Você está na página 1de 566

COMENTÁRIOS DO COLÉGIO

CONIMBRICENSE
DA COMPANHIA DE JESUS
Sobre os três livros do Tratado ' D a Alma'
de Aristóteles Estagirita

Introdução Geral à Tradução, Apêndices


e Bibliografia de
MÁRIO SANTIAGO DE CARVALHO

Tradução do original latino por


MARIA DA CONCEIÇÃO CAMPS

EDIÇÕES SÍLABO
É expressamente proibido reproduzir, no todo ou em parte, sob qualquer forma
ou meio, NOMEADAMENTE FOTOCÓPIA, esta obra. As transgressões
serão passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.

Visite a Sílabo na rede

www.silabo.pt

Editor: Manuel Robalo

FICHA TÉCNICA
Título: Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus
Sobre os Três Livros do Tratado 'Da Alma' de Aristóteles Estagirita
Autores: P. Manuel de Góis, Mário S. de Carvalho, Maria da Conceição Camps
© Edições Sílabo, Lda.
Capa: Pedro Mota
lª Edição
Lisboa, 20 10.
Impressão e acabamentos: Europress, Lda.
Depósito Legal: 3 1 8408/1 0
ISBN: 978-972-6 1 8-606-9

EDIÇÕES SÍLABO, LDA.


R. Cidade de Manchester, 2
1170-100 Lisboa
Telf.:218130345
Fax:218166719
e-mail: silabo@silabo . pt
www.silabo.pt
Sumário

INTRODUÇÃO GERAL 7

A. Os Comentários a Aristóteles 9
1. Génese e contexto de um curso de filosofia 9

2. Cartografia e horizonte de um curso de filosofia 45

B . O Comentário ao De anima 79
1. Introdução 79

2. O lugar da scientia de anima 92

3. Teoria da percepção; o conhecimento sensível 109

4. O conhecimento intelectivo; o pensamento 115

5. Vontade e intelecto 138

6. Para finalizar 140

C. Apêndices 141
1. Quadro cronológico 141

2. Quadro de referências intertextuais de ln III De Anima 142

3. Prepósitos-gerais (1555-1615) 145

4. Catálogo dos Professores de Filosofia do Colégio das Artes 1555-1606 145

5. Plano de estudos em Évora: anos lectivos 1560-64 147

D. Bibliografia 148
Edições nacionais 148

Algumas edições estrangeiras 148

Traduções 149

Livros e artigos sobre o curso 149

NóTULA DA TRADUTORA 159


Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus
Sobre os três livros do Tratado 'Da Alma' de Aristóteles Estagirita

ÍNDICE
LIVRO PRIMEIRO 1 77
Proémio aos Três Livros 179
Explicação do Capítulo 1 188
Da Restante Parte deste Livro 193

LIVRO SEGUNDO 1 95
Proémio do Livro Segundo 197
Explicação do Capítulo 1 197
Explicação do Capítulo II 258
Explicação do Capítulo III 266
Explicação do Capítulo IV 282
Explicação do Capítulo V 290
Explicação do Capítulo VI 294
Explicação do Capítulo VII 319
Explicação do Capítulo VIII 349
Explicação do Capítulo IX 364
Explicação do Capítulo X 387
Explicação do Capítulo XI 395
Explicação do Capítulo XII 407

LIVRO TERCEIRO 413


Proémio do Terceiro Livro 415
Explicação do Capítulo I 415
Explicação do Capítulo II 428
Explicação do Capítulo III 438
Explicação do Capítulo IV 456
Explicação do Capítulo V 461
Explicação do Capítulo VI 499
Explicação do Capítulo VII 502
Explicação do Capítulo VIII 505
Explicação do Capítulo IX 543
Explicação do Capítulo X 545
Explicação do Capítulo XI 547
Explicação do Capítulo XII 547
Explicação do Capítulo XIII 548
Introdução Geral
Introdução Geral 9

-
A -

Os Comentários a Aristóteles

1 . Génese e contexto de um curso de filosofia

Entre 1 592 e 1 606, saíram dos prelos de madeira de Coimbra e de Lisboa cinco
grossos volumes correspondentes a oito tomos de um Curso de Filosofia composto
para os alunos do Colégio da Companhia de Jesus (S.J.) em Coimbra. O seu título
comum era, justamente, Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de
Jesus e versavam sobre a filosofia de Aristóteles (séc. IV a.C.) ! Assim se seguiam as
determinações pedagógicas gerais da Companhia, provenientes de Roma, atinentes
ao ensino da filosofia, que prescreviam o estudo daquele filósofo? A designação
mais vulgar pela qual ainda são citados é a de «Curso Conimbricense» ou «Conim­
bricenses», denominação que padece de sinédoque ou metonímia, porque, natural­
mente, outras ordens tiveram também os seus studia na cidade e, logo, também os
seus comentários, mesmo não tendo sido publicados, seriam conimbricenses � Adop­
taremos, por isso, daqui para a frente a designação de Curso Jesuíta Conimbricense.
Graças à extensão institucional, colegial ou geopolítica dos Jesuítas, e decerto
.
também em razão do valor intrínseco do seu labor filosófico-pedagógico, rapida­
mente aqueles textos impressos tiveram repercussão internacional. Já se contaram
para cima de uma centena de edições daqueles oito comentários portugueses, a
maior parte delas no estrangeiro� Ainda no século XVIII, o filósofo renovador Antó­
nio Cordeiro publicava o seu próprio Curso filosófico justificando a herança titular
«conimbricense», não apenas em alusão «ao lugar onde foi ensinado pela primeira
vez, mas também em homenagem aos antigos Padres conimbricenses» ?

( l l Cf. MESQUITA, A. P., Obras Completas de A ristóteles. Introdução Geral, Lisboa 2005 ; ID. ,
Vida de A ristóteles, Lisboa 2006; O leitor poderá ter fácil acesso à reprodução das páginas ori ­
ginais d e rosto d o s oito títulos i n GOMES, P., O s Conimbricenses, Lisboa 1 992, 1 57- 1 66. Não
obstante o que diremos adiante acerca da autoria dos vários volumes, a maior parte das vezes
referi-la-emos no plural.
(Zl MP 1 299: «ln logica et philosophia naturali, et morali et metaphysica doctrina Aristotelis
sequenda est. . . » e passim. MP abreviará sempre, aqui, a colecção editada por LUKÁCS, L.,
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu, Romae 1 965 sg. (indica-se o número do volume e o
da página).
<3l Cf. COSTA, M. G. da, Inéditos de Filosofia em Portugal, Braga 1 949, 1 8, 49, 62-63 .
<4l ANDRADE, A. A. de, «Introdução» in Curso Conimbricense I. Pe. Manuel de Góis: Moral a
Nicómaco, de A ristóteles, Lisboa 1 957, XIV-XVII.
<5l Cf. GOMES, P., Os Conimbricenses 144; COXITO, A., Estudos sobre a Filosofia em Portugal
na época do Iluminismo, Lisboa 2006, 1 6 .
10 Introdução Geral

Eis os oito títulos originais que precisamente integraram o curso publicado por
esses antigos Padres � O primeiro tomo e monografia era um comentário aos oito
livros da Física:
1 . Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln Octo Libras Physico­
rum Aristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1 592, 4+825+22pp.).

No ano seguinte, saía do prelo, agora de Lisboa, o segundo tomo, um comentário


aos quatro livros de O Céu:
2. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln Quatuor libras de
Coelo A ristotelis Stagiritae (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 6+447pp.).
2. 1 . Este comentário era acompanhado de um apêndice sobre os problemas
respeitantes aos chamados quatro elementos (pp. 405-20), intitulado
Tractatio aliquot problematum de rebus ad quatuor mundi elementa
pertinentibus, in totidem sectiones distributa.

Na encadernação que nos chegou até hoje, este segundo tomo incluía ainda mais
três obras. Primeiro, liam-se os Meteorológicos, seguidos dos chamados Pequenos
Naturais, respectivamente:
3. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln libras Meteororum
A ristotelis Stagiritae (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 143pp.) e:
4. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu ln libras Aristotelis, qui
Parva Naturalia appellantur (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 1 04pp.); Os
Pequenos Naturais são curtos tratados de temática variada, integrando os
títulos seguintes: De memoria et Reminiscentia, De Somno et Vigilia, De
Somniis, De Divinatione per somnum, De Respiratione, De luventute et
Senectute, De Vita et Morte, De Longitudine et brevitate vitae.

E numa segunda parte deste tomo II, publicavam-se as disputas da Ética, a única
monografia que omite no título a expressão «comentários» :
5 . ln libras Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum, aliquot Conimbricensis Cur­
sus Disputationes in quibus praecipua quaedam Ethicae disciplinae capita
continentur (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 96pp.) �

O l GOMES, P., Os Conimbricenses 5 8 : «A natureza do curso manda respeitar a referência por


tratados, que são efectivamente oito.»; STEGM ÜLLER, F., Filosofia e Teologia nas Universi­
dades de Coimbra e Évora no século XVI, trad., Coimbra 1 959, 95-99.
<2J Até ao presente este foi o único volume que conheceu uma edição portuguesa moderna
impressa, da responsabilidade de A. A. de Andrade, vd. Curso Conimbricense /. Pe. Manuel de
Góis: Moral a Nicómaco, de Aristóteles, Lisboa 1 957 (o volume publica também a tradução de
uma parte do Proémio do volume da Physica); sobre este trabalho de tradução, vd. FONSECA,
N. da, «0 'Curso Conimbricense' em Português» Brotéria 66 ( 1 958) 320-30. Só muito recente­
mente, o Comentário ao De Anima e os seus dois Apêndices (vd. infra# 7) mereceram uma edi­
ção electrónica, vd. CARVALHO, M. S. de, «http://www.ci.uc.pt/lif/main5 .htm. Sobre um Pro­
jecto no âi;nbito da História da Filosofia em Portugal» Revista Filosófica de Coimbra 1 2 (2003)
2 1 5-224. E justo referir que em 1 972 A. de M. Barbosa ainda nutria a intenção de publicar uma
edição e tradução destes Comentários, tarefa que infelizmente não pôde levar a cabo (vd.
CAEIRO, F. da G., «Miranda Barbosa e a Filosofia em Portugal», Biblos 62 ( 1 986) 9).
Introdução Geral li

Quatro anos volvidos, e de novo em Coimbra, estampava-se o terceiro tomo


totalmente dedicado aos dois livros de A Geração e a Corrupção :
6. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln duas libras De Gene­
ratione et Corruptione A ristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz,
1 597, 1 2+505+28pp.).

No ano seguinte, publicava-se o quarto volume, que tinha por objecto os três
livros de A A lma, sendo aquele que justamente se traduz a seguir, desprovido, agora,
dos dois apêndices que integravam o volume original:
7 . Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln tres libras de Anima
A ristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1 598, 4+558+28pp.).
Como se disse, este volume anexava dois apêndices:
7 . 1 . A A lma Separada (pp. 44 1 -532), Tractatus de Anima Separata,
7.2. Tratado sobre os Problemas respeitantes aos Cinco Sentidos (pp. 532-
-558), Tractatio aliquot problematum ad quinque sensus spectantium
per totidem sectiones distributa.

Embora publicados sem estamparem o nome do autor, todos estes quatro volumes
parecem ter sido redigidos por Manuel de Góis ( 1 547- 1 597) ! este último eventual­
mente com a colaboração editorial de Cosme de Magalhães ( 1 55 1 - 1 624) � haja em
vista que se trata de uma edição póstuma. Quanto aos seus dois apêndices, um sobre
A Alma Separada, outro respeitante aos Problemas sobre os cinco Sentidos, o eru­
dito Carlos Sommervogel asseverava serem ambos da autoria de B altasar Álvares
( 1 560- 1 630) ? O quinto e último volume a sair do prelo acrescentará à série um novo

( I l Sobre o autor, vd. RODRIGUES, F., História da Companhia de Jesus na Assistência de Portu­
gal, Porto 1 939, 11/2, 1 1 5- 1 22; COXITO, A. A., «Góis (Manuel de)» in Logos. Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia II, Lisboa 1 990, 873-88 1 ; STEGM Ü LLER, F., Filosofia . . . 95-96;
CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas Portugueses com obras filosóficas impressas nos séculos XVI­
-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 ( 1 99 1 ) 655; PRAÇA, L., História da Filosofia em
Portugal. Edição preparada por P. GOMES, Lisboa 1 974 [orig.: 1 868] Lisboa 1 974, 1 26- 1 32.
SANTOS, Mariana A . M, dá nota de um tema de 'exame' de metafísica de Góis, datado de
Coimbra 1 5 82, «Utrum intellectus sit potentia nobilior voluntate», vd. «Apontamentos à mar­
gem das Conclusões impressas dos Mestres Jesuítas portugueses de Filosofia» Revista Portu­
guesa de Filosofia 1 112 ( 1 955) 563.
<2l Cf. STEGM Ü LLER, F., Filosofia ... 96, 46 1 ; CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas Portugueses com
Obras filosóficas impressas nos séculos XVI-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 ( 1 99 1 )
65 1 , 656.
<3l RODRIGUES, F., História . . . 1 1 8; COXITO, A. A., « Á lvares (Baltasar)» in Logos. . 1, Lisboa
.

1 989, 1 99-20 1 ; PRAÇA, J. L., História . . . , 1 46-48; ANDRADE, A. A. B. de, «Teses fundamen­
tais da Psicologia dos Conimbricenses» in ID., Contributos para a História da Mentalidade
Pedagógica Portuguesa, Lisboa 1 982, 1 00 atribui a autoria do Tractatus a Cosme de Maga­
lhães. SOMMERVOGEL, C., Dictionnaire dês ouvrages anonymes et pseudonymes publiés par
dês réligieux de la Compagnie de Jésus depuis sa fondation jusqu 'à nos jours, Paris 1 884, vol.
1, c. 1 40. Sobre o pseudo-aristotélico, vd. DE LEEMANS, P. & GOYENS, M . (ed.), Aristotle's
'Problemata ' in Different Times and Tangues, Leuven 2006.
12 Introdução Geral

autor. Da responsabilidade de Sebastião do Couto ( 1 567- 1 639) ! ele era dedicado à


lógica:
8. Commentarii Collegii Conimbricensis e Societate lesu, ln universam Dialecti­
cam Aristotelis Stagiritae (Coimbra: Diogo Gomes Loureiro, 1 606,
548+32pp.); da chamada lógica ou dialéctica peripatética faziam parte os sete
títulos seguintes: ln /sagogem Porphyrii, ln libras Categoriarium Aristotelis,
ln libras A ristotelis de Interpretatione, ln libras A ristotelis Stagiritae de
Priori Resolutione, ln primum librum Posteriorum A ristotelis, ln librum pri­
mum Topicorum A ristotelis e ln duas libras Elenchorum A ristotelis.

Regra geral, cada volume dos títulos mais importantes (ou seja: Physica, De
coelo, De Anima, De generatione et corruptione, Dialectica) publicava o texto de
Aristóteles, muitas vezes dividido em partes numeradas (Textus nº), mas no caso da
Dialectica não publicado na íntegra. Cada uma destas partes era, mais ou menos,
objecto de uma explicação ou exposição literal (explanatio) , publicada nas margens
da página respectiva. À guisa de ilustração ópticografemática reproduz-se aqui uma
página do comentário ao De Anima (gravura l ).
Seguiam-se invariavelmente as questões (quaestio), divididas em artigos (articu­
lus) em número irregular, e estes, nalguns casos (mais uma vez atente-se na situação
do volume da Dialéctica), ainda subdivididos em partículas (sectio) . Não obstante a
sua clara utilidade, a apresentação tipográfica da página (notas marginais com auto­
res, títulos e resumos) e os índices de cada volume limitavam-se a seguir as determi­
nações pedagógicas pragmáticas mais comuns, sendo algumas práticas manuscritas
antigas (vd. gravura 2). Assim v.g. , num texto de 1 548-50 lêem-se os seguintes con­
selhos com vista à preparação dos exames: façam um resumo (estratto) ou sumário
ordenado e breve, escrevam-no num caderno de apontamentos (libra que puedan
traer consigo) para fáceis e rápidas revisões (para acordarse con más facilidad y
brevedad de lo studiado), para o que o devem escrever títulos à margem (es bien
sacar ai margen algo que muestre lo que ay dentro) e enumerar tábuas temáticas
alfabéticas (y hazer una tabla por orden dei alphabeto con sus números de las mate­
rias que se trattan, porque assí podrán sin confundirse, hallar presto lo que quie­
ren).2 Seja como for, importa desde já informar que a publicação se destinava expli­
citamente a obstar que os alunos perdessem tempo de estudo a tomar notas.

( l l Cf. RODRIGUES, F., História . . . 11/2, 1 1 9- 1 22; STEGMÜLLER, F., Filosofia . . . 96-98;
CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas .. » 653 ; PRAÇA, L., História . 1 42-46; MANSO, M. de D.
. . .

B., «Sebastião do Couto e o sermão do auto-da-fé de 1 627», in Congresso de História no IV


Centenário do Seminário de Évora. Actas, 1, Évora 1 994, 3 1 7-28.
(Zl MP 1 258. Devido a constrangimentos editoriais a tradução a seguir não inclui as notas
marginais originais.
Introdução Geral 13

Gravura 1

CAP. I. EXPLANATJO. u

C•filis Pri111i Expl•n•tio.


a VM Olll•cm ' Doo p«i6im�m iáat.� homiRu,;, ooimoud pcr.Mcodú
ffCCliuiore' R<Ídant,1c tcbclDCllltramurm ídcncizd�iu.t,&cu&.a metbo
Cus docrsuis. D11;oiu1 íàcntiç tribuscon1111c.tur,m1imdio�!obicSç ma&orjç Qu� _fc:lm dl
pu10.ar.ti2,&l'UJ'irate. Hacoruniaptaf.tu1&ritloutai_ahocproamio. Nu a�pcutum ex
. h•cciiam 111dito/1·f:!J'•
imernn tuf«ft• J ri ditficultJt«D fitcDtio iuuol•tt1tov: qt.üa
rcra caaru nc rorpcftatC)(io, YI Gr-R Uucrprrccsaclmoacat:i tum oo quis �J
1c i14:i.a.. & 1ccocdn.a m1.iotcm cuidcntiam fOkat,� par fie, &qqi:n 1ci_nar:GC'I patjalbr;mrn
dcniqne vt mdil fc urd•
ill!!UliaabipfoliW>iocpro
A R 1 T o T E L I s D E caTcOi: �d...
iobear. Cur
""' Pbt1oíoph•9 P•0cc· pbidepbiloío
Anima Liber Primus. ren(qucadeoan1111c?I01 obf..o•u•n
.,cl<ri•
babouc,vtpropte,.. ver plctint. •
C A P V T. L borambn:uir.atc.& •üig- ·

muum iAaolOC1h OabUÇ


P M a ta1n1• flitnliAm mn tft &1n1• 41· mytleú.t obt."Jaio� <>f"'
bitmnNr,•c h1nor•bilib U' �/;.,,. 4/i1 m..gis rçJ>l<.l.Ôlrm lt f.icac crlll i
<1<<0 tJi •ffep1<1tt11Rs,9Ni• -.ri tx•élicrcejl, 1P11>1CSG ea racione w.
m.girpr.rjl.ibilu,••gisj
-.ti mi•/I urii.jll.t doomioiai� ad ••dl.
ft1n1 •ámirdi/u,fiit•ti•m •ni111.t ninmii •b b.tc l>tr•§ .:W':.1'111;:n�";;1��.�
t1oniuiari•p•11tnd•miaprimiJ tffi crrif1rt1141 1'iJtt11TAu• iaqiuf•ion• ,.0100,....
.,
· •d vrrital'i•mn"i,íp{iuunirtu ugnitio l>tbt•"i• b Bown .. hooorobf
trm d e:r R.rioboa'"'
1tr tfnftnt,,(9' ••ximi •tÍipjíus PdlUT.t 7,ieo1i110: tft lcm.) Bouum,&bonota boa �...
r.inUni•�91.,fip1incipiií•1im.Jiíl. e C1111rp/.,i•ul'i,f bticroe<>n.....ionr,,.tio• º" !
CJJ' <0gu11fccre ••ttlUã tías,(9' J•bP•nlià 9u�rir11uu Jdwle :!!��=(N".!'::t!,j:·
''• 9"" cirC4iffa• •rcld.at, 9•orii9rud11111 •JfeEJu1 ipfi• rcfcrruud·•pf<<Íto,boo�
•ffepropri),J]tutd•11111 nitulibus t1l1m ptr ipfar. inrfi tt'ii vo:.wr: Yt ad u<eilrnci;i
prtmi, )tdilllJ',Ml>tro g 'll ndtj1Uq., 1t:1i omninoáijficil· hononbilt: appaÍDI•••·
lilfl;;tjl,fide111 dlifUMJtip/4 t•11lim1ttiptrc. �••Hil oimbo...,inho.ortbabo
b,.c 91u/lior'iiJl.ni1}i1tti •111 ci tltjs nlms mnpluribus, "'"' rudlcnri.. Coove V•ta90cfcif;
d•fub/huli•Jin,rs-.1.UJ c/l: 1'ninnipiitf1rt•ffuuáo1, n\unt ...."' urio bool ria <6pai'!,
')m• l'i• t•1td1n1•/!•1'idt11U' 'Jtl• r•o1t'ir r1 ar<idn•m
{it ooiioi fcl<llris, qui•bonií
. n·•n1111 1 pn..o E.Me cap, ".n
')111qu;p• /'•.JJ rtrii, fllllllltltj•b�I·
'} 1n1i•mpmiptrt qoô<l omnia •ppcrun!I
'11olum>r,ptr1nJt 41:,\ m1do1 >nu1 rjl bifa<tJ•• proprtj rt• ombibus '""ê 6ommrbus
ru1n d<rn•11J'r.1111., ;.j/t/1111, Q.!• /'"f'" q11�1111JA111 i•gC11i1nnA lt.ionri• de
tjt •1""""n {ti i/IJ 1'Í•, qr<ii illc m•J•1 )11•1 , 'l"' GJcri""' r,Mmphyí..:•r·
rtrMmJib/l ••li.t ptrcipí J>•U•mt. fl.!!!d ft n1.n 11uur 'JUÍ• 1,C'omp<1i11po'I'" '"'"
d•11• -'1•• cu1muni1 fi1 l/lt 1111da1, l•"!i JjFticilirr ria ratiobona1>b.lh:qu1a
a• pmrat'"l•IJO (i,1. Opor1tb11
•r111 · cmm dI )n•qu111
'J J· Mnnet� (dtnu.- pr;afl�l\t
·
ut rt· ex""""''l" " bom>nu ril
'""' •Wptri a'JIUS '1l �11•mq••mqut modru '"'m!J!•· bclluis,rumalii•hr inccr
tl•/Ji· fe;quod 4'poht, "P""""
Mm:AriO:,d.um fciecti&mintttír«ksnobilihti1 �mtrar. Ecittamco�icbJ,ci11vidw Ati
.lloulcm nou libicoo!hrc..°'NJamJ. Etbie.np. u.af�ttrtU�tuinist•ntilm ae;hu, dcbeti hooort, Obicétio..
ilodmi autun \'ittoó � honi:R� f.aâis. Hcc nu:m ló<.o ttiam do6.J1n• bC'Dotem ct1nbcndum
coftc:dit.S(d. qccumndú� 1li1er in &bK'm a.litc.rbltbcnortrr fumpfüTc.. ln &bkistnim loqu1· Difotio.
CQt de bpaotc �dmoJ.:1 prcfs�.qui tcbwoon (;OIDpllal�, f•J fimpliuiere1ccl1.:nli�q•ulc:�<!1u1 •
nz fwn, con..icnic. Hi, attcundceo, qui ctÍJm rcbus human1sac:commoWtur , 7.1out inter í.:
m;agit aur anoü1 cminenr. .
·e Q.uiavcl cnD.ior.) lo bvncmodum ratiocinarividctor,íc\entU: cmois�.roO:t qtiidpil
ee. &iu hon:oto,.acptétiobabc:ur,coquealhroalta prç.fbbil1orcru 11iR.imaa1at. qao io tebus
&nob11iotihH\ &crnioribus \'C1flc:or. atvtrúq1 imer allatfciemiat,do& io�dtan1djat.ueJli:tcr
<Õll<ni�ID!O igillll ci loiq pria>AScoUocabiawo, Citc.imioor<propofltiont,loljUAAllO.íà!<ili
-
li. '"
14 /nrrodução Geral

Gravura2

1'4 IN II. LIB. ARI ST. DE ANIMA.

Q V .Al S T I O III.

VTR.VM
·
ANIMA! INTEL•
lcaiuz;ã.' Oco crccntur,an nc:n,
AR T I
· C VL VS. J,

D· I V E R S A D O G M A TA D E
nofirorum anímorum origine.

:Dmo�uininuol111a t!c obfcura q112fiio fcmp�r vif';j


·A""1>amm
on)!Ooa:ul. 1. .fuic.dc animoium.otigine,non apud l:thnicos 'ªº•
"coi •pud, tum philof.ophos,fcd ctiamapud illos,qµ1buua:lt�
p..,.._ füs d1(cipli11�lumcn diuimtin affultit;vtpatct ex:
ijs ,qu..:D. Hícronymu> in tpiílulud Maucllinú•
D. :.:;;r·
,
D ·
D.Augullinus io libto de origine anim« ad D. H1c··
E."bcr. .
ronymum,&. l1bro 3· de hbcto a1b1t1i<1 cap. 11.&:
Eucbcrius 1.in.Gcndim,alijquc Pat1cs fcrip(crc.
�n�!�:.cJ.: . D•>o.igitur in pri�i; dogmat><irca•nünorum. �ttum nobis occur.:
°''"· runt. V 11umalfcicnuom foS ex fcmtnc propagau, m quo crrorc fuc�
l a;if::1ianl. JUnt Ludferiani,vt rcfertur in ltluo de. cct lcliallici$ dugmat1bus,Ter•
Te.Nll, tullianui,& ApollinalÍs,tcflc D. Augullinoin libro d� hzrclibus ad
Aroiho. �od vultDcum cap.86.& i11 dialo60,qu1 ex cius, & D. H1cronymi
Do•mullo. Ccriptis
collcll:us cfi,& D ..Tboma 1.cõua.gcntcscap. �6.Altcrum co�
....;. , rum,qui crca1i quidcm •!liDllU;non tamc11 à Oco, (cdab intcll1grn1ijs
putarun.t: e quorum n11mcrofucrc poll Auiccnnam, tum Seltucus, &
. . . Hcrmias,vt,coollatcxlib.7. hilloriztripanitz cap.11.tum Galirz..
!:'.:''.'!°&: v.ndc:profcminmcll b;rrclitM�d'alianorum:.l'toprío�tbus h:rc �d._du•
..,..,. ·S• c1 p:>a11nt argumenta. ln matcriHUnaturalu potcntia ad rc<1p1�n·
· !
. d•1nani111am rationalcm;c\a,m a11ima fü propriusac naturalisatluHor•

�riJoalioqui non ficrctcx vtroquc perjc vnum,fcd cuilabct potcnciz


n�turali paísiuz rcfpondct ali!juaa(tiua ct•am naturplís,Ytdoc•t Ari·
fiocclcshb. t·Mctaphyf.cap.12·tp'l. 17.<'ld1b.9.cap. '• tcxt. li.
Erg.o·datµ�aliquc)sl agc!1s ph)' Ílcu11;1,quod .aníniain mio�al� progig·
ll�t. Hoc aut.c\n noo. pc:ittll díc ahud,quam parens, qu1 v1 fcmmis
animá cmatcriz C.nu cliciat,Ergo anima ration•lis propagatur vifcmi
a. nis. Item c:ttcra: auiman,tcs cxc1tant foz !oboli formas é potcllatc nia
uri«.fcd homo 11011 dcbttctTc hado rc dctcrioris condiuonis. lgitur
�otmil humana ab horninc ipfo prnducitur. Ncc rcftttquôd anima fie
i1111ll•tcrialis fol>ílantia,virtus autcm gcncratiua,qua homo, vt intlru.
mcntn ad gigncndum vtitor,matctjalisíit: potcfi c11iu1 i111lrumcnturo
�lcuari :-:lera proprfam �i�ad ali'lu!díc,nol>1b1u prod.ucc11d1un, vt 1n
ab11

Certamente que a lista dos oito títulos acima nada diz ao leitor de hoje. No
entanto, será avisado atentar que nos nossos dias uma empresa académica seme­
lhante seria considerada exemplar. Mesmo invejável. Efectivamente, três critérios
decisivos para uma avaliação do rigor científico universitário i. e. , trabalho siste­ -

mático em equipa de investigação, publicação de âmbito europeu (a língua


académica universal era o latim) e reconhecimento internacional pelos pares -
Introdução Geral 15

foram de facto cumulativa e exclusivamente partilhados por este primeiro Curso


Jesuíta de Coimbra. Acresce tratar-se de trabalhos impressos, uma faceta tipica­
mente humanista e moderna ! e de uma publicação de manuais escolares de filosofia,
uma prática também moderna, apesar de diversificada, devidamente acolhida pelo
plano dos estudos para os colégios Jesuítas (Ratio Studiorum 1 5 86, 1 59 1 ;
versão final em 1 599) ? Neste longo processo de produção de comentários
filosóficos no âmbito da Companhia, além dos redactores do Curso que aqui nos
interessa, pontificaram os nomes de Francisco Toledo (t1 596), Benito ou Bento
Pereira (t1 6 1 0) , António Rubio (t1 6 1 5 ), Pedro da Fonseca (t1 599) e Francisco
Suárez ( t 1 6 1 7) ? A influência destes dois últimos, e bem assim a de Pereira,
nomeadamente das suas metafísicas, é patente nas Universidades alemãs luteranas4 e
cal vinis-

O l GLENDER, P. F., «Printing and censorship» in SCHMITI, Ch. B . et ai. (ed.), The Cambridge
History of Renaissance Philosophy, Cambridge 1 988, 25-53; SARAIVA, A. J., História da
Cultura em Portugal. Vol. 1: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa 2000, 1 1 7 sg; FON­
SECA, F. T. da, «A Imprensa da Universidade no Período de 1 537 a 1 772» in ID. et ai. ,
Imprensa da Universidade. Uma História dentro da História, Coimbra 200 1,7- 1 3; MEIRI­
NHOS, J. F., «Editores, livros e leitores em Portugal no século XVI. A colecção de impressos
portugueses da BPMP» in ID. Et ai (coord.), Tipografia Portuguesa do Séc. XVI nas Colecções
da Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto 2006, 1 7-34.
<2l Cf. 'Ratio Studiorum ' da Companhia de Jesus (1559-1 999), Braga 1 999 (=Revista Portuguesa
de Filosofia LV); ZAMBARBIERI, A., «A Ratio Studiorum dos jesuítas» Communio 1 5 ( 1 998)
544-50. Importa referir a recente tradução portuguesa de Margarida Miranda, Ratio Studiorum
da Companhia de Jesus ( 1599). Regime escolar e curriculum de estudos, Braga [s.d.], mas com
nova ed. : Código Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599).
Regime Escolar e Curriculum de Estudos, Lisboa 2009; vd. também Ratio Studiorum. Plan rai­
sonné et institution des études dans la Compagnie de Jesus. Présentée par A. Demoustier et D.
Julia, traduite par L. Albrieux et D. Pralon-Julia, annotée et commentée par M.-M. Compere,
Paris 1 997.
<3l SCHMITT, C. B ., «The rise of the philosophical textbook» in The Cambridge History of
Renaissance Philosophy. . . 792-804.
<4l Cf. ESCHWEILER, K., Die Philosophie der spanischen Spaetscholastik auf den deutschen
Universitaeten des Siebzehenten Jahrhunderts, in FINKE, H. (Hersg. ), Gesammelte Aufzaetze
zur Kulturgeschichte Spaniens, Muenster 1 928, 25 1 -283; LEWALTER, E., Spanisch-jesuitische
und Deutsch-lutherische Metaphysik des 1 7. Jahrhunderts. Ein Beitrag zur Geschichte der
lberisch-deutschen Kulturbeziehungen und zur Vorgeschichte des deutschen ldealismus,
Hamburg 1 935 [rep. : Darmstadt 1 967), JANSEN, B ., «Die scholastische Philosophie des 1 7 .
Jahrhunderts», Philosophisches Jahrbuch 50 ( l937) 4 0l-444; WUNDT, M . , Die deutsche
Schulmetaphysik des 1 7. Jahrhunderts, Tuebingen 1 939; LOHR, C. H., «Jesuit Aristotelianism
and Sixteenth-Century Metaphysics», in G . Fletcher & M. B. Schuete (eds.), Paradosis. Studies
in Memory of Edwin A. Quain, New York 1 976, 203-220; ROMPER, E. M., Die Trennung von
Ontologie und Metaphysik. Der Abloesungsprozess und seine Motivierung bei Benedictus
Pereira und anderen Denkern des 1 6. und 1 7. Jahrhunderts, Bonn [Diss. em Fil.) 1 968;
SPARN, W., Wiederkehr der Metaphysik. Die ontologische Frage in der luterischen Theologie
des fruehen 1 7. Jahrhunderts, Stuttgart 1 976; DI VONA; P., Studi sulla scolastica della
Controriforma, Firenze 1 990; COURTINE, J.-F., Suárez et le systeme de la métaphysique, Paris
1 990; SALATOWSKY, S., 'De Anima'. Die Rezeption der aristotelischen Psychologie im 16.
und 1 7. Jahrhundert, Amsterdam Philadelphia 2006.
16 Introdução Geral

tas ! mas também se sabe que a ascendência do Curso Jesuíta Conimbricense chegou
mesmo às paragens ortodoxas ucranianas ou católicas polacas � M. Heidegger, que
não sabia tanto sobre Fonseca como sobre Suárez, chegou ao ponto de afirmar,
acerca deste último, o qual, no entanto, escreveu depois de Fonseca, «der ist der
Man» � E ainda sobre os Jesuítas Conimbricenses, mormente sobre o seu tratado de
Lógica, o maior filósofo norte-americano do século XIX, Ch. S. Peirce, sublinhava
sem qualquer pej o nem rebuço, a sua «elevada autoridade» 1 Em distinta geografia
cultural, sabe-se também que o Curso editado em Coimbra e em Lisboa foi talvez a
primeira obra de filosofia ocidental a ser adaptada para o idioma chinês, embora
parcialmente ? Num invulgar trabalho sobre a tradução chinesa do volume dedicado à
Dialéctica, lembrando que os Jesuítas ambicionavam publicar integralmente o Curso
de Coimbra no território chinês, e salientando toda a problemática e dificuldade
inerentes à tarefa de tradução de uma teoria filosófica - nada mais, nada menos do
que o texto de Sebastião do Couto -, Robert Wardy soube bem apreciar e transmitir­
nos a extraordinária importância de uma empresa filosófica como essa, além de bem
sucedida a seu ver? Não será exagerado acentuar esta dimensão na nossa época mar­
cada pelo interculturalismo e pelo diálogo das civilizações.
Apesar de tudo importa não sobrestimar exageradamente o valor filosófico da
nossa edição, sendo muitos os sinais demonstrativos do crescente sentimento da

O l Cf. MOREAU, P.-F., «Wolf et Glocenius» Archives de philosophie 65 (2002) 7 - 1 4;


LAMANNA, M., «Sulle prime occorrenze dei termine 'ontologia' » in Nascita e Trasfonnazioni
dell 'ontologia: convegno intemazionale di studi (Bari 15 de Maio) cito do 'pro manuscripto' do
autor.
(Z) W AKÚ LENKO, S., «Enciclopedismo e Hipertextualidade nos 'Commentarii Collegii
Conimbricensis e Societate Iesu in Universam Dialecticam Aristotelis Stagiritae' (Coimbra
1 606)» in POMBO, O. et al. (ed. ), Enciclopédia e Hipertexto, Lisboa 2006, 302-357; WAKÚ ­
LENKO, S ., «Projecção da Filosofia Escolástica Portuguesa na polónia Seiscentista» Revista
Filosófica de Coimbra 15 (2006) 343-38 1 .
(Jl Refiram-se apenas dois dos passos mais conhecidos, sobre a metafísica de F. Suárez, por parte
de M. HEIDEGGER (Sein und Zeit § 6; Grundprobleme der Phiinomenologie 24, 1 1 2, 1 68);
sobre o assunto, vd. MARTINS, A. M., «Pedro da Fonseca e a recepção da 'Metafísica' de
Aristóteles na segunda metade do século XVI» Philosophica 14 ( 1 999) 1 74-78.
(4l Cf. DOYLE, J. P. «lntroduction», in The Conimbricenses. Some Questions on Signs. Translated
with an lntroduction and Notes by J. P. Doyle, Marquette, 200 1 , 2 1 .
(S) Assim, Giulio Aleni adapta os comentários ao De Anima (incluindo o Tractatus de Anima
Separata) e aos Parva Natura/ia com o título Xingxue cushu, 1 623 (Breve Esboço do Estudo da
Natureza Humana) tal como Francesco Sambiasi para o De Anima, Lingyan lishao, 1 624
(Humilde Discussão sobre as Questões da Alma); Francisco Furtado adaptou o De Coe/o et
Mundo, Huan you quan, 1 628 (Sobre o Céu e a Terra) e o comentário à Dialectica, Mingli tan,
1 63 1 (Investigações sobre os Nomes e os Princípios) ; Alfonso Vagnone fez idêntico trabalho
para a Ética, Xiushen xixue, 1 6 3 1 (Doutrina Ocidental sobre a Cultura Própria) e para os
Meteorologica, Kongji gezhi, 1 633 (Investigação sobre a composição material dos Céus). Cf.
ZHANG, Q . , «Translation as Cultural Reform: Jesuit Scholastic Psychology in the Transforma­
tion of the Confucian Discourse on Human Nature» in O'MALLEY, J. W. et al. (ed.), The
Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts 1540- 1 773, Toronto Buffalo London 1 999, 369;
WARDY, R., Aristotle in China. Language, categories and Translation, Cambridge 2000.
<6l WARDY, R., Aristotle in China . . 95, 76, 69- 149 e passim.
.
Introdução Geral 17

limitação d o Curso! mesmo que s e detecte a sua influência logo e m autores filósofos
modernos tão relevantes, como nos casos de Descartes2 ou de Leibniz� e ainda even­
tualmente em Espinosa4 ou Hobbes � E mesmo no momento de redigir o seu impor­
tante Dictionnaire historique et critique, reeditado no século XIX, Pierre Bayle
(tl 706) ainda há-de compulsar os nossos comentários para ilustrar a realização de
algumas entradas.
Tudo o que acabámos de dizer é insuficiente. Podemos perguntar por que motivo
comentar Aristóteles nos séculos XV e XVI quando - dir-se-ia - aparentemente a
filosofia já devia trilhar outros horizontes (mas recorde-se que Galileu só nasce em
1 5 64 e Descartes em 1 596) . Noutro lugar, pudemos esclarecer de alguma maneira,
embora relativamente a um só ponto, como se pode, apesar de tudo, ter processado
essa mudança de horizontes, i. e. , de um modo bem mais complexo do que costuma
explicar a apressada historiografia. Independentemente do que aí dissemos ? importa
talvez deixar algumas indicações que nos ajudem a perceber o horizonte «aristoté­
lico» em que os nossos comentários vêem a luz da publicação.
Grosso modo, o conhecimento de Aristóteles no Ocidente Latino deu-se até então
em três vagas distintas? Recordêmo-las em breves pinceladas. A primeira pode ser
aqui referida pela acção capital de Boécio (séc. V-VI), que traduziu para latim e
sobretudo comentou algumas das obras que pertencem à analítica ou lógica (parte do
denominado Organon). A segunda vaga aconteceu durante os fins do século XII e os
princípios do século XIII e ela só foi possível graças a um complexo, longo e notá­
vel trabalho de tradução, assimilação e comentário (por isso devidamente adequado
à expansão das obras de Aristóteles em solo latino) feito pela tradição arábico-islâ­
mica, na qual se destacaram, pelo menos, os nomes de Alquindi, Alfarabi, Avi cena e

( I ) Cf. GOMES, P., Os Conimbricenses 1 27-8.


(Z) Cf. GILSON, E., lndex Scholastico-Cartésien, Paris 1 9 1 3, passim; CHACON, V., O Human­
ismo Ibérico. A escolástica progressista e a questão da modernidade, Lisboa 1 998, 40; SIM­
MONS, A., «The Sensory Act: Descartes and the Jesuits on the Efficient Cause of Sensation»,
in BROWN, S. F. (ed.), Meeting of the Minds. The Relations between Medieval and Classical
Modem European Philosophy, Tumhout 1 998, 63-76; HATTAB, H., «One Cause or Many? Je­
suit Influences on Descartes' s Division of Causes» in ibidem 1 05- 1 20; CARVALHO, M. S. de,
«Des passions vertueuses? Sur la réception de la doctrine thomiste des passions à la veille de
l' anthropologie modeme» in MEIRINHOS, J. F. (ed.), ltinéraires de la Raison. Études de philo­
sophie médiévale offertes à Maria Cândida Pacheco, Louvain-la-Neuve 2005, 379-403 .
(J) Vd. LEIBNIZ, G. W., Disputatio metaphysica de principio individui (ed. GERHARDT, C. 1.,
vol. IV, Hildesheim 1 960) para citações da obra de P. da Fonseca; veja-se entre nós CARVA­
LHO J. de, «Leibniz e a cultura portuguesa» in ID., Obra Completa II, Lisboa 1 983, 357-6 1 .
<4l Cf. DOYLE, J . P. «Introduction» 20.
(S) Cf. LEIJENHORST, C., The Mechanisation of Aristotelianism. The Late Aristotelian Setting of
Thomas Hobbes ' Natural Philosophy, Leiden - Boston - Kõln 2002.
<6l Cf. CARVALHO, M. S. de, «Des passions vertueuses . . . » 379-403.
(7) Cf. CARVALHO, M. S. de, «A Idade Média filosófica terá sido aristotélica?», Humanitas 50
( 1 998) 489-508; BRAMS, J ., La riscoperta di Aristotele in Decidente, trad., Milano 2003 ; para
o período helénico, vd. TUOMINEN, M ., The Ancient Commentators on Plato and Aristotle,
Stocksfield 2009.
18 Introdução Geral

Averróis ! Como é natural, esta segunda fase, que acabou por permitir o conheci­
mento efectivo da maior parte das obras do Estagirita, foi a responsável pela terceira,
período em que surgem os Comentários dos Jesuítas de Coimbra. Naquele segundo
momento, essas obras passaram a ser traduzidas de forma variegada, em todo o caso
de uma maneira mais sistemática do que aquela que a precedeu, quer directamente
do grego, quer por intermédio de outros idiomas, mormente do arábico? Por fim, a
última fase, a que agora nos interessa, decorre durante 1400 a 1 600. De acordo com
Charles B. Schmitt, o que distingue esta ocasião das duas anteriores é a amplitude, a
autoconsciência e a analiticidade do trabalho de «tradução e retradução das obras
uma a uma, muitas vezes também de revisão de traduções antigas, que suscitou uma
gama notável de novas versões latinas de Aristóteles, ultrapassando largamente tudo
o que até então se havia produzido.» 3 « É um facto espantoso, acrescenta Lohr, que
se tivessem composto mais comentários latinos de Aristóteles no século que separa
Pomponazzi de Galileu do que nos dez séculos entre Boécio e Pomponazzi. »4 Dada
a partilha de um mesmo ideal discursivo, simultaneamente filológico e filosófico,
concretizado num modelo de eloquência retórica definido por glosas à margem de
citações de textos, o vocábulo «commentarii», que aparece na quase totalidade dos
tomos do Curso dos Jesuítas Conimbricenses, há-de chegar a servir para traduzir o
francês Essais (de Montaigne, precisamente) ? Mas esta forma mais tradicional de
trabalhar, patente na combinação do texto latino de Aristóteles com comentários
filosóficos, rivalizará com a edição greco-latina monumental de Aristóteles (Lyon
1590), da responsabilidade do huguenote Isaac Casaubon, não só nas universidades
católicas ibéricas, como também nas congéneres italianas e mesmo entre as protes­
tantes britânicas? Tais marcas (filológicas, filosóficas e retóricas) encontrar-se-ão
nos nossos Comentários, e sabemos que, se Pedro da Fonseca teve a sua própria
intervenção na tradução da Metafísica por ele comentada? já Manuel de Góis terá

O l Cf. CARVALHO, M. S. de, Falsafa. Breve introdução à filosofia arábico-islâmica, Coimbra


2006.
<2i Cf. CARVALHO, M. S. de, Falsafa . . . 39 sg.
<3l SCHMITT, Ch. B . , Aristóteles y el Renacimiento, trad, León 2004, 80. LOHR, Ch. H . , «Les
jésuites et l'aristotélisme du XVIe siecle» in GIARD, L. (ed.), Les jésuites à la Renaissance.
Systeme éducatif et production du savoir, Paris 1 995, 79-9 1 .
<4l LOHR, Ch. H . , «Les jésuites et l'aristotélisme du XVIe siecle» in GIARD, L. (ed.), Les jésui­
tes . . 86; SANTOS, L. R. dos, «Linguagem, tradução e interpretação no Humanismo dos séculos
.

XV e XVI», in BORGES-DUARTE, 1. et al. (org.), Heidegger, Linguagem e Tradução. Coló­


quio Internacional, Lisboa 2004, 209-34.
<5l FUMAROLI, M . , L 'âge de l 'éloquence. Rhétorique et 'res !iteraria ' de la Renaissance au seuil
de l'époque classique, Paris 1 994, 465.
<6l GRAFTON, A., «The availability of ancient works» in The Cambridge History of Renaissance
Philosophy . . . 778.
(7) Cf. MARTINS, A. M., Lógica e Ontologia em Pedro da Fonseca, Lisboa 1 994, 34. Sobre o
autor e a sua obra, vd. , também ID., «Pedro da Fonseca e a recepção da 'Metafísica' de Aristó­
teles . . . » 1 65-78; ID., «A Metafísica inacabada de Fonseca», Revista Portuguesa de Filosofia 47
( 1 99 1 ) 5 1 5-34; PEREIRA, M. B . , Ser e Pessoa. Pedro da Fonseca. 1 -0 Método da Filosofia,
Coimbra 1 967; ALVES , M. dos S . , «Pedro da Fonseca» Filosofia 1 /4 ( 1 955) 25-30.
Introdução Geral 19

utilizado a tradução de Vicomercato para o seu comentário à Physica, a de Vatablo


para o De generatione e a de Argirópulo para o De Anima!
Quanto à efectiva produção impressa jesuíta em Coimbra e em Lisboa, houve
quem tivesse ressaltado a «estranha aproximação que parece existir» entre o trabalho
sistemático do capuchinho e mestre de Lovaina, Francisco Titelmans, De considera­
tione rerum naturalium ( 1 530), e o sucessivo desdobramento dos títulos do Curso
publicado em Coimbra? Independentemente do apreço explicitamente referido nas
páginas do Curso «pelos mestres lovanienses», herdeiros, estes últimos, da linha
mental de Paris, essa similitude espera ainda confirmação. Nesta ordem de ideias,
chegou a ver-se um duplo vínculo na «corrente jesuítica conimbricense ( . . . ) em seus
princípios»: à Universidade de Lovaina e à Ordem Franciscana? De facto, à excep­
ção da Lógica - não obstante o facto de ela ter sido ensinada em 1 554/55, no Colé­
gio de Jesus ou Colégio de Cima, pelo De consideratione dialectica do franciscano
flamengo4 -, a ordem sequencial das matérias, tal como Titelmans as pensara, mos­
tra uma curiosa afinidade com o ordenamento em que os volumes do Curso de
Coimbra foram sendo publicados. Mas uma comparação rápida da lista que acima
demos dessa publicação com o plano de Titelmans, reproduzido em nota, no seu De
consideratione rerum naturalium earumque ad suum Creatorem reductione libri
XII,é apenas revelador de uma atmosfera comum aos expositores de Aristóteles da
época, dotados de preocupações teológicas? Acresce que o programa bonaventurino
da «reductio» ? a que o título do capuchinho alude, é algo incompatível com a
exposição filosófica de Aristóteles levada a cabo pelos Jesuítas de Coimbra.
Diferentemente do que aconteceu, v.g. com Platão, não se podia dizer que a obra
de Aristóteles fosse desconhecida dos pensadores que nasceram no princípio de
Quatrocentos. Todavia, como se disse, o que os distingue dos seus predecessores

O l Cf. CARVALHO, M. S. de, «Nótulas para o estudo da presença de Aristóteles no Portugal do


século XVI» in MATOS , C. de M. (coord.), A Apologia do Latim. ln honorem Dr. Miguel Pinto
de Meneses (Lisboa 2005) 29 1 -94. A província portuguesa havia já posto a hipótese de «ab ali­
quo nostrorum» se traduzir Aristóteles ou de se escolher alguma das já existentes, referindo
explicitamente a de Aldo Manutio ( + 1 5 1 5) editada em cinco volumes em 1 498 (MP VI 272).
(Zl Cf. SANTOS, D. M. G. dos, «Francisco Titelmans O. F. M. e as origens do Curso Conimbri-
cense» Revista Portuguesa de Filosofia 1 112 ( 1 955) 476-78.
(3l S ANTOS, D. M . G. dos, «Francisco . . . » 470.
(4l Cf. SANTOS, D. M. G. dos, «Francisco . . . » 469-70.
(SJ Livros 1: de principiis rerum naturalium; II: de causis rerum naturalium; III de motu et accidenti­
bus eius; IV: de infinito, loco, vacuo et tempore; estes equivalentes à Physica de Coimbra.
Livros V: de generatione et corruptione rerum naturalium; VI: de meteorologicis impressioni­
bus; VII: de coelo et mundo; equivalentes, respectivamente, ao De Generatione, Meteorum e De
Coelo. Seguir-se-iam os vários temas do De Anima: Livros VIII: de anima in generali et de
potentiis vegetativis, deque longitudine et brevitate vitae; IX: de sensibus exterioribus et eorum
sensibilibus; X: de sensibus interioribus deque somno et vigilia; XI: de intellectu et praecellen­
tibus eius officiis; XII: de appetitu sensitivo et voluntatis praecellentia. Uma mera comparação
dos títulos dos Livros VIII-XII com o plano do Comentário ao De Anima, estudado na secção
seguinte, ilustra a fragilidade da tese que temos vindo a referir.
(6) Cf. CARVALHO, M. S. de, Estudos sobre Á lvaro Pais e outros franciscanos (sécs. XIII-XV),
Lisboa 200 1 , 1 57-7 1 .
20 Introdução Geral

peripatéticos é o interesse pela aproximação filológica aos textos, nomeadamente a


questões de autenticidade, de apuramento conceptual, de retradução, além de um
apreço inusitado pelos tratados de Retórica e de Poética. Charles H. Lohr preferiu,
por isso, destacar a necessidade de se falar do aristotelismo renascentista no plural,
tão grande foi a sua variedade de expressões e de atenção, segundo critérios geográ­
ficos e confessionais. «No século XVI - escrevia o famoso erudito - novos tipos de
estudantes e de interesses científicos não menos novos conduziram diversos grupos
de letrados a servirem-se de uma ou de outra obra de Aristóteles, tomada isolada­
mente, e a utilizar partes diferentes da sua filosofia sem se preocuparem com a sua
organização das ciências. Em Itália em particular, os humanistas voltaram-se para a
filosofia moral de Aristóteles, os críticos literários ocuparam-se da Poética, nas
universidades os filósofos de profissão discutiram a sua filosofia da natureza, os
seus tratados de biologia, bem como os comentários gregos antigos sobre a lógica e
a filosofia da natureza e obras como os Problemas e os Mecânicos desconhecidas na
Idade Média, portanto, não estudadas. Em particular, os tratados de biologia e os de
filosofia moral foram tomados em consideração por tipos completamente novos de
filósofos. Na Alemanha protestante, Melanchton edificou um novo aristotelismo
secular para as escolas, também elas novas, que devia servir a mensagem de Lutero.
Em França e depois na Inglaterra, o furor ramista fez voltar a atenção dos aristotéli­
cos para a questão do método, enquanto que os especialistas da reforma constitucio­
nal procuravam no texto grego da lógica novos modos de interpretação da doutrina
legal. Assim, no período 1450- 1 650, o aristotelismo difere radicalmente da filosofia
em uso nas universidades medievais.» 1 De facto, como também perguntava Ch.B.
Schmitt, que relação teriam aristotélicos tão diferentes entre si, e muitas vezes até
antagónicos, como Paulo de Veneza, Leonardo Bruni, Jorge de Trebizonda, Lefevre
d' Étaples, John Mair, Pedro Pomponazzi, Francisco de Vitória, Joaquim Périon,
Jacopo Zabarella, John Case, Giulio Pace ou William Harvey?2
Entretanto, só no decénio de 30 do século XVI começam a diminuir as edições
dos comentários alegadamente «bárbaros» (em 1 472, ainda se publicava o velho
texto latino de Aristóteles com os respectivos comentários de Averróis). Ao mesmo
tempo, crescia o número daqueles que tinham acesso ao original grego. Nalgumas
edições estrangeiras do Curso dos Jesuítas de Coimbra, publica-se mesmo a versão
grega do Estagirita, conhecida pela primeira vez na Europa latina graças à editio
princeps ( 1 495-98) ? Seja como for, num aspecto importante, a leitura de Aristóteles
difere da realizada nos séculos anteriores, sobretudo nas Faculdades das Artes4 :
agora dispunha-se de um invejável manancial de obras antigas, clássicas e patrísti­
cas, além, é claro, de se poder fazer a leitura da tradição peripatética à luz imediata e

( I ) LOHR, Ch. H., «Les jésuites . . . » 84-85. Sobre o silêncio em relação à situação ibérica, vd. mais
adiante no fim do capítulo.
(2) Cf. SCHMITI, Ch. B & COPENHAVER, B. P., Renaissance Philosophy, Oxford 2002, 6 1 .
C 3) Importa, por isso, corrigir a confusão de ARIEW, R., «Descartes and the Late Scholastics on the
order of the sciences» in BLACKWELL, C. & KUSIKAWA, S. (ed.), Philosophy in the Six­
teenth and Seventeenth Centuries. Conversations with A ristotle, Aldershot 1 999, 355; cf.
SCHMITI, Ch. B . , A ristóteles . . . 57.
<4l Cf. LEFF, G. & NORTH, J . , «A Faculdade de Artes» in R ÜEGG, W. (coord.), Uma História da
Universidade na Europa. Vol. !. As Universidades na Idade Média, trad. , Lisboa 1 996, 307-360.
Introdução Geral 21

acessível dos mais recentes textos editados dos autores de Duzentos em diante.
Noutro lugar, pudemos aludir ao efeito hermenêutico proveniente desta metodolo­
gia, patente numa 'regolata mescolanza' de autores de épocas tão díspares tomados
de repente contemporâneos! de onde se retira, nas palavras de M. Foucault, o
privilégio absoluto da escrita e de uma leitura aberta, a tarefa do comentário incon­
cluído: «Só há comentário quando sob a linguagem que se lê e decifra corre a sobe­
rania de um texto primitivo. E é esse texto que, fundando o comentário, lhe promete,
como recompensa, a sua descoberta final.» �
Consideremos abreviadamente o programa editorial do século. No caso dos «clás­
sicos», temos, entre outros, os nomes de Alexandre de Afrodísia (sécs. II-III), cujo
texto grego aparece em 1 5 1 3- 1 6, suscitando o conhecimento de mais inéditos; de
Apuleio (séc. II), muito conhecido antes, mas cuja edição das Metamorfoses por
Giovanni Andrea de Bussi deu novo impacto à recepção do autor; de Cícero (séc. 1
a. C.), recebido com o inegável mérito de pautar um latim renovado3 ; de Diógenes
Laércio (séc. III), cuja doxografia com dezassete edições num espaço de vinte e oito
anos era um modelo de classificação dos filósofos do passado, além de um manan­
cial com inúmeras informações, designadamente sobre a filosofia natural epicurista;
de Estobeu (séc. V), também autor importante no restabelecimento da tradição
doxográfica; de Galeno (séc. II), cuja edição Aldina de 1 525 revela pela primeira
vez um autor não só interessado em questões médicas, mas também filosóficas, em
problemas de anatomia e de crítica textual; de Hermes Trismegisto, um mítico egíp­
cio a quem se atribuía um corpus neoplatónico, gnóstico e judaico e cujo herme­
tismo muito entusiasmou autores como Marsilio Ficino (t1 499) ; de Hipócrates
(sécs. V-IV a. C.), uma espécie de anti-Galeno para os renascentistas, com os seus
textos gregos editados a partir de 1 526; de Jâmblico (sécs. III-IV), outro neoplató­
nico cujos Mistérios vêem uma edição de grande popularidade em 1 497 ; de Isidoro
de Sevilha (séc. VI), que continuava a ser uma fonte de informação enciclopédica
após a edição da sua obra em 1 470; de Lucrécio (séc. 1 a. C.), que conhece as pri­
meiras edições do seu poema naturalista a partir de 1 473; de Macróbio (séc. IV), que
com o comentário ao Sonho de Cipião de Cícero ajudou a transmitir elementos bási­
cos da filosofia platónica; de Marciano Capela (sécs. IV-V), cujas Núpcias de Filo­
logia com Mercúrio transmitiram o plano enciclopédico das artes liberais; do cristão
alexandrino João Filópono (séc. VI), sobretudo pelas suas exposições sobre Platão e
Aristóteles ; de Platão (sécs. V-IV), naturalmente, autor que a partir de 1 397 passa a
ser lido em grego no círculo florentino e traduzido (só uma parte do Timeu, o Ménon
e o Fédon, estes dois sem grande difusão, estavam vertidos até então), não obstante
essa acção sofrer a influência enviesada do próprio neoplatonismo; de Plínio o

O l CARVALHO, M. S. de, «Filosofar na época de Palestrina. Uma introdução à psicologia filosó­


fica dos 'Comentários a Aristóteles' do Colégio das Artes de Coimbra» Revista Filosófica de
Coimbra 1 1 (2002) 3 89-4 1 9.
<2> FOUCAULT, M., As Palavras e as Coisas, trad., Lisboa 1 968, 5 1 e sg, também 6 1 , 5 5 . Vale a
pena assinalar uma nota do insuspeito Luís António Verney, que na sua Metaphysica regista
como num dado passo do Comentário à Lógica, os Jesuítas Conimbricenses «não moveram um
pedra para defenderem Aristóteles» (vd. VERNEY, L. A., Metafísica. Introd. e trad. de A .
Coxito, Coimbra 2008, 242, nota 1 25).
<3> Cf. sobretudo FUMAROLI, M., L 'âge de l 'éloquence . . . 726-73 1 .
22 Introdução Geral

Velho (séc. 1), cujo tom enciclopédico (filosofia, ciência) da História Natural atraiu
inúmeros comentários; do fundador do neoplatonismo, Plotino (séc. III), que viu as
suas dificílimas Enéadas editadas em 1492; dos ensaios ético-religioso-pedagógicos
(Mora/ia) de Plutarco (séc. 1-11) ; da introdução ao Organon, por Porfírio (sécs. III­
-IV), a famosa /sagoge; de Proclo (séc. V), com os comentários a Platão e aos Ele­
mentos de Euclides; do autor de manuais astrológico-astronómicos (Tetrabiblos e
Almagesto), de Ptolomeu (sécs. 1-11), cuja tradução, feita no século XII, vem a ser
editada em 1 5 1 5 ; dos Versos dourados atribuídos a Pitágoras ; de Séneca (séc. 1), um
autêntico 'best-seller' com pelo menos seis edições entre 1475 e 1492, que partilhou
com Cícero a tarefa de modelar um latim renovado; de Sexto Empírico (séc. III),
transmissor do cepticismo antigo, imediatamente em voga; do elegante comentador
de Aristóteles (Física, Categorias, Alma e O Céu), Simplício (sécs. V-VI) ; de idên­
tico trabalho sobre o De Anima por Temístio (séc. IV), importante sobretudo para a
manutenção do conflito Tomás/Averróis; e do sucessor de Aristóteles, Teofrasto
(sécs. IV-III a. C.).
Como dissemos, aos «clássicos» haveria que acrescentar o renascimento patrís­
tico, decerto sob a influência dos humanistas e de Erasmo em particular, que faz
publicar em Basileia, em ritmo editorial de causar inveja, um novo Cipriano ( 1 520),
Tertuliano ( 1 5 2 1 ), Amóbio, o Jovem ( 1 522), Hilário ( 1 523), Jerónimo ( 1 524, 1 525),
algum João Crisóstomo ( 1 525, 1 526 e 1 529), Ireneu ( 1 526), Ambrósio ( 1 527),
Agostinho ( 1 527 - 1 528) e Orígenes ( 1 536) ! Recordemos, de passagem, que o
dominicano Melchior Cano, e antes o próprio Caetano, haviam glosado - e o pri­
meiro teorizado, mesmo -, em tomo dos «lugares teológicos», uma hierarquização
das «autoridades» que progressivamente atribuirá aos «doutores» cristãos um lugar
intermédio entre os textos da Escritura e os filósofos pagãos � Como é sabido, o De
toeis ( 1 563) de Cano via-se na esteira de uma célebre passagem da Suma Teológica
de São Tomás (Ia, 1 , 8 ad 2), tal como aliás o texto paralelo da Suma de Caetano
( 1 540/4 1 ), valendo por isso a pena observar que os jesuítas de Coimbra tratam os
Padres por «divus», determinativo obviamente extensivo ao Aquinate. De entre
todos estes nomes da Patrística, um lugar à parte deve ser dado a Agostinho de
Hipona. Dele já se disse, não sem propriedade, marcar um importante e longo
momento da Europa cristã que se estende desde o fim do século XV até aos inícios
da idade do secularismo (séc. XVIII) ? Pela nossa parte, teríamos mesmo de atentar

( l l Cf. DAGENS , J., Bérulle et les origines de la restauration catholique ( 1 575- 1 6 1 1 ), Paris 1 952,
35 apud: FUMAROLI, M . , L 'âge de l 'éloquence . . . 1 34.
<2l BERCEVILLE, G . , «L' autorité des Peres selon Thomas d'Aquin» Revue des sciences
philosophiques et théologiques 9 1 (2007) 1 3 1 , 1 35 .
(3l WRIGHT, A. D., The Counter-Reformation. Catholic Europe a n d the Non-Christian World,
Aldershot Burlington 2005, 247 e passim; TRINKAUS, Ch., Renaissance Transformations of
Late Medieval Thought, Aldershot 1 999; BERGV ALL, A., Augustinian Perspectives in the
Renaissance, Uppsala 200 1 ; WEGENER, L., «Augustinus-Rezeption in der Reforrnation. Der
Strassburger Muensterprediger Caspar Hedio ais Uebersetzer augustinischer Schriften in der
ersten Haelfte des 1 6 . Jarhunderts» Quaestio. Annuario di storia della metafisica 6 (2006) 277-
-305; VELOZO, A. M., «A agostinização do pensamento de Descartes. Precedida de uma breve
genealogia do agostinismo nos sécs. XVI e XVII» Revista Portuguesa de Filosofia 44 ( 1 988)
1 27- 1 6 1 .
Introdução Geral 23

nas inúmeras intersecções textuais entre Aristóteles e Agostinho realizadas pelos


nossos Jesuítas !
Tão ou mais importante do que a mera enumeração de tantos autores «renasci­
dos», importa ainda acrescentar que o apreço por Aristóteles a partir dos finais do
século XV, sobretudo por parte dos teólogos, ía naturalmente marcado pela inter­
pretação de outros teólogos e filósofos dos séculos XIII e XIV, como Alberto
Magno, João Duns Escoto ou João Buridano, sobressaindo, porém, o nome de
Tomás de Aquino como aquele que alegadamente melhor interpretara Aristóteles.
Noutra ocasião, pudemos ver como, no «comentário» dos jesuítas de Coimbra à
Ética, esta inflexão 'tomista' é extraordinariamente notória, pois aí é a própria Suma
Teológica a servir de referência sistemática à leitura de Aristóteles. 2 Essa tendência
tinha deixado as suas marcas no fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola
(t1 556), desde os tempos em que frequentara a Universidade de Paris, i. e. , de 1 527 a
1 5 3 5 . Cabe lembrar que a substituição das Sentenças de Pedro Lombardo como
manual de Teologia pela Suma de São Tomás ocorre progressivamente entre os
séculos XV e XVI pela mão, entre outros, de Pedro Crockaert ou de Bruxelas
(tl 5 1 4) e Caetano (t1 5 34) � havendo aquele contado entre os seus alunos Francisco
de Vitória (t1 546) e Domingos de Soto (t1 560), e sendo Caetano largamente
influente em Vitória� Recorde-se, por fim, que em 1 567 Tomás de Aquino é procla­
mado Doutor da Igreja e vê as suas obras publicadas em Roma em 1 570-7 1 . Inácio
de Loyola teria, assim, descortinado em Tomás «a ideia de um aristotelismo cristão,
autónomo na sua esfera, mas orientado, de maneira positiva e negativa, pela Revela­
ção» � Isto terá várias consequências impressionantes e a menor delas não será

(!) BA YLE, P. (Dictionnaire historique et critique, Paris 1 820-24, X, 2) refere uma obra de Fran­
cisco Macedo, publicada em Veneza em 1 668, sobre a conformidade entre Loyola e Agostinho,
Concentus Euchologicus Sanctae Matris Ecclesiae in breviario, et sancti Augustini in libris,
adjuncta Harmonia exercitiorum sancti lgnatii soe. /esu Fundatoris, et operum sancti Augustini
ecclesiae doctoris.
<2l Cf. CARVALHO, M. S. de, «Metamorfoses da ética peripatética: estudo de um caso Quinhen­
tista conimbricense: 'As Disputas sobre os Livros da Ética a Nicómaco' » Revista Filosófica de
Coimbra 1 4 (2005) 239-274.
<3l Cf. GRABMAN, M., Mittelalterliches Geistesleben. Abhandlungen zur Geschichte der
Scholastik und Mystik, München 1 936, II, 608-09; GIACON, C., La seconda scolastica I,
Milano 1 956.
C4l Cf. ORREGO S ÁNCHEZ, S., La actualidad dei ser en la 'primera escuela ' de Salamanca,
Pamplona 2004, 68-77; CESSARIO, R., Le thomisme et les thomistes, Paris 1 999; KENNEDY,
L. A., A Catalog of Thomists 1270-1 900, Houston 1 987. «A orientação tomista da Teologia, que
reflecte a influência do método salmantino, em particular de Francisco de Vitória, é introduzida
por Frei Martinho de Ledesma. Este inicia na Universidade de Coimbra a leitura de S. Tomás
em vez de Durando, como por alvará de 26 de outubro de 1 54 1 ordenara D. João III.» (in SOA­
RES, N. de N. C., «Humanismo e Universidade» Biblos n.s. 5 (2007) 85; vd. também Estatutos
da Universidade de Coimbra (1559), com introdução e notas históricas e críticas de LEITE, S .,
Coimbra 1 965, 3 1 4)
(S) LOHR, Ch. H., «Les jésuites . . . » 80; ID., «Metaphysics» in The Cambridge . . . 598-60 1 . Sobre o
fundador, vd. RAHNER, H., Ignace de Loyola, Paris 1 956; e também: Autobiografia de Santo
Inácio de Loiola. Trad. de A. J. Coelho, Braga 2005.
24 Introdução Geral

decerto a patente independência no modo como uma tão novel ordem religiosa,
desprovida de tradição, pôs de pé a ideia de uma filosofia que servisse realmente o
seu tempo. Assim se há-de explicar a liberdade com que cada professor, não tendo
de defender qualquer escola filosófica prévia que lhe fosse própria (tomismo, esco­
tismo, nominalismo, etc.), combinava melhor ou pior todos estes legados na consti­
tuição de novas posições filosóficas ! São bem indicativas a este respeito as palavras
cautelosas seguintes, emanadas da Congregação Geral ( 1 593/94) : «Que os Padres
não se sintam na obrigação de estar de tal maneira apegados a São Tomás que não
possam afastar-se dele em nenhuma matéria, já que até aqueles que se declaram
mais abertamente tomistas se afastam por vezes dele; nem seria conveniente ligar os
nossos a São Tomás de uma maneira mais apertada do que a dos próprios tomistas» ?
Explica-se, deste modo, como no projecto mais ambicioso de Fonseca, ao qual nos
referiremos adiante, estava a atribuição a Marcos Jorge das controvérsias respeitan­
tes a Duns Escoto - quiçá já influente no tomismo de Caetano3 - e bem assim o
desígnio do Pe. Nadai para que os estudos jesuítas superassem as velhas facções
tomistas, escotistas e nominalistas� O sentido da «escola», para o bem ou para o mal,
fixava ou determinava ilhas sociológicas e religiosas de identidade mental, embora,
em todo o caso, se tratasse mais, muitas vezes, de matizes de polémica. Sirva-nos a
título ilustrativo daquele fenómeno fixista a filigrana escotizante de que dá mostras o
inédito Liber distinctionum de André do Prado no limiar do século XV ? Ora, vem
crescendo a unanimidade no repúdio à identificação sem mais do pensamento filosó­
fico dos Jesuítas com o chamado tomismo? matéria acerca da qual nos encontramos
longe de poder desfrutar da última palavra.
Estamos, por isso, de pleno direito, em absoluto renascimento, e a obra dos
Jesuítas de Coimbra não pode ser vista fora deste contexto, além do desígnio explí­
cito de formar uma élite europeia de sacerdotes e leigos, numa rede integrada de
escolas europeias tendo por denominadores comuns a retórica ciceroniana, Aristó-

( I J LOHR, Ch. H . , «Les jésuites . . . » 82. DINIS, A. ( «Censorship and freedom of research among the
Jesuits (XVIth-XVIIIth centuries). The paradigmatic case of Giovanni Battista Riccioli ( 1 598-
- 1 67 1 )» in CAROLINO, L. M. e CAMENIETZKI, C. Z. (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência:
Séc. XVI-XVIII, Casal de Cambra 2005, 48-49), ao tratar do problema da liberdade de ensino
entre os primeiros jesuítas também defende a existência de tensões doutrinais na obra de alguns
deles.
<2l MP VII 350.
<3l Cf. ROMEYER, B . , La philosophie chrétienne jusqu 'à Descartes, III, Paris 1 937, 1 77-78.
<4l MP. 93, 99, apud MARTÍNEZ GOMES, L., «Síntesis de Historia de la Filosofia Espaiiola» in
HIRSCHBERGER, J., Historia de la Filosofia, trad. Barcelona, I, 605 .
(SJ CARVALHO, M. S. de, Estudos sobre Á lvaro Pais . . 307-36; BONINO, S .-T. , La question de
.

l'intellect agent dans le 'Clipeus Thomistarum' ( 1 48 1 ) de Pierre Schwartz» Revista Espafiola de


Filosofia Medieval 9 (2002) 1 82; para a formação de noção de 'escola' vd. HOENEN, M. J. F.
M . , «Thomismus, Skotismus und Albertismus. Das Entstehen und die Bedeutung von
philosophischen Schulen im spliten Mittelalter» Bochumer Philosophisches Jahrbuch für Antike
und Mittelalter 2 ( 1 977) 8 1 - 103.
<6l Cf. ARIEW, R., «Jesuit Philosophy in 1 7th-Century France» in CAROLINO, L. M . e CA­
MENIETZKI, C. Z. (coord.), Jesuítas . . . 9-25 .
Introdução Geral 25

teles e os Exercícios EspirituaisI Semelhante rede ajudou a determinar a «revolução


radical» dos estudos secundários, que inauguram uma modernidade (uma nova era
na educação - terá mesmo considerado o sociólogo E. Durkheim2 ) como ainda as
conhecemos, sobretudo no continente europeu, i. e. , com um ciclo de estudos anterior
à Universidade. Para já não falar da marca característica, que, apesar das ameaças,
por enquanto ainda vai perdurando em Portugal e em alguns países mais, de um
ensino da filosofia a fechar o ciclo dos estudos secundários ?
No seu contexto histórico-cultural próprio, repercutem-se quatro marcas euro­
peias na contribuição dos Jesuítas de Coimbra: a revolução técnica da impressão e
da gravura (o Curso foi impresso nas oficinas de António de Mariz� de Simão
Lopes 5 e de Diogo Gomes Loureiro6) ; a instabilidade política que originou inumerá­
veis conflitos Igreja/Estado e dentro da própria Igreja (como consequência, os inte­
lectuais passaram a conhecer uma mobilidade geográfica e social a que não estavam
habituados); a fractura da Cristandade a partir de Lutero (dividindo a Europa e aba­
lando as instituições medievais) 7 ; a expansão geográfica da cultura europeia
(lembrámos já o facto de o Curso haver sido adaptado na China, mas ele também
alcançou o Japão, a Índia e o Brasil) �
Digamos então alguma coisa, antes de tudo o mais, sobre a génese do Curso
impresso? Desde muito cedo, não obstante o facto de a Companhia, na sua fundação,

( 1 ) FUMAROLI, M . , L 'âge de l 'éloquence . . . 1 79. Em tradução, vd. Santo Inácio de Loiola, Exercí­
3
cios Espirituais. Trad. de V. C. D. Pereira, Braga 1983; lgnatius of Loyola. Spiritual Exercises
and Selected Works, ed. by GANSS , G. E. with the collaboration of P. R. Divarkan et ai. , Mah­
wah (N. J.) 1 99 1 .
C ZJ DURKHEIM, E., Educação e Sociologia, trad. , Lisboa 2007, 8 5 [original de 1 9 1 1 ] .
C 3) GUILLERMOU, A., O s Jesuítas, trad. , Lisboa 1 977, 30, 3 5 ; ANDRADE, A. A., «Os
'Conimbricenses' » Filosofia 1 /4 ( 1 955) 3 1 -36; SILVA, L. C. da, «Os Jesuítas e o Ensino
Secundário» Brotéria 3 1 ( 1 940) 476-86.
C4) Cf. ANSELMO, A. J., Bibliografia das obras impressas em Portugal no século XVI, Lisboa
1 926, 23 8 .
C S) Cf. ANSELMO, A. J., Bibliografia . . 227 .
.

C 6l Cf. ANSELMO, A. J., Bibliografia . . 237.


.

(7) GIARD, L. «Sur le cycle des 'artes' à la Renaissance» in WEIJERS, O. & HOLTZ, L. (ed.),
L'enseignement des disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford Xllle - XVe siecles),
Tumhout 1 997, 5 1 4.
C Sl Cf. CAEIRO, F. da G., «Os Jesuítas e a educação setecentista no Brasil» Revista Portuguesa de
Filosofia 50 ( 1 994) 1 03- 1 3 ; SANTOS, M. A. M . , «A Escolástica Portuguesa nos Colégios do
Brasil» Revista Portuguesa de Filosofia 38/2 ( 1 982) 487-89; CAEIRO, F. da G., «0 Pensa­
mento filosófico do século XVI ao século XVIII em Portugal e no Brasil» Revista Portuguesa
de Filosofia 38/2 ( 1 982) 5 1 -90; GOMES, P., Os Conimbricenses 1 70 sg com mais bibliografia;
CERQUEIRA, L. A., Filosofia Brasileira. Ontogênese da consciência de si, Petrópolis 2002,
49; SANTOS, S. J., «Para a História da Filosofia Portuguesa no Ultramar. 1 . Í ndia» Revista
Portuguesa de Filosofia 1 ( 1 945) 1 7 6- 1 95 .
C 9) RODRIGUES, F . , História da Companhia. . . II/2, 93- 1 35 ; SOMMERVOGEL, C . , Bibliotheque
de la Compagnie de Jésus, Paris 1 89 1 , II 1 273-78. A lista dos professores jesuítas em Coimbra
(de 1 555 a 1 667) é acessível em STEGM ÜLLER, F., Filosofia e Teologia . 86-9 1 ; vd. também
..

GOMES , J. P., Os professores de Filosofia do Colégio das Artes (1555-1 759), Braga 1 955 e o
Apêndice no final.
26 Introdução Geral

não privilegiar o trabalho do espírito (no estudios ni lectiones en la Companía)!


levantou-se no Colégio de Jesus de Coimbra, «cidade preclara nas artes liberais» � a
ideia de se imprimir um curso (que hum curso de scriptos se imprima). A aposta nos
estudos, já o notámos noutra ocasião, é sustentada, em Portugal, por um curioso
passo, normalmente despercebido, em que o autor, no caso Pedro da Fonseca, ilustra
a temática da predicação necessária, recorrendo a um exemplo assaz significativo
para aquilo que nos interessa: «Ü homem é capaz de educação». E continua: «Com
efeito, se alguém negar que o Homem é capaz de educação (hominem esse discipli­
nae capacem), é lógico que negue que ele é Homem» ? Ora, sabendo nós que uma
predicação necessária é aquela que, se for negada, implica a destruição do próprio
sujeito, então a capacidade para se ser educado é alguma coisa que pertence à pró­
pria essência do ser humano ou emerge do fundo da sua própria essência.
Como foi lembrado atrás, a ideia da impressão de um curso para culminar a edu­
cação pré-teológica é pragmaticamente a seguinte: evitar que os alunos percam
tempo a copiar as lições� O tom pragmático é incontestavelmente óbvio (quedavan
todos con más tiempo libre y descanso) . Escreviam, naturalmente, «para melhor

O l GIARD, L. «La constitution du systeme éducatif jésuite au XVIe siecle» in WEIJERS , O. (ed.),
Vocabulaire des colleges universitaires (XII/e - XV/e siecles), Tumhout 1 993, 1 3 8 : «En un
sens, on pourrait dire que l' enseignement s' est insinué dans les activités de la Compagnie par !e
fait que sont venus à elle comme candidats non des hommes déjà formés, comme Ignace l' avait
souhaité, mais de plus jeunes gens sans expérience dant il fallut organiser la sélection et la for­
mation.» Sobre a génese da questão edicativa, vd. , entre outros: LETURIA, P., «Why the So­
ciety of Jesus Became a Teaching Order?» Jesuit Educational Quaterly 4/ l ( 1 94 1 ) 3 1 -54;
GANSS , G. E., Saint lgnatiu 's ldea of a Jesuit University. A Study in the History of Catholic
Education, Milwaukee 1 954, 1 85-93; O' MALLEY, J. W., The First Jesuits, Cambridge 1 993,
200-42; BUCKLEY, M. J., The Catholic University as Promise and Project. Reflections in a
Jesuit ldiom, Washington 1 998, 53- 1 47 ; GODINA MIR, G., Au.x sources de la Pédagogie des
Jésuites: Le 'Modus Parisiensis ', Roma 1 968; ID., «El 'modus parisiensi s ' » Gregorianum 85
(2004) 43-64; ID. , «The ' Modus Parisiensis ' » in DUMINUCO, V. J. (ed.), The Jesuit 'Ratio
Studiorum': 40d'' Anniversary Perspectives, New York 2000, 28-49; GOMES, J. F., «0 'Modus
Parisiensis' como matriz da Pedagogia dos Jesuítas» Revista Portuguesa de Filosofia 50 ( 1 994)
1 79-96; CARVALHO, R. de, «A orientação pedagógica da Companhia de Jesus» in ID., Histó­
ria do Ensino em Portugal. Desde a Fundação da Nacionalidade até fim do Regime de Salazar­
Caetano, Lisboa 1 986, 33 1 -358.
<2J Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln libras Meteororum Aristotelis Stagiri­
tae IX, c. 9, p. 1 02: «urbis Conimbricae preclarae bonarum artium . . . »
<3 l Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas II, 2 (trad. J. F. Gomes 97); vd. o meu «The Coimbra
Jesuits' Doctrine on Universais ( 1 577- 1 606)» Documenti e Studi sulla Tradizione Filosofica
Medievale. An lntemational Joumal on the Philosophical Tradition from Late Antiquity to the
Late Middle Ages of the 'Società lntemazionale per lo Studio del Medioevo Latino ' (S. /. S. M.
E. L. ) 1 8 (2007) 53 1 -543 .
<4l Cf. MP II 44 * ; MP III 3 1 7 : «Por lo menos seria gran alivio y descanso ora los nuestros que leen,
y para los que oyen; porque los unos gastan mucho tiempo y estudio en hazer los ditados y es­
crivirlos, y después en ditarlos en la cáthedra a los oyentes; y los otros en recibirlos; y aviéndo­
los impresos, quedavan todos con más tiempo y descanso.» Em 1 5 64 chega-se a conceber a
ideia de compor também um curso de teologia, «creo que seria de mucha importancia - escreve
Miguel de Torres ao Geral Laínez, acerca de Évora (MP III 364) - si se hiziesse algún méthodo
de enseiíar la theologia scolástica»
Introdução Geral 27

compreender» ou para «suprir a falta de livros e a falta de memória» 1 ; e, numa


instrução de Roma ( 1 564), Bento Pereira explica que os alunos devem evitar a
escrita das lições de forma a poderem exercitar mais «l' intelleto, giudicio et memo­
ria» ? «No século XVI, o reino doravante bem estabelecido da impressão dará origem
a um novo género literário no meio universitário, o 'manual' (distinto do comentário
ao texto), que toma necessária a mudança de métodos de ensino. Que os manuais
apareçam pouco depois da invenção dos 'colégios' não universitários não é obra do
acaso ! » 3 Ora, fique dito de passagem - mas voltaremos ao assunto - que os textos
dos Jesuítas de Coimbra ficam muitas vezes a meio termo entre um comentário e um
manual.
Já em 9 de Fevereiro de 1 5 60, i. e. , cinco anos após os Jesuítas tomarem posse do
Colégio das Artes, o Provincial Miguel Torres (tl 593) dava conta para Roma da
existência da redacção de «unos ditados ( . . . ) para poderse imprimir», da autoria de
«uno de los lectores de artes», reforçando o seu parecer alegando «que haríamos un
gran beneficio a esta tierra, si imprimiéssemos estos ditados de las artes.» 4 Em 1 5 6 1
o P. Jerónimo Nadai (então e m visita à Província Lusitana5 ) atribuía a Pedro da
Fonseca, na altura o nome português mais eminente entre os docentes em Portugal, a
tarefa de organização (me dava mayor parte dei assumpto) de um curso impresso.
Importa notar que Fonseca dará ao prelo um minucioso compêndio de Dialéctica
(lnstitutionum dialecticarum libri octo, 1 564) ? podendo até supor-se que ele poderia
ser uma concretização - a primeira e última da sua mão - do ambicionado projecto
editorial? Para essa imensa tarefa, Fonseca contaria com a assistência dos Padres
Marcos Jorge (t l 57 1 ), português, e dos espanhóis Cipriano Soares (t 1 593) e Pero
Gomes (tl 600), todos eles docentes no Colégio da cidade mondeguina. Numa carta
de 14 de Janeiro de 1 562, Fonseca esclarece o modo como giza o trabalho de
equipa� Podemos imaginar, e sem lhe atribuirmos sequer qualquer pecado de orgu-

( 1 ) MP 1 209 (Regras para os estudantes da Companhia, dadas pelo P. Nadai em 1 553).


c zJ MP II 669.
<3) GIARD, L. «Sur le cycle . . . » 5 1 6.
C4) MP III 3 1 7 .
(S) Cf. MP II 44* ; MP III 60: «Para se evitar el trabajo de escrivirse tanto como se scrive, y para
que quede más tiempo para exercitarse los studiantes, se procure que hum curso de scriptos se
imprima, y en esto se occupe el P. Afonseca principalmente, y tenga por coadiutores ai P. Mar­
cos Jorge y ai P. Cipriano y ai P. Pero Gómez . . . » (instrução de Jerónimo Nadai) . Em 1 553 Iná­
cio de Loyola escrevia ao Rei D. João III comunicando-lhe que vai enviar Jerónimo Nadai com
vista à «instituição» de escolas (MP 1 432) e nesse mesmo ano dá-se conta do seu envio para
explicar as Constituições e as Regras dos Colégios (MP I 550).
(ó) Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas, trad. J. F. GOMES, 2 vols, Coimbra 1 964.
C 7 ) Cf. MARTINS, A. M . , «The Conimbricenses» in PACHECO Mª C. et MEIRINHOS, J. (ed.),
Intellect et imagination dans la Philosophie Médiévale / Intellect and lmagination in Medieval
Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medieval, Tumhout, 2006, 1 07 .
C 8l MP I I I 3 1 7-320. Sobre Fonseca, os seus comentários e o curso, vd. RODRIGUES, História . . .
IU2 1 02-22; também GOMES, J. F., «No quarto centenário das Instituições Dialécticas d e Pedro
da Fonseca» Revista Portuguesa de Filosofia 20 ( 1 964) 275-86.
28 Introdução Geral

lho intelectual, que ele se sentiu, então, a repetir preclaro gesto do próprio Liceu,
quando a Teofrasto é dado o estudo da botânica, a Eudemo de Rodes o das ciências
matemáticas e a Ménon o da medicina ! Adiando o princípio da empresa até à che­
gada de livros faltosos (teniendo respecto a la falta de libros que ay en casa), enco­
mendados de Veneza ao Pe. Francisco Adorno (tl 5 86), um italiano que havia
ingressado na Companhia justamente em Coimbra, solicita algum tempo para que se
preparasse o trabalho de equipa (envolvendo também os companheiros de Évora) de
maneira devida. Talvez um trabalho esboçado em dois tempos: (i) «entre tanto se
ventilarían más las matérias, excitarían dudas, et declararían más todas las cosas»,
(ii) «Y que yo le diesse una memoria para encomendar a los maestros y algunos
theólogos, que entre tanto hiziessen por apuntar cada uno en su cartapacio las dudas
y todo lo demás que en el processo de sus estudios les ocurriesse, que poderia servir
para qualquiera parte dei curso». Passa de seguida ao primeiro planeamento (repar­
tía el trabajo) : o próprio Fonseca ficaria com duas horas para «conferir todos os
livros de Aristóteles ainda não vistos (ou não devidamente vistos)», que «pueden
servir», tomando nota das dúvidas e das boas exposições, com dois ou três graves
intérpretes, como por cifras, expondo uns lugares por outros, sendo esta a tarefa
mais útil para quem tem o principal encargo; Cipriano Soares teria direito a uma
hora livre por dia para os temas matemáticos de Aristóteles (geometria, demonstra­
ções, cosmografia, astrologia e perspectiva), como sucede em De Coe/o e nos
Meteororum, e, além disto, ocupava-se da teoria dos planetas no quarto capítulo da
Esfera de Sacrobosco, como era hábito local� sem esquecer Plínio e outros autores
com utilidade para o tema meteorológico, ventos, origem das nascentes, etc. Com-

C l l Cf. CRUBELLIER, M. & PELLEGRIN, P., Aristote. Le philosophe et les savoirs, Paris 2002,
22.
(Z) O inglês João de Sacrobosco (ou de Hollywood), continuador de Alexandre de Villedieu, ensi­
nou em Paris nos anos 1 220- 1 235 e é autor de quatro manuais importantes: Algorismus, Trac­
tatus de Sphera (um pouco antes de 1 230), Computus e Tractatus quadrantibus, cf. PEDER­
SON, O., «ln quest of Sacrobosco» Joumal for the History of Astronomy 16 ( 1 985) 1 95-22 1 ;
vd. Johannes de Sacro Bosco, Tractatus de spera, in THORNDYKE, L., The 'Sphere ' of Sac­
robosco and lts Commentators (Chicago 1 949) 76- 1 1 (texto) e 1 1 8- 1 42 (trad. inglesa). Lê-se in
MARTINS, J. V. de P. «0 Humanismo ( 1 487- 1 537)» in História da Universidade em Portugal.
1 Volume, tomo 1 ( 1 290- 1 536), Coimbra 1 997, 1 76: «Ora os estudos sobre os descobrimentos
portugueses parecem provar a existência de uma cultura científica portuguesa, já na primeira
metade do século XV que abrangia o estudo dessas disciplinas, provavelmente influenciada pela
ciência espanhola e profundamente marcada pelo saber dos judeus. Assim, é um facto o conhe­
cimento do Tratado da Esfera de Sacrobosco, presente em Alcobaça, e citado no Livro da
montaria de D. João 1 e, sobretudo, no Esmera/do de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira . . . » De
notar, por outro lado, que um dos professores bordaleses, Elias Vinet, amigo e admirador de
Pedro Nunes, professor da Faculdade das Artes, edita a Sphaera (Paris 1 556) com a inclusão de
um capítulo de Nunes, Sphaera loannis de sacro Bosco emendata. Eliae Vineti Santonis Scholia
in eandem Sphaeram ah ipso auctore restituta (. .. ) et Petri Nonii Salaciensis demonstrationem
eorum quae in extremo capite de Climatibus Sacroboscius scribit, de inaequali Climatum lati­
tudine eodem Vineto interprete (cf. RAMALHO, A. da C . , «0 Humanismo (depois de 1 5 37)» in
ibidem, tomo II ( 1 537- 1 77 1 ), 70 1 n. 14. STEGMÜ LLER, F., Filosofia e Teologia . . . 276 remete
para dois comentários, ambos de Évora ( 1 585), um de Vasco Baptista, outro de António de
Castelbranco. Para um ponto sobre a questão da expansão, vd. BARRETO, L. F., «Fundamentos
da cultura portuguesa da expansão» Philosophica 1 5 (2000) 89- 1 1 5 .
Introdução Geral 29

petir-lhe-ia ainda - como se compreende, diríamos nós, dada a sua especialidade


intelectual, mostrando assim Fonseca uma sensibilidade humanista - passar pelas
obras de filosofia de Cícero ! «apuntando los modos de hablar y tratar que cómmoda­
mente podemos tomar dél». Quanto a Marcos Jorge, a quem fora atribuída meia hora
diária de dispensa, caber-lhe-ia, a partir de João Duns Escoto e de outros, tomar nota
das questões controversas, das dificuldades aí existentes e da sua resolução, e ainda
ler as Questões Naturais de Séneca, Alexandre de Afrodísia e outros autores antigos.
Cabe dizer que na importante Bibliografia dos comentadores latinos renascentistas,
Ch. Lohr atribui a Marcos Jorge uma série de manuscritos, depositados no Escorial,
que alegadamente cobrem o plano do curso? Na carta que estamos a parafrasear,
Fonseca escusa Pero Gomes destas tarefas, dados os seus afazeres, mas numa carta
de Maio de 1 569, endereçada a Francisco de Borja, ainda o vemos nessa data ligado
à preparação do curso ? Finalmente, admitindo, embora, a amplitude do programa
(algún tanto largo) - não obstante exequível em dois ou três anos, como Fonseca
ingenuamente confessa - apressa-se a frisar que só assim o curso será viável como
convém (es la meior vía que se puede tomar para se hazer la cosa con exacción y
provecho), carecendo apenas posteriormente quase só de um redactor (estaraa la
materia tan dispuesta, que se haga mui en breve el curso todo, y con occupación de
quasi no más que de una persona) .
Desligado do magistério de filosofia no Colégio das Artes, que ocupara entre
1 555- 1 5 6 1 , vimos como Pedro da Fonseca cuidou logo de redigir um plano de tra­
balho e de encomendar as edições faltosas, imprescindíveis para levar a bom porto
tão ingente tarefa. Todavia, múltiplos afazeres (o cargo de reitor entre 1 5 67 e 1 570)
impediram-no de concretizá-la. Instado de Roma pelo atraso do projecto informa,
em 1 9 de Setembro 1 5 70, Francisco de Borja, ter dado novo alento à redacção, há
vinte dias, dessa feita começando o trabalho por um Comentário à Metafísica de
Aristóteles: «seria más a propósito començar por la metaphysica, para más expedi­
ción de las cosas, y mayor brevedad de los demás»� E assim o fez. Além disto,
importa notar de passagem que Fonseca admite que a tarefa em tomo da Metafísica
seria basilar, porquanto obviaria a que os restantes comentários se repetissem ou
expandissem. Ainda em 1 570, Fonseca comunica estar a rever o primeiro livro, a
acrescentar escólios à secção que não se 'lê' (i. e. , que não é objecto de ensino for­
mal), visando pelo menos o livro sétimo? Todavia, em 1 572 Pedro da Fonseca é
chamado a Roma como Vogal da Congregação que deveria eleger um novo prepó-

(J) Cf. MARYKS , R. A., Saint Cicero and the Jesuits. The Influence of the Liberal Arts on the
A doption of Moral Probabilism, Aldershot - Burlington 2008.
(Zl Cf. LOHR, Ch., «Renaissance Latin Aristotle Commentaries: Authors G-K» Renaissance Qua-
terly 30 ( 1 977), 697-98 ; apud MARTINS, A. M . , «The Conimbricenses» 1 04, n. 4.
<3l Cf. MARTINS, A. M., «The Conimbricenses» 1 05 .
<4l M P III 488-489; vd. MARTINS, A. M . , «Pedro d a Fonseca . . . » 1 65- 1 78 .
<5l M P I I I 4 8 9 : « Y a voy reveindo y concertando e ! primer libro, y afíadiendo breves scholios e n lo
demás dei texto, que no se lee, por no se imprimir la obra imperfecta. Y parece que me succede
bien e! negocio ( . . . ); aunque, hasta salir dei 7º libro, temê harto trabajo por hasta allí aver de as­
sentar muchas cosas que dan mayor difficultad en todo e! curso . . . »
30 Introdução Geral

sito-geral. Nessa mesma assembleia é escolhido para Assistente, ficando, por isso,
retido nessa cidade, acompanhando o novo Padre Geral. Aí imprimirá (Roma 1 577)
o primeiro tomo do Comentário à Metafisica com dedicatória a el-Rei D. Sebastião !
Regressado a Lisboa em 1 5 82, para assumir o cargo de Superior da Casa de São
Roque, Fonseca vê o segundo volume do seu Comentário publicar-se em Roma, em
1 5 89. Nesse ínterim, Góis deve ter acabado o volume da Física, pois logo no «philo­
sophiae studioso» do Comentário à Metafísica Fonseca reconhece a impossibilidade
em continuar no projecto do Curso. Depois, em 1 59 1 , ou seja, um ano antes da
publicação daquele que virá a ser o primeiro volume do Curso Jesuíta Conimbri­
cense, e, portanto, quando o trabalho de Góis estaria bem avançado, Fonseca publica
a primeira edição da Isagoge Filosófica. Quatro notas merecem ser imediatamente
frisadas . A primeira, para observar que Pedro da Fonseca granjeará o seu nome na
plêiade dos filósofos ocidentais exactamente pela redacção da Metafísica, editada
em quatro volumes. A segunda, para lembrar que esta obra não integrará o chamado
curso dos Jesuítas conimbricenses� Uma terceira, para salientar que os trabalhos de
Fonseca sobre lógica, mormente as Instituições� foram sempre muito considerados
no seio da Companhia. Finalmente, para anotar o óbvio: começar um curso pela
Metafísica, pela Lógica ou pela Física é, em primeiro lugar, um indício possível de
distintas concepções pedagógicas e, em segundo lugar, filosóficas. Assim, v.g. , quer
Pedro Luis ( 1 592), quer Francisco de Gouveia ( 1 594), registaram algumas reticên­
cias sobre algumas opiniões de Fonseca� Independentemente de uma boa explicação
que venha ainda a ser dada para este problema, é certo e seguro que, havendo,
embora, divergências de pedagogia e de concepção filosófica, a alta erudição do
Comentário de Fonseca e o ritmo dos trabalhos podem explicar toda esta complexa
situação.
Terminado em 1 597, o terceiro volume do Comentário à Metafísica de Pedro da
Fonseca será estampado postumamente em 1 604, com dedicatória ao bispo-conde D.
Afonso de Castelo Branco? Corria então, em paralelo, como se vê, a redacção dos
volumes acima enumerados, que integrarão o curso. Um incompleto quarto volume
da Metafísica de Fonseca sairá em Lião poucos anos depois ( 1 6 1 2) ?

(1) Cf. MARTINS, D., «Essência do saber filosófico, segundo Pedro da Fonseca» Revista Portu­
guesa de Filosofia 9 ( 1 953) 405 .
(Z) Permanece disseminado o erro de atribuir a autoria do Curso a Fonseca, vd. e.g., GRACIA, J.,
«Suárez (and !ater scholasticism)» in MARENBON, J . (ed.), Routledge History of Philosophy.
Vol . III, London New York 1 998, 455 .
C 3l Cf. P. da Fonseca. Instituições . . . 1 0 sg. ainda sobre a redacção do Curso.
C4l Cf. GOMES, J. F., «Introdução» LIX n. 4 (« . . . la Isagoge dei P. Pero da Fonseca . . . tiene este
inconveniente que e! texto ha de ser indifferente en questiones ventiladas y hazerlas in utraque
parte y e! es parcial en algunas opiniones . . . ») e XLIX n. l («Porque e! P.e Fonseca tiene muchas
opiniones contra la comum . . . »), respectivamente.
(S) Em carta de 3 1 de Agosto de 1 596, o próprio Pedro da Fonseca regista a esperança de acabar o
terceiro volume «dentro de cinco ou seis meses» (cf. Pedro da Fonseca. Instituições . . . L-LI
nota).
C 6l Cf. MARTINS, A., «A Metafísica . . . » 5 1 5-34.
Introdução Geral 31

Havendo ensinado no Colégio de Coimbra entre 1 574 e 1 5 82, Manuel de Góis


deve ter-se progressivamente apercebido da lentidão ou da inviabilidade do gran­
dioso projecto de Fonseca. O trabalho lectivo recorria normalmente às apostilas dos
vários docentes. Aludimos acima à existência de uns «ditados» por volta de 1 560, e
na autorização com que o primeiro volume de Góis sai do prelo, escrita pelo punho
de Fonseca, referem-se uns «comentários manuscritos comuns». Sabemos mesmo
que um comentário (glossemata) à Dialectica estaria talvez pronto, logo em 1 576,
como se pode depreender pelo desabafo «ao leitor» que vai abrir as páginas do
volume dedicado à Lógica, que Sebastião do Couto publicará apenas em 1 606.
Depois de ser afastada, quiçá não sem alcance político, a intenção do teólogo caste­
lhano Luis de Molina (t1 600) de ver as suas lições publicadas em Curso - a sua
leccionação em Coimbra estendera-se de 1 563 a 1 567 1 e a qualidade do seu manus­
crito da Lógica parece confirmar aquela intenção de publicação - Manuel de Góis
pode ter iniciado a tarefa, em 1 5 82 ou 1 5 8 3 , talvez mesmo antes, que Fonseca não
conseguia levar a cabo. Em 1 5 84 o volume da Física redigido por Góis estava
pronto para impressão ? Apesar de sabermos que ele trabalhava filologicamente, i. e. ,
com códices � o seu labor não deve ter sido muito complicado. Tratava-se, repetimos,
não de redigir um curso original, mas sobretudo de compilar e de organizar o con­
junto das lições dos vários professores das Artes que o Colégio ou os Colégios
(mormente os de Évora, Lisboa e Braga) haviam conhecido. Sabe-se que os escola­
res circulavam frequentemente entre Évora e Coimbra, et ex una in alteram fiant
discipulorum frequentes commigrationes-7 Todavia, a «colaboração» de autoria nada
tem de excepcional em si mesma, tratando-se de uma prática que remonta às pró­
prias origens da Faculdade das Artes, no século XIII ? Também os mestres de
Lovaina - apreciados pelos nossos Jesuítas - tinham lançado não havia muito tempo
um projecto editorial conjunto? Sabido é que Luis de Molina, na azáfama de ver a
sua redacção admitida e quiçá com alguma sanha em relação, quer a Fonseca, quer

O J Cf. LA VAJO, J. C., «Molina e a Universidade de Évora» in BORGES-DUARTE, 1. (org.), Luís


de Molina regressa a Évora, Évora 1 998, 1 02- 1 03.
<2J MP VII 302: «Saber de N. P. Geral se se hão-de imprimir cá os commentarios do P. Pero da
Fonseca; e os do P. Manoel de Góis, sobre os Physicos, se se poderão logo imprimir, porque os
tem acabados, para o que se deseja licença; e o mesmo para a Arte de padre Manoel Alvares,
que está já revista pollo padre Femam Pirez.» (Fernão Pires (+ 1 597).
<3J Cf. Commentarii Collegii ... ln libras Meteororum IV c. 1, p. 36, onde o autor confessa ter um
códice - codicem, quem habemus - eventualmente dos Lovanienses ou Parisienses (ou uma
colecção de ambos).
<4l MP V .95 . Para a Universidade de Évora, vd. MP III 70-82.
<5l Cf. EBBESEN, S. & ROSIER-CATACH, 1., «Le 'trivium' à la Faculté des arts» in WEIJERS,
O. & HOLTZ, L. (ed.), L'enseignement des disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford
XII/e - XVe siecles), Tumhout 1 997, 1 1 4- 1 22, que escrevem ( 1 1 7 ) : «Faire des emprunts à des
prédécesseurs pour constituer son propre cours est un procédé normal.»
<5l Cf. MADEIRA, J., Pedro da Fonseca 's 'lsagoge Philosophica ' and the Predicables from
Boethius to the 'Lovanienses A thesis presented in fulfillment of the requirements for the de­
·.

gree of doctor in Philosophy. Katholieke Universiteit Leuven (pro manuscripto), November


2006, 20 1 e passim.
32 Introdução Geral

aos professores lusitanos, queixar-se-á de ser vítima de plágio com visível deficiên­
cia no resultado final, i. e. , nas suas próprias palavras, tirando-lhe das glosas manus­
critas, cortando umas coisas e intercalando outras, alterando a ordem das matérias de
forma menos coerente �
É certo que Manuel de Góis trabalhou rapidamente. O que Fonseca não lograra
concretizar em virtude de uma exigência e de um rigor iniludíveis, Góis concluiu em
apenas dois ou três anos os oito livros da Física, os quatro do Céu e em Outubro de
1 5 85 trabalhava no tratado de A Geração. O primeiro volume, começado a imprimir
talvez em Abril de 1 59 1 , só sai dos prelos de madeira da oficina de António de
Mariz em 28 de Março de 1 592. A referência que nos informa que desde 1 5 de
Janeiro se começava a explicar esse volume, ainda incompleto, nas aulas do Colégio
das Artes e logo depois em É vora, Porto e Braga� permite-nos pensar que os sete
anos que vão do «acabamento» de 1 584 até à entrega da obra ao prelo permitiam
«revisões» do texto. Mas este é um problema que ainda nem sequer se começou a
investigar. Seja como for, em 1 592, após ter sublinhado que a Universidade de
Alcalá pretendia recorrer aos seus textos, Góis escrevia que os vários volumes
podiam ir sendo impressos ininterruptamente (continuate), lamentando-se da lenti­
dão do processo � O desejo de ver publicados os volumes à medida da sua composi­
ção não encontrou eco no Geral Cláudio Aquaviva�
Para que o Curso ficasse completo, faltava publicar os comentários ao Organon e
à Metafísica. Como dissemos, aquele encontrar-se-ia adiantado ainda antes de
Manuel de Góis se entregar à redacção, mas não sabemos explicar por que razão a
sua publicação não se concretizou. Também, ao que parece, ainda em 1 592 Pedro da
Fonseca chegou a principiar um compêndio da sua Metafísica para o adicionar ao
Curso? Dá conta desse intento Francisco de Gouveia em carta de Dezembro de 1594,
reproduzida pelo editor português das Instituições Dialécticas� Seja como for, em
1 606 falar-se-á no nome de Sebastião do Couto para levar a cabo a tarefa que toda a
Companhia reclamava, a conclusão do Curso, precisamente. Por seu lado, Manuel
de Góis havia prevenido da sua intenção de escrever um tal volume, mas a sua morte

O > Cf. RODRIGUES, F., História . . II/2, 1 1 5 ; LAVAJO, J. C., «Molina e a Universidade de
.

Évora» 1 02- 1 1 1 . A sentença a proferir sobre a reclamação acima, de Molina é, claramente, um


estudo que urge.
<2> Cf. RODRIGUES, F., História . . . II/2, 1 1 6; FONSECA, F. T. da, «A Imprensa . . . » 26 nota 44.
<3> Cf. MARTINS , A. M . , «The Conimbricenses» 1 06.
<4> DINIS, A., «Tradição e transição no 'Curso Conimbricense' » Revista Portuguesa de Filosofia
47 ( 1 99 1 ) 538: «Foi provavelmente o desejo de se certificar de que o Curso Conimbricense se
harmonizava com quanto seria estabelecido pela Ratio que o P. Aquaviva revogou a licença
dada pelo seu antecessor, o P. Mercuriano, de se imprimir o primeiro volume do Curso antes de
toda a obra estar completa.»
<5> Cf. RODRIGUES, F., História ... II/2, 1 1 8 .
(õ) Cf. GOMES, F., «Introdução» XLIX, n. l ; vd. também o meu comentário i n «Medieval Influen­
ces in the Coimbra Commentaries (An Inquiry Into the Foundations of Jesuit Education»
Patrística et Mediaevalia 20 ( 1 999) 28, mas a data aí indicada é agora corrigida ( 1 594) graças a
informação gentil de A. M. Martins.
Introdução Geral 33

ocorre em 1 597. De facto, não somente ele aludiu pelo menos por três vezes a essa
intenção, v.g. , nos volumes da Física, nos da Ética e nos de A Alma, como ainda em
1 594 (isso mesmo se lê na carta antes referida de Francisco de Gouveia) Góis se
debatia sobre esse assunto: «el P.e Goes - escreve Gouveia - dessea saber la deter­
minacion de V.P. pera cessar de su intento y disponer las cosas de outra manera, no
haziendo mencion de Metaphysica» � Quis o destino que Sebastião do Couto não
compusesse esse comentário à Metaphysica, não obstante algumas vezes o prome­
ter? Em contrapartida, um estranho acaso fê-lo redigir o comentário à Lógica. Com
efeito, em 1 604 havia sido publicado em Veneza - e talvez não em Francoforte,
como refere Couto 3 - um título «in universam dialecticam Aristotelis Stagiritae» sob
a designação plagiadora de Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia
de Jesu� A reacção a este pseudo-epígrafo, atribuído a Gaspar Coelho ( 1 552- 1 593)�
deve estar na explicação de Sebastião do Couto se ter definitivamente entregado à
composição efectiva do volume autêntico de Coimbra, que sai em 1 606, mas dado
ao prelo no ano anterior. A Sebastião do Couto é também encomendada a tarefa,
jamais concluída, de «reformar» ou rever todo o Curso. A opinião de que a obra de
Manuel de Góis devia ser revista aparece já em 1 592, no mesmo ano em que o
volume da Physica sai do prelo e em que Fonseca faz tenção de principiar o seu
comentário à Metaphysica destinado ao Curso. Em 1 602 e 1 603 certas províncias
manifestam alguma insatisfação (non possono a pieno sodisfare) com o curso� Em
1 6 1 2, há ainda notícias de que Sebastião do Couto tem uma tal tarefa entre mãos e
em 1 6 1 9 incita-o o censor Bento de Gouveia a retomar o trabalho. Sebastião do
Couto morrerá em 1 639, não sem antes se envolver com Cristóvão Borri numa
polémica sobre o estatuto científico das matemáticas (que aquele recusava)7 e, como
explicámos, jamais concluiu a incumbência superior.

( I J Cf. GOMES, F., «Introdução» XLIX, n. 1 .


<2 l Cf. , entre outras passagens, Commentarii Collegii Conimbricensis e Societate lesu, ln univer­
sam Dialecticam Aristotelis Stagiritae, Coimbra 1 606: ln Praef lsag. q. 4, a.3, s. 1 , p. 94.
<3l Cf. DIAS A. de P., «A Isagoge de Porfírio na Lógica Conimbricense» Revista Portuguesa de
Filosofia 20 ( 1 964) 1 20, n. 30; vd. ln Universam Dialecticam . . . v, ad lectorem. De notar que o
locativo 'Francofurti' foi retirado da dedicatória ao leitor na edição de Colónia, v.g. Por seu
lado, MARTINS, A. M., «The Conimbricenses» 1 07, refere-se antes a uma publicação simultâ­
nea, na Alemanha (Hamburgo, Colónia e Francoforte) e em Veneza.
<4l Cf. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu in Aristotelis Logicam, Venetiis 1 604;
vd. DIAS, A. de P., «A Isagoge de Porfírio . . . » 1 20.
<5l Cf. LOHR, Ch. H., Latin Aristotle Commentaries: li Renaissance Authors, Firenze 1 988, 1 5 1 ;
apud DOYLE, J . P . «lntroduction» 17, 25 nota 24.
<6l MP VII 492, 5 1 9.
<7l Cf. RANDLES, W. G. L., «Le ciel chez les jésuites espagnols et portugais ( 1 590- 1 65 1 )» in
GIARD, L. (ed.), Les jésuites . . 1 39. Borri foi docente de matemáticas e de astronomia na Uni­
.

versidade de Coimbra ( 1 626-27).


34 Introdução Geral

Estes são os principais acontecimentos enunciados aqui em toda a sua secura, mas
facilmente se percebe que, apesar das suas fragilidades, o projecto filosófico-peda­
gógico concretizado principalmente na cidade do Mondego tenha ultrapassado rapi­
damente as fronteiras. Este facto deve ser explicado no contexto europeu do Huma­
nismo e das Reformas (Protestante e Católica), em cujo berço o projecto da Compa­
nhia de Jesus se inseriu com indiscutível sucesso !
Comecemos pelo Humanismo, que se expande definitivamente em Coimbra com
a última transferência da Universidade para a cidade do Mondego ( 1 537) e com a
fundação do Colégio Real das Artes ( 1 548) ? Escola cosmopolita, aquela, fundado,
este, como preparatório das outras Faculdades (porém, o Colégio das Artes acabará
por absorver a Faculdade das Artes), sobressairá a escolha de André de Gouveia, por
D. João III, como «principal» do Colégio (ele exercera idêntico cargo no «College
de Guyenne» de Bordéus). Na versão da crónica do jesuíta João Afonso Polanco -
numa obra sobre Jesuítas é justificavel tomarmos a narração coeva de um deles por
guia - D. João III determinara que se seguissem os cursos de filosofia e de humani­
dades more parisiensi, para o que chamou da França distintos especialistas (viras
valde doctos), destinados a dez classes de latim e quatro de filosofia� Entre os novos
mestres convidados (franceses, escoceses e portugueses), contavam-se, entre outros,
os nomes de: Diogo de Gouveia, Luís Á lvares Cabral, Nicolau Grouchy e do «Dou­
tor Bordallo, Interprete da moral Philosophia» (nas Artes) ; João da Costa (Leis) e do
Doutor Rozetto (Hebraico); e, no Grego, Mestre Fabrício, Jorge Buchanan, Diogo de
Teive, Arnaldo Fabrício, Guilherme Guerente, Elias Vinet, António Mendes, etc1
Entre 1 552 e 1 565, propunha-se seguimento dos planos de estudos abaixo, para os
quatro anos da Filosofia5 :

(I) COXITO, A. A., «A Filosofia no Colégio das Artes» in História da Universidade em Portugal.
l Volume, tomo II (1537- 1 771 ), Coimbra 1 997, 735 ; ID. , «A restauração da Escolástica. II: O
Curso Conimbricense» in História do Pensamento Filosófico Português. Vol. 2, direcção de
CALAFATE, P., Lisboa 200 1 , 503-543 ; CHACON, V., O Humanismo ibérico . . . 1 94.
<2l RAMALHO, A. da C., «0 Humanismo ... » 695 . Vd. sobretudo B RAND Ã O, M. &
D' ALMEIDA, M. L., A Universidade de Coimbra, Coimbra 1 937; LEITE, S . , Estatutos da
Universidade de Coimbra (1559), Coimbra 1 963; B RAND Ã O, M . , O Colégio das Artes II,
Coimbra 1 933, 3-74; RODRIGUES, História ... 112 336-373; MP I 637-643.
<3l MP I 599.
<4l Cf. VASCONCELOS, A. de, Faculdades de Letras, Coimbra 1 9 1 2, 24; PINHO, S . T. de, «Les
Études de Grec à l' Université de Coimbra (XVIe siecle)», Separata de L 'Humanisme Portugais
et l 'Europe. Actes du XXle Colloque lnternational d 'Etudes Humanistes: Tours, 3-13 juillet
1978, Paris 1 984, 87- 1 09, reproduzido em ID., Humanismo em Portugal. Estudos II, Lisboa
2006, 297-322.
<5l Cf. STEGM ÜLLER, F., Filosofia e Teologia . . . 85-86; CARVALHO, R. de, História do Ensino
em Portugal. .. 26 1 -63.
Introdução Geral 35

1º ANO: 1 º trimestre: De terminorum introductione, Dialectica;


Porphyrius, lsagoge.
2º trimestre: ln Aristotelis Praedicamenta; Perihermeneias;
Topica (início) .
3º trimestre: Topica (até V I I ) ; /-IV Ethicorum.

2º ANO: 1 º trimestre : Analytica Priora; VIII Topicorum;


Analytica Posteriora (início) .
2º trimestre: Analytica Posteriora (continuação e conclusão) ;
V-VI Ethicorum.
3º trimestre: Vil-X Ethicorum; De sophisticis elenchis; 1-11 Physicorum.

3º ANO: 1 º trimestre: //- VIII Physicorum.


2º trimestre : De coe/o et mundo; De generatione et corruptione;
Metaphysica (início) .
3º tri mestre: /-IV Meteororum; /-// De Anima; Metaphysica
(continuação) .

4° ANO: Ili De Anima; Parva natura/ia; Metaphysica (conclusão) .

Este curriculum será substituído em 1 565, dez anos volvidos sobre a posse do
Colégio pelos Jesuítas, por um programa mais genericamente formulado e, por isso,
mais exequível, quer dizer, menos constrangedor. Importa sublinhar imediatamente
que o plano indicado a seguir não coincide com o que a Ratio irá estabelecer a partir
de 1 5 86, como mais adiante se verá. Eis então o segundo plano curricular, certa­
mente mais modesto:

1 º ano: Dialéctica.
2° ano: Lógica, Física e Ética.
3º ano: Metafísica, Pequenos Natu rais.
4º ano (um semestre): A Alma.

A nomeação de André de Gouveia nunca agradou ao tio, Diogo de Gouveia, que


tomou o seu lugar após a morte do sobrinho, ocorrida em 1 548, no mesmo ano da
fundação do Colégio. Durante o reitorado de Diogo deflagrou uma nefasta querela
entre bordaleses e parisienses, estes acusando aqueloutros de heterodoxia, e a inter­
venção ainda mais deletéria da Inquisição. João da Costa, Diogo de Teive e Jorge
Buchanan foram julgados e encarcerados num dos processos inquisitoriais «mais
complexos, senão o mais complexo do ponto de vista doutrinal, dos primórdios da
Inquisição joanina» � «Ao associar-se com humanistas liberais, erasmistas e

( 1 ) GOMES, P., Os Conimbricenses 20; vd. sobretudo BRAND ÃO, M., A Inquisição e os professores
do Colégio das Anes, 2 vols., Coimbra 1 948- 1 969; ALDEN, D., The Making of an Enterprise. The
Society of Jesus in Ponugal, lts Empire, and Beyond, 1 540- 1 750, Stanford 1 996, 670-73 .
36 Introdução Geral

conservadores, assim como com os Jesuítas, D. João III mostrava ter um espírito
muito mais aberto do que qualquer outro governante da sua época, mas foi exacta­
mente essa faceta da sua reforma que não lhe sobreviveu por muito tempo.» 1 Aque­
las lutas tiveram como inevitável desfecho a cessão do Colégio das Artes aos Jesuí­
tas e a autora que citámos sugere que essa cedência pode ser vista como uma solução
intermédia entre os desentendimentos de liberais e conservadores?
Nas Artes, ensinavam-se não apenas matérias de natureza filológico-literária
(Gramática, Retórica e Dialéctica), mas também a Aritmética, a Astronomia, a
Música e a Geometria. Mesmo após a saída dos professores estrangeiros, humanistas
portugueses como André de Resende, Inácio de Morais, Jerónimo Osório ou Antó­
nio Luís, não terão deixado decair o cultivo das Humanidades gregas e latinas no
Colégio, não obstante a ameaça permanente da censura inquisidora? É seguro que
após a entrega do Colégio das Artes aos Jesuítas - o que acontece, repetimos, em
1 555 um tal cultivo não esmorece, apesar dos conflitos em torno sobretudo de
-

privilégios que depressa surgiram entre a Universidade e os Jesuítas (isto sem


esquecermos a hipótese, segundo alguns intérpretes não desprezível, de certos
Jesuítas planearem o domínio de todo o ensino português4). Na notícia que escreve
precisamente em 1 555, João Polanco cita os nomes dos jesuítas nomeados pelo rei
para o ensino, de acordo com a norma do Colégio Romano: Jorge Serrão (t1 590) e
Pedro da Fonseca (t1 599) para a filosofia; Cipriano Soares, Manuel Á lvares (t1 5 83)
e Pedro de Perpinhão para a retórica e as humanidades? Ao jesuíta Manuel Á lvares
ficámos a dever um esmerado «best-seller», De Institutione Grammatica libri tres
(Lisboa 1 572) ? sendo evidente que o cuidado posto na compreensão da letra e do

2
< 1 l HIRSCH, E. F., Damião de Góis, trad., Lisboa 2002, 1 94.
<2l HIRSCH, E. F., Damião ... 2 1 1 .
<3l RAMALHO, A . da C., «0 Humanismo . . . » 700-70 1 .
<4l SARAIVA, A . J., História da Cultura . . . 2 1 9; B RAGA, T., Historia da Universidade de Coim-
bra, Lisboa 1 892, I: 529, mas deverá ver-se, RODRIGUES, F., Historia . . . I/2 337 n. 1 ; vd. ainda
FRANCO, J. E., «Génese, evolução e carácter do antijesuítismo em Portugal: uma perspectiva
evolutiva» in ABREU, L. M. e MIRANDA, A. J. R. (coord.), Anticlericalismo Português: His­
tória e Discurso. Actas do Colóquio, Aveiro 2002, 7 1 -93.
<5l MP I 600. Do interesse político, por parte do Rei, na educação dos jovens nobres, «para después
se servir dellos» dá conta para Roma, em 30 de Junho de 1 573, o provincial Jorge Serrão, vd.
MP IV 489. GOMES, J. P., «Os Professores de Filosofia do Colégio das Artes» Revista Portu­
guesa de Filosofia 1 1/2 ( 1 955) 522 indica o quadro dos quatro lentes que iniciaram o ensino
(em 15 de Outubro de 1 555): Jorge Serrão, para o lº curso; Maximiliano Capela, para o 2°;
Pedro da Fonseca, para o 3º; e Inácio Martins para o 4°; escrevendo no entanto: «Estes os que,
efectivamente, deram começo às aulas. Todavia, só Pedro da Fonseca e Inácio Martins as leva­
ram por diante. Os outros dois brevemente se viram substituídos. A sua passagem pelas Cáte­
dras do Colégio das Artes, além de efémera, foi de todo irrelevante.» Sobre Inácio Martins, vd.
DÍEZ-ALEGRÍA, J. Mª, «El conimbricense Ignacio Martins S. 1. y el concepto de Ley en la
Universidad de Evora» Revista Portuguesa de Filosofia 1 1 /2 ( 1 955) 546-53.
(ó) Cf. SPRINGHETTI, E., Storia e fortuna della Gramatica di Emmanuele Alvares S . L» Humani­
tas 1 3 - 1 4 ( 1 962) 282-303 . MP VII 55 1 -552 reproduz uma carta de 1 58 1 , de Fernando Pires
(+ 1 595), em que este, dada a sua inteligência em coisas de gramática, era destacado para
coadjuvar Manuel Alvares no aperfeiçoamento da Arte deste. Esta obra foi depois interpretada
por António Velez (+ 1 609), Emmanuelis Á lvares e Societate Iesu de institutione grammatica
libri tres, Antonii Vellesii ex eadem Societate in eborensi academia praefecti studiorum opera
aucti et illustrati, Eborae 1 599 (vd. MP VII 372).
Introdução Geral 37

espírito de Aristóteles que se consubstancia nos Comentários, como o adiante


editado e traduzido, releva do comum ambiente humanista e renascentista, com dois
pilares notáveis na gramática e na retórica. Também Cipriano Soares publicara em
1 572 uma muito reconhecida, mas tradicional, Arte Rhetorica! assim se legitimando
a indicação de Fonseca para que Soares se ocupasse com as relações entre Cícero e a
filosofia. «No que respeita ao pensamento aristotélico, o seu cultivo realizava-se
com o regresso às fontes do Perípato e dos seus comentadores, segundo as
exigências do Humanismo. De facto, nos dois primeiros anos do funcionamento do
Colégio das Artes foi publicada uma miscelânea dos escritos que constituem o
Organon (por iniciativa de Melchior Beleago, lente 'parisiense'), com o título de
Logica A ristotelis ab eruditissimis hominibus conversa (Coimbra 1 549), uma versão
latina da autoria do humanista Nicolau de Grouchy (tl 572), um dos 'bordaleses '
que leccionou entre nós um curso de Lógica, de 1 548 a 1 550. O objectivo de
Grouchy, com essa obra, foi o de pôr à disposição dos alunos de Filosofia um texto
integrado no modo humanista de expor Aristóteles, através de uma latinitas de inspi­
ração ciceroniana, adaptada à preparação obtida pelos estudantes nos estudos de
Humanidades . . . » ?
Nas classes propedêuticas à filosofia, os estudantes do colégio dos Jesuítas em
Coimbra podiam chegar a ler Demóstenes, Ovídio, Cícero ou Virgílio � Em 4 de
Março de 1 555 o Reitor, Leão Henriques (t1 5 89), transmitia o seguinte catálogo de
cursos, mestres e programas4 : dez classes de latim, quatro de artes, uma de grego e
outra de «leer y escrivir» . Entre os mestres, soma: Diogo de Contreiras, Manuel de
Pina, António de Souto, Pero da Cunha, Mestre Fabrício, Pero Henriques, Manuel
Cerveira, Mestre António, Pero Fernandes, António Caiado, Mestre Gonçalo, Cris­
tóvão Nunes, Benavente e Manuel Tomás. Atente-se, porém, numa lista decerto
mais interessante quanto a autores constantes do programa: o De senectute de

( I ) Cf. Cypriano Soarez, De Arte Rhetorica libri Tres ex Aristotele, Cicerone et Quintiliano praeci­
pue deprompti, Conimbricae: Apud Ioannem Barrerium 1 562, Auctoris Prooemium (s. foi.): «Et
in primo quidem libro, qui de inventione est, sedecim argumentorum loci sunt explicati simul
cum his, quae ad permovendos animos ex eisdem locis eruuntur. Praecepta etiam quaedam sunt
exposita ad exornationem et deliberationem accomodata. ln secundo vero, quid dispositionis
praecepta continet, de orationibus partibus, de statu, iudicatione, et ea controversia, quae ex in­
terpretatione scripti existit; praeterea de ratiocinatione, enthymemate, inductione et exemplo
agitur. Et quoniam frequens mentio facta est ab antiquis autoribus Epichematis, Soritis, et Di­
lemmatis, eorum vis explanatur. Tertius denique liber docet orationis ornatum, qui est in verbis
vel simplicibus, vel coniunctis. Itaque de verbis novis, de inusitatis, de tropis, de luminibus ver­
borum et sententiarum, de origine, causa, natura et usu orationis aptae, ac numerosae, tum ad
extremum de memoria et pronunciatione in eo differentur.»
(Z) COXITO, A. A., «A Filosofia.» 737. Cf. B RANDÃ O, M., Estudos Vários. Volume I, Coimbra
1 972, 1 35 .
<3) Cf. MP I 473 ; vd. Também M P II 1 2- 1 5 , 90-92 e MP V I I 634-64 1 para u m exaustivo catálogo,
embora da Província alemã ( 1 604- 1 608). Vd. sobretudo PINHO, S. T., «Literatura humanística
inédita do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra no Século XVI» in Universidade(s),
História, Memória, Perspectivas. Actas do Congresso 'História da Universidade ' (No 7° Cente­
nário da Sua Fundação), Coimbra 1 99 1 , 4, 67-86, reproduzido em ID, Humanismo . . . 323-343 .
(4) MP I 644-645 ; MP III 56-59: «Instructiones datae Conimbricae de studiis humanitatis et rhetori­
ces anno 1 5 6 1 ».
38 Introdução Geral

Cícero, na versão grega de Theodoro Gaza; mais alguns títulos de Cícero (Pro
A rchia poeta, Partitiones, De inventione, etc) com Ovídio, Terêncio, Catão e a Ars
gramatica de António de Nebrija. Uma ainda melhor ilustração deste panorama ser­
-nos-ia dada, decerto, pelo professor de Humanidades de Coimbra, Pedro de Perpi­
nhão (tl 566), que entrou na Companhia ( 1 55 1 ) na mesma cidade ! A sua planifica­
ção para três classes é assaz notável pela quase impossível vastidão. Na primeira
classe, incluía os seguintes autores para o aperfeiçoamento da língua: Cícero, César,
Salústio, Terêncio, Plauto, Lívio, Quinto Cúrsio; e ainda, não para imitar - dizia -,
mas pelo seu saber especializado: Catão, Varrão, Columella, Palladio para a «re
rustica» ; Celso para assuntos médicos; Vitrúvio para a arquitectura; Vegécio «de re
militari»; e Plínio para a história natural. Seguem-se os poetas: Virgílio, Horácio,
Catulo, Tibulo, Propércio, Lucrécio, os cómicos Terêncio e Plauto, com reservas?
Na segunda classe, que visa a eloquência, contam-se os seguintes títulos: de Cícero
(De inventione, De oratore, Brutus, Oratore ad Brutum, Topicis ad Trebatium, Par­
titionibus oratoriis, De optimo genere oratorum) ; de Comifício (ad Herennium) ; de
Aristóteles (Retórica) ; de Quintiliano (sobre o Górgias de Platão); e o compêndio de
Cipriano Soares (De arte rhetorica libri tres). Finalmente, na terceira classe, com
vista à retórica: as Observationes (B asileia 1 548) de Nizolio; o Thesaurus Ciceronis
(Paris 1 556) de Carolus Estienne; as Sententiae Ciceronis de Valério Máximo; os
Exempla de Sabélico (t l 506) ; as Sententiae et exempla (Lyon 1 557) de André de
Évora; a Polyanthea (Savona 1 503) de Nano Mirabellio; uma Summa virtutum et
vitiorum; a Officina (Paris 1 532) de Ravísio Textor; Lactâncio (séc. III) e Nicolau
Winman (séc. XVI), entre outros. Decerto mais modesto e exequível seria o projecto
de Cipriano Soares que em Évora compõe ( 1 566) o seguinte programa de estudos
latinos: uma selecta de Cícero no sétimo ano (septimo gymnasio) ; os livros mais
fáceis das Epistolis familiaribus no sexto; no quinto, a continuação desta última obra
com o De tristibus de Ovídio; no quarto, os títulos seguintes: De senectute, Para­
doxa, também de Cícero, De ponto e Metamorphoses de Ovídio, as Eclogae de Vir-

( 1 ) Cf. MP II 640-643 , para uma sua lista romana de 1 565 . Sobre o prestígio intelectual de que o
autor gozava em Coimbra, vd. a carta de Manuel Á lvares enviada ao Geral em 3 1 de Julho de
1 564, in MP III 357-35 8. Cf. FUMAROLI, M . , L 'Age de l 'eloquence . . sobre Pedro de Perpi­
.

nhão 397-8.
(Z) Como se sabe, Terêncio, juntamente com Erasmo ou Luís Vives, não eram bem quistos (o
mesmo se diga de Ovídio, cf. MP I 557-58); no entanto, o primeiro era lido em Coimbra ainda
em 1 555 (cf. MP I 439, n. 3), e, quanto aos outros, mormente Erasmo, Polanco permite dar à
estampa o De octo partium orationis constructione, «sanza nominar Erasmo» (ibid. 439; vd.
também MP III 258 e 260) . Inácio de Loyola queimou os livros de Savonarola ( 1 553), expli­
cando-se (MP I 553): « .. .la causa de proibir suoi libri non e perché non siano buoni alcuni, como
Il triunpho delta croce et altri, ma perché l ' authore e esposto a controversia: chi lo tiene santo,
chi lo tiene meritamente brusatto; et questa e piu commune opinione. Et cosi la Compagnia, es­
sendossi tanti libri d' authore buoni senza controversia, non vuole si !engano nelle mani auctor
controverso . . . » Sobre a prática, também já referida, do expurgamento, vd. FABRE, P.-A., «Dé­
pouilles d' Egypte. L' expurgation des auteurs latins dans les colleges jésuites» in GIARD, L.
(ed.), Les jésuites . . . 55-76; vd. ainda DOMINGUES, A . de J., Os clássicos latinos nas Antolo­
gias escolares dos jesuítas nos primeiros ciclos de estudos pós-elementares no século XVI em
Portugal. Dissertação de doutoramento em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade do Porto (pro manuscripto), Porto 2002.
Introdução Geral 39

gílio, cuja leitura continuava no terceiro ano ginasial, acrescida do De o.fficiis,


Commentariis de Cícero e De fastis de Ovídio; nos dois últimos anos, i. e. , na pri­
meira e segunda classes, De inventione, De oratione ad Q. fratrem, De bello civili, etc I
Convém, alfim, situar a acção dos Jesuítas no que concerne ao ambiente das
Reformas católica e protestante. Recordámos como a tomada de posse do Colégio
Real, pela Companhia, esteve ligada a polémicas ideológicas e religiosas tão epo­
cais. Na realidade, a criação da Companhia por Inácio de Loyola visava revitalizar a
vivência religiosa em tempo de crise e de divisão da Europa. Pelos meados do
século XVI, talvez por volta da altura em que Filipe II chega a Espanha ( 1 559), a
Europa experimenta uma divisão profunda que frustrará as ambições tão pouco
ingénuas de uma comunidade diplomática europeia� Dois mundos parecem digla­
diar-se num inimaginável cenário religioso, político e cultural. A própria Universi­
dade, que deixava de ser, como o fora outrora, uma realidade europeia para se tomar
cada vez mais uma estrutura nacional, toma quinhão director na quota-parte religiosa
destas divisões políticas. Se isto não impede que Justus Lipsius (tl 606), protegido
do cardeal Granvela, circule entre a protestante Jena, a católica Lovaina, a calvinista
Leiden e a jesuíta Mainz � em 1 552 o estudante suiço Félix Platter revelava poder
estar em Montpellier, desde que não publicitasse as suas crenças protestantes� Pouco
depois de se encerrar o Concílio de Trento ( 1 563), a reforma católica rapidamente
compreendeu em definitivo que o pendor educativo da Companhia de Jesus podia
ser um aliado poderosíssimo para enfrentar os vários projectos de Reforma protes­
tante, mormente a cultura teológica calvinista de Heidelberg e a luterana de Witten­
burg ? Assim, as armas mais modernas do debate teológico conhecerão um esperado
terceiro vértice geográfico, Roma, e a fundação do seminário romano e a sua conse­
quente entrega aos Jesuítas por Pio IV fez atrair de novo uma parte da juventude
europei é Agudizada pelo conflito com o paganismo e com a heresia, a que se
respondia também com a moderna aplicação dos métodos da erudição renascentista
à teologia tradicional, procurava-se um compromisso do idealismo neoplatónico dos
primeiros humanistas com o novo sentido de desesperança na corrupção do ser
humano ? Teríamos, assim, um «terceiro mundo», escreve J.H. Elliot � situado entre o
catolicismo dogmático e o protestantismo dogmático, mundo no qual gostaríamos de
inscrever os primeiros Jesuítas de Coimbra, parceiros do luterano Melanchton, no

O l MP II 765-767 ; DOMINGUES, A. de J., Os clássicos latinos. . . , passim.

(Z) ELLIOT, J. H . , Europa en la Época de Felipe II ( 1 559- 1598), trad. , Barcelona 200 1 , 28.
C 3l ELLIOT, J . H . , Europa . . . 372-3.
C4l ELLIOT, J . H., Europa . . . 44.
C 5l Sobre a expressão «reforma católica», cunhada ao que parece em 1 880, e discutida eruditamente
por JEDIN, H. (Katholische Reformation oder Gegenreformation ? Ein Versuch zur Kliirung der
Begriffe nebst einer Jubiliiumsbetrachtung über das trienter Konzil, Lucerna 1 946), vd.
O' MALLEY, J. W., «The Historiography of the Society of Jesus: Where Does It Stand Today?»
in ID. (ed.), The Jesuits . . . 1 8-24.
C 6l ELLIOT, J. H., Europa . . . 1 50.
C 7l ELLIOT, J . H., Europa ... 1 56.
c sJ ELLIOT, J. H, Europa . . . 375.
40 Introdução Geral

que diz respeito à tarefa genérica de restituir Aristóteles para servir a uma nova
atmosfera cultural e religiosa �
Sem sobreavaliarmos o dado de que em 1 5 6 1 e 1 562 o número de alunos no
Colégio de Jesus de Coimbra, nas suas várias classes, era cerca de mil e duzentos e
de mil quatrocentos e quarenta, respectivamente� um paralelo significativo do
apreço pela nova educação, decerto consubstanciado pelo prestígio do saber do seu
detentor, é o respeitante à afluência às aulas na Universidade, dadas pelo jesuíta
Francisco Suárez entre 1 597 e 1 6 1 5 (quase 20 anos, embora de maneira intermi­
tente) . Sabe-se, de facto, que o filósofo e teólogo espanhol chegara a ser tido por
inovador logo em 1 579, o que ele explica pelo seu método radical de ensino (modo
de leer que yo tengo, que es diferente de lo que los más usan), i. e. , seguindo menos a
tradição interpretativa do que uma profunda investigação das fontes (mirallas
hondamente/mirar las cosas más de rayz)? A actualização da sua biblioteca lusitana,
constituída para oferecer à Universidade, testemunha um acervo de cerca de 650
volumes catalogados em 'Bíblias ' , 'Santos e Padres Latinos ' , 'Santos e Padres Gre­
gos ' , 'Escolásticos ' , 'Juristas ' , 'Sumistas ' , 'Controversistas e Vários ' , 'Filósofos ' ,
'Modernos sobre a Escritura' , 'Vários' , ' Livros em Vulgar' , e Autores d a Compa­
nhia (divididos por seu lado em 'Escolásticos ' , ' Expositores da Escritura' e 'Contro­
versistas ' )1 Aliás, ainda durante a docência de Suárez, Pedro de Mariz foi manda­
tado pelo Reitor e pelo Conselho Universitário para fazer casa para a livraria e
adquirir em Veneza e noutras partes livros no valor de 500.000 reis? A ida ao mer­
cado livreiro de Veneza repetia o desiderato de Fonseca. A isto, evidentemente,
haveria que acrescer o facto de a biblioteca pública do Colégio das Artes ter um rico
acervo, nomeadamente com a preocupação de dispor de duplicados para facilitar a
consulta 'domiciliária' � Em todo o caso, não deixam de ser curiosas algumas ausên­
cias entre 1 603 e 1 608 (isto se partirmos do princípio de que a lista dos livros com­
prados por Suárez indica inexistências monográficas em Coimbra, o que grosso
modo nos parece improvável). Citemos, respeitando a lista do jesuíta espanhol,
alguns dos autores então adquiridos. Comecemos pelos latinos: Agostinho, Jeró­
nimo, Ambrósio, Gregório, Hilário, Anselmo, Bernardo, Leão Magno, Própero e
Fulgêncio, Isidoro, Beda e Tertuliano, Inocêncio III, Tomás de Kempis, Cassiano,
Ricardo de São Victor, Tauler e Boaventura. De entre os Gregos: Atanásio, Gregório
de Nazianzeno, Basílio, Crisóstomo, Ireneu, Justino, Gregório de Nissa, Damasceno,
Clemente de Alexandria, Eusébio, Orígenes. Eis agora alguns dos chamados «esco­
lásticos», onde abundam, como não podia deixar de ser, os comentários às Senten­
ças: obras de São Tomás, Alberto Magno, Duns Escoto, Ricardo, Marsílio, Gabriel

( 1 ) Cf. KESSLER, E., «The Intellective Sou!» in The Cambridge History of Renaissance Philoso­
phy. . 5 1 8.
.

<2> Cf. MP III 6 1 .


<3> MP IV 8 1 0. Para uma biografia, vd. SCORAILLE, R . de, François Suárez de la Compagnie de
Jésus d 'apres ses lettres, ses autres écrits inédits et un grand nombre de documents nouveaux, 2
vols. , Paris 1 9 1 2- 1 3 ; em português, poder-se-á ler uma breve biobibliografia in MOITA, G. P.,
«Introdução» in Francisco Suárez. De Legibus. Livro /: Da lei em geral, Lisboa 2004, 57-76.
<4> BRAND Ã O, M., A livraria do Padre Francisco Suarez, Coimbra 1 927; rep. in ID. , Estudos. . , .

67, 55-66.
<5> BRAND Ã O, M., Estudos . . . 98.
<6> BRAND Ã O, M., Estudos . . . 95.
Introdução Geral 41

Biel, Vicente de Beauvais, Ockham e Dionísio o Cartuxo, Palácio, Liqueto, Basso­


lis, Holcoth, João Maior, Maironis, Ledesma, Baõez, etc. Os catalogados como Filó­
sofos em 1 603 são tão-só Séneca e Aristóteles. Resulta óbvio que desta lista não se
há-de depreender que nem todas as obras inexistiam em Coimbra, mas apenas que
Suárez requeria algumas edições precisas num período particularmente fértil em
produção bibliográfica. Deve ser assim, evidentemente, pelo que podemos explicar o
impressionante corpus de citações que adornam os vários volumes do Curso não
como procedimento de outiva ou retórico, mas como instrumentos reais de investi­
gação e de ensino. Acrescente-se, todavia, que se trata ainda de um ponto por sopesar!
Se a fractura da Cristandade e as consequentes e ultrajantes guerras da religião
dividiram a comunidade das letras, ameaçando, por isso, de forma grave a liberdade
crítica e a imaginação, que devem ser apanágio do intelectual, também não é menos
certo reconhecer-se (e isto é bem verdade no que toca ao espaço lusitano) o quanto
as lutas confessionais deram origem a rivalidades intelectuais, conferindo, assim, um
proveito inesperado ao mundo do espírito, ele que agora era urgentemente chamado
à formação de intelectuais, leaders ou recentes elites ? Os novos destinos contrastan­
tes na velha Europa questionavam consultas, instituições políticas, estruturas de
pensar e de acreditar�
Após chegados a Coimbra ( 1 542) e tomando posse, primeiro do Colégio de Jesus
ou Colégio de Cima e depois do Colégio -das Artes da cidade ( 1 555), os Jesuítas
começam a contribuir para o espírito pedagógico e a expandi-lo de forma pioneira�
Mesmo a nível mundial, conforme confissão do P. Polanco, contando em 1 550 com
mais de cem jesuítas no Colégio Real e antevendo um projecto missionário até às
paragens dos mundos africano, etíope e americano, sob a égide da coroa portuguesa?

O l Cf. CARVALHO, M. S. de, «Tentâmen de sondagem sobre a presença dos platonismos no


volume do 'De Anima' do primeiro Curso Jesuíta Conimbricense» in SOUZA, J. A. de C. R. de
(coord.), Idade Média: tempo do Mundo, Tempo dos Homens, Tempo de Deus, Porto Alegre
2006, 389-98.
<2> Cf. GIARD, L. «Sur le cycle ... » 522.
<3> GIARD, L. «Sur le cycle ... » 520; cf. VENARD, M., Le temps des confessions (1530-1620130),
Paris 1 992; McGRATH, A., The Intellectual Origins ofthe European Reformation, Oxford 1 987.
<4> A erecção de um Colégio da Sociedade de Jesus em Coimbra, por decisão real, data de 1 54 1
(vd. M P 1 498); dois anos depois d a sua chegada ( 1 544), o s jesuítas inscrevem Coimbra entre as
sete cidades europeias com colégios, vd. MP 1 5 0 1 e MP V 1 *. Para a história da fundação do
Colégio, vd. RODRIGUES, F., História . . . Porto 1 93 1 , 1/1 302- 1 9 ; para uma apresentação das
tendências do ensino, vd. ID. , A Formação intelectual do Jesuíta. Leis e Factos, Porto 1 9 1 7 ;
sobre algumas características d a sua espiritualidade, vd. DIAS, J S . d a S . , Correntes de senti­
mento religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII), Coimbra 1 960, 1, 1 69- 1 7 5 e 64 1 -42. No ano
lectivo imediatamente anterior à tomada de posse do novo Colégio, os alunos jesuítas distri­
buíam-se entre o Colégio de Jesus (4) e o Real Colégio das Artes; naquele ensinava, nesse ano,
Pedro de Sousa que por doença foi substituído por Diogo de Contreiras, e os quatro alunos eram
Nicolau Gracida, Luís de Vasconcelos, Luís de Molina e outro de cujo nome não consta (vd.
SANTOS, D. M. G. dos, «Francisco Titelmans . . » 469)..

<5> MP 1 397: «ln Portogallo similmente il Re fece un collegio in Coymbra, dove sono piu di 100 della
Compagnia, cioe di scholari ( ... ); et si fa molto grande frutto, si nel detto regno di Portogallo, si etiam
nelli luoghi di Africa et Ethiopia, et l'India dei Brasil, et altre terre che sono sotto il Re di Portogallo,
convertendosi molti migliara de anime ... » Vd. ALDEN, D., The Making of an Enterprise... passim;
também MAURÍCIO, D., «Inácio de Loiola e Portugal» Brotéria 63 ( 1 956) 459-475.
42 Introdução Geral

Quando toma posse em Portugal da «sua» Universidade de Évora 1 em 1 559, a


Companhia tinha atrás de si a fundação do mais modesto Colégio de Coimbra
( 1 544), do Colégio de Gândia ( 1 547)� do de Messina ( 1 548) � do Colégio Romano
( 1 55 1 )4 para «escolásticos» (designação dada aos candidatos ao presbiterado), e a
mobilidade docente é uma fácil realidade geográfica. Doravante, de Roma, sede do
prepósito-geral, multiplicar-se-á aquela que vai ser uma das mais impressionantes
redes escolares europeias e teia internacional e intercontinental para a expansão da
cultura ocidental. A escolha da sede é obviamente natural: da cabeça da Cristandade
Católica, numa Europa dividida, dimana um ardo studiorum comprometido e com a
particularidade de tentar preservar «O melhor de dois grandes ideais educativos»: o
rigor e o profissionalismo do sistema escolar herdado e os ideais práticos, sociais e
mais personalistas do humanismo? É significativo, por isso, que a obra do espanhol
Francisco de Toledo, ln tres libras A ristotelis de Anima Commentarii (Lyon 1 59 1 ),
reproduza as teses do Concílio respeitantes àquilo que, a respeito da alma racional,
deve ser mantido pela fé e consentâneo com a verdadeira filosofia? Tratava-se, como
ficou dito desde o início, de uma imposição estatutária: seguir Aristóteles em maté­
rias que se não opõem à fé de Latrão, em particular - lê-se - cuidar em não seguir as
seitas averroístas, alexandrinistas ou similares ? Idêntico espírito de fidelidade à
Igreja romana encontramos repetidamente no Curso de Coimbra. Valha-nos um
exemplo, entre muitos possíveis: ao combaterem algumas teses de Averróis acerca
da natureza do intelecto, os autores citam os filósofos, os teólogos e, naturalmente, a
autoridade dos Concílios, no caso os de Viena ( 1 3 1 1 - 1 2) e de Latrão ( 1 5 1 2- 1 7), que,
chamando a si a alegada opinião de Aristóteles em prol da imortalidade da alma,
proclamavam o seguinte: «Condenamos e reprovamos todos os que afirmam que a
alma intelectiva é mortal e que é única em todos e cada um dos seres humanos,
pondo, assim, em dúvida não só que ela é em si mesma e essencialmente verdadeira

( 1 ) Cf. RODRIGUES, F., História . . . 112 3 1 2- 1 8.


<2) MP 1 50- 63 (Constituições de 1 549-50 da Universidade de Gândia, a primeira da Companhia e
que conta com a intervenção programática dos portugueses Manuel de Sá (+ 1 590) e Luis Gon­
çalves da Câmara (+ 1 575), conforme se lê em MP I 507); ibid. II 1 34- 1 69 para o texto da
Constituição de 1 566. O bacharelato em Artes era obtido após conclusões em lógica («parte o lo
que quisiere, de praedicabile y de predicamentos y de perihermenias y de priores y de posterio­
res y de tópicos y e/enchas»); o mestrado em Artes, de novo com a lógica e mais «una conclu­
sión de los ocho libros de phísica de Aristótil, y otra de los libros de caelo et mundo, y otra de
los libros de generatione, de corruptione, y otra de los metheoros y otra de los libros de anima,
como le pareciere, con tal que lenga en las conclusiones de todos estos libros. Las terceras con­
clusiones sean de moral y de metaphísica . . . »
<3) Cf. MP I 1 7-28.
<4) Cf. MP I 64-93 ; ibid. II 1 70- 1 8 1 com o texto da Constituição de 1 566.
(S) O'MALLEY, J. W., «How the First Jesuits Became Involved in Education» in DUMINUCO, V.
J. (ed.), The Jesuit 'Ratio Studiorum ' . . . 69.
(6) DES CHENE, D., Life 's Form. Late Aristotelian Conceptions of the Sou/, Ithaca London 2000,
45-52.
(7) Cf. MP VII 349 entre outras passagens.
Introdução Geral 43

e que existe como forma do corpo humano, verdadeiro e imortal, e que se multiplica
pelos corpos, que infunde, multiplicável e multiplicada singularmente por todos.» �
É preciso, contudo, atentar em que, no preciso momento da composição do Curso,
os programas de estudos não se encontram ainda absolutamente assentados. Uma
rápida inspecção aos Monumenta Paedagogica Societatis /esu revelou-nos que os
programas de Psicologia (chamemos-lhes assim) estipulavam uma relativa liber­
dade� Na introdução geral ao volume quinto dos imprescindíveis Monumenta
Paedagogica, Ladislaus Lukács compreende o período de 1 557- 1 5 80 sob o prisma
das «vicissitudes escolares» em virtude de dois princípios então em confronto, o da
ortodoxia doutrinal e o da liberdade de ensino � De facto, no ano de 1 579, em Lisboa,
o visitador Miguel de Sousa (t1 5 82) dá disso conta, opinando não se dever conceder
liberdade aos mestres em artes para ditat.I Aquele período deve, porém, estender­
-se. Assim o atestam também as três versões da magna charta daqueles planos, a
Ratio Studiorum ( 1 586, 1 59 1 , 1 599) � na sequência também de várias questões em

( 1 ) ln Ili De Anima II, q.7, a.2, p.82 (cf. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln
tres libras de Anima Aristotelis Stagiritae, Coimbra 1 598, para cujas páginas remeteremos sem­
pre). De notar que este foi o único erro doutrinal condenado no V Concílio de Latrão, cf.
WRIGHT, A. D., The Counter-Reformation . . . 94.
<2> A este propósito reproduzem-se aqui as indicações de Jacob Ledesma, para o curso de Roma
1 564, «De interpretibus Aristotelis» (MP II 499) e «ln docendi modo aut loquendi» (ibid. 502),
respectivamente: « 1 . D. Thomam et eius doctrinam laudare, vel saltem non reprehendere, vel
certe non ita ut scholastici ab eo alienentur aut ab eius doctrina; sed modeste, si quando ab eius
sententia discendendum videatur, id facere. 2. Item, doctores alios theologos scholasticos, aut
eorum doctrinam non irridere aut in contemptum adducere; multo autem minus theologiam
scholasticam in genere. 3. Nec etiam latinos interpretes Aristotelis, aut eorum doctrinam irridere
aut in contemptum adducere. Nec etiam in genere disputationes instituere latinorum contra grae­
cos, et graecorum contra latinos; sed propriis nominibus tantum utriunque citatis authoribus. 4.
Item, non laudare nimium Averroin, sed neque laudare quidem, aut alios quosvis impios Aris­
totelis interpretes. Sed, qui magnis laudibus sint efferendi, sint catholici, ut Albertus Magnus, D.
Thomas vel alius similis ex catholicis; vituperare vero Averroin licebit, si quis volet. .» E: « 1 .
Non laudare nimis Averroin, sed neque laudare quidem. 2 . Non vituperare D . Thomam aut eius
doctrinam, aut scholasticos doctores, vel in contemptum adducere; sed potius laudare et magnis
laudibus efferre, et auditores ac discipulos ad eorum doctrinam potius allicere. 3 . Non laudare
graecos in genere et vituperare latinos. Neque instituere disputationem contra latinos in genere,
sub hoc nomine latinorum. 4. Non opinari nimis audacter, sed putare se posse falli et cum
humilitate iudicare et loqui .. »
<3> Cf. MP V 6 *-9*.
<4> MP IV 780.
<5> Vd. as redacções in MP V; cf. MP II 47* onde se atribui ao Padre Nadai a responsabilidade pela
iniciativa da Ratio, já a partir de 1 548; ibid. II 1 8 1 -287 para 'redacções ' (Regulae Scholastica­
rum Societatis) datadas de 1 565- 1 572. A Província Lusitana designou, para se pronunciarem
sobre a Ratio ( 1 586), os PP. Pedro da Fonseca, Jorge Serrão (+ 1 590), Pedro Paulo Ferrer (+
1 6 1 5) , Á lvaro Lobo (+ 1 608), Manuel de Góis e o espanhol Luis de Molina (cf. MP VI 4*). Cf.
também GIARD, L., «Le devoir d'intelligence, ou l ' insertion des jésuites dans !e monde du sa­
voir» in ID., Les jésuites. . . XXXIII n. 28; JULIA, D., «Généalogie de la 'Ratio studiorum'» in
GIARD, L. & VAUCELLES, L. de (ed.), Les jésuites à l 'âge baroque, 1 540- 1 640, Grenoble
1 996, 1 1 5- 1 30; PADBERG, J. W., «Development of the 'Ratio Studiorum'» in DUMINUCO,
V. J. (ed.), The Jesuit 'Ratio Studiorum ' . . . 8 1 -99.
44 Introdução Geral

tomo da unidade doutrinal (vg. as pronúncias dos PP. Ledesma e Gagliardi contra o
eventual averroísmo de Pereira) 1 ou das instruções dadas por Nadai ( 1 583) no sen­
tido de se seguir «a doutrina mais aprovada e segura» ? Ainda em 1 5 86, durante a
visita à Universidade de Évora, o Provincial Sebastião Morais (t 1 588) lamenta que
nas aulas de filosofia se dê mais atenção às questões - despropositadamente, aliás,
porque se chega a abordar algumas de âmbito teológico - em prejuízo da explicação
do texto de Aristóteles e informa da lentidão do ensino dos teólogos por estes quere­
rem «hazer sus glosas, como para imprimir» ? Isto quer dizer que estamos perante
uma empresa colectiva, um itinerarium, o qual, no campo da filosofia, será absolu­
tamente experimental, aqui e ali titubeante, inconcluso, não obstante a obrigação de
se seguir «a doutrina escolástica de São Tomás» em teologia e «a doutrina de Aris­
tóteles» no ciclo das artes� Quais são, no entanto, os autores presentes na primeira
versão oficial da Ratio? A lista não podia ser mais diversificada5 : os Padres João
Cassiano (t435), Agostinho (t430), Fausto de Riez (t499), Boécio (t524) ; os
monges Anselmo de Cantuária (t l l 09) e Ricardo de São Victor (t l l 73); os
augustinianos Egídio Romano (t 1 3 1 6), Gregório de Rimini (t 1 358) e Tomás de
Argentina (t 1 357); os franciscanos Boaventura (t 1 274), Ricardo de Mediavilla
(t 1 302), João Duns Escoto (t 1 308), Pedro de Aureole (t 1 322) e Guilherme de
Ockham (t 1 347); os dominicanos Alberto Magno (t 1 280), Herveu Natal (t 1 323),
Pedro Paludano (t 1 342), João Capréolo (t 1 432), Paulo Barbus Soncinas (t 1 495) e
Silvestre Francisco Ferrariense (t l 528); o teólogo secular Henrique de Gand
(t 1 293); Tomás de Vio ou Caetano (t 1 534) ; Durando de Saint-Pourçain (t 1 332),
Gabriel Biel (t 1 495) e Marsílio de lnghem (t 1 396).
Escrevendo em Coimbra a Cláudio Acquaviva, em 1 587, dará conta o espanhol
Ferdinando Pérez (t 1 596) das suas preocupações relativamente àqueles não «muy
acautelados en no apartarse de las opiniones más seguras y más recebidas». Ao
mesmo tempo, lamenta o excesso de confiança de mestres audaciosos, inovadores
ou marginais, i. e. , apostados «ad audacter asserenda, non dicam novam solum, sed

C l l Cf. MP II 476-478 ; MP III 4 1 5 ; MP IV 1 98.


C Z) MP 1 22 1 : «securiorem et magis approbatam doctrinam» Vd. 'Ratio Studiorum ' da Companhia
de Jesus (1559-1 999), Braga 1 999. Um dos participantes na versão de 1 5 86 é o português Gas­
par Gonçalves (+ 1 590), cf. MP V 3 e JULIA, D., «Généalogie . . . » 1 23 n. 30.
c 3l MP VII 600: «Sólo en esto me parece que la falta que ha es en el declarar y entender el texto de
Aristóteles; y todo se va en quaestiones; y en ello también ay excesso, porque se tratan muchas
proprias de la theologia.»
C4l Cf. GIARD, L., «Le systeme ... » 1 46, que ainda acrescenta, em relação às Universidades: para as
humanidades, ler-se-ão 'os autores pagãos' evitando passagens 'desonestas' , praticando uma
leitura expurgada; 'entre os comentários de autores' deverá 'fazer-se uma escolha' (neste mesmo
sentido escreve o próprio Inácio de Loyola em 1 549, cf. MP 1 390); quanto aos Colégios, preconiza-se
que 'em cada matéria, se deverá seguir a doutrina mais segura e aprovada bem como os autores que a
ensinam' .» Vd. , entre outros, MP 1 299 e MP II 255, 477, para Aristóteles.
C S) Cf. MP V 1 8 ; cf. O nosso «Introdução à leitura do Comentário dos Jesuítas de Coimbra ao 'De
Anima' de Aristóteles (mediante o estudo do tema monopsiquista)» in LUZ, J. L. B . da (org.),
Caminhos do Pensamento. Estudos em Homenagem ao Professor José Enes, Lisboa Universi­
dade dos Açores 2006, 524 para a correcção que propomos do nome de Durando.
Introdução Geral 45

etiam quae minus sunt tuta et minus recepta.» 1 Muito antes (Julho de 1 566), embora
de Évora, mas referindo-se também a Coimbra, o mesmo Pérez transmitia ao P.
Francisco de Borja preocupação similar sobre um 'conflito de faculdades' (pare­
ciéndoles que en dialéctica no tienen que ver con eso), antes de Kant, e que ao que
parece tocava o próprio São Tomás : « . . . en la lógica y philosophia son los maestros
notados de que seguimos opiniones nuevas fuera de lo que los doctores commun­
mente siguen.» 2
Evidentemente, saber se e em que extensão estamos perante um Curso de Filoso­
fia dogmático, fechado a qualquer novidade, conservador - por estar mais ligado aos
problemas especulativos que são importantes para a teologia e menos aos pormeno­
res empíricos 3 -, impeditivo de criação, é coisa que ainda falta examinar contra as
opiniões que se vêm repetindo não se sabe bem de onde1 No que se segue, iremos
contribuir modestamente com alguns elementos para um dia se chegar a precisar
com a necessária acribia o horizonte da primeira incursão filosófica dos Jesuítas do
Colégio de Coimbra.

2. Cartografia e horizonte de um curso de filosofia

Pelo menos em dois momentos privilegiados diferentes, puderam os professores


do Colégio Real Jesuíta de Coimbra definir o seu entendimento do que é a filosofia e
da sua organização epistemológico-curricular. Referimo-nos, bem entendido, aos
Proémios da Física e da Lógica, que têm, aliás, a vantagem de provirem da mão de
dois autores distintos. Outros lugares do Curso, designadamente os vários prólogos
aos livros, mesmo os de dimensões mais reduzidas, acolhem reflexões mais ou
menos afins. No que se segue, e por razões de economia, após algumas informações
documentais, limitar-nos-emos tão-só àqueles dois proémios. Trataremos também
neste apartado de alguns pontos cruciais da história da filosofia entre os Jesuítas,

O l MP VII 605 .
(Zl MP III 396. O relato aliás prossegue: « . . . porque si solamente Ilegase a uno de los maestros
poner cinco predicables con Ia común, otro ocho y otro diez; aunque no parezca bien opiniones
tan estrafias y tanta variedad en lo que ensefiamos, mas, ai fin, es dentro de los límites de Ias ar­
tes, adonde no ay de qué temerse peligro; mas, demás <lesto, estiéndense a opiniones contra
sancto Thomas y común de theólogos y a tener poca reverencia a Ias opiniones o autoridades de
los doctores sagrados; pareciéndoles que en dialéctica no tienen que ver con eso . . . » Cf. também
RODRIGUES, História . . . 11/2 95-96.
<3l LOHR, Ch. H., «Les jésuites et I' aristotélisme du XV!e siecle» 82.
<4l Cf. CALAFATE, P., «A Historiografia Filosófica Portuguesa perante o Seiscentism o» , in ID.,
Metamoifoses da Palavra. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisb oa 1 998,
1 29-29, para uma possível breve contextualização ou explicação, embora relati va ao período
imediatamente seguinte.
46 Introdução Geral

nomeadamente a partir do que dizem as versões da Ratio Studiorum quanto ao


estudo da filosofia.1
Tivemos ocasião de nos referirmos à intervenção de Nadai na confecção do
Curso. Vale a pena tomarmos nota do seu pensamento a este respeito em 1 552, i. e. ,
num período anterior àquela extraordinária iniciativa? O curso de filosofia (hoc est:
logica, philosophia naturali, morali ac metaphysica) deverá durar quatro anos -
escreve. Abordando, em primeiro lugar, a moral, prescreve a Nicomaqueia, numa só
classe, em dias santos e feriados. No respeitante a «tota logica» de Aristóteles, a ler
num ano, recomenda algum compêndio (seriam utilizados os de Trapezuntius ou
Trebisondas, de Fabrio Stapulensis ou o de Titelmans) e as Súmulas do dominicano
Domingos de Soto (t1 560). Os três anos lectivos restantes seriam consagrados à
filosofia natural, incluindo os doze livros da Metafisica? Um ano depois, em 1 553,
Martinho de Olave compõe um ardo de estudos, claramente não alinhado, reduzindo
a duração do curso para três anos (tal como sucede hoje no chamado sistema de
Bolonha), já prevendo - nota originalíssima ! - a leitura da Política, já aumentando o
número de compêndios auxiliares: o Libellus progimnasmatum do grego Aphtónio
(séc. III-IV), não há muito editado ( 1 508) ; o De consideratione dialectica libri sex
do franciscano Francisco Titelmans (Antuérpia 1 533); o De anima de Pedro de Ailly
(t1 420), publicado em Paris em 1 494; o De ente et essentia de Tomás de Aquino,
«che e come un compendio de lo piu utile dela metaphisica» 1 Podemos inclusiva­
mente conhecer o impossível e exigente «ritmo» de trabalho imaginado pelo jesuíta:
de Outubro a princípios de Dezembro, com a introdução à lógica (mediante o citado
Aphtónio, Titelmans e também um Libello de ratione disputandi) ; até à Páscoa,
deverão estar lidos Porfírio, as Categorias e todo o Titelmans; até Setembro, de
manhã o Perihermeneias e os Primeiros Analíticos, de tarde os Tópicos, concluindo
também os Elencos. No segundo ano, repetem por dois meses os Primeiros Analíti­
cos e chegam à Páscoa com a leitura dos Segundos e, pela tarde, com a leitura da
Ética ; da Páscoa à Festa de Todos os Santos, toda a Física e parcialmente a Metafí­
sica, de tarde. No último ano do curso, durante dois meses, lê-se de manhã o De
Anima com o homólogo de Pedro de Ailly, e pela tarde o De ente et essentia ; no
resto do tempo, até à Páscoa, lê-se a Politica, «non si dimorando se non in quello

(!) Cf. MP V 95- 1 09 (versão de 1 586), 234-35 e 279-284 (versão de 1 5 9 1 com as 'Regulae
professoris philosophiae) e 397-402 (as mesmas 'Regulae' na versão de 1 599).
C 2l Cf. MP 1 143- 1 50.

<3l Na 'escola dos livros da metafísica' determinavam-se ainda três lições de matemática (Euclides,
Esfera, Cosmographia, De triangulis de João Müller Regiomontano, na primeira; a música e a
perspectiva, respectivamente com os manuais de Fabio Stapulensis e Witelo; na última, a astro­
logia, teoria planetária com Ptolomeu, o Regiomontano, as tábuas do Rei Afonso de Castela e o
astrolábio); cf. MP 1 1 48- 1 49.
<4l MP 1 1 77- 1 78.
Introdução Geral 47

che e piU sustantiale» ; e após o tempo pascal até ao fim do ano, o De generatione e
os Parvi naturale pela manhã, e pela tarde o De coelo e os Metheora�
Visualizemos o curriculum proposto por Olave:

1 2 Trimestre 22 Trimestre 3º Trimestre

l ntrod . à Lógica lsag . , Cat. + Perherm. +


Manhã
c/ 3 manuais + Titelmans + PrAn
1º ano

Tarde Top. + Elench

Manhã PrAn An Post. Phys.


22 ano
Tarde Eth . Metaph.

Manhã De An + P. de Ailly Pol. De gen. + P. Nat.


32 ano
De ente De coelo +
Tarde
et essentia +Metheora

Consideremos agora a situação lusitana. Em 1 5 6 1 , Jerónimo Nadal dá instruções


a Coimbra relativas ao ensino das Artes. Trata-se, exactamente, do célebre texto que,
referindo os nomes dos três «coadjutores» de Fonseca, servirá a este para planificar
o trabalho de equipa, tal como acima se apontou. Significativo é o facto de Nadal
privilegiar os Analíticos, o Perihermeneias e os Elencos, a ler «Con diligencia», e a
Metaphysica «que más aprovecha para la theologia scholástica». Do restante Aris­
tóteles, Nadal cita ainda e tão-só o De Generatione, o De Anima e os Parvos Natu­
rales, deixando à deliberação dos Padres de Coimbra o que é de somenos importân­
cia para a «sciencia» ? Estes apressam-se a esmiuçar o seguinte plano (no qual não
constam - note-se - nem a Metafísica nem os Pequenos Naturais)3:

(!) MP I 1 77- 1 78 . A Província d a Alemanha Superior aconselhava ( 1 586) que algo d o ensino da
Política e dos Económicos alternasse com o da Ética (cf. MP VI 282). Sabemos da importância
da obra de Juan Mariana, mormente do seu De rege et regis institutione ( 1 599), para o trata­
mento da temática política, cf. H Õ PFL, H., Jesuit Political Thought. The Society of Jesus and
the State, c. 1 540- 1630, Cambridge 2004, 1 8 1 , 239-48 . Mantivemos as grafias, apesar de assaz
variegadas.
<2l Cf. MP III 59-60.
<3l MP III 66-67 ; cf. para um enquadramento da questão, MARTINS, A. M., «Pedro da Fonseca e a
recepção da 'Metafísica' . . » 1 67-7 1 . Sabemos que entre 1 520 e 1 570, nas cátedras protestantes,
.

o estudo da Metafísica não havia sido muito cultivado, cf. FREEDMAN, J. S . , Philosophy and
the Arts in Central Europe, 1 500- 1 700. Teaching and Texts at Schools and Universities, Ash­
gate 1 999, passim.
48 Introdução Geral

Logica Porphyrio todo, Predicamentos todos, De interpretatione todos los dos libras,
excepto el último capº dei 2º libra com summa.
Priores: los 7 capítulos dei primara, 8º 9º 1 O 1 1 con summa, el 12 letra con
glosa, 1 3 1 4 1 5 con summa breve, 1 6 hasta donde dize: 'hoc autem
monstrato', letra y glosa; de lo demás dei mismo capº summa breve hasta el
capº 2 1 , summas brevíssimas, y assí hasta el 29, y en este 29, summa
extensa sin letra, en lo que queda dei libra, ni summa ni letra. En el 2º libra
hasta el capº 1 8 exclusive, dexar lo de todo, dando una summa breve. Las 6
potestades de los syl logismos; el 1 8 se lea el principio, donde pane los modos
petitionis principii. Lo que se sigue, se dexe todo, sin summa; si no el 23 y 24
y 27 con summas.
Posteriores: 8 capítulos primeros con glosa y letra, y assí el 1 0 1 1 23 24 26;
en todos los demás se dé, en cada uno, summa; en el 2º libri, primara capº y
u ltimo con glosa y letra; los demás con summa.
De Tópicos los diez capítulos primaras con letra y glosa; en los demás
capítulos summa. EI 4º y 6° libra, con letra y sin glosa, colligiendo solamente
la máxima de cada l ugar. Lo de más se dexe todo, dando, en cada libra, un
argumento breve de cada uno.
E/enchas: los 4 capítulos, con letra y glosa; y el 5º, con summa sin letra; y el
último capítulo de los E/enchas, la letra solamente.

Physica EI primara de los Physicos, todo con letra y glosa. EI 2º libra, todo con letra y
glosa, excepto el quarto capº en que se dará summa. En el 3º libra, los 3
cap ítulos primeros con letra y glosa; y en los demás capítu los, hasta el fin, en
cada uno, una buena summa que ponga las razonas en forma, excepto el 7º
capítulo que se leerá con letra y glosa. EI 4º lib. , el 1 0º capº por summa, sin
letra; y de la misma manera el 6º y el 9º. Los demás capítulos, con letra y
glosa. EI 5º, todo con letra y glosa, excepto el último capº en que se dé
summa. Dei 6º l ibra, primara y 2º capítulos, con letra y glosa. En los demás
capítulos, summas buenas que declaren bien la sustancia de Aristóteles con
tratar las qüestiones ordinarias. EI 7º libra se leerá todo, con letra y glosa,
excepto el 4º capº, en que se dará summa. En el 8º, todo con letra y glosa,
excepto el 2º capº en que se dará una buena summa.

De coelo EI primara De coe/o en el capº 5º 6º y 7º, con summas sin letra; los demás con
letra y glosa. Dei 2º libra, los primaras 8º capítulos y el 1 O y 1 1 , con letra y
glosa. EI 9º y los demás, con summa. EI último capº, con letra y glosa. EI 3º
libra se dexe todo, dando un argumento breve dél. En el 4º libra se dexe el 2º
capº, con un breve argumento; los demás cap ítulos, con letra y glosas.

De Los De generatione, en el primara libra, se dexe la letra dei 2º y 8º y 9º, dando


generatione summas; lo demás con letra y glosa. Dei 2º libra, se dexa el 6º y 9º, con
summa breve. Lo demás, con letra y glosa.

De anima Los De anima dei primara libra, se leerá el primara capº, con letra y glosa; lo
demás se dexará, dando u n argumento de todo. EI 2º y 3º libra, todo con letra
y glosa . .
Introdução Geral 49

Em 1 565, é a vez de Francisco de Borja, embora em Roma, listar o que se deve


ensinar em filosofia, decreto este assumido pela Província Lusitana em 3 1 de Agosto
de 1 5 67 ! Depois das recomendações para não prejudicar nem a filosofia nem a
teologia e de nada se defender - muito menos uma <<nova opinio» - sem a prévia
auscultação do superior, Francisco de Borja, evocando anterior decreto de Ledesma,
enumera algumas teses que devem ser ensinadas. Ponhamos de parte aquelas mais
atinentes à teologia e citemos as de filosofia, apesar de não termos espaço para as
comentarmos, como se exigiria2 :
- a teoria das quatro causas, dos quatro elementos e dos três princípios das coi­
sas materiais;
- a doutrina da acção mediada dos agentes naturais;
- a concepção de um Deus como agente livre de capacidade intensivamente
infinita;
- a doutrina da providência divina sobre os singulares e as coisas humanas, bem
como a doutrina da omnisciência;
- a doutrina da alma intelectiva enquanto forma informante, e não assistente,
considerada verdadeira segundo Aristóteles e a verdadeira filosofia;
- a doutrina da individualidade da alma intelectiva, distintamente presente em
cada ser humano individualmente considerado, a ensinar também segundo
Aristóteles e a verdadeira filosofia;
- a doutrina da imortalidade da alma intelectiva, sob o mesmo duplo ponto de
vista;
- a tese de que não há pluralidade de almas nos Homens (intelectiva, sensitiva e
vegetativa), também sob a mesma dupla perspectiva;
- a afirmação de que a alma, em Homens ou animais, não consta de pelosidades
ou cabelo;
- a doutrina segundo a qual as faculdades sensitiva e vegetativa, nos Homens e
nos animais, não se sobrepõem imediatamente à matéria-prima;
- a afirmação de que os humores são de alguma maneira partes do Homem e
dos animais;
- a doutrina segundo a qual a totalidade da quididade da substância composta
não integra apenas a forma, mas a matéria e a forma;
- a tese de que há apenas cinco predicáveis.

Trata-se de uma lista apenas pessoal, pelo que na Ratio não se encontrarão todas
estas opiniões. Por exemplo, hão-de ler-se duas teses sobre a matéria-prima (aliás,
posteriormente omitidas na versão de 1 59 1 , o que também acontecerá com as teses
sobre a sucessão, a intensão das formas e a unicidade da alma humana) ; e sobre o

O l Cf. MP III 383.

(Zl MP III 384-385.


50 Introdução Geral

movimento do céu, a realidade do tempo e do movimento, o sentido activo e a von­


tade !
Novo documento orientador de Roma ( 1 565- 1 570), ainda prévio à primeira ver­
são da Ratio, voltará a consagrar a metáfora da filosofia como «ancilla theologiae»,
explicitando os âmbitos da filosofia: lógica, física, metafísica, ciência moral e
matemática (repete-se que naquelas quatro se deve seguir Aristóteles), mas come­
çando a determinar quais os livros do Filósofo a cursar e como se devem ler� Não
vale a pena transcrevermos aqui estas listas, que, aliás, se reproduzem com conteú­
dos variados, dando mostras do carácter incipiente ou mesmo hesitante da formula­
ção programática, mas podemos em todo o caso atentar em algumas redacções assi­
nadas afins, aqui citadas pela diversidade e singularidade das suas propostas.
Os pontos comuns a quase todos os programas incluem, portanto, a lógica, a
física ou filosofia natural, a metafísica e a moral (ou a moral e a metafísica) e a
matemática. Neste grupo, a matemática e a ciência moral eram secundarizadas na
maior parte dos colégios� Se no caso da Moral se pode pensar que a situação na
Província Portuguesa não deveria ser tão secundarizante� outro tanto talvez não se
possa dizer relativamente à matemática. Isto, evidentemente, a confinarmo-nos ao
curso impresso, posto que, ao tratar da tradição jesuítica portuguesa manuscrita
dedicada à filosofia natural, W. A. Wallace encontrou evidências de uma tradição
matemática, o que fragiliza um pouco a afirmação tão taxativa de U. Baldini,
segundo a qual teríamos de esperar por 1 692 para nos depararmos com uma tal
situação? É sabido que o programa de matemática fora assim estabelecido em 1 586:
princípios matemáticos, uso do astrolábio, teoria dos planetas e uma prelecção sobre
a Esfera? Como vimos antes, no plano inicial, Fonseca pensava incluir a matemática

O l Cf. MP V 1 07.
C Zl MP II 254-258 .
C 3l Cf. M P I I 44 * ; vd. Todavia M P V 1 09 para o elogio d a matemática.
C4l Cf. o meu estudo já citado «Metamorfoses da ética . . . » e a «Introdução» que escrevemos para a
esparada reedição da tradução do volume da Ética.
c 5l WALLACE, W. A., Domingo de Soto and the Early Galileo. Essays on Intellectual History,
Aldershot 2004, V, 256; BALDINI, U. «The teaching of Mathematics in the Jesuit College of
Portugal from 1 640 to Pombal» in SARAIVA, L. e LEITÃ O, H. (ed.), The practice of Mathe­
matics in Portugal, Coimbra 2004, 326, 340; vd. também WALLACE, W. A., «Late Sixteenth­
-Century Portuguese Manuscripts Relating to Galileo' s Early Notebooks» Revista Portuguesa de
Filosofia 5 1 ( 1 995), rep. in ID. , Domingo de Soto . . . IV; ID., «Jesuit Influences on Galileo ' s Sci­
ence» in O' MALLEY, J. W. et ai. (ed.), The Jesuits II: Cultures, Sciences, and the Arts 1540-
- 1 773, Toronto Buffalo London 2006, 3 1 4-5; LEITÃ O, H., «Entering Dangerous Ground: Jesuits
Teaching Astrology and Chiromancy in Lisbon» in O'MALLEY, J. W. (ed.), The Jesuits II. . . 377 ;
vd. também BALDINI, U., «La Cronologia come Scienza e la Compagnia di Gesu' : Secoli XVI­
XVIII» in CAROLINO, L. M. e CAMENIETZKI, C. Z. (coord.), Jesuítas . . . 68 nota 14.
C 6l MP VI 294.
Introdução Geral 51

- numa componente não alheia àquele programa 1 , mesmo se, a acreditarmos num
-

testemunho de Clávio, o célebre aristotélico português pessoalmente não cultivava


muito as matemáticas �
Se passarmos às propostas programáticas avançadas por apenas dois mestres
jesuítas (Roma 1 5 6 1 -62), Toledo e Pereira, ambos de gabarito intelectual, deparamo­
-nos com algumas variações significativas. Assim, Francisco de Toledo (t1 596) apre­
senta o seguinte tríptico3 :

Lógica lsagoge; Praedicamenta; Perihermenias; Primi priorum ( 1 , 1 -7);


Posteriorum ( 1 , 1 2-21 com a 'expositio' de Offredus Apollinaris, c.
1 49 1 ) ; Topicis ( 1 , 2 , 6); Elenchis (as falácias)

Física Physica (os 8, mas 'leviter' o 6º, o i nfinito no 3, o vácuo no 4 e a


doxografia do 1 ); de Coei o ( 1 , 2, e 4 'non multum exacte');
Metheororum ( 1 , 2); de Generatione; de Anima (2 e 3 c/ proémio do
1 ) ; as Quaestiones super libros Physicorum de João de Jandum e o
seu de coelo; as Quaestiones de Marsilio de lnghen sobre de Gen.;
as de Javello sobre de An.

Metafísica Metaphysicorum (proémio do 1 , 5, 7, 8, 9, 1 0, 1 2) , as Questiones in


libros Metaphysicae de Soncinas

Também Bento Pereira (t1 6 1 0) defende uma tríplice divisão, estudando respec­
tivamente4 :

( 1 ) ln Gubernatio Colegii Romani ( 1 566) lia-se (MP II 1 79): «Mathematicus docet hoc ordine:
Euclydis sex libros, arithmeticam, spheram, cosmographiam, astrologiam, theoricas planetarum,
Alfonsi tabulas, etc, perspectivam de horologiis» Mais avançado fora o programa de Baltasar de
Torres (+ 1 56 1 ) para o Colégio Romano, nos anos 1 5 57-60 (vd. MP II 433-435), mas mesmo
este será superado pelo de Cristóvão Clávio (+ 1 6 1 2), nos anos 1 58 1 - 1 594 (vd. MP VII 1 09-
- 1 22); cf. FELDHA Y, R., «The Cultural Field of Jesuit Science» in O' MALLEY, J. W, The
Jesuits . . 1 07- 1 30. Vd. ainda Os Jesuítas e a Ciência (Sécs. XVI-XVIII). Assinalando o 4º Cente­
.

nário de Giovanni Battista Riccioli, SJ ( 1 598- 1 671 ), Braga 1 998 (= Revista Portuguesa de Filo­
sofia LIV). Como nota, refira-se apenas que Clávio seguia a álgebra de Pedro Nunes e chegou a
corresponder-se com Francisco Sanchez (vd. , respectivamente, KNOBLOCH, E. «L' oeuvre de
Clavius et ses sources scientifiques» e KESSLER, E., «Clavius entre Proclus et Descartes» in
GIARD, L. (ed.), Les jésuites . . 274 e 304).
.

<2J Cf. BALDINI, U., «The teaching . . . » 3 1 2, n. 26.


<3J MP II 436-43 8.
<4J MP II 457-459.
52 Introdução Geral

Logica 'tutti gli libri': Priori (a partir de 1 , 7); Posteriori ( 1 , 1 2-20) ; Topica
(excepto 1 , 2 e 6); 'nelli elenchi potrà summariamente dech iara re
quello che Aristotele prol issamente tratta, senza fermarsi troppo in
dechiarare il testo'; não abordar a questão dos universais , tocar
nos predicamentos sem as questões metafísicas conexas, deixar
as questões textuais ao critério do mestre e abordar as dos
Posteriorum com base na obra de Solo.

Physica 'Tutti gl'otto libri et Ire de coelo, dechiarando il terzo libro


summariamente. Doi de generatione, tre de metheora, cioé primo,
secondo et quarto; tre de anima, dechiarando summariamente le
opinioni degli antich i che si trattano nel primo libro' (como Toledo,
recomenda as questões de Javelo, Jandun e Marsílio)

Metaphysica 'Cominciar dai quarto libro , perché quello che tratta nelli
precedenti, é di poca util ità. Et se pur ci é qualche cosa utile, parte
si potrà toccare nelli prolegomeni, parte si potrà trattare i n altri
luoghi. Cominciando adunque dei quarto, si leggeranno quinto,
sesto, settimo, ottavo, nono, decimo et duodecimo'

O mesmo Bento Pereira, agora em 1564, recomenda aos professores o estudo de


Temístio e de Vicomercato em alternativa à obscuridade dos comentadores gregos !
É evidente que o primeiro se conta entre aqueles, mas em 1 534 haviam saído do
prelo de Veneza os seus comentários a Aristóteles. Já o segundo ficou conhecido
pela sua obra de tradução de Aristóteles, cuidadosa e acima de tudo aperfeiçoadora
do trabalho congénere de Argirópulo. Depois, Pereira insiste na utilidade em estudar
Averróis, «Si per la sua dottrina, come per la fama che ha in Italia», bem como os
seus seguidores João de Jandun (t 1 328), Walter Burleigh (t 1 343 ), Paulo Veneto
(t l 429), Marco António Zimara (t 1 532) e Agostinho Nifo (t 1 546) . Enfim, insis­
tindo no dever de afastar qualquer sectarismo, mormente em relação aos latinos que
discordam dos antigos ( «nondimeno non deve esser sectario, massime di authori
latini, che discordano dalli antichi» ), para Pereira, a lista dos principais comentado­
res parece poder estabelecer-se como se segue: Alexandre, Simplício e Temístio
entre os gregos ; Averróis entre os árabes ; Alberto Magno e Tomás de Aquino entre
os latinos. O caso de Pereira é bastante significativo na história do averroísmo,
estando quiçá na origem de um notável documento romano (com redacção de Pedro
Canísio em 1 567, a que voltará em 1 572), que visa uma alegada adicção àquela
filosofia («A verroycae. . . philosophiae sunt vehementer addicti» ), vituperando e
condenando, por isso, o joio da «Averroyca philosophia», certamente alarmado com
a ousadia de alguns confrades considerarem divino o filósofo muçulmano, « . . . divi­
num Averroem nominare quidam e nostris audent. .. » ? Quem aderia a um tal joio,
pode ler-se ainda, sobrepunha a razão à autoridade, antepunha a sua opinião pessoal
ao sentir comum da escola, mostrando, assim, desprezar a teologia escolástica.
Como se percebe, esta crítica não evocava apenas a metáfora da ancilaridade, mas
configurava também um paradigma directivo do ensino da filosofia. Não se pense

O l MP II 665-666.

<2l Cf. MP III 4 1 4-4 1 6.


Introdução Geral 53

que só Averróis era autor proscrito. Outros autores proibidos, destafeita pelo Geral
Mercuriano em 1 575, além dos já mencionados, são os místicos João Tauler, Ruus­
broek, o Rosetum do belga João Mombaer (t1 50 1 ), Henrique Herp, a A rte de servir
a Diós ( 1 5 2 1 ) do franciscano Afonso de Madrid, Raimundo Llull, Henrique Suso,
Gertrude e Matilde, entre outros !
Mas voltemos à situação lusitana de que nos afastámos por momentos. Escre­
vendo para Roma em 1 573, o provincial Jorge Serrão lamenta que na Universidade
de Coimbra se leia pouco Tomás (de cinquo liciones de scholástico que ay en esta
universidad, solo una es de Santo Thomás) e que o lente de prima, que deveria ter a
obrigação de o fazer, prefere ensinar Escoto (no lee a Sancto Thomas, sino a Scoto)?
Em 1 574, o provincial Miguel Torres queixar-se-á do ritmo lento do ensino da teo­
logia em Évora e em Coimbra, onde o que se devia ler em três anos e meio (as 3
partes da Suma) demora mais de cinco ou seis anos; de que, por fim, devido à meto­
dologia dos exames, os alunos saem «buenos dialécticos, pero muy flacos en la
philosophia que es lo principal» ? Desta maneira se, por um lado, se critica a
Universidade por ensinar Escoto, por outro, lamenta-se a situação do ensino da filo­
sofia (natural e metafísica) nos colégios Jesuítas . Em suma, uma rápida inspecção
das fontes permite-nos asseverar que se tratava de um período de germinação, e por
isso bastante distante das estafadas visões sobre o monolitismo de toda e qualquer
filosofia que se registe no curso. A prosaica realidade era bem diferente e até muitas
vezes, ao que parece, nem sempre avalizadora de uma adequada cartografia filosó­
fica ! Acresce que a chã realidade nem sempre sintonizaria com os ideais e os pro­
gramas superiores.
Igualmente, a fim de compreendermos as indicações autorais valeria a pena
abrirmos um parêntesis na exposição para apresentarmos as matérias do curso.
Podemos fazê-lo de uma maneira bastante objectiva, porém, lacunar, a partir dos
catálogos de Coimbra durante os anos lectivos 1 5 6 1 -65 , reproduzidos nos Monu­
menta Paedagogica�

( 1 ) MP IV 577; vd. «Livro das obediências dos Gerais» O Instituto 43 ( 1 896) 67 1 -72 com a ed. da
carta em questão; para o caso da relação, v.g. , de F. Suárez com algum discurso místico, vd.
RODRIGUES, M. A., «A Espiritualidade na obra filosófico-teológica de Francisco Suárez», in
AA. VV., A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos sécs. XVI e XVII. Espiritualidade e
Cultura. Actas do Colóquio Internacional - Maio 2004, Porto 2005, 4 1 7-3 1 .
(Z) M P IV 49 1 . Entretanto, uma simples consulta a STEGM ÜLLER, F . (Filosofia. . . passim) mostra
bem a importância da escola de Salamanca na «leitura» de Teologia, mormente de São Tomás,
em Coimbra; a este propósito, vd. também ORREGO S ÁNCHEZ, S . , «Nuevos datos y rectifica­
ciones sobre fuentes manuscritas de la Escuela de Salamanca» Bulletin de Philosophie Médié­
vale 48 (2006) 248-59.
<3l MP IV 5 39-54 1 .
<4l MP III 5 80-594. À excepção da Isagoge (referida como 'Introductio' ou 'Predicamentos'),
reproduzimos os títulos exactamente com a grafia com que aparecem nos Catálogos. Deixámos
para o Apêndice a lista coetânea de Évora, que menciona também os seguintes docentes: 1 º
Curso, Pedro Luís ( + 1 602): Isagoge; 3 º Curso, Melchior Afonso: D e coe/o; 4º Curso, Pedro
Martins (ingressou na SI c. 1 552): De anima.
54 Introdução Geral

1 561 1 562

Setembro Janeiro 1 de Maio Agosto

1 ° Curso:
Praedicamentos
Inácio Tolosa
g
e 2• curso:
Q)
u
Physicos
o Nicolau Gracida
o
Ui
o 3° Curso:
� De coe/o
:::> Pedro Gómez
o
4° Curso:
Manuel Rodrigues

1 562 1 563

1 de
Janeiro Maio Agosto
Setembro

1 2 Curso:
Jsagoge lsagoge Praedicamenta
Luís Àlvares
g
e 2° Curso:
Q)
u
Perihermenias Posteriores J Physicorum
o I nácio Tolosa
o
Ui
o 3° C urso:
� Phisicorum Phisicos VIII Metaphisyca
:::> N icolau Gracida
o
4° Curso:
Metaphisica De generatione
Pedro Gómez

1 563 1 564

Setembro Janeiro 1 de Maio Agosto


"

1 ° Curso: Perihermenias J
Praedicamenta Perihermenias
Luís de Molina Topicorum

g
e 2° Curso: Ethicorum /, li

g
o
Luís Álvares Physicorum Ili
Physicorum J Ethicorum

Ui
o 3° Curso:
� Metaphysices De coe/o Metaphysica
:::> I nácio Tolosa
o
4° Curso:
N icolau Gracida
Introdução Geral 55

1 564 1 565

Setembro Janeiro Maio Agosto

12 Curso:
Jerónimo lsagoge

�2 Fernandes
e:
� 22 Curso:
o Posteriorum I
a Luís de Molina
(;;
o
� 32 Curso:
::::> Physicorum VIII
(.) Luís Álvares

42 Curso:
Inácio Tolosa m De anima l

Podem retirar-se deste catálogo algumas conclusões, nomeadamente se tivermos


também presente o de Évora (reproduzido no Apêndice 5) no mesmo período.
Ambos estão longe de confirmarem que na prática se seguiam as instruções relativas
à ordem da leccionação das matérias. Parece que os cursos eram dados pragmatica­
mente, mais consoante a disposição ou as possibilidades docentes. Veja-se a excep­
ção do ensino da Esfera em Évora, a falta de sequência nalguns cursos, a combina­
ção de matérias por um mesmo mestre, sobretudo o desrespeito quanto à ordem
curricular pré-definida. Os casos em que a Metaphysica aparece no terceiro curso
talvez se possam explicar pelo costume lusitano, aliás, bem sistemático, mas depois
reduzido, de os livros 4º e 5º serem estudados para o bacharelato, dada a relação
desses livros com os temas da lógica (em Fevereiro) ! Repetimos: a corriqueira reali­
dade estava longe de poder encarnar um plano ideal gizado de fora; há que ter tam­
bém em conta as condições reais ou materiais de cada studium.

O ) MP VI 273 (textos de 1 5 86): « . . . in hac provincia ante baccalaureatus examen 4m et 5m


Metaphysicae librum explicare; quod eorum intelligentia ad multas logicae quaestiones, quae in
eo examine attinguntur, dissolvendas necessaria videatur.» ; ibid. 27 1 : «lnchoatur nunc in
conimbricensi et eborensi collegio baccalaureatus examen ineunte anni tertii februario; licen­
ciaturae vero initio aprilis anni quarti. ln posterum baccalaureatus examen ad extremos anni
secundi menses, licenciaturae vero ad ultimos tertii retrahendum erit . . . »
56 Introdução Geral

Quando se chega ao estabelecimento da Ratio, após algumas (poucas) alterações,


o curso ficará assim definido:

1 º ano: Lógica

2º ano: Física (6 meses);


O Céu e o Mundo;
A Geração e a Corrupção 1

3º ano: A Geração e a Corrupção l i ;


A Alma ( 5 meses);
Metafísica (5 ou 4 meses).

Contraste-se este plano com o que, v.g. , Tolosa ensinara de facto ( 1 5 6 1 -65) :

1 2 ano: ? ; ? ; Praedicamentos.

22 ano: Perihermeneias;
Posteriorum 1 ;
Physica.

32 ano: Metaphysica;
De Goelo;
Metaphysica.

4º ano: De Anima 1 .

De notar que, da Lógica, a Ratio prescreve as Categorias (com uma parte a tratar
na Metafísica), A Interpretação II, os Primeiros Analíticos (mas I 8 e 9 em resumo),
os Tópicos e os Elencos Sofísticos (sem texto). Dos oito livros da Física cujo estudo
se prescreve, tratam-se sob forma resumida os livros I (a sua secção doxográfica), o
VI e o VII e, relativamente ao VIII, omitem-se as questões concernentes ao número
das inteligências; a potência infinita e a liberdade do Primeiro Motor são deixadas
para o âmbito da Metafísica, dado tratar-se de matérias que convêm mais aos teólo­
gos no quadro do estudo do concurso de Deus com as causas segundas. Também dão
forma abreviada aos livros II, III e IV de O Céu e o Mundo, embora, nos casos em
que tal seja possível, o livro possa ser objecto de ensino por parte do matemático,
juntamente com algumas questões dos Elementos. Admitem ainda a inclusão dos
Meteorológicos, se houver tempo disponível. Se estes últimos não forem estudados
de maneira ordinária nos segundo ou terceiro anos, dos títulos que se seguem
subestimam, mais uma vez, as secções doxográficas de A Geração e a Corrupção e
A Alma. Mais ainda. Deste último não recomendam grandes digressões sobre maté­
ria sensorial, tomada sob o prisma da anatomia, temática mais apropriada a médicos.
No caso de haver tempo, acrescentam, podem agregar-se os Os Pequenos Naturais
Introdução Geral 57

e, finalmente, em relação à Metafisica, e como escrevemos, recomendam sobretudo


o Proémio e os livros V, VII e XII, apelando, no entanto, a que nos restantes se
abordem também assuntos tipicamente metafísicos, deixando porém por tocar os da
teologia revelada! O leitor terá talvez estranhado pelo menos a omissão dos Segun­
dos Analíticos, título epistemológico deveras importante, mas na versão de 1 5 9 1
esclarece-se que esse tema fica melhor nos prolegómenos d a Física - e m concreto,
nas secções sobre divisão das ciências, abstracções, o especulativo e o prático, a
subalternação, os procedimentos da física e da matemática - e finalmente no tratado
da definição do livro II de A Alma. Este é um ponto que nos faz pensar, porque,
naturalmente, Sebastião do Couto não obedece a esta determinação, deixando-nos
antes um longo e interessante tratado sobre matéria epistemológica. Mas, se ainda
voltássemos ao «livro de sumários» de Inácio Tolosa averiguaríamos toda a dife­
rença que separa a Ratio da realidade docente, e esta das matérias que o Curso
impresso regista.
Sendo certo que foram precisos quase cinquenta anos para se chegar à unificação
teórica do ensino modelado pela Ratio, não é menos verdade, como se verifica por
todos os documentos acima transcritos ou parafraseados, que esse ideal esteve sem­
pre presente. A diferença de propostas testemunha-o sem qualquer dúvida. A totali­
dade dos autores está de acordo em que se visa a verdade eterna e imutável sob cujo
regime se pode e deve unificar toda e qualquer doutrina. Vale a pena, por isso,
acompanharmos a cartografia orientadora dos programas de ensino, agora sob um
ponto de vista ainda mais teórico. Uma primeira nota saliente diz respeito à regula­
ção e dimensão hierárquica que também atinge o saber, concebido assim à maneira
descendente: da Teologia às Humanidades, passando pela Filosofia. No campo da
regulamentação, nada é mais claro que na versão de 1 599 da Ratio sobre a rubrica
'finis' das Regras para o professor de filosofia, a glosa ao lema 'ad maiorem Dei
gloriam' . Esta é claramente uma situação em que a epistema disciplinar de Coimbra
é escolástica, na acepção que Kant dá ao termo, i. e. , sistemática, «porque as artes ou
ciências naturais dispõem o espírito para a teologia . . . » � Do ponto de vista da filoso­
fia e também, por isso, de quem a ensina, está bem definida a tarefa final, o conhe­
cimento do Criador, sem que isso seja equivalente a uma identificação da filosofia
com a teologia, mas à formulação da autonomia das duas num quadro de relação
hierárquica. Seja como for, e mais uma vez, certas práticas pedagógicas, quer em
Coimbra, quer em Évora, que pareciam querer examinar em lógica questões de teo­
logia, v.g. , parecem mostrar que a realidade poderia ser diferente. Uma passagem do
comentário à Lógica dará voz à necessidade de as corrigirem:
«Se todas as artes e ciências não reivindicassem uma matéria própria, adviria
sobre elas necessariamente a confusão. Neste assunto, são motivo de séria repulsa
alguns doutores, professores de artes, que, não dando importância à distinção das

O l Cf. MP V 1 05- 1 06 (versão de 1 586); 279-280 (versão de 1 59 1 ); 398-399 (versão de 1 599).

<2l MP V 397: «Quoniam artes vel scientiae naturales ingenia disponunt ad theologiam, et ad
perfectam cognitionem et usum illius inserviunt, et per se ipsos ad eundem finem iuvant, eas,
qua diligentia par est, praeceptor, in omnibus sincere honorem et gloriam Dei quarendo, ita
tractet, ut auditores suos, ac potissimum nostros, ad theologiam praeparet, maximeque ad cog­
nitionem excitet sui Creatoris»; cf. KANT; 1 . , K. rV. B 864, 865 ; A 836, 837.
58 Introdução Geral

ciências, misturam tudo e, indo além do que é permitido e justo, irrompem por
domínios alheios. Os retóricos ocupam indevidamente o lugar dos dialécticos e os
dialécticos o lugar dos físicos e até dos teólogos. E é assim que se perturbam a
ordem nobilíssima das artes e o seu ensino.» 1

Naturalmente, a Ratio prescrevia a impossibilidade de tratar de Deus, quer na


física, quer na metafísica. Recomendava-se ainda, naquela regulamentação, que se
adiassem as questões acerca de Deus e das inteligências, porquanto diriam antes
respeito às verdades da fé. Tal recomendação enfrenta a ameaça da perturbação
epistemológica a que adiante nos referiremos, ao que parece propulsada por uma
tese de António Bemardi, mas ela não traduz só uma determinada concepção do
ensino da filosofia. À luz do princípio segundo o qual a filosofia deve ser ensinada
tendo como finalidade a preparação teológica e o conhecimento do Criador (MP V
397), essa recomendação intersecta-se com uma outra questão muito particular, mais
teórica e, por isso, decisiva no que toca à concepção do que é ou deve ser a filosofia.
Conforme apontado por A. Martins, no caso da 'metafísica inacabada' de Fonseca,
autor de referência para os redactores do Curso, a sistematicidade do seu projecto
ontológico era já suficientemente sensível à difícil ( des-)articulação ontoteológica da
universalidade e da transcendentalidade inerentes à caracterização da filosofia pri­
meira. A posição de Suárez a esse respeito é também discutida� pelo que vale a pena
um brevíssimo excurso histórico contextual atinente ao objecto (subiectum) da meta­
física, que aqui simplificaremos, talvez em demasia�
Essa velha interrogação visava, v. g. , o lugar de Deus. Este podia ser a causa do
objecto da metafísica (Alberto Magno ou Tomás de Aquino); um dos seus múltiplos
objectos (Rogério Bacon, Egídio Romano) ; finalmente, e será a perspectiva de rup­
tura, Deus poderia ser visto apenas como uma parte do objecto da metafísica. Entre
outros autores, inscrever-se-á aqui João Duns Escoto, mas a ideia provinha já de
Sigério de Brabante, de Henrique de Gand, de Agostinho Triunfo de Ancona ou de
Pedro de Trabes. Enquanto a posição de Tomás de Aquino, ao mesmo tempo da
defesa da analogia, a que ainda teremos de voltar, promovia três níveis de indagação
- a teologia (investigação sobre as causas mais elevadas), a transfísica (sobre os
universais mais universais), a filosofia primeira (sobre as realidades mais separadas)
-, a posição de Duns Escoto, defendendo a unívocidade, determinará «a genealogia
da metafísica moderna», na qual o jesuíta Suárez se incluirá de um modo assaz
peculiar. É que declarando-se embora a favor da analogia, Escoto admite uma
estrutura fundamental em que o ente é captado numa unidade conceptual de fundo�

O l ln Log. q. 5, a. l , p.36-37; Trad. in COXITO, A., Estudos . . . 1 65 .

(l) Cf. FORLIVESI, M., «lmpure Ontology. The Nature o f Metaphysics and Its Object i n Francisco
Suárez' s Texts» Quaestio. Annuario di storia della metafisica 5 (2005) 559-86, que discute as
mais recentes interpretações.
<3l ZIMMERMANN, A., Ontologie oder Metaphysik ? Die Diskussion den Gegenstand der Meta­
2
physik im 13. und 14. Jahrhundert. Texte und Untersuchungen, Leuven 1 998, passim; BOUL­
NOIS, O., Être et représentation. Une généalogie de la métaphysique moderne à l 'époque de
Duns Scot (Xllle - X!Ve siecle), Paris 1 999.
<4l Cf. BOULNOIS, O., Être et représentation . . . 486, 480.
Introdução Geral 59

Tal admissão tem sido vista como o prolongamento de um motivo capital do esco­
tismo, se falarmos nos termos gadamerianos da produtividade histórica. Referimo­
-nos ao facto de, ao retirar-se Deus de objecto puro e simples da metafísica, o ente -
enquanto conceito objectivo unívoco que toma o seu lugar -, subsume-O, ao lado da
criatura, ambos conteúdos pensados. Dito de uma maneira simples: para que a meta­
física seja uma ciência - lembremos que este projecto só será abandonado pelo Kant
da Crítica da Razão Pura -, é preciso que ela inclua o seu obiectum principal, Deus,
no seu subiectum, o ente. Ora, semelhante subsunção colocará a teologia ao lado da
psicologia e da cosmologia, todas elas fundadas por uma metafísica «purificada da
facticidade e instalada no reino do possível» I Chegar-se-á, dessa maneira, a uma
concepção, moderna, do objecto do pensamento como puro representável, em que o
próprio ser se inclui e, por esse lance, também à constituição da teologia natural,
posto que Deus passa a estar incluído no conceito de ser, embora deste se distinga
por uma diferença adicional?
No caso de Sebastião do Couto, em particular, o problema que procurámos, na
medida do possível, simplificar está presente, v.g. , na divisão da «theologia»
enquanto «metaphysica» ou ciência do ente enquanto ente e enquanto teologia pro­
priamente dita, ciência da explicação racional do revelado � A referida intersecção
vê-se desde logo no próprio nó aporético interior à decisão analogia/univocidade da
seguinte maneira: se Deus é uma parte do objecto da metafísica - como pretende a
doutrina da univocidade -, então o estudo do ser não representa o último estádio da
filosofia, mas um método de abstracção que habilita os alunos ao tratamento de
temas ainda mais abstractos da teologia natural1 Ora, à luz destas mesmas disposi­
ções, isto parece implicar uma transferência epistémica do tema da ancilaridade. De
facto esta deixa de ser, como na Idade Média, uma perspectiva sobre a articulação
filosofia/teologia e passa a ser uma determinação autoritária sobre a função directora
da teologia revelada no conjunto do saber?
Ao estabelecer no contexto da dita perturbação epistemológica que a metafísica
se orientasse para a teologia, o princípio aristotélico da 'metabasis eis alio genos' -
interpretado no sentido de que não se podia ascender da metafísica à teologia, mas
descer desta para aquela (MP V 1 06, § 1 8) -, significa que o ensino filosófico é
directivo, hierarquicamente descendente, e, por princípio, não aberto à inovação, não
obstante um conjunto de teses que os nossos Jesuítas deixam em aberto. É neste

( I ) PEREIRA, M. B . , «Metafísica e modernidade nos caminhos do milénio» Revista Filosófica de


Coimbra 8 ( 1 999) 27. Segundo este autor, a estratégia segue «a metódica transcensional analí­
tico-resolutiva» já antecipada pelo ltinerarium de Boaventura, mas, noutro lugar, pudemos
acrescentar-lhe uma genealogia histórico-textualmente mais rigorosa (vd. o nosso A Síntese
Frágil. Uma introdução à .filosofia (da Patrística aos Conimbricenses), Lisboa 2002, 2 1 0-27).
<2 l Cf. BOULNOIS, O., Être et représentation ... 479-93.
<3l Cf. COXITO, A., Estudos ... 1 59, que remete para CD p. 1 5 .
<4l Cf. BLUM, P.-R., «L' enseignement...» 1 02. A teoria d a subalternização das ciências relativa­
mente à metafísica era tratada no lº ano com base no fim dos An. Post.; cf. MP V 280 (in 1 5 9 1 ) .
(S) Cf. BLUM, P.-R., «L' enseignement. . . » 98.
60 Introdução Geral

sentido que se devem interpretar, v. g. , quer a segunda regra 'de opinionem delectu' !
quer a vigilância sobre o procedimento da amplificação2 ou da questionação, o que
parece colidir directamente com a relevante metodologia das 'quaestiones ' . O prin­
cípio da regulamentação, ao qual tão bem se adapta «O sentir comum da escola»,
revela uma ideia clara sobre a natureza do saber: só uma verdade eterna e imutável
pode unificar qualquer doutrina�
Como bem sabemos, era inquestionavelmente clara a obrigatoriedade de se seguir
Aristóteles, a autoridade filosófica por excelência. Neste ponto, encontrámos mesmo
quem não visse com bons olhos a profusão de «questões» nas aulas em detrimento
do ensino do texto (explanatio) . Certamente que esta cautela estaria nos antípodas
daqueles magnos autores que listavam os vários «comentadores» susceptíveis de
acompanhar o ensino. Reparemos que a explanatio, ora integraria a lição propria­
mente dita, sendo dada às quaestiones o papel de transição entre as lições� ora -
como parece mais plausível - o exercício lectivo compor-se-ia idealmente segundo
as três fases seguintes5 : (i) exacta versão e reconstitução filológico-racional; (ii) sua
interpretação por uma hermenêutica do sentido, buscada dentro do próprio autor da
fonte (Aristóteles), podendo principiar-se o levantamento das questões a discutir;
(iii) discussão inteiramente autónoma e progressiva dessas questões, cuja determina­
ção é feita na via da doutrina e na via da disciplina. Na verdade, já na versão da
Ratio de 1 5 86 se enumeravam seis patamares no estudo do texto de Aristóteles,
onde, no âmbito da explanatio de uma leitura contextual se deveria passar progressi­
vamente ao conflito das interpretações (dubiola sive de re ipsa sive de mente Aris­
totelis6) antes de se entrar no duplo âmbito da quaestio, primeiro em tomo das dúvi­
das suscitadas pela letra e pelo tema, depois de forma mais livre e autónoma? Aquela
primeira versão prescrevia que não se afastassem de Aristóteles, salvo - e a restrição
apesar de óbvia é importante - nas matérias que de alguma maneira derrogassem a
fé (MP V 1 07, § 20) . Recordo que em 1 586 se refere a explanatio como questão do

(l) Sobre a impossibilidade de introduzir inovações, vd. 'regula secunda de opinionem delectu' de
1 59 1 (MP V 3 1 6) : «nemo in rebus alicuius momenti novas introducat quaestiones seu dubitatio­
nes, iis, qui praesunt, inconsultis; nec aliquid contra philosophorum aut theologorum axiomata,
communemve scholarum sensum defendat; nec opinionem ullam, quae idonei nullius authoris
sit; sequantur potius universi probatos maxime doctores, et quae, prout temporum usus tulerit,
recepta potissimum fuerint in catholicis academiis.»
<2l «Caveant philosophi, ne amplificent, quae percurrenda sunt, vel res difficiliores ac praecipuas
perstringant, vel quaestiones alio transponant, quam oportet» (MP V l 05, § 1 8) .
<3l BLUM, P.-R., «L' enseignement...» 96.
<4l Cf. BALDINI, U. «The development of Jesuit 'physics' in Italy, 1 550- 1 700: a structural ap­
proach» in BLACKWELL, C. & KUSIKA WA, S. (ed.), Philosophy in the Sixteenth and Sev­
enteenth Centuries. Conversations with Aristotle, Aldershot 1 999, p. 252-4 sobre a estrutura dos
cursos.
<5l Cf. OLIVEIRA, J. Bacelar e, «Filosofia Escolástica e Curso Conimbricense. De uma teoria de
Magistério à sua sistematização Metodológica» Revista Portuguesa de Filosofia 16 ( 1 960) 1 38,
que adaptamos ligeiramente.
<6l MP V 28 1 .
< 7l Cf. MP V : De studio philosophiae p . 99; veja-se ainda e sobretudo ibid. 280-283.
Introdução Geral 61

primeiro tipo, i. e. , versando sobre matéria aristotélica, reservando-se a quaestio


propriamente dita para temáticas que Aristóteles não tratou e que eram originadas
pela oportunidade ! Quero evidentemente dizer: de um Aristóteles lido sob um
prisma não-aristotélico, isto é, sobre matéria determinada sobretudo pelo «comenta­
dor» a adoptar e que ia dividindo os mestres Jesuítas no início da sua actividade.
Resta considerar esta orientação hermenêutica (MP V 1 00 § 9) no exame do que a
Ratio chama «quaestiones» do segundo tipo, i. e. , a secção das Questões propria­
mente dita. A fixação na autoridade do ponto de vista programático não ignora os
vários rostos de Aristóteles, sendo claro que o semblante configurado por Tomás de
Aquino parece sobrepor-se aos demais, pelo menos em regra geral. Dir-se-ia que, tal
como Averróis fora o Comentador para Aquino e os medievais, Tomás de Aquino
parece sê-lo agora explicitamente para os Jesuítas� Isto revela de imediato que a
posição da autoridade como princípio unificador de doutrina não invalida, mas
obriga, à definição de programas que possibilitem aquela posição de princípio. O
curso publicado em Coimbra e em Lisboa é indiscutivelmente apenas uma destas
possíveis propostas, que ao mesmo tempo responde à Ratio e para ela contribui,
sendo no plano de uma conjugação das vias da doutrina e da disciplina que se deve
aferir o valor ou a importância de uma eventual sistematização de uma filosofia do
magistério que o Curso encarne? À característica de uma presumível fidelidade a
Aristóteles agrega-se a da sistematicidade, quer do Comentário em causa, quer do
Comentário como projecto integrado e global : é a situação em que o fio condutor
(filum doctrinae) se enquadra, por exemplo, nas teses anteriormente desenvolvidas
na Physica1 Que todos os Comentários foram concebidos de maneira orgânica, ape­
sar das dificuldades, parece indubitável, e o seu objecto foi considerado «totali­
zante», tendo em vista que se debruçariam sobre a metafísica, a física, a cosmologia,
as ciências naturais, a ética, a lógica e a questão da alma? A reivindicação do sis­
tema, o alcance do filum doctrinae, tem passado despercebida a alguns intérpretes.
Tal reivindicação revela-nos que Aristóteles é, no fim de contas, pretexto para uma

Ol MP V 99: «incidenter protulit, occasione nascuntur» ; ibid. 28 1 .


(2) Cf. GIACON, C., «0 neo-aristotelismo de Pedro da Fonseca» Revista Portuguesa de Filosofia 9
( 1 953) 408.
(J) OLIVEIRA, J. B. e, «Filosofia Escolástica . . » 1 30. SOARES, N. de N. C. («Humanismo e
.

Universidade» 83) já havia sublinhado o papel de Pedro Perpinhão, que ensinou em Coimbra
entre 1 555 e 1 56 1 , na base da composição da Ratio.
<4> ln III De Anima III, e. 5, q. 4, a. 2, p. 345 : «lta patet qua ratione sint utriusque partis argumenta.
Quia tamen, ut superius monuimus, decretum nobis est eam partem, quae negat dari species re­
rum singularium, ut Aristotelicae doctrinae magis consentaneam tueri, quam iccirco etiam in
primo Physicae Auscultationis libro defendimus, ad eam in nostris commentariis doctrinae filum
acommodabimus.»
<5> COUJOU, J.-P., «lntroduction» in Id. , Suárez et la refondation de la Métaphysique comme
ontologie, Louvain-la-Neuve Louvain Paris 1 999, *4-*5, nota 9.
62 Introdução Geral

sistematização teórica a que Suárez deu continuidade e consistência � Por último, o


facto de os Comentários se apresentarem sobretudo sob a forma de questões mani­
festa aquilo a que Alison Simmons chamou, de uma forma feliz, a reconstrução
racional (rational reconstruction) ; entenda-se: a reconstrução do pensamento de
Aristóteles em base sólidas com vista à discussão de lugares-comuns da sua dou­
trina? Observemos imediatamente que uma reconstrução pode ser uma refundação
ou uma reinstauração, mas este reparo ainda não mereceu estudo adequado. Por fim,
como não conhecemos o volume que os Jesuítas de Coimbra poderiam ter escrito
sobre a metafísica - e lembremos que lhe competiria a magna tarefa de fazer a pas­
sagem da filosofia à teologia - acerca da coordenação dos saberes filosóficos no
plano da unidade do saber, tal como a Ratio a preconizava, só nos resta consultar as
declarações e os textos didascálicos do Curso destinados ao grave e sensível pro­
blema da classificação das ciências.
Ao analisar esta temática, A. Coxito viu nos nossos autores uma originalidade
própria, a de «terem integrado num sistema unitário as classificações tradicionais
numa demonstração inequívoca do seu sentido de ordem e de método. Com efeito,
as artes ou as ciências obedecem na sua distribuição a três razões fundamentais,
consoante se considere o seu objecto ( «res» ), o seu fim («finis») e a sua dignidade
ou categoria ontológica ( «dignitas», «gradus» ).» 3 Um aspecto interessante a referir
aqui prender-se-ia com o lugar destas actividades classificatórias no quadro da ideia
de sistema que, na linha dos pares metafísicos uno/múltiplo e todo/partes, abre para
a noção kantiana de arquitectónica na base da fundação da ciência em função da
afinidade das partes. Conhecemos, a este propósito, a significativa problemática
gnostológica, precisamente enquanto «ponto alto da tradição aristotélica»� e com a
qual, portanto, poderíamos confrontar, a seu modo, os presentes contributos.
Antes de passarmos aos únicos dois textos didascálicos que aqui nos interessarão,
mais atinentes a estes domínios, convém lembrar a estrutura da chamada escolástica
neoplatónica dos séculos V e VI, que também abordava a filosofia de Aristóteles
mediante explicações preliminares de carácter sistemático? Uma diferença crucial
está, naturalmente, no facto de nos séculos V e VI Aristóteles ser considerado um

0) KESSLER, E., «The Intellective Sou!» 5 1 4, que deveria ser corrigido à luz de BENIGNO
ZILLI, J., lntroducción a la Psicologia de los Conimbricenses y su influjo en el sistema carte­
siano, Xalapa 1 960; DES CHENE, D., Life 's Form . . . 4 e SIMMONS, A., «Jesuit Aristotelian
Education: The 'De Anima' Commentaries» in O' MALLEY, J. W. et ai. (ed.), The Jesuits.
Cultures, Sciences, and the Arts 1540- 1 773, Toronto Buffalo London 1 999, 526.
C ZJ SIMMONS, A., «Jesuit...» 526.
C 3l COXITO, A., Estudos . . . 1 56; ID., «Ü método em Pedro da Fonseca e no Curso Conimbricense»
in FERRER, D. (coord.), Método e Métodos do Pensamento Filosófico, Coimbra 2007, 7 1 -78;
cf. ln Log. Proem. q.2, a. I , p. 1 3 : «Enim vero trifariam artes, sive scientiae distingui possunt,
videlicet ratione rerum, in quibus versantur: ratione finis, quem spectant: ratione gradus, seu
dignitatis, quam inter se obtinent. »
C4l Cf. GIL, F., Mimésis e Negação, Lisboa 1 984, 40 1 .
C 5l Cf. LIBERA, A. de, «Faculté des arts ou Faculté de philosophie? Sur l' idée de philosophie et
l' idéal philosophique au XIIIe siecle» in WEIJERS, O. & HOLTZ, L. (ed.), L 'enseignement des
disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford Xllle - XVe siecles), Turnhout 1 997, 434.
Introdução Geral 63

patamar para a verdadeira filosofia, a de Platão. Seja como for, esta diferença - mas
não nos esqueçamos que, v.g. , na leitura de facto de Simplício encontravam os nos­
sos autores essa mesma orientação - não nos pode impedir de ver que a ideia de um
conjunto filosófico-literário estruturado sistematicamente é muito antiga e nem
sequer escapa à própria epistemologia aristotélica. Recordemos que se iam beber aos
Segundos Analiticos (89b23) quatro perguntas metódicas preliminares : (i) se a filo­
sofia existe; (ii) o que ela é; (iii) como é; (iv) por que é - Amónio trata apenas (ii) e
(iii) - e a ocasião era aproveitada para apresentar definições da filosofia, mormente
de Pitágoras, de Platão e de Aristóteles. Sabe-se também que, após esta introdução
geral à filosofia, se seguia uma introdução particular (no caso à Jsagoge) dividida
nos pontos seguintes, todavia, nem todos acolhidos: ( 1 ) finalidade da obra; (2) utili­
dade do tratado; (3) autenticidade; (4) o seu lugar na ordem da leitura; (5) razão de
ser do título; (6) parte da filosofia à qual o tratado pertence; (7) divisão em capítu­
los; (8) forma do ensino do tratado.
Dito isto, estamos em condições de recapitular os textos programáticos dos dois
Proémios ! Na primeira introdução a todo o Curso, que se lê no início dos Comentá­
rios à Physica, e que mais tarde conheceu uma nova versão redigida por Sebastião
do Couto no volume da Logica, repete-se a concepção tradicional da filosofia como
etiologia: «Philosophia est cognitio rerum, ut sunt. Verba illa, ut sunt, idem ualent,
atque per suas causas, si eas habuerint» ? Antes, porém, o Comentário à Physica
citava a tríplice classificação (platónico-estóica) da filosofia: filosofia natural, moral
e dialéctica. A razão devia comprovar e examinar os quadros da primeira; prescrever
à vontade, em função do que é recto e virtuoso, no caso da segunda; e dar a si pró­
pria a terceira, pela disposição dos conceitos e dos pensamentos. A vantagem desta
classificação platónica estaria no facto de ela permitir a fusão entre o especulativo
(protagonizado por Sócrates) e o activo (representado por Pitágoras) . Seja como for,
uma vez que o domínio da física não pode ser confundido com a denominada física
ou ciência moderna intersectando-se, por isso, com a metafísica - no que é, como
sabemos após Heidegger, uma verdadeira marca aristotélica - e até depois com a
própria teologia, o lugar da metafísica ou filosofia primeira devia aparecer clara­
mente. Ela surge sob diferentes perspectivas.
O Proémio do volume da Lógica classifica as ciências, como se disse, debaixo da
tríplice perspectiva do objecto, do fim e da dimensão ontológica. Em cada uma des­
tas perspectivas, deparamo-nos com uma organização distinta. Uma vez que ela
recebeu a atenção de A. Coxito limitemo-nos a reproduzir em esquema as classifica­
ções possíveis:

O ) Cf. COXITO, A., Estudos . 1 55 - 1 9 3 .


. .

(Z) ln VIII Libras Physicorum . Prooemium p. 8 e ln Dialecticam . . . Prooemium 4,4, p. 3 1 ; cf. ln


..

VIII Libras Physicorum . . . , Prooemium p. 1 2.


64 Introdução Geral

Reais

Sermocinais Gramática

Retórica História, Poesia

Dialéctica

Lógica

Práticas Activas Lógica

Moral Ética, Economia,


Política

Factivas G ramática e Retórica

Pintura, Dança, etc.

Teóricas Física

Matemática Geometria

Mistas

Aritmética

Teologia Ontologia

Teologia prop. dita

Superiores Física

Moral

Teologia

Inferiores 7 Artes liberais +

7 artes servis 1

Invenção

Doutrina

Disciplina Metafísica

Física

Matemática

Lógica

Moral

O esquema exige uma breve explicação. Quanto ao seu objecto ( «res» ), a divisão
das ciências ou artes segue a tradicional distinção entre «reales» e «sermocinales»,
compreendendo estas últimas os saberes relativos à palavra exterior e interior (o
pensamento). A razão pela qual a História faz parte da Retórica fica a dever-se ao
facto de ela cuidar também da beleza do discurso e da estimulação dos sentimentos

( I ) /. e. : Gramática, Retórica, Dialéctica, Aritmética, Música, Geometria e Astronomia; e Agricul­


tura, Venatória, Arte militar, Náutica, Cirurgia, Tecelagem e Artes mecânicas.
Introdução Geral 65

do leitor. Talvez seja curioso olhar a esta luz toda a informação ou alusão 'historio­
gráfica', ou melhor, doxográfica, que aparece no curso. Também é tradicional a
divisão das ciências quanto ao seu fim, conglobando o prático (praxis) e o produtivo
(poiesis) da divisão aristotélica na dupla divisão das práticas, como em São Tomás.
«Face à tradição tomista, a única diferença está em que ( . . . ) não só a moral se inclui
entre as ciências activas (e, portanto, práticas), mas também a lógica. » 1 Num texto
anteriormente traduzido, Sebastião do Couto explica a razão pela qual a lógica pode
ser prática:
«Devemos notar que em qualquer arte prática que pressuponha um método e uma
via de aprendizagem a teoria (doctrina) é de algum modo distinta da sua aplicação
(usus) . A teoria é o modelo ou a norma pela qual uma arte prescreve o modo de
realização de uma obra, tendo, no entanto, uma existência independente desta. A
aplicação [da teoria] é a própria execução da obra; trata-se de uma operação que
pressupõe a norma de que falámos, pela qual aquela é dirigida e ordenada. ( . . . )
Aquele que está de posse do hábito dialéctico, que lhe permite construir um silo­
gismo em 'Barbara' , por exemplo, forma antes de mais o seguinte juízo: 'tal silo­
gismo deve constar de três [proposições] universais afirmativas dispostas de tal
modo' . Este acto pode existir sem a construção do silogismo. Depois, através de
um acto distinto forma o silogismo em conformidade com a norma mencionada.
O primeiro acto é a teoria ou a ciência actual, e o hábito que a causa chama-se
dialéctica teórica (docens) ; o segundo acto é a aplicação, designando-se por dia­
léctica aplicada (utens) o hábito que o possibilita.» 2

Ainda no capítulo da finalidade, importa dizer que a política se pode dividir em


direito civil e canónico, e a ela compete a definição das formas de governação. Vol­
taremos a este assunto na Introdução à monografia dedicada à Ética, que pensamos
vir a constituir em outro volume, numa qualquer colecção. Por ora, deve notar-se, na
distinção entre as ciências produtivas, um conceito mais alargado de produção,
englobando, por isso, o que diz respeito aos objectos materiais (pintura, dança,
construção, etc.) e o respeitante à linguagem exterior (gramática, retórica). Como
veremos melhor mais adiante, no campo das ciências teóricas só a matemática é
divisível. Na verdade, a distinção na theologia entre a teologia propriamente dita e a
ontologia é um problema que está longe de ser claro, quer pela variação terminoló­
gica dos nossos autores (theologia, metaphysica), quer pelo facto de, como temos
vindo a repetir, não possuirmos o volume da Metafísica não sendo, por isso, claro se
adoptam o regime tomasino - que estrutura uma relação analógica - ou o escotista -
em que se privilegia uma dimensão unívoca do ente -, nem sendo explícito que por
'teologia' se referem apenas à teologia natural. Teremos, no entanto, oportunidade
de voltarmos ainda mais à frente a este assunto. Por último, uma palavra sobre o
problema da ordem ( «Ordo») entre as disciplinas. Ela segue uma tríplice classifica­
ção : a ordem segundo a qual as ciências foram descobertas (invenção), a ordem por
que devem ser ensinadas (doutrina) e a ordem da dignidade entre elas (disciplina).
Não há coincidência entre estes planos, como facilmente se pode ilustrar, v.g. , pela

O l COXITO, A., Estudos . 1 58.


..

<2l Trad. in COXITO, A . , Estudos . 1 72-3.


..
66 Introdução Geral

comparação da ordem acima transcrita (a da disciplina) com a seguinte, a ordem da


doutrina: matemática, física, moral, metafísica e teologia � Enquanto na ordem
pragmática do ensino se começa com a lógica e a matemática e se termina com a
metafísica e a teologia, em termos de dignidade epistemológica produz-se uma
inversão que desloca sobretudo a moral. Por isso, problema sensível é o atinente aos
lugares da lógica e da moral. Na ordem da doutrina, a lógica precede todas as demais
ciências, posto que lhes serve de instrumento, enquanto que na ordem da dignidade
(ou disciplina) ela vem depois de todas as ciências teóricas. Se comparada com a
moral, ainda na ordem da sua dignidade, esta é antecedida pela lógica, por duas
razões que vincam a superioridade do teórico sobre o prático: «porque o objecto
desta são actividades de natureza intelectual, superiores aos actos de vontade; e
porque, quanto ao método de investigação, a lógica é uma ciência demonstrativa,
mas a moral, preocupando-se com a conduta, atende menos à pesquisa da verdade e
à demonstração» � A importância da lógica - dadas também as suas componentes de
análise, definição e argumentação3 - é, por fim, notória, enquanto propedêutica à
teologia, conferindo-lhe o suporte racional para a sua estrutura sistemática. Citemos
uma vez mais quem até hoje tem estudado de muito perto este problema: «as ques­
tões sobre os universais, as categorias, os 'futura contingentia' , as relações entre a
ciência e a crença, etc. incluem evidentes conotações teológicas. Neste sentido, é
ainda sintomático que os comentários aos Segundos Analíticos que contêm a teoria
-

da demonstração científica - ocupem mais de centena e meia de páginas compactas


e densas. É que a defesa do dogma católico exigia o reforço da concepção aristoté­
lica da ciência, visando superar o cepticismo desencadeado pelas controvérsias reli­
giosas do século XVI e, por outro lado, o probabilismo de certos autores coevos.»4
Passemos agora aos saberes teóricos por excelência. Apesar de todo ele merecer
um minucioso comentário - apressemo-nos a recordar que em 1 5 80 um calvinista
francês, Daneau Lambert, na sua obra Physice Christiana, à pergunta 'quid est phy­
sice?' dava uma resposta ainda bem tradicional5 -, limitemo-nos a reproduzir tão-só
um texto de De Coe/o, oportunamente traduzido por A. Coxito, suficientemente
ilustrativo do horizonte meta-físico de qualquer investigação física:
«Existem sobretudo três aspectos pelos quais se toma evidente a beleza do
mundo: o acabamento de cada uma das coisas de que se compõe, a distinção e a
variedade da natureza e a ordem das suas partes. Estes três aspectos resplandecem
admiravelmente no mundo inteiro. No que respeita ao primeiro ( . . . ) , uma obra
deve considerar-se tão perfeita quanto segue de perto o seu princípio; por isso, o
círculo ocupa o primeiro lugar entre todas as figuras e o movimento circular entre
todos os movimentos, dado que se realiza nele um retomo ao seu princípio. Com
efeito, todos os seres criados regressam à sua fonte e à sua causa, que é Deus, pois
reproduzem, pela existência e pela natureza, a sua imagem e as suas perfeições

< 1 > ln Log. Prooem. q.3, a.2, p. 1 8, onde se remete para o Comentário à Physica.
<2> COXITO, A., Estudos. . . 1 63 .
<3> ln Log. Prooem. appendix p. 54.
<4> COXITO, A., Estudos . . . 1 70.
<5> Cf. SCHMITT, Ch. B . , Aristóteles ... 52.
Introdução Geral 67

( . . . ). Quanto à variedade e à distinção da natureza, também por este lado é perfeito


o Universo por conter todas as categorias de seres ( . . . ), dado que compreende em
si os géneros supremos das coisas - nos quais em primeiro lugar o ser se realiza -,
assim como as substâncias corpóreas e incorpóreas, os compostos mistos e os
simples, os seres animados dotados de razão e os desprovidos dela; e ainda as
formas unidas à matéria e as que dela estão libertas ( . . . ) . Para além disso - como a
natureza de uma só espécie não pode encerrar todos graus de perfeição e como é
necessário que existam muitas espécies pelas quais esses graus se disseminem,
superando-se, assim, umas às outras em dignidade -, verifica-se que aquela varie­
dade e desigualdade ocorre a cada passo em todo o Universo, no qual as espécies
se dispõem numa gradação ascendente: de facto, os mistos são mais perfeitos que
os elementos, as plantas mais que os metais, os animais mais que as plantas, os
homens mais que os animais e as substâncias imateriais mais que os homens. Pre­
cisamente por este motivo ( . . . ), existe no mundo como que uma certa harmonia.
Tal como no canto a disciplina das vozes origina um concerto harmonioso, tam­
bém a totalidade do Universo forma um todo ajustado através do acordo e da
variedade de coisas desiguais e dissemelhantes ( . . . ). Resplandece, por fim, a per­
feição do mundo, como dissemos, pela ordem das partes de que se compõe. A
ordem é a disposição de coisas iguais e desiguais, ocupando cada uma delas o seu
lugar ( . . ). Mas existe, para além desta ordem de posição, uma outra que salienta
.

admiravelmente a perfeição dos seres criados ; por ela - à semelhança do que


acontece com os soldados entre si e em relação ao comandante do exército -, as
partes do Universo ordenam-se reciprocamente em função de um chefe, que é
Deus: Deus como sua causa eficiente, exemplar e último fim.» 1

Justifica-se plenamente, por isso, que o Proémio da Physica discuta com vagar (6
questões) a divisão da filosofia contemplativa (contemplatrix philosophia), pergun­
tando-se - em virtude de uma objecção de António Bemardi, em que este defende,
em Euersionis Singularis Certaminis (Basileia 1 562), a suficiência de uma só ciên­
cia2 - sobre a correcção da tríplice divisão seguinte: metafísica ou filosofia primeira,
fisiologia ou filosofia natural e matemática. De notar que paralelismo entre a fisio­
logia, a metafísica e as matemáticas não passa de um lugar-comum aristotélico�
Mediante um princípio de economia e um raciocínio de unidade análoga, propu­
nha-se a possibilidade de todas as ciências terem a forma de uma só, visto todas as
coisas se unirem quanto ao ser. Benigno Zilli, que não chegou a ver a obra do
Mirandulano, pôs a hipótese de uma tal ciência poder ser já uma espécie de ontolo-

( 1 ) ln de Caelo. . . 1, c. l , q. l , a. 3-5, p. 1 0- 1 2; cf. COXITO, A., Estudos . . . 1 9 1 -92.


(Z) ln VIII Libros Physicorum ... Prooemium, q. 1, a. 1, p. 8 et q. 1, a. 2, p. 20. Sobre o autor, tam­
bém chamado pelos nossos Jesuítas, Mirandulano, vd. o recente FORLIVESI, M. (a cura di),
Antonio Bernardi della Mirandola (1502- 1565). Un aristotelico umanista alia corte dei Far­
nese, Firenze 2009.
(3) ln Vil/ Libros Physicorum . . . q.3 .a.2, p. 24; cf. ARISTÓTELES, Metaphysica VI, 1 , t. l ; ibid. XI 6.
68 Introdução Geral

gia geral ! tal como a iremos encontrar em Ch. Wolff no século XVIII, ou antes, já
um ideal afim ao da ciência única como Descartes defenderá no século XVII�
Diferentemente, evocando as primeiras incursões dos Jesuítas ao enfrentarem o
Mirandulano (de Pereira a Suárez, passando por Fonseca), J.-F. Courtine falou antes
de destruição da unidade ontoteológica da metafísica? Depois de todas as cautelas
com que acima abordámos o problema, só teremos de acrescentar que ambas as
interpretações estão longe de colherem.
Pudemos acima aludir ao problema relativo à decisão sobre o tema da analogia
(tomista) e da univocidade (escotista). No que toca a esta decisão ontológica, acen­
tuou-se como a gramática da univocidade se direccionou na abertura ou produtivi­
dade moderna (Wolft), que não só pensou a existência sob o registo da essência
como chegou a autorizar a separação da metafísica das restantes ciências filosóficas�
Didacticamente, compreende-se a admissão de dificuldade, pelos nossos autores,
porquanto, como sabemos, nos cinquenta anos em que a Ratio foi sendo reescrita
(processo coevo à redacção do Curso) sempre se exigiu (e só se exigia) a leitura de
quatro livros da Metafisica. Na versão de 1 5 86, prescrevia-se a leitura do proémio,
do quinto, do sétimo e do duodécimo livros da Metafisica, o mesmo se repetindo em
1 5 9 1 (MP V 1 06, 280), mas retirando-se, em 1 599, o livro V (MP V 398). Embora
saibamos que Sebastião do Couto não tencionava seguir escrupulosamente a indica­
ção lectiva proveniente de Roma e também não desconheçamos que ainda se lia o
livro IV para exame de bacharelato � tratava-se, como é bem de ver, de textos capi-

( 1 ) ln Vlll Libros Physicorum . . . , Prooemium, q. 1 , a 1 , pag. 1 6 : «Sufficit una scientia ad ens in


commune, omnesque eius partes contemplans. Igitur superuacanea est scientiarum multitudo.
Antecedens suadetur bifariam. Primum, quia sicut omnia, quae diuinae reuelationis lumine cog­
noscimu�. ad unam Transnaturalem scientiam, nempe theologiam, spectant; ita uniuersa, quae
natiui luminis instinctu a nobis sciuntur, ad unam, eandemque naturalem scientiam reduci pos­
sunt; cum utrobique sit per ratio. Secundo, quia cum omnia, analoga unitate, in ente unum sint,
nihil impediet quominus unius scientiae modum cincta sortiantur.» Aliás, mesmo sob o ponto de
vista da abstracção (entendendo que há matéria nos seres imateriais), poder-se-ía pensar numa
unidade epistemológica, de nome, é certo, dividida em três ciências: ciência dos transcendentais
ou géneros supremos, ciência de Deus, ciência das restantes inteligências, cf. ln Vlll Libros
Physicorum . . . , Prooemium, q. 1 , a. 1 , pag. 1 8-20: «Quare alia de transcendentibus, summisque
generibus, alia de Deo, alia de caeteris mentibus statuenda erit scientia, neque haec omnia in
unam includi Metaphysicam poterunt; nisi ea, sub uno nomine, multiplici trium scientiarum
uarietate distinguatur.»
<2> Cf. BENIGNO ZILLI, J., Introducción . . . 45 ; SCHULTESS , P., «Die philosophische Reflexion
auf die Methode» in UEBERWEG, F., Grundriss der Geschichte der Philosophie. Die Philoso­
phie des 1 7. Jarhunderts. Bd. 1 , hersg. v. SCHOBINGER, J.-P., Base! 1 998, 65.
<3> COURTINE, J . F., «La métaphysique désacordée. Les premieres discussions dans la Compagnie
de Jésus» Les Etudes Philosophiques 3 ( 1 986) 309-327; ID., Suárez et le systeme de la méta­
physique, Paris 1 990.
<4> Cf. HONNEFELDER, L., Scientia transcendens. Die formale Bestimmung der Seiendheit und
Realitiit in der Metaphysik des Mittelalters und der Neuzeit (Duns Scotus - Suárez - Woljf -
Kant - Peirce), Hamburg 1 990, Partes 2 e 3 sobre Suárez e Wolff; BOULNOIS, O., Être et re­
présentation .. 493-504.
.

<5> Em 1 5 86 Metafísica IV e V eram lidos previamente ao exame de bacharelato MP VI 273, i. e. ,


em Fevereiro do 3º ano do curso, procedimento quase exclusivo de Coimbra e Evora
Introdução Geral 69

tais, quer para a articulação sistémica disciplinar, quer para o problema da direcção
do fundamento absoluto: o Livro Alfa (1) com o seu decisivo capítulo 2; o impor­
tante dicionário ontológico do Livro Delta (V); o Livro Dzeta (VII), texto de refe­
rência para a sensível discussão em tomo da 'ousia' e da 'essência' (viu-se acima
como havia quem preferisse o estudo de De ente et essentia de Tomás); finalmente,
o celebérrimo Livro Lambda (XII), o único ensaio sistemático de Aristóteles acerca
da teologia � Procuraremos entender o que isso pode significar a partir dos textos dos
nossos autores, nomeadamente em tomo de um contexto que chamámos «perturba­
ção epistemológica».
No Proémio da Physica (q. 5, a. 2), os Jesuítas de Coimbra aludem aos «filósofos
neotéricos», cujas teses sobre a metafísica como ciência primeira, quer metodologi­
camente, quer absolutamente, vão no sentido de uma ciência que considera as causas
supremas das coisas (Deus e as inteligências), os géneros supremos e os transcen­
dentais enquanto condições necessárias da possibilidade de todas as outras ciências
(quorum omnium cognitio ad subiecta aliarum scientiarum distincte percipienda
est). A justificação que eles davam estava no facto de ninguém poder conhecer per­
feitamente seja o que for, excepto pelo conhecimento das causas e dos predicados
comuns. Afastando a tese do monismo epistemológico de António Bemardi, optar­
-se-á, em Coimbra pela referida tríplice divisão: uma metafísica, uma física e várias
matemáticas �
Comecemos por estas últimas. Como se viu, anterior à filosofia natural, de um
ponto de vista da ordem do ensino � em virtude do grau da sua evidência e certeza, a
matemática tem a primazia, quer sobre a filosofia natural, quer sobre a metafísica�
Sendo assim, do ponto de vista da ordem do ensino, a nobreza da metafísica confere­
-lhe o último grau. A razão é evidentemente aristotélica: o mais universal não é o que
se apreende em primeiro lugar? Graças à abstracção, traz-se à luz do conhecimento
aquilo que melhor se conhece em si mesmo, um processo que apenas repete hierar­
quicamente os degraus das três ciências teóricas� Na matemática, dada a facilidade e
a clareza das suas demonstrações, não se requer qualquer conhecimento prévio, além

O > ROSS , D . , Aristóteles, trad., Lisboa 1 987, 1 84.


<2> Para a excepção da matemática, cf. ln VIII Libras Physicarum ... , Prooemium, q. l, a. 4, p. 30:
«Quibus ita explicatis statuimus Mathematicam abstractionem non specie unam, sed duplicem
esse. Namque res Mathematicae uel cogitatione abiunguntur a materia sensibili tantum; uel
simul etiam ab intelligibili. Si priori modo, ad Geometram pertinent; si posteriori, ad Arithmeti­
cum.» ; cf. também ln Dialecticam . . . 2,2, p. 1 5 .
<3> ln VIII Libras Physicarum ... q.5, a l , p.33: «Mathematica doctrinae ordine est prior Philosophia
Naturali.»
<4> ln VIII Libras Physicarum. . . q.5, a.4, p.39: «Si demonstrandi certitudinem, et euidentiam
expendamus, primus dignitatis locus Mathematicae ... »
<5> Cf. ln VIII Libras Physicarum . . 1, c. l , q.3, a.2, p. 67: «Metaphysica, et si inter omnes discipli­
.

nas naturali lumine inuentas, dignitate prima sit; ordine tamen acquisitionis ultimum locum
habet, nec nisi post alias scientias reperta est, igitur termini Metaphysicae, qui omnium commu­
nissimi sunt, ueluti ens, bonum, substantia, caeterique eiusmodi in nostram cognitionem deue­
nere. Ex quo sequitur maxime universalia non primo a nobis apprehendi.»
<6> Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q. l , a.3, p. 8.
70 Introdução Geral

de ela se encontrar livre da matéria sensível ou de qualquer tipo de movimento !


