 12). A autocrítica do filósofo incide


sobre o facto de ter usado desmedidamente o termo fortuna neste Diálogo.
V. nota complementar 2, «Adivinhação I profecia)),

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LivRo II
LIBER SECVNDVS LIVRO II

l, 1. Interpositis deinde pauculis diebus, uenit Alypius et, l, 1. Muito poucos dias depois chegou Alípio. Tendo o Sol
exorto sole clarissimo, inuitauit caeli nitor et, quantum in illis despontado com todo o fulgor, a luminosidade do céu e a tempe-
locis hieme poterat bianda temperies in pratum descendere, quo ratura amena - tanto quanto no Inverno podia ser nesses lu-
saepius et familiarius utebamur. Nobiscum erat etiam mater gares - convidou-nos a descer ao campo, onde costumávamos
nostra, cuius ingenium atque in res diuinas inflammatum estar muitas vezes e de forma bastante familiar 1.
animum cum antea conuictu diuturno et diligenti considera- Connosco estava também a nossa mãe, cujo talento e espí-
tione perspexeram, tum uero in quadam disputatione non pa- rito ardente para as coisas divinas eu realmente já antes ti-
ruae rei, quam die natali meo cum conuiuiis habui atque in nha percebido pelo convívio diário e pela atenção diligente.
libellum contuli, tanta mihi mens eius apparuerat, ut nihil ap- Notei-o sobretudo quando de uma certa discussão acerca de um
tius uerae philosophiae uideretur. !taque institueram, cum assunto de não pouca importância que eu tive no dia dos meus
abundaret otio, agere ut conloquio nostro non deesset. Quod anos com os convidados, e que transpus para um pequeno li-
in primo etiam huius operis libro abs te cognitum est. vro. A sua mente manifestara-se-me tão ampla que nada me
parecia haver mais dotado para a verdadeira filosofia. Por isso,
uma vez que ela tinha muito tempo livre, eu resolvera proce-
der de modo que não faltasse ao nosso debate.
Disto tomaste conhecimento no primeiro livro desta obra.

2. Cum igitur memorato in loco, ut commode potuimus, 2. Por conseguinte, depois de nos sentarmos no referido lu-
consedissemus, ego illis duobus adulescentibus: Quamuis uo- gar o mais comodamente que pudemos, digo àqueles dois jo-
bis, inquam, suscensuerim pueriliter de magnis rebus agenti- vens:
- Embora eu me tenha indignado convosco, que tratais de
coisas importantes como crianças, contudo parece-me não ter

1 Cf. BV, IV, 23 (CCL 29, p. 77).

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bus, tamen mihi uidetur non sine ordine propitio Deo accidis- isso acontecido sem ordem e sem a intervenção favorável de
se, quod in sermone, quo uos ah ista leuitate detrahebam, tem- Deus, porque na conversa pela qual eu vos afastava desta vossa
pus ita consumptum est, ut res tanta ad Alypii aduentum di- leviandade se esgotou o tempo, de tal modo que parece que
lata uideatur. Quapropter quoniam ei iam quaestionem um assunto tão importante foi adiado até à chegada de Alípio.
notissimam feci et quantum in ea processerimus ostendi, pa- Por isso, visto que eu já lhe dei a conhecer completamente a
ratusne es, Licenti, causam quam suscepisti ex illa tua defi- questão e lhe mostrei quanto avançámos nela, não estarás
nitione defendere? Nam meminisse me arbitror te ordinem esse preparado, Licêncio, para defender a causa que assumiste a
dixisse, per quem Deus ageret omnia. - Paratus sum, inquit, partir daquela tua definição? Na verdade, julgo recordar-me
quantum ualeo. - Quomodo ergo, inquam, agit ordine omnia que disseste ser a ordem aquilo pelo qual Deus conduziria tudo.
Deus? Itane ut etiam se ordine agat? An praeter eum ordine - Estou preparado, tanto quanto sou capaz - disse ele.
ab eo cetera gubernantur? - Vbi omnia hona sunt, inquit, ordo - Então - digo eu - de que modo Deus conduz tudo pela
non est. Est enim summa aequalitas, quae ordinem nihil desi- ordem? Porventura é de tal forma que Ele se conduza a si
derat. - Negas, inquam, apud Deum omnia hona esse?- Non mesmo por essa mesma ordem? Ou, exceptuando Ele, as de-
nego, inquit. - Conficitur, inquam, neque Deum neque illa mais coisas são governadas por Ele pela ordem?
quae apud Deum sunt ordine administrari. - Concedebat. - Ele disse:
Numquidnam, inquam, omnia hona nihil tibi uidentur esse? - - Onde tudo é bom não há ordem. Há, na verdade, uma
Immo, ait, ipsa uere sunt. - Vbi ergo est, inquam, illud tuum suma igualdade, que não precisa de nenhuma ordem.
quod dixisti, omnia quae sunt ordine administrari nihilque - Negas que todos os bens estão junto de Deus?- pergun-
omnino esse, quod ab ordine separatum sit? - Sed sunt, in- tei eu.
quit, etiam mala, per quae factum est, ut et hona ordo conclu- - Não nego - disse ele.
dat; nam sola hona non ordine reguntur, sed simul hona et - Segue-se que nem Deus nem aquelas coisas que estão
mala. Cum autem dicimus: «omnia quae sunt», non sola uti- junto de Deus são administradas pela ordem - disse eu.
que hona dicimus. Ex quo fit, ut omnia simul, quae Deus ad- Ele admitia.
ministrat, ordine administrentur. - Porventura todos os bens nada te parecem ser? - per-
guntei eu.
- Pelo contrário, eles próprios são verdadeiramente - dis-
se ele.
- Onde está, então, aquilo que tu disseste: que tudo o que
é, é administrado pela ordem, e que não existe absolutamente
nada que esteja separado da ordem? - disse eu.
- Mas também há males - disse ele. - Por isso acontece
que a ordem inclui também os bens. De facto, a ordem não
rege apenas os bens, mas os bens e os males simultaneamen-
te. Ora quando dizemos «Tudo o que é» não dizemos, em qual-
quer caso, que existam só os bens. Daí resulta que tudo o que
Deus administra é administrado simultaneamente pela ordem.

3. Cui ego: Quae administrantur et aguntur, uidentur tibi 3. Digo-lhe eu:


moueri an immobilia putas esse? - Ista, inquit, quae in hoc - As coisas que são administradas e conduzidas parecem-
-te ser movidas ou pensas que são imóveis?
10

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mundo fiunt, fateor moueri. - Reliqua, inquam, negas? - Quae - Estas que acontecem neste mundo - disse ele-, con-
sunt cum Deo, inquit, non mouentur, re1iqua omnia moueri fesso que estão em movimento.
arbitror. - Cum igitur ea quae cum Deo sunt, inquam, non - E as restantes não? - perguntei eu.
moueri putas, cetera autem concedis moueri, ostendis omnia - As coisas que estão com Deus - disse ele - não estão
quae mouentur non esse cum Deo. - Repete hoc ipsum, inquit, em movimento. As restantes, julgo que se movem.
paulo planius. - Quod non mihi uisus est difficultate intelle- - Portanto - digo eu - uma vez que pensas que aquelas
gendi fieri uoluisse, sed quaerendi spatium, quo inueniret quid coisas que estão com Deus não estão em movimento e que
responderet. - Dixisti, inquam, ea quae cum Deo sunt non concordas que as demais se movem, mostras que tudo o que
moueri, cetera autem moueri. Si ergo haec quae mouentur non se move não está com Deus2.
mouerentur, si essent cum Deo, quoniam omnia quae sunt cum - Repete isso um pouco mais claramente - disse ele.
Deo negas moueri, restat ut praeter Deum sint quae mouen- Não me pareceu que quisesse fazer isso pela dificuldade de
tur. - Quibus dictis, adhuc tacebat, cum tandem: Videtur mihi, entender, mas para ter um intervalo no qual encontrasse que
inquit, quod et in hoc mundo si qua non mouentur, cum Deo responder.
sunt. - Nihil hoc ad me, inquam; fateris enim, ut opinor, non - Disseste - respondi - que aquelas coisas que estão com
omnia, quae in hoc mundo sunt, non moueri. Ex quo confici- Deus não estão em movimento e que as demais, no entanto,
tur non omnia mundi huius esse cum Deo. - Fateor, inquit, se movem. Portanto, se estas, que estão em movimento, não
non omnia. - Ergo est aliquid sine Deo? - Non, inquit. - Cum se moveriam se estivessem com Deus - já que tu negas que
Deo sunt igitur omnia. - Hic cunctabundus: Quaeso, inquit, se move tudo o que está com Deus - resta que estão fora de
illud non dixerim, quod sine Deo nihil sit. N am prorsus om- Deus as coisas que estão em movimento.
nia quae mouentur non mihi uidentur esse cuin Deo. - Sine Dito isto, ele ainda guardava silêncio, quando, por fim, disse:
Deo est, inquam, igitur caelum hoc, quod moueri nemo ambi- - Parece-me que, neste mundo, se há coisas que não estão
git. - Non est, inquit, sine Deo caelum. - Ergo est aliquid cum em movimento, estão com Deus.
- Isso a mim não me interessa ___digo eu. - Na verdade, ~
tu confessas, segundo creio, que µô.'.€ tudo o que está neste
mundo que não está em movimento. Daí se segue que nem
todas as coisas deste mundo estão com Deus.
- Confesso - disse ele - que nem todas.
- Então há alguma coisa sem Deus?
- Não - dísse ele.
- Portanto tudo está com Deus.
Hesitando neste ponto, ele dísse:
- Por favor, isso eu não terei dito, que nada esteja sem
Deus. De facto, não há dúvida de que tudo o que está em
movimento não me parece estar com Deus.
- Sem Deus está, portanto, este céu, que ninguém duvida
dizer que se move - disse eu.
- O céu não está sem Deus - disse ele.

2
V. nota complementar 5, «Esse cum deo».

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Deo quod moueatur? - N on possum, inquit, ut uolo, explicare - Portanto existe alguma coisa com Deus que se mova?
quod sentio; tamen quid moliar dicere peto, ut, non expectatis - Não posso explicar como quero o que apreendo - disse
uerbis meis, sagacissime, si potestis, intellegatis. Nam et sine ele. - Contudo, no que me vou esforçar por dizer, peço que
Deo mihi nihil uidetur esse et quod cum Deo est, rursum ui- não vos fixeis nas minhas palavras, mas que as entendais com
detur inconcussum manere; caelum autem dicere sine Deo esse toda a sagacidade, se puderdes. Na verdade, não me parece
non possum, non solum quod nihil sine Deo esse arbitror, sed que algo esteja sem Deus e o que está com Deus, inversamen-
quod caelum putem habere aliquid, quod non mouetur, quod te, parece-me que permanece inamovível: ora, não posso dizer
uere aut Deus est aut cum Deo, quamuis ipsum caelum non que o céu está sem Deus, não só porque julgo que nada está
dubitem uerti ac moueri. sem Deus, mas porque penso que o céu tem algo que não se
move que, de facto, ou é Deus ou está com Deus - embora eu
não duvide que este mesmo céu rode e se mova.

II, 4. Defini ergo, inquam, si placet, quid sit esse cum Deo II, 4. Define, portanto, se te parece bem, o que é estar com
et quid sit non esse sine Deo. Si enim de uerbis inter nos con- Deus e o que é não estar sem Deus - digo eu. - Na verdade,
trouersia est, facile contemnetur, dummodo rem ipsam, quam se a controvérsia entre nós é acerca das palavras, facilmente
concepisti mente, uideamus. - Odi ego, inquit, definire. - Quid a desprezaremos, logo que vejamos a própria coisa que tens
ergo faciemus?, inquam. -Tu, inquit, defini, quaeso. Nam fa- em mente.
cilius est mihi uidere in alterius definitione, quid non probem, - Eu odeio definir! - disse ele.
quam quicquam bene definiendo explicare. - Geram tibi mo- - Então, que faremos? - respondi.
rem, inquam. Videtur tibi id esse cum Deo, quod ab eo regitur - Peço-te que definas tu. Na verdade, é mais fácil para mim
atque administratur? - Non, ait ille, hoc animo conceperam, ver, na definição de outro, algo que eu não aprove, do que ex-
cum dicebam ea quae non mouentur esse cum Deo. -Vide ergo, plicar alguma coisa, definindo-a bem.
inquam, utrum haec tibi saltem definitio placeat: cum Deo est - Obedecerei à tua vontade - disse eu. - Parece-te que
quicquid intellegit Deum. - Concedo, inquit. -Quid ergo?, in- está com Deus aquilo que é por ele regido e administrado? -
quam. Sapiens Deum tibi intellegere non uidetur? - Videtur, perguntei.
inquit. - Cum ergo sapientes non solum in una domo aut urbe, - Não era isso que eu tinha pensado quando dizia que
sed etiam per immensa regionum peregrinando nauigandoque aquelas coisas que não se movem estão com Deus - disse ele.
moueantur, quomodo erit uerum quicquid cum Deo est non - Então vê se ao menos esta definição te agrada - disse
moueri? - Risum mihi, inquit, mouisti, quasi ego quod sapi- eu: - «Está com Deus tudo o que entende Deus.»
ens facit dixerim esse cum Deo. Cum Deo est, sed illud quod - Aceito - disse ele.
nouit. - Non nouit, inquam, sapiens codicem suum, pallium, - Então, como é? - perguntei. - Não te parece que o sá-
bio entende Deus?
- Parece-me que sim - disse ele.
- Portanto, uma vez que os sábios não só se movem numa
casa ou cidade, mas também viajando e navegando por imen-
sas regiões, de que modo será verdade que não se move tudo
aquilo que está com Deus?
- Fizeste-me rir! - disse ele. - É como se eu tivesse dito
que o que sábio faz está com Deus. Está com Deus mas no
que respeita àquilo que ele conhece.

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tunicam, supellectilem, si quam habet, ceteraque id genus, quae - O sábio não conhece o seu livro, a sua toga, a sua túni-
stulti etiam bene nouerunt? - Fateor, inquit, nosse tunicam ca, os seus haveres, se os tiver, e todas as demais coisas deste
et nosse pallium non esse cum Deo. género, que os estultos também conhecem bem? - disse eu.
- Confesso - disse ele - que não estão com Deus o conhe-
cimento da túnica e o conhecimento da toga.

5. Hoc ergo, inquam, dicis non omne quod nouit sapiens 5. Eu disse:
esse cum Deo, sed tamen quicquid sapientis cum Deo est, id - Então, tu dizes isto: que nem tudo o que o sábio conhece
nosse sapientem. - Optime, inquit; nam quicquid sensu isto está com Deus mas tudo o que é do sábio e está com Deus,
corporis nouit, non est cum Deo, sed illud quod animo perci- isso é o que o sábio conhece.
pit. Plus etiam fartasse audeo dicere, sed tamen dicam; uobis - Perfeitamente - disse ele. - Pois tudo o que ele conhe-
enim existimatoribus aut confirmer aut discam. Quisquis ea ce por este sentido do corpo não está com Deus, mas aquilo
sola nouit, quae corporis sensus adtingit, non solum cum Deo que apreende pelo espírito. Talvez seja muita ousadia dizer
esse non mihi uidetur, sed ne secum quidem. - Hic cum Tryge- mais ainda, mas contudo di-lo-ei; assim, pela vossa aprecia-
tium animaduertissem in eo uultu, ut nescio quid uelle dicere ção, ou o hei-de confirmar, ou hei-de aprender. Na verdade,
uideretur, sed uerecundia eum, ne quasi in alienum locum quem conhece só as coisas que atinge pelos sentidos do corpo
inrueret, contineri, feci potestatem, iam tacente Licentio, ut não só não me parece que está com Deus, mas nem sequer
promeret, si quid uellet. At ille: Ista, inquit, quae ad sensus consigo mesmo.
corporis pertinent, prorsus nemo mihi uidetur nosse. Aliud est Então, como eu tinha reparado, pelo seu rosto, que Trigé-
enim sentire, aliud nosse. Quare si quid nouimus, solo intel- cio parecia querer dizer não sei que coisa, mas que estava
lectu contineri puto et eo solo posse comprehendi. Ex quo fit contido pela timidez, não fosse intrometer-se em terra alheia,
ut, si illud est cum Deo, quod intellegendo sapiens nouit, to- depois de Licêncio se ter calado, dei-lhe oportunidade para ex-
tum quod nouit sapiens possit esse cum Deo. - Quod cum primir alguma coisa, se quisesse.
Licentius approbasset, subiecit aliud, quod nullo pacto passem E ele disse:
contemnere. Ait enim: Sapiens prorsus ipse cum Deo est; nam - Estas coisas que pertencem aos sentidos do corpo pare-
et se ipsum intellegit sapiens. Quod conficitur et ex eo quod ce-me que ninguém as conhece inteiramente. Com efeito, uma
a te accepi, id esse cum Deo quod intellegit Deum, et ex eo quod coisa é perceber pelos sentidos, outra ter conhecimento 3. Por
isso, se há algo de que temos conhecimento, penso que isso só
pertence ao entendimento e só por ele pode ser compreendido.
Daí deriva que se aquilo que o sábio conhece pelo entendimento
está com Deus, tudo o que o sábio conhece pode estar com
Deus.
Tendo aprovado isto, Licêncio acrescentou uma outra coisa,
que de modo nenhum poderia desprezar. Com efeito, disse:
- O próprio sábio está totalmente com Deus. Na verdade,
é a si mesmo que ele conhece. Isto resulta tanto daquilo que
eu ouvi de ti, a saber, que ·está com Deus o que entende Deus,

3 V. nota complementar 6, «Sentire / nosse».

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a nobis dictum est, id esse cum Deo, quod a sapiente intelle- como daquilo que foi dito por nós, que está com Deus o que é
gitur. Sed hanc eius partem, per quam istis utitur sensibus entendido pelo .sábio. Mas esta parte dele, pela qual se serve
- non enim puto connumerandam esse, cum sapientem uoca- destes sentidos (na verdade, não julgo que ela deva ser tida
mus - fateor me nescire nec omnino cuius modi sit suspicari. em conta quando invocamos o sábio), confesso que a desconheço
e não suspeito em absoluto qual seja o seu modo de ser.

6. Negas ergo, inquam, non solum ex corpore et anima, sed 6. Tu negas, portanto - disse eu-, que o sábio não só
etiam ex anima tota constare sapientem, si quidem partem é constituído por corpo e alma mas também por uma alma ín-
istam, qua utitur sensibus, animae esse negare dementis est. tegra - se não é, de algum modo, próprio de um louco negar
Non enim ipsi oculi uel aures, sed nescio quid aliud per oculos que é da altna esta parte, pela qual se serve dos sentidos. Com
sentit. Ipsum autem sentire si non damus intellectui, non da- efeito, não são os próprios olhos ou ouvidos que percebem, mas
mus alicui parti animae. Restat ut corpori tribuatur, quo ab- não sei que outra coisa, através dos olhos. Ora, se não atri-
surdius dici nihil interim mihi uidetur. -Anima, inquit, sa- buímos a própria percepção ao entendimento, não a atribuí-
pientis perpurgata uirtutibus et iam cohaerens Deo sapientis mos a alguma parte da alma. Resta que seja atribuída ao cor-
etiam nomine digna est nec quicquam eius aliud delectat appel- po - o que, entretanto, nada de mais absurdo me parece poder
lare sapientem; sed tamen quasi quaedam, ut ita dicam, sor- dizer-se.
des atque exuuiae, quibus se ille mundauit et quasi subtraxit - A alma do sábio - disse ele -, bem purificada pelas vir-
in se ipsum, ei animae seruiunt uel si tota haec anima dicen- tudes e já unida a Deus, só assim é digna do nome de sábio e
da est, ei certe parti animae seruiunt atque subiectae sunt, não há nele nenhuma outra coisa a que lhe agrade chamar
quam solam sapientiam nominari decet; in qua parte subiecta sábia. Contudo, é como se essa espécie de imundícies e exú-
etiam ipsam memoriam puto habitare. Vtitur ergo hac sapi- vias - para lhe chamar de algum modo -, das quais ele se
ens quasi seruo, ut haec ei iubeat easque iam domito atque limpou e como que arrancou de si próprio, estivessem ao ser-
substrato metas legis imponat, ut dum istis sensibus utitur viço daquela alma; ou, se devemos falar desta alma na sua
propter illa, quae iam non sapienti, sed sibi sunt necessaria, totalidade, certamente elas servem e estão sujeitas àquela parte
non se audeat extollere nec superbire domino nec his ipsis, da alma que é a única a que convém chamar sábia. Nessa parte
quae ad se pertinent, passim atque immoderate uti. Ad illam submetida, julgo que reside também a própria memória4.
enim uilissimam partem possunt ea pertinere quae praetereunt. O sábio, portanto, serve-se dela como de um escravo, de modo
Quibus autem est memoria necessaria nisi praetereuntibus et a que mande nela e, uma vez domada e submissa, lhe impo-
quasi fugientibus rebus? Ille igitur sapiens amplectitur Deum nha os limites da lei de tal maneira que, enquanto se serve
desses sentidos em função daquelas coisas que são necessárias
não já ao facto de ser sábio mas a si própria, ela não ouse
erguer-se contra o seu senhor nem se lhe sobreponha, e se sirva
sem moderação e ao acaso dessas mesmas coisas que dizem
respeito a ela. A essa parte mais baixa podem pertencer aque-
las coisas que são passageiras. E para que outra coisa é ne-
cessária a memória a não ser para as coisas passageiras e com.o
que fugazes? Portanto, o sábio· une-se a Deus e desfruta Da-

4
V. nota complementar 7, «Memoria».

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eoque perfruitur, qui semper manet nec expectatur, ut sit, nec quele que sempre permanece sem se esperar que seja nem ter
metuitur, ne desit, sed eo ipso, quo uere est, semper est medo que deixe de ser, mas que, pelo próprio facto de que
praesens. Curat autem immobilis et in se manens serui sui verdadeiramente é, é sempre presente. Imóbil e permanecen-
quodam modo peculium, ut eo tamquam frugi et diligens fa- do sempre em si mesmo, o sábio guarda de certo modo o pecú-
mulus bene utatur parceque custodiat. lio do seu escravo para que, como servo diligente e frugal, faça
dele um bom uso e o conserve com parcimónia.

7. Quam sententiam eius cum admiratione considerans re- 7. Considerando com admiração a exposição de Licêncio,
cordatus sum id ipsum aliquando me breuiter, illo audiente, lembrei-me de ter dito isso mesmo brevemente, um dia, estan-
dixisse. Tum adridens: Gratias age, inquam, Licenti, huic se- do ele a ouvir5 • Digo então, com um sorriso:
ruo tua, qui tibi nisi aliquid de peculio suo ministraret, nunc - Licêncio, agradece aqui ao teu escravo que, se não te
fartasse quod promeres non haberes. N am si ad eam partem tivesse fornecido alguma coisa do seu património, agora talvez
memoria pertinet, quae se uelut famulam bonae menti regen- não tivesses que lhe dar. Com efeito, se a memória pertence
dam concedit, ipsa nunc adiutus es, mihi crede, ut hoc dice- àquela parte que, como uma serva bem governada, cede o lu-
res. Ergo antequam ad illum ordinem redeam, nonne tibi ui- gar à mente, ela própria veio agora em teu auxílio, podes crer,
detur uel propter talia, id est propter honestas ac necessarias para que dissesses isto. Portanto, antes que eu retorne àquela
disciplinas, memoria opus esse sapienti? - Quid, inquit, me- ordem que tratamos, não te parece que é preciso ao sábio a
moria opus est, cum omnes suas res praesentes habeat ac te- memória, mesmo até por causa dessas coisas, isto é, das disci-
neat? Non enim uel in ipso sensu ad id quod ante oculos nas- plinas nobres e necessárias?
tros eat, in auxilium uocamus memoriam. Sapienti igitur ante Ele disse:
illos interiores intellectus oculos habenti omnia, id est Deum - Para que lhe é preciso a memória, uma vez que ele tem
ipsum fixe immobiliterque intuenti, cum quo sunt omnia, quae e conserva presentes todas as suas coisas? Com efeito, na pró-
intellectus uidet ac possidet, quid opus est, quaeso, memoria? pria percepção do que está diante dos nossos olhos não chama-
Mihi autem ut opus esset ad haec quae abs te audieram reti- mos em auxílio a memória. Portanto, ao sábio, tendo tudo ante
nenda, nondum sum illius famuli dominus, sed ei modo seruio, aqueles olhos interiores do entendimento - isto é, contem-
modo pugno, ut non seruiam, et quasi audeo me adserere in plando o próprio Deus de modo fixo e imóvel, com o qual estão
libertatem meam, et si forte aliquando impero atque obtempe- todas as coisas que o entendimento vê e possui, pergunto eu:
rat mihi facitque saepe putare, quod uicerim, in aliis rursus para que lhe é necessária a memória? Ora, a mim fez-me falta
rebus ita sese erigit, ut eius sub pedibus miser iaceam. Quam para reter aquelas coisas que ouvira de ti: ainda não sou dono
ob rem quando de sapiente quaerimus, me nolo nomines. - de um tal servo; mas ora o sirvo, ora luto por não o servir e
Nec me, inquam, sed tamen numquidnam sapiens iste suos como que ouso afirmar-me na minha liberdade. E se acaso al-
potest deserere aut ullo pacto, cum hoc corpus agit, in quo guma vez comando e ele me obedece e me faz pensar, muitas
vezes, que o venci, noutras coisas, pelo contrário, ele ergue-se para
que - infeliz de mim! - me lance a seus pés. Por isto mesmo,
quando indagamos acerca do sábio, não quero que me nomeies.
- Nem a mim - disse eu. - Contudo, porventura pode ess.e
sábio abandonar os seus ou, quando conduz este corpo no qual

5 Cf. CA, II, 9, 22 (CCL 29, p. 30).

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istum famulum sua lege deuinctum tenet, relinquit officium conserva esse servo submisso pela sua lei, abandonará de al-
beneficia tribuendi quibus potest et maxime, quod ab eo uehe- gum modo o obséquio de dar todos os bens a· quem possa e,
mentissime flagitatur, sapientiam ipsam docendi. Quod cum sobretudo - o que se lhe exige com tanta insistência - o de
facit, ut congrue doceat minusque ineptus sit, praeparat saepe ensinar a própria sabedoria? Quando o faz, para que ensine
aliquid, quod ex dispositione eloquatur ac disputet, quod nisi convenientemente e seja o menos incompetente possível, pre-
memoriae commendauerit, pereat necesse est. Ergo aut officia para, com frequência, alguma coisa que possa expor e discutir
beneuolentiae negabis esse sapientis aut confiteberis res ali- a partir da dispositio, que necessariamente se perde, a não ser
quas sapientis memoria custodiri. An fortasse aliquid suarum que tenha sido confiada à memória. Portanto, ou negarás se-
rerum non propter se quidem, sed propter suos sibi tamen rem do sábio os obséquios da benevolência, ou confessarás que
necessarium commendat seruandum illi famulo, ut ille tam- estão guardadas na memória do sábio algumas coisas: ou será,
quam sobrius et ex optima domini disciplina non quidem cus- talvez, que ele confia uma parte desses bens - que lhe é ne-
todiat, nisi quod propter stultos ad sapientiam perducendos, cessário conservar, não em função de si, mas por causa dos
sed quod ei tamen ille custodiendum imperarit?- Nec omni- seus - àquele servo, para que este último, sobriamente e sob
no huic, inquit, commendari quicquam arbitror a sapiente, si a excelente disciplina do senhor, não guarde outra coisa a não
quidem ille Deo semper infixus est siue tacitus siue cum ho- ser aquilo que ele lhe mandou guardar para conduzir os estul-
minibus loquens; sed ille seruus iam bene institutus diligen- tos à sabedoria?
ter seruat, quod interdum disputanti domino suggerat et ei - Eu não julgo de maneira nenhuma que alguma coisa é
tamquam iustissimo gratum faciat officium suum, sub cuius confiada à memória pelo sábio - disse ele -, se é verdade que
se uidet potestate uiuere, et hoc facit non quasi ratiocinando, ele está sempre fixo em Deus, quer calado quer falando com
sed summa ma: lege summoque ordine praescribente. - Nihil, os homens. Mas aquele servo já bem instruído conserva dili-
inquam, nunc resisto rationibus tuis, ut quod suscepimus po- gentemente coisas que sugerir uma vez por outra, estando o
tius peragatur. De isto uero diligenter, quem ad modum sese seu senhor discutindo, e cumpre com agrado a sua tarefa para
habeat (non enim parua res est aut tam paruo sermone con- com um senhor tão justo, sob cuja autoridade reconhece que
tenta) uidebimus alias, cum Deus ipse opportunitatem ordine vive. E fá-lo, não raciocinando, mas pela prescrição daquela
dederit. suma lei e ordem suprema.
- Por agora, nada mais oponho aos teus raciocínios, para
que se leve a termo, antes, o que empreendemos. Acerca deste
assunto e do modo como ele se apresenta (na verdade não se
trata de um assunto de pouca monta e não pode ser explicado
por um discurso tão parco) havemos de ver diligentemente
outras coisas, quando o próprio Deus nos der oportunidade, pela
ordem.

