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João DUNS ESCOTO

TRATADO
DO PKIMt:IKO "

PRINCIPIO
Tradução do l atim e nótul a i ntrodutória
por
Mário Santiago de Carvalho

�dições70
NÓTULA INTRODUTÓRIA

O. PENSAR SUBTIL

Tanto quanto sabemos não existe no nosso país nenhuma


tradução integral de qualquer obra do franciscano João Duns
Escoto (t 1308), também conhecido pelo cognome «Doutor
Subtil » (os prosónimos de origem académica eram então vul­
garíssimos) . O presente trabalho visa colmatar esta i ncom­
preensível lacuna no panorama filosófico português . O leitor
tem agora nas suas mãos uma das obras mais relevantes e mais
difíceis da metafísica e da teologia filosófica ocidental . Neste
tratado sobre o primeiro princípio dos seres sobressai o rigor
mental e expositivo, de característica tão moderna (porque
geometrizante ou axiomática) ; uma nova concepção acerca de
Deus, sobretudo baseada na razão natural e apontada para a
l iberdade e a i nfin idade; e a consolidação de u m modelo de
cientificidade, que interessa à teoria das ciências.
A paciência da razão exigível a todo o leitor que se ahalancL�
por entre os meandros desta pequena mas difícil e sol'i.�ticadis­
sima obra sairá recompensada com a experi ên c i a c o espanto
da descoberta de u m pensamento do longínquo .�éculo X I V qttt'
ainda nos pode dar que pensar ( 1) •

( 1) Para uma primeira introdução de vulgariz;u;ão a .loao I )uns I \s,·oto. VL�jam


-se as transcrições das emissões radiofónicas de Francc .. (\Jliurc 1 I '!X I), ,·ditadas por
Ch. GOÉMÉ- Jean Duns Scor ou lo révo/urion m!Jrile, Paris. I <JX2. ( 'oiil'omic Sl� rvgislar;í

9
1. O AUTOR E A SUA OBRA

João Escoto, o autor-mentor do Tratado do Primeiro


Princípio, deve ter nascido por volta de 1266, no condado
escocês de Roxbourg (ou em Duns, no condado de Berwick) ( 2 ) .
Na verdade, pouco s e sabe acerca d a sua vida e a s escassas
datas mais ou menos certas que bal izam o seu breve mas
fecundíssimo percurso intelectual são as seguintes : por volta
de 1278 frequenta a escola franciscana de Haddington, aonde
um seu tio se encontrava; dois anos depois ingressa no noviciado
da Ordem, então j uridi camente i ntegrada na proví n c i a
franciscana i nglesa; e em 17 de Março de 129 1 é ordenado
sacerdote, em Northampton, pelo bispo de Lincoln, Oliver
Sutton. Frequenta as Universidades de Oxford, de Cambridge
e de Paris, nas quais seguramente terá ouvido comentar, e
comentado (nos últimos três anos dos treze em que o curso se
dividia (')) , os quatro livros das Sentenças de Pedro Lombarda

na B ibliografia, no final deste volume, para a nossa versão servimo-nos da edição


latina de W. KLUXEN - Ablwndlung iiber das Erste Prinzip, Darmstadt. 1974,
adoptando o seu sistema de divisão em parügrafos. Sempre que remetermos para este
texto de Duns Escoto indicaremos sempre o número do(s) parágrafo(s) em questão.
(') A divergência acerca do local de nascimento fica a dever-se à opinião de
E. LONGPR É ( <<Duns Scot>>, Carholicisme l i i (1952), 1172), que apontava para a
aldeia de Duns, interpretação que já se lia na tradição manuscrita do séc. X IV, João
de Duns; vd. J . ANTONIO MERINO - Hisrôria de la Filo.wfía Franciscana, Madrid,
1993, 17 8; F. ALLUNTlS - « lntroducción>> in Juan Duns Escoto. 1/·(/{ado acerca dei
Primer Principio, Madrid, 19R9, 3 - 9. A informação biográfica mais recente de que
tivemos notícia é a de D. Esser. citada na B i bliografia. Quanto a textos em português
sobre Duns Escoto, vej a-se também a mesma B ibliografia.
( ') É algo complexo o escalonamento da formação universit<íria medieval; para
uma i n formação breve vd. o nosso <<l ntrodução à A naléctica Diaporética. Da
(ln)actu<Jlidade das "Quaestiones" como Método FilosófiCO>> , i n Formas Histr!ricas
da Comun icaç·üo filosófica e seus desafios actuais ( Caderno de Filosofias, 6/7),
Coimbra, 1994, 82- 85 ; para mais i nformações, M . ASZTALOS - «A Faculdade de
Teologia>>, in Uma História da Universidade na Europa. Vol. I: As Universidades na
Idade Média, coordenadora da ed.: H. de Ridder-Symoens, trad ., Lisboa, 1996,418-
-21. Podem, porém, adiantar-se os períodos em que se dividia o curso teológico:
Duns Escoto é 'bacharel bíbl ico' cm 1296-97; 'bacharel sentenciário' em 1297-98;
'h;ll·harc l formado' a partir de 1298, altura em que cst<Í apto a receber o grau de
'
'ntcslrc (cL E. BETTONI - Duns Scoto,filosofiJ, Milão. 1966, 89.)

lO
(o manual de teologia então privilegiado). Em 1300 João Escol o
trabalhava j á em Inglaterra na redacção da sua principal obra
teológica, a Ordinatio outrora conhecida por Opus Oxoniensf',
actividade imediatamente decorrente do magistério em Teologia.
Sabemos também que no Outono de 1302 o autor iniciava as
suas l ições em Paris , enquanto candidato ao magistério titul ar,
cidade para a qual foi enviado talvez por não haver lugar docente
para si na Universidade de Oxford. Em 1303 estala a luta entre
Boni fácio VIII e Filipe o Bel o, que «reivindicava a i ndepen­
dência absoluta da monarquia francesa» (4). Ao apoiar o partido
do Papa, e na sequência da manifestação antipapa! de 24 de
Junho daquele ano, Frei João Escoto faz parte do grupo (em
que se i ntegrari a um certo Frei Francisco de Coimbra(') )
daqueles que s e vêem forçados a abandonar a França. Talvez
tenh a i do ensinar para Cambridge ou para Oxford, decorria o
ano l ectivo de 1303/04. Regressa a Paris l ogo em 1304, e talvez
no ano seguinte tenha formalmente tomado posse do l ugar de
magister theologiae enquanto ia prosseguindo uma i ntensa
actividade literária. Em 1307 é enviado como professor para a
casa franciscana de estudos de Colónia (o seu confrade de exíl io
na Grã-Bretanha, Gonçalo Hispano, tinha entretanto sido eleito
M i n istro Geral dos Franciscanos) . Terminará os seu s dias,
ensinando no studium daquela cidade alemã, em 8 de Novembro
de 1308, pouco entrava na casa dos quarenta.

Em virtude dos 'raides' brutais à Biblioteca da Universidade


de Oxford, em 1535 e depois em 1550, com os quais Cromwel l
ordena a Richard Layton a destruição da obra de Duns Escoto,
estamos impossibi l i tados de vir a conhecer a totalidade da
produção escotista (6) . Isto é tanto mais relevante quanto cl<t.

(4)Cf. J. FAVIER - DI' Marco Polo 11 Cristtívâo C:olo111l'o 1251! 1/'J:'. tr:1tl.
Lisboa. 19 80. 25.
(5) cr. F F. LOPES - «AS doutrinas escotistas na cul tura c CSL'(llas d,· l'<ll\111'"1",
Revista Portuguesa de Filosofia, 23 ( 1 967), 239.

(")Relativamente à acção destruidora. vd. A. H. WOLTER- «< l"d's Kumvl,·dl'.l':


A study in Scotistic Mcthodology». in Via Senti Metlwdologico miiiit'/1/t'I/I ./oo/11/is
Duns Scoti . Roma. 1995. 177 -79.
.

li
preci samente no que diz respeito ao período oxoniano, se
prol ongou pelo menos até 1300. Consabidarnente também,
não tendo podido, devido a uma morte prematura, dar como
pronta para publicação a sua obra, João Escoto legou-nos tarefa,
provave l mente i n acabável, respeitante à confecção de u m
elenco seguro d a sua autêntica produção teórica C). Podemos
em qu a l qu er c a s o i nd i c ar c o m o g e n u í n o s os t í t u l o s
segui ntes (8) :
- Ordinatio, principal obra de Escoto, iniciada em Oxford
(de onde o seu outro nome Opus Oxoniense), mas continuada
em Pari s , a qual reproduz os comentári os (de Oxford, de
Cambridge e de Paris), revistos pelo autor, às Sentenças do
Lombarda (tendo ficado incompleta, deve-se aos discípulos a
sua conclu são) e);
- Lectura Prima, nome pelo qual se identificam as lições,

( 7) So l;Je as obras autênticas de Escoto, deve consultar-se a Introdução preparada


por C. B ALIC:- <<Disquisitio historico-critica» - para o primeiro volume da Edição
Vaticana, !950, 1 41 * - 1 54*
(' ) Poderiam igualmente apontar-se: um grupo de <<Questões» sobre o De Anima,
de Aristóteles (ed. Vives Ill, 475 - 64 1 ); e um outro sobre De Predicamentis (ibid. I,
437 - 538), D e Intei]Jretatione (ibid. I , 539 - 60 I ) e De logisticis elenchis (ibid. I I , I
- 80), de Aristóteles, bem como a l.wgoge, de Porfírio (ibid. I, 5 1 - 42 1 ), mas qualquer
juízo definitivo deve basear-se na edição crítica das mesmas. A. B . Wolter, reputado
especialista do pensar escotista, é autor de algumas antologias traduzidas de textos:
Duns Scotus. Ph ilosophical Writings, Edimburgo, 1962, trabalho já traduzido, com
anotações originais, para português, editado na colecção brasileira <<Os Pensadores»
( vd. «Bibl iografia>>): Duns Scorus on Will and Morality, W ashington O. C., 1986.
D aremos de segu ida, nas notas, a i nd icação das passagens trad u z idas para
português.
('') Estão publicados os primeiros sete volumes da Ordinatio, no quadro de edição
crítica dos «Opera Omnia» da comummente chamada <<edição Vaticana». Há tradução
portuguesa de Ord. I. p. I . qq. 1 -2 (= A existê ncia de Deus), de I, p. I, q. 3 (= A
unicidade de Deus), de I, d. 3, p. I , q. I (=O conhecimento natural do homem a
respeito de0eus) , de l, d. 3,p. l , q. 3 , nn l 37 - 14 0 e 14 5 - 1 5 1 (= Sobre a Metafísica),
de I. d. 3 . p. I, q. 4 ( = Sobre o conhecimento humano), de I , d. 8. q . 3 , nn 1 1 3 - 1 1 5
(= Sobre a Metafísica), de I, d. 39, q. I (= Sobre a Metafísica), de I V, d. 43, q. 2 (=A
espiritualidad e e i mortalidade da alma humana). Uma tradução francesa de duas
d istinções é a de O. Boulnois. citada na Bibliografia no final do volume; uma outra
-- d. 3. p. 3, qq. I -2 -é a de A. de M uralt, com introdução. in Philosophes médiévaux
t!es XIII" et XIV·· siec/es. obra dirigida por R. I mbach et M.-H. Méléard, Paris, 1 986,
1(17. 206.

12
também sobre as Sentenças, dadas em Oxford nos anos de 12<)(,
-1302 ( 1 °) ;
- Quaestiones Quodlibetales, títu l o de u m a dis puta
académica parisiense ( 1306 ou 1307), que habitualmente fú.ia
parte do regime académico ( 1 1 ) , e que se afigura como muito
i mportante para se conhecer o pensamento mais maduro do
autor C 2) ;
- Quaestiones subtilissimae super libros Metaphysicorwn
A ristotelis, um conjunto de problemas levantados a propósito
da Metafísica de Aristóteles, mas só os seus nove primeiros
l ivros parecem ser da autoria de Escoto C3);
- De Primo principio. a obra que aqui traduzimos , adi ante
explicada, e que foi «editada» por Tiago de Asco l i ( 1");
- Theoremata, títu lo ele uma grande i mportância teórica,
cuj a autoria escotista recebeu algumas reservas por parte de
E. Longpré C5) ;

( 10) Como sucede com a Ordinmio. também já foram criticamente editados


alguns volumes (quatro) da Leclur!t. Existe uma tradução castelhana parcial ela
primeira questão (L I . d. 11. p. I') no volume da versão elo 71-o!odo do Primeiro
Princípio, por F Allun ti s (vd. «Bibliografia>>).
( 11) Vd. a propósito a nossa <dntroc.luçãO>> in Henrique de Gond, Sobre a Melli
física do Ser no Tempo (Queslr!es Quodli/Jético.\· I. 718 · 9 e 10). Edição hilingu,·.
Versão do latim. introdu�cão e notas: Prcfácio c restabelecimento crítico do Jcxto
latino ele RaymoncJ Mackcn (Colecção Textos Filosóficos 41 ). Lisboa, Edi,·ill's 70.
1996. 12- 14: também R. C. SCHWINGES · «For maçã o dm Estud an te s c Vida I ·:sttl
dantil>>. in Uma história ... 2:11: 1\1. A. S. de CARVALHO· «Introdução.. . >>, 74 'J(,_
1 1�) A obra é acessível na chamacl. a edição Vives lXV ·XXVI I. n1:1s cx1stc 11111:1
'
edição castelhana bilingue. c uma edição inglesa: Juan Ouns !:'sco/o . i uo/1""''·'

cuodli/Jcwlcs. tracJ. com introd. c notas de F Allunti s. Madrid. I 'J(>�: ./"'"' I!""-'
Sco/us. God and Crea/ures. The Qrwdliberol Qu csrion s. tradllção. illtwdll\·an. <1nt:1'.
e glossário por F Alluntis & A. B. Wolter. Princeton. 1975.
(")A obra é-nos acessível cm rccentíssima edição de c; .1. FI /.1\< WN. //,,.
Fronciscon lnsrirure (Sl. Bonavcnturc Univcrsity, Nova lorqud. ll111 l'!'!jll<'lll',',llllll
extracto. cm versão portuguesa. do Prólogo. n. 5. 111 «Os [',·nsadm,·s ..
(")Sobre as vúrias ed ições c (ou) traduções da obra. vd. a tll>la i>li>li"!'l:ill< :1

( 15) Acessívd na cd. Vives (V, 2- 125); c L E. C I I I ,SON "I ,,.,, "'itc Jll<'lllll'l';
thcorcmata ct la penséc de Duns Scot», Archil'C.I' d 'h is r oi u· t!ocrrin,J!,· ,., lilll'l<lll<' t!u
Moven Age 12 · 1 3 (I 937 · 38), 5- 86; c /(}(lllnis /)uns Scori Of!<'l"ll! l111ni<1 I. l{nllla.
1950 . 154*
- Reportata Parisiensia, nome que identifica o conj unto
dos apontamentos recolhidos pelos seus alunos, também sobre
as Sentenças (16).
Como se vê, os discípulos de Escoto depressa se detiveram
a eliminar ou a completar as l acunas que julgavam encontrar
na o bra do mestre {'7) . Todo este trabalho foi acol h i do
acri ticamente nos doze volumes da edição de Lucas Wadding
(Leão, 1639), cujos erros e anomalias a reedição, em vinte e
seis volumes, de L. Vives, pub licitou (Paris, 189 1-95) . Hoje,
felizmente, começamos a dispor ( 1950-) da edição crítica das
suas obras (os Opera Omnia), o que, à medida que os volumes
vão sendo editados, nos vai dando alguma segurança quanto à
restituição de um texto de qualidade (18).

Em relação ao Tratado do Primeiro Princípio, que aqui


traduzimos, começámos por fal ar de João Escoto em termos
de «autor-mentor» . É chegada a hora de esclarecermos uma tal
afi rm ação . Como já dissemos que devido a uma morte
prematura o autor não pôde rever e concluir a sua obra, e dado
que também escrevemos terem os seus discípulos, em muitos
casos, tentado acabar essa tarefa, não se estranha também o
facto de o Tratado ter passado por um qualquer trabalho
editorial . Acontece porém que as circunstâncias que rodearam
a toilette editorial desta obra em particul ar foram um pouquinho
diferentes, como refere o Pe. C. Bal i é- cabouqueiro da
iniciativa dos Opera Omnia - ao apontar a assistência, em
vida, de um comp an heiro de João Duns (19) . Sem se tratar

(" ) Texto acessível na ed. Vives (XXII - XX I V ) . Tradução portuguesa do


'

Prólogo, q. 3, a. L in «Üs Pensadores».


(17) Cf . B. HEC H IC H- «II contributo deli a Com missione Scotista nella causa
e nello studio dei B. Giovanni Duns Scoto», in Via Scoti , 33-4 7.
. . .

(") Vd. a nossa «Bibliografia». no final do volume. Relat ivamente ao início


dos trabalhos da Comissão, tivemos entre nós informação: B. KOROSA K - « Edição
Crítica das Obras Completas do Venerável Servo de Deus Frei João de Duns». Revista
Portuguesa de Filosofia. 23 ( 1967), 28 1 - 292.

( ''') C . B ALIC - <<De critica textual i, S chol asticorum scriptis accomodata>>,


Antonianun1, 20 ( 1945), 289, 296.

14
exactamente de uma mesma situação, são conhecidos casos
afin s na época; Tomás de Aquino, por exemplo, dispunha de
uma equipa de «secretários».
No caso que agora nos diz respeito, deve ter-se tra tado,
como já referimos, de Tiago de Ascol i , com quem Duns Escoto
conviveu em Paris CZ0). O trabalho, em qualquer caso, não deve
ter sido difícil . Senão vej amos. Os capítulos terceiro c quarto
do Tratado seguem quase l iteralmente o texto da Ordinalio,
com a omissão da respectiva secção ontológica que passou,
adaptada, para os dois primeiros capítulos (que são, obviamente,
de temática mais ontológica do que de teol ogia natural ) ( 21 ) .
Como observa F. All untis, na esteira de Bal ié, todo o material
do Tratado segue e ntão o pri meiro l i vro da Ordinat io,
designadamente as questões primeira e terceira (qq. I e 3 ) da
primeira parte (p. l ) da distinção segunda (d. 2) do primeiro
l ivro (I) , bem como um pouco da primeira questão da primeira
parte da oitava distinção do l i vro um (abreviado : Ord. I, d. 8 ,
p. l , q. l ) . Nesta conformidade, Tiago d e Asco l i poderá ser
autor da adaptação do material da Ordinatio- adaptação aliás
infeliz, no dizer do responsável pela edição castelhana CZ2)- e
das orações que abrem, ligam e encerram a complexa temática
da obra. (Este é, no entanto, um problema ainda em aberto por­
quanto n ão está dilucidada a tradição manuscrita da obra CZ1).)
Em qualquer caso, se fosse hoje, o nome de Tiago de Ascol i
deveria figurar ao l ado do de Duns Escoto na página de rosto
do Tratado do Primeiro Princípio .

("') Cf. R . PRENT!CE - The basic quidditative metaphysics ofDuns Smt11s <11·
seen in h is "De Primo Principio". Roma, 1 9 70, 1 96-9 7.
(') Cf. F. ALLUNTIS - <<lntroduccióm>. 9 - 10.
el) F ALLUNTIS - «lntroducción», 12: <<Gran parte de la oscurid:HI <kl I!,·
Primo Principio deriva, con toda a probabil idad, dei asistente dei quL' Esculu '"' ,,nv1"
en la organización y redacción del l ibro. En su esfuerzo por con dcn s:u y :ti>H·vi:tt '"
que tomaba de la obra anterior, de la Ordinatio, a menudo horrú 11 ()JIItlttJ I" 'l'll'
considerá superfluo, incluso a veces leyó mal el texto original>>.
(" ) O leitor poderá ver uma situação concreta da dil'iL·ulda<k lt)'.:Hia :1 lt:td>1:1<>
manuscrita mais adiante. Não há sequer garantia de que as cuta·IIJsucs ,. "'lllttl"··
sejam do nosso autor.

15
Quanto ao conteúdo da obra, remetemos para o terceiro
parágrafo desta nótula.

2. BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO À METAFÍSICA DE


JOÃO DUNS ESCOTO (24)

Da leitura dos volumes da edição crítica salta à vista o


facto de Escoto dial ogar preferenci al mente com contem­
porâneos como Henrique de Gand U 1293 ) , Godofredo de
Fontaines (t 1 306 ou 1309) ou Egídio Romano (t 1316), em
vez de Tomás de Aquino (t 1274), e de o pensar genuíno e
definitivo do autor se ler na Ordinatio e não tanto nos seus
comentários às obras dos fi lósofos antigos. Julgamos que se
pode começar precisamente por aqui , ou sej a, por pôr em relevo
o facto i ndiscutível da actualizadíssima informação filosófica
de Escoto. Já por várias vezes pudemos constatar como Duns
Escoto reviu permanentemente o conhecimento que detinha,
por exemplo. da doutrina de Henrique de Gand. A seguirmos
l e i tura av ançada por Eti enne G i l s o n . i sto nada tem de
surpreendente : Escoto quer saber mais his toricamente dos
filósofos do que abstractamente das filosofias (5). Esta atitude
subj az a um esforço rigorosíssimo, o de conferir à fi losofi a um
novo h o r i z o n t e , u m hori zonte h i stóri co e e x i stenc i a l ,
naturalmente, que se apoia n a convicção de que a crítica da
fi losofi a pel a teol ogi a pode fazer com que a fi l osofi a se
tran sforme ou i nove. Al guma i nformação sobre o contexto
filosófico ao qual Escoto reage permite-nos entrar por este duplo
caminho.
Comecemos por anotar que no ano em que o bispo de Paris.
Estêvão Temp ier, promulga um célebre syllabus com uma

('")Como é natural. não se há-de ver nesta introdução qualquer desejo de


complctllllc; o nosso fito passa tão-só por dar as indicações ncccssürias (aliás reduzidas
ao mínimo aceitável no quadro da presente edição) que podem viabilizar a leitura do
li'alodo.

(' ') E. GlLSON- Jean Duns Scot. lntmduction à ses positionsfondmnentales.


l'aris. I '!52. 640.

16
i mpressionante lista de duzentos e dezanove «erros» cujo ensino
proibia na Uni versidade da sua cidade, i. c . , cm 1279, Duns
Escoto andaria talvez pelos seus 13 ou 14 anos, idade cm q ue,
como dissemos, seguramente j á se teria matriculado na escola
franci scana. Não seri a assim i mpossível que bem cedo lhe
tivessem chegado os ecos daquela intempestiva condcna<rão,
certamente logo comentada pelos seus professores. Sabemos,
por exemp l o , que um dos mestres de Escoto em O x ford ,
Gui lherme de Ware, conhecia de alguma maneira a obra de u m
notável professor d e Paris, o j á citado Henrique d e Gand, c dú­
-se até o caso de este ter feito parte da equipa encarregada do
inquérito promovido por Tempier.
Apesar de se tratar de um acontecimento no mínimo
inconveniente, o facto é que o bispo de Paris pretendia estancar
a disseminação de uma «Weltanschauung» cuj as principai s
l i nh as de força passavam pel a recuperação do pensamento de
Aristóteles. l ido à luz de sábios comentadores neoplatonizantes,
mormente muçul manos CZ6). O facto em si nada teri a de
problemático não fosse o caso de Aristóteles ter sido um fil ósofo
«pagão» e de Avicena e Averróis , em particular, ao tentarem
explicar a obra do Estagirita, forçarem tónicas incompatíveis
com a fé cristã. Um dos primeiros intelectuais franciscanos,
Boaventura U 1274), já ti nha dado o al amiré quanto ao modo
como se deveri a obliterar a penetração dessa cosmovi são, q u e
podia ameaçar a l iberdade do homem e o dogma da Criação
temporal (27).

(21') A edição mais acessível do syllabus, com respectivo comentário, é a d<· 1 < .
H!SSETTE - Enquêre sur les 219 arricles condomnh à Paris / e 7mars 1277.1 .ova i na
-Paris, 1977. Já traduzimos para português trinta e nove artigos do inq u <' r i t o I vtl
Boécio de Dácia. A ETernidade do Mundo, Lisboa, Ed. Colibri, 1996 ), e a nossa 11'.1 a
poderá ser ainda complementada pela tradução ele outros artigos por I .. A. I >I·: I I< >N I
- «As condenações de 1277: os limites do diálogo entre filosofia e a teologia••. 111 I > I :,
B O N I , Luís A. (org.) - Lrígica e Linguagem na Idade MMia, Porto Alegn,, I<)<))
(") Cf. J. C. GONÇALVES - <<S. Boaventura c a Universidade Mcdl<·vaJ ...
Revista Ponuguesa de Filosofia 30 (1974), 237- 255.Para Ulllt:studo sisl\'lll:ilwo
sobre B oaventura. vd., deste mesmo autor, Homem c Mundo c/11 Sao lloOI'<'Ilfllm,
Braga, 1 970.

17
Quer no comentário à obra do Lombarda quer nas suas
Collationes in Hexaemeron vemos que Frei B oaventura
c o n h e c i a bem o poder argu m e n tati v o das r a z õ e s de
Aristóteles (2�). Se Boaventura reconhecerá sempre que, n a sua
qualidade de fi lósofo natural, Ari stóteles podia ser desculpado
dos seus «erros», a verdade é que, de acordo com aquele, se
exigia que qualquer argumentação fil osófi ca sempre fosse
orientada em direcção à S abedori a. Em conformi dade, não
deveria haver a possibil i dade de a fi losofia escapar a uma
subordinação ela teologi a e9). Quer dizer, a fi losofia deverá
apontar constantemente para a teologia, ciência prática que
Boaven tura concebeu, já antes ele Duns Escoto, como uma
c o n te mp l ação ela « s ap i en t i a » , superior c o nj u g ação elos
elementos cognitivos, teoréticas e práticos que conterem ao
homem a possibili dade da vi são e ela união com Deus C0).
Notemos, de passagem, que este desejo não era totalmente
estranho à filosofia dita pagã.
Estamos total mente de acordo com G. Bougerol, quando
e s te n o s d i z q u e o p o n t o de p a r t i da da e s p ec u l aç ã o
bonaventurian a s e encontra na idei a d e Criação {'�), mas o
mesmo se pode di zer a respeito de João Escoto. Em ambos os
autores, embora de uma maneira diversa, está em causa uma
sensibil idade apurada para com o tempo histórico que, entre
outras condições, se extrai daquele dogma. Uma forma fáci l de
se detec tar e s s a s e n s i bil i dade p a s s a por assis t i r m o s à
i mportância da l i berdade, autêntico pivot elo pensar de Escoto .
Ora, dá-se o caso de acontecer que, para além de Aristóteles
desconhecer a ideia teológica de Criação, os fil ósofos de língua

(") G. F. VA N STEENBERGHEN · La philosoJ!hie m t XJII' siecle, Paris. 1966.


190-271.

("')De acordo com Boaventura. as ciências devem estar sempre subordinadas


ittcologia; cL o nosso Selo Boaventum. Reconducclo das Ciências à Teologia. Porto.
I '!96.
( "1) CL M. C. FREITAS - «0 ideal Bonavcnturiano da sabedoria cristã c a
l'liosol'ia". Didaskalia, 4 ( 1974). 278-282.
(11) CL .1. G . BOUGEROL - lnrroduction à /'érude de Saint Bonavcnturc.
Tournai. 1'!61. 229.

18
árabe citados ou se ligavam à sua teoria ela eternidade (caso dL·
Averróis) ou adaptavam-na à ideia de Criação, fazendo co111
que se perdesse o princípio ela l iberdade que eventualnll'll ll'
teria presidido ao gesto criador (caso de Avicena). Assim sendo.
quando João Duns Escoto começa a fi losofar, a situação men tal
com que s e depara é a de uma i n stal ada radi cal i dade ou
antagoni smo entre (e elevemos entender as palavras segu in tes
numa acepção técnica pessoal) «teólogos» e «filósofos» . Estes,
imbu ídos elo necessitarismo greco-árabe, desconhecem dois
princípi os fundamentais elo dogma, a 1 i bcrclacle e a tri ndaclc;
aqueles, recusam qualquer esquema que ignore que Deus se
comunica li vremente c que é causa l i vre de todos os existentes.
Digamos tão-só que o eco do antagonismo ainda se detecta no
Tratado .
Fi lósofo e teólogo ela l i berdade, Duns Escoto i rá, cm
consequência, traçar a via fundadora deste seu ponto de partida,
que um reputaclíssimo escotista, Paul Vignau x , nos apresenta
em páginas ele contida m as maturada profundidade: «( . . . ) como
só concebem uma processão necessária a partir elo Pri ncíp io.
os filósofos vêem apenas um regresso igualmente necessário.
O teólogo recusa este esquema: o seu Deus contacta l i vremente
com os seres que criou l ivremente. A beatitude que ele nos
promete surge como um dom: não podemos querê-l a como se
nos fosse devida. É certo que temos ele merecer a salvação .
m as os nossos méritos não são necessários e suficientes a nao
ser em consequência ele um decreto divino: o cristão não ati ngL·
o seu fim por uma consequência natura l , por um proc!'ssus
necessário. A sua li berdade vive à sombra ela l i herclaclc d i v i na.
En tre u m a e o u t r a , D u n s Es coto detecta u m a l i g;H,:;lo
fundamental: para provar, contra os fi lósofos, C]UL� Deu.'> L' I i v IL'.
a Opus oxoniense infere, a partir ela contingência L'Xi s ll'nk no
m undo - para a "sal var" -, uma "primeira colltingl.�l w i ;l" IHl
princípio elo mundo. Isso significa admi tir lJliL' no L'k ito L' n a
causa a conti ngência não se reduz a tun a priv;H;;ío, a llln;l llll'Ll
ausência ele ser, mas constitui uma real idade pos ii i v a, lllll/1/lil /lls
positivus; a indetermi nação pela plen i tude de llllla VOil latk.
humana ou di vi na. No próprio fundo do s er. IJ;í a l ).'. o l]liL' t'SC:lpa

19
à necessidade das naturezas, que a filosofia tanto aprecia: o
mundo torna-se l i vre para a h istória humano-divina narrada
pela Escritura e onde se i nsere a vida do cristão . Mas , para
Duns Escoto, não é só a l iberdade de Deus que possui um
carácter prático; o mesmo se passa com a Tri ndade. Para esse
franciscano, amar constitui o acto supremo. Ora, sem a fé
trini tária, o homem volta-se para a essênci a infin ita, que é o
bem supremo, como se ela subsistisse numa única pessoa,
quando na sua eternidade ela se transmite a três pessoas: o erro
da razão converte-se em erro do amor, que perde a sua v irtude,
dei xando de ser adequado ao seu objecto. C2)»
Não nos transviaríamos demasi adamente se dissessemos
que acabámos de ler, em comprometida e amadurecida síntese,
o arco completo do pensar escotista. De facto, e como pelo
nosso l ado também pudemos atestar, alhures , a insi stência com
que, a partir do diál ogo crítico estabe lecido com um seu
contemporâneo de Paris , o nosso franciscano escocês defende
o carácter conti ngente da operação da primeira causa (Deus),
confirma-nos a sua alta sensibilidade em relação ao problema
da l iberdade C3).
É certo que ao l erm os, apres sadamente, as primeiras
pági nas da Ordinatio, «um dos mai s belos textos especulativos
do O c i dente» C 4 ), pági nas respei tantes à d i s c u s s ão da

(12) P. VIGNAUX - A Filosofia na Idade Médio, trad. , Lisboa, 1 994, 1 49 .


A tradução é dl: Maria J . V. d e Figueiredo .
('1) Cf. M. S. de CARVALHO - <<Para a história da Possibil idade e da Liberdade.
João Duns Escoto. Guilherme de Ockham e Henrique de Gand>>,Itinemrium4 0 ( 1 994 ).
1 47 - 1 64: ID . - <<Thc Problem o f lhe Possible Eternity of lhe World according to
H e n ry of Ghcnl and h i s H i stor i ans>> , i n Henry of Gh ent. Proceeding.1· of' rhe
Internotionol Colloquium on rhe occosion of thc 700rh Armiversarr o( h is Dea th
( /293). organizado por W. Vanhamel ("Ancient and Medieval Philosophy. Series I .
Vol. 15"), Leuven, Leuven University Press. 1 996. 6 3 . 6 8 . Veja-se ainda: J . C .
GONÇALVES Human ismo Medieval. B raga, 1 97 1 . 62 - 64, e P. CELESTINO
-

SOLAGUREN - <<Contingencia y creaciôn en l a filosofía dl: Duns EscotO>>, in De


IJocrrino loonnis Duns Scoti. Roma. 1 968. I I . 297 - 348. Testemunhando a riljuíssima
presença da obra de Henrique de Gand na de Duns Escolo, veja-se entre nôs
B. KOROSAK - <<A Edição . . .>>, 29 1 .
I") P. V IGNAUX - A Filosofia . . 1 46.