Aliás, por esta razão, a aritmética deve ainda ser anterior à geometria2 - aquela lida
com números, esta com tamanhos ? Os Jesuítas chegam mesmo a informar os seus
estudantes da posição de Platão quanto à indispensabilidade das matemáticas,
aspecto que colide com a alegada dificuldade da profissão de físico, a qual exige
mais tempo para observações e experimentações�
Se o matemático estuda as características (affectiones) geométricas e as proprie­
dades numéricas, o filósofo natural investiga a matéria sensível, v. g. , o Homem
enquanto ser de corpo e alma, enquanto o metafísico se dedica à Primeira causa, às
Inteligências e aos seres imateriais. 5 Estará fora deste âmbito a teologia - entenda-se-a
como ciência revelada -, porque, sendo uma ciência sobrenatural, não se confunde
com as ciências naturais 6 nem sequer com a filosofia primeira? Na introdução geral,
na Physica, remete-se o assunto da divisão das três disciplinas para o Comentário ao
'De Anima ' (texto 1 7 : 403 b 9- 1 6) � Este começa precisamente por interrogar essa
divisão no quadro da alma intelectiva? Esta transtextualidade não é inovadora, mas
estava determinada por razões de ordem didáctica.
Quanto à divisão platónica da filosofia (natural, moral e dialéctica), que também
aparecia em Agostinho e em Tomás, ela depende - dizem - de uma estrutura metafí­
sica da natureza de características exemplarísticas: o estudo dos mistérios mais pro­
fundos (abdita naturae mysteria) possibilita-nos encontrar Deus, quer num plano
antropológico-cognitivo (mentem exornat, perficit), quer ontológico (ardo rerum)! º
E m relação a u m argumento que defendia que a filosofia natural inclinava para o
amor de Deus ! 1 os Jesuítas respondem que esse amor para que a ciência tende não é

(I) Cf. ln VIII Libros Physicorum . . q.5, a.4, p. 39: « . . . consideratio Mathematica praeterquam quod
.

difficultatem non habet, ac nullius propemodum eget experientiae; est a maeria sensibili, motu­
que absoluta, atque ita minus incerta.»
<2) Cf. ln VIII Libros Physicorum . . . q.5.a.4,p.39.
<3) Cf. ln VIII Libras Physicorum ... q. l ,a.4,p.9.
<4) Cf. ln VIII Libros Physicorum ... q.5, a. ! , p.34: «At Physica cum reconditam naturae uim scrute-
tur, et a uaga, atque errabunda sensuum notitia, magna ex parte pendeat, longi temporis obse­
ruationem, ac experientiam requirit, proindeque multo est difficilior, et operosior.»
(S) Cf. ln VIII Libros Physicorum . . . , Prooemium, q. 1, a. 3, p. 26.
<6) Cf. ln VIII Libros Physicorum .. ., Prooemium, q. 1, a. 4, p. 40.
<7) ln VIII Libros Physicorum .. ., Prooemium, q. 1 , a. 4, p. 44; cf. no entanto, ln Dialecticam . . .
Prooemium 2,2, p. 1 5 . Sobre a ordem das ciências e m dignidade, vd. ln VIII Libros Physico­
rum .. Prooemium q. 5, a. 4.
(S) A prova desta tese também é remetida para Metaphysica (VI, 1 , text. 2 e XII, 6).
<9) ln III De Anima . . ., Prooemium, q. un., pp. 6- 1 0: «Num intellectiuae animae contemplatio ad
Physiologiae doctrinam pertineat, an non».
( I O)
Cf. ln VIII Libros Physicorum . . . § de duplici distributione, pp. 3-4.
(l
I) Cf. ln VIII Libros Physicorum. . . q.3, a. ! ., p. 22.
Introdução Geral 71

de natureza prática, mas teórica (a causa enquanto conhecida 1 ) . Assim, não só se


insiste na dimensão teórica da física, mas também se aproveita para a distinguir, v.g. ,
da medicina, considerada uma ciência prática� seja na sua componente teórico-prá­
tica (Galeno e Avicena), seja na especulativa (Lemosius, Aponensis). Na verdade,
como o seu objecto consiste no bem-estar do corpo, na restituição da saúde ou na
sua manutenção, o estatuto prático da medicina é revelado pela sua própria natureza?
O mesmo se deverá dizer da moral e da dialéctica, o que fazem apelando, quer para
a Ética (II 2), quer para a Metafísica (VI 1 , t. 2). De salientar que este último texto
sustenta meridianamente a dimensão teórica da ciência natural no quadro da teoria da
classificação aristotélica das ciências, que os Jesuítas se limitam aqui a reproduzit.l
Tratando-se de uma ciência teórica e dado o seu objecto ser o ente móvel, a física
ou filosofia natural requer uma justificação epistemológica própria. Aqui, os Jesuítas
de Coimbra apelam para a distinção entre a consideração do ente móvel no plano de
uma suposição absoluta e no plano de uma suposição simples. O primeiro plano
enquadra toda a physica ou philosophia naturalis, o segundo apenas os oito livros da
physica auscultationis (i. e. a Physica de Aristóteles). Semelhante distinção indica
uma prioridade do estudo da 'res naturalis' , feito segundo uma perspectiva geral e
organizado sob uma perspectiva de consideração mais restrita? Significativamente,
esta distinção coincide também com uma outra divisão entre o que poderíamos
denominar um plano histórico-literário e um plano pedagógico-editorial. Ao pri­
meiro diria respeito a efectiva produção de Aristóteles, cuja quarta parte - diz-se -,
ligada às 'res naturales' ? inclui todo o campo da physiologia, a saber: princípios e

( I ) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.3, a.2, p.24: « . . . non tamen practice, quasi ad id praeceptiones
det, sed tum ob eam causam, quae in argumento adducitur; tum quia diuina bonitas in rebus
creatis elucens a philosopho cognoscitur, cognita amatur. . . » .
(Z) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.3, a.3, p.25 : «Aliam opinionem, quae nobis magis probatur
( . . . ), videlicet Medicinam simpliciter censendam practicam.»
<3) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.3, a.3, p. 25-26: « . . . subiectum attributionis Medicinae est
humanum corpus, quatenus prosperae, et aduersae subest ualetudini; finis vero est sanitatem
restituere, si amissa sit; conseruare, si amissa non sit; quae omnia, ut notum est, ad praxim
spectant. Igitur ars medica simpliciter practica censenda est.»
<4l Cf. ARISTÓTELES, Metaphysica VI 1 , 1 025 b 6- 1 1 .
<5l Cf. ln VIII Libras Physicorum. . . p. 44: «!taque statuendum hosce octo libros, Physicae
auscultationis esse, caeterisque Physiologicis doctrinae ordine praeire. Continent enim commu­
nia principia, quibus tota Naturalis Philosophia innititur, explicationemque entis mobilis abso­
lute sumpti. Is autem in tradendis disciplinis ordo debet esse (sicuti in Prooemio huius operis et
initio lib. de partibus animalium Aristoteles docet) ut ea primum, quae maxime communia sunt
pertractentur, deinde singula particulatim suis locis exponantur. Vnde facile iam erit intelligere
materiam huic operi subiectam, esse ens mobile in commune, in suppositione simplici, idest, a
suis partibus praecisum, atque in se duntaxat spectatum. Qua ratione distinguitur a subiecto
totius Physicae, quod est ens mobile in suppositione absoluta, hoc est tam secundum se, quam
secundum suas partes consideratum . . . »
<6) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . § de distributione apud Aristotelem, pp. 4 1 -42: as dez partes da
physiologia, são as seguintes: Physica; de Coelo; de Generatione; Meteorum; de Anima; de
Sensu et sensili, de Somno et vigilia, de Vita et morte; Animali historia; e a divisão tripartida da
doctrina de animalibus (de Partibus animalium, de Animalium generatione, de Animalium
incessu or de Animalium motu
72 Introdução Geral

causas das coisas naturais e suas condições, i. e. , os conceitos mais fundamentais de


toda a ciência natural; a estrutura do Universo no seu todo, i. e. , sua composição,
alterações, como, por exemplo, na física astronómica; a geração e a corrupção no
campo da física e da química; a ciência atmosférica, incluindo a geologia e as suas
variedades; a biologia e a psicologia; o estudo dos fenómenos da vida; por fim a
zoologia. Já quanto ao plano pedagógico-editorial, entendemos aqui apenas as obras
que foram efectivamente editadas no campo da física. Citámo-las acima, segundo a
ordem da sua publicação, da Física à Alma, passando pelos volumes do Céu, Meteo­
rológicos, Pequenos Naturais e A Geração e a Corrupção. A relevância do ponto de
vista pedagógico-editorial prende-se ao facto de «todas estas disciplinas se ligarem
numa estrutura conceptual comum» ! mas, mais uma vez, só razões de ordem
pedagógica podem explicar a razão pela qual não há coincidência entre os dois pla­
nos que aqui quisemos evidenciar. Consideremos, v.g. , a ausência de um Comentá­
rio ao 'De Sensu , pelo que, conforme se pode ler num determinado passo, o assunto
'

fora abundantemente examinado no Comentário ao 'De Anima ' 2 ; ou o capítulo da


zoologia, tratado em parte em De Generatione�
Qualquer leitor pode confrontar por si próprio qual o grau de aplicação e extensão
desta dimensão pedagógica estrita mediante a inspecção dos quadros relativos ao
que de facto foi ensinado nestas matérias em Coimbra e em Évora num dado espaço
de tempo.
Posto que evidenciámos que os nossos Jesuítas adoptam uma tríplice divisão da
filosofia - uma metafísica, uma física e várias disciplinas matemáticas -, podemos
agora avançar que, nesse âmbito, os autores lutam contra a submersão da física na
metafísica. Ora, este problema surge tratado em Coimbra, como se lembrou, contra
tese recente e aparentemente inaudita de António Bemardi1 A defesa jesuítica da
independência epistemológica da física contra a alegada tese da unidade das ciências
vai ser explorada, contrariando seis argumentos com os quais se punha em causa o
lugar da physiologia. Por um lado, lembrava-se existirem determinados autores que
defendiam bastar uma só ciência para toda a região do ser, remetendo a tríplice divi-

O > Cf. WALLACE, W. A., «Traditional natural philosophy» in The Cambridge History of Renais­
sance Philosophy 2 1 2.
<2> Cf. Parva Naturalia, Prooemium.
<3> Cf. PERFETTI, S . , Aristotle 's Zoology and lts Renaissance Commentators (1521-1601), Leu­
ven 2000 , que desconhece, por isso, os nossos comentários.
<4> Cf. ln Vlll Libras Physicorum . . . q. l ,a.2,p.6: «Est uero noua; quia nulli unquam Philosophorum
in mentem uenit scientias omnes ad unam reuocare.» Cf. Antonius Bemardus Mirandulanus,
Eversionis singularis certaminis libri XL, in quibus cum omnes iniuriae species declarantur:
tum vera offensionum, & contentionum, quae ex illis nascuntur, honeste atque ex virtute tollen­
darum ratio traditur: & praeter multas, ac prope infinitos locas Aristotelis, qui sunt difficilimi,
obiter explicatos, Animi etiam immortalitas ex ipsius sententia ostenditur: Astrologiae quoque
divination omni pene autoritate spoliatur, atque libertas humana stabilitur, Basileae s.d., cf.
também: Antonii Bemardi Mirandulani. . . Disputationes, B asileae 1 562.
Introdução Geral 73

são para uma mera comodidade didáctica � Numa outra versão da tese «bizarra»,
avançava-se com a inutilidade da pluralidade das ciências, sendo suficiente uma só
ciência para o estudo do ser e das suas partes. A afirmação podia provar-se não só
apelando para a unidade da luz da Revelação que nos dá o saber, mas também
mediante a defesa de que tudo é uno no ser, bastando para tal aplicar uma analogia?
Também se podia ler a prioridade da Metafísica sobre as restantes disciplinas pelo
facto de ela subalternizar todas as demais e considerar o sumo género e os transcen­
dentais � Ou, por último, estendendo a tese ao sector da física, verificando-se que o
próprio António Bernardi desenvolvera três argumentos sobre a prioridade do de
Coelo por ser uma introdução geral à filosofia natural: tem por objecto a substância
e a natureza, o que também diz respeito à metafísica; esta procura demonstrar a
inexistência das Formas platónicas e o início do de Coelo concerne à própria origem
da physiologia�
É preciso levar em consideração este fundo polémico ao lermos a defesa pelos
Jesuítas do carácter autêntico de uma ciência física. Alegadamente, haveria também

( ! ) Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q. l .a.2,p.6: «Sunt enim qui contendant unam duntaxat esse
scientiam, quae totam entis regionem peruagetur, omnesque eius partes speciatim, ac distincte
consideret, a Philosophis tamen in tria ilia uulgata membra dispertitam fuisse propter addiscen­
tium commoditatem; quia tam multa, tamque uaria rerum genera in unum complicata simul
addisci non poterant.» Cf. Eversianis . . . XIII, s.6 et 7, p. 269-73 ; XIV initio, p. 273-5.
<2J Cf. ln VIII Libras Physicorum ... q. l .a. l ,p.5: «Sufficit una scientia ad ens in commune, omnes­
que eius partes contemplandas. Igitur superuacanea est scientiarum multitudo. Antecedens sua­
detur bifariam. Primum, quia sicut omnia, quae diuinae reuelationis lumine cognoscimus, ad
unam Transnaturalem scientiam; nempe Theologiam, spectant; ita uniuersa, quae natiui luminis
instinctu a nobis sciuntur, ad unam, eandemque naturalem scientiam reduci possunt; cum utro­
bique sit par ratio. Secundo, quia cum omnia, analoga unitate, in ente unum sint; nihil impediet
quominus unius scientiae modum cuncta sortiantur.»
(J) Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q.5,a.2,p.36: « . . . e Neotericis Philosophis nonnulli, asserentes
Metaphysicam doctrinae absolute, ac simpliciter priorem esse reliquis disciplines. Primum, quia
considerat supremas rerum causas, nempe Deum, et intelligentias, itemque genera summa, et
transcendentia, quorum omnium cognitio ad subiecta aliarum scientiarum distincte percipienda
necessaria est; cum nemo perfectam alicuius rei intelligentiam habere dicatur, nisi causas, a qui­
bus pendet, et communia eius praedicata, intelligat. Deinde, quia reliquae scientiae subalter­
nantur Metaphysicae . . . Quare cum scientia subaltemans ordine acquisitionis simpliciter prior sit,
quam subaltemata; siquidem huius principia, ab illius principiis dependent; conspicuunt uidetur
Metaphysicam doctrinae ordine omnium scientiarum primam esse.» Cf. Eversianis . . . XX, s.2, p.
353-5. Vd. também ln VIII Libras Physicarum . . . 1, Prooemium, p. 45 com a alusão à tese de
Alexandre de Afrodísia acerca da Physica como uma introdução ( «Commune prooemium») à
Metaphysica.
<4J Cf. ln VIII Libras Physicarum . . § de ordine materiaeque librorum Physicae p.43-44: « . . . qui
.

contenderent Physicam a libris de coelo inchoari, octo vero libros Physicorum, Primae Philoso­
phiae attribuendos esse; fuisseque in Philosophiae vestíbulo positos, non ut partem per se Physi­
cae cohaerentem, sed ut Naturali disciplinae in primis utiles, ac necessaries. Eorum praecipua
argumenta sunt, quia in hoc opere agitatur de substantia, et de natura, de quibus prime disserit
Philosophia. Deinde, quia Metaphysici negotii est demonstrare non dari Platonicas formas, quae
per se extra singularia cohaerent, sed alias a materia quidem abiunctas, ueruntamen singulares
( . . . ). Postremo quia initium librorum de coelo illustre continet exordium toti Physiologiae plane
commune.» Cf. Eversianis. . . XV, s.2, p. 290- 1 .
74 Introdução Geral

uma longa e velha linha de pensamento helénico que ou clamava pela impossibili­
dade de um conhecimento do mundo ou avançava com teorias do conhecimento que
apelavam para o inatismo ou a reminiscência ! De facto, a física podia ser atacada,
digamos, por cima. Bastaria dizer que ela não era tão perfeita quanto a metafísica?
Num argumento ' ad hominem' (leia-se: contra António Bemardi), contra-atacavam
que, no seu género de conhecimento, a física tinha um perfeito conhecimento do seu
objecto � Depois, ela podia ser combatida também a partir de dentro, da sua própria
natureza, objectos e capacidade: o estudo dos movimentos, dos eclipses e de outros
fenómenos considerados esporádicos ou irregulares não podia convir a uma ciência
certa4 ; ou dizer-se que o estudo do que é acidental não pode constituir uma ciência?
Ora, relativamente a estas objecções, os Jesuítas evidenciam a existência de um nexo
próprio e inquebrantável unindo os seres naturais? ao mesmo tempo que sublinha­
vam uma preciosa distinção: o que está sujeito à corrupção são os indivíduos e não
as naturezas comuns que constituem os objectos da ciência? Mais importante ainda,
e em resposta ao ponto relativo aos fenómenos considerados irregulares - cuja natu­
reza não é nem necessária nem contingente -, eles evidenciam a necessidade de os
submetermos a condições de certeza, tal como sucede, v.g. , com o número na har­
monia musical ou com a linha no caso da óptica? Para terminar, a autonomia da
física e o seu estatuto epistemológico podiam ainda ser atacados, digamos, de fora?
Nesta situação, ora se citava a magia, que, supostamente pertencendo à física, não é
ciência, ora se evocavam os erros da ciência física, ora se apelava para a tese dos
Académicos segundo a qual uma ciência de origem empírica jamais poderia alcançar
o plano do intelecto. Enquanto se limitaram, relativamente à primeira objecção, a

(!) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.2, p . 1 7 : «De Platone uero, ut eius scripta testantur, haud
dubium est quin senserit dari multarum rerum scientiam, et Naturalem Philosophiam in scientiis
esse numerandum. Quanquam in hac assertione tum alia errata inseruit, tum illud, quod nostris
animis priusquam concreti huius et terreni corporis domicilium subirent, innatas esse dixit
omnium rerum intelligibiles formas, et quasi consignatas notiones, easque corporis societate,
tanquam hausto obliuionis poculo, sopiri, deinde accedente studio, atque ope phantasmatum
excitari. !taque nullam denuo a nobis acquiri scientiam, nec quicquam aliud esse discere, nisi
recordari; ut constat ex Menone, et Phaedro, aliisque eius libris.»
<2J Cf. ln VIII Libras Physicarum ... q.2, a. l , 2 arg., p. 1 5 .
<3l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.4, p. 2 1 : « . . . posse Philosophum Naturalem res physicas
perfecte cognoscere in suo genere, id est, in genero physico . . . »
<4l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q. 2, a. ! , l arg., p. 1 5 .
<5l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q. 2 , a. l , 3 arg . , p. 1 6- 1 7 .
<6l Cf. ln VIII Libras Physicarum . . q . 2 , a.4, p . 2 0 : « . . . quia connectiones inter subiecta, e t praedicata
.

essentialia, atque eas affectiones, quae cum subiectorum natura indissolubili nexu cohaerent,
certae sunt et perpetuae.»
<7l Cf. ln VIII Libras Physicarum ... q.2, a.4, p.20: «. . . quia tametsi elementa, et omnino ea, quae ex
subcoelesti material coaluere, corrumpantur; eam tamen corruptionem sola singularia per se
subeunt; naturae vero communes, de quibus proprie scientia est, non nisi per accidens, ratione
singularium, in quibus insunt. Quo sit ut eiusmodi naturae vi sua, in seque spectate, stabiles sint
et firrnae; ea uidelicet firrnitate, quam Philosophi negatiuam vocant...»
(8) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.4, p . 2 1 .
<9J Cf. ln VIII Libras Physicarum . q.2, a. l , 4 , 5 et 6 arg . , p . 1 6 .
..
Introdução Geral 75

distinguir 'goeteían' e 'mageían' , sendo aquela e só ela uma ciência prática, apela­
vam, relativamente à segunda objecção, para que se separassem os praticantes da
ciência (que caem em erro) da própria ciência (onde o erro não é possível), já relati­
vamente à última objecção os Jesuítas vão dar uma resposta mais pormenorizada ! O
facto pode ser lido no fundo de uma ideologia epocal marcada, v.g. , pela tradução
latina da obra de Diógenes Laércio ( 1 430), por Ambrósio Traversari, ou das obras de
Sexto Empírico ( 1 562, 1 569), ou ainda pela publicação do Quod nihil scitur ( 1 58 1 )
do médico céptico Francisco Sanches ou até dos Essais de Montaigne ( 1 5 80-88). Eis
uma batalha em que Melanchton e os nossos Jesuítas se encontrariam do mesmo
lado da barricada, por isso que todos lutavam contra quem dizia «ser impossível
alcançar a certeza mediante definições verdadeiras», ou ser inútil «O sistema da
lógica de Aristóteles para se adquirir conhecimento», dado que «O conhecimento dos
particulares se toma dúbio ao compreendermos que os sentidos do Homem são frá­
geis e dignos de pouca confiança ou que somos inábeis para conhecer os objectos
individualmente», quer dizer: «não podemos alcançar um conhecimento científico
genuíno» ?
Em resposta a este ambiente neo-céptico, ao qual contrapunham a assistência de
uma luz interior que nos põe em comunicação com os princípios comuns isentos de
erro� sete argumentos formam o que poderíamos designar um tratado Jesuíta
conimbricense contra os cépticos. Um primeiro argumento repete a velha ideia de
que o desejo de conhecer não pode ser em vão� O segundo segue a mesma linha,
mas expande-o em chave ética peripatética: o conhecimento constitui a perfeição
humana e esta consiste na contemplação? Topamos depois com uma verificação
sociológica: não são poucos os Homens de intelecto notável que mostram ser possí­
vel a prática da ciência verdadeira? Por fim, e antes, quer de um confronto «directo»
com o neo-acadérnico Arcesilau? quer de uma declaração solene sobre a tradição

( I ) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q. 2, a.3, p. 1 8- 1 9: «Confutantur Academici, quibus tam in


Physicis, quam in caeteris rebus, dubia et incerta erant ornn i a.»
<2l POPKIN, R. H., «Theories of Knowledge» in SCHMITT, Ch. B . et ai. (ed.), The Cambridge
History af Renaissance Philosaphy, 683; SCHMITT, Ch. B . , Cicera Scepticus. A Study af the
lnfluence af the 'Academica ' in the Renaissance, Den Hague 1 972, 59-62.
<3l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2,a.4,p.22: «Ad 6. fatendum est nostram cognitionem a sensi­
bus proficisci, nosque ab iis nonnunquam in errorem induci: uerum id non obstare quominus
certam multarum rerum comprehensionem, ac scientiam habere possimus. Nam primum, ut
constat ex doctrina Aristotelis 2. de anima, cap. 6. text. 63. multa sunt, in quibus sensus nun­
quam decipiuntur. Neque enim falli possunt circa proprium insensibile, secundum communem
rationem spectatum. Deinde esto nonnunquam errent, saepe ab intellectu corriguntur; qui licet
nullam habeat a natura ingenitam speciem, uel scientiam, habet tamen inditum lume, quo com­
munissimis principiis sine ullo erroris, aut temeritatis periculo assentiatur, et quo alia ex aliis
interdum perspicue, ac certo; interdum probabiliter ratiocinando deducat; interdum etiam sine
discursu quaedam percipiat, atque intueatur.»; cf. ARISTÓTELES, De Anima II 6, text 63 .
<4) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.3, 1 ratio, p. 1 8.
<5l Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q.2, a.3, 2 ratio, p. 1 9 .
<6l Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q.2, a . 3 , 3 ratio, p. 1 9.
(7) Cf. ln VIII Libras Physicarum . . q.2, a.3, 6 ratio, p. 1 9 .
.
76 Introdução Geral

eclesiástica relativa à condenação da tese dos Académicos ! os nossos autores repe­


tem dois argumentos augustinistas contra aqueles � Um momento importante nesta
discussão prende-se, primeiro, com a reprodução do ensinamento da Metafísica
acerca do lugar da física para o conhecimento da verdade num mundo sujeito a
mudanças � Depois, ao conceder-se ao ser humano a capacidade de conhecer com um
grau de necessidade (passio necessario) idêntico ao das afirmações analítico-geo­
métricas. É verdade que é neste contexto que encontramos a afirmação retrógrada da
incorruptibilidade dos céus� mas ao mesmo tempo, no quadro do que está sujeito à
corruptibilidade, eles não deixam de vincar que os corruptíveis possuem uma natu­
reza e uma condição essencial que evidenciam uma lei imutável e perpétua passível
de ser demonstrada pelo processo de causas e essências que constituem a verdadeira
ciência também no âmbito da física. Reproduzamos um último argumento: mesmo
que os objectos da física fossem mutáveis, tal como Heraclito pretendia, não escapa­
riam à ciência, pois seria possível demonstrar uma estabilidade e uma permanência
na sua própria mutabilidade? De notar ainda que mesmo antes destes argumentos o
estudante fora informado da doutrina da ciência dos Analíticos Posteriores ( 1 , 2),
segundo a qual conhecer cientificamente equivale a conhecer a necessidade de um
efeito pela sua causa necessária. Por exemplo: que todos os corpos são divisíveis
porque são dotados de extensão; que a matéria, pela sua própria natureza, não pode
constituir uma unidade independentemente da forma�
A referência aos Analíticos remete-nos para o tema que, no quadro da ligação da
lógica com a física, Wallace chamou «metodologia regressiva». Trata-se da articula­
ção de método que permite a aplicação dos Analíticos Posteriores à Physica, ao De
Anima ou ao De partibus animalium? De facto, também se encontrava em Francisco
de Toledo a afirmação do «regressus» exigido àquele que quer conhecer a causa a
partir do efeito, naturalmente conhecido de modo mais fácil do que aquela: « . . . toda
a demonstração, escrevia o Pe. Toledo, prova que o efeito existe, revelando ao
mesmo tempo a causa ( . . . ). Assim, embora se conheça a existência do efeito antes da
causa, isso é um conhecimento imperfeito e particular. Depois da demonstração,
conhecemos o efeito de modo universal e de maneira mais certa e clara. Aristóteles
ensina expressamente isto no capítulo 24 do livro 1 º dos Analíticos Posteriores,
onde diz que, embora vejamos que o triângulo tem três ângulos, devemos demons-

O l Cf. ln VIII Libras Physicorum ... q.2, a.3, 7 ratio, p. 19.


<2> Cf. ln V/II Libras Physicorum . . . q.2, a.3, 4 et 5 rationes, p. 1 9 .
<3> Cf. ARISTÓTELES, Metaphysica I I 1 , 993 b 20-30; II 3, 995 a 1 9 ; I V 5, 1 0 1 0 a 6-9; 1 0 1 0 a 27-
-35.
<4> Cfr. RANDLES, W. G. L., «Le ciel chez les j ésuites espagnols et portugais ( 1 590- 1 65 1 )» in
GIARD, L. (d.ir..), Lesjésuites à la Renaissance 1 29- 144.
<5> Cf. ln V/II Libras Physicorum . q.2, a.2, ratio 4, p. 1 8.
..

<6> Cf. ln V/II Libras Physicorum . . . q.2, a.2, ratio 1 , p. 1 7- 1 8 .


<7> WALLACE, W . A . , «Galileo' s Regressive Methodology, Its Prelude and its Sequei» in ID.,
Domingo de Soto . . 229-52; JARDINE, N., «Epistemology of the sciences» in The Cambridge
.

History of Renaissance . . 686-93 .


.
Introdução Geral 77

trá-lo, porque só a demonstração nos permite conhecê-lo de maneira universal» !


Podemos ilustrar também esse procedimento recorrendo a um exemplo glosado por
Zabarella, ainda na esteira dos Analíticos Posteriores (1 1 3)2: pressuponhamos que,
na sua substância, os planetas (P) são corpos celestes que não brilham (NB) e que é
acidentalmente que esses corpos celestes se encontram próximos da Terra (PT) ;
podemos exprimir silogisticamente dois processos demonstrativos (conhecidos por
'propter quid' e por 'quia' ), como se segue:

A B

Todos os PT são NB Todos os NB são PT


Todos os P são PT Todos os P são NB
Logo, todos os P são N B Logo, todos o s P são PT

Explicando: se o termo médio de A - PT - é causa do termo maior - NB -, esta­


mos perante uma demonstração a priori ou compositiva, mas na resolução (B) esta­
mos perante uma demonstração a posteriori, posto que o termo médio - NB - é o
efeito e o maior - PT - é a causa. Cabe esclarecer, então, que a demonstração prop­
ter quid (dioti) ou compositiva (A) - da causa para o efeito - se distingue da
demonstração quia (hoti) ou método resolutivo (B) - do efeito para a causa -, mas o
leitor encontrará um eco da discussão desta metodologia em Góis, aplicada ao De
Anima, nas passagens K e L da explicação (explanatio) atinente ao primeiro capítulo
do livro 1 ou nas passagens B, C e D do segundo capítulo do livro II.
Certamente que na dedução científica aristotélica a distinção entre «O que é ante­
rior por natureza» e o que o é «relativamente a nós» acolhe a possibilidade da indu­
ção (que os nossos Jesuítas também conhecem, como é óbvio, apesar de considera­
rem que as demonstrações a partir dos efeitos são imperfeitas, pois «O que é anterior
relativamente a nós é o que está mais próximo da percepção» 3 ). Não obstante, «nota
nobis», o que é mais bem conhecido por nós é encarado no plano do método dedu­
tivo, que tem em mira um conhecimento absoluto e actualmente distinto� Ao visar
uma coincidência ideal entre «nota nobis» (a ordem epistemológica da doutrina) e

O l TOLETUS, Commentaria una cum questionibus ln Universam Logicam Aristotelis, Venetiis


1 5 84, 1 67va; cf. WALLACE, W. A., «Galileo' s Regressive ... » 236.
<2l SCHMITT, Ch. B & COPENHAVER, B. P., Renaissance Philosophy l 1 9-20.
<3l ARISTÓ TELES, Analytica Posteriora 1, 2, 72 a 1 -2.
<4l Cf. ln VIII Libros Physicorum .. I, c. J , q.2, a.5, p. 63: «Deinde nota nobis appelat ea, quae
.

cognitione distincta actuali, atque adeo accuratae doctrinae et auscultationis ordine, quem sequi
proposuerat, illustriora existunt.»
78 Introdução Geral

«nota natura» (a ordem ontológica da natureza 1 ), a c1encia desenvolve-se numa


região entre o conhecimento e a natureza, na qual os princípios internos do ser e as
suas causas são também princípios do conhecimento?
Acabamos, alfim, por encontrar a razão pela qual a ciência de que se fala aqui
jamais pode ser entendida nos quadros restritos da denominada ciência moderna. O
mesmo não diríamos da metafísica moderna, como é natural. De facto, caracterizar a
ciência pelas notas da certeza, da determinação, da objectividade, da fundamentação
e da discursividade racional - como sucede, v.g. , ainda com maior clareza no
Comentário aos Analíticos de Sebastião do Couto -, fazendo-as depender de um
substracto noético dotado de uma evidência imediata e intrínseca ao espírito - haja
em vista o nexo entre o seu objecto e os primeiros princípios -, equivale no fim de
contas a remeter a fundamentação para o campo da metafísica? Mas se é verdade
que desta não tivemos, infelizmente, o prometido comentário, salta à vista que o
projecto do Curso, tal como o conhecemos, foi um trabalho que se impôs pelo seu
carácter sistemático e pragmático1 Referimo-nos à sua extraordinária influência
enquanto manual de ensino da filosofia no quadro de um sistema ou de um corpo de
informação governado por regras de investigação muito próprias e ao seu exemplar
valor como peça mais ou menos orgânica de um capital de saber «enciclopédico»,
perspectivado sob o importante prisma de uma consideração metafísica da filosofia
natural.

O l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . 1, c . 1 , q. 1 , a. 1 , p. 50: «Cognitionem igitur alia definitiua est,
alia demonstrativa. Definitiua dicitur, quae definitione comparatur; demonstratiua, quae
demonstratione acquiritur. Non sumitur autem a nobis hoc loco definitio, et demonstratio fuso
nominis significatu; sed ita ut eam duntaxat definitionem, quae subiectae rei naturam declarat; et
eam solum demonstrationem, quae ex causis procedit complectamur. Enim uero demonstratio­
nes ab effectis, imperfectae sunt, et quasi inchoatae; item vero definitiones, quae rei essentiam
non attingunt, quaedam potius sunt adumbrationes rerum; quam definitiones.»
(Z) PEREIRA, M. B . , Ser e Pessoa . . 297-98 sobre Pedro da Fonseca.
.

<3l Cf. OLIVEIRA, J. B. e, «Sobre a noção de ciência na Lógica Conimbricense» Revista Portu­
guesa de Filosofia 19 ( 1 963) 280-82.
<4l SCHMITT, Ch. B & COPENHA VER, B. P., Renaissance Philosophy 348-49.
Introdução Geral 79

- B -

0 Comentário ao De anima

1 . Introdução

Ainda hoje o intérprete contemporâneo do De Anima de Aristóteles tem perante si


uma tarefa quase impossível I Tal como o conhecemos, o tratado sobre A Alma (De
Anima) organiza-se em três livros distintos e continua a discutir-se, mormente para o
caso do III, qual a ordem literária dos mesmos. O livro 1 é de características emi­
nentemente doxográficas ; o seguinte define a alma como forma, no sentido de acto,
de um corpo que possui a vida em potência; e assim se passa à discussão dos pro­
blemas da relação alma/corpo e da possível separação daquela.
Habitualmente, a obra faz parte do corpus biológico aristotélico, sendo consen­
sual dizer-se que se trata de uma espécie de introdução geral às ciências da vida. O
seu seu título grego, psyché, evoca a vida em geral, o sopro vital, mas no tempo em
que Aristóteles intervém, e mercê de uma tradição filosófico-religiosa consolidada, o
vocábulo admite que se discuta inclusive a questão da separação do intelecto e a da
imortalidade da alma. Seja como for, a obra é, no seu aspecto mais vasto, uma
investigação acerca da natureza e das funções dos seres vivos, sobretudo dos ani­
mais. Desde o início que Aristóteles afirma pertencer à física uma tal investigação
sobre os animais, mas, encarando a alma, ou uma das suas funções, como a realiza­
ção (entelecheia) de uma parte do corpo, o autor abre a porta a um eventual tratado
sobre a alma «pura» : «nada impede a separação de certas partes da alma, se elas não
integrarem nenhuma parte do corpo» (4 1 3 a 6).
Como referido, o principal ponto tem a ver com o facto de a vida se dizer de
muitas maneiras. Identificando-se 'alma' com 'vida' , pode estudar-se a alma
mediante análises da vida. Quatro das suas funções serão explicitamente focadas:
alimentação e crescimento, percepção, pensamento, movimento local. São as facul­
dades ou potências (dynameis) da alma, as quais se ordenam necessariamente em
sentido ascendente; quer dizer: para a faculdade de pensar exige-se a da percepção,
mas esta não é necessária à existência daquela função. Se a faculdade nutritiva, por
ser a mais básica, é partilhada por todos os seres vivos (plantas e animais), pela
faculdade sensitiva ou percepção passa a fronteira da animalidade. De resto, a facul­
dade motriz distingue os animais superiores e, entre estes, o pensamento, constitui­
-se como uma especificidade humana (4 1 4 b 1 8) .

( 1 ) PELLEGRINI, P . - «Le D e Anima e t l a vie animale. Trois remarques» i n Corps e t Ame. Sur le
De Anima d 'Aristote, études réunies par C. VIANO, Paris 1 996, 465 : «L' interprete modeme du
De Anima travaille sur un terrain qui est, c' est le moins que l'on puisse dire, herméneutiquement
fort encombré . . . ».
80 Introdução Geral

Particularmente relevante é a teoria da percepção em Aristóteles. Negando tratar­


-se, quer de um acto do sujeito, quer da impressão no espírito das qualidades dos
objectos, o autor desmaterializa a percepção, interpretando-a como um modo de
identificação, «O acto comum do sensível [i. e. o objecto sentido] e do órgão do sen­
tido» (425 b 25). Isto quer dizer que só as formas são transmitidas, e a transmissão
requer um meio (ar, água, etc.). Por exemplo, no caso da visão : se podemos ver
cores é porque «qualquer cor põe em movimento o diáfano [i.e. o meio próprio da
visão] em acto, sendo essa a sua natureza» (4 1 8 a 3 1 ). O aspecto físico e fisiológico
desta teoria está também patente na concepção aristotélica segundo a qual «perceber
é suportar (paschein) alguma coisa» (424 a 1 ) . O autor introduz ainda duas impor­
tantes distinções na teoria da percepção. A primeira, entre «sensíveis por si» e «sen­
síveis por acidente», a outra, entre «sensíveis próprios» e «sensíveis comuns».
Aquela diz respeito ao facto de os sensíveis por acidente possibilitarem a percepção,
porque os sensíveis por si, sendo qualidades (v.g. o branco como sensível próprio da
vista), não existem ! Os sensíveis comuns são o movimento, o repouso, o número, a
figura, a grandeza, a unidade, i. e. , objectos que não são próprios de cada um dos
sentidos, que não são percebidos por um órgão sensorial particular (4 1 8 a 1 7 e 425 a
1 6) . Assim, a um sentido comum cabe acompanhar a percepção dos sensíveis pró­
prios por cada um dos sentidos particulares, competindo-lhe depois tomar conheci­
mento de que percebemos e, por fim, comparar entre si as percepções dos diversos
sentidos. Esta extensão sensorial é uma marca própria do aristotelismo, mormente
contra Platão, o mesmo devendo dizer-se das suas psicologia e epistemologia.
Enquanto muitos filósofos anteriores falavam de faculdades sublimes, específicas do
humano, Aristóteles faz principiar na percepção todo o conhecimento e, portanto,
também o pensamento. Dito de outra maneira: sensibilidade e imaginação deixam de
ser obstáculo ao conhecimento intelectual e passam a ser uma mediação necessária
para o mesmo. Há, por isso, uma faculdade, a phantasia, que tem por tarefa produzir
imagens e «a alma não pensa sem imagens» (43 1 a 1 6). Porém, se a imaginação é
uma faculdade sensível, também é uma «espécie de pensamento» (433 a 1 0). Aris­
tóteles diz dela ser calculadora e deliberadora (433 b 29 e 434 a 7), mas não se pode
confundi-la com o intelecto (nous), desde logo - precisa Aristóteles - porque quem
diz que o intelecto é que move a acção do indivíduo confunde intelecto e imagina­
ção. Por isso, o De Anima passa a estudar a parte motora da alma depois da sensi­
tiva: «a faculdade desiderativa, a única que pode levar o animal à acção, necessita,
para isso, da faculdade de nos representar esses fins.» 2
Em contraste com o espaço dedicado a estas matérias, está o tratamento mais
reduzido do pensamento, situado entre o estudo da percepção sensível e antes da
faculdade motriz. É mesmo notável o esforço de Aristóteles em decalcar a faculdade
de pensar sobre a de sentir (427 a 1 9), mas há uma diferença não menos notável (429
a 27) : o intelecto, que é o órgão do pensamento, tem por objecto formas sem matéria
(os inteligíveis). Compete a um trabalho de abstracção e de indução captar o inteli­
gível no sensível. Esta separação da materialidade, e também a universalidade ou

0) Cf. CRUBELLIER, M. & PELLEGRINI, P., Aristote . .. 274.

(Z) CRUBELLIER, M. & PELLEGRINI, P., Aristote . . 278.


.
Introdução Geral 81

neutralidade do pensamento ou intelecção, permitem pôr a hipótese de uma alma


intelectiva separada, não misturada com o corpo (429 a 24). A actividade de pensar,
enquanto abstracção ou separação, é uma espontaneidade, em comparação com a
percepção (4 1 7 b 1 8). Aristóteles vai buscar um termo muito platónico, naus ( 'inte­
lecto' ou 'intelecção' ), para descrever tal espontaneidade, e este procedimento fez
com que a tradição detectasse uma incoerência ou, se quisermos ser menos severos,
um problema: de uma teoria empirista e psicologista passa-se a uma dimensão meta­
física e a uma filosofia do intelecto. Mais: porquê esta entidade separada, se a teoria
vai no sentido de definir a alma como a forma ou realização do corpo? Procurou-se
também discernir a relação e o estatuto das duas expressões intelectivas, que a tradi­
ção designou por «intelecto possível», «paciente» ou «passivo» e «intelecto activo»
ou «agente». Este, que tem por função trazer à luz ou actualizar as estruturas do
mundo inteligível presentes em potência no mundo da experiência pela conservação
ou promoção do que se encontra já no intelecto paciente, pode ser ou uma entidade
transcendente (como o intelecto divino, v.g. ) ou um poder da alma humana, apenas
acrescentado à memória e à discursividade próprias do ser humano.
Após esta brevíssima sinopse da trama do De Anima aristotélico, nada melhor do
que a confrontarmos com o seu comentário coimbrão, que conheceu, pelo menos, 4
edições em Itália, 6 em França e 7 na Alemanha !
A seguirmos a escassa literatura contemporânea especializada, as contribuições
dos Comentários dos Jesuítas de Coimbra para a psicologia peripatética situar-se­
-iam, por um lado, como consolidação ou efectivação das determinações de Latrão
( 1 5 1 3) � quiçá em reacção às teses de Pedro Pomponazzi 3 - «racionalizar a doutrina
cristã» é a expressão de Eckhard Kessler4 -, por outro, como um momento filosó­
fico, seja destrutivo, seja construtivo, na longa e também diversificada história do
aristotelismo? No que à destruição diz respeito, seria o caso em que o tom confuso e
complicado da escrita, tomando difícil discernir a posição do autor, fez declinar a
discussão psicológica? Alheia a esta curiosa oposição estaria a tese de Benigno Zilli
ao procurar aquilo que hoje chamamos a 'Wirkungsgeschichte' dos Comentários de

(I) ANDRADE, A. A., «Introdução . . . » XVI-XVII.


(Z) MP II 255 : «ln logica et philosophia naturali et metaphysica doctrinam Aristotelis profiteri
oportebit; et meminerint praeceptores canonis concilii lateranensis, octava sessione hac de re . . . ».
<3) LOHR, Ch. , «Jesuit Aristotelianism and Sixteenth-Century Metaphysics» in Paradosis. Studies
in Memory of Edwin A. Quain, ed. FLETCHER III, H. G. & SCHULTE, M. B . , New York
1 976, 205 . Sobre Pomponazzi, vd. KESSLER, E., «The Intellective Soul» in SCHMITT, Ch. B .
et ai. (ed.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy . . . 500-507 ( o seu De
immortalitate animae é de 1 5 1 6 , reed. de 1 525)
<4l KESSLER, E., «The Intellective Sou!» 508; DES CHENE, D., Life 's Form. Late Aristotelian
Conceptions of the Sou!, Ithaca London 2000, 45-52.
<5l SIMMONS, A., «Jesuit. . . » 535, 525 : « . . . the version of Aristotelianism expressed in these text­
books represents a vital and constructive moment in the long history of Scholastic
Aristotelianism, it advances new and interesting positions; it produces quite sober
interpretations of Aristotle; and it develops rigorously philosophical arguments.»
<6) KESSLER, K. & E., «The Concept of Psychology» 462.
82 Introdução Geral

Coimbra! dimensão a que os trabalhos citados de Des Chene conferiram amplitude


adicional. Lembremos que há quase cem anos, E. Gilson havia elencado inúmeros
passos do comentário português com significativos paralelos na obra de Descartes?
Mais recentemente, e sem deixar de relativizar o trabalho coimbrão, Sascha Salatowski
pôde afastar qualquer ideia de declínio ao situar o nosso Comentário ao De Anima
no contexto mais vasto de uma história da filosofia do espírito, em confronto quer
com a teologia radical luterana, quer com a filosofia aristotélica radical italiana�
Ao lermos as páginas atribuídas a Manuel de Góis, dificilmente poderemos dizer
que o trabalho sobre o De Anima é um comentário «medieval» àquela obra de Aris­
tóteles. Esta verificação nada tem de surpreendente porque os Comentários dos
Jesuítas de Coimbra não são anacrónicos. No que toca à psicologia, eles partilham
em absoluto daquela «confluência abrupta das correntes clássica e medieval, que
confere à psicologia do Renascimento o seu drama e singularidade» 1 Eis o que tere­
mos de submeter a prova.
Seguindo uma linha utilizada anteriormente por nós mesmo� compararemos de
seguida o tema de cada um dos livros, copiando os títulos dos respectivos capítulos
de acordo com uma edição contemporânea (à esquerda no quadro), com os paralelos
respectivos do comentário lusitano (à direita) ? Dos paralelos resultará, cremos, a
percepção clara e imediata da distância deste comentário em relação ao texto
comentado.

C l ) BENIGNO ZILLI, J., Introducción . . . ; ANDRADE, A. A. B. de, «Teses fundamentais da


Psicologia dos Conimbricenses» in ID., Contributos para a História da Mentalidade Pedagó­
gica Portuguesa, Lisboa 1 982, 99- 1 4 1 .
(Z) GILSON, E., Index. . . 1 3 - 1 7 , 52-3, 60, 97-8, 1 4 1 -42, 1 79-80, 206- 1 5 , 260-6 1 , 266-69, 302, 304,
329-3 1 entre outros mais.
(J) Cf. SALATOWSKY, S . , 'De Anima '. Die Rezeption der aristotelischen Psychologie im 16. und
1 7. Jahrhundert, Amsterdam Philadelphia 2006.
(4) KESSLER, K. & E., «The Concept of Psychology» 462; ANDRADE, A. A. de, «A Renascença
nos Conimbricenses» in ID. , Contributos . . . 6 1 -97.
(S) CARVALHO, M. S . de, «Filosofar na época de Palestrina ... » 4 1 9 .
(6) Servir-nos-emos d a seguinte edição: Aristote. D e l 'âme. Texte établi par A. Jannone; traduction
et notes de E. Barbotin, Paris 1 980. Existe uma tradução portuguesa: Da Alma. Trad. de C. H.
Gomes, Lisboa 200 1 ; para uma introdução à obra, REALE, G., Introdução a Aristóteles, trad. ,
Lisboa 200 1 , 7 1 -82 com bibliografia adicional.
Introdução Geral 83

Livro 1

Proémio do Livro 1: Utilidade das afirmações


destes livros; o seu assunto, superioridade,
e ordem dos restantes comentários de
Aristóteles.
1 Questão: Se a contemplação da alma
intelectiva é do âmbito da disciplina da fisiologia.

Cap. 1 : I ntrodução Geral (interesse A dignidade da ciência da alma; método


e dificuldade da investigação; problemas para encontrar a definição da alma e o modo
a resolver; defin ição física e definição utilizado pelo Fisiólogo, Médico, Dialéctico
dialéctica) e Matemático.

Cap. 2 : Opiniões dos antecessores Apresentam-se três escolas de filósofos


(caracterização da alma pelo movimento; que mais ou menos se dividem quanto
a alma defi nida pelo conhecimento à natureza da alma
e constitu ída por elementos; sumário)

Cap. 3: Crítica da teoria da alma automotriz


(o movimento não pertence à alma; crítica
à teoria de Platão; a união da alma e do corpo
fica por explicar)

Cap. 4: A teoria da alma-harmonia e a da alma


número automotriz (regresso à teoria da alma
móvel e motriz; crítica da teoria da alma
número automotriz)

Cap. 5: Crítica às diversas teorias sobre


a natureza da alma: continuação e conclusão
(últimos argumentos contra a teoria da alma
número automotriz; a alma não se compõe
de diversos elementos; estas teorias
não se aplicam a todos os tipos de alma;
estaria a alma presente em todas as coisas?;
o problema da unidade da alma). 1
1

Livro II

Cap. 1 : A definição da alma Apresentam-se as seguintes divisões:


(a alma é substância formal do ente , da substância e do acto; passa-se
e enteléquia; prova da defi nição) à primeira definição da alma.
9 Questões: Se Aristóteles definiu
correctamente a alma; se a alma é ou não
subsistente; se a alma intelectiva foi ou não
criada por Deus; em que momento do tempo
parece que a alma intelectiva é infundida
no corpo ; se todas as almas intelectivas têm
a mesma dignidade; se a alma intelectiva
é a verdadeira forma do homem; se as almas
que participam da razão se multiplicam ou não
pelos vários homens; se todas as almas são ou
não divisíveis; se se encontra a alma por inteiro
no corpo todo ou numa qualquer parte dele.
84 Introdução Geral

Cap. 2: Justificação da definição da alma Apresentada a tripla via para a definição


(as diversas funções que têm a alma como e estabelecidos os quatro géneros de
princípio; a alma forma e enteléquia operações da vida, examina-se a segunda
de um determinado corpo vivo) definição da alma, a partir dos efeitos,
e demonstra-se o fim do capítulo anterior.
1 Questão: se a definição da alma
a seguir foi correctamente transmitida
e se por ela se demonstra a definição anterior

Cap. 3: As faculdades da alma: Apresentam-se cinco facu ldades da alma


sua distribuição pelas espécies vivas nas quais se integram os quatro géneros
e a sua hierarquia de seres vivos; e exemplifica-se figuradamente
pela comparação da alma vegetativa,
sensitiva e intelectiva.
5 Questões: se é correctamente atribuída
a tripla variedade de almas; se há cinco
géneros de faculdades e quatro de seres vivos;
se as faculdades da alma promanam da sua
essência; se as faculdades da alma d iferem
realmente entre si ou não; se as faculdades
se distinguem pelo acto e pelos objectos.

Cap. 4: A faculdade nutritiva Aborda-se a definição da alma vegetativa;


(digressão: a tripla causalidade da alma; enumeram-se três das suas funções: nutrição,
regresso ao estudo da alma vegetativa) aumento e geração; acrescenta-se a propósito
algo mais sobre o alimento e o calor.
1 Questão: se as faculdades da alma
vegetativa se distinguem realmente entre si.

Cap. 5: A faculdade sensitiva É da natureza da alma sensitiva ter uma


(sentir em potência e senti r em acto; diferentes potência passiva, o que se prova com muitas
graus da potência e do acto; diferentes indicações sobre o acto e a potência;
acepções da paixão e da alteração; aplicação no meio apresentam-se aquelas por que
à faculdade sensitiva) se diz que algo age passivamente .

Cap. 6: Sensível próprio, comum Apresenta-se a tripla divisão do sensível


e por acidente comum e define-se cada um.
6 Questões: se o sentido é apenas uma
faculdade passiva ou também é activa;
se algumas espécies de sensíveis se imprimem
com vista às operações; se, pelo poder divino,
se pode dar algum conhecimento abstracto
pelos sentidos externos; se há cinco sensíveis
comuns; se o sensível comum marca uma
espécie própria no órgão respectivo; se se dá
o erro no sentido quanto ao sensível próprio.
Introdução Geral 85

Cap. 7: O visível e a vista Elogia-se a superioridade da visão e do objecto


(a cor; o diáfano e a luz; os objectos e aborda-se em conjunto o meio e a natureza
fosforescentes; necessidade do meio; o fogo) da vista.
9 Questões: se Aristóteles definiu ou não
correctamente o diáfano e a cor; se a natureza
da luz e da cor é ou não a mesma; qual o lugar
e a origem da cor; se para se ver se exige
a luz por causa do meio ou apenas por causa
do objecto ou por causa de ambos; se a visão
acontece pelos raios em itidos pelos ol hos
ou recebidos do objecto pelas imagens;
se a composição dos olhos é adequada para
se poder ver; se a visão acontece no humor
cristalino; se se vê a imagem no espelho;
se aqueles que o povo considera vedores
vêem de facto a água debaixo da terra.

Cap. 8: O som e o ouvido Aborda-se a audição, objecto, funções,


(o papel do meio; a audição; a voz; a fenação; diferenças de sons, instrumento e formação
especificidade da voz) da voz.
4 Questões: o que é o som e qual é a causa
que o produz; qual a matéria e o meio do som;
como se forma a voz e qual a sua natureza;
a faculdade auditiva.

Cap. 9: O odor e o cheiro Natu reza do odor, tipos, meio e instrumento.


(espécies de odores e de sabores; o olfactivo) 5 Questões: se o odor é uma exalação
de um corpo perfumado; como se constitui
o odor e qual é a sua matéria; como se difunde
o odor e por que meio alcança o olfacto; o que
é o órgão olfactivo; se o olfacto do Homem
é mais embutido do que o dos outros animais.

Cap. 10: O gosto e o paladar Natureza do paladar, objecto, tipos, meio


(o sápido, o órgão) e instrumento.
2 Questões: lugar e natureza do paladar
e seus tipos; se o paladar difere pelo órgão
e por natureza do sentido do lacto.

Cap. 1 1 : O tang ível e o lacto Pondera-se a natureza do lacto e os seus


(o órgão do lacto é uno ou múltiplo? ; instru mentos.
a carne é o órgão ou o 'meio' do lacto? ; 3 Questões: q u a l é o órgão do lacto e o seu
o lacto exerce-se através de um meio? , meio; há um ou vários tactos; se se pode sentir
a carne, 'meio' do lacto; os tangíveis) um sensível que ultrapasse os sentidos.

Cap. 1 2: Processo geral da sensação Examinam-se alguns temas comuns


(corolários) aos sentidos, como receber a espécie e ter
um órgão , e esclarece-se como reside
em parte nos sentidos singulares.
86 Introdução Geral

Livro III

Cap. 1 : Da existência de um sexto sentido. Disserta-se sobre o número dos sentidos


Primeira função do sentido comum (não há externos, que são apenas cinco,
sexto sentido; o sentido comum percebe e prova-se que pertencem ao Homem
os sensíveis comuns) e aos seres vivos perfeitos adaptados
aos órgãos dos sentidos de uns e outros.
1 Questão: se há cinco sentidos externos.

Cap. 2: O sentido comum: segunda e terceira Apresenta-se o sentido comum que distingue
funções (o sentido comum torna a sensação as acções dos sentidos externos.
consciente; o sentido comum ajuíza sobre 2 Questões: se os sentidos externos
os sensíveis e unifica o conhecimento) conhecem ou não as suas funções; se há
um sentido comum e se reside no cérebro.

Cap. 3: Diversas funções do conhecimento. Explica-se o número dos sentidos internos


A imaginação e suas diferenças mútuas e por fim trata-se
(distinção das fu nções do conhecimento; das definições da fantasia e da imaginação.
a imaginação; a imaginação não é a sensação; 2 Questões: se os filósofos estabeleceram
a imaginação não é nem a ciência, devidamente o número dos sentidos i nternos;
nem a intelecção, nem a opinião; definição se algum sentido interno divide, compõe
de imaginação) e discorre .

Cap. 4: A intelecção e o intelecto em potência Expõe-se a natureza do intelecto possível


(processo da intelecção; as modalidades e de passagem aprecia-se como é que
da intelecção; prova da teoria) a intelecção acontece.

Cap. 5: A distinção dos dois intelectos Mostra-se a natureza e o papel do intelecto


agente e apresentam-se os seus atributos.
6 Questões: se o intelecto agente se encontra
ou não na alma humana; quais são as tarefas
do intelecto agente; se é ou não necessário
estabelecer no nosso intelecto a existência
de espécies inteligíveis; se há ou não no nosso
i ntelecto espécies inteligíveis que são próprias
das coisas singulares; se todos os sentidos
internos concorrem, e em que género de
causa, com o intelecto agente, para produzir
as espécies inteligíveis.

Cap. 6: Algumas operações do intelecto: O intelecto, q uanto aos vários modos


a intelecção dos compostos e dos indivisíveis de operação, em acto, em simples
(a intelecção dos compostos; os indivisíveis e em composto, e trata-se de saber por que é
em acto ou contínuos; os indivisíveis formais; que a verdade e a falsidade se encontram nele.
os indivisíveis privativos)

Cap. 7: O intelecto prático A partir do exemplo do sentido comum


(lembrança: o processo da intelecção; estabelece-se a diferença entre o i ntelecto
como 'julga' a sensação; a intelecção prática) prático e o especulativo.
Introdução Geral 87

Cap. 8: Distinção e coordenação O que se disse nos anteriores capítulos acerca


das faculdades do conhecimento do sentido, da simplicidade, da composição
e da divisão do intelecto , é adaptado agora
à alma.
8 Questões: se o intelecto paciente é ou não
uma potência passiva e uma potência
totalmente pura; se o i ntelecto paciente é uno
ou múltiplo na espécie humana; se a i ntelecção
é ou não geradora de verbo; como é que
diferem entre si as espécies inteligíveis,
a intelecção, o verbo e o objecto; se temos
conceitos próprios das coisas singulares;
se o nosso intelecto pode ou não pensar
em várias coisas ao mesmo tempo; se a alma
humana se pensa a si mesma pela sua
essência, e se conhece ao mesmo tempo
a capacidade de pensar e a si mesma,
bem como as próprias funções e os hábitos
que lhe são inerentes; se para pensar se
carece ou não da especulação do fantasma.

Cap. 9: A faculdade motriz Tratadas todas as faculdades da alma,


(qual é a faculdade motriz? contra a separação prova-se que nenhuma delas tem a capacidade
real das faculdades da alma; o princípio de mover.
do movimento local)

Cap. 1 0: U nidade do princípio motor O que é a faculdade motriz, quais os seus


(a faculdade motriz é una ou múltipla? ; princípios e órgãos, e quais os que
análise do movimento) se encontram no movimento animal.

Cap. 1 1 : A faculdade motriz e as outras Sendo o apetite princípio do movimento,


faculdades (o silogismo prático) inerente a todos os seres animados, conclui-se
que lhes pertence também a capacidade
motriz; aborda-se a razão deliberativa, a qual,
por só pertencer aos referidos seres animados
racionais, é o princípio do movi mento deles.

Cap. 1 2: Os diferentes sentidos Comparam-se entre si as faculdades


e a conservação do vivo da alma, das quais, apenas duas, a do gosto
(o tacto e o gosto; os outros sentidos e a do tacto, pertencem necessariamente
e a percepção à distância) a todos os seres animados.

Cap. 1 3: O corpo vivo é composto. Nenhum animal se compõe de um só elemento,


Necessidade do tacto mas de quatro, e destru ído o tacto não é
(o corpo vivo é composto; necessidade do tacto) possível viver mu ito mais.
5 Questões: se o apetite se divide
devidamente em intelectivo e sensitivo;
se a vontade é ou não mais nobre do que
o intelecto; se a vontade difere realmente
ou não do intelecto; se é ou não preciso
dar-se um conhecimento judicativo no intelecto
para que a vontade cause o seu acto;
se para o movimento dos seres animados
confluem ou não a torça reguladora,
a impulsionadora e a executória.
88 Introdução Geral

Façamos um primeiro balanço sobre o sumano do trabalho dedicado ao De


Anima. Do livro 1 interessa aos Jesuítas sobretudo o problema epistemológico da
definição da alma (c. 1 ), subestimando o problema histórico dos três alegados dis­
tintos grupos que consideraram a natureza da alma (cc. 2 a 5). De notar que o carác­
ter diaporemático e doxográfico do livro 1 era razão invocada desde o século XIII
para o mesmo não ser 'lido' na íntegra. Isto também ficará consagrado numa deter­
minação da Ratio� o que explica decerto que um manuscrito coimbrão de um
comentário incompleto ao De Anima (# 2399), apressadamente atribuído a Pedro da
Fonseca, com data de 1 559-60, dê menor importância ao livro 1, também baseado na
premissa de que Aristóteles nesse lugar não teria emitido a sua opinião � Outro
aspecto muito relevante no comentário ao livro primeiro é o proémio geral que
anexa ao costumado exame metodológico-epistemológico - utilidade, ordem, maté­
ria tratada e divisão dos vários livros - uma aparentemente inesperada questão
acerca da alma intelectiva. Ora, esta conjugação é nuclear no quadro de uma caracte­
rização do que os autores designam por scientia de anima (expressão que estará
prestes a ser substituída pela de 'psicologia3 ), dividida, como veremos, entre os
aspectos sensíveis e inteligíveis, entre as dimensões epistemológicas e ontológicas.
Perguntava-se nessa questão se o referido estudo dizia ou não respeito à filosofia
natural (physiologia). Segundo a interpretação reactiva de Des Chene, tal anexo teria
um carácter profiláctico preventivo «de maneira a que os estudantes pudessem de
imediato ficar inoculados contra o averroísmo»� Pode ser (teremos de voltar a este
ponto), mas o que este livro inicial exigia aos alunos tinha a ver sobretudo com: (i) a
situação literária da scientia de anima; (ii) o problema epistemo-metodológico da
definição de alma (methodus inveniendi animae definitionem) ; (iii) a determinação
da base tisico-natural da alma intelectiva e, portanto, do pensamento ou do espírito.
Comecemos por atentar, e para que fique devidamente atenuada a interpretação de
Des Chene, que na 'explanatio' do capítulo 1 ocorre a problematização sobre a inde­
pendência da alma intelectiva a propósito de 403 a 3 - 1 6. As alegadas dificuldade e a

( I J MP II 256: «ln primo libro de anima, nihil est diligendi studio explicandum praeter prooemium;
secundus vero liber et tertius exacte sunt praelegendi.» De referir a posição de Jerónimo Torres
( 1 532- 1 6 1 1 ) no plano do curso dado em Roma no ano lectivo de 1 5 6 1 -62, ibid. 456: «Primi libri
prohemium explicandum videtur. Veterum opiniones non omnino praetermittendae videntur,
nam in illis confutandis Aristotelis opinio circa multa innotescit, sed perstringendae. Secundus
et tertius liber accurate explicandi.»
c 2i ln Primum Aristotelis de Anima, Scholia, Ms. 2399, foi. 9v: «Deinceps toto reliquo hoc libro
veterum philosophorum opiniones de anima prosequi.» Este Comentário termina porém no
Livro II (foi. 82r) e é seguido por um Comentário à Metafísica (83r - l 03r) também incompleto,
e interpolado (92r - 94r) por um título «De Missa», de outra mão.
C 3l Parece que o termo «psicologia» ocorre a primeira vez em 1 575, na obra de Johannes Thomas
Freigius, Catalogus locorum communium, mas só no século XVIII, com a obra intitulada Psy­
chologia empirica de Ch. Wolff ( 1 732) ele se tornará corrente; vd. BAKKER, P. J. J. M., «Natu­
ral Philosophy, Metaphysics, or Something in Between? Agostino Nifo, Pietro Pomponazzi, and
Marcantonio Genua on the Nature and Place of the Science of the Sou!», in BAKKER, P. J. J.
M. & THIJSSEN, J. M. M. H. (ed.), Mind, Cognition and Representation. The Tradition of
Commentaries on Aristotle 's De Anima, Aldershot - Burlington 2007, 1 77 .
C4l DES CHENE, D., Life 's Form ... 7 7 , n. 1 9 ; SALATOWSKI, S., D e Anima . . . 1 86.
Introdução Geral 89

utilidade de uma tal problematização decorrem, portanto, do próprio texto de Aris­


tóteles, que interroga se há ou não um acto ou afecção própria da alma e se o pensa­
mento se pode nesse caso dar sem o corpo. Sendo certo que os Jesuítas reparam que
o tratamento do tema é imprescindível para a dilucidação da temática coeva da
imortalidade da alma - recordemos a expressão e repercussão 'portuguesa' deste
mesmo tema em Uriel da Costa ou em Espinosa 1 -, não é menos certeiro observar-se
que a questão é imposta logo pelo próprio texto de Aristóteles. É , por conseguinte,
esta a razão pela qual as três maneiras de a alma participar na razão (animus/ratio)
concitam uma discussão de natureza epistemológica relacionada com a coordenação
das ciências, mormente da matemática, da física e da metafísica. A ideia será chegar
a justificar por que razão Aristóteles atribuiu à física o estudo da alma, quer no seu
estado de união com o corpo, quer quanto à pesquisa sobre a sua natureza e essência.
A única das três maneiras de participação que se exclui é, obviamente, a do estado
em que ela se separa da matéria, dimensão esta objecto de estudo do apêndice publi­
cado no volume do De Anima (Tractatus de Anima Separata), que não será tradu­
zido aqui.
No que concerne ao livro II, os Jesuítas conimbricenses atêm-se à posição de
Aristóteles sobre a natureza da alma (cc. l e 2), ocupam-se da divisão mais comum
ou básica das faculdades (c. 3), das funções da alma vegetativa (c. 4) e, sobretudo,
da alma sensitiva (cc. 5 a 1 2). A definição da alma continua a constituir pedra angu­
lar do seu labor. No entanto, há capítulos do De Anima que lhes suscitam discussões
amplas. É o caso, naturalmente, do primeiro. A propósito da adequação da definição
aristotélica, ele ultrapassa o aristotelismo em aspectos mais teológicos (criação da
alma intelectiva por Deus, em que momento do tempo ela é infundida no corpo e a
dignidade das almas intelectivas) e em aspectos histórico-filosóficos (relação da
alma intelectiva com a teoria hilomórfica, monopsiquismo, relação alma/faculdades/
/corpo). É o caso também do terceiro capítulo, na esteira do último tema, interro­
gando o horizonte das faculdades da alma. São ainda as seis questões discutidas no
capítulo sexto: natureza da sensação, o tema das espécies sensíveis, a questão do
conhecimento abstractivo baseado exclusivamente nos sentidos, a relação entre
sensível comum e espécie, o problema do erro. Tal como em relação ao primeiro
capítulo, também no sétimo - sobre a vista - encontramos, nada mais, nada menos,
do que nove questões a examinar. Mais adiante veremos qual a razão para um tal
empolamento. Embora os seguintes capítulos (mormente 8 a 1 1 ) se dediquem aos
restantes quatro sentidos, também detalhando algumas questões a propósito (quatro
questões sobre a audição, cinco sobre o olfacto, duas sobre o paladar e três sobre o
tacto), parece-nos paradigmático o horizonte da teoria da percepção sensível e a sua
importância, tal como se anuncia no capítulo sobre a vista: de novo, a avaliação da
definição aristotélica, a natureza e a relação dos vários intervenientes no processo da
sensação, além de problemas de natureza mais biológico-naturalista (sobre o crista-

O l Cf. BOLDUC, C. R., «L' origine dês hérésies de Spinoza: une pensée radicale» Cahiers de
Philosophie. Série A, fase. X (2007) 25-62.
90 Introdução Geral

lino, a capacidade dos vedares ou sobre os sentidos do Homem em relação aos res­
tantes animais 1 ).
Finalmente, quanto ao livro III, também dividido em quatro partes como o ante­
rior, interessa-lhes o número dos sentidos externos (c. 1 ), o número dos sentidos
internos (cc. 2 e 3), o tema do intelecto (cc. 4 a 8) e do princípio do movimento dos
seres animados (cc. 9 a 1 3). Sobressai, de facto, o número impressionante - oito -
das questões do capítulo oitavo que Aristóteles consagrou, nas palavras de E. Bar­
botin, ao tratamento da «distinção e coordenação das faculdades do conhecimento»,
e que para os Jesuítas é o lugar de investigação sobre o intelecto passivo (sua natu­
reza, número) e sobre o pensamento (verbo, espécies inteligíveis, objecto, conceitos
das coisas singulares, conhecimento de si mesmo, necessidade das imagens). Em
contraste, repare-se na ausência de questões no capítulo quarto, no sexto e no sétimo
(os temas são mais ou menos remetidos para o oitavo ou aí tratados), o mesmo suce­
dendo nos capítulos nove a doze (relegados para o estudo das relações von­
tade/intelecto nas cinco questões do último capítulo do livro). A importância dada à
natureza do pensar é patente também nas seis questões do capítulo cinco, o qual,
mais do que sobre a distinção entre os dois intelectos, versa, segundo os Jesuítas,
sobre o intelecto agente (sua natureza e tarefas), e sobre as espécies inteligíveis.
A divisão em nove partes dos três livros, com as setenta e uma questões que
dizem respeito a essas nove partes, parece confirmar a afirmação de Katherine Park,
que a autora apoiou sobretudo na leitura que fez de Margarita philosophica (c.
1490) de C . Reschius: «a doutrina sobre a percepção é sobremodo o aspecto mais
complicado e pormenorizado das obras do Renascimento dedicadas à alma orgâ­
nica» ? No caso dos Jesuítas portugueses, a verificação é igualmente flagrante, mas o
conspícuo interesse pelo universo do sensorial detecta-se também, v.g. , no plano de
João Maria ( 1 535- 1 624) para o ano lectivo de 1 5 6 1 162 em Roma� Quase cinquenta
por cento das questões dos Jesuítas de Coimbra (35 questões para sermos exactos)
dedicam-se à teoria do conhecimento sensível, quinze questões versam a natureza e
a essência da alma e catorze ocupam-se do intelecto. Impõe-se, portanto, esta obser­
vação: não só o caso Pomponazzi parece não ser obsessivo como parecem ter, da
psicologia aristotélica, uma visão mais afim à de Lloyd (a psyché é a forma de um
corpo vivo em potência4 ) do que à da tradição antiga da metafísica da alma. Dito de
uma outra maneira: o comentário parece estar mais próximo de uma leitura organi-

(I ) Cf., neste último caso, ln III De Anima . . II c. 9, q. 5; vd. também M. S. de Carvalho & F.
.

Medeiros, «Em torno do paradigma da visão no século XVI: luz, visão e cores no Comentário
Jesuíta Conimbricense ( ' De Anima' II 7)» Revista Filosófica de Coimbra 1 8 (2009) 43-70.
<2) PARK, C., «Organic Soul» in The Cambridge History of Renaissance Philosophy ... 470.
<3l Cf. MP II 443-44.
<4l LLOYD, G. E. R., «Aspects of the relationship Between Aristotle' s Psychology and His Zool­
ogy» in Essays on Aristotle 's De Anima, ed. NUSSBAUM, M. C. & OKSENBERG-RORTY,
A., Oxford 1 992, 1 47- 1 67.
Introdução Geral 91

cista do que de uma interpretação inserível na rubrica da filosofia da mente ! Toda­


via, e depois do que mostrou S. Salatowski, seria estultícia subestimarmos a impor­
tância deste domínio concitado pelo autor para o âmbito da filosofia do espírito.
Decerto que assim se explica também, naturalmente por razões distintas, a existência
dos dois tratados apensos, o Tractatus de Anima Separata e o breve compêndio de
problemas respeitantes às faculdades exteriores à alma, Tractatio A liquot Proble­
matum ad Quinque Sensus Spectantium. Muito gostaríamos de deixar a publicação
destes dois apêndices para um outro volume. Fiquemo-nos, por isso, por uma breve
referência. Depois de o redactor do comentário ao De Anima haver tratado detalha­
damente (livro II, cc. VII a XI) da mecânica dos cinco sentidos � a Tractatio acres­
centa seis secções com oitenta e sete problemas, à maneira dos Problemas do
Pseudo-Aristóteles (em particular, cita explicitamente os Livros 7, 1 1 , 1 9, 28, 3 1 , 33
e 34, mas o mesmo tipo de apenso também ocorre nos comentários aos Parva Natu­
ra/ia), relativos aos cinco sentidos (sendo que a secção III se ocupa conjuntamente
do som e da voz) ? Por seu lado, o Tractatus de Anima Separata revela a outra conse­
quência dos limites do De Anima em matéria já não de exclusiva psicologia, mas de
verdadeira antropologia e ontologia metafísicas, haja em vista a extraordinária rele­
vância com que se examina o pensar em si mesmo e o espírito na sua última dimen­
são. Este duplo aditamento editorial, de sentido antagónico, que parece sintonizar
afinal com os dilemas de uma época filosófica nova dividida entre o que virá a cha­
mar-se a res extensa e a res cogitans, evidencia antes a solução particular da «scien­
tia de anima» do Colégio de Coimbra da Companhia de Jesus.
Esta rápida inspecção estrutural não ajuda só a perceber os momentos textuais
filosoficamente mais relevantes do De Anima, segundo os seus comentadores, mas
permite-nos enumerar, no fim de contas, quais os principais temas do âmbito da
psicologia filosófica sistemática que eles julgavam dignos de ser investigados ou
ensinados. Pode, deste modo, verificar-se a exacta distância que separa os comenta­
dores do texto comentado: lugar da scientia de anima ; teoria da percepção; conhe­
cimento intelectivo; relações da vontade com a intelecção. No que se segue, não
daremos igual relevância a cada um destes quatro domínios.

O l SHIELDS, Ch., «Sou! and Body in Aristotle» Oxford Studies in Ancient Philosophy 6 ( 1 988)
103: «Aristotle concems himself with many of the issues we now recognise under the general
rubric 'the philosophy of mind ' » ; também IRWIN, T. H., «Aristotle' s philosophy of mind», in
EVERSON, S. (ed.), Companions to Ancient Thought 2: Psychology, Cambridge New York
1 99 1 , 56-83.
<2l Cf. ANDRADE, A. A. B . de, «Teses ... » 1 1 4- 1 9 .
<3l Tratactio Aliquot Problematum. . . p. 5 3 3 «Post tractationem singulorum sensuum, aliquot
problemata ad eos spectantia, ut in aliis nostrorum commentariorum locis, ubi opus erat, feci­
mus, breuiter exponemus» e ibid. p. 558: «Atque hactenus de problematis, quae ad exteriores
animae potentias spectant. Neque uero de aliis eiusdem animae facultatibus institutum perse­
quimur, quoniam doctrinae popularis, qualem solet Aristoteles in Problematis adhibere, mate­
riam non suppeditant.»
92 Introdução Geral

2. O lugar da scientia de anima

Logo à entrada da sua obra, Aristóteles havia-se referido à importância capital da


«investigação sobre a alma» (402 a 4-6), quer para o conhecimento da natureza, quer
para o conhecimento da verdade. Ora, é significativo que essa palavra tenha sido
interpretada 'renascimentalmente' , também pelos nossos Jesuítas, mediante uma
linguagem neoplatónica, que coloca o Homem no centro do Universo. Tenhamos
presente que desde o Quattrocento se discutia precisamente a natureza do Homem e
o seu lugar na cadeia do Universo 1 E isso acontece, não, é certo, atendo-se à identi­
dade entre saber e poder� mas à unidade entre saber e verdade que se realiza no
espírito do Homem? Trata-se da glosa ao oráculo de Delfos, «Conhece-te a ti
mesmo», temática igualmente acolhida por Toledo e Zabarella e que equivale, no
caso dos nossos Jesuítas, a estabelecer o conhecimento filosófico do conceito geral
da alma e do corpo como fundamento da ética e da metafísica. E à convocação do
oráculo antigo acresce ainda a referência, aqui e ali sempre repetida, à palavra de
Hermes Trismegisto sobre o lugar do Homem como «horizonte entre a eternidade e
o tempo» . Ora, o tom e o tema neoplatónicos são inevitavelmente condicionados
num complexo hermenêutico tradicional (de Alexandre de Afrodísia a Tomás de
Aquino, de Averróis a Alberto Magno) respeitante à tese aristotélica de uma física
da alma - notemos, de passagem, que os Jesuítas chegam a substituir a analogia do
ponto, num dado passo de Aristóteles (427 a 1 0), pela do centro, com base no her­
mético De secretiori ! 4 Quer dizer: que o estudo da alma vegetativa, sensitiva e
intelectiva concerne (na linguagem de Aristóteles) às archai ton zoon, às próprias
raízes da vida orgânica. Numa outra passagem, de algum modo paralela, mas na
Physica, Manuel de Góis deixará mesmo registada uma versão do princípio antró­
pico (dessa feita firmado tanto na Politica de Aristóteles quanto no consenso da
Patrística) segundo o qual todo o Universo se orienta para o Homem, numa direcção
de crescente complexidade?
Imperativo seria, por isso, situar epistemologicamente a «psicologia» no âmbito
da physica ou physiologia. Vimos na primeira parte como os autores de Coimbra

4
( l ) GARIN, E., L 'umanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento, Roma Bari 2004,
1 59.
C Zl Cf. ANDRÉ , J. M', Renscimento e Modernidade. Do poder da magia à magia do poder, Coim-
bra 1 987.
C 3l SALATOWSKI, S., De Anima ... 1 52.
C4l Cf. In lI/ De Anima ... II, c.2, q.2, a. l , p. 29 1 .
C 5l ln VIII Libras Physicorum . . II c . 9, q. 2, a. 1 , p. 328: «Est enim totius corporae naturae
.

universalis finis, homo, ut post Platonem asseruit Aristóteles 1° Politicorum, cap. 5º docentque
palres communi consensu, quia Deus spectabilem hunc mundum hominis gratia procreavit,
eique singulari beneficio subiecit omnia; tum quia homo iure insitae nobilitatis et eminentioris
formae praerogativa, lotam corpoream naturam ad se convocat, sibique arrogat. Est enim natu­
rae lege comparatum ut quae inferioris notae sunt ad praestantiora, si eis praesertim aliquomodo
usui esse possint, referantur. Quo pacto forma elementi, quae omnium despicatissima est ad
formam corporis mixti ordinatur; haec tandem ad animam rationalem, quae omnium formarum
numeros et perfectionem in se cohibet.»
Introdução Geral 93

discutem a topologia da filosofia e respectivas componentes. No que à psicologia diz


respeito, trata-se, primeiro (art. 1 ), de enumerar as três posições possíveis relativas
ao tema: a daqueles (como Filópono, Ternístio, Simplício e mesmo Boécio) que,
baseados no estatuto ontológico intermediário da alma, conferem o seu estudo a uma
ciência também intermediária, a matemática; a daqueles que dão esse papel à filoso­
fia primeira (seria o caso dos nossos já conhecidos neotéricos) ; finalmente, e desta
vez sobretudo com Alexandre e Averróis, a atribuição dessa tarefa à fisiologia.
Parece à primeira vista que o confronto é feito com a tradição peripatética alexan­
drina e averroísta, mas esta é uma estratégia típica dos Jesuítas conimbricenses (dis­
cutirem um problema do seu tempo de maneira etiológica), pelo que a questão é a
mais radical possível: saber se a fisiologia pode ser essa ciência única e tratar assim
da alma intelectiva. A solução definitiva destes conimbricenses não é tripla, mas
dupla, porque rejeitam a matemática como ciência média, sem, como dissemos,
porem em causa o estatuto realmente intermediário (confinium et quasi nexus) da
alma � Apresentando, embora, razões de autoridade e de epistemologia para essa
rejeição (art. 2), a verdade é que dividir o estudo da alma entre a filosofia natural e a
metafísica não impedia a tese da ciência única de Antonio Bemardi Mirandulano
(art. 3). E, de novo, seria ela a metafísica ou a física? Competirá só ao filósofo natu­
ral tratar do intelecto e dos inteligíveis ou caberia essa tarefa exclusivamente ao
primeiro filósofo?2 E como, neste quadro e antes de mais, organizar o ensino dos
vários livros da physiologia? Sobretudo, que conclusões se podem retirar no que diz
respeito às relações da física com a metafísica, por via da adopção de uma dupla
perspectiva de consideração, alternativa à tese bemardina? Importa talvez lembrar
que se ficou a dever a Alberto Magno, por um lado, a defesa do carácter preliminar
do De Anima (que preconiza que o seu estudo seja feito antes quer do De plantis
quer do De animalibus) e, por outro, a inscrição do tema intelectivo (com seu De
intellectu et intelligibili) no campo das ciências naturais � Finalmente, em termos
pragmáticos ou metodológicos, tudo isto equivale a perguntar se Aristóteles é bió­
logo da psyché ou psicólogo e metafísico da alma1 Apesar de fora de um quadro

O l ln III De Anima . . . , Prooemium, q. un, a. 2, p 7 .

<Zl ln III D e Anima. . , Prooemium, q. u n , a. 2, p 9: « S i philosophus naturalis d e intellectu ageret,


.

atque adeo de intelligibili, futurum ut nulla alia disciplina praeter Physiologiam superesset;
uidetur enim huiusmodi consecutio nullius esse momenti : tum quia pari ratione sequeretur nul­
lam esse philosophiam praeter primam, cum haec de intellectu et intelligibili disputet, tum quia
ex eo quod detur scientia, quae de intelligibili agat, haud probe infertur reliquas scientias e
medio tolli, cum eandem rem alio atque alio modo spectatatam diversae scientiae tractare pos­
sint.»
<3l Cf. LIBERA, A. de, Raison et Foi. Archéologie d'une crise d'Albert le Grand à Jean Paul II,
Paris 2003, 94, 99.
<4l FRÉRE, J., «Fonction ... » 33 1 .
94 Introdução Geral

metodológico como era o dos Jesuítas de Coimbra, os intérpretes contemporâneos,


confrontados com esta pergunta, ainda respondem de maneira bivalente !
E eis a resposta taxativa dos Jesuítas: o estudo da natureza específica da alma
racional é da competência da fisiologia, mas, se o estudo considerar o inteligível
subsistente e imaterial, é tarefa da metafísica? Não se julgue que a peleja tem uma só
direcção, recuperar a metafísica. Esta presunção, apressada, colidiria com a extensão
quantitativa da perspectiva fisiológica e com a perspectiva aristotélica de fundo. A
sua dupla solução é tanto mais forte quanto dialoga com a tese da tripla abstracção
da matéria, a qual, aplicada ao caso da alma, daria a seguinte classificação: unida ao
corpo; ou separada do corpo ou no seu nível intelectivo3 ; na sua própria natureza e
essência1 Ora, bastaria conjugar estas duas últimas dimensões no quadro da metafí­
sica para que a consideração física corresse o risco de desaparecer. Na verdade, não
é isso que sucede. Diz-se explicitamente que a indagação da natureza e da essência
da alma é competência da fisiologia (scrutari propriam animae naturam et essen­
tiam. . . spectat ad naturalem philosophum5 ). São apresentadas três provas em prol
desta posição. Elas afiguram-se-me a pedra angular da contribuição dos Jesuítas de
Coimbra nesta matéria: a) porque, a levar a sério a definição da alma como acto
primeiro de um corpo orgânico, é necessário incluir o conhecimento da matéria no
estudo da essência da alma (aqui eles remetem para o seu próprio Comentário à

< 1 > PELLEGRINI, P. «Le De Anima . . . » 468: «II me semble que l'étude de l' âme ( . . . ) peut cumuler
ces deux valeurs parce que la psychologie est bifide, noétique d'un côté et naturelle de I' autre.
La 'recherche sur l ' âme' (e tes psuches historía, 402a3) doit 'à juste titre être placée au premier
rang' parce que l ' intellect, dont l ' étude n' est pas facile aux êtres matériels que nous sommes,
n' est pas sans parenté avec la divinité, mais aussi parce que l' âme naturelle peut être connue

avec exactitude, ce qui est le but du De Anima».


<2> ln Ili De Anima . . . , Prooemium, q. un, a. 2, p. 8: « . . . quandoquidem cognoscere propriam ac
peculiarem animae rationalis naturam ad Physiologiae doctrinam pertinet, ut proxime statuimus.
Si autem sumantur in commune, et ut tam animae quam intelligentiis conueniunt, Metaphysicam
esse, quia sicuti substantiam, relationem, et qualitatem, ac passiones entis secundum communes
et generales conceptus speculari, Metaphysico incumbit, ut loco citato ostendimus, propterea
quod haec, etsi ex parte in materia reperiantur, secundum se tamen indifferentiam obtinent, ut in
materia sint: ita cognoscere intellectiuum, per se subsistens, et immateriale, in commune,
Metaphysici negotii est; quia esto etiam conueniant animae rationali, cuius propriam et recipro­
cam essentiam cognoscere ad physiologum spectat, secundum se tamen indiscriminatim se
habent ad animam et ad intelligentias, quae nullam habent cum materia coniunctionem.»
<3> ln Ili De Anima . . . , Prooemium, q. un, a. 3 , p. 9: « ... animam humanam non ex toto pertinere ad
philosophum naturale, quia, ut paulo ante monuimus, spectat etiam ad Metaphysicum tum
secundum statum, quem habet extra corpus, tum quoad gradum intellectiuum in commune
spectatum.»
<4> ln Ili De Anima . . . , Prooemium, q. un, a. 2, p. 7 : « ... praenotandum est animum participem ratio­
nis trifariam spectari posse. Vno modo, prout unitur corpori et in eo functiones suas administrat.
Altero, secundum attributa, quae ipsi a materia separato conueniunt, cuiusmodi sunt esse defe­
nitiue in loco, recipere species ex influxu supemi luminis, intelligere sine recursu ad phantas­
mata, alique eiusmodi. Tertio, quoad suam propriam naturam et essentiam.»
<5> ln Ili De Anima . . . , Prooemium, q. un, a. 2, p. 8. Cf. o meu O Problema da Habitação. Estudos
de (História da) Filosofia, Lisboa 2002, 293-97 .
Introdução Geral 95

Physica II, c. II, text. 22 1 ) ; b) porque a própria resposta à pergunta 'o que é o
Homem?' , enquanto este é participante dos seres animados (pars subiecta enti
mobili), depende obviamente da física; e) porque a caracterização do ser humano
como constituído de um corpo e participando de um espírito racional (homo est
animal constans corpore et animus rationis participe) é assunto da física. Este
último argumento é definitivo porque leva a sério a ideia de uma participação da
razão pelo corpo, princípio bem aristotélico e de base nitidamente orgânica, como
era em S. Tomás ? Mas, conjugado com o segundo argumento, não será menos
definitivo, apesar de introduzir uma diferença e, como veremos, um problema. De
facto, embora acolhendo uma antropologia tradicionalista cristã - referimo-nos à
Patrística grega, que havia legado a ideia do homo-nexus, patente, por exemplo, seja
em Alberto Magno, sej a em Tomás de Aquino, seja também em quaisquer interpre­
tações renascentistas neoplatonizantes do aristotelismo -, ele anuncia ainda uma
perspectiva que não pode ser inteiramente confundida com idêntica assunção por
parte de Tomás . De maneira não menos clara, já no Proémio da Physica (q . 4, a. 3)
se lê - e contra quem procurava pôr em causa a definição da física como ciência que
estuda o ente móbil, porquanto na parte respeitante à alma o seu objecto seria um
movimento não material (q. 4, a. 2) - que, das três maneiras de considerar a alma, só
uma diz respeito à metafísica, quando ela se encontra fora do corpo. Nos outros dois
casos, i. e. , quer no seu estado corpóreo (statum in corpore), quer mesmo no caso do
exame da sua essência absoluta, diz-se explicitamente que a alma, a racional inclu­
sive, depende da matéria na sua quididade. Por esta razão, cabe ao físico investigar a
essência do Homem só o podendo fazer mediante o conhecimento da natureza da
alma� Isto tem como consequência que a verdadeira discussão não seja entre uma
física e uma metafísica, mas sobre a maneira como tal divisão se pode inscrever
numa psicologia mais radical ou radicial. Escusado será dizer que Aristóteles é, por
este lado, claramente ultrapassado, além de que esta posição do Colégio dos Jesuítas
também não pode ser identificada, v. g. , nem com a solução de Paulo de Veneza (que
adicionava à sua Summa philosophiae naturalis um tratado de metafísica), nem com
a de Agostinho Nifo (que chegou a tratar a psicologia como uma scientia media
entre a física e a metafísica)� De facto, desenvolvendo uma intuição do Pseudo­
-Simplício, Nifo havia defendido a ideia segundo a qual, na sua dimensão vegetativa

O) Trata-se de ARISTÓTELES, Physica 1 94 a 1 5 -27, cuja explanatio lê: « . . . re uera pertinere, cum
tam materia, quam forma sint partes compositi Naturalis, quod Physicus considerat, eiusdemque
artificis munus sit, partes, et quod ex partibus coalescit, contemplari ( . . . ). Probat utriusque natu­
rae inspectionem Physici negotii esse, in hunc fere modum. Cum ars naturae solertiam, qua
potest, inititur, ut se habet ars ad artefacta, ita se habebit Naturalis scientia ad res Physicas, atqui
ars non formam duntaxat, sed materiam etiam considerat. Igitur Naturalis scientia non solam
rerum physicarum formam, sed earundem quoque materiam expendet.»
<2> Cf LIBERA, A. de, Thomas d 'Aquin. L ' Unité de l 'lntellect contre les Averroi'stes, suivi dês
Textes contre Averroes antérieurs à 1270, Paris 2 1 997, 2 1 0; cf. trad.port. de M. S. de Carvalho,
1 68 .
<3> ln VIII Libras Physicorum . . . Prooemium q. 4 .
<4> Cf. KESSLER, E. & K., «The Concept...» 456-57. Cf. BAKKER, P. J . J . M . , «Natural Philoso­
phy, Metaphysics, or Something in Between? . . . » 1 5 1 - 1 77.
96 Introdução Geral

e sensitiva, a alma pertenceria ao reino das ciências naturais, e na sua dimensão


intelectiva, de alguma maneira participante do sobrenatural, pertenceria ao campo da
metafísica. Que a problemática estava na ordem do dia, atestam-no posições como
as de Pomponazzi - que circa 1 503 ainda admitia a possibilidade de o estudo da
alma caber à metafísica, mas que mais ou menos dez anos depois, precisamente
contra Nifo, reduzia aquele estudo ao sector da ciência natural - ou as de Marco
Antonio Genua, que nas lições sobre o 'De Anima' excluía o estudo do intelecto da
ciência natural e contrariava a ideia da scientia media pela chamada scientia ani­
mastica, quer dizer, de um novo e autónomo domínio disciplinar que permitiria ao
«animasticus» combinar elementos da física e da metafísica ! Recorde-se, por fim,
que a exclusão de Genua, partindo de motivos de Averróis e de João de Jandun - de
acordo com os quais a alma intelectiva tem no Homem um papel meramente opera­
tivo - assinalava também a crescente intersecção da temática com a questão da
imortalidade da alma. Seria impossível, por isso, que a exegese do 'De Anima' neste
ponto específico não se tornasse um imperativo, e ele há-de mesmo chegar explicar
a mudança editorial que progressivamente deslocará essa obra do Estagirita do
campo da física para o da metafísica.
Compreende-se uma vez mais, e diversamente, a razão pela qual o Tractatus de
Anima Separata é acrescentado ao Comentário. Esta decisão, anunciada pelo próprio
Manuel de Góis nos Parva naturalia� cuja primeira edição conhecida data de 1 593,
anuncia que o estudo da alma separada é um trabalho para o metafísico, i. e. , com­
plementar ao De Anima, e, portanto, também em parte alheio a Aristóteles � Será isso
mesmo que se confirma no início do Tratado� onde se lê explicitamente que nem no

< l l Cf. PALADINI, A., La scienza animastica di Marco António Genua, Galatina 2006.
<Zl De Memoria e . 2, p. 5: «Quod ad finem librorum de Anima in Tractatu de anima separata
planius disseremus.»
<3l ln Ili De Anima . III, e . 13, q. 5 , a. 4, pg. 439-440: «Hactenus disceptatum de anima, quatenus
..

corporis constricta nexu, et contubernio addicta, ad functiones exercendas suas illius operam
emendicat, deinceps de eadem scribemus eo iam uinculo exoluta, et de separata separatam ins­
tituemus tractionem. Praestet utinam propitium Numen, ut quemadmodum de coniuncta anima,
quali potuimus industria, opus confecimus, et de separata dicturi gradum addimus ulteriorem:
sic solutus aliquando e corpore, cui coniunctus nunc animus est, in statum euadat liberiorem, ubi
soli Deo insolubili iam nexu adstrictus, et ab humanis longissimo abiunctus interuallo, uitam
auspicetur iucundissimam, et possideat beatissimam.»
<4l Tractatus de Anima Separata . . . , Prooemium, p. 44 1 : «Quoniam Aristoteles libris superioribus
nihil de anima separata disseruit, de qua multae, ac graues quaestiones inter Philosophos,
Theologosque uersantur, quarum explicatio et intelligentia non minus necessaria, quam iucunda
est: operae pretium duximus eam disputationem in praesenti suscipere; licet enim consideratio
eorum, quae ad animam praecise, ut extra corpus est, spectant, Metaphysici potius, quam Phy­
siologi sit, ut in primi libri prooemio commonuimus ; quia tamen scientia de anima sine hoc
quasi suplemento absolutionem suam adipisci non poterat, fortasseque in libris primae Philoso­
phiae apud Aristotelem commentatio haec non adeo opportunum locum habet, istiusmodi trac­
tationem superioribus libris potius attexere, quam illuc reiicere statuimus. Neque uero eas
quaestiones disputabimus; quae ad utrumque animae statum, separationis, uidelicet, atque
informationis indifferenter spectant, quales illae.»
Introdução Geral 97

comentário à Metafísica - que é, outrossim, a última das ciências ' - se justifica uma
indagação sobre a alma separada? Como se sabe Suárez - como aliás, de certo
modo, o luteranismo - defenderá que o estudo da alma separada é assunto da teolo­
gia? Ora, esse «suplemento» editorial é de ordem filosófica, conforme se provaria se
atentássemos, v.g. , no teor ético, físico e metafísico das provas em prol da imortali­
dade da alma? Sendo assim, trata-se de um suplemento ontologicamente justificado,
pois só ele (ou melhor a sua matéria) pode completar o último horizonte de uma
ciência da alma que, começando por ser física, deverá realizar o amplo projecto
especulativo da ligação entre o tempo e a eternidade. Repetimo-nos: também se
compreende assim a inclusão de um segundo apêndice, a Tractatio Aliquot Proble­
matum, representando a segunda dimensão, porém, incompleta, do exame aristoté­
lico. Ao atribuir-se esta feição psicológica à física fica em aberto uma tarefa, a de
concebê-la de uma maneira tal que não a faça coincidir com, ou superar, a perspec­
tiva unitarista de Alexandre e de Averróis no que ao estudo da alma dizia respeito.
Que psicologia natural é esta?
Os Jesuítas de Coimbra também conhecem o texto de De Partibus Animalium (1
1 , 64 1 a l 8 -b l O), em que Aristóteles estabelecia uma linha de demarcação entre
psicologia natural (física) e psicologia noética1 Acontece, porém, que o horizonte da
sua discussão em tomo da utilidade, da ordem e do tema do De Anima, não é mais o
de Aristóteles. Conhecedores da tese de Paulo Veneto ( 1 369/72- 1 429), que susten­
tava que o tema do De Anima era o corpo animado� os Conimbricenses preferem
seguir a opinião mais generalizada segundo a qual a obra trata da alma? De acordo
com a primeira interpretação (a do corpo animado), os Parva natura/ia representa­
riam uma introdução ao De Anima, «quasi accessio quaedam sunt» ? Porém, a ordem
sistemática que adoptam é a de que o De Anima se segue aos Meteorológicos. Em
conformidade, o texto a seguir traduzido aparece como a quinta das cerca de dez

( I J ln VIII Libras Physicorum . . . Prooemium, q. 5, a. 1 , 3ª conclusio.


c2J Cf. DES CHENE, D., Life 's Form . . . 1 9 .
C 3l Cf. Tractatus . . d. I , a.3.
.

C4l PELLEGRINI, P., «Le De Anima ... » 467 : «Aristote envisage plusieurs manieres possibles de
construire une science de l' âme. ( . . . ) Or la question d' Aristote dans ce passage des Parties des
Animaux, était de savoir si la physique devait s' occuper de toute l' âme ou de certaines parties de
l' âme seulement». No Proémio da Physica (q. 5, a. 4) remete-se para o c. 1 de De Part. An. a
tese de que a ciência do perecível é mais certa do que a do que é eterno, apesar de ser ciência
menos digna.
(S) Cf. ln III De Anima . . . , Prooemium, p. 3. A Summa philosophiae naturalis do A. foi publicada
em Veneza em 1 503 e o seu Scriptum super libras de Anima também de Veneza 1 408; sobre
Paulo de Veneza, vd. KESSLER, E., «The Intellective Soul» 488-90 e PARREIAH, A. R., Paul
of Venice: A Bibliographical Sketch, Bowling Green 1 986.
(6l Cf. TOLEDO, ln tres libras Aristotelis de Anima . . Prooemium q. 3 , p. 1 8.
.

C 7l ln III De Anima . . , Prooemium, p. 4. Poderia tratar-se de opiniões como as de Marcantonio


.

Genua (De ordine librorum naturalium in Aristotelis disputatio, Veneza 1 562-74; de Jacopo
Zabarella, De rebus naturalibus libri XXX, Veneza 1 607 ; ou Francesco Piccolomini, Libri ad
scientiam de natura attinentes, Veneza 1 596 (cf. KESSLER, K & E., «The Concept of Psycho­
logy» in The Cambridge History of Renaissance Philosophy . . . 456 n. 6).
98 Introdução Geral

partes em que se divide a fisiologia de Aristóteles. Isto significa a recusa de uma


ideia sobre a ciência natural a partir da classificação dos corpos. O objecto do tra­
tado de Coimbra são as causas e as razões, quer da alma em geral, quer do que é
dotado de razão e inteligência I Para o provarem, invocam a tese de que o estudo da
alma é princípio comum a toda a espécie de vida animada: «não é a partir do corpo
orgânico animal que se define a alma, mas do corpo orgânico comum aos seres
vivos» ? Isto quer dizer que o fundamento da psicologia não é orgânico-sensitivo mas
orgânico-vegetativo, o que reforça a seguinte afirmação de Des Chene: « . . . parece
que a definição da vida se tomou, para os escolásticos Jesuítas ( . . . ) uma questão
mais premente ou ao menos mais importante do que para os seus predecessores» ?
Ideia afim reaparece ln librum de Vita et Morte (c. I), onde os Jesuítas Conimbricen­
ses conjugam a caracterização da vida a partir da dimensão vegetativa presente no
pseudo-aristotélico De Respiratione com a recepção da proposta de De motu cordis,
que identifica «vida» com a alma em acto para falarem da alma como origem e fonte
das funções vitais� É o modus operandi que revela a tripla divisão da alma - vegeta­
tiva, sensitiva e intelectiva5 -, mas a constituição vegetativa ou generativa, tomada
no seu sentido mais amplo, é a parte formal do corpo animado, objecto da física; por
esta razão, é que a alma vegetativa é a raiz da qual dimanam todas as potências, em
conformidade com o esquema seguinte das faculdades6 :

Alma vegetativa em si

1 . Exclusivamente vegetativa Alma sensitiva


(anima plantarum) (animal in commune)

2. Exclusivamente sensitiva
(anima bestiarum)

3. Alma racional

( 1 ) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . , Prooemium, § 'De distributione' pag. 50: «Quinta, in libris de
anima inquirit causas, et rationes tum animae in commune, tum eius, quae ratione, et intelligen­
tia praedita est.» As partes são: Physica, De Coelo, Meteorum, De Anima, Parva Naturalia,
Historia Animalium, Partibus Animalium, De Animalium Generatione, De Animalium incessu
et de animalium motu, cf. ln VIII libros Physicorum, Prooemium § De Distributione, pg 50-52.
<2l ln III De Anima ... , Prooemium, p. 3 : « ... anima uero non per corpus organicum animalis, sed per
corpus organicum uiuentis in commune definitir.»
<3l DES CHENE, D .. Life 's Fonn. . 1 2. .

<4l De Vita et Morte c. 1 , p. 8 1 .


<5l Cf. ln III De Anima . . . II, e . 3 , q . 1 , a. 1 , p . 1 07 e II e . 2 , explanatio h sobre 4 1 3 b l 2.
<6l ln III De Anima . . . II e. 3, q. 1 , a. 1 , p. 1 08 ; cf. também p. 1 55- 1 69.
Introdução Geral 99

A interpretação do esquema é peripatética e, no caso do Homem, enquadra-se no


âmbito de uma unidade hierárquica de formas (níveis 1 , 2 e 3): « . . . diz-se que a alma
exclusivamente vegetativa está virtualmente contida na alma exclusivamente sensi­
tiva e ambas na racional, porquanto a exclusivamente sensitiva não exerce apenas as
actividades que lhe são próprias, i. e. , as funções sensoriais, mas também as da
vegetativa e a alma intelectiva exerce as funções da alma sensitiva e da vegetativa» !
Dificilmente se poderia negar o vincado pendor ascendente da psicologia de Aristó­
teles.
Reposto no seu contexto mais geral da vida (a alma vegetativa a partir de si) e não
numa das suas espécies (a vida animal), ganha uma luz particular a defesa da utili­
dade filosófica geral da obra e o próprio horizonte ontológico da psicologia, porque
o ponto principal passa a ser o da preponderância da física na sua ligação à filosofia
primeira� ponto este orientado pela ideia renascentista da alma súmula do universo,
totius mundi summa, que os Jesuítas Conimbricenses acolhem, cedendo à moda,
reunindo Agostinho a Trismegisto (alma e Deus, conhecimento e felicidade, imagem
do que é superior e exemplar do que é inferior) � Será isto, no fim de contas, que
explica por que razão os Jesuítas de Coimbra vão dar também ao monopsiquismo
uma versão paganizante. Contudo, como é fácil compreender, não é a mesma coisa
partilhar o horizonte neoplatónico da alma como súmula do Universo ou da máxima
délfica «conhece-te a ti mesmo» no quadro de uma concepção da scientia de anima,
interpretada ou como ciência do corpo animado (Veneto e Zabarella) ou como ciên­
cia da alma que anima todos os corpos vivos (Góis), diferença esta sobre o princípio
(arché) da vida, percebida então metodologicamente nos termos ou da transição
'parva naturalia/de anima' ou ' meteororum/de anima' .
Afim ao tema que estamos a apresentar, estava a distinção alma/corpo. O pro­
blema ocorria, quer na pergunta sobre a distinção entre faculdades da alma e alma
propriamente dita (II, c. 3, q. 4)� quer em saber se a alma se dissemina por completo

O > ln //1 De Anima . . . II e . 3, q. 1 , a. 1 , p. 1 09 : «Illud tamen aduertes animam uegetatiuam tantum


dici contineri uirtute in sensitiua tantum, et ambas in rationali, quatenus sensitiua tantum non
solum exercet operationes sibi proprias, id est, functiones sensuum; sed eas, quas uegetatiua:
similiterque intellectiua operationes sensitiuae, et uegetatiuae.»
<2> Cf. ln //1 De Anima ... Prooemium p. 2.
<3> ln 1// De Anima ... Prooemium p. 2: «Denique communi ratione, ad omnem Philosophiae partem
opportuna est haec de animo meditatio, quia cum animus rationis, consiliique particpes (ut
Trismegistus in Asclepio ait) sit ueluti Orizon aetemitatis et temporis, atque intelligibilis, corpo­
reaeque naturae nexus, ac confinium, uel uti alii dixere, totius mundi summa, siquidem natura
media extremas repraesentat, superiorem ut imago, inferiorem ut exemplar, sit ut anima doctrina
ueluti quoddam rerum diuinarum et humanarum scientiae compendium existat, nosque ad
omnem aliam ueritatis notionem pareparet. Ostendit quoque uberem hiusce contemplationis
fructum, id quod D. Augustinus 2º De ordine, e . 8, asserit, nimirum duas esse praecipuas in
Philospohia quaestiones. unam de anima, alteram de Deo. Primam, efficere ut nos ipsos noueri­
mus, alteram, ut originem nostrarn; iliam nobis dulciorem, hanc chariorem esse, iliam nos dig­
nos betata uita, hanc beatos reddere.»
<4> Cf. SALATOWSKI, S . , De Anima . . . 1 59-60, 1 77.
1 00 Introdução Geral

por todo o corpo ou apenas por uma parte do corpo (II c. 1 , q. 9) ! Na polémica que
separava nominalistas, escotistas e tomistas, os nossos Jesuítas tomam partido, evi­
dentemente, por estes últimos. Eles põem-se, assim, ao lado de quem defende a
distinção real entre as faculdades da alma e a alma propriamente dita? Mais uma vez,
isto não significa que não vejam sentido, designadamente no nominalismo. De facto,
a propósito da vexata quaestio que consistia em saber «Se a alma cobre todas as
partes do corpo de maneira a que toda ela esteja presente em qualquer uma das par­
tes do corpo» , distinguem três acepções de «totum» (integral ou quantitativo, poten­
cial ou das faculdades e essencial ou físico-metafísico3 ; o manuscrito anónimo de
1 559 distingue: ratione essentiae, ratione qualitatis e ratione potestatis4) . Em
conformidade, eles vão defender que, enquanto indivisível, considerada como um
todo essencial, a alma está em qualquer parte do corpo e que, considerada quantitati­
vamente, qualquer uma das suas partes está em qualquer parte do corpo? O horizonte
nominalista interpretava a caracterização aristotélica de 4 1 3b 1 2 com o recurso ao
princípio augustinista de que a alma é as suas faculdades (intelecto, memória e von­
tade): não três vidas, nem três mentes, mas uma só que, enquanto vegetal, é alma,
enquanto contempla, é espírito, enquanto sente, é sentido, sendo alma por saborear,
e mente ao pensar, e razão ao discernir, e memória ao recordar, e vontade ao querer,
diferenças estas apenas nominais ? Ao que os Jesuítas de Coimbra respondem não só
- ou nem tanto - que a citação em que se baseiam, também retirada do De spiritu et
anima, é apócrifa, «como os doutores de Lovaina claramente demonstraram», mas
que afinal a autoridade de Agostinho caminha no próprio sentido deles: identidade
de todos os graus essenciais da alma numa só essência?
Porém, a sua obsessão pela definição da alma deve dar rigor a este acolhimento.
Os Jesuítas Conimbricenses tomam como ponto de partida a correcção (q. 1 , a. 2, p.
34) da primeira definição da alma dada por Aristóteles em 412 a 20: « ... a alma é
uma substância no sentido de forma de um corpo natural que possui a vida em
potência» . À sua maneira habitual, explicam a definição (anima est actus primus
substantialis, corporis organici, potentia uitam habentis) atomisticamente: diz-se
«acto» ou «enteléquia» a fim de excluir a pura potencialidade e a impura actualidade
da composição natural ou artificial 8 ; diz-se «primeiro» para excluir qualquer tipo de
operação segunda; é «substancial» de maneira a remover os actos primeiros aci-

O l Cf. PARK, K., «The Organic Sou!» 477-80.


l 2 l ln lll De Anima ... II c. 3, q . 4, a. 2, p. 1 1 6.

(3) ln lll De Anima ... II c. 1, q. 9, a. 2, p. 92.


l 4l Cf. foi. 22v, mas o tema é discutido no âmbito do cap. II, como é mais tradicional

(S) ln lll De Anima . . . II c. 1 , q. 9, a. 2, p. 93-94. Cf. S. Salatowsky, De Anima . . . 1 77, n. 1 79, que
não compreendeu o problema.
<6 l ln lll De Anima . II c. 3, q. 4, a. ! , p. 1 1 5 . ARISTÓTELES, De Anima II 4 1 3 b 1 2- 1 3 : « . . . a
..

alma é o princípio das faculdades ( . . . ) e define-se por elas: nutritiva, sensitiva, intelectiva e pelo
movimento.»
l 7 l ln lll De Anima . . . II c. 3, q. 4, a. 3, p. 1 1 7 .
l3 l Sobre a «enteléquia», vd. ln lll D e Anima . . I I , q. 1 , a. 7, pg 44; cf. sobretudo SALATOWSKI,
.

S , De Anima . . . passim.
Introdução Geral 101

dentais; e «do corpo», quer para excluir as várias substâncias separadas (q. 1 , a. 1 , p.
32), quer para incluir o corpo como sujeito da alma, constituindo uma unidade com
ela (q. 1 , a. 1 , p. 33); por último, é «natural e possui a vida em potência» de modo a
excluir as formas naturais dos seres não vivos (ibid.) .
Daqui julgam eles poderem extrair cinco conclusões. Três negativas ou polémicas
sobre a alma em geral: ela não pode ser definida como temperamento (q. 1 , a. 3, p.
37), por ser uma substância 1 ; não é acidental, mas uma forma substancial (q. l , a.4,
p. 38), não é matéria nem corpo (q. 1 , a.5, p. 40). Duas outras sobre a alma intelec­
tiva: ela é espiritual ou de substância espiritual (q. 1 , a.6, p. 4 1 ) ; mas não é uma parte
da mente divina (q. 1 , a.6, p. 43).
Duas notas tradicionais merecem ser apontadas sobre estas cinco conclusões: a
primeira, que nesta altura compreendemos, diz respeito ao tratamento conjunto da
alma com a alma intelectiva; a segunda, aos argumentos produzidos para provar a
sua incorporalidade, imaterialidade e espiritualidade substancial. Deixaremos de
parte a alusão mais difícil ao tratamento de ' substância' aplicado à alma, à luz de
uma linhagem mais estóica do que aristotélica, na esteira de uma citação de Gregó­
rio de Nissa? A alma não pode ser um corpo por razões de ordem metafísica, i.e, que
se prendem ao próprio hilomorfismo e dependem do carácter radical da scientia de
anima; não é por acaso que ao explicarem a primeira definição da alma os autores
identificam «corpo orgânico» com «ter a vida em potência» � A matéria é sujeito
prévio à indução da forma, mas é potência e, por isso, isenta de actividade; a matéria
comum a todos os seres não pode ser ao mesmo tempo a razão de ser da sua identi­
dade e da sua diferença. Depois, porque a alma é o que anima o corpo (corpus in se
insinuat, omniaque eius membra permeat) ; porque a alma não é celeste, nem ele­
mentar nem misto de elementos; e porque, de acordo com o princípio da Physica
«omne quod movetur ab alio moveri» (VIII, c. 4, text. 28), há diferença entre um
princípio que move (a alma) e um princípio movido (o corpo)� Mas não há só uma
causalidade da matéria, pois também a forma tem a sua causalidade própria sobre o
composto. Por que é que a alma intelectiva deve ser de natureza espiritual sem que
se caia, a contragosto, numa tese afim à que virá a ser o monismo de Espinosa?
Porque as suas operações (intelectuais e volitivas) ultrapassam a matéria e a condi­
ção do corpo. Isto pode provar-se, quer pelo lado do intelecto - ele conhece nature­
zas comuns abstraídas da matéria singular e forma conceitos de coisas imateriais -,
quer pelo lado da vontade: esta domina o que é sensitivo e material, e os actos da von­
tade (querer, não querer, amar, etc) estão acima dos sentidos e do apetite� Temos,

( l l Cf. DES CHENE, D., Life 's Fonn . 69-76 e mais em geral para a definição da alma 67- 1 02.
..

<2l Cf. ln III De Anima ... II c. J , q. J , a.4, p. 39.


<3l ln III De Anima . . II c. 1, q. 1, a. 1, p. 35: «Concedimus enim corpus organicum, seu potentia
.

uitam habens reuera in se animam continere.»


<4l ln III De Anima . II, q. 1, a. 5 , p. 40. Physica 254 b 25 - 255 a 3 cuja explanatio lê: «Hoc autem
..

diuersum esse a re quae mouetur nemo ambigit. Sed idem quoque notum esse inquit iis, quae
interno principio secundum naturam aguntur, hoc est in uiuentibus, haec enim ab alio moueri
constat, licet quonam moda ab eo quod mouet, distinguantur, haud satis manifestum sit.»
<5l ln III De Anima . II, q. 1, a. 6, p. 4 1 -42.
..
1 02 Introdução Geral

assim, estabelecidas as três secções principais do De Anima: conhecimento sensível,


intelectivo, actividade volitiva. Como se pode, portanto, perceber, existe uma antro­
pologia inominada (i.e. uma determinada imagem do ser humano) - seja pela ver­
tente cognitiva, seja pela volitiva - a presidir silenciosamente ao que virá a ser a
superação do hilomorfismo radical, que convoca o exame da alma para uma sede
física.
É um ponto importante da psicologia (e da metodologia e da epistemologia)
jesuítica conimbricense a descrição da alma mediante a apresentação dos princípios
das operações da alma ou das próprias operações (é esta dupla acepção da segunda
definição), «aquilo por meio do qual vivemos, sentimos, nos movemos e pensa­
mos» ! Trata-se, aliás, do ponto de partida da metodologia regressiva, tal como a
apresentámos. Se sabem que esta segunda definição (4 1 3 b 1 2) é primeira no plano
do conhecimento � a polémica em volta da correlação das duas definições não os
deixa ficar por aí, afirmando que na acepção em que ela diz respeito às próprias
operações a definição pode ser examinada, quer no plano dos efeitos, quer no dos
fins. Esta não é, porém, uma definição essencial, «essentia in se absoluta sumpta non
habet causam efficientem ( . . . ) ita nec finalem» ? Ao tratar-se de abordar a alma no
seu ser existencial (esse existentiae), a segunda definição pode ser demonstrada pela
primeira de modo a priori (propter quid), embora respeitando os três modos em que
se considera uma definição� Consequentemente, o que eles ressaltam, no plano da
causalidade, é o modo inteligente (artificiose) como Aristóteles coordenou o método
da física (dos efeitos para as causas) com o da metafísica, «exquisita doctrina» (das
causas para os efeitos) sob o prisma da causalidade final. Se isto for um motivo
apologético, como Des Chene conjectura: não é menos verdade que é uma interpre­
tação rigorosamente aristotélica, na medida em que no Estagirita a causalidade final
se sobrepõe à eficiente, devendo-se iniciar qualquer investigação começando pelo
que é mais conhecido. O problema é que são considerações teológicas criacionistas
tomistas que agora presidem ao teleologismo.
Abordado o tema de uma correcta definição da alma, segue-se a prova da sua
subsistência. Diz-se que só a alma intelectiva é subsistente no segundo dos três sen­
tidos em que a filosofia toma a palavra «esse per se», ou seja, não em alguma coisa
(seja como parte, seja como forma) da qual o seu ser dependa? E depois de estabele­
cido o princípio de que a alma tem um carácter substancial subsistente (ut quod),
quer no corpo, quer fora dele? o autor julga estar em condições de resolver três pro­
blemas : o da criação por Deus da alma intelectiva� o do diverso momento em que a

( ! ) ln li/ De Anima . . . II, e. 2, q. un., p. 1 00.


C Zl ln Ili De Anima . II .. e. 2 explanatio, p. 97.
<3> ln li/ De Anima . . p. 1 0 1 .
.

<4l ln li/ D e Anima . p . 1 02.


..

<5> DES CHENE, D., Life 's Form . . 1 1 2 . .

<6l ln li/ D e Anima . . I I , q. 2, a. 2, p. 49.


.

O l ln li/ De Anima . . II, q. 2, a. 2, p. 53.


.

(S) Cf. ln li/ De Anima . II, q. 3 , p. 54-6 1 .


. .
Introdução Geral 1 03

alma intelectiva é infundida nos corpos dos homens e das mulheres 1 e o da


equivalência em dignidade de todas as almas intelectivas ? Não cuidaremos aqui
destas questões, seguramente mais teológicas, mas este poderia ser precisamente o
ponto de vista a fazer entrar em crise - atente-se acima na desvinculação entre forma
e 'esse per se' - o hilomorfismo radical que serve a física da alma.
Não deixa de ser curioso o facto de o monopsiquismo ser tratado logo no início
do livro II no contexto da definição da alma. O caso tem merecido, pelo menos, a
atenção dos comentadores contemporâneos. Nem sempre assim acontecia. Toledo
discute a questão logo no livro 1 (texto 66, c. IV). Aludimos também à interpretação
de Des Chene a este respeito, mas não deve ter visto pior K. Park, situando a polé­
mica no âmbito da alma orgânica? São duas as perguntas feitas : se a alma intelectiva
é verdadeira forma do homem (q.6, p. 72-78) e se ela se multiplica consoante o
número dos vários indivíduos (q.7, p. 78-83). Estas perguntas repetem os dois erros
determinados no De Unitate Intellectus contra A uerroistas de São Tomás, mas tam­
bém obedecem, quer à determinação conciliar lateranense ( 1 5 1 3), quer às preocupa­
ções das teses a ensinar que ocuparão a prévia composição da Ratio. Citámo-las em
anterior apartado. Vale, no entanto, a pena acompanharmos a diversidade de trata­
mento que os Jesuítas Conimbricenses lhes imprimem, designadamente em relação à
versão 'fundadora' do Aquinate. A primeira observação que salta à vista é que para
eles a tese de Aristóteles a respeito do tema é apenas uma (entre várias) autoridades
a estudar. De facto, relativamente ao primeiro «erro» os Jesuítas conimbricenses
repetem três princípios: a) não pode negar-se que a alma intelectiva seja a forma do
Homem em sentido próprio e verdadeiro4 ; b) o estatuto de forma não é exclusivo da
alma sensitiva ou da vegetativa5 ; e) pode provar-se a tese não apenas pela fé, mas
também de um ponto de vista racional? A verdade é que Aristóteles é explicitamente
tratado sobretudo em relação ao primeiro princípio estabelecido por eles, i. e. , «não
pode negar-se que a alma intelectiva seja a forma do Homem em sentido próprio e
verdadeiro» . E como é tratado? Apenas num curto parágrafo, onde se juntam dois
dos seus títulos, obviamente o De Anima, e o terceiro capítulo do Livro XII da
Metafisica ( 1 070 a 2 1 -27)? Lembremos que neste texto Aristóteles se interrogava
acerca da possibilidade da sobrevivência de certas formas, como, v. g. , a alma racio­
nal, sem que tal equivalesse a tombar no platonismo. A mesma passagem havia
servido no De Unitate intellectus em momento capital da argumentação. Em porme­
nor, os Jesuítas estabelecem que o De Anima apresenta a definição citada da alma,

( 1 ) Cf. ln lll De Anima . . . II, q. 4, p. 6 1 -64.


(l) Cf. ln ll/ De Anima . . . II, q. 5, p. 64-72.
(3) PARK, K . , «The Organic Sou!» 483-84; cf. o meu «Introdução à leitura do Comentário dos
Jesuítas de Coimbra ao 'De Anima' de Aristóteles (mediante o estudo do tema monopsiquista)»
in J. L. B. da Luz (org.), Caminhos do Pensamento. Estudos em Homenagem ao Professor José
Enes, Lisboa 2006, 507-532.
(4) ln ll/ De Anima ... II, q. 6, a. 2, p. 74.
(S) ln lll De Anima . . . II, q. 6, a. 2, p. 75.
(6) ln lll De Anima ... II, q. 6, a. 2, p. 76.
(?) ln III De Anima . . . II, q. 6, a. 2, p. 75. S . Tomás cita no seu ln De Anima, Metaphysica VIII, 6,
1 045 a 20 sg.
1 04 Introdução Geral

que dá no capítulo II a outra definição conhecida (4 1 4 a 1 2- 1 3) e insistem sobretudo


no famoso texto 7 (4 1 2 b 4- 1 0) onde se lê: «Se for preciso, portanto, apresentar uma
definição geral aplicável a todas as espécies de alma, diremos que ela é enteléquia
primeira de um corpo natural organizado. Assim, não ocorre perguntar se a alma e o
corpo constituem um uno, tal como também não, relativamente à cera e à figura,
nem, em geral, a uma determinada matéria singular e àquilo de que ela é matéria.
Porque, se o uno e o ser têm várias acepções, um e outro, em sentido próprio, são a
matéria. É isto, portanto, que a alma é, em sentido geral.» O sentido a conferir ao
termo 'enteléquia' era assunto discutido então, e os próprios Jesuítas o provam ao
aludirem, num determinado passo, ao conflito das interpretações � Por sua vez, como
dissemos, o acrescento da citação da Metafisica tem o mesmo estatuto do lugar
paralelo de De Unitate intellectus (§ 33) a alma é forma e incorruptível. Se isto quer
acentuar mais o ponto de partida básico da física, não deixa de indicar um dilema:
tratando-se de uma leitura do De Anima, ou não haveria espaço para examinar a
imortalidade, mas tão-só a definição e o estatuto ou a natureza da alma, ou dever-se­
-ia ultrapassar aquela leitura, apelando para uma sistematicidade (seja ou não literal­
mente aristotélica) que viesse a alcançar a metafísica. Assim, para reforçar a pre­
tensa posição de Aristóteles aparecem autores como S. Tomás (Su theol. I8 q. 76, a.
1 ), Durando de Saint-Pourçain (ln Sent. II, d. 1 7 , q. 1 ) e, naturalmente, a autoridade
dos Concílios de Viena e de Latrão �
Como é que se atacava a concepção da alma intelectiva como forma do corpo?
Dois argumentos em particular revelam uma concepção da actividade do pensar
dotada de uma dignidade tal que se lhe subtrai qualquer possibilidade de relação
com a matéria. Contra eles, os Jesuítas conimbricenses juntam uma tradição mais ou
menos escolar (Aquino, Caetano e Silvestre de Ferrara: 1 474- 1 528) com a tese neo­
platónica de Dionísio - o «príncipe dos Teólogos», como noutro Comentário esse
enigmático sírio chegou a ser apelidado3 -, que invocava (De divinis nominibus 7) a
maravilha da ordem de uma ligação do que é mais ínfimo com o que é mais elevado.
Se pensar é uma actividade natural (ad 4um), dada a ordem transcendental da rela­
ção alma intelectiva/corpo - ela recebe o ser na relação com o corpo de que é a
forma (ad 3um) -, então um argumento que procure minar a união intrínseca
alma/corpo não analisa a fundo (i. e. , numa consideração metafísica da física) o pro­
blema da união (ad 5um) . Ignora, por exemplo, o modo substancial da relação
(modus substantiae), uma união pela causalidade da forma e da matéria� o que
implica que a alma não se una ao corpo por acidente e que, pela separação da morte,
nada da sua substância se perca. Quer-nos parecer que a solução apresentada, apesar
de repetir São Tomás, é mais verbal do que real, sobretudo porque os Jesuítas nem

O J Cf. ln III De Anima . . . II, q. 1 , a.7; cf. SALATOWSKY, S., De Anima . . 1 88.
.

<2> ln III De Anima . . . II, q. 7, a. 2, p. 82; cf. Tractatus de Anima Separata d. l, a. 2, p. 445 .
<3> ln VIII Libros Physicorum . VIII, c.6, q. l , a.2, p. 324; cf. CERTEAU, M., La Fable mystique,
..

1: XVf-XVJf siecles, Paris 1 982, 1 42; sobre a recepção do Areopagita no século imediatamente
anterior, vd. LUSCOMBE, D., «Denis the Pseudo-Areopagite in the Writings of Nicholas of
Cusa, Marsilio Ficino and Pico della Mirandola» in BENAKlS, L. G (ed.), Néoplatonisme et
Philosophie médiévale. Actes du Colloque de Corfou (6-8 octobre 1 995) organisé par la Société
Intemationale pour l ' Étude de la Philosophie Médiévale, Tumhout 1 997, 93- 1 07 .
<4> ln III D e Anima . . . I I , q. 6, a. 3, p. 78.
Introdução Geral 105

sequer se detêm a esclarecer uma acepção deveras sensível, como é a de 'natural', ora
empregue em relação às actividades do corpo (e, portanto, no quadro de uma base
orgânica do pensamento), ora em relação ao próprio pensar (i. e. no âmbito de uma
consideração teológica criacionista de tal actividade).
Passemos agora ao segundo «erro» de Averróis : saber se as almas racionais são
individuais (utrum animae rationis participes ad numerum hominum multiplicentur,
an non). Diga-se desde já que os Jesuítas Conimbricenses entendem ser pacífico que
Aristóteles não defendeu a tese do monopsiquismo (unitas animarum), que era então
considerada sobretudo como proveniente de Averróis � Este era um ponto contro­
verso, mas para os Jesuítas seria capital manter relação apertada entre Aristóteles e a
doutrina católica. Mais uma vez o curioso está, porventura, nos textos aduzidos para
confirmar a opinião anti-averroísta. Vej amos o seguinte texto do Livro 1 (402 b 5-9):
«Cuidemos não omitir a seguinte questão: há apenas uma só definição para a alma e
para o animal, ou cada espécie de alma tem uma definição particular, por exemplo, a
do Cavalo, a do Cão, a do Homem, a de Deus? Neste caso, o animal tomado univer­
salmente ou não seria nada ou seria logicamente posterior. O mesmo se diria de
qualquer outro atributo comum que lhe conferíssemos.» Do capítulo III do mesmo
Livro, outro passo (407 b 20-27) : «Üra, os nossos teóricos esforçam-se apenas em
determinar que tipo de ser é o da alma, mas nada determinam relativamente ao corpo
que a deve receber; é como se, tal como nos mitos pitagóricos, qualquer alma pene­
trasse em qualquer corpo ! Um absurdo, pois parece que cada corpo possui uma
forma e uma figura próprias. A teoria deles equivale a dizer mais ou menos que a
arte do carpinteiro desce para as flautas. É preciso de facto que a arte se sirva dos
seus instrumentos e a alma do seu corpo.»
Segue-se a passagem imediatamente anterior à que já referimos, a do capítulo III
do Livro XII da Metafísica (texto 1 6), e a do capítulo VIII do mesmo Livro (texto
49), bem como a do Pseudo-Aristóteles, Problemas XXX, § 5 (e não 4). Sendo irre­
levantes para Tomás de Aquino aquelas duas passagens de De Anima� a sua respec­
tiva correlação nos Jesuítas justifica-se antes de mais pedagogicamente, haja em
vista que o tema do erro é apresentado sistematicamente a seguir e no quadro da
teoria antiga da metempsicose. Na verdade, esta associação é curiosa, posto que,
assim, textualmente, os cinco argumentos de Averróis citados e o seu respectivo
fundamento aristotélico textual são apresentados (q. 7, a. l , p. 79-80) num quadro
mais vasto de erro e de fantasias a condenar? Tratar-se-ia, então, de fazer face ao
paganismo ! 4

( 1 ) ln lII De Anima . . . II, q. 7, a. 2, p. 82.


<2> Sobre a primeira 402 b 5-9
- S . Tomás sublinha que Aristóteles quer definir a alma em
-

comum e em espécie, e que o universal não é separado (quer contra a teoria platónica em geral
quer contra a Alma do Mundo). Sobre a segunda 407 b 20-27 refere a insuficiência da dou­
- -

trina platónica sobre a natureza da alma.


<3> ln III De Anima . . II, q. 7, a. l, p. 79: «Sed relicta huius sententia absurditate, quae iamdiu
.

exoleuit, et inter poetarum fabulas uersatur, occurrit alia sententia existimantium in disciplina
Aristotelis ponendam esse unam duntaxat animam intellectricem, siue unum intellectum, qui
omnibus hominibus assistat, ut Solis lumen uniuersitati. . . »
<4> Cf. DES CHENE, D . , Life 's Form . . . 50-5 1 .
1 06 Introdução Geral

A opinião de Averróis é apresentada como se segue: há um único intelecto de


certo modo realmente separado de cada indivíduo, mas que o assiste e se lhe une
pelas imagens instaladas na fantasia individual; mais: iluminadas pela luz, estas
imagens passam ao intelecto como formas inteligíveis, o qual, ao assinalá-las, as
compreende como noções das coisas. Trata-se da doutrina da alma intelectiva
enquanto 'forma assistente ' , i.e. , uma forma que assiste o Homem, usando-o como
instrumento para as suas próprias operações, tal como um capitão usa o seu navio. É
por esta razão que concebemos - continua ele - que o intelecto é separado. Também
acrescenta que a alma intelectiva não é a verdadeira forma do Homem e que ele se
distingue essencialmente dos animais não por essa, mas por outra forma, a que dá o
nome de cogitativa, cabendo a ela o conhecimento dos singulares, produzida por
qualquer Homem, multiplicável por todos os Homens e desaparecendo com eles !
Como se vê, portanto, é atribuída a Averróis a concepção da alma como fonna
assistens, à qual contrapõem a tese da forma infonnans, mas esta última carece de
ser bem explicada. Atente-se, por agora, em que a letra da pergunta de um artigo dá
eco a um problema contemporâneo relativo à interpretação de Aristóteles, unindo
dois problemas, a questão de uma «única forma assistente» e a da palingenesia ou
metempsicose (de palingenesia, et de unitate fonnae assistentis, quam nonnulli
finxere). Este problema foi recentemente estudado por S. Salatowsky, que conside­
rou incongruente a solução jesuítica contra o averroísmo?
O alegado erro de Averróis aparecia na linha peripatética de um Teofrasto, de um
Temístio e de um Simplício, mas também como um elo que atinge os séculos poste­
riores (XIII a XVI) de comentaristas como Tomás Ânglico, João de Jandun, Gerardo
de Odo, Alexandre Achillini, Marcantonio Zimara, António Bernardi, Francisco
Vicomercato, entre outros mais. Tratava-se, aliás, de expandir, também à maneira de
um tique, certa nota da Ratio que, no tocante ao tratamento a dar às boas teses de
Averróis, exigia nas aulas que o professor mostrasse que elas provinham de outros�
Depois de enumerarem os argumentos com os quais se pode considerar que Averróis
sustenta a sua tese como aristotélico, o texto de Coimbra esclarece-nos que havia
quem a considerasse uma expressão do platonismo. Seria o caso dos que falam de

( J J ln /// De Anima . . II, q. 7, a. 1 , p. 79-80: «Contendit igitur Arabs unicum tantum dari intellectum
.

separatum quidem re a singulis hominibus, sed eisdem assidentem, et coniunctum per imagines,
quae in cuiusque phantasia insident; atque ab his imaginibus eius luce collustratis ait transmitti
in ipsum intellectum intelligibiles formas, quibus ille consignatus rerum notiones capiat. Sicque
fieri ut nos per eiusmodi intellectum separatum intelligere dicamur. Addit etiam, quadam
consecutionis serie de absurdis absurda colligens, animam intellectricem non esse ueram
hominis formam, nec hominem per eam essentialiter a belluis distingui, sed per aliam formam,
quam cogitatricem nominat; et ad hanc pertinere uult cognitionem singularium, hanc cum
quolibet homine progigni, unaquam interire, et hominum numero multiplicari.»
<2l SALATOWSKY, S . , De Anima ... 250.
<3l Cf. MP V 397.
Introdução Geral 107

uma única forma informadora (informantem)� Aqui, a forma informans, que não
pode ser confundida com a tese jesuítica ou tomista homónima, poderia designar
também o único intelecto do Homem, tese que se lê em Paulo de Veneza, o qual,
segundo Nardi, seguiria nisto Sigério de Brabante? Este ponto merece ser destacado
por revelar o seu conhecimento de uma forma mais extrema de materialismo no
sentido em que a única alma que informa cada indivíduo, ao pluralizar-se, se sub­
mete inteiramente à morte ? Ora, o Homem só pode superar a natureza dos animais
(ultra animalis naturam assurgere) dizem - se ele não for constituído exclusiva­
-

mente por uma alma orgânico-sensitiva, quer dizer, se a alma que o informa indivi­
dualmente lhe permitir a ilustração intelectiva dos fantasmas de uma maneira indivi­
dualizada. Isto significa que eles interpretam as novas ideias gnosiológicas nomina­
listas e averroístas de um Paulo de Veneza, e.g., no sentido moral e religioso da
defesa de uma alma informante humana e mortal. Ou ainda: que conhecem o
extremo da alternativa posta por Caetano de Tiena, por Bessarion ou por Pompo­
nazzi (aliás, de modo diversificado entre os três) segundo a qual ou o intelecto é
individual ou é mortal1 Isto significa, por fim, que Kessler pode ter razão quando
afirma (a propósito de Alessandro Achillini, que aqui é citado pelos nossos Jesuítas)
que a adaptação da psicologia averroísta às necessidades do conceptualismo ockha­
mista abriu a porta à invasão do neoplatonismo no debate psicológico? Pode de facto
ser tudo isto, mas, seguramente, o que os Comentários de Coimbra testemunham é
novamente uma refutação das teses 'averroístas' de António Bemardi�

( 1 ) ln III De Anima . . . II c. 1 , q. 7, a. 1 . Sobre a posição de Achilini, que mantém, de uma maneira


contraditória, que é quer forma assistente (= usa o Homem como instrumento para as suas ope­
rações tal como um capitão usa o seu navio) quer forma informante (dando-lhe a essência espe­
cífica e conferindo um sujeito de intelecção ao ser individual), vd. KESSLER, E., «The Intellec­
tive Sou!» 495-96 e 488-90, para posição idêntica, de Paulo de Veneza. Pedro Parra ( 1 53 1 -
- 1 593) coloca este problema logo n o princípio do programa de psicologia leccionado em Roma
no ano lectivo de 1 56 1 /62, cf. LUKÁCS, L., Monumenta . . . § 64, 446.
<2> NARDI, B . , Sigieri di Brabante nel pensiero dei Rinascimento italiano, Roma 1 945, 1 2 1 - 1 27 ;
cf. KESSLER, K., «The Intelective Sou!» 489, n. 36.
<3l ln III De Anima ... II c . 1, q. 7, a. 2, p. 80: «Eodemque adductus Bessario non minus in Aristote­
lica, quam in Platonica disciplina eruditus libro 3. contra CalumniatoremPlatonis capite 2 1 .
statuit alterutrum ax Aristotelis dogmate concedendum; aut unicum esse intellectum immorta­
lem; aut plures, omnes morti esse obnoxios. Est tamen inter hos auctores dissidium. Nam qui­
dam putant de mente Aristotelis ponendam esse in omnibus hominibus unam eandemque for­
mam assistentem, ut diximus: alii informantem, ut Mirandulanus libro 32. de euersione
singularis certaminis sect. 1 . et libro 33. sect. 2. et 6. et Achillinus libro de intelligentiis». Ed.
de ln calumniatorem Platonis in MOHLER, L., Kardinal Bessarion ais Theologe, Humanist and
Staatsmann II, Paderbom 1 927 ; Alessandro Achillini, De intelligentiis, Bolonha 1 494.
<4l KESSLER, K., «The Intellective Sou!» 49 1 .
<5l KESSLER, K., «The Intellective Sou!» 496.
(ó) Cf. o meu «La critique d' Averroes dans les Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis
Iesu ln tres libras de Anima» (no prelo).
1 08 Introdução Geral

É notória a intenção de fidelidade a Aristóteles no sentido das seguintes teses : a


alma (intelectiva) informa um corpo individual, repreende a palingenesia, nega a
anterioridade da alma em relação ao seu corpo próprio, a multiplicação da matéria
implica a multiplicação da forma, a afirmação clara de que há várias almas tal como
vários corpos. Todavia, a interpretação da tese de Aristóteles é feita numa longa
tradição teológica que vai de Gregório de Nissa a Ockham, passando por Epifânio,
Aquino, Alberto Magno, Durando, Gregório, Duns Escoto, Henrique de Gand, Her­
veu Natal e Egídio Romano. Trata-se de uma lista polémica - ainda no século XVII
ela provocava a perplexidade de P. Bayle 1 - e historicamente desordenada, pelo que
se pode pensar que a sua ordem está algures no intuito de culminar a refutação dos
defensores do erro em exame mediante uma estratégia que, depois de passar por
definir o que é aristotélico, frisa que ao texto de Aristóteles não pode ser dado um
horizonte neoplatónico. Assim, um primeiro argumento dos nossos Jesuítas apela
para o que haviam escrito no De Coelo (II, c. 1, q. 1 , a.3) e concernia à condenação
da identificação entre o intelecto universal e a Alma do Mundo em Platão. O
segundo assentava na defesa de uma concepção da intelecção como acção imanente
e orgânica, actio immanens maximeque uitalis. O terceiro baseava-se na metáfora da
parede iluminada pelo Sol, como em Tomás de Aquino, para reivindicar a intelecção
como actividade e não passividade. O quarto afirmava que Averróis atribui activi­
dade mental aos animais irracionais, retirando-a aos seres humanos. O quinto subli­
nhava a identidade entre erro e ciência, vício e virtude, e uma só alma a padecer.
Enfim, o exame do segundo erro fecha com a acusação de que os monopsiquistas,
e, portanto, também Averróis, avançam com textos mal interpretados . É que Aristó­
teles ao chamar «separado» e «não misturado» ao intelecto não queria dizer que ele
estivesse sempre fora da matéria, mas que a sua potencialidade não é material ou
orgânica? Comparando o intelecto com a luz, o seu concurso é o de «gerar espécies
inteligíveis com os fantasmas no intelecto possível que se encontra na alma, não,
evidentemente, separada, como imagina Averróis, mas unida ao corpo informando­
O». O extrinsecismo do intelecto tem a ver com o facto de ele ser infundido e criado
por Deus ?

O l P. BAYLE, Dictionnaire . . , s.v. «Averroes».


.

<Zl ln III De Anima . . II, q. 7 , a. 3 , p. 8 3 : «Loca uero ex Aristotele adducta alium sensum habent,
.

non eum quem aduersarii uolunt. Non enim Aristoteles intellectum uocat separatum quidpiam,
et immixtum, quod semper re ipsa extra materiam uersetur, sed quod non sit potentia ex mate­
riae coalitu orta, aut organo corporeo affixa.»
<3l ln III De Anima . II, q. 7, a. 3, p. 83: «lntellectum autem propterea lumini comparat, quod ut lux
. .

cum coloribus uisilium rerum imagines elicit, sic ille cum phantasmatis concurrat ad producen­
das intelligibiles species in intellectum possibilem inhaerentem animae, non quidem separatae,
ut finxit Auerroes, sed corpori unitae, ipsumque informanti. Ait quoque intellectum extrinsecus
aduenire, quia non educitur e potestate materiae, ut caeterae formae physicae, sed a Deo infun­
ditur e creatur.»; vd. o meu «La critique d' Averroes dans les Commentarii Collegii Conimbri­
censis Societatis Iesu ln tres libras de Anima» (no prelo).
Introdução Geral 1 09

3 . Teoria da percepção ; o conhecimento sensível

Antes de avançarmos adentro do tema intelectivo ou noético, importa abordar,


ainda que rapidamente, a doutrina do conhecimento sensível, matéria que recebeu
entre nós a atenção de A. Banha de Andrade e de A. Coxito. Como não podia deixar
de ser, nas suas linhas mais gerais, mas basilares, a teoria da percepção dos nossos
Jesuítas não difere da doutrina afim de Aristóteles e de Tomás de Aquino. Tratando­
-se de uma matéria que deve ser enquadrada no contexto mais geral de uma teoria do
conhecimento (sensível), não seria de todo inútil o confronto desse estudo com os
trabalhos, precisamente sobre essa teoria, dedicados sobretudo a Pedro da Fonseca �
Não se exigirá, por isso, nesta ocasião, a repetição das teses mais conhecidas da
teoria do conhecimento sensível em Aristóteles. Preferiremos, em alternativa, tocar
na dimensão em que julgamos que os Jesuítas de Coimbra ultrapassam o texto
comentado. Referimo-nos ao novo universo da sensibilidade e do sensível e a um
eventual vínco jesuítico (ou inaciano) que se pode captar no texto do comentário.
Sensíveis próprios, comuns, órgãos dos sentidos, sentido comum, meio de liga­
ção, espécies sensíveis e imaginação são aspectos da teoria do conhecimento aristo­
télico-tomista que convém dominar. Tenha-se presente, a título exemplificativo de
uma inovação, como os autores acompanham Fonseca, v.g. , ao reduzirem para dois
os sentidos internos, sentido comum e fantasia2 Como se sabe Suárez, mais radical,
propenderá para um único sentido interno � Ou ainda o facto de as páginas de Coim­
bra, quer sobre alguns sentidos em particular, quer sobre o sentido comum e a acti­
vidade dos sentidos, poderem ter suscitado a atenção mais ou menos explícita de
Descartes�
Sem podermos dizê-lo de forma definitiva, afigura- se-nos que é sobretudo sob
o prisma onto-gnoseológico que a temática aristotélica da phantasia interessa
aos Jesuítas de Coimbra. Isto significa uma determinada reapropriação da

OJ Cf. SILVA, C. A. F. da, Filosofia do conhecimento, segundo Pedro da Fonseca Separata de


«Filosofia» 6/24, 1 960; COXITO, A. A., «Ü Problema dos Universais no Curso Filosófico
Conimbricense» Separata da Revista dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, vol.
III, série V, Lourenço Marques 1 966.
<2J Cf. ln III De Anima . . II 3, q. l , a i , p.305 ; ARMOGATHE, J.-R. «Les sens: inventaires médié­
.

vaux et théorie cartésienne», in J. Biard et R. Rashed (ed.), Descartes et le Moyen Age. Actes du
colloque organisé à la Sorbonne du 4 au 7 juin 1 996, Paris 1 997, pp. 1 8 1 -82.
C 3J F. SU Á REZ, Commentaria una cum quaestionibus in libras De Anima. Comentários a los
libras de Aristóteles Sobre e/ alma d.8, q. l , n.2 1 , (ed. S. Castellote, Madrid 1 99 1 , III p. 40).
C4 l Cf. GILSON, E., lndex . . 266-68 e passim; SIMMONS , A., «The Sensory Act: Descartes and
.

the Jesuits on the Efficient Cause of Sensation», in S. F. Brown (ed.), Meeting of the Minds. The
Relations between Medieval and Classical Modem European Philosophy, Turnhout 1 998, 63-
-76; ARMOGATHE, J.-R. «Les sens . . . », pp. 1 74- 1 84.
110 Introdução Geral

phantasia como uma «notion passage» ? quer atendendo ao seu carácter dualista�
quer à sua tripla função� Seja como for, nem todos estes elementos receberam trata­
mento equitativo nos vários comentários (muito menos no respeitante ao De Anima)
e nem todos eles teriam a mesma acutilância, tratando-se de autores que sobrepõem
o teórico ao prático.
Na verdade, no que diz respeito à fantasia ou imaginação (phantasia, imaginatrix
facultas), o ponto principal tem a ver com a respectiva discussão no âmbito do
conhecimento, mormente no quadro dos sentidos internos. Um outro ponto, obvia­
mente, seria concomitante à crítica da posição averroísta; ao recusar o intelecto a
qualquer Homem individual, o averroísmo definia-o pela faculdade imaginativa
(cogitativa), dimensão que muito interessaria ao modelo do homo artificialis do
Renascimento, mas que os Jesuítas procuraram refutar, como atrás se explicou.
Interessa-lhes antes a questão relativa ao número dos sentidos internos e, con­
forme lembrado, decidem-se a acompanhar a posição económica e moderna de
Pedro da Fonseca, que os reduz a dois, senso comum e fantasia4 na linha, aliás, do

< 1 > Cf. FRERE, J., «Fonction représentative et représentation. 'Phantasía' et ' phántasma' selon
Aristote» in Corps et Ame . . 347 : «Aristote part du niveau !e plus frustre, celui que l ' on ren­
.

contre chez ! ' animal, chez !e rêveur, chez !e fou: ici la phantasía renvoie à la sensation en son
double versant physiologique et psychologique. Puis Aristote se dégage de cette entreprise du
corps sur la phantasía, d' abord avec ce faire neuf qu' est l ' activité du savant ou celle de l ' orateur,
mais ensuite, de façon toute nouvelle par rapport à Platon, avec l ' analyse de la phantasía dans !e
domaine de l ' art».
<2> FRÉ RE, J., «Fonction ... » 34 1 : «Ainsi s'opposent les deux niveaux de la phantasía aristotéli­
cienne. Premierement une phantasía primaire (aisthetiké), deuxiemement une phantasía élaborée
débordant l ' aisthetiké. II y a d' abord une phantasía qui conserve, plus ou moins bien ce qui fut
présent, et !ui accorde une quasi-présence: celle de la rêverie, celle du rêve, celle de la mémoire,
celle qui guide la maigre pensée et !e comportement de ! ' animal. II y a, s ' y surajoutant, une
phantasía auxiliaire et de l ' intellect pensant et de l ' intellect guidant la práxis: rien sans elle ne
peut s' envisager pour l ' être doué de raison. La premiere conserve, la séconde élabore. II y a une
phantasía qui guide et qui oriente (!' animal), une phantasía que retrouve (l' homme) et une
phantasía formatrice (formant une seule image de plusieurs). C' est toute l ' opposition entre III, 3
(la représentation premiere, la représentation animale), et III, 7 ou la phantasía devient ici
l' auxiliaire indispensable de la pensée et de ! ' agir. Apprendre, comprendre, contempler, affir­
mer, nier, la synthese (sumploké), !e calculer, surtout !e délibérer.»
<3> FRÉRE, J., «Fonction . . . » 346: «La phantasía selon Aristote n' est pas double. Elle est tripie. II y
a !e phántasma plus ou moins ressemblent face à ce qui a été senti: c ' est la phantasía aisthetiké,
dans !e rêve, dans !e souvenir, dans la folie, mais avant tout chez ! ' animal. II y a la phantasía
constructive, volue, énoncée, pénétrée de raison: la phantasía logistiké et bouleutiké, laquelle
anime le domaine de !' epistéme comme celui de la práxis éthico-politique. La phantasía du rhé­
teur rej oint celle du géometre. Mais il y a enfin la phantasía constructive-artiste, !e poiein
(comme chez Platon mais tout autrement fondé que chez Platon), la fonction représentative du
peintre, du sculpteur, du poete, celle des métaphores du métaphysicien. Toujours et partout la
phantasía implique !e venir-à-paraitre (phaínesthai), venir à la lumiere (phos), faire un de plu­
sieurs».
<4> ln III De Anima ... II, c.3, p. 3 1 0. São, vulgarmente, cinco os sentidos internos: sentido comum e
imaginação (localizados no ventrículo cerebral anterior), fantasia e estimativa (no ventrículo
médio) e memória (no posterior), cf. PARK, K., «The Organic Sou!» 470-7 1 , 480-8 1 , 466 e
474.
Introdução Geral JJ1

que havia tentado fazer Jorge de Bruxelas (t l 5 1 0) � Se a vontade e o entendimento


se disseminam pelo corpo inteiro, a fantasia reside no cérebro� dizem os autores do
Curso, depois de discutirem as posições dos médicos sobre o assunto. O sentido
comum «não compõe, não divide, nem discorre», mas configura as similitudes ou
imagens de mais do que um sentido próprio. O sentido comum não tem, assim,
espécies próprias e os sensíveis comuns (movimento, repouso, figura, tamanho e
número) «Sunt media inter sensibilia per accidens et sensibilia propria, quae sunt
obiecta sensuum» � Se os sensíveis próprios são qualidades de alteração, todos os
sensíveis comuns se reduzem à quantidadé Assim sucede com o tamanho e o
número, mas também com a figura (determinada pelos limites do tamanho) e com o
movimento e o repouso (redutíveis ao tamanho, à distância, ao aumento e ao movi­
mento da alteração) ? Isto significa que na futura querela das qualidades primárias e
secundárias (Locke) também vigora o princípio da parcimónia para as primeiras,
enquanto que as segundas (odor, sabor, cor e outras qualidades) pertencem mais ao
meio (ar e água, deste modo combinando-se Averróis e Avicena) e não aos corpos �
Já a faculdade da imaginação é origem de proposições e do discorrer acerca do sin­
gular (cognitionem uniuersalium rerum non cadere in potentias organo corporeo
affixas, sed in solam vim intellectricem7), singular que se actualiza com o conheci­
mento da coisa (ausente) ou que é actualizado pela imaginação. Na verdade, a
phantasia não se confunde com a faculdade estimativa (nos animais) nem com a
cogitativa (nos Homens). Ela reúne em si a estimativa, a cogitativa e a memória� É
mais nobre a tarefa de reconhecer o que não foi sentido e de organizar esses dados ?
Para o que aqui nos interessa, deixemos ainda uma outra palavra sobre a imagina­
ção (phantasia), ou melhor, sobre a importância que Inácio de Loyola atribuiu aos
sentidos, nos célebres Exercícios Espirituais. O tema mereceu a atenção de R. Bar­
thes, que falou, a propósito, da «economia totalitária» que, como um novelista, tudo

C l l Cf. PARK, K., «The Organic Sou!» 48 1 , n. 46.


(2l ln III De Anima . . . II, c. 1 , q. 9, a.2, p 92; III c. 3, q. 1, a. 4, p. 308.
(3l ln III De Anima . . . II c. 6, q. 5, a. 2, p. 1 5 8 .
(4l ln III D e Anima . . . II c . 6, q. 5, a. 2, p. 1 5 8 : «Nam sensibilia propria primo, e t per s e immutant
sensum, cum sint qualitates alterantes: sensibilia uero communia omnia reducuntur ad quantita­
tem.»
(S) ln III De Anima . . . II c. 6, q. 5, a. 2, p. 1 5 8 .
(6) ln III D e Anima . . . II c. 8, q. 2, a. ! , p. 205 : «Asserendum tamen est; c u m duo corpora solida,
intercepto aere, uel etiam, ut quibusdam placet, in aquasonum edunt; eiusmodi sonum non in
solidis corporibus; sed in intermedio excipi: sicut enima ex fractione, et compressione medii
corporis sonus resultai, ita in eo, non in corporibus solidis recipi uidetur . . . » Vale a pena referir,
no entanto, a propósito da combinação acima referida, que, no Comentário à Física (1 c.9 q.5,
a.2, p. 1 60), Góis destaca que entre Avicena e Averróis há muitas divisões filosóficas.
(?) ln III De Anima . . II, p. 3 1 0.
.

(B) ln III De Anima . . . p. 3 1 1 - 1 2: não se distinguindo da vis cogitativa, compõe, divide e constrói
silogismos com termos singulares, não por influência da parte sensitiva, mas por participar da
intelectiva. Remetem para I", q. 8 1 , a. 3 e ln Quaest. de An. A. 1 3 , sobre o texto 20 do capítulo V.
(9l ln III De Anima . . . II, p. 303.
112 Introdução Geral

recupera (o acidental, o fútil, o trivial) ao serviço do discernimento e da fragmenta­


ção da imagem � Daí que - escreve ainda Barthes - «a imagem inaciana não sej a uma
visão, mas uma vista», na acepção que a palavra tem quando nos referimos a uma
'vista de Lisboa' tomada dentro de uma sequência narrativa? Ora, não será despro­
vido de significado reparar-se que entre os cinco sentidos sobressai o da visão, cujo
elogio os nossos Jesuítas não regateiam? Rapidamente salta à vista do leitor do
Comentário ao De Anima a enorme amplitude concedida ao estudo minucioso (tri­
vial?) dos cinco sentidos, seus sensíveis e mundo respectivos. Em absoluto contraste
com Aristóteles, acolhendo a literatura mais antiga e mais moderna sobre o tema, o
estudante passava a gozar de um conhecimento técnico ímpar para a construção ou a
composição do lugar, aspecto preparatório crucial no exercício meditativo.
A propósito das cores, escreve Manuel de Góis (II 7 q3a l ) : «A quantidade de
cores é tanta, a sua mistura é tão múltipla, que certamente se diria que em nenhum
outro lugar a natureza depositou as suas obras de forma mais copiosa e tão ambicio­
samente, visto que animais, plantas, ervas, flores, metais, jóias, mármores, e, por
fim, quase tudo o que gerou, a natureza revestiu e distinguiu com uma variedade
matizada de cores. Daí que muitos filósofos, atraídos pelo estudo da natureza, se
esforçassem por explicar as causas das cores e de tantas diferenças notáveis.» E
continua enumerando esses filósofos: Platão, Aristóteles, Galeno, Contareno, Simão
Pórcio e Escalígero ! Um pouco mais adiante (II 7 q8a l ), relativamente à importância
dos espelhos na educação humana, cita a autoridade de Apuleio, que relatava que
Sócrates os usava para morigerar os costumes, misturando ainda conhecimento de si
mesmo com o conhecimento do seu aspecto exterior - «muitos obtiveram o conhe­
cimento de si a partir dos espelhos» - além de lembrarem que os adolescentes
podiam a partir deles, «Se tivessem uma figura digna, não a manchar com vícios e,
se tivessem um aspecto deformado, compensá-lo com a elegância dos costumes».
Todos os sentidos recebem uma atenção pormenorizada quanto a este aspecto
(uns mais do que outros, evidentemente) e sobressai também a informação inques­
tionavelmente moderna nessa área, a qual é depois aplicada, a maior parte das vezes,
a domínios afins ou devidamente concertada nas suas várias extensões. Veja-se, v. g. ,
e uma vez mais, no que toca à visão� o caso da fisiologia ocular, que recebe uma
aplicação sistemática não só a respeito do que se vê e de como se vê, mas versando
ainda dimensões noéticas. Na questão 6 do terceiro capítulo do livro III, segue-se a
opinião de que se podem entender ao mesmo tempo várias coisas na sua pluralidade.
Ora, postos perante a objecção de Ferrara (a. 2) de que isso não seria possível porque
v.g. o branco e o negro que os olhos vêem não são vistos como vários, mas como

( I J BARTHES , R., Sade, Fourier, Loyo/a, trad. , Madrid 1 997, 63-7 1 ; HÕ PFL, H . , Jesuit Political
Thought . . 29: «Any account of the Jesuits which ignores their spirituality would be absurd»;
.

DIAS , 1. S . da S., Correntes ... 65 1 sg. Veja-se também, por fim, MASSIMI, M . , Palavras,
almas e corpos no Brasil colonial, São Paulo 2005 .
<2l BARTHES , R., Sade . . . 70.
<3l ln Ili De Anima . . II c.7, expl. p. 1 62; ibid. q.6, a. l, p. 1 83 .
.

<4J Cf. CAR VALHO, M. S . d e & MEDEIROS, F . , «Em tomo d o paradigma d a visão n o século
XVI: luz , visão e cores no Comentário Jesuíta Conimbricense ( 'De Anima' II 7)».
Introdução Geral 113

um, respondem remetendo para o que haviam dito no Livro II (c. 6, a. 2 e c. 7, q. 5 ,


a . 2) 1 : a s imagens visuais não ocupam diversas partes d o olho, mas toda a pupila, e o
tamanho da pupila, ocupada com poucas espécies, não pode compreender ao mesmo
tempo coisas tão várias e diversas, e daí que o negro e o branco não sejam vistos em
separado, mas em conjunto.
O finalismo biológico de Galeno difere do de Aristóteles ao substituir o modelo
das causas formal e final pelo modelo órgão-função, quer dizer, «a fórmula de Aris­
tóteles segundo a qual a natureza nada faz em vão, transforma-se, em Galeno, na
afirmação de uma providência divina, particularmente astuciosa e providente» de
modo a que o ser vivo tenha os seus órgãos dotados para uma determinada função
com uma determinada utilidade, como que um mecanismo fabricado pelo Criador da
melhor maneira possível, chegando até Galeno a comparar o seu Criador com o
Deus de Moisés ? Notemos, de passagem, a ocorrência frequente do termo 'fabrica'
(onze vezes), indiciador de um micro-paradigma maquinista imediatamente prévio
ao da mecanização cartesiana. Ora, quanto ao ponto relativo aos dois modos do
finalismo, embora não tenha ainda sido produzido qualquer estudo que valha a pena,
quer-nos parecer que se encontram nos nossos Jesuítas as duas posições . Embora,
quando se trata de decidir entre Galeno e Aristóteles a opção caia, por princípio e em
regra, neste último, é notório que o tom e o perfil teológico dos autores tende a pri­
vilegiar uma teleologia concorde com esse tom.
Em Aristóteles, a teoria do conhecimento sensível e intelectivo interpenetram-se.
Capital é a frequente aplicação do princípio analógico - procedimento mais do que
retórico ! - de um paralelismo entre os dois planos: ita se habet intellectus ad pro­
priam functionem ut sensus ad suam, que também se confirma pela discussão em
volta, v. g. , do grau de actividade e de passividade sensíveis. Tal como o intelecto
agente, conforme veremos adiante, prepara, em primeiro lugar, o intelecto passivo
para entrar em acto, imprimindo-lhe as imagens inteligíveis das coisas, também o
objecto sensível, que se distingue realmente dos sentidos, há-de prepará-los e dispo­
-los para a transmissão da semelhança cognitiva? Assim, e em suma, a faculdade
sensitiva não consiste apenas em receber a espécie do objecto que desse modo se
actualiza; ela tem também uma faculdade activa na medida em que, uma vez infor-

(!) Cf. ln III De Anima . . . II, c. 6, q. 5: Vtrum sensibile commune propriam speciem sensiterio
inurat; ibid. c. 7, q. 5: Vtrum uisio fiat emissis ab oculo radiis, an receptis ab obiecto imagini­
bus. Cf. também ln III De Anima . . . II c . 3 , q. 5, a. 2, p. 1 2 1 para o caso da visão de dois objectos
de diferente espécie, com a análise de DES CHENE, D., Life 's Fonn . . . 1 25- 1 26.
(l) PICHOT, A., «Introduction» in Galien. CEuvres médica/es choisies. Trad. de Ch. Daremberg;
choix, présentation et notes par A. Picho!, Tome I, Paris 1 994, xxxv, xxxvii.
<3l ln III De Anima ... II c. 6, q. !, a. !, p. 1 36: « . . .intellectus uero agens praeparat primo patientem
ad agendum, imprimendo illi intelligibiles rerum imagines: quo etiam pacto obiectum sensile,
quod a sensu re ipsa distinguitur, sensum praeparat, ac disponit, sui ad ipsum transmittendo
similitudinem.»
114 Introdução Geral

mada, realmente sente � Houve quem tivesse salvaguardado, por isso, alguma simili­
tude entre esta teoria e a doutrina cartesiana, segundo a qual, embora os sentidos
sejam faculdades passivas da alma, em qualquer caso também esta exerce uma acti­
vidade eficiente na produção das sensações? Isto equivale, sem dúvida, à recepção
quinhentista de uma velha polémica atinente ao sentido agente � Mais uma vez, ela
não atesta só a profunda complexidade do «sistema dos sentidos»� mas decerto mais
uma das dimensões em que é possível falar-se da actividade da alma, logo na sua
primeira dimensão, a sensível, sem beliscar a sua unidade fundamental, traduzindo­
-se desse modo um certo distanciamento em relação à passividade sensível aristoté­
lica, a que ainda se não prestou a atenção merecida.
Uma derradeira palavra sobre a faculdade da imaginação justificaria evocarmos a
tese kantiana sobre o poder criativo da imaginação (Einbildungskraft), precisamente
no sentido da transformação de um objecto. Trata-se de o interiorizar, como que
conferir-lhe «uma outra natureza a partir da matéria que a natureza efectiva lhe dá» ?
E não teríamos outra maneira de justificar este atrevido paralelo com a terceira Crí­
tica senão chamando a atenção para o modo etimológico (a nominis etymologia)
como os Jesuítas de Coimbra são sensíveis à palavra de Aristóteles que remetia
phantasia para phos (429 a 3), na versão de Argirópulo, « . . . quod nomen imaginatio
ab ipso lumine sumpsit, phantasiaque dicitur, quia sine lumine visio fieri nequit» �
quer dizer: « . . . chamamos-lhe 'fantasia' , pois o nome 'imaginação ' é tomado da
própria luz, já que sem a luz é impossível a visão». Como seria de esperar, além de
se sublinhar a afinidade ou a relação entre a sensação e a imaginação, aponta-se
inequivocamente para uma componente que permite a passagem do gnosiológico ao
ético, e do conhecer ao pensar, defendendo o seu estado de permanência na mente de
quem está a fazer o seu exercício individual de discernimento. É pelo facto, escre­
vem os Jesuítas, de a «fantasia tomar o seu nome da visão, que ocupa o lugar princi­
pal entre todos os sentidos externos, visto que o recebe da luz» que, das duas partes
da partícula do texto grego «apó tou pháous kaí tes staseos» - menção contraban­
deada esta, vale a pena assinalá-lo, porque não se encontra no texto de Aristóteles -,
a segunda parte dessa partícula (i. e. : 'tes staseos ' ), continuam, sem deixar de remeter

O l ln Ili De Anima . . . II e. 6, q. 1 , a. 2, p. 1 39: «Si igitur primo, uel tertio modo consideretur, haud
dubie potentia passiua est; cum sic non operetur, sed patiatur: si secundo modo, est potentia
actiua; quia sic non patitur, sed operatur. Pro qua re lege D. Nemesium capite 6. de natura
hominis.»
<2l SIMMONS, A., «The Sensory Act. . . » 75. Neste mesmo lugar, a autora remete ainda para um
seu estudo, que não pudemos conhecer, «Explaining Sense Perception: A Scholastic Challenge»
Philosophical Studies 73 ( 1 994) 257-75.
<3l Cf. PATTIN, A., Pour l 'histoire du sens agent. La controverse entre Barhélemy de Bruges et
Jean de Jandun. Ses antécedents et son évolution, Leuven 1 988.
<4l Cf. BIARO, J., «Le systeme des sens dans la philosophie naturelle du XIVe siecle (Jean de
Jandun, Jean Buridan, Blaise de Parme)» Micrologus. Natura, scienze e società medievali 1 0
(2002) 335-5 1 .
<5l KANT, 1., Crítica da Faculdade do Juízo § 49. Introd. , trad. e notas de A . Marques e V . Roh­
den, Lisboa 1 992, 2 1 9.
<6l ln Ili de Anima . . . III e. 3, textus 1 62, p. 1 98.
Introdução Geral /15

para uma profilaxia das paixões da alma, «indica o que se toma permanente e de
certo modo justo (permanens et quidem merito), visto que a imaginação permanece
(permanet) quando a função dos sentidos externos cessa. » 1 Passámos assim da
memória sensitiva à memória intelectiva, sendo a propósito desta que os autores de
Coimbra farão coincidir o IIIº livro do De Anima de Aristóteles com o Xº do De
Trinitate de Agostinho ?

4. O conhecimento intelectivo ; o pensamento

A tese avançada em De Anima III 5, de acordo com a qual todo o pensamento


humano (noein) carece de dois intelectos, um passivo e um activo ou agente, intri­
gou muito os leitores de Aristóteles, a partir de Teofrasto. O mesmo sucede com os
Jesuítas de Coimbra que, na aula, apresentam, v.g. , o seguinte horizonte de contro­
vérsias : 1 ) a existência do intelecto agente; 2) a diferença entre os dois intelectos 3)
a caracterização das três actividades do intelecto agente; 4) a necessidade das espé­
cies inteligíveis (c. 5, q. 3); 5) a questão da intelecção dos singulares (c. 5, q. 4) ; 6) o
modo de produção das espécies inteligíveis (c. 5, q. 5 e 6).
Não podendo, materialmente, ocuparmo-nos de todos estes problemas, persiga­
mos quase exclusivamente o tema genérico do intelecto e da intelecção. Comecemos
pelo intelecto agente e pelo tema correlativo das espécies ? São quatro os temas trata­
dos a propósito do intelecto agente. O primeiro, de características historiográficas e
sistemáticas, justificável pelo facto de estes comentários conferirem um espaço
importante ao estabelecimento do ' status quaestionis ' ; o segundo, acerca da existên­
cia necessária do intelecto agente na alma humana, dita a tese comum da escola
peripatética; o terceiro, relativo à distinção entre os intelectos possível e agente; por
fim, o tema das três funções (intellectus agentis munia) do intelecto agente, igual­
mente na esteira peripatética (officia intellectui agenti a Peripateticis tribuuntur), a
saber:
1 . iluminar as representações sensíveis (illustrare phantasmata);
2. actualizar o objecto inteligível (efficere obiectum intelligibile actu);
3 . produzir as espécies inteligíveis no intelecto possível (producere in intellectu
patiente species intelligibiles) .

O l ln III de Anima . . . III c.3, explanatio r, p. 1 98 .

(l) ln Parva Natura/ia: D e memoria c. I , p.3: «lntellectivam tradidit Aristoteles 3 º D e Anima cap. 4,
text. 6, cum docuit animam esse locum specierum, non totam sed intellectum; de qua etiam
interpretandus est D. Augustinus libra 1 0º De Trinitate cap. 1 1 cum ait memoriam, intelligen­
tiam et voluntatem unam esse mentem, hoc est in unam eademque mente inharere.»
O l Cf. para o que se segue, o nosso «A doutrina do intelecto agente no Comentário ao 'De Anima'
do Colégio Jesuíta de Coimbra» in FERNANDO SELLÉS , J. (ed.), El Intelecto Agente en la
Escolástica Renacentista, Pamplona 2006, 1 55- 1 83 .
116 Introdução Geral

A defesa da necessidade do intelecto agente pessoal nada tem de inovador.


Embora os autores se refiram à sua pluralidade contra as teses averroístas � tal
necessidade deriva da lógica acto/potência e da doutrina aristotélica da anterioridade
daquele em relação a esta, embora lida na esteira de Agostinho de Hipona. Assim se
explica a passagem do plano da inteligibilidade em potência para a inteligibilidade
em acto 2 : sendo o pensar pura potencialidade (o intelecto possível é em si uma tábua
rasa, ideia que os autores também traduzem numa linguagem mais teológica «a
primaeua sua origine rerum imaginibus prorsus careat» 3 ), é necessário admitir qual­
quer princípio que o actualize. O tema da necessidade do intelecto agente (ausente
nos anjos4) podia ser na época uma ocasião para perguntar pela própria raíz do pen­
sar. Ao intervirem no tema sobre se o intelecto agente se distingue realmente do
possível - como querem Alberto Magno, Tomás e (estranhamente) Escoto - ou
apenas formalmente - na linha de Tiago de Viterbo, Maior, Nifo ou do Abulense -,
consideram a primeira tese a mais consentânea com o texto 5 do capítulo IV (429 a
2 1 -24), sem que com isso reprovem liminarmente a defesa de uma diferença formal ?
Note-se que o critério para uma alegada maior plausibilidade da distinção real relati­
vamente à distinção formal é o da concordância com o texto de Aristóteles e não a
rigorosa determinação da extensão dos componentes causais na intelecção. As expli­
cações que os autores dão em defesa da distinção real têm por base realidades físi­
cas � enquanto que aquilo que os atrai na tese da distinção formal é o velho princípio
de economia? Os exemplos físicos aduzidos para a defesa de uma distinção real
compaginam-se mal com uma opção pelo tema do intelecto agente enquanto oportu­
nidade para perguntar com radicalidade sobre o próprio pensar. Deste ponto de vista,
a ocasião da pergunta pelo intelecto agente deve visar apenas uma componente do
processo noético. Justifica-se, por isso, a relação intrínseca deste assunto com o

( ! ) Cf. ln Ili De Anima . . . III c. 5, q. 1 , a. 2, p. 323.

<Zl ln Ili De Anima ... III, c. 5, q. 1, a. 2, p. 323 : «Hanc assertionem loco citato confirmauit
Aristoteles ex eo quia id, quod est in potentia, eget aliquo, a quo ad actum deducatur. Cum igitur
intellectus possibilis sit in pura potentia necessario erit danda aliqua facultas, a qua ad
intelligendi actum deduci possit: haec autem est intellectus agens . . . ». ln Ili De Anima . . . II c. 6,
q. 1 , a. 1 , p. 1 36: «Agentem uero intellectum ideo a patiente Aristoteles distinxit, quia, ut ibi
enuncleatius exponemus, in tota ratione rerum aliud est id, quod ad agendum praeparatur; aliud,
quod primo praeparat. . .»
<3l Cf. ln Ili D e Anima . . . III c. 5, q. 1 , a. 3, p. 325 .
<4l Cf. ln Ili De Anima . . . III c. 5, q. 1 , a. 3, p. 325 .
<5l ln Ili D e Anima . . . III, c. 5 , q. 1 , a . 2, p . 324: «Ex his duabus opinionibus neutra sane
improbabilis uidetur . . . »; cf. KESSLER, E., «The Intellective Soul» 5 1 3 .
<6l ln Ili D e Anima . . . III, c. 5, q. 1 , a . 2 , p. 3 2 3 : «Sic uniuersales causae, u t intelligentiae, e t corpora
coelestia distinguuntur a mundo elementari, quem ad generationes rerum instruunt, ac
promouent; sic ignis distinguitur a ligno, quod calefacit; aqua a manu, quam refrigerat: color,
caeteraque obiecta sensuum externorum ab ipsis sensibus externis, quibus sui similitudinem
inurunt; et sensus externi ab internis, ad quos rerum a se perceptarum species mittunt; atque ita
in caeteris res habet. Quare consentaneum est, ut etiam intellectus agens, qui patientem per spe­
cies intelligibiles ad intelligendum disponit, realiter ab eo differat.»
<7l ln Ili De Anima . . III, c. 5, q. 1, a. 2, p. 324: «!taque huiusce opinionis ratio, ac fundamentum
.

erit, quod res non sint absque necessitate multiplicandae . . . »


Introdução Geral 117

tema das espécies, mas também a discussão sobre a relação entre o s dois intelectos.
Acerca deste assunto, eles esclarecerão que só ao intelecto possível compete julgar e
pensar, sendo o agente como que o auxiliar do possível (quasi administer). E, se
nada há de mais elevado do que pensar, então a aplicação da tese aristotélica da
superioridade do acto sobre a potência (aprovada por Agostinho, acrescentam 1 ) às
relações entre o intelecto agente e o intelecto passivei, não deve ser interpretada em
sentido absoluto, mas qualificado (praecise consideratione)?
Estabelecida a necessidade do intelecto agente e a sua provável distinção real do
intelecto possível, eles estudam as três funções referidas do intelecto agente. A pri­
meira é a da iluminação efectiva, um episódio mais da constante história da luz antes
do Iluminismo, que os autores inscrevem no texto 1 8 (430 a 1 4) ? Noutro lugar do
Comentário esta metáfora da iluminação serve aos autores para a condenação da tese
averroísta da unicidade universal da alma intelectiva (incluindo, dessa maneira, os
intelectos agente e possível)� Agora, o tom é polémico (é uma das características da
filosofia desta época) e, por isso, o diferendo Durandoffomás reaparece� sobretudo
sob a perspectiva de discussões mais modernas, como, por exemplo, a tese de Cae­
tano sobre a «iluminação objectiva» 6 e as teorias de João Capréolo e de Francisco
Silvestre de Ferrara, sobre a «iluminação radical» ? Tratava-se, primeiro, de contra­
riar quem concebia a iluminação das representações sensíveis como uma determi­
nada qualidade em que tais representações seriam levadas pelo intelecto agente à

< 1 > Cf. AGOSTINHO, ln Gen. ad litt. XII 1 6, 3 3 .


<2> ln li/ D e Anima . . . I I I c. 5 , q. 1 , a. 3, p. 3 2 6 : «!taque si intellectus agens, quatenus species
intelligibiles in patientem producit; patiens uero pro ut eas recipiendo patitur, absolute spectetur,
haud dubie sub ea praecise consideratione anteponendus est intellectus agens patienti. Verum id
non obstat quominus patiens, si secundum proprias actiones, quas edit, expendatur agenti sim­
pliciter praeferri debeat.»
<3> Cf. ln ll/ De Anima . . . III c. 5, q. 2, a. 1 , p. 327.
<4> ln Ili De Anima ... II, c. 1, q. 7, a. 3, p. 83: «lntellectum autem propterea lumini comparat, quod
ut lux cum coloribus uisilium rerum imagines elicit, sic ille cum phantasmatis concurrat ad
producendas intelligibiles species in intellectum possibilem inhaerentem animae, non quidem
separatae, ut finxit Auerroes, sed corpori unitae, ipsumque informanti».
C5l SPRUIT, L., Classical Roots . . . 28 1 -83 para Durando e 1 1 64-70 para Tomás de Aquino.
C 6l ln ll/ De Anima . . . III c. 5 , q. 2, a. 1 , p. 327: «Caietanus 1 . part. quaest. 85. art. 1 . opinatur phan­
tasma illustrari ab intellectu agente non formaliter, sed obiectiue, idest, nullam ab eo qualitatem
in phantasma imprimi, sed habere se intellectum agentem ad phantasma eo modo, quo lumen
Solis ad colores, quod, uti quidam opinantur, per solam assistentiam in causa est, ut colores sui
similitudinem in diaphanum, indeque ad potentiam transmittant.»
(?) ln li/ De Anima . . . III c. v, q. 2, a. 1 , p. 328: «Ferrariensis hoc in libro quaest. 9. et Capreolus
loco citato putant quemadmodum cogitatrix hominis facultas propter coniunctionem cum intel­
lectu uendicat peculiarem praerogatiuam, quae belluarum cogitatrici non conuenit, ut nimirum
diuidat, componat et discurrat circa singularia; ita phantasiam ex eadem coniunctione obtinere,
ut ab se promat illustriora, et efficaciora phantasmata, quaeque una cum intellectu agente possint
intelligibiles species producere. Atque hoc esse inquiunt phantasmata illustrari ab intellectu
agente . . . »
]]8 Introdução Geral

formação de uma espécie inteligível � Significativamente, aqui os autores estão do


lado de Durando contra Tomás de Aquino, o que equivale a limitar a capacidade
abstractiva do intelecto agente? Neste contexto polémico os Jesuítas de Coimbra
dizem defender uma tese ainda mais recente (a recentioribus philosophis), a da
iluminação efectiva (effectiva), já identificada com a posição de B aiíez� Tal defesa
equivale a recusar a tese da iluminação objectiva e a superar a tese da iluminação
radical. Note-se, v.g. , que eles avaliam uma vez mais como provável a tese de
Capréolo e a do Ferrariense (talvez também a de Pedro da Fonseca, alegadamente
omitida por respeito4). Trata-se de uma linha que, segundo L. Spruit, rejeitava a
abstracção tomasina mediante a adopção da leitura de Egídio Romano, reconhecível
também em João de Jandun e noutros averroístas e que conferia uma especial prer­
rogativa à faculdade cogitativa, ou imaginação, na formação das espécies ? Por
«iluminação efectiva» os Jesuítas de Coimbra entendem aquela que «age à maneira
de uma luz externa, cujo raio eleva activamente as representações sensíveis à produ­
ção da espécie inteligível, na qual está representada a natureza comum desprovida
das diferenças individuais, só conhecida pelo intelecto possível»� Houve quem inter­
pretasse esta posição de Coimbra como uma elevada espiritualização do processo
intelectivo, quase superando o complexo causal aristotélico imaterial/material? mas
não deve tratar-se menos de uma via correctora, como diremos a seguir.
Embora provável, dizem os nossos autores, a tese radical do Ferrariense é insatis­
fatória porque não só não capta toda a dignidade de uma acção iluminativa como

O l ln III De Anima . . III c. 5, q. 2, a. 1 , p. 327: «Sunt qui iliam putent consistere in productione
.

certe qualitatis; cuius merito, ac ui phantasma ah intellectu agente excitetur ad gignendam for­
mam spiritalem, hocest, speciem intelligibilem. » ; cf. SPRUIT, L., Classical Roots . 282.
. .

<2l Os autores citam explicitamente, para a negar, a seguinte passagem sobre o intelecto agente,
TOM Á S de AQUINO, Summa contra Gentiles II 77: « . . . est igitur in anima intellectiva virtus
activa in phantasmata, faciens ea intelligibilia actu»; cf. ANDRADE, A. A. B. de, «Teses ... »
1 25 .
<3l MÜLLER, H. J., Die Lehre vom verbum mentis i n der spanischen Scholastik, Münster 1 968,
24 1 -2 que remete para D. Bafíez, Scholastica Commentaria in Primam Partem Ange/ici Docto­
ris D. Thomae Aquinatis, Venetiis 1 59 1 , s.p.
<4l Cf. ANDRADE, A. A. B . de, «Teses ... » 1 26, que remete para PEDRO da FONSECA,
Commentariorum . . V, c. 28, q. 8, sec. 3, c. 1 025-29.
.

<5l Cf. SPRUIT, L., C/assical Roots ... 360-63.


<5l ln III De Anima ... III c. 5, q. 2, a. 1, p. 328: «Placet igitur nobis ea sententia, quae a recentiori­
bus philosophis celebratur, aientibus illuminationem phantasmatum non esse obiectiuam uti
Caietanus ait, nec radicalem tantum, ut Capreolus, et Ferrariensis arbitrantur, sed effectiuam;
non quasi intellectus agens aliquid luminis phantasmatibus imprima!; sed quia tanquam externa
lux radii sui consortio actiue eleuat phantasmata ad producendam speciem intelligibilem, in qua
communis natura repraesentatur exula differentiis indiuidualibus, manetque a solo intellectu
perceptibilis . . . »
(7) Cf. SIMMONS, A., «Jesuit Aristotelian Education: The 'De Anima' Commentaries» in
O' MALLEY, J. W. et ai. (ed.), The Jesuits. Cultures, Sciences, and the A rts 1540-1 773, To­
ronto Buffalo London 1 999, 533: «De Goes and Toledo consider themselves constrained by the
causal principie as well, but they take the 'illumination' literally to change the conditions in the
mind, spiritualizing them in such a way that the causal principie is no longer a problem.»
Introdução Geral /19

valoriza excessivamente a s representações sensíveis, como que analogando pela raíz


intelecto agente e imaginação. No excesso da tese radical, as imagens sensíveis eram
consideradas mais como luminosas do que como iluminadas � Esta teoria procurava
resolver a questão da unidade da vida mental, consagrando uma mesma origem
anímica para a imaginação e para o intelecto (o intelecto agente garantiria a univer­
salidade do conhecimento e as representações sensíveis a sua objectividade) e
impondo, desse modo, uma evidente cooperação entre os dois órgãos. Ora, é evi­
dente que o sentido da superação da tese radical passa por ressalvar a iluminação
enquanto partícipe na produção da espécie inteligível e último garante da passagem
da condição material à espiritual. Por sua vez, a tese objectiva de Caetano (que
entende que na iluminação o intelecto agente ilumina não formalmente, mas objecti­
vamente, quer dizer, mediante assistência à captação da natureza comum sem que a
singularidade apareça na sua verdadeira dimensão) falha por presumir em excesso
relativamente à contribuição da imagem sensível (phantasma) e por não esclarecer
que tipo de luz o intelecto agente proporciona� Podemos dizer, em suma, que a tese
da iluminação efectiva presume corrigir qualquer tentativa, errada ou incompleta, na
interpretação dos autores do curso de Coimbra, de ler a necessidade da acção ilumi­
nadora do intelecto agente, fosse por via da imaginação - que levava ao esvazia­
mento da iluminação (tese radical) -, fosse por via de um excessivo distanciamento
entre o físico e o mental, que conduzia à cegueira iluminativa (tese objectiva). Na
medida em que o intelecto agente se limita a efectivar ou a gerar a luz coprodutora
da espécie no intelecto passivo, trata-se de uma aproximação ao esquema escotista
de uma causalidade que concorre não com causas totais mas com causas parciais,
«in causis quae sunt heterogeneae» � Um entendimento correcto da iluminação toma
necessária a existência do intelecto agente, mas a sua iluminação efectiva, chamada
a determinar a dignidade do acto intelectivo, carece daquilo que de facto é elemento
de efectivação, i. e. , das espécies propriamente ditas, as quais, por sua vez, não
podem prescindir da contribuição do vasto complexo do sensível elevado a causa
eficiente. Isto quererá dizer, como também sucedia com Fonseca ou com Suárez, que
o intelecto agente não tem uma dimensão cognoscitiva livre e criativa, sendo que, na

( I J ln III De Anima . . . III e. 5, q. 2, a. 1 , p. 328: «Haec explicatio, quanquam habet probabilitatem,


non omnino satisfacit. Videtur enim illustrationis nomen, quod actionem sonat, nimis improprie,
et remote usurpare pro insitae nobilitatis communicatione, quae est ante omnem actum intellec­
tus agentis, et in ipsa primaeua, ac naturali phantasiae, et intellectus, in eadem quasi radice,
copulatione consistit. A qua certe phantasmata quasi ob stirpis nobilitatem, et splendorem, rec­
tius illustria, quam illustrata dici debent. . . » ; vd. P. da FONSECA, Commentariorum. . . V, e. 28,
q. 8, sec. 3 , e. 1 026: « ... vocant radicalem illuminationem, quod in ipsa phantasiae quasi radieis
suae cum intellectu agente coniunctione fiat.» cf. ainda ANDRADE, A. A. B. de, «Teses . . . »
1 26; SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . . 1 1 9-24.
(ZJ ln III De Anima . . . III e . 5, q. 2, a. 1 , p. 327-28 : « . . . cum phantasma quantumuis obiectiue irradie­
tur, nihilominus in organo corporeo maneat, extensumque sit, non potest naturam sine materiae
conditionibus ostendere, ut fingit Caietanus. ( . . . ) Postremo, quia si in phantasmate sola quidditas
uniuersalis elucet, profecto iam res in phantasia uniuersales existent, cum in ea repraesententur
absque differentiis indiuiduantibus.»; SPRUIT, L., Renaissance Controversies. . . 1 1 1 - 1 9.
l 3l ln III De Anima . . . III e. 5, q. 6, a. 2, p. 359; cf. MURALT, A. de, L 'Enjeu de la philosophie
médievale. Etudes thomistes, scotistes, occamiennes et grégoriennes, Leiden 1 99 1 , 32.
120 Introdução Geral

sua primeira função, ele apenas eleva as representações sensíveis ao nível da natu­
reza comum representada pelas espécies inteligíveis � Ao aprofundarem esta questão,
os autores dizem ser nos termos da causa eficiente, e não da causa material, que a
imagem sensível concorre com o intelecto agente para produzir espécies inteligíveis.
Frente aos fundamentos daqueles (como Caetano, Ferrariense e Capreolo) que
defendem que essa causa é instrumental e aos fundamentos dos que dizem (como
Escoto) que ela é parcial� os Jesuítas de Coimbra preferem assinalar aos seus alunos
serem ambas prováveis (utraque harum opinionum admodum probabilis uidetur),
embora concedam mais espaço ao exame da posição escotista das causas parciais �
Na metáfora do intelecto agente como luz efectiva, o ser representativo ou a razão da
representação (rationem repraesentandi seu esse repraesentatiuum) da espécie inte­
ligível é causada efectivamente pela imagem sensível, e a espécie inteligível recebe
o respectivo ser inteligível (esse spiritale) dos dois intelectos: do agente, como causa
efectiva, e do possível, como causa subjectiva ou material�
De acordo com a segunda tarefa do intelecto agente (jacere obiectum intelligibile
actu), «actualizar o objecto inteligível equivale a fazer com que um determinado
objecto seja representado numa espécie inteligível» � Na geração desse princípio
formal da intelecção, que é a espécie inteligível, a conjugação duplamente efectiva,
qual a das imagens sensíveis com o intelecto agente, causa no intelecto possível a
ciência e o hábito provocado pelo exercício da ciência. O que era inteligível em acto
(i. e. objecto do intelecto agente) toma-se inteligido ou pensado em acto no intelecto
possível. A prioridade de natureza do inteligível em acto sobre a intelecção feita
pelo intelecto possível vai a par da afirmação da necessidade da espécie inteligível
considerada como pré-requisito e suporte da intelecção� Tendo agora presente que
aqui se devia visar directamente a tese de Caetano, depreende-se que um entendi­
mento correcto da iluminação (sem conferir ao intelecto agente a capacidade de
pensar nem de gerar de imediato qualquer pensamento, a iluminação tem, contudo,
um papel efectivo7 ) exige tomar uma posição exterior à epistemologia, porquanto

< 1 > P. da FONSECA, Commentariorum. . . V, c. 28, q. 8, sec.4, c. 1 032: « . . . intellectus agentis func-
tio non sit cognoscere, quemadmodum nec pati seu recipere, sed agere. . . »; cf. também GRAU I
ARAU, A., «La función dei entendimiento agente en la epistemología de Francisco Suárez
( 1 548- 1 6 1 7)» Revista Espanola de Filosofía Medieval 9 (2002) 1 96.
<2> Cf. ln Ili De Anima ... III c . 5, q. 6, a. 2, p. 358.
<3> Cf. ln Ili De Anima ... III c . 5, q. 6, a. 2, p. 359. Cf. também P. da FONSECA, Commentario-
rum . . . V, c. 28, q. 8, sec. 5, c. 1 035, no sentido da causa eficiente.
<4> ln Ili De Anima . . . III c. 5, q. 6, a. 2, p. 358: «Namque rationem repraesentandi, seu esse reprae­
sentatiuum, accipit species a phantasmate, quemadmodum et esse spiritale ab utroque intellectu;
ab agente, ut ab effectrici; a possibili ut a causa subiectiua seu materiali.»
<5> ln Ili De Anima ... III c. 5, q. 2, a. 2, p. 329: «Quo patet reddere obiectum intelligibile actu, nihil
esse aliud, quam efficere ut obiectum repraesentetur in specie intelligibili.»
<6> Cf. ln Ili De Anima . . . III e. 5, q. 2, a. 2, p. 329.
<7> ln III De Anima ... III c. 5, q. 2, a. 2, p. 330: « . . . sententia quae decemit intellectum agentem non
intelligere, nec ullam intellectionem immediate producere, et communior est, et uerior.»
Introdução Geral 121

relativa a essa região que abarca o último limite do sensível e o primeiro limite do
inteligível.
Compreende-se também por que é que os Jesuítas não tomam a questão nuclear
da possibilidade intelectiva na perspectiva da recepção da espécie (secundum recep­
tionem speciei), mas sim segundo o próprio carácter da intelecção (ratio intellectio­
nis). Não correríamos grande risco se dissessemos que se confrontam com uma
pergunta implícita: «O que significa pensar?» «Por intermédio da sua imagem, o
inteligível em acto, em conjunto com (una) o intelecto possível, toma efectiva a
acção intelectiva» ! Isto equivale a regressar - dizem eles - ao De Trinitate IX, 1 2,
que defende que o conhecimento (notitia) se explica a potentia et obiecto, ao que
parece um refrão habitual entre os autores ibéricos � mas que aqui reivindica uma vez
mais a correcção do princípio da iluminação, quer dizer, a aproximação entre o
físico e o mental pela própria natureza da intelecção. Em conformidade, os nossos
Jesuítas insistirão na teoria da actividade do intelecto possível: se o intelecto possí­
vel tem uma relação de pura passividade ou receptividade com o objecto, já relati­
vamente ao processo intelectivo o intelecto possível terá de ser considerado activo,
porque nem o intelecto agente nem a imagem são suficientes por si para a realização
do pensar.
Os textos ocupados com a última das tarefas do intelecto agente (producere spe­
cies intelligibiles in patientem) permitem aos autores duas comparações. O intelecto
agente está para o possível como a arte para a matéria, o que quer dizer que ele
induz (inducere) as espécies inteligíveis no intelecto possível. Se o comparamos
com o hábito, o intelecto agente deve ser tomado em sentido lato, i. e. , não no sentido
em que falamos dos hábitos dos primeiros princípios, mas no sentido de compreen­
der (complectitur) qualquer faculdade que opere? Noutro lugar, também se lia
competir ao intelecto agente preparar o intelecto possível para este agir, o que suce­
deria mediante a impressão das imagens das coisas inteligíveis� É claro que tudo isto
não é propriamente uma clarificação e, sobretudo, escamoteia problemas de inter-

O l ln III De Anima . . . III e. 5, q. 2, a. 2, p. 329-30: « . . . intelligibile actu per suam imaginem una
cum intellectu possibili intelligendi actionem effectiue edit. Vnde illud ex Diuo Augustino lib.
9. De Trinitate capit. 1 2. a potentia, et obiecto paritur notitia.»
(Z) SPRUIT, L., Classical Roots . . . 1 8 1 ; P. da FONSECA, Commentariorum . . V, e . 28, q. 8 , sec. 4,
.

e . 1 029: « ... intellectus possibilis simul cum specie intelligibili, per quam res est facta intelligi­

bilis in actu, producit actum intelligendi, iuxta commune illud Philosophorum pronuntiatum, 'A
potentia et obiecto paritur notitia. ' » .
(3) ln III D e Anima . . . I I I e . v, q. 2, a. 2, p. 33 1 : «Sed quaesierit adhuc forte aliquis cur Aristoteles
capit. 5. huius libri text. 1 7 . dixerit intellectum agentem habere se ad possibilem ut artem ad
materiam. Item cur illum eodem capit. textu 1 8 habitum uocarit. Ad primum horum dicendum
comparasse intellectum agentem arti, quia ut ars infert in materiam formas artificiales, ita intel­
lectus agens inducit in possibilem species intelligibiles. ( . . . ) Ad posterius dubium respondendum
est intellectum agentem non uocari habitum ab Aristotele, quod sit habitus primorum principio­
rum, ut arbitrati sunt nonnullis ( . . . ) . Dicendum est igitur intellectum uocari ab Aristotele habi­
tum, late accepta habitus appellatione, ut complectitur quamlibet uim, aut facultatem ad operan­
dum.»
<4l ln III De Anima ... II e . 6, q. 1, a. 1 , p. 1 36 : « . . .intellectus uero agens praeparat primo patientem
ad agendum, imprimendo illi intelligibiles rerum imagines . . . »
122 Introdução Geral

pretação dos textos aristotélicos. Seja como for, tal demonstra que os Jesuítas pre­
tendem atribuir ao próprio texto de Aristóteles uma autêntica doutrina da iluminação
e ensinar que essa doutrina é indefensável, se não se der ao «intelecto que é capaz de
se tomar todas as coisas», a sua base objectiva material mediante a postulação da
necessária existência do intelecto agente e das espécies, já na sua dimensão espiri­
tual, já na sua dimensão representativa do que é sensível.
Um tratado sobre as espécies inteligíveis completa a doutrina do intelecto agente �
Estando os seres materiais em potência para serem entendidos, a sua necessária
desmaterialização com vista à representação no intelecto, também ele imaterial,
acontece por meio das espécies inteligíveis, semelhantes ao intelecto nas suas for­
mas inteligíveis.
As três características destas espécies inteligíveis demonstram isto mesmo2 :
1 . imagens ou representações das coisas que podem ser pensadas;
2. princípios constituintes da intelecção conjuntamente com o intelecto (dada a
sua perfeição, estas duas primeiras características podem dar-se no intelecto
beatífico);
3 . inerentes ao intelecto após retirá-las da natureza do acidente.

Porque havia quem negasse a sua existência, e como os Jesuítas de Coimbra


necessitam de mantê-las, enfrentam um conjunto de teses que se inclinam para o
carácter excedentário das espécies inteligíveis, por exemplo, em nome da suficiência
das imagens sensíveis (phantasmata)� No primeiro argumento citado para dispensar
as espécies inteligíveis, o princípio de uma subordinação das faculdades (imagina­
ção/intelecção) alimenta a ideia da cooperação radical entre estas� Semelhante ver­
são será lida num quadro dionisiano, o qual, ao dar um papel intermediário à imagi­
nação, anuncia uma ordem ontológica e cognitiva que vai ligar os limites do sensível

O l ln Ili De Anima . . III c. 5, q. 3, a. 2, p. 333: «Secundo, quia cum intellectus ad hanc, uel iliam
.

rem percipiendam indiscriminatim se habeat; cumque in se spectatus sit pura potentia, necessa­
rio ad intelligendum requirit aliquam formam, qua actuetur, et eget aliquo formali principio,
unde intelligendi actum promat, et quo ad hoc potius, quam illud concipiendum determinetur.
Haec uero forma, et principium non aliud est, quam species intelligibilis.» Os autores enumeram
hierarquicamente (ln de An. III c. 5, q. 3, a. 2, p. 335) os seguintes tipos de espécies, «ordine
dignitatis» : (i) dos sentidos externos; ii) dos sentidos internos (que não confundem com o sen­
tido comum); iii) inteligíveis; iv) do intelecto angélico. Cf. ANDRADE, A. A. B, de «Teses . . . »
1 23- 1 37 ; SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . 289-93 ; SPRUIT, L., Classical Roots . . 2 1 ,
. .

1 79- 1 86.
c 2> Cf. ln li/ De Anima ... III c. 5 , q. 3, a 2, p. 334.
C 3l Como é sabido L. SPRUIT (Classical Roots . . 68) afirma que os autores do Collegium
.

Conimbricense S. J. reduzem a lista de Toledo relativa aos autores que negam a existência das
espécies, mas, como referimos, enquanto não for estudada a tradição manuscrita do curso aquela
afirmação não pode ser interpretada em termos consequentes.
C4l ln Ili De Anima . . III c. 5 , q. 3, a. 1 , p. 332: «Cum igitur phantasia, et intellectus sint potentiae
.

subordinatae, ratio ordinis postulat, ut phantasia, quae est potentia natura prior, repraesentet
intellectui obiectum, quod ille confestim apprehendat absque alia specie. »
Introdução Geral 123

aos limites do inteligível ! É óbvio estarmos perante a comum inflexão neoplatónica


característica deste período post-tomista (referíamos acima Agostinho como com­
plemento de Aristóteles), mas até hoje ainda não foi explicado como é que o
Pseudo-Dionísio entrou na história desta controvérsia� Ora, tendo em vista a insufi­
ciência do sensível, o princípio da subordinação das faculdades (potentiae subordi­
natae) promove inevitavelmente a figura da intermediação. Aplicada «de modo
repraesentandi», será também ela a requerer um «praeconceptum» (de notar a termi­
nologia estóica) enquanto modo de representação do objecto pelo sujeito� Este
cunho neoplatónico de entender a intencionalidade e a relação entre o inteligível e o
sensível é irreconhecível em Aristóteles e em Tomás de Aquino, sendo apenas a
aplicação de uma condição que os autores dizem explicitamente ler no Liber de
Causis e no Pseudo-Dionísio: «omne, quod alicubi recipitur, ad recipientis naturam
accommodari debet» 1
Daí que não possamos acompanhar sem mais L. Spruit ao afirmar que os Jesuítas
não põem seriamente em causa a necessidade das espécies inteligíveis. Algumas das
respostas que dão aos seis argumentos que negam essa existência são esclarecedores
da sua posição a este respeito. Destacaríamos uma, o facto de, alegadamente, a expe­
riência auto-reflexiva (experitur se intelligere) exigir um princípio formal de inte­
lecção, qual a espécie. Ela vai totalmente ao encontro do aprofundamento da ilumi­
nação sob o prisma da ratio intellectionis. Sendo as espécies inteligíveis princípios
de intelecção (principia intelligendi), formas ou princípios formais actualizadores do
acto intelectivo, a ocasião de responderem, para a refutarem, à tese de Avicena - de
acordo com a qual, sendo o pensar um acto de intelecção, as espécies inteligíveis
são-lhe exclusivamente concomitantes (cessante intellectione euanescet species in
intellectu recepta) 5 leva-os a precisar que, dada a própria natureza da sua compo­
-

nente imaterial (immateriali subiecto ) , as espécies inteligíveis persistem na ausência

O l ln III De Anima . . . III e. 5, q. 6, a. 1 , p. 355 : « . . . iuxta illud D. Dionysii 7. capite De diuinis


nominibus, Supremum infimi attingit infimum supremi. Est enim phantasia suprema inter sen­
sus, qui in potentiis cognoscentibus obtinent Iocum infimum, et intellectus humanus est infimus
inter facultates intellectrices, quae in eisdem potentiis supremum locum uendicant. Deinde ab
extremo ad extremum non itur, nisi per medium; sed inter intellectum, et sensus tam commu­
nem, quam externos, qui sunt ueluti extrema, interiecta est phantasia; ergo ut ab illis aliquid
sensibile ad intellectum commeet, oportet ut prius in phantasia insit, atque adeo non alius sen­
sus, sed phantasia proxime intellectui ministerium praestabit.» O sublinhado é nosso.
C Zl Cf. SPRUIT, L., Classical Roots . . 1 04, 69; ID. , Renaissance Controversies . . . 33 1 (para João de
.

Santo Tomás).
C 3l ln III De Anima. . . III e . 5, q. 3, a. 3, p. 335 : «Nec enim facultati appetenti sic obiectum
repraesentatur ut quod a cognoscente apprehenditur, ipsa etiam cognoscat: sed eatenus dicitur ei
repraesentari obiectum, quatenus in id tendere non ualet, nisi a cognoscente praeconceptum sit.
Quo patet, esto phantasia, et intellectus sint potentiae sub ordinatae; non probari hoc argumento
sat esse repraesentari obiectum a phantasia: ut in id intellectus illico absque specie sibi inhae­
rente feratur.»
C4l Cf. ln III De Anima . . III. e. 5, q. 1 , a. 1 , p. 32 1 .
C 5 l Cf. ln III De Anima. . . III e . 5 , q . 3 , a . 2 , p . 334.
124 Introdução Geral

do objecto e na latência do pensar ! Eles também remetem para o que haviam escrito
no capítulo 2 do Comentário ao De memoria et reminiscentia (onde, além de uma
memória sensitiva, localizada na cabeça, falavam de uma memória intelectiva) e
defrontam, sem o explicitarem quem, como Henrique de Gand, admitindo as espé­
cies sensíveis, parecia excluir qualquer tipo de memória intelectual, «quod est contra
experientiam» ? Se atentássemos ainda em que aquela passagem de De memoria
aparece colacionada com a teoria de Agostinho (De Trinitate X, 1 1 ) relativa à tripla
estrutura da mente humana, memória, inteligência e vontade� percebeóamos melhor
a extensão do preconceito neoplatónico que justifica a necessidade das espécies
inteligíveis.
Em tomo do capítulo VIII, os autores do Curso tratam da diferença entre espécies
inteligíveis, intelecção, verbo e objecto ou «res intellecta» e defendem uma dife­
rença real entre espécie inteligível e intelecção, porque: a) a espécie é causa parcial
da intelecção e b) ao cessar a intelecção a espécie permanece, podendo Deus, se a
espécie se retirar, produzir um acto intelectivo. Esta última significa que toda a cau­
salidade da causa eficiente pode ser superada pela potência divina. No artigo 2 da
terceira questão, eles defendem que o verbo e a intelecção não se distinguem real­
mente, mas pela razão, distinguindo-se ambos realmente do objecto. Voltaremos
mais à frente a estas distinções.
Quanto ao tema candente do conhecimento dos singulares mediante espécies
inteligíveis próprias, tema que dividia tomistas e escotistas (agitatur haec quaestio
inter Philosophos magna dissidentium partium contentione4 ), avaliou-se a posição
dos Jesuítas de Coimbra como sendo «débil» ( «relaxed attitude» ) ? Isto porque, ape­
sar de se inclinarem para a negação da possibilidade de se conhecer singulares
mediante espécies inteligíveis próprias, hesitam entre teses prováveis ? Importa ava­
liar essa «hes'itação», mas convém repetir que, baseados numa perspectiva de aco­
modação ao filum doctrinae dos seus comentários, eles norteiam os alunos para a
negação da existência de espécies inteligíveis próprias dos singulares? Os autores de
Coimbra põem-se, de facto, ao lado de Tomás, de Capreolo, de Caetano, de Argen­
tina e do Ferrariense, apoiados sobretudo nos textos 1 0 (429 b 1 5 -20) e 1 6 (430 a

( I J ln III De Anima . . . III, e. 5, q. 3, a. 2, p. 335: «ln tertio species intelligibiles nostri intellectus,
quae obiecto non existente, et cessante intellectione, perseuerant; cumque immateriali subiecto
insint, postquam ei semel inhaeserunt perpetuae, atque indelebiles sunt.»
(Zl ln III De Anima . . . III e . 5, q. 3, a. 2, p. 334.
<3l De Memoria e. !, p. 4.
<4l Cf. ln III De Anima . . . III e. 5, q. 4, a. ! , p. 337.
<5l SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . . 29 1 ; cf. também KESSLER, E., «lntellective Sou!»
513.
<6l ln III De Anima . . . III e . 5 , q . 4 , a . 3, p . 34 1 : «His ita disputationis utraque pars quaestionis
probabilis uidetur, etsi propositum nobis sit tueri potius negatiuam, quae Aristotelicae doctrinae
magis consentanea existimatur. .. »
<7l Cf. ln III De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 3, p. 345 .
Introdução Geral 125

7-9) de De Anima I W O primeiro texto de Aristóteles é o conhecido símile da linha


quebrada, depois refeita, entendido como relação da faculdade intelectiva que
conhece uma essência formal na matéria em ligação com os sentidos � Tal como os
Jesuítas outrora, nos nossos dias M. De Corte explicou o símile nos termos do inte­
lecto, que primeiro se dirige para o dado sensorial, a seguir para a essência que se
tomou inteligível, sendo assim apreendida directamente� O texto é explicado no
plano da passagem do conhecimento do singular para o universal, formalmente dis­
tintos mediante um processo de separação (potentia separabile) no quadro de um
processo cognitivo que assinala a impossibilidade de conhecermos directamente os
singulares� No segundo texto colacionado� os autores vêem a alusão à ideia de que
pela sua capacidade intelectiva o ser humano experimenta a fronteira entre os mun­
dos da sensibilidade e da inteligibilidadé Em consequência, sendo a alma isenta de
matéria e conhecendo por isso, também as espécies inteligíveis devem ser imateriais
no seu modo de representação e incompatíveis com as condições da singularidade
material? É claro que esta posição não era imune à crítica. Desde logo, em nome da
própria interpretação de Aristóteles, que permitia sustentar que nem todas as espé-

( I ) Cf. ln ll/ De Anima . . . III c. 5, q. 4, a. 1 , p.337-38.


<2) ARISTÓTELES, De An. III 429 b 15 (ed. ln ll/ De Anima ... III c. 4, p. 3 1 6) : «Sensitiua igitur
parte calidum discemit, et frigidum quorum quaedam est ratio, caro: alia uero esse carnis dis­
cemit: aut separabili: aut se se habente ad seipsam, perinde atque se se habet cum extensa fuerit
linea flexa.»
<3) De CORTE, M . , La Doctrine de l 'lntelligence chez Aristote, Paris 1 934, 282-83.
<4) ln Ili De Anima ... III c. 4, explanatio p. 3 1 5- 1 6: «Vt doceat ad quam potentiam, sensitiuam ne,
an intellectiuam pertineat cognitio rei uniuersalis, et singulis; monet prius inter rem singularem
et uniuersalem discrimen esse ( . . . ) Docet uero animam humanam cognoscere quidem rem sin­
gularem, eamque sensibilem sensitiua potentia: uniuersalem uero uel potentia separabili; id est
diuersa realiter, uel re quidem una, sed secundum rationem diuersa: et quae se habeat ad se
ipsam ut linea inflexa ad se metipsam rectam.» Cf. também ln /// De Anima . . . III c. 5, q. 4, a. 1 ,
p . 338.
(S) ARIST ÓTELES , De An. III 4, 430 a 7 (ed. ln de An. III c . 5, p. 3 1 8) : «Quare illis quidem non
inerit intellectus: nam intellectus talium potentia sine materia est; ipse autem intelligibilis ratio­
nem subibit.»
(ó) ln Ili De Anima . . . III c. 4, explanatio p. 3 1 8 : «aiens materialia entia non esse per se intelligibilia,
sed potestate duntaxat; nimirum quatenus sunt in potentia, ut deposita quodammodo materia
immaterialia fiant beneficio intelligibilium specierum, quibus intellectui repraesentantur. Vnde
colligit conuenire eis uim intelligendi, quia haec immaterialis est, et per se intelligibilis. Cum
autem materialibus negat intellectum, loquitur de iis, quae omni ex parte materialia sunt. Nam
homo materialis est, et tamen intellectu pollet.»
<7) ln Ili De Anima ... III c. 5, q. 4, a. 1, p. 337: «Forma recipitur in subiecto secundum condi­
tionem, ac modum recipientis ; sed anima est expers materiae; ergo species, quae in ea recipiun­
tur, debent esse immateriales in repraesentando, atque adeo nequibunt repraesentare conditiones
materiae singularis; sed duntaxat naturam communem ab aliis auulsam, ac liberam.»
126 Introdução Geral

cies inteligíveis eram imateriais no seu modo de ser, mas no modo de representar ! E
que o motivo da hesitação é também textual prova-o de novo a discussão dedicada
ao símile da linha, acerca do qual mostram-se conhecedores de uma interpretação
relativa apenas à diferença entre as faculdades que conhecem singularmente e uni­
versalmente�
Posto isto, é evidente haver razões de probabilidade em ambas as teses. Deve até
observar-se que há todo um artigo ocupado com o exame crítico dos argumentos de
ambas as partes a fim de facilitar uma tomada de posição dos estudantes. Uma tese
como a da intelecção do conceito singular (esse rei singularis conceptum) próprio e
adequado - quer dizer, do caso em que se apreende Sócrates enquanto Sócrates e
não do caso em que se apreende Sócrates como Homem (conceito comum) - deve
até ser colacionada com a afirmação, mais adiante no Comentário, de um tipo de
conhecimento intuitivo na linha de Ockham e de Duns Escoto� Como então avaliar
toda esta hesitação? Haveria uma resposta óbvia imediata que não gostaríamos de
descartar apressadamente: sob o peso absoluto da tradição escolar e da polémica, os
Jesuítas de Coimbra regressam ao texto de Aristóteles, não vendo nele razões que
lhes permitam dirimir o problema. Se esta nossa resposta for sustentável, haverá
então que reconhecer o trabalho de objectividade interpretativa e a admissão implí­
cita de que aquela tradição peripatética deve ser expurgada sob a bitola de um novo
«filum doctrinae» �
Esclarecendo este problema, A. Coxito atentava na imitação que o redactor do
Curso fazia da tese de Pedro da Fonseca de um conhecimento reflectido ou 'infle­
xivo' , i. e. , distinto de um conhecimento reflexivo do singular? Lia-se isso, precisa­
mente, no Comentário à Metafísica de Fonseca (lc2q3s5), e na Física de Góis
(lc l q4a3) explicava-se que conhecemos as coisas singulares por meio das espécies
das naturezas comuns, espécies que formamos a partir das imagens sensíveis. Deste
modo, dir-se-ia que o entendimento levava a cabo uma inflexão, uma descida, ao
socorrer-se de uma potência inferior (phantasia) . A referida inflexão com que se

( 1 ) ln //1 De Anima . . . III e . v, q. 4, a. 3, p. 34 1 : «Nec enim oportet omnes species intelligibiles


immateriales esse in repraesentando, sed in essendo. Aristoteles autem loco citato tantum docet
ut res in materiam demersae intelligibiles fiant, debere a materia, idest, a materiae conditionibus
abstrahi; quia quae ab intellectu percipiuntur, nequeunt in eo esse per species diuiduas, aut ex­
tensas, situue praeditas, quae sunt propriae affectiones materiae; sed per imagines spiritales; atque
omnis concretionis expertes, ut cum ipsa intelligendi ui cognationem habeant; tales uero sunt omnes
species intelligibiles, siue singularium rerum, siue communium.» Os sublinhados são nossos.
<2l ln 1// De Anima . . . III e . 5, q. 4, a. 3, p. 342: « . . . inflexae, rectaeque lineae similitudinem, non ad
agnitionem reflexam, et directam; sed ad discrimen inter potentiam, qua singulare, et uniuersale
cognoscitur . . . »
<3l ln 1// De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 2, p. 35 1 : «Non est tamen propterea negandum posse intellec­
tui in statu huius uitae competere aliquam intuitiuam cognitionem. Licet enim nullam habeat
speciem, quae ex se rem intuitiue repraesentet; potes! tamen determinari a phantasmate obii­
ciente rem sub esse praesentiae, aliarumque conditionum indiuidualium, ita ut eliciat notitiam
rei singularis subpraedictis conditionibus, quae notitia procul dubio intuitiua erit.»
<4 > Cf. ln llJ De Anima ... III e . 5, q. 4, a. 3, p. 345 .
<5> Cf. COXITO, A. A., «0 problema dos universais . . . » 59.
Introdução Geral 127

descrevia o conhecimento do singular seria como que uma linha curva (linea flexa),
linha que se distenderia quando o entendimento percebe o universal mediante uma
conversão a si próprio, afastando-se finalmente dos objectos sensíveis.
Entroncando com a doutrina aristotélica das categorias, estão algumas das onze
teses (assertiones) relativas às espécies que os intelectos produzem enquanto a alma
se encontra unida ao corpo. Este tópico aparece explicitamente motivado pela neces­
sidade de combater: i) a teoria estóica sobre a origem das espécies a partir das ima­
gens sensíveis; ii) a teoria platónica, que via tal origem nas ideias separadas; e iii) a
teoria avicenista das inteligências separadas. Basta-nos referir as sete teses respei­
tantes ao tipo de espécies que o intelecto agente pode gerar, na linha da sua terceira
função atrás enumerada !
TESE 1 : «todas aquelas espécies das quais possuímos imagens sensíveis
(phantasmata) próprias».
TESE 2: «as espécies de todas as substâncias corpóreas» .
TESE 3 : «as espécies inteligíveis d e todas a s quantidades físicas».
TESE 4: «as espécies inteligíveis das qualidades materiais, ou por si mesmas ou
por outros sensíveis».
TESE 5 : «as espécies inteligíveis de algumas relações».
TESE 6: «as espécies inteligíveis de algumas acções e paixões dos corpos».
TESE 7 : «as espécies inteligíveis respeitantes às restantes quatro categorias».

A tese 1 é basilar, mas nada acrescenta ao que até aqui temos vindo a dizer. Tra­
tando-se de uma afirmação empirista clara, interpretada, embora, na perspectiva
neoplatónica de Agostinho (De Trinitate XI, 8), ela determina a possibilidade de as
espécies das substâncias corpóreas serem produzidas pelo intelecto agente, desde
que nada impeça a formação das imagens sensíveis com que o intelecto agente vai
concorrer no acto de pensar, quer dizer, no plano do conhecimento incarnado�
Situando-se no centro de um debate sobre o conhecimento da verdade substancial, a

( 1 ) Omitimos dois casos: Tese 10 (ln III De Anima . . . III c. v, q. 5, a. 2, p. 35 1 ) : «Hoc uitae statu
non dantur in nostro intellectu species intuitiuae.»Tese 1 1 (ln de An. III c. 5, q. 5, a. 2, p. 352):
«ln utramque partem probabile est dari in nostro intellectu, etiam hoc uitae statu, aliquarum
rerum immaterialium species.»; cf. ANDRADE, A. A. B. de, «Teses . . . » 1 36-37.
<2l ln III De Anima . . III c. 5, q. 4, a. 1, p. 346: «His ergo erroribus exclusis asserendum est cum
.

Schola Peripatetica species intelligibiles produci in animam, dum est unita corpori, ab intellectu
humano, ut constat ex iis, quae ab Aristotele capite 5. huius libri disputata sunt. Cum autem du­
plex in nobis sit intellectus, agens, et patiens; quaenam species a quo intellectu gignantur,
aliquot assertionibus exponemus. Prima sit. Ab intellectu agente produci possunt species
intelligibiles earum rerum duntaxat, et earum omnium, quarum propria phantasmata habemus.
Haec assertio, quae communi philosophorum consensu recepta est, ex eo probatur, quia
intellectus agens non elicit species, nisi una cum phantasmatis, et prout ab iis determinatur, ut ex
superioribus constat, docetque D. Augustinus libro 1 1 . de Trinitate capite 8. cum ait nullam
speciem dari in intellectu nisi sensi intercedente, at nihil impedit quominus intellectus cum
omnibus phantasmatis discriminatim iungi queat ad species intelligibiles producendas.»
128 Introdução Geral

tese 2 começa por evidenciar um conflito de interpretações ! Os Jesuítas negarão as


restrições de Escoto, de Ricardo de Mediavilla e de Herveu Natal quanto à possibili­
dade de formar espécies inteligíveis próprias de algumas substâncias? Também
criticarão os que, como Javelo ou Soncinas, falam de uma duplicidade de espécies, a
saber: espécies de acidentes e espécies de substâncias ? Será, finalmente, contra estes
que dizem não acreditar que «a cogitativa, logo que recebe a imagem do acidente,
tire imediatamente a imagem expressa da substância latente nele. Ela apreende pri­
meiro o tal acidente e só depois da sua prévia noção penetra na notícia da substân­
cia», concluindo: «estabelecemos serem as espécies das substâncias corpóreas pro­
duzidas pelo intelecto agente, contanto que nada impeça que formemos as imagens
sensíveis com que o intelecto agente concorra.»4 L. Spruit assinalou a utilização do
termo ciceroniano «praenotio», com o qual, superando a tese da dupla espécie, os
Jesuítas designam aquele conhecimento directo dos acidentes que lhes permite pas­
sar para o nível do conhecimento da substância� Faltou, porém, a Spruit observar
que o termo estóico, pertencente ao património da época (no Comentário ao De
Anima aparece pelo menos em quatro ocasiões 6 ), se inscreve no horizonte neoplató­
nico que temos vindo a apontar.
Tratada a categoria da substância, passam às restantes com relevo para a da quali­
dade, dita «melior categoria» no contexto dos nove géneros. De acordo com a tese 3,
o intelecto agente pode gerar as espécies inteligíveis de todas as quantidades físicas

( l ) ln III De Anima . . . III


e . 5, q. 5, a. ! , p.347: «Ab intellectu agente possunt gigni species omnium

substantiarum corporearum. De ueritate huius assertionis non liquet inter Philosophos. Est enim
ea de re triplex opinio . . . »; cf. também P. da FONSECA, Commentariorum . . . V, e . 28, q. 8, sec.
4, e . 1 03 1 . Cf. SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . . 29 1 - 3 ; ANDRADE, A. A. B. de,
«Teses . . . » 1 30-33.
<2> Cf. ln III De Anima .. . III e . 5, q. 5, a. 1, p. 347.
<3J Cf. ln III De Anima ... III e. 5 , q. 5 , a. 1 , p. 347: « . . . aliique nonnulli putant uim cogitatricem
hominis, quam nos a phantasia non distinguimus, proprium exprimere idolum singularis subs­
tantiae. Quae sententia nobis placet. Nam cum multo operosius sit ab uno singulari ad aliud dis­
currendo progredi, quam ex accidentium inuolucro proprium substantiae phantasma eruere:
cumque primum illud cogitatrici hominis facultati, ut superius ostendimus, concedatur, non est
cur eidem hoc posterius denegetur.».
<4J Cf. ln lll De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 1, p.347; cf. ANDRADE, A. A. B . de, «Teses . . . » 1 3 1 .
(S) ln III De Anima . . . III e . 5 , q . 5 , a. 1 , p . 347 : «Fauet plane Aristoteles hoc i n libro cap. 4 . text. 1 0.
ubi ait cognitionem huius carnis singularis pertinere ad potentiam sensitiuam: et D. Augustinus
lib. 1 0. De Trinitate cap. 1 0. ubi corporum cogitationem imaginatrici facultati atribuit. Non
credimus tamen cogitatiuam ut primum recipit speciem accidentis confestim elicere expressam
imaginem latentis in eo substantiae: sed primo agressu apprehendere tale accidens: deinde ex il­
Iius praenotione in substantiae notitiam penetrare. » ; cf. SPRUIT, L., Rennaissance Controver­
sies . . . 292.
<5J Cf. ln III De Anima ... II e . 1, q. 7, a. 1 e a. 3 ; ln lll De Anima ... III e. 5, q. 5, a. 1 e e . 6 explanatio f).
Introdução Geral 129

(tempo incluído 1 ), frisando, os autores, falarem apenas destas (corporalium), sobre


as quais a imaginação pode formar uma imagem (idolum)� O artigo em tomo das
categorias é, assim, mais uma ocasião para captar o princípio da irreciprocidade
causal das duas principais componentes intelectivas, a respeitante ao sensível e ao
mental . A tese 4, acerca da qualidade, é também exclusivamente aplicada às quali­
dades absolutamente materiais e, por isso, com a intervenção da imaginação � Menos
fácil é o caso da categoria da relação, por não ter em si uma capacidade activa
(agendi vim), e nem ser sensível próprio nem comum, e por não ser apreendida pelo
sentido interior (este limita-se à apreensão dos seus fundamentos). Tal como a da
quantidade (que é sensível comum), a categoria da relação não tem a capacidade
(vis) de produzir espécies nos sentidos externos� Resta, portanto, a estas duas
categorias obterem da imaginação as suas espécies com as quais o intelecto agente
concorre. Esta tese 5 restringe-se, por isso, àquelas relações que podem ser reduzidas
à categoria da qualidade, restrição esta que assenta no Comentário à Física (II c. vii,
q. 1 9 , a. 2)? Noutro passo deste comentário, esclarecera-se que as espécies que têm
uma parte activa na intelecção são somente as dotadas de uma vis activa� aspecto de
que são desprovidas as relações, enquanto habitudo ad aliud. A referência à vis não
aparece isolada e vale a pena ter presente que os Jesuítas de Coimbra não só rejeita-

< 1 > Ver o meu estudo «The Concept of Time According to The Coimbra Commentaries», in The
Medieval Concept o/ Time. Studies on the Scholastic Debate and lts Reception in Early Modem
Philosophy, ed. by PORRO, P., Leiden 200 1 , 353-382; SOLÉRE, J.-L., «Descartes et Jes dis­
cussions médiévales sur le temps», J. Biard et R. Rashed (ed.), Descartes et le Moyen Age. Ac­
tes du colloque organisé à la Sorbonne du 4 au 7 juin 1 996, Paris 1 997, pp. 329-348.
<2> ln Ili De Anima ... III c. 5, q. 5 , a. l, p. 348: «Species intelligibiles omnium quantitatum
corporalium generari possunt ab intellectu agente. Haec suadetur, quia nulla quantitas corporalis
phantasiae praesertim humanae captum excedit; proindeque potest phantasia earum omnium
idolum formare. Dubitet forte aliquis de tempore, quod prae caeteris quantitatibus latet. Non est
tamen de eo dubitandum. . . »; cf. ln VIII Libros Physicorum . . . III, c. 7, q. 5 e 6.
<3> ln Ili De Anima . . III c. 5, q. 5 , a. l , p. 348: «Qualitatum materialium, seu per se, seu aliter
.

sensibilium, species intelligibiles edi possunt ab intellectu agente. Haec patet, quia omnes is­
tiusmodi qualitates ueniunt in cognitionem phantasiae, cum re uera sensibiles sint.»
<4> ln ll/ De Anima ... III c. 5, q. 5 , a. l , p. 348-49 : «Multaram relationum species intelligibiles
possunt ab intellectu agente effici. ( . . . ) aduertendum relationem, et quantitatem non producere
immediate species in sensus externos, (siquidem quantitas non est sensibile proprium, sed com­
mune, quod tantum species modificat; relatio autem nec proprium, nec commune sensibile est)
sortiri tamen species beneficio phantasiae eruentis, formantisque ipsarum idolum, cum quo in­
tellectus agens concurrit ad producendam speciem intelligibilem.»
<5> ln Ili De Anima ... III c. 5 , q. 5, a. l , p. 348-49: «Licet autem eiusmodi concursus, etiam ex parte
idoli, actiuus sit, sicuti et concursus speciei intelligibilis ad eliciendum conceptum, non proinde
tamen asserendum relationem, aut quantitatem in se aliquam agendi uim possidere: esto eam fa­
cultatem fortiatur eius species: quod certe haudquaquam mirandum est, cum species transeat in
meliorem categoriam, uidelicet, qualitatis, cui prope soli conuenit esse immediatum agendi
principium, ut libro secundo Physicorum ex instituto disseruimus.»
<6> ln VIII Libros Physicorum ... II c. 7, q. 19, a. 3 , p. 303 : « ... etsi species concurrant actiue ad
intellectionem, et uerbum; non tamen omnia, quorum illae species sunt rite dici per eas actiue
concurrere, nisi talia sint, ut ad eiusmodi specierum generationem proxime, uel remote aliquam
uim actiuam contulerint...»
130 Introdução Geral

ram (como vimos) pensar a iluminação como uma qualidade como também retira­
ram às imagens sensíveis qualquer capacidade exclusiva (vis sua) para gerarem uma
espécie inteligível ! Todavia, quando perguntam «se uma e a mesma imagem sensí­
vel é capaz de formar várias espécies inteligíveis» - preferindo ater-se à posição
daqueles que defendem ser só uma a espécie inteligível gerada pela imagem sensível
(excluindo assim que, v.g. , perante algo branco se verifique, para além da espécie
respectiva também a espécie da cor) - dizem ser uma vis agendi que exprime a tota­
lidade daquela imagem (ex se toto)? Ao afastarem uma representação exclusiva da
natureza comum pela imagem sensível, também propõem que isso se fica a dever a
uma «vis repraesentandi» ? Ora, tal proposta seria ininteligível se não tivéssemos
presente a teoria da iluminação efectiva no quadro metafísico neoplatónico apon­
tado. À s imagens sensíveis cabe uma quota-parte da causalidade eficiente particular.
Não é por acaso que o tratado das espécies termina estudando esta participação cau­
sal nos seguintes termos : as imagens são a necessária causa particular para o inte­
lecto, competindo ao intelecto agente, no processo da iluminação efectiva, conferir a
necessária dimensão universal� A tese 6, sobre as espécies das acções e das paixões
dos corpos, exclui aquelas que fogem ao âmbito corpóreo? E, por fim, a tese 7
limita-se a aludir às restantes categorias ( 'onde' , 'quando' , 'estar numa posição' e
'ter' 6 ).
Seguem-se ainda duas teses respeitantes às espécies inteligíveis exclusivamente
produzidas pelo intelecto possível. Cabe tratá-las na sua relação com o intelecto
agente, posto que os autores também procuram delimitar a contribuição deste inte­
lecto relativamente àquele. Frente àquele tipo de filosofias (como no do caso do
judeu português Leão Hebreu) que valorizavam em excesso o intelecto agente ao
ponto de lhe darem a missão de aperfeiçoar o intelecto passivo, encontrámos por
várias vezes a atribuição de uma actividade ao intelecto passivo.
TESE 8: «as espécies dos géneros, caso se removam os impedimentos, são gera­
das exclusivamente pelo intelecto possível» ?
TESE 9: «o intelecto possível forma, por vezes, imagens inteligíveis das ínfimas
espécies» �

0) Cf. ln lll De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 1 , p. 346.


(Z) ln ll/ De Anima . . III . e. 5 , q. 6, a. 1 , p. 357.
C 3> ln ll/ De Anima .. . III e . 5, q. 6, a. 1, p. 356.
C4> ln ll/ De Anima . . . III e . 5 , q. 6, a. 2, p. 358.
C S) ln III De Anima . . . III e . 5, q. 5, a. 1, p. 349: «Multarum corporalium actionum, et passionum
species intelligibiles possunt ab intellectu agente produci; non tamen omnium ( . . . ) quia saltem
operations phantasiae nequeunt ab ipsa met apprehendi ; cum nulla potentia organo corporeo
insidens reflectitur supra suum actum . . . »
C 6l ln ll/ De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. l , p. 349.
C 7> ln ll/ De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 2, p. 349.
(S) ln II/ De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 2, p. 350.
Introdução Geral 131

Embora de maneira independente, quer Banha de Andrade, quer A. Coxito, em


artigos aqui citados, detiveram-se no estudo de como, segundo os Jesuítas, as espé­
cies inteligíveis dos géneros são imediatamente produzidas pelo intelecto passivo e
como este tira as imagens de espécies ínfimas. Em condições cognitivas normais, o
que os sentidos externos e internos captam é um singular sensível da ínfima espécie
cuja imagem, conjuntamente com o intelecto agente, só pode alcançar o nível da
imagem inteligível da ínfima espécie. Assim sendo, é necessária a intervenção do
intelecto possível, a quem compete a abstracção da natureza genérica � Em resposta
negativa à teoria escotista, que atribui a possibilidade da formação da espécie do
género ao intelecto agente, os autores dirão que a espécie primeiramente produzida é
a singular por ser a mais nobre (a espécie de Homem é mais nobre do que a de Ani­
mal) e por não haver motivo para produzir outra após a formação da natureza especí­
fica� Os autores ilustram a outra tarefa do intelecto possível com o exemplo habitual
da risibilidade como propriedade do ser humano, propriedade que o intelecto possí­
vel forma com base na espécie da natureza produzida pelo intelecto agente. Em
suma, as teses 8 e 9 insistem na intervenção do intelecto possível, o que é um movi­
mento de demarcação do horizonte de actividades do intelecto agente no quadro do
pensar. A última frase da lição é a este respeito clara: «O intelecto agente e as ima­
gens sensíveis estão para as espécies inteligíveis como o intelecto possível e as
espécies inteligíveis estão para o acto de pensar» �
O tratado das espécies termina enfrentando uma última polémica, a saber: se são
todos os sentidos internos (sentido comum e imaginação) ou apenas um a concorre­
rem com o intelecto agente para a produção de espécies inteligíveis� Depois de os
autores evidenciarem a posição daqueles que (como Apolinário Offredus) dizem ser
todos os sentidos internos e a daqueles que atribuem esse papel apenas à imagina­
ção, seguem a opinião provável de Caetano, que defende ser apenas um sentido

( I ) ln Ili De Anima . . . IIIe . 5, q. 5, a. 2, p. 349: « . . . si nihil absit, uel obsit, id quod primum a sensu

tam externo, quam interno percipitur, est singulare sensibile speciei infimae, cuius phantasma
una cum intellectu agente non nisi intelligibilem imaginem speciei infimae producet; atque adeo
si elicienda sit imago intelligibilis, quae naturam genericam referat, oportebit accedere operam
intellectus possibilis, qui a natura specifica abstrahat genericam . . . »; cf. também P. da
FONSECA, Commentariorum . . . V, e . 28, q. 8, sec. 4, e . 1 030. Cf. ANDRADE, A. A. B. de,
«Teses . . . » 1 32, mas sobretudo COXITO, A. A, «0 problema dos universais . . . » 52-60.
<2> ln Ili De Anima ... III e . 5, q. 5, a. 2, p. 350: «Nam quod species primo genita ab intellectu
agente, si nihil impediat, non sit species generis; tum aliis argumentis concluditur, tum eo
potissimum quod omnis causa naturalis, si nihil desit, uel obsit, edit primo nobilissimum
effectum, quem potest, nobilior autem effectus est imago repraesentans hominem, quam
animal.» cf. ANDRADE A. A. B. de, «Teses . . . » 1 32-33; cf. SPRUIT, L., Renaissance Contro­
versies . . . 293.
<3> ln Ili De Anima ... III e . 5 , q. 6, a. 2, p. 359: « ... quomodo se intellectus agens, et phantasma ad
species intelligibiles: itemque intellectus patiens, et species intelligibiles ad intellectionem.»
<4> ln Ili De Anima . . . e. 5, q. 6, a. 1, p. 354.
132 Introdução Geral

interno, a imaginação, a servir o intelecto I Impunha-se, assim, a necessidade de


precisar o papel desta faculdade, à volta da qual abordam três dúvidas, duas delas
tratadas acima? Tal como as restantes, a primeira é uma contribuição mais para o
equacionamento na linha neoplatónica dionisiana da imaginação como o contri­
buinte mais afim ao intelecto. Por isso, quando eles perguntam «se é a imagem sen­
sível impressa ou expressa que concorre com o intelecto agente para gerar as espé­
cies», lembrarão caber à imaginação concorrer com o intelecto na operação e, uma
vez estarem nela impressas as várias imagens das coisas que o intelecto agente não
discrimina, é necessário o concurso imediato de uma imagem expressa para que se
dê a discriminação? Ora, as imagens sensíveis expressas - eis a última palavra -
concorrem, ou instrumentalmente ou parcialmente, com o intelecto agente com vista
à formação da espécie inteligível, mas só o concurso desta com o intelecto possível
permite que o ser humano pens é
O intelecto possível (patiens), apresentado como uma faculdade intelectiva que se
experimenta a si mesma como pensamento, «facultas intelligendi quilibet autem
experitur se intelligere» � é simultaneamente activo e passivo. É passivo relativa­
mente ao objecto, porque recebe a espécie graças à intervenção do fantasma. É
activo, obviamente, do ponto de vista da intelecção? uma posição que encontra um
significativo paralelo na doutrina de Suárez sobre o conhecimento como «vitaliter
operari» ? Portanto, não podendo ser do ponto de vista ontológico (in genere entium)
pura potência, referindo-se ao seu estatuto intelectivo ou gnoseológico (in genere
intelligibilum), depois de focarem o dissídio entre platónicos e aristotélicos, eles
também se decidem a admitir um certo inatismo, designadamente em vista de dois
hábitos inatos, o dos princípios especulativos e o dos princípios práticos, a sindé-

( 1 ) ln III De Anima . . . III e . 5, q. 6, a. ! , p. 355 : «Verum quod unus tantum sensus interior sit proxi­
mus minister intellectus, nempe is, qui inter caeteros dignitate emitet (quem nos phantasiam
ponimus) maiori probabilitate asserit Caietanus . . . » De referir que o aspecto citado de Apolinário
Offredus é omisso no dossier de SPRUIT, L., Classical Roots . . . 392-94.
(2) ln III De Anima . III e . 5, q. 6, a. 1, p. 355 : «Vt uero phantasiae satellitium melius percipiatur,
. .

tria occurrunt explicanda. Primum est, utrum phantasma impressum, an expressum concurrat
cum intellectu agente ad producendas species intelligibiles. Secundum, concurrat ne phantasma
ea praecise ratione, qua communem naturam repraesentat, nec ne. Tertium, an unum, idemque
phantasma ad plures species intelligibiles educendas idoneum sit.»
(J) ln III De Anima . III e . 5 , q. 6, a. 1, p. 355 : «Ad primum horum, longiori disputatione omissa,
. .

respondendum est immediate concurrere phantasma expressum, quod ab impresso elicitur. Patet
hoc ex eo, quia phantasia non concurrit cum intellectu nisi operando, dum uero operatur rei
apprehensae phantasma exprimit. Deinde, quia cum in phantasia sint impressae uariarum rerum
imagines, et intellectus agens indiscriminatim se habeat ad usum, seu ministerium huius, uel
illius; oportet ut ad id deterrninetur: non est autem alia ratio, qua determinari possit, nisi eli­
ciente phantasia ex una aliqua illarum imaginum phantasma expressum rei per eam significa­
tae.»
C4J Cf. ln /II De Anima . . III e . 5, q. 6, a. 2, p. 359.
.

(S) ln /II De Anima . . . III, c. 8, q. 1 , a. 1, p. 367.


C 6l Cf. ln /II De Anima . . III, e . 8, q. 1, a. 1 .
.

C 7J MÜLLER, H . J., Die Lehre . . . 1 38.


Introdução Geral 133

rese ! Esta admissão não põe em causa a tese aristotélica de que a alma nasce despro­
vida de quaisquer espécies (q. 1 , a. 3), quer dizer, que o intelecto passivo, sob a
perspectiva gnoseológica, é originariamente (ex sua primaeua origini) pura potên­
cia. Eles não vêem como esta tese pode colidir com a afirmação anterior de uma
inata «sanctitas naturalis a Deo impressa», sobretudo levando em conta o princípio,
que defendem, de uma unidade específica ou radical do intelecto com as suas activi­
dades?
E. Kessler considerou ser a respeito do processo de intelecção que os Jesuitas de
Coimbra manifestaram uma tese própria, recusando as posições quer de tomistas,
quer de escotistas � De facto, como em Melanchton, segundo Kessler, e em tantos
outros mais, segundo Müller, a intelecção caracteriza-se por ser geradora do verbo,
razão pela qual pensar nada mais é do que uma linguagem interior, tese que reabilita
e reequaciona a ideia augustinista claramente evocada� Em qualquer caso, a reequa­
ção desta herança aparece moldada num quadro epistemológico peripatético e
tomista e está longe de poder ser justificada exclusivamente por razões de índole
religiosa ou teológica, como Kessler pretende. Para conhecer, requere-se a presença
da potência cognitiva não apenas como princípio que determina o acto (ut princi­
pium sui actus elicitiuum), mas este no seu ser objectivo (in esse obiectiuo, ac ter­
minatiuo). Outro argumento na mesma linhagem, i. e. , quer de uma intencionalidade
inerente ao acto de conhecimento, quer de um entendimento deste como manifesta­
ção e representação: o conhecimento, que é uma dada assimilação entre a coisa
conhecida e o sujeito que conhece, produz-se quando há a produção da semelhança
expressa da coisa; diz a este propósito Aristóteles que o intelecto em acto é a própria
coisa que é conhecida, isto não em sentido real, mas como uma certa assimilação ou
expressão. Os textos do De Anima a que os nossos autores aludiam eram nem mais
nem menos do que 430 a 6-9 e 43 l b 20-432 a 3, ou seja, a parte final do capítulo IV
e o início do capítulo VIII, interpretados pelas respectivas explanationes da seguinte
maneira: os entes materiais não são inteligíveis por si5 ; a alma é de certo modo todas

( ! ) ln III De Anima . . . III


e . 8, q. 1 , a. 2, p. 369: <«<Nostris animis innati sunt duo habitus: alter, quo

primis principiis speculatiuis assensum damus, qui dicitur habitus principiorum; alter quo
assentimur primis principiis practicis, qui uocatur synderesis: igitur cum eadem sit ratio in spe­
ciebus intelligibilibus, erunt quoque hae nobis insitae. Antecedens probatur, primum quia
huiusmodi habitus dicuntur naturales, non nisi quia inditi nobis sunt a natura. Deinde, quia id
etiam de habitu syndereseos palam affirmant, tum D . Augustinus super psalmum 57. et D. Epi­
phanius Iibro 2. Contra haeresibus tom. 2. tum D. Hieronymus in Epistola ad Demetriadem
hisce uerbis. Est in animis nostris quaedam sanctitas naturalis a Deo impressa, quae ueluti in
arce animi residens, parui et recti iudicium exercet. Patet igitur nostrum intellectum non esse
puram potentiam in eo sensu, de quo agimus».
<2l ln III De Anima . . . III, q. 2, a. 2, p. 373: «asserendum tamen cum communi Philosophorum
schola intellectum patientem hominis esse unam specie facultatem.»
<3l KESSLER, E., «The Intellective Sou!» 5 14.
<4l Depois de estabelecerem o variado uso de lógos por parte de teólogos e filósofos, escrevem (ln
/// De Anima . . III c.8, q.3, a.2, p.378): «Sicut ergo est duplex os, ita et duplex loqui, atque adeo
.

et duplex uerbum, unum uocis, aliud mentis, cum loqui nihil aliud sit quam uerbum proferre.
Verbi autem appelatio magis proprie cadit in uerbum mentis, quam uocis . . . »; M ÜLLER, H. J.,
Die Lehre . . 1 4 1 -42.
.

<5l ln /// De Anima . Explanatio p. 3 1 8 ; cf. Thomas d 'Aquin. Commentaire . 352.


.. ..
134 Introdução Geral

as coisas, sendo-o não realmente, mas nocionalmente, i. e. , em função das imagens e


da semelhança das coisas (notionaliter, hoc est, secundum rerum imagines, similitu­
dine sue), como se fora a mão o instrumento de todos os órgãos �
A intelecção dá-se pelo verbo mental, que é uma assimilação ou representação da
coisa conhecida mediante a espécie expressa dessa coisa. A essência ou natureza do
pensar consiste em informar e em exprimir de maneira inteligível a coisa em si
mesma, o que sucede graças à «notitia genita seu per uerbum» ? Sendo geradora de
um verbo, a intelecção é uma acção, não uma qualidade ou disposição, embora o
verbo seja uma qualidade do espírito que conhece� Se a assimilação ou pensamento
põe em relação a potência intelectiva com a coisa inteligida (que se identificam no
ser), os Jesuítas interpretam Tomás no sentido em que o verbo não é apenas aquilo
pelo qual se pensa a coisa expressa por si, mas também o processo de intelecção
'terminado' , i. e. , intencionalizado ou objectivado. Duas conclusões se impõem,
portanto, acerca da palavra mental in fieri (o próprio processo do conhecimento4): i)
uma identidade real entre a intelecção e o 'verbum mentis ' ; ii) uma distinção formal
entre o 'verbum' e a intelecção?
Nos séculos XV e XVI, os pensadores dividiam-se nestas matérias de reconhecida
produtividade histórica moderna. Havia, por um lado, quem acentuasse o conheci­
mento de conceptus e quem se ativesse antes à coisa conhecida. Mais ainda, discu­
tia-se a diferença entre o conceito formal, que designa o acto de conhecimento ou a

O l ln III De Anima . . . Explanatio p 365-66; cf. Thomas d 'Aquin. Commentaire . . . 378-8 1 .

<2> Remetem para T. AQUINO, r, q . 47, a. 1 e De Pot. q. 9 , a. 5 .


< 3 > ln Ili D e Anima . . III, c. 8 , q. 3 , a. 3, p. 3 8 1 ; cf. M ÜLLER, H. J., Die Lehre . . . 1 46, 252-53 .
.

Corrijimos acima a afirmação que s e l ê incorrectamente n o nosso artigo «lntellect e t Imagina­


tion: la 'scientia de anima' selon les 'Commentaires du College des Jésuites de Coimbra' » in M.
C. Pacheco et J. F. Meirinhos (ed.), lntellect et imagination dans la Philosophie Médiévale /
lntellect and lmagination in Medieval Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medie­
val. Actes du Xf Congres Intemational de Philosophie Médiévale de la S. 1. E. P. M . , Tumhout
2006, vol. 1 , 1 5 3 , n. 1 29.
<4> Sobre a fórmula «res ipsa in fieri» que traduz o próprio processo do conhecimento, vd. M ÜL­
LER, H. J., Die Lehre . . . 1 45, que explica: «Diese Formei beinhaltet eine zweifache Aussage:
zuniichst wird unter diesem Begriff die erkennende Tiitigkeit ais eine Sachgegebenheit in ihrem
Werdeprozess verstanden; die Erkenntnis befindet sich in der Phase der Entwicklung, sie ist im
Zustand des 'Unterwegsseins' zu ihrer Vollendung. ( . . . ) Femer will der Ausdruck res ipsa in
fieri besagen, dass in der aktualen Erkenntnis dem Erkennenden die Objektwelt sich erschliesst,
ihm zugiinglich wird; in der Erkenntnistiitigkeit selbst jedoch, die ais Erschliessungsprozess der
Objektwelt zu verstehen ist, wird der Werdevorgang des Objekts in seinem Erkanntsein begrif­
fen. Erkennen ist für die spanischen Scholastiker wesenhaft Darstellung und Auspriigung des
Erkenntnisobjekts im verbum mentis.»
<5> ln Ili De Anima ... III c.8, q.4, a.2, p.386; cf. M Ü LLER, H. J., Die Lehre . . 1 5 1 -55; KESSLER,
.

