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CONIMBRICENSE
DA COMPANHIA DE JESUS
Sobre os três livros do Tratado ' D a Alma'
de Aristóteles Estagirita
EDIÇÕES SÍLABO
É expressamente proibido reproduzir, no todo ou em parte, sob qualquer forma
ou meio, NOMEADAMENTE FOTOCÓPIA, esta obra. As transgressões
serão passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.
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FICHA TÉCNICA
Título: Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus
Sobre os Três Livros do Tratado 'Da Alma' de Aristóteles Estagirita
Autores: P. Manuel de Góis, Mário S. de Carvalho, Maria da Conceição Camps
© Edições Sílabo, Lda.
Capa: Pedro Mota
lª Edição
Lisboa, 20 10.
Impressão e acabamentos: Europress, Lda.
Depósito Legal: 3 1 8408/1 0
ISBN: 978-972-6 1 8-606-9
INTRODUÇÃO GERAL 7
A. Os Comentários a Aristóteles 9
1. Génese e contexto de um curso de filosofia 9
B . O Comentário ao De anima 79
1. Introdução 79
C. Apêndices 141
1. Quadro cronológico 141
D. Bibliografia 148
Edições nacionais 148
Traduções 149
ÍNDICE
LIVRO PRIMEIRO 1 77
Proémio aos Três Livros 179
Explicação do Capítulo 1 188
Da Restante Parte deste Livro 193
LIVRO SEGUNDO 1 95
Proémio do Livro Segundo 197
Explicação do Capítulo 1 197
Explicação do Capítulo II 258
Explicação do Capítulo III 266
Explicação do Capítulo IV 282
Explicação do Capítulo V 290
Explicação do Capítulo VI 294
Explicação do Capítulo VII 319
Explicação do Capítulo VIII 349
Explicação do Capítulo IX 364
Explicação do Capítulo X 387
Explicação do Capítulo XI 395
Explicação do Capítulo XII 407
-
A -
Os Comentários a Aristóteles
Entre 1 592 e 1 606, saíram dos prelos de madeira de Coimbra e de Lisboa cinco
grossos volumes correspondentes a oito tomos de um Curso de Filosofia composto
para os alunos do Colégio da Companhia de Jesus (S.J.) em Coimbra. O seu título
comum era, justamente, Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de
Jesus e versavam sobre a filosofia de Aristóteles (séc. IV a.C.) ! Assim se seguiam as
determinações pedagógicas gerais da Companhia, provenientes de Roma, atinentes
ao ensino da filosofia, que prescreviam o estudo daquele filósofo? A designação
mais vulgar pela qual ainda são citados é a de «Curso Conimbricense» ou «Conim
bricenses», denominação que padece de sinédoque ou metonímia, porque, natural
mente, outras ordens tiveram também os seus studia na cidade e, logo, também os
seus comentários, mesmo não tendo sido publicados, seriam conimbricenses � Adop
taremos, por isso, daqui para a frente a designação de Curso Jesuíta Conimbricense.
Graças à extensão institucional, colegial ou geopolítica dos Jesuítas, e decerto
.
também em razão do valor intrínseco do seu labor filosófico-pedagógico, rapida
mente aqueles textos impressos tiveram repercussão internacional. Já se contaram
para cima de uma centena de edições daqueles oito comentários portugueses, a
maior parte delas no estrangeiro� Ainda no século XVIII, o filósofo renovador Antó
nio Cordeiro publicava o seu próprio Curso filosófico justificando a herança titular
«conimbricense», não apenas em alusão «ao lugar onde foi ensinado pela primeira
vez, mas também em homenagem aos antigos Padres conimbricenses» ?
( l l Cf. MESQUITA, A. P., Obras Completas de A ristóteles. Introdução Geral, Lisboa 2005 ; ID. ,
Vida de A ristóteles, Lisboa 2006; O leitor poderá ter fácil acesso à reprodução das páginas ori
ginais d e rosto d o s oito títulos i n GOMES, P., O s Conimbricenses, Lisboa 1 992, 1 57- 1 66. Não
obstante o que diremos adiante acerca da autoria dos vários volumes, a maior parte das vezes
referi-la-emos no plural.
(Zl MP 1 299: «ln logica et philosophia naturali, et morali et metaphysica doctrina Aristotelis
sequenda est. . . » e passim. MP abreviará sempre, aqui, a colecção editada por LUKÁCS, L.,
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu, Romae 1 965 sg. (indica-se o número do volume e o
da página).
<3l Cf. COSTA, M. G. da, Inéditos de Filosofia em Portugal, Braga 1 949, 1 8, 49, 62-63 .
<4l ANDRADE, A. A. de, «Introdução» in Curso Conimbricense I. Pe. Manuel de Góis: Moral a
Nicómaco, de A ristóteles, Lisboa 1 957, XIV-XVII.
<5l Cf. GOMES, P., Os Conimbricenses 144; COXITO, A., Estudos sobre a Filosofia em Portugal
na época do Iluminismo, Lisboa 2006, 1 6 .
10 Introdução Geral
Eis os oito títulos originais que precisamente integraram o curso publicado por
esses antigos Padres � O primeiro tomo e monografia era um comentário aos oito
livros da Física:
1 . Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln Octo Libras Physico
rum Aristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1 592, 4+825+22pp.).
Na encadernação que nos chegou até hoje, este segundo tomo incluía ainda mais
três obras. Primeiro, liam-se os Meteorológicos, seguidos dos chamados Pequenos
Naturais, respectivamente:
3. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln libras Meteororum
A ristotelis Stagiritae (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 143pp.) e:
4. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu ln libras Aristotelis, qui
Parva Naturalia appellantur (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 1 04pp.); Os
Pequenos Naturais são curtos tratados de temática variada, integrando os
títulos seguintes: De memoria et Reminiscentia, De Somno et Vigilia, De
Somniis, De Divinatione per somnum, De Respiratione, De luventute et
Senectute, De Vita et Morte, De Longitudine et brevitate vitae.
E numa segunda parte deste tomo II, publicavam-se as disputas da Ética, a única
monografia que omite no título a expressão «comentários» :
5 . ln libras Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum, aliquot Conimbricensis Cur
sus Disputationes in quibus praecipua quaedam Ethicae disciplinae capita
continentur (Lisboa: Simões Lopes, 1 593, 96pp.) �
No ano seguinte, publicava-se o quarto volume, que tinha por objecto os três
livros de A A lma, sendo aquele que justamente se traduz a seguir, desprovido, agora,
dos dois apêndices que integravam o volume original:
7 . Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln tres libras de Anima
A ristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1 598, 4+558+28pp.).
Como se disse, este volume anexava dois apêndices:
7 . 1 . A A lma Separada (pp. 44 1 -532), Tractatus de Anima Separata,
7.2. Tratado sobre os Problemas respeitantes aos Cinco Sentidos (pp. 532-
-558), Tractatio aliquot problematum ad quinque sensus spectantium
per totidem sectiones distributa.
Embora publicados sem estamparem o nome do autor, todos estes quatro volumes
parecem ter sido redigidos por Manuel de Góis ( 1 547- 1 597) ! este último eventual
mente com a colaboração editorial de Cosme de Magalhães ( 1 55 1 - 1 624) � haja em
vista que se trata de uma edição póstuma. Quanto aos seus dois apêndices, um sobre
A Alma Separada, outro respeitante aos Problemas sobre os cinco Sentidos, o eru
dito Carlos Sommervogel asseverava serem ambos da autoria de B altasar Álvares
( 1 560- 1 630) ? O quinto e último volume a sair do prelo acrescentará à série um novo
( I l Sobre o autor, vd. RODRIGUES, F., História da Companhia de Jesus na Assistência de Portu
gal, Porto 1 939, 11/2, 1 1 5- 1 22; COXITO, A. A., «Góis (Manuel de)» in Logos. Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia II, Lisboa 1 990, 873-88 1 ; STEGM Ü LLER, F., Filosofia . . . 95-96;
CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas Portugueses com obras filosóficas impressas nos séculos XVI
-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 ( 1 99 1 ) 655; PRAÇA, L., História da Filosofia em
Portugal. Edição preparada por P. GOMES, Lisboa 1 974 [orig.: 1 868] Lisboa 1 974, 1 26- 1 32.
SANTOS, Mariana A . M, dá nota de um tema de 'exame' de metafísica de Góis, datado de
Coimbra 1 5 82, «Utrum intellectus sit potentia nobilior voluntate», vd. «Apontamentos à mar
gem das Conclusões impressas dos Mestres Jesuítas portugueses de Filosofia» Revista Portu
guesa de Filosofia 1 112 ( 1 955) 563.
<2l Cf. STEGM Ü LLER, F., Filosofia ... 96, 46 1 ; CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas Portugueses com
Obras filosóficas impressas nos séculos XVI-XVIII» Revista Portuguesa de Filosofia 47 ( 1 99 1 )
65 1 , 656.
<3l RODRIGUES, F., História . . . 1 1 8; COXITO, A. A., « Á lvares (Baltasar)» in Logos. . 1, Lisboa
.
1 989, 1 99-20 1 ; PRAÇA, J. L., História . . . , 1 46-48; ANDRADE, A. A. B. de, «Teses fundamen
tais da Psicologia dos Conimbricenses» in ID., Contributos para a História da Mentalidade
Pedagógica Portuguesa, Lisboa 1 982, 1 00 atribui a autoria do Tractatus a Cosme de Maga
lhães. SOMMERVOGEL, C., Dictionnaire dês ouvrages anonymes et pseudonymes publiés par
dês réligieux de la Compagnie de Jésus depuis sa fondation jusqu 'à nos jours, Paris 1 884, vol.
1, c. 1 40. Sobre o pseudo-aristotélico, vd. DE LEEMANS, P. & GOYENS, M . (ed.), Aristotle's
'Problemata ' in Different Times and Tangues, Leuven 2006.
12 Introdução Geral
Regra geral, cada volume dos títulos mais importantes (ou seja: Physica, De
coelo, De Anima, De generatione et corruptione, Dialectica) publicava o texto de
Aristóteles, muitas vezes dividido em partes numeradas (Textus nº), mas no caso da
Dialectica não publicado na íntegra. Cada uma destas partes era, mais ou menos,
objecto de uma explicação ou exposição literal (explanatio) , publicada nas margens
da página respectiva. À guisa de ilustração ópticografemática reproduz-se aqui uma
página do comentário ao De Anima (gravura l ).
Seguiam-se invariavelmente as questões (quaestio), divididas em artigos (articu
lus) em número irregular, e estes, nalguns casos (mais uma vez atente-se na situação
do volume da Dialéctica), ainda subdivididos em partículas (sectio) . Não obstante a
sua clara utilidade, a apresentação tipográfica da página (notas marginais com auto
res, títulos e resumos) e os índices de cada volume limitavam-se a seguir as determi
nações pedagógicas pragmáticas mais comuns, sendo algumas práticas manuscritas
antigas (vd. gravura 2). Assim v.g. , num texto de 1 548-50 lêem-se os seguintes con
selhos com vista à preparação dos exames: façam um resumo (estratto) ou sumário
ordenado e breve, escrevam-no num caderno de apontamentos (libra que puedan
traer consigo) para fáceis e rápidas revisões (para acordarse con más facilidad y
brevedad de lo studiado), para o que o devem escrever títulos à margem (es bien
sacar ai margen algo que muestre lo que ay dentro) e enumerar tábuas temáticas
alfabéticas (y hazer una tabla por orden dei alphabeto con sus números de las mate
rias que se trattan, porque assí podrán sin confundirse, hallar presto lo que quie
ren).2 Seja como for, importa desde já informar que a publicação se destinava expli
citamente a obstar que os alunos perdessem tempo de estudo a tomar notas.
( l l Cf. RODRIGUES, F., História . . . 11/2, 1 1 9- 1 22; STEGMÜLLER, F., Filosofia . . . 96-98;
CARVALHO, J. V. de, «Jesuítas .. » 653 ; PRAÇA, L., História . 1 42-46; MANSO, M. de D.
. . .
Gravura 1
CAP. I. EXPLANATJO. u
Gravura2
Q V .Al S T I O III.
VTR.VM
·
ANIMA! INTEL•
lcaiuz;ã.' Oco crccntur,an nc:n,
AR T I
· C VL VS. J,
D· I V E R S A D O G M A TA D E
nofirorum anímorum origine.
Certamente que a lista dos oito títulos acima nada diz ao leitor de hoje. No
entanto, será avisado atentar que nos nossos dias uma empresa académica seme
lhante seria considerada exemplar. Mesmo invejável. Efectivamente, três critérios
decisivos para uma avaliação do rigor científico universitário i. e. , trabalho siste -
O l GLENDER, P. F., «Printing and censorship» in SCHMITI, Ch. B . et ai. (ed.), The Cambridge
History of Renaissance Philosophy, Cambridge 1 988, 25-53; SARAIVA, A. J., História da
Cultura em Portugal. Vol. 1: Renascimento e Contra-Reforma, Lisboa 2000, 1 1 7 sg; FON
SECA, F. T. da, «A Imprensa da Universidade no Período de 1 537 a 1 772» in ID. et ai. ,
Imprensa da Universidade. Uma História dentro da História, Coimbra 200 1,7- 1 3; MEIRI
NHOS, J. F., «Editores, livros e leitores em Portugal no século XVI. A colecção de impressos
portugueses da BPMP» in ID. Et ai (coord.), Tipografia Portuguesa do Séc. XVI nas Colecções
da Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto 2006, 1 7-34.
<2l Cf. 'Ratio Studiorum ' da Companhia de Jesus (1559-1 999), Braga 1 999 (=Revista Portuguesa
de Filosofia LV); ZAMBARBIERI, A., «A Ratio Studiorum dos jesuítas» Communio 1 5 ( 1 998)
544-50. Importa referir a recente tradução portuguesa de Margarida Miranda, Ratio Studiorum
da Companhia de Jesus ( 1599). Regime escolar e curriculum de estudos, Braga [s.d.], mas com
nova ed. : Código Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599).
Regime Escolar e Curriculum de Estudos, Lisboa 2009; vd. também Ratio Studiorum. Plan rai
sonné et institution des études dans la Compagnie de Jesus. Présentée par A. Demoustier et D.
Julia, traduite par L. Albrieux et D. Pralon-Julia, annotée et commentée par M.-M. Compere,
Paris 1 997.
<3l SCHMITT, C. B ., «The rise of the philosophical textbook» in The Cambridge History of
Renaissance Philosophy. . . 792-804.