III, 8. Definitum est autem quid sit esse cum Deo, et cum III, 8. Ora já foi definido o que é estar com Deus. E, tendo
a me dictum est id esse cum Deo, quod intellegit Deum, uos sido dito por mim que está com Deus aquele que entende Deus,
etiam plus adiecistis, ut ibi sint etiam illa quae intelleguntur vós acrescentastes ainda mais: que aí estão também aquelas
a sapiente. Qua in re multum me mouet, quomodo subito cum coisas que são entendidas pelo sábio. Neste assunto muito me
Deo stultitiam collocaueritis. N am si cum Deo sunt, quaecum- perturba o modo como subitamente tereis colocado a estultícia
que intellegit sapiens nec nisi intellectam stultitiam effugere em Deus. Assim, se estão com Deus todas aquelas coisas que
o sábio entende, e se ele não pode evitar a estultícia senão

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potest, erit etiam, quod dictu nefas est, pestis ilia cum Deo. -:-- entendendo-a, então estará também aquele flagelo com Deus _ 0
Qua conclusione commoti cum in silentio se aliquantum tenms- que é ilícito dizer.
sent: Respondeat, inquit Trygetius, etiam ille, de cuius aduentu Tendo eles ficado algum tempo em silêncio, perturbados por
ad istam disputationem opportunissimo non nos puto temere esta conclusão, Trigécio disse:
gratulatos. -Tum Alypius: Deus meliora!, inquit. Hucine mihi - Responda aquele de cuja chegada oportuníssima a esta
tandem tantum meum silentium parabatur? Sed inrupta iam discussão não penso que nos tenhamos alegrado em vão.
quies est. Verum nunc enitar huic utcumque rogationi satisfa- Então, Alípio disse:
cere, cum mihi prius uel in futurum prospexero et a uobis - Deus me dê melhor sorte! Era para estas coisas que me
impetrauero, ut a me amplius ista responsione nihil flagite- preparava o meu longo silêncio? Mas a tranquilidade já está
tis. - Nullo modo, inquam, est, Alypi, beneuolentiae atque quebrada. Certamente agora vou-me esforçar por dar satisfa-
humanitatis tuae uocem tuam sermoni nastro etiam desidera- ção a quem me interroga, mas antes de mais terei velado pelo
tam negare. Sed perge modo, quod instituisti effice; cetera, ut futuro e terei conseguido de vós que não me exijais nada mais
iam sese habet ordo ille, prouenient. -Aeque mihi de ordine, do que esta resposta.
inquit, sunt speranda meliora, in cuius adsertione interim me - Alípio, de nenhum modo é da tua benevolência e da tua
substituere uoluistis. Sed, ni fallor, ob hoc stultitiam Deo ista humanidade negares a tua voz, também desejada no nosso
tua conclusione ab his copulatam putasti, quod uniuersa, quae diálogo - disse eu. - Mas prossegue simplesmente, termina
intellegit sapiens, cum Deo esse dixerunt. Sed id quatenus aquilo que começaste; as demais coisas hão-de acontecer como
accipiendum sit, nunc omitto; tuam illam ratiocinationem pau- já está contido naquela ordem.
lulum aduerte. Dixisti quippe: «Nam si cum Deo sunt, quae- - Igualmente, devem esperar-se coisas melhores para mim
cumque intellegit sapiens nec nisi intellectam stultitiam effu- vindas da ordem, em defesa da qual, entretanto, quiseste que
gere potest» (quasi uero illud obscurum sit, antequam stultitiam eu vos substituísse - disse ele. - Mas, se não me engano, pen-
quisque uitet, sapientis eum nomine non esse censendum) et saste que a estultícia era por eles unida a Deus - e daí esta
dictum est a sapiente intellecta esse cum Deo. Cum igitur tua conclusão - por eles terem dito que todas as coisas que 0
euitandae stultitiae gratia eandem stultitiam quisque intellegit, sábio entende estão com Deus. Mas deixo por agora até que
nondum est sapiens. Cum autem sapiens fuerit, non inter ea ponto isto deva ser aceite. Presta um pouco de atenção àquele
quae ille intellegit stultitia numeranda est. Quamobrem quo- teu raciocínio. Disseste, de facto: «Na verdade, estão com Deus
niam ea coniuncta sunt Deo, quae iam sapiens intellegit, recte todas as coisas que o sábio entende e ele não pode evitar a
a Deo stultitia secernetur. estultícia, excepto se a entender» - como se realmente fosse
duvidoso que, antes de evitar a estultícia, devesse ser conce-
dido a alguém o nome de sábio - e foi dito que as coisas en-
tendidas pelo sábio estão com Deus. Portanto, uma vez que é
em virtude da própria estultícia que alguém entende que a es-
tultícia deve ser evitada, então ainda não é sábio. Porém, quan-
do for sábio, a estultícia não deve ser contada entre as coisas
que entende. Por isso, uma vez que as coisas que entende
quando já é sábio estão unidas a Deus, com justiça a estultí-
cia será separada de Deus.

9. Acute quidem, inquam, ut soles, Alypi, respondisti, sed 9. De facto, respondeste agudamente, como de costume,
tanquam in alienas trusus angustias. Tamen quia, ut arbitrar, Alípio, mas como que impelido para dificuldades alheias - dis-

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adhuc mecum stultus esse dignaris, quid faciemus, si ali~uem se eu. - Contudo porque, como julgo, tal como eu, ainda te
nanciscamur sapientem, qui nos tanto mal.o docendo ac d1sp~­ consideras estulto, que faremos se depararmos com algum sá-
tando libenter liberet? Nam nihil eum prius, quantu'.11 ar~1- bio que de bom grado nos libertasse de um tão grande mal,
tror, deprecaturus sum, nisi ut mihi oste.ndat quae .s1t, qmd pelo ensino e pela discussão? Com efeito, segundo creio, antes
sit qualis sit omnino stultitia. De te emm non facile adfir- de mais, nada lhe haverei de suplicar a não ser que me mos-
m~uerim; me tamen tantum et tam diu detinet, .quantum et tre o que é a estultícia, em que consiste, que tipo de coisa é
quamdiu a me non intellegitur. Dicturus est ergo 1lle te aucto- em absoluto. Acerca de ti, na verdade, eu não o afirmaria fa-
re: «Vt hoc uos <lacerem, quando stultus eram, ad me uenire cilmente. Contudo, quanto a mim ela detém-me na mesma me-
debuistis· modo autem uos uestri magistri esse poteritis. Nam dida e ao mesmo tempo que não é entendida por mim.
ego iam ~tultitiam non intellego». Quod quidem ab eo .si audi- Aquele há-de então dizer, de acordo com a tua posição: «Para
rem non uererer admonere hominem, ut comes nob1s fieret que vos ensinasse isto, deveríeis ter vindo ter comigo quando
sim~lque magistrum alium quaereremus. Vt enim plene stul- eu era estulto; agora, contudo, só vós podeis ser os vossos
titiam non intellego, uideo tamen nihil responsione hac esse mestres. Com efeito, eu já não entendo a estultícia.»
stultius. Sed pudebit eum fartasse ita nos aut relinquere aut Mas se eu ouvisse isto dele, não hesitaria em aconselhar o
sequi. Disputabit ergo et exaggerabit copiosissime stultitiae homem a que se tornasse nosso companheiro e a procurarmos
mala. Nos autem bene nobis prouidentes aut audiemus adtente juntos um outro mestre. Na verdade, ainda que não entenda
hominem nescientem quae loquatur aut credemus eum id quod plenamente a estultícia, contudo parece-me que não há nada
non intellegit scire aut adhuc Deo susceptorum tuorum ratio- mais estulto do que esta resposta. Mas talvez assim ele terá
ne stultitia copulata est. Nihil autem superiorum est quod vergonha de nos abandonar ou de nos seguir. E então discuti-
uideo posse defendi; restat igitur, quod non uultis, ex.tre- rá e acrescentará abundantemente os males da estultícia. Po-
mum. - Numquam te, inquit, inuidum senseram. Nam s1 ab rém, nós, acautelando-nos bem, ou ouviremos atentamente um
istis, ut <líeis, susceptis quicquam honorarii, ut solet, accepis- homem que desconhece aquilo de que fala, ou acreditaremos
sem, dum ratiocinationis huius nimium tenax es, id eis modo que ele conhece o que não entende, ou, ainda, seguindo o racio-
reddere cogerer. Quare uel hoc contenti sint, quod me tecum cínio dos que tens a teu cargo, a estultícia está unida a Deus.
laborante non parum eis ad excogitandum temporis dedi; uel Não vejo que possa ser defendida nenhuma das coisas que
si uicti patroni nulla quidem sua culpa consílio libenter aus- foram ditas em primeiro lugar. Resta, portanto, a última, que
cultant, et in hoc iam tibi cedant et sint in ceteris cautiores. não quereis admitir.
- Nunca antes me tinha apercebido de que eras invejoso -
disse ele. - Na verdade, se, como é costume, eu tivesse acei-
tado algum honorário destes que, como tu dizes, tenho a meu
cargo, seria obrigado a restituir-lho imediatamente, uma vez que
tu persistes neste raciocínio. Assim, ou eles estão contentes por-
que, trabalhando contigo, não foi pouco o tempo que lhes dei
para pensar; ou - se escutam de bom grado o conselho do seu
patrono, vencido sem nenhuma culpa sua - não só te hão-de
ceder agora a vez como serão mais precavidos para a próxima.

10. Non contemnam, inquam, quod in tua defensione Tryge- 10. Eu disse:
tius nescio quid etiam perstrepens dicere cupiebat, faciamque - Não desprezarei o facto de que, durante a tua exposição,
Trigécio, fazendo ruído, desejasse ainda dizer não sei que coisa
ÍI

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hona tua uenia (nam fortasse non bene instructus es, qui re- e, com a tua benevolência, faria como tinha começado - com
cens huic negotio superuenisti), ut, remoto patrocinio, ipsos efeito, tu, que chegaste recentemente a este assunto, talvez não
causam suam peragentes audiam patienter, ut coeperam. - estejas bem a par: ouviria pacientemente eles próprios defen-
Tum Trygetius, Licentio prorsus absente: Quomodo uultis, in- derem a sua causa, sem patrono.
quit, accipite et ridete stultitiam meam. Non mihi uidetur Então disse Trigécio, estando Licêncio completamente dis-
debere dici intellectus, quo intellegitur ipsa stultitia, quae non traído:
intellegendi uel sola uel maxima causa est. - N on facile, in- - Recebei a minha estultícia como quiserdes e podeis rir
quam, recuso istud accipere. Quamuis enim me multum mo- dela. Não me parece que se deva falar de um entendimento
ueat, quod sentit Alypius, quomodo recte possit quisque doce- pelo qual se entenda a própria estultícia, que é a única ou a
re, qualis sit res, quam non intellegit, quantamque menti principal causa de nós não entendermos.
adferat perniciem, quod mente non uidet (nam id utique adten- - Dificilmente recuso aceitar isso - digo eu. - Embora me
dens, quod tu dixisti, dicere est ueritus, cum ei sit ista etiam incline muito para o que diz Alípio quando se interroga sobre
de doctorum libris nota sententia), tamen sensum ipsum con- o modo como alguém pode ensinar convenientemente o que é
siderans· corporis (nam et isto ipso anima utitur et ipsa sola uma coisa que não entende e quanto dano advém à mente o
est cum intellectu qualiscumque conlatio) adducor, ut dicam que não vê na mente - na verdade, tendo em conta isto que
neminem posse uidere tenebras. Quamobrem si menti hoc est tu disseste, em qualquer caso ele receou dizê-lo, sendo-lhe tam-
intellegere, quod sensui uidere, et licet quisque oculis apertis bém conhecida esta afirmação pelos livros dos sábios; contudo,
sanis purisque sit, uidere tamen tenebras non potest, non ab- considerando o próprio sentido corpóreo - com efeito, só a alma
surde dicitur intellegi non posse stultitiam; nam nullas alias se serve deste mesmo e só ela tem com o entendimento algum
mentis tenebras nominamus. Nec iam illud mouebit, quomodo tipo de relação - sou levado a dizer que ninguém pode ver as
stultitia possit non intellecta uitari. Vt enim oculis tenebras trevas.
uitamus eo ipso, quo nolumus non uidere, sic quisquis uolet É por isso que se o entender é para a mente o que para o
uitare stultitiam, non eam conetur intellegere, sed ea quae sentido é o ver e se, ainda que alguém possa ter os olhos aber-
possunt intellegi, per hanc se non intellegere doleat eamque tos, sãos e puros, não pode, contudo, ver as trevas, também
sibi esse praesentem, non quo ipsam magis intellegit, sed quo não é absurdo dizer-se que a estultícia não pode ser entendi-
alia minus intellegit, sentiat. da: de facto, a nenhuma outra coisa chamamos trevas da men-
te. E assim já não perturbará considerar o modo como a estul-
tícia pode ser evitada, não sendo entendida. Com efeito, do
mesmo modo que evitamos aos olhos as trevas pelo próprio
facto de não querermos não ver, assim também quem queira
evitar a estultícia não se esforce por entendê-la mas sim àque-
las coisas que podem ser entendidas: lamente-se por esta falta
de entendimento e aperceba-se que ela lhe está presente não
porque a entendeu melhor mas porque entendeu menos outras
coisas.

IV, 11. Sed ad ordinem redeamus, ut nobis aliquando red- IV, 11. Mas voltemos à ordem, para que Licêncio algum dia
datur Licentius. Illud enim ex uobis iam requiro, utrum quae- nos seja restituído. Quero saber isto de vós: se tudo aquilo que
cumque agit stultus ordine uobis agere uideatur. Nam uidete, um estulto faz vos parece que se faz pela ordem. De facto,
rogatio quos laqueos habeat. Si ordine dixeritis, ubi erit ilia reparem, esta pergunta tem algumas subtilezas. Se disserem

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definitio: ordo est, quo Deus agit omnia quae sunt, si etiam que é pela ordem, onde estará aquela definição - «a ordem é
stultus, quae agit, agit ordine ? Si autem ordo non est in his, aquilo pelo qual Deus faz tudo o que é» - se também o que
quae aguntur ab stulto, erit aliquid, quod ordo non teneat; faz o estulto é feito pela ordem? Se, porém, a ordem não exis-
neutrum autem uultis. Videte, quaeso, ne cuncta ipsius ordi- te naquelas coisas que são feitas pelo estulto, haverá alguma
nis defensione turbetis. - Hic item Trygetius (nam ille alter coisa que a ordem não contém: ora não quereis nem uma coi-
adhuc omnino absens erat): Facile est, inquit, huic quidem sa nem outra. Olhai, peço-vos que não perturbeis tudo em
respondere complexioni tuae, sed me in praesentia similitudo defesa da própria ordem!
deficit, qua sententiam meam uideo adseri inlustrarique debe- Neste ponto, disse igualmente Trigécio (com efeito, aquele
re. Tamen dicam quod sentia; facies enim tu, quod paulo ante outro ainda estava absolutamente distraído):
fecisti. Non enim ilia commemoratio tenebrarum ad id, quod a - É fácil responder a este teu dilema mas falta-me, pre-
me inuolutum prolatum erat, parum nobis adtulit luminis. sentemente, uma comparação, pela qual vejo que se deve de-
Namque omnis uita stultorum quamuis per eos ipsos minime fender e ilustrar a minha afirmação. Contudo, direi aquilo que
constans minimeque ordinata sit, per diuinam tamen prouiden- penso; tu, porém, farás o que fizeste há pouco. De facto, aque-
tiam necessario rerum ordine includitur et quasi quibusdam la referência às trevas não nos trouxe pouca luz em relação
locis ilia ineffabili et sempiterna lege dispositis nullo modo esse ao que estava envolto no que eu tinha dito. Na verdade, toda
sinitur, ubi esse non debet. Ita fit ut angusto animo ipsam a vida dos estultos, embora seja por eles próprios minimamente
solam quisque considerans ueluti magna repercussus foeditate estável e ordenada, é, contudo, incluída pela providência divi-
auersetur. Si autem mentis oculos erigens atque diffundens na na ordem necessária das coisas, como se houvesse lugares
simul uniuersa conlustret, nihil non ordinatum suisque sem- dispostos por aquela lei inefável e eterna, pelos quais de ne-
per ueluti sedibus distinctum dispositumque reperiet. nhum modo lhe é permitido estar onde não deve.
Assim, considerando aquela isoladamente, acontece que al-
guém, com um espírito estreito, se afaste, repugnado por uma
tão grande disformidade. Se, porém, erguendo os olhos da
mente e ampliando a sua acção, der luz simultaneamente a
todas as coisas, não encontrará nada que não esteja ordenado
e, por assim dizer, sempre disposto e diferenciado nos seus
lugares.

12. Quam magna, inquam, quam mira mihi per uos Deus 12. Grandes coisas - e quão admiráveis! -, me responde
ille atque ipse, ut magis magisque credere adducor, rerum por vosso intermédio aquele Deus e também, como cada vez
nescio quis occultus ordo respondet ! N am ea dicitis, quae nec mais sou levado a acreditar, aquela mesma não sei que ordem
quomodo dicantur non uisa nec quomodo ea uideatis intellego; oculta das coisas! - disse eu.
ita ea et uera et alta esse suspicor. Símile autem aliquod in De facto, dizeis estas coisas que eu não entendo nem de
istam sententiam tu fartasse unum requirebas. At mihi iam que modo são ditas sem serem vistas, nem como as vedes; e é
occurrunt innumerabilia, quae me ad consentiendum prorsus por isso que eu suspeito que elas são verdadeiras e elevadas.
trahunt. Quid enim carnifice tetrius? Quid illo animo trucu- De igual modo, nesta afirmação tu talvez procuravas uma única
lentius atque dirius? At inter ipsas leges locum necessarium analogia. E a mim já se me ocorrem inumeráveis, que me le-
vam a estar absolutamente de acordo contigo. Que há de mais
terrífico que um carrasco? Que há de mais truculento e assus-
tador que um tal espírito? Mas entre as próprias leis ele ocupa

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tenet et in bene moderatae ciuitatis ordinem inseritur estque um lugar necessário e insere-se na ordem de uma cidade bem
suo animo nocens, ordine autem alieno poena nocentium. Quid gerida; e, sendo ele nocivo pelo seu espírito, por uma ordem
sordidius, quid inanius decoris et turpitudinis plenius mere- de outro é castigo dos que são prejudiciais. Poder-se-á falar de
tricibus, lenonibus ceterisque hoc genus pestibus dici potest? algo mais sórdido, de mais indecoroso e mais cheio de disfor-
Aufer meretrices de rebus humanis, turbaueris omnia libidini- midade do que as meretrizes, proxenetas e todo este género
bus; constitue matronarum loco, labe ac dedecore dehonestau- de flagelos? Retira as meretrizes da vida humana e terás per-
eris. Sic igitur hoc genus hominum per suas mores impurissi- turbado tudo pelas paixões: coloca-as no lugar das mães e tor-
mum uita, per ordinis leges condicione uilissimum. N onne in narás tudo desonesto pela corrupção e pela indignidade. As-
corporibus animantium quaedam membra, si sola adtendas, non sim, portanto, este género de homens que tem uma vida muito
possis adtendere? Tamen ea naturae ardo nec, quia necessaí::ia impura pelos seus costumes é, pelas leis da ordem, muito bai-
sunt, deesse uoluit nec, quia indecora, eminere permisit. Quae xo na sua condição. Não é verdade que há nos corpos dos ani-
tamen deformia suas !ocos tenendo meliorem locum concessere mais alguns membros que, se os observas só a eles, não podes
melioribus. Quid nobis suauius, quod agro uillaeque specta- fixar a atenção? Contudo, aquela ordem da natureza nem quis
culum congruentius fuit pugna illa conflictuque gallinaciorum que faltassem, porque são necessários, nem permitiu que se
gallorum, cuius superiore libra fecimus mentionem? Quid abi- destacassem, porque são indignos. Estas disformidades, contu-
ectius tamen deformitate subiecti uidimus? Et per ipsam ta- do, ocupando os seus lugares, concedem um melhor lugar aos
men eiusdem certaminis perfectior pulchritudo prouenerat. melhores. Que espectáculo nos foi mais agradável e mais apro-
priado para uma casa de campo do que aquele combate entre
os galos, a que nos referimos no livro anterior6? E, contudo,
que vimos nós de mais abjecto do que a disformidade do ven-
cido? Porém, por ela mesma resultava mais perfeita a beleza
do próprio combate.

13. Talia, credo, sunt omnia, sed oculos quaerunt. Soloecis- 13. Tais são, segundo creio, todas as coisas, mas requerem
mos et barbarismos quos uocant, poetae adamauerunt quae o nosso olhar.
schemata et metaplasmos mutatis appellare nominibus quam Os poetas enamoraram-se daquilo que designam por sole-
manifesta uitia fugere malunt. Detrahe tamen ista ·carmini- cismos e barbarismos e, mudando-lhes os nomes, preferiram
bus, suauissima condimenta desiderabimus. Congere multa in chamar-lhes figuras e metáforas a evitar os defeitos manifes-
unum locum, totum acre, putidum, rancidum, fastidibo. Traris- tos. Contudo, retira-os dos poemas e sentiremos a falta daque-
fer in liberam forensemque dictionem, quis non eam fugere les condimentos suavíssimos. Junta muitos num só lugar e fi-
atque in theatra se condere iubebit? Ordo igitur ea gubernans carei enjoado: tudo fica acre, rançoso e podre. Transpõe isto
et moderans nec apud se nimia nec ubilibet aliena esse patie- para um discurso público e ao ar livre: quem não fugirá dele e
tur. Submissa quaedam impolitaeque simillima ipsos saltus ac não mandará que se encerre nos teatros? A ordem, então, di-
uenustos !ocos sese interponens inlustrat oratio. Quae si sola rigindo e moderando estas coisas, nem lhes consentirá estar
em excesso junto de si, nem que sejam pertença de outro onde
quer que seja. Um certo discurso simples e muito próximo da
rudeza sobressai, intercalando estes passos e lugares agradá-

6 Cf. Diál. Ord., I, 8, 25.

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sit, pr01c1s ut uilem; si autem desit, ilia pulchra non promi- veis. Mas, se estiver só, rejeita-lo como se não prestasse; po-
nent, non in suis quasi regionibus possessionibusque dominan- rém, se estiver ausente, aqueles passos bonitos não sobressaem,
tur sibique ipsa propria luce obstant totumque confundunt. não reinam, por assim dizer, nas suas regiões e terras,
prejudicam-se a si próprios pela sua própria luz, e tudo se
confunde.

V. Magnae· et hic debentur ordini gratiae. Mentientes. con- V. E também aqui muito se deve agradecer à ordem. As con-
clusiones aut inrepentes paulatim uel minuendo uel addendo clusões mentirosas ou precipitadas que, paulatinamente, redu-
in adsensionem falsitatis quis non metuat, quis non oderit? zindo ou aumentando as coisas, contribuem para a adesão à
Saepe tamen in disputationibus certis et suis sedibus conloéa- falsidade, quem não as hºá-de temer? Quem não as odiará? Com
tae tantum ualent, ut nescio quo modo per eas dulcescat ipsa frequência, contudo, colocadas nas discussões acertadamente e
deceptio. Nonne hic quoque ardo ipse laudabitur? nos seus lugares, têm tanto valor que não sei de que maneira,
com o auxílio delas, não se há-de conseguir minimizar o pró-
prio dolo. Então, a própria ordem não há-de também aqui ser
louvada?

14. Iam in musica, in geometrica, in astrorum motibus, in 14. A ordem domina, ainda, na música, na geometria, no mo-
numerorum necessitatibus ardo ita dominatur, ut, si quis qua- vimento dos astros, nas leis dos números, de tal maneira
si eius fontem atque ipsum penetrale uidere desideret, aut in que, se alguém desejar ver como que a fonte dela e o seu pró-
his inueniat aut per haec -eo sine ullo errore ducatur. Talis prio santuário, ou a há-de encontrar nestes, ou será conduzido
enim eruditio, si quis ea moderate utatur (nam nihil ibi quam através deles sem qualquer erro. Com efeito, tal erudição, se
nimium fo:tmidandum est), talem philosophiae militem nutrit alguém se servir dela moderadamente (na verdade, nada aí há
uel etiam ducem, ut ad summum illum modum, ultra quod re- a temer senão o excesso), nutre para a filosofia um soldado ou
quirere aliquid nec possit nec debeat nec cupiat, qua uult, mesmo um chefe, capaz de se elevar, por onde queira, até
euolet atque perueniat multosque perducat, unde iam, dum àquela medida suprema para além da qual nada há que possa,
ipsis_ humanis rebus teneatur, sic eas despiciat cunctaque dis- ou deva, ou deseje procurar e alcançar, conduzindo muitos
cernat, ut nullo modo eum moueat, cúr alius optet liberas ha- outros. Desse cume, enquanto está ocupado nos assuntos hu-
bere nec habeat, alius uxoris nimia fecunditate torqueatur, ege- manos, assim já vê todas as coisas e as discerne, de tal ma-
at ille pecunia, qui largiri liberaliter multa paratus est, eique neira que de nenhum modo o perturbe por que razão alguém
defossae incubet macer et scabiosus fenerater, ampla patrimo- deseja ter filhos e não os tem e outro é atormentado pela exces-
nia luxuries dispergat atque diffundat, uix tato die lacrimans ·siva fecundidade da sua mulher; o que estava disposto a dar
mendicus nummum impetret, alium honor extollat indignum, com liberalidade tem muita falta de bens e o que empresta a juros,
lucidi mores abscondantur in turba. .magro e cheio de rugas, guarda o seu tesouro num buraco; o
luxo espalha-se e difunde-se por amplos patrimónios e um
mendigo, durante todo o dia, a custo consegue com lágrimas
uma moeda; os homens exaltam alguém que é indigno e os que
brilham pelos seus costumes estão ocultos entre a multidão.

15. Haec et alia in hominum uita cogunt homines plerum- 15. Estas e outras coisas que acontecem na vida dos ho-
que impie credere nullo nos ordine diuinae prouidentiae gu- mens forçam a maior parte deles a acreditar impiamente que

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bernari, alii autem pios et bonos atque splendido ingenio prae- não somos governados por nenhuma ordem da providência di-
ditos, qui neque nos deseri a summo Deo possunt in animum vina. Outros há, porém, piedosos e bons, dotados de um es-
inducere et tamen rerum tanta quasi caligine atque commix- plêndido talento, que não podem induzir o espírito a acreditar
tione turbati nullum ordinem uident uolentesque sibi nudari que estamos abandonados pelo Deus supremo e, contudo, con-
abditissimas causas errores suos saepe etiam carminibus con- turbados por tamanha obscuridade e confusão das coisas, não
queruntur. Qui si hoc solum interrogent, cur Itali semper se- vêem nenhuma ordem; e, querendo desnudar para si as cau-
renas hiemes orent et item semper Getulia nostra misera si- sas mais recônditas, lamentam os seus erros muitas vezes até
tiat, quis eis facile _respondebit? Aut ubi apud nos indagabitur em poemas. Se estes perguntassem somente por que razão os
illius ordinis ulla suspicio? Ego autem si quid meos monere Ítalos pedem sempre Invernos serenos e por que motivo a nossa
possum, quantum mihi apparet quantumque sentio, censeo infeliz Getúlia está sempre sedenta, quem lhes responderá fa-
illos disciplinis omnibus erudiendos. Aliter quippe ista sic in- cilmente? E em que lugar, entre nós, se poderá encontrar al-
tellegi, ut luce clariora sint, nullo modo possunt. Si autem aut guma suspeita daquela ordem?
pigriores sunt aut aliis negotiis praeoccupati aut iam duri ad Eu, porém, se posso dar aos meus algum conselho, tanto
discendum, fidei sibi praesidia parent, quo illos uinculo ad sese quanto me parece e posso perceber, julgo que eles se devem
trahat atque ab his horrendis et inuolutissimis malis liberet dedicar à erudição em todas as disciplinas 7• Porquanto de ne-
ille, qui neminem sibi per mysteria bene credentem perire nhum outro modo se podem entender estas coisas para que
permittit. sejam mais claras do que a luz. Contudo, se são preguiçosos,
ou se estão ocupados com outros afazeres, ou se já se torna-
ram incapazes para aprender, preparem para si as muralhas
da fé, por cujo vínculo os atraia e os liberte daqueles males
horrendos e extremamente enredantes aquele que não permi-
te que pereça nenhum dos que nele acredita devidamente atra-
vés dos mistérios.

16. Duplex enim est uia, quam sequimur, cum rerum nos 16. Com efeito, é dupla a via que seguimos quando nos per-
obscuritas mouet, aut rationem aut certe auctoritatem. Philo- turba a obscuridade das coisas: a razão ou, ao menos, a auto-
sophia rationem promittit et uix paucissimos liberat, quos ta- ridade.
men non modo non contemnere illa mysteria, sed sola intelle- A filosofia promete a razão e a custo liberta muito poucos,
gere, ut intellegenda sunt, cogit, nullumque aliud habet os quais, contudo, só ela obriga não apenas a não desprezar
negotium, quae uera et, ut ita dicam, germana philosophia est, aqueles mistérios, mas a que os entendam como devem ser
quam ut doceat, quod sit omnium rerum principium sine prin- ·entendidos. E a verdadeira e, por assim dizer, genuína filoso-
cipio quantusque in eo maneat intellectus quidue inde in nos- fia não se ocupa de nenhuma outra tarefa senão a de ensinar
. qual seja o princípio sem princípio de todas as coisas, a gran-

7 Cf. Retract., I, 3, 2 (CCL 57, p. 12). O filósofo lamenta-se por ter atribu-

ído um lugar por de mais excelente às artes liberais no acesso à sabedoria.


A razão transcende a autoridade e é-lhe superior na ordem do ser, já o afir-
mara Agostinho em Diál. Ord., II, 9, 26. Transcorridos cerca de 40 anos, ao
reler este seu escrito, o filósofo descreveu já plenamente um percurso inte-
lectual que lhe pernúte afirmar que «há muitos santos que têm delas um grande
desconhecimento, assim como há muitos que as dominam e não são santos)).

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tram salutem sine ulla degeneratione manauerit, quem unum diosidade do entendimento que nele permanece e o que de lá
Deum omnipotentem, cum quo tripotentem Patrem et Filium proveio para a nossa salvação sem degeneração alguma. A este,
et Spiritum sanctum ueneranda mysteria, quae fide sincera sendo Deus uno, omnipotente e tripotente, Pai, Filho e Espíri-
et inconcussa populos liberant nec confuse, ut quidam, nec con- to Santo, proclamam-no os veneráveis mistérios que, pela fé
tumeliose, ut multi, praedicant. Quantum autem illud sit, quod inabalável e sincera, libertam os povos, não de modo confuso,
hoc etiam nostri generis corpus tantus propter nos Deus adsu- como o fazem alguns, nem com contumélia, como o fazem
mere atque agere dignatus est, quanto uidetur uilius, tanto muitos. Ora, quão grande seja esse mesmo facto, que tão imen-
est clementia plenius et a quadam ingeniosorum superbia lon- so Deus também se tenha dignado, por nossa causa, assumir
ge alteque remotius. e levar um corpo do nosso género, quanto mais nos pareça vil,
maior clemência Ele encerra e mais afastado está, ao longe e
ao largo, de uma certa soberba dos espíritos.