E. «The Intellective sou!» 5 1 4: «That is, knowing and the known were identical in being, but
differed formally in so far as the former concemed the fact that the mental word was in the
process of coming-to-be (verbum in fieri), while the latter signified that the process was termi­
nated at every moment. If one considers that this concept of intellection as mental discourse was
also applied to Christ, who was God's mental word, it is obvious that once again human intel­
lection was reconstructed in order to save a theological principie.»
Introdução Geral 135

imagem expressa da coisa! e o conceito objectivo, relativo à própria coisa enquanto


conhecida ou concebida pela mente? No plano do conceito objectivo, argumentava­
-se com a metáfora do artesão imitando uma ideia na sua actividade reprodutora -
texto paradigmático seria aí o Monológio X -, enquanto no do conceito formal era o
teologema da essência divina como ideia das criaturas que imperava. Neste último
caso, havia Jesuítas (como Vasquez) que defendiam a possibilidade de o conceito
formal ou a essência divina representar directamente e sem mediações, ao lado de
soluções mais tradicionais em que o conceito é a ideia não enquanto informa o inte­
lecto, mas enquanto presentifica o objecto como forma expressa. Nesta solução (em
que os Jesuítas portugueses se inscrevem), a imaterialidade do objecto ou sua inteli­
gibilidade no próprio conceito é o princípio ou modelo da coisa no seu ser entitativo
e material ? Se contabilizarmos apenas o livro III do Comentário de Góis ao De
Anima, são nada mais, nada menos de cem as ocorrências lexicais da farm1ia de
«repraesentare» !
Retomando as críticas de Pedro de João Olivi ou de Ockham à doutrina da spe­
cies, a representação directa permitirá a identificação do verbo mental com o acto
cognitivo� i. e. , a própria representação. Como havia escrito, dando o mote, o reitor
de Tubinga, Gabriel Biel (séc. XV) : «consiste, o acto intelectivo, na semelhança
natural não quanto ao ser, mas quanto à representação, cujo objecto não é uma fic­
ção do espírito, mas a coisa significada existente exteriormente.» 5 Ora, a denotação
ockhamista retirava definitivamente Deus da noética, sustentando um contacto
directo e imediato entre o objecto e o órgão dos sentidos; Guilherme de Ockham
considerava as species redundantes� um obstáculo para o conhecimento do objecto?
Se o retiro de Deus significará a definitiva entrada de condições para que o objecto
apareça enquanto tal, a segunda solução insiste no espaço do sujeito antes do sujeito
(leia-se: cartesiano). No nosso texto, como se vê, este problema aparece tratado
sobretudo em tomo de certa terminologia noética tomista e augustinista: 'intentio rei

( l l ln Vlll libros Physicorum . . . II c.7, q.3, a.2, p.246: «Imago expressa rei artefactae».
<2l ln Vlll libros Physicorum ... II c.7, q.3, a.2, p.246: « ... res ipsa artefacta quam mente concipit».
<3l Cf. SCHMUTZ, J., «Un Dieu indifférent. La crise de la science divine durant la Scolastique
moderne», in BOULNOIS , O. et ai. (ed.), Le Contemplateur et les idées. Modeles de la science
divine, du Néoplatonisme eu XVllle siecle, Paris 2002, 204- 1 8 .
<4l Cf. SCHMUTZ, J . , «Un Dieu . . . » 2 1 3- 1 4.
(S) G. B IEL, Collectorium circa quattuor libros Sententiarum, Prol. q. l, a.4 (ed. W. Werbeck et al. ,
Tübingen 1 973, p. 23): «Et ille actus intelligendi est naturalis similitudo, non in essendo, sed in
repraesentando, cuius obiectum non est aliiquid fictum in anima, sed res significata extra ani­
mam . . . »
<6l Cf. G. de OCKHAM, ln Sent. 1, Prologus, q. l, n. 1 5-3; 1, 25-28, 3, n. 4-24; 1, 3 1 -32; dist. 3, q.
6, n. 4- 1 3, II, 492.
<7l G. de OCKHAM, ln Sent. Adnotationes 1, dist. 3 , q. 1 4T: «Nec debet species poni propter
repraesentationem. Repraesentatum debet esse prius cognitum, aliter repraesentans numquam
duceret in cognitionem repraesentati, tamquam in simile. Statua enim Herculis numquam decu­
ret me in cognitionem Herculis, nisi prius vidissem Herculem; nec etiam scire possem utrum
statua sit sibi similis aut non. Secundum autem ponentes speciem, species est aliquid praevium
omni actui intelligendi obiectum; ergo non potest poni propter repraesentationem obiecti» .
136 Introdução Geral

intellectae' , 'intentio intellecta' ou 'conceptio intellectus' 1 ; e ainda: 'aliquid in mente' 2 ;


'aliquid genitum ab intellectu' 3 ; ' similitudo rei et eius imago' 4 ; 'expressiuum rei ' 5 ;
'non manet cessante actu cogitandi' ? Reparemos, por fim, que, se não há possibi­
lidade alguma de lermos o cogito no texto de Góis, fácil será, no entanto, encontrar o
seu paralelo, suppositum intelligens, que ainda não concitou a devida atenção.
Poderíamos começar interrogando o modo como a natureza da alma humana pode
chegar ao conhecimento da sua própria essência. Diferentemente de um certa tradi­
ção que interrogava sobretudo nos termos do intelecto possível? em Coimbra, a
pergunta é explicitamente: «se a alma humana, pela sua própria essência, se pensa a
si mesma (utrum anima humana se per suam essentiam intelligat)» . Aristóteles não
tinha sido claro a este respeito e, a seguirmos ou 1. Bywater ou D. Ross, o Estagirita
nem sequer teria dito que o intelecto se pensa a si próprio (de autàn), mas antes «por
si mesmo» (di autou)� A tradução de Argirópulo usada em Coimbra segue a versão
de Moerbeke se ipsum9 e os Jesuítas não podiam deixar de se inscrever nesta
- -

longa herança da psicologia do conhecimento de si e da auto-representação. Esta,


convém frisar, não pode ter uma relação directa com o 'eu' individual moderno,
porque na esteira grega, qualquer ciência, e por isso também a psicologia, só o é na
medida em que o seu objecto é universal. Sendo aristotelicamente irrelevante qual­
quer relação com a existência do meu eu, já se lançou a hipótese de os textos precur­
sores de Descartes se lerem não no De Anima, mas nos comentários às Sentenças e
nos textos teológicos de Agostinho � º
Pode, a propósito, confrontar-se a leitura coimbrã de Aristóteles com a de São
Tomás. Enquanto está no corpo, a alma sabe que pensa mediante actos reflexos
sobre a sua própria actividade. Fá-lo-á nos quatro momentos seguintes: M l : concebe
aquilo cuja espécie foi extraída dos sentidos (ex: a natureza humana) ; M2: reflecte
sobre o seu acto, percebendo-o; M3: compreende que tem uma imagem espiritual de
uma coisa corpórea; M4: acaba por perceber-se como uma dada substância imaterial
participante da razão e da inteligência. É forçoso atentar-se em que, se a experiência
auto-reflexiva (experitur se intelligere) pode ser equivalente «ao próprio inteligir do

O l Vd. in TOM Á S de AQUINO, respectivamente, Summa contra Gentiles I 5 3 ; ibid. IV 1 1 e IV 1 2.


<2l Cf. TOM Á S de AQUINO, De Veritate 4, l c ; ID . , Su. Theol. I, 34, l ad l .
<3l Cf. TOMÁ S de AQUINO, De Veritate 4 , 3c.
<4l Cf. TOM Á S de AQUINO, De Veritate 4, 4 ob 2.
<5l Cf. TOM Á S de AQUINO, De Veritate 4, 2c.
<6l Cf. TOM Á S de AQUINO, De Veritate 4, l ad l ; cf. ln III De Anima . . . III , e . 8 , q. 3, a. 3 , p. 380.
<7l Cf. ZUPKO, J., «Self-Knowledge and Sel-Representation in Later Medieval Psychology», in
BAKKER, P. J. J. M. & THIJSSEN, J. M. M . H. (ed.), Mind, Cognition ... , 8 8 .
<8l ZUPKO, Cf. J., «Self-Knowledge . . . » 94.
<9l Cf. ln III De Anima . . . explanatio h, p. 3 1 6; cf. ARISTÓTELES, De Anima III 4, 429b 5-9; veja­
-se também, ZUPKO, J., «Substance and Sou): The Late Medieval Origins of Early Modem
Psychology», in BROWN, S. F. (ed.), Meeting of the Minds: The Relations between Medieval
and Classical Modem European Philosophy, Tumhout 1 998, 94.
(IOl Cf. ZUPKO, J., «Substance and Soul . . . » , 1 2 1 - 1 39; vd. também ID., ibid., 1 00- 1 0 1 .
Introdução Geral 137

intelecto» (ipsum eius intelligere) da questão 87 da Suma de Teologia, neste texto,


diferentemente do de Coimbra, não se avança para M4 � Relembrêmo-lo: o momento
em que o intelecto se percebe como uma dada substância imaterial (immateriali
subiecto) participante da Razão e da Inteligência.
Esta forma de o cogito se nomear nada tem da instauração cartesiana, posto que
exige constantemente um regresso ou uma imersão mundana (no corpo não-glorioso
a alma carece sempre dos fantasmas) no que se supõe ser uma herança aristotélica,
mas que é afinal uma releitura mais das lições de Tomás de Aquino condicionadas
por Agostinho. Mais ainda: ela surge marcada pela estrutura hierárquica do mundo e
do lugar do Homem nesse mundo.
Se é verdade que a alma que pensa se identifica realmente com a memória inte­
lectiva, conforme se lia no primeiro título dos Parva Naturalia� para que nos encon­
trássemos indubitavelmente com o cogito existencial augustinista só restaria agregar
àquelas duas faculdades a da vontade e, v.g. , descortinarmos algum eco daquela
moderna palavra de Olivi segundo a qual «experimentaliter et indubitante» a alma se
sente a viver, a ser, a ver, a ouvir, etc } Quem é que hoje ao lê-la não pensa no cogito
existencial fragilizado da terceira Meditação? Só assim estaria definido o temário
psicológico do Bispo de Hipona - memória, inteligência e vontade - faculdades que
os Jesuítas asseveram pertencer à mesma substância da alma. É curioso que em
diálogo crítico com horizonte nominalista que interpretava 4 1 3b 1 2 recorrendo ao
princípio augustinista de que a alma é as suas faculdades (intelecto, memória e von­
tade) - não três vidas, nem três mentes, mas uma só que, enquanto vegetal, é alma,
enquanto contempla, é espírito, enquanto sente, é sentido, sendo alma por saborear,
e mente ao pensar, e razão ao discernir, e memória ao recordar, e vontade ao querer
- os Jesuítas de Coimbra tenham reivindicado a autoridade de Agostinho sobre a
identidade de todos os graus essenciais da alma numa só essênci é Melhor ainda:
aproveitando o ensejo de explicarem esta segunda definição aristotélica da alma, dita
existencial - à primeira, que se lia em 4 1 2 a 20, chamam-lhe «essencial» - os auto­
res farão ressaltar o modo inteligente (artificiose) como Aristóteles soube coordenar
o método da física (dos efeitos para as causas) com o da metafísica (das causas para
os efeitos).
Sobressaindo, à maneira tomista da separação da matéria, de entre as três facul­
dades, a inteligência, o apêndice sobre o estado da alma separada, que por falta de
espaço não publicaremos aqui, faz coincidir um tal estado com «um conhecimento

O > TOMÁ S de AQUINO, Su. Theol. r, q.87, a.3, sol.

<2> Parva Naturalia: De memoria c. l , p. 6: «Asserendum tamen est intellectum et memoriam


intellectivam unamque eandemque esse animi facultatem, nec re nec speciem diversam. »
<3> Cf. PETRUS IOANNIS OLIVI, Quaestiones i n secundum librum Sententiarum, ed. B . Jansen,
Grottaferrata 1 922- 1 926, q. 76; III, p. 1 46; q. 74; III, p. 1 26; R. DESCARTES, Meditationes . .
.

III (AT VII 34): «Ego sum res cogitans, id est dubitans, affinnans, negans, pauca intelligens,
multa ignorans, volens, nolens, imaginans etiam et sentiens . . . »; ID. Méditations (AT IX 27).
<4> ln ll/ De Anima ... II e. 3 , q. 4, a. 3 , p. 1 1 7 .
138 Introdução Geral

distinto» ! um conhecimento certo ou distinto (cognitio certa atque evidens2), admi­


tindo-se mesmo «poder-se conhecer com evidência» o reino da possibilidade em
Deus � Eis-nos perante uma expressão textual e editorial de uma reformulação já
moderna do cogito de Agostinho nos finais do século XVI uma alma (anima/mens)
-

que se pensa a si própria (per se ipsam intelligat/per se ipsam nosse), capaz de


estender o conhecimento distinto (distincte) às realidades ontologicamente afins1

5 . Vontade e intelecto

Na parte final do De Anima, Aristóteles dedicara-se ao estudo da faculdade


motriz. Na perspectiva dos Jesuítas, as questões a tratar aí são relativas às três
dimensões presentes no movimento animal (dirigens, impellens, exequens) : (i) nos
animais a imaginação tem a capacidade de 'dirigir' a sua locomoção; (ii) o apetite
animal é, de uma maneira 'imperativa' , a causa agente da locomoção; (iii) ao apetite
segue-se a capacidade de execução do movimento que é inerente aos membros dos
animais. Enquanto o apetite é causa universal do movimento de locomoção, a sua
causa particular será a vontade (vis motiva)?
Ao passarmos dos animais irracionais para o caso humano, os autores começam
por discutir a superioridade do intelecto sobre a vontade6 - temática que fora objecto
das disputas da Ética - e onde, portanto, consideram o intelecto o motor distintivo
do Homem. Dado opinarem estarmos em presença de duas faculdades realmente
distintas? os nossos autores avançam três razões nesse sentido, todas elas apontando
para as diferenças entre o campo da vontade e do bem (objecto daquela) e o do inte­
lecto e da verdade (objecto daquele). Estudam, alfim, e sem novidade, os vários
modos de interrelação entre as duas faculdades em causa.

( I ) Tractatus de Anima Separata d. 4, a.2, p. 5 1 0: «Denique naturale lumen intellectus humani


separati capax est cognitionis distinctae; ergo producibiles sunt a Deo species, quibus ea
capacitas compleatur . . . »; cf. também CARVALHO, M. S. de, «Tra Fonseca e Suárez: una
metafísica incompiuta» Quaestio 9 (20 1 0, no prelo).
(Z) Tractatus ... d.5, a. 2, p. 5 1 8.
C 3> Tractatus . . . d.5, a.2, p. 5 1 7 : «Animae separatae naturaliter possunt cognoscere evidenter multa
possibilia esse Deo . . . »; ibidem p. 5 1 8 : « ... plerosque ab intellectu separato evidenter esse cog-
noscibiles . . . »
<4> Tractatus. . . d. 5, a. l , p. 5 1 5 : «Anima separata tum se suosque actus internos ac potentias, tum
vero alias animas distincte potest cognoscere. ( . . . ) Nimirum ut anima per se ipsam se intelligat,
quod etiam expressit D. Augustinum libro 9º De Trinitate, c. 3, cum dixit mentem se per seip­
sam nosse, cum sit incorporea; quanquam dum corpus informat, non nisi per superadditam
similitudinem id praestat, sicut superius libro 3º, c. 8, q. 7, ostensum est.»
<5> Cf. ln Ili De Anima ... III c. 1 3 , q.5, a.2-3, pp. 435-38.
C 6l Cf. /n Ili De Anima . . III c. 1 3 , q.2, a.2, pp. 424-27.
.

(?) ln Ili De Anima .. III c. 1 3, q., a.2, pp. 428-29.


.
Introdução Geral 139

No âmbito dos quatro actos próprios do intelecto (notitia apprehensiva, iudicium,


practicum dictamen, practicus syllogismus), as respectivas relações dariam que
pensar no respeitante à especificação da acção, sobretudo humana (de notar, no
entanto, porque estamos no plano da scientia de anima, os argumentos relativos aos
animais ditos irracionais). Tratar-se-ia, por outras palavras, de saber se, para que o
intelecto possa distinguir um objecto bom de um mau, basta uma simples apreensão
ou um conhecimento judicativo. Digamos já que os autores, confrontados com duas
teses opostas, não tomarão posição definitiva � Este é mais um dos casos em que nos
deparamos com uma questão aberta. Eis as duas teses que se confrontavam e que
eles acabam por não dirimir, depois de as tratarem ao modo da quaestio: (i) não é
necessário qualquer juízo (iudicium), ou prático ou discursivo, sendo suficiente o
conhecimento por apreensão (notitia apprehensiva), seja simples, seja complexo; (ii)
para que a vontade actue, é necessário um conhecimento de carácter judicativo.
Posto tratar-se de uma indecisão, vale a pena reproduzirmos os motivos em discus­
são. Contra quem negava a necessidade de um juízo prévio, os Jesuítas enumeravam
quatro razões : que o objecto formal do apetite não era o bem sem qualificação e que,
portanto, não se pode confundir o objecto para o qual nos inclinamos com a tendên­
cia que essa inclinação é; embora haja um paralelismo entre o apetite sensitivo e a
vontade, o instinto dos animais, baseado na apreensão sensitiva, não chega para
inferir a necessidade de um juízo; sendo certo que há actos involuntários (que os
teólogos denominavam movimentos 'primo primi ' ) , eles não justificam a inexistên­
cia de actos deliberativos; por último, se é verdade que há gestos mecânicos, isso
não significa que não possam ser levados a cabo com conhecimento. Por fim, eles
contrariam aqueles que exigiam um juízo prévio, aduzindo três razões: o objecto
para o qual a vontade tende não tem que ser reconhecido como tal por um juízo,
bastando a apreensão da sua congruência com o bem; esta mesma ideia era ainda
aplicada ao caso dos animais, que parecem efectuar um juízo qualquer que lhes
permita actuar correctamente em função do objecto que lhes é apresentado; por fim,
a quem citava dois passos precisos de Aristóteles quanto à necessidade de um juízo
prévio, precisavam que alegar a primeira passagem em causa - relativa à formulação
de uma opinião sobre alguma coisa que constitua uma ameaça (427b2 1 -27) - equi­
valia a confundir o plano da realidade e o plano da representação e que sobre a
segunda - relativa ao intelecto como princípio motor (432b25-32) - era preciso
atentar em que nem todas as acções exigiam a intervenção do intelecto prático.
Dado que o horizonte mais alargado para a compreensão destas questões havia
sido transmitido nas Disputas sobre a Ética, publicadas cinco anos deste Comentá­
rio ao De Anima, e às quais esperamos voltar com mais desenvolvimento na «Intro­
dução» àquele volume, julgamos bastante a apresentação acabada de fazer.

( 1 ) Cf. ln lll De Anima . . . III c . 1 3 , q.4, a.3, pp. 432-33 .


140 Introdução Geral

6. Para finalizar

Acabado de apresentar, quer o Curso, quer o volume do Comentário ao 'De


Anima' , nas suas linhas gerais, importará ainda referir que a presente iniciativa
desejou ser a primeira pedra de um edifício editorial que não conhecesse o funesto
desfecho do seu paralelo há já meio século ousado pela destemida mão de A. Banha
de Andrade. O seu sucesso, no entanto, depende de factores impossíveis de apre­
sentar como consolidados, neste momento. A este respeito, é imperioso terminarmos
sublinhando a coragem da Tradutora, a qual, não obstante saber que não existem
traduções perfeitas, e que jamais a presente obra havia sido tão-pouco trasladada
para uma qualquer língua viva, ousou mesmo assim abraçar entusiasticamente a
tarefa inédita, inquestionavelmente difícil, da versão de mais de quatrocentas pági­
nas (mais de dez milhões de caracteres) . Para ela, o nosso muito obrigado. Muitas
opções serão discutíveis, sobretudo dado o plural ou polifónico tecnicismo da termi­
nologia e das matérias abordadas (da anatomia à metafísica, da teoria das cores à
teoria da alma separada) e outras propostas surgirão (esperamos), mas estamos cer­
tos de poder dizer que a legibilidade do texto a seguir, se não dispensa, mas exige
mesmo, a atenção fixa do leitor e a permanente comparação com o texto latino
publicado em-linha (nos casos, decerto cada vez mais escassos, em que isso ainda
vai sendo possível), possibilita um primeiro - e por enquanto único - acesso a um
impressionante monumento da nossa História da Filosofia que de outra maneira
continuaria inacessível. Os três entusiastas inquisidores chamados a emitir parecer
sobre os Comentários que iriam «ser alimento dos candidatos às letras», João Cor­
reia, Luís de Sotto Maior e António de Castelbranco, exararam, com exagero, que a
sua impressão conferiria a «imortalidade» a tão monumental texto ! Mais modestos
pela nossa parte, bastar-nos-ia, tão-só, partilhar um outro dos seus votos, o atinente
ao «sucesso da filosofia divina e humana dos povos» . É claro que para que tal seja
uma realidade, os Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus
apenas necessitarão de leitores corajosos e disciplinados.
Cabe-me agradecer tambem aos Colegas Doutores Amândio A. Coxito e António
Manuel Martins pela leitura prévia desta Introdução; ela isenta-os, no entanto, de
qualquer erro ou omissão. Este agradecimento estende-se também ao anónimo rela­
tor de uma versão do manuscrito. Por motivos diferentes, não posso deixar de teste­
munhar aos Professores, Doutor Aires do Nascimento, Doutora Maria de Fátima
Sousa e Silva, e ao Mestre Bernardo Mota, o meu mais sentido apreço pela sua dis­
ponibilidade em esclarecerem questões pontuais do texto. A presente iniciativa edi­
torial jamais teria sido possível também sem o concurso empenhado da Mestre
Filipa Medeiros.
Introdução Geral 141

-C­
Apêndices

1 . Quadro cronológico

"
Datas Acontecimentos

1 537 Estabelecimento definitivo da Universidade em Coimbra


1 540 PP. Simão Rodrigues e Francisco Xavier chegam a Portugal
1 542 A Companhia de Jesus chega a Coimbra
Jesu ítas começam a frequentar aulas na U niversidade de Coimbra
Fundação do Colégio de Jesus em Coimbra
1 547 Inquisição em Portugal
1 548 Fundação do Colégio das Artes
-50 Docência de Nicolau G rouchy
1 549 Logica Aristotelis
1 550 G rouchy deixa Portugal
1 552 Publicação dos Estatutos Universitários
1 555 Colégio das Artes entregue aos Jesu ítas
Cristóvão Clávio em Portugal (permanência até 1 561 )
1 556 t Inácio de Loyola
1 559 Fundação da Universidade jesu íta de Évora
1 56 1 Pedro da Fonseca entrega-se à redacção do cu rso
1 563 Fim do Conci lio de Trento
Luis de Molina inicia o magistério em Coimbra
1 564 Instituições Dialécticas de Pedro da Fonseca
1 565 Estatuto do Colégio das Artes
1 570 Pedro da Fonseca inicia a redacção da Metaphysica
1 572 Pedro da Fonseca em Roma
1 574-82 Magistério de Manuel de Góis
1 575 2ª edição da Dialectica de Fonseca
1 576 Jesu ítas deixam de frequentar aulas na Un iversidade de Coimbra
1 577 Publicação do 1 º tomo da Metaphysica de Fonseca
1 580 Anexação de Portugal pela Espanha
1 582/3 Manuel de Góis inicia a composição do cu rso
1 585 Ratio Studiorum ( 1 ª versão)
1 587 João Delgado ensina matemática no Colégio de Jesus
1 589 Publ icação do 2º tomo da Metaphysica de Fonseca
1 59 1 "'
1 volume do Curso ( Physica) no prelo (?)
Lu ís de Molina deixa Portugal
1 592 Publicação do 1 •' volume ( Physica)
Fonseca encara a possibilidade de redigir a Metaphysica para o Curso (?)
Correcção do trabalho de Góis entregue a Sebastião do Couto
1 593 Publicação do 2º volume ( De Goelo, Meteor. , Parva Nat. , Ethicorum)
1 596 Nascimento de Descartes
142 Introdução Geral

Datas Acontecimentos

1 597 Publicação do 3º volume ( Oe Generatione)


t Manuel de Góis
Suárez inicia o magistério em Coimbra
1 598 Publicação do 4º volume ( Oe Anima)
1 599 Publicação do 2º tomo da Metaphysica de Fonseca
Ratio Studiorum (última versão)
t Pedro da Fonseca
1 604 ln universam dialecticam (publicação da chamada Logica furtiva)
Publicação póstuma do 32 tomo da Metaphysica de Fonseca
1 606 Publicação do 5º volume do Curso (Dia/ecticam)
Sebastião do Couto comenta a Metaphysica (?)
1 6 1 2/1 9 Sebastião do Couto inicia a revisão do Cu rso
1617 t Francisco Suárez
1 624 t Cosme de Magalhães
1 630 t Baltasar Á lvares
1 639 t Sebastião do Couto

2. Quadro de referências intertextuais


de ln III De Anima i

Obra referente: Obra referida:

ln de Anima 1 c. 1 , expl . , p. 1 2 Physicorum prooemio


l n d e Anima c. 1 , expl . , p . 3 1 Physica 1
l n de Anima c. 1 , q . 1 , a.4, p. 39 Tractatus de anima Separata
l n de Anima c. 1 , q . 1 , a.7, p. 44 Physicorum I l i c.2, q . 1 ad 4
l n de Anima c. 1 , q . 1 . , a.7, p. 45 Physicorum l i , c7, q.5

l n de Anima c. 1 , q . 1 . , a.7, p.45 De ortu et interitu


ln de Anima c. 1 , q . 1 . , a.7, p.46 De ortu et interitu
ln de Anima c. 1 , q.2., a.2, p.49 Physicis
l n de Anima c. 1 , q . 3, a.2, p.58 Metaphysicorum
l n de Anima c. 1 , q . 3, a.3, p.60 De ortu et interitu 1, c.4, q . 1 3
ln de Anima c. 1 , q . 3, a.3, p.61 De Generatione 1
ln de Anima c. 1 , q . 3, a.3, p.61 Physica Aucultationis 1 , c.9, q . 1 2, a.3
l n de Anima c. 1 , q . 3, a.3, p.61 De Goelo l i
l n d e Anima c . 1 , q. 4, a. 1 , p.62 De ortu et interitu 1, c.4, q.21
l n de Anima c. 1 , q.5, a.3, p.70 Physicorum li

l n de Anima c . 1 , q.6, a.2, p.74 De ortu et interitu 1 , c.4, q.21


ln de Anima c . 1 , q.6, a.3, p.77 De ortu et interitu li, c.8, q.3
l n de Anima c. 1 , q.6, a.3, p. 78 Physicis l i c.3, q.6
l n de Anima c. 1 , q.7, a. 1 , p.79 De ortu et i nteritu li, c 1 1 , q . 1 , a.1

(IJ Os números das páginas remetem para a primeira edição da obra acessível em-linha.
Introdução Geral 143

=
Obra referente: Obra referida:

ln de Anima c. 1 , q.7, a.2, p.81 De coelo li, c. 1 , q . 1 , a.3


ln de Anima c. 1 , q.7, a.3, p.83 Metaphysicorum V
ln de Anima c . 1 , q.7, a.3, p.83 Posterioru m 1
ln de Anima c . 1 , q.7, a.3, p.83 Physicorum I l i , c.8, q . 1 , a.5, ad 5
ln de Anima c. 1 , q.8, a.3, p.88 De generatione 1 c.5, q . 1 2

l n de Anima c. 1 , q.8, a.3, p.89 De ortu et interitu 1


ln de Anima c . 1 , q.9, a.2, p.92 De ortu et interitu l i
l n d e Anima c. 1 , q.9, a.2, p.93 Physicis VII c . 1 , q . 1 .
ln de Anima c. 1 , q.9, a.2, p.93 De ortu et interitu 1
ln de Anima c.2, expl . , p.95 Physica Auscultationis 1

ln de Anima c.2, q . u n . , a. 2, p. 1 0 1 Physica l i , c.7, q . 1 5, a.2


l n de Anima 1 c.3, exp l . , p. 1 04 De ortu et interitu 1
lnde Anima l i c.3, q . 1 , a. 1 , p. 1 08 (bis) De ortu et interitu 1, c.4, q . 2 1
l n de Anima c.3, q.2, a . 1 , p . 1 1 O (bis) Physicorum I l i
l n d e Anima c.3, q.3, a.2, p . 1 1 1 De coeris l i , c . 1 , q . 1

l n de Anima c.3, q.2, a.2, p . 1 1 3 D e ortu et interitu


ln de Anima c.3, q.4, a.2, p . 1 1 6 Physicis l i , c.7, q . 1 8
l n d e Anima c.3, q.4, a.3, p . 1 1 8 Physicae Auscultationis l i , c.7, q . 1 8
l n de Anima c.4, expl., p. 1 22 De coelo l i , c.7, q.7, a.3
l n de Anima c.4, expl . , p. 1 24 Physicorum 1

ln de Anima c.4, expl., p. 1 26 De ortu et interitu


ln de Anima c.4, q.u, a.2, p. 1 30 De generatione
l n de Anima c.4, q . u , a.2, p . 1 30 De ortu et interitu 1
ln de Anima c.6, q.2, a.2, p. 1 44 Physicis
l n de Anima 1 c.6, q.3, a . 1 , p. 1 50 Paruorum Natu ralium
l n de Anima c.7, q . 4, a. 1 , p. 1 75 De Coelo l i c.7, q.2
l n de Anima c.7, q. 7, a . 1 , p. 1 89 Problematis
ln de Anima c.7, q.8, a.2, p. 1 93 Meteorum IV, e. 5
ln de Anima c.8, q . 1 , a. 1 , p.201 De Coelo l i , e. 7, q . 6
ln de Anima c.8, q.3, a.2, p.21 1 De Coelo l i , e. 7, q.6

l n de Anima c.8, q.3, a.2, p.21 1 De l nterpretatione


ln de Anima c.8, q.4, a.2, p.21 3 De ortu et interitu 1
l n de Anima c.9, expl. , p. 2 1 6 D e generatione l i , c.8, q.4
l n de Anima c.9, expl. , p. 2 1 6 D e ortu e t interitu l i
l n de Anima c.9, q . 1 , a.2, p.21 9 De ortu et interitu 1, c.5, q.7
l n de Anima c.9, q.2, a. 1 . , p.220 Se sensu et sensili V
ln de Anima c.9, q.3, a.2, p. 229 Paruorum Natu ralium
l n de Anima c. 1 0 expl . , p. 241 Libris primae phi losophiae
ln de Anima c . 1 0,q. 1 , a . 1 , p. 242 De ortu et interitu 1, c.5, q.7
l n de Anima c. 1 0 , q . 1 , a . 1 , p.243 l n disputatione de odorum natura
ln de Anima c . 1 1 , exp l . , p. 252 De ortu et interitu
ln de Anima c . 1 1 , q . 1 , a. 1 , p. 254 De ortu et interitu 1
ln de Anima c . 1 1 , q . 1 , a.2, p. 256 Physicorum IV, c.9, q . 1 , a.5
l n de Anima c. 1 1 , q.2, a.2, p. 258 Quaest. de distinctione potentiarum
ln de Anima c . 1 1 , q.2, a.2, p. 259 De ortu et interitu 1
144 Introdução Geral

Obra referente: Obra referida:

ln de Anima li c . 1 1 , q.3, a.3, p. 263 De ortu et interitu


ln de Anima I l i c . 1 , q . u n . , a.2, p. 278 De ortu et interitu
ln de Anima I l i c.2, expl. , p. 284 Physicis I l i , c.3, q . 1 , a.2
ln de Anima I l i c.2, q . 1 , a.2, p. 289 Physica Auscultationis l i
l n de Anima I l i c.2, q . 2 , a.2, p. 293 De ortu et interitu 1

ln de Anima I l i e. 3, expl., p. 294 De coelo l i , c.3, q.8


l n de Anima Ili c.3, q . 1 , a.2, p. 302 Parvorum Natu ralium, de somniis e. 1 et 2
ln de Anima I l i c.3, q . 1 , a.4, p. 307 De ortu et i nteritu
ln de Anima I l i c.3, q.2, a. 1 , p. 31 O Phys . 1 1 , c.9,q.4, a.3; De An . 1 1 1 c.2, q.4, a.2
l n de Anima Ili c.4, expl. , p. 3 1 5 ln de Anima l i , c.1 , q.2, a.2

l n de Anima I l i c.4, expl , p.31 6 Physica 1, c. 1 , q. 4, a . 1 e 3


l n de Anima I l i c.4, expl , p.31 6 Physica, proem. q . 1 , a.4
l n de Anima I l i c.4, expl, p. 3 1 7 Posterioris Analyseos 1
ln de Anima I l i c.5, q . 1 , a. 1 , p. 320 De Anima l i c . 1 , q.7, a.2
l n de Anima I l i c.5, q . 1 , a . 1 , p. 322 Phisica li c.7, q.5, a.2

l n de Anima I l i c.5, q . 4, a. 3, p. 345 De anima separata d.4, a.3


ln de Anima I l i c.5, q.4, a.4, p. 345 Physicae Auscu ltationis 1 c. 1 , q.4, a.2
l n de Anima Ili c.5, q.5, a. 1 , p. 348 Physica I l i c.2, q . 1 , a.2 et IV c . 1 4, q . 3 , a.2
l n de Anima I l i c.5, q.5, a. 1 , p. 348 Physicis li c.7, q . 1 9, a.3
l n de Anima Ili c.5, q.5, a. 1 , p. 349 Physicorum li c.7, q . 1 9, a.2

l n de Anima I l i c.5, q.5, a.2, p. 349 Physicis 1, c. 1 , q.3, a.3


l n de Anima I l i c.5, q.6, a. 1 , p . 355 Physica 1, c. 1 , q. 5, a.3
ln de Anima I l i c.5, q.6, a.2, p .358 Physicis li c.7, q.4, a . 1
l n de A n i m a I l i c . 6 , expl . , p.362 De l nterpretatione 1
ln de Anima I l i c.7, expl . , p. 362 De Anima I l i c.4, t.5, c.3 t. 1 9, q.3, a.2

l n de Anima I l i c.7, expl., p.363 Ethicis d.6, q.3, a.2


l n de Anima I l i c.7, expl . , p.365 Physicorum, Prooemium q . 1 , a.3
l n de Anima I l i c.7, exp l . , p.365 Commentariis Primae Philosophiae
ln de Anima I l i c.8, q . 1 ,a.1 , p.368 Physicis V I I , c . 1 , q . 1 , a.2
l n de Anima I l i c.8, q . 1 , a.3, p.37 1 Physica l i c . 9 , q . 1 , a.3

l n de Anima Ili c.8, q . 1 ,a.3, p.372 Posteriorum 1


ln de Anima I l i c.8, q.4, a.2, p.386 Physicis I l i c.2, q.3, a.2 (bis)
l n de Anima I l i c.8, q.6, a.2, p.393 Posterioris Analyticae 1
ln de Anima I l i c.8, q.7, a.2, p.396 ln de Anima I l i c.8, q . 1
l n d e Anima I l i c.8, q . 7 , a.2, p.396 Tractatus de Anima Separata d. 5, a. 1

ln de Anima I l i c. 1 2, expl . , p. 4 1 3 l n d e Anima I l i , c . 1 , q . u n . , a.2


ln de Anima I l i c. 1 3, q . 1 , q.2, p. 4 1 7 l n d e Anima I l i c.2, q . 1 , a.2
l n de Anima I l i c. 1 2 , q.5, a.3., p.436 De Coelo l i , e. 5,q.7
l n de Anima Ili c. 1 2, q.5, a.3, p. 436-7 Ethicorum d.4
l n de Anima Ili c. 1 2, q.5, a.3., p.437 De Generatione 1, c.5, q . 1 , a.3

l n de Anima I l i c. 1 2 , q.5, a.3, p.437 ln de Anima I l i c.1 , q . u n . , a.3


l n de Anima Ili c. 1 2, q.5, a.4, p.439 ln de Anima I l i c.2, q.2, a.2
l n de Anima I l i c. 1 2, q.5, a.4, p.439 Physica V I I c.2, q . 1 , a. 7; De gen. c.4, q . 1 O
Introdução Geral 145

3 . Prepósitos-gerais ( 1 5 5 5 - 1 6 1 5 )

1 555-1 565 Diego Laynez


1 565-1 572 Francisco de Bórgia
1 573- 1 580 Everardo Mercu riano
1 58 1 - 1 6 1 5 Cláudio Acquaviva

4. Catálogo dos Professores de filosofia do Colégio


das Artes 1 55 5 - 1 606 1

1 555-56 I nácio Martins (4º curso) t 1 598


1 555-57 Pedro da Fonseca (32 e 4º curso)
1 555-58 Sebastião de Morais (2º, 3º e 4º curso) t 1 588
1 555-59 Pedro Gómez t 1 600
1 556-60 Marcos Jorge t 1 571

1 557-61 Pedro da Fonseca


1 558-62 Manuel Rodrigues t 1 596
1 559-63 Pedro Gómez
1 560-64 N icolau G racida t 1 598
1 56 1 -65 Inácio de Tolosa t 1 6 1 1

1 562-66 Lu ís Alvares t 1 590


1 563-67 Luís de Molina t 1 600
1 564-68 Jerónimo Fernandes t 1 606
1 565-69 Belchior Lobato t 1 594
1 566-70 Rui Martins t 1 597

1 567-71 Francisco Martins t 1 581


1 568-72 Lu ís de Morais t 1 622
1 569-73 Lou renço de Freitas t 1 580
1 570-72 João Brandão ( 1 2 e 22 curso)
1 57 1 -73 Francisco Cardoso t 1 604 (1 º e 2º curso)
1 572-76 Fernão Couti nho t 1 587
1 572-74 João Correia t 1 6 1 6 (32 e 42 curso)
1 573-75 Lourenço de Freitas (3º e 4º curso)
1 573-77 António de Carvalho t 1 601

1 574-78 Manuel de Góis t 1 597


1 575-77 Sebastião Barradas t 1 6 1 5 (1 2 e 2º curso)
1 576-80 Francisco Pereira t 1 6 1 9
1 577-79 Pedro Lopes t 1 6 1 1 (32 e 42 curso)
1 577-8 1 Fernão Couti nho

( I ) Cf. GOMES, J. P., «ÜS Professores de Filosofia do Colégio das Artes» Revista Portuguesa de
Filosofia 1 1 12 ( 1 955) 524-529.
146 Introdução Geral

1 578-82 Manuel de Góis


1 579-82 Francisco Fernandes (1 °, 22 e 3º curso)
1 58 1 -85 Luís de Cerqueira t 1 6 1 4
1 582-83 Pedro Lopes (4º cu rso)
1 582-86 Jácome do Vale t 1 603

1 583-87 Manuel da Veiga


1 584-88 João de Melo t 1 59 1
1 585-89 Gaspar Vaz t 1 596
1 586-90 Manuel de Lis
1 587-91 Cristóvão Gil t 1 608

1 589-93 Gaspar Gomes t 1 6 1 2


1 590-94 Pedro Á lvares t 1 596
1 59 1 -95 Nicolau Godinho
1 592-96 António de Morais t 1 6 1 6
1 593-95 Martim Soares ( 1 º e 2 º curso)

1 594-98 Baltasar Á lvares t 1 630


1 595-97 António de Abreu t 1 629 (3º e 4º cu rso)
1 595-99 João Pinto t 1 6 1 3
1 596-00 Jerónimo Barradas t 1 646
1 597-01 Sebastião do Couto t 1 639

1 598-99 Gaspar de Sousa t 1 599 ( 1 º curso)


1 599-00 Jorge de Contreiras t 1 600 (2º curso)
1 599-03 André Palmeiro t 1 635
1 600-0 1 Manuel de Almeida t 1 607 (3º curso)
1 600-04 André Machado

1 60 1 -02 António de Morais t 1 639 (4º curso)


1 60 1 -02 António Á lvares t 1 61 1 (2º cu rso/em substituição de André Machado)
1 60 1 -05 Manuel de Almeida
1 602-06 Francisco da Costa t 1 624
1 603-07 Jorge Cabral t 1 637

1 604-08 Francisco de Mendonça t 1 626


1 605-09 Jorge de Figueiredo
1 606-08 Simão Vieira t 1 608 ( 1 º e 2º curso)
Introdução Geral 147

5. Plano de estudos em Évora: anos lectivos 1 560-64

1 560 1 561 ' '


' ,,

Setembro Janeiro 30.,,de Abril Maio

1" Curso Praedicamenta

Physicorum li
2º Curso
Ethicorum Ili

32 Curso

42 Curso

1 561 1 562

Setembro Janeiro Abril 1 de Maio

w, lº Curso Praedicamenta

22 Curso Physicorum

3º Curso De coe/o

4º Curso

Setembro 1 de Janeiro Abril 1 de Maio

12 Curso Perihermenias

22 Curso Posteriorum Physicorum

De coe/o
32 Curso Physicorum
Sphaera

4º Curso De generatione

1 de Setembro 1 de Janeiro Abri l 1 de Maio

1º Curso Priorum I

Physicorum Ili
2º Curso Topicorum
Ethica

Sphaera
3º Curso Physicorum
Meteora

42 Curso De generatione
148 Introdução Geral

-D­
B ibliografia

Edições Nacionais

Commentarii Colegii Conimbricensis S. J. ln Octo Libras Physicorum Aristotelis Stagi­


ritae, Coimbra: A Mariz 1592 ;
Commentarii Colegii Conimbricensis S. J. ln Quatuor libras de Coe/o Aristotelis Stagi­
ritae, Lisboa: S. Lopes 1593 ;
Commentarii Collegii Conimbricensis S.J. ln libras Meteororum Aristotelis Stagiritae,
Lisboa: S. Lopes 1593 ;
Commentarii Collegii Conimbricensis S. J ln libras Aristotelis, qui Parva Natura/ia
appellantur, Lisboa: S. Lopes 1593: De memoria et Reminiscentia, De Somno et
Vigilia, De Somniis, De Divinatione per somnum, De Respiratione, De luventute et
Senectute, De Vita et Morte, De Longitudine et brevitate vitae;
ln libras Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum, aliquot Conimbricensis Cursus Dispu­
tationes in quibus praecipua quaedam Ethicae disciplinae capita continentur, Lis­
boa: S. Lopes 1593 ;
Commentarii Colegii Conimbricensis S. J. ln duas libras De Generatione et Corruptione
Aristotelis Stagiritae, Coimbra: A. Mariz 1597 ;
Commentarii Collegii Conimbricensis S. J. ln tres libras de Anima Aristotelis Stagiritae,
Coimbra: A. Mariz 1598: Tractatus de Anima Separata, Tractatio aliquot proble­
matum ad quinque sensus spectantium per totidem sectiones distributa ;
Commentarii Colegii Conimbricensis S. J. l n universam Dialecticam Aristotelis, Coim­
bra: D. G. Loureiro 1606: ln lsagogem Porphyrii, ln libras Categoriarium Aristote­
lis, ln libras Aristotelis de lnterpretatione, ln libras Aristotelis Stagiritae de Priori
Resolutione, ln primum librum Posteriorum Aristotelis, ln librum primum Topico­
rum Aristotelis and ln duas libras Elenchorum Aristotelis.

Algumas Edições Estrangeiras 1

Commentarii Conimbricensis in Octo Libras Physicorum Aristotelis, Lugduni 1594: rep.


Hildesheim-Zürich-New York 1984 ;
Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu ln tres libras de Anima Aristotelis
Stagiritae, Coloniae 1600, Venetii 1606 , Coloniae 1609;
Commentarii Collegii Conimbricensis in libras De Generatione et Corruptione, Lugduni
1600, Mogunciae 1606 ;

(I) Cf. ANDRADE, A. A., «Introdução» xiv-xix para mais indicações, enquanto esperamos um
levantamento definitivamente exaustivo.
Introdução Geral 149

Commentarii Collegii Conimbricensis in Universam Dialecticam Aristotelis, Coloniae


1607 : rep. : Hildesheim New York 1976 ;

Commentarii Collegii Conimbricensis S.J. in libros Meteororum Aristotelis Stagiritae,


Lugduni 1594, 160 8 ;
Commentarii Collegii Conimbricensis S. 1. i n libros Aristotelis qui Parva Natura/ia
appelantur, Lugduni 1594, 160 8 ;
Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu i n Quatuor libros d e Caelo, Lug­
duni 1594, 160 8 ;
l n libros Ethicorum Aristotelis a d Nicomachum, aliquot Conimbricensis Cursus Dispu­
tationes, Lugduni 160 8, Coloniae 1612 .

Traduções :

Curso Conimbricense l. Pe. Manuel de Góis: Moral a Nicómaco, de Aristóteles. Introdu­


ção, estabelecimento do texto e tradução de António Alberto de Andrade, Lisboa
1957.

The Conimbricenses. Some Questions on Signs. Translated with Introduction and Notes
by John P. Doyle, Milwaukee 2001.
Cambridge Translations of Renaissance Philosophical Texts. 1: Moral Philosophy. Ed.
by J . Kraye, Cambridge 1997, pp. 81-87 .
Manuel de Góis, S.J. Tratado da Felicidade. Disputa Ili do 'Comentário aos Livros das
Éticas a Nicómaco . Estudo e Introdução complementar de Mário S. de Carvalho;
'

nova tradução do original latino e notas de F. Medeiros, Lisboa 2009 . .

Livros e Artigos sobre o Curso1

ALVES ; M. DOS S., «Pedro d a Fonseca» Filosofia 1 /4 (1955), p p . 25-30.


ALVES , M. DOS S., «Pedro da Fonseca e o 'Cursus Collegii Conimbricensis ' » Revista
Portuguesa de Filosofia 11/2 (1955), pp. 479-489.
ANDRADE, A. A., «Üs ' Conimbricenses ' » Filosofia 1 /4 (1955) 31-36.
ANDRADE, A. A., «Introdução», in Curso Conimbricense l. Pe. Manuel de Góis: Moral a
Nicómaco, de Aristóteles. Introdução, estabelecimento do texto e tradução de A. A.
de Andrade, Lisboa 1957, pp. XIV-XVII.
ANDRADE, A. A. de, «A Renascença nos Conimbricenses» in ld. , Contributos para a
História da Mentalidade Pedagógica Portuguesa, Lisboa 1982, pp. 61-97
ANDRADE, A. A. B . de, «Teses fundamentais da Psicologia dos Conimbricenses» in Id.,
Contributos Contributos para a História da Mentalidade Pedagógica Portuguesa,
Lisboa 1982, pp. 99-141.
ANDRADE, A. A., Vemei e a filosofia portuguesa, Braga 1946.

( 1 ) Não se regista a totalidade das obras citadas na Introdução Geral, mas apenas as mais directa­
mente relevantes para o estudo do Curso dos Jesuítas.
150 Introdução Geral

ARMOGATHE, J.-R. «Les sens : inventaires médiévaux et théorie cartésienne», in J. Biard


et R. Rashed (ed.), Descartes et le Moyen Age. Actes du colloque organisé à la Sor­
bonne du 4 au 7 juin 1 996, Paris 1 997, pp. 1 74- 1 84.
B ENIGNO ZILLI, J., lntroducción a la Psicologia de los Conimbricenses y su influjo en el
sistema cartesiano, Xalapa 1 960.
BLACKWELL, C . & KUSI KAWA, S. (ed.), Philosophy in the Sixteenth and Seventeenth
Centuries. Conversations with Aristotle, Aldershot 1 999.
B RANDÃO, M., O Colégio das Artes, 2 vols., Coimbra 1 924-33 .
B RANDÃO, M. & D' ALMEIDA, M. L . , A Universidade d e Coimbra. Esbôço d a sua Histó­
ria, Coimbra 1 937.
The Cambridge History of Renaissance Philosophy, edited by Ch. B. Schmitt, Q. Skinner
et ai. , Cambridge New York 1 98 8 .
CAROLINO, L. M . , Ciência, Astrologia e Sociedade. A Teoria d a Influência celeste em
Portugal ( 1593- 1 755), Lisboa 2003.
CAROLINO, L. M. e CAMENIETZKI, Z. (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência: Séc. XVl­
-XVlll, Casal de Cambra 2005 .
CARVALHO, J. DE, «Leibniz e a Cultura Portuguesa» in Joaquim de Carvalho. Obra
Completa. Vol . IV, Lisboa 1 983, pp. 347-384.
CARVALHO, J. V. DE, «Jesuítas Portugueses com Obras filosóficas impressas nos séculos
XVI-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 ( 1 99 1 ), pp. 65 1 -659.
CARVALHO, M. S . D E , «The Concept of Time According to The Coimbra Commentar­
ies», in The Medieval Concept of Time. Studies on the Scholastic Debate and lts Re­
ception in Early Modem Philosophy, edited by P. Porro, Leiden - B oston - Kõln
200 1 , pp. 353-382.
CARVALHO, M. S . D E , A Síntese Frágil. Uma Introdução à Filosofia (da Patrística aos
Conimbricenses), Lisboa 2002 .
CARVALHO, M. S. DE, «Medieval Influences ln The Coimbra Commentaries (An Inquiry
Into The Foundations of Jesuit Education)» Patristica et Mediaevalia 20 ( 1 999), pp.
1 9-37.
CARVALHO, M . S . D E , «Suárez: Tempo e Duração» in Francisco Suárez (1 548- 161 7).
Tradição e Modernidade. Coordenação de A. Cardoso et ai. , Lisboa 1 999, pp. 65-80.
CARVALHO, M. S. DE, «Filosofar na época de Palestrina. Uma introdução à psicologia
filosófica dos 'Comentários a Aristóteles ' do Colégio das Artes de Coimbra»
Revista Filosófica de Coimbra 1 1 (2002) , pp. 3 89-4 1 9 .
CARVALHO, M. S . DE, «http://www.ci.uc.pt/lif/main5 .htm. Sobre um Projecto no âmbito
da História da Filosofia em Portugal» Revista Filosófica de Coimbra 12 (2003), pp. 2 1 5-
-224.
CARVALHO, M. S. DE, «Des passions vertueuses? Sur la réception de la doctrine thomiste
des passions à la veille de l ' anthropologie moderne» in J. F. Meirinhos (ed.), ltiné­
raires de la Raison. Études de philosophie médiévale offertes à Maria Cândida Pa­
checo, Louvain-la-Neuve 2005 , pp. 379-403 .
CARVALHO, M. S . DE, «Nótulas para o estudo da presença de Aristóteles no Portugal do
.século XVI» in M. C. de Matos (coord.), A Apologia do Latim. ln honorem Dr.
Miguel Pinto de Meneses (191 7-2004). Vol. 1, Lisboa 2005 , pp. 283-302.
Introdução Geral 151

CARVALHO, M. S . DE, «Introdução à leitura do Comentário dos Jesuítas de Coimbra ao


'De Anima' de Aristóteles (mediante o estudo do tema monopsiquista)» in J. L. B .
d a Luz (org.), Caminhos d o Pensamento. Estudos em Homenagem a o Professor
José Enes, Lisboa 2006, pp. 507-532.
CARVALHO, M. S . DE, «Metamorfoses da ética peripatética: estudo de um caso Quinhen­
tista conimbricense: 'As Disputas sobre os Livros da Ética a Nicómaco' » Revista
Filosófica de Coimbra 14 (2005), pp. 239-274.
CARVALHO, M. S . DE, «A doutrina do intelecto agente no Comentário ao 'De Anima' do
Colégio Jesuíta de Coimbra» in J. Fernando Sellés (ed.), El Intelecto Agente en la
Escolástica Renacentista, Pamplona 2006, pp. 1 5 5- 1 83
CARVALHO, M. S . DE, «Tentâmen de sondagem sobre a presença dos platonismos no
volume do 'De Anima' do primeiro Curso Jesuíta Conimbricense» in J. A.deC. R.de
Souza (coord.), Idade Média: tempo do Mundo, Tempo dos Homens, Tempo de
Deus, Porto Alegre 2006, pp. 3 89-98.
CARVALHO, M. S . DE, «Intellect et Imagination : la ' scientia de anima' selon Ies 'Com­
mentaires du College des Jésuites de Coimbra' » in MªC. Pacheco et J. F. Meirinhos
(ed.), lntellect et imagination dans la Philosophie Médiévale / lntellect and lmagi­
nation in Medieval Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medieval. Ac­
tes du XI' Congres Intemational de Philosophie Médiévale de la S. 1. E. P. M., Tur­
nhout 2006, vol. 1 , pp. 1 1 9- 1 5 8 .
CARVALHO, M . S . DE, «Viver segundo o Espírito: Sobre o tema do Homem superior»
Revista Portuguesa de Filosofia 64 (2008), pp. 1 9-5 1 .
CARVALHO, M . S . DE, «The Coimbra Jesuits ' Doctrine on Universais ( 1 577- 1 606)»
Documenti e Studi sulla Tradizione Filosofica Medievale 1 8 (2007) 5 3 1 -543 .
CARVALHO, M. S . DE, « ' Tremendos são os deuses quando aparecem às claras' . Notas
sobre a Evidência, 'in memoriam Ferdinandi Gil' », in AA. VV., A Razão Apaixo­
nada. Homenagem a Fernando Gil, Lisboa 2008, pp. 1 29- 1 42.
CARVALHO, M. S . DE, «Aos ombros de Aristóteles (Sobre o não-aristotelismo do pri­
meiro curso aristotélico dos Jesuítas de Coimbra)» Revista Filosófica de Coimbra
1 6 (2007) 29 1 -308.
CARVALHO, M . S . DE, «La critique d' Averroes dans les Commentarii Collegii Conimbri­
censis Societatis lesu ln tres libras de Anima» (no prelo) .
CARVALHO, M. S . DE, Psicologia e Ética no Curso Jesuíta Conimbricense, Lisboa 20 10.
CARVALHO, M . S . DE & MEDEIROS, F., «Em tomo do paradigma da visão no século XVI:
luz, visão e cores no Comentário Jesuíta Conimbricense ( 'De Anima' II 7)» Revista
Filosófica de Coimbra 1 8 (2009), pp. 43-70.
CARVALHO, M . S . DE, «Psicofisiologia ou teologia das paixões», in G. Burlando (ed.),
De las pasiones en la filosofía medieval. Actas dei X Congreso Latinoamericano de
Filosofia Medieval, Santiago de Chile - Tumhout, 2009, pp. 3 9 1 -402.
CARVALHO, M . S . DE, «As palavras e as coisas. O tema da causalidade em Portugal
(séculos XVI e XVIII)» Revista Filosófica de Coimbra 19 (2009), pp. 227-25 8 .
CARVALHO, M. S . DE, «A questão d o começo d o saber numa introdução à Filosofia do
século XVI português», in AA. VV., Razão e Liberdade. Homenagem a Manuel
José do Carmo Ferreira, Lisboa 20 1 0, pp. 993 - 1 009 .
1 52 Introdução Geral

CARVALHO, R. DE, «A orientação pedagógica da Companhia de Jesus» in ID., História


do Ensino em Portugal. Desde a Fundação da Nacionalidade até fim do Regime de
Salazar-Caetano, Lisboa 1 986, pp. 3 3 1 -358.
CODINA, G., «The 'Modus Parisiensis' » in V. J. Duminuco (ed.), The Jesuit 'Ratio Stu­
diorum ': 40(Íh Anniversary Perspectives, New York 2000, pp. 28-49 .
Coxrro, A. A., O Problema dos Universais no Curso Filosófico Conimbricense. Disser­
tação de Licenciatura apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coim­
bra (pro manuscripto), Coimbra 1 962.
Coxrro, A. A., «Ü Problema dos Universais no Curso Filosófico Conimbricense» Sepa­
rata da Revista dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, vol. III, série V,
Lourenço Marques 1 966.
COXITO, A. A., «Góis (Manuel de)» in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia,
vol. 2, Lisboa 1 990, pp. 873-88 1 .
Coxrro, A. A., «A Filosofia no Colégio das Artes» in História da Universidade em
Portugal. I Volume, tomo II ( 1 537- 1 77 1 ), Coimbra 1 997, pp. 735-76 1 .
Coxrro, A . A., «A restauração da Escolástica. II: O Curso Conimbricense» in História
do Pensamento Filosófico Português. Vol . 2, direcção de P. Calafate, Lisboa 200 1 ,
pp. 503-543 .
Coxrro, A. A., «Natureza, Arte, Acaso e Finalidade na 'Física' do Curso Conimbri­
cense» Revista Filosófica de Coimbra 1 2 (2003), pp. 39-68.
COXITO, A. A., «Génese e conhecimento dos primeiros princípios. Um confronto do
Curso Conimbricense com Aristóteles e S. Tomás» Revista Filosófica de Coimbra
1 2 (2003), pp. 279-303 .
CüXITO, A. A., «Ü que significam as palavras? O Curso Conimbricense no contexto da
semiótica medieval» Revista Filosófica de Coimbra 1 3 (2004), pp. 3 1 -6 1 .
COXITO, A . A., Estudos sobre Filosofia em Portugal no Século XVI, Lisboa 2005 .
CüXITO, A. A., «Ü método em Pedro da Fonseca e no Curso Conimbricense» in D. Fer­
rer (coord.), Método e Métodos do Pensamento Filosófico, Coimbra 2007, pp. 7 1 -78.
DES CHENE, D . , Physiologia. Natural Philosophy in Late Aristotelian and Cartesian
Thought, Ithaca & London 1 996.
DES CHENE, D., Life 's Form. Late Aristotelian Conceptions of the Sou!, Ithaca London
2000.
DIAS, A. DE P., «A Isagoge de Porfírio na Lógica Conimbricense» Revista Portuguesa de
Filosofia 20 ( 1 964), pp. 1 08- 1 30.
DIAS , J . S. DA S., «Ü Cânone filosófico conimbricense ( 1 592- 1 606)» Cultura - História
e Filosofia 4 ( 1 985), pp. 257-370.
DIAS, J. S. DA S . , Os Descobrimentos e a problemática cultural do século XVI, Coimbra
1 973.
DIAS, J. S . DA S., Portugal e a cultura europeia (séculos XVI a XVIII), Coimbra 1 95 3 .
DIAS, J. S . DA S., A política cultural da época d e D. João III, Coimbra 1 969.
DIAS, J. S . DA S., Correntes de sentimento religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII),
Coimbra 1 960.
DINIS, A., «Tradição e transição do 'Curso Conimbricense' » Revista Portuguesa de
Filosofia 47 ( 1 99 1 ), pp. 535-560.
Introdução Geral 153

DINIS, A., «Ü Comentário Conimbricense à Física de Aristóteles (Nos 400 anos da sua
primeira edição)» Brotéria 1 34 ( 1 992), pp. 398-406.
DOYLE, J. P. «Collegium Conimbricense», in Routledge Encyclopedia of Philosophy 2
( 1 998), pp. 406-08 . DUCEUX, 1 . , La introducción dei aristotelismo en China a tra­
vés dei 'De Anima' . Siglos XVI-XVII, México D.F. 2009.
DOYLE, J., «The Conimbricenses on the Semiotic Character of miror images» The Mod­
em Schoolman 76 ( 1 998-99), pp. 1 7-32.
DOYLE, J. P. «lntroduction», in The Conimbricenses. Some Questions on Signs. Trans­
lated with Introduction and Notes by John P. Doyle, Milwaukee 200 1 , pp. 1 5-29.
FONSECA, F. T. DA, «A Imprensa da Universidade no Período de 1 537 a 1 772» in Id. et
al. , Imprensa da Universidade. Uma História dentro da História, Coimbra, 200 1 ,
pp.7-52 .
FONSECA, N . DA, «Ü 'Curso Conimbricense' e m Português» Brotéria 6 6 ( 1 958), p p . 320-
-330.
Fl.JERTES HERREROS, J. L., «La Escolástica dei B arroco : presencia dei 'Cursus Conimbri­
censis ' en e! 'Pharus Scientiarum' ( 1 659) de Sebastián Izquierdo» , in Mª C. Pacheco
et J. Meirinhos (ed.), lntellect et imagination dans la Philosophie Médiévale / lntel­
lect and lmagination in Medieval Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia
Medieval. Actes du XI' Congres Intemational de Philosophie Médiévale de la S . 1.
E. P. M. (Porto, du 26 au 3 1 aofit 2002), Tumhout, 2006, pp. 1 59-200.
GIARD, L. «La constitution du systeme éducatif jésuite au XVIe siecle» in O. Weijers
(ed.), Vocabulaire des colleges universitaires (XII/e - XV/e siecles), Tumhout 1 993,
pp. 1 3 1 - 1 48.
GIARD, L. (ed.), Les Jésuites à la Renaissance. Systeme éducatif et production du savoir,
Paris 1 995.
G!ARD, L. «Sur !e cycle des 'artes' à la Renaissance» in O. Weijers & L. Holtz (ed.),
L 'enseignement des disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford XII/e - XVe
siecles), Tumhout 1 997, pp. 5 1 1 -5 3 8 .
GILSON, E., lndex Scolastico-cartésien, Paris 1 9 1 3 .
GOMES, J. F. , «Introdução» in Pedro da Fonseca. Instituições Dialécticas. lnstitutionum
Dialecticarum Libri Octo. Introdução, estabelecimento do texto, tradução e notas de
J. F. Gomes, Coimbra 1 964, pp. XIX-LXVIII.
GOMES, J. F., «No quarto centenário das Instituições Dialécticas de Pedro da Fonseca»
Revista Portuguesa de Filosofia 20 ( 1 964), pp. 273-92.
GOMES, J. P., «Üs Professores de Filosofia do Colégio das Artes» Revista Portuguesa de
Filosofia 1 1 /2 ( 1 955), pp. 520-545 .
GOMES, J. P., Os professores de Filosofia do Colégio das Artes (1555-1 759), Braga
1 95 5 .
GOMES, J. P., «Colégio d e Jesus» i n Verbo. Enciclopédia Luso-Brasileira d e Cultura,
vol. 5, Lisboa s.d.
GOMES, P., «Conimbricenses» in ID., Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa 1 987,
pp. 6 1 -64.
2
GOMES, P., Os Conimbricenses, Lisboa 1 992; 2005 .
154 Introdução Geral

HATIAB, H . , «Üne Cause or Many? Jesuit Influences on Descartes ' s Division of Causes»
in S . F. Brown (ed.), Meeting of the Minds. The Relations between Medieval and
Classical Modem European Philosophy, Tumhout I 998, pp. 1 05- I 20.
HENRIQUES, M. C. «Descartes e a possibilidade da ética» in Mª. J. Cantista & J. F. Mei­
rinhos (coord.), Descartes. Reflexão sobre a Modernidade, Porto I 998, pp. 253-266.
Os Jesuítas e a Ciência (Sécs. XVI-XVIII). Assinalando o 4º Centenário de Giovanni
Battista Riccioli, SJ (1598- 1671), Braga I 998 ( Revista Portuguesa de Filosofia
=

LIV).
KESSLER, E., «The Intellective Sou!» in Ch. B. Schmitt & Q. Ski nner (ed.), The Cam­
bridge History of Renaissance Philosophy, Cambridge 1 988, pp. 5 I 2-5 I 6.
KRAYE, J . , «Moral Philosophy» in Ch. B . Schmitt & Q. Skinner (ed.), The Cambridge
History of Renaissance Philosophy, Cambridge I 988, pp. 303-386.
LAVAJO, J. C . , «Molina e a Universidade de Évora» in I . Borges-Duarte (org.), Luís de
Molina regressa a Évora, Évora 1 998, pp . 99- I 22.
LEIJENHORST, C . , The Mechanisation of Aristotelianism. The Late Aristotelian Setting of
Thomas Hobbes ' Natural Philosophy, Leiden - Boston - Kõln 2002.
LINES, D. A., Aristotle 's 'Ethics ' in the Italian Renaissance (ca. 1300-1 650). The Uni­
versities and the Problem of Moral Education, Leiden Boston 2002, pp. 362-366.
LUIS ABELLÁN, J., História crítica dei pensamiento espaiiol. Tomo li: La Edad de Oro,
Madrid I 979, pp. 5 87-589.
MARTINS, A. M., «Conimbricenses» in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filoso­
fia, vol. I , Lisboa I 989, pp. I 1 1 2- I I 26.
MARTINS, A. M., «Ü Conimbricense Manuel de Góis e a eternidade do mundo» Revista
Portuguesa de Filosofia 52 ( 1 996), pp. 487-499 .
MARTINS, A. M., «The Conimbricenses» in Mª C. Pacheco et J. Meirinhos (ed.), Intellect
et imagination dans la Philosophie Médiévale / Intellect and Imagination in Medie­
val Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medieval. Actes du XI"
Congres Intemational de Philosophie Médiévale de la S . I. E. P. M. (Porto, du 26 au
3 I aofit 2002), Turnhout, 2006, pp. l O I - 1 1 7 .
MARTINS, A. M., «Pedro d a Fonseca e a recepção d a 'Metafísica' d e Aristóteles na
segunda metade do séc. XVI» Philosophica I4 ( 1 999) I 65- I 7 8 .
MARYKS, R. A . , Saint Cicero and the Jesuits. The Injluence of the Liberal Arts o n the
Adoption of Moral Probabilism, Aldershot - Burlington 2008.
MAURÍCIO, D. «Ü Curso Conimbricense, expressão do patriotismo português» Revista
Portuguesa de Filosofia I I ( 1 955), pp. 45 8-467 .
MIRANDA, M. Código Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus
(1599). Regime Escolar e Curriculum de Estudos, Lisboa 2009 .
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu . I: I 540- 1 556, ed. L. Lukács, Romae 1 965 .
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. II: 1 557- 1 572, ed. L. Lukács, Romae 1 974.
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. III: 1 557- 1 572, ed. L. Lukács, Romae 1 974.
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. IV: I 573- 1 5 80, ed. L. Lukács, Romae I 98 1 .
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. V: Ratio atque Institutio Studiorum Societatis
Iesu (1586 1 591 1599), ed. L. Lukács, Romae 1 986.
Introdução Geral 1 55

Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. VI: Collectanea de Ratione Studiorum Societa­


tis Iesu ( 1 582- 1 5 87), ed. L. Lukács, Romae 1 992.
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. VII: Collectanea de Ratione Studiorum Socie­
tatis Iesu ( 1 588- 1 6 1 6), ed. L. Lukács, Romae 1 992.
MÜLLER, H. J . , Die Lehre vom Verbum Mentis in der spanischen Scholastik. Untersu­
chungen zur historischen Entwicklung und Verstiindnis dieser Lehre hei Toletus,
den Conimbricensern und Suarez. Inaugural-Dissertation zur Erlangung des Doktor
grades der Philosophischen Fakultat der Westfülischen Wilhelms-Universitiit zu
Münster (pro manuscripto), Münster 1 968.
OLIVEIRA, J. B ACELAR E , «Filosofia Escolástica e Curso Conimbricense. De uma teoria
de Magistério à sua sistematização Metodológica» Revista Portuguesa de Filosofia
1 6 ( 1 960), pp. 1 24- 1 4 1 .
OLIVEIRA, J . B ACELAR E, «Sobre a noção de ciência na Lógica Conimbricense» Revista
Portuguesa de Filosofia 1 9 ( 1 963), pp. 278-285.
RANDLES, W . G. L., «Le ciel chez les jésuites espagnols et portugais ( 1 590- 1 65 1 )» in L.
Giard (ed.), Les jésuites à la Renaissance: Systeme éducatif et production du savoir,
Paris 1 995, pp. 1 29- 1 44.
RANDLES, W. G. L., The Unmaking of the medieval Christian Cosmos, 1 500- 1 760, Al­
dershot Burlington 2004.
'Ratio Studiorum ' da Companhia de Jesus (1559- 1 999), Braga 1 999 (= Revista Portu­
guesa de Filosofia LV).
RISSE, W., «Vorwort» in Commentarii Collegii Conimbricensis e Societate Jesu ln uni­
versam dialecticam Aristotelis [Coloniae 1 607] , Hildersheim 1 976, pp. 1 -6.
RODRIGUES, F., História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, 2 tomos, 4
vol. Porto 1 93 1 -3 8 .
SALATOWS KY, Sascha, 'De Anima '. Die Rezeption der aristotelischen Psychologie im 1 6.
und 1 7. Jahrhundert, Amsterdam Philadelphia 2006.
SANTOS, D. M . Gomes dos, «0 Curso Conimbricense. Expressão do Patriotismo Portu­
guês» Revista Portuguesa de Filosofia 1 1 /2 ( 1 955), pp. 45 8-467 .
SANTOS, D. M. Gomes dos, «Francisco Titelmans O. F. M. e as origens do Curso Conim­
bricense» Revista Portuguesa de Filosofia 1 112 ( 1 955) 468-78
SANTOS, D. M . , «Para a História da Filosofia Portuguesa no Ultramar. 1 . Índia» Revista
Portuguesa de Filosofia 1 ( 1 945), pp. 1 76- 1 95 .
S ANTOS, M. A. Machado, «Apontamentos à margem das Conclusões impressas dos
Mestres Jesuítas portugueses de Filosofia» Revista Portuguesa de Filosofia 1 1 12
( 1 955), pp. 5 6 1 -67
SCHMITT, C H . B . , Aristote et la Renaissance, trad. , Paris 1 992.
SCHMITT, C H . B. et ai. , The Cambridge History of Renaissance Philosophy, Cambridge
New York 1 988.
S ILVA, L. C . D A , «Os Jesuítas e o Ensino Secundário» Brotéria 31 ( 1 940), pp. 476-86.
S ILVA, L. C . DA, «Originalidade da Escola Conimbricense de Filosofia» ltinerarium 6
( 1 960), pp. 1 1 - 1 8 [vd.também ID. , Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa,
Braga 1 994, pp. 1 09- 1 1 5 ] .
156 Introdução Geral

S ILVA, L. C. DA, «0 Ensino da Ética na Tradição cultural de Coimbra e Évora» Brotéria


54 ( 1 962), pp. 262-69 .
SIMMONS, A., «Jesuit Aristotelian Education : The 'De Anima' Commentaries» in J. W.
O' Maliey et al. (ed.), The Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts 1 540- 1 773, To­
ronto B uffalo London 1 999, pp. 5 22-537.
S IMMONS , A., «The Sensory Act: Descartes and the Jesuits on the Efficient Cause of
Sensation», in S. F. Brown (ed.), Meeting of the Minds. The Relations between Me­
dieval and Classical Modem European Philosophy, Tumhout 1 998, pp. 63-76.
SOARES, T. DE S . SOARES, «0 Ensino no Colégio das Artes de Coimbra: 'Os Conimbri­
censes ' » Revista Portuguesa de Filosofia 1 1 /2 ( 1 955), pp. 756-68 .
SOLÉRE, J.-L., «Descartes et ies discussions médiévaies sur !e temps», J. Biard et R.
Rashed (ed.), Descartes et le Moyen Age. Actes du colloque organisé à ia Sorbonne
du 4 au 7 j uin 1 996, Paris 1 997, pp. 329-348.
SOMMERVOGEL, C., Bibliotheque de la Compagnie de Jésus, Paris 1 89 1 , II, pp. 1 273-78.
SPRUIT, L., Species lntelligibilis: From Perception to Knowledge. 11 : Renaissance Con­
troversies, Later Scholasticism, and the Elimination of the lntelligible Species in
Modem Philosophy, Leiden New York KO!n 1 995, pp. 289-293 .
STEGMÜLLER, F., «Zur Literargeschichte der Phiiosophie und Theoiogie an der Univer­
sitaten Évora und Coimbra im XVI. Jahrhundert» Spanische Forschungen der Goer­
resgesellschaft 1 . Reihe, Band 3 ( 1 93 1 ) , pp. 385-43 8 .
STEGMÜLLER, F., Filosofia e Teologia nas Universidades d e Coimbra e Évora no século
XVI, trad., Coimbra 1 959.
STONE, M . W., «Aristotelianism and Scholasticism in Early Modem Phiiosophy», in S.
Nadier (ed.), A Companion to Early Modem Philosophy, Oxford - Victoria 2002,
pp. 7-24.
TAVARES, S. «0 Colégio das Artes e a Filosofia em Portugal», Revista Portuguesa de
Filosofia 4 ( 1 948), pp . 227-276.
TEIXEIRA, A. B . , «A Filosofia Portuguesa na tempo de Camões» Philosophica 14 ( 1 999),
pp. 1 1 1 - 1 3 1 .
TEIXEIRA, A . B . , O pensamento filosófico-jurídico português, Lisboa 1 98 3 .
TRENTMAN, J. A., «Scholasticism i n the seventeenth century» i n The Cambridge History
of Later Medieval Philosophy from the Rediscovery of Aristotle to the desintegration
of Scholasticism 1 1 00- 1600, edited by N. Kretzmann, A. Kenny & J. Pinborg, Cam­
bridge 1 984, pp. 8 1 8-37.
VELOZO, A. A. R. M . , Sobre a Determinação do início dos 'Tempos Modernos '. A inci­
dência dos Comentários Conimbricenses na obra fisiológica de Descartes. Trabalho
de síntese apresentado à FLUC (pro manuscripto ), Coimbra 1 984.
WAKÚLENKO, S., «As fontes dos 'Commentarii Collegii Conimbricensis e Societate Iesu
in Universam Diaiecticam Aristoteiis Stagiritae' (Coimbra 1 606)» Philosophica 26
(2005), pp. 229-262 .
W AKÚLENKO, S . , «Enciclopedismo e Hipertextualidade nos 'Commentarii Coiiegii
Conimbricensis e Societate Iesu in Universam Dialecticam Aristotelis Stagiritae'
(Coimbra 1 606)» in O. Pombo et al. (ed.), Enciclopédia e Hipertexto, Lisboa 2006,
pp. 302-357.
Introdução Geral 157

WAKÚLENKO, S., «Projecção da Filosofia Escolástica Portuguesa na polónia Seiscen­


tista» Revista Filosófica de Coimbra 1 5 (2006), pp. 343-3 8 1 .
WARDY, R., Aristotle in China. Language, Categories and Translation, Cambridge 2000.
ZHANG, Q., «Translation as Cultural Reform: Jesuit Scholastic Psychology in the Trans­
formation of the Confucian Discourse on Human Nature» in J. W. O ' Malley et al.
(ed.), The Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts 1540-1 773, Toronto Buffalo
London 1 999, pp. 364-379.
Nótula da tradutora

A presente tradução foi efectuada directamente a partir da edição publicada em


Coimbra em 1 598, Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, ln tres
libras de Anima Aristotelis Stagiritae.
Decidimos não traduzir o texto de Aristóteles. Porque se reproduz ali uma tradução
do texto grego, tanto quanto sabemos da autoria de João Argirópulo, dispensámo-nos
de traduzir uma tradução, dado o leitor ter acesso fácil ao De Anima em qualquer
idioma contemporâneo, incluindo o português. Por isso mesmo, resolvemos acrescen­
tar sempre à tradução dos vários parágrafos da explanatio a referência à paginação de
1. Bekker, invariavelmente precedida do respectivo título latino, de forma a permitir a
rápida identificação do passo paralelo no texto dos Jesuítas Conimbricenses que tam­
bém se encontrava disponível em-linha em http://www.ci.uc.pt/lif/main5 .htm.
O nosso escopo foi o de nos mantermos fiéis, tanto quanto possível, à versão ori­
ginal, em ordem a possibilitar uma maior aproximação do seu elemento espiritual .
Reconhecendo, contudo, que nem sempre é fácil penetrar em contextos temporais
mais remotos, acrescentámos à tradução portuguesa os títulos daquelas obras que no
tempo se pressupunham conhecidas pelos destinatários, como por exemplo, a Suma
Teológica de São Tomás de Aquino, ou os Comentários às Sentenças de Pedro
Lombardo, de vários autores.
No que respeita à tradução dos restantes títulos citados no presente tratado, optá­
mos por traduzir os que são mais familiares por serem frequentemente nomeados ou
cuja tradução conhecemos, mantendo em latim os restantes, mormente os que não
respeitam à filosofia estritamente considerada, tanto mais que muitos deles concer­
nem a obras que são citadas de modo distinto pelos autores do Curso. A única
excepção a esta regra acontece aquando da menção, por parte dos próprios Jesuítas,
de obras de Aristóteles com formulações distintas como, v.g., em De ortu et interitu
e em De Generatione et corruptione, que traduzimos sempre da mesma forma, a
saber: A Geração e a Corrupção.
Juntámos por vezes a palavra «livro», antes da citação da obra, em ordem a tomar
mais legível e fluente a leitura. Pela mesma razão, desdobrámos, sempre que neces­
sário, as abreviaturas dos capítulos, das questões e dos artigos. Com o mesmo pro­
pósito, também explicitámos muitas vezes sintagmas subentendidos na oração. Não
cuidámos, porém, em identificar as citações ou distingui-las das meras paráfrases,
processos a que os redactores do Curso tanto recorrem. Impossível seria, igualmente,
160 Nótula da Tradutora

respeitar a pontuação. Outro tanto já não dizemos da divisão em parágrafos, que foi
bastante acatada.
Enfim, como dissemos já, optámos por oferecer uma tradução que respeitasse ao
máximo o elemento literal. Isso será mais notório na terminologia sobremaneira
técnica, cujos matizes procurámos verter sempre que possível. Algumas, muito pou­
cas, correcções ao texto de 1 598 (todas elas acolhidas na presente edição) justificam­
-se por se tratarem de lapsos. Apenas um exemplo: na página 422 daquela edição,
lemos «diductio» em vez de «deductio», autorizados pela ocorrência catorze linhas
mais abaixo. Também por contingências de ordem técnica surgidas durante a prepa­
ração da presente publicação, vimo-nos forçados a não incluir a tradução das notas
marginais do texto original, que se podem ver nas duas reproduções feitas na Intro­
dução.

Maria da Conceição Camps


COMENTÁRIOS
DO COLÉGIO
CONIMBRICENSE
DA COMPANHIA DE JESUS
S obre os três livros do Tratado ' D a Alma'
de Aristóteles Estagirita

IHS
Coimbra
Impressão de António Mariz, da Tipografia da Universidade

Ano do Senhor, 1 598


Com Privilégio Régio e Autorização Superior
PARECER DOS QUE FORAM NOMEADOS PELO
OFÍCIO DA SANTA INQUISIÇÃO PARA EXAMINAR ESTES COMENTÁRIOS:

Examinámos e inspeccionámos cuidadosamente estes Comentários do curso


Conimbricense sobre os três livros 'Da A lma ' de Aristóteles com o apêndice do
Tratado da A lma Separada e neles nada encontrámos que seja alheio à fé e à verda­
deira Religião; pelo contrário, considerámos que eles são vantajosos, pela abundân­
cia das matérias que devem ser tratadas e pela superioridade do discurso, e que em
qualquer parte vão ser alimento dos candidatos às letras, do sucesso da filosofia
divina e humana dos povos. Por essa razão consideramos que devem ser dados à
impressão e à imortalidade.
loannes Correa F. Ludouicus de Sotto Maior Antonius de Castelbranco

AUTORIZAÇÃO DO CONSELHO SUPREMO DA SANTA INQUISIÇÃO:

Publiquem-se estes Comentários aos três livros de Aristóteles sobre A alma. 24


de Setembro de 1 592.
Antonius de Mendonça Jacobus de Sousa Marcus Teyxeira

AUTORIZAÇÃO DO SENADO RÉGIO:

Publiquem-se estes Comentários, Lisboa 23 de Dezembro 1 595.

Hieronymus Pereira Damianus de Aguiar

AUTORIZAÇÃO DO ILUSTRÍSSIMO E REVERENDÍSSIMO BISPO DE COIMBRA,


SENHOR AFONSO DE CASTELBRANCO:

Estes Comentários podem ser publicados porque nada contêm que ofenda os bons
costumes e a Religião Cristã.
D. Alphonsvs Episcopvs Comes

Suma do Privilégio Real comunicado ao Impressor António de Mariz, com todas


as suas forças, e que pelo mesmo tempo concedi aos Padres da Companhia de
JESUS :
EL-REI Nosso Senhor faz mercê aos Padres da Companhia de JESUS deste
Reino, que ninguém possa imprimir nem trazer de fora, nem vender quaisquer livros
compostos, ordenados ou traduzidos por eles, sem sua aprovação, sob pena de perder
os ditos livros que lhe forem achados, e trinta cruzados, como mais largamente se
contém no Privilégio e Provisão de Sua Alteza, que Jorge da Costa fez em Lisboa a
25 de Agosto, Ano do Senhor de 1 572.
REY
,,.

Indice dos capítulos e das questões


que integram os livros de Aristóteles Da Alma
e o Tratado da A lma Separada 1

Livro Primeiro

PROÉMIO AOS TRÊS LIVROS DO TRATADO DA ALMA DE ARISTÓTELES


- Utilidade, ordem, matéria tratada e partição destes livros 1 79

QUESTÃO ÚNICA - Se o estudo da alma intelectiva respeita à doutrina


da fisiologia, ou não
ARTIGO I Várias opiniões dos filósofos 1 83
ARTIGO II Resolução de toda a questão 1 84
ARTIGO III Explicação dos argumentos que pareciam ser contrários
às afirmações anteriores 1 86

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1 1 88

DA RESTANTE PARTE DESTE LIVRO 1 93

( I ) A presente edição não publica os dois apêndices, Tractatus de Anima Separata e Tractatio
aliquot problematum de rebus ad quatuor mundi e/ementa pertinentibus, in totidem sectiones
distributa. Por esta razão também não reproduzimos os índices desses apêndices.
Livro Segundo

PROÉMIO DO LIVRO SEG UNDO DO TRATADO DA ALMA DE ARISTÓTELES 1 97

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1 1 97

QUESTÃO 1 - Se Aristóteles definiu correctamente a alma ou não


ARTIGO I Esclarece-se a definição peripatética de alma 200
ARTIGO II Argumentos contra a definição anterior 203
ARTIGO III Que a alma não é um composto 204
ARTIGO IV Que a alma é substância 205
ARTIGO V Que a alma não é matéria nem corpo 207
ARTIGO VI Que a alma intelectiva é uma substância espiritual,
mas não é uma partícula da mente divina 208
ARTIGO VII Destroem-se os argumentos do artigo segundo 21 1

QUESTÃO II - Se a alma é algo subsistente ou não


ARTIGO I Argumentos para alcançar a verdade da matéria proposta 214
ARTIGO II Explicação da questão resolução dos argumentos 216

QUESTÃO III - S e as almas intelectivas são criadas por Deus o u não


ARTIGO I Diversas opiniões acerca da origem das nossas almas 220
ARTIGO II O que se deve pensar acerca do assunto 22 1
ARTIGO III Resolução dos argumentos do primeiro artigo 225

QUESTÃO IV - Em que momento do tempo parece ser infundida no corpo


a alma intelectiva
ARTIGO ! Acerca da ordem e do percurso das almas na matéria
do feto antes da infusão da alma intelectiva.
Opiniões diferentes dos autores 227
ARTIGO II Solução da dúvida proposta 228

QUESTÃO V - Se todas as almas intelectivas são iguais


em dignidade da natureza
ARTIGO 1 Argumentos da parte negativa 230
ARTIGO II Argumentos a favor da parte afirmativa 23 1
ARTIGO III Considera-se provável uma e outra parte da controvérsia.
Prefere-se a afirmativa. S ão rebatidos os argumentos
dos adversários 234
QUESTÃO VI - Se a alma intelectiva é verdadeira forma do homem ou não
ARTIGO ! Que argumentos parecem afirmar a parte negativa da questão 236
ARTIGO II Não pode negar-se que a alma intelectiva é verdadeira
e propriamente forma do homem 238
ARTIGO III Contrariam-se os argumentos propostos no início da questão 24 1

QUESTÃO VII Se as almas que participam da razão se multiplicam


-

pelos vários homens, ou não


ARTIGO 1 Acerca da transmigração e da unidade da forma assistente
que alguns inventaram 243
ARTIGO II Refuta-se o erro do Comentador que considera apenas
um intelecto ou forma assistente 245
ARTIGO III São falsos os argumentos apresentados no início 246

QUESTÃO VIII - Se todas as almas são divisíveis ou não


ARTIGO 1 Refutam-se as opiniões falsas de alguns 248
ARTIGO II Explicam-se as opiniões de outros autores 249
ARTIGO III Solução da questão. Explicação dos argumentos
de uma e de outra parte 252

QUESTÃO IX Se toda a alma está em todo o corpo


-

e toda em qualquer parte dele


ARTIGO ! Discussão da dúvida proposta 253
ARTIGO II São refutadas várias opiniões dos filósofos .
Estabelece-se a posição correcta 254
ARTIGO III Explicação dos argumentos do primeiro artigo 257

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO II 258

QUESTÃO ÚNICA - Se a segunda definição de alma foi correctamente


transmitida e se a primeira é por ela demonstrada
ARTIGO ! Foi correctamente transmitida 263
ARTIGO II De que forma as definições de alma podem por si
demonstrar-se mutuamente 264

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO III 266

QUESTÃO I Se a variedade tripartida das almas está correctamente


-

atribuída ou não
ARTIGO ! Em princípio não parece correcta,
mas está correctamente atribuída 268
QUESTÃO II - Se há cinco géneros de potências e quatro de seres vivos
ARTIGO 1 Há cinco géneros de potências 27 1
ARTIGO II São quatro os géneros dos seres vivos 272

QUESTÃO III - Se as potências da alma brotam da sua essência


ARTIGO 1 Argumentos da parte negativa 273
ARTIGO II Explicação da questão e dos argumentos 274

QUESTÃO IV - Se as potências da alma diferem dela própria ou não


ARTIGO 1 Diversas opiniões dos filósofos 275
ARTIGO II O que se deve pensar na questão proposta 277
ARTIGO III Solução dos argumentos do primeiro artigo 278

QUESTÃO V Se as potências se distinguem pelos actos


-

e pelos objectos ou não


ARTIGO I Parece que não se distinguem 279
ARTIGO II As potências distinguem-se pelos actos e obj ectos.
Os argumentos aduzidos em contrário não têm força 280

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IV 282

QUESTÃO ÚNICA Se as potências vegetativas da alma diferem


-

entre si realmente
ARTIGO ! Opinião dos que consideram que elas se distinguem
realmente entre si 286
ARTIGO II Demonstra-se a parte negativa. Destroem-se os argumentos
dos adversários 288

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V 290

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VI 294

QUESTÃO 1 Se o sentido é apenas uma potência passiva,


-

ou também activa
ARTIGO 1 Diferentes opiniões dos autores e sua refutação 295
ARTIGO II Conclusão da questão 297

QUESTÃO II Se algumas espécies se imprimem nos sentidos


-

para que as operações se realizem


ARTIGO 1 Os que negaram as espécies e quais os argumentos
que aduziram 299
ARTIGO II Estabelece-se a parte afirmativa da questão.
Resolvem-se os argumentos da parte adversária 300
ARTIGO III Explicam-se certas dúvidas 303

QUESTÃO III - Se pode ser produzido algum conhecimento abstractivo


nos sentidos externos graças ao poder divino
ARTIGO ! O que parece dever pensar-se na questão proposta 307
ARTIGO II Argumentos contra os que foram referidos no artigo anterior
e sua resolução 309

QUESTÃO IV - Se existem cinco sensíveis comuns


ARTIGO 1 Parece que menos, parece que mais 312
ARTIGO II Existem apenas cinco sensíveis comuns .
Não s e conclui o oposto dos argumentos anteriores 313

QUESTÃO V - Se o sensível comum imprime uma espécie própria no sensitério


ARTIGO ! Opinião dos que se inclinam para a parte afirmativa 3 14
ARTIGO II A parte negativa é verdadeira, e nada prova os argumentos
dos adversários 315

QUESTÃO VI - Se o sentido erra acerca do sensível próprio ou não


ARTIGO 1 Propõem-se os argumentos das partes contrárias 316
ARTIGO II Explicação da controvérsia 317

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VII 319

QUESTÃO I - Aristóteles definiu correctamente


o transparente e a cor, ou não?
ARTIGO 1 Definiu correctamente o transparente 321
ARTIGO II Também definiu muito bem a cor 322

QUESTÃO II - Se a natureza da cor e da luz é a mesma ou não


ARTIGO ! Quem considera ser a mesma e com que argumentos 323
ARTIGO II As cores aparentes não se distinguem da luz.
As verdadeiras distinguem-se 324

QUESTÃO III - Qual a origem e proveniência das cores


ARTIGO 1 Das cores aparentes e fictícias 326
ARTIGO II Da variedade, dos nomes e da mudança das cores 328
QUESTÃO IV Se a luz é necessária à visão em razão do meio,
-

apenas do objecto, ou em razão de um e de outro


ARTIGO 1 Diferentes opiniões dos filósofos 330
ARTIGO II Conclui-se que a luz é necessária para a visão,
tanto em razão do meio, como do objecto 33 1

QUESTÃO V Se a visão se faz pelos raios emitidos pelo olho


-

ou pelas imagens recebidas a partir do objecto


ARTIGO ! A opinião de certos filósofos, principalmente de Platão,
e sua confirmação 332
ARTIGO II Explicação da posição verdadeira 334
ARTIGO III Solução dos argumentos que foram propostos
no primeiro artigo 336

QUESTÃO VI - Se a composição dos olhos é apropriada


para a visão, ou não é
ARTIGO 1 Da superioridade dos olhos, seu lugar e sua forma 337
ARTIGO II Das coisas que respeitam à função interna dos olhos 339

QUESTÃO VII - Se a visão se dá no humor cristalino


ARTIGO 1 Com que argumentos parece mostrar-se que não se d á aí 34 1
ARTIGO II Estabelece-se a parte afirmativa da questão 342

QUESTÃO VIII - Se a imagem é vista no espelho ou não


ARTIGO 1 Argumentos da parte afirmativa 343
ARTIGO II A imagem não é vista no espelho 344

QUESTÃO IX Se aqueles que comummente são chamados vedares


-

das águas as vêem realmente debaixo do solo


ARTIGO 1 Discussão de uma e de outra parte da questão 346
ARTIGO II Explicação da questão 348

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VIII 349

QUESTÃO 1 - O que é o som e qual a sua causa efectiva


ARTIGO 1 Estabelecem-se algumas proposições 35 1
ARTIGO II Transmitem-se outras proposições 354
QUESTÃO II - Qual é o substrato do som e qual é o seu meio
ARTIGO I O som não é recebido nos corpos sólidos, é produzido
pelo seu embate e o ar e a água são o seu meio 355
ARTIGO II De que modo o som e as suas espécies
são transmitidas ao ouvido 356

QUESTÃO III - De que modo se forma a voz e qual é a sua natureza


ARTIGO I Da formação dos instrumentos e da competência da voz 359
ARTIGO I I Explica-se a definição de v o z transmitida por Aristóteles 360

QUESTÃO IV - Da faculdade auditiva


ARTIGO 1 Qual é a sua eficácia, qual o seu aparelho 362
ARTIGO II Em que parte se constitui a faculdade de ouvir 363

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IX 364

QUESTÃO I - Se o odor consiste na exalação do corpo odorífero ou não


ARTIGO I Argumentos da parte afirmativa 367
ARTIGO II O odor não é uma exalação fúmida nem os argumentos
anteriormente aduzidos concluem isso 368

QUESTÃO II - De que maneira nasce o odor e qual é o seu substrato


ARTIGO 1 Explicação da dúvida proposta 369
ARTIGO II Resolução de algumas obj ecções 37 1

QUESTÃO III De que forma o odor se difunde e qual é o meio


-

pelo qual chega ao olfacto


Artigo 1 Da difusão do odor 373
ARTIGO II O meio do odor é o ar e a água 376

QUESTÃO IV - Qual o órgão do olfacto


ARTIGO 1 Várias opiniões 377
ARTIGO II Explicação da tese verdadeira 379

QUESTÃO V - Se o olfacto do homem é mais fraco


do que o dos outros animais
ARTIGO I A superioridade do olfacto. Argumentos a favor
da parte negativa da questão proposta 383
ARTIGO II Resolução da controvérsia 3 84
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO X 387

QUESTÃO 1 - Da origem e natureza do gosto e das suas espécies


ARTIGO ! As coisas que concorrem para a génese do gosto
e qual é a sua definição 388
Artigo II Que espécies de sabores existem 390

QUESTÃO II Se o gosto difere do sentido do tacto, ora pelo órgão,


-

ora por natureza


ARTIGO 1 Difere primeiro em natureza 392
ARTIGO II Também difere pelo órgão 394

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XI 395

QUESTÃO 1 - Qual é o órgão do tacto e qual é o seu meio


ARTIGO 1 Diferentes opiniões dos filósofos acerca do órgão do tacto
e qual delas deve ser perfilhada 397
ARTIGO II Do meio do tacto 399

QUESTÃO II - Se há um tacto ou vários


ARTIGO ! Diversas opiniões dos filósofos 40 1
ARTIGO II Conclui-se que existe apenas um tacto em espécie. Refutam-se
os argumentos dos que consideram que existem mais 402

QUESTÃO III - Se sentimos o sensível que se apresenta excedendo o sentido


ARTIGO ! Argumentos da parte afirmativa 404
ARTIGO II Expõem-se as diferentes opiniões dos filósofos sobre a questão
proposta e defende-se a posição comum 405
ARTIGO III Resolvem-se os argumentos pertencentes ao tacto e ao gosto.
Propõe-se uma outra opinião 406

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XII 407

QUESTÃO ÚNICA - Se o sentido é afectado pelo sensível que o excede ou não


ARTIGO ! Disputa-se primeiro a favor da parte negativa,
mas é confirmada a parte afirmativa da questão 409
ARTIGO II Explica-se sobretudo de que forma os sentidos
são prejudicados um a um, por um sensível excessivo
e resolvem-se os argumentos apresentados no início da questão 41O
Livro Terceiro

PROÉMIO DO TERCEIRO LIVRO DO TRATADO DA ALMA 415

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1 415

QUESTÃO ÚNICA - S e existem cinco sentidos externos o u não


ARTIGO I Parece que são menos. Parece que são mais 418
ARTIGO II De facto não existem nem mais nem menos sentidos externos,
do que cinco 419
ARTIGO III Resolve-se o primeiro argumento do primeiro artigo.
Estabelece-se, contra os médicos, que os sentidos externos
não são faculdades adquiridas mas inatas 423
ARTIGO IV Resposta aos restantes argumentos do primeiro artigo 425

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO II 428

QUESTÃO 1 - Se os sentidos externos percebem as suas funções ou não


ARTIGO ! Parece demonstrar-se a parte afirmativa com estas razões 432
ARTIGO II Aprovação da parte negativa. Resolução dos argumentos
do artigo anterior 433

QUESTÃO II Se deverá admitir-se um sentido comum


-

e se este residirá no cérebro


Artigo I Por que indícios se fala do sentido comum 435
ARTIGO II O sentido comum não reside no coração mas no cérebro 437

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO III 438

QUESTÃO 1 Se o número dos sentidos internos foi correctamente


-

estabelecido pelos filósofos


ARTIGO ! Com que argumentos foi estabelecida a pluralidade
dos sentidos internos 442
ARTIGO II Estabelece-se o número dos sentidos internos a partir
da opinião comum dos filósofos 445
ARTIGO III Acrescenta-se uma outra opinião menos comum,
considerada todavia mais provável do que as restantes 447
ARTIGO IV Da sede dos sentidos internos 449
ARTIGO V Que sentidos internos pertencem aos seres animados 45 1
QUESTÃO II - Se algum sentido interno divide, compõe, discorre
ARTIGO 1 Argumentos da parte negativa 452
ARTIGO II Explicação da dificuldade proposta 453
ARTIGO III Solução dos argumentos do primeiro artigo 455

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IV 456

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V 46 1

QUESTÃO 1 - Se o intelecto agente reside na alma humana ou não


ARTIGO I Diversas opiniões dos que filosofam 463
ARTIGO II O intelecto agente existe na alma humana; que diferença
há entre ele e o intelecto paciente 465
ARTIGO III Resposta aos argumentos propostos ao início da questão 467

QUESTÃO II - Quais são as funções do intelecto agente


ARTIGO 1 Da iluminação dos fantasmas 469
ARTIGO II Acerca da outra dupla função do intelecto agente 47 1

QUESTÃO III Se as espécies inteligíveis existem necessariamente


-

no nosso intelecto, ou não


ARTIGO ! V árias opiniões dos filósofos 473
ARTIGO II Não deve negar-se, contra Avicena, que as espécies inteligíveis
existem e que estas, cessando o acto de pensar,
permanecem no intelecto 474
ARTIGO III Solução dos argumentos do primeiro artigo 477

QUESTÃO IV Se as espécies inteligíveis, que são próprias


-

das coisas singulares, existem no nosso intelecto ou não


ARTIGO 1 Argumentos da parte negativa 478
ARTIGO II Argumentos da parte afirmativa 479
ARTIGO III Considera-se provável a outra parte da controvérsia.
Prefere-se, todavia, a negativa como mais peripatética
e resolvem-se os argumentos da outra 48 1

QUESTÃO V Se as espécies inteligíveis são produzidas


-

pelo intelecto agente


ARTIGO ! Rejeitadas as opiniões de uns, estabelecem-se
algumas asserções 486
ARTIGO II Transmitem-se outras asserções acerca das espécies
geradas apenas pelo intelecto possível 490
QUESTÃO VI Se todos os sentidos internos concorrem com o intelecto agente
-

para produzir as espécies inteligíveis e em que género de causa o fazem


ARTIGO 1 Explica-se a primeira parte da controvérsia 494
ARTIGO II Explica-se a outra parte da controvérsia proposta 497

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VI 499

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VII 502

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VIII 505

QUESTÃO I Se o intelecto paciente é uma potência passiva


-

e totalmente pura ou não


Artigo 1 O intelecto paciente é uma potência tanto passiva, como activa 506
ARTIGO II O intelecto paciente num certo sentido não é pura potência;
investiga-se se o é noutro. 508
ARTIGO III O intelecto paciente é pura potência no género dos inteligíveis
desde a sua primeira origem 509

QUESTÃO II Se o intelecto paciente no homem é único em espécie


-

ou se há vários
ARTIGO ! Que argumentos parece que demonstram que há vários 511
ARTIGO II No homem, o intelecto paciente é único em espécie.
Os argumentos aduzidos contra a parte contrária
não são concludentes 512

QUESTÃO III - Se o verbo é produzido através da intelecção, ou não


ARTIGO 1 Com que argumentos se parece mostrar que não é produzido 515
ARTIGO II Explicação da questão 516
ARTIGO III Resolve-se o primeiro argumento proposto no início da questão
e estabelece-se que a intelecção não é uma qualidade
mas uma verdadeira e própria acção 519
ARTIGO IV Resolvem-se os restantes argumentos do primeiro artigo 520

QUESTÃO IV De que maneira as espécies inteligíveis, a intelecção,


-

o verbo e o objecto diferem entre si


ARTIGO ! A intelecção distingue-se realmente da espécie inteligível 522
ARTIGO II O verbo e a intelecção identificam-se na realidade, mas não são
o mesmo pela razão. Di stinguem-se realmente pelo objecto 524
QUESTÃO V - Se possuimos conceitos próprios das coisas singulares
ARTIGO I Argumentos da parte negativa 525
ARTIGO II A parte afirmativa da controvérsia é a verdadeira 526
ARTIGO III Resolução dos argumentos que foram aduzidos a favor
da parte negativa da questão 528

QUESTÃO VI - Se o nosso intelecto pode inteligir muitas coisas em simultâneo


ou não
ARTIGO ! Os que seguiram a parte negativa, com que argumentos
a provaram 528
ARTIGO II Podem ser compreendidas ao mesmo tempo muitas coisas,
enquanto muitas 530
ARTIGO III Resolução dos argumentos do primeiro artigo 53 1

QUESTÃO VII Se a alma humana se intelige pela sua essência,


-

e igualmente se a potência de inteligir se conhece, bem


como as próprias funções e os hábitos a ela inerentes
ARTIGO I Exercitação da questão nas diversas partes 532
ARTIGO II Resolução da controvérsia 533
ARTIGO III Explicação dos argumentos que tinham sido aduzidos
contra ambas as partes 535

QUESTÃO VIII Se é necessário que o que intelige deve tomar


-

em consideração os fantasmas ou não


Artigo I Que argumentos recomendam que não é necessário 536
ARTIGO II Diversas opiniões dos autores e explicação
do verdadeiro parecer 537
ARTIGO III Explicam-se certas dúvidas 540
ARTIGO IV Resposta aos argumentos do primeiro artigo 543

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IX 543

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO X 545

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XI 547

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XII 547


EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XIII 548

QUESTÃO 1 - Se o apetite se divide correctamente em intelectivo e sensitivo


ARTIGO ! Não parece correctamente dividido 549
ARTIGO II É estabelecida a parte afirmativa da questão 550
ARTIGO III Em que diferem entre si o apetite sensitivo e o intelectivo 55 1
ARTIGO IV Resolvem-se os três argumentos do primeiro artigo 553
ARTIGO V Resolve-se a primeira parte do quarto argumento
e trata-se da admiração 553
ARTIGO VI Resolução da outra parte do argumento; disputa acerca do riso 555

QUESTÃO II - A vontade é mais nobre do que o intelecto, ou não?


ARTIGO I Os que seguem a parte afirmativa e com que argumentos
a provam 556
ARTIGO II Conclui-se que o intelecto é mais nobre do que a vontade e,
a o mesmo tempo, infirmam-se os argumentos da parte adversária 558

QUESTÃO III - Se a vontade difere realmente do intelecto ou não


ARTIGO ! Com que argumentos parece dar-se a conhecer
a parte negativa da questão 560
ARTIGO II A parte negativa da controvérsia é verdadeira.
Os argumentos acima aduzidos não colhem 561

QUESTÃO IV Se, para que a vontade produza o seu acto,


-

se requer no intelecto o conhecimento judicativo ou não


ARTIGO 1 Disputa contra a parte afirmativa da questão 563
ARTIGO II Disputa da controvérsia contra a parte que nega 564
ARTIGO III Consideram-se prováveis ambas as partes da controvérsia
e explicam-se os argumentos de uma e de outra 565

QUESTÃO V Se a faculdade que dirige, impele e executa,


-

concorre para o movimento dos animais ou não


ARTIGO 1 Discussão da questão contra a parte negativa 566
ARTIGO II Das duas faculdades. A que dirige o movimento e a que ordena 567
ARTIGO III Da faculdade que executa o movimento 568
ARTIGO IV Responde-se aos argumentos propostos ao início 57 l
Livro Primeiro
Livro Primeiro, Proémio 1 79

PROÉMIO AOS TRÊS LIVROS


DO TRATADO DA ALMA DE ARISTÓTELES

Utilidade, ordem, matéria tratada e partição destes livros

A partir do que Aristóteles nos ensinará a seguir, tomar-se-á evidente como a


ciência da alma sobressai de entre as outras partes da Filosofia, quer pelo seu rigor
demonstrativo, quer pela matéria sobre que versa, quer pela sua nobreza, e como ela
é útil, tanto para regular e gerir honestamente a vida como para um completo conhe­
cimento da verdade. Mas o mesmo, particularmente no que diz respeito à utilidade,
pode ser ilustrado e mais amplamente recomendado, porque, de acordo com o que
advertia a célebre máxima de Quilão, de Fémon, de Tales ou de quem quer que
tenha sido o autor, inscrita nas portas do templo de Delfos por Anfictião, cada um
deve, acima de tudo, procurar conhecer-se a si mesmo. No entanto, ninguém se pode
conhecer, a menos que tenha examinado atentamente a dignidade e a natureza da sua
alma. Porque já Marco Túlio, no livro 1 das Disputas Tusculanas; Plotino, no livro 3
da quarta Enéada, capítulo 1 º, depois de Platão, em Alcibíades !, consideraram que
aquela inscrição délfica não exortava a outra coisa senão ao conhecimento da natu­
reza da alma. Isto, porque quem quer que alcance a notável e superior capacidade da
sua mente, compreenderá que não deve deter-se nos bens incertos e caducos, mas
nas coisas sempiternas e divinas, com todo o cuidado e empenho de conhecer com
que os filósofos verdadeiros e legítimos edificam as principais glórias.
Esta doutrina também é muito útil para aqueles que discutem sobre a vida comum
e os costumes, como consta do livro 1 da Ética, capítulo 1 3º, e do livro 6, capítulo
1 º. Com efeito, é necessário que eles recebam do filósofo natural o modo como a
razão detém a suma eminência da alma, em ordem a sujeitar a si a faculdade apeti­
tiva e a irascível e a moderar os movimentos que se erguem contra certa norma.
Também é preciso que recebam dela o princípio das acções, nas quais reside a feli­
cidade da vida humana, e ainda a divisão das faculdades usadas para explicar os
afectos e as virtudes. A isto se refere a advertência de Aristóteles, no último capítulo
do livro 1 da Ética que diz que, tal como os médicos que receitam remédios para
curarem os corpos, a fim de desempenharem bem o seu ofício, colocam muito cui­
dado no conhecimento das almas, assim, por maioria de razão, o filósofo moral, que
cuida de sanar as enfermidades da alma, deve examinar o que concerne à ciência da
alma.
Na verdade, a ciência da alma comunica admiravelmente com a filosofia pri­
meira, pois por uma certa analogia e semelhança atingimos pelo nosso intelecto as
substâncias inteligíveis e livres da matéria, e a mente humana, transformando-se
para além de si mesma, é chamada para a natureza divina donde proveio. O que quer
que na mente exista de perfeição encontra-se em Deus, fonte de todas as perfeições e
nela ainda mais bem conhecida uma vez afastada toda a imperfeição.
Por último, por uma razão comum, a todas as partes da filosofia é oportuna esta
meditação sobre a alma, porque a alma participa da razão e da prudência (como
afirma Trismegisto no Asclépio ) , como que Orizon da eternidade e do tempo, do
inteligível e do nexo da natureza corpórea e dos limites. Ou, como outros disseram,
suma de todo o mundo, pois a natureza intermédia representa as extremas, a superior
1 80 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

como imagem, a inferior, como exemplar. Acontece que a doutrina da alma é como
um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um
outro conhecimento da verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contempla­
ção aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem
dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra
acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra,
que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa,
aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados.
As coisas escritas acerca desta matéria mostram à evidência que a reflexão sobre
a alma é própria da grande estatura, tanto dos Padres, como dos filósofos gentios.
Com efeito, São Dionísio, no capítulo 4º de Os Nomes Divinos, recorda que tinha
escrito acerca da alma; S. Justino, filósofo e mártir, fez um livro sobre este mesmo
tema, como refere S. Jerónimo, no livro Escritores Eclesiásticos. Santo Agostinho
escreveu o livro A Imortalidade da A lma, um outro A Grandeza da A lma, e quatro
livros Sobre a A lma e a Sua Origem . São Gregório de Nissa recordou uma longa
disputa em cartas trocadas entre si e Soror Macrina, sobre A A lma e a Ressurreição.
Tertuliano compilou um livro sobre A A lma. Na verdade, já os autores pagãos
tinham escrito muita coisa acerca dela. Trismegisto, Platão, Teofrasto, Platino, Cal­
cídio, Proclo, Jâmblico, Túlio e o autor da obra De sapientia secundum Aegyptios.
Além destes três livros, Aristóteles também deixou outro sobre questões da alma,
que a iniquidade do tempo destruiu.
Temístio testemunha o grande cuidado com que esta obra foi elaborada e con­
cluída por Aristóteles, com as palavras seguintes do seu Proémio : uma vez que todos
os escritos de Aristóteles são de tal modo apreciados, que a sua superioridade se
torna motivo de admiração fácil, não existe nenhuma reflexão na qual Aristóteles
tenha igualmente mostrado a sublimidade e a força do seu engenho como naquela
em que aborda a noção de alma, quer se inquira uma infinidade de questões, quer
uma quantidade de coisas belíssimas, quer a subtileza da doutrina. Os livros sobre A
Alma são de tal modo assim, que parece que todas as coisas constantes do texto que
respeitam a este género, existiram e foram feitas por um só homem.
Opõe-se, neste ponto, que deve ser investigado em primeiro lugar, o que é discu­
tido pelas opiniões dos intérpretes que discordam quanto a saber que lugar esta ciên­
cia reclama entre as restantes partes da fisiologia, pela ordem e pelo método da dou­
trina. Mas, omitida disputa mais longa, deve estabelecer-se, com Teofrasto, segundo
Temístio, livro 3 desta obra, capítulo 39º da sua Paráfrase, e com São Tomás, que
os autores mais recentes geralmente adaptam, que a ciência da alma segue os livros
dos Meteorológicos, e antecede toda a disciplina atinente aos seres animados. Na
verdade, como São Tomás e Teófilo advertiram no Proémio desta obra, tal como a
Física é o exórdio de toda a fisiologia, porque contém a explicação integral dos
princípios naturais, é conveniente que o início da reflexão sobre os seres animados
seja o estudo da alma, que é o princípio comum dos animais. No entanto, Alexandre
de Afrodísia, no seu primeiro livro sobre A Alma, e Averróis, no livro 4 dos Meteo­
rológicos, trataram em primeiro lugar As Partes dos Animais. Primeiro, porque a
observação da matéria antecede a observação da forma; com efeito, as partes ou
órgãos são a matéria e o substrato da alma. Segundo, porque a alma é definida a
Livro Primeiro, Proémio 181

partir do corpo orgânico; foi preciso que Aristóteles declarasse, em primeiro lugar,
por que é que a definição progride a partir do desconhecido.
Mas estes argumentos não concluem. Com efeito, as partes orgânicas dos ani­
mais, de que Aristóteles trata no livro As Partes dos Animais, respeitam, em parte, à
matéria, visto que recebem em si as funções corpóreas da alma, e as disposições são
necessárias para a introdução da alma, como expusemos no seu lugar. Mas, como as
partes orgânicas são mais facilmente conhecidas do que a alma, cuj a natureza é
secreta e recôndita, não devemos debruçar-nos em primeiro lugar sobre elas, mas
antes sobre a alma, como há pouco pretendíamos dizer, e como Aristóteles chama a
atenção, no primeiro capítulo do livro primeiro da Física, e nos capítulos 1 º e 3º do
livro primeiro de As Partes dos Animais, depois de Platão, no Fedro e de Hipócra­
tes, no livro A Natureza Humana. Em toda a disciplina correctamente estabelecida,
devem ser primeiramente tratadas aquelas coisas que se estendem de modo mais
amplo, em que há mais coisas gerais, para não sermos levados a repeti-las muitas
vezes. Na verdade, considera-se a alma mais ampla do que as partes dos animais,
uma vez que estas apenas estão nos animais, e ela está presente em todos os seres
vivos. O exame da matéria precede o exame da forma. Se algo postula a razão da
doutrina, é que não se defina a alma através do corpo orgânico do animal, mas do
corpo orgânico do ser vivo em geral. Não foi preciso que isto fosse declarado por
Aristóteles antes da doutrina da alma, visto que para compreender a definição de
alma não se requer um conhecimento distinto e absoluto do corpo orgânico, bas­
tando um conhecimento pouco claro, que possa ser facilmente comparado. Na ver­
dade, não se exige menos a ciência da alma para o conhecimento do corpo orgânico,
do que o conhecimento do corpo orgânico para a ciência da alma. Por isso, na defi­
nição, a alma também se acrescenta ao corpo orgânico, uma vez que ele se define
como aquilo que foi afectado aos órgãos adequados para ir ao encontro das funções
da alma. Pelo que, é evidente que o argumento, se algum peso tiver, pode ser retor­
quido contra os adversários.
Examinemos agora qual é o objecto destes livros. Veneto, neste ponto, e alguns
do grupo dos filósofos mais recentes, estabelecem que não é a alma, mas o corpo
animado. Provam-no, em primeiro lugar, porque esta doutrina é uma certa parte da
fisiologia. É assim necessário que a sua matéria seja de maneira a que acerca dela se
enuncie o objecto de toda a fisiologia, como uma parte inferior e não tão extensa­
mente evidente. Porém, é claro que o ente móvel é assim chamado por causa do
corpo animado e não da alma. Depois, porque ou foi aqui que Aristóteles discutiu
sobre o corpo animado, ou não foi em lado nenhum. É absurdo que não se tenha
ocupado em nenhum lado. Na verdade, tão notável espécie de ente natural não pôde
ficar envolta em silêncio por parte do Filósofo. Portanto, ocupou-se dessa espécie
nesta obra e, por isso, o corpo animado é o objecto da obra. Terceiro. Porque o
objecto de cada disciplina é aquele em que, primeiro e por si, convêm as afecções
que nela são investigadas . Ora, alimentar-se, sentir, mover-se, querer, pensar e
outras afecções desta natureza, sobre as quais se discute nestes livros, dizem respeito
primeiro e por si, não à alma mas ao corpo animado, quer em geral, quer nas suas
partes como diz Aristóteles, no capítulo 4º do primeiro livro, texto 54. Por isso, não
parece que se deva negar que o objecto desta obra é o corpo animado.
1 82 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Mas, alguns nobilíssimos peripatéticos, Simplício, Filópono, Alexandre, Temís­


tio, São Tomás, Alberto Magno, Egídio, Teófilo, Janduno, Caetano, o Ferrariense e
muitos outros, seguem neste ponto a parte adversária em consenso comum e consi­
deram que o objecto destes livros é a alma. O que, em primeiro lugar se comprova,
porque, conforme se conclui do livro 1 dos Analíticos Posteriores, capítulos 1º e 9º,
é rigorosamente estabelecido como objecto de qualquer ciência, aquele cuja defini­
ção é nela investigado e tratado. De facto, Aristóteles, nesta obra, interrogou-se
sobre a definição, não de corpo animado, mas de alma, e assinalou que ele mesmo
tinha dito no Proémio que fora essa a sua intenção. Também no livro sobre O Sen­
tido e o Sensível gloria-se de o ter realizado. Depois, porque se o objecto desta dis­
ciplina fosse o corpo animado, uma vez que ele é uma categoria mais baixa da
substância, o animal seria mais nobre do que o corpo animado. Seguir-se-ia, indevi­
damente, que esta ciência, em virtude da excelência do objecto, e principalmente por
causa da excelência da alma racional, seria anteposta, por Aristóteles, às restantes
partes da fisiologia, visto que, com essa designação, deveria ser preferida a ciência
que trata dos animais. Por último, o título da própria obra é favorável a esta afirma­
ção. Com efeito, estes livros são designados IlEpl 'l'ux�c;. isto é, Sobre a A lma. Na
dúvida, devemos afirmar que os livros sobre A Alma parece que podem ser vistos de
duas formas . Por si, separadamente, ou junto com os chamados Pequenos Naturais,
que são como que um seu complemento. Se forem vistos do primeiro modo, a alma
é o seu objecto, se do segundo, é o corpo animado.
São três os livros sobre A Alma, que são sobretudo destinados a examinar e a
explicar por si a natureza da alma. São atentamente examinadas as afecções e as
propriedades dos seres vivos, segundo a razão da sua origem, que provêm da alma
como fonte, e consoante servem para o seu conhecimento. Também na obra dos
Pequenos Naturais elas são apresentadas à medida que o corpo e os seus órgãos são
objecto de observação. Acontece, deste modo, que esta obra e os três livros sobre A
Alma expõem o tratado inteiro do corpo animado.
Os argumentos dos adversários que tendiam a provar que os livros sobre A Alma,
tomados em si, tinham como objecto o corpo animado, são facilmente afastados. Ao
primeiro, deve negar-se que seja necessário que o objecto da disciplina na totalidade
seja afirmado sobre os objectos das partes. De outro modo, dir-se-ia que o ente
móvel de sobre O Sentido e o Sensível, e também de sobre A Respiração, e de sobre
O Movimento dos Animais, integra as matérias particulares de certos opúsculos da
fisiologia aristotélica. Igualmente seria necessário que a proposição, dos filósofos,
que é obj ecto de toda a Lógica, fosse exposta simplesmente sobre o termo, que é o
objecto das Categorias. E assim, é suficiente que os objectos das partes de cada
ciência estejam incluídos, de algum modo, no objecto dela toda, não é necessário
que estejam contidos nesse objecto, numa ordem directa.
Ao segundo, deve dizer-se que Aristóteles não omitiu a explicação sobre o corpo
animado, mas que nos três livros que escreveu sobre A Alma tratou do que a ela
respeita. Sobre o corpo tratou, como pôde, nos Pequenos Naturais.
Ao terceiro argumento, que as afecções, tratadas nos livros sobre A Alma, dizem
respeito primeiramente e por si à alma, como sua fonte e origem, ainda que, como
Aristóteles no ponto citado pretende, elas somente são enunciadas acerca de todo o
composto, como objecto principal. Se, todavia, parecesse vantajoso examinar a pri-
Livro Primeiro, Proémio, Questão Única, Artigo I 1 83

meira afirmação, que embora pareça contrária ao pensar comum, não é improvável,
responder-se-ia com os argumentos aduzidos contra a parte contrária. Embora Aris­
tóteles nestes livros tenha investigado muito cuidadosamente a definição de alma e a
tenha transmitido, não pendeu para isso, sobretudo, por causa da alma, mas por
causa do corpo animado, que ele examina como escopo da obra toda. Com efeito, ele
não observou as faculdades da alma somente quanto ao seu princípio, mas do modo
como equipam todo o composto, isto é, o corpo animado. Mais. A doutrina da alma
é superior às restantes partes da filosofia, não porque verse precisamente acerca do
corpo animado em geral, mas porque discute acerca da alma racional, que supera na
dignidade da natureza as restantes formas da consideração física. Por fim, escreveu
estes livros sobre A A lma, não como sendo ela o seu objecto principal, mas a sua
parte principal, que por isso se pode chamar o objecto, tal como o corpo animado é o
objecto, conforme certos filósofos dizem.
Eis o que respeita à divisão da obra. No primeiro livro Aristóteles fala acerca da
essência da alma, contra as opiniões dos antigos. A partir da sua própria opinião, nos
capítulos 1 º e 2º do livro segundo; a parte restante deste livro trata das potências da
alma em geral, das faculdades relativas à alma vegetativa, e dos sentidos externos.
Trata do sentido interno, nos primeiros três capítulos do livro terceiro; do intelecto,
do capítulo quarto ao nono; daí até ao fim do livro, trata do movimento e de certas
afecções, que dizem respeito à totalidade dos seres animados.

QUESTÃO ÚNICA
Se o estudo da alma intelectiva respeita
à doutrina da fisiologia, ou não

ARTIGO !
Várias opiniões dos filósofos

A discrepância e a variedade das afirmações geraram algumas dificuldades nesta


questão. Com efeito, Filópono, no primeiro livro de A Geração e Corrupção; Sim­
plício e Temístio, no início da Física, que parece que também Boécio aprovou, no
seu prólogo à lsagoge de Porfírio, afirmam que o estudo da alma não pertence à
Física mas à Matemática. Não porque pensem que se trata de assunto da matemática,
mas porque, tal como as coisas matemáticas são intermédias, segundo a contigui­
dade e a distinção entre uma e outra natureza, entre as coisas físicas e as divinas,
assim também a alma ocupa o lugar intermédio entre as mesmas, visto que é inteli­
gível, nexo do mundo corpóreo e vínculo, como antes expusemos. E por isso, a sua
consideração parece pertencer a uma certa disciplina intermédia que é em parte
natural, em parte transnatural, visto que as matérias e as ciências estão repartidas
nestes mesmos termos, como consta do terceiro livro desta obra, capítulo 8, texto 3 8 .
Outros, atribuem o seu estudo a o filósofo primeiro, apoiando-se acima d e tudo n a
autoridade d e Aristóteles, n o primeiro livro d e A s Partes dos Animais, capítulo pri­
meiro, onde propôs esta questão em termos claros. Tendo inquirido se seria próprio
do filósofo natural disputar sobre a alma toda, responde que não, porque o fisiólogo
1 84 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

trataria de modo diferente a alma intelectiva e o intelecto, e consideraria todos os


intelígiveis, pois é uma e a mesma a ciência que trata do que é relacionável e há uma
relação entre o intelecto e aquilo que é abrangido pelo intelecto. Segundo, porque a
observação física é somente sobre a natureza, e o intelecto não pertence à natureza.
Terceiro, porque disputar sobre coisas abstraídas da matéria, tal como o intelecto, é
alheio ao tratamento do filósofo natural, que apenas se ocupa da investigação das
coisas corpóreas.
A terceira opinião é de Alexandre, ao início dos Meteorológicos; de Averróis,
livro 2 da Física, comentário 26, e livro 1 de As Partes dos Animais, capítulo l 0 e
capítulo 3º desta obra, comentário 1 7 , e de outros autores mais. Estes consideram
que a ciência da alma pertence ao fisiólogo, visto que Aristóteles, nesta obra, que
sem dúvida é uma certa parte da filosofia natural, o disse claramente, não apenas
acerca das restantes partes da alma, mas também acerca da intelectiva.

ARTIGO II
Resolução de toda a questão

Para dar satisfação à questão proposta, deve notar-se que se pode considerar, que
a alma participa da razão de três maneiras. Uma, quando se une ao corpo e nele
executa as suas funções. Outra, consoante os atributos que lhe pertencem, separada
da matéria, como o estar no seu preciso lugar, o receber as espécies do influxo supe­
rior da luz, o pensar sem recurso aos fantasmas e outras coisas deste tipo. Terceira,
quanto à sua própria natureza e essência.
Posto isto, eis a primeira conclusão. Nenhuma das três considerações anteriores
sobre a alma diz respeito a uma única ciência intermédia entre a filosofia primeira e
a natural . Esta conclusão recomenda-se porque não existe intermédio naquele género
de filosofar, pois a ciência contemplativa divide-se perfeitamente em Natural, Meta­
física e Matemática, como no Proémio da Física amplamente discutimos. Nos seus
livros, Aristóteles não fez qualquer menção a uma disciplina intermédia. A isto não
obsta que a alma seja o limite do ser corpóreo e do mundo inteligível, como que um
certo elo. Com efeito, não há qualquer meio entre estas duas extremas, para que se
reclame uma abstracção média, distinta daquelas que produzem uma variedade tri­
partida de filosofia contemplativa, como mostrámos no lugar citado.
Eis a segunda conclusão. O primeiro modo de consideração pertence, por obriga­
ção, à filosofia natural. Aprova-se esta conclusão, porque respeita ao físico examinar
o ente natural. Compete-lhe examinar o todo e as partes, e a alma entendida deste
modo é parte do ente natural, em acto, do homem. Além disso, porque as operações,
que a alma executa quando está no corpo, dependem da matéria e, como têm cone­
xão com ela, apenas recaem sob a observação do especialista que disserta sobre a
matéria, isto é, do fisiólogo.
Eis a terceira conclusão. A observação da alma tomada do segundo modo trans­
cende os fins da fisiologia e pertence ao metafísico. Para compreender esta conclu­
são deve observar-se que a alma racional é suprema, entre as formas existentes na
matéria, e conforme o testemunho de São Dionísio, no capítulo 7º de Os Nomes
Divinos, a parte mais elevada do mais baixo toca na parte mais baixa do mais alto.
Livro Primeiro, Proémio, Questão Única, Artigo II 1 85

Quando se afasta do corpo, ela passa, a seu modo, para o estado das substâncias
separadas, em conformidade com aquelas afecções, que acima recordámos, as quais
não possuem comércio com a matéria. Este estado, como ensina S. Tomás, l ª parte
da Suma Teológica, questão 79, artigo 1 º, não lhe é natural, mas pretematural.
Donde, resulta que a discussão sobre a alma racional, nesta acepção, deve pertencer
à mesma ciência das inteligências completamente livres da contaminação da matéria.
A conclusão já proposta demonstra-se, porque examinar as coisas que estão separa­
das da matéria real e racionalmente, respeita somente ao filósofo primeiro. Ora, as
afecções que concernem à alma, na medida precisamente em que ela subsiste fora da
matéria, são deste modo, como será evidente ao observador.
Eis a quarta conclusão. Investigar a natureza e a essência da alma, que era o ter­
ceiro exercício acerca dela, respeita ao filósofo natural. A verdade desta conclusão
convence, porque a alma pela sua noção e natureza é a forma do corpo, daí que seja
explicada por definição essencial, quando é chamada acto primeiro do corpo orgâ­
nico. Donde, acontece que para conhecer requer necessariamente a matéria. As rea­
lidades que a possuem, integram-se nos limites da investigação física, tal como a
própria matéria, como ensina Aristóteles, no livro segundo da Física, capítulo 2º,
texto 22: que examinar a forma e a matéria compete ao mesmo especialista, porque é
evidente que se requerem mutuamente, como consta do mesmo livro e capítulo,
texto 26. Estabelece-se a mesma conclusão, a seguir, porque, uma vez que o homem
é uma parte integrante do ente móvel, cujo conhecimento o físico promove, e uma
vez que a essência do homem não pode ser conhecida, a não ser que se chegue ao
conhecimento da alma, através da qual ela se constitui no seu próprio grau e espécie,
pretende-se que indagar a essência da alma diga respeito à filosofia natural. É assim,
porque se crê que aquela definição indistintamente divulgada de homem, 'o homem
é um animal constituído por um corpo e uma alma que participa da razão ' , não foi
transmitida e inventada por outrem senão pelo filósofo natural.
Aqui, alguém poderia talvez perguntar se a consideração da alma como algo de
imaterial, subsistente por si e inteligível, atributos que são de tal modo intrínsecos à
alma que tanto na matéria como fora dela a integram, se uma consideração desse
teor, digo, é física ou antes metafísica. A esta dúvida deve responder-se, que se estes
predicados forem tomados não em toda a sua amplitude, mas restritos ao grau pró­
prio e específico da alma racional, de tal modo que sejam recíprocos com ela, sem
dúvida que o estudo do imaterial, do subsistente por si e do inteligível, pertence à
física, visto que conhecer a natureza própria e particular da alma racional pertence à
doutrina da fisiologia, como a seguir consideramos Se, porém, forem tomados de
maneira comum, que tanto se adeqúem à alma como às inteligências, então é à meta­
física. Porque incumbe ao metafísico examinar a substância, a relação, a qualidade e
as paixões do ente, como conceitos comuns e gerais, tal como mostrámos no ponto
citado. É por isso que eles, embora em parte estejam presentes na matéria, são toda­
via, em si, indiferentes, ainda que estejam na matéria. Assim, também, conhecer o
inteligível por si, subsistente e imaterial, em comum, é da competência do metafí­
sico. Porque ainda que esses predicados digam respeito à alma racional, cujo conhe­
cimento da essência própria e recíproca pertence ao fisiólogo, em si, eles dizem
respeito indiscriminadamente à alma e às inteligências, que não possuem nenhuma
conjunção com a matéria.
1 86 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO Ili
Explicação dos argumentos que pareciam
ser contrários às afirmações anteriores

Resta respondermos aos argumentos de Aristóteles retirados do primeiro livro de


As Partes dos Animais, que parece que atribuem totalmente a doutrina da alma
racional ao filósofo primeiro. Os seguidores de Alexandre são de opinião de que a
questão de Aristóteles, neste ponto, não é exclusivamente acerca da alma dos seres
animados, porque Aristóteles não duvidava que a alma pertence ao universo do
filósofo natural, mas sim acerca da alma, que também compreende as inteligências ;
e ele tinha perguntado se, tal como o filósofo natural considera a alma toda dos seres
animados, também necessita de discutir as almas separadas. Eles afirmam que o
intelecto que Aristóteles afastou da doutrina física, não é o intelecto humano, mas as
substâncias separadas. Esta explicação não colhe, porque a partir daquelas palavras
parece evidente que o Filósofo discute ali apenas as formas dos animais. Deve, por
isso, dizer-se que o preceito de Aristóteles consiste nisto: que a alma humana não
respeita em tudo ao filósofo natural porque, como há pouco advertimos, respeita
também ao metafísico, quer pelo estado que tem fora do corpo, quer quanto ao grau
intelectivo considerado em comum. Perguntar-se-á que força tem aquela opinião. Se
o filósofo natural tratasse do intelecto e, portanto, do inteligível, nenhuma outra
disciplina além da fisiologia existiria. Parece que a consequência não tem autori­
dade, porque, por igual razão, se seguiria que não existe nenhuma filosofia além da
filosofia primeira, pois ela disputa sobre o intelecto e o inteligível. Por isso, a partir
do estabelecido pela ciência que trata do inteligível, não se concluiria inteiramente
que as restantes ciências fossem suprimidas, do meio, visto que as diferentes ciên­
cias podem tratar de um ou de outro modo a mesma coisa que consideram. Com
efeito, o físico e o matemático demonstram que a Terra foi feita com a forma
redonda, este a partir da forma redonda da sombra que se produz na Lua quando a
Terra se interpõe, aquele, do movimento igual dos graves em direcção ao centro da
Terra. Alguns, de entre os quais o Mirandulano, livro 1 8, De singulari certamine,
secções 1 , 4 e 7, respondem que o argumento é somente provável, e que foi aduzido
por Aristóteles para o exercício da inteligência dos homens, conforme ele costuma
fazer muitas vezes, não como necessário, mas como uma certa probabilidade que
apresenta em si. Não é necessário refugiar-se neste recurso, e deve advertir-se neste
ponto, a partir de Caetano, que as duas ciências podem dividir-se entre si. De um
modo, pela diversidade de razões formais, como na filosofia contemplativa, Aristó­
teles dividiu, no sexto livro da Metafísica, capítulo 1 º, texto 2, em metafísica, filoso­
fia natural e disciplinas matemáticas. De outro modo, pela diversidade das próprias
coisas que são conhecidas, tal como a matemática não se distingue da filosofia natu­
ral, quando a quantidade, que é considerada pelo matemático, recai também sob a
observação do filósofo natural. A filosofia natural distingue-se, no entanto, da meta­
física, pois esta versa sobretudo sobre as coisas livres de matéria, aquela sobre as
coisas materiais e sensíveis. Posto isto, respondemos que, se a filosofia natural tra­
tasse do intelecto, aconteceria que ela deveria examinar todas as coisas. Trataria,
primeiramente, daquelas que recaem sob o sentido e, portanto, da quantidade, como
de facto trata. Também consideraria as coisas separadas da matéria, como é próprio
do intelecto, ou alma intelectiva, segundo o conceito comum ao próprio intelecto e
Uvro Primeiro, Proémio, Questão Única, Anigo Ili 187

às inteligências (assim, Aristóteles, toma no ponto citado, a alma humana e o inte­


lecto). Também examinaria as inteligências e todo o âmbito da filosofia primeira,
uma vez que todas estas coisas dizem respeito a uma mesma abstracção comum. Por
isso, em parte, pela diversidade das coisas, o filósofo natural não deixaria nada que
devesse ser tratado, para outras disciplinas, ainda que a distribuição das razões for­
mais fosse respeitada, de maneira que a diversidade das ciências, ao menos em parte,
se conservasse. Dissemos 'ao menos em parte' , porque como a física examina o
inteligível comum, segue-se justamente que o seu objecto tem a mesma abstracção
da matéria do que o objecto da primeira filosofia, e a tal ponto, que estas duas ciên­
cias recaem numa e na mesma, pela parte da razão formal . Isto, na verdade, não
acontece a respeito da matemática e da fisiologia, visto que a quantidade matemá­
tica, como é evidente, não pertence à mesma abstracção do inteligível comum.
Ora, a isto opunha-se que a consequência seguinte não tinha validade: a filosofia
natural trata do intelecto e do inteligível, portanto nenhuma ciência existe para além
da filosofia natural. Porque, de outro modo, também prevaleceria esta consequência:
a metafísica considera o intelecto e o inteligível, portanto, para além da metafísica
não há outra ciência. O que deve ocorrer por uma razão diferente. Com efeito, na
primeira ilação, supõe-se que a filosofia natural versa sobre o seu próprio objecto e
sobre o objecto material da matemática, isto é, a quantidade. Donde, caso se consi­
dere o intelecto segundo a sua noção comum, e igualmente inteligível, já lhe caberão
os objectos de todas as três partes da filosofia contemplativa. Mas, na segunda ila­
ção, a referida hipótese não tem lugar, como é evidente. Por isso, embora a metafí­
sica examine o intelecto e o inteligível, não se segue que ela verse sobre o objecto
das outras ciências contemplativas. Quanto a isto Aristóteles diz que quem examina
o intelecto examina também o inteligível, porque é a mesma a observação e a ciência
do que é relacionável. Dever-se-á responder, que quem examina o intelecto também
examina o inteligível, não de qualquer maneira, mas porque estas coisas relacionam­
-se mutuamente e correspondem-se. Correspondem-se, o intelecto considerado como
potência da forma física, isto é, da alma racional e o inteligível físico. Mais ainda, o
inteligível metafísico e o intelecto tomado como potência das substâncias separadas,
e também o que é comum ao intelecto humano, ao intelecto angélico e ao divino.
Portanto, a primeira consideração deverá ser atribuída ao filósofo natural e a
segunda ao metafísico. Embora esta deva ser atribuída ao filósofo natural, em hipó­
tese, como fazia Aristóteles.
Ao segundo argumento daquele mesmo passo aristotélico, deve dizer-se que o
intelecto ou alma intelectiva, segundo aquele conceito comum, não é uma natureza,
de outra maneira também conviria às inteligências a noção de natureza. Ao 3º, a
solução é evidente a partir do que se disse. Com efeito, a alma acima referida é uma
realidade separada da matéria e, portanto, compete a outra disciplina, isto é, à filoso­
fia primeira.
1 88 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1

a. cum omnem 402 al - Existem acima de tudo duas coisas que tomam as almas
dos homens mais inclinadas a aprender, a dignidade da ciência e o método cor­
recto de ensinar. A dignidade da ciência inclui por sua vez mais três. A certeza, a
superioridade do objecto e a utilidade. Aristóteles expõe-nas todas, neste Proé­
mio. Não passou, entretanto, em silêncio, a dificuldade da matéria acolhida, quer
porque ela também impele o observador a não permanecer no ócio, como adver­
tem os intérpretes Gregos, quer para que ninguém exija evidência em matéria
difícil e profunda, como a presente, que caracteriza a natureza do assunto, quer,
finalmente, para ordenar desde o início aos espíritos que não sej am rudes e indo­
lentes. Por isso, os velhos mestres da filosofia tiveram isso fortemente em vista,
ao envolverem, em virtude da insuficiência das palavras, os mistérios da natureza
em véus de enigmas, dando valor à sua obra, com o argumento de afastarem os
vagarosos e os pouco aptos a ouvir, da indagação das coisas excelentes e ocultas.
b. Bonam ac honorabilem 402 a l O bem e o excelente convêm na realidade e
-

diferem pela razão, conforme Simplício escreveu. Na verdade, o que concerne ao


apetite é chamado bom, tal como o que concerne à excelência, excelente. Dá-se a
conveniência entre eles, mas a noção do bem pertence a toda a ciência, porque o
bem, no primeiro livro da Ética, capítulo 1 º, é aquilo que todas as coisas dese­
jam. Mas em todos os homens é inato o desejo da ciência, livro 1 da Metafísica,
capítulo 1 º. Pertence também à ciência a noção de excelente, porque os homens
se elevam e são superiores, no ofício da ciência, quer aos animais, quer uns aos
outros entre si, como no livro 4 da Política, capítulo 4º, Aristóteles ensina,
quando enumera a ciência entre as espécies da nobreza. Mas há quem objecte que
Aristóteles parece ter mudado de opinião. Na verdade, no livro 1 da Ética, capí­
tulo 1 2º, afirma que a excelência somente é devida às coisas divinas, mas que o
louvor é devido à virtude e aos feitos excelentes. Mas neste ponto também cede à
doutrina apresentando a excelência. Deve responder-se que na Ética se ocupou
com a excelência de maneira diferente daquela que faz aqui. Na Ética fala da
excelência, de forma inteiramente concisa, como convém às coisas mais eleva­
das, não por comparação, mas em absoluto, como são as coisas divinas. E aqui,
fala acerca daquilo que se refere aos assuntos humanos, consoante a sua maior ou
menor superioridade.
c. Quia vel exactior 402 a 4 Aristóteles parece raciocinar deste modo. Toda a
-

ciência é algo ilustre e é tida em honra e apreço e, por isso, consideramos mais
vantajosa do que outra, a que trata das coisas mais elevadas e mais claras. Se por­
ventura entre as outras ciências estiver também a relativa à doutrina da alma com
razão a colocaremos entre as primeiras. Sobre a premissa menor, na qual Aristó­
teles compara a ciência da alma com as outras, subsiste discussão entre os
comentadores, se esta comparação apenas deve ser compreendida em absoluto,
com todas as disciplinas, ou apenas com as partes da fisiologia. Seguem a pri­
meira explicação, além de outros, o Comentador, Alberto Magno, e Caetano uma
e outra. A segunda, aprova São Tomás, Egídio, Simplício, Filópono e o Ferra­
riense. A primeira parece melhor, visto que das palavras de Aristóteles não se
Livro Primeiro, Explicação do Capítulo I 189

conclui nenhuma limitação da comparação. Nem deve indagar-se, o que certos


intérpretes fazem, de que modo esta ciência é, neste ponto, preferida às outras.
Aristóteles não a prefere às restantes, mas apenas a coloca entre as mais nobres.
Que ela alcança o lugar entre as outras ciências, quer na ordem da dignidade,
quer da doutrina, expusemo-lo no Proémio da Física.
d. Uidetur autem 402 a 5 - Propõe duas utilidades desta doutrina. Uma, geral, outra,
particular. Geral é o que conduz a toda a verdade. Com este nome Averróis pensa
significar apenas as ciências contemplativas. O seu fim é apenas o conhecimento
da verdade. No entanto, apraz mais a interpretação de Simplício que considera
que compreende tanto as contemplativas como as práticas. De facto, todas dizem
respeito à verdade (donde no livro 1 dos Tópicos, capítulo 9º, na definição do
problema, também o vocábulo verdade acolher a prática). Aquelas não vão mais
longe, estas estendem-se mais além, à obra e à acção. Esta disciplina é para uso
de todos, quer pelas razões que referimos no Proémio, quer porque trata do inte­
lecto, a partir do qual se alcança todo o conhecimento da verdade e, portanto,
todo o acto de conhecer. Mas a utilidade particular é que esta disputa da alma,
serve muito a natureza, isto é, a parte da fisiologia, que fala sobre os seres ani­
mados, cuja natureza, a forma, é a alma, da qual derivam todas as acções vitais.
e. Quasi principium animalium 402 a 7 oíov á p X,� Twv (wwv - Não chama alma,
-

em absoluto, ao princípio dos seres animados, mas quase princípio, para distin­
guir, como diz Simplício, do primeiro e infinito princípio que não depende de
nada; acerca disto, livros 7 e 8 da Física e 1 2 da Metafísica. Ou melhor, como
afirma São Tomás, porque a partícula oíov, isto é, quase, foi usada como muitas
outras vezes, neste ponto, não em razão da semelhança ou limitação, mas por
causa do estilo.
f. Contemplari autem 402 a 7 - Na doutrina da alma afirma que tem de se investi­
gar duas coisas. Uma, que pertence à definição, é a essência e substância da
alma. Outra, que concerne à razão da demonstração, são as disposições, isto é, as
potências e operações, quer particulares da própria alma, que estão presentes na
alma intelectiva, como o intelecto e a contemplação, quer comuns ao corpo, isto
é, que são recebidas no órgão material, embora dimanem da alma como da fonte,
como as potências sensitivas e o acto de sentir.
g. At vero 402 a 10 Diz, acerca da alma, ser muito difícil estabelecer aquilo que
-

ela possui de certo e de seguro. Nisso, conforme escreveu Teófilo, imita a


modéstia de Platão que dizia que não tinha de empregar as palavras exactas sobre
o mundo, nem como aqueles que diziam que sabiam tudo, nem como aqueles que
afirmavam que nada se podia saber, mas numa via intermédia que anda entre a
confiança e a desconfiança. Aristóteles diz, pois, que é dificílimo estabelecer
alguma coisa acerca da alma, porque, primeiro, sobre o próprio método de inves­
tigar a definição, pela qual se declara a essência da coisa, subsiste uma questão,
embora comum a outras doutrinas. A questão ambígua consiste em saber se este
método é a única via e razão de demonstração ou se há mais. Se for único, é difí­
cil dele não se afastar. Se forem vários, não será menos laborioso, para cada
coisa, distinguir convenientemente a que é própria, visto que discernir os géneros
e as diferenças das coisas singulares é feito com grande labor. Além disso, Platão
estabeleceu a divisão como método de encontrar a definição, no Sofista, Aristó-
1 90 Sobre os Três Livros 'Da Almn ' de Aristóteles

teles, no segundo dos Analíticos Posteriores, sobretudo a composição, e Hipó­


crates, a argumentação. Nesta matéria não deve analisar-se por que se detém
neste ponto, porque esse é o trabalho do dialéctico.
h. Primum autem 402 a 22 Depois de explicar aquelas coisas que manifestam um
-

tratamento difícil, a partir daquelas que são comuns a outras coisas, cuja natureza
pretendemos esclarecer com uma definição, trazemos agora para o cerne as coi­
sas que são particulares a este comentário sobre a alma: quais as suas partes ou
espécies, disposições e operações.
i. Animal autem universale, aut nihil est 402 b 6 -Uma das questões que causam
dificuldade na matéria é, diz Aristóteles, aquela em que se inquire se a alma é
género ou é espécie e se a sua definição é como a do género, como a definição de
animal, se é como a da ínfima espécie. Porque disse que se define animal, para
que ninguém suspeite que ele considera animal como universal separado, con­
soante a ideia platónica, Aristóteles afasta essa suspeita afirmando que o animal
como universal (entenda-se o mesmo acerca das restantes naturezas comuns) ou
não é nada, se se considerar como é ensinado por Platão, que pretendia que os
universais subsistiam por si, antes de todos os singulares, ou é algo posterior­
mente, isto é, uma vez recolhido dos singulares por intervenção do intelecto. Os
intérpretes narram este passo diferentemente, mas a nossa exposição é a comum.
k. non solum autem 402 b 16 São várias as explicações deste passo. Agrada-nos a
-

exposição de Simplício e de Filópono, que afirmam que Aristóteles transmitiu o


caminho para investigar a definição de alma a partir dos efeitos e dos acidentes
que lhe são próprios. Embora muitas vezes avancemos no número, das causas
para os efeitos, como nas disciplinas matemáticas, agora avançamos ao contrário,
dos efeitos para o conhecimento das causas, especialmente na fisiologia. Os aci­
dentes têm um grande peso na indagação da essência de cada coisa, para a desco­
brir, porque a partir daqueles que acontecem a cada uma, se não puderem recair
nalguma coisa, tal como a partir dos efeitos adequados a uma causa, que são
como que semelhanças expressas dela, deduzimos o conhecimento quiditativo da
causa. Sobre este assunto, São Tomás, no livro 3 Contra os Gentios, capítulo 49º.
l. Quare patet 403 a 2 Como a partir dos efeitos conhecemos as causas, assim
-

também a partir das causas conhecemos os efeitos, e a partir das substâncias, os


acidentes. Aristóteles conclui as definições, a partir das quais os acidentes não
são conhecidos por si, ou a conjectura para os conhecer não é considerada fácil,
definições que são dialécticas, isto é, não verdadeiras e próprias, mas apenas
verosímeis e tão-só a partir das causas remotas que são aquelas que os dialécticos
usam frequentemente nas disputas. É assim que os intérpretes gregos e latinos
interpretam este passo. Que na verdade, o dialéctico é reconhecido assim, por
Aristóteles, consta dos capítulos 20º e 25º do livro 1 dos Posteriores, e do capí­
tulo 8º do livro segundo da mesma obra, e do capítulo 3º do livro 4 da Física, e
do capítulo 2°, livro 7 da Primeira Filosofia, e 6° do livro 2 de A Geração dos
Animais.
m. Est etiam de affectibus 403 a 3 Avança uma questão cuja explicação considera
-

difícil, mas muito útil e oportuna para o objecto desta obra. Dela dependem os
fundamentos da disputa acerca da imortalidade das almas, visto que, se a alma
Livro Primeiro, Explicação do Capítulo l 191

intelectiva possui uma operação própria, também é independente do corpo. Se a


tem, então poderá subsistir fora da matéria, e assim será considerada imortal; de
outra maneira, uma vez caída, será então sujeita à morte, porque a natureza não
deixa subsistir no conjunto de todas as coisas nenhuma forma ociosa desprovida
de operação. Alguns contestaram este passo de Aristóteles e aquilo que disse
primeiro, que se a alma reclama uma operação própria, então pode existir sepa­
rada. O acto de ver é a acção própria do olho e não é possível que exista separado
do corpo. Depois, porque aquele modo de argumentar, se a alma reclamar uma
operação própria, pode existir fora do corpo, se não reclamar, não pode, é vicioso
e contra as regras prescritas pelo próprio Aristóteles, visto que procede da refuta­
ção do antecedente para negar o consequente, e deveria antes, assumido o oposto
do consequente, negar e destruir o antecedente. À primeira objecção, omitidas as
soluções das outras, contestam neste ponto Simplício e Filópono, que a visão não
é própria do olho, como se não dependesse do corpo, modo de cuja operação
própria Aristóteles fala. Caetano diz que aqui apenas é tida a acção própria que se
adequa às formas por si, mas não às partes integrantes. Respondem à segunda
objecção o Comentador, Egídio, o Tienense e Apolinário, que aquele modo de
argumentar conclui correctamente quanto aos termos recíprocos, a saber, que a
forma tem uma operação própria, e é separável da matéria. Mais fácil é a inter­
pretação de Filópono, de Simplício, de São Tomás e de Caetano e de outros que
afirmam que Aristóteles não argumenta com estas palavras, mas apenas afirma,
numa simples asserção, que se a alma possui uma operação própria pode ser
separada do corpo, de outro modo não pode.
n. Perinde atque recto - 403 a 1 2 - Se nenhuma operação é própria da alma, a alma
não é separável do corpo, mas as operações que lhe são atribuídas, assim que são
atribuídas, são inteligidas, tal como muitas das coisas respeitantes à matemática
que se aplicam como que separadas da matéria, mas que não existem sem maté­
ria. Dizemos, por exemplo, que a recta toca a esfera num ponto e que o tacto não
pode ser separado do corpo, logo, também se dizem assim as operações da alma,
visto que não existem sem o corpo, se sem ele não puderem agir.
o. videntur autem 403 a 16 - Mostra como a ira, o desejo e as restantes disposições
deste género, ou paixões, são comuns à alma com o corpo. Toda a operação, diz,
para a qual opera a composição do corpo, não é apenas da alma, mas também do
corpo, como é o caso das paixões. Logo, não são apenas da alma, mas comuns ao
corpo e à alma. Confirma o termo menor, porque vemos alguns ficarem irados
por pouco, como os coléricos, em que rapidamente o sangue do coração entra em
ebulição. Outros, serem dificilmente movidos para a ira, uma vez acontecido o
momento penoso, como os que têm fleuma abundante. Também alguns, à
mínima causa de temor, entram em pânico, como os melancólicos. Outros não,
como os que têm compleição sanguínea. Mas isto acontece, porque nestas acções
a afecção do corpo reclama para si uma grande parte. Acerca deste assunto Aris­
tóteles escreveu copiosamente no livro Fisiognomia, e no livro 2 de As Partes
dos Animais, capítulo 4°, e Galeno, no livro intitulado Quod mores animi corpo­
ris temperamentum sequantur. Isso é certo e claro. Embora as composições dos
corpos tendam mais para as disposições deste género, está no seu poder, com o
auxílio da força divina, que a razão acompanhe o comando e que com a razão
1 92 Sobre os Três livros 'Da Alma ' de Aristóteles

execute os movimentos que ameaçam a predisposição para a virtude do todo, e


implante os bons costumes, como claramente dissemos noutro ponto.
p. Quare et definitiones 403 a 25 Do que se disse acima, Aristóteles extrai duas
-

conclusões. Uma, é que as disposições da alma comuns ao corpo devem ser defi­
nidas através da matéria. Tal como da matéria têm o ser e a incluem no seu con­
ceito, assim também são conhecidas através dela. Donde, a ira é correctamente
definida como a vontade de vingança da ofensa com ardor sanguíneo no coração.
A outra conclusão é, os filósofos ou discutem o ser de toda a alma, ou de uma
determinada. E acrescenta «de uma determinada>>, como alguns interpretam, ou
por causa das inteligências denominadas almas celestes, cuja consideração
excede a meta da física, ou por causa da alma racional, cujo estudo não pertence
totalmente à fisiologia, como dissemos acima. O argumento desta segunda con­
clusão é o seguinte. Como é a partir do modo de definição de cada matéria que se
conclui a que ciência pertence, visto que a definição é o princípio, também a
diversidade dos princípios demonstra a diversidade da ciência. Uma vez, pois,
que aquelas coisas que são definidas através da matéria dizem respeito ao físico,
e a forma é definida através da matéria, então também o é a alma, que é uma
certa forma. A consequência é que o estudo da alma respeita à fisiologia. Aquelas
palavras do texto, ab hoc huius gratia, designam a causa eficiente e final, e o fim
da ira é determinado pela forma, porque a forma sobrevém geralmente ao fim e,
por isso, se diz abaixo que a forma entra na definição de casa quando é usada,
«por causa do qual», isto é, do fim. q. Diverso autem modo 403 a 29 Numa -

certa digressão não estranha ao assunto Aristóteles distingue o modo da definição


na Fisiologia, na Medicina, na Dialéctica, na Matemática e na Metafísica. A
Fisiologia e a Medicina definem do mesmo modo, a menos que aquela
compreenda toda a amplitude do ente natural, esta, apenas os corpos sujeitos à
saúde e às enfermidades. Aristóteles ensina que o Fisiólogo define a partir da
matéria, o Dialéctico da forma, como mostram as definições de ira e de casa. Na
verdade, que estes especialistas não definem desta maneira, provar-se-á do
seguinte modo. O Fisiólogo considera não só a matéria, mas também a forma.
Também se ocupa com grande zelo da observação da forma, visto que ela é de
conhecimento muito mais nobre do que a matéria. Portanto, não só se ocupa da
matéria mas também trata da forma. Está assim claramente estabelecida a
totalidade do objecto da Fisiologia. Depois, o Dialéctico está preparado para
disputar acerca de qualquer coisa em termos de probabilidade e a sua faculdade
não é limitada a este ou àquele género de definição. Não, portanto, a partir de
uma única forma, mas em função do assunto que surge, e tal como a razão
provável mostra, o Dialéctico também define a partir da matéria, da forma, de
uma e de outra, de todos os géneros de causas. A isto (seja o que for que
Temístio pretenda no capítulo 9º, e Averróis no comentário 1 7) deve dizer-se que
o pensamento de Aristóteles não é que o Fisiólogo não defina também pela
forma, como pouco depois ensina, define através da matéria e da forma. É o que
indicam aquelas palavras 'an potius, qui utraque complectitur' . Somente quis
estabelecer a diferença entre o Fisiólogo e o Dialéctico, dado que aquele costuma
definir pela matéria, embora não apenas por ela e o Dialéctico define pela forma.
Não se deve concluir isto como se o Dialéctico não assumisse também, nas defi-
Livro Primeiro, Da Restante Pane deste Livro 1 93

mçoes, outros géneros de causas, mas, porque persegue as coisas prováveis e


fáceis, e como a forma é mais conhecida do que a matéria, define mais frequen­
temente pela forma. Outros pretendem que quando Aristóteles diz que o Dialéc­
tico define pela forma, com o nome de forma significa as coisas que são comuns
e não dizem respeito a uma matéria definida. Esta explicação é provável, mas já
não aquela que Alberto Magno afirma, no tratado 1, capítulo 7°; Apolinário,
questão 9; Janduno, questão 1 2 ; o Ferrariense, questão 5, isto é, que são com­
preendidos com o nome de forma, neste ponto, o género e a diferença. A defini­
ção que se transmite assim é exacta, não vazia e falsa, como Aristóteles disse
serem as definições dialécticas que integram a forma.

r. De his autem 403 b l 6 O Matemático considera as coisas que existem na maté­


-

ria e são substrato para os sentidos, não, porém, enquanto existem assim, mas
abstraindo-as da matéria, que nas definições de modo algum ele utiliza. Mas o
filósofo primeiro, dado considerar as coisas que pela própria realidade estão fora
da matéria, usa-a muito menos ao definir. Aristóteles traz a este ponto o tema do
método e o da noção de definição, para que conste que a via para inquirir e divi­
dir as coisas que estuda deve acompanhar a definição de alma.

DA RESTANTE PARTE DESTE LIVRO

Na parte restante deste livro Aristóteles percorre, segundo o seu costume, o que
os mais Antigos escreveram acerca da alma e refere as opiniões, em ampla disputa,
antes de estabelecer algo de preciso relativamente à sua própria opinião. Foi tão
firme a disputa sobre este assunto que parece não ter havido nenhuma maior e mais
prolongada nas escolas dos filósofos. Omitida a opinião daqueles que afirmaram que
a alma nada é em absoluto, que o seu nome é de todo vazio, e que em vão se cha­
mam animados aos seres, posições que Marco Túlio menciona, no livro 1 das
Questões Tusculanas, os restantes filósofos, podem ser pacificamente distribuídos
em três grupos, como se conclui dos capítulos 2º e 5º deste livro, e do capitulo 9º do
terceiro. O primeiro grupo investigava a natureza da alma a partir do movimento. O
segundo, a partir do conhecimento e, além disso, eles procuravam saber por que é
que as coisas animadas parecem distinguir-se das inanimadas nestes dois pontos. O
terceiro, inquiria a partir da noção de incorpóreo, porque acreditavam que era neces­
sário que a alma fosse algo subtil, desprovida de massa, que se infunde por todo o
corpo e atravessa todas as partes dele.
No primeiro grupo contam-se, entre outros, Demócrito, Pitágoras, Anaxágoras,
Platão, Alcméon. Para Demócrito nada existe que não agregue uma multidão de
átomos. Ele acreditava que a alma consistia num aglomerado casual, causado por
corpúsculos indivisíveis e redondos que se agitavam em perpétuo movimento e que,
em consequência, pareciam estar juntos, os quais, por sua vez, punham em movi­
mento e também arrebatavam outros, de seguida. Os Pitagóricos não foram de modo
algum alheios aos princípios de Demócrito. Com efeito, uns consideraram alma os
corpos indivisos que giram no ar em constante revolução, outros, a causa do seu
1 94 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

movimento. Anaxágoras considerou a alma o princípio pensante que move todas as


coisas, embora tenha considerado que a alma e o princípio diferem um do outro
ainda que gozem da mesma natureza. Assim, proclamava que a alma era a fonte e a
origem de todo o movimento. Platão, no Fedro, e no livro 1 0 de As Leis, define a
alma como aquilo que se move a si mesmo, ou a substância que move todas as
outras, não por uma força alheia, mas impelida pela própria força. Finalmente, Alc­
méon indagou sobre a força da alma a partir do movimento. De facto, convenceu-se
inteiramente que a alma é imortal, porque via que os corpos celestes, que giram num
movimento perpétuo sobre si mesmos, são imortais.
Ao segundo grupo pertencem aqueles que consideravam que, como nada pode ser
conhecido a não ser pelo seu semelhante, estabeleceram a alma como o princípio de
conhecer. Tal como conjecturavam acerca do princípio das coisas, assim também
consideraram a natureza da alma. Platão, além daquilo que há pouco afirmámos
acerca da sua opinião, uma vez que elegeu os números como os princípios das coi­
sas, também considerou a alma composta de números no Timeu. É necessário enten­
der esta composição não como física, mas simbólica, como diremos no devido lugar.
Heraclito, que fez do fogo o princípio das coisas naturais, pretendeu que a alma
fosse uma exalação quente. Diógenes, que formou todas as coisas de ar, pretendeu
que era o ar, Tales, a água, Crítias, o sangue, Empédocles, uma certa harmonia e
composição dos elementos.
Entre os filósofos do terceiro grupo, que examinaram a natureza da alma a partir
do incorpóreo ou subtil, consideram-se, quer alguns do primeiro grupo, como
Demócrito e Heraclito, que seguiram não só aquela mas também esta via, quer
Hipócrates, que disse que a alma é um espírito subtil disperso por todo o corpo, e
Zenão, que a chamou espírito produzido para o corpo. Marco Túlio, no livro 1 das
Questões Tusculanas; Avicena, no livro 6 de Os Naturais, primeira parte, capítulo
2º; Plutarco, no quarto livro de As Opiniões, capítulos segundo e terceiro, escreve­
ram abundantemente sobre isto. Também Plotino, no livro sétimo, quarta Enéada;
Macróbio, no primeiro livro de O sonho de Cipião; São Nemésio, no livro A Natu­
reza do Homem, capítulo segundo; Teodoreto, no livro A Natureza do Homem; São
Gregório de Nissa, na disputa A alma e a Ressurreição; Tertuliano, no seu livro
Sobre a alma; Lactâncio, no livro A Criação de Deus, capítulo 1 7º. São Justino, em
Parenése; o Abulense, no paradoxo 5, capítulo 5 1 º.
Livro Segundo
Livro Segundo, Proémio 197

PROÉMIO DO LIVRO SEGUNDO


DO TRATADO DA ALMA DE ARISTÓTELES

Rebatidas no final do primeiro livro as opiniões dos filósofos antigos, Aristóteles


passa a explicar o seu pensamento acerca desse assunto. Executa-o acuradamente,
parte neste livro, parte no terceiro. Divide-se o presente livro em quatro partes. A
primeira discute a natureza da alma e a sua essência, nos capítulos primeiro e
segundo. A segunda, a divisão comum e a primeira divisão das faculdades da alma,
no capítulo terceiro. A terceira, as funções e as faculdades da alma vegetativa, no
capítulo 4º. A última, as potências e funções da alma sensitiva, do quinto ao último
capítulo.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1

a. Dicimus itaque 4 1 2 a 3 Dado que para chegar à definição de uma coisa, é van­
-

tajoso dividir os assuntos nas partes respectivas, como é evidente a partir do


segundo livro dos Analíticos Posteriores, capítulo 1 4°, Aristóteles vai explicar o
que é a alma e até que ponto ela consente divisões. A primeira, que ele indica
mais do que explicita, é a de ente em substância e naquilo que se inclui nas res­
tantes categorias, como explica de forma bastante desenvolvida no livro 5 da
Metafísica, capítulo 7º. A segunda, é a da substância em matéria e forma e do seu
composto, o que também é referido no livro 7 da Metafísica, capítulos 3º, 1 0º, 1 3º
e noutros pontos. De facto, ele adverte que a matéria em si não é algo determi­
nado, ou seja, como explica Alberto, não é algo perfeito, nem é chamada uma
certa espécie de coisa, visto que é pura potência e existe indistintamente, por si
para qualquer acto. A forma, visto ser acto e enteléquia, tem o poder de constituir
uma realidade. Donde, decorre dizer-se que as coisas recebem a espécie das suas
formas, e o nome, e os graus de perfeição e a distinção. Atente-se, que na
segunda divisão, Aristóteles não reparte a substância predicamental, como realça­
ram Egídio e Alberto Magno, porque nela são ditas partes da substância, as que
não têm lugar nessa categoria e também, porque não são incluídas nesse número
as inteligências que têm lugar nessa mesma categoria. Nem, também, a substân­
cia é dividida em toda a sua amplitude de significação, pois uma tal partição fica­
ria diminuída, mas é apenas dividida a substância física, quer seja completa, quer
incompleta, tal como se divide algo análogo, quanto possível, visto que ao todo e
às suas partes físicas não se pode atribuir nada de unívoco.
b. Quae quidem bifariam 4 1 2 a 10 Apresenta uma terceira divisão, a saber, a
-

forma ou acto, ou é acto primeiro ou segundo, a qual é explicada pelos intérpre­


tes de modo variado. Averróis, que Caetano segue, considera que nela apenas se
divide a forma substancial que foi parte da segunda divisão, tal como a mesma
forma substancial é chamada acto primeiro quando está em repouso e acto
segundo quando opera. É mais provável e mais aceite a interpretação de Simplí­
cio, Temístio, Filópono, São Tomás e de outros, que afirmam que o acto se
1 98 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

divide geralmente em acto primeiro, que é o princ1p10 de operar e em acto


segundo, que é a própria operação, como a ciência, que é o hábito do qual deriva
a contemplação, é chamada acto primeiro. De facto, a própria contemplação é
acto segundo. E assim, todas as formas substanciais, qualidades dos corpos mais
simples e todas as potências e hábitos, como são fontes e princípios das acções,
são chamados actos primeiros e as operações deles nascidas, actos segundos.
c. Maxime autem corpore 4 1 2 a 1 1 Egídio e Caetano, que seguiram São Tomás,
-

pensam quanto a este ponto que a substância tomada em geral, é dividida por
Aristóteles em substância corpórea e incorpórea. Não seguramente de modo
expresso, mas de forma tácita e obscura, pois, ao dizer que os corpos parecem
sobretudo substâncias, significa que há outras, desprovidas de massa corpórea,
que são de natureza mais nobre e mais excelente, embora recaiam menos sob o
nosso conhecimento. Averróis, Temístio e Filópono acreditam que não se trans­
mite aqui, nenhuma divisão nova, visto que esta nova divisão não parece dizer
respeito ao tema. Dizem, portanto, que, aqui, Aristóteles compara entre si os
membros da segunda divisão, acima assinalada, e ensina que os corpos, isto é, as
substâncias compostas de matéria e de forma, são mais perfeitas do que a matéria
e a forma. Compara, a partir daí, os corpos naturais com os artificiais, afirmando
que os naturais são mais substâncias. Na verdade, os artefactos obtêm a forma a
partir da arte, que é um certo acidente; a matéria, que é substância, obtêm-na a
partir da natureza. Por isso, sucede que as substâncias reivindicam a sua noção,
em parte da matéria por causa da natureza, e que as coisas naturais são mais
substâncias, pois aquilo cujo valor e vantagem cada coisa adquire por causa de
uma certa natureza é mais dessa natureza.
d. Naturalium uero corporum 4 1 2 a 1 3 Assinala a quarta divisão, que divide a
-

substância corpórea, em substância viva e desprovida de vida. Ensina, também,


que os seres vivos, graças a um princípio interno, nutrem-se, crescem e declinam.
Neste ponto, deve atentar-se que Aristóteles estabelece dois tipos de vida. Uma, a
vida substancial, outra, a vida acidental. A vida substancial é aquilo pelo qual,
como da fonte, dimanam as acções vitais, como no homem a alma racional. Aci­
dentais, são as próprias acções da vida, como a nutrição e o crescimento. Razão
pela qual se diz, neste ponto, que vivem as que se alimentam, etc. A noção de
vida substancial é explicada através do seu efeito e da operação. Aristóteles não
enumerou, por agora, os modos das restantes funções da vida, como sentir, inte­
ligir e apetecer, porque somente teve de tratar das que são comuns a todas e
muito conhecidas, a fim de que se captasse mais abundantemente a definição
comum a todas as almas. Desta última divisão, infere que os corpos vivos são
substâncias compostas de matéria e de forma, pois todo o corpo natural é for­
mado destas partes. Também todo o corpo que vive é um corpo natural.
e. Atque cum tale etiam 4 1 2 a 1 6 Ao examinar a definição de alma, prova, pri­
-

meiro que ela é acto, porque a alma participa da vida, quer do corpo, quer do
próprio acto. Ora, não é o corpo. Será, portanto, acto e forma do corpo. A pre­
missa maior é evidente a partir das afirmações anteriores. Demonstrou-se, com
efeito, que o corpo vivo se concretiza em duas partes, a alma que é pura potência
e a matéria, que é acto e enteléquia. A premissa menor recomenda-se pelo facto
de que o corpo não é um substrato mas é antes a matéria e o substrato em que a
Livro Segundo, Explicação do Capftulo I 1 99

alma se encontra. A alma será, portanto, acto e forma do corpo que participa da
vida e etc.
f. Sed cum perfectio 4 1 2 a 22 Prova que a alma é acto primeiro. Ora, porque o
-

acto é duplo, isto é, primeiro e segundo, como é evidente a partir do que foi dito,
é necessário que a alma seja acto primeiro, visto que, por ela, umas vezes se dá a
vigília, como na actividade da vida, outras o sono, como na cessação da activi­
dade. Mas se se duvidar, justamente, por que motivo se diz que a alma de vez em
quando repousa, visto que o acto de nutrir nunca se interrompe, pois todo o ser
vivo, enquanto vive, se alimenta, é costume responder-se a esta questão de forma
variada. Sem dúvida que, embora a alma não repouse da actividade de nutrição,
no entanto interrompe outras funções, que ela deixa de operar, não na realidade,
mas que por sua natureza pode cessar, porque não repugna à natureza da alma
por vezes ser separada do acto segundo; isto quanto a uma natureza, como é a
nutritiva, que opera sempre.
g. Et ta/is plane 4 1 2 b 4 Com o argumento, mostra pela premissa menor, que a
-

alma é o acto do corpo orgânico, isto é, que ela tem instrumentos para alcançar as
funções da vida. A alma da planta é o acto do corpo orgânico. Portanto, também
as restantes almas. A conclusão é evidente. Se a alma da planta ou vegetativa,
que consiste no grau mais baixo, tem preparado nos órgãos o substrato, sem
excepção, as almas sensitiva e intelectiva, que são mais nobres, também o terão.
Na verdade, aonde a forma é mais perfeita, requer-se um substrato mais apetre­
chado. A proposição é evidente porque vemos troncos nas raízes das árvores,
fibras, medulas como veias, ainda que, à primeira vista e pelo juízo dos sentidos,
não se depreenda tão facilmente que são órgãos, tal como a boca nos animais, a
goela, o ventre, o fígado, o coração e outros deste género. É por isso, que pare­
cem ser corpos simples das estirpes, embora devam ser antes considerados cor­
pos orgânicos. Também se pode compreender isto, a partir das diversas funções
das partes. Na verdade, as raízes, como a boca, captam o alimento e absorvem o
suco da terra, e as fibras desempenham o lugar das veias, e igualmente as restan­
tes funções, antes referidas, operam para si, e ao mesmo tempo, servem ao todo,
prestando-lhe trabalho mútuo. Teofrasto disse muito acerca deste assunto no livro
1 , A História das Plantas, capítulos 7°, 4° e 1 4º. Plínio no livro 1 7 , capítulo 38º.
h. Iccirco non quaerere 4 1 2 b 6 Do que foi dito, Aristóteles infere a conclusão, de
-

que não deve ser procurada outra causa por que resulta um uno da alma e do
corpo. Como o corpo é a própria matéria e pura potência, a forma substancial é o
acto a que a matéria primeiro pertence. Mas a pura potência e o acto do mesmo
género, isto é, substancial, pelo seu carácter inato unem numa única natureza,
unidade que não acontece por nenhum vínculo. Aristóteles levanta a dúvida sobre
este mesmo assunto e resolve-o do mesmo modo no livro 8 da Metafísica, capí­
tulo 6º, texto 1 5 , a não ser que ali não indague apenas sobre a alma e o corpo,
como aqui, mas sobre a matéria e a forma. Leia-se, se se entender, o que acerca
do assunto, discutimos no livro 1 da Física.
t. Per inde sane 4 1 2 b 1 1 Com o duplo exemplo, um recebido da arte, outro da
-

natureza, prova que a alma é acto substancial do qual, como primeira razão de
ser, o corpo se diz animado. O primeiro é assim. Tal como existe a forma da
coisa artificial, por exemplo, a forma do machado para o machado, assim tam-
200 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

bém, numa certa proporção existe a alma para o corpo animado; mas, se o
machado fosse um composto físico, a sua configuração seria a própria forma
substancial donde a noção do machado seria acima de tudo constituída. E na ver­
dade, uma vez ela posta, subsiste e consta do machado, e uma vez desapare­
cendo, ele perece. Portanto, a alma será a forma substancial do corpo animado. O
segundo exemplo é o seguinte. Se o olho fosse um animal (entende olho na acep­
ção como algo da potência de ver e constituído pelo órgão) a sua alma seria a
vista, porque, dada a vista, diz-se o olho verdadeira e propriamente, e retirada a
vista, é dito somente de modo equívoco e apenas nominalmente, tal como o que
está esculpido ou pintado. Ora, a relação que existe entre a vista e o olho é a
mesma que a alma tem para todo o corpo animado. Logo, a alma é forma própria
do corpo animado. Esta última proposição tem força, porque tal como a facul­
dade de ver enforma de tal modo a matéria do olho, que o olho é feito de ambos,
donde resulta a acção de ver, assim o corpo animado é formado pela alma e pelo
órgão corpóreo que está em potência para executar as funções da vida.
k. Non est autem id 4 1 2 b 25 Explica de que modo o corpo, que tem a alma como
-

acto, se diz que tem a vida em potência, e afirma que o corpo de uma coisa viva
não tem a vida em potência, como se carecesse de alma, embora esteja apto a
possuí-la, tal como uma semente, mas como o que contém a alma em acto e está
pronto a exercer as operações em que consiste a vida dos acidentes.
1. Animam igitur 413 a 4 - Dado que tinha definido a alma como acto do corpo,
poder-se-ia opinar que a alma de modo algum é separável do corpo. Ora acontece
que isso é claro, quanto a algumas partes da alma que indubitavelmente são acto
do corpo e estão fixas e juntas directamente à matéria, todavia nada impede que
outras, como estão libertas da matéria, possam existir fora dela. O que Aristóteles
tinha significado com o nome de partes, exporemos de caminho. Ele ainda não
explica se, do que foi dito, consta que a alma existe para o corpo como o piloto
para o navio, como Platão considerou, ou se não consta.

QUESTÃO !
Se Aristóteles definiu correctamente a alma ou não

ARTIGO I
Esclarece-se a definição peripatética de alma

Com base naquilo que Aristóteles ensinou no capítulo anterior resulta a seguinte
definição de alma: a alma é o acto primeiro substancial de um corpo orgânico que
tem a vida em potência. Esta definição tem de ser explicada ponto por ponto.
Chama-se à alma acto, EVTÉÀEXELa, vocábulo com um sentido tão lato que com­
preende tanto os actos substanciais quanto os acidentais, como registámos no con­
texto. Diz-se, portanto, acto, a fim de excluir a matéria prima, que é pura potência, e
quaisquer coisas que não são simplesmente acto, como as coisas compostas, tanto
naturais, quanto artificiais. Primeiro, para rejeitar os actos segundos, especialmente
as operações, como observaram Temístio, neste livro, capítulo 4º e Alberto Magno
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo I 201

no tratado 1 , capítulo 2º. Substancial, para afastar os actos primeiros, acidentais,


como as potências, no que respeita aos seus actos. De um corpo, para excluir, quer
as substâncias separadas que não se juntam aos corpos, quer também as inteligências
motoras dos orbes celestes que não são actos dos corpos celestes, embora os assis­
tam, como que os enformando em particular, ainda que alguns autores, que noutro
ponto refutámos, tenham considerado de outro modo. Além disso, como o corpo é
dito de múltiplas maneiras, subsiste desacordo entre os comentadores sobre o modo
como aqui ele é definido. Há quem seja da opinião de que pode ser compreendido
como o composto de matéria e alma, não, decerto, segundo todos os graus, mas
apenas segundo o grau de corporeidade, com o qual a matéria permanece em potên­
cia para os graus ulteriores, como para o vegetativo e o sensitivo. São Tomás
recorda esta acepção neste ponto, e no 1º livro das Sentenças, distinção 25, questão l ,
artigo 1 ° ao 2º; Capréolo, no 4º livro das Sentenças, distinção l O, questão 1 , artigo 3º
ao argumento de Escoto; Caetano na 1ª parte da Suma Teológica, questão 76, artigo
4º; o Ferrariense, no livro 4 Contra os Gentios, capítulo 64º e, neste livro, questão 2;
e muitos outros autores. Esta explicação também se poderá apoiar na autoridade de
Aristóteles que, no capítulo anterior, texto 9, ensinou que o corpo é potência viva,
que não é desprovido de alma, mas que, pelo contrário, a possui. Por isso, Aristóte­
les toma o corpo como algo a partir da matéria prima a que se junta a alma, de tal
modo que a alma não é definida segundo o grau que lhe é próprio e lhe corresponde.
O mesmo será estabelecido na sua própria definição. Outros autores consideram que
o corpo é tomado por Aristóteles enquanto refere a matéria prima designando os
órgãos aptos para executar as funções vitais. De entre estes, encontra-se Argentinas
no 4º livro das Sentenças, distinção 1 3 , questão 1 , artigo 1º; Gregório, no 2º das
Sentenças, distinção 1 6, questão 2 e outros autores mais recentes.
Porém, nenhuma destas interpretações nos satisfaz na totalidade. A primeira não
satisfaz, porque Aristóteles, no texto 4, afirmou claramente que o corpo, que entrava
na definição de alma, é suporte da alma. É evidente que o composto formado de
matéria-prima e de alma não é o suporte da alma, mas sim, que a matéria-prima o é.
A segunda também não satisfaz, porque se o corpo fosse tomado por Aristóteles
desse modo, orgânico neste passo, que entra na definição, estaria a mais, visto que
aquilo que aí se diz já estaria integrado no nome do corpo. Deve dizer-se, portanto,
com São Tomás, neste passo ao texto 4 (ainda que noutro ponto tenha declarado o
contrário) que, por agora, o corpo é tomado pela matéria-prima. Assim, o corpo
orgânico não é outra coisa senão a matéria-prima disposta pelos órgãos para execu­
tar as funções vitais. Ao corpo, assim tomado, também se aplica o que Aristóteles
enuncia acerca dele, no contexto. De facto, o corpo é o suporte da alma e toma-se
um, a partir do corpo e da alma, e tem de se indagar por que tal sucede. A autoridade
de Aristóteles não refuta isto ao afirmar que o corpo não é chamado potência
vivente, porque careça de alma, mas sim porque a possui. Concedemos, portanto,
que o corpo orgânico, ou que tem a vida em potência, contém a alma em si, mas
negamos que a alma receba o nome do corpo, uma vez que o corpo é acrescentado
na referida definição, embora não neguemos que, noutras circunstâncias, se designe
segundo os dois modos que acima referimos.
Segue-se na definição, orgânico, que tem a vida em potência, significando os dois
termos o mesmo, como advertem Temístio, Alexandre, Filópono, São Tomás e
202 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

outros, embora Simplício considere diferentemente. Todas as formas naturais que


ainda não tinham sido afastadas no decorrer das partes anteriores, são excluídas da
definição de alma por estas palavras: como as formas da pedra e do fogo, cujos cor­
pos não são matérias distintas, em sentido próprio, quer para o exercício das funções
vitais aos órgãos, quer como instrumentos. Entre elas, também se contam as formas
dos cadáveres. Com efeito, os olhos, os pés, as mãos e outros instrumentos deste
género, que neles aparecem, assemelham-se aos órgãos dos vivos, não de forma
unívoca, mas só analogamente, como ensina Aristóteles neste primeiro capítulo,
texto nono e livro sétimo da Metafísica, capítulo 1 0º, texto 35. Poder-se-á perguntar
se esta definição é essencial. Parece que não é, porque Aristóteles disse com base
nela, que definiu a alma f.v Túnw, isto é, como figura. Porém, Alexandre diz que
definir alguma coisa pela figura, não é mais do que não a explicar exactamente,
primeiro por imagens traçadas de forma mais tosca, depois de modo mais clara­
mente expresso. Daí, Perión traduzir f.v Túnw, de modo grosseiro. Por essa razão,
Plotino, no livro segundo das Enéadas contesta Aristóteles pelo facto de ele não
explicar o que é a alma. Proclo não o belisca menos, no capítulo quinto, no Comen­
tário ao Timeu, pelo facto de não ter ensinado o que é a alma, mas o que é próprio
de um corpo orgânico. Igualmente Avicena, no livro sexto dos Naturais considera
que esta definição não mostra a essência, mas antes a existência da alma, isto é, não
o que a alma é, mas de que modo existe no corpo. Mas deve afirmar-se o oposto. Na
verdade, nem a alma possui em comum outra quididade ou natureza, como a que
está expressa na definição de Aristóteles, nem foi transmitida por Platão ou por
outros filósofos outra definição para explicar a essência da alma de forma mais
apropriada e mais completa. Porfírio, Plotino, Ático e os restantes platónicos repe­
tem-na o mais possível. Veja-se, se se entender, em Teodoreto, no livro A Natureza
do Homem; em Lactâncio, no livro A Criação de Deus, capítulo vigésimo sétimo;
Alberto Magno na Suma do Homem; Ficino no livro sexto da Teologia de Platão,
capítulo primeiro; Temístio, em quase todo o decurso do livro anterior. O que acres­
centou de Aristóteles, que definiu a alma como figura, nada retira à perfeição da
definição de alma por ele transmitida. Na verdade, quis não tanto ajuizar as nature­
zas das almas singulares, em particular, como explicar a quididade e a natureza da
alma, geral e comummente aceite. Por vezes, em Aristóteles o tratar ou definir é
tomado pela figura, como no princípio da Historia dos Animais, capítulo primeiro,
ao tratar das diferenças dos animais, quando acerca delas diz que, primeiro, se deve
tratar da figura, para depois discutirmos cuidadosamente sobre cada género. Por essa
razão Argirópolo, convenientemente, no ponto citado, traduz Év Túnw por univer­
salmente, quer dizer, em comum. A explicação da natureza das almas diz-se, aqui,
que é traduzida por figura, porque, embora não se aproxime explicitamente da expli­
cação da quididade particular de cada alma, mostra apenas a sua sombra ou figura.
Neste sentido, também foram acolhidas as palavras de Alexandre e a interpretação
de Perión, de tal modo que não se nega que aquela definição de alma seja exacta, no
que respeita à alma em geral.
É costume perguntar-se se a definição anterior se ajusta a todas as almas, isto é, à
vegetativa, à sensitiva e à intelectiva, de um modo unívoco. Filópono, Simplício e
Averróis, no seu comentário sétimo e 30º, e comentário 5º do livro terceiro; Janduno
neste livro, questão 3, afirmam que se adequa a uma noção, não unívoca, mas aná­
loga. Filópono prova a partir daqui de que maneira a alma vegetativa e sensitiva são
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo // 203

acto do corpo e de que maneira a intelectiva o é, a saber, aquelas são actos insepará­
veis, esta é separável. Todavia é verdadeira a opinião contrária, seguida por São
Tomás, Egídio e muitos outros intérpretes latinos, na primeira parte da Suma Teoló­
gica, questão 76, artigo 4º e no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 79º. Ainda que
seja próprio da alma intelectiva enformar a matéria de tal modo, que dela se possa
separar e subsistir, por si, fora do corpo, ela é, no entanto, verdadeira e propria­
mente, forma do corpo humano e participa da natureza comum à alma, que é trans­
mitida na definição proposta, em igualdade com os restantes animais.

ARTIGO II
Argumentos contra a definição anterior

Não faltam, porém, argumentos com os quais se pode atacar a definição apresen­
tada de alma. Em primeiro lugar, será possível objectar assim: a alma é um acto
segundo; logo, não é um acto primeiro. Prova-se a afirmação anterior. Efectiva­
mente, quando a versão latina, na definição de alma, regista, acto, o contexto grego
regista ÉV'tEÀÉXELU, o que, na tradução de Cícero, no primeiro livro das Questões Tus­
culanas, não é outra coisa senão o movimento perpétuo e perene. Mas o movimento
não é acto primeiro, mas segundo, tal como uma operação. Donde, São Nemésio, no
livro A Natureza do Homem, capítulo segundo, estar convencido que Aristóteles não
julgou que a alma é substância, uma vez que lhe chamou enteléquia. E por causa
disso, São Gregório de Nissa, no livro segundo de A Alma, capítulo 4º e Justino
Mártir na Oratione paraenetica ad gentes, afirmam que Aristóteles considera a alma
intelectiva como mortal. Depois, confirma-se o mesmo antecedente, porque é neces­
sário que a alma seja acto de maneira eminente. Na verdade, o acto segundo é supe­
rior ao primeiro, pois aquele está ordenado para este, como para o fim; com efeito,
cada qual existe por causa da sua operação, como ensina Aristóteles, no segundo
livro de O Céu, capítulo 3º, texto 17 e livro 9 da Metafísica, capítulo 9º, texto 1 5 .
Segundo. A alma não é substância, portanto, não é acto substancial. Galeno prova
a premissa menor, nos capítulos 3º e 4º do livro, intitulado, Quod animi mores
corporis temperamentum sequantur. A alma não é outra coisa senão Kpãmc;, ou
composição e mistura das quatro primeiras qualidades. Mas esta é um acidente, não
uma substância. Portanto, a alma não é substância, mas acidente. Prova a premissa
maior de duas maneiras. Primeiro, porque parece que a alma é aquilo que, quando
desaparece, faz com que o animal morra. Também é certo que o animal morre, uma
vez desfeita a composição. Depois, porque o afecto ou as paixões têm origem, em
nós, a partir da diferente composição dos corpos. Por exemplo, os melancólicos
tendem para a tristeza, os coléricos para a ira, mas as afecções provêm da alma,
como que de uma fonte. Por isso, a alma não é senão a referida composição. Acresce
a autoridade dos antigos, como a de Dinorco e a de Empédocles, que ensinavam ser
a alma harmonia, não, certamente, de sons, mas de qualidades contrárias, unindo-se
numa única composição. Também a autoridade do músico Aristoxeno que, não se
desviando da sua arte, considerou que a alma subsiste no homem, pela mesma razão
que a melodia subsiste no canto e nas cordas da lira. Assim, tal como as cordas bem
estendidas executam a sinfonia, também a conjunção firme das partes do corpo e de
todos os membros, em uníssono, num esforço único, produz os movimentos animais.
204 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Terceiro. A alma é um corpo. Logo, não é acto do corpo. De outro modo, algo de
um corpo seria corpo. Prova-se o antecedente. Na verdade, todo o conhecimento,
com base na doutrina de Platão, no Timeu e de outros velhos filósofos, se dá através
de certa semelhança e afinidade entre a coisa conhecida e o que a conhece. Donde,
Empédocles, filosofando poeticamente, diz:
A potência térrea percebe a s terras, a potência líquida a s ondas
O ar é sentido pelo ar, o fogo pelo fogo
A paz exorta à paz, a áspera disputa vive de disputa.

Por isso, como entre o corpo e aquilo que está livre de corpo, nenhuma seme­
lhança existe, se a alma não fosse um corpo não obteria conhecimento de nenhuma
coisa corpórea. Dado que isto é manifestamente falso, deverá perfilhar-se que a alma
é constituída pela mistura de outros corpos. Corrobora-se a mesma proposição ante­
rior, pois a alma padece pelo corpo quando, por exemplo, o delírio frenético ou a
embriaguez perturba a intelecção. Também o corpo padece igualmente pela alma,
quando somos afectados pelo rubor da vergonha e ficamos brancos devido ao medo.
Uma vez que é necessário o contacto para a acção e para a paixão mútuas e isso
acontece somente entre corpos, por intervenção da quantidade, não parece que deva
negar-se que a alma é corpo. Santo Agostinho, no livro 22 de A Cidade de Deus,
capítulo 1 1 º, afirma que Aristóteles foi desta opinião ao dizer que na doutrina peri­
patética, a alma é uma quinta substância, isto é, formada a partir da matéria e da
natureza celeste.
Quarto. A alma racional fora do corpo é alma de verdade mas, nesse estado, não é
acto do corpo. Portanto, esta parte não deve ser acrescentada à definição. Acres­
cente-se que Aristóteles, neste livro, capítulo 1 º, texto 1 1 , afirma que é claro que
certas partes da alma não podem ser separadas do corpo, porque é evidente que são
acto dele. Logo, se, na opinião de Aristóteles, pode subsistir fora do corpo, então
não é acto do corpo.
Quinto. O substrato através do qual se define a forma, deve ser anterior à própria
forma. Mas o corpo orgânico não é anterior à alma. Portanto, não é correcto conside­
rar-se que a alma é acto de um corpo orgânico. Prova-se a premissa menor, porque
só são chamadas partes orgânicas, aquelas que já são dotadas de potências vitais.
Visto que as estas potências se orientam para a alma, necessariamente a supõem e,
por isso, o corpo orgânico é posterior à alma.
Sexto. Quando o anjo, a partir do ar espesso, reproduz para si, um corpo de
órgãos diferenciados e nele se move com movimento de marcha, fala, come e exerce
outras funções vitais, toda a definição de alma lhe assenta, e contudo não é alma.
Portanto, a definição de alma não é recíproca com a coisa definida.

ARTIGO Ili
Que a alma não é um composto

Para que os argumentos, acima descritos, sejam explicados de maneira mais con­
veniente e com maior desenvolvimento, teremos primeiro de refutar certos princí­
pios falsos. Expõe-se, em primeiro lugar, o erro de Galeno, em que incorreram cer-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo IV 205

tos heréticos, por certo, Carpócrates, Epifânio, Pródigo e Caiano, também Antitacta
como refere Teodoreto no livro De divinis decretis. Galeno, no livro 3, De Zoeis
affectis, capítulo 6º e na sua obra acima citada, considerou que a alma é um com­
posto das qualidades primárias, o que já, no Fédon de Platão, Sócrates criticara. São
Tomás explica a sua posição deste modo, no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 63º
e na Questão Disputada sobre a Alma, artigo l º, ainda que alguns digam que ele
pensava diferentemente ou, pelo menos, que não teve certeza sobre a questão, de tal
modo que parece que não houve doutrina que seguisse ou opinião para que se incli­
nasse. O próprio Galeno indica-o claramente no livro De Naturalibus facultatibus
substantialibus e no livro Symptomatum e no livro 3 de De usu partium, onde afirma
ignorar o que é a alma.
Qualquer que tenha sido o seu pensamento, a primeira conclusão nesta discussão
é a seguinte. É erro intolerável, também na filosofia, que a alma seja um composto.
Conclui-se destes argumentos que a alma é a forma das coisas vivas. Efectivamente,
através dela, o que é vivo recebe o ser. A alma não é, portanto, um composto.
Demonstra-se a consequência, porque uma composição é acidente, ou melhor, mui­
tos acidentes, como as quatro qualidades que primeiro se atribuem à proporção. Por
isso, como cada ser vivo é substância essencialmente, composto da sua forma e
matéria, se a sua forma fosse um acidente, a substância seria composta de acidentes,
o que toda a filosofia repele.
Segundo. As funções oriundas da alma são de mais alta condição do que as que
provêm das primeiras qualidades. Destas, de facto, provêm o calor, o frio, a humi­
dade, a excitação. Da alma provém o acto de alimentar, de crescer, de se movimen­
tar no lugar, de sentir e de inteligir, e ninguém ignora que estas últimas funções são
mais nobres. Portanto, a alma não consiste nas primeiras qualidades, mas é de uma
natureza mais eminente e mais notável.
Terceiro. A alma que participa da razão, dirige os movimentos que surgem no
apetite sensitivo e modera as paixões, como é manifesto nas paixões nela contidas
em si. No entanto, a perturbação das qualidades não é capaz de fazê-lo, porque é a
partir dela, enquanto causa reguladora e estimuladora, que na maior parte do tempo
as paixões nascem e são alteradas, consoante a sua intensidade e fraqueza. Portanto,
pelo menos, a alma racional, não é medida ou composto das primeiras qualidades.
Por fim, visto que aqueles, que dizem que a alma é um composto, negam que ela
seja substância, a fim de os refutar prevalecerão também todos os argumentos com
que, no artigo seguinte, demonstraremos que a alma não é acidente mas substância.

ARTIGO IV
Que a alma é substância

A segunda conclusão desta questão é que a alma não é acidente mas substância.
Esta conclusão não apresenta qualquer dúvida, também na filosofia, embora de entre
os físicos antigos, tenham negado a sua existência aqueles que, para além da matéria
prima, não admitem nenhum princípio das coisas da natureza. Platão não discordou
disto, embora no Timeu tenha chamado número à alma que participa da razão e da
inteligência. Não considerou a alma, por isso, número de quantidade, mas seguiu a
206 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

filosofia transmitida desde tempos antigos e o costume dos Pitagóricos, que repor­
tavam todas as coisas aos números. Quis deste modo representar a dignidade e o
poder da alma.
Ele chamou então, número à alma, ou porque esta contém em si os números de
todas as coisas, visto que ela foi confirmada com as formas ou as imagens dessas
coisas, ou porque, tal como os números matemáticos ficam a meio entre as coisas
naturais e as divinas, assim a alma ocupa um lugar intermédio entre as formas total­
mente desligadas da matéria e aquelas que estão ligadas à matéria. Platão também
adequou a natureza da alma ao círculo, porque tal como o círculo dá a volta sobre si
mesmo, assim a alma, ao inteligir, por um percurso do conhecimento, reflecte sobre
si própria. Ele atribui-lhe também a harmonia, quer porque os sentidos que usa como
intermediários se deleitam com a sintonia das coisas sensíveis, como a música, quer
em razão do consenso, da ordem das faculdades e das potências da alma. Final­
mente, compôs a definição de alma a partir do próprio movimento, afirmando que a
alma é número que se move, porque, quer contemple, quer sinta, quer imprima
movimento diz-se que a alma se move. Por isso é fonte e princípio da operação e
não se move por outra via, como as coisas desprovidas de vida. Na verdade, se são
estas as opiniões de Platão acerca da alma, por que razão Aristóteles as considerou
de outro modo e as censurou tão asperamente? Certamente porque, como salientou
São Tomás, no primeiro livro desta obra, na lição 8, Aristóteles não refuta o pensa­
mento de Platão, mas repudia um primeiro sentido das suas palavras, a fim de que o
grande número de filósofos que está preso às palavras e ignora o sentido recôndito e
profundo de Platão, não se alucine, pensando que a alma é, realmente, número, cír­
culo ou harmonia. Não só os Platónicos mas, em primeiro lugar, ilustres Peripatéti­
cos como Teofrasto, nos livros em que explica os pontos de Aristóteles tratados até
agora (cuja obra Temístio recorda na sua Paráfrase ao primeiro de A A lma capítulo
1 7º); Filópono nos Comentários ao capítulo terceiro; Bessarion no livro 2 Contra os
Caluniadores de Platão; Macróbio, no Sonho de Cipião, capítulos 1 5º e 1 6º, esfor­
çam-se por defender Platão desta acusação.
Pode, em suma, demonstrar-se que a alma é substância, como expôs, magnifica­
mente Gregório de Nissa na disputa A A lma. Do mesmo modo, que quem vê no
mundo, a variedade harmónica das coisas, a paz diferenciada dos opostos, a disputa
em que se chega a acordo, depressa constata, se concluir correctamente, que existe
uma certa potência divina, que se espalha por todas as partes do mundo, contendo e
encerrando todas as coisas no seu movimento, assim também constatará que em
qualquer coisa viva as qualidades contrárias são conservadas para serem reconduzi­
das à harmonia. Não só as afecções opostas dos órgãos para que não se destruam
mutuamente, se contêm numa determinada lei, mas também, funções tão diferentes
são governadas com tanta ordem e consenso, que se compreende plenamente que
existe uma única forma de cujo mérito e benefício se perfazem todas as coisas,
forma esta que não poderá ser acidental, mas substancial, porque não são próprios de
um acidente tanta eficácia, tanto poder sobre os membros das coisas vivas, bem
como o governo das qualidades contrárias. Esta forma não será outra, senão a alma,
visto que na mesma matéria não podem existir várias formas substanciais, como
demonstrámos noutro ponto. Por essa razão, é evidente que a alma é substância.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo V 207

Segundo. Ou alguma forma substancial é inerente à matéria das coisas vivas, ou


nenhuma. Se nenhuma, seguem-se dois inconvenientes, para além de outros. O pri­
meiro, é que a matéria da natureza está unida por potências, sem qualquer forma
substancial. O segundo, é que alguma substância, decerto composta, é constituída
por um acidente e por uma substância, a saber, de matéria e de forma acidental .
Quanto a isto, se for inerente a tal matéria alguma forma substancial, quem não verá
que as funções mais eminentes do ser vivo lhe devem ser preferencialmente atribuí­
das, isto é, as acções vitais? E, por isso, que aquela forma é a alma.
Terceiro. A forma é mais nobre do que a matéria. Ora, a matéria não é acidente,
mas substância, porque é o primeiro substrato dela. Logo, a forma será substância, e
não acidente. Donde, a alma, que é forma, será substância. Deve afirmar-se isto, de
acordo com a filosofia Académica e Peripatética, como está patente no diálogo de
Platão acerca da alma que se intitula Fédon e com base naquilo que Aristóteles ensi­
nou, quer profusamente noutros pontos, quer no primeiro capítulo deste livro,
quando afirma que a alma é acto primeiro substancial.
Sobretudo prova-se que a alma intelectiva é substância, porque de outro modo
não poderia continuar, por si, para além da matéria e, portanto, não seria imortal, o
que não só repugna à divina fé, mas também às leis da filosofia, como claramente
defendemos no Tratado da alma separada.

ARTIGO V
Que a alma não é nem matéria, nem corpo

Demonstrámos que a alma é substância. O passo seguinte consiste em vermos de


perto que tipo de substância é. Alguns filósofos ligados aos elementos do mundo,
como não podiam encaminhar a argúcia do espírito para além da matéria e do que
recai sob os sentidos, foram de tal modo induzidos em erro, que não acreditavam
que substância alguma se produzisse, para além da matéria e do corpo. Por isso,
separavam indiscriminadamente a alma, do corpo e da matéria. A terceira conclusão,
comprovada pelo assentimento comum dos outros autores, está contra eles. A alma
não é nem matéria nem corpo. Demonstra-se, assim. A matéria precede na geração e
no nascimento de cada ser vivo, como aquilo que recebe todos os prepativos da
coisa, porém a forma é introduzida num segundo momento. Portanto, a alma não é
matéria. A seguir, como a matéria é pura potência e está privada de toda a activi­
dade, não pode ser o princípio de qualquer acção. Ora, a alma é origem e fonte das
operações vitais. Portanto, a alma não é matéria. Outro. Todas as coisas compostas
naturais, contidas sob o globo lunar, têm em comum a matéria, como consta a partir
das suas trocas respectivas. Ora, elas diferem nas formas, mas não podem convergir
e divergir para o mesmo. Logo, a sua matéria não é forma. Outro. A alma insinua-se
por todo o corpo e atravessa todos os seus membros, portanto, a alma não é corpo,
de outro modo, pelas forças naturais seriam dois os corpos ao mesmo tempo. Por
outro lado, se a alma fosse corpo, ou seria um corpo celeste, ou um elemento, ou um
misto de elementos, mas não é nada disto. Portanto, não é corpo. Prova-se a pre­
missa menor, porque se fosse corpo celeste, giraria à volta, em círculo. Se fosse
elemento, ia e vinha de um lugar superior ou inferior. Se fosse um corpo misto,
mover-se-ia pela potência do elemento dominante. Mas isto é claramente falso, pois
208 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

vemos os animais dirigirem-se para lugares variados, por apetite e mediante apreen­
são. Por último, como no oitavo livro da Física, capítulo 4º, texto 28, Aristóteles
ensina que é necessário que todo o corpo que se move a si mesmo integre duas coi­
sas. Uma, que mova e não seja movida, outra que seja movida e não mova. Também
o animal se move e nele o motor é a alma, mas o que é movido é o corpo. Donde, a
alma não é corpo. Para além dos argumentos anteriores existem também outros que
são próprios e particulares com vista a demonstrar que a alma intelectiva não é maté­
ria nem corpo, mas adiá-los-emos para o próximo artigo.

ARTIGO VI
Que a alma intelectiva é uma substância espiritual,
mas não é uma partícula da mente divina

Quarta conclusão. A alma intelectiva é espírito ou substância espiritual. Esta con­


clusão está contra muitos filósofos da Antiguidade que disseram que o nosso espírito
era corpo: Zenão, que era fogo, Anaximandro, Anaxímenes e Anaxágoras, ar.
Seguiu-os, por acaso, Varrão que, como refere Lactâncio Firmiano no livro A Cria­
ção de Deus, escreveu assim: a alma é ar produzido na boca, cozido no pulmão,
aquecido no coração, difundido no corpo. Também Hipácio e Parménides supunham
a alma fogo, Empédocles, sangue, Crítias, composta de sangue e de humor. Porven­
tura, imita-os um poeta latino quando diz que ela exala jactos de sangue.
Cleantes, Crisipo, praticamente todos os discípulos da família estóica, também
consideraram o espírito como corpóreo. Também na lei saduceia mais antiga, aque­
les que seguiram um certo mestre dos saduceus acreditavam que não existia a ressur­
reição, os anjos ou os espíritos. No mesmo erro incorre Alexandrino, como é rela­
tado no livro 5 de A História Tripartida, capítulo 44º e Tertuliano no seu livro A
Alma e a carne de Cristo, como também confirma Santo Agostinho no livro pri­
meiro do Génesis à letra, capítulo 25º e no livro Heresias, capítulo 86º e na Epístola
1 57 a Optato. Não foi só Tertuliano a pretender que a alma fosse corpo, na acepção
em que Santo Agostinho considera que o podemos entender, na heresia 86, quando
chama a Deus corpóreo, isto é, substância verdadeiramente subsistente e não fictícia.
Na verdade, naquele livro A Alma, capítulo segundo, ao recordar os filósofos que
consideravam a alma corpórea, Tertuliano acrescenta que eles facilmente persuadi­
rão que a alma é um corpo. Ele critica, então, Aristóteles e os peripatéticos, porque
consideraram a alma absolutamente incorpórea, diz, de uma quinta-substância, des­
conheço qual.
A nossa conclusão prova-se do seguinte modo. Cada coisa é, tal como opera. Mas
a alma intelectiva tem operações elevadas, acima da natureza e da condição do corpo
e da matéria. Portanto, a alma intelectiva não é material e corpórea mas substância
imaterial ou espírito. Prova-se a premissa menor, quer da parte do intelecto, quer da
parte da vontade. Da parte do intelecto, porque o nosso intelecto percebe as nature­
zas comuns e abstractas a partir da matéria singular. O que é material, é de tal modo
grosseiro e limitado, que apenas apreende o singular, corpóreo, e material. O nosso
intelecto forma os conceitos das coisas imateriais, como o de Deus e o das substân­
cias separadas e percebe tais objectos, livres de toda a dimensão, sem formato, cor e
outras afecções da massa corpórea. Todavia, estes conceitos não são materiais, por-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Anigo VI 209

tanto, têm origem na potência e na forma imaterial. Esta é a alma intelectiva. Logo,
a alma intelectiva é substância imaterial ou espírito. Em seguida, da parte da von­
tade, recomenda-se a premissa menor. A vontade, com o empenho da honestidade,
refreia o apetite sensitivo que está presente na matéria e comanda. Mas esse poder é
próprio de uma potência mais alta do que a corpórea. Logo, a vontade não é coisa
corpórea, mas espiritual. O que também deverá ser dito da alma humana, da qual
flúi. Segundo. O mesmo se confirma, porque, queira-se ou não, os actos de amar e
de venerar a Deus, estão largamente acima dos sentidos e dos apetites e, portanto,
proclamam, de forma evidente, uma potência de outra ordem, isto é, espiritual, de
onde também brota a forma espiritual. Pelo que, é evidente que a alma intelectiva é
espírito.
Esta mesma verdade também é corroborada pelo testemunho dos Padres, como
Santo Ambrósio, que no livro Noé e a A rca afirma que a alma racional é um certo
espírito divino, e prova-o a partir do capítulo 1 º do Génesis, onde se diz que Deus
inspirou em Adão o espírito da vida, isto é, o espírito que vivifica o corpo. O mesmo
afirma São Dionísio no capítulo 4º de Os Nomes Divinos que chama à alma substân­
cia intelectual ou espiritual, dotada de vida inesgotável. Igualmente testemunham
São Damasceno, no livro 2 da Fé Ortodoxa, capítulo 1 2º e livro 3, capítulo 1 6º;
Santo Agostinho, livro 6, A Trindade, capítulo 6º e no livro 2 das Retratações,
capítulo 56º; São Gregório Magno, no livro 4 dos Diálogos, capítulo 5º e livro 2, de
Os Morais, capítulo 2º; São Gregório Nazianzeno, no Apologético 1 ; São Gregório
de Nissa, no livro A Criação do Homem, capítulos 4º e 1 5º, e no livro 2 da Filosofia,
quando afirma que também Platão tinha esta opinião; o que Plotino, Amónio e
Numénio também disseram, sobre o assunto.
O mesmo se colhe, quer de alguns passos da Sagrada Escritura, em que a alma
humana é chamada espírito, com o significado em que o espírito se distingue do
corpo, como no último capítulo do Eclesiastes: o pó retoma à sua terra, donde era, o
espírito retoma a Deus, que o deu. Também em Lucas 23 : nas tuas mãos, entrego o
meu espírito; e na Carta aos Romanos 8 : o Espírito Santo deu testemunho ao nosso
espírito. Do primeiro Concílio de Latrão, sob Inocêncio III, quando se escreve o
seguinte: Deus criou desde o princípio e a partir do nada a criatura corporal, não só a
espiritual, angélica, mas naturalmente, também a mundanal ; donde, a criatura
humana, constituída como que em comum de corpo e de espírito. Refere-se isto na
Extra acerca da Suma Trindade e da Fé Católica, capítulo Firmiter credimus.
Depois, no sexto Concílio de Constantinopla, 1 1 º acto, diz-se que o Verbo divino
assumiu a carne e a alma racional numa forma corpórea. Por fim, Graciano, causa
24, questão 3, capítulo Quidam autem haeretici, refere entre as heresias o erro dos
que consideram que a alma intelectiva não é espírito.
Haverá quem oponha às afirmações anteriores, o testemunho do bispo de Tessa­
lónica, João, dizendo que as almas são corpóreas porque o Concílio de Niceia (que é
o sétimo sínodo geral) declara no início da quinta sessão e não o reprova. Sobre os
anjos, diz ele, e os arcanjos e as suas potestades, às quais acrescento as nossas almas,
a própria Igreja considera que são verdadeiramente inteligíveis, que não são total­
mente privados de corpo e invisíveis, mas providos de um corpo subtil e aéreo ou
ígneo. E mais abaixo: ninguém disse que os anjos, os demónios ou as almas eram
incorpóreos. Deve opor-se, todavia, que o Sínodo sagrado nada estabelece acerca da
2/0 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

substância das almas ou dos anjos. Mas a sentença daquele Padre, era de tal forma
seguida, que aprovava o uso das imagens sobre o qual havia discussão. Por isso,
concluiu que as imagens devem ser veneradas, mas a razão com que o aconselhava,
porque as almas e os anjos são corpos, não colhe. João foi tão fortemente iludido por
tal sentença que declarou que a Igreja Católica considerava isso.
Também deverá, aqui, atentar-se, se alguma vez São Basílio, Atanásio, Damas­
ceno, Metódio, Jerónimo, o autor do livro De Ecclesiasticis dogmatibus e outros
Padres, chamam à alma racional, corpórea. Isto não deve ser tomado como se pre­
tendessem que a alma, na realidade, fosse um corpo, ou fosse composta de corpo,
mas para mostrarem que a alma, numa comparação corpórea de certo modo afron­
tosa a Deus, é grosseira, porque se afasta infinitamente da simplicidade e excelência
da mente divina. Os Padres também assim o entenderam, para rejeitarem as loucuras
dos que consideravam a alma humana gerada da substância de Deus. Contra eles.
Eis a quinta conclusão. A alma intelectiva não é uma partícula da mente divina.
Para se compreender esta conclusão deve-se conhecer Carpócrates, como Ireneu
refere, livro l , Contra os Hereges, capítulo 24º. Depois, Cerdo, como afirma Teodo­
reto no livro De diuinis decretis. Também os Gnósticos, os Maniqueus e os Prisci­
lianistas, segundo diz Santo Agostinho, livro Sobre as Heresias capítulos 46º e 70º e
São Jerónimo na Epístola a Marcelino, caíram nesse erro, ao acreditarem que o espí­
rito do homem é uma substância originária de Deus. O que parece que também
Fílon, o Judeu, considerou no livro intitulado Quod deterius potiori insidietur, onde
afirma que Deus inspirou os corpos humanos com algo, do alto da sua divina
majestade. Como parece credível, pergunta ele, que tão exígua mente humana, com
a membrana do cérebro ou com o coração, capte a magnitude do mundo, o tamanho
do céu, limitado por amplos espaços, a não ser que seja uma partícula indivisível da
alma divina e ditosa? Efectivamente, Plutarco, De quaestionibus Platonicis, deixou
escrito isto: a alma, tomada partícipe da mente, não só é obra, mas também parte de
Deus, não foi feita por ele, mas dele e a partir dele. A que também alude:
O corpo cheio
Dos vícios passados também sobrecarrega o espírito,
E deita por terra a partícula do sopro sagrado.

O primeiro Concílio de Braga condenou esta heresia, com muita convicção, no


capítulo quinto; e Leão 1, na Epístola 9 1 capítulo 5º. Santo Agostinho no livro A
Origem da A lma, capítulo 2º, também a condena, porque se a alma fosse partícula da
mente divina, ou Deus seria mutável, o que está muito longe da natureza divina, ou a
alma estaria privada de toda a mutação e, assim, nem abandonaria o pior, nem avan­
çaria para o melhor, nem começaria a ter o que em si própria não tinha, ou o que
tinha, deixaria de ter, o que é claramente falso. Desta mesma falsidade escarnece
São Crisóstomo na Homilia 1 3 , no comentário ao capítulo 2º do Génesis; Santo
Atanásio no livro Questões, capítulo Sobre a Alma. Leia-se, também, se se entender,
a refutação desta heresia em São Tomás na 1ª parte da Suma Teológica, questão 90,
artigo 1 º e no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 85º.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo VII 211

ARTIGO VII
Destroem-se os argumentos do artigo segundo

Damos agora satisfação aos argumentos que se opunham a esta definição de alma.
A favor da primeira explicação deve observar-se o que noutro lugar registámos, que
entre os comentadores de Aristóteles e uns certos críticos recentes, muitos discutem
a etimologia e a interpretação do termo ÉV'tEÀÉXEta. Em primeiro lugar a opinião
comum (embora Francisco Florido na Apologia contra Linguae latinae calumniato­
res, opine diferentemente) é que Aristóteles foi o inventor do vocábulo. Na verdade,
uma vez que o seu significado e sentido é um pouco obscuro, são muitos os que
dizem que o pensaram com base em Aristóteles, como meio de se esquivarem, ou
como capa de ignorância, não para esclarecerem, mas para esconderem a misteriosa
natureza da alma. Mas Júlio Escalígero, ilustre defensor da doutrina peripatética,
defende-o desta calúnia no Exercício 308, Sobre Cardano. Também Cícero, como
dizíamos no argumento, primeiro livro das Questões Tusculanas resolve esta discus­
são contínua e duradoura. Parece, na verdade, que Aristóteles considerou, segundo o
uso ático, a palavra ÉV'tEÀÉXEta como ÉvÕeÀÉXEta, que acolheu a mudança de <') em 't
em àrró wü ÉvÕeÀ.exwc;, que em latim significa de forma contínua ou perene. Esta
interpretação, embora seja justificada por alguns, como por Policiano nas Miscella­
neis, capítulo 1 º, é criticada por muitos. Nem Aristóteles se viu constrangido, contra
os preceitos da sua doutrina, a chamar à alma movimento, coisa que em Platão mais
lhe desagradava, como é claro a partir do que expôs contra ele, no capítulo 3°, livro
1 desta obra.
Por essa razão deve dizer-se, de preferência, que Aristóteles chama à alma ÉV'tEÀÉXEta,
isto é, hábito perfeito, ou, como traduz Hermolao na Paraphrasi Themistii, expri­
mindo de novo uma palavra nova, perfectihabiam. Na verdade, tal como a matéria é
ser em potência e por isso, imperfeita, a forma, pelo contrário, completa a coisa e é
quase e�tc; 't�c; 'tEÀ.e1ó-rri-rw isto é, hábito e possessão de perfeição, ou acto perfeito.
Pelo que é evidente a razão pela qual Aristóteles chamou assim à alma, para dela
não excluir a noção de substância ou de acto primeiro. Também injustamente, Plo­
tino nas Enéadas 4, livro 2, desprezou de tal modo esta definição acerca da essência
da alma, que a considerou indigna de refutação, pelo facto de nela a alma se chamar
ÉV'tEÀÉXELa. Não é verdade que quem diz que a alma é acto do corpo, negue que ela
seja imortal, como pensaram alguns, visto que não é necessário que todo o acto do
corpo esteja de tal modo sujeito e ligado à matéria, que não possa subsistir fora dela.
Portanto, ao argumento deve negar-se o antecedente e em relação àquilo que é
primeiro aduzido para a sua confirmação, responder como dissemos. Quanto ao que
se defende no fim, deve dizer-se que nem todo o acto segundo é mais perfeito do que
o acto primeiro e que nem todo o fim supera, em excelência, a própria natureza, nas
coisas ordenadas para um fim. Isto é verdadeiro no que se refere ao último fim
absolutamente e sem excepção, como no livro 2 da Física expusemos. Há outra
solução, neste ponto, em Caetano.
Ao segundo, tem de negar-se o antecedente e a maior do silogismo, aonde isto é
provado. Para responder à sua primeira afirmação, que uma vez desfeita a composi­
ção o animal morre, conclui-se correctamente que o corpo não pode ser enformado
pela alma, a não ser que, entretanto, tenha sido provido com disposições convenien-
212 Sobre o s Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

tes para a vida. É verdadeiramente absurdo, desordenado e inepto, concluir-se que a


alma é um composto de qualidades primárias. Sob outro ponto de vista, como, uma
vez lesionado o coração o animal morre, também concluíram correctamente que a
alma é coração. Para confirmar a afirmação seguinte, deve dizer-se que as paixões e
as perturbações da alma se atribuem à composição das qualidades, como causas de
disposição e de estimulação. De facto, a frieza da melancolia tal como torna o corpo
entorpecido e lânguido, assim o inclina para a tristeza. Também o calor da bílis
vermelha tal como fornece ao corpo energia para trabalhar, assim o conduz facil­
mente à ira. De facto, as acções nascem noutra parte, como que de uma fonte e causa
principal, que não é acidente, mas substância. Não tratámos da autoridade dos filó­
sofos que supunham a alma harmonia de qualidades. É claro, a partir do exposto, se
a opinião deles está de acordo com as palavras, que por certo se desviaram da ver­
dade. Leia-se, porém, se se entender, a sua impugnação em Temístio, no primeiro
desta obra, na Paráfrase, capítulos 23º e 24º e São Tomás no livro 2 Contra os Gen­
tios, capítulo 64º.
Ao terceiro argumento deve ser negado o antecedente. A sua prova é facilmente
explicada por aquele que disse que o conhecimento se faz pela semelhança, não que
ela exista já na alma necessariamente por sua natureza, mas que é obtido através das
espécies, por cuja intervenção a alma conhece. E assim, não é necessário que a alma
seja semelhante às coisas corpóreas por conveniência da mesma natureza, mas que
tenha aptidão para receber as suas imagens em acto, às quais se torna semelhante
segundo o ser nocional ou intencional. Como, de facto, os autores da antiga fisiolo­
gia não distinguiam o ser, do ser real, caíram várias vezes neste erro, por acreditarem
que era necessário que a alma fosse algo corpóreo como as coisas que ela apreende.
Para confirmar o argumento deve dizer-se que, embora o tacto seja de dois tipos, um
da quantidade, outro da qualidade, como expusemos no livro Geração e Corrupção,
o primeiro tacto só diz respeito aos corpos; o segundo, também às coisas que são
desprovidas de corpo. Ou um e outro carecem de corpo, como quando o anjo impele
para algum lugar o demónio com o impulso que aplica; ou apenas aquele que move
é incorpóreo, como quando a alma intelectiva move, por um acto de vontade, o ape­
tite inerente ao corpo; ou pelo menos o que move também é corpóreo, como quando
se diz que os corpos sensíveis, se movem, a seu modo, para a alma intelectiva, quer
para o conhecimento de si, quer para o amor. É evidente, portanto, que não se infere
correctamente, de um qualquer tacto que as coisas que se tocam são corpos, mas do
mútuo tacto da quantidade.
No que concerne a Santo Agostinho, que acreditou na doutrina de Aristóteles
segundo a qual a alma é um ser formado pela quinta substância, dizemos sem dúvida
que Aristóteles declarou o oposto, como é claramente evidente a partir daquela dis­
puta, no primeiro livro da sua obra, contra Demócrito, Empédocles, Alcméon, Platão
e Xenócrates. Por isso, parece que Santo Agostinho ouviu esta opinião sobre o
dogma aristotélico, não a partir das fontes do próprio Aristóteles, mas a partir de
Cícero, que escreveu o seguinte no primeiro livro das Questões Tusculanas: Aristó­
teles, grande em tudo, seguindo sempre no rasto de Platão, não só em engenho mas
em diligência, dado ter compreendido quatro géneros de princípios, pelos quais
todas as coisas se organizam, declarou que existe uma certa quinta natureza, da qual
provém a inteligência. Aristóteles prova, no livro 1 , O Céu, que para além dos qua-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo VII 213

tro elementos comuns, existe uma outra quinta substância do corpo, mais eminente e
divina do que os próprios elementos. Novamente, no livro 2, A Geração dos Ani­
mais, capítulo 3º, afirma que a alma participa de um certo corpo de elementos divi­
nos. Na verdade, Aristóteles, nem naquele ponto, nem noutro lugar pensou que a
alma fosse corpo, visto que nessa obra, no ponto citado, demonstrou o oposto em
termos claros. Portanto, atribuiu à alma aquele corpo, e referiu a posição de Platão e
dos Académicos, que afirmavam que a alma sofria o cárcere tenebroso do nosso
corpo, num certo corpúsculo luminoso circundante. Ou, pelo nome de corpo, com­
preende, nomeadamente, o espírito vital e animal que no livro A respiração, e mui­
tas vezes noutros pontos chama rrveüµa eµcpu·rov, isto é, espírito inato, que governa
as funções do corpo por obra da alma, como expusemos no livro A Geração e a
Corrupção. Aristóteles considera este corpo mais divino do que os elementos, por­
que nenhuma faculdade dos elementos alcança a excelência das operações que se
realizam por ministério dos espíritos.
Ao quarto, deve ser concedida a premissa maior e deve ser negada a menor, e
afirmar, para prová-lo, que a alma racional que está separada do corpo, embora não
forme o corpo, por sua natureza é acto e forma dele, de tal modo que todas as vezes
que o formar, possa conferir-lhe habilidade e potência para executar as acções da
vida no lugar do órgão. Mas relativamente à citação de Aristóteles, note-se que não
consta entre os comentadores o que Aristóteles quis dizer, naquele passo, com o
nome de partes. Filópono pensa que ele considerou as partes sujeitas à alma, isto é, a
alma vegetativa e a sensitiva. Alexandre, Simplício, São Tomás e outros cuja inter­
pretação é afim, acreditam que designa as potências da alma intelectiva e que ele
assegurou não haver dúvida que algumas delas não podem estar com a alma juntas
ao corpo, porque são potências orgânicas e inerentes ao corpo. Por isso, Aristóteles
não pensa que a alma, que é acto do corpo, não possa separar-se do corpo, ou ainda,
que a que pode separar-se do corpo, não é acto do corpo.
Ao quinto, concedida a premissa maior, negue-se a menor. Para refutar a sua
prova, deverá advertir-se que são trazidas a este ponto duas das chamadas partes
orgânicas, para além da matéria, a composição de certa figura, com a disposição
adequada e a potência, que é a própria forma do órgão. Portanto, o órgão tomado no
primeiro modo, antecede a alma pela prioridade da natureza, no género da causa da
disposição e da causa material, porque a preparação necessária para a introdução da
alma na matéria é assim, como adverte Caetano. Mas tomado na segunda acepção
não, porque as potências da própria alma não são antecipadamente exigidas para a
receber na matéria, como é evidente. E para que se diga que se define a alma pelo
corpo orgânico, como por algo anterior, basta que, tanto a matéria em si, quanto a
afectada aos diferentes órgãos, segundo o primeiro modo, anteceda a alma na ori­
gem. Nem na verdade, é necessário que o substrato, através do qual a forma se
define, seja anterior à forma, em todos os sentidos.
Ao sexto, deve negar-se a premissa maior e dizer-se que a definição de alma não
é adequada ao anjo em relação ao corpo que ele assume, quer porque não é acto ou
forma de tal corpo, mas apenas motor, quer porque aqueles órgãos, embora sejam
verdadeiras coisas, não são, todavia, órgãos próprios e verdadeiros. Para isso exi­
gem-se dois pressupostos, como registámos há pouco. Um, é a efígie e a figura com
uma certa proporção de qualidades, outro, as próprias potências vitais inerentes à
214 Sobre o s Três Livros 'Da A lma ' d e Aristóteles

matéria. Como estas não se distinguem nos corpos que os anjos assumem, tais
potências não lhe são inerentes, seja o que for que haja nas restantes, exigidas pela
noção dos órgãos. A consequência é que os corpos não devem pura e simplesmente
ser chamados orgânicos. Daí que os anjos não exercem neles funções vitais, visto que
o acto é-o daquilo que está em potência, como ensina Aristóteles no livro O Sono e a
Vigília, capítulo 1 º; não obsta que pareça que os anjos falem, andem e se alimentem.
Certas coisas comuns às funções dos viventes, podem ser observadas nuns e noutros
·
do género, como o som na fala, o movimento no andar, o deglutir o alimento ao
comer e outras coisas próprias, como o som que é emitido através de instrumentos
vocais pela faculdade que lhes é inerente e, igualmente, que uma acção seja execu­
tada pela faculdade motriz com sede nos músculos, e a separação do alimento feita
por aquilo que pela sua natureza se pode converter em substância. Dado que nestas
operações as coisas que são próprias dos seres vivos faltam aos anjos, deve, em
absoluto, negar-se que eles executem as acções vitais nos corpos que assumem e que
são o acto do corpo orgânico. São Tomás assinala-o, além de outros, na primeira
parte da Suma Teológica, questão 5 1 , artigo 3º; Egídio no segundo livro das Senten­
ças, distinção 8; Gabriel, no mesmo livro, distinção 8, questão primeira, artigo 3º;
São Boaventura ibidem; Ricardo, questão 5; Maior, questão única; Bassolius, ques­
tão única, artigo 3º.

QUESTÃO II
Se a alma é algo subsistente ou não

ARTIGO !
Argumentos para alcançar a verdade da matéria proposta

Porque cada coisa é tal como é produzida, e é tal como opera, existem duas pro­
vas com as quais depreendemos se alguma coisa criada é subsistente, isto é, exis­
tente por si e determinada. Uma é, se é produzida por si, isto é, pela acção que lhe é
própria, e determinada. Outra, se opera por si mesma, alcançando para si a operação
que lhe é própria ou determinada. Também, porque a presente questão deve ser
compreendida tanto relativamente à alma dos animais como à dos homens, provar­
-se-á, primeiro, a partir da primeira prova, que as almas dos animais são subsistentes,
da maneira que se segue. Na primeira criação das coisas as almas dos animais foram
produzidas por Deus, congruentemente com as suas naturezas, mas foram produzi­
das por acção própria e independente da matéria e, por isso, determinadas. Logo, as
almas dos animais por sua natureza são subsistentes. Prova-se a premissa menor,
porque Deus não produziu estas formas com os elementos que concorrem para isso,
seminal ou activamente, mas apenas passivamente, pelo que toda a acção se deu a
partir de Deus, do mesmo modo que a produção da alma intelectiva, que é evidente
que, por si, delimita a própria alma.
Segundo. A acção, pela qual a alma do leão, por exemplo, é produzida, é real­
mente distinta daquela pela qual ela se une à matéria. Ora, a união é delimitada pela
forma que não existe na matéria mas dela depende. Logo, a produção será fixada
Livro Segundo, Explicação do Capítulo l, Questão li, Artigo l 215

para ela mesma, por si e para o fim, que é produzido como determinado. Prova-se a
premissa maior. Na verdade, quando algumas acções são dispostas de tal modo que
ambas mutuamente se podem separar e uma pode existir sem a outra, ao menos pelo
poder divino, necessariamente se distinguem entre si na realidade. Demonstra-se que
as referidas acções são assim. Deus pode produzir a alma do cavalo na matéria, não
a unindo a ele e depois pode unir essa mesma alma que antes foi produzida por si, à
matéria, e assim, no primeiro momento dar-se-á a produção sem união, no seguinte,
a união sem produção.
Depois, no que concerne às almas racionais, prova-se, a partir da segunda prova,
que elas não são subsistentes. As almas racionais não operam por si mesmas, logo,
não são subsistentes. O antecedente demonstra-se, porque para a alma racional ope­
rar por si, ou opera sem dependência do corpo, ou possui uma operação imaterial,
que recebe em si. Se for o primeiro, tal modo de operar não pertence à alma quando
está no corpo, visto que a sua intelecção depende dos fantasmas, de acordo com o
que diz a passagem de Aristóteles, livro 3 , desta obra, capítulo 8°, texto 9: é necessá­
rio que o que intelige observe os fantasmas. Se for o segundo, isto não é suficiente
para se demonstrar que a alma pode existir por si. Parece que nada daí pode ser
coligido, além de que a alma é substância espiritual dado produzir e sustentar a
acção espiritual. Que não se comprova com um argumento suficientemente firme
que a intelecção da alma foi recebida na própria alma como numa substância espiri­
tual, mas não no órgão corpóreo, é o recomendado. Com efeito, São Tomás con­
firma-o, na 1 ª parte da Suma Teológica, questão 75, artigo 2º, porque se a alma inte­
ligisse através do órgão corpóreo, não poderia perceber todos os corpos, daí que,
pela doutrina de Aristóteles, livro 2 desta obra, capítulo 1 0º, texto 1 04, e livro 3,
capítulo 1 °, textos 4 e 5 , o que existe dentro proíbe o conhecimento do que é exte­
rior. Donde, nem a faculdade de ver perceberia todas as cores, se a pupila, na qual
reside, fosse penetrada pela cor nalguma parte. Nem a língua, uma vez impregnada
de humor bilioso, distinguiria as diferenças dos sabores. Mas demonstra-se que este
argumento não tem valor, porque a fantasia reside no órgão corpóreo e, contudo,
percebe todos os outros corpos e o anjo é uma substância espiritual, e no entanto
apreende pelo conhecimento todas as outras substâncias espirituais. Daí que, por
igual razão, embora a alma inteligisse através do órgão corpóreo, isto não obstaria
que obtivesse conhecimento de todos os outros corpos.
Outro. Que a alma racional não opera como tal, mas mediante tal, parece ensinar
Aristóteles livro 1 desta obra, capítulo 4º, texto 64 quando diz assim: todavia, afir­
mar que a alma se indigna ou que teme, seria o mesmo que alguém dissesse que
alma compõe ou edifica. Na verdade, é melhor talvez dizer que não é a alma, mas o
homem que, pela alma, se compadece, apreende ou raciocina. E o seguinte: donde,
acontece que, como alma racional é aquilo pelo qual o todo existe, ela não operará
assim, a não ser como aquilo, pelo qual, correcta e verdadeiramente se costuma
dizer, que cada coisa é tal como opera. O mesmo se pode confirmar, porque não se
diz que nenhuma alma é algo determinado, mas já se diria se ela agisse como tal.
216 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Explicação da questão resolução dos argumentos

Para explicação desta controvérsia deve advertir-se que os filósofos entendem


«subsistir» de três maneiras. O primeiro modo, como ser por si, isto é, sem ser ine­
rente a um sujeito. O segundo, como ser por si, quer dizer, não em algo (seja por
meio da parte ou da forma) do qual depende no seu ser. O terceiro, como ser por si,
de maneira a que nem em potência nem em acto, esteja em algo no modo da parte ou
da forma, ou quase da forma. Fica assim brevemente resumido, o que noutro lugar
será explicado de forma mais detalhada. Primeira conclusão. Todas as almas, tanto
dos animais irracionais, como do homem, são subsistentes no primeiro modo. Prova­
-se, porque todas são substâncias, como acima foi demonstrado. Nenhuma substân­
cia, de facto, é inerente ao sujeito.
Segunda conclusão. Entre as almas, somente a intelectiva é subsistente do
segundo modo. Prova-se, porque todas almas, excepto a intelectiva, são extraídas da
potência da matéria, como mostrámos na Física, e assim, o seu efeito e conservação
e, em consequência, o seu ser, dependem da matéria. É daqui também o argumento,
que apenas à alma intelectiva cabe em sorte uma operação elevada acima da condi­
ção da matéria, como dissemos antes, independente do corpo, como se tomará evi­
dente a partir da solução dos argumentos. Donde, também se retira que ela não
depende da matéria quanto ao seu ser, porque cada um opera tal como é.
Terceira conclusão. A alma intelectiva não é subsistente no terceiro modo. Prova­
-se, porque a alma intelectiva é essencialmente forma do homem, e é sua parte em
acto, precisamente enquanto compõe o todo, e em potência, enquanto está fora da
matéria. Mas, porque assim é, não é subsistente no terceiro modo. Por maioria de
razão, as almas dos animais irracionais não serão subsistentes, deste modo, visto que
nem são consideradas subsistentes no segundo modo.
Estas três conclusões são ainda confirmadas pelo consenso comum dos autores,
embora Orígenes tenha pensado contra a terceira, no livro 1 , Ilepl àpxwv, capítulos
5º e 8º, e no livro 2, capítulo 8º. Ele considerou que a alma intelectiva não se distin­
gue, em espécie, dos anjos, os quais, como é claro, são substâncias completas, sub­
sistentes por si, no terceiro modo. Mas São Tomás refuta este erro, na 1 ª parte da
Suma Teológica, questão 75, artigo 7°, e nas Questões disputadas sobre a Alma,
artigo 7º ao lº argumento, e no 2º livro Contra os Gentios, capítulo 94º, e com
pouco mais, pode provar-se a partir daqui que a alma intelectiva, pela sua natureza é
forma do corpo e da matéria num só. As inteligências angélicas são substâncias
separadas do corpo. Ademais, a intelecção humana dá-se pela composição e pelo
discurso, a partir dos sensíveis. Mas o conhecimento angélico ocorre através da
simples intuição e do influxo da luz celeste, como ensina São Dionísio, capítulo 7º
de Os Nomes Divinos. A partir destas diferenças capta-se plenamente a distinção
entre a natureza do homem e a do anjo.
Passa-se agora ao desenvolvimento dos argumentos do primeiro artigo, abordados
nas conclusões anteriores. Ao primeiro, deve dizer-se que os animais irracionais, na
origem primeira do mundo, não existiram produzidos pela potência seminal, como é
bastante evidente, nem por qualquer concurso activo dos elementos, como adverte
São Tomás, na 1 ª parte da Suma Teológica, questão 70, artigo 1 º, e o Abulense,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão II, Artigo II 217

primeiro capítulo sobre o Génesis, com a aceitação comum de outros autores


(embora Caetano tenha considerado que a terra concorreu eficientemente para o
primeiro nascimento das plantas, de tal modo é evidente que Deus as criou com a
intervenção da terra, à maneira de uma causa eficiente intermédia). E assim, nessa
ocasião, os animais irracionais foram produzidos apenas com o concurso activo de
Deus. Mas, tal como as suas formas receberam o ser de Deus, de forma dependente
da matéria, também foi por uma e a mesma acção, que elas não só foram produzidas
como também foram unidas, como reclamava a sua natureza. E não é porque as
causas segundas não concorrem eficientemente para isso, que se segue que elas
foram criadas à maneira das almas intelectivas, visto que estas são produzidas sem
dependência da matéria.
Ao segundo, deve ser negada a premissa maior e conceder para a sua prova o que
defende o primeiro. Mas relativamente ao que aí se alega, deve dizer-se que Deus
pode, por exemplo, produzir a alma do cavalo na matéria não a unindo a ela e pode
uni-la não a produzindo. Na verdade, a acção pela qual Deus produziu uma tal alma
deve ser a criação. Será, efectivamente, uma criação a partir do nada, isto é, sem se
pressupor nenhum substrato. Também não menciona que esta forma é produzida na
matéria. Na verdade, também a alma racional é produzida na matéria, e no entanto é
criada. Sem dúvida, diz-se que não se exige nenhum substrato, pois não pode haver
nenhum substrato antes da forma. Ainda que haja, mesmo assim, o substrato não se
junta para sustentar a forma. Deste modo, a coisa existirá se Deus produzir a forma
do cavalo não a unindo à matéria. Nem, na verdade, a matéria exerce a sua causali­
dade na forma e a sustenta, se não estiver unida a ela. Uma vez, portanto, que a
referida produção da forma deve ser uma criação única, será necessariamente de
outra ordem e de espécie diferente daquela pela qual é agora produzida. Por isso, o
argumento não prova que a produção natural e ordinária da forma equina, que dize­
mos ser idêntica à sua união com a matéria, pode ser separada de tal união, ou dar-se
uma sem a outra.
Ao primeiro dos argumentos que respeitam à alma intelectiva, deve negar-se o
antecedente e ao argumento pelo qual ele é provado, dizer que a alma intelectiva
opera por si, porque no que toca à intelecção, ela não depende absolutamente do
corpo. Embora o intelecto enquanto está no corpo mortal, não intelija ordinaria­
mente a não ser que a fantasia opere ao mesmo tempo, nem por isso depende por si
do ministério da fantasia, quanto a essa operação. Primeiro, porque tal dependência
não se considera propriamente necessária, a não ser em virtude da conexão daquelas
faculdades; enquanto o intelecto é levado para o objecto próprio, ao mesmo tempo, a
fantasia dirige-se para algo singular. Segundo, porque é totalmente provável que, por
vezes, enquanto o intelecto se eleva à sublime contemplação das coisas, a fantasia
fique destituída da própria operação. Terceiro, porque a alma separada do corpo
intelige sem a fantasia.
Diz-se também que a alma intelectiva opera por si, porque produz a operação
espiritual que ela recebe e sustenta em si sem o auxílio da matéria. Donde se segue
que ela é substância espiritual e, portanto, também é subsistente. Na verdade, toda a
substância espiritual é incorruptível como de caminho mostraremos e, em conse­
quência, pode subsistir por si.
218 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

No que respeita ao argumento pelo qual São Tomás mostra que a intelecção é
recebida na própria alma, como numa substância espiritual, mas não no órgão corpó­
reo, é fácil encará-lo por si, pela via a seguir. Porque se o intelecto estivesse no
órgão corpóreo não poderia inteligir todos os corpos, visto que, muitas vezes, não
poderia perceber o próprio órgão, dado que a potência orgânica não se pode reflectir
nem acima da sua operação, nem acima do seu próprio órgão, como a partir do Livro
das Causas, os filósofos ensinam em consenso geral. Também, porque, uma prova
deste tipo se firma naquela sentença aristotélica, segundo a qual o que existe no
interior proíbe o conhecimento do que está fora. Porque esta afirmação é, por um
lado, bastante clara, por outro, um tanto obscura, é necessário ponderar como deve
ser compreendida. Averróis discute este assunto, no livro 3 de A A lma, comentário
4; São Tomás em A Verdade, questão 22, artigos 1º ao 8º; Caetano na primeira parte
da Suma Teológica, questão 75, artigo 2º; o Ferrariense no livro 2 Contra os Gen­
tios, capítulo 98º. Omitida discussão mais longa, deve dizer-se que se pode encontrar
acima de tudo uma dupla causa, para o facto daquilo que existe na potência cogni­
tiva ou daquilo, em que a potência cognoscente existe, impedir o conhecimento das
outras coisas. A primeira causa é porque obsta a que a potência possa manifestar as
espécies das outras coisas. Deste modo, se a pupila fosse colorida, o olho não pode­
ria ver cores estranhas, porque as espécies visíveis não são recebidas no corpo limi­
tado e opaco, que é, normalmente, o que foi afectado pela cor. Mas esta causa não
tem lugar na substância e na potência, nas coisas espirituais, as quais nada impede
que sejam indeterminadas para receber as espécies de todas as coisas inteligíveis.
Donde, São Tomás, no lugar citado, afirmar que a referida proposição não é verda­
deira para as faculdades cognitivas dirigidas para objecto universal, como o inte­
lecto. Mas aquela mesma causa já tem lugar nas potências orgânicas, enquanto
podem receber as imagens dos outros singulares que lhes pertencem. Porém, por
causa da matéria a que estão inerentes, a limitação e a imperfeição juntam-se de tal
modo às condições individuais, que apenas podem obter imagens de sensíveis sin­
gulares e, assim, conhecerem apenas os sensíveis singulares. Isto também acontece­
ria ao intelecto caso ele incidisse no órgão material e corpóreo. Ele não perceberia,
de facto, nenhuma coisa espiritual, nem as espécies das coisas imateriais mas, pelo
contrário, apenas as individuais, porque nem as espécies das coisas imateriais repre­
sentam quer as coisas comuns, quer as singulares, nem as espécies das coisas corpó­
reas, que representam as coisas comuns, podem ser recebidas no órgão corpóreo,
porque ambas devem ser espirituais. Isto, porque, nem os tipos que as coisas espiri­
tuais referem, nem aqueles que as naturezas corpóreas comuns referem, podem não
ser espirituais. Este é o argumento adequado para o assunto, porque as imagens
corporais, devido à sua origem obscura e à sua materialidade, não podem, ao repre­
sentar, ir além da matéria delimitada e das coisas corpóreas singulares. E, por isso,
Platão, no Teeteto mostra que o intelecto conhece muitas coisas que não podem ser
percebidas pelo instrumento corpóreo, tais como a natureza comum, o belo e o bom.
A outra causa pela qual o que está dentro proíbe o conhecimento do que está fora,
é a de que, embora a potência possa receber as espécies de outras coisas, se ocupa de
tal modo do objecto presente, que, ou de nenhum modo, ou apenas de um modo
confuso lhe pode prestar atenção. Daí que alguns atacam de tal modo aquela propo­
sição, que chegam ao ponto de dizer que não existe dentro, mas que aparece dentro,
livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão li, Anigo li 219

ou seja, que o objecto que é oferecido à potência cognitiva em acto impede o conhe­
cimento das outras coisas. Daqui a razão por que, estando a língua doente, uma vez
atacada a zona que sofre de bílis amarela, ainda que se aproximem do exterior coisas
gostosas e providas de óptimos sabores das quais ela recebe as imagens, ela não as
sente, porque aquele sabor que se fixou, que primeiro ocorre ao paladar, reclama
para si todo o empenho da faculdade perceptiva. De tal modo costuma acontecer
assim, que não é apenas o mesmo sentido que é levado para os outros sensíveis que
se lhe oferecem, mas todos os restantes, a serem também levados para os seus
objectos, sempre que a alma, para perceber algo, se aplica com tanto esforço e inten­
ção, que não fica disponível para conhecer outras coisas.
Com estas advertências, é evidente que o argumento de São Tomás e, ainda mais,
o de Aristóteles, a favor do qual discutimos esta matéria, conserva a sua força, e é
evidentesendo claro que é correctamente apresentado. Se o intelecto estivesse no
órgão corpóreo, aconteceria que ele não perceberia todos os outros corpos, e a partir
daquela proposição, 'o que existe dentro impede o conhecimento do que está fora' ,
de modo algum se demonstra que o anjo não intelige todas as substâncias separadas
e que a fantasia não percebe outros corpos. Segue-se que ele não percebe todas as
coisas pela primeira causa transmitida para explicação daquela proposição.
Resta resolver o último argumento do primeiro artigo. São Tomás responde à
primeira parte deste argumento, na 1 ª parte da Suma Teológica, questão 75, artigo 2
ao 2º, que Aristóteles, nesse ponto, não emite a sua própria opinião mas a de outros.
Responde em segundo lugar que o Filósofo apenas pretende, que não se deve afir­
mar que a alma intelige como algo subsistente perfeito e completo; com efeito, a
intelecção respeita, não à alma, mas ao homem. Acerca da outra parte do mesmo
argumento, há quem diga que a alma enquanto está no corpo não existe como tal,
mas mediante tal, como seminatureza, como diz Caetano: embora separada do corpo
exista como tal como semipessoa, pois, na verdade, para complemento absoluto da
pessoa, falta-lhe o ser completo do ente, visto que fora do corpo a sua natureza é
uma parte do homem. Porém, é preferível dizer que tanto no corpo, como fora do
corpo, ela existe como tal . Para isto, com efeito, é suficiente que subsista por si
mesma, conforme a segunda acepção, porque, quer o corpo a enforme, quer não,
pertence-lhe perpetuamente. Na verdade, o que chega para que alguma coisa seja
produzida como tal, deve chegar para que ela exista por si mesma como tal . Mas é
suficiente que subsista do segundo modo, como se considera que alguma coisa é
produzida como tal, como é evidente na própria alma racional, que se considera ter
sido criada por si mesma e como tal. Decerto que a sua criação, como também as
restantes acções produtivas, é dirigida para algum fim como tal. Posto que não é
conduzida para outro fim além da alma (nem, com efeito, o homem pode ser esse
fim, porque este não é criado) a consequência é que a alma é produzida como tal.
Mas, sem dúvida, se a alma fora do corpo começasse a ser como tal, e como semi­
pessoa, dado que esse modo de ser seria dotado de maior perfeição do que o ser
mediante tal, e como seminatureza, seguir-se-ia que a alma fora do corpo, e, por­
tanto, no estado pretematural, possuiria um modo de existir mais perfeito, do que no
corpo, e do que no estado natural, o que São Tomás nega que deva admitir-se, muito
justamente, na primeira parte da Suma Teológica, questão 89, artigo 2º e no 4º livro
das Sentenças, distinção 43, questão primeira, artigo 1 ao 4º. Embora a alma quando
220 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

está separada do corpo alcance um modo de inteligir mais elevado e mais livre,
como defendemos em seu lugar, não é contudo verdade que atinja, então, um ser
mais perfeito, pois isso acontece quando está no corpo e cumpre excelentemente a
sua função, que é a de dar o ser ao composto e de o constituir na própria espécie.
Acrescente-se que, se a alma fora do corpo existisse como tal, e no corpo mediante
tal, seguir-se-ia que na ressurreição, quando o corpo tivesse regressado, iria abando­
nar aquela condição mais nobre de subsistir, o que não é verosímil. Não satisfaz a
resposta de Caetano, dizendo que a alma, no corpo glorioso, há-de subsistir como
tal. Na verdade, se não o conseguia no corpo mortal, porque era parte de um todo,
como, depois da ressurreição, é uma futura parte do mesmo, ela será chamada à
mesma condição de subsistir, que tivera antes, no corpo mortal.
Deverá advertir-se, para se explicar a outra parte do mesmo argumento principal,
relativamente ao qual, nos debruçamos agora, que a alma existente no corpo, sub­
siste como tal, não obstante ser mediante tal, por uma consideração diversa. De
facto, subsiste como tal, enquanto existe independentemente no seu ser, e existe
mediante tal, enquanto é aquilo pelo qual o todo existe. Donde, segundo uma noção
e outra, se possa negar e conceder que a alma é algo determinado. Negar, se este
algo for tomado por um subsistente completo, conceder, se for tomado por um sub­
sistente incompleto.