<4l Cf. ESCHWEILER, K., Die Philosophie der spanischen Spaetscholastik auf den deutschen
Universitaeten des Siebzehenten Jahrhunderts, in FINKE, H. (Hersg. ), Gesammelte Aufzaetze
zur Kulturgeschichte Spaniens, Muenster 1 928, 25 1 -283; LEWALTER, E., Spanisch-jesuitische
und Deutsch-lutherische Metaphysik des 1 7. Jahrhunderts. Ein Beitrag zur Geschichte der
lberisch-deutschen Kulturbeziehungen und zur Vorgeschichte des deutschen ldealismus,
Hamburg 1 935 [rep. : Darmstadt 1 967), JANSEN, B ., «Die scholastische Philosophie des 1 7 .
Jahrhunderts», Philosophisches Jahrbuch 50 ( l937) 4 0l-444; WUNDT, M . , Die deutsche
Schulmetaphysik des 1 7. Jahrhunderts, Tuebingen 1 939; LOHR, C. H., «Jesuit Aristotelianism
and Sixteenth-Century Metaphysics», in G . Fletcher & M. B. Schuete (eds.), Paradosis. Studies
in Memory of Edwin A. Quain, New York 1 976, 203-220; ROMPER, E. M., Die Trennung von
Ontologie und Metaphysik. Der Abloesungsprozess und seine Motivierung bei Benedictus
Pereira und anderen Denkern des 1 6. und 1 7. Jahrhunderts, Bonn [Diss. em Fil.) 1 968;
SPARN, W., Wiederkehr der Metaphysik. Die ontologische Frage in der luterischen Theologie
des fruehen 1 7. Jahrhunderts, Stuttgart 1 976; DI VONA; P., Studi sulla scolastica della
Controriforma, Firenze 1 990; COURTINE, J.-F., Suárez et le systeme de la métaphysique, Paris
1 990; SALATOWSKY, S., 'De Anima'. Die Rezeption der aristotelischen Psychologie im 16.
und 1 7. Jahrhundert, Amsterdam Philadelphia 2006.
16 Introdução Geral
tas ! mas também se sabe que a ascendência do Curso Jesuíta Conimbricense chegou
mesmo às paragens ortodoxas ucranianas ou católicas polacas � M. Heidegger, que
não sabia tanto sobre Fonseca como sobre Suárez, chegou ao ponto de afirmar,
acerca deste último, o qual, no entanto, escreveu depois de Fonseca, «der ist der
Man» � E ainda sobre os Jesuítas Conimbricenses, mormente sobre o seu tratado de
Lógica, o maior filósofo norte-americano do século XIX, Ch. S. Peirce, sublinhava
sem qualquer pej o nem rebuço, a sua «elevada autoridade» 1 Em distinta geografia
cultural, sabe-se também que o Curso editado em Coimbra e em Lisboa foi talvez a
primeira obra de filosofia ocidental a ser adaptada para o idioma chinês, embora
parcialmente ? Num invulgar trabalho sobre a tradução chinesa do volume dedicado à
Dialéctica, lembrando que os Jesuítas ambicionavam publicar integralmente o Curso
de Coimbra no território chinês, e salientando toda a problemática e dificuldade
inerentes à tarefa de tradução de uma teoria filosófica - nada mais, nada menos do
que o texto de Sebastião do Couto -, Robert Wardy soube bem apreciar e transmitir
nos a extraordinária importância de uma empresa filosófica como essa, além de bem
sucedida a seu ver? Não será exagerado acentuar esta dimensão na nossa época mar
cada pelo interculturalismo e pelo diálogo das civilizações.
Apesar de tudo importa não sobrestimar exageradamente o valor filosófico da
nossa edição, sendo muitos os sinais demonstrativos do crescente sentimento da
limitação d o Curso! mesmo que s e detecte a sua influência logo e m autores filósofos
modernos tão relevantes, como nos casos de Descartes2 ou de Leibniz� e ainda even
tualmente em Espinosa4 ou Hobbes � E mesmo no momento de redigir o seu impor
tante Dictionnaire historique et critique, reeditado no século XIX, Pierre Bayle
(tl 706) ainda há-de compulsar os nossos comentários para ilustrar a realização de
algumas entradas.
Tudo o que acabámos de dizer é insuficiente. Podemos perguntar por que motivo
comentar Aristóteles nos séculos XV e XVI quando - dir-se-ia - aparentemente a
filosofia já devia trilhar outros horizontes (mas recorde-se que Galileu só nasce em
1 5 64 e Descartes em 1 596) . Noutro lugar, pudemos esclarecer de alguma maneira,
embora relativamente a um só ponto, como se pode, apesar de tudo, ter processado
essa mudança de horizontes, i. e. , de um modo bem mais complexo do que costuma
explicar a apressada historiografia. Independentemente do que aí dissemos ? importa
talvez deixar algumas indicações que nos ajudem a perceber o horizonte «aristoté
lico» em que os nossos comentários vêem a luz da publicação.
Grosso modo, o conhecimento de Aristóteles no Ocidente Latino deu-se até então
em três vagas distintas? Recordêmo-las em breves pinceladas. A primeira pode ser
aqui referida pela acção capital de Boécio (séc. V-VI), que traduziu para latim e
sobretudo comentou algumas das obras que pertencem à analítica ou lógica (parte do
denominado Organon). A segunda vaga aconteceu durante os fins do século XII e os
princípios do século XIII e ela só foi possível graças a um complexo, longo e notá
vel trabalho de tradução, assimilação e comentário (por isso devidamente adequado
à expansão das obras de Aristóteles em solo latino) feito pela tradição arábico-islâ
mica, na qual se destacaram, pelo menos, os nomes de Alquindi, Alfarabi, Avi cena e
Averróis ! Como é natural, esta segunda fase, que acabou por permitir o conheci
mento efectivo da maior parte das obras do Estagirita, foi a responsável pela terceira,
período em que surgem os Comentários dos Jesuítas de Coimbra. Naquele segundo
momento, essas obras passaram a ser traduzidas de forma variegada, em todo o caso
de uma maneira mais sistemática do que aquela que a precedeu, quer directamente
do grego, quer por intermédio de outros idiomas, mormente do arábico? Por fim, a
última fase, a que agora nos interessa, decorre durante 1400 a 1 600. De acordo com
Charles B. Schmitt, o que distingue esta ocasião das duas anteriores é a amplitude, a
autoconsciência e a analiticidade do trabalho de «tradução e retradução das obras
uma a uma, muitas vezes também de revisão de traduções antigas, que suscitou uma
gama notável de novas versões latinas de Aristóteles, ultrapassando largamente tudo
o que até então se havia produzido.» 3 « É um facto espantoso, acrescenta Lohr, que
se tivessem composto mais comentários latinos de Aristóteles no século que separa
Pomponazzi de Galileu do que nos dez séculos entre Boécio e Pomponazzi. »4 Dada
a partilha de um mesmo ideal discursivo, simultaneamente filológico e filosófico,
concretizado num modelo de eloquência retórica definido por glosas à margem de
citações de textos, o vocábulo «commentarii», que aparece na quase totalidade dos
tomos do Curso dos Jesuítas Conimbricenses, há-de chegar a servir para traduzir o
francês Essais (de Montaigne, precisamente) ? Mas esta forma mais tradicional de
trabalhar, patente na combinação do texto latino de Aristóteles com comentários
filosóficos, rivalizará com a edição greco-latina monumental de Aristóteles (Lyon
1590), da responsabilidade do huguenote Isaac Casaubon, não só nas universidades
católicas ibéricas, como também nas congéneres italianas e mesmo entre as protes
tantes britânicas? Tais marcas (filológicas, filosóficas e retóricas) encontrar-se-ão
nos nossos Comentários, e sabemos que, se Pedro da Fonseca teve a sua própria
intervenção na tradução da Metafísica por ele comentada? já Manuel de Góis terá
( I ) LOHR, Ch. H., «Les jésuites . . . » 84-85. Sobre o silêncio em relação à situação ibérica, vd. mais
adiante no fim do capítulo.
(2) Cf. SCHMITI, Ch. B & COPENHAVER, B. P., Renaissance Philosophy, Oxford 2002, 6 1 .
C 3) Importa, por isso, corrigir a confusão de ARIEW, R., «Descartes and the Late Scholastics on the
order of the sciences» in BLACKWELL, C. & KUSIKAWA, S. (ed.), Philosophy in the Six
teenth and Seventeenth Centuries. Conversations with A ristotle, Aldershot 1 999, 355; cf.
SCHMITI, Ch. B . , A ristóteles . . . 57.
<4l Cf. LEFF, G. & NORTH, J . , «A Faculdade de Artes» in R ÜEGG, W. (coord.), Uma História da
Universidade na Europa. Vol. !. As Universidades na Idade Média, trad. , Lisboa 1 996, 307-360.
Introdução Geral 21
acessível dos mais recentes textos editados dos autores de Duzentos em diante.
Noutro lugar, pudemos aludir ao efeito hermenêutico proveniente desta metodolo
gia, patente numa 'regolata mescolanza' de autores de épocas tão díspares tomados
de repente contemporâneos! de onde se retira, nas palavras de M. Foucault, o
privilégio absoluto da escrita e de uma leitura aberta, a tarefa do comentário incon
cluído: «Só há comentário quando sob a linguagem que se lê e decifra corre a sobe
rania de um texto primitivo. E é esse texto que, fundando o comentário, lhe promete,
como recompensa, a sua descoberta final.» �
Consideremos abreviadamente o programa editorial do século. No caso dos «clás
sicos», temos, entre outros, os nomes de Alexandre de Afrodísia (sécs. II-III), cujo
texto grego aparece em 1 5 1 3- 1 6, suscitando o conhecimento de mais inéditos; de
Apuleio (séc. II), muito conhecido antes, mas cuja edição das Metamorfoses por
Giovanni Andrea de Bussi deu novo impacto à recepção do autor; de Cícero (séc. 1
a. C.), recebido com o inegável mérito de pautar um latim renovado3 ; de Diógenes
Laércio (séc. III), cuja doxografia com dezassete edições num espaço de vinte e oito
anos era um modelo de classificação dos filósofos do passado, além de um manan
cial com inúmeras informações, designadamente sobre a filosofia natural epicurista;
de Estobeu (séc. V), também autor importante no restabelecimento da tradição
doxográfica; de Galeno (séc. II), cuja edição Aldina de 1 525 revela pela primeira
vez um autor não só interessado em questões médicas, mas também filosóficas, em
problemas de anatomia e de crítica textual; de Hermes Trismegisto, um mítico egíp
cio a quem se atribuía um corpus neoplatónico, gnóstico e judaico e cujo herme
tismo muito entusiasmou autores como Marsilio Ficino (t1 499) ; de Hipócrates
(sécs. V-IV a. C.), uma espécie de anti-Galeno para os renascentistas, com os seus
textos gregos editados a partir de 1 526; de Jâmblico (sécs. III-IV), outro neoplató
nico cujos Mistérios vêem uma edição de grande popularidade em 1 497 ; de Isidoro
de Sevilha (séc. VI), que continuava a ser uma fonte de informação enciclopédica
após a edição da sua obra em 1 470; de Lucrécio (séc. 1 a. C.), que conhece as pri
meiras edições do seu poema naturalista a partir de 1 473; de Macróbio (séc. IV), que
com o comentário ao Sonho de Cipião de Cícero ajudou a transmitir elementos bási
cos da filosofia platónica; de Marciano Capela (sécs. IV-V), cujas Núpcias de Filo
logia com Mercúrio transmitiram o plano enciclopédico das artes liberais; do cristão
alexandrino João Filópono (séc. VI), sobretudo pelas suas exposições sobre Platão e
Aristóteles ; de Platão (sécs. V-IV), naturalmente, autor que a partir de 1 397 passa a
ser lido em grego no círculo florentino e traduzido (só uma parte do Timeu, o Ménon
e o Fédon, estes dois sem grande difusão, estavam vertidos até então), não obstante
essa acção sofrer a influência enviesada do próprio neoplatonismo; de Plínio o
Velho (séc. 1), cujo tom enciclopédico (filosofia, ciência) da História Natural atraiu
inúmeros comentários; do fundador do neoplatonismo, Plotino (séc. III), que viu as
suas dificílimas Enéadas editadas em 1492; dos ensaios ético-religioso-pedagógicos
(Mora/ia) de Plutarco (séc. 1-11) ; da introdução ao Organon, por Porfírio (sécs. III
-IV), a famosa /sagoge; de Proclo (séc. V), com os comentários a Platão e aos Ele
mentos de Euclides; do autor de manuais astrológico-astronómicos (Tetrabiblos e
Almagesto), de Ptolomeu (sécs. 1-11), cuja tradução, feita no século XII, vem a ser
editada em 1 5 1 5 ; dos Versos dourados atribuídos a Pitágoras ; de Séneca (séc. 1), um
autêntico 'best-seller' com pelo menos seis edições entre 1475 e 1492, que partilhou
com Cícero a tarefa de modelar um latim renovado; de Sexto Empírico (séc. III),
transmissor do cepticismo antigo, imediatamente em voga; do elegante comentador
de Aristóteles (Física, Categorias, Alma e O Céu), Simplício (sécs. V-VI) ; de idên
tico trabalho sobre o De Anima por Temístio (séc. IV), importante sobretudo para a
manutenção do conflito Tomás/Averróis; e do sucessor de Aristóteles, Teofrasto
(sécs. IV-III a. C.).