20
possi b i l i dade da Teol ogia, não se p arece confirmar o que
acabámos de dizer. Contudo, a situação é bem diferente, porquL:
a pergunta, criteriológica, sobre a possibilidade ela Teologia s<Í
se j ustifica frente à dispensação de qualquer conteúdo revelado
por parte dos fi lósofos . Para estes , a razão, a razão somente,
chega para que a filosofia alcance o fim a que se destina, a
contemplação de Deus (Sabedoria), a beatitude (eudaimonia)
enfim . Ora, para os teól ogos, a razão, a razão autónoma,
entendamo-nos, é manifestamente insuficiente. Carece-se de
uma Revelação, no sentido l iteral da pal avra. Todavi a , e
prosseguindo um raciocínio outrora explorado por Agostinho
de Hipona (t 430), que a nova explosão de aristotelismo ajudava
até a consolidar, Duns Escoto apreciará vincar, pelo seu l ado, a
disparidade existente entre o desejo, natural, de atingir o fim e
os meios de que realmente o homem dispõe para o alcançar.
Por outras palavras : como se pode querer, de facto, ver Deus se
o fil ósofo é um homem com um espaço cognitivo confinado ao
que é natural e sensível ? A perspectiva da (im-)possibi lidade
de um homem defraudado na sua demanda existencial é algo
de i ncompatível com o pensar de Escoto .
Poder-se-á mostrar mais afini dade com a situ ação do
homem concreto histórico? C5) Decerto que Aristóteles teorizou
acerca da felicidade e dos fins do homem ( a teleologia), mas.
confinada, a sua teoria do conhecimento, ao espaço en tre a
sensibil idade e a abstracção (quidditas rei sensibilis), não podia,
em rigor, ir mai s l onge, e avançar com uma teoria da visiío elo
que está fora do vasto universo do sensível . Acontece por6m
que o mesmo Aristóteles havia aberto a possibilidade de unta
«meta-física» como estudo do «ser enquanto ser» . Aos ouv i dos
de um crente como fora Avicena, autor que na esteira imcdi:tla
d e H e n r i q u e de G a n d E s c o t o s o u b e m ed i t ar, a qtll·la
c a r a c t e r i z a ç ã o do o bj ecto d a metafís ic a so ava IH·tn

('5) CC. L. IAM MARRONE . «La teologia come scit·.n;a pra11c·a "'c'llll<lll <I.
Duns Sento. P rcmesc dottrinali c implicazioni csisiL'Ill.iali», Misc·dlclnc·u hwlc'I'S
C{l/1(/ l)3 ( JC)l))), 454 · 523.

21
distintamente C6): «ser» dizia legitimamente respeito a u m
domínio que u l trapassava sem sombra de dúvida a existênci a
fís i ca . P orém , s e, por u m l ad o , João Escoto v i a aqu i .
devidamente concreti zada, a maneira como a Revel ação
alargava, de facto, o horizonte do conhecimento humano, os
seus limites, a situação histórico-filosófica e a fé teológica em
que viveu não o aj udavam a acompanhar a descoberta de
Avicena sem restrições. E não seria só pelo facto de este, embora
pensando pela primeira vez a contingência, constranger
demasiadamente a liberdade. Estariam ainda em causa, também,
m a i s doi s i mportantes factores . Um diri a respeito, como
di ssemos, à destruição de um entendimento da história como
um espaço de liberdade; o outro, à l igação excessivamente
acrítica que alguns autores cristãos («teól ogos», na acepção
téc n i c a p e s s o a l q u e E s co to deu ao t e r m o ) fazi am do
peripatetismo. O seu apl auso- pensaria Escoto - i a ao ponto
de não os dei xar ver que a identificação entre «ser» e «Deus»
devi a levar à própri a superação da metafísica tal como a
entendiam na esteira da tradição fi l osófica.
Apliquemo-nos ao primeiro ponto: vimos os limites de uma
razão confinada à investigação em torno da essência do sensível ,
«deste ponto de vista, a intuição de um mero inteligível afastar­
-nos-ia da nossa natureza: não se diga ao homem aristotél ico
que desej a ver Deus [ta l como pela fé e pel a teo l og i a o
entendemos]. Para ele, seria desejar o i mpossível . É certo que
não possui nenhum meio para demonstrar essa i mpossibilidade,
mas também não possui nada que demonstre o contrário» . (17)
O que vem aqui fazer o cristi anismo? Naturalmente, não só
revelar aqu e l a possi b i l i dade, mas transmitir também uma
economia da salvação histórica, assim entendida: a natureza
humana é susceptível de vários estados- antes da queda de
Adão, o estado actual , e a perenidade após a ressurreição.
Apl i cando esta lei , temos que n ão serve p artir do estado

e"l Cf. E. GILSON - <<Avicenne et le point de départ de Duns Scot>>. Archives


r!Histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age. 2 ( 1927) , 89- 149

(17) P. VIGNAUX - A Filosofia . . . 147. Os itcílicos são do autor.

22
pós-queda em que nos encontramos (situação de limila<(ao ljlll'
parti l hamos com Ari stóteles) para a negação da reali z a<(ao d;1
nossa natureza que apetece o ser. «A reflexão não nos fa z tomar
posse da nossa natureza; sem uma palavra divina, enganamo
-nos acerca de nós mesmos, a não ser que não consintamos em
ignorar a nossa essência, em não a definir.» C8)
Se tivesse ficado só por aqui não havia razão nenhuma
para estarmos agora a ler, como fil ósofos, Duns Escoto. A ver­
dade é que - e passamos ass i m para o segundo ponto - o
nosso autor faz autêntico trabalho de fi lósofo não só quando
demonstra, a partir dos pressupostos de leitura acabados de
apresentar, que os «filósofos» se contradizem, como quando,
em consequência, explora, num rasgo de génio, a refundação
da própria metafísica. Não percamos de vista que o texto que
adiante se lerá pertence à metafísica. Relativamente ao primeiro
aspecto, resumiríamos a sua apresentação ainda com as palavras
de Vignaux : «Quando teima em nos encerrar na quidditas rei
sensihilis, o aristotél ico rigoroso esquece que ele próprio se
entrega à metafísica, ciência que se define pelo mesmo objecto
que o intelecto escoti sta: o ser indetermi nado, com aquel a
indeterminação que é a base da universali dade; neste caso, a
indetermi nação de uma noção que transcende o sensível tanto
quanto a filosofia primeira transcende a físi ca. A metafísica é
um facto: o filósofo que a pratica não pode negar que ela se
baseia na natureza humana, como lhe é demonstrado pe l o
teólogo.» C9) Que metafísica é esta que s e d i z ser um facto?
Pelo texto citado já o antevemos. Trata-se, no fundo, de Ullla
nova consideração do problema do ser a partir, designadamente,
da sua indetermi nação. Esclarecer este aspecto exige-nos vo l t;u·
a falar de Avicena. Dado que sempre o homem, no s eu r'.1tot!o
actual- «pro statu isto»-, começa a conhecer pelos Sl�llt i do s ,

i mporta que o intelect? extraia naturezas daq ueles dados.< lr;1,


na sua Lógica, Avicena havia concebido um t r i p l o JJ]()do dl'

ex) P. V IGNAUX -A Filosr!fia . . . 147.


(''') P. V IGNAUX - A Fifo.wfia . . . 147-4X.

23
perspectivar a essência. Antes da sua existência nos unissin­
gulares e no i ntelecto, de um modo universal, ela realizava-se
de uma forma absoluta (secundum quod ipsa est non relata ad
aliquod. . . esse). Seria, esta última, a n atureza no seu estado
puro, «natura tantum». Quer i sto dizer o segui nte: naturezas
como a do cavalo - a equ i n idade - não se confunde nem
com os cavalos que existem- Rocinante, v. g. - nem com a
noção geral ou universal que o nosso espírito l hes apl ica; em
conform i dade, antes do p l ano do s i ngul ar e do p l ano do
universal há um plano de i ndeterminação, descoberta avicénica
esta que Duns Escoto vai pôr ao serviço dos mais graves
problemas da fi l o sofi a . De entre essas várias apl icações ,
concentremo-nos , conforme anunciámos, na questão do objecto
da metafísica. Trata-se de uma das duas pedras de toque do
escotismo (a outra é a teoria da distinção ex natura rei) .
Conforme acabamos de verificar, havia que superar, de
algum modo, a antítese entre as duas perspectiv as no interior
do saber, a da fi losofi a e a da teologia. Poder-se-ia fazer essa
superação de uma maneira rigorosa? É convicção de Escoto
que a Metafí s i ca, entendida como ciênci a transcendental
(scientia transcendens), o faz. Primeiro, o seu objecto não
deverá ser confundível nem com o objecto da fi l osofia natural
nem com o objecto da teologia. Em segundo lugar, o estatuto
dessa ciência deverá ser cl aro e distinto. Ambas as condições
são preenchidas com uma teoria da univocidade do ser. «Chamo
unívoco - escreve Escoto- ao conceito que é de tal maneira
u n o , que a s u a u n i dade é sufi c iente p ara que s ej a u m a
contradição afirmá-l o e negá-lo d a mesma coisa . . . » ('w) Quer
dizer: um conceito será unívoco sempre que, ou quando, em si
mesmo signifique uma mesma coi sa qualquer que sej a o modo
como o aplicarmos41 . Digamos , de i mediato, que a teori a da
univocidade vem substituir (ou mel hor: refundar) o modelo
clássico em metafísica, o da teoria da analogia, desenvolvida,

(111) Cf. I . D. SCOTUS - Ord. I , d. 3. q. 2. a. 4, n. 5.


(11) C'L I . D. SCOTUS - Ord. I , d. 8. q. 3. n. 14.

24
por exemplo, embora diferentemente, por B oaventura, Tom;ís
de Aquino ou Henrique de Gand ( 42). A teoria escotista do ente,
pensado n a sua unidade conceptual , vem al terar substan­
c i almente a situação da filosofia, ao ponto de se ter podido
falar, a este propósi to, de um segundo n ascimento da meta­
física ('13).
É óbvio que, de acordo com a definição de Escoto que
acabamos de reproduzir, todos os conceitos podem ser unívocos,
m as concentremo-nos no conceito que aqui nos interessa, o de
ser. A sua univocidade apl ica-se a tudo aquilo que, de uma
maneira verdadeira, se possa chamar ser, ou seja, inteligível .
Ora, como tudo o que é i ntel igível o é porque i nclui o ser, então
a uni vocidade do concei to de ser é absoluta. É precisamente
este carácter abso luto que a disti ngue de todos os outros
conceitos unívocos . Traduza-se isto, no caso da univocidade
mais imediata (praedicatio in quid), com os exemplos seguintes :
«Um i ndivíduo (João) é ser», «uma espécie (homem) é ser» ,
«um género (animal) é ser»; em todos estes casos há algo de
comum que garante a inclusão da univocidade. Referimo-nos.
naturalmente, à entidade, primeira realidade comum a tudo o
que é ser (porque a essência de João, de homem e de animal, só
são inteligíveis se incluirem a entidade). Conclua-se então: «ser»
é um conceito absolutamente simples e indetermi nado que
expressa (e só) a realidade simplicíssima, a entidade (entitos) .

(42) Cf. B. MONTAGNES- La doc:trine de /'analogie de /'être d'apr<�.,. Saint


Thomas d'Aquin, Lovai na-Par i s , 1963. A destruição da analogia p arale l a ao
levantamento da univocidade foi recentemente estudada por O. BOULNOlS .l<'on
Duns Scot. Sur la connaissance de Dieu er l'univociré de l'élant (Onlinurio I
Disrinc rio n 8 - I cr partie; collario 23 ) . Introdução. tradução c nmcnl : irio pm < >
c

Boulnois. Paris. 19H8, 5-8 1 ; do mesmo autor. veja-se também «Ânalogic L'll 'rrnrvocir,·
selon Duns Scot: la double destructinn>>, Les Érude.1· Pllilosofilii'flll'.l', .1 ·I· (I ')K'J). p
347-369.
( "') C f. L. HONNEFELDER - «Der zwcitc A n l ang der Mt·t :rpltysik
'

Voraussctzungen. Ans�itze und Folgen der Wict.lcrbcgnindung tkr rvktapltysrk irn


1 3 ./14. J ahrhundert», in J. P. Beckmann i. a (cd ) - l'llilo.wt'hil· irn Mirtc'illlt<'l.
Enlwickhrngslinien rrnd Paradigmen. H amhurgo. 1 9X7. 165- 0(>; vd . larnht'rn lD.
'Ens inquantum en.1· ·. Der Begriff' de.1· Se ie n den ais solcll<'ll ais ( ;,•gensfond d<'l'
Mewph)•sik nach der Lehre des .folwnnes Dwr.1· Scotus, MLinslcr, 'llJXlJ.

25
Sendo i ndetermi nado, haverá conceitos que determi nam o
conceito de ser: as propriedades ou atributos transcendentais
do ser- uno, verdadeiro, bom e belo - e os transcendentais
disjuntivos como necessário/possível , i nfi nito/fi nito, i ncriado/
/criado, acto/potência, etc. Com alguns destes domínios nos
haveremos de encontrar na leitura do Tratado do Primeiro
Princípio. É preciso deixar bem claro qual o plano em que temos
vi ndo a falar do ser. Não se trata do plano físico dos existentes,
nem sequer dos planos lógico ou teológico. Estamos sempre
no interior da metafísica, p l ano no qual é a real idade essenci al
do ser que é o objecto. É nele que a obra adiante traduzida se
mantém.
Se bem atentarmos , esta nota i mplica que Duns Escoto
tenha uma concepção gnosiológica e uma concepção acerca
do real distinta da do aristotel ismo, e bem precisa no contexto
fi losófi co-histórico que é o seu ( 4 4) . Se é verdade que n a
companhi a do filósofo d a Macedónia Escoto também sustenta
que só o i ndivíduo exi ste (é aliás uma concepção em que o
século XIV é quase unânime, como testemunha o seu confrade
Guil herme de Ockham ) , se também é certo que, ainda n a
companhia d e Ari stóteles, u m a ciênci a (como a metafísica) só
pode sê-lo na medida em que o seu objecto é abstraído a partir
elo sensível, é claro que para Duns Escoto o que é real não
carece de existir. Digamo-lo numa outra formu l ação, posto que
n ão se trata ele voltar as costas ou de menoscabar o existente: a
contrastaria do real ultrapassa a consideração daquilo que existe,
após a sua exi stênci a; mercê ela sua fluidez, o rigor, no plano
dos entes, exige que se trate o real no nível da sua possibilidade
(metafísica). Se tudo o que existe é real nem tudo o que é real
existe aqui e agora, mas pode pelo menos vir a existir (é
possível) . Adiante voltaremos a i nsistir neste ponto. De onde,
se a física (que estuda a essência do que exi ste) tem lugar, ela
não esgota todas as ciências possíveis. A metafísica e o seu
objecto- a ciência do primeiro cognoscível , o ser- estuda

(1'1) CL A. MAURER - <<W i lliam of Ockham on Languagc and Rcality>>, in


,\'f'nl<'itc und ükennlnis im Mine/a/la. Berl i m-Nova Iorque. 1 9 8 1 . I I. 795-802.

26
1 1 1 11 tipo de essências que, embora radicando nas essências físic1s
;�hs!ractas, prescinde do físico por uma outra abstracção. Entim.
L'lll si, este tipo de realidade já não é física. Mas quererá isto
dizer que, digamos, essa «realidade» não é real? Poder-se-i<t
d i zê-lo se se estivesse l i m i tado à maneira de ver antiga,
fi sicalista. Segundo João Escoto tem todo o sentido dizer-se
que n as realidades físicas há realidades metafísicas, terçando
desta maneira as suas armas do lado daqueles que desde o Sofista
( 246 a.C . ) de Platão se opunham, em titânica batal ha, aos
gigantes . Se o entendimento capta essências físicas a partir da
sensação, a essência metafísica só é captada se o entendimento
se desdobrar sobre aquilo que i ntelege. Prosseguindo, portanto.
a nossa já conhecida lição avicénica da indiferença da essência,
E s c o t o d i rá q u e a e s s ê n c i a m e t a fí s i c a caracte r i z a - s e
preci samente pela indiferença o u neutralidade. Indiferente em
relação à física (em cujo p l ano ela se realiza existenci almente
como i ndividual ) e em relação :t l ógica (em cujo p l ano será
universal).
D i s semos que p ara além da teor i a da uni voci dade a
metafís ica escoti sta tem outra pedra de toque, a teoria da
distinção e x natura rei, i. e., a distinção pela natureza da própria
coi sa. Cabe-nos, para termi nar este parágrafo, dizer alguma
coisa mais sobre ela. Estamos, agora, em presença de uma teoria
metafísica que se liga directamente à gnosiol ogia ou teoria do
conhecimento conforme a conhecemos já. Também aqui se
detecta a influência de Henrique de Gand, que havia teorizado
sobre um tipo de distinção intermédio, i . e., médio ent re u m:1
distinção real (a que acontece entre dois indivíduos ) L � lllll:t
distinção conceptual ou virtual (vej a-se a diferença entrL' '\·stwLt
da m anhã" e "estrela da tarde" que designa um mesmo pLIIIL'I<i ) .

Qual a razão que justificava esta i nvenção, dig;ttnos ;�ssitn, lk


uma disti nção intermédia, menor que a real c tn:tior qttl' "
mental? Há várias, nomeadamente de ordem tcolúgiL"<I ( pm
exemp l o : como é possível fal ar-se de u m a plur;�li d :ték de
atributos divi nos se a realidade divina é d es p ro v id a de qu:�i sqttl'l
divi sões reais ?) , mas ficaremos aqui apenas co11 1 " ind ic<H.;ao
de qual nos parece ser o motivo fi losófico mais for!L': " admissao

27
de um dado isomorfismo entre a ordem conceptual e a ordem
da real idade j ustifica, primeiro, que um conceito possua uma
certa semel hança com aqu ilo que representa. Ora, esse conteúdo
inteligível é uma característica da coisa, e vários conteúdos
i ntel igíveis, jónnalmente disti ntos, portanto, embora sej am
defi níveis isoladamente não constituem , na coisa que exi ste,
uma pluralidade de coi sas. Seria um absurdo. Duns Escoto
defende, por isso, que se algo possui a capacidade de despertar
vários conceitos na alma, todos eles pertencendo a essa cois a
na medida e m que revelam parci almente a s u a natureza, então
essa distinção deve deter uma actualidade qualquer; esta última
é o que a linguagem técnica escotista chama «formali dades»,
aspecto inteligível de uma coisa que é inferior ao conteúdo
intel igível total dessa mesma coisa. Se l ate aqui a ideia segundo
a qual as propriedades de uma coisa não são acidentais (já a
sua exi stência, como vimos, é-o), esta teoria também se estende
ao âmbito da relação universal/i ndividual . Como é que as coisas,
universais em essência, se individualizam? De acordo com
Tomás de Aquino isso aconteceria graças à matéria del imitada,
i . e . , à s u b m i s s ão da m atéria às l i m i tações do espaço
eucl idiano e:;) . Para Escoto, semel hante resposta far i a da
individualização algo de exterior à coisa porque, segundo a
s u a maneira de ver, a m atéri a quantific ada disti ngue-se
realmente da forma. Em alternati va, o escotismo propõe-nos a
«estaidade» (haecceitas), neologismo- adi ante referir-nos­
-emos a este expediente tão caro à forma mental de Escoto ­
formado a partir do pronome demonstrativo «esta» (haec). Com
isto quer dizer-se o segu inte: a n atureza comum , o aspecto
objectivo pelo qual duas ou mai s coi sas se assemelham,
indiferente à si ngul arização ou à universalização, individualiza­
-se pela estaidade, uma formal idade que, sendo al heia à natureza
comum, só ela pode caracterizar aquilo que faz de um indivíduo
este indivíduo, indicando a sua única e irrepetível propriedade.

(") Vd. o nosso trabalho 1r!lnâs de Aquino. O Ente e a Essência. versão do


latirn c i n t rodução. P(1l"LO, 1 995. 2ll.

28
Seria o momento em que o escotismo regressaria ao indi vidual,
do qual porém não temos, p ro statu isto, i ntuição intelectual C'').

3. O TRATADO DO PRIMEIRO PRINCÍPIO DOS


SERES

O propósito do Tratado lê-se l ogo no primeiro parágrafo:


«Aj uda-me, Senhor, a i nvestigar o quanto pode chegar a
conhecer do ser verdadeiro, que tu és, a nossa razão natural ,
começando a partir do ser, que a t i mesmo atribuíste.» Ora,
antes de João Duns Escoto há toda uma l onga tradição que
busca provar a existência de Deus. Lembremos tão-só o caso
p ró x i m o m a i s s é r i o no fran c i s c an i s m o , a obra de S ã o
Boaventura, Itinerarium Mentis in De um ("n ) .
Mas dado que, e conforme di ssemos, o autor prefere
dialogar com os seus contemporâneos do que com a tradição,
ao tratar do tema na obra que traduzimos, Escoto inscreverá a
sua reflexão tendo como pano de fundo a reformul ação dessa
temática por parte de Henrique de Gand. Este havia tentado
sistematizar a grande variedade de provas que a tradição ti nha
levantado em dois grandes grupos (Su . a. 22, qq. 4 e 5): as
provas pel a causal idade e as provas pela eminência (4x). Em
princípio, c em linhas muito gerais, podemos dizer que estas
duas provas conj ugavam duas tradições, uma que se i nspi raria
no aristotelismo- a via da causalidade - e a outra na «escola»
francesa de São Victor e em Anselmo de Cantuária (século X I I ) .
Em rel ação a este quadro, aqu i traçado aliás de uma for m a
bastante i mpressiva, o que s e compreenderá, talvez possamos

(41') cr. C . B ÉRUB É - La connai.\',\'((llce d e l ' individnl'i ({(( Mll\ '1'11 Â,i:l', 1':1 1 i s .
1 964 .
(47) Vd. S. BOAVENTURA - Itinerário da Mente pam l>l'u.1·. i l l l n H i u\· :•"· 1 1 a
dução e notas por A. S. Pinheiro. Braga, ' 1 983.
( ") Vd . .J . G Ó MEZ CAFFARENA - Ser twrticitllldo ,. s c t · suf,.l'isrl·nrr· 1 · 1 1 lo
metafísica d e Enrique d e Ga11d, Roma. 1 95R. 2 1 5 sg. : I'. I'OR R< l l·.'n ri('(} rli Cwul
La via dei/e proposiúoni univer.l'(( / i, Bari. 1 990.

29
dizer que a contri buição de Duns Escoto, no que ao Tratado do
Primeiro Princípio diz respeito, se caracteriza por dar u m
rundamento aristotél ico, e portanto mais rigoroso, à segunda
l i nha da tradição que evocamos, remotamente pl atónica e
augustin i ana, além de simpl i fi car o processo pela v i a da
causali dade mediante a e l i m i nação de uma das formas da
causalidade, a exempl ar (40).
A argumentação escotista, «tal vez uma das mais elaboradas
e pormenorizadas provas da existência de Deus construídas
durante a Idade Média» C'\ foi , seguramente, revista pelo autor
ao longo de toda a sua (curta) viela, m as a versão elo Tratado
parece ter sido a última. De facto. não há entendimento, entre
os eruditos, no respeitante à data de composi ção da obra, mas
hoje em dia vem perclenclo força a opinião tradicional , que l he
clava uma factura tardia, e, em contrapartida, cresce a convicção
de que o Tratado se eleve contar entre as últimas obras, «senão
mesmo a última», de João Duns Escoto C 1 ) .

Em conformidade, podemos di zer que a versão que iremos


encontrar no Tratado é a última das pelo menos três formulações
que dele se conhecem dessa temáti ca: a Lectura e a Reportatio,
respectivamente do tempo de Oxford e de Paris, e a Ordinatio.
Se é verdade, pois, que «entre os grandes escol ásticos , tal vez
nenhum tenha dedicado mais atenção e carinho a desenvol ver
uma prova da existência ele Deus do que Escoto» C2) , a versão
derradeira do Tratado tem tanto ele i nteressante quanto de
tecnicismo ( l igado, este, a uma maior econom i a mental e a um
aumento de sistematização lógica). aspecto que a torna difícil
a uma leitura pouco demorada. Conforme observava A . Wal ter,
«quem procurar em Escoto uma prova feita à medida que o

c''') C f. A. B. W OLTER - 7/Jc Ph ilo.l'oJ!hiwl Theology of.lohn Duns Scolus. ecl.


rv1 . M e . Adams, I thaca - Londres. 1990. 5.
1 ;11) A. B. WOLTER - The Philosophiml Theology . . . 6.
1 ; 1 ) Cf. F. ALLUNTIS - <dntroduccilÍn>>, 12- 13 .
i ' ' l A. B. WOLTER - Th e Philosophicol Theology . . . 254.

30
l,·vc a di spensar qualquer especu lação fi l osófica pessoa l acne a
do lema da ex istência de Deus poderá ficar desapontado» co1n
o q ue vai l er a seguir ('.l) .
A argumentação de João Escoto, o seu itinerariwn 111en t is
in /)cum, des e n v o l ver-se-á em duas partes praticame n t e
d i stintas . U m a ocupa-se dos atributos rel ativos d o ser infi n i to
- eficiência, finalidade e perfeição emi nente; a segunda com
a propriedade absoluta que é a infi n idade. Dada a i nfin i dade de
Deu s , bas tará mostrar que só pode e x i s t i r um ser nessa
nm formidade. Cada secção coordenar-se-á através de uma série
de conclusões, devidamente encadeadas . De notar, ai nda, que
antes ela prova propriamente dita, o Tratado abre com uma parte,
com o seu quê de autonomia, dedicada ao estabelecimento das
seis ordens de carácter essen c i a l , orden s essas que, como
lembrám os, posteriormente reduzirá às três mencionadas,
c au s a l i dade efi ciente, causali dade fi n al e a da eminência.
Rel ati v amente a estas. o seu argumento desenvol ve-se na
afirmação de uma natureza (sublinhe-se esta nuancc), que é
primeira em eficiênc ia. que é última em final idade e que é
primeira em eminência. Passa-se, de seguida, a mostrar que
não se trata de três , mas de uma só n atureza com três primazi as.
Dado ser simples e perfeita também é dotada ele i ntel i gência c
de vontade. É este ponto que l he permitirá concluir que é i n finita
c única.
Pormenorizando um pouco mais, considere-se a apl icação
bas i l ar da especificidade elo procedimento escotista, cuja mel hor
v i a ele acesso, no Trotado, pode ser o princípio do terce i ro
capítul o . De facto, vemos aí apl icada ( � 24, 25). a propósito ( k
nos ser mostrado que exi ste uma n atureza abso l u t a n l L' I l l l'
primeira, a distinçüo fónna1 entre uni dade quiditati v a c u n i d ; l ( k
numérica. Dado que a simples unidade numéri ca c ;1 .\ i i i i J l l '·s
unidade lógica não são suficientes para explicar a rl' l a <; ; 1 o l'l l t n·
o real que existe (como unissingu l ar) e o uni vcrsal lúgico ( c u j ; 1
unidade é apenas a da consciência cogniti va), é nL n -;s ;i r i o t l l l t · ·.

( ") A. B . WOLTER - Th e Philnsopl!ical 1'/Jco/og\' . . :>S · I S 'i .

�I
outro tipo de u n i dade - a j á n o s s a conhec i d a u n i dade
quiditativa ou de natureza -, que é real sem se identifi car,
porém, com a unidade numérica, também real . A chave está no
uso do termo «natura» , natureza, realidade i ntermediária entre
a unidade física e a general idade l ógica. Como entendê-l a?
Como u m domínio que se caracteriza simul taneamente pel a
realidade e pel a possibilidade. Não é um possível l ógico (este
é um m odo de composição do intelecto em que os termos
respectivos não são contraditórios), é, outrossim, um possível
rea l ( a l go que i mp l i c a a i n erên c i a da potên c i a a u m a
real idade) C4) . Podemos esclarecer i sto mediante recurso aos
neologismos que Escoto util iza no parágrafo aludido a fim de
dar conta deste novo grau de real idade, que é a própria marca
da sua fil osofia: podemos o lhar para algo sob o ponto de v ista
da sua causa eficiente, e dizermos que esse algo foi efectuado;
j á se o considerarmos sob o ponto de vista do possível-real
devemos dizê-lo «efectível» (este raciocínio repetir-se-á para
as outras causas : «finível», «formável » , «materiável»; ass i m
como para u m a consideração dos efei tos C5)). É fáci l perceber
que não se está só a criar neologismos pela paixão de i nventar.
É necessária uma l i nguagem nova para traduzir uma nova
realidade. Ou , se se qui ser, uma maneira nova de se entender a
realidade. Com efeito, dizer (§ 25) «alguma natureza é efectível»
é dizer algo de abstracto m as não de irreal , pois uma natureza
efectível não é meramente u m ente de razão, m a s u m a
construção dialéctica e abstracta baseada na experiência das
relações de causalidade entre seres de facto existentes e bem
concretos. Escoto acabou de encontrar o seu terreno dilecto a
meio caminho entre o actual real e o possível lógico, e isto
graças ao expediente da disti nção formal . Por aqui se vê como
o Doutor Subtil faz uma leitura pessoalíssim a de Avi cena. Se,
para este, como vimos, a exi stência sobrevinha à essência à

('·') CL J. D. ESCOTO - Ordinalio I, d. 2. p. 2. q. I - 4.


(11) Vd. o nosso <<Glossário Lati no-Português» c. mais adiante. � 4. <<Traduzir
I '.S L'(l[(l>>.

32
maneira de u m acidente, em Escoto a essência, dado que se
n ão di stingue realmente da existência, é esta vi sta na s u a
possibil idade real . A existência, p o r seu lado, é a essência
modal izada CS6). Insistamos na mais-valia entretanto acumulada
( § 4) : todo o efeito existi ndo necessari amente, desde que
considerado sob o prisma da sua essência passa a ser tão-só
possível . É impossível escamotear a importância desta aquisição
para pensar a diferença teológica: substitu i-se a composição
essência/existência (como acontecia em São Tomás C7 )) pel a
distância infinito/finito ( § 86).
Antes de passarmos à secção respeitante às várias provas
rel ativas ao «Primeiro princípio» (§ 24 e sg.), gostaríamos ainda
de destacar devidamente o método uti l izado pelo nosso autor.
Já noutro lugar pudemos anotar algo acerca da epi stemologia
medieval C8) . O ponto, para Duns Escoto, é o de que, no nosso
estado actua l , uma prova científica não podendo embora
cumprir o i deal de um conhecimento pelas causas ( § 72) pode
trabalhar sobre os efeitos sem perder a sua cientificidade. Em
conformidade, deve começar por atentar-se na importância de
todo o segundo capítulo do Tratado, que nos fornece a gramática
de uma metafísica da causali dade sobre a qual assenta um dos
pilares de um ideal de cientificidade que parta dos efeitos e daí
possa concluir a existência do Primeiro Pri ncípio; desta feita, a
ordem essencial tem o estatuto de u m transcendental disjuntivo,
propriedade transcategorial tanto reveladora da conexão real
quanto j u s tifi cadora de u m a c ientifi c i d ade baseada n a
possibilidade (§ 26, § 8). Enquanto as conclusões que partem
da actualidade, não obstante a sua evidênci a, são conti ngentes,
as que assentam na possibilidade são necessárias (§ 26) .

{-'6) Cf. J. C. GONÇALVES - «La contingence de la nature cl la d i s t i n d l O I I


d' essence ct d 'existence chez Duns Scot», Separata da Re vista da Faculdodc dt· I .t·trtl.l'
(Lisboa) lli série, 8 ( 1964 ), 3- I O.
(-'7) Cf. M. S . de CARVALHO - Tonuís deAquino. O Ente e a Esshwi11 . . . . 4•1 ·l"i
(-'' ) Vd. Sâo Boaventura - Recondu�·âo das Ciência.\· à 1(•olo!iill. Tradu\·:w c
Posfácio, Porto, 1996, 3 7. 44 n . ; M . S. de CARVALHO - «Para um outm n H H ido d,·
I nvestigação das Relações entre razão e fé no século X I I I » . ltincmriw11 t[ I ( l 'J'J'i ) .
26 - 2 7, 3 1 - 33 .

33
Num universo dominado por unissingulares e balizado pela
gnosiol ogia da intuição, a afirmação anterior impl ica o seguinte,
se aplicada à demonstração da existência do Primeiro Princípio:
pode-se passar da experiência intuitiva para a abstracção da
existência, mas não chegar à existência a partir da mera anál ise
do conteúdo abstractivo. A temática do Tratado i nsere-se de
facto na celebérrima problemática aberta no sécul o XII por
Anselmo de Cantuária, embora o faça - há que dizê-lo - de
modo assaz crítico. Aquele abade de Ou Bec tinha s ido autor
de uma obra, o Proslógion, cujo conteúdo por si só faz célebre
qualquer pensador: provar a existência de Deus através de um
argumento, que se quer i rrefu tável , dentro das exigênc i as
dialécticas de uma demonstração estrita C9) . Ora, Duns Escoto,
l evando a sério a imposição metodológica de Aristóteles, nos
Segundos Analíticos - segundo a qual um argumento conclui
cientificamente ( ou necess ari amente) des de que parta de
prem i s s as necessárias (e não conti ngentes) -, pretenderá
«matizar» (colorare) o argumento anselmiano (§ 79). Mas o
matiz alegadamente aduzido, que antecipa celebérrima objecção
kantiana ao notável ' argumento ontológico ' , deve ser visto
como uma autêntica superação da ratio Anselm i graças à
adopção de um quadro metafísico em que Santo Anselmo
decerto se não reconheceri a.
Já se disse h aver uma primeira via que se prende à «ex is­
tência» do primeiro ser (§§ 24 - 48) e uma segunda (§§ 55 - 93),
rel ati va à sua infinidade (60) . É esta última que nos traz até ao
ser primeiro no plano mai s perfeito a que o homem pode ter

(5'') Veja-se uma versão portuguesa, da responsab i l idade de Antcínio Soares


PIN HEIRO. in Opúsculos Selectos de Filosofia Medieval. Braga. 19�4. Para u m
esclarecimento c contex tualização d o problema poderá ver-se um dos vários títulos
de M" L . XAV IER - «0 Argumento Ontolcígico. Kant e Santo Anselmo>>, in Religiüo,
História e Razüo da A ufklârung oo Romantismo. Colóquio Comemorativo dos 200
w1os de "A Relig iüo nos limites da Razrlo ". de I. Kant, Lisboa. 1 994, 1 07- 1 23 ;
« A prova anselmiana segundo Karl Barth». Phi/osophim 5 ( 1 995).I 03- 1 2 1 .
(''0) Para uma interpretação. em português. de uma secção desta última prova. vd.
R . PRENTICE - <<A prova de Escoto para a infinidade da Natureza Primeira tirada da
1 n l"i nidadt: dos inteligíveiS>>. Revista Porruguesa de Filosofia 23 ( 1 967 ), 26 1 - 280.