17. Anima uero unde originem ducat quidue hic agat, quan- 17. Realmente, de onde retira a alma a sua origem e que
tum distet a Deo, quid habeat proprium, quod alternat in faz ela aqui, quanto dista de Deus, o que tem de próprio que
utramque naturam, quatenus moriatur et quomodo immorta- faz que alterne de uma natureza para a outra, até que ponto
lis probetur, quam magni putatis esse ordinis, ut ista discan- morre e de que modo se pode provar que é imortal: que im-
tur? Magni omnino atque certi, de quo breuiter, si tempus portância pensais ter a ordem pela qual estas coisas são ensi-
fuerit, post loquemur. Illud nunc a me accipiatis uolo, si quis nadas? Ela é de todo grande e precisa, e falaremos dela de-
temere ac sine ordine disciplinarum in harum rerum cognitio- pois sucintamente, se houver tempo.
nem audet inruere, pro studioso illum curiosum, pro docto cre- Agora quero que aceiteis isto da minha parte: se alguém
dulum, pro cauto incredulum fieri. Itaque mihi quod modo ousar lançar-se no conhecimento destas coisas ao acaso e sem
interroganti tam bene atque apte respondetis, et mirar unde a ordem das disciplinas, em vez de estudioso tomá-lo-ei por
sit et cogor cognoscere. Videamus tamen, quo usque progredi curioso, em vez de douto, por crédulo, em vez de cauto, por
uestra latens possit intentio. Iam nobis Licenti etiam uerba incrédulo. Assim, o facto de que me tenhais respondido tão bem
reddantur, qui tam diu nescio qua cura occupatus alienus ab e adequadamente quando há pouco vos interroguei, não só me
hoc sermone fuit, ut eum ista non aliter quam eos qui non admira de onde venha, como ao mesmo tempo sou obrigado a
adsunt familiares nastros credam esse lecturum. Sed redi ad admiti-lo.
nos quaeso, Licenti, atque hic tatus fac ut adsis; tibi enim dico. Vejamos, contudo, até onde pode progredir a vossa força
Nam definitionem meam tu probasti, qua dictum est, quid sit oculta de compreender.
esse cum Deo, cum quo mentem sapientis manere immobilem Esperemos também que nos sejam restituídas as palavras
me, quantum adsequi ualeo, docere uoluistis. de Licêncio que durante tanto tempo esteve ocupado não sei
em que cuidados, alheado deste diálogo, de tal modo que creio
que ele haverá de ler estas coisas precisamente como aqueles
nossos amigos que não estão presentes.
Mas regressa para nós, peço-te, Licêncio, e faz por estar
aqui inteiramente presente. Na verdade, é a ti que me dirijo.
Com efeito, tu aprovaste a minha definição pela qual foi dito
o que é estar com Deus e quiseste que eu mostrasse, tanto
quanto fosse capaz de abarcar, que, com Ele, a mente do sábio
permanece imóvel.

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VI, 18. Sed illud me mouet quomodo, cum iste sapiens, qua- VI, 18. Mas algo me perturba. Uma vez que não se nega
mdiu inter homines uiuit, in corpore esse non negetur, quo que este sábio esteja num corpo enquanto vive entre os ho-
pacto fiat, ut, eius corpore huc atque illuc uagante, mens im- mens, de que modo acontece que, andando o corpo dele daqui
mobilis maneat. Isto enim modo potes dicere, cum mouetur para acolá, a sua mente permaneça imóvel? Com efeito, tu
nauis, homines, qui in ea sunt, non moueri, quamuis ab ipsis podes dizer que é da mesma maneira que, quando um navio
eam possideri gubernarique fateamur. Etenim si sola eam co- está em movimento, os homens que estão nele não estão em
gitatione regerent facerentque ire, quo uellent, tamen, cum ea movimento, embora reconheçamos que ele é dominado e go-
moueretur, non possent illi qui ibidem constituti sunt non vernado por eles próprios. Porquanto, mesmo se o orientassem
moueri. - Non, ait Licentius, animus ita est in corpore, ut apenas pelo pensamento e o fizessem andar para onde que-
corpus imperet animo. - Neque ego hoc dico, inquam; sed rem, contudo, uma vez que ele se move, não podem aqueles
etiam eques non ita est in equo, ut ei equus imperet, et ta- que igualmente estão nele não se mover.
men, quamuis quo uelit equum agat, equo moto, moueatur Licêncio replicou:
necesse est. - Potest, inquit, sedere ipse immobilis. - Cogis - A alma não está no corpo de tal modo que o corpo co-
nos, inquam, definire, quid sit moueri quod si potes, facias mande a alma.
uolo. - Prorsus, inquit, maneat, quaeso, beneficium tuum; nam - Nem eu digo isso - respondi. - Mas também não é as-
manet postulatio mea et, ne me rursus interroges, utrum mihi sim que o cavaleiro está no cavalo, de modo que o cavalo o
definire placeat, quando id facere potuero, ipse profitebor. - comande e, contudo, não obstante ele conduzir o cavalo por
Quae cum dieta essent, puer de domo, cui dederamus id nego- onde quer, uma vez que o cavalo se move, necessariamente
tii, cucurrit ad nos et horam prandii esse nuntiauit. Tum ego: ele está em movimento.
Quid sit, inquam, moueri, non definire nos puer iste, sed ipsis - Ele próprio pode estar sentado imóvel - disse ele.
oculis cogit ostendere. Eamus igitur et de isto loco in alium - Obrigas-nos - disse eu - a definir o que é estar em
locum transeamus; nam nihil est aliud, nisi fallor, moueri. Hic movimento, coisa que quero que faças, se puderes.
cum adrisissent, discessimus.
- Rogo-te que antes permaneça o teu serviço - disse ele. -
Com efeito, mantém-se a minha solicitação e, para que não
me voltes a interrogar sobre se eu quero definir, quando eu
puder fazê-lo, eu próprio o direi.
Tendo ele dito estas coisas, veio a correr ter connosco um
rapaz da casa a quem tínhamos dado este encarg9 e anun-
ciou-nos que era a hora do almoço.
Então eu digo:
- Este rapaz não nos obriga a definir o que é mover-se
mas faz-nos ver com os próprios olhos. Vamos, portanto, e pas-
semos deste lugar para outro lugar. Com efeito, se não me en-
gano, mover-se não é outra coisa.
Então, partimos dali, com eles a rir.

19. At ubi refecimus corpora, quoniam caelum obduxerat 19. Mas quando refizemos os corpos, como o céu se cobri-
nubes, solito loco in balneo consedimus. Atque ego: Concedis ra de nuvens, sentámo-nos no lugar do costume, junto aos
banhos.

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ergo, inquam, Licenti, nihil esse aliud motum quam de loco in E eu disse:
locum transitum? - Concedo, inquit. - Concedis ergo, inquam, - Concordas, portanto, Licêncio, que o movimento não é ou-
neminem in eo loco esse, in quo non fuerat, et motum non tra coisa senão a passagem de um lugar para outro?
fuisse? - Non intellego, inquit. - Si quid, inquam, in alio loco - Concordo - disse ele.
fuit dudum et nunc in alio est, motum esse concedis? - Ad- - Concordas, portanto, que ninguém está no lugar onde não
sentiebatur. - Ergo, inquam, posset alicuius sapientis uiuum estava se não houvesse movimento? - disse eu.
corpus hic modo nobiscum esse, ut animus hinc abesset? - - Não entendo - disse ele.
Posset, inquit. - Etiamne, inquam, si nobiscum conloqueretur - Se alguma coisa estava antes num lugar e agora está
et nos aliquid doceret? - Etiamsi, inquit, nos ipsam doceret noutro, concedes que há movimento? - perguntei eu.
sapientiam, non illum dicerem nobiscum esse, sed secum. - Ele concordava.
Non igitur in corpore? inquam. Non, inquit. - Cui ego: Cor- - Portanto - disse eu - poderia estar aqui connosco ape-
pus illud, quod careret animo, nonne mortuum fatereris, cum nas o corpo vivo de algum sábio, estando o seu espírito au-
ego uiuum proposuerim? - Nescio, inquit, quomodo explicem. sente?
Nam et corpus hominis uiuum esse non posse uideo, si ani- - Poderia - disse ele.
mus in eo non sit, et non possum dicere, ubiubi sit corpus - Mesmo se conversasse connosco e nos ensinasse alguma
sapientis, non eius animum esse cum Deo. - Ego, inquam, coisa? - perguntei eu.
faciam ut hoc explices. Fartasse enim, quia ubique Deus est, - Dado que nos ensinaria a própria sabedoria, não diria
quoquo ierit sapiens, inuenit Deum, cum quo esse possit. Ita que ele estivesse connosco mas consigo mesmo - disse ele.
fit ut possimus et non negare illum de loco in locum transire, - Não estaria, portanto, no corpo? - perguntei.
quod est moueri, et tamen semper esse cum Deo. - Fateor, - Não - disse ele.
inquit, corpus illud de loco in locum transitum facere, sed E eu respondi-lhe:
mentem ipsam nego, cui nomen sapientis impositum est. - Esse corpo, que careceria de espírito, não haverias de con-
fessar que está morto, embora eu tivesse estabelecido que ele
estava vivo?
- Não sei como explicar - disse ele. - Com efeito, vejo que
o corpo do homem não pode estar vivo se a alma não estiver
nele e não posso dizer que, onde quer que esteja o corpo do
sábio, a sua alma não esteja com Deus.
- Vou arranjar maneira de tu explicares isso - disse eu. -
Talvez seja porque, como Deus está em toda a parte, o sábio
encontra Deus para onde quer que se dirija, com quem pode
estar. Isto faz que possamos não negar que ele passa de um
lugar para o outro, o que é mover-se, e contudo, que ele esteja
sempre com Deus.
- Confesso - disse ele - que esse corpo realiza a passa-
gem de um lugar para o outro, mas nego que a própria men-
te - à qual foi imposto o nome de sábia - o faça.

VII, 20. Nunc interim tibi cedo, inquam, ne res obscurissi- VII, 20. Por agora dou-te razão, para que um assunto tão
ma et diutius diligentiusque tractanda impediat in praesentia obscuro e que deve ser tratado com mais tempo e diligência
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propositum nostrum. Sed illud uideamus, quoniam definitum não entrave de momento o nosso propósito - disse eu. - Mas
est a nobis, quid sit esse cum Deo, utrum scire possimus eti- visto que foi por nós definido o que é estar com Deus, vejamos
am, quid sit esse sine Deo, quamuis iam manifestum esse ar- se podemos saber também o que é estar sem Deus, embora eu
bitror. Nam credo uideri tibi eos, qui cum Deo non sunt, esse julgue que isto já é claro. Com efeito, creio que te parece que
sine Deo. - Si possent, inquit, mihi uerba suppetere, dicerem os que não estão com Deus estão sem Deus.
quod tibi fortasse non displiceret. Sed peto perferas infantiam - Se me abundassem as palavras, diria talvez alguma coi-
meam resque ipsas, ut te decet, ueloci mente praeripias. Nam sa que não te desagradasse - disse ele. - Mas peço que su-
isti nec cum Deo mihi uidentur esse et a Deo tamen haberi, portes a minha infantilidade e alcances as próprias coisas com
itaque non possum eos sine Deo esse dicere, quos Deus habet. rapidez de raciocínio, como te convém. Com efeito, estes ho-
Cum Deo item non dico, quia ipsi non habent Deum, si qui- mens não me parecem estar com Deus e, contudo, são possuí-
dem Deum habere iam inter nos pridem in sermone illo, quem dos por Deus. E por isso não posso dizer que aqueles que Deus
die natali tuo iucundissimum habuimus, placuit nihil aliud possui estão sem Deus. De igual modo não digo «com Deus»,
esse quam Deo perfrui. Sed fateor me formidare ista contraria, porque eles próprios não possuem Deus. De facto, possuir Deus,
quomodo quisque nec sine Deo sit nec cum Deo. como já há tempo acordámos, naquele diálogo agradabilíssimo
que tivemos entre nós no dia dos teus anos, não é outra coisa
senão a fruição de Deus 8•
Mas confesso que me assustam estas coisas contrárias: de
que modo alguém possa estar nem sem Deus nem com Deus.

21. Non te moueant ista, inquam. Nam ubi res conuenit, 21. Que te não perturbem estas coisas - digo eu. - De facto,
quis non uerba contemnat ? Quare iam ad iliam tandem ordi- quando há acordo no essencial, quem não desprezará as pala-
nis definitionem redeamus. Nam ordinem esse dixisti, quo Deus vras? Portanto, voltemos já, por fim, àquela definição de or-
agit omnia. Nihil autem, ut uideo, non agit Deus; nam inde dem. Na verdade, tu disseste que a ordem é aquilo pelo qual
tibi uisum est nihil praeter ordinem posse inueniri. - Manet, Deus conduz tudo. Ora, pelo que vejo, nada há que Deus não
inquit, sententia mea; sed iam uideo quid sis dicturus, utrum conduza: daí que te tenha parecido que nada pode ser encon-
Deus agat, quae non bene agi confitemur. - Optime, inquam; trado fora da ordem.
prorsus oculum in mentem iniecisti. Sed ut uidisti quid essem - Mantém-se a minha afirmação - disse ele. - Mas já vejo
dicturus, ita peto uideas, quid respondendum sit. - Atque ille o que tu hás-de dizer, se Deus conduz aquilo que nós confes-
nutans capite atque humeris: Turbamur, inquit. - Et huic forte samos que não está bem conduzido.
quaestioni mater superuenerat. Atque ille post aliquantulum - Excelente - disse eu -, penetraste bem na minha mente.
silentium petit, ut a me hoc ipsum rursus interrogaretur; cui Mas, como viste o que eu tinha intenção de dizer, assim tam-
bém te peço que vejas aquilo que se deve responder.
E ele, sacudindo a cabeça e os ombros, disse:
- Estamos perturbados.
Por acaso a minha mãe viera em auxílio a esta questão.
Então ele, depois de algum silêncio, pediu para eu lhe pergun-
tar outra vez a mesma coisa à qual já fora dada resposta, mais

s Cf. BV, IV, 34 (CCL 29, p. 84).

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]oco superius a Trygetio fuisse responsum non omnino anima- acima, por Trigécio9 , sem que ele tivesse prestado absoluta-
duerterat. Tum ego: Quid, inquam, uel cur tibi repetam? Actum mente nenhuma ·atenção.
ut aiunt, ne agas. Quare moneo potius ut ea, quae supra dict~ Então, eu disse:
sunt, uel legere cures, si audire nequiuisti. Quam quidem - Por que motivo hei-de repetir para ti? «Não faças o que
absentiam a sermone nastro animi tui non aegre tuli diuque está feito», como se diz. Portanto, aconselho-te que, de prefe-
ita esse pertuli, ut neque ilia impedirem, quae tecum intentus rência, trates de ler aquelas coisas que já foram ditas antes,
remotusque a nobis pro te agebas, et ea persequerer, quae te se não as pudeste escutar. Na verdade, eu suportei facilmente
amittere stilus iste non sineret. que o teu espírito estivesse ausente do nosso diálogo e, duran-
te muito tempo, aguentei, para não impedir aquelas coisas que
realizavas contigo mesmo, e que, afastado de nós, fazias por ti
próprio, e para expor aquelas coisas que este estilete não per-
mitiria que tu perdesses.

22. Nunc illud quaero, quod nondum discutere diligenti 22. Agora interrogo acerca do que ainda não tentámos disse-
ratione temptauimus. Nam ut primum nobis istam de ordine car com suficiente atenção. Na verdade, desde o momento em
quaestionem nescio quis ardo peperit, memini te dixisse hanc que não sei que ordem fez nascer em nós esta questão acerca
esse iustitiam Dei, qua separat inter bonos et malas et sua da ordem, recordo que tu disseste que esta era a justiça de
cuique tribuit. Nam nulla est, quantum sentia, manifestior Deus 10 , pela qual ele separa os bons e os maus e dá a cada
iustitiae definitio; itaque respondeas uelim, utrum tibi uidea- um o que lhe é próprio. De facto, tanto quanto posso pensar,
tur aliquando Deum non fuisse iustum. - Numquam, inquit. - não existe nenhuma definição mais clara de justiça. Por isso,
Si ergo semper, inquam, Deus iustus, semper bonum et ma- quero que me respondas se te parece que Deus algum dia não
lum fuerunt. - Prorsus, inquit mater, nihil aliud uideo, quod foi justo.
sequatur. Non enim iudicium Dei fuit ullum, quando malum - Nunca - diz ele.
non fuit, nec, si aliquando banis et malis sua cuique non tri- - Portanto - digo eu - se Deus sempre foi justo, sempre
buit, potest uideri iustus fuisse. - Cui Licentius: Ergo dicen- existiram o bem e o mal.
dum nobis censes, inquit, semper malum fuisse?- Non audeo, - Certamente - diz a minha mãe - não vejo que se siga
inquit ilia, hoc dicere. - Quid ergo dicemus?, inquam: si Deus nenhuma outra coisa. Na verdade, não havia nenhum juízo de
ideo iustus est, quia iudicat inter bonos et malas, quando non Deus quando o mal não existia, nem se pode ver como ele seria
erat malum, non erat iustus? - Hic illis tacentibus, anima- justo, se alguma vez não deu a bons e maus o que é próprio
de cada um.
Licêncio disse-lhe:
- Portanto, julgas que nós devemos afirmar que o mal
existiu sempre.
- Não ouso dizer isso - disse ela.
- Então, o que diremos? - pergunto eu. - Se é por isso
que Deus é justo, porque julga entre os bons e os maus, quan-
do o mal não existia não era justo?

' Cf. Diál. Ord., II, 4, 11.


10 Cf. Diál. Ord., I, 7, 19.

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duerti Trygetium respondere uelle atque permisi. At ille: Pror- Nesta altura, tendo-se eles calado, reparei que Trigécio
sus, inquit, erat Deus iustus. Poterat enim bonum malum- queria responder e dei-lhe permissão. E ele disse:
que secernere, si extitisset, et ex ipso quo poterat, iustus erat. - Certamente que Deus era justo. Podia, de facto, separar
Non enim, cum dicimus Ciceronem prudenter inuestigasse co- o bem e o mal, se tivesse existido, e era justo por causa disso
niurationem Catilinae, temperanter nullo corruptum fuisse mesmo: porque podia. Com efeito, quando dizemos que Cícero
praemio, quo parceret malis, iuste illos summo supplicio se- actuou com prudência, ao ter investigado a conspiração de
natus auctoritate mactasse, fortiter sustinuisse omnia tela Catilina, com temperança, ao não se ter deixado corromper por
inimicorum et molem, ut ipse dixit, inuidiae, non in eo fuis- nenhuma regalia pela qual pouparia os maus, com justiça, ao
sent uirtutes istae, nisi Catilina rei publicae tantam perni- fazer castigar aqueles com o suplício supremo pela autoridade
ciem comparasset. Virtus enim per se ipsa, non per aliquod do senado, e com fortaleza, ao ter suportado todos os golpes
huius modi opus consideranda est et in homine, quanto ma- dos inimigos e, como ele próprio disse, o peso da inveja, não
gis in Deo, si tamen in angustiis rerum atque uerborum com- dizemos que estas virtudes não teriam existido nele se Cati-
ponere illis quoquo modo ista permittimur. N am ut intelle- lina não tivesse preparado tão violenta destruição da Repú-
gamus, quia Deus semper iustus fuit, quando extitit malum, blica. A virtude, de facto, deve ser considerada por si própria
quod a bono seiungeret, nihil distulit sua cuique tribuere. Non no homem, e não por intermédio de alguma acção como esta,
enim tunc ei erat discenda iustitia, sed tunc ea utendum, quanto mais em Deus, se nos é permitido compará-los de algum
quam semper habuit. modo, apesar da limitação das coisas e das palavras.
Assim para que entendamos por que razão Deus sempre foi
justo, quando o mal, que Ele separaria do bem, começou a
existir, Ele não adiou dar a cada um aquilo que lhe correspon-
de. Com efeito, nesse momento Ele não havia de aprender o
que era a justiça mas havia de se servir, então, daquela que
sempre teve.

23. Quod cum et Licentius et mater in tanta necessitate 23. Tendo Licêncio e a minha mãe aprovado isto, vendo-se
approbassent: Quid, inquam, dicis, Licenti? Vbi est quod tam em tão grande apuro, disse eu:
magnopere adseruisti, nihil praeter ordinem fieri? Quod enim - Que dizes, Licêncio? Onde está aquilo que sustentaste
factum est, ut malum nasceretur, non utique Dei ordine fac- tão insistentemente, que nada se faz fora da ordem? Porque
tum est, sed, cum esset natum, Dei ordine inclusum est. - Et de facto aconteceu que o mal nasceu não como tendo sido feito
ille admirans ac moleste ferens, quod tam repente hona causa pela ordem de Deus mas como algo que, uma vez nascido, foi
esset lapsa de manibus: Prorsus, inquit, ex illo dico coepisse incluído na ordem de Deus.
ordinem, ex quo malum esse coepit. - Ergo, inquam, ut esset E ele, surpreendendo-se e suportando com dificuldade que
ipsum malum, non ordine factum est, si, postquam malum tão repentinamente uma boa causa lhe tivesse escapado das
ortum est, ordo esse coepit. Semper erat ordo apud Deum et mãos, disse:
aut semper fuit nihil, quod dicitur malum aut, si aliquando - Certamente, eu digo que a ordem começou a partir des-
se facto, de que o mal começou a existir.
- Portanto, não é pela· ordem que aconteceu que o próprio
mal tivesse existido, se a ordem começou a existir depois do
mal ter nascido - disse eu. - Mas a ordem estava sempre
junto de Deus e, ou sempre existiu nada que se chame mal

182 183
inuenitur coepisse, quia ordo ipse aut bonum est aut ex bono ou, se se descobre que algum dia teve começo - porque a pró-
est, numquam aliquid sine ordine fuit, nec erit aliquando. pria ordem é em si um bem ou provém do bem - nunca houve
Quamuis et nescio quid potius occurrit, sed ilia consuetudine nem haverá alguma vez coisa alguma sem ordem.
obliuionis elapsum est, quod credo ordine contigisse pro meri- Ainda que me tenha ocorrido não sei que outra coisa mais,
to uel gradu uel ordine uitae. - Nescio quomodo mihi, inquit, por aquele hábito de esquecimento escapou-se-me, o que creio
effugit quam nunc sperno sententiam; non enim debui dicere, ter acontecido na ordem segundo o mérito, o curso ou a ordem
postquam malum natum est, coepisse ordinem, sed ut ilia ius- da vida.
titia, de qua Trygetius disseruit, ita et ordinem fuisse apud - Não sei de que maneira me fugiu - disse Licêncio - essa
Deum, sed ad usum non uenisse, nisi postquam mala esse afirmação que agora rejeito. De facto, eu não devia dizer que
coeperunt. - Eodem, inquam, relaberis; illud enim, quod mi- a ordem começou depois do mal ter nascido, mas que, tal como
nime uis, inconcussum manet. Nam siue apud Deum fuit ordo aquela justiça de que Trigécio falou, assim existiu a ordem
siue ex illo tempore esse coepit, ex quo etiam malum, tamen junto de Deus; mas ela não começou a ser usada a não ser
malum illud praeter ordinem natum est. Quod si concedis, depois de terem começado a existir os males.
fateris aliquid praeter ordinem posse fieri, quod causam tuam - Cairás de novo no mesmo - disse eu. - Aquilo que tu
debilitat ac detruncat; si autem non concedis, incipit Dei or- menos queres permanece inabalável. Na verdade, quer a or-
dine natum malum uideri et malorum auctorem Deum fate- dem estivesse junto de Deus, quer tenha começado a existir a
beris, quo sacrilegio mihi detestabilius nihil occurrit. - Quod partir desse momento, no qual também começou o mal, contu-
cum siue non intellegenti siue dissimulanti se intellexisse uer- do esse mal nasceu fora da ordem. Se admites isto, confessas
sarem saepius et euoluerem, nihil habuit quod diceret et se que alguma coisa pode ser feita fora da ordem, o que debilita
silentio dedit. Tum mater: Ego, inquit, non puto nihil potuisse e corta pela raiz a tua causa. Se, porém, não o admites, come-
praeter Dei ordinem fieri, quia ipsum malum, quod natum ça a ver-se que o mal nasceu pela ordem de Deus e confessa-
est, nullo modo Dei ordine natum est, sed illa iustitia id rás que Deus é o autor dos males. Ora nada me ocorre de mais
inordinatum esse non siuit et in sibi meritum ordinem rede- detestável do que este sacrilégio.
git et compulit. Tendo eu repetido e desenvolvido isto muitas vezes, Licên-
cio - quer não entendendo, quer dissimulando ter entendido -
nada encontrou que dizer e entregou-se ao silêncio.
Então, a minha mãe disse:
- Não penso que nada pudesse ser feito fora da ordem de
Deus, porque esse mesmo mal que nasceu, de nenhum modo
nasceu pela ordem de Deus, mas aquela justiça não permitiu
que estivesse desordenado: reconduziu-o a si e obrigou-o a
entrar na ordem que merece.

24. Hic ego, cum omnes cernerem studiosissime ac pro suis 24. Então, como eu via que todos se esforçavam com muito
quemque uiribus Deum quaerere, sed ipsum, de quo agebamus, empenho e cada um pelas suas forças procurava Deus mas
ordinem non tenere, quo ad illius ineffabilis maiestatis intel- que não observavam a própria ordem, de que tratávamos, pel,a
legentiam peruenitur: Oro uos, inquam, si, ut uideo, multum qual se chega ao entendimento ·daquela inefável majestade, eu
diligitis ordinem, ne nos praeposteros et inordinatos esse patia- disse:
mini. Quamquam enim occultissima ratio se demonstraturam - Suplico-vos que se, como vejo, tanto amais a ordem, não
tolereis que sejamos desordenados e desajeitados. Ainda que,

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polliceatur nihil praeter diuinum ordinem fieri, tamen si quem- na verdade, uma secretíssima razão nos prometa vir a demons-
piam ludi magistrum audiremus conantem docere puerum trar que nada .se faz fora da ordem divina, contudo, se nós
syllabas, quem prius litteras nemo docuisset, non dica riden- ouvíssemos um certo mestre-escola a esforçar-se por ensinar a
dum tamquam stultum, sed uinciendum tamquam furiosum uma criança as sílabas, que ninguém aprende antes das le-
putaremus non ob aliud, opinar, nisi quod docendi ordinem non tras, não digo que se devia rir dele como de um estulto, mas
teneret. At multa talia et imperitos, quae a doctis reprehen- pensaríamos que se deveria atar como um louco furioso, não
dantur ac derideantur, et dementes homines, quae nec stulto- por outro motivo, julgo eu, a não ser por não observar a or-
rum iudicium fugiunt, facere nemo ambigit; et tamen etiam dem do ensino. E ninguém duvida que há muitas coisas como
ista omnia, quae fatemur esse peruersa, non esse praeter diui- esta - censuradas e postas a ridículo pelos doutos - que são
num ordinem alta quaedam et a multitudinis uel suspicione cometidas tanto por ignorantes como por homens dementes e
remotíssima disciplina se ita studiosis et Deum atque animas que nem ao juízo dos estultos escapam. E contudo, uma certa
tantum amantibus animis manifestaturam esse promittit, ut disciplina profunda e muitíssimo apartada e insuspeitada pela
non nobis summae numerorum possint esse certiores. multidão, promete, aos espíritos estudiosos que tanto amam
Deus e as almas, haver de lhes mostrar como até mesmo to-
das essas coisas que confessamos serem perversas não estão
fora da ordem divina, de modo que nem a soma dos números
possa ser mais certa para nós.

VIII, 25. Ha.ec autem disciplina ipsa Dei !ex est, quae apud VIII, 25. Ora esta disciplina é a própria lei de Deus que
eum fixa et inconcussa semper manens in sapientes animas permanece sempre fixa e inabalável junto dele e como que se
quasi transcribitur, ut tanto se sciant uiuere melius tantoque transcreve nas almas sábias, para que elas saibam que a sua
sublimius, quanto et perfectius eam contemplantur intellegen- vida é tanto mais sublime e melhor quanto mais perfeitamen-
do et uiuendo custodiunt diligentius. Haec igitur disciplina eis, te a contemplarem, entendendo-a, e com mais diligência a guar-
qui illam nosse desiderant, simul geminum ordinem sequi iu- darem, vivendo-a. Por isso, esta disciplina manda àqueles que
bet, cuius una pars uitae, altera eruditionis est. Adulescenti- a desejam conhecer que se siga ao mesmo tempo uma dupla
bus ergo studiosis eius ita uiuendum est, ut a uenereis rebus, ordem: por uma parte, a da vida, e por outra, a da erudição.
ab inlecebris uentris et gutturis, ab immodesto corporis cultu Portanto, ela deve ser vivida pelos jovens que a estudam
et ornatu, ab inanibus negotiis ludorum, a torpore somni at- de tal modo que se abstenham das coisas venéreas, da sedu-
que pigritiae, ab aemulatione, obtrectatione, inuidentia, ab ção do ventre e do paladar, do culto e do adorno desregrado
honorum potestatumque ambitionibus, ab ipsius etiam laudis do corpo, das vãs ocupações dos jogos, do torpor do sono e da
immodica cupiditate se abstineant, amarem autem pecuniae preguiça, da rivalidade, da inveja, da difamação e do desejo
totius suae spei certissimum uenenum esse credant. Nihil ene- imoderado do seu próprio louvor. Hão-de saber que o amor da
ruiter faciant, nihil audacter. ln peccatis autem suorum uel riqueza é o veneno mais certo de toda a sua esperança. Nada
pellant omnino iram uel ita frenent, ut sit pulsae similis ne- façam com falta de vigor, nada com temeridade. Ante os peca-
minem oderint, nulla uitia non curare uelint. Magnopere ob- dos dos seus, rejeitem absolutamente a ira ou refreiem-na, para
seruent, cum uindicant, ne nimium sit, cum ignoscunt, ne que pareça estar contida. Não odeiem ninguém e que não haj,a
parum. Nihil puniant, quod non ualeat ad melius, nihil indul- nenhum vício que não queiram curar. Prestem extrema aten-
geant, quod uertat in peius. Suas putent omnes, in quos sibi ção, quando o castiguem, para que não seja em excesso e,
quando o perdoem, para não serem parcos. Nada castiguem
que não contribua para melhorar e nada perdoem que se trans-

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potestas data fuerit. Ita seruiant, ut eis dominari pudeat, ita forme em pior. Considerem como seus todos aqueles sobre quem
dominentur, ut eis seruire delectet. ln alienorum autem pec- lhes foi confiado o poder. Sirvam-nos de tal niodo que se en-
catis molesti non sint inuito. Inimicitias uitent cautissime vergonhem de os dominar e dominem-nos de tal modo que
ferant aequissime, finiant citissime. ln omni uero contractu' encontrem alegria em os servir.
atque conuersatione cum hominibus satis est seruare unum hoc Não se mostrem incomodados pelas faltas involuntárias dos
uulgare prouerbium: nemini faciant, quod pati nolunt. Rem outros. Evitem com toda a cautela os rancores, suportem-nos
publicam nolint administrare nisi perfecti, perfici autem uel com toda a equidade, ponham-lhes fim com toda a rapidez. Em
intra aetatem senatoriam festinent uel certe intra iuuentutem. toda a relação ou conversa com os homens basta que obser-
Sed quisquis sero se ad ista conuerterit, non arbitretur nihil vem este provérbio bem conhecido: «Não faças aos outros o que
sibi esse praeceptum; nam ista utique facilius decocta aetate não queres que te façam a ti.» Não queiram administrar os
seruabit. ln omni autem uita, loco, tempore amicos aut habe- assuntos do Estado a não ser quando forem perfeitos; e sê-lo-
ant aut habere instent. Obsequantur dignis etiam non hoc -ão apressando-se a contarem-se entre a idade senatorial ou,
expectantibus, superbos minus curent, minime sint. Apte con- pelo menos, entre a maioridade. Mas, se alguém se converter
gruenterque uiuant, Deum colant, cogitent, quaerant fide, spe, tarde a estas coisas, não julgue que nada lhe será prescrito.
caritate subnixi. Optent tranquillitatem atque certum cursum Com efeito, passada a efervescência da idade, mais facilmente
studiis suis omniumque sociorum et sibi quibusque possunt há-de observar estas coisas.
mentem bonam pacatamque uitam. Em toda a vida, em todo o lugar e tempo, hão-de ter ami-
gos ou procurar tê-los.
Cedam ante a vontade dos que o merecem, mesmo que eles
não o exijam. Não prestem qualquer atenção aos soberbos e
minimamente o sejam. Vivam como é próprio e conveniente,
honrem a Deus, pensem nele, procurem-no, apoiados na fé, na
esperança e na caridade. Aspirem à tranquilidade e ao decur-
so fiel dos seus estudos e dos de todos os companheiros. E,
para si e para os que possam, desejem uma mente serena e
uma vida pacata.