Como dissemos, aos «clássicos» haveria que acrescentar o renascimento patrís
tico, decerto sob a influência dos humanistas e de Erasmo em particular, que faz
publicar em Basileia, em ritmo editorial de causar inveja, um novo Cipriano ( 1 520),
Tertuliano ( 1 5 2 1 ), Amóbio, o Jovem ( 1 522), Hilário ( 1 523), Jerónimo ( 1 524, 1 525),
algum João Crisóstomo ( 1 525, 1 526 e 1 529), Ireneu ( 1 526), Ambrósio ( 1 527),
Agostinho ( 1 527 - 1 528) e Orígenes ( 1 536) ! Recordemos, de passagem, que o
dominicano Melchior Cano, e antes o próprio Caetano, haviam glosado - e o pri
meiro teorizado, mesmo -, em tomo dos «lugares teológicos», uma hierarquização
das «autoridades» que progressivamente atribuirá aos «doutores» cristãos um lugar
intermédio entre os textos da Escritura e os filósofos pagãos � Como é sabido, o De
toeis ( 1 563) de Cano via-se na esteira de uma célebre passagem da Suma Teológica
de São Tomás (Ia, 1 , 8 ad 2), tal como aliás o texto paralelo da Suma de Caetano
( 1 540/4 1 ), valendo por isso a pena observar que os jesuítas de Coimbra tratam os
Padres por «divus», determinativo obviamente extensivo ao Aquinate. De entre
todos estes nomes da Patrística, um lugar à parte deve ser dado a Agostinho de
Hipona. Dele já se disse, não sem propriedade, marcar um importante e longo
momento da Europa cristã que se estende desde o fim do século XV até aos inícios
da idade do secularismo (séc. XVIII) ? Pela nossa parte, teríamos mesmo de atentar
( l l Cf. DAGENS , J., Bérulle et les origines de la restauration catholique ( 1 575- 1 6 1 1 ), Paris 1 952,
35 apud: FUMAROLI, M . , L 'âge de l 'éloquence . . . 1 34.
<2l BERCEVILLE, G . , «L' autorité des Peres selon Thomas d'Aquin» Revue des sciences
philosophiques et théologiques 9 1 (2007) 1 3 1 , 1 35 .
(3l WRIGHT, A. D., The Counter-Reformation. Catholic Europe a n d the Non-Christian World,
Aldershot Burlington 2005, 247 e passim; TRINKAUS, Ch., Renaissance Transformations of
Late Medieval Thought, Aldershot 1 999; BERGV ALL, A., Augustinian Perspectives in the
Renaissance, Uppsala 200 1 ; WEGENER, L., «Augustinus-Rezeption in der Reforrnation. Der
Strassburger Muensterprediger Caspar Hedio ais Uebersetzer augustinischer Schriften in der
ersten Haelfte des 1 6 . Jarhunderts» Quaestio. Annuario di storia della metafisica 6 (2006) 277-
-305; VELOZO, A. M., «A agostinização do pensamento de Descartes. Precedida de uma breve
genealogia do agostinismo nos sécs. XVI e XVII» Revista Portuguesa de Filosofia 44 ( 1 988)
1 27- 1 6 1 .
Introdução Geral 23
(!) BA YLE, P. (Dictionnaire historique et critique, Paris 1 820-24, X, 2) refere uma obra de Fran
cisco Macedo, publicada em Veneza em 1 668, sobre a conformidade entre Loyola e Agostinho,
Concentus Euchologicus Sanctae Matris Ecclesiae in breviario, et sancti Augustini in libris,
adjuncta Harmonia exercitiorum sancti lgnatii soe. /esu Fundatoris, et operum sancti Augustini
ecclesiae doctoris.
<2l Cf. CARVALHO, M. S. de, «Metamorfoses da ética peripatética: estudo de um caso Quinhen
tista conimbricense: 'As Disputas sobre os Livros da Ética a Nicómaco' » Revista Filosófica de
Coimbra 1 4 (2005) 239-274.
<3l Cf. GRABMAN, M., Mittelalterliches Geistesleben. Abhandlungen zur Geschichte der
Scholastik und Mystik, München 1 936, II, 608-09; GIACON, C., La seconda scolastica I,
Milano 1 956.
C4l Cf. ORREGO S ÁNCHEZ, S., La actualidad dei ser en la 'primera escuela ' de Salamanca,
Pamplona 2004, 68-77; CESSARIO, R., Le thomisme et les thomistes, Paris 1 999; KENNEDY,
L. A., A Catalog of Thomists 1270-1 900, Houston 1 987. «A orientação tomista da Teologia, que
reflecte a influência do método salmantino, em particular de Francisco de Vitória, é introduzida
por Frei Martinho de Ledesma. Este inicia na Universidade de Coimbra a leitura de S. Tomás
em vez de Durando, como por alvará de 26 de outubro de 1 54 1 ordenara D. João III.» (in SOA
RES, N. de N. C., «Humanismo e Universidade» Biblos n.s. 5 (2007) 85; vd. também Estatutos
da Universidade de Coimbra (1559), com introdução e notas históricas e críticas de LEITE, S .,
Coimbra 1 965, 3 1 4)
(S) LOHR, Ch. H., «Les jésuites . . . » 80; ID., «Metaphysics» in The Cambridge . . . 598-60 1 . Sobre o
fundador, vd. RAHNER, H., Ignace de Loyola, Paris 1 956; e também: Autobiografia de Santo
Inácio de Loiola. Trad. de A. J. Coelho, Braga 2005.
24 Introdução Geral
decerto a patente independência no modo como uma tão novel ordem religiosa,
desprovida de tradição, pôs de pé a ideia de uma filosofia que servisse realmente o
seu tempo. Assim se há-de explicar a liberdade com que cada professor, não tendo
de defender qualquer escola filosófica prévia que lhe fosse própria (tomismo, esco
tismo, nominalismo, etc.), combinava melhor ou pior todos estes legados na consti
tuição de novas posições filosóficas ! São bem indicativas a este respeito as palavras
cautelosas seguintes, emanadas da Congregação Geral ( 1 593/94) : «Que os Padres
não se sintam na obrigação de estar de tal maneira apegados a São Tomás que não
possam afastar-se dele em nenhuma matéria, já que até aqueles que se declaram
mais abertamente tomistas se afastam por vezes dele; nem seria conveniente ligar os
nossos a São Tomás de uma maneira mais apertada do que a dos próprios tomistas» ?
Explica-se, deste modo, como no projecto mais ambicioso de Fonseca, ao qual nos
referiremos adiante, estava a atribuição a Marcos Jorge das controvérsias respeitan
tes a Duns Escoto - quiçá já influente no tomismo de Caetano3 - e bem assim o
desígnio do Pe. Nadai para que os estudos jesuítas superassem as velhas facções
tomistas, escotistas e nominalistas� O sentido da «escola», para o bem ou para o mal,
fixava ou determinava ilhas sociológicas e religiosas de identidade mental, embora,
em todo o caso, se tratasse mais, muitas vezes, de matizes de polémica. Sirva-nos a
título ilustrativo daquele fenómeno fixista a filigrana escotizante de que dá mostras o
inédito Liber distinctionum de André do Prado no limiar do século XV ? Ora, vem
crescendo a unanimidade no repúdio à identificação sem mais do pensamento filosó
fico dos Jesuítas com o chamado tomismo? matéria acerca da qual nos encontramos
longe de poder desfrutar da última palavra.
Estamos, por isso, de pleno direito, em absoluto renascimento, e a obra dos
Jesuítas de Coimbra não pode ser vista fora deste contexto, além do desígnio explí
cito de formar uma élite europeia de sacerdotes e leigos, numa rede integrada de
escolas europeias tendo por denominadores comuns a retórica ciceroniana, Aristó-
( I J LOHR, Ch. H . , «Les jésuites . . . » 82. DINIS, A. ( «Censorship and freedom of research among the
Jesuits (XVIth-XVIIIth centuries). The paradigmatic case of Giovanni Battista Riccioli ( 1 598-
- 1 67 1 )» in CAROLINO, L. M. e CAMENIETZKI, C. Z. (coord.), Jesuítas, Ensino e Ciência:
Séc. XVI-XVIII, Casal de Cambra 2005, 48-49), ao tratar do problema da liberdade de ensino
entre os primeiros jesuítas também defende a existência de tensões doutrinais na obra de alguns
deles.
<2l MP VII 350.
<3l Cf. ROMEYER, B . , La philosophie chrétienne jusqu 'à Descartes, III, Paris 1 937, 1 77-78.
<4l MP. 93, 99, apud MARTÍNEZ GOMES, L., «Síntesis de Historia de la Filosofia Espaiiola» in
HIRSCHBERGER, J., Historia de la Filosofia, trad. Barcelona, I, 605 .
(SJ CARVALHO, M. S. de, Estudos sobre Á lvaro Pais . . 307-36; BONINO, S .-T. , La question de
.
( 1 ) FUMAROLI, M . , L 'âge de l 'éloquence . . . 1 79. Em tradução, vd. Santo Inácio de Loiola, Exercí
3
cios Espirituais. Trad. de V. C. D. Pereira, Braga 1983; lgnatius of Loyola. Spiritual Exercises
and Selected Works, ed. by GANSS , G. E. with the collaboration of P. R. Divarkan et ai. , Mah
wah (N. J.) 1 99 1 .
C ZJ DURKHEIM, E., Educação e Sociologia, trad. , Lisboa 2007, 8 5 [original de 1 9 1 1 ] .
C 3) GUILLERMOU, A., O s Jesuítas, trad. , Lisboa 1 977, 30, 3 5 ; ANDRADE, A. A., «Os
'Conimbricenses' » Filosofia 1 /4 ( 1 955) 3 1 -36; SILVA, L. C. da, «Os Jesuítas e o Ensino
Secundário» Brotéria 3 1 ( 1 940) 476-86.
C4) Cf. ANSELMO, A. J., Bibliografia das obras impressas em Portugal no século XVI, Lisboa
1 926, 23 8 .
C S) Cf. ANSELMO, A. J., Bibliografia . . 227 .
.
(7) GIARD, L. «Sur le cycle des 'artes' à la Renaissance» in WEIJERS, O. & HOLTZ, L. (ed.),
L'enseignement des disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford Xllle - XVe siecles),
Tumhout 1 997, 5 1 4.
C Sl Cf. CAEIRO, F. da G., «Os Jesuítas e a educação setecentista no Brasil» Revista Portuguesa de
Filosofia 50 ( 1 994) 1 03- 1 3 ; SANTOS, M. A. M . , «A Escolástica Portuguesa nos Colégios do
Brasil» Revista Portuguesa de Filosofia 38/2 ( 1 982) 487-89; CAEIRO, F. da G., «0 Pensa
mento filosófico do século XVI ao século XVIII em Portugal e no Brasil» Revista Portuguesa
de Filosofia 38/2 ( 1 982) 5 1 -90; GOMES, P., Os Conimbricenses 1 70 sg com mais bibliografia;
CERQUEIRA, L. A., Filosofia Brasileira. Ontogênese da consciência de si, Petrópolis 2002,
49; SANTOS, S. J., «Para a História da Filosofia Portuguesa no Ultramar. 1 . Í ndia» Revista
Portuguesa de Filosofia 1 ( 1 945) 1 7 6- 1 95 .
C 9) RODRIGUES, F . , História da Companhia. . . II/2, 93- 1 35 ; SOMMERVOGEL, C . , Bibliotheque
de la Compagnie de Jésus, Paris 1 89 1 , II 1 273-78. A lista dos professores jesuítas em Coimbra
(de 1 555 a 1 667) é acessível em STEGM ÜLLER, F., Filosofia e Teologia . 86-9 1 ; vd. também
..
GOMES , J. P., Os professores de Filosofia do Colégio das Artes (1555-1 759), Braga 1 955 e o
Apêndice no final.
26 Introdução Geral
O l GIARD, L. «La constitution du systeme éducatif jésuite au XVIe siecle» in WEIJERS , O. (ed.),
Vocabulaire des colleges universitaires (XII/e - XV/e siecles), Tumhout 1 993, 1 3 8 : «En un
sens, on pourrait dire que l' enseignement s' est insinué dans les activités de la Compagnie par !e
fait que sont venus à elle comme candidats non des hommes déjà formés, comme Ignace l' avait
souhaité, mais de plus jeunes gens sans expérience dant il fallut organiser la sélection et la for
mation.» Sobre a génese da questão edicativa, vd. , entre outros: LETURIA, P., «Why the So
ciety of Jesus Became a Teaching Order?» Jesuit Educational Quaterly 4/ l ( 1 94 1 ) 3 1 -54;
GANSS , G. E., Saint lgnatiu 's ldea of a Jesuit University. A Study in the History of Catholic
Education, Milwaukee 1 954, 1 85-93; O' MALLEY, J. W., The First Jesuits, Cambridge 1 993,
200-42; BUCKLEY, M. J., The Catholic University as Promise and Project. Reflections in a
Jesuit ldiom, Washington 1 998, 53- 1 47 ; GODINA MIR, G., Au.x sources de la Pédagogie des
Jésuites: Le 'Modus Parisiensis ', Roma 1 968; ID., «El 'modus parisiensi s ' » Gregorianum 85
(2004) 43-64; ID. , «The ' Modus Parisiensis ' » in DUMINUCO, V. J. (ed.), The Jesuit 'Ratio
Studiorum': 40d'' Anniversary Perspectives, New York 2000, 28-49; GOMES, J. F., «0 'Modus
Parisiensis' como matriz da Pedagogia dos Jesuítas» Revista Portuguesa de Filosofia 50 ( 1 994)
1 79-96; CARVALHO, R. de, «A orientação pedagógica da Companhia de Jesus» in ID., Histó
ria do Ensino em Portugal. Desde a Fundação da Nacionalidade até fim do Regime de Salazar
Caetano, Lisboa 1 986, 33 1 -358.
<2J Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln libras Meteororum Aristotelis Stagiri
tae IX, c. 9, p. 1 02: «urbis Conimbricae preclarae bonarum artium . . . »
<3 l Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas II, 2 (trad. J. F. Gomes 97); vd. o meu «The Coimbra
Jesuits' Doctrine on Universais ( 1 577- 1 606)» Documenti e Studi sulla Tradizione Filosofica
Medievale. An lntemational Joumal on the Philosophical Tradition from Late Antiquity to the
Late Middle Ages of the 'Società lntemazionale per lo Studio del Medioevo Latino ' (S. /. S. M.