34
. ll 'L·.� so, o de ser infinito. Contrastado com o universo filosúl'ico
i ll ' I L'� tlico, o que era concei to desprezível (e negativo, por cL�rlo
L 1 1 11 hém em Escoto) devém posi ti vidade e riqueza ontológica
1 � 7 8 ) . No i n teri m , o nosso autor, parti ndo do dado da
t ' I L·ctibilidade C* 25) e do seu conelato, a «efectividade» C* 25 ) .
; 1 k ança primeiro a 'existênci a ' actuaL isto é, u m «efectivo»
; d Jsolutamente pri meiro que exista em acto C* 3 3 ) . Depois
( ksenvol verá uma demonstração dialéctica n a qual se devem
t· videnciar três vias l i gadas ao entendimento (intellectus) -
respectivamente § * 68 - 69, 70 - 74 e 7 5 - 76 - ; uma quarta,
\obre a simplicidade da essência (§ 77); às quai s se seguem a
via da eminência (§ 78 - 79), a da finalidade (§ 80) , e a da
l·l'iciênci a (§ 8 1 - 87).
É patente o tom rel i gioso do texto, u n indo todo este
i mpressionante caudal especulativo. Se ele é, obvi amente,
verdadeiro (no que acompanha Anselmo e Boaventura), i mporta
porém reter, no que à fil osofia diz respeito, que aqu i se assinala
uma nova visão do rea l . É uma dimensão que ultrapassa a
teologia filosófi ca embora nela radique. Referi mo-nos às
es truturas que ora consol i dam ora proj ectam o di n âm ico
irinerariwn do nosso autor. Vale a pena assinal ar tão-somente
um tal facto .
Por exemplo, a importância da ordem essencial (§ § 2, 3 ,
� . 9 - 2 3 ) . Gonzo de todo o processo demon strativo (haj a em
vi sta o seu estatuto transcategorial), aquela ordem determ ina a
possibilidade de todas as conexões reais . Atente-se, porém, que,
c ao contrário do que apressadamente se seria tentado a crer
( p ara u m l e i to r aten to i s to j á deva estar adqu i r i d o ) , a
compreensão da tessitura das essências não s ignifica nenhuma
opção por um procedimento demonstrativo de carácter ' a priori · .
Aqu i , deverá ter-se sempre presente que s e é verdade, t a m hé m
para Escoto, que o verdadeiro conhecimento é o das causas
(§ 72), o acesso à causa s ó é viável com base n o e f e i to. Or; l , ; 1
ordem essencial permite a compreensão rigorosa ( * 2CJ) dt· s t a
l igação ao ser como que condição transcendental de t u do o quL�
sucede ou pode suceder.
Das três formas de causalidade extrínseca estudadas. a da

35
eficiência deveria ter, tanto para nós como para Escoto, um
lugar à parte. Ela explicita a fecundidade da adopção do ponto
de vi sta da ordem essencial . Sem podermos seguir aqui 'pari
passu' o itinerário do autor, contentemo-nos em sublinhar o
p ap e l d a p r o v a p e l o c o n t i n g e n te ( § 2 5 ) a s s e n t e n a
impossibilidade de remontar infinitamente n a ordem das causas
(§ 27 - 3 I ) . É que a recusa das causas essencialmente ordenadas
(e depois das acidentais), em nome da sua ininteligibilidade,
exprime bem como a lógica é claramente o critério não do que
deve ser, m as do que é; quer dizer: não é a lógica que i mpõe as
suas leis ao real , é este que só é unicamente aceite (ao n ível
quiditativo, como é óbvio) na e pela sua inteligibi l i dade. Se se
opta assim pelo pl ano da «natura» ( § 24) e não, como também
Escoto se exprime, pelo da actualidade (§ 26), é i ndi scutível o
alto apreço que Escoto nutre pel a l iberdade. Já acima nos
referi mos a este aspecto. Por agora poder-se-i a, por exemplo,
atentar como i s so acontece no i nterior do tratamento da
eficiência tendo como horizonte o dado teológico da l iberdade
inerente à intervenção do Primeiro (eficiente), única fonte da
c o n t i n g ê nc i a rad i c a l do u n i vers o . I m p u n h a - s e , e m
consequênci a, ultrapassar a tese peripatética da eternidade do
mundo - de onde o processo de revisão ( colorare) a que Escoto
submete, ao jeito dialógico escolar de então, a fís i ca de
Aristóteles relati va à infinitude do movimento do primeiro ser
( § 8 1 - 87) - e o esbul ho de q u a i s quer resquíc i o s de
necessitarismo no mundo criado. A idei a aqui será, em suma, a
seguinte: tudo aquilo que o Primeiro quer pela sua vontade, se
disser respeito à sua própria natureza é querido necessariamente,
mas se não lhe disser respeito j á o será contingentemente.
Semelhante problemática compatibilização da necessidade com
a vontade foi , no tempo, um grito mais pela revalorização da
conti ngência. Na sua produtiv idade histórica, porém, e l a
prenuncia o nascimento d o que se convencionou chamar a
racionalidade moderna. Como escreveu Amos Funkenstei n, a
propósito do estilo teológico da ciência no século XVII, «Deus ,
que na Idade Média era a fonte de toda a contingência, torna-se
a fonte de toda a racionalidade ( . . . ) o garante metodol ógico da

36
1 < H np l eta i ntel i g i b i l i dade da n atureza ( . . . ) . Lei bniz t i n h a
l l l"n.:ssi dade d o princípio d e razão suficiente para provar a
< · .x i stência de Deu s ; ora, a validade deste princípio, e com ele a
1 Li multipl icidade dos princípios que garantem a inteligibilidade

1 Li natureza, repousa na decisão di vi na. Não parece haver aí

< l t i t ro problema senão o de banir Deus e dei x ar que a razão se


nlllsidere a si mesma como suficiente. Ninguém antes de Humc
1 ria ousar dizê-lo, e ninguém antes de Kant iria tentar mostrar
t " ( J I11 0 é que isso podia ser feito» e1).

4. TRADUZIR ESCOTO

Apes ar d a n o s s a exper i ê n c i a de tradutor de te xtos


li losóficos médio-lati nos , devemos confess ar que a tarefa aqui
realizada surpreendeu-nos pela sua dificuldade. O raciocíni o
L· l íptico do autor, a abundânci a d o recurso à zeugma, e o
tecnicismo da terminologia que emprega, levanta dificuldades
i mpressionantes de que aqui não poderíamos dar conta. O
parágrafo I 9 é o primeiro particularmente característico do alto
nível elíptico e abstractivo de Duns Escoto. Devemos em
alternativa, isso sim, expl icar algumas das pri ncipais opções
tomadas na versão, isto para além de remetermos para a secção
ri n a l que ti vemos a preocupação de i nventariar, intitu l ada
«Glossário Latino-Português».
A primeira diz respeito à forma como traduzimos os opostos
(ou sej a o c au s ado, posteri or à causa, que é anterior) da
quádrup l a c au s a l i dade (§ 7 ) «fi n i d o » , «efectu ado » ,
-

«materiado» e «formado» - vocábulos que s e assumem como


neologismos ora ao nível do seu emprego (é o caso de «finidm> )
ora ao n ível do seu sentido ( o caso dos outros três mais o
primeiro). O facto de os registarmos sempre entre aspas preten d e
chamar a atenção para o j á nosso conhecido pa r tic ula r i s m o d a
fi l osofia escotista; assim:

( '" ) A. FU N KENSTE I N , Théo/ogie e t iiiWfiÍIIIIIÍon scien tifitjlfl". /)u Mnren Age


mt XVII" siecle, trad. do ingl., Paris. 1 995, 229.

37
(a) o «finido» é o correspondente, no plano da causa final ,
ao que está ordenado para um fim (ordinatum ad finem) , o
finalizado portanto;
(b) à causa efi ciente corresponde o «efectuado» ou ejecto
(e.ffe ctwn);
(c) à causa material corresponde-lhe o causado a partir de
u m a m atéri a (causatum ex mate ria) , o « m ateri ado» o u
materializado (materiatum) ;
(d) por últi mo, à causa formal corresponde o causado por
u m a for m a (pe r formam), o «formado» o u formalizado
(jormatum) .
Ainda dentro da nova semântica do vasto universo da
efi c i ê n c i a i mporta atentar n o n e o l o g i s m o «effecti v a » ,
contraposto a «effecti b i l i s » ; n o l é x i c o escoti s ta, o que
traduzimos l i teralmente por «efectiva» não tem o sentido que
comummente lhe damos, e assim <<al i qua est effectibilis, ergo
aliqu a effectiva» (� 25) significa: alguma natureza pode ser
feita - é efectível -, logo, alguma natureza eficiente é possível
- «efecti va» . Por outras palavras : efectivo denota um ser capaz
de produzir um efeito, enquanto efectível é o que é susceptível
de ser produzido por um tal efectivo.
Como já se sabe, o autor não teme os neologismos. Vej a­
-se, por exemplo, o vocábu l o causação (� 1 7) ou também
causativo (§ 32) e causante (§ 59), os quais, por muito que
custe aos p u ri stas , não hesitámos também em empregar.
O mesmo sucedeu com causado (§ 37), na acepção de efeito,
que todavia usámos a maior parte das vezes ; e o mesmo também
c o mfinitivo (§ 3 8), que diz o que é capaz de causar como fim
ou de ordenar alguma coisa a si enquanto fim . De igual modo,
«factivo» e «activo» (§ 6 1 ) têm o sentido respectivamente de
capaz de fazer e capaz de agir. Entre Heidegger e Wittgenstein ,
sabemos hoje que o neologismo em fi losofi a prende-se à
necessidade ele um outro fi l osofar.
Obviamente que, pelas razões já aludidas, tivemos muitas
vezes ele desdobrar os termos eli didos e explicitar zeugmas por
forma a tornar m ai s cl aras as orações. D i ferentemente elo
procedimento mais comum, não cremos ser necessária a

38
' ' l i lização de parêntesis rectos para sinali zar um tal procc­
d i l l lcnto. É que uma tradução deve dizer em l inguagem aqu i l o
q t t c o original diria caso fosse hoje escrito pelo autor n o nosso
1 d ioma; isto, como seria natural, sem trairmos a nova termi ­
' '' dogia fil osófica (nos séculos XIII e XIV) e o seu rigor. Ligado
; 1 q u i l o , está também u m acrésc i mo na periodização s intáctica,
d ; 1 nossa responsab i lidade. Consequentemente, nem sempre
\l'guimos a pontuação avançada pelo editor. Final mente, e por
1 azões fi losóficas ó b v i a s , não cui dámos em empregar as
1 11 aiúscul as para designar o Primeiro Princípio.

Janeiro de 1 997
M. S. de C.

39
,,.
TRATADO DO

PRIMEIRO PRINCIPIO
I I

. i
CAPÍTULO I

1. Concede-me, primeiro princípio dos seres, que eu creia, saiba


e profira aquil o que agrada à tua m aj estade e eleva as nossas
mentes à tua contempl ação.
Deus Nosso Senhor, ao teu servo Moisés, quando ele se
informava do teu nome junto de ti, veríss i mo doutor, para o
apresentar aos filhos de Israel, sabendo o que a i nteligênci a
dos mortais pode conceber acerca de t i , respondeste, dando a
conhecer o teu nome bendito: «Eu sou aquele que sou» 1 1 1 •
Tu és o ser verdadeiro, tu és o ser todo. Se tal me fosse
possíve l , era i s to em que acredito que eu queria s aber. Aj uda­
- me, Senhor, a investigar o quanto pode chegar a conhecer do
ser verdadeiro, que tu és, a nossa razão n atural , começando a
partir do ser, que a ti mesmo atribuíste.

2. Embora sej am muitos os atributos transcendentais do ser,


por cuj a consideração, para o nosso propósito, valeria a pe n a
avançar, começarei contudo pela ordem essencial , procedinll' J l l < )
que me parece mais fecundo. Neste primeiro capítul o ap rL' SL' I l l o
quatro ordens, com a s quais s e abrange o número d a s onk n.-.;
essenciai s .
Qualquer divi s ão tem d e pôr e m evidência o Sl')'. l l i l l l l ' :
primeiro, deve dar-se a conhecer aqu i l o q u e sL� d i v i 1 k , d t ·

C! l�wdo 3. 1 4.

43
maneira a que se mostre o que está contido numa tal divisão;
segundo, deve afirmar-se que o que se dividiu se exclui
mutuamente; e, em terceiro l ugar, deve provar-se que o que foi
dividido não comporta divisões .
Neste capítul o trata-se do primeiro ponto, no segundo
capítulo dos outros dois . Em conformidade, exporei as divisões
e darei a razão do que for dividido.

3. Não é numa acepção estrita que tomo «ordem essencial»


- tal como o fazem os que afirmam que o posterior pertence à
ordem, mas que o anterior ou o primeiro está para além del a ­
é antes n a sua acepção comum, como quando se considera a
relação de mútua comparação do anterior com o posterior e
vice-versa, i sto é, quando o que se ordena está suficientemente
dividido em anterior e posterior. Assim sendo, trataremos umas
v e z e s da ordem o u tras vezes da anteri or i dade ou d a
posterioridade.

4. PRIMEIRA DIVISÃO. Sustento, em pri meiro lugar, que a


ordem essencial parece dividir-se, numa divisão prioritária,
como um termo equívoco nos seus equivocados, em ordem de
eminência e ordem de dependênci a.
No primeiro modo, o da eminência, diz-se que o anterior é
emi nente e que o posteri or é excedido. D i gam o - l o numa
formulação mais breve: aquilo que em essência é mais perfeito
e mais nobre é anterior, segundo esta acepção. É por este modo
de prioridade que Aristóteles prova a anterioridade do acto sobre
a potência, no nono l i vro da Metafisica, onde l h e chama
anterioridade «segundo a su bstânci a» e a espécie (2). «Aquilo
que é posterior na geração - diz ele - é anterior em espécie e
substância.»
No segundo modo, o da ordem de dependência, diz-se que
é anterior aquilo de que alguma coisa depende e posterior aquilo
que depende. Aristóteles trata deste modo de prioridade no

(') ARISTÓTELES Metaphysica IX 8 ( I 0 5 0 a I -5).


-

44
q u i n to l i vro da Metafísica, ao exp l i car os argu mentos de
! 'l atão C). Jul go que o seu raciocínio se expl ica da segu i n ll'
1 n aneira: o anterior segundo a natureza e a essência é o q u e
pode exi stir sem o posterior, mas n ã o o contrário. E entendo­
o assim: ainda que o anterior cause de uma maneira necessária
o posterior e não possa existir sem ele, i sto não quer dizer
que necessite do posterior para o seu próprio existi r, mas s i m
o contrário. É que ainda que se suponha que não existe o pos­
terior, o anterior existirá sem incluir contradição. O contrário
não acontece, porém, uma vez que o posterior necessita do
a n teri or. P o de m o s d e s i g n ar uma tal i n d i g ê n c i a c o m o
dependência, d e maneira a que se d i g a que tudo o que é
posterior em essência depende necess ari amente do anterior,
mas não o contrário (mesmo se às vezes o posterior se segue
necessariamente). Esta prioridade e posterioridade, bem como
as outras de que fal ámos, podem des i g nar- se s egu ndo a
substân c i a e a espéc i e ; também se p odem ch amar, para
fal armos com precisão, pri oridade e posteriori dade segundo
a dependência.

S. SEGUNDA DIVISÃO. Deixando por dividir a ordem de


eminência, passo a subdividir a ordem de dependência. Ou o
que depende é causado e aquilo de que depende é a sua causa;
ou o que depende é remotamente causado por uma causa, e
aquilo de que depende é causado por essa mesma causa de modo
próximo. O sentido do primeiro membro desta subdivisão (4)
é suficientemente claro, bem como o facto de ele se encontrar
contido no que se está a dividir. Com efeito, é evidente o que é
ser cau s a e o que é ser causado, e que o causado depende
essencialmente da causa e que a causa é aqu i l o de que depende,
de acordo com o raciocínio atrás apresentado acerca da divi são
da anterioridade.

(') ARISTÓTELES · Mewphysica V I I ( 1 O 19 a I -4).


(') «Ü que d epende é causado e aq u i lo de que depende é a sua causa>>.
Cap. I , � 5 .

45
Mas o segundo membro desta segunda divisão (5) nem é
evidente em si nem no modo como se encontra contido no que
se está a di vi di r.
A pri meira dificuldade esclarece-se assim: se uma mesma
causa tem dois efeitos, um dos quais é primeira e imediatamente
causado por ela e o outro só depois deste efeito imediato ter
sido já causado, em relação a essa mesma causa, este segundo
é posterior e é imediato ao que foi causado antes . Este é o sentido
do segundo membro da divi são.
A partir daqu i provo, em segundo l ugar, o que está contido
na d i v i s ão, quer di zer, que o efeito mais remoto depende
essencial mente do efeito mais próximo:
- quer porque não pode existir se não existir o efeito mais
próximo;
- qu er porque a causal i dade da causa rel ac i o n a-se
ordenadamente com ambos os efeitos ; por consegu inte . . . C'); e
i nversamente: estes efeitos correl acionam-se numa ordem
essencial quando comparados a um terceiro, que é causa de
ambos, e, por conseguinte, numa ordem essencial absoluta entre
eles .
- Quer, em terceiro l ugar, porque em si mesma a causa
não se entende senão como causa próxima do efeito próximo e
se este efeito não for causado, como causa remota dos restantes
efeitos. Porém, com o efeito já causado, ela é entendida como
causa próxima do efei to segundo. Mas de uma causa remota só
enquanto é remota não se segue nenhum efeito ; logo, o efeito
segundo depende da causa que deu ser ao efeito mais próximo,
e portanto depende deste ser mais próximo.

(') « Ü que depende é remotamente causado por uma causa, e aquilo de que
depende é causado por essa mesma causa de modo próximO>>, Cap. I , � 5 .
('') N o s procedimentos l iter<Írios universitários era hábito não preencher a
conclusão - óbvia - de um raciocínio; como se terá ocasião de ver v<írias vezes ao
longo deste texto de Duns Esc o to, o caso era sobretudo indicado por <<etc» . Supriremos
essa omissão nas notas ao texto. Assim, aqui deverá ler-se: <<por conseguinte, o efeito
mais remoto depende essencialmente do efeito mais próximo».

46
ll. TERCEIRA DIVISÃO. Cada um dos membros da st.:gu 1 H L 1
d i visão subdivide-se. Em primeiro lugar, subdi v i do o scgu nd( )
l l lcmbro C) porque está mais em consonância com o qu e j ;í
d i ssemos. De facto, o primeiro, que é o efeito mai s próximo da
l·ausa, não se diz apenas que é o efeito mais próximo da causa
1 11 a i s próxima das duas, como também é efeito da causa remoi a .
Se, por exemplo, a causa próxima de u m efeito - sej a A - não
ror ele uma certa maneira causa de outro efeito - sej a B -, mas
uma outra causa anterior for causa próxima de B e for a causa
remota de A (cuja causa próxima é outra), então entre estes
L'leitos haverá uma ordem essenci al de um efeito anterior a um
efeito posterior. É o caso em que a causalidade da causa comum
de ambos se relaciona com eles enquanto efeitos segundo uma
ordem essencial .
É menos evidente que o segundo membro desta divisão
sej a divisível . Mas isso prova-se da segui nte maneira. Em
rel ação a um tercei ro, que sej a causa de ambos , essencialmente
ordenados, ambos os efeitos devem estar de facto ordenados
entre si . Então também a causa comum é concebida à maneira
de uma causa remota do efeito posterior, se o efeito anterior
não for causado. E também o efeito posterior n ão pode dar-se
sem o anterior.

7. QUARTA DIVISÃO. É famosa a subdivisão do primeiro


membro da segunda divisão (8), a causa que se subdivide nas
quatro causas assaz conhecidas, final e eficiente, material e
formal . E a subdi visão do posterior, a elas oposto, e que se
divide em quatro, em correspondência a essas causas, a saber:
o que está ordenado para um fim, e que abreviadamente se
poderia chamar «finido» ; o «efectuado» ; o que é causado pel a
m atéria, e que se chama «materi ado» ; e o que é causado
pela fonna, que se chama «fonnado» . Passo ao lado da explicação

(7) «Ü que depende é remotamente causado por uma causa. c aqu i lo de que
depende é causado por essa mesma causa de modo próxi mo>>, Cap. l , � S .
(') «Ü q ue depende é causado c aquilo de que depende é a sua causa», Cap. I. � S .

47
das divisões destes quatro membros porquanto noutro lugar
pude tratá-las amplamente (9), e mais abai xo, quando o assunto
o exigir, a elas voltarei .

8. Resumo sumariamente o resultado deste capítul o . A ordem


essencial esgota-se em seis ordens diversas, a s aber: quatro
orden s da cau s a ao efe i t o ; u m a de u m efe i to a outro,
compreendendo aqui sob uma mesma ordem os doi s membros
da terceira divisão; e uma do eminente ao que é excedido.
Para a explicação destas divi sões exigem-se duas coisas
mai s : que os membros de cada divisão se excluam entre s i e
que esgotem a razão do que se divide. No capítulo segui nte
mostraremos estas duas condições, quando isso vier a propósito.
Nele também avançaremos com algumas proposições gerais
necessárias e compararemos as orden s referidas e os seus
extremos consoante a sua neces s ári a ou não-neces s ári a
concomitância. Estas comparações serão de muita utilidade para
os capítulos seguintes .

('') J. D. ESCOTO - Ordinatio I. d. 3. q. 7, n. 3.

48
CAPÍTULO II

9. Trataremos agora das referidas quatro divisões da ordem


essencial e compararemos, de maneira argumentativa, os seus
extremos .
Deus Nosso Senhor, que ens inaste de modo infalível o
venerável doutor Agostinho, ao escrever sobre ti , Deus trino,
no primeiro l i vro de A Trindade C), «Não existe nada que a si
mesmo confira o ser» , também não gravaste em nós, e igual­
mente com certeza, esta verdade, semelhante àquela:
PRIMEIRA CONCLUSÃO: Que não hâ coisa nenhuma que
esteja essencialmente ordenada a si mesma ?
De facto, e no que diz respeito à ordem de eminência,
haverá algo mais i mpossível do que uma coisa exceder-se a si
mesma na perfeição essencial? Quanto às outras seis ordens,
haverá algo mais impossível do que uma mesma coisa depender
essencialmente dela própria ou que possa existir sem ela mesma,
conforme o sentido anteriormente dado?
Também o seguinte é verdadeiro:
SEGUNDA CONCLUSÃO: O círculo é impossível em qualquer
ordem essencial.
Porque se algo for anterior ao primeiro é anterior ao
posterior. Da negação da segunda conclusão segue-se o oposto
da primeira. Neste caso, uma mesma coisa seria essenci almente

( 1 ) AGOSTIN H O - De Trinirare I , I . n. 1 (PL 42, 820; BA 1 5/2' série, 8 8 ) .

49
anterior e posterior ao mesmo, e assim mais e menos perfeita
que o mesmo, ou dependente e i ndependente em relação ao
mesmo, afirmações que estão l onge de ser verdade. Aristóteles
exclui este círculo das demonstrações, no primeiro l ivro dos
Analíticos Posteriores e) , e nem na realidade o círcul o é menos
i mpossível .
Acrescento a esta segunda conclusão uma terceira, a qual
se prova por aquela e nela satisfatoriamente se inclui. Apresento­
-a aqui porque mais adiante irei util izá-la:
TERCEIRA CONCLUSÃO: O que não é posterior ao anterior
tambénz não o é ao posterior.
Segue-se da segunda afirmação. Mas desta terceira segue­
-se o seguinte: o que não depende do anterior também n ão
depende do posterior. E ainda: o que não é efeito de uma causa
anterior também não o é de uma posterior, porque na ordem da
causalidade o posterior depende do anterior para causar.

10. Sob tua orientação, ó Deus, comparemos agora as seis


ordens umas com as outras, e em primeiro lugar as quatro ordens
da causa ao efeito. Dado que parece ser bastante conhecida,
quer a distinção das ordens quer a sufi ciência da sua divisão,
omito isto e avanço, porque poderia ser prolixo e desnecessário
para o nosso intuito. Compararei tão-somente estas ordens em
seis conclusões, pelo l ado do efeito, no que toca à s u a
concomitância o u consequência.

11. QUARTA CONCLUSÃO: O que não é «finido» não é


«efectuado».
Prova-se, em primeiro lugar, assim: o que n ão procede de
uma causa que é efi ciente por si não é «efectuado». O que não
existe para um fim não procede de uma causa que sej a eficiente
por s i . Logo, etc (') .
A premissa maior prova-se assim : em nenhum género é

(�) ARISTÓTELES . Anolyrico Posteriom I 3 (72 h 25).


(') Entenda-se: logo, não é «efectuado»; vd. supra nota 6.

50
primeiro aqu i l o que é acidental . Aristóteles di-lo bem n o
segundo l ivro da Física (4), ao sustentar que neste género d e
causali dade a natureza e o entendimento, como causas por si,
são necessariamente anteriores ao acaso e à sorte, que são causas
acidentais . Mas o que n ão depende do anterior n ão depende do
posterior, conforme se segue da terceira conclusão C) . (Refiro­
-me a efeitos positi vos, que são os úni cos efectíveis em sentido
próprio.) A premissa maior é assim evidente.
Já a menor prova-se da seguinte maneira: o agente por si
age em v ista de um fim , uma vez que nada actua em vão.
Aristóteles determina-o no segundo l ivro da Física (6), no que
diz respeito à natureza, na qual parece ser menos patente. Logo,
um tal agente nada efectua a não ser por causa de um fim .
Prova-se, em segundo l ugar, a conclusão principal , d a se­
guinte m aneira: o fim é a primeira causa na ordem da causa­
l idade. É o que diz Avicena, ao chamar-lhe causa das causas C) .
Mas i sto também se prova racional mente: assim como
metaforicamente a título de amado o fim faz mover, assim
também a causa eficiente produz a forma n a matéria. Não é
porque outra causa o faz mover que o fim também o faz a título
de amado, mas antes porque, na ordem da causalidade, o fim é
essencialmente causa primeira.
Prova-se isto da maneira segui nte: no quinto l iv ro da
Metafísica (8), Aristótel es mostra que o fim é uma causa, porque
com ele se responde à pergunta «por quê», pergunta esta que
i nquire sobre a causa. Por conseguinte, uma vez que com ck:
se consegue o primeiro «por quê» , então terá de ser a primei ra
causa. O que se acaba de dizer patenteia-se assim : à pergun t a
«por que é que algo produz?», responde-se: «porque ama o fi m
ou tende para ele», e não ao contrário.

(4) ARISTÓTELES - Physica II 6 ( 1 98 a 5 - 1 3 ).


(5) «Ü que não é posterior ao anterior também não o é ao posterior>>, ( 'ap. 11. � ').
(") ARISTÓTELES - Physica II 5 ( 1 96 b 1 7 - 22) .
(') AV ICENA - Liber de Philo.wphia Prima VI 5 .
(') ARISTÓTELES - Meraphysica V 2 ( I OI a 3 3 - :l 'i ) .

51
Da primazi a do fim, provada de três maneiras, segue-se a
conclusão principal : o que não tem uma causa anterior também
não tem uma causa posterior, em conformidade com a terceira
conclusão estabelecida C).

12. QUINTA CONCL USÃO: O que não é «efectuado» não é


«/tnido».
Prova-se: o fim não é causa senão enquanto o ser do finido
depende essenci almente dele como de algo que é anterior. Isto
é evidente, porque qualquer causa, enquanto causa, é anterior
pelo facto de ser causa. Porém, o finido não depende, no seu
ser, do fim que é anterior, senão enquanto o fim, na qualidade
de amado, move a causa eficiente a dar ser ao finido; de maneira
que a causa eficiente não daria ser no seu género, se o fim não
causasse segundo a sua causalidade. O fim, portanto, nada causa
a não ser aqu i l o que é produzido pela causa eficiente por amor
do fim .
Segue-se, como corolário: não s e deve passar e m silêncio
uma falsa concepção do fim, a saber, que a causa final de um
ser é a sua ú l tima operação ou o objecto que se atinge por essa
operação. Se se quer pensar que isso enquanto tal é que é a
causa final , é um erro, porque a operação e o seu objecto seguem
o ser, e o ser do «finido» não depende essencialmente nem da
operação nem do objecto enquanto tai s . Já aquilo precisamente
que por ser amado pela causa eficiente esta faz existi r - vi sto
estar ordenado para o amado - é, enquanto amado, a causa
final do que foi feito.
Por vezes, é certo, o objecto da última operação é o ser que
é amado, e, por isso, é a causa final , não enquanto termo da
operação de uma dada natureza, mas porque amado por aquilo
que causa essa natureza. Todavi a, a úl tima operação de um ser,
ou aquilo que se ati nge por ela, chama-se às vezes, e bem, fim,
porque é o ú l timo, e de algum modo o óptimo, tendo por isso
algumas condições da causa final .

(') <<Ü que não é posterior ao anterior também não o é ao posterior», Cap. I I , � 9.

52
Aristóteles ( '0), por conseguinte, não teria sustentado que
:1s i ntel igências têm uma causa final em sentido próprio e não
1 1 1 11a causa eficiente. Mas, ou teria sustentado que têm a p e nas
1 1 111 fim , estendendo «fim» ao objecto da operação óptima, ou,
se l hes atribuiu uma causa eficiente própria, não o fez pelo
t n o v i mento o u p e l a mudança, porque as qu atro causas
pertencem à consideração do metafísico, pelo que abstraem do
1 novimento e da mudança, que pertencem à consideração do
I i I ósofo natural .
Aristóteles também não teria defendido que o primeiro l hes
dá o ser apó s o n ão-ser, v i sto que as apresen tou como
.-; cmpiternas e necessárias, pelo menos se se entender «após»
na ordem da duração, embora já não se se limitar o após à ordem
da natureza, tal como Avicena expl ica a noção de criação no
segundo capítulo do sexto l i vro da Metafisica C ' ) .
Quanto a saber-se se o efeito é incompatível o u n ão com a
necessidade, é algo que não vai contra o nosso propósito. Se
u m a cau s a s i m p l e s me n te efi c i en te p u d e s s e c a u s ar
necessariamente e um fim pudesse finalizar necessariamente,
c não ao contrário ( ' 2 ) , então todo o efeito seria ao menos
possível , não só enquanto «possível» se opõe a « i mpossível»,
mas também enquanto se opõe a «necessário por si», porque
seria objecto ou termo da potência da sua causa. Não seria, no
entanto, possível, enquanto «possível» se opõe a «necessário
em geral» , segundo os filósofos, os quais negaram uma tal
contingência às substânci as separadas.
Torna-se patente um outro corolário, a saber: que o fim
não é causa final da causa eficiente, mas causa final do efei to.
De onde, o dizer-se: «O agente age por causa de um fim » , o que
não deve entender-se como «por causa do seu fi m » , mas «por
causa do fim do seu efeito» .

( 1 0) ARISTÓTELES - Metaphysica XII 8 ( l 073 a 34sg. '' I <r/4 a I '! sg. ) .


(1 1 ) AV ICENA - Liber de Philosophi(/ Primo V l 2 .
( 1 2 ) N n origi n a l . «et non e c o n v e r s o » , q u e d e v e c n t L" IH k l · S L" . '' n a o

contingentemente.

53
13. SEXTA CONCLUSÃO: O que não é «efectuado» não é
«materiado».
Prova-se: de si a matéria está em potência de contradição
para a forma. Por isso, em si, ela n ão está em acto pel a forma.
Logo, só está em acto pelo que conduz a potência a acto, e que
é causa eficiente do composto, pois «fazer u m composto» é
i gual a «actualizar a matéria pela forma». ( i 3)
A p r i meira consequ ê n c i a é e v i dente: u m a p otên c i a
meramente passiva e de contradição não é e m si redutível ao
acto.
Se dizes que a forma reduz a própria potência a acto, isso
é verdade formalmente. Mas como primeiro concebemos a
forma e a matéria como não unidas, aqui l o que as une tem
razão de causa eficiente, cuj a actuação é seguida pela da causa
formal .
Prova-se, em segundo l ugar, a conclusão: a causa eficiente
é causa próxima da final ; l ogo, é anterior à matéria. O que não
tem uma causa anterior também não tem uma causa posterior.
Esta primeira afirmação prova-se assim: a causalidade do fim
consiste, metaforicamente, «em mover na qualidade de amado» ,
l ogo o fim move a causa eficiente e não uma outra causa.
Prova-se, em terceiro l ugar: um composto é verdadeira­
mente uno. Logo, é detentor de uma entidade una, que não é a
entidade da matéria nem a da forma. Esta entidade una não é
causada primeiramente por duas entidades, pois nada do que
é constitu ído pel a pluralidade é uno senão em virtude de um
uno, nem é causada primeiramente por uma das duas entidades,
porque c<,tda uma delas é menor do que a entidade total . Logo,
é causada por um uno que é extrínseco.

1 4.SÉTIMA CONCLUSÃO: O que não é «materiado» não é


«formado», e vice-versa.
Prova-se: o que não é «materiado» não é composto de partes

( ' ' ) Poder-se-ia completar, então. o raciocínio: logo, se todo o «materiado» é


causado, o que não é causado não é <<materiado>>.