QUESTÃO III
Se as almas intelectivas são criadas por Deus ou não

ARTIGO I
Diversas opiniões acerca da origem das nossas almas

A questão da origem da alma foi sempre considerada bastante incerta e difícil,


não só entre os filósofos pagãos, mas também entre aqueles que acolhem a luz da
doutrina celeste, como está patente no que escreveram S. Jerónimo na Epistola a
Marcelino; Santo Agostinho no livro A Origem da Alma, a S . Jerónimo, e no livro 3,
O Livre A rbítrio, capítulo 2 1 º; Euquério sobre o capítulo 1º do Génesis, e outros
Padres.
Apresentam-se-nos, primeiro, duas opiniões sobre o nascimento das almas. Uma,
dos que afirmam que elas se reproduzem a partir de uma semente. Os Luciferianos
caíram neste erro, como é referido no livro Os Dogmas Eclesiásticos; Tertuliano;
também Apolinário, segundo o testemunho de Santo Agostinho no livro De haeresi­
bus ad Quod uult Deum, capítulo 86º, no diálogo que foi recolhido dos seus escritos
e de São Jerónimo; e São Tomás no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 86º. Outra, a
dos que consideraram que as almas foram criadas, não por Deus, mas pelas inteli­
gências. De entre estes, contaram-se, depois de Avicena, Seleuco e Jeremias, como
consta do livro 7 da Historia Tripartida, capítulo 1 1 º, e também Galita, donde foi
disseminada a heresia dos Messalianos. A favor dos primeiros podem ser aduzidos
os argumentos que se seguem. Na matéria, existe a potência natural para receber a
alma racional, porque a alma é o acto natural e próprio do corpo e, de outro modo,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão I/l, Artigo II 221

não resultaria uma unidade, por si, a partir dos dois, por outro lado, a uma qualquer
potência natural passiva corresponde uma activa, também natural, como ensina
Aristóteles no livro 5 da Metafísica, capítulo 1 2º, texto 1 7, e livro 9, capítulo 1 º,
texto 2. Logo, existe um agente físico que gera a alma racional. Este, porém, não
pode ser outro senão o pai, que com a potência da semente faz surgir a alma a partir
do interior da matéria. Portanto, a alma racional é propagada pela potência da
semente. Outro, os restantes animais fazem nascer as formas da sua descendência da
potência da matéria, mas o homem não deve estar numa situação de condição mais
inferior. Logo, a alma humana é produzida pelo próprio homem. O argumento não
refere que a alma é substância imaterial, mas que a potência geradora, que o homem
usa como instrumento para gerar é material. O instrumento pode, com efeito, elevar­
-se acima da própria potência, para produzir algo mais nobre, como vemos indistin­
tamente noutras coisas. Por isso, a causa que atinge a última disposição de uma
forma possui a potência produtiva dessa forma. Certamente que a forma, como
ensina Aristóteles no livro 2 da Física, capítulo 7°, texto 74 é o fim da geração e
todo o agente, que pela própria potência fornece o meio ao fim, pode alcançar o fim
por si mesmo, como se lê, também, em Aristóteles, no livro 7 da Metafísica, capítulo
9º, texto 30. Além disso, o homem alcança a última preparação para a introdução da
alma racional, visto que ele, não só transporta para a matéria a ordenação das res­
tantes qualidades, como também delineia e produz os próprios órgãos com o minis­
tério da potência formadora. E corrobora-se o argumento porque quem gera,
segundo a espécie, algo semelhante a si, produz o mesmo e a forma da coisa gerada
pela qual a espécie existe. Ora, o homem, graças à potência ínsita na semente, gera o
homem.
Eis os argumentos a favor da opinião dos que defenderam que as almas dos
homens são produzidas pelos anjos. Conforme o testemunho de Aristóteles no capí­
tulo 4º, texto 34 deste livro, é perfeito o que produz algo semelhante a si; ora, as
substâncias imateriais são muito mais perfeitas do que as corporais; logo, embora
elas produzam outras semelhantes a si, segundo a espécie, por maioria de razão, os
anjos puderam procriar alguma substância incorpórea de natureza inferior, isto é, a
alma humana. Segundo. A ordem nas coisas espirituais é maior e mais divina, do
que nas coisas corporais, mas a partir da doutrina de São Dionísio, no capítulo 4º de
Os Nomes Divinos, os corpos inferiores são governados e feitos pelo poder dos supe­
riores. Portanto, também os espíritos inferiores, ou seja, as almas racionais, são
produzidos através dos superiores, isto é, através das inteligências.

ARTIGO II
O que se deve pensar acerca do assunto

A questão em presença tem de ser esclarecida com algumas asserções. A primeira


é a seguinte. As almas racionais não são, de modo algum, propagadas pela potência
seminal. Esta asserção é inteiramente certa. Não é lícito o filósofo cristão dela duvi­
dar. Está contida na causa 32 do Decreto, questão 2, capítulo Moyses. Santo Agosti­
nho condena a sua oposição com a pena de erro, no livro De haeresibus ad Quod
uult Deum, capítulo 86º, e São Tomás no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 86º e
também na 1ª parte da Suma Teológica, questão 1 1 8, artigo 2, que não só chama
erro, mas heresia. Por isso, os que tal afirmam, estão convencidos que negam, ela-
222 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ramente, a imortalidade da alma. Prova-se, portanto, a nossa afirmação do modo a


seguir. Nenhuma potência activa age para além do seu género, mas a alma intelec­
tiva excede todo o género de natureza corpórea, visto que é substância espiritual,
como acima mostrámos. Logo, nenhuma potência corpórea pode conseguir produzi­
-la, mas toda a acção da faculdade seminal existe a partir da potência corpórea, por­
que diz respeito à potência vegetativa que é inteiramente inerente ao corpo. Logo,
não é possível que as almas intelectivas derivem da potência seminal. Segundo
argumento. Como a geração de alguma coisa é a causa por que essa coisa existe, a
sua morte também é a causa por que ela perece. Ora, a morte do corpo não causa a
morte da alma racional, visto que é imortal. Logo, ela não terá como causa a geração
do corpo, para começar a existir, mas a transmissão da semente é a própria causa da
geração do corpo. Logo, não é causa da geração da alma. Terceiro. Todo o agente
natural, posto que age dependente da matéria, não produz senão o que depende da
matéria. Mas a alma racional não é assim, visto que pode subsistir fora do corpo.
Logo, a alma racional não é produzida por um agente natural, mas possui outra
causa na sua origem. Por estas e por outras razões que não escaparam aos antigos
Padres, São Crisóstomo na Homilia 1 , acerca da natureza incompreensível de Deus,
diz: as almas são infundidas, os corpos reproduzem-se. E Procópio de Gaza, sobre os
Génesis, capítulo 2º afirma que o oráculo não disse as palavras 'Aqui o osso dos
meus ossos e carne da minha carne, mas alma da minha alma'; portanto, a carne não
gera a alma. Leia-se Gregório de Nissa na Disputa Acerca da Alma e da Ressur­
reição ; Lactâncio no livro l de A Criação de Deus, capítulos 1 7º, 1 8º e 1 9º nos quais
parece pensar correctamente acerca da origem da alma.
Segunda asserção. As almas racionais recebem o ser através da criação, não dos
anjos, mas de Deus Supremo. Esta afirmação não contém verdade menos firme e
certa do que a anterior. É confirmada, com o assentimento geral dos Padres, por São
Jerónimo, na Epístola 1 7 a Dâmaso, intitulada Explicação do Símbolo, e na Apolo­
gia ad Pammachium, contra os hereges de João de Jerusalém, quando afirma que é
sentença eclesiástica que Deus todos os dias infunde novas almas aos corpos entre­
tanto concebidos. Mais, por Santo Hilário. no livro 1 0 de A Trindade; Ambrósio, no
livro De Noe et arca ; Crisóstomo, Homilia 23; em vários pontos de Mateus; Gregó­
rio de Nissa, no livro A Alma, capítulo 6º; Teodoreto, no livro A Natureza do
Homem; Cirilo, no livro 1 sobre o Evangelho de São João, capítulo 9º; Bernardo, no
sermão 27 Sobre o Cântico; Inocêncio III, Comentários ao Salmo 50.
Em primeiro lugar, que as almas racionais recebem o ser pela criação, prova-o
São Tomás, no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 87º. Toda a substância que é
produzida, ou é gerada por si mesma, ou por acidente, ou é criada. Mas as almas
racionais não são geradas por si mesmas, visto que não são formadas de matéria e de
forma; nem por acidente, porque, dado serem formas dos corpos, são condicionadas
para a sua geração pela potência seminal, o que foi condenado. Resta, portanto, que
recebem o ser pela criação. Ele observa aqui que, uma vez que as almas humanas,
entre todas as formas físicas se manifestam pela dignidade da natureza e são subsis­
tentes no seu ser, é necessário que elas tenham uma origem mais nobre e sejam pro­
duzidas por criação, à maneira das outras substâncias intelectivas. Daí se conclui que
este tipo de criação é de Deus e não dos anjos, como consideraram os que acima
referimos. Porque como ensinam Santo Agostinho, no livro 3 de A Trindade, capí-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão III, Artigo II 223

tulo 8º, e no livro 9 O Génesis à letra, capítulo 1 5º; e São Damasceno, no livro 2 da
Fé Ortodoxa, capítulo 3º e os professores de Teologia Escolástica no 2º livro das
Sentenças, distinção 1 , os anjos não podem ser criadores de nada, isto porque a cria­
ção é produção a partir do nada, isto é, a partir de nenhum substrato prévio, e todas
as causas segundas requerem um substrato anterior em que aj am, seja para criar, seja
tão-só do primeiro agente, cuja potência, é de tal modo infinita, que não é limitada
nem por um substrato, nem por um certo modo de agir.
Por fim, que as almas humanas são criadas por Deus, foi revelado nas Sagradas
Escrituras de forma clara, quer noutros lugares, quer sobretudo, quando é dito em
Génesis 1 , a propósito da procriação de outros animais: que as águas sejam povoa­
das com o réptil, como ser vivo e com a ave, por sobre a terra. Que a terra seja
povoada com a alma que vive no seu género, dos jumentos, dos répteis e dos ani­
mais da terra. Mas quando é chegada a vez do homem, que a sua alma é infundida e
criada por Deus, é indicado com estas palavras : formou Deus o homem do limo da
terra e inspirou na sua face o sopro da vida. Acrescente-se o decreto de Leão 1, na
Epístola 93, ao Bispo asturicense Tonbio, estabelecendo que as almas não são
incorporadas por nada, a não ser por Deus, seu próprio criador.
Terceira asserção. As almas racionais não foram criadas por Deus antes dos cor­
pos, mas são criadas e infundidas nos próprios corpos uma a uma. Para se com­
preender esta conclusão deve advertir-se que Platão no Timeu disse que Deus
modelou todas as almas humanas antes dos corpos e que, ao mesmo tempo que as
criava, as constituiu de acordo com as estrelas; que elas, então, tomadas pelo tédio
das coisas celestes e pelo amor das coisas terrenas, a fim de expiarem estes horríveis
pecados, foram lançadas para os corpos como se fossem lançadas para um cárcere. O
mesmo considerou Orígenes, como é evidente a partir do seu primeiro livro Tiepl
àpxwv, e Epifânio refere na Epístola A João de Jerusalém. Também igualmente,
alguns hebreus rabinos afirmam, em parte, que todas as almas foram formadas no
princípio, para não concederem que Deus criava alguma coisa de novo, mas sem se
admitir que, antes de penetrarem os corpos, cometeram pecado algum.
Na verdade, este erro é rejeitado por consenso unânime dos Padres, por Santo
Epifânio, na Epístola citada; por São Jerónimo, na Epístola a Pamáquio, contra o
mesmo João; por Teófilo Alexandrino, livro 1 do Paschal; por Agostinho, Epístola
28, a Jerónimo; por Cirilo de Alexandria, livro primeiro sobre o Evangelho de João,
capítulo 9º, onde opõe vinte e três argumentos. Aquele erro também foi, primeiro
,condenado no Concílio Bracarense, capítulo sexto e por Leão 1 na Epístola a Torí­
bio, quando o Sumo Pontífice contra os que proclamavam aquela opinião, escreveu
assim: A fé católica afasta-os do corpo da sua unidade, afirmando firme e verdadei­
ramente que as almas dos homens não existiram antes de inspiradas nos seus corpos.
Também os autores das opiniões anteriores, ao concordarem que as almas são
criadas antes de terem existido os corpos, podem ser refutados do seguinte modo. É
natural para cada forma unir-se ao corpo. Se não fosse constituído de forma e de
matéria seria algo para além da natureza. Mas primeiro é dado a cada um, o que lhe
pertence segundo a sua natureza, em vez do que lhe pertence para além da natureza.
Aquilo que, pertence a algo, para além da natureza, é-lhe inerente por acidente. E
aquilo que lhe pertence por natureza é-lhe inerente por si mesmo. Portanto, pertence
224 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

primeiro à alma ser unida ao corpo, do que ser separada do corpo. Logo, ela não é
criada antes do corpo a que se une.
Segundo. Conforme diz São Tomás na 1ª parte da Suma Teológica, questão 76,
artigo 1 , ao 6º argumento, e outros Doutores aprovam por consenso geral, a alma
tem uma propensão inata para o corpo e, portanto, não alcança a perfeição própria
senão unida ao corpo. Mas Deus, a partir do qual as obras foram concluídas na pri­
meira preparação das coisas, criou-as segundo o estado, devido e congruente, da sua
natureza. Donde, também viu que eram muito boas todas as coisas que fez. Portanto,
não criou as almas fora dos corpos.
Terceiro. Se as almas existissem antes dos corpos, como a natureza não permite
que exista no mundo nada de ocioso e sem operação própria, como correctamente
ensina Aristóteles, capítulo 8º, livro 10 da Ética, as almas teriam tido sempre
naquele estado alguma ciência e conhecimento das coisas. Mas não é assim, visto
que é claramente evidente que os conhecimentos são por nós adquiridos com longo
estudo e trabalho. Logo, as almas não existiram antes dos corpos. Não basta que os
Académicos, afirmando com Platão, no Fedro, no livro 10 de A República e noutros
pontos, que as almas quando são lançadas para os corpos, em virtude da junção com
a matéria impura, como que, esvaziada a taça do esquecimento, perdem a memória
de todas as coisas. Não basta, diga-se. Com efeito, uma vez que é natural que as
almas se unam ao corpo, Platão não teve de conceber essa perda por causa da união
com a matéria própria e natural. No livro da Metafísica teremos de discutir, con­
forme estabelecido, contra este erro. Santo Agostinho impugna-o amplamente, no
livro 1 2 de A Cidade de Deus, último capítulo; Tertuliano no livro A Alma; Alberto
Magno, no livro 1 da Metafísica, tratado 1 , capítulo 8º; São Tomás quer noutro
ponto, quer no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 83º.
Quarto. Que as almas foram inspiradas antes dos corpos, não deixando entrar
nenhuma mancha de pecado, é evidente a partir da doutrina de São Paulo Aos
Romanos 5, quando afirma que através de um homem entrou o pecado neste mundo.
Mas a alma não é o homem, como certos autores falsamente consideraram e São
Tomás ensina, quer noutros pontos, quer na l ª parte da Suma Teológica, questão 75,
artigo 4º. Também no capítulo 9 da referida Epístola, quando São Paulo diz que
Jacob e Esaú, antes de terem sido dados à luz, nada de bom ou de mau fizeram.
Depois, que as almas não teriam emigrado para os corpos, mostra-se, porque seguir­
-se-ia que a união do corpo e da alma não seria um bem da natureza mas antes um
mal qualquer, como que uma punição de tudo. Mas isto é impossível, visto que
nunca se procura um mal por si, mas a natureza procura por si a geração do homem
e a união da alma e do corpo. Acresce que do mal não provém o bem, a não ser por
acidente. Por isso, se pela culpa da alma separada, a alma se unisse ao corpo, como
isto é um certo bem, aconteceria por acidente e, por isso, o homem teria sido criado
por Deus por acaso. O que também é nitidamente falso, porque uma nobilíssima
parte do mundo corpóreo, que é o homem, não pode ter sido produzida por um
evento fortuito do autor da natureza, que fez todas as coisas com conta, peso e
medida.
É evidente que Aristóteles, de modo algum, pensou que o aparecimento das almas
acontece antes dos corpos, porque reprovou a reminiscência platónica em muitos
pontos, tal como no livro 1 dos Posteriores, capítulos 1 º e 3º, e em A Alma, capítulo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão Ili, Artigo Ili 225

4º, texto 1 4, quando afirma que o intelecto do homem é como que uma tábua nua, na
qual nada está escrito. Depois, porque no livro 1 2 da Metafísica, capítulo 3º, textos
1 6 e 1 7 , ele ensina que a causa eficiente precede o seu efeito, a formal (que é a
alma), de modo algum. Não obsta que no segundo de A Geração dos Animais, capí­
tulo 3º, ele diga que o pensamento vem do exterior. De facto, com estas palavras,
não referia a vida da alma fora da matéria e anterior à união com o corpo, mas a sua
origem divina, criação e também a independência da matéria, como mostra o próprio
contexto da oração. Assim é, na verdade. Resta, portanto, que apenas a mente pro­
vém do exterior, e que só esta é divina. De facto, nenhuma acção corporal comunica
com a sua acção. Por isso, não é correcto o que escreveu Pletho no capítulo 9º, livro
De iis, quibus A ristoteles a Platone dissentit, afirmando que Aristóteles não nega,
com Platão, seu mestre, a anterioridade das almas.
No que ensinámos acima, acerca da produção quotidiana das almas, nada impede
que, no segundo do Génesis, se diga que Deus descansou de toda a obra, que con­
cluíra. Primeiro, porque não se diz que Deus descansou em absoluto, mas descansou
da obra que terminara, isto é, dos seis primeiros dias. Embora se saiba que Deus
completou o trabalho do mundo em seis dias e, assim, no sétimo dia, deixou de criar
a máquina do mundo. Outro argumento. Porque, como São Tomás interpreta, no
livro 2 Contra os Gentios, capítulo 84º, e no comentário ao 2° livro das Sentenças,
distinção 1 8 , questão 2, artigo 1 , ao 7º; e Alberto Magno, na Suma do Homem,
questão 1 5 , o repouso de Deus deve ser compreendido como o cessar da produção de
novas espécies, não todavia, de novos indivíduos, que precederam os semelhantes,
segundo a espécie. Como todas as almas intelectivas e todos os homens são de uma
única espécie, não obsta ao referido descanso, que Deus crie todos os dias almas. De
passagem, acrescente-se a isto que se diz que as novas espécies de animais e de
outras coisas de composição variada que existiram no decurso dos tempos, também
foram produzidas de certo modo na primeira origem do mundo, não em si, mas nas
suas causas. Leia-se Santo Agostinho, no livro A Origem da Alma a S . Jerónimo.
E, na verdade, acerca da alma do primeiro homem existe até agora uma conside­
ração peculiar. De facto, Santo Agostinho, no livro sétimo de O Génesis à letra,
capítulo 24º; Hugo de São Victor; o autor da História Escolástica e o Mestre das
Sentenças duvidaram se tinha sido criada juntamente com os anjos antes da forma­
ção do corpo. Mas não tem de haver ambiguidade sobre este assunto, visto que os
argumentos acima aduzidos, concluem que nenhuma alma foi directamente produ­
zida por Deus, antes do corpo. Deus formou, assim, naquele momento, o corpo do
primeiro homem e infundiu-lhe a alma, como pensa São Gregório de Nissa, no livro
O Homem, capítulos 29º e 30º; São Damasceno, no livro 2, Fé Ortodoxa, capítulo
1 2º; São Jerónimo, Epístola 6 1 a Pamáquio sobre os erros de Orígenes e Epístola
1 39 a Cipriano; Leão, Epístola 91 . Também Santo Agostinho propende para esta
opinião no livro 1 2 de A Cidade de Deus, capítulo 23º.

ARTIGO Ili
Resolução dos argumentos do primeiro artigo

Temos agora de explicar os argumentos que no início da questão pareciam ter


provado que as almas intelectivas se transmitem por virtude da semente. Ao pri-
226 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

meiro argumento deve conceder-se a premissa maior, e em relação à menor dizer


que a potência passiva natural da matéria está presente para receber a alma intelec­
tiva. Àquela potência corresponde uma potência activa natural que, pelo menos,
consiga a introdução e ligação com a matéria. Portanto, para assegurar a verdade
referida, a uma qualquer potência passiva corresponde uma activa, basta que exista
essa potência nos progenitores, quando a forma supera a capacidade de toda a natu­
reza e o seu autor a produz, por lei definida e estabelecida, onde o primeiro agente
natural dispôs perfeita e congruentemente a matéria.
Ao segundo argumento, deve dizer-se que o homem, entre os restantes animais,
não recebe a sua forma da potência da matéria. Isto não provém da sua imperfeição
mas da dignidade da alma intelectiva que, ao ser reconhecida como mais excelente,
exige por isso uma origem mais alta. Tal, todavia, não impede que se diga que o
homem gera o homem, como expusemos no livro A Geração e a Corrupção. À outra
parte do mesmo argumento responde-se que, muitas vezes, os instrumentos, em
virtude da causa principal produzem efeitos mais nobres do que eles próprios, sem
nunca, todavia, serem chamados a produzir algo a partir do nada. Apenas as almas
intelectivas podem ser produzidas deste modo, como acima foi demonstrado.
Ao terceiro. Aquilo que confere à matéria a última disposição, também tem a
faculdade causadora da forma, caso a sua forma seja a da ordem com as disposições;
isto não acontece na questão proposta, visto que a alma intelectiva é uma substância
espiritual, independente do corpo, quanto ao seu ser e eleva-se acima da condição da
matéria. Embora a mesma alma, à sua maneira, seja o fim da geração humana, toda­
via, como o fim principal é o próprio composto ou o homem, que é gerado, é intei­
ramente suficiente, para que se não diga que o gerador se enganou no fim, se produ­
zir todo o composto, que ela não gere a própria forma, mas dela obtenha apenas a
ligação com a matéria. O que também é bastante para se dizer que o homem, nasce
semelhante a si, simplesmente, segundo a espécie.
Responde-se agora àqueles argumentos, que pretendiam provar que as almas
intelectivas são produzidas pelos anjos. Quando Aristóteles afirma que é um ser
perfeito o que procria algo semelhante a si, isso deve ser interpretado acerca dos
corpos vivos, não dos que se compõem por separação da matéria, cuja perfeição tem
de ser considerada de outra parte. Outro argumento. É maior, o ser, nas substâncias
isentas de corpo, do que a ordem, nas providas de corpo, não quanto à sua mútua
produção, visto que podem somente ser criadas por Deus Supremo, mas quanto às
hierarquias, à execução das funções e outras coisas deste género.
Se alguém opuser as palavras do Génesis, 'façamos o homem' , nas quais parece
indicar-se que Deus convidou os anjos para criar o homem juntamente com Ele,
deverá responder-se que nestas palavras não se exprime tal coisa, embora alguns,
como Teodoreto recorda, tenham acreditado nisso. Antes se indica o preceito e como
que o plano das pessoas divinas acerca da criação do homem, como registaram
Ruperto, no exórdio do livro 2, A Trindade e, nas suas obras, São Gregório, capítulo
27º, livro 9 de Os Morais, e Santo Ambrósio no livro A Dignidade da condição
Humana.
Mas não deve omitir-se que houve quem pensasse que Deus produziu a alma
racional dos primeiros pais, por si, a partir do nada, mas que a alma vegetativa e
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão IV, Artigo / 227

sensitiva dos mesmos foi criada pelos anjos. Assim pensa Fílon no livro A obra dos
seis dias e no livro De profugis e recolheu-o do Timeu de Platão, no qual se induz
que Deus, uma vez criado o espírito do homem partícipe da razão e de um plano,
com os segundos deuses, isto é, os anjos, falou-lhes e ordenou-lhes, que eles pró­
prios fabricassem o que restava do homem, quer dizer, o corpo e as almas, vegeta­
tiva e sensitiva. Esta opinião, todavia, deve ser totalmente refutada. Contra ela se
lançaram São Basílio, São Crisóstomo e Teodoreto, comentando o primeiro capítulo
do Génesis; Santo Agostinho, no livro 1 6 de A Cidade de Deus, capítulo 6º; São
Cirilo no livro Contra Juliano. E, decerto, com toda a justiça. Primeiro, porque no
homem não existem mais almas, mas apenas uma, a intelectiva, como no livro l de
A Geração mostrámos. Depois, porque aquelas almas não puderam ser produzidas
pelos anjos, através da criação, como se patenteia nas afirmações feitas, nem através
de outra acção, porque as substâncias separadas do corpo não podem introduzir na
matéria, por potência própria, nenhuma forma física, como demonstrámos no pri­
meiro livro da Física. Porque, de facto, o corpo dos primeiros pais não pôde ser feito
pelos anjos como Platão e Fílon acreditaram, visto que a formação do corpo dos
seres animados mais perfeitos não pode ser concluída por nenhuma potência da
natureza, para além da faculdade formativa, assim como também os seres animados
não podem ser gerados pela natureza de outra maneira senão pela intervenção da
semente e da potência formativa, como provámos no livro 2 de O Céu. Finalmente,
se os anjos, embora sem terem reproduzido o corpo dos primeiros pais, manifesta­
ram, no entanto, algo de uma função servil, por exemplo, recolhendo o pó ou forne­
cendo algo semelhante, esta questão é provável de ambas as partes. O Abulense
seguiu a afirmativa no capítulo 1 0, Génesis, questão 395 ; o Alense, a negativa, 2ª
parte da Suma Teológica, questão 78, membro 2, artigo lº; Santo Agostinho inclina­
-se para a primeira, livro 9, Sobre o Génesis à letra, capítulo 1 5º.

QUESTÃO IV
Em que momento do tempo parece ser infundida
no corpo a alma intelectiva

ARTIGO I
Acerca da ordem e do percurso das almas na matéria do feto antes
da infusão da alma intelectiva. Opiniões diferentes dos autores

Para esclarecermos a dificuldade proposta, ocorre, primeiro, explicar de que


modo a matéria do feto se desenvolve em ordem à recepção da alma intelectiva.
Aristóteles no livro 2, A Geração dos Animais, capítulo 3º, escreveu o seguinte,
acerca deste assunto: os que são concebidos, no princípio, parecem viver a vida da
estirpe. De modo semelhante se passa com a alma sensitiva, e o mesmo se diga da
intelectiva. Com efeito, é necessário que todas a tenham primeiro em potência antes
de a terem em acto. De facto, não é claro entre os autores por que ordem deve ser
compreendido o percurso da vida. Ponha-se de parte, em primeiro lugar, o erro
daqueles que, como refere Tertuliano no livro A Alma, consideraram que a alma não
é introduzida no feto, senão depois de ser dado à luz. Ocorre a opinião do Alense,
228 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

segunda parte da Suma Teológica, questão 87, membro 3 , artigo 6°, que considera
que as funções da vida, que aparecem no embrião, como a vegetativa e o cresci­
mento, não existem a partir da sua alma, mas a partir da alma da mãe ou da potência
formativa inerente à semente. Mas esta opinião refuta-se porque, como é pensa­
mento comum dos filósofos, as operações vitais devem provir não do exterior mas
do princípio interior da vida, que se diz que age ou opera. Daqui se segue que
quando, primeiro, o embrião começa a ser nutrido e a crescer, já a alma existe nele.
Mas, na verdade, os que atribuem alma ao embrião foram por diferentes cami­
nhos. Uns dizem que o feto tem primeiro a alma vegetativa e que a ela sobrevém a
alma sensitiva e depois a intelectiva, num certo espaço de tempo, tal como, num
mesmo homem, permanecem ao mesmo tempo as três almas. Mas o que aqui não é
possível ser por nós provado, foi-no nos livros de A Geração e a Corrupção, quando
mostrámos que não podem, ao mesmo tempo, no mesmo composto, ser adquiridas,
nem várias almas, nem várias formas substanciais de qualquer outra natureza.
Outros, portanto, que rejeitam a pluralidade de almas, asseguraram que uma
mesma alma, que primeiro foi vegetativa, por acção da potência seminal, aos pou­
cos, se aperfeiçoa, de tal modo que acaba por se tomar sensitiva. De seguida, que a
sensitiva, pela potência divina, operante e extrinsecamente assistente, devém intelec­
tiva. São Tomás refuta-os com muitos argumentos na 1ª parte da Suma Teológica,
questão 1 1 8, artigo 2º. Mas basta, por ora, que a alma não pode admitir o acréscimo
de um novo grau substancial, sem ser aumentada, tal como acontece com a brancura,
pela adição de um novo grau ou de uma maior perfeição, visto que nenhuma subs­
tância pode ser produzida ou aumentada na categoria da substância, como ensina
Aristóteles com o assentimento geral dos filósofos.
Outros declaram que o embrião, logo ao princípio, recebe a alma intelectiva,
embora não empreenda de imediato as funções que lhe são particulares, mas pri­
meiro as acções da vegetativa, em seguida da sensitiva, e também, a seu tempo, as
da intelectiva. Mas esta opinião afasta-se da verdade, como imediatamente se evi­
denciará.

ARTIGO II
Solução da dúvida proposta

Portanto, rejeitadas as opiniões anteriores, deve entender-se que a matéria do feto,


primeiro, é enformada pela alma vegetativa, de seguida pela sensitiva, em último,
pela intelectiva. Prova-se. Na verdade, o feto, depois da concepção, é alimentado
pelo sangue que a mãe lhe transmite através do cordão umbilical, destinado a essa
função e, entretanto, não apresenta nenhum sinal de sentir. Em seguida, alguns dias
depois, começa a mover-se, embora com um movimento ténue e estranho, como
poderá observar-se nos abortos. Se forem picados, contraem-se, o que pertence à
alma sensitiva. Por último, com os membros já enformados da figura humana,
recebe a forma, isto é, a alma racional, pela qual se integra na espécie humana. Que
é próprio que o caminho na geração do homem aconteça deste modo, confirma-o
São Tomás, no lugar citado, primeira parte da Suma Teológica, com o exemplo de
seres animados que têm origem na matéria putrefacta, quando emerge, primeiro, um
ser vivo mais imperfeito, depois outro, de melhor qualidade, um animal. Se se cos-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão IV, Artigo li 229

tuma observar isto nos animais imperfeitos, é consentâneo que o mesmo se aplique
aos animais de natureza mais elevada, e acima de tudo, à descendência humana, cuja
forma, quanto mais eminente for mais requer uma maior preparação. Ela não deve
ser infundida numa massa de matéria bruta e desordenada, mas no corpo conve­
niente e artisticamente munido de órgãos. Assim, conquanto o feto permaneça na
matéria alguns dias, sob a forma vegetativa, a seguir a esta intervenção, sucede a
forma sensitiva, e do mesmo modo, a esta, a intelectiva. Não admira que as duas
primeiras formas não se extingam, por nenhum ataque ou embate de inimigo
externo. Na verdade, como a primeira é via ou preparação para a segunda e a
segunda para a terceira, as duas primeiras recebem na matéria as disposições,
somente mantidas durante certo espaço de tempo, e dão lugar à forma principal, à
qual, precedendo, servem assim de guardiãs. Que a alma intelectiva não enforma
imediatamente, desde o princípio, a matéria do feto, amplamente o demonstram
alguns decretos dos Cânones sagrados, que o afirmam; para omitirmos os restantes,
capítulo 'Sicuti' 32, questão 2, quando se diz que não é cometido homicídio por
aquele que mata, no útero, o feto antes da infusão da alma, isto é, da racional, porque
ainda não se pode dizer que nasceu um homem.
Ainda, quanto ao período de tempo (que estava no princípio da questão proposta)
relativo ao espaço de dias em que a alma intelectiva é infundida no corpo, subsiste
discussão entre os filósofos. Mas concordam em que ela é infundida logo que o
corpo esteja perfeito e formado com os órgãos que são próprios à prole humana, o
que alcança enquanto não é de tamanho maior do que aquele que é próprio da maior
formiga, como afirma Aristóteles, livro 7 de A História dos Animais, capítulo 3º, e o
Abulense no capítulo 1 º de Mateus, parte 1 , questão 5 3 . É verdade que nem sempre
este tamanho é o mesmo. Acerca deste assunto, Fernélio escreveu o seguinte, no
livro A Procriação do Homem, capítulo 1 0º: observámos muitas vezes o feto abor­
tado no quadragésimo dia, de meio dedo (como afirma Aristóteles), com o verda­
deiro tamanho de uma formiga grande e inteiramente formado. A cabeça era seme­
lhante a uma avelã, maior por relação ao resto do corpo, os olhos saídos como pin­
ças, o nariz, as orelhas, os braços, as mãos, as pernas, os pés neles, os dedos separa­
dos. Também os filósofos concordam em que o corpo da fêmea por falta de calor e
de potência formativa é delineado mais lentamente. Todavia, os que até então escre­
veram sobre este assunto, discordam sobre o tempo em que a obra daquele projecto
se conclui. Leia-se Plutarco, livro 5, As Opiniões, capítulo 2 1 º; Hipócrates, no livro
O Feto; Fernélio, no livro A Procriação do Homem; Célio no livro 25 , Lectiones
Antiquae, capítulo 23º; Ambrósio, Pareum, livro 23, capítulo 2º. Todavia é mais
comum e verdadeira a opinião de que nos machos a obra se encontra concluída por
volta do quadragésimo dia, nas fêmeas, do octogésimo. O que se confirma da melhor
forma porque, na velha lei, se a mulher parisse um macho, ficava em casa quarenta
dias, se uma fêmea, oitenta dias, e deixava de entrar no templo. Na verdade os intér­
pretes das palavras divinas dizem que este número foi prescrito para imitação da
natureza e do tempo em que o corpo se forma no útero.
Colocadas assim as afirmações, respondemos à questão suscitada no início. A
alma intelectiva é infundida e unida ao corpo no instante em que, primeiro, pela
matéria e pela forma dos membros, e pelos restantes acidentes exigidos por essa
forma, foi provida e disposta, o que costuma acontecer à volta daquele dia que dis-
230 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

semos há pouco. Todavia, o Corpo de Cristo, nosso Salvador não observou no útero
da Virgem Mãe esta lei da formação sucessiva. Na verdade, o que o período de qua­
renta dias pela potência da natureza, aos poucos devia formar, foi absolutamente
concluído num momento, pela potência divina e por obra do Espírito Santo, como é
doutrina comum dos Padres e dos professores de Teologia Escolástica. Assim,
Sofrónio, no Concílio Sinonense, acto 1 1 º; Basílio, Homilia 25 , da geração humana
de Cristo; Damasceno, livro 3, capítulo 2º; Euthymio, Mateus, capítulo lº; Fulgên­
cio, no livro De incarnatione, capítulo 3º; Leão, na Epistola 1 1 a Juliano; São Tomás,
na 3ª parte da Suma Teológica, questão 30, artigo 1 º; e outros doutores no 3º livro das
Sentenças, distinção 3; o Alense, 3ª parte da Suma Teológica, questão 8, membro 2.

QUESTÃO V
Se todas as almas intelectivas são iguais em dignidade da natureza

ARTIGO !
Argumentos da parte negativa

Não chamamos à controvérsia se todas as almas intelectivas convêm na natureza


da espécie de que participam, em igualdade - na verdade, isto é admitido entre todos
-, mas se contraem a natureza comum mediante as diferenças individuais, de tal
modo que todas, quanto à sua quididade singular, são igualmente perfeitas. Defen­
dem a parte negativa Capréolo, no 2º livro das Sentenças, distinção 32, questão 1 ;
João Maior, questão 4, conclusão 6 ; o Hispalense, questão 1 ; Ricardo, questão 1 ,
acerca da 4ª principal; Alberto Magno, na mesma distinção, artigo sexto; Egídio, na
questão terceira; Liqueto, no primeiro livro das Sentenças, distinção terceira, ques­
tão primeira; o Ferrariense, no livro Contra os Gentios, capítulo terceiro; Javelo, no
oitavo da Metafísica, na questão sexta; Caetano, à questão 85 da primeira parte da
Suma Teológica, no artigo sétimo; o Abulense, sobre o capítulo décimo quinto de
Mateus, questão 86.
Esta opinião prova-se assim. Cada um opera como é, e da maneira como é quanto
à operação também é quanto à sua natureza. Mas as almas intelectivas operam umas
mais, outras menos perfeitamente, quer analisemos as acções imateriais, como os
actos de querer e de inteligir, quer as corporais, que são exercidas pelo ministério
dos órgãos, como as funções dos sentidos internos e externos. Portanto, entre as
almas intelectivas existirão umas mais perfeitas do que outras, conforme a natureza
particular.
Segundo. Visto que a alma, pela sua natureza é forma do corpo, é necessário que
lhe corresponda quanto à sua perfeição e lhe seja proporcional. Mas certas almas
têm corpos com órgãos mais aptos e dotados de melhor proporção, portanto mais
perfeitos. Logo, umas atingem uma natureza mais excelente do que outras. Terceiro
(que confirma o argumento anterior). A alma considerada em si, não está ordenada
em relação a um corpo qualquer, mas a um corpo certo e determinado. Portanto, uma
recebe um corpo mais nobre, outra, um menos nobre. Mas ao receber um daquele
tipo, isso não pode ser por outra razão senão devido à maior e menor nobreza da
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V, A rtigo I 231

essência das próprias almas. Logo, uma alma supera a outra pela nobreza da essên­
cia. Prova-se a premissa menor desta argumentação porque se uma alma, por si, não
se ordenasse para um certo corpo, mas para qualquer coisa, ela seria indefinida.
Quando Deus infunde a alma, por exemplo, de Sócrates, no seu corpo, poderia, con­
servada a ordem da natureza e sem milagre, infundir nele a alma de Platão, criado
depois. E assim, Sofronisco em lugar de Sócrates, que então gerou, teria podido
gerar Platão. De onde se segue que o mesmo efeito singular pode ser produzido por
duas causas totais, o que nega a melhor parte dos que correctamente filosofam.
Quarto. A diferença de perfeição segundo a natureza louva mais o Universo e
acrescenta-lhe mais em beleza e encanto do que a igualdade, visto que as coisas
iguais não possuem por si a ordem, donde nasce a beleza no grau mais elevado.
Portanto, foi mais conveniente que as almas fossem entre si desiguais na perfeição
da natureza do que incluídas num mesmo grau de perfeição.
Quinto. Do mesmo modo que os géneros se contraem por diferenças específicas
de perfeição desigual, também as espécies podem ser contraídas por diferenças sin­
gulares que não são, igualmente, perfeitas. Portanto, numa mesma natureza comum,
as almas intelectivas, ou são, ou pelo menos podem ser, umas mais, outras menos
perfeitas. Prova-se o antecedente, porque isso não é incompatível da parte de Deus,
criador das almas, visto que contém eminentemente em si graus infinitos de novas
perfeições que pode transmitir às coisas. E também não o é da parte das próprias
almas, porque não se manifesta uma tal incompatibilidade.
Ú ltimo. Que as diferenças individuais das almas não podem ser igualmente per­
feitas, parece mostrar-se pelo facto de que se não fosse assim conviriam entre si, de
modo unívoco; atendendo a que são iguais, naquilo em que são iguais, convêm uni­
vocamente. Mas que esta conveniência não deve, de modo algum, ser admitida, é
claro, porque aquilo em que conviessem dividir-se-ia por outras diferenças, relati­
vamente às quais retornaria a mesma questão, se fossem iguais: se o fossem, por
igual razão, conviriam univocamente, como as primeiras, e assim dar-se-ia um pro­
cesso infinito. Portanto, não parece que haja tais diferenças e, por isso, parece que as
almas, que são constituídas por essas diferenças, não têm entre si igual perfeição de
natureza.
A isto acresce a autoridade dos doutores parisienses, que condenam a igualdade
das almas em determinado artigo. Se alguém, dizem, afirmar que pela origem, todas
as almas são iguais, erra, porque a alma de Cristo não seria mais perfeita do que a
alma de Judas. Henrique de Gand recorda este artigo no terceiro Quodlibet, questão
quinta, e Durando no 2º das Sentenças, distinção 32, questão 5. Por aqui também se
compreende a afirmação de Aristóteles neste livro, capítulo nono, texto 94: são
brandos de carne, bem aptos e engenhosos de mente. Com estas palavras, da bran­
dura da carne e da superioridade de carácter ele compreende, portanto, a nobreza da
alma e a maior superioridade do intelecto. Também a isto diz respeito o passo de
Salomão, Sabedoria 8: era uma criança sábia e coube-me uma alma boa.
232 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Argumentos a favor da parte afirmativa

Durando defende a opinião contrária no 2º livro das Sentenças, distinção 32,


questão 3 ; Argentinas, ibidem, questão 1, artigo 2°; Soncinas, no 8º livro da Metafí­
sica, questão 26; Soto no livro dos Predicamentos, capítulo sobre a substância,
questão 2; Zimara, no Teorema 54. Para a mesma se inclina Henrique de Gand,
embora, por ser Doutor da Sorbona, em virtude do juramento de autoridade do artigo
Parisiense, não faça, em absoluto, uma afirmação. Nesta controvérsia não é claro
qual tenha sido o juízo de São Tomás. Os seus seguidores ajustam a sua doutrina
sobre este assunto, como uma régua lésbia, àquilo que cada um pensa. Caetano
afirma que existe, de tal forma, um plano que estabelecia a desigualdade das almas,
que chama cegos àqueles que o não vêem. Soto, no ponto citado, acerca destes
cegos, declara ser um deles. Certamente não faltam lugares em São Tomás em que
parece poder apoiar-se uma e outra parte. Na verdade, o Santo Doutor, no 1° livro
das Sentenças, distinção 8, questão 5, artigo 2° na resposta ao 6º, afirma que a alma
que se ordena para um corpo mais bem ordenado é mais perfeita. E no 2º livro, dis­
tinção 2 1 , questão 2, artigo 1 º ao 2º, afirma que a alma do primeiro pai foi mais
digna que a alma de Eva, porque observava a proporção do próprio corpo, que era
mais nobre. E, no mesmo livro, distinção 32, questão 2, artigo 3º, quando questionou
expressamente se as almas eram iguais na sua criação, responde que eram iguais na
natureza da espécie, mas que diferiam em número pela diversidade dos corpos, pelos
quais se individuavam e que uma é tanto mais nobre do que outra quanto melhor for
a proporção do corpo que lhe couber. E o mesmo autor, no Quodlibet terceiro, artigo
terceiro, afirma que as coisas singulares de uma única espécie, não se ordenam entre
si, mas ordenam-se aquelas que diferem em espécie, porque nas espécies das coisas
uma excede a outra, tal como nas espécies dos números. Com estas palavras parece
significar que os singulares contidos sob uma mesma espécie não sobressaem pela
nobreza da essência. Com efeito, os pontos anteriores defendem claramente a desi­
gualdade das almas na doutrina de São Tomás.
Para afastar a parte afirmativa da nossa questão, alguns, de entre os mais recentes
metafísicos, sustentam entre outros, três argumentos. Primeiro. Porque se todas as
almas são desiguais não podem ser feitas por Deus duas de igual perfeição, o que é
absurdo. Segundo. Porque, dado que dia a dia são criadas por Deus novas almas, se
estas tivessem uma perfeição diferente, seguir-se-ia que o mundo não tinha sido
sempre igualmente perfeito, quanto à substância, completando-se a perfeição todos
os dias, pela nova criação das almas. Terceiro. Porque se as almas fossem desiguais
em perfeição intrínseca, cada uma teria a sua particular quididade e, assim, deviam
ser transmitidas definições particulares de cada uma, o que os filósofos negam,
quando determinam que só a natureza comum seja definida. Na verdade, estes
argumentos têm pouca solidez. O primeiro deles opõe uma dificuldade, que é
comum a uma e outra opinião. De facto, também pode objectar-se contra quem diz
que as almas são iguais em natureza, que segundo a sua opinião Deus não pode criar
várias almas de perfeição desigual. Como não reputam isto de absurdo, igualmente,
não acham absurdo negar que possam ser criadas por Deus muitas almas com igual
perfeição. O segundo argumento supõe que a perfeição do universo depende da
perfeição de cada um dos singulares, o que não é assim, como correctamente ensina
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V, Artigo II 233

São Tomás, livro 2 Contra os Gentios, capítulo 84º: porque ainda que as almas,
sejam umas mais nobres do que outras em natureza, a perfeição do universo não
seria variável em função da sua multiplicação, tal como também não é variável com
o nascimento e as mortes, todos os dias, de novos indivíduos de diversas espécies,
entre as quais, é claro que existe uma desigualdade de perfeição, não apenas segundo
a espécie, mas também segundo as razões individuais. Embora os singulares da
mesma espécie, entre si, sejam iguais em perfeição, se forem comparados com desi­
guais, de outras espécies, sem dúvida que serão diferentes, tal como as naturezas
específicas nas quais se inscrevem. Por fim, o terceiro argumento, por absurdo,
aceita que cada alma tem a sua particular quididade; como se, efectivamente, não se
tivesse, necessariamente, de reconhecer isso, tanto na igualdade das almas como na
desigualdade. Acima de tudo, quer as almas sejam consideradas iguais quer não, não
se deve negar que a cada uma, intrinsecamente, corresponde a sua diferença indivi­
dual e, até, a sua particular quididade. A não ser que, se as almas forem iguais, as
diferenças possuam igual perfeição, se desiguais, diferente. Depois, pelo facto de as
almas serem formadas como desiguais, não se segue que a cada uma delas se deva
atribuir uma definição particular mais do que se elas fossem iguais. Com efeito, as
definições são aplicadas para explicar as naturezas das coisas, quer iguais, quer
desiguais. Donde, se fossem produzidas duas espécies que tenham igual perfeição da
natureza, ainda que qualquer delas reclamasse uma definição própria, isso mostraria
não a desigualdade, mas a diversidade da natureza. Assim, de facto, a causa pela
qual os filósofos tratam muito pouco as definições dos singulares, não é porque os
indivíduos sob uma mesma espécie alcancem igual perfeição, mas porque sob o
conhecimento das ciências não recaem senão aquelas, que tanto são permanentes,
como pela sua natureza são conhecidas por muitos, que é o que sucede não com as
naturezas singulares, mas com as naturezas comuns. Acrescente-se também que os
individuais não respeitam propriamente à arte, porque não se incluem num número
definido, tal como as espécies, como Porfírio ensinou no capítulo sobre a espécie,
com base em Platão no Filebo.
Omitidos, portanto, estes argumentos, quer porque são pouco eficazes, quer por­
que se apropriam de algo alheio à verdade, poderá, sem dúvida, o objecto ser con­
firmado de outro modo, a saber: se todas as almas intelectivas tivessem entre si uma
perfeição desigual quanto às naturezas singulares, o mesmo também deveria ser dito
de todos os outros individuais, pelo menos das substâncias dessa ínfima espécie,
visto que em todas se encontra uma igual razão; mas como isto não deve ser admi­
tido, também não deve aquilo. A premissa maior é concedida pelos adversários. A
premissa menor prova-se. Na verdade, se esses individuais tivessem uma perfeição
desigual, seguir-se-ia que todos os efeitos singulares seriam continuadamente uma
degeneração das suas causas. Na verdade, como eles não podiam ser mais nobres,
visto que nenhum efeito é mais nobre do que a sua causa principal, uma vez que,
como afirmam, não podem ser iguais, a consequência é que são de dignidade infe­
rior. Todavia, isto opõe-se ao axioma geral dos filósofos que afirmam que qualquer
causa unívoca produz um efeito totalmente igual a si, mal são levantados os obstá­
culos.
Segundo. A razão principal pela qual os adversários provam a desigualdade das
almas é a da desigualdade da perfeição ao operar. Ora, este argumento não con-
234 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

vence. Logo, etc. Prova-se a premissa menor. Não se demonstra convenientemente a


maior nobreza da sua potência a partir da desigualdade ao operar. Portanto, também
não é demonstrada a maior nobreza ou perfeição da alma. O antecedente do argu­
mento é demonstrado com o testemunho de Aristóteles. Com efeito, no livro pri­
meiro desta obra, capítulo 4º, texto 64; no livro 2, capítulo 9º, texto 92 e nos Proble­
mas, secção 3 1 , questão 1 4, Aristóteles considera que se deve atribuir a falta e a
superioridade das operações que provêm da mesma potência segundo a espécie não
à maior ou menor perfeição da sua própria potência, mas à falta ou perfeição do
órgão que a usa. A alma igualmente perfeita pode, por superioridade ou defeito da
faculdade formativa dos progenitores, ou de outras causas externas, ter órgãos
melhores ou piores e, assim, por intervenção destes, executar mais exacta ou imper­
feitamente as operações das faculdades orgânicas.
Terceiro. Prova-se que do valor da inteligência não se colhe correctamente uma
maior perfeição, quer da mente, quer da faculdade intelectiva, porque vemos que um
mesmo homem se toma, ora mais ágil, ora mais obtuso a inteligir. Uns, com doença
grave, perdem a excelência do engenho, outros, tomam-se mais argutos mediante
remédios e purgas. Donde, Caméades havia de escrever contra as opiniões dos estói­
cos, que as coisas mais elevadas do corpo, para aguçar o engenho, se purgam com
heléboro branco, o que Plínio, no livro 35, capítulo 5º refere que alguns alcançaram­
-no em virtude dos estudos. Visto que a própria faculdade de inteligir, que reside no
espírito, de forma alguma apresenta em si própria variação, parece evidente que a
maior facilidade ou dificuldade ao inteligir, não deriva da maior ou menor agilidade
do intelecto, mas do concurso e apoio da cooperação da fantasia, a qual, se o órgão
tem uma melhor disposição, fornece ao intelecto a sua obra e ministério com pronti­
dão e vivacidade, como já assinalámos, mais do que uma vez.
Além disso, porque na doutrina peripatética se prova que não só as almas, mas
quaisquer outros indivíduos da mesma ínfima espécie que são iguais entre si. Na
verdade, Aristóteles, no livro 3 da Metafísica, capítulo 1 1 º, texto 26 ensina que nas
coisas contidas numa mesma ínfima espécie não há o antes e o depois, mas haveria o
antes se houvesse um grau mais alto de perfeição. seguir, no livro 7 da Física,
capítulo 4º, texto 3 1 , e no 10 da Metafísica, capítulo 1 3º, texto 26, chama a atenção
para a analogia subjacente à natureza do género, porque a natureza genérica tem o
ser mais perfeito numa espécie do que noutra, em virtude da desigualdade das dife­
renças pelas quais é contraída. Como, portanto, Aristóteles põe esta analogia da
desigualdade no género e não na espécie, evidencia notoriamente que não reconhece
nos indivíduos da mesma espécie a desigualdade da perfeição entre as diferenças
individuantes.

ARTIGO III
Considera-se provável uma e outra parte da controvérsia.
Prefere-se a afirmativa. São rebatidos os argumentos dos adversários

Disputada assim esta matéria, parece-nos provável uma e outra parte da contro­
vérsia. A afirmativa, porque se aproxima mais da doutrina peripatética, como teste­
munham claramente os pontos de Aristóteles que citámos há pouco. Acolhemo-la de
preferência. Mas também nos inclinámos para ela no livro segundo da Física. Pas-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V, Artigo Ili 235

samos a responder aos argumentos que recolhemos a favor da opinião adversária. Ao


primeiro, cuja solução poderia facilmente ser já obtida a partir das afirmações,
dizendo que a maior nobreza da potência se alcança do modo mais nobre de operar,
quando a potência, a partir de si e de modo intrínseco reivindica um tal modo. No
entanto, isto não acontece nas potências da ínfima espécie. Nem, por exemplo, a
potência de ver de Linceu é, por si, mais perspicaz do que potência de ver de Sócra­
tes, mas vê mais perspicazmente porque tem um órgão mais bem provido. Nem o
intelecto de Aristóteles é, por si, mais acutilante do que o de Platão, mas intelige de
modo mais expedito e acutilante, porque é coadjuvado pelo ministério mais ágil da
fantasia, como acima salientámos.
Ao segundo, deve dizer-se que a alma corresponde ao corpo e é-lhe proporcional,
na medida em que não se ordena senão para o corpo munido do aparato dos órgãos
mais apropriados à alma. Não se retira daqui, que a melhor disposição para o corpo
deva ser a alma intelectiva mais perfeita. Ao terceiro, deve conceder-se o que ele
acolhe, mostrando que uma e qualquer alma não pertence indeterminadamente a
qualquer corpo, mas a um corpo determinado, tal como no instante em que Deus
infundiu a alma a Sócrates, não teria podido infundir outra alma, salvo por milagre,
como correctamente o argumento prova. Donde, uma vez que entre os corpos que
são enformados pelas almas intelectivas, umas são mais perfeitas, outras menos, não
deve negar-se que certas almas pertencem a corpos mais perfeitos, outras a corpos
menos perfeitos, conforme os acidentes. Tal como também a perfeição maior não
pertence à alma por si, mas por acidente, segundo a consideração da sua natureza,
porque, sem dúvida, uma dada alma pertence, por si, a uma dada matéria, à qual
cabe ter disposições mais perfeitas. Daí que tal diversidade de pertença, tal como
não corresponde, por si à alma, também não demonstra nela maior perfeição de
natureza.
Ao quarto, deve responder-se que, embora a beleza do universo resulte mais da
desigualdade e da distinção das coisas do que da igualdade, não obstante, também a
igualdade, pelo seu modo de beleza, aumenta a elegância. Porém, nas coisas que se
integram sob uma e a mesma ínfima espécie, não pode produzir-se a desigualdade de
essência, como, em breve, diremos.
Ao quinto, deve negar-se o antecedente e para a sua confirmação dizer que a alma
intelectiva não pode ser contraída por diferenças desiguais, porque a natureza da
ínfima espécie não é capaz deste modo de restrição. Com efeito, quanto mais se
aproximar, através das diferenças, dos extremos, tanto mais a natureza comum se
contrai por diferenças menos distintas, isto é, que constituem coisas menos diferen­
tes entre si (além disso, em primeiro lugar, todas as diferenças são diversas). Logo,
descendo até aqui, após ter chegado às naturezas singulares, em que cessa toda a
restrição, é evidente que a natureza se contrai através das diferenças que se ajustam
entre si, quanto possível, isto é, segundo a igualdade da perfeição, quando não
podem ajustar-se pela identidade. E assim, toda a ínfima espécie se restringe através
das diferenças individuantes, que são iguais entre si, não pela igualdade positiva,
como se uma contivesse em si toda a perfeição da outra, mas pela negativa, de tal
modo que uma não contenha algum grau de perfeição, pela qual supere a outra.
Facilmente resolverá o último argumento quem disser que nenhuma natureza uni­
versal pode ser considerada unívoca, excepto aquela que pode ser contraída pelas
236 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

inferiores, através das diferenças, contracção esta que as diferenças não admitem,
quer por outras causas, quer porque, se não fosse assim, dar-se-ia aquela progressão
até ao infinito, o que se retira do argumento. Por isso, para a univocidade, não basta
aquela igualdade, que as diferenças das coisas singulares alcançam, incluídas na
mesma ínfima espécie. Além disso, de preferência, sempre as diferenças que con­
vêm univocamente numa natureza universal acrescentam um grau de perfeição
acima dela, visto que uma natureza universal não pode conter em acto toda a perfei­
ção das inferiores, pelas quais se reparte.
Mas no que concerne ao artigo parisiense, Durando responde, no local citado, que
uma alma intelectiva é mais perfeita do que outra, se se examinar do ponto de vista
das potências sensitivas e vegetativas. Com efeito, concede-se que estas possam ser
de natureza mais excelente sob a mesma ínfima espécie. Ele também afirma que esta
desigualdade parece ser suficiente para examinar a autoridade do artigo, visto que
apenas estabelece que as almas são desiguais, não determinando o modo certo da
desigualdade. Esta resposta não satisfaz. Primeiro, porque o artigo respeitante à
desigualdade, segundo as diferenças individuais, no qual consistia a controvérsia,
declarou uma posição. Depois, porque, como acima mostrámos, todas as potências
contidas sob a mesma ínfima espécie alcançam igual dignidade de natureza, embora
algumas funções executem as suas de modo mais perfeito do que outras, em virtude
da melhor proporção dos órgãos. Deve dizer-se, portanto, de preferência que a auto­
ridade do artigo não é pequena, mas que não é irrefutável fora da escola parisiense.
O passo de Aristóteles, baseado no terceiro livro de A Alma, somente indica que a
delicadeza da carne é indício de bom carácter, à maneira acima explicada, mas não
de uma maior nobreza de alma. Igualmente, as palavras de Sabedoria 8, omitindo as
restantes interpretações, são explicadas de dois modos. Um, que diz que Salomão
recebeu uma alma boa, isto é, de egrégia propensão para a sabedoria e virtudes, não
exactamente de maior superioridade ínsita na própria alma, mas do estado e dispo­
sição do corpo, que, como acima dissemos também muito contribui para as acções
imateriais. Outro, que fala da bondade das virtudes pela graça divinamente conce­
dida. Aqui, por fim, advertimos que alguns, nesta questão, trazem os testemunhos de
muitos Padres para provar a igualdade das almas. Mas omitimo-los porque nenhum
deles parece ter falado acerca da alma segundo as diferenças individuais, mas
segundo a sua natureza comum.

QUESTÃO VI
Se a alma intelectiva é verdadeira forma do homem ou não

ARTIGO I
Que argumentos parecem afirmar a parte negativa da questão

Para abrirmos caminho aos argumentos que podem ser produzidos para aconse­
lhar a parte negativa, deve, antecipadamente, dizer-se, a partir de São Tomás 2 Con­
tra os Gentios, capítulo 68º, que são necessárias duas condições para se dizer que
alguma coisa é, em sentido verdadeiro e próprio, a forma substancial de outra. Uma,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão VI, Artigo J 237

que seja substancialmente o princípio de ser daquela de que é a forma. A outra, que
se segue da primeira, que a forma e a matéria se juntem na natureza de um único
composto e num ser completo. Parece, portanto, que estas coisas em nada respeitam
à alma intelectiva e, por isso, demonstra-se do seguinte modo, que não é a forma do
homem. O que não pode comunicar à matéria a sua própria potência e operação, não
lhe poderá dar o seu ser, visto que nem a potência, nem a acção são mais simples e
mais abstractas do que a essência da qual brotam a capacidade e a potência. Ora, a
alma racional não pode comunicar o intelecto ao corpo, ou a intelecção, que é a sua
própria operação. Logo, não lhe poderá comunicar o seu ser espiritual, o que, como
dissemos, é exigido pela noção de forma.
Segundo. As coisas que distam muito entre si, não podem juntar-se de modo ade­
quado. Ora, a alma intelectiva, como é uma substância espiritual, dista o máximo da
matéria impura, da materialidade do corpo humano. Logo, não pode adaptar-se ao
corpo e à matéria, congruentemente, segundo a composição de uma coisa una.
Acrescente-se que, como a alma intelectiva fica livre com a morte, pois o corpo
humano é corruptível, não se vê de que maneira eles podem, corresponder a si, em
proporção.
Terceiro. A forma relaciona-se com a matéria como um correlato transcendente.
Ora, a alma intelectiva não pode ser assim correlacionada. Portanto, não é forma.
Prova-se a menor, porque um correlato transcendente depende, quanto ao seu ser,
daquilo com que se relaciona. Mas a alma não depende, quanto ao seu ser, da maté­
ria, visto que pode permanecer fora dela.
Quarto. Visto que a alma do homem é algo por si subsistente, não é possível que
se una ao corpo, a não ser para algum bem dele. Ora, ou é por causa do bem essen­
cial ou dos bens dos acidentes. Por causa do bem essencial, não, visto que pode
subsistir fora do corpo. Por causa dos bens dos acidentes, também não, pois isso
pareceria ser, sobretudo, o conhecimento da verdade adquirido pelo ministério dos
sentidos. Isto também não se deve dizer, porque a alma pode alcançar a ciência fora
do corpo a partir do influxo do movimento celeste. Logo, etc. Acrescente-se que não
é próprio de um sábio artista causar entrave à sua obra e que a alma intelectiva, na
associação com o corpo, está impedida de conhecer, visto que o corpo, que se cor­
rompe, oprime a alma. Donde aquele passo de Virgílio:
Não os entorpecem corpos prejudiciais, nem as articulações mortais e os membros
caducos os enfraquecem.

Razão pela qual não parece que Deus tenha juntado a alma do homem com o
corpo, como forma por si.
Quinto. Ou a união da alma com o corpo é uma substância ou é um acidente. Se é
substância, então uma substância desaparece na alma, quando o homem morre, o que
é claramente falso porque a alma racional quanto à sua substância, em parte alguma
sobrevém à morte. Se é um acidente, então a alma constitui o homem, não por si,
mas por acidente. Donde se segue, que da alma e do corpo não se faz algo único no
género da substância e, portanto, a alma intelectiva não é própria e verdadeira forma
do homem.
238 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Não pode negar-se que a alma intelectiva é verdadeira
e propriamente forma do homem

Sobre esta questão temos, primeiro, a afirmação de Platão, em Alcibíades /,


dizendo que a alma intelectiva não se junta ao corpo como uma forma à matéria,
mas apenas como o motor para o móvel, e que a alma de Sócrates está para Sócrates,
como o piloto para o navio, visto que o governa com o artifício da razão e da inteli­
gência, move o corpo como que um leme, inflecte e modera as suas acções (embora
não falte quem afirme que Platão não nega que a alma intelectiva é forma do corpo,
mas que enforma o corpo como as restantes formas, que estão de tal modo unidas
aos corpos, que não podem existir fora deles). Parece que Anaxárco pensou como
Platão, uma vez que Fílon o Judeu, lembra no livro que intitulou, Quod omnis pro­
bus, liber est, que ele foi arremessado para um almofariz de rocha por Nacreonte,
tirano de Chipre, e aí, por diversas vezes esmagado com martelos de ferro repetida­
mente dizia isto: esmaga, esmaga o invólucro de Anaxárco, mas sem esmagar Ana­
xárco. Com aquelas palavras indica que o corpo externo que o homem é, não per­
tence à sua natureza. Depois, Simplício, livro 1 , no texto sétimo desta obra, afirma
que a alma não é forma do homem; também Filópono, texto 1 2; Temístio, livro 2,
capítulo 27º; Averróis, livro 3, comentário 5; um certo Pedro João referido por
Guido Carmelita no seu livro De haeresibus. Parece que alguns consideram o
mesmo, por volta do ano 1 300 da nossa salvação, como se compreende do Concílio
de Viena sob Clemente V, o que é referido na Clementina 'Ad nostrum de summa
Trinitate et fide Catholica' . Também noutra data, Leão X, como indica o Concílio de
Latrão sob o mesmo, sessão 8. Finalmente, houve quem pensasse que a alma do
homem, segundo o grau intelectivo não é forma do corpo, mas apenas, dada a dispo­
sição, uma faculdade de nutrir e de sentir, cujas funções dependem directamente da
matéria e lhe são inerentes. Caetano parece ser claro nisto, 1 ª parte da Suma Teoló­
gica, questão 76, artigo 1 º, na resposta ao 1 º.
Seja, no entanto, nesta discussão, a primeira conclusão. Não pode negar-se que a
alma intelectiva é verdadeira e própria forma do homem e do seu corpo, que
enforma. Esta conclusão demonstra-se com os seguintes argumentos. É necessário
que o princípio das operações de qualquer coisa natural seja a sua forma, mas qual­
quer de nós experimenta que intelige, que sente e que produz outras funções deste
género. Portanto, é preciso que exista em nós uma forma, pela qual persistam as
referidas operações. Essa forma não é outra senão a alma intelectiva, visto que, no
mesmo composto, não podem existir várias formas substanciais, como mostrámos
no livro 1 de A Geração e a Corrupção. Logo, a alma intelectiva é a verdadeira
forma do homem. A premissa maior é evidente porque nada age, a não ser enquanto
está em acto e, de facto, uma coisa não está em acto nas coisas físicas, a não ser
através da forma natural, visto que a matéria é pura potência e não possui nenhuma
faculdade efectivadora. Este argumento quase foi acolhido por Aristóteles, no capí­
tulo 2º daquele livro. São Tomás, na 1ª parte da Suma Teológica, questão 76, artigo
1º e Durando no 2º livro das Sentenças, distinção 1 7 , questão 1 , crêem que nenhum
argumento pode ser mais eficazmente produzido para confirmar o assunto proposto,
a partir das fontes da filosofia.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão VI, A rtigo li 239

Segundo argumento. Confirma-se o mesmo, deste modo. A verdadeira forma de


uma coisa é o que constitui a coisa numa certa espécie e a separa das outras. Assim é
a alma intelectiva, no que respeita ao homem. É , portanto, a sua verdadeira forma.
Prova-se a premissa menor. Com efeito, o homem tem a matéria em comum com os
animais e outros compostos sublunares e não pode, mercê da matéria, distinguir-se
deles em espécie ou obter uma certa espécie. Resta então que isso cabe, justamente,
à alma intelectiva.
Terceiro. Que a alma intelectiva não existe para o corpo apenas como motor, mas
como seu acto e forma, demonstra-se assim. O móvel não recebe o ser do motor,
mas só o movimento. Portanto, se a alma se une ao corpo, somente como motor, o
corpo será seguramente movimentado por ela, mas não recebe dela o ser. Por isso,
como viver é um certo ser da coisa viva, o corpo não vive através da alma, o que é
claramente falso. Outro. Embora o navio se corrompa, o marinheiro, todavia, con­
serva ilesas as operações do homem. Também a nossa alma largamente afectada ao
corpo, não pratica as suas acções sem erro e sem vício, como acontece à vista, nos
ébrios e frenéticos. Portanto, a alma não está para o corpo como o marinheiro para o
navio. Acrescente-se que o homem é gerado com a junção da alma e morre com o
seu afastamento, o que, de modo algum acontece com o contacto do marinheiro com
o navio e do motor com a coisa movida e, igualmente, com o seu afastamento.
Quarto. Pode demonstrar-se que segundo a doutrina de Aristóteles a alma intelec­
tiva é a verdadeira forma do homem. Primeiro, porque na definição, pela qual define
a alma como o acto ou forma do corpo, compreende a alma em geral, como ele pró­
prio aí declara e, portanto, também a intelectiva. Depois, porque demonstrará no
capítulo a seguir que a alma é acto ou forma do corpo, por ser aquilo, por que pri­
meiramente vivemos, nos movemos localmente e inteligimos. Incluiu neste raciocí­
nio a alma intelectiva, com palavras claras, pois somente através dela inteligimos.
Ele não o quis dizer de forma menos clara no livro 12 da Metafísica, capítulo 3º,
texto 1 7 , no momento em que levantava a questão sobre o modo como a causa for­
mal não precede aquilo de que é causa e, por isso, não subsiste, quando isso perece.
Responde, que parece não haver obstáculo, que subsista em alguns, como na alma
que participa do intelecto. E assim, enumera a alma humana entre as formas. Acon­
tece que segundo a sua opinião, uma pessoa é formada de corpo e de alma, como é
evidente a partir do que ensinou no capítulo primeiro deste livro, texto 7, inequivo­
camente dissertando, a respeito de toda a alma, que da alma intelectiva e do corpo
não se faria um, a não ser que ela fosse a forma e o acto do corpo, conservando
assim, ambos, entre si, a proporção que é medianeira da unidade.
Quinto. Para não disputarmos com razões somente físicas. Que a alma do homem
é a sua verdadeira e própria forma, ensina-o a fé ortodoxa, mais certa do que toda a
filosofia. O concílio de Viena definiu-o, primeiro, sob Clemente V, cujo decreto
lemos na Clementina, única, de summa Trinitate § 2, com as palavras a seguir. Con­
denamos e reprovamos toda a doutrina ou posição que afirma, sem razão, e tendendo
para a dúvida, que a substância da alma racional ou intelectiva, verdadeiramente e
por si, não é forma do corpo humano, como errónea, inimiga da verdade católica,
conforme aprovou o referido sagrado Concílio, definindo que quem antecipada­
mente ousou, anunciou ou pertinazmente sustentou que a alma racional ou intelec­
tiva não é forma do corpo humano, por si, essencialmente, deve ser declarado heré-
240 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

tico. Donde, o próprio Concílio de Latrão, sob Leão X, ter estabelecido o seguinte,
na sessão 8, onde estão escritas estas palavras : condenamos e reprovamos todos os
que afirmam que a alma intelectiva é mortal e uma só para todos os homens, e os
que põem em dúvida estas afirmações, visto que ela existe verdadeiramente por si,
não só essencialmente como forma do corpo humano, verdadeiro e imortal, mas
também multiplicável singularmente pela multiplicidade dos corpos em que é infun­
dida. Não só foi multiplicada, mas deve multiplicar-se.
Segunda conclusão. A alma humana não só quanto ao grau sensitivo e vegetativo
e aos restantes, superiores, mas também quanto ao grau intelectivo é verdadeira e
propriamente forma do homem. Prova-se isto porque, dado que compreendemos as
formas das coisas por meio das operações, e é próprio do homem inteligir e racioci­
nar, é necessário que a alma racional mostre também, quanto àquele grau, do qual
provêm essas acções, que é verdadeira e própria forma do homem. Segundo, porque
a alma intelectiva no presente estado da vida experimenta todo o conhecimento
através dos sentidos e no que diz respeito, também, ao uso das espécies, pelo menos
da maior parte, depende do corpo, pois é necessário que o que intelige considere os
fantasmas. O que certamente não aconteceria, se não houvesse também quanto ao
grau intelectivo, uma relação com o corpo, enformando-o de facto, pois essa depen­
dência, quanto à operação, somente tem origem no nexo natural entre a alma e o
corpo. Terceiro. Porque, se a alma humana, no referido grau, não estivesse ligada ao
corpo como sua forma, nada conduziria a composição do corpo até à perspicácia do
espírito e a experimentar as acções da intelecção, cujo contrário a experiência
ensina, como acima argumentávamos. Quarto. O mesmo se estabelece, porque, tal
como os Concílios de Viena e de Latrão decretaram de modo inequívoco, a alma
intelectiva é verdadeiramente e, por si, forma do corpo humano; no grau de inteligir,
a alma intelectiva obteve o seu ser próprio e particular, sendo inquestionável que
este decreto acerca da alma, deve ser compreendido nestes termos, no que toca a
esse grau.
Terceira conclusão. Não só foi ratificado pela fé, mas também se conclui pela
razão natural, que a alma intelectiva é verdadeiramente e por si, forma do corpo.
Estabelecemos esta conclusão contra certos filósofos mais recentes que afirmam
incorrectamente, que apenas pela fé se sustenta que a alma racional é forma do corpo
e que ela é ao mesmo tempo imortal, como se, de facto, com base nas opiniões da
filosofia, não pudesse, nenhuma forma do corpo, subsistir fora da matéria. Com­
preende-se o seu engano, porque, no que respeita à imortalidade, o Concílio de
Latrão estabeleceu claramente que a alma humana também é imortal segundo a
filosofia, o que mostramos, de caminho, com argumentos filosóficos. Além disso, no
que respeita à noção de forma, é evidente a partir da discussão anterior, que também
sem a luz da fé, naturalmente se conclui e se convence com base no que dissemos,
que a alma intelectiva é desde logo forma do corpo.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão VI, Artigo Ili 241

ARTIGO Ili
Contrariam-se os argumentos propostos no início da questão

Respondamos agora aos argumentos do primeiro artigo. Ao primeiro dizendo, que


embora a alma intelectiva não possa comunicar à matéria as suas potências imate­
riais e as operações que são por elas obtidas, assim como a matéria é por elas enfor­
mada, ela pode no entanto comunicar-lhe o seu ser substancial. Não porque este seja
menos simples e imaterial, como correctamente afirma Caetano, quer no livro 3
desta obra, capítulo 2º, última dúvida, contra o Ferrariense no livro 2, Contra os
Gentios, capítulo 69º; quer na 1ª parte da Suma Teológica, questão 76, artigo 1 º, na
resposta ao 4º, mas porque as potências e as operações só podem enformar a matéria
quando estão ligadas a ela. Na verdade, os acidentes espirituais, de modo algum,
podem estar ligados ao corpo, e a alma enforma a matéria e comunica o seu ser
substancial, não por inerência, mas insinuando-se e animando-se de forma íntima,
através de todas as suas partes. A partir daqui é manifesto que não subsiste a mesma
natureza na alma racional, nas suas potências e nos seus actos. Contudo, pode dizer­
se que também a intelecção, de algum modo, é comum à alma e ao corpo, visto que
a intelecção da alma depende, no corpo, das espécies que são adquiridas pelo
ministério dos sentidos. Outro, porque é necessário que o que intelige considere os
fantasmas.
Ao segundo. Ainda que a alma intelectiva em virtude da dignidade da sua natu­
reza difira muito do corpo, todavia corresponde-lhe, de acordo com a proporção do
acto para a potência do mesmo género. Por isso podem entre si formar sociedade e
juntarem-se de forma adequada na natureza de um terceiro. Principalmente, porque o
corpo humano, em virtude da excelência da composição inata e dos órgãos para
executar as funções da alma, está de tal modo constituído, que a alma não poderá
alcançar algo nem mais apto, nem superior, como mostrámos no livro A Geração e a
Corrupção. No corpo, sem dúvida, verifica-se a ligação e a ordem admirável das
coisas, quando a alma, que ocupa o lugar menor entre as substâncias que participam
da inteligência, se junta ao corpo, que supera as outras. Assim, justamente, a norma
de São Dionísio, no capítulo 7º de Os Nomes Divinos, «O sumo do ínfimo atinge o
ínfimo do supremo».
Ao terceiro. Concedida a premissa maior deve negar-se a menor e para sua con­
firmação dizer que os correlatos transcendentes dependem, quanto ao seu ser, do
fim, isto é, têm o seu ser em ordem a ele. É assim que a alma racional alcança o seu
ser, em ordem ao corpo, de que é a forma. Daí que ela seja circunscrita pelo corpo,
essencialmente, através do hábito. Na verdade, não é necessário que todo o correlato
transcendente dependa do fim, como daquilo do qual recebe o ser, ou sem o qual não
pode existir. Pode-se objectar que todo o correlato transcendente é relativo a algo,
como a uma causa e, por isso, se a alma intelectiva é forma do corpo, ela deve per­
tencer ao corpo como aquilo a partir do qual o corpo recebe o ser, visto que a causa
se define como aquilo a partir do qual algo recebe o ser. Deverá responder-se que a
alma intelectiva é relativa ao corpo como à causa material, e como aquilo, não a
partir do qual, mas em ordem ao qual, recebe o ser. É assim que se deve compreen­
der a noção de causa, quando se diz que o correlato transcendente é relativo a algo
como causa, decerto, como se chama causa, em sentido lato, àquilo a partir do qual
ou em ordem ao qual a coisa recebe o ser, contanto que isso seja algo de anterior.
242 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Com efeito, também os correlatos segundo o ser, visto que nas suas naturezas são
relativos a algo, obtêm o seu ser em ordem a algo. Todavia, porque são simultâneos
em natureza, esse algo não é nada de anterior. Outros autores concordam em que
nem todo o correlato transcendente reclama a causa em relação ao fim. Noutro lugar
abordaremos este assunto.
Ao quarto. Deve dizer-se que a alma se junta ao corpo por causa do bem substan­
cial do todo, isto é, para que a espécie humana se realize na sua união com o corpo e,
também, por causa de uma certa perfeição acidental própria, de maneira a comple­
tar-se pelo conhecimento intelectivo congruente com a sua natureza, que adquire
pelo ministério dos sentidos. De facto, este modo de inteligir é-lhe sempre natural.
Não impede que, quando se afastar do corpo, conheça a ciência a partir do influxo da
luz superior. Isto, contudo, pertence à espécie humana mais em razão da separação
do corpo, do que por mérito.
Ao quinto. De modo a tomar-se claro o que se deve responder, importa observar
que a união da alma com o corpo acontece de três maneiras. Primeira, pela acção
através da qual se une a alma ao corpo. Segunda, pela relação de conjugação entre
elas. Terceira, pelo fundamento desta relação, que não é outra coisa senão a causali­
dade da forma e da matéria, isto é, a forma transmite-se à matéria, actuando-a e
completando-a; por sua vez, a matéria que subjaz à forma, suportando a forma e
conservando-a, de tal modo, que o todo emirja desta troca complexa. Ora, a união
compreendida na primeira ou na segunda maneira é um acidente; a compreendida na
terceira é um certo modo que não deve, simplesmente, considerar-se nem acidente,
nem substância, mas um modo da substância, como dissemos nos livros da Física.
Portanto, para explicar o argumento, embora a união compreendida na primeira e
segunda maneiras seja um acidente, não é por isso que a alma se une ao corpo por
acidente, pois a união pelo acidente não se dá porque a acção de unir e a relação são
acidentes, mas pela natureza e condição dos que se unem; estes são de tal modo, que
não podem, simplesmente, unir-se num só, não sendo o caso na questão proposta,
pois a alma e o corpo são um acto e uma potência do mesmo género, tendo entre si
um hábito natural e proporção para criar um uno substancial como foi por nós,
acima, referido. No que concerne à terceira união, mesmo que a alma, quando se
afasta do corpo a abandone (de facto, uma vez separada, ela não actua ou completa a
matéria), contudo há algo da sua própria essência ou substância que não perece,
porque, como dissemos, aquela maneira, não é simplesmente, nem acidente, nem
substância, mas um modo da substância, modos que podem faltar e estar presentes
na essência íntegra da coisa. Pode-se verificar isto, quer noutros exemplos, quer com
a gota de água, que existindo à parte é um substrato e quando se junta a outra água,
deixa de ter a natureza do substrato e, assim, abandona aquele modo, em que o prin­
cípio da suposição consiste, modo este que, como dizíamos acerca da causalidade da
forma, não é, simplesmente, nem acidente nem substância, mas um modo da subs­
tância.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V//, Artigo l 243

QUESTÃO VII
Se as almas que participam da razão se multiplicam
pelos vários homens, ou não

ARTIGO !
Acerca da transmigração e da unidade da forma assistente
que alguns inventaram

Na matéria em discussão existiram duas opiniões dos filósofos. Uma de Empédo­


cles, Pitágoras, Platão, Apolónio Tyano e de outros, que introduziram uma absurda
µETeµ'Jfúxwmc;, isto é, transmigração, afirmando que as almas dos homens, uma vez
que teriam saído de um único corpo, transmigravam, de anos a anos, para corpos
alheios, não só de homens, mas também de animais irracionais. A este respeito,
Pitágoras afirma ter sido Euphorbo, em quem, outrora, ficou cravada no peito uma
pesada lança do Atrida mais novo. Também Empédocles cantou nos seus poemas
que antigamente tinha sido um peixe. Por este motivo também nasceu a opinião dos
pitagóricos, que consideravam ser um grande crime comer carne de vaca, para que
ninguém comesse a carne bovina de algum antepassado, como diz Tertuliano no
Apologético Contra os Gentios, capítulo 48º. Subsiste, no entanto, divergência entre
os autores sobre se Platão colocou a transmigração das almas também nos corpos
dos animais ou apenas nos dos humanos . Plutarco, no livro 5, As Opiniões, capítulo
20º; Plotino, nas Enéadas 3, livro 4, capítulo 2º; São Nemésio no livro A Natureza
Humana, capítulo 2º, afirmam-no. Jâmblico, Proclo, Porfírio e outros como Alberto,
em 22 de A A lma, livro 9, capítulo 5º, negam-no, afirmando que isso foi dito por
Platão somente como alegoria. Sustentam-no a partir do que recolhem do Crátilo, do
Teeteto, do Fédon e da Epistola a Dionísio. Sobre este assunto escrevemos no livro
2 de A Geração e a Corrupção, capítulo 2º, questão 1 , artigo 1 º. Leia-se Filostrato
na Vita Apollonii; Laércio, sobre Pitágoras; Porfírio no livro A abstinência. Heró­
doto escreveu que o erro acerca da transmigração das almas passou dos Egípcios
para os Gregos . Recebem-no, depois, os heréticos Albanenses e Albigenses, que
Santo Atanásio condena no livro 6, De beatitudine filii Dei, ensinando ser isso con­
tra a fé.
Mas, afastado o absurdo desta posição, que desde há muito caiu em desuso e é
versada nas fábulas dos poetas, ocorre uma outra posição, a daqueles que conside­
ram que na doutrina de Aristóteles se deve considerar apenas uma alma intelectiva
ou um único intelecto que assiste a todos os homens, como a luz do Sol assiste o
Universo.Assim o interpretaram o seu discípulo e sucessor da escola, Teofrasto,
Temístio, Simplício, Averróis e muito outros, embora nem todos tenham falado do
mesmo modo sobre esse tipo de intelecto. Também Averróis, no livro 3 desta obra,
comentário 5 e em A Refutação da Refutação, contra Algazel , defendeu que esta
opinião, não só é peripatética, mas também verdadeira. Disputaremos com ele.
Enfim, o Árabe sustenta que apenas existe um intelecto, realmente separado de cada
homem, mas que os assiste em conjunto com as imagens que incidem na fantasia de
cada um, e afirma que por estas imagens, iluminadas pela sua luz, se transmitem ao
próprio intelecto as formas inteligíveis, e que, uma vez impregnado por elas, ele
colhe as noções das coisas. E assim acontece que, desta maneira, somos chamados a
244 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

inteligir através do intelecto separado. Ele acrescenta também, que, por um certo
encadeamento de consequências, produzindo absurdos sobre absurdos, que a alma
intelectiva não é a verdadeira forma do homem, nem o homem se distingue por ela,
essencialmente, dos animais, mas através de outra forma que ele chama cogitativa.
Averróis pretende que o conhecimento dos singulares lhe é próprio, que esse conhe­
cimento nasce com qualquer homem e que apenas perece e se multiplica com o
número dos homens.
Podem porém ser aduzidos os seguintes argumentos a favor deste tipo de inven­
ção. Cada um é como opera, visto que a acção segue sempre o ser. Também o inte­
lecto tem uma operação sem corpo, visto que percebe as coisas universais, separadas
do consórcio da matéria. Não existe, portanto, unido ao corpo. Demonstra-se que é
apenas um. Primeiro, porque a quantidade que existe segundo o número não diz
respeito senão às formas que dependem da matéria. Também, porque para iluminar
todas as coisas inteligíveis que se observam é suficiente a luz do Sol; logo para ilu­
minar todos os inteligíveis é suficiente a luz de um único intelecto comum. Porque
as pré-noções comuns à alma e os princípios em que todos concordam parecem não
provir de outra parte senão de um único intelecto comum. Por outro lado, porque,
salvo se a inteligência de todos fosse a mesma, nem o professor poderia ensinar,
nem o discípulo poderia aprender coisa alguma. Ou a mesma ciência em número,
que existe no mestre é comunicada ao discípulo, ou uma ciência diferente. Diferente
não, visto que uma ciência procriaria outra como o fogo procria o fogo, mas este
modo de operar pertence somente às coisas físicas. Logo, é comunicada a mesma
ciência e, portanto, o intelecto do mestre e do discípulo são um só e o mesmo.
Prova-se que na verdade aquele tinha sido o pensamento de Aristóteles. Primeiro,
porque no livro 3, desta obra, capítulo 5º, texto 1 8, Aristóteles compara o intelecto à
luz, porque ilumina os fantasmas com o seu esplendor, do modo antes explicado.
Daí, que no livro 2 de A Geração dos Animais, capítulo 3º, ele afirme que o intelecto
advém do exterior, isto é, não está agarrado ao corpo mas assiste-o extrinsecamente.
Por último, porque, como na sua opinião o mundo é eterno, a alma que participa da
inteligência não morre. Se o intelecto não fosse único existiriam, agora, em acto,
infinitas almas, contra a opinião do mesmo autor, no livro 3, Lições da Física. Preci­
samente este argumento concita também muitos dos recentes peripatéticos para a
referida unidade do intelecto defendida na doutrina de Aristóteles, de entre os quais
se contam Tomás Ânglico, Achillino, Odo, Janduno, Mirandulano, Zimara, Vico­
mercato e outros mais. Levado pelo mesmo, Bessarion, não menos erudito na disci­
plina aristotélica do que na platónica, no livro 3, Contra o Caluniador de Platão,
capítulo 2 1 º, estabelece que uma das duas afirmações deve ser aceite como a posição
de Aristóteles. Ou existe um único intelecto imortal ou muitos, todos sujeitos à
morte. No entanto há uma divergência entre os autores. Uns, de facto, acerca do
pensamento de Aristóteles, consideram que se deve estabelecer em todos os homens
uma e a mesma forma assistente, como dissemos. Outros, formadora, como Miran­
dulano, livro 32 De euersione singularis certaminis, secção 1 e livro 33, secções 2 e
6 e Achillino, livro De intelligentiis.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V//, Artigo li 245

ARTIGO II
Refuta-se o erro do Comentador que considera apenas um intelecto
ou forma assistente

Esta afirmação do Comentador ou antes, do falseador, relativa à unidade do inte­


lecto, é de tal modo estulta que Escoto, justamente, no 4º livro das Sentenças, distin­
ção 43, questão 2, disse que, por causa de absurdos destes, Averróis era digno de ser
afastado da comunidade dos Homens. Outros, no entanto, chamaram prodigiosa a
esta sua invenção, que uma multidão de árabes não criaria maior. Na verdade, só isto
deveria ser bastante para os refutar, eles que prezam tanto o filho de Róis, que dizem
que a sua alma é a alma de Aristóteles.
E assim, a primeira doutrina em que ele nega, em parte, que a alma intelectiva é a
verdadeira e própria forma do homem, foi por nós suficientemente refutada na
questão anterior. Mas acerca disto pode-se acrescentar agora que se Sócrates é
criado na sua espécie através da referida alma sensível, particular, uma vez que ela
não inclui em si a capacidade de pensar, nem o intelecto lhe pertence, a não ser que
se una a ela por intermédio dos fantasmas, como supõe Averróis, resulta que o
homem não se eleva acima da natureza do animal, que não é, intrinsecamente, o
referido animal dotado de razão, mas antes um animal irracional privado de juízo e
de razão. Efectivamente, esta afirmação que atribui a todos os homens a mesma
alma em número e o mesmo intelecto, pode ser refutada deste modo. Se existisse
uma alma para todos os homens, ou ela estaria em todas as partes do universo, como
a alma do mundo platónica, ou estaria compreendida em certas regiões dos lugares.
A primeira não se pode afirmar, como mostrámos no segundo livro sobre O Céu,
quando, do mesmo modo, demonstrámos que a alma platónica era uma invenção. Se
se admitir a segunda, segue-se que os fantasmas dos homens não seriam iluminados
pelo intelecto em todas as partes da terra e, assim, os homens não poderiam pensar
em todos os lugares.
Segundo. O pensamento é uma acção imanente e sobretudo vital, portanto, é
necessário que provenha daquilo que se diz que pensa e nisso permaneça. Por isso,
de modo algum poderá ser dirigido por uma faculdade existente noutro.
Terceiro. Embora a brancura da parede, iluminada pela luz do Sol envie para a
vista a sua semelhança, contudo não dizemos que a parede vê, mas que é vista. Por
isso, que as espécies inteligíveis sejam transferidas para aquele intelecto possível
pela fantasia de Sócrates, não é bastante para que se diga que Sócrates pensa, a não
ser que ele contenha em si o princípio de pensar.
Quarto. Visto que os fantasmas que Alexandre e o seu Bucéfalo representam
podem ser da mesma espécie, se, como é natural, as mesmas coisas conhecidas são
representadas em cada um deles, esse intelecto comum não poderá conjugar-se
menos com o fantasma de Bucéfalo do que com o de Alexandre para obter as ima­
gens das coisas. Por isso, se Averróis afirma que Alexandre intelige porque o inte­
lecto se conjuga com o seu fantasma, diz também que o próprio Bucéfalo intelige,
pelo mesmo motivo. E assim, Averróis, homem subtil e inteligente, atribui um inte­
lecto aos animais e subtrai-o aos homens.
Quinto. Dado que inteligir e querer são acções da alma intelectiva, se houvesse
uma só alma para todos os homens, todos os actos desse tipo pertencer-lhe-iam e,
246 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

assim, seria necessário que lhe pertencessem, a par, o erro e a ciência, o vício e a
virtude e que, ao mesmo tempo, fosse por ela mesma exercida a acção torpe e a
honesta e que, ela mesma fosse maculada pela mancha do pecado e se inclinasse
para o esplendor do Céu e da Graça Divina. Finalmente, deveria admitir-se que uma
única alma é ré de todos os crimes que algum dia foram cometidos pelos homens e
que lhe serão dadas as penas de todos, e que, também, justamente alcançará as
recompensas de tudo o que se vier a fazer. Todas estas afirmações estão plenas de
impiedade e de disparate.
Sexto. A partir daqui é evidente que a unidade das almas é contrária à doutrina
peripatética, porque Aristóteles, no capítulo 1 º, texto 8, deste livro, depois de apre­
sentar a definição de alma, na qual compreende a alma intelectiva, ensina que a alma
não enforma qualquer corpo, mas o que lhe é próprio e determinado. O que já ensi­
nara no primeiro livro, capítulo 3º, texto 53 e, pelo mesmo motivo, condena a trans­
migração pitagórica. Outro, no livro 1 2 da Metafísica, capítulo 3º, texto 1 6, Aristó­
teles nega que alguma alma anteceda o corpo. Mas antecederia se existisse apenas
uma, por isso, antes do corpo de Sócrates teria existido a sua alma. E também no
mesmo livro, capítulo 8º, texto 49, ele afirma que, multiplicada a matéria, se multi­
plica a forma. Finalmente, nos Problemas, secção 30, questão 4, assume aberta­
mente que existem muitas almas em muitos homens.
Por último, junta-se, para confirmar a nossa afirmação, o decreto do concílio de
Latrão, sessão 8 sob Leão X, que é composto por estas palavras: Condenamos e
reprovamos todos os que afirmam que a alma intelectiva é mortal e uma só, para
todos os homens, e os que põem em dúvida estas afirmações, visto que ela não só
existe verdadeiramente por si, não apenas essencialmente como forma do corpo
humano, verdadeiro e imortal, mas também multiplicável singularmente pela multi­
plicidade dos corpos em que é infundida. Não só foi multiplicada, mas deve multi­
plicar-se.
Também contra o erro, de que outrora os Maniqueus estavam imbuídos, disputa
São Gregório de Nissa nos capítulos 7º e 8º do livro 2 de A Filosofia; e Santo Epifâ­
nio no tomo 2, do livro 2 Contra Haereses; São Tomás, no capítulo 73 do livro 2º
Contra os Gentios e no parágrafo 1 6 do opúsculo que se intitula A Unidade do Inte­
lecto contra os Averroístas. Alberto Magno no tratado sobre o mesmo tema, onde
propõe trinta argumentos contra este erro e resolve com outros tantos aduzidos para
ele. Durando no 2º livro das Sentenças, distinção 1 7 , questão l ; Gregório, no mesmo
passo, artigos 1° e 2º; Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 43, questão 2;
Henrique de Gand, no Quodlibet 9, questões 1 4 e 15; Ockham no Quodlibet 1 ,
questão 1 1 ; Herveu no Quodlibet 1 , questão 1 1 ; Egídio no livro O Intelecto, tratado
3, capítulo 24º.

ARTIGO Ili
São falsos os argumentos apresentados no início

Há quem considere que os argumentos a favor da unidade do intelecto acima adu­


zidos, de modo algum poderiam ser resolvidos, senão por aqueles que pretenderam
ultrapassar o Liceu e de modo algum podem ser colados às opiniões peripatéticas.
Mas acontece de modo muito diferente, pois podem resolver-se facilmente dentro do
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão Vil, Artigo lil 247

Liceu e sem contrariar nada da doutrina peripatética. Portanto, ao primeiro conce­


demos que cada um é como opera, portanto, que a alma racional quando se separa do
corpo, opera por si sem servir o corpo, mas durante o tempo em que depende do
corpo, nem as funções das faculdades sensitiva e vegetativa e outras acções corpó­
reas deste tipo, são executadas sem os instrumentos do corpo. Pelo contrário, nem os
actos de inteligir, ainda que a alma racional os produza com a potência imaterial e os
receba sem o ministério do corpo, executa-os com o auxílio dos fantasmas, quer
porque produz as espécies inteligíveis a partir dos fantasmas, quer porque, ordina­
riamente, nada intelige muitas vezes sem o recurso aos fantasmas .
À segunda, deve negar-se o que defende. Com efeito o princípio da distinção
numérica não é apenas pedido pela matéria, como mostraremos no livro 5, Metafí­
sica. À terceira, admitido o antecedente, deve negar-se a consequência. Na verdade,
a iluminação dos fantasmas para a obtenção das espécies inteligíveis é impossível,
como imagina Averróis, como é claro a partir do exposto. Por isso, à quarta deve
dizer-se, que todos os princípios e pré-noções gerais convergem em comum, porque
são visíveis pela luz do próprio intelecto. À quinta, deve negar-se, em primeiro
lugar, a proposição, e afirmar-se que a ciência que está no mestre, está no discípulo,
que é em parte a mesma, em parte diferente; é a mesma, em razão do objecto sobre
que versa, diferente, quanto às espécies inteligíveis e quanto ao próprio hábito da
ciência. Efectivamente o Mestre comunica ao discípulo a ciência mostrando-lhe
exemplos sensíveis e outras coisas semelhantes com as quais reproduz os fantasmas
adequados à intelecção da coisa, propondo posições comuns e princípios que ele
conheça, aplicando-os a conclusões particulares, como que o conduzindo pela mão
para concepções inteligíveis e para o conhecimento da verdade que desconhece. Pelo
que é evidente que a ciência é, parcialmente, feita não só pelo mestre, mas também
pelo discípulo, de modo muito diverso daquele pelo qual as causas físicas produzem
os seus efeitos. Acerca deste assunto discutiremos, profusamente, no início do livro
1 dos Posteriores. Leia-se também São Tomás, lª parte da Suma Teológica, questão
1 1 7, artigo 1 º e livro 2, Contra os Gentios, capítulo 75º.
Na verdade, os passos retirados de Aristóteles têm um outro sentido, não aquele
que os opositores querem. Efectivamente, Aristóteles não chama intelecto separado,
e também sem mistura, a alguma coisa que se encontre sempre, na própria realidade,
fora da matéria, mas àquilo que não é potência nascida da união com a matéria ou
fixa a um órgão corpóreo.
Aristóteles também compara, por isso, o intelecto, à luz, porque, tal como a luz
obtém as imagens das coisas visíveis com as cores, assim o intelecto concorre com
os fantasmas para produzir as espécies inteligíveis no intelecto possível inerente à
alma, não, certamente, à alma separada, como imaginou Averróis, mas à alma unida
ao corpo e que o enforma. Ele afirma também que o intelecto advém extrinseca­
mente, porque não deriva do poder da matéria, como certas formas físicas, mas é
infundido e criado por Deus. E, por fim, ao último argumento, que envolveu a dou­
trina de Aristóteles é costume responder-se de modo variado. Com efeito, alguns
pensam que Aristóteles não nega o infinito nas coisas privadas de matéria, que não
têm uma ordem entre si, como as almas racionais. Outros, que ele nem afirmou
claramente a imortalidade da alma, nem negou a infinidade de almas de forma evi­
dente, mas que ocultou ambas na ambiguidade das palavras, porque não teria averi-
248 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

guado suficientemente nenhuma delas. Leia-se São Tomás, Contra os Gentios, livro
2, capítulo 8 1º e o livro 3 da Física, capítulo 8º, questão 1 , que referimos acerca
deste mesmo assunto.

QUESTÃO VIII
Se todas as almas são divisíveis ou não

ARTIGO I
Refutam-se as opiniões falsas de alguns

Para mostrar em que consiste a dificuldade na matéria da questão proposta, deve


notar-se, com base em São Tomás, lª parte da Suma Teológica, questão 76, artigo 8º
e em Durando, no 1 º livro das Sentenças, distinção 8, questão 3, na 2ª parte da dis­
tinção, que, em relação a este assunto, se pode dizer que uma coisa é divisível, de
três modos. De um modo, nas partes da essência, quer físicas, isto é, na matéria e na
forma, quer metafísicas, isto é, no género e na diferença. De outro modo, pelas suas
potências e faculdades. Um terceiro, pelas partes integrantes e extensas, o que pode
acontecer de duas maneiras: ou como aquilo que pela sua natureza e por si é extenso
e dividido, ou como o que pode ser dividido, o que lhe sucede em razão, apenas de
outro modo. Posto isto, não sujeitamos ao debate se a alma se divide nestes modos
todos. É evidente, de facto, que ela não pode ser separada em partes físicas, visto
que não é composta de matéria e de forma. Já é claro que pode ser repartida em
partes metafísicas, visto que ela possui graus diferentes de essência, e género próprio
e diferença, como ensina São Tomás nas Questões Disputadas, Questão da Alma,
artigo 7°. Nem a dificuldade reside na divisão da alma em relação às suas potências,
pois ninguém nega que lhe pertencem diversas faculdades e potências, com cujo
ministério executa as suas acções. Resta, portanto, que toda a investigação subjaz
naquele terceiro modo que é chamado séctil. E a discussão não é acerca dele em toda
a sua amplitude, mas apenas, segundo a consideração seguinte: se apenas a quanti­
dade, primeiro, e pela sua natureza, tem extensão, apenas reclama para si, primeiro,
a divisão em partes, tal como noutro lugar explicámos. E assim, perguntamos, tão­
-só, de que maneira a matéria e, do mesmo modo, a alma, tem partes, corresponden­
tes às partes da quantidade, e pelas quais, ainda que por acidente, se estende.
Existiram muitas opiniões dos filósofos sobre este assunto. Uns consideraram
todas as almas indivisíveis. Marsílio Ficino atribui a Platão aquela opinião, livro 1 , A
Teologia de Platão, capítulo 3º e livro 8, capítulo 1 º. E que, segundo Platão, a forma
não pode ser dividida mostram Plotino, Numénio e Amónio, como se encontra em
São Gregório de Nissa, livro 2 de A Alma, capítulo 1 °, e em São Nemésio livro A
Natureza Humana, capítulo 2º. O mesmo consideraram Simplício, no primeiro livro
desta obra, texto 47, e neste livro, texto 20, e Caetano, o Tienense e Hugo Senense,
que Pomponácio refere na sua obra A Nutrição, livro 1 , capítulo 1 0º afirmando que
aquela asserção não parece alheia à razão. De facto, esta opinião não tem, de modo
algum, de ser provada, porque vemos um ramo perfeito de uma árvore crescer e
frondescer e uma outra parte de um lagarto seccionado ser movida pelo movimento
animal e, portanto, viver, o que, certamente, não provém de outra coisa senão porque
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão VIII, Artigo li 249

a alma destes seres vivos se secciona com a divisão da quantidade e, uma vez feita a
divisão, reside separadamente nas partes. O que também Aristóteles, neste livro,
capítulo 2º, texto 20, e no livro A Juventude e a Velhice, capítulo 1 º, ensina, afir­
mando que a alma da planta e a de certos animais é una em acto com várias faculda­
des, porque eles vivem apesar de seccionados. O mesmo pensa Santo Agostinho no
livro A Grandeza da A lma, capítulo 3 1 º e outros autores em consenso geral. Toda­
via, deve notar-se, com base nos animais que vivem seccionados em partes, que
algumas, após a divisão, conduzem a uma vida menos longa, porque os instrumentos
com que se podem conservar não subsistem durante muito tempo. Por último, tam­
bém a partir das plantas, como testemunha Aristóteles no citado livro A Juventude e
a Velhice, algumas, cortadas, não vivem, outras desenvolvem-se com o corte, pois as
que estão mais unidas à sua protecção, separadas da matriz, secam.
A outra opinião pertenceu a alguns autores recordados por Sixto Senense, no livro
1 , Bibliotheca sancta, anotação 8. Também a de um certo Gerando, que Argentinas
refere no 1 º livro das Sentenças, distinção 8, questão 2, artigo 1 º, considerando que
todas as almas são divisíveis. Todavia, esta asserção, que em parte compreende a
alma intelectiva, contém a falsidade de um erro absurdo. Se, efectivamente, a alma
intelectiva fosse extensa não seria substância espiritual, cuja oposição acima
demonstrámos. Também dependeria, quanto ao seu ser, da matéria, como as restan­
tes formas divisíveis, e pelo seu fluxo esvair-se-ia aos pedaços por acção do calor,
no líquido que a assola. E assim, não seria já imortal, mas caduca e sujeita à morte.
Leiam-se em Durando muitos argumentos contra esta posição, no 1 º livro das Sen­
tenças, distinção 8, questão 3, na segunda parte da distinção, quando considera que
pela mesma fé com que defendemos que a alma intelectiva é imortal e espiritual,
também defendemos que não é dividida ou extensa.
Também não pensam correctamente Janduno questão 5, livro 3 desta obra e Pom­
ponácio no livro 1 , A Nutrição, capítulo 2º afirmando que apenas pela fé se sustenta
que a alma racional é indivisível. E porque, efectivamente, se pode concluir, por
razões físicas, que ela é incorpórea e uma substância espiritual, como demonstrámos
acima, e que é imortal, como será evidente no seu lugar, também se pode refutar que
ela é inséctil e inextensa, com os argumentos requeridos pela própria natureza.
Porém, o que deve ser considerado sobre os restantes animais, estabeleceremos de
caminho.

ARTIGO II
Explicam-se as opiniões de outros autores

Refutadas no artigo anterior as duas posições extremas, seguem-se outras duas,


como que intermédias. Uma, dos que afirmam que todas as almas, mas só as dos
animais perfeitos, são inextensas. Outra, dos que consideram que todas, mesmo a
dos animais perfeitos, são formas extensas e divididas, excepto a racional. A pri­
meira tem como seguidores Alexandre, livro 2, A Alma, capítulo 1 0º; Alberto Magno
na Suma do Homem, e livro 1 , A Alma, capítulo último; São Tomás, livro 2 Contra
os Gentios, capítulo 72º e primeira parte da Suma Teológica, questão 76, artigo 8º;
Caetano ibidem; Herveu no primeiro livro das Sentenças, distinção 8, questão 4; São
Boaventura no 1 º das Sentenças, distinção 8, na 2ª parte da distinção, questão 3 ; o
250 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

Halense no livro 7º da Metafísica, texto 56 e o Ferrariense no mesmo lugar, questão


3ª e muitos outros. Caetano anota, no passo citado, para ilustrar esta opinião, que
existem três géneros de formas substanciais. Um, o daquelas formas que, considera­
das em si, primeiro, dizem respeito por igual a toda e qualquer parte desse género,
tais como as formas dos corpos desprovidos de vida, como dos elementos, que não
sentem a falta de nenhuma variedade de matéria ou distinção de órgãos, pelo facto
de que toda a preparação para as suas formas está contida em qualquer porção de
matéria. O outro, é o género das formas que mantêm um hábito desigual em relação
a toda a matéria e às suas partes, decerto porque diversos órgãos requerem uma
dissemelhança no todo e uma disposição nas partes, e de tal modo enformam toda a
matéria como seu primeiro perfectível, que não podem enformar, em separado, uma
parte dela. Pertencem a este modo as formas dos animais mais perfeitos e a do
homem, já que nem a alma racional nem a alma do cavalo enformam um pé sepa­
rado. No terceiro género contam-se aquelas formas que, embora requeiram diversos
órgãos, actuam em toda a matéria tal como se podem achar na parte avulsa, embora
não pela mesma razão. Na verdade, enformam toda a matéria, como substrato primá­
rio no qual todas as coisas conseguem o que no seu estado natural aspiram; mas, na
parte separada, como substrato secundário e menos preparado para executar as ope­
rações, como no caso das formas dos animais imperfeitos e das plantas que, uma vez
seccionadas em duas, quer uma, quer outra, vivem.
Tomando isto em consideração, São Tomás, no ponto citado da primeira parte da
Suma Teológica, confirma a sua opinião. A forma que diz respeito indiscriminada­
mente à sua parte separada e a todo o corpo é divisível. A que não é assim, é indivi­
sível . Ora, todas as formas, exceptuadas as dos animais perfeitos, dizem respeito
indiscriminadamente a todo o corpo e à sua parte separada, mas não as formas dos
animais perfeitos. Logo, aquelas são divisíveis, estas indivisas e inextensas. Prova-se
a premissa menor. Certamente descobriu-se que a forma do animal imperfeito reside
na parte separada do todo, mas não a do perfeito. Donde, a parte daquele é movida
pelo movimento animal e tem o sentido da dor. A deste, absolutamente nada. E não
obsta que, uma vez efectuada a divisão, o membro separado do animal perfeito se
agite muito. Com efeito, isso, como correctamente afirma Alberto Magno na Suma
do Homem, questão 2, artigo 3º, deve referir-se não à presença da alma, mas aos
espíritos vitais, que grassam em maior abundância no seu membro. Isto também se
pode ver num decepado e na cabeça de um homem recentemente degolado, em que é
certo que a alma não permanece. Aquele ponto de Aristóteles confirma o mesmo a
partir do primeiro capítulo do livro A Juventude e a Velhice e neste livro, capítulo 2º,
texto 20, onde, entre os animais que vivem seccionados, apenas conta os imperfei­
tos. Se alguém objectar, com razão semelhante, que pode também dizer-se que as
partes cortadas de um animal não são movidas pela alma, mas pelos espíritos, refuta­
-se isso, porque vêem-se os animais imperfeitos, após a dissecação, alimentar-se e
crescer como antes, como acontece com as minhocas e em certos outros, ou move­
rem-se muitas vezes, muito mais tempo, ainda que no entanto não abundem mais em
espíritos, do que os animais perfeitos.
Segundo. Prova-se a mesma opinião com o testemunho de Aristóteles, que no
capítulo 5º do livro primeiro de A Geração e a Corrupção, discutindo acerca do
crescimento dos animais perfeitos, ensina que o mesmo ocorre com o que se man-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo 1, Questão VIII, Artigo Ili 251

tém, que aumenta segundo as partes formais, mas não segundo as materiais, porque
os animais perfeitos, enquanto vivem, conservam a mesma forma, embora não con­
servem a mesma matéria. Por isso, é evidente que, para Aristóteles, as suas almas
são indivisíveis, ainda que fluam e se transformem juntamente com a matéria. Toda­
via, objecta-se que o movimento animal existe a partir do apetite e da fantasia, que
têm certa e determinada sede no animal, portanto, as almas não permanecem em
qualquer parte de um animal não seccionado, donde se segue que, na realidade,
aquela parte não vive. Deve responder-se, que a fantasia, nos animais deste tipo, e o
apetite, existem, de modo diferente, nos outros animais. Com efeito, não têm um
lugar totalmente determinado, donde sucede que vivem seccionados, desde que a
divisão não se faça segundo a longitude, mas transversalmente e que a parte seccio­
nada, que deve viver, não seja muito exígua, como diz Alberto, 1 º de A Alma.
A outra posição, que atribui a indivisão apenas à alma racional entre todas as
formas substanciais, é defendida por Durando no primeiro livro das Sentenças, dis­
tinção 8, questão 3; por Egídio, na mesma distinção, questão última; Argentinas,
questão 2, artigo 2º; Gabriel, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 6, questão única;
Janduno, neste livro, questão 7; Apolinário, questão 6; Toletano, questão 2, artigo
20º; Marcelo, no seu primeiro livro sobre A Alma, capítulo 9º; Tomás Garbio, tra­
tado 5, questão 49; o Comentador, no primeiro De substantia orbis, e no 8º da
Física, comentário 78. E para a mesma se inclina Ricardo, no 2º livro das Sentenças,
distinção 1 5 , no princípio do 2º, questão 2; e, como parece, o Alense, 2ª parte da
Suma Teológica, questão 62, membro 1 ; e que esta posição foi comum no seu
tempo, testemunha-o Caetano na primeira parte da Suma Teológica, questão 76,
artigo 8º. De facto, estes autores apoiam-se na Suma Teológica, principalmente nos
argumentos seguintes. Aquilo que é adicionado à matéria, que se encontra no seu
interior, tem as condições da matéria, se não todas, pelo menos a que primeiro a
segue, que é a extensão, e todas as formas físicas, exceptuando a intelectiva, estão
imersas na matéria, totalmente fixas a ela, porque não podem estar unidas fora dela.
Donde, todas, com excepção da intelectiva, são extensas e divisíveis. Não são de
modo diferente as formas acidentais que acompanham a matéria, sobretudo porque
em ambas parece existir uma natureza igual. Em segundo lugar, as formas desperta­
das pelo poder da matéria são afectadas assim, de modo a que a parte provenha da
parte, o todo do todo. Assim, por exemplo, toda a forma do leão, não parece pree­
xistir numa exígua porção da matéria e, portanto, não deve pensar-se que é toda
retirada de uma qualquer parte, mas do todo, e uma parte da parte. Portanto, visto
que todas as formas com excepção da intelectiva provêm da potência da matéria,
todas terão extensão e partes correspondentes às partes do todo da matéria. Terceiro.
A acção, pela qual a alma é produzida, também no animal perfeito, com excepção do
homem, é divisível, visto que é recebida no substrato da quantidade. Logo, dado que
essa acção é idêntica à alma e não pode distinguir-se realmente do seu fim, é preciso
que também a própria alma seja divisível e extensa. Quarto. É difícil de compreenser
de que modo a alma do cavalo é indivisível e, todavia, não é substância espiritual.
Mas, como é evidente, não é substância espiritual, logo não é indivisível.
252 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

ARTIGO III
Solução da questão. Explicação dos argumentos de uma e de outra parte

Uma e outra opinião, que explicámos no artigo anterior, parecem inteiramente


prováveis. Por isso, esclarecemos os argumentos de ambas, para quem as quiser
perfilhar, ainda que examinemos a primeira com todo o gosto. Ao primeiro argu­
mento daqueles com que se provava o primeiro género de formas substanciais, res­
pondemos que as formas dos seres animados imperfeitos pertencem, não só a toda a
matéria mas também à parte, como perfectível, em que podem permanecer. Mas as
formas dos animais mais perfeitos não são assim e, por isso, não podem ser conser­
vadas numa parte da matéria, não porque sejam todas indivisíveis, o que acontece
apenas com a alma intelectiva, mas porque, quanto mais perfeita é a forma, tanto
mais necessita de vários órgãos, com um maior aparecimento de acidentes, para
servir o corpo. Dado que os órgãos foram distribuídos por lugares certos, uma vez
efectuada a divisão, ela rapidamente perece. Por isso, porque a alma não pode
enformar, fora da matéria, a parte dos animais perfeitos, não se conclui que ela tenha
uma natureza indivisível, mas que é dotada de um cunho mais nobre. E os pontos de
Aristóteles, a partir do capítulo 1 º de A Juventude e do capítulo 2º, não provam outra
coisa; aí é apenas considerado que os viventes imperfeitos vivem divididos, mas não
que apenas as suas formas são divisíveis.
Ao segundo, responde-se, que no crescimento se diz que o mesmo se mantém
segundo a forma, mas não segundo a matéria, porque a coisa que cresce, permanece
sempre a mesma, segundo a natureza da sua espécie. Muitas vezes, porém, em
Aristóteles, a forma é tomada pela espécie e pela definição da coisa. Não permanece
o mesmo segundo a matéria, porque a matéria flúi continuamente. E esta interpreta­
ção está na primeira parte da Suma Teológica de São Tomás, questão 1 1 9, artigo 1 º
ao 2º, que tinha querido seguir Aristóteles naquele ponto d o primeiro livro d e A
Geração e a Corrupção, e que fala não só acerca dos seres vivos perfeitos mas de
todos, universalmente.
Também os argumentos, que foram aduzidos a favor da segunda opinião se resol­
vem com igual facilidade. Ao primeiro, dizendo que a extensão é a primeira afecção
da matéria, e, por isso, que todas as formas que estão ligadas à matéria não devem
caber àquela extensão. Não obsta que a sustentem todas as formas materiais aciden­
tais, como o branco, o frio e as restantes desse género. Efectivamente, aquelas
dependem de tal modo da matéria, que lhe são inerentes por intervenção da quanti­
dade e, por isso, dependem mais dela e seguem mais as suas condições. Mas as for­
mas substanciais não são assim, como é evidente. Em relação ao segundo, deve
negar-se o que assume e dizer que a forma toda do animal perfeito preexiste em
potência em cada parte da matéria e que ela toda provém de qualquer parte, não
como do todo perfectível, mas como daquele ao qual pode corresponder toda,
enquanto enforma o corpo.
Ao terceiro, dizendo que a acção pela qual a forma do animal perfeito nasce,
identifica-se realmente com ela e é indivisível em razão do fim, do qual recebe a
indivisibilidade. E, do mesmo modo, embora a própria forma seja indivisível é, não
obstante, divisível na matéria, não por inerência, mas subjectivamente, tal como a
acção pela qual é produzida. De facto, o que se identifica com a substância não pode
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão IX, Anigo / 253

existir na matéria por inerência. Abordámos desenvolvidamente este assunto no


livro 1 de A Geração e a Corrupção.
Ao quarto, responde-se que, embora todas as substâncias espirituais sejam indivi­
síveis, não se segue, todavia, a recíproca, que também todas as substâncias indivisí­
veis são consideradas espirituais. Apenas, de facto, se chama substância espiritual
àquela que é indivisível porque é imaterial, ou seja, que pode subsistir fora da maté­
ria. Assim sendo, visto que todas as formas, excepto a racional, são muito diferentes,
acontece que, de modo algum, devem ser consideradas substâncias espirituais.

QUESTÃO IX
Se toda a alma está em todo o corpo e toda ela em qualquer parte dele

ARTIGO !
Discussão da dúvida proposta

Não chamamos à questão se a alma está no sangue e nos restantes humores. Com
efeito, já no primeiro livro sobre A Geração considerámos que, quer os humores,
quer outras coisas, embora fossem contadas, de qualquer modo, entre as partes dos
animais, eram destituídas não só de alma mas também das funções vitais. Portanto, a
questão será acerca da alma comparada ao corpo, apenas quanto às partes dotadas de
vida. O sentido da questão é, se a alma no corpo existe de tal modo que nenhuma
parte do corpo carece de alma, e de tal modo, que em qualquer parte, tal como em
cada uma, esteja toda.
Pode ser recomendada a parte negativa da controvérsia, examinada de acordo
com o primeiro sentido. Primeiro, porque a alma parece estar somente no cérebro,
entendendo-se que o que tem o regimento de todo o corpo reside no cérebro como
ponto capital. Depois, porque apenas na cabeça vigiam, ao mesmo tempo, todos os
sentidos internos e externos que são intermediários e como que intérpretes das coisas
que têm de ser compreendidas. Terceiro, porque a faculdade de raciocinar é pertur­
bada naqueles cujas meninges foram lesadas. Este argumento considera que o inte­
lecto e a própria alma residem ali, mas não nas partes do corpo em que não recebe
igual revés.
Pelo contrário, que a alma apenas pode residir no fundo do coração, prova-se
assim. Porque o coração é fonte de vida, por cujo benefício se realiza toda a acção
vital, e pelo qual o calor, difundido por cada uma das partes do corpo, aquece todos
os membros e dispõe as suas faculdades. Porque o coração para as comoções fortes
da alma, como a ira, o temor e o desejo se inflama com veemência. A favor há tam­
bém aquelas palavras do nosso Salvador em Mateus 1 5 , «do coração saem pensa­
mentos», passo do qual, São Jerónimo, livro segundo, Comentários ao Evangelho de
Mateus ao mesmo capítulo, recolhe, a partir do ensinamento de Cristo, que a alma
não está no cérebro como dizia Platão, mas no coração.
Outro. A forma deve corresponder à proporção da matéria; ora, a alma, por ser
forma do corpo é uma certa essência simples ; logo, não lhe corresponde na matéria
múltipla, que é a que consta da diversidade do órgão, por isso a alma não está nas
254 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

partes orgânicas. Depois, parece existir uma mesma proporção da alma para o corpo,
tal como a que existe da inteligência motriz para a esfera celeste; portanto, como a
inteligência não está em toda a esfera, como ensina Aristóteles no livro 8 da Física,
capítulo 1 0º, texto 84, mas de modo certo e em lugar definido, assim também não
está a alma no corpo todo. Mais, se uma artéria for amarrada, o que está abaixo do
nó não se move; logo, visto que o movimento é índice da alma, parece que aquilo
que permanece abaixo do nó é destituído da presença da alma. Por último, o indivi­
sível somente se iguala ao indivisível; donde, como nenhuma parte do corpo é indi­
visível, nenhuma alma será indivisível em parte alguma do corpo.
Acresce, por fim, o passo de Aristóteles no livro O Movimento dos Animais,
capítulo sétimo, quando afirma com palavras claras que a alma não tem sede em
qualquer parte do corpo, mas numa certa parte do corpo. Devemos assim, diz, consi­
derar o animal constituído como uma cidade bem regida e moderada por leis. Nesta,
depois do sistema de governo ser instituído a primeira vez, não é preciso, uma vez o
príncipe ausente, que ele esteja presente nas coisas que são tratadas uma a uma, mas,
pelo contrário, que qualquer um cumpra as suas funções como foi ordenado e que se
execute e estabeleça uma coisa após a outra, de acordo com o costume. E, nos ani­
mais acontece o mesmo pela natureza, porque cada uma das coisas e também os
membros são constituídos de tal modo que estão dispostos a executar correctamente
a sua função. Pelo que não faz falta que a alma esteja presente em cada membro
mas, uma vez que consiste num certo princípio, os outros membros, que lhe estão
ligados, vivem e as suas funções morrem por natureza.
No que respeita à outra parte da questão, pela qual se pergunta se em cada uma
das partes está presente toda a alma, provar-se-á que não está presente em cada uma.
A alma move-se por acidente no movimento do corpo em que está, e assim, quando
ele repousa, ela repousa. Portanto, se a alma está toda em cada uma das partes do
corpo, como num espaço de tempo, a mão repousa, o pé se move, uma mão se agita
para o alto e a outra para baixo, toda a alma se moverá ao mesmo tempo e toda
repousará, tendo, durante aquele período, movimentos contrários. Segundo. Quando
alguma coisa está toda nalguma parte, nada dela está de fora, portanto, se toda a
alma está na cabeça nenhuma parte dela estará no pé. Terceiro. Toda a alma do
homem estará em qualquer parte do corpo humano? Então qualquer parte do
humano é homem. Prova-se a consequência porque a essência integral do homem
encontra-se no corpo e na alma.

ARTIGO II
São refutadas várias opiniões dos filósofos.
Estabelece-se a posição correcta

A posição dos mais antigos, nesta questão, não foi única, como, além de outros,
refere São Gregório de Nissa no livro A Criação do Homem capítulo 1 2º; Lactâncio,
no livro A Criação de Deus, capítulo 1 6º; Tertuliano, no livro A A lma ; Cícero, no
primeiro das Questões Tusculanas. De facto, alguns situaram a alma na cabeça,
como no topo, de entre os quais Xenócrates, no vértice; Hipócrates, no cérebro;
Herofílo, no cérebro côncavo ou base. Estratão e Erasístrato, nas membrânulas . O
físico Estratão, entre as sobrancelhas. Outros, noutras partes. Parménides e Epicuro,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão IX, Artigo li 255

em todo o peito. Fílon Judeu, no livro intitulado Quod deterius potiori insidetur, no
coração. Também os estóicos a situaram no coração ou no espírito à volta do cora­
ção, Diógenes, na artéria côncava do coração. Outros, num qualquer lugar escondido
a partir do qual, à maneira de uma aranha, percorre todo o corpo, em proveito geral.
No livro a respeito da doutrina de Platão, capítulo 23º, Alcino explica o que pen­
sou nesta matéria, do seguinte modo. À alma imortal do homem, a partir do primeiro
Deus, os deuses criadores, fundadores dos géneros mortais, juntaram-lhe, como
dissemos, duas partes mortais. Para que a força da alma imortal e divina não fosse
atingida pelos delírios mortais, estabeleceram o seu lugar no alto do corpo, de
acordo com os princípios de todas as coisas. Quiseram, efectivamente, que o seu
habitáculo fosse a cabeça, figura esta a partir da qual o mundo foi feito. A ela sujei­
taram o restante corpo para ministério, como meio. Imputaram as funções próprias a
cada uma das partes mortais. As vísceras, à cólera, a cupidez ao lugar intermédio
entre o umbigo e o diafragma e aí uniram a força como a de um animal furioso e
selvagem.
Para explicar esta controvérsia deve advertir-se que o todo, que é o assunto do
presente estudo, pode ser tomado de três modos. Do primeiro modo, diz-se todo
integral ou quanto. Do segundo, todo pelo poder ou faculdade que, evidentemente,
contém muitas faculdades ou potências, as quais de vez em quando também são
chamadas partes por Aristóteles, nestes livros. Do terceiro modo, todo essencial, que
é o composto pelas partes da essência, quer físicas, quer metafísicas. Nem, de facto,
se deve ignorar que a alma está toda em qualquer parte do corpo, o que pode enten­
der-se de dois modos. De um modo positivo, no sentido em que a alma segundo
todas as partes que realmente a constituem, se encontra presente em qualquer parte
do corpo. De outro, negativo, se se disser que ela está não numa parte do corpo,
segundo uma parte, e segundo outra, noutra, mas que seja o que for que ela tem,
quer se una pelas partes, quer não, o todo está contido em qualquer parte do corpo.
Seja a primeira asserção. A alma tanto divisível, quanto indivisível, enforma
qualquer parte do corpo. Esta afirmação é extraída de São Tomás, livro segundo,
Contra os Gentios, capítulo 72º e de outros peripatéticos em consenso geral . Prova­
-se, porque nenhuma substância corpórea vive a não ser porque tem alma, que é fonte
e princípio da vida. Portanto, embora as partes do corpo animado vivam uma a uma,
visto que todas se alimentam, francamente se conclui que qualquer parte do corpo
animado é enformadao pela alma. Acrescente-se que, como em cada composto natu­
ral está presente apenas uma forma substancial, tal como defendemos no primeiro
livro sobre A Geração e a Corrupção, a alma existe necessariamente em todo o
corpo. De outro modo, alguma parte da matéria teria sido destituída de toda a forma
substancial, o que de modo algum pode acontecer pelas forças da natureza. Acres­
cente-se o testemunho de Aristóteles neste livro, capítulo 2º, texto 20, quando ensina
que a alma das plantas se espalha por todo o corpo.
Segunda asserção. A alma, enquanto é um todo pelo poder, é quer divisível, quer
indivisível, não se contendo em qualquer parte do corpo. Esta afirmação é evidente,
porque embora as potências imateriais, inerentes à alma intelectiva, como o intelecto
e a vontade, estejam em qualquer parte do corpo, também a própria alma o está. As
outras potências orgânicas não são assim, mas à excepção de poucas, como a facul­
dade nutritiva que está espalhada por todo o corpo, a maior parte são todas separadas
256 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

e distintas nas sedes, como será evidente em seu lugar. Assim, por exemplo, a alma
ocupa, conforme a vista, os olhos, conforme o ouvido, os ouvidos, conforme a fanta­
sia, o cérebro.
Há quem objecte que não estabelecemos correctamente a diferença entre orgâni­
cas e não orgânicas, porque todas as potências em geral inerem na alma. Prova-se o
antecedente, porque todas as potências irradiam da alma, e isto através de uma acção
imanente (se todavia fluíssem por acção transitiva, já a sua emanação não se chama­
ria acção própria mas imprópria, cuj o oposto ensinámos na Física), pelo que é
necessário que todas as potências permaneçam na própria alma. Alguns, de entre os
quais Janduno, neste livro, questão 7, concedem que todas as potências são recebi­
das na alma. Ma,s não é assim. Na verdade, visto que as potências, segundo a dou­
trina comum dos filósofos são umas materiais e extensas, as que se dizem orgânicas,
outras imateriais e inextensas, como as operações de umas e outras, não é possível
que as orgânicas sejam inerentes à forma indivisível, mas é necessário que sejam
recebidas na matéria, não na matéria nua, mas enquanto inclui os órgãos e se encon­
tra sob a forma substancial, no modo que discutimos no primeiro livro sobre A
Geração e a Corrupção. Também a partir desta disputa será fácil perceber que as
potências orgânicas não inerem a todo o composto, embora Egídio, Quodlibet 3 ,
questão 1 0 ; Caetano, O Ente e a Essência, capítulo 7°, questão 1 6; Soncinas, livro 7 ,
Metafísica, questão 7 e outros considerem o contrário. E não obsta o que Aristóteles
ensinou no primeiro livro desta obra, capítulo 4º, texto 66, que as funções da alma
são próprias do conjunto, donde se segue que também as potências, no próprio con­
junto, isto é, em todo o ser, visto que o passa a acto é o mesmo que o que está em
potência, segundo idêntico testemunho de Aristóteles no livro O Sono e a Vigília
capítulo 1 º. Não obsta, digo, porque no mesmo ponto, apenas se quer dizer que o
sentir e outras operações do género não se realizam sem o consórcio da alma e do
corpo, contra Platão que considerou que as operações dos sentidos são próprias da
alma e lhe são inerentes. Mas quanto ao argumento a favor da posição de Janduno,
deve responder-se que nem todas as potências flúem da alma pela acção que reside
na própria alma, mas apenas as potências espirituais. Por isso as potências materiais
flúem, por uma acção transitiva, para a matéria, na qual são recebidas. E daí não se
segue que os fluxos sej am acções propriamente ditas, visto que são como que um
certo resultado.
Terceira asserção. A alma divisível, enquanto é um todo, no primeiro ou no ter­
ceiro modo, não está presente toda, em qualquer parte do corpo. Esta afirmação
demonstra-se, porque como a alma é divisível pela extensão da matéria e da quanti­
dade, também é extensa. Será necessário que as suas porções correspondam às partes
da matéria uma a uma e, por isso, não estará toda quanto à substância em qualquer
parte do corpo. Não há razão para se duvidar se as partes metafísicas da alma se
estendem com a própria alma. Com efeito dado que elas não diferem realmente da
substância da alma, será necessário para a sua extensão que também se estendam a
seu modo.
Quarta asserção. A alma indivisível enquanto é um todo, no terceiro modo, está
toda em qualquer parte do corpo, mas segundo a noção do todo, tomado no primeiro
modo pode dizer-se negativamente que está em qualquer parte do corpo. Esta afir­
mação é evidente quanto à primeira parte, porque embora a alma enforme qualquer
Livro Segundo, Explicação do Capítulo !, Questão IX, Artigo lll 257

parte do corpo vivo, como mostrámos na primeira asserção, será necessário que a
alma que carece de partes estej a toda em qualquer parte do corpo. Aquilo, de facto,
que é indiviso, onde quer que esteja, é um todo. Demonstra-se igualmente, quanto à
segunda parte, a mesma asserção, porque uma vez que a alma indivisível não é com­
posta de partes integrantes, pode dizer-se até aqui, conforme a anterior consideração
do todo tomado no primeiro modo que ela está toda em qualquer parte do corpo,
visto que não mantém uma parte integrante numa parte do corpo, e outra na outra.

ÁRTIGO ill
Explicação dos argumentos do primeiro artigo

Eis a resolução dos argumentos que propusemos no primeiro artigo. Ao primeiro,


deve dizer-se, que dele não se conclui que a alma, quanto à sua substância, não está
em cada uma das partes do corpo, mas apenas que, quanto às suas outras potências e
funções, está presente de modo particular em certas partes dele, como na cabeça, no
que respeita a todos os sentidos externos, com excepção do tacto, que atravessa
todos os membros, e também no que respeita às faculdades internas de sentir, uma e
outra ajudantes e servas do intelecto. Porque quando as meninges adoecem o enten­
dimento fica perturbado, não porque a alma estej a dentro do cérebro, mas porque é
preciso que aquele que intelige use o guardião da fantasia e observe as suas imagens.
Daí que, estando elas perturbadas, a alma não possa pontualmente cumprir o ofício
da razão. Também o segundo argumento apenas conclui que a alma está no coração
como numa fonte de calor e produção dos espíritos e na sede do apetite sensitivo a
partir do qual têm origem várias perturbações, mas não que existe ali apenas con­
forme o seu ser enformante. Ao terceiro, diga-se que, embora a forma seja algo de
uno segundo a essência, ela tem a virtude de ser múltipla pela abundância das facul­
dades que emite por si, e carece, por isso, de órgãos distintos para a sua produção.
Ao quarto, dado que qualquer parte de um ser vivo vive, é necessário que a alma
exista em qualquer parte dele; mas o céu não está vivo, nem a inteligência enforma o
corpo celeste, mas apenas lhe assiste como motor. Ao quinto, que a artéria atada
abaixo do nó não se move, porque o movimento da artéria existe a partir do movi­
mento do coração, que está impedido pela constrição, mas não porque não exista
alma abaixo do nó. Ao sexto, que o indivisível quantitativo só pode corresponder de
forma adequada ao indivisível. Mas à substância indivisível, de cuja espécie a alma
é, porque tem a virtude de ser dívisível, pode corresponder uma divisível. Isto é
evidente nos anj os que, embora sendo indivisíveis, existem todavia num espaço
dividido. No que respeita ao ponto citado de Aristóteles, do livro O Movimento dos
Animais, Simão Pórcio, no livro A Mente humana, capítulo 7º, pensa que dele se
conclui que a alma, segundo o pensamento de Aristóteles, não está em todo o corpo.
Ele não pensa, no entanto, correctamente. Aristóteles não diz isso acerca da alma
segundo a sua substância, mas no que respeita à sua potência motriz, acerca da qual
a questão subsistia. Pô-la efectivamente no coração como fonte e princípio de todas
as funções vitais.
Mas, ao primeiro argumento dos que criticam a segunda parte da questão, res­
ponde São Tomás, no lº livro das Sentenças, distinção 37, questão 4, artigo 1°;
Capréolo, no 2º das Sentenças, distinção 2, questão 1, artigo 3º e Caetano, ao artigo
258 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

8º, questão 76 da primeira parte da Suma Teológica, que quando a mão se move, a
alma não se move nem por si, nem por acidente, porque de forma alguma se diz que
as substâncias imateriais recebem movimento, excepto quando aquilo em que preci­
samente existem se move. A alma, com efeito, não existe precisamente na mão.
Outros, de entre os quais São Tomás, As Criaturas Espirituais, questão única, arti­
gos quarto ao 7º; Egídio, no primeiro livro das Sentenças, distinção 8, 2ª parte da
distinção ao princípio da questão terceira, não consideram nada absurdo admitir que
a alma simultaneamente se movimenta e repousa. Isto, porque em si ela não recebe
movimento nem repouso, mas antes as diferentes partes do corpo que a alma
enforma, ainda que isso não possa acontecer nas que se movem por si, ou que de
qualquer modo recebem em si movimento. E por fim, outros consideram que a alma
se move por acidente no movimento da mão, mas negam que ao mesmo tempo des­
canse, quando o pé descansa. Na verdade, visto que o repouso é privação que nega
em absoluto o movimento, não se afirma, dizem, que a alma descansa, a não ser que
todo o corpo, no qual se dá, estej a isento de movimento. Destas três soluções,
embora nenhuma desaprove totalmente, a primeira agrada mais. À segunda pode
negar-se, primeiro de tudo, o antecedente. Diz-se que uma coisa está toda em
alguma parte, desde que toda ela esteja onde está contida toda, ou também que ela
seja admitida nas coisas que precisa e delimitadamente existem nalgum lugar, tal
como no seu primeiro e adequado perfectível, razão pela qual as formas indivisíveis
não estão em qualquer parte do corpo. Esta solução é de São Tomás nas Questões
Disputadas sobre a Alma, artigo 1 0º, ao 3º.
Ao terceiro, deve negar-se a conclusão. De facto, não se diz que o homem é com­
posto de alma racional e de qualquer matéria, mas da que é o primeiro e adequado
perfectível, a qual não é parte da matéria.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO II

a. 4 1 3 a 1 1 At enim, cum ex obscuris Aristóteles passa a transmitir outra defini­


- -

ção de alma, pela qual explicita, de forma mais distinta, as espécies de almas,
estabelece o método e o modo da doutrina, como costuma fazer, dado que existe
grave controvérsia. Ele afirma, portanto, que quer avançar a partir das coisas
obscuras por natureza, mas para nós mais conhecidas, até àquelas que são mais
conhecidas, de acordo com a razão, e transmite a definição que contém a causa.
Com efeito é necessário declarar não só que a coisa existe, mas porque existe.
Mas que coisas chamamos de natureza mais conhecida ou mais obscura, expu­
semos em longa discussão no primeiro livro Lições da Física.
b. Nunc autem definitionum 4 1 3 a 1 6 -É evidente que existem três géneros de
definições com base no primeiro livro dos Posteriores, capítulo 7º. Umas são
transmitidas através da forma ou da matéria. Outras, pela causa final ou eficiente.
Outras, compreendem um e outro género de causa. Aquela que consta de um
género, chama-se, ora conclusão, quando é demonstrada através de outra, ora
meio, quando demonstra outra. Aquela, porém, que se compõe de um e de outro,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo II 259

chama-se demonstração, somente pela posição ou pela diferente colocação, por­


que contém o termo médio e a conclusão a partir dos quais se pode alcançar a
demonstração, acedendo a forma silogística. É o caso da definição «O homem é
animal que participa da razão, constituído por um corpo erguido para o céu». Na
verdade pode concluir-se esta demonstração a partir daquela em que se demons­
tra a causa material pela formal ou quase formal deste modo: «todo o animal que
participa da razão é constituído por um corpo erguido para o céu». A intenção de
Aristóteles é transmitir uma tal definição de alma, que a partir dela e da assina­
lada no capítulo anterior, se produza uma outra que sej a uma demonstração dife­
rente pela posição. Assim, uma pode demonstrar-se a partir da outra.
c. Veluti quid este quadratio 4 1 3 a 1 7 A fim de demonstrar que existem certas
-

definições que explicam a causa da coisa, e outras que não são assim, o exemplo
pedido é extraído da Geometria. O que, para se entender, deve advertir-se que,
dado um quadrilátero rectângulo, se pode dar um quadrado envolvendo área
igual. Mas o quadrilátero é a figura quadrangular de dois lados iguais, como A.

Já o quadrado é a figura também quadrangular que tem todos os lados iguais e


rectângulos, como B .

Quadrar u m rectângulo significa encontrar u m quadrado com área igual à desse


rectângulo. Isto é feito por meio da determinação da linha média. A linha média é
aquela que se encontra entre os lados maior e menor do rectângulo, de tal forma
que a proporção que obtém o lado maior em relação a ela, é a mesma que a pró­
pria linha obtém em relação ao lado menor. Por exemplo, se o lado maior tiver
quatro palmos e o lado menor um, a linha média tem dois, porque, tal como é
excedida pelo lado maior no dobro, assim também excede o menor no dobro.
Logo, o quadrado construído a partir da linha média e de outras três iguais a ela é
igual ao rectângulo dado. Achar-se-á tal linha da forma seguinte. Justaponha-se
em linha recta o lado maior do rectângulo e o seu lado menor, antes concorrentes
no vértice do ângulo A, e descreva-se um semicírculo sobre a totalidade da linha
assim obtida. De seguida, do ponto de concorrência A, levante-se uma linha per­
pendicular, ou em ângulos rectos, até à circunferência. Esta será então a linha
média a partir da qual se constrói um quadrado igual. Posto isto, deve ficar-se a
saber que a quadratura, a que se chama tetragonismo, se define de duas maneiras.
De uma maneira, por meio de uma definição que não apresenta a referida causa
260 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

da quadratura; obviamente "a quadratura é a construção de um quadrado igual a


um rectângulo". De outra maneira, apresentando a causa da forma atrás referida,
ou seja, "quadratura é a descoberta de uma linha média entre os lados desiguais
de um rectângulo". Com efeito, esta definição contém a causa da quadratura. Este
exemplo relaciona-se com o facto de que Aristóteles informa que pretende ofere­
cer uma definição de alma que apresente a causa do objecto.

Lado menor Lado maior


A

d. Dicamus igitur 4 1 3 a 20 Tinha dito que se devia avançar do que é posterior e


-

mais obscuro por natureza e mais conhecido para nós, para o que é mais conhe­
cido por natureza. Ele observa esse método. Aristóteles avança do ser animado
para a alma, e é evidente que o ser animado é posterior em natureza, à alma.
Certamente diz-se animado porque participa da alma e recebe o nome a partir da
alma. O que recebe o nome a partir de algo é-lhe posterior. É claro também que o
ser animado é mais evidente para nós do que a alma, pela qual o todo é composto
e vem primeiro à mente (entenda-se quanto a um conhecimento confuso) do que

a sua parte. Mas a alma é uma parte do corpo animado. É evidente, também, que
o ser animado quanto a um conhecimento distinto, é mais obscuro por natureza
do que a alma, tal como o todo, mais do que a sua parte. Logo, Aristóteles parte
do que é animado explicando a diferença entre animado e inanimado, a saber,
que o animado vive, isto é, move-se por si e pratica as acções através do princí­
pio interno da vida. Donde, Simplício anota que a vida em grego (w� se diz à7to
Toü (ÉELV, isto é, a partir da agitação porque agita-se por si e por dentro, quer
dizer, age ou move e é movido.
e. Quapropter 4 1 3 a 25 Porque a vida se diz de muitas maneiras, são quatro os
-

géneros de tais operações em potência: a nutrição, a sensação, o movimento de


marcha e a intelecção. Aristóteles ensina que para se dizer que algo vive basta
que exerça uma função vital. Donde, abrange as plantas em que as funções vitais
são menos nobres e evidentes, mas que na realidade vivem, com o argumento de
que crescem e definham independentemente do lugar. Na verdade as coisas natu­
rais são determinadas para um lugar, mas os seres vivos são-no para os opostos.
f. Atque haec quidem 4 1 3 a 3 1 Nos quatro géneros de operações vitais, que
-

enumerara pouco antes, abrange quatro graus de vida. O primeiro é próprio dos
vegetais ou dos que se alimentam, crescem e declinam; o segundo, daqueles que
não só são vegetativos, mas também se salientam pelo sentido; o terceiro, dos
vegetativos, dos que também são dotados de sentido e se movem com o movi­
mento de locomoção. O quarto, daqueles que além de possuirem os três graus
anteriores também detêm o grau de inteligir. Ensina, de facto, que estes graus se
Livro Segundo, Explicação do Capítulo li 261

distinguem entre si. Nas plantas o primeiro encontra-se sem os outros. Em certos
animais os dois primeiros sem os restantes, como nos animais marinhos, que
estão presos às rochas. Nos animais perfeitos os três primeiros sem o último. No
homem os quatro. E assim, nestes graus, existe este tipo de ordem, para que pos­
sam existir os primeiros sem os últimos, não o contrário.
g. Atque quam 413 b 9 Diz que de caminho vai explicar por que é que a potência
-

de nutrir ocupa o primeiro lugar entre as restantes faculdades da alma e o tacto


entre todos os sentidos. De facto, a causa disso é porque a faculdade nutritiva, em
primeiro lugar, conserva a vida, quando continuamente renova e restitui o fluxo à
matéria arrebtada pelo calor. Além disso, o tacto afasta as coisas nocivas e perse­
gue as saudáveis, e, uma vez afastada a diferença desabam os fundamentos da
vida.
h. Nunc eousque 413 b 10 A partir do que foi dito, Aristóteles conclui a segunda
-

definição de alma. Como o animado difere, na verdade, do inanimado pela ope­


ração da vida e da própria alma, tal como nascida do princípio da vida, e visto
que são quatro os géneros dos seres vivos, distintos pela variedade de quatro fun­
ções, resta que é correctamente que se diz que a alma é princípio de vegetar, de
sentir, de mover no lugar, de inteligir ou aquilo por que vivemos, sentimos, nos
movemos no lugar e inteligimos. A seguir propõe duas questões. Uma, se estes
quatro, ou seja, o vegetativo, o sensitivo, o movimento no lugar, o intelectivo,
são faculdades ou partes da alma ou se são antes a própria alma. Quer dizer, se o
vegetativo é potência inata da alma que atinge as funções da vida ou se é a pró­
pria alma vegetativa. Outra, embora sej am faculdades, se não se distinguem da
alma apenas pela razão e pela definição, ou pelo lugar e substrato. Timeu situou a
ira no coração, o apetite no fígado, o sentido no cérebro.
i. Atque de nonnullis 4 1 3 b 15 Aristóteles resolve a questão seguinte, para que a
-

explicação da anterior acabe por ser mais fácil. A solução está contida na frase a
seguir. Não é difícil ver que nalguns seres animados as potências não se distin­
guem pelo substrato e lugar, noutros é difícil ver, mas é evidente que todos dife­
rem entre si pela razão e pela definição. Na verdade, existem três partes desta
afirmação, das quais a primeira, se se referir às plantas, insectos e às potências
que lhes respeitam, é manifestamente verdadeira. Com efeito, as partes arranca­
das da planta contêm a potência vegetativa e nutritiva, apenas porque não só a
alma da planta, mas também as suas potências se difundem por todo o corpo.
Também, o lagarto dividido em duas partes ainda assim se move e sente. O
movimento e o sentido acompanham a imaginação e o apetite. Logo, elas existem
mediante os membros do lagarto e do desenvolvimento do ramo. Por outro lado,
se estivessem circunscritas a lugares definidos, apenas poderiam manter-se nes­
ses lugares, enquanto se mantêm.
k. De intellectu 4 1 3 b 24 Esta é a segunda parte da frase, na qual Aristóteles mos­
-

tra ser difícil e ainda ambíguo saber se a potência intelectiva está confinada a
certo órgão, porque ainda não explicou suficientemente se é uma faculdade orgâ­
nica. Todavia diz que parece que a alma intelectiva é de outra natureza e ordem e
que se distingue das restantes coisas sublunares, pela imortalidade. Daqui se
segue que a potência de inteligir não se encontra fixa ao corpo e pode separar-se
dele, mas não assim as restantes potências, visto que estão fixas e adjudicadas
262 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

aos órgãos, como é claro, a partir do que se disse acima, ainda que falte quem
afirme que elas também se podem separar da matéria.
1. Ratione uero 4 1 3 b 27 - Confirma a partir das suas operações a terceira parte da
afirmação, visto que todas as potências se distinguem pela razão ou definição. As
potências, na verdade, distinguem-se pelos seus actos. Por isso, como os sentidos
e o apetite produzem actos diferentes, como que tendentes para objectos diferen­
tes, também obtêm assim diferente razão e definição. A seguir, naquelas palavras
«também quanto às outras», como São Tomás interpreta, resolve a primeira
questão, afirmando que cada um dos quatro predicados, vegetativo, sensitivo,
movimento no lugar e intelectivo são quer a alma, quer uma faculdade da alma.
São a alma, quando apenas está presente um deles, e assim, nas plantas, o vege­
tativo é a alma. Quando estão presentes muitos, aquilo que é mais elevado pre­
domina, como no homem o intelectivo. O que deve ser entendido de tal modo
que, por exemplo, o vegetativo, tomado por si, por convenção, é alma, ao qual
apenas este grau pertence, e do mesmo modo, quanto aos três restantes referidos.
Cada um deles pode ser tomado como alma ou como potência, tal como o vege­
tativo, como faculdade vegetativa que brota da essência da alma da planta, ou
como a própria alma da planta. No entanto, os intérpretes gregos pretendem que
aqui se contém a confirmação da afirmação proposta, relativa à distinção das
potências segundo a razão. Porque os seres vivos alcançam, uns mais, outros
menos, faculdades da alma, mostrando necessariamente que elas, muitas vezes,
se distinguem pela razão. E esta explicação dos gregos parece mais verdadeira; a
primeira parece um pouco forçada.
m. Quoniam autem 4 1 4 a 4 - A partir da definição encontrada neste capítulo, Aristó­
teles determina que ela demonstra a definição que transmitira no capítulo ante­
rior. Estabelece primeiro que há duas maneiras pelas quais dizemos que se sabe;
pela ciência, enquanto forma, pela alma, enquanto substrato. Também há duas
maneiras porque dizemos que nos curamos, a saber, pela saúde, enquanto forma,
no corpo, ou nalguma parte do corpo, enquanto substrato. Assim, dizemos que
vivemos de duas maneiras, uma como forma, outra como matéria, na qual está a
forma. Efectivamente, a forma ou acto não pode estar em qualquer substrato, mas
num certo e determinado, tal como o agente não age indiscriminadamente em
qualquer um, mas naquele que é idóneo e apto para receber a sua impressão.
n. Anima autem 4 1 4 a 12 - Prova que a alma é forma. Aquilo pelo qual vivemos é
forma, mas vivemos pela alma, logo a alma é forma. A menor convence, porque
a substância é tripla, forma, matéria e composto, como já acima foi dito. Mas o
composto é o que vive, e como o corpo ou matéria é ente em potência, não é pos­
sível dizer que por ele vivemos, mas sim através da alma, que é acto. A partir das
afirmações anteriores, pode concluir-se a explicação do seguinte modo. Aristó­
teles demonstra a primeira definição de alma pela segunda. Aquilo, pelo qual
primeiramente vivemos, sentimos, nos movemos no lugar e inteligimos é o acto
primeiro substancial do corpo natural que tem a vida em potência; ora, a alma é
aquilo pelo qual primeiramente vivemos, sentimos, nos movemos no lugar e
inteligimos; logo, a alma é o acto primeiro substancial e etc.
o. lccirco recte 4 1 4 a 1 9 - Do anterior quase se retira, como corolário, que os que
afirmam que a alma não é o corpo, nem é sem o corpo, pensam correctamente,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo //, Questão Única, Artigo / 263

porque embora a alma intelectiva separada subsista fora do corpo, todavia, por
sua natureza, a sua forma e o seu estado natural é no corpo, e que depende dele
quanto à função de enformar.
p. Non in quouis 4 1 4 a 23 Os pitagóricos aventaram que a alma pode
-

indiscriminadamente ingressar em qualquer corpo. No entanto, acontece de modo


muito diferente, dado que vemos em cada uma das espécies de seres vivos, que
ela entra e se coloca em diferentes corpos de animais. Também percebemos que
nas coisas que carecem de alma, a forma e o acto não são recebidos em qualquer
substrato, mas naquele que lhe é adequado por natureza. Conclui precisamente
que a alma é correctamente definida como acto, ou forma do corpo, que tem a
vida em potência.

QUESTÃO ÚNICA
Se a segunda definição de alma foi correctamente transmitida
e se a primeira é por ela demonstrada

ARTIGO I
Foi correctamente transmitida

Aristóteles definiu assim a alma, no capítulo anterior: alma é aquilo pelo qual
vivemos, sentimos, nos movemos no lugar e inteligimos. Demonstra-se que esta
definição está errada. Primeiro, porque parece respeitar a Deus, o Melhor e Mais
Eminente, visto que Deus é o princípio da vida, do movimento e do próprio ser,
segundo São Paulo no décimo sétimo capítulo dos Actos. Como não está distante de
cada um de nós, então nele vivemos, nos movemos e somos. Porque aqui, a alma é
definida em geral, tal como na primeira definição, quando Aristóteles disse, no texto
décimo segundo, que a definição respeita só à alma racional, já que apenas aquelas
quatro partes tomadas em conjunto lhe podem ser atribuídas. Por outro lado, porque
a outra definição não se lhe aplica em parte, visto que a alma que participa da razão
não é aquilo pelo qual inteligimos, mas aquilo que intelige, pois é singular, subsis­
tente por si, pertencendo-lhe o agir por si. Outro. Porque a alma separada do corpo é
verdadeiramente alma e, no entanto, não é aquilo pelo qual vivemos e sentimos.
Todavia, não é por estes argumentos que se deve provar se a definição aristotélica
está correctamente explicada e compreendida. Não colhe, também, a opinião de
Egídio, considerando que Aristóteles, com aquelas palavras, não transmitiu uma,
mas quatro definições sobre o número de almas. De facto, a definição referida é una,
e como una foi investigada e proposta por Aristóteles, tal como é evidente no
decurso dos capítulos anteriores. Depois, Egídio não estabeleceu bem quatro almas,
pois apenas se contaram três, como em seu lugar se tomará claro. Mais, a definição
deve entender-se da maneira a seguir. Como se diz que alma é aquilo pelo qual
vivemos, isto é, o princípio interno da vida, isto em nada corresponde a Deus, no
que às coisas vivas concerne, posto que Deus penetra no íntimo de todas as coisas
conferindo-lhes o ser, mas não as constitui intrinsecamente. Também aquelas quatro
partes, 'vivemos, sentimos etc.' não devem ser tomadas conjuntamente, mas separa-
264 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

das. Não porque cada uma se distinga singularmente, como que dizendo que a alma
é aquilo pelo qual vivemos, sentimos, nos movemos no lugar ou inteligimos, mas de
maneira a que a separação se faça com a j unção das partes precedentes e se diga que
a alma é aquilo pelo qual vivemos, ou também sentimos, ou também nos movemos
no lugar, ou também inteligimos. Por isso, é evidente que Simplício não considerou
correctamente que esta definição apenas se pode aplicar à alma intelectiva. Outro.
Dionísio Sofista foi justamente condenado porque definiu a vida a partir do movi­
mento de nutrição, como se não existisse outro modo de vida. E com base nisto
responde-se claramente aos dois primeiros argumentos.
Aos restantes, dizemos que, embora a alma racional, considerada em si, seja
aquilo que intelige, uma vez junta ao próprio composto, é aquilo pelo qual inteligi­
mos e, por isso, uma vez separada, é aquilo pelo qual vivemos, isto é, pela sua natu­
reza e princípio de vida ou, o que vai dar ao mesmo, é o princípio pelo qual pode­
mos viver e sentir.

ARTIGO II
De que forma as definições de alma podem por si
demonstrar-se mutuamente

Os intérpretes divergem bastante acerca da outra parte da questão proposta. Com


efeito, os gregos, a que se seguiu Alberto Magno e muitos outros latinos, consideram
que a segunda definição é transmitida através da primeira, segundo a natureza, e que
dela se conclui a primeira, como pela causa, por uma demonstração causal sobre o
que a coisa é. As palavras de Aristóteles, primeiro, apoiam esta opinião, no início do
capítulo 2º, quando declarou que pretendia investigar a definição que continha a
causa da coisa. Depois, porque achava preferível, como filósofo, proceder à defini­
ção, dos efeitos para a causa, do que da causa para os efeitos. São Tomás e alguns
outros seguiram a opinião contrária, afirmando que a primeira definição contém a
causa da segunda, e que esta se demonstra através daquela, por uma demonstração
causal sobre o que a coisa é, e aquela através desta, pela demonstração que a coisa é.
A favor da explicação da controvérsia, deve advertir-se que se pode considerar de
dois modos a segunda definição de alma. De um modo, na medida em que respeita
ao princípio das operações da alma, de outro, na medida em que respeita às próprias
operações da alma e abarca um e outro. Depois, as operações da alma podem ser
examinadas, ou porque são afecções da alma ou porque são o seu fim. Na verdade,
visto que cada um existe por causa da sua operação, como ensina Aristóteles no
livro segundo de O Céu, capítulo 3º, texto 1 7 , não admira que se diga que as opera­
ções da alma são o seu fim, mas não se a alma for considerada precisamente quanto
à sua quididade ou quanto aos seus predicados essenciais. Com efeito, tal como a
essência, tomada em si, de modo absoluto, não tem uma causa eficiente, como dis­
semos noutro lugar, assim também não tem uma causa final. Portanto, diz-se que as
operações da alma são o seu fim se a alma for tomada, não inteiramente, quanto à
sua essência, na medida em que recebe o ser da existência, pois quando é produzida
obtém a causa final e também a eficiente. Não é só quando é produzida em acto, mas
quando pode ser produzida, pois, embora não reclame a causa eficiente em acto,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo //, Questão Única, Artigo II 265

reclama-a em potência, como de igual modo para aquela ordem e igualmente para a
causa final, visto que pode ser dirigida para ela pelo seu eficiente.
Posto isto, seja a primeira conclusão. Se se considerar a segunda definição de
alma, na medida em que respeita ao princípio das operações da própria alma, ela
pode ser demonstrada através da primeira, por uma demonstração causal, mas não a
primeira, através daquela. Esta afirmação prova-se assim. Pelo menos, segundo o
nosso modo de compreender, a alma é mais acto do corpo, do que princípio das suas
operações e aquilo é a razão disto. Logo, também a definição de alma respeitante ao
princípio de vegetar, etc. pode demonstrar-se através daquela que respeita ao acto do
corpo, por uma demonstração causal. O antecedente demonstra-se do modo a seguir.
O ser está para a operação como o princípio do ser para o princípio de operar, visto
que o efeito tem esta relação com o efeito, tal como a causa com a causa; ora, o ser é
anterior à operação, em natureza; logo, também o princípio de ser o é em relação ao
princípio de operar. Mas a alma é o acto do corpo e o ser é princípio de ser, pois
assim actua, compõe, constitui; ora, o ser é aquilo pelo qual vivemos ou vegetamos e
é fonte e princípio de operar; portanto, etc. Outro. O ser de uma coisa é que deter­
mina o princípio da sua operação e não o contrário. Portanto, porque a alma é acto
do corpo, é princípio de vegetar. Logo, demonstrar-se-á isto através daquilo, não
aquilo através disto, como algo anterior e como causa.
Sej a a segunda conclusão. A segunda definição, dado respeitar às operações da
alma, como aos seus efeitos, pode ser demonstrada por uma demonstração causal
através da primeira e esta através daquela, por uma demonstração do que a coisa é,
não vice-versa. A verdade desta conclusão é evidente, porque os efeitos podem ser
demonstrados através da sua causa e a causa através dos efeitos, mudada a razão de
demonstrar segundo este modo. Mas a primeira definição contém a causa das opera­
ções da alma, e por isso é relativa à sua essência, que é causa das funções vitais dela.
A segunda, porém, respeita aos efeitos. Porque de facto os efeitos, visto que são
efeitos, não podem demonstrar a sua causa através da primeira, o que é mais claro do
que a luz. O sentido desta conclusão está conforme à verdadeira opinião de São
Tomás, como acima referimos, contanto que não se oponha à terceira conclusão,
como desde logo sugerimos.
Sej a a terceira conclusão. Se a segunda definição de alma for examinada como
dizendo respeito às operações da alma, na medida em que são o fim da própria alma,
poder-se-á, através dela, demonstrar a primeira por uma demonstração causal. Deve
entender-se esta conclusão acerca da alma considerada segundo o modo por que
dissemos que as causas eficiente e a final podem alcançar as naturezas das coisas. E
é evidente, porque a segunda definição assim considerada, respeita à causa da pri­
meira. Aristóteles pode ser correctamente compreendido em conformidade com o
sentido desta conclusão, quando no capítulo anterior declarou que queria transmitir a
definição que contém a causa. Embora Caetano tenha exposto isto de outro modo, a
saber, não acerca da causa final, mas da formal, considerando que o princípio de
operar, a respeito da alma, existe primeiro no género da causa formal, do que no acto
do corpo. Todavia o argumento através do qual estabelecemos a primeira conclusão,
excluiu esta interpretação, que também tem a sua probabilidade.
A partir do que dissemos é evidente o que deve ser respondido aos argumentos
aduzidos no início da questão. As palavras ao início do capítulo segundo têm de ser
266 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

compreendidas acerca da causa final . Outro. Visto que Aristóteles numa e noutra
definição, que tem de ser indagada, tinha caminhado a partir do conhecimento das
operações da alma para o conhecimento da própria alma, é bastante evidente que
nesta matéria tenha sido seguido o modo ordinário de investigação da Física, dos
efeitos para as causas. Para o respeitar não foi preciso proceder da definição que
compreende os efeitos apenas, para aquela que só contem as causas. Mas ele conju­
gou engenhosamente uma e outra ordem, isto é, a da apurada doutrina, que é a das
causas para os efeitos, e a da primeira investigação da Física que é a dos efeitos para
as causas, quando, ao mesmo tempo, procedeu não só das causas para os efeitos,
mas dos efeitos para as causas, segundo uma e outra consideração, como dissemos.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO Ili

a. Animantium autem 4 1 4 a 29 Aristóteles até aqui discutiu sobre a natureza da


-

alma considerada em si. Acerca-se agora da disputa sobre as suas faculdades,


onde seguiu a doutrina do seu mestre Platão, que no Fedro chama a atenção que
em cada coisa deve primeiro ser considerada a essência, em seguida deve expli­
car-se como se dá a faculdade de agir e de padecer. Além disso, neste capítulo,
ele transmite uma certa compreensão genérica das potências da alma, em parti­
cular daquelas de que se vai ocupar, de caminho. Enumera, portanto, as potências
da alma para as quais são reconduzidas as restantes, isto é, a potência de nutrir,
de apetecer, de sentir, de mover no local e de inteligir. Destas, às plantas apenas
pertence a primeira, a segunda e a terceira a todos os animais, a quarta somente
aos animais perfeitos, a quinta só ao homem.
b. Nam appetitus 4 1 4 b 1 Prova que a potência de apetecer está sempre junta à
-

faculdade de sentir, por duas razões. A primeira é assim. Em todos os animais


existe pelo menos o sentido do tacto, sob o qual o gosto está compreendido
(efectivamente o gosto é um certo tipo de tacto). Onde o tacto está presente, aí se
encontram o prazer e a dor. Mas estes são actos do apetite, porque a deleitação
diz respeito ao bem, a dor, ao mal. O bem e o mal respeitam ao apetite. Logo, em
qualquer animal a potência de apetecer acompanha o sentido. A segunda conclui­
-se assim. O sentido do alimento encontra-se em todos os animais, nomeadamente
o do tacto sob o qual o gosto se contém. Na verdade todos os seres vivos se ali­
mentam e sustentam de coisas secas e húmidas, quentes e frias, que são todas
percebidas pelo sentido do tacto, mas onde reside o sentido do alimento, aí se
encontram a fome e a sede, que são um certo tipo de apetite; a fome, nomeada­
mente, do seco e do calor, isto é, do alimento. A sede, do frio e do húmido, isto é
da bebida. Portanto, em todo o animal, a faculdade de apetecer está junta com o
sentido. O que neste ponto pode ser dito da fome e da sede foi por nós abundan­
temente explicado no primeiro livro sobre A Geração e a Corrupção. Advirta-se
porém, que quando Aristóteles diz que o apetite pertence a todos os animais, sub­
siste uma dúvida sobre se isto também compreende o apetite irascível. Temístio
diz que pensa que há muitos animais desprovidos de cólera e que apenas pos-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo ll/ 267

suem um ténue vestígio de desejo. A outros apraz que o apetite da ira e do desejo
estejam juntos, porque a ira está sempre presente no concupiscível como sua
defensora e vingadora, contra as coisas que impedem que o animal atinja o bem
que procura e decline o mal que evita. Leia-se São Tomás 1ª parte da Suma Teo­
lógica, questão 8 1 , artigo 2º.
c. De imaginatione 4 1 4 b 16 Aristóteles afirma não ser ainda claro se a faculdade
-

de imaginar, em qualquer animal, acompanha o sentido externo, o que entende


acerca da faculdade imaginativa perfeita, que retém as imagens das coisas
ausentes e tem lugar numa parte certa e definida do animal. E na verdade a
potência perfeita ou imperfeita de imaginar é comum a todos os animais.
d. Etsi quid aliud 414 b 19 Ele parece duvidar se os demónios estão acima dos
-

homens pelo intelecto e se são dotados de razão como Sócrates e Platão afirma­
vam. Acerca do assunto, leia-se Platão, nos livros 2 e 1 0 de A República, no
Fedro, no Epiménides, e noutros pontos. É evidente que acima da natureza
humana, está a angélica, que é desprovida de corpo e se salienta pelo intelecto.
e. Perspicuum igitur 4 1 4 b 1 9 Ele resolve a questão, que propusera no primeiro
-

capítulo do livro anterior, sobre se, na verdade, existe uma definição comum de
alma, e responde às duas proposições com uma certa comparação recolhida a
partir da figura. A primeira é. Tal como não existe uma figura comum separada,
realmente, das figuras, uma a uma, assim também não existe uma alma separada,
realmente, de todas. Por isso, não se pode propor, em absoluto, uma definição
que diga respeito à alma separada dos indivíduos, porque não há uma definição
de figura comum que se aplique à figura por si subsistente além das singulares,
como falsamente pensavam os defensores das Ideias. A outra proposição é. Tal
como a definição geral de figura é própria de uma natureza comum, que todavia
se encontra nas coisas particulares e não se encontra separada delas, assim tam­
bém acontece com a definição comum de alma.
f. At uero quemadmodum 4 1 4 b 28 Ensina que nas figuras, umas são posteriores a
-

outras e mais perfeitas, e que o mesmo também acontece nas almas. Com efeito,
existe entre elas uma ordem de perfeição. Certamente a vegetativa é a mais
imperfeita de todas. À sensitiva cabe o segundo lugar. A terceira, participa da
razão. E, como as anteriores figuras se inscrevem nas seguintes, por exemplo, o
triângulo no quadrado e o quadrado no pentágono, assim também a vegetativa
está contida na sensitiva, a sensitiva na intelectiva. Daí prossegue mostrando por
que razão os graus da vida foram distribuídos por diversos graus de seres vivos, e
os que são próprios de cada um.
g. Postremo 4 1 5 a 7 Chama à espécie humana o último e o mínimo. O último,
-

porque procedendo das imperfeitas para as mais perfeitas ocupa o último grau,
isto é, o mais perfeito, entre os corpos vivos; o mínimo, porque não pode ser
dividido em outras espécies.
h. Quibus enim mortalium 4 1 5 a 9 Diz que a razão lhes pertence, isto é, a potência
-

de inteligir convém aos restantes graus de vida, desde que sejam mortais. Por que
razão Aristóteles acrescenta esta limitação, exporemos na questão. Depois,
afirma que certos animais vivem só com a imaginação, não porque apenas a
tenham, também são dotados de sentido e da faculdade vegetativa, mas porque se
268 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

diz que cada um vive por causa do que nele é mais eminente. Aristóteles fala
neste ponto não da imaginação imperfeita, que após sentir-se se dissipa imedia­
tamente, mas daquela que permanece, isto é, que conserva as imagens das coisas,
quando está junta a memória, como aqui São Tomás chama a atenção.

QUESTÃO !
Se a variedade tripartida das almas
está correctamente atribuída ou não

ARTIGO I
Em princípio não parece correcta,
mas está correctamente atribuída

Deve examinar-se, neste ponto, se é correcto contarmos três almas, a saber,


vegetativa, sensitiva e intelectiva. Disputou-se assim, a favor da parte negativa. Ou
os que consideram três almas compreendem três géneros de almas ou três ínfimas
espécies. Três géneros não, porque a alma que participa da razão não é género. Três
espécies não, porque as almas dos diferentes animais irracionais em espécie, como a
do cavalo, do leão e do elefante distinguem-se, em espécie, entre si, tal como os
próprios animais e as almas das plantas como a da pereira, a do cipreste e a do plá­
tano. De modo algum se deve afirmar que existem três almas.
Outro. Qualquer forma específica, tanto dos animais como das plantas, acrescenta
à forma do seu género um certo grau, que lhe é próprio e recíproco, pelo qual
encerra e delimita o conhecimento comum do género. Logo, tal como a alma inte­
lectiva, pelo grau que acrescenta, produz uma parte diferente naquela divisão da
alma, também as espécies de plantas produzem partes diferentes.
Por outro lado, que se devem contar menos almas, demonstra-se assim. A alma de
uma planta também sobressai pelo sentido; portanto, não se encontra separada das
outras e, por isso, na referida divisão é incorrecto separá-la da sensitiva e da intelec­
tiva. Prova-se a premissa menor, porque as plantas distinguem as seivas úteis das
inúteis . Efectivamente, atraem aquelas, rejeitam estas, o que também, de modo par­
ticular, é mais evidente nas que perseguem as coisas saudáveis e rejeitam as nocivas.
Por exemplo, os pepinos enterram-se na humidade e humor da terra onde escolhem
ser mais abundantemente regados. Com efeito, desviam-se totalmente do azeite,
onde, uma vez banhados murcham, a tal ponto que, posto este por baixo, se curvam.
A videira foge da vizinhança do loureiro porque este, pela sua qualidade, impede o
seu crescimento e, do mesmo modo, detesta a couve porque esgota o suco da terra.
O mesmo se observa nas árvores designadas pelo nome de macho e de fêmea. Estas,
para permitirem a fecundação agarram-se entre si. Por esta razão parece estar pre­
sente nas plantas um dado sentido, muitas vezes desconhecido. Acrescente-se tam­
bém que as árvores verdejam e florescem em épocas determinadas, que são próprias
de uma certa juventude e morrem de secura como de velhice. Por último, as que se
dispõem em série, ordenadamente, não mostram perfazer mais partes do que o ser
vivo, animal ou homem, mas isso é o que acontece com as almas vegetativa e a
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Ili, Questão /, Anigo / 269

intelectiva. Na verdade, a vegetativa é dada a conhecer directamente a partir da sen­


sitiva, e esta da intelectiva. Logo, não é correcto que a alma se dividida nestas três
partes.
Não houve, entre todos os filósofos, opinião comum sobre esta questão, como é
claro com base naquilo que escreveu o autor dos livros sobre As Plantas, divulgados
sob o nome de Aristóteles, no capítulo primeiro, do primeiro livro; Plutarco, capítulo
vigésimo sexto do livro quinto de As Opiniões; Clemente Alexandrino, no livro 8 de
As Mantas; Galeno, no livro sobre As faculdades naturais. Na verdade, os estóicos
negaram que as plantas fossem animadas porque careciam de desejo. Platão, no
Timeu, depois de Empédocles e de Anaxágoras, considerou que eram seres vivos
dotados de sentidos, mas que se distinguiam dos animais porque estes possuem um
sentido acutilante e atento, enquanto aquelas têm um sentido imperfeito e como que
adormecido. Também os pitagóricos atribuíram sentidos e apetite às plantas mais
perfeitas . Mas uns e outros afastaram-se da verdade. Os estóicos, porque nem toda a
vida deve ser considerada pelo desejo ou pelo sentido, mas pelo movimento que
dimana do princípio interno e, sem dúvida que o vemos nas plantas. Outros, porque
se as plantas tivessem a faculdade de sentir as picadas e as feridas mostrariam sen­
sação de dor, contraindo-se, como têm por costume os animais, posto que muito
animais imperfeitos, como as esponjas e os caracóis, se tocarem também algo
áspero, imediatamente se contraem, e se tocarem algo húmido, transpiram. Depois,
porque onde há o sentido, há o sono e a vigília, o que, efectivamente, não está pre­
sente nas plantas . Terceiro, porque, como disputa Aristóteles no livro 3, capítulo 1 2º,
texto 66, a natureza das plantas é bastante terrestre e, portanto, inepta para sentir.
Santo Agostinho no livro A Grandeza da Alma, capítulo 33°, considera a opinião
que atribui sentidos às árvores, como grosseira irreverência. Não deve ser ouvida,
diz, não conheço irreverência de todo grosseira, e mais ressequida do que as próprias
árvores, do que aquela que defende e que acredita que a videira sente dor quando é
colhida a uva. Mas também considera uma irreverência por causa do preceito dos
maniqueístas que, tal como ele próprio testemunha no livro Ad Quod uult Deum
haeresi 46, também atribuiam sentidos às plantas, a fim de lhes conferirem alma
racional . Daí considerarem homicídio o extrair da árvore a folha e o fruto. Contra
este erro, leia-se o mesmo Santo Agostinho, no livro 2 de Os Costumes dos Mani­
queus, capítulo 1 7º.
Deve dizer-se com a escola peripatética que as plantas não estão privadas de
alma, que lhes é atribuída a alma vegetativa, exclusiva das plantas, que a sensitiva é
dada a todos os animais, e que a racional apenas pertence ao homem. Este número
retira-se do diferente modo de operar através do qual a alma se eleva acima da forma
das coisas não vivas. Efectivamente, a alma das coisas vivas é superior às formas
das coisas não vivas, somente porque, não só as suas funções, mas também os
movimentos do princípio externo, provêm do seu princípio interno. Ou porque elas,
ao operar, usam os simulacros das coisas que se apresentam, ou usam as espécies,
que, apesar de serem materiais emergem um pouco da matéria - certamente que a
semelhança da cor é de natureza mais clarificada e mais pura, por exemplo, do que a
própria cor - ou, finalmente, porque usam as imagens das coisas não inerentes ao
corpo, mas inteiramente imateriais e de ordem mais alta. O primeiro modo corres­
ponde à alma vegetativa, o segundo à sensitiva, o terceiro à intelectiva. Portanto,
2 70 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

devem contar-se precisamente outras tantas almas, nem mais, nem menos. É evi­
dente que não se deve aprovar a opinião de Platão, no Timeu, quando apresenta uma
divisão diferente da alma, isto é, em irascível, concupiscível e racional. Nesta maté­
ria errou duplamente. Primeiro, porque dividiu a alma racional, e ela não deve ser
dividida excepto do modo explicado há pouco. Depois, porque estabelece três almas
num mesmo homem, realmente distintas, o que no livro A Geração e a Corrupção
mostrámos estar longe da verdade, embora não falte quem interprete o preceito de
Platão, não sobre três almas, mas sobre três faculdades da mesma alma.
Respondamos agora aos argumentos propostos ao início. Ao primeiro, dizemos
que embora contemos três almas, não compreendemos três géneros, nem três ínfi­
mas espécies, mas três almas distintas, no diferente modo de animar a matéria cor­
pórea. Do mesmo modo que nesta variedade tripartida se contêm dois géneros, a
alma vegetativa e a sensitiva e também uma espécie, isto é, a alma que participa da
razão.
Deve conceder-se, ao segundo, como o argumento directamente comprova, que as
almas vegetativa e sensitiva se dividem em várias espécies mas, uma vez que todas
as almas vegetativas têm entre si o mesmo modo de operar, também todas as sensiti­
vas o têm entre si, de modo igual. Por isso, a alma não se divide em mais partes, do
que aquelas três, porque nesta divisão as partes não se multiplicam, a não ser apenas
de acordo com a diversidade de operações, segundo a referida animação maior,
menor e acima da matéria.
Ao terceiro, deve responder-se que o facto de as plantas rejeitarem as seivas inú­
teis e atraírem as úteis não resulta de nenhuma faculdade sensitiva e cognoscente
existente nelas, mas da potência que atrai e da que repele, as quais, anteriormente a
todo o sentido e conhecimento, servem a alma nutritiva, como no primeiro livro
sobre A Geração e a Corrupção ensinámos de modo claro. Mais, aquela perseguição
ou fuga das coisas saudáveis ou nocivas, reconhecível em certas plantas, tem origem
nas suas potências inatas, tal como a antipatia e a simpatia latentes, sem que nenhum
conhecimento ou sentido o ordenem. De facto, a juventude e a velhice, tal como o
sexo e o acasalamento, somente em sentido figurado se lhes aplica.
Para se resolver o quarto argumento é tido em consideração o seguinte. A alma
vegetativa em geral, pode ser tomada em toda a sua amplitude, tal como o corpo
animado em geral, como a parte formal na composição física, pelo que recebe o
nome que dimana em primeiro lugar daquela potência de vegetar. Assim, divide-se a
alma vegetativa na que é apenas vegetativa, a alma das plantas, na alma sensitiva de
que o animal em geral é formado, chamada sensitiva, porque dela nasce, primeiro, a
faculdade de sentir, e na alma racional. Por outro lado, a sensitiva em geral divide-se
em apenas sensitiva (apenas nega o grau ulterior), que é a alma dos animais, e em
intelectiva. Pelo que é evidente que a alma vegetativa em geral, uma vez que é ape­
nas considerada um certo género para a vegetativa, e existe para a sensitiva e a inte­
lectiva, está nestas formalmente presente. E, de igual modo, a sensitiva em geral, só
na sensitiva e a intelectiva (na verdade todo o género incluído formalmente nas suas
espécies), mas apenas na alma sensitiva, isto é, na alma do animal, não está formal­
mente presente só a vegetativa ou a alma da planta. Por igual razão, a apenas sen­
sitiva, isto é, a dos animais, também não está formalmente contida, na alma intelec­
tiva, visto que são espécies distintas entre si. Logo, daqui resulta a clara solução do
Livro Segundo, Explicação do Capítulo III, Questão li, Anigo / 271

argumento. A divisão da alma deve ser compreendida de tal modo que o seu pri­
meiro membro seja tão só a alma vegetativa, o segundo, não mais do que a sensitiva,
o terceiro, a intelectiva, razão pela qual não estão dispostos por ordem, em série
directa, um sob outro. Atente-se, no entanto, que se diz que a alma vegetativa tão
somente está contida em potência na faculdade sensitiva, e ambas na racional, uma
vez que a sensitiva não exerce apenas as operações que lhe são próprias, isto é, as
funções dos sentidos, mas também as operações que a vegetativa, e de modo seme­
lhante a intelectiva, executam com a sensitiva e com a vegetativa.

QUESTÃO II
Se há cinco géneros de potências e quatro de seres vivos

ARTIGO I
Há cinco géneros de potências

À primeira parte da controvérsia respondemos que são cinco as potências primei­


ras e gerais das coisas vivas, a faculdade de vegetar, de sentir, de movimento local,
de apetecer e de inteligir. A razão desta distinção, como ensina São Tomás, 1 ª parte
da Suma Teológica, questão 78, artigo 1 º, retira-se dos objectos em que se encon­
tram as operações dos seres vivos. Na verdade, o objecto é o corpo conjugado com a
alma, ou algo de separado. Em conjunto age a potência vegetativa, que se ocupa da
digestão e da assimilação do alimento. Para o que é separado dirigem-se as restantes
potências, ou porque têm a sua imagem no interior, a qual, se recebida no órgão
corpóreo, respeita à potência sensitiva, e, se for de outra maneira, à intelectiva, ou
porque tendem para o que é separado como para um fim ou como para o termo do
movimento. Se do primeiro modo, é o apetite, que se dirige para o bem e, por isso,
para o fim, se do segundo, é faculdade de movimento local. Por essa razão as potên­
cias gerais das coisas vivas são em igual número.
Mas se alguém objectar. A faculdade de gerar está contida na potência vegetativa e,
no entanto, concerne ao objecto separado, isto é, a um singular distinto do gerador,
que é produzido de novo para a conservação da espécie. É, portanto, incorrecta­
mente, que dizemos que a potência vegetativa, que contém a faculdade de gerar, é
relativa ao conjunto do objecto. Daí que, tal como o sensível está para o inteligível,
também o apetecível pelo apetite corpóreo está para o apetecível pelo apetite imate­
rial ; mas os dois constituem dois géneros de potências. Logo, etc. Terceiro, a facul­
dade motora tende para um lugar, mas o lugar não é algo extrínseco à coisa, visto
que é uma existência móvel no local, como no livro terceiro da Física estabelece­
mos; logo, não se segue correctamente aquela união de potências .
Responde-se assim a estas objecções. À primeira, afirmando que também a facul­
dade de gerar respeita ao conjunto do objecto porque o sémen aperfeiçoa aquilo que
se toma no próprio ser vivo a partir do alimento excedente, no qual imprime, depois,
a potência formativa, agindo. À segunda, deve negar-se a premissa maior. Na ver­
dade, não há uma igual razão nas duas, porque, quer o apetite sensitivo, quer o inte­
lectivo tendem para o objecto sob a razão do fim, não se distinguindo pelas próprias
2 72 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

diferenças pertencentes ao objecto, em que o objecto consiste, tal como acontece


com o sentido e o intelecto, como dissemos. Leia-se o Ferrariense, neste ponto,
questão 5 .
À terceira, deve responder-se que, segundo a opinião que acolhemos n a Física, se
diz que a faculdade motora se dirige para o que está fora, enquanto se entende a
existência no lugar em ordem ao espaço correspondente e que a coisa se desloca por
movimento local.

ARTIGO II
São quatro os géneros dos seres vivos

No que respeita à segunda parte da controvérsia, respondemos que há quatro


graus ou géneros de seres vivos. Uns vegetam, outros sentem, outros movem-se no
lugar, outros inteligem. Nesta divisão, diz-se que os que se movem no lugar seguem
um movimento de marcha. Não é necessário admitir-se uma natureza que convenha
a esse movimento, em primeiro lugar. Não se trata aqui apenas dos verdadeiros
géneros, mas dos diversos graus ou ordens dos seres vivos, quer sej am verdadeiros
géneros, quer não. Mais ainda, os seres vivos distinguem-se pelos diferentes modos
de viver, mas estes modos de viver distinguem-se pela diferente perfeição da vida
que por sua vez se distingue daqueles quatro modos. Mas deve observar-se que estes
géneros distinguem-se entre si, enquanto superiores e inferiores. Enquanto os pri­
meiros podem existir isoladamente sem os que vêm a seguir, o contrário não. Na
verdade, as árvores vegetam e não sentem; os animais movem-se e não inteligem; e,
todavia, os que inteligem movem-se; e os que se movem, sentem; os que sentem,
vegetam. Por fim, os diversos modos de viver distinguem-se pela diferente perfeição
de vida, de modo a que não é uma perfeição qualquer que pode constituir o seu
género, mas apenas aquela que é de tal forma distinta das restantes que não pode,
por alguma razão, ser a estas reconduzida. Com este exame cessam as dúvidas que
podem levar à parte contrária, a saber, por que é que a faculdade apetitiva não cons­
titui por si um género de seres vivos e a potência de gerar, um outro, a partir do
sémen. Deve responder-se que a faculdade apetitiva não é uma perfeição de vida
distinta do sentido no modo referido, porque sempre o acompanha. E a faculdade de
gerar pelo sémen está ligada à faculdade vegetativa, porque não excede os limites
desta, sobretudo porque ela é potência geradora e nutritiva, como noutro lugar dis­
semos, visto que o vegetar é uma certa geração parcial do ser vivo, presente em tudo
aquilo que vive. Por este motivo, também a faculdade de viver, a memória e outros
sentidos, tanto externos como internos, não produzem géneros diferentes de seres
vivos, dado que pertencem à potência de sentir, isto porque alguns sentidos não se
encontram em todos os animais.
Objectar-se-á o seguinte, contra as afirmações anteriores. Aristóteles no capítulo
atrás, texto 32, ensinou que alguns graus dizem respeito aos seres vivos mortais
dotados de razão. Parece pois ensinar que há alguns seres vivos dotados de razão
imortais, aos quais não cabem aqueles graus. Filópono interpreta estas palavras na
acepção em que Aristóteles quis que os corpos divinos e imortais, isto é, os celestes,
tivessem a faculdade da razão, mas não o sentido ou outras faculdades anteriores,
porque estas foram dadas pela natureza para proteger apenas a vida mortal. No
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /ll, Questão /ll, Artigo / 2 73

entanto, esta interpretação obnubilou a opinião sobre a animação dos corpos celestes
que, nos livros sobre O Céu, mostrámos não ser verdadeira, nem peripatética. Por­
tanto, deve antes dizer-se que Aristóteles emitiu aquelas palavras não como opinião
própria, mas por causa dos platónicos que imaginavam certos demónios dotados de
corpo e de razão, mas carentes de sentido.
A partir do exposto, fica demonstrado que há três almas, cinco géneros de potên­
cias e quatro géneros de seres vivos . Mas realce-se, por fim, que se o ser vivo se
reconhecer, como se diz, não pela vida acidental, isto é, pela operação vital, ou pela
potência para tal operação, mas pela vida substancial, que é a própria alma, então
não há quatro géneros de seres vivos, mas convém instituir três, o vegetativo, o
sensitivo e o intelectivo, a partir das três almas vegetativa, sensitiva e intelectiva.

QUESTÃO III
Se as potências da alma brotam da sua essência

ARTIGO !
Argumentos da parte negativa

Parece demonstrar-se da seguinte maneira que as potências não brotam da essên­


cia da alma. A emanação é um certo movimento, mas nada pode mover-se por si
mesmo como provou Aristóteles, livro 7 das Lições da Física, capítulo l º, texto 1 .
Portanto as potências não brotam da alma, visto que a alma mover-se-ia por si
mesma e seria, ao mesmo tempo, agente e paciente. Agente, enquanto emitisse as
potências, paciente, enquanto as recebesse em si. Quem disser, relativamente a isto,
que as potências imateriais são recebidas na matéria, mas não na alma, e que, então,
o agente e o paciente não o são mesmo, pelo menos não escapa a conceder que a
alma, que participa da razão relativamente às potências imateriais que dela flúem e
nela permanecem, ao mesmo tempo, age e sofre.
E ainda. Daquilo que é uno e simples não pode naturalmente proceder senão um.
Mas a alma é uma substância una e simples, por isso não podem nela originar-se
várias potências. Se alguém responder que, daquilo que é uno, se podem originar
várias potências, segundo uma certa ordem e que, assim, as potências da alma flúem
dela numa dada ordem natural, objectar-se-á contra isto que não é evidente que essa
ordem possa existir, sobretudo, porque as potências da alma se distinguem entre si
pela espécie e que, portanto, uma não pode ser feita por outra, quando cada uma é
gerada pela sua semelhante. Depois, porque nas potências ordenadas, uma potência
não pode operar sem a outra, mas o oposto disto é evidente nas faculdades da alma;
de facto, a vista trabalha sem que o ouvido ouça.
Outro. Se as potências proviessem da alma, seguir-se-ia que as potências da alma
racional acompanhariam a que sai do corpo como fonte e causa da sua origem, mas
não a acompanham; logo, não provêm dela. Prova-se a premissa menor, porque a
alma separada, tal como não pode exercer as funções dos sentidos, quer dos internos,
quer dos externos, também não traz consigo as potências, além de que a acompanha­
riam em vão.
274 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Explicação da questão e dos argumentos

Deve, todavia, afirmar-se que as potências da alma têm origem na sua essência.
Com efeito, visto que as potências são formas acidentais próprias e inatas ao subs­
trato e lhe conferem um ser determinado, é necessário que provenham daquilo que
primeiro atribui ao sujeito o ser substancial, isto é, da forma substancial, como que
associadas à essência. Este é o argumento de São Tomás, 1 ª parte da Suma Teoló­
gica, questão 77, artigo 6º. Mas deve ainda saber-se que cabe à alma três géneros de
causas em relação às potências, a saber, a agente, a final e a material, ainda que Jan­
duno na questão 9 deste livro atribua à alma uma única natureza de causa material.
Portanto, a alma recebe a causalidade da agente, porque espalha as potências por si
activamente; da final, porque as potências existem por causa da alma, como que
devido ao fim a que se destinam por natureza; da material, porque as recebe e sus­
tenta em si. Isto, no entanto, deve ser entendido apenas acerca das potências imate­
riais da alma humana. As restantes são recebidas na matéria, enquanto subjaz à
forma, como demonstrámos no livro A Geração e a Corrupção. Apolinário escreveu
algo a favor da parte contrária, na questão sétima deste livro; também Janduno, na
questão décima, afirmando que todas as potências são recebidas na alma nua. Se
assim fosse, certamente que a visão seria inerente à alma racional, visto que onde
está a potência aí está o seu acto imanente e vital. Mas é manifesto que a visão não
está na alma racional, visto que esta é desprovida de divisão e é imaterial, e aquela é
material e extensa. Acrescente-se que se todas as potências estivessem na alma nua,
Aristóteles não teria correctamente ensinado, neste livro, capítulo quarto, texto trigé­
simo terceiro, que algumas das potências são orgânicas, ou seja, inerentes aos órgãos
corporais, e que outras não o são. Na verdade, a alma não é a principal causa efi­
ciente das suas potências, mas a causa geradora ou produtiva, à qual incumbe tudo o
que é devido à coisa no instante da geração. Mais, a alma é como que a causa ins­
trumental do que gera e as potências são formadas por ela de modo remoto, mas
principal, e pela alma, de modo próximo, mas menos principal. Assim, estas quatro,
essência, potência, dimane a operação, objecto seguem esta ordem, para que a
potência dimane da essência; a partir da potência, a operação, e esta tenda para o
objecto, como correctamente conclui Ficino no livro 1 0 de A Teologia de Platão,
capítulo 9º.
Refutemos os argumentos que invocámos contra a parte contrária. Ao primeiro,
dizendo que a emanação não é uma acção física, visto que não se conjuga com o
movimento, nem é propriamente uma acção, como noutro ponto dissemos. Ela é
aquilo de onde emanam, precisamente, as potências materiais, como a faculdade de
ver ou de ouvir e as restantes deste género, inerentes ao órgão corpóreo, que não são
recebidas na própria alma, a partir da qual têm origem, como atalhávamos ao argu­
mentar, mas são recebidas na matéria. Portanto, de acordo com este tipo de acção
não se segue que agir e padecer são o mesmo. Quanto a isto, se falarmos das potên­
cias imateriais, como do intelecto, que reside na própria alma, então não há incon­
veniente que agir e padecer sejam o mesmo, sobretudo se aquilo que padece, não é o
próprio agente principal e a acção não é física e propriamente uma acção. Sobre ela,
Aristóteles só discute no ponto citado.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Ill, Questão IV, Artigo l 2 75

Ao segundo argumento, responder-se-á integralmente com São Tomás, no citado


ponto da primeira parte da Suma Teológica. À primeira impugnação da solução
deverá dizer-se que, embora as potências da alma difiram em espécie entre si, isto
em nada impede que dimanem da alma numa certa ordem, como de uma fonte. É
assim, que umas precedem as outras, segundo uma certa prioridade de natureza, não
por um intermediário unívoco, mas equívoco e, portanto, de espécie diferente. À
seguinte, embora certas potências sejam de tal modo afectadas que uma dependa da
outra para à sua acção, como sucede com a vontade em relação ao intelecto, todavia,
daquela ordem pela qual, na sua primeira origem, elas precedem, não se conclui, em
todas, uma dependência deste tipo em relação às funções que se opõem. Leia-se São
Tomás, naquela mesma questão, artigos 4º e 7º.
Ao terceiro deve responder-se, que, embora a alma seja fonte de todas as suas
potências, no entanto, a alma intelectiva, retirando-se do corpo, não se junta em acto
e formalmente, a não ser às potências espirituais, que nela são recebidas. As restan­
tes seguem-na, apenas permanecendo nela como que na origem. Como o seu subs­
trato é um órgão corpóreo, quando este perece com o afastamento da alma, elas
imediatamente desaparecem.

QUESTÃO IV
Se as potências da alma diferem dela própria ou não

ARTIGO }
Diversas opiniões dos filósofos

É grande a variedade de opiniões nesta questão. Com efeito, Gregório, no 2º livro


das Sentenças, distinção 1 6, questão 3 ; Ockham, distinção 1 6, questões 24 e 26;
Gabriel, no mesmo lugar, questão 1 ; Marsílio, no 1 º das Sentenças, questão 7, artigo
3º e quase toda a escola dos nominalistas; também Marcelo, no seu livro 3 de A
Alma, capítulo 75º, afirmam que as potências, nem realmente, nem formalmente se
distinguem da essência da alma, pela natureza da coisa, embora a alma adquira
diversos nomes a partir da variedade das acções. E assim, consoante intelige, diz-se
que a alma é o intelecto, consoante apetece, o apetite, consoante vê, a vista e o
mesmo para as restantes faculdades. Escoto, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 6,
questão única, pensa que as potências da alma não se distinguem realmente, mas que
se distinguem formalmente também pela natureza da coisa. São Boaventura, na
distinção 3, questão 3 parece concordar com isto. Afirma, de facto, que as potências
são o mesmo que a alma, mas não inteiramente o mesmo por essência. Durando, no
1º das Sentenças, distinção 3, questão 2, considera que as potências da alma vegeta­
tiva, a potência de nutrir, de crescer, de gerar se identificam realmente com a alma,
mas as faculdades de sentir e de inteligir distinguem-se realmente dela.
A favor destas opiniões podem ser aduzidos argumentos que concordam em que
as potências se identificam realmente com a alma. As coisas somente têm de ser
multiplicadas se a necessidade o obrigar, visto que a natureza zela pela parcimónia e
afasta-se ao máximo do supérfluo e nenhuma necessidade obriga a distinguir as
2 76 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

potências da alma como coisas diferentes entre si. Logo, não devem ser diferencia­
das. Prova-se a premissa menor porque assim como a matéria sem outra faculdade
adicional é a sua potência passiva para receber a forma, e os acidentes que agem são
a sua potência passiva para agir, assim a substância da alma, por si, poderá ser a sua
potência activa para operar, sobretudo porque a alma é superior em dignidade, quer à
matéria, quer aos acidentes. E corrobora-se o argumento porque as potências, para
aqueles que as distinguem da alma, flúem de forma imediata da essência da alma.
Por isso, eles afirmam que a própria alma é o princípio próximo delas. E a ser assim
por que é que não será também o princípio imediato das suas funções?
Outro. As diferenças essenciais não podem ser recebidas dos acidentes; ora, o
racional e o sensível são diferenças essenciais tomadas da razão, do intelecto e do
sentido; logo, o intelecto e o sentido não são acidentes, mas a própria substância das
coisas a que respeitam.
Terceiro. O princípio de operar é a potência; mas a alma é princípio de operar -
como define Aristóteles, a alma é aquilo, pelo qual vivemos, sentimos, nos move­
mos no lugar e inteligimos -; logo, a alma é as próprias potências. Também Santo
Agostinho parece que foi desta opinião, no sermão A Imagem, capítulo 2º, quando
diz que a alma é intelecto, é memória e é vontade, e no 1 0º livro de A Trindade,
capítulo 1 1 , quando ensina que a memória, a inteligência e a vontade não são três
vidas, mas apenas uma vida, nem três pensamentos, mas apenas um pensamento.
Também no livro sobre O Espírito e a Alma, capítulo 1 3º, afirma que se chama
alma, quando vegeta; espírito, quando contempla; sentido, quando sente; espírito,
quando sabe; quando intelige, mente; quando discerne, razão; quando se recorda,
memória; quando quer, vontade. Estas coisas, no entanto, não diferem na substância,
tal como nos nomes, porque uma alma é tudo isto precisamente, propriedades dife­
rentes, mas uma única essência. Quarto. Se as potências se distinguissem realmente
da alma, elas poderiam separadamente ser conservadas por acção divina, o que no
entanto repugna, logo etc. Prova-se a premissa menor, quer porque, como as potên­
cias incluem na sua definição o substrato ao qual inerem, de modo algum poderão
ser dela separadas, quer porque, se pudessem existir fora da alma, poderiam também
ser vistas a operar, e assim, o intelecto a inteligir, a vontade a querer, o olhar a per­
ceber, o que é absurdo.
Por último. O princípio imediato da geração é a forma substancial geradora, logo,
também o princípio imediato da nutrição, que é uma certa geração parcial. E, por
consequência, também o princípio imediato do crescimento será a mesma substân­
cia, visto que o crescimento não exige uma potência distinta da nutrição. A premissa
menor prova-se, porque a substância somente é produzida pela substância e, por
outro lado, se fosse produzida por acidente, quer como pela causa principal, como
pela menos importante, algo agiria para lá da sua espécie e natureza, o que é
absurdo. Por isso, não parece que deva negar-se que ao menos as potências da alma
vegetativa se identificam realmente com a alma, como Durando afirmava.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo J/l, Questão IV, Artigo 11 277

ARTIGO II
O que se deve pensar na questão proposta

Deve abraçar-se a opinião de São Tomás, quer noutros pontos, quer na 1 ª parte da
Suma Teológica, questão 77, ao 1 º; de Caetano, no mesmo lugar; do Alense, 2ª parte
da Suma Teológica, questão 65, membro 1 ; de Egídio, Quodlibet 3, questão 1 0 ; de
Capréolo, no 1 º livro das Sentenças, distinção 3, questão 3, artigo 2º; de Alberto
Magno, distinção 3, artigo último e 2º livro de A Alma, primeiro tratado, capítulo
décimo primeiro; de Apolinário, neste livro, questão 7; de Janduno, questão 9; de
Herveu, Quodlibet 1 , questão 9; e de muitos outros que afirmam que todas as potên­
cias se distinguem realmente da alma, o que também deve ser entendido acerca das
restantes faculdades activas das outras coisas. Primeiro, porque de nenhuma maneira
seria provável que as potências de tal modo se identificassem realmente com a alma,
que não divergissem formalmente dela. Tal concluiu-se porque, de outro modo,
diríamos que ela quer com o intelecto, intelige com a vontade, vê com o ouvido, o
que vai contra o senso comum e o modo de falar. E ainda. Aquilo que por si é indife­
rente para actos diferentes, é necessário que se determine para eles por algo adicio­
nado; ora, a essência da alma considerada em si é indiferente para qualquer dos actos
que produz (de outra maneira, como a essência da alma é una e os actos muitos, e
distintos pela própria coisa, o mesmo, enquanto é o mesmo, seria determinado ao
mesmo tempo para vários actos realmente diferentes, o que não é possível) ; é neces­
sário, portanto, que a essência da alma sej a determinada por algo, para este e para
aquele acto. Isso não é senão as próprias faculdades ou potências . Portanto, as potên­
cias são algo adicionado à essência.
Persuade-se que as potências sobrevêm à alma que dela realmente diferem, da
seguinte maneira. Nenhuma substância pode ser o princípio imediato da sua opera­
ção. Logo, a potência através da qual a alma opera não é a própria substância da
alma. O antecedente não só é defendido por Averróis, 7º livro da Metafísica,
comentário 3 1 , mas também parece conforme ao pensamento de Aristóteles em O
Sentido, capítulo segundo, quando ensina que o fogo, a terra e os restantes seme­
lhantes não teriam nascido, a não ser que tivessem o oposto, isto é, o calor, o frio e
outras qualidades, por intervenção das quais operam. Depois prova-se o antecedente,
porque tal como a substância não existe sem acidentes também não age sem eles . De
igual modo, porque se as substâncias pudessem por si só executar as suas acções, a
natureza teria produzido em vão tanta variedade de acidentes e aparato de substân­
cias.
Outro. Os elementos que são extremamente activos possuem faculdades de operar
realmente diferentes das suas formas substanciais, isto é, qualidades primárias como
o calor do fogo e a secura, a frescura na água e a humidade. Logo, por igual razão,
as faculdades de agir inerentes à alma, distinguem-se dela. O mesmo também se
pode mostrar a partir das faculdades do movimento, digo, do peso e da leveza. Na
verdade, o argumento demonstra que elas diferem realmente dos corpos a que per­
tencem, porque podem existir separadamente pela potência divina, sem a forma
substancial, como está patente no sacramento da Eucaristia, quando, após a substân­
cia do pão deixar de ser, lhe subsiste todavia o peso com a quantidade, fora do subs­
trato. Também o peso e a leveza são certas potências naturais, oriundas, primeiro,
das formas dos elementos e comunicadas às composições corpóreas . Se elas diferi-
2 78 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

rem realmente das suas formas, por que é que não se deverá dizer o mesmo das
restantes faculdades activas? Acrescente-se o testemunho de São Dionísio, capítulo
2º de Os Nomes Divinos, quando afirma que os espíritos celestes se dividem na
essência, na potência e na operação. Estas palavras indicam que são três coisas dis­
tintas. Por isso, muito mais a alma será por um lado essência, por outro, faculdade.

ARTIGO Ili
Solução dos argumentos do primeiro artigo

Resolvamos então os argumentos daqueles que não distinguem realmente as


potências da alma. Ao primeiro, deve conceder-se a proposição, negar-se a premissa
menor e, para o provar, dizer que, embora a matéria seja a sua potência passiva e as
qualidades operativas sejam a sua força activa, não se pode, do mesmo modo, con­
cluir que a alma é a sua potência activa, porque ser potência passiva não designa
perfeição mas antes imperfeição, tal como padecer. A seguir, que ser potência activa
instrumental indica uma perfeição misturada de imperfeição que não é absurdo não
destinguir-se pelas formas acidentais. Também ser a sua potência activa como
agente principal revela maior dignidade do que a que convém às coisas criadas. Daí
a alma não poder ser a sua potência activa, visto que ela é o principal agente formal
no que respeita às suas funções. Para outra confirmação da mesma premissa menor,
deve responder-se que as potências são originárias da alma por emanação mas que a
alma, em relação a elas, não é o agente principal, mas como que o instrumento do
agente principal, isto é, do gerador ou do produtor, como acima dissemos.
Ao segundo. Que o racional e o sensível, enquanto são diferenças essenciais, não
são recebidos pelo intelecto e pelo sentido, mas são graus metafísicos, pedidos pela
forma e pela matéria, a partir dos quais o composto se une.
Ao terceiro. A alma é o principal princípio de operar e é aquilo, por que sobre­
tudo vivemos, como uma fonte. Tal princípio não é uma potência, porque a potência,
se for vital - e é desta que o argumento trata - é aquilo donde e junto ao qual tem
origem a operação vital enquanto causa principal. Santo Agostinho, no ponto citado,
não afirma a opinião contrária, mas apenas no sentido designativo da causa, que
chama causal, é que disse que a alma é intelecto, isto é, que o intelecto não provém
da alma e que as três potências da alma não são três vidas, ou sej a, que não se fun­
dam ou consistem em três almas, mas somente numa alma humana única. Ao que é
citado do livro O espírito e a Alma, deve dizer-se que esta obra é falsamente atri­
buída a Santo Agostinho, como provam claramente os doutores de Lovaina. Depois,
respondendo às palavras citadas, demonstra-se mais a identidade de todos os graus
essenciais da alma numa única essência, do que das suas potências, quer entre si,
quer com a mesma alma.
Ao quarto. Deve negar-se que exista alguma contradição no facto de a alma e as
suas potências existirem separadamente por acção divina. À primeira impugnação
dir-se-á que na definição se encontram muitas coisas pouco separáveis que, no
entanto, podem ser separadas na existência. Isto é evidente nos relativos pai e filho,
que naturalmente se apresentam separados, e nos acidentes da Sagrada Eucaristia,
cujo substrato natural também pode ser conservado por Deus separadamente, se a
natureza do mistério instituído o exigir, como os teólogos proclamam em consenso
Livro Segundo, Explicação do Capítulo III, Questão V, Artigo l 2 79

unânime. À segunda impugnação, deve responder-se que as acções vitais, tal como
não podem ser vitalmente provocadas apenas por Deus, como muitos filósofos
daquela época aprovam, assim também não podem ser provocadas pela potência, a
não ser que esta seja inerente à própria alma e lhe esteja intimamente ligada, funda­
mento este que será amplamente tratado noutro lugar. Ao último, deve negar-se o
antecedente e para prová-lo dizer que a substância não é gerada, como pela causa
principal, excepto pela substância, mas que os acidentes podem agir para além da
sua espécie e atingir a produção das formas substanciais, não pela sua potência, mas
porque são o instrumento da substância geradora, como no livro 2, Lições da Física
abundantemente discutimos.

QUESTÃO V
Se as potências se distinguem pelos actos e pelos objectos ou não

ARTIGO I
Parece que não se distinguem

Não perguntamos se as potências se distinguem pelos actos e pelos objectos como


por diferenças essenciais. É evidente que isso não é assim, porque os actos e os
objectos são extrínsecos às potências. Apenas trazemos à controvérsia, se as potên­
cias activas colhem a sua distinção em ordem aos actos que produzem e aos objectos
para os quais tendem, de tal modo que a sua distinção corresponda à que se verifica
nas potências. Em relação à parte negativa, ocorrem sobretudo estes argumentos.
Primeiro, uma e a mesma potência em espécie executa actos de diversas espécies,
portanto, as potências não tomam a distinção específica dos actos. Prova-se o ante­
cedente, porque um e o mesmo intelecto provoca o acto da ciência e o da opinião, os
quais, indubitavelmente se distinguem entre si em espécie. Há quem diga que estes
actos diferem em espécie, não conforme são provocados pela potência intelectiva,
tomada em si e nua, mas como enformada pelos hábitos de espécie diversa, nomea­
damente de ciência e de opinião. Contra. Através de uma e mesma imagem inteligí­
vel podem ser produzidos actos de espécie distinta, como através da imagem de
homem o conceito de homem e o conceito de animal (este não é adequado à espécie
que representa o homem), no entanto, em tais actos, não é possível recorrer aos
hábitos distintos da espécie pelos quais o intelecto é enformado. É, portanto, em
sentido absoluto que da potência de uma mesma espécie derivam actos de espécie
diferente. Isto também é claramente evidente na vontade, a partir da qual, carecida
de todo o hábito, poderá ser produzido o acto de justiça e de injustiça, de amor e de
ódio, que diferem entre si em espécie.
Segundo argumento. O mesmo objecto em espécie respeita a potências diferentes
em espécie, e os objectos distintos respeitam à potência da mesma espécie, logo as
potências não se distinguem pelo hábito para o objecto. Prova-se a premissa menor,
quanto à primeira parte, porque uma mesma cor é inteligida pelo intelecto e perce­
bida pela vista. Quanto à parte seguinte, porque a brancura e a negrura diferem em
280 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

espécie, e, no entanto, ambas caem sob uma mesma espécie, seguramente sob a
vista.
Terceiro. A intelecção tem como termo o verbo expresso por ela e a coisa que
inteligimos. Portanto, a intelecção ou toma a espécie somente do verbo, ou apenas
da coisa inteligida, ou de um e de outra. Não apenas do verbo ou da coisa inteligida,
visto que é determinada por um e por outra. Não de um e de outra, visto que o verbo
e a coisa conhecida diferem em espécie, e um acto em espécie não pode levar a dois
termos em espécie. Logo, de modo algum, a intelecção se distingue em espécie atra­
vés do termo, o que igualmente se deverá dizer em relação aos restantes actos do
intelecto. De onde se segue que as potências não se distinguem pelos actos, visto que
a relação dos actos para os termos é a mesma que a das potências para os actos.

ARTIGO II
As potências distinguem-se pelos actos e objectos.
Os argumentos aduzidos em contrário não têm força

Estes argumentos, no entanto, não obstam a que sustentemos, com a escola


comum dos filósofos, que as potências se distinguem pelos actos e pelos objectos. O
argumento é da melhor doutrina, como explica São Tomás, 1ª parte da Suma Teoló­
gica, questão 77, artigo 3º, porque, como cada potência activa por sua própria natu­
reza é relativa ao acto e ao objecto, é necessário que tenha a sua natureza e essência
em ordem a eles, para a partir deles se chegar à distinção. E daqui acontece que as
potências apenas são convenientemente definidas pelos actos e pelos objectos.
Aristóteles quis dizer isso, neste livro, capítulo 4°, texto 33, quando ensinou que os
actos e os obj ectos são anteriores às potências pela natureza e pela definição.
Também não é pequena a dificuldade sobre o modo como deve ser entendida esta
distinção. Explicámos essa dificuldade nos dois primeiros artigos do argumento
anterior. Deve advertir-se, portanto, que o objecto de cada potência pode ser obser­
vado de duas maneiras. Materialmente, como quando é uma certa coisa, por exem­
plo, o branco, enquanto branco, segundo a sua natureza. Formalmente, isto é,
segundo a razão pela qual recai sob a potência e a potência é levada até ela, razão
que se chama visibilidade. Isto mesmo, por igual motivo, se deve considerar acerca
dos restantes objectos em comparação com as suas potências. Depois, não se igno­
rará que os actos que brotam de uma potência única, segundo a espécie, se distin­
guem entre si, pela espécie, como a visão do branco e a visão do negro. Todavia,
todos estes se subordinam a uma razão formal única, específica do obj ecto adequado
de toda a potência, sob a qual tendem para o objecto. Aquela razão no objecto da
vista é o visível, no obj ecto do intelecto, o inteligível e, do mesmo modo, nos res­
tantes. Esta razão formal não une os referidos actos numa única diferença específica
essencial. Isto, de facto, não é possível, de outra maneira distinguir-se-iam pela
própria natureza ou difeririam, mas não difeririam entre si, em espécie, o que é uma
manifesta contradição. Mas diz-se que os actos deste tipo se subordinam à razão
formal específica porque são conduzidos sob ela para a natureza do objecto. Assim,
a visão do branco e a visão do negro, consideradas em si e consoante tendem para os
seus objectos particulares, tomados em si, diferem em espécie. Porém, na medida em
que são levadas para aqueles que se encontram sob a razão específica do objecto
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Ili, Questão V, Artigo li 281

adequado à vista, a chamada visibilidade, são considerados de uma única espécie,


não em si, pois não podem ser contraídos numa ínfima espécie, como dissemos, mas
do modo pelo qual o homem e a neve, enquanto estão afectados de brancura, perten­
cem a uma ínfima espécie, mantidas, entretanto, as diferenças intrínsecas das suas
naturezas.
Postas assim as coisas, quando dizemos que as potências se distinguem pelos
actos e pelos objectos, os objectos devem ser tomados formalmente, e os actos, con­
forme tendem para o objecto, segundo a referida razão formal. Esta razão é sempre
única, segundo a espécie, quando a potência é de uma única espécie. De resto dá-se
porque a potência de inteligir no homem, por exemplo, é de uma única espécie,
lógica e intrinsecamente. Os seus actos, porém, tomados segundo a referida conside­
ração, são todos de uma única espécie física e segundo a denominação extrínseca da
razão formal que encontram no objecto. Todavia, por outro lado, há os que podem
pertencer a diversas espécies lógicas segundo as suas diferenças particulares, pelas
quais são intrinsecamente constituídos, como a intelecção da pedra e a intelecção do
leão. Perguntar-se-á de que maneira se pode compreender que a razão formal do
objecto é única em espécie, a partir da qual se tem de concluir que a potência é una
em espécie. Respondemos que isso se depreende do modo pelo qual o objecto muda
a potência. De facto, é daí que se toma a unidade da referida razão formal. Por isso,
se ele é único em espécie, tanto a razão do objecto formal, como a potência será una
conforme a espécie. Daí que, por exemplo, todo o visível tenha o mesmo modo de
mudar a vista, o visível segundo a razão formal é uno em espécie, e a faculdade de
ver em todos os animais é de uma única espécie, mas diferente da faculdade de
ouvir, porque esta é mudada de uma maneira por aquilo que se ouve e aquela de
outra maneira, pelo que se vê. Isto tomar-se-á claro, de caminho, quando discutir­
mos a diferença dos sentidos. Do mesmo modo, o intelecto humano é uno em espé­
cie, porque somente existe um modo pelo qual ele é mudado pelo objecto através
dos fantasmas, pelo poder e ministério dos quais as imagens inteligíveis das coisas
se lhe imprimem. Por aqui facilmente se percebe por que é que, pela referida razão
formal, a potência compreende intrínseca e logicamente a espécie e, no entanto, as
acções da mesma potência apenas física e extrinsecamente obtêm a partir dela uma
conformidade numa quase espécie. Certamente, porque a razão de modificar por si,
primeira e directamente, pertence à potência que muda, não às acções da potência.
Subsiste acerca disto uma dúvida que não deve ser desprezada, a saber, que é pos­
sível que, por exemplo, a inteligibilidade seja uma razão una segundo a espécie,
visto que se predica substancialmente de muitas inteligibilidades distintas em espé­
cie, como por exemplo, acerca da que convém à pedra e da que é própria do leão,
que não podem não diferir em espécie, tal como as acções de inteligir com as quais
as alcançamos. Mas deve responder-se que a inteligibilidade (o que deverá ser afir­
mado sobre as restantes razões formais deste tipo) pode ser tomada de duas manei­
ras. Ou de uma maneira absoluta ou enquanto junta o modo de mudar a potência. Se
a tomarmos de acordo com a primeira acepção, diz-se de muitas diferentes espécies
e nem assim se atribui a unidade específica ao nosso intelecto. Se de acordo com a
segunda, é uma ínfima espécie, porque confere tal unidade à potência. Parece-nos
que deve ser compreendido deste modo o pensamento filosófico acerca da distinção
das potências através dos actos e dos objectos; por outro lado, frequentemente, ocor-
282 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

rem dificuldades inexplicáveis, nas quais muitos laboram em vão quanto ao que
deve ser esclarecido.
Ao primeiro dos argumentos que propusemos no início, rejeitada a solução de
alguns, nele veiculada, deve dizer-se que, embora o intelecto produza diversas
acções diferentes em espécie, tal como também a vontade, todos os actos do inte­
lecto, na medida em que tendem para os objectos que permanecem sob a razão do
inteligível, introduzem a razão de uma única espécie; o mesmo sucede com todos os
actos da vontade que movem até aos objectos, visto que são considerados sob a
razão do que é querido. Segundo este tipo de considerações, os actos do intelecto
atribuem a espécie ao intelecto e os actos da vontade à vontade.
Ao segundo. O objecto que é tomado materialmente de uma única espécie pode
alcançar diversas razões formais distintas em espécie. De facto, a cor, consoante é
vista, obtém a razão do visível, consoante é percebida pelo intelecto, obtém a razão
do inteligível e; do mesmo modo, dois objectos, que considerados materialmente
diferem em espécie, podem convir numa razão formal, como a brancura e a negrura,
sob a visibilidade.
Ao terceiro. Que existem certos fins para os quais os actos se ordenam, como a
edificação para a casa e a intelecção para a coisa inteligida, e outros que se ordenam
para os próprios actos, como o verbo mental para a intelecção; com efeito, o verbo é
formado de tal modo que a coisa é representada no intelecto, através dele. Portanto,
quando se diz que os actos recebem a espécie dos termos, isto deve ser compreen­
dido segundo o primeiro género dos termos. São estes, de facto, aos quais os actos
por si dizem respeito e para os quais eles são são levados por um hábito transcen­
dente.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IV

a. Necesse est 4 1 5 a 1 4 Enumeradas, no capítulo anterior, as potências da alma,


-

Aristóteles passa à explicação de cada uma e pretende seguir, primeiro, a ordem


da doutrina com vista a um apurado conhecimento da alma. Propõe e afirma que
deve dizer-se o que é uma potência e as coisas que a acompanham, isto é, os aci­
dentes, os órgãos e outras semelhantes. De seguida, para estabelecer a definição
de cada potência, deve investigar-se primeiro qual é o seu acto e, antes do acto,
qual é o objecto para o qual tende.
b. Quare de alimento 4 1 5 a 22 - Vai ocupar-se da alma vegetativa que é mais
comum do que as restantes. Para manter o método por si transmitido, Aristóteles
afirma que primeiro se deve discutir acerca do alimento, que é o objecto da nutri­
ção e, ainda, acerca da geração e dos restantes actos da alma nutritiva. Considera
que a alma vegetativa é mais comum que as restantes porque o viver, que é
comum a todos os seres vivos, é primeiramente, concedido por ela. Outro, porque
procriar o que é semelhante a si, não só é comum aos seres vivos, embora não a
todos, mas é sobretudo natural, e também provém dela. Afirma que esta acção
apenas pertence àqueles seres vivos em que se distinguem três condições. A pri-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IV 283

meira é que já tenha atingido o estado perfeito, isto é, que estejam na idade apro­
priada à geração. Daí que as crianças não gerem. A segunda, que não estejam
privados ou mutilados por outras causas e impedidos por defeitos da natureza. A
terceira, que não sejam de geração espontânea, tal como os que têm origem na
putrefacção, como os vermes e os mosquitos. De facto, geralmente, estes não
geram. Sobre esta opinião leia-se o que escrevemos no livro 2 de O Céu, capítulo
7º, questão 7, artigo 3º.
c. /d enim ipsum 4 1 5 a 29 Prova, por fim, que a acção de gerar é sobretudo natu­
-

ral.Com efeito, os seres animados, apoiam-se na intervenção dela, tanto quanto


podem para obterem a perenidade, e procuram a imortalidade da natureza divina,
a que aspiram por propensão inata.
d. Duplex autem 4 1 5 b 2 De passagem relembra que o fim é duplo, o fim de ou
-

em si, isto é, para o qual directamente se persegue, e o fim a que, quer dizer, a
que a coisa é comparada, e relembra que a perpetuidade é o fim em si, dos seres
vivos, ou sej a, que cada um dos seres vivos através da geração pretende atingir.
Mas o próprio ser vivo é um fim a que. Aristóteles adverte que nem todos os
seres vivos participam igualmente da eternidade, mas que uns participam mais,
outros menos, embora todos tendam a conservar-se, ao menos em espécie, por­
que não o podem em número. Leia-se o que nesta opinião Boécio brilhantemente
dissertou no livro 3, A Consolação da Filosofia, prosa II.
e. Est autem anima 4 1 5 b 7 Ensina que à alma pertence um tríplice género de
-

causa. Formal, quer porque através dela, os seres que vivem intrinsecamente têm
o seu ser substancial, quer porque é o acto primeiro do corpo orgânico. Final,
porque tal como aquilo que opera pela razão e pela arte, u.g. o operário, dispõe a
matéria pela forma artificial, assim também a natureza, devido à forma natural
que nas coisas vivas é a alma prepara e dispõe a matéria e, pela sua acção, devido
ao fim a que, produz toda a variedade de membros e a distinção dos órgãos. O
que Aristóteles 1 As Partes dos Animais, capítulo 5º e livro 4 A Geração dos
Animais, capítulo 1 º e Galena 1 , De usu partium, declaram. Por fim, eficiente,
porque é o governo próprio dos seres vivos, como a acção, pela qual se movem, e
se esta faculdade não se encontra em todos, também não se encontra na sensação,
que é impropriamente uma certa alteração, aumento e outras funções deste
género, que pertencem apenas às coisas animadas.
f. Atque hac in parte 4 1 5 b 28 A partir do que ficou dito, Aristóteles aproveita a
-

ocasião para refutar os antigos filósofos e primeiro Empédocles, que afirmava


que a causa do aumento das plantas são os elementos. A terra, em baixo, nas
raízes, o fogo, acima, nos ramos. Tal como as raízes debaixo da terra, os ramos
crescem a partir do fogo, dirigindo-se para lugar superior. No que errava de dois
modos. Primeiro, porque não atribuía correctamente o lugar superior e inferior
directamente às plantas. Depois, porque falsamente punha o crescimento dos
seres vivos não na alma mas nos elementos, como causa efectiva.
g. Non enim eodem sunt 4 1 6 a 1 Mostra que as raízes não são partes inferiores
-

mas superiores das plantas, porque a boca e as raízes são órgãos iguais. Com
efeito, diz-se que os instrumentos ou são idênticos ou diferentes, porque são prin­
cípios da mesma operação ou de uma operação diferente. Mas a boca nos animais
284 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

e as raízes nas árvores são princípios da mesma operação. O alimento é colhido


por uma e por outras. Portanto, como a boca e a cabeça respeitam à parte supe­
rior, também nas árvores respeitarão à mesma. Assim, as partes superiores de
todos os seres vivos não correspondem às partes superiores do universo, porque
se diz que lugar no mundo superior, é para onde tendem as leves, inferior, para
onde descem as pesadas. Mas a parte superior de todos os seres vivos inclina-se
para a terra, com excepção do homem, que imita a posição do universo. Leia-se
acerca deste assunto o que Aristóteles escreveu livro 1 sobre A História dos Ani­
mais, capítulo 1 3°, livro 2 de O Céu, capítulo 2°, livro 2 de As Partes dos Ani­
mais, capítulo 1 0º e A Juventude e a Velhice, capítulo 1 º.
h. Deinde quid est 4 1 6 a 6 Mostra que a causa do crescimento não são os elemen­
-

tos, porque como eles têm propensão nativa para o local próprio, ou algo os con­
tém e encerra ou nada. Se é nada, seria necessário que eles se dissipassem ime­
diatamente. Se é algo, isso será o princípio de crescimento, e tal será a alma. Por
essa razão o movimento de crescimento não é dos elementos, mas da forma dos
próprios seres vivos.
1. Sunt autem quibus 4 1 6 a 9 Refuta-se a opinião de Leucipo e de Demócrito que
-

consideraram que a causa da nutrição é o fogo, porque de entre todos os elemen­


tos parece principalmente que se alimenta e cresce. De facto, a causa parece ser
aquilo que é de tal maneira, que faz com que os outros sejam o que são. Aristóte­
les mostra em primeiro lugar que o calor da nutrição executa a função, não como
causa principal, mas instrumental, que a alma usa para preparar e cozer o ali­
mento. Argumenta assim. Se o fogo da nutrição e o do crescimento fosse a causa,
dado que ele, por si, não se apresenta debaixo de nenhuma lei de crescimento,
mas aumenta sempre, quando lhe é apresentado o que arde, seguir-se-ia que as
coisas que por natureza se mantêm, isto é, os seres vivos (ele toma aqui natureza
pela vida e pela alma, como é seu costume) poderiam crescer infinitamente. E
também poderiam não reclamar nenhum fim, o que é falso, visto que a natureza
fixou determinados limites a todos os seres vivos. Portanto, o fogo da nutrição e
do crescimento não é a causa, é antes a alma que impele a coisa para o tamanho
conveniente. Ele confirma o mesmo deste modo. A determinação da quantidade
das coisas vivas não cabe à matéria que, por si, é vazia e indeterminada, mas à
forma, que por sua natureza delimita e determina a matéria. Também a alma é
forma, e o fogo e os restantes elementos alcançam a natureza da matéria nos
compostos, logo, não são os elementos, mas a própria alma é que é a obreira do
crescimento e da nutrição. Dos limites das coisas quer das vivas, quer das que
não têm vida, falámos no primeiro livro da Física.
k. Cum autem 4 1 6 a 1 8 Depois de ter ensinado que o movimento de crescimento,
-

quer a geração, quer a nutrição existem a partir da alma, começa a disputar


acerca da potência vegetativa à qual pertencem a nutrição e a geração. Acres­
cente-se também o aumento, porque elas dizem respeito ao alimento de maneiras
diferentes, como será evidente de caminho, e distinguem-se na relação com ele.
Sobre o alimento diz o que deve ser discutido em primeiro lugar. Também expli­
camos de que modo deve ser entendido que a referida potência é una.
1. Videtur itaque 4 1 6 a 2 1 Afirma que o alimento deve ser o contrário da coisa
-

que é nutrida. Deve ser mudado nela, mas toda a mutação dá-se, de algum modo,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IV 285

entre as coisas contrárias. Porque os contrários não são da mesma natureza,


explica de que forma o alimento deve ser contrário, seguramente não pela mesma
razão pela qual o saudável e o doente são contrários entre si, e um é pura e sim­
plesmente mudado noutro, mas sim pela qual um é o contrário do outro, quando
nele se converte, aumentando-o, tal como o ar está para o fogo e a água para o ar.
m. Verum is locus 4 1 6 a 29 Para ilustrar mais o assunto, diz se o alimento deve ser
-

igual à coisa nutrida ou o contrário como há pouco ensinou. Há quem pense que
deve ser igual, porque crescemos e alimentamo-nos a partir dele; diferente e
contrário, apenas se faltar para crescer, ou melhor, para destruir, visto que sem­
pre o que é contrário a outro tende para a destruição. Outros afirmam que é pre­
ciso que o alimento seja diferente e contrário, porque nada é alterado a não ser
pelo diferente e pelo contrário. Mas é evidente que o alimento é alterado pelo ser
vivo que o assimila e digere, embora o ser vivo não sej a alterado pelo alimento,
visto que a matéria sujeita à arte é alterada e é mudada pelo artífice. O artífice
não é alterado pela matéria a não ser que se chame paixão à alteração pelo
repouso e ócio à operação e ao acto. Aqui atente-se que quando Aristóteles diz
que o alimento é alterado pelo ser vivo, não o contrário, de modo nenhum se
contradiz, no 1 º livro de A Geração, capítulo 7º, texto 53, quando afirma que
entre o alimento e a coisa viva se dão acção e paixão recíprocas. Com efeito,
aqui, como realçou Averróis, comentário 45, não nega de modo absoluto que o
alimento age no próprio ser vivo, mas que age através da acção pela qual o
mesmo se converte em si. Mas ali, de facto, tratava-se da acção em comum.
n. At enim interest 4 1 6 b 3 Cria uma vigorosa controvérsia afirmando que os
-

defensores de uma e doutra parte, estão uns a favor da variedade, outros não. Na
verdade, o alimento deve ser semelhante e diferente, contrário e não contrário.
Igual e não contrário no fim ou depois de ser cozinhado e digerido, e o argu­
mento aduzido prova isto a favor da primeira opinião. Diferente e contrário no
princípio, ou quando está cru e a cozinhar, o que também conclui o argumento da
opinião seguinte.
o. Cum autem nihil 4 1 6 b 9 Ensina como é o alimento, afirmando que o alimento
-

está ordenado por si para o ser animado, visto que o que é desprovido de vida, ou
de alma, não pode ser nutrido. Adverte, depois, que se pode considerar o ali­
mento de três modos. De um modo, quanto à substância e é, por isso, objecto de
nutrição. Mas é necessário que as partes substanciais do ser vivo, que pela acção
do calor natural perpetuamente perecem, sejam ressarcidas em benefício da
substância. Outro, segundo a quantidade e é assim que o alimento que se toma é
objecto do crescimento. De facto, a coisa cresce por acessão da quantidade. Ter­
ceiro modo, no que toca ao que é supérfluo ao alimento e, por isso, pertence à
geração. Com efeito, daquilo que sobej a da nutrição, a natureza exclui uma certa
parte do alimento da terceira parte da cozedura, que recebe a faculdade seminal e
generativa, numa certa parte do corpo que a ela é destinada.
p. Quae tale quidam 4 1 6 b 1 7- Aristóteles transmite a noção de potência nutritiva,
dizendo que ela deve ser recebida do fim mais elevado que é a geração. A defini­
ção é a seguinte. A potência nutritiva é aquela pela qual o ser vivo, enquanto
vive, se conserva. E porque tinha dito que o alimento é preparado para a nutrição
e é o princípio da nutrição, explica a razão pela qual a alma vegetativa e o pró-
286 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

prio alimento têm uma natureza diferente do princípio. Na verdade, a alma é a


principal causa eficiente da nutrição. O alimento é aquilo, pelo qual, como maté­
ria e um certo instrumento, a nutrição se faz. O que é nutrido é o corpo animado.
r. Atque cum sit par 4 1 6 b 23 Define a alma vegetativa, não em geral, mas a que
-

existe no ser vivo perfeito, isto é, a que pode gerar o semelhante a si, a partir da
semente. A alma vegetativa, diz, é esse princípio de gerar que ela tem. Com­
preenda-se princípio no sentido de primeiro ou principal, pois menos principal e
próxima, é a própria faculdade coadjuvante da geração.
s. /d autem quod nutrit 4 1 6 b 25 Deste modo, diz, o piloto tem duas coisas por
-

intervenção das quais rege o navio, a mão e o leme. Destas, a mão é movida pelo
piloto e move o leme. Efectivamente o próprio leme já não move o que quer que
seja, senão como instrumento. A alma requer assim duas coisas que usa para a
função de nutrição, isto é, o calor e o alimento. O calor recebido delas é como
que movido pela própria alma e move ou altera o alimento. O próprio alimento já
não move mais nada que seja meio para mover alguma coisa. Esta explicação
parece afim ao passo no qual os expositores gregos divergem, quer entre si, quer
dos latinos. Quem quiser ler a respeito da sua divergência, consulte Filópono,
Simplício, Averróis, São Tomás, Alexandre e Temístio.
t. Necesse est 4 1 6 b 27 Mostra que o calor se diz de tal maneira aquilo por que o
-

ser vivo se alimenta, que é preciso a digestão do calor. Daqui conclui que o calor
é necessário a todo o ser vivo, visto que todo o ser vivo se alimenta e toda a
nutrição produz calor. Conclui que, no presente tratado, não expõe com muito
cuidado e de um modo geral acerca do assunto, pois vai tratar dele, de forma
mais rigorosa, noutro lugar. Na verdade, Aristóteles disputa abundantemente
acerca dos alimentos dos animais, do crescimento e do perecimento do corpo, da
natureza da semente e de outras matérias deste género, nos livros sobre Os Ani­
mais, à excepção da nutrição e do crescimento, que trata acuradamente nos livros
sobre A Geração e a Corrupção, onde também nós, de acordo com o precei­
tuado, examinámos a mesma coisa.

QUESTÃO ÚNICA
Se as potências vegetativas da alma diferem entre si realmente

ARTIGO I
Opinião dos que consideram que elas se distinguem realmente entre si

Nas controvérsias anteriores dissertámos com Aristóteles sobre aquilo que res­
peita, em geral, às potências da alma. Agora disputaremos com ele sobre cada uma
das potências. Em primeiro lugar sobre as vegetativas, que pela ordem da geração
são as primeiras de entre todas. Aristóteles no capítulo anterior enumerou três fun­
ções da alma vegetativa: nutrição, crescimento e geração. Destas, a primeira respeita
à conservação do indivíduo, a segunda à sua perfeição quanto à grandeza do corpo, a
terceira à propagação e conservação da espécie. Subsiste efectivamente a questão de
saber se a par do número destas operações se devem estabelecer três potências real-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IV, Questão Única, Artigo I 287

mente distintas, a nutritiva, a do crescimento e a procriadora. Adiantam os seguintes


argumentos a favor da parte afirmativa. Primeiro, porque a potência de crescimento
se distingue, na realidade, da nutritiva. Uma vez atingido o estado adulto ou defini­
tivo por parte do ser vivo, o que resta, permanece e a potência nutriente mantém-se
íntegra, quando termina o crescimento, pois o ser vivo, enquanto vive, alimenta-se,
ainda que depois do estado adulto já não cresça. Logo, a potência nutritiva distin­
gue-se realmente da que cresce, visto que de outra maneira, a potência permaneceria
e não permaneceria. Outro argumento. O objecto da nutrição é o alimento, em rela­
ção à substância. O objecto do crescimento é o alimento, em relação à quantidade.
Mas estes argumentos diferem em todo o género, como a substância e a quantidade.
Fica demonstrada correctamente uma distinção real na potência, a partir de tamanha
diversidade dos objectos. Logo, as faculdades de nutrir e de crescer diferem real­
mente entre si. Alberto Magno seguiu esta opinião, 2ª parte da A Suma do Homem,
na questão acerca do movimento da nutritiva, artigo 3º; Caetano, neste livro, ao
texto 5 ; Janduno, questão 1 3 ; Apolinário, questão 9; Javelo, questão 1 8 e outros, que
São Tomás parece sufragar, 1ª parte da Suma Teológica, questão 78, artigo 2º, e
questão 79, artigo 7º e no livro Contra os Gentios, capítulo 89º.
No que efectivamente respeita à potência geradora, muitos também a distinguem
da nutritiva. Alberto Magno, neste livro, tratado 2, capítulo 6, e na 2ª parte da Suma,
questão acerca da vegetativa, artigo 2º; Egídio, no Quodlibet 3, questão 1 2 ; Caetano,
no capítulo quarto deste livro; o Ferrariense, no mesmo lugar, questão 7; Janduno,
questão 1 3 ; Fernélio, livro 5 da sua Fisiologia, capítulo 3º e provavelmente outros
que acima referimos. O objecto da faculdade de gerar é o alimento adequado, com a
intervenção do qual o ser vivo procria o que é semelhante a si. A razão, como é
evidente a partir do que se disse, é diferente daquela que a faculdade nutritiva expe­
rimenta no alimento. A faculdade nutriente dá-se sem a geradora, como nos seres em
que a idade o não permite, e noutros, que por defeito da natureza ou outras causas
carecem da faculdade de reprodução mas se alimentam permanentemente. Mas
naqueles que estão de tal maneira afectados, que uma se dá sem a outra, diferem
realmente. Logo, etc. A mesma opinião pode ser confirmada assim. Quando uma
operação respeita a uma potência que não pertence a outra, estas potências distin­
guem-se realmente. Mas uma operação que pertence à potência de gerar, não per­
tence à de nutrir. Logo etc. Prova-se a premissa menor porque a formação dos mem­
bros respeita à potência de gerar, que é a disposição principal e a preparação para
introduzir a forma do ser vivo, e no entanto esta operação não pertence à faculdade
nutriente, visto que, se se arrancar um braço a alguém, ele não é reconstituído pela
faculdade nutritiva, a qual certamente o restituiria se ela coexistisse com a potência
que gera e que primeiramente o formou. Acrescente-se que a nutritiva está espalhada
por todo o corpo e que a geradora tem um lugar certo e definido, isto é, onde o
excesso do alimento recebe a potência seminal. Também as que se distinguem pelo
substrato diferem realmente. Não parece, pois, que se deva negar que a faculdade de
gerar se distingue, pela própria realidade, da potência nutritiva.
288 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

ARTIGO II
Demonstra-se a parte negativa.
Destroem-se os argumentos dos adversários

Seja a primeira conclusão desta controvérsia, A potência do crescimento não se


distingue realmente da faculdade nutriente, Durando acolheu-a no l º livro das Sen­
tenças, distinção 3, 2ª parte da distinção, questão 2; Filópono, neste livro, ao texto
46; Nifo, no texto 42; Valésio, no livro 2 Controversiarum Medicarum, capítulo 20º
e outros. Comprova-a este argumento, para omitirmos os restantes. Dado que a natu­
reza zela mais pela brevidade e aspira mais à sobriedade do que ao grande número,
não se devem multiplicar as potências, como as outras coisas, sem necessidade. Ora,
nenhuma necessidade obriga a multiplicar as potências concernentes ao acto de
crescer e de nutrir. Logo, dá-se apenas uma potência, através da qual eles são exe­
cutados. Prova-se a premissa menor. Porque quando alguns actos estão necessaria­
mente juntos e subordinados entre si podem ter origem numa mesma faculdade, tal
como a iluminação provém da potência da luz e do calor, porque o calor se subor­
dina do mesmo modo e se conjuga necessariamente com a iluminação. Portanto,
visto que os actos de crescer e de nutrir estão subordinados entre si e necessaria­
mente conjugados, poderão ter origem numa mesma faculdade. Atente-se porém,
que quando dizemos que o acto de nutrir necessariamente se conjuga com o acto de
crescer, o acto de crescer não é tomado por nós por aquele pelo qual o ser vivo se
desenvolve para um tamanho maior. É evidente que isto não acontece necessaria­
mente enquanto o ser vivo se alimenta. Mas é tomado por aquele pelo qual o ser
vivo adquire a quantidade, quer seja maior do que a que perde, quer seja igual ou
menor. De tal modo que o crescimento, isto é, a aquisição de nova quantidade, é
permanentemente companheira da nutrição.
Segunda conclusão. É provável que a potência de gerar não se distinga na reali­
dade da potência de nutrir. Examina-se esta conclusão. Durando, no primeiro livro
das Sentenças, distinção 3, segunda parte, questão 2; Valésio, livro 2, Controversia­
rum, capítulo 1 9º e outros, que Aristóteles secundou, no capítulo acima, texto 32 com as
palavras seguintes: pois a alma tem a mesma faculdade não só de nutrir, mas também de
gerar. Os argumentos a seguir evidenciam a probabilidade desta opinião. A geração
total e parcial pode originar-se a partir da mesma faculdade; ora a nutrição é uma
certa geração parcial ; logo, a partir da potência donde esta nasce, pode originar-se
aquela, principalmente quando uma e outra dispõem a matéria com acidentes seme­
lhantes, e uma e outra unem a forma e introduzem-na na matéria. Uma, em toda,
outra, em parte. Outro argumento. É do mesmo calor que o fogo principia e a seguir,
convertida a matéria combustível na sua própria matéria, aumenta. Logo, também o ser
vivo poderá ser inteiramente constituído pela mesma faculdade e depois de consti­
tuído, alimentar-se. Não há razão para pensarmos que é maior a potência do calor no
fogo para que se dê isto, do que a da faculdade nutritiva no ser vivo.
Até aqui apenas provámos que, nem a faculdade de crescer, nem a de gerar se
distinguem realmente da nutritiva. E facilmente qualquer um compreende que, se a
potência geradora e a do crescimento comunicam entre si e se elas também não
diferem na realidade, certamente também não diferem da nutritiva. De facto, nas
coisas criadas, quando algumas se identificam num terceiro, também são realmente
o mesmo, entre si. Portanto, a potência nutritiva, do crescimento e geradora são uma
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IV, Questão Única, Artigo II 289

só e a mesma faculdade na realidade, embora não deva negar-se haver entre elas
uma distinção formal, como é manifesto a partir das diferentes definições que foram
assinaladas por Aristóteles no capítulo anterior.
Respondamos agora aos argumentos das partes adversárias. Ao primeiro deles,
que pretendiam demonstrar que a potência do crescimento se distingue da nutritiva,
deve negar-se que quando o ser vivo chega a adulto, se extingue a faculdade de
crescimento. Galeno afirma o seguinte no livro De nutrimento: embora sem recons­
tituir mais do que enfraquecer, mesmo assim é a mesma potência, mas menos firme
e robusta do que antes, tal como a potência de ver em Sócrates j ovem observa mais
perspicaz e subtilmente do que nele depois de velho. Assim, não deve admitir-se que
depois de adulto, a mesma faculdade de nutrição permaneça e não permaneça, mas
que permanece a mesma, menos forte e válida.
Ao segundo argumento, respondemos que mesmo que os actos de crescer e de
nutrir sejam levados para objectos diferentes, de todo o género, no entanto, essa
diversidade não é suficiente para que se defenda uma potência realmente distinta,
quando os actos estão subordinados entre si e necessariamente conjugados do modo
anteriormente explicado. Mas à sua primeira argumentação, com a qual se parecia
demonstrar que a potência de gerar diferia, na realidade, da nutritiva, afirmamos que
a potência de gerar tem como objecto o alimento, enquanto que por sua intervenção
se gera aquilo que é igual em espécie. Também a faculdade de crescer possui como
objecto o alimento, mas enquanto com a sua apreensão o próprio objecto aumenta.
Mas dessa diversidade não se segue uma distinção real na potência, nem isso se
prova a partir dos adversários. À segunda argumentação, deve dizer-se que onde
quer que ocorra a potência nutritiva, dá-se também a geração, visto que é uma e a
mesma faculdade, mas não, que onde quer que se dê o acto de nutrir, possa imedia­
tamente dar-se o acto de gerar. Quer porque se requer maior perfeição no ser vivo
para este acto do que para aquele, como ensinámos, no contexto, com Aristóteles,
quer porque é possível que a faculdade que reclama actos diversos esteja impedida,
de vez em quando, de poder desencadear algum deles, ainda que, entretanto, prati­
que outros. Por exemplo, como nos livros A Geração discutimos, uma mesma
potência também atrai o alimento e o retém, do mesmo modo que a faculdade do
magnete atrai e detém o ferro. Mas, por vezes, resulta da doença, que a força atrac­
tiva no ser vivo exerce o primeiro acto, mas não o segundo.
À terceira, o que quer que haja de verdade na premissa maior, deve dizer-se, em
relação à menor, que os adversários não podem negar que a formação dos membros
é executada também pela faculdade nutritiva. Isto é visível nas árvores em que os
ramos cortados voltam a crescer e atingem a justa medida e a forma devida, o que
não é obra de outra potência senão do ministério da nutritiva. Também se vê o
mesmo nos homens, principalmente nas crianças, em que não raro, alguns membros
inteiros costumaram regenerar-se, e também nos adultos, em que algumas vezes
acontece isso. Mais ainda, os últimos dentes, a que chamam do siso, nascem e for­
mam-se em idade já avançada. O delinear dos membros, também respeita à facul­
dade nutritiva. Embora incumba à obra da geração total e por isso não produza a
coisa por partes, mas a partir do todo, ela realiza o referido delinear, não por partes
mas após o decurso da idade e, além disso, oferece a coisa gerada na totalidade. Não
obsta que o braço amputado não seja reconstituído pelo ser vivo. Isto, efectivamente,
290 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

não acontece pelo facto de a faculdade nutritiva se distinguir, na própria coisa, da


faculdade formativa e da geradora, mas porque, como afirma correctamente Galena
no livro De semine, capítulo 1 7º, a faculdade que esboça ou forma os membros não é
tão forte e eficaz na prole gerada, para refazer os seus membros, principalmente os
sólidos e aqueles que os trabalhos mais necessitam, tal como o braço, do que a que
subsiste na semente, para os reconstituir de novo. Já observámos isto, no livro A
Geração e a Corrupção.
À última argumentação, deve conceder-se que a faculdade nutritiva se difunde
por todos os membros, mas que esta mesma faculdade, naquela parte do corpo para a
qual é transportado o excedente do alimento de que falámos acima, impregna o
excedente com a potência seminal para executar a geração. Assim, a faculdade de
gerar identifica-se com a nutritiva, está espalhada por todo o corpo, embora, como
imprime a referida potência, permaneça numa parte definida do corpo a ele apropriada,
quer em virtude da posição, quer em virtude do concurso de outras qualidades.
Atente-se aqui, o que já no ponto citado salientámos, que a potência de gerar que
reside na semente é diferente, quer na coisa, quer em natureza, daquela que está no
ser vivo. Na coisa, porque está num substrato realmente distinto. Em natureza, por­
que aquela que é inerente ao ser vivo, é uma potência vital pois a semente apenas é
ser vivo em potência, não em acto. Razão pela qual, quando nesta questão estabele­
cemos que a potência de gerar não se distingue na realidade da do crescimento,
apenas falámos sobre aquela que está presente no ser vivo. Quanto à que se comu­
nica à semente, como sua substituta, e que está no ser vivo, com base no que há
pouco se afirmou, é evidente que ela difere realmente da nutritiva.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V

a. Determinatis 4 1 6 b 32 Explicada a potência vegetativa, encaminha-se para a


-

sensitiva, que segundo o lugar, depois da vegetativa, mostra ser mais geral do
que as restantes. E disputa primeiro genericamente sobre ela, como é seu cos­
tume, ensinando de que maneira ela está para o sensível em comum. Neste capí­
tulo, portanto, Aristóteles determina ensinar acima de tudo duas coisas. Uma, que
a potência sensitiva é passiva. A outra, o que é que leva a potência sensitiva a
acto. Estabelece, pois, esta hipótese, que o sentido, isto é, a sensação se dá,
quando algo se move e padece, como no capítulo 4º, texto 38 foi dito. Certamente
que aquilo que sente sofre alteração e o que sofre uma alteração, ao recebê-la,
padece. E porque estava à mão a questão de saber por que é que a potência
sensitiva sofre, se pelo semelhante se pelo dissemelhante, ele responde que já o
tinha dito, nomeadamente nos livros sobre A Geração e a Corrupção.
b. Habet autem 4 1 7 a 2 - Para resolver a questão proposta, acrescenta outra, o que,
como Teófilo chama a atenção, ele tinha por costume fazer, quando a solução da
controvérsia a seguir esclarece de que modo se deve responder à questão prece­
dente. E ela é a de saber por que razão o sentido não se sente a si próprio, por
Livro Segundo, Explicação do Capítulo V 291

exemplo, por que razão a vista não se vê? Depois, por que razão os sensíveis,
como os elementos, somente são percebidos se realizados pelo movimento exte­
rior quando ele ou as suas qualidades estão presentes no tacto.
c. At enim 4 1 7 a 6 Explicou o que propusera a seguir, afirmando porque é que a
-

potência existe por si, não em acto e, portanto, não pode por si precipitar-se para
o acto a não ser que seja provocada por aquilo que está em acto, isto é, pelo sen­
sível. Tal como o combustível, que tem a potência comburente, não arde espon­
taneamente por si, mas pela obra e potência de outro, que pode inflamar. Não é
assim suficiente que o sensório tenha em si as qualidades dos elementos para que
o sentido as perceba enquanto se encontram ligadas, mas é necessário que o sen­
tido, dado estar em potência para receber a espécie, seja levado a acto pelo sensí­
vel que desta maneira produz a espécie. Também pode aqui ser resolvida a outra
dúvida, porque é que o sentido não se conhece nem a si, nem ao seu sensitério.
Certamente porque não pode ser movido por si, nem pelo seu sensitério, mas por
outro agente externo. Sobre este assunto falaremos mais, de caminho.
d. At uero quoniam 4 1 6 a 9 Antes de afirmar de que modo o sentido avança da
-

potência para o acto, ensina que o sentido umas vezes está em potência, outras
em acto. Está em acto porque opera em acto; em potência, quando não exerce
nenhuma função, mas pode exercer. Isto é claro em quem dorme, que tem o
poder da faculdade de ver, e não vê em acto. Então, porque disse que aquilo que
sente está em acto, a fim de que não se considere que o acto é alguma forma
permanente e de outra natureza, expõe-no, afirmando que chama acto à paixão,
ao movimento e à operação, porque o movimento é um certo acto, ainda que
imperfeito. Ora, aquilo que sente, move-se e padece. Donde, também ser evi­
dente que se deve conceder algo de diferente, constituído em acto, através do
qual, aquilo que sente, possa padecer e ser movido. Àquilo que questionam, se o
sentido deve ser movido pelo semelhante ou pelo dissemelhante, responde-se que
é movido pelo dissemelhante antes da paixão acontecer, mas que, depois da pai­
xão permanece igual ao paciente. Na verdade, antes do sensível produzir a sua
espécie no órgão do sentido, é dissemelhante, depois de a produzir, é semelhante.
Seguramente por causa da sua imagem e da semelhança que imprimiu no sentido.
Daí que se diga que o que é conhecido é como que afim ao que conhece.
e. Deinde distinguendum 4 1 7 a 21 Expõe de quantos modos se diz que algo está
-

em acto ou em potência. Aristóteles ensina aqui o que é que leva o sentido da


potência ao acto e por que razão isso acontece, mas também diz que isso não
tinha sido dito, determinada e expressamente por si, mas pura e simplesmente de
modo pouco claro. Afirma, portanto, que se pode dizer que algo está em potência
de duas maneiras. De um modo, porque está em potência afastada. De outro, por­
que está em potência próxima. Por exemplo, dizemos que o homem que conhece
está em potência afastada quando carece do hábito da ciência, que no entanto
pode adquirir, visto que, por sua própria natureza, é apto para apreender. Dize­
mos que ele é sabedor ou contemplativo pela potência próxima, visto que já
alcançou o hábito da ciência, mas não agiu por ele, porque nessa altura não pra­
tica o acto da ciência, o que no entanto, quando experimenta, pode exercer, a não
ser que haj a algo que dificulte, como a doença ou o cuidado e a ocupação noutras
coisas.
292 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

f. Ambo igitur illi 4 1 7 a 30 Transmite a conformidade e a diferença entre o que


-

tem a potência primeira e o que tem a potência segunda, certamente convindo


que um e outro se dizem em potência. Diferem porque aquele que conhece em
potência remota não acede à contemplação e ao acto de conhecer, se não for pri­
meiro alterado, recebendo o hábito da ciência. E ainda mais, caso estej a imbuído
de erro contrário à ciência, se não afastar o mau hábito ou disposição. Mas o que
foi já tomado pela potência próxima e que tem o sentido ou ciência, não é levado
para a acção por uma mudança da privação ao hábito, ou da opinião falsa à
verdadeira, mas apenas passa a acto, se puder e não estiver impedido por outra
coisa.
g. At uero neque ipsam 4 1 7 b 2 Porque até aqui chamou alterações e paixões à
-

sensação e à contemplação, para que ninguém se enganasse com o uso plural


destes vocábulos, considerou que o que sente e contempla, sofre e é alterado em
sentido próprio e avisa primeiro que paixão é um análogo. De um modo toma-se
como paixão o que existe segundo as qualidades que conduzem à morte, que se
chama corruptiva, como quando algo se toma quente ou é cortado. De outro
modo, como recepção de algo que afirma a perfeição e a integridade, que ele
chama de perfectível, tal como a potência fornece um acto principalmente con­
veniente para si, por exemplo, a contemplação. Mas aquilo que Aristóteles disse
sobre a paixão, ele quer, de igual modo, que deva ser entendido acerca da altera­
ção; a saber, há duas, uma que corrompe, outra que aperfeiçoa. Também não é
propriamente chamada paixão, na segunda acepção, nem alteração, com estes
nomes, porque nem sofre, nem é propriamente alterada, mas, em linguagem vul­
gar, diz-se do que se dispõe para o desaparecimento ou sofre algum mal. Por isso,
não se deve dizer que aquele que contempla, sofre, simplesmente, ou é alterado,
visto que a contemplação é antes um certo acréscimo de perfeição e a promoção
a um estádio melhor. Isto deve ser dito igualmente acerca daquele que produz o

acto de sentir, a não ser que, não atendendo ao significado próprio das palavras,
se queira alcançá-las de outro modo.
h. Sicut nec aedificatorem 4 1 7 b 9 - O que afirmou logo a seguir, Aristóteles
explana por uma semelhança com a edificação, dizendo que, tal como o que edi­
fica não se diz propriamente que é alterado (entenda-se, com efeito, que enquanto
edifica pode ser alterado pelo trabalho de outrem), também não se diz do que
sabe, enquanto exerce a ciência. E também não daquele que é dotado de sentido,
enquanto ocorre a sensação, visto que naquela mutação que consiste na passagem
do descanso para a operação, sem a perda ou a corrupção de algo, não se dá uma
noção legítima e natural de alteração. Mas, de passagem, ele objecta que o que já
seguiu o hábito da ciência, porquanto avança da potência próxima para o acto de
contemplar, não se pode dizer correctamente que foi ensinado, visto que nada
aprendeu de novo, mas que isso deve ser significado com outro vocábulo. É
assim que Filópono interpreta este ponto.
i. At quod ex eo 4 1 7 b 1 2 Antes, Aristóteles tinha ensinado que aquele que se
-

move do hábito da ciência para o acto de contemplar, não sofre, nem é alterado
em sentido próprio. Afirma que não se deve dizer o mesmo acerca daquele que
de novo adquire o acto da ciência. Na verdade, um e outro se aperfeiçoam, e se
distinguem, mas nenhum é levado à destruição ou acarreta prejuízo. Onde não
Livro Segundo, Explicação do Capítulo V 293

intervêm estas coisas não existe paixão nem alteração, a não ser que estes vocá­
bulos sej am empregues num significado mais lato, como já acima foi realçado.
k. Haec cum ita sint 4 1 7 b 1 6 - Agora declara o que é que leva o sensitivo ao acto.
Para que tal se intelija, é necessário advertir-se que o sensitivo em potência
remota é aquilo que carece de alma e, portanto, também de sentido, mas que pode
no entanto recebê-la, como a semente. Mas o sensitivo em potência próxima é
aquilo que é dotado de alma e de sentido. Logo, Aristóteles diz que o que recon­
duz o sensitivo da potência afastada ao acto, gerando um ser ou produzindo um
animal, é o que atribui ao mesmo tempo potências ao gerado para empreender as
funções, tal como aquele, que ensina transmite, à sua maneira, o hábito da ciência
à mente do discípulo. Com efeito o sentido é comparável ao hábito da ciência, tal
como o acto de sentir o é ao acto de contemplar. Aqui adverte que se diz o que
transmite à prole as potências gera, pois transmite-lhe a alma de onde elas bro­
tam. Donde, visto que o que gera o homem, não produz a alma já que esta é
criada por Deus, mas dele apenas alcança a união com a matéria, não se diz que
as potências contribuem para ela, a não ser por disposição, visto que prepara a
matéria em que Deus infunde a alma.
1. Differentia tamen est 4 1 7 b 20 - Aquilo que move o sentido para o acto de sentir
é o sensível, como também o que impele o intelecto para a contemplação é o
inteligível. Mas Aristóteles diz haver uma diferença, porque aquilo que move o
sentido externo é o objecto externo, o que está presente, isto é, o que existe e está
presente em acto, porque a sensação se ocupa assim dos singulares, mas que o
intelecto é relativo aos universais, abstraídos do lugar e da existência, e assim,
estão no intelecto através da sua espécie, para que os possamos também inteligir,
estando os singulares ausentes, sempre que se quiser, pois a sensação requer a
presença e a existência dos seus singulares. Afirma que se pode inteligir os uni­
versais quando se quiser. Deve interpretar-se isso acerca dos universais depois de
terem sido por nós percebidos, tal como Temístio e Filópono explicam. Na ver­
dade, é deveras evidente que não está no nosso poder compreender quando que­
remos as coisas que ainda não percebemos com a mente.
m. Pari modo res 4 1 7 b 26 Aristóteles diz que as ciências das coisas sensíveis
-

estão para os singulares, como os sentidos externos estão para eles. Mas chama
ciências dos sensíveis, como Filópono e Temístio interpretam, às artes mecâni­
cas. Como estas se ocupam da confecção dos artefactos singulares, necessaria­
mente, esta sua operação requer os sensíveis singulares, como também as funções
dos sentidos exigem sensíveis singulares semelhantes para os quais sej am levados.
n. Nunc id sit a nobis 4 1 7 b 28 - Expõe, conforme alegou, a distinção anterior de
potência, decerto para concluir facilmente de que forma o sensitivo se diz con­
forme às duas potências, uma afastada, outra próxima, tal como a criança está em
potência remota para ser soldado e para usar as armas, mas quando chegar a
idade própria estará em potência próxima. E embora não nos sobejem palavras
para distinguir as potências, é suficiente saber que elas são diferentes entre si, tal
como para significar a alteração e a paixão, tanto própria como imprópria, usa­
mos aqueles nomes como próprios, embora não sej am próprios.
294 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

o. Jpsum autem 4 1 8 a 3 Retoma à explicação da questão, que propusera antes, se a


-

paixão é da dissemelhança ou antes da semelhança e se aquilo que é apto para o


sentido, e que acima referira ser paciente, sofre em parte a partir da semelhança,
em parte da dissemelhança, e o contrário. Na verdade, o sentido antes de sofrer
difere do sensível, depois da paixão toma-se semelhante, principalmente pela
natureza da imagem que o sensível lhe imprime. Visto que é uma semelhança do
objecto, toma sem dúvida o sentido da mesma espécie e semelhança, como já
acima foi dito.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VI

a. Ut uero de uno quoque 4 1 8 a 7 Aristóteles vai tratar dos sentidos um a um e


-

dos seus objectos que são os sensíveis que lhes pertencem. Trata primeiro do
sensível tomado em geral, que afirma poder ser dito de três formas. E, na ver­
dade, uma coisa é o sentido por si próprio; outra, o sentido comum por si; outra,
o sensível por acidente. Mas para maior clareza divide-se deste modo. O sensível
é uma coisa, por si, outra, por acidente. Além disso, o sensível por si, ou é pró­
prio ou comum.
b. Proprium id 4 1 8 a 1 1 O sensível próprio define aquilo que somente é percebido
-

por um sentido e sem erro, isto é, que pode ser percebido bem pelo sentido
externo e, além disso, por aquele cujo objecto se diz existir, e isto sem alucinação
do sentido, tal como a cor se diz o objecto da vista, o sabor do gosto, o som do
ouvido, o odor do olfacto, o calor, o frio e outras qualidades tácteis deste género
do tacto.
c. Tactus autem 4 1 8 a 1 3 Para que ninguém duvide se porventura o tacto tem um
-

sensível próprio, dado tratar das diferenças das coisas e de muitas oposições,
como do calor, do frio, do seco, do húmido, do duro, do mole e de outras deste
género, remove tal dúvida. Afirma que tão diferente variedade das coisas perce­
bidas pelo tacto não obsta a não considerarmos todas aquelas que obtêm a noção
do próprio sensível a respeito do próprio tacto, visto que o tacto as conhece, tal
como os restantes sentidos conhecem os sensíveis próprios, e que não erra ao
percebê-los.
d. Visus enim 4 1 8 a 15 Mostra de que forma, nos sentidos, o engano sobre o pró­
-

prio sensível pode ou não existir. A vista não erra, diz, quando percebe a cor;
nem o ouvido quando percebe o som; ou outros sentidos quando apreendem os
objectos próprios. Mas sim quando agrega um sensível próprio a um sujeito a que
não pertence, tal como o gosto percebe o alimento doce como amargo por causa
do humor bilioso com que a língua está afectada.
e. Communia uero 4 1 8 a 1 7 -Descreve o sensível comum ensinando que ele é
aquilo que é percebido, não por um mas por muitos sentidos, como o movimento pela
vista e pelo tacto. Enumera cinco, a saber, movimento, repouso, número, figura,
tamanho. Diz que o sensível por acidente é aquele que não move por si o sentido,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão /, Artigo l 295

mas se diz que é sentido apenas por causa de se encontrar ligado ao que recai sob o
sentido. Assim como o filho de Diares se diz sensível por acidente, porque move o
sentido não em si, ao ser uma certa substância, mas enquanto é branco.