IX, 26. Sequitur, ut dicam, quomodo studiosi erudiri de- IX, 26. Segue-se, como direi, o modo como os estudiosos,
beant, qui sicut dictum est uiuere instituerunt. Ad discen- que decidiram viver como foi dito, se devem dedicar à eru-
dum item necessario dupliciter ducimur, auctoritate atque dição.
ratione. Tempore auctoritas, re autem ratio prior est. Aliud Também para aprender nos conduzimos necessariamente de
est enim, quod in agendo anteponitur, aliud quod pluris in duas maneiras: pela autoridade e pela razão. A autoridade é
adpetendo aestimatur. Itaque quamquam bonorum auctori- anterior quanto ao tempo mas a razão vem primeiro na ordem
tas imperitae multitudini uideatur esse salubrior, ratio uero das coisas. Uma coisa é, portanto, aquilo que antecede no agir
aptior eruditis, tamen, quia nullus hominum nisi ex imperito e outra aquilo que tem mais valor na apetência. E ainda que
peritus fit, nullus autem imperitus nouit, qualem se debeat a autoridade dos bons pareça ser mais salutar para a multi-
dão ignorante, e a razão pareça mais conveniente para os que
se dedicam à erudição, contudo, porque nenhum homem se
torna conhecedor a não ser a partir da ignorância, e nenhum
ignorante conhece como se deve entregar aos mestres e qual o

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praebere docentibus et quali uita esse docilis possit, euenit género de vida que o torna apto para se instruir facilmente,
ut omnibus bona magna et occulta discere cupientibus non acontece que só a autoridade abre a porta da: aprendizagem
aperiat nisi auctoritas ianuam. Quam quisque ingressus sine de tão grandes e velados bens a todos aqueles que os desejam.
ulla dubitatione uitae optimae praecepta sectatur, per quae Quem tiver entrado nela, sem dúvida alguma é acompanha-
cum docilis factus fuerit, tum demum discet et quanta ratio- do pelos preceitos de uma vida excelente, pelos quais, quando
ne praedita sint ea quae secutus est ante rationem, et quid se tiver tornado dócil, só então apreenderá de quanta razão
sit ipsa ratio, quam post auctoritatis cunabula firmus et ido- estavam dotados aqueles mesmos preceitos que seguiu antes
neus iam sequitur atque comprehendit, et quid intellectus, da razão e o que é a própria razão que, depois do berço da
in quo uniuersa sunt uel ipse potius uniuersa, et quid prae- autoridade, segue já com firmeza e idoneidade, o que é o en-
ter uniuersa uniuersorum principium. Ad quam cognitionem tendimento no qual estão todas as coisas (ou melhor, ele pró-
in hac uita peruenire pauci, ultra quam uero etiam post prio é todas as coisas) e o que é o princípio de todas as coisas
hanc uitam nemo progredi potest. Qui autem sola auctori- que excede todas as coisas. A este conhecimento poucos conse-
tate contenti bonis tantum moribus rectisque uotis constan- guem aceder nesta vida e, para além deste, mesmo depois desta
ter operam dederint aut contemnentes' aut non ualentes vida, ninguém pode alcançar nenhum outro conhecimento.
disciplinis liberalibus atque optimis erudiri, beatos eos qui- Quanto aos que, satisfeitos apenas com a autoridade, entrega-
dem, cum inter homines uiuunt, nescio quo modo appellem, rem o seu esforço com constância aos bons costumes e aos
tamen inconcusse credo, mox ut hoc corpus reliquerint, eos, desejos rectos, por desprezo ou por não terem capacidade para
quo bene magis minusue uixerunt, eo facilius aut difficilius se instruir nas disciplinas liberais e excelentes, não sei como
liberari. lhes hei-de chamar felizes enquanto vivem entre os homens.
Contudo, creio inabalavelmente que logo que abandonem este
corpo, segundo tenham vivido melhor ou pior, assim eles se
hão-de libertar com maior ou menor facilidade.

27. Auctoritas autem partim diuina est, partim humana, sed 27. Ora a autoridade é em parte divina e em parte humana.
uera, firma, summa ea est, quae diuina nominatur. ln qua Mas a verdadeira, firme e suprema autoridade é aquela a que
metuenda est aeriorum animalium mira fallacia, quae per re- se chama divina. Por ela se deve recear o admirável sortilégio
rum ad istos sensus corporis pertinentium quasdam diuinatio- dos animais dos ares que, por uma certa adivinhação e por
nes nonnullasque potentias decipere animas facillime consue- outros poderes das coisas que pertencem a estes sentidos cor-
runt aut périturarum fortunarum curiosas aut fragilium cupidas póreos, se acostumaram a iludir com toda a facilidade as al-
potestatum aut inanium formidulosas miraculorum. Ilia ergo mas curiosas sobre o destino das coisas que hão-de perecer,
auctoritas diuina dicenda est, quae non solum in sensibilibus ávidas do poder das coisas frágeis ou atemorizadas por mila-
signis transcendit omnem humanam facultatem, sed et ipsum gres vãos.
hominem agens ostendit ei, quo usque se propter ipsum de- Portanto, deve chamar-se divina aquela autoridade que não
presserit, et non teneri sensibus, quibus uidentur ilia miran- só supera toda a faculdade humana nos sinais sensíveis mas
da, sed ad intellectum iubet euolare simul demonstrans, et também, agindo ela própria como homem, lhe mostra até que
quanta hic possit et cur haec faciat et quam parui pendat. ponto se rebaixou por causa dele e como não se deve ater aos
sentidos pelos quais se vêem aquelas coisas extraordinárias,
mas manda que eleve o voo até ao entendimento, demonstran-
do, a um tempo, as capacidades que este tem, a razão por que
faz aquelas coisas e o pouco valor que lhes dá.

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Doceat enim oportet et factis potestatem suam et humilitate É necessano, por isso, que ela ensine o seu poder com os
clementiam et praeceptione naturam, quae omnia sacris, qui- factos, a sua clemência com a humildade e a sua natureza com
bus initiamur, secretius firmiusque traduntur, in quibus bono- o preceito. Todas estas coisas sagradas em que fomos inicia-
rum uita facillime non disputationum ambagibus, sed mysteri- dos foram transmitidas do modo mais velado e firme. Nelas, a
orum auctoritate purgatur. Humana uero auctoritas plerumque vida dos bons se purifica muito facilmente não pelos caminhos
fallit, in eis tamen iure uidetur excellere, qui, quantum im- tortuosos da argumentação mas pela autoridade dos mistérios.
peritorum sensus capit, multa dant indicia doctrinarum sua- Na verdade, a autoridade humana é muitas vezes falível e, no
rum et non uiuunt aliter quam uiuendum esse praecipiunt. Qui- entanto, ela parece ter direito de excelência naqueles que, na me-
bus si aliqua etiam fortunae munera accesserint, quorum dida em que isso pode ser percebido pelos ignorantes, dão muitos
appareant usu magni contemptuque maiores, difficillimum omni- sinais das. suas doutrinas e não vivem de maneira diferente da-
no est, ut eis quisque uiuendi praecepta dantibus credens recte quela que prescrevem que se deve viver. Se a estes também lhes
uituperetur. tiverem sido dados alguns bens de fortuna, cujo uso faz que pare-
çam grandes e cujo desprendimento faz que pareçam ainda maio-
res, é mesmo muito difícil censurar algum daqueles que acredite
rectamente nas normas de vida que eles lhes dão.

X, 28. Então, Alípio disse:


X, 28. Hic Alypius: Permagna, inquit, uitae imago abs te - Grandiosa é a imagem da vida que colocaste ante os
ante oculos nastros cura plene tum breuiter constituta est, cui nossos olhos de modo tão completo como breve, para a qual,
quamuis cotidianis praeceptis tuis inhiemus, tamen nos hodie embora nós nos fixemos todos os dias nos teus preceitos, toda-
cupidiores flagrantioresque reddidisti. Ad quam, si fieri pos- via hoje nos deixaste mais ávidos e despertos. Na verdade, se
set, non solum nos uerum etiam cunctos homines iam perue- fosse possível, eu desejaria que não apenas nós mas a totali-
nire et eidem inhaerere cuperem, si, ut haec auditu mirabilia, dade dos homens já a tivesse alcançado e nela se tivesse fixa-
ita essent imitatione facilia. Nam nescio quo modo - quod do, se essas coisas admiráve.is de ouvir fossem também fáceis
utinam uel a nobis procul absit! - animus humanus dum haec de imitar. Com efeito, não sei de que modo o espírito huma-
audiendo caelestia diuina ac prorsus uera esse proclamet, in no - oxalá isso esteja longe de nós! - que, quando as está a
adpetendo aliter se gerit, ut mihi uerissimum uideatur aut ouvir, reconhece serem realmente verdadeiras, celestiais e di-
diuinos homines aut non sine diuina ope sic uiuere. - Cui egÓ: vinas, se dirige de outro modo na apetência, a tal ponto que
Haec praecepta uiuendi, quae tibi, ut semper, plurimum pla- me parece uma grande verdade que assim vivam homens divi-
cent, Alypi, quamuis hic meis uerbis pro tempore expressa sint, nos ou não sem o auxílio divino.
non tamen a me inuenta esse optime seis. His enim magno- Eu respondi-lhe:
rum hominum et paene diuinorum libri plenissimi sunt; quod - Estes preceitos de vida, Alípio, que a ti, como sempre, te
agradaram muitíssimo, embora eu os tenha enunciado aqui
neste momento com as minhas palavras, contudo sabes muito
bem que não foram inventados por mim. Com efeito, os livros
dos grandes homens, quase divinos, estão absolutamente re-
pletos deles 11 . Por isso, não foi por tua causa que eu pensei

11 Cf. Retract., !, 3, 2 (CCL 57, p. 12). Agostinho reconhece ter elogiado

excessivamente os filósofos, homens nem sempre dotados de verdadeira piedade.


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non propter te mihi dicendum putaui, sed propter istos adu- que devia dizer isto, mas por causa destes jovens, para que
lescentes, ne in eis quasi auctoritatem meam iure contemnant. eles não desprezem com motivo a minha autoridade nestas
N am mihi omnino illos no lo credere nisi docenti rationemque coisas. De facto, não quero de modo algum que acreditem em
reddenti, propter quos pro rerum magnitudine concitandos etiam mim a não ser ensinando e apresentando-lhes a razão. E é
te arbitror istum interposuisse sermonem. Non enim tibi sunt também por causa deles, para os encorajar ante a grandeza
ad sequendum ista difficilia, quae tanta rapuisti auiditate do assunto, que julgo que quiseste inserir este discurso. Na
tantoque in ea naturae admirabilis impetu ingressus es, ut verdade, estas coisas não te são difíceis de seguir, já que as
ego tibi uerborum, tu mihi rerum magister effectus sis. Non arrebataste com tanta avidez e que penetraste nelas com o
enim est modo ulla causa mentiendi aut saltem occasio; nam imenso ímpeto da tua admirável natureza, de tal modo que,
neque te falsa tua laude studiosiorem fieri puto et hi adsunt, se eu fui para ti mestre das palavras, tu tornaste-te para mim
qui utrumque nouerunt, et ei sermo iste mittetur, cui nostrum mestre das acções 12 . Na verdade, não tenho nenhum motivo
nullus ignotus est. para mentir, ou sequer ocasião. Com efeito, não penso que te
tornasses mais estudioso por um falso louvor. E não só estão
aqui os que nos conhecem a ambos como também este diálogo
será enviado àquele para quem nenhum de nós é desconhecido.

29. Bonos autem uiros deditosque optimis moribus, si non 29. Julgo que, se não pensas de maneira diferente daquilo
aliter sentis atque dixisti, pauciores te arbitror esse credere que disseste, tu crês que há homens bons e entregues a exce-
quam mihi probabile est; sed multi penitus latent; item mul- lentes costumes, mas que eles ainda são menos do que me
torum non latentium ea ipsa, quae mira sunt, latent; in ani- parece plausível. Contudo, muitos passam completamente des-
mo enim sunt ista, qui neque sensu accipi potest et plerum- percebidos. Além disso, em muitos dos que não são desco-
que, dum congruere uult uitiosorum hominum conloquiis, ea nhecidos essas mesmas coisas que são admiráveis passam des-
dicit, quae aut probare aut adpetere uideatur. Multa etiam facit percebidas. Na verdade, elas estão no espírito que, por um lado,
non libenter propter aut uitandum odium hominum aut inep- não pode ser percebido pelos sentidos e, por outro, muitas
tiam fugiendam, quod nos audientes aut uidentes difficile ali- vezes, quando quer juntar-se às conversas dos homens vicio-
ter existimamus, quam sensus iste renuntiat, eoque fit, ut sos, diz coisas que parece que aprova ou deseja. E também há
multas non tales esse credamus, quales et se ipsi et eos sui muitas coisas que não faz de bom grado, para evitar o ódio
familiares nouerunt, quod tibi ex amicorum nostrorum quibus- dos homens ou para escapar à inépcia, as quais nós, que as
dam magnis animi bonis, quae nos soli scimus, persuadeas vemos ou ouvimos, dificilmente avaliamos de um modo dife-
uelim. Nam errar iste non mínima et hac causa nititur, quod rente do que este sentido nos anuncia. Daqui resulta que jul-
non pauci se subito ad bonam uitam miramque conuertunt et, gamos que muitos não são tais como eles se conhecem a si
donec aliquibus clarioribus factis innotescant, quales erant, esse mesmos e como os conhecem os seus amigos. Gostaria que te
convencesses disto porque, entre os nossos amigos, há alguns
com uma imensa grandeza e bondade de ânimo, que só nós
conhecemos. Com efeito, este erro deriva desta causa não in-
significante, a saber, que não poucos se convertem de repente
a uma vida boa e digna de admiração e que, até que isso se

12 Cf. Conf., 8, 12, 30 (CCL 27, 131-132).

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creduntur; nam ne longius abeam, quis istos adulescentes, qui manifeste por alguns factos mais evidentes, se continua a acre-
antea nouerat, facile credat tam studiose magna quaerere, ditar que eles são tal como eram. Assim, para não ir mais
tantas repente in hac aetate indixisse inimicitias uoluptatibus? longe, quem havia de acreditar facilmente - se tivesse conhe-
Ergo hanc opinionem pellamus ex animo; nam et illud diui- cido antes estes jovens - que eles procurassem com afinco
num auxilium, quod, ut decebat, religiose in ultimo sermonis coisas tão grandes ou que, nesta idade, subitamente manifes-
tui posuisti, latius, quam nonnulli opinantur, officium clemen- tassem uma tão grande repulsa pelos prazeres?
tiae suae per uniuersos populos agit. Sed ad disputationis Portanto, expulsemos esta opinião do nosso espírito, pois
nostrae, si placet, ordinem redeamus et, quoniam de auctori- aquele aUXI1io divino que tu - religiosamente, como convinha -
tate satis dictum est, uideamus quid sibi ratio uelit. propuseste no final das tuas palavras, exerce, de modo mais
amplo do que alguns pensam, o favor da sua clemência para
com todos os povos. Mas, se te parece bem, voltemos à ordem
da nossa discussão e, visto que já falámos bastante acerca da
autoridade, vejamos o que a razão reinvidica para si.

XI, 30. Ratio est mentis motio ea quae discuntur, distin- XI, 30. A razão é a moção da mente capaz de distinguir e
guendi et conectendi potens, qua duce uti ad Deum intellegen- relacionar as cõisas que se aprendem. Mas só um género mui-
dum uel ipsam quae aut in nobis aut usque quaque est ani- tíssimo raro-de-homens pode fazer uso dela como guia para
mam rarissimum omnino genus hominum potest non ob aliud entender Deus e a própria alma que está em nós ou que se
nisi quia in istorum sensuum negotia progresso redire in seme- estende a todas as coisas. E isto é assim não por outra causa
tipsum cuique difficile est. !taque cum in rebus ipsis fallacibus a não ser porque, tendo avançado nas ocupações destes senti-
ratione totum agere homines moliantur, quid sit ipsa ratio et dos, é difícil a cada Tim regressar para si mesmo. E assim,
qualis sit, nisi perpauci prorsus ignorant. Mirum uidetur, sed aindaque os homens, mesmo nas coisas falaciosas, se esfor-
tamen se ita res habet. Satis est hoc dixisse in praesentia; nam cem por fazer tudo com razão, à excepção de uns poucos eles
si uobis rem tantam, sicut intellegendà est, nunc ostendere cu- ignoram absolutamente o que é e como é a própria razão.
piam, tam ineptus sim quam adrogans, si uel me iliam iam Parece surpreendente, mas de facto a realidade é esta. Por ora,
percepisse profitear. Tamen quantum dignata est in res, quae basta o que eu disse. Na verdade, se desejasse mostrar-vos
nobis notae uidentur, procedere, indagemus eam, si possumus, agora um assunto tão importante tal como deve ser entendido,
interim, prout susceptus sermo desiderat. seria tão inapto como arrogante: era como se declarasse já o
ter compreendido. Contudo, na proporção em que ela se dig-
nou avançar nas coisas que parecem ser conhecidas por nós,
indaguemo-la, entretanto, se podemos, conforme reclama o dis-
curso empreendido.

31. Ac primum uideamus, ubi hoc uerbum, quod ratio uo- 31. Em primeiro lugar vejamos onde é que se costuma en- <-~
catur, frequentari solet; nam illud nos mouere maxime debet, contrar muitas vezes esta palavra que se chama razão. Com
quod ipse homo a ueteribus sapientibus ita definitus est: homo efeito, deve impressionar-nos profundamente que o próprio
est animal rationale mortale. Hic genere posito, quod animal homem assim se tenha definido pelos antigos sábios: «O ho-
dictum est, uidemus additas duas differentias, quibus, credo, mem é um animal racional mortal». Aqui, estabelecido o géne-
admonendus erat homo et quo sibi redeundum esset et unde ro que se chamou animal, vemos que foram acrescentadas duas
fugiendum. Nam ut progressus animae usque ad mortalia lap- diferenças pelas quais, segundo creio, o homem havia de ser

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1 ç):,;~ ;,, ,/ '.'

sus est, ita regressus esse in rationem debet; uno uerbo a admoestado tanto sobre aquilo para onde deveria regressar
bestiis, quod rationale, alio a diuinis separatur, quod mortale como sobre aquilo de "onde cleverla escapar.
dicitur. Illud igitur nisi tenuerit, bestia erit, hinc nisi se auer- Com efeito, tal como o progresso ªª'--ªll!llL resvalou até às
terit, diuina non erit. Sed quoniam solent doctissimi uiri, quid coisas mortais, também -o:;:;g;:esso deve ser para-a razão. Por
inter rationale ac rationabile intersit, acute subtiliterque dis- umã"í)ãravrã, racional, ela"separã-Sedosani,;,-áis, ·;p'o~"t;utra,
cernere, nullo modo est ad id quod instituimus neglegendum. porque se diz mortal, separa-se das coisas divinas. Portanto,
Nam rationale esse dixerunt, quod ratione uteretur uel uti se nãh mantiver o primeiro títufo, tornar~se:á' a~i~al e,' se não
posset, rationabile autem, quod ratione factum esset aut dic- se afastar deste último, ela não será divina. Mas, visto que-
tum. !taque has oalneas rationabiles possumus dicere nostrum- homens sapientíssimos costumam discernir, aguda e subtilmen-
que sermonem, rationales autem uel illum, qui has fecit, úel te, a diferença entre o racional e o razoável 13 , para aquilo que
nos qui loquimur. Ergo procedit ratio ab anima rationali, sci- estabelecemos de nenhum modo se deve negligenciar esta dis-
licet in ea quae uel fiunt rationabilia uel dicuntur. tinção. De facto, eles disseram ser racional o que se serve ou
se poderia servir da razão e razoável o que se tivesse dito ou
feito pela razão. E assim podemos dizer que estes banhos e o
nosso discurso são razoáveis; ora racional é quem os fez, ou
nós, que falamos. Portanto, a razão apresenta-se pela alma
racional, isto é, naquelas coisas que se fazem ou se dizem ser
razoáveis.

32. Duo igitur uideo, in quibus potentia uisque rationis 32. Portanto, vejo dois domínios nos quais o poder e a força
possit ipsis etiam sensibus admoueri, opera hominum quae da razão pode ser atribuído até aos próprios sentidos: as obras
uidentur et uerba quae audiuntur. ln utroque autem utitur dos homens, que se vêem, e as palavras, que se ouvem. Num
mens gemino nuntio pro corporis necessitate, uno qui oculo- caso e noutro, a mente faz uso, por necessidade do corpo, de
rum est, altero aurium. Itaque cum aliquid uidemus congru- um mensageiro duplo: um que é dos olhos e outro dos ouvidos.
entibus sibi partibus figuratum, non absurde dicimus rationa- E é por isso que, quando vemos alguma coisa configurada se-
bilitE'lr apparere, itemque, cum aliquid bene concinere audimus, gundo uma certa congruência das partes entre si, não é ab-
non dubitamus dicere, quod rationabÍliter sonat. Nemo autem surdo dizer que tem uma aparência razoável. E, do mesmo
non rideatur, si dixerit: rationabiliter olet aut rationabiliter modo, quando ouvimos alguma coisa que nos soa bem, não
sapit aut rationabiliter molle est, nisi forte in his, quae prop- duvidamos dizer que ressoa razoavelmente. Ora não há quem
ter aliquid ab hominibus procurata sunt, -ut ita olerent uel não se ria se dissermos: «isto cheira razoavelmente», ou «Sabe
saperent uel feruerent uel quid aliud, ut, si quis locum, unde razoavelmente», ou «é razoavelmente suave», a não ser, talvez,
grauibus odoribus serpentes fugantur, rationabiliter dicat ita naquelas coisas que, por algum motivo, são tratadas assim
olere causam intuens, quare sit factum, aut poculum, quod pelos homens - porque cheiram, sabem ou ardem assim, ou
medicus confecerit, rationabiliter amarum esse uel dulce, aut outra coisa qualquer, como num lugar onde as serpentes se
afugentam com cheiros muito fortes se diria que cheira razoa-
velmente, considerando o motivo pelo qual isso se fez, ou uma
bebida que o médico preparou se diz ser razoavelmente amar-

l3 V. nota complementar 8, «Rationalelrationabile».

198 199
quod temperari languido solium iusserit, calere rationabiliter ga ou doce, ou que um banho, que foi mandado que se prepa-
aut tepere. Nemo autem hortum ingressus et rosam naribus rasse para um doente, se diz estar razoavelmente quente ou
admouens audet ita laudare: quam rationabiliter fraglat! nec tépido. Ora, tendo entrado num jardim e aproximando uma rosa
si medicus iliam ut olfaceret iusserit (tunc enim praeceptum ao nariz, ninguém ousa dizer: «que fragrância razoável!», nem
uel datum illud rationabiliter, non tamen olere rationabiliter mesmo se o médico tivesse mandado que a cheirasse (dir-se-
dicitur), nec propterea quia naturalis ille odor est. Nam qua- -ia, nesse caso, que aquilo fora prescrito ou mandado razoa-
muis a coco pulmentum condiatur, rationabiliter conditum velmente, mas não que cheira razoavelmente), e isso é assim
possumus dicere, rationabiliter autem sapere, cum causa ex- porque aquele odor é natural. Com efeito, embora quando uma
trinsecus nulla sit, sed praesenti satisfiat uoluptati, nullo modo iguaria é temperada por um cozinheiro possamos dizer que está
ipsa loquendi consuetudine dicitur. Si enim quaeratur de illo, razoavelmente temperada, no entanto, uma vez que não existe
cui poculum medicus dederit, cur id dulciter sentire debuerit, nenhuma causa extrínseca mas que ela satisfaz um prazer
aliud infertur, propter quod ita est, id est morbi genus, quod imediato, de nenhum modo se costuma dizer, na linguagem
iam non in illo sensu est, sed aliter sese habet in corpore. Si corrente, que sabe razoavelmente. Na verdade, se se pergunta
autem rogetur ligurriens aliquid gulae stimulo concitatus, cur àquele a quem o médico tiver dado uma poção por que razão
ita dulce sit et respondeat: «quia libet» aut «quia delector», deverá sentir um sabor adocicado, encontrar-se-á um motivo
nemo illud dicet rationabiliter dulce, nisi forte illius delectatio diverso pelo qual assim é, a saber, o tipo de doença, que já
alicui rei sit necessaria et illud, quod mandit, ob hoc ita con- não está naquele sentido mas que se relaciona com o corpo de
fectum sit. outra maneira. E, se perguntarmos a alguém que esteja a sa-
borear alguma coisa levado pelo estímulo da gula por que ra-
zão é assim tão doce, e se ele responder: «porque eu gosto
assim» ou «porque me dá prazer>>, ninguém dirá que é razoa-
velmente doce, a menos, talvez, que o prazer deste homem fosse
necessário para alguma· coisa e que aquilo que come tivesse
sido confeccionado por esse motivo.

33. Tenemus, quantum inuestigare potuimus, quaedam ues- 33. Tanto quanto pudemos investigar, possuímos alguns ves-
tigia rationis in ·sensibus et quod ad uisum atque auditum tígios de razão nos sentidos e, no que se refere à visão e à
pertinet, in ipsa etiam uoluptate. Alii uero sensus non in uo- audição, até no próprio prazer. De facto, os outros sentidos
luptate sua, sed propter aliquid aliud solent hoc nomen exige- costumam reclamar este nome não para o seu próprio prazer
re, id autem est rationalis animantis factum propter aliquem mas em vista de alguma outra coisa, mas isto é feito por al-
finem. Sed ad oculos quod pertinet, in quo congruentia par- gum fim do animal racional.
tium rationabilis dicitur, pulchrum appellari solet, quod uero Mas no que se refere à visão, aquilo em que a congruência
ad aures, quando rationabilem concentum dicimus cantumque .das partes se diz razoável costuma chamar-se belo. E, no que
numerosum rationabiliter esse compositum, suauitas uocatur se refere aos ouvidos, quando dizemos de um acorde que é
proprio iam nomine. Sed neqµe in pulchris rebus, quod nos razoável e de um canto que é ritmado, dizemos que está razoa-
color inlicit, neque in aurium suauitate, cum pulsa corda quasi velmente composto e, então, chama-se pelo seu nome próprio:
liquide sonat atque pure, rationabile illud dicere solemus. Res- suavidade.
Porém, nem nas coisas belas, porque a cor nos cativa, nem
na suavidade dos ouvidos, como quando a vibração de uma
corda ressoa de modo límpido e puro, costumamos dizer que é

200 201
tat ergo ut in istorum sensuum uoluptate id ad rationem per- razoável. Resta, portanto, confessar que, no prazer destes sen-
tinere fateamur, ubi quaedam dimensio est atque modulatio. tidos, logo que há uma certa proporção e modelação, isso per-
tence à razão.

34. Itaque in hoc ipso aedificio singula berre considerantes 34. Por isso, neste mesmo edifício, considerando atentamente
non possumus non offendi, quod unum ostium uidemus in la- cada pormenor, não podemos deixar de nos chocar quando
tere, alterum prope in media nec tamen in media collocatum. vemos uma porta colocada num lado e outra colocada quase a
Quippe in rebus fabricatis, nulla cogente necessitate, iniqua meio mas que todavia não está bem a meio. Com efeito, nas
dimensio partium facere ipsi aspectui uelut quandam uidetur coisas fabricadas, não o impondo nenhuma necessida le, uma
iniuriam. Quod autem intus tres fenestrae, una in media, duae distribuição desigual das partes parece fazer uma certa agres-
a lateribus paribus interuallis solio lumen infundunt, quam nos são ao próprio olhar. Ora, que três janelas, uma no meio e
delectat diligentius intuentes quamque in se animum rapit! duas nos lados, espalhem a luz por intervalos iguais no inte-
Manifesta res est nec multis uerbis uobis aperienda. Vnde ipsi rior dos banhos, quanto nos agrada e, examinando mais aten-
architecti iam suo uerbo rationem istam uocant et partes dis- tamente, quanto arrebata o espírito para si mesmo! Isso é evi-
corditer conlocatas dicunt non habere rationem. Quod late patet dente e não são precisas muitas palavras para vo-lo explicar.
ac paene in omnes artes operaque humana diffunditur. Iam in Daí que os próprios arquitectos, na sua linguagem própria, cha-
carminibus, in quibus item dicimus esse rationem ad uolupta- mam a esta «razão» e dizem que as partes colocadas de modo
tem aurium pertinentem, quis non sentiat dimensionem esse discordante não têm razão. Isto manifesta-se amplamente e é
totius huius suauitatis opificem? Sed histrione saltante, cum extensivo a quase todas as artes e obras humanas. E assim
berre spectantibus gestus illi omnes signa sint rerum, quamuis também nos poemas, nos quais dizemos igualmente que está a
membrorum numerosus quidam motus oculos eadem illa di- razão respeitante ao prazer dos ouvidos, quem não se aper-
mensione delectet, dicitur tamen rationabilis illa saltatio, quod cebe de que a proporção é o artífice de toda esta suavidade?
berre aliquid significet et ostendat, excepta sensuum uolupta- Mas na pantomima de um histrião, uma vez que todos aque-
te. Non enim, si pinnatam Venerem faciat et Cupidinem palli- les gestos são, para os que observam bem, sinais das coisas,
atum, quamuis id mira membrorum motione atque conlocatio- embora um certo movimento ritmado dos membros deleite os
ne depingat, oculos uidetur offendere, sed per oculos animum, olhos por aquela mesma proporção, contudo diz-se que essa
cui signa rerum illa monstrantur; nam oculi offenderentur, si pantomima é razoável porque indica e manifesta bem alguma
non pulchre moueretur. Hoc enim pertinebat ad sensum, in quo coisa, para além do prazer dos sentidos. Com efeito, se ele re-
anima eo ipso, quod mixta est corpori, percipit uoluptatem. presentar Vénus com penas e Cupido com um manto, ainda
Aliud ergo sensus, aliud per sensum; nam sensum mulcet que os represente e os torne admiráveis pelo movimento e pela
pulcher motus, per sensum autem animum solum pulchra in ·pose dos membros, não parece que agrida os olhos mas, atra-
motu significatio. Hoc etiam in auribus facilius aduertitur; nam vés dos olhos, o espírito, ao qual aqueles sinais das coisas são
. apresentados.
Com efeito, os olhos seriam agredidos se ele não se moves-
se com beleza. De facto, isso pertenceria ao sentido, no qual a
alma, pelo próprio facto de estar misturada com o corpo, co-
nhece o prazer. Portanto, uma coisa é o sentido, outra aquilo
que passa pelo sentido; na verdade, o movimento belo afaga o
sentido; ora a significação bela no movimento afaga só o espí-
rito, através do sentido. Isto também se adverte muito facil-

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quicquid iucunde sonat, illum ipsum auditum libet atque inli- mente no ouvido: com efeito, se alguma coisa ressoa agradavel-
cit; quod autem per eundem sonum bene significatur, nuntio mente, isso agrada e seduz o próprio ouvido; ora o que está bem
quidem aurium sed ad solam mentem refertur. !taque cum significado por esse mesmo som é referido, certamente, pelo
audimus ilias uersus Quid tantum Oceano properent se tingue- mensageiro dos ouvidos, mas só à mente. E por isso, quando
re soles/ hiberni uel quae tardis mora noctibus obstet, aliter ouvimos aqueles versos que dizem: «Por que razão os dias de
metra laudamus aliterque sententiam nec sub eodem intellec- Inverno se apressam a mergulhar no oceano / e que demora se
tu dicimus: «rationabiliter sonat» et «rationabiliter dictum est». interpõe às longas noites/» 14, louvamos de um modo os versos
e de outro a afirmação, e não dizemos sob o mesmo entendi-
mento: «soa razoavelmente» e «foi dito de modo razoável».