54
t·.� scnciais. Porque em qualquer composto de partes essenci ais,
1 1 1 1 0 por si, uma parte é potencial , dado que não se obtém u m
1 1 1 1 0 por s i senão pela potência e pelo acto, segundo o sétimo c
1 1 oi tavo l ivro da Metafísica ( '4). O que, portanto, não tem uma
parte potencial por si não é composto. Logo, nem sequer é
·· lormado», porque o que é «formado» é composto e tem a
l orma como parte i ntegrante. Tal como se argumentou acerca
da matéria e da forma assim se pode argumentar do substante e
do acidente à sua maneira ('5).
Confirma-se esta prova com o que Aristóteles escreveu no
.� di mo l ivro da Metafísica ( ' 6) : se alguma coisa fosse constituída
por um único elemento ela seria unicamente esse elemento.
< >u melhor: nem seria elemento, conforme se deduz da primeira
l'<mclusão deste segundo capítul o ( 17) . De onde, esta compa­
ração: se alguma coisa tem apenas uma parte essencial ela é só
essa parte. Ou melhor: ela nem é parte nem é causa, dada a
referida primeira conclusão. Logo, tudo o que é causado por
uma causa i ntrínseca tem também uma outra causa intrínseca,
que concausa. E assim se torna evidente a conclusão.

1 5. OITAVA CONCLUSÃO: O que não é causado por causas


extrínsecas, não é causado por causas intrínsecas.
Esta conclusão torna-se patente à luz das quatro conclusões
anteriores, embora também tenha provas próprias.
A primeira é a de que as causalidades das causas extrínsecas
significam a perfeição, à qual não vai necessariamente u n i d a
nenhuma imperfeição. As causas intrínsecas têm necessariamente
anexa uma i mperfeição. Por conseguinte, as causas extrínsecas
são anteriores às i ntrínsecas, na ordem da causali dade, tal conm

( ") ARISTÓTELES - Meraphysica V I I 8 ( 1 033b 1 6 - 1 9 ) ; I I J. A J , ·ft�/'11 1·


sica V l l l 6 (1 045 b 20).
( ") Cf. J. D. ESCOTO - Metaphysica 4. q. 2. n. 1 2; ID Onlin olio I . d X. 'I '
( 1 1') ARISTÓTELES - Meraphysica VII 17 ( 1 04 1 h 22).
( 17) <<Não há coisa nenhuma que esie_ja csscncialllll'lll<' l ll'dt'll:lda .1 ·.1 l l l< " : l l l.l
Cap. II, cone i . I, � 9.

55
o perfeito é a n terior ao i mperfeito. Acrescenta a terceira
conclusão e e s ta fica provada ( ' 8).
A segun d a é esta: as causas intrínsecas podem ser causadas
em si mesmas pelas extrínsecas . Logo, são-lhes posteriores na
ordem da cau s alidade. O antecedente é evidente em se tratando
da forma, mas também é evidente quanto à matéria considerada
como parte. M as em rel ação à matéria, considerada em si
mesma, dir-se- á adiante mais al gu ma coisa.

16. NONA CO NCLUSÃO: Os quatro géneros de causas,


quando causam o mesmo, ordenam-se essencialmente.
Esta conc l usão evidencia-se a partir das cinco anteriores.
Porém, parece em si razoável que muitas coisas das quais uma
outra depende essencialmente tenham uma ordem, segundo a
qual esta outra coisa depende ordenadamente delas. Com efeito,
todas as coisas das quais se não constitui um ser uno, tal como
por acto e potência, ou não têm nenhuma unidade de ordem,
não causam u ma coisa essencialmente idêntica. Como portanto
os quatro gén eros de causas não são p artes de um ser uno
composto como por acto e potência, nem têm nenhuma unidade
quando cau sam , como é que então haveriam de causar algo
idênti co? Tê m, por c onsegu i n te, uma u n idade de ordem
enquanto caus am o efeito, ordem na qual todas as causas
consti tuem u m a unidade ao causar, em rel ação a um terceiro
termo, tal com o muitas coisas no universo constituem pela
ordem uma uni dade no ser.
Mas qual sej a a ordem destes quatro géneros de causas,
torna-se eviden te, a p artir do que dissemos sobre a causa final
e a eficiente, qu anto à sua mútua relação, pel a segunda prova
da qu arta con c l us ã o C 9) e pel a segunda prova da sexta

(") <<0 que não é posterior a o anterior também não o é a o posterior»; Cap. II,
l'Oilc i. 3 , � 9.
( '" ) Cap. ! L co ne! . 4. � i 6, onde se mostra que a causa final é a primeira das
c a u s a s . na ordem da causalidade.

56
conclusão e0), em outras partes das mesmas concl usões c na
oi tava conclusão (ZI ) .
Não quero aqui deter-me a examinar muito qual é a ordem
das causas intrínsecas entre si. Usá-las-ei pouco no decurso
deste tratado. Parece, no entanto, que a matéria é anterior
segundo a i n dependência, porque o que é conti ngente e
i nformante parece depender do que é permanente e informado,
e o formável concebe-se antes do que é informante. É neste
sentido que alguns interpretam as Confissões de Agostinho
acerca da prioridade da matéria sobre a forma (22) .
E se perguntas em que ordem é anterior, eu respondo: como
efeito mais próximo da mesma cau s a remota; digo que é
necessariamente mais próximo na ordem segundo a qual a forma
é causada pela causa remota. Não obstante, a forma é anterior
em eminência porque é mais perfeita; Aristóteles aceita isto
como evidente, no sétimo livro da Metafísica, onde compara a
matéri a e a forma CZ'), ainda que se possa prová-lo com o que
diz no nono l ivro da Metafísica rel ati vamente ao acto e à
potência e4).

17. Compreende, porém, que uma coisa é as causas estarem


essencialmente ordenadas na ordem da causal idade ou segundo
a causação e outra coisa diferente os seres que são causas
estarem essencialmente ordenados , como se evi dencia pelo
capítulo qui nto do sexto l i vro da Metafísica de Avicena CZ5).
Com efeito, a primeira parte é verdade e foi demonstrada; de

(2°) Cap. 1 1 , cone! . 6. * 1 3 , onde se mostra que a causa eficiente é a causa mais
próxima da causa final.
e'l Cap. 1 1 . conc l . 8 , * 1 5 , sobre a anterioridade das causas extrínsecas
relativamente às intrínsecas, na ordem da causalidade.
( " ) AGOSTINHO - Confessimwm X I I , 4 /XI I , 3. 3/ X I I . 6, 6/ X I I , 7, 7/ X I I ,
8. 8/X I I . 39. 40 ( trad. port. J . O. Santos & A . A. Pina. Porto. " 1 977. X l l , 4/ X I I . 3/
X I I . 6/ XII, 7/ X I I , 8/ X I I , 29)
(2') ARISTÓTELES - Metaphysica V I I 3 ( 1 029 a 5).
(")ARISTÓTELES - Mctaphysim IX 8 ( 1 049 b 5).
(25 ) AVICENA - Liber de Philosophia Prima VI 5.

57
outra maneira as proposições seguintes seriam falsas : «É porque
ama o fim que produz o ' efectuado'», e «porque produz o efeito
é que a forma informa e a matéria materi aliza» . Mas a segunda
parte é falsa. De facto, o fim não é causa do que é eficiente,
nem o inverso é sempre verdade. De uma maneira geral , o
eficiente não é causa do que é matéria, porque a pressupõe.

18. Resolvidas as comparações dos membros da quarta divisão,


passo rapidamente pela terceira, na medida em que é patente
que os seus membros se excluem mutuamente e esgotam aquilo
que se divide. Porque:

DÉCIMA CONCLUSÃO: Se se comparam dois efeitos com uma


mesma causa, ela ou é a causa próxima ou é a causa remota.
Sobre a segunda divisão proponho duas conclusões . A primeira
diz respeito à distinção dos membros :

DÉCIMA PRIMEIRA CONCLUSÃO: Nem todo o efeito mais


próximo de uma causa é causa de um efeito mais remoto da
mesma causa; destarte, algum efeito é anterior, embora nlio
anterior porque seja a sua causa.
O antecendente desta proposição prova-se mediante um
exem p l o e um argumento racional . O exemp l o é este: a
quantidade é um efeito mais próxi mo do que a qual idade, mas
nem por isso é a causa da qual idade. Isto torna-se evidente
di scorrendo pel as cau s a s . Prova-se também p e l a razão,
porque . . .

19. A segunda conclusão trata da suficiência da divisão:

D É C I M A S EG U N D A CONCLU S Ã O : Nada dep ende


essencialmente senlio de uma causa ou de um efeito mais
próximo de uma causa.
Prova-se: se dependesse de outro, sej a este outro A e B o
que depende. Se A não existir B não existirá. Se A não existir,
todas as causas por si do próprio B podem concorrer, bem como
todos os efeitos mais próximos dessas causas que B podem ser

58
1:1 causados, porque A não é nenhum deles, conforme assumisll' .
I 'or conseguinte, concorrendo todas as causas por s i , e todos os
� · lei tos mais próximos que B já postos, B não existirá. Nesta
� · o n formi dade, todas estas causas por s i não são cau s a s
, u ri cientes, mesmo se os efei tos mais próx i mos forem j á
l·ausados. A consequência é evidente: uma vez o s efeitos mais
próximos postos, as causas suficientes podem causar um efeito
1 11ais remoto.
Se disseres que o argumento não conclui que tais causas
não podem causar, mas apenas que não causam, a objecção
não colhe. De facto, como assumiste que A não pode existir,
B não pode existir. Tudo posto sobre todas as causas e sobre os
efeitos mais próximos, A não pode existir por eles, pois não é
nenhum deles nem é causável por eles. Logo, B não pode ser
por eles. É que n ão pode ser por algo uma coi sa que é incapaz
de causar aquilo sem o qual ela não pode ser.
Se di zes : «um composto pode existir por um agente
natural , mas a matéria, sem a qual é impossível que o composto
exi sta, não pode existir por tal agente», esta objecção n ão
tem val or. Isto porque u m agente natural não é a causa total
de um composto, ou seja, um agente pelo qual , e exclui ndo
qualquer outra causa, o composto pode existir. Passo a falar
deste caso: se eu unir a B todas as causas em todos os géneros
de causas ordenadas e se todos os efeitos mais próximos que
o próprio B forem produzidos, por todas estas coisas A não
pode existir, porque A não é nem uma causa nem um e feito
do número delas, e sem A, B não pode existir. Por consegui n te,
B n ão pode existir por todas el as unidas ao mesmo tempo.
Logo, todas e l as u n i das ao mesmo tempo n ão s ão t o t a l ­
m ente a causa d o próprio B , e i sto é o contrário elo q ue se
apresentou.

20. Relativamente à primeira divisão, proponho duas coJJc l usÕL�s


semelh an tes . A primeira é a de que os seus m e m b ros S l'
di stinguem entre si:

DÉCIMA TERCEIRA CONCLUSÃO: Ne111 t t ulo o lftte e

59
excedido depende essencialmente do eminente. Logo, o primeiro
membro da primeira divisão não implica o segundo.
Prova do antecedente: uma espécie mais nobre é eminente
em relação a uma menos nobre; por exemplo, um contrário em
relação a um menos contrário. Contudo, em relação a esta,
aquela nem é uma sua causa - como por indução se patenteia
- nem é um efeito mais próximo, porque a causalidade de
u ma causa comum não diz respeito a essas espécies enquanto
efeitos segundo a ordem essencial . De facto, ela não poderia
cau s ar o que é excedido sem que antes causasse o que é
eminente, o que é evidentemente fal so qualquer que seja a causa.
Pois se o contrário i nferior é produzido por essa causa, sem que
o contrário mais nobre tenha sido produzido por nenhuma causa,
então não se ordenari am assim em relação a nenhuma causa.
Mais ainda: se algum emi nente não é causa do excedido,
nem efeito mais próximo da causa de ambos, então o que é
excedido não depende essencial mente do eminente. Esta
consequência torna-se evidente a partir da ú l tima conclusão
demonstrada (26).
Para uma maior abundância aduno a proposição conversa
da presente conclusão :
DÉCIMA QUARTA CONCLUSÃO : Nem tudo o que depende
é excedido por aquilo de que depende.
É evidente: um composto depende da matéria, embora sej a
muito mais perfeito do que ela. D o mesmo modo, a forma talvez
dependa da matéria - abordámos isto na nona conclusão - ,
e todavi a a forma é mais perfeita, conforme o sétimo l ivro da
Metafisica (27 ) . Também nos movimentos ordenados, o que é
posterior por geração depende do anterior, porque o anterior é
efeito mais próximo da causa de ambos, embora o posterior
sej a mais perfeito, segundo o nono l i vro da Metafísica e8).

(2") Ou seja: a décima segunda conclusão, <<Nada depende essencialmente senão


de uma causa ou de um efeito mais próximo de uma causa.»; Cap. I I , � 1 9.
e7) ARISTÓTELES · Metophysica V I l 3 ( 1 029 a 5 ) .
[2') ARISTÓTELES · Metaphysica IX 8 ( 1 050 a 4).

60
2 1 . Em terceiro l ugar, para a suficiência desta divisão, proponho
esta conclusão geral de Aristóteles, que é bastante conhecida:

DÉCIMA QUINTA CONCLUSÃO : A pluralidade nunca deve


ser posta sem necessidade.
Como, portanto, não há necessidade de pormos mais ordens
essenciais primeiras para além das duas referidas, elas são as
únicas. Também esta proposição geral demonstra que só há
seis ordens essenc i ai s . Expusemo- l as todas e n ão se vê
necessidade de pôr mais.

2 2 . Comparados em geral os membros da primeira divisão entre


si, passo a comparar em particular o posterior da primeira ordem
com os dois posteriores particulares da segunda ordem. Isto é :
comparo o excedido com o «efectuado» e com o «fi ni do» .
A este respeito proponho uma conclusão, a saber:

DÉCIMA SEXTA CONCLUSÃO: Todo o «{inido» é excedido.


Prova-se: o fim é mel hor do que aquilo que está ordenado
para ele . Prova disto : o fim, enquanto amado, move o eficiente
a causar. Por conseguinte, A não é menos bom que B , nem igual ;
logo, é maior. Prova-se a segunda parte do antecedente (29) : se
u m bem igual movesse pela mesma razão pel a qual o mesmo
pode mover, porque é igualmente amável e desej ável, então
ele poderi a ser causa final de si, o que vai contra a primeira
conclusão deste segundo capítulo C0) . Daqui se conclui também
que nem é menos bom.
Depois: a natureza age com vista a um fim, tal como o
faria a arte se agisse naturalmente. Mas o princípio do conheci­
mento na arte vai buscar-se à finalidade das coisas fei tas por
arte, e a conclusão é sobre o «fi nido», pel o segundo l i vro da

e"l A saber: o fim não é igual ao <<finido» .


C"l <<Não há coisa nenhuma que esteja essencialmente ordenada a si mesma»;
Cap. II, cone ! . l , * 9.

61
Física C'). Ora, o princípio é mais verdadeiro. Logo, o fim,
que inclui virtualmente aquela verdade, é mai s perfeito que o
suj ei to da conclusão.

23. Objectarás : uma vontade pode causar algo por amor de um


bem menor. Logo, nesse caso, o fim é excedido. O antecedente
é evidente em todo o acto bom pelo seu género, mas mau pelo
seu fi m, porque é um acto ordenado pel o agente para u m fim
inferior a si.
Respondo : a conclusão tem a ver com um fim que é tal
pela n atureza ela própri a coisa, como o é sempre o fim ela
natureza e o fim ele uma vontade ordenada. Mas nem a instância
de uma vontade clesorcle nacla destrói a conclusão, já que uma
tal vontade não é a primeira causa elo efeito. Por consegui nte,
se está ordenado por uma tal vontade a um fim menos perfeito,
está ordenado a um fim mais perfeito por outra causa superior,
pois ele outra maneira n ão estaria orclenaclo, como o mostra a
prova ela conclusão . E se por ter s ido produzido por uma causa
superior tem um fi m mais perfeito, então haverá algum fim
mai s perfeito. Logo, todo o «finicio» é excedido por algum fim
seu, embora n ão pel o fim próximo, que é aquele que um agente
próximo clesorclenaclo ama e causa.
Também poderia dizer-se que aquele fim é em certo sentido
o seu fim . Isto não me agracia, porque a eficiência ele uma causa
inferi or é eficiênci a em sentido absoluto. Logo, se não actua
precisamente enquanto é movida - tal como um bastão, que
não sendo propriamente um agente, mas sendo como que um
efeito mais próximo, não tem um fim próprio - , se, como
disse, n ão actua desta maneira, o seu fim é fim em sentido
absoluto, porque a todo o eficiente por si corresponde um fim
por s i .

( 1 1 ) ARISTÓTELES · Physico I I 8 ( 199 a 8 - 1 5 ) : 9 ( 200 a 1 5 · b 4)

62
CAPÍTULO III

A tríplice primazia do Primeiro Princípio

24. Senhor nosso Deus, que proclamaste ser o primeiro e o


úl timo, ensina este teu servo a mostrar pela razão aqu i l o em
que acredita com toda a certeza pela fé, que tu és o primeiro
eficiente, o primeiro eminente e o fim último.
Das seis ordens essenciais atrás mencionadas apraz-me
esco l her três: duas de cau s a l i dade extrínseca e u m a de
eminência, e demonstrar nestas três ordens. se mo concederes,
que existe uma natureza primeira e absolutamente una. Digo
«natureza» una porque neste capítulo terceiro mostrarei que as
referidas três primazias não se dão num único ser singular ou
uno em número, mas antes numa única quididade ou natureza.
Quanto à unidade numérica, falarei mais adi ante ( 1 1 .

25. PRIMEIRA CONCLUSÃO: Nos entes, existe algulllll


natureza «efectiva».
Demonstra-se assim: alguma natureza é efectível , lo g o h;i .

alguma efectiva. A consequência é evidente pela nat ureza d o s


correlati vas. Prova-se a antecedente: 1) Algu ma n aturcJ.a L'
contingente; então pode ser depois de não ser; l ogo, n ão pode
ser nem por si nem por nada - em ambos os c;1 s os u r n sn
existiri a por um não-ser - , mas por outro. 2) A l guma n a l u rL'/.a
é móvel ou mutável, porque pode carecer de alguma pLT k i (,· a o

( 1 ) Cap. IV, cone!. 1 1 , � 94.

63
que lhe possa pertencer; l ogo, o termo do movimento pode
começar e, desse modo, ser fei to.

26. Nesta conclusão, e em algumas que se hão-de seguir, poderia


expor, na perspectiva do acto, da seguinte maneira: «Uma
n atureza é eficiente porque uma é efectuada, porque uma
c o m e ç a a ser, p o r q u e u m a é termo do m o v i me n t o e
conti ngente.» Mas prefiro propor as conclusões e as premissas
com base no possível . É que se as conclusões com base no acto
são concedidas, as do possível devem conceder-se, mas não ao
contrário. Além do mais, as conclusões com base no acto são
conti ngentes, embora suficientemente evidentes, enquanto as
conclusões na perspectiva do possível são necessárias. Aquelas
pertencem ao ser existente, estas podem pertencer propriamente
inclusive ao ser tomado quidi tativamente. Mais à frente se tra­
tará da existência desta quididade de cuja eficiência se vai tratar
agora.

27. SEGUNDA CONCLUSÃO: Algum efectivo é absolutamente


primeiro, isto é, nem efectível nem efectivo em virtude de outro.
Prova-se pela primeira conclusão: há algum efectivo, sej a A.
S e é primeiro, em conformidade ao que expusemos , deparar­
-nos-emos imediatamente com o nosso propósito. Se não o é,
então é um efectivo posterior, por ser efectível por outro ou
por ser efectivo em virtude de outro. Se se nega a negação, faz­
-se a afirmação. Suponha-se um outro, sej a B , em relação ao
qual se arguirá como se arguiu em relação a A : ou se avançará
até ao infinito nos efectivos, qualquer um dos quais será segundo
em relação ao anterior, ou parar-se-á em algum efectivo que
não tem anterior. A infinidade ascendente é impossível ; l ogo, a
primazia é necessária, pois o que não tem anterior não é posterior
a nenhum posterior a si mesmo. Na verdade, a segunda conclusão
do segundo capítul o destruiu o círculo nas causas.

28. Objecta-se: de acordo com os 'filosofantes ' e), a i nfinidade

(') ARISTÓTELES - De Genemrione 11 1 0 (336 a 23 - 337 a 3 3 ) .

64
ascendente é possível , posto que a defenderam para os seres
que geram i n fi ni tamente, sem que nenhum deles fosse o
primeiro, mas qualquer deles o segundo, e i sto defenderam eles
sem círculo. Para excluir esta objecção digo que os fil ósofos
não sustentaram a i nfinidade possível nas causas essencialmente
ordenadas, mas apenas nas causas acidentalmente ordenadas,
como aparece evidente no capítulo quinto do sexto l i vro da
Metafisica de Avicena, onde se fala da infinidade dos indivíduos
numa espécie C).
Mas, para mostrar o que se pretende dizer, passo a expor
quais são as causas essenci al mente ordenadas e acidentalmente
ordenadas . Em relação a este assunto i mporta saber que não é a
mesma coisa falar de causas «por si» e «por acidente», e de
causas essencialmente ordenadas ou «por s i » e de causas
acidentalmente ordenadas. Com efeito, no primeiro caso, só há
uma comparação de uma para o outro, da causa para o causado,
e a causa é «por si» ao causar pela sua própria natureza e não
por algum acidente seu. No segundo caso, há uma comparação
de duas causas entre si enquanto um efeito depende delas.
As causas essencialmente ordenadas ou <<por si» diferem
de três maneiras das causas acidentalm en te ordenadas . A
primeira diferença é que nas causas ordenadas «por si» a causa
segunda depende da primeira para causar; nas ordenadas «por
acidente» não, ainda que a segunda dependa da primeira no ser
ou em algum outro aspecto. A segunda diferença é que nas
causas ordenadas <<por si» há uma causalidade de razão e de
ordem diversas, porque a superior é mais perfeita; nas causas
acidentalmente ordenadas não. E esta segunda diferença deri va
da primeira; com efeito, nenhuma causa depende essencialmente
na ordem da causal idade de uma causa da mesma razão, porque
na causação de uma coisa é suficiente uma causa sú de u m a
mesma razão. Segue-se uma terceira diferença, a d e q u e para
causar se exigem necessari amente em simul tâneo todas as
causas ordenadas <<por si». S e assim não fosse, fal t ari a ao efeito

(') AVICENA - Liber de Philosophia Prima V I 5; vcja··se t:ll llhcm ibid. VI 2 .

65
alguma causalidade «por si»; às causas acidentalmente ordenadas
não se exige a simultaneidade.

29. A partir destas diferenças, mostra-se assim o nosso pro­


pósito: A) é impossível uma i nfinidade de causas essencialmente
ordenadas ; B) também é i mpossível uma i nfinidade de causas
acidentalmente ordenadas, salvo se elas se fundarem em causas
essencialmente ordenadas ; l ogo, é totalmente i mpossível uma
i nfinidade de causas essencialmente ordenadas. C ) Se se nega a
ordem essencial, a infinidade é impossível; logo, existe realmente
um efectivo absolutamente primeiro.
Assumimos aqui três proposi ções. Para simplifi car, desig­
namos a pri meira por A, a segunda por B e a terceira por C .
Provam-se estas proposições. Em primeiro l ugar prova-se
A. A totalidade dos efeitos essencialmente ordenados é também
causada. Logo, é causada por uma causa que não pertence àquela
totalidade; nesse caso, seria de facto causa de si, porque a
totalidade completa dos dependentes também depende, embora
não de nenhum dos componentes da total idade.
Outra prova de A: porque i nfinitas causas essencialmente
orden adas estariam simultaneamente em acto ; segue-se da
terceira diferença atrás referida (4) . Mas nenhum fil ósofo admite
a consequência que daqui se retira.
Terceira prova de A: porque o que é anterior está mais
p ró x i m o do pri n c íp i o , como consta do q u i nto l i vro da
Metafisica C). Mas onde não há nenhum princípio, nada é
essencial mente anterior.
Quarta prova: porque o que é superior é mais perfeito a
causar; consta da segunda diferença (6). Logo, o que é infi nita­
mente superior é infinitamente mais perfeito, pelo que possui
uma perfeição infinita a causar. Em conformidade, não causa

( ' ) Segunda a qual «para causar, exigem-se necessariamente cm simul tâneo


todas as causas ordenadas por s i>>, � 28.
(') ARISTÓTELES - Metaphysica V l i ( I01 8 h 9 - l i).
( ") De acordo com a qual nas causas ordenadas por si encontra-se u m a ordem
hierárqu i ca de perfeição (razão e ordem), � 28.

66
L� lll v i rtude de outro , j á que causaria i mperfeitamcn i L� por
depender de outro para causar.
Quinta prova: porque o efectivo não implica necess a ­
ri amente nenhuma i mperfeição; evidenci a-se com a oi tava
proposição do segundo capítul o C). Logo, pode dar-se cm
alguma natureza sem imperfeição. Mas se não se pode dar c m
nenhuma sem dependência de um anterior, não pode dar-se em
nenhuma sem imperfeição. A efecti vidade independente pode,
portanto, pertencer a uma natureza. Esta será absolutamente
primeira; logo uma efectividade absolutamente primeira é
possível . B asta isto, por ora, uma vez que mais adiante concluir­
-se-á daqui que ela exi ste na realidade. Desta maneira, por estas
cinco razões, A torna-se clara.

30. Prova-se B: porque se se admite uma infinidade acidental ,


é evidente que ela não existiria em simultâneo, mas tão-só
sucessi vamente, um membro a seguir a outro, de maneira que
o segundo, ainda que de al gum modo dependente do primeiro ,
não depende dele para causar. Pode porém causar mesmo que
ele não exista, tal como um fi lho gera quer o pai estej a morto
quer estej a vivo. É impossível uma sucessão infin ita desse tipo,
a não ser q u e e x i sta por a l gu m a n atureza q u e perdure
i nfi nitamente, da qual toda a sucessão e qualquer um dos seus
membros dependa. Porém, nenhuma deformidade se perpetua
excepto em virtude de algo permanente, que n ão pertença ;,
sucessão, j á que todos os membros da sucessão são da mesma
razão. M as há al go essencialmente anterior, pois todos os
membros da sucessão dependem dele, embora numa ordcnt
distinta daquela em que u m membro depende da s u a causa
próxima, que é parte da sucessão. Por conseguinte, B é cvidcn i L' .

31. Prova-se C : como d a primeira conclusão se scg U L' ( j l l L'


alguma natureza é efectiva, se se negar a ordem csSL' I W i a l dos

(') Pela qual s e viu que as causas extrínsecas nilo i 1 11p l i c a ! l l ncn·ssari;ul lc' l l ll"
nenhuma imperfe i ç ão ; Cap. II, cone!. 8, � I S .

67
efectivos então essa natureza não causa em virtude de outro.
E ainda que se sustente que essa natureza seja causada em algum
singular, em outro singular ela é todavia incausada, que era o
que se pretendia provar acerca da natureza primeira. Se a pomos
como causada em qualquer i ndivíduo, a negação da ordem
essencial i mplica contradição. É que na ordem essencial não se
pode pôr nenhuma natureza em qualquer indivíduo como
causada, pois, como se vê por B, sob ela está compreendida
uma ordem acidental , sem ordem essencial ordenada a outra
natureza.

32. TERCEIRA CONCLUSÃO: Um efectivo absolutamente


prime iro é incausáve l, porque é inefectível e é efectivo
independente.
Esta conclusão é evidente a partir da segunda (8) . Pois se é
efectível por outro ou causativo em virtude de outro, estaríamos
perante um processo infinito ou circular ou teríamos que nos
deter em algum inefectível e i n dependentemente efectivo.
Chamo-lhe primeiro e é claro que não há outro primeiro, em
conformidade com o que admitiste.
Conclui-se ainda mais: se o primeiro é i nefectível , então é
i ncausável : porque não é finível , segundo a quinta conclusão
do capítulo segundo C) ; nem é materiável , pela sexta conclusão
do mesmo capítu l o (1°); nem formável , pel a sétima do mesmo
capítulo C 1 ); nem ao mesmo tempo formável e materiável, pela
oitava C 2).

33. QUARTA CONCLUSÃO: Um efectivo absolutamente

( ") <<Algum efectivo é absolutamente primeiro, isto é, nem efectível nem efectivo
em virtude de outro»; Cap. l l l , cone!. 2, � 27.
( '') «Ü que não é 'efectuado' não é 'finido ' » ; Cap. 11, cone ! . 5, � 1 2 .
( 10) « Ü que não é 'efectuado' não é 'materiado ' » ; Cap. 1 1 , cone!. 6 , § 1 3 .
( 1 1) <<Ü q ue não é ' materiado' não é ' formado ' , e vice-versa» ; Cap. I I , cone!. 7,
§ 1 4.
( '2) <<Ü que não é causado por causas extrínsecas. não é causado por causas
i ntrínsecas»; Cap. II, cone!. 8, § 1 5 .

68
JJrimeiro existe em acto e uma natureza actualmente exis t e n l l '
é efectiva dessa maneira.
Prova-se: se aquilo a cuj a noção repugna o poder exist i r
por outro pode existir, é por si mesmo que pode existir. À noção
do efectivo absolutamente primeiro repugna o poder existir por
outro, como consta da terceira conclusão < 1 3l; mas pode existir,
como consta da segunda prova de A < 1 4l. Sobretudo da sua quinta
prova C l Sl , que parecia menos concludente embora de facto
conclua. Poderiam trabalhar-se outras provas quer quanto à
existência, que seriam contingentes embora evidentes , quer
quanto à natureza, à quididade e à possibil i dade, assentes em
premi ssas necessárias . Por conseguinte, um efectivo absoluta­
mente primeiro pode existir por si. O que não é por si não pode
existir por si, porque então o não-ser faria com que algo passasse
a ser, o que é i mpossível . Mais ainda: causar-se-ia a si mesmo
e, assim, não seria completamente incausável .
Pode decl arar-se esta quarta conclusão de outra maneira.
É i mpróprio que ao universo falte o supremo grau possível no
ser.
A par desta quarta conclus ão, note-se um corol ário: o
primeiro efectivo não só é anterior aos outros como também é
contraditório com ele que exista outro antes . Assim, enquanto
é primeiro, existe. Prova-se como a quarta conclusão: na noção
dele está incluída a i ncausabilidade no mais alto grau . Logo, se
pode existir, porque não é contraditório com a sua entidade,
então pode existir por si, e, por isso, exi ste por s i .

34. QUINTA CONCLUSÃO : O incausável é e m si m es11 1 o


necessário.
Prova-se: porque é impossível que não exista por si o que

( 1 1 ) << U m efec tivo absolutamente primeiro é i ncaus;ívcl. porque c i i H' i lT I I·v,·J ,·


é efectivo i ndependente»; Cap . III, cone!. 3, � 32.
(1') Onde se lê: <<porque as infinitas causas essenc ia lmente o n k n adas c s t a n ; u n
simul taneamente em acto . . . >>; Cap. III. cone!. 2, � 29.
( 1 5) Onde se lê: <<porque o efectivo não implica necessar i a n H' I I I l' n c n i l l l l l l a
contradição . . . >> ; Cap. lll, cone!. 2, � 29.

69
em relação à sua existência exclui toda a causa distinta de s i ,
intrínseca o u extrínseca.
Prova: nada pode não ser, excepto se se puder dar alguma
coi sa i ncompassível com isso, positiva ou privativamente, pois
pelo menos um dos contraditórios é sempre verdadeiro. Nada
positiva ou privativamente incompassível com o i ncausável
pode ser, dado que ou sê-lo-ia por si ou por outro. Não poderia
ser da primeira maneira, porque então existiria de facto por si
- pe l a quarta conclusão ( 1 6) - e os i ncompossíveis dar-se-
-iam em simultâneo; ou, por i gual razão, nenhum dos dois
existiria, pois reconheces com aquele i ncompassível que o
incausável não existe, e assim se segue também o i n verso .
Também não pode ser d a segunda maneira, porque nenhum
efeito recebe da sua causa um ser mais intenso ou mais poderoso
do que aquele que o incausável tem por si mesmo, isto porque
o efeito para ser é dependente e o incausável não. Acresce que
a possibi l idade do causável para ser não implica necessaria­
mente a sua existência actual, tal como sucede com o incausável.
Mas n ada de incompassível com o que j á existe pode ser por
uma causa, excepto se del a receber um ser mais i ntenso ou
mais poderoso do que o ser do seu incompassível.

35. SEXTA CONCLUSÃO: A necessidade de existir por si


pertence a uma só natureza.
Prova-se assim: se duas naturezas pudessem ser necessárias
por si, a necessidade de ser seria comum a ambas. Logo, teriam
também alguma entidade quiditati va que as faz ser em comum
e da qual receberiam como que o seu género. E além disso
di stinguir-se-iam pelas suas formalidades actuais últimas .
Seguem-se daqui duas i ncompossibil idades. A primeira, a
de que cada uma seria um ser necessári o, em primeiro l ugar
pel a natureza comum, que é de menor actualidade, e não pel a
natureza que as distingue, que é de maior actual idade. Porque
se fosse por esta natureza que as distingue que elas fossem

( "' ) << U m efec tivo absolutamente primeiro ex iste em acto e u m a natureza


actual mente existente é efec tiva dessa maneira>>: Cap. I I I . conc l . 4, § 3 3 .