E. L. ) 1 8 (2007) 53 1 -543 .
<4l Cf. MP II 44 * ; MP III 3 1 7 : «Por lo menos seria gran alivio y descanso ora los nuestros que leen,
y para los que oyen; porque los unos gastan mucho tiempo y estudio en hazer los ditados y es
crivirlos, y después en ditarlos en la cáthedra a los oyentes; y los otros en recibirlos; y aviéndo
los impresos, quedavan todos con más tiempo y descanso.» Em 1 5 64 chega-se a conceber a
ideia de compor também um curso de teologia, «creo que seria de mucha importancia - escreve
Miguel de Torres ao Geral Laínez, acerca de Évora (MP III 364) - si se hiziesse algún méthodo
de enseiíar la theologia scolástica»
Introdução Geral 27
lho intelectual, que ele se sentiu, então, a repetir preclaro gesto do próprio Liceu,
quando a Teofrasto é dado o estudo da botânica, a Eudemo de Rodes o das ciências
matemáticas e a Ménon o da medicina ! Adiando o princípio da empresa até à che
gada de livros faltosos (teniendo respecto a la falta de libros que ay en casa), enco
mendados de Veneza ao Pe. Francisco Adorno (tl 5 86), um italiano que havia
ingressado na Companhia justamente em Coimbra, solicita algum tempo para que se
preparasse o trabalho de equipa (envolvendo também os companheiros de Évora) de
maneira devida. Talvez um trabalho esboçado em dois tempos: (i) «entre tanto se
ventilarían más las matérias, excitarían dudas, et declararían más todas las cosas»,
(ii) «Y que yo le diesse una memoria para encomendar a los maestros y algunos
theólogos, que entre tanto hiziessen por apuntar cada uno en su cartapacio las dudas
y todo lo demás que en el processo de sus estudios les ocurriesse, que poderia servir
para qualquiera parte dei curso». Passa de seguida ao primeiro planeamento (repar
tía el trabajo) : o próprio Fonseca ficaria com duas horas para «conferir todos os
livros de Aristóteles ainda não vistos (ou não devidamente vistos)», que «pueden
servir», tomando nota das dúvidas e das boas exposições, com dois ou três graves
intérpretes, como por cifras, expondo uns lugares por outros, sendo esta a tarefa
mais útil para quem tem o principal encargo; Cipriano Soares teria direito a uma
hora livre por dia para os temas matemáticos de Aristóteles (geometria, demonstra
ções, cosmografia, astrologia e perspectiva), como sucede em De Coe/o e nos
Meteororum, e, além disto, ocupava-se da teoria dos planetas no quarto capítulo da
Esfera de Sacrobosco, como era hábito local� sem esquecer Plínio e outros autores
com utilidade para o tema meteorológico, ventos, origem das nascentes, etc. Com-
C l l Cf. CRUBELLIER, M. & PELLEGRIN, P., Aristote. Le philosophe et les savoirs, Paris 2002,
22.
(Z) O inglês João de Sacrobosco (ou de Hollywood), continuador de Alexandre de Villedieu, ensi
nou em Paris nos anos 1 220- 1 235 e é autor de quatro manuais importantes: Algorismus, Trac
tatus de Sphera (um pouco antes de 1 230), Computus e Tractatus quadrantibus, cf. PEDER
SON, O., «ln quest of Sacrobosco» Joumal for the History of Astronomy 16 ( 1 985) 1 95-22 1 ;
vd. Johannes de Sacro Bosco, Tractatus de spera, in THORNDYKE, L., The 'Sphere ' of Sac
robosco and lts Commentators (Chicago 1 949) 76- 1 1 (texto) e 1 1 8- 1 42 (trad. inglesa). Lê-se in
MARTINS, J. V. de P. «0 Humanismo ( 1 487- 1 537)» in História da Universidade em Portugal.
1 Volume, tomo 1 ( 1 290- 1 536), Coimbra 1 997, 1 76: «Ora os estudos sobre os descobrimentos
portugueses parecem provar a existência de uma cultura científica portuguesa, já na primeira
metade do século XV que abrangia o estudo dessas disciplinas, provavelmente influenciada pela
ciência espanhola e profundamente marcada pelo saber dos judeus. Assim, é um facto o conhe
cimento do Tratado da Esfera de Sacrobosco, presente em Alcobaça, e citado no Livro da
montaria de D. João 1 e, sobretudo, no Esmera/do de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira . . . » De
notar, por outro lado, que um dos professores bordaleses, Elias Vinet, amigo e admirador de
Pedro Nunes, professor da Faculdade das Artes, edita a Sphaera (Paris 1 556) com a inclusão de
um capítulo de Nunes, Sphaera loannis de sacro Bosco emendata. Eliae Vineti Santonis Scholia
in eandem Sphaeram ah ipso auctore restituta (. .. ) et Petri Nonii Salaciensis demonstrationem
eorum quae in extremo capite de Climatibus Sacroboscius scribit, de inaequali Climatum lati
tudine eodem Vineto interprete (cf. RAMALHO, A. da C . , «0 Humanismo (depois de 1 5 37)» in
ibidem, tomo II ( 1 537- 1 77 1 ), 70 1 n. 14. STEGMÜ LLER, F., Filosofia e Teologia . . . 276 remete
para dois comentários, ambos de Évora ( 1 585), um de Vasco Baptista, outro de António de
Castelbranco. Para um ponto sobre a questão da expansão, vd. BARRETO, L. F., «Fundamentos
da cultura portuguesa da expansão» Philosophica 1 5 (2000) 89- 1 1 5 .
Introdução Geral 29
(J) Cf. MARYKS , R. A., Saint Cicero and the Jesuits. The Influence of the Liberal Arts on the
A doption of Moral Probabilism, Aldershot - Burlington 2008.
(Zl Cf. LOHR, Ch., «Renaissance Latin Aristotle Commentaries: Authors G-K» Renaissance Qua-
terly 30 ( 1 977), 697-98 ; apud MARTINS, A. M . , «The Conimbricenses» 1 04, n. 4.
<3l Cf. MARTINS, A. M., «The Conimbricenses» 1 05 .
<4l M P III 488-489; vd. MARTINS, A. M . , «Pedro d a Fonseca . . . » 1 65- 1 78 .
<5l M P I I I 4 8 9 : « Y a voy reveindo y concertando e ! primer libro, y afíadiendo breves scholios e n lo
demás dei texto, que no se lee, por no se imprimir la obra imperfecta. Y parece que me succede
bien e! negocio ( . . . ); aunque, hasta salir dei 7º libro, temê harto trabajo por hasta allí aver de as
sentar muchas cosas que dan mayor difficultad en todo e! curso . . . »
30 Introdução Geral
sito-geral. Nessa mesma assembleia é escolhido para Assistente, ficando, por isso,
retido nessa cidade, acompanhando o novo Padre Geral. Aí imprimirá (Roma 1 577)
o primeiro tomo do Comentário à Metafisica com dedicatória a el-Rei D. Sebastião !
Regressado a Lisboa em 1 5 82, para assumir o cargo de Superior da Casa de São
Roque, Fonseca vê o segundo volume do seu Comentário publicar-se em Roma, em
1 5 89. Nesse ínterim, Góis deve ter acabado o volume da Física, pois logo no «philo
sophiae studioso» do Comentário à Metafísica Fonseca reconhece a impossibilidade
em continuar no projecto do Curso. Depois, em 1 59 1 , ou seja, um ano antes da
publicação daquele que virá a ser o primeiro volume do Curso Jesuíta Conimbri
cense, e, portanto, quando o trabalho de Góis estaria bem avançado, Fonseca publica
a primeira edição da Isagoge Filosófica. Quatro notas merecem ser imediatamente
frisadas . A primeira, para observar que Pedro da Fonseca granjeará o seu nome na
plêiade dos filósofos ocidentais exactamente pela redacção da Metafísica, editada
em quatro volumes. A segunda, para lembrar que esta obra não integrará o chamado
curso dos Jesuítas conimbricenses� Uma terceira, para salientar que os trabalhos de
Fonseca sobre lógica, mormente as Instituições� foram sempre muito considerados
no seio da Companhia. Finalmente, para anotar o óbvio: começar um curso pela
Metafísica, pela Lógica ou pela Física é, em primeiro lugar, um indício possível de
distintas concepções pedagógicas e, em segundo lugar, filosóficas. Assim, v.g. , quer
Pedro Luis ( 1 592), quer Francisco de Gouveia ( 1 594), registaram algumas reticên
cias sobre algumas opiniões de Fonseca� Independentemente de uma boa explicação
que venha ainda a ser dada para este problema, é certo e seguro que, havendo,
embora, divergências de pedagogia e de concepção filosófica, a alta erudição do
Comentário de Fonseca e o ritmo dos trabalhos podem explicar toda esta complexa
situação.
Terminado em 1 597, o terceiro volume do Comentário à Metafísica de Pedro da
Fonseca será estampado postumamente em 1 604, com dedicatória ao bispo-conde D.
Afonso de Castelo Branco? Corria então, em paralelo, como se vê, a redacção dos
volumes acima enumerados, que integrarão o curso. Um incompleto quarto volume
da Metafísica de Fonseca sairá em Lião poucos anos depois ( 1 6 1 2) ?
(1) Cf. MARTINS, D., «Essência do saber filosófico, segundo Pedro da Fonseca» Revista Portu
guesa de Filosofia 9 ( 1 953) 405 .
(Z) Permanece disseminado o erro de atribuir a autoria do Curso a Fonseca, vd. e.g., GRACIA, J.,
«Suárez (and !ater scholasticism)» in MARENBON, J . (ed.), Routledge History of Philosophy.
Vol . III, London New York 1 998, 455 .
C 3l Cf. P. da Fonseca. Instituições . . . 1 0 sg. ainda sobre a redacção do Curso.
C4l Cf. GOMES, J. F., «Introdução» LIX n. 4 (« . . . la Isagoge dei P. Pero da Fonseca . . . tiene este
inconveniente que e! texto ha de ser indifferente en questiones ventiladas y hazerlas in utraque
parte y e! es parcial en algunas opiniones . . . ») e XLIX n. l («Porque e! P.e Fonseca tiene muchas
opiniones contra la comum . . . »), respectivamente.
(S) Em carta de 3 1 de Agosto de 1 596, o próprio Pedro da Fonseca regista a esperança de acabar o
terceiro volume «dentro de cinco ou seis meses» (cf. Pedro da Fonseca. Instituições . . . L-LI
nota).
C 6l Cf. MARTINS, A., «A Metafísica . . . » 5 1 5-34.
Introdução Geral 31
aos professores lusitanos, queixar-se-á de ser vítima de plágio com visível deficiên
cia no resultado final, i. e. , nas suas próprias palavras, tirando-lhe das glosas manus
critas, cortando umas coisas e intercalando outras, alterando a ordem das matérias de
forma menos coerente �
É certo que Manuel de Góis trabalhou rapidamente. O que Fonseca não lograra
concretizar em virtude de uma exigência e de um rigor iniludíveis, Góis concluiu em
apenas dois ou três anos os oito livros da Física, os quatro do Céu e em Outubro de
1 5 85 trabalhava no tratado de A Geração. O primeiro volume, começado a imprimir
talvez em Abril de 1 59 1 , só sai dos prelos de madeira da oficina de António de
Mariz em 28 de Março de 1 592. A referência que nos informa que desde 1 5 de
Janeiro se começava a explicar esse volume, ainda incompleto, nas aulas do Colégio
das Artes e logo depois em É vora, Porto e Braga� permite-nos pensar que os sete
anos que vão do «acabamento» de 1 584 até à entrega da obra ao prelo permitiam
«revisões» do texto. Mas este é um problema que ainda nem sequer se começou a
investigar. Seja como for, em 1 592, após ter sublinhado que a Universidade de
Alcalá pretendia recorrer aos seus textos, Góis escrevia que os vários volumes
podiam ir sendo impressos ininterruptamente (continuate), lamentando-se da lenti
dão do processo � O desejo de ver publicados os volumes à medida da sua composi
ção não encontrou eco no Geral Cláudio Aquaviva�
Para que o Curso ficasse completo, faltava publicar os comentários ao Organon e
à Metafísica. Como dissemos, aquele encontrar-se-ia adiantado ainda antes de
Manuel de Góis se entregar à redacção, mas não sabemos explicar por que razão a
sua publicação não se concretizou. Também, ao que parece, ainda em 1 592 Pedro da
Fonseca chegou a principiar um compêndio da sua Metafísica para o adicionar ao
Curso? Dá conta desse intento Francisco de Gouveia em carta de Dezembro de 1594,
reproduzida pelo editor português das Instituições Dialécticas� Seja como for, em
1 606 falar-se-á no nome de Sebastião do Couto para levar a cabo a tarefa que toda a
Companhia reclamava, a conclusão do Curso, precisamente. Por seu lado, Manuel
de Góis havia prevenido da sua intenção de escrever um tal volume, mas a sua morte
O > Cf. RODRIGUES, F., História . . II/2, 1 1 5 ; LAVAJO, J. C., «Molina e a Universidade de
.
ocorre em 1 597. De facto, não somente ele aludiu pelo menos por três vezes a essa
intenção, v.g. , nos volumes da Física, nos da Ética e nos de A Alma, como ainda em
1 594 (isso mesmo se lê na carta antes referida de Francisco de Gouveia) Góis se
debatia sobre esse assunto: «el P.e Goes - escreve Gouveia - dessea saber la deter
minacion de V.P. pera cessar de su intento y disponer las cosas de outra manera, no
haziendo mencion de Metaphysica» � Quis o destino que Sebastião do Couto não
compusesse esse comentário à Metaphysica, não obstante algumas vezes o prome
ter? Em contrapartida, um estranho acaso fê-lo redigir o comentário à Lógica. Com
efeito, em 1 604 havia sido publicado em Veneza - e talvez não em Francoforte,
como refere Couto 3 - um título «in universam dialecticam Aristotelis Stagiritae» sob
a designação plagiadora de Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia
de Jesu� A reacção a este pseudo-epígrafo, atribuído a Gaspar Coelho ( 1 552- 1 593)�
deve estar na explicação de Sebastião do Couto se ter definitivamente entregado à
composição efectiva do volume autêntico de Coimbra, que sai em 1 606, mas dado
ao prelo no ano anterior. A Sebastião do Couto é também encomendada a tarefa,
jamais concluída, de «reformar» ou rever todo o Curso. A opinião de que a obra de
Manuel de Góis devia ser revista aparece já em 1 592, no mesmo ano em que o
volume da Physica sai do prelo e em que Fonseca faz tenção de principiar o seu
comentário à Metaphysica destinado ao Curso. Em 1 602 e 1 603 certas províncias
manifestam alguma insatisfação (non possono a pieno sodisfare) com o curso� Em
1 6 1 2, há ainda notícias de que Sebastião do Couto tem uma tal tarefa entre mãos e
em 1 6 1 9 incita-o o censor Bento de Gouveia a retomar o trabalho. Sebastião do
Couto morrerá em 1 639, não sem antes se envolver com Cristóvão Borri numa
polémica sobre o estatuto científico das matemáticas (que aquele recusava)7 e, como
explicámos, jamais concluiu a incumbência superior.