QUESTÃO !
Se o sentido é apenas uma potência passiva ou também é activa

ARTIGO I
Diferentes opiniões dos autores e sua refutação

Subsiste, nesta questão, uma grande variedade de opiniões. Divergem, quer os


Gregos dos Latinos, quer Gregos e Latinos entre si. Primeiro, Janduno, neste livro,
questão 1 6 e Apolinário, questão 1 3 , estabelecem duas potências no mecanismo de
qualquer sentido. Uma paciente, outra agente. Aquela, para receber a espécie, esta
para exercer a sensação. São levados por este poderosíssimo argumento, que uma e a
mesma potência não pode, simultaneamente, agir e sofrer e que necessariamente tem
de existir uma potência que possa tomar-se em todos os sensíveis e outra que possa
gerar todos. Por esta razão é que Aristóteles considera, no livro 3 desta obra, um
duplo intelecto. Um agente, outro paciente. Acrescente-se que, segundo Aristóteles,
no mesmo ponto, e outros filósofos, a qualquer potência passiva corresponde outra
activa, donde se segue que uma é a faculdade que recebe a espécie, outra, a que se
serve da espécie.
De forma alguma aprovamos esta opinião que São Tomás rejeita na lª parte da
Suma Teológica, questão 79, artigo 3º, e questão 9 de As Criaturas Espirituais,
artigo 1 0º; Capréolo, no 2º livro das Sentenças, distinção 3, questão 2, artigo 3º aos
argumentos de Durando, contra a 8ª conclusão; Caetano, neste livro, capítulo 1 1 º; o
Ferrariense na questão 9, e a escola comum dos filósofos. Primeiro, porque é contrá­
ria a Aristóteles que em parte alguma alude a um tal sentido agente. Depois, porque
segundo a mesma opinião existem dez sentidos externos, cinco passivos e outros
tantos activos, o que se opõe à doutrina acolhida. Por outro lado, porque multiplica
as coisas sem necessidade. Pode, de facto, um e o mesmo sentido receber as espécies
do objecto e servir-se delas, e ser conhecido consoante a imagem da coisa que pro­
duz a acção de sentir e que recebe em si por reconhecimento.
Aristóteles distinguiu o intelecto agente do paciente, porque, como ali expomos
claramente, em toda natureza das coisas, uma coisa é aquilo que está preparado para
agir, outra coisa, o que prepara primeiro. O intelecto agente, de facto, prepara pri­
meiro o paciente para agir, imprimindo-lhe as imagens inteligíveis das coisas. Deste
modo, também o objecto sensível, que se distingue do sentido pela própria coisa,
prepara e dispõe o sentido, ao transmitir-lhe a semelhança de si.
Também se acrescentava que a qualquer potência passiva corresponde outra
activa. Se se estiver a falar da potência activa, que prepara primeiro para agir, mos­
tramos que ela se distingue da passiva, tal como o intelecto agente se distingue do
paciente e a potência activa, que o objecto sensível possui para imprimir a seme­
lhança de si no sentido, difere do sentido na própria realidade. Se falarmos da potên-
296 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

eia que recebe a espécie e sobre aquela que, em união com a espécie, produz o acto
de conhecer, negamos que seja preciso que ela se distinga como duas potências entre
si.
A opinião de outros autores é que o sentido é uma potência somente passiva. Mas
estes avançam por um caminho bifurcado. Uns consideram que o sentido não faz
mais do que receber a espécie da coisa objecto e assim, que a sensação é produzida
não pelo sentido, mas pela coisa sensível. Outros acham que a sensação é feita pela
alma e pela espécie gravada no sentido, mas que a própria potência não manifesta
nenhum concurso activo para tal, mas somente passivo, ao modo da matéria-prima, à
qual apenas cabe receber as formas e suportá-las, quando as recebe. Egídio seguiu a
primeira via na questão 1 , O Conhecimento Angélico; Nifo, no livrinho O Sentido
Agente ; Veneto, na Suma sobre A A lma, capítulo 1 0º; o Tienense, neste ponto,
comentário 6 1 ; e Caetano, que chama pobres aos seguidores da parte contrária, não
de espírito, mas de inteligência. Prova-se esta parte com o argumento de que sentir
não é senão perceber a coisa que recai sob o sentido, e todas as vezes que o sentido é
marcado pela espécie da coisa diz-se que a percebe na sua imagem. Aristóteles
parece que ensinou isto, no livro 2, capítulo 5º, texto 52, quando afirma que, na
potência activa, os sentidos estão fora da operação. Também no livro 3, capítulo 2°,
texto 1 3 8 quando ensinou que o acto do sentido e do sensível é um e o mesmo.
Como, portanto, o acto sensível é a produção da espécie, a sensação não será outra
coisa senão a produção da espécie.
O segundo modo de sustentar que o sentido é somente potência passiva tem como
patrono Alberto Magno na 2ª parte de A Suma do Homem, no tratado sobre os senti­
dos da alma. Pode comprovar-se, porque a sensação é uma acção única e simples
que não pode ter origem em dois agentes imediatos, distintos pela própria coisa,
como a potência e a espécie. Como, portanto, ela nasce da espécie (a espécie é a tal
ponto formada pela natureza que a alma sente através dela), resta que a potência não
produz o acto de sentir mas que apenas o recebe.
Esta posição, independentemente do modo como os seus autores a defendem, não
nos agrada. Escoto rejeita-a no 3º livro das Sentenças, distinção 1 4, questão quarta,
artigo 2º; Capréolo, na primeira questão; Caetano, na primeira parte da Suma Teoló­
gica, questão 74, artigo 2º; Gregório, no primeiro das Sentenças, distinção 3, questão
primeira; Filópono, ao texto 1 2 1 , e outros. A respeito da posição explicada conforme
o primeiro modo, segue-se, contra a doutrina de Aristóteles, no nono livro da Meta­
fisica, capítulo nono, texto 1 6, que a visão não é uma acção imanente, visto que a
acção imanente deve ser recebida naquilo em que ela tem origem e, todavia, na opi­
nião deles, a sensação é realizada a partir de um único objecto. Segue-se também
que muitas vezes recebemos a espécie da coisa no olho, mas não vemos a coisa, o
que não seria possível se a recepção da espécie fosse a visão. É evidente que esta
opinião se opõe claramente a Aristóteles, porque ele ensinou, neste livro, capítulo 4º,
texto 36, que a alma é causa eficiente da sua alteração, o que acontece segundo as
funções dos sentidos . Também repete o mesmo no livro A Memória e a Reminiscên­
cia. E no livro O Sentido e o Sensível critica Demócrito que afirma que a visão é
uma operação do objecto, caso em que também o espelho veria, uma vez que o
objecto se mostraria nele através da espécie por ele produzida. Acrescente-se a auto­
ridade de Santo Agostinho, livro 2 de A Trindade, capítulo 2º, quando ensina que
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão /, Artigo li 297

para a operação não é suficiente a imagem impressa da coisa. Facilmente explicará


os argumentos que invocámos contra a parte contrária, quem disser, em relação ao
primeiro, que aquele que recebe a imagem da coisa, percebe a coisa no hábito, não
em acto, mas que a sensação é o conhecimento actual da coisa. O pensamento de
Aristóteles é o de que, na potência activa, o sentido do que é exterior, isto é, o
objecto que a espécie envia para o sentido está de fora. E o acto do sentido é o
mesmo do sensível, isto é, tanto o objecto como o sentido concorrem para o mesmo
acto, porque para o acto de sentir, que a potência sensitiva pratica, concorre também
o objecto, por intervenção da espécie produzida nesse mesmo sentido.
Também o outro modo de defender que o sentido é apenas potência passiva se
afasta da verdade. De facto, se o sentido apenas concorre passivamente para o acto
de sentir, dado que agir é mais nobre que padecer, como ensina Santo Agostinho no
livro 1 2 sobre O Génesis à letra, capítulo 1 6º e Aristóteles, livro 3 desta obra, capí­
tulo 5º, texto 1 9 , seguir-se-ia que as faculdades da alma vegetativa, que agem no
reconhecimento de todas as coisas, são mais nobres do que as sensitivas, o que não
deve admitir-se, visto que, assim como a alma sensitiva é superior à vegetativa,
também as suas faculdades vencem em dignidade as suas potências. Depois, porque
se os sentidos não executam por si qualquer acto, foi em vão que a natureza os deu.
Na verdade, para receber a sensação basta o órgão, isto é, a matéria, substrato da
forma, sob certa figura, bem como o restante aparelho com as disposições mais
convenientes. Terceiro argumento. Porque seguir-se-ia que todas as coisas enuncia­
das, a vista vê, o ouvido ouve, o olfacto cheira e outras semelhantes, que a escola
comum dos filósofos toma como verdadeiras, seriam falsas. Prova-se a consequên­
cia, porque o sentido destas proposições é que a vista produz o acto de ver, o ouvido
produz o acto de ouvir e, de igual modo, em relação aos outros deste género, em que
se manifestam os actos vitais. E estes argumentos valem também para impugnar
aquele primeiro modo, recordado acima, visto que ambos lhe convêm, posto que um
e outro admitem a acção nos sentidos. Fica também refutada a opinião daqueles que
Teófilo refere neste ponto, texto 52, que afirmam que as sensações são feitas não
pela alma, nem pela potência ou pelo objecto externo, mas em virtude de alguma
substância separada. Averróis caiu neste erro, neste livro, comentário 5 8 ; leia-se
Alberto Magno, tratado 3, capítulo 6º. De facto, o argumento da opinião contrária
não tem influência. Deve dizer-se que uma acção pode ser originada por duas, cada
uma das quais sendo concausa ou causa parcial, tal como o mesmo peso pode ser
transportado por dois homens. Mas a espécie e a potência que tem de ser executada
na função do sentido são duas causas parciais.

ARTIGO II
Conclusão da questão

A partir da refutação das opiniões anteriores não será difícil perceber qual deve
ser a conclusão da questão proposta. Deve dizer-se que a potência sensitiva pode ser
considerada de três modos, a saber, quando recebe a espécie do objecto; quando,
formada aquela, produz o acto de sentir; e quando recebe aquele acto em si. Se se
considerar do primeiro ou terceiro modos, não há dúvida que é uma potência pas­
siva, dado que não opera mas sofre. Se se considerar do segundo modo, é uma
298 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

potência activa, porque não sofre mas opera. Em relação a esta matéria, leia-se São
Nemésio, capítulo 6º de A Natureza do Homem. Também é claro, com base nestas
afirmações, que não se deve aprovar a opinião dos intérpretes gregos que, como é
evidente, com base em Filópono e Simplício, afirmam que não se deve dizer que é a
potência sensitiva que sofre, mas que é, sim, o seu órgão. Concordamos preferen­
cialmente com os latinos que não só ajustam a paixão ao órgão mas também as
potências. Uma vez que, quer a espécie, quer a operação do sentido não é recebida
no órgão imediatamente, mas por intervenção da potência, não deve negar-se que
tanto o sensório como a potência sofrem, quando recebem. São Tomás aprova esta
opinião, 1 ª parte da Suma Teológica, questão 79, artigo 3°, e também os seus segui­
dores, como Capréolo, no 3° livro das Sentenças, distinção 1 4, questão 1 , e no 2º,
distinção 3, questão 2; o Ferrariense, livro 2 Contra os Gentios, capítulo 82º.
Haverá, no entanto, quem ainda pretenda provar que não se pode considerar
activa por nenhuma razão, a potência dos sentidos. Primeiro argumento. Porque
Aristóteles no capítulo anterior afirma de forma categórica que o sentido é uma
potência passiva, o que não teria dito se o sentido por alguma consideração fosse
uma potência activa. Principalmente porque não existiria nenhuma razão, por que
devesse chamar-se potência passiva, mais do que activa. Segundo. Porque a potência
activa, como é definida por Aristóteles, no livro 5 da Metafísica, capítulo 1 2º, texto
1 7 , é o princípio da mudança de alguma coisa. Ora, o sentido exprime a partir de si,
ao máximo, a acção de sentir e não muda coisa nenhuma através dela. Terceiro.
Porque Aristóteles, na secção 3 1 dos Problemas, questões 1 2 e 1 3 , parece que nega
aos sentidos toda a faculdade de agir. Como tinha inquirido por que é que a parte
direita é mais forte do que a esquerda e, no entanto, vemos igualmente do olho
esquerdo e do direito, responde, primeiro, que a parte direita se toma mais forte pelo
exercício, mas que exercitamos igualmente ambos os olhos; e, segundo, que as
potências sensitivas são modificadas pelo objecto, mas o objecto age igualmente no
esquerdo e no direito. Quarto argumento. Porque o sentido não é mais activo do que
o intelecto a que chamam paciente. Parece efectivamente que este, de modo algum é
potência activa, porque Aristóteles chama ao próprio inteligir, padecer, no livro 3
desta obra, capítulo 4°, texto 2.
Ao primeiro destes argumentos, deve dizer-se que Aristóteles chama potência
passiva, de preferência a activa, porque no ponto citado conjugava as potências com
os objectos, a partir dos quais se produz a espécie. Também, porque umas potências
agem para os seus objectos, como as nutritivas para o alimento, e outras, suportam­
-nos, ao receberem em si as suas imagens, como os sentidos. Foi por isso, precisa­
mente, que chamou potências passivas, para repelir os preceitos dos antigos filóso­
fos que tinham ensinado que os sentidos não sofrem a partir dos objectos, mas, pelo
contrário, que agem neles.
Ao segundo, deve dizer-se que aquela definição de potência não respeita a toda a
potência, mas apenas à potência física, cuja acção transita para uma outra matéria.
Ao terceiro argumento, deve dizer-se que Aristóteles, naquele ponto, apenas ensina
que as potências sensitivas são mudadas pelos objectos, mas não nega que elas ope­
ram afluindo simultaneamente com as espécies. Ao quarto, deve conceder-se aquilo
que em primeiro lugar se assumiu, negando que o intelecto paciente é potência
puramente passiva, e respondendo, para confirmação desta matéria, que Aristóteles
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li, Artigo l 299

disse que o inteligir é um certo sofrer, porque o intelecto, enquanto recebe acto de
inteligir originado a partir de si, recebendo-o sofre. Ou então mostrou isto em sen­
tido causal, como que dizendo que a intelecção se dá porque, em primeiro lugar, o
intelecto sofre ao receber a espécie e, enformado por ela, avança para o acto de inte­
ligir e forma os conhecimentos das coisas. Assim, o que neste ponto dissemos sobre
o sentido, também pretendemos afirmar acerca do intelecto paciente, que pertence à
natureza da potência activa e da passiva e que mantém a mesma natureza nos dois
casos. Entretanto, no livro 3, temos um ponto particular para refutar os que recusa­
ram completamente toda a acção do intelecto paciente.

QUESTÃO II
Se algumas espécies se imprimem nos sentidos
para que as operações se realizem

ARTIGO I
Os que negaram as espécies e quais os argumentos que aduziram

Nas controvérsias anteriores e na explanação a menção das espécies sobrevém


com frequência no texto de Aristóteles. Este ponto exige que investiguemos se
temos necessariamente de as estabeler. Disputaremos, aqui, apenas sobre as matérias
que respeitam aos sentidos. Vamos tratar das que concernem ao intelecto no terceiro
livro. Houve quem seguisse a parte negativa desta questão, não só os que disseram
que a alma foi produzida a partir dos elementos, que inteligia por semelhança a
partir deles todas as coisas que estão nela, mas também Porfírio, no livro O Sentido;
Plotino, Enéadas 4, livro 5 ; Galeno, no livro 7 De decretis Hippocratis, capítulo 6º.
Também, de entre os peripatéticos, Durando, no 2º livro das Sentenças, distinção 3,
questão 6; e o mesmo, no que respeita aos sentidos externos, observa Ockham no 2º
livro, questões 1 7 e 1 8 ; Gabriel, questão 2, no primeiro das Sentenças, distinção 3,
questão 1 e no 2º livro, distinção 7, questão 3 , que pensam que basta que os sentidos
sej am conduzidos para os objectos, se forem colocados na distância devida. Parti­
cularmente, que as espécies visíveis não são requeridas para o acto de ver, Tomás
Gárbio escreve que o defendeu em Bolonha, em celebérrimo consenso dos doutores,
como se vê na sua Suma, livro l, tratado 5, questão 63 . Acima de tudo, Durando
sustenta este argumento, porque como as espécies são consideradas pelos seus
defensores como razões de conhecer, será necessário que elas estejam objectiva­
mente no sentido e sej am conhecidas por ele; de outra maneira, aquilo que é desco­
nhecido, conduzirá ao conhecimento de outro. Como é claro e evidente que as espé­
cies não são percebidas por nós, deste modo, deverão ser consideradas inteiramente
falsas. E corrobora-se a força deste argumento, porque tal como discernimos em
primeiro lugar a imagem externa, em que vemos, por exemplo, César, também seria
necessário que a própria imagem da cor fosse vista, se sentíssemos através desta cor.
300 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Segundo argumento. As espécies são requeridas por aqueles que as estabelecem,


por causa da semelhança com o objecto, mas entre o objecto e a espécie não pode
existir semelhança, portanto, é em vão que as requeremos. Prova-se a premissa
menor, porque as coisas que diferem em natureza, são diferentes e é evidente que a
espécie e o obj ecto diferem em natureza, porque a brancura e a negrura são contrá­
rias, mas as suas espécies não, porque no mesmo olho, ao mesmo tempo, são recebi­
das, a par, significações opostas. Mas por outro lado, prova-se que é necessário que
as espécies da brancura e da negrura sejam contrárias porque devem ser efeitos con­
trários de causas contrárias. Se, portanto, as espécies são produzidas, são e não são
ao mesmo tempo contrárias, o que é incompatível.
Terceiro. Se admitíssemos as espécies, elas ou seriam divisíveis ou indivisíveis e
desprovidas de secção, mas nenhuma destas coisas se pode dizer. Não podem, por­
tanto, tais espécies ser admitidas. A primeira parte da premissa menor persuade.
Primeiro, porque os estudiosos da Perspectiva estabelecem que a pirâmide se perfaz
em qualquer ponto do meio e que se vê a coisa toda, o que não seria possível excepto
se as espécies estivessem num ponto. A seguir, porque se as espécies fossem extensas,
seriam extraídas da propriedade da matéria a cuja natureza se ajustariam; tal, todavia
não parece ser de admitir, dado que a extracção exige alteração prévia e por vezes é
feita por transmutação sucessiva. De facto, as espécies, pelo menos as visíveis,
atravessam o meio num instante. Acrescente-se a autoridade de Santo Agostinho no
livro 12 sobre O Génesis à letra capítulo 1 6º, quando chama espirituais às espécies
dos sentidos. Demonstra-se a segunda parte da premissa menor, porque aquilo que
está fixo a um substrato extenso, é extenso. Aristóteles provou com este argumento,
capítulo 1 2º, do livro 2, texto 1 22, que o sentido é uma potência corpórea, que é
recebida no órgão dotado de tamanho. Se, portanto, admitíssemos espécies gravadas
nos sensitérios extensos, seriam extensas e divisíveis.
Quarto argumento. As espécies sensíveis são muito mais nobres do que os objec­
tos pelos quais se diz serem transmitidas. Não podem, portanto, ser por eles geradas,
visto que o efeito venceria, em dignidade, a própria causa. Donde se segue, que elas
não têm nenhuma causa na natureza das coisas e são, portanto, falsas. Prova-se a
premissa menor, porque se as espécies são produzidas, são intermédias entre as
coisas materiais e os acidentes espirituais, como que de natureza mais purificada do
que aquelas e mais grosseira do que estes . Depois, porque são consideradas como
instrumentos das funções vitais que são mais nobres do que as operações das coisas
inanimadas.

ARTIGO II
Estabelece-se a parte afirmativa da questão.
Resolvem-se os argumentos da parte adversária

Os que negam que as espécies existem, afastam-se muito da posição peripatética.


Isto é evidente pelos seguintes argumentos. A faculdade de sentir é por si ilimitada
para perceber este ou aquele singular. Portanto, para produzir a sensação deste, em
vez daquele, é necessário que seja limitada por alguma coisa. Mas não há nada por
que possa ser limitada, além do objecto, pela semelhança impressa no sentido com
ela. Logo, é produzida pela semelhança do objecto ou da espécie no sentido. Prova­
se a premissa menor, porque se houvesse algo pelo qual ela pudesse ser limitada,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li, Artigo li 301

isso seria sobretudo o próprio objecto, que não aflui por intervenção de nenhuma
espécie. Mas demonstra-se que não pode ser assim. Na verdade, ou o objecto aflui
efectivamente, ou não. Se aflui efectivamente, visto que muitas vezes dista da facul­
dade cognoscente e nada faz primeiro à distância, deveria sobretudo agir primeiro no
intermédio e depois na potência. Ora bem, suprimida a espécie nada mais há, através
do qual possa agir assim, e que suscite a potência a operar. Não pode, portanto,
retirada a espécie, concorrer efectivamente. Se não concorresse efectivamente mas
apenas formalmente, de forma extrínseca, e limitando o acto da potência, seguir-se­
-ia que a vista não seria impedida nem pelas trevas, nem pela grande distância, o que
vai contra a experiência. A consequência prova-se, porque as coisas não são vistas
nas trevas, porque as cores precisam da luz para enviarem a sua espécie. Também
não percebemos as coisas a uma grande distância porque as espécies que elas trans­
mitem, enfraquecem no meio e desaparecem.
Segundo argumento. Alguns vêem de forma mais acutilante com uma lente côn­
cava, apenas porque, então, as espécies se juntam mais ao centro e tomam-se mais
eficazes a representar, do mesmo modo que os raios solares se juntam mais na cavi­
dade do vidro. Não deve, portanto, negar-se tais espécies. Terceiro. O olho não se vê
a si mesmo, todavia verá, se se confrontar com um espelho. Isto, apenas porque a
sua própria imagem é produzida pelo olho no espelho, que daí se reflecte para o olho
e forma o acto de ver pela enformação dessa potência. Existe, portanto, uma tal
espécie. Quarto. Demonstra-se o mesmo no sentido interno. Quando observamos um
homem, que não vimos antes, pouco depois, com os olhos fechados, formulamos o
seu conhecimento, interiormente, por nenhuma outra razão senão porque absorve­
mos a sua imagem na vista, e uma vez absorvida, retemo-la no sentido interno.
Logo, é evidente que há espécies assim. O que também é evidente a partir da memó­
ria sensitiva não só do homem, mas também dos animais, visto que a recordação se
faz apenas pelo ministério das espécies.
Por último, prova-se que na doutrina de Aristóteles as referidas espécies têm
necessariamente de existir. Na verdade, neste livro, capítulo 1 2º, textos 1 2 1 e 1 24
ele ensina que o sentido é aquilo que pode substituir as imagens, isto é, as formas
sensíveis sem a matéria, porque a espécie da brancura, por exemplo, não é material e
propriamente o branco, mas aquilo que representa o branco. Também no livro sobre
A Memória, capítulo l º, ao investigar por que razão nos recordamos de uma coisa
ausente, responde que isso se dá em virtude dos simulacros das coisas conservados
no sentido interno. E, assim, Aristóteles atribui as espécies não só aos sentidos inter­
nos mas também aos externos. Santo Anselmo é da mesma opinião no Monológio,
capítulo 36º; São Damasceno, no livro 2 sobre A Fé Ortodoxa, capítulo 20º; Santo
Agostinho, no livro lO das Confissões, capítulo 1 0°, capítulo 1 5º e no livro 1 2 Sobre
o Génesis, capítulo 1 0º e no livro 1 1 sobre A Trindade, capítulo 2º e noutros pontos,
que Capréolo cita no 2º livro das Sentenças, distinção 3, questão 2, artigo 3º. Por
fim, o mesmo é considerado pela maior e melhor parte dos filósofos. São Tomás, na
primeira parte da Suma Teológica, questão 55, artigo 1º; no 3º livro Contra os Gen­
tios, capítulo 49º e noutros pontos; o Alense, na 2ª parte da sua Suma, desde a ques­
tão 22 à 26 ; Alberto Magno, 2ª parte de A Suma do Homem, tratado 4, questão 14 e
De quattuor coaevis, questão 5 ; São Boaventura, no 2º livro das Sentenças, distinção
3, artigo 4º, questão 1 ; Escoto, questões 10 e 1 1 ; Argentinas, questão 2, artigo 4°;
302 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Ricardo, questão 5 ; Capréolo, no ponto citado; Marsílio, no 1 º, questão 7 ; Herveu,


Quodlibet 5, questão 6; Egídio, Quodlibet primeiro, questão 1 1 . Também Platão
considerou que as espécies da vista, juntamente com os raios que imagina brotando
do olho para o objecto, perfazem o acto de ver. Está claro com base no Timeu e
naquilo que Calcídio escreveu no mesmo ponto.
Os argumentos dos adversários não causam dificuldade. Ao primeiro, deve res­
ponder-se, que embora as espécies existam por natureza, para que as potências nelas
gravadas representem as noções das coisas, as próprias espécies não devem igual­
mente ser formadas nas potências ou ser conhecidas por si, visto que não são sinais
instrumentais, mas formais. Nem é necessário que se apreenda em si aquilo pelo
qual a coisa chega ao conhecimento, tal como pelo seu sinal formal, ainda que isso
se deva admitir nas que nos levam, como sinais instrumentais, ao conhecimento de
outra coisa, como noutro ponto dissemos. A corroboração do argumento também
não tem força. A estátua, com efeito, é sinal instrumental e não formal de César.
Capréolo, no ponto citado, responde que não é necessário conhecermos aquilo pelo
qual, mas no qual, percebemos algo, mas nós conhecemos não na espécie, mas pela
espécie, as coisas que nos são apresentadas. Esta é a solução de São Tomás, Quodli­
bet 1 0, artigo 1 º, questão 3 .
Ao segundo argumento, concedida a premissa maior, deve negar-se a menor e
para sua prova dizer que a semelhança é dupla. Uma, no ser, outra, no representar. A
primeira não se encontra entre as coisas de espécie diferente. Mas a segunda encon­
tra-se, como é evidente na alma do homem, visto que nem em género, nem em espé­
cie convém a Deus e todavia é semelhante a Deus. As espécies têm este segundo
modo de semelhança em comparação com os seus objectos. Ao que se objecta contra
a parte oposta, a saber, que é necessário que a espécie da brancura e da negrura
sejam contrárias, deve dizer-se que se as causas contrárias forem unívocas em com­
paração com os efeitos, os efeitos são contrários. Os objectos não são assim, visto
que são causas equívocas relativamente às imagens que enviam a partir de si.
Ao terceiro, respondemos que as espécies são indivisíveis no representar, mas
divisíveis no ser, o que apenas a segunda parte do argumento mostra, embora
Veneto e Afonso Toledano afirmem o oposto. Portanto, à segunda parte, responde­
mos que a doutrina dos peripatéticos é que a visão é feita através da pirâmide
radiosa, isto é, através da espécie visível, produzida ao modo da pirâmide, cuj a base
está na superfície da coisa vista e o vértice no centro do olho e este centro é produ­
zido em qualquer parte do meio a partir do qual a coisa é vista. Com base nesta
semelhança da pirâmide e do centro, transmitida pelos estudiosos da Perspectiva
para explicar o assunto, não deve concluir-se de que modo o centro do olho e o vér­
tice da pirâmide, ou o último ponto constituído na proeminência da pirâmide é algo
indivisível - é assim que a espécie, pela qual se vê a coisa, é recebida no ponto e é
indivisível - nem, na verdade, a semelhança deve convir a todas. Ao invés, se tiver­
mos que a admitir, pode inferir-se a partir dessa semelhança que a espécie não é
indivisível, pelo menos da parte da base, onde é evidente que ela é extensa e divisí­
vel. Santo Agostinho designa-as por espécies espirituais dos sentidos, tal como
Aristóteles lhes chama formas sem matéria, o que já expusemos acima. Em relação à
extracção a partir da potência da matéria, sobre que dissertámos de modo claro na
Física, deve responder-se que, como as formas acidentais extraídas da potência da
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li, Artigo III 303

matéria, não requerem prévia alteração ou uma transmutação sucessiva, basta que no
substrato existe a potência natural para as receber e que elas mesmas dependam,
quanto à sua execução e conservação desse substrato ou tempo ou momento em que
são extraídas. Visto que estas duas condições pertencem às espécies sensíveis, não
há razão para que se negue que elas são extraídas do seio da matéria em que são
recebidas. Adverte, no entanto, no argumento afim, que prova que as espécies dos
sentidos são divisíveis, que elas não são divisíveis porque provenham da potência da
matéria. Na verdade, as almas dos animais mais perfeitos provêm da potência da
matéria e, todavia, como é opinião dos autores mais importantes, são indivisíveis e
inextensas. O argumento é legítimo porque elas são recebidas num substrato extenso
e o que é recebido assim adapta-se à natureza do recipiente e permanece extenso e
dividido, se ele também o for.
Ao quarto, deve negar-se que as espécies sensíveis sej am de natureza mais nobre
do que os acidentes que elas representam e dos quais resultam. Na verdade, a cor é
algo mais perfeito do que a sua imagem e por isso ao ser intencional das imagens
chama-se diminuído e imperfeito. As espécies não podem, em absoluto, dizer-se
formas intermédias entre as coisas materiais e os acidentes espirituais. Elas como
que alcançam o lugar intermédio, em dignidade, porque emergem ligeiramente da
matéria, visto que não recaem sob os sentidos, como as que lhes são semelhantes,
mas também não atingem a natureza espiritual. Nem é porque se tomam instrumen­
tos das funções vitais que são transportadas para um grau mais elevado da natureza,
sobretudo porque só se juntam às funções deste género como formas substitutas dos
objectos, de que tomam o lugar, como diremos a seguir. Mas isto não obsta que as
espécies inteligíveis dos acidentes materiais sustentem largamente estes acidentes,
ainda que sejam simplesmente espirituais.

ARTIGO Ili
Explicam-se certas dúvidas

Nesta questão subsistem duas situações que têm de ser aprofundadas. Uma, de
que modo as espécies concorrem com a potência para a acção. Outra, se as espécies
impressas nos sentidos externos apenas se conservam neles, na presença do objecto.
No que concerne à primeira, há quem pense que as espécies apenas concorrem no
género da causa material, isto é, determinando a potência que existe indiscrimina­
damente para perceber qualquer coisa particular compreendida sob o seu objecto,
como dissemos há pouco. Provam que as espécies não concorrem com a potência
como causas parciais activas para o mesmo efeito, porque a acção vital pode provir
apenas de um princípio de vida, que não é a espécie. Depois, porque quaisquer duas
causas parciais activas se relacionam de tal maneira que uma pode produzir um
efeito sem a outra, ainda que um efeito imperfeito. À semelhança de duas luminá­
rias, cada uma das quais produzindo luz, embora menos intensa do que as duas ao
mesmo tempo, similarmente, nem a espécie sem potência, nem a potência sem a
espécie podem operar por si. Embora esta opinião tenha a sua probabilidade é muito
mais verosímil a contrária, que estabelece que a espécie concorre também activa­
mente com a potência para a sua acção. Escoto segue-a, no primeiro das Sentenças,
distinção 3, questão 7, e no Quodlibet, questão 1 5 ; São Tomás, na primeira parte da
304 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Suma Teológica, questão 56, artigo 1 º; em Contra os Gentios, capítulos 5 1 º, 52º e


53º, e no Quodlibet 7, artigo 1 º; Alberto Magno, na 2ª parte de A Suma do Homem,
no tratado sobre os sentidos da alma; Capréolo; no 1 ° livro das Sentenças, distinção
35, questão 1 , artigo 1° e outros. E prova-se esta opinião porque a alma é determi­
nada através da espécie, no acto primeiro, para inteligir, tal como o fogo, pelo calor,
para aquecer. Não existe nenhuma razão pela qual o calor concorra, de preferência
com o fogo, do que a espécie activamente com a alma.
Em segundo lugar, porque toda a forma do agente à qual o efeito se assemelha
por si, concorre activamente como princípio desse efeito, quer seja a forma substan­
cial, quer sej a a acidental como, por exemplo, a forma equina é princípio efectivo da
forma do cavalo gerado, porque a forma deste é igual à forma daquele. Mas a espé­
cie que é produzida através da acção de conhecer e pode ser produzida é igual àquela
espécie da qual é originada a acção de conhecer. Em terceiro, confirma-se o mesmo,
porque como ensina Santo Agostinho, nono livro A Trindade, capítulo 1 2º, o conhe­
cimento da coisa é realizado pelo cognoscente e pelo conhecido, mas como o conhe­
cido está na potência, não por si, mas na sua espécie e semelhança, segue-se que a
semelhança que aquela faculdade tem com a semente da geração, gera o conheci­
mento à maneira de uma prole e, por isso, se deve mostrar, que a espécie concorre
activamente. Se se perguntar se toda a faculdade activa da potência é uma faculdade
activa da espécie, tal como toda a faculdade do fogo é calor, respondemos que não é
assim, mas que a potência detém uma faculdade particular para agir e que, do
mesmo modo, a espécie detém a sua. Do modo como ambas, como duas causas
parciais de diferente razão, ou como duas partes de um único agente inteiro, juntam
e conduzem as suas faculdades à acção de conhecer. Ficou provado, de facto, que a
espécie tem a sua actividade. Demonstra-se agora que ela não é toda a actividade da
potência porque frequentemente acontece que a potência da mesma espécie obtém
um conhecimento mais intenso, sem dúvida porque mostra por si maior empenho, o
que não aconteceria se ela não tivesse uma actividade própria distinta da actividade
da potência.
Adverte, porém, que a espécie concorre não só activamente para a operação,
como dissemos, mas também formalmente, na medida em que concorre para a espe­
cificação do acto, ao determinar a potência para esta espécie de operação, de prefe­
rência àquela. Também, na medida em que ela propicia a união do objecto com a
potência no ser cognoscível, união que é o próprio efeito da causa formal . E tam­
bém, porque é preferível que a potência se una intencionalmente com a coisa conhe­
cida, do que se dirij a para o objecto. A espécie existe mais como princípio formal do
que como princípio eficiente. E o que afirmamos acerca da causalidade formal e
activa da espécie respeita tanto à espécie sensível como à inteligível. Também
àquelas realidades que têm o modo da espécie inteligível em relação à potência
intelectiva, como a essência divina relativamente ao intelecto do bem-aventurado e a
substância do anjo em comparação com o próprio intelecto do anjo, visto que este se
intelige pela sua essência. Pode-se objectar que nenhuma substância criada pode ser
princípio imediato de operar e que, por isso, a substância angélica não pode concor­
rer por si, activamente, para a acção de inteligir. Dever-se-á responder que nenhuma
substância criada pode ser princípio próximo causador do acto, pelo modo da potên­
cia e da faculdade, mas que o pode, pelo modo do objecto, quando ele é ao mesmo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li, Artigo Ili 305

tempo obj ecto actual, sobretudo porque neste caso, apenas existe a causa parcial da
acção, não a causa total.
Portanto, ao primeiro argumento da opinião contrária, diz-se que, embora o
conhecimento derive da espécie, ele é contudo originado pela alma como fonte de
vida e causa principal das funções vitais de que são instrumentos a potência e a
espécie. Se este argumento tivesse força, de igual modo provaria que, uma vez que o
intelecto e a vontade operam através dos hábitos das faculdades que lhe são ineren­
tes, uma tal operação não é vital e que estes hábitos, de modo algum podem concor­
rer activamente, o que está em contradição com a opinião geral dos filósofos e dos
teólogos. Ao segundo, dizemos que nem sempre que duas causas parciais confluem
para algum efeito, qualquer delas pode, por si, produzir o efeito, a saber, quando
concorrem de modo a que a segunda não existe pela natureza para operar mais
facilmente, mas simplesmente para operar, como a espécie está em relação à potên­
cia, de facto a potência não pode de modo algum operar sem a espécie.
No que respeita à segunda dúvida, a saber, se as imagens das coisas que estão
impressas nos sentidos externos dependem de tal modo da presença dos objectos,
que quando estes se afastam imediatamente elas se desvanecem, alguns intérpretes
de Aristóteles seguiram a parte negativa no livro O Sentido e os Sensíveis e no livro
Os Sonhos, concedendo que quando o sensível se afasta ainda acontecem por algum
tempo, certas sensações obtidas a partir das espécies que ainda não se extinguiram.
Pode-se provar a esta afirmação assim. Estas espécies têm a sua intenção e graus de
incremento, segundo os quais podem sucessivamente ser acrescentadas e diminuí­
das. Portanto se o objecto for subitamente afastado, permanecerão segundo uma
parte da sua intenção nos sensitérios, e os sentidos poderão usá-las para continuar a
sensação. Expõe-se o antecedente porque, quanto mais próximo o objecto está da
vista (conservada todavia a distância adequada) tanto mais distintamente se vê, posto
que a espécie se divide mais e move a potência de modo mais perfeito, de acordo
com os seus novos graus. Também sobre este ponto, o som e o cheiro são percebidos
se forem mais fortes, mas não se forem mais fracos, porque emitem espécies bas­
tante mais intensas e eficazes.
Segundo. A brancura e o cheiro, uma vez afastada a causa eficiente e conserva­
dora, persistem, não obstante, no substrato. Logo, também as espécies impressas nas
potências puderam ser conservadas nestas, pelo menos algum tempo, ainda que os
objectos pelos quais foram produzidas não estejam presentes, embora num e noutro
caso pareça proceder igual razão. Terceiro. Acresce a experiência que Santo Agosti­
nho aduz, no livro 10 de A Trindade, capítulo 20º, com as palavras seguintes.
Quando olhamos o Sol durante muito tempo e em seguida fechamos os olhos, como
que tamborilam certas cores luminosas na vista, as quais devemos entender que são
da forma que foi produzida no sentido, enquanto se via o corpo brilhante. E abaixo
acrescenta que a visão é uma forma assim. Santo Agostinho considera que, uma vez
afastado o corpo luminoso, a sua espécie persiste no sentido. Aristóteles escreveu
coisas consentâneas com estas, no livro Os Sonhos, capítulo 2º. Os próprios sen­
síveis, afirma, produzem em nós a sensação através dos sensórios singulares e a
afecção que eles causam não só está presente nos sensórios, quando os sentidos
agem, mas também quando se afastam da obra. E um pouco mais abaixo, afirma: se
o sentido se dirigir do Sol para a sombra, a afecção acompanha-o, e chega, certa-
306 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

mente, a nada ver, pelo facto de a impressão que provém da luz ainda ocupar os
olhos. Também, se olharmos longamente algo branco ou verde, parece-lhe da
mesma cor tudo o que levarmos à nossa vista. Aristóteles afirmou isto. E Averróis,
no seu tratado O Sono e a Vigília, também afirma que nos sonhos sentimos os sensí­
veis externos através dos cinco sentidos, apesar de ausentes. Isto acontece com o que
vem dos sentidos internos para os externos, com as imagens das coisas ausentes. Tal
como, diz ele, durante a vigília, os sensíveis externos movem os sentidos externos e
estes movem o sentido comum, que move a imaginativa, assim também, durante o
sonho, em ordem inversa, a imaginação move o sentido comum e este, os sentidos
externos. Portanto, os sentidos externos podem produzir operações sobre os
sensíveis ausentes.
Embora esta opinião seja bastante provável, sobretudo pela autoridade de Aristó­
teles e de Santo Agostinho, a contrária, que afirma que as espécies dos sentidos
externos somente em presença dos sensíveis se conservam, e durante muito pouco
tempo, parece mais verosímil e mais comum. Com efeito, a experiência, em que
principalmente se apoiam os adversários é inteiramente falsa. Também não rara­
mente acontece, fora da doença e dos sonhos (Santo Agostinho chama a atenção
disto, livro 1 1 de A Trindade, capítulo 4º) que, aquilo que alguém produz no sentido
interno, o intelecto considera-o percebido pelo externo. E, muitas vezes, acontece
que, quando o sentido é lesionado por um sensível forte, a faculdade de ver fica
menos apta a perceber outros objectos, e por isso é que a fantasia se ilude em relação
ao sentido quando julga que é o mesmo sensível que antes. Certamente que, se um
sensível externo muito forte imprimisse no sentido a espécie com tanta eficácia ao
ponto de a conservar, mesmo na ausência dela, isso aconteceria sempre ou na maior
parte das vezes. Mas isto contraria a experiência. Donde, Aristóteles neste livro,
capítulo 5º, textos 52 e 59 estabelece a diferença entre sentido e intelecto porque
aquele exige a presença do objecto, mas este não.
Os argumentos produzidos contra a parte contrária têm a explicação seguinte. Ao
primeiro, admitido o antecedente deve negar-se a consequência. A condição e a
natureza destas espécies é tal, que quanto mais tiverem sido aplicadas no substrato,
mais rapidamente se perdem, e não podem permanecer sem o influxo da sua causa
eficiente, embora isto aconteça de outro modo em muitos outros efeitos. Pelo que,
também é evidente o que se deve responder ao segundo argumento. Ao terceiro,
dizemos que, afastado o objecto luminoso, não pode já produzir-se a sua visão, mas
que o engano acontece do modo anteriormente explicado. E assim o entenderam os
autores referidos no argumento, isto é, que afastado o sensível, as sensações não se
dão na realidade, mas aparentemente ou segundo uma avaliação errónea. O esclare­
cimento mais claro desta dúvida, que deverá ser pormenorizadamente analisado na
próxima questão, escapa-lhes.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão III, Artigo I 307

QUESTÃO III
Se pode ser produzido algum conhecimento abstractivo
nos sentidos externos graças ao poder divino

ARTIGO I
O que parece dever pensar-se na questão proposta

Nesta questão deve em primeiro lugar estabelecer-se a diferença entre o conheci­


mento intuitivo e o abstractivo. O conhecimento intuitivo, que também costuma
chamar-se de visão, como Escoto, no 1 º livro das Sentenças, distinção 2, parte 2,
questão 1 e Quodlibet 6, artigo primeiro; o Ferrariense, livro 2, Contra os Gentios
capítulo 96º; Durando, no prólogo, questão 3; e outros autores definem, é o conhe­
cimento da coisa presente, quando está presente. Isto é, o conhecimento, pelo qual
atingimos de tal modo a coisa, que através dele se discerne a presença do objecto em
si e, pela faculdade do próprio conhecimento e não porque se comprove por outra
via. É deste tipo o conhecimento pelo qual alguém vê a brancura na parede e pelo
qual ouve o som, e aquele pelo qual os bem-aventurados intuem a natureza divina, a
que São Paulo, na J ª Epístola aos Coríntios, capítulo 1 3º, chama conhecimento face
a face. Mais ainda, é a partir deste ponto do apóstolo que Escoto crê, no Quodlibet 6,
artigo primeiro, e Gregório no primeiro livro das Sentenças, distinção 3, questão 3,
artigo 1 º, que se escolheu a denominação de conhecimento intuitivo, porque ou
nenhuma ou quase nenhuma menção se faz nos velhos filósofos. Mas Santo
Anselmo, Hugo, o Mestre, São Tomás, Gregório, o Paludano, Caetano, Durando e
outros em consenso geral advertem que é necessário que o conhecimento intuitivo
seja imediato, de tal modo que a coisa não seja percebida noutra conhecida, tal como
César é conhecido na sua estátua. Através do conhecimento intuitivo vê-se a coisa
em si, o que não pode acontecer quando a coisa é vista em algo que se vê primeiro.
O conhecimento de abstracção, que também é chamado de simples inteligência, é o
conhecimento da coisa que não está presente, por exemplo, o conhecimento pelo
qual penso em Sócrates ausente, e aquele pelo qual o astrólogo em sua casa estuda o
eclipse que não observa, ainda que saiba em que hora se interpõe a terra entre a lua e
o sol. E também aquele pelo qual o filósofo, a partir das criaturas, conhece que Deus
existe. Ainda que estes conhecimentos tendam para a coisa no ser da existência, não
tendem de tal modo que através delas se discirna a presença do objecto. Não dize­
mos que o conhecimento intuitivo é o que depende da presença do objecto, nem pelo
qual o objecto move a potência. Porque o conhecimento pelo qual Deus se conhece a
si e às criaturas, é intuitivo, e no entanto, não se diz que depende nem do próprio
Deus, nem das criaturas e que não é causado.
Posto isto, a primeira conclusão é a seguinte. O sentido externo pode, pelo poder
divino, tender para uma coisa ausente. É, deste modo, levado para ela, tal como para
uma coisa presente e não de outra maneira. Prova-se esta conclusão quanto à pri­
meira parte, porque Deus pode colocar no meio do olho a espécie de Sócrates
ausente, pela qual, o olho enformado, vê Sócrates. Sócrates concorre então dupla­
mente para a sua visão. No género da causa eficiente, visto que imprime na potência
a imagem de si. Com efeito, não deve negar-se que esta causalidade pode ser suprida
pelo poder divino e do mesmo modo, o género e as causalidades das causas eficien-
308 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

tes. Além disso, Sócrates concorre para essa visão no género da causa formal extrín­
seca, determinando-a e especificando-a. Por outro lado, demonstra-se que esta
dependência não obsta que se possa produzir uma tal visão, porque Sócrates ausente
e não existente pode determiná-la e atribuir-lhe uma espécie, do modo pelo qual um
eclipse, que será o único no ano, determina e confere a espécie ao conhecimento,
que sobre ele o astrólogo tem agora. Sem dúvida que esta razão de determinar e de
especificar, não requer uma existência nem naquilo que é especificado, nem naquilo
que especifica e determina.
A segunda parte da conclusão é recomendada com o fundamento seguinte. Por­
que, afastado Sócrates, Deus pode conservar a espécie que Sócrates imprimiu no
meu olho, dado que apresenta Sócrates à vista, do mesmo modo que antes, ainda
com ele presente. Isto pode ser confirmado com aquelas coisas que no mistério da
divina Eucaristia entretanto se manifestam. Na verdade, de vez em quando, Deus
representa a criança, a carne, a mão e certas outras coisas nos olhos, produzindo
neles as espécies dessas coisas, mesmo que elas não estejam presentes, como ensina
São Tomás, 3ª parte da Suma Teológica, questão 73, artigo 8º; Durando, no 4º livro
das Sentenças, distinção 1 0, questão 4 e outras. Assim, a vista é conduzida para elas,
como se estivessem presentes. Daí que também o intelecto, a não ser que seja ins­
truído de outro lado, retenha o juízo e as julgue presentes.
Por último, comprova-se a terceira parte da conclusão, porque os sentidos exter­
nos são de natureza tal que tendem para os objectos, conforme existem aqui e agora,
isto é, conforme existem afectados pelas condições de quantidade, de distância e de
lugar e pelas coisas materiais, como na presença, pela parte da coisa, ou pelo menos
representada como presença. Por isso, não poderão os sentidos externos de modo
algum ocupar-se da coisa ausente, enquanto tal. Mais, os objectos dos sentidos
externos acrescentam intrinsecamente esta condição ao objecto do intelecto e da
fantasia. De facto, o intelecto é levado tanto para a coisa ausente como para a coisa
presente, tanto singular, quanto universal. Também a fantasia, para a coisa presente
e para a ausente, mas apenas singular. Mas os sentidos externos, que pertencem ao
ínfimo grau das faculdades cognoscitivas, tendem apenas para uma coisa singular e
presente, ou exibida na espécie como presente. Nesta repartição dos cognoscíveis
não fizemos menção do senso comum, porque este está como que no interstício dos
sentidos internos e externos, pertencendo a uns e a outros, visto que conhece as
sensações dos externos e transmite-as aos internos . Daí que comungue, de algum
modo, da natureza de uns e de outros. Na verdade, enquanto os sentidos externos se
ocupam dos seus objectos, o sentido comum leva a perceber os mesmos objectos e
assim, certamente, apenas apreende os singulares presentes. Mas nos sonhos, como é
a opinião de muitos que expusemos nos livros dos Pequenos Naturais, ele reconhece
os singulares, mesmo na sua ausência. E, deste modo, apreende tanto na sua pre­
sença, como na ausência, em função da diferença da vigília e do repouso.
Da conclusão acima será lícito deduzir a segunda, que responde directamente à
questão proposta. Advertindo que em relação a ela, em primeiro lugar, subsiste a
dúvida sobre se para o conhecimento intuitivo se requer que a potência tenda, por si,
para o objecto que está presente na própria coisa, ou se basta que sej a levado para a
coisa que, embora ausente, é representada como presente, e assim o conhecimento
tende para a coisa presente enquanto imaginariamente presente. Nesta dúvida,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li/, A rtigo li 309

embora quem concorde refira pouco a outra parte, apraz-nos mais a segunda, pelo
facto de que o conhecimento abstractivo parece ser livre e separado de todo o tipo de
presença. Eis, portanto, a segunda conclusão. Nos sentidos externos também não se
dá o conhecimento abstractivo, mesmo pelo poder divino. Prova-se. Porque o
conhecimento deste tipo é levado para a coisa em si, afastada a presença e a existên­
cia. Porém, os sentidos externos, são levados para os seus objectos, representados
muitas vezes como presentes, como é claro a partir do que se afirmou. E assim, o
referido conhecimento, pelo qual o sentido externo é levado para o obj ecto que não
está presente, pela parte da coisa deverá chamar-se intuitivo.

ARTIGO II
Argumentos contra os que foram referidos
no artigo anterior e sua resolução

Contra a primeira parte da conclusão em que afirmámos que o sentido pode per­
ceber pelo poder divino oferecem-se estes argumentos. Ou o objecto do sentido
externo compreende tanto o sensível presente quanto o ausente, ou apenas o pre­
sente. Se acontecer o primeiro caso, segue-se que o sentido externo, pelo seu enge­
nho, pode tender para a coisa ausente, visto que qualquer potência pode pela sua
própria força atingir o seu objecto. Se o segundo, ter-se-á de mostrar que pela potên­
cia divina o sentido não pode incidir sobre a coisa ausente, visto que repugna que a
potência vagueie fora do próprio objecto. Por isso não parece consentânea com a
verdade a primeira parte da conclusão.
Segundo argumento. De novo se impugna a mesma conclusão, porque se a coisa
ausente puder ser sentida, poderá ser degustado o mel não existente, ser nutrida uma
coisa sem se alimentar, poderá ser tocado o fogo inexistente e o animal ser por ele
queimado, poderá ser ouvido o címbalo que não existe e o ouvido ser lesado pelo
seu som e muitas outras coisas que parecem envolver embaraço. Terceiro. Porque se
seguiria que são geradas duas proposições contraditórias simultaneamente verda­
deiras. Com efeito, seria verdadeiro pensar-se Sócrates correndo, visto que se apre­
senta à potência também correndo, e pensar-se nele não correndo, porque na reali­
dade não corre.
Depois, contra a segunda parte da conclusão que estabelece que o sentido externo
pode ser levado para um objecto ausente, mas que é oferecido como presente pela
potência divina, é costume objectar-se que, nesse evento, uma vez que o intelecto
julga que a coisa que não está presente, está presente, deverá admitir-se que Deus,
que imprime a espécie, ou antes, a conserva impressa, é causa deste mesmo erro e
engano, o que ninguém diria.
Finalmente, contra a terceira parte que afirma que o sentido externo não pode
tender para o objecto a não ser sob a razão de presente. De facto, existe uma menor
proporção entre a essência divina e o intelecto criado do que entre o sensível não
existente e o sentido externo, visto que há uma distância infinita entre Deus e as
criaturas e somente finita entre as próprias criaturas; ora, o intelecto criado eleva-se
ao conhecimento intuitivo da divina essência; logo, também o sentido externo
poderá ser promovido por Deus para compreender a coisa não existente.
310 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

Mais. Os sentidos externos podem pela potência divina tender para fora do seu
objecto. Poderão, portanto, ser levados para uma coisa que não exista. Prova-se o
antecedente, porque elevar a água à produção da graça no Baptismo não é menos do
que despertar uma potência para uma operação, fora dum objecto que não o seu.
Logo, como aquilo é feito divinamente também isto poderá suceder e não repugna
que os sentidos externos versem sobre um objecto que não exista, embora isto não
esteja contido entre os limites do objecto que lhes pertence.
Todavia não será difícil satisfazer com os seguintes argumentos. Ao primeiro,
contra a primeira parte da primeira conclusão, deve dizer-se que, quando se trata do
objecto de alguma potência, podemos falar ou do objecto pura e simplesmente ade­
quado ou do obj ecto não adequado. Um obj ecto pura e simplesmente adequado é
aquele para que a potência é levada ou por faculdade própria ou com a ajuda divina.
Um objecto não adequado é aquele para que a potência tende por uma faculdade
própria. Se portanto, se falar acerca do objecto dos sentidos externos pura e sim­
plesmente adequado, dever-se-á responder que ele é o sensível presente ou não pre­
sente, representado todavia como presente. Se for acerca do objecto não adequado
ele é o sensível presente na realidade. Daqui não se segue que o sentido externo ou
possa por faculdade própria ser levado para um objecto não presente, ou, aposto pela
potência divina não possa para ele tender, visto que enquanto persiste em tomo dele
não vagueia fora do próprio objecto tomado de modo absoluto, como é claro a partir
do que se afirmou. Ao segundo argumento, contra a mesma parte da conclusão, deve
responder-se que não existe nenhuma contradição no facto de o mel não existente ser
degustado por intervenção da sua imagem fixada no gosto. Não pode todavia, a
partir do que se afirmou, seguir-se que a coisa se nutre sem alimento, porque a nutri­
ção importa a conversão do alimento na substância da coisa viva. Afastado o ali­
mento, aquela conversão não se produz. Também não existe nenhum embaraço em
que o fogo não existente seja sentido através das espécies das qualidades tangíveis
do fogo. Mas não se diz que o animal se queima com as espécies, porque a queima­
dura não se faz a não ser pelo calor realmente inerente à coisa que é queimada. Nem
também há embaraço no facto de um címbalo não existente ser ouvido através das
espécies de som existentes, pelas quais, no entanto, não se segue ser o ouvido atin­
gido, porque este choque não é das espécies ou do som, mas sim o som da forte
agitação do ar e a espécie da referida agitação. Ao terceiro argumento, deve negar-se
que se segue darem-se duas proposições contraditórias verdadeiras ao mesmo tempo.
As proposições «vejo Sócrates a correr» e «vej o Sócrates a não correr» não são
contraditórias, mas são-no sim estas : «vejo Sócrates a correr, não vejo Sócrates a
correr» como noutro ponto ensinámos. Mas estas não são, ao mesmo tempo, verda­
deiras, porque, no exemplo proposto, a que diz «Vejo Sócrates a correr», isto é, que
se me apresenta a correr, é verdadeira, e aquela que diz «não vejo Sócrates a correr»,
isto é, que se me apresenta a correr, é falsa. Nem, de facto, as primeiras, em predi­
cado infinitivo, são ambas verdadeiras, se o vocábulo «correndo» for usado no
mesmo modo de predicação, como será claro aos que prestarem atenção.
Ao que foi obj ectado contra a segunda parte da mesma conclusão, deve respon­
der-se, que o intelecto, no caso proposto, de vez em quando, julga que a coisa está
presente quando no entanto ela não está presente. Não se conclui daqui, contudo,
que Deus engane. Não se diz que engana a não ser que produza ou pronuncie algo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão III, Artigo II 311

com vontade de enganar, mesmo que alguns, imprudentemente, retirem daí o motivo
de errar. Acerca desta questão consulte-se São Crisóstomo, livro primeiro, De
Sacerdotio, e Santo Agostinho, no livro Contra os Mentirosos e no Enquirídio,
capítulo 6º.
Ao primeiro, contra a terceira parte, dizemos que é maior a distância e a despro­
porção entre a essência divina e o intelecto criado no género do ente, do que entre o
sentido externo e o sensível não existente (entenda-se também entre o representado
como não presente e não existente), mas não segundo a razão e proporção da cog­
noscibilidade. Com efeito, a essência divina mantém-se dentro da latitude do objecto
adequado do intelecto criado, mas se tomarmos o sensível não existente no modo
referido, ele não é incluído dentro dos limites do objecto adequado pertencente ao
sentido externo. Leia-se São Tomás, primeira parte da Suma Teológica, questão 1 2,
artigos 1 º e 3º e aí, os seus intérpretes. Ao segundo, respondemos que, tal como a
água é assumida por Deus como instrumento para a produção da Graça, também o
sentido externo pode ser aproveitado pela potência divina para uma operação acima
da sua faculdade, pela qual não tenda para o seu objecto natural como, por exemplo,
a potência de ver para atrair a si o ar. Também não repugna o que dissemos, isto é,
que o sentido externo não pode vaguear fora do seu objecto. Isto deve ser entendido
acerca do sentido, segundo as operações vitais que lhe são próprias, as quais, dado se
referirem ao seu objecto natural como relação transcendente, dependem dele essen­
cialmente, não sendo possível que segundo elas a potência de alguma forma ultra­
passe um tal objecto.
Mas haverá quem pense que pode ser contraditório com aquilo que Santo Agosti­
nho, no último livro A Cidade de Deus, capítulo 29º, quando falou sobre o estado
beatífico, escreveu o seguinte. Faculdade mais poderosa será a dos olhos dos bem­
-aventurados, não porque vejam mais acutilantemente, tal como se diz que as ser­
pentes e as águias vêem. Com efeito, por mais penetrante que sej a a vista destes
animais, nada mais podem ver do que os corpos. Mas para eles verem mesmo as
coisas incorpóreas. Com estas palavras Santo Agostinho indica a vista segundo a
função vital que lhe é própria, que é a acção de ver, que pode tender para a coisa
espiritual, a qual como é evidente está fora dos limites do objecto dos sentidos
externos. Mas tem de atalhar-se com São Tomás, na 1ª parte da Suma Teológica,
questão 1 2, artigo 3º ao 2º, que Santo Agostinho pronuncia estas coisas não tanto
para afirmar quanto para argumentar, e que o seu pensamento era o de que, como é
evidente a partir daquilo que pouco depois apresenta, os bem-aventurados, a partir
do que vêem com a vista e da refulgência da divina claridade que aparece nos cor­
pos, vão conhecer com a singular perspicácia do intelecto a presença de Deus, mas
não devem ver a própria natureza divina em si, ou algo de espiritual com os olhos
corporais.
De passagem note-se que, como não é possível que algo de espiritual recaia sob
os sentidos externos, assim também não é possível que recaia sob os internos,
mesmo pela potência divina, visto que uma mesma contradição se dá num e noutro,
pois o espiritual transcende os limites do objecto sensível. O que se deve afirmar
igualmente acerca do apetite sensitivo, cujo objecto é o sensível bom. Há quem
objecte que a gravidade da ofensa a Deus é determinada de algum modo para Deus e
que ela frequentemente se dá no apetite sensitivo, e, por isso, que o apetite inferior e,
312 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ao mesmo tempo, a fantasia, cuja apreensão ele persegue, tende para a realidade
espiritual, Deus. Dever-se-á responder que nem o apetite inferior, nem a fantasia
tendem para Deus distintamente e por si, mas confusamente e sob alguma razão
sensível. Da forma que São Tomás afirma, na 1ª parte da Suma Teológica, questão
1 2, artigo 3º, quando Isaías, capítulo 6º, narra que vê o Senhor sentado sobre o Sol,
isso deve ser entendido como uma visão imaginária que representa Deus segundo
um modo de semelhança corpórea, através do qual na Sagrada Escritura as coisas
divinas frequentemente são-nos declaradas e costumam revelar-se.

QUESTÃO IV
Se existem cinco sensíveis comuns

ARTIGO I
Parece que menos, parece que mais

Aristóteles enumerou cinco sensíveis comuns no capítulo 6º deste livro, texto 64,
isto é, o movimento, o repouso, o número, a figura e o tamanho. Subsistem todavia
argumentos da parte contrária. Em primeiro lugar, porque parecem ser menos nume­
rosos. Na verdade, o movimento, dado que não cessa e corre rapidamente, não pode
ser compreendido sem a memória e a força colectora, que colige e junta entre si as
partes passadas e futuras. No entanto, isto é próprio de uma potência mais alta, não
dos sentidos externos. Outro argumento. Os animais de modo algum numeram, por­
que isto só respeita ao homem, como ensina Aristóteles nos Problemas, secção 30,
questão 5. Assim, o número não parece ser apreendido pelos sentidos dos animais,
portanto, também não, pelos nossos, que são, como eles, da mesma espécie e facul­
dade. Terceiro. O mesmo pode ser demonstrado no repouso que, como é uma priva­
ção, não recai por si sob nenhum sentido. Por esta razão, nem o movimento, nem o
número, nem o repouso parecem ser correctamente contadc;i s por Aristóteles entre os
sensíveis comuns.
Por outro lado, há quem demonstre que Aristóteles devia ter enumerado mais sen­
síveis comuns. Com efeito, os estudiosos da Perspectiva, como refere Vitélio, no
início do livro terceiro, enumeram muitos mais, por exemplo, a distância, o sítio, a
diferença, a aspereza, a curvatura, a recta e outros. Além disso, o tempo, como
ensina Aristóteles, no 4º livro da Física, capítulo 1 1 º, texto 98, é percebido pelos
sentidos, não por acidente, visto que parece afectar o sentido da mesma forma que o
movimento de que é a medida. Portanto, é percebido por si e por isso também deve
ser colocado entre os sensíveis comuns. Não satisfará quem disser que o tempo está
contido no movimento porque se identifica realmente com ele; se fosse assim, tam­
bém a figura, que não difere na realidade do tamanho, deveria ser trazida para o
tamanho, o que não sucede. Acrescente-se que a substância, porque concorre para
imprimir as imagens destes sensíveis nos sentidos, concorre como causa principal,
pois todas as acções são dos supostos; ela poderá justamente ser acrescentada aos
restantes sensíveis comuns.
livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão IV. Anigo li 313

ARTIGO II
Existem apenas cinco sensíveis comuns.
Não se conclui o oposto dos argumentos anteriores

Mas não é por estes e por outros argumentos iguais a estes, que deverá ser afas­
tada a opinião de Aristóteles. O que fez Cristóforo, de entre os médicos mais recen­
tes, no livro 1, De arte medendi, capítulo 5°, quando afastou o movimento e o
repouso do número dos sensíveis comuns ; e antes dele Galena, livro 3, De dignos­
cendis pulsibus, quando estabeleceu que se conhece o movimento pela razão, não
pelo sentido; ora, como a razão está junta ao sentido, e o percurso da mente é rapi­
díssimo, por vezes, parece ser apreendido não pela razão, mas pelo sentido. Mas
para respondermos aos argumentos anteriores a favor de Aristóteles deve advertir-se
que, para a noção de sensível comum, não se exige que se percebam por todos os
sentidos, mas por muitos. Com efeito, ou não há nenhum sensível, ou há sobretudo o
movimento, o qual está dependente de todos os sentidos externos, para se tomar
claro a quem experimenta. Por isso é que Averróis, não sem razão, neste ponto,
comentário 64, repreende Temístio, porque afirmara que os sensíveis comuns são
universalmente percebidos por todos os sentidos.
Segundo. Deve advertir-se que Aristóteles não enumera todos os sentidos comuns
em particular, mas cinco gerais principais a que os restantes deviam ser reconduzi­
dos, como de imediato será claro. Ao primeiro dos argumentos, que sustentavam
demonstrar que o movimento não recai sob os sentidos externos, deve responder-se
que se reconhece perfeitamente o movimento apenas do modo expresso no argu­
mento e que cada um respeita a uma faculdade mais elevada; imperfeita e quase
materialmente, sem nenhuma das partes entre si .
Ao segundo. Conhece-se o número de dois modos, ou contando um a seguir ao
outro, sej a replicando o número maior sobre o menor, seja acrescentando uma nova
unidade ao número menor, aumentando assim uma série numérica com os seus
acrescentos e este modo de conhecer apenas diz respeito aos homens. Ou então
compreendendo a pluralidade discreta que faz o número, como dois ou três sons, três
ou quatro pedras diferentes entre si, da forma que o número é conhecido pelos senti­
dos externos, tanto dos homens como dos animais.
Ao terceiro. O repouso não é sentido positivamente por si, como aquilo que ao
agir move o sentido, mas negativamente porque, tanto quanto a privação o consente,
modifica a espécie da coisa que é percebida, tal como se apreende uma coisa numa
certa consistência, não em devir.
Os argumentos que pareciam provar que havia muitos sensíveis comuns, devem
ser resolvidos da seguinte maneira. Ao primeiro, dizendo que os estudiosos da Pers­
pectiva dividem mais minuciosamente os sensíveis deste tipo, porque as suas dife­
renças são apreciadas uma a uma, para que a partir da reflexão dos raios, da refrac­
ção, da incidência ou da curvatura e de outras afecções deste género, dêem a causa
exacta das diversidades visíveis. Isto não respeita ao físico, que apenas observa que
os sensíveis comuns movem o sentido com razões previamente certas e determina­
das. E assim, todos os sensíveis comuns que os estudiosos da Perspectiva acrescen­
tam podem ser reduzidos à aristotélica, como a distância e o lugar, ao tamanho, a
distinção, ao número, a aspereza, a curvatura e a linha recta à figura, e os restantes,
314 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

de modo semelhante. Ao segundo, dizendo que o tempo ou é de modo algum perce­


bido pelos sentidos externos, ou é num conhecimento de tal modo ténue e obscuro
que simplesmente se deve dizer que escapa ao seu alcance, excepto se o considerar­
mos naquela realidade que tem em comum com o movimento, do modo como Aris­
tóteles deve ser interpretado no ponto citado do 4º, Física. Ao terceiro. Ainda que a
acção de transmitir as espécies aos instrumentos dos sentidos deva ser atribuída às
substâncias como causas efectivas primárias, não se devem contar as substâncias
entre os sensíveis comuns, visto que, em primeiro lugar, nem afectam os sentidos
por si, pois isso apenas respeita às qualidades alteradoras (isto é, aos sensíveis pró­
prios); nem os afectam por si em razão secundária, porque isso é próprio dos que
modificam e determinam o movimento dos sensíveis próprios. Isto não respeita a
nenhuma substância considerada em si, mas enquanto está afectada ao tamanho, ao
movimento, ao repouso ou a algum outro dos sensíveis comuns, razão pela qual
apenas é levada por si precisamente para os sensíveis comuns, como na próxima
questão se tomará líquido.

QUESTÃO V
Se o sensível comum imprime uma espécie própria no sensitério

ARTIGO I
Opinião dos que se inclinam para a parte afirmativa

São várias as opiniões dos intérpretes acerca do modo pelo qual os sensíveis
comuns afectam os sentidos. Mas deixadas de lado as duas tidas por mais célebres,
avancemos para o meio. Uma é a de Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 1 2,
questão 3 ; de Egídio, capítulo 6º deste livro; de Janduno, questão 1 8 e de Gentil, que
Simão Pórcio refere e refuta no capítulo 5º sobre A Cor. Estes são de opinião que os
sensíveis comuns produzem nos sentidos uma semelhança própria a si, diferente da
espécie dos sensíveis próprios. O que parece que se conclui com os argumentos
seguintes. Ou o sensível comum imprime algo no sentido, ou nada. Se não imprime
nada, é um sensível por acidente. Se imprime alguma coisa, imprime apenas a espé­
cie, portanto, etc. Segundo argumento. O tamanho e a cor são formas distintas, por­
tanto exigem imagens distintas pelas quais são sentidas. Também, são percebidos
por sensações diferentes, portanto também por diversos tipos, que são os princípios
de sentir; mas estes só são produzidos pelos próprios objectos. Também, se alguém
chegar a mão ao corpo celeste sentirá grande resistência, não por alguma qualidade
táctil, pois nenhuma está presente no céu, como ensina Aristóteles no primeiro livro
sobre O Céu, capítulo 3º, texto 20. Portanto, o próprio tamanho do corpo celeste sem
o consórcio do sensível imprime-a. Quarto argumento. Muitas vezes uma torre
observada de longe é vista de tal modo que não se distingue se é branca ou se está
pintada de outra cor. Portanto, a vista percebe a quantidade nua da coisa sem outra
qualidade visível e, portanto, através da própria espécie introduzida pela quantidade.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão V, Artigo li 315

ARTIGO II
A parte negativa é verdadeira, e nada prova
os argumentos dos adversários

São Tomás abraçou a opinião contrária, na primeira parte da Suma Teológica,


questão 78, artigo 3º e neste ponto, na lição 1 3 . Também Filópono, o Tienense, o
Ferriense e outros que afirmam que os sensíveis comuns não incutem espécies parti­
culares ao sentido, mas apenas determinam e modificam as espécies dos próprios
sensíveis. Por exemplo, o colorido emite a sua própria imagem, mas forma-a de um
modo, se for dotado de tamanho quadrado, de outro, se for triangular, de outro, se
oblongo, de outro, se redondo. Apraz o que São Tomás discutiu acerca desta posição
no ponto citado e que aí transcreve. O tamanho, afirma ele, e a forma, que são cha­
mados sensíveis comuns, são intermediários entre os sensíveis por acidente e os
sensíveis próprios que são os objectos dos sentidos. Na verdade, os sensíveis pró­
prios mudam o sentido primeiro e por si, pois são qualidades alteradoras. Todos os
sensíveis comuns são reconduzidos à quantidade. Também é evidente sobre o tama­
nho e o número, que são espécies de quantidade. Mas a figura é a qualidade junto da
quantidade, visto que a razão da figura consiste na determinação do tamanho. Mas o
movimento e o repouso são sentidos conforme o substrato, de um modo ou de mui­
tos modos e conforme o tamanho do substrato ou da distância local, quanto ao modo
de crescimento e ao movimento local ou também conforme as qualidades sensíveis,
como no movimento de alteração. E assim, sentir o movimento e o repouso é de
certo modo sentir uma e muita coisa. Mas a quantidade é o substrato próximo da
qualidade correspondente, como a superfície da cor. E assim, os sensíveis comuns
não movem primeiro o sentido, por si, mas em razão da qualidade sensível, como a
superfície em razão da cor. Mas eles não são sensíveis por acidente, visto que os
sensíveis deste tipo provocam alguma diversidade na mudança do sentido. O sentido
é mudado pela superfície grande e pela pequena de maneira diferente, porque tam­
bém a própria brancura se diz grande ou pequena. Isto afirma São Tomás.
Acrescente-se, para maior explicação, o que o Santo Doutor transmite na questão
1 7 , artigo 2º da mesma obra, a saber, que a semelhança de alguma coisa se encontra
no sentido, de três modos. De um modo, primeiramente por si, tal como a seme­
lhança da cor está na vista e a de qualquer sensível por si no próprio sentido. De
outro modo, não primeiramente por si, tal como na vista está a semelhança da figura
ou do tamanho ou de outros sensíveis comuns. Terceiro, nem primeiramente, nem
por si, mas por acidente, tal como na vista está a semelhança do homem. Mas é
possível que uma e a mesma semelhança respeitem ao sensível próprio e ao comum;
ora, dizemos que ela não respeita primeiramente ao sensível comum, mas ao sensí­
vel próprio porque o sensível próprio exprime-a principalmente, e o comum, apenas
a acompanha como aquilo pelo qual a espécie recebe, não tanto a entidade, como o
modo ou afecção da entidade. Como o que age não é a cor, mas o colorido, tal como
o próprio colorido em si é afectado de acordo com os sensíveis comuns que são
conhecidos concomitantemente com os sensíveis próprios, assim também o colorido
age no sentido e imprime a espécie no órgão, que ele próprio em si é. Pode provar-se
que os sensíveis próprios e comuns são percebidos pela mesma espécie, porque nem
os sensíveis comuns têm por si a faculdade de agir, porque ou é a quantidade, isto é,
o tamanho, o movimento, o número ; ou o modo de quantidade, isto é a figura, a qual
316 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

não tem por si nenhuma faculdade de produzir; ou é a privação, isto é, o repouso,


que muito menos pode agir. Segundo. O mesmo se corrobora, porque um grande
número de espécies deste tipo é totalmente inútil, visto que basta uma para repre­
sentar a qualidade alteradora e aquilo que diversifica o seu modo, isto é, o sensível
comum.
Os argumentos dos adversários terão de ser explicados assim. Ao primeiro,
dizendo que o sensível comum não imprime algo, isto é, a espécie própria e particu­
lar para si, mas somente ajusta a espécie do sensível próprio que os sensíveis por
acidente não apresentam. Responde-se ao segundo, que, embora o tamanho e a cor
sejam formas diferentes, nem por isso imprimem uma imagem diferente, já que
basta uma só; nem é apreendida por diferentes sensações, mas por uma, em que, em
primeiro lugar, o sensível próprio se mostra como sensível comum, por uma razão
secundária. Avicena tinha escrito algo para a parte contrária, no 6º livro dos Natu­
rais, capítulo sobre o tacto, onde ainda que mostre que há uma só espécie de sensí­
vel próprio e de comum, não estabelece todavia uma, mas várias suas sensações. Ao
terceiro, deve responder-se que a mão levantada para o céu não está a ponto de com­
preender o tamanho do céu, mas vai encontrar um obstáculo que não permite que ela
avance mais, porque também de nenhum modo se penetra na própria quantidade do
céu sem o auxílio de alguma qualidade. Se se objectar que a mão embatendo contra
o corpo celeste tem de ser afectada pela dor, e que a dor nasce da alteração e destrui­
ção do tacto. Dever-se-á responder que a dor, como em seu lugar diremos, provém
não só da alteração mas também da divisão e compressão da carne que a mão impe­
lida para o céu sente com toda a força. Ao quarto, dizendo que a torre é vista de
lugar afastado sob certa cor, embora a vista não reconheça que cor existe por causa da
distância.

QUESTÃO VI
Se o sentido erra acerca do sensível próprio ou não

ARTIGO I
Propõem-se os argumentos das partes contrárias

Parece poder demonstrar-se que de modo algum o sentido externo (a presente


questão é acerca dele) lavra em erro. Primeiro. Porque se os sentidos errassem, ine­
vitavelmente, afastada a sua fé, nenhuma certeza existiria nas ciências, nenhuma
constância, porque as ciências repousam nos princípios, a experiência também, na
avaliação dos sentidos, como foi divulgado pela escola peripatética e Lucrécio
directamente ensina em 4, do seu Poema.
Finalmente, como numa edificação, se a primeira regra é falsa,
se o esquadro falaz não respeita a perpendicular,
é inevitável que tudo saia imperfeito e torto ;
disforme, pendendo para a frente ou para trás,
traídos pelos primeiros cálculos erróneo s .
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão VI, Artigo li 317

Segundo. Demonstra-se o mesmo, porque o sentido apreende a coisa que está


representada para ele na espécie. A espécie é tal qual o próprio objecto em si, visto
que é a sua imagem natural, pelo que sucede que o sentido corresponde à espécie. A
espécie da coisa conhecida é assim, não deixando margem para o erro.
Terceiro. Acrescente-se o argumento de Tertuliano no seu livro sobre A A lma,
capítulo sobre os cinco sentidos, quando refuta aquele que nega autoridade aos cinco
sentidos, com as seguintes palavras. Mencione-se o testemunho de João. O que
ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que observamos, e as nossas mãos
tocaram proveio do Verbo da vida, testemunha inteiramente falsa se a natureza dos
olhos, dos ouvidos e das mãos faltasse à verdade; logo, etc. Também Aristóteles, no
8º livro da Física, capítulo 3º, texto 22, considera estúpido de pensamento aquele
que afasta a confiança nos sentidos.
Por outro lado, que o sentido de vez em quando divaga, é evidente, porque se diz
que o intelecto corrige o sentido apenas porque ele erra; além disso, a experiência
mostra ser assim. E depreende-se que isto acontece por muitas causas indistinta­
mente, a saber, em razão do órgão, do meio, da distância, do objecto, do lugar, da
composição e do próprio objecto. Em razão do órgão, se a afeição não chega ao
órgão pura e integralmente. Daí que para os ictéricos as coisas brancas pareçam
tingidas de amarelo e para os que padecem de derrames oculares pareçam todas
ensanguentadas. Em razão do meio, os que vêem o Sol matutino, vêem vermelho em
virtude dos raios emitidos. Em razão da distância, os que vêem ao longe a torre
quadrada, dizem na redonda, porque as proeminências dos ângulos são ocultadas
pela distância excessiva. Em razão do obj ecto, se forem colocados espelhos de modo
diferenciado, vêem-se diferentes tamanhos nas coisas visíveis, quer pequenas, quer
grandes, umas vezes redondas, outras oblongas, ora de pernas para o ar, ora de pé.

ARTIGO II
Explicação da controvérsia

Nesta discussão houve primeiro duas posições extremas. Uma, dos epicuristas,
que confiavam somente nos sentidos, os quais diziam que nunca falhavam, colo­
cando neles todo o juízo verdadeiro. Quanto a este assunto Santo Agostinho, livro 8
de A Cidade de Deus, capítulo 7°; Túlio, nas Questões Académicas. A outra, de
certos Académicos, que afastaram toda a confiança nos sentidos, contra os quais
também Santo Agostinho escreveu três livros. O Mirandulano descreveu acurada­
mente as rixas de todos os filósofos antigos sobre a presente disputa, no livro 2, De
examine uanitatis.
A terceira opinião, intermédia entre as duas anteriores, peripatética e totalmente
verdadeira, para cuj a compreensão se tem de chamar a atenção, afirma que os senti­
dos nem erram permanentemente, nem se enganam nunca. Porque o erro propria­
mente só acontece no juízo pelo qual consideramos que algo existe ou não, mas nos
sentidos externos não se dá nenhum juízo deste tipo, nem expressamente, nem vir­
tualmente, a tal ponto que apenas se pode dizer que os sentidos erram sobre os pró­
prios sensíveis na medida em que fazem sair os conhecimentos para as potências
superiores, às quais o juízo respeita, levando-as ao erro e a uma falsa consideração.
Segundo. Não se deve omitir que o sensível próprio pode ser tomado de duas for-
318 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

mas, no que diz respeito a cada sentido. Ou sob a razão comum, como o branco
enquanto é colorido, o som agudo, apenas enquanto é som, o sabor doce, enquanto é
sabor. Ou segundo a sua natureza particular, como a brancura, consoante a sua natu­
reza específica de branco, e igualmente para os restantes sensíveis particulares.
Explicadas assim estas coisas, a primeira asserção é a seguinte. O sentido nunca
erra acerca do próprio sensível considerado do primeiro modo. Esta é conhecida
porque não pode suceder que a potência se estenda para além do seu próprio objecto
e assim a vista somente pode perceber o visível e o ouvido, apenas o som. E por esta
razão, não acontece nenhuma alucinação directamente nas sensações deste tipo.
Segunda asserção. O sentido engana-se acerca do sensível próprio considerado do
segundo modo. O argumento demonstra plenamente a asserção que propusemos no
fim do artigo anterior. Onde, atente-se, se forem afastados todos os impedimentos,
tanto da parte do órgão como de outra proveniência, também os sentidos não irão ser
iludidos sobre o sensível próprio tomado segundo as suas naturezas particulares,
como apontaram Temístio, Simplício e Janduno.
Facilmente se explicam os argumentos que procuravam provar que os sentidos
externos de forma alguma caem em erro. Ao primeiro, responde-se que não pode
haver nenhuma ciência humana se os sentidos nada derem a conhecer, mas iludirem
permanentemente a acuidade da mente. A questão, de facto, é muito diferente. Ordi­
nariamente não erram. Ainda que por vezes se enganem, não é destruída a experiên­
cia que nasce da conjunção de muitas sensações concordantes entre si e contribui
grandemente para o assentimento dos primeiros princípios.
No que respeita ao segundo argumento, agitados por ele, Alberto Magno, tratado
3 , capítulo 5º e Apolinário, questão 1 3 , asseguram que de forma alguma o sentido se
alucina com o próprio sensível, que o erro deve ser avaliado consoante a espécie
formada no sentido. Deve responder-se de forma adequada ao que dissemos. Ainda
que o sentido exprima uma sensação tal qual a espécie, e a espécie sej a a imagem
natural daquilo que representa, no entanto o sentido erra, visto que o sensível
apreende como se alguma coisa tivesse em si uma qualidade que na realidade não
tem, pelo menos como é apreendida. Acontece assim, por exemplo, quando o gosto
percebe o alimento como amargo, ainda que simplesmente não seja amargo, por
causa do sensível maior, isto é, por causa do amargo do humor bilioso em que está
contido e que também impregna nalguma parte o alimento. Apreende o alimento
apenas como amargo, não reconhecendo nele a doçura que detém. Donde, o intelecto
tem ocasião de julgar que o referido alimento é absolutamente amargo. E assim, a
espécie do sabor amargo transporta verdadeira e sinceramente o sabor amargo. O
engano não intervém, deste modo, na nua apreensão, mas no erro do sabor amargo
como ligação ao substrato estranho, como dissemos. Quanto a isto, objecta-se que o
alimento tem na realidade algum sabor amargo injectado pelo humor bilioso e que o
gosto o percebe sob este amargor, não havendo aí nenhum engano ou ocasião de
errar. Ocorre que ainda que o alimento tenha algum sabor amargo, porque o conside­
ramos doce (de outro modo não haveria um exemplo para esta matéria), diz-se que
houve, de facto, lugar a erro, uma vez que o gosto, pela causa antes referida, nele
não apreende o sabor doce, mas apenas o amargo. E assim, atribui-lhe simplesmente
o sabor amargo, porquanto não o percebe senão como amargo. Ao terceiro deve
dizer-se que se refuta com o argumento de Tertuliano os que criticavam que os
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII 319

sentidos caem em erro permanente, e que não tinham nada para dar ao intelecto.
Todavia não se conclui que eles nunca se enganam.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VII

Aristóteles vai tratar pormenorizadamente dos sentidos externos, um a um. E


começa pela vista, que aqui reluz em dignidade sobre os restantes, quer em razão do
órgão, que é o mais nobre e sobretudo mais visível, quer em atenção ao objecto que,
como compreende a luz e as cores, se difunde não só para as coisas caducas e com­
postas, mas também para as imortais e para os corpos celestes, quer, finalmente,
pelo modo mais elevado modo de conhecer porque é mais certo, desempedido e
isento de matéria. Mas a doutrina deste capítulo está dividida em duas partes. Na
primeira parte trata-se do objecto da vista, na segunda do meio e da natureza da
visão. No princípio, portanto, ensina que o objecto próprio e adequado da vista é o
observável ou o visível, que não só compreende a cor, mas também o brilho, quer
das coisas que apenas se avistam de noite e nas trevas, como uma certa lenha putre­
facta, as escamas de alguns peixes, vaga-lumes e outras deste género, quer daquelas
que também são vistas na luz, como o fogo.

a. Visibile igitur 4 1 8 a 26 Passa a disputar acerca das coisas que pertencem ao


-

objecto da vista, uma a uma. Trata primeiro da cor, que ensina estar compreen­
dida sob o visível em comum. Mas diz que este é visível por si porque lhe é pró­
prio poder cair sob a vista. É-lhe próprio, digo, não do primeiro modo das coisas
pelas quais algo se diz ser por si, tal como no primeiro dos Analíticos Posteriores
foi declarado - pois o visível não pertence à sua essência, que é o objecto ade­
quado da vista - mas é do segundo modo que lhe é próprio, porque dimana da
sua natureza. Assim São Tomás, Caetano e Averróis compreendem assim este
ponto, embora Simplício, Temístio e Filópono o interpretem de outro modo.
b. Colar autem omnis 4 1 8 a 3 1 Define cor afirmando que é aquilo que move a
-

vista em acto, isto é, que impregna o transparente iluminado em acto pela sua
semelhança. Infere então que a cor não pode ser vista sem a luz, visto que, sem o
referido movimento não há luz e o transparente sem a luz não pode ser iluminado
em acto. Conclui, em segundo lugar, que nesta disputa sobre o objecto da vista se
deve tratar da luz e, porque o transparente é o substrato da luz, diz o que é o
transparente. O transparente é o visível, não por si, mas pela cor alheia, isto é,
não própria, mas por via da luz que depende da presença do corpo luminoso a
partir do qual é produzida. É o caso do ar, da água, do gelo e outras coisas deste
género.
c. Lumen autem 4 1 8 b 9 Transmite a definição de luz. A luz é o acto do transpa­
-

rente enquanto transparente, isto é, o acto pelo qual formalmente o transparente é


constituído transparente em acto ou luminoso. Ele adverte que o corpo transpa­
rente, por vezes, é infundido de luz, outras vezes não é, como a cor do transpa­
rente, que é iluminada em acto pelo fogo ou por outro corpo externo, como pelo
320 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Sol. Mas a luz é quase cor, porque assim como é colorida pela cor, também as
coisas são vistas pela luz transparente.
d. Nam neque ignis 4 1 8 b 1 3 - Refuta a opinião dos que consideram que a luz é um
corpo, primeiro a partir da definição de luz. A luz é o acto do corpo transparente
e incide nele de acordo com toda a dimensão, por isso, se fosse um corpo, então
dois corpos penetrar-se-iam e conter-se-iam, ao mesmo tempo, no mesmo lugar.
Segundo, porque as trevas são privação do acto transparente ou da forma inerente
ao transparente, resultantes da presença do corpo luminoso, e assim a luz aci­
dental é uma certa forma. Terceiro, porque se a luz fosse corpo, mover-se-ia no
lugar, e assim, a iluminação não aconteceria no instante, mas no tempo, o que
repugna à experiência, porque vemos que a luz se difunde de imediato e sem
nenhuma demora, de um lado para outro. A afirmação de Empédocles segundo a
qual a luz parece percorrer o espaço num instante, que é chamado um tempo bre­
víssimo, não satisfaz. Não satisfaz, digo, porque embora (afirma Aristóteles)
possa parecer que a acção em que um espaço exíguo é percorrido se realiza num
instante, ainda que demore tempo, todavia aquela acção que atravessa todo a
distância de Oriente a Ocidente, tal como o primeiro Sol espargindo a luz sobre o
horizonte, não pode encobrir a demora e não se vê claramente em que tempo ela
se perfaz.
e. At uero non universa 4 1 9 a 1 - Ele avança para as restantes coisas contidas sob o
objecto da vista e ensina que muitas são corpos luminosos, os quais, enquanto tal,
para caírem na vista (isto é próprio das cores, que apenas são vistas pela luz
adventícia), não exigem o meio iluminado a partir de outro corpo, mas são vistos
de noite e nas trevas pelas quais foram tingidos, mal são avistados à luz. São
deste género o fungo, as escamas dos peixes e outros semelhantes. A causa disto
é que alguns são corpos dotados de luz ténue, que iluminam o meio apenas o
necessário para serem vistos, não para que as cores espalhem as próprias imagens
que se dão na vista. Depois, mostra por um certo indício que é pela luz que o
corpo se toma o meio transparente em acto; de facto, não é por outra causa que a
cor é vista se posta em frente ao órgão da vista, a não ser porque é necessário que
a cor, primeiro, mova o espaço iluminado em acto, depois, por sua intervenção, o
mecanismo de sentir.
f. Non enim hoc loco 4 1 9 a 1 5 - Censura Demócrito por ter dito que nós veríamos
com precisão se o meio fosse o vazio, como se o meio fosse um impedimento
para a vista. É por esta razão que Demócrito afirmou que se todo o espaço que há
entre a terra e céu fosse vazio, então poderiamos ver uma formiga que existisse
no céu. Aristóteles mostra a falsidade deste parecer, porque a visão não existe, a
não ser que, primeiro, o órgão do sentido seja mudado pelo objecto, e não pode
ser mudado por ele imediatamente, mas pelo intervalo em que passam as
imagens. A partir do que se disse é claro o que se deve pensar sobre o meio da
cor segundo a doutrina peripatética, a saber, que o diáfano se interpõe entre a
coisa observável e o sensitério, onde reside a faculdade de ver.
g. Eadem autem est 4 1 9 a 25 - Ele tinha dito que a vista carece do meio, através do
qual a coisa dirige os objectos para o sensitério. Agora mostra que acontece o
mesmo com os restantes sentidos, pois também os seus objectos, que estão fora
deles, não podem produzir a sensação. Também diz que isto acontece no gosto e
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão /, Artigo / 321

no tacto, embora nestes a coisa costume ser menos evidente. Depois, como que
de caminho, explica os meios dos outros sentidos, afirmando que o meio do som
é o ar; o do odor, algo sem nome; o da cor, o ar e a água, consoante os corpos são
transparentes ou diáfanos e as mesmas coisas consideradas sob outra ordem, o
meio do odor. Na verdade, ele prova que o cheiro emana através do ar ou da
água, porque os animais aquáticos na água percebem o cheiro. Os que vivem na
terra apenas cheiram por atracção do ar. Sobre estes assuntos, em devido lugar,
mais ampla e claramente se tratará.

QUESTÃO !
Aristóteles definiu correctamente o transparente e a cor, ou não?

ARTIGO !
Definiu correctamente o transparente

Comecemos pelo transparente. No capítulo acima, Aristóteles define assim o


transparente. Transparente ou diáfano é aquilo que não é visível por si, mas por uma
luz alheia. Parece provar-se facilmente que esta definição é enganadora. Primeiro.
Porque o fogo e o ar, de que se trata neste ponto, são transparentes nos seus limites,
mas não são vistos, quando são impregnados, também, por uma luz alheia, como é
evidente. Outro. A Lua não é visível com a luz própria mas com a alheia, que é
emprestada pelo Sol e, todavia, não é transparente porque não é o meio pelo qual se
faz a visão. Portanto, a definição aristotélica não respeita a algo transparente, res­
peita a algo não transparente.
A favor desta explicação deve salientar-se que Aristóteles considera o transpa­
rente de dois modos. De um modo, em relação a qualquer corpo transparente, tal
como o ar, a água e o fogo, que se costuma chamar transparente, indefinido ou
indeterminado, porque a vista não se fica pelo seu extremo, mas prossegue, vendo o
que está do outro lado, penetrando o todo. De outro modo, em relação ao corpo que
participa da luz mas não é translúcido, por causa da composição, isto é, da densi­
dade. Por esta razão, Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 3º, consi­
dera o transparente delimitado, como as estrelas e todas as coisas imbuídas de cor.
Do primeiro modo, o transparente é o meio da visão, mas do segundo modo já não.
Deve atentar-se também que o transparente segundo a primeira noção é de dois
tipos. Um, o que resplandece com a própria luz, como o fogo na sua esfera. O outro,
com luz a alheia, como o ar e a água que apenas brilham com a luz emanada de
outro corpo externo. Pelo que acontece que os primeiros são sempre iluminados em
acto, visto que fulgem com a luz inata, e que estes, ora são iluminados em acto, ora
somente em potência. Portanto, Aristóteles naquela definição de transparente não
abarcou as coisas transparentes determinadas, porque elas não dependem das espé­
cies trazidas até ao olho. Também não compreendeu todas as visíveis não delimita­
das que possuem luz por si, porque embora estas sej am o meio pelo qual se perfaz a
visão, são sempre transparentes em acto e luminosas. Portanto, ele apenas define as
coisas transparentes indeterminadas que recebem luz de um corpo externo e que, ora
322 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

são iluminadas, ora não, como o ar, a água, o cristal, o vidro e outras deste género.
Apenas quis abranger estas, como é evidente, porque logo a seguir sustentou que a
luz é como que a cor do corpo transparente, visto que é transparente em acto a partir
do fogo e de outro corpo deste tipo, como o Sol.
Tendo isto em conta, deve responder-se ao primeiro argumento, que o fogo é
transparente, mas que não se explica por tal definição aristotélica, porque é sempre
transparente em acto e possui luz própria, ainda que seja visível por si, como de
imediato se dirá. No que respeita ao ar, dado que a visibilidade flúi de qualquer
coisa inominada que é comum à cor e à luz, tal como todas as coisas coloridas são
visíveis por si, também todas aquelas que possuem luz o são. E tal como as coisas
coloridas não podem ser vistas em acto se não existir um meio iluminado, assim
também não chegam à vista as coisas dotadas de luz, a não ser que sejam compactas
e densas. Por isso, o fogo e o ar que são impregnados com a luz em acto, são certa­
mente visíveis por si, embora não sej am vistos por nós por causa da ausência da
requerida densidade, tal como as coisas coloridas, postas nas trevas, por sua natureza
são tidas por visíveis, pois não só elas conservam as cores como a visibilidade
acompanha a sua natureza. Portanto, é evidente o que se deve responder ao primeiro
argumento, no que respeita ao ar. Ao segundo, dir-se-á, que a Lua fulge, quer com
luz própria, quer emprestada, e que é um dado corpo transparente, embora determi­
nado, o que, portanto, a definição aristotélica não compreende.
Das afirmações conclui-se que quando se chama transparente ao que é percebido
pela luz alheia, isso deve ser entendido de tal modo que seja visto o todo em si, se
assim não fosse a definição diria respeito às cores que são vistas não com luz própria
mas com a luz que sobrevém. Por último, não se ignorará que existem várias dife­
renças de transparente tomadas em sentido geral, que umas mais, outras menos par­
ticipam da sua natureza. Sem dúvida que, de entre todas, a mais transparente é o céu;
em segundo lugar o elemento fogo depois o ar; a seguir a água; e na mesma ordem
as que são formadas pela mistura constante destes elementos. A razão desta ordem
está em que a natureza celeste não possui a opacidade e a espessura terrenas. Daí
que, primeiro o fogo, depois o ar, etc.

ARTIGO II
Também definiu muito bem a cor

Avancemos agora para a definição examinada de cor. Aristóteles explicou em


duas definições a natureza e a faculdade da cor. Uma, neste ponto. A outra, no livro
O Sentido e o Sensível, capítulo 4º. A primeira é assim. A cor é o que move o trans­
parente em acto. A segunda é a seguinte. A cor é o termo do transparente num corpo
definido, ou determinado. Mas será lícito objectar contra ambas. A luz do Sol e dos
restantes astros move o transparente em acto, visto que emite a sua própria luz para a
vista, e no entanto a luz não é cor. Outra objecção. A cor negra é a privação de bran­
cura, como Aristóteles ensina no citado capítulo do livro O Sentido e o Sensível, e
no livro 1 0 da Metafísica, capítulo 4º, texto 7 ; mas a privação, tal como é desprovida
de entidade, também o é de actividade e, por isso, também de movimento. Portanto,
a cor negra não move o transparente, ainda que seja tida entre as cores. Por isso, não
assenta bem a primeira definição de cor, nem em relação ao todo, nem apenas em
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão li, Artigo / 323

relação à coisa definida. Outra. Visto que a cor nasce da mistura das primeiras qua­
lidades que atravessam todo o corpo, incide não só na superfície mais afastada, mas
também na mais interior; portanto, é indevidamente que se define a cor como limite
do transparente. Pode-se responder que aquela definição explica a faculdade da cor,
não em si, mas enquanto é visível numa superfície única, visto que só nela delimita a
vista. De novo se objecta contra isto, que existem algumas pedras em cuja profun­
didade se vêem cores; também dentro do âmbar aparecem como que pequenos mos­
quitos. Pelo que sucede que não é só na extremidade dos corpos que se vêem cores.
Diga-se ao primeiro destes argumentos que a definição de cor deve ser com­
preendida assim. Que a cor move o transparente em acto, mas não tem a faculdade
de tomar o transparente em acto, como a faculdade do Sol tem e é notório que está
presente nos restantes astros. Ao segundo, que a cor preta é chamada por Aristóteles
privação num uso indevido do termo, porque, evidentemente, se se comparar o
negro com o branco, é como que a privação deste, dado não ser tão bem conhecido.
Como noutro ponto chamámos à atenção, Aristóteles também ensina isto acerca de
duas espécies quaisquer contidas sob um mesmo género, uma das quais vence sem­
pre a outra em dignidade de natureza. Ao terceiro argumento, opor-se-á correcta­
mente o seguinte. Ao que foi efectivamente avançado contra a solução, deve respon­
der-se que essas cores não são vistas excepto na extremidade e na superfície externa
das pedras transparentes, embora a espécie visível que está no fundo, quando é
enviada pela superfície, penetre toda a sua substância. Mas no que respeita ao âmbar
e a outros corpos semelhantes, dizemos que as suas cores não se distinguem na pro­
fundidade, ainda que se vej am os insectos nele encarcerados no que toca à sua super­
fície externa.

QUESTÃO II
Se a natureza da cor e da luz é a mesma ou não

ARTIGO I
Quem considera ser a mesma e com que argumentos

Os filósofos antigos têm várias opiniões acerca da natureza das cores. Plutarco
relembra-as, no primeiro de As Opiniões, capítulo 1 5º; Alexandre, no livro l º das
Questões Naturais, capítulo 1 3º. Omitidas as restantes, Pitágoras, atribuía tudo a
razões matemáticas e de quantidade, quando considerou que a cor era a própria
superfície do corpo, levado pelo argumento de que, uma vez que a cor tem uma
natureza séctil, mas não é corpo ou linha, será necessariamente superfície; não uma
qualquer, mas a da extremidade que se mostra claramente à vista. Platão, no Timeu,
ensinou que as cores são luz. A vempace e Alfarabi acolheram também aquela opi­
nião, como se vê em Averróis, comentário 65 . E também Avicena, livro 6, parte 3 ,
capítulo 1 º , afirmando que n a ausência d a luz não h á n o corpo cor alguma, mas que
as cores são produzidas pelo seu contacto e que não diferem da própria luz recebida
no corpo. Esta opinião foi seguida pelo Poeta, quando diz na Eneida 6, «a noite traz
às coisas outra cor» . Alberto Magno como que o sustenta, no livro O Sentido e o
Sensível, tratado 2, capítulo primeiro, quando pende mais para o lado que considera
324 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

que a cor é a luz num transparente delimitado, mas que quando brota a luz, uma
certa qualidade originária das primeiras qualidades permanece, que é como que a
matéria da cor e a luz a sua forma.
Pode, portanto, provar-se que a cor não é senão luz, primeiro, porque vemos as
nuvens tingirem-se consoante a radiação diferente do Sol, quer de branco, quer de
vermelho, umas mais, outras menos obscurecidas. Também o mar, pela mesma
causa, ora enrubesce, ora embranquece, avistando-se branco ao longe, negro ao pé.
Vemos também que as cabeças das pombas e as caudas dos pavões com um aspecto
diverso da luz variam as cores extraordinariamente. Tudo isto está presente no
argumento que diz que as cores não são outra coisa senão a própria luz.
Segundo. Prova-se o mesmo, porque não é por outra razão, que os olhos quando
vêem corpos brancos se cansam e fatigam, quando vêem verdes e verdej antes, se
deleitam e ficam mais vigorosos, a não ser porque a brancura tem muita luz dissi­
pada pelo órgão visual; já a cor verde possui uma certa medida de luz, que se mostra
à vista como uma moderada e certa harmonia e por isso nada lesa. Portanto, as cores
são da natureza da luz. Umas exprimem-na mais, outras menos.
Terceiro. Confirma-se o mesmo, suprimida a proposição dos filósofos, que afir­
mam que a cor é o objecto comum e adequado da vista, o que certamente não seria
verdade se a cor e a luz se distinguissem entre si. Com efeito, como a luz recai sob a
vista, nem todo o visível seria cor. A favor da mesma opinião labora o que Aristóte­
les, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 1 º afirma, ou sej a, que todos os corpos
têm cor. E também a definição de cor referida no último capítulo, texto 67 : a cor é o
que move o transparente em acto. Esta definição respeita tanto à luz como à cor,
visto que ambas movem, isto é, impressionam a vista com a própria semelhança e
assinalam o transparente.
Por fim, a favor da opinião de Alberto Magno, está o argumento de que a cor
desaparece na ausência de luz que considerada em si não é visível, mas que recebe
da luz a visibilidade, e que não encontra a espécie por si mesma, sem o consórcio da
luz. Donde, acontece que a luz, comparada à cor pela sua perfeição, pode e deve
dizer-se, com todo o direito, forma e acto.

ARTIGO II
As cores aparentes não se distinguem da luz.
As verdadeiras distinguem-se.

A favor da explicação desta controvérsia deve apontar-se que existem dois géne­
ros de cores. Umas, pelas quais a vista é iludida (a que chamam aparentes), outras
verdadeiras . São aparentes as que são espalhadas pelos corpos apenas pela luz, de
acordo com a sua visão diferenciada, como acontece no arco-íris e no que referimos
no primeiro argumento do artigo anterior. As cores verdadeiras são as que sobrevêm
não da luz, mas da mistura das qualidades primárias e da variedade dos elementos,
como a brancura no cisne, a negrura no corvo. Tendo em conta estas questões, a
primeira conclusão é. As cores aparentes não são mais do que luz. Esta conclusão é
evidente, porque as cores deste tipo apresentam-se à vista, segundo uma diferente
visão, distância e lugar em relação ao corpo luminoso, como de caminho será evi­
dente; o que sem dúvida, indica que estas coisas não são mais do que a própria luz
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão II, Artigo II 325

recebida no corpo. A segunda conclusão é. As cores verdadeiras têm uma natureza


diferente da luz. Prova-se isto porque se as cores verdadeiras não se distinguissem
da luz, não seriam fixas e permanentes, mas variáveis consoante a relação diferente
com a luz, como dissemos acerca das aparentes. Segundo. Porque a luz é uma quali­
dade celeste que não tem contrário, visto que a natureza subtraiu as qualidades con­
trárias aos corpos celestes, como ensina Aristóteles no primeiro livro sobre O Céu,
capítulo terceiro, texto 20. Mas a brancura é o contrário da negrura. Também, por­
que se a cor fosse luz, o negro, dado ser totalmente privado de luz, não seria senão
privação de luz, o que é contrário ao pensamento comum dos filósofos. Terceiro.
Porque se seguiria que a cor branca, verde, púrpura, amarela e, por fim, todas as
diferenças de cores conter-se-iam numa única ínfima espécie, o que está longe da
verdade. Quarto. Porque para a luz não existe propriamente a alteração que há para
as cores, como pensa Aristóteles no livro 7 Física, capítulo 3º. Por fim, Averróis
argumenta do modo que se segue. A cor é o movimento do diáfano porque o diáfano
está em acto, mas o acto do diáfano é a luz. Portanto, o diáfano, como tem luz, é por
si o móbil da cor. Mas tudo o que é susceptível por si de alguma natureza, carece da
natureza e da espécie que recebe. Portanto, a cor, que é por si o movimento do diá­
fano, visto que é iluminada pela luz, não é da mesma espécie que a luz. Contareno,
no livro 5, Os Elementos chama belo e eficaz a este argumento. Parece-nos, contudo,
pouco eficaz, porque tal como o diáfano iluminado pode ser movido por um luminar
que possua luz mais intensa, também poderia ser movido pela cor, se a cor fosse luz.
Aquele axioma: «Tudo o que é susceptível, etc.» não tem lugar na produção de luz,
como é evidente com base no que dissemos nesta obra acerca do seu conhecimento.
Respondamos agora às coisas que se opunham no artigo anterior. E, nomeda­
mente, que o argumento de Pitágoras não tem peso. Na verdade, a cor não se reparte
pela sua natureza, mas devido à superfície em que se encontra inerente. Ao primeiro,
o dos que contestavam que a luz não se distingue da cor, dizendo que se conclui
apenas que as cores aparentes não se distinguem da luz. Ao segundo, embora de
entre as cores verdadeiras, umas se aproximem mais da luz, como o branco, outras
menos, como a cor verde-erva, cor de chumbo, e outras nada, como as que tendem
para o negro, que não é por isso que se deve considerar que a natureza delas e a da
luz é a mesma, porque essa tendência não chega à conveniência em espécie. Porque
certas cores obstruem a vista, outras não, leia-se Aristóteles nos Problemas, secção
3 1 , questão 1 9 . Ao terceiro, tomando, entretanto, a cor num significado mais lato,
por forma a abranger tanto a luz como todas as cores, do modo em que dizemos que
há um obj ecto adequado da vista e que todas as coisas se dizem coloridas por ele,
porque todos os corpos participam ou da luz, ou da cor, ou de ambas. No que res­
peita à definição de cor, é próprio da cor, tomada com precisão, mover o transpa­
rente, não de qualquer maneira, mas de modo a que não tome o transparente em
acto, que é o que compete à luz. Ao quarto, embora, na ausência da luz, as cores se
ocultem e deixem os olhos privados do meio das suas imagens (estas têm de ser
entendidas tanto quanto possível como substitutas das cores, uma vez caída a noite,
segundo Virgílio), que não é por essa razão que desaparecem com o afastamento da
luz; nem que, todavia, elas são visíveis, por si, isto é, aptas a serem vistas, pelo
menos por uma aptidão remota. Elas não recaem em acto sob a vista, a não ser com
o consórcio da luz, que, por isso, pode ser chamada como que a sua forma externa,
326 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

visto que as toma visíveis em acto; mas não a sua forma interna, do mesmo modo
que as cores, a partir da luz, uma vez que é composta de um acto próprio e essencial,
visto que a luz e a cor são duas espécies, cada uma perfeita e completa no seu
género, que em nada podem adequar-se a uma natureza única, como é divulgado na
/sagoge de Porfírio, capítulo 6º, passim.

QUESTÃO III
Qual a origem e proveniência das cores

ARTIGO I
Das cores aparentes e fictícias

A quantidade de cores é tanta, a sua mistura é tão múltipla, que seria correcto
dizer que em nenhum outro lugar a natureza depositou as suas obras de forma mais
copiosa e tão ambiciosamente, visto que animais, plantas, ervas, flores, metais, jóias,
mármores e, finalmente, quase tudo o que gerou, revestiu e distinguiu com uma
variedade matizada de cores. Daí que muitos filósofos se esforçassem por explicar,
atraídos pelo estudo da natureza, as causas das cores e de tantas diferenças notáveis.
Platão no Timeu; Aristóteles em parte aqui, em parte no livro que agora se conhece,
intitulado As Cores (se é que aquela obra é sua) e no primeiro livro dos Meteoroló­
gicos, capítulo 5º e livro 3, capítulo 4º; livro 5, A Geração dos Animais, capítulos 4º,
5º e 6º; Galeno, no livro 2, De temperamentis, capítulo 5º; Contareno, livro 5, De
elementis; Simão Pórcio, no livro composto sobre este assunto; Escalígero no exer­
cício 325 , Sobre Cardano, e alguns outros. Avançando, dado que nas cores, como
afirmámos na questão anterior, umas são verdadeiras, outras são aparentes, umas e
outras, são em parte parecidas, em parte diferentes entre si. São parecidas, primeiro,
porque são coisas verdadeiras. Com efeito, nem as cores aparentes são designadas
por este nome por não possuírem uma entidade expressa e verdadeira, mas porque
segundo a su natureza não são verdadeiras e apenas se chamam cores, por analogia
com as cores verdadeiras que são originadas por uma dada mistura de qualidades
primárias. São parecidas, em segundo lugar, porque uma e outra respeitam propria­
mente ao objecto da vista e movem a vista. Em terceiro lugar, porque não movem se
não estiverem num corpo congruentemente denso e configurado, em que a vista se
possa fixar. Daí que, dada a sua subtileza, não se distinga a direcção do fogo. Mas as
cores diferem entre si, não só por causa daquela diferença comum da natureza, a de
que as aparentes são formalmente luz porque são verdadeiras as segundas qualida­
des, mas porque as cores verdadeiras têm sempre um ser fixo e subsistem, contanto
que não mude a mistura das qualidades donde se originam. Mas as aparentes não se
fixam durante muito tempo e geralmente mudam com a diferença da luz, do meio,
do lugar, da vista, quer para a luz, quer para as cores verdadeiras, como ensina
Aristóteles no livro sobre As Cores, capítulo 3º, livro 1 ; Meteorológicos, livros 3 e 4.
As cores aparentes também se distinguem entre si no que concerne aos substratos.
Efectivamente, ou estão num corpo determinado ou indeterminado, e num corpo
determinado, precisamente, nascem muitas vezes da oposição variada das cores
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão III, Artigo I 32 7

verdadeiras à luz. Ou a cor verdadeira é única, como a cor verde, ou várias e estas,
ou estão juntas por natureza como nas penas dos pavões, ou pela arte, como nas
texturas dos lanifícios e dos tecidos. De facto, tomam-se nessa altura noutras novas
cores através da incidência da luz e dos raios, visto que os raios se reflectem, quer os
directos, quer os reflexos, quer os refractados, ou os que de outro modo refluem.
Acontece assim frequentemente que os lados limítrofes das coisas são banhados
pelas cores.
Do mesmo modo, num corpo indeterminado as mesmas cores provêm da irradia­
ção da luz e são alteradas pela diferente compleição do luminoso, como se vê
quando os raios da Lua ou do Sol cortam o vapor e quando entram através de certos
corpos de vidro, divididos em muitos ângulos. Então, quando olhamos para o alto
vemos uma incrível variedade e distinção deste tipo de cores, não sem grande sedu­
ção do olhar e deleite da alma. Mas, ao mesmo tempo, por vezes, um corpo indeter­
minado, transparente, junta-se com outro opaco, de tal modo que, quando os raios
atravessam um vidro verde que incidindo de lado, como que derramam uma verdura
herbescente.
No que toca às cores verdadeiras, os elementos puros não lhes dizem respeito,
porque é claro que elas nascem da mistura das primeiras qualidades. E assim nada
impede que uma cor amarela inunde o fogo que conhecemos. De facto, a mistura da
terra opaca tal produz, mistura de que o fogo elementar nada tem na própria região
onde está puro e livre do resíduo terreno. As cores verdadeiras nascem da combina­
ção das primeiras qualidades, não de uma combinação qualquer, mas de uma deter­
minada. Algumas são corpos mistos em que é necessário encontrar todas as quatro
primeiras qualidades que não são coloridas, como o humor cristalino no olho, de que
falaremos noutro lugar.
Aristóteles ensina no livro sobre As Cores que o branco e o negro seguem os ele­
mentos simples, isto é, um elemento mais do que outro, no caso de suporem a mis­
tura de todos. Assim, a mistura em que predominam o ar e a água, acaba por ser
branca. Naquela em que predomina o fogo, amarela. Naquela em que predomina a
terra, negra. Diz, no mesmo livro, que a cor negra tem origem numa certa alteração
do humor aquoso em secura. E depois diz que sucede que os revestimentos das cis­
ternas que permanecem debaixo de água, ficam negros. Também que o fumo da
lenha húmida é negro baço e os carvões negros, ou seja, com um fumo mais gros­
seiro e impregnado de água. Mas os que são queimados tomam-se brancos, fundidos
em cinzas pelo consumo do fumo negro, embora algo da cinza ainda retenha o seu
tinto e fique, por isso, clara. Esta, se tiver sido totalmente consumida pela força do
fogo, como na cal, é vista como puro brilho, branca. Outros absorvem tudo isto mais
ou menos do modo seguinte. A cor branca nasce de vários elementos, como da
quantidade de humor aquoso não amadurecido, o que é evidente nas raízes escondi­
das na terra. Também, quando o calor exterior altera a cor natural, como as cãs nos
velhos. Também, quando acrescenta calor ao húmido daí que o leite com a fervura
se toma branco, as águas quentes tomam o cabelo branco, as frias, negro. Se, no
entanto, o quente for misturado com a porção terrena, produz preferencialmente o
negro. Daí que os que habitam ao sul são em grande parte negros ou morenos.
Também quando alguns elementos se juntam um a um, num composto, associam
de tal modo as cores que o branco permanece no seco e na terra, isto é, acompanha a
328 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

porção térrea. Na verdade, esta cor é vista nas cinzas, rochas, areias, fogo ou coisas
ressequidas pelo Sol. O verde dá-se no húmido lodoso que tem a água como que por
origem, de tal modo que quando se toma mais lodosa enverdece. O azul dá-se num
húmido subtil que é feito de ar. Na verdade, existem coisas azuis celestes. O amarelo
dá-se no calor que tem origem no fogo, visto que quando este se condensa resulta
em amarelo. Mas esta conformidade das cores com cada um dos elementos não
existe ao ponto de se considerar que apenas são extraídas cores dos elementos refe­
ridos, ou que estas cores também não podem nascer de outros elementos, mas sim,
que é evidente que não existe nenhum elemento desprovido de cor originária. De
onde também se dever anotar diligentemente que não existe nenhuma inconsistência
doutrinal, ao atribuir diferentes cores, no composto, a um mesmo elemento. Com
efeito, do diferente grau de outras qualidades, quer das qualidades primeiras, quer
das segundas (estas também a seu modo produzem cores variadas) acontece que, por
vezes, sendo o mesmo elemento dominante, surge aquela diversidade, sobretudo
porque entretanto produz cores discrepantes com pouca diferença de gradação. Mas
não se deve ignorar que para o nascimento e variedade das cores, confluem na mis­
tura um maior ou menor afastamento da transparência e da luz. Está mais próximo
da luz, temos a brancura, brilhando menos no corpo opaco, está mais afastado da
luz, a negrura afectando mais o opaco. Do mesmo modo, as cores intermédias ace­
dem mais ou menos à luz, consoante a sua diferente proporção e gostam mais ou
menos do opaco. Quanto mais luminosas são, tanto mais visíveis, e o contrário, por­
que a luz é sobretudo o visível.
Mas as cores intermédias têm igualmente origem, como as cores extremas, na
combinação das primeiras qualidades, consoante as suas causas se aproximam mais
ou menos das causas donde nascem as primeiras qualidades. Tal como as intermé­
dias participam de certo modo das extremas, assim também o nascimento daquelas
tem uma relação com a origem destas e têm uma proporção.

ARTIGO II
Da variedade, dos nomes e da mudança das cores

As cores extremas são duas, o branco e o negro. Destas, o branco é como a posse,
o negro como a privação, como explicámos noutro ponto da doutrina de Aristóteles.
Não que o negro não seja ente verdadeiro e positivo, dado que move, por si, a vista,
e isso diz pouco respeito à privação, mas porque, dado que sob o mesmo género
estão contidas duas espécies e a que é mais mal conhecida é uma privação de certo
modo mais perfeita. E é evidente que a cor branca é mais perfeita do que a negra,
porque, como dissemos há pouco, o branco aumenta mais a luz, a partir da qual as
cores como que se debilitam. Daí que as trevas do negro retirem a espécie e aquelas
coisas a partir das quais se reflecte pouca luz para a vista parecem escurecer, como
as sombras e os lugares opacos. É assim que a água escurece com a agitação, por­
que, uma vez agitada a superfície, a luz dissipa-se, e a nuvem, de certo modo, com a
escuridão densa, toma-se opaca, porque o Sol não admite repouso. Pelo contrário, as
coisas brancas são visíveis porque retêm grande quantidade de luz na matéria rara.
Daqui resulta que o branco, segundo Aristóteles, no livro 1 0, Metafísica, capítulo
1 0º, texto 23, é definido como a cor que desagrega a vista e o negro como a cor que
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão Ili, Artigo li 329

a congrega. E desagregar a vista é dissipar os espíritos visuais que afluem do cérebro


à pupila. A luz tem grande vantagem sobre isto, por intervenção do calor, que é
afim. E também, a seu modo, o branco, que se aproxima da luz. Com o negro é ao
contrário. Devido à natureza mais perfeita da cor branca, os mais antigos acredita­
ram que ela era mais querida aos deuses, em Cícero, no 2 de As Leis. A cor, diz ele,
principalmente o branco, é querida por Deus; e Platão, no diálogo 1 2, As Leis, afir­
mou que as cores brancas, quer noutras, quer na indústria têxtil são convenientes aos
deuses. Também Laércio, sobre Pitágoras, acerca de quem diz que ofertava sempre
de manto branco honras aos deuses com louvores. São João, no Apocalipse, capítulo
l º, quando descreve o Verbo Divino revestido da natureza humana, afirma que a sua
cabeça e cabelo são brancos tal como a lã alva e a neve, para significar com aquela
cor a suma pureza, sabedoria e eternidade, conforme Jerónimo interpreta em Daniel,
capítulo 7º.
Existem inúmeras espécies de cores intermédias e cinco principais. Assim, enu­
meradas as extremas, são sete as cores a que as restantes devem ser reconduzidas.
Branco, púrpura, vermelho, amarelo, verde, azul e negro. E a sua variedade é
grande. São muito apreciadas, por exemplo, três distintas cores de púrpura. Uma,
que é vista nas rosas e no açafrão ; outra, na violeta e na ametista. A terceira é carac­
terística do conchilhão, muito vivaz para mover a vista. Também o vermelho e as
cores associadas aos granates, encarnados, escarlates, sanguíneos, laranj as, castanho
claro, cor-de-fogo, carmim, cor-de-púrpura, cor de vinho e outros. Sob o amarelo, ou
as que dele tendem para o escuro, contam-se a cor de mel, a cor de resina, o amarelo
claro, o amarelo limão, o açafrão, o amarelo icterícia, o doirado, o ruivo, o fulvo, o
bronze, a cor de rato, a ferrugem, o pardo, o loiro, o pálido, o amarelo dourado, a cor
de leão, a cor de cera, a cor de cera amarela e outras. À verde pertencem o verdete, a
cor de erva, a cor de alho-porro, o verde amarelado. À azul, o azul esverdeado (na
verdade os autores estabelecem entre estes dois algumas diferenças) assim como o
plúmbeo, o verde-mar, o azul veneziano e outros.
As cores têm os nomes (pois tal ajuda a conhecer em ordem a investigar a sua
natureza), quer de outra coisa, quer, muitas vezes, daquelas em que foram vistas pela
primeira vez, ou em que se destacavam. Das ervas, da papoila, da rosa, do açafrão,
do céu, são os chamados o herbáceo, o vermelho papoila, a cor-de-rosa, o açafrão, o
azul celeste. Dos metais, o chumbo, o bronze, o prateado, o doirado. Das pedras, a
cor de j acinto. Dos animais, a cor-de-águia, e das suas partes, o marfim.
Mas as cores alteram-se, quer segundo a representação, ou a aparência, ou na
própria coisa. Segundo a aparência, pois umas cobrem outras, que se vêem em pri­
meiro lugar, como quando o branco do papel de carta é coberto pela tinta preta. Na
verdade pode ver-se o branco escondido sob o líquido preto. Tal como quando rece­
bem a tinta do pano, que em muitos é de tal modo forte, que não pode diluir-se.
Recebem as cores pelo tinto, de muitas formas, como Aristóteles afirma no livro
sobre As Cores. Muitas são tingidas pelas coisas que nascem da terra como as raízes,
as cascas, os troncos, as folhas, as flores, os frutos. Outras, pelo fumo, pela espuma,
pelo vinho, pela lixívia, pelos líquidos dos animais e por outros. Por vezes, as cores
do substrato também não estão totalmente ocultas e combinam-se admiravelmente
pela arte dos pintores, como que misturadas, opostas uma à outra por intervenção
dos líquidos .
330 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

As cores alteram-se quando uma primeira perece e outra ocupa o seu lugar. Como
a seara quando amarelece, a cabeça quando embranquece, a erva quando enrubesce.
Não só as que são assim, mas também as que se tingem, do modo há pouco expli­
cado, ao perderem as cores naturais e admitirem alterações na própria coisa. Como
os humores, que surgem para juntar o que não está acabado têm a faculdade de alte­
rar as primeiras qualidades, cuja diversidade acompanha a mudança das cores. Quem
quiser saber que cores manifestam exteriormente o estado de espírito (na verdade,
para a variedade das paixões que se desencadeiam em nós, também são variadas as
cores que se exprimem na linguagem) leia o que Cláudio escreveu sobre Os Emble­
mas de Alciato.

QUESTÃO IV
Se a luz é necessária à visão em razão do meio, apenas do obj ecto,
ou em razão de um e de outro

ARTIGO I
Diferentes opiniões dos filósofos

Sobre o exame atento da luz, de que Aristóteles tratou neste ponto, costuma tra­
zer-se a esta controvérsia, se a luz é substância ou acidente, se apenas existe no
meio, mentalmente, ou na realidade. Na verdade, estas questões foram por nós trata­
das nos livros sobre O Céu, quando abordámos a luz dos céus. No que respeita à
presente discussão, os filósofos não estão de acordo entre si. Os que pensam que as
cores não se distinguem da luz ou que a luz interior é a forma delas, apenas preten­
dem que a luz é formada pelas cores que é necessário que, da parte do objecto visí­
vel, a luz não deva ser o que formalmente se vê, nem que nada mais além da luz seja
observado por nós, nos corpos. Mas resta-lhes a liberdade de opinar se a luz também
é necessária pela natureza do meio, de tal modo que a coisa não possa ser vista a não
ser que o meio esteja iluminado em acto.
Avicena, no livro 6 dos Naturais, parte 3, capítulo l º, conclui que a luz só é exi­
gida por causa do objecto. Pode-se demonstrar que assim é, porque o olho, num
lugar escuro, vê ao longe o objecto se ele for difundido pela luz. Contrariamente, se
o objecto estiver no escuro, não é visto, mesmo se o olho estiver em lugar ilumi­
nado. Isto é evidente, quer pelos exemplos do quotidiano, quer porque, de dia, as
estrelas parecem buracos muito fundos, como Galeno testemunha no livro 1 0, De
usu partium. Também os olhos dos felinos, os lavagantes e os carvalhos velhos
brilham nas trevas, como Aristóteles escreveu, neste mesmo capítulo, texto 72.
Caetano e o Ferrariense respondem a este argumento, neste ponto, a respeito dos
exemplos apresentados, que é exigida sempre a luz no meio, perto do olho, ainda
que não seja evidente, e que perto do objecto mais espesso, é exigida a luz no meio
para receber primeiro a espécie e para a transmitir, como na restante parte do espaço.
Mas esta resposta não parece satisfazer, visto que é ridículo afirmar que se produz a
luz em todo o meio até ao olho, que não é reconhecida pela vista, nem se comprova
que sej a produzida pela razão.
Uvro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão IV, Artigo li 331

Outros, de entre os quais Averróis, pensam que se exige a luz apenas pela natu­
reza do meio; São Tomás também o afirma, neste ponto. Na 1 ª parte da Suma Teoló­
gica, questão 79, artigo 3º, explicadas uma e outra opinião, parece que ele se inclina
mais para a que considera que a luz é requerida da parte do objecto. Ele ensina o
mesmo nas questões sobre A Verdade, questão 8, artigo 1 4º. Também diz, no pri­
meiro livro Contra os Gentios, capítulo 76º, que a cor é o objecto material da vista e
que a luz é o objecto formal. Donde, diz ele, observamos a cor e a luz com a mesma
visão pela qual a cor se toma visível em acto. E pode provar-se a opinião que afirma
que não se exige a luz em razão do objecto. Primeiro, porque a cor é visível por si e
por sua natureza, pois é o objecto da vista e seu sensível próprio. Por isso, Aristóte­
les, neste capítulo, texto 66, ensinou que na cor, em si própria, reside a causa, por­
que é o objecto da visão. Segundo, porque o odor, o som e os restantes objectos de
outros sentidos, embora enviem a semelhança de si, não têm necessidade do consór­
cio de outra causa; logo, a cor também não, porque não parece ser dotada de menor
eficácia para tal.

ARTIGO II
Conclui-se que a luz é necessária para a visão,
tanto em razão do meio como do objecto

Demos satisfação à questão proposta com a seguinte asserção. A luz é requerida


para a visão tanto em razão do meio, como do objecto. É esta a posição de São
Tomás, no ponto citado; a de Apolinário, aqui, e de outros. Em primeiro lugar,
quanto à primeira parte, considerada por Averróis, pelo Tienense, Janduno e outros,
comprova-se, porque é que os agentes não agem separadamente sej a no que for, mas
é necessário que ocorra entre aquilo que age e o que sofre uma certa proporção e
aptidão recíprocas. Em qualquer caso, cada um dos agentes exige uma disposição
particular no paciente, cuja acção de algum modo procede por ausência; a disposição
que a cor requer no diáfano é a luz, sem a qual não pode gerar nele a espécie que é
trazida para o olho. Por isso, Aristóteles, capítulo 7º, texto 73, definiu a cor como
um movimento para que o transparente se ilumine em acto. Prova-se que a referida
disposição é necessária no transparente. Sej a o colorido A, que é visto em todo o
espaço D, em que é marcado o ponto B , vizinho do próprio A, e também o ponto C,
dele afastado. Então, a luz, que estava em todo o D, principia paulatinamente a apa­
gar-se a partir do ponto C. Na falta deste, dar-se-á o momento em que A é visto no
ponto B, mas não no ponto C. E isto não acontece, senão porque o ponto C já não
está iluminado (certamente que ele era visto enquanto a luz permanecia nele). Logo,
necessariamente, pela parte do meio diáfano, a luz é requerida para a visão. Esta é a
posição de Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 2º, e no capítulo 7º
deste livro, texto 73, onde ensinou que por essa razão não se sente o objecto visível
colocado à frente do sentido, dado ser necessário que o objecto altere, primeiro, o
meio iluminado em acto.
A segunda parte da conclusão, que Egídio transmite neste ponto; Durando, no 2º
livro das Sentenças, distinção 28, questão 1 ; Vitélio, no livro 3, Perspectiva, teo­
rema 1 , é demonstrada, contra aqueles que pensam que a luz de modo algum, é
requerida por si, em razão do objecto, a tal ponto que se todo o meio não iluminado
332 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

pela cor pudesse ser iluminado, então a cor dependeria da própria espécie. Prova-se,
digo, porque a luz se junta como causa parcial à cor para emitir a espécie, pelo que
acontece que ela é requerida por si, também da parte da cor. Que é assim que a luz
concorre, não só como disposição do meio ou do objecto, confirma-o argumento
segundo o qual nenhum agente natural postula uma forma de natureza mais elevada,
enquanto única disposição requerida, para uma forma mais desprezível. Mas a luz é
mais excelente, tanto pela imagem da cor, como pela própria cor. Por isso, a luz não
é exigida apenas como disposição para transmitir as imagens das cores para o olho,
mas como a causa que as produz parcialmente, ao mesmo tempo com a cor do
objecto. Também as cores quanto mais forem iluminadas tanto mais as vemos
melhor; elas tomam-se, portanto, visíveis em acto com a participação da luz.
Resolvamos agora os argumentos que aduzimos a favor das opiniões acima, visto
que são contra aquilo que defendemos. Ao primeiro, respondia-se convenientemente
a favor de Avicena. Para refutação da resposta, dever-se-á dizer que, embora a luz
nem sempre sej a por nós claramente conhecida em todo o meio em que se dá a
visão, se argumenta que ela o deva ser pela razão que há pouco referimos. Certa­
mente, se o obj ecto que primeiro gera a espécie no meio, requer nele a luz, muito
mais requer o meio para estender a espécie. Ao primeiro argumento, a favor da
segunda opinião, que consideramos de certo modo provável, deve dizer-se que a cor
é visível a partir de si, isto é, que pode ser vista por sua natureza, embora para que
sej a vista em acto requeira alguma outra coisa. Aristóteles também deve ser inter­
pretado deste modo, quando diz que a cor em si, possui a causa por que é vista, o
qual, embora não tenha expressamente ensinado que se requer a luz em razão do
objecto, todavia não o negou. Ao segundo argumento, que é característico das cores
o facto de apenas transmitirem a espécie em conjunto com a luz, como lhes é pró­
prio, do mesmo modo que os defensores da segunda posição aceitam exigir a ilumi­
nação do diáfano como preparação para a passagem das espécies. Não é de admirar
que o mais nobre dos sentidos externos solicite um aparelho deste tipo, para executar
as suas funções.

QUESTÃO V
Se a visão se faz pelos raios emitidos pelo olho
ou pelas imagens recebidas a partir do objecto

ARTIGO I
A opinião de certos filósofos, principalmente de Platão,
e sua confirmação

Esta questão foi discutida pelos filósofos em lados contrários. Empédocles, os


estóicos e os platónicos, consideraram que a visão se dá pela emissão dos raios a
partir dos olhos. Platão, no Timeu, ensinou que a visão não é impressionada por uma
imagem afluente da coisa até à vista, mas que a luz, brotando dos olhos, junta com a
luz do ar exterior, como que toma em mãos o objecto e produ-lo com o seu contacto.
Derrama-se então a luz afecta ao olho, pela alteração do visível alterado e, quando
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão V, Artigo I 333

incide na pupila, dá-se a visão. Afrodísia seguiu a posição de Platão, no livro 1 dos
Problemas, questão 75 ; Séneca, no livro 1 , Questões Naturais; Calcídio, no
Comentário ao Timeu; Euclides, no libelo A Perspectiva; Ptolomeu, no Catóptrico;
Alquindi, no livro De aspectibus; Lactâncio, no livro De opifice Dei, capítulo 8º,
quando nega que as espécies visuais sejam necessárias, porque pensa que é a mente
que imediatamente vê através dos olhos, como através de janelas que, no interior,
são transparentes. Galeno examina a mesma opinião de Platão, no livro 7 De placitis
Hippocratis & Platonis, também no livro 1 0, De usu partium e no livro l dos Prog­
nósticos, sentença 1 9, acrescentando de que modo os nervos transmitem a sensação
ao cérebro, do qual recebem a faculdade de sentir, tal como o ar externo adequado
ao acesso dos raios, que saem dos olhos, é reflectido para transmitir a alteração do
visível ao olho.
É costume, para confirmar a posição de Platão, avançar muitos argumentos, que
Teófilo reuniu neste ponto, texto 69 e Macróbio, no livro 7 das Saturnais, capítulo
1 4º. E primeiro, pode mostrar-se que a vista lança, por si, raios visuais, porque a
natureza não parece ter acendido o humor ígneo na vista por outra razão. Depois,
porque nenhuma razão se pode aventar para o facto de que aquilo que foi cercado de
ar nebuloso não veja a névoa próxima, mas veja a distante, a não ser porque os raios
visuais, dado saírem dos olhos, são mais fortes e, assim, penetram a névoa vizinha;
já os que vão mais longe, enfraquecem, pois não podem vencer a névoa, e assim dela
retomam como de um corpo opaco, em direcção os olhos. Depois, uma coisa encos­
tada à pupila não é vista e isto acontece porque o raio é impedido de se espalhar fora
de si; portanto, a visão faz-se pela emissão dos raios.
A seguir, prova-se que a visão não ocorre a partir dos simulacros recebidos do
objecto, porque, de modo algum, é verosímil que tipos de coisas inumeráveis, que
vemos, por um impulso, desfilem ao mesmo tempo, nos olhos. E uma tão exígua
pupila guarda tanta quantidade de imagens afluentes, que elas mutuamente colidem
entre si e estorvam-se, sobretudo porque não há nada que a pupila forme e distinga
que não deixe numa massa desordenada. Outro argumento. Ou deixamos cair estas
imagens, como peles das coisas, como sucede com aquele que quer ver, ou elas
surgem naturalmente também quando ninguém vê. Se é o primeiro, então de que
mando acorrem elas imediatamente? Se é o segundo, elas dimanam em fluxo per­
manente dos corpos, não sem grande desgaste o que Aristóteles opõe aos discípulos
de Demócrito, que afirmam que as acções dos corpos se fazem por defluxo) e não
erram indistintamente em nenhuma ordem, o que é absurdo.
Além disso, a imagem nos espelhos remete quem a observa para a uma imagem
oposta, o que, todavia, caso partisse de nós, uma vez que ela sai em linha recta,
deveria mostrar a sua parte posterior, tal como um actor quando põe a máscara, isto
é, veste uma personagem na face, somente vê a abertura posterior. Por isso, de forma
alguma se deve admitir que a visão se realiza através das imagens emitidas pelas
coisas, as quais não podem ser emitidas por elas.
334 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Explicação da posição verdadeira

A escola peripatética defende a posição contrária, afirmando que a v1sao não


acontece pelos raios emitidos a partir do olho, mas pelas imagens recebidas da coisa
que é objecto, o que Aristóteles ensinou, capítulo 7º deste livro, textos 67 e 74;
capítulo 1 2º, texto 1 2 1 ; no livro terceiro, capítulos 1 º, 2º e 3º e no livro O Sentido e o
Sensível, capítulo 2º. Não impede que no terceiro dos Meteorológicos, capítulos 3º,
4º e 6º, e também nos Problemas, secção 3 1 , problema 1 6, use a opinião de Platão
para resolver certas dúvidas. Fez assim, porque não tendo ainda comprovado a opi­
nião própria, quis usar a comum, principalmente porque não havendo decidido
quanto ao presente objecto, seguia uma outra parte, como Alexandre noutro ponto e
Filópono neste, realçaram.
Mostra-se, portanto, que a visão não acontece pela emissão dos raios. Na verdade,
ou os raios visuais pertencem às coisas que são vistas, ou não. O segundo não, por­
que esse raio não alteraria o objecto, nem, uma vez alterado por alguma qualidade,
retomaria ao olho, como afirmam. O primeiro também não pode afirmar-se, porque
é totalmente incredível que apenas de uma insignificante pupila possa sair tanta luz
do olho que possa chegar a coisas tão diferentes e distantes entre si, e que observa­
mos ao mesmo tempo, assim como ocupar uma grande parte do céu, que vemos
diante dos olhos, por todo o lado. Depois, porque se a luz do Sol incidir o mais pos­
sível em linha recta, ela nunca se reflecte da terra até à região intermédia do ar,
muito menos a partir das estrelas que vemos no firmamento, esses raios se reflectem
para a nossa vista. Outro. Ou aquela qualidade, pela qual os raios são impregnados
na coisa que deve ser vista é a semelhança da própria coisa, ou é alguma outra quali­
dade, ou é algum corpo ténue e subtil. Se for a semelhança, já concedem que a visão
se faz com a recepção das imagens, embora delirem, porque dizem que para a pro­
dução das imagens se exige que a luz saia do olho, visto que basta aquilo pelo qual
estabelecemos que o objecto é iluminado. Mas se dizem que é alguma qualidade,
visto que não é evidente o que ela seja, ou por que necessidade entra, certamente
deverá ser considerada falsa. Se se considerar a segunda hipótese, uma vez que não
se deve admitir a penetração dos corpos subtis no último grau, de modo algum se
poderá afirmar que o raio visual atravessa os corpos que se interpõem até à coisa
vista. Nem defendem que a visão é momentânea, dado que nenhum corpo se move
num instante.
Por fim, a partir da questão que acima discutimos sobre este assunto em particu­
lar, é evidente que se devem admitir as imagens das coisas que não só a vista, mas as
restantes potências cognitivas, encerram para perceberem os objectos. Dela podem
ser recolhidos muitos argumentos para corroborar o presente objecto. A eles acresce
que a diferença entre as potências apetitivas e as potências cognoscitivas é transmi­
tida por assentimento geral dos filósofos, porque aquelas transportam uma propen­
são inata para os seus objectos e são por eles atraídas e estas trazem os próprios
objectos para si, isto é, através da semelhança pela qual são impregnadas.
Mas toma-se evidente que para as espécies visíveis representarem de certo modo
o objecto, algumas coisas deverão ser observadas. Em primeiro lugar, que assim
como de qualquer parte do corpo luminoso, contido dentro da sua esfera em qual-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo V//, Questão V, Artigo li 335

quer ponto do meio transparente, se produz a luz, contanto que não se interponha
qualquer corpo opaco, também a partir de qualquer parte de um corpo colorido, é
produzida a semelhança do mesmo para qualquer ponto do meio iluminado em acto,
contido dentro da sua esfera, contanto que não se interponha nenhum corpo opaco.
Isto é evidente, porque, como os agentes naturais são levados por necessidade da
natureza para as suas acções, afastados os impedimentos, eles não podem deixar de
agir segundo todas as suas partes em qualquer ponto do espaço. E por isso, os cor­
pos, marcados tanto pela transparência como pela cor, que os torna maiores, por
causa disso manifestam a luz e a sua semelhança num espaço mais vasto. De facto,
como agem em qualquer ponto do espaço segundo todas as suas partes, quanto mais
e mais amplas forem, tanto mais a luz, como a imagem, produzidas na parte do
espaço vizinha do obj ecto, terão potência maior para mais vastamente se difundirem.
Isto também acontece quando as coisas são maiores, podendo por isso serem vis­
tas de um local mais afastado, de maneira que, em qualquer ponto, ou em qualquer
parte do meio iluminado em acto, o corpo todo como objecto é representado no
órgão do sentido, e também cada uma das suas partes, a partir das quais é possível
traçar uma linha recta para um ponto ou parte do meio, de tal modo que em qualquer
parte do meio a sua semelhança seja impressa por qualquer parte do objecto colo­
rido. Isto é o que a experiência confirma; que de qualquer parte do meio é suficiente
observar o objecto e todas as suas partes, em direcção às quais é possível prolongar
uma linha recta a partir do olho do observador, se nada se interpuser impedindo a
produção contínua da espécie por todo o espaço. Ora, não podemos observar todas
as partes a não ser através da sua semelhança; logo, todas e cada uma das partes dos
objectos coloridos, produzem a sua semelhança em qualquer parte do meio, e, por
isso, em qualquer parte, estão representadas todas e cada uma das partes do objecto.
Depois, prova-se o mesmo, deste modo. Qualquer parte do objecto colorido é um
agente natural e muito pouco livre para produzir a sua semelhança e existe indiscri­
minadamente para agir em qualquer parte do meio iluminado em acto incluído den­
tro da sua esfera, em direcção à qual é possível traçar uma linha recta. Portanto,
qualquer parte do objecto em qualquer parte do meio imprime a sua imagem e, por
consequência, em qualquer parte estão representadas uma a uma, todas as partes do
objecto. Por fim, prova-se o mesmo, porque se diferentes partes do objecto visível
produzirem a sua semelhança em diferentes partes do meio, mas não todas na
mesma, o Sol, que o astrólogos dizem que é pouco mais ou menos 1 67 vezes maior
do que toda a Terra, não poderia ser avistado todo por nós, em qualquer parte do
meio. Na verdade, para todas as suas partes produzirem a semelhança com ele
necessitariam de um espaço de tanta magnitude quanta a do próprio Sol, o que
repugna à experiência, visto que observamos o Sol de qualquer parte do meio. Por
isso, é necessário que todas as partes do objecto visível encontrem a sua semelhança
em qualquer parte do meio em que estão representadas.
Deve, além disso, advertir-se que as diversas partes de um mesmo objecto não
estabelecem as suas diferentes semelhanças numa mesma parte do meio em que são
vistas, mas ao mesmo tempo numa que é mais exacta e mais perfeita do que se fosse
enviada, uma a uma, de qualquer parte. Mais ainda, uma espécie desta natureza,
posto que recebe o seu ser de cada parte do objecto, como de agentes parciais, repre­
senta as suas partes uma a uma, tanto quanto são dissemelhantes na intenção, no
336 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

lugar e na forma. Na verdade, esta semelhança, na medida em que obtém o ser da


parte B , representa a parte B e como tem o mesmo ser da parte C, representa a parte
C, e do mesmo modo as restantes, consoante receba o seu ser em parte de cada uma.
Que é assim, demonstra-se do modo seguinte. Seja um corpo branco de intensidade
desigual consoante as suas partes. Se, portanto, diferentes partes deste corpo produ­
zirem as suas distintassemelhanças na mesma parte do meio, de maneira que as suas
duas metades produzam duas semelhanças, e assim produzam quatro semelhanças, e
do mesmo modo nas restantes partes proporcionais, como estas são infinitas, produ­
zir-se-iam espécies infinitas na mesma parte do meio, o que não é possível. É evi­
dente, portanto, que todas e cada uma das partes do objecto visível emitem para
qualquer parte do meio iluminado contido dentro da esfera, uma e a mesma seme­
lhança de si, e por esta mesma razão, sobretudo pela imagem de qualquer parte do
meio, cada uma das partes da coisa como objecto podem ser vistas por nós, a não ser
que algo se interponha.
Das afirmações conclui que a espécie do objecto visível, embora sej a um acidente
em número é, pela extensão do sujeito, extenso por acidente. Todavia é de tal modo
afectado que qualquer parte da sua extensão remete para todas as partes do objecto
para as quais é possível traçar uma linha recta, porque, como dissemos, qualquer
parte desta espécie tem o ser de todas as partes do objecto, de modo a que possa ser
conduzida para elas em linha recta, sem atravessar um corpo opaco. Por outro lado,
se esta linha não puder ser traçada para alguma parte do objecto, a partir de alguma
parte da espécie existente no meio esta não terá o ser dessa parte e, por isso, não a
representará em tal lugar.

ARTIGO Ili
Solução dos argumentos que foram propostos no primeiro artigo

Resta respondermos aos argumentos aduzidos ao início, a favor da opinião de


Platão. Ao primeiro, dizemos que os olhos não são ígneos, como se contivessem em
si, fogo em acto, visto que o excesso de calor ígneo destrói a composição dos seres
vivos ; nem são, de facto, a tal ponto brilhantes que emitam luz para longe deles.
Uma vez em movimento, decerto que o brilho aparece nos olhos, o que acontece
porque os corpos são leves e brilhantes. São desta natureza, a cabeça e os olhos de
alguns peixes e outros deste género que reluzem e fulgem particularmente nas tre­
vas. Também não se deve negar que a pupila apenas tem luz inata, como se fosse um
seu hóspede e vizinho, isto é, a luz transporta a espécie que recebe do exterior, a
qual lhe é apresentada como uma serva ao serviço da casa. Acerca deste assunto,
leia-se Escalígero, exercício 1 98, número 1 6 . Deve conceder-se, além disso, que
alguns animais emitem alguma luz a partir dos olhos, como os felinos e alguns
outros que de noite andam à caça.
Ao segundo, que se vê a névoa afastada, não pela razão com que o argumento
aduz que a próxima não é vista, mas porque perto dos olhos basta uma luz menor
para iluminar tanto o visível próximo como o afastado. Acresce que a névoa, pela
mesma linha muito longa, de vez em quando aparecendo à vista, e por isso engros­
sando, se mostra mais obscura do que a que se vê por uma linha mais pequena. Mas
a razão por que não se vê a coisa em frente à pupila não é aquela que é aduzida pelo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão VI, Artigo I 337

argumento, mas sim porque é necessário iluminar o meio para trazer a espécie. Ao
terceiro argumento, que não é de admirar que todas as imagens das coisas estejam
impressas no olho, acorrendo à vista, ao mesmo tempo. É que todo o diáfano em
acto está repleto destas imagens, de tal modo que não lhe servem de obstáculo, não
oprimem a potência, nem são expulsos pela sua massa ou oposição, visto que não
são corpos, nem têm contrário, nem se perturbam, embora se reúnam no mesmo
sítio, porque onde quer que se dêem, retêm por si a potência de significar e a distin­
ção da sua natureza. As imagens no diáfano permanentemente iluminado são deste
tipo, porque são naturalmente emitidas pela coisa visível; nem é de temer que elas
errem desordenadamente para ali e para acolá, mais do que a luz que a acompanha e
quase a sustenta, pois iluminadas pelo seu concurso, como acima dissemos, são
geradas e perecem quando ela desaparece. Por isso, é evidente o que se deve respon­
der ao quarto argumento.
Ao quinto, dizendo, em primeiro lugar, que a imagem não se vê no espelho, como
será evidente de caminho, mas que a coisa que é objecto é vista através da imagem
lançada pela coisa, do espelho para o olho. É vista, digo, pela face da frente, não da
de trás, porque a espécie deste tipo não é como a máscara do actor, que numa face
mostra outra, mas é uma coisa simples, pura, representando o objecto de uma e de
outra face (digamos assim) . Pelo que acontece que as partes direitas do corpo do
objecto são produzidas como esquerdas no espelho, e o contrário. Sem dúvida, por­
que a imagem repercutida da coisa para o olho, representa a coisa para nós a sair e
por isso embora a coisa vista não seja contrária, a mão como que muda e a sua
direita corresponde à nossa esquerda. Porque de outro modo seria necessário que
acontecesse vermos Sócrates a aparecer de frente, quando antes estava de costas.
Então, efectivamente, a mão direita corresponde à nossa esquerda. E assim, toda a
razão desta diferença está no facto de a espécie não ser diferente nem de costas nem
de frente.

QUESTÃO VI
Se a composição dos olhos é apropriada para a vi são, ou não é

ÁRTIGO I
Da superioridade dos olhos, seu lugar e sua forma

A visão é tida como o mais excelente de todos os sentidos. Primeiro, porque usa
para as suas funções as imagens transmitidas somente através do diáfano iluminado,
mai s subtis e mais libertas de resíduos da matéria e não recebe do objecto qualquer
mudança real, mas apenas nocional, como por exemplo, não embranquece quando
vê o branco. Segundo, porque a sua acção é rapidíssima, pois ocorre num instante.
Terceiro, porque atinge as coisa de maior extensão. Quarto, porque (omitindo as
restantes prerrogativas) abarca muitas diferenças das coisas, visto que fruímos com a
beleza da luz, observamos os enfeites e a arquitectura do mundo, distinguimos a
variedade das cores, compreendemos o repouso, o movimento, o lugar, a proporção,
o número, a forma, o tamanho de todos os corpos. Por isso, nenhum sentido é mais
idóneo para comparar o conhecimento com a própria descoberta. Donde, Platão no
338 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Timeu refere que a filosofia é agradável à vista, e o seu imitador, Fílon Judeu, no
livro De specialibus legibus, diz que a filosofia dimana do céu para as almas dos
homens, mas foi trazida pelos olhos, mediadores do acolhimento. Na verdade, eles
avistaram primeiro, os caminhos magníficos que se dirigem do céu para nós. Tam­
bém no livro A Criação do Mundo, diz que a mente está na alma, o olho está no
corpo. Uma e outro vêem. Uma, as coisas inteligíveis, o outro, as sensíveis. A visão
da mente, para conhecer as coisas incorpóreas, os olhos, para contemplação dos
corpos, facto que aproveita a muitas coisas e, primeiro, àquilo que é supremo, isto é,
à filosofia.
No que respeita ao lugar dos olhos, apraz referir, neste ponto, o que Santo
Ambrósio, livro 6 do Hexâmero, capítulo 9º, escreveu acerca deste assunto. Os olhos
estão ligados a sobrancelhas de grande volume, que protegem, zelando do topo do
monte e, colocadas no alto, avistam de longe todo um espectáculo superior. Não
convinha que os olhos fossem humildes como os ouvidos, ou como a boca ou como
as próprias cavidades interiores das narinas. Efectivamente, o lugar de observação
está sempre no topo para poderem ser detectados os ataques dos bandos hostis que
chegam, para não ocuparem de surpresa o povo desprevenido da cidade, ou o exér­
cito do imperador. Assim, também se protegem dos ataques dos mercenários se os
observadores estiverem colocados nas muralhas ou nas torres, ou num cume de um
monte, para observarem, do alto, as planícies das regiões onde os ataques dos sol­
dados não possam passar despercebidos. Estando no mar, se alguém se tentar apro­
ximar da terra, o observador sobe aos cumes do mastro, aos elevados píncaros das
antenas e aqui, saúda a terra de longe, invisível aos restantes navegadores. E se
eventualmente se atalhar: se foi necessário tão alto observatório, então por que é os
olhos não foram colocados no topo da cabeça, tal como nos caranguejos ou nos
escaravelhos onde se encontram no cimo, pois ainda que eles não tenham cabeça,
pescoços ou dorsos, estão no entanto mais elevados do que o resto do corpo? Dir-se­
á que neles a casca sólida não tem uma membrana tão delicada, tal como nós,
podendo facilmente ser ofendida pelas silvas e rasgada pelos restantes órgãos dos
sentidos. E assim, é necessário que os nossos olhos sejam colocados na parte quase
mais alta do corpo defendidos de toda e da mais pequena ofensa, já que são duas
situações opostas. Na verdade, se estivessem em baixo, por causa da protecção, a
função ficaria impedida; se estivessem no topo, estariam expostos à agressão. Isto,
segundo Santo Ambrósio. Leia-se também S. Basílio, homilia undécima, Hexâmero.
Sem dúvida que a natureza maravilhosa provê que os olhos possam existir e que as
coisas que sobrevêm de fora, repilam as agressões e, por isso, encerrou com abertu­
ras côncavas e com nós, rodeados pelo abrigo das pálpebras (embora apenas a aves­
truz alada, as tenha dos dois lados, como o homem), as quais abrem não só o acesso
às imagens das coisas que acolhem, muitas vezes com grande celeridade, mas tam­
bém impedem os incidentes e os prejuízos. Então, também fornece as sobrancelhas
adornadas de pêlos pequenos, movendo-se alternadamente, repelindo o suor que cai
da cabeça e da fronte. Ora estas, como adverte Plínio, no 2 da História Natural,
capítulo 37º, indiciam principalmente a altivez. A soberba tem aqui a sede e não
noutro receptáculo. Nasce no coração, cresce até lá e daí pende. Nada de mais alto e
abrupto se encontra, ao mesmo tempo, no corpo, onde fica isolada.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão VI, Artigo // 339

Acerca da forma dos olhos, temos o seguinte. Os olhos existem com a forma de
globo, principalmente por duas causas . Primeira, porque a forma globular está mais
disposta para a agilidade, revolve-se em todas as direcções e difunde a vista. Deus,
autor da natureza, quis que a vista se movesse circularmente (diz Timeu), para imi­
tarmos, no uso da nossa mente, as órbitas que se movem no céu, reconduzindo as
idas e as vindas que lhes são afins, apesar de desordenadas, à sua composição, e às
revoluções feitas por Deus, que se dão sem qualquer erro. Depois, porque, tal como
os matemáticos demonstram, se os olhos não fossem redondos não poderiam
apreender a quantidade das coisas, nem perceberiam nada, a não ser o que é igual a
si. Na verdade, a vista dá-se por linhas rectas incidindo sobre o olho na perpendicu­
lar. Por isso, se o olho fosse de superfície plana não entrariam nele as linhas perpen­
diculares a não ser de igual superfície e, assim, apenas se veria o igual.

ARTIGO II
Das coisas que respeitam à função interna dos olhos

Chegamos agora à composição interna dos olhos. Os olhos são formados, no que
respeita à presente consideração, por sete músculos motores e por cinco membranas,
ainda que haja quem enumere de modo diferente, três humores e dois nervos. Os
músculos são-lhes dados pela natureza, para moverem facilmente o globo da vista.
Um, para cima, outro, para baixo. Dois movem para a direita e para a esquerda.
Outros dois, em movimento circular e o sétimo sustenta e liga. Das membranas, a
interna chama-se especular porque como um espelho reluz e brilha; em grego, por
causa da relação com a aranha, à imagem das teias, ápaxvoe1õ�ç. A seguir a esta, em
grego, áµqnÀ�Gpoe1õ�ç, em latim ditas, reticular, porque muitas veias e artérias mos­
tram uma forma entrelaçada em rede. A terceira, em grego payo e tõ�ç , em latim úvea
porque é igual ao folículo da uva, de que se encontra cortado o pedúnculo. A quarta,
em grego KE p aT O ELÕ� ç , em latim córnea, porque cortada representa lâminas finíssi­
mas e é brilhante e diáfana. A quinta, em grego ÉmnecpuKwç, em latim adnata ou
conjuntiva porque para seu benefício o olho está cercado por todos os lados, num
todo, sendo também chamada assim por causa da cor branca.
Dos humores, o interior diz-se em grego Kpu <JT aÀÀo e tÕ �ç , do latim cristalino ou
glacial, porque se assemelha ao cristal ou vidro na transparência, embora seja pouco
flexível. A seguir, em grego úaÀoELÕ�ç, em latim vítreo ou albumina, porque é
semelhante à consistência e cor do vidro fosco ou do branco da clara do ovo. O
terceiro, em grego úcSaTWÕfJÇ, em latim aquoso, pela semelhança com a água.
Depreende-se que a composição destas partes tem a seguinte ordem entre si. O
olho, como dissemos, tem a configuração do globo. O humor cristalino ocupa o seu
centro, que a membrana especular rodeia por todos os lados. O centro deste humor,
juntamente com o humor vítreo que segue de muito perto, está imerso nele e como
que flutua. A seguir, a túnica reticular rodeia o humor vítreo na parte posterior, que
delimita quando o humor glacial começa a sobressair sobre o vítreo. Depois apre­
sentam-se duas membranas. A úvea, por cuj os orifícios se vêem o humor cristalino e
a pupila, e também por cuja cor desta túnica que é variegadamente tingida, dizemos
que os olhos são negros, azuis, verdes e imbuídos de outra cor. A outra túnica é a
córnea, que rodeia todo o olho e tem brilho. Entre estas duas membranas está con-
340 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

tido o humor aquoso. Finalmente, a túnica conjuntiva, na extremidade, que mantém


o olho no seu lugar, prolongando-se daí até à raiz do crânio, e por isso se chama
pericrânio. Juntam-se também à estrutura do olho, dois nervos, chamados ópticos ou
visuais. Estes derivam do cérebro, um da parte direita, outro da esquerda mas, avan­
çando, juntam-se um pouco para de novo se separarem e se introduzirem nos olhos,
porque estão revestidos de duas membranas, uma, interna e fina e outra, externa e
dura. Delas nascem duas túnicas, a úvea e a córnea. Através dos olhos, os simulacros
das coisas que recaem sob a vista afluem ao sentido comum e, ao mesmo tempo, os
espíritos visuais saem do cérebro. Sem o seu trabalho não pode sobrevir a faculdade
de ver. A partir daqui, acontece que, uma vez o cérebro afectado, embora os olhos
não sofram agressões de outro lado, a vista enfraquece como acontece aos ébrios nos
delírios frenéticos, de cujo cérebro saem espíritos obstruídos por névoas, menos
puros e aptos para operar. Acrescentamos também, que desta desordem dos espíri­
tos, ocorre entretanto aos olhos um movimento e todas as coisas parecem girar,
como acontece aos ébrios. Afrodísia disse-o, no livro segundo, Problemas, questão
67, com as seguintes palavras: grande quantidade de vinho envia para o cérebro
muita exalação de espírito fúmeo, que o espírito, quando não pode digerir e consu­
mir, antes de fazer a digestão, durante um espaço de tempo, revolve no cérebro,
correndo para trás, e assim perturbado, aflui através do nervo visual e da pupila às
coisas que se encontramperante a vista e faz com que as vejamos, tal como ele pró­
prio se encontra. Imaginam que o interior afectado está do lado de fora, pelo que
acontece que, também durante aquele tempo, experimentam uma vertigem.
Mas para os que não padecem de nenhuma perturbação ou doença, por causa da
privação ou inabilitação dos espíritos a vista fica mais fraca, e o inverso. Assim, não
é de admirar que os que têm um espírito pequeno, facilmente dissolúvel, não possam
segurar-se durante muito tempo. Os que o têm lúcido e abundante possam segurar-se
durante muito tempo, possam fixar os olhos e verem com maior rigor coisas peque­
nas e distantes. Os que têm muito espírito e grosseiro examinam as coisas sem
fadiga, mas não as distinguem de forma exacta. Assim, como Afrodísia sublinhou no
mesmo livro, questão 52, os que vêem de forma mais acutilante, costumam beber
água, porque com uma grande quantidade de vinho o hálito exalado perturba o espí­
rito visual. A própria composição dos olhos também contribui muito para a maior
comodidade ou incomodidade da visão. Os que têm olhos salientes vêem imperfei­
tamente, os que os têm cavados e profundos, vêem com agudeza, porque neles, além
das espécies emitidas pelos objectos estarem menos unidas, os próprios espíritos
também se espalham mais conservando-se juntos e reunidos durante muito mais
tempo realizam intensamente a visão. Do mesmo modo acontece àqueles que, para
projectarem a acutilância do olhar, semicerram os olhos. E para além do que aqui
sublinhámos podiam ser referidas muitas coisas que prejudicam a vista ou que a
ajudam, mas não cabe aqui enumerá-las todas. A partir do que se disse já facilmente
se compreende que o aparelho ocular está apto para a formação da visão, visto estar
combinado por arte tão singular e estar provido de todos os músculos, todas as túni­
cas, todos os humores e do permanente escoamento dos espíritos para aprovisionar
esta função.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão VII, Anigo l 341

QUESTÃO VII
Se a visão se dá no humor cristalino

ARTIGO I
Com que argumentos parece mostrar-se que não se dá aí

Explicamos a seguir onde se dá a visão. Primeiro, parece concluir-se destes


argumentos que não se dá no cristalino que é um dos três humores do olho, de que
falámos há pouco. O humor cristalino é colorido porque é um corpo vivo e, portanto,
formado da mistura das quatro qualidades primárias que a cor necessariamente
parece seguir. Logo, não pode ser o instrumento idóneo da vista. A consequência
prova-se porque, de outro modo, as alucinações chegariam aos olhos, pois todas as
coisas pareceriam impregnadas desta cor, tal como os ictéricos vêem todas as coisas
amarelas e os que observam através do vidro verde vêem tudo verde. Alguém poderá
responder que a cor não se origina em qualquer mistura das quatro primeiras qua­
lidades, mas apenas nos corpos em que abunda muito o denso e o opaco, que o
humor cristalino não é assim mas que é ralo e translúcido. Objecta-se contra isto. Na
verdade, se o humor cristalino fosse transparente, receberia, por isso, a luz do ar em
volta, e então não poderia muitas vezes ver toda a luz, tal como não distinguiria as
cores se estivesse impregnado de alguma delas.
Mais ainda, prova-se que a visão não se dá em parte alguma do olho. Muitas
vezes acontece, com o olho saudável, que, recebida a imagem na potência, a coisa
apresentada não é vista por nós. Isto efectivamente de modo algum acontece se a
visão se realizar no olho porque, como esta acção é natural, perante uma causa não
impedida, de imediato dimanaria dela. Portanto, tem de existir outra faculdade inte­
rior em que se dê a visão.
Terceiro. A visão acontece, como ensinam os estudiosos da Perspectiva, através
da pirâmide radiosa, isto é, através da espécie produzida no olho ao modo de uma
pirâmide cuj a base está na superfície do objecto ou da coisa vista, mas a extremidade
no centro do instrumento visual. Mas isto não pode acontecer se a faculdade de ver
estiver nos olhos. Prova-se a premissa menor, porque a pirâmide termina num vér­
tice e, por isso, não pode uma e a mesma pirâmide terminar, ao mesmo tempo, nos
dois olhos e, tal como a coisa vista é uma, será também necessário que só sej a tra­
çada uma pirâmide a partir dela para a potência.
Quarto argumento. A vista acontece na união do nervo óptico, portanto, não nos
olhos. Prova-se a premissa menor, primeiro, porque não se vê porque razão a natu­
reza uniu estes nervos, que como acima dissemos nascem separados a partir do cére­
bro, para pouco depois os unir, a não ser para que, naquela parte em que as espécies
se juntam, transmitidas por um e por outro olho, se associem, unificando-se para a
acção de ver. Segundo, porque a não ser que a visão se perfizesse nessa conjugação
do nervo, deveriam aparecer-nos como geminadas as coisas que são simples, tal
como o que se vê na visão geminada e na imagem dupla.
342 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Estabelece-se a parte afirmativa da questão

Nesta controvérsia alguns, de entre os quais Avicena, que Célio refere, livro 4,
capítulo 20º; Ciruelo, livro 1, da Perspectiva, capítulo 3º, conclusão 6 e Vitélio, livro
3, teoremas 4 e 20, consideram que a visão se produz na união do nervo óptico, com
o que aprova o último argumento do artigo anterior. Mas esta posição refuta-se,
porque se a visão se fizesse aí, seguir-se-ia que os homens em quem esses nervos de
maneira alguma se juntam entre si (consta que foram encontrados casos destes) ou
careceriam em absoluto de visão, ou, como pretendem os defensores da opinião
contrária, veriam todas as coisas a dobrar, o que a experiência comprovou ser falso.
Segundo. Considera-se que a visão se faz no olho, porque, afectado o olho, a vista
é imediatamente afectada não por outra causa a não ser porque onde reside a facul­
dade de ver, aí se encontra a função. Não satisfaz quem disser que quando o olho é
afectado a vista é lesada porque a denúncia das espécies ao nervo fica impedida.
Com efeito, o traj ecto das imagens é tão moroso e difícil, que se deve considerar que
a ofensa do meio o prejudica. E, por fim, confirma-se que a vista se dá no crista­
lóide, porque este humor está colocado no meio de todos os outros humores. Se ele
estiver lesado perde-se a visão. Também esta parte do olho é muito brilhante e visí­
vel e não está impregnada por nenhuma cor, porque cumpre sobretudo a função de
ver. Daí Galeno, 8 De usu partium capítulo 6º ensinar que as restantes partes do olho
foram criadas por causa deste humor, para o conterem ou para o sustentarem. Tam­
bém no livro 1 O, desta obra, capítulo 1 º estabeleceu que o órgão da vista consiste
num humor desta natureza. O mesmo pensa Aristóteles, no livro 1 sobre A Geração
dos Animais, capítulo 5°, quando afirma que a visão se produz na parte que é toda
nítida e brilhante, para poder ser movida por qualquer cor e pela luz. Também, mais
abertamente no livro 1 , A História dos Animais, capítulo 9º. Vitélio afirma o mesmo,
no livro 3, Perspectiva, teorema 4; Valésio, no livro 2 Controversiarum, capítulo 8º;
Veiga, sobre Galeno, De Zoeis affectis, livro 4, capítulo 1º.
Os argumentos que aduzimos contra a parte contrária facilmente são explicados.
Ao primeiro respondia-se convenientemente. O que depois se objectou, resolve-se
dizendo que, embora a cor difundida no sensitério houvesse de impedir a visão das
outras cores, todavia a luz que o humor cristalino recebe do ar iluminado não
impede que se vejam as restantes luzes, porque a luz é o objecto da vista como tam­
bém é o meio, por cuja intervenção todas as coisas são vistas, o que, do mesmo
modo não deveria inibir nenhuma visão. Ao segundo, dir-se-á o seguinte. Quando a
alma está muito atenta a outras coisas, de tal modo que não presta atenção à coisa
que vê, a visão não se dá, porque não se produz a sua causa perfeita, isto, pela defi­
ciente ligação da própria faculdade da qual brota a acção de ver. Ao terceiro, conce­
dida a premissa maior, deve ser negada a menor e para prová-la dizer que a pirâmide
se encerra num ponto, mas que a partir dos dois olhos não é traçada uma pirâmide,
mas de cada um a sua. Não obsta que o objecto seja um, porque da mesma coisa
podem sair infinitas pirâmides. Ao quarto, dizendo que não é pela causa referida no
argumento, que se conjuga com o nervo óptico. Na verdade, que não é necessário
que nele confluam as espécies para que se mostrem as coisas é plenamente evidente,
porque, de outro modo, seria necessário no cérebro algum nervo em que as espécies
audíveis depois se juntassem numa só, para não parecerem dois sons simples. Mas a
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão V/li, A rtigo l 343

causa pela qual, na visão geminada nos olhos, e na audição, nos ouvidos, não apa­
rece geminado aquilo que é simples, exporemos nos Problemas.

QUESTÃO VIII
Se a imagem é vista no espelho ou não

ARTIGO I
Argumentos da parte afirmativa

É evidente que existem certos corpos que devolvem as imagens, como a água, o
bronze polido e certas jóias. Mas também não as restituem igual e claramente, os
espelhos de vidro que têm o chumbo escuro na parte contrária. Na verdade, o vidro
recebe as imagens facilmente por ser mais liso e transparente, mas não as devolve
impressas, a não ser que as retenha no reverso de um corpo denso e escuro. Aqui, o
hábil engenho da natureza parece formar os olhos dos animais à imagem dos espe­
lhos, pois junta uma certa negrura da pele ao humor cristalino, a partir do qual sai
uma imagem para os que olham para dentro da pupila dos outros. Daí se dizer habi­
tualmente que tal como o espelho é o olho da arte, os olhos são o espelho da natu­
reza. Antes de chegar à questão proposta, avisamos que a matéria, neste ponto, isto
é, o uso dos espelhos, que em grande parte decorre do brilho, não pode conferir
pouco proveito à alma. Daqui Sócrates, como refere Apuleio, usar o espelho para
disciplinar os costumes. Também recomendava aos adolescentes que o fizessem,
pois se tivessem uma figura digna não a manchariam com vícios e se fossem de
aspecto deformado, compensá-la-iam com a elegância dos costumes. No que res­
peita ao que Séneca referiu nas Questões Naturais, livro 1 , capítulo 1 7º, os espelhos
não foram inventados para que o homem retirasse a barba da face, ou para alisar a
face do homem, mas para que o homem se conhecesse a si próprio. Muitos obtive­
ram, por causa dele, o primeiro conhecimento de si, e daí também um certo acon­
selhamento, formoso, para evitar a infâmia, disforme, para saber que deve ser res­
gatado pelas virtudes o que quer que falte ao corpo. Jovem, para ser aconselhado na
flor da idade; é o tempo de aprender, de ouvir as coisas valorosas ; velho, para depor
as coisas indignas do cínico e pensar algo sobre a morte. Foi para isto que a natureza
das coisas nos deu a faculdade de nos vermos a nós mesmos. Fonte transparente para
cada um, parede que retlecte desajeitadamente; há pouco vi-me na praia. Uma vez
que o mar permanece calmo de ventos, qual julgas ter sido o aspecto dos que se
viam a este espelho? Aquela idade mais simples, contida pelas coisas fortuitas, ainda
não corrompia o benefício, nos vícios, nem arrebatava a juventude da natureza para
o luxo e para a devassidão.
Posto isto, é costume trazer à controvérsia se num espelho (o que do mesmo
modo se poderá entender sobre outros corpos cujos simulacros das coisas se lançam
até à vista) se, digo, se vê a imagem da coisa, ou melhor, a coisa por ele represen­
tada. Séneca omitiu esta controvérsia, livro 7, Questões Naturais, capítulo 5º, visto
que a declarou resolvida. Parece claro que se deve afirmar que se vê a imagem, tanto
pela consideração comum dos homens, quanto pelo próprio sentido. Outro. Porque
344 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

se é o objecto que é captado e não a imagem, vemos o objecto no seu próprio sítio e
lugar e sob um tamanho determinado, que é o que possui ao pé da coisa. O objecto
que vemos, apenas nos chega colocado frente ao espelho e aparece muito menor e
também a uma distância maior do que a que está. Terceiro argumento. Porque num
espelho plano, colocado segundo o horizonte, a parte superior da coisa vista, aparece
acima, em baixo, a do fundo. E num espelho partido vêem-se as coisas simples aos
pares e, em certos espelhos dispostos de uma determinada maneira, não só duas, mas
uma grande quantidade de coisas. Tudo isto não parece provir senão do modo dife­
rente como a imagem é recebida nos espelhos e daí se oferece à visão. Último argu­
mento. Porque é a partir do ar, como entretanto acontece, que o reflexo se faz para a
vista, o que se vê não é a própria coisa, mas o seu simulacro - o que Aristóteles
transmite de modo claro, no livro 3, Meteorológicos, capítulo 4º, quando diz que,
para uma certa pessoa (pensam que este Antiferonte Oretano existiu) - era sempre a
sua imagem habitual repercutida pelo ar, diante dos olhos, que era vista. E assim,
Aristóteles não julga que se trata do próprio Antiferonte, mas que a sua imagem
costumava ser vista no ar. Ele também, certamente, disse isto acerca do espelho,
posto que faz totalmente sentido nos dois casos.

ARTIGO II
A imagem não é vista no espelho

Na questão proposta são várias as opiniões dos autores. Escoto, no 2º livro das
Sentenças, distinção 1 3 , questão 1 ; Averróis, no livro O Sentido e o Sensível, capí­
tulo l º; São Tomás, A Verdade, questão 8, artigo 5º e artigo 1 5º, afirmam que a
pedra e a sua imagem no espelho são vistas ao mesmo tempo; e o mesmo repete, na
l ª parte da Suma Teológica, questão 58, artigo 3º. Capréolo narra mais desenvolvi­
damente este exemplo no primeiro livro das Sentenças, distinção 35, questão 2,
artigo 1 º, nas soluções dos argumentos contra a 2ª conclusão, afirma que o visível
produz a espécie a partir de si até ao espelho, a qual reproduz apenas o visível e que,
então, do espelho até ao olho é infundida apenas uma espécie que representa um e
outro. São da mesma opinião Caetano, l ª parte da Suma Teológica, questão 56,
artigo 3º; Célio, livro 15, capítulo l º; João Gandavense, questão 9, O Sentido e o
Sensível; Thimon, 3 Meteorológicos, questão 4.
Todavia, é verdadeira a opinião contrária que todos os estudiosos da Perspectiva
acolheram pouco mais ou menos, como se vê em Ciruelo, livro 2, Perspectiva,
capítulo 2º, conclusão 1 3 e Vitélio, livro 5 ; Ricardo, no 4º das Sentenças, distinção
1 1 , questão 1 , no 6º principal; Apolinário, neste livro, questão 1 7 , e muitos outros.
Explicar-se-á com esta conclusão. No espelho não se vê apenas a imagem da coisa,
nem a coisa ao mesmo tempo com a imagem, mas apenas a coisa cuja imagem está
impressa no espelho. Esta afirmação consta de três partes. Quanto à primeira, con­
clui-se assim. Qualquer coisa vista ou é cor, ou é luz. Apenas estas estão contidas no
objecto da vista. Ora, a imagem não é nenhuma delas, logo não é vista. Segundo. A
espécie visual é homogénea e qualquer parte sua reproduz todo o objecto, como
dissemos acima; mas, no espelho, apresentam-se à vista, numa parte, a cabeça, nou­
tra, os pés e os restantes membros; portanto, aquilo que é visto não pode ser a espé­
cie visual. Terceiro. Porque a imagem é difundida em todo o espelho, mas aquilo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão Vil/, Artigo li 345

que é visto não é visto no espelho todo. Quarto. Porque a imagem está numa única
superfície do espelho feito de aço e, no entanto, a coisa vista aparece no fundo.
Quinto. Porque se a imagem fosse vista no espelho, uma vez que nada se perceberia
a não ser pela semelhança impressa da potência, ou a imagem seria vista pela seme­
lhança da mesma espécie ou pela sua diferença. Não da mesma; quer porque o ser
nocional, como é o da imagem, se distingue sempre em natureza, daquilo que signi­
fica; quer porque a semelhança da imagem difere em espécie, daquilo de que é o
simulacro; quer, por fim, porque as semelhanças se distinguem em espécie, através
dos objectos que representam. Visto, portanto, que a cor e a sua semelhança alcan­
çam natureza diferente em espécie, a consequência é que também a imagem da cor e
a imagem da semelhança da própria cor alcançam diferente natureza em espécie.
Mas que não se vê a imagem no espelho através de outra semelhança diferente da
espécie, recomenda-se, porque, então, a visão que é feita no espelho, não seria
reflexa, pois é conduzida do espelho para o olho em linha recta. Se algum adversário
disser que o objecto se vê por linha curva, a imagem pela linha recta, já nega que se
vej a apenas a imagem, o que afirmava antes. Segundo, a luz directa e a reflexa são
da mesma espécie, logo a imagem que se estende em linha recta do objecto para o
espelho e por linha curva do espelho para o olho, serão da mesma espécie e apenas
representam o objecto. Logo, também aquilo.
É evidente que a imagem e a coisa significada através dela não são vistas ao
mesmo tempo, porque diz-se que a coisa e a imagem apenas são vistas ao mesmo
tempo enquanto for o mesmo o movimento para a imagem e para a coisa, que a
imagem representa, como Aristóteles escreveu no livro A Memória e a Reminiscên­
cia, capítulo 2º, porque, como se mostrou que a nossa vista de modo algum é limi­
tada pela imagem que incide no espelho, é plenamente aceite não poder dizer-se que
nós vemos no espelho a imagem e a coisa que a imagem significa.
Resta, portanto, que para que se vej a a coisa no espelho ela deve estar em frente
ao espelho. Por exemplo, quando Sócrates se vê a si mesmo no espelho, vê-se nele
através da espécie que salta do espelho, porque imprime primeiro a sua imagem no
espelho, a seguir a imagem reflectida retoma do espelho para os olhos, através da
qual, impressos os olhos do próprio Sócrates, estes chegam a ver e tendem para
Sócrates, não no próprio sítio, mas num diferente, isto é, naquele de onde a imagem
ressalta para a vista. Nem é de admirar o facto de ser visto, pois isto é típico da visão
reflexa. Sobre este assunto veja-se mais em Vitélio, livro 5, Perspectiva e seguintes.
Respondamos agora aos argumentos da parte contrária. Ao primeiro, dizendo que,
embora não só o vulgo, mas muitos sábios declarassem ter visto a imagem no espe­
lho, e que tal parecia ser assim para o sentido, na realidade acontece de modo dife­
rente, como demonstrámos. Ao segundo, é evidente o que se deve dizer, a partir das
afirmações seguintes. Ao terceiro, que a variedade no lugar, pela qual a coisa obser­
vada se apresenta nos espelhos, e também a duplicação, ou o seu grande número,
tem origem no próprio lugar ou na disposição dos espelhos e no modo pelo qual a
imagem retoma e através da qual a coisa é vista. Se tivéssemos de explicar todas as
coisas, pormenorizada e claramente, seria necessário acrescentar sobre o assunto o
tratamento completo e também o que se opõe à presente disposição.
346 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Ao último, que também discutimos no livro dos Meteorológicos tratado 4, capí­


tulo 5º, respondemos que Aristóteles tinha falado neste ponto a partir da opinião
comum dos homens vulgares. Também a causa por que a sua imagem sempre pare­
ceu preceder Antiferonte, reproduziu-a não da sua, mas da opinião de Platão, o qual,
como acima dissemos, acreditava que a vista se produzia com a saída dos raios
visuais pelos olhos. Por isso, Aristóteles ensinou aí que, relativamente a Antiferonte,
ele costuma observar a sua imagem, porque era a tal ponto fraco de vista, que os
raios que saíam dele não podiam avançar mais além e impelir o ar. Desta maneira,
voltavam de imediato do ar próximo como de um espelho, para o olho, e onde
acontecia esta repercussão, via-se a própria forma. Assim dizia Aristóteles. Mas, se
se indagar a verdadeira causa disto, Alexandre responde que se juntou uma certa
névoa diante da pupila de Antiferonte, da qual, em virtude da densidade, a reflexão
da imagem era feita para o humor cristalino, e assim ele julgava ver-se no ar, visto
que via, na realidade, dentro do círculo dos olhos. Deste modo, por causa da conden­
sação da matéria dentro dos olhos, parece vermos mosquitos voando no ar, veiazi­
nhas que são matéria para a pupila, repletas, e por isso, de vez em quando, erguidas,
como que transportando consigo uma certa semelhança de asas.
Ora, obsta a esta solução que, uma vez que dentro do olho não pode nascer a ima­
gem de todo o corpo ou da face, visto que o olho não se lhes apresenta pela parte
contrária, Antiferonte não podia avistar-se a si mesmo através da imagem nascida do
próprio olho. Deve dizer-se, de preferência, que do ar para os olhos de Antiferonte,
que sofre de oftalmia, a imagem habitual é reflectida como de um espelho, em que
era vista no ar contíguo. Na verdade, o humor pode difundir-se dos olhos afectados
por aquela doença e, por isso, o ar toma-se espesso e produz-se aquela repercussão.
Uma outra solução é a seguinte. Talvez Antiferonte não se visse a si próprio nem
dentro do olho, nem no ar, mas, uma vez lesada a imaginação, pensava acontecer no
exterior aquilo que apreendia. Aristóteles narra, acerca de Antiferonte, no livro sobre
A Memória e a Reminiscência, capítulo primeiro, que ele contava que todas as ima­
gens que a fantasia concebia aconteciam de facto. Leia-se Galeno, De Zoeis affectis,
livro terceiro, capítulo sexto, no ponto em que mostra que, por causa do cérebro
afectado de humor melancólico, estava persuadido que muitas coisas que os olhos
observavam fora, eram forjadas dentro.

QUESTÃO IX
Se aqueles que comummente são chamados vedores das águas
as vêem realmente debaixo do solo

ARTIGO I
Discussão de uma e de outra parte da questão

Para explicação da dúvida proposta deve advertir-se que, de entre os chamados


vedores, alguns, de que Plínio no livro 3 1 , História Natural, capítulo terceiro trata,
procuram água no subsolo, apenas através de certos indícios externos. Para tal, além
de sinais vulgares, isto é, do junco ou da cana, muitos procuram rãs no choco. Um
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão IX, Artigo l 347

sinal particular é se antes do nascer do Sol, ao longe aparece aos observadores uma
exalação nebulosa muito ténue que eles observam inclinados com o queixo encos­
tado à terra. Também existe, como afirma Plínio no ponto citado, outra avaliação,
somente conhecida dos peritos, que eles seguem no calor escaldante em horas muito
quentes do dia, como o brilho reflectido de qualquer lugar. Na verdade, se aquele
lugar estiver mais húmido do que a terra ressequida, faz crescer uma indubitável
esperança. Mas é preciso tanta atenção dos olhos, que chegam a doer, acabando por
fugir para outras experiências, e etc. Há outros que dizem observarem as águas
cobertas pela terra. A nossa questão é acerca disto. Na verdade, parece mostrar-se
que tal é completamente falso porque, como a visão não acontece senão pelas espé­
cies transmitidas ao objecto através do diáfano iluminado em acto, a terra é opaca,
não se deixando atravessar pela luz. De que modo pode ser vista a água da terra que
se esconde em lugar oculto? Segundo. Porque isso, nestes homens, ou provém da
perspicácia e da acutilância, ou de qualquer qualidade intrínseca, por dom da natu­
reza. O primeiro deve negar-se, porque estes homens não vêem de modo mais pene­
trante do que os restantes. O segundo também, porque não é claro que exista alguma
qualidade desta natureza. Logo, etc. Acontece que alguns que se gabam desta função
não são em si menos falsos do que a água que vêem debaixo da terra, e fizeram disto
profissão. Por isso, alguns deles, por cuj a afirmação foram descobertas águas em
poços escavados, tombaram na suspeição de pacto com os demónios.
Também não faltam argumentos à parte contrária. Primeiro. Que embora seja de
espantar, todavia não deve considerar-se impossível que existam alguns homens
dotados de uma dádiva da natureza que vêem a água debaixo da terra. Pode conce­
der-se como provável com exemplos de muitos homens, aos quais foram dados cer­
tos dons particulares, além da ordem comum e costume do próprio nascimento.
Alexandre da Macedónia exalava um odor suavíssimo da pele e dos membros, e
Demofonte, que superintendia às suas mesas ao Sol, enregelava no banho e fervia à
sombra. Tibério César, acordado de noite, durante pouco tempo e não noutro sítio
senão à média luz, avistava aos poucos todas as coisas obscurecidas pelas trevas.
Também no nosso tempo, um certo cidadão de Bragança, cidade da Lusitânia, de
noite via tão acutilantemente que distinguia cada mínima coisa. Atenágoras Argivo
não sentia dor quando mordido pelos escorpiões. Os Tintyritas, habitantes do Egipto,
viviam impunemente entre os crocodilos. Uma certa tribo de Etíopes, frente aos
Meroes até ao rio Hydaspes, diante do perigo, devorava serpentes venenosas. Seria
longo continuar. De facto, a natureza costuma, com estas digressões, dançar fora do
coro, para produzir a beleza da extraordinária variedade do universo.
Outro. Demonstra-se que não repugna que as águas se vejam do modo referido,
porque diz-se que os linces são aqueles que vêem as coisas que estão por detrás de
uma barreira. O que também os historiadores trouxeram à memória, acerca de um
certo argonauta, chamado Linceu . O facto de não se ver através da obscuridade da
terra não impede que as imagens possam ser transmitidas da água para a vista. Com
efeito não é improvável o que os filósofos estóicos defendiam, isto é, que a terra está
impregnada de alguma luz, logo também as coisas, que em lugar oculto da terra
foram colocadas, pelo menos a alguma distância, emitem as suas próprias imagens
mesmo ténues, que normal e comummente não coincidem com a faculdade de ver,
mas com a de que os vedores são dotados. Não é verdadeiro o argumento que diz
348 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

que a densidade da terra impede o trajecto das espécies, pois o cristal é mais denso
do que a terra e, no entanto, transmite as espécies por difusão da luz.

ARTIGO II
Explicação da questão

Disputada assim uma e outra parte, alguns ilustres filósofos do nosso tempo abra­
çam a afirmativa. Sem dúvida que há homens que vêem realmente as águas latentes
na terra. Mas são levados, tal como se opina, não tanto por razões filosóficas, mas
pela experiência. Também existiram muitos, e aqui referimos alguns, que em muitos
sítios, com a sua inspecção, mostraram a potência oculta da água. Um exame acu­
rado e diligente persuade que não interveio nisto obra dos demónios, matéria em que
a probidade do juízo público foi explorada pela autoridade deles. São também trazi­
dos à colação certos animais irracionais aos quais a natureza deu esta potência de
ver, com o argumento que em certos sítios eles batem em retirada quando, ao esgra­
vatar a terra, vêem a descoberto as águas que correm debaixo.
Os que seguem a parte negativa remetem aquelas coisas que dissemos resultarem
da experiência, para sinais exteriores, para envenenamentos, para metais, para a
morte. Se no entanto eles quiserem seguir a parte afirmativa, ao primeiro argumento
dos adversários, responderão com os estóicos, dizendo que a terra é decerto opaca e
obscura, não porque não admita directamente a luz interior, pelo menos dentro dos
poros, mas porque isso é de tal maneira exíguo que não é tido para nada, sobretudo
porque não cai ordinariamente sob a vista. Mas os vedores não vêem a água sem
alguma luz, com o argumento de que os que estão prestes a inspeccionar, procuram a
luz do meio-dia e o esplendor do Sol, pelo qual certamente extraem as espécies a
partir do fundo e as concitam à vista. Estas espécies atravessam o ar, fortemente
arremessadas pelos poros da terra.
À segunda, dizendo que em grande parte isso não provém da excessiva perspicá­
cia, pelo menos a respeito de todos os visíveis, como prova o argumento, mas de
uma peculiar afecção oculta, que a proporção da vista tem para uso de tais espécies e
de luz tão exígua. Conquanto entretanto se diga que com esta proporção foi desco­
berto o admirável aguilhão para ver todas as coisas tão ao longe, como o argonauta
Linceu de que fizemos menção acima, que não só via com a terra interposta, mas se
dizia que também costumava, quando saía de Cartago o exército cartaginês, conhe­
cer claramente o número dos navios do alto de Lybicana. E o mesmo, o que acontece
a pouco mortais, viu no mesmo dia a última Lua e a primeira no signo de Carneiro.
Ao último, não é de admirar que alguns que vêem as águas fingissem não as
verem. Com efeito, nada é tão certo e evidente nestas coisas como encontrar um
falsário.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII/ 349

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VIII

a. Nunc autem 4 1 9 a b4 - Aristóteles passa da vista para a audição, porque este


sentido reclama o segundo lugar em dignidade, entre os restantes sentidos exter­
nos, como será evidente, de caminho. Esta disputa tem cinco partes. Uma sobre o
objecto do ouvido, isto é, do som; outra, sobre as suas funções; a terceira, sobre o
órgão; a quarta, sobre as diferenças de sons; a quinta, sobre os instrumentos e
sobre a formação da voz. Ele ensina primeiro que há dois sons. Um em acto,
outro em potência. O som em acto dá-se quando os corpos que produzem som
chocam em acto. Em potência, quando os corpos, que podem produzir o som, não
chocam em acto, mas apenas em potência.
b. Fit autem actu sonus 4 1 9 b 9 - Começa a explicar de que modo o som se faz,
visto que existem dois tipos de som, o directo e o reflexo. Disse primeiro, acerca
do directo, que antecede necessariamente o reflexo. Ensina que se j untam três
corpos para produzir o som directo, o corpo que percute, o percutido e o meio,
que se interpõe. Prova isto assim. O som resulta da pancada ou percussão, mas
esta também não se dá a não ser que um corpo bata, outro receba a pancada.
Portanto, para produzir o som são necessários dois corpos. Daí que a pancada não
aconteça a não ser que um corpo mova o outro, no lugar. Mas este movimento
necessita de um meio, dado que a acção não existe no vazio. Portanto, juntam-se
três corpos para o som. Dois extremos e um médio.
c. Atque uti diximus 4 1 9 b 13 Ensina quais devem ser os corpos que, percutidos,
-

vão produzir o som, para o que desenvolveu algumas condições propostas . A pri­
meira é porque são duros, resistem mutuamente e ferem o ar interposto. Por falta
desta condição, os corpos de lã não produzem som. A segunda é porque são lisos,
porque as coisas lisas têm uma superfície uniforme, em que todo o ar percutido
soará ao mesmo tempo e nem reduzido a pedaços resulta em silêncio. Terceira,
porque são côncavos. Com efeito, estes corpos são os mais aptos para produzir o
som, porque o ar que se introduz depois de percutido repercute-se para os lados
côncavos como vemos nas campainhas. Trata do meio do som e ensina que é o ar
e a água, ainda que estas não sejam a principal causa produtora do som, mas os
corpos sólidos que comprimem o ar, tal como o movimento de percutir antecede
e demonstra a dispersão do ar. Donde, acontece que a percussão rápida tem de
ser impelida com força, visto que o ar espalha-se sem o som. Aristóteles afirma-o
com um exemplo. Efectivamente, se alguém bater rapidamente e com força num
amontoado de areia a pique, produz som, por causa da velocidade. Acontece o
contrário se bater ao de leve e devagar na areia.
d. Fit autem Echo 4 1 9 a 25 Fala da formação do eco ou do som reflectido. Diz
-

que ele se dá quando o som resulta do som, isto é, quando o ar, uma vez percu­
tido, se lança no corpo que lhe resiste e, como depois não pode avançar, afasta-se
e estala, como uma bola. E ensina que acontecem sempre deste modo vozes que
se repetem, embora enfraqueçam perante o sentido devido à sua debilidade, o que
também acontece com a luz. Na verdade, embora a luz não resplandeça desta
maneira para nós, ressalta sempre, também nas partes onde existe sombra, visto
que onde quer que existam trevas, excepto nos lugares opostos ao Sol, aí, o
esplendor e o raio claramente se estendem. Assim, o reflexo do som existe sem-
350 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

pre, porque o ar percutido, por causa do som, encontra sempre um corpo, donde
recua. Mas não é sempre ouvido, ou porque as espécies que percorrem são muito
fracas e já quase morta ou porque chegam espécies directas ou que não existiam
antes, porque o que está em causa, é se o eco é percebido como um som distinto.
Ele avisa que é por isso que os filósofos antigos afirmaram sem sombra de
dúvida que o ar é o meio pelo qual se percebe o som, que muda então de modo
mais apto, como acontece com a audição, visto que todo o ar interposto entre um
corpo que soa impressiona a faculdade de ouvir para as espécies poderem ser
transmitidas ao ouvido.
e. Inest autem auditui 420 a 3 Explica por que razão o aparelho auditivo é movido
-

pelo som. Com efeito, o ouvido tem o ar congénito com o seu órgão, o qual
sendo movido nocionalmente pelo ar externo, também é movido pelo som nocio­
nalmente, isto é, é movido através das espécies. E, por isso, os órgãos de ouvir
não sobressaem pela sua potência em todos os animais, porque o ar não existe em
todos, mas apenas nos ouvidos no interior dos quais se esconde. Além disso,
existe uma diferença entre o ar externo e aquele que possuímos por natureza no
ouvido, porque, embora um e outro esteja privado de som, aquele facilmente se
espalha e produz o som e este permanece parado para compreender e conhecer
todos os géneros de sons, tal como o humor cristalino está livre de toda a cor,
para perceber todas as cores. Por isso, também ouvimos dentro de água, porque a
água não se introduz no ar congénito ao ouvido. Se alguma vez nele irromper
com uma pancada violenta não se percebe o som. Isso acontece igualmente
quando a membrana que encerra o ar padece de algum defeito.
f. At enim signum 420 a 1 5 Mostra, por um certo indício, que o ar congénito e
-

imóvel é um órgão de ouvir. Se o ouvido ressoar com um certo zumbido mais ou


menos semelhante a uma cometa, quer dizer, com um movimento agitado, ouvi­
mos pouco, e isso porque com o ar interno foi grandemente afectado. Por esta
razão (diz Aristóteles), alguns mais antigos pensaram também que no vácuo se
poderia ter a sensação de ouvir, porque bastaria que o ar congénito vibrasse den­
tro de nós .
g. Sed utrum horum 420 a 1 9 Aduz uma questão, se se deve dizer que a causa do
-

som é o que percute ou o que é percutido. Responde que a causa do som está
num e noutro, embora por razões diferentes. O corpo percutido, ao resistir, o que
percute, ao infligir, e a causa está em que o ar interposto estala, visto que o som
nasce do embate dos dois corpos e do impulso do ar. A seguir, explica de novo
como devem ser os corpos que colidem para provocar o som e que é necessário que
sejam lisos e planos, porque dos ásperos, por causa das rugosidades e da superfície
desigual, não brota junto o ar necessário ao som, mas escorre e espalha-se.
h. Atque differentiae sonorum 420 a 26 Investiga as espécies ou as diferenças do
-

som e ensina por que razão as percebemos, dizendo que, tal como a vista não
distingue as cores sem a luz, assim também o ouvido não discerne os sons, a não
ser quando são produzidos em acto. Explica o grave e o agudo nos sons, através
da semelhança retirada dos que ferem o tacto. Neles, diz-se agudo aquilo que
cessando na extremidade, em tempo breve, causa uma grande lesão; surdo, o que
não bate durante muito tempo. Assim, chamamos agudo, àquele som que, ouvido
durante pouco tempo, move mais fortemente o ouvido; grave, o que move pouco.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VIII, Questão /, Artigo J 351

Aristóteles conclui correctamente, a partir daí, que o som breve e o longo, o


agudo e o grave não são a mesma coisa. Tal como naquilo que é tangido o golpe
e a divisão breve do corpo acompanha o agudo, o golpe e a divisão lenta, o surdo,
assim também a rapidez acompanha o som agudo e a lentidão o grave. Filópono
explica isto a propósito dos sons das cordas da cítara. A última delas que se
chama Nete, porque é muito esticada, ao vibrar, percute velozmente o ar, soa de
forma aguda e retém o som durante muito tempo. Acontece o contrário na pri­
meira das cordas que produz um som grave e se chama Hypate. Leia-se Aristó­
teles secção 1 9, Problemas, questão 1 1 e questão 37.
i. Vox autem sonus 420 b 4 Tratou do som em geral. Agora trata de uma dada
-

parte dele, isto é, da voz. Como dá uma definição completa de voz, examina as
suas partes, uma a uma. Adverte, primeiro, que a voz é o som do animal. Se
alguém objectar que também se diz que a flauta e outros instrumentos com que se
faz um concerto, produzem voz, reponde-se que se lhes dá o nome de voz, não
em sentido próprio, mas por analogia. Nem a voz respeita a todos os animais,
visto que alguns carecem de sangue e, nos que são dotados de sangue, também os
peixes carecem. Há uma causa comum a todos eles, é não respirarem. Também a
natureza lhes negou instrumentos para a voz, visto que a voz não pode ser produ­
zida sem a respiração do ar atraído. Não obsta, afirma Aristóteles, que se diz que
os peixes do rio Aqueloo têm voz. Na verdade, não é uma verdadeira voz, mas
eles emitem certos sons das guelras, da boca, ou da cauda. Considera haver ainda
uma outra parte da definição, a saber, que a voz é, seguramente, o som do animal
que respira.
k. Iam enim ipsa natura 420 b 20 Diz que são duas as funções do ar sem interven­
-

ção do qual a voz não pode existir. Uma, necessária à vida, outra, apenas útil. O
ar é necessário para a respiração dos animais, para que o calor do coração aqueça
com a sua vinda e movimento recíproco e, ao mesmo tempo, também se con­
serve, visto que se junta ao animal por pouco tempo com muito ardor e fervor.
Deu atenção também ao ar útil e adaptado à vida, visto que, sem ele, as vozes e a
fala não podem existir, porque há dois usos da língua. Um, necessário ao paladar,
outro, de utilidade, para a voz. Finalmente, apresenta uma definição de voz. A
voz é o impacto do ar atraído pela respiração, existente a partir da alma para os
pulmões, quando é produzido por um certo pensamento. Esclareceremos, de
caminho, esta definição.

QUESTÃO !
O que é o som e qual a sua causa efectiva

ARTIGO I
Estabelecem-se algumas proposições

Esta questão tem de ser explicada com algumas proposições. A primeira é. O som
não é o próprio movimento dos corpos que entrechocam. Esta proposição, que o
senso comum dos filósofos aprova e é transmitida por Avicena, livro sexto dos
352 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Naturais, parte 2, capítulo 6º, recomenda-se, primeiro, porque o movimento é um


sensível comum, mas o som é um sensível próprio pertencente à única potência de
ouvir. Outro. Porque o som pode ser difundido às partes do ar e da água, às quais o
movimento não chega. Terceiro. Porque o som é feito pelo movimento, como Aris­
tóteles ensinou neste lugar, texto 78. Nada se produz a si mesmo. Quarto. Porque o
movimento não é uma qualidade, como é evidente, mas o som é uma qualidade que
pertence à terceira espécie de qualidades. Objectar-se-á que o som é um ente que
flúi, posto em sucessão, visto que as suas partes não podem subsistir simultanea­
mente, e à extinção de um, sucede o outro. O que é assim, ou é tempo ou é movi­
mento. Por isso, como não é tempo, é necessariamente movimento. Aristóteles assim
considera, neste ponto, texto 85, e também no livro O Sentido e o Sensível, capítulo
sexto, disse que o som é agitação. Deverá opor-se que o som é algo de sucessivo,
como prova o argumento, não por si, e intrinsecamente, mas por acidente, e por isso
não é tempo ou movimento, nem um género da quantidade; de outra maneira, seria
extenso por si, por sua potência. Diz-se que ele é sucessivo não pela mesma razão,
mas apenas por analogia com o som e a quantidade. Sucessivo, em quantidade,
supõe a extensão das partes que se juntam às coisas indivisíveis, mas não no som.
Depois, sucessivo em quantidade é próprio daquilo cujas partes, por si e pela sua
noção, correm continuamente. Mas, no som, diz-se que elas correm continuamente
porque se ajustam à sucessão do movimento que acompanham e por ele foram gera­
das. Quando Aristóteles disse que o som era agitação, falava no sentido, não da
forma, mas da causa da predicação, isto é, não no sentido formal, mas causal, como
costuma chamar-se caso se diga que o som resulta do movimento. Se, portanto, se
perguntar que coisa é o som, dizemos que é a qualidade sensível que pode ser perce­
bida pelo ouvido.
Segunda proposição. A geração do som não é a própria agitação dos corpos que
entrechocam, mas a sua consequência. A primeira parte desta proposição, prova-se
pelo argumento de que o movimento local se dirige, por si, somente daqui para ali, e
por si não traz nenhuma realidade nova para o móvel , como Aristóteles ensinou nas
Lições da Física, livro oitavo, capítulo 7°, texto 59. E assim, a geração do som é
formalmente outra acção, determinada intrinsecamente para o som, como para um
fim gerado por ela própria. Esta acção pode ser chamada sonora, a menos que esta
palavra soe mal ao ouvido, do mesmo modo que outra acção que dimane do próprio
movimento local determina uma cor, como no livro 2 de O Céu, capítulo 7º, questão
6, discutimos, e provavelmente, deste modo, muitos influxos celestes são regulados
mediante uma derivação. A segunda parte da proposição é evidente, a partir daí,
porque nenhum som costuma ser gerado depois dos corpos chocarem entre si. Acres­
cente-se que Aristóteles afirma sempre que o som é a agitação dos corpos que se cho­
cam. Uma vez que isto não pode ser entendido em sentido formal, como dissemos,
resta que deve ser tomado no sentido da segunda parte da nossa conclusão.
Terceira proposição. O som não acompanha imediatamente a colisão dos corpos,
mas a quebra do ar intermédio. Deve advertir-se, a favor da explicação desta propo­
sição, que para um som perfeito não só se requer a colisão dos corpos que entrecho­
cam, mas também a fractura do corpo intermédio (pois se tratarmos do som perfeito,
o ar está sempre presente, como de caminho será evidente). Aristóteles ensinou que
intervêm os dois, texto 78 e texto 79. Mas existe discussão entre os filósofos sobre
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VIII, Questão /, Artigo / 353

se o som acompanha de perto a referida colisão ou antes a fractura. Consideramos


que acompanha de perto a fractura, porque o ar, esmagado entre os dois corpos,
primeiro quebra-se e depois, uma vez quebrado, soa. O argumento defende que, para
o som, concorre não só a colisão mas também a fractura, porque, entretanto, os cor­
pos que colidem fortemente, soam menos, tal como dois barrotes provocam um som
mais difuso ao bater, do que as campainhas. Isto acontece, sobretudo, porque os
corpos de bronze quebram mais o ar com a sua leveza e dureza. Do mesmo modo,
quando um pano novo se rasga e se rompe mais extensamente do que outro corpo mais
duro, porque, então, o ar próximo feito em pedaços, é rasgado depois em mais partes.
Quarta proposição. O som nem sempre é feito por dois corpos sólidos que batem
um no outro. Prova-se, porque o som é produzido com a onda que se agita, com os
ventos abundantes, com o ar quebrado nas flautas e nos outros instrumentos musi­
cais, e com o leque, ou com um azorrague agitado. Também o pano de linho estala
ao rasgar, e a água atirada ao fogo ressoa e ouvem-se barulhos subterrâneos perante
o movimento da terra, como afirma Aristóteles, livro 2, Meteorológicos, capítulo 8º,
em relação aos quais, é evidente que não concorrem dois corpos sólidos. E assim, se
reconduzirmos o assunto à exacta norma da verdade, descobriremos de que maneira
a concavidade dos corpos é boa não tanto para o som pura e simplesmente, quanto
para a sua extensão ou o seu comprimento, e o polimento, para a veemência do som,
tal como a quantidade e a solidez dos corpos é boa não para o som em absoluto, mas
para produzir o som perfeito. Donde Simplício anotou correctamente que Aristóte­
les, aqui, não se refere tanto aos corpos que soam mas aos que soam bem. Ainda que
se possa dizer que todas as vezes que o som é feito apenas por um corpo, como pelo
ar circundante, que um cumpre a tarefa de muitos, e quando não é produzido pelos
corpos sólidos, eles estão na vez dos sólidos. Acerca deste ponto leia-se, se se
entender, Temístio, Filópono, Simplício. Consulte-se também Alberto Magno na
Suma do Homem, tratado sobre a audição, questão 5, quando trata dos modos dife­
rentes de produzir os sons. Donde, é evidente que Aristóteles só transmite as coisas
mais célebres e comuns. Além disso, os corpos para soarem bem devem ser duros,
porque os moles não são convenientemente tangidos, porque um não opõe resistên­
cia ao outro, tal como sacodem veementemente o ar antes de se dissipar. Também os
lisos, porque os corpos não uniformes retalham o ar, aos bocados, nas cavidades e
nas partes inferiores e, por isso, produzem um som retalhado. Daqui, Aristóteles nos
Problemas, secção 1 1 , questão 25 , ao inquirir por que razão, havendo palhas espa­
lhadas na orquestra, se ouvia menos a voz do coro, responde que a razão está em que
a voz que se produz num pavimento menos liso, como está menos junta, dada a
aspereza do lugar, também é menor, porque é menos contínua. Por isso, também,
quando as paredes são revestidas de tapeçaria se produz uma voz menos vigorosa.
Também os corpos polidos repelem em conjunto o ar que produz um som mais vee­
mente. Também os aéreos, isto é, os que participam muito da natureza do ar. Daí, os
corpos de bronze e de prata serem mais sonoros do que os de chumbo. Tal como o
som é gerado, acima de tudo, pela fracção do ar, onde o ar intervém mais, também o
som se propaga melhor. Eis porque os vasos mais vazios ressoam mais, e as cam­
painhas tomam o som mais agudo, quando suspensas de uma corda delgada, do que
quando estão presas pela mão, como registou Filópono.
354 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Transmitem-se outras proposições

Quinta proposição. Em ambas as partes, é possível não só que o som sej a produ­
zido pela percussão do ar como também pela percussão da água. Defendem a parte
afirmativa, neste ponto, Simplício, Temístio, Avicena, 6º dos Naturais, parte 2,
capítulo 6º, com o argumento de que os rios emitem sons, se se remexerem as
pedras. Também Escalígero exercício 297, no Comentário sobre Cardano, confirma
que o som se dá pelo choque das nuvens, que são da natureza da água. Acontece que
o som é transportado não só através do ar, mas também através da água, segundo
Aristóteles, texto 76. Se é assim, então porque que é que o som não se gera na água?
Filópono, comentário 79; Alberto Magno, tratado 3, capítulo 1 8º; Egídio, comentá­
rio 77; São Tomás e muitos intérpretes latinos perfilham a negativa. Filópono argu­
menta que o som não é feito pelos corpos sempre que se embatem, mas pela pan­
cada, e não por meio do corpo, sempre que é batido, mas de uma forma imediata.
Pelo que, como a água é um corpo pesado, e devido à espessura, antes que dois
corpos sólidos se choquem, ela é esmagada aos poucos, não na totalidade, segue-se
que o som é gerado por qualquer pancada sua. Mas nem este argumento, nem o
primeiro concluem totalmente. Os adversários respondem-lhe que o ar, pela sua
leveza, penetra a água e que as nuvens e os rios não ressoam com o atrito da sua
água. Também se exige menos para transportar o som do que para produzi-lo, e, por
isso, embora a água tenha a faculdade de anunciar o som não pode ter a faculdade de
o efectivar. Já quanto ao argumento da outra parte, dever-se-á dizer que a força que
impele a água que corre pode ser tão forte que antes dela correr ela é separada ade­
quada e consequentemente em vista do som. Por isso, não é de admirar que em rela­
ção ao que se repercute dentro de água, os peixes que nadam não produzam som,
visto que não movem a água desse modo. Neste ponto, Teófilo Zimara escreveu,
muito bem, que aqueles que negam que o som possa resultar da colisão da água,
devem apoiar-se, preferencialmente, no argumento, que é da natureza do ar e da
água, que a um e a outra pertencem a faculdade de transportar o som e que, todavia,
para gerar o som, como seu atrito, não é a água, mas o ar que tem essa faculdade.
Também se deve ter por certo, mesmo entre os que defendem a primeira posição,
que a natureza da água é muito mais condutora do som do que a natureza do ar.
Dizem ter sido esta a razão por que Aristóteles, ao tratar dos corpos que colidem
entre si, mencionara o ar e não a água, para a geração do som.
Sexta proposição. Não é necessário que o movimento pelo qual se produz o som
atinja os ouvidos. A verdade desta proposição é evidente, porque, quando o som da
campainha é percebido à distância de uma légua, seria necessário que todo o ar
intermédio fosse agitado, o que é ridículo. Segundo. Porque duas pessoas, gritando
do mesmo lugar, não podem ouvir-se mutuamente, visto que os movimentos contrá­
rios, que acorrem do lado oposto, se impediriam mutuamente. Terceiro. Porque os
peixes nos pântanos ouvem os sons através da água parada e nós também, nos luga­
res fechados, onde não passa o movimento do ar, percebemos os sons produzidos ao
longe. Mas há quem pense o contrário e afirme que todo o ar é movido até ao
ouvido, tal como uma parte contígua a uma campainha, uma vez recebida a pancada,
atinge a que está junto a si e, igualmente, esta atinj a a outra até que o ar interior
chegue às cavidades dos ouvidos. Assim, o movimento empurra o som para o sensó-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI//, Questão II, Artigo l 355

rio, com sucesso. Alexandre, autor desta posição, segundo Filópono e Simplício, e
que Averróis seguiu, comentário 78, explica isto à semelhança da água batida por
uma pedra que lhe tenha sido atirada. Temístio disse que o ar, que primeiro ressoa,
não se afasta de maneira a aceder ao ouvido, mas move o ar que lhe está próximo e o
contém. Em seguida, excita outro, do modo que observamos nas vagas, em que uma
impele a outra e, uma vez arremessada, de caminho, impele a seguinte. Do mesmo
modo, Vitrúvio diz que a voz move-se em infinitos fluxos de círculos, tal como,
estando a água em repouso, uma vez arremessada uma pedra, nascem inúmeros
círculos de ondas que aumentam a partir do centro, e conquanto pudessem espalhar­
-se muito, a estreiteza do lugar não se modificaria nesse espaço. Por isso, na água, os
círculos movem-se para o largo numa superfície igual, tal como a voz se proj ecta em
latitude e em altitude, e sobe aos poucos. Não faltam argumentos que podem com­
provar esta opinião. Para transportar o som, todo o ar é movido para o ouvido. Pri­
meiro que tudo, porque não parece ser por outro motivo que o som e as suas espé­
cies em sucessão de tempo chegam aos ouvidos, a não ser porque são levadas pelo
movimento do ar (donde, segundo Aristóteles, no livro O Sentido, capítulo 7º, os que
estão mais próximos ouvem primeiro o som, no entanto as espécies das cores che­
gam ao olho, num instante) . Depois, porque soprando o vento para uma outra parte
ouvem-se menos os sons, porque o movimento do ar é impedido ou é retido até nós.
Acrescente-se também o testemunho de Aristóteles, que há pouco, no capítulo atrás,
texto 82, parece ter ensinado claramente isto, quando afirmou que é um e o mesmo o
ar a mover-se continuamente até ao ouvido. Não obstante, respondemos, ao primeiro
destes argumentos, que o som e as espécies audíveis são levadas, não no instante,
mas no tempo, ainda que as espécies visíveis sej am transmitidas aos olhos num
ápice, porque tanto o som como as suas espécies são mais materiais do que as ima­
gens das cores. Ao segundo, deve dizer-se que quando o vento sopra em direcção
contrária, ora o som e as suas espécies são levadas para outro lado pelo ar, ora tam­
bém resistem ao movimento, pelo qual o ar próximo costuma ser agitado pelos cor­
pos, a alguma distância, e, por isso, perturbar muito a percepção dos sons. Por
último, deve compreender-se o ponto de Aristóteles, não acerca do movimento local,
mas acerca daquele pelo qual o ar é alterado ao receber o som e as suas espécies.

QUESTÃO II
Qual é o substrato do som e qual é o seu meio

ARTIGO I
O som não é recebido nos corpos sólidos, é produzido pelo seu embate
e o ar e a água são o seu meio

A opinião de alguns é que o som é recebido apenas no corpo capaz de soar. Pri­
meiro. Porque como o cheiro, a cor, o sabor e as qualidades que recaem sob os senti­
dos, são inerentes ao objecto, mas não ao meio, parece consentâneo que o mesmo se
dê em relação ao som e, por isso, é apenas recebido no corpo que ouvimos. Outro.
Porque os próprios corpos que produzem som têm o nome do som e nós dizemos
que os ouvimos, apenas, decerto, porque, em si, eles têm som. Deve afirmar-se, no
356 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

entanto, o seguinte. Quando dois corpos sólidos têm o ar no meio, ou como alguns
pretendem, produzem som na água, esse som é recebido, não nos corpos sólidos,
mas no meio. Tal como o som resulta da fracção e compressão do corpo situado no
meio, assim parece ser nele recebido, não nos corpos sólidos; de outra maneira, o
som também poderia ser produzido no vácuo e os corpos celestes gerarem uma har­
monia, de maneira que, além do meio aéreo que recebe o movimento, para isso nada
lhes faltasse. Facilmente resolve os argumentos da parte contrária, quem disser, ao
primeiro, que o som tem a propriedade e a particularidade de não estar fixo ao
objecto. A causa desta diferença está em que as restantes qualidades sensíveis têm
um ser fixo e estável, mas o som não existe senão quando é feito e onde é gerado,
isto é, no corpo intermédio em que é recebido como num suporte. Quanto ao que
deve ser dito acerca dos restantes sentidos, no respeitante ao meio, será claro de
caminho. Ao segundo argumento, deve responder-se que os corpos que produzem o
som, são chamados sonantes não por serem afectados pelo som, mas porque podem
produzir som, tal como se chamam sonoros os que estão aptos a produzir o som de
forma mais prolixa.
No que respeita ao veículo do som, isto é, ao meio pelo qual o som ou a sua espé­
cie chegam ao ouvido, deve dizer-se que ele é, quer o ar, quer a água, como Aristó­
teles ensina, neste ponto, texto 79, que acerca do ar a coisa é de facto clara, mas que
também é evidente acerca da água, quer pelo testemunho dos que mergulham, quer
porque os peixes ouvem sob as águas, visto assustarem-se com as vozes. Daí, o
silêncio dos pescadores. Também Plínio, livro 1 0, História Natural, capítulo 70º,
dirá que os peixes acostumados ao ruído se juntam para comer, em certos viveiros.
Nas piscinas de César, quer um certo género de peixes, quer também de outros que
respondem pelo nome, mostrando que ouvem, especialmente, o mugem, o lobo­
-marinho, o badejo, os crómidas e, sobretudo, os golfinhos, que não só ouvem, mas
também se diz que se deleitam com o som das músicas. Mostra-se com Aristóteles,
nos Problemas, secção 1 1 , questão 6, muito clara e facilmente, que os sons são tanto
transmitidos através do ar, como através da água. São enfraquecidos e suprimidos
pela espessura da água, tal como as espécies visíveis. Por esta razão os sons são
percebidos menos nitidamente em tempo de chuva, com o ar humedecido, do que
com o céu sereno e limpo.

ARTIGO II
De que modo o som e as suas espécies são transmitidas ao ouvido

Subsiste muita controvérsia entre os filósofos, sobre se o som se perfaz segundo o


seu ser real ou apenas nocional, isto é, através das suas espécies, até ao ouvido, tal
como as imagens das cores, até à vista. Ocorrem acerca disto três opiniões. Uma,
que estabelece que o som se difunde a partir de um primeiro som feito no ar e que se
multiplica segundo o seu ser real até ao ouvido. A segunda, que defende que apenas
as espécies que o representam são espalhadas pelo primeiro som. A terceira, que
afirma que a partir do primeiro som se espalha, quer outro som num determinado
espaço, quer as espécies até ao ouvido.
Devemos explicar esta dificuldade com as seguintes asserções. Seja a primeira. A
partir daquela parte em que o som é primeiro recebido, quer o som, segundo o seu
Livro Segundo, Explicação do Capítulo V/li, Questão li, Anigo li 357

ser real, se multiplique, quer não se multiplique, as espec1es são continuamente


enviadas. Prova-se, porque o som apenas chega ao sentido através das suas espécies,
tal como os restantes sensíveis. Por isso, se houvesse a parte do meio em que o som
se mantém, e não a espécie, seguir-se-ia que dentro daquele espaço em que o som se
situa, este não poderia ser ouvido. Além disso, deveria dizer-se que o som não pode
ser ouvido por nós, na íntegra. Na verdade, como é impossível todo o som penetrar
nos ouvidos, ele só é percebido intacto pelos ouvidos se a espécie que representa o
som integral for impressa aos ouvidos. Por outro lado, se por essa mesma parte do
ar, pela qual é produzido o som, não saísse continuamente a espécie do som, não
poderíamos conhecer donde ele vem. Com efeito, a espécie do som não indica o
lugar, a não ser porque dele se liberta.
Sej a a segunda asserção. Embora o som se multiplique para alguma parte do meio
segundo o seu ser real, não é todavia verosímil de que modo é ele difundido por toda
a distância a que chegam as suas espécies. Esta asserção recomenda-se, quanto à
primeira parte, porque uma vez que o som é recebido da mesma maneira, segundo o
ser real, como num substrato próprio, e na água, não só como num veículo, como é
evidente, mas também como num substrato próprio, como pretendem alguns,
decerto não repugna que ele de vez em quando se difunda, tal como o calor gera
outra porção de calor, comunicando-se mais além. Seja como for, não deve negar-se
que nenhum argumento convence plenamente que as segundas qualidades se difun­
dem a si próprias em sentido real, visto que para a sua percepção basta que as espé­
cies sej am emitidas para os aparelhos dos sentidos. Também é claro que acontece
assim com as cores. Na verdade, uma cor gera a outra, mas apenas a sua imagem
permanece na vista. A nossa opinião acerca da extensão do som, segundo o ser real
no meio, segue a de São Tomás, no 2º livro das Sentenças, distinção 2, questão 2,
artigo 2º ao 5º. Quanto à segunda parte da mesma asserção, ela demonstra-se, porque
o som, num brevíssimo espaço de tempo, é ouvido a alguma distância, mas não
parece provável que seja inerente ao som tanta potência de se difundir - embora a
luz a tenha, pela excelente prerrogativa, de entre as qualidades sensíveis - não só no
instante, mas também segundo o ser real, como ele explica pormenorizadamente.
É manifesto que o som se difunde para qualquer lado, não se prolonga apenas em
linha recta, mas espalha-se numa série continuada, circular, à maneira dos círculos
que se desencadeiam com o embate de uma pedra na água, partindo do centro para
todos os diferentes lugares. O argumento defende que se costuma ouvir o som a
partir da superfície e em oblíquo e, por fim, em toda a parte. Quanto ao respeitante
ao som reflexo ou eco. Este é feito, então, quando o som bate num corpo liso e côn­
cavo donde foi devolvido, repelido como uma bola em direcção aos ouvidos, de
maneira que se pode ouvir ao longe qualquer perturbação do silêncio. Se o corpo em
que o som bate for desigual, de maneira a que a unidade do som devolvido não seja
conservada, não será possível ouvir-se a resposta da voz ou a voz contrária. Também
se o corpo for húmido ou mole, de modo a ceder ao embate e a soltá-lo, ele não
duplicará o som, nem produzirá uma imagem. Caso se pergunte se o eco é feito pela
percussão do ar que, como um remo, traz e leva o som, respondemos de forma ade­
quada com aquilo que considerámos acima. Tal como não é necessário que o ar se
mova por todo o espaço em que o som é emitido, nem que o som segundo o seu ser
real se espalhe, todo ele arrastado, para que as espécies vagueiem, assim também,
358 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

para a geração do eco, não se exige que todo o ar se agite até ao lugar donde as
vozes respondem. Nem também é necessário que o som, segundo o ser real, o atinja,
e se dê sempre a reflexão das espécies pelas quais se percebe o som, como é evi­
dente a partir do que acima se disse. Porém acontece uma só voz não atingir duma
vez o ouvido apenas pela reciprocidade, mas muitas vozes, como de vez em quando
se ouve um sem número de vozes, tal como os Paduanos contam ter acontecido em
certo lugar, e outrora no pórtico de Olímpia a que chamavam, por isso, dos sete
sons, já que a mesma voz costumava voltar sete vezes, segundo Plínio, livro 36,
História Natural, capítulo 1 5º. Na verdade, quando uma voz repercutida uma só vez
incide nos locais próximos e nas curvaturas côncavas, a partir das quais estala em
reflexos repetidos, essa mesma voz atravessa muitas vezes os ouvidos. Não são
ouvidas no eco senão, mais ou menos, as últimas palavras, porque embora se faça o
retomo da voz toda, no entanto, as suas primeiras partes são atrapalhadas pelas últi­
mas, impelidas da retaguarda. Por isso, apenas aquelas partes, cujo retomo não se
encontra impedido, que são as últimas, costumam ser por nós percebidas.
Pode objectar-se. Os corpos sólidos, contanto que sejam translúcidos, transportam
espécies da cor, logo também transportam as espécies do som, visto que parece
proceder razão semelhante a uma e a outra. Depois, as toupeiras ouvem debaixo da
terra, compensando com o ouvido a cegueira permanente com que foram lesadas
pela natureza. Em terceiro lugar, não parece que se deva negar que os sons se ouvem
através do fogo interposto. Em quarto, os bem-aventurados depois da ressurreição,
no domicílio da pátria celeste, onde nem ar, nem água existem, falam entre si com a
palavra exterior, como é opinião comum dos Padres. Portanto, não só o ar e a água,
mas também outros corpos têm potência condutora dos sons .
À primeira destas objecções, deve dizer-se, que tal como a vista é superior ao
ouvido e as espécies visuais mostram ser de conhecimento mais nobre do que as
auditivas, assim também o meio da vista é claramente mais manifesto do que o do
ouvido e as espécies daquele passam por mais corpos, do que as deste. À segunda,
que as espécies do som não são transmitidas às toupeiras através do elemento terra,
mas através do ar que está dentro dos poros da terra. À terceira, parece também que
os sons atravessam o fogo, mais ainda, que se originam com uma pancada dele. Na
verdade, Aristóteles não falou senão dos meios mais célebres e mais conhecidos ou
dos substratos dos sons. À quarta, dizemos com São Tomás, no segundo livro das
Sentenças, distinção 2, questão 2, artigo 3° ao 5°, que no pulmão e garganta dos
bem-aventurados, há-de estar um certo ar conatural que lhes foi concedido por Deus
na ressurreição, não por necessidade de respirar ou de expirar, posto que neles não
será necessário o uso da expiração ou da respiração, mas para formar as vozes.
Encontrando-se esse ar livre junto da artéria vocal, e percutido com a língua, com os
dentes e com os restantes aparelhos vocais, formarão a voz de um modo mais imate­
rial do que entre nós, ou sej a, apenas difundida segundo o ser intencional pelo corpo
celeste. Não admira que Aristóteles não tivesse tratado deste assunto, uma vez que o
não conheceu.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VIII, Questão III, Artigo l 359

QUESTÃO III
De que modo se forma a voz e qual é a sua natureza

ARTIGO I
Da formação dos instrumentos e da competência da voz

Vários autores explicaram diligentemente os instrumentos que devem produzir a


voz. São Gregório de Nissa no livro A Criação do Homem, capítulo 1 9º; Teodoreto,
no sermão terceiro, A Providência; Lactâncio, no livro A Criação de Deus, capítulo
2º; Aristóteles, no livro primeiro de A História dos Animais, capítulo 1 6º e livro 4,
capítulo 9º; Galeno, livro 7, De usu partium, capítulos 5º e livro 2 do De decretis
Hipocratis et Platonis, capítulo 6º e no livro De vocalium instrumentorum dissec­
tione; Vesálio, no livro 7, De fabrica humani corporis, do capítulo 4º ao 8°; Femé­
lio, no livro De partium corporis humani descriptione, capítulo 8º. Ocorre, logo, em
primeiro lugar, que os cinco principais instrumentos para executar esta função são os
pulmões: o tórax e os músculos intercostais; a traqueia; a laringe; a garganta. Os
pulmões servem para recolher o ar, por isso neles reside uma certa porosidade e
moleza, semelhante às esponjas, com que se contraem e dilatam. Os músculos, pela
faculdade motora, através da qual têm energia, ou o tórax, pela intervenção dos
músculos, separam e repelem o ar comprimido pois, a não ser assim, nenhum som
ou voz poderão ser produzidos. A traqueia é uma via cartilagínea que leva o que se
origina na fauce, composta por várias cartilagens, que desce através do pescoço em
direcção aos pulmões e que está permanentemente aberta para poder trazer e levar
incessantemente o ar. Diz-se que a traqueia é cartilagínea por causa da desigualdade,
tal como se chamam lisas àquelas que procedem do coração e manifestam o pulso. A
laringe é o topo ou fim superior da traqueia encimada pelas tranglóticas e é formada
de três cartilagens. Para que nenhum alimento dela escorregue, a última abertura da
laringe encerra uma membrana cartilagínea e oblonga muito parecida com os canais
da língua. Daí, o seu nome emy ÀwTíc;. Esta eleva-se muitas vezes com o refluxo do
ar. A garganta ou gorgomila, que também se chama suporte, é um bocadinho de
carne redonda que pende do fim do palato, sob a qual está a epiglote. Chama-se
também úvula, sobretudo porque o influxo do humor, à semelhança da uva, incha e
inflama-se. Por todos estes instrumentos é formada a voz, dos quais o principal é a
laringe, como ensina Aristóteles, livro 9, A História dos Animais, capítulo 2º, a par­
tir da qual a voz é produzida. O ar comprimido com força pelos músculos torácicos e
pelos intercostais é trazido em massa, dos pulmões, através da artéria vocal, o qual,
uma vez retido, é conduzido por uma via estreita para o ar, pela artéria até à laringe,
no oposto da epiglote. Indo à garganta e à parte superior da artéria, ele soa e produz
a voz que não poderia formar se a língua não estivesse à frente, porque se precipita­
ria todo, sem percussão. A língua e a gorgomila contribuem muito para modular a
voz porque a voz fractura-se e é modulada nestas partes e perante a variedade dos
diversos modos de percussão fazem-se as flexões das vozes, sobretudo a gorgomila,
que como um plectro conduz à suavidade e moderação da voz. Além dos instru­
mentos recordados até aqui, também outros respeitam à voz, embora os primeiros à
voz, pura e simples, e os restantes, sobretudo, são dados em razão da voz articulada,
a saber, a língua, o palato, os dentes, os lábios. Destes, a língua é composta de nove
360 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

músculos, colocados por todo o lado, que a linha média separa à direita e à esquerda,
e como é sumamente volúvel, para não se soltar em excesso na fala, atada por baixo,
como que presa por correias. Mas a língua separa a fala ou (o que é o mesmo) forma
a voz articulada, que deixa para o discurso. Então o ar, que salta da cavidade da
artéria e cai na abertura da boca, quebra-se de modo diferenciado e divide-o e
separa-o pela variedade das palavras, para o que se exige que tenha de ser adequa­
damente dada uma certa temperatura. Por isso, se a língua está mais húmida e mais
mole, como nas crianças, e algumas vezes nos mais velhos, leva ao balbucio, porque
os músculos não estão firmemente constituídos. Daí que os ébrios às vezes balbu­
ciem e falem de modo confuso, quer porque o cérebro está banhado por muita humi­
dade, quer porque a língua fica muito pesada devido à muita quantidade dela. Mas
os que são gagos por natureza, ou têm o cérebro excessivamente húmido, ou a lín­
gua, ou um e outra. O palato alonga-se até aos dentes da frente e é áspero com mui­
tas rugosidades, para que nelas a voz se detenha, quer por outras vantagens, quer por
aquela que normalmente ajuda a voz, porque o palato é côncavo e, em consequência,
as vibrações da voz são repetidas durante muito tempo para os seus lados. Também
os dentes contribuem em grande parte para a voz. Como Plínio, livro 7, Historia
Natural, capítulo 1 6º, diz, que os dentes da frente têm o comando da fala e da voz
em concerto, suportando o golpe da língua e o conjunto da estrutura, mas, pelo
tamanho, os dentes incisivos e os molares enfraquecem as palavras e com o defluxo
impedem toda a pronúncia. Finalmente, os lábios manifestam muita utilidade para
formar a voz, visto que a distinção das letras, sílabas e palavras se contém em parte,
na sua grande extensão e compressão. E assim, temos nos lábios as diferenças da
fala e das vozes, como os flautistas, com o trabalho dos dedos, modelam o sopro nas
flautas e a harmonia do canto.