70
rormalmente necessárias, então seriam necessárias d u as vezes,
visto que essa n atureza não inclui formalmente a natureza
comum, tal como a diferença não inclui o género. Parece, porém,
impossível, que algo sej a primariamente necessário por uma
actualidade menor e não o seja nem primariamente nem em si
por uma actualidade maior.
A segunda i mpossi bi l i dade é a de que, pela natureza
comum, medi ante a qual se supõe que cada uma das naturezas
é prim ariamente necessária, nenhuma das duas seria um ser
necessário, porque nem uma nem outra existe suficientemente
por aquela natureza. É que qualquer natureza é aquilo que é
pelo ú l timo elemento formal . Mas aqu i l o pelo qual algo é um
ser necessário é o que faz com que alguma coisa se efective,
sem mais.
Se dizes que a natureza comum, prescindindo das naturezas
distintivas, é suficiente para que um ser exista, então essa
entidade comum seri a por si actua l e i ndi sti nta, e , por
consegu i nte, i ndisti ngu ível , porque um ser necessário j á
existente não está em potência para existir em sentido absoluto.
O ser do género na espécie é um ser em absoluto desse ser
necessário.
M ai s : duas naturezas sob o mesmo género comum não são
do mesmo grau . Prova-se, pelas diferenças que dividem o
género: se são desiguais, então o ser de uma será mais perfeito
do que o ser de outra; nenhum ser é mais perfeito do que o ser
necessário por si.

36. Outra prova: se duas naturezas fossem seres ncees sanos


por si nenhuma del as dependeria da outra para ser; lo g o nc1 1 1
,

teri am nenhuma ordem essencial . Portanto, nen hu ma delas


existiria neste universo, uma vez que não há na da n o u n i verso
que não esteja essencialmente ordenado entre os seres, j ;í l J l i L' a
unidade do universo depende da ordem das suas parl e s .
Objecta-se aqui : cada uma das naturezas tem uma ordem
de eminência em relação às partes do universo c i sso é su l"icicnll�
para a sua unidade. Contra a obj ecção: nem sequer haveria a
ordem de uma a outra, dado que a natureza m a i s emi nente é a

71
que tem o ser mais perfeito e nenhum ser é mais perfeito do
que aquele que é necessário por s i . De igual modo, não haveria
ordem entre uma natureza e as partes do uni verso, porque,
embora um universo tenha uma só ordem, há uma só ordem
para um primeiro. Prova: porque se se põem duas naturezas
primeiras, a natureza próxima da primeira não teria uma única
ordem ou uma única dependência, mas duas, porque haveria
dois termos de referência. O mesmo se diga a respeito de
qualquer n atureza i n feri or. Haveria, portanto, em todo o
universo, duas ordens primeiras, e, por isso, dois universos, ou
então só haveria ordem para um ser necessário e não para mais
nenhum outro.

37. Todavia, ao avançar-se racionalmente, parece que nada se


deve pôr no u n i v erso senão o que nos surge como uma
necessidade, isto é, aquilo cuj a entidade é manifesta por alguma
ordem a outros seres, pois não se devem multiplicar os entes
sem necess idade - segundo o primeiro livro da Física C7). No
uni verso, mostra-se um ser necessário pelo incausável , e o
incausável pelo primeiro causante e este pelos causados. Os
causados não manifestam nenhuma necessidade de pôr várias
naturezas primeiras causantes. Pelo contrário, isso é impossível,
conforme se exporá mais abaixo na décima quinta conclusão
deste terceiro capítulo ( I H). Por conseguinte, nem é necessário
pôr mais de um ser i ncausado por natureza ou necessário. E, por
isso, com razão, não se deve pôr.

38. Além das primeiras quatro conclusões deste capítulo, refe­


rentes ao efectivo, proponho agora outras quatro semelhantes
sobre a causa final, as quais também se demonstram de maneira
parecida. A primeira é:

( 1 7) ARISTÓTELES - Physiw 1 4 ( 1 88 a 1 7 ) . Cf. também Cap. II, concl. 1 5 . � 2 1 .


( 1 ") <<A tríplice primazia na referida ti'Íplice ordem essencial. de eficiência, de
fim c de eminência, pertence a uma mesma e única natureza existente em acto» ;
Cap. I I I, cone! . 1 5 , � 40.

72
SÉTIMA CONCLUSÃO: Nos seres há uma natureza que I'
.finitiva.
Prova-se: há algo finível . Prova: porque há algo efectível ,
como se comprova pela primeira conclusão deste capítu lo c�) ;
logo, também há algo finível. A consequência é clara, pela quarta
conclusão do segundo capítul o e0). Isto é ainda mais evidente
na ordem essencial do que o foi em relação ao efectivo, pela
décima sexta conclusão do capítul o segundo (2 1 ) .

OITAVA CONCLUSÃO : A lgum finitivo é absolutamente


primeiro, isto é, nem ordenável a outro nem apto por natureza
a finalizar outros em virtude de outro.
Prova-se mediante cinco provas semelhantes às da segunda
conclusão deste terceiro capítulo (22) .

NONA CONCLUSÃO : O primeiro finitivo é incausável.


Prova-se: porque não é finível . De contrário, não seria
primeiro. Por conseguinte, nem sequer pode ser efectível, pela
quarta conclusão do segundo capítulo ( 23). O resto, tal como
acima, na prova da terceira conclusão deste capítul o (24).

DÉCIMA CONCLUSÃO: O primeiro finitivo existe em acto e


esta primazia convém a uma natureza que exista em acto.
Pro v a - s e c o m o a q u arta c o n c l u s ã o d e s te terce i ro
capítul o (25).
Corolário: o primeiro é-o de tal maneira que é impossível
um ser anterior a ele. Prova-se como o corolário da referi d<1
qu arta conclusão (6).

(1'1) <<Nos entes, existe alguma natureza 'efectiva'»; Cap. l l l , con e ! . I , � 2.'i .

('") <<Ü que não é 'fi nido' não é ' efectuado' >> ; Cap. I I , com:!. 4, � 1 1 .
('') <<Todo o 'finido' é excedido>> ; Cap. I I , cone! . 1 6, � 22.
(22) Cf. Cap. I II, cone!. 2, � 29.

('1) <<Ü que não é 'fi nido' não é 'efectuado' » ; Cap. I I . conL·I. 4, � 1 1 .
e"l Cf. Cap. I II, cone!. 3, s 32.
( 25) Cf. Cüp. I II, cone!. 4, � 33.
(2") Cf. Cap. III, cone!. 4, � 33.

73
39. Dadas estas quatro conclusões referentes às duas ordens de
c au s a l i dade e x t r í n s e c a , prop o n h o a g o r a m a i s q u atro
semelhantes, em relação à ordem da eminência. A primeira é a
segui nte:

DÉCIMA PRIMEIRA CONCLUSÃO: Entre as naturezas dos


seres há uma que é excedente.
Prova-se: há alguma natureza finita, pela sétima conclusão
deste capítul o (27). Logo, também é excedida, pela décima sexta
COnClUSãO do CapÍtUl O segundo eH) .

DÉCIMA S EGUNDA CONCLU S Ã O : A lguma natureza


eminente é absolutamente primeira em pe1j"e ição.
Isto é evidente na ordem essencial . Segundo Aristóteles,
no o i tavo l i vro da Metafís ica, as formas são como que
números e9) . Deve parar-se nesta ordem essenci al, como se
demonstra pel as cinco provas dadas na segunda conclusão ( '0) .

DÉCIMA TERCEIRA CONCLUSÃO: A natureza suprema é


incausável.
Prova-se: não é finível, pela décima sexta conclusão do
segu ndo capítu l o (' 1 ) . Logo , n ão é efectíve l , pel a qu arta
conclusão desse mesmo capítul o C2) . O resto do argumento é
semelhante à prova da terceira conclusão deste capítulo C3).
Mais: que a natureza suprema não é efectível , prova-se
por B da prova da segunda conclusão deste capítulo ('4) . Com
efeito, todo o efectível tem alguma causa essencialmente
ordenada.

(") <<Nos seres h<i uma natureza que é finitiva»; Cap. l l l . cone ! . 7. � 3 8 .
('") «Todo o 'finido · é excedido»: Cap. I I . cone!. 1 6, � 22.
e''l ARISTÓTELES - Mewphysico V I I I 3 ( 1 043 b 3 3 ) .
( "'l Cf. Cap. I I I . cone! . 2, � 29.
(11) «Todo o 'finido' é excedido>>; Cap. 1 1 , cone! . 1 6, � 22.
(12) «Ü que não é ' fi nido' não é 'efectuado' » ; Cap. I I . cone! . 4, � II.
(" ) Cf. Cap. I I I , cone!. 3 , � 3 2.
( ") Relativa à impossibilidade de uma infinidade acidental; Cap. I I I , cone!. 2, � 30.

74
DÉCIMA QUARTA CONCLUSÃO: A natureza suprema é u 1 n;1
natureza existente em acto.
Prova-se como a quarta conclusão deste capítul o 05>.
Corolário: é contraditório que alguma natureza sej a mais
perfeita do que a natureza suprema ou que seja superior a ela.
Prova-se tal como o corolário da quarta conclusão anterior 06>.

40. DÉCIMA Q UINTA CONCLUSÃO: A tríplice primazia na


referida trípl ice ordem essencial, de eficiência, de fim e de
eminência, pertence a uma mesma e única natureza exi stente
em acto.
Esta décima quinta conclusão é o fruto deste capítulo. Ela
segue-se com evidênci a do que j á se expôs. Assim, se é a uma
natureza única que pertence o ser necessário por si - pela sexta
conclusão deste capítulo (37> - e se a este ser necessário pertence
cada uma das três primazi as mencionadas (pel as conclusões
quinta e terceira referentes à primeira primazi a 08>, pel as
conclusões quinta e nona rel ativas à segunda 09', e pelas quinta
e décima terceira referentes à terceira primazia <40>) , então é
necessário que aquel a natureza exista por s i . Por conseguinte,
cada uma das primazias referidas pertence a esta única natureza,
à qual pertencem também as outras. É que qualquer uma das
primazias pertence actualmente a uma natureza, segundo as
conclusões quarta, décima e décima quarta <41 >, mas não a
diferentes naturezas . Logo, pertence à mesma.

15Cf. Cap. I l f , cone ! . 4, � 33.


'''Cf. Cap . III, cone ! . 4. � 3 3 .
37,,A necessidade de existir por si pertence a u m a só natureza»; C a p . I I I . cnnc l .
6 , li 3 5 .
"<<0 incaus:ívcl é c m s i mesmo necess:írio>>; Cap. I I I , cone ! . 5. � 3 4 . << l J m
efectivo absol u tamente prime i ro é incausável, porq u e é i n efcctívcl c é efec t i vo
i ndependente>>; Cap. I J I , cone ! . 3, � 32.
1''1dem; Cap. I I I , cone ! . 5, � 34; «Ü primeiro J'i n i t i v o é incausávcl.>>; Cap. III,
cone ! . 9. � 38.
""Idem; Cap. III, cone ! . 5, � 34. «A natureza suprema é incausáveh>; Cap. l i I,
cone ! . 1 3 , � 39.
4 1 Cap. I l f , cone ! . 4. I O, 1 4, � � 3 3 . 3 8 , 39.

75
Prova da menor: porque então muitas naturezas seriam
seres nece s s ári o s , na sequênci a da segunda prop o s i ção
formul ada (42) .
Mais ainda: a conclusão proposta prova-se pelo i ncausável ,
dado que ele é o único primeiro. Mas o que é primeiro com
qualquer uma das ditas primazias é incausáve l ; logo, etc. (43)
Prova da maior: como é que uma mul tidão poderia ser por si?

41. Esta conclusão é bastante pregnante. Na verdade, ela contém


virtualmente seis conclusões, três acerca da unidade da natureza
à qual pertence cada primazia mencionada, e mais três acerca
da identidade da natureza, que é assim primeira em relação a
uma natureza também primeira, comparando as primazias entre
s i . Esta conclusão tão pregnante foi provada só pel a sexta
conclusão à maneira de premissa maior (44). É preciso explicitar
as prem issas maiores próprias às seis conclusões referidas, na
medida em que isso for possível .

42. Para mostrar as duas primeiras conclusões avanço com


estoutra:

DÉCIMA SEXTA CONCLUSÃO: É impossível que o mesmo


ser dependa essencialmente de dois, em cada um dos quais
termine totalmente a sua dependência.
Prova-se: se uma causa total causa algo em algum género
de causa é impossível que outra cause o mesmo no mesmo
género. É que, então, seria causado o mesmo duas vezes ou
nen huma das causas seri a total ; de igual modo, causaria aquilo
que, sem o causar, seria no entanto um causado, o que é absurdo.
Ass i m , é impossível que um mesmo ser dependa de dois ,
qualquer que sej a o género de dependência, em que u m sej a o

(41) Relativamente à i mpossibilidade de duas naturezas necessárias por si;


Cap. III. cone! . 6, � 36.
(41) Ou seja: logo, é primeiro e único.
(44) «A necessidade de existir por si pertence a uma só natureza.» ; Cap. I I I ,
cone i . 6, � 3 5 .

76
termo total da sua dependência. Com efeito, um já não é su ri
cientemente o termo se o dependente ainda depende do ou lro
que falta. De modo semelhante, dependeria de algo sem cuj a
existência continuaria no entanto n a mesma ordem d e ser.
Entender, além disso, que existiria n a mesma ordem, vai contra
a noção de dependência.

43. Demonstrada esta conclusão, proponho agora as primeiras


conclusões, conjuntamente incluídas na décima quinta conclusão,
da seguinte maneira.

DÉCIMA SÉTIMA CONCLUSÃO: Qualquer primazia de


causa extrínseca de um tipo pertence a uma única natureza.
Prova-se: porque se uma tal primazia pertencesse a várias,
sê-lo-ia ou em rel ação aos mesmos posteriores ou a outros
posteri ores. Não do primeiro modo - pel a décima sexta
conclus ão apresentada ( 45 ) . D a mesma maneira, qual quer
posterior incluiria duas dependências do mesmo tipo, uma vez
que em relação a dois seres primeiros não há uma dependência.
A consequência é i ndevida. E também não se pode defender
que seria do segundo modo, porque se houvesse um primeiro
di sti nto para diversos posteriores estes constituiriam u m
universo distinto, j á que o s diversos posteriores nem estariam
ordenados entre si nem ordenados ao mesmo. Sem unidade de
ordem não existe unidade de universo. É num fim uno que
Aristóteles põe a bondade principal do universo (46). E dado
que há uma ordem em relação a um ser supremo, basta-me
falar só de um universo, sem inventar outro, relativamente ao
qual não tenho argumentos, antes pelo contrário, tenho c o n t r a .

44. Apresento agora alguns argumentos prováveis.


Um. À medida que se ascende na ordem essencial car n i n ha-sc

(4') <<É impossível que o mesmo ser dependa essenc ialmente de dois. ''nl L' ada
um dos quais termine totalmente a sua dependência>>; C'ap. l l l , cLHK I . 16, � 42.
(46) ARISTÓTELES Metaphysica X I I 1 O ( I 075 a I R ) .
-

77
para a uni dade e a escassez em número. Logo, é necessário
parar no uno.
Outro. A causal idade de uma causa superior estende-se a
vários efeitos. Em conformidade, quanto mais se sobe menos
causas serão precisas. Logo, etc (47). Esta prova clarifi ca a
imediatamente anterior.
Terceira (que parece ser cl ara em relação ao primeiro emi­
nente): se é impossível que duas naturezas não estej am orde­
nadas entre si, quer dizer, de forma a que uma não exceda a outra
- nisto são comparáveis aos números -, é muito mais impos­
sível que sej am duas as naturezas num mesmo primeiro grau.
Uma outra, acerca do fim: nenhum fim seria, então, capaz
de aquietar os outros fins distintos dele ; uma vez que isto é
ininteli gível, segue-se a conclusão como a anterior.
Quinto: em caso contrári o, nenhuma natureza conteria
virtualmente a perfeição de todas as demais naturezas ; dado
que i sto é i n i nte l i gível sem contradi ção, nenhuma seri a
perfeitíssima.

45. Para as outras três conclusões temos provas espect ai s .


Assim :

DÉCIMA OITAVA CONCLUSÃO: O primeiro efectivo é


actualíssimo porque contém virtualmente toda a actualidade
possível. O primeiro fim é óptimo porque contém virtualmente
toda a bondade possível. O primeiro eminente é perfeitíssimo
porque contém de modo eminente toda a perfeição possível.
Estas três primazi as não podem ser separadas porque se
uma se desse numa natureza, e uma outra em outra natureza,
nenhuma del as poderia ser absolutamente em inente . De onde
se segue que estas três primazias parecem exprimir três atributos
da suma bondade que concorrem necessari amente, a saber:
suma comunicabilidade, suma amabi lidade e suma integridade
ou total idade. Com efeito, o bem e o perfeito identificam-se

("7) I sto é : logo, há que parar numa primeira.

78
(quinto l ivro da Metafisica (48 )) e também o perfei to e o t ml( )
se i dentificam (terceiro l ivro da Física (49)) . De igual modo, SL'
evidencia que o bem é apetecível (primeiro l ivro da Ética ( '11 ) )
e c o m u n i c at i v o ( s e g u n d o Avi ce n a n o s e x t o l i v r o d a
Metafisica C 1 )). Mas não se comunica nada de uma maneira
perfeita a n ão ser que se comunique por l iberalidade. lslo
convém verdadeiramente ao sumo bem, o qual não espera
nenhuma retribuição ao comunicar-se, o que é específico da
l i beralidade, de acordo com Avicena, no capítul o quinto do
mesmo l i vro C2) .

46. DÉCIMA NONA CONCLUSÃO: Uma única natureza


existente é primeira em relação a qualquer outra na tríplice
ordem referida, pelo que qualquer outra natureza é-lhe assim
triplamente posterior.
Algum protervo, ainda que sustentando a décima quinta
conclusão ('3) , poderia dizer que além daquel a há muitas mais
naturezas, não decerto primeiras como aquela, mas nem por
isso posteriores àquela primeira segundo alguma das ordens
referidas, ou não segundo uma qualquer mas tão-só segundo a
da eminência. ou a da eminência e do fim . Não porém da
eficiência, como alguns dizem que Aristóteles pensava acerca
das i nteligências que se seguem à primeira e talvez acerca da
matéria primeira. Apesar disto se poder refutar com o que se
disse anteriormente, i mporta porém explicar.
Em primeiro l ugar, i sto reprov a-se com a sexta con­
clusão ('4) . Porque se o ser necessário por si pertence a u m a
natureza, o que não é posterior - e negando isto em qualquer

(4' ) ARISTÓTELES - Metaphysica V 16 ( 1 02 1 b 1 4 - 20) .


(40) ARISTÓTELES - Physica III 6 (207 a 1 3 ) .
(51') ARISTÓTELES · Ethica Niconwcheo I 1 ( 1 094 a 3 ) .
( 5 1 ) AV ICENA - Liber de Philosophia Prima VI 5.
C2 J AVICENA - Liber de Phi/osophia Prima VI 5.
( '') Cap. l l l , cone! 1 5 , � 40.
( 14) «A necessidade de existir por si pertence a uma s6 natUITI.a>> ; ( ';lp. 111.
cone! 6 , � 3 5 .

79
uma das três ordens - é um ser necessário por si. Logo, só
uma natureza é que n ã o é posterior em qualquer espécie de
posterioridade. Por conseguinte, qualquer outra natureza é assim
triplamente po sterior. A segunda proposição deste argumento é
evidente pela terceira C5), nona (56) e décima terceira conclusões
deste capítu lo (57 ) . Acrescente-s e a cada uma delas a sexta
con clus ão deste capí tu l o C8) .

47 . Em segundo lugar, p rova-se a conclusão e m particular: o que


n ão é um fim n em está ordenado para um fim é em vão ; nos
seres nada é em v ão ; log o, qualquer n atureza distinta do primeiro
fim está orden ada para um fim ; e se está ordenada para um
fim, então está- o para o primeiro, pela terceira conclusão do
segundo capítu l o C9).
Da mes m a maneir a, mas em relação ao eminente: o que
não é supremo n em é ex cedido por outro n ão tem nenhum grau;
assim sendo, é n ada ; logo , tudo o que n ão é supremo é excedido
por outro; l ogo , é-o pelo ser supremo, como se segue da terceira
conclusão do s e gundo capítul o (60).
Com est a s, demon stra-se em rel ação à efi ciência, que é
negada: tudo é ou fi m p rimeiro ou «finido», como se disse j á;
logo, ou é primei ro efi ciente ou «efectuado», pois os membros
d e s t a d i sj u n ç ã o s ão c o nv e rt í v e i s c o m os da anteri or.
Relativ ame n te à p osteridade, é evidente pelas conclusões
quarta (6 1 ) e qui nta do capítul o segundo (62) . Relativamente ao

''
( ) « U m efec tiv o absolutamente primeiro é incausável, porque é i nefectível e
é efectivo independ e nte » ; Cap . III, cone\. 3, � 32.
( '") << 0 pr i m e i ro finit ivo é incausável»; Cap. Ill, cone!. 9, � 38.
( '7 ) << A n at ureza suprem a é incausável>>; Cap. III, cone!. 1 3 , � 39.
( '") << A nec essida de de existir por si pertence a uma só n atureza>>; Cap. III,
cone!. 6. � 3 5 .
( 59 ) << 0 q u e não é posterio r ao anterior também não o é ao posterior»; Cap. I I ,
cone! . 3 , � 9 .
( "0) << 0 q u e não é posterior a o anterior também não o é ao posterior»; Cap. I I ,
cone! . 3 , � 9.
( '" ) << 0 q u e não é ' finido ' não é 'efectuado'»; Cap. I I. cone!. 4, � I I .
( "2 ) <<Ü q u e não é ' efectuado ' não é 'finido'»; Cap. II, cone!. 5, * 1 2.

80
pri meiro fi m , é e v i dente pelo argumento imcdiatai11L' I I ll'
precedente (6 3) .
De i gual maneira, agora para a emmencia: se tudo � o u
supremo ou excedido p e l o s upremo, então ou é primeiro
efi c i ente ou «efectuado » , pois também os membros dest a
disjunção são convertívei s, de acordo com a penúltima (''1) c a
última conclusão do segundo capítul o (65) e a décima quinta
conclusão deste capítu l o terceiro (66 ) .
Além do mais, pôr-se um ser que não tenha nenhuma ordem
é bastante i rracional , como se mostra na segunda razão da sexta
conclusão (67) e, de alguma maneira, na prova da décima sétima
conclusão deste capítu l o (68) .

48. Verdadeiramente, Senhor, fizeste todas a s coisas ordenadas


em sabedoria, para que todo o entendimento vej a racionalmente
que todo o ser está ordenado. Por isso, foi absurdo terem os
filosofantes retirado a ordem a algum ser. Mas desta proposição
universal «todo o ser está ordenado» segue-se que nem todo o
ser é posterior nem todo é anterior: em ambos os casos, ou um
ser estaria ordenado a s i mesmo ou se admitiria um círculo na
ordem . Há, portanto, algum ser anterior que não é posterior, e
que é, por isso, primeiro e há algum ser posterior que não é

( " 1 ) <<Uma ú nica natureza existente é primeira em relação a qualquer outra n : r


trípl ice ordem referida, pelo que qualquer outra natureza é-lhe assi m triplamcntL'
posterior>>; Cap. I I I . cone!. 1 9, � 46.
( ' ' ) «0 primeiro efectivo é actualíssimo porque contém virtual n1entc toda :r
'

actualidade possível. O primeiro fim é óptimo porque contém virtua!m,·ntc t o d a :r


bondade pos s íve l . O primeiro emi nente é perfeitíssimo porque contém de r n od o
eminente toda a perfeição possível>>; Cap. I I I . concl. 18, � 45 .
(''') «Todo o ' fi nido' é excedido>>: Cap. I I . cone!. I 6, * 22.
(''") «A tríplice primazia na referida tríplice ordem essenc ial. de ,.1-ic i<·rl< " r a . <1<­
fim e de eminência, pertence a u ma mesma c ú nica natureza existente e r n ac to•- : < ':r p
I I I . conc l . 1 5 , � 40.
(''7 ) De acordo com a qual uma natureza sem ordem essc n c r :i l nao ,·.x r st r r r a no
universo; cf. Cap. I I I , cone!. 6, � 36.
(''x) Para a qual. sem unidade de ordem não existe un idade de 11ni vnso; < ':q>. I I I .
concl. 1 7 . � 43.

XI
anterior. Não há nenhum, porém, que não sej a ou anterior ou
posterior. Tu és o único primeiro e tudo o que é distinto de ti é
posterior a ti , tal como declarei, conforme pude, ao tratar da
tríp l ice ordem.

82
CAPÍTULO IV

Simplicidade, infinidade
e intelectualidade do Ser Primeiro

49. Senhor nosso Deus, desej aria, se mo concederes, mostrar


de algum modo as perfeições que, não duvido, pertencem à tua
n atureza, única e verdadeiramente primeira. Creio que és
simples, i nfinito, sábio e dotado de vontade. Atendendo a que
não quero cair num círcul o na prova, avançarei com algumas
proposições relati vas à simplicidade, que poderei em primeiro
l ugar provar, mas diferirei outras rel ativas à simp l i cidade para
o lugar próprio em que as puder provar ( ' ) .

50.Neste quarto capítulo, portanto, deve mostrar-se a segui nte


primeira conclusão :

PRIMEIRA CONCLUSÃO: Em si a primeira natureza é simples.


D i go «em s i » porque estou aqu i a pensar apenas n a
simplicidade essencial , a qual exclui absolu tamente tod a a
composição na essência.
Esta conclusão prova-se assim : a primeira natureza n ão C·
causada, de acordo com a terceira conclusão d o terce i ro
capítul o () Logo, não tem partes essenciais, i sto é, l l l a l � r i a c
.

forma.

e l Cf. Cap. IV. cone ! . I O. � 8 8 sg.


( 2)<<Um efectivo absolutamente primeiro é incaus<Ívcl. pmq u L· c i m·kcl ívcl c c

efectivo i ndependente>>; Cap . l l l . cone!. 3. � 3 2 .

83
Mai s : não tem perfeições diversas, de alguma maneira
realmente distintas, às quais se possa ir buscar a noção de género
e de diferença. Prova-se i sto pel a primei ra prova da sexta
conclusão do capítu l o terceiro C): porque ou uma dessas
perfeições , segundo a sua própria noção, seria aquilo pelo qual
o todo seria primariamente um ser necessário, e a outra perfeição
nem primariamente nem por si - em cujo caso, estando as
demais incluídas essencialmente no todo, o todo n ão seria u m
ser necessário, porque incluiria formalmente o não-necessário
-; ou, se o todo fosse primariamente um ser necessári o por
ambas as rea l i dades, seria duas vezes necessári o e teri a
primariamente dois seres, nenhum dos quais i ncluiria essen­
cialmente o outro. Analogamente, uma e outra não seria uma e
outra, pois por elas não se daria o uno, se cada uma delas desse
primeiramente o ser necessário. Cada uma del as seria, com
efeito, a actual idade última e desse modo ou nada de idêntico
se produziri a por elas ou elas em nada se diferenciari am umas
das outras, e assim não seriam duas .
Corolário: a natureza primeira não está compreendida pelo
género. É o que se torna patente por este último argumento.
Todav i a prova-se: a n atureza compreen dida pelo género
exprime-se toda ela na definição em que o género e a diferença
não significam totalmente o mesmo, o que equi valeria a uma
negação . O contrário disso encontra-se numa natureza simples
ass1m.

5 1 . Objecta-se aqu i : se de duas real idades exi stentes no mesmo


ser só por uma del as é que ele pode ser necessário, pelo que a
outra não seria necessária (de outra maneira seria duas vezes
necessário ) , segue-se que no ser necessário não se pode pôr
nenhuma realidade distinta, segundo as suas noções formais.
Logo, nem se podem pôr nem essência nem relação na pessoa
divi na. O consequente é falso; logo, também a primeira prova

( ') Trata-se c.l a prova q u e c.lcmonstra a impossibil ic.lade de d u a s naturezas


necessárias por si tenc.lo c m comum essa necessidac.le c.le ser mas c.l i stintas pelas suas
LÍ i t i m as formal ic.lades; Cap. I I I , cone ! . 6, § 3 5 .

84
lal ha. Argumenta-se contra a segunda de modo p a reci do : cada
1 1 1 11a das realidades seria a última actualidade ou uma d e l a s n ão
seri a necessária.
Respondo: em tudo o que se distingue pelas noções formais,
se é componível como acto e potência ou como duas entidades
capazes de actual izarem o mesmo, se uma del as é infinita, pode
incluir a outra por identidade; e inclui-a mesmo, de contrário o
infi nito seri a componível , o que se reprovará na nona conclusão
deste capítulo e). Mas se é fi nita, não inclui por identidade a
que é primeiramente diversa na sua noção formal , posto que
um tal finito é perfectível por ela ou com ela componível . Então,
ao s ustentar-se que o ser necessári o tem du as real idades,
nenhuma das quais contém a outra por identi dade - o que se
requer para haver composição -, segue-se que uma delas não
seria um ser necessário nem formalmente nem por i dentidade,
ou que o todo seria duplamente necessário. E assi m val idam-se
ambas as provas .
As objecções baseadas na pessoa divina não valem, porque
estas duas realidades não fazem composição, antes uma é a
outra por identidade, por ser i nfin ita.
E se obj ectas : «Digo, ao caso, que há uma composição c
duas realidades no ser necessário, mas que uma é infinita» ,
contradizes-te dup l amente. Pri meiro, porque o i nfi n i to é
i ncomponível enquanto parte de outra realidade, j á que a parte
é menor que o todo. Segundo, porque se pões uma composição,
nenhuma das realidades é a outra por identidade. Assim sendo,
ambas as provas decorrem.

52. SEGUNDA CONCLUSÃO: Tudo o que é intrínseco ú sunl(t


natureza é-o sumamente.
Prova-se: conforme se segue da conclusão anteri or, l u do o
que é intrínseco à suma natureza é absolutamente i d C· n l i c o a
ela por causa da simpl icidade. Por consegui nte, como aq ul' l a
natureza é a suma natureza, o que lhe é intrínseco é-o s u l l lat m· n l c

( 4 ) Cf Cap. I V cone!. 9. � 67.

xs
porque é idêntico a ela. Aliás, se se pudesse conceber algo que
excedesse a sua entidade poderia também conceber-se que a
natureza é excedida segundo a sua entidade, a qual é idêntica à
entidade do que lhe é i ntrínseco.

53. TERCEIRA CONCLUSÃO: Toda a peljeição simples e em


sumo grau é necessariamente inerente à suma natureza.
Diz-se «perfeição simples» aquel a que num qualquer é um
i sso melhor do que um não-isso C). Esta descrição parece
desprovida de valor, poi s , se a entendermos no p l ano da
afirmação e da negação, em si a afirmação não é melhor do
que a sua negação, em si e em qualquer ser, caso se possa dar
nele . Mas se a concebermos não apenas em si e em qualquer
ser em que possa i nerir, mas pura e simplesmente em todo o
ser, então é falsa. Num cão a sabedoria não é mel hor do que a
não-sabedoria, porque nele não há bondade a contradizer.
Respondo: essa descrição é famosa. Expl icá-la-emos assim:
«melhor que um não-i sso» quer dizer melhor que qualquer coisa
de positivo incompossível com ele e em que se inclui «Um não­
-isso» . Neste sentido, digo eu, é melhor «num qualquer» -
não para u m qualquer, mas «num qualquer» - enquanto é por
si mesmo; porque é melhor do que o seu incompossível por
causa do qual não pode i nerir.
Pode dizer-se isto em poucas palavras : a perfeição simp l es
é aquel a que é simplesmente e absolutamente melhor do que
qu a l quer i n compossíve l . A s s i m sendo, e xp l i ca-se « nu m
qual quer que um não-isso» quer dizer «um qual quer que não é
i sso» . Não me ocupo do mai s , rel acionado com a referida
descrição. Aceito a que foi dada no princípio do parágrafo, que
é clara. Deve entender-se aí a incompossibilidade em predicação
denomin ati va, porque é assim que del a comummente se fal a .

e l A NSELMO - Monologion 1 5 (PL 1 5 8. 1 62 - 1 63 ; trad. port. A . Ricci. São


Paulo. 1 973. 32). Note-se. porém. o texto no original do nosso autor: «Perfectio
simplicitcr dicitur quae in quolibet est melius ipsum quam non ipsum>>.

86
54. Provo a terceira conclusão, entendida desta maneira : a
perfeição s i mples tem em rel ação a todo o i ncomposs ívcl
alguma ordem segundo a n obreza, n ão no sentido de um
e x c e d i d o ( p e l a defi n i ç ã o ) , mas de um e m i n e n t e . Por
conseguinte, ou é i ncompassível com a natureza suprema, por
excedê-la, ou compassível com ela, e pode por isso i nerir nela,
i nclusive em sumo grau, pois é compassível com ela se é
compassível com algum ser. É -lhe inerente tal como é com­
possível com ela. Todavia, não inere nela como um acidente
contingente; l ogo, é-lhe inerente ou por identidade ou, pelo
menos, como um atri buto próprio. Tem-se deste modo provado
o que havia que provar, a saber, que ela é necessariamente
inerente.
Ora, que não existe nela acidentalmente, como acidente
conti ngente, provo-o : em toda a perfei ção que não sej a
incompatível com a necessidade, o que a possui necessariamente
possui-a de uma maneira mais perfeita do que aquele que a
p o s s u i d e m a n e i r a c o n t i n g e n te . A n e ce s s i d ade n ão é
i ncompatível com a perfeição simples, porque nesse caso uma
perfeição i ncompassível com ela excedê-la-ia, isto é, como uma
que é ou pode ser necessária. Mas nada pode possu i r uma
perfeição simples de um modo mais perfeito que a natureza
primeira - segue-se da segunda conclusão deste capítulo <6>.
Logo, etc m_

55. Faltando-me ainda abordar a infi nidade e o restante rel ati vo


à simpl icidade, tratarei primeiro do entendimento e da vontade
porque vou ter que as dar como supostas mais à frente .
A primeira conclusão é esta:

QUARTA CONCLUSÃO: O primeiro efi.ciente é intdigl'nlt' t'


dotado de vontade.