XII, 35. Ergo iam tria genera sunt rerum, in quibus illud XII, 35. Portanto, já há três géneros de coisas em que apa-
rationabile apparet, unum est in factis ad aliquem finem rela- rece o razoável. Um é o dos factos que se reportam a algum
tis, alterum in dicendo, tertium in delectando. Primum nos admo- fim, outro é no dizer e o terceiro no deleite. O primeiro acon-
net nihil temere facere, secundum recte docere, ultimum beate selha-nos a não fazer nada ao acaso; o segundo, a ensinar con-
contemplari; in moribus est illud superius, haec autem duo in venientemente; o último, a contemplar ditosamente. O primeiro
disciplinis, de quibus nunc agimus. Namque illud quod in nobis refere-se aos costumes; os outros dois, às disciplinas, de que
est rationale, id est quod ratione utitur et rationabilia uel facit agora tratamos. Com efeito, :;i.quilo que em nós é racional, isto
uel sequitur, quia naturali quodam uinculo in eorum societate é, aquilo que se serve da razão, e as coisas razoáveis que faz
adstringebatur, cum quibus illi erat ipsa ratio communis, nec ou persegue, porque estava sujeito por um certo vínculo natu-
homini homo firmissime sociari posset, nisi conloquerentur at- ral na sociedade daqueles com os quais tinha em comum a
que ita sibi mentes suas cogitationesque quasi refunderent, ui- própria razão e porque o homem não se poderia associar com
dit esse imponenda rebus uocabula, id est significantes quos- toda a firmeza ao homem a não ser que conversassem e se
dam sonos, ut, quoniam sentire animas suas non poterant, ad fundissem, desse modo, as suas mentes e pensamentos, viu que
eos sibi copulandos sensu quasi interprete uterentur. Sed audiri se deviam impor nomes às coisas, isto é, alguns sons signifi-
absentium uerba non poterant; ergo ilia ratio peperit litteras, cantes, para que - como eles não podiam perceber pelos sen-
notatis omnibus oris ac linguae sonis atque discretis. Nihil tidos os seus espíritos - se servissem do sentido como uma
autem horum facere poterat, si multitudo rerum sine quodam espécie de intérprete para os unir a si. Mas as palavras dos
defixo termino infinite patere uideretur. Ergo utilitas numerandi ausentes não podiam ser ouvidas: portanto, esta razão deu à
magna necessitate animaduersa est. Quibus duobus repertis, luz as letras, tendo assinalado e distinguido todos os sons da
nata est ilia librariorum et calculonum professio uelut quaedam língua e da boca. Porém, nada disto poderia fazer se a multi-
grammaticae infantia, quam Varro litterationem uocat; graece dão das coisas parecesse estender-se infinitamente, sem um
autem quomodo appelletur, non satis in praesentia recolo. certo limite fixado. Portanto, a utilidade de numerar foi reco-
nhecida por uma grande necessidade. Com estas duas desco-
bertas nasceu aquela profissão dos copistas e dos calculadores
que são como uma certa infância da gramática e a que Varrão
chama «Estudos elementares». Em grego não recordo agora bem
como se chama.

14 Virgílio, Eneida, 1, 745-746.

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36. Progressa deinde ratio animaduertit eosdem oris sonos, 36. Tendo avançado até este ponto, a razão verificou, depois,
\
quibus loqueremur et quos litteris iam signauerat, alios esse, que esses mesmos sons da boca, pelos quais falamos e que já
qui moderato uarie hiatu quasi enodati ac simplices faucibus tinha assinalado pelas letras, uns - regulada a abertura da
sine ulla conlisione defluerent, alios diuerso pressu oris tenere boca de diferentes modos - saíam pela garganta sem atrope-
tamen aliquem sonum, extremos autem, qui nisi adiunctis sibi los, desembaraçados e simples; outros, com outra compressão
primis erumpere non ualerent. Itaque litteras hoc ordine, quo da boca, conseguiam, ainda assim, algum som; e havia uns
expositae sunt, uoca!es, semiuocales et mutas nominauit, deinde últimos, porém, que não conseguiam sair a não ser que se lhes
syllabas notauit. Deinde uerba in octo genera formasque diges- juntassem os primeiros. E assim ela chamou às letras que fo-
ta sunt omnisque illorum motus, integritas, iunctura perite ram expostas por esta ordem vogais, semivogais e mudas. Em
subtiliterque distincta sunt. Inde iam numerorum et dimensio- seguida, designou as sílabas; depois, as palavras foram distri-
nis non immemor adiecit animum in ipsas uocum et syllaba- buídas em oito géneros e formas, e todo o seu movimento, inte-
rum uarias moras atque inde spatia temporis alia dupla et alia gridade e conexão foi separado com subtileza e perícia. A par-
simpla esse comperit, quibus longae breuesque syllabae tende- tir desse momento, não esquecida dos números e da proporção,
rentur. Notauit etiam ista et in regulas certas disposuit. acrescentou espírito nessas diferentes pausas das vozes e síla-
bas, e a partir daí descobriu que uns espaços de tempo eram
duplos e outros simples e que neles se apoiavam as sílabas
longas e breves.
Atribuiu designações também a estas coisas e dispô-las em
regras fixas.

37. Poterat iam perfecta esse grammatica, sed quia ipso 37. A gramática já podia estar acabada mas, porque ela pro-
nomine profiteri se litteras clamat, unde etiam !atine littera- clama abertamente pelo seu próprio nome que ensina as letras,
tura dicitur, factum est, ut, quicquid dignum memoria litteris razão pela qual em latim se chama também litteratura, aconte-
mandaretur, ad eam necessario pertineret. Itaque unum qui- ceu que lhe pertenceria a ela, necessariamente, qualquer coisa
dem nomen, sed res infinita, multiplex, curarum plenior quam digna de memória que se confiasse às letras. E por isso aproximou-
iucunditatis aut ueritatis huic disciplinae accessit, historia non -se a esta disciplina, com um só nome, mas sendo de facto uma
tam ipsis historieis quam grammaticis laboriosa. Quis enim coisa infinita, multiforme, mais cheia de trabalhos do que de
ferat imperitum uideri hominem, qui uolasse Daedalum non alegria e de verdade, a historiografia, não tão laboriosa para os
audierit, mendacem, illum qui finxerit, stultum, qui credide- próprios historiadores quanto para os gramáticos. Com efeito,
rit, impudentem, qui interrogauerit, non uideri. Aut in quo quem dirá que parece ignorante um homem que não tivesse
nastros familiares grauiter miserari soleo, qui si non responde- ouvido dizer que Dédalo tinha voado, sem que lhe pareça men-
rint, quid uocata sit mater Euryali, accusantur inscitiae, cum tiroso aquele que o inventou, louco aquele que acreditou nisso,
ipsi eos, a quibus ea rogantur, uanos et ineptos nec curiosos atrevido aquele que fez essa pergunta? E nisto costumo ter muita
audeant appellare? pena dos nossos amigos, que são acusados de ignorância se não
responderem como se chamava a mãe de Euríalo, quando eles
próprios não ousam chamar frívolos, importunas e curiosos àque-
les que formulam tais perguntas.

XIII, 38. Illa igitur ratio, perfecta dispositaque grammati- XIII, 38. Deste modo, tendo ordenado e acabado a gramática,
ca, admonita est quaerere atque adtendere hanc ipsam uim, a dita razão foi aconselhada a investigar e a prestar atenção a

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qua peperit artem. Nam eam definiendo, distribuendo, con- esta mesma força pela qual tinha dado à luz a arte. Na verdade,
ligendo non solum digesserat atque ordinarat, uerum ab definindo-a, distribuindo-a e unificando-a, ela não só a tinha
omni etiam falsitatis inreptione defenderat. Quando ergo dividido e ordenado mas também a defendera de toda a intro-
transiret ad alia fabricanda, nisi ipsa sua prius quasi quae- missão da falsidade. Portanto, como poderia passar a outras
dam machinamenta et instrumenta distingueret, notaret, coisas que deviam ser construídas sem que primeiro distinguis-
digereret proderetque ipsam disciplinam disciplinarum, quam se, assinalasse, separasse e desenvolvesse esta sua própria espé-
dialecticam uocant? Haec docet docere, haec docyt discere; cie de maquinaria e equipagem, a própria disciplina das disci-
in hac se ipsa ratio demonstrat atque aperit, quaf sit, quid plinas, a que chamam dialéctica? Esta ensina a ensinar, esta
uelit, quid ualeat. Scit scire, sola scientes facere non solum ensina a aprender. Nela, a razão prova e manifesta a si mes-
uult, sed etiam potest. Verum quoniam plerumque stulti ma aquilo que é, o que quer, quanto vale. Ela sabe saber e só
homines ad ea, quae suadentur recte utiliter et honeste, non ela não apenas quer mas também pode fazer homens sábios.
ipsam sincerissimam quam rarus animus uidet ueritatem, Mas visto que a maior parte das vezes os homens estultos,
sed proprios sensus consuetudinemque sectantur, oportebat em relação àquelas coisas que lhes são aconselhadas com rec-
eos non doceri solum, quantum queunt, sed saepe et maxi- tidão, utilidade e honestidade, seguem os seus próprios senti-
me commoueri. Hanc suam partem, quae id ageret, neces- dos e hábitos e não a própria e sinceríssima verdade que um
sitatis pleniorem quam puritatis refertissimo gremio delici- espírito apurado vê, convinha que eles não fossem só ensina-
arum, quas populo spargat, ut ad utilitatem suam dignetur dos tanto quanto são capazes, mas que também fossem sensi-
adduci, uocauit rhetoricam. Hactenus pars illa, quae in sig- bilizados muitas vezes e o máximo possível. A esta sua parte,
nificando rationabilis dicitur, studiis liberalibus disciplinis- que faria isso mais por necessidade do que pela pureza, cha- ·
que promota est. mou retórica, arte dotada de um riquíssimo grémio de delícias
que espalha pelo povo, a fim de que este se digne ser condu-
zido para sua utilidade. Eis até que ponto foi desenvolvida pelos
estudos e disciplinas liberais aquela parte que, indicando por
sinais, se diz razoável.

XIV, 39. Hinc se illa ratio ad ipsarum diuinarum rerum XIV, 39. A partir daqui, aquela razão quis lançar-se à con-
beatissimam contemplationem rapere uoluit. Sed ne de alto templação .ditosíssima das próprias coisas divinas. Mas para
caderet, quaesiuit gradus atque ipsa sibi uiam per suas pos- que não caísse do alto, procurou degraus, e ela própria cons-
sessiones ordinemque molita est. Desiderabat enim pulchritu- truiu para si um caminho e uma ordem através das suas capa-
dinem, quam sola et simplex posset sine istis oculis intueri; cidades.
impediebatur a sensibus. !taque in eos ipsos paululum aciem Na verdade, desejava aquela beleza que, só e simples, pode
torsit, qui ueritatem sese habere clamantes festinantem ad alia ser contemplada sem estes nossos olhos. Era impedida pelos
pergere importuno strepitu reuocabant. Et primo ab auribus sentidos. E por isso voltou um pouco a agudeza do olhar para
coepit, quia dicebant ipsa uerba sua esse, quibus iam et gram- aqueles mesmos que, proclamando possuírem a verdade, com
maticam et dialecticam et rhetoricam fecerat. At ista potentis- estrépito importuno a faziam retroceder, tendo ela pressa em
sima secernendi cito uidit, quid inter sonum et id, cuius sig- prosseguir para outras coisas.
E começou primeiro pelos ouvidos porque diziam serem suas
· as próprias palavras, com as quais já elaborara tanto a gramá-
tica como a dialéctica e a retórica. E esta potentíssima força
de discernir rapidamente viu o que distava entre o som e aquilo
14
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num esset, distaret. Intellexit nihil aliud ad aurium iudicium de que ele era sinal. Entendeu que não havia nenhuma outra
pertinere quam sonum eumque esse triplicem aut in uoce ani- coisa que pertencesse ao juízo dos sentidos senão o som e que
mantis aut in eo quod flatus in organis faceret aut in eo quod este é triplo: na voz do ser vivo, naquilo que o sopro fizesse
pulsu ederetur; ad primum pertinere tragoedos uel comoedos nos órgãos ou naquilo que se produzisse pelo bater. Ao pri-
uel choros cuiuscemodi atque omnes omnino, qui uoce propria meiro pertencem os actores das tragédias ou das comédias e
canerent, secundum tibiis et similibus instrumentis deputari, os coros deste género e, em geral, todos os que cantam com voz
tertio dari citharas, lyras, cymbala atque omne quod percuti- própria. Ao segundo, o que se atribui à flauta e instrumentos
endo canorum esset. semelhantes. E ao terceiro pertencem as cítaras, liras, cím-
balos e tudo aquilo que produz ressonâncias pela percussão.

40. Videbat autem hanc materiam esse uilissimam, ms1 40. Via, porém, que esta matéria era absolutamente des-
certa dimensione temporum et acuminis grauitatisque mode- prezível a não ser que os sons fossem configurados por uma
rata uarietate soni figurarentur. Recognouit hinc esse illa se- certa proporção dos tempos e que fosse regulada a diversidade
mina, quae in grammatica, cum syllabas diligenti considerati- entre o agudo e o grave. Reconheceu aqui os germes daquilo
one uersaret, pedes et accentus uocauerat, et quia in ipsis que, na gramática, quando se debruçara sobre as sílabas com
uerbis breuitates et longitudines syllabarum prope aequali uma atenção diligente, tinha chamado pés e acentos 15 . E por-
multitudine sparsas in oratione adtendere facile fuit, temptauit que lhe era fácil prestar atenção, nas próprias palavras, à
pedes illos in ordines certos disponere atque coniungere, et in quantidade das sílabas breves e longas espalhadas na oração
eo primo sensum ipsum secuta moderatos impressit articulas, em número quase igual, ela tentou dispor e conjugar aqueles ·
quae caesa et membra nominant. Et ne longius pedum cursus pés por ordens exactas. Assim, seguindo o próprio sentido para
prouolueretur, quam eius iudicium posset sustinere, modum este primeiro trabalho,· marcou as articulações delimitadas a
statuit, unde reuerteretur, et ab eo ipso uersum uocauit. Quod que chamam cesuras e membros. E para que o curso dos pés
autem non esset certo fine moderatum, sed tamen rationabili- não se precipitasse para mais longe do que o seu juízo podia
ter ordinatis pedibus curreret, rhythmi nomine notauit, qui suportar, estabeleceu uma medida a que revertesse. Por isso
!atine nihil aliud quam numerus dici potuit. Sic ab ea poetae mesmo chamou-lhe verso. E aquilo que ainda não estava me-
geniti sunt. ln quibus cum uideret non solum sonorum, sed dido por um limite determinado mas contudo seguia um curso
etiam uerborum rerumque magna momenta, plurimum eos razoável, uma vez ordenados os pés, designou-o com o nome
honorauit eisque tribuit quorum uellent rationabilium menda- de ritmo, o que em latim não pode ser dito de outro modo senão
ciorum potestatem. Et quoniam de prima illa disciplina stir- como número. E foi assim que os poetas foram gerados por
pem ducebant, iudices in eos grammaticos esse permisit. ela. Como ela via neles grandes variações não só dos sons mas
também das palavras e das coisas, honrou-os sobremaneira e
conferiu-lhes todo o poder que eles quisessem para mentir
racionalmente. E visto que eles se guiavam pela estirpe da-
quela primeira disciplina, permitiu que os gramáticos fossem
os seus juízes.

41. ln hoc igitur quarto gradu, siue in rhythmis-Siue in ipsa 41. Portanto, neste quarto degrau, a razão entendia que os
modulatione, intellegebat regnare numeras totumque perfice- . números reinavam quer nos ritmos quer na própria melodia e

15 Cf. Diál. Ord., II, 12, 36.

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re; inspexit diligentissime cuiusmodi essent; reperiebat diui- que eles preenchiam tudo: examinou com toda a diligência de
nos et sempiternos, praesertim quod, ipsis auxiliantibus, om- que género eles eram. Reconhecia que eram divinos e sempi-
nia superiora contexuerat. Et iam tolerabat aegerrime splen- ternos, principalmente porque, auxiliada por eles, tinha conse-
dorem illorum atque serenitatem corporea uocum materia guido compor tudo o que precedera. E já tolerava com muitís-
decolorari. Et quoniam illud, quod mens uidet, semper est prae- sima dificuldade que o esplendor e a serenidade dos mesmos
sens et immortale adprobatur, cuius generis numeri appare- fossem obscurecidos pela matéria corpórea das vozes. E visto
bant, sonus autem, quia sensibilis res est, praeterfluit in prae- que experimentava que aquilo que a mente vê é sempre pre-
teritum tempus imprimiturque memoriae, rationabili mendacio, sente e imortal - deste género se mostravam os números - e
iam poetis fauente ratione, Iouis et Memoriae filias Musas esse o som, porque é uma coisa sensível, se difunde num tempo
confictum est. Vnde ista disciplina sensus intellectusque par- pretérito e se imprime na memória, por uma mentira razoável
ticeps musicae nomen inuenit. (já que a razão favorecera os poetas) fingiu-se que as Musas
eram filhas de Júpiter e da Memória. Daí que esta disciplina,
que participa do sentido e do entendimento, tenha descoberto
o nome de «música».

XV, 42. Hinc profecta est in oculorum opes et terram cae- XV, 42. Em seguida avançou para os recursos dos olhos.
lumque conlustrans sensit nihil aliud quam pulchritudinem sibi Percorrendo com o olhar a terra e o céu, apercebeu-se de que
placere et in pulchritudine figuras, in figuras dimensiones, in nada lhe agradava senão a beleza e, na beleza, as figuras, nas
dimensionibus numeros quaesiuitque ipsa secum, utrum ibi figuras, as proporções, nas proporções, os números. E ela in-
talis linea talisque rotunditas uel quaelibet alia forma et figura vestigou consigo mesma se essa linha e equilíbrio - ou qual-
esset, qualem intellegentia contineret. Longe deteriorem inue- quer que fosse a forma ou figura - era tal que o entendimen-
nit et nulla ex parte, quod uiderent oculi, cum eo quod mens to a abrangesse. Descobriu que aquilo que os .olhos viam era
cerneret comparandum. Haec quoque distincta et disposita in muito mais imperfeito e que em parte alguma havia algo que
disciplinam redegit appellauitque geometricam. Motus eam devesse ser comparado com aquilo que a mente discernira.
caeli multum mouebat et ad se diligenter considerandum inui- Estas coisas que ela tinha distinguido e disposto remeteu para
tabat. Etiam ibi per constantíssimas temporum uices, per as- uma disciplina a que chamou geometria. O movimento do céu
trorum ratos definitosque cursus, per interuallorum spatia impressionava-a muito e instigava-a a que o considerasse com
moderata intellexit nihil aliud quam iliam dimensionem nu- toda a atenção. Também aí, através das alternâncias sempre
merosque dominari, quae similiter definiendo ac secernendo constantes dos tempos, do curso exacto e definido dos astros,
in ordinem nectens astrologiam genuit, magnum religiosis ar- das distãncias fixas dos intervalos, entendeu que não havia
gumentum tormentumque curiosis. nada que dominasse senão aquela proporção e os números. Do
mesmo modo, distinguindo-os e definindo-os, ligando-os numa
ordem, gerou a astronomia, que é assunto muito importante
para os homens religiosos e um grande tormento para os ho-
mens ávidos de saber.

43. ln his igitur omnibus disciplinis occurrebant ei omnia 43. Assim, em todas estas disciplinas, todas as coisas se
numerosa, quae tamen in illis dimensionibus manifestius emi- lhe apresentavam como numeráveis. Contudo, dominavam com
nebant, quas in se ipsa cogitando atque uoluendo intuebatur mais clareza naquelas proporções que ela, pensando e medi-
tando consigo mesma, considerava como as mais verdadeiras.

212 ;;;3
uerissimas, in his autem quae sentiuntur umbras earum po- Ora, naquelas coisas que se sentem recolhia de preferência as
tius atque uestigia recolebat. Hic se multum erexit multum- suas sombras e vestígios. Então, ela elevou-se muito, muito pre-
que praesumpsit, ausa est immortalem animam comprobare. sumiu: ousou comprovar que a alma é imortal. Examinou to-
Tractauit omnia diligenter, percepit prorsus se plurimum posse das as coisas diligentemente, apercebeu-se perfeitamente do seu
et quicquid posset numeris posse. Mouit eam quoddam mira- enorme poder e de que tudo aquilo de que ela fosse capaz era
culum et suspicari coepit se ipsam fortasse numerum esse eum pelos números. Tocou-a uma espécie de prodígio e começou a
ipsum quo cuncta numerarentur aut, si id non esset, ibi ta- suspeitar que talvez fosse ela o próprio número pelo qual todas
men eum esse, quo peruenire satageret. Hunc uero totis uiri- as coisas eram numeradas ou que, se não o fosse, aí estava,
bus comprehendit, qui iam uniuersae ueritatis index futurus, todavia, aquilo que se empenharia por alcançar.
ille, cuius mentionem fecit Alypius, cum de Academicis quae- Indício futuro de toda a verdade, ela agarrou-o com todas
reremus, quasi Proteus in manibus erat. Imagines enim fal- as forças; aquele de que Alípio fez menção quando indagáva-
sae rerum earum, quas numeramus, ab illo occultissimo, quo mos acerca dos Académicos 16, ela tinha-o nas mãos, qual Proteu.
numeramus, defluentes in sese rapiunt cogitationem et saepe Com efeito, as falsas imagens dessas coisas que numeramos,
illum, cum iam tenetur, elabi faciunt. fluindo a partir daquele número muitíssimo oculto pelo qual
numeramos, atraem para si o pensamento, e com frequência
fazem que ele se escape, precisamente quando já se possui.

XVI, 44. Quibus si quisque non cesserit et illa omnia, quae XVI, 44. Quem não tenha sucumbido nelas e tenha recon-
per tot disciplinas late uarieque diffusa sunt, ad unum quid- duzido tudo o que está disperso de modo amplo e variado por
dam simplex, uerum certumque redegerit, eruditi dignissimus todas as disciplinas a uma espécie de uno simples, seguro e
nomine non temere iam quaerit illa diuina non iam credenda verdadeiro, esse, com o nome digníssimo de erudito e já sem
solum, uerum etiam contemplanda, intellegenda atque retinen- temeridade, investiga aquelas coisas divinas que não só devem
da. Quisquis autem uel adhuc seruus cupiditatum et inhians ser acreditadas mas também contempladas, entendidas e con-
r:bus pereuntibus uel iam ista fugiens casteque uiuens, nes- servadas.
c1ens tamen quid sit nihil, quid informis materia, quid forma- Porém, quem quer que, sendo ainda escravo dos desejos e
tum exanime, quid corpus, quid species in corpore, quid locus, aspirando às coisas passageiras, ou mesmo afastando-se já de-
quid tempus, quid in loco, quid in tempore, quid motus secun- las e vivendo castamente, desconhecendo, todavia, o que é o
dum locum, quid motus non secundum locum, quid stabilis nada, o que é a matéria informe, o que é o ser formado sem
motus, quid sit aeuum, quid sit nec in loco esse nec nusquam, vida, o que é o corpo, o que é a forma no corpo, o que é o
quid sit praeter tempus et semper, quid sit et nusquam esse et lugar, o que é o tempo, o que é no lugar e o que é no tempo,
nusquam non esse et numquam esse et numquam non esse, o que é o movimento segundo o lugar, o que é o movimento
quisquis ergo ista nesciens, non dico de summo illo Deo, qui não segundo o lugar, o que é o movimento estável, o que é o
evo, o que é não ser nem no lugar nem em parte alguma e o
que é fora do tempo e sempre, o que é ser em nenhuma parte
e não ser em nenhuma parte, o que é nunca ser e nunca não
ser; portanto, quem quer que, desconhecendo estas coisas, te-
nha querido indagar e dis.cutir não digo acerca daquele Deus

16 Cf. CA, III, 5, 11 (CCL 29, p. 41).

214 215
scitur melius nesciendo, sed de anima ipsa sua quaerere ac dispu- supremo que se conhece melhor desconhecendo, mas acerca da
tare uoluerit, tantum errabit, quantum errari plurimum potest. sua própria alma, enganar-se-á tanto quanto se pode estar
Facilius autem ista cognoscet, qui numeras simplices atque inte- enganado. Ora mais facilmente conhecerá estas coisas quem
llegibiles comprehenderit; porra istos comprehendet, qui et in- tenha alcançado os números simples e inteligíveis. Enfim, al-
genio ualens et priuilegio aetatis aut cuiuslibet felicitatis otio- cançá-los-á aquele que, valendo-se do talento e do privilégio
sus et studio uehementer incensus memoratum disciplinarum da idade ou estando livre de ocupações por algum motivo feliz,
ordinem, quantum satis est, fuerit persecutus. Cum enim artes intensamente abrasado pelo estudo, tiver percorrido quanto
illae omnes liberales partim ad usum uitae, partim ad cognitio- baste a ordem das disciplinas que foi recordada. Com efeito,
nem rerum contemplationemque discantur, usum earum adse- uma vez que todas aquelas artes liberais se aprendem em parte
qui difficillimum est nisi ei qui ah ipsa pueritia ingeniosissimus pela necessidade da vida e em parte pelo conhecimento das
instantissime atque constantissime operam dederit. coisas e pela contemplação, é muito dificil aceder a elas a não
ser para aquele que, sendo muitíssimo dotado, desde a pró-
pria infância se tenha dedicado a esse trabalho com toda a
tenacidade e constância.

XVII, 45. Quod uero ex illis ad id quod quaerimus opus est, XVII, 45. Quanto ao que na realidade nos importa investi-
ne te, quaeso, mater, haec uelut rerum immensa quaedam gar a partir delas, rogo-te, mãe, que não te assuste esta espé-
silua deterreat. Etenim quaedam de omnibus eligentur numero cie de imensa floresta de coisas. Na verdade, entre todas se-
paucissima, ui potentíssima, cognitione autem multis quidem rão escolhidas algumas, em número pequeníssimo, com uma
ardua, tibi tamen, cuius ingenium cotidie mihi nouum est et eficácia potentíssima, cujo conhecimento é, porém, para mui-
cuius animum uel aetate uel admirabili temperantia remotis- tos, árduo. Contudo, para ti, cujo talento é para mim cada dia
simum ah omnibus nugis et a magna labe corporis emergen- uma descoberta, e cujo espírito, quer pela idade, quer pela tem-
tem in se multum surrexisse cognosco, tam erunt facilia quam perança admirável, está muitíssimo afastado de todas as fri-
difficilia tardissimis miserrimeque uiuentibus. Si enim dicam volidades, emergindo da grande destruição do corpo, tendo-se
te facile ad eum sermonem peruenturam, qui locutionis et lin- elevado muito a si mesmo, reconheço que estas coisas te serão
guae uitio careat, profecto mentiar. Me enim ipsum, cui mag- tão fáceis quão dificeis o são para os muito tardas de espírito
na necessitas fuit ista perdiscere, adhuc in multis uerborum e para os que vivem miserrimamente. Na verdade, se eu dis-
sonis Itali exagitant et a me uicissim, quod ad ipsum sonum ser que te seria fácil haver de chegar a proferir um discurso
adtinet, reprehenduntur. Aliud est enim esse arte, aliud gente que careça de vício de locução e linguagem, certamente estou
securum. Soloecismos autem quos dicimus fartasse quisque doc- a mentir. Com efeito, a mim próprio que, impelido por uma
tus diligenter adtendens in oratione mea reperiet; non enim grande necessidade, fui obrigado a saber estas coisas, ainda
defuit, qui mihi nonnulla huius modi uitia ipsum Ciceronem agora em muitos sons das palavras os Ítalos me criticam e
fecisse peritissime persuasisserit. Barbarismorum autem genus muitíssimas vezes me repreendem no que se refere ao seu
próprio som. De facto, uma coisa é estar seguro pela arte, outra
pelo nascimento.
Ora talvez algum homem douto, prestando atenção dilige!f-
temente àqueles solecismos de ·que falámos, os encontrará no
meu discurso. Na verdade, não faltou quem me tenha persua-
dido muito avisadamente que o próprio Cícero tinha cometido
alguns destes erros. Este género de barbarismos foi descoberto

216 217
l
nostris temporibus tale compertum est, ut et ipsa eius oratio nos nossos dias a tal ponto que até faz que pareça bárbaro o
barbara uideatur, qua Roma seruata est. Sed tu, contemptis
istis uel puerilibus rebus uel ad te non pertinentibus, ita gram-
!
1
seu próprio discurso, pelo qual Roma foi salva. Mas tu, que
desprezas estas coisas como puerilidades ou como coisas que
maticae paene diuinam uim naturamque cognosces, ut eius não te dizem respeito, conhecerás a força e a natureza quase
animam tenuisse, corpus disertis reliquisse uidearis. divina da gramática, de tal maneira que se verá que possuis a
sua alma e que abandonas o seu corpo aos eloquentes.