Estes são os principais acontecimentos enunciados aqui em toda a sua secura, mas
facilmente se percebe que, apesar das suas fragilidades, o projecto filosófico-peda
gógico concretizado principalmente na cidade do Mondego tenha ultrapassado rapi
damente as fronteiras. Este facto deve ser explicado no contexto europeu do Huma
nismo e das Reformas (Protestante e Católica), em cujo berço o projecto da Compa
nhia de Jesus se inseriu com indiscutível sucesso !
Comecemos pelo Humanismo, que se expande definitivamente em Coimbra com
a última transferência da Universidade para a cidade do Mondego ( 1 537) e com a
fundação do Colégio Real das Artes ( 1 548) ? Escola cosmopolita, aquela, fundado,
este, como preparatório das outras Faculdades (porém, o Colégio das Artes acabará
por absorver a Faculdade das Artes), sobressairá a escolha de André de Gouveia, por
D. João III, como «principal» do Colégio (ele exercera idêntico cargo no «College
de Guyenne» de Bordéus). Na versão da crónica do jesuíta João Afonso Polanco -
numa obra sobre Jesuítas é justificavel tomarmos a narração coeva de um deles por
guia - D. João III determinara que se seguissem os cursos de filosofia e de humani
dades more parisiensi, para o que chamou da França distintos especialistas (viras
valde doctos), destinados a dez classes de latim e quatro de filosofia� Entre os novos
mestres convidados (franceses, escoceses e portugueses), contavam-se, entre outros,
os nomes de: Diogo de Gouveia, Luís Á lvares Cabral, Nicolau Grouchy e do «Dou
tor Bordallo, Interprete da moral Philosophia» (nas Artes) ; João da Costa (Leis) e do
Doutor Rozetto (Hebraico); e, no Grego, Mestre Fabrício, Jorge Buchanan, Diogo de
Teive, Arnaldo Fabrício, Guilherme Guerente, Elias Vinet, António Mendes, etc1
Entre 1 552 e 1 565, propunha-se seguimento dos planos de estudos abaixo, para os
quatro anos da Filosofia5 :
(I) COXITO, A. A., «A Filosofia no Colégio das Artes» in História da Universidade em Portugal.
l Volume, tomo II (1537- 1 771 ), Coimbra 1 997, 735 ; ID. , «A restauração da Escolástica. II: O
Curso Conimbricense» in História do Pensamento Filosófico Português. Vol. 2, direcção de
CALAFATE, P., Lisboa 200 1 , 503-543 ; CHACON, V., O Humanismo ibérico . . . 1 94.
<2l RAMALHO, A. da C., «0 Humanismo ... » 695 . Vd. sobretudo B RAND Ã O, M. &
D' ALMEIDA, M. L., A Universidade de Coimbra, Coimbra 1 937; LEITE, S . , Estatutos da
Universidade de Coimbra (1559), Coimbra 1 963; B RAND Ã O, M . , O Colégio das Artes II,
Coimbra 1 933, 3-74; RODRIGUES, História ... 112 336-373; MP I 637-643.
<3l MP I 599.
<4l Cf. VASCONCELOS, A. de, Faculdades de Letras, Coimbra 1 9 1 2, 24; PINHO, S . T. de, «Les
Études de Grec à l' Université de Coimbra (XVIe siecle)», Separata de L 'Humanisme Portugais
et l 'Europe. Actes du XXle Colloque lnternational d 'Etudes Humanistes: Tours, 3-13 juillet
1978, Paris 1 984, 87- 1 09, reproduzido em ID., Humanismo em Portugal. Estudos II, Lisboa
2006, 297-322.
<5l Cf. STEGM ÜLLER, F., Filosofia e Teologia . . . 85-86; CARVALHO, R. de, História do Ensino
em Portugal. .. 26 1 -63.
Introdução Geral 35
Este curriculum será substituído em 1 565, dez anos volvidos sobre a posse do
Colégio pelos Jesuítas, por um programa mais genericamente formulado e, por isso,
mais exequível, quer dizer, menos constrangedor. Importa sublinhar imediatamente
que o plano indicado a seguir não coincide com o que a Ratio irá estabelecer a partir
de 1 5 86, como mais adiante se verá. Eis então o segundo plano curricular, certa
mente mais modesto:
1 º ano: Dialéctica.
2° ano: Lógica, Física e Ética.
3º ano: Metafísica, Pequenos Natu rais.
4º ano (um semestre): A Alma.
( 1 ) GOMES, P., Os Conimbricenses 20; vd. sobretudo BRAND ÃO, M., A Inquisição e os professores
do Colégio das Anes, 2 vols., Coimbra 1 948- 1 969; ALDEN, D., The Making of an Enterprise. The
Society of Jesus in Ponugal, lts Empire, and Beyond, 1 540- 1 750, Stanford 1 996, 670-73 .
36 Introdução Geral
conservadores, assim como com os Jesuítas, D. João III mostrava ter um espírito
muito mais aberto do que qualquer outro governante da sua época, mas foi exacta
mente essa faceta da sua reforma que não lhe sobreviveu por muito tempo.» 1 Aque
las lutas tiveram como inevitável desfecho a cessão do Colégio das Artes aos Jesuí
tas e a autora que citámos sugere que essa cedência pode ser vista como uma solução
intermédia entre os desentendimentos de liberais e conservadores?
Nas Artes, ensinavam-se não apenas matérias de natureza filológico-literária
(Gramática, Retórica e Dialéctica), mas também a Aritmética, a Astronomia, a
Música e a Geometria. Mesmo após a saída dos professores estrangeiros, humanistas
portugueses como André de Resende, Inácio de Morais, Jerónimo Osório ou Antó
nio Luís, não terão deixado decair o cultivo das Humanidades gregas e latinas no
Colégio, não obstante a ameaça permanente da censura inquisidora? É seguro que
após a entrega do Colégio das Artes aos Jesuítas - o que acontece, repetimos, em
1 555 um tal cultivo não esmorece, apesar dos conflitos em torno sobretudo de
-
2
< 1 l HIRSCH, E. F., Damião de Góis, trad., Lisboa 2002, 1 94.
<2l HIRSCH, E. F., Damião ... 2 1 1 .
<3l RAMALHO, A . da C., «0 Humanismo . . . » 700-70 1 .
<4l SARAIVA, A . J., História da Cultura . . . 2 1 9; B RAGA, T., Historia da Universidade de Coim-
bra, Lisboa 1 892, I: 529, mas deverá ver-se, RODRIGUES, F., Historia . . . I/2 337 n. 1 ; vd. ainda
FRANCO, J. E., «Génese, evolução e carácter do antijesuítismo em Portugal: uma perspectiva
evolutiva» in ABREU, L. M. e MIRANDA, A. J. R. (coord.), Anticlericalismo Português: His
tória e Discurso. Actas do Colóquio, Aveiro 2002, 7 1 -93.
<5l MP I 600. Do interesse político, por parte do Rei, na educação dos jovens nobres, «para después
se servir dellos» dá conta para Roma, em 30 de Junho de 1 573, o provincial Jorge Serrão, vd.
MP IV 489. GOMES, J. P., «Os Professores de Filosofia do Colégio das Artes» Revista Portu
guesa de Filosofia 1 1/2 ( 1 955) 522 indica o quadro dos quatro lentes que iniciaram o ensino
(em 15 de Outubro de 1 555): Jorge Serrão, para o lº curso; Maximiliano Capela, para o 2°;
Pedro da Fonseca, para o 3º; e Inácio Martins para o 4°; escrevendo no entanto: «Estes os que,
efectivamente, deram começo às aulas. Todavia, só Pedro da Fonseca e Inácio Martins as leva
ram por diante. Os outros dois brevemente se viram substituídos. A sua passagem pelas Cáte
dras do Colégio das Artes, além de efémera, foi de todo irrelevante.» Sobre Inácio Martins, vd.
DÍEZ-ALEGRÍA, J. Mª, «El conimbricense Ignacio Martins S. 1. y el concepto de Ley en la
Universidad de Evora» Revista Portuguesa de Filosofia 1 1 /2 ( 1 955) 546-53.
(ó) Cf. SPRINGHETTI, E., Storia e fortuna della Gramatica di Emmanuele Alvares S . L» Humani
tas 1 3 - 1 4 ( 1 962) 282-303 . MP VII 55 1 -552 reproduz uma carta de 1 58 1 , de Fernando Pires
(+ 1 595), em que este, dada a sua inteligência em coisas de gramática, era destacado para
coadjuvar Manuel Alvares no aperfeiçoamento da Arte deste. Esta obra foi depois interpretada
por António Velez (+ 1 609), Emmanuelis Á lvares e Societate Iesu de institutione grammatica
libri tres, Antonii Vellesii ex eadem Societate in eborensi academia praefecti studiorum opera
aucti et illustrati, Eborae 1 599 (vd. MP VII 372).
Introdução Geral 37
( I ) Cf. Cypriano Soarez, De Arte Rhetorica libri Tres ex Aristotele, Cicerone et Quintiliano praeci
pue deprompti, Conimbricae: Apud Ioannem Barrerium 1 562, Auctoris Prooemium (s. foi.): «Et
in primo quidem libro, qui de inventione est, sedecim argumentorum loci sunt explicati simul
cum his, quae ad permovendos animos ex eisdem locis eruuntur. Praecepta etiam quaedam sunt
exposita ad exornationem et deliberationem accomodata. ln secundo vero, quid dispositionis
praecepta continet, de orationibus partibus, de statu, iudicatione, et ea controversia, quae ex in
terpretatione scripti existit; praeterea de ratiocinatione, enthymemate, inductione et exemplo
agitur. Et quoniam frequens mentio facta est ab antiquis autoribus Epichematis, Soritis, et Di
lemmatis, eorum vis explanatur. Tertius denique liber docet orationis ornatum, qui est in verbis
vel simplicibus, vel coniunctis. Itaque de verbis novis, de inusitatis, de tropis, de luminibus ver
borum et sententiarum, de origine, causa, natura et usu orationis aptae, ac numerosae, tum ad
extremum de memoria et pronunciatione in eo differentur.»
(Z) COXITO, A. A., «A Filosofia.» 737. Cf. B RANDÃ O, M., Estudos Vários. Volume I, Coimbra
1 972, 1 35 .
<3) Cf. MP I 473 ; vd. Também M P II 1 2- 1 5 , 90-92 e MP V I I 634-64 1 para u m exaustivo catálogo,
embora da Província alemã ( 1 604- 1 608). Vd. sobretudo PINHO, S. T., «Literatura humanística
inédita do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra no Século XVI» in Universidade(s),
História, Memória, Perspectivas. Actas do Congresso 'História da Universidade ' (No 7° Cente
nário da Sua Fundação), Coimbra 1 99 1 , 4, 67-86, reproduzido em ID, Humanismo . . . 323-343 .
(4) MP I 644-645 ; MP III 56-59: «Instructiones datae Conimbricae de studiis humanitatis et rhetori
ces anno 1 5 6 1 ».
38 Introdução Geral
Cícero, na versão grega de Theodoro Gaza; mais alguns títulos de Cícero (Pro
A rchia poeta, Partitiones, De inventione, etc) com Ovídio, Terêncio, Catão e a Ars
gramatica de António de Nebrija. Uma ainda melhor ilustração deste panorama ser
-nos-ia dada, decerto, pelo professor de Humanidades de Coimbra, Pedro de Perpi
nhão (tl 566), que entrou na Companhia ( 1 55 1 ) na mesma cidade ! A sua planifica
ção para três classes é assaz notável pela quase impossível vastidão. Na primeira
classe, incluía os seguintes autores para o aperfeiçoamento da língua: Cícero, César,
Salústio, Terêncio, Plauto, Lívio, Quinto Cúrsio; e ainda, não para imitar - dizia -,
mas pelo seu saber especializado: Catão, Varrão, Columella, Palladio para a «re
rustica» ; Celso para assuntos médicos; Vitrúvio para a arquitectura; Vegécio «de re
militari»; e Plínio para a história natural. Seguem-se os poetas: Virgílio, Horácio,
Catulo, Tibulo, Propércio, Lucrécio, os cómicos Terêncio e Plauto, com reservas?
Na segunda classe, que visa a eloquência, contam-se os seguintes títulos: de Cícero
(De inventione, De oratore, Brutus, Oratore ad Brutum, Topicis ad Trebatium, Par
titionibus oratoriis, De optimo genere oratorum) ; de Comifício (ad Herennium) ; de
Aristóteles (Retórica) ; de Quintiliano (sobre o Górgias de Platão); e o compêndio de
Cipriano Soares (De arte rhetorica libri tres). Finalmente, na terceira classe, com
vista à retórica: as Observationes (B asileia 1 548) de Nizolio; o Thesaurus Ciceronis
(Paris 1 556) de Carolus Estienne; as Sententiae Ciceronis de Valério Máximo; os
Exempla de Sabélico (t l 506) ; as Sententiae et exempla (Lyon 1 557) de André de
Évora; a Polyanthea (Savona 1 503) de Nano Mirabellio; uma Summa virtutum et
vitiorum; a Officina (Paris 1 532) de Ravísio Textor; Lactâncio (séc. III) e Nicolau
Winman (séc. XVI), entre outros. Decerto mais modesto e exequível seria o projecto
de Cipriano Soares que em Évora compõe ( 1 566) o seguinte programa de estudos
latinos: uma selecta de Cícero no sétimo ano (septimo gymnasio) ; os livros mais
fáceis das Epistolis familiaribus no sexto; no quinto, a continuação desta última obra
com o De tristibus de Ovídio; no quarto, os títulos seguintes: De senectute, Para
doxa, também de Cícero, De ponto e Metamorphoses de Ovídio, as Eclogae de Vir-
( 1 ) Cf. MP II 640-643 , para uma sua lista romana de 1 565 . Sobre o prestígio intelectual de que o
autor gozava em Coimbra, vd. a carta de Manuel Á lvares enviada ao Geral em 3 1 de Julho de
1 564, in MP III 357-35 8. Cf. FUMAROLI, M . , L 'Age de l 'eloquence . . sobre Pedro de Perpi
.
nhão 397-8.