ARTIGO II
Explica-se a definição de voz transmitida por Aristóteles

A partir do que se disse não será difícil compreender a definição de voz transmi­
tida, por Aristóteles, no capítulo atrás, texto 90. A voz é o impacto do ar atraído pela
respiração, existente a partir da alma para os pulmões, quando é produzido por um
certo pensamento. Atente-se, em primeiro lugar, na diferença entre som, voz e fala.
O som também respeita aos corpos inanimados. A voz, apenas aos animados, visto
que não é feita a não ser com instrumentos que são próprios dos animais. A fala,
apenas respeita aos homens, porque apenas estes têm razão e sentidos da mente
quando se comunicam aos outros, o que se faz através da fala.
Em segundo lugar, observar-se-á aquilo que já acima concluímos e que Aristóte­
les adverte, neste capítulo, isto é, assim como a voz respeita apenas aos animais, não
respeita, no entanto, a todos. Na verdade, os animais que não têm sangue e os que
são imperfeitos não produzem voz e, geralmente, nenhum deles respira, apenas
emitem um certo som semelhante à voz, como as cigarras. Com efeito, uma vez
recebido o espírito móvel debaixo do peito, indo ao encontro da membrana interior
de dentro, eles ressoam com o seu atrito. Outros fazem um zumbido, como as mos­
cas e as abelhas, quando se erguem em voo e param. Os peixes também não têm voz.
Donde, Pitágoras, como Plutarco refere em Quaestionibus conuiualibus, proibiu que
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vlll, Questão l/l, Artigo li 361

se comessem os peixes porque eles são de certo modo companheiros da disciplina


pitagórica, por causa do silêncio, consoante o provérbio, «mais mudo do que um
peixe» . Também os peixes, que parecem ter voz, não produzem uma voz autêntica,
mas apenas um ruído semelhante à voz com as guelras e outros instrumentos deste
tipo. Por esta razão as andorinhas-do-mar, quando esvoaçam sublimes, revolvem o
ar com as plumas e ressoam. Também aquele, que é chamado bode no rio Aqueloo,
emite um quase grunhido. Os animais anfíbios, isto é, os que têm dupla natureza,
como o cavalo-marinho, têm pulmão, artéria e produzem voz. Também os golfinhos,
que não são de natureza ambígua mas simplesmente se contam entre os aquáticos,
provocam um gemido semelhante à voz humana.
Terceiro. Não se deve ignorar que a troca de ar nos animais é feita por muitas
causas. Primeiro, para a nutrição e a reintegração dos sopros, como mostrámos nou­
tro ponto. Segundo, para refrigeração do calor, porque de outra maneira o animal
seria destruído por um calor excessivo; ou (como pretendem alguns) para a ventila­
ção. Os que a distinguem da refrigeração, dizem, por isso, que a ventilação é o sus­
citar e a ascensão, sobretudo, do calor em movimento, visto que o calor é desenca­
deado pelo movimento, como a experiência mostra e transmitimos com Aristóteles
no livro segundo O Céu, capítulo sétimo, questão sexta. Terceiro, para formar a voz,
função que se exprime na definição de voz.
Posto isto, chegamos à definição proposta. Diz-se que a voz é o impacto do ar em
sentido causal, não formal, isto é, não que a voz seja o próprio impacto do ar, mas
porque resulta do impacto do ar. Por esta razão, também Aristóteles disse, não de
um modo definitivo, como acima advertimos, que o som é a colisão dos corpos sóli­
dos, isto é, que é produzido pela colisão. Porque vale o mesmo, a voz é impacto do
ar e é o som produzido pelo impacto do ar. Acrescenta-se, atraído da alma e etc., isto
é, do ar, que é atraído primeiro e que depois retoma pela força motriz constituída nos
pulmões. Com um pensamento, ou sej a, aplicada por uma potência de tal tipo para
operar, pelo movimento da fantasia e do apetite sensitivo. Aristóteles expõe aqui que
a voz é dada pela natureza para significar, porque pela voz, são declarados quer os
sentidos da fantasia (e nos homens também os da mente), quer as disposições inter­
nas. E assim, também os animais desprovidos de razão expõem pela voz as disposi­
ções da alma, como os cães com o latido, as aves com o canto, os bois com o
mugido, as ovelhas com o balido e outros deste tipo. Mas acerca deste assunto, mais
amplamente no livro sobre A Interpretação. Além disso, nesta definição, Aristóteles
compreende os quatro géneros de causas. O ar é a matéria da voz, a alma, a efi­
ciente, a forma, o som, o significado, o fim. Pode opor-se que nem toda a voz é
significativa, como fazem os dialécticos, que dividem as vozes em significantes e
não significantes. Deverá responder-se que, se tratarmos do significado das disposi­
ções, toda a voz, por sua natureza, significa. Mas se tratarmos da significação, de
acordo com a autoridade e a vontade dos homens, todas as vozes humanas signifi­
cam em potência, porque pode ser-lhes atribuída uma significação, mas nem todas
podem ser significantes em acto, dado que em muitas nenhuma significação foi
imposta. A divisão dos dialécticos deve ser compreendida de acordo com esta
segunda noção de significar.
362 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

QUESTÃO IV
Da faculdade auditiva

ARTIGO I
Qual é a sua eficácia, qual o seu aparelho

Tratámos do objecto do ouvido, agora dissertaremos brevemente sobre a própria


faculdade de ouvir e do seu órgão. Esta potência tem, pela dignidade, o segundo
lugar entre os outros sentidos externos. E tem grande utilidade, em primeiro lugar,
na vida social. Nenhuma fala e discurso em que transmitíssemos os sentidos da
mente e nossos cuidados procederia, se não ouvíssemos a própria fala. Nenhuma fala
existe sem ouvido, visto que os que são surdos de nascença, como nunca ouviram a
fala, não podem, assim, formar um discurso e, por isso, também são mudos, embora
os médicos respondam que é outra a causa deste problema, como se lê em Afrodísia,
primeiro livro Problemas, questão 1 33 . Segundo. O ouvido conduz um grande
número de homens para a produção artística e para as ciências que preparam para o
ensino. E, por isso, no capítulo 2º, do livro O Sentido e o Sensível, o ouvido é cha­
mado sentido da disciplina, e os animais que não têm ouvido estão privados da dis­
ciplina. Terceiro. Porque as coisas recebidas pelos ouvidos movem fortemente as
disposições, sobretudo se forem formadas por peças musicais. De entre outros
exemplos desta matéria está aquele, de Pitágoras, que dirigiu para a moderação um
jovem com o modo frígio, que é o género da harmonia. Também aquele exemplo do
músico Timóteo que demoveu o imperador Alexandre, indulgente pelo convívio da
sinfonia, que chamavam Orthia, com o retumbar da trombeta, de se apropriar das
armas e de reclamar o cavalo, afirmando deste modo a necessidade de que a música
fosse régia. Mas como o som move tanto a alma, Escalígero disse-o, no Comentário
sobre Cardano, exercício 302, número 2, com as palavras seguintes. Porque os espí­
ritos que agitam o coração, recebem o ar trémulo e saltitante no peito e unificam-se
com o que é afim, etc. que aí mesmo acompanha ainda mais solto. Quarto. A digni­
dade da potência auditiva recomenda-se ao máximo, porque serve para observar a
disciplina da fé celeste, visto que, como no capítulo 1 0º, Epístola aos Romanos, São
Paulo ensina, a fé dá-se pelo ouvido.
No que respeita ao aparelho auditivo, ocorrem, primeiro, as orelhas, que prestam
ao ouvido uma utilidade semelhante à que as sobrancelhas prestam aos olhos . A
natureza colocou-as sobre os olhos para reterem alguma coisa que caia da cabeça em
direcção a eles. Assim também a orelha foi aposta ao ouvido para impedir o que cai.
São também cartilagíneas e, por isso, medianamente moles, porque se fossem menos
moles como a carne, atordoar-se-iam por pouca coisa e não difundiriam qualquer
som. Se fossem duras, poderiam ser facilmente quebradas . Abundam em labirintos
parecidos a curvas oblíquas, para que o som, com o impacto directo, não danifique
bastante o interior do que sustenta o sentido. E por isso, o seu canal, embora dentro
seja amplo e profundo, é no entanto tortuoso e semelhante a um caracol enroscado.
Donde, neste capítulo, texto 83, Aristóteles ter escrito que por causa da referida
obliquidade não entra a água até ao ar interno, quando mergulhamos a cabeça, mas
também para que a frieza do ar que escorrega amoleça levemente com a diversidade
dos circuitos. Além disso a admirável providência da natureza impregna a mesma
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VIII, Questão IV, Artigo li 363

cavidade com o humor ceroso formado dos resíduos das partes, de maneira que se
um insecto ou algo de prejudicial se introduzisse ficaria preso e agarrado, como no
visco. Também, dentro da referida abertura está uma membrana (a que chamam o
tímpano do ouvido) que abrange transversalmente uma dada parte orbicular da cavi­
dade, fortalecida por três pequenos ossos. Um deles apoia-se em dois pedúnculos de
bigorna, outro no do martelo, um terceiro assume a figura de um estribo. Dentro dele
encontra-se um certo ar visível nas dissecações, pelas quais se encontra uma certa
sede vazia. O referido ar é retido desse modo com uma estaca, porque de outra
maneira dissipar-se-ia com veementes estrondos. Por fim, tal como os olhos nos
nervos ópticos ou visórios se afastam, assim o tímpano do ouvido está ligado a um
dado nervo que desce do cérebro, através do qual, quer os espíritos animais chegam
ao tímpano, quer as espécies dos sons passam para o sentido comum.

ARTIGO II
Em que parte se constitui a faculdade de ouvir

Exposto o aparelho auditivo, resta vermos em que parte dele incide a própria
faculdade de ouvir. Embora, para os restantes sentidos também sirvam muitas partes
do ouvido, é necessário que exista uma principal, que tome a vez do instrumento
primário, como, na vista, o humor cristalino. Temístio pensa que o principal órgão
do ouvido é o sopro, para que através do ar inato, como um mensageiro doméstico,
os sons sej am transmitidos, mas está iludido. Na verdade, como o sopro tem em
comum com o sangue a mesma natureza (dado que o sopro não é outra coisa senão o
sangue reduzido a grande subtileza) e, por isso, é desprovido de alma, como no
primeiro livro A Geração e a Corrupção claramente mostrámos, acontece que de
modo algum poderia ser o instrumento da potência vital ou substrato, visto que desse
modo a alma realizaria a função vital onde ela mesma não reside. Outros, de entre os
quais Vesálio, no livro primeiro, De humanis corporis fabrica, capítulo 8º, pensam
que o órgão do ouvido são os ossículos postos dentro do tímpano. Mas não aprova­
mos esta opinião, porque os ossos, pela espessura terrena que têm, não são aptos a
ter sensações, e, por isso, nem com o tacto, a não ser de um modo mais ou menos
tosco e obscuro.
Logo, rejeitadas estas opiniões, acolhemos a opinião de Aristóteles, no segundo
livro As Partes dos Animais, capítulo 1 0º, que considera que o ar produzido ou acu­
mulado nos ouvidos, que dissemos estar encerrado na membrana para não escapar
para fora, nem estar patente às agressões externas, é o verdadeiro e o próprio instru­
mento de ouvir. Aristóteles também o considerou de forma clara, no capítulo ante­
rior, texto 83, quando ensinou que é necessário que o ar esteja assim imóvel e
parado para perceber os sons externos e conhecer todas as diferenças . Galeno, além
de outros, seguiu Aristóteles, no livro 8, De usu partium, capítulo 6º, no ponto em
que escreveu o seguinte. Todo o sensório é alterado por qualquer sensível ; o bri­
lhante e luminoso, pelas cores; o aéreo, pelos sons; o vaporoso, pelos odores; digo,
em suma, que é conhecido como semelhante pelo semelhante e comum. Com estas
palavras, para provar esta opinião, Galeno indicou um argumento assim. O sensório
deve ser de tal modo que possa ser afectado pelo próprio objecto, ao receber em si as
suas imagens ; é desta maneira que o ar está, de facto, dentro dos ouvidos. Tal como
364 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

aquilo que de preferência recebe e atravessa os sons é o elemento do ar, assim tam­
bém para os receber segundo o seu ser nocional, o mais idóneo é o referido ar ínsito
em nós, e assim, é afim ao que constitui o órgão do ouvido.
Pode alguém objectar. Aquele ar encerrado nos canais auditivos ou é da mesma
natureza do elemento do ar, ou de outra. Se é da mesma, então não é animado e, por
isso, a potência auditiva não pode ser deformada. Se é diferente, então está apto a
receber as espécies dos sons. Parece dever responder-se a este argumento que esse ar
apenas por analogia se chama ar; é animado, como diz Simplício, e o argumento
prova que não recebeu o nome de ar a não ser pela semelhança com o ar elementar,
que é ténue e permeável, como ele. Não repugna que uma pequena porção do corpo
animado, sej a de tal modo ténue e subtil, quase aérea, visto que assim postula a
natureza da faculdade que aí tem sede, apesar de todo o corpo, como uma unidade
acabada da alma, não poder em tanta subtileza estar apto para a formação da alma. E
para receber as espécies audíveis não é necessário que o sensitério do ouvido sej a da
mesma natureza do ar elementar, a ligação reside na afinidade, na subtileza e na
raridade.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IX

a. De odore uero 42 1 a 7 O tratamento do odor segue, na ordem da doutrina, o


-

estudo do ouvido e da vista, dada a afinidade e a relação que aquele sentido tem
com estes, como de caminho será evidente. Neste capítulo, Aristóteles explica
quatro pontos respeitantes ao odor: a natureza do odor, as espécies de odores, o
meio e o instrumento. Primeiro, avisa que este estudo é difícil, porque o sentido
do odor por defeito e inaptidão do órgão é pouco nítido em nós. Assim, não
podemos perceber exactamente os odores, nem penetrar e conhecer bastante a
sua natureza e variedade. Afirma com o argumento que nós cheiramos de modo
tão débil, que apenas percebemos aqueles odores que penetram mais vivamente o
sentido e produzem a dor ou o desejo. Mostra-o fazendo uma dada comparação.
Assim como os animais, cujos olhos se apresentam com uma membrana dura e
densa não atingem aquela subtileza que existe nos restantes, e por isso, embora
percebam as cores, eles não discernem as suas diferenças sem medo ou desejo,
sem prazer ou dor, isto é, sem um forte movimento da coisa vista (quer se hesite
ou não é o que significam estas palavras no contexto), assim também sucede com
os homens na percepção dos odores. Atente-se que aqui, os olhos duros, como os
dos peixes e dos animais chamados insectos e crustáceos, de que Aristóteles fala
no livro 2, As Partes dos Animais, capitulo 1 3º, vêem menos acutilantemente por
duas causas. Primeiro, porque, como a sua membrana é espessa e grosseira,
recebe de modo menos evidente as imagens das coisas que há para observar.
Depois, porque estão geralmente a descoberto e são proeminentes, e neles as
espécies não podem reunir-se ao centro, tal como se reúnem nos sensórios enco­
bertos e profundos. Leia-se Aristóteles, livro 1 , A História dos Animais, capítulo 1 Oº.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX 365

b. Similem autem 42 1 a 1 6 - Dado haver uma semelhança mútua e uma proporção


entre o gosto e o olfacto, também se atribuem aos odores os nomes dos sabores.
Uma vez que também os homens têm o gosto mais apurado do que o olfacto,
Aristóteles ensina que as espécies dos odores podem ser conhecidas a partir das
espécies dos sabores. Daí considerar que, em nós, o gosto é superior ao odor,
porque o gosto é um certo tacto, isto é, o tacto da língua sobre os sabores. Prova
com o indício de que o tacto do homem é muito penetrante, porque o homem
supera, em prudência, todos os animais e existe uma e a mesma razão comum ao
bom tacto e à prudência, que é decerto a delicadeza da carne. Daí, considerarmos
que aqueles que são delicados na carne, são superiores também em pureza e em
inteligência. Contrariamente, existem os imbecis, que têm a carne mais dura e
peles grossas. Aqui atente-se que a partir da excelência do tacto se manifesta a
superioridade da inteligência, porque desta composição se retira uma boa quali­
dade, como afirma Temístio. Na verdade, como o tacto se funda nas primeiras
qualidades e lhes diz respeito, assim também é óptimo quando elas alcançam a
perfeita e exacta simetria e composição. Uma composição óptima e um órgão da
fantasia mais apto toma a própria fantasia mais desembaraçada. Depois, a facili­
dade e a prontidão da mente dependem da fantasia, em que consiste a potência da
inteligência, como expusemos noutro lugar. Para a boa qualidade da composição
concorre a excelência da inteligência, enquanto causa material e dispositiva. As
coisas que provêm de uma composição óptima são a prova de uma natureza mais
subtil, como a cor forte, a finura dos cabelos, a finura das unhas, a delicadeza da
carne. Decerto, esta delicadeza, que aqui Aristóteles principalmente lembra, tam­
bém auxilia a inteligência, porque dispersa e solta resíduos inúteis. Uma vez
estes afastados, os espíritos, que o coração exala abrasando o sangue brotam mais
subtis e acorrem com tanto maior ardor para a regulação das potências. Por isso,
também atingem os fantasmas mais puros e mais clarificados. A isto não obsta
que o corpo sej a mais delicado na mulher do que nos homens, mas que estes
ordinariamente lhes sejam superiores, tanto no discernimento como na inteligên­
cia. Nem que os fleumáticos, que são mais fracos do que os coléricos, tenham
uma pele mais fina. Com efeito, a delicadeza não resulta de um humor aquoso e
pituitário, como o que existe nas fêmeas e nos fleumáticos, mas aéreo, compa­
nheiro da boa inteligência. Também não obsta que Aristóteles nos Problemas,
secção 30, questão 1 , tenha escrito que todos os seres inteligentes foram melan­
cólicos, porque a bílis negra é de tal modo seca e fria que também parece produ­
zir um corpo não mole, mas duro e térreo. Por que razão se deve acolher isto,
mostrámos claramente no livro 2, A Geração e a Corrupção. Nem, por fim, con­
traria o que Aristóteles afirma, no livro 1 , A Geração dos Animais, capítulo 20º,
que o gosto e o tacto não criam a prudência. Ali fala acerca do tacto em si, mas
aqui mostra a sua composição excelente, a partir da sua eficácia e boa qualidade
da inteligência e do juízo. Estas coisas, acerca das quais discutimos no livro
citado, são suficientes para o presente. Leia-se Ateneu em Caena sapientum,
livro 8, capítulo 8°; São Tomás, 1ª parte, Suma Teológica, questão 76, artigo 5º;
Ficino, no livro 2 De studiosorum sanitate tuenda, capítulo 3º e no sexto de Pla­
tão, As Leis; Célio, livro 1 0, capítulo 20º; Levino, livro 1 , De occultis naturae
miraculis, capítulo 1 6º; Medina, livro 2, De recta in Deum fide, capítulo 7º.
366 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

c. Ut autem saporum 42 1 a 26 Explica a semelhança ou a analogia entre os sabo­


-

res e os odores. Ela existe porque tal como uns são oleosos, outros ácidos, outros
amargos, outros doces, também assim se contam as diferenças de outros tantos
odores, que em grande parte reclamam o mesmo nome, porque afectam igual­
mente o sentido. Com efeito, o sabor ácido, por exemplo, corrói o gosto, tal
como o odor ácido o olfacto. Mas algumas palavras dos sabores, quando são
transferidas para os odores, são menos comuns aos ouvidos latinos, como dire­
mos de caminho.
d. At qui sicut auditus 42 1 b 5 Mostra que o olfacto convém com os restantes
-

sentidos, porque não apenas conhece o sensível próprio como também a sua pri­
vação. Como a luz percebe a vista e as trevas; o ouvido, o som e o silêncio, assim
também o odor percebe o que tem cheiro e o inodoro. Depois, avisa que há três
maneiras de falarmos do inodoro, a saber, o que é totalmente desprovido de
cheiro, o que tem um cheiro desconhecido, o que cheira mal. Diz que pode afir­
mar-se o mesmo acerca daquilo que recai sob o sentido do gosto. De que modo
os sentidos conhecem as privações, expusemos noutro lugar.
e.Fit autem olfactus 42 1 b 8 Trata do meio pelo qual se transmitem os odores e diz
-

serem quer o ar quer a água. Porque talvez alguém pudesse duvidar, no que toca
à água, afasta a dúvida com o argumento de que também aqueles que vivem na
água são atraídos para locais distantes pelo odor dos alimentos. Diz que é seguro
que, não só os animais que vivem fora das águas, mas também os aquáticos, e
num e noutro género, quer os animais dotados de sangue, quer os desprovidos
dele, sentem o cheiro. E porque os animais que têm pulmões absorvem cheiros,
inspirando, e os restantes, sem inspirar, enceta a ocasião de perguntar se todos os
animais sentem o cheiro da mesma maneira. Responde que todos sentem da
mesma maneira, nomeadamente segundo a espécie. Mostra isto com dois argu­
mentos. Primeiro, porque é o mesmo objecto em todos, certamente tanto o bom,
como o mau odor das coisas que têm cheiro. Depois, porque é necessário que
seja o mesmo sentido a ser atingido pelos mesmos sensíveis. Também o olfacto
de todos os animais costuma ser agredido pelo odor forte, como é o do pez, do
enxofre, e de outras coisas do género.
f. Atque huius instrumentum 42 1 b 26 - Assim como os animais ditos de olhos
duros, têm olhos sem pálpebras, e estão permanentemente preparados para serem
dirigidos para o objecto que se vê, aos restantes são-lhes dadas as pálpebras, que
escondem os olhos. Também os animais que se salientam pela respiração têm o
órgão do cheiro num lugar retirado e munido de um certo revestimento. Daí que,
nas águas, onde não pode existir atracção do sopro cheirem menos, visto que
aqueles em que o sensitério está à vista, não estão, em absoluto, privados de
captar os odores, pela inspiração. Aristóteles diz que assim como, a diversidade
de ver não prova a diversidade da visão, também não será suficiente a variedade
no cheirar para distinguir, na espécie, a faculdade olfactiva. No livro O Sentido e
o Sensível, capítulo 5º, ele levanta esta dificuldade e, da mesma maneira, resolve-a.
g. Est autem odor 422 a 6 Explicando em poucas palavras a natureza do odor,
-

afirma que o odor está para o seco, como o sabor para o húmido, isto é, porque
no substrato do odor o húmido é vencido pelo seco. Contrariamente, no substrato
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Artigo l 367

do sabor, o seco é vencido pelo húmido. Acerca deste assunto há mais nas
Questões.
h. Ipsum vera 422 a 7 Afirma que o órgão da faculdade de cheirar é em potência o
-

que o próprio odor é em acto, isto é, os instrumentos dos sentidos têm aptidão
para suportarem os objectos e então suportam essa capacidade, ao menos em
razão das imagens que os anunciam, acabando por tomar-se semelhantes aos
objectos.

QUESTÃO 1
Se o odor consiste na exalação do corpo odorífero ou não

ARTIGO I
Argumentos da parte afirmativa

Heraclito acolheu a parte afirmativa da controvérsia, que Aristóteles refere no


livro O Sentido e o Sensível, capítulo 6º; Platão, no Timeu; Teofrasto, 6, De causis
plantarum, capítulo 5º; Galena, no livro De olfactus instrumento; Avicena, no livro
6 dos Naturais, parte 2, capítulo sobre o odor; S. Damasceno, no livro A Fé Orto­
doxa, capítulo 1 8º. Também Alfarabi e Albefaraab, que Veneto refere no texto 97.
Podem ser aduzidos os seguintes argumentos a favor desta opinião. Dão-se muitas
coisas por intervenção dos odores, que apenas pela substância se podem apresentar.
Portanto, o odor é a própria substância fúmida. Prova-se a premissa maior, primeiro,
porque o odor nutre e sustenta. Diz-se que os Á stomes, tribo de índios, nos confins
da Índia, j unto às nascentes do Ganges, vivem das flores e dos frutos que recolhem
num único perfume, como narra Estrabão a partir de Onesicrito, livro 1 6, e Plínio,
livro 2, História Natural, capítulo 2 1 º. Também Galena, no livro 2 dos Aforismos, e
noutros pontos, distingue no animal dois géneros de partes. Umas sólidas, que diz
serem nutridas pelo alimento, outras ténues e aéreas, como os espíritos, que diz
serem de ar carregado de cheiro a alho. Segundo. O mesmo recomenda-se, porque
muitos odores, a partir do delíquio da mente libertam, ajudam e deleitam o cérebro.
Por isso, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5º, Aristóteles afirma que o odor é
instituído pela natureza para temperar o cérebro. Ao contrário, muitos odores inco­
modam e são nocivos, como é evidente com base na experiência. Estrabão relembra
no livro 1 6, que, por vezes, os Sabeus ficam entorpecidos de vez em quando pelos
odores. Hipócrates, no livro 5, Aforismo 28, ensina que o aroma da fumigação pro­
duz um peso na cabeça. Plutarco, no livro De praeceptis connubialibus afirma que o
cheiro dos unguentos irrita a bílis. Levino, no livro 2, De occultis naturae miraculis,
capítulo 9º, diz que em certas regiões, os odores, que são emitidos pelas florzinhas
das favas induzem o delírio. Por último, os odores putrefactos, que emanam dos
cadáveres e locais lamacentos, corrompem o ar e causam, por vezes, a pestilência. E
tudo isto não parece que aconteça, senão pela intervenção da substância fúmida.
Confirma-se também esta posição, porque os homens respiram para cheirarem,
sobretudo para atraírem a excreção fúmida, para os sensórios. E ainda, porque é
evidente que as coisas cheirosas apaziguam e esgotam-se com a exalação assídua
dos odores. Acrescente-se a autoridade de Aristóteles, porque embora nos Proble-
368 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

mas, secção 1 2, questão 1 O, ao perguntar se o odor é exalação, ar ou vapor, nada


ousou estabelecer, todavia, na secção 3 da mesma obra, questão 5 e capítulo 2º de O
Sentido e o Sensível afirmou que o odor é uma exalação.

ARTIGO II
O odor não é uma exalação fúmida nem os argumentos
anteriormente aduzidos concluem isso

Seja a seguinte conclusão. O odor não é uma exalação fúmida do corpo odorífero
mas uma qualidade do sensível dotado de odor. Esta conclusão é evidente, quanto à
primeira parte, porque se o odor fosse uma exalação, pois esta é uma substância,
visto que se move por si e se evade para lugar elevado, seguir-se-ia que o odor não
seria um sensível por si, pois nenhuma substância por si recai sobre o sentido.
Acresce o testemunho de Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5º,
quando refuta Heraclito, Platão e outros filósofos antigos, entre os quais era comum
a opinião contrária. A segunda parte da mesma conclusão é evidente, porque como o
odor não é uma substância, como foi provado, e denomina uma qualidade do subs­
trato e age por si no olfacto, segue-se que é correctamente dito uma qualidade do
sensível que tem odor. Na verdade, tomar-se-á mais clara a natureza do odor, como
de caminho diremos, quando tratarmos da geração dos odores.
Respondamos agora aos argumentos que se opunham a esta nossa asserção.
Àquilo que no início aduzimos, deve negar-se a premissa menor e, para a sua pri­
meira prova, dizer, com Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5º, que
o odor não alimenta. Ele apenas nutre o que se converte na substância da coisa viva.
Mas isto diz respeito somente à substância, não ao odor, que é um acidente, como
foi provado. E assim, o que é narrado sobre os Astomos é falso, como já nos livros A
Geração e a Corrupção referimos. Quanto ao que os médicos dizem, que nos seres
vivos, certas partes subtis, isto é, os espíritos, se nutrem e sustentam com o odor do
sopro vital, se isso for entendido acerca do odor, foge à verdade, se se entender
acerca da substância aérea através da qual o odor é levado, deve ser admitido até
certo ponto. Porque o ar, como demonstrámos no livro citado, nutre o espírito com
nutrição imprópria, como aquela por meio da qual se alimenta a luzerna de óleo e de
ar circundante. Porém, esta substância aérea, quando foi imbuída com o odor, justa­
mente a partir das outras qualidades, que acompanham o odor, também favorece e
conserva admiravelmente os espíritos. Daí, ser costume atribuir-se a certos odores
virtude benéfica para os espíritos, para o cérebro, e para alegrar o coração. Também
por alguma qualidade superveniente, dado penetrarem nas aberturas do corpo, tra­
zem muitos prejuízos, por causa dos humores pútridos que só deles são exalados e
viciam o ar. Não se segue que o odor é uma substância, mas que é inerente à subs­
tância em conjunto com as referidas afecções. Donde é já evidente a solução do
primeiro argumento e de todas as suas afirmações.
À primeira parte do segundo argumento, deve dizer-se que a inspiração para os
animais, não para todos, mas para aqueles que respiram, se encarrega de afastar uma
pequena cobertura com a qual, como diz Aristóteles se encerra o olfacto. Quando tal
acontece, a espécie do odor ou o próprio odor é ao mesmo tempo atraído, colocado
no ar, a partir do hálito, como de caminho exporemos. Mas daqui nada se alcança
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão //, Artigo l 369

contra as afirmações . À parte seguinte, deve conceder-se que muitas vezes a subs­
tância fúmida é emitida a partir das coisas odoríferas, mas deve negar-se que essa
substância sej a o odor. Aristóteles, nos Problemas, secção 3, questão 5, e no capítulo
2º sobre O Sentido e o Sensível chamou odor ao hálito, não formalmente, mas relati­
vamente ao substrato, porque em grande parte está presente no hálito donde é tra­
zido. Deste modo, também terão de ser explicados outros pontos, em que ele chama
odor ao hálito fúmido, ou vapor fúmido. E no mesmo sentido podem ser acolhidas as
opiniões, se não de todos, pelo menos de certos autores, que referimos no início do
artigo.

QUESTÃO II
De que maneira nasce o odor e qual é o seu substrato

ARTIGO !
Explicação da dúvida proposta

No que se refere à produção dos odores, deve considerar-se com Aristóteles, no


último capítulo e, mais longamente, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5º, que
nos corpos compostos o odor resulta da reunião das qualidades primárias, da secura
dominante, do calor fervente e excitante que destrói a humidade. Dizemos nos cor­
pos compostos, porque os elementos, como também adverte Aristóteles no ponto
citado, não têm cheiro, isto é, existem completamente puros e inalterados. Acres­
centamos, com secura dominante, porque a secura é quase a matéria do odor. O
sabor e o odor nascem do húmido e do seco, mas a diferença está em que no sabor
vence o húmido, no odor o seco. Atesta esta diferença da origem entre o odor e o
sabor, entre outras, o facto de as coisas que cheiram abundantemente serem bastante
amargas, porque são demasiado maduras ; acerca deste assunto, Teofrasto, livro 6,
De causis plantarum, capítulo 24º. Também, porque as coisas doces raramente têm
cheiro, compreenda-se, cheiro inato, como afirma Plínio, livro 2 1 , História Natural,
capítulo 7º. O argumento diz que o odor nasce da secura dominante, porque é evi­
dente que a extensão das terras áridas e quentes da Arábia e da Síria têm abundância
de óptimos odores. Acrescente-se que as coisas odoríferas, se forem demasiado
humedecidas tornam-se inodoras e, por isso, no Egipto as flores são pouco cheiro­
sas, porque nelas está impregnado o ar nebuloso e orvalhado do Nilo e, pelo contrá­
rio, a rosa colhida em dias serenos expele maior fragrância de odor. Porque, de
facto, como Hipócrates sublinhava, no livro De camibus, também o próprio órgão
do olfacto, com o defluxo da pituitária, ou com outro qualquer humor, filtra e sente
menos odor. Há uma certa conformidade natural e um certo parentesco com o pró­
prio sensível. Mas foi necessário que no odor, o seco e o subtil vingassem, para o
odor facilmente se difundir e transmitir. Mas é evidente que se requer alguma humi­
dade para que tal aconteça, porque as que secam e são queimadas exalam cheiro, o
que se vê nas cinzas do linho perfumado, como observa, além de outros Teofrasto,
livro 6, De causis plantarum, capítulo 29º e, pelo contrário, mui tas coisas muito
secas tornam-se cheirosas por causa da humidade, como a terra quando é primeiro
molhada pela chuva, após longa seca. Mas não acontece assim quando ela está
370 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

impregnada durante muito tempo. Prevalece, então, o humor, não a secura. Final­
mente, acrescentamos 'calor fervente e excitante que destrói a humidade' porque
não haverá odor a não ser que se acrescente a força do calor, que quase dilui e con­
some o húmido. Aristóteles, nos Problemas, secção 1 2, questão 1 2, afirma que as
sementes que cheiram são cálidas porque o odor produz calor. Também na mesma
secção, questão 4, ensina que todas as coisas que têm cheiro são abundantes de
calor. E o mesmo diz Galeno, no livro 4, De simplicium medicamentorum facultate,
capítulo 22º. E é esta a razão por que os alhos plantados junto às rosas as tomam
mais cheirosas, porque as aquecem e excitam e, desse modo, provocam o odor,
como afirma Contareno no livro 5 de Os Elementos. Todavia pode acontecer por
outra causa, nomeadamente, porque qualquer coisa atrai para si o alimento adequado
e, desse modo, os cheiros fortes do tipo dos do alho, atraem o alimento mal cheiroso
e deixam nas ervas e nas plantas o alimento mais puro. Experimente-se também a
água destilada das rosas que, enquanto aquece ligeiramente com o fogo, expira um
hálito mais suave e, geralmente, as que são odoóferas, exalam mais cheiro quando
aquecem do que quando arrefecem, e mais durante o dia do que durante a noite, mais
na Primavera do que no Inverno, mais no Verão do que na Primavera. Daí que se
acreditasse que Alexandre da Macedónia, como Plutarco escreve, na sua Vida,
libertasse um suave odor dos membros, resultante da temperatura ígnea e muito
quente do corpo. E o mesmo Plutarco, no livro As Causas Naturais, capítulo 25º,
resolvendo a questão por que é que a chuva toma difícil a busca feita pelas feras,
afirma que a causa está em que os hálitos dos odores, apenas se podem soltar dissol­
vidos e espalhados pelo calor, mas que o frio, que mais fortemente comprime e
cerra, não os derrete nem os impele a atravessar os instrumentos de sentir, sendo
também por isso que diz que as vinhas durante o Inverno são menos perfumadas . A
partir do que foi dito, é evidente qual deve ser a definição de odor, a saber, o odor é
a qualidade resultante da reunião das qualidades primárias, com o domínio do seco e
do calor, que move o olfacto. É evidente também qual é substrato dos odores, isto é,
aquilo em que o odor, em primeiro lugar, nasce. Ora, como o odor é uma qualidade
nascida de certa mistura das qualidades primárias, o que apenas se fica a dever aos
corpos mistos, por si, acontece que o substrato nativo e próprio dos odores é tal qual
o do corpo misto. Donde Plínio, no livro 1 5 da História Natural, capítulo 27º, diz ser
admirável, que os três elementos principais da natureza, a água, o ar e o fogo, exis­
tam sem sabor e sem odor. Tinha podido acrescentar a terra, tal como Aristóteles
acrescentou, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5°, avisando, no entanto, que
se deve entender assim, a não ser que os elementos tenham mistura. Com ela vemos
que o mar cheira e também a terra, principalmente quando se empapa depois de
longa aridez, como anteriormente dissemos, e Teofrasto escreveu no livro 6, As
Plantas, capítulos 24º e 27º. Sobre este assunto, veja-se Janduno questão 26, O Sen­
tido e o Sensível.
Mais ainda, existem várias espécies de odores que desconhecemos, em parte, por
causa da lentidão e falta de precisão deste sentido. Pois quando falta o sentido ao
homem, também falta a ciência, no que concerne aos assuntos pertencentes a esse
sentido, dado que o nosso conhecimento nasce dos sentidos. Como, portanto, chei­
ramos de modo fraco, e somente percebemos com exactidão aqueles odores que
pulsam e irritam o órgão, acontece que retemos menos as diferenças de odores.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão li, Artigo li 3 71

Deste modo, não lhes atribuímos significados usando palavras próprias, mas tradu­
zidas e declinadas conforme os diferentes sabores. Portanto, tal como os sabores,
também dizemos que os odores são penetrantes, amargos, graves e suaves, indicando
as diferenças mútuas e as suas espécies quanto à designação. Há, assim, um sabor
penetrante, que fere o sentido, rápida e fortemente, sem hesitação. Um amargo, que
pica com uma certa mordacidade. Um grave, que move pouco e indolentemente e
que, em virtude de fragrância mais densa que o odor da artemísia e por causa do
hálito fétido, ofende as narinas. Um suave, que é docemente grato e agradável.
Acerca deste assunto e das espécies de odores, Tomás Gárbio, na Suma, questão 69;
Marcelo, no seu A Alma, livro 3, capítulo 24º; Alberto Magno, 2ª parte, Suma do
Homem, tratado sobre o olfacto, e livro 2, A A lma, tratado 3, capítulo 24º; São
Damasceno, livro 2, A Fé Ortodoxa, capítulo 1 8º; Teofrasto, livro 6, De causis
plantarum, capítulos l º, 4º e 1 3º, quando aponta que, se costumamos dar nomes dos
sabores aos odores, isso, no entanto, não se confirma em todos os nomes. Ninguém
chama directamente falso a um odor. Quanto a isto, Galeno também escreveu no
livro 4, De simplicium medicamentorum facultate, capítulo 2 1 º.
Donde deve advertir-se, com Aristóteles, O Sentido e o Sensível, capítulo citado,
que existem certos odores agradáveis, pois, como correspondem aos sabores, deno­
tam coisas amigas do paladar. E assim tomam-se agradáveis para os que comem,
mas não trazem nenhum prazer de saciedade. Outros odores produzem por si delei­
tação, sem relação com os sabores, como os que são emanados de certas flores e, diz
Aristóteles, não servem para excitar o apetite de alimento, antes se lhe opõem. Daí
aquilo que sobre Eurípides disse Estrátis:
Quando a lentilha está cozida, não tem cheiro.

Deve advertir-se, depois, que em certos corpos estão presentes odores simples,
tais como os que provêm da natureza e outros, compostos, de composição variada,
que em grande parte são aqueles que a arte dos perfumistas mistura com unguentos,
para o luxo e o deleite. Plínio, livro 1 3 , capítulo 3º, diz que este abuso é maior do
que o das j óias e vestes preciosas . De facto, estas conservam-se durante muito tempo
e são transmitidas aos herdeiros, mas os perfumes expiram imediatamente e morrem
na hora. Cada libra ultrapassa os quatrocentos denários . Quem o usa não o sente, e
estima-se de preço elevado se, ao passar, o perfume também chamar a atenção de
quem se ocupa com outra coisa. Por tão alto preço se cria paixão funesta. Acres­
cente-se que efeminam um espírito viril, pelo que não carece de fundamento o
seguinte dito: Não cheira bem quem cheira sempre bem. Leia-se São Jerónimo,
Epístola 8 a Demétria, sobre jovens de cabelo ondulado e peles finas e com cheiro a
almíscar.

ARTIGO II
Resolução de algumas objecções

Contra as afirmações anteriores há quem objecte o seguinte. Se o odor existisse


no misto perfumado, como num substrato, seguir-se-ia que as flores e as defumações
cheiravam mais suavemente ao pé, do que num lugar um pouco mais afastado, dado
que cada um age pelo seu princípio mais eficaz. Mas é o contrário que se experi­
menta. Segundo. Um e o mesmo alimento é saboroso e cheiroso quanto à mesma
3 72 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

parte. Como, pois, o sabor é feito do húmido, tal como Aristóteles ensina neste
capítulo, texto 1 00, se o odor resultar predominantemente da secura, sobressairá na
mesma parte do substrato o seco e o húmido, o que repugna. Terceiro. Muitos cor­
pos, além de húmidos são cheirosos, como as águas destiladas, o bálsamo, o vinho e
muitos outros sucos do género; logo, o cheiro não provém de um seco abundante.
Quarto. Os aromas cheiram mais amargamente e conservam o odor mais demorada­
mente em cinza defumada, do que no fogo e na goma. Também as lágrimas odorífe­
ras, quando são consumidas pelo fogo nenhum odor se desprende delas e, no
entanto, o fogo é mais quente do que a cinza. Portanto o calor, ao ferver, não leva a
efeito a expiração do odor; se a levasse a efeito, quanto mais eficaz fosse a força do
calor, tanto mais se sentiria a emanação amarga do cheiro. Quinto. São três os cor­
pos mais nobres na excelência dos odores, a saber, o mosqueto, o âmbar e o zibeto.
Também nestes não abundam a secura e o calor, portanto o odor não nasce do domí­
nio destas qualidades. Prova-se a premissa menor, porque se diz que o mosqueto é
feito do sangue de um certo animal que tem o aspecto de uma raposa; o zibeto, do
suor de certos felinos; ora, o suor e o sangue são mais húmidos do que secos. Tam­
bém parece que o âmbar nasce da baleia que é habitante do mar e por isso é de
constituição fria, logo, também o âmbar que nasce dentro dela.
Ao primeiro destes argumentos, Aristóteles responde, nos Problemas, secção 1 2,
questão 2 e questões 4 e 9, que as flores cheiram mais suavemente de longe, porque
o odor é levado para um lugar distante, odor mais rarificado do que a porção térrea,
mais purificado pelo fumo, do que os vapores densos que viciam o odor e enfraque­
cem a própria faculdade de cheirar. É todavia necessário que a distância não seja
tanta que o cheiro desapareça no trajecto.
Ao segundo, não pode negar-se, entretanto, que com o odor suave o sabor se
toma maduro e agradável. Na verdade, acontece em grande parte o contrário, princi­
palmente se se falar de odores suavíssimos, os quais é necessário examinar, como a
coisa mais elevada no seu género, quando consideramos a natureza dos odores.
Acrescente-se que também se diz que o odor provém da secura, o sabor da humi­
dade, porque uma mesma coisa é não só cheirosa, mas também saborosa. Se a secura
está patente, numas partes, noutras, a humidade, o odor segue a porção mais seca, o
sabor a mais húmida. Outro, porque as coisas que são cheirosas, em iguais circuns­
tâncias, quanto mais secas mais odor exalam, como é evidente no cinamomo, no
garro e em outras, o que acontece de modo diferente nas que têm sabor. Daí que o
órgão odorífero seja seco, o gustativo, húmido, de maneira que o sabor, também nos
corpos de terra, como que aprecia as partes húmidas, mas nem na língua é discernido
pelo gosto, a não ser que ela seja molhada interiormente por algum humor.
Ao terceiro, é evidente a resposta, a partir do que antes foi dito. Ao quarto, deve
dizer-se que cheira mais a ocre na cinza defumada do que no fogo, porque o fogo
consome o hálito odorífero muito depressa, o que no calor da cinza se verifica pau­
latinamente. Daí não se segue que a exalação não se faça pelo calor, mas que, para
que se mostre adequada para transportar e conservar o odor, se requer a potência
moderada do calor que está na cinza. Por isso, estando demasiado queimadas não
cheiram, porque o odor requer alguma seiva.
Sobre o último argumento, em primeiro lugar, no respeitante ao mosqueto, os
autores divergem acerca da sua origem. Alguns contam que o mosqueto resulta do
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão li/, Anigo / 373

sangue espesso daquela fera que referimos, incluído naqueles folículos que são tra­
zidos até nós, preferencialmente do campo das Cínaras. Outros, que essa fera, uma
vez morta com uma pancada, depois putrefacta, se desfaz em partículas, as quais são
o mosqueto que se conserva nos referidos ventrículos. Outros contam outra coisa.
Leia-se Matíolo, no 1 º livro Sobre Dioscórides, capítulo 20º; Escalígero, no exercí­
cio 2 1 , Sobre Cardano. O que quer que se diga, é evidente que o mosqueto tem
secura que basta ao cheiro do sangue e enquanto não coagula será sangue húmido. O
que se deve dizer, igualmente, do suor espesso dos felinos.
Sobre a origem do âmbar, a dúvida é maior. Para muitos parece ser algo inato às
baleias. Na verdade, onde se avistam muitas, maior é a abundância de âmbar e é
certo que, por vezes, se encontra no seu ventre, quando são capturadas, quer durante
a tempestade, feridas pelo flagelo, quer nas redes dos pescadores, vencidas pelas
amarras. Outros consideram que é uma espécie de fungo marinho do fundo, ou das
rochas, onde nasce, arrancado ao mar, sacudido pelas ondas, porque é transportado
para as costas e aí costuma muitas vezes ser recolhido. Mas apareceria nas baleias,
não porque nascesse nelas, mas porque o monstro marinho se deleita com o seu
alimento com o maior empenho, tal como os terrestres e as demais aves. Leia-se
Matíolo no livro Sobre Dioscórides, capítulo 2 1 º; Fuchio no livro De componendis
medicamentis. Mas quer seja esta ou outra a origem do âmbar, negamos que lhe falte
o calor necessário para atrair o odor.
Haverá quem oponha que Aristóteles, nos Problemas, secção 1 3 , problema 4,
afirma que nenhum dos animais vivos ou mortos, excepto a pantera, solta um cheiro
suave. Razão pela qual é falso o que dissemos acerca daquelas feras. Deve opor-se
que, ou Aristóteles desconheceu isso, tal como outras coisas, que no seu tempo ainda
não tinham sido descobertas, mas que no decurso dos tempos se tomaram conheci­
das, ou que isso foi retirado apenas do saber comum, tal como muitas outras que se
lêem na mesma obra, como alguns intérpretes observaram.

QUESTÃO III
De que forma o odor se difunde e qual é o meio
pelo qual chega ao olfacto

ARTIGO I
Da difusão do odor

Seja a primeira conclusão nesta questão. O odor é geralmente difundido a partir


da coisa cheirosa, por meio da substância fúmida. Esta conclusão prova-se com os
argumentos que neste capítulo, artigo 1 º, questão primeira, produzimos para persua­
dir que o odor é exalação ou substância fúrnida. Embora não convençam que o odor
é essa substância, concluem todavia que ela acompanha o odor e que é o seu veículo,
por intervenção do qual brota da coisa cheirosa. Mas acrescentamos na conclusão
«geralmente», porque não é necessário que o odor exale sempre desta forma, se a
coisa cheirosa tiver o odor de tal modo perfeito e elaborado, que para exalar não
374 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

tenha necessidade de se decompor, ou se for de tal modo compacta que não admita
desagregação, embora isto raramente aconteça nos corpos odoríferos.
Seja a segunda conclusão. Também quando a coisa cheirosa exala vapor e o odor
não é sentido por toda a parte, dá-se uma exalação odorífera. Esta conclusão está de
acordo com o pensamento de Averróis, texto 97, deste livro; de São Tomás, ibidem e
no 2º livro das Sentenças, distinção 2, questão 2 ao 5 ; de Alberto, tratado 3, capítulo
2 1 º; de Egídio, texto 1 00; num e noutro de Caetano; de Apolinário, questão 26; do
Ferrariense, questão 1 7 ; de Janduno, O Sentido e o Sensível, questão 27 e neste
livro; de Contareno, livro 5 , Os Elementos; de Marcelo, 3 A Alma, capítulo 72º; do
Conciliador, diferença 1 5 5 e de outros. Todavia são contra, Avicena 6, Questões
Naturais, parte 2, capítulo 5º; Alberto Magno, na Suma do Homem; Galeno, no 4,
De simplicium medicamentorum facultate, capítulo 2 1 º; Femélio, livro 6, Fisiologia,
capítulo 1 º e outros que consideram que o odor não se produz sem o vapor exalado.
Prova-se todavia a nossa conclusão, porque muitas vezes o odor é sentido plena­
mente nos locais afastados, como atestam os abutres e outras aves que procuram, ao
longe, os cadáveres, atraídas pelo cheiro. Mas para que a exalação seja espalhada tão
longe e de forma tão lata, seria necessário que a coisa cheirosa, com o defluxo, fosse
totalmente consumida e terminasse em fumo. Segundo, porque o odor é sentido na
mais breve paragem de tempo, que o movimento da substância de fumo para o
olfacto exige, Terceiro, porque o vapor, dado ser leve, dirige-se para o alto, de
acordo com o testemunho de Aristóteles, O Sentido e o Sensível, capítulo 5º e, no
entanto, o cheiro também é sentido em lugar inferior, como é evidente na caça dos
crocodilos que acorrem, ao apelo do cheiro, em direcção às carnes suspensas fora de
água.
Seja a terceira conclusão. O odor é difundido fora da exalação de fumo, segundo
o ser intencional. Pode também ser difundido segundo o seu ser real. Esta conclusão
quanto à primeira parte é afirmada por aqueles que há pouco referimos a favor da
segunda conclusão. E é evidente, porque o vapor de fumo, como mostrámos, não
pode ser comunicado a um lugar muito longínquo e portanto também não pode, o
odor nele existente. A consequência é que o odor se comunicaria por si, muitas
vezes segundo o ser intencional. A parte seguinte desta conclusão é inteiramente
dúbia. Só a consideramos como provável. Alexandre defende-a no livro O Sentido e
o Sensível, capítulo do odor; Amónio e Boécio, no capítulo 2º dos Antepredicamen­
tos; também Gárbio, na Suma, questão 69 e alguns dos filósofos mais recentes. E
recomenda-se pelo testemunho de Aristóteles, neste livro, capítulo 1 2º, texto 1 27,
quando afirma que o meio suporta o som e o odor. Assim, também o ar suporta a
coisa cheirosa que exala o cheiro. Como nada pode cheirar a não ser que sej a afec­
tado pelo cheiro segundo o ser real, tal como necessariamente o branco, a não ser
que tenha brancura, Aristóteles parece conceder que o odor real é recebido no ar.
Acrescente-se que, da mesma maneira ele afirma que o ar suporta o odor e o som, Já
acima mostrámos que suporta realmente o som, Não deve considerar-se, no entanto,
que o odor é espalhado segundo o ser real a toda a distância em que é sentido, visto
que não é verosímil que nele esteja presente tanta força para se difundir, principal­
mente, porque a maior parte considera que ele, de forma alguma, age realmente, mas
apenas intencionalmente,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão III, Artigo I 375

Quem objectar. O odor, como ensinou Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensí­


vel, capítulo 5º, foi produzido pela natureza para acalmar o cérebro, mas não persiste
nele a não ser quando está na substância fúmida, como é patente nas afirmações
anteriores. Logo, o odor nunca se produz fora da substância fúmida. Segundo. O
vento, quando sopra noutra direcção, impede sempre o trajecto dos odores para as
narinas. Mas isto acontece porque o vento leva a substância fúmida em direcção
contrária. Portanto, o odor está sempre nessa substância. Terceiro. Se o cheiro, de
vez em quando, segundo o ser real ou intencional, permanecesse fora do sopro
fúmido, seria necessário que alcançasse instantaneamente o sentido, visto que muitas
vezes a espécie não tem nenhum contrário que a atrasa; todavia parece-nos experi­
mentar-se o oposto, porque cheiramos sempre após algum pedaço de tempo: por­
tanto, etc. Quarto. Nenhum sentido externo pode perceber o objecto a não ser que ele
estej a presente. Ora, não está presente quando está muito longe. Donde, para que o
cheiro sej a sentido não basta a espécie atravessar o sentido do odor, mas o próprio
odor segundo o seu ser real. Quinto. O odor é uma qualidade segunda que resulta da
mistura das primeiras, não mais activa do que é a cor. Ora, uma cor não produz
outra, portanto também o odor não gera outro odor. E por isso, de forma alguma o
odor poderá ser difundido no meio, segundo o ser real, visto que esta difusão não
devia ser feita muito diferentemente da produção de um odor por outro.
Ao primeiro destes argumentos, deve dizer-se que o odor foi dado pela natureza
para que os sabores sejam explorados e sejam discernidos por sua intervenção, o que
será mais evidente de caminho. Igualmente, para o homem adquirir, pelo seu
ministério, o conhecimento inteligível, assim como dos outros sentidos . Também,
para conservar a sua composição e apaziguar o cérebro. Este fim não respeita a todos
os odores, visto que muitos danificam o cérebro. Mas não é necessário que os odores
benéficos e suaves atinjam permanentemente o seu fim. Ao segundo argumento,
respondemos que o vento impede a percepção dos odores, não só porque a substân­
cia fúmida toma uma direcção diferente, mas também porque transporta os odores e
as suas espécies, que residem no ar, junto com o próprio ar em que é levado pelo
mesmo ímpeto. No entanto, na percepção das luzes e das cores isto de modo algum
sucede, porque, como as espécies visíveis alcançam a vista num instante, o seu tra­
jecto é anterior a todo o movimento.
Ao terceiro, diga-se que um odor segundo o ser real pode ser retardado, no meio,
pelo odor contrário, ou ser totalmente impedido para que não se difunda mais. Se o
odor não encontra um contrário, alguns autores consideram que é provável, tanto
aquele como a espécie do odor, chegar em breve ao olfacto. Mas a experiência opõe­
-se-lhes. Com efeito, muitas vezes vemos o incenso e outras substâncias cheirosas,
quando primeiro aquecem ao fogo, exalarem, ao longe, o sopro fúmido, e todavia
nunca o seu cheiro é sentido por nós senão algum tempo depois. Acontece, no
entanto, de outro modo, se o odor e a sua espécie se insinuarem no olfacto num
instante. Por isso, deve dizer-se preferencialmente que nem todas as coisas que não
encontram um contrário no meio se comunicam no instante, ou sej a, quando em sua
natureza elas forem vagarosas e se demorarem, o que sucede com o odor e a sua
espécie, como a experiência, que dissemos ser a mãe da Filosofia, o demonstra.
Ao quarto, deve conceder-se que o sentido externo não percebe senão o objecto
presente, mas esta presença não é requerida do mesmo modo em todos os sensíveis,
3 76 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles

no que respeita à sua potência. Na verdade, para que a coisa visível se diga presente
à vista, deve apresentar-se-lhe em linha recta a partir do ponto em que é vista. Para
que a coisa cheirosa presente ao olfacto seja sentida, é necessário e suficiente que a
espécie do odor se estenda do objecto até ao sentido, o que acontece quer por trans­
missão em linha recta quer em curva. Donde, não se cheira a não ser o que é odorí­
fero existente em acto (entenda-se a designação como de vapor odorífero, ou odor,
ou coisa que se espalhe de outra forma) e sendo-lhe inerente um meio através do
qual a espécie se difunde para o sensitério. Mas a conservação deste tipo de espécie
depende do próprio obj ecto, de tal modo que, desaparecendo este, rapidamente se
dissipa, tal como a espécie de outros sensíveis, uma vez retirado o objecto.
Ao quinto (em que preferencialmente se apoiam, e certamente com muita proba­
bilidade, os que negam que se dê odor real sem a coisa cheirosa e o vapor de fumo),
deve responder-se que, embora o odor resulte da mistura das qualidades primárias,
como também de outras segundas qualidades, ele pode, no entanto, ser produzido no
elemento, não certamente num puro e simples mas num elemento que partilhe a
mistura destas qualidades, como acima ensinámos a partir de Aristóteles e de Teo­
frasto. Deve negar-se que o odor não sej a mais activo do que a cor. De facto, o odor
pode difundir-se na própria coisa, produzindo outro odor, tal como o som, que gera
outro som. Não é de admirar, visto que se requer menos para a geração e comunica­
ção das qualidades que permanecem nos substratos, desaparecendo pouco depois, do
que para a produção da cor que também tem natureza mais nobre e é de qualidade
fixa e permanente, por natureza própria.

ARTIGO II
O meio do odor é o ar e a água

Há dois meios pelos quais o odor se transmite, o ar e a água, como ensinou Aris­
tóteles, neste livro, capítulo 9º, texto 97 e no livro A História dos Animais, capítulo
8º; Teofrasto, livro 6, De causis plantarum, capítulo l º; Alberto Magno, 2ª parte de
A Suma do Homem, no tratado sobre o olfacto; Fernélio, livro 6, Fisiologia, capítulo
1 0º; Gárbio, na Suma, questão 69 ; Temístio, neste livro, capítulo 34º da sua Pará­
frase; Teófilo Algazel; Avicena; Simplício e outros autores em consenso geral.
É evidente que o ar é o meio do odor porque os animais terrestres e aéreos captam
os odores através do ar. Que também a água é um meio, é claro a partir do cheiro
dos peixes nas águas. Aristóteles também anota isto com base em muitos indícios,
no ponto citado, A História dos Animais. De facto o pescador atrai muitos peixes
que se escondem nas grutas para as entradas das cavernas untadas com salmoura.
Também muitos acorrem de cima, ao encontro de certos cheiros fortes, como em
direcção a bocadinhos de carne queimada de chocos e pólipo assado, que são lança­
dos para as redes. Deitam ao múrex isco fétido de múrex e capturam-no, enganado
por ele. O pólipo, como não pode ser arrancado da pedra a que está preso, mas sofre,
de preferência, um corte, é repelido pelo odor da anémona. Finalmente, sabe-se que
os peixes exploram o engodo com o olfacto antes de comer. Ninguém oponha, diz
Filópono, que os peixes procuram os alimentos para si com a vista e não com o
olfacto, visto que aqueles que são desprovidos do sentido da vista, procuram e sen­
tem os seus alimentos.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão IV, Anigo / 377

Haverá quem duvide, por que razão o ar e a água são o meio apto para transmitir
os odores, visto que estes elementos surgem como húmidos e um deles, a água, é
frio. A humidade e o frio seriam considerados estranhos à natureza dos odores, de tal
modo têm origem no seco e no quente. Deve responder-se que, embora estas quali­
dades contribuam menos para a origem natural dos cheiros, e para a sua longa con­
servação se apliquem menos aos cheiros, não obstante, o ar e a água são muito ade­
quados ao seu trajecto, porque o vapor fúmido, que de imediato se consome no fogo,
não pode passar através da terra. Porém, Aristóteles ensina, no texto 67, capítulo 7º,
de que modo no meio da cor se dá uma certa afecção, em razão da qual as espécies
visíveis são conduzidas para a vista, a que chama ôtacpavéc;. Assim, a um certo meio
do olfacto, isto é, ao ar e à água, respeita uma certa afecção inominada que transmite
os odores. Com efeito os filósofos posteriores, entre os quais Teofrasto, chamaram à
mesma ô lo a µo v , isto é, como traduziu Hermolao, capítulo 34ºda Paráfrase de
Temístio, perolaria, ou perodoraria. Se é verdade que os animais cheiram ao respirar,
como é que é possível que os animais aquáticos que não respiram, tenham cheiro?
Responde Plínio, no livro 9 da História Natural, capítulo 7º, que todos os animais
aquáticos respiram e julga que isso acontece pela intervenção do ar escondido na
água. Mais ainda, pretende que o odor não passa de ar inacabado. Mas não filosofa
correctamente. Primeiro, porque o ar não pode ser retido debaixo de água, mas onde
debaixo dela se forma, imediatamente emerge, como diz Aristóteles, no livro O
Sentido e a Sensação, capítulo 5°, quer dizer, uma vez que mais leve do que as
águas, pela força da natureza passa para um lugar superior. Depois, toma-se evidente
que o odor não é inacabado, com base no que já foi discutido por nós, onde mostrá­
mos que o odor é uma qualidade e não uma substância. Também mostrámos, como
estabelecido, que nem todos os animais aquáticos respiram, nos livros dos Pequenos
Naturais, a partir de Aristóteles e outros filósofos, contra o que sobre o mesmo
assunto dizem Plínio, Rondelécio e outros autores antigos, sobretudo Anaxágoras e
Diógenes. Quanto ao argumento, deve dizer-se que nem todos os animais cheiram ao
respirar, como Aristóteles ensinou, no último capítulo, mas os que têm um órgão
olfactivo interior, o qual se abre pela atracção do ar, órgão este que raramente cabe
por herança aos animais aquáticos, e nem a todos os terrestres, mas em maior
número, aos que voam.

QUESTÃO IV
Qual o órgão do olfacto

ARTIGO I
Várias opiniões

Surge principalmente o nariz a tal ponto alto e proeminente no rosto que, como
um vestido, oculta as fossas nasais. Correspondem a três funções. A primeira, a
atrair e emitir o ar, uma parte do qual é arrastado e se introduz no cérebro, a outra no
coração por uns certos poros, acerca dos quais falaremos adiante. A segunda, para
que escorra a mucosa nasal, sendo por isso evidente que o nariz se estende em meio
declive. A terceira, para captar os odores. Donde, os animais que têm narizes mais
3 78 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

longos são mais sagazes. Em particular, os elefantes de nariz alongado e flexível


para curvar. Também tem outro uso, o mesmo uso da mão, como ensina Aristóteles,
no livro primeiro sobre A História dos Animais, capítulo 2º. Colhem alimentos
secos, como húmidos e levam-nos à boca.
Embora os animais que não respiram careçam de nariz, nem todos eles estão pri­
vados de olfacto, como já acima dissemos. Uns com guelras, outros com tubos,
outros com uma certa túnica, como os insectos, sentem os odores, o que Aristóteles
refere no livro 2, As Partes dos Animais, capítulo 1 6º. Isto é, os próprios cheiros sem
inalação e expiração, ferem os seus sentidos.
Avançando, no extremo superior dos narizes sobressaem duas pequenas saliências
semelhantes a mamilos, que por causa dessas carúnculas são chamados mamilares
ou papilares. Subjaz-lhes uma certa abertura bipartida que, embora evidencie muitos
buracos, tem dois canais mais proeminentes nos dois buracos correspondentes ao
nariz que, em virtude da semelhança que a abertura tem com a esponj a e o crivo,
também costuma dizer-se crivo e boca esponjosa. Afirmam que isto foi feito pela
natureza para que o ar, atraído pela inspiração, ao entrar nos ventrículos do cérebro,
livremente e em massa, não lhes causasse dano com demasiado frio. A estas duas
partes do osso esponjoso correspondem as duas metades do nariz que se dividem, na
sua origem, duas para as fauces em curva sinuosa, duas que tendem para o próprio
nariz, sobrevindo no ceptro cartilagíneo. A partir delas prolonga-se uma certa mem­
brana mirrada, continuada pela que se estende para a língua, artéria áspera e palato,
com a mesma composição dos nervos mais moles.
Posto isto, não é pequena a dificuldade quanto ao lugar onde reside a potência de
cheirar. Galeno, livro 8 De usu partium, capítulo 6º, e no livro De olfactu, situa a
potência de cheirar nas partes anteriores do cérebro ou nos ventrículos. Considera
demonstrado que ela não deve ser estabelecida noutro sítio, com argumentos efica­
zes. Primeiro. Que não está numa parte do nariz, demonstra assim. De facto, ou
estaria num osso seu, ou na cartilagem, ou na membrana que reveste as partes do
nariz. No osso não, visto que este, segundo o testemunho do próprio Aristóteles,
livro 1 desta obra, capítulo 5º, texto 79 e livro 3, capítulo 1 2º, texto 66 é desprovido
de sentido. Na membrana não; com efeito, como a seguir diremos, esta alonga-se até
à língua e a outras partes nas quais consta que se sente o cheiro. Na cartilagem não,
visto que não seria necessário inspirar para cheirar, mas isso é necessário como a
experiência ensina, e Aristóteles adverte, neste livro, capítulo 9º, texto 98. Portanto,
a potência de cheirar não está colocada em nenhuma parte do nariz. Outro argu­
mento. O cérebro alenta-se de odores e molesta-se quando os sente. Logo, a capaci­
dade de cheirar dos sensórios está no cérebro. Outro. É necessário que o instrumento
do olfacto corresponda aos próprios odores, para que se conserve a afinidade entre a
potência e o objecto, bem como a devida proporção. Como, portanto, os odores se
soltam com o hálito e o vapor, o instrumento do cheiro deve ser vaporoso e com
hálito, como acontece com os ventrículos anteriores do cérebro, como que infundi­
dos e abundantes de espírito mais fecundo. Portanto, deve situar-se neles o instru­
mento dessa natureza. Ú ltimo argumento. O mesmo se conclui, porque se a facul­
dade de cheirar não residisse nesses receptáculos, para os quais o ar sopra pelo
movimento de inspiração, para captar os odores não seria precisa a inspiração.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão IV, Artigo II 3 79

Todavia, Averróis, no 2º Collectaneorum, capítulo 1 7º, considera que o odor se


detém na membrana das narinas, provando-o com uma dupla argumentação. Pri­
meiro, porque as carúnculas mamilares são da mesma substância do cérebro e o
cérebro está privado de sentido, como ensina Aristóteles, no livro 2, As Partes dos
Animais, capítulo 1 0º e Galeno mostra, no terceiro livro, De causis symptomatum,
quando chama ao cérebro, órgão que não sente. Portanto, a faculdade de cheirar não
está nem no cérebro nem nas carúnculas. Segundo, porque se a sensação de odor
residisse aí, visto que a abertura do palato se abre para os tubérculos, seguir-se-ia, do
mesmo modo, que através dele podia sentir-se o odor da comida cheirosa, fechadas
as narinas, o que ninguém nunca experimentou. Terceiro, o mesmo se confirma
porque Aristóteles no livro 1 A História dos Animais capítulo 1 1 º e noutros pontos
afirma claramente, que o olfacto se realiza através das narinas.

ARTIGO II
Explicação da tese verdadeira

Esta dificuldade deve ser explicada com um certo número de asserções. Eis a pri­
meira. O olfacto não reside nos ventrículos do cérebro. Prova-se. Primeiro, porque a
substância do cérebro, como argumentava Averróis, não está apta para as funções
dos sentidos externos. É por isso que com dificuldade se evidencia no tacto. Por essa
razão, a potência de cheirar não residirá nele, como em nenhum outro dos sentidos
externos. Segundo, porque como as exalações do odor não se dirigem para o cére­
bro, convém antepor-lhe a faculdade exploratória dos hálitos, para que o vapor mau
possa ser discernido antes que danifique o cérebro. Esta faculdade é a faculdade de
cheirar. Acrescente-se que o prazer e a dor, que os odores transmitem, não são senti­
dos no cérebro.
Segunda asserção. O odor não reside na membrana das narinas ou no nervo que
se prolonga através das narinas. Recomenda-se isto, primeiro, porque, como Galeno
correctamente opunha, se a faculdade de cheirar consistir nessa membrana, dado que
ela desce em direcção às extremidades mais afastadas do nariz, seguir-se-ia que a
coisa dotada de cheiro, quando lhes chegasse, sem inspiração, seria imediatamente
sentida, o que iria contra a experiência. Depois, porque os nervos das narinas são
constituídos para a função de tocar, não de cheirar. Nem o tacto, nem o olfacto
requerem a mesma composição. Em terceiro lugar, porque não nos parece que se
percebam os odores, excepto em lugar mais interior.
Terceira asserção. O odor reside nos tubérculos mamilares. Esta afirmação é de
Avicena 5, fen 3, do Cânone 1 ; Alberto Magno, 2ª parte de A Suma do Homem, no
tratado sobre o olfacto, que cita Algazel a favor desta opinião. É também de Filó­
pono, capítulo 9º; do livro Conciliador, diferença 45 ; de Gárbio, questão 69; de
Fernélio, no livro As Partes do Corpo Humano, capítulo 9º; de Realdo, livro 8, da
Anatomia, capítulo 2º e de outros mais. Mas ela recomenda-se, porque, como a
faculdade odorífera não está situada nem no cérebro, nem na membrana das narinas,
como é evidente a partir do que foi dito, também não pode estar naquele osso poroso
de que antes fizemos menção, porque os ossos, em virtude da matéria terrestre, não
sentem nada ou sentem pouco. Resta que reside nas referidas carúnculas, sobretudo
380 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

porque não se vê para que outra função a natureza, que nada faz em vão, produziu
esses tubérculos.
Deve resolver-se agora as objecções do primeiro artigo, visto que se opõem às
questões anteriores. Portanto, ao primeiro argumento a favor da opinião de Galeno
deve conceder-se que o sentido do olfacto não reside nem na membrana das narinas,
nem na cartilagem, nem no osso. Ao segundo, deve dizer-se que o cérebro é ali­
mentado pelos odores, que os odores não são directamente recebidos no sentido e
conhecidos por ele, mas impressionados pelas qualidades benéficas que acompa­
nham o cheiro inerente ao hálito. Ao terceiro, que se requer certa afinidade entre o
sensitério e o seu objecto e que ela se encontra, quanto baste, entre os tubérculos e o
odor. De facto, eles possuem a secura misturada com o calor, tal como o odor está
repleto de hálito húmido, e além disso faltavam-lhe outras vantagens para assistir ao
olfacto, como é evidente a partir das afirmações. Ao quarto, se a faculdade de chei­
rar não residir no cérebro, é, no entanto, necessária a inspiração, pela razão que a
seguir exporemos.
Ao primeiro argumento a favor da opinião de Averróis, dizemos que os referidos
tubérculos são formados de matéria um pouco parecida à substância do cérebro, mas
apenas diferente na qualidade mais compacta e menos fria e, assim, mais apta para a
função de cheirar. Ao segundo, deve dizer-se, em primeiro lugar, que ele pode vol­
tar-se com força igual contra o autor. Na verdade, como Averróis diz que o sensório
do olfacto é a membrana das narinas que se estende até às aberturas, pode perguntar­
-se por que não sentimos o cheiro dos alimentos através delas. Ora, em primeiro
lugar, a razão é porque aquele odor do alimento está bastante misturado na boca e,
por isso, não pode ser sentido por nós, ainda que seja percebido por alguns, a cujas
narinas chega mais purificado. Outro, porque não sentimos o odor excepto quando
inspiramos, mas a inspiração conduz o ar para a garganta e para o pulmão e, assim, o
odor não pode, a partir da boca ou do ventrículo, chegar ao olfacto, visto que daí não
atraímos o ar, mas antes o impelimos para lá.
O último argumento postula que digamos o que Aristóteles considerou sobre a
sede do olfacto. Valésio livro 2, Controversiarum medicarum, capítulo 26º, afirma
que ele julgava que esse órgão é o nariz (o que parece que Platão também sustentou
no Timeu) . Com efeito, Aristóteles, no livro 1 , A História dos Animais, capítulo 1 1 º,
diz que também o olfacto, ou seja o sentido do odor, é produzido por essa mesma
parte, isto é, pelo nariz, e no livro 5 A Geração dos Animais, capítulo 2º, diz que as
narinas que foram mais alongadamente estendidas, como as dos cãezinhos da Lacó­
nia, são eficazes para o olfacto, pois, na verdade, os movimentos não são interrom­
pidos mas entram integral e directamente nos sensórios. O próprio Valésio segue
esta posição como aristotélica. Outros pensam que Aristóteles colocou o olfacto no
cérebro. A estes favorece aquilo que, nos Problemas, secção 1 3 , no problema 5, ele
escreveu, designadamente, que nós cheiramos, então, quando os odores chegam ao
cérebro. Teófilo, neste livro, texto 1 00, considera que nesta matéria Aristóteles foi
dúbio, a tal ponto que em parte alguma explicou a opinião com palavras claras
(como em questões ambíguas costumava entretanto fazer). Também Galeno, no livro
De instrumento odoratus, acusa Aristóteles de ter sido dúbio, porque, embora tendo
sido pai da eloquência e da linguagem de modo algum esclareceu este assunto num
discurso, antes o enovelou, de tal maneira que é preciso vaticinarmos o que teve em
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão IV, Artigo II 381

mente acerca desta matéria. Para a nossa opinião, que situa o odor nas carúnculas
mamilares, consideramos correctas as palavras do Filósofo, capítulo 2º, O Sentido e
o Sensível, onde afirma que o instrumento do odor reside no cérebro, e no livro 2, A
Geração dos Animais, capítulo 4º, quando ensina que tem origem no cérebro. Na
verdade, aquelas carúnculas ficam ao pé do cérebro e propagam-se a partir dele.
E não obstam os pontos em que Aristóteles parece indicar que as narinas são o
instrumento do cheiro. Com efeito, ele somente pretende que estas sirvam o olfacto,
como no livro 5, A Geração dos Animais, capítulo 2º, ensina. E chama-lhes sensó­
rios porque contêm as papilas mamilares e, muitas vezes, acabam nelas. Outro.
Quando afirma que nós cheiramos, quando os odores vêm ao cérebro, apenas quer
dizer que para cheirar é necessário o gozo dos odores, que, ordinariamente, também
são levados ao cérebro, sobretudo porque foram constituídos por sua causa, pela
natureza, embora este não sej a o seu fim completo e adequado, como será mais evi­
dente de caminho.
Resta, para explicar esta questão, se é verdade o que Aristóteles transmitiu, sobre
a membrana do olfacto. De facto, neste livro, capítulo 9º, texto 1 00, e no livro O
Sentido e o Sensível, capítulo 5º; também no livro 4, A História dos Animais, capí­
tulo 8º; no que também o Gárbio seguiu e Alberto Magno; o Conciliador; Alexan­
dre; Temístio; Marcelo; Averróis; São Tomás e outros, ele afirmou que nos animais
que respiram, sobretudo nos homens, o sensório do olfacto foi protegido e coberto
por uma certa membrana, que quando o odor penetra no órgão se deve elevar, sendo
por isso necessária a inspiração do ar que, atraído pela força, ergue a película. Eles
pretendem que sej a esta mesma a causa pela qual os referidos animais não cheiram,
a não ser que a inspiração se dê antes. Muitos censuraram Aristóteles neste ponto.
Primeiro, porque os professores de Anatomia negam que haja tal membrana.
Segundo, porque, com o ímpeto do ar que naturalmente irrompe as películas não se
abrem menos do que atraídas pela força da própria inspiração. Mas isto é evidente­
mente falso, de outra maneira o olfacto dar-se-ia de vez em quando sem a respira­
ção. Terceiro, porque não se vê nenhuma razão suficiente pela qual se deva defender
isso. Não, para tutela da potência, visto que no nariz o olfacto está bastante prote­
gido e abrigado das agressões exteriores.
Não há razão para nos afastarmos de Aristóteles, visto que pode facilmente ser
livrado dessa calúnia. Deve dizer-se que Aristóteles, com o nome de membrana não
compreendeu algo diferente daquilo que enumerámos acima, ao avançar a definição
da estrutura e composição do nariz. Isso não é observado na dissecação, mas ele quis
referir-se à última pequena membrana dos buracos do nariz que cai por cima das
carúnculas mamilares e se ergue na inspiração. É o que parece indicar o capítulo
nono deste livro, texto 1 00, ao afirmar que o revestimento que a natureza deu ao
olfacto mostra-se pelas veias dilatadas e pelos canais. A força do ar não pode,
porém, dilatar ou remover a membrana que obstrui, porque o ar não pode nela entrar,
a não ser que saia o que está dentro, mas não sai a não ser atraído pela inspiração.
Por isso, ainda que alguém, diz Galeno, num compartimento cheio de odores, pro­
jecte o ar para as narinas, pelo canal, não sentirá o odor sem a inspiração. Aquilo
que, de facto, dizem, que o instrumento não necessita da membrana do odor, é falso,
se se estiver a falar acerca do que afirmámos ter-lhe sido dado, nem isso mesmo se
distingue do próprio nariz, necessário para manutenção do calor, do frio e de outras
382 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

agressões semelhantes. Acrescente-se, também, que dado que muitos odores são
repugnantes ou perigosos, foi conveniente que o órgão do olfacto fosse revestido,
para que não estivesse necessariamente sempre à disposição de todos os odores, mas
que, entretanto, pudéssemos impedir e inibir a sua percepção, durante algum tempo,
pela inspiração.
Retire-se, do que ficou dito, o múltiplo uso e vantagem que a inspiração do
olfacto confere. Com efeito, ela atrai, primeiro, junto com o ar, a exalação odorífera
ou o odor por si, ou a espécie do odor. Segundo, remove a membrana. Terceiro, com
o seu movimento irrita o sentido embotado por natureza. Mas destas três funções,
apenas a segunda é absolutamente necessária para cheirar. Entenda-se isto em rela­
ção aos animais que respiram. Na verdade, uma exalação odorífera sem atracção
pode aproximar-se das vias respiratórias e, assim, introduzir-se com a própria coisa,
que sobe por uma e por outra vias. Do mesmo modo, o odor e as espécies odoráveis,
visto que com ela se difundem por ali, dada a sua natureza, dirigem-se para regiões
superiores, posto que penetrem as narinas, rapidamente, com muito ar atraído. Mais,
embora o olfacto seja um pouco suscitado pela agitação do ar, sem aquele movi­
mento, ele percebe por si o odor, como é evidente nos exemplos dos animais que
estão privados do uso de respirar. E, a não ser que a película se afaste, não haverá
nenhum acto de cheirar. O que é evidente, porque nos animais que respiram é neces­
sária a inspiração para cheirarem, como ensinou Aristóteles, no capítulo anterior e
noutros pontos, e a própria experiência demonstra. Acrescenta que, por isso, que não
cheiram debaixo de água (o que é claro com base no testemunho dos mergulhado­
res). Não é, no entanto, necessária para cheirar em virtude da sua primeira ou ter­
ceira funções, que anteriormente referimos, como é manifesto a partir do que foi
dito, nem, na verdade, por outra coisa que se pode aduzir e por mor dela exigida. É
apenas precisa para abrir a membrana e para alongar as vias dos órgãos do olfacto.
Donde, também se pode levar o argumento a comprovar o citado invólucro, que
Galena, no livro De instrumento odoratus, e muitos outros negam. Se, de facto, o
acto de cheirar não se produz sem inspiração e esta não é necessariamente exigida
para que se cheire, a não ser que por sua intervenção a membrana se aparte, segue-se,
então, não poder negar-se que tal membrana se encontra nos animais que respiram.
Mas insiste-se, e Galena persiste, que o olfacto não devia ser protegido por uma
película, porque é de longe mais excelente, e o que quer que se sinta está sempre
desimpedido e à vista, para ser conduzido ao seu objecto. Não obsta, afirma, que a
natureza dê pálpebras aos olhos mais sensíveis, que servem de cobertura e de defesa.
Como poderiam ser facilmente danificados pelos acidentes, para os defender, deu­
-lhes as pálpebras, como umas certas defesas . Também por causa do sono. Efectiva­
mente, não podemos dormir na claridade a não ser com os olhos tapados. Daí que,
nos animais desprovidos de pálpebras, como nas lagostas, em certos peixes e nos
caranguejos a natureza tenha dado receptáculos e certas pregas, que no momento do
sono, como quartos de dormir, recolhem todos os olhos, dos quais emergem no fim
do repouso. É evidente, com quanta utilidade a natureza teceu os olhos com pálpe­
bras ou ocultou o tempo de sono em esconderijos. Ora, não se vê por que é que
deveria envolver o olfacto com uma película.
Deve responder-se a este argumento que o sentido deve corresponder às funções
que executa, tanto quanto a razão da natureza e a ordem o exigem, mas que ele não
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão V, Artigo I 383

postula que o olfacto, nos animais de espécie mais nobre, que são os que respiram,
esteja necessariamente exposto à percepção continuada dos odores, pela causa há
pouco assinalada. Deve igualmente ser coberto do modo que referimos. Nem isto
implica dar descanso desnecessário ao sentido, especialmente porque tal ócio,
estando presente uma coisa dotada de cheiro, não dura, a não ser quando enviamos o
ar para fora, que logo a seguir, num movimento contrário, atraímos.

QUESTÃO V
Se o olfacto do homem é mais fraco do que o dos outros animais

ARTIGO !
A superioridade do olfacto.
Argumentos a favor da parte negativa da questão proposta

A potência de cheirar é necessariamente a última entre os sentidos externos, mas


ocupa o terceiro lugar em dignidade, como observa São Tomás, na primeira parte da
Suma Teológica, questão 78, artigo 3º. A vista conhece o que está muito distante, a
audição o que está a distância menor, o tacto e o gosto apenas o contíguo e em con­
tacto. O olfacto, porém, nem as coisas muito longínquas, nem só as que são contí­
guas, mas as que se disseminam a distância média. Mais. As espécies dos odores são
menos espirituais, do que as visíveis e do que as auditivas, e a justificação para tal
está na lentidão com que são levadas para o sensitério. São, no entanto, mais purifi­
cadas que as gustativas e tácteis, porque estas estão sempre juntas às coisas que
representam, não se imprimem no sentido sem elas, como de caminho ensinaremos.
Ora, é evidente que elas não são como as que acima referimos. Mas a faculdade de
cheirar é causa de grande vantagem nos animais que buscam alimentos com o
ministério dos sentidos. Como existem alguns alimentos que provados antecipada­
mente causam a morte, como os venenos instantâneos, foi necessário que existisse
uma faculdade que prevenisse esse perigo e se pronunciasse sobre os que são noci­
vos e sãos. É o que o olfacto mostra, sobretudo nos animais, que fazem igualmente
uso dele em relação aos alimentos, com mais frequência do que os homens. Ante­
cipa-se o seguinte. O homem conhece através da palavra ou do juízo, os animais, por
meio do instinto conhecem pelo cheiro a condição dos alimentos, ao cheirarem. Esta
é, então, a primeira utilidade dos odores; a segunda, o fortalecimento do cérebro; a
terceira, o alívio do coração. Acerca disto, Avicena no livro De uiribus cordis, tra­
tado l, capítulo 9º; Hipócrates, no livro De alimentis e no livro Epidemiarum;
Galena, De utilitate respirationis, capítulo 5º e livro 7 De usu partium; o Concilia­
dor, diferença 1 55 . Posto isto, no que respeita à questão levantada, parece demons­
trar-se a parte negativa com os argumentos seguintes. A potência que é originada
pela forma mais excelente é mais nobre. Ora, a faculdade de cheirar é originada no
homem pela forma mais excelente, sem dúvida pela alma racional. Logo, será mais
nobre no homem do que em outro animal. Segundo argumento. No homem, o órgão
do olfacto é muito mais apto para a função de cheirar do que nos animais, logo, o
homem desempenhará melhor as acções de cheirar. Prova-se o antecedente. O órgão
que revela ser mais apto para perceber o objecto é o que está mais livre dos seus
384 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

condicionalismos. É o que acontece com o órgão do nosso olfacto, visto que abunda
em humidade, dada a vizinhança do coração. Mas o odor é de natureza ígnea e cria­
dor de secura.
Terceiro. O homem percebe mais diferenças de odores do que outros animais;
logo, o homem cheira mais penetrantemente. Prova-se o antecedente, porque os
animais não sentem os odores repugnantes e fétidos, porque não os repelem como
nós, segundo o testemunho de Aristóteles, no capítulo 5º de O Sentido, e o Sensível.
Outro argumento. Porque não parece que se deleitem com os odores das flores e de
outras coisas semelhantes, como afirma Aristóteles, no mesmo ponto, livro 3, Ética,
capítulo 1 0º. Demonstra-se que apenas percebem os odores do alimento, porque não
afectam o conhecimento dos odores, no que toca ao próprio conhecimento, mas
apenas em relação aos alimentos, visto que também não lhes foram dados os senti­
dos para a filosofia, como ao homem, mas apenas para seguirem as coisas úteis e
rejeitarem as nocivas.

ARTIGO II
Resolução da controvérsia

Para explicar a dúvida proposta deverá advertir-se que podemos examinar o


olfacto, quer quanto à perfeição essencial da própria potência, quer quanto à perfei­
ção acidental, que nele acima de tudo se reconhece, visto que ela cheira a partir de
maior distância e percebe muitas diferenças de odores.
Seja a primeira conclusão. O olfacto do homem quanto à perfeição essencial não
é pior do que o olfacto dos outros animais. Prova-se, porque os que são da mesma
espécie têm igual perfeição em natureza específica. Mas o olfacto do homem e dos
outros animais pertencem a uma natureza de uma única espécie, visto que são leva­
dos para o mesmo objecto e são, igualmente, mudados por ele.
Segunda conclusão. O olfacto do homem quanto à percepção dos odores a uma
distância maior é pior do que o olfacto de muitos animais. Os abutres, as abelhas, os
corvos, os tigres, as panteras, os cães e outros animais atestam claramente a verdade
desta conclusão. A sua faculdade odorífera procura coisas muito mais distantes.
Alguns escrevem que os abutres perseguem o odor dos cadáveres a quinhentas
milhas. Mas existe a convicção entre os autores que não é verosímil que as próprias
espécies dos cheiros se espalhem em tão larga extensão. Se as histórias contam que
às vezes os abutres voam tão longe, enviados pelos odores, isto não parece ter acon­
tecido de outro modo, senão levados pelo grande impacto dos ventos com os cheiros
dos próprios cadáveres, tal como com o forte desmoronamento das terras as exala­
ções térreas são levadas para o mar.
Terceira conclusão. O homem não percebe tantas diferenças de cheiros como
certos animais. Esta conclusão vai contra Simplício e Averróis neste ponto. Mas é a
opinião de Teófilo e de outros, e parece ser a de Aristóteles, no livro O Sentido e o
Sensível, capítulo 4º, que diz termos o pior olfacto de todos os animais, e no capítulo
onde ensina que, em nós ele é mais fraco do que em muitos animais, o que Teofrasto
também escreveu no livro 6 De causis plantarum, capítulo 5º, depois de Platão no
Timeu. Ora, não afirmariam isto se acreditassem que o homem capta muitas varieda­
des de odores, visto que isso seria uma perfeição maior do que sentir menos a maior
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão V, Artigo li 385

distância, pois quem percebe muitas, diz-se simplesmente que compreende mais o
objecto, e neste género de conhecimento parece ser mais vantaj oso conhecer mais
coisas menos intensamente do que poucas, mais intensamente.
Mas que o homem não percebe mais cheiros na realidade, demonstra-se pela
inaptidão do órgão que toma a potência fraca para cheirar ao longe e igualmente a
faz fraca para sentir muitas diferenças de odores. Outro. É evidente que os animais
percebem muitas diferenças de odores que o homem não percebe, visto que aqueles
conhecem pelo olfacto muitas coisas que são inodoras para o homem, como o rasto
das feras. Os cães procuram os donos ausentes pelo cheiro e reconhecem-nos de
noite, entre muitos. O tigre que deu à luz encontra as crias roubadas, pelo cheiro. As
panteras deleitam-se com o cheiro de um único animal, e por isso o perseguem,
como refere Plínio, no livro 8, Historia Natural capítulo 1 7º, depois de Aristóteles,
os Problemas, secção 1 3 , questão 4; e Teofrasto, no livro 6, De causis plantarum,
capítulo 5º. Mas o olfacto humano não atinge este tipo de odores. Depois, que os
animais não percebam só os cheiros dos alimentos, e para abrir o apetite, mas tam­
bém outros, é evidente, quer pelos exemplos anteriores, quer porque o odor afugenta
as moscas do enxofre e as serpentes da resina; o cheiro das rosas mata os cantari­
lhos, o dos unguentos, os abutres, como escreveu Teofrasto, livro 6 De causis plan­
tarum, capítulos 4º e 5º. Por fim, porque vemos os cães de caça sentir os cheiros das
flores. É por isso que nos prados floridos, apossando-se dessa exalação dos odores,
costumam ficar perturbados e impedidos de perseguir as feras. Não satisfazem os
que respondem que os cães se detêm quando avistam uma variedade matizada de
flores. Efectivamente também se detêm onde não existe nenhum matiz de flores,
mas apenas uma erva odorífera. E assim, deve negar-se em absoluto que também são
sentidos pelos animais os odores que não respeitam aos alimentos, de cuja percepção
parecia que os animais eram superados pelo homem.
Há também alguns que, embora concedam que os odores são percebidos por eles
deste modo, negam que os animais se deleitem com eles. Assim, Alexandre, no O
Sentido e o Sensível, comentário 47 ; Boccaferro, lição 45 ; Janduno, questão 20;
Teofrasto, no livro 6, De causis plantarum, capítulo 2º; Marcelo, 3, A A lma, capítulo
77º; Alberto, na Suma do Homem, tratado sobre o olfacto; Apolinário, no 2 de A
Alma, questão 27 . Na verdade, como os animais obtêm os seus prazeres de outras
coisas, não há razão para considerarmos que os que provêm desses odores, lhes
fossem negados pela natureza. A deleitação dos odores, que formalmente pertence
ao apetite, dá-se em nós, pela razão de que os odores existem para o nosso apetite
enquanto úteis e convenientes à natureza. Nenhum argumento, porém, prova que os
referidos odores não possam ser representados do mesmo modo para o apetite dos
animais, sob alguma espécie de conveniência geradora de deleitação. Quem conside­
rar que as feras perseguem o odor da pantera sem ser por alimento (nem, com efeito,
lhes serve de alimento) e que também a perseguem com perigo de vida, não consi­
dera então que a seguem porque se deleitem com o seu odor? Certamente neste
ponto também quadra aquilo que Virgílio disse, que o seu desejo também arrasta
ambos. Estas coisas não impedem que muitas vezes alguns odores sejam suaves ou
desagradáveis aos homens, outros aos animais, dada a diferença das composições.
Fica demonstrado, portanto, com esta disputa, que o odor do homem é mais fraco,
do que o de muitos animais, e isto tanto no que respeita à distância, como à varie-
386 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

dade dos odores percebidos. Mas Filópono pergunta se o homem cheira deficiente­
mente por defeito da potência ou do instrumento. Esta dúvida foi resolvida por
Aristóteles, no capítulo anterior, texto 92, quando ensinou que a nossa falta de saga­
cidade é originada pelo defeito do órgão, o que também diz Alberto Magno, livro 2
de A Alma, tratado 3 , capítulo 23º. Há em nós um aparelho odorífero junto ao cére­
bro que foi dado mais ao homem, por causa do tamanho do corpo, do que aos res­
tantes animais, como ensina Aristóteles, livro 2 de As Partes dos Animais, capítulo
7º, e que abunda em humidade, segundo o mesmo Aristóteles, no livro O Sentido e o
Sensível, daí se difundindo para o aparelho olfactivo. Acontece que as imagens dos
odores menos firmes e menos articuladas imprimem-se em nós e excitam de modo
débil a potência, a qual também como que adormece, entorpecida, no húmido, porque
no cálido e seco deveria antes manter-se em vigília, tal como os próprios odores
nascem da composição do seco e do cálido. Mas Alberto Magno anotou, na Suma do
Homem, tratado sobre o odor, que nós raramente sonhamos com odores porque as
suas espécies também são fracas e efémeras no nosso sentido interno.
Respondamos agora aos argumentos que pretendiam provar que o olfacto do
homem não é mais imperfeito do que o dos outros animais. Ao primeiro, deve dizer­
-se que o olfacto do homem tem origem na forma mais eminente, ou sej a, na intelec­
tiva. Isto, não segundo o grau em que é superior a outras formas, pelo qual se deno­
mina intelectiva, mas segundo o grau sensitivo de que todos os animais participam
de modo igual . Donde, não há razão por que o odor receba maior perfeição de essên­
cia no homem do que nos animais. Ao segundo, deve negar-se o antecedente, e para
sua prova dizer, que ainda que sofra algo do agente deve ser diferente dele em qua­
lidade, pelo menos quanto ao grau recebido, visto que nada nele age que sej a total­
mente semelhante a ele. Também o órgão de cada sentido não deve ser por isso
afectado de qualidades contrárias à natureza do objecto para que tende e por que
sofre, ou despojado daquelas que são consentâneas com o objecto. Deve outrossim
adequar-se ao objecto, para que se tome hábil e proporcionado para o perceber,
como ensina Teófilo, a partir de Empédocles e de Galena, no texto 94 deste livro.
Ao terceiro, negando o que aceita, e para sua confirmação, dizer que também os
animais sentem odores fétidos e horrendos, como ficou patente nos exemplos acima
referidos. Também Aristóteles não o nega, no ponto citado, no livro O Sentido. Com
efeito, ele é somente de opinião que os animais evitam menos cheiros deste género e
que, ordinariamente, são por eles menos agredidos. Também, quer aí, quer na Ética
ele não nega, em absoluto, que os animais percebam os cheiros das flores ou que
com eles se deleitam, mas que são tão habilmente captados com as suas delícias,
como os homens, como apontou Escalígero no exercício 33, Sobre Cardano. Por
fim, o que se objectava em último, que os animais só conheciam os cheiros dos
alimentos, é evidente que é falso com base no que se disse. Ainda que não percebam
os odores apenas por virtude do conhecimento, há outros fins além da nutrição e do
conhecimento, para os quais podem ser conduzidos por comando da natureza, quando
são cheirados. Por exemplo, para evitarem as coisas cujas exalações são nocivas e para
alcançarem as propícias. É evidente, portanto, a partir disto, que existem muitos odores
deste género que não respeitam ao alimento. Atente-se, por último, que o que Temístio
afirma, que o olfacto não é dado ao homem para o conhecimento e para a filosofia,
não é absolutamente verdadeiro, mas deve ser acolhido, ampliando a afirmação, para
significar a debilidade e a imperfeição deste sentido no homem.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X 387

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO X

a. Gustabile autem 422 a 8 Neste capítulo Aristóteles trata do gosto, acerca do


-

qual transmite principalmente quatro coisas o objecto do paladar, as espécies de


sabores, o meio e o instrumento. Desenvolveu estas coisas a partir da semelhança
e dissemelhança com a vista e com o ouvido. Ensina, portanto, no princípio, que
o degustável é como o táctil, e por isso, aquilo que degostamos, não é percebido
por nós, através da intervenção do meio externo, tal como não é, aquilo que
tocamos. Depois, prova que o degustável é táctil porque aquilo que é degustado,
é húmido e a humidade diz respeito ao tacto.
b. Quapropter 422 a 1 1 Poder-se-á objectar que por vezes percebemos os alimen­
-

tos dentro da água a alguma distância, por exemplo, o mel mergulhado na água,
razão pela qual os sabores não são percebidos sem o meio externo. Acontece
neste caso que o mel não é sentido através da água como um meio, mas porque
toda a água infusa pelo sabor é alguma coisa degustável.
c. Color autem 422 a 14 - Como a partir do conhecimento do que é comum e pró­
prio se investiga e se depreende a natureza da coisa, ensina o que o gosto tem de
próprio e de comum com os outros sentidos e, em primeiro lugar, com a vista. O
que lhe é próprio é que o degustável se misture com o húmido para que seja sen­
tido. Mas com o visível não é assim. Na verdade as cores não se ajustam pela
mistura ou no transparente, nem dimanam dos corpos, como Demócrito, Leucipo,
Empédocles e Platão consideraram. Por isso, é diferente o meio de uma e de
outra potência, embora se encontrem nele, porque tal como a cor determina o
acto de ver, assim o sabor determina o de gostar.
d. Atqui nihil 422 a 17 Porque os sabores estão em corpos muito secos, Aristóte­
-

les ensina que os corpos saborosos, se não em acto, ao menos em potência, são
húmidos. Esta potência manifesta-se facilmente naqueles corpos que se derretem
ao ligeiro contacto com um corpo húmido, como o sal que também se dissolve no
humor com a saliva da língua e humedece a própria língua. Acrescente-se tam­
bém que nos que não se liquefazem, como os aromas, basta a potência de receber
o humor comunicado à língua.
e. At uero sicuti 422 a 20 Continua a mostrar o que é que o gosto tem em comum
-

com os outros sentidos. Nomeadamente, porque, como os restantes sentidos não


só conhecem os sensíveis próprios, mas também, a seu modo, a sua privação, e
como tratam não só dos objectos moderados, mas dos extremos, assim também o
gosto não só conhece um objecto saboroso, mas também um objecto desprovido
de sabor ou insípido e o que tem um sabor forte. Além disso, o insípido diz-se de
quatro modos. Primeiro, pela negação, do que não se pode degustar, como, por
exemplo, a cor. Segundo, pela privação, o que não é dotado de qualidade gusta­
tiva, mas tem aptidão para a obter, como a água. Terceiro, o que possui o mínimo
de qualidade gustativa. Quarto, o que é degustável em grau extremo. Mas de
outros tantos modos se diz o inaudível e o invisível.
f. Ut informe dicitur, aut indoctum 422 a 25 O contexto grego é wom:p TO ãrrouv
-

Kal TO arrúp11vov, isto é, que carece de pés e está privado de caroço. E o sentido é
que por vezes se diz invisível, não o que careça totalmente de potência para ser
388 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

visto, tal como o som ou o anjo, mas que carece para ser clara e correctamente
visto, do mesmo modo que umas coisas se dizem destituídas de potência para
andar e outras destituídas de caroço, porque têm os pés pequenos ou um caroço
diminuto.
g. Videtur autem 422 a 3 1 Como os sabores apenas são sentidos com a humidade,
-

o húmido diz respeito ao líquido e afirma que é correcto considerar o potável e o


não potável, como princípios do gustável e do não gustável. Também se percebe
o potável pelo gosto e pelo tacto, pelo tacto, como húmido; pelo gosto, como
saboroso. Mas chama não potável, tal como, pouco antes, insípido, por negação
ou por privação, etc.
h. At vera cum gustabile 422 a 34 - Disputa sobre o sensório do gosto. Porque tinha
dito que o gosto não se dá sem o tacto húmido, afirma que o instrumento do
gosto deve ser de modo a que o húmido não estej a em acto, em especial no
humor que se dá em conjunto com o sabor, nem sej a também um efeito tal que
não possa ser humedecido. Efectivamente, os órgãos dos sentidos devem estar
em potência, tal como os objectos que são percebidos por eles estão em acto. E
esclarece isto com este argumento. Se a língua fosse de tal modo seca que não
pudesse ser humedecida pela humidade externa da coisa degustável não sentiria
nenhum sabor. Também, se consistisse nalgum humor sápido, não conheceria o
sabor das coisas exteriores. Isto é o que, não raro, experimentam aqueles que
sofrem de uma doença, visto que consideram todas as coisas amargas, porque
aquele sabor de bílis que ocupa a língua acorre primeiro ao gosto, não dando
lugar à apreensão de sabores externos.
1. Species autem saporum 422 b 1 0 Apresenta as diferenças ou espécies de sabo­
-

res, ensinando de que modo, a partir das espécies das cores, umas são opostas e
contrárias, outras intermédias. Assim, nos sabores, uns são opostos e contrários,
designadamente o doce e o amargo, outros intermédios. De entre estes, uns são
vizinhos deste ou daquele oposto. Aristóteles afirma que os sabores intermédios
são feitos dos contrários. De que forma isto deve ser entendido, explicaremos nos
livros da Filosofia Primeira.

QUESTÃO !
Da origem e natureza do gosto e das suas espécies

ARTIGO !
As coisas que concorrem para a génese do gosto e qual é a sua definição

Nesta questão deve primeiramente supor-se que nenhum corpo simples, contanto
que tenha em si a devida pureza, é saboroso, visto que o sabor é uma qualidade
segunda nascida da mistura das quatro primeiras, que não podem dar-se ao mesmo
tempo no elemento que conserva o estado primitivo. Por isso, também a água que
banha a terra se fosse pura, não receberia nenhum sabor. E esta, quanto menos
saborosa é, tanto mais é considerada pura e sublime. Acontece, também, que o gosto
é o sentido do alimento, como ensina Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X, Questão /, Artigo / 389

capítulo 4º. Posto que os sabores foram dados pela natureza para temperar o ali­
mento, este não é um elemento puro, como no primeiro livro A Geração e a Corrup­
ção mostrámos ser consentâneo com o facto de os sabores não pertencerem a
nenhum elemento puro. Afasta-se, por isso, a afirmação de Empédocles, de Anaxá­
goras, de Demócrito e de outros (sobre a qual Aristóteles, no livro O Sentido e Sen­
sível, capítulo 4º; Teofrasto, no livro 6, De causis plantarum, capítulo 2º e outros
autores), afirmando, com Alberto Magno, na Suma do Homem; também em O Sen­
tido, e o Sensível, tratado 2; Apolinário, neste livro, questão 29; Gárbio, na Suma,
questão 7 1 ; Contareno, livro 5 dos Elementos; no Conciliador, diferença 1 45 ; Mar­
celo, no terceiro sobre A Alma, capítulo 80º, na sequência de Aristóteles no ponto
citado; também Teofrasto, no citado livro, capítulo 3º, que para a génese do sabor
concorrem sobretudo três coisas, a secura terrestre, a humidade e o calor da água. A
experiência demonstra que a secura da terra intervém nas coisas saborosas. Deve ser
a secura da terra, não do fogo, porque a secura do fogo é demasiado ténue na matéria
e é, por isso, efémera e pouco apta para produzir o gosto que, como é o único dos
sentidos de natureza mais espessa e lodosa, exige o objecto na matéria mais espessa.
É também evidente que o humor concorre para gerar o sabor, porque muitos corpos
se tornam saborosos quando são irrigados pelo humor. Deve, também, este húmido,
ser de água, não de ar, porque só no húmido, que tem a faculdade de alimentar, e por
isso tem a matéria densa e compacta, o sabor é excitado. Tal é, de facto, ordinaria­
mente, o húmido aquoso, não aéreo, porque se dissipa facilmente. Por outro lado,
para o nascimento do sabor é necessário que o húmido se sobreponha ao seco, por­
que tal como o odor consiste mais no seco do que no húmido, assim o sabor consiste
mais no húmido do que no seco, como discutimos na disputa acerca da natureza dos
odores, baseados em Aristóteles. Finalmente, o calor é necessário para criar o sabor,
porque o sabor costuma originar-se somente na presença do seco e na digestão do
húmido, através da qual o húmido se mistura directamente com o seco. Mas esta
digestão acontece pela potência e pelo ministério do calor. Daí vermos que os sabo­
res desaparecem com o frio, porque o frio impede a digestão. Consideramos, tam­
bém, que os frutos são mais amargos em zonas frias, e que com o aumento do calor
das terras o amargo desaparece e se torna doce em toda a parte. Mais ainda, como
para o sabor concorrem estes três elementos, o seco e o húmido pertencem à consi­
deração da matéria, o calor tem a condição da causa eficiente.
A partir daqui não será difícil compreender o que é o sabor, que Teofrasto define,
no primeiro capítulo, livro 6, De causis plantarum. O sabor é o derramamento da
parte seca e terrena no humor. Mais exactamente, Aristóteles, no livro O sentido e o
sensível, capítulo 4º. O sabor é a afecção no húmido aquoso, que pelo seco terrestre
e pela cozedura do calor, produz o gosto que está em potência e que por uma altera­
ção é levado ao acto. Nesta definição não só se exprime a matéria e a causa eficiente
do sabor de que falávamos há pouco, mas também a forma, quando se diz que o
sabor é afecção e também fim, quando se acrescenta que o gosto é levado, etc. Na
verdade, a alteração pela qual o sabor move a potência é o fim do sabor.
Quem objectar que não parece que o humor seja matéria dos sabores. Efectiva­
mente, as cinzas são amargas, mas não húmidas. O gengibre e a pimenta têm sabor
acutilante, mas não húmido. Mais, porque se os sabores fossem os próprios alimen­
tos e fossem húmidos, seria necessário que todo o alimento fosse húmido, o que é
390 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

falso, visto que a fome é o apetite do alimento, e no livro 3, A Alma, capítulo 3º,
texto 28, ela é definida como apetite do quente e do seco. Mas deve opor-se, que
embora a matéria dos sabores seja húmida, não se segue que todo o sabor está intei­
ramente na coisa que possui mais humor do que secura, mas naquela cuj o sabor
provém mais do humor do que da secura, como afirma Teofrasto no livro 6, De
causis plantarum, embora na coisa, entretanto, resida mais humor do que secura. E
assim, também o sabor que está nas cinzas nasce sobretudo do humor, do qual as
cinzas não se encontram totalmente destituídas. O que igualmente se deve dizer
acerca do gengibre e da pimenta. Apontando que nem todo o alimento é húmido,
indicamos também que este, como é saboroso, exige mais humor do que secura e
que, na coisa saborosa, se existem umas partes mais secas e outras mais húmidas, o
sabor prolifera mais nas húmidas do que nas secas.
Por fim, quem duvida sobre se o sabor, que provém da referida mistura, inerente à
coisa, que recai sob o gosto, e conserva a espécie que lhe pertence, é alterado pela
natureza da potência. Há razão para duvidar disso, porque parece evidente, por
experiência, que uma mesma erva é doce para o boi e amarga para o homem. No
entanto, deve afirmar-se o contrário, contra alguns autores referidos por Teofrasto,
no capítulo 2º, livro 6, De causis plantarum. Na verdade, como o gosto em todos os
animais é da mesma natureza, afastados os impedimentos, não se engana acerca do
próprio sensível. É necessário que a doçura, que existe numa mesma erva, seja
percebida segundo a natureza e a espécie da doçura. Por isso, os animais costumam
ingerir avidamente certas ervas e alimentos que os homens rejeitam, e o contrário. A
causa não é porque a doçura inerente à coisa não sej a percebida por uns e outros,
mas porque, a partir da diversidade de misturas, acontece que o que é para um doce,
para outro é desagradável e danoso, ou vice-versa. Com efeito, também para o nosso
gosto, as coisas doces são, por vezes, nocivas, como é claro no exemplo do pau de
canela. Contareno observou isso no livro 5, Elementos.

ARTIGO II
Que espécies de sabores existem

No que toca às espécies de sabores, os filósofos não estão de acordo quanto à sua
fixação. Com efeito, uns afirmam que elas não podem ser reduzidas a um número
certo, outros consideram oito espécies, outros sete. Plínio, no livro 1 5 , História
Natural, capítulo 27º, enumera treze: doce, suave, gorduroso, amargo, áspero, acre,
picante, azedo, ácido e salgado. E além destas, diz ele, há três géneros de natureza
admirável. Um, em que são igualmente sentidos muitos sabores, como nos vinhos,
nos quais saboreamos o áspero, o picante, o doce, o suave, todos eles diferentes. O
outro é o género onde existe um sabor distinto, mas que é seu e próprio, como no
leite, e que por isso lhe é inerente, pelo que não se pode dizer, em rigor, doce, gordu­
roso e suave, conservando a delicadeza que aparece no sabor, alternadamente. Daí
imputar-lhe um certo paladar a água saborosa. Mas deve ser aprovada a opinião de
Aristóteles no capítulo anterior, que acedendo mais à razão filosófica, enumera oito
espécies de sabores (embora não deva repugnar muito constituir mais espécies, divi­
dindo mais ou menos minuciosamente, falando mais genericamente): o doce, o
amargo, o gorduroso, o salgado, o acre, o azedo, o picante e o ácido. O doce no mel,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X, Questão /, Artigo li 391

por exemplo, nos figos, também sentido nas uvas maduras. O amargo na bílis, no
ópio, no absinto e na giesta. O gorduroso na manteiga, no leite e no azeite. O sal­
gado no sal e na água salgada. O picante na pimenta e no alho. O azedo que é cha­
mado picante e ácido ou acidulado, nos frutos não maduros e nos frutos do mirto.
Á cido, nos óleos, amarga no vinagre e no saramago ou no rábano. A partir destes
sabores Aristóteles ensinou que o gorduroso é inerente ao doce, isto é, que se pode
tomar doce, e o salgado, amargo não porque convenham em espécie, mas pela maior
ligação que têm com eles.
Há grande discórdia sobre quais são os sabores extremos. Platão, no Timeu;
Galeno, no livro 4, Simplicium Medicamentorum, ao capítulo 1 0º; o Conciliador,
diferença 1 45 , consideram que não há doce e amargo, conforme defendeu Aristóte­
les, mas picante e azedo. O fundamento desta opinião é que estes sabores que ava­
liamos como extremos, sobrevêm mais às primeiras qualidades extremas. Também o
sabor picante é mais vizinho do calor mais elevado, o ácido, do frio mais elevado,
compreenda-se isto, pela natureza da mistura de que resulta. Acrescente-se que os
sensíveis extremos danificam os sentidos, embora o sabor doce muito pouco, pois
restaura e deleita. Também o trânsito do azedo para o acre é feito através do sabor
doce, mas não é costume que o trânsito seja feito, nas qualidades, através do
extremo, mas através do meio. Deve acolher-se a posição de Aristóteles, que São
Tomás examina, em O Sentido e o Sensível, lição 1 1 ; Averróis, neste ponto, texto
1 05 , e no quinto, Collectaneorum, capítulo 27º; Gárbio, na Suma, livro 1 , tratado 5 ,
questão 7 1 ; Contareno, n o livro D e elementis; Javelo, neste livro, questão 4 6 . É
necessário tomar em atenção, se os sabores forem considerados quanto às primeiras
qualidades de que provêm, que se deve negar não poder dizer-se que o salgado e o
picante, pela razão anteriormente aduzida, são extremos. Esta consideração dos
sabores não é própria dos sabores, enquanto sabores, mas porque integram a com­
posição do corpo, que os médicos têm sobretudo em conta. Dado que discutia acerca
dos sabores, de acordo com a própria natureza dos mesmos, isto é, enquanto movem
o gosto, Aristóteles fixou correctamente como sabores opostos, o doce e o amargo,
porque afectam sobretudo a potência em sentido contrário, tal como a experiência
demonstra. Assim, por exemplo, não consideramos que as cores sej am opostas, por
excesso das qualidades primárias, mas a partir do modo como a visão é impressio­
nada, porque uma desagrega, o branco, outra agrega, o negro. Mais ainda, o sabor
doce impressiona muito bem o sentido, o amargo, muito mal, porque aquele nasce
de uma boa composição, este do contrário. De facto, como os sabores são produzi­
dos a partir da paixão do húmido provocada pelo calor térreo, através do concurso
do calor, serão muito perfeitos e, sobretudo, adaptados ao sentido, os que obtêm a
cozedura mais perfeita do húmido, como o doce. Os outros, a mais imperfeita, por­
que muito má, como o amargo. Portanto, para fundamento da opinião contrária,
visto que procura comprovar que os sabores salgado e picante são totalmente opos­
tos, deve negar-se que a oposição dos sabores deva ser tomada das primeiras quali­
dades, como é evidente a partir das afirmações de há pouco. Para responder ao outro.
Os sabores têm isto de particular, que um dos seus extremos, a saber, o doce, não
fere muito, porque nos sabores, o dano é originada pelo excesso das qualidades
primárias, o qual está, de longe, ausente do sabor doce. A razão está em que, através
do excesso, é feito o trânsito do azedo para o ácido, não por si, mas por acidente,
392 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

designadamente porque os sabores possuem grande parte das qualidades extremas e,


por isso, se estas não se produzirem e retomarem a composição, sob cuja mistura se
faz o sabor doce, eles não podem perder-se. Acresce também, que não repugna que,
entretanto, o trânsito se faça também nos géneros de outras qualidades, como se o
corpo passasse de azul a negro e, seguidamente, de negro a púrpura.

QUESTÃO II
Se o gosto difere do sentido do tacto, ora pelo órgão, ora por natureza

ARTIGO I
Difere primeiro em natureza

Há quem pense que o gosto não difere do tacto, mas que está contido nele, como
a espécie no género. A opinião pode ser provada, em primeiro lugar, porque o
objecto de um e de outro parece ser o mesmo. Na verdade, o gosto percebe a água a
qual, visto ser destituída de sabor, não é conhecida como táctil mas como degustá­
vel. Daí Aristóteles, no capítulo atrás, texto 1 O 1 , ter afirmado que o degustável é de
certo modo táctil. Segundo. Porque Aristóteles, neste livro, capítulo 3º, texto 28,
ensinou que o tacto é o sentido do alimento. Por isso, embora o alimento respeite ao
gosto, parece ser objecto comum destes sentidos. Terceiro. Porque o paladar que
percebe os sabores, também percebe o humor, visto que o sabor não pode mover o
gosto se não estiver no húmido, em acto. Acrescente-se o testemunho de Aristóteles,
no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 4º, também no livro 3 desta obra, capítulo
1 2º, texto 64 e livro 2 sobre As Partes dos Animais, capítulo 1 7º, onde afirmou que o
gosto é de algum modo tacto e, por outro lado, o capítulo 2º, O Sentido e o Sensível,
onde diz que o gosto é uma espécie de tacto. Por fim, neste livro, capítulo 2º, texto
23 e livro 3, capítulo 1 2º, texto 68, ensina que apenas o tacto é necessário ao animal,
e diz o mesmo em O Sentido e Sensível, capítulo 4º, que o animal não pode viver
sem o gosto. Se Aristóteles entendesse que o gosto e o tacto não diferiam em espé­
cie, estes passos estariam em contradição.
Todavia, deve notar-se, que o tacto pode ser entendido de dois modos. De um
modo, enquanto é dito de qualquer potência, que não percebe a coisa sem contacto,
isto é, cuj o objecto não é sentido por um meio afastado que atravessa as espécies, tal
como se percebe a cor, que manda a sua imagem em direcção à vista, através do ar,
mas unida ao meio. Assim, o gosto é levado para os sabores e o tacto para o calor e
para as outras qualidades deste género que lhe dizem respeito. Não é necessário que
o sabor passe, da coisa saborosa para o gosto, através do ar, e igualmente que o calor
passe para o tacto. Do segundo modo, o tacto é tomado pelos filósofos, em sentido
próprio e mais restrito. Foi costume tomarem eles mesmos o táctil, seguramente por
uma qualquer qualidade, que para recair na sua potência não requer meio externo, ou
apenas pelas qualidades que são chamadas tácteis no preciso termo. Posto isto, se se
considerar o lacto de acordo com a primeira noção, dizemos que é correctamente
que se considera tacto, não só a faculdade de tocar, mas também a de gostar, visto
que nem uma nem outra carecem de meio externo para perceber o obj ecto. Se na
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X, Questão II, Artigo l 393

segunda noção as potências são diferentes em natureza e em espécie. Aristóteles tem


esta posição, neste livro, capítulo 2º, textos 1 1 2 e 1 28 e em O Sentido e o Sensível,
capítulo 4º; Averróis, neste ponto, texto 3 1 ; Temístio, capítulo 48º da sua Paráfrase;
Simplício, texto 1 1 0; Filópono; São Tomás ; Egídio; Zimara; Caetano, texto 1 1 1 ;
Apolinário, questão 29; o Ferrariense, questão 1 8 ; Alberto Magno, na Suma do
Homem e livro 2, A Alma, tratado 3, capítulo 27º, embora Veneto tivesse pensado
outra coisa neste ponto, texto 1 02, afirmando que o gosto e o tacto não diferem
excepto por algumas marcas, mas que formalmente é uma mesma potência. Prova-se
a verdade da nossa opinião, porque uma coisa é o objecto do tacto, designadamente
o calor, o frio, e outras qualidades deste género, sobre as quais o capítulo seguinte
deve tratar, e outra, o gosto, os sabores. Porque uma coisa é o órgão de tocar, outra
coisa o obj ecto do gosto, como de imediato se tomará evidente. Aristóteles usa este
argumento no texto 1 1 2. Depois, porque a não ser assim só existiriam quatro senti­
dos. Por último, porque é possível que, permanecendo o tacto incólume, pereça o
gosto na língua.
Ora, estes argumentos aduzidos ao início, não apresentam nenhuma dificuldade.
Na verdade, deve registar-se que se a água for de tal modo pura que careça de todo o
sabor, será percebida não pelo gosto, mas pelo tacto. Do mesmo modo, o degustável
é táctil e o gosto é tacto, ou uma espécie de tacto, se forem considerados no primeiro
modo, como explicámos antes, isto é, o degustável é táctil de acordo com a analogia
pela qual ambos caem sob a potência, isto é, pelo meio conexo. Do mesmo modo, o
degustável é táctil, não simplesmente, mas de acordo com a semelhança e a simili­
tude que alcançam ao perceber o objecto. Ou o degustável é táctil porque nada pode
ser degustado se não for primeiro tocado e o gosto é um certo tacto, porque a potên­
cia de degustar e a potência de tocar ocupam-se do mesmo alimento (daí que o tacto
se diga o sentido do alimento), mas em razão de qualidades diferentes, porque o
tacto trata do húmido e do seco, por exemplo, o gosto, do sabor que é feito com a
sua mistura. Ambas as faculdades tratam destas qualidades, ainda que o gosto não se
ocupe das suas, a menos que o tacto sej a primeiro impelido para as que lhe são pró­
prias por natureza.
Ao que foi acrescentado em último lugar, sobre a necessidade do tacto e do gosto,
deve dizer-se, que apenas o tacto é absolutamente necessário a todos os animais, a
tal ponto que não podem viver sem o tacto, nem por pouco tempo. O gosto também
é necessário mais ou menos a todos, excepto a poucos, bastante imperfeitos, não de
tal modo que, uma vez sem o gosto, ficassem de imediato prestes a morrer, mas
porque todos são igualmente aliciados pela vontade do alimento e, uma vez afastado
o sentido desta vontade, cessam normalmente de procurar a nutrição e comem tão
pouco que gradualmente se esvaem e morrem. Diz-se, por isso, que o gosto é neces­
sário aos animais porque, normalmente, sem ele, a maioria não conserva a vida
durante muito tempo. No entanto, certos animais muito imperfeitos que se aproxi­
mam da natureza e da condição das plantas, devoram o alimento sem prazer, tal
como as plantas . Eles são destituídos de gosto. Acerca deles deve ler-se Aristóteles,
no livro O sono e a vigília, capítulo 2º, quando diz que nem todos os animais têm a
faculdade do paladar. Posto isto, é claro por que razão o tacto é necessário e de que
forma o gosto pode, ou não, dizer-se necessário aos animais, ainda que das palavras
de Aristóteles não se conclua que o tacto e o gosto não se distinguem.
394 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
Também difere pelo órgão

O tacto e o gosto fazem uso do mesmo órgão, ainda que na parte do corpo em que
está presente a faculdade de conhecer os sabores também esteja a faculdade de tocar,
embora não se encontre, pelo contrário, a potência táctil em qualquer lugar em que
também a faculdade de gostar sej a sentida. A língua é o instrumento do gosto, ou
então aquilo que corresponde à língua naqueles que a não têm, como Aristóteles
ensina, no primeiro livro sobre A História dos Animais, capítulo 1 1 º e no 2º de As
Partes dos Animais, capítulos 1 7º, e 4º da mesma obra, capítulo 1 1 º. A língua (para
dizermos alguma coisa sobre a sua composição) liga a raiz à garganta, que é mais
longa, por um osso forte, como base, apoia-se e sustenta-se no que é chamado pelos
gregos úoaô�ç, que tem a forma da letra Y. Uma substância rara e ampla, como os
humores, que são veículos do sabor, facilmente a embebe. Ela está envolvida por
uma túnica muito fina que é comum a toda a boca. Compõe-se de nove músculos
divididos pela linha média, à direita e à esquerda, para que também este instrumento
seja geminado à sua maneira. Ramifica-se em duas veias maiores e noutras tantas
artérias e em dois conjuntos de nervos . Num, mole, destinado a conhecer os sabores;
noutro, mais duro que, repartido pelos músculos, impele os movimentos. É necessá­
rio, de facto, que a língua seja expedita, quer para falar, se também conservar a fun­
ção da fala, quer para transformar o alimento que detém na boca, em ordem a ser
capaz de o mastigar e o submeter, com diferente atrito dos dentes. Há quem
considere que a faculdade do paladar está principalmente na raiz da língua. Primeiro,
porque a saliva, que conserva o gosto é gerada aí. Existem, de facto, nas raízes da
língua duas glândulas de carne (chamam salivares), geradoras da saliva. Segundo,
porque ali são avistados os nervos maiores. Todavia a opinião contrária, como
Aristóteles ensinou, no livro 1 sobre A História dos Animais, capítulo 1 1 º, e no livro
2, As Partes dos Animais, capítulo 1 7º é verdadeira, a saber, que na ponta da língua
está presente o gosto mais apurado. Isso é evidente pela experiência. Quando o
alimento é devolvido para as raízes da língua deleita menos, de tal modo que o
remetemos para a cúspide da língua. Quando, pelo contrário, queremos saborear
algo, deitamo-lo imediatamente nas partes inferiores da língua. A razão é porque no
declive da língua reside maior potência gustativa, dado que esta é a parte mais mole
da língua e os seus nervos, embora menores, são, no entanto, mais tenros e mais
aptos para perceber os sabores. Não obsta que a saliva seja muito abundante na raiz.
De facto, se a quantidade do humor for pouca, cria um obstáculo ao gosto. Com
efeito, ainda que a referida faculdade resida principalmente na língua, como Santo
Agostinho, no livro 2 de As Palavras do Senhor, e São Damasceno, no livro 2 sobre
A Fé Ortodoxa, capítulo 1 8º; São Nemésio, no livro A Natureza do Homem, capítulo
9º; Plínio, no livro 1 1 , capítulo 37º consideram que parece que também algo se
estende em direcção ao palato, onde estão espalhados indiscriminadamente os
nervos gustativos . Isto não vai contra a opinião de Aristóteles, que apenas fala do
órgão principal, porque no próprio livro 4, As Partes dos Animais, capítulo 1 1 º,
também situa o gosto na goela. O deleite de todo o manj ar, diz, prova-se ao engolir.
De facto, enquanto deglutimos, sentimos as coisas viscosas, salgadas, doces e outras
deste género. Também a suavidade de quase todos os condimentos e dos manjares,
na mastigação, existe por causa do tacto da garganta. Plínio afirma que, embora no
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI 395

homem o gosto se prolongue em direcção ao palato, nos restantes animais apenas


reside na língua. Como ele próprio não o demonstra pela razão, nem o comprova
com a experiência, não há motivo para considerarmos que seja assim. De que modo
se deve entender o que Aristóteles afirma no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 2º
e no livro 2, As Partes dos Animais, capítulo 1 0º, que o gosto e o tacto dependem do
coração, temos de examinar noutro ponto.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XI

a. De tangibili autem 422 b 1 7- Em último lugar passa a disputar sobre o tacto,


disputa que até agora adiou, porque o conhecimento deste sentido é de alguma
maneira débil, como apontam as questões que sobre ele move, de tal modo difí­
ceis, que nelas não explica tanto a sua opinião, mas mais parece criar a oportuni­
dade de duvidar. A visa, portanto, no início do capítulo de que modo o tacto está
para o seu objecto, como os restantes sentidos, e por que método deve vir ao
conhecimento. Assim como devem ser multiplicadas as coisas tácteis em prol da
sua variedade, traz então, à controvérsia, se o tacto é só um. Também responde
qual será o instrumento do tacto, se a carne, se aquilo que corresponde em pro­
porção à carne nos animais que não são de carne, ou alguma outra coisa. Assim,
porque a carne é o meio, o órgão é algo de diferente latente no interior.
b. Omnis enim sensus 422 b 23 Confirma a parte negativa da primeira questão,
-

porque um sentido é próprio apenas de uma única oposição, como a vista, do


branco e do negro; o ouvido, do grave e do agudo; o gosto, do doce e do amargo.
Mas o tacto incide sobre várias oposições, designadamente sobre o quente, o frio,
o seco, o húmido e outras deste género. Se alguém responder que também nos
outros sentidos há várias oposições, como para vista, não só o negro e o branco,
mas também o belo e o feio, e outras deste género, como que reconhecendo que
qualquer um destes sentidos é um, refuta esta resposta, porque quantas mais
pareçam ser as oposições dos restantes sentidos, todas pertencem a uma natureza
comum, mas no tacto não é assim.
c. Huius autem utrum instrumentum 422 b 34 - Discute a controvérsia a seguir
sobre o órgão do tacto. Demonstrou que a carne do animal deve manifestá-lo,
desde logo, porque sentimos quando a carne é primeiramente atingida. Considera
que este argumento é pouco firme, porque se alguém aplicar uma membrana
exterior à carne, de imediato a sensação surge, e todavia é mais claro do que a luz
que a membrana não é o instrumento do tacto. Prossegue depois, que o que se
estabeleceu confirma o mesmo, porque a carne foi de tal modo afectada ao órgão
do tacto que a referida película, se existisse, seria congénita à carne e estaria
como o ar para a vista, para o ouvido e para o cheiro, se fosse inato aos animais
por natureza. Então, ainda que o ar fosse o instrumento destes sentidos, pare­
cendo que a natureza concentrava todos num único, não obstante, o ar seria o seu
meio, mas não o instrumento. Nem seriam o mesmo os sentidos de ver, de ouvir
396 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

e de cheirar. Portanto, a carne também seria o meio, mas não o órgão do tacto,
embora existisse junta ao órgão, enquanto é a mesma forma do próprio animal, o
que não se ajusta aos meios dos três referidos sentidos, que são elementos des­
providos de solidez e, por isso, os seres vivos não seriam enformados por
nenhumas formas.
d. Indicat autem plures 423 a 17 Este ponto é obscuro. Os intérpretes não estão de
-

acordo na sua explicação. Mas Aristóteles parece que continua a questão relativa
à unidade do tacto e afasta a oportunidade de se considerar que o tacto é só um.
Ele pensa que existe apenas uma potência de tocar, porque o seu instrumento é só
um. Afasta-o, portanto, porque embora só exista um instrumento, a existência de
vários objectos é suficiente para multiplicar a faculdade. É o que parece evidente
no gosto e no tacto da língua, que mostrámos serem sentidos diferentes, embora
sej am percebidos numa e na mesma língua, porque o tacto trata das qualidades
tácteis, o gosto das gustativas. Se, portanto, o tacto tivesse mais obj ectos, o sen­
sório e também o meio seriam um só. Isto não obstaria a que mais potências
devessem existir.
e. At uero dubitabit 423 a 2 1- Embora tivesse dito acima que o tacto tem um meio
congénito, agora, a fim de dar uma explicação mais ampla, desenvolve uma
questão, a saber, se o tacto tem algum meio externo. Na verdade, como entre dois
corpos (compreenda-se, sólidos, que tenham umas partes rebaixadas, outras
salientes) existe sempre ar ou água, interpostos, como é evidente quando se
tocam na água, quando entre eles permanentemente se encontra alguma humi­
dade, ou o que igualmente acontece no ar, embora seja menos claro neste ele­
mento, parecerá que deve afirmar-se, absolutamente, que todas as vezes que sen­
timos pelo tacto algum corpo deste tipo, intervém sempre o meio ar ou água e
que, assim, para o sentido do tacto, estes corpos são tidos como meios externos
para produzir a sensação.
f. Utrum igitur 423 b 1 Apresenta uma outra questão. Se todos os sentidos são
-

levados para os seus objectos através do meio externo. Responde que para todos
os sentidos é comum perceber os objectos através do meio externo, quer para o
gosto, quer para o tacto, quando provamos e tocamos corpos sólidos, porque
entre eles, como há pouco foi referido, a água e o ar permanecem sempre como
meio. Efectivamente os três restantes sentidos divergem do gosto, e do tacto,
porque neles o meio externo é movido pelo objecto mudado. Mudado o meio,
altera-se a potência. Nestes, portanto, em virtude da junção da coisa percebida e
da pequenez do intervalo, o meio e a potência mostram-se movendo-se ao mesmo
tempo. O que se expõe com o exemplo do escudo. Se alguém for batido através
do escudo, não dizemos que o escudo é batido pela lança, mas que ele é batido
pelo escudo e que recebe a pancada juntamente com o escudo. Acrescente-se que
o gosto e o tacto somente por acidente resultam do meio externo, visto que não é
possível que os corpos se toquem imediatamente, mas os restantes sentidos por si
e pela natureza dos objectos externos solicitam um meio.
g. Omnino autem 423 b 17 Explica detalhadamente o sensório, o objecto e o meio
-

do tacto. Ensina, primeiro, que a carne não é órgão, mas o meio do tacto, tal
como o ar é o meio da vista e do ouvido. Prova-o, porque o sensível aposto ao
sentido não é percebido. Com efeito, se o branco tocar os olhos, o som se juntar
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão /, Artigo / 397

ao ar congénito, ou o odor ao sensório do cheiro, não há sensação. Já o tangível é


percebido na carne com o movimento. Depois, afirma que o objecto do tacto são
as diferenças dos corpos tangíveis, isto é, o quente, o frio, o seco, o húmido, que
chama diferenças, porque os elementos, tal como têm a potência de alterar assim
se constituem entre si e diferem, como expusemos nos livros A Geração e a Cor­
rupção.
h. Sentire namque pati quoddam est 423 b 3 1 Mostra qual é o órgão do tacto,
-

afirmando ser o que está em potência para ser tangível em acto, por isso é neces­
sário que aquilo que sente o faça por um sensível semelhante, posto que aquilo
que suporta a potência é da mesma natureza daquilo pelo qual a suporta. Como,
portanto, o objecto do tacto é principalmente o quente, o frio, o seco e o húmido,
o seu sensório será afectado de modo a poder ser mudado por estas qualidades.
Existe, pois, uma diferença entre o tacto e os restantes sentidos, porque os órgãos
destes são desprovidos das qualidades que sentem, como o humor cristalino, das
cores, os movimentos mamilares, dos odores e outros do mesmo género. Mas o
instrumento do tacto, visto que é um corpo formado pela mistura das primeiras
qualidades, necessariamente integra em si em acto as primeiras qualidades que
são objecto do tacto, ainda que as deva obter no meio termo, a fim de conhecer
convenientemente os extremos e os excessos, pois é o juiz na média dos extre­
mos.
1. Praeterea ut visus 424 a lO Do mesmo modo que estabelece nos outros senti­
-

dos dois sensíveis, um, propriamente sensível, como um hábito, o outro, como
uma privação, também diz que a coisa existe no tacto, de maneira que tal como a
vista está para a coisa visível e a invisível, assim também o tacto está para o tan­
gível e o intangível. Chama, de facto, intangível, quer àquilo que tem as qualida­
des tácteis completamente débeis, quer ao que possui aquelas que se excedem de
tal modo que destroem o sensório.

QUESTÃO !
Qual é o órgão do tacto e qual é o seu meio

ARTIGO I
Diferentes opiniões dos filósofos acerca do órgão do tacto
e qual delas deve ser perfilhada

Subsiste grande discordância entre os filósofos sobre o local onde reside o ins­
trumento do tacto. Temístio, na sua Paráfrase, capítulos 39º e 40º e Simplício, texto
l l 6, colocam o tacto no coração, levados pelas palavras de Aristóteles, no livro O
Sentido e o Sensível, capítulo 2º; em A Velhice, capítulo 2º e em As Partes dos Ani­
mais, livro 2, capítulo l Oº, onde o Filósofo parece fazer do coração a sede do tacto e
do gosto. Mas Averróis, na Paráfrase sobre O Sentido, e no livro 2 das Generalida­
des Médicas, capítulos 8º e 1 8º, e em As Partes dos Animais, capítulos lº e oitavo,
afirma que a carne é o sensitério do tacto. O mesmo considerou Filópono, texto 1 24
398 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

e Afrodísia, no livro 2, A A lma, capítulo sobre o contacto, que Temístio retoma no


lugar citado.
Mas Galeno, no livro 1 , De usu partium, capítulos 1 6º e 1 8º, livro 5 , capítulo 9º,
livro 1 2, capítulo 2º e no livro 2, De temperamentis; Averróis, comentário 1 8 ; Ferné­
lio, no livro A Potência da A lma, capítulo 6º; Vesálio, livro 6, capítulo 1 7º; Alberto
Magno, neste livro, tratado 3, capítulos 3 1 º e 34º; o Conciliador, diferença 42; o
Thurisano, livro 2; A A rte, comentário 1 5 , e livro 3 , comentário 54; São Tomás,
neste ponto, lição 32; Egídio, texto 1 08, dúvida 2; também Escoto, questão 2; Jan­
duno, questão 29, afirmam que o órgão do tacto é o nervo.
Aristóteles pareceu aprovar uma e outra destas opiniões, no livro 1 , A História
dos Animais, capítulo 4º e no livro 2, As Partes dos Animais, capítulos 1° e 5º, onde
ensina que a potência de tocar está situada na carne, depois, no capítulo anterior,
acima, texto 1 09, onde considera a carne o meio e o órgão o nervo. Averróis, exami­
nando estes pontos e pendendo, então, para a segunda opinião, considerou que,
quando Aristóteles escreveu Os Animais, ainda não tinha sido descoberto que os
nervos estão escondidos sob um pedaço de carne, até porque, como depois reconhe­
ceu nos livros que mais tarde escreveu, mudou de opinião.
Expliquemos com algumas asserções a controvérsia proposta. Primeira. O órgão
do tacto não está apenas no coração, nem num só órgão do corpo. É esta a opinião
comum dos filósofos. Prova-se, porque não tocamos só com o coração, nem só com
outro membro, como se prova pela experiência. Na verdade, uma vez que este sen­
tido foi dado pela Natureza para manter a vida do animal e, de modo particular, para
afastar as coisas nocivas, pois a ele concerne a compreensão do dano que destrói a
composição das qualidades primárias, a qual principalmente mantém a vida, foi
necessário, que este sentido não fosse adj udicado ou limitado a uma parte certa do
corpo. Viu-se que Aristóteles o situou no coração e isso deve ser considerado verda­
deiro, na medida em que o tacto (o que à sua maneira se deve dizer do gosto), tal
como é necessário à vida, assim também corresponde em particular ao coração, que
é a fonte da vida, como o principal sentido vital e fundamento dos restantes, e desa­
parece juntamente com ele. Mas há quem diga que Aristóteles apenas pretendeu que
o tacto estivesse no coração, como numa fonte, porque daí se propagam os nervos,
através dos quais os espíritos afluem para o acto de sentir. Esta opinião do Filósofo
já foi por nós refutada, no primeiro de A Geração e a Corrupção, quando, com a
escola dos médicos, quer com outros argumentos, quer com observações anatómi­
cas, provámos que os nervos, e com eles os espíritos animais, derivam do cérebro,
não do coração. Além de que, de outra maneira, também se diria que outros sentidos
residiriam no coração.
Segunda asserção. O órgão do tacto nem é só a carne, nem só o nervo. Simão Pór­
cio examina-a, no livro sobre A Dor, capítulo 1 0º; Teófilo, neste livro, textos 1 1 0 e
1 1 2; São Gregório de Nissa, livro 4, Filosofia, capítulo 4°; e parece que Galeno, no
livro 3, De temperamentis, capítulo 9°, e livro 9, De placitis Hippocratis & Platonis,
capítulo 2º; Avicena, livro 6 dos Naturais, capítulo sobre o tacto; Algazel, livro 2,
tratado 4, capítulo 3º. Prova-se, porque é evidente que não só a carne, mas também o
nervo sente, quando é agredido, quer eles estejam juntos, como a carne com o nervo,
quer separados, como o nervo desprovido de carne, e ainda a carne que está no
fundo do coração e do fígado. Note-se, no entanto, que o nome de carne não é por
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão /, Artigo II 399

nós tomado, neste ponto, em sentido preciso, mas entendemos que deve ser com­
preendido na acepção da epiderme e da pele e outras deste género. Nós considera­
mos assim, a presença do tacto, por muito exígua que seja, em qualquer parte do
corpo, ainda que os ossos e certas outras partes, por causa da espessura da terra, ou
de outros elementos deste género inaptos para sentir, careçam da potência do tacto.
Mas a verdade da nossa asserção convence, porque onde está o sensório aí está a
sensação. O sentido do tacto reside efectivamente aí, onde é sentida a lesão e é sen­
tida em todo o lado, como a experiência ensina. É evidente que o tacto reside
sobretudo na epiderme. Também conhecemos muito melhor com ela as diferenças
das primeiras qualidades, do que com outra parte do corpo, o que foi feito com sin­
gular providência, de tal modo que elas podem prejudicar o animal com o seu
excesso e podem ser permanentemente evitadas onde atingem o corpo. Mas sobre a
própria pele, sente mais a que reveste a palma da mão, como realça Galeno no capí­
tulo 1 0º, livro primeiro, De temperamentis. E isto também foi disposto pela Natu­
reza, porque usamos a mão como instrumento comum para tocar e apanhar as coisas .
Se alguém objectar que parece que as primeiras têm de ser conduzidas neste sentido,
pelos nervos, deve dizer-se que a divisão do contínuo que provoca dor, sentem-na
mais os nervos quanto mais duros e mais densos forem, mas que a pele se salienta
por um sentido mais agudo para distinguir as oposições das qualidades, porque o
nervo se afasta do frio e do seco por composição, mas não a pele, que tem a medida
exacta.
No que respeita a Aristóteles, ele parece ter estabelecido o tacto, quer apenas no
nervo, quer apenas na carne, dizendo, primeiro, no capítulo atrás, que quando afas­
tou o instrumento do tacto da carne, não definiu esta matéria em absoluto, mas ape­
nas disputou ao modo dialéctico. Deve responder-se aos seus argumentos, que o
tacto é constituído em nós, na carne, não tanto pela razão de que sentimos a coisa
mal se chega à carne, mas pelas causas explicadas há pouco. Depois, que nem todo o
sentido requer um meio exterior e que a carne pode sentir o objecto encostado a si,
se não na parte que toca muito perto o objecto, pelo menos, na outra algo distante
dela. Sobre este assunto, trataremos mais abaixo. Já aqueles pontos em que Aristó­
teles atribuiu à carne a potência de tocar, devem ser acolhidos de maneira a conside­
rar que ela está presente na carne mas não somente nela.

ARTIGO II
Do meio do tacto

Ainda sobre o meio do tacto, poucas coisas há a dizer. Também pode inquirir-se
sobre o meio interno ou externo. Há pouco declinámos que seja exigido ou requerido
o meio do tacto. Como afirmámos, tanto a carne como o nervo são um instrumento
seu, embora não se possa chamar à carne apenas órgão, mas de algum modo o meio
interno, no que diz respeito ao nervo, visto que este se altera e se move por interven­
ção do seu objecto.
Acerca do meio externo Averróis considera, neste ponto, que ele é necessário,
sustentando que nada pode agir sobre o tacto, se não estiver interposto entre o agente
e o animal um corpo, como parece que Aristóteles ensinou nos textos 1 1 3 e 1 1 4. Se
se opõe a Averróis, que quando o ar e a água atingem imediatamente o animal agem
400 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

nele, de tal forma que nem sempre se exige o meio externo. Responder-se-á que o ar
e a água, dado serem os lugares naturais dos animais, não agem na sua disposição
natural, ou são por eles sentidos. Se o ar e a água se alteram fora do estado natural, e
as qualidades que agem no tacto resultam dos corpúsculos quentes e frios que
admitem em si, então o animal sente estes corpúsculos, que, no entanto, não agem
nele de forma imediata, mas por meio do ar, da água ou do meio interposto.
Esta posição não tem de ser aprovada, dado que de modo algum se deve negar
que os elementos agem nos corpos dos animais, também no estado natural, pois
superam-nos pelo excesso das qualidades primárias, e uma acção pode ser produzida
pela qualidade que se sobrepõe tanto no lugar natural como fora dele. De outro
modo, nem os elementos enquanto estão contidos nas suas próprias sedes agiriam
mutuamente nos que lhe estão próximos. O contrário disto, para além do que está
patente, foi demonstrado por nós noutro ponto. Por isso, deve afirmar-se que um
corpo externo, como o ar e a água, pode agir imediatamente no sensório do tacto e
que o tacto - o que igualmente se deve dizer do gosto - não requer um meio externo.
Deve ainda acrescentar-se, com São Tomás e com o Tienense, ao texto 1 1 4; com
Caetano, capítulo 1 0º; Alberto Magno, no tratado 3, capítulo 32º; Nifo e outros, que
os corpos moles se podem tocar imediatamente. Subsiste uma controvérsia sobre se
os corpos duros se podem tocar. Os autores citados consideram que os corpos duros
não se podem unir no ar e na água, porque nem o ar nem a água são meios. Marcelo,
no livro 2, A Alma, capítulo 1 9º; o Conciliador, diferença 42; Avicena, 6 Metafísica,
capítulo 3º; o Turisano 3; A Arte, comentário 54; Apolinário, livro 2, A Alma, ques­
tão 3 1 , artigo 1 º; Gárbio, na Suma, livro 1 , tratado 5, questão 24; Escoto, livro 2, A
Alma, questão 3 , defendem o oposto disto. Esta dúvida deve ser explicada, de modo
a dizermos que os corpos duros que têm umas partes côncavas, outras convexas não
possam juntar-se de tal modo, que no meio não exista outro corpo, de outro modo
dar-se-ia o vácuo nas partes côncavas . As que são inteiramente aplanadas e lisas,
como as vítreas, sem dúvida que podem juntar-se, visto que nenhuma razão deter­
mina o contrário. Por este motivo, quando Aristóteles afirmou, no capítulo atrás, que
o ar e a água estão permanentemente interpostos, quando se encontram dois corpos
nos lugares dos elementos, disse-o questionando e não afirmando (como parece a
alguns) e deve ser entendido sobre os corpos de superfícies desiguais. Há quem
objecte também que, quando as superfícies são desiguais, o ar não parece estar sem­
pre interposto no lugar do ar, porque de outro modo se seguiria que o ar interposto
sustém a massa muito grande e dura que pesa na substância da pedra, porque tam­
bém seria de conceder que quando as tormentas bélicas destroem uma torre, tod_a
aquela força é arremessada para a torre por intervenção do ar que se interpõe, o que
não parece possível porque o ar é um corpo muito ténue e mole. Deverá opor-se que,
quando algumas partes de tais corpos se tocam imediatamente, elas são suficientes
para sustentar o peso aplicado e por seu intermédio pode imprimir-se o impulso à
torre, se não todo uma parte. E ao mesmo tempo, uma parte desse impulso (mas
falamos da parte extensiva) é emitida por intervenção do ar, que, quer o corpo seja
mole, quer ténue, obstruído necessariamente pela estreiteza do lugar, recebe a força
exterior e funde-a no corpo vizinho. Mas acrescentamos ainda, que se pode dar o
caso de dois corpos inteiramente planos, duas tábuas, estarem juntas de tal modo que
entre elas permaneça o ar que sustenta a tábua superior, sobretudo se o superior se
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão II, Artigo / 401

unir ao inferior, ao mesmo tempo, em todas as partes, como no livro 4, Física, mos­
trámos. Mas nada de estranho se passa aí, então, visto que não podia ser de outro
modo. Se assim não fosse, se todo o ar, saísse nesse momento e nada restasse no seu
meio, seria necessário que todo o ar abandonasse ao mesmo tempo qualquer ponto
das tábuas, em que não estava primeiro, o que é impossível, como defendemos no
ponto citado.

QUESTÃO II
Se há um tacto ou vários

ARTIGO I
Diversas opiniões dos filósofos

Há quem considere que existe apenas um tacto e há quem considere que existem
muitos. Temístio, capítulo 39º; Averróis e Egídio, comentário 1 08 ; Janduno, questão
27 ; Apolinário, questão 40; Marcelo, no 3, A Alma, questão 3 8 ; Avicena, livro 6,
Questões Naturais, parte 2, capítulo sobre o tacto; Alberto Magno, 2º de A Alma,
tratado 3, dizem que há muitos. Parece que esta opinião pode concluir-se do argu­
mento que Aristóteles, no capítulo anterior, texto 1 07, usou para o comprovar, a
saber, existe um só sentido para uma só oposição; ora o tacto exerce-se sobre mais
oposições, visto que percebe o calor e o frio, o seco e o húmido, o áspero e o macio,
o duro e o mole, e igualmente o pesado e leve. Logo, o tacto não é uno, mas múlti­
plo. E pode corroborar-se a força deste argumento, porque diferentes oposições
primeiras, do tipo das oposições do calor e do frio, do húmido e do seco, não podem
ser reduzidas a um único género. Com efeito, uma única espécie de potência exige o
substrato de um só género. Acontece que a dor e o prazer, que costumam ser perce­
bidos a partir do contacto com as qualidades tácteis, respeitam ao tacto. Mas doer e
deleitar-se parece ser uma espécie de potência distinta daquela pela qual se sentem
as próprias qualidades tácteis.
Os que seguem esta parte avançam para posições diferentes. Uns enumeram tan­
tos tactos quantos os opostos, como Temístio e Avicena, mas no entanto não expli­
cam quantas oposições existem. Parece que Avicena estabeleceu um sentido para
quem experimenta a dor de uma ferida, outro para quem experimenta a carícia.
Outros autores, apenas consideram dois tactos, como Egídio, um para o calor e o
frio, outro para o seco e o húmido, mas o Comentador, no livro 2, Generalidades
Médicas, capítulo 1 3º, considera o tacto da carícia e depois o tacto do estômago, que
é, nomeadamente, a fome e a sede. De entre os autores mais recentes, também Car­
dano, no livro 1 3 , A Subtileza, distingue quatro tactos: um, das primeiras quatro
qualidades; outro, do pesado e do leve; um terceiro do prazer e da dor; e um quarto
da carícia. Também Caetano, neste ponto, embora se incline mais para a parte que
considera mais tactos, entende que nada de certo se pode afirmar nesta discussão,
porque a potência se distingue pelos actos e o acto pelos objectos. A razão formal
dos obj ectos tácteis não foi explorada, porque não é certa a razão formal na qual
afluem as duas primeiras oposições do calor e do húmido, do frio e do seco. Por esta
402 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

razão, visto que não está estabelecido o próprio princípio da distinção, é indevida­
mente que se define algo sobre esta matéria.

ARTIGO II
Conclui-se que existe apenas um tacto em espécie.
Refutam-se os argumentos dos que consideram que existem mais

Agrada-nos a opinião que os intérpretes áticos, Simplício, Plutarco, Filópono, e


parece que Alexandre, seguiram, isto é, que apenas existe uma espécie de tacto, e
que também Femélio, livro 5 , da sua Fisiologia, capítulo 7º, acolheu e também São
Tomás a considera provável, na primeira parte da Suma Teológica, questão 78,
artigo 3º. Mas ela pode ser persuasiva assim. Como é evidente a partir do que ensi­
námos na questão sobre a distinção das potências diz-se que o sentido é único, em
espécie, pelo objecto. Se o objecto tem uma única razão formal em espécie, obtém­
-na se reivindicar uma única razão de mudar o órgão em espécie e isto é o que sucede
com o objecto do tacto. Portanto, o tacto é único segundo a espécie. Demonstra-se a
premissa menor, porque as qualidades tangíveis, que são objecto do tacto, têm um só
modo de mudar o órgão, não apenas porque não exigem um meio afastado através
do qual transportam as espécies, já que este também é comum ao gosto, mas também
porque se encontram nele, mudando o complexo das qualidades primárias de que o
animal se compõe. Daí dizer-se que o tacto é o sentido da composição. Nem importa
que além das quatro qualidades primeiras, mudem outras que também respeitam ao
tacto e que não pertencem à composição, pelo menos de perto. A unidade da razão
para modificar o órgão do tacto apenas se deve afirmar das primeiras qualidades,
visto que estas são o primeiro objecto do tacto. As restantes pertencem-lhe por uma
razão secundária. Conclui-se daqui que o obj ecto do tacto, ainda que materialmente
considerado não seja um, mas múltiplo, e não contenha em si uma só, mas várias
oposições, todavia, formalmente, ou enquanto táctil, é único, exigida esta unidade
por aquele modo de modificar o órgão, que explicámos. Donde, como a distinção
das potências deve ser tomada a partir dos objectos considerados segundo a razão
formal, como dissemos, confirma-se que a faculdade de tocar é uma e não muitas .
É assim evidente o que se deve responder aos argumentos que com base nas múl­
tiplas oposições, sobre os quais se ocupa o tacto, tendiam a mostrar que ele não
podia ser um em espécie. Mas é necessário agora explicar o que se deve considerar
sobre a dor, o prazer, a fome, a sede e as cócegas, que também parecem respeitar ao
tacto e nele demonstrar uma distinção em espécie, visto que são sobretudo actos
diferentes e discrepantes entre si.
Atente-se que na dor e no desejo do corpo (sobre eles se trata agora), se podem
considerar dois aspectos, os actos próprios da dor e do deleite e os objectos destes
actos. O objecto e causa dessa dor está na modificação notável operada sobre as
primeiras qualidades, como quando a mão se queima ou na separação da continui­
dade, como quando alguém é ferido. Donde, Galeno, livro 12 do Método, capítulo
7º, escreveu que o conhecimento natural nos ensina que a doença do corpo que está
prestes a atingi-lo, se deve ou à decomposição da continuidade ou a alguma altera­
ção. Embora sobre este assunto haja muita discussão entre os autores, uns conside­
ram que a causa da dor, proveniente do tacto, se deve apenas à desagregação da
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão li, Artigo li 403

composição, outros, só à divisão da continuidade, outros a uma e outra, o que nos


parece bem. Mas o objecto e a causa do referido deleite é o contacto das qualidades,
sobretudo das convenientes e a atracção dos espíritos que se soltam e de outras par­
tes subtis que de modo brando agradam.
Portanto, em primeiro lugar, não deve negar-se que estes objectos não só perten­
cem ao apetite sensitivo mas também, ao mesmo tempo, ao tacto, mas por razão
diferente. Na verdade, as primeiras qualidades são percebidas pelo tacto como seu
sensível próprio, como é evidente. É por ele percebida a desagregação do contínuo e
a irrupção dos espíritos e outros movimentos locais dos corpos que se podem tocar,
não como sensíveis próprios do tacto, mas comuns. Tudo isto pertence efectiva­
mente ao tacto, visto que são tangíveis e determinam o seu acto, que não é a dor nem
o prazer, e dizem respeito ao apetite sensitivo sob a noção do bem e do mal presen­
tes segundo o acto próprio da dor e do prazer. Tal como respeita propriamente ao
apetite sensitivo ser levado em direcção ao bem e ao mal sensíveis também lhe res­
peita o deleitar-se e a dor. Não pertence ao sentido tender para o bem ou para o mal
enquanto tais. Assim, quando alguém queima a mão, o tacto percebe a temperatura
do calor, porque é algo tangível e, ao mesmo tempo, o apetite concupiscível por
causa da lesão, que é um mal de natureza, sente dor, ao representá-lo para si, prefe­
rencialmente à fantasia, sob a noção de nocivo e de mal.
Isto sobre a dor e o prazer, agora sobre as cócegas. Nesta acontecem duas coisas.
Um certo horror pelo qual repelimos o contacto e algum desejo e afago, que sobre­
vém em certas partes do corpo de sentido mais apurado, quando muitas artérias
tendem para as suas extremidades, como debaixo das axilas e das plantas do pé.
Enquanto se rarefazem mais por desgaste, costumam para elas acorrer os espíritos e
quantidades de matéria com prurido que, pelo seu contacto, excitam o desejo. Destas
duas coisas, o horror, ou a fuga ao contacto, se for empreendida por subtracção do
corpo, é própria do movimento local, como é evidente, se por acto interno é uma
operação do apetite sensitivo que repele. Mas o prazer respeita igualmente ao apetite
sensitivo, pela razão há pouco referida. Também a percepção do movimento local
em que confluem o espírito e a potência da matéria para o prurido é relativa ao tacto
como seu sensível comum.
No que concerne à fome e à sede, acerca das quais discutimos claramente no pri­
meiro livro sobre A Geração e a Corrupção, importam principalmente três pontos
relativos a qualquer delas : pela fome, a perturbação que ocorre principalmente no
ventrículo, a dor que dela resulta e ainda o apetite do cálido e do seco. Pela sede, o
desagrado da excessiva aridez nas fauces e ventrículo e a dor que também nasce
daquele desconforto e do apetite do frio e do húmido. Se, portanto, tratarmos da dor
e do apetite, é evidente que já respeitam ao apetite sensitivo. Se da separação, que é
um movimento local, é evidente que também respeita ao tacto, como sensível
comum. Se do desagrado, também lhe diz respeito, mas como sensível próprio.
Posto isto, facilmente se compreenderá de que forma aquilo que leva os autores
que referimos acima a multiplicar as espécies do tacto, na verdade não chega para
multiplicá-las. A dor, o prazer do corpo e as acções de apetecer e de repudiar são
actos do apetite sensitivo. As coisas tácteis, a partir das quais tudo isto é causado ou
para o qual tende, como foi explicado, ou são sensíveis próprios do tacto, e estão
contidas sob as quatro qualidades primeiras, conforme mostrámos que todas no
404 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

modo de mover suportam uma natureza específica em ordem à faculdade de tocar;


ou são sensíveis comuns, pelos quais não deve ser estabelecida uma distinção da
potência, como já anteriormente assinalámos.

QUESTÃO III
Se sentimos o sensível que se apresenta excedendo o sentido

ARTIGO I
Argumentos da parte afirmativa

Parece demonstrar-se, de modo claro, a parte afirmativa desta controvérsia. Pri­


meiro, porque no que se refere à visão, o vapor ou o humor é captado condensado
pelo olho entre a córnea e o cristalino, e quando o olho é comprimido pelo dedo,
aparece no escuro um certo brilho interior, que nele mesmo experimentamos. Tam­
bém Aristóteles afirma, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 2º, que observamos
não só a luz externa, mas também a luz que é infundida à pupila. Além disso, a audi­
ção percebe claramente o som ouvido, que é feito no ar conatural, o odor percebe
claramente a substância de fumo ou, pelo menos, o que avança para as formações
mamilares. Também aqueles em quem a língua foi impregnada de humor bilioso,
avaliam, não por causa do alimento doce ou amargo, mas porque o próprio instru­
mento do gosto sente a bílis de que está impregnado e fica impedido de discernir
outros sabores. Também, a mesma parte da carne e do nervo que é cortada ou ator­
mentada, sente.
Mas que pelo menos o tacto e o gosto percebem o objecto que lhe é encostado,
parece concluir-se da seguinte maneira. Os restantes sensíveis não são conhecidos
excepto a uma distância considerável, porque não podem ser percebidos pelos senti­
dos senão pela intervenção das espécies. Ora, as espécies que penetram imediata­
mente nas potências, por serem excessivamente grosseiras, não estão aptas a produ­
zir a sensação, e o tacto e o gosto não sentem através das espécies. Por isso, não há
razão para não conhecerem os objectos que se lhes juntam. Prova-se a premissa
menor, porque se o tacto sentisse através das espécies seguir-se-ia, por exemplo, que
a mão sentia o ar da mesma temperatura, isto é, igualmente quente ou frio, a que ela
própria está, todavia, entre os filósofos, é evidente que apenas são sentidas por nós
as qualidades excedentes. A consequência demonstra-se, porque não existe nenhuma
razão para a mão não sentir um objecto igualmente quente, excepto porque ela não
pode ser alterada igualmente pelo quente. Mas se sentisse através da espécie do
calor, dado que não pode recebê-la do menos quente, teria de dar-se que ela podia
sentir igualmente o quente. Mais. Prova-se o mesmo sobre o gosto, porque se a lín­
gua gostasse pela espécie, não se sentiria que ela suporta em si realmente o mais
amargo e o mais azedo. Mas não é assim que sucede, porque ela sente antes o sabor
acre pela própria incisão, o salgado pela dissipação e o azedo pela alteração, como
ensinam Platão, no Timeu, e Galeno, no livro 4 De simplicium medicamentorum
facultate. Acontece que se os sentidos do gosto e o do tacto se dessem pelas espé­
cies, estes sentidos poderiam perceber as coisas gostosas e tangíveis na ausência
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão li/, Artigo li 405

delas, dado que nada impediria que elas enviassem as suas espécies para os sensó­
rios, a partir de alguma distância.

ARTIGO II
Expõem-se as diferentes opiniões dos filósofos sobre a questão proposta
e defende-se a posição comum

Muitos autores divergem entre si nesta controvérsia. Escoto, neste livro, questão
4, afirma que, se o assunto for conduzido à regra da verdade, a proposição de Aris­
tóteles afirmando que não se sente o sensível que excede o sentido, é verdadeira se
for entendida relativamente à visão confrontada com os corpos opacos. De facto, no
caso destes sensíveis excederem o olho, não podem ser vistos, pois estão privados da
luz intermédia para transportar a espécie. Mas a proposição é falsa, se se tratar quer
dos restantes sentidos, quer da própria vista ordenada para os corpos translúcidos
iluminados em acto. Aristóteles não pretende senão que os sensíveis que excedem o
sentido, dado que o mudam por uma acção real, não são sentidos, mas que são con­
tudo percebidos,pelo motivo de que o afectam nocionalmente, imprimindo-lhe a sua
imagem. Alexandre, conforme o testemunho de Averróis, neste local, e alguns
médicos, são de opinião serem três os sentidos que precisam de algum meio entre os
objectos e o instrumento, a vista, o ouvido e o olfacto. Também o Comentador, São
Tomás, ambos e Caetano, neste ponto; Janduno, na questão 29; Javelo, na questão
50; Apolinário, na questão 34; o Ferrariense, na questão 1 9 ; Alberto Magno, 2ª
parte, Suma do Homem, questão sobre o tacto; Egídio, quer neste ponto, quer no
livro 2 do Hexâmero, capítulo 1 2º e muitos outros, afirmam que é verdadeiro acerca
de todos os sentidos, que nenhum deles percebe o objecto que se lhe apresenta. Pro­
vam-no, com o testemunho de Aristóteles que, neste livro, capítulo 6º, texto 75 e
capítulo 8º, texto 98, ensinou isto, de modo absoluto e sem qualquer restrição. Nem
a interpretação de Escoto é consonante com a de Aristóteles, visto que ele não dizia
que o sensível que se apresenta ao sentido, tomado deste ou daquele modo, não é
sentido, mas que de modo nenhum é sentido, sendo por isso necessário aquele meio.
O principal argumento através do qual os referidos autores confirmam a sua posição
é aquele que vimos no artigo anterior, isto é, porque como o objecto precisa de ser
percebido, exige-se uma certa acomodação ou proporção entre a espécie do objecto e
a potência, mas não se discerne tal proporção entre a espécie do objecto imediata­
mente produzida e a potência. Quando sai primeiro do objecto a espécie é, de facto,
totalmente grossa e espessa e, paulatinamente, depõe essa materialidade no meio,
como pela experiência é claro na espécie visível. Esta atenua-se aos poucos, por
causa daqueles que no limite são mais fracos, e quanto mais longe ela é produzida é
menos bem feita, pois para discernir eles requerem uma imagem mais espessa.
Como esta posição é comum na escola peripatética, damos satisfação aos argu­
mentos, que no primeiro artigo lhe opusemos. Ao primeiro, dizemos que, se alguma
coisa dentro do olho o humor condensar, não é captado o que tinha ocupado o cris­
talino, mas o que está um pouco afastado dele. Ao segundo, que a luz, que de noite
se avista, quando se esfrega o olho, se difunde até ao humor cristalino, visto que a
visão não se faz a não ser por um meio iluminado, mas não é vista segundo aquela
parte que está dentro do órgão, mas segundo a parte distante, o que igualmente se
406 Sobre os Três Uvros 'Da Alma ' de Aristóteles

deve dizer acerca de qualquer outra luz que se estende para o próprio sensório de
ver. Ao outro argumento, sobre o ouvido, respondemos que o zumbido não é esti­
mulado no órgão, mas numa cavidade que existe junto do tímpano. Quanto ao que
respeita ao olfacto, resolve o argumento quem disser que se algumas vezes o odor
segundo o ser real chegar às formações mamilares não é percebido segundo a sua
parte extensa, que reside no órgão, ou que o atinge de perto, mas sim, segundo a
parte afastada. Isto também se deve dizer acerca do humor bilioso que impregna a
língua. De facto, ele não é percebido no gosto segundo a parte que atinge os nervos,
em que principalmente reside o órgão de gostar, mas segundo outra, distante dele. E
do mesmo modo é costume responder-se àquilo que é objectado acerca do tacto.
Nomeadamente, que o sensório do tacto sente a zona que acolhe, não percebendo o
próprio sensível segundo a parte que o atinge de perto, mas segundo a parte afastada.

ARTIGO III
Resolvem-se os argumentos pertencentes ao tacto e ao gosto.
Propõe-se uma outra opinião

Sobrevêm ainda os argumentos respeitantes ao tacto e ao gosto, que muitos médi­


cos consideram estar demonstrado por si que o sensível que excede estes sentidos é
percebido. Ao primeiro, concedida a premissa maior, deve negar-se a menor. Na
verdade, todos os sentidos, como noutro ponto estabelecemos, com São Tomás, 1 ª
parte da Suma Teológica, questão 78, artigo 3º e com outros autores, requerem a
espécie como princípio necessário ao conhecimento. Para provar a premissa menor
deve dizer-se, que para que a potência sensitiva perceba o objecto, mesmo o mais
exterior, não basta que a sua espécie tenha sido assinalada. Acontece que muitas
vezes a espécie é produzida e todavia não resulta uma acção, como quando se apre­
sentam dois observadores à mesma distância do objecto, e um deles vê o objecto
porque tem uma visão mais clara, o outro, porque é mais fraco, não vê. Então, um e
outro recebem a espécie, embora apenas num se produza a visão. E o mesmo acon­
tece, quando alguém é de tal modo tomado por outras coisas no pensamento, que,
por essa razão, o som que uns ouvem no mesmo lugar, ele próprio não o capta.
Assim, pois, quando o calor se aproximar do menos quente e imprimir a sua espécie
no sensório, nem por isso é necessário que isso seja percebido pela potência sensi­
tiva, porque para que tal percepção aconteça requer-se aqui, além da sua espécie,
que o calor também sej a impresso no próprio órgão. Isto não sucede, a não ser que o
calor que age, sej a mais intenso do que aquilo que o suporta, como mostrámos cla­
ramente nos livros sobre A Geração e a Corrupção.
Ao segundo, deve dizer-se do mesmo modo que o gosto não percebe o sabor, a
não ser que o receba em acto juntamente com a espécie, pois uma porção de cada
sensitério não sente a parte extensiva do sabor que lhe corresponde de perto, como
dissemos acima. Ao terceiro, é evidente o que deve ser respondido. Com efeito,
como o gosto e o tacto não sentem senão o que recebem em si, pela própria coisa,
apenas conhecem o que está presente.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XII 407

A explicação dos argumentos com que se costuma provar que o gosto e o tacto
percebem os objectos que se lhe apresentam é a mesma. Foram por nós aduzidos
argumentos de ambas as partes, e para os que ponderaram a sua solução parece ser
mais verosímil a afirmação que muitas vezes exceptua o gosto e o tacto daquela
opinião, quer porque parece falso que, quando o órgão é queimado pelo fogo pró­
ximo, o tacto não perceba a alteração da temperatura que acontece na parte que é
atormentada e que, de tal forma, nenhuma parte do órgão sinta a sua própria destrui­
ção, mas também, e de igual modo, que a língua não perceba o amargo que incide
sobre si. Parece que este argumento é, pelo contrário, alheio à verdade. O instru­
mento do tacto é aquecido uniforme e disformemente. Posto isto, se nenhuma parte
do órgão que sente percebe a destruição da composição que imediatamente que
corresponde, visto que qualquer parte aquece mais, ou menos, que outra (é esta a lei
da forma que uniforme e disformemente se difunde através do substrato), segue-se
que o tacto sente mais numa parte do órgão, menos noutra, como é evidente, pois a
lesão é desigual em todas as partes, conforme estabelecemos. Mais, como nenhuma
parte percebe a ofensa própria, mas a ofensa da outra parte, segue-se que o tacto
deve perceber tanto menos quanto mais calor houver. Mas parece que conceder nisto
é, sem dúvida, um absurdo.
Não aprovamos, no entanto, a opinião daqueles que apontam que o gosto ou o
tacto podem conhecer o objecto sensível sem a semelhança. Na verdade, a espécie é
intermediária, de acordo com as regras da natureza e a ordem entre o conhecimento
sensitivo e a coisa conhecida. Nem da coisa sensível, que é demasiado material para
o conhecimento, que sobrevém propriamente à natureza imaterial, se faz o trânsito
sem o meio, mas com a intervenção da espécie, que tem menos materialidade do que
o objecto sensível. Donde Aristóteles, neste livro, capítulo 1 2º, a seguir, texto 1 2 1 ,
ensina firmemente que as formas sem matéria são comuns aos sentidos, isto é , que
estes recebem as imagens dos objectos. Ora, parece, relativamente a esta opinião
acerca da imediação do gosto e do tacto, que consideramos mais provável ser pró­
pria destes dois sentidos que eles não requerem intervalo entre a potência e o objecto
pelo qual a espécie se atenue. Na verdade, tal como as restantes espécies são mais
espessas, assim também a espécie produzida muito perto do objecto lhe pode ser
conforme.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XII

a. Hoc autem 424 a 1 7 Explicados os sentidos externos, um a um, Aristóteles


-

reúne neste capítulo, certas coisas que lhes são comuns. Primeiro, os sentidos
recebem as formas sem matéria, isto é, as imagens das coisas, não as próprias
coisas. Mostra-o numa comparação com o selo. A cera recebe a figura e a ima­
gem da estatueta, não a própria matéria da estatueta em que está a imagem. Não
obsta a isto que o tacto e o gosto, como é claro a partir das afirmações anteriores,
recebam em si mesmos, não apenas os tipos das coisas tácteis e das qualidades
gustativas, mas também as qualidades. Na verdade, não foi ideia de Aristóteles
negá-lo, mas afirmar que para as potências sensitivas externas empreenderem as
408 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

suas funções não é necessário que as qualidades sensíveis sejam recebidas no


órgão em geral, mas é necessário que os sensíveis imprimam as suas imagens nos
órgãos, e concorram com as imagens para, desse modo, desempenharem logo a
seguir as tarefas, seja quais forem as coisas que caem sob os sentidos por inter­
venção das espécies. Há muita discórdia na interpretação deste ponto entre Filó­
pono, Simplício, Ternístio e Averróis. Acerca deste assunto leia-se Teófilo, texto
1 22.
b. Instrumentum autem 424 a 24 - Aristóteles afirma que é comum a todos os senti­
dos dizer-se que o seu órgão primário é aquele em que reside o sentido. Chama
órgão primário à parte semelhante em que a faculdade sensitiva é imediatamente
recebida. E na verdade como no livro 2 sobre As Partes dos Animais, capítulo 1 º,
ensina, embora a parte do corpo, em que se perfaz a sensação, difira nalguma
coisa, como a mão ou o olho, todavia a parte em que primeiro e de perto a potên­
cia e o acto de sentir estão presentes, é semelhante, como o nervo, o humor cris­
talino e outras deste género, e aqui, chama a estas partes o sensório primário.
c. Atque sunt 424 a 25 Explica o acordo entre a potência e o instrumento e afirma
-

que é o mesmo no substrato e que difere em natureza, como se dissesse que a


brancura e o leite são o mesmo no substrato porque a brancura é inerente ao leite
e, no entanto, distinguem-se entre si na definição. Assim, a potência e o órgão
são o mesmo no substrato, porque a potência assenta no órgão, todavia difere em
natureza e por definição, visto que a potência é uma forma acidental inerente ao
corpo, mas o órgão é a substância afectada por uma qualidade.
d. Patet autem 424 a 28 - Resolve dois problemas . Um, porque é que um sensível
excessivo, como uma luz brilhante, um som forte, incomoda a faculdade. Res­
ponde que a causa está em que as potências exigem alguma moderação no subs­
trato, tal como a harmonia, para desempenharem cabalmente as suas funções. Tal
como na cítara e noutros instrumentos musicais que quando são tocados por um
movimento desordenado e mais enérgico do que o conveniente a harmonia das
cordas desaparece. Por isso, um sensível brusco para o órgão destrói o equilíbrio
que, uma vez perdido, faz com que os sentidos não possam executar conve­
nientemente as suas funções. Outro problema é, por que razão as plantas não
sentem, uma vez que são animadas e costumam ser dotadas de qualidades tácteis,
tal como os animais, embora aqueçam e arrefeçam. Responde que é por carece­
rem da natureza e da composição das primeiras qualidades necessárias aos sen­
sitérios. Daí que estes não conservem nem a faculdade de sentir, nem os órgãos
idóneos para a função de sentir e para uso das formas sem matéria.
e. Dubitabit 424 b 3 Porque disse que as plantas recebem em si qualidades tácteis
-

e não se evidenciam pelo sentido. Chegada a ocasião, traz para a controvérsia, se


alguma coisa desprovida de sentido suporta objectos dos sentidos, como no som
ou no odor. Argumenta-se a favor da parte negativa. Primeiro, porque como o
odorífero, por exemplo, e o susceptível de ser cheirado estão relacionados - nem
o susceptível de cheiro é dito, a não ser em comparação com o odorífero, nem o
odorífero, a não ser em comparação com o susceptível de cheiro -, não parece
que alguma coisa possa produzir odor além do odorífero. Segundo, porque os
próprios sensíveis, como a luz e as trevas, à sua maneira, e também o som e
outros deste género, não agem nos corpos desprovidos de sentido, senão por aci-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XII, Questão Única, Artigo I 409

dente, tal como o som não sacode a terra, por si, ou derruba a árvore, porque está
junto a uma grande força de ar. Por isso, apenas vemos agir os sensíveis naquilo
que pode sentir e na medida em que é dotado de sentido.
f. At enim 424 b 1 2 A favor da parte afirmativa, que é a verdadeira, disserta deste
-

modo. As qualidades tangíveis, os sabores e os restantes sensíveis têm a facul­


dade de agir, mesmo nas coisas inanimadas. Não há, pois, razão para negarmos
que essa faculdade possa agir nelas e produzir-lhes uma paixão. Todavia não se
deve negar que a partir destas qualidades, como o odor e o som, não se difundam
indiscriminadamente por todos os corpos, mas por aqueles que carecem de limi­
tes e se não mantêm, isto é, através das coisas húmidas e fluidas, a saber, do ar,
da água, como é evidente a partir daquilo que acima discutimos. Resolvem-se
agora os argumentos que foram aduzidos a favor da parte negativa da questão
proposta, sem embaraço. Ao 1 º dever-se-á responder, se se tomar o susceptível
de cheiro e o cheiroso enquanto se diz que o susceptível de cheiro é cognoscível
pelo odor, e que a faculdade do odor pode conhecer a coisa cheirosa que então o
susceptível de cheiro refere-se só à potência de cheirar e, igualmente, a potência
de cheirar somente ao susceptível de cheiro. Mas se tomarmos o odorável por
aquilo cujo odor pode ser recebido em qualquer parte, então o odorável não é
tanto reportável à potência, mas também ao meio pelo qual o odor é definido,
como o recebido a partir da coisa odorífera. Ao 2º, embora o som não rache a
árvore, senão por grande agitação do ar que se levanta, todavia é difundido o
mesmo som através do ar também na própria coisa.
g. Quid aliud 424 b 16 Contra o que antes tinha definido, que também o ar recebe
-

o odor, Aristóteles objecta assim. Cheirar é receber o odor, mas no meio o corpo
recebe o odor em si, portanto, é cheiroso e, por isso, sente. Responde a esta
objecção. Cheirar consiste no substrato suportar o que não pertence ao ar, para
sentir o odor.

QUESTÃO ÚNICA
Se o sentido é afectado pelo sensível que o excede ou não

ARTIGO I
Disputa-se primeiro a favor da parte negativa,
mas é confirmada a parte afirmativa da questão

Parece demonstrar-se com estes argumentos que a parte negativa da controvérsia


proposta é verdadeira. Todas as potências tendem para os seus objectos por propen­
são inata, não menos do que para as operações pelas quais são para eles levadas ; ora,
nada tende para aquilo que o prejudica, dado que todas as coisas amam a própria
integridade; logo, o sentido não pode ser lesado nem pelo que o excede, nem por
nenhum objecto seu. Segundo. Lesar e corromper são o mesmo, visto que a lesão
leva à corrupção; mas nada se corrompe a não ser pelo contrário, como Aristóteles
ensinou no livro A longevidade e brevidade da vida, artigo 1 º; logo, o sentido apenas
é lesado pelo contrário. Como nada é contrário aos sentidos tal como às restantes
410 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

potências naturais, nada há, portanto, capaz de provocar a lesão no sentido, Terceiro,
Os objectos agem nos sentidos, pelas suas espécies, mas estas não produzem
nenhuma acção pela qual mudem a composição do órgão ou abalem o sentido, Não
podem, portanto, prejudicar o sentido. Prova-se a premissa menor, porque as ima­
gens têm um ser imperfeito e diminuto, visto que degeneram da natureza das coisas
que representam. Donde, o seu ser não é chamado pelos filósofos pura e simples­
mente real, mas nocional, como que intermédio entre o ser real e o ser de razão.
Donde, acontece que a espécie do calor não parece poder gerar o calor, sobretudo
porque ela é de pior qualidade que o calor. E são do mesmo modo as imagens, em
comparação com as coisas que representam. Quarto. O intelecto, pelo qual as coisas
mais nobres, para cuj a contemplação se inclina, colhe nisso maior satisfação, não só
porque não é lesado pela percepção dos objectos iluminados, mas também está mais
preparado e acutilante para a percepção dos objectos mais elevados. Donde, caminha
das causas para os efeitos, das substâncias para os acidentes, mas quanto a isto, o
que se dá no intelecto, dá-se no sentido. Portanto, o sentido não percebe nenhuma
lesão de um sensível excessivo.
Aristóteles ensinou, no capítulo atrás, texto 1 23, e depois no capítulo 2º, livro 1 2
texto 1 4 1 ; São Tomás, nas Questões Disputadas sobre A Alma, artigo 8 ; Galeno, no
livro 1 0 De usu partium e outros autores, que os sensíveis excessivos prejudicam os
sentidos e que, por vezes, os enfraquecem totalmente. O mesmo também é evidente
pela experiência. Porque a composição idónea do órgão, sem a qual não é possível
que os sentidos tenham vigor e desempenhem integralmente as suas funções, não só
consiste numa forma congruente e apta, mas também numa certa simetria e modera­
ção de qualidades primárias. Mas esta é, em parte, destruída pela potência dos sensí­
veis excessivos e pela acentuada mudança interior, acontecendo que os sensíveis
destroem a própria potência que também reside no órgão ou, de quando em vez,
danificam-na e impedem-na de operar perfeitamente. Temístio, no livro 42 da sua
Paráfrase, considerou isto digno de fé, pela semelhança retirada de Aristóteles, do
seguinte modo. É evidente, diz ele, que um sensível excessivo prejudica o sensório.
Se uma força maior sobrevier, para que ela possa ser suportada pelo sentido, é
necessário que, da sua parte, se siga uma perda, porque a composição e a natureza
são desagregadas e falham. Na verdade, a composição não é mais do que uma certa
medida, uma medida do meio termo, Todo o processo é resolvido pela mudança,
como a modulação nas cordas da lira e no canto. Se as cordas e as vozes se agudi­
zam ou excitam mais vigorosamente, como postula a natureza do esforço e da har­
monia, imediatamente começam a desafinar e depressa toda a harmonia se desfaz.

ARTIGO II
Explica-se sobretudo de que forma os sentidos são prejudicados um a um
por um sensível excessivo e resolvem-se os argumentos apresentados
no início da questão

De que forma os sentidos são, um a um, prejudicados por um sensível excessivo,


facilmente se pode compreender. Em primeiro lugar, a luz, que pela sua natureza é
igual ao calor, se for em demasia, imprime muito calor ao olho, altera deste modo a
composição do órgão, também desagrega as partes da matéria com a força do seu
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XII, Questão Única, Artigo li 41 1

calor e abre o caminho através do qual os humores vitais saem para fora, sem cujo
trabalho a visão não pode funcionar. Assim acontece até que se atinj a a cegueira.
Galeno, no livro 10 De usu partium, refere exemplos claros desta matéria. Os nossos
olhos, afirma, são ofendidos por um brilho violento. Ensinaram isto, por certo, os
soldados de Xenofonte, que fazendo um percurso através de muita neve foram vee­
mentemente feridos nos olhos. Também o experimentaram aqueles que � aídos de um
cárcere muito obscuro, levados de repente pelo tirano Dionísio para uma casa
esplendorosa, lavada e lustrosa, subitamente ficaram cegos, sofrendo pelo encontro
repentino com uma luz brilhante. Por essa razão, sem dúvida que os pintores,
quando pintam as cores brancas, pelas quais a vista é ferida, opõem cores foscas e
azuladas, para que aqueles que observam com atenção recreiem os olhos. Do mesmo
modo, a luz fere os que padecem de oftalmia; e ele retorca que, no entanto, as luzes
foscas e azuladas são olhadas sem dor. Já, com efeito, se explicados os inconve­
nientes de se observar o próprio Sol com os olhos mal protegidos rapidamente os
perdemos, como acontece a muitos que durante o eclipse do Sol, o vêem com os
olhos fixados, quando observam desejosos da vontade de conhecer, e ficam cegos.
Isto, quanto a Galeno. Também Alberto Magno, tratado 4, capítulo 9º, acrescenta
que as trevas à sua manenira, prejudicam a vista, visto que na escuridão por causa da
ausência de luz e calor os espíritos se retiram para o mais profundo e uma excessiva
frieza condensa e congestiona as partes do olho, de tal modo que, por vezes, os olhos
não podem ser recuperados.
No que respeita aos restantes sentidos, um som muito alto danifica o ouvido, por
causa do grande movimento do ar, por onde é transportado. Daí o testemunho de
Plínio, no livro 6, capítulo 29 da História Natural. Quando o Nilo se precipita dos
montes mais altos, toma surdos, com o ruído, os que habitam na vizinhança. Já
quanto ao olfacto, segundo Aristóteles, livro 2, desta obra, capítulo 9º, texto 99, são
nocivos os odores de tal modo fortes pelo calor excessivo da exalação fúmida, pelo
qual entretanto chegam até às formações mamilares. E por fim, as coisas tácteis e
degustáveis, por causa do calor, do frio e de outras qualidades deste género, lesam o
tacto e o gosto. Visto que os sensíveis excessivos provocam a agressão nos sentidos,
também os moderados deleitam, como a cor verde, a vista, as vozes temperadas, o
ouvido e também no número ouvido, as harmoniosas, e o mesmo acontece com os
restantes. Resolvamos agora os argumentos propostos ao início. Ao primeiro, con­
cedida a premissa maior, deve responder-se à menor, que nada se inclina natural­
mente para o que o lesa. Os objectos dos sentidos não danificam por si os sentidos,
mas por acidente, quando afastam o excessivo e lesam o órgão. Ao segundo, conce­
dida também a proposição maior, deve dizer-se que as potências sensitivas não têm
contrário. Também não são corrompidas por si, mas dissolvidas pela composição do
órgão. Mas opõe-se que esta é destruída pelo excesso, pois a composição consiste na
média. Ao terceiro argumento é costume responder-se de modo variado. Há quem
pense que as espécies dos sensíveis lesam por si, produzindo uma qualidade que
destrói o órgão, porque ainda que tenham o ser diminuto e imperfeito, no entanto,
como são instrumentos dos objectos donde são enviadas, podem ter a mesma facul­
dade de onde saem. Mas esta opinião, como mostrámos noutro ponto, é menos
provável . Portanto, aqueles cuja opinião acolhemos afirmam que as espécies não por
si, mas em razão de outras qualidades que as acompanham, são transmitidas apenas
412 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

pelo obj ecto e produzem efeito deste modo. Ao último, deve dizer-se que o intelecto
não é lesado pelo conhecimento das coisas mais elevadas, porque não é uma potên­
cia inerente ao órgão corpóreo, cuja composição pode ser perturbada pelo excesso
das qualidades que sobrevêm.

Fim do Livro Segundo


Livro Terceiro
Livro Terceiro, Proémio 415

PROÉMIO DO TERCEIRO LIVRO


DO TRATADO DA ALMA

Após ter indagado, no primeiro livro, com base na opinião dos filósofos antigos,
não tanto o que eles pensavam mas o que se deveria pensar sobre a natureza da alma
e de, no segundo, ter proposto a definição de alma, coligida e descoberta por si e ter
dissertado acuradamente acerca das suas potências e funções, Aristóteles investiga
agora, não com menos diligência e cuidado, neste livro, que se encontra dividido em
quatro partes, as questões concernentes à divisão do assunto. Na primeira, que se
perfaz num só capítulo, trata do número dos sentidos externos, acerca dos quais
disputou um a um, no livro anterior. Na segunda, contida em dois capítulos, aborda
o tratado dos sentidos internos. Na terceira, discute sobre o intelecto, desde o quarto
até ao oitavo capítulos. Na quarta, do capítulo nono até ao fim do livro, aprofunda o
princípio da marcha dos animais. Entre os comentadores, subsiste muita discussão
acerca do exórdio deste livro. Na verdade, Averróis, Alberto Magno, Egídio e Cae­
tano pretendem que os três primeiros capítulos concernem ao segundo livro, ini­
ciando-se este no quarto capítulo. Filópono, Temístio, Simplício, São Tomás, Teó­
filo, Argirópolo e outros seguem a nossa divisão, que é a preferida pelos exemplares
gregos e que é hoje em dia vulgarmente acolhida.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1

a. Sensum autem 424 b 22 Dado que a faculdade sensitiva não se encontra igual­
-

mente presente em todos os animais, como é evidente através da experiência e


Aristóteles ensina, no capítulo 1 º, livro 1 2 da História dos Animais e no capítulo
8º do livro 9 da mesma obra, para que ninguém julgue que o número dos sentidos
é indefinido em virtude desta diversidade de sentir, ele prova neste capítulo que
existem apenas cinco sentidos externos e que não há outra faculdade externa pela
qual os sensíveis comuns e os sensíveis próprios se distingam. Subsiste, no
entanto, discussão entre os comentadores sobre a razão por que Aristóteles
começou este livro pelo número dos sentidos. É provável que o tenha feito, além
do mais, para se encaminhar para a discussão relativa às potências internas, o que
faz mostrando que o estudo dos sentidos externos está resolvido, visto que não
existe mais nenhum além dos cinco referidos. Prova, portanto, o estabelecido,
mais ou menos deste modo. Os animais perfeitos, como os homens, a quem a
natureza dá não só aquilo que serve para viver, mas também para bem cuidar e
conservar a vida, não têm mais de cinco sentidos, a saber, a vista, o ouvido, o
olfacto, o gosto e o tacto. Donde, não há mais sentidos externos em número. Esta
é a razão e o fundamento principal de Aristóteles neste ponto, como Averróis,
Filópono e Simplício sublinham. A mesma razão e argumento encontram-se no
mesmo Aristóteles, no livro 4 da História dos Animais, capítulo 8º.
416 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

b. Nam sic nunc 424 b 24 - Prova o antecedente do silogismo proposto, isto é, que
todos os sentidos existem no homem, a partir dos objectos, dos instrumentos e
dos meios. Dos objectos, porque todos os homens percebem os sensíveis. Dos
instrumentos, porque não lhes falta nenhum órgão para realizar as funções dos
sentidos. Dos meios, porque todos os meios lhes servem para o trajecto dos sen­
síveis.
c. Cuius sensus est 424 b 25 - Prova que compreendemos todas as coisas que
recaem sob os sentidos, porque se compreendemos pelo tacto todas as diferenças
das qualidades tangíveis que são amplamente manifestas, o mesmo também
deverá ser afirmado acerca dos restantes objectos dos sentidos .
d. Praeterea si sensus 424b 27 - Antes de provar que todos os meios existem para
nosso uso, ele ensina que não é possível possuirmos um sentido a que falte o sen­
sório. Há efectivamente uma correspondência recíproca, do mesmo modo que os
sentidos sem os instrumentos não podem executar as funções próprias e os ins­
trumentos sem as potências são supérfluos e não podem, por isso, existir sem
elas, pois apenas existem por causa das suas operações, segundo Aristóteles tam­
bém ensina no último capítulo do livro 4, Meteorológicos; no capítulo 1 °, livro 1 ,
As Partes dos Animais; no capítulo 3º, livro 1 , Política ; capítulo 2°, livro 3 , A
Geração dos Animais e noutros sítios.
e. Omnis sensus 427 b - Prova que não nos falta nenhum meio. Na verdade, há um
meio, quer interno, quer externo. Como é evidente no livro anterior, nós usamos
ambos para sentir. A partir daí explica a simpatia e a conexão que intervêm entre
o meio, tomado formalmente ou quase formalmente, e o próprio sentido, e afirma
que, se o meio formalmente é um, então também o sentido que o usa deve ser
considerado formalmente um; materialmente existem vários, pelo que a visão é
um sentido, embora as espécies visíveis atravessem o ar e a água. Com efeito,
estes dois elementos têm uma razão formal, segundo a qual transmitem as ima­
gens visíveis, isto é, a transparência. O ar não tem essa razão formal, pois trans­
porta as espécies das cores e as espécies dos odores. Donde acontece que, embora
exista materialmente um meio, ele pertence contudo a dois sentidos. Atente-se
que Aristóteles fala aqui, ora dos sensórios, ora dos meios, por causa do conhe­
cimento entre a natureza do meio e a do sensório.
f. Nam ex hisce 425 a 3 Confirma o proposto, pela parte dos órgãos. Na verdade,
-

todos os instrumentos sensitivos são compostos de dois elementos, o ar e a água,


visto que estes são os mais aptos para receber dos objectos o que a natureza do
órgão sobretudo requer. Mas o fogo, visto que é fortemente activo, tem menos
aptidão para isso, ainda que a natureza do calor, sem a qual nenhuma operação
dos sentidos se pode dar, seja exigida em qualquer sensório. Também a terra,
como é muito densa e espessa, ou não está em nenhum órgão ou está somente no
tacto. Portanto, como toda esta variedade de composição, que pertence aos
órgãos, se observa nos instrumentos dos sentidos humanos, é evidente que não
falta ao homem nenhum sentido por falta do órgão.
g. Ab iis igitur 425 a 9 - Conclui que todos os órgãos dos sentidos existem, não em
todos os animais, mas nos animais perfeitos e naqueles que não se encontram
mutilados. A quem objectar que a toupeira é um animal perfeito e contudo carece
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo / 41 7

de vista, deve ser respondido, que embora ela careça de vista possui um certo
esboço de olhos, e que quase se poderá dizer que a Natureza teve primeiramente
a intenção de lhe dar os olhos, mas que não deu, porque a vista não é necessária
ao ser vivo nas tocas subterrâneas . Outros pretendem que Aristóteles não consi­
derou a toupeira um animal perfeito, mas imperfeito e que ele tinha argumentado
parecer que a vista não está tão presente nela, tal como se dissesse que se a tou­
peira, que é um animal de conhecimento inferior, tem vista, como a própria
forma dos olhos apesar de tosca o mostra, por maioria de razão os animais per­
feitos acolhem a visão e os restantes sentidos. Mas, na questão, aprenderemos o
que deve ser dito acerca da visão da toupeira.
h. At uero neque 425 a 1 3 Refuta do modo seguinte quem disser que existe, além
-

dos cinco sentidos, um outro, que trata dos sensíveis comuns como do sensível
que lhe é próprio . Nenhum sensível próprio pode recair noutro sentido por si e
todo o sensível comum recai por si noutros sentidos. Logo, nenhum pode ser
próprio de outro. Prova a premissa menor, porque os sensíveis comuns agem nos
outros cinco sentidos e são sentidos por eles, por si, visto que é sentido por si
aquilo que afecta a potência. Mostra-o com estas palavras: sentimos pelo movi­
mento, isto é, conhecemos quando as coisas mudam ou movem a potência. A
partir disto, prova que os referidos sensíveis comuns mudam as potências. Na
verdade, o tamanho move a vista e, portanto, a figura, que é o seu limite, não se
distingue dele realmente, o mesmo se passando com os restantes.
i. Quod si ita non esset 425 a 24 Prova o mesmo com a razão que quase recai no
-

anterior. Se o sensível comum fosse conhecido, por si, por um outro sentido, não
poderia ser sentido por outros a não ser por acidente, mas não é assim. Logo, o
sentido comum não pertence por si a algum outro sentido. A premissa maior é
evidente, porque o sensível próprio de um sentido é conhecido por outro, por aci­
dente, como o doce pela vista, não porque o doce mova a potência de ver, mas
porque está junto, por acidente, ao branco, que por si move a vista. Porque o sen­
sível comum não é sentido de maneira a ser percebido de outro modo, senão por
aquele pelo qual se percebe o filho de Cléon. Por isso, aquele não se diz que é
sentido por acidente porque é sentido, por si, por outro sentido, mas porque é o
substrato em que está aquilo que é sentido, por si. Prova a premissa menor, por­
que o sensível comum move por si as potências de sentir e é conhecido por si a
partir delas .
k. Propria autem 425 a 30 Ensina, por exemplo, porque vejo que a maçã branca é
-

ao mesmo tempo doce e a bílis verde é amarga; a uma faculdade por si cabe jul­
gar que o branco é doce e que o verde é amargo e diz que não pertence à vista em
si, mas que compete a uma outra potência, isto é, ao sentido comum, que sente
junto com os sentidos externos e une o objecto de um ao objecto do outro, por
exemplo, o branco ao doce. Acerca deste assunto trataremos mais amplamente de
caminho.
1. Quaeri potest 425 b 24 Suscita a questão de saber por que é que a Natureza
-

criou vários sentidos externos. Responde que se existisse apenas um sentido, os


sensíveis comuns, por vezes, não se distinguiriam dos restantes. Efectivamente,
se percebêssemos a cor, as qualidades tácteis, os odores e os tamanhos, através
de um único sentido, os sensíveis comuns não respeitariam a vários mas somente
418 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

a um sentido e, portanto, por vezes, não se acharia diferença entre os sensíveis


comuns e os sensíveis próprios.

QUESTÃO ÚNICA
Se existem cinco sentidos externos ou não

ARTIGO I
Parece que são menos. Parece que são mais

Apresentaremos em primeiro lugar alguns argumentos a favor da redução do


número dos sentidos. De seguida, outros que têm em vista acrescentarem-no. Pri­
meiro. Basta uma e a mesma força proveniente do cérebro para produzir nos olhos o
acto de ver, nos ouvidos o de ouvir e, também, nos restantes órgãos, as restantes
funções. Tal como uma só força motora é suficiente para tocar as cordas de um ins­
trumento musical, um só sopro para insuflar várias flautas, produzindo concerto e
harmonia, e um único Sol se espalha para gerar, aqui a chuva, ali o trigo, consoante
a variada disposição da matéria. Não há, portanto, razão para que se estabeleçam
várias faculdades sensitivas externas nos órgãos, em virtude das várias funções.
Segundo. Aristóteles provou o número dos sentidos a partir dos instrumentos.
Mas apenas um, o cérebro, designadamente, é o instrumento de todos os sentidos
externos. Donde, há apenas um sentido externo. Prova-se a premissa menor, porque
a percepção dos sensíveis não parece acontecer senão no cérebro, o que se demons­
tra na visão, porque, muitas vezes, permanecendo o olho são e íntegro, a acção de
ver é impedida unicamente pela obstrução do nervo óptico. Decerto, porque então
não se verifica o trânsito da espécie visível para o cérebro, sem a qual, a faculdade aí
residente não pode produzir a visão. Por isso, a acção de avistar parece não aconte­
cer a não ser no próprio cérebro, o que igualmente deverá ser dito acerca das restan­
tes funções dos sentidos externos.
Terceiro. O intelecto está para os inteligíveis, como os sentidos para os sensíveis.
Mas o intelecto não se multiplica consoante as diferentes faculdades, tendo em conta
os inteligíveis, mas uma e a mesma faculdade compreende todos os inteligíveis.
Logo, um único sentido compreende todos os sensíveis. Se um não compreende
simplesmente todos, ao menos um sentido externo compreende todos os sensíveis
externos.
Quarto. Como Aristóteles defendeu no capítulo anterior, há tantos sentidos em
número, quantos os que estão presentes nos animais perfeitos. Nestes, contudo, não
se encontram os cinco, universalmente; portanto, não é preciso estabelecer que todos
eles existem. Prova-se a premissa menor, porque há muitos animais perfeitos que
possuem todos os sentidos, como os ouriços que, como afirma Aristóteles, no livro
4, A História dos Animais, capítulo 8º, não parece que tenham olfacto e as toupeiras,
que não têm vista. O mesmo parece que se deve dizer acerca das baleias que,
segundo Plínio, no livro 9, capítulo 62º, usam por olhos uns pequenos peixes cha­
mados ratos-do-mar, como guias dianteiras, sem o que se lançam para o fundo do
mar. Daí, aquele passo de Claudiano, no livro 2, Contra Eutrópio:
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo li 419

Deste modo se precipita contra os rochedos o corpulento animal


Quando deixa escapar o peixe companheiro
Que mostra as vagas que ele tem de rasgar.
Com o leme da pequena cauda o imenso cardume comanda
Aliando-se assim ao monstro.

Demonstra-se agora a parte contrária, a saber, por que se devem estabelecer mais
sentidos do que cinco. É necessário admitir a existência de uma faculdade sensitiva
que preste atenção ao objecto para o qual os sentidos são levados um a um. Portanto,
dá-se um outro sentido externo, para além dos cinco mais vulgares. Confirma-se o
antecedente, porque muitas vezes os olhos, por exemplo, são impressionados pela
imagem de uma coisa visível e, no entanto, não desencadeiam a visão. Sem dúvida
que isto não acontece por outro motivo, a não ser porque não prestamos atenção. Por
isso, é necessário estabelecer um outro sentido ao qual respeite a função de prestar
atenção. Mas mostra-se que este sentido não é a própria faculdade de ver porque o
acto da faculdade de ver é apenas a visão. Ora, o ministério de prestar atenção não
consiste na visão, visto que a antecede na ordem da natureza.
Outro. O tamanho, a forma e outros que chamamos sensíveis comuns, não são
sensíveis por acidente, mas por si, como há pouco Aristóteles ensinou. Ora, a diver­
sidade específica dos objectos que por si caem sob a alçada das potências, introdu­
zem nestas uma diferença específica. Como o tamanho, por exemplo, que é um sen­
sível por si, difere mais da cor do que do som, não deixa de exigir menos outra
faculdade distinta, através da qual seja percebido. Desta maneira, constituir-se-ão
mais sentidos externos do que cinco.

ARTIGO II
De facto não existem nem mais nem menos
sentidos externos do que cinco

Não obstante, de acordo com o pensamento comum, tanto dos que filosofam
como dos que não filosofam, deve defender-se de modo unânime que há cinco senti­
dos externos, nem mais, nem menos. Aristóteles no capítulo atrás estabeleceu esse
número; o autor da obra De secretiore sapientia secundum Aegyptios, no livro 2,
capítulo 9º; Platão, no Teeteto; S . Damasceno, em A Fé Ortodoxa, livro 2, capítulo
1 8º; São Gregório de Nissa, na oração 6 do Comentário ao Cântico ; Santo Ambró­
sio, no Comentário ao Apocalipse, capítulo 1 8º; Santo Agostinho, no livro A Gran­
deza da A lma, capítulo 23º; São Gregório, no Comentário a Ezequiel, Homília 1 7;
São Jerónimo, no Comentário ao Salmo 141 ; Orígenes, Homilia 3, no Comentário
ao Levítico e Homília 3, no Comentário ao Cântico.
Além disso, Filópono esforça-se por corroborar esse número, com a autoridade de
Platão, partindo do número dos corpos simples. Na verdade, se os corpos simples
são cinco e, além disso, as figuras sólidas são cinco, a pirâmide, o cubo e as formas
de oito, doze e vinte lados, é necessário que existam sentidos que as reconheçam.
Santo Agostinho, no livro 3, O Génesis à letra, capítulo 5º, distingue o mesmo
número, através da observação retirada dos quatro elementos do universo, do modo
seguinte. Porque o sentir não é próprio do corpo, mas da alma através do corpo,
420 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ainda que se diga de forma arguta que os sentidos do corpo se dividem consoante a
diversidade dos elementos corpóreos, todavia, a alma, em que está presente a facul­
dade de sentir, uma vez que não é corpórea, produz a faculdade de sentir através do
corpo mais subtil. Por isso, a partir da subtileza do fogo ela imprime o movimento a
todos os sentidos, mas não chega da mesma maneira a todos. Efectivamente, na
vista, reprimido o calor, ela chega até à sua luz. No ouvido, penetra até ao ar mais
líquido com o calor do fogo. No olfacto, porém, atravessa o ar puro até à exalação
húmida. Daí, que este odor subsista mais condensado. Entretanto, no gosto, ela atra­
vessa e chega ao humor mais espesso, o qual, também, uma vez penetrado e atraves­
sado, quando chega ao peso terreno, produz o último sentido, o do tacto. Isto, de
acordo com o preceito de Santo Agostinho. Se, no entanto, quisermos falar mais
claramente e de acordo com as matérias que, nesta obra, foram aprofundadas, poder­
-se-á extrair o número dos sentidos dos quatro elementos do universo, dizendo que o
olfacto corresponde ao fogo, por causa do calor e da secura; o ouvido ao ar, por
causa do tímpano; a vista à água, por causa do humor cristalino; o tacto e o gosto à
terra, por causa da espessura. Por outro lado, tanto estas razões quanto as de Filó­
pono e as de Santo Agostinho são somente prováveis e não confirmam tanto o
número dos sentidos, quanto, por analogia e por uma certa semelhança, correspon­
dem a outros corpos. E apenas como provável se recomenda aquele preceito tripar­
tido de Aristóteles, que expusemos no contexto, extraído dos objectos, dos instru­
mentos e dos meios, que Alberto Magno, na 2ª parte da Suma do Homem, no tratado
sobre os sentidos, e o Alense, na 2ª parte da Suma Teológica, questão 66, membro 2,
também explicam amplamente.
Todavia, São Tomás, na Suma Teológica, parte 1 , questão 78, artigo 3º, provando
menos outros argumentos retirados dos órgãos e dos meios, confirma o mesmo
número. Fá-lo pelo modo e pela variedade, pela qual o sentido, que não é só potên­
cia activa, mas também passiva, é movido pelo objecto sensível, mais ou menos
assim. Há uma mudança de dois tipos; uma natural, outra espiritual ou intencional.
Diz-se natural, aquela pela qual a forma do que muda é recebida no paciente,
segundo o ser natural, como o calor na coisa aquecida. Chama-se espiritual, àquela
pela qual a forma do que muda é recebida no paciente, segundo o ser espiritual, isto
é, através da sua imagem, tal como através da espécie da cor na pupila. Portanto,
para a mutação requer-se a mudança espiritual de um qualquer sentido, no órgão, de
outro modo não se produzirá nenhuma sensação. Mas esta diferença dá-se na reali­
dade. Na verdade, ou o objecto apenas muda o meio intencionalmente, e o órgão é
objecto da vista, ou mentalmente e na realidade, e um e outro são objecto do tacto e
do gosto, nos quais ainda reside uma diferença. Com efeito, o tacto é necessaria­
mente alterado, consoante a qualidade que, em particular, o impressiona, como con­
soante o calor. Isto não acontece com o órgão do gosto. Na verdade, não é necessá­
rio que a língua se torne doce ou amarga, ou seja, que requeira prévia humidade,
para que se perceba o sabor. Finalmente, ou o objecto muda o meio, ou alguma parte
dele realmente, mas o órgão mentalmente, o que compete ao olfacto, embora de
modo diferente. Com efeito, ou exige uma alteração prévia e é o odor que pertence
ao olfacto, ou um prévio movimento local e é o som que respeita ao objecto da audi­
ção. Na verdade, para que o odorífero exale o odor, o calor é necessário, pelo menos
ordinariamente. Também o som é produzido por uma certa colisão. Visto, portanto,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Anigo II 421

que há tantos sentidos externos quantos os modos que podem ser alterados pelo
objecto próprio e estes são apenas cinco, é evidente que são cinco os sentidos exter­
nos, nem mais, nem menos. Esta afirmação também não é considerada demonstra­
tiva mas apenas provável e só demonstra que não há mais sentidos por natureza. Não
parece, contudo, que deva negar-se que possam existir mais, pela potência divina e,
do mesmo modo, mais sensíveis que modifiquem os órgãos de modo diferente.
A prova anterior de São Tomás é defendida pelos seus seguidores. Para falarmos
adequadamente das coisas que estabelecemos, quando tratámos dos sentidos um a
um, teremos, enfim, de construir este argumento de modo mais diversificado. De
facto, o tacto e o gosto, posto que são mais toscos do que os restantes sentidos, tam­
bém parecem, por si mesmos, ser realmente alterados pela própria qualidade que
sentem. Todavia há uma diferença entre eles, porque um é alterado de acordo com a
qualidade da combinação que o altera, como acima dissemos. O outro não, ou seja,
requer uma prévia humidificação. Além disso, é provável que o objecto do olfacto e
do ouvido por vezes altere o órgão, também realmente, visto que, decerto, o sensório
existe no espaço através do qual, realmente, o odor e o som se difundem. Posta a
questão deste modo, o número dos sentidos deverá ser alterado. Ou o objecto do
sentido muda o meio e o órgão, apenas intencionalmente, e pertence à vista, ou
realmente e intencionalmente, os dois ao mesmo tempo e, então, pertence ao tacto e
ao gosto; de maneira diferente, no entanto, porque o objecto do tacto muda o órgão
por si mesmo, consoante a qualidade alteradora da mistura e o objecto do gosto,
segundo outra qualidade. Ou então muda o meio, em parte realmente, em parte
intencionalmente e o órgão, por si, mas sempre intencionalmente. Algumas vezes,
na verdade, como que por acidente, também o muda realmente e pertence ao olfacto
e ao ouvido. Mas de maneira diferente, porque o objecto do ouvido muda segundo a
qualidade, que requer para a sua produção um movimento local, enquanto o objecto
do olfacto, segundo a qualidade que exige uma alteração prévia. Mas se alguém
repudiar esta conclusão, porque consideramos que apenas a vista é intencionalmente
mudada pelo objecto, dado que a luz, realmente, também o afecta, dever-se-á res­
ponder que nada tratámos acerca da luz, porque ela costuma ser comummente consi­
derada, não tanto como objecto da vista, mas como a razão pela qual o objecto é
percebido. Acrescente-se que ela, uma vez que altera assim o sentido, conserva
muito pouco a natureza do objecto. É evidente, portanto, que os sentidos externos
são cinco e que não devem ser admitidos nem mais, nem menos.
Mas o tacto é o primeiro de todos os sentidos, pela origem e pela necessidade,
porque tem origem em particular nas primeiras qualidades cuja composição é a pri­
meira disposição para a alma e o primeiro fundamento da vida; desfeita esta, não só
o próprio tacto, mas também o animal sucumbem. Por isso, este sentido quase sem­
pre também se atribui aos animais, porque, com a sua actividade, eles podem cuidar
da abundância das qualidades primárias cujo excesso conduz à destruição. Mas o
tacto é o último em dignidade, como diz Proclo no Comentário ao Timeu, porque é
sobretudo espesso e corpóreo. De facto, tal como o tacto é o último, assim a vista
alcança o primeiro lugar em dignidade, o ouvido o segundo, o olfacto o terceiro, o
gosto o quarto, o tacto o quinto, o que, com base nas matérias estudadas, uma a uma,
acerca dos sentidos, qualquer um facilmente compreenderá.
422 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Não existem todos os sentidos em todos os animais, e quer o tacto quer o gosto
convêm a todos aqueles aos quais não convém mais nenhum, como ensina Aristóte­
les, neste livro, capítulo 1 2º, texto 62 e no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 1 º.
Na verdade, o gosto, acerca do qual se pode estar em dúvida, também pertence às
ostras e a outros animais deste género, que estão fixos às rochas marinhas, situados
entre as plantas e os animais, na fronteira, entre uns e outros. São ambíguos, como
diz Aristóteles, A Geração dos Animais, livro 1 , capítulo 20º, donde serem chama­
dos pelos gregos (wócpurn isto é, zoófitos. O argumento tem como fundamento que
o gosto existe neles, pois nem todos os sabores aparecem confundidos, como notou
Plínio, na História Natural, livro 1 0, capítulo 7 1 º. Quanto a isto, dissemos no livro
anterior, capítulo 1 0º, questão 1 , artigo 2º, ao fim, que esses animais são destituídos
de gosto. Isto deve ser entendido no tocante ao gosto perfeito, de que apenas falá­
vamos por comparação ao tacto, que Aristóteles concede a alguns animais perfeitos;
aqui apenas lhes imputa um gosto imperfeito e incompleto. Como este sentido zela
pela vida, vem na dianteira, como explorador de alimento e, do mesmo modo que o
olfacto é o provador antecipado do gosto, assim também o é o gosto, relativamente
ao estômago e à faculdade de nutrição.
Visto, porém, que os sentidos foram atribuídos aos animais pela natureza, em
parte para respeitar a conservação, em parte para conduzir a vida mais conveniente­
mente, como explica o autor da obra De divina sapientia secundum Aegyptos, livro
5, capítulo l º, os sentidos conferem ao homem uma utilidade particular, a fim de
levar, através deles, as diferentes imagens das coisas até à mente, para o conheci­
mento intelectivo, o que alguns explicam recorrendo a uma comparação com uma
cidade, que recebe a multidão dos homens que entram, ao mesmo tempo, por diver­
sas portas. Por isso, também os sentidos da alma costumam chamar-se janelas da
alma, através das quais, não só o conhecimento, mas os estímulos dos vícios muitas
vezes penetram, pelo defeito da negligência. Donde, aquele passo de São Jerónimo,
em Adversus lovinianum, livro 2, capítulo 7 1 º. Se alguém se deleita com os j ogos
circenses, com a luta dos atletas, com o movimento dos actores, com o brilho das
jóias e com outras coisas deste género, realiza-se a profecia: a morte entrou pelas
j anelas.
Deve observar-se o que se retirou das afirmações de há pouco e que São Tomás
realçou, na Suma Teológica, primeira parte da segunda parte, questão 35, artigo 2°,
ao 3º e Santo Alberto Magno, no livro 1, Metafísica, tratado 1 , capítulo 4º. Embora
de modo algum os animais exerçam as funções dos sentidos só para conhecer, mas
em busca de coisas necessárias e úteis, ou para evitar as nocivas, o homem, todavia,
usa frequentemente o ministério dos sentidos apenas pelo gosto de conhecer, de
obter ciência, porque compreende, quer a ciência ou doutrina, quer a experiência.
Para aquela, o ouvido, para esta, a vista é certamente mais adequada e mais apta,
como é claro a partir do que Aristóteles ensina no livro 1, Metafísica, capítulo l º e
no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 1 º.
Ao procurar saber se os sentidos externos dos animais e dos homens, como a vista
e também o olfacto, se distinguem entre si na espécie, Jâmblico responde que se
distinguem. Diz, ainda, que apenas de modo equívoco é que o sentido se lhes ade­
qua, e é por isso que o sentido humano se volta para si, o que não é próprio do ani­
mal. Nem esta afirmação é provável, nem o seu argumento tem peso. De facto, dado
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo Ili 423

que os sentidos do homem e dos animais são conduzidos para os mesmos objectos e
são modificados do mesmo modo, não há razão para que entre eles se estabeleça
uma distinção. Além disso, nenhum sentido, quer externo, quer interno, quer do
homem, quer do animal reflui ou retoma sobre si como será evidente, de caminho.
São, assim, da mesma espécie, embora difiram na perfeição acidental. Com efeito, o
homem, como noutro lugar sublinhámos, supera os restantes animais no tacto e no
gosto. É, todavia, ultrapassado por muitos, na vista, no ouvido e no olfacto, dado que
as águias vêem de modo mais perspicaz, as toupeiras ouvem de modo mais acuti­
lante, os abutres e os cães cheiram de forma mais subtil e excelente. Há quem diga
que o homem foi vencido no gosto pelo animal Protogeuste Indico e pelas aranhas,
no tacto. Daí, aquele famoso passo:
O javali supera-nos pelo ouvido, o lince pela vista, o macaco pelo gosto
O abutre pelo cheiro, a aranha pelo tacto.

Todavia deve ser tida em conta a opinião comum dos filósofos, que Aristóteles
transmite, na Historia dos Animais, livro 1, capítulo 1 5º e no livro 2 desta obra,
capítulo 9º, texto 94, ensinando que o homem no tacto e no gosto é superior a todos
os seres animados. Isto sucede porque a boa qualidade do tacto e do gosto, consi­
derada um certo tipo de tacto, provém da boa qualidade da combinação. Isto foi
dado ao homem de forma mais eminente do que aos restantes compostos, como
mostrámos no livro A Geração e a Corrupção. Por isso, o que é narrado naquele
poema acerca do macaco e da aranha deve ser interpretado poética e não filosofi­
camente. Alguns, de facto, consideraram que o macaco é particularmente dotado de
um gosto exímio, porque, quando come, faz gestos denunciadores do grande prazer
que sente ao degustar. Acreditou-se, igualmente, que a aranha sozinha se evidencia
pelo tacto, porque também sente claramente, no fim da teia, o levíssimo movimento
do insecto caído na rede. De facto, estas coisas nada provam. Na verdade, o macaco,
como é um animal gesticulador noutras ocasiões, é-o ainda mais quando ingere o
alimento, porque mais se deleita nessa ocasião. No que respeita à aranha, retira-se de
Alberto Magno que o seu tacto é menos perfeito porque é de temperatura fria e
abundante em humidade viscosa, emitindo um tacto imperfeito e tosco. Não é de
admirar que sinta a presa que cai, através do sinal, quer porque está sempre alerta em
relação às emboscadas e como que à espreita do imprevisto, porque fiou os fios com
tão fina linha e estende a teia de modo uniforme, quer porque suspende os fios com
tão elevada subtileza pelo centro da obra, em direcção a qualquer lugar, que, embora
não seja dotada de um tacto peculiar, facilmente a agitação a desperta da rede sus­
pensa. Acrescente-se que a eficácia do tacto se avalia, não a partir do movimento,
mas pela percepção das qualidades primárias.

ARTIGO Ili
Resolve-se o primeiro argumento do primeiro artigo.
Estabelece-se contra os médicos que os sentidos externos
não são faculdades adquiridas mas inatas

A explicação sobrevém dos argumentos que propusemos no início, mas, a favor


da solução do primeiro, deve notar-se que Galeno em De placitis Hippocratis &
424 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Platonis, livros 6 e 7, e outros médicos, consideram que os sentidos externos não são
potências inatas dos órgãos, como se estivessem fixadas, mas são faculdades que se
expandem a partir do cérebro mediante uma certa forma de irradiação e que apenas
subsistem no órgão durante o tempo em que dura a operação. Portanto, Sócrates, a
dormir, não tem nos olhos a potência de ver, nem nos ouvidos a de ouvir, mas elas
são irradiadas a partir do cérebro sempre que vê, sempre que ouve. Eles tentam for­
talecer esta afirmação pelo facto de que, uma vez obstruído o caminho a partir do
qual o cérebro comunica com os sentidos externos, cessa toda a sua actividade.
Quanto a isto, se alguém responder que, nesse momento, os sentidos repousam, não
porque o trajecto desta faculdade que se expande esteja impedido, mas porque estão
fechadas as vias através das quais os espíritos animais são levados para os sentidos
eles refutam esta resposta, pois isso é possível, como quando não falta uma abun­
dância de tais espíritos no órgão, como por exemplo quando alguém começa a dor­
mir, e no entanto o sentido não pode, de forma alguma, executar a sua função. É por
isso que, se se regista a falta de alguma outra coisa no órgão, em razão de cuj o aban­
dono o sentido fica entorpecido, isso não pode ser senão aquela faculdade que
emana do cérebro. Esta é, portanto, a faculdade que executa as funções dos sentidos
enquanto seu princípio imediato.
Esta posição, embora na escola dos médicos sej a considerada como certa, parece
todavia alheia à verdade. Em primeiro lugar, por um lado, posto que médicos ilustres
distingam aquela comunicação da faculdade emanada do cérebro e, o que é mais,
com o nome ilusório de irradiação, porque não obstante, eles deixam a própria
questão na dúvida e nem a defendem dos argumentos. Primeiro, tal como a irradia­
ção do Sol é a produção de um raio no meio diáfano, também aquela comunicação é
a produção da potência sensitiva no corpo dos seres animados; segue-se, então, que,
assim como uma parte da luz gera outra no diáfano, assim também uma parte da
potência sensitiva gera outra no corpo do animal. O que na filosofia se encontra no
que toca ao ouvido, também se segue. Tal como a luz, quanto mais dista do foco
luminoso, mais fraca é, do mesmo modo, a faculdade sensitiva, quanto mais se
encontra na parte do corpo mais distante do cérebro, tanto é mais débil e menos
eficaz. Prova-se a consequência, porque todas as coisas que são produzidas desta
maneira costumam espalhar-se de um modo uniforme, deformando-se e debilitando­
-se imperceptivelmente até à ausência de grau. Demonstra-se, por isso, a falsidade
do consequente. Porque o tacto, como a experiência e os próprios médicos ensinam,
floresce mais nas extremidades dos dedos da mão do que na parte restante do braço,
ainda que eles distem mais do cérebro. Depois, as potências naturais brotam da alma
na própria origem, como ensinámos no primeiro livro desta obra acerca da posição
comum dos filósofos. Portanto, as potências orgânicas não derivam do cérebro à
maneira da luz, mas encontram-se fixas e estáveis nos órgãos. Também o calor, o
frio e outros acidentes desta natureza, de qualidade menor, não se dissipam quando a
obra acaba, mas permanecem nos próprios sensórios. Por fim, prova-se que aquela
faculdade não pode ser única, pois as faculdades sensitivas distinguem-se, em espé­
cie, pelos actos e pelos objectos, como mostrámos no segundo livro. Por isso, uma
vez que os sentidos têm objectos diversos em espécie e são mudados por eles
segundo os modos diferentes em espécie, segue-se que não são uma faculdade
activa, mas muitas e que estas diferem em espécie.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo IV 425

Deve, portanto, contrapor-se ao raciocínio dos médicos, o que já antes se contra­


punha, isto é, que quando a via por onde o cérebro comunica com os sentidos exter­
nos está impedida, cessa a acção deles porque o cérebro deixa de lhes comunicar os
espíritos animais. Destituídos da força destes espíritos, os sentidos não podem ope­
rar. Mas deve evitar-se refutar esta resposta dizendo que, uma vez que os espíritos
são bastante ágeis, espalhando-se e dissipando-se com facilidade, os sentidos têm
necessidade da sua passagem contínua e do seu escoamento a partir do cérebro. Se
as vias se lhes fecharem, quer imediatamente, quer após um curto espaço de tempo,
extinguem-se todas as acções dos sentidos, mas não porque os órgãos sejam priva­
dos da faculdade que se expande, como consideram os médicos.
Neste momento já será fácil resolver o primeiro argumento proposto no início da
questão, a partir da qual discutimos, na ocasião, estas matérias. Deve negar-se o que
nele é defendido, e dizer-se que, uma vez que as operações dos sentidos, como há
pouco dissemos, tendem para objectos distintos em espécie, e mudam os próprios
sentidos segundo modos diferentes em espécie, necessariamente, a partir daqui, se
demonstra uma distinção específica nos sentidos, o que, no movimento das cordas
da lira e no soprar das flautas se distingue muito pouco, como será claro ao observa­
dor. Por isso, é evidente que a comparação proposta não colhe neste caso. Nem
sequer aquilo que se alega acerca do influxo do Sol tem consistência. Podem, com
efeito, as qualidades que são comunicadas pelo Sol, juntamente com as que estão na
semente, ou que se juntam a outra matéria subjacente, produzir efeitos inteiramente
diferentes, como se diz no argumento. Mas não é este o caso da faculdade que os
médicos imaginam dimanar do cérebro para os órgãos. De facto, ela não se junta ao
órgão com as outras qualidades a partir das quais, a par com ela, se obtêm as funções
dos sentidos, posto que não é evidente quais são essas qualidades. Principalmente,
porque as primeiras, das quais consta a composição do órgão, somente lhe chegam
por ordem. Se alguém disser que aquela faculdade que dimana do cérebro, pode,
com as que chegam ordenadamente, administrar as operações de todos os sentidos,
isso será imediatamente refutado pelo argumento recolhido da diversidade dos
objectos e das funções com que há pouco demonstrámos, contra os médicos, que as
faculdades sensitivas não podem recair numa única e mesma faculdade. Antes,
devem ser necessariamente constituídas muitas potências activas, diferentes em
espécie, além das qualidades que, nos órgãos, de modo passivo e ordenadamente,
apenas existem para executar as funções dos sentidos.

ARTIGO IV
Resposta aos restantes argumentos do primeiro artigo

O segundo argumento do primeiro artigo é ordinariamente de João Menardo, livro


6, Epistola Última, em que ele, no comentário à afirmação, acabou por considerar
que as operações de todos os sentidos se executam no cérebro e que isso não é alheio
ao pensamento de Galeno. Na verdade, nem ele pensa correctamente, nem Galeno
considerou isso. No livro 1 , De causis symptomatum, capítulo 8º, Galeno afirma que
as funções dos sentidos um a um, são executadas nos instrumentos um a um, e que
isso pode ser confirmado, porque um cérebro no mais perfeito estado, quando o
órgão do sentido é lesionado, fica prejudicado no seu trabalho e quando é danifi-
426 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

cado, é destruído. Isto apenas sucede, porque a potência de sentir reside no próprio
órgão. E esta razão vale também para refutar Numénio, Jâmblico e Plotino que con­
sideram que os sentidos e, portanto, as suas operações, estão fixos na própria subs­
tância da alma. Também, por isso, a obstrução do nervo óptico impede a visão, por­
que impede o trânsito dos espíritos animais a partir do cérebro. A visão fica parali­
sada com a sua falta, embora, por outro lado, a composição do órgão permaneça
íntegra, mas não porque esteja impedido o caminho das espécies visíveis do olho
para o cérebro.
Em relação ao terceiro argumento deve negar-se, de igual modo, que diga respeito
ao assunto em análise haver um sentido para os sensíveis, tal como o intelecto para
os inteligíveis. Na realidade, a faculdade intelectiva, visto que é de uma ordem
muito superior, pode recolher e abranger, numa só, as coisas que foram divididas e
espalhadas por muitos. Leia-se São Tomás, questão 25, A Verdade, artigo 3°.
Acerca do quarto argumento atente-se, primeiro, que Jâmblico não prova o racio­
cínio pelo qual Aristóteles tentou demonstrar o número dos sentidos por indução das
diferenças dos animais, visto que desconhecemos muitas delas. Deve, no entanto,
dizer-se que este argumento, se for correctamente entendido, não deve ser rejeitado.
Com efeito, para concluir, não é necessário que todos os animais conhecidos pos­
suam todas as coisas perfeitas e não é preciso que os seres animados perfeitos um a
um, tenham todos os cinco sentidos, mas que naquele que possui maior grau de
perfeição não estejam presentes mais do que cinco. Para provar basta verificar isso
no homem, que é ponto assente que é o mais perfeito de todos.
Quanto ao que se diz acerca da cegueira da toupeira, é ambíguo. Não teria acre­
ditado, afirma Simplício, que a toupeira carece em absoluto da própria faculdade de
ver e do seu acto, mas da que sobressai. Comunga, pois, da visão, mas através de
certas peles, assim como nós, também, com as pálpebras fechadas, nos apercebemos
de alguma luz. Não é, de facto, possível que a natureza tenha feito em vão os olhos
sob a pele, mas com certeza que eles funcionam por esta pele, mas de modo algo
difícil, dada a sua debilidade, tal como as faculdades que se desgastam de noite.
Também Alberto Magno em A Alma, tratado 2, ao fim, livro 2, se, por um lado, nega
às toupeiras a composição perfeita dos olhos, que outros parecem conceder, como
Aristóteles, A História dos Animais, livro 4, capítulo 8º, e Galeno em De usu par­
tium, livro 1 4, capítulo 6º, por outro, afirma que, apesar de tudo, elas vêem, ainda
que imperfeitamente, se saírem das pequenas tocas para a luz, por um instante, em
busca de alimento. Quanto a este facto, afirma que o observou e registou, não apenas
por uma vez. Outros também negam, em absoluto, que a vista exista na toupeira. De
entre eles, Aristóteles, no livro 1 , A História dos Animais, capítulo 9°, e no livro 4,
capítulo 8º, quando escreveu que o homem e todos os animais terrestres procriam e
também os que têm sangue e dão à luz, constatando que todos eles têm todos os
sentidos, salvo um ou outro que foi lesionado ou ferido, como a espécie das toupei­
ras à qual falta a visão. Esta, com efeito, não tem os olhos a descoberto . Levantada a
pele espessa, o local da visão encontra-se cego e, no interior, vêem-se os olhos que
possuem todas aquelas partes componentes de uns olhos íntegros. De facto, têm um
pequeno círculo que escurece e que está contido dentro da que chamam pupila e
também à volta, a parte branca, mas não tão evidente quanto os olhos, que se perce­
bem e salientam. Não podem mostrar-se ao exterior, dada a espessura da pele sobre-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo IV 42 7

posta. Como a natureza se encontra lesada na composição, o corpo é deixado imper­


feito. Sobre isto, veja-se Aristóteles, a quem Galeno, acerca da cegueira da toupeira
dá o seu assentimento, no lugar citado; Plínio, História Natural, livro 2, capítulo 37º
e livro 30, capítulo 3º; Santo Isidoro, Etimologias; o Abulense, comentário ao capí­
tulo 2º do Levítico; Cícero, livro 4, Questões Académicas; também Filópono,
Temístio, Averróis, São Tomás e outros intérpretes. Certamente que, para estes, para
além da experiência, que consideram possuir contra os adversários, é favorável o
argumento que diz que, uma vez que as toupeiras vivem enterradas nas trevas,
semelhantes aos sepultados, a natureza não lhes teria dado a vista em vão, para logo
a perderem ao encontro de tão duros e espessos elementos.
Na verdade, como os testemunhos da experiência são convocados a partir daqui,
para esta controvérsia, parece mais prudente que a questão seja deixada na dúvida.
Quem quiser examinar Aristóteles e os seus seguidores, responderá a Simplício e a
Alberto, que os olhos foram dados às toupeiras, não para verem, mas como adorno,
para enfeitar, logo, inutilmente. Além disso, para procurar alimento, o olfacto supre
a cegueira. Mas a parte contrária preferirá aquele outro, e dirá que as toupeiras não
têm vista nos subterrâneos cavernosos e que, por isso, têm os olhos encobertos por
uma membrana e por uma pele mais dura que também lhes serve de protecção, para
não ficarem ofuscadas por um inusitado clarão, quando saem para a luz.
Mas quer a toupeira tenha vista, quer não, o argumento nada conclui, porque, ou
ela não se conta entre o número dos animais mais perfeitos, dos quais fala Aristóte­
les ou, se se conta, não precisa de possuir todos os sentidos, como dissemos. Tal
deve igualmente ser dito dos ouriços. É evidente, no entanto, que as baleias se
situam entre os animais perfeitos. Na verdade, elas usam a escolta dos ratos-do-mar,
não porque careçam totalmente de vista, mas porque, obstruídos os olhos com o
peso excessivo das sobrancelhas, não pressentem suficientemente a vastidão, as
profundezas mais perigosas, e os peixinhos que nadam na dianteira, mostram-nas.
Ao primeiro destes argumentos, com que parecia demonstrar-se que lhes tinham
sido dados mais do que cinco sentidos, deve negar-se o que defende. Para sua prova
deve dizer-se, rejeitada a opinião de Filópono e de outros que imaginaram uma certa
faculdade que observa ou que presta atenção, que o olho entretanto impregnado pela
imagem da coisa presente não vê. Ora, isso não sucede porque se verifique a acção
de outra faculdade que tenha a propriedade de chamar a atenção para o objecto, mas
porque a própria faculdade de ver não se dirige para o objecto, o que acontece
quando estamos atentos a outra coisa com muito empenho. Assim, o olho não se
dirige para o objecto através de outra acção anterior ou distinta do próprio acto de
ver, mas diz-se que presta atenção, todas as vezes que, não sendo a alma chamada na
totalidade para a operação de outra potência, também se comunica ao olho, de tal
modo que este também cumpre convenientemente a sua função. Leia-se Aristóteles,
nos Problemas, secção 1 1 , questão 3 3 .
A o segundo argumento, deve responder-se, com São Tomás, Suma Teológica,
parte 1 , questão 78, artigo 3º, que, embora a extensão e outros sensíveis comuns
sejam sensíveis por si, todavia não se requer um sentido diferente dos cinco vulga­
res, porque não movem por si, em primeiro lugar, o sentido como sensíveis próprios,
tal como expusemos noutro ponto. Nem diz porque é que a extensão difere mais da
cor do que do som. Com efeito, não basta essa diversidade para a multiplicação dos
428 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

sentidos, o que não se estabelece, a não ser pela distinção dos sensíveis próprios e
por si, segundo os vários modos da mudança, como no artigo segundo, com São
Tomás, expusemos.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO II

a. Cum autem 425 b 1 1 Como temos a experiência de possuir duas funções, uma
-

pela qual conhecemos a própria sensação, como a visão, outra, através da qual
distinguimos os diversos sensíveis, como o branco do doce, Aristóteles investiga
neste capítulo se existe alguma faculdade interna à qual respeitem aquelas opera­
ções; se, de facto, devem ser atribuídas aos sentidos, tal como sentimos que
vemos pela vista, que ouvimos pelo ouvido e, do mesmo modo, em relação à
função própria dos restantes sentidos. Argumenta desta forma, portanto, para
recomendar a segunda parte. Se conhecêssemos a visão por outro sentido, perce­
beríamos também por ele, a cor, visto que, como a visão é a percepção da cor,
não seria possível que se desse sem a percepção da cor. Por isso, como é absurdo
que duas potências tratem da cor, acontece que só a vista compreende a sua
visão. Mais, porque a não ser que os sentidos, um a um, conheçam as suas fun­
ções, dar-se-ia uma progressão infinita. Na verdade, existiria um sentido para
perceber a vista e depois outro para perceber a sua operação e assim sucessiva­
mente, sem nenhum limite.
b. At hinc oritur 425 b 17 Disputa assim a favor da parte contrária. Sentir com a
-

vista é ver. Mas ver não é mais do que perceber a cor ou o colorido; ora a visão
não é a cor, nem é algo afectado pela cor; logo a visão não pode ser sentida pela
vista, mas por outro sentido; de outra maneira a potência de ver sairia fora do
próprio obj ecto, o que não é possível.
c. Patet igitur 425 b 20 Soluciona de duas maneiras o argumento aduzido a
-

seguir, por causa da disputa. Primeiro, negando que para a vista o sentir não é
outra coisa senão o ver, pois na verdade percebemos certas coisas com a vista
que não vemos, como as trevas, e sentimos algumas com o ouvido, que não
ouvimos, como o silêncio. Depois, negando que a visão não é colorida, ou que o
que vê, enquanto vê, não pode dizer-se que é de algum modo colorido, quando a
espécie da cor se impõe ao órgão, espécie esta que se imprime nos sentidos,
como é evidente; com efeito pensamos uma coisa ausente, o que não acontece
sem o ministério das espécies. Na verdade, porque os sentidos costumam retirar
as imagens dos objectos, diz-se que recebem o sensível sem a matéria, isto é, não
segundo o seu próprio ser natural, como a cor segundo a natureza da cor, mas
segundo o ser intencional que está contido na imagem.
d. Atqui operatio rei 425 b 25 Agora, ainda que de modo pouco claro, responde à
-

questão proposta, estabelecendo que o sentido externo não percebe a sua opera­
ção. Confirma-o, porque não se diz que o sentido externo opera a não ser quando
está no exercício de sentir. Na verdade, a potência e aquilo que é sentido por ela,
ou o objecto, que nela age, realiza ao mesmo tempo este acto, nomeadamente
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo II 429

produzindo na potência a espécie que concorre juntamente com ela para a acção.
Por isso, visto que nem a visão em relação ao olho, nem a operação de outro sen­
tido produzem a própria potência de sentir, a consequência é que a visão de
maneira nenhuma pode ser sentida pela vista, nem qualquer operação pelo sen­
tido que exerce. Aristóteles adverte, em seguida, que se diz que tanto a faculdade
como o objecto estão em potência e em acto. Mas a faculdade está em potência
porque não gera mas pode gerar a acção ; também o objecto, quando não move,
está porém apto a mover. Também diz que ambos estão em acto, que a faculdade
percebe o objecto em acto e o objecto move a faculdade em acto. Por esta razão o
obj ecto e a potência tomam-se de certo modo um, quando a faculdade através da
imagem da coisa se faz uma só com a coisa, e ambas se conjugam numa só
acção, que não é necessário que se dê no agente externo, isto é, no objecto, mas
no paciente, isto é, no órgão e na potência, porque a acção e a paixão são um e o
mesmo acto, mas sabe-se, e na Física prova-se, que a paixão é da coisa que sofre.
e. Actus igitur 426 a 6 - Diz que o acto do corpo é duplo; o que tem a faculdade de
emitir som, seguramente, quer o som que produz, quer a própria geração do som.
De igual modo, o seu acto também é duplo; o que tem a potência de ouvir,
nomeadamente a recepção da forma do som através da sua espécie e a sensação
do próprio som. Na verdade o ouvido e o som também são de dois modos, um em
potência, outro em acto. Diz-se som em potência quando ainda não é produzido;
o ouvido em potência é a própria potência de ouvir considerada em si. O som
está em acto quando se actualiza; o ouvido em acto é a potência que exerce o
acto. E o mesmo acontece nos restantes sensíveis e sentidos. Nalguns subsistem
nomes para significar a acção que é em parte tanto do sensível como do sentido,
como o som e o ouvido. Nos outros falta o nome para ela, como a acção da vista
se diz visão, mas a acção da cor não tem nome e a acção do gosto chama-se pala­
dar, e a acção do sabor é inominada.
f. Haec cum ita sint 426 a 16 - Aproveitado o ensejo, a partir daquilo que tinha dito
acerca do sentido e do sensível resolve duas dúvidas. Uma, se o sentido e o sen­
sível são simultâneos. Outra, por que razão um sensível superior enfraquece o
sentido. Responde ao primeiro: se um e outro forem tomados em acto, um e outro
dão-se ao mesmo tempo e por uma necessidade recíproca, visto que a operação
de ambos é uma só. Isto deve ser entendido acerca da operação que apresente o
objecto mediante a sua espécie junto com a potência, que não é outra coisa senão
a percepção da coisa sensível. Mas se o sentido e o sensível forem considerados
segundo a potência, ele afirma que não existem ao mesmo tempo, visto que a cor
não pode existir no que não existe para a vista.
g. Non recte 426 a 20 - A partir das afirmações, que os filósofos antigos, entre os
quais se encontrava Demócrito, como consta do livro 4 da Metafísica, capítulo
5º, que tinham dito que o sensível desaparece quando é retirado o sentido,
embora isso pudesse ter sido dito de algum modo correctamente, como há pouco
foi referido, isto é, se se afirmasse acerca do sentido e do sensível em acto
demonstra que, isso não pôde todavia ter sido referido por eles em sentido abso­
luto e universal.
h. Atque ob id 426 a 30 - Resolve a controvérsia seguinte, afirmando que um sensí­
vel superior destrói o sentido, porque o sensitério consiste numa certa proporção
430 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

e composição, de maneira que se o obj ecto for excessivo e demasiado intenso age
no órgão provocando uma lesão ou destruição, tal como também provocam o
deleite nos sentidos aqueles sensíveis que conservam a proporção equilibrada,
como a harmonia nos sons, os condimentos nos sabores, os meios nas cores e,
por fim, as coisas que são compostas pelas misturas dos extremos.
1. Unusquisque igitur 426 b 8 - Para u m a explicação mais ampla d a controvérsia,
através da qual se questiona a que faculdade diz respeito perceber as funções de
cada sentido, estabelece três. Primeiro, que cada um dos sentidos requer objectos
próprios, que percebe e pelos quais é influenciado. Segundo, que qualquer sen­
tido é uma faculdade inerente ao próprio sensório, pela qual é o que é, ou seja,
consoante é afectado por certas qualidades idóneas para alcançar a função de
sentir. Terceiro, que a cada sentido cabe conhecer as diferenças do seu objecto,
como o negro e o branco à visão, o calor, o duro e o mole ao tacto e igualmente
para os restantes.
k. At enim cum a/bum et dulce 426 b 12 - Estabelece e prova que existe um único
sentido a que chamamos comum, cuja função é conhecer as operações de todos
os sentidos externos e filosofa do modo a seguir. Experimentamos que não só
percebemos as diferenças dos objectos pertencentes a cada um dos sentidos,
como o branco, o negro, o amargo, o doce; na verdade, também julgamos acerca
das diferenças de todos os objectos, mas este juízo é executado pelo sentido, por­
que é feito sobre a coisa sensível, que pertence em primeiro lugar ao sentido, mas
não pode ser feita por um sentido externo, nem por vários, mas por um diferente
deles.
l. Quo patet 426 b 15 - Filópono considera que Aristóteles, neste ponto, quer dizer
que a carne, isto é, o corpo, não é o sentido comum, porque o corpo só julga
quando uma sua parte toca outra parte sensível, não podendo assim discernir os
sensíveis, porque é sabido que aquilo que leva ao juízo deve ser um só com o
todo sobre o que ajuíza. Segundo a opinião de Filópono, Aristóteles chama ao
sentido comum o último instrumento porque todos os sentidos terminam nele,
colocado à parte, como as linhas para um centro. Outros pretendem que Aristó­
teles prova que o sentido comum não é o tacto, pois talvez pudesse ser outro,
porque o tacto é o fundamento dos restantes sentidos e difunde-se por todo o
corpo, ao estar presente em todos os animais. Conforme for a interpretação assim
se apresentará a razão do que se deve compreender. Se o sentido comum fosse o
tacto, dado que o tacto percebe as coisas tocando, não poderíamos emitir juízo
acerca do som e do branco, a não ser tocando-os, o que é manifestamente falso,
pois é evidente que estas coisas são conhecidas sem o tacto. A quem concordar
com esta explicação, dir-se-ão as seguintes palavras. É evidente que se deve
entender que a carne não é o último instrumento, pois é claro que a carne, que é
instrumento do tacto, não é o órgão do sentido comum e que, o que vai dar no
mesmo, o sentido comum não é o tacto.
m. Fieri igitur 426 b 1 7 - Que o referido juízo, não é exercido por vários sentidos
externos, por exemplo que a vista e o gosto não julgam acerca do branco e do
doce, persuade o facto de isso equivaler a serem percebidos por dois homens, por
um, o branco, por outro, o doce; o que, todavia, de modo algum se pode pensar
correctamente, visto que é necessário que o árbitro conheça a causa de uma e de
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo li 43 1

outra parte, de outro modo emitiria uma opinião acerca de uma coisa desconhe­
cida.
n. Dicit igitur 426 b 21 - Se é um só, diz por que é que expõe que um difere do
outro. É necessário que ele mesmo conheça quer um sensível quer outro, se não
fosse assim não os distinguiria. E diz que um difere do outro, assim como inte­
lige e como sente, porque, tal como afirma, também ajuíza pelo intelecto, posto
que o intelecto segue o sentido.
o. At hinc patet 426 b 22 O ponto é obscuro, afirma, visto que quem diz que isto é
-

bom e aquilo é mau, diz que é o mesmo e ao mesmo tempo, porque quando diz
um, também diz outro. Assim, também o sentido comum, tal como diz ou julga
assim conhece. Ora, diz ao mesmo tempo a diferença do branco e do doce; logo,
também percebe que é o mesmo e ao mesmo tempo, um e outro, visto que julga
que isto não é aquilo. Mas quando proferimos que é num e no mesmo momento
que isto se faz, compreendemo-lo não por acidente, mas por si. Na verdade nesta
frase 'digo agora que Platão e Dionísio navegaram para a Sicília' , o 'agora' pode
referir-se, quer ao digo, quer à navegação, tal como ou percebo agora que digo o
que aconteceu outrora, ou digo aquilo que acontece agora. O primeiro agora faz
de algum modo que a coisa sej a agora por acidente, mas o segundo, por si. Por­
tanto, acerca da diferença dos dois objectos sensíveis, o sentido comum quase diz
agora na primeira significação, porque no mesmo instante percebe um e outro,
mas também na segunda significação, porque não só são percebidos como tam­
bém existem ao mesmo tempo sensíveis contrários.
p. At uero fieri 426 b 30 Objecta contra as afirmações anteriores. Se o sentido
-

comum é conhecedor e juiz dos sensíveis contrários e diferentes, ao mesmo


tempo e no mesmo instante. Se, digo, conhece de igual modo o doce e o amargo,
o branco e o negro, segue-se que ele é impressionado ao mesmo tempo por
movimentos contrários, o que todavia não é possível, pois os contrários não
podem dar-se ao mesmo tempo no mesmo. Aristóteles responde de duas manei­
ras a esta objecção. Primeiro, que o sentido é um no substrato, múltiplo pela
razão e, portanto, por uma e outra consideração é impossível que ele possa ter
movimentos contrários. Mas de imediato impugna esta solução, porque embora o
que é um no substrato possa ser movido ao mesmo tempo por movimentos con­
trários de diversas partes, isso é, todavia, impossível relativamente a uma mesma
parte e o sentido comum conhece e diferencia objectos contrários com uma
mesma parte. Por esta razão, se estes conhecimentos são movimentos contrários,
de modo algum se poderão juntar num mesmo sentido comum.
q. At enim hoc 427 a 10 Rejeitada a solução anterior, apresenta outra, tomada da
-

comparação com o ponto, cuja força consiste no facto de se dizer que o ponto é,
de algum modo, vários e um. Vários, visto que é o princípio a partir do qual as
linhas fazem uma circunferência; um, consoante é o fim no qual as linhas toma­
das a partir da esfera se unem. Assim, o sentido comum é um, visto que é o fim
dos sentidos externos, porque as suas próprias operações e objectos são levados
através das espécies para o seu julgamento. Mas ao mesmo tempo é múltiplo,
consoante é a origem e o princípio dos sentidos externos, porque sem dúvida que
a potência sensitiva se precipita de um para os outros. Mas não é absurdo que os
contrários existam segundo o seu ser intencional, ao mesmo tempo, na mesma
432 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

faculdade. Por isso, não apenas no sentido comum, mas num mesmo olho dão-se
ao mesmo tempo as espécies das cores preta e branca, visto que vê ambas ao
mesmo tempo. Assim, a solução consiste em que, como as percepções dos sensí­
veis contrários, na realidade, não são contrárias, nada impede que elas existam ao
mesmo tempo no mesmo.

QUESTÃO !
Se os sentidos externos percebem as suas funções ou não

ARTIGO I
Parece demonstrar-se a parte afirmativa com estas razões

Oferecem-se estes argumentos a favor da parte afirmativa da questão. Quando os


sentidos externos estão em repouso, sabem que não praticam nenhuma função. Ora,
o que é próprio da percepção do que se não executa, também o é do que se conhece
quando se executa. Portanto, os sentidos externos conhecem as suas funções. Prova­
-se a premissa maior, porque se diz que a vista sente as trevas, o ouvido o silêncio.
Isto efectivamente não acontece por outro motivo senão porque a vista sabe que não
vê e o ouvido que não ouve.
Segundo. Os sentidos externos têm os seus prazeres. De facto, o ouvido obtém
satisfação com a harmonia da música, a vista com a visão das cores dos j ardins, o
olfacto com as fumigações e, do mesmo modo, os restantes sentidos, através do
contacto das qualidades apropriadas. Igualmente, os prazeres nascem nos sentidos
pela acção através da qual qualquer deles é conduzido para o seu próprio objecto.
Mas o prazer não provém senão da coisa previamente conhecida. É preciso, por­
tanto, que cada sentido conheça a função pela qual se deleita.
Terceiro. Com o mesmo sentido apreendemos a cor, por exemplo, e o acto pelo
qual nos dirigimos para ela. Mas apreendemos a cor com a vista, portanto, também a
própria acção de ver. Prova-se a premissa maior de três maneiras. Primeiro, porque,
como contrapunha Aristóteles no capítulo anterior, uma vez que a visão é o sentido
da cor, não é possível que ela se dê sem que se perceba a cor. Por isso, se ela fosse
conhecida por outro sentido, seriam já dois os sentidos a tratar da cor. Segundo,
porque todo o colorido pertence ao objecto da vista, mas a visão, a seu modo, é colo­
rida, como foi exposto no contexto. Terceiro, porque se o conhecimento de alguma
sensação provocada por um único sentido, recaísse noutro sentido, ter-se-ia de dar
nos sentidos um progresso até ao infinito. Seria preciso, com efeito, que a função do
primeiro fosse conhecida pelo segundo, a função do segundo pelo terceiro e assim,
sucessivamente, sem limite.
Quarto. Todo o conhecimento se dá pela espécie que vai adiante mas, ao sentido
comum, não são as espécies que são funções dos sentidos externos que se apresen­
tam, mas apenas aquelas que reproduzem os seus objectos. Portanto, não é pelo
sentido comum que essas funções se distinguem, mas pelo seu sentido próprio.
Prova-se a premissa menor, porque o conhecimento dos sentidos externos não
parece possuir a faculdade de lançar para o sentido comum outra imagem além
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo li, Questão /, Artigo li 433

daquela que recebeu da coisa apresentada. Esta, porém, não é a imagem da própria
operação, como é bastante evidente, mas somente do próprio objecto; logo, etc.
Quinto. O intelecto compreende os seus actos e reflecte sobre eles, portanto, tam­
bém o sentido. Prova-se a consequência porque esta reflexão não parece ser tão
elevada que não tivesse podido e devido ser comunicada também aos sentidos exter­
nos, particularmente porque, para estes, nada é mais próximo e presente do que a sua
própria operação. Acrescente-se o testemunho de Platão, no Teeteto, quando afirma
que o sentido sente aquilo que sente e aquilo que não sente.