( '') «Tudo o que é intrínseco à suma natureza é-u sumameJ l l e " : ( 'ap. I V. l'< J J l c l . . ' .
§ 52
(') ÜLI seja: logo, a natureza primeira possui-a necessari a J J l l ' J J ! t · .

87
Provo-a: o primeiro é agente por s i , pois, de acordo com o
segundo li vro da Física, a causa por si é anterior a toda a causa
acidental (8). Todo o agente por si age por causa de u m fim .
Daqui, o poder argumentar-se de duas maneiras :
Primeira: todo o agente natural, como tal considerado ,
agiria necessariamente e da mesma maneira se não agisse em
vi sta ele nenhum fim e fosse independente; logo, se não age
senão por um fim é porque depende de um agente que ama o
fim ; portanto, etc C).
A segunda é a segui nte: se o primeiro eficiente age com
vista a um fim, então esse fim faz mover o primeiro efici ente
ou enquanto amado por um acto da vontade, e a conclusão
proposta é ev idente, ou move-o enquanto amado apenas
natural mente. Isto é falso, porque o primeiro eficiente não ama
naturalmente um fim distinto ele si, tal como o grave ama o
centro e a matéria a forma; nesse caso, estaria de alguma
maneira ordenado a um fim posto que se inclina para ele. Se
apenas ama naturalmente o fi m, que é ele próprio, i sso só quer
dizer que ele mesmo é ele mesmo; não é assim que nele se
salva a dupla razão ele causa.
Mais: o primeiro eficiente dirige o seu «efectuado» para o
fim . Então, ou o dirige naturalmente ou pelo amor elo fim . Não
é da primeira maneira, porque aquele que não conhece só dirige
em v irtude de outro que conhece - a primeira orientação é ele
facto própria daquele que sabe ('0) - e o primeiro eficiente
não dirige, tal como nem sequer causa, em virtude de outro.

56. A terceira é a seguinte: algo é causado contingentemente;


logo, a primeira causa causa ele maneira contingente; logo, causa
querendo. Prova da primeira consequência: qual quer causa
segunda causa enquanto é movida pel a primeira; logo, se é

(') ARISTÓTELES - Physico II 6 ( I 98 a 7 - 9).


('') Entenda-se: portanto, depende de um agente dotado de i nteligência e de
vontade.
(I") Cf ARIST ÓTELES - Metaphysica I 2 (982 a 1 2).

88
l llovida necessariamente pela primeira, toda a outra c a u s a ser; i
movida necessariamente e todo o efeito será causado tcmh6n 1
necessariamente. Prova da segunda consequência: só a vontade
ou al go que a acompanhe é princípio de operação contingente,
pois qualquer outra causa age pela necessidade de natureza c,
por isso, não contingentemente.
Obj ecta-se contra a primeira consequência: o nosso querer
pode causar algo contingentemente. Mai s: o Filósofo concedeu
o antecedente, mas negou o consequente quando se referiu ao
querer de Deus, atribuindo a contingência aos seres inferiores,
pelo movimento, o qual , enqu anto é uniforme, é causado
necessari amente, embora o sej a contingentemente na medida
em que a disformidade se deve às suas partes.
Contra a segunda: algumas coisas movidas podem ser
impedidas e assim pode acontecer contingentemente o oposto.
Resposta à primeira objecção: se há um primeiro eficiente
relativamente à nossa vontade, del a se há-de seguir o mesmo
que rel ati vamen te aos demais efeito s . Porque o pri meiro
eficiente ou move i mediatamente a nossa vontade de um modo
necessário ou move imediatamente outro ser, e o que é movido
necessariamente também move necessariamente, pois move na
medida em que é movido, até que por fim um eficiente próx imo
moverá necessariamente a nossa vontade; e assi m ela quererá
necessariamente. Segue-se, além do mais, algo de i mpossível ,
que ela causa necessariamente o que causa voluntari amente.
Resposta à segunda: não chamo conti ngente, aqu i , ao que
não é necessário nem sempiterno, mas àqu i l o cuj o oposto
poderi a ser fei to quando aquilo é fei to. Por isso disse: «algo L;
causado contingentemente» e n ão «algo é contingenk» . Dig o
apenas que o Filósofo não pôde negar a consequência sa l v a n d o
o antecedente pelo m o v i mento, porque s e todo a q t � c k
movimento provém necessari amente da sua causa, q t � a l q l l n
das suas partes é causada necessariamente ao ser c a l l s a d a , i s t o
é , i nevi tavelmente, pelo que então o oposto n ã o J H H i l- ser
causado. E mais ainda: o que é causado por u m a p arle q t � : l i q l l n
do movi mento é-o necessariamente, isto é, inevi tavc l l m'nle.
Logo, ou nada se faz contingentemente, i s t o L\ cvi tavcl nlcn lc,

X9
ou o primeiro eficiente causa, inclusive imediatamente, de tal
maneira que poderia não causar.
Resposta à terceira: se outra causa pode impedir esta, pode
impedi-la em virtude de uma causa superior, e assi m até à causa
primeira. Se esta move necessari amente uma causa que lhe é
imediata, haverá a necessidade em toda a ordem de causas até
se chegar àquela que i mpede. Logo, i mpedirá necessariamente.
Logo, em tal caso, uma outra causa n ão poderia causar
conti ngentemente um efeito.

57. Quarta prova da conclusão: há algum mal nos seres, l ogo, o


primeiro eficiente causa contingentemente; e, por conseguinte,
como a n tes C 1 ) . Prov a da con sequên c i a : o que age p o r
necess i dade d e natureza age c o m toda a sua potência, e,
portanto, produz toda a perfeição possível de ser produzida por
si mesmo. Logo, se o primeiro, e em consequência do que se
deduziu, todo outro agente, age necessariamente, segue-se que
toda a ordem de causas causará neste universo tudo aqui l o que
é possível que elas causam nele. Logo, não l he faltará nenhuma
perfeição que l he possa ser dada por todas as causas agentes ;
logo, não lhe faltará nenhuma capaz de receber, e portanto não
haver i a nele nenhuma maldade . Estas consequên c i as são
evidentes: porque toda a perfeição receptível pelo universo é
causável por alguma ou por todas as causas orden adas . A última
consequênci a é evidente pela noção de mal , e a prova conclui
para o vício nos costumes da mesma maneira que para a falha
na natureza.
D irás : «a matéria não obedece». De nada serve; um agente
poderoso venceria a desobediência.
Esta conclusão, prova-se, de uma quinta maneira, porque
ser vivo é melhor que tudo o que n ão v i ve, e entre os seres
v i vos o i ntel igente é melhor do que tudo o que não é.

58. Alguns provam esta conclusão por uma sexta via, retirada

(11) Leia-se: e, por conseguinte, querendo.

90
da terceira conclusão demonstrada acima C2) : porque eks
supõem como evidente que o entender, o querer, a sabedori a c
o amor são perfeições absolutas.
Mas não se vê por que razão é que se pode concluir que se
t rata de perfeições absolutas, mais do que a natureza do primeiro
anj o . Se de facto tomas «sabedoria» denominativamente, ela
será melhor do que todo o denominativo incompassível com
ela, mas não provaste que o primeiro é «sábio». Digo que cais
numa petição de princípio. Só podes concluir que o «sábio» é
melhor do que o «não sábio», excluindo o pri meiro. Deste modo
o primeiro anjo é melhor do que todo o ser tom ado denominati­
vamente, incompass ível com ele, à excepção de Deus. E o que
é mais, a essência do primeiro anjo, em abstracto, pode ser
melhor do que a «sabedoria» em absoluto.
Dirás: «a essência do primeiro anjo repugna a muitos;
portanto não é melhor den o m i nati v amente para todo s » .
Respondo : nem sequer a s abedoria é melhor para todos
denominativamente ; repugna a muitos.
D i rás : «seri a melhor para todos se ela pudesse i nerir em
todos; seria melhor para um cão se el e fosse sábio». Respondo:
então, seria melhor para o primeiro anjo, se ele pudesse ser
cão, e para o cão seri a melhor se pudesse ser o primeiro anjo.
Dirás : «pelo contrário, isso destruiria a natureza do cão,
pelo que não seria bom para o cão» . Respondo: também «ser
sábio» destruiria a sua natureza. Não há diferença, a não ser
que «anjo» destrói como uma natureza do mesmo género c
«Sabedoria» como uma de um outro género, mas incompossívcl ,
todavia, porque «sábio» determina para s i enquanto sujeito uma
natureza do mesmo género que é i ncompossível ; o que u 1 1 1
sujeito repugna primariamente, u m atributo do sujeito repugna o
por si, apesar de não primariamente. A maneira v u l gar de fa l a r
sobre a perfeição absoluta vacila bastantes vezes.
Mais: parece chamar-se intelectual ao grau s u pre m o de u 1 n
género determi n ado, como a substân c i a . D e o n d e , l' l l l ã o ,

( �')«Toda a perfeição s imples c c m sumo grau é netTssaria l l lt'llll" l lll'l'l'llll' a


suma natureza.»; Cap. IV, cone!. 3, s 5 3 .

91
concluir-se que é uma absoluta perfeição? Relativamente aos
atri butos do ser em comum, não é assim ; eles seguem-se a todo
o ser ou como atributos comuns ou como disjuntivos.
Se algum protervo disser que todo o denominativo primeiro
de qualquer género generalíssimo é uma perfeição absoluta,
como é que o haveri as de refutar? É que ele estaria a dizer que
qualquer denominativo desse tipo era melhor que qualquer outro
incompassível com ele, se o tomarmos denominativamente, pois
os incompossíveis não são senão denomi nati vos do seu género,
a todos os quais excede. Se o entendermos em rel ação às
substâncias denominadas enquanto denominadas, dir-se-á uma
coisa parecida: se a substância é determinada, determina o que
é mais nobre para s i ; se não determi nar, pelo menos todo o
suj eito, enquanto é denomi n ado por ele, é melhor do que
qual quer outro sujeito, enquanto este é denominado por um
outro denominativo i ncompassível com ele.

59. QUINTA CONCLUSÃO: O primeiro causante causa de


um modo contingente tudo aquilo que causa.
Prova-se: o que causa i mediatamente causa contingente­
mente, pela terceira prova da quarta conclusão anterior C 3 ) .
Logo, também causa assim todas a s coi sas, pois o contingente
não precede n atural mente o necessário nem o necessário
depende do contingente.
Tam bém, pel a vol i ção do fim : nada é necessariamente
querido senão aquilo sem o qual não subsiste o que é querido
como fim . Deu s ama-se como fi m, e tudo o que ele ama
rel ativamente a s i como fim pode subsisti r, ainda que nada exista
fora de si, pois o que é necessário por si não depende de nenhum
outro. Logo, não quer necessariamente nada por volição; logo,
nem causa necessariamente.
Contra : «querer outra coisa» é i dêntico ao primeiro
princípio . Logo, também é u m ser necessário ; logo, não é
contingente.

( ' J ) Prova a parlir da causalidade contingente no uni verso.

92
Mai s : se a terceira prova da conclusão anterior, n a q u a l
esta se apoia, conclui bem, então não há contingência de u m a
qual quer causa segunda na ordem da causalidade a não ser que
haja contingência no querer do primeiro princípio. Porque assim
L·omo a necessidade no querer do primeiro princípio leva a
concluir a necessidade de qualquer outro na ordem da causal i­
dade assim a sua determinação no querer l evaria a concluir a
determinação de qualquer outro no causar. Mas a sua determi­
nação no querer é eterna ; Jogo, qualquer causa segunda está já
determinada antes de agir, e por isso não está em seu poder
determinar-se para o oposto.
Isto ainda se esclarece mais: se no poder da causa segunda
está o determi n ar-se para o oposto, segue-se que com a
determinação no querer da causa primeira está a indeterminação
no causar da causa primeira, porque não está em seu poder
fazer a causa primeira i ndeterminada. E se com a determinação
ela primeira causa está a i ndeterminação ela segunda, parece
que com a necessidade da primeira causa está a possibilidade e
a não-necessidade da segunda. Por conseguinte, ou a terceira
prova nada vale ou a nossa vontade não parece ser l i vre por s i
para o s opostos.
Mai s : se a primeira causa determi nada determina, como é
que uma causa segunda pode sequer mover para algo cujo
oposto a primeira causa moveri a caso movesse, como s u cede
com a nossa vontade pecadora?
Uma quarta objecção: todo o efectuar seri a contingenll'
porque depende da eficiência do primeiro princíp i o . q u e 0
conti ngente.
Trata-se de dificuldades, cuja plena e clara solução req un
muitas exposições e explicações . El as devem ser bu scadas 1 1 : 1
questão que disputei acerca d a ciência de Deus c m rc l a �·ão ao�
futuros contingentes ( '4).

( ' ") Cf. J . D. ESCOTO - Lectura I . d . 39. q . I - 5.

93
60. SEXTA CONCLUSÃO: Para a primeira natureza, amar-se
é idêntico à natureza primeira.
Esta conclusão provo-a assim : a causal i dade e a causação
da causa final é absolutamente primeira, pel a quarta concl usão
do segundo capítul o C5). Por isso, a causal idade do fim primeiro
e a sua causação é inteiramente incausável segundo qual quer
causação em qualquer género de causa. Mas a causali dade do
fim primeiro consiste em «mover o primeiro efi ciente enquanto
amado», que é o mesmo que «O primeiro eficiente ama o
primeiro fim » . Dizer «Um objecto é amado pel a vontade»
equivale a dizer «a vontade ama um objecto». Logo, «O primeiro
eficiente ama o primeiro fim» é i nteiramente incausável, e assim
é em s i um ser necessário, pela quinta concl usão do terceiro
capítul o C 6 ). E assim será idêntico à natureza primeira, pel a
sexta conclusão do mesmo capítulo ( 1 7 ) . Esta dedução é evidente
pel a décima quinta conclusão do terceiro capítul o ( ' 8).
Deduz-se a conclusão de outra maneira, e voltamos ao
mesmo resultado: se «O primeiro se ama a si mesmo» é distinto
da natureza primeira, segue-se que é causável, pel a conclusão
décima nona do terceiro capítu lo ( ' 9). Logo, é efectível , pel a
quinta conclusão do segundo capítul o ( 2°) . Portanto, é-o por
um eficiente por si, pela prova da quarta conclusão deste mesmo
capítul o ("!) ; l ogo, é efectível por algo que ama o fim, pela
mesma prova. Por conseguinte, «O primeiro ama-se a si mesmo»

( 1 5) <<Ü que não é 'finido' não é 'efectuado ' » ; Cap I I . come i . 4, � I I .


( "' ) <<Ü incausável é cm si mesmo necessário>>; Cap. lll, cone!. 5 , � 34.
( 17) <<A necessidade de existir por si pertence a uma só n atureza» ; Cap. l f l .
cone! . 6. � 3 5 .
( '") <<A tríp lice primazia na referida tríplice ordem essencial, de eficiência. de
fim c de eminência. pertence a uma mesma c única natureza existente cm acto»;
Cap. I I I . cone!. 1 5. § 40.
( 1 '1) <<Uma única natureza existente é primeira em relação a qualquer outra na
tríp l ice ordem referida, pelo que qualquer outra natureza é-lhe assim triplamente
posterior»; Cap. l l l . cone!. 1 9. � 46.
(11) <<Ü q ue não é 'efectuado' não é ' finido'»; Cap. I I . cone!. 5 . � 1 2.
(' ) A saber: a causa por si é anterior a toda a causa acidental. Todo o agente
por si age por causa de um fim ; Cap. I V. cone i. 4. � 5 5 .

94
·.l-ria causado por algum amor do fim anterior a ele, o q u l' l'
l l lljlOSSÍVel .

6I. Aristóteles mostra isto, rel ativamente ao acto de entender,


110 décimo segundo l i vro da Metqfísica (22) : se fosse de ou tro
modo, o primeiro não seria a substância óptima, dado que o
acto de ente nder é que l he dá nobreza. Além do mai s , a
continuação do acto de entender seria l aboriosa, porque se o
primeiro não fosse o acto de entender, mas estivesse apenas
cm potência para esse acto, a continu ação dari a trabal ho,
.� egundo o referido autor.
Estas razões podem ser explicadas . A primeira: como a
perfeição últi ma de todo o ser em acto primeiro, especialmente
se é «activo» e não apenas «factivo» e3) , consiste no acto
segundo pelo qual se une ao óptimo - e todo o ser intelectual
é activo e a pri meira natureza é i ntel ectual , confo rme a
conclusão anterior (4) - segue-se que a sua perfeição última
está no acto segundo. Portanto, se ele não é a sua substância, a
sua substância não é óptima, porque seria distinto o seu óptimo.
Segunda: a potência meramente receptiva é uma potência
de contradição CZ5) ; togo CZ6) .
Esta segunda razão, porém, não é uma demonstração,
segundo Ari stóteles, mas apenas um argumento provável. Daí
ter dito antes : «é racional», etc. e)
Mostra-se, de outra maneira, pel a identidade ela potênci a c
do objecto entre si ; l ogo, o acto é i dêntico a eles e). E s t a

(l) ARISTÓTELES - Metaphysica X I I 9 ( 1 074 b 1 5 - 30).


( '' ) Cf. ARIST ÓTELES - Ethica Nicomllchea V I 5 ( 1 1 40 a I - 6): I I l . · i1/,·rt�
ph rsica IX 8 ( I 050 a 2 1 - I 050 b I ) .

{'") <<0 primeiro eficiente é inteligente c dotado de vontade»: Cap. I V. collc I ·I.
� 55
(") Cf. ARISTÓTELES - MelriJJhysica X I I 9 ( 1 074 b 27 - 2fl).
e'•) Complete-se: i mplica trabalho.
(") ARISTÓTELES - Metaphysica X I I 9 ( I 074 h 27 - 2fl).
(") Cf. TOM Á S de AQUINO · Sentcntiar11111 I , d. 3 5 , q . I . ad .i: I I >. Sun1111t1
11!eologiac I, q. 14, a. 2 in corp.

95
consequência não vale. Exemplo: um anjo conhece-se, ama-se;
no entanto, o seu acto não é idêntico à substância.

62. Esta conclusão é fecunda em corolários.


Segue-se de facto, em primeiro lugar, que a vontade é
idêntica à primeira natureza, porque o querer só pertence a uma
vontade; portanto, ela é incausável ; logo, etc. e9) De maneira
idêntica: o querer concebe-se como posterior, e no entanto o
querer é idêntico àquela natureza; logo, a vontade sê-lo-á mai s .
Segue-se, e m segundo lugar, que entender-se é idêntico
àquela natureza, porque nada é amado se não for conhecido;
l ogo, o entender é necessário por si ; de modo parecido, está
como que mais próximo daquela natureza do que o querer.
Segue-se, em terceiro lugar, que o intelecto é idêntico
àquela natureza, argumenta-se como antes, acerca da vontade
a partir do querer.
Segue-se também que a razão pela qual se entende a si
mesma é idêntica àquela natureza, porque é um ser necessário
por s i , e como que é concebida antes da intelecção.

63. SÉTIMA CONCLUSÃO: Nenhum acto de entender pode


ser wn acidente da natureza primeira.
Prova-se: já se demonstrou que a natureza primeira é em si
o primeiro efectivo; logo, tem por si o poder de causar qualquer
causável , excluindo qualquer outra, pelo menos enquanto causa
primeira do causável . Mas se se prescindir do seu conhecimento,
não terá como poder causá-lo. Logo, o conhecimento sej a do
que for não é distinto da sua natureza.
Prova-se a última afirmação: nada pode causar a não ser
por amor do fim, querendo-o, porque de outro modo não seria
um agente por si já que nem sequer agiria por causa de um fim.
Mas antes do acto de querer alguma coisa por um fim concebe­
-se o acto de entender alguma coisa. Logo, antes do primeiro

("') Entenda-se: logo. a vontade é incaus;ível (necessária por si, idêntica à


natureza primeira).

96
s inal pelo qual o concebemos como causando ou querendo,
concebê-mo-lo necessariamente como entendendo A. Sem esta
i ntelecção não pode efectivar por si A bem como demais efeitos.

64. Mais: todas as intelecções de um mesmo intelecto têm


para com esse intelecto uma relação simil ar de i dentidade
essencial ou acidental. Isto é evidente em qualquer intelecto
criado. Mostra-se: elas parecem ser perfeições de um mesmo
género; logo, se alguma tem um cunho receptivo todas o têm,
e, também, se alguma é um acidente todas também o serão.
Nenhuma pode ser acidente no primeiro, segundo a conclusão
precedente C0). Logo, nenhuma o é.
Mai s : se o entender pudesse ser u m acidente seria recebido
no entendimento como em um sujei to. Logo, o entender, que é
idêntico ao entendimento e por i sso é mais perfeito, estaria em
potência receptiva em relação ao que seria mais i mperfeito .
Mais ainda: um mesmo inteligir pode ter vários objectos
ordenados. Assim, quanto mais perfeito tantos mais obj ectos.
Logo, o perfei tíssimo, o que faz com que sej a i mpossível u m
entender mais perfeito, será o mesmo para todos os i ntel igíveis.
O entender do primeiro é perfeitíssimo neste sentido, pela
segunda conclusão deste capítulo C 1 ). Logo, é o mesmo para
todos os i nteligíveis ; também o que é seu é idêntico ao primeiro,
pela conclusão imediatamente precedente C2) . Logo, etc C3).
Entenda-se a mesma conclusão a propósito do querer.

65. Também se argumenta assim: esse i ntelecto não é senão


um certo entender; esse intelecto é o mesmo para todos os
obj ectos, de maneira que não pode haver outro para um objecto

('0) <<Para a primeira natureza, amar-se é idêntico à natureza pruncira>>, < ' a p . I V.
cone!. ó, § 60.
('') <<Tudo o que é intrínseco à suma natureza é-o sumamente»; Cap. I V, mnd . 2.
* 5 2.
( n) <<Para a primeira natureza, amar-se é idêntico à naturet.a primeira» ; < 'ap. I V.
cone ! . 6, § 60.
I ( '' ) Completa-se: logo. não pode ser acidental.

I
/
I �
diferente; assim também o entender não pode ser diferente ou
então é o mesmo para todos os objectos . Respondo : trata-se de
uma falácia de acidente, concluir da identidade absoluta de duas
coisas entre si a identidade com uma terceira, em rel ação à
qual são estranhas ('4). Um exempl o : o entender do primeiro é
idêntico ao querer; l ogo, o objecto do entender será idêntico ao
do querer. Não se segue. Há um querer que é do mesmo objecto
do ente nder, de maneira que a i nferênc i a pode fazer-se
separadamente, mas não conj untamente, devido à relação
acidental .
Também se argumenta assim: o entendi mento do primeiro
tem um acto adequado a si e coeterno, porque o seu entender é
i dêntico a s i . Logo, não pode ter outro. A consequência não
vale: caso do argumento do bem-aventurado que vê Deus e ao
mesmo tempo vê outra coisa; ainda que vej a Deus no ú l timo
grau da sua capacidade, tal como se pensa acerca da alma de
Cristo, pode todavia ver outra coisa.
Mais se argumenta: por identidade aquele entendimento
tem em si a máxima perfeição de entender. Logo, tem também
todas as demai s . Respondo : não se segue; porque outra
perfeição, que fosse menor, poderia ser causável e, portanto,
di stinguir-se da i ncausável ; a máxima não o pode.

66. OITAVA CONCLUSÃO: O entendimento do primeiro


princípio entende sempre em acto, necessária e distintamente
tudo o que é inteligível por natureza antes que o inteligível
exista em si.
A primeira parte da conclusão prova-se assim: o primeiro
pode conhecer qualquer i ntel igível desta maneira porque o poder
de entender disti ntamente e em acto é uma perfe ição do
intel ecto ; melhor ainda: é necessário à natureza do i ntelecto,
porque todo o i n tel ecto tem como obj ecto o s er tomado
comunissimamente, como sustentei em outro l ugar C5) . Por

(" ) Cf. ARIST ÓTELES - Re(utavles So{ísricas I 5 ( 1 66 b 2 8 - 30).


( " ) Cf. J . D. ESCOTO - Ordinario L d. 3, p . I, q . 3.

98
l lt t l ro l ado, o i ntelecto do primeiro não pode ter nenhuma o u l ra
t t tlclccção que lhe não sej a idêntica, como se segue da concl us;ío
: t t t lcrior C6). Logo, tem para todo o inteligível um inteligir aclual
� · distinto, o que se identifica com ele.
Também se argumenta a favor desta primeira parte da
\·onclusão de uma maneira diferente, a saber: o artífice perfeito
nmhece distintamente tudo o que há-de fazer antes de o fazer.
De contrário não actuaria perfeitamente, pois o conhecimento
\' a medida da sua operação. Logo, Deus tem conhecimento
di stinto, actual ou pelo menos habitual , de tudo o que é produ­
l ívcl por ele, conhecimento que é anterior ao que é produtível .
Obj ecta-se: basta uma arte universal para produzir os
singulares C7).
Prova-se assim a segunda parte da conclusão, a relati va à
prioridade do conhecimento: tudo o que é idêntico ao primeiro
é um ser necessário por si, pela quinta conclusão do terceiro
c ap ítul o C8) e a pri meira do quarto ('9) . Mas o ser dos
i ntel igíveis distintos dele não é necessário, segundo a sexta
conclusão do terceiro capítulo (40) . Um ser necessário por si é
por natureza anterior a todo o não-necessário.
Prova-se de outra maneira: o ser de tudo o que é distinto
do primeiro depende del e como causa, pel a décima nona
conclusão do terceiro capítul o (4 1 ) . E como é causa de um
determinado ser, necessariamente inclui o conhecimento deste
pel a parte da causa; l ogo, aquele conhecimento é por natureza
anterior ao próprio ser do que é conhecido.

('") <<Nenhum acto de entender pode ser um acidente da natureza primeira>> ;


Cap. I V, cone! . 7, § 63 .
( 17) Cf. J. D. ESCOTO - Metaphysica V I L p. 2, q. 1 5 .
(") <<Ü incausável é em si mesmo necessário>>; Cap. I I I , cone! . 5, § 34.
( '") <<Em si a primeira natureza é si mples>>; Cap. I V, cone! . I , § 50.
(411)
<<A necessidade de existir por si pertence a uma só natureza>> ; Cap. I I I ,
cone!. 6, § 3 5 .
{ " 1 ) <<Uma ú nica natureza existente é primeira em relação a qualquer outra n a
tríplice ordem referida, pelo q u e qualquer outra natureza é-lhe assim triplamente
posterior>>; Cap. I I I , cone!. 1 9, § 46.

99
67. Ó profu ndidade das riquezas da sabedoria e da tua ciência,
ó Deus, pela qual compreendes todo o i nteligível ! Poderias
concluir para o meu fraco entendimento :

NONA CONCLUSÃO : És infinito e incompreensível para um


ser finito ?
Tentarei i nferir uma conclusão bastante fecunda, a qual , se
a tivesse provado sobre ti no princípio, a maioria das conclusões
j á tratadas evidenciar-se-iam agora fac i l mente. Com o teu
auxíl io esforçar-me-ei então por inferir a tua infin idade a partir
do que ficou dito sobre o teu i ntelecto. Depois, aduzirei outros
argumentos, investigando se são ou não válidos para a conclusão
proposta.

68. Não s ão, Senhor nosso Deu s , infinitos os i ntel igíveis, e não
estão em acto no entendimento que entende todas as cois as em
a c t o ? D e s t a m an e i r a , o e n t e n d i mento q u e os e n te n de
simultaneamente e em acto é infi nito. É assim o teu enten­
dimento, nosso Deus, pela sétima conclusão já provada (42) .
Logo, a tua natureza, que se identifica com o teu entendimento,
é i nfinita.
Mostro o antecedente e o consequente deste entimema.
O antecedente: tudo que é i nfinito em potência, i sto é, que não
pode ter fim quando tomados os seus membros um depois de
outro, é i nfinito em acto, se todos os membros forem em acto
simultaneamente. Os intel i gíveis, como é evidente, s ão dess a
m an e i ra em rel ação a u m i nt e l ecto cri ado ; m as n o teu
entendimento s ão simultânea e actualmente conhecidos os
inteli gíveis que por um intelecto criado só o são sucessivamente.
Logo, são aí i nteli gi dos em acto uma i nfin idade de obj ectos.
Provo a maior deste s ilogismo, ainda que pareça bastante
evidente: quando todos aqueles objectos recebidos um após
outro existem em simultâneo ou são infinitos em acto ou s ão

(42) Deve ser antes a «oitava>> e não a «sétima>>: «Ü entendi mento do primeiro
princípio entende sempre cm acto, necessúria e disti ntamente tudo o que é inteligível
por natureza antes que o inteli gível exista em si>>: Cap . IV, cone!. 8 , s 66.

! 00
l 1 nitos em acto. Se são finitos em acto, então, tomados u m a
�q!,ui r ao outro, poderiam todos acabar por ser recebidos. Logo,
\ l' n ão podem ser tomados todos em acto, s e e x i s t e m

.<>imultaneamente e m acto, são i nfinitos em acto.


Prov o assim a consequência do entimema: qu ando a
pi ural idade requer ou conclui uma maior perfeição que a po­
breza numérica, uma infinidade numérica conclui perfeição
i n finita. Exemplo: o poder l evar dez requer uma perfeição maior
n a capacidade motriz que poder l evar cinco. Por conseguinte,
poder levar um número i nfin ito conclui uma capacidade motriz
i n fi nita. Logo. na conclusão proposta: como o poder entender
.� i multaneamente dois objectos distintos conclui maior perfeição
do intelecto do que o poder entender um só, segue-se a conclusão
proposta.
Provo este último: porque se requer uma aplicação e um
m o v i m e n t o determ i n ado do i n te l e c t o p ar a e n te n der
di stintamente o i ntel igível. Logo, se um intelecto se pode apl icar
a muitos objectos, ele é i l imitado para qualquer um. e, assim,
um i ntelecto aplicável a i nfinitos objectos é totalmente ilimitado.
De maneira semelhante provo a conclusão, pelo menos em
re l ação ao i n tel i gir, do qual se segue o que se propõe
rel ativamente ao i ntelecto. Com efeito, se entender A é uma
perfeição e entender B é igual mente uma perfeição, entender A
e B no mesmo acto nunca é tão disti nto como se fossem doi s
actos, a não ser que se i ncluam as perfeições dos dois actos ; c o
mesmo em relação a três e mai s .

69. Dir-se-á: quando s e entendem muitas coisas pe l a mc.s 1 1 1 ;1


razão de entender, da pluralidade não se conclui maior pcrfc i l,; ã o .
Dito de outro modo : o argumento relativo ao e n t e n de r
conclui quando o s vários actos de entender são d e n a l u ro.a a
possuírem perfeições formais disti ntas ; só as i n tc l ccçõcs L k
diversas espécies são desse tipo. Não h á i n fi nitos i ntd igíVl'is
desse tipo, só de i ndi víduos , e as i ntelecçõcs de m u i tos L k k .� .
que não incluem outras perfeições formais, n ão lcva n 1 a l'< l l ll' l t 1 i r
u m a maior perfei ção do acto relativo a e ss a pl u ra l i dal k dL"
i ndivíduos.

lOI
Contra a primeira obj ecção: em relação à própria razão de
entender argumenta-se também como em rel ação ao i ntelecto
e o seu acto de entender. Conclui-se urna maior perfei ção da
plural idade dos objectos de que é razão de entender, porque
convém que inc l ua eminentemente as perfeições de todas as
raz ões próprias de entender, cada uma das quais põe alguma
perfeição segundo a sua razão própria. Logo, infinitas perfeições
concluem uma perfeição i nfinita.
C o n tr a a segunda o bj ecção : é i mperfe i tamente que
entendemos os indivíduos numa razão universal, porque tal
c o m o m o s trei na q u e s tão da i n d i v i d u ação (43) não os
e n t en demo s em toda a sua enti dade posi t i v a . Logo, u m
entendimento que entenda u m i nteligível qualquer e m toda a
s u a razão de intel igibili dade positiva en tende as disti ntas
entidades positi vas dos i ndivíduos, as quais conferem uma
m aior perfeição na intelecção que a intelecção de um deles.
P orque a intelecção de toda a entidade absoluta positiva como
tal é u ma certa perfeição. De maneira diversa, ainda que ela
não existisse, o intelecto e o acto de entender não seri am menos
p erfeitos. Logo, não convém pôr no entendimento divino o acto
de compreender os indi víduos enquanto tais, o que está excluído
pel a oitava conclusão (44) .
Mais : conclui-se a infini dade dos inteligívei s em espécie
pel os números e pel as figuras, o que se confirma pelo capítulo
dez oito do décimo segundo l i vro d'A Cidade de Deus, de
Agostinho (45 ) .

70. Passo a mostrar a segunda prova da conclusão: uma causa


primeira, à qual a cau s a segu nda, no ú l ti m o grau da sua
c au s al i dade , acrescenta alguma perfe i ç ão na ordem d a

e ' l J . D . ESCOTO - Ordinario I I . d . 3 . p . I , q . 1 - 6.


("') «0 entendimento do primeiro princípio entende sempre cm acto, necessária
c disti ntamente. tudo o que é i nteligível por natureza antes que o i nteligível exista cm

s i >> : Cap . IV. cone ! . X . � 66.


("'J AGOSTI N H O - De Ci1·. Dei X I I 1 8 , mas sobretudo 1 9 (trad. port. J. D.
Pereira. Lisboa, 1 99 3 . v. I I . I 1 2Y - 30).