(Z) Como se sabe, Terêncio, juntamente com Erasmo ou Luís Vives, não eram bem quistos (o
mesmo se diga de Ovídio, cf. MP I 557-58); no entanto, o primeiro era lido em Coimbra ainda
em 1 555 (cf. MP I 439, n. 3), e, quanto aos outros, mormente Erasmo, Polanco permite dar à
estampa o De octo partium orationis constructione, «sanza nominar Erasmo» (ibid. 439; vd.
também MP III 258 e 260) . Inácio de Loyola queimou os livros de Savonarola ( 1 553), expli
cando-se (MP I 553): « .. .la causa de proibir suoi libri non e perché non siano buoni alcuni, como
Il triunpho delta croce et altri, ma perché l ' authore e esposto a controversia: chi lo tiene santo,
chi lo tiene meritamente brusatto; et questa e piu commune opinione. Et cosi la Compagnia, es
sendossi tanti libri d' authore buoni senza controversia, non vuole si !engano nelle mani auctor
controverso . . . » Sobre a prática, também já referida, do expurgamento, vd. FABRE, P.-A., «Dé
pouilles d' Egypte. L' expurgation des auteurs latins dans les colleges jésuites» in GIARD, L.
(ed.), Les jésuites . . . 55-76; vd. ainda DOMINGUES, A . de J., Os clássicos latinos nas Antolo
gias escolares dos jesuítas nos primeiros ciclos de estudos pós-elementares no século XVI em
Portugal. Dissertação de doutoramento em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade do Porto (pro manuscripto), Porto 2002.
Introdução Geral 39
(Z) ELLIOT, J. H . , Europa en la Época de Felipe II ( 1 559- 1598), trad. , Barcelona 200 1 , 28.
C 3l ELLIOT, J . H . , Europa . . . 372-3.
C4l ELLIOT, J . H., Europa . . . 44.
C 5l Sobre a expressão «reforma católica», cunhada ao que parece em 1 880, e discutida eruditamente
por JEDIN, H. (Katholische Reformation oder Gegenreformation ? Ein Versuch zur Kliirung der
Begriffe nebst einer Jubiliiumsbetrachtung über das trienter Konzil, Lucerna 1 946), vd.
O' MALLEY, J. W., «The Historiography of the Society of Jesus: Where Does It Stand Today?»
in ID. (ed.), The Jesuits . . . 1 8-24.
C 6l ELLIOT, J. H., Europa . . . 1 50.
C 7l ELLIOT, J . H., Europa ... 1 56.
c sJ ELLIOT, J. H, Europa . . . 375.
40 Introdução Geral
que diz respeito à tarefa genérica de restituir Aristóteles para servir a uma nova
atmosfera cultural e religiosa �
Sem sobreavaliarmos o dado de que em 1 5 6 1 e 1 562 o número de alunos no
Colégio de Jesus de Coimbra, nas suas várias classes, era cerca de mil e duzentos e
de mil quatrocentos e quarenta, respectivamente� um paralelo significativo do
apreço pela nova educação, decerto consubstanciado pelo prestígio do saber do seu
detentor, é o respeitante à afluência às aulas na Universidade, dadas pelo jesuíta
Francisco Suárez entre 1 597 e 1 6 1 5 (quase 20 anos, embora de maneira intermi
tente) . Sabe-se, de facto, que o filósofo e teólogo espanhol chegara a ser tido por
inovador logo em 1 579, o que ele explica pelo seu método radical de ensino (modo
de leer que yo tengo, que es diferente de lo que los más usan), i. e. , seguindo menos a
tradição interpretativa do que uma profunda investigação das fontes (mirallas
hondamente/mirar las cosas más de rayz)? A actualização da sua biblioteca lusitana,
constituída para oferecer à Universidade, testemunha um acervo de cerca de 650
volumes catalogados em 'Bíblias ' , 'Santos e Padres Latinos ' , 'Santos e Padres Gre
gos ' , 'Escolásticos ' , 'Juristas ' , 'Sumistas ' , 'Controversistas e Vários ' , 'Filósofos ' ,
'Modernos sobre a Escritura' , 'Vários' , ' Livros em Vulgar' , e Autores d a Compa
nhia (divididos por seu lado em 'Escolásticos ' , ' Expositores da Escritura' e 'Contro
versistas ' )1 Aliás, ainda durante a docência de Suárez, Pedro de Mariz foi manda
tado pelo Reitor e pelo Conselho Universitário para fazer casa para a livraria e
adquirir em Veneza e noutras partes livros no valor de 500.000 reis? A ida ao mer
cado livreiro de Veneza repetia o desiderato de Fonseca. A isto, evidentemente,
haveria que acrescer o facto de a biblioteca pública do Colégio das Artes ter um rico
acervo, nomeadamente com a preocupação de dispor de duplicados para facilitar a
consulta 'domiciliária' � Em todo o caso, não deixam de ser curiosas algumas ausên
cias entre 1 603 e 1 608 (isto se partirmos do princípio de que a lista dos livros com
prados por Suárez indica inexistências monográficas em Coimbra, o que grosso
modo nos parece improvável). Citemos, respeitando a lista do jesuíta espanhol,
alguns dos autores então adquiridos. Comecemos pelos latinos: Agostinho, Jeró
nimo, Ambrósio, Gregório, Hilário, Anselmo, Bernardo, Leão Magno, Própero e
Fulgêncio, Isidoro, Beda e Tertuliano, Inocêncio III, Tomás de Kempis, Cassiano,
Ricardo de São Victor, Tauler e Boaventura. De entre os Gregos: Atanásio, Gregório
de Nazianzeno, Basílio, Crisóstomo, Ireneu, Justino, Gregório de Nissa, Damasceno,
Clemente de Alexandria, Eusébio, Orígenes. Eis agora alguns dos chamados «esco
lásticos», onde abundam, como não podia deixar de ser, os comentários às Senten
ças: obras de São Tomás, Alberto Magno, Duns Escoto, Ricardo, Marsílio, Gabriel
( 1 ) Cf. KESSLER, E., «The Intellective Sou!» in The Cambridge History of Renaissance Philoso
phy. . 5 1 8.
.
67, 55-66.
<5> BRAND Ã O, M., Estudos . . . 98.
<6> BRAND Ã O, M., Estudos . . . 95.
Introdução Geral 41
<5> MP 1 397: «ln Portogallo similmente il Re fece un collegio in Coymbra, dove sono piu di 100 della
Compagnia, cioe di scholari ( ... ); et si fa molto grande frutto, si nel detto regno di Portogallo, si etiam
nelli luoghi di Africa et Ethiopia, et l'India dei Brasil, et altre terre che sono sotto il Re di Portogallo,
convertendosi molti migliara de anime ... » Vd. ALDEN, D., The Making of an Enterprise... passim;
também MAURÍCIO, D., «Inácio de Loiola e Portugal» Brotéria 63 ( 1 956) 459-475.
42 Introdução Geral
e que existe como forma do corpo humano, verdadeiro e imortal, e que se multiplica
pelos corpos, que infunde, multiplicável e multiplicada singularmente por todos.» �
É preciso, contudo, atentar em que, no preciso momento da composição do Curso,
os programas de estudos não se encontram ainda absolutamente assentados. Uma
rápida inspecção aos Monumenta Paedagogica Societatis /esu revelou-nos que os
programas de Psicologia (chamemos-lhes assim) estipulavam uma relativa liber
dade� Na introdução geral ao volume quinto dos imprescindíveis Monumenta
Paedagogica, Ladislaus Lukács compreende o período de 1 557- 1 5 80 sob o prisma
das «vicissitudes escolares» em virtude de dois princípios então em confronto, o da
ortodoxia doutrinal e o da liberdade de ensino � De facto, no ano de 1 579, em Lisboa,
o visitador Miguel de Sousa (t1 5 82) dá disso conta, opinando não se dever conceder
liberdade aos mestres em artes para ditat.I Aquele período deve, porém, estender
-se. Assim o atestam também as três versões da magna charta daqueles planos, a
Ratio Studiorum ( 1 586, 1 59 1 , 1 599) � na sequência também de várias questões em
( 1 ) ln Ili De Anima II, q.7, a.2, p.82 (cf. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis lesu, ln
tres libras de Anima Aristotelis Stagiritae, Coimbra 1 598, para cujas páginas remeteremos sem
pre). De notar que este foi o único erro doutrinal condenado no V Concílio de Latrão, cf.
WRIGHT, A. D., The Counter-Reformation . . . 94.
<2> A este propósito reproduzem-se aqui as indicações de Jacob Ledesma, para o curso de Roma
1 564, «De interpretibus Aristotelis» (MP II 499) e «ln docendi modo aut loquendi» (ibid. 502),
respectivamente: « 1 . D. Thomam et eius doctrinam laudare, vel saltem non reprehendere, vel
certe non ita ut scholastici ab eo alienentur aut ab eius doctrina; sed modeste, si quando ab eius
sententia discendendum videatur, id facere. 2. Item, doctores alios theologos scholasticos, aut
eorum doctrinam non irridere aut in contemptum adducere; multo autem minus theologiam
scholasticam in genere. 3. Nec etiam latinos interpretes Aristotelis, aut eorum doctrinam irridere
aut in contemptum adducere. Nec etiam in genere disputationes instituere latinorum contra grae
cos, et graecorum contra latinos; sed propriis nominibus tantum utriunque citatis authoribus. 4.
Item, non laudare nimium Averroin, sed neque laudare quidem, aut alios quosvis impios Aris
totelis interpretes. Sed, qui magnis laudibus sint efferendi, sint catholici, ut Albertus Magnus, D.
Thomas vel alius similis ex catholicis; vituperare vero Averroin licebit, si quis volet. .» E: « 1 .
Non laudare nimis Averroin, sed neque laudare quidem. 2 . Non vituperare D . Thomam aut eius
doctrinam, aut scholasticos doctores, vel in contemptum adducere; sed potius laudare et magnis
laudibus efferre, et auditores ac discipulos ad eorum doctrinam potius allicere. 3 . Non laudare
graecos in genere et vituperare latinos. Neque instituere disputationem contra latinos in genere,
sub hoc nomine latinorum. 4. Non opinari nimis audacter, sed putare se posse falli et cum
humilitate iudicare et loqui .. »
<3> Cf. MP V 6 *-9*.
<4> MP IV 780.
<5> Vd. as redacções in MP V; cf. MP II 47* onde se atribui ao Padre Nadai a responsabilidade pela
iniciativa da Ratio, já a partir de 1 548; ibid. II 1 8 1 -287 para 'redacções ' (Regulae Scholastica
rum Societatis) datadas de 1 565- 1 572. A Província Lusitana designou, para se pronunciarem
sobre a Ratio ( 1 586), os PP. Pedro da Fonseca, Jorge Serrão (+ 1 590), Pedro Paulo Ferrer (+
1 6 1 5) , Á lvaro Lobo (+ 1 608), Manuel de Góis e o espanhol Luis de Molina (cf. MP VI 4*). Cf.
também GIARD, L., «Le devoir d'intelligence, ou l ' insertion des jésuites dans !e monde du sa
voir» in ID., Les jésuites. . . XXXIII n. 28; JULIA, D., «Généalogie de la 'Ratio studiorum'» in
GIARD, L. & VAUCELLES, L. de (ed.), Les jésuites à l 'âge baroque, 1 540- 1 640, Grenoble
1 996, 1 1 5- 1 30; PADBERG, J. W., «Development of the 'Ratio Studiorum'» in DUMINUCO,
V. J. (ed.), The Jesuit 'Ratio Studiorum ' . . . 8 1 -99.
44 Introdução Geral
tomo da unidade doutrinal (vg. as pronúncias dos PP. Ledesma e Gagliardi contra o
eventual averroísmo de Pereira) 1 ou das instruções dadas por Nadai ( 1 583) no sen
tido de se seguir «a doutrina mais aprovada e segura» ? Ainda em 1 5 86, durante a
visita à Universidade de Évora, o Provincial Sebastião Morais (t 1 588) lamenta que
nas aulas de filosofia se dê mais atenção às questões - despropositadamente, aliás,
porque se chega a abordar algumas de âmbito teológico - em prejuízo da explicação
do texto de Aristóteles e informa da lentidão do ensino dos teólogos por estes quere
rem «hazer sus glosas, como para imprimir» ? Isto quer dizer que estamos perante
uma empresa colectiva, um itinerarium, o qual, no campo da filosofia, será absolu
tamente experimental, aqui e ali titubeante, inconcluso, não obstante a obrigação de
se seguir «a doutrina escolástica de São Tomás» em teologia e «a doutrina de Aris
tóteles» no ciclo das artes� Quais são, no entanto, os autores presentes na primeira
versão oficial da Ratio? A lista não podia ser mais diversificada5 : os Padres João
Cassiano (t435), Agostinho (t430), Fausto de Riez (t499), Boécio (t524) ; os
monges Anselmo de Cantuária (t l l 09) e Ricardo de São Victor (t l l 73); os
augustinianos Egídio Romano (t 1 3 1 6), Gregório de Rimini (t 1 358) e Tomás de
Argentina (t 1 357); os franciscanos Boaventura (t 1 274), Ricardo de Mediavilla
(t 1 302), João Duns Escoto (t 1 308), Pedro de Aureole (t 1 322) e Guilherme de
Ockham (t 1 347); os dominicanos Alberto Magno (t 1 280), Herveu Natal (t 1 323),
Pedro Paludano (t 1 342), João Capréolo (t 1 432), Paulo Barbus Soncinas (t 1 495) e
Silvestre Francisco Ferrariense (t l 528); o teólogo secular Henrique de Gand
(t 1 293); Tomás de Vio ou Caetano (t 1 534) ; Durando de Saint-Pourçain (t 1 332),
Gabriel Biel (t 1 495) e Marsílio de lnghem (t 1 396).
Escrevendo em Coimbra a Cláudio Acquaviva, em 1 587, dará conta o espanhol
Ferdinando Pérez (t 1 596) das suas preocupações relativamente àqueles não «muy
acautelados en no apartarse de las opiniones más seguras y más recebidas». Ao
mesmo tempo, lamenta o excesso de confiança de mestres audaciosos, inovadores
ou marginais, i. e. , apostados «ad audacter asserenda, non dicam novam solum, sed
etiam quae minus sunt tuta et minus recepta.» 1 Muito antes (Julho de 1 566), embora
de Évora, mas referindo-se também a Coimbra, o mesmo Pérez transmitia ao P.