46. Hoc etiam de ceteris huius modi artibus dixerim, quas 46. Também poderei dizer isto acerca das demais artes seme-
si penitus fartasse contemnis, admoneo te, quantum filius au- lhantes: se as desprezares completamente, aconselho-te - quan-
deo quantumque permittis, ut fidem istam tuam, quam uene- to o ouso fazer como filho e quanto o permitas - a que guar-
randis mysteriis percepisti, firme cauteque custodias, deinde des com firmeza e precaução essa tua fé, que recebeste pelos
ut in hac uita atque moribus constanter uigilanterque perma- veneráveis mistérios, e, depois, a que perseveres com vigilân-
neas. De rebus autem obscurissimis et tamen diuinis, quomo- cia e constância nesta vida e costumes. Ora, acerca daquelas
do Deus et nihil mali faciat et sit omnipotens et tanta mala coisas muitíssimo obscuras ·e todavia divinas - de que modo1
fiant et cui bano mundum fecerit, qui non erat indiguus, et Deus não faça nada de mal e seja omnipotente, e aconteçam
utrum semper fuerit malum an tempore coeperit et, si semper tantos males; para que bem tenha feito o mundo, aquele a
fuit, utrum sub condicione Dei fuerit et, si fuit, utrum etiam quem nada faltava, e se o mal existiu sempre ou começou a
iste mundus semper fuerit, in quo illud malum diuino ordine existir no tempo e, se sempre existiu, se tenha sido sob algu-
domaretur; si autem hic mundus aliquando esse coepit, quo- ma cláusula de Deus; e se existiu, se também terá existido
modo, antequam esset, potestate Dei malum tenebatur et quid sempre este mundo, no qual aquele mal seria subjugado pela
opus erat mundum fabricari, quo malum, quod iam Dei potes- ordem divina-; ora, se este mundo começou alguma vez a ser,
tas frenabat, ad poenas animarum includeretur? Si autem fuit de que modo é que, antes que existisse, o mal era governado
tempus, quo sub Dei dominio malum non erat, quid subito pelo poder de Deus e que necessidade havia de se fabricar o
accidit, quod per aeterna retro tempora non acciderat? In Deo mundo, no qual o mal, que o poder de Deus já dominava, se-
enim nouum extitisse consilium, ne dicam impium, ineptissi- ria incluído para castigo das almas? Porém, se houve um tempo
mum est dicere. Si autem importunum fuisse et quasi impro- em que o mal não estava sob o domínio de Deus, que aconte-
bum malum Deo dicimus, quod nonnulli existimant, iam nemo ceu de repente, que não tinha acontecido antes, na sucessão
doctus risum tenebit, nemo non suscensebit indoctus. Quid eterna dos tempos? Na verdade, que em Deus tenha existido
enim potuit Deo nocere mali nescio qua illa natura? Si enim uma nova decisão não só direi que é ímpio mas que é absolu-
dicunt non potuisse, fabricandi mundi causa non erit; si po- tamente disparatado dizer tal coisa. Porém, se dizemos que o
tuisse dicunt, inexpiabile nefas est Deum uiolabilem credere, mal foi cruel e como que ímprobo para Deus, como alguns jul-
nec ita saltem, ut uel uirtute prouiderit, ne sua substantia gam, nenhum sábio poderá conter o riso, nenhum ignorante
uiolaretur; namque animam poenas hic pendere fatentur, cum deixará de nos censurar. Com efeito, que mal podia ter feito a
inter eius et Dei substantiam nihil uelint omnino distare. Si Deus essa não sei que natureza? Se dizem que não pode, não
haverá causa para a fabricação do mundo. Se dizem que pode,
proíbe-se por inexpiável acreditar que Deus pode ser lesado .e
que nem ao menos tenha podido providenciar pelo seu poder
para que a sua substância não fosse violada. E na verdade
confessam que as almas pagam penas aqui, uma vez que en-
tre a substância delas e a de Deus não querem que diste ab-

218 219
autem istum mundum non factum dicamus, impium est atque solutamente nada. Porém, se dizemos que este mundo não foi
ingratum credere, ne illud sequatur, quod Deus eum non fa- feito, é ímpio e ingrato acreditar nisso, não fosse deduzir-se
bricarit. Ergo de his atque huius modi rebus aut ordine illo daí que Deus não o tenha fabricado: portanto, acerca destas
eruditionis aut nullo modo quicquam requirendum est. coisas e das que são deste género ou se deverá investigar se-
gundo aquela ordem da erudição ou não se há-de investigar
coisa alguma de nenhum modo.

XVIII, 47. Et ne quisquam latissimum aliquid nos comple- XVIII, 47. E para que ninguém julgue que um domínio ex-
xos esse arbitretur, hoc dico planius atque breuius, ad ista- tensíssimo deve ser abrangido por nós, direi isto de modo mais
rum rerum cognitionem neminem adspirare debere sine ilia claro e breve. Ninguém deve aspirar ao conhecimento destas
quasi duplici scientia bonae disputationis potentiaeque nume- coisas sem aquela ciência por assim dizer dupla, de bem dis-
rorum. Si quis etiam hoc plurimum putat, solos numeros opti- cutir e do poder dos números. Se alguém ainda achar que isto
me nouerit aut solam dialecticam. Si et hoc infinitum est tan- é muito, procurará saber de modo excelente só os números ou
tum perfecte sciat, quid sit unum in numeris quantumque '
só a dialéctica. Se mesmo isto ainda é infindo, saiba de modo
ualeat nondum in ilia summa lege summoque ordine rerum perfeito o que é o uno nos números e o poder que ele tem, não
omnium, sed in his quae cotidie passim sentimus atque agi- já naquela lei suprema e na suma ordem de todas as coisas,
mus. Excipit enim hanc eruditionem iam ipsa philosophiae mas naquelas coisas que apreendemos e fazemos todos os dias
disciplina et in ea nihil plus inueniet quam quid sit unum, de um modo ou de outro.
sed longe altius longeque diuinius. Cuius duplex quaestio est, Com efeito, subtrai-se a esta erudição, imediatamente, a
una de anima, altera de Deo. Prima efficit, ut nosmet ipsos própria disciplina da filosofia e nela nada mais se encontra do
nouerimus, altera, ut originem nostram. Illa nobis dulcior, ista que o que seja o uno, mas de uma maneira muito mais pro-
carior, illa nos dignos beata uita, beatos haec facit, prima est funda e muito mais divina. Ela ocupa-se de uma dupla ques-
ilia discentibus, ista iam doctis. Hic est ordo studiorum sapien- tão: uma, acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira
tiae, per quem fit quisque idoneus ad intellegendum ordinem faz que nos conheçamos a nós próprios, a segunda faz que
rerum, id est ad dignoscendos duos mundos et ipsum paren- conheçamos a nossa origem. Aquela é para nós mais suave,
tem uniuersitatis, cuius nulla scientia est in anima nisi scire esta é-nos mais amável. Aquela faz-nos dignos de uma vida
quomodo eum nesciat. '
feliz, esta torna-nos felizes. A primeira é para os que apren-
dem, esta para os que já são doutos.
Esta é a ordem dos estudos da sabedoria, pela qual cada
um se torna idóneo para entender a ordem das coisas, isto é,
para discernir os dois mundos e o próprio Pai do universo, do
qual nenhum conhecimento há na alma a não ser saber até
que ponto o desconhece.

48. Hunc igitur ordinem tenens anima iam philosophiae 48. Portanto, observando esta ordem, a alma já entregue à
tradita primo se ipsam inspicit et, cui iam ilia eruditio persua- filosofia examina-se, primeiro, a si própria. E aquela a quem
sit aut suam aut se ipsam esse rationem, in ratione autem a erudição já convenceu que a razão ou é sua ou é ela própria,
aut nihil esse melius et potentius numeris aut nihil aliud quam e que, na razão, ou não há nada melhor e mais potente do
numerum esse rationem, ita secum loquetur: «Ego quodam meo que os números, ou a razão não é outra senão dos números,
diz assim, falando consigo mesma: «eu, por um certo movimento

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motu interiore et occulto ea quae discenda sunt possum dis- meu, interior e oculto, posso separar ou unir aquelas coisas
cernere et conectere et haec uis mea ratio uocatur». Quid au- que se devem aprender e esta minha força chama-se razão».
tem discernendum est, nisi quod aut unum putatur et non est Porém, que deve ser separado a não ser o que se pensava ser
aut certe non tam unum est quam putatur? Item cur quid uno e não é, ou que, pelo menos, não é tão uno como se pen-
conectendum est, nisi ut unum fiat, quantum potest? Ergo et sava? Do mesmo modo, por que deve ser ligado algo a não ser
in discernendo et in conectendo unum uolo et unum amo, sed para que se torne tão uno quanto possa? Portanto, tanto sepa-
cum discerno, purgatum, cum conecto, integrum uolo. In ilia rando como unindo, quero o uno e amo o uno. Mas quando
parte uitantur aliena, in hac propria copulantur, ut unum ali- separo, quero-o purificado; quando unifico, quero-o íntegro.
quid perfectum fiat. Lapis ut esset lapis, omnes eius partes Naquela parte, evitam-se as coisas que lhe são alheias, nesta,
omnisque natura in unum solidata est. Quid arbor? Nonne reúnem-se as que são próprias, para que o uno se torne algo
arbor non esset, si una non esset? Quid membra cuiuslibet perfeito. A pedra, para que seja pedra, tem todas as suas par-
animantis ac uiscera et quicquid est eorum, e quibus constat? tes e toda a sua natureza consolidada em algo uno. E a árvo-
Certe si unitatis patiantur diuortium, non erit animal. Amici re? Não é verdade que a árvore não seria se não fosse una?
quid aliud quam unum esse conantur ? Et quanto magis unum, E os membros de qualquer ser vivo, as suas vísceras e todas
tanto magis amici sunt. Populus una ciuitas est, cui est peri- essas coisas de que ele está composto? Decerto se sofressem
culosa dissensio. Quid est autem dissentire nisi non unum uma separação da unidade, o animal não seria. E que outra
sentire? Ex multis militibus fit unus exercitus. Nonne quaeuis coisa intentam os amigos senão ser uno? E quanto mais uno,
multitudo eo minus uincitur, quo magis in unum coit? Vnde mais amigos são. O povo é uma cidade para a qual a dissen-
ipsa coitio in unum cuneus nominatus est quasi couneus. Quid são é perigosa. Ora o que é dissentir senão não sentir o uno?
amor omnis? Nonne unum uult fieri cum eo quod amat et, si De muitos soldados faz-se um exército: não é verdade que qual-
ei contingat, unum cum eo fit? Voluptas ipsa non ob aliud quer multidão está menos exposta a ser vencida na medida
delectat uehementius, nisi quod amantia sese corpora in unum em que mais se mantém coesa no uno? Daí que a própria coe-
coguntur. Dolor unde perniciosus est? Quia id quod unum erat são no uno se chame cunha, como co-união.
disicere nititur. Ergo molestum et periculosum est unum fieri E o que é todo o amor? Não é querer fazer-se uno com aquilo
cum eo quod separari potest. que ama e, se isso lhe chega a acontecer, faz-se uma só coisa
com ele? O próprio prazer não por outro motivo deleita com
tanta intensidade a não ser porque os corpos dos que se amam
se congregam num só. E de onde deriva que a dor seja perni-
ciosa? Do facto de se esforçar por dissociar aquilo que era uno.
Portanto, é nocivo e perigoso unir-se com aquilo que pode ser
separado.

XIX, 49. Ex multis rebus passim ante iacentibus, deinde in XIX, 49. A partir de muitas coisas antes espalhadas de um
unam formam congregatis unam facio domum. Melior ego, si modo ou de outro e depois congregadas numa forma una, faço
quidem ego facio, ilia fit, ideo melior, quia facio; non dubium uma casa una. Eu sou melhor do que a casa, na medida em
est inde me esse meliorem quam domus est. Sed non inde sum que a faço. Ela fica feita e, portanto, é melhor, mas porque eu
melior hirundine aut apicula (nam et ilia nidos adfabre struit a faço. Por isso, não há dúvida de que o meu ser é melhor do
et ilia fauos), sed his melior, quia rationale animal sum. At si que a casa. Mas daí não decorre que eu seja melhor do que a
andorinha ou do que a abelha - de facto, uma constrói os ni-
nhos artisticamente e a outra os favos - mas sou melhor do

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in ratis dimensionibus ratio est, numquidnam et aues quod que elas porque sou um animal racional. E se a razão está
fabricant, minus apte congruenterque dimensum est? Immo nas proporções exactas, porventura o que as aves fabricam está
numerosissimum est. Non ergo numerosa faciendo, sed nume- menos apta e congruentemente proporcionado? Antes pelo con-
ros cognoscendo melior sum. Quid ergo? Illae nescientes ope- trário, é absolutamente harmónico. Portanto, não é fazendo
rari numerosa poterant? Poterant profecto. Vnde id docetur? coisas harmónicas que eu sou melhor, mas é conhecendo as
Ex eo quod nos quoque certis dimensionibus linguam dentibus harmonias. Então como é isso? Aquelas, que não têm conheci-
et palato adcommodamus, ut ex ore Jitterae ac uerba prorum- mento, podiam fazer coisas harmónicas? Certamente, podiam.
pant, nec tamen cogitamus, cum loquimur, quo motu oris id Onde é isso ensinado? É da mesma maneira que nós ajusta-
facere debeamus. Deinde quis bonus cantator, etiamsi musi- mos a língua aos dentes e ao palato de acordo com proporções
cae sit imperitus, non ipso sensu naturali et rhythmum et exactas, para que as letras e as palavras saiam da boca e,
melos perceptum memoria custodiat in canendo, quo quid fieri contudo, quando falamos não pensamos qual o movimento da
numerosius potest? Hoc nescit indoctus, sed tamen facit ope- boca que devemos fazer. Aliás, qual o bom cantor que, mesmo
rante natura. Quando autem melior et pecoribus praeponen- se for um ignorante em música, quando canta, não guarda na
dus? Quando nouit, quod faciat. Nihil aliud me pecori praepo- memória, pelo próprio sentido natural, o ritmo e a melodia?
nit, nisi quod rationale animal sum. E que se pode fazer de mais ritmado do que isto? Isto desco-
nhece-o o indouto, mas contudo fá-lo, trabalhando a natureza.
Ora, em que ocasião é melhor e se deve antepor aos animais?
Quando conhece aquilo que faz. Nenhuma outra coisa me ante-
põe aos animais senão o facto de que sou um animal racional.

50. Quomodo igitur immortalis est ratio et ego simul et 50. Por conseguinte, como é que a razão é imortal e eu me
rationale et mortale quiddam esse definior? An ratio non est defini como um certo ser simultaneamente racional e mortal?
immortalis? Sed unum ad duo uel duo ad quattuor uerissima Será que a razão não é imortal? Mas a razão de um para dois
ratio est nec magis heri fuit -ista ratio uera quam hodie nec e de dois para quatro é absolutamente verdadeira; e esta ra-
magis eras aut post annum erit uera nec, si omnis iste mun- zão não pode ter sido mais verdadeira ontem do que hoje, nem
dus concidat, poterit ista ratio non esse. Ista enim semper talis será mais verdadeira amanhã ou no ano que vem, e nem
est, mundus autem iste nec heri habuit nec eras habebit, quod mesmo se todo este mundo acabasse esta razão poderia não
habet hodie, nec hodierno ipso die uel spatio unius horae eó- existir. Com efeito, esta é sempre assim, e este mundo, porém,
dem loco solem habuit; ita, cum in eo nihil manet, nihil uel não teve ontem nem terá amanhã aquilo que tem hoje. E nem
paruo spatio temporis habet eodem modo. Igitur si immortalis no próprio dia de hoje teve o sol no mesmo sítio durante o
est ratio et ego, qui ista omnia uel discerno uel conecto, ratio espaço de uma hora. Assim, como nele nada permanece, nada
sum, illud quo mortale appellor non est meum; aut si ·anima há com a mesma medida, sequer por um curto espaço de tem-
non id est quod ratio et tamen ratione utor et per rationem po. Portanto, se a razão é imortal e eu, que separo ou reúno
melior sum, a deteriore ad melius, a mortali ad immortale todas estas coisas, sou racional, aquilo pelo qual eu me chamo
fugiendum est. Haec et alia multa secum anima bene erudita mortal não é meu. Ora se a alma não é o mesmo que a razão
e, contudo, eu me sirvo da razão e pela razão sou melhor, deve
evitar-se o que é inferior em função do que é mélhor, o que é
mortal em função do que é imortal.
A alma bem instruída conversa e discorre consigo mesma
estas e muitas outras coisas que eu não quero desenvolver para
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loquitur atque agitat, quae persequi nolo, ne, cum ordinem uos que - uma vez que desejo ensinar-vos a ordem - não exceda
docere cupio, modum excedam, qui pater est ordinis. Grada- a medida, que é o pai da ordem. De facto, a alma dirige-se
tim enim se et ad mores uitamque optimam non iam sola fide, gradualmente para os costumes e para uma vida excelente, já
sed certa ratione perducit. Cui numerorum uim atque poten- não só pela fé mas pela firme razão. Àquele que observar aten-
tiam diligenter intuenti nimis indignum uidebitur et nimis tamente a força e a potência dos números, parecer-lhe-á ex-
flendum per suam scientiam uersum bene currere citharam- tremamente indigno e enormemente deplorável que, graças à
que concinere et suam uitam seque ipsam, quae anima est, sua ciência, o verso tenha uma boa métrica e a cítara ressoe
deuium iter sequi et, dominante sibi libidine, cum turpissimo com harmonia, e que a sua vida em si mesma, que é a alma,
se uitiorum strepitu dissonare. prossiga por um caminho desviado e, dominando nela o pra-
zer, emita sons que lhe são dissonantes pelo estrépito absolu-
tamente disforme dos vícios.

51. Cum autem se composuerit et ordinarit atque concin- 51. Ora quando ela já se tiver harmonizado e ordenado e
nam pulchramque reddiderit, audebit iam Deum uidere atque se tiver tornado bela e ajustada, ousará, então, ver Deus e a
ipsum fontem, unde manat omne uerum, ipsumque patrem própria fonte de onde emana tudo o que é verdadeiro, o pró-
veritatis, Deus magne, qui erunt illi oculi, quam sani, quam prio Pai da Verdade. Deus imenso, que olhar será esse! Quão
decori, quam ualentes, quam constantes, quam sereni, quam salutar, quão amável, valioso, constante, sereno e feliz! Porém,
beati! Quid autem est illud quod uident? Quid quaeso? Quid que vêem esses olhos? Que vêem, pergunto, que havemos de
arbitremur, quid aestimemus, quid loquamur? Cotidiana uer- pensar, como o avaliaremos, que diremos? Vêm-nos palavras
ba occurrunt et sordidata sunt omnia uilissimis rebus. Nihil de todos os dias e todas estão sujas pela vilíssima condição
amplius dicam nisi promittit nobis adspectum pulchritudinis, das coisas. Nada mais direi a não ser que nos está prometido
cuius imitatione pulchra, cuius comparatione foeda sunt cetera. o vislumbre da beleza, por imitação da qual tudo é belo e em
Hanc quisquis uiderit (uidebit autem qui bene uiuit, bene orat, comparação com a qual todas as demais coisas são feias. Quem
bene studet), quando eum mouebit, cur alius optans habere fi- a vir - e vê-la-á quem vive bem, quem reza bem, quem estu-
lias non habeat, alius abundanter, exponat alius, oderit nasci- da bem - alguma vez se perturbará sobre o motivo pelo qual
turos, alius diligat natos? Quomodo non repugnet nihil futurum alguém, querendo ter filhos, não os tem, enquanto outro os tem
esse, quod non sit apud Deum, ex quo necesse est ordine omnia em abundância, que um os exponha, outro odeie os que hão-
fieri et tamen non frustra Deum rogari? Postremo quando ius- -de nascer e outro ame os nascidos? E sobre o modo como não
tum uirum mouebunt aut ulla onera aut ulla pericula aut ulla seja contraditório que nada do que venha a ser não esteja já
fastidia aut ulla blandimenta fortunae? ln hoc enim sensibili junto de Deus - razão pela qual é necessário que tudo se faça
mundo uehementer considerandum est, quid sit tempus et lo- na ordem - e, contudo, não em vão se rogue a Deus? Por fim,
cus, ut, quod delectat in parte siue loci siue temporis, intellega- alguma vez hão-de perturbar o homem justo algum tipo de
tur tamen multo esse melius totum, cuius ilia pars est, et rur- cargas ou de perigos ou de aborrecimentos ou de carícias do
sus, quod offendit in parte, perspicuum sit homini docto non oh destino? Com efeito, neste mundo sensível deve examinar-se com
aliud offendere, nisi quia non uidetur totum, cui pars ilia mira- veemência o que é o tempo e o lugar, de tal maneira que o que
deleita parcialmente, quer no lugar quer no tempo, seja en-
tendido, contudo, como sendo muito melhor no todo, ao qual
pertence aquela parte. E, inversamente, o que agride na par-
te, se torne diáfano para o homem douto que não por outro
motivo agride a não ser porque não é visto o todo, ao qual

226 227
biliter congruit, in illo uero mundo intelligibili quamlibet par- aquela parte está admiravelmente unida; e, na realidade, na-
tem tamquam totum pulchram esse atque perfectam. Dicentur quele mundo inteligível qualquer parte é tão perfeita e bela
ista latins, si uestra studia siue memoratum istum a nobis siue como o todo. Estas coisas hão-de ser ditas mais longamente se
alium fartasse breuiorem atque commodiorem, rectum tamen os vossos estudos se determinarem a observar a ordem - seja
ordinem, ut hortor ac spero, tenere instituerint atque omnino aquela que nós recordamos, seja qualquer outra talvez mais
gnauiter constanterque tenuerint. breve e cómoda, todavia recta - e se a observarem em abso-
luto, com resolução e constância, como vos aconselho e espero.

XX, 52. Quod ut nobis liceat, summa opera danda est opti- XX, 52. Para que tal nos seja permitido, devemos empre-
mis moribus; Deus enim noster aliter nos exaudire non pote- gar todos os esforços na prática dos costumes mais excelentes.
rit, bene autem uiuentes facillime exaudiet. Oremus ergo, non Com efeito, o nosso Deus não nos poderá prestar atenção de
ut nobis diuitiae uel horrores uel huius modi res fluxae atque outro modo e, contudo, escutará com toda a facilidade aqueles
nutantes et, quouis resistente, transeuntes, sed ut ea proue- que vivem bem17. Oremos, portanto, não para que nos suce-
niant, quae nos bonos faciant ac beatos. Quae uota ut deuotis- dam riquezas, honras ou qualquer tipo de coisas fugazes e
sime impleantur, tibi maxime hoc negotium, mater, iniungi- insignificantes e, apesar de toda a resistência, passageiras, mas
mus, cuius precibus indubitanter credo atque confirmo mihi para que sucedam aquelas que nos fazem bons e felizes. Estas
istam mentem Deum dedisse, ut inueniendae ueritati nihil súplicas, impomos-te, mãe, como tua principal ocupação, para
omnino praeponam, nihil aliud uelim, nihil cogitem, nihil que se cumpram com toda a piedade; por estas tuas preces,
amem, nec desino credere nos hoc tantum bonum, quod te indubitavelmente creio e confirmo ter-me dado Deus esta men-
promerente, concupiuimus, eadem, te petente, adepturos. Iam te, para que não anteponha absolutamente nada à procura da
uero te, Alypi, quid horter, quid moneam? Qui propterea ni- verdade, nada mais queira, nada pense, nada mais ame. Por
mius non es, quia talia quantumuis amare fartasse semper isso, não deixo de acreditar que este bem tão grande que, pe-
parum, nimium uero numquam recte dici potest. los teus méritos, nos fizeste desejar, há-de vir a ser alcançado
também pelas tuas petições. E a ti, realmente, Alípio, como te
hei-de exortar? Que te hei-de aconselhar? Para além do mais,
não és desmedido, porque seja qual for a intensidade com que
se amem tais coisas é sempre pouco, e realmente nunca se pode
dizer com razão que se amem em excesso.

53. Hic ille: Vere effecisti, inquit, ut memoriam doctissimo- 53. Então Alípio disse:
rum ac magnorum uirorum, quae aliquando pro rerum magni- - Na realidade tu fizeste de maneira a que não só não
tenhamos dúvida da memória de homens ilustres e muito dou-

17 Cf. Retract., I, 3, 3 CCCL 57, p. 13). A rectificação de Agostinho incide


sobre esta condição então postulada para a eficácia da oração. Tomada à
letra, ela faria depender a atenção de Deus da qualidade moral dos ho-
mens. Esta tese restringiria o alcance da providência divina e tornaria
ineficaz o papel da graça divina na conquista da sabedoria, afirmações uma
e outra aversas quer à razão quer ao conteúdo da mensagem neotesta-
mentária.

228 229
tudine incredibilis uidebatur, et cotidiana consideratione et ista tos, que às vezes parecia incrível pela grandiosidade dos fei-
praesenti quae in te nobis est admiratione non solum dubiam tos, como até, se fosse preciso, pudéssemos jurar por ela, quer
non habeamus, uerum etiam, si necesse sit, de illa iurare pos- pela reflexão diária, quer pela que fizeste agora que nos en-
simus. Quid enim? Nobis nonne illa uenerabilis ac prope diuina che de admiração por ti.
quae iure et habita est et probata Pythagorae disciplina abs Não é assim? Não é verdade que hoje foi posta por ti, para
te hodie nostris etiam paene oculis reserata est, cum et uitae nós, a descoberto, quase debaixo dos nossos olhos, aquela dis-
regulas et scientiae non tam itinera quam ipsos campos ac ciplina, venerável e quase divina, que com justiça era conside-
liquida aequora et, quod illi uiro magnae uenerationi fuit, ipsa rada e se provou ser de Pitágoras, pois com brevidade e clare-
etiam ·sacraria ueritatis ubi essent, qualia essent, quales quae- za nos indicaste as regras de vida e do saber, e talvez não
rerent et breuiter et ita plene significasti, ut, quamuis sús- tanto os caminhos como os seus próprio terrenos e mares, e
picemur et credamus tibi esse adhuc secretiora, tamen non até - o que foi para aquele homem objecto de grande venera-
absque impudentia nos putemus, si amplius quicquam flagi- ção - onde ficam, quais são e como se procuram os próprios
tandum arbitremur? santuários da verdade? De tal modo que, embora suspeitemos
e acreditemos que tu ainda tens mais segredos, contudo, se
julgássemos que se deveria exigir de ti mais alguma coisa, não
sem descaramento o faríamos.

54. Accipio ista, inquam, libenter (neque enim me tam uer- 54. Aceito de bom grado o que dizes - respondi. - Com
ba tua, quae uera non sunt, quam uerus in uerbis animus efeito, não são tanto as tuas palavras, que não são verdadeiras,
delectat atque excitat) et bene, quod ei mittere statuimus has como, nas palavras, o espírito verdadeiro, o que me deleita e
litteras, qui de nobis solet libenter multa mentiri. Si qui au- estimula. E ainda bem que decidimos enviar estes escritos àquele
tem alii fartasse legerint, neque hos metuo, ne tibi suscenseant. que costuma dizer de bom grado muitas mentiras a nosso res-
Quis enim amantis errori in iudicando non beniuolentissime peito. E se talvez outros os vierem a ler, também não temo
ignoscat? Quod autem Pythagorae mentionem fecisti, nescio quo que se indignem contra ti. Na verdade, quem haverá que, jul-
illo diuino ordine occulto tibi in mentem uenisse credo. Res gando o erro de um amigo, não lhe perdoe com toda a benevo-
eniII1 multum necessaria mihi prorsus exciderat, quam in illo lência? Quanto à referência que fizeste a Pitágoras, creio ter-
uiro, si quid litteris memoriae mandatis ·credendum est (qua- -te vindo à mente por aquela não sei que ordem divina e oculta.
muis Varroni quis non credat?), mirari et paene cotidianis, ut De facto, tinha-me escapado completamente uma coisa muito ne-
seis, ecferre laudibus soleo, quod regendae rei publicae disci- cessária, que naquele homem - se devemos acreditar nos escri-
plinam suis auditoribus ultimam tradebat iam doctis, iam tos que foram confiados à memória; ora, quem não há-de acre-
ditar em Varrão?- costumo admirar e, como sabes, colmar de
louvores quase todos os dias 18 . Ele confiava em último lugar
esta disciplina do governo da república aos que o ouviam, quan-

18 Cf. Retract., I, 3, 3 (CCL 57, p. 13). Por último, Agostinho retracta-se


de ter prestado excessivos louvores a Pitágoras. Esta recti:ficação é feita com
o sentido da História que caracteriza o filósofo de Hipona. Com efeito, não
quer que quem leia ou ouça falar futuramente no que ficou registado em
Diál. Ord. venha a supor que Agostinho não encontra qualquer deficiência
nas doutrinas de Pitágoras, sendo elas muitas e de importância capital.

230 231
perfectis, iam sapientibus, iam beatis. Tantos enim ibi fluctus do já eram doutos, perfeitos, sábios e felizes. Na verdade, via
uidebat, ut eis nollet committere nisi uirum qui et in regendo aí. tais tempestades que não queria que se expusesse a elas a
paene diuine scopulos euitaret et, si omnia defecissent, ipse não ser um homem que, na governação, fosse capaz de evitar
illis fluctibus quasi scopulus fieret. De solo enim sapiente ue- os escolhos de modo quase divino e que, se todas as coisas se
rissime dici potest: Ille uelut pelagi rupes immota resistit et afundassem, ele próprio fizesse frente às ondas como um
cetera, quae luculentis in hanc sententiam uersibus dieta sunt. rochedo.
Hic finis disputationis factus est laetisque omnibus et multum Só do sábio se pode dizer com toda a verdade: «ele resiste
sperantibus consessum dimisimus, cum iam nocturnum lumen ao mar alto como uma rocha firme» 19 , e as demais coisas que
fuissef inla tum. foram ditas nessa frase em esplêndidos versos.
Aqui deu-se o fim da discussão e todos, com alegria e com
muita esperança, abandonámos a nossa reunião, pois já se nos
trouxera o lume da noite.

19 Virgílio, Eneida, 7, 586.

232 233
III

NOTAS COMPLEMENTARES
1
Anima, animus, spiritus

Não obstante o carácter versátil da terminologia augusti-


niana se constatar porventura com peculiar realce no conjunto
da sua produção literária quando analisa a estrutura da men-
te humana, em Diál. Ord. é possível obter uma distinção sufi-
cientemente nítida entre a alma (anima) e aquele nível em que
ela se manifesta num grau de vida peculiar, específico do ser
humano, identificado pela racionalidade. Anima é o termo
empregue para identificar o nível de realidade onde se regista
a vida, sendo atribuída essa característica aos seres animados
ou animais. Ora o ser humano define-se precisamente como
um animal, razão pela qual a alma lhe compete, fazendo que
se integre no respectivo género, mas ao qual, pelo facto de
ser racional, se acresce uma diferença específica (cf. Diál. Ord.,
II, 11, 31). Nesta medida, o termo animus serve para identi-
ficar um certo grau de vida a que pertence o exercício da razão.
A alma que é depositária de razão não vive somente mas con-
tém um modo de vida a que corresponde o exercício dos actos
próprios da faculdade que a especifica: julgar, entender, com-
por e dividir. Animus identifica, no contexto de Diál. Ord., a
alma especificamente humana, distinguindo-se tanto da alma,
princípio vital comum a todos os animais, como da razão uni-
versal. Contudo, esta distinção é subtil e nem sempre enun-
ciada com clareza (notem-se as expressões: rationalis animan-
tis - Diál. Ord., II, 11, 33; anima tradita philosophiae - Diál.
Ord., II, 18, 48; animus humanus - Diál. Ord., II, 10, 28).