1 02
causalidade, não parece poder causar sozinha um efei to tão
perfeitamente como com a segunda, porque a causalidade da
primeira só é diminuta em relação à causalidade simultânea de
ambas. Desta forma, se aquilo que passa a ser pel a causa segunda
e primeira conjuntamente o é muito mais perfeitamente só pela
causa primeira, a segunda não acrescenta à primeira nenhuma
perfeição. Mas o que se acrescenta a todo o finito acrescenta
alguma perfeição. Logo, uma tal causa primeira é i nfinita.
Para o nosso propósito: o conhecimento de um qualquer
o bj ecto é natural mente gerado pelo o bj ecto como cau s a
próxima, sobretudo o conhecimento p e l a vi são. Se aquele
conhecimento está presente a algum entendimento sem a acção
desse obj ecto, mas só em virtude de um outro objecto anterior
feito para ser sua causa superior em rel ação a semelhan te
c o n he c i mento, segue-se que aqu e l e o bj ecto s uperi or é
cognoscivelmente i nfi nito, pois um objecto inferior nada l he
acrescenta em cognoscibilidade. A natureza primeira é um tal
objecto superior, porque só pela sua presença no entendimento
p r i m e i r o , s e m que h aj a outro o bj ecto c o n cau sante, h á
conhecimento de qualquer obj ecto n o i ntelecto (segundo a
sétima conclusão deste capítulo (46l) e conhecimento perfei­
tíssi mo (conforme a segunda conclusão deste capítul o (47>). Por
conseguinte, nenhum outro objecto inteligível lhe acrescenta
nada em cognosci bil idade. Logo é infinito; e é-o também em
enti dade, porque em tudo há uma rel ação directa entre a
cognoscibil idade e o ser.

71. O bj ecta-se aqu i : consequentemente, nenhuma c au s a


segunda, que é finita, pode causar u m conhecimento de u m
efeito tão perfeito como o que pode ser causado pelo mesmo
efeito . Isto é falso, porque o conhecimento pela causa é mais
perfeito do que o conhecimento da coisa por si só sem a causa.

("') <<Nenhum acto de entender pode ser um acidente da natureza primeira» ;


Cap. I V. concl . 7. � 63.
('7) <<Tudo o que é intrínseco à suma natureza é-o sumamente>>; Cap. I V. cone I. 2.
� 52.

1 03
Outra obj ecção: do facto de a causa primeira causar com
tanta perfeição sem a causa segunda como com ela não parece
seguir-se senão que tem a perfeição da causa segunda de um
modo mais perfeito que a própria causa segunda. Isto não parece
concluir a infinidade, porque uma perfeição finita pode ser mais
eminente que a perfeição da causa segunda.
Outra: ainda que na ordem da causalidade a causa segunda
nada acrescente à causa primeira, que causa até à sua última
potência, como provar que nada acrescenta no ser? Com efeito,
na produção da luz num meio transparente, se o sol causasse
tanta luz quanta o meio pudesse receber, um outro sol nada l he
acrescentaria, e no entanto tratar-se-ia de um acrescento no ser.
Da mesma maneira, no entendimento do primeiro princípio há
tanto conhecimento quanto pode haver em razão da presença
da natureza primeira enquanto objecto. Mas a causa segunda
não acrescenta nada ao causar, porque não lhe é próprio actuar
naquele intelecto que já está actualizado em sumo grau, tal como
nem um outro sol actuaria num meio. De onde, se se prova que
nada se acrescenta ao ser, parece poder arguir-se por semelhança
que a terra nada acrescenta ao sol na ordem do ser. porque na
produção da luz no meio ela nada acrescenta.

72. Resposta à primeira objecção:


nada se conclui cientificamente
de uma coi sa a não ser que antes essa coisa sej a concebida
simplesmente em si mesma. Assim, quando na nossa ciência
conhecemos o efeito pela causa, a causa n ão nos dá um
con hecimento s imples do efeito, o qual seri a próprio que lhe
fosse dado pel o efeito, de acordo com Agostinho, no último
capítul o do nono l i vro de A Trindade: «o conhecimento é
produzido pelo cognoscente e pel o objecto conhecido (4x)» . Se
a causa pudesse dar um conhecimento simples do efeito, não
poderia dar um conhecimento intuitivo, acerca do qual tratei
abundantemente em outro lugar (49) . Daí se segue que para além

(4') AGOST I N HO - De 7i"ín iwte I X 2 . 11. 18 (PL 42. 970; BA 1 6/2" série. 1 08 )
(4'') Cf. J . D . ESCOTO - Ordinatio I . d . 3 , q . 7. 1 1 . 4 1 .

1 04
de todo o conhecimento pela causa aspira-se por um outro
conhecimento que é causado em nós só pelo objecto.
Por conseguinte, se Deus tem uma intui ção intelectiva da
pedra, que esta não causa de maneira nenhuma, é preciso que a
pedra, n a sua própria cognoscibil idade, n ada acres cente ��
cognoscibil idade da essência do primeiro princípio, pel a qual
a pedra é conhecida dessa maneira.
Quando portanto i nferes : «Nenhuma causa finita produz
um conheci mento perfeito de um efeito » , eu admito que
«nenhuma causa fi nita produz o conhecimento mai s perfeito
possível, também para nós, de um efeito» ('0) .
Quando di zes : «um con hecimento pela causa é mais
perfeito», eu respondo que nele se inclui o conhecimento
simples do efeito causado por ele mesmo. O conhecimento do
compl exo obtém-se pelo conhecimento da causa e do efeito
conjuntamente. E é verdade que o que é causado conj untamente
pela causa primeira e segunda é mais perfeito do que aquilo
que é causado só pel a segunda.
Contra: pel a primeira causa finita tão-só pode dar-se um
efeito mais perfeito do que só pela segunda, mas a causa segunda
só produz a visão de si mesma. Respondo : pela causa fi nita
primeira só pode dar-se algo mais perfeito, por exemplo a visão
dela mesma, do que só pel a segunda; mas não no caso de um
efeito naturalmente apto a ser causado pela causa segu nda, ou
enquanto segunda, ou mai s ainda enquanto primeira em rela<rão
a q u a l quer outra c au s a fi ni ta. Porque , ao c au s ar e s s e
conhecimento ela parece acidentalmente ordenada para u m a
c a u s a an teri or fi n i ta, porque esse conheci mento n ã o t�
naturalmente apto a ser feito por uma causa finita ant eri or ao
que se conheceu pela visão. Esse conhecimento far-sc - i a a i n d a
que o que se conhece pela visão fosse incausado por scmcl l t < � l t l t·
causa anterior ou sem nenhuma causa finita anterior c c x i st i s .� t·
um i ntelecto.

( 50) I sto é : o conhecimento i n tuitivo.

1 05
73. Resposta à segunda objecção : ainda que uma causa anterior
finita contivesse essencialmente toda a perfeição da segunda
na sua causalidade e ainda que nisso a excedesse, dado que a
causa segunda só formalmente tem esta perfeição, contudo, essa
perfeição, enquanto detida eminente e formalmente, excede
também na causalidade a perfeição que apenas se detém de
modo emi nente . Falando generi camente : quando aqu e l a
perfeição, formalmente possuída, acrescenta alguma perfeição
a si mesma, como eminente, então ambas excedem cada uma
delas em separado. Acontece essa adição quando o eminente é
finito, porque um finito acrescentado a outro finito fá-l o maior.
Se fosse de outra manei ra, o universo não seria mais perfeito
do que a primeira natureza causada; alguns concebem-na como
contendo e m i nentemente toda a perfei ção das n aturezas
inferi ores, o que eu neguei atrás, na ú l ti ma conclusão do
segundo capítul o C 1 ) .

74. Resposta à terceira obj ecção: aquela perfeição que, onde é


causada, ou tem a propriedade de ser causada só por um ser
formalmente tal , que em rel ação a e l a tem razão de causa
primeira acidentalmente ordenada às causas anteriores finitas,
ou pode ser só causada por outras causas finitas quando aquele
formal é concausante, essa perfeição não pode existir, nunca,
excepto em virtude de um infinito ao qual a adição de u m outro
formalmente tal nada acrescente na ordem da causalidade. É este
o alcance da razão dada mais atrás, porque se acrescentasse
algo, então a própria razão da sua causal idade, enquanto ele é
formalmente tal , faltari a e dependeria desse ser formalmente
tal enquanto tal ou daquele ser ao qual este nada acrescenta na
ordem da causalidade.
Mais ainda: nem acrescenta nada no ser, porque a sua
causação é-lhe própria segundo o seu ser formal ; l ogo, se na
ordem do ser se acrescentasse qualquer coisa ao primeiro
princípio, faltaria ao primeiro aquel a causal idade própria que

( 5 1 ) O autor está a pensar cm Aristóteles. Avcrrói s c ainda cm Avicena.


1\ seguirmos a edição de que d ispomos, a remissão também se nos não afigura clara.

1 06
l he pertence enquanto ele é tal, e assim ele não possuiria por s i
1 1 Jais eminentemente aquele outro ao qual é próprio ser causadll
por um tal enquanto tal .
É evidente, portanto, que a obj ecção com o sol não lcm
v al i dade, porque se a este sol compete causar alguma coisa,
(·nquanto é este sol, o outro sol não causaria o mesmo nem
leria em si o poder de causá-lo sem o primeiro sol . Se este
acrescenta algo àquele - e nem trato de saber agora como os
compararás - , digo rapidamente: não lhe acrescenta nada da
mesma razão que um ser necessariamente causável por qualquer
coisa enquanto é formalmente tal . Por «necessariamente»
entendo o que não pode ser causado de outra maneira, nem
pode ser um incausado mais perfeito que o causável , excepto
cm virtude de alguma coisa à qual este como tal nada acrescenta
nem na ordem da causalidade nem na do ser.
A objecção com a terra também não serve: não é da natureza
da luz depender da terra como de uma causa.

75. M ostro do segui nte m odo a tercei ra pro v a da nossa


concl usão : nenhuma perfeição finita da mesma razão que uma
perfeição acidental é substancial . O nosso acto de i ntelecção é
aci dental , porque é essenci almente u m a qual i dade. Logo,
nenhum acto de intelecção finito é uma substânci a. Mas o acto
de intelecção do primeiro princípio é uma substância, conforme
as conclusões quinta CS2), sexta ("3) e sétima deste capítul o ( 'i � ) .
Prova da maior: o que convém na razão formaL da qual s e
toma a diferença, convém no género, se cada perfeição ron l l a l
for fi nita, pois essa diferença finita contrai o mes mo género lk
ambos. Diferentemente, se a diferença for fi nita num c i n l"i 1 1 i l a
noutro ; então são de facto d a mesma razão em a l gu m a c o i .� ; J ,

("') <<Ü primeiro causante causa d e um modo conlingcnlc tudo a q 1 1 i l o q 1 u · <'<� I J ',;J . . .
Cap. I V, concl . 5 , � 59.
{'-') <<Para a primeira natureza. amar-se é idêntico � naiUIT/.a prilllL' J J ;1•>: ( ' ; 1 p . I V.
concl. 6, � 60.
(") «Nenhum acto de entender pode ser um acidcnlc d;1 n a l u ru.;J p r i n J c i J ; J .. .

Cap. I V, concl. 7. � 63.

1 07
na razão formal. Mas sendo finita, ela contrai o género ; por
i sso, o que é constitu ído por ela é-o no género. Já a diferença
i nfinita nada pode contrair; e por conseguinte não se constitu i
num género.
É neste sentido que entendo o emprego da espécie
relativamente a Deus, e não do género, porque a espécie diz a
perfeição e o género não. Isto inclui uma contradi ção se
entendermos a espécie na totalidade, pois o género está i ncluído
na sua compreensão essenci al . Deve porém entender-se esse
emprego por razão da diferença que diz a perfeição; isto não
sucede com o género. Isso é bem possível, porque nenhum deles
inclui por si o outro. Mas não se emprega a diferença enquanto
diferença (porque em tal caso é fi nita e necessari amente
constitui no género), mas como razão absoluta da diferença,
que diz absolutamente a perfeição indiferente ao infinito e ao
finito, os quais dizem modos de perfeição daquel a entidade, tal
como o mais e o menos na brancura.
S e i q u e a l g u m as das c o i s as q u e a q u i s e afi rmam
contradizem as opiniões de algumas pessoas, mas não vou agora
refutar as diferentes opini ões . Fá-Io-ei noutra ocasi ão.

76. A par desta terceira prova pode l ançar-se u m argumento


inverso e quase s i m i l ar, assim : nenhuma substância finita é
idêntica a uma perfeição que segundo a sua razão seria acidental
se fosse fi nita. A substância primeira é idêntica à i ntelecção,
etc. E assim é possível acrescentar à maior da terceira prova o
seguinte: nenhuma perfeição da mesma razão de uma perfeição
aci dental é substancial ou idêntica à substância, porque os
géneros são primeiramente diversos, e o que é acidente num
não é substância em nenhum. Logo o entender não é i dêntico a
nenhuma substância que estej a no género da s ubstância. Se a
substância for finita el a é dessa maneira; se o não for, temos a
conclu s ão proposta (55) .

(55) Entenda-se: s� a substância é finita ela está no género da substância e a


i ntcl�c ção não lhe é idêntica. se for infinita a intelecção já é idêntica c portanto é
i nfinita.

1 08
77. Em confonnidade com isto, proponho um quarto argumento:
toda a substância finita pertence a um género. A n atureza
primeira não pertence a nenhum género, pel a primeira conclusão
deste capítul o (' 6) . Portanto, etc ('7).
A maior é evidente, porque no concei to comum de subs­
tância, a substância finita convém com outras e distingue-se
formalmente, o que é evidente. Logo, o que distingue é de algum
modo idêntico à entidade da substância, mas não por uma total
identidade, porque as suas razões são primeiramente diversas
e nenhuma é infinita, e por isso nenhuma inclui completamente
a outra por identidade. Logo, a união delas é como a do que
contrai e do que é contraído, do acto e da potência. Logo, temos
género e diferença. Logo, uma espécie.
De uma maneira breve, mas que vem dar ao mesmo,
argumenta-se assi m : tudo o que convém realmente e que difere
rea l mente convém e difere por uma real idade que não é
formalmente a mesma. Mas a real idade pela qual convém não
é aquela pel a qual difere por identidade, a não ser que a outra
seja i nfinita; e então, o que inclui uma e outra será i nfi nito.
Mas se nenhuma das duas é a outra por identidade, segue-se
u m a compo s i ç ã o . Por consegu i n te , tudo o que c o n v é m
essencialmente e difere essencialmente o u é composto de
realidades formalmente distintas ou é infinito. Tudo o que existe
p o r s i c o n v ém e d i fere dessa m an e i ra . P e l o que, s e é
completamente s i mp l es em s i , segue-se que será também
i nfinito.
Parece que por estas quatro v i as s e pode conc l u i r a
i nfin idade de Deus. Três vias, cuj o meio termo é tomado do
intelecto, a quarta, da simplicidade na essência, que aci ma se
mostrou.

78. P arece po ssível u rn a qu i n t a v i a , da e m i n ê n c i a , que


argumento da seguinte m aneira: é i ncornpossível com o

( 16) <<Em si a primeira natureza é si mples>>: Cf. Cap. IV. cone ! . L � 50.
CS7l Entenda-se: portanto não é finita.

H )9
eminentíssimo que haj a algo mais perfeito, segundo o corol ário
da quarta conclusão do capítul o terceiro ('x). Não é incompatível
com o finito que haj a algo mais perfeito. Logo, etc. C9)
Prova-se a menor: a infinidade não repugna à entidade; o
infinito é maior que todo o finito.
Há outra maneira de argumentar o mesmo: aquilo a que
não repugna a infinidade i ntensiva não é sumamente perfeito a
não ser que sej a infinito. Porque se é finito pode ser excedido,
dado que a infinidade lhe não repugna. A i nfinidade não repugna
ao ser. Logo, o perfeitíssimo é infinito.
A prem i ssa menor desta prova, aceite no argumento
precedente, não parece poder ser demonstrada a priori; porque
tal como os contraditórios se contradizem por razões próprias,
e isso não se pode provar por al go mai s evidente, assim também
os não-contraditórios não se contradizem pel as suas razões
próprias, nem tão-pouco parece possível demonstrá-l o a não
ser explicando as suas razões. O ser não se expl ica por nada de
mais conhecido. Entendemos o infi nito pelo fi ni to, o que
exponho assim em l inguagem simples : o infinito é o que excede
um fin ito dado não apenas segu ndo uma medida finita precisa,
mas para além ele toda a proporção atribuível .
Também se pode apresentar urna razão persuasiva do que
se propõe, assim: tal corno se há-de supor como possível aquilo
cuj a i mpossi b i l idade não é manifesta assim também há-ele
supor-se como compassível aquilo em que a incornpossibilidade
não aparece. Não aparece nenhuma i ncornpossibil idade, no
caso, pois a finitude não pertence à noção de ser nem parece,
pela noção de ser, que finito sej a um atributo transcendental
convertível com ser. Exige-se urna destas duas condições para
a referi da repugn ânci a (60) . Os atri butos trans cenden tais
primeiros do ser e convertíveis parecem ser suficientemente
conhecidos como pertencendo ao ser.

ciK ) De acordo com o qual o primeiro efectivo nl\o só é anterior aos outros como
também é contraditório consigo q ue exista outro antes; cf. Cap. I I I , cone!. 4, � 3 3 .
( '") Completa-se: logo, o emi nentíssimo é infinito.
("11) Entenda-se: entre ser e infinitude.

1 10
Uma terceira razão persuasiva: o infinito, no seu modo.
não repugna à quantidade, isto é, tomando uma parte após o u t ra .
I "ogo, nem o i nfinito n o seu modo repugna à entidade, o u s ej a .

cm ser simul taneamente perfeito.


Quarta: se a quanti dade de força é simp lesmente mais
perfeita do que a quantidade de massa, porque é que então há­
-de ser possível a infinidade na massa e não na força? Mas se
for possível é em acto , pel a quarta conclusão do tercei ro
capítulo (61 ) .
A quinta assim: o entendimento, cujo objecto é o ser, não
encontra nenhuma repugnância em entender o ser i nfinito; pelo
contrário: este parece ser o intel igível mais perfeito. Mas é
surpreendente que tal contradição relativa ao seu primeiro
objecto não fosse patente a nenhum entendimento, tal como se
dá o caso, por exemplo, de a discrepância no som ofender
facilmente o ouvido. Se, digo, que aqu i lo que desagrada se
percebe i medi atamente e ofende, porque é que nenhum
entendimento foge naturalmente do ser i nfinito como de algo
inconveniente, que destrói o seu primeiro objecto?

79. Desta maneira, pode matizar-se o argumento de Anselmo


rel ativo ao sumamente pensável (c,2). Deve entender-se a sua
descrição do modo seguinte: «Deus é aquilo maior que o qual » ,
pensado s e m contrad i ç ã o , « n ada se po de pensar» s e m
contradição. Com efeito, diz-se que aquilo em cuj a concepção
está incluída uma contradição não é pensável . E assim é. Seriam
então dois os pensáveis opostos, os quais de nenhu m modo
poderi am constitui r um só pensáve l , pois nenhum d e l e s
determinaria o outro. Segue-se que tal su mamente p e n s ú w l
existe na reali dade, com o que se descreve Deus, em pri me i ro
l ugar quanto ao ser quiditativo: porque num tal s u m a n iL� n t c
pensável descansa sumamente o entendimento. Por co i iSL'gu i I I I L ' .

('" ) <<Um efectivo absolutamente primeiro existe c m acto '' 1 1 1 1 1 ; 1 1 1 a l u r r · ; a


actualmente existente é efectiva dessa maneira>>: Cap. I I I . cone ! . •I. � .U .
( 62 ) S . A N S ELMO - Proshígion 2 - 3 (trad. port. A. S. Pi nheiro. l l r;1ga. I '>ê:· l .
87 - 88).

III
ele mesmo tem razão de primeiro objecto do entendimento
isto é, de ser e em sumo grau.
Mais ainda, relativamente ao ser de existência: o suma­
mente pensável não existe apenas no entendimento de quem
pensa; porque então poderia ser, pelo facto de ser pensável, e
não poderia ser, pelo facto de repugnar à sua razão existi r por
outrem, segundo a terceira (63) e a quarta conclusões do capítulo
três (64). É que é maior o pensável que existe na realidade do
que aquele que apenas existe no entendimento. Não se entenda
i sto no sentido de que um mesmo ser, enquanto pensado, é u m
pensável maior s e exi stir, mas no sentido de que um pensável
que existe é maior do que todo o pensável que apenas existe no
entendimento.
Outra maneira de o matizar é a seguinte: um pensável que
existe é um pensável maior, isto é, mais perfeitamente pensável
porque é visível . O que não existe nem em si nem num ser
mais nobre ao qual nada acrescente, não é visíve l . O visível é
mais perfeitamente cognoscível que o não-visível, que é apenas
abstractamente inteligível (6-'). Logo, o que é perfeitissimamente
cognoscível existe.

80. A sexta via para a conclusão proposta, baseada no fim, é a


seguinte: a nossa vontade pode desej ar ou amar algo maior que
todo o fim finito, tal como entendimento pode entendê-lo. E
parece que tem inclinação natural para amar sumamente o bem
infi n i to. Por aqui se argumenta por uma i nclinação n atural da
vontade para algo, porque uma vontade l ivre por si, sem hábito,
quer o bem i nfinito espontânea e deleitavelmente. Parece que
quando amamos o bem infinito fazemos esta experiência: a
vontade l ivre não parece aquietar-se perfeitamente em nenhum

("') «Um efectivo absolutamente primeiro é incausável, porque é i nefectívcl e


é efectivo independente»; Cap. I I I . cone!. 3. � 32.
('") << U m efectivo absolutamente primeiro existe em acto e uma natureza
actual mente existente é efectiva dessa maneira»; Cap. I I I . cone ! . 4, § 3 3 .
("5) Cf. J . D . ESCOTO - Ordinatio I. d . 3, p. I . q. I - 2 ; q . 3 ; l i , d . 3 , p. 2. q . 2 ;
d. 9, q. 2; I I I . d . 1 4, q . 3 ; IV, d . 1 0. p. 3 , q . 2; d. 4 5 , q . 2, etc.

1 12
outro. Como não odiaria naturalmente o i nfinito se ek fosse
oposto ao seu obj ecto, como odeia naturalmente o não-ser''

81. A sétima via, baseada na causa efi ciente, de que Aristóteles


fala no oitavo livro da Física e no décimo segundo da Metafisica,
é a segui nte: move com um movimento infinito; J ogo, tem poder
infin ito ( 66) .
O antecedente deste argumento pode matizar-se assim : a
concl usão proposta segue-se de i gual modo quer o primeiro
possa mover com movimento infi ni to, quer mova mesmo,
porque é i gualmente necessário que ele estej a em acto.
Quanto à consequência, assi m : se por si e não em virtude
de outro move com movimento infinito, então não receberá de
outro o poder mover assim, mas na sua força activa terá o efeito
todo simul taneamente, pois move independentemente. O que
contém simul tânea e virtualmente um efeito infi ni to é infinito.
Logo, etc (67).
O argumento pode matizar-se de outra maneira: o primeiro
motor contém simultaneamente no seu poder activo todos os
efeitos possíveis de serem produzidos pel o movimento. Eles
são infin itos se o movimento é i nfinito. Logo, etc (6 8 ) .

82. Não parece que a consequência fique bem provada. Não da


primeira maneira, porque uma duração maior não acrescenta
nenhuma perfeição : a brancura que dura um ano não é mais
perfeita do que a qu e dura u m dia; por consegu i nte, um
movimento, por maior que sej a a sua duração, não é mais
perfeito do que um movimento que dure um só dia. Daqui,
portanto, do facto de o agente ter simultaneamente no seu poder
activo todos os efeitos, não se conclui uma maior perfci<,·ão
aqui do que no caso da cor, a não ser que o agente m o v e p or

(''") ARISTÓTELES - Plzysica Vlll I O (266 a I 0-24. 26(, h - 20. 267 h I I 2<1 ) :
ID. - Meraphysica XII 7 (I 0 7 3 a 3 - 1 3 ) .
( "7) Entenda-se: a causa primeira é infinita.
(''x) Completa-se: logo, tem poder i nfin i to.

1 13
mais tempo e por si . E assim teria de mostrar-se que a eternidade
do agente concluiria a sua i nfinidade; de outro modo, pela
infinidade do movimento, não pode ser concluída. Sendo assim,
nega-se a última proposição do matiz, excepto no que toca à
i nfinidade da duração.
Esbulha-se o segundo matiz: não se conclui uma mmor
perfeição i ntensiva do facto de u m agente poder produzir
sucessivamente, enquanto durar, todos os efeitos da mesma
espécie, pois o que pode em relação a um efeito num tempo,
poderá pela mesma virtude em relação a m i l efeitos , se durar
mil tempos. No entanto, segundo os fi lósofos ( 69), a infinidade
não é possíve l , excepto a infinidade numérica dos efeitos
produtíveis pel o movimento, ou sej a , dos geráve i s e dos
corruptívei s , pois defendem que as espécies são fin i tas . Se
alguém provasse que a infinidade das espécies era possíve l ,
provando que alguns movimentos celestes são incomensuráveis
e que portanto nunca poderão vol tar à uniformidade, ainda que
durem infi nitamente, e que infinitas conj unções na espécie
causem i nfi nitos geráveis em espécie - este argumento, ainda
que possa ser assim, nada tem que ver com a intenção de
Aristóteles, que negou a infinidade das espécies .

83. Obj ecta-se aqui , depois, pergun tando : como é que no


primeiro argumento C0) procuravas concluir a infinidade pelo
facto de a essência d i v i na ser causa do conhecimento de
infinitos, e agora negas que se possa concluí-la pelo facto de
ser causa da existência de infinitos, como se ela fosse maior
em fazer com que algo sej a conhecido do que em fazer com
que alguma coisa exista de verdade?
Mais ainda: como é que no segundo argumento C 1 ) quiseste
concluir a infinidade unicamente pelo facto de a natureza do
primeiro princípio ser a razão total de ver qualquer outra

( "") Cf. ARISTÓTELES - De Generatirme 1 1 lO (336 a 23 - 337 a 33).


C"J A primeira via, * * 68 69.
-

C') A segunda via. * � 70 - 74.

1 14
11 1 1 1 1 1 1'/;1 c não concluis aqu i , se ela é razão total do ser por
1· 1 1 1 . . 11 • si? Pelo menos ela é a causa total do ser da nat urc ;. a
;1
1 1 1 1 1 ·. l ll<.> xima dela.

K I � � � · s p osta à primeira objecção: o que pode causar muitos


I · l l t l.c; simultaneamente, cada um deles requerendo alguma
1 u 1 i l ' ll.: a o própria, revel a-se mais perfeito pela pluralidade de
1 1 1 · . � · k i tos. É este o caso da intelecção simul tânea de infinitos :

1 II H L I I l l o , se provasses que poderia causar simultaneamente


l l i l 1 1 1 il os efeitos, eu concederia que tem poder infinito. Mas j á
1 1 . 1 1 1 . s e o s causasse sucessi vamente.
< \mtra: possui simultaneamente esse poder; e, enquanto
1 · ' 1 :;!,. por si, poderia causar simultaneamente i nfinitos efeitos.

r\ L 1 s a natureza do efeito não o permite, tal como o que pode


' . 1 1 1. \ a r o branco e o negro não é menos perfeito, pois estes não
· . . 1 1 1 causáveis em simultâneo. Isso depende da repugnância del as

1 · 1 1 ao de uma deficiência do agente.


Respondo : não está provado que o primeiro princípio sej a
. 1 causa total destes infinitos efeitos e que os possua totalmente

1 · ;1o mesmo tempo, porque não está provado pel a causal idade

, 1 ; 1 e ficiência que uma causa segunda não seja necessária devido


.1 ; d guma causalidade correspondente à sua própria formalidade.
C o n t r a : e s tá bem p ro v a d o q u e o p ri m e i ro p o s s u i
l ' l llinentemente toda a causalidade da causa segunda, bem como
. 1 c ausalidade própria desta, ainda que não estej a provado que

;1quel a, tomada formalmente, nada acrescente a si enquanto


,·1ninente. Tem, por consegu inte, simultânea e eminentemcnt..:
t oda a cau salidade em relação a todo o efectível , i nclusive dos
e feitos i nfinitos, ainda que eles se produzam sucessi vament e .
Respondo: pel o que me é dado ver, esta é a última col mat,:a' 1
d a referida consequência de Aristóteles, o que me perm ite prova r
a infi n i dade da segu inte maneira: se o pri mei ro pri n cíp i o
possuísse toda a causali dade formal mente e c m si m u i 1 ft m·o ,
ainda que os causáveis não pudessem começar a ex i s t i r L' l l l
simultâneo, ele seria infinito porque, enquanto é p or s i , poder i a
causar ao mesmo tempo efeitos infinitos ; c o poder prod u ;. i r
s i mu l taneamente m u itos efei tos conc l u i u m m a i or po d e r

1 15
i nten s i v o . Por consegui nte, se possui alguma c o i s a mais
p erfe itamente do que s e possuísse forma lmente toda a
causali dade, mais se seguiria uma infi n idade i nten s i va. Porém,
ele possui toda a cau sali dade segundo a totali dade que nela se
encontra mais eminentemente do que a que está formalmente
nela mesma. Logo, ele tem poder i ntensivo infi nito.

8 5 . Portanto, ainda que tenha relegado o estudo da omnipotência


propriamente dita, conforme a entendem os católicos, para o
tratado rel ativo ao que se deve acreditar (72), ainda que a não se
tenha provado, prova-se todavi a a potência i nfinita que por s i
p o s s u i s i mu l taneamente toda a c au s a l i dade de m an e i ra
eminente, a qual , enquanto é por si, se existisse formalmente,
poderia produzir simultaneamente efeitos i nfin i tos, se estes
fossem s i mu ltaneamente factíveis .
Se se o bj ecta: « O primeiro princíp i o n ã o pode p o r s i
produzir simultaneamente objectos i nfi nitos, pois n ão está
provado que é causa total de i nfinitos efeitos», i sto a n ada obsta.
Pois se tivesse ao mesmo tempo aquilo pelo qual seria causa
total, nada seria mai s perfeito do que é agora quando tem aquilo
pelo qual é causa primeira. Porque não se requerem essas duas
causas para acrescentar uma perfeição na causalidade, pois
então o efeito da mais remota seria mais perfeito, pois requeri ria
uma causa mais perfeita; mas se fossem requeridas, segundo
os fil ósofos (73), isso seria por i mperfeição do efeito, de modo
que o primeiro princípio com uma qualquer causa i mperfeita
poderia causar um efeito i mperfeito, o que segundo eles n ão
poderi a causar i mediatamente . Também, p orque todas as
i mperfeições, segundo Aristóteles C4), se encontram no primeiro

(72) Cf. J . D. ESCOTO - Ordinatio I, d. 42, q. un.

C'l Vd. ARISTÓTELES - Physica VIII 6 (259 b 32 - 260 a 1 9) : De Caelo II 3


(286 a 34 - 286 b 9): De Generatione I I I O (336 a 23 - 337 a 33); Metaphysica X I I 6
- 7 ( I 072 a 9 - 23); AVERRÓI S - ln h. I. Physicorum V I I I com. 79; Metaphysica VIII
com. 28 - 37; IX com. 7 ; X I I com. 4 1 ; Epitome in libros meta. tr. 4; AVICENA - Liber
de Philosophia Prima IX 4: Metaphys . com. L p. 4, tr. 2, c. I .

(14) ARISTÓTELES - Metaphysica V 1 6 ( 1 02 1 b 3 1 -32; 1 072 b 2 8 - 30; etc).

1 16
I ' ' r r w íp io mais eminentemente que se as suas form alidad�.:s
' ' r · ; l is sem nele, caso isso fosse possível . Desta maneira, parccl'
' i " ' . o argumento de Aristóteles sobre a potência infi ni ta potk
I < H l c l llif.
Í\ segunda objecção acima C5) , digo: porque a essência
, J , v i na só é a razão de ver perfeitamente a pedra, segue-se que
.r J nlra n ão acrescenta nenhuma perfeição àquela essência. Isso
J ; r não se segue se ela é a razão imediata de causar a pedra,
r t rt·smo como causa total . Com efeito, em relação à suprema
r 1 a l ureza causada, a causa primeira é causa total, todavia, sendo
.1 s uprema n atureza fin ita, não se conclui a i nfin idade da

primeira causa em relação aos outros seres ; é que também não


, . _\ lá provado que em relação aos demais ela seja causa total ;
por isso, etc. C6) .

X(,.Paralelamente a esta via da efi ciência, argumenta-se: porque


a causa primeira cria; há uma distância i nfinita entre os extremos

da criação (77).
O antecedente é posto pela fé (8 ), e é verdade que o não-
ser precede o ser numa quase-duração, ou, segundo a via de
Avicena, numa quase-natureza (9) . Mostra-se o antecedente
pela décima nona conclusão do terceiro capítul o (80) : ao menos
a primeira natureza depois de Deus procede dele, n ão ex iste
por si nem recebe o ser a partir de algo preexistente. E, como j á
ficou dito, ser feito não requer sujeição à mutação, mas tomando
assi m segundo a natureza o não-ser antes do ser, não estão a l i
os extremos da mutação que aquele poder causaria. Mas sej a

C sl Cf. § 8 3 . <<Mais ainda . >>


. .

("") Entenda-se: por isso. não é i nfinita.


C'l Vd. TOM ÁS de AQUINO · Summa Theologiae I , q . 45, a. 5 , ;uJ :\_ Enll'nda
se ainda: logo. a causa primeira é i nfinita.
( ") J. D. ESCOTO Ordinalio IV, d. I , p. 1 , q . un.
·

C''l AVICEN A - Liber de Philosophia Prima VI c. 2.