Francisco de Borja preocupação similar sobre um 'conflito de faculdades' (pare
ciéndoles que en dialéctica no tienen que ver con eso), antes de Kant, e que ao que
parece tocava o próprio São Tomás : « . . . en la lógica y philosophia son los maestros
notados de que seguimos opiniones nuevas fuera de lo que los doctores commun
mente siguen.» 2
Evidentemente, saber se e em que extensão estamos perante um Curso de Filoso
fia dogmático, fechado a qualquer novidade, conservador - por estar mais ligado aos
problemas especulativos que são importantes para a teologia e menos aos pormeno
res empíricos 3 -, impeditivo de criação, é coisa que ainda falta examinar contra as
opiniões que se vêm repetindo não se sabe bem de onde1 No que se segue, iremos
contribuir modestamente com alguns elementos para um dia se chegar a precisar
com a necessária acribia o horizonte da primeira incursão filosófica dos Jesuítas do
Colégio de Coimbra.
O l MP VII 605 .
(Zl MP III 396. O relato aliás prossegue: « . . . porque si solamente Ilegase a uno de los maestros
poner cinco predicables con Ia común, otro ocho y otro diez; aunque no parezca bien opiniones
tan estrafias y tanta variedad en lo que ensefiamos, mas, ai fin, es dentro de los límites de Ias ar
tes, adonde no ay de qué temerse peligro; mas, demás <lesto, estiéndense a opiniones contra
sancto Thomas y común de theólogos y a tener poca reverencia a Ias opiniones o autoridades de
los doctores sagrados; pareciéndoles que en dialéctica no tienen que ver con eso . . . » Cf. também
RODRIGUES, História . . . 11/2 95-96.
<3l LOHR, Ch. H., «Les jésuites et I' aristotélisme du XV!e siecle» 82.
<4l Cf. CALAFATE, P., «A Historiografia Filosófica Portuguesa perante o Seiscentism o» , in ID.,
Metamoifoses da Palavra. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisb oa 1 998,
1 29-29, para uma possível breve contextualização ou explicação, embora relati va ao período
imediatamente seguinte.
46 Introdução Geral
(!) Cf. MP V 95- 1 09 (versão de 1 586), 234-35 e 279-284 (versão de 1 5 9 1 com as 'Regulae
professoris philosophiae) e 397-402 (as mesmas 'Regulae' na versão de 1 599).
C 2l Cf. MP 1 143- 1 50.
<3l Na 'escola dos livros da metafísica' determinavam-se ainda três lições de matemática (Euclides,
Esfera, Cosmographia, De triangulis de João Müller Regiomontano, na primeira; a música e a
perspectiva, respectivamente com os manuais de Fabio Stapulensis e Witelo; na última, a astro
logia, teoria planetária com Ptolomeu, o Regiomontano, as tábuas do Rei Afonso de Castela e o
astrolábio); cf. MP 1 1 48- 1 49.
<4l MP 1 1 77- 1 78.
Introdução Geral 47
che e piU sustantiale» ; e após o tempo pascal até ao fim do ano, o De generatione e
os Parvi naturale pela manhã, e pela tarde o De coelo e os Metheora�
Visualizemos o curriculum proposto por Olave:
(!) MP I 1 77- 1 78 . A Província d a Alemanha Superior aconselhava ( 1 586) que algo d o ensino da
Política e dos Económicos alternasse com o da Ética (cf. MP VI 282). Sabemos da importância
da obra de Juan Mariana, mormente do seu De rege et regis institutione ( 1 599), para o trata
mento da temática política, cf. H Õ PFL, H., Jesuit Political Thought. The Society of Jesus and
the State, c. 1 540- 1630, Cambridge 2004, 1 8 1 , 239-48 . Mantivemos as grafias, apesar de assaz
variegadas.
<2l Cf. MP III 59-60.
<3l MP III 66-67 ; cf. para um enquadramento da questão, MARTINS, A. M., «Pedro da Fonseca e a
recepção da 'Metafísica' . . » 1 67-7 1 . Sabemos que entre 1 520 e 1 570, nas cátedras protestantes,
.
o estudo da Metafísica não havia sido muito cultivado, cf. FREEDMAN, J. S . , Philosophy and
the Arts in Central Europe, 1 500- 1 700. Teaching and Texts at Schools and Universities, Ash
gate 1 999, passim.
48 Introdução Geral
Logica Porphyrio todo, Predicamentos todos, De interpretatione todos los dos libras,
excepto el último capº dei 2º libra com summa.
Priores: los 7 capítulos dei primara, 8º 9º 1 O 1 1 con summa, el 12 letra con
glosa, 1 3 1 4 1 5 con summa breve, 1 6 hasta donde dize: 'hoc autem
monstrato', letra y glosa; de lo demás dei mismo capº summa breve hasta el
capº 2 1 , summas brevíssimas, y assí hasta el 29, y en este 29, summa
extensa sin letra, en lo que queda dei libra, ni summa ni letra. En el 2º libra
hasta el capº 1 8 exclusive, dexar lo de todo, dando una summa breve. Las 6
potestades de los syl logismos; el 1 8 se lea el principio, donde pane los modos
petitionis principii. Lo que se sigue, se dexe todo, sin summa; si no el 23 y 24
y 27 con summas.
Posteriores: 8 capítulos primeros con glosa y letra, y assí el 1 0 1 1 23 24 26;
en todos los demás se dé, en cada uno, summa; en el 2º libri, primara capº y
u ltimo con glosa y letra; los demás con summa.
De Tópicos los diez capítulos primaras con letra y glosa; en los demás
capítulos summa. EI 4º y 6° libra, con letra y sin glosa, colligiendo solamente
la máxima de cada l ugar. Lo de más se dexe todo, dando, en cada libra, un
argumento breve de cada uno.
E/enchas: los 4 capítulos, con letra y glosa; y el 5º, con summa sin letra; y el
último capítulo de los E/enchas, la letra solamente.
Physica EI primara de los Physicos, todo con letra y glosa. EI 2º libra, todo con letra y
glosa, excepto el quarto capº en que se dará summa. En el 3º libra, los 3
cap ítulos primeros con letra y glosa; y en los demás capítu los, hasta el fin, en
cada uno, una buena summa que ponga las razonas en forma, excepto el 7º
capítulo que se leerá con letra y glosa. EI 4º lib. , el 1 0º capº por summa, sin
letra; y de la misma manera el 6º y el 9º. Los demás capítulos, con letra y
glosa. EI 5º, todo con letra y glosa, excepto el último capº en que se dé
summa. Dei 6º l ibra, primara y 2º capítulos, con letra y glosa. En los demás
capítulos, summas buenas que declaren bien la sustancia de Aristóteles con
tratar las qüestiones ordinarias. EI 7º libra se leerá todo, con letra y glosa,
excepto el 4º capº, en que se dará summa. En el 8º, todo con letra y glosa,
excepto el 2º capº en que se dará una buena summa.
De coelo EI primara De coe/o en el capº 5º 6º y 7º, con summas sin letra; los demás con
letra y glosa. Dei 2º libra, los primaras 8º capítulos y el 1 O y 1 1 , con letra y
glosa. EI 9º y los demás, con summa. EI último capº, con letra y glosa. EI 3º
libra se dexe todo, dando un argumento breve dél. En el 4º libra se dexe el 2º
capº, con un breve argumento; los demás cap ítulos, con letra y glosas.
De anima Los De anima dei primara libra, se leerá el primara capº, con letra y glosa; lo
demás se dexará, dando u n argumento de todo. EI 2º y 3º libra, todo con letra
y glosa . .
Introdução Geral 49
Trata-se de uma lista apenas pessoal, pelo que na Ratio não se encontrarão todas
estas opiniões. Por exemplo, hão-de ler-se duas teses sobre a matéria-prima (aliás,
posteriormente omitidas na versão de 1 59 1 , o que também acontecerá com as teses
sobre a sucessão, a intensão das formas e a unicidade da alma humana) ; e sobre o
O l Cf. MP V 1 07.
C Zl MP II 254-258 .
C 3l Cf. M P I I 44 * ; vd. Todavia M P V 1 09 para o elogio d a matemática.
C4l Cf. o meu estudo já citado «Metamorfoses da ética . . . » e a «Introdução» que escrevemos para a
esparada reedição da tradução do volume da Ética.
c 5l WALLACE, W. A., Domingo de Soto and the Early Galileo. Essays on Intellectual History,
Aldershot 2004, V, 256; BALDINI, U. «The teaching of Mathematics in the Jesuit College of
Portugal from 1 640 to Pombal» in SARAIVA, L. e LEITÃ O, H. (ed.), The practice of Mathe
matics in Portugal, Coimbra 2004, 326, 340; vd. também WALLACE, W. A., «Late Sixteenth
-Century Portuguese Manuscripts Relating to Galileo' s Early Notebooks» Revista Portuguesa de
Filosofia 5 1 ( 1 995), rep. in ID. , Domingo de Soto . . . IV; ID., «Jesuit Influences on Galileo ' s Sci
ence» in O' MALLEY, J. W. et ai. (ed.), The Jesuits II: Cultures, Sciences, and the Arts 1540-
- 1 773, Toronto Buffalo London 2006, 3 1 4-5; LEITÃ O, H., «Entering Dangerous Ground: Jesuits
Teaching Astrology and Chiromancy in Lisbon» in O'MALLEY, J. W. (ed.), The Jesuits II. . . 377 ;
vd. também BALDINI, U., «La Cronologia come Scienza e la Compagnia di Gesu' : Secoli XVI
XVIII» in CAROLINO, L. M. e CAMENIETZKI, C. Z. (coord.), Jesuítas . . . 68 nota 14.
C 6l MP VI 294.
Introdução Geral 51
- numa componente não alheia àquele programa 1 , mesmo se, a acreditarmos num
-
Também Bento Pereira (t1 6 1 0) defende uma tríplice divisão, estudando respec
tivamente4 :
( 1 ) ln Gubernatio Colegii Romani ( 1 566) lia-se (MP II 1 79): «Mathematicus docet hoc ordine:
Euclydis sex libros, arithmeticam, spheram, cosmographiam, astrologiam, theoricas planetarum,
Alfonsi tabulas, etc, perspectivam de horologiis» Mais avançado fora o programa de Baltasar de
Torres (+ 1 56 1 ) para o Colégio Romano, nos anos 1 5 57-60 (vd. MP II 433-435), mas mesmo
este será superado pelo de Cristóvão Clávio (+ 1 6 1 2), nos anos 1 58 1 - 1 594 (vd. MP VII 1 09-
- 1 22); cf. FELDHA Y, R., «The Cultural Field of Jesuit Science» in O' MALLEY, J. W, The
Jesuits . . 1 07- 1 30. Vd. ainda Os Jesuítas e a Ciência (Sécs. XVI-XVIII). Assinalando o 4º Cente
.
nário de Giovanni Battista Riccioli, SJ ( 1 598- 1 671 ), Braga 1 998 (= Revista Portuguesa de Filo
sofia LIV). Como nota, refira-se apenas que Clávio seguia a álgebra de Pedro Nunes e chegou a
corresponder-se com Francisco Sanchez (vd. , respectivamente, KNOBLOCH, E. «L' oeuvre de
Clavius et ses sources scientifiques» e KESSLER, E., «Clavius entre Proclus et Descartes» in
GIARD, L. (ed.), Les jésuites . . 274 e 304).
.
Logica 'tutti gli libri': Priori (a partir de 1 , 7); Posteriori ( 1 , 1 2-20) ; Topica
(excepto 1 , 2 e 6); 'nelli elenchi potrà summariamente dech iara re
quello che Aristotele prol issamente tratta, senza fermarsi troppo in
dechiarare il testo'; não abordar a questão dos universais , tocar
nos predicamentos sem as questões metafísicas conexas, deixar
as questões textuais ao critério do mestre e abordar as dos
Posteriorum com base na obra de Solo.
Metaphysica 'Cominciar dai quarto libro , perché quello che tratta nelli
precedenti, é di poca util ità. Et se pur ci é qualche cosa utile, parte
si potrà toccare nelli prolegomeni, parte si potrà trattare i n altri
luoghi. Cominciando adunque dei quarto, si leggeranno quinto,
sesto, settimo, ottavo, nono, decimo et duodecimo'
O l MP II 665-666.
que só Averróis era autor proscrito. Outros autores proibidos, destafeita pelo Geral
Mercuriano em 1 575, além dos já mencionados, são os místicos João Tauler, Ruus
broek, o Rosetum do belga João Mombaer (t1 50 1 ), Henrique Herp, a A rte de servir
a Diós ( 1 5 2 1 ) do franciscano Afonso de Madrid, Raimundo Llull, Henrique Suso,
Gertrude e Matilde, entre outros !
Mas voltemos à situação lusitana de que nos afastámos por momentos. Escre
vendo para Roma em 1 573, o provincial Jorge Serrão lamenta que na Universidade
de Coimbra se leia pouco Tomás (de cinquo liciones de scholástico que ay en esta
universidad, solo una es de Santo Thomás) e que o lente de prima, que deveria ter a
obrigação de o fazer, prefere ensinar Escoto (no lee a Sancto Thomas, sino a Scoto)?
Em 1 574, o provincial Miguel Torres queixar-se-á do ritmo lento do ensino da teo
logia em Évora e em Coimbra, onde o que se devia ler em três anos e meio (as 3
partes da Suma) demora mais de cinco ou seis anos; de que, por fim, devido à meto
dologia dos exames, os alunos saem «buenos dialécticos, pero muy flacos en la
philosophia que es lo principal» ? Desta maneira se, por um lado, se critica a
Universidade por ensinar Escoto, por outro, lamenta-se a situação do ensino da filo
sofia (natural e metafísica) nos colégios Jesuítas . Em suma, uma rápida inspecção
das fontes permite-nos asseverar que se tratava de um período de germinação, e por
isso bastante distante das estafadas visões sobre o monolitismo de toda e qualquer
filosofia que se registe no curso. A prosaica realidade era bem diferente e até muitas
vezes, ao que parece, nem sempre avalizadora de uma adequada cartografia filosó
fica ! Acresce que a chã realidade nem sempre sintonizaria com os ideais e os pro
gramas superiores.
Igualmente, a fim de compreendermos as indicações autorais valeria a pena
abrirmos um parêntesis na exposição para apresentarmos as matérias do curso.
Podemos fazê-lo de uma maneira bastante objectiva, porém, lacunar, a partir dos
catálogos de Coimbra durante os anos lectivos 1 5 6 1 -65 , reproduzidos nos Monu
menta Paedagogica�
( 1 ) MP IV 577; vd. «Livro das obediências dos Gerais» O Instituto 43 ( 1 896) 67 1 -72 com a ed. da
carta em questão; para o caso da relação, v.g. , de F. Suárez com algum discurso místico, vd.