ARTIGO II
Aprovação da parte negativa.
Resolução dos argumentos do artigo anterior

Os filósofos deitaram por terra várias opiniões acerca da explicação da dificul­


dade proposta. Com efeito, São Nemésio, no comentário ao livro A Natureza do
Homem, capítulo 7º e Plutarco, em relação a Filópono, no livro 2 desta obra, texto
1 03 , pensam que conhecer as funções dos sentidos externos compete à razão e à
inteligência. Miguel de Éfeso no livro 9 e Filópono no ponto citado, atribuem-no a
outra potência, a que chamam rcpoaEKTLKÓV, isto é, que presta atenção. Alexandre,
no livro 3, As Questões Naturais; Temístio, neste livro 4º, capítulo 4º da sua Pará­
frase; Simplício, no texto 1 36; Egídio e muitos outros entendem que qualquer sen­
tido externo compreende a sua operação. Egídio defende-o, dizendo que os sentidos
externos percebem as suas sensações não decerto pelo acto reflexivo por elas deli­
mitado, mas pelo mesmo acto pelo qual elas são levadas para o objecto, ainda que
indirectamente.
Seja a primeira asserção. O conhecimento das operações que os sentidos externos
realizam não existe apenas para a faculdade intelectiva, nem para atribuir àquela
potência que chamam da observação ou da atenção. É de aceitar esta afirmação
quanto à primeira parte, porque perceber as diferenças de todos os sensíveis exter­
nos, julgar as percepções dos sentidos um a um, não ultrapassa a faculdade da alma
sensitiva, visto que são praticadas pelos animais outras funções mais elevadas, como
é evidente a partir do que explicámos nas Lições da Física, livro 2, enquanto abor­
dávamos o instinto. Não há, por isso, razão para recusá-lo ao grau mais elevado da
alma. Acresce o testemunho de Aristóteles, no capítulo anterior, onde claramente
ensinou e provou que o sentido comum percebe e distingue as acções dos sentidos
externos. Demonstra-se a parte seguinte, porque aquela faculdade que presta atenção
é inútil e fictícia, visto que qualquer faculdade, se nada se opuser e faltar, pode por si
observar e executar a sua operação, especialmente, porque, como dissemos acima,
não existe outro sentido para prestar atenção ao objecto do que tender para o objecto.
Segunda asserção. Os sentidos externos não percebem as suas operações. Esta
afirmação é de S. Tomás, Suma Teológica, parte 1 , questão 78, artigo 4º e questão
87, artigo 3º, quando afirma que, para além dos cinco sentidos externos, que não
apreendem as suas sensações, é necessário o sentido comum para que o animal per­
ceba as acções dos externos. É também a posição de Capréolo, no livro 3 das Sen­
tenças, distinção 44, questão 1 , artigo 3º; do Ferrariense, questão 1 deste livro; de
Janduno, questão 3 3 ; de Apolinário, questão 37; de Alberto Magno; de Averróis e de
434 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

outros. Por último, também é a de Aristóteles não só no capítulo anterior, mas de


forma mais patente no livro O Sono e a Vigília, capítulo 2º, quando escreveu o
seguinte. De facto, não é com a vista que ele vê que vê, nem julga com a vista ou
com o gosto ou, então, pode julgar e distinguir o doce do amargo, não separada­
mente, nem ao mesmo tempo um do outro, mas por uma certa parte comum.
Depois, prova-se que nenhum sentido conhece as suas operações através da refle­
xão, porque a reflexão ou retomo sobre si mesmo, segundo Proclo e o consenso
geral de outros autores, é obra da faculdade intelectiva que segue primeiro em linha
recta e depois completa o círculo e retoma a si própria. Isto não se concede à potên­
cia material, que foi determinada segundo a composição do órgão para uma única
operação directa, como São Tomás mostrou, no lº livro das Sentenças, distinção 1 7 ,
questão primeira, artigo 5º, n a terceira solução. Demonstra-se, depois, que o sentido
não pode perceber a sua função, do modo que alguns pretendem, pela mesma acção
directa, porque nenhuma potência se estende para lá dos limites do seu objecto. Mas
a operação do sentido não é o objecto do próprio sentido, como a visão não é o
objecto da vista, mas a cor. Acrescente-se que nenhuma intelecção criada é, primeiro
e directamente, a intelecção de si, como ensina São Tomás, na Suma Teológica,
parte l , questão 87, artigo 3º. Por isso, muito menos a visão externa será a visão de
si.
Porém, os argumentos que recomendavam o contrário não são concludentes. De
facto, em primeiro lugar, facilmente responderá quem disser que nem a vista sente
propriamente as trevas, nem os outros sentidos conhecem simplesmente as privações
dos seus objectos, mas de forma aproximada, de modo impróprio, quase por acção
negativa, visto que elas têm relação com os verdadeiros e próprios objectos dos
sentidos e com as formas sensíveis, enquanto conotam o substrato em que elas estão.
Por isso aí se diz que a vista compreende as trevas, pois nada vê com os olhos aber­
tos, mas não porque ela saiba que não vê. Deve dizer-se o mesmo quanto aos res­
tantes sentidos.
Ao segundo argumento, dir-se-á que os prazeres dos sentidos resultam da percep­
ção dos objectos adequados, mas que para aqueles prazeres não se requer o conhe­
cimento da percepção no mesmo sentido, porque tal como a deleitação não respeita,
propriamente, senão ao apetite, assim também, o perceber a coisa pela qual a von­
tade sensitiva se origina e mostrá-la ao apetite, compete à fantasia.
Ao terceiro, deve negar-se a premissa maior, se ela sustentar que a cor e a visão
são percebidas por nós no mesmo sentido externo. Deve ser aceite, contudo, se se
entender que isso acontece por outra faculdade, ou seja, pelo sentido comum. De
facto, não é absurdo que a vista se ocupe da cor como objecto próprio e adequado
(compreendemos a luz também como cor) e, ao mesmo tempo, que outra faculdade
mais alta, isto é, o sentido comum, se ocupe do mesmo, como seu objecto parcial,
sob um outro conhecimento que lhe é próprio e de que, de caminho, se falará. É,
portanto, evidente a resposta à primeira razão, pela qual se confirmará a premissa
maior. E à segunda razão deve dizer-se, que aquele modo, através do qual a visão é
chamada colorida, é muito impróprio, e que não é suficiente para recolocar a visão
entre os objectos da potência que vê. À terceira, deve responder-se, que não se dá
uma tal progressão infinita porque, precisamente, chegar-se-á ao intelecto que
conhece reflexamente a sua operação.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo II, Questão II, Artigo l 435

Ao quarto argumento, concedida a premissa maior, nega-se a menor. De facto,


qualquer sentido externo pelo seu próprio conhecimento produz uma certa espécie
que mostra e representa a coisa sensível que ele próprio percebe, e a própria percep­
ção ou a coisa, sob a perspectiva conhecida pelo sentido interno. Ao quinto, dizemos
que o intelecto, pela sua superioridade e libertação da matéria, pode reflectir-se
acima de si, mas não o sentido, cuja natureza não comunga deste modo de conhecer
tão excelente, concedendo que tem ligada e fixada a si a função que lhe é própria.
Não é, no entanto, suficiente, uma presença deste tipo para o conhecimento refle­
xivo, mas é necessário que a coisa, na noção do objecto e segundo o ser cognoscível,
se possa tomar presente. No que respeita a Platão, embora a sua autoridade na Aca­
demia sej a grande, no Liceu, todavia, não é indestrutível. No entanto, pode respon­
der-se que quando disse que o sentido sente o que sente, não queria significar outra
coisa senão que o sentido recebe em si, quer a própria operação, quer a sua privação.
Principalmente, porque no Cármides nega que os sentidos se compreendam a si
próprios. Com efeito, escreveu o seguinte, neste diálogo. Percorre, em geral, todos
os sentidos e considera se se pode encontrar algum sentido que se perceba a si pró­
prio e aos outros sentidos, mas que nada sinta daquilo que os outros sentidos sentem,
coisa que julgo impossível.

QUESTÃO II
Se deverá admitir-se um sentido comum e se este residirá no cérebro

ARTIGO {
Por que indícios se fala do sentido comum

Houve quem tivesse negado o sentido comum, com o argumento poderosíssimo


de que não existe nenhum sensível que não recaia num dos cinco sentidos externos.
Aquela opinião deve ser, contudo, totalmente rejeitada e afirmar-se, com a escola
peripatética e o consenso dos outros filósofos, que Aristóteles ensina, quer no capí­
tulo anterior, quer no livro 3, capítulo 7°, texto 3 1 , no livro A Vida e a Morte, capí­
tulo 1 º e noutros pontos, que o sentido comum deve ser aceite. Daqui se depreende a
necessidade de colocar o argumento de diferentes modos. Primeiro, porque como a
natureza costuma tanto quanto possível convocar a multiplicidade para a unidade,
seria conveniente que todos os sensíveis externos se conjugassem, de certo modo,
num único, em que, à semelhança das linhas da circunferência em relação ao centro,
as imagens dos sensíveis dos órgãos dos outros sentidos, um a um confluíssem de
todas as partes. As cores, dos olhos, os sons, dos ouvidos, os odores, das narinas, os
sabores, da língua, as qualidades tácteis, de todo o corpo. O autor da obra De
secretiori scientiae secundum Aegyptios, no livro 2, capítulo 9º, usou a analogia do
centro, tal como Aristóteles, no livro 3 desta obra, num lugar citado um pouco
acima, quando chama sentido comum a algo que está no meio dos sentidos externos.
Segundo. Comprova-se o mesmo de maneira mais eficaz, porque conhecemos que
ouvimos, que tocamos, que cheiramos e outras funções dos sentidos externos, con­
tudo, este conhecimento não pertence a nenhum dos vulgares cinco sentidos, como
na questão anterior se demonstrou. Tem, portanto, de referir-se a outra potência mais
436 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles

alta e mais comum, para a qual são levadas tais imagens das funções, e que não é
outra senão o sentido comum. Não apraz quem disser que aquela faculdade é o pró­
prio intelecto. Na verdade, ela também é necessária aos animais irracionais, aos
quais a natureza também não a pôde negar. Também, porque, como argumentáva­
mos atrás, esta percepção das sensações não se eleva acima da potência das faculda­
des dos que sentem.
Terceiro. Comprova-se o mesmo assim. Porque, como se colhe daquilo que
Aristóteles ensinou neste livro, no fim do capítulo segundo e São Gregório de Nissa
escreveu, no livro de Viribus animae, livro 2, capítulo 1 º, parece que Platão disse,
como registou Marsílio, no início do Teeteto, que tem de existir um sentido interior,
que não só receba, em primeiro lugar, as imagens extraídas dos sensíveis, como o
último argumento mostrava, mas que, como juiz e árbitro, discirna e julgue os
objectos dos diversos sentidos, visto que qualquer sentido particular se ocupa
somente das diferenças do sensível próprio, como a vista do preto e do branco e, do
mesmo modo, os diferentes sentidos. Mas este sentido é aquele a que chamamos
comum, porque para a acção de julgar, os próprios sentidos externos não são, de
qualquer modo, suficientes por si. Daí que seja evidente por que é que existem
igualmente muitos sentidos e muitos homens. Por isso, tal como estes não podem
opinar acerca de coisas diferentes, não conhecendo senão uma a uma, o mesmo se
passa com os sentidos no que toca às diferenças dos outros sensíveis a que não
dizem respeito, como Temístio mostrou, neste ponto, no capítulo 7º da sua Pará­
frase. Assim, embora muitos tabeliães e escrivães assistam aos magistrados, de
facto, há apenas um que emite o direito de sentença lavrada. Por isso, ainda que haja
muitos instrumentos e mecanismos no corpo do animal, para que os simulacros das
coisas sejam recebidos, deve haver uma só potência arbitral a pronunciar, julgar e
conhecer todas as coisas. Por essa razão é evidente que os seres animados possuem
todos a potência judicativa necessária, porque se o animal não discernir o que é
nocivo, o que é salutar, o que é mais ou menos conveniente, o que deve ser evitado
ou acolhido, em breve se precipitará na morte.
Mas, além disso foi atribuída ao sentido comum uma função, isto é, dar aos senti­
dos externos uma faculdade para executar as suas operações através da comunicação
dos espíritos animais, que a partir de si, como que de uma fonte, envia ao primeiro
instrumento do sentir, como consta daquilo que Aristóteles ensina, no livro 2 de As
Partes dos Animais, capítulo 1 0º e no livro A morte e a Vida, capítulo l º. Donde,
quando está obstruído o caminho através do qual os espíritos saem, como acontece
no sono, é necessário que os sentidos externos descansem. Aristóteles diz o mesmo
no livro O Sono e a Vigília, capítulo 3º. Além do mais, sempre que o sentido comum
fraqueja e se encontra mal, também os sentidos próprios são destituídos das funções
próprias, quer total, quer parcialmente, como a visão nos que vêem chegada a hora
da morte. Nestes, a composição do sensório principal é desfeita e extinta. Também
nos paralíticos e apoplécticos, em que os nervos se encontram impedidos, os espíri­
tos animais são encaminhados para os sensitérios externos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo li, Questão li, Artigo II 437

ARTIGO II
O sentido comum não reside no coração mas no cérebro

No que respeita à outra parte da questão subsiste grande discórdia entre os filóso­
fos sobre o lugar onde a faculdade comum ou primária de sentir tem o seu órgão.
Com efeito, Aristóteles, ainda que no capítulo anterior tenha dito que o sentido
comum é quase o centro de todos os sentidos externos, não ensinou, todavia, em que
parte do corpo esse centro está. De facto, coloca-o noutro lugar, no coração ou na
parte que corresponde, em proporção, ao coração, como no livrinho A Juventude e a
Velhice, capítulo 2º; no livro 2 de As Partes dos Animais, capítulos 1 º e 1 0º e no
livro 3, capítulo 4º; no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 2º; em O Sono e a Vigí­
lia, capítulo 2º e em O Movimento dos Animais, capítulo 9º. Nele, o fundamento
para aquela posição foi porque tinha como certo que o coração, não só era a origem
das coisas naturais e vitais, mas também das faculdades animais.
Os médicos atacam isto acerrimamente e mostram que embora o princípio das
artérias e das funções vitais esteja no coração, no entanto reside no fígado a fonte
das veias, do sangue e das operações naturais, e no cérebro a origem dos nervos, do
movimento voluntário e das acções sensitivas. Dado que examinámos minuciosa­
mente esta dificuldade no primeiro livro de A Geração e a Corrupção, quando
seguimos a opinião dos médicos, atestada satisfatoriamente, em parte pelos precei­
tos, em parte pelas experiências da ciência anatómica, não há razão para neste ponto
as tratarmos. Portanto, chamamos de novo à atenção de que se se tratar do princípio
afastado do sentir, não há dúvida que ele tem de ser imputado ao coração, visto que
floresce nele a fonte do calor inato e são procriados os espíritos vitais, sem cuja obra
nenhum movimento pode ser produzido e nenhuma função dos sentidos externos ou
internos pode ser executada. Se Aristóteles, nas passagens antes citadas se tivesse
ocupado deste princípio, não haveria razão pela qual fosse abandonado por nós ou
pelos médicos, nesta disputa. Quem tiver examinado aqueles pontos, facilmente
concluirá que ele coloca o princípio do movimento e da sensação, não afastado, mas
próximo, no coração, e que, como que confiou ao órgão do único princípio, como
rei, o governo de todo o corpo. Consulte-se Galeno no livro De symptomatum cau­
sis, capítulo 8º e no livro De usu pulsum; Fernélio, livro 5 da Fisiologia, capítulo
1 1 º. Leia-se também, se se entender, Averróis, no livro 2 de As Partes dos Animais,
capítulo 7° e no livro 2, Collectaneorum, capítulo 1 1 º, ao disputar a favor de Aristó­
teles contra Galeno.
E assim, o sentido comum não está no coração, mas no cérebro, onde também
têm assento os restantes sentidos internos, aos quais, como de caminho expomos,
transmite os simulacros das coisas. Daí, subsistir motivo para, quando a cabeça está
fortemente lesionada, as funções dos sentidos internos ficarem perturbadas e serem
dados remédios para o cérebro, quando ocorre uma agressão nos sentidos. Deve
todavia saber-se que o sentido comum, nos animais que permanecem vivos uma vez
seccionados, não se encontra delimitado a uma certa parte. Quanto a isto, é ponto
assente, porque eles depois de seccionados ainda se movem com um movimento
animal e este movimento é o do apetite através da força motriz. Ora, o apetite nada
reclama, a não ser que a fantasia mande e dirij a; não pode negar-se que nas partes
divididas ficou junta com o apetite uma fantasia imperfeita, a qual, nos animais
desse tipo, não difere do sentido comum.
438 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO III

a. Cum autem 427 a 1 8 Como alguns dos mais antigos autores definiam a alma a
-

partir do movimento local, outros a partir do conhecimento, outros ainda, a partir


de um e de outro, para que se evidencie se é correcto que o tenham feito, abrindo
assim caminho para disputar ao mesmo tempo acerca do intelecto e da vontade,
Aristóteles propõe-se explicar a diferença entre o sentido e o intelecto. Na ver­
dade, alguns consideram que eles não se distinguem, parecendo que, em relação a
isto, existiram sobretudo três argumentos. Primeiro, porque julgamos tanto pelo
sentido como pelo intelecto, o que acontece porque ambos respeitam a uma fun­
ção e, portanto, se à função, também à natureza. Depois, que não só o sentido
mas também o intelecto são afectados e movidos pelas coisas que se apresentam.
Empédocles quis dizer isso mesmo no seu Poema ao afirmar que a sabedoria
aumenta no presente, isto é, com a intuição e a experiência das coisas presentes, e
também que a prudência e os presságios das coisas futuras provenientes dos
sonhos, que cabem ao sentido, dependem dos eventos das coisas presentes. E o
mesmo dizem aqueles versos de Homero, referidos neste ponto, a saber, o estado
do intelecto humano é como o das coisas que em cada dia se sucedem consoante
a mudança e a variedade dos tempos. São Tomás interpreta aquele 'no presente'
referido no verso de Empédocles num outro sentido, a saber, pela presente forma
do céu ou imagem e influxo e configuração dos astros. Também considera que no
verso de Homero, chamado orador do Olimpo, o Sol é apontado como aquele
donde dependem todos os astros. Assim o sentido de Empédocles será o de que o
intelecto e a sabedoria aumentam no presente, isto é, segundo o estado da hora
presente dos astros e das forças dos céus. Mas Homero considerou que o estado
da inteligência dos homens é como o do Sol, enquanto chefe dos restantes astros,
e moderador, quando age nas restantes estrelas. Além disto, por que razão os
corpos celestes, nos sentidos, ora podem, ora não podem influenciar o intelecto e
a vontade humana, foi por nós explicado nos livros sobre O Céu.
b. Et sentire simile 427 a 28 A terceira razão pela qual alguns consideraram que o
-

intelecto não se distingue do sentido, foi a seguinte: visto que sentimos pelas coi­
sas semelhantes, também compreendemos pela inteligência coisas semelhantes.
Donde, conjecturaram que tanto o sentido como o intelecto incidem num órgão
corpóreo, visto que percebem os corpos, e por isso é que o intelecto é um sentido,
pois toda a faculdade que conhece, que é inerente à matéria, é um sentido.
c. Oportebat autem 427 a 29 - Considera que os Antigos falaram acerca do
conhecimento, mas que nada lembraram acerca do erro e não explicaram as cau­
sas da ignorância e da decepção, que era necessário que fossem por eles transmi­
tidas e inculcadas, sobretudo porque a ignorância nos é mais própria e familiar,
quer porque nos ocupamos nela muito mais tempo, quer, como acrescenta São
Tomás, porque nós erramos e apenas costumamos aprender a partir do ensino e
da obra de outrem. A não ser que alguém queira desculpar os antigos afirmando
que eles não tinham falado do erro porque consideraram que todas as coisas são
verdadeiras e que não existe nenhum engano. Ou certamente (o que tinha sido
inculcado por eles) porque consideraram que o conhecimento é verdadeiro, por-
Livro Terceiro. Explicação do Capítulo Ili 439

que toca a alma com a semelhança, como o fogo toca a partícula ígnea da alma; o
erro, com a dissemelhança, como o fogo toca a porção aquosa da mesma alma.
Visto que conhecer pelo semelhante parece ser contrário a conhecer através do
dissemelhante, o erro e a ciência são contrários, isto é, acontecem de modo
oposto. De facto isto é absurdo e ridículo visto que entretanto erramos, e a alma
não é formada pela união dos elementos ou pela carne do corpo, como é claro
com base no que se disputou no primeiro livro.
d. Non igitur idem 427 b 6 Conclui com o argumento duas coisas, que nem o
-

sentir e o inteligir, nem o sentido e o intelecto são o mesmo. Primeiro, porque o


sentido está presente em todos os animais, pois não há nenhum animal que não
sej a dotado de tacto. Depois, porque o sentido não erra acerca dos sensíveis pró­
prios, mas o intelecto engana-se muitas vezes. Com efeito, embora quando é
levado pela verdadeira opinião pela ciência e pela prudência, não fuja da ver­
dade, se for impressionado pelos contrários, ele engana-se.
e. Imaginatio namque 427 b 1 4 Prova que há imaginação e que ela se distingue do
-

intelecto e do sentido, porque embora nem o acto de imaginação se dê sem o


conhecimento prévio do sentido, nem do assentimento (que é um certo acto do
intelecto que compreende a ciência, a prudência e a opinião), a não ser que se
faça pela imaginação antecedente, a imaginação, isto é, o acto da imaginação
difere do assentimento, que é uma certa acção do intelecto; primeiro, porque
como aqueles que usam uma memória artificiosa produzem as imagens e os luga­
res, a seu arbítrio, e dispõem-nos, recordando-se oportunamente das coisas, assim
está no nosso poder imaginar o que quer que sej a que apraz, mas não opinar (o
que é uma certa parte do assentimento), pois imaginamos coisas falsas, que não
existem; e opinamos as verdadeiras ou as que aceitamos como verdadeiras .
Segundo, porque a opinião acerca das coisas más ou das coisas boas perturba a
alma com o medo, a hilaridade ou outra afecção semelhante, mas a imaginação
não; embora aquelas coisas impressionem do mesmo modo aqueles que obser­
vam no quadro as horríveis ou agradáveis à vista. Entenda-se isto acerca da ima­
ginação, que não tem nenhum assentimento ou juízo conjunto; se de facto tem,
então não há dúvida que a imaginação move a alma e impele a vários afectos.
f. Sunt autem et extimationis ipsius 427 b 24 Aristóteles prova que o assenti­
-

mento difere da imaginação, porque ao assentimento (por cujo nome se com­


preende um acto de razão) respeitam os actos de ciência, de opinião, de prudên­
cia e o contrário deles, sobre os quais dissemos, no livro 6 da Ética que de modo
nenhum respeitam à imaginação. Depois, porque o inteligir difere do sentido, o
que é interpretado de duas maneiras. De uma, que compreende também o imagi­
nar; de outra, em sentido próprio, pela razão de que o assentimento lhe diz res­
peito, isto é, o acto da razão e não de outra potência. Ele afirma que vai tratar
primeiro da intelecção segundo o primeiro uso, isto é, da imaginação.
g. Si igitur imaginatio 428 a 1 Expõe a faculdade e a operação da fantasia, adver­
-

tindo que fala da fantasia em sentido próprio, não metafórico. Entretanto chama­
mos fantasia metaforicamente ao intelecto e a qualquer sentido e àquelas coisas
que aparecem à vista. Porque, numa palavra, a fantasia é a potência pela qual
dizemos que se produz o que é visto ou os fantasmas, talvez pareça que ela deve
ser contada entre os sentidos externos, pelos quais as coisas nos são representa-
440 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

das ou entre as faculdades intelectuais, ou hábitos, com que percebemos as coisas


verdadeiras e as falsas como o intelecto, a opinião e a ciência. E toma efectiva­
mente o intelecto, como São Tomás interpreta, não pela potência mas pela cogni­
ção das coisas que nos chegam ao conhecimento sem indagação, como os primei­
ros princípios. A ciência, pelo conhecimento certo daquilo que compreendemos
pelo discurso. A opinião, pelo conhecimento das coisas acerca das quais não temos
juízo firme e certo. Aristóteles traz apenas estes modos de conhecer, porque eles
eram sobretudo célebres na escola de Platão, que atribuía o intelecto à unidade, a
ciência à dualidade, a opinião ao temário, o sentido ao quaternário.
h. At ipsam non esse sensum 428 a 5 Prova que a fantasia ou imaginação se distin­
-

gue do sentido. Porque o sentido é tomado de duas maneiras, a saber, em potên­


cia, como a vista, e em acto, como a visão. Mostra que a fantasia difere de um e
de outro. Difere do sentido em potência, porque este não intervém nos sonhos, mas
a fantasia intervém; difere do sentido em acto, porque este não se dá nos sonhos.
i. Deinde sensus 428 a 8 Prova, em segundo lugar, que a imaginação não é um
-

sentido, porque o sentido está sempre presente nos animais, pois os recém nasci­
dos usam de imediato o sentido e usam a imaginação, pelo menos a exacta, ape­
nas no decurso do tempo. Em terceiro, porque o sentido pertence a todos os ani­
mais, a imaginação, a perfeita, entenda-se, não pertence a todos. Mas a imagina­
ção imperfeita e confusa está presente em todos. Em quarto lugar, porque o sen­
tido nunca erra acerca dos próprios sensíveis, a imaginação engana-se muitas
vezes. Em quinto, porque as coisas que percebemos afectarem os sentidos de
modo bem exacto não costumamos dizer que nos parecem assim, o que todavia
dizemos, quando imaginamos. Finalmente, porque aquelas coisas cuj as imagens
vemos pelo sentido, imaginamo-las com os olhos fechados e com os sensíveis
ausentes, enquanto que o sentido é levado apenas para a coisa presente.
k. Atqui nec ullus 428 a 16 Afirma que a imaginação não é ciência, nem intelec­
-

ção ou opinião. E em primeiro lugar, que não é intelecto ou ciência, é evidente,


porque estes são sempre verdadeiros. Que também não é opinião recomenda-se,
porque embora a opinião, ora seja verdadeira, ora falsa, todavia a fé e a persuasão
seguem a opinião pela qual julgamos algo; na verdade cada um julga que é ver­
dade aquilo que opina. Mas a fé não segue a imaginação, visto que a imaginação
pertence aos animais irracionais, nos quais todavia a fé não tem lugar. Nem os
animais fazem o que quer que seja com persuasão, nem aqueles que chegam a
uma razão vaga de disciplina, visto que a persuasão alcança-se com o raciocínio
e os animais, para edificar as suas obras, apenas se inclinam pela memória,
hábito ou instinto, mas não pela razão.
1. at uero patet 428 a 24 - Com base no que foi dito conclui contra Platão no
Filebo e no Sofista, que a fantasia ou imaginação não é aquilo que compreende o
sentido e a opinião. Na verdade, se o fosse, atingiria isso num de três modos. De
facto, ou seria a opinião com o sentido, isto é, essencialmente opinião, que teria
origem no sentido. Ou seria opinião pelo sentido, isto é, essencialmente opinião
originada no sentido como numa causa. Ou seria de ambos, designadamente a
combinação do sentido e da opinião igualmente. Confirma que nenhum deles
pode daí afirmar-se, porque se a imaginação difere do sentido e da opinião, por si
e tomados separadamente, também divergirá ao mesmo tempo de um e de outro.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo li/ 441

m. Patet enim si imaginatio 428 a 26 Mostra de que forma se deve tomar a opi­
-

nião, caso se diga que a fantasia é a opinião em conjunto com o sentido. Porque,
de facto, a fantasia é própria de um e do mesmo, ainda que a opinião em conjunto
com o sentido que é a fantasia, não deva ser uma outra opinião, mas a que versa
sobre a mesma coisa para a qual o sentido é conduzido, como quando dizemos
que a fantasia é o composto da opinião do branco e do sentido do mesmo, e que
portanto não pode ser preenchida pela opinião do branco e pelo sentido do bem.
É necessário, portanto, caso a fantasia surja do sentido e da opinião, que nenhum
outro ser em si apareça segundo a fantasia, senão aquele de que se conjectura ser
sentido por si e não por acidente. Mas ele refuta esta posição porque, por vezes,
certas aparências são falsas de acordo com a fantasia nascida do sentido, sobre as
quais temos opinião verdadeira. Na verdade, a imaginação percebe, por exemplo,
que o Sol mede um pé, e segundo a verdadeira opinião, que acolhe do matemá­
tico, considera o Sol maior do que a massa da Terra.
n. Fit igitur 428 b 4 Para compreender este ponto São Tomás adverte, a partir de
-

Aristóteles, que há três modos de abandonar uma opinião verdadeira. O primeiro,


quando a realidade muda. Na verdade, se alguém, estando Sócrates sentado, opi­
nar que ele está sentado, tem uma opinião verdadeira. Mas se Sócrates deixar de
estar sentado e ele, entretanto, conservar a mesma opinião, a opinião verdadeira
muda-se para falsa. O segundo modo, se se esquecer da razão pela qual tinha sido
induzido a opinar e, assim, abandonar a opinião. O terceiro, se movido por outra
razão julgava o oposto do que agora julga. Demonstrado isto, Aristóteles mostra
que se a fantasia é formada pela verdadeira opinião e pelo falso sentido, uma de
duas coisas irá acontecer, a saber, ou alguém abandona a opinião a partir das cau­
sas anteriores e não admite a opinião por intervenção de nenhuma causa, o que
não é possível, ou a mesma opinião é ao mesmo tempo verdadeira e falsa. De
facto, como a opinião deve ser conformada ao sentido, posto que é formada a
partir dele, ou de verdadeira se toma falsa, pois não se dá inteiramente nenhuma
das causas referidas ou, se conserva a verdade, será ao mesmo tempo, quer ver­
dadeira pela sua razão, quer falsa por causa do sentido de que resulta, o que toda­
via é impossível .
o. Verum quoniam 428 b 1 0 Depois de mostrar o que a fantasia não é, vai agora
-

explicar o que ela é, o que toma em primeiro lugar. Primeiro, um movimento


pode ser conduzido por outro, como foi demonstrado e provado no oitavo livro
das Lições sobre a Física. Segundo, a imaginação é um certo movimento, visto
que é um conhecimento que é produzido pelo objecto por intervenção da sua
espécie. Terceiro, a imaginação somente existe nos seres dotados de sentido e
não se dá sem o sentido, visto que a operação dos sentidos antecede a apreensão
interna, que é necessário que corresponda, em proporção, à própria potência,
visto que a potência não age para lá da sua medida.
p. lmaginatio motio est 426 b 1 1 A partir do que disse acima conclui que a
-

imaginação, isto é, o acto da faculdade imaginativa é o movimento feito nos ani­


mais pelo sentido em acto, isto é, pelo sentido enformado pela espécie do
objecto. Apresenta então duas condições da imaginação. A primeira é que os
animais são dotados do movimento da imaginação de modo variado, o que
explica no fim do capítulo. A segunda é que a imaginação, ora é verdadeira, ora é
442 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

falsa. Diz que isto acontece porque imaginamos o que percebemos pelos senti­
dos, mas eles enganam-se. Efectivamente, visto que o objecto dos sentidos se
divide em três, ou é próprio ou comum ou por acidente, a alucinação acontece em
todos eles e se menos frequentemente no sensível próprio, mais frequentemente
no sensível por acidente, porque embora a vista não erre quando, por exemplo,
apreende o branco, todavia erra na sua ligação, isto é, quando, a seu modo, aco­
moda a brancura ao substrato no qual não existe e percebe como branca a coisa
que não é branca. Também no sensível comum ocorre o engano acerca do tama­
nho, da figura e do movimento, como acima referimos.
q. Motus igitur 428 b 24 Conforma os erros que acontecem à imaginação, àquela
-

tripla percepção dos sensíveis externos, afirmando que eles podem dar-se nela de
igual modo, salvo se a imaginação se acostumou a ocupar-se tanto das coisas
presentes, como das coisas ausentes ou que estão mais longe. Conclui, então, que
se as coisas que foram ditas respeitam à imaginação e se a imaginação reivindica
o que foi dito, resta que a imaginação será um movimento feito pelo sentido que
opera em acto, isto é, por intervenção das espécies que o sentido lhe transmite
quando percebe as coisas.
r. Cum autem uisus 429 a 2 Mostra o conhecimento do sentido e da fantasia com
-

uma certa imagem, ou seja, com a etimologia do nome. Na verdade, a fantasia


toma o nome como que a partir da visão, que ocupa o lugar principal entre todos
os sentidos externos, visto que o recebe da luz, sem a qual não existe visão. Com
efeito, luz em grego diz-se cpáoc;, donde a fantasia se diz <':mo rnu cpáoc; Kal -r�c;
oTáaewc;, isto é, a partir da luz e do estado. Donde, a partir da primeira parte
deste nome, é demonstrada a semelhança da fantasia com o sentido. Diz que a
partir da segunda parte se indica o que se toma permanente de modo certo e
justo, visto que ela permanece, cessando a função dos sentidos externos. E é a
causa pela qual os animais fazem muitas coisas, nomeadamente os animais
irracionais porque carecem de intelecto; os homens também, porque neles o
intelecto, com as perturbações da alma, com a doença do corpo, com o sono ou
com outra afecção deste género, fica impedido ou toldado, como que se
obnubilando.

QUESTÃO !
Se o número dos sentidos internos foi correctamente
estabelecido pelos filósofos

ARTIGO I
Com que argumentos foi estabelecida a pluralidade
dos sentidos internos

Os filósofos aduziram, acima de tudo, três razões para constituir uma pluralidade
de sentidos internos. Uns, a partir dos ventrículos do cérebro, onde dizem que foram
colocados os mecanismos do sentir, ventrículos esses que, como consta pelas obser­
vações dos anatomistas, são vários, nomeadamente três ou quatro. Mas outros, não
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo ///, Questão /, Artigo / 443

sem grande probabilidade, consideram este argumento pouco eficaz. Primeiro, por­
que como os sentidos são qualidades que não ocupam lugar e, portanto, não reque­
rem moradas onde se recolham, é incerto que existam, deste ou daquele modo,
células destinadas a este uso ou a outro melhor, pela natureza, quer dizer, para aper­
feiçoar os espíritos animais, como consideram Vesálio, no livro 7, capítulo 6º e
Realdo Colombo, no livro De cerebro et nervis, capítulo 1 º. Ou também para remo­
ver os resíduos do cérebro, como consideram outros, o que também torna possível a
quantidade de matéria de secreção húmida que neles se vê. Confirma-o Fernélio, no
livro De partium humani corporis descriptione, capítulo 9º, afirmando que as maté­
rias excedentárias que se acumulam nos ventrículos escorregam por uns pequenos
canais, insensivelmente, até àquele ponto do cérebro que se chama bacia ou funil e,
daí para a glândula, enquanto, a pouco e pouco, humedecem o palato e se precipitam
para fora. Também Galeno, no livro 8, De usu partium, ensina que as duas primeiras
cavidades do cérebro, da inspiração e da expiração, também foram constituídas por
causa da exalação dos vapores. Além disso, para a emissão dos resíduos, e depois
para dissolver os espíritos animais, que atravessam daí até à cavidade posterior onde
se libertam. Que os sentidos internos não residem nos referidos ventrículos pode,
além disso, estabelecer-se, porque se diz que o sentido comum está na primeira parte
do cérebro, onde, todavia, não se encontra uma só cavidade em que resida, mas duas,
uma à esquerda, outra à direita; que em seguida eles afluem, com o seu próprio
movimento, à terceira, que reside na parte média do cérebro. Quanto a este assunto,
se alguém disser que o sentido comum tem sede numa ou noutra cavidade, refuta-se
da maneira seguinte. Porque, como esta faculdade é quase o centro das faculdades
externas, tal como acima ensinámos, com base em Aristóteles e noutros autores, é
próprio que ela ocupe uma só sede como um centro, mas não uma dupla sede.
Quanto a isto, quem afirmar, com alguns autores, que as primeiras cavidades do
cérebro não são duas, mas que na realidade é uma, o que acontece porque ainda não
foi depositado nele o sentido interno, este argumento convence. Porque, como
Vesálio mostra, no · ponto citado, os nervos ascendentes dos órgãos dos sentidos
externos para o cérebro, pelos quais as imagens dos sensíveis são transportadas, não
confluem nesse ventrículo. Seria necessário que confluíssem nele, como afirmam, se
aí estivesse o sentido comum, para o qual as faculdades externas de sentir transmi­
tem os simulacros das coisas em todas as direcções.
Outros autores, de entre os quais Galeno, constituíram muitos sentidos internos
em lugares distintos, porque vemos, por vezes, que os sentidos internos estão lesa­
dos quanto a uma operação, não quanto a outra. Decerto que isto não parece provir
de outra coisa senão porque eles se distinguem entre si e têm uma actividade em
parte diferente do cérebro. De facto, quebrada assim a composição numa só parte do
cérebro, este permanece intacto na outra e, além disso, a faculdade que ocupa a parte
intacta desempenha excelentemente a sua função, o que não acontece, do mesmo
modo, com a parte lesada. Mostram, entretanto, que tal lesão acontece, mas do modo
referido. Porque, por vezes, surgem visões nos doentes, que não são reais, certa­
mente tecidas pela imaginação, embora, por outro lado, ajuízem correctamente, e o
contrário. Houve também quem admitisse inteiramente, que a faculdade de recordar
sobrevive na apreensão e no juízo. Galeno refere exemplos de tudo isto, em vários
pontos e, em primeiro lugar, no livro De symptomatum differentiis, capítulo 3º, onde
444 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles

narra que um certo médico, Teófilo, embora, por um lado, respondesse muito bem
aos pareceres sobre os quais o questionavam, imaginou que certos flautistas tinham
estado a cantar sem parar, a um canto da casa, enquanto ordenava que fossem pos­
tos na rua. Do que se deduz que a sua faculdade de imaginar se encontrava aluci­
nada. Enquanto pensava que ouvia e via os flautistas, o juízo permanecia incólume,
quer porque interrogava e respondia adequadamente, quer porque ordenava aos
flautistas que partissem, pois se ficassem poderiam prejudicá-lo. Mas outros sofrem
uma afecção contrária, neles erram o juízo e a avaliação quando não compreendem
que vêem o que não vêem, como Galeno mostra noutro exemplo, no livro 4, De Zoeis
affectis, capítulo !º. Com efeito, em Roma, um certo louco, estando preso num
quarto, esgueirando-se do leito, aproximou-se da janela, através da qual, podia ser
visto e avistar os que passavam. E daí, mostrando recipientes de vidro, perguntou,
um a um, se lhe davam ordem para que os atirasse. Dado que os que riam e aplaudiam
o mandaram fazer, ele, pegando, atirou-os todos, o que foi recebido com grande
alarido e risadas. Em seguida, perguntou se lhe ordenavam que atirasse também a
criança que tinha junto de si. Como insistissem que o fizesse, atirou também a
criança pela j anela. Neste caso, portanto, a faculdade que compreende permaneceu
intacta, porque compreendia exactamente os que pretendiam os vasos e a criança,
mas a faculdade judicativa encontrava-se atrofiada, porque de forma insana conside­
rava que os vasos e a criança deviam ser atirados. Não inferia que os vasos se deviam
partir e a criança morrer. Além disso, nalguns, estanto por vezes lesada a memória,
permaneceu intacta a imaginação e o juízo, segundo o testemunho de Tucídides. O
mesmo confirma Galeno, no livro De dif.ferentiis symptomatum, capítulo 8º e no
livro 2 De causis symptomatum, capítulo último, onde refere que certas pessoas que
tinham escapado à peste, nem a si mesmos nem aos outros reconheceram, e também
refere outras que na velhice sofreram estas mesmas afecções, e que também vira
outros que se tinham esquecido totalmente das artes e das letras e até dos seus
nomes nos quais, no entanto, os outros sentidos internos permaneciam incólumes.
Mas também esta razão relativa às diferenças dos sentidos internos e dos seus
diferentes órgãos deve ser contrariada; para muitos com propriedade, parece ter
pouco peso, como para os que afirmam que a composição pode ser lesada na mesma
parte do cérebro, de tal maneira que o dano impeça, por exemplo, a tarefa de com­
preender, mas não a de julgar ou a de julgar, mas não a de compreender, ou a de
relembrar, e o contrário. Ainda que as faculdades que se ocupam do alimento resi­
dam em todo o ventrículo, isto é, as de atrair, de reter, de alterar, de expelir as for­
ças, quando cada uma delas é danificada, ou a operação de alguma está impedida,
todas ficam lesadas, tal como as suas funções. Decerto, porque qualquer alteração da
composição que, por exemplo, altere a retenção do alimento, é suficiente para impe­
dir a atracção do mesmo alimento.
Outros ainda acrescentam diferenças dos sentidos internos a partir da diversidade
das funções e das operações que eles executam. Isto porque estas tarefas e funções
são tão variadas e diferentes que, necessariamente, exigem muitas faculdades. É tido
como firme e certo por todos, na escola dos filósofos, este argumento de multiplicar
as potências, embora nem todos considerem o mesmo número de sentidos internos,
mas uns mais, outros menos. Com efeito, Avicena, no livro 6 dos Naturais, parte 4,
capítulo 2º; Algazel, no seu livrinho A alma, tratado 4, capítulo 7°; João de Gand, no
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo III, Questão /, Artigo II 445

livro 2 desta obra, questão 37, estabelecem cinco sentidos internos. Estes, embora
concordem no número, dissidem muito nas funções que lhes devem ser atribuídas e
ordenadas. Algazel e Alberto põem em primeiro lugar o sentido comum, o qual
compreende e conhece os objectos dos sentidos externos. Em segundo, a faculdade
imaginativa, para que o sentido comum conserve as imagens e receba as coisas sen­
tidas na sua ausência. Em terceiro, a estimativa, para perceber os objectos não senti­
dos, por exemplo, o ódio e a amizade. Em quarto, a fantasia, para conj ugar as espé­
cies entre si, de um modo variado, as sentidas com as sentidas, tal como de ouro e de
monte se produz monte áureo; as não sentidas com as sentidas, tal como, ao mesmo
tempo, percebe o quente e o útil; as não sentidas com as não sentidas, tal como o
carneiro apreende a mãe para si querida e amiga. Em quinto, a memória para con­
servar aquelas coisas que a fantasia percebe. Contudo, Avicena estabelece a fantasia
em terceiro lugar, em quarto a faculdade imaginativa, e crê que esta nada conhece
por si, mas somente as espécies, que repõe e conserva, trazidas a si pelo sentido
comum. Mas, para constituir este número, estes autores têm o argumento que refe­
rimos, a saber, parece que aquelas cinco variedades de funções e tarefas solicitam
igual número de potências.
A opinião de São Tomás é outra, no Opúsculo 43, capítulo 4º e na Suma Teoló­
gica, lª parte, questão 78, artigo 4º; de Caetano, no mesmo lugar; de Averróis, neste
livro, comentário 6; do Ferrariense, questão 4 e de outros que consideram que são
quatro os sentidos internos, a saber, o sentido comum, cujas funções expusemos
muitas vezes; a imaginação ou fantasia, que reúne entre si as coisas sentidas e que é
como que o armazém das imagens do sentido comum; a cogitativa (nos animais
irracionais chamada estimativa) que compreende e dispõe as coisas não sentidas, do
modo explicado antes; a memória que reúne e conserva as espécies não sentidas e se
recorda, a partir delas. A afirmação destes filósofos inicia-se, igualmente, com a
distinção das operações e das funções para multiplicar as potências, a não ser que
aquela se refira a potências menos numerosas, como mais adiante mostraremos.
A terceira afirmação é de Galeno, que, a partir daquela tríplice espécie de delírio,
que lembrámos acima, defendeu três faculdades internas, a fantasia, que confundiu
com o sentido comum, a razão, isto é, a capacidade judicativa, e a memória. São
Gregório de Nissa estabeleceu também um mesmo número, no livro 4 sobre As
Faculdades da Alma, capítulo 6º, São Damasceno, no livro 2 da Fé Ortodoxa, capí­
tulo 1 7º, São Nemésio, em A Natureza Humana, capítulo 6º, e muitos outros autores.

ARTIGO II
Estabelece-se o número dos sentidos internos a partir
da opinião comum dos filósofos

Em primeiro lugar explicaremos, com algumas asserções, aquilo que no assunto,


de mais obscuro e ambíguo, tem de ser resolvido, em conformidade com as afirma­
ções mais comuns dos autores, tanto dos mais antigos como dos mais recentes. A
partir daí estabeleceremos a opinião que nos parecer mais verdadeira. Seja a pri­
meira afirmação. Para além do sentido comum que acima demonstrámos que se deve
constituir, tem de existir uma outra potência distinta que conserve as espécies que
ele entrega. Prova-se. De facto, é exigida a diferente composição das qualidades e,
446 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

portanto dos diversos órgãos, e uma potência para receber junto a si as imagens das
coisas, usando-as na presença do objecto. Diferente, digo, da que é requerida para as
conservar no futuro, durante muito tempo. Com efeito, as húmidas recebem com
cuidado mas não retêm; as secas, embora recebam a custo, conservam muito tempo.
Uma vez que é claro que as espécies emitidas pelos sentidos externos são imediata­
mente recebidas por um único sentido para o qual são trazidas e, além disso, dado
que é patente que os simulacros das coisas percebidas pelos seres animados perfei­
tos, às vezes são conservados muito tempo, o que nos livros Pequenos Naturais
claramente demonstrámos, então, por isso, para além do órgão do sentido comum,
que foi destinado a empreender a primeira função, deve ser considerado outro, de
composição mais seca e outra faculdade, que, em seguida, ministre a tarefa de reter a
espécie. E esta é aquela a que se dá o nome particular de fantasia, e também de ima­
ginativa.
Segunda afirmação. Para além da fantasia deve conceber-se uma outra faculdade
sensitiva que compreenda as coisas não sentidas e as conjugue, quer entre si, quer
com as sentidas, de um modo variado. E além desta, deve constituir-se outra, que
seja como que o tesouro das espécies pelas quais as coisas são assim representadas.
A primeira parte desta afirmação demonstra-se de imediato. Como não só os homens
mas também os animais reproduzem conhecimentos do ódio e da amizade, como a
ovelha que compreende o lobo como seu inimigo, é necessário constituir uma potên­
cia sensitiva que cumpra esta função, designadamente, aquela que é chamada cogi­
tativa nos homens e estimativa nos animais irracionais. O argumento defende que
ela se destingue da fantasia, porque conhecer as coisas não sentidas e compô-las do
modo referido é uma função bastante elevada de actividade e, portanto, de uma
potência um pouco mais alta do que a fantasia. Prova a segunda parte da afirmação o
argumento pelo qual há pouco mostrámos que a fantasia se distingue do sentido
comum. Pois, tal como a fantasia é considerada como repositório ou tesouro do
sentido comum, assim também se considera a memória, para a faculdade imagina­
tiva.
Terceira afirmação. Para além das quatro faculdades referidas, não é necessário
introduzir uma quinta. Isto prova-se, porque não é necessária uma faculdade para
executar as operações, em razão das quais os seus defensores a introduzem. De
facto, para juntar as coisas sentidas entre si é suficiente a fantasia. Para obter estas e
as coisas não sentidas, quer entre si, quer com as sentidas, que têm de ser misturadas
de maneira diferente, a cogitativa é suficiente. Mas há quem objecte que a fantasia
nada faz, mas que apenas retém e examina as espécies a si confiadas. Portanto, tem
de conceder-se alguma potência que una entre si as coisas sentidas e daí, também
uma outra, que se ocupe das não sentidas. Esta objecção deve negar o que concebe.
Com efeito, a fantasia não é empregada apenas nas espécies que devem ser conser­
vadas, mas também descobre as suas sensações, dado que é potência, não só passiva,
mas também activa; de outra maneira, seria mais fraca do que o sentido comum.
Donde, Aristóteles ter ensinado, no capítulo anterior, que o acto da fantasia ou da
faculdade imaginativa é a imaginação e o conhecimento da coisa. E assim, tal como
o sentido comum distingue e compara os objectos dos sentidos externos, na presença
deles, também a fantasia o faz, na sua ausência. E além disso, faz algo, como, de
caminho, diremos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo III, Questão !, Artigo til 447

Mas pode-se objectar, por outro lado, que a cogitativa, que se ocupa das coisas
não sentidas, trata também das coisas sentidas e que, entretanto, como junta as não
sentidas com as sentidas, não pode juntar também as sentidas entre si e que, por essa
razão, a fantasia parece supérflua. Deve opor-se que, embora, por vezes, uma potên­
cia ulterior exerça as funções da primeira, pelo menos numa parte, nem por isso a
primeira potência é supérflua, visto que a natureza, sobretudo nas coisas constantes
da matéria, que progridem naturalmente, dispõe gradualmente as potências materiais
e distribui as suas funções pela ordem que parece idónea, para exercer de um modo
mais adequado as funções continuadamente e, também, de modo mais desembara­
çado. Esta disposição e a vantagem da ordem serão mais bem conservadas se a fan­
tasia mantiver e juntar primeiramente entre si apenas as espécies sentidas e, depois, a
potência ulterior obtiver não só estas, mas também as não sentidas, e as juntar entre
si e, por fim, a memória conservar as outras que lhe foram transmitidas .
Um certo filósofo, de entre os mais recentes, opõe, também, que elas são mais ou
menos da mesma espécie e que, por isso, não parece correcto distinguir-se a memó­
ria da cogitativa, porque uma mais, outra menos, conservaria a imagem das coisas.
Resolve-se facilmente isto. Na verdade, não deve considerar-se que estas potências
se distinguem pelo facto de a afecção pertencer ao órgão, não à potência; por outro
lado, nomeadamente pela diversidade da composição, que as faculdades exigem no
órgão (isto é, como um é húmido e o outro seco, um menos e o outro mais, conser­
variam os simulacros gravados das coisas), como de um certo indício da natureza se
colhe que elas têm sensórios distintos e, que, portanto, são potências diferentes. Na
verdade, a sua distinção deve ser colhida, a priori, da diversidade dos objectos, por­
que a cogitativa versa sobre o cogitável, pelo qual existe, e do mesmo modo, a
memória persiste em tomo do memorável .
Ainda que seja provável que existam quatro sentidos internos, como dissemos na
última afirmação, não parece menos provável que existam apenas três, a saber, o
sentido comum, a fantasia e a memória. Aconselha-se esta afirmação, defendida,
quer por alguns filósofos mais antigos, quer por muitos filósofos do nosso tempo, da
seguinte maneira. Porque todas aquelas funções que há pouco atribuíamos a uma
dupla faculdade, a da fantasia e a da cogitativa, podem ser reconduzidas com vanta­
gem àquela potência intermédia que dá pelo nome de fantasia. Efectivamente, con­
quanto sej a função de sinal mais eminente perceber e investigar as coisas não senti­
das do que ocupar-se só das sentidas, não parece por isso necessário acrescentar
mais faculdades para estas duas realizarem o ministério, visto que, uma e a mesma
faculdade, como é evidente no nosso intelecto, executa operações, umas mais,
outras, menos nobres. Não é, de todo, necessário interpor tanta variedade nestas
potências, posto que sejam materiais.

ARTIGO Ili
Acrescenta-se uma outra opinião menos comum,
considerada todavia mais provável do que as restantes

Estabelecemos no artigo anterior que algo deveria ser decidido acerca do número
dos sentidos internos, partindo do parecer comum dos autores. Há, além disso, uma
outra opinião, ainda que não da antiguidade, que parece a alguns mais consentânea
448 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

com a verdade. Defende-a, além de outros filósofos ilustres do nosso tempo, Fon­
seca, no livro 5 da Metafisica, capítulo 28º, questão 7, secção 4, afirmando que só
existem duas potências sensitivas internas, o sentido comum e a fantasia. Devemos,
portanto, examinar esta posição, para afirmarmos que o sentido comum executa as
funções que lhe atribuímos acima e a fantasia as restantes, que delegámos nos outros
sentidos internos. Refuta-se, com efeito, que existam tantas potências, porque
nenhum argumento obriga a que sejam constituídos mais sentidos, como facilmente
verá quem prestar atenção à resolução dos argumentos que muitos recomendavam.
Na verdade, que todas as funções da faculdade cogitativa podem ser reduzidas à
fantasia, já acima demos a conhecer. Porém, quanto ao ofício da memória, que sub­
sistia como único, ele poderia ser desempenhado por ela mesma. Mais ainda, que a
fantasia o leve a cabo na própria realidade, prova-o, em primeiro lugar, o facto de
não ser necessário nenhum órgão totalmente diferente para reter as imagens das
coisas, mas uma parte distinta do mesmo órgão, que seja mais seca e retenha mais
consistentemente, como a alguns apraz. Ou, que nos parece, de preferência, dever
afirmar-se com Fernélio, no livro 5 da sua Fisiologia, e com Teófilo ao texto 1 62,
que numa e mesma parte do órgão são recebidas, de novo, as espécies para pensar e
para uso da memória, porque este órgão é de tal modo dotado de composição que,
imediatamente apreende as próprias imagens das coisas que passaram há pouco
tempo, na medida do necessário, para logo as usar, e para que também seja possível
conservá-las durante muito tempo. Sobretudo se, quer por um acto veemente, quer
pela apreensão repetida da mesma coisa, elas são profunda e firmemente inculcadas.
Com efeito, embora atrás, perante a opinião comum, tenhamos dito que é necessária
a existência de um sensitério húmido para receber primeiro as espécies, de outro
seco, para as conservar, porque os húmidos facilmente recebem e não retêm e os
secos recebem defeituosamente e conservam durante muito tempo, parece-nos, no
entanto, que pode haver composição nesta média, para não receber com dificuldade
e para reter muito tempo as coisas recebidas. Pode, por isso, efectivamente, provar­
-se que as imagens são impressas e permanecem na mesma parte do órgão, não só
para uso da memória, mas também para empreender outras funções. Porque, de outra
forma, quando quiséssemos discorrer com o sentido interno acerca das coisas sin­
gulares que apreendemos alguns anos antes, seria necessário que, por nosso arbítrio,
de outro sítio, isto é, do repositório da memória, evocássemos e retirássemos as
espécies, o que parece completamente fictício, improvável e indigno da superiori­
dade da faculdade estimativa, a qual, decerto, se concordou carecer pouco das ima­
gens das coisas. E assim, não parece que para a memória seja imprescindível a
diversidade do sensório. A diferença das outras potências era demonstrada com a sua
prova mais poderosa, ou seja, que no fundo não existe parte diferenciada no mesmo
órgão. Por isso, não há razão para considerarmos que a memória se distingue das
outras potências, pelo lugar, ou pela natureza.
Além disso, este argumento prova que não há dois repositórios, um das espécies
sentidas, outro das espécies não sentidas, como muitos afirmam, porque a mesma
faculdade, como eles próprios concedem, obtém das espécies sentidas as não senti­
das, junta-as entre si diversamente, e compõe-nas. Mais, como ela pratica o acto de
recordar, discorre frequentemente das coisas não sentidas para as sentidas e, ao con­
trário, destas para aquelas. Mas, não pode executar isto, pelo menos rapidamente e
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Ili, Questão I, A rtigo IV 449

de forma expedita, a não ser que retenha em si própria, tanto as espécies destas últi­
mas, como as das coisas de que alcança a sensação.
Por fim, que esta nossa opinião não repugna ao princípio peripatético, demonstra­
-se do modo seguinte. Porque Aristóteles, nos capítulos segundo e terceiro deste livro,
quando examinou cuidadosamente as potências sensitivas internas, não encontrou
nem constituiu mais do que duas, a saber, o sentido comum e a fantasia. Não obsta
que tenha escrito um dos livros dos Pequenos Naturais, a que chamou A Memória e
a Reminiscência. De facto, não o fez, porque tivesse separado a faculdade de lem­
brar da fantasia, pelo lugar ou em espécie. Na verdade, no capítulo primeiro deste
mesmo livro coloca o acto de lembrar nesta parte da alma, isto é, na potência em que
reside a imaginação e a fantasia. Daí, ter sido essa a razão do título, porque aí tratava
do acto de lembrar, de acordo com o qual esta potência recebe o nome de memória.
Do mesmo modo, é chamada fantasia, porque as coisas aparecem nela, não de qual­
quer maneira, mas de tal modo que, afastados os sensíveis, permaneça a noção deles,
tal como depois Aristóteles explicou, no capítulo anterior, texto 1 62.
Haverá, contudo, quem pergunte se um pequeno número de sentidos internos nos
é assim favorável, porque não reduzimos todos a um. Respondemos que o Alense,
de facto, na segunda parte da Suma Teológica, questão 70, membro segundo, con­
cede que, na realidade, não há várias potências, apesar de se dizer que são muitas
pela diversidade do modo de operar. Mas a autoridade de Aristóteles, antes de tudo,
obsta a que pensemos assim. Este, no capítulo citado, a partir do texto 55, provou
que a fantasia é faculdade à parte, diversa do sentido comum. Depois obstam as
seguintes razões. Primeiro, porque o sentido comum e a fantasia são alterados de
modo diferente; de facto, o sentido comum é alterado imediatamente pelos sentidos
externos, a fantasia apenas mediatamente, por intervenção daquele. Depois, o sen­
tido comum apenas apreende em presença dos objectos e, ao mesmo tempo, com os
sentidos externos; a fantasia, quando também estes cessam, ainda percebe coisas
muito afastadas. O sentido comum somente conhece as coisas sentidas, a fantasia
também conhece as não sentidas e executa outras funções que lhe são próprias,
acerca das quais tratámos acima.
Fica demonstrado, portanto, partindo da disputa anterior, que existem duas facul­
dades internas de sentir, o sentido comum e a fantasia, as quais, pela diversidade das
funções, não só têm vários nomes, como acima referimos, mas também são uma
potência múltipla, não em natureza e em espécie, mas, pode dizer-se, em abundância
de operações. Por isso, alguns dizem de que modo Galeno deve ser interpretado, isto
é, que de entre as três espécies de delírio frenético, ele compreendeu não três potên­
cias distintas, mas três operações da mesma faculdade e que é possível ser-se ata­
cado por três enfermidades de delírio frenético. Eles são credores das palavras de
Galeno, no livro segundo De musculorum motu, quando estabeleceu que a fantasia e
a memória são uma e a mesma potência.

ARTIGO IV
Da sede dos sentidos internos

Seguidamente filosofaremos acerca das potências sensitivas internas, de acordo


com o número que há pouco referimos, ainda que, noutro ponto, remetida a investi-
450 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

gação mais diligente desta questão para este lugar, tenhamos considerado, mais do
que duas, a partir da opinião comum dos filósofos. No que toca à presente dúvida,
tratam dos sentidos internos Avicena, na primeira fen do primeiro livro do Cânone,
doutrina 6, capítulo 5º; Hécio, sermão segundo; o segundo livro do Tetrabiblos,
capítulo 2º; Fernélio, no livro As Faculdades Naturais, capítulo 1 0º; São Tomás,
Suma Teológica, parte 1 , questão 78, artigo 4º e Opúsculo 43, capítulo 4º e outros.
São Nemésio, no livro A Natureza do Homem, capítulo 6º e S . Damasceno, livro
2 de A Fé Ortodoxa, capítulos 1 9º e 20,º situam os sentidos internos nos espíritos.
Mas esta opinião não colhe, porque como no livro 1 de A Geração e a Corrupção,
claramente mostrámos, os espíritos não são animados e as potências vitais, a partir
das quais a alma executa as suas funções, apenas têm de estar presentes no corpo
que é enformado pela alma. Resta, portanto, que os referidos sentidos se situam no
cérebro. Efectivamente, é costume os médicos duvidarem se estão presentes na
medula do cérebro ou nas suas membranas ou invólucros, chamados meninges.
Fernélio afirma que estão nas membranas, com o argumento da dor, porque a
medula do cérebro carece do sentido do tacto. A membrana, porém, que é mais
espessa, tem um sentido do tacto apuradíssimo. Diz que, encontrando-se profunda­
mente feridas e uma vez o crânio aberto, elas tinham sido reconhecidas nos exames,
durante as patologias. Com efeito, no frenesi, no delírio e na letargia, estando a
medula do cérebro ferida, normalmente nenhuma dor atormenta, mas se por um
breve instante, quer um humor, quer um vapor mais ácido for levado até à meninge,
sobrevirá uma grande dor. Mas Galeno, cuja opinião se aprova mais no livro 7, De
placitis, situa os sentidos internos na própria medula do cérebro, como sede princi­
pal donde são propagados os nervos, através dos quais as imagens das coisas sensí­
veis são transportadas. Ele diz que as meninges foram dadas pela natureza para
encerrar e conter aquela substância. O argumento de Fernélio não é concludente.
Primeiro, porque a medula do cérebro carece totalmente do sentido do tacto, ainda
que sinta de um modo ténue e grosseiro. Além disso, porque a composição, que
ajuda menos o tacto em virtude da moleza da água, pode, a respeito dos sentidos
internos, possuir maior vantagem.
Mas ainda subsiste controvérsia sobre em que parte da medula e com que separa­
ção foram repostos estes sentidos. Fernélio não admite que se encontrem separados
em nenhum sítio e lugar. Afirma que a opinião contrária deve ser eliminada e ata­
cada como absurda e sem autoridade, embora sej a a de quase todos os autores mais
recentes. Esta opinião, diz ele, nascida primeiro da facção do partido dos Árabes, foi
estabelecida sem quaisquer argumentos. Em parte formada sem ponderação, em
parte sem pensar, às cegas, assim teve acolhimento no povo. E, um pouco mais
abaixo, continua: Se eles não cedem aos argumentos dos peripatéticos e de Aristó­
teles, ouvem, por vezes, a farm1ia inteira dos médicos Gregos que, todos sem excep­
ção, foram formados pelos mesmos princípios. Danificada a memória, decidem
aplicar os remédios, não só ao occipício, mas a todo o cérebro, ratificando que a
parte da alma cpavrnanK�<;, o que quer que ela seja, se recorda e conserva as
impressões das coisas. Não é porque ele destrói a opinião contrária, que atribui
vários órgãos aos sentidos internos, dado que São Tomás e Alberto Magno, filósofos
de grande autoridade, e muitos outros, o sustentam. Nós, portanto, que não conside­
ramos nem mais nem menos do que dois sentidos internos distintos em espécie,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo l/l, Questão /, Artigo V 451

como que percorremos a via intermédia. Assim, não consideramos nem mais nem
menos, do que estes dois instrumentos. Estabelecemos, portanto, o sentido comum
na parte anterior do cérebro, para onde se abrem os orifícios de uma certa via, atra­
vés dos quais se dirigem, do exterior, os simulacros concebidos das coisas. Trata-se
de um lugar do cérebro um pouco mais húmido e, por isso, mais apto para receber.
Situamos porém a fantasia em todo o restante cérebro, onde existe aquela composi­
ção, sobre a qual falámos antes, mais idónea para aquela potência, isto é, composta
de seco e de húmido.
Mas, desde logo, alguém poderá insistir que parece que a memória está somente
no occipício, porque aí captou as repercussões das coisas no esquecimento, argu­
mento que usámos noutro ponto para confirmar aquela posição. Opor-se-á contudo
que, havendo mesmo uma ferida, a memória não é lesada, porque ela residia apenas
aí, ela que, demonstrámos, nem pelo lugar, nem pela natureza se desliga da fantasia.
Mas sej a o que for que não lesa uma só potência quanto a uma operação, prejudica-a
continuadamente quanto às restantes, como já acima advertimos. O que também
escreveu Femélio, no livro De functionibus et humoribus, capítulo 45º, afirmando
que, quando uma faculdade, no que concerne a uma operação, pela natureza ou por
alguma contrariedade superveniente, está menos resistente, agredindo-a causas noci­
vas, ela resiste pouco e perturba-se mais prontamente, por causa disso. Ao contrário,
a que se encontra forte e íntegra, pouco ou nada sofre e perde. E assim, quando a
potência está íntegra, por exemplo, quanto ao acto de apreender, mas não ao de
julgar, danificado o juízo, a apreensão mantém-se íntegra. Se sobrevier uma causa
forte de enfermidade, a ponto de a potência sucumbir relativamente a todas as fun­
ções por igual, então há perda total de todas as operações e segue-se o perfeito delí­
rio.

ARTIGO V
Que sentidos internos pertencem aos seres animados

Sem dúvida que nem todas as faculdades internas de sentir estão totalmente pre­
sentes nos seres animados, embora não exista nenhum que careça de sentido comum,
como ensinámos anteriormente, quando falámos acerca do assunto. No que respeita
à fantasia, se se examinar, segundo os actos de compor, de dividir e de discorrer
acerca das coisas singulares, que, na questão seguinte, consideramos deverem ser­
-lhe atribuídos, sabe-se que ela, assim caracterizada, de modo algum pertence aos
animais. Se também se considerar quanto ao acto de lembrar, entende-se como firme
e certo que ela não pertence a todos os animais, dado que nem todos são dotados de
movimento no lugar, como os que estão fixos aos portos marítimos, e que nem todos
os que são dotados de movimento local costumam retomar à morada donde vieram.
De facto, a memória foi dada aos seres animados de forma mais poderosa para se
dirigirem para qualquer lugar afastado que antes conheciam, para obter alguma coisa
ou para evitá-la. Mas, se a fantasia for diligentemente examinada quanto aos outros
actos que lhe dizem respeito, acerca dos quais acima falámos, de que espécie são,
que espécies não sentidas obtém das espécies sentidas e se juntam entre si de modo
variado, deve dizer-se, que como estes actos totalmente eminentes são superiores e
conhecidos, não parece que sej am praticados a não ser pelos seres animados mais
452 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

nobres e, portanto, por todos aqueles que praticam os actos de lembrar. Adiantam-se
argumentos contra as afirmações anteriores. Aristóteles, livro 1 , Metafísica, capítulo
1 º, concede a imaginação a todos os seres animados e no capítulo 9º daquele livro,
texto 56, ensina que o sentido, a imaginação e o apetite são todos comuns. Portanto,
de entre as faculdades internas de sentir, um só sentido comum não diz respeito a
todas. Segundo. Também os animais de natureza mais desprezível, como os lagartos,
conhecem a inimizade, pois fogem da vista do homem. Portanto, alcançar as espé­
cies não sentidas a partir das sentidas não pertence só aos animais mais perfeitos.
Terceiro. Dado que a abelha retoma aos cortiços e as formigas retomam aos seus
formigueiros, não pode negar-se que elas têm memória e, todavia, não têm imagina­
ção, como ensinou Aristóteles, no capítulo anterior, texto 1 06. Portanto, nem todos
os animais superiores em memória, executam o acto de imaginar.
Ao primeiro destes argumentos deve dizer-se, que se entendermos a imaginação
de forma restrita e em sentido próprio, conforme neste ponto tratámos dela e em
nada a separámos da fantasia perfeita, ela não está presente em todos os animais. Se
a entendermos de forma lata, também compreende o sentido comum, e está presente
em todos. Esta noção também foi acolhida de muito perto por Aristóteles nos pontos
citados no argumento. Ao segundo, que aqueles animais de condição mais baixa de
modo algum alcançam as espécies não sentidas a partir das sentidas, mas que fogem
dos adversários por instinto, que é neles um certo tipo de juízo mais incerto do que
aquele que os animais mais perfeitos costumam formar. Ao terceiro argumento,
abandonada a controvérsia dos autores acerca da explicação deste ponto, vej a-se
sobre ela São Tomás, Egídio, Tienense, Janduno, Alberto, Averróis. Dir-se-á que
Aristóteles nega a imaginação ou a fantasia às abelhas e às formigas, não qualquer
uma, mas a que se conjuga com a aptidão para de algum modo alcançar a disciplina.
A fantasia pertence aos elefantes, aos cavalos e a alguns outros animais que se dizem
hábeis, visto que se habituam à voz do homem, como domador, para fazerem
alguma coisa. A habilidade não pertence todavia nem às formigas, nem às abelhas,
embora conservem como que uma certa forma de organização.

QUESTÃO II
Se algum sentido interno divide, compõe e discorre

ARTIGO 1
Argumentos da parte negativa

Não perguntamos, neste ponto, sobre a composição e a divisão, pela qual se


constroem as proposições a partir de fins comuns, nem sobre o discurso que se
desenvolve a partir delas . É, com efeito, evidente e foi demonstrado por nós, noutro
ponto, que o conhecimento universal das coisas não recai em potências fixas no
órgão corpóreo, mas unicamente na faculdade intelectiva. Portanto, consideramos
apenas, nesta discussão, se algum dos sentidos internos forma algumas proposições
a partir de fins singulares e discorre acerca das coisas singulares. Dos sentidos inter­
nos dos homens, digo, não dos animais irracionais. Com efeito, estas operações se
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo ///, Questão //, Artigo // 453

estão presentes nos sentidos não lhes pertencem por si, mas provêm do defluxo, da
proximidade da razão, da qual os animais estão muito longe.
Ocorrem, portanto, estes argumentos, a favor da parte negativa. Primeiro. Que a
potência reflicta acima do seu acto, ou que conheça a proporção dos meios em rela­
ção ao fim, é inferior a compor e dividir; ora, ela não pertence a nenhum sentido,
como noutro ponto mostrámos; logo, nem este. Segundo. Em qualquer proposição
dá-se a cópula do predicado com o sujeito que é uma relação de razão, mas no sen­
tido, nem se pode dar uma relação de razão, nem ser percebida por ele, porque per­
tence apenas ao intelecto e à razão; logo, uma proposição não pode ser produzida no
sentido. Terceiro. Se a potência sensitiva discorrer, der assentimento à proposição
feita por si e, dessa maneira, à própria proposição, segue-se também que conhece o
seu próprio acto, mas o sentido não vai para além do seu acto, portanto não discorre.
Quarto. Nenhuma faculdade pode discorrer se não conhecer aquelas regras comuns e
princípios com que se inicia todo o discurso, nomeadamente, 'o que é dito de tudo, é
dito de nada' ; ora, estas regras escapam ao conhecimento do sentido, porque con­
sistem em termos comuns; logo, nenhuma faculdade sensitiva pode discorrer. Por
fim, acrescente-se o testemunho de Aristóteles, neste livro, capítulo 6º, texto 22,
quando ensina que composição, divisão e, portanto, o discurso, são funções próprias
do intelecto.

ARTIGO II
Explicação da dificuldade proposta

Visto que considerámos como mais provável que somente houvesse dois sentidos
internos, decidiremos a controvérsia em relação ao exemplo proposto desta opinião.
Seja a primeira conclusão. O sentido comum não compõe, não divide ou discorre.
Esta conclusão parece firmada no consenso de todos os autores, excepto daqueles
que confundem o sentido comum com os restantes sentidos internos, em natureza e
em espécie. Mas prova-se, porque se algum sentido interno ascender a estas funções,
apenas obtém o que atrás dizíamos a partir do defluxo do intelecto, ao qual sobre­
vém, logo a seguir, em dignidade, e ao qual imediatamente serve. Também o sentido
comum não é o primeiro, em dignidade, de entre os sentidos, como é evidente a
partir das afirmações anteriores, nem apresenta imediatamente o ministério ao inte­
lecto, como na devida ocasião mostrámos. Não há, portanto, razão para que digamos
que as operações referidas deviam ser atribuídas ao sentido comum. Todavia,
alguém objecta que o sentido comum, não só observa as funções dos sentidos exter­
nos e os objectos destas, mas estabelece a diferença entre elas e julga-as, como
Aristóteles acima ensinou. Daí que, também por São Gregório, Livro 1 1 dos Morais,
capítulo 8º, o sentido comum é chamado juiz do cérebro com estas palavras: visto
que existe um sentido juiz do cérebro, que preside interiormente, mas conhece os
cinco sentidos através de vias próprias. Por isso, como tal não parece ser feito sem a
combinação de um e de outro, necessariamente parece dever mostrar-se que o sen­
tido comum forma proposições. Dever-se-á responder que se interpreta juízo, de três
maneiras. Primeira, como um qualquer conhecimento da simples potência, que
atinge o objecto que lhe é adequado, embora não distinga a própria adequação, como
Aristóteles disse, no livro 2 dos Posteriores, último capítulo, e livro 2 dos Tópicos,
capítulo 2º: sentir é de algum modo julgar; e neste livro, capítulo 2º, texto 1 3 8 : Com
454 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

a vista nós j ulgamos as trevas e a luz. Também Santo Agostinho fala deste juízo no
livro 6, A Música, capítulo 4º, e em A verdadeira religião capítulos 32º e 33º quando
afirma que certos juízos naturais existem nos sentidos que julgam os sensíveis.
Acerca disto, também Ricardo, no 2º livros das Sentenças, distinção 24, questão 2
sobre o 3° princípio, onde é interpretado o passo do capítulo 1 2º do Livro de Job: O
ouvido não julga as palavras? Da segunda maneira, interpreta-se juízo como conhe­
cimento simples, pelo qual, quer a semelhança, quer a conveniência do obj ecto, mas
também a diferença entre algumas coisas é conhecida. E da terceira, como juízo
enunciativo. Posto isto, dizemos que embora o juízo não sej a um terceiro género
para nós, sem a proposição, todavia o j uízo tomado, na primeira e na segunda
maneiras, é produzido sem ela. Tais são, efectivamente, os juízos que pertencem ao
sentido comum.
Segunda conclusão. A fantasia pode obter proposições de um outro termo singu­
lar e discorrer acerca da pertença das coisas singulares ao seu objecto. Esta afirma­
ção é de São Tomás, 1 ª parte, Suma Teológica, questão 78, artigo 4° ao 5º, e no
opúsculo As Potências da A lma, capítulo 4º, e na segunda parte da segunda, questão
47, artigo 3º, e de Caetano, no mesmo local; de Gregório, no 1º livro das Sentenças,
distinção 3, questão 1 , artigo 1 º; de Capréolo, no primeiro livro, distinção trigésima
quinta, questão 2, e no 3º livro, distinção 36, questão única, artigo 3º ao 4° principal,
e no 4º livro, distinção 1 0 , questão 4, artigo 3º; de Marsílio, no 2° livro, questão 1 6 ,
c. l ; d e Gabriel, questão 3 d o Prólogo, artigo 2 º ; d o Alense, 2 ª parte, questão 67,
membro primeiro; do Cameracense, questão 3 do Prólogo, artigo primeiro; de Son­
cinas, no 1 0º da Metafísica, questão 1 6; do Ferrariense, neste livro, questão 9; de
Averróis, no 2º desta obra, comentário 62; de Avicena, no livro 6 dos Naturais, parte
4, capítulo 2º e de outros mais.
Ensina, então, São Tomás, nos pontos citados, que a faculdade cogitativa (que nós
não distinguimos da fantasia) tem no homem excelência para compor, dividir e usar
o silogismo composto de termos singulares. Não a obtém, como há pouco dissemos,
j ustamente, da parte sensitiva, mas do defluxo da razão, porque esta potência da
mesma alma que participa da razão, como que dimana da mesma fonte máxima que
se conjuga com ela, tanto quanto é lícito à parte sensitiva. Donde, acontece que
costuma chamar-se razão universal, cogitativa particular e intelecto passivo, como
também advertiu São Tomás, questão 8 1 , artigo 3° da primeira parte da Suma Teoló­
gica, e na Questão da Alma, artigo 1 3º, e se alcança de Aristóteles, no livro 3 desta
obra, capítulo 5º, texto 20. Esta opinião pode também ser provada assim. Tal como o
apetite sensitivo no homem, pela união que tem com a vontade, e porque tem origem
na mesma alma racional, participa da liberdade, como a doutrina comum dos filóso­
fos e dos teólogos estabeleceu, também é assim adequado que a cogitativa alcance
alguma coisa da razão, a partir do consórcio da potência intelectiva. Principalmente,
porque o grau superior da natureza inferior costuma atingir o grau menor da supe­
rior, como diz S. Dionísio, no capítulo 7° de Os Nomes Divinos. Acrescente-se o
testemunho de Aristóteles, no livro 1 da Metafísica, capítulo 1 º, no livro 2 dos Pos­
teriores, último capítulo, quando concede o raciocínio à memória sensitiva, e no
livro A Memória e a Reminiscência, capítulo 2°, quando afirma que o acto de reme­
morar, que atribui à memória sensitiva, é como o silogismo pelo qual se investiga
um a partir do outro. Donde, São Tomás, que separa a memória, da cogitativa, não
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Ili, Questão ll, Artigo Ili 455

só atribui o referido discurso à potência cogitativa, mas também à memória, como é


evidente a partir do que diz no ponto citado da primeira parte.
Mas há quem objecte que o homem é por natureza a tal ponto mais sensitivo do
que racional, pois segue primeiro pela natureza a faculdade de sentir e depois a de
inteligir; e que a fantasia, na origem, aperfeiçoa-se e nasce primeiro da alma e
depois do intelecto. É por isso que, sobretudo, a fantasia não pode, do consórcio e
defluxo da razão, que neste momento da natureza ainda não existe, alcançar o privi­
légio a que aludimos. Mas deve objectar-se que o espírito racional recebe o ser pela
natureza antes de se unir ao corpo, de maneira que, primeiro, pela natureza, as
potências, que lhe pertencem e dele flúem, não dependem do corpo, como dele não
dimanam, a não ser depois da conjunção com a matéria em que são recebidas e que,
por isso, a fantasia não nasce primeiro do que a faculdade de inteligir. Nem refere
que aquilo da alma, sej a o que for, através do qual o grau sensitivo é parcialmente
recebido, antecede, pela natureza, aquilo pelo qual o grau racional é recebido. Na
verdade, a sua condição é diferente, pois em si mesma não depende do corpo, da
condição das faculdades de sentir, as quais, porque estão no órgão corpóreo, neces­
sariamente reclamam, para despertarem, a união prévia da alma com o corpo e, por­
tanto, quanto à actual emanação, são posteriores, pela natureza, às faculdades espi­
rituais, cujo nascimento não requer a união.

ARTIGO III
Solução dos argumentos do primeiro artigo

Respondamos agora aos argumentos propostos no início. Ao primeiro, dizemos


que é, de certo modo, mais nobre reflectir-se sobre o seu acto, e conhecer a propor­
ção dos meios ao fim, do que compor e dividir, porque aquele conhecimento dos
meios só diz respeito à faculdade directiva das acções humanas, que é o intelecto. A
reflexão também requer, para além da liberdade, a libertação da matéria que as
potências fixas nos órgãos não possuem. Outros autores, todavia, afirmam que a
fantasia humana, por causa da conjunção do intelecto, compõe e divide de tal modo,
que não é, por isso, absurdo conceder-lhe a reflexão sobre o seu acto. Mas a primeira
solução é mais conveniente para a opinião comum. Ao segundo, dir-se-á que a
cópula do predicado com o sujeito, tomada formalmente, é uma certa relação de
razão, embora materialmente os próprios termos estejam juntos entre si. Para que a
proposição se forme pela fantasia, é suficiente que a cópula sej a por ela percebida
materialmente, não é necessário que aquela relação sej a concebida por ela mesma.
Desta forma, as relações que seguem certos actos de vontade não existem nestes
mesmos actos, mas no intelecto que apreende, seja o que for que Escoto pretenda, no
primeiro livro das Sentenças, distinção 45, questão única, cuj a opinião será refutada
noutro lugar. Ao terceiro, respondemos que, para que a fantasia dê assentimento a
alguma proposição, não é necessário que conheça a própria proposição e expresse
formalmente o seu acto, visto que nem o próprio intelecto, quando aprova por si as
proposições formais, necessariamente compreende aqueles actos. É, sem dúvida,
suficiente que a potência seja levada pelo juízo para o objecto conhecido por si, que
não tenda expressamente para os actos próprios de conhecer. Ao quarto, deve negar­
-se o que defende. Com efeito, não é necessário que aqueles princípios sejam conhe-
456 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

cidos pela potência que apenas discorre acerca das coisas singulares, mas do inte­
lecto que executa os silogismos dos termos universais, aos quais aquelas regras e
princípios comuns dizem respeito. Ao último, diga-se que a opinião de Aristóteles,
neste ponto, é que ao intelecto, por si, apenas convém a composição, a divisão e o
discurso, o que não impede que o mesmo, num grau inferior, não respeite também à
fantasia, não por si, mas por causa da conjugação com o intelecto. Também se colhe
desta solução porque é que a fantasia do homem não se distingue, em espécie, da
fantasia do cavalo. Uma vez que as operações deste tipo lhes pertencem, não por si e
por aquilo que é próprio da parte sensitiva, mas por acidente e benefício de outro, de
modo algum se demonstra ser correcta uma distinção da natureza, como adverte São
Tomás, na primeira parte, Suma Teológica, questão 78, artigo quarto, na resposta ao
quinto argumento.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IV

Os árabes iniciam aqui o princípio do livro terceiro, mas os intérpretes gregos,


efectivamente, incluem-no no terceiro capítulo, divisão que seguimos. Portanto,
depois de Aristóteles ter falado das potências sensitivas da alma, tanto externas,
como internas, ascende agora a outra consideração acerca da alma que é muito mais
sublime. Afirma, com efeito, que deve tratar da parte da alma que conhece e que
sabe, isto é, do intelecto, sobre o qual propõe que se devem explicar duas coisas.
Uma, é de que forma se distingue das restantes potências da alma. Outra, de que
modo acontece a intelecção.

a. De anima autem ea parte 429 a 1 0 Filópono entende que por parte da alma se
-

significa a alma intelectiva, que é uma parte, isto é, uma certa espécie de alma.
Simplício, Temístio, São Tomás e outros, cuj a interpretação é mais parecida,
afirmam que por parte da alma se designa a potência ou a faculdade da alma que
é o intelecto, através do qual a alma intelige e sente. Sobre isto, Aristóteles diz
que se deve discutir se ela é separável segundo a extensão, isto é, pela própria
coisa e substrato, se não é separável pelo substrato, mas apenas pela razão. Ele
acrescenta isto, quer porque sobre estes dois pontos que têm de ser tratados a
controvérsia acerca da separação do intelecto não parece ser pequena, quer por­
que, independentemente da maneira como a entendermos, é necessário conside­
rarmos os dois pontos sobre o intelecto. Filópono e Simplício afirmam que Aris­
tóteles, com estas palavras, propõe o seu objecto como pretendendo explicar três
coisas, de entre as quais a primeira é se o intelecto pode ser separado ou não.
Nisto, eles discordam. Filópono entende esta questão acerca da separação do
corpo, se é o sentido ou o intelecto separável em extensão, isto é, se é imortal e
pode permanecer fora do corpo. Simplício, porém, se o intelecto está separado
das restantes potências da alma, pelo substrato e pelo lugar, como acreditava
Platão. Mas apraz mais dizermos que Aristóteles apenas propõe examinar os
assuntos que dissemos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo IV 457

b. Si igitur ipsum 429 a 1 3 Omitido o desacordo entre os intérpretes, parece que a


-

opinião deste passo é que inteligir está para sentir (na verdade são afins) como
sentir para padecer ou, se não se quiser chamar paixão, uma coisa qualquer é tal
como intelige. Com efeito, nem alguma destas coisas é dita paixão em sentido
próprio, visto que ela apenas é atribuível propriamente às mortais.
c. Vacare igitur 429 a 1 5 A partir da semelhança que existe entre o sentido e o
-

intelecto conclui que sucedem três coisas no intelecto que se verificam no sen­
tido. A primeira, é que o intelecto é desprovido de paixão, isto é, daquela que
acarreta a sua corrupção. A segunda, que o intelecto é por natureza apto a receber
as formas ou imagens das coisas. A terceira, que o intelecto é forma em potência,
não em acto; tal como a matéria por si é pura potência, no género das coisas natu­
rais, assim é o intelecto, no género das inteligíveis, visto que por si não é mar­
cado por nenhumas imagens das coisas, mas pode ser marcado por elas. Mas
acrescenta que o sentido é da mesma maneira etc. Uma certa compreensão de
todas as coisas em que o intelecto se junta ao sentido.
d. Quare necesse est 429 a 18 Declara qual a natureza do intelecto possível ensi­
-

nando que ele não é corpóreo, nem mistura de coisas corpóreas ou por elas for­
mado. Adverte que alguns dos antigos pensam que o intelecto se alimenta dos
princípios de todas as coisas para compreender todas as coisas, que foi o princí­
pio de Empédocles. Contra, efectivamente, Anaxágoras que pensou que o inte­
lecto é dotado de uma natureza simples e que não tem em si nada de corpóreo.
Aristóteles, neste ponto, relembra a sua doutrina e afirma que uma vez que o
intelecto compreende todas as coisas é em potência todas as coisas, isto é, devem
ser recebidas as imagens de todas as coisas inteligíveis e de um certo modo ser
dominadas . Na verdade, se o intelecto fosse algo dessas coisas não poderia per­
cebê-las todas, porque o que é estranho e está em potência impede a correcta per­
cepção de todas as coisas, tal como é patente no gosto, cujo órgão, quando está
afectado por humor bilioso, não conhece os sabores das outras coisas. Assim, se
algum corpo fosse conatural ao intelecto, ou melhor, se o intelecto fosse congé­
nito a algum corpo como a um órgão, certamente não estaria impedido de perce­
ber todas as coisas. Além disso, qual a força deste argumento de Aristóteles e de
que modo se deve inteligir o que de dentro impede o conhecimento da potência,
já foi por nós declarado noutro ponto desta obra.
e. Is igitur 429 a 22 A partir do facto de o intelecto, não o agente, mas aquele ao
-

qual é próprio inteligir, isto é, o paciente, ser em potência todas as coisas inteli­
gíveis, Aristóteles conclui que antes de inteligir ele não deve ser em acto nada do
que pode inteligir e que de modo algum está junto a um órgão corpóreo, quer
porque seria necessário que fosse dotado de qualidades corpóreas, quer porque
lhe seria dado algum órgão no corpo à semelhança das restantes faculdades cor­
póreas, o que é evidente que não é assim.
f. Atque bene, recteque 429 a 27 Como o intelecto está em potência para as for­
-

mas de todas as coisas ou para receber as imagens, conclui que foi correctamente
afirmado por Platão que a alma é o lugar das formas, isto é, que as espécies pelas
quais se conhece estão depositadas na própria alma. O que, no entanto, deve ser
afirmado não de toda a alma mas apenas da alma intelectiva. E deve ser afirmado
sobre esta, não como se tivesse sido fixada às imagens das coisas desde o pri-
458 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles

meiro nascimento, como considerou Platão - daí ter acreditado que a nossa ciên­
cia não é senão reminiscência -, mas porque as imagens deste género penetram
pelo ministério e intervenção tanto dos sentidos externos como dos internos.
g. Atqui passionis 429 a 29 - Como acima tinha ensinado que o acto não é propria­
mente paixão, nem de inteligir, nem de sentir, para que ninguém pense que o
sentido e o intelecto têm a mesma ausência de paixão declara qual é a diferença
entre um e outro. Na verdade, quando um sensível forte é percebido, o sentido
costuma ficar impedido de conhecer inteiramente outras coisas e, por vezes, o
órgão é abalado pela veemência daquilo que atinge o sentido e a potência fica
lesada ou é extinta, como j á noutro ponto, nesta obra, foi explicado. Além disso,
o que esteve ocupado com outro objecto que o ultrapassa, quando esteve ocupado
sentindo apenas algum tempo, não compreende a seguir tão bem os sensíveis
menores. Isto de modo algum acontece ao intelecto. Na verdade, como ele per­
cebe as coisas mais nobres e mais elevadas, mais agudamente percebe as meno­
res. A causa é porque o sentido é lesado pelo sensível mais forte e porque o sen­
tido é inerente ao órgão corpóreo, cuja mistura só pode ser mudada e dissolvida
pelo agente exterior.
h. Factus autem unumquodque 429 b 6 Tratou do intelecto em potência, disputa
-

agora sobre o intelecto em acto e ensina que o intelecto pode estar em acto de
duas maneiras. Numa, porque obtém as espécies que usa à sua vontade, de tal
modo que adquire o hábito da ciência com o qual pode chegar à ciência em acto.
Noutra, quando a partir das espécies adquiridas avança para o acto de inteligir.
Mas há uma diferença entre os actos, porque enquanto o intelecto está no pri­
meiro, permanece aí em potência para o segundo, quando chega ao segundo,
existe em acto perfeito, já não se diz ser potência, e é capaz, quer de se conhecer
a si mesmo, porque como o intelecto, no presente estado de vida, apenas se
conhece a si próprio reflexamente, sobre o seu acto, quer, em suma, de considerar
que se pode inteligir a si próprio, visto que realiza o acto de inteligir. Trataremos,
de caminho, amplamente deste assunto.
i. Cum autem aliud sit 429 b 1 0 Para ensinar a que potência pertence o conheci­
-

mento da coisa universal e da singular, se à sensitiva se à intelectiva, em primeiro


lugar avisa que existe uma diferença entre a coisa universal e a singular. Na ver­
dade, uma coisa é esta quantidade singular, outra, o que é próprio da quantidade,
isto é, a quantidade em geral; uma coisa é esta água, outra, a água em geral. Sem
dúvida porque esta quantidade concerne a esta matéria singular à qual pertence, a
partir da qual abstrai a quantidade em geral. Além disso, esta água acarreta con­
sigo esta matéria singular de que é formada, que no entanto a água em geral não
acarreta. Adverte todavia que este género de diferença não subsiste deste modo
em todas as coisas, visto que nem todas têm matéria como parte ou como subs­
trato. Portanto, ele duvida se é com uma parte diferente da alma ou faculdade, se
com a mesma, afectada de diferentes modos, que percebemos o ser da carne, isto
é, a carne comum e a carne singular, que não é considerada sem esta matéria, tal
como aquilo que é chato, sem a matéria afectada por tais acidentes. Ensina que,
de facto, a alma humana conhece uma coisa singular e sensível pela potência
sensitiva; mas conhece a universal pela potência separável, isto é, realmente dife­
rente, ou uma na realidade, mas diferente segundo a razão. Também ela está para
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo IV 459

si própria como uma linha recta inflectida sobre si mesma. Tal como uma quanti­
dade inflectida se desdobra numa recta, a mesma linha que antes era dobrada ou
curva toma-se recta, e não difere de si realmente, mas somente pela razão.
Assim, provavelmente (com efeito não dirime, de todo, aqui, a controvérsia pro­
posta), existe uma faculdade, pela qual é conhecido, por um lado, o universal, por
outro, o sensível singular. Outros pretendem que esta semelhança da linha recta e
curva é trazida de Aristóteles para significar os singulares sensíveis entendidos
pelo nosso intelecto por um conhecimento reflexo. Explicámos esta interpretação
no livro 1 da Física, capítulo 1 º, questão 4, artigos 1 º e 3º e discuti-la-emos de
caminho. O intérprete que quiser ler as discussões para explicar este ponto con­
sulte Temístio, Simplício, Filópono, Averróis, São Tomás e Alberto Magno.
k. Rursus in hisce 429 b 1 8 Aquilo que tinha afirmado na física é agora aplicado
-

às matemáticas, cujo âmbito, embora separado da matéria sensível, tem a seu


modo matéria. Com efeito, a recta, que pertence à matemática, é como que acha­
tada, porque como o que é achatado implica o nariz como sua matéria, assim
também a recta implica a noção de contínuo. Pelo que, tal como na física uma
coisa é a natureza geral e outra a singular (uma coisa, digo, de razão), assim tam­
bém nas matemáticas, como, por exemplo, uma coisa é esta linha recta, outra a
dualidade, que consideramos, agora com Platão, que é a própria quididade da
linha recta. Platão, com efeito, afirmava que os números são naturezas dos seres
matemáticas, que a unidade é a quididade da linha, mas a dualidade, da linha
recta; é necessário, por isso, diz Aristóteles, que os singulares e os universais nas
matemáticas requeiram para seu conhecimento uma potência diferente, tal como
na física. Mas, para que ninguém, com base nas afirmações, conclua que são
inteiramente inteligidas do mesmo modo as coisas respeitantes à natureza e à
matemática, acrescenta que as coisas são separáveis da matéria, tal como são as
do intelecto. Donde, as que, pela própria realidade, são separadas da matéria sen­
sível, apenas podem ser percebidas pelo intelecto, como as inteligências. Mas as
que são separadas da matéria sensível, não pela própria coisa, mas apenas pela
mente, são percebidas sem a matéria sensível, mas não sem a inteligível. Na
ordem natural percebemos segundo a abstracção da matéria singular, mas não da
matéria sensível na totalidade. Concebemos o homem como formado de carne e
de osso, abstraindo, no entanto, a consideração do número de carnes e de ossos.
l. Dubitavit autem 429 b 22 Como acima dissera que o intelecto sofre pelo
-

objecto, tal como o sentido, perguntou por que razão isto acontece. Na verdade,
como o intelecto é desprovido de matéria, como é evidente com base no que
transmitimos nos livros de A Geração e a Corrupção, de que modo uma paixão
poderá ser levada ao intelecto?
m. Praeterea ambiget 429 b 27 Coloca outra questão, a saber, se o próprio inte­
-

lecto é inteligível. Na verdade, se é inteligível, sê-lo-á, ou porque é intelecto ou


porque participa de algo pelo qual se toma inteligível . Se a primeira, certame nte
que tudo o que é inteligido será intelecto. Na verdade, com base na doutrina dos
especialistas da dialéctica, capítulos 4º e 5º do livro 1 dos Posteriores, a dup li c �­
ção converte-se em proposição universal simples, como se o homem , q ue é am ­
mal, participa do sentido, então todo o animal participará do sen tido. Se ª
segunda, portanto, o intelecto não será simples, mas composto pela própria natu-
460 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

reza de que participa quando se toma inteligível. Por essa razão, uma vez que
uma e outra são absurdas, porque o sentido é simples e nem tudo o que é inteli­
gido é intelecto, parece que deverá negar-se que o intelecto é inteligível.
n. At enim ipsum pati 429 b 29 Resolve a primeira controvérsia com base numa
-

certa distinção de paixão, proposta no livro 2 desta obra, capítulo 5º, texto 57.
Há, efectivamente, duas paixões, consoante as qualidades contrárias. Uma, que
apenas respeita às coisas sujeitas à corrupção e que se chama corruptiva. Outra,
pela qual dizemos que as coisas geram a perfeição e o próprio acto sem nenhum
prejuízo ou perigo de ruína e que se chama aperfeiçoadora. Destas paixões, a pri­
meira requer sempre a matéria, mas a segunda, não; o intelecto também a
suporta, quando intelige, porque então é conduzido ao acto e à perfeição que lhe
é adequada. Efectivamente, ele está em potência a partir da sua primeira erigem
para todos os inteligíveis, visto que por si não tem inata a noção de nada, mas
pode inteligir todas as coisas com ciência e estudo provenientes da passagem do
tempo, tal como a tábua antes de ser escrita, ou a pintura, nada contêm em acto
das coisas que podem ser escritas e pintadas, mas apenas em potência, a aptidão
para receber nelas o que quer que sej a que a mão tenha expressado, escrito ou
pintado. Esta é uma passagem contra Platão, que ensina, no Ménon, no Fedro e
noutros lugares, que os nossos espíritos antes de descerem para os nossos corpos
mortais e caducos tinham tido em si impressas as noções de todas as coisas, mas
que, pelo contágio do corpo, como que em virtude do orgulho de um presídio
repugnante, se tinham esquecido da inteligência superior, mas que ao aprender se
recordam, pelo que toda a nossa ciência é uma certa recordação. Refutaremos
este erro de acordo com o preceituado no início do primeiro livro dos Analíticos
Posteriores, quando Aristóteles os recorda.
o. Est autem intelligibilis 430 a 2 Explica a questão posterior, para cuj a elucida­
-

ção, a fim de ser percebida, se deve advertir, que os entes imateriais são ditos
inteligíveis por si, mas não as coisas materiais. Para que as coisas materiais
recaiam sob o intelecto, é preciso que de algum modo se disponha a matéria para
que as coisas que lhe são semelhantes e que ele abarca cheguem ao intelecto,
visto que são representadas ao intelecto, através das espécies inteligíveis que são
imateriais. As coisas imateriais, porque são desprovidas de matéria, embora
requeiram as espécies inteligíveis que se apresentam ao intelecto, não exigem
todavia que elas abandonem a matéria e se assemelhem mais ao intelecto. Por­
tanto, Aristóteles responde à questão proposta, conforme Filópono interpreta, que
o próprio intelecto é inteligível, designadamente por si, do mesmo modo que
todas as restantes coisas que são inteligíveis por si, porque é imaterial. De facto,
nas coisas que são desprovidas de matéria o que intelige e o que é inteligível são
o mesmo. E, além disso, diz que também a ciência contemplativa, isto é, o pen­
samento, enquanto contempla, e a coisa que recai sob a contemplação, são o
mesmo; certamente porque a coisa inteligida se junta ao intelecto através da sua
espécie e está, de algum modo, junto dela. Adverte aqui duas coisas. Uma é,
embora Aristóteles tenha afirmado especialmente acerca do intelecto especula­
tivo que ele mesmo se identifica com a coisa inteligida, não o nega todavia
quanto ao intelecto prático, se for comparado com o seu objecto, visto que a
mesma razão procede nos dois casos. A outra é, não só as coisas imateriais, mas
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V 461

também as que têm matéria, são o mesmo com o intelecto, em razão das formas
inteligíveis, que não fazem as vezes do objecto, ainda que ele lá estej a presente,
porque as coisas imateriais têm um maior conhecimento com o intelecto, que
também é imaterial, do que aquelas coisas que estão juntas com a matéria.
Mas ao argumento, pelo qual se parecia demonstrar, se o intelecto fosse inteligí­
vel por si, todo o inteligível por si é intelecto, deve responder-se que a regra dos
especialistas da dialéctica somente é entendida acerca dos predicados, que por si
pertencem primeiro e adequadamente aos sujeitos, tal como o sentido participa
da comparação com o animal ; com efeito pertence ao animal, primeiro e por si,
como é claro, e corresponde-lhe. Mas ser inteligível por si não respeita ao inte­
lecto, mas à natureza imaterial recebida em comum, na qual se contém o intelecto.

p. Sed cur non semper 430 a 5 Pergunta porque que é que, sendo a própria
-

inteligência o que intelige e o que é inteligido, por que razão não se intelige sem­
pre a si própria. Diz que a causa disto deve ser inquirida e não a explica no
momento. Na verdade, tal acontece porque a inteligência não se intelige por si,
mas sobre o seu acto, reflectindo-se a si própria. Não se entrega sempre a essa
reflexão quando não há nada que o force a isso. Os intérpretes gregos afirmam
que a causa está na união e conjunção com o corpo, levada a cabo sempre que
examina as coisas que estão juntas à matéria ignóbil, mas não a si mesma, e as
outras coisas que são por si inteligíveis em acto.
q. ln iis autem 430 a 6 Retoma à questão anterior afirmando que os entes mate­
-

riais não são inteligíveis por si, mas apenas em potência. Decerto porque estão
em potência, à maneira de um depósito material, para se tomarem imateriais por
acção das espécies inteligíveis que se apresentam ao intelecto. Daí conclui que não
lhes cabe a capacidade de inteligir porque esta é imaterial e inteligível por si. Porém,
como nega o intelecto às materiais, fala daquelas que são materiais numa parte do
todo. Na verdade, o homem é material e todavia evidencia-se pelo intelecto.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V

a. Cum autem 430 a 1 0 Até aqui Aristóteles discutiu apenas sobre o intelecto
-

paciente ou possível, tendo estabelecido que por si está em potência para o


conhecimento das coisas e para aquisição da ciência. Agora passa à investigação
e ao estudo de outro intelecto, chamado agente, cuja função não é sofrer mas
agir, transmitindo apenas os simulacros das coisas inteligíveis ou as espécies ao
paciente para realizar a intelecção. Portanto, para comprovar a necessidade do
intelecto agente apresenta a conclusão deste modo. É necessário que exista na
alma uma parte que é potência e sofre e outra que é acto e executa. Prova-a por­
que em toda a natureza, isto é, em todo o efeito e coisa reproduzida existem dois
princípios, um que é potência e matéria ou quase matéria, que recebe e sofre;
outro, que está em acto e não só conduz a potência ao acto como a leva à perfei­
ção e é como que a arte para a matéria que lhe diz respeito. Portanto, como
462 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

vemos que a alma produz este efeito, isto é, o acto de inteligir, é necessário que
nela exista uma faculdade que seja regulada e receba a preparação para esse
efeito. Esta faculdade é o intelecto paciente. Outra faculdade, que conduz e pre­
para a disposição e é o intelecto agente. Mas o paciente dispõe-se a receber as
espécies inteligíveis que são os princípios de inteligir; o agente dispõe ao produ­
zir as espécies deste tipo, a partir dos fantasmas, que ele ilumina como uma luz
reflectida à maneira da luz externa e material que ilumina as cores e as toma
visíveis em acto, dado que antes da chegada da luz apenas são visíveis em potên­
cia. De caminho exporemos de que modo estas coisas devem ser entendidas.
b. Et is intellectus 430 a 17 Declara qual a natureza do intelecto agente e expõe
-

alguns dos seus atributos. O primeiro é ser separável, isto é, não fixado ao órgão
corpóreo, como as potências materiais. O segundo, ser sem mistura, isto é, não
constituído por percepções corpóreas, como Empédocles, Demócrito e certos
outros filósofos mais antigos consideram. O terceiro, desprovido da paixão que,
sem dúvida, corrompe ou de algum modo lesa. Confirma isto porque o agente é
mais nobre do que o paciente e é superiormente mais eficaz do que a matéria.
Logo, como os atributos anteriores pertencem ao intelecto paciente, como é evi­
dente com base naquilo que acima discutimos, pertencem com mais direito ao
intelecto agente.
c. Scientia autem ea 430 a 19 Neste ponto, Aristóteles chama ao intelecto ciência
-

em acto, como advertem os intérpretes, pois pratica o acto de inteligir. Mas o


intelecto que não é agente, acerca do qual falava há pouco, compara-o com
aquilo mesmo que está em ócio e apenas em potência para inteligir. Ensina, por­
tanto, que o intelecto em acto é o mesmo que a coisa inteligida, como é verdade
pela razão, conforme expusemos acima. Daí que o intelecto em potência, num e
no mesmo homem, é no tempo anterior ao intelecto em acto. Por isso, a alma não
gera imediatamente o acto de conhecer, na própria origem, mas bastante depois,
no tempo. Se falarmos de modo absoluto, é verdade que o intelecto em potência
não existe primeiro. Aristóteles acrescenta isso porque adiantou que o mundo, e
um e outro intelecto e acto de conhecer, existiram desde a eternidade. Nem o
ócio, nem o acto de saber (se falarmos deles de modo indefinido), o precederam,
pois uma paragem teria precedido uma dada intelecção e a intelecção uma dada
paragem.
d. Separatus uero 430 a 22 Ensina que o intelecto, tanto o agente como o
-

paciente, naquilo que é, isto é, segundo a sua natureza e noção é separado, ou


seja, não adj udicado ao corpo, ou a algum órgão dele, sendo por isso imortal e,
uma vez extinto o corpo, permanece e subsiste. Nem obsta, diz Aristóteles, que
não exista recordação após esta vida. Efectivamente, esta pertence à potência
orgânica, designadamente, à imaginação, não ao intelecto, no qual não recai pai­
xão corpórea, mas a imaginação (como os intérpretes expõem, ele chama-lhe
intelecto passivo) extingue-se em conjunto com o corpo; sem ela, de facto, o pen­
samento já nada intelige daquele modo,quer dizer, recordando. Aqui , atente-se,
que nem toda a recordação perece, uma vez extinto o corpo, mas apenas aquela
que existe por intervenção da imaginação. Na verdade, de forma alguma se deve
negar que permaneça outra, que se realiza sem o intelecto, como mostrámos nos
livros dos Pequenos Naturais.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão /, Artigo I 463

QUESTÃO !
Se o intelecto agente reside na alma humana ou não

ARTIGO I
Diversas opiniões dos que filosofam

Nos dois capítulos anteriores, Aristóteles tratou, em parte, do intelecto possível,


em parte do agente, discutindo além disso nos três capítulos que de imediato se
seguem, acerca do intelecto possível. Neste ponto, para maior clareza da doutrina,
discutiremos acerca do intelecto agente que é o primeiro, em natureza e na função. A
seguir discutiremos separadamente acerca do intelecto possível. Em suma, no pre­
sente debate foi grande o desacordo dos autores, tanto dos antigos quanto dos
recentes, tanto dos gregos, como dos latinos e árabes, como neste ponto lembra
Filópono; S. Boaventura, no 2º das Sentenças, distinção 24, questão 4 número 42;
Alberto Magno, na Suma do Homem, no tratado do intelecto agente; Henrique de
Gand, Quodlibet 8, questão 1 2. Uns consideraram que o intelecto agente não está, de
facto, no interior da nossa alma, mas separado. Outros consideraram-no como muito
pouco necessário e totalmente supérfluo. A primeira opinião foi de Alexandre, livro
2, A Alma, capítulos 20º e 2 1 º, considerando que o intelecto agente é o intelecto
criador universal de todas as coisas, isto é, Deus, o que também se acredita que foi o
princípio de Platão, no livro 6, A República, quando comparou o intelecto agente ao
Sol, irradiando os nossos espíritos celestes, como, a partir de Temístio, neste livro,
São Tomás refere, Suma Teológica, 1ª parte, questão 79, artigo 4º. Prisciano Lydo
cometeu o mesmo erro, afirmando que o intelecto agente não é uma parte da alma,
mas mente primeira e divina ou ideia do bem. A segunda opinião foi de A vi cena,
livro 9 da Metafísica, capítulo 4º e no livro dos Naturais, parte 5; de Avempace, na
Epístola sobre a Luz e de um certo grego, Marino, mencionado por Filópono neste
ponto, os quais afirmam que o intelecto agente é uma certa substância separada a
que Avicena chamava cholcodea. O mesmo apraz a Averróis, no livrinho De beati­
tudine animae, capítulo 5º, e no Epítome da Metafisica, tratado 4, que adicionando
erro ao erro, seguiu as pisadas dos outros e inventou um intelecto comum, único,
para todos os homens, como referimos noutro ponto. A terceira opinião é a de Sim­
plício, que Jorge Paquímero seguiu, livro 7, A Alma, título 3, capítulos 5º e 6º. Estes
estabelecem no homem três intelectos exteriores. O primeiro deles, que é totalmente
externo, separado, produz o conhecimento dos universais. Outros dois completam
aquele. Um, certamente material, confundindo-se por isso com as noções das coisas
materiais, diz-se que vagueia por fora. Não se intelige a si mesmo, mas às coisas
materiais e sensíveis. O outro, que está sempre em acto, realiza em si próprio a per­
feição da ciência. A quarta opinião, de Plotino, afirma que em nós existe uma dupla
substância. Uma que intelige sempre, que se diz ser o intelecto agente; outra, que
por vezes repousa, a que se chama intelecto possível.
Todavia, nenhuma destas opiniões é consentânea com a verdade. Efectivamente,
as três primeiras, para omitir as restantes como absurdas, situam na totalidade o
princípio da função vital, a operação do intelecto, fora da própria alma, contra a
opinião comum dos filósofos, pois nada na vida é operado, excepto através da forma
inerente a si, como objecta São Tomás, na primeira parte do ponto citado. A quarta
464 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

opinião, na verdade, para além da matéria e da forma, considera no homem uma


dupla substância, o que é fictício e inaudito. Além disso, sem razão idónea e contra a
experiência, coloca permanentemente o intelecto agente voltado para a operação.
Excluídas, portanto, aquelas posições, encontram-se as que negam que exista o
intelecto agente. De entre elas, a de Durando, 1 º livro das Sentenças, distinção 3 ,
questão 5 , e a d e u m certo Isaac, filósofo d e Narbone, referido por Mirândula, nas
sua conclusões, e outros que Alberto Magno recordou, na Suma do Homem, na
questão acerca do intelecto agente. Durando prova, porém, a sua opinião, com um
extenso desenvolvimento de razões, de entre as quais esta é a que tem mais força: ou
se deve considerar que o intelecto agente imprime alguma coisa nos fantasmas, o
que faz habilmente para produzir a espécie inteligível no intelecto passivo, ou que
age, por si mesmo, no intelecto passivo. Mas, se não deve ser constituído por
nenhuma destas razões, então é inutilmente que se deve admitir a sua existência.
Convence a premissa menor, quanto à pri meira parte porque, ou o intelecto agente
imprime no fantasma alguma qualidade espiritual, ou imprime uma qualidade corpó­
rea. Espiritual não, porque na coisa material não pode estar presente o acidente espi­
ritual. De facto, como se retira de Dionísio, e do livro As Causas, tudo o que é rece­
bido em alguma parte deve ajustar-se à natureza do recipiente. Se for corpórea, o
fantasma permanecerá ainda, nos limites dos acidentes corporais e, igualmente, nada
produzirá, a não ser o corpóreo e material. Prova-se que não é necessário pôr o inte­
lecto agente a agir no possível, que era a segunda parte da premissa menor. Com
efeito, em primeiro lugar, não é exigido para produzir a intelecção daquilo, porque a
intelecção é uma actividade imanente que apenas pode ser praticada pela faculdade
que a convoca, mas o intelecto possível é assim denominado porque intelige.
Segundo. Demonstra-se o mesmo deste modo. A alma racional, por intervenção
do fantasma pode gerar espécies inteligíveis sem o auxílio de outra faculdade e des­
tiná-las ao intelecto paciente. Portanto, o intelecto agente é supérfluo. Prova-se a
premissa menor, pois se não pudesse, talvez não existisse, porque o fantasma é mais
imperfeito do que a espécie inteligível. Porém, nenhum efeito pode ser mais nobre
do que a sua própria causa. Mas prova-se efectivamente que este argumento não tem
nenhum peso, porque o fantasma não é causa principal da espécie inteligível, mas
somente instrumental. Na verdade, a causa principal é a própria alma, ou o sujeito
que intelige. Também mostrámos noutro ponto que não é necessário que o instru­
mento seja de natureza mais nobre do que o efeito. Quanto a isto, há quem oponha
que as causas instrumentais não devem universalmente exceder os seus efeitos e que,
na questão proposta, os fantasmas não podem, também como instrumentos, concor­
rer para o efeito de que se trata, isto é, para promover as espécies inteligíveis; isto
porque os entes imateriais são de outro grau e ordem, para a qual as coisas corpóreas
não têm proporção, tal como também não podem alcançar a capacidade do instru­
mento e que, por isso, para a geração das espécies, necessariamente se deve juntar
uma causa imaterial . Se alguém, afirmo, assim opuser, será vencido pelo seu argu­
mento. Com efeito, se concluir isso, também prova que os fantasmas, dado serem
materiais e de ordem inferior, não podem concorrer para produzir em união com o
intelecto agente as espécies inteligíveis. Os seguidores da parte contrária declaram,
no entanto, que aquele concurso tem de ser admitido.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão /, Artigo II 465

Terceiro. Confirma-se o mesmo, porque caso se admitisse o intelecto agente, seria


preciso também admiti-lo na natureza angélica. E, além disso, ser admitido em nós o
sentido agente, que forneceria ao paciente as espécies das coisas sensíveis para que
ele ao mesmo tempo não agisse e fosse passivo. Não seria também menos necessário
admitir-se uma dupla vontade. Uma, agente, que faria as acções, outra, paciente, que
receberia as mesmas, o que, efectivamente, a escola comum dos filósofos nega. Por
último, ou o intelecto agente julga acerca do inteligível, ou não. Caso se verifique a
primeira hipótese, serão admitidas duas potências intelectivas pelas quais se faz o
juízo das coisas, o que parece supérfluo. Se a seguinte, terá de conceder-se que o
intelecto possível é mais eminente do que o agente. Como Aristóteles entretanto
ensinou, neste livro, capítulo 5º, texto 1 9, o que age é sempre mais nobre do que o
que padece, o que também Santo Agostinho aprova 1 2, Génesis à letra, capítulo 1 6º.

ARTIGO II
O intelecto agente existe na alma humana;
que diferença há entre ele e o intelecto paciente

Que o intelecto agente foi necessariamente colocado na alma humana é asserção


verdadeira e comum da escola peripatética, que Aristóteles estabeleceu, no capítulo
5º deste livro, texto 1 8, e os seus intérpretes, no mesmo ponto; também os professo­
res de teologia escolástica, em parte no primeiro livro das Sentenças, distinção 3, em
parte noutro lado. Henrique de Gand, Quodlibet 8, questão 1 2 ; o Alense, na segunda
parte da Suma Teológica, questão 69, membro 2, São Tomás, Suma Teológica, pri­
meira parte, questão 79, artigo 3º; Herveu, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 7 ,
questão 2 ; Capréolo, n o 4º livro, distinção 49, questão 4; o Ferrariense, n o livro
segundo Contra os Gentios, capítulo 76º.
Aristóteles confirmou esta afirmação no ponto citado, da maneira seguinte. Por­
que aquilo que está em potência tem necessidade de algo a partir do qual se actua­
lize. Dado, portanto, que o intelecto possível é pura potência, tem de existir neces­
sariamente alguma faculdade pela qual possa ser levado ao acto de inteligir. Mas
esta é o intelecto agente, que existe para isso, para tomarmos clara a coisa. Visto,
portanto, que o intelecto possível ou paciente é desde o início como uma tábua nua,
não tem qualquer imagem inata das coisas, por cuja intervenção produz acções de
inteligir, não é possível, então, gerar imagens apenas com o ministério do fantasma,
porque são de outra ordem, claramente imaterial, a que a natureza corpórea, pela sua
potência, não pode atingir. Necessariamente, tem de existir alguma potência espiri­
tual a quem incumba esta função, como instrumento principal da alma. De facto,
esta potência é o intelecto agente.
Que este intelecto não está fora da alma mas lhe pertence como sua potência natu­
ral, e que não existe apenas um para todos e é apenas um a assistir e iluminar os
fantasmas de todas as coisas, mas que há um em cada homem, demonstra, além de
outros, São Tomás, Suma Teológica, na primeira parte, questão 79, artigos 4º e 5º, e
o mesmo foi por nós provado no início do livro 2 desta obra.
Apresenta-se agora, de entre outras coisas, o que se tem de investigar para tomar
mais conhecida a natureza do intelecto agente, isto é, se ele difere do paciente ape­
nas formalmente ou realmente. Uma e outra parte têm defensores. A primeira, São
466 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Tomás, Suma Teológica, 1 ª parte, questão 54, artigo 1 º ao 1 º; também na questão 79,
artigo l üº; no 2º livro das Sentenças, distinção 17, questão 2, artigo 1 º; também no
3º, distinção 14, questão 2, artigo 1 º; e no 3º, distinção 1 4, questão 2, artigo 1 º; tam­
bém no opúsculo 3, capítulo 83º; e no livro 2 Contra os Gentios, capítulos 77º e 78º;
e seus seguidores. Além disso, Alberto Magno, na Suma do Homem, tratado sobre o
Intelecto agente, questão 6; Escoto, no 1 º livro das Sentenças, distinção 3 , questão 8,
e muitos outros, pelos quais este argumento é, acima de tudo, sufragado. Na ver­
dade, observou-se nas outras coisas, que todas as vezes que duas são afectadas, de
maneira a uma preparar eficientemente e a dispor a outra para a operação, aquela
que dispõe distingue-se sempre realmente daquela que é disposta. Assim, as causas
universais, como as inteligências e os corpos celestes, distinguem-se do mundo
elementar, que elas dispõem e fazem avançar nas gerações das coisas . Também o
fogo se distingue da madeira, que aquece e a água, da mão, que arrefece; a cor e
outros objectos dos sentidos externos, dos próprios sentidos externos, nos quais
imprimem a sua semelhança; os sentidos externos dos internos, aos quais enviam as
espécies das coisas por si percebidas. E assim acontece no resto das coisas . Por isso,
é próprio que também o intelecto agente, que dispõe o paciente, através das espécies
inteligíveis para inteligir, difira dele na realidade.
Seguiram a segunda opinião Maior, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 6,
questão única; Tiago de Viterbo, Quodlibet l , questão 1 2 ; Nifo, livro 1 , O Intelecto,
tratado 4, capítulo 2 1 º; o Abulense, questão 70, no capítulo 23º do Êxodo. Da opi­
nião deles se deve dizer que o intelecto possível reclama dois géneros de acções,
para passarmos em silêncio, por agora, as restantes, a saber, a intelecção e a produ­
ção das espécies pelos fantasmas. Certamente que para o primeiro género de opera­
ções dispõe-se a si próprio, porquanto possui o nome de agente. Já para o segundo,
de facto, muito pouco. Além disso, ainda que nas coisas materiais, aquilo que sem­
pre simplesmente dispõe se distinga realmente, daquilo que é disposto, já nas espi­
rituais, como é o caso do intelecto, não acontece assim. Não admira que São Tomás,
no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 1 00º, tenha dito que tudo que nas coisas
corpóreas está espalhado por potências diferentes, nas incorpóreas se encontra junto
e reduzido ao poder de uma única faculdade; como o que pertence ao duplo apetite
sensitivo, sob uma única vontade, e o que é compreendido por vários sentidos, tanto
internos como externos, que cai sob um único possível. E, por isso, o argumento e
fundamento desta posição será o de que as coisas não devem ser multiplicadas sem
necessidade, e que nenhuma necessidade obriga a estabelecer um duplo intelecto,
visto que, tanto a produção das espécies inteligíveis a partir dos fantasmas, como o
seu uso ou a intelecção alcançada através delas se podem reduzir a uma a mesma
faculdade intelectiva. Se alguém objectar que nada pode produzir o princípio das
suas acções, o que esta afirmação admite, enquanto mostra que o próprio intelecto
possível produz as espécies que são os princípios de inteligir, deverá responder-se
que nada pode produzir o princípio da sua primeira operação e que, por isso, o inte­
lecto não produz, em si, o princípio de extrair as espécies dos fantasmas. Na ver­
dade, esta extracção é a sua primeira operação, cujo princípio nada produz, mas
prepara para si as acções subsequentes, isto é, os princípios das intelecções, que são
as espécies inteligíveis. E não se segue desta opinião que o agente e o paciente sejam
simplesmente idênticos em relação a uma mesma forma. Na verdade, o intelecto
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão !, Artigo Ili 467

juntamente com o fantasma produz as espécies, mas tomado em si recebe-as, assim


como com a espécie gera o acto de inteligir, e considerado na sua nudez o recebe.
Destas duas opiniões, sem dúvida, que nenhuma parece improvável. Mas encara­
mos a primeira mais aprofundadamente, porque mais propriamente se aproxima da
doutrina de Aristóteles, que neste livro, capítulo 4º, texto 5, considera o intelecto
possível uma tábua nua e pura potência e como a matéria prima, no qual um outro
diferente, não o próprio, tem de gravar as imagens ou sinais das coisas que devem
ser inteligidas. Por isso, ao argumento da outra posição deve dizer-se, que as coisas
que são percebidas por muitas faculdades inerentes à matéria, são reduzidas muitas
vezes em número a uma única potência superior e material, mas que isto não sucede
assim de modo absoluto e universal; e que não acontece na questão proposta obstar a
própria natureza do intelecto paciente, o qual, no que toca a receber os primeiros
princípios de inteligir, é como que matéria prima, que não pode juntar a si as formas,
quer substanciais, quer acidentais, e os princípios subordinado aos quais age, mas
obtém apenas o poder de os receber.

ARTIGO Ili
Resposta aos argumentos propostos ao início da questão

Resolvamos agora os argumentos do primeiro artigo que se esforçavam por mos­


trar que o intelecto agente não existe na nossa alma. Ao primeiro, dizendo que não
se requer o intelecto agente para imprimir algo no fantasma, mas para, juntamente
com ele, produzir as espécies inteligíveis para o intelecto paciente. Com efeito,
embora o fantasma sej a material e grosseiro, contudo, da conjunção e do consórcio
do intelecto agente, devém mais hábil para agir e fortemente elevar-se acima da
própria natureza, em ordem a produzir um efeito espiritual. De caminho trataremos
do assunto.
Ao segundo, deve negar-se o antecedente e, para sua prova, dizer que não é por
isso que o fantasma não pode por si produzir a espécie inteligível, também como
instrumento da alma racional, porque nenhum efeito pode ser mais nobre do que a
sua causa instrumental, mas por causa daquela razão tocada no argumento, a saber,
porque nenhuma causa instrumental total ou principal, se for material, pode produzir
um efeito espiritual, porque é de uma ordem muito mais alta. Mas, além disso, não
deve negar-se que o fantasma pode concorrer com o intelecto agente como causa
instrumental menos importante para a geração das espécies inteligíveis, porque,
nesse caso, essa geração deve ser simplesmente atribuída não ao próprio fantasma,
também como instrumento, mas ao intelecto agente pelo qual é excitado, para além
da sua potência. A favor da explicação do terceiro argumento, deve saber-se que
Escoto, no 2° livro das Sentenças, distinção 3, questão última, seguido por Gregório
no 2º livro, distinção 7, questão 5, artigo 1 º, considera também que o intelecto
agente do anjo concorre, quer para abstrair das coisas, as espécies das coisas singula­
res (na verdade Escoto mostrou que as espécies das coisas comuns tinham sido
constituídas nos anjos na criação dos mesmos), quer para que seja a luz por cuja
faculdade o intelecto possível julga acerca da verdade inteligível . Porém, a opinião
contrária é verdadeira, como mostra São Tomás, na primeira parte da Suma Teoló­
gica, questão 54, artigo 4º, e os seus seguidores, que afirmam que os anjos não care-
468 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

cem de intelecto agente, mas conhecem tanto as coisas universais, como as singula­
res através das espécies colocadas em si, por Deus. O que é consentâneo com que
ensina São Dionísio, capítulo 7º, Hierarquia Celeste; São Damasceno, no livro 2, Fé
Ortodoxa, capítulo 3º, Santo Agostinho, no livro 2 do Génesis à letra, capítulo 8º, e
também no livro 4, capítulo 24º. Na verdade, não se requer o intelecto agente nos
anjos para, com a sua luz, iluminar o intelecto possível, porque para julgarem da
verdade basta-lhes a própria força do intelecto possível, a qual pela sua própria natu­
reza é um certo lume derivado da fonte da luz eterna e divina. Por isso, para esta
parte do argumento, dizemos que o intelecto agente nos é dado, porque como o
nosso intelecto possível, desde a sua primeva origem, carece das imagens das coisas
de forma directa, necessariamente lhe teve de ser dada pelo autor da natureza
alguma potência cuj a obra é adquirir as imagens dessa maneira, o que não tem lugar
nos anjos.
Mas relativamente à segunda parte deste argumento, na qual se questiona se o
sentido agente deve ser considerado distinto do paciente, já esta questão foi tratada
por nós acima, quando constituímos a parte negativa e mostrámos haver uma razão
diferente no intelecto e no sentido, visto que o objecto sensível pode, por poder
próprio, mover a potência sensitiva, transmitindo-lhe a sua imagem. Nem esta espé­
cie ascende do grau material ao grau imaterial, de modo a que se deva buscar outra
faculdade de ordem mais alta, através da qual o objecto ou potência se eleve, tal
como acontece na extracção das espécies inteligíveis a partir dos fantasmas. Por fim,
o que se objecta neste argumento acerca da vontade agente, facilmente resolve quem
disser que essa potência é supérflua, uma vez que a vontade não tem necessidade das
espécies ou de outro princípio de operação que lhe tenha de ser trazido de outro
lugar, pois basta-lhe que a coisa seja proposta nela mesma pelo intelecto para ser
levado até ela.
Ao último argumento, deve responder-se que só o intelecto possível, não o
agente, julga e compreende, como discutiremos na próxima questão, embora por
certos filósofos tenha sido visto de outro modo. Efectivamente, quanto ao que se
opõe acerca da nobreza do intelecto possível, dizemos que ele é mais nobre do que o
agente, ainda que o Ferrariense pense de outro modo, na questão 9 deste livro,
depois de São Tomás, no 2º livro das Sentenças, distinção 20, questão 2, artigo 2º, e
em A Verdade, questão 1 0, artigo 8º. Primeiro, porque o intelecto agente é como que
auxiliar do paciente dado que se ocupa todo na extracção das espécies que aquele
usa. Depois, porque é considerada mais eminente aquela faculdade cuja operação é
mais nobre, e a intelecção é a operação mais nobre do homem. Daí, a felicidade
humana, que pertence à potência mais excelente e ao seu acto mais nobre, consistir
na acção do intelecto possível, isto é, na contemplação do Sumo Bem. E não é obs­
táculo a afirmação de Santo Agostinho e de Aristóteles, que o que age é mais nobre
do que o que é passivo. Isto, na verdade, foi pensado e afirmado, caso se considere
um, precisamente pela razão em que é passivo, e o outro enquanto age, pois o agir é
mais nobre do que o padecer. Por isso, caso se considere em absoluto o intelecto
agente, enquanto produz as espécies inteligíveis para o paciente, e o paciente,
enquanto padece ao recebê-las, sem dúvida que sob esta consideração precisa o
intelecto agente antepõe-se ao paciente. Mas isto não impede que o paciente, se for
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão li, Anigo / 469

examinado segundo as próprias acções que produz, deva ser simplesmente preferido
ao agente.

QUESTÃO II
Quais são as funções do intelecto agente

ARTIGO I
Da iluminação dos fantasmas

Três funções são atribuídas pelos peripatéticos ao intelecto agente. A primeira é


iluminar os fantasmas. A segunda, produzir o objecto inteligível em acto. A terceira,
produzir no intelecto paciente as espécies inteligíveis. Quanto à primeira, sem
dúvida que Aristóteles quis dizer, no capítulo 5º deste livro, texto 1 8, que a referida
iluminação se produz. Existe, de facto, grande discussão sobre como ela é feita. Há
quem pense que consiste na produção de certa qualidade, de cuj o mérito e poder é
extraído o fantasma pelo intelecto agente para gerar a forma espiritual, isto é, a
espécie inteligível. E que, sem dúvida, o intelecto agente produz e imprime algo no
fantasma, não de modo obscuro, indica São Tomás, no livro 2, Contra os Gentios,
capítulo 77º, quando escreveu o seguinte. Existe, portanto, na alma intelectiva a
faculdade activa de fazer nos fantasmas as coisas inteligíveis em acto. De facto, esta
afirmação não colhe. Com efeito, como argumentava Durando, aquilo que o inte­
lecto agente imprime no fantasma ou é algo espiritual ou corporal. Se é espiritual,
certamente que não pode ser recebido, de passagem, no corpo ou no acidente corpó­
reo (embora Capréolo não o julgue improvável, no 2º livro das Sentenças, distinção
3, questão 2, artigo 3º). Se é corporal, visto que, além disso, se mantém dentro dos
limites materiais da natureza, como é que poderá comunicar ao fantasma a faculdade
para produzir uma qualidade imaterial?
Caetano, 1ª parte da Suma Teológica, questão 85, artigo 1 º, opina que o fantasma
é iluminado pelo intelecto agente, não formalmente, mas objectivamente, isto é, que
nenhuma qualidade é impressa por ele no fantasma, mas que o intelecto agente está
para o fantasma como a luz do Sol para as cores, porque, como alguns opinam,
existe através de uma única assistência na causa, como as cores transmitem a sua
semelhança ao diáfano e, daí, à potência. Assim, portanto, Caetano pensa que o
fantasma, embora seja de natureza grosseira e obscura, é, no entanto, percebido
através da presença e irradiação do intelecto agente, para que, juntamente com ele,
concorra para produzir a espécie inteligível. E ele acrescenta que o intelecto agente
permanece de forma contida na própria luz, e uma vez interposto entre o intelecto
possível e o fantasma, com o seu esplendor ilumina apenas a natureza comum, bem
como a natureza singular ainda com o invólucro do fantasma, como que oculta num
véu, tal como o Sol ilumina a cor do fruto e não o sabor ou o odor. E daí resulta que
somente as espécies das coisas universais são produzidas no nosso intelecto, dado
que a única quididade universal, no fantasma iluminado deste modo, resplandece e
empreende a seu modo o concurso para a produção das espécies.
Esta opinião também é para nós muito pouco fundamentada. Primeiro, porque
não é evidente que, por seu intermédio, o intelecto agente forneça alguma luz e que,
470 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

por isso, os fantasmas se digam iluminados por ele, se nada executa neles, nem com
eles. Segundo, porque, caso se diga que os fantasmas são iluminados, porque o
intelecto que age, presente, lhes assiste sem excepção, todos os fantasmas dos
homens, quer dos que dormem, quer dos que estão em vigília, deverão dizer-se per­
manentemente iluminados, uma vez que têm sempre presente a luz do intelecto
agente. Acerca dos fantasmas dos que dormem, contudo Caetano nega. Terceiro,
porque, como correctamente opõe o Ferrariense 2, Contra os Gentios, capítulo 77º,
ainda que o fantasma sej a objectivamente irradiado, permanece, no entanto, no
órgão corpóreo e é extenso, não podendo mostrar a natureza sem as condições da
matéria, como ensina Caetano. Nem o exemplo da luz solar, cuja cor e não o sabor é
visível com o raio, se aplica ao assunto, pois, de facto, só a cor se manifesta a quem
vê, porque só a cor, não o sabor, cai sob a vista. Mas também a coisa singular se
pode mostrar ao intelecto, visto que não só os universais, mas também os singulares
são percebidos por nós no seu próprio conceito, como demonstraremos no devido
lugar. Depois, se apenas se observar a produção de espécies inteligíveis, o fantasma,
como mostraremos de caminho, não se junta a ela em sentido preciso, enquanto
refere a natureza comum, mas porque representa tanto a comum como a singular. O
que não sucede pelo facto de a natureza singular dos fantasmas ficar oculta por véus.
Finalmente, porque se no fantasma apenas brilhasse a quididade universal, sem
dúvida que as coisas universais apenas existiriam na fantasia, visto que nela são
representadas sem as diferenças individuantes.
O Ferrariense, neste livro, questão 9, e Capréolo no ponto citado, consideram que,
tal como a faculdade cogitativa do homem, em virtude da conjunção com o inte­
lecto, reivindica um privilégio particular que não pertence à cogitativa dos animais,
pelo facto de que, certamente, divide, compõe e discorre acerca das coisas singula­
res, assim também prevalece a fantasia, a partir da mesma conjunção, a tal ponto
que, por si, manifesta os fantasmas bastante iluminados e operativos, cada um, em
conjunto com o intelecto agente, podendo produzir as espécies inteligíveis. Por isso
dizem que é nisto que consiste os fantasmas serem iluminados pelo intelecto agente,
o que parece ser afim ao que pensa São Tomás. Esta explicação, embora sej a prová­
vel, não satisfaz totalmente. Parece, com efeito, que o nome de iluminação, que
significa acção, serve de modo demasiado impróprio e inadequado para transmitir a
excelência inata que existe anteriormente ao acto do intelecto agente e que é em si
mesma primitiva, consistindo nela como que a raiz ou conjunção da fantasia natural
com o intelecto. Por ela certamente, os fantasmas, pela excelência da estirpe e pelo
esplendor, como que devem ser chamados mais convenientemente de luminosos do
que de iluminados.
Concordamos, portanto, com esta afirmação que é aceite pelos filósofos mais
recentes, que afirmam que a iluminação dos fantasmas não é objectiva, como afirma
Caetano, nem apenas radical como consideram Capréolo e o Ferrariense, mas efec­
tiva. Não como se o intelecto agente imprimisse algo de luminoso aos fantasmas,
mas porque a luz externa, com o consórcio do seu raio, leva activamente os fantas­
mas a produzir a espécie inteligível despoj ada de diferenças individuais, na qual a
natureza comum está representada e permanece perceptível apenas pelo intelecto. E
assim, de modo algum também deve ser aprovada a opinião de Henrique de Gand,
Quodlibet 4, questão 2 1 , e Quodlibet 8, questões 1 2 e 1 3 , considerando que a ilumi-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão II, Artigo II 471

nação dos fantasmas não se dá como dissemos, mas pouco mais ou menos do modo
estabelecido por Caetano, e que o intelecto possível serve para inteligir os fantasmas
assim iluminados. Então, mais evidente será a falsidade disso, pois mostrámos que o
intelecto possível não pode produzir o acto de inteligir sem a intervenção das espé­
cies inteligíveis, que são geradas pelo intelecto agente juntamente com os fantasmas
que ilumina. Isto, acerca da primeira função do intelecto agente.

ARTIGO II
Acerca da outra dupla função do intelecto agente

Outra função do intelecto agente é tomar o objecto inteligível em acto. Certa­


mente que, do mesmo modo que o intelecto possível por si está em potência para se
tomar inteligente em acto, assim também o objecto está em potência para se tomar
inteligível em acto. Mas é inteligível em potência, segundo o ser que obtém fora da
alma ou no fantasma, e toma-se inteligível em acto segundo o ser inteligível que
obtém na espécie inteligível. Então, de facto, o intelecto possível, em relação àquele,
está no acto primeiro, para que possa ser levado para ele mesmo. Pelo que, é evi­
dente que tomar o objecto inteligível em acto, não é outra coisa senão fazer com que
o obj ecto seja representado na espécie inteligível, o que o intelecto agente executa
quando juntamente com o fantasma iluminado produz a espécie da coisa que deve
ser compreendida para o intelecto paciente. Leia-se São Tomás, Suma Teológica,
primeira parte, questão 54, artigo 4º, e questão 79, artigo 3º, e Questões Acerca da
Alma, artigo 4º, e As Criaturas Espirituais, artigo 20º.
São Tomás acrescenta, no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 27º, e nas Questões
Acerca da Alma, artigo 1 5º, que o intelecto agente toma também os fantasmas inte­
ligíveis em acto e que, além disso, gera a ciência no intelecto possível através dos
fantasmas que ele toma inteligíveis em acto. Por isso parecerá que na doutrina de
São Tomás o objecto é já inteligível em acto no fantasma, antes da espécie inteligí­
vel ser produzida no intelecto. Mas não é assim. Com efeito, o pensamento de São
Tomás não é que a coisa esteja no fantasma, inteligível em acto formalmente, mas
apenas causalmente, uma vez que o fantasma iluminado causa com o intelecto
agente a espécie, como dissemos. Deste modo também, tanto o intelecto agente
como o fantasma se diz que causam a ciência no intelecto possível, isto é, o acto de
conhecer e o hábito que é gerado por aquele acto, a saber, enquanto produzem a
espécie inteligível que é o princípio formal de conhecer e de compreender. Donde,
dever advertir-se que a coisa, enquanto é inteligível em acto, é chamada objecto do
intelecto agente, porque se trata aqui da sua produção. Mas, enquanto compreendida
em acto, diz-se objecto do intelecto possível, porque pertence-lhe alcançar as acções
de inteligir. Donde facilmente se compreende que a coisa é primeiro, pelo menos em
natureza, inteligível em acto, do que inteligida pelo intelecto, pois a intelecção
requer e supõe a espécie inteligível pela qual é originada. Também a coisa neste tipo
de espécie já é inteligível em acto, como foi explicado. Donde, também se conclui
que o intelecto possível não padece pelo inteligível em acto segundo a recepção da
espécie. Certamente, não pode dizer-se que o inteligível em acto age no intelecto
imprimindo a espécie, atendendo a que antes da sua espécie ser impressa, não é
inteligível em acto. Diz-se, portanto, que padece por ele, em razão da intelecção,
4 72 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

enquanto o inteligível em acto, através da sua imagem unida ao intelecto possível


efectivamente produz a acção de pensar. Daí a afirmação de Santo Agostinho, no
livro A Trindade, capítulo 1 2º, o conhecimento é produzido pela potência e pelo
objecto.
Subsiste todavia uma dúvida que não deve ser preterida, sobre se ao intelecto
agente, para além das funções anteriores, compete também a função de pensar. Esta
dúvida somente tem lugar naqueles que distinguem realmente o intelecto agente do
possível. Na verdade, nos que o consideram uma e a mesma potência, não há dúvida
que lhe devem atribuir a função de pensar. Escoto, no primeiro livro das Sentenças,
distinção 3, questão 8 ao primeiro, deixa a questão em dúvida. Alberto Magno, na
Suma do Homem, na última das questões que disputa acerca do intelecto agente, no
artigo 2º, afirma que o intelecto agente pensa, não, contudo, através de qualquer
espécie em si recebida ou (o que é o mesmo), que pensa de modo activo, ao ajudar,
através da sua própria essência, o intelecto possível. Caetano, neste livro, texto 1 8,
afirma que não se pode negar que o intelecto agente, visto que é intelecto e agente,
pensa. E o mesmo consideram alguns dos filósofos mais recentes. E por fim, Jan­
duno, neste ponto, questão 23, afirma que o intelecto agente produz a intelecção no
intelecto possível. Todavia, a posição contrária, que considera que o intelecto agente
não pensa, nem produz a intelecção de forma imediata, é mais comum e mais verda­
deira. Henrique de Gand examina-a, no Quodlibet 8, questão 1 2, e, como parece,
São Tomás, no 3º livro das Sentenças, distinção 1 3 , questão primeira, artigo pri­
meiro, e prova-se, porque se o intelecto agente inteligisse seria inútil o intelecto
possível. Depois, porque Aristóteles, quando discutiu sobre o intelecto agente, nunca
lhe atribuiu o acto de inteligir, mas destinguiu-o do paciente pelas funções, porque
este estaria em potência para receber as formas, aquele imprimi-las-ia, este aplicar­
-se-ia na contemplação, aquele fulgiria como a luz. Este argumento refuta em parti­
cular a opinião de Janduno, porque se o intelecto agente produzisse a intelecção no
paciente, seguir-se-ia que a intelecção seria uma acção passageira pois não se man­
teria na potência de que brotou. Todavia, não deve negar-se que o intelecto agente,
juntamente com o possível, concorre de forma mediata para a intelecção, isto é, por
intervenção das espécies que ele gerou. Desta forma também se diz que o mesmo
intelecto agente, como afirma Escoto, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3,
questão 7, produz a evidência dos primeiros princípios, certamente através das espé­
cies que concorrem para a compreensão dos fins, da qual nasce imediatamente a
aceitação dos princípios. Resta uma terceira função do intelecto agente, que é produ­
zir as espécies inteligíveis para o paciente. Mas sobre isto, já nada fica que deva ser
explicado, no que concerne à presente questão. Mas qualquer um facilmente perce­
berá que as três referidas funções, embora se distingam pelos vocábulos e pelo pen­
samento, recaem numa só e mesma coisa.
Mas se porventura alguém perguntasse porque é que Aristóteles, no capítulo 5º
deste livro, texto 1 7, disse que o intelecto agente está para o possível como a arte
para a matéria; e, além disso, por que lhe terá chamado hábito, no mesmo capítulo,
texto 1 8, deve dizer-se à primeira destas questões, que ele compara o intelecto
agente ao acto, porque tal como a arte introduz na matéria formas artificiais, assim o
intelecto agente introduz no possível as espécies inteligíveis. E, tal como o artífice
não produz pelo ministério da sua arte a forma natural ou a forma da sua espécie,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão Ili, Artigo / 473

nem decerto Policleto introduziu a forma humana e vivente na estátua, mas a forma
da arte, assim, também a mente, através do intelecto agente, somente transporta para
o paciente formas inteligíveis. Leia-se São Tomás, no livro 2, Contra os Gentios,
capítulo 76º e o Ferrariense, nos comentários deste capítulo.
À dúvida seguinte deve responder-se, que o intelecto agente não é chamado por
Aristóteles de hábito, porque o hábito é próprio dos primeiros princípios, como con­
sideram alguns, de entre os quais lembra-se São Boaventura, no 2º livro das Senten­
ças, distinção 24, artigo segundo, questão 4; Alberto Magno, na Suma do Homem,
na questão em que pergunta se há o intelecto agente, artigo segundo. E também
Egídio, neste livro, texto 1 8, cuj o absurdo da opinião se refuta, com São Tomás,
porque o hábito dos primeiros princípios é a qualidade da primeira espécie recebida
no intelecto possível para conhecer as primeiras verdades indemonstráveis, suposto
o conhecimento dos fins. Mas o intelecto agente conta-se entre as qualidades de
segunda espécie, porque é uma faculdade inata por natureza. Com efeito, não supõe
o conhecimento dos fins, nem assenta no intelecto possível, nem é dado pela natu­
reza para inteligir, mas para abstrair as espécies, dos fantasmas. Qualquer um terá
facilmente depreendido todas estas coisas, de entre as que foram até aqui debatidas
por nós. Deve dizer-se, portanto, que o intelecto é chamado por Aristóteles de
hábito, da forma amplamente aceite com o nome de hábito, para abarcar qualquer
potência ou faculdade de operar.

QUESTÃO III
Se as espécies inteligíveis existem necessariamente
no nosso intelecto, ou não

ARTIGO !
V árias opiniões dos filósofos

Esta controvérsia e as que se seguem estão ligadas às anteriores e conduzem a


muitos motivos para conhecer bem a natureza, a faculdade e as funções de um e de
outro intelectos. Mas diversos autores escreveram coisas diferentes acerca da pre­
sente questão. Uns, tentaram suprimir absolutamente as espécies inteligíveis, afir­
mando que são suficientes os fantasmas, para neles o intelecto contemplar não só as
naturezas singulares, como também as universais. De entre estes, contam-se Temís­
tio, Teofrasto e Avempace, que discordaram quanto à constituição do intelecto,
como acima dissemos. Dos teólogos, também Durando, no 2º livro das Sentenças,
distinção 3, questão 6; Baconthorpe, questão 2 do prólogo; Godofredo, no Quodlibet
9, questão 1 9, e Quodlibet 1 3 , questão 3; Henrique, Quodlibet 4, questões 7, 8 e 2 1 ,
e Quodlibet 5 , questão 14, negaram as espécies inteligíveis, com quem, em parte ,
Gabriel concordou, no segundo livro, distinção 3, questão 2, afirmando que a espé­
cie não é requerida no intelecto para o conhecimento intuitivo, embora não deva
negar-se que ela é requerida para a abstracção. Nem faltam argumentos com q ue
parece demonstrar-se que as espécies inteligíveis são estabelecidas totalmente em
vão. Primeiro. Porque sem elas, o intelecto pode contemplar as naturezas nos fan­
tasmas que neles reluzem como num espelho. Corrobora-se o argu men to , p orq ue nas
474 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

potências que se ordenam entre si, o objecto é representado para a seguinte, pelo
acto da primeira, como para a vontade, através do acto do intelecto, e para o apetite
sensitivo, através do acto da fantasia. Visto, portanto, que a fantasia e o intelecto são
potências subordinadas, a razão da ordem pede que a fantasia, que é potência pri­
meira em natureza, represente o objecto para o intelecto, que ele apreende imedia­
tamente sem outra espécie. Segundo. O mesmo se prova, porque como o bem está
para o afecto, assim está a verdade para o intelecto. E o bem não está no afecto atra­
vés de alguma espécie ou semelhança de si. Portanto, também não está a verdade
para o intelecto. Terceiro. Porque se as espécies inteligíveis existissem no intelecto,
dado que estas são consideradas como causas naturais das intelecções, não poderia
um qualquer intelecto parar o seu uso e estaria sempre ocupado em compreender as
coisas que através delas são representadas, o que repugna à experiência. Quarto.
Porque se estas espécies estivessem no nosso intelecto, seria necessário que nós as
conhecêssemos, do mesmo modo que conhecemos claramente os nossos actos, tanto
os da vontade como os do intelecto. Quinto. Porque pensamos coisas cujas espécies
não possuímos. Na verdade, não podemos alcançar as imagens inteligíveis, nem de
Deus, nem das substâncias separadas, nem de outras coisas desprovidas de matéria,
visto que estas coisas não movem o sentido e, além disso, não podemos ter os seus
fantasmas. Todavia, é patente que nós formamos conceitos destas coisas. Por fim,
demonstra-se que nem para os anjos são simplesmente necessárias as espécies inte­
ligíveis. Na verdade, o anjo, sem intervenção da espécie, conhece-se, através da sua
essência, e conhece os outros anjos através das suas substâncias que lhe são presen­
tes. Prova-se isto, quanto à primeira parte, porque a essência do anjo, tal como é acto
sem mistura de matéria, é inteligível por si em acto e está em acto, em conjunção
íntima com o próprio intelecto para com ele concorrer para o conhecimento de si.
Quanto à parte seguinte, demonstra-se o mesmo assunto. Na verdade, qualquer anjo
poderia, assim, juntar-se ao intelecto de outro, para possuir desse modo a eficiência
da forma inteligível, no que respeita à intelecção por ele obtida. Por isso, parece
concluir-se destes argumentos que pensa bem quem nega que se devem admitir
espécies inteligíveis.

ARTIGO II
Não deve negar-se, contra Avicena, que a s espécies inteligíveis existem
e que estas, cessando o acto de pensar, permanecem no intelecto

Esta opinião, todavia, não tem de ser provada, mas deve afirmar-se, com a escola
peripatética, pelo assentimento comum dos filósofos, que as espécies inteligíveis
existem no intelecto, que os princípios de pensar existem, tal como também os sen­
síveis são produzidos nos sentidos, como demonstrámos no livro anterior, quando
trouxemos ao terreno muitos defensores desta verdade. Certamente que Santo Agos­
tinho pensa estar de tal maneira convencido que as espécies existem daquela forma,
que, no livro 2, A Trindade, capítulo 2º, afirma que duvidar disso é próprio de uma
mente retardada. Prova-se, portanto, esta afirmação, assim. Porque tal como o inte­
lecto existe para a própria função, assim também o sentido existe para a sua. Mas os
sentidos, como no ponto citado tomámos claro, de forma alguma podem sentir pelas
espécies sensíveis. Segundo. Porque, como o intelecto existe para compreender esta
ou aquela coisa indiscriminadamente, e como considerado em si é pura potência,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão Ili, Artigo li 475

necessariamente precisa, para compreender, de uma forma, através da qual seja


actuado, e carece de algum princípio formal, por onde dê à luz o acto de inteligir,
pelo qual sej a determinado para conceber isto, de preferência àquilo. Ora, esta forma
e princípio não é senão a espécie inteligível. Na verdade, os fantasmas de modo
algum são suficientes para o fornecer, toma-se evidente, porque os fantasmas, tal
como se encontram espalhados pela matéria de natureza grosseira e imperfeita, tam­
bém representam apenas as coisas singulares e, todavia, é evidente que o intelecto
também compreende objectos comuns. Demais, porque os fantasmas não estão inti­
mamente ligados ao intelecto, visto que não aderem à alma, mas ao corpo, mas nada
opera a não ser através da qualidade, que reside no próprio, como São Tomás afir­
mou, a partir da doutrina de Aristóteles, no segundo livro desta obra, capítulo 1 º,
textos 4 e 5, e no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 76º. Por isso, acontece que para
coisa nenhuma, quer universal, quer singular, quer isenta, quer partícipe da matéria,
é suficiente o fantasma, a fim de que o intelecto possível produza o acto de inteligir.
Acrescente-se que, como Escoto argumenta, no 1 º livro das Sentenças, distinção 3,
questão 6, a imperfeição da natureza intelectual seria grande se não tivesse em si,
mas no corpo, isto é, na potência sensitiva inerente ao corpo, o princípio da sua
nobilíssima operação. E nem obsta a este argumento que os bem-aventurados pos­
suam a divina essência em vez da espécie inteligível e que, todavia, ela não está
presente neles, nem pela identidade real, nem subjectivamente. Na verdade, junta-se,
intimamente ao seu intelecto para completar a união, que possa oferecer, ou pela
ligação ou por outra conjugação natural. Para que se compreenda isto de modo claro,
dir-se-á o seguinte. Na nossa espécie inteligível natural encontram-se três coisas . Há,
com efeito, a imagem da coisa que deve ser inteligida e enquanto é espécie a tem em
particular. Segundo, concorre com o intelecto para obter a intelecção, o que reclama
como princípio ou razão de inteligir. Terceiro, é inerente ao intelecto, o que conse­
gue enquanto participa da natureza do acidente. Portanto, as duas primeiras, dado
que nada têm de imperfeito, podem convir com a essência divina em relação ao
intelecto do bem-aventurado, mas a terceira, não, porque traz em si a potencialidade
e a composição e, portanto, o conhecimento da imperfeição. E, ainda assim, fica
aprovado que toda a nossa espécie natural e ordinária deve existir no próprio inte­
lecto, que é o princípio e a razão de inteligir.
Por último, é evidente que Aristóteles admitiu as espécies inteligíveis. Com
efeito, neste livro, capítulo 4º, texto 1 5 ele afirma que o intelecto possível é feito por
cada um, isto é, porque recebe as espécies das coisas singulares, e no texto 1 6, a
seguir, e também no capítulo 5º, texto 1 9, afirma que o intelecto e a coisa compreen­
dida são um. Não são um, efectivamente, por natureza, mas inteligivelmente, visto
que a coisa que é compreendida junta-se e une-se ao intelecto através da sua ima­
gem. Depois, chama ao intelecto o lugar das formas ou das espécies, apenas porque
tal como um lugar recebe a coisa num local e a conserva, assim também o intelecto
recebe as espécies inteligíveis.
Deve, porém, saber-se que Avicena, no livro 6, Naturalium partibus, capítulo 6º,
considera que as espécies inteligíveis não permanecem no nosso intelecto, a não ser
quando as apreende ou produz a intelecção a partir delas. E o fundamento disto foi
porque o que quer que seja recebido no intelecto, é recebido inteligivelmente. Logo,
cessando a intelecção desaparece a espécie recebida no intelecto. Todavia, esta opi-
476 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

nião afasta-se largamente da verdade e apoia-se num argumento muito débil. São
Tomás refuta-a, além de outros, no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 74º, e em A
Verdade, questão 1 0, artigo 2º, e na Suma Teológica, parte 1 , questão 79, artigo 6º.
Com efeito, o conhecimento intelectivo é muito mais perfeito do que o sensitivo.
Portanto, se as espécies são conservadas, como proclama Avicena, serão, justa­
mente, muito mais conservadas para o intelectivo, principalmente porque o intelecto
possível é muito mais duradouro do que é próprio da matéria corpórea, que se des­
vanece lentamente e perece, na qual, enfim, se sustentam as potências sensitivas.
Depois, porque se esta posição fosse verdadeira, nenhuma razão da memória se
daria na parte intelectiva, nem nos recordaríamos que extraímos conceitos das coisas
universais, o que é contra a experiência. Leia-se, se se entender, o que acerca deste
assunto comentámos nos livros Pequenos Naturais e em A Memoria e a Reminis­
cência, capítulo 2º.
Ao argumento de Avicena deve responder-se que, se ser recebido inteligivel­
mente vale o mesmo que ser recebido de forma adequada no intelecto, sem dúvida
que as espécies inteligíveis são recebidas na nossa inteligência, inteligivelmente. Se,
de facto, é o mesmo, como ser recebido, tal como o conhecido no cognoscente, por­
que se diz que é recebido quando é apreendido, então as espécies não são assim,
porque não é necessário que sej am apreendidas quando são recebidas pelo intelecto.
Mais, as espécies escalonam-se segundo graus que manifestam os princípios do
conhecimento. No grau mais baixo, estão as espécies dos sentidos externos, que
apenas permanecem em presença do objecto e durante a sensação. No segundo, as
espécies dos sentidos internos (mas não do sentido comum), que se conservam
depois da sensação e afastado o objecto, mas, porque estão dentro do órgão corpó­
reo, enfraquecem e perecem naturalmente com a decadência da matéria. No terceiro,
as espécies inteligíveis do nosso intelecto, as quais, não existindo o objecto e ces­
sando a intelecção, permanecem, pois estão presentes no substrato em qualquer
circunstância depois de terem estado a ele fixadas, são perpétuas e indeléveis. E, não
obsta que muitas vezes abandonem o hábito das ciências e das qualidades fixas ao
intelecto ou à vontade. Com efeito, tal perda não provém da falta do substrato, mas
do desacordo e da oposição dos contrários que lhes cabem (dado que omitimos
aquela perda dos hábitos sobrenaturais que acontece por nossa culpa, através da
subtracção divina que é, por isso, desperdício da graça) . Mas as espécies, quer inte­
ligíveis, quer sensíveis, necessitam dos contrários, de outro modo não poderiam
estar ao mesmo tempo presentes as imagens de brancura e de negrura, no ar ou no
olho. O que é claramente falso, visto que avistamos ao mesmo tempo um e outro. No
quarto grau, estão as espécies do intelecto angélico, que para além de outras, em
perfeição, ficam acima da espécie do nosso intelecto, porque não foram causadas em
qualquer momento dos tempos ou dos instantes, mas incriadas desde o princípio
com os próprios anjos.

ARTIGO Ili
Solução dos argumentos do primeiro artigo

Assim se explicarão os argumentos propostos ao início da questão. Ao primeiro,


diga-se que o intelecto não pode contemplar naturezas nos fantasmas pelas razões
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão Ili, Artigo Ili 477

que referimos no artigo anterior. E, para confirmação do argumento, caso se fale do


modo de representar, que é suficiente que a potência posterior conheça a anterior,
deve dizer-se que é falso o que se assume. Nem, com efeito, o objecto é represen­
tado assim na faculdade apetitiva, para que ela própria também conheça o que é
apreendido pelo cognoscente. Mas diz-se que o objecto é nela representado, na
medida em que não pode tender para ele, a não ser que ele tenha sido preconcebido
pelo cognoscente. Pelo que é manifesto que a fantasia e o intelecto são potências
subordinadas. Não se prova com este argumento que é suficiente o objecto ser repre­
sentado pela fantasia, para ser levado imediatamente para o intelecto sem a espécie
que lhe é inerente.
Ao segundo, que é diferente a natureza da potência cognoscente e a da apetitiva,
quer por outras razões, quer porque a faculdade apetitiva é determinada para operar
a partir do conhecimento do objecto, mas a faculdade cognoscente não tem por que
seja determinada, sendo, por isso, que aquela precisa da espécie como princípio
determinante. Ao terceiro argumento, que o intelecto se junta com a espécie para a
intelecção, de maneira que é necessário que ele sej a, primeiro, excitado, ou pelo
fantasma ou pela vontade, ou por um e por outro, ou por outra causa deste tipo e
que, por isso, nem sempre usa as espécies que lhe foram consignadas, que entretanto
cessam ao inteligir; por vezes, ele usa esta espécie de preferência àquela, porque é
movido para usar de outra parte mais uma do que outra. Ao quarto, que as espécies
inteligíveis são conhecidas e manifestadas pelo intelecto através de um acto reflexo
e demonstrativo. Quando tem experiência de que intelige, reflecte-se acima do seu
acto e demonstra que tem o princípio formal da intelecção, mas conclui que este
princípio é a espécie pelos argumentos através dos quais chega a esta conclusão.
Acerca deste assunto, infra.
Ao quinto, que toda a intelecção nasce de alguma espécie inteligível, mas nem
toda é obtida da espécie própria da coisa que inteligimos. Efectivamente, muitas
vezes, da imagem e do conhecimento de uma, progredimos para o conhecimento e o
conceito de outra, quando através das coisas sensíveis alcançamos a inteligência das
substâncias separadas e de Deus. Este conhecimento é pedido pelo sentido, embora
não de modo próximo, mas remoto. De caminho se tomará claro se após os concei­
tos que formamos destas coisas, as espécies inteligíveis ficam no nosso intelecto. Ao
sexto argumento, no que diz respeito ao conhecimento que o anj o tem de si, deve
admitir-se que ele conhece através da sua essência, como ensina São Tomás, na
Suma Teológica, primeira parte, questão 59, artigo lº, em A Verdade, na questão
oitava, artigo 2º, e também São Boaventura; Durando; Ricardo, no segundo livro das
Sentenças, distinção 3 ; Egídio, no tratado O Conhecimento Angélico, questão pri­
meira; Soncinas, no livro 1 2 da Metafísica, questão 59 e muitos outros. Embora não
tenha faltado quem estimasse de modo diferente, afirmando que o anjo não pode
inteligir-se a si mesmo através da sua substância, mas que para isso possui a espécie,
tal como para a percepção de outras coisas. Deve, no entanto, afirmar-se o oposto,
isto é, que o anjo não se intelige através da espécie acima referida, pois para isso,
como o argumento conclui, a sua substância pode estar na vez da espécie. No que
efectivamente diz respeito ao conhecimento através do qual um anjo conhece os
outros, alguns pensam que qualquer anjo intelige os restantes, através das suas
essências, opinião que São Tomás atribui a Platão, no livro 2, Contra os Gentios,
478 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles

capítulo 98º. Durando examina-a, e também os nominalistas, no segundo livro das


Sentenças, distinção 3 . Não a acolhemos, porque a potência intelectiva não pode por
alguma coisa criada, como por uma forma inteligível, de uma forma activa e princi­
pal, ser determinada a inteligir, a não ser que este princípio determinante dentro dela
lhe esteja intimamente ligado, conjunção que não se encontra na substância de um só
anjo a respeito de outro. A discussão mais ampla deste assunto faz parte de outro
ponto.

QUESTÃO IV
Se as espécies inteligíveis, que são próprias das coisas singulares,
existem no nosso intelecto, ou não

ARTIGO I
Argumentos da parte negativa

Esta questão é agitada entre os filósofos com grande polémica entre as partes em
contenda. São Tomás, quer noutros pontos, quer no livro 2, Contra os Gentios,
capítulo 1 00º, e na primeira parte da Suma Teológica, questão 86, artigo 1 º; Caetano,
no mesmo passo; Capréolo, no 1 º livro das Sentenças, distinção 35, questão 2, na
solução dos argumentos contra a quarta conclusão; Argentinas, no 4º das Sentenças,
distinção 50, questão 1 , artigo 3º; o Ferrariense, no livro 1 , Contra os Gentios, capí­
tulo 65º, e neste livro, questão 1 3 , consideram que as espécies das coisas singulares
não se encontram no nosso intelecto e o mesmo observam alguns filósofos do nosso
tempo que afirmam que nada é mais alheio à doutrina peripatética do que admitir
essas espécies. Provam a sua opinião da maneira seguinte. A forma é recebida no
sujeito segundo a condição e o modo de receber, mas a alma está privada de matéria,
portanto, as espécies que nela são recebidas devem ser imateriais ao representar e,
por isso, não poderão representar condições da matéria singular, mas apenas a natu­
reza comum, delas avulsa e liberta. Também se confirma a força do argumento com
o preceito comum dos peripatéticos, que foi colhido de Aristóteles, neste livro,
capítulo 4º, texto 1 6. As coisas materiais tomam-se inteligíveis quando são abstraí­
das da matéria. Na verdade, dado que esta abstracção não deve ser interpretada como
se as coisas tivessem de ser subtraídas pelo intelecto à própria matéria de que são
compostas, tem sobretudo de ser interpretada de maneira a dizer-se que as coisas se
tomaram inteligíveis no momento em que as mentes são impressionadas pelas espé­
cies que representam, não a matéria individual, na qualidade mais grosseira e mais
baixa, mas somente a matéria comum.
Segundo argumento. O intelecto humano ocupa o lugar intermédio, entre o sen­
tido e o intelecto das substâncias separadas. Ora, as espécies que se imprimem nos
sentidos representam só os singulares, os quais no entanto são do género das subs­
tâncias separadas, e referem distintamente tanto os singulares como os universais,
como mostraram os escritores escolásticos no 2º livro das Sentenças, distinção 3.
Portanto, a ordem e a proporção das coisas determinam que as espécies que são
adquiridas pelo intelecto humano representem apenas as naturezas comuns. Acres­
cente-se que, tal como o intelecto angélico percebe distintamente através de uma
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão IV, Artigo li 4 79

única espécie, o que o nosso percebe por muitas, também é natural que o que é
conhecido pelo sentido através de muitas espécies, seja inteligido pelo nosso inte­
lecto através de uma só, o que aconteceria de outro modo, se o nosso intelecto
pudesse ser impressionado pelas imagens dos singulares.
Terceiro. É uma disposição da natureza não ter por costume fazer com muito o
que pode fazer com pouco. Ora, as espécies inteligíveis das naturezas comuns ser­
vem para compreender os singulares unidos aos seus fantasmas. Não há, portanto,
necessidade alguma de introduzir as espécies inteligíveis dos singulares. Prova-se a
premissa menor, porque tal como os fantasmas se conjugam com o intelecto agente
para produzir as espécies inteligíveis, assim também poderão conjugar-se com o
paciente, enformado já pela coisa comum, não apenas em sentido exemplar, mas
também em sentido activo, determinando-o a receber a coisa singular da qual o fan­
tasma provém, principalmente, porque nada de absurdo daí se segue.
Ú ltimo argumento. Ao preceito aristotélico opõem-se os que atribuem as espécies
das coisas singulares ao intelecto humano. É evidente o que Aristóteles ensinou,
neste livro, capítulo quarto, texto 1 0, que a nossa alma conhece a carne com a potên­
cia sensitiva, isto é, os singulares materiais afectos às qualidades sensíveis, o calor, o
frio e outras deste género. Mas é outra faculdade que percebe o próprio ser da carne,
ou uma faculdade separável, isto é, diferente daquela pela qual conhece as coisas
singulares, ou que estej a para si mesma do mesmo modo como uma linha curva que
tivesse sido estendida. Neste ponto, que muitos intérpretes referiram, Aristóteles
declara abertamente que as coisas singulares são compreendidas por nós, não direc­
tamente, mas por cognição reflexa. Mas se as espécies inteligíveis das coisas singu­
lares fossem produzidas em nós, não há dúvida que as poderíamos compreender
directamente.

ARTIGO II
Argumentos da parte afirmativa

A parte contrária desta controvérsia tem defensores. Escoto, no quarto livro das
Sentenças, distinção 45, questão 3; Gregório Ariminense, no primeiro livro, distin­
ção 3, na questão primeira, artigo 2º; Ricardo, no 2º, distinção 24, questão quarta;
Apolinário, neste livro, questão 1 2; o Tienense e Burleu, livro 1 , Física e outros.
Prova-se do modo seguinte. Nada impede que as espécies das coisas singulares se
possam dar no nosso intelecto; portanto, elas podem dar-se. Os adversários negam o
antecedente e afirmam que é incompatível, quer da parte das próprias espécies inte­
ligíveis, pois não parece consentâneo que sejam assim limitadas, de maneira a que
apenas uma a uma representem as coisas indivisas, quer da parte do intelecto possí­
vel, que é mister que seja muito pouco afectado pelas espécies circunscritas . E, no
entanto, não é difícil que se ponha termo às divergências, da seguinte maneira. Na
verdade, a espécie que representa a natureza singular é mais nobre do que aquela que
apenas significa a natureza comum; logo, aquela limitação em nada deprecia a dig­
nidade da espécie, nem a espécie da coisa singular menos do que a da coisa comum,
dado aj ustar-se mais à superioridade do intelecto. Prova-se o antecedente, porque a
superioridade da imagem, contanto que as restantes sejam iguais, resulta da coisa
que representa, mas a natureza singular é mais excelente do que a comum, visto que
as inferiores contêm em si mais graus de essência do que as superiores. Daí que, o
480 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

conceito de coisa singular seja tido como mais perfeito do que o de coisa comum.
Em seguida, prova-se assim que as referidas espécies são produzidas no nosso inte­
lecto pela própria coisa. As causas naturais, quando não impedidas, produzem um
efeito nobilíssimo, sempre que puderem; ora, o intelecto agente e o fantasma são
causas naturais das espécies inteligíveis; logo, produzem a espécie nobilíssima, que
podem produzir, se não forem impedidas. Mas a espécie nobilíssima é a espécie da
coisa singular, como está patente a partir do que aqui se afirma, e não há nada que
impeça a sua geração. Portanto, produzem-na. Outro argumento. O nosso intelecto
enforma conceitos particulares e distintos das coisas singulares, mas estes não
podem ser acessíveis sem as suas próprias espécies; por isso, as próprias espécies
das coisas singulares são produzidas. A premissa maior, embora sej a negada por
alguns, será, todavia, demonstrada por nós daqui a pouco. Por isso, recomenda-se a
menor, porque uma vez que a espécie da coisa comum somente de um modo con­
fuso e implícito representa as coisas singulares, o intelecto não poderá ser levado por
ela a conceber este singular em vez do outro, mas flutuará com um vago e errante
movimento. Há quem responda que embora, a espécie inteligível apenas refira a
natureza comum, todavia o intelecto é determinado por ela para compreender a coisa
singular, de cuj o fantasma a própria espécie é retirada por causa da afinidade que a
espécie tem com tal fantasma. Mas isto refuta-se facilmente. Com efeito, ou esta
espécie, com um direito de afinidade, representa desta maneira singular na realidade,
ou não. Se concederem o primeiro, então, no nosso intelecto já existirão as espécies
que referem não só as naturezas universais, mas também as individuais, o que, efec­
tivamente, a escola dos teólogos atribui só às espécies de substâncias separadas . Se
concederem o segundo, de forma alguma a espécie aplicará a potência intelectiva a
algum singular, de modo definido.
Outros consideram que o nosso intelecto, afectado pela imagem da natureza
comum é determinado pelo fantasma para compreender a coisa singular, do modo
que explicámos no terceiro argumento do artigo anterior. Mas, de facto, a conclusão
deles não satisfaz. Na verdade, tal como o nosso intelecto, como mostrámos acima,
não pode usar só o fantasma como princípio de inteligir, mas requer para si, inte­
riormente, o princípio conjunto e inerente do qual retira o acto de pensar (de outra
maneira, muitas vezes, para compreender as coisas singulares de modo algum teria
necessidade das espécies inteligíveis), de modo que compreende isto, melhor do que
aquilo a assistência externa do fantasma não lhe chega, mas carece do princípio
interno pelo qual é determinado activamente para ele. Não obsta que o intelecto do
bem-aventurado concorra com a divina essência para o acto da visão beatífica, visto
que a essência divina não é interior ao próprio bem-aventurado. Mas isto sucede,
como já anteriormente chamámos à atenção, porque a essência divina, em virtude da
sua infinita eminência, pode suprir esse modo de íntima conjunção, sem o qual a
espécie criada não pode concorrer com o intelecto para o acto de inteligir. Além
disso, não obsta que qualquer anjo se compreenda pela sua essência. Na verdade, a
essência do anjo está intimamente ligada ao seu intelecto, visto que o intelecto está
fixo à sua própria essência. Mas o fantasma não está assim para o nosso intelecto,
visto que aquele incide no órgão corpóreo, este na própria substância da alma. E
corrobora-se, por isso, o argumento acima, porque o conceito que através da inte­
lecção da coisa singular é gerado na mente é quase filho do próprio objecto conhe-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão IV, Anigo lll 481

cido, como ensina Santo Agostinho, no livro 9, A Trindade, capítulo 1 2º. É necessá­
rio, por esta razão, que quando este é gerado, o objecto sej a mantido na mente. Não
pode, porém, aí existir, por si, mas pela sua como que semente, que é a imagem
própria e particular dele mesmo. De facto, a espécie da coisa comum não é mais
qualidade desta do que a espécie da coisa singular é daquela.
Outro argumento. As espécies de muitas coisas singulares desprovidas de matéria
são produzidas no nosso intelecto, logo muitas vezes devem ser admitidas as espé­
cies destas coisas singulares. Prova-se o antecedente, porque aquele que obtém o
acto do amor de Deus ou a intelecção da natureza universal recorda, depois, o acto
que desta forma alcançou. Ora, toda a recordação do intelecto tem origem na espécie
inteligível. Logo, o nosso intelecto tem espécies inteligíveis que representam os
actos singulares. Não basta dizer que esta recordação não parte da memória sensi­
tiva, mas da intelectiva. Com efeito, a faculdade orgânica não apreende as coisas
espirituais, tal como o são as acções do intelecto e da vontade, visto que estão fora
dos limites do objecto da potência corpórea, nem a memória sensitiva recorda que
nós percebemos o homem em comum, visto que somente se debruça sobre as natu­
rezas singulares.
Ainda outro. A alma separada recorda-se dos sensíveis singulares através das
espécies que transporta. Logo, quando estava no corpo, possuiu as espécies inteligí­
veis desses singulares. Acolhe-se o antecedente com o exemplo do conviva rico,
mencionado no décimo sexto capítulo do Evangelho de Lucas, que nos infernos se
recordará dos seus irmãos. E este argumento prova que ele obtinha a recordação não
das espécies infundidas, mas daquelas que adquirira do ministério dos fantasmas.
Porque a recordação é a percepção da coisa conhecida, enquanto conhecida antes.
Mas o rico não tinha conhecido antes os irmãos através das espécies infundidas, mas
através das adquiridas. Por esta razão não parece que se deva negar que no nosso
intelecto são produzidas as espécies inteligíveis próprias das coisas singulares.

ARTIGO Ili
Considera-se provável a outra parte da controvérsia. Prefere-se, todavia,
a negativa como mais peripatética e resolvem-se os argumentos da outra

Discutido isto, ambas as partes da questão parecem prováveis, embora o nosso


propósito seja, de preferência, examinar a negativa, que é mais consentânea com a
doutrina aristotélica. Resolvamos, no entanto, os argumentos das duas, para que seja
facilmente compreensível como qualquer uma delas pode ser defendida. Ao pri­
meiro, a favor da afirmação anterior, concedida a premissa maior e a menor, deve
ser negada a consequência. Com efeito, não é necessário que todas as espécies inte­
ligíveis imateriais estejam no representar, mas no ser. Aristóteles, porém, no ponto
citado, ensina apenas que para que as coisas ínsitas na matéria se tomem inteligíveis
devem ser abstraídas da matéria, isto é, das condições da matéria. Porque as que são
compreendidas pelo intelecto não podem existir nele através das espécies divisíveis
ou extensas, ou fixadas num lugar, que são as próprias afecções da matéria, mas por
imagens espirituais e desprovidas de toda a matéria, para que tenham conexão com a
própria força de inteligir. São assim, efectivamente, todas as espécies inteligíveis
quer das coisas singulares, quer das comuns .
482 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles

Ao segundo argumento, dizendo que a proporção e o nexo da ordem que existe


entre o intelecto humano e o angélico, também existe entre o sentido, entendendo-se
nele que o sentido adquire só as espécies que representam os singulares, e nenhumas
espécies que representem os universais. Mas o nosso intelecto tem umas que só
representam singulares, outras que apenas representam universais, porém, no inte­
lecto angélico não existem nenhumas espécies que refiram, ou apenas singulares, ou
apenas universais, mas todas exprimem distintamente, em conjunto, os singulares e
os universais. À parte restante deste mesmo argumento, responde-se que o sentido
conhece através de muitas espécies, mas que o nosso intelecto conhece, confusa­
mente, através de uma espécie. Na verdade, por exemplo, a cor em geral, ele inte­
lige-a através da espécie da cor, por cujo conhecimento implícita e confusamente
compreende todas as cores. Mas para além deste conhecimento confuso das cores
uma a uma, o intelecto persegue outro, também próprio e expresso através das espé­
cies das cores uma a uma, que não pode obter só através de uma imagem, pois isso
apenas diz respeito às espécies dos anjos. Se, porém, se pretender que umas vezes o
intelecto adquire as espécies das coisas uma a uma, outras vezes as das comuns,
respondemos que adquire as espécies das coisas uma a uma por benefício do inte­
lecto agente e por obra dos fantasmas. E também as espécies das coisas comuns
quando, depois de recebida a espécie da coisa singular, abstrai dela a natureza
comum, recebendo-a, certamente, sem as diferenças individuais. Então, de facto, a
espécie de natureza comum nasce da concepção gerada no intelecto, porque o con­
ceito é a semelhança actual da coisa e desta semelhança actual é deixada na potência
a semelhança habitual, assim como, pelo concurso da conclusão, que é ciência
actual, se gera o hábito de conhecer ou a ciência habitual.
Ao terceiro, concedida a premissa maior, deve ser negada a menor e para sua
prova impugnar que o fantasma possa concorrer activamente com o intelecto possí­
vel para a intelecção da coisa singular, pela causa que acima explicámos, porque,
evidentemente, é necessário que o princípio que provoca a intelecção não esteja fora
do intelecto. Na verdade, embora o fantasma, como fâmulo, se acrescente ao inte­
lecto possível, fornecendo-lhe a seu modo as espécies inteligíveis, é todavia muito
pouco conveniente que o intelecto possível, depois da recepção das espécies, seja,
deste modo, intlectido para o sentido e impelido para o órgão corpóreo, a fim de
produzir a mais nobre e suprema operação livre de matéria, que é a intelecção.
Ao último, dizemos que aquele ponto é explicado por outros, de modo diverso.
De tal forma que, aí, de modo algum se fala de cognição directa ou reflexa. Mas,
dado que Aristóteles questionara se conhecemos a coisa singular sensível e a sua
natureza comum com uma mesma potência ou com uma potência diversa, respon­
demos que a alma percebe a coisa singular sensível com a potência sensitiva, a
comum, no entanto, com outra ou separável, isto é, realmente diferente daquela pela
qual conhece a singular ou que está para si própria como a linha recta que tivesse
sido uma linha curva, isto é, que ao menos racionalmente (na verdade, sobre a dis­
tinção real, ainda não se pronunciou em sentido absoluto) se distingue dela tal como
uma linha encurvada, quando é estendida, é claramente a mesma, na realidade. Pode,
efectivamente, a mesma linha ser quebrada e prolongada, todavia distingue-se por si,
pela razão. Assim, efectivamente (segundo esta interpretação), Aristóteles trouxe de
novo a comparação da linha recta e da linha encurvada, não para o conhecimento
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão IV, Artigo /li 483

reflexo e directo, mas para a diferença entre a potência com que se conhece o sin­
gular e o universal, sobre a qual versava a questão. Donde resulta que, aí, nada é
totalmente considerado acerca do modo e da ordem, no que respeita à natureza sin­
gular e universal de conhecer.
Esta explicação resolve facilmente todo a máquina do argumento em que se
apoiam sobretudo os que opinam que os singulares são inteligidos por nós de modo
reflexo. Nem, como dizem alguns, a afirmação está no Timeu de Platão, que Aristó­
teles imitou ali, que os singulares são percebidos reflexamente por nós. De facto,
quando Platão recorda o conhecimento reflexo e compara as acções do intelecto
primeiramente à linha recta, a seguir ao círculo e, no interior, ao que retoma, não
filosofa sobre o conhecimento das coisas singulares. Ele fá-lo antes acerca daquilo
pelo qual a mente do homem no caminho correcto para alcançar a ciência de outras
coisas, como que primeiro sai para fora de si, depois, avisada pelo oráculo, volta a
si, aplicando-se no conhecimento de si próprio. Por causa disto, os filósofos costu­
mam chamar à alma que faz um círculo sobre si mesma da esfera intelectual. É por
esta razão que Hugo de S. Vítor observa o seguinte, no Didascalicon, capítulo 2º. A
nossa mente concentra o movimento em dois orbes, quer porque através dos sentidos
sai em direcção aos sensíveis, quer porque através da inteligência ascende para as
coisas que os sentidos abandonam; revira-se trazendo para si as semelhanças das
coisas. Ou deve dizer-se, como Filópono interpreta, que Platão como que por
enigma significou, através da linha curva, de modo indefinido, as acções do inte­
lecto, que em si próprio tem o poder de debruçar-se sobre si mesmo; e pela linha
recta as restantes funções vitais, que não são senão um certo caminho da alma vivifi­
cante para algo ou para aquilo que sustenta a vida, isto é, para o corpo, tal como a
linha recta a partir de um ponto acaba noutro.
Vamos explicar agora os argumentos da parte afirmativa. Ao primeiro, deve
negar-se o antecedente, e para sua prova deve dizer-se que a espécie que representa a
coisa singular é, numa parte, mais nobre, isto é, enquanto refere a natureza que con­
tém em si vários graus, como prova o argumento, mas noutra parte é considerada de
conhecimento bastante fraco, designadamente enquanto está limitada a um só sin­
gular. Porém, a espécie da coisa universal não só representa a natureza comum a
muitas coisas como pode dedicar-se ao conhecimento de todos os singulares sob
uma mesma espécie em conjunto com os seus fantasmas, como é dito no terceiro
argumento do primeiro artigo.
Ao segundo, deve responder-se que a espécie própria da coisa indivisível não é
um efeito absolutamente eminente que o intelecto agente pode produzir, quer por
causa da limitação referida, quer porque, para não produzir a espécie deste modo,
opõe-se o engenho da própria natureza, que não costuma produzir com mais quando
pode produzir com menos. Mas o intelecto paciente pode inteligir as naturezas sin­
gulares através das espécies das coisas comuns, ajudado pelo concurso dos fantas­
mas .
484 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Ao terceiro argumento, concedida a premissa maior, deve ser negada a menor. E


para a sua prova, omitida a primeira solução, perfeitamente demonstrada, deve ser
concedida a segunda, e dizer-se que embora o intelecto não seja determinado para o
conceito de algo singular apenas pela espécie inteligível que recebe em si, ele é
todavia determinado por ela, porquanto se j unta com o fantasma da coisa singular.
Para responder à impugnação deste assunto deve responder-se que quando dizemos
que o fantasma não pode dedicar-se ao intelecto como princípio de inteligir, deve
interpretar-se que isso foi compreendido em relação ao princípio adequado, ou
agente principal e determinante, o qual não é considerado um fantasma por aqueles
que dizem que o intelecto é determinado por ele para conceber as coisas singulares.
De facto, apenas foi estabelecido para suprir a representação da singularidade e das
condições individuais. As restantes afirmações defendidas no mesmo argumento,
acerca da visão beatífica e do conhecimento do anjo, nada concluem contra isto que
examinámos, como será já claro para quem analisa. Na verdade, a união da essência
divina com o intelecto do bem-aventurado contém de modo eminente aquela con­
junção que reclamámos no princípio, a qual actualiza o intelecto adequada e princi­
palmente. Ora, a essência do anjo que se intelige está intimamente unida pela sua
essência ao intelecto dele, visto que o intelecto é inerente à sua própria essência, mas
o fantasma não está assim para o intelecto, visto que aquele incide no órgão corpó­
reo, este na alma. Por fim, em relação à citação de Santo Agostinho, deve estabele­
cer-se que o conceito é filho do objecto, mas negar-se que para produzir o conceito
da coisa singular se requeira a espécie inteligível própria da coisa singular. Embora,
de facto, a espécie inteligível nada represente explicitamente de singular, todavia é
determinada pelo fantasma e, por isso, o conceito de coisa singular é considerado
filho do objecto, de que é o próprio fantasma.
Ao quarto argumento, dizendo que quando, por exemplo, alguém atinge o con­
ceito de homem, aquela espécie, que antes, quando primeiro foi produzida para o
intelecto possível, representava o homem em absoluto, depois desse conceito,
enquanto rememorativa, refere o mesmo homem sob a razão do que é conhecido. E,
assim, efectivamente, para que alguém se recorde que conheceu um homem não é
necessário que a espécie que representa aquele conceito singular, pelo qual tinha
apreendido um homem, permaneça no intelecto. Basta, na verdade, que a mesma
espécie de homem seja modificada para representar o homem sob a razão do que é
conhecido. Porque se o conhecimento diz respeito a uma coisa indivisa material,
como do Bucéfalo, quando, depois, o intelecto se recordar que conheceu Bucéfalo,
esta recordação não será adequada à espécie de cavalo, posto que não foi a primeira
concepção, mas inadequada, isto é, parte será dele, parte do fantasma que representa
Bucéfalo sob a razão que é conhecido. Com efeito, quando o intelecto, primeiro,
apreende Bucéfalo, a fantasia apreende o mesmo, ao mesmo tempo. Isto, porque a
espécie do Bucéfalo, que foi conservada na fantasia, após a primeira apreensão,
representa-o sob a razão que é conhecido. Por isso é que, depois, o fantasma por ela
obtido exibe Bucéfalo, igualmente sob a razão conhecida e determina o intelecto
para o apreender do mesmo modo. Se, porém, a concepção é própria da coisa indi­
visa imaterial, vi sto que ela não pode ser representada no fantasma, a dificuldade é
maior. Deve dizer-se, contudo, que todas as vezes que o intelecto apreende algo de
singular, a fantasia apreende ao mesmo tempo algo material, mas afim e semelhante
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, Artigo Ili 485

à coisa imaterial, como no decurso desta obra expomos. Portanto, a partir da espécie
rememorativa da coisa apreendida pelo fantasma, por ela obtida a partir dele, a espé­
cie poderá ser determinada, já que o intelecto antes obtivera o conceito referido da
coisa indivisa imaterial. É assim que o intelecto sem a espécie própria das coisas
singulares, quer estas sejam coisas materiais, quer imateriais, pode produzir a recor­
dação delas.
Ao quinto argumento, abandonada a opinião de alguns, referidos por Caetano na
1 ª parte, Suma Teológica, questão 79, artigo 6º, que afirmam que a alma separada
conhece os singulares através das espécies adquiridas ou que levou de cá, deve res­
ponder-se com São Tomás, nas Questões Disputadas sobre a Alma, artigo 20º e na
parte 1 , Suma Teológica, questão 89, artigo 4º; com Caetano, no mesmo lugar; com
o Ferrariense, ao capítulo 74º, do livro 2, Contra os Gentios; com o Abulense, ao
capítulo 25º de Mateus, questões 607 e 6 1 0 e outros, que a alma separada conhece os
singulares através das espécies que lhe foram incutidas, ao afastar-se do corpo, e que
as espécies são iguais àquelas que os anjos receberam da primeira origem; na ver­
dade, elas representam não só os universais, mas também os singulares. E, do
mesmo modo que, nos anjos, as espécies inteligíveis que por si indiscriminadamente
representam com propriedade os singulares, são determinadas para estes, e aquelas
determinadas para significar os singulares em acto, quando eles existem em acto; tal
como a existência é condição para determinar a espécie desses singulares, assim
também na alma separada, as espécies que representam universalmente e, além
disso, as que existem de igual modo para todas as coisas suas significadas, são
determinadas para certos singulares, que pertencem ao estado da alma. Isto porque a
alma recebe em vista deles um hábito particular, quer por alguma afecção, quer por
um conhecimento anterior, quer por ordenação divina, ou algo semelhante. A alma
do homem rico mantinha o hábito em relação aos irmãos que deixara entre os vivos.
A isto, efectivamente, deve dizer-se o que o argumento em seguida opunha, que
embora a recordação seja própria da coisa conhecida, tal como foi conhecida, uma
vez repetido o conhecimento, não é necessário que este sej a repetido a partir da
mesma espécie. Com efeito, é suficiente que sej a alcançado de outra espécie,
suposto o conhecimento anterior, o que deveremos explicar no Tratado da Alma
Separada, de modo mais claro.
Assim, é evidente por que razão, devem ser resolvidos os argumentos de ambas
as partes. Porque, como acima advertimos, consideramos que a parte que nega que
são produzidas espécies das coisas singulares, é vista como mais consentânea com a
doutrina aristotélica, como também defendemos no primeiro livro das Lições da
Física. A ela ajustaremos o nexo da doutrina nos nossos comentários. Na solução
dos argumentos referimos os que são aduzidos a seu favor, caso se oponham àqueles
que estabelecemos noutro lugar, para que devam aceitar-se as afirmações a partir dos
argumentos dos adversários.
486 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

QUESTÃO V
Se as espécies inteligíveis são produzidas pelo intelecto agente

ARTIGO !
Rejeitadas as opiniões de uns, estabelecem-se algumas asserções

A opinião de Demócrito, nesta questão foi, como refere Santo Agostinho, na


Epístola a Dióscoro, e Aristóteles, no livro O Sono e a Vigília, capítulo 2º, que
nenhuma espécie é gerada pelo intelecto agente ou paciente, mas que a partir dos
próprios corpos, através de uns certos fluxos, entram imagens nos nossos espíritos.
Também foi a opinião dos estóicos, que Boécio no livro 5 de A Consolação da Filo­
sofia, no metro 8, cantou deste modo:
Outrora o Pórtico nos deu
Quão obscuros e sábios anciãos !
Eles eram capazes de crer que as imagens sensíveis,
Exalando-se da superfície dos corpos ,
Gravavam-se n a s nossas almas
Tal como o estilete
Traça a cera na tabuinha
Assim sem nenhuma inscrição,
Recobrindo-a de símbolos.

O absurdo desta opinião é evidente, tendo em conta o que discutimos acima,


quando mostrámos que o fantasma não pode, por sua própria capacidade, produzir a
espécie inteligível. Se, efectivamente, o fantasma não pode fazê-lo, muito menos
poderão os próprios corpos, que são dotados de natureza muito mais espessa e estão
muitos mais imersos na matéria. Também não obsta que muitos e importantes teólo­
gos considerem que os anjos recebem das coisas, também sensíveis, as espécies,
através das quais conhecem os singulares, ou, muitas vezes, os chamados contin­
gentes, que concernem a cada uma das coisas. Com efeito, estes autores não crêem
que essas espécies se transfiram para o intelecto do anjo imediatamente a partir das
cores, por exemplo. Mas que o intelecto agente dele, juntamente com as espécies
sensíveis das cores (tal como no nosso intelecto sucede com os fantasmas) produz as
espécies inteligíveis delas, para o intelecto possível. Acerca deste assunto, leia-se,
caso se entenda, o Alense, na parte 2 da Suma Teológica, questão 26, membro 2;
São Boaventura, no 2º livro das Sentenças, distinção 3, artigo 2º, questão primeira;
Ricardo, na mesma distinção, artigo 6º, questão 2; Escoto, questão 1 1 ; Gregório,
distinção 7, questão 5, artigo l º.
Outra foi a opinião de Platão no Ménon e noutros lugares; de Avicena, no livro 6
dos Naturais, parte 5, capítulos 6º e 7°, que consideram que as espécies inteligíveis
afluem das substâncias separadas para a mente humana. Todavia, com a diferença de
que estas substâncias, em Platão, eram as ideias, em A vicena, as inteligências, desde
a primeira de entre elas para a seguinte e, assim sucessivamente até à última inteli­
gência, a que chamava agente. As referidas espécies desciam destas substâncias para
o intelecto humano. Além disso, Platão representou as espécies presas à alma desde
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, A rtigo l 487

o primeiro nascimento; Avicena, transmitidas no decurso dos tempos; Platão, fixas


na alma, Avicena, desaparecendo após o acto de pensar, como já acima referimos.
Também São Tomás refuta este erro, na parte 1ª da Suma Teológica, questão 84,
artigo 4°, porque se o nosso conhecimento se desse assim, um cego de nascença,
através de imagens desse tipo, poderia ter conhecimento das cores, o que a experiên­
cia nega. Depois, porque se as espécies chegam à alma racional de outro lado, em
vão ela empreenderia a associação com o corpo, mas empreende-a a tal ponto que
adquire as espécies pelo ministério dos sentidos. Mas acerca deste assunto, de cami­
nho, trataremos de forma mais abundante e esclarecida.
Excluídos, portanto, estes erros deve afirmar-se com a escola peripatética, que as
espécies inteligíveis são produzidas pelo intelecto humano para a alma, quando está
unida ao corpo, como é claro segundo o que Aristóteles discutiu no capítulo 5º deste
livro. Mas como o intelecto é, em nós, duplo, agente e paciente, explicaremos
mediante algumas asserções se estas espécies são produzidas por aquele intelecto.
Seja a primeira. Podem ser produzidas pelo intelecto agente as espécies inteligíveis
apenas das coisas, e de todas elas, de que possuímos os próprios fantasmas. Esta
afirmação, que foi acolhida pelo consenso comum dos filósofos, prova-se, porque o
intelecto agente não obtém as espécies a não ser juntamente com os fantasmas e
consoante é determinado por eles, como consta do que acima dissemos e ensina
Santo Agostinho, no livro 1 1 , A Trindade, capítulo 8º, quando afirma que nenhuma
espécie é produzida no intelecto a não ser por intercessão do sentido. Também nada
impede que o intelecto possa associar-se com todos os fantasmas, indiscriminada­
mente, para produzir as espécies inteligíveis.
Segunda asserção. As espécies de todas as substâncias corpóreas podem ser gera­
das pelo intelecto agente. Subsiste uma dúvida, entre os filósofos, sobre a verdade
desta afirmação.Com efeito, há três opiniões sobre o assunto. A primeira de Escoto,
no 1 º livro das Sentenças, distinção 3, questão 1 ; Ricardo, no 2º, distinção 24, ques­
tão 3, acerca do 3º principal ; Herveu, Quodlibet 3, artigo 1 2º ao 4°, que consideram
que não é produzida pelo intelecto, quer agente, quer paciente, nesta vida, a espécie
inteligível própria de alguma substância. Outros consideram que se dá uma espécie
deste tipo, também produzida pelo intelecto agente, ainda que não cheguem inteira­
mente a acordo entre si. Na verdade, Javelo, no livro 7 da Metafísica, questão 3, e
Soncinas, no mesmo livro, questão 54, acreditam que o intelecto agente forma uma
espécie dupla com o fantasma do acidente, uma do acidente outra da substância que
tinha sido envolvida pelo acidente. Isso porquanto aquele fantasma era instrumento
da substância a que tal acidente estava fixo e poderia procriar, por sua capacidade,
não só a sua imagem, mas também a imagem da substância. Mas São Tomás, em A
Verdade, questão 1 0, artigo 5°, e no livro 2, Posteriores, texto 27 e opúsculo 29;
Averróis, no livro 2 desta obra, comentário 63 ; Janduno, livro 1, questão 10; o Ferra­
riense, livro 3, questão 3 ; Apolinário, questão 1 2; Abulense, no capítulo 25º de
Mateus, questão 608 ; Caetano, 3ª parte da Suma Teológica, questão 76, artigo 7º e
alguns outros, pensam que a faculdade cogitativa do homem, que nós não distingui­
mos da fantasia, exprime a própria imagem da substância singular. Esta opinião
parece-nos conforme. Na verdade, visto que é muito mais eficaz avançar de um
singular para a outro, do que pôr a descoberto o próprio fantasma da substância a
partir do invólucro dos acidentes, dado que o primeiro é concedido à faculdade
488 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

cogitativa do homem, como mostrámos acima, não há razão para que o segundo lhe
seja recusado. Aristóteles é plenamente favorável, neste livro, capítulo 4º, texto 1 0,
quando diz que conhecer esta carne singular pertence à potência sensitiva. Também
Santo Agostinho, no livro 10, A Trindade, capítulo 1 0º, quando atribui o conhe­
cimento dos corpos à faculdade imaginativa. Não acreditamos, contudo, que a cogi­
tativa, quando recebe primeiro a espécie do acidente retire imediatamente a imagem
expressa da substância nele latente, mas que, chegado em primeiro lugar, apreende
tal acidente, e depois penetra no conhecimento da substância a partir da sua pré­
-noção. E assim, consideramos que as espécies das substâncias corpóreas são
produzidas pelo intelecto agente, com o argumento de que nada obsta a que forme­
mos os seus fantasmas, visto que o intelecto agente se apresenta junto com eles. Mas
que o intelecto agente não retira a espécie da substância a partir do fantasma do
acidente, como pensam os autores acima referidos, demonstra-se assim. Porque, tal
como o fantasma do acidente não representa directamente e por si senão o acidente
para o qual é determinado pela sua natureza, assim também não parece que possa
concorrer por si mesmo a não ser para produzir a imagem do acidente, ainda que a
fantasia possa, a partir dele, ao investir, pôr a descoberto a imagem da substância
singular. Porém, esta nossa segunda asserção tem de ser compreendida no que res­
peita aos próprios compostos. Na verdade, certas partes deles, como as diferenças
metafísicas, dado que se escondem em lugar recôndito, não caem sob o conheci­
mento dos sentidos internos.
Terceira asserção. As espécies inteligíveis de todas as quantidades corporais
podem ser geradas pelo intelecto agente. É uma asserção recomendável, porque
nenhuma quantidade corporal ultrapassa o poder de compreensão sobretudo da fan­
tasia humana. E, daí, a fantasia pode formar a imagem de todas elas. Se alguém, por
acaso, duvidar sobre o tempo, que escapa às restantes quantidades, não o deve no
entanto fazer, visto que a memória e a reminiscência que, com propriedade, se ade­
quam ao sentido interno, versam sobre o passado. Como no livro A Memória, capí­
tulo primeiro, Aristóteles diz: uma vez que o passado é conhecido e para que o
tempo seja apreendido pertence-lhe as diferenças entre passado e futuro. Teófilo
todavia, neste livro, ao texto 22, afirma que a fantasia não compreende o próprio
tempo, nem a razão do que em si passou, mas as coisas que existiram no tempo
passado. E o mesmo parece que considera Temístio. Todavia, parece-nos melhor o
contrário, principalmente se se falar acerca da fantasia humana, sobre a qual tratá­
mos na conclusão. Acrescentamos nesta conclusão a partícula sobre as coisas corpo­
rais, por causa das quantidades espirituais, porque é evidente que estas não são com­
preendidas pelo sentido interno, como é o caso da duração do seu movimento, cuja
extensão em contínua sucessão, por exemplo, ganha o modo de ser da justiça na
vontade, o que considerámos noutro ponto que pode ser possível .
Quarta asserção. As espécies inteligíveis das qualidades materiais, quer por si,
quer diversamente pelos sensíveis podem ser produzidas pelo intelecto agente. Esta
afirmação é evidente, porque todas as qualidades deste tipo vêm da fantasia para o
conhecimento, visto que são sensíveis na realidade. Não estendemos a asserção a
todas as qualidades materiais, porque algumas são inerentes ao órgão corpóreo, são
portanto, materiais, não percebidas por nenhum sentido interno, tal como as espécies
sensíveis da fantasia e do hábito, quer das virtudes, quer dos vícios e de um e de
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, A rtigo / 489

outro apetite sensitivo. Estas, como mostrámos de caminho, não costumam ser per­
cebidas, a não ser pela potência que se reflecte, primeiro, acima do seu acto; depois,
acima do hábito do qual provém o acto. De facto, nenhum sentido se reflecte acima
do próprio acto.
Quinta asserção. As espécies inteligíveis de muitas relações podem ser produzi­
das pelo intelecto agente. Esta afirmação demonstra-se, porque a fantasia, também
dos animais, representa a imagem da amizade e do ódio e a relação de certas outras,
como a da diversidade e semelhança entre alguns objectos. Todavia, esta afirmação
é um pouco ambígua, porque, talvez o sentido interior não apreenda formalmente as
próprias relações em si, mas os seus fundamentos. Não há, no entanto, dúvida que
muitas relações são produzidas, mesmo materiais, em que a fantasia não segue o
conhecimento, dado que muitas provêm, também, da força do intelecto. Há, no
entanto, quem oponha que o objecto concorre activamente para gerar a espécie, mas
que nem a relação, nem a quantidade podem concorrer activamente, visto que não
possuem nenhuma potência de agir, como mostrámos nos livros da Física. Portanto,
nem a relação, nem a quantidade, podem obter para si, uma espécie própria. A favor
da solução, tem de se advertir que a relação e a quantidade não produzem, imedia­
tamente, as espécies para os sentidos externos (porquanto a quantidade não seja
sensível próprio, mas comum, porque apenas modifica a espécie. A relação, contudo
nem é sensível próprio, nem comum). E que a espécie é obtida pelo benefício da
fantasia, que se põe a descoberto e que forma a imagem delas, com a qual o intelecto
agente concorre para produzir a espécie inteligível. Embora, porém, o concurso
desta e também da parte da imagem sej a activo, tal como o concurso da espécie
inteligível para obter um conceito, não se deve, no entanto, afirmar que a relação ou
a quantidade possui em si alguma faculdade de agir, ainda que a sua espécie tenha
essa faculdade. O que, de modo algum, é motivo de admiração, visto que a espécie
transita para a categoria melhor, isto é, a da qualidade, para a qual quase só é conve­
niente que exista o princípio imediato de agir, como a partir do livro segundo da
Física afirmámos. E, assim, esta consequência não é válida, a espécie da relação ou
da quantidade age, logo a relação ou a quantidade têm em si a faculdade de agir.
Quando, porém, neste ponto, dizemos que os simulacros das relações são produzidos
pela fantasia, não acerca de todas as relações, mas somente daquelas que de modo
algum ultrapassam a faculdade do sentido interno, pretendemos que isso deve ser
entendido não sobre todas as relações, mas somente sobre as que de modo algum
ultrapassam a faculdade do sentido interno.
Sexta asserção. As espécies inteligíveis das paixões e de muitas acções corporais
podem ser produzidas pelo intelecto agente. Mas não de todas. Quanto à primeira
parte isto é evidente. Porque o calor, por exemplo, e o frio, e muitas outras acções e
paixões deste género, são percebidas, não só pelo sentido interno, mas também pelo
externo. No que respeita à seguinte demonstra-se, porque muitas vezes as operações
da fantasia não podem ser por ela apreendidas, visto que nenhuma potência incidente
no órgão corpóreo se reflecte acima do seu acto, como há pouco dissemos.
Sétima asserção. As espécies inteligíveis das coisas que respeitam às restantes
quatro categorias (se todavia se acolher a eviternidade dos anjos e outras durações
espirituais, a partir da opinião daqueles, que a estabelecem na categoria «quando», o
490 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

que noutro ponto examinámos) podem ser obtidas pelo intelecto agente, dado que os
seus distintos objectos se apresentam aos primeiros sentidos.

ARTIGO II
Transmitem-se outras asserções acerca das espécies
geradas apenas pelo intelecto possível

Discutimos acerca das espécies que são produzidas pelo intelecto agente. A
seguir, argumentamos sobre aquelas que são geradas apenas pelo intelecto paciente.
Seja a 8ª asserção. As espécies dos géneros, se forem removidos os impedimentos,
são produzidas apenas pelo intelecto paciente. Acolhe-se esta razão porque, como
ensinámos na Física, se nada faltar ou se opuser, aquilo que primeiro é percebido,
tanto pelo sentido externo como pelo interno, é o singular sensível da ínfima espé­
cie, da qual o fantasma, junto com o intelecto agente, apenas produz a imagem inte­
ligível da ínfima espécie. Por isso, se se tem de obter uma imagem inteligível que
refira a natureza genérica, será necessário que se dê a operação do intelecto possível,
que abstrai a natureza genérica da natureza específica, a partir de cuj a concepção se
terá de abandonar a imagem que representa a mesma natureza genérica. Na verdade,
embora se costume duvidar se da imagem da ínfima espécie se pode obter o con­
ceito, não só da natureza específica, mas também da genérica, através da qual a
imagem da natureza genérica é produzida no intelecto, não deve, todavia, duvidar-se
deste assunto; porque, embora a imagem própria da espécie apenas exprima a espé­
cie formalmente e de modo adequado, não obstante também representa as naturezas
superiores, com propriedade ou de modo inadequado e esta representação é sufi­
ciente para que, a partir dela, sej am recebidos os conceitos dos géneros. Isto é o que
afirmam não só São Tomás, mas também Escoto; Liqueto, no lº livro das Sentenças,
distinção 3, questão 6; Bárgio, distinção 3, questão primeira; António Andreas, no
livro 7 da Metafísica, questão 1 3 ; Trombeta, no livro 7 da Metafísica, questão 8 .
Também h á quem, contra a mesma conclusão, afirme que nada impede que as
espécies inteligíveis possam ser produzidas a partir dos géneros pelo intelecto
agente. De entre estes estão Escoto, no livro 2 das Sentenças, distinção 3, questão
primeira; Liqueto, no 1 º livro, distinção 3, questão 2. Pode, todavia, confirmar-se
isso, primeiro, porque o fantasma deste homem representa também, adequadamente,
este animal, tal como a espécie do homem representa o animal em comum. Não é
claro, por que razão um tal fantasma, visto que representa este animal, não pode
juntar-se com o intelecto agente para produzir a espécie do animal. Depois, é neces­
sário que o que intelige contemple os fantasmas. Portanto, enquanto o intelecto
apreende o animal, ao mesmo tempo a fantasia formará a imagem deste animal. Isto,
removidos os impedimentos. Portanto, etc. Além disso, a opinião contrária, que
estabelecemos na nossa conclusão, é comum e bastante verosímil. Na verdade, que a
espécie em primeiro lugar gerada pelo intelecto agente, se nada obstar, não é a espé­
cie do género, conclui-se, quer por outros argumentos, quer sobretudo por aquele
que diz que toda a causa natural, se nada faltar ou obstar, produz primeiro o efeito
mais nobre que puder. Ora, a imagem que representa o homem é efeito mais nobre
do que a do animal. E que, depois da produção da primeira espécie pelo intelecto
agente e pelo fantasma não é gerada outra espécie própria do animal, demonstra-se,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, Artigo li 491

porque, como ensina Aristóteles, livro 8 da Física, capítulo 6º, texto 5 3 , aquilo que é
de um mesmo modo produz somente o mesmo. Por isso, não só o intelecto agente,
mas também o fantasma, geraram primeiro um tipo de natureza específica e não há
razão para que depois não gerem outro. Mas ao primeiro argumento da parte contrá­
ria, deve responder-se que não é suficiente aquela representação virtual para que,
além disso, o intelecto e o fantasma produzam a espécie do animal, pois as razões a
seguir aduzidas mostram que deve ser o contrário. Ao segundo, deve dizer-se que,
tal como se diz que o que intelige observa os fantasmas, é bastante que seja perce­
bido pela fantasia algo indiviso contido sob uma natureza comum, como Sócrates,
quando concebe um animal.
Nona asserção. À s vezes o intelecto possível produz imagens inteligíveis das
espécies ínfimas. Isso é evidente, porque após a espécie da natureza humana ter sido
produzida pelo intelecto agente, por exemplo, e o intelecto paciente ter dela tomado
conhecimento, pode, depois, a partir da mesma imagem, obter o conceito de alguma
propriedade pertencente ao homem, como a capacidade de rir. Por isso, a partir
daquele conceito a imagem de tal propriedade inteligível permanece no intelecto. E
inversamente, depois de recebida a imagem daquele acidente no intelecto, próprio de
alguma natureza específica, pode o intelecto paciente, a partir dela, extrair o con­
ceito de tal natureza específica, através do qual produza a espécie inteligível própria
e a ele adequada.
Costuma-se perguntar se as espécies intuitivas são produzidas no nosso intelecto,
isto é, as que por si mesmas representam, de forma determinada a coisa sob o ser do
momento presente, e outras condições de individuação e de que forma somos para
elas levados através do conhecimento intuitivo. Seja a décima asserção. No presente
estado da vida não são produzidas, no nosso intelecto, as espécies intuitivas. Esta
asserção é consentânea com a doutrina dos que consideram que não são produzidas
pelo nosso intelecto espécies das coisas singulares, como supra, quando acolhemos,
de preferência, a doutrina peripatética. Na verdade, como só as coisas singulares
caem sob o conhecimento intuitivo, se as suas espécies não são produzidas em nós, é
evidente que não são produzidas as espécies, que, por si, primeiramente estão fora
do conhecimento intuitivo. Dissemos, no presente estado da vida, porque as espécies
que são infundidas na alma, com o afastamento do corpo, servem-na, por si, tanto
para o conhecimento abstracto, como para o intuitivo, tal como as espécies do anjo
não criadas desde a primeira origem, como se colhe de São Tomás, na primeira parte
da Suma Teológica, questão 89, artigo 4º, e questão 1 9, A Verdade, artigo 2º, e
questão única sobre A Alma, artigo 20º, mas o tema era sempre sobre o conheci­
mento dos anjos, através das espécies incutidas em relação às coisas singulares.
Não deve contudo negar-se que, no presente estado da vida, se pode dar no inte­
lecto algum conhecimento intuitivo. Embora, de facto, não exista nenhuma espécie
que represente intuitivamente a coisa a partir de si, pode, todavia, ser determinada
pelo fantasma, o qual apresenta a coisa, sob o ser da presença e de outras condições
individuais. De tal modo que obtenha o conhecimento da coisa singular nas condi­
ções há pouco mencionadas, conhecimento que será, sem dúvida, intuitivo. Por isso
não aprovamos a opinião de Capréolo, no 2º livro das Sentenças, distinção 23,
questão única, artigo 3º; de Durando, na questão 3 do Prólogo, artigo 2º; de Bassó­
lio, no mesmo ponto, questão primeira, e de outros que negam esse conhecimento ao
492 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

nosso intelecto, que Ockham, na questão primeira do prólogo; Gregório, no primeiro


livro das Sentenças, distinção 3, artigo 1 º; Soto, no livro da Suma, capítulo 3º e
muitos outros atribuem. Se alguém objectar que se for produzido no intelecto aquele
conhecimento, que recolhemos quando Pedro está presente, uma vez que com os
olhos fechados o intelecto pode conservar esse conhecimento, se segue que uma e a
mesma cognição é quer intuitiva, quer abstractiva. Certamente que o referido conhe­
cimento enquanto era levado para Pedro quando ele estava presente, era como
dizíamos, intuitivo, mas depois, não se mostrando essa presença, começou a ser
abstractivo. A esta objecção deve responder-se, primeiro, que se ela alcança alguma
coisa, também conclui que não é produzido no sentido interno qualquer conheci­
mento intuitivo, pois pode igualmente objectar-se que, com os olhos fechados, o
mesmo conhecimento da fantasia, através da qual somos levados para Pedro pre­
sente, pode ser por nós continuada. Respondemos, porém, que na situação em causa
não se conserva o mesmo conhecimento, mas que sendo afastado o primeiro na
totalidade, quer quanto à realidade, quer quanto à formalidade, ergue-se novamente
outro, que é abstractivo. Ou que, decerto, conservada a realidade do primeiro
advém-lhe uma nova forma, através da qual é reposta na espécie do conhecimento
abstractivo. Homens doutos admitem em certas acções morais a mutação das razões
formais, sob a mesma comum realidade.
Mas não deve ser ainda omitida uma dúvida, segundo a qual é possível que uma
mesma imagem, já inteligível para o intelecto, já sensível para o sentido interno,
sirva para conhecimentos diferentes em espécie, tais como o intuitivo e o abstrac­
tivo. Há quem considere que não se obtém outro conhecimento pela mesma imagem,
mas que, cessando a cognição intuitiva, imediatamente desaparece a imagem pela
qual ele é originado, e que o conhecimento abstractivo não se manifesta a não ser
por outro de natureza diferente que subsiste na potência. Todavia, esta opinião não
colhe, pela razão de que multiplica uma coisa sem necessidade. Com efeito, nada
obsta que da mesma espécie inteligível, tal como da mesma potência, provenham
acções distintas em espécie, como pensa (o que já acima referimos) São Tomás,
acerca das espécies, tanto das almas separadas como dos anjos. De facto, ele pensa
que as almas separadas e os anjos conhecem abstractivamente as coisas através das
mesmas espécies antes de aquelas existirem e, intuitivamente, quando já existem.
Além disso, o anj o obtém o conceito de homem e de leão a partir da mesma espécie,
conceitos que porém se distinguem em espécie. Acrescenta que as espécies inteligí­
veis, que foram gravadas no mesmo intelecto, permanecem nele perpetuamente, e
são totalmente indeléveis, como ensina o referido Santo Doutor, na primeira parte da
Suma Teológica, questão 89, artigo 5º, e no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 74º.
Nem é, com efeito, próprio da sua dignidade só serem conservadas durante o conhe­
cimento e estando o objecto presente, à semelhança das espécies das faculdades
externas e do sentido comum. Parece, por isso, fictícia aquela distinção das espécies
no intelecto, as que desaparecem logo e as que permanecem.
Também está, segundo alguns, insuficientemente explicada a controvérsia, se no
nosso intelecto são produzidas as espécies das coisas imateriais. Sej a a décima pri­
meira asserção. É provável, para uma e outra parte, que sejam produzidas no nosso
intelecto, também no presente estado da vida, as espécies de algumas coisas imate­
riais. A parte afirmativa demonstra-se assim, porque quando o intelecto forma estas
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, Artigo II 493

propos1çoes, «A caridade é a suprema virtude», «A prudência é um hábito da


mente», e apreende os seus extremos, não parece recolher as apreensões de outro
lugar a não ser das espécies inteligíveis dos extremos, pois, como os extremos são
imateriais, no intelecto dão-se espécies das coisas imateriais. Depois, aquele que de
uma vez por todas obtém o conceito de prudência, experimenta em si de seguida
maior facilidade para repetir um conceito semelhante. É esta maior facilidade que os
filósofos consideram o principal sinal de um hábito inerente. É assim que se dá o
hábito apreensivo no intelecto, ou a espécie da prudência e de outras coisas espiri­
tuais deste tipo.
A favor da parte negativa está em primeiro lugar o seguinte. Como o objecto
motor do nosso intelecto é um ente material, não parece que ele possa ser comparado
ao conhecimento habitual que se obtém através das espécies, excepto as das coisas
materiais. Depois, porque das espécies das coisas materiais poderá, demonstrando e
discorrendo, alcançar o conceito das coisas imateriais. Daí resulta que as espécies
próprias das coisas imateriais parecem inúteis. Quem quiser examinar a parte nega­
tiva desta questão, responderá ao primeiro argumento aduzido a favor dos adversá­
rios, que para que o intelecto produza aquelas proposições, não carece das próprias
espécies dos extremos. Pode, efectivamente, produzir os seus conceitos a partir das
espécies materiais das coisas. Demonstra-se isso com este exemplo. A fantasia per­
cebe este vocábulo 'prudência' . Depois, junto com o intelecto agente imprime a
espécie no intelecto possível, que representa o som em geral (com efeito, não admi­
timos a espécie inteligível deste som, tal como nem a das outras coisas singulares).
Então, o intelecto possível, a partir de tal espécie, embora determinada pelo fan­
tasma através do qual aquele vocábulo 'prudência' é representado, forma o conceito
daquela simples palavra, porque sabe que ela significa um certo hábito de virtude
chamada prudência, e alcança o conceito de prudência. Assim, portanto, o intelecto
manifesta a espécie da coisa imaterial, isto é, o conceito de prudência, a partir da
espécie significante do som, que é uma coisa material. E poderá guardar esse con­
ceito a seu modo nas restantes apreensões de objectos imateriais. E este percurso dá­
-se normalmente, a fim de formar as apreensões das coisas de que ouvimos as pala­
vras, se tivermos já o significado delas. Pelo que é evidente que o argumento pro­
posto tem pouco vigor para constituir as espécies inteligíveis das coisas imateriais. E
não foi aduzido por nós, a não ser para na ocasião explicarmos a ordem de conceber,
que no referido evento o intelecto observa. Ao segundo argumento, deve responder­
-se que quem, de uma vez por todas, formou o conceito de prudência e de outras
coisas imateriais, depois percebe com maior aptidão e facilidade conceitos seme­
lhantes, não porque tenha, então, obtido ou tenha actuado mais com a espécie dessas
coisas, já antes adquirida, mas porque a espécie das coisas imateriais agiu mais,
tanto no intelecto, como na fantasia, e discorrendo a partir dessas espécies extraiu os
conceitos das coisas imateriais.
Ao primeiro a favor da parte negativa deve dizer-se que, do facto de o objecto
motor do nosso intelecto ser o ente material, não se pode concluir devidamente que
só podem ser produzidas pelo intelecto agente espécies das coisas materiais, visto
que apenas os entes materiais movem a fantasia com a qual o intelecto agente con­
corre para extrair as espécies. Não pode, todavia, provar-se que essas espécies são
geradas pelo intelecto possível através dos conceitos recebidos das espécies produ-
494 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

zidas pelo intelecto agente. Ao segundo, diga-se que embora não se deva negar que
existe aquele modo de extrair os primeiros conceitos das coisas imateriais a partir
das espécies das coisas imateriais, todavia, porque ele é pouco activo e menos
rápido, de modo algum serão inúteis as espécies das coisas imateriais para chamar
de novo os conceitos semelhantes no futuro com maior facilidade.
Costuma-se perguntar se alguma espécie inteligível que represente as cogitações
da mente pode existir em qualquer criatura. Responde-se que não pode com Cae­
tano, 1 ª parte da Suma Teológica, questão 57, artigo 4º; com São Boaventura, no 2º
livro das Sentenças, distinção 8, questão última; com Ricardo, no mesmo, artigo 2º,
questão 4; e Gregório, distinção 9, na questão primeira. Prova-se, porque da Sagrada
Escritura consta que só Deus é perscrutador dos corações. O que não aconteceria se
alguma criatura, por natureza, fosse capaz de conhecer os pensamentos da mente.
Acontece que, se isto fosse possível, não teria sido demonstrada directamente pelos
santos, a divindade de Cristo, porque tal criatura veria os pensamentos dos outros. E
não obsta que os anjos falem entre si por meio das espécies em si incriadas, que
percebem os conceitos dos outros. De facto, estas espécies não representam de modo
absoluto os conceitos dos outros, mas de um modo dependente da direcção pela qual
um anjo dirige os seus conceitos a outro, com quem fala, como ensina São Tomás,
na primeira parte da Suma Teológica, questão 1 07, artigo 5º, em A Verdade, questão
9, artigo 4º, e no 2º livro das Sentenças, distinção 1 1 , questão 2, artigo 3º. E por
algum sinal externo, pelo qual os seus pensamentos se manifestam, como considera
Gregório Ariminense, no 2º livro das Sentenças, distinção l O, questão 2; Marsílio, na
questão 7, artigo 2º, e Chlicthoveu, sobre Damasceno, livro 2, da Fé, capítulo 3º e
outros.

QUESTÃO VI
Se todos os sentidos internos concorrem com o intelecto
agente para produzir as espécies inteligíveis
e em que género de causa o fazem

ARTIGO I
Explica-se a primeira parte da controvérsia

Comecemos nesta discussão por aquilo que, em primeiro lugar, nos propusemos
tratar. De facto, temos de filosofar de acordo com a opinião dos que consideram que
somente existem dois sentidos internos, a saber, o sentido comum e a fantasia, aos
quais acima delegámos todas as funções que outros atribuem a três ou quatro potên­
cias sensitivas internas. Não perguntámos, porém, se todos os sentidos internos ser­
vem, de algum modo, o intelecto. É evidente, de facto, que todos o servem, também
os externos, visto que transmitem à fantasia as imagens do universo dos sensíveis.
Portanto, apenas chamamos à controvérsia, se todos os sentidos internos ou apenas
um, o servem de perto. Que são todos, considera Apolinário, neste livro, questão 6, e
parece que foi transmitido por São Tomás, nas Questões Sobre A Verdade, questão
1 8, artigo 8º. Isto pode ser demonstrado porque se entendeu que, tal como todas as
faculdades externas de sentir afluem de muito perto para o sentido comum, assim
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão VI, Artigo / 495

todos os sentidos internos agem de modo imediato para o intelecto possível, forne­
cendo a matéria ao intelecto agente para abstrair, operando somente com ele.
Segundo. Porque uma vez que toda a força intelectiva, como a alma racional, existe
em qualquer parte do corpo e assiste ao sentido comum localmente e na imediação
da presença, nada impede que use também o seu ministério próximo.
De facto, que um só sentido interior é o servidor próximo do intelecto, designa­
damente aquele que sobressai em dignidade de entre os restantes (que chamamos
fantasia), com maior probabilidade, afirma Caetano, lª parte da Suma Teológica,
questão 73, artigo 3º, e questão 85, artigo 1 º, com o seguinte argumento principal.
Porque a ordem da dignidade e a óptima constituição da natureza postulam que
apenas esta potência se junte ao intelecto na operação e lhe preste a seguir a assis­
tência que se aproxima propriamente dele, em dignidade, de acordo com a afirmação
de São Dionísio 7º, capítulo de Os Nomes Divinos: o supremo do ínfimo atinge o
ínfimo do supremo. Ora, a fantasia é a suprema entre os sentidos, os quais obtêm nas
potências cognoscentes um lugar ínfimo, e o intelecto humano é o ínfimo entre as
faculdades intelectivas que nessas mesmas potências reclamam o lugar supremo. Por
isso, não se vai de um extremo a outro extremo a não ser pelo meio. Mas entre o
intelecto e os sentidos, tanto o comum como os externos, que são como que extre­
mos, interpõe-se a fantasia. Portanto, para que a partir deles algo sensível se dirija ao
intelecto é necessário que primeiro caia na fantasia, e daí que sej a a fantasia e não
outro sentido de seguida a fornecer a assistência ao intelecto. Portanto, ao primeiro
argumento da parte contrária, que noutro lugar não nos tinha desagradado, deve
negar-se que seja igual a razão nos sentidos externos em comparação com o sentido
comum, e nos internos, em comparação com o intelecto. Mas a diferença entre os
acabados de referir, patenteia-se claramente. Ao segundo argumento, diz que o sen­
tido comum não presta uma servidão imediata ao intelecto, porque não é impedido
pela distância local, que não é nenhuma, mas porque a ordem da natureza que refe­
rimos não o suporta.
De facto, para que o guardião da fantasia seja mais bem compreendido, ocorrem
três situações que têm de ser explicadas. A primeira, se o fantasma impresso ou
expresso se junta ao intelecto agente para produzir as espécies inteligíveis. A
segunda, se o fantasma concorre, pela precisa razão pela qual representa a natureza
comum, ou não. A terceira, se um e o mesmo fantasma é idóneo para extrair muitas
espécies inteligíveis. Relativamente à primeira delas, omitida disputa mais longa,
deve responder-se que o fantasma expresso concorre imediatamente porque é obtido
pelo impresso. Isso é evidente, porque a fantasia não concorre com o intelecto a não
ser operando, mas quando opera exprime o fantasma da coisa apreendida. Depois,
dado que na fantasia foram impressas as imagens de várias coisas e que o intelecto
agente, indiscriminadamente, existe para uso ou ministério desta ou daquela, é
necessário que seja determinado para isso. Ora, não há outra razão para que possa
ser determinado, a não ser que a fantasia recolha de entre alguma das imagens o
fantasma expresso da coisa significada por ela.
No que diz respeito à segunda, por certo deve considerar-se que o fantasma não
representa a natureza comum nua e livre das diferenças individuais, mas representa
em conjunto com elas, como está patente nas matérias que acima foram por nós
disputadas. Efectivamente, embora a coisa seja assim, quer a natureza comum quer a
496 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

singular, pela parte da coisa, reúnem-se numa única realidade não dividida. Não
faltam, porém, argumentos em que se pode ver que os seus próprios fantasmas
admitem aquela distinção, de tal modo que, sempre que concorre com o intelecto
para produzir a espécie inteligível, esta não significa senão a natureza comum.
Assim, também o fantasma não concorre a não ser pela precisa razão que representa
a mesma natureza comum. Portanto, o fantasma que refere Sócrates, é distinto em
espécie do fantasma que significa Platão, como muitos autores importantes conside­
ram. Todavia, um e outro produzem a imagem inteligível da sua espécie, a saber, do
Homem, o que certamente não provém de outra coisa senão porque ambos concor­
rem segundo a conveniência e a afinidade que têm entre si, isto é, dado que repre­
sentam a natureza comum do Homem. Além disso, o efeito imita a sua causa, mas a
espécie inteligível não imita o fantasma como singularidade, mas representa como
natureza comum. Portanto, o fantasma não é causa da espécie, segundo significa a
singularidade, mas a natureza comum.
Mas deve ser acolhida a opinião contrária, que afirma que o fantasma não con­
corre por aquela precisa razão pela qual mostra a natureza comum, mas tanto a
comum, quanto a singular. O que se prova da seguinte maneira. Uma vez que o
fantasma é causa natural, aplica toda a sua força e age segundo o último grau da
potência, como as restantes formas que são princípios naturais de agir. Logo, produz
o efeito por si, segundo toda a sua faculdade de representar e segundo a razão que
lhe é própria e particular. E, portanto, não concorre enquanto nele se manifesta como
que isoladamente só a natureza comum. E corrobora-se o argumento, porque como o
fantasma refere todo o indivíduo e exprime indistintamente tanto a natureza comum
como a singular, não concorre com o intelecto a não ser que represente esse todo.
Aos argumentos que recomendavam o oposto, deve responder-se que os dois
fantasmas produzem a imagem inteligível de uma espécie, ainda que difiram em
espécie, porque representam os indivíduos contidos sob uma mesma ínfima espécie.
Mais ainda, que eles não produzem um efeito igual a si no todo, embora concorram
todos. Porque muitas vezes acontece que o efeito não acompanha a semelhança
perfeita da sua causa eficiente quanto a todas as coisas, embora a causa eficiente aj a
segundo toda a sua perfeição, o que acontece por motivos diferentes, por exemplo,
por causa do intervalo do espaço no qual a sua potência enfraquece e aos poucos se
suprime. Da forma que a luz de oito graus recebida numa primeira superfície, logo
depois daquela primeira superfície não difunde já a luz de oito graus, mas progressi­
vamente menos intensa até à ausência de grau . Ou em razão da matéria ou do subs­
trato em que o efeito é recebido, de forma que o fantasma deste branco não produz
senão a espécie inteligível do branco em geral, posto que o intelecto possível não é
um substrato apto para uma tal espécie, representa somente a natureza singular,
como acima estabelecemos. E assim, deve dizer-se que o efeito imita a sua causa
tanto quanto pode e que, por isso, a espécie inteligível não pode imitar o fantasma
quanto à representação da singularidade.
À terceira, há quem conceda que o intelecto agente pode, a partir do mesmo fan­
tasma, extrair mais espécies inteligíveis, como do fantasma do branco, uma espécie
do branco, outra do colorido. A opinião contrária, todavia, apraz mais, como é
patente a partir do que se disse e pelo argumento que acima referimos. De facto,
como o fantasma manifesta toda a sua faculdade de agir agindo, e age em si todo,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão VI, Artigo II 497

não concorrerá se não se exprimir por ele este branco e, por isso, apenas gera a espé­
cie do branco. Falamos do fantasma que representa este branco nitidamente e é ade­
quado para produzir a espécie de branco. Com efeito, se apenas manifestar este
colorido, então só as espécies do colorido e não as do branco é que serão obtidas por
ele, porque, neste caso, o máximo do seu esforço não atinge mais.

ARTIGO II
Explica-se a outra parte da controvérsia proposta

Segue-se a segunda parte da questão na qual se deve examinar em que género de


causa o fantasma se apresenta a concorrer com o intelecto agente para obter as espé­
cies inteligíveis. Na verdade, é evidente que o concurso se mostra nalgum género de
causa, porque o intelecto agente é causa universal na produção das espécies inte­
ligíveis, a qual, para produzir uma espécie de preferência a outra carece de causa
particular que a determine. Esta causa é o fantasma que exprime a coisa sensível.
Existem, no entanto, acerca deste assunto, duas opiniões. Uma, a dos que pensam
que o fantasma concorre no género da causa material; a outra, a daqueles que pen­
sam que concorre no género da causa eficiente. Como diremos de imediato, esta
ainda se encontra bipartida. Os primeiros querem que o fantasma exista como dispo­
sição do intelecto possível, tal como as perturbações do apetite existem para as
acções da nossa vontade e do intelecto. Na verdade, acontece muitas vezes, como
ensina Aristóteles, 3 Ética, capítulo 4°, que tal como alguém é afectado no apetite,
assim também julga sobre as coisas e as apetece ou rejeita. Daí que a ira arda neles e
com facilidade considerem dever encarregar-se da vingança, desej ando-a. Afirmam,
então, que o fantasma existe para o intelecto possível, porque se o fantasma, por
exemplo, representa Sócrates, o intelecto possível está disposto a receber a espécie
do homem; se Bucéfalo, a espécie do cavalo. Porém, este concurso respeita à causa
material , visto que as disposições do paciente referem-se à matéria. E, sem dúvida
que o fantasma existe como matéria e não como causa eficiente para a espécie inte­
ligível. Donde se vê porque é que o efeito segue sempre a parte pior da sua causa
eficiente. Por isso, se o intelecto agente e o fantasma produzem em parte a espécie
inteligível, como o fantasma é corpóreo, necessariamente a espécie inteligível será
algo material .
Esta opinião não colhe, mas sim aquela outra que atribui o concurso activo ao
fantasma, o que a escola comum dos filósofos sustenta. S . Tomás, em A Verdade,
questão 1 0, artigo 6º, e em 2 Contra os Gentios, capítulo 77º, e na Suma Teológica,
parte 3, questão 9, artigo 4º; Caetano, no mesmo local ; Escoto, Quodlibet 8, artigo
1 º, e no 1 º livro das Sentenças, distinção 3, questão 8; Liqueto, na mesma distinção,
questão 2; Soncinas, livro 7 da Metafísica, questão 1 2; o Ferrariense, neste livro,
questão 1 3 , e no 2º livro das Sentenças, distinção 1 7 , questão 2; e Capréolo, no 2º,
distinção 3, questão 2, artigo 3º. Primeiro, porque o intelecto está privado da causa
particular pela qual é determinado activamente, mas esta não é senão o fantasma.
Daí Aristóteles ter comparado o intelecto agente à luz exterior porque, de facto, a
partir da brancura determina-se melhor a levar a imagem da alvura do que a da
negrura. Depois, porque aquilo que causa um efeito que se lhe assemelha pertence à
causa efectiva, mas o fantasma existe assim para a espécie inteligível. Na verdade, a
498 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

espécie recebe do fantasma a razão de representar ou o ser representativo, do mesmo


modo que recebe o ser espiritual de um e de outro intelecto. Do agente, como da
causa efectiva, do possível, como da causa subjectiva ou material. Leia-se São
Tomás, A Verdade, questão 1 0, artigos 6º e 7º. Quanto a isto, há quem objecte que o
fantasma, enquanto oferece a espécie semelhante a si mais parece alcançar a razão
da causa exemplar, cuja causalidade consiste na imitação, do que da causa eficiente.
Respondemos, se falarmos propriamente, que a semelhança apenas pertence à causa
exemplar, através da qual, a coisa para que o artífice olha quando trabalha, como
imitação passiva, se exprime pelo efeito, como nos livros da Física amplamente
discutimos. Mas o fantasma não existe assim para a espécie inteligível. Com efeito,
o intelecto não se dirige para ele, nem o próprio cognoscente gera a espécie à seme­
lhança dele. Por esse motivo, é com menor propriedade que se diz que o fantasma
alcança a causalidade da exemplar no que respeita à espécie inteligível, mas ainda
que ela lhe pertença, esta todavia não obsta a que a causalidade activa que referimos,
se adeqúe a ela, ao mesmo tempo.
Ao argumento, que se inclina a mostrar que o fantasma de forma alguma é causa
eficiente, mas como que uma disposição na geração das espécies inteligíveis, deve
ser respondido com o preceito dos filósofos, que o efeito segue a parte mais fraca da
sua causa. Se for correctamente examinado, prova-se com muitos exemplos que se
afasta da verdade. E para não falar por agora dos restantes, respondemos que não é
necessário que o efeito siga a parte mais fraca, visto que a parte mais fraca é elevada
pela mais eminente, como acontece na questão proposta, dado que a operação do
fantasma se eleva pelo intelecto agente acima da própria potência e faculdade.
Mas ainda subsiste uma discussão entre aqueles que atribuem ao fantasma em
relação às espécies inteligíveis uma capacidade de produção. Na verdade, Caetano, o
Ferrariense, Capréolo e outros, pretendem que o fantasma concorre como instru­
mento por meio do qual o intelecto agente é operado. Escoto e outros afirmam que o
fantasma e o intelecto agente são duas causas parciais que integram uma causa total,
ambas atingindo imediatamente o efeito. Para os primeiros esta razão aprova, porque
a causa particular é instrumento da universal que determina e à qual se subordina.
Mas o fantasma determina o intelecto agente, como a causa particular a universal.
Isto é já patente a partir do que se disse. Além disso, subordina-se necessariamente a
ela, visto que não é necessário agir com o seu concurso. Mas os segundos filósofos
confirmam a sua opinião, porque aquilo que é propriamente instrumento, ou não age
a não ser que sej a movido por outro, como as lanças, ou é toda a força de agir, como
o calor no que respeita ao fogo, nenhuma das quais convém ao fantasma. Com
efeito, nem recebe algo do intelecto agente, como é evidente com base no que antes
foi dito, nem é toda a força do intelecto agente. Além disso, não se eleva através da
sua acção e influxo. Se, de facto, se elevasse assim, seria necessário que o intelecto
agente, ao agir, obtivesse as partes melhores e, de tal forma, que o seu poder fosse
somente aquele que é próprio do fantasma. Quer uma, quer outra destas opiniões
parecem inteiramente prováveis. Mas a primeira usurpa o nome ao significado mais
amplo de instrumento, o qual, sem dúvida, pertence a todos aqueles que, pela
intervenção do ministério, algum agente universal usa ao operar. Quem, portanto,
quiser examinar a primeira opinião, responderá ao argumento dos adversários, que
se conclui correctamente que o fantasma não é um instrumento próprio do intelecto
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VI 499

agente, o que todavia não obsta a que, tomado o vocábulo em sentido lato, se possa
chamar instrumento. A quem porém tenha agradado mais a segunda opinião, dirá ao
argumento da parte contrária que o fantasma não só determina o intelecto agente,
como a causa particular determina a universal, mas que também a ele se subordina.
Todavia, o intelecto agente não opera à maneira do próprio instrumento, por seu
intermédio, mas porque não pode agir sem o seu consórcio e obriga a agir aquilo que
está além das próprias faculdades. De maneira que ambos em parte e imediatamente
concorrem para o efeito, o qual, nem o fantasma sem o intelecto, nem o intelecto
sem o fantasma, de algum modo produzirão. Quanto a isto se alguém opuser que
quando duas causas concorrem assim, quando quiserem podem por si só produzir o
efeito da sua mesma espécie, embora menos perfeito, tal como dois archotes
produzem luz. Deve contrapor-se que isto não é sempre verdadeiro, porque acontece
de outro modo nas causas que são heterogéneas em comparação com os efeitos, tal
como o intelecto agente e o fantasma para as espécies inteligíveis, e também como o
intelecto agente e as espécies inteligíveis para a intelecção.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VI

a. Indiuisibilium igitur 430 a 26 Neste capítulo Aristóteles distingue duas funções


-

do intelecto. Uma pela qual apreendemos simplesmente as coisas e que se chama


intelecção das coisas indivisíveis. Outra, com que compomos as coisas concebi­
das e que se chama composição, sob a qual se contém uma terceira, a saber, o
discurso. E ensina, ainda, que a primeira operação difere da segunda porque a
falsidade ou a verdade não está presente naquela, mas está nesta. E também por­
que nesta o intelecto reconduz à unidade as coisas que estão dispersas ao juntar
os termos entre si, que reúne a partir das próprias proposições, tal como Empédo­
cles contou ter sido feita a concórdia, para que as partes e os membros dos ani­
mais que tinham primeiro existido separados, se unissem num único corpo. Ou, o
que dá no mesmo, Aristóteles ensina que a apreensão das coisas mais simples
antecede a composição porque não compomos senão o que primeiro apreende­
mos, e que nesta matéria o intelecto imitou a natureza na procriação dos seres
animados . Como Empédocles considerou, ela formou primeiro os membros um a
um, etc . Ademais, tal como uma dada conjunção não forma um animal, assim
também uma certa composição do intelecto não enuncia a verdade; se se compu­
ser a simetria com o diâmetro, a proposição será falsa, se se compuser a inco­
mensurabilidade, verdadeira. Atente-se aqui que pelo nome de composição
Aristóteles compreende tanto a enunciação afirmativa como a negativa, como
Filópono e Caetano realçaram, não sem razão, já que toda a enunciação é uma
certa composição; mas pouco depois Aristóteles chama proposição negativa à
divisão, em sentido próprio, porque a partir dela negamos e dividimos um do
outro.
500 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

b. Quod si eorum etiam 430 b 1 Ensina que a falsidade não só acontece nos
-

enunciados em razão das coisas concebidas, ou seja, quando ligamos as que não
devem ser relacionadas, como se dissermos que o homem não é animal (com
efeito ainda que se diga todas as coisas pela divisão, isto é negar as que são
afirmadas), mas também, por outro lado, quando os termos estão bem ligados
entre si, mas o tempo do verbo não está correctamente unido; por exemplo,
doença e Sócrates ligam-se entre si quando Sócrates está doente, se no entanto
alguém dissesse que Sócrates adoecera, mudando o tempo presente em pretérito,
teria dito o que é falso.
c. Dupliciter indiuisibile 430 b 6 Ele distingue claramente a primeira operação do
-

intelecto, por meio da qual se percebem os indivisíveis, isto é, as mais simples, a


partir dos objectos, e afirma que o indivisível pode ser dito de três maneiras.
Chama-se, em primeiro lugar, indivisível àquilo que não está dividido em acto,
mas que no entanto pode ser dividido, como a linha; e com isto significa que o
indivisível pode ser dito de duas maneiras, a saber, em acto e em potência. Tra­
tando desse indivisível em acto, diz que nada impede que o intelecto intelija o
indivisível quando percebe o contínuo, como o comprimento, que é indivisível
em acto, embora sej a divisível em potência; o intelecto pode certamente inteligir
o tamanho de dois modos. De um modo, enquanto é divisível em potência, e
assim intelige a linha contando uma parte a seguir à outra, e, portanto, no tempo
ou sucessivamente. Do outro, enquanto é indiviso em acto, percebe-o como um
uno constituído por muitas partes e assim num mesmo tempo. Por isso, Aristóte­
les acrescentou que se deve entender que o tempo e o comprimento podem ser,
de igual modo, divididos e não divididos. Daí não se poder dizer que quando o
que é inteligido carece de partes a sua metade é inteligida por intermédio do
tempo, mas, ao mesmo modo, e se tiver partes, às diferentes partes poderão cor­
responder diferentes partes do tempo.
d. Quod uero non in quantitate 430 b 1 4 Afirma que, do segundo modo, se diz
-

indivisível aquilo que respeita a uma espécie, embora seja composto de partes
não contínuas, como o homem, a casa, o exército, e diz que a alma compreende
isto num tempo indivisível, por uma potência indivisível, como é o intelecto.
Acrescenta também, que embora as coisas que são indivisíveis em espécie,
tenham, pela razão, alguma divisão das partes, todavia as divisíveis são com­
preendidas por acidente, não enquanto são divisíveis, quer pela sua parte que
pensa, quer pela parte do tempo, mas enquanto são indivisíveis, porque existe
algo indivisível nas partes divididas, designadamente a própria espécie, que o
intelecto compreende de modo indiviso. Porque se inteligisse as partes como
divididas, ou sej a, a carne por si, os ossos por si e do mesmo modo para as res­
tantes, então não inteligiria num tempo indivisível. Aristóteles defende ter
demonstrado a semelhança entre este modo e o anterior. Assim como neste modo
há algo indivisível, nomeadamente a espécie que faz de todas as partes um só ser,
também talvez esteja presente no contínuo alguma coisa não separável dele, isto
é, indivisível, que é a causa para que o tempo e o tamanho seja unos, quer se diga
que o ponto existe na linha e o momento no tempo, quer se diga a própria espécie
do tamanho ou do tempo. Mas isto difere, porque esse indivisível encontra-se do
mesmo modo no todo contínuo, no tempo, e na linha, mas o indivisível em espé-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VII 501

cie não se encontra do mesmo modo em todos os que têm a mesma espécie, já
que certas coisas são formadas de partes homogéneas, que têm a mesma espécie
e recebem o nome do todo; outras, de partes heterogéneas, que existem de outro
modo. São Tomás interpreta assim este ponto como obscuro.
e. Punctum autem 430 b 20 - Aristóteles afirma que é indivisível do terceiro modo
aquilo que é indivisível não só em acto, mas em potência, como o ponto. Mas a
este chama-se divisão porque tal como as partes se unem graças a ele, também
por ele se dividem, quando mutuamente se separam dele, o que se deve dizer de
igual maneira acerca do momento. Mostra de que modo este indivisível recai sob
o intelecto ensinando que ele não se intelige por si, mas pelo seu contrário, ou
quase contrário: efectivamente é percebido pela negação do contínuo, tal como a
privação através da forma que nega, como o mau através do bom, e o negro atra­
vés do branco. Porém conta o negro entre as privações, ou porque, como São
Tomás interpreta, sempre um dos contrários que é mais imperfeito alcança o
modo de privação relativamente ao outro, como já expusemos noutros pontos, ou
porque tomou o branco pela luz e o negro pelas trevas.
f. /d autem quod cognoscit 430 b 23 Ensina que conhecer um contrário por outro,
-

ou pela privação da forma negada, tal como pelo conhecimento de um, o inte­
lecto avança para o conhecimento do outro, é próprio da faculdade intelectiva,
que está em potência e não em acto puro, como é o caso do intelecto humano.
Porque se existe algum outro, em que o prévio conhecimento de um só contrário
não leve ao conhecimento do outro, mas compreenda em si próprio todas as coi­
sas pura e simplesmente, é necessário que ele sej a o acto puríssimo, separado da
matéria e da potencialidade, como é a própria inteligência divina. É neste sentido
que São Tomás e Filópono explicam este ponto, mas Temístio e Simplício expli­
cam-no noutro sentido, o do intelecto separado, que eles imaginam assistir ao
intelecto humano para alcançar o conhecimento das coisas. Todavia é verdadeira
e legítima a primeira interpretação e está de acordo com o que foi escrito por
Aristóteles sobre o pensamento divino, no livro 1 2, Metafísica, capítulos 7° e 8º.
g. Est autem dictio 430 b 26 - Aristóteles retoma ao ponto de partida, a saber, à
-

segunda operação do intelecto, e ensina que o intelecto que se ocupa da composi­


ção e da divisão, afirmando ou negando alguma coisa acerca de alguma coisa, ora
é verdadeiro, ora é falso. Mas aquele que se ocupa das coisas mais simples e o
que apreende aquilo que é próprio da coisa segundo a sua natureza, sem uma
ligação, é sempre verdadeiro por si, tal como a vista e os outros sentidos quando
apreendem os sensíveis próprios, embora por acidente errem na aplicação da
forma que percebem que isto ou aquilo é branco quando na realidade não é.
Supõe, precisamente, que a coisa existe assim na potência imaterial ou no inte­
lecto, mas engana-se também na simples apreensão, não por si, mas por acidente,
quando, embora não componha, liga uma coisa a outra em acto simples, que não
lhe pertence, como se concebesse que o Sol é do tamanho de dois pés. Mas acima
disputámos sobre o erro dos sentidos; quanto à verdade, quer simples, quer com­
plexa, o que ela é e a que coisas diz respeito ou não, discutimos no primeiro livro
sobre A Interpretação.
502 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VII

a Scientia autem ea 43 l a 1 - Como São Tomás, Simplício, Filópono e outros


intérpretes observaram, neste capítulo Aristóteles trata da diferença entre o inte­
lecto activo e o contemplativo, para que esta doutrina sobre a faculdade intelec­
tiva venha a ser mais nobre. Admite, portanto, que o intelecto em acto, isto é, o
intelecto consoante executa o acto de inteligir, se identifica com a coisa inteli­
gida, o que noutro ponto explicámos por que razão é verdadeiro. Mais, o inte­
lecto em potência antecede o intelecto em acto, porque o que tem a capacidade de
inteligir passa a acto por outro. Isto, de facto, deve ser acolhido no que respeita
ao próprio homem. Mas em sentido absoluto é anterior o que está em acto, por­
que toda a potência passa a acto mercê daquilo que está em acto.
b. Sensibili autem 43 1 a 4 - Porque existe uma certa afinidade entre o sentido e o
intelecto, ele pretende explicar a potência do intelecto a partir daquilo que per­
tence ao sentido. Primeiramente, diz respeito ao sentido ser levado ao acto pelo
objecto sensível, não todavia por alguma alteração propriamente dita ou movi­
mento, que seja o acto do ente em potência, enquanto está em potência, tal como
se define no livro 3 da Física, mas por uma alteração translativa, pela qual o
substrato não costuma ser corrompido ou lesado, mas se completa. Também, por
um outro certo género de movimento ou de mutação, pela qual se imprimem as
imagens que foram transmitidas pelo objecto ao órgão corpóreo. Além disso, a
primeira operação do sentido que é o simples conhecimento do objecto é seme­
lhante à primeira função do intelecto que se chama apreensão das coisas simples,
aqui chamada enunciação e intelecção num simples vocábulo, e a ela em especial
diz respeito o intelecto especulativo.
c. Cum autem sensus 43 l a 9 - Outra operação do sentido é a percepção da coisa
sensível sob a razão do conveniente ou do não conveniente, do agradável ou do
nocivo, que pertencem à fantasia. Aristóteles pretende que o sentido é semelhante
ao intelecto prático, pela razão de que é próprio propor à vontade o que deve ser
acolhido ou evitado. Daí que também exista uma diferença entre o intelecto prá­
tico e o especulativo porque este considera a coisa simplesmente e não respeita à
obra, mas aquele, enquanto representa a coisa como vantajosa ou nociva, incita à
prossecução ou à fuga e por isso dirige a prática.
d. Atque delectari 43 1 a 10 - Como faz menção do agradável e do danoso, ensina
de passagem o que é uma acção danosa ou uma agradável, sobre o que ela versa,
e qual é a própria da faculdade. Diz que a dor ou a deleitação a respeito do bem
ou do mal, enquanto tais, pertencem ao apetite sensitivo, que chama de mediania
ou mediano, porque, como interpreta Simplício, é o suporte de um e de outro,
quer suave, quer desagradável . Ou, porque na própria coisa é como que um meio,
não mais apto para receber o deleite do que a moléstia.
e. Etfuga et appetitus 43 1 a 1 2 - Avisa que a fuga e o apetite em acto, isto é, que o
acto de evitar e o acto de perseguir o objecto são o mesmo que a dor e o prazer.
Esta matéria devia neste ponto ser tratada mais clara e abrangentemente, se j á
não tivesse sido por nós explicada n a Ética. Sustenta também que o apetite sen­
sitivo a que respeitam as acções referidas não se distingue da potência sensitiva.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Vil 503

Entenda-se porém que não se distingue pelo substrato, visto que tal como são
originários da mesma alma, também estão presentes no mesmo animal; de outra
maneira seriam diferentes pela razão, ou melhor ainda, na realidade.
f. Animae autem 43 1 a 14 Repete de novo a diferença entre o intelecto
-

contemplativo e o intelecto prático, e afirma que, embora a alma dianoética, isto


é, o intelecto contemplativo, se sirva dos fantasmas, porque eles lhe fornecem as
espécies, tal como os sensíveis externos os fornecem ao sentido, todavia o inte­
lecto prático usa-os de outro modo, nomeadamente consoante se aplicam ao
ditame prático do bem e do mal que devem ser acolhidos ou evitados. Donde,
conclui que a alma nunca intelige sem o auxílio dos fantasmas, visto que eles são
necessários a um e a outro intelecto.
g. Fit autem 43 1 a 17 - Tinha dito que o sensível move o sentido, agora mostra, de
passagem, de que modo o move, afirmando que a coisa objecto impressiona o
meio, antes do sentido, depois muda o mecanismo do sentido externo até ao pró­
prio meio, isto é, até ao sentido comum, em direcção ao qual são levadas as ima­
gens de todos os sensíveis, como para um centro. E afirma que ele é um, na reali­
dade, e vários, pela razão, quer porque, na realidade, é uma simples faculdade
quanto à natureza, quer porque toma o lugar de um termo único, visto que as fun­
ções dos sentidos externos são ordenadas para ele. Porém, é múltiplo na função,
porque entre o quente e o doce, por exemplo, estabelece a diferença entre todos
os sentidos externos, e julga as suas próprias sensações, como noutro ponto foi
dito. Aristóteles pretende que aqui se conheça uma semelhança ou uma analogia
entre o sentido e o intelecto, pois os sentidos externos estão para o sentido
comum, movendo-o, como os fantasmas para o intelecto, e o sentido comum per­
cebe todos os sensíveis, tal como o intelecto percebe todos os inteligíveis; aquele
com o ministério dos sentidos, este com o poder dos fantasmas. No que diz res­
peito à potência e à função do sentido comum, Filópono acrescenta que não só o
sentido comum é como que a sede de todos os sensíveis, mas que em cada um
também com os sentidos externos se dá um KaTay w y wv, isto é, um confluir, para
o qual concorrem os sensíveis de cada sentido. Com efeito, comum a todos os
visíveis, como que um centro, é a vista; a todos os sons o ouvido; aos odores, o
olfacto; o tacto, às coisas tácteis; às gustativas, o gosto. Há todavia uma dife­
rença, porque o sentido comum percebe e julga todos os sensíveis externos, mas
qualquer sentido externo apenas percebe as coisas que lhe são próprias.
h. Etenim unum quid ipsum 43 1 a 21 - Repete agora o que tinha sido afirmado
sobre o sentido comum no livro anterior, nomeadamente que é um só enquanto
fim, isto é, como Filópono interpreta, como o centro do círculo onde incidem
diversas linhas. Ou, como Simplício afirma, é o último dos juízes de todos os
sensíveis, e é um, pela realidade, e vários, pela razão, visto que conhece de modo
diverso as diferentes propriedades dos sensíveis. É, com efeito, diz ele, um dos
juízes, enquanto fim, chamando fim ao ponto em que se juntam as diferentes
linhas. Na verdade, também este uno existente e indivisível tem um hábito dife­
rente para as diferentes linhas.
i. Atque haec ipsa unum sunt 43 1 a 22 Diz assim, que tem um centro, como o
-

sentido comum, quer em proporção, quer em número. Em proporção, porque o


centro está para as linhas como o sentido comum para as operações dos outros
504 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles

sentidos. Tal como as linhas são conduzidas para o centro, assim as operações
são levadas para o tribunal do sentido comum. Em número, porque como o cen­
tro que é uno tem uma ordem para muitas linhas, o sentido comum, visto ser
único, conserva o hábito para muitos sentidos e, assim, o sentido comum e o
centro seguem o mesmo número, isto é, não variam de modo nenhum em
número, antes se compõem na sua unidade. Outros, cuja interpretação parece
mais fácil, em conformidade àquelas palavras «elas próprias são um» explicam­
-nas no que respeita à proporção entre o sentido e o intelecto em relação aos seus
objectos, porque os sensíveis estão para os seus fantasmas como o sentido para o
intelecto. Aristóteles demonstra-o com o argumento retirado dos sensíveis,
advertindo que conta pouco que os sensíveis pertençam a um sentido externo ou
a vários. Por esta razão, assim como o branco está para o negro, assim o fantasma
do branco está para o fantasma do negro. Portanto, mudada a proporção, tal como
o branco está para os seus fantasmas, assim o negro está para os seus. Se, por
conseguinte, os fantasmas do branco e do negro se unem num e respeitam a uma
potência única que é o sentido comum, e se a faculdade é única consoante a
coisa, mas diferente segundo a razão, assim também todos os fantasmas respeita­
rão a uma única potência, isto é, ao intelecto, que é uma faculdade única na reali­
dade, mas diferente pela razão. E tal como o sentido comum apenas percebe as
coisas por intervenção dos sentidos externos, assim o intelecto apenas intelige
pelo ministério dos fantasmas, não que seja necessário inteligir os próprios fan­
tasmas, mas as coisas representadas por eles . Aristóteles propõe este argumento,
recorrendo aos elementos, como noutros pontos costumava fazer.
k. Et ut in illis 43 1 b 3 Mostra de que modo o intelecto activo é levado a deliberar
-

acerca daquilo que deve ser seguido ou evitado, a saber, que algumas vezes é
movido pelos sensíveis presentes só com o estímulo da fantasia. Efectivamente,
quem viu uma refrega agitada e dura como significando uma investida hostil, na
presença da coisa sensível, é impelido pela vista a lutar contra os inimigos. Mas,
entretanto, ainda que nenhum objecto presente a excite, quando a fantasia pensa
nas coisas futuras e confere umas com as outras, faz com que o intelecto delibere
sobre aquilo que é preciso fazer, ensine qual deve ser a acção a tomar, julgue as
coisas que são boas ou prejudiciais e ordene prossegui-las ou evitá-las.
1. Ipsum autem uerum 43 1 b 10 Ensina que o verdadeiro e o falso que dizem
-

respeito à acção estão contidos no mesmo género em que estão o bom e o mau,
isto é, todos eles respeitam a um só e mesmo intelecto na realidade. Efectiva­
mente, o intelecto prático e o especulativo não são potências realmente distintas.
Também não tendem para objectos simplesmente diferentes. Na verdade, o espe­
culativo trata do conhecimento do verdadeiro e do falso em absoluto, e o prático
em ordem à obra e, por isso, enquanto é adequado ou não adequado, bom ou
mau. Esta distinção do objecto não é bastante para que o intelecto prático e o
especulativo se distingam na realidade. Acerca deste assunto, de caminho, dire­
mos mais. m. At uero res eas 43 1 b 1 2 Como tinha afirmado que o intelecto
-

especulativo considera o verdadeiro em geral e o abstracto, mostra por que razão


o abstracto é estudado nas ciências matemáticas, designadamente considerando
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Vil! 505

aquelas coisas que, estando embora na matéria, não estão todavia na matéria
sensível, o que ilustra com o exemplo da concavidade ou curva do nariz. Se
efectivamente tal curvatura existe, como se julga, necessariamente na sua
consideração envolve o nariz e a matéria sensível, mas não, se se observar
segundo a razão comum da curvatura em absoluto. Tratámos, no proémio da
Física, questão 1 , artigo 3º, acerca da matéria sensível e inteligível e acerca de
toda a variedade de abstracções que acontecem nas ciências.
n. Omnino autem 43 1 b 1 6 Repete o que tinha ensinado acima, a saber, que o
-

intelecto é aquilo que intelige. E isto é verdadeiro pela razão que já expusemos e
que trataremos no capítulo a seguir. Por fim, duvida se o intelecto enquanto está
no corpo pode alcançar o conhecimento das substâncias separadas. Remete para
outro ponto a resolução desta dúvida. Mas nós tratamo-la no Comentário à Filo­
sofia Primeira.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VIII

a Nunc autem ea 43 1 b 20 Reúne, em recapitulação, o que tinha transmitido


-

sobre o sentido e o intelecto, afirmando que alma é, de certo modo, todas as coi­
sas. E na verdade, todo o ente ou é sensível ou é inteligível. A alma, em razão
dos sentidos, é todas as coisas sensíveis; em razão do intelecto, todas as coisas
inteligíveis. Mas expõe de que modo isto é consonante com a verdade, afirmando
que tanto o objecto do sentido como o do intelecto, que tanto o sentido como o
intelecto se podem dizer de duas maneiras, em potência ou em acto. É tomado
em acto o objecto de um e de outro quando é percebido em acto pela faculdade
cognoscente; em potência, quando não é conhecido em acto, mas está apto a ser
conhecido. Do mesmo modo, o que é inteligido diz-se em acto quando é contem­
plado em acto, e em potência, quando pode ser contemplado. Semelhantemente,
o sentido está em acto enquanto produz a sensação em acto, em potência, quando
a pode provocar. A alma, portanto, uma vez que está em potência para conhecer
todas as coisas, diz-se todas as coisas em potência quando está em acto de conhe­
cer, diz-se que é em acto as coisas que recaem sob o seu conhecimento. Além
disso, deve entender-se que a alma é todas as coisas, mas não realmente. Com
efeito, a alma não é a pedra que ela intelige, ou a cor que captamos, mas apenas
nocionalmente, ou seja, de acordo com as imagens das coisas e as semelhanças
que assinala.
b. Quare anima est ut manus 432 a 1 Tinha dito que a alma contém em si as for­
-

mas, quer dizer, as imagens a partir das quais produz o conhecimento. Explica-o
através de uma certa comparação. Tal como a mão, que é o instrumento que
forma os restantes instrumentos e, portanto, o órgão de todos os instrumentos,
usa outros instrumentos, também a alma, que é uma forma, admite outras formas
e usa-as ao conhecer, tanto em razão do intelecto como do sentido, a não ser que
o intelecto receba as formas, isto é, as imagens das coisas, tanto imateriais como
506 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

materiais e possa assim ser chamado forma das formas ; mas o sentido, somente
pode sê-lo, das coisas imateriais e dos sensíveis.
c. Cum autem nulla res 432 a 3 Como nem as coisas matemáticas, nem as físicas
-

e as suas afecções (na verdade aqui trata-se apenas deste género de coisas) sub­
sistem fora dos sensíveis em que estão presentes e por isso as suas imagens inte­
ligíveis são extraídas das formas sensíveis, Aristóteles conclui que o intelecto na
consideração delas não pode tratá-las sem o auxílio dos sentidos, que em pri­
meiro lugar as percebem. Pretende, então, que o intelecto depende dos fantasmas
não só quando absorve novamente as espécies, mas também ao comparar as
espécies quando contempla. É necessário que ele contemple ao mesmo tempo
com os fantasmas, porque o sentido externo está para os objectos como o inte­
lecto para os fantasmas. Por isso, tal como ele não sente sem a presença do
objecto, assim este nada intelige sem os fantasmas, a não ser porque os sensíveis
externos se encontram profundamente enterrados na matéria, mas os fantasmas
são formas sem matéria, porque são, na verdade, não as próprias coisas sensíveis
mas as suas imagens.
d. Est autem 432 a l O Considera a diferença entre o acto do intelecto e o acto da
-

fantasia. O acto do intelecto que é a composição ou a divisão é verdadeiro ou


falso, mas não o acto da fantasia, visto que dizemos que a falsidade ou a verdade
em sentido próprio está apenas na conexão das coisas inteligíveis, enquanto que o
conhecimento das coisas mais simples, diz, difere dos fantasmas, embora sem
eles não possa existir, como não pode nas outras operações do intelecto.