('0) «Uma única natureza existente é primeira cm relação a qualqun < H I I r;J 1 1 : 1
tríp l ice ordem referida, pelo que qualquer outra natureza ��-lhe ass i 1 11 trrplalii<'IIIL'
posterior>>; Cap. I I I , cone!. 1 9, � 46.

1 17
qual for o caso do antecedente, a consequência não está provada.
Porque quando não há distância entre os extremos, mas se diz
que distam precisamente por ser extremos em si mesmos, a
di stânci a é tanto maior quanto maior é um extremo ( 8 1 ) .
Exempl o : Deus dista infi nitamente da criatura.

87. Por último, mostra-se a nossa proposta pel a negação da


causa intrínseca: a forma é l i mitada pela matéri a; logo, a forma
que não está apta para existir na matéri a é infinita C S2) .
Considero que i sto não tem valor, pois, segundo eles (�3), o
anjo é imaterial mas não é i nfinito. Nunca o ser, que de acordo
com eles é posterior à essência, limitará a essência ( 84) . De onde,
toda a entidade ter um grau intrínseco de perfeição e n ão por
meio de outro ser.
E a afi r m a ç ã o « a for m a é l i m i t ada p e l a m atéri a ,
c o n s eq u entemente s e n ã o e s tá l i m i tada p o r e l a n ão é
limitada» ( 8 5 ) é uma fal ácia de consequente (86 ) . « Ü corpo é
l imitado por outro corpo; l ogo, se não é limitado por outro corpo
é infinito» - e o último céu será então i nfinito ; este é o sofisma
do terceiro livro da Física (87), porque o corpo é previamente
limitado em s i . Assim, a forma finita é previamente l imitada
em s i , por ser uma natureza determinada nos seres antes de ser
limitada pela matéria. Ora, a segunda limitação pressupõe a
primeira e não causa a primeira. Por conseguinte, em algum
i nstante da natureza a essência é l imitada; portanto não é
limitável pel o ser; l ogo, não é limitada pel o ser no segundo
instante.

( " ) J . D. ESCOTO - Ordinatio IV, d. I , p. I . q. u n .


(K2) Cf. TOM Á S de AQUINO - Summa Theologiae I, q. 7, a. I . in corp. e ad 2 ;
ID. - Summa contra Gentiles I . c. 43.
(") TOM Á S d e AQUINO - Sententiarum II, d . 3 . p. I , a . I in corp.
('") TOM Á S de AQUINO - Quodlibet l l . q. 2. a. I in corp. c ad 2; ID. - Summa
Theologiae I, q. 50. a. 2, ad 3 - 4.
(") TOM Á S de AQUI N O Sententiarum I, d. 43, q. I . a. I in corp.; ID.
- -

Sunmw Theolog iae I , q. 7. a. I in corp.

("'') ARISTÓ TELES - Refutoçi!es Sofísticas I 5 ( 1 67 b I - 1 3 ) .


('7) ARISTÓTELES - Phvsica 1 1 1 4 (203 b 20 - 22)

1 18
XK DÉCIMA CONCLUSÃO: Da infinidade segue-se oJJIIIÍIIuNio
l'illlp!icidade.
Primeiramente, a simplicidade i ntrínseca da essênc i a :
porque seria composta ou de partes fi nitas e m s i ou de p artes
1 1 1 fi n i tas em s i . Se fosse o primeiro caso, seria finita; se o
\egundo, a parte não seria menor que o todo.
Em segundo lugar, que não é composta de partes quanti ta­
t i vas : a infinita perfeição não se dá em grandeza, porque se
aquela perfeição fosse fi nita, seria maior numa grandeza maior.
N ão pode haver grandeza i nfi nita. Este é o argumento de
Aristóteles no oitavo l i vro da Física e no décimo segundo da
Metafísica (88) .
Mas objecta-se: a perfeição infi nita em grandeza seria da
mesma razão no todo e na parte, e, por isso, não seria maior
numa grandeza maior, tal como a alma i ntelectiva é uma forma
perfeitíssima, e é-o tanto num corpo pequeno como num grande
c numa parte do corpo como no corpo todo. Se à alma i ntelectiva
segundo a sua essênci a correspondesse um poder i nfi nito, isto
é, um poder de entender i nfinitos inteligíveis, também lhe
corresponderia numa pequena grandeza. Se se supusesse uma
grandeza maior o poder não seria maior. Nega-se, portanto,
isto: toda a potência numa grandeza é maior numa grandeza
mm o r.
Colora-se o argumento de Aristóteles, que prova que a
perfeição i nfinita não está numa grandeza de uma maneira tal
que se estenda acidentalmente, i sto é, que uma parte da perfeição
estej a numa parte da grandeza; porque então a perfeição seri a
maior no todo do que na parte quanto à eficiência operativa,
embora não segundo a intensidade em si, tal como no caso dL'
um grande fogo e numa sua parte. Segue-se, pois , que nuln<l
grandeza finita não há potência infinita segundo a c f"ic i ê l l c i a
que seri a por isso extensa. Logo, nem uma potência i n fi n i Lt
segundo a intensidade em si.

(") ARISTÓTELES - Physico V J I I l O ( 226 a 2 4 22(, h (1 ) ; l l l . Mt'lilf''' '' ' im


X II 7 ( I 073 a 3 - I I )

l l9
Esta segunda consequência é evidente, porque não se
conclui a infinidade em si a não ser pel a infinidade na eficiência.
Que a primeira consequência se segue (89), mostra-se de
duas maneiras:
Primeira: numa parte si ngu l ar qualquer de grandeza finita
há u m poder finito segundo a eficiência; de contrário não seria
menor que todo o poder. Logo, na grandeza total há um poder
fin ito, porque o que se compõe de partes fi nitas em si e num
número finito, é finito.
Segunda: se se entende que a grandeza cresce, o poder
também cresce segundo a eficiência. Logo, ele foi primeiro
finito e sê-lo-á sempre, enquanto se pense que ele é capaz de
crescer, o que sucede sempre no caso de uma grandeza finita.
Logo, nunca se concebe um poder como incapaz de crescer, a
não ser que sej a numa grandeza infi nita, e é assim e não de
outro modo que é i nfin i to segu ndo a eficiência; logo, nem
segundo a i ntensidade.
Mas o que dizer quanto ao que se propõe, que a potênci a
intensivamente infini ta não s e estende por acidente, de maneira
a que uma parte sej a uma parte da grandeza? Como é que disto
se h á-de segu i r que e l a não será de m odo nenhum u m a
grandeza? U m ú ltimo argumento, que acrescentamos assim: a
extensão estende o que é suj eito, e não a perfeição i nfinita,
nem a matéria cuj a forma seria esta perfeição tal como a alma
intelectiva é a forma do corpo; porque esta perfeição não está
na matéria, pela primeira conclusão deste capítul o (90) . Logo,
etc. (9 1 ) . Assim também o filósofo, antes desta prova, demonstrou
que ela não tem matéria, no l i vro doze da Metafísica (92) , e em
virtude desta conclusão anterior e daqueloutra fica suficien­
temente provado o que se propõe.

(''') A saber: n u ma magnitude fi nita não se dá uma potência infi n i ta em efidcia


que seria por isso extensa.
('"') <<Em si a primeira natureza é simples»; Cap. I V, cone!. I , � 50.
('" ) Completa-se: logo, a potência infinita não se encontra em nenhuma grandeza.
("') ARISTÓTELES - MNaphysica XII 6 ( 1 07 1 b 1 9 - 22).

1 20
De uma maneira mais breve, prova-se ass i m o q t w .� ,·
propõe: o acto de i ntelecção não é um sujeito de L�x tc m a o .
A primeira natureza é intelecção, pel a sexta conclusão des t l·
capítul o e3) ; e não é recebida na matéria que se poderia c h a r l l ; t r
quantitativa, pela primeira conclusão do presente capítul o ( ''·1 ) .

89. Conclui-se, e m terceiro l ugar, que a i nfin idade não é


componível com nenhum acidente: todo o perfectível carece
em si mesmo da entidade de uma perfeição; de contrário, não
estaria em potência para ela. Portanto, uma perfeição acrescenta­
-se ao perfectível e o todo é algo mai s perfeito que qualquer
das partes que se unem. Ao i nfin ito não falta n ada; nada que se
l he possa unir acrescenta uma perfeição ; pois então haveria
alguma coisa maior que o infinito. E em segundo l ugar, os
acidentes materi ais não podem pertencer-l he porque ele não é
uma quanti dade . Os aci dentes imateri ais pertencentes ao
intelecto e à vontade também não estão nele, porque o que nele
parece serem sobretudo acidentes, como o entender e o querer,
são idênticos a ele, pela sexta conclusão deste capítul o (!5) .
Argumenta-se a propósito ainda de ou tra maneira: no
primeiro pri ncípio nada é por acidente, porque o que é «por si»
é anterior a tudo o que é «por acidente». No primeiro princípio
n ada é causado . No primeiro pri ncíp i o n ã o h á nenhuma
potência.
Isto demonstra que o acidente não pertence à essência do
primeiro princípio, embora não que nada se dê nele por acidente.
O primeiro não, porque na essência do primeiro princípio, que
é primeira, nada é acidenta l , ainda que algo distinto dei;�
existisse acidentalmente nele; e por isso um «por s i » seria
anterior ao que é «por acidente», porque a essência pri meira
seria anterior à união do acidente com ele.

(''1) <<Para a primeira natureza, amar-se é iuêntico à n a l u rua p r i n H ' t ra •> ; t ':q >
IV, cone ! . 6, � 60.
('14) <<Em si a primeira natureza é simples » ; Cap. I V. cone ! . I . � SO.
( '") Cap. IV. con e ! . 6. � 60.

121
O segundo não (9 6 ) , porque a essência primeira seria
incausada, ainda que um causado a i nformasse acidentalmente;
nenhuma essência de uma substância causada é causa de si,
ainda que alguma sej a a causa do seu acidente.
O terceiro não C7), porque a potência para um acidente é
potência só em certo sentido; por onde se demonstra que não
pode dar-se numa coisa que na sua essência é apenas acto.

90. Argumenta-se ainda de outra maneira: no primeiro princípio


só há a perfeição abso luta, pela segunda conclusão deste
capítulo Cs) . Toda a perfeição que sej a tal é i dêntica à sua
essência; se assim não fosse, aquela essência não seria óptima
por si ou seriam vários absolutamente óptimos.
O argumento não conclui, porque - tal como é evidente
pela sexta prova da quarta conclusão deste capítul o C9) não -

repugna à noção de perfeição absoluta que existam mui tas


perfeições absolutas, qualquer delas a suma no seu respectivo
grau, e no entanto uma entidade suma sej a melhor que outra e
que todas as que são sumas, e que aquele ser que é melhor que
qualquer deles é a essência do primeiro princípio, ainda que
nenhuma dessas perfeições sej a idêntica a ela, mas apenas
existisse nela. É que não se segue o segui nte raciocínio: «Há
um denominativo melhor que qualquer outro i ncompossível
com ele, e é sumo na sua ordem; l ogo, é absolutamente óptimo» ;
mas segue-se apenas este outro: «Logo é óptimo naquele género
ao qual pertencem ele e os denominativos incompossíveis com
ele».
Mas : «se todas as perfeições que se dizem absolutamente
se incluíssem por identidade, tudo o que ti vesse uma perfeição
em grau mais perfeito que outro também teria assim uma outra» .

(""') Isto é: de que no primeiro princípio nada hú de causado.


('n) Isto é: de que no primeiro princípio não há potência.
(''") <<Tudo o que é intrínseco à suma n atureza é-o sumamente»; Cap. I V. cone!. 2,
� 52
('''') Relativa it impossibilic.Jac.Je de uma prova c.Ja intelecção na natureza primeira
a part ir c.Je perfeições absolutas, cf. Cap. I V. cone!. 4, � 58.

1 22
O consequente é falso: a matéria é mai s necessária do q t tt' ; 1
forma, e no entanto é menos acto. O acidente d c p c n d l· d a
substância, e todavia é mais simples do que ela.
De igual forma, o céu é mais incorruptível do que um corpo
misto , e no entanto o nosso corpo ani mado é mais n o b re
enquanto é an i m ado. S egue-se, por con segu i n te , que a s
perfeições absolutas - excepto algumas que s ão atri butos
transcendentais do ser - diferem quer entre si quer talvez do
sujeito; e uma perfeição é possuída i ntensamente enquanto que
outra não é possuída intensamente ou não é possuída de maneira
nenhuma.
Mas nem a primeira proposição deste argumento ( ' 00) cstú
mostrada. Com efeito, a segunda concl usão alegada ( '01) não
prova em relação ao acidente inerente, mas ao que é intrínseco
à suma natureza.
Se algum protervo pusesse um aci dente no primeiro
princípio, seri a difíci l mostrar contra ele que tal acidente seri a
uma perfeição absoluta, porque algumas vezes as naturezas mais
nobres são denominadas por uma denom inação menos nobre,
e naturezas menos nobres por uma denominação mais nobre,
que se chama uma perfeição absoluta. Exempl o : a matéria
primeira é simples , o homem não é simples; a simplicidade é
um tal denomi nativo.
Certamente que seria difícil, e talvez impossível, por estes
quatro últi mos meios, provar que no primeiro princípio não h<í
acidente i nerente por aci dente de maneira contingentL�. c
segundo o qual pudesse ser mudado por acidente, ou por si o u
algo posterior; é que se sustenta que a nossa vontade m u da por
si a acção de querer, ainda que se ponha uma causa pri l l l e i r; t
para os nossos actos.
Se estivesse bem provado que no primeiro pri n c í p i o ;1
simplicidade é i ncompatível com o acidente, a c o nc l u s:í o s n i ; t

( '"') A saber: n o pri meiro pr i ncíp i o s ó há perfeição abso l u t a .


( 101) << Tudo o q u e é i ntrínseco à s u m a natu reza é - o s u n J a i i il" l l l l' » : C a l '. I V,
cone!. 2. � 5 2 .

1 23
bastante fecunda. Se não agradarem a alguém as duas primeiras
provas aduzidas, que apresente outras melhores.

91. Senhor, nosso Deus ' Muitas das tuas perfeições, conhecidas
pelos . fi lósofos, podem os catól icos concluir do que fi cou
exposto. Tu és o primeiro eficiente. Tu és o ú l ti mo fim. Tu és
supremo na perfeição, tudo transcendes sem excepção. És
totalmente i ncausado e por isso não s uj e i to à ge ração e
i n corruptível , ou antes: é absolutamente i mpossível que não
sej as , v i sto q u e , em ti m e s m o , és n e c e s s ári o . É s , p o r
consegu i n te , eterno, porque p o s s u i s s i m u l taneamente a
i nterm inabi l i dade da duração sem qualquer potência para a
sucessão . Pois não pode haver sucessão salvo naqu i l o que é
continuamente causado ou que, pelo menos , depende de outro
para ser, dependênci a esta estranha ao ser que é em si mesmo
necessário.
Tu v ives uma vida nobilíssima, porque és intel i gente e
querente . Tu és feliz, ou antes, és essencialmente a fel icidade,
porque tu és a compreensão de ti própri o. És a clara visão de ti
mesmo e amor delei tabi líssimo. E embora sej as fel i z em ti só,
e sumamente te bastes a ti mesmo, conheces todo o inte l igível
actual e s i m u ltaneamente. Tu p o des querer s i m u l tânea,
contingente e l ivremente, e querendo-o podes causar tudo o
que é causáve l . O teu poder é assim vcrissimamente i nfinito .
Tu é s incompreensível, é s infinito, pois nenhum ser omnisciente
é finito e nenhum ser com potência infinita é finito, nem o
supremo se dá nos seres, nem o fim último é finito, nem o que
existe por si e é totalmente simples é finito.
Tu és o ápi ce da s i mp l i ci dade, pois n ão tens p artes
realmente disti ntas, e na tua essênci a n ão tens quaisqu er
real idades realmente não idênticas . Em ti não há qualquer
q u a n t i dade n e m n e n h u m ac i de n te . E p o r i s s o n ã o é s
acidentalmente mutável , tal como j á mostrei que é s imutável
em essência.
Só tu és simplesmente perfeito. Não és u m anj o perfeito
nem um corpo, mas és um ser perfeito ao qual não falta nenhuma
entidade que possa pertencer a um ser. É impossível que todas

1 24
as entidades se encontrem formal mente num ser; p odc l l l ,

contudo, encontrar-se formal ou eminentemente num se r cotno ,

se encontram em ti, Deus, que és o supremo dos seres, 0 1 1


melhor, o único infinito entre os seres.

92. Tu és bom sem l imite, e comun icas l i beral issimamente os


raios da tua bondade. A ti, amabilíssimo, regressa cada um dos
seres individuais como ao seu último fim .
Só tu és a verdade primeira; porquanto o que não é aquilo
que parece, é falso. Desta feita, a razão da aparência do que é
fal s o disti ngue-se do que ele é, porque se só a sua natureza
fosse a razão do seu aparecimento ele apareceria conforme é.
Em t i , o parecer não se disti ngue do que tu és , pois apareces
em tua essência tal como primeiramente ela te aparece a ti
mesmo; e por isso não há em ti uma razão de aparecer posterior.
Na tua essência, dizi a eu, todo o i nteligível está presente
ao teu entendimento na mais perfeita razão de i ntel igibilidade.
Tu és, portanto, verdade inteligível precl aríssima, verdade
i nfal ível, e compreendes, de modo certo , toda a verdade
i nteligível . É que as outras coisas que a ti aparecem não te
aparecem para te enganar, porque a ti aparecem; esta maneira
de aparecer não impede que a razão própria do que é mostrado
apareça ao teu entendimento. A nossa vi sta engana-se quando
a aparência de algo estranho i mpede que apareça o que é, mas
não é i sto que sucede no teu entendimento . Pelo contrário,
quando a tua essência aparece, tudo aqui l o que nela reluz, dada
a sua perfeitíssima cl aridade, aparece segundo a sua pró p r i a
razão.
Para levar a cabo o meu intento, não há necessidade de l l ll'
al ongar acerca da tua verdade e das tuas i deias . Já se disse l l l l l i l o
acerca das ideias, mas mesmo que nunca s e tivesse d i l o n ; 1 d a ,
ou que nem sequer se tivessem mencionado as idei as, n �.: n 1 por
isso se saberia menos da tua perfeição. E é ass im, porq ue a t u ; 1
essência é a razão perfeita de conhecer tudo o que é cognoscívc l ,
sob qualquer razão de cognoscibilidade. Chame-lhe ideia , q u c 1 1 1
quiser; aqui não pretendo deter-me a discutir u m lerl l l o g r�.:go c
platónico.

1 25
93. Além das coisas que acabámos de dizer, e que são aquelas
que os fi lósofos usam para falar de ti, os católicos louvam-te
frequentemente como omnipotente, imenso, omnipresente, justo
e misericordioso, providente com todas as criaturas, especial­
mente com as espirituais - o que relego para um próximo
tratado. No presente tratado, procurei, primeiro, ver como as
proposições metafísicas afirmadas sobre ti se podem deduzir,
de alguma maneira, pel a razão natural . Num tratado seguinte
estudarei as proposições que são objecto de fé, nas quais a razão
é cativada, embora elas sejam tanto mais certas para os católicos
quanto não se fundam no nosso entendimento, pouco menos
que cego e v ac i lante em muitos assuntos, mas se baseiam
firmemente na tua sol idíssima verdade.

94. Todavia, há um atributo que proponho aqu i, com o qual


terminarei este opúsculo:

DÉCIMA PRIMEIRA CONCLUSÃO: És o Deus único, além


de ti não há outro, tal como disseste pelo Profeta.
Não penso que faltem razões para provar esta conclusão.
A fim de a mostrar proponho cinco proposições, das quais,
provada cada uma delas, se infere a conclusão principal .
A primeira é: o intelecto infinito é numericamente uno.
A segunda: a vontade infinita é numericamente una.
Terceira: a potência infinita é numericamente una.
Quarta: o ser necessário é numericamente uno.
Qu inta: a bondade i nfinita é só uma.
Que de uma qualquer destas proposi ções se segue a
conclusão proposta é sufi cientemente evidente. Provo-as por
ordem.

95. Em primeiro lugar, a primeira: o intelecto infi n ito entende


tudo perfeitissimamente, isto é, enquanto tudo é inteligível ; e
não depende no acto de entender de nenhum outro, porque então
n ão seria i nfinito. Se houvesse dois intelectos i nfinitos, A e B ,
e m cada u m deles fal taria a i ntelecção independente perfeita.
Assim, se A entendesse B por B, dependeria de B para entender

1 26
o próprio B , tal como o acto depende do objecto q u ando 11ao l '
o mesmo. Mas se A entendesse B por si mesmo c não por H ,
não entenderia B tão perfeitamente como B é intel igível; porq ut·
nada é perfeitissimamente presente a não ser em si ou c m a lgo
que o contenha eminentissimamente; ora A não contém B. Se
dizes que é semelhante a ele, eu contrario: o conhecimento
baseado na semel hança é apenas um conhecimento universal
enquanto os semelhantes são assimiláveis ; por este motivo, não
se conhece o que lhes é próprio e que os distingue. Além do mais,
este conhecimento universal não é intuitivo, mas abstractivo, c o
conhecimento intuitivo é mais perfeito.
Mai s : o mesmo acto não tem dois objectos adequados ;
A adequar-se-ia a s i ; l ogo não entenderia B .

96. E m segundo l ugar, prova-se a proposição rel ativa à vontade


i nfi nita: esta ama sumamente o sumamente amável . Mas A não
ama sumamente B : quer porque naturalmente se ama mais a s i
mesmo ( e portanto, similarmente, amar-se-ia com vontade livre
e recta) quer porque seria fel iz em B , e com a destruição deste
não seria menos feliz. Por isso, é impossível que um mesmo
ser possa Lornar-se fel i z cm dois objectos, que era o que se
seguiri a das hipóteses dadas. Como A não usa B, então desfruta
dele. Logo A é feliz em B .

97. A terceira proposi ção, referente à potência infinita, prova­


-se assim : se houvesse duas potências infi nitas, ambas seria111
primeiras em relação ao mesmo, porque a dependência essencial
diz respeito à natureza bem como a tudo n a natureza. O lllCSillo
n ão pode depender de dois primeiro s , pela décima s e x t a
conclusão do terceiro capítul o ( ' 02) . Logo, uma p l u ra l i d ade dt·
principados não é boa ('03) , porque ou é imposs ível Oll \.' a d a
u m dos que detém o pri mado está d i m i n uído c g o v c m a

( ' 02) << É impossível que o mesmo ser dependa esscncialmcnll' de dois. ,· m c;1<l;1
um dos quais termine totalmente a sua dependênc ia»; Cap. I I I . conc l . 1 <>, � · 12.
('m) Cf. ARISTÓTELES - Me1aphysim X I I I O ( I 07() a 5).

1 27
parcialmente. Teríamos então que perguntar em virtude de que
único ser se u niriam para governar.
A quarta proposição, rel ativa ao ser necessário, prova-se
ass i m : u m a espécie m u l ti p l i cável é por si m u l ti p l i cável
i n fi n i t a m e n te . Portanto, s e o s er n e ce s s ár i o p o d e s e r
multipli cado pode haver u m a i nfinidade d e seres necessários.
Logo, haverá uma infinidade de seres necess ários, pois se um
ser necess ário não existe não pode existir.
A quinta, sobre o bem , expõe-se assim: muitos bens são
melhores do que um quando um deles acrescenta bondade ao
outro. Não há nada de melhor do que um bem infinito. Também
se argumenta assim: toda a vontade se satisfaz plenamente num
bem i n fi ni t o ; mas se houvesse outro, a v o ntade poder i a
razoavelmente querer que ambos fossem, e m vez de um só;
l ogo, não se satisfari a p lenamente com um único sumo bem.
Poderiam aduzir-se outros argumentos, mas por agora
bastam os referidos.
98. Senhor Nosso Deus ! Tu és uno por natureza. Tu és um
em número. Em verdade disseste que além de ti não há outro
Deus, pois ainda que de nome ou putativamente existam muitos
deuses, tu és o único por natureza, Deus verdadeiro, de quem
são todas as coisas, em quem são todas as coisas, e por quem
s ão todas as coisas, tu que és bendito pelos séculos. Á men.

Te rm ina o Tratado do Primeiro Pri n c íp i o, de JOÃ O


ESCOTO.

1 28
BIBLIOGRAFIA

[Utilizámos a versão l atina estabelecida por W. KLUXEN,


Joahannes Duns Scotus. Abhandlung über das erste Prinzip,
Darmstadt, 1 974, retomada, por exemplo, por F. ALLUNTIS,
Tratado acerca dei Primer Principio, Madrid, 1 989, e em Jean
Duns S cot (t 1 308). Traité du premier principe, trad. du l atin
par J.-D. Cavigioli, J.-M. Mei l l and, F.-X. Putal l az sous l a
direction de R . IMBACH, Genebra-Lausana-Neuchâte l , 1 983
(estas duas ú ltimas traduções foram-nos também úteis). Outras
edições e/ou traduções da obra: M. MÜLLER, Joannis Duns
Scoti, Tractatus de Primo Princip io, Fri burgo, 1 94 1 ; E .
ROCHE, The D e Primo Principio ofJohn Duns Scotus, Nova
Iorque-Lovaina, 1 949 ; A. B. WOLTER, John Duns Scotus. A
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Scoto: ll primo Principio degli esseri, a cura di P. SCAPIN,
Roma, 1 96 8 ; Johannes Duns Scotus. Het eerste beginsel,
vertaald, ingeleid en van aantekeningen door W. A. M. PETERS,
B aarn, Ambo, 1 985 . A edição crítica defi nitiva da obra completa
de Duns é a da chamada Comissão Escotista ou Vati cana,
Docto ris Subtilis et Mariani Ioannis Duns Scoti Ordinis
Fratrum Minorum, Roma, 1 9 5 0 - . Em p ortu g u ê s , tem o s
conhecimento das traduções segu intes : Pode tJro var-se a
existência de Deus ? Trad. de Raimundo Vier, Pctnípol is, 1 972
(texto a que não tivemos acesso) ; Sobre o conheci111cnto humano.
O conhecimento natural do homem a respeito do /)eus, A
Existência de Deus, A Unicidade de Deus, A l:spiritual idade
'

1 29
e Imo rtalidade da A lm a Humana, Sobre a Metafísica,
traduções de C. A. Nascimento e R. Vier in "Os Pensadores" ,
São Pau l o , 1 9 7 3 . Pode ass i n a l ar-se tam bém u m número
especial da Revista Portuguesa de Fi l osofi a (23, 1 967), de
onde destacamos, para além de uma bibliografia de O. Schafer,
i ndicando também títulos de estudos em português publicados
até 1 966, o artigo de R. PRENTICE, j á indi cado, sobre uma
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1 33
GLOSSÁRIO LATINO-PORTUGUÊS *

A D
A se - por si (25), (33). Dare esse - dar o ser ( 1 2).
Activum - «activo» (6 1 ). E
A fine in artificialibus - à finali­ Ef.fectibilis (ia) - efectível (25),
dade das coisas feitas por arte efectíveis ( 1 1 ).
(22). Effectiva - «efectiva» (25).
Effectivitas - efectividade (29 ) .
c Effe ctus - efeito (5), ( 1 9 ) , (20 ) ,
Causa sui - causa de si (89). (23), (84); vd. causatum.
Causae per se - causas por si ( 1 9). Effectum- «efectuado» (7).
Causans - causante (59). Efficere - produzir, actuar ( I I ).
Causativum - causativo (32). Efficiens - a causa eficiente ( 1 2),
Causatum - causado (5), (37), (42), ( 1 3).
efeito ( 1 3 ) , ( 1 6) , ( 1 8 ), ( 1 9) , Efficientia in operando - eficiência
(72 ) ; ex parte causati - pelo operativa (88).
lado do efeito (I O); in causando Ens - ser ( I ), (36) - (39), (4 7), (57) ,
- na ordem da causalidade ( I I ), ( 6 1 ) , ( 7 8 ) , u m s e r ( 1 2) ,
( 1 5 ) , ao c a u s ar ( 1 6 ) ; v d . existente (34); ens existens - o
effectus. s e r e x i s t e n te ( 2 6 ) ; ens
Circa se - relativamente a si (59). quidditative sumptum - o ser
Cognitio a rti.ficialis - conheci­ tomado quiditativamente (26);
mento na arte (22). passiones entis - atri b u t o s
Cognitio in universal) - conheci­ transcen d e n t a i s d o s e r ( 2 ) ,
mento universal (95). ( 78), (90), atributos d o c n l c
Colorarei Coloratio - matizar (79), (54).
( 82), coloração (84), (88).
Concomitantia: (non) necessaria Esse - existir (4), (9), ( I <J), (2-l),
concomitantia - (não) neces­ (33), ser (5), (87); cssc jiniti
sária concomitância (7). o ser do « fi n ido» ( 1 2 ); esse iltllt
Conversio - movimento (69). existens - um ser ja c x i s l t'. l l i l '
( 3 5 ) ; esse in re - e x i s t i r n : 1
realidade (29), ( 7l) ) ; flli/1('/1' in
* Os n ú m e ros rem e t e m para os
principai.r pauí1;rafils (e niio pam rodos) esse - dar ser (5 ) ; in f'.\',\'('Jii lo
em que o vocábulo ocorre. no ser ( 1 6 ), (:U ) , ( 7 1 ) , p a ra sn

1 35
( 3 6 ) , na ordem do ser (74) ; M
to tum esse - o ser todo ( I ) ; Magnitudo - grandeza (88).
ve rum esse - ser verdadeiro ( I ) . Mcllitia - maldade (57).
Ex natura rei - pela natureza da Materiatum - «materi ado » (7),
coisa (22). ( 1 3).
Ex se - em si ( 1 3 ) , ( 1 6), por si
(97). N
Existentia - existencia (26). Necessarium ex se - necessário por
si ( 1 2).
Notitia - conhecimento (70).
F
Factivum - «facti vo>> (6 1 ). o
Ordo dependentiae - ordem de
Finire - limitar (87). depe n d ê n c i a (4) ; o rdo
Finitum - «fi nido» (7), (23). eminentiae ordem de
Formabilis - formavel ( 1 6). e m i n e n c i a ( 4 ) , ( 9 ) ; o rdo
Formatum - «formado>> (7). essendi - ordem de ser ( 42) ;
ordo secundum eminentiam -

G ordem de eminência (5); ordo


Genera causarum - géneros de essentialis - ordem essencial
causas ( 1 6) . (2), (3), (4), (9).

p
H
Passio - atributo (54), (5 8 ) ; vd .
Habere receptivam - ter um cunho
Ens. Paucitas escassez em
-
receptivo (64).
numero (44).
Habitudo - proporção (78).
Peccatum - falha (57).
Per a ccidens - ac i d e n t a l , p o r
acidente ( I I ) , (28); accidens
ln rebus - na real idade (9). p e r a c c idens contingenter
ln speciali - em particular (22), inhaerens - acidente i n erente
(47). por ac i d e n t e de m o d o
Ineff"ectihilis - inefectível (32). contingente (90); v d . per se.
/ntellectus - i n te l i gê n c i a ( 1 ) ; Per descriptionem - pela defin ição
entendimento, i ntelecto (65), (54).
( 6 6 ) , ( 6 8 ) , secundum intel­ Per se - por si ( I I ), (23) , (28 ) ; vd.
lectum - d e acordo com o per accidens.
sentido (9). Physicus - filósofo natural ( I 2).
Intelligere - (o) entender, (o) inteli­ Posteritate - posterioridade ( 3 ) .
gir (64), acto de i n telecção Posterius - posterior (3) - ( 6 ) .
(75). Potentia - poder (8 1 ).

1 36
Primitas - primazia (27), ( 40) . Relatio aequipamnliac - rl' la l; ao
Princeps - o que detém o primado de mútua comparal;ão ( .l ) .
(97). Repugnare - ser incompat ível ( 1 2. ) ,
Prius - anterior (3) - (6), (9). ( 5 5 ) , contrad i zer ( 7 X ) ; 1 1 0 1 1
Propter quid - por quê ( I I ). rep ugnantia - n ão - c o n t rad i
Proprium liberalis - l iberalidade tório (78) .
(45) .
Proxima - imediatamente anterior s
(44) , (52). Secundum quid - em cerlo sentido
(23), (89).
Q Signum - �nstante (87) .
Q u i e ta ti v u s - a q u i etar ( 4 4 ) , Simpliciter- simples (53), absoluto
satisfazer (97) (90), em sentido absoluto (23),
R (35), (58).
Ratio - sentido (5), razão (8), noção Stare - subsisti r (59).
( 3 3 ) , (50), tipo (43) , atributo Subiectus - substante ( 1 4) ; sujeito
(45 ), natureza (66), argumento (22 ) .
( 6 9 ) , o rd e m ( 90 ) ; ra tio
naturalis - razão natural ( I ) ; T
ratio intelligendi - razão de Te rmini ad quem - termos d e
e n te n de r [na acepção de referência (36).
' c o n c e i to o bj ecti v o ' ] ( 69 ) ; Trancljerre - empregar (75).
ra tio u n i v e rsa lis - razão
u n i v e r s a l [ n a acepção d e v
'conceito ' ] (69); ratio entis ­ Vis - força (8 1 ) .
noção de ser (78). Virtus - força (78), poder (82 ), (84 )
Rationabilis - razoável ( 1 6) . Virtus motiva - capacidade motriz
Rationesfo rmales - noções for­ (68).
mais (5 1 ) . Volens - dotado de vontade ( 5 5 ) .

1 37

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