RODRIGUES, M. A., «A Espiritualidade na obra filosófico-teológica de Francisco Suárez», in
AA. VV., A Companhia de Jesus na Península Ibérica nos sécs. XVI e XVII. Espiritualidade e
Cultura. Actas do Colóquio Internacional - Maio 2004, Porto 2005, 4 1 7-3 1 .
(Z) M P IV 49 1 . Entretanto, uma simples consulta a STEGM ÜLLER, F . (Filosofia. . . passim) mostra
bem a importância da escola de Salamanca na «leitura» de Teologia, mormente de São Tomás,
em Coimbra; a este propósito, vd. também ORREGO S ÁNCHEZ, S . , «Nuevos datos y rectifica
ciones sobre fuentes manuscritas de la Escuela de Salamanca» Bulletin de Philosophie Médié
vale 48 (2006) 248-59.
<3l MP IV 5 39-54 1 .
<4l MP III 5 80-594. À excepção da Isagoge (referida como 'Introductio' ou 'Predicamentos'),
reproduzimos os títulos exactamente com a grafia com que aparecem nos Catálogos. Deixámos
para o Apêndice a lista coetânea de Évora, que menciona também os seguintes docentes: 1 º
Curso, Pedro Luís ( + 1 602): Isagoge; 3 º Curso, Melchior Afonso: D e coe/o; 4º Curso, Pedro
Martins (ingressou na SI c. 1 552): De anima.
54 Introdução Geral
1 561 1 562
1 ° Curso:
Praedicamentos
Inácio Tolosa
g
e 2• curso:
Q)
u
Physicos
o Nicolau Gracida
o
Ui
o 3° Curso:
� De coe/o
:::> Pedro Gómez
o
4° Curso:
Manuel Rodrigues
1 562 1 563
1 de
Janeiro Maio Agosto
Setembro
�
1 2 Curso:
Jsagoge lsagoge Praedicamenta
Luís Àlvares
g
e 2° Curso:
Q)
u
Perihermenias Posteriores J Physicorum
o I nácio Tolosa
o
Ui
o 3° C urso:
� Phisicorum Phisicos VIII Metaphisyca
:::> N icolau Gracida
o
4° Curso:
Metaphisica De generatione
Pedro Gómez
1 563 1 564
1 ° Curso: Perihermenias J
Praedicamenta Perihermenias
Luís de Molina Topicorum
g
e 2° Curso: Ethicorum /, li
g
o
Luís Álvares Physicorum Ili
Physicorum J Ethicorum
Ui
o 3° Curso:
� Metaphysices De coe/o Metaphysica
:::> I nácio Tolosa
o
4° Curso:
N icolau Gracida
Introdução Geral 55
1 564 1 565
12 Curso:
Jerónimo lsagoge
�2 Fernandes
e:
� 22 Curso:
o Posteriorum I
a Luís de Molina
(;;
o
� 32 Curso:
::::> Physicorum VIII
(.) Luís Álvares
42 Curso:
Inácio Tolosa m De anima l
1 º ano: Lógica
Contraste-se este plano com o que, v.g. , Tolosa ensinara de facto ( 1 5 6 1 -65) :
1 2 ano: ? ; ? ; Praedicamentos.
22 ano: Perihermeneias;
Posteriorum 1 ;
Physica.
32 ano: Metaphysica;
De Goelo;
Metaphysica.
4º ano: De Anima 1 .
De notar que, da Lógica, a Ratio prescreve as Categorias (com uma parte a tratar
na Metafísica), A Interpretação II, os Primeiros Analíticos (mas I 8 e 9 em resumo),
os Tópicos e os Elencos Sofísticos (sem texto). Dos oito livros da Física cujo estudo
se prescreve, tratam-se sob forma resumida os livros I (a sua secção doxográfica), o
VI e o VII e, relativamente ao VIII, omitem-se as questões concernentes ao número
das inteligências; a potência infinita e a liberdade do Primeiro Motor são deixadas
para o âmbito da Metafísica, dado tratar-se de matérias que convêm mais aos teólo
gos no quadro do estudo do concurso de Deus com as causas segundas. Também dão
forma abreviada aos livros II, III e IV de O Céu e o Mundo, embora, nos casos em
que tal seja possível, o livro possa ser objecto de ensino por parte do matemático,
juntamente com algumas questões dos Elementos. Admitem ainda a inclusão dos
Meteorológicos, se houver tempo disponível. Se estes últimos não forem estudados
de maneira ordinária nos segundo ou terceiro anos, dos títulos que se seguem
subestimam, mais uma vez, as secções doxográficas de A Geração e a Corrupção e
A Alma. Mais ainda. Deste último não recomendam grandes digressões sobre maté
ria sensorial, tomada sob o prisma da anatomia, temática mais apropriada a médicos.
No caso de haver tempo, acrescentam, podem agregar-se os Os Pequenos Naturais
Introdução Geral 57
<2l MP V 397: «Quoniam artes vel scientiae naturales ingenia disponunt ad theologiam, et ad
perfectam cognitionem et usum illius inserviunt, et per se ipsos ad eundem finem iuvant, eas,
qua diligentia par est, praeceptor, in omnibus sincere honorem et gloriam Dei quarendo, ita
tractet, ut auditores suos, ac potissimum nostros, ad theologiam praeparet, maximeque ad cog
nitionem excitet sui Creatoris»; cf. KANT; 1 . , K. rV. B 864, 865 ; A 836, 837.
58 Introdução Geral
ciências, misturam tudo e, indo além do que é permitido e justo, irrompem por
domínios alheios. Os retóricos ocupam indevidamente o lugar dos dialécticos e os
dialécticos o lugar dos físicos e até dos teólogos. E é assim que se perturbam a
ordem nobilíssima das artes e o seu ensino.» 1
(l) Cf. FORLIVESI, M., «lmpure Ontology. The Nature o f Metaphysics and Its Object i n Francisco
Suárez' s Texts» Quaestio. Annuario di storia della metafisica 5 (2005) 559-86, que discute as
mais recentes interpretações.
<3l ZIMMERMANN, A., Ontologie oder Metaphysik ? Die Diskussion den Gegenstand der Meta
2
physik im 13. und 14. Jahrhundert. Texte und Untersuchungen, Leuven 1 998, passim; BOUL
NOIS, O., Être et représentation. Une généalogie de la métaphysique moderne à l 'époque de
Duns Scot (Xllle - X!Ve siecle), Paris 1 999.
<4l Cf. BOULNOIS, O., Être et représentation . . . 486, 480.
Introdução Geral 59
Tal admissão tem sido vista como o prolongamento de um motivo capital do esco
tismo, se falarmos nos termos gadamerianos da produtividade histórica. Referimo
-nos ao facto de, ao retirar-se Deus de objecto puro e simples da metafísica, o ente -
enquanto conceito objectivo unívoco que toma o seu lugar -, subsume-O, ao lado da
criatura, ambos conteúdos pensados. Dito de uma maneira simples: para que a meta
física seja uma ciência - lembremos que este projecto só será abandonado pelo Kant
da Crítica da Razão Pura -, é preciso que ela inclua o seu obiectum principal, Deus,
no seu subiectum, o ente. Ora, semelhante subsunção colocará a teologia ao lado da
psicologia e da cosmologia, todas elas fundadas por uma metafísica «purificada da
facticidade e instalada no reino do possível» I Chegar-se-á, dessa maneira, a uma
concepção, moderna, do objecto do pensamento como puro representável, em que o
próprio ser se inclui e, por esse lance, também à constituição da teologia natural,
posto que Deus passa a estar incluído no conceito de ser, embora deste se distinga
por uma diferença adicional?
No caso de Sebastião do Couto, em particular, o problema que procurámos, na
medida do possível, simplificar está presente, v.g. , na divisão da «theologia»
enquanto «metaphysica» ou ciência do ente enquanto ente e enquanto teologia pro
priamente dita, ciência da explicação racional do revelado � A referida intersecção
vê-se desde logo no próprio nó aporético interior à decisão analogia/univocidade da
seguinte maneira: se Deus é uma parte do objecto da metafísica - como pretende a
doutrina da univocidade -, então o estudo do ser não representa o último estádio da
filosofia, mas um método de abstracção que habilita os alunos ao tratamento de
temas ainda mais abstractos da teologia natural1 Ora, à luz destas mesmas disposi
ções, isto parece implicar uma transferência epistémica do tema da ancilaridade. De
facto esta deixa de ser, como na Idade Média, uma perspectiva sobre a articulação
filosofia/teologia e passa a ser uma determinação autoritária sobre a função directora
da teologia revelada no conjunto do saber?
Ao estabelecer no contexto da dita perturbação epistemológica que a metafísica
se orientasse para a teologia, o princípio aristotélico da 'metabasis eis alio genos' -
interpretado no sentido de que não se podia ascender da metafísica à teologia, mas
descer desta para aquela (MP V 1 06, § 1 8) -, significa que o ensino filosófico é
directivo, hierarquicamente descendente, e, por princípio, não aberto à inovação, não
obstante um conjunto de teses que os nossos Jesuítas deixam em aberto. É neste
sentido que se devem interpretar, v. g. , quer a segunda regra 'de opinionem delectu' !
quer a vigilância sobre o procedimento da amplificação2 ou da questionação, o que
parece colidir directamente com a relevante metodologia das 'quaestiones ' . O prin
cípio da regulamentação, ao qual tão bem se adapta «O sentir comum da escola»,
revela uma ideia clara sobre a natureza do saber: só uma verdade eterna e imutável
pode unificar qualquer doutrina�
Como bem sabemos, era inquestionavelmente clara a obrigatoriedade de se seguir
Aristóteles, a autoridade filosófica por excelência. Neste ponto, encontrámos mesmo
quem não visse com bons olhos a profusão de «questões» nas aulas em detrimento
do ensino do texto (explanatio) . Certamente que esta cautela estaria nos antípodas
daqueles magnos autores que listavam os vários «comentadores» susceptíveis de
acompanhar o ensino. Reparemos que a explanatio, ora integraria a lição propria
mente dita, sendo dada às quaestiones o papel de transição entre as lições� ora -
como parece mais plausível - o exercício lectivo compor-se-ia idealmente segundo
as três fases seguintes5 : (i) exacta versão e reconstitução filológico-racional; (ii) sua
interpretação por uma hermenêutica do sentido, buscada dentro do próprio autor da
fonte (Aristóteles), podendo principiar-se o levantamento das questões a discutir;
(iii) discussão inteiramente autónoma e progressiva dessas questões, cuja determina
ção é feita na via da doutrina e na via da disciplina. Na verdade, já na versão da
Ratio de 1 5 86 se enumeravam seis patamares no estudo do texto de Aristóteles,
onde, no âmbito da explanatio de uma leitura contextual se deveria passar progressi
vamente ao conflito das interpretações (dubiola sive de re ipsa sive de mente Aris
totelis6) antes de se entrar no duplo âmbito da quaestio, primeiro em tomo das dúvi
das suscitadas pela letra e pelo tema, depois de forma mais livre e autónoma? Aquela
primeira versão prescrevia que não se afastassem de Aristóteles, salvo - e a restrição
apesar de óbvia é importante - nas matérias que de alguma maneira derrogassem a
fé (MP V 1 07, § 20) . Recordo que em 1 586 se refere a explanatio como questão do
(l) Sobre a impossibilidade de introduzir inovações, vd. 'regula secunda de opinionem delectu' de
1 59 1 (MP V 3 1 6) : «nemo in rebus alicuius momenti novas introducat quaestiones seu dubitatio
nes, iis, qui praesunt, inconsultis; nec aliquid contra philosophorum aut theologorum axiomata,
communemve scholarum sensum defendat; nec opinionem ullam, quae idonei nullius authoris
sit; sequantur potius universi probatos maxime doctores, et quae, prout temporum usus tulerit,
recepta potissimum fuerint in catholicis academiis.»
<2l «Caveant philosophi, ne amplificent, quae percurrenda sunt, vel res difficiliores ac praecipuas
perstringant, vel quaestiones alio transponant, quam oportet» (MP V l 05, § 1 8) .
<3l BLUM, P.-R., «L' enseignement...» 96.
<4l Cf. BALDINI, U. «The development of Jesuit 'physics' in Italy, 1 550- 1 700: a structural ap
proach» in BLACKWELL, C. & KUSIKA WA, S. (ed.), Philosophy in the Sixteenth and Sev
enteenth Centuries. Conversations with Aristotle, Aldershot 1 999, p. 252-4 sobre a estrutura dos
cursos.
<5l Cf. OLIVEIRA, J. Bacelar e, «Filosofia Escolástica e Curso Conimbricense. De uma teoria de
Magistério à sua sistematização Metodológica» Revista Portuguesa de Filosofia 16 ( 1 960) 1 38,
que adaptamos ligeiramente.
<6l MP V 28 1 .
< 7l Cf. MP V : De studio philosophiae p . 99; veja-se ainda e sobretudo ibid. 280-283.
Introdução Geral 61
Universidade» 83) já havia sublinhado o papel de Pedro Perpinhão, que ensinou em Coimbra
entre 1 555 e 1 56 1 , na base da composição da Ratio.
<4> ln III De Anima III, e. 5, q. 4, a. 2, p. 345 : «lta patet qua ratione sint utriusque partis argumenta.
Quia tamen, ut superius monuimus, decretum nobis est eam partem, quae negat dari species re
rum singularium, ut Aristotelicae doctrinae magis consentaneam tueri, quam iccirco etiam in
primo Physicae Auscultationis libro defendimus, ad eam in nostris commentariis doctrinae filum
acommodabimus.»
<5> COUJOU, J.-P., «lntroduction» in Id. , Suárez et la refondation de la Métaphysique comme
ontologie, Louvain-la-Neuve Louvain Paris 1 999, *4-*5, nota 9.
62 Introdução Geral
0) KESSLER, E., «The Intellective Sou!» 5 1 4, que deveria ser corrigido à luz de BENIGNO
ZILLI, J., lntroducción a la Psicologia de los Conimbricenses y su influjo en el sistema carte
siano, Xalapa 1 960; DES CHENE, D., Life 's Form . . . 4 e SIMMONS, A., «Jesuit Aristotelian
Education: The 'De Anima' Commentaries» in O' MALLEY, J. W. et ai. (ed.), The Jesuits.
Cultures, Sciences, and the Arts 1540- 1 773, Toronto Buffalo London 1 999, 526.
C ZJ SIMMONS, A., «Jesuit...» 526.
C 3l COXITO