QUESTÃO !
Se o intelecto paciente é uma potência passiva
e totalmente pura, ou não

ARTIGO I
O intelecto paciente é uma potência tanto passiva, como activa

Explicados os capítulos em que Aristóteles dissertou acerca do intelecto possível


ou paciente, a ordem da doutrina postula que passemos às questões pertencentes a
este intelecto. Postulamos também que se admite este intelecto, e que tal é bastante
evidente, porque o intelecto paciente é a faculdade de inteligir e qualquer um sabe
por experiência que intelige. E para que ninguém atribua esta acção ao sentido
interno, é manifesto que inteligimos as coisas imateriais comuns cuja percepção se
dá pela faculdade material inerente ao órgão corpóreo e, por isso, não pode recair no
sentido comum, como demonstrámos noutro ponto. Perguntemos, pois, em primeiro
lugar, se o intelecto paciente é uma potência passiva, isto é, se padece somente ao
receber se também age ao inteligir. Para a solução desta dúvida deve advertir-se que
o intelecto paciente pode ligar-se quer ao obj ecto quer à intelecção. Caso se ligue ao
objecto dizemos que é somente potência passiva, o que se prova, porque o intelecto
paciente não age no próprio objecto (como age a potência nutritiva no seu, ou seja ,
no alimento), mas apenas padece ao receber dele a espécie por intervenção dos fan-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V/li, Questão /, Artigo 1 507

tasmas. Esta afirmação é de Temístio e de Simplício e é comum aos comentadores


de Aristóteles. Além disso, é de São Tomás, na Suma Teológica, primeira parte,
questão 79, artigo 2º; de Caetano, no mesmo ponto, e neste livro, capítulo 3º; de
Capréolo, no 4º livro das Sentenças, distinção 49, questão 4; do Ferrariense, livro 2
Contra os Gentios, capítulo 6º e de outros.
Se, porém, se comparar o intelecto com a intelecção, há quem considere que ele
somente se dá passivamente, como Godofredo, no Quodlibet 6, questão 7, segundo
Escoto, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3, questão 7; Janduno, no livro 2
desta obra, questão 1 6, e no livro 3, questões 1 3 e 24; e Veneto, na Suma da Alma,
capítulo 3 º, que afirmam que a intelecção é recebida somente pelo intelecto
paciente, mas produzida pelos fantasmas. Ou, como é do agrado de outros, pelo
intelecto agente. Escoto considera-a uma opinião provável, no Quodlibet 1 3 , e pode
ser confirmada com o argumento seguinte. Porque se a intelecção se desse activa­
mente a partir do intelecto paciente, uma vez que ele recebe em si a intelecção, à
maneira de uma causa material, a causa eficiente e material incidiria numa única e
mesma coisa, o que Aristóteles nega, no livro 7 da Física, capítulo I º, texto 1 , e no
livro 8, capítulo 4º, texto 28, quando afirma que a causa movente e a coisa movida
se distinguem na realidade.
Não obstante, deve dizer-se que o intelecto paciente concorre activamente para a
intelecção. Com efeito, mostrámos acima, que nem o intelecto agente nem os fan­
tasmas por si a produzem. Daí que seja líquido que o próprio intelecto paciente a
produza, pois a intelecção é acção imanente que deve ser provocada pela mesma
potência em que é recebida. Por isso, quando a intelecção é recebida no intelecto
paciente, é necessário que seja provocada pelo mesmo. Segundo. Nada se diz que
age, a não ser pela acção que provoca; isto é a tal ponto verdade que se Deus pusesse
no meu olho, só por si, a visão, de tal modo que o olho somente existisse passiva­
mente, não diria que via por ela. Mas o intelecto é denominado inteligente pela pró­
pria intelecção, portanto provoca-a necessariamente. Terceiro. Pode-se confirmar o
mesmo, porque há uma mesma razão no acto de inteligir e no acto de querer. Mas no
concílio Tridentino, sessão 6, cânone 4º é condenado quem disser que na justificação
o livre arbítrio existe apenas passivamente e daí que se ensine que a vontade con­
corre activamente. Portanto, do mesmo modo, o intelecto concorre activamente para
a intelecção, sobretudo porque o livre arbítrio não consiste num só acto, mas importa
também o acto do intelecto e o juízo livre como está patente naquilo que S. Tomás
transmite no livro 2 Contra os Gentios capítulo 48º; seria, de facto, ridículo quem
dissesse que as acções da vontade e do intelecto, visto que pertencem à justificação,
são provocadas pelas próprias potências e que as outras, de facto, não são provoca­
das.
O ponto dos livros sétimo e oitavo da Física nada retira às afirmações anteriores.
Trata aí, portanto, a filosofia, da causa material física, que é o princípio do movi­
mento físico, mas não da causa material, aceite o vocábulo numa acepção lata, como
abrangendo tudo o que é susceptível de algum movimento, material ou não. Pelo
que, repugna em absoluto que a mesma coisa seja causa material e também eficiente.
Dizemos, portanto, que se o intelecto se destina à intelecção, é potência, quer activa,
quer passiva. Activa, consoante produza a intelecção; passiva, consoante a receba.
Acrescenta também que o intelecto nu é causa passiva da intelecção, mas é activa
508 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

junto com a espécie, de tal forma que já a causa material não coincide totalmente
com a eficiente. Acerca deste assunto trata-se mais amplamente na Física.

ARTIGO II
O intelecto paciente num certo sentido não é pura potência ;
investiga-se se o é noutro.

No que respeita à segunda parte da questão proposta, pode questionar-se de duas


maneiras se o intelecto paciente é uma pura potência. De uma maneira, se a pura
potência está no género dos entes, que não inclui nenhum acto na sua natureza,
como a matéria-prima se diz pura potência. De outra, se a pura potência está no
género dos inteligíveis por si, isto é, se não obtém da sua primeira origem nenhum
conhecimento ou espécie congénita, mas somente se tem o poder para a adquirir no
decurso do tempo. Dito isto, a nossa afirmação é a seguinte. Se a potência for rece­
bida da primeira maneira, o intelecto é pura potência, o que se prova assim. O inte­
lecto é, por sua natureza, forma e acto. Portanto, segundo esta consideração, não é
pura potência. Demonstra-se o antecedente. Na verdade, o que é razão para um outro
e é princípio de operar, diz-se acto e forma. Ora, o intelecto possível é o princípio da
operação da alma, ou seja, razão de inteligir. É, portanto, acto e forma. A maior é
evidente, porque cada um opera pela sua forma. A menor é transmitida por Aristó­
teles, neste livro, capítulo 4º, texto 5, e recomenda-se, pelo facto de que nenhuma
substância criada pode ser princípio imediato de operar. O espírito está privado de
uma potência ou faculdade intermédia pela qual se dê o acto de conhecer. Esta
faculdade não é senão o intelecto.
Quanto ao que concerne ao outro sentido da questão, existiu uma grande discus­
são sobre o assunto entre Platão e Aristóteles. Com efeito, Platão, como consta
daquilo que escreveu no Fedro, Ménon e no livro 10 de A Republica, como estava
persuadido que os nossos espíritos tinham sido procriados fora dos corpos, e que aí,
a partir do influxo das ideias, perceberam o conhecimento de todas as coisas, acre­
ditou que eles, quando morrem, levam consigo com os corpos moribundos as ima­
gens das coisas que lhes chegaram e as ciências. De tal modo que todo este conhe­
cimento perece com o comércio da matéria espessa e grosseira e, caindo em desuso,
esvai-se no esquecimento do horrível cárcere; depois renasce excitado com a che­
gada dos fantasmas. E, assim, Platão pensava que nós, quando aprendemos alguma
coisa, não aprendemos simplesmente, mas antes recordamos, não aprendemos uma
ciência nova, mas recordamos a possuída. Todavia este preceito, visto que coloca a
criação das almas antes dos corpos, já foi por nós refutado no 2º livro desta obra. Por
essa razão, omitida esta parte, que também não tem utilidade para a presente, deverá
apenas examinar-se aqui de que modo o nosso espírito como tábua rasa, sem
nenhuns traços das imagens inteligíveis, se junta ao corpo, ou melhor, de que modo
lhe são atribuídas as imagens ou as espécies pelo autor da natureza no próprio
momento da criação, como pensam certos filósofos do nosso tempo. Que assim é, na
verdade, parece demonstrar-se com os seguintes argumentos. As substâncias livres
da agregação da matéria compreendem naturalmente todas as coisas através das
formas apostas a si desde o princípio; donde, no livro As Causas, na proposição 1 0,
são chamadas inteligências cheias de formas. Portanto, as almas partícipes de razão,
Uvro Terceiro, Explicação do Capítulo VI//, Questão /, Anigo /// 509

muitas vezes tinham em si inatas as espécies de algumas coisas, sobretudo porque o


homem tem em comum com os anjos, o inteligir, como diz São Gregório, homilia 29
sobre o Evangelho. Segundo. A alma intelectiva é muito mais nobre do que a maté­
ria prima. Mas a matéria prima não é produzida por Deus sem formas. Portanto, nem
a alma intelectiva sem as espécies. Terceiro. Deus criou uma certa disposição de
todas as coisas, também ornada com as afecções que eram necessárias para as suas
funções. Ora, para que o intelecto possível trabalhe, tem necessidade das espécies.
Logo, não é criado por Deus sem elas.
Ú ltimo. Os nossos espíritos possuem dois hábitos inatos. Um, pelo qual damos
assentimento aos primeiros princípios especulativos, que é chamado hábito dos
princípios. Outro, pelo qual assentimos com os primeiros princípios práticos, que é
chamado sindérese. Portanto, visto que existe a mesma razão nas espécies inteligí­
veis, também estas nos serão gravadas. O antecedente prova-se, em primeiro lugar,
porque os hábitos são chamados naturais, somente porque são colocados em nós
pela natureza. Depois, porque também afirmam isso claramente acerca do hábito da
sindérese, quer Santo Agostinho, Sobre o Salmo 57, e Santo Epifânio, no livro 2
Contra as Heresias, tomo 2, quer S . Jerónimo, na Epístola a Demétrio, com as pala­
vras a seguintes. Existe no nosso espírito uma certa santidade natural impressa por
Deus, que residindo como que no cume do espírito, formula o juízo sobre o que é
inferior e recto. É evidente, portanto, que o nosso intelecto não é pura potência
naquele sentido de que tratámos.

ARTIGO Ili
O intelecto paciente é pura potência no género dos inteligíveis
desde a sua primeira origem

É verdade que esta opinião se afasta primeiramente da disciplina aristotélica,


como é evidente, a partir do capítulo 4° deste livro, texto 1 4, onde se diz que o nosso
intelecto é como uma tábua rasa na qual nada está marcado, o que sustenta a escola
peripatética em assentimento comum. Assim, de facto, como advertiu São Tomás,
na Suma Teológica, primeira parte, questão 79, artigo 2º, há três intelectos, divino,
angélico e humano. Divino porque é a própria essência de Deus, acto puro e sempre
puro. No que respeita a todo o ente está essencialmente em acto de intelecção, e de
modo algum em potência. O angélico e o humano, porque como não são actos puros,
é necessário que estejam em potência. Mas como a potência é dupla (uma, sempre
junta com o seu acto, como a matéria celeste com a própria forma, outra, nem sem­
pre junta com o acto que pode alcançar, como a matéria sublunar que no curso dos
tempos recebe umas formas e outras), decerto que o intelecto angélico, pela proxi­
midade do primeiro intelecto, está sempre em acto de imagens inteligíveis. O
humano, porém, porque ínfimo e sobretudo afastado do divino, no princípio é
quanto ao poder das suas imagens como uma tábua nua. Então, a partir daí, paulati­
namente, é imbuído delas, aperfeiçoado.
Por isso, deve afirmar-se de modo absoluto que no nascimento não são infundidas
espécies na alma intelectiva. O que se prova. Na verdade, se assim fosse, a alma
poderia imediatamente usá-las. De facto, o seu uso não teria necessidade da obra dos
fantasmas, porque tal como seriam apercebidas sem os fantasmas também lhe seria
510 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

perfeito o inteligir sem o seu concurso. Sobretudo, visto que tais espécies deveriam
ser infundidas pelo seu género, como as que foram colocadas nos anjos, no instante
da criação. É manifesto, de facto, que não as usamos imediatamente, visto que antes
que o próprio conceito no-lo tivesse mostrado, já algum de nós, por ordem da luz
livre da razão, agiria, obteria e mereceria, o que é falso. Não satisfará, quem disser
que o uso da razão depende dos sentidos internos, na condição de que eles sejam
tidos como separados e perfeitos. É que, uma vez que eles se aperfeiçoam paulati­
namente, acontece que, embora a alma seja provida de espécies inteligíveis, goza
todavia de livre arbítrio. Não satisfará, digo, porque, como afirmámos, as espécies
que pela sua natureza são infusas pela acção divina, de tal modo que não carecem da
acção dos fantasmas, não requerem a perfeição e a desagregação dos sentidos inter­
nos, para que a alma exerça livremente as acções de inteligir e de querer por inter­
venção delas. Segundo. Aconselha-se o mesmo, porque se as espécies nos fossem
inatas, também seriam inatos os hábitos das ciências, visto que, em ambos, a razão
seria igual. E claramente que não é assim porque ninguém experimenta em si tais
hábitos, antes os alcança com grande trabalho e dificuldade nas disciplinas que
devem ser adquiridas. Acrescente-se que, visto que as espécies inteligíveis podem
ser adquiridas por nós através do intelecto agente, intervindo a obra dos sentidos
internos, como acima está patente, não foi necessário que elas nos fossem atribuídas
por acção divina.
Além disso, São Tomás prova o mesmo, na Suma Teológica, parte 1 ª, questão 84,
artigo 5º, porque se a alma intelectiva não aceitasse as espécies a partir dos sentidos,
mas de outro lugar, ela não existiria, porque afectaria a ligação do corpo e unir-se-ia
à matéria. E não pode dizer-se que ela se unia por causa do próprio corpo, visto que
a forma não existe por causa da matéria, mas, pelo contrário, a matéria por causa da
forma. Porém, parece sobretudo que o corpo é necessário à alma intelectiva para a
sua própria função que é o inteligir, visto que, além disso, ela em si não depende do
corpo, porque se já recebeu as espécies do influxo da luz suprema, já não tem neces­
sidade do corpo para inteligir. Se, todavia, alguém opuser que a alma humana não só
se une ao corpo para inteligir, mas para compor o todo e que, embora pelo ministério
dos sentidos não receba nenhumas espécies, não será por isso uma ligação desneces­
sária. Deve opor-se que, já que cada um existe, principalmente, por causa da própria
operação, como ensina Aristóteles, livro 2, O Céu, capítulo 3º, texto 1 7, também esta
conjunção do espírito e do corpo é feita em virtude de outro fim. Não pode, contudo,
alegar-se que deva considerar-se inútil, pela parte da operação. Certamente, que não
se une ao corpo por causa da operação, visto que nem Deus, nem a natureza permi­
tem que alguma coisa exista inutilmente, também em relação àquela parte.
Respondamos agora aos argumentos que aduzimos a favor da opinião dos adver­
sários. Ao primeiro, deve dizer-se com São Tomás, na Suma Teológica, primeira
parte, questão 55 artigo 2º, que as almas humanas, dado serem formas dos corpos,
pelo seu próprio modo de ser, cabe-lhes atingir através dos corpos a sua perfeição
inteligível, isto é, através dos sentidos ligados aos órgãos corpóreos produzirem
imagens das coisas. Já as substâncias superiores, como os anjos, porque são total­
mente desligadas dos corpos e subsistentes no ser inteligível fora da matéria, foi
preciso que recebessem as imagens intelectuais das coisas, da primeira origem pelo
fluxo da luz superior.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão li, Artigo I 5/J

Ao segundo, deve dizer-se que a matéria não pode, pelas forças da natureza, per­
manecer sem forma. No entanto, o intelecto humano pode existir sem as espécies. E,
por isso, não é a mesma a razão nele e na matéria prima. Ao terceiro, deve respon­
der-se que ainda que Deus não tivesse dado ao homem as espécies para inteligir, lhe
atribuiu, no entanto, o intelecto agente, cuj a obra as produz com o ministério dos
sentidos. Isto foi bastante para que não se diga que lhe tinham sido recusadas as
coisas necessárias à intelecção e à ciência, tal como também as armas e as coisas
naturais não lhe foram dadas pela natureza como protecção do corpo. Por essa razão,
não tem de se considerar que não houve um plano do autor da natureza para as coi­
sas que dizem respeito à manutenção da vida, se, efectivamente, lhe atribui o enge­
nho e o poder como instrumento comum para procurar e para executar todas essas
coisas, como noutro ponto, a partir de Aristóteles, de Séneca e de outros autores
salientámos.
A favor da explicação do quarto argumento deve saber-se que Capréolo, no pró­
logo das Sentenças, questão 3 ao 5, contra a primeira conclusão; Viguerio Grana­
tense, no capítulo 3º das suas Instituições Teológicas e certos outros autores conside­
ram que o hábito dos primeiros princípios nos é inato por natureza. Mas esta opinião
de modo algum é do nosso acordo, e refutamo-la explicitamente no livro 1 dos Pos­
teriores. Respondemos, portanto, ao argumento, que os hábitos dos primeiros prin­
cípios, tanto aqueles que respeitam à contemplação, como à acção e à prática, são na
realidade adquiridos por nós pelo assentimento que recai acima dos primeiros prin­
cípios especuláveis e operáveis. Todavia dizem-se naturais, visto que, deste modo os
princípios por si mesmos, e pela faculdade dos seus fins, são de tal modo visíveis
que, necessariamente, assentimos quanto à espécie do acto e não a podemos negar
em pensamento. Também parece que São Tomás examinou isto na Suma Teológica,
na primeira parte da segunda, questão 5 1 , e no livro 2, Contra os Gentios, capítulo
78º, quando ensinou que o hábito dos princípios, em parte é natural, em parte é
adquirido. O que, efectivamente, referimos a partir das afirmações dos Santos
Padres, mas não deve ser interpretado acerca do hábito que é acrescentado ao inte­
lecto, porque não se distingue da própria faculdade de inteligir. A isto, efectiva­
mente, São Jerónimo chama santidade natural, porque ilustra o pensamento para
provar os princípios comuns que a norma de viver justamente contém.

QUESTÃO II
Se o intelecto paciente no homem é único em espécie ou se há vários

ARTIGO I
Que argumentos parece que demonstram que há vários

Que o intelecto paciente não é único em espécie, mas múltiplo, tentar-se-á demons­
trar com estes argumentos. A razão e o intelecto, isto é, a potência que raciocina e a
que intelige diferem entre si em espécie. Ora uma e outra faculdade é uma força
intelectiva; logo, o intelecto paciente não é uno em espécie. Prova-se a premissa
maior, primeiramente, com o testemunho de Boécio, livro 5, A Consolação, prosa 4,
512 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles

quando afirma que o intelecto está para a razão como a eternidade para o tempo. Por
isso, visto que o tempo e a eternidade se distinguem entre si, diferem também, pelo
menos em espécie, o intelecto e a razão. Além disso, porque Aristóteles, livro 6 da
Ética, capítulo 1 º, ensina que o princípio, pelo qual a alma necessariamente percebe,
distingue-se daquele pelo qual opina e raciocina.
O intelecto especulativo e o intelecto prático diferem entre si em espécie. Há,
portanto, vários intelectos distintos em espécie. Prova-se a premissa menor, porque
uma diferente razão do objecto diferencia a natureza da potência e o objecto do
intelecto especulativo é o verdadeiro. Com efeito, a contemplação versa sobre a
verdade, mas o objecto do intelecto prático é o bom ou o mau porque o intelecto
prático ordena e dirige a obra e também o bom ou mau que deve ser acolhido ou
rej eitado. Confirma-se a força deste argumento, porque há menos diferença mútua
entre o objecto do intelecto angélico e o do humano que é, em absoluto, o verdadeiro
inteligível, do que entre o objecto do intelecto especulativo e do prático de um
mesmo homem. Mas o intelecto humano e o angélico diferem em espécie, assim
como o homem e o anjo. Portanto, também o intelecto prático e o especulativo.
Por último, os apetites superior e inferior, no testemunho de todos os filósofos,
diferem em espécie. Portanto, também a razão superior e a inferior, visto que nos
dois casos há nela um conflito por causa da distinção. Acrescenta também que a
sindérese, de que fizemos menção na questão anterior, não parece ser um hábito,
como aí dissemos. Na verdade Aristóteles, no livro 6 da Ética, capítulo 3º, quando
enuncia os hábitos intelectuais não enumera, entre eles, a sindérese. Parece, por­
tanto, que a sindérese é alguma potência intelectiva e decerto distinta do intelecto,
visto que é dividida por São Jerónimo, ao capítulo 1 º de Ezequiel, em confronto com
a faculdade apetitiva e a racional . Por isso, parece que deve reconhecer-se que o
intelecto não é uma potência em espécie, mas várias.

ARTIGO II
No homem, o intelecto paciente é único em espécie.
Os argumentos aduzidos contra a parte contrária não são concludentes

Deve afirmar-se, todavia, com a escola comum dos filósofos que o intelecto
paciente do homem é uma faculdade em espécie. Também, como expusemos no
primeiro livro desta obra, as potências não se distinguem segundo a variedade das
condições particulares que estão presentes no objecto, mas segundo a razão comum
que todas as coisas contidas no objecto obtêm por si mesmas. Se esta razão for una,
será una a potência. E todas as coisas que caem sob o intelecto possível fazem-no
sob uma razão de verdade e de inteligibilidade, tal como também sob um modo de
mudar a potência, como ali expusemos. Por isso, deverá declarar-se que o intelecto
possível é uma só potência.
Respondamos, portanto, aos argumentos que consideravam recomendável o
oposto. Ao primeiro, dizemos que a mesma faculdade é chamada não só intelecto,
mas também razão. Intelecto, porque, simplesmente, apreende a verdade inteligível.
Razão, visto que raciocina progredindo de um termo para outro. Daí que os anj os,
que percebem as coisas com a simples intuição, se chamem inteligências . Mas os
homens, que procedem inquirindo das mais conhecidas para as desconhecidas,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VII/, Questão 1/, A rtigo 1/ 513

dizem-se racionais. Por isso, tal como o intelecto é comparado à eternidade, a razão
é, por Boécio, comparada ao tempo, porque como a eternidade é estável, assim tam­
bém o é o intelecto, a seu modo, quando capta a noção das coisas sem discurso. E
assim como o tempo consiste no fluxo, também a razão passa de uma coisa para
outra. Para explicar este ponto de Aristóteles, deve dizer-se que nada mais foi aí
ensinado senão que os princípios com que conhecemos as coisas necessárias e as
prováveis e pelos quais pensamos, não são os mesmos hábitos, mas diferentes. E,
assim, nada se trata nesse ponto sobre a distinção da potência intelectiva.
Ao segundo, deve dizer-se que aquelas coisas que acontecem ao objecto por aci­
dente não mudam a potência. Com efeito, por exemplo, o grande e o pequeno, que
acontecem ao objecto colorido, distinguem a faculdade de ver. Os objectos do inte­
lecto prático e do especulativo apenas diferem por uma razão acidental. De facto, um
e outro por si apenas se ocupam da verdade inteligível, embora o intelecto especula­
tivo não regule a verdade apreendida para a acção. O prático, no entanto, regula-a e
concerne ao bom e ao mau, mas não primeiramente e por si. Regulando-se ou não
regulando-se pelo intelecto, estão para a verdade inteligível por acidente. É líquido,
portanto, que os intelectos especulativo e prático não são vários, mas são uma
mesma potência. Para confirmação deste argumento tem de negar-se que há mais
diferença entre o intelecto humano prático e o especulativo, do que entre o intelecto
humano e o angélico. Efectivamente, o intelecto humano tende para a verdade, que
possui dependência e relação com a fantasia e com os sensíveis pelos quais a
absorve. Mas o angélico tende para a verdade, enquanto recebida pelo influxo de luz
superior. Esta razão, altera o objecto não por acidente, como acerca do prático e do
especulativo dissemos, mas por si, e portanto introduz uma diferença específica.
Ao terceiro, deve responder-se que o apetite inferior, visto ser uma potência mate­
rial, difere necessariamente em espécie do superior, isto é, da vontade, que é uma
faculdade imaterial, como em devido lugar foi mais claramente declarado por nós.
Mas a razão superior e a inferior é a mesma faculdade de inteligir, pois debruça-se
acerca do mesmo objecto do intelecto e da sua razão formal sobre a qual há pouco
falámos, ainda que receba nomes diferentes consoante um ou outro modo por que é
considerada. Chama-se, portanto, razão superior porque contempla a verdade imutá­
vel e divina, inferior quando considera as coisas inferiores. Donde, porque a verdade
imutável é mais forte e mais pura do que a verdade criada, e através dela somos
iluminados para a compreender e para nos aperfeiçoar, Santo Agostinho compara a
razão superior ao homem varão que comanda e ensina a mulher, a inferior à mulher
que é governada e regida pelo varão. Leia-se São Tomás, Suma Teológica, parte 1ª,
questão 79, artigo 9º, e no 2º livro das Sentenças, distinção 24, questão 2, artigo 2º;
Ricardo, no mesmo, questão 4, sobre o segundo principal . Ao que no mesmo argu­
mento se refutava relativo à sindérese, rejeitada a opinião daqueles que pens aram
que a sindérese é uma certa potência mais alta quanto à razão, deve resp onder-se,
com S. Tomás, artigo 3º da questão citada anteriormente, que a sindérese é um certo
hábito da faculdade intelectiva. Com efeito, assim como a razão nas cois as q ue per­
tencem à especulação é deduzida de certos princípios conhecidos por si, aos q uais se
dá o nome de hábito do intelecto, também é necessário que a razão práti ca _ par�a _de
alguns princípios por si conhecidos, tal como « O mal não deve ser feito » CUJ O � �
h bi o
cula veis
se chama smderese.
,
· Al em
, dºisso, porem,
, como o h a'bº1to d os pnn c i'pio s espe
·
514 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

não requer no homem uma potência diferente do intelecto, assim também não o
requer o hábito dos princípios, que é a sindérese, para a prática do que deve ser feito.
Porém, São Jerónimo separa-a da parte racional, não porque a separe do intelecto,
mas porque chama intelecto à parte racional, enquanto atende às coisas menores,
mas sindérese enquanto atende às maiores. E não obsta que Aristóteles, no livro 6 da
Ética, capítulo 3º, não fizesse menção expressa da sindérese, de entre outros hábitos
intelectuais. De facto, não enumera aí todos pelo nome, visto que não recordou, de
um modo geral, nenhum hábito prático que trata dos princípios, embora sob o nome
de hábito tivesse encarado todos.
Dos restantes, S . Boaventura, no 2º livro das Sentenças, distinção 39, artigo l º,
questão 1 , e o Alense, parte 3 da Suma Teológica, questão 27, membro 2, artigo 3º
consideram que a sindérese não se encontra no intelecto, mas na vontade. Para o que
também pende Henrique, Quodlibet 1 , questão 1 8 . E pode-se prová-lo, na medida
em que a função própria da sindérese é instigar ao bem. É evidente, porém, que o
bem, enquanto tal, não pertence ao intelecto, mas à vontade. Todavia deve acolher­
-se a opinião contrária que o argumento de São Tomás, acima aduzido, prova, e que
o mesmo Santo Doutor seguiu, não só na Suma Teológica, parte 1 ª, no local citado,
mas também na primeira da segunda, questão 94, artigo 1º, e com frequência noutros
locais; Alberto Magno, na Suma do Homem, tratado da sindérese, questões 1 e 3, e
outros tantos, de entre os antigos, como não poucos de entre os mais recentes. O
mesmo considera São Jerónimo, no ponto citado, e ao capítulo 1 º de Ezequiel,
quando chama sindérese à centelha superior da razão e compara-a à águia que vê
mais acutilantemente que as restantes aves e voa mais alto. Também S. B asílio,
homilia 1 , sobre os Provérbios, e Santo Agostinho, no livro 2, O Livre A rbítrio,
capítulo 20º, chamam-lhe juízo natural, pelo qual distinguimos as coisas boas das
coisas más. É evidente, porém, que o juízo se refere à potência intelectiva. E, por
outro lado, o mesmo Santo Agostinho, no livro 1 2, A Trindade, capítulo 2º, afirma
que parece que a sindérese e a razão são o mesmo. Advirta-se todavia, que a sindé­
rese não foi aceite por estes Padres como hábito do intelecto, mas, como entretanto é
costume, como a própria faculdade de inteligir ou luz natural, enquanto mostra que o
bem deve ser seguido e o mal afastado. Ao argumento a favor da opinião contrária à
daqueles que consideram que a sindérese pertence à vontade, deve responder-se que
a sindérese não tende para o bem, sob a razão do bem, mas sob a razão do verda­
deiro prático, contido sob o objecto do intelecto. Diz-se, todavia, que instiga ao bem,
que deplora o mal e sussurra, por causa das normas plenas de verdade e imutáveis,
que propõe à vontade que as não viole, que avisa continuamente e condena os viola­
dores, por muito perdidas que sejam as vidas. Leia-se São Tomás, questão 1 7 , A
Verdade, artigo 3º.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V//J, Questão //J, Artigo I 515

QUESTÃO III
Se o verbo é produzido através da intelecção, ou não

ARTIGO I
Com que argumentos se parece mostrar que não é produzido

Há quem tente persuadir, com os seguintes argumentos, a parte negativa. Pri­


meiro. Se o verbo fosse produzido pela intelecção, a intelecção seria verdadeira­
mente uma acção. Ora isso não sucede, porque toda a acção verdadeira se dá em
conjunto com o movimento, como consta do livro 3 da Física. Logo, pela intelecção,
não é produzido o verbo. Segundo. Nada é produzido pelas acções imanentes, mas a
intelecção é uma acção imanente. Portanto, o verbo não é gerado por ela. A maior
prova-se, a partir de Aristóteles, livro 6, Ética, capítulos 4º e 5º, Grande Moral,
capítulo 35º, e Metafísica, capítulo 9º, texto 1 6, em que a diferença que se estabelece
entre as acções imanentes e as transitórias, está em que pelas transitórias algo é
produzido, como o calor pelo aquecimento, a casa pela edificação. Mas pelas ima­
nentes nada se produz. Onde também acrescenta que a acção imanente é o fim da
própria operação, mas a transitória, de facto, muito pouco. Certamente que a casa é
posterior à edificação, mas se o verbo é gerado através da intelecção, decerto que
isso seria necessariamente posterior à intelecção, visto que a geração é como que o
caminho para aquilo que é gerado. E confirma-se, de novo, a força deste argumento,
porque, segundo o testemunho de Aristóteles, no livro 1 da Ética, capítulo l º, uma
vez que alguma coisa é feita através da operação, a própria obra é mais nobre do que
a operação. Por isso, se o verbo é produzido através da intelecção, ele será mais
nobre que a intelecção, o que no entanto se prova faltar à verdade, porque a felici­
dade, como o mesmo autor afirma, no livro 1 0 da Ética, capítulos 7º e 8º, se situa na
contemplação das substâncias imateriais. No entanto, não pode consistir, se algum
acto mais nobre do que ela for produzido pela potência intelectiva.
Terceiro. Se a intelecção pela sua natureza, como alguns pretendem, consistisse
na produção do verbo, não haveria nenhuma intelecção que não fosse geradora de
verbo, tal como todo o aquecimento é produção de calor e não é possível dar-se
nenhum aquecimento que não produza calor. Ora, há muitas intelecções que não são
geradoras de verbo; portanto, a intelecção não é, por si, produtora de verbo. Prova-se
a premissa menor. Primeiro, porque o Filho e o Espírito Santo, pela sua intelecção
não geram o Verbo, como ensina a fé. Depois, porque nem as substâncias separadas
produzem o verbo, enquanto se inteligem a si próprias. Isso, com efeito, seria total­
mente inútil, pois se o verbo for produzido para manifestar ao intelecto a presença da
coisa conhecida, as substâncias apresentam-se a si próprias no próprio intelecto, de
modo íntimo. Além disso, porque muito menos parecem produzir isso os bem­
-aventurados pelo conhecimento intuitivo da essência divina. Na verdade, se neles
não se dá a espécie impressa, pela qual vêem a Deus, porque nenhuma imagem idó­
nea para representar claramente a divindade pode ser dada, por igual razão nem uma
imagem expressa deverá ser dada; sobretudo, porque esta exprime mais distinta e
claramente a coisa, do que aquela. Acrescente-se que, visto que a intelecção é, pri­
meiro, determinada para o verbo e daí para o objecto, se segue que a visão beatífica
não é levada primeiro para Deus, o que não deve ser admitido. Já, na verdade, entre
516 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e A ristóteles

os bem-aventurados e a divina essência, não existiria tanta conjunção quanta deve


haver naquela suma felicidade.
Quarto. Argumenta-se principalmente. Dado que o verbo e a intelecção têm uma
ordem entre si, se na intelecção se gerar o verbo, ou o verbo existia por causa da
intelecção ou a intelecção por causa do verbo. Não pode afirmar-se o primeiro, por­
que para inteligir é necessária a espécie inteligível. Mais. Porque se fosse preciso o
verbo para conhecer a intelecção, seguir-se-ia que o intelecto, depois de ter sido
impresso com a espécie inteligível, permaneceria ainda em potência essencial para
inteligir, o que o Filósofo nega, no livro anterior, capítulo 1 º, texto 5. A consequên­
cia prova-se, porque nesse caso a faculdade de inteligir necessitaria de uma certa
nova forma, quer dizer, do verbo produzido para inteligir. Mas que não pode ser
admitido o segundo, está patente na confirmação do segundo argumento anterior­
mente aduzido, onde demonstrámos que a intelecção é mais nobre do que o verbo e
que por isso o verbo não pode ser o fim da intelecção.
Quinto. Se através da intelecção fosse produzido o verbo, também, por acção dos
sentidos, tanto internos, como externos, seria gerado algum fim que correspondesse
em proporção ao verbo, e chamar-se-ia conhecimento expresso da coisa sensível.
Mas isso não é assim; portanto, etc. Prova-se a premissa menor, porque, como
Aristóteles ensinou, no 2º desta obra, capítulo 5º, texto 59, o visível, dado estar nas
coisas, delimita a visão, mas o inteligível somente enquanto está no intelecto. E se o
referido conhecimento fosse produzido pelo acto de ver, certamente que a coisa vista
através dele estaria na potência de ver, não noutro lugar, e a coisa compreendida, no
próprio intelecto.
Por último. Nenhum fim interno é produzido pela acção da vontade, donde, tam­
bém não o é pela acção do intelecto. Prova-se a premissa menor, primeiro, porque se
algo fosse produzido, isso seria o amor, e o amor é próprio do acto de amar, mas não
um fim produzido por si próprio. Segundo. Porque para benefício do seu fim, a coisa
amada estaria no amante, o que é falso, quer porque não reside lá pela sua essência,
como é evidente, nem pela sua semelhança, visto que a semelhança não pertence à
vontade, mas ao intelecto, quer, também, porque então o amante não estaria na coisa
amada, mas antes a coisa amada no amante. É célebre o oposto disto, entre os teólo­
gos, a partir de Dionísio, afirmando no capítulo 4º de Os Nomes Divinos que o amor
produz o êxtase, a saber, põe a coisa fora de si, isto é, na coisa amada; e de S. Ber­
nardo, no tratado De praecepto et dispensatione, no ponto em que afirma que a alma
é um ser mais verdadeiro quando ama do que quando habita ou anima, de acordo
com aquela sentença de nosso Cristo Salvador, em Mateus capítulo 6º: Onde está o
teu tesouro, aí está o teu coração.

ARTIGO II
Explicação da questão

Para explicar a dificuldade apresentada devem ser sublinhadas algumas coisas. A


primeira é que, verbo, em latim, Àóyoc;, em grego, tem um uso múltiplo e foi tomado
de modo diverso por teólogos e por filósofos, como em Santo Atanásio, no tratado
As Definições; S. Basílio, no primeiro capítulo de João; S. Gregório de Nazianzo,
livro 4 da sua Teologia; Eusébio de Cesareia, no livro Contra Marcelo; São Damas-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão Ili, Artigo li 51 7

ceno, no livro 1 da Fé Ortodoxa, capítulo 1 7º; Santo Agostinho, no 1 5 , A Trindade,


capítulos 1 0º e 1 1 º, e no livro De cogitatione verae vitae capítulo 1 4º; S . Tomás, na
Suma Teológica, l ª parte, questão 34, artigo l º e outros. Todavia, nas restantes
noções de verbo que omitimos no presente, há um duplo verbo, a saber, o do corpo e
o do coração, ou o vocal e o mental, que Santo Agostinho, no 1 5 de A Trindade, no
ponto citado, explica do modo a seguir. Em nós há duas bocas, uma do corpo, outra
do coração, como é evidente a partir das palavras de Cristo, Mateus, 1 5 : 'Não é o
que entra pela boca que enfraquece o homem, quando se trata da boca do corpo, mas
o que sai da boca, que enfraquece o homem' , o que se entende sobre a boca do cora­
ção. E, mais abaixo: 'do coração saem os maus pensamentos' . Portanto, tal como há
uma dupla boca também há um duplo falar e, por isso, um duplo verbo, um da voz,
outro da mente, visto que falar não é senão proferir a palavra. Porém, a denominação
de verbo cai mais propriamente no verbo da mente, do que no da voz, porque este
verbo é dito como sinal daquele.
A segunda coisa é que, toda a operação é originada por uma forma, por interven­
ção da qual o que opera se constitui em acto e manifesta a própria acção. A terceira é
que, para um qualquer conhecimento, é necessário que a coisa conhecida seja pre­
sente à potência cognoscente, não só como princípio obtido do seu acto, mas tam­
bém no ser objectivo e delimitado. Isto é, primeiro, evidente no conhecimento dos
sentidos externos, que exige a presença daquilo que percebe. É evidente, também,
nas restantes potências cognoscentes, quer sejam as faculdades internas de sentir,
quer o intelecto. Com efeito, ninguém imagina ou intelige sem que interiormente
apresente a si a coisa conhecida ou a ponha diante de si.
Quarto. Todo o conhecimento, de acordo com o sentido comum dos filósofos é
uma certa assimilação entre a coisa conhecida e a cognoscente, o que acontece sem
dúvida porque o conhecimento é originado pela semelhança impressa, e por isso é
que através do conhecimento é produzida a semelhança expressa da coisa. Aristóte­
les quis dizer isto, neste livro, capítulo 4°, texto 1 6 , e capítulo 8º, textos 37 e 38,
quando disse que o intelecto em acto (mas o mesmo diz acerca do sentido) é a pró­
pria coisa que é inteligida. De facto, o intelecto não se toma segundo o ser real a
própria coisa que ele percebe, mas segundo uma certa assimilação ou expressão. A
isto diz respeito o que Santo Agostinho, no livro 1 4, A Trindade, capítulo 1 7º
afirma, a saber, que então será perfeita a semelhança de Deus na mente, uma vez que
terá sido perfeita a visão de Deus, de acordo com o passo da segunda carta de João
3, dado que dispôs que seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é.
Colocadas assim as questões a partir da 2ª hipótese, temos que as espécies inteli­
gíveis têm de existir no intelecto, que são os princípios de intelecção. A partir da 3ª e
da 4ª, que deve admitir-se o verbo mental, o que se conclui do seguinte modo. Uma
intelecção qualquer não só requer um objecto presente, mas é uma certa assimilação
entre a potência intelectiva e a coisa inteligida. Mas esta assimilação consiste em
exprimir e representar a coisa conhecida, e essa expressão é feita através do verbo da
mente, que não é senão a espécie expressa da coisa. Portanto, o verbo é gerado por
uma qualquer intelecção. E, conduzidos por este argumento, consideramos, acima de
tudo, que não há absolutamente nenhuma intelecção, que seja levada para a coisa
presente, e intimamente junta segundo o ser real pela qual não se produza o verbo,
visto que inteligir, pela sua própria natureza e essência, não é senão formar e expri-
518 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

mir a coisa em si própria de forma inteligível, o que acontece pelo conhecimento


gerado ou pelo verbo. Donde, São Tomás, primeira parte da Suma Teológica, ques­
tão 47, artigo 1 º, afirmar, que quando alguém intelige, pelo facto de inteligir, algo
surge dentro dele, que é a concepção da coisa inteligida, e repetir o mesmo, em A
Potência, questão 9, artigo 5º.
Depois, aceita-se que a presença do objecto, por mais íntima que sej a, não impede
que através da intelecção se gere o verbo. E, de facto, a essência divina está presente
no intelecto Paterno, e todavia o Pai ao pensá-la produz o Verbo; portanto, por este
princípio nada impede a produção do verbo. Terceiro. Prova-se o estabelecido da
seguinte maneira. Não repugna mais dar-se o aquecimento sem calor, do que a inte­
lecção sem o verbo, mas isso repugna tanto que de modo algum é possível; logo
também isto. Prova-se a premissa maior, porque como o aquecimento, pela sua natu­
reza e essência é a produção de calor, assim também a intelecção é a geração do verbo.
Há também quem invoque outro argumento, colocando o verbo na mente, sem
dúvida porque o intelecto em si próprio como numa imagem intui o objecto. Pen­
sam, efectivamente, que o verbo não só é aquilo pelo qual a coisa expressa por si
própria é inteligida, mas que o próprio verbo, primeiro, também determina a intelec­
ção. Parece ser essa a opinião de São Tomás, quer noutros pontos, quer em A Potên­
cia, questão 9, artigo 5º; e que o mesmo pensam os mais ilustres tomistas, mostra
Turriano, nos seus Comentários sobre a Trindade, ao artigo 1 º, questão 27, na dis­
puta 5 de São Tomás. Mas a escola comum dos dialécticos rejeita este preceito afir­
mando que, nem a espécie, nem o conceito são compreendidos pelo nosso intelecto,
a não ser por um acto reflexivo. Por isso, o conceito é apenas um sinal formal e é
aquilo pelo qual percebemos a coisa como objecto, mas por si mesmo ele determina
muito pouco a intelecção directa.
Para que seja evidente por que acção se produz o verbo, não se ignorará que
Escoto, no 1 º livro das Sentenças, distinção 2, questão última, e na distinção 27,
questão 1 , e no Quodlibet, questão 1 considera que o nosso intelecto constituído em
acto primeiro através da espécie inteligível, produz uma dupla acção, a primeira das
quais é chamada inteligir e não é produtora de nenhum termo; mas a segunda é cha­
mada enunciar, sendo por esta, diz ele, que é produzido o verbo. O que prova, por­
que como o inteligir é uma acção imanente e, portanto, através dela nada se produz,
outra acção terá de ser produzida, pela qual seja gerado o verbo, designadamente, a
acção de proferir. Também certos tomistas estabelecem na nossa mente três actos: a
acção de inteligir, o conhecimento e o verbo mental, de tal maneira que pela inte­
lecção se produz o conhecimento e pelo conhecimento o verbo. Mas nenhuma destas
opiniões nos parece verdadeira. A primeira não, porque multiplica as coisas sem
necessidade, e defende a acção de inteligir, que não produz o verbo, o que há pouco
refutámos. A segunda também não, porque se pelo conhecimento intelige o conceito,
não o distingue devidamente do verbo, visto que é globalmente o mesmo. Mas se o
intelecto significa alguma acção, labora no mesmo vício da afirmação anterior,
quando estabelece a intelecção sem o verbo, por meio da qual, sem dúvida, supõe
que o conhecimento é produzido. Além disso, faz de uma acção o fim da outra, o
que é alheio à verdade. Por isso, deve estabelecer-se que o verbo é produzido por um
qualquer acto de inteligir, ainda que a um tal acto, porquanto se ordena para a pala-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão III, Artigo Ili 519

vra, que por si próprio é gerada, com um vocábulo particular, se dê o nome de enun­
ciado.
Mais ainda, o verbo é significado, por São Tomás, com muitos nomes. Ora é
chamado intenção da coisa inteligida, como no primeiro livro Contra os Gentios,
capítulo 54º; ora intenção inteligida, como no livro 4 da mesma obra, capítulo 1 1 º;
noutras ocasiões, concepção do intelecto, como no mesmo livro, capítulo 1 2º. São
cinco os pontos respeitantes à razão do verbo, como se recolhe também de São
Tomás, A Verdade, questão 4, e na primeira parte da Suma Teológica, questão 34
artigo 1 º. Primeiro. O verbo é algo na mente. Donde Santo Agostinho, livro 5, A
Trindade, capítulo 8º, afirmar que o verbo se conhece através dos signos corporais,
que usamos com a mente. Segundo. O verbo é algo gerado pelo intelecto, como que
um filho, gerado através da acção inteligível que é o acto de dizer. Donde, a afirma­
ção de Santo Agostinho, livro 9, A Trindade, capítulo 8°: que em nós temos o con­
ceito verídico das coisas, enquanto verbo, e ao falar gera-se dentro, e ao nascer não
se afasta de nós. Terceiro. O verbo é a semelhança da coisa e da sua imagem, como
testemunha Santo Agostinho, livro 1 5 , A Trindade, capítulo 1 2º: o verbo, diz ele, é a
semelhança da coisa conhecida, da qual é gerado, e é a sua imagem. Quarto. O verbo
é expressivo da coisa, tal como o testemunha Santo Agostinho, no livro 1 5 de A
Trindade, capítulo 1 2º: o verbo, que soa de fora, revela o verbo que se esconde den­
tro, assim, o verbo, que se esconde dentro, dá nome à coisa de que é verbo. Donde,
atente-se que o verbo importa uma dupla relação, uma de expressão e outra de signo.
Aquela de modo principal, esta de modo secundário; aquela para dizer, esta para o
obj ecto significado. Quinto. Ele não permanece quando cessa o acto de conhecer,
como também afirma Santo Agostinho, no mesmo livro, capítulo 1 1 º.

ARTIGO III
Resolve-se o primeiro argumento proposto no início da questão
e estabelece-se que a intelecção não é uma qualidade
mas uma verdadeira e própria acção

A favor da explicação do primeiro argumento, de entre aqueles que estão contidos


no início da questão, deve atentar-se que a controvérsia entre teólogos e filósofos é,
se a intelecção é uma verdadeira acção ou, antes, uma qualidade. Ora, que é uma
qualidade, consideram Henrique de Gand, Quodlibet 1 1 , questão 3; Escoto, no 1º
livro das Sentenças, distinção 3, questão 6, e no Quodlibet 1 3 , artigo 6º, e os seus
seguidores; Durando, no 1º livro das Sentenças, distinção 27, questão 4; Ockham e
Gabriel, questão 2; Capréolo, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 , questão 2,
artigo 3º ao 1 2º; Herveu, no Quodlibet 2, questão 8; Egídio, De mensura Angelorum,
questão 1 0; o Ferrariense, livro 2, Contra os Gentios, capítulos 9º e 82º; Caetano,
nos Commentários à Suma, 1ª parte, questão 79, artigo 2º; Soncinas, livro 9, Metafí­
sica, questão 2 1 ; Javelo, no mesmo lugar, questão 7, os quais apoiam aquele pri­
meiro argumento.
Todavia, a opinião contrária, que estabelece que a intelecção e que outras acções
imanentes não são qualidades mas verdadeiras acções é a aristotélica e a verdadeira.
Com efeito, Aristóteles, livro 10, Ética, capítulo 3º, ensina que as operações da vir­
tude e que a felicidade não são qualidades. Portanto, visto que no mesmo livro,
520 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

capítulo 7º põe a felicidade na contemplação, que é a intelecção, pensa claramente


que a intelecção não é uma qualidade. Além disso, noutros pontos, conta a intelec­
ção entre as acções, como neste livro, capítulo 4°, texto 4, e livro 1 2, Metafísica,
texto 1 3, quando, a partir do facto da nossa intelecção não depender do corpo, mos­
tra que em nós é produzida alguma acção separada do corpo. Acrescente-se o sen­
tido comum dos intérpretes que na categoria da acção dividem as acções em transiti­
vas e imanentes, em cujo número estão todas as acções e as volições. Confirma o
mesmo o argumento de que a acção não é senão o acto do agente, enquanto agente, o
que não parece de forma alguma poder negar-se que se ajusta às acções imanentes.
Portanto, ao argumento a favor da opinião contrária, concedida a premissa maior,
deve ser negada a menor, e para sua prova afirmar que nem toda a acção verdadeira
acontece ligada ao movimento. Se todavia a iluminação momentânea é uma verda­
deira acção, ela não se apresenta ligada a um movimento. Por isso, pertence apenas
às acções sucessivas, quer estas sej am acções físicas, como o calor, quer não, como
as acções com as quais tendemos para os hábitos espirituais mediante acções contí­
nuas e sucessivas.
No que verdadeiramente respeita ao verbo, é opinião comum dos autores que ele
é propriamente uma qualidade, isto é, uma disposição, porque bem ou mal dispõe o
substrato, e pela sua natureza reclama causas fáceis de expulsar, de tal modo que,
cessando a intelecção pela qual é produzido, de imediato desaparece, como afirmá­
mos a partir de S anto Agostinho, ao fim do artigo anterior.

ARTIGO IV
Resolvem-se os restantes argumentos do primeiro artigo

Ao segundo argumento deste mesmo artigo deve responder-se, que através da


acção imanente nada pode ser produzido fora, isto é, que nenhuma obra externa é
produzida. E que, além disso, a acção imanente é chamada o fim último da operação,
quer porque não se ordena para uma obra externa, quer porque não é por sua causa
que é produzida através dela. Tal como uma acção transitiva, sobretudo a que se
chama empreendimento, como a construção. Com efeito, a intelecção não existe por
causa do verbo, mas, pelo contrário, o verbo por causa da intelecção. Além disso
Aristóteles, no livro 1 da Ética escreveu que a obra é mais nobre que a operação, o
que não deve ser compreendido acerca de toda a operação, mas apenas da transitiva
e do empreendimento.
Ao terceiro, deve ser concedida a premissa maior, e deve ser negada a menor, e à
sua primeira confirmação dizer, que através do inteligir divino essencial, isto é,
através da intelecção divina comum às três pessoas, o Verbo não é gerado. É gerado
todavia através do inteligir nocional, que é próprio do Pai. E, porque o inteligir
essencial e o nocional são o mesmo na realidade, demonstra-se, além disso, que não
se dá nenhuma intelecção, pela qual não se produza o verbo. Para explicar a segunda
confirmação, deve dizer-se com o Ferrariense, Contra Gentes, capítulo 53º e Silves­
tre, no Conflato, questão 27, que os anjos quando se inteligem formam o verbo. Com
efeito, não se defende o verbo por forma a que a coisa esteja de qualquer maneira
presente no intelecto, mas para que íntima e inteligivelmente esteja presente, quer
dizer, na própria intelecção, através da sua imagem expressa e do conceito, princi-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão Ili, Artigo IV 52 1

paimente porque o acto de inteligir dá-se necessariamente a seguir à assimilação,


como dissemos. Ao terceiro, respondemos com Capréolo, no primeiro livro das
Sentenças, distinção 29, questão 2, que também os bem-aventurados ao ver a Deus
geram o verbo, o que o Ferrariense também considera provável, no livro 1 , Contra
os Gentios, capítulo 53º. Todavia, não existe na espécie impressa e na expressa a
mesma razão da essência divina, porque somente se defende aquela a fim de que a
coisa conhecida se una ao intelecto, união que a essência divina, por si mesma,
mostra abundantemente. Já o verbo sim, porque a própria natureza da intelecção o
exige. Por isso, não consideramos provada a opinião daqueles que pensam que nos
bem-aventurados não se produz a espécie impressa da divina essência, porque
nenhuma imagem pode com aptidão representar o ser divino. Na verdade, ainda que
nenhuma imagem o refira infinitamente e em pé de igualdade, pode todavia existir
alguma que seja produzida pela própria coisa, mediante a qual seja representada de
modo limitado, e conforme possa ser discernido pelo intelecto criado, que é o verbo
mental. E daqui não se segue que os bem-aventurados não podem ser conduzidos
para Deus de modo imediato pela imediação do objecto. Com efeito, a intelecção
não é determinada para o verbo, mas para a coisa conhecida.
Ao quarto argumento deve responder-se, que o verbo existe por causa da intelec­
ção, não como que lhe seja exigido como princípio efectivo - para isso é suficiente o
intelecto e as espécies - mas porque nada pode cair sob a intelecção cuja imagem
expressa não sej a formada por quem intelige. Nem, além disso, se deve considerar
que o intelecto enformado pela espécie inteligível permanece ainda na potência
essencial para inteligir. Pois o verbo não é forma que antecede o acto de inteligir,
mas quando o intelecto obtém primeiro a espécie da coisa, imediatamente pode obter
por ela a intelecção pela qual o verbo é gerado, e não se encontra em potência essen­
cial para ela, mas somente em potência acidental.
Ao quinto, São Tomás, na primeira parte da Suma Teológica, questão 75, artigo
2º ao terceiro, e no Quodlibet 3, artigo 9º ao segundo, concede que se dá algo pro­
porcional ao verbo nas acções dos sentidos internos, mas que pelas acções dos senti­
dos internos nada se produz. O mesmo afirma Capréolo, no primeiro livro das Sen­
tenças, distinção 27, questão 2; Herveu, tratado Do verbo questão 2, artigos 1 º e 2º.
Nós, todavia, concedemos, em absoluto, a premissa maior. De facto, é comum a
todo o conhecimento, tanto do intelecto, quanto do sentido, quer seja interno, quer
seja externo, ser produzida através da assimilação e expressão da coisa conhecida.
Portanto, deve ser negada a premissa menor, e em sua confirmação dizer, que o
pensamento de Aristóteles neste ponto é que o sentido externo é levado para o
objecto, enquanto pela parte da coisa ele está presente, mas que o intelecto é levado
para o objecto, enquanto nele está contido segundo o conhecimento expresso, não
como se esta coisa também não estivesse no segundo modo no sentido externo, mas
porque o sentido requer, além disso, a presença externa da coisa, que cai sob o seu
conhecimento, o que o intelecto não reclama. Por isso, inteligimos tanto em pre­
sença, como na ausência.
Ao sexto, respondemos com São Tomás, na primeira parte, Suma Teológica,
questão 37, artigo 1 º; e com Caetano, no mesmo ponto; com o Ferrariense, no livro 4
Contra os Gentios, capítulo 1 9º; Capréolo, no primeiro livro das Sentenças, distin­
ção 1 O, questão 1 , artigo 2º. Assim como pela intelecção é gerado o verbo no qual se
522 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

encontra a coisa compreendida objectivamente, como na sua imagem, assim também


pelo acto de amar é produzida no amante uma certa impressão do obj ecto amado,
segundo a qual a coisa que é amada, se diz que está a seu modo, no amante, que é o
fim; porque carece de nome próprio, costuma chamar-se amor, impulso, afecção ou
inclinação para a coisa amada. Portanto àquilo que referimos contra a parte contrá­
ria, deve dizer-se que aquele fim produzido pela acção de amar, também se chama
amor, embora num significado mais lato e que, em razão deste fim, a coisa amada
está no amante segundo uma conveniência e proporção. O que não obsta que ao
mesmo tempo a coisa amante esteja na amada, visto que para ela é impelida e
atraída.

QUESTÃO IV
De que maneira as espécies inteligíveis, a intelecção,
o verbo e o objecto diferem entre si

ARTIGO I
A intelecção distingue-se realmente da espécie inteligível

Quando o intelecto intelige alguma coisa, acorrem principalmente quatro ele­


mentos que têm de ser considerados, a espécie inteligível, a intelecção, o verbo e a
coisa inteligida. Teremos de examinar neste ponto de que modo elas se ajustam e
divergem entre si. E, primeiramente, no que respeita à espécie inteligível e à intelec­
ção. Egídio, no Quodlibet 3, questões 12 e 1 3 ; Auréolo, segundo Capréolo, no 1 º
livro das Sentenças, distinção 35, questão 1 ; Nifo, livro 5 , O Intelecto, capítulo 9º, e
outros de entre os quais Escoto, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3, questão
7, consideram que a espécie e o acto de inteligir são o mesmo. O que parece con­
cluir-se com estes argumentos. A espécie é posta no intelecto para lhe mostrar o
objecto presente segundo o ser inteligível. Ora, a intelecção apresenta-o. Logo, a
intelecção é a espécie. Segundo. Onde se dá uma mesma noção do objecto, também
se dá o mesmo ser. Ora, a espécie e a intelecção tendem para o objecto sob a mesma
razão formal . Têm, pois, o mesmo ser e, portanto, não são duas coisas.
Godofredo partilha a mesma opinião, Quodlibet 4, quando se esforça por provar
que inteligir não é senão receber a espécie no intelecto e, por isso, que a espécie
inteligível, quando recebida, é o próprio acto de inteligir. Prova isto do modo
seguinte. O ser inteligido está para o inteligível como o inteligir para o que intelige.
Mas ser inteligido a respeito do objecto inteligível é significado como uma paixão e,
todavia, na realidade, é uma verdadeira acção, porque o inteligível nada suporta
quando é inteligido, mas antes age no intelecto. Logo, o inteligir no que intelige
consiste em receber e em suportar, ou seja, é significado em sentido activo.
Mais. A intelecção é aquilo pelo qual o intelecto formalmente é chamado inteli­
gente, o que não acontece porque produza a intelecção. De outro modo, dir-se-á
branco o que produz a brancura. Acontece isso apenas porque recebe a intelecção e,
assim, a intelecção é uma paixão, não uma acção produzida pelo intelecto. Sobrevém
para a confirmação do assunto, a afirmação de Aristóteles, capítulo 4º deste livro,
texto 2, 'inteligir é de alguma maneira padecer' .
livro Terceiro, Explicação do Capítulo Vil/, Questão IV, Artigo I 523

Mas a nossa conclusão é que a intelecção difere realmente da espécie inteligível.


Esta afirmação é de São Tomás, questão 8, A Potência de Deus, artigo 1 º; de Escoto,
no 1 º livro das Sentenças, distinção 3, questão 6; de Capréolo, no primeiro livro das
Sentenças, distinção 35, questão 1 , e de Apolinário, A Alma, questão 5 e de outros.
Prova-se. Primeiro, porque nenhuma causa eficiente se identifica realmente com a
sua acção. A espécie, efectivamente, é causa eficiente embora não íntegra, mas par­
cial, da intelecção. Segundo. Porque se a espécie e a intelecção fossem a mesma
coisa, não poderia ser conservada pela potência divina, não só a espécie sem a inte­
lecção, mas também a intelecção sem a espécie. Isto é evidentemente falso, porque,
cessando o acto de inteligir, a espécie permanece e, suprimida a espécie, Deus pode
produzir com o intelecto o acto de inteligir, visto que toda a causalidade eficiente
pode ser preenchida pela potência divina.
Os argumentos que serão opostos a esta conclusão têm a seguinte explicação. Ao
primeiro, dizendo que a espécie é posta no intelecto, para que tome a coisa presente
em hábito, e para que seja o princípio que promove a intelecção, mas nem uma nem
outro dizem respeito à intelecção formalmente considerada, mesmo que se identifi­
que realmente com o verbo, através do qual a coisa conhecida se exprime, e que no
ser objectivo e inteligível se apresente em acto ao intelecto. Ao segundo, ainda que a
espécie e a intelecção tendam para o mesmo objecto material, porque é uma e a
mesma coisa o que a espécie representa e o que a intelecção percebe, não tendem
todavia para ela sob a mesma razão formal, porque a espécie é levada para ela como
conhecida em hábito e a intelecção como conhecida em acto. Se porém se perguntar
de que maneira a espécie e o verbo se distinguem entre si, visto que ambos tendem
para a coisa, como representada, respondemos igualmente, que a espécie tende para
coisa, como conhecida, e representada em hábito. O verbo, porém, para a coisa
expressa em acto, que são razões diversas e suficientes para indicar a diferença
essencial de ambas.
Mas os argumentos de Godofredo resolvem-se assim. Ao primeiro, negar-se-á
que o ser inteligido esteja para o inteligível, do mesmo modo que o inteligir para o
que intelige. Com efeito, ser inteligido importa uma denominação extrínseca a res­
peito do inteligível e inteligir significa a acção inerente ao intelecto. Mas esta acção
incide no mesmo intelecto e, porquanto dele sai, chama-se acção. E, por isso,
embora aquele que intelige, quando recebe a intelecção, padeça, o próprio inteligir,
no entanto, não é padecer mas agir. Ao segundo, concedida a premissa maior diz-se
quanto à menor, que o intelecto não é chamado inteligente somente porque produz a
intelecção, mas porque ao mesmo tempo a produz e a recebe, o que é próprio das
acções imanentes. De facto, quando Aristóteles escreveu que inteligir é de alguma
maneira padecer não quis significar senão que o intelecto quando recebe a intelecção
padece, como há pouco dissemos, ou que o intelecto, antes de inteligir padece ao
receber a espécie do objecto. Não tem de ser aprovada a opinião daqueles que consi­
deram que a intelecção é produzida só pelo objecto e que o intelecto não fornece
nenhuma coisa diferente, como praticar o acto de inteligir, contra os quais já falámos
acima.
524 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO II
O verbo e a intelecção identificam-se na realidade, mas não são
o mesmo pela razão. Distinguem-se realmente pelo objecto

A segunda conclusão nesta controvérsia é que o verbo não difere na própria reali­
dade da intelecção. Assim pensa Henrique de Gand, Quodlibet 1 , questão 3 ;
Durando, n o 1 ° livro das Sentenças, distinção 1 7, questão 2; Ockham e Gabriel,
questão 2; Liqueto, Bárgio e Mairónio na mesma distinção; Paludano, no mesmo
local, questão 4; Alberto, artigo 7º; São Boaventura, questões 1 e 4; Ricardo, no 2º
livro, questão principal 1 ; o Alense, 1ª parte da Suma Teológica, questão 62, mem­
bro 1 , artigo 1 º, e outros de entre os teólogos mais recentes. Todavia é recomendável
a nossa conclusão porque qualquer acção, quer seja física, quer não, está para um
fim produzido por ela, tal como o movimento está para o mesmo; ora, como mos­
trámos na Física, o movimento identifica-se realmente com o seu fim; portanto,
também a intelecção com o verbo, que é o seu fim. Não satisfaz o Ferrariense, no
ponto citado, ao afirmar que o movimento é acto do imperfeito, isto é, da coisa
existente em potência e depois em acto. Mas a intelecção é acto do perfeito. Por isso,
embora o movimento se identifique com o fim, não obstante, a intelecção distingue­
-se dele. Não satisfaz, digo, porque de qualquer maneira a acção existe, quer sej a
acto d o imperfeito, quer não. Não é senão a própria coisa e m devir (se assim s e pode
falar) e daí, não se distinguir realmente do seu fim, sobretudo porque nenhuma
necessidade obriga a multiplicar as realidades. Ademais, em vista disto que disse­
mos, a identidade real da intelecção com o seu fim é um efeito, de modo que os
Santos Padres chamam algumas vezes verbo à intelecção, como São Damasceno, no
1 da Fé Ortodoxa, capítulo 1 8º; Santo Agostinho, nos livros 9 e 1 5 de A Trindade, e
um e outro, no capítulo 1 0º, e em De cognitione uerae uitae, capítulo 1 6º, e S anto
Anselmo, no Monológio, capítulo 3 1 º; Santo Ireneu, livro 2 Contra as Heresias,
capítulo 47º. Objectam todavia os adversários que todo o efeito se distingue real­
mente da sua causa. Portanto, também o verbo se distingue da intelecção, que é a sua
causa. Mas deve negar-se que a intelecção seja causa do verbo. Não é, de facto, causa
dele, mas uma produção e como que uma via pela qual o intelecto exprime o verbo.
A terceira conclusão é que o verbo não é formalmente intelecção. Esta está contra
o citado de Durando. Mas é evidente, porque o verbo é o fim da intelecção. Toda a
acção, de facto, se distingue muitas vezes formalmente do seu fim, como no citado
ponto da Física, mostrámos. Segundo, porque o verbo, de acordo com Santo Agosti­
nho, no livro 1 5 A Trindade, capítulo 1 2º é a imagem expressa pelo intelecto e é a
semelhança formal da coisa conhecida. A intelecção de facto, como intelecção, não é
semelhança.
A quarta conclusão é que o verbo se distingue realmente do objecto. Esta conclu­
são está contra Auréolo no 1 º livro das Sentenças, distinção 1 . Prova-se, todavia,
porque, como ensina Santo Agostinho, livro 1 5 , A Trindade, capítulos 1 0º, 1 1 º, 1 4º e
1 5º o verbo mental, pela sua natureza, está dentro da mente e a coisa conhecida é
extrínseca ao intelecto. Mais, porque o verbo é produzido através da intelecção, mas
o objecto, muito pouco, como é evidente. Das afirmações se conclui que a intelecção
se distingue realmente do objecto. Efectivamente, se a intelecção e o objecto fossem
o mesmo, também seriam o mesmo o objecto e o verbo, pois o verbo e a intelecção
são realmente o mesmo. Isso, no entanto, tem de conceder-se no caso de se considerar
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão V, Artigo / 525

não só o objecto conhecido, acerca do qual incide a nossa conclusão, mas precisamente,
enquanto conhecido, quer expresso pelo conhecimento, quer também pelo verbo; nesse
caso, o obj ecto não é realmente diferente da intelecção e do verbo. As razões agora
aduzidas não mostram o oposto disto, como é manifesto.

QUESTÃO V
Se possuimos conceitos próprios das coisas singulares

ARTIGO I
Argumentos da parte negativa

Para compreensão da controvérsia proposta advirta-se que existe um duplo con­


ceito de coisa singular. Um, próprio e a ele adequado, como quando Sócrates é
apreendido, por si, em particular. Outro comum, como quando é percebido univer­
salmente, e que contém o próprio singular como Homem, sob o qual está Sócrates
está contido. A presente questão acerca do conceito deve ser entendida em conformi­
dade com o primeiro sentido, não, de facto, acerca de quaisquer coisas singulares,
mas somente das sensíveis. Na verdade, que as coisas singulares desprovidas de
matéria ou inteligíveis são percebidas por nós pelo próprio conceito, não se deve pôr
em dúvida, visto que o intelecto enforma a própria noção, tanto dos seus actos, como
dos actos de vontade. De outro modo, ninguém conheceria própria e distintamente as
acções honestas ou as viciosas, interiormente escolhidas por si, o que ninguém
defende. Há, portanto quem defenda a parte negativa da questão, que muitos se
inclinam a afirmar com estes argumentos. Se possuirmos conceitos próprios das
coisas singulares o intelecto agente será considerado inútil, mas isto é incompatível
com a teoria peripatética; logo, também aquilo. Prova-se a premissa maior, dado
defender-se o intelecto agente para abstrair a natureza das diferenças individuantes,
e para transferir as coisas (como o diz o Comentador) da ordem dos singulares mate­
riais e dos sensíveis para a ordem dos universais imateriais e dos inteligíveis. Mas,
se as coisas singulares fossem inteligidas por nós pelo conceito próprio, a abstracção
seria, deste modo, fictícia e igualmente fictícia a obra do intelecto agente, cuja supe­
rioridade e eficácia é louvada por causa desta função.
Segundo. O sentido conhece própria e distintamente as coisas singulares. Por­
tanto, se o intelecto as percebe, segue-se um duplo inconveniente. O primeiro, por­
que um outro destes conhecimentos será supérfluo. O segundo, porque os objectos
do intelecto e os do sentido não se distinguirão entre si, visto que o objecto do sen­
tido também cai sob o intelecto.
Terceiro. Nenhuma potência é levada a não ser para o que lhe é afim, correspon­
dendo em proporção ao objecto. Mas entre os singulares imersos na profundidade da
matéria e entre o intelecto não existe qualquer conhecimento ou proporção, visto que
o intelecto é completamente desprovido de matéria. Não podem, portanto, os sensí­
veis singulares ser por si mesmos concebidos pelo nosso intelecto.
Finalmente. Prova-se que Aristóteles assim pensou, porque no 1 º livro da Física,
capítulo 5º, texto 49, afirma que o intelecto é próprio dos universais, mas o sentido,
dos singulares. Encontram-se muitos argumentos para fundamentar esta parte em
526 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Capréolo, no 1 º livro das Sentenças, distinção 35, questão 2, conclusão 4, e noutros


defensores da mesma opinião, em cujo número se contam Filópono e Alexandre,
neste ponto; Temístio, capítulo 20º; Averróis, comentário 9; Egídio, Quodlibet 1 ,
questão 9 ; Caetano, 1 ª parte da Suma Teológica, questão 86, artigo 1 º; o Mirandu­
lano, no livro 23, De euersione singularis certaminis desde a secção 4 até ao livro
3 3 ; Auréolo, na distinção 35, questão 4, artigo 1 º.

ARTIGO II
A parte afirmativa da controvérsia é a verdadeira

Mas a opinião dos que afirmam que as coisas sensíveis singulares são inteligidas
por nós por meio de um conceito próprio e particular é inteiramente verdadeira.
Segue-a Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 45, questão 3; Gregório, no
primeiro livro, distinção 3, questão 1 , artigo l º, conclusão 3; Durando, no 2º livro,
distinção 3, questão 7; Ricardo, no 2º livro, distinção 24, questão 4, a respeito da 3º
principal; Burleu, no 1 da Física, e outros. Comprova-se, o primeiro. Se os sensíveis
singulares não podem ser conhecidos por nós, por si, e com um conceito próprio, ou
não podem porque são singulares, ou porque são sensíveis. Não porque são singula­
res, de outro modo nenhum singular também inteligível e imaterial se ofereceria ao
nosso intelecto por si mesmo, nem ainda mais, ao intelecto divino. Não porque são
materiais, de outro modo as naturezas comuns providas de matéria não seriam inte­
ligidas por si mesmas. Logo, etc. Os defensores da parte contrária respondem a este
argumento, que a intelecção própria desta forma dos singulares repugna ao nosso
intelecto, não porque são singulares ou inteiramente materiais, como o argumento
prova, mas porque são singulares materiais. Porque é necessário que a coisa conhe­
cida por si mesma pelo intelecto seja abstraída da matéria indivisível. No entanto,
esta resposta não satisfaz de modo algum, porque não defende nenhuma razão idó­
nea para que a matéria singular mais do que a matéria comum impeça o conheci­
mento intelectivo.
Segundo. O nosso intelecto estabelece a diferença e a conformidade entre o sin­
gular e o universal através das suas razões próprias e particulares, como quando
julga evidente que Homem é mais extenso do que Sócrates e que Sócrates se identi­
fica com Homem. Portanto o nosso intelecto percebe o universal e o singular própria
e distintamente. Os adversários vão contra este argumento, afirmando que não é
necessário, para quem julga acerca da conveniência ou diferença entre duas coisas,
que distinga uma e a mesma faculdade e que é suficiente que seja percebido pelo
mesmo homem ainda que com duas potências, e que isso acontece na questão pro­
posta. Efectivamente, dizem, o singular é por nós conhecido pela faculdade cogita­
tiva e o universal pela intelectiva. Mas, na verdade, aquele argumento refuta esta
resposta, porque como aquele acto de julgar é único e simples, necessariamente
pertencerá a uma e mesma potência; ora, não pertence à cogitativa, quer porque não
é necessário que a faculdade inferior julgue o objecto da superior, quer porque
nenhuma potência ligada ao órgão corpóreo tende para a coisa universal. Logo, um
tal acto diz respeito ao intelecto. Por isso, para que ele não julgue acerca de uma
coisa para si desconhecida, conhece por si tanto o universal como o singular. Cor­
robora-se a força deste argumento pela autoridade de Aristóteles, neste livro, capí-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão V, Artigo II 52 7

tulo segundo, nos textos 145 e 1 46, quando prova que tem de haver uma faculdade
sensitiva (a saber, o sentido comum) que reconhece por si todos os sensíveis exter­
nos, pois experimentamos que estabelecemos a diferença entre os objectos dos sen­
tidos externos. E se para estabelecer este juízo e diferença não fosse necessário que
as coisas a que se refere o juízo caíssem na mesma potência, Aristóteles não teria
afirmado apropriadamente que é preciso que todos os sensíveis externos se distin­
gam dela mesma por aquela faculdade.
Outro. O intelecto infere o universal de entre muitas proposições singulares. Por­
tanto, percebe os singulares, de outra maneira concluiria o consequente do antece­
dente que desconhece, o que é ridículo. Não satisfará quem disser que é suficiente
que o antecedente seja por ele percebido de modo confuso, porque este argumento
seria muito pouco claro e quase impossível de alcançar, ainda que os princípios
comuns das ciências costumem ser obtidos deste modo, como testemunha Aristóte­
les, no livro 2 dos Posteriores, capítulo último, e no 1° da Metafísica, capítulo 1 .
Ainda outro. A vontade domina o acto da potência cogitativa e fá-lo apenas se o
conhecimento do intelecto o preceder, a quem compete propor à vontade a coisa que
deve ser apetecida ou recusada. Portanto, o intelecto conhece o acto da potência
cogitativa que é um certo singular que incide na matéria. Corrobora-se o argumento,
porque aquela reflexão que experimentamos em nós acerca das funções dos sentidos
externos não pode ser atribuída aos próprios sentidos, mas a alguma potência mais
nobre, isto é, ao intelecto, como ensinou Aristóteles, no 1 º livro desta obra, capítulo
3º, texto 46. Além disso, porque o intelecto costuma corrigir os erros que acontecem
no sentido, quer externo, quer interno, o que não faria se não conhecesse a própria
acção dos sentidos e a coisa singular acerca da qual eles se enganam.
Mais um. Tudo o que uma força inferior pode, pode uma superior. Portanto, o que
quer que a fantasia, que é inferior ao intelecto, conheça, o intelecto conhece. Ora, a
fantasia percebe os singulares pelo próprio conhecimento; portanto, também o inte­
lecto. Respondem que aquilo que pode a faculdade inferior também pode a superior,
mas não o pode de um mesmo modo, mas de um modo mais nobre; e é assim que o
intelecto conhece as coisas singulares em comum, isto é, quanto à natureza da espé­
cie, não quanto à singularidade. Não respondem, efectivamente, que quem conhece
Sócrates de modo confuso tem um conhecimento mais perfeito do que quem o
conhece de um modo mais claro. E se o intelecto não conhece os singulares senão
quanto à sua natureza comum, e na medida em que percebe os universais contidos
naquela natureza certamente que só de um modo confuso e implícito é que ele inte­
lige os singulares.
Ú ltimo. Estabelece-se o mesmo, porque a deliberação e as acções da arte e da
prudência pertencem ao intelecto. Estas versam, efectivamente, sobre os singulares,
como ensina Aristóteles, no livro 3 da Ética, capítulo 3º. Não há dúvida, que fre­
quentemente os singulares deste tipo existem a partir dos sensíveis. Por isso, de
forma alguma parece dever negar-se que os sensíveis singulares são percebidos pelo
nosso intelecto num conceito próprio e particular. Se, de facto, este conceito é
reflexo ou não, e de que forma é obtida da espécie inteligível da coisa comum, j á
expusemos noutro ponto deste livro.
528 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

ARTIGO Ili
Resolução dos argumentos que foram aduzidos a favor
da parte negativa da questão

Ao primeiro dos argumentos que foram aduzidos a favor de outra parte da ques­
tão, artigo 1 º, deve negar-se a premissa maior, e para sua prova deve dizer-se, que o
intelecto agente não é defendido a fim de abstrair a natureza das diferenças indivi­
duais, isto é, dado que a coloca no estado em que só pode ser inteligida sem as dife­
renças, seja o que for que Averróis e alguns outros tenham considerado. Mas sim, a
fim de obter as espécies inteligíveis a partir dos fantasmas das coisas singulares, sem
os quais as coisas não podem ser percebidas pelo intelecto.
Ao segundo, deve responder-se que, embora o intelecto perceba os singulares,
nem por isso esse conhecimento será supérfluo, tal como não é inútil o conheci­
mento pelo qual o sentido comum conhece e discerne todos os objectos dos sentidos
externos. Ora, na verdade, a faculdade de inteligir seria imperfeita, a não ser que
esse conhecimento lhe competisse, porque a perfeição e a ordem da natureza exige
que nas potências subordinadas o que algo inferior pode, possa também o superior.
E daí não se segue que possam ser confundidos os objectos do sentido e os do inte­
lecto. Primeiro, porque o intelecto percebe tanto os singulares como os universais,
mas os sentidos, apenas os singulares. Segundo, porque também os singulares pró­
prios detêm uma razão formal quando recaem no intelecto, e outra quando recaem
nos sentidos. Pertencem a um, efectivamente, sob o plano da inteligibilidade, a outro
sob o plano da sensibilidade.
Ao terceiro, que o conhecimento que é requerido para o objecto, em comparação
com a potência, não é de uma natureza semelhante; de outra maneira nenhum sensí­
vel seria percebido por Deus ou por um anjo. Mas é de natureza conforme ou apta,
para que recaia na potência, e proporcional, pela qual não excede a sua força. Deve
ser dito, sobre este ponto de Aristóteles, no 1 da Física, que o pensamento do Filó­
sofo é que o intelecto difere pelo sentido na medida em que este apenas conhece os
singulares, e aquele também os universais.

QUESTÃO VI
Se o nosso intelecto pode inteligir muitas coisas
em simultâneo ou não

ARTIGO I
Os que seguiram a parte negativa, com que argumentos a provaram

São Tomás, quer noutro lugar, quer na primeira parte da Suma Teológica, questão
85, artigo 4º; também Caetano, no mesmo ponto e lugar; o Ferrariense, neste livro,
questão 14, e no livro 1 , Contra os Gentios, capítulo 55º; Capréolo, no 2º livro das
Sentenças, distinção 3, questão 2; Herveu, no Quodlibet 7, questão 1 6 ; Silvestre, no
Conflato, da primeira parte, questão 1 2, artigo 1 0º; e antes deles, o Alense, na parte
4 da Suma Teológica, questão 98, membro 2; Alberto Magno, no 3º livro das Sen-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão VI, Artigo I 529

tenças, distinção 30, artigo 4º; Durando, no prólogo das Sentenças, questão l , artigo
1 º, número 24, afastaram-se da parte negativa da questão proposta. Formularam, de
facto, várias hipóteses para explicá-la. A primeira é que as formas apresentam-se ao
sujeito de três modos. De um modo apenas como poder, de maneira que não repugna
que elas existam ao mesmo tempo, porque a potência é própria dos contrários. O
segundo modo, quanto ao acto imperfeito, e assim podem também ser encontradas
ao mesmo tempo. De facto, por exemplo, enquanto um sujeito embranquece está
nele presente quer a brancura, quer algo de contrário. O terceiro, segundo o acto
perfeito, como quando a brancura já obteve toda a sua perfeição; de modo que duas
formas de um só género não podem de modo algum estar ligadas, pois de outra
maneira seria preciso que a mesma potência fosse determinada ao mesmo tempo
para diversos actos perfeitos, o que é tão impossível como uma linha ser definida
por pontos opostos em direcção ao mesmo lado.
A segunda hipótese é que todas as formas inteligíveis estão contidas num único
género porque as coisas para que são levadas podem ser de diversos géneros, mas
respeitam à mesma potência intelectiva. Pelo que acontece que todas, tanto pelo
poder, quanto segundo o acto imperfeito, que é o meio entre a potência e o acto
perfeito, podem ser obtidas ao mesmo tempo. É deste modo que temos as espécies
inteligíveis. Não as usamos mas podemos usá-las. Existem, na verdade, como que
adormecidas, e como por elas inteligimos em acto, conservam o modo perfeito e
exacto da sua natureza.
A terceira é que aquelas que são múltiplas, podem ser consideradas de duas
maneiras, ou enquanto múltiplas, ou enquanto sustentam a razão de uma só. Por
exemplo, com as partes de um contínuo, se se tomar uma qualquer parte por si, elas
são múltiplas mas, enquanto estão num contínuo, porque se unem através dele, como
que são tidas por um em si.
A quarta é que como o que quer que seja por nós inteligível em acto, enquanto
tem na mente a sua semelhança, todas as coisas que podem ser inteligidas por uma
espécie, podem ser tomadas como um inteligível, e as que podem ser por muitas,
como muitos. Com efeito, independentemente da espécie que exprime primeira­
mente uma única natureza, as coisas que são conhecidas por uma única espécie cor­
respondem para que convenham naquela natureza representada pela espécie; e assim
acordam numa noção do inteligível. Mas as que são conhecidas por muitas espécies,
uma vez que tais espécies não as representam como tendo alguma razão comum, não
são percebidas como um certo inteligível, mas como muitos.
Posto isto, respondem deste modo à questão proposta. Múltiplas coisas, enquanto
múltiplas, não podem ser por nós inteligidas, mas podem-no enquanto são uma. O
que assim recomendam. Múltiplas coisas, enquanto múltiplas, apenas são repre­
sentadas por muitas espécies; ora, as que são assim, não podem ser concebidas pelo
nosso intelecto ao mesmo tempo. Logo, múltiplas, enquanto múltiplas, não podem
ser por nós compreendidas ao mesmo tempo. A premissa maior é evidente pela
quarta hipótese, a menor prova-se a partir da primeira e da segunda, porque muitas
formas deste género não podem existir ao mesmo tempo segundo o acto absoluto e
perfeito, e muitas espécies inteligíveis que levam ao conhecimento existem em acto
perfeito e completo. Portanto, não podem dar-se ao mesmo tempo. E assim, é
impossível que múltiplass coisas, enquanto múltiplas, sejam conhecidas por nós.
530 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Todavia, consolida-se o argumento, porque tal como o corpo é delineado e descrito


pelas formas, assim o intelecto é-o pelas espécies que possuem um acto perfeito,
como correctamente afirmou Algazel. Por isso, tal como um mesmo corpo não pode
ser conhecido ao mesmo tempo por formas diferentes, assim também não pode o
intelecto, por muitas espécies concorrentes para o conhecimento em acto.
De novo prova-se a mesma asserção, porque se exige para a intelecção a intenção
da mente, como afirma Santo Agostinho, visto que a intenção é um certo movi­
mento, ou um quase movimento ela não pode ao mesmo tempo tender para muitos
fins. Mas tenderá se a mente compreender muitas coisas, como muitas, em simultâ­
neo. E, por fim, as palavras do Filósofo, no livro 2 dos Tópicos, aprovam aquela
afirmação: Acontece que o inteligir é um, o saber, de facto, muitos.
Mas que muitas, não enquanto são muitas, mas porque se recolhem numa noção,
como foi explicado na segunda hipótese, podem ser concebidas em simultâneo (que
era a outra parte da afirmação). O que se recomenda, porque muitas podem ser
representadas por uma espécie, como uma. As que, porém, são representadas por
uma espécie, nada obsta a que acorram conjuntamente ao conhecimento humano.

ARTIGO II
Podem ser compreendidas ao mesmo tempo muitas coisas,
enquanto muitas

A nossa afirmação todavia é que o intelecto humano pode ao mesmo tempo inte­
ligir muitas coisas, enquanto são muitas . Escoto defende-a, no primeiro livro das
Sentenças, distinção 3, questão 6; Gregório, no primeiro livro, distinção 1 , questão
1 , artigo 3º; Liqueto, na distinção 3, questão 1 ; Marsílio, na distinção 3, questão 1 1 ;
Gabriel, na distinção 1 , questão 1 0, conclusão 6; Ockham, no 2º livro, distinção 2 1 ,
e outros. E prova-se isto deste modo. A faculdade de discernir vê ao mesmo tempo
muitas coisas, enquanto muitas, tal como quando numa mesma carta examina a
negrura dos caracteres e a brancura do papiro. Portanto, também a faculdade de
inteligir, visto que é muito mais perfeita, poderá inteligir ao mesmo tempo muitas,
como muitas. O Ferrariense responde que o olho não vê a negrura e a brancura,
como sendo muitas, mas como uma, porque discerne uma e outra através de uma
espécie, de que uma parte refere a negrura, e outra a brancura. Mas não se filosofa
correctamente. Primeiro, porque coisas diferentes em espécie não imprimem a
mesma imagem, mas uma imagem diversa em espécie nos sentidos. Depois, porque
como no segundo livro desta obra, capítulo 6º, questão 2, artigo 2º, e no capítulo 7º,
questão 5, artigo 2º mostrámos, as imagens visuais, embora sejam enviadas por
diversos objectos, não ocupam partes diversas do olho, mas qualquer uma incide em
toda a pupila. De qualquer modo, visto que a pupila é tão exígua, ocupada por pou­
cas espécies, não pode ao mesmo tempo compreender coisas tão diferentes e varia­
das com o olhar. Terceiro, porque uma parte da imagem não representa uma parte da
coisa vista e a outra parte a outra, mas qualquer uma representa toda a coisa vista, do
modo que expusemos no lugar citado. Outro. Todas as vezes que muitas coisas são
conhecidas distintamente, são conhecidas como muitas, mas podemos ao mesmo
tempo ver distintamente três colunas, portanto podemos conhecê-las como muitas e,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Vil/, Questão VI, Artigo Ili 53 1

isto, tanto pelo sentido, como pelo intelecto, posto que aquelas que o sentido per­
cebe, o intelecto, ao mesmo tempo, intelige.
Terceiro. O nosso intelecto intelige ao mesmo tempo a pedra e o homem como
muitos, quando forma a proposição seguinte: A pedra não é homem; portanto, etc.
Não satisfazem os adversários que afirmam que o intelecto apreende, então, a pedra
e o homem como algo único. E, efectivamente, como eles próprios declaram e esta­
belecem como fundamento da sua opinião, todas as coisas que são representados por
muitas espécies, não existem para o intelecto como uma, mas como muitas ; mas
homem e pedra são representados no nosso intelecto por duas espécies.
Quarto. O intelecto presta no mesmo instante atenção à premissa menor e à con­
clusão, como mostrámos com Aristóteles, no primeiro dos Analíticos Posteriores,
capítulo 1 º. Ora, estes acordos caem sob enunciações diversas, enquanto são diver­
sas e muitas. Logo, o juízo do intelecto mostra em conjunto muitas, enquanto mui­
tas. A mesma razão e a mesma dificuldade ocorre, no que respeita à coisa presente,
quer no juízo, quer na apreensão. Logo, o nosso intelecto apreende ao mesmo tempo
muitas, enquanto muitas.
Por fim. Não repugna menos que a vontade sej a levada ao mesmo tempo para
muitas coisas, enquanto muitas, do que o intelecto o seja. Ora, a vontade é levada de
tal modo que quando no mesmo momento repele uma coisa percebe o desejo de
outra. Logo, etc.
Além disso, o que dizemos acerca do intelecto humano deverá também afirmar­
-se, com muito maior razão, acerca do angélico, visto que a mente das substâncias
separadas é muito mais perspicaz e compreende ao mesmo tempo muito mais coisas.
Embora os defensores da parte contrária estendam a sua afirmação também ao inte­
lecto angélico, refuta-os, um argumento, quanto a esta parte, porque os anjos em
particular, como é maRifesto, nunca cessam o seu conhecimento, e no entanto
entrementes percebem outras coisas para as quais os objectos só são conduzidos
enquanto muitos. É desta forma que alcançam o conhecimento, não pela mesma
espécie, mas pela sua substância e que inteligem as restantes pelas suas próprias
imagens.

ARTIGO III
Resolução dos argumentos do primeiro artigo

Assim se explicam os argumentos dos adversários. Ao primeiro, concedida a


premissa maior, nega-se a menor, e para sua prova dir-se-á que as formas do mesmo
género, quer sejam perfeitas, quer imperfeitas, não se excluem mutuamente do
substrato a não ser que haja uma incompatibilidade que consiste em não haver espé­
cies prévias no acto de inteligir. Também para confirmação deste argumento respon­
demos que embora as espécies inteligíveis conservem alguma analogia e semelhança
com as figuras, visto que, como estas, representam o corpo, também formam inteli­
givelmente a mente, mas não têm a mesma relação de incompatibilidade. De facto,
se diversas formas existissem no mesmo corpo arrastariam a mesma parte para
diversos sítios, o que não é possível. E as espécies inteligíveis não são assim afec­
tadas, como se patenteia claramente. Pelo que acontece que duas figuras se impedem
532 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

mutuamente no mesmo corpo, mas não duas ou mais espécies inteligíveis, por mais
perfeitas e absolutas que sej am.
Ao segundo, diga-se que a intenção da mente na coisa conhecida não é um outro
acto distinto do conhecimento. Por isso, como podem dar-se muitas intelecções,
assim também podem dar-se muitas intenções.
Porém o passo de Aristóteles do 2º dos Tópicos, significa que nós entrementes
sabemos muitas coisas segundo o hábito, as quais todavia segundo o acto não inteli­
gimos ao mesmo tempo. Isto, de facto, não é contrário à nossa opinião. Ao quarto,
nada respeita responder, visto que esta parte, que é provada, se opõe muito pouco à
nossa conclusão.

QUESTÃO VII
Se a alma humana se intelige pela sua essência,
e igualmente se a potência de inteligir se conhece, bem como
as próprias funções e os hábitos a ela inerentes

ARTIGO I
Exercitação da questão nas diversas partes

Primeiro, que a alma intelectiva de forma alguma se intelige a si própria parece


provar-se, porque todo o nosso conhecimento tem origem nos sentidos, pelo que
acontece que apenas podemos perceber aquelas coisas que caem sob os sentidos. A
alma intelectiva, de facto, como é desprovida de matéria, escapa ao conhecimento
dos sentidos. Isto diz respeito àquele passo de Filão, o Judeu, no livro 1 das Alego­
rias, perguntando por que razão aquele que deu nomes a tudo, isto é, Adão, a si não
deu nenhum. Quer dizer, o pensamento que é de cada um de nós pode compreender
as restantes coisas, mas não pode reconhecer-se a si mesmo. Desta forma o olho vê
outras coisas, mas a ele próprio não se vê. Assim, também, a mente intelige outras
coisas, não se compreendendo a si própria. Pelo contrário, que ela não só se conhece
imediatamente e se intelige pela sua essência, demonstra-o a razão, porque as subs­
tâncias separadas e as almas humanas concordam no género da substância intelectual
e, por isso, tal como os anjos se reconheceram através da sua essência, também as
almas intelectivas. O testemunho de Santo Agostinho, no livro 9, A Trindade, capí­
tulo 3º, confirma-o, afirmando que a mente conhece por si própria, porque é incor­
pórea.
Segundo. Prova-se que o intelecto se compreende muito pouco a si próprio, por­
que, como está permanentemente presente a si, se iniciasse de uma vez por todas o
seu conhecimento, j amais o cessaria, o que, na verdade, ninguém experimenta. Mas,
contra a parte contrária, que diz que ele não só se conhece, mas se intelige a si pela
sua essência, está aquele passo de Aristóteles, neste livro, capítulo 4º, texto 1 5 , que
ensina que naquilo que é desprovido de matéria o intelecto e o que se intelige são o
mesmo.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Vlll, Questão VII, Anigo li 533

Terceiro. Provar-se-á que o intelecto não conhece a própria função. De facto, seja
o que for que se conheça, é conhecido por algum acto. Se, portanto, o intelecto
conhece a sua função, percebê-la-á por algum acto e, mais ainda, aquela por outro e,
assim, dar-se-á uma progressão infinita na intelecção, o que de modo algum parece
que deva acontecer. Mais, porque se o intelecto conhece os seus actos, conhece os
actos sobrenaturais da fé, e de igual modo perceberá os actos da vontade, e de entre
estes, o acto de esperança e o da caridade infusa, e por isso qualquer um sabe que
está em Graça quando nela tenha estado, o que nega a autoridade da Sagrada Escri­
tura naquelas palavras do Eclesiastes 9: E todavia o homem desconhece se é digno
de amor ou de ódio, mas todas as coisas se conservam incertas no futuro. Mas o
contrário, que de facto não deve negar-se que o intelecto conhece os seus actos,
ensina Santo Agostinho, no livro A Trindade, capítulos 1 0º e 1 1 º. Também, porque
se o intelecto não percebesse os seus actos, como os actos da vontade, ninguém
poderia saber se ele inteligia alguma coisa, se queria, e nada há de mais absurdo.
Quarto. Que não são conhecidos pelo intelecto os hábitos que lhe são inerentes
convence-se, porque qualquer um conheceria seja o que for se tivesse os dons do
Espírito Santo, e portanto a Graça, o que refutámos antes. Ao contrário, que a capa­
cidade de inteligir conhece plenamente os seus hábitos, demonstra-o a máxima
seguinte: aquilo pelo qual alguma coisa é, é mais do que aquilo que a coisa é. Por
isso, como o intelecto conhece as restantes coisas e as espécies inteligíveis pelo
hábito, segue-se que os próprios hábitos recaem primeiro no seu conhecimento e na
sua ciência.

ARTIGO II
Resolução da controvérsia

Para compreensão da dificuldade proposta, deverá advertir-se que, no que con­


cerne ao obj ecto presente, há duas maneiras de dizer que uma coisa é conhecida pela
essência. A primeira maneira, referindo isso à coisa conhecida, de modo a que seja
conhecida a natureza e a quididade dela pela sua essência, mas não sej am percebidos
apenas os acidentes. Da outra maneira, considerando o meio pelo qual é conhecida, e
assim a coisa é conhecida pela essência, pois a essência é aquilo pelo qual se
conhece, não intervindo alguma imagem, quer seja própria dela, quer de outra coisa
da qual o intelecto paulatinamente se afaste e, demonstrando, alcance a essência. A
nossa discussão neste ponto não é acerca do conhecimento das coisas através da
essência, de acordo com a primeira maneira, mas somente em conformidade com o
segundo sentido.
Portanto, é omitida a opinião dos filósofos mais antigos que afirmam que a nossa
alma se conhece directa e imediatamente por si própria sem qualquer espécie, e
portanto por si do segundo modo, os quais Gregório Ariminense seguiu, no I º livro
das Sentenças, distinção 3, questão 2 artigos 1 º e 2º. Rejeita-se também a opinião
dos que consideram que a alma obtém uma certa espécie imaterial de si própria, de
entre as espécies das coisas materiais, por onde se intelige. Respondemos com São
Tomás, Suma Teológica, Iª parte, questão 87, nos três primeiros artigos, e nas
questões sobre A Verdade, questão 1 0, artigos 8º e 9º, que a nossa alma não se
conhece no presente estado da vida pela sua essência, mas por intervenção das espé­
cies inteligíveis, que abstrai dos sentidos. O que se esclarece assim. Tal como, con-
534 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

forme Averróis registou, a matéria prima no género dos sensíveis, assim também a
mente humana obteve o último lugar entre as substâncias intelectuais. Com efeito,
como a matéria prima está em potência para as formas sensíveis, assim está a alma
para as formas inteligíveis. E como aquela na ordem dos sensíveis, assim esta na
série dos inteligíveis, é pura potência. Donde, tal como a matéria apenas cai sob o
sentido pelo benefício da forma que lhe sobrevém, assim a alma não se reduz ao acto
inteligível, isto é, não está apta para se inteligir a si própria (enquanto não passar
para outro estado), a não ser pela chegada das espécies. Daí que Aristóteles, neste
livro, capítulo 4º, texto 1 5 , tenha ensinado que a nossa alma se intelige a si própria,
assim como também intelige outras coisas, a saber, pelas espécies. Também o texto
8 diz que a alma não realiza nada em absoluto segundo o intelecto, a não ser quando
já está em acto primeiro pelas espécies. Pelo que é possível que ela não sej a imedia­
tamente capaz de se conceber a si própria, mas seja levada pela percepção das outras
coisas ao conhecimento de si, porque, como é evidente, primeiramente apreende
aquilo cuj a espécie é extraída pelos sentidos, por exemplo, a natureza do homem, a
seguir reflecte sobre o seu acto, e percebe-o, e a partir dele conhece, quer a imagem,
quer a potência pela qual ela chega a acto. A seguir, dado ter descoberto que a ima­
gem da coisa comum não pode ser algo material ou corpóreo, mas totalmente des­
provida de matéria, e que por isso consiste apenas numa potência espiritual e numa
substância incorpórea, como num sujeito, percebe-se finalmente como uma certa
substância imaterial, que participa da razão e da inteligência.
Mas que a alma não se intelige pela espécie que lhe é própria, demonstra-se, além
disso, com os argumentos que provam que não são produzidas as espécies das coisas
singulares, argumentos acima referidos, e também aqueles que recomendam que não
se produzem no nosso intelecto no presente estado da vida espécies das coisas ima­
teriais. Isto pode ser confirmado, porque o que é inteligido pela própria espécie, é
inteligido por um acto directo, mas a experiência testemunha que em nós somente
pelo acto reflexo é que o conhecimento chega à nossa alma. Consulte-se São Tomás,
questão 1 0, A Verdade, artigo 8º, e o Ferrariense, no livro 3 Contra os Gentios,
capítulo 46º. Dizemos que a alma quando está no corpo não se conhece de forma
imediata porque fora do corpo, visto que passa de certo modo para o estado das
substâncias separadas e tem um modo mais independente de inteligir, já não intelige
por reflexão sobre os fantasmas . Toma-se por si inteligível em acto primeiro e por
isso intelige-se a si mesma imediatamente pela sua substância, como ensina São
Tomás, Suma Teológica, 1 ª parte, questão 89, artigo 2º, e outros, noutros pontos;
também Henrique de Gand, no Quodlibet 1, questões 12 e 1 3 . Mas acerca disto de
forma mais límpida se tratará no Tratado da Alma Separada. Fica já patente do
excurso anterior de que modo o intelecto quando está no corpo se conhece não só a
si, mas também conhece as próprias funções e os hábitos que lhe são inerentes, que
era a outra parte da questão. O que dissemos acerca da apreensão da espécie, deve
afirmar-se também de certos hábitos. De facto, a alma conhece-os através dos actos,
porque experimenta operar com a facilidade e a prontidão própria dos hábitos. No
que diz respeito aos actos de vontade, deve julgar-se daqui a pouco sobre eles. Com
efeito, visto que estão presentes ao intelecto obj ectivamente, primeiro, e inteligivel­
mente por si mesmos, os actos da vontade podem ser percebidos por ele, por conhe­
cimento directo; mas não como actos de inteligir, pois, uma vez que resultam do
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão Vil, Artigo Ili 535

mesmo intelecto, nele a intervenção dá-se por uma acção reflexa e secundária para
captar o conhecimento deles. Mas o intelecto conhece os hábitos da vontade quase
como os seus, quer dizer, pela facilidade com que se experimenta que a vontade age.
Leia-se São Tomás, no ponto citado, artigo quarto.

ARTIGO Ili
Explicação dos argumentos que tinham sido aduzidos
contra ambas as partes

Acudimos agora aos argumentos do primeiro artigo, visto que se opõem, em


parte, aos que foram ordenados por nós. Ao primeiro deve dizer-se, que também as
coisas que não se opõem aos sentidos, tanto internos como externos, como a alma
humana, podem ser por nós inteligidas. Não, contudo, através da própria imagem
aceite imediatamente pelos sentidos, mas do modo explicado mais acima. Isto toda­
via não impede que se deva afirmar que todo o nosso conhecimento tem origem nos
sentidos, visto que também este conhecimento dimana remotamente dos sentidos .
Mas como Filão diz que a alma intelectiva nos é desconhecida, isso deverá ser inter­
pretado não a respeito de qualquer conceito de alma, mas de uma cognição perfeita e
absoluta em todas as classes, se o Judeu filosofava correctamente deste modo. À
outra parte deste mesmo argumento, deve negar-se que a razão é igual na alma
humana quando ela está no corpo e nas substâncias separadas. De facto, estas são
inteligíveis em acto, e enquanto tais apresentam-se-lhe constantemente. Mas a alma
é pura potência no género dos inteligíveis, e no corpo intelige especulando ao
mesmo tempo os fantasmas, donde, então, apenas se intelige pelas espécies adquiri­
das. Tem de acolher-se o que Santo Agostinho disse, que a nossa mente conhece-se
por si mesma, de tal modo que a alma não acolha a sua imagem a partir das coisas
externas, tal como intelige com as coisas corpóreas.
Ao segundo argumento, que o intelecto está sempre presente a si quanto à sua
entidade, mas não segundo o ser objectivo e inteligível, e por isso ainda que quando
é reflectido em si e no seu acto se intelij a (nessa altura, com efeito, toma-se presente
a si, em razão do objecto ), não se ocupa porém permanentemente nessa considera­
ção, porque não usa sempre este reflexo. De facto a afirmação de Aristóteles, 'nos
que carecem de matéria é o mesmo o intelecto e o que é inteligido' , explica-a São
Tomás, na primeira parte da Suma Teológica, questão 55, artigo l º, afirmando que o
Filósofo não pretende outra coisa senão que do intelecto e da espécie da coisa que é
inteligida, se faça de um certo modo um único. Acrescente-se que se diz que aquilo
que é inteligido se identifica com o que intelige em razão do verbo em que se
expressa, como acima também concluímos.
Ao terceiro, embora a mente humana não possa ao mesmo tempo exercer um
grande número de actos porque tem uma potência limitada e finita, pode no entanto
pela sucessão, depois de um conhecimento, produzir seguidamente um outro, depois
outro e outro, e assim sem qualquer limite se reflecte no primeira pelo segundo, no
segundo pelo terceiro. Por causa disto, a razão é de certo modo infinita em poder,
como ensina São Tomás, na Suma Teológica, primeira parte da segunda, questão 30,
artigo 4º ao 2º. Embora o intelecto conheça tanto os seus actos, como os actos da
vontade, não se segue que distinga os actos naturais dos sobrenaturais, porque não
536 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

os penetra distintamente e quanto ao modo particular de cada um, mas apenas confu­
samente. Pelo que acontece que a partir deste conhecimento ninguém pode saber se
está em Graça. Mas a outra parte deste mesmo argumento prova correctamente que
os próprios actos são conhecidos pelo intelecto, embora não conhecidos pela essên­
cia, visto que, para esta reciprocidade exige-se a espécie inteligível de alguma coisa
a partir de cujo conceito a mente progride para a noção dos referidos actos.
Ao quarto, embora a alma conheça do modo referido os hábitos da ordem natural
que lhe são inerentes, decerto que não pode conhecer excepto se lhe chegarem divi­
namente os dons do Espírito Santo, que lhe são próprios, a Graça e a Caridade, por­
que não é claro se a doçura e a inclinação para exercer as acções diligentes que estes
hábitos trazem consigo, é originada por estes, se por outros hábitos naturais que
podem ser alcançados sem a Graça. À segunda parte do argumento deve dizer-se,
que aquela afirmação, 'aquilo pelo qual alguma coisa é, é mais do que aquilo que a
coisa é' , deve ser inteligida e aplicada deste modo à força do argumento: que
quando, por exemplo, se conhece alguma coisa pelo facto de se conhecer uma outra
coisa, é necessário que seja mais conhecido isso em virtude do qual a conhecemos.
Ora, as coisas são conhecidas porque as suas espécies e hábitos são conhecidos;
portanto, etc . Como, portanto, a premissa menor é negada por nós por ser falsa, é
evidente, por esta prova, que os hábitos não são conhecidos primeiro por nós, mas
que são conhecidos pela ordem que explicámos.

QUESTÃO VIII
Se é necessário que o que intelige deve tomar em consideração
os fantasmas, ou não

ARTIGO I
Que argumentos recomendam que não é necessário

É necessário que o que intelige tome em consideração os fantasmas, não que o


intelecto observe ou os próprios fantasmas ou as naturezas que neles reluzem; mas é
necessário que aquele que intelige, quando observa alguma coisa pelo intelecto, seja
alguma coisa universal, seja particular, se debruce ao mesmo tempo com a fantasia
sobre algo de singular. Isto é mais evidente a partir das palavras do contexto grego,
no capítulo imediatamente acima, texto 39. Temos, efectivamente, ÕTav TE 8ewpft
àváyKT] éiµa cpávwoµá n 8ewpETv, isto é, quando contempla é indispensável que
contemple em união com o fantasma.
Os seguintes argumentos recomendam a parte negativa da questão. Primeiro. Ou
levar em consideração os fantasmas é natural à alma, ou não. Se não é, como para
isso será muito pouco obrigado por outra coisa, então poderá pôr de parte uma tal
consideração ; se é, como uma vez que aquilo que pertence a cada coisa segundo a
natureza, estando a coisa incólume, lhe convém perpetuamente, segue-se que tam­
bém a alma separada do corpo ou unida ao corpo glorioso toma em consideração os
fantasmas, o que é falso. De facto, liberta dos vínculos do corpo, ela não dispõe de
fantasmas nem de fantasia; porém, ligada ao corpo glorioso tem um modo mais
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão VIII, Artigo li 537

perfeito e mais livre de inteligir, independente do corpo. Por isso, poderá inteligir
sem a obra dos sentidos, visto que poderá inteligir livremente.
Segundo. A fantasia depende mais do sentido externo do que o intelecto depende
da fantasia, visto que o intelecto, como é uma potência imaterial, está por isso muito
mais separado do corpo do que alguma faculdade fixa a um órgão material. Ora a
fantasia, cessando todo o acto dos sentidos externos, pode produzir as suas funções.
Logo, também, o intelecto.
Terceiro. O intelecto contempla as coisas imateriais incorpóreas, como Deus e as
inteligências, mas estas de modo algum caem debaixo da fantasia, visto que estão
fora dos limites das forças corpóreas. Portanto, pelo menos a alma, não considera os
fantasmas para a intelecção de todas as coisas. Acrescente-se que Aristóteles, no
ponto antes citado, quando mostrava uma tal consideração, ocupava-se apenas da
ciência das coisas da física e da matemática. Assim sendo, não parece tê-la indicado
para os obj ectos de todas as disciplinas que têm de ser percebidos.
Quarto. Os que durante o êxtase são arrebatados para a contemplação das coisas
divinas, separam-se dessas funções dos sentidos, tanto externos como internos; por­
tanto, pelo menos ao inteligirem eles não tomam em consideração os fantasmas.
Prova-se a premissa menor. Primeiro, porque esta própria palavra, ' arrebatamento ' ,
também significa êxtase. Depois, é evidente que aqueles que estão absolutamente
dirigidos para a observação de alguma coisa não vêem um objecto que entretanto se
apresente, e isto pela razão de que, como a potência da alma é finita e limitada, se se
ocupa intensamente de alguma coisa por uma única potência cessa a operação da
outra; portanto, a aplicação da mente na consideração de qualquer objecto pode ser
tão intensa que se produzirá perfeitamente por todas as funções tanto dos sentidos
externos como internos. E, que isto aconteceu algumas vezes aos insignes santos
varões pelo dom da contemplação é evidente, a tal ponto que quando se abstraíam
dos sentidos não sentiam a aproximação do fogo.

ARTIGO II
Diversas opiniões dos autores e explicação do verdadeiro parecer

Nesta questão são várias as afirmações dos filósofos. Na verdade, Avicena, no


seu Compêndio sobre a Alma, considerou que no uso da ciência não se requer
nenhuma observação dos fantasmas. Também os intérpretes gregos afirmam que ela
é supérflua, quando a alma observa os comuns e os imateriais que transcendem a
força da fantasia. Outros, recordados por Vicomercato na disputa peripatética
Acerca da imortalidade da alma racional, pretendem que ela seja apenas exigida
para a produção das espécies que o intelecto agente faz, e daquilo que é primeiro
concebido que acompanha essa produção. É então necessário que a fantasia opere ao
mesmo tempo, a qual juntamente com o intelecto agente é autora das espécies inteli­
gíveis. Outros acolhem-na em todas e apenas naquelas intelecções que resultam das
espécies presentes por obra do intelecto agente e dos fantasmas ; pelo facto de tais
espécies terem tido origem no fantasma, é que para conseguir as suas operações elas
parecem receber necessariamente o seu consórcio. Existem também muitos outros
que afirmam que nenhuma acção de inteligir ocorre no presente estado da vida que
não concorra com nenhuma consideração do fantasma. E por fim, alguns retiram
538 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

desta lei geral uma certa sublime e eminente contemplação, pela qual a mente,
embora vivendo no corpo, se eleva de algum modo sobre a massa do corpo, de
maneira que já não parece cuidar da afluência dos fantasmas que lhe sobrevêm.
A nossa posição é a seguinte. A alma junta ao corpo não glorioso, pelo menos
quando exerce intelecções habituais ou comuns, toma necessariamente em conside­
ração os fantasmas. Aristóteles transmite esta afirmação, neste livro, capítulo 7º,
texto 30, e no capítulo 8º, texto 39, embora nestes pontos lhe junte a moderação da
qual trataremos daqui a pouco, embora pareça que ele também tinha falado expres­
samente, sobretudo naquele texto, não acerca do conhecimento de todas as coisas,
mas somente do conhecimento das coisas sensíveis.
Prova-se, portanto, a verdade desta matéria com um duplo indício. O primeiro,
porque vemos que todas as vezes que os sentidos internos, ou por interferência do
sono, ou por outro impedimento, foram aprisionados, também é perturbado e atado o
juízo do intelecto, e ele não desempenha correcta e pontualmente as suas funções.
Isto, decerto, não provém de outra coisa a não ser porque, embora a faculdade de
inteligir não pertença ao corpo, ela requer todavia o consórcio das forças internas
que incidem nos órgãos corpóreos. O segundo indício é que, aquilo que em si pró­
prio seja quem for experimenta quando se esforça por compreender alguma coisa, é
a formação para si de umas dadas imagens materiais ou fantasmas com os quais de
alguma maneira observa aquilo para cuja intelecção dirige o espírito. A isso diz
respeito o seguinte, que São Gregório de Nazianzo, em A Teologia, na oração
segunda, escreveu. Não é possível por nenhuma razão que alguém decida andar para
além da sua sombra (na verdade, quanto mais a perseguir, mais ela chega sempre
primeiro), ou que o olho se ligue às coisas que recaem na vista além da luz intermé­
dia e do ar, ou que os peixes saiam fora das ondas. Da mesma maneira também é
impossível àqueles que estão encerrados nos corpos, sem o auxílio das coisas corpó­
reas e dos sentidos, inteligirem aquilo que está totalmente ligado pelo espírito e pela
razão. Com efeito, sempre que algum sensível sobrevenha, de passagem, a nossa
mente, ainda que separada ao mais alto grau do contacto das coisas que se podem
observar e recolhida em si própria, esforça-se por ter comércio com as coisas afins
que escapam à penetração dos olhos .
Existe, porém, uma dúvida neste ponto, donde sobrevém à alma esta necessidade
de se virar para os fantasmas? Escoto, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3,
questão 3, e no 4º livro, distinção 45, questão 2, alega uma dupla causa, a saber, ou o
pecado original, para cuja pena a alma decaiu e foi vergada até ao corpo, a que res­
peita a afirmação de Santo Agostinho, no livro 15 de A Trindade, capítulo 27º: 'Que
causa há para que não possas ver a própria luz, a não ser a doença? Quem ta causou,
senão a iniquidade?' Ou a ordem natural das potências, pelo que acontece que
quando uma atinge o objecto próprio, a outra, que está apta a ser levada para o
mesmo objecto, dirige-se ao mesmo tempo para ele. De entre estas causas, a pri­
meira não parece correctamente transmitida. Com efeito, tal como a dependência
que o intelecto possível tem dos fantasmas quanto à recepção das espécies inteligí­
veis que são produzidas pelo intelecto agente com o ministério daqueles de modo
algum teve origem no pecado original (se os primeiros pais não tivessem pecado, os
seus descendentes produziriam por obra dos seus fantasmas, tanto as espécies inteli­
gíveis, como as ciências, como São Tomás ensina na primeira parte da Suma Teoló-
Livro Terceiro. Explicação do Capítulo Vll/, Questão Vlll. Artigo li 539

gica, questão 1 0 1 , artigo 1 º e no 2º livro das Sentenças, distinção 20, questão 2,


artigo 2º), assim também a necessidade de tomar em consideração os fantasmas
quando usamos já as espécies adquiridas não tem de ser referida à dita culpa. Já
quanto à segunda causa, se correctamente adaptada ao propósito, ela é verdadeira.
Sem dúvida, há a tal ponto uma natural conexão do intelecto com a fantasia, quando
o espírito está no corpo, que pelo menos o intelecto não pode ordenadamente captar
o conhecimento de alguma coisa sem que a fantasia o acompanhe e se detenha com a
faculdade em tomo do mesmo objecto em vista do que capta dele. Por isso, se vê
que a operação segue a forma e o seu modo de existir, e que a alma humana é ao
mesmo tempo não só uma substância independente do corpo, mas forma do corpo;
pela primeira condição reclama a operação para si, isto é, o acto de inteligir que não
é inerente ao órgão corpóreo; pela razão da segunda, solicita para a citada função o
ministério do corpo e o apoio da fantasia.
Mais ainda, acrescentámos em conclusão as seguintes palavras, 'quando a alma
foi junta ao corpo não glorioso' , a fim de compreendermos o duplo estado da alma
no corpo, ou seja, aquele que os primeiros pais tiveram quando foram assinalados
por Deus com o dom da justiça incriada, e aquele no qual agora vivemos . De facto,
num e noutro ganhou força aquela conexão natural entre o intelecto possível e a
fantasia. Na verdade, que também os primeiros pais, naquele estado, usavam a con­
versão aos fantasmas, di-lo São Tomás, na questão 94, artigo segundo, e na questão
1 8, A Verdade, artigos 2º e 5º, e prova-se, porque as espécies e ciências dos primei­
ros pais eram da mesma natureza que as nossas, como que infusas por acidente. Por
isso, a eles e a nós convinha um mesmo modo de inteligir por natureza, embora
Escoto, no local citado, defenda opinião contrária, negando em absoluto que o pri­
meiro homem inteligia através da conversão aos fantasmas. Nem aquelas palavras de
Santo Agostinho afirmam que a culpa causou ao homem dependência dos fantasmas,
coisa que lhe é natural, mas sim o trabalho e a dificuldade para conhecer e contem­
plar as coisas clara e lucidamente. Também não se deve negar que o conhecimento
do primeiro homem foi mais sublime do que o nosso. De facto, essa maior sublimi­
dade e elevação não existia mercê de uma independência em relação ao fantasma,
mas no que toca às coisas que contemplava, conforme explica São Tomás, questão
1 8 de A Verdade, artigo 5º. Além disso, porque penetrava as próprias coisas que
conhecia de um modo mais fácil e acutilante. Acrescente-se também que atingiu um
modo muito mais alto de adquirir a ciência do que nós, pois recebeu-a de imediato,
não por obra dos sentidos, mas por inspiração da vontade divina. Afastamos porém
da dependência dos fantasmas o estado da alma unida ao corpo glorioso, porque nela
não haverá o necessário concurso da fantasia para inteligir. Embora, de facto, os
bem-aventurados experimentem as funções tanto dos sentidos internos como dos
externos, ser-lhes-á livre todavia inteligir qualquer coisa sem o seu fantasma. Quem
objectar que a graça não expulsa a natureza e que, por isso, se a operação da fantasia
naturalmente seguir o acto de inteligir, necessariamente a alma no corpo, também
glorioso, há-de recorrer aos fantasmas, deverá opor-se que a graça não expulsa a
natureza, isto é, não muda a essência da coisa, nem as potências que dela emanam
são destruídas, mas que a transfere para um estado mais alto e para um modo de
operar mais perfeito, modo este que é poder inteligir sem comprometimento e queda
no sentido. Atenta também que a alma de Cristo ainda no estado de vida mortal, nem
540 Sobre os Três Livros 'Da Allrlfl ' de Aristóteles

quanto ao uso da ciência infundida, nem adquirida, esteve privada do recurso aos
fantasmas, porque quer em razão da união, quer em razão da beatitude, não estava
subordinada ao corpo ou dele dependente. Acrescentámos, quando a alma administra
as intelecções habituais ou comuns, para excluirmos a contemplação, que é feita
pelo êxtase perfeito e pelo arrebatamento. Nela, com efeito, cessam tanto os sentidos
externos como os internos, como prova o último argumento do artigo anterior.

ARTIGO Ili
Explicam-se certas dúvidas

Ocorrem todavia, neste ponto, umas certas dúvidas, cuja solução muito contribui
para perceber melhor a dependência do intelecto dos fantasmas. A primeira é de que
modo a alma bem-aventurada no corpo glorioso pode expor-se às funções dos senti­
dos e recorrer ao fantasma quando quiser, se acontece o contrário àqueles que têm o
êxtase nesta vida mortal, dado que o conhecimento intuitivo da natureza divina é de
tal forma sublime que chama mais a alma a si, a tal ponto que abstrai dos sentidos.
A outra é se no êxtase não só cessam totalmente as operações animais, mas também
as naturais e as vegetativas, visto que a mesma razão parece existir numas e noutras.
A terceira, se o êxtase se pode dar pela força da natureza. À primeira destas dúvidas
deve dizer-se com São Tomás, Suma Teológica, 2ª parte da 2ª, questão 1 75 , artigo
4º, que embora os bem-aventurados, uma vez assumidos os corpos gloriosos, devam
ser levados para Deus em toda a intenção da mente, todavia neles não se há-de dar a
abstracção dos sentidos, em virtude de uma certa redundância do intelecto para os
sentidos. Por isso, segundo a própria regra da visão beatífica poderá a alma ao
mesmo tempo prestar atenção aos fantasmas e aos sensíveis externos, não porque
esta contemplação sej a mais eminente do que as restantes, nem porque a mente não
seja para ela levada por um contacto muito mais veemente, mas porque com a luz
divina será de tal modo iluminada que pode ir ao encontro de ambos. Não obsta que
São Paulo, também segundo aqueles que pensam que ele viu a essência divina no
arrebatamento, tenha sido apartado dos sentidos, como anotou São Tomás, no ponto
citado; faltou-lhe, isso sim, a referida redundância para as faculdades inferiores da
alma, porque contempla a divina essência não de maneira duradoura, como os bem­
-aventurados na pátria, mas de maneira breve e apenas com uma visão transitória.
Acrescente-se que não é claro se a alma de São Paulo esteve nessa altura separada
do corpo, visto que o próprio confessou desconhecer isso. Daí que não podemos
afirmar se algo lhe aconteceu realmente quanto à abstracção dos sentidos, isto é, se
num corpo morto pela separação da alma os sentidos se extinguiram nele, ou se num
corpo não morto apenas ficaram profundamente adormecidos. Leia-se São Tomás,
na mesma questão, artigos 5º e 6º.
À segunda dúvida responde o Abulense, no ponto citado, que no êxtase todas as
potências além do intelecto estão em repouso. Para explicação deste assunto apre­
senta a diferença entre a ligação das potências que existe no sono e aquela que existe
no êxtase. No sono, as faculdades cognitivas encontram-se impedidas, isto é, assim
como os sentidos externos não agem em absoluto, também os internos e o intelecto,
ou estão totalmente desocupados, posto que as insónias não dominam, ou operam
somente de modo obscuro e imperfeito. Mas, uma vez efectivamente ligadas as
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VI/l, Questão VIII, Artigo I/l 54 1

potências cognoscentes, não estando a alma ocupada noutras funções, as forças


naturais estão mais expeditas para a actividade. Daí então completar-se mais rápida e
vantajosamente a digestão da comida e a distribuição do alimento por todo o corpo.
No êxtase, porém, as coisas acontecem de modo diferente. Adormecida a alma,
eleva-se no êxtase, isto é, no adormecimento é inflectida para as potências inferiores,
no êxtase é-o para mais alto, ou sej a, é arrebatada para a força de inteligir, sendo as
restantes deixadas em repouso. Assim, de facto, o Abulense pensa que também as
operações naturais no êxtase são interrompidas. Prova-o, porque os que entram em
êxtase permanecem muito tempo sem alimento e sem bebida; e o que é admirável,
nem o movimento do coração, nem o calor vital neles se desprende. A tal ponto que
se duvida se não estão mortos.
São Tomás, na Suma Teológica, segunda parte da segunda, questão 1 75 , artigo 5º,
afirma que no arrebatamento não se requer que as forças da alma vegetativa cessem
a actividade, por isso que agem segundo o modo da natureza, mas não por intenção
da alma, tal como as faculdades sensitivas, cuj a ocupação, portanto, limita a inten­
ção da alma a respeito do conhecimento intelectivo. A nós parece-nos que, ainda que
as forças naturais, porque estão mais juntas ao órgão corpóreo, sejam menos retar­
dadas pelas obras das outras, todavia todas as faculdades, de modo universal, em
qualquer lugar que ajam, quer sej am naturais, quer não, reflectem a dureza do agir
quando a alma se lança de modo veemente para a operação de alguma potência. A
razão disto está, como dizíamos atrás, em que os que recebem alimento ou os que
escrevem e meditam atentamente acerca de qualquer coisa executam menos bem o
trabalho da digestão e o contrário. Portanto, à dúvida proposta respondemos que,
visto que o êxtase acontece pela força divina, é certo que a alma pode, então pela
mesma força, cessar as funções de todas as potências. Mas se na realidade delas se
abstém, excepto das funções dos sentidos e das faculdades locomotoras, não é sufi­
cientemente sabido. A nós parece-nos decerto mais verosímil que também as forças
naturais operem algo, ainda que por vezes exteriormente não seja possível perceber.
No que respeita à terceira dúvida a favor da parte afirmativa, em primeiro lugar
está aquilo que aflorámos no fim do primeiro artigo. Na verdade, se acontece,
quando a alma se encontra extremamente concentrada noutras coisas, que o olho,
apesar de receber a espécie do objecto na distância conveniente, não produz a visão
devido a uma concentração excessiva, por que não poderá o intelecto, através da
potência natural, entregar-se à consideração sublime das coisas, de tal modo que
prescinda das funções dos sentidos? Depois, porque isto mesmo parece ser confir­
mado por alguns exemplos. De facto, Santo Agostinho narra o seguinte, no livro 1 4
d e A Cidade de Deus, capítulo 24º, acerca d o presbítero Restituto. Existiu u m certo
presbítero, chamado Restituto, numa paróquia da Igrej a de Calama que, quando lhe
apetecia, e também quando lhe era pedido que o fizesse por aqueles que desejavam
presenciar tal facto maravilhoso, perante a imitação das vozes de um homem qual­
quer a chorar, perdia de tal modo os sentidos e jazia semelhante a um morto que, não
só sentia muito pouco os que o picavam e atormentavam, mas também, às vezes, era
queimado pelo fogo que lhe chegavam, sem qualquer sentido de dor, excepto mais
tarde, na ferida. Mas ao não resistir e ao não sentir não movia o corpo, como se
prova porque, tal como num defunto, não havia respiração alguma. Além disso, o
autor da obra De divina sapientia secundum Aegyptios, livro primeiro, capítulo 4º,
542 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

testemunha o que Platão narra acerca de si próprio. Muitas vezes, contemplando


com o espírito, abandonado o corpo, pareceu-me que gozei o sumo bem com um
desejo incrível. Por isso, fiquei de algum modo perplexo, atónito, conhecendo que
era parte do mundo superior e sentindo-me alcançar a imortalidade da vida sob a
máxima luz que não pode exprimir-se pela palavra, nem ser percebida pelos ouvi­
dos, nem compreendida pelo pensamento. Por fim, o intelecto positivamente fati­
gado por esta contemplação recaiu na fantasia, e então tomei-me mais triste com
aquela luz deficiente. Lê-se também algo semelhante no início do Pimandro, acerca
de Mercúrio Trismegisto, que na contemplação da natureza, uma vez adormecidos
os sentidos do corpo, afirma que foi arrebatado pela mente divina e que foi instruído
acerca das mesmas coisas que desejava conhecer. Também Alcibíades lembra, no
Convívio, que Sócrates algumas vezes permaneceu imóvel, pensativo num degrau,
durante um dia e uma noite até ao pôr-do-sol, no meio do exército. Visto que não é
verosímil que estas abstracções dos sentidos tenham acontecido por milagre, deverá
conceder-se que o êxtase pode dar-se por uma faculdade natural. E desta opinião
parecem ser Ficino, livro 13 De immortalitate animorum, capítulo 1 4º, quando
afirma que este é o único dos argumentos com que se comprovava a imortalidade e a
separação do corpo em relação à alma racional . A favor da posição contrária, con­
tudo, a opinião é que, para libertar o intelecto daquela dependência natural dos fan­
tasmas, parece ser exigida alguma potência acima da natureza. São Gregório de
Nazianzo indicou de forma bastante clara que pensava isso, com as palavras que
acima referimos, quando afirma que é impossível que a mente, que se eleva o mais
possível para a contemplação das coisas sublimes, abandone o comércio dos senti­
dos.
Quem quiser seguir a primeira parte, diga que a lei da dependência dos fantasmas,
que a natureza impôs ao intelecto, não é irrefragável, mas ordinária. E a interpreta­
ção da referida lei não é própria de poucos, mas de muitos, cuj a menção fizemos
acima, baseados em Vicomercato, que afirmavam que nem sempre se requer a
observação da fantasia. E assim, é provável que alguns possam como que por privi­
légio da natureza nalgum evento e circunstância sentir naturalmente o êxtase, para o
que muito contribui o temperamento de cada um. Com efeito, os melancólicos,
como explicou Fracastório, no livro segundo De intellectione, assim como na sua
própria natureza são pensativos, assim também são tidos como mais propensos para
o arrebatamento dos sentidos. Não é, de facto, estranho pelas leis da natureza que
coisas semelhantes a estas, também admiráveis pela raridade, de vez em quando
sucedam, como a própria experiência testemunha, e Santo Agostinho ensina com
vários exemplos em A Cidade de Deus e no ponto citado, quando, entre os milagres
da natureza enumera aquele do presbítero Restituto que acima lembrámos.
A quem prefira a segunda opinião, dir-se-á que a visão não está para a fantasia e
para o intelecto, tal como a fantasia está para o intelecto, porque o intelecto depende
do apoio da fantasia, e nem o intelecto nem a fantasia dependem da função da visão.
Por isso, não admira que se a vista não produzir a sua acção, nem por isso a fantasia
e o intelecto deixem de persistir na operação. No que respeita, porém, aos exemplos
que referimos, deve dizer-se que o êxtase perfeito, acerca do qual trata a nossa
questão, em que todos os sentidos, tanto os internos, como os externos estão total­
mente adormecidos, não toca a ninguém independentemente do poder divino. Mas
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo IX 543

que o êxtase imperfeito, no qual não cessa totalmente a operação da fantasia, pôde
acontecer naturalmente àqueles homens, visto que, como dissemos, o presbítero
Restituto narrava que quando era arrebatado do sentido, ouvia as vozes dos que
exclamavam, como que ao longe, como refere Santo Agostinho no mesmo passo.
Então, se percebia as vozes e dado que nele não estava adormecido o sentido da
audição, é porque não se encontrava num êxtase perfeito.

ÁRTIGO IV
Resposta aos argumentos do primeiro artigo

Resta respondermos aos argumentos propostos no início da questão. Ao primeiro,


concedemos que é natural que a alma dependa dos fantasmas quando intelige.
Porém, obj ecta-se que aquilo que naturalmente pertence a algo pertence-lhe sempre,
se a natureza se mantiver incólume. Isso, de facto, acontece, a não ser que punhamos
que a coisa é transportada de um estado para outro mais perfeito e acima da sua
faculdade inata. Ou, para além do curso usual, que ela opera diferentemente por
outro privilégio da natureza, o que acrescentamos com base no pensamento daqueles
que aceitam que o êxtase perfeito acontece pelas potências naturais.
Ao segundo, o que deve responder-se é evidente a partir do que se disse, a saber,
conceder que o intelecto depende da fantasia e a fantasia dos sentidos externos
quanto à aquisição das espécies, mas não quanto ao seu uso. Na verdade, embora o
intelecto sej a mais separado da matéria que alguma potência inerente ao órgão cor­
póreo, todavia é maior a associação entre o intelecto e a fantasia do que entre a fan­
tasia e os sentidos externos, pela causa por nós explicada, acima. Leia-se, se se
entender, outra solução deste argumento, em São Tomás, Suma Teológica, parte 1 ,
questão 84, artigo 7º ao segundo.
Ao terceiro, dir-se-á que não é necessário que a fantasia apreenda sempre o sin­
gular da mesma natureza daquilo que foi concebido pelo intelecto, mas de algo
semelhante, ou que de qualquer modo lhe corresponda. Embora efectivamente
Aristóteles, no ponto citado, tenha falado expressamente apenas das matérias físicas
e matemáticas, deve dizer-se que, não obstante, se vê a mesma razão nos conceitos
das restantes matérias. Fica patente pelas afirmações acima referidas, aquilo que
deve ser respondido ao último argumento.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IX

a. Cum autem animalium autem 432 a 1 5 Como havia definido a alma como
-

aquilo pelo qual sentimos, vivemos, nos movemos localmente e inteligimos,


depois de ter tratado da potência vegetativa, sensitiva e intelectiva, Aristóteles
acrescenta agora à polémica a faculdade do movimento local, que deixa para a
parte final do livro, depois dos sentidos e do tratamento do intelecto, porque o
movimento não se perfaz senão precedendo-o algum conhecimento do sentido ou
544 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

do intelecto. Ele inquiriu sobre a potência motora não por acaso, mas porque é o
princípio da locomoção e da marcha dos animais; se ela é uma parte ou faculdade
da alma; se é a própria substância da alma; e, ainda, se tiver de existir uma
potência da alma, se ela se distingue das restantes ou não.
b. Atque hic existit continuo dubitatio 432 a 22 Como as questões propostas não
-

podem ser explicadas senão depois de estabelecido o número das faculdades,


coloca a dúvida sobre quantas são as partes da alma. Na verdade, nem a divisão
que Platão transmitiu, livro 7, A República, em ira, cupidez e razão, nem aquela
que o próprio Aristóteles, no último capítulo do 1 º livro, e no 1° capítulo do livro
6, Ética, divulga, a saber, em dotada de razão e desprovida de razão, parecem
encerrar todas as partes da alma no seu âmbito, o que, aduzidos aqui os argu­
mentos, passa assim a examinar.
c. Sed ut redeamus 432 b 7 Discute aquilo que dizia respeito à presente disputa e
-

conclui que a potência motora não é a potência de vegetar, de inteligir ou de


apetecer. Na verdade, primeiro, que não é a faculdade vegetativa é evidente, por­
que todo o movimento está junto com a imaginação e com o apetite, visto que
existe para evitar e perseguir algo percebido pela imaginação e toda a fuga e per­
seguição diz respeito ao apetite. Ora, a acção de vegetar não requer a imaginação
e o apetite, visto que existe também nas plantas, às quais não cabe nenhum deles.
Outro. Porque se a potência de mover e de agir fosse a mesma, seguir-se-ia tam­
bém que os géneros das estirpes que se evidenciam pela faculdade vegetativa,
teriam instrumentos aptos para a marcha, o que é claramente falso.
d. Pari modo nec ipsam 432 b 1 9 Demonstra, pela mesma razão, que a potência
-

da marcha não é o sentido, porque é claro que existem certos animais que não se
movem no lugar, mas vivem fixos no mesmo lugar (os gregos chamam-lhes zoó­
fitos, os latinos podem chamar-lhes plantanimais) que possuem sentido, mas não
possuem a referida faculdade de movimento local, visto que carecem de órgãos
para se dirigirem para lugares diferentes.
e. At uero neque ratiocinandi uis 432 b 26 Prova que a faculdade motora e a
-

faculdade intelectiva não são a mesma coisa, porque o intelecto ou é activo ou


contemplativo, mas nenhum deles pode ser o princípio da locomoção. Não o
contemplativo, porque este, de facto, enquanto tal, não considera o que respeita à
acção, e a locomoção não é senão uma acção de fugir ou de acolher. Não o inte­
lecto prático, porque ainda que ele, frequentes vezes, apresente o que se deve
acolher ou evitar, nem por isso se segue uma acção, como é claro nas coisas que
dizem respeito mais ao desejo do que à razão. Finalmente, confirma que a facul­
dade motora não é o apetite, quer concupiscente, quer irascível, porque muitas
vezes, quando o apetite tende para um movimento, o movimento não se mani­
festa.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo X 545

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO X

a. Videntur igitur duo 433 a 9 No capítulo anterior ensinou o que a potência


-

motora não era, agora mostra o que ela é. E visto que a faculdade motora ou é
directora ou impulsionadora ou executiva, ensina quais são os princípios pelos
quais é dirigida e impelida a potência que executa o movimento. Estabelece,
portanto, que o intelecto prático e o apetite são princípios do movimento de
locomoção e avisa que, pela designação de intelecto prático, se compreende tam­
bém a imaginação, porque partilham entre si a função. Com efeito, tal como os
homens pela razão, se dirigem para o movimento e para toda a acção, assim tam­
bém os animais irracionais, pela imaginação e, por vezes, também os homens,
quando a perturbação do espírito vence a razão. E ele prova esta afirmação, por­
que tanto o apetite, como o intelecto respeitam a um fim que deve ser alcançado
com o movimento de locomoção. Atente-se, porém, que o intelecto prático é o
princípio dirigente, o apetite, o princípio impulsionador, porque cabe ao intelecto
prático propor o que deve ser evitado e acolhido, e é função do apetite evitar ou
acolher. Afirma também que o intelecto que move, calcula em vista de alguma
coisa, porque o contemplativo investiga a verdade por causa de si, mas o prático,
por causa da obra, pois todo o apetite é conduzido em direcção a alguma coisa
que deve ser prosseguida, e o intelecto prático é o que move o apetite, daí tam­
bém se chamar apetecível o fim a partir do qual começa a consideração do inte­
lecto prático.
b. Intellectus igitur rectus est omnis 433 a 26 - Com base no que disse tem a
oportunidade de explicar por que razão de vez em quando nos enganamos nos
apetites e nos movimentos, afirmando em primeiro lugar que todo o intelecto está
certo, o que deve ser entendido acerca do assentimento dos princípios comuns ou
dos que pertencem à contemplação, como 'qualquer todo é maior do que a parte' ,
o u que pertencem à acção, como 'não é lícito prejudicar ninguém' . E assim,
nenhum erro atinge os primeiros princípios, nem as coisas que são ordenadas
pelos primeiros princípios práticos, visto que de maneira certa e hábil considera­
mos o que deve ser querido ou repudiado. Se, em suma, o apetecível move sem­
pre, ou ele é simplesmente o bem, porque corresponde à regra e ao juízo da recta
razão, ou é o que transporta apenas a espécie do bem, através da qual não atrai a
si nenhum apetite. Se não forem representados como bem e como apetecível, não
se produz nenhum movimento, o que no argumento é com certeza atribuído ao
apetite que tem o primeiro lugar entre outras coisas que movem interiormente o
próprio animal.
c. Constar etiam eos oportere 433 b 1 Rejeita a divisão platónica das faculdades
-

da alma em faculdade racional, irascível e concupiscente, visto que é manifesto


que existem muitas potências da alma, designadamente as faculdades nutritiva,
sensitiva, intelectiva, deliberativa e apetitiva. Nota que onde afirma que a potên­
cia intelectiva e a deliberativa diferem mais entre si do que a faculdade irascível
e a concupiscente, isso deve ser interpretado da parte do objecto, na medida em
que entre os mais simples, o intelecto trata das coisas universais e sempiternas,
mas a deliberação trata das coisas singulares; e sobre as coisas que podem ser de
546 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

outro modo, realmente é na verdade uma única e a mesma a potência que intelige
e a que delibera.
d. Cum autem appetitiones 433 b 5 Declara que o apetite que move o homem é
-

duplo; superior, o que segue a razão, e inferior, o que é movido pelo comando da
fantasia, mas prova-o a partir das acções contrárias sobre o mesmo objecto, as
quais escolhemos num mesmo tempo. Mas esta oposição dos apetites encontra-se
apenas no homem, porque só ele percebe exactamente a separação entre o tempo
futuro e o presente.
e. Cum tria sint 433 b 1 3 Conclui que são três as componentes respeitantes ao
-

movimento dos animais. A primeira é aquilo que move; a segunda, aquilo por
que move; a terceira, o que se move. Por sua vez aquilo que move é duplo. Ou,
com efeito, é imóvel, ou tal como move assim também é movido. O imóvel é o
próprio apetecível. O que move e é movido é o apetite que, movido pelo objecto,
move os membros. Acrescente-se a este movente a faculdade directiva, quer sej a
o intelecto, quer sej a a fantasia, a qual movida pela espécie move o apetite, visto
que não apetecemos senão o que conhecemos. Mas aquilo que se diz que é em
absoluto movido é o animal. E por isso, aquilo com que move é a parte do corpo
pela qual o movimento é executado.
f. Nunc ut in summa 433 b 2 1 Conclui sucintamente o que se deve dizer acerca do
-

órgão da locomoção, ensinando que ele é necessário onde reside o princípio e o


fim do movimento; e além disso que deve ser imóvel. O que expõe mediante uma
comparação com o gonzo onde principia a porta; com efeito, sobre a concavidade
do próprio gonzo e a convexidade da abertura realiza-se e conclui-se o movi­
mento, porque as portas estão presas ao gonzo e não se movem em tomo dos
outros. A máquina do corpo humano também mostra o mesmo. Na verdade, no
conjunto dos ossos, o convexo de um osso está de tal modo ligado ao côncavo do
outro que estando um em repouso, o outro move-se. Assim, efectivamente, é
necessário que tudo o que se move o faça sobre algo fixo e imóvel e, por isso,
nesse mesmo lugar reside o início e o fim do movimento, tal como na locomo­
ção, quando um pé está parado, o outro avança. Além disso, com base nisto,
Aristóteles pretende ser claro que o coração ou o equivalente ao coração é o
órgão comum ao movimento dos animais, porque está no meio, quase no centro
da esfera, embora se agite em movimento perpétuo e de um certo modo repousa
ao estar sempre fixo à mesma parte do corpo e ao não receber movimento de
nenhuma outra. E assim se estabelece o coração como princípio do movimento,
visto que impele o calor e os espíritos vitais a todos os membros, e ao mesmo
tempo vê-se nele o fim do movimento, porque tal como move assim repousa
segundo o modo referido.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XI 54 7

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XI

No capítulo anterior Aristóteles tinha discutido acerca dos princípios do movi­


mento dos animais perfeitos. Agora pergunta se a faculdade motora também diz
respeito aos animais imperfeitos. E primeiro ensina que é evidente que o apetite está
presente neles, visto que são afectados pela dor e pelo desejo. Daí que também seja
evidente que a imaginação lhes pertence, porque todo o desejo acompanha o conhe­
cimento. Não têm todavia imaginação perfeita, mas indefinida, pois ou vivem num
lugar fixo, ou se deslocam com a proximidade do agradável e do nocivo, não para
um lugar certo, mas indistintamente.

a. Imaginatio igitur 434 a 5 Retrocede a fim de declarar qual é o primeiro princí­


-

pio do movimento nos homens, e diz que é a razão deliberativa, a qual pertence
apenas aos animais dotados de inteligência e de razão, porque deliberar sobre o
que deve ser evitado ou acolhido é tarefa de ordem mais elevada do que a que
pode caber aos animais irracionais. Mas avisa que na sua deliberação deve ser
respeitada uma regra ou fim ou algo deste género, porque avaliamos o que deve
preferencialmente ser feito, porque qualquer um é levado para aquilo que consi­
dera superior. Mas isso apenas segundo um certo padrão, isto é, consoante se
atinge aquilo que é costume considerar como mais elevado. Donde, é evidente,
diz ele, que a razão deliberativa faz de todas as coisas uma só, na medida em que
antepõe uma às restantes. E, na verdade, das três coisas que se lhe oferecem,
rejeita uma, usa outra como medida, aprova e acolhe a terceira E a causa disto é
porque aos animais irracionais não cabe julgar, pois embora tenham fantasia não
podem usar o silogismo através do qual concluem que uma deve ser preferida a
outra.
b. Vincit autem interdum 434 a 1 6 Ele adverte entretanto que a deliberação da
-

razão é vencida pelo apetite inferior, embora a faculdade deliberativa mova e


regule, por sua natureza, o apetite inferior, tal como no movimento celeste as
esferas superiores rodeiam as esferas que lhe estão sujeitas, razão esta de mover
que está sobretudo ordenada, como a natureza exige, para submeter as ínfimas às
mais altas e acompanharem a sua potência e governo.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XII

Neste capítulo Aristóteles compara as faculdades da alma a fim de clarificar que


ordem possuem entre si, quais as que são necessárias e quais as que são apenas úteis .
Retira, portanto, duas conclusões, a primeira das quais é a seguinte. Todo o ser vivo,
enquanto vive, se destaca pela faculdade vegetativa ou nutritiva, mas os animais apenas
precisam do sentido. Esta conclusão recomenda-se quanto à primeira parte, porque é
necessário que qualquer ser vivo primeiro cresça, depois se mantenha, por fim se
fortifique, porque é necessário que se mova para atingir a perfeição do tamanho, e
uma vez obtida a mantenha um pouco, e tenha então em conta o rápido declínio para
548 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

o pior. Isto somente acontece por intervenção da nutrição. Quanto à segunda parte,
ela recomenda-se porque os corpos compostos não perfeitos, como as plantas, nas
quais domina abundantemente a espessura da terra, não podem ter o tacto, que é o
primeiro de entre todos os sentidos e fundamento dos restantes, pois o tacto exige
uma certa medida e alguma presença da matéria para receber as formas sensíveis.

a. Animal autem 434 a 30 Segunda conclusão. Todos os animais são dotados de


-

tacto e de gosto, que é um certo tacto. Prova isto, porque na natureza nada acon­
tece por acaso, mas todas as coisas tendem para um fim, por isso, os animais que
se movem localmente terão necessariamente a faculdade de andar em razão de
um fim, perseguir as coisas saudáveis e rejeitar as nocivas ; mas não o podem
fazer, se não forem dotados de tacto e de gosto; logo, têm estes dois sentidos. Se
se objectar que as lapas e os animais que estão fixos a algumas rochas não se
podem mover localmente e que todavia vivem e sentem. Responde que esses
animais carecem da faculdade de ºse mover localmente, porque têm junto o ali­
mento, mas os restantes têm-no longe, razão pela qual o têm de procurar com o
movimento.
b. Fieri autem nequit 434 b 3 Pode alguém dizer que os animais que caminham,
-

caso estejam na posse da faculdade intelectiva, podem através dela j ulgar o agra­
dável e o nocivo, razão pela qual o sentido não é necessário. Responde que não
pode suceder que um corpo tenha o pensamento e não tenha a faculdade sensi­
tiva, porque se não fosse assim a união de uma tal alma e do corpo não termina­
ria, nem no bem da alma, nem no bem do corpo. Não no bem da alma, porque a
alma intelectiva está unida ao corpo a fim de que o ministério dos sentidos pre­
pare o conhecimento das coisas e aquele fim cessaria então. Não no bem do
corpo, porque a união do corpo não se tomaria mais firme ou mais duradoura.
c. Quod quidem ex hisce perspicuum 434 b 1 1 De novo é de opinião que o tacto e
-

o gosto estão presentes em todos os animais, mas não assim os restantes sentidos,
o ouvido, a vista, o olfacto, os quais não são dados ao animal por necessidade,
mas por utilidade, e pertencem acima de tudo àqueles que se deslocam. Com
efeito, são dados pela natureza para as coisas que têm de ser percebidas de longe.
Donde, os seus objectos mudarem primeiro o meio externo e depois levarem a
sua imagem através dele para os sensitérios. Mas de que modo se deve entender
que o gosto está presente em todos os animais e qual seja a sua necessidade, já
expusemos noutro ponto desta obra.

EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XIII

a. 435 a 1 0 Neste capítulo Aristóteles repete e esclarece duas conclusões. A pri­


meira é, que nenhum animal é um corpo simples ou formado por um só elemento
mas por uma mistura compacta de todos. Prova esta afirmação porque todos os
animais possuem o tacto dos sensitérios, que não pode ser formado por um ele­
mento simples, uma vez que exige uma proporção e uma medida, apenas visível
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xlll, Questão l, Artigo l 549

nos compostos. Daí que aqueles animais que têm em abundância muita matéria
terrestre careçam de sentido, ainda que vegetem, tal como as plantas, e seus
parentes e afins, como os cabelos e os ossos.
b. Haec cum ita sint 435 b 4 A segunda conclusão é a seguinte. Quando é des­
-

truído o tacto o animal morre imediatamente. Recomenda-a porque nada há de


mais necessário aos animais do que este tipo de sentido, visto que os restantes
sentidos foram-lhes dados pela natureza para eles poderem viver melhor e mais
vantajosamente ou para adorno e melhoria de qualidade. E da referida necessi­
dade do tacto sucede que a exuberância do objecto tangível corrompe por si o
animal, visto que desfaz a mistura do tacto, mas a superioridade dos restantes
sensíveis apenas o corrompe por acidente, uma vez que arrasta de igual modo as
qualidades tácteis, cujo excesso também enfraquece profundamente não só os
instrumentos dos sentidos deste género, mas o próprio órgão do tacto.

QUESTÃO !
Se o apetite se divide correctamente em intelectivo e sensitivo

ARTIGO I
Não parece correctamente dividido

Temos de examinar, neste ponto, as coisas que foram ditas sobre o apetite e a
faculdade motriz nos capítulos anteriores. Primeiramente suscitamos a questão pro­
posta apenas acerca do apetite que acompanha o conhecimento. É evidente, de facto,
que para além do apetite sensitivo e do intelectivo também existe um outro, comum
tanto aos seres animados, como às coisas inanimadas, denominado natural, que não
é outra coisa, senão a inclinação, pela qual, sem nenhum conhecimento prévio cada
um é levado para alguma coisa que é conveniente para si, como a propensão da
matéria para a própria forma. Acerca deste assunto leia-se São Dionísio, 4º capítulo
de Os Nomes Divinos; São Tomás, nas questões A Verdade, questão 25, artigo l º, na
lª parte da Suma Teológica, questão 78, artigo 1 °, e na Suma Teológica, 1ª parte da
2ª, questão 26, artigo 1 º. Que, portanto, tal apetite tomado também nesta restrição
não se divide correctamente em sensitivo e intelectivo, parecem-no mostrar os
argumentos seguintes. As potências distinguem-se pelos objectos e estes dois apeti­
tes são conduzidos para o mesmo objecto. Não são, portanto, potências diferentes.
Prova-se a premissa menor, porque um e outro são inclinação para o seu bem, e
alcançado este, colhem igualmente deleitação. Segundo argumento. Tal como o
apetite segue a apreensão, assim o movimento local segue o apetite. Ora, a faculdade
que move em relação ao l u gar não é diferente naqueles que carecem de razão e nos
que são dotados dela. Portanto, também a faculdade apetitiva. Terceiro. A potência
cognoscente não é apetite sensitivo nerri intelectivo. Mas é apetite. Logo, aquela
divisão não é perfeita. Prova-se a premissa menor, porque as perturbações ou as
paixões da alma são próprias do apetite, e no entanto estas observam a potência
cognoscente. De facto, a doença, segundo o testemunho de Cícero, livro 4 das
Questões Tusculanas, é definida como uma convicção actual do mal presente, em
550 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

que parece ser certo o estar-se abatido e retraído no espírito; a alegria, como a con­
vicção actual do bem presente, em que se considera ser rectamente levado; e o
medo, como a convicção do mal iminente. Por último, cada uma das restantes afec­
ções chama-se convicção ou consideração que, como é evidente, somente respeita à
potência cognitiva. Acrescente-se o que disse Santo Agostinho, no livro 1 2 de A
Trindade, capítulo 1 2º: a serpente, que aconselhou o pecado aos primeiros pais,
fingia e simbolizava o apetite sensitivo. Mas persuadir pertence à potência cognos­
cente. Quarto. A admiração e o riso são afecções do apetite, mas não do intelectivo
ou do sensitivo. São-no, portanto, de outro. Por isso, por um lado parece que se
distinguem muitos apetites, por outro, muito poucos.

ARTIGO II
É estabelecida a parte afirmativa da questão
Deve afirmar-se, todavia, com Aristóteles, neste livro, capítulo 1 0º texto 1 7, e no
livro 1 da Grande Moral, capítulo 1 7º, e a escola comum dos filósofos, que temos
um duplo apetite, um intelectivo, que segue o conhecimento do intelecto, e que se
chama vontade; o outro sensitivo, que o conhecimento do sentido interno antecede.
Mas prova-se esta afirmação. Primeiro, quanto ao apetite intelectivo, porque é evi­
dente que apetecemos as coisas espirituais e comuns em relação às quais não pode­
mos ser levados pela faculdade do órgão corpóreo, visto que a referida faculdade
tão-somente persegue as coisas que a fantasia produz. A fantasia, contudo, não com­
preende nem os objectos espirituais, nem os universais. Por isso terá necessaria­
mente de existir em nós uma potência apetitiva que sej a movida pelo movimento do
conhecimento intelectivo. Mas esta é a vontade. Depois, que para além dela haja
outro apetite, o sensitivo que tende apenas para os singulares sensíveis, aconselha­
-se, dado vermos que os animais perseguem e evitam as coisas nocivas, funções
estas que sem dúvida brotam do apetite. Mas que em nós reside não só o apetite
superior, mas também o inferior, quer porque temos em comum com os animais a
natureza sensitiva (e portanto se lhes pertence a eles, também a nós pertencerá esta
faculdade), quer porque, como Aristóteles concluía no capítulo 1 0º, experimentamos
em nós, ao mesmo tempo a repulsa e o apetite da mesma coisa. Como quando, por
exemplo, o apetite apetece algo de bom e deleitável, mas a vontade repudia isso
mesmo e coíbe a apetição que surge de outra parte. Como estes actos não podem
existir pela mesma potência, é evidente o argumento de que em nós tem lugar um
duplo apetite do qual aquelas brotam.
Porém, dado que os referidos apetites se distinguem em natureza e em espécie,
facilmente se pode concluir das afirmações, por que é que então reclamam objectos
diferentes. Na verdade, a vontade é levada para o bem, tanto universal, como singu­
lar, tanto o causado pela matéria, como o privado dela. Mas o apetite inferior é ape­
nas levado para o bem material e singular. Além disso, porque a vontade é potência
imaterial, mas o apetite sensitivo é uma faculdade corpórea. As coisas que são desta
maneira não podem encontrar-se numa mesma natureza específica. Não obsta que
Aristóteles, no ponto citado antes, texto 59, tenha escrito que estas potências cons­
tituem um uno, que se distinguem, no entanto, em número. Com efeito, com estas
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xll/, Questão !, Artigo li/ 551

palavras não quis indicar outra coisa, senão que elas obtêm uma razão genérica e
única comum, que uma não é a outra, mas que na realidade são contadas como duas.

ARTIGO Ili
Em que diferem entre si o apetite sensitivo e o intelectivo

Existem, contudo, entre estes dois apetites várias diferenças. A primeira, de facto,
é que a vontade segue o comando da razão, o apetite sensitivo segue a imaginação
ou fantasia. Mas poder-se-á objectar que a vontade, contra o conselho da razão per­
segue os prazeres, declina as coisas saudáveis, principalmente quando o medo, o
desejo e outras perturbações atormentam como tempestades ventosas . Nesse caso, a
razão, ocultada por nuvens, não afasta os raios nem domina as velas. Logo, não foi
correctamente que dissemos que a vontade segue o governo da razão. Deve respon­
der-se que embora a vontade nem sempre se constitua pela regra da virtude e abrace
o conselho da recta razão, todavia segue sempre a razão, isto é, aquilo que o inte­
lecto a si próprio propõe, visto que, como Santo Agostinho, no livro 10 de A Trin­
dade, capítulo 1 º, afirma, nada é querido que não sej a conhecido.
Segunda. Eles diferem, porque as acções da vontade são simplesmente livres, mas
as do apetite sensitivo apenas o são em virtude de uma certa oculta e imperfeita
liberdade, também comunicada de outro lado, quer dizer, da conjunção com a von­
tade. O apetite inferior, por isso, alcança aquela liberdade apenas no homem, não
nos animais irracionais, que são levados pelo ímpeto da natureza e pela necessidade,
não pela vontade. Por isso, uma vez o objecto representado, é inteiramente próprio
da vontade querer ou não querer, ou pelo menos suspender o acto (a não ser que ele
seja o sumo bem claramente visto, porque aí, é de tal modo arrebatada que a vontade
do apetite não é capaz de inibir o acto do amor), enquanto o apetite dos animais
irracionais, quando a fantasia lhe apresenta a coisa como agradável e apetecível,
necessariamente é levado para ela. Portanto, os animais irracionais, como afirma São
Damasceno, no livro 2 da Fé Ortodoxa, capítulo 27°, são mais conduzidos, do que
agem. Advirta-se todavia, que há certos actos de vontade que os teólogos chamam
'anteriores ao primeiro' , pois apenas são exercidos por um conhecimento prévio;
dado seguirem o juízo da razão não livre, mas repentino e necessário, eles não são
livres, nem está no nosso poder suspendê-los, o que igualmente deve ser dito acerca
dos actos que as crianças, os loucos e outros a quem foi impedido o uso da razão,
praticam. Mas alguns pensam que estes têm alguma liberdade. Acerca deste assunto
falaremos noutro ponto.
Terceira diferença. A vontade é uma potência imaterial que assenta na substância
da alma, mas o apetite sensitivo é uma faculdade corpórea que está presente na
matéria; sucede assim que a vontade reflecte acima dos seus actos, porque ela quer o
querer, mas não acontece o mesmo com o apetite sensitivo, como dizíamos noutro
ponto acerca do intelecto e dos sentidos internos. Com efeito, aquele pode reflectir­
-se acima de si próprio, estes, porém, muito pouco. Certamente que esta reciproci­
dade é própria de obra mais elevada do que da que pode ser feita pelo que é material.
Quarta. A vontade, conforme dissemos, é levada tanto para as coisas singulares
como para as comuns, tanto para as que as que são desprovidas de matéria, como
para as que estão imersas na matéria. Já o apetite sensitivo, só para as singulares e
552 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

materiais. Isto é evidente a partir daquilo que discutimos antes. De facto, o apetite
sensitivo, visto que é inerente ao órgão corpóreo, não pode elevar-se acima da sin­
gularidade e da espessura da matéria, tal como a imaginação, que acompanha o que
a precede.
Quinta. A vontade move, por si mesma, o apetite sensitivo pela ordem natural, de
acordo com o Génesis 4, no fundo de ti estará o teu apetite e tu o dominarás. Isto
porque a vontade leva vantagem de três maneiras. De uma maneira, por intervenção
do conhecimento sensitivo, isto é, ordenando ao sentido interno que apreenda que
este e aquele afecto podem excitar o apetite. Por exemplo, para que pense acerca da
morte, para excitar o temor, ou acerca da coisa agradável, para o desejo. De uma
segunda maneira, ordenando imediatamente ao próprio apetite, para que acerca do
objecto que lhe é apresentado escolha, mantenha ou reprima um acto. De forma que
o homem forte, como ensina Aristóteles, no livro 4 da Ética, quando se excita, para
lutar com força, ordena ao apetite que se tome furioso. Ainda que o apetite nem
sempre obedeça à vontade, mas entretanto lhe resista, conforme S. Paulo aos Roma­
nos 7, vejo outra lei nos meus membros que repugna à lei da minha mente. São
Tomás explica a causa disto, na Suma Teológica, parte 1 , questão 8 1 , artigo 3º, e na
1 ª parte da 2ª, questão 9, artigo 2º, a partir de Aristóteles, 1 º livro da Política capí­
tulo 3º, porque a vontade não domina com apetite despótico, mas com domínio
senhorial, real e político, isto é, não para os servos, que não rejeitam as ordens do
senhor, mas para os cidadãos que algumas vezes as recusam. Terceira maneira. A
vontade move o apetite, conforme alguns pretendem, por um certo fluxo ou redun­
dância; como, por exemplo, por causa do vigor o acto da vontade faz redundar no
apetite sensitivo um movimento semelhante sobre a mesma coisa, por causa da con­
junção e da ordem que estas duas potências têm entre si.
Com efeito, não só a vontade move o apetite, mas também move as restantes
potências aptas a obedecer, designadamente, porque em todas as potências activas
ordenadas, aquela que observa um fim universal excita as que se ocupam de fins
particulares, como parece acontecer tanto nos assuntos físicos, como nos políticos.
Com efeito, os corpos celestes, que procuram a conservação comum do mundo sub­
lunar movem os corpos inferiores, cada um dos quais procura para a sua espécie,
quer a tutela, quer a conservação do indivíduo. Também o Rei, que se ocupa do bem
comum de todo o reino, move com o seu império príncipes e governadores dos cida­
dãos, que tendo seus súbditos aplicam o seu cuidado no governo. Todavia, o objecto
da vontade é o bem e o fim em comum, ou em toda a sua amplitude, mas uma qual­
quer potência tende para algum bem particular que lhe é conveniente. Por essa razão,
será próprio da vontade excitar as restantes potências para os seus actos para além
das faculdades da alma vegetativa, que não estão subordinadas ao nosso comando.
Acrescente-se a estas a potência motora, enquanto exerce o seu acto no coração e
nas artérias. Com efeito, este movimento não depende da vontade. Leia-se São
Tomás, Suma Teológica, parte 1 , questão 82, artigo 4º, e A Verdade, questão 1 4,
artigo 1º.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão l, Artigo IV 553

ARTIGO IV
Resolvem-se os três argumentos do primeiro artigo

Resolvamos agora os argumentos do primeiro artigo. Ao primeiro, concedida a


premissa maior, deve ser negada a menor, e o que se deverá afirmar para a sua prova
é evidente a partir do que ficou dito. Ao segundo, deve ser admitida a maior; à
menor deve dizer-se que no homem existe uma dupla faculdade motora: uma, orgâ­
nica, inerente aos músculos, como será evidente a seguir; outra, espiritual, assente na
substância da alma, pela qual a alma unida ao corpo se move a si mesma localmente.
Já expusemos noutro ponto o que deve ser pensado acerca da primeira faculdade.
Muitas vezes, é manifesto que a segunda é diferente, em espécie, daquela que diz
respeito aos animais irracionais, visto que a material e a espiritual não podem per­
tencer à natureza específica. E assim, a premissa menor é falsa.
Ao terceiro, respondemos que aquelas definições das paixões não são peripatéti­
cas, mas transmitidas por Crisipo, como Galeno refere no livro 4, De decretis Hip­
pocratis et Platonis, e não são por nós aprovadas, excepto se forem entendidas de tal
modo que, por exemplo, a doença ou a tristeza, sejam definidas como uma convic­
ção actual sobre o mal presente, isto é, uma afecção da alma resultante da apreensão
do mal presente, etc. De igual modo, que a alegria é uma convicção actual sobre o
bem presente, isto é, uma afecção da alma, nascida do conhecimento do bem pre­
sente, etc. Acerca deste assunto leia-se São Damasceno, no livro 2, Fé Ortodoxa,
capítulo 22º, e Santo Agostinho, no livro 14, A Cidade de Deus, capítulo 8º. De
facto, no que respeita à semelhança entre a serpente e o apetite, dizemos que o ape­
tite se assemelha à serpente, porque tal como a serpente persuadiu Eva e Eva per­
suadiu Adão ao pecado, também o apetite persuade a razão inferior. A razão inferior
arrasta a superior para o consenso da vontade, o que efectivamente o apetite não faz
pelas razões aduzidas (de facto, isto é próprio da faculdade intelectiva), mas porque
o arrebatamento da sua afecção ocupa, entretanto, o ponto mais elevado da mente e
leva o intelecto a ajuizar que deve ser acolhido o que é agradável e delicioso para o
próprio apetite. Não raramente, conforme alguém é impressionado de acordo com o
apetite, assim julga acerca da coisa presente, como testemunham aquelas palavras de
Aristóteles, no livro 3 Ética, capítulo 4º. Para o homem bom é bom o bem em si;
para o dissoluto, parece bem o que calha; tal como são salutares para os corpos em
excelente forma as coisas que realmente o são, mas que são diferentemente, para os
enfermos. Destas afirmações é evidente que não se retira da referida semelhança
entre o apetite e a serpente que o apetite é uma potência cognitiva, pois o apetite não
recomenda o objecto representando-o inteligivelmente ou propondo razões, mas do
modo anteriormente explicado.

ARTIGO V
Resolve-se a primeira parte do quarto argumento
e trata-se da admiração

Por ocasião do último argumento, de entre os que propusemos no primeiro artigo,


tivemos de discutir, nesse ponto, acerca da admiração e do riso, assunto de que
muitas vezes se faz menção nas escolas dos filósofos. No que diz respeito à pri­
meira, quando admiramos deparamos com um objecto algo insólito e novo ou quase
554 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

novo. Intervém também a ignorância da causa dessa mesma coisa, ou de alguma


condição ou circunstância a ela pertencente, como quando alguém olha o eclipse da
Lua e não tem em mente a sua causa, ou quando vê algo acontecer superior à ordem
da natureza, como chamar um morto à vida. Daí que as coisas que acontecem deste
modo são chamadas de milagres pela admiração, embora, de facto, saibamos que
acontecem pelo poder divino. No entanto, o conhecimento perfeito do poder divino e
do seu modo de operar excede o alcance do nosso intelecto. Em terceiro lugar, na
admiração dá-se ao mesmo tempo uma certa fixação da mente, isto é, uma conside­
ração fixa e atenta de tal coisa com a suspensão do espírito. Se se perguntar em que
é que consiste propriamente a admiração, respondemos que parece consistir naquela
fixação da mente no sentido de uma suspensão, embora, para além da ignorância
acima explicada, se apresente entretanto em conjunto a inquirição da causa latente,
quer da condição, quer da circunstância a que respeita a coisa. Daí que se diga que a
filosofia nasceu da admiração, seguramente porque os homens observaram os efeitos
cujas causas desconheciam, ficando suspensos nesse momento primeiro; indagaram,
então, as causas, o que não é outra coisa senão filosofar, etc.
Objecta-se, todavia, que não parece que o objecto da admiração sej a correcta­
mente apresentado como algo de novo e insólito, porque em Cristo, nosso Salvador,
havia a admiração; de facto, como consta do capítulo 7º de Mateus, ele admirou a fé
do centurião, e no entanto nada de novo e estranho podia acontecer a Cristo.
Deve responder-se a esta objecção, que embora para Cristo, de acordo com os
diferentes modos da ciência que possuía, não pudesse existir algo novo, podia porém
existir segundo a ciência experiencial, pela qual, comparava com a experiência o que
já conhecia de outro modo. E desta forma houve nele a admiração. Cristo assumiu,
por isso, essa afecção acima de tudo para indicar que nos devemos admirar, porque
também ele próprio se admirava, como registou São Tomás, 3ª parte da Suma Teo­
lógica, questão l 5 , artigo 8º, a partir de Santo Agostinho, livro 1 sobre os Génesis
contra os Maniqueus.
Colocada assim a questão, deve responder-se à primeira parte do argumento, gra­
ças ao qual examinámos o que não pertence nem à vontade, nem ao apetite, mas ao
intelecto, como consta das afirmações. E não prejudica o que São Damasceno, livro
2, capítulo 1 5º da Fé Ortodoxa define, que a admiração é o medo que provém da
imaginação arrebatada, mas o medo é uma afecção do apetite. De facto, nessa passa­
gem ele considerou a admiração um pouco mais amplamente. Tal como Aristóteles,
no livro 4 da Ética, capítulo 3º quando afirma que o magnânimo não deve ser admi­
rado; ou dir-se-á que a admiração se chama temor, porque quem admira, oprimido
com a magnitude de uma coisa nova e insólita, teme e receia a observação, conforme
diz São Tomás, na Suma Teológica, primeira da segunda, questão 4 1 , artigo 4º. Se
alguém perguntar como é possível que aquele que se admira fuj a à observação, se a
observação filosófica nasceu da admiração, São Tomás responde, na mesma passa­
gem, que quem admira recusa no presente uma observação judicativa, isto é, não
ousa produzir um juízo acerca daquilo que se sustenta pela admiração, porque teme
o erro e a deficiência da sua opinião; todavia, inquire e indaga, de maneira que
ajuíza, após a coisa examinada, e deste modo, como há pouco dissemos, a admiração
é o princípio do filosofar.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão 1, Artigo VI 555

Visto que a admiração tem consigo a ignorância, também se costuma perguntar o


que torna a admiração (como Aristóteles ensina no primeiro dos livros da Retórica,
capítulo 1 1 º) causa de deleitação? A esta questão responde São Tomás, na Suma
Teológica, primeira parte da segunda, questão 32, artigo 8º, com as palavras
seguintes. A admiração é um certo desejo de saber que no homem acontece porque
vê o efeito e ignora a causa, ou também, porque a causa de tal efeito excede o
conhecimento ou a sua própria faculdade e por isso a admiração é causa de deleita­
ção, porquanto tem unida a esperança de conseguir o conhecimento daquilo que
desej a saber. Por isso, todas as coisas admiráveis são deleitáveis, tal como o são as
coisas raras, e também todas as representações das coisas que em si não são deleitá­
veis. Mas a alma regozija-se ao comparar uma coisa a outra, porque comparar uma
com outra é um acto próprio e conatural da razão, como diz o Filósofo na sua Poé­
tica. É por isso que ser liberto de grandes perigos é mais deleitável, porque é admi­
rável, como se diz no primeiro da Retórica. São Tomás, como se vê, coloca a
admiração no desejo de saber, o que acima, não aprovámos, ainda que ele, não o
tivesse referido muito, se é que porventura o disse. Ao lado desta afirmação de São
Tomás, deverá dizer-se que a admiração pertence formalmente ao apetite intelectivo,
embora a investigação da causa a ela concomitante respeite à faculdade de inteligir.

ARTIGO VI
Resolução da outra parte do argumento;
disputa acerca do riso

Acorramos agora à outra parte do mesmo argumento que mostra que devemos
analisar em que consiste o riso, e outras coisas a ele respeitantes. Questão certa­
mente pouco risível, que muito inquieta os filósofos, acerca da qual está aquilo que
Cícero diz, no segundo, O Orador: Demócrito analisou o que é o próprio riso, de
que modo é suscitado, quando existe, de que forma existe, e como irrompe repenti­
namente, como quando cheios de vontade não o podemos conter, e de que modo
preenche ao mesmo tempo o tronco, a boca, as veias, o rosto. Mas isto, de facto, não
é assunto para aqui. Se o fosse não seria vergonhoso que eu o desconhecesse, porque
nem os próprios que o dizem deter o conhecem. Mas eis o assunto. Em primeiro
lugar, no que respeita ao objecto do riso, ou às coisas que suscitam o riso, elas são,
como explica Fracastório no livro A Simpatia, capítulo 20º, coisas novas, súbitas,
leves e lúdicas, que possuem uma certa argúcia e boa disposição para alguma coisa;
como as coisas que têm graça, e as que são representadas por comediantes ou acto­
res, ou também as coisas estranhas que acontecem por acaso, súbita e airosamente,
como quando, alguém, caminhando com elegância e avançando como que distraído,
escorrega na lama.
O riso também é gerado da seguinte maneira. Oferecendo-se-nos uma coisa agra­
dável, que pode excitar o riso, o espírito é inundado pela alegria e pela felicidade,
pela qual, o coração afectado se dilata, impaciente pela demora, e aumenta a difusão
de sangue efervescente e de espíritos vitais; segue-se o movimento dos músculos do
peito, sobretudo do diafragma (com efeito, o diafragma é uma certa membrana, em
parte dura, em parte constituída por uma nervura precordial, separando as vísceras,
que Aristóteles, no livro terceiro de As Partes dos Animais, capítulo 1 0º, chama
556 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

subfrénico, cuja função pensa ser a de impedir que os vapores do ventrículo subam e
lesem o coração). Mas, do movimento e no prolongamento do diafragma estendem­
-se ao mesmo tempo os músculos situados ao lado da boca, e produz-se o movi­
mento da boca a que se chama riso, através do qual se exprime o gáudio do espírito e
a alegria. Será, portanto, a causa eficiente do riso, sendo a alma a causa principal, a
instrumental o apetite, e a faculdade que executa o movimento, e ao mesmo tempo o
alastramento do sangue e dos espíritos, que são como que escravos que avançam à
frente do riso; a causa final, o desenrolar da alegria ou do gáudio, é a própria forma
da boca e a distensão da face. Assim, o riso costuma ser definido da seguinte
maneira: o riso é uma dada excitação da alma, movida por uma coisa agradável, para
explicar o conceito interior de gáudio, pelo qual os músculos da boca e do tórax são
movidos por um certo ímpeto.
Porém, há alguns propensos ao riso, outros severos. Na verdade, como o objecto
do riso é a novidade, aqueles a quem qualquer coisa parece nova, como as crianças e
a plebe, riem facilmente por este motivo, mas não assim os velhos e os filósofos.
Além disso, como o objecto do riso é a coisa agradável e alegre, são levados habi­
tualmente para o riso aqueles que por sua natureza são alegres. Costumam ser nor­
malmente os que têm muito sangue, o doce, não o bilioso, nem o melancólico.
Posta assim a questão, para ilustrar as coisas que em primeiro lugar referimos,
deve responder-se à dúvida que o riso, quanto ao gáudio e à deleitação que ele signi­
fica, pertence a um qualquer apetite. Porque o gáudio, em particular, está compreen­
dido na vontade, a deleitação também está compreendida no apetite inferior. No que
respeita, efectivamente, à própria distensão da face, em que formalmente consiste o
riso, ela origina-se de forma imediata pela faculdade que executa o movimento, e
assim diz-lhe respeito, como seu efeito próximo.

QUESTÃO II
A vontade é mais nobre do que o intelecto, ou não?

ARTIGO I
Os que seguem a parte afirmativa e com que argumentos a provam

Houve quem considerasse a vontade e a potência intelectiva como que duas irmãs
nascidas do mesmo parto, insignes e de nobreza igual. Mas a opinião comum de
Aristóteles e de outros filósofos refutou-os, afirmando que as espécies são como os
números. Tal como dois números não podem ser iguais nas unidades, mas um qual­
quer é maior do que os restantes, assim não se podem achar duas espécies, em que
uma seja igual à outra na dignidade da natureza. Nem Santo Agostinho nos contra­
ria, no livro 1 0, A Trindade, capítulo 1 1 º, quando afirma que a memória, a inteligên­
cia e a vontade são mutuamente iguais entre si. De facto, ele não afirma isso acerca
da igualdade da perfeição, possuída por uma qualquer destas potências em si, mas
pelo facto de todas serem parte do sujeito, que é sem dúvida nenhuma igual, visto
que todas são inerentes à mesma substância da alma como num substrato.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xll/, Questão li, Artigo I 557

Portanto, omitidas estas considerações, Henrique, no primeiro Quodlibet, questão


14; Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 49,questão 4, e o seu mestre Ale­
xandre Alense, 3ª parte da Suma Teológica, questão 80, membro primeiro, e na
quarta parte da Suma Teológica, questão 92, membro segundo, artigo 4º; Alberto
Magno, no primeiro livro das Sentenças, distinção 1 , questão 14; São Boaventura,
Egídio, Gabriel, Maior, Argentinas, no 4º das Sentenças, distinção 49 ; Auréola,
segundo Capréolo, no primeiro livro, distinção 1 , questão 1 ; Ockham, no mesmo
lugar, questão 2 à segunda principal, e alguns outros consideram que a vontade é
mais nobre do que o intelecto. Esta opinião não se fundamenta, nem com poucos,
nem com fracos argumentos mas sim com os seguintes. Uma potência da natureza é
superior em dignidade a outra cujo hábito, acto e objectos são mais nobres. Ora, é o
caso da vontade. Portanto, ela é mais nobre do que o intelecto. A premissa maior é
clara. A menor demonstra-se membro a membro, e em primeiro lugar quanto ao
hábito, porque Santo Agostinho, livro 1 4 de A Trindade, capítulo primeiro, e Aris­
tóteles, no livro 6 da Ética, capítulo 7º, dizem que a sabedoria é o mais excelente de
entre todos os hábitos que pertencem ao intelecto. Mas a caridade, que é hábito, quer
da vontade, quer da sabedoria, quer das restantes dignidades da alma é superior em
dons, conforme testemunha não só o mesmo Doutor, no 1 5 de A Trindade, capítulo
1 9º, mas também São Paulo, primeira carta aos Coríntios, capítulo 1 3º, e aos Colos­
senses, 3º. Além disso, porque São Dionísio, no 7º capítulo da Hierarquia Celeste,
ordenando os coros dos anjos pela ordem da dignidade constituiu os Serafins no
lugar supremo, assim chamados pela caridade, e abaixo os Querubins, que assim são
chamados pela ciência.
Depois, demonstra-se que as acções da vontade são mais bem conhecidas, porque
mover é mais perfeito do que ser movido. Ora, a vontade, como acima mostrámos e
ensina Santo Anselmo, De conceptu Virginis, capítulo 4º, tal como uma rainha move
todas as outras faculdades, também dirige para um ou outro lado conforme o seu
arbítrio e só por si anuncia: 'Assim quero, assim ordeno' . É a vontade sobre a razão.
E, na verdade, nem a própria razão se furta ao domínio da vontade, visto que pelo
seu comando transfere o pensamento de uma coisa para outra. Donde, São Bernardo,
no livro O Livre Arbítrio, chama à razão escrava da vontade. Segundo. Prova-se o
mesmo tema, porque aquilo que torna simplesmente bom o que possui é prefeóvel
ao que não torna simplesmente bom. Ora, pelo amor, que é um acto da vontade, o
homem torna-se simplesmente bom, mas não pelo conhecimento, que é um acto do
intelecto. Como, de facto, afirma sapientemente Santo Agostinho, no livro 1 1 , A
Cidade de Deus, capítulo 28º, não se chama bom àquele homem que conhece o que
é bom, mas ao que ama; daí ter concluído que nos homens que amam como deve ser,
o próprio amor é mais amado.
Além disso, recomenda-se o mesmo, porque nos bens, em que um dos quais não
se contém no outro, considera-se mais eminente aquele cujo oposto é o pior, con­
forme ensina a regra tópica de Aristóteles, no livro 7, Ética, capítulo 1 Oº, ' são
melhores aquelas coisas que ao corromperem-se se tornam piores' . Ora, o oposto do
amor é o pior, e deve ser mais evitado do que o oposto do conhecimento, como é
evidente no ódio a Deus, e na ignorância d'Ele. Por isso, é muito mais detestável
odiar a Deus do que ignorá-Lo. Quarto. Corrobora-se o mesmo, porque o acto de
amor a Deus une mais a alma a Deus do que o conhecimento. Donde, São Dionísio,
558 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

capítulo 7º, Hierarquia Celeste, atribui ao amor, não ao conhecimento, a potência


agregadora e transformadora do amante na coisa amada.
Por último, que o obj ecto da vontade é mais perfeito, prova-o o argumento
seguinte. Aquilo para que a vontade é conduzida é o próprio Bem absolutamente
considerado, perfeito e o fim último. Mas o objecto do intelecto é um certo bem
particular, a saber, a verdade. Depois, porque se o objecto do intelecto fosse mais
nobre, seria por isso mais valioso, porque, como opõem os autores partidários da
parte contrária, é mais abstracto. Mas parece evidente que este argumento não tem
nenhum peso porque a quantidade matemática é mais abstracta do que a substância
sensível, visto que esta recai sob o sentido e aquela apenas sob o intelecto; e no
entanto, é evidente que a substância sensível é muito mais nobre em quantidade.
Além disso, porque a potência, quanto menos sujeita, tanto mais é elevada, mas a
vontade está menos sujeita, visto que a sua acção não reclama o recurso ao fantasma,
como a acção do intelecto.

ARTIGO II
Conclui-se que o intelecto é mais nobre do que a vontade e,
ao mesmo tempo, infirmam-se os argumentos da parte adversária

Embora esta opinião a favor da qual dissertámos no último artigo, sej a inteira­
mente verosímil, todavia, nós, com São Tomás, adoptamos a contrária como mais
verdadeira e consentânea com a doutrina peripatética, quer noutros pontos, quer na
primeira parte da Suma Teológica, questão 82, artigo 3º, e com Caetano, no mesmo
local; com Durando, no quarto livro das Sentenças, distinção, 49, questão 4; com o
Paludano, questão 3 ; com Herveu, Quodlibet 8, questão 9; com Capréolo, no pri­
meiro das Sentenças, distinção 1 , questão 2, e distinção 3, questão 3, artigo 2º; com
o Abulense ao capítulo 5º de Mateus, questão 3 3 . E para ao mesmo tempo
confirmarmos a nossa opinião e refutarmos os argumentos dos adversários, tecemos,
tal como acima, um mesmo fio de prova, do seguinte modo. Deve considerar-se
mais nobre a potência cujo hábito, acto e objectos são mais excelentes. É o caso do
intelecto se for comparado com a vontade. Portanto, é mais nobre. Prova-se a pre­
missa menor quanto ao hábito, porque se examinarmos aqueles hábitos que são
adquiridos pela potência natural, são mais nobres os actos do intelecto, por exemplo,
a sapiência, a prudência, do que a justiça e os restantes hábitos da vontade. Mas se
observarmos os actos sobrenaturais (embora neste momento, como acertadamente
afirma São Tomás, a nossa indagação sobre a alma não seja sobre as coisas que a
superam), o mais excelente entre todos os que são infundidos no intelecto por Deus,
a saber, a luz da Glória, vence em nobreza o mais excelente de entre todos os que
são dados à vontade, isto é, a caridade. Não obsta que os Serafins possuam o apelo
do amor. Eles não o receberam todavia do nobilíssimo dom sobrenatural que alcan­
çam na Pátria, mas do elevadíssimo hábito operativo que tiveram no caminho, isto é,
da caridade. Segundo. Porque também pode dizer-se que esse nome lhes foi dado
não pelo seu hábito nobilíssimo, mas pelos próprios efeitos, porque de facto exercem
outros. Na verdade, é uma função própria dos Serafins ensinar assim os inferiores,
de tal modo que os entusiasmem individualmente pela iluminação e pela doutrina
admirável ao amor do poder divino. Demonstra-se que as acções do intelecto são
mais sublimes, porque, embora a vontade mova outras potências e a própria potência
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão II, Anigo II 559

intelectiva quanto ao exercício do acto, e esta, pela parte que diz precisamente res­
peito ao intelecto ceda perante a vontade, todavia o intelecto reclama um outro modo
mais alto de mover, que justamente sujeita a si a vontade e que a vence absoluta­
mente em dignidade. De facto, move ordenando, regendo, mandando, como a von­
tade numa rainha, embora cega, por carecer da luz intelectual, mas o próprio inte­
lecto é o imperador que fixa e anula as leis à vontade. Acrescente-se que a vontade
não pode ser levada para coisa nenhuma, a não ser que seja movida pelo intelecto,
porque nada pode ser querido se não for conhecido, embora o intelecto, para o seu
primeiro acto, não exija previamente o movimento da vontade. Por isso, como os
anjos, que guiam as esferas celestes, são a seguir a Deus, os primeiros motores deste
mundo corpóreo, também o intelecto, no pequeno mundo, isto é, no homem, é o
primeiro motor depois de Deus, pelo qual a vontade, o apetite, a força motora, e
enfim os movimentos do corpo, são movimentados, como São Tomás, livro 3 Con­
tra os Gentios, capítulo 25º, explicou. Depois, recomenda-se o que se propõe, por­
que o acto de inteligir é o mais interior de entre todos os actos imanentes, mas a
vontade efectivamente quando opera, dá-se de um certo modo para fora, porque a
coisa conhecida é arrebatada para a coisa amada, mas o intelecto permanece dentro,
porque traz a coisa para si. Como registou São Tomás, questão 22, A Verdade, artigo
1 1 º, é muito mais elevado o que possui em si aquilo por que se aperfeiçoa, do que
quem vagueia por fora buscando por isso. Além do mais, o acto em que consiste a
felicidade do homem é mais nobre, conforme afirma Aristóteles, no livro 1 0, Ética,
capítulo 7º, mas ela consiste na contemplação das substâncias separadas, como
ensina o mesmo Aristóteles, no livro 1 0, Ética, capítulo 8º. Portanto, as acções do
intelecto são mais nobres do que as da vontade. E isto não invalida que São Dionísio
atribua à vontade e não à intelecção, a potência unitiva a que a beatitude deve per­
tencer. Ele fala, aí, de facto, acerca da união afectiva, através da qual no amante e no
amado existem as forças de querer e de não querer, mas não acerca da união do
assentimento e da compreensão, na qual consiste a beatitude. Nem também impede
que pelo amor, e não de facto pela intelecção, o homem se tome simplesmente bom;
isto só prova, com efeito, que o acto de amar é o mais eminente no género da moral,
mas não no género da natureza, sobre o qual versa a nossa discussão. E por isso
dizemos que o acto do amor toma o homem simplesmente bom no que respeita à
moral, mas o conhecimento toma-o melhor, isto é, mais perfeito no género do ser. E
a estes também dizemos, de modo adequado, que embora o oposto do amor, que
respeita à razão moral, seja pior do que o oposto do conhecimento, todavia, no
género da natureza ou do ser, é pior o oposto do conhecimento, porque se opõe à
coisa mais nobre que é o conhecimento.
Ao último, prova-se que o objecto do intelecto é superior ao objecto da vontade
em dignidade de natureza, embora o bem, se examinado segundo a noção de causa­
lidade, sej a mais elevado do que a verdade, pois a superior causalidade do fim
funda-se na bondade da coisa, embora também o bem e a verdade, quanto à mútua
inclusão sejam iguais (é por isso que cada um materialmente considerado está con­
tido no outro, porque tal como o bem é de alguma maneira verdade, também a ver­
dade é de alguma maneira bem) . Todavia, em absoluto a noção do verdadeiro é mais
excelente, porque é algo de mais divino e de mais abstracto. Efectivamente, no acto
perfeito, a vontade nada apetece, a não ser em ordem à existência, e por isso con-
560 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

eretamente, visto que o bem é apetecido para ser possuído. Mas na verdade as coisas
não se passam assim. Inteligimos a coisa segundo a sua quididade, e penetramos a
própria verdade mediante um perfeito conhecimento, ainda que nada pensemos
acerca da sua existência e materialidade. Em relação ao que dizem - que da maior
abstracção não se demonstra a maior nobreza da coisa, como é totalmente evidente
na quantidade matemática e na substância sensível - dizemos com Caetano, na pri­
meira parte da Suma Teológica, questão 82, artigo 3°, que entre iguais são mais
nobres os que são mais abstractos, mas que na questão proposta não se trata de
iguais, porque a quantidade é um acidente enquanto a substância sensível é uma
substância. Ao concluírem que também o intelecto é menos elevado, porque está
ligado aos fantasmas, eles não concluem correctamente. Primeiro, de facto, esta
ligação não se ajusta a todo o intelecto, mas somente ao humano; nem ao mesmo
intelecto, em qualquer estado, mas conforme acima expusemos. Com efeito, a nossa
discussão versa sobre o intelecto tomado em sentido absoluto. Além disso, como à
vontade apenas apetece o que é conhecido, tal como o intelecto quando é recebido
neste corpo tem necessidade dos fantasmas para inteligir, também a vontade, ainda
que remotamente, precisa deles. Por fim, a dependência do nosso intelecto dos fan­
tasmas não retira maior simplicidade e abstracção do objecto do intelecto, como
dissemos, pela qual deve ser principalmente estimada a sua nobreza e eminência.
Por isso, fica estabelecido que o objecto da faculdade intelectiva é em absoluto mais
nobre do que o objecto da vontade, visto que os argumentos anteriores não só con­
firmaram a nossa opinião, mas esclareceram as razões da parte oposta, conforme
perceberá facilmente quem tenha prestado atenção. Não há pois razão para que res­
pondamos separadamente.

QUESTÃO III
Se a vontade difere realmente do intelecto ou não

ARTIGO !
Com que argumentos parece dar-se a conhecer
a parte negativa da questão

Durando, no 1 º livro das Sentenças, distinção 3, questão 4, considerou que a


vontade e o intelecto não são potências realmente distintas, mas que cada uma delas
é uma entidade absoluta, que por causa da ordem e da relação para com actos diver­
sos, isto é, para as funções de inteligir e de querer, obtém a razão de duas potências.
Ele inclina-se a confirmar esta opinião mais ou menos com estes argumentos. A
faculdade do conhecimento desprovida do ímpeto da natureza não é conduzida
livremente para o seu objecto; ora, a vontade age livremente; logo não é uma potên­
cia desprovida de conhecimento; também na parte superior da alma, à qual diz res­
peito a vontade, não se produz nenhuma força cognoscente, para além do próprio
intelecto, portanto, o intelecto e a vontade são uma e a mesma potência. A premissa
maior convence, porque é preciso que todo o agente livre julgue acerca do seu acto
(de outra maneira de modo nenhum seria imputado ao próprio) e deva exercer tal
juízo pela mesma potência pela qual é livre. Com efeito, nem a potência tem liber-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão III, Artigo II 561

dade porque é inerente ao substrato livre, porque se assim fosse, as faculdades uni­
versais do homem seriam livres, mas o substrato é livre porque possui uma potência
livre. Portanto, se pertence à razão da liberdade possuir o juízo do seu acto, é neces­
sário que aquela potência pela qual o homem é livre, seja julgadora do seu acto, o
que somente pode pertencer à faculdade de conhecer.
Segundo. Não repugna que os actos subordinados sej am originados pelo mesmo
princípio activo, visto que não só o calor, mas também a iluminação do ar, provêm
da mesma luz do Sol. Mas conhecer e apetecer são actos subordinados, porque nada
apetecemos excepto por um conhecimento prévio. Podem, portanto, nascer do
mesmo princípio absoluto, e então o intelecto e a vontade serão uma e a mesma
coisa.
Terceiro. Se o intelecto e a vontade fossem potências diferentes, poderia pela
potência divina alcançar-se o acto da vontade sem o acto do intelecto. Mas não pode,
porque nada, a não ser o conhecido, é amado, como ensina Santo Agostinho, livro 9,
A Trindade, capítulo 4°. Não são, portanto, potências diferentes. A premissa maior
prova-se, porque se estas faculdades fossem distintas, não haveria outra dependência
dos actos da vontade dos actos do intelecto, excepto a da causa parcial efectiva,
porque a intelecção junta-se parcialmente com a vontade para os actos dela. No
entanto, Deus pode suprir toda a causalidade eficiente das causas ; portanto, etc.
Quarto. Não diferem em realidade absoluta aquelas potências cujos objectos não
são diferentes em realidade absoluta. Mas o objecto do intelecto é o ente, o objecto
da vontade é o bem, os quais são mutuamente recíprocos e incidem na mesma reali­
dade. Por último, Auréola prova que foi este o pensamento do Filósofo, segundo
Capréolo, no primeiro das Sentenças, distinção 3, questão 3, porque Aristóteles no
livro 3, Ética, capítulo 3º, chama à escolha apetite deliberativo das coisas, e mais
claramente, no livro 6 da mesma obra, capítulo 2º, afirma que a escolha pertence ao
apetite intelectivo ou ao intelecto apetitivo. Com estas palavras indica que o inte­
lecto e a vontade são a mesma potência da alma.

ARTIGO II
A parte negativa da controvérsia é verdadeira.
Os argumentos acima aduzidos não colhem

A opinião contrária, que distingue a vontade do intelecto na própria realidade, é


verdadeira. São Tomás examina-a, nas questões sobre A Verdade, questão 22, artigo
1 0º; Capréolo, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3, questão 3, artigo 2º; o
Ferrariense, ao capítulo 1 9º do livro quarto Contra os Gentios; Argentinas, no pri­
meiro das Sentenças, distinção 3, questão 3, e outros. Prova-se, em primeiro lugar,
porque razões diferentes em todo o género, como a verdade e o bem, não podem
determinar acções de uma e da mesma potência, mas de uma potência diferente.
Segundo. Porque as potências, em que uma move a outra e outra dirige a outra,
devem entre si distinguir-se na própria realidade. De facto, a vontade, conforme
acima dissemos, move o intelecto e o intelecto dirige a vontade. Terceiro, porque se
o intelecto e a vontade fossem uma mesma faculdade da alma, seguir-se-ia que nós
inteligíamos com a vontade e queríamos com o intelecto, o que de modo algum a
opinião comum dos que filosofam admite.
562 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles

Respondamos, então, aos argumentos que recomendavam o oposto. Ao primeiro,


deve dizer-se que a faculdade desprovida de conhecimento, isto é, que nem intelige,
nem segue o conhecimento anterior, também não é conduzida livremente para o
objecto por potência natural. Mas a vontade, no entanto, embora não conheça a
coisa, segue o conhecimento do intelecto por quem lhe é oferecida a coisa que deve
ser aceite ou recusada. Não é necessário que toda a faculdade que age livremente e à
qual o acto livre é imputado, julgue sobre o seu acto. É suficiente, com efeito, que
outra potência conjunta que a reja, transporte o juízo relativo ao acto e que lhe for­
neça como que uma luz. E assim reconhecemos que para que a potência alcance a
liberdade, não é bastante que ela seja inerente ao substrato livre, como correcta­
mente prova o argumento. Negamos, todavia, que sej a necessário que ela exerça o
juízo do seu acto, pois é suficiente que ela possa exercer ou suspender o próprio acto
por sua vontade, isto é, que o referido juízo seja praticado por outra faculdade
regente na qual a liberdade incida como numa raiz e fonte.
Ao segundo, deve dizer-se que, quando os actos se encontram subordinados entre
si, de maneira que não só não podem sobrevir um sem o outro, mas que um resulta
do outro por necessidade da natureza, tal como a relação existente entre a ilumina­
ção do Sol e o calor, também um tal acto pode ser originado pela mesma faculdade.
As acções da vontade e do intelecto não procedem assim, visto que, encontrando-se
vigente o conhecimento do intelecto, a vontade tem o poder de impedir os próprios
actos.
Ao terceiro, responde Capréolo que o acto da vontade não pode ser obtido sem o
conhecimento do intelecto, mas que no entanto pode ser conservado sem ele. Parece­
-nos ter de dizer com outros que, embora por potência natural apenas amemos as
coisas conhecidas, todavia o acto da vontade pode ser obtido e conservado por acção
divina sem o conhecimento. Mas o conhecimento concorre, quer de modo eficiente,
quer de modo objectivo, e portanto formalmente de maneira extrínseca em relação à
acção da vontade. Se, porém, falarmos acerca do tipo de concurso efectivo, é evi­
dente que ele pode ser suprido por Deus, tanto para obter, primeiro, o acto de von­
tade como para o conservar. Mas o concurso formal extrínseco que o conhecimento
fornece quando a coisa que deve ser amada ou desejada se apresenta à vontade, não
há como negar que ele pode ser suprido por virtude divina, isto é, que a vontade
pode tender para o objecto se este não lhe for apresentado em acto pelo intelecto.
Nem, de facto, isto envolve alguma incompatibilidade, embora seja patente uma
contradição no facto de o acto da vontade não ser levado para o objecto, quando o
próprio acto não é outra coisa senão uma certa progressão ou tendência para o pró­
prio objecto. Portanto, não repugna que a vontade tenda para um objecto não repre­
sentado, embora de modo algum seja possível que, enquanto opera, não tenda para
algum objecto.
Ao quarto, deve ser negada a premissa maior. E na verdade, embora a distinção
formal e específica das potências e dos actos deva ser tomada dos objectos, todavia a
distinção real, não deve ser aí totalmente procurada, como se uma mesma coisa não
pudesse determinar actos de potências realmente diferentes . Acrescentamos 'total­
mente', porque a própria distinção também real é entretanto demonstrada a partir das
razões dos objectos. Como diferem em todo o género, é sinal que as potências se
distinguem realmente entre si, conforme acima dizíamos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão IV, A rtigo I 563

Ao último, responde-se que de nenhum daqueles pontos se depreende que o pen­


samento de Aristóteles foi que a vontade não se distingue realmente do intelecto.
Com efeito, o Filósofo apenas insinua aí que a escolha do intelecto depende ao
mesmo tempo da vontade, o que está em consonância com São Tomás, A Verdade,
questão 22, artigo 5º, que diz que uma escolha comporta em si algo da razão e algo
da vontade.

QUESTÃO IV
Se, para que a vontade produza o seu acto, se requer
no intelecto o conhecimento judicativo ou não

ARTIGO }
Disputa contra a parte afirmativa da questão

Deve admitir-se, nesta controvérsia, que podem existir quatro actos no nosso
intelecto, o que constitui o presente objecto. O primeiro deles é o conhecimento
apreensivo. O segundo, o juízo, pelo qual o intelecto julga que a coisa apreendida é
boa ou má. O terceiro, é o outro juízo ou ditame prático, pelo qual o intelecto, que
pelo juízo precedente considerara a coisa boa ou má, considera que ela deve ser
acolhida ou recusada. Por fim, o quarto é o discurso ou silogismo prático, pelo qual
a razão conclui desse modo o ditame. Todos, portanto, parecem ajustar-se, embora
da parte do intelecto todos aqueles actos levem vantagem, como nos homens pru­
dentes, os quais empreendem as coisas, sobretudo as dos momentos importantes,
apenas com deliberação e juízo maduro. Simplesmente, como a vontade se dirige
para o acto, não é necessário o silogismo prático. Isso é bastante evidente nos
movimentos súbitos e repentinos, chamados anteriores ao primeiro. Também não há
grande dificuldade se também para as acções humanas e livres se exige que aquele
ditame sej a concluído pelo silogismo prático, pois, aqui e ali, experimentamos que
queremos ou não queremos muitas coisas sem aquele ditame. Portanto, toda a con­
trovérsia consiste nisto: se se requer o juízo pelo qual o intelecto avalia se o objecto
é bom ou mau, saudável ou nocivo, agradável ou aborrecido.
Ora, existem duas opiniões sobre este assunto. A primeira é a de Escoto, no
segundo livro das Sentenças, distinção 6, questão primeira; de Gabriel, no mesmo
ponto, artigo 3, dúvida 2; e a de Marsílio no 2º livro, questão 1 6, artigo l º, que con­
sideram que não se requer tal juízo mas que é suficiente o conhecimento apreensivo.
Pois bem, visto que este pode ser duplo, um, simples, o que é feito sobre a composi­
ção e a divisão, o outro, complexo, pelo qual apreendemos o significado de alguma
proposição, como: 'o remédio é saudável' , eles dizem que é necessário para o acto
de vontade uma só apreensão simples. Esta posição é recomendável. O conheci­
mento pelo qual se propõe à vontade o objecto material e formal em simultâneo, isto
é, quer o objecto para que se dirige, quer a razão pela qual se dirige para aquilo, é
suficiente para que a vontade produza o acto sobre tal objecto. O objecto material
também pode ser representado para a vontade através do simples conhecimento, isto
é, a coisa boa e formal, ou seja, a sua bondade. Portanto, ela basta para que a von­
tade conclua o seu acto.
564 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

Segundo. A vontade não tem menor eficácia do que o apetite sensitivo para se
dirigir para o próprio objecto, mas para que o apetite sensitivo dos animais irracio­
nais seja levado ao seu objecto, é bastante a simples apreensão produzida pelo sen­
tido interno. Donde, para que a vontade se dirija para o seu objecto, é suficiente a
simples apreensão feita através do intelecto.
Terceiro. Os movimentos são chamados actos anteriores ao primeiro porque são
praticados sem o juízo da razão. Donde, nem para todo o acto da vontade se requer
um juízo. O antecedente prova-se, porque se o juízo interviesse nos movimentos,
eles estariam inteiramente em nosso poder e poderíamos achar neles pecado, o que o
consenso comum dos teólogos nega.
Quarto. Os que delineiam os caracteres repentinamente e os que tocam a cítara,
praticam tantos actos de vontade quantos os movimentos dos dedos, uma vez que os
dedos apenas se soltam pelo comando da vontade. No entanto, não é verosímil que
precedam tantos juízos quantas as flexões e os movimentos dos dedos, sobretudo
porque enquanto escrevem ou tocam, pensam. Portanto, parece claro que não se
exige um juízo prévio para todos os actos da vontade.

ARTIGO II
Disputa da controvérsia contra a parte que nega

É diferente a opinião de Gregório, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3,


questão primeira, artigo 1 º; do Aliacense, no mesmo lugar, questão 3 ; de Gervásio,
no Tractatu de notitiis, na primeira divisão da noção, questão 1 . Parece ser também
a de São Tomás, capítulo terceiro deste livro, e na Suma Teológica, primeira parte
da segunda, questão 9, artigo 1 º ao 2º, e no segundo das Sentenças, distinção 24,
questão 2, artigo 1 º e noutros pontos, como também a defendem alguns de entre os
mais recentes teólogos do nosso tempo. Sem dúvida que para o acto de um qualquer
apetite se requer o conhecimento judicativo. Decerto que para o acto da vontade se
requer o conhecimento do intelecto, para o acto do apetite sensitivo, o conhecimento
do sentido interno. O que se prova, primeiro, porque nenhum apetite desej a total­
mente algum objecto, a não ser que lhe pareça conveniente, nem o evita, a não ser
que se mostre repugnante. Mas para que ele apareça assim, não é suficiente que ele
seja apreendido, bem como a sua conveniência ou a sua repugnância, mas é necessá­
rio que seja feito um juízo acerca da sua adequação ou repugnância. Portanto,
nenhum acto do apetite se dá sem o conhecimento judicativo. A premissa maior
prova-se, porque, se não fosse assim seguir-se-ia que tanto a adequação ao apetite,
como a repugnância do mesmo, são igualmente coisas apetecíveis, visto que todas as
coisas indiscriminadamente podem ser apreendidas como apetecíveis, quer o sejam
na realidade, quer não. Por outro lado, demonstra-se a mesma premissa maior, por­
que quando alguém é ambíguo e dúbio acerca de alguma coisa que deve fazer, como
acerca da partida para a pátria, muitas vezes forma para consigo as seguintes propo­
sições apreensivas : 'É bom partir, não é bom partir' . E contudo, nenhuma delas é
bastante, tanto para se pôr a caminho, como para de todo decidir não ir. Isto, porém,
não provém de outra coisa senão do facto de apenas a apreensão da coisa não ser
suficiente, mas de se requerer o assentimento pelo qual o intelecto aprova e julga
que aquilo que apreende como bom, é na realidade bom, quer tal assentimento seja
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão IV, Artigo III 565

verdadeiro, quer seja falso, o que neste lugar afirmamos aparecer como bom. Donde,
etc.
Segundo. Demonstra-se o mesmo, porque temos a experiência de que os animais
irracionais são, por um lado, movidos para os objectos de que têm simples conheci­
mentos, por outro, não movidos, como é evidente no cavalo, que não é levado a
beber a água que vê, a não ser que tenha sede. Portanto, visto que o apetite sensitivo
segue naturalmente, e não de modo livre, o conhecimento dos sentidos, parece que
isso não provém de outra causa, senão de que apenas a apreensão do objecto não é
suficiente para mover o apetite, mas que se requer o juízo pelo qual a coisa apreen­
dida é considerada conveniente. Como aquele juízo nem sempre está presente, daí
sucede que o apetite sensitivo nem sempre é levado para a coisa que se apresenta.
Terceiro. O mesmo se estabelece pela autoridade de Aristóteles, neste livro,
capítulo 3º, texto 1 54, quando escreveu assim: Quando opinamos,ou seja, quando
julgamos que algo é mau e terrível, continuamente nos perturbamos, e igualmente
também quando opinamos que alguma coisa é de tal modo que nela não se deve
confiar. Da mesma maneira, quando imaginamos coisas semelhantes, isto é, quando
apreendemos sem um juízo, somos igualmente impressionados, tal como se obser­
vássemos imagens iguais numa pintura. Além disso, no mesmo livro, capítulo 9º,
texto 46, ensina que o apetite não é movido pelo intelecto contemplativo, mas pelo
prático, porque aquele nada percebe do que deve ser acolhido ou recusado, como
este. Parece, portanto, que o Filósofo considera que para executar as acções do
apetite não é suficiente o conhecimento apreensivo, mas se requer, necessariamente,
o judicativo.

ARTIGO Ili
Consideram-se prováveis ambas as partes da controvérsia
e explicam-se os argumentos de uma e de outra

Das duas opiniões anteriores, nenhuma nos parece improvável ou oposta à dou­
trina peripatética. Por isso, explicam-se os argumentos de uma e de outra parte, para
que se defenda a que mais prove. Ao primeiro deles, que retiramos da parte afirma­
tiva, dever-se-á responder que o objecto formal do apetite, para o qual o apetite é
levado ao acto, não é bom de qualquer modo, mas bom porque assim é considerado.
Ao segundo, concedida a premissa maior, deve ser negada a menor, e dizer-se que,
embora nos animais irracionais não se produza uma composição ou divisão, todavia,
no seu lugar, produzem-se juízos sensitivos de composição e de divisão com os
quais eles julgam que os objectos apreendidos pelos sentidos são agradáveis ou
nocivos, que devem ser perseguidos ou evitados, como ensina São Tomás, Suma
Teológica, 1 ª parte, questão 83, artigo 1 º, e em A Verdade, questão 24, artigo 2º.
Mas os animais irracionais não realizam proposições ao formarem os referidos juí­
zos, porque não julgam mediante inquirição ou discussão, como os homens mas
apenas por comando da natureza e por instinto. Ao terceiro, deve dizer-se, que tam­
bém os actos da vontade anteriores ao primeiro são praticados pelo referido juízo,
não livre, mas intempestivo, e sem qualquer deliberação tanto formal, como virtual.
Esta deliberação é todavia necessária para poder nessas acções ser encontrada a
mancha do pecado. Ao quarto, é costume responder-se que há tantos juízos quantos
566 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

os movimentos dos dedos, mas que como eles são feitos de forma muito célere nós
não os conseguimos discernir. O que, na verdade, embora pareça maravilhoso não
deve ser considerado alheio à verdade. Nem, com efeito, se deve negar que aquele
que escreve reproduz diferentes concepções de diferentes caracteres que reconhece
como uma letra, e também o modo como deve escrever. Por isso, por igual razão,
puderam ser formados por ele diversos juízos em simultâneo.
Ao primeiro dos argumentos que foram aduzidos a favor da outra opinião deve
responder-se, que para que o objecto se mostre bom, não é necessário o conheci­
mento judicativo, mas que basta que o objecto sej a apreendido como revestido de
uma bondade congruente. De facto, porque todas as coisas não são igualmente
apreendidas sob a referida bondade, resulta daí que não temos apetite de todas as
coisas ou que as recusamos, mas que por vezes ficamos suspensos na dúvida. Ao
segundo, admitida a experiência, deve dizer-se que isso não provém do facto de o
conhecimento judicativo ser necessário, mas porque, quando o animal se saciou ou
está de tal modo enfraquecido que rejeita a água ou o alimento, não compreende a
comida e a bebida como algo agradável ou bom para si. À afirmação de Aristóteles
deve dizer-se, que com o primeiro ponto ele não quis decerto dizer outra coisa senão
que nós não somos alterados pelas coisas que imaginamos, porque ao mesmo tempo
compreendemos que elas não existem assim, tal como a nossa imaginação as produz.
Acontece do mesmo modo quando vemos as coisas pintadas, porque sabemos que
elas são apenas a semelhança das coisas, não as próprias coisas que se mostram à
vista, e que, por isso, ao olhá-las, não somos excitados pelo medo, nem pela espe­
rança, nem, igualmente, por algum afecto. Porém, em ponto posterior, ele tratou
somente do movimento feito sob o comando do intelecto, não daquele que é reque­
rido para excitar a vontade a propor-lhe a repugnância ou a conveniência do objecto.
Este provém, de facto, do intelecto prático, mas aquele não.

QUESTÃO V
Se a faculdade que dirige, impele e executa, concorre
para o movimento dos animais ou não

ARTIGO I
Discussão da questão contra a parte negativa

Quanto ao movimento dos seres animados não se apresenta, antes de tudo, a


faculdade dirigente, que no homem é a razão e que nos animais é a imaginação.
Prova-se o primeiro, porque é evidente que alguns a dormir, se erguem do leito e
andam de um lado para o outro. Os seus movimentos não podem ser dirigidos pela
razão, visto que a razão está presa no sono. Além disso, o apetite sensitivo pode em
nós produzir o movimento apenas pelo comando do sentido interno, sem atingir o
magistério da razão. Não é, portanto, para isso, necessária a faculdade do intelecto
dirigente. Prova-se a premissa menor, porque os sentidos internos no homem não
são de conhecimento débil, como nos animais, mas nestes basta a imaginação para
dirigir o movimento.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão V, Artigo II 567

Mas quanto à faculdade que impele, ou seja, o apetite, prova-se que não produz
movimento no homem, porque como acima advertimos a partir de Aristóteles, no
primeiro livro da Política, capítulo 3º, o intelecto ou razão comanda o irascível e o
concupiscente com poder político. É por isso que o apetite sensitivo tem algo de pró­
prio com que pode resistir ao império da razão. Por isso, se a acção do apetite fosse
necessária para o movimento, seguir-se-ia que, nem sempre, sob o império da von­
tade, os membros eram movidos, mas que o movimento seria inibido por um apetite
relutante. Isto, de facto, opõe-se à experiência e a Aristóteles, naquele mesmo ponto
em que afirma que os membros do corpo, quanto ao movimento, obedecem à razão
despótica, isto é, como o costume dos servos que não têm a faculdade de resistir em
nada ao poder do senhor, pois nada possuem por direito próprio. Também, os ani­
mais imperfeitos, como os vermes e as lombrigas dissecadas, sem coração e por isso
sem influxo do apetite que reside no coração, executam movimentos arbitrários.
Portanto, executam-nos também os restantes animais sem o referido influxo, sobre­
tudo porque aqueles animais que são de natureza superior, têm necessidade de pou­
cos apoios para operar. Mais ainda, a imaginação, sobre cuja força e poder muitas
coisas foram transmitidas pelos autores, parece que pode por si mover os membros,
porque só a imagem da coisa no interior põe em movimento os objectos do corpo de
modos variados. Portanto, não só é função da imaginação dirigir o movimento,
como também executar o próprio movimento sem o consórcio e a eficiência con­
junta do apetite.
No que respeita à potência que executa o movimento, parece concluir-se que ela
não se distingue do apetite, porque é supérfluo introduzir uma outra faculdade dife­
rente para apreender o movimento. Porque se o movimento fosse uma acção coman­
dada apenas pelo apetite e não provocada, dado que os actos impostos precedem de
vez em quando o apetite, por vezes, o movimento precederia o apetite do animal, o
que não acontece. Também, porque a natureza faz sempre o melhor que pode, e
decerto que é mais nobre que o movimento do animal seja provocado pela faculdade
do animal, que é o apetite, do que apenas pela potência vital do tipo de qualquer
outra faculdade motriz. Por fim, porque esta parece ser a opinião explícita de Aris­
tóteles, neste livro, capítulo 9º, texto 44, e de um modo geral em todo o capítulo 1 Oº,
quando, acerca do princípio eficiente do movimento local dos animais, investigando,
conclui que é o apetite, o que também apresenta no livro que escreveu sobre O
movimento dos animais.

ARTIGO II
Das duas faculdades. A que dirige o movimento e a que o ordena

Para explicar esta controvérsia deve observar-se, a partir de São Tomás, opúsculo
35, sobre O movimento do coração, que a força motriz nos animais é dupla, uma
natural, outra animal. Diz-se natural aquela que age apenas pelo ímpeto da natureza,
não requer apreensão anterior, tal como a força de pulsar que move o coração no
movimento de dilatação e constrição pulsa as artérias e tem origem no coração.
Animal é a que segue um conhecimento prévio e costuma chamar-se movimento do
arbítrio.
Segundo. Deve advertir-se que existem três géneros de seres vivos que são movi­
dos pelo movimento animal. No primeiro, integram-se aqueles que sobressaem tão-
568 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

-só pelo tacto e pelo gosto e que apenas se movem no seu interior, ao estender e con­
trair os membros para dentro, dado que, além disso, passam a vida num local inteira­
mente estável, como a concha. Estes, porém, em pouco excedem os movimentos das
plantas que estão presas à terra pelas raízes, situam-se como que a meio, entre as
plantas e os animais. O segundo género pertence àqueles que têm uma faculdade
sensitiva perfeita. Não só conhecem na presença, explorando com o tacto, mas tam­
bém na ausência. Mas, efectivamente, de entre estes, alguns só operam com o ins­
tinto da natureza, não ultrapassam em si o fim da sua acção ou o movimento, como
os irracionais. Outros, agem e operam tendo em conta a escolha e o fim a que se
propõem. São, sem dúvida, os homens, que de tal modo têm o principado sobre os
restantes animais, que sustentam um movimento mais nobre e que pertencem ao
terceiro e mais eminente dos corpos vivos.
Mais ainda, não indagamos aqui acerca do movimento natural, mas do movi­
mento do arbítrio. Nem, com efeito, acerca do movimento em geral, mas do movi­
mento de locomoção, acerca do qual também na parte final deste livro Aristóteles
falou.
Primeira conclusão. Ao movimento de locomoção junta-se a potência dirigente,
que nos homens é a razão e a imaginação, nos restantes animais. Esta conclusão é de
Aristóteles, neste livro, capítulo 4°, texto 1 6, e capítulo 1 0º, texto 48; de S. Tomás
no mesmo ponto; de Avicena, livro 6, Naturais. Mas é recomendável porque a Natu­
reza instituiu a locomoção para investigar as coisas convenientes e para recusar as
adversas, o que de modo algum poderá ser alcançado a não ser que haj a alguma
faculdade que represente os objectos ao apetite, e o leve para a coisa originada nesta
ou naquela parte, sobretudo porque por si o apetite existe para prosseguir isto e
aquilo. Mas esta faculdade é a razão ou a imaginação.
Segunda conclusão. O apetite junta-se ao movimento da locomoção, como causa
agente e por um modo de comando. Esta é também a posição de Aristóteles, neste
livro, capítulo 1 0º, texto 52; e de Avicena, livro 7, Naturais; e de São Tomás, Opús­
culo 43, capítulo 4º, e no livro segundo Contra os Gentios capítulo 82º; e do Ferra­
riense, no mesmo local; e de outros. Prova-se com um argumento, porque como a
locomoção existe, como dissemos, para procurar as coisas saudáveis e afastar as
nocivas que o sentido conhece, ao apetite pertence o afecto do amor ou da fuga de
tais coisas. Convém que o movimento pelo qual se dirige para elas, seja executado e
comandado pelo apetite. Isto, todavia, importa, quanto ao movimento de homens e
de animais, pois o apetite dos animais não é movido por outro apetite superior, mas
o apetite dos homens é indubitavelmente movido pela vontade. E por isso, o apetite
sensitivo, no homem, existe como a esfera inferior que percorre a superior na rota­
ção.

ARTIGO III
Da faculdade que executa o movimento

Terceira conclusão. Para além do apetite tem de dar-se uma certa faculdade ine­
rente aos membros que logo a seguir executa o movimento. O argumento a seguir
comprova-o. Porque como as funções provocadas pela faculdade apetitiva lhe são
imanentes, mas o movimento da locomoção é uma acção transitiva, é necessário
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xll/, Questão V, Artigo li/ 569

que, além do apetite, se constitua outra faculdade intrínseca aos membros, que se
ocupe de tal movimento. A faculdade difere assim do apetite, não só por definição,
mas também na realidade, o que é evidente, em primeiro lugar, pela distinção do
órgão. Este tem sede no coração, aquela nos músculos espalhados por todo o corpo.
Segundo. Porque como nas substâncias separadas, a faculdade motora se distingue
realmente do seu apetite intelectivo, conforme mostrámos no segundo livro sobre O
Céu, capítulo 5º, questão 7, por maioria de razão se distinguirá nas coisas dotadas de
matéria, visto que não é nada conveniente que as que se uniram nas coisas corpó­
reas, nas incorpóreas que são de natureza mais excelente, degenerem em muitas. E
assim, a acção da faculdade que executa o movimento depende do apetite, de
maneira a que por ele não se produza, como sua própria e adequada causa, mas para
que se ordene para o modo pelo qual geralmente a vontade suscita em nós o apetite
sensitivo. A vontade exerce assim sobre ele o movimento e o domínio, para que
entretanto o apetite manifeste imediatamente o seu acto a partir de si. Com a dife­
rença, no entanto, que os membros para empreenderem o movimento obedecem à
razão e à vontade, enquanto o apetite se conforma apenas política e civilmente com a
fuga ou a prossecução do seu objecto, como foi por nós declarado acima.
Perguntar-se-á, contudo, se quando o apetite concita a faculdade motriz o faz
através de alguma acção prévia que ela recebe, a partir da qual depois se alcança o
movimento da faculdade, ou de outro modo. Respondemos que não se requer uma
tal acção do acto da faculdade motora, prévia a algo distinto dele, mas que o apetite,
como agente mais universal, concorre com a faculdade movente como causa parti­
cular e que o movimento é produzido por ambas as causas através de um único e
mesmo impulso provindo das duas causas. De uma, como universal e que ordena, de
outra, como particular e especialmente produtora. Do mesmo modo que o intelecto
costuma mover a vontade e a vontade costuma mover o apetite inferior.
Subsiste também uma dúvida, neste ponto, sobre se a referida faculdade executa
activamente o movimento. São Tomás, no segundo livro Contra os Gentios, capítulo
82º, ensina que ela não concorre com o movimento tanto à maneira da eficiente, mas
como disposição, posto que prepara e toma aptos os membros a obedecer e a receber
o movimento que o apetite produz, e na Suma Teológica, primeira parte, questão 75,
artigo 3º, afirma que o acto desta faculdade não é mover, mas ser movido. Para a
mesma opinião se inclina o Ferrariense, no ponto citado, Contra os Gentios e na
questão 1 8 deste livro, mas esta apraz-nos menos, sobretudo porque a faculdade que
executa o movimento é conhecida pelos filósofos entre as potências animais, como
está patente na doutrina de Aristóteles, no livro segundo desta obra, capítulo 3º,
texto 27, e no livro 3, capítulo 9º, texto 4 1 , quando divide a faculdade animal em
vegetativa, sensitiva e apetitiva, de movimento local e inteligente. A faculdade de
todo o animal é simplesmente a potência activa, concedida com vista a executar as
funções animais. Por isso é que apenas deve considerar-se que a faculdade que exe­
cuta o movimento concorre de modo activo para o movimento, sobretudo porque os
membros parecem, por outro lado, já dispostos de modo apto a recebê-lo, sem
dúvida, devido à composição e à mistura de outras qualidades de que são compostos.
Além disso, eles afirmaram também que nos órgãos dos sentidos, para além das
próprias potências sensitivas, há faculdades particulares diferentes em forma e em
570 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

composição, com que os órgãos se tomam aptos a receber as sensações, o que toda­
via se opõe totalmente aos preceitos comuns dos que filosofam.
Mas esta faculdade que executa o movimento (como no primeiro livro de A
Geração mostrámos, a partir do consenso da escola hipocrática) deriva do coração,
de forma afastada, tal como da fonte de todas as faculdades e funções que se encon­
tram nos animais, mas deriva do cérebro, de forma chegada. Referimos o argumento
que discute onde são originados os nervos que se movem. Mais. Porque, obstruída a
via, de imediato cessa o movimento dos membros, tomando-se todo o corpo
insensível. Não aprovámos, todavia, no ponto citado, a opinião dos médicos que
consideram que nenhuma faculdade animal se encontra fixa e estável nos membros,
como a potência de ver no olho, e a de mover nos músculos, mas que todas se
espalham e emanam do cérebro, através de um certo modo de irradiação, e que, ora
se afastam, ora voltam. Nem para além deste, quase como um raio que vai e vem, se
produz outra faculdade inata para sentir e mover. Uma vez que claramente refutámos
esta opinião noutro lugar, não há razão para nela de novo nos determos na sua
reprovação.
No que, efectivamente, diz respeito ao órgão do movimento, omitidas as contro­
vérsias, deve advertir-se, a partir de Galeno, livro 1 2, De usu partium, e de Vesálio,
livro 2, capítulo 2º, que se requerem duas condições ao instrumento idóneo para o
movimento. Uma, que seja eficaz no sentido, outra que produza o impulso.
Nenhuma delas pode subsistir sem a outra. É não só necessária a firmeza para
mover, mas também é necessária a consistência para sentir a delicadeza (donde, as
que são duras, ou não criam nenhum sentido, ou um, muito enfraquecido e gros­
seiro). A melhor natureza reflectiu a razão pela qual juntava ambas de modo admi­
rável. Com efeito, juntou o ligamento, que por vezes é mais duro com o nervo que é
mais mole e envolveu um e outro, isto é, o ligamento e o nervo, como que em cor­
respondência, em pequenas partes com carne, com nervos e com artérias. Esta acu­
mulação chama-se músculo e este instrumento da força motora é divulgado entre
filósofos e médicos porque se difunde de modo assaz amplo nos corpos dos animais,
como é bastante evidente nos membros idóneos para sustentar o movimento do
arbítrio.
Mas a faculdade motora não poderá ser usada com este instrumento, a não ser que
ele esteja impregnado de qualidades adequadas. Por sua falta, os membros esgotam­
-se entretanto e ficam destituídos de todo o movimento. Também é necessário que os
membros sejam alimentados pelo afluxo permanente dos espíritos animais. O pare­
cer deste assunto, para além de outros, é que não podemos sustentar o corpo durante
o desmaio e o pânico com o espírito animal que suporta os membros, que conflui do
cérebro para todo o corpo. Essa também é a razão para a morte súbita, precedida da
perda dos sentidos, daqueles que giram à volta de si mesmos. Não há dúvida que o
espírito, que tem de ser levado a circular directamente através dos nervos, uma vez
caído o corpo, afastando-se das raízes dos nervos, converge para outro sítio.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão V, Artigo IV 571

ARTIGO IV
Responde-se aos argumentos propostos ao início

Falta agora responder aos argumentos do primeiro artigo. À primeira parte do que
propusemos ao início, deve dizer-se que, embora no sono careçamos da liberdade de
juízo, todavia não é entravada a acção do intelecto e de certos j uízos imperfeitos,
dado ser evidente que muitos concebem e disputam generalidades durante o sono.
Efectivamente, não se requer a liberdade de raciocínio ou de juízo para que o movi­
mento sej a sempre exercido por nós, como também é bom de ver nos ébrios e nos
frenéticos. Respondendo à segunda parte do mesmo argumento, embora o apetite
sensitivo, ordenando a vontade e dirigindo a razão, não possa inibir o movimento
dos membros, ou de outro modo mudar de acordo com a vontade, pode todavia,
pensando o intelecto alguma coisa, e não ordenando a vontade, mover os membros
do corpo com um movimento não deliberado, como muitas vezes acontece. Por isso,
não é supérfluo, o concurso das faculdades superiores, visto que é necessário para o
movimento deliberado. Nem no homem, quanto à dignidade do apetite inferior,
alguma coisa obsta a que por si, e somente por faculdade sua, cause o movimento
aos membros. De facto, como Caetano, na primeira parte da Suma Teológica, ques­
tão 8 1 , artigo 3º, anotou, embora em nós, a natureza sensitiva não possua a nobreza
do comando que tem nos animais, a sua perda, todavia, é compensada pela conjun­
ção e o comércio com a razão e com o apetite intelectivo. E com efeito, eleva-se o
que é inferior, pela vizinhança do mais sublime, embora esteja mais abaixo. O que
também é evidente naqueles assuntos que dizem respeito aos costumes, como nos
políticos, pois as potências trabalham mais perfeitamente obedecendo à caridade do
que sozinhas, e é mais nobre assistir ao rei do que ter o regimento da aldeia. Daqui
se conclui que não repugna que aqueles que caminham tomados pelo sono sem o
influxo da potência intelectiva pratiquem o movimento de andar, apenas com a ima­
ginação e o apetite excitando a força motriz, visto que isto também acontece fre­
quentemente aos que estão em vigília.
Mas o segundo argumento resolve-se, dizendo à sua primeira parte que embora o
apetite, quanto aos outros actos, obedeça politicamente à razão, quanto ao movi­
mento dos membros, no entanto, apenas obedece despoticamente. Esta solução, que
não concede que a razão e a vontade, imediatamente e sem intervenção do apetite,
movam os membros, parece-nos correcta. À segunda, que nenhum animal, ainda que
pequeno e imperfeito, se move localmente sem o influxo do apetite e da imaginação,
nem existe nenhum animal que pela sua natureza esteja privado destas faculdades e
que, ainda que imperfeitas, não as tenha definidas em certa parte do corpo, conforme
dissemos noutro lugar. Donde, é por isso que os lagartos, os vermes e outros animais
deste género, vivem depois da dissecação e se movem, porque uma vez divididos
também retêm a imaginação e o apetite nas partes. Todavia deve-se mostrar que
Aristóteles, quando nos capítulos anteriores tratou do movimento, apenas discutiu
acerca ou sobretudo sobre aquele que pertence aos animais perfeitos . À terceira,
deve negar-se o que defende e dizer que a imaginação, não por si, mas por interven­
ção do apetite, ao qual apresenta coisas tristes ou alegres, horríveis ou agradáveis,
concita os humores, e o sangue a mover os espíritos, e assim impressiona o corpo de
maneiras diferentes. Leia-se São Tomás, na primeira parte, Suma Teológica, questão
1 1 7, artigo 3º, e no livro 3, Contra os Gentios, capítulo 1 03º.
572 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles

O último argumento resolve-se, negando que a faculdade executiva do movimento


não se distingue do apetite. Efectivamente, ao primeiro argumento da parte adversá­
ria deve negar-se que a acção, através da qual o movimento é comandado pelos
membros, comanda o apetite. À segunda, que a natureza faz o óptimo que pode, mas
que não foi conveniente, nem pôde ser produzido o movimento apenas pela facul­
dade apetitiva, pelas razões que aduzimos em tomo da terceira conclusão. Além
disso, o movimento de locomoção dos animais na realidade provém da potência
animal, visto que somente se produz quando o apetite concorre e manda. Nem a
potência motora ínsita nos membros diz respeito às faculdades vitais, mas antes às
faculdades animais que assiste. À terceira, que Aristóteles chama apetite à faculdade
movente, não porque considerasse que ela se devia distinguir da faculdade executiva
do movimento, visto que nos pontos por nós acima citados também enumera o ape­
tite e a força motora como diversas faculdades dos animais, mas porque na realidade
o apetite é também potência movente, conforme fica claro a partir das afirmações.
Discutiu-se tão-só acerca da alma até ao ponto em que, ligada pelo nexo do corpo e
condenada à coabitação para exercer as suas funções, mendiga a sua obra. De
seguida, escreveremos acerca dela já liberta daquele vínculo, e empreenderemos o
tratamento da alma separada. Oxalá o poder divino seja propício, de modo que, tal
como acerca da alma conjunta sobre a qual pudemos realizar esta obra diligente­
mente, também no que se vai dizer sobre a alma separada acrescentemos um grau
ulterior. Assim, uma vez liberta do corpo a que então a alma se encontra ligada,
evade-se para um estado mais livre, onde, já ligada pelo vínculo apenas a Deus,
indissolúvel e separada dos humanos durante um longuíssimo período, empreende
vida agradabilíssima e tem-na beatíssima.

Fim do Livro Terceiro

Você também pode gostar