237
Por sua vez, o termo mens ocorre em Diál. Ord. para indi- Na passagem de DT supra-referida [que confere com as
car aquela dimensão do ser humano que guarda a sabedoria afirmações de Gen. ad Litt., XII, 7, 18 (CSEL 28-1, p. 389)],
porque recolhe a totalidade dos actos que· a integram. Nesta Agostinho expõe as múltiplas acepções para o termo spiritus:
medida, é o modo como a mente se relaciona com o divino que i) Spiritus e mens identificam-se na medida em que toda a
está em discussão quando se quer esclarecer qual a natureza mente é espírito, mas o inverso não se verifica, pois nem todo
do sábio. O termo spiritus surge apenas duas vezes em Diál. o spiritus é mens, como é evidente no caso da noção de Deus.
Ord. Em primeiro lugar, ele quer significar a interferência de A mente, dotada de um conjunto de faculdades, supõe a possi-
um impulso divino no exercício da razão. Assim Licêncio, con- bilidade de se aperfeiçoar através das operações imanentes. Ora
vidado por Agostinho a conter numa definição a natureza da Deus é eterno, imutável e soberanamente perfeito. E assim,
ordem, perturba-se, replicando: «Quid hoc est rei? Quid quasi sendo Deus espírito, o termo mente não se lhe pode tributar;
tibi uideor, inquit, adnuere? Nescio quo aduentitio spiritu me ii) Por spiritus também se entende a dimensão da alma que
credis infl,atum» (Diál. Ord., I, 10, 28). Spiritus significa aqui recolhe as imagens corpóreas, cuja actividade se relaciona de
o sopro divino que dá origem à inspiração na alma racional e algum modo com a visão sensível e com os corpos. Para a mens
a torna capaz de proferir sentenças notáveis, como as que corres- reservam-se as operações das suas faculdades próprias, a fim
pondem ao dom da profecia. Sábios e profetas eram termos de nela se produzir a imagem de Deus, incorpórea e espiri-
frequentemente empregues como sinónimos, ao tempo de Agos- tual. Com efeito, neste sentido pode falar-se de uma visão es-
tinho, querendo significar que alguém fora eleito pela divinda- piritual quando nos referimos àquela que se gera na alma atra-
de para anunciar verdades sublimes, estando dotado de pode- vés da memória sensível. Mas a uma tal visão sobrepõe-se o
res capazes de conduzir à libertação do sofrimento e do mal. juízo da visão intelectual, a única que se resguarda de todo o
Em Diál. Ord., o termo profeta é empregue por Agostinho para erro por depender directamente da iluminação divina (v. Gen.
significar o discurso de alguém que se converteu à germana ad Litt., XII, 24: CSEL 28-1, p. 417); iii) A alma do homem
philosophia, sendo Cristo a Verdade que um tal homem deve diz-se espírito por oposição ao corpo (neste sentido se fala da
anunciar (cf. Diál. Ord., I, 4, 10-5, 13). À razão cristã confia-se alma como aquela realidade que subsiste separada do corpo,
a tarefa de encontrar notas características que permitam distin- após a morte biológica); iv) Fala-se de spiritus também por
guir verdadeiros e falsos profetas, estabelecendo a fronteira entre referência aos animais irracionais, identificando o termo com
a autêntica religião e as superstições (cf. Diál. Ord., II, 9, 27). o sopro que os alenta. Spiritus é, aqui, idêntico ao termo ani-
A segunda ocorrência do termo spiritus surge no Diálogo para ma, tomada como princípio vital. Santo Agostinho refere o
identificar uma das três pessoas de Deus, uno e tripotente (cf. Diál. emprego bíblico do termo neste sentido quando, em Gen., 7,
Ord., II, 5, 16). Ulteriormente, o concurso do Espírito na produ- 22, o hagiógrafo se quis referir a todos os seres vivos que mor-
ção do conhecimento e na conquista da sabedoria será objecto reram no dilúvio; v) Na Escritura, spiritus é, ainda, o termo
de análise detalhada, concretamente em DT. Aí, os termos empregue para referir os elementos materiais; vi) Por último,
mens e spiritus surgem em identidade, distinguindo-se da alma quando fala do espírito aplicado à mens (spiritus mentis), Agos-
(DT, XN, 16, 22: CCL 50A, pp. 452-454). Contudo, se toda a tinho quer identificar a realidade espiritual que é a mente, à
mente é spiritus, o contrário não ocorre necessariamente. Por qual se reserva a capacidade de vir a ser imago Dei, pois Deus
outra parte, no interior do corpus augustiniano, nem sempre é espírito e o ser humano não se poderá configurar à imagem
spiritus é empregue no sentido da actividade específica da divina senão mediante essa sua dimensão espiritual (cf. DT,
mente. Em Gen. ad Litt. o espírito é uma qualidade da alma, XN, 16, 22: CCL 50A, p. 453).
inferior à mente, na qual se representam as semelhanças das Apesar desta plurivocidade do termo spiritus, pode afirmar-
coisas corporais (Gen. ad Litt., XII, 9, 20: CSEL 28-1, pp. 391- -se sem equívoco o facto de Santo Agostinho distinguir dife-
-392; Gen. ad Litt., XII 23, 49: CSEL 28-1, p. 415). rentes níveis de presença do espírito na alma humana, sendo,

238 239
em qualquer caso, a mente humana a sede da forma superior Licêncio defende em Diál. Ord.: o fruto do acaso não é senão
de espiritualidade. Esta última, por sua vez, consiste na rela- a ocorrência de uma causalidade necessária, ainda que esta
ção amorosa que se gera na dinâmica intrínseca das faculda- seja, para nós, actualmente desconhecida. Ora atribuir causa-
des da mente (cf. DT, IX, 2, 2: CCL 50, p. 295). lidade ao acaso não explica nem a natureza da ordem nem 0
conhecimento por presciência, este último ratificado pela auto-
ridade bíblica e essencial nos argumentos de autoridade a fa-
2 vor da supremacia do cristianismo como religião revelada. Em
Adivinhação I profecia todo o caso, mesmo que se possa afirmar a compreensibilidade
do universo através do estabelecimento das leis fisicas da su-
Em Diál. Ord., I, 5, 14, sustentando a identidade entre a cessão dos fenómenos materiais na medida em que eles po-
universalidade da ordem e a relação material de causa-efeito, dem ser conhecidos pelo homem, todavia não será legítimo falar
Licêncio tece um elogio da adivinhação: homem sábio é o adi- de adivinhação mas apenas do conhecimento das relações de
vinho, pois conhece a sucessão das causas dos acontecimentos causalidade material. Contudo, a ciência física distingue-se da
fisicos. A mente do sábio-adivinho abrange a sucessão causal arte de adivinhar na medida em que quem a detém conhece 0
dos fenómenos, penetrando para além da sua manifestação modo de relação entre o princípio agente e o seu efeito, ficando
actual. Agostinho critica o jovem pelo facto de ignorar «quan- garantida desse modo a razoabilidade da sua actuação (cf. Diál.
tas coisas, e por que homens, foram ditas contra a adivinha- Ord., II, 11, 32; Doct. Christ., II, 23, 36: CCL 32, pp. 58-59;
ção» (Diál. Ord., I, 6, 15). Contudo, pouco antes o filósofo afir- II, 29, 45: CCL 32, p. 64). Mas este raciocínio, embora eviden-
mara o carácter profético do conhecimento filosófico e instigara cie a consciência que Agostinho tem do fundamento experimen-
Licêncio a converter-se em profeta da Verdade (cf. Diál. Ord., tal dos saberes ou artes, não elucida a natureza do logos pro-
I, 4, 10; I, 5, 13). Deste modo, Agostinho terá de esclarecer as fético e não se vê qual o critério de distinção entre a actividade
condições de possibilidade da presciência humana e o valor dos profetas de Israel e a dos adivinhos Caldeus. Independen-
epistemológico que se há-de conceder ao tipo de asserções que temente da solução que se dê à natureza da ordem, este imbró-
dela resultam. Por sua vez, esta investigação é indissociável glio obrigará Agostinho a enfrentar uma dupla dificuldade. Por
da definição da natureza da ordem. Em Retract., I, 3, 2 (CCL uma parte, terá de legitimar o conhecimento profético ou o
57, p. 12), o filósofo de Hipona lamenta ter conferido excessiva carácter presciente da actividade cognitiva. Por outra, ser-lhe-
entidade à fortuna, como se o acaso fosse a causa eficiente dos -á necessário encontrar um critério que permita distinguir ver-
acontecimentos cuja origem se desconhece. Com efeito, o ter- dadeiras e falsas profecias, a fim de destrinçar o discurso que
mo fortuna ocorre por seis vezes em Diál. Ord., identificando procede da autoridade divina daquele que procede da curiosi-
uma razão oculta, incontornável e já determinada, sendo ela dade vã e do encantamento humano. A adivinhação é efeito
também, de algum modo, determinante das condições de feli- de um poder de ilusão que têm as coisas que pertencem a estes
cidade e sabedoria e, por isso, discriminató:ria e selectiva face sentidos corpóreos, confundindo os espíritos fracos e «as almas
ao fim último do homem. Já em CA a questão da adivinhação curiosas sobre o destino das coisas que hão-de perecer, ávidas
surgira pela voz de Licêncio, que considerava sábio e divino do poder das coisas frágeis ou atemorizadas por milagres vãos"
um homem que fora capaz de ler os pensamentos alheios. Agos- (Diál. Ord., II, 9, 27). Quando em Diál. Ord. Agostinho faz o
tinho refuta essa convicção afirmando que uma tal arte não é seu excurso sobre a razão nas artes, inicia a construção de
verdadeira sabedoria, pois se reporta a factos sensíveis. Nesta soluções viáveis para as dificuldades propostas. Ao considerar
medida, o fenómeno da adivinhação terá seguramente alguma toda a realidade sensível como significativa, a distinção sobre
causa natural, ainda que subtil e oculta (CA, I, 17, 22: CCL a profecia oú a adivinhação terá de passar pela análise da
29, p. 15). Mas esta posição continha exactamente a tese que origem dos sinais, exigindo, por uma parte, uma teoria da per-
16
240 241
cepção e, por outra, a ponderação acerca do uso que a vontade tamar absolutamente transcendente e inacessível ao uso natu- :
humana possa fazer da própria significação, Ora a significa- ral da razão, só pode ter origem na vontade reveladora de
ção é uma operação estritamente atribuída à mente. No caso Deus. A imagem que se forma no interior da mente é, neste
da adivinhação, o processo que decorre do signo à coisa signi- caso, essencialmente simbólica, ou seja, indício de outra reali-
ficada dar-se-ia apenas, no entender do filósofo, por uma asso- dade cujo significado profético é dado entender de forma actual
ciação fortuita, cuja razão de ser é, para aquele que a profere, a quem a vê e, na sua plena significação futura, apenas quan-
por uma parte, desconhecida quanto à sua causa eficiente e, por do venha a suceder. A actividade divinatória, por seu lado,
outra, quanto ao seu acerto futuro. Esta fora a proposta do procede da curiosidade do espírito, que pretende, por vontade
médico Vindiciano para a relativa operatividade da arte divina- própria, penetrar na presciência divina, descortinando o futuro.
tória, à qual Agostinho terminará por aderir, não sem um longo Como o faz fundando-se sempre na visão corpórea ou espiri-
período de reflexão, acompanhado da observação de alguns tual, onde a margem de falibilidade das imagens é ampla, é
factos consensualmente objecto desse pretenso saber (cf. Conf., possível deduzir, a partir delas e quase indiscriminadamente,
IV, 3, 5: CCL 27, p. 42; VII, 6, 8-9: CCL 27, pp. 97-99). Porém, asserções verdadeiras ou falsas, sendo o acerto das primeiras
para erradicar definitivamente a consistência desse tipo de alheio à intenção do adivinho, desconhecido para ele e, final-
juízos, importa analisar a natureza própria da actividade cogni- mente, fruto do acaso. Todavia, também esse acerto há-de
tiva, a fim de encontrar um critério que permita diferenciar estar contido na ordem das coisas, submetendo-se à providên-
tais fenómenos das profecias e do modo de revelação de Deus cia divina. Por isso, o próprio facto de inquirir sobre a causa
na História (cf. Diál. Ord., II, 10, 2). Este critério servirá, si- quer da produção de tais imagens, quer do eventual ajuste de
multaneamente, como princípio exegético, permitindo distinguir tais asserções, é revelador de vã curiosidade (cf. Conf., VII, '
os textos canónicos das fábulas, mitos ou relatos apócrifos. Em 6, 8: CCL 27, p. 97; Gen. ad Litt., XII, 18, 39: CSEL 28-1,
Gen. ad Litt., XII, admitindo que as asserções cuja veracidade p. 406). Em suma, a análise das condições de possibilidade
se demonstra num tempo futuro constituem uma forma de de um tal conhecimento é reconduzida por Agostinho ao exa-
conhecimento, depois de analisar os diferentes tipos de ima- me das funções da mente nos distintos níveis de actividade
gens ou visões que interferem na actividade cognitiva, Agosti- cognitiva.
nho conclui que esse conhecimento procede de imagens espiri- Uma vez mais, também no caso da presciência humana, a
tuais. A hierarquia aí estabelecida pelo filósofo entre a visão memória virá a exercer um papel decisivo. ~.Y~..<!3:<!~i@_JJ:r.o­
corporal, espiritual e intelectual baseia-se na dinâmica da or- f~@..<!ica na memoria.pei, âmago da rel_ação da alma com
dem dos seres que, procedendo do inferior ao superior, se ins- o princípio _de Sabedoria, enquanto-a adivinhação emerge da
taura entre o corpo, o espírito e a mente. O conhecimento con'iüsão~das iiruÍgens:-sensíveis e espirituais. Mas o carácter
humano de presciência - a visão antecipada de uma realidade essencialmente doloso atribuído por Agostinho à adivinhação,
futura - situa-se ao nível da visão espiritual. Sucede-lhe, por- sobretudo quando unida à genetliologia, reside no facto de se
tanto, a actividade mental que consiste na atribuição de signi- pretenderem estabelecer relações de causa-efeito entre realida-
ficado. É esta última operação, indissociável da intenção do des inferiores - o movimento dos astros - e a actividade hu-
intérprete, que permite distinguir o verdadeiro e o falso profe- mana, que os supera em dignidade (cf. Conf., VII, 6, 8: CCL 27,
ta, através de um complexo processo de verificação da origem p. 98). Agostinho não despreza a ciência que tem por objecto o
da imagem e da fonte da sua interpretação. A verdadeira pro- estudo dos espaços siderais, mas distingue-a claramente do
fecia funda-se na visão intelectual, rege-se pela norma· elo amor perniciosíssimo erro dos que vão proclamando destinos fatais
e ·nunca se engana porque brota da viSão interior da mente ·a partir dos astros, e das divagações dos fazedores de horós-
que acede ao eterno presente de Deus:-:E1a é, portanto, unia copos (cf. Doct. Christ., II, 29, 46: CCL 32, pp. 64-65). A radical
participação na prescíência divfrí.a-qiie,-por se situar num pa- falácia deste pretenso conhecimento consiste em assumir como

242 243
necessário o exerc1c10 da actividade humana, essencialmente governadora universal (cf. Diál. Ord., I, 9, 26; I, 7, 24). A iden-
livre e, como tal, imprevisível na sua actuação (cf. Doct. Christ., tidade específica da razão só se virá a esclarecer quando Agos-
II, 21, 32-22, 33: CCL 32, pp. 55-57). tinho explicitar a natureza do Verbo e o modo como esse prin-
cípio actua na criação do mundo, particularmente na criação
do ser humano, moldando nele, pela mente espiritual, a ima-
3 gem divina. Contudo, o âmbito do termo ratio é delimitado pela
definição que ocorre em Diál. Ord., II, 11, 30: ratio est motio
Intellectus I ratio
mentis ea quae discuntur, distinguendi et conectendi potens.
Neste sentido, a razão é fundamentalmente a actividade que
Em Diál. Ord. o termo intellectus ocorre com um sentido
bastante mais determinado, se o compararmos com aquele que se põe em movimento na produção dos saberes, enquanto se
é atribuído no Diálogo ao termo ratio. lntellectus é a realidade reserva para o intelecto a dimensão da mente que ascende à
à qual se une a alma do homem virtuoso e erudito, após um sabedoria e que, porventura, a razão vislumbra quando repa-
percurso de purificação teórico-prática, a fim de obter uma vida ra que ela própria consiste numa força unitiva, pela qual a
feliz, dedicando-se à filosofia (cf. Diál. Ord., I, 8, 24). lntellec- alma se une a uma realidade que a transcende sem, contudo,
com ela se confundir (cf. Diál. Ord., II, 18, 47-48). Em Diál.
tus é, também, a dimensão mais elevada da visão interior que
permite atingir o mundo inteligível, sendo este identificado em
Ord., a razão é, sem dúvida, essencialmente a obreira de to-
das as artes, e o excurso de Agostinho sobre o ciclo das disci-
Diál. Ord. com o reino de Cristo. É por essa dimensão da
plinas não prescinde da consciência da condição histórica e
alma - o intellectus - que o sábio se une a Deus. Por último,
intellectus é aquela realidade divina na qual todas as coisas progressiva da própria racionalidade. Nesta medida, torna-se
são, ou melhor, ele próprio é todas as coisas (cf. Diál. Ord., II, difícil identificar a natureza individual da alma, porque se
9, 26). Assim, intellectus é o termo que serve, em Diál. Ord., a poderia atender aí apenas a uma actividade de um logos uni-
um tempo, para identificar a actividade específica da mente versal que, produzindo os saberes, se manifestaria em cada
do homem e o princípio de inteligibilidade de todas as coisas, homem. A razão é guia para entender Deus e a alma, objectos
isto é, a própria noção de ordem, deixando antever o modelo específicos da filosofia. Distingue-se, portanto, claramente, da
relacional da estrutura cognitiva que Agostinho virá a propor alma, mas fica por definir se esta última está em nós ou se
em textos ulteriores. Nesta segunda acepção, fica por decidir estende a todas as coisas, qual a sua origem, se tem partes ou
se, no contexto dos Diálogos de Cassicíaco, o filósofo tem já total- se estamos perante uma natureza íntegra, e se é imortal.
mente esclarecida a diferença entre a natureza do voucr - a se- A dificuldade parece ser a de elucidar a relação entre a alma,
gunda hipóstase proposta pelos Libri Platonicorum - e Cristo, princípio vital e comum a todos os animais, e a presença, nela,
Verbo Eterno do Pai (cf. Diál. Ord., II, 5, 16; II, 9, 26). Con- da razão, virtualidade pela qual' o homem se distingue dos
tudo, a afinidade entre o lntellectus, princípio de subsistência animais, sobrepondo-se-lhes em dignidade na escala dos seres
do real, e o intellectus, dimensão da mente pela qual se alcança (cf. Diál. Ord., II, 11, 30-31).
o conhecimento desse mesmo princípio, acedendo à Verdade, Precisamente porque é raciocinando - compondo e dividin-
fica já estabelecida em Diál. Ord., assumindo a herança do do - que a razão produz o saber, ela exige o decurso no. tem-
platonismo segundo a qual a alma é congénita com o divino. po: a historicidade é uma propriedade inerente à realidade do
_ Por .sua vez, o termo ratio assume em Diál. Ord. uma acep- próprio discurso. Em Diál. Ord. Agostinho considera também
çao mmto ampla. Enquanto razão moderadora e governadora de a hipótese de ser esta mesina condição a que dificulta o acesso
todas as coisas, o seu sentido aproxima-se do Intelecto que ga- do homem à sabedoria. Com efeito, esta versa sobre Deus e a
alma, realidades plenamente inteligíveis. Mas a razão humana,
rante a subsistência do todo. Nesta acepção, a razão identifica-
-se com a providência divina e não se distingue da Inteligência ao produzir as artes no curso dos tempos, avança sobre os

244 245
dados da sensibilidade, alheando-se de si própria. A ignorân- exegese, mais do que ao recurso à diferença estabelecida pelos
cia em que se encontra a maior parte dos homens tem, por- platónicos entre o universo sensível e o inteligível. Platão não
tanto, alguma relação com este avanço da alma sobre o sensí- erra quando afirma a existência de um mundo inteligível, diz
vel que a distrai da sua própria natureza. Do mesmo modo, a Agostinho. Nessa medida, não é a referência a esta concepção
percepção da sua verdadeira essência exige o regresso da ra- do mundo a causa da autocrítica do filósofo sobre o Diál. Ord.
zão à primitiva natureza, que consiste na sua relação com o Pelo contrário, o Hiponense considera como garantia do carác-
inteligível. Embora em desenvolvimentos ulteriores, concreta- ter razoável da mundividência platónica a afirmação da exis-
mente acerca das funções atribuídas à memória na actividade tência de um tal mundo.
cognitiva, Agostinho venha a construir uma versão original Cerca de 40 anos transactos sobre a redacção de Diál. Ord.,
sobre a constituição do saber, em Diál. Ord. o filósofo limita- em Retract., I, 3, 2 (CCL 57, p. 13), Santo Agostinho disponi-
-se a assumir os elementos que colhera da proposta platónica biliza uma interpretação dos Libri platonicorum identificando
sobre a natureza da alma e do conhecimento. O método expla- o voucr platónico com a razão eterna e incomutável pela qual
nado por Agostinho para que a razão recupere a sua condição Deus fez o mundo. Na verdade, postular a existência de uma
originária é precisamente o da auto-reflexão através da pro- razão eterna, artífice do universo, é comum à filosofia platóni-
dução das disciplinas, geradas pela razão a partir do sensível. ca e à metafísica cristã. Contudo, elas divergem no modo de
Agostinho assume, neste texto, o modelo neoplatónico do conhe- conceber a natureza da relação desse princípio de inteligibili-
cimento por via do regressus animae e repetidamente apela dade quer com o mundo, quer com o próprio Deus. O voucr
para a sua necessidade. platónico é a segunda hipóstase numa hierarquia onde a par-
I. Hadot afirma ser irrecusável o facto de Santo Agostinho ticipação é essencialmente concebida como actividade noética.
ter utilizado uma fonte neoplatónica para compor o Livro II Assim é, porque o modelo que sustenta esta visão do mundo é
de Diál. Ord., sugerindo, como mera hipótese, que esta seja o fundamentalmente epistémico, privilegiando no ser humano a
Tratado sobre o Regresso da Alma, de Porfírio (cf. I. Hadot, actividade cognitiva, de acordo com a definição clássica do
Arts libéraux et philosophie dans la pensée antique, Paris, 1984, homem, animal racional. O termo razão significa, aqui, o con-
p. 132). Contudo, é possível antever que a mundividência au- junto de operações lógicas da inteligência, de acordo com o
gustiniana se virá a constituir sobre alicerces visceralmente movimento indução/dedução, visando este último a contempla-
distintos se, como proporá Agostinho, o termo final do regresso ção intelectual do Uno. Neste contexto e por definição, o Uno
da alma sobre si mesma vier a constituir-se na relação com é ininteligível não por ser irracional mas porque o modelo de
um princípio instaurador de ser e não apenas garante de inte- racionalidade de que se parte não permite conceber a relação
ligibilidade. com o Princípio em termos de uma dependência ontológica.
A razão neoplatónica é artífice, niais do que do ser das coisas,
da inteligibilidade delas, ficando por justificar a razão de ser,
4 mas garantindo o carácter razoável da actuação do princípio
Os dois mundos fazedor. Se assim não fosse, esse princípio negar-se-ia a si
próprio, ao produzir· realidades ininteligíveis, o que correspon-
Em Retract., I, 3, 2 (CCL 57, p. 12), entre as varias afir- deria a afirmar que Deus faz coisas irracionais ou que não
mações que Agostinho se desagrada de ter escrito, inclui-se a existe nele um conhecimento anterior à actividade de fabri-
recomendação da doutrina dos dois mundos, introduzida ao car, neste caso, o Universo. Afirmar-se-ia, assim, a superiori-
interpretar o texto de Jo., 18, 39: «Ü meu reino não é deste dade do mundo material em relação à actividade divina, in-
mundo» Wiál. Ord., I, 11, 32). O filósofo explica que o motivo vertendo a hierarquia dos seres, pois o sensível seria superior
do seu lamento corresponde ao exercício de uma incorrecta ao inteligível. Ora este fora precisamente o grande contributo

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do neoplatonismo para a razão augustiniana, essencial no seu pio, está também em permanente realização, pela condição
percurso de conversão intelectual. Contudo, o cristianismo não histórica daqu.,les seres cuja existência o Princípio sustenta.
concebe apenas a divindade da razão eterna, artífice do Mun- A razão cristã vive na esperança, sempre actualizada, da reali-
do, mas acresce a afirmação da sua natureza em termos de zação plena do sentido que cada ser comporta em si, enquanto
uma relação de dependência ontológica das obras face ao artí- o modelo platónico da inteligibilidade do mundo vive da adequa-
fice (cf. Conf., VII, 9, 13 e 20-26: CCL 27, pp. 101 e 109-110). ção a uma perfeição ideal já plenamente realizada. A razão
O Verbo eterno de Deus, por quem todas as coisas foram fei- cristã abre-se à inteligibilidade sempre criativa de um mundo
tas, permanece numa relação de eterna identidade com o Prin- em construção no tempo, enquanto o modelo neoplatónico se
cípio da sua procedência, o Pai, Origem de todo o Ser, como já encerra na circular perfeição do eterno retorno do mesmo.
se afirma em Diál. Ord., II, 18, 47. E o mesmo Verbo confere Agostinho rectifica o emprego abusivo da expressão mundo in-
ser ao mundo, tornando-o, nesse mesmo acto, inteligível. Exis- teligível aplicado à exegese cristã. Na verdade, ela pode signi-
te, portanto, para a razão cristã, um mundo inteligível, mas ficar a confusão entre duas mundividências que, embora não
ele não se identifica com a natureza de Deus. O lamento de sejam absolutamente incompatíveis - uma vez que, para o fi-
Agostinho em Retract. incide sobre o que considera ter sido lósofo de Hipona, a razão cristã integra todas as expressões
um emprego abusivo, pela sua parte, da expressão neoplató- de razoabilidade, superando-as-, se excluem nos seus funda-
nica «mundo inteligível». Na verdade ela faz todo o sentido no mentos como nos seus corolários.
interior da mundividência do autor do Timeu, bem como nas
ulteriores interpretações da divindade no contexto do neopla-
tonismo. Contudo, utilizada como grelha hermenêutica para a 5
expressão bíblica de Jo., 18, 36, ela pode ser fonte dos maiores Esse cum Deo
·! equívocos. Agostinho manifesta, assim, a plena consciência da
li diversidade entre as mundividências cristã e neoplatónica. A definição do conteúdo da expressão esse cum Deo que, no
O Mundo cristão é, evidentemente, inteligível, pelas razões já conjunto da obra de Agostinho, virá a elucidar o modo de par-
apontadas sobre a natureza necessariamente razoável da se- ticipação ontológica, desenvolvendo-se à luz da metafísica da
gunda hipóstase e da sua relação com o mundo de que é ar- criação assumida pelo filósofo, emerge em Diál. Ord. a propó-
tífice. Contudo, a interpretação cristã integra a diversidade de sito da discussão sobre a natureza do entendimento do sábio.
naturezas entre a eternidade da Razão e a temporalidade do O modelo de participação defendido por Licêncio com base na
Mundo numa actividade única que se identifica com o sentido epistemologia neoplatónica torna inviável a dependência onto-
da própria História. A razão eterna de Deus integra e assume lógica e não responde à pergunta sobre a causa eficiente dos
em si o curso dos tempos, sem se alterar na sua imutabilida- entes. Se o ser das coisas é idêntico ao pensar e o pensamento
de. É assim que Agostinho rectifica a interpretação feita em é a actividade específica da razão de alguns homens quando
Diál. Ord. acerca das afirmações de Cristo sobre a natureza atinge a contemplação de realidades eternas, então a maior
do seu reinado. A interpretação daquelas no sentido neoplató- parte da realidade não tem consistência ontológica ou, se a tem,
nico estrito é redutora, uma vez que esse mundo inteligível ela é inacessível e desconhecida para a maior parte dos ho-
não está, para a racionalidade cristã, previamente construído, mens. Para superar as aporias a que conduz o raciocínio de
nem corresponde a um modelo estático de uma razão prede- Licêncio e as dificuldades e angústias inerentes ao modelo
terminada. O mundo inteligível não é, para o cristianismo, a neoplatónico de relação entre o ser e o saber, Agostinho terá,
adequação de um factum a uma realidade arquetípica. Ele é, por uma parte, de construir uma visão do mundo onde o Ser
antes, a renovação de um mundo dado, cuja construção, se está de Deus comporte algum tipo de actividade, desprendendo-a
hoje e agora plenamente potenciada pela eternidade do Princí- da matéria e distinguindo-a do movimento dos corpos (cf. Diál.

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Ord., II, 6, 18-19); por outra, terá de redefinir a natureza do der a relação entre os seres e o Ser Supremo. A mente huma-
real, explicando o modo como este depende, actual e perma- na, sede da sal;iedoria, é o resultado de um equilíbrio harmó-
nentemente, do Ser divino, sendo este último o garante da nico das três faculdades que nela se manifestam - memoria,
relativa consistência dos seres. Em Diál. Ord. Agostinho pro- intellegentia, uoluntas -, sendo por Agostinho confiada à von-
põe a Licêncio duas definições para a expressão esse cum Deo, tade, preferindo-a à inteligência, a dinâmica prática e unitiva
a qual atinge o cerne de toda a metafísica: a relação dos seres da sabedoria. Esta intuição de Agostinho, que comport<t a cons-
com o Ser. De acordo com a primeira definição, «estar com ciência da necessidade de reformular a cultura antiga no que
Deus» é ser governado e regido por Ele. A relação com Deus se refere às duas grandes categorias metafísicas em torno das,
estabelecer-se-ia a partir da providência e a existência identi- quais ela se articula - o ser e o pensar-, pode id!lntificar-se
ficar-se-ia com a integração de cada ser numa distribuição na mente do filósofo já desde os primeiros Diálogos filosóficos.
hierárquica determinada e na resolução harmónica de todos os Em BV, Agostinho reconhece que Mónica atingiu o cerne da
acontecimentos. A segunda definição identifica «estar com Deus» filosofia porque, tendo admitido ela, com toda a escola de Cassi-
com a união da razão do sábio ao entendimento divino. As duas cíaco, a universalidade do desejo de felicidade, discerne clara-
noções contidas nas propostas de Agostinho resolver-se-ão, no mente a intencionalidade do acto que permite a posse de um
desenvolvimento ulterior da noção de Ordem sustentada pelo tão imenso bem. No entender de Mónica nem todo o que tem
filósofo, quando se esclarecer a natureza do Verbo Eterno. o que quer é feliz mas só aquele que quer o bem (cf. BV, 2,
Quanto à primeira definição proposta em Diál. Ord., a razão 10: CCL 29, pp. 70-71). Por sua vez, seguindo Agostinho, neste
augustiniana mostrará o papel do Verbo na criação do universo, aspecto, a tradição neoplatónica, os bens podem ser do corpo ou
acção que Aquele realiza em perfeita comunhão com as outras da alma, sensíveis ou inteligíveis. Estes últimos, pelo seu al-
Pessoas divinas. No que se refere à segunda definição, Agosti- cance mais universal, são preferíveis aos primeiros. E feliz
nho terá de mostrar a especificidade da relação do Verbo com aquele que procura o melhor dos bens, isto é, o bem que está
o Pai no interior da Trindade, de modo que Aquele venha a sempre fixo, permanecendo imutável, de tal modo que a sua
identificar-se com a Inteligência de Deus, Uno e Trino. O resul- posse pela vontade seja definitiva e eterna. Contudo, não será
tado deste esforço intelectual permitirá mostrar como a Or- a quantidade nem mesmo a qualidade dos bens que fará o ho-
dem é Deus, sendo ela própria uma das Pessoas divinas, inte- mem feliz mas a moderação do seu espírito na relação que com
grando, simultaneamente - e na medida em que, por meio eles estabelece (cf. BV, 2, 11: CCL 29, pp. 71-72). Agostinho e
Dela, se estabelece a acção de Deus no tempo -, as livres de- Mónica poderiam estar apenas a expor a tese clássica da virtu-
cisões dos homens. Com efeito, no contexto da metafísica au- de como justo meio, de acordo com a qual a prudência obtém o
gustiniana não será a mente do sábio que, enquanto produ- primado entre as qualidades da alma. Mas a Medida da alma
tora de conhecimento, virá a ser fundamento da relação do real virá a ser definida como Plenitude, sendo esta colocada numa
com o divino, como o era, de algum modo, na proposta neo- hierarquia de bens balizada pelo ser e pelo nada. A sabedoria é
platónica. Se a estrutura da mens augustiniana é essencial na a qualidade da alma que lhe confere mesura na posse de uma
compreensão da mundividência do Hiponense, ela é também desmesura a que naturalmente tende. Essa medida da alma é o
visceralmente descentralizadora: a Sabedoria é, já em BV, a Filho de Deus, a Sabedoria que é a própria Verdade, Verbo
Plenitude da Medida divina, isto é, a própria Verdade de Deus, divino (cf. LA, II, 15, 39: CCL 29, pp. 263-264; Doct., Christ., I,
Incomensurável, que a mente de cada ser humano executa a seu 34, 38: CCL 32, pp. 27-28). Sendo Deus o Supremo Bem, em cuja
modo. Por sua vez, a realização da sabedoria é fundamental- posse está a felicidade, será necessário legitimar uma metafí-
mente do domínio da acção, mesmo quando esta é entendida sica que assegure que esta finalidade humana se pode, efecti-
como actividade contemplativa, o que confere à noção de ordem vamente, alcançar, sob pena de retirar razoabilidade ao Princí-
uma dinâmica própria e, com ela, um modo peculiar de enten- pio de Ser. A chave da proposta augustiniana consiste em

250 251
mostrar como a hierarquia dos seres se constitui com base 6
numa real dependência ontológica, permitindo esta última a Sentire I nosse
referência a uma maior ou menor plenitude de ser, mas nunca
uma total aniquilação daquilo que é. Porque a estrutura dos Em Diál. Ord. a oposição entre sentir e conhecer é coloca-
entes assenta na relação com a eternidade do Ser divino, a da nos moldes clássicos da tradição platónica. Assim, ao órgão
existência de cada coisa é perene, apesar da sua relativa per- corpóreo do sentido, bem como à sensação, nega-se todo o va-
manência no tempo. Nesta medida, a criação não poderá ca- lor epistémico. Licêncio chega a afirmar uma clara distinção
minhar para uma aniquilação - como propunha a tese estóica entre a percepção sensível e o conhecimento, supondo, numa
do final do mundo sob forma de conflagração universal -, mas mesma alma, a actuação de duas partes distintas e incomuni-
sim para um maior grau de aperfeiçoamento. Se há algum mo- cáveis e pondo em causa a integridade daquela. Assim, uma
vimento que contrarie esta dinâmica, ele não provém daquele das partes da alma estabeleceria relação com o mundo sensí-
ser que Sempre É, mas daquela qualidade de ser que, entre vel e outra relacionar-se-ia com o mundo das ideias presentes
as diferentes formas de existência, pode intensificar ou desvir- na mente do sábio e alheio a toda a contaminação material.
tuar a consistência do real: a vontade. Só uma visão do mun- Neste contexto, a percepção sensível não é conhecimento e o
do que integre uma explicação racional de todo este complexo sábio há-de desconhecer, inclusivamente, aquela sua parte que
tecido de relações pode esclarecer as perplexidades de Licên- lhe permite estabelecer relação com o mundo sensível. A parte
cio. Com efeito, para Agostinho, tudo está com Deus, nada está da alma que se relaciona com o corpo produz a sensação.
sem Deus, mas há realidades que possuem Deus em maior ou A outra parte, puramente inteligível, confiar-se-ia a activida-
menor grau, e há mentes que O possuem voluntariamente, de noética. Entre ambas não há qualquer mediação possível.
desfrutando Dele, e outras que se limitam à mera subsistên- Ora já em Diál. Ord. Agostinho sublinha o absurdo de uma
cia no ser, desejando, contraditoriamente, não ser por Ele pos- tal concepção, fazendo notar que ela só se esclarece à luz de
suídas [cf. LA, III, 7, 21 (CCL 29, p. 287)]. Como isso não é uma reflexão sobre o modo de relação entre o corpo e a alma
possível, porque a existência supõe a dependência ontológica, na constituição do ser humano. Igualmente em Diál. Ord., face
limitam-se a possuir passivamente o ser, como algo que contraria à necessidade de constituir uma teoria da sensação, Agostinho
essencialmente a sua vontade própria, a qual desejaria sub- recolhe da tradição platónica o carácter instrumental e servil
sistir independentemente de qualquer princípio, alheada de dos sentidos corpóreos ante uma realidade de natureza supe-
qualquer relação. Assim, é possível estar com Deus (existir) rior que é a alma. Com efeito, para Agostinho o esclarecimento
possuindo-O e desfrutando Dele, tendo sempre na vontade, com da estrutura metafísica do composto humano e a constituição
a medida própria do curso dos tempos, o melhor dos bens, mas de uma teoria da percepção são duas questões indissociáveis.
também é possível ser-se demissionariamente possuído por Por isso, descrevendo a geração das artes, o filósofo não cessa
Deus. Neste caso, a vontade persegue, inevitavelmente, a sub- de mostrar a íntima conexão que estabelecem os órgãos dos
sistência do ser, mas desejaria esquivar dela, como da própria sentidos, a sensação e a razão, pondo claramente de manifes-
dependência ontológica. Este último modo de viver introduz, to a exigência de uma ordem na qual, na hierarquia dos se-
na dinâmica intencional da vontade humana, um movimento res, o inferior não pode agir sobre o superior. Os sentidos são,
essencialmente contraditório. Nele consiste a natureza da in- portanto, meramente passivos neste processo, instrumentos ao
felicidade que equivale a padecer de indigência metafísica, isto serviço da razão, como descrevera Licêncio magnificamente no
é, a realizar do modo mais ínfimo a própria humanidade que seu excurso sobre a memória do sábio (cf. Diál. Ord., II, 2, 6).
se possui [cf. E. Zum Brunn, «Le dilemme de l'être et du néant Ainda em Diál. Ord. Agostinho expõe o carácter conflituoso
chez Saint Augustin. Des premiers dialogues aux Confessions>>, da relação entre os sentidos e a razão. Aqueles primeiros pro-
Recherches Augustiniennes, 6 (1969), pp. 51-53]. curam inclinar a alma para a posse de uma beleza fictícia,

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atraindo-a para a multiplicidade, enquanto a razão aspira à damos ao entendimento, não a damos a mais nenhuma parte
beleza universal. Independentemente da discussão em torno da da alma (cf. Diál. Ord., II, 2, 6). Para tal, é necessária a acção
hipótese de se poder constituir, com base nestes elementos, uma da razão sobre a alma, a fim de retirar significado aos ele-
teoria sobre o belo e a sua percepção, eles são sobretudo fecun- mentos colhidos da acção desta última sobre o universo cor-
dos para a compreensão dos ulteriores desenvolvimentos de uma póreo, onde se incluem o sensível e o sentido. Para compreen-
teoria da sensação tal como Agostinho a delineará, v. g., em der a proposta augustiniana acerca da acção cognitiva restará,
DM, VI. Nesse Diálogo, com base na noção de numerus (termo por uma parte, esclarecer a relação entre a alma e a razão, de
proposto em Diál. Ord., II, 14, 40, para a tradução de rythmus), modo a produzir os saberes ou artes e, por outra, elucidar a
o carácter ritmado de todo o real é indiscutível, pois significa que se estabelece entre a razão e a Verdade, de modo a alcan-
as diferentes formas de modelação da realidade. Entre elas, pode çar a essência da sabedoria.
estabelecer-se uma hierarquia que há-de respeitar o princípio
de superioridade da causa sobre o efeito, o qual, aplicado à
relação entre o sentido e o sensível, permite verificar o carác- 7

ter prioritário daquele sobre este último (cf. DM, VI, 6, 16: Memoria
PL 32, 1171-1172). Ora o corpo não pode ter uma acção sobre
a alma, uma vez que lhe é inferior. Deste modo, a causa da A noção de memória que Agostinho torna operativa explici-
sensação é a alma que se estende a todas as dimensões do cor- tamente em Diál. Ord. não transcende o âmbito da faculdade
po e se há alguma experiência contrária a esta - se a alma ex- de recolher informação, absolutamente indispensável no exer-
perimenta paixões - isso deve-se a uma desordem na harmo- cício da aprendizagem e do ensino, sendo esta última tarefa
nia inicial, instaurada pela vontade e consequência do primeiro confiada à razão do sábio. Assim, afirma-se que a memória é
pecado, a que se segue a corruptibilidade do corpo (cf. DM, VI, a faculdade que permite aos três estudiosos não deixar esca-
4, 7: PL 32, 1166-1167). Assim, embora Agostinho assuma a par o conteúdo do debate com que se inicia o Diálogo, ocorrido
solução neoplatónica para a estrutura do conhecimento sensí- durante a noite e registado já entrada a jornada de trabalho
vel, ressalva a condição essencialmente boa do corpo e da alma, (cf. Diál. Ord., I, 8, 21). A memória é a faculdade aplicada às
bem como o carácter activo desta sobre aquele, ao mesmo tempo coisas fugazes que a escrita regista, permitindo àquelas algu-
que remete a origem da desordem para o âmbito da vontade. ma sobrevivência no tempo, restituindo-as à potência de re-
Supor alguma influência do corpo sobre a alma é perabsurdum, cordar (cf. Diál. Ord., I, 9, 27). Em Diál. Ord. a memória anda
escreve Agostinho: «Ego enim hoc corpus ab anima animari non unida às artes menores que a gramática integra, como é o caso
puto nisi intentione facientis» (DM, VI, 5, 8-9: PL 32, 1167- da historiografia e da literatura (cf. Diál. Ord., II, 12, 37).
-1168). A presença da alma no corpo tem por finalidade a ac- Aplicada às realidades sensíveis, ela grava o som que se di-
ção desta sobre aquele, objectivo que ela alcança com maior ou funde num tempo pretérito. A memória é, portanto, útil e in-
menor facilidade de acordo com a sua qualidade moral, supos- dispensável na produção da música (cf. Diál. Ord., II, 14, 41),
ta a corruptibilidade do corpo. Deste modo, só à alma compete permitindo que cantem mesmo os que ignoram a arte, pois
a sensação ou sentimento do ajuste do corpo a si mesma, en- arrecadam naquela faculdade o ritmo e a melodia percebidos
quanto realidade que o comanda. A sensação é uma actividade pelo sentido natural (cf. Diál. Ord., II, 18, 49). Sem dúvida, a
da alma que ocorre no corpo e o prazer ou dor derivam da con- memória associa-se à percepção sensível e por isso uma tal
veniência do objecto em relação à harmonia do composto faculdade afasta-se da actividade do sábio. Contudo, para além
(cf. DM, VI, 5, 10: PL 32, 1169). da função essencial que lhe atribui no exercício da retórica,
Por sua vez, a sensação não é, ainda, conhecimento, nem Agostinho de algum modo antevê que uma outra missão se há-
mesmo percepção. A percepção, escreve Agostinho, se não a -de confiar à memória, pois ela põe à disposição do mestre um

254 255
depósito de conhecimentos, tornando-os presentes para lá da actualizar continuamente a experiência sensível. Assim, a pró-
condição sucessiva que corresponde à enunciação do discurso pria memória sensível é já fonte dinamizadora da construção
(cf. Diál. Ord., II, 2, 7). de um mundo interior. Mas é a recordação de realidades inte-
Essencial à sabedoria é a constante união do sábio com ligíveis que conduz a interrogar a origem do seu emergir na
Deus. Mas se atribuirmos esta função unitiva à inteligência, alma. O próprio exercício da aprendizagem reclama a existên-
seguindo a proposta neoplatónica, a razão incorre num conjunto cia de uma faculdade que possa reconhecer o significado de
de aporias. Em Diál. Ord., Agostinho propõe que o fundamen- cada sensação, a fim de lhe conferir inteligibilidade (cf. Conf.,
to de uma tal união se atribua à omnipresença divina, sendo X, 16-24-17, 26: CCL 27, pp. 167-168). A memória recorda o
esta, aliás, uma condição essencial para que a sabedoria se próprio acto de recordar, o que permite ampliar a sua activi-
constitua como actividade dinâmica e procura contínua da fe- dade para além da própria recordação sensível ou inteligível
licidade, a qual só se obtém com a posse da Plenitude. O que (cf. Conf., X, 13, 20: CCL 27, p. 165). Por sua vez, é na recor-
está em causa, então, é saber de que modo é possível ao sábio dação dos afectos que a actividade da memória se manifesta
ter sempre presente essa verdade que diverge quer dos raciocí- claramente como faculdade do espírito e não do corpo. Assim,
nios elaborados no tempc;quer das condições favoráveis ou ad- a recordação actual de uma tristeza pretérita pode ser causa
versas da vida. da alegria. A memória espiritualiza os próprios afectos, inde-
A solução augustiniana, que virá a conferir um protagonis- pendentizando-os do corpo e diferenciando-os dos estados aní-
mo à memória no percurso de constituição da sabedoria, co- micos. Por isso, ela situa-se para lá destes dois domínios, o cor-
meça a esboçar-se nos clássicos capítulos de Conf., X, 8, 12-15. poral e o meramente psicológico (cf. Conf., X, 14, 21: CCL 27,
Por uma parte, trata-se de fundamentar o conhecimento de pp. 165-166). Atinge as coisas ausentes (cf. Conf., X, 15, 23:
realidades que não têm referente sensível, como, por exemplo, CCL 27, pp. 166-167) bem como o próprio acto de esquecimento
o conhecimento da própria Unidade inteligível e indivisível. Há (ct: Conf., X, 16, 24: CCL 27, p. 167). Tudo o que está no espírito
uma memória de realidades inteligíveis. Estas, pela sua pró- (animus) está na memória. Em definitiva, a memória augusti-
pria imutabilidade, subsistem sempre e sem alteração: são niana identifica-se com a raiz última da identidade do ser humano
eternas. Todavia, contrariando a tradição, Agostinho afirma que integra a própria vida humana na sua totalidade.
que o exercício da memória que recolhe realidades eternas se A memória é a vida do ser humano e esta vida não tem
efectua não por recordação mas por presença. A eternidade é limite, precisamente porque não se circunscreve ao espaço e
conferida a Deus como atributo específico. Ora pode haver uma ao tempo: é espiritual. Mas a eternidade como vida é proprie-
recordação de Deus fundada na memória sensível, como quan- dade e atributo de Deus. Por isso, se há vida no espírito hu-
do recordamos o que nos foi transmitido acerca de uma tal mano, essa vida é de Deus e reside na memória. De contrário
noção, mas esta memória não incide sobre a eternidade de Deus não seria possível o reconhecimento de si como um ser em
e, portanto, conduz a um conhecimento deformado da realida- relação com um princípio de vida eterna (cf. Conf., X, 17, 26:
de divina. De igual modo o conhecimento do Uno pode tlar-se CCL 27, pp. 168-169). Não obstante a proposta augustiniana de
pela recordação da integridade dos sensíveis, mas nesse caso ascese a Deus-Uno assumir o modelo neoplatónico do regres-
a percepção da unidade não supera o universo das realidades sus animae, ela é sustentada pela concepção bíblico-cristã de
materiais. Já no exercício da memória sensível Agostinho des- criação. No âmago da mente, a relação entre a alma e o divi-\
cobre a força dessa potência, pois por ela a vontade tem à dis- no estabelece-se pela presença desta em Deus, já que o Ser
posição um mundo infindo de realidades, podendo prescindir Eterno é condição da relativa subsistência do ser humano. Esta
da sua percepção actual para delas desfrutar (cf. Conf., X, 8, relação subsistente da alma com a eternidade de Deus
13: CCL 27, p. 162). A memória entesoura experiências que a manifesta-se maximamente na inquietude humana pela busca
vontade utiliza quando quer, libertando-se da necessidade de da felicidade. O desejo universal de felicidade, motor de toda
17
256 257
a actividade humana, exige que esta noção esteja realizada de zado em profundidade. Na consagrada expressão augustinia-
algum modo em todos os homens como um desiderato e que na, Deus está presente na memória como interior intimo meo.
possa ,por eles, set reconhecida como tal. A noção de felicidade Por seu turno, o percurso realizado através da razão identi-
não pode estar-" na inteligência, pois ela não se refere a um fica Deus com a summa veritas e reconhece-o como «superior
conceito mas à posse de um bem na intencionalidade da von- summo meo" (Conf., III, 6, 11: CCL 27, p. 33). A vontade com-
tade. Contudo, nenhum homem possui a felicidade, uma vez pete, no interior do espírito, realizar o carácter unitivo da sa-
que todos a buscam, sendo o motor de cada uma das suas bedoria, conjugando profundidade e altitude, pela adesão livre
acções a esperança de a alcançar. Na trilogia das faculdades às realidades que a memória presencia e a inteligência reco-
da mente resta conferir à memória o resguardo da noção uni- nhece. Daí que, no termo desta análise augustiniana que rela-
versal de felicidade, sendo esta última definida como a alegria ciona o desejo universal de felicidade e a função da anamnese,
de encontrar a verdade (cf. Conf., X, 23, 33: CCL 27, pp. 172- se encontre a clássica invocação de Agostinho: «sero Te amaui!»
-173). Ora a Verdade é o Bem soberano e eterno, superior à (Conf., X, 27, 38: CCL 27, p. 175).
razão, e a que nenhum outro é superior: a Verdade é Deus
(cf. LA, II, 12, 34-13, 35: CCL 29, pp. 260-261; Doct. Christ., I,
7, 7: CCL 32, p. 10). Mas esta busca da Verdade só é possível 8
se a memória guardar alguma notícia dela de tal modo que, Rationale I rationabile
uma vez encontrada, a reconheça como tal (cf. Conf., X, 18,
27: CCL 27, p. 169). Deus encontra-se, portanto, na memória Em Diál. Ord., II, 11, 31, Agostinho estabelece uma distin-
(cf. Conf., X, 24, 35: CCL 27, p. 174). Mas se a memória é ção entre os termos rationale e rationabile, integrando-os como
toda a vida do homem, em qual dos seus domínios haveremos subconjunto da definição herdada da cultura clássica: homo,
de procurar Deus? (cf. Conf., X, 25, 36: CCL 27, p. 174). Agos- animal rationale morta/e. É racional (rationale) aquele que faz
tinho conclui que Deus é o sustento metafísico da própria vida uso da razão, enquanto o termo que traduzimos por razoável
do espírito. Uma vez que Deus não se restringe às coordena- (rationabile) é empregue pelo filósofo para designar o que é
das do espaço e do tempo, ele está na memória ocupando-a conforme à razão. Hadot supõe que os dois termos latinos se-
plenamente, dominando o espírito humano com a sua presen- jam a tradução das palavras gregas logikos e logistikos, sem
ça eterna. Assim, a memória augustiniana, na sua dimensão conseguir, contudo, identificar as autoridades a que Agostinho
inteligível, poder-se-ia definir como a faculdade humana que se estaria a referir (cf. I. Hadot, Arts libéraux et philosophie
recolhe a omnipresença de Deus no espírito [Conf., X, 25, 36 dans la pensée antique, Paris, 1984, pp. 107 e 307). No con-
(CCL 27, p. 174): «Habitas certe in ea, quoniam tui memini texto do Diálogo, o racional é mais amplo do que o razoável,
ex quo te didici, et in ea te inuenio cum recordor te»]. Recordar- uma vez que se considera possível um uso não razoável da
-se de si, reconhecer-se, é conhecer este facto: Deus está mais própria razão, paradigmático no caso do homem estulto. Mas
na alma do que a alma em Deus. Recordar-se de si é reconhe- não pode dar-se o caso de que a racionalidade seja desconfor-
cer-se no eterno presente que é Deus: in te, supra me (cf. Conf., me consigo mesma. Tudo o que é racional é necessariamente
X, 26, 37: CCL 27, p. 175). Deste modo, a memória de Deus razoável, mesmo que esta última dimensão não venha a
no es~to não é senão u11!_caso particular cfo.--õmI11PresenÇa actualizar-se, uma vez que está dependente de uma actividade
delJeus nas coisas, neste caso, -;;:;;ser humãri.o;- supÕstã a-âe- humana. A distinção entre rationale e rationabile, postulada,
peri.dêri.cia ontológica de toda a realidade em face da plenitude embora com base em princípios divergentes, quer pelo neopla-
do ser divino (cf. E. Gilson, Introduction- -à áiude de-Saint tonismo quer pelo estoicismo, exige afirmar o carácter racio-
Augustm;- Paris, 19493, p. 139). O reconhecimento de si em nal de todo o real. Para o mestre de Cassicíaco é porque há
Deus é o término __ do percurso da alma a Deus, quando reali- afinidade entre o princípio construtor do universo e a natu-

258 259
reza humana que a razoabilidade do discurso, recolhida nas
diferentes artes, se torna operativa. Assim, o filósofo consi-
dera que o universo é uma imensa mensagem onde se trans-
crevem signos dotados de significação, sendo a razão a capa-
cidade de descodificar o significado daqueles. Com efeito, é
distinguindo e unindo as parcelas do real que aquela dá à luz
as artes. Os saberes geram-se, então, por essa cumplicidade
entre a razão, que é a diferença específica do animal homo, e
a racionalidade universal plena de significação, mesmo se,
apesar de assim ser, continuam a existir homens estultos.
Estes são os que, usando da sua parcela de razão, desconhe- BIBLIOGRAFIA
cem a afinidade desta última com a racionalidade universal,
a qual só poderiam identificar se reflectissem sobre a própria
faculdade de que se servem nas suas estultas elucubrações. 1 - Obras de Santo Agostinho
Daí o apelo de Agostinho ao necessário regresso da razão so-
bre si mesma, não apenas como percurso de interiorização em Contra Academicos (texto da ed. Green), CCL 29, Brepols, Turnholti, 1970,
pp. 3-61.
direcção ao inteligível mas como actividade necessária para De Beata Vita (texto da ed. Green), CCL 29, Brepols, Turnholti, 1970,
tornar consciente o carácter reflexo da razão que, porque se pp. 65-85.
contém a si própria, se integra num universo de racionalidade De Ordine (texto da ed. Green), CCL 29, Brepols, Turnholti, 1970, pp. 89-137.
mais vasto. O alcance da distinção entre rationale e rationabile, Soliloquia (texto da ed. Beneditina), PL 32, 869-904.
De Libero Arbitrio (texto da ed. Green), CCL 29, Brepols, Turnholti, 1970,
aparentemente de foro só etimológico, deriva do facto de Agosti-
pp. 211-321.
nho considerar a importância do conhecimento da causa final De Magistro (tex~o da ed. Dauer), CCL 29, Brepols, Turnholti, 1970,
para conferir razoabilidade a qualquer expressão de razão. pp. 157-203.
Razoável é aquilo que se diz ou faz conforme a razão, supon- De Musica (texto da ed. Beneditina), PL 32, pp. 1082-1194.
do o conhecimento da natureza desta última, de modo que se De Vera Religione (ed. Dauer), CCL 32, Brepols, Turnholti, 1962, pp. 187-260.
De Genesis ad Litteram imperfectum liber (texto da ed. Zycha), CSEL 28-1,
possa gerar um acordo entre a racionalidade do todo, ineren- Vindobonae, 1894, pp. 459-503.
te à sua existência fenoménica, e a das partes, na qual a ra- Confessionum Libri XIII (ed. Verheijen, sobre Skutella), CCL 27, Brepols,
cionalidade do próprio ser humano se integra. Diz-se que algo Turnholti, 1981.
é razoável quando a razão humana descodifica o real, captan- De Doctrina Christiana (ed. Martin), CCL 32, Brepols, Turnholti, 1962,
do o seu significado (cf. Diál. Ord., II, 11, 32). Em último ter- pp. 6-167.
De Genesis ad Litteram (texto da ed. Zycha), CSEL 28-1, Vindobonae, 1894,
mo, esta análise de Santo Agostinho supõe a destrinça entre pp. 1-459. ,
o princípio de racionalidade universal e a razão individual, De Civitate Dei (texto revisto sobre ed. Dombart-Kalb), CCL 47-48, Brepols,
para permitir identificar, em cada homem, a sua condição de Turnholti, 1955, pp. 1-866.
animal racional. Na interpretação que o Hiponense faz da defi- De Trinitate (texto da ed. Moutain), CCL 50-50A, Brepols, Turnholti, 1968.
Retractationum Libri II (texto da ed. Mutzenbecher), CCL 57, Brepols,
nição clássica de homem, este identifica-se não com a alma
Turnholti, 1984, pp. 5-143.
na sua totalidade mas com aquilo que ela tem de razoável.
É humano tudo o que é dito e feito conforme a razão - o ra- 2-Estudos
zoável. É essa subtil actividade que torna o ser humano si- BEITETINI, M., «Stato della questione e bibliografia ragionata sul Dialogo
multaneamente diferente e superior em relação aos outros ani- De Ordine di sant'Agostino (1940-1990),,, in Rivista di Filosofia Neo-
mais, manifestando-se naquela dimensão a diferença específica. scolastica, 83 (1991), pp. 196-236.

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262 263
ÍNDICE

APRESENTAÇÃO................................................................................................ 7

Siglas e abreviaturas ................................................................................. 11

I - INTRODUÇÃO ..................................................................................... 13

A -A temática da Providência ............................................................... 15


B - O Diálogo sobre a Ordem ................................................................. 31

1-A ordem das coisas ................................... :......................................... 31


1.1-Posição do problema................................................................. 31
1.2 -Aporias sobre a universalidade da ordem............................ 36
1.2.1-As convicções de Licêncio .......................................... 36
1.2.2 -A ordem contém os bens e os males....................... 39

2 - Sabedoria e felicidade ........................................................................ 42


2.1 - Posição do problema................................................................. 42
2.2 - Licêncio define........................................................................... 47
2.3 -Está com Deus a estultícia? ................................................... 50
2.4 - Esse cum D~o: aporias sobre a mente do sábio .................. 53

3 - Alicerces para uma nova mundividência ........................................ 58


3 .1 - No cerne da noção de Ordem . .. ..... .. ......... ..... .. . .. .... .. ... .... ..... .. 58
3.2 - Germana Philosophia ............................................................... 62
3.3 - Artes liberais e filosofia.......................................................... 69
3.3.1-A razão nas artes....................................................... 72
3.3.2 - O amor à sabedoria.................................................... 77

265
83 ESTUDOS GERAIS
II - DIÁLOGO SOBRE A ORDEM - Texto e tradução .................... .
LIVRO ! .................................................................................................... 85 Série Universitária
LIVRO II ................................................................................................. . 141
Clássicos de Filosofia
III - NOTAS COMPLEMENTARES ...................................................... . 235 Thomas Hobbes
A NATUREZA HUMANA
1-Anima, animus, spiritus ................................................................... . 237 Tradução, introdução e notas de joão A!oísio Lopes
2 - Adivinhação I profecia ........................................................................ . 240 (Esgotado)
3 - Intellectus / ratio .................................................................................. . 244
Thomas Hobbes
4 - Os dois mundos .................................................................................. . 246 LEVIATÃ
5 - Esse cum Deo ..................................................................................... . 249 Prefãcio de joão Paulo Monteiro
6 - Sentire /nos se ...................................................................................... . 253 Tradução de joão Paulo Monteiro e Marta Beatriz Nfzza da Silva
7-Memoria ............................................................................................... . 255 (2." e<l .• 1999)
8 - Rationale I rationabile ........................................................................ . 259
Immanuel Kant
DISSERTAÇÃO DE 1770
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. . 261 seguida de CARTA A MARCUS HERZ
Tradução, apresentação e notas respectivan1ente
de Leonel Ribeiro dos Santos e António Marques

Immanuel Kant
CRÍTICA DA FACULDADE DO JUÍZO
Introdução de António Marques
Tradução e notas de António Marques e Valério Rohden

Leibniz
PRINCÍPIOS DE FILOSOFIA OU MONADOLOGIA
Tradução, introdução e notas de Luís Marlins
(Esgotado)

Baruch de Espinosa
TRATADO TEOLÓGICO-POLÍTICO
Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio

G. \Y/. F. Hegel
PREFÁCIOS
Tradução, introdução e notas de Manuel]. Canno Ferreira

Gottlob Frege
OS FUNDAMENTOS DA ARITMÉTICA
Tradução, introdução e notas de António Zilhão

Goethe
A METAMORFOSE DAS PLANTAS
Tradução, introdução, notas e apêndices de Marta Fi!oniena lv!older

Platão
ÊUTIFRON, APOLOGIA DE SÓCRATES, CRÍTON
Tradução, introdução e notas de josé Trindade Santos
(4.' ed., 1993)

Platão
EUTIDEMO
Tradução, introdução e notas
de Adriana }danue/a de Mendonça Freire Nogueira

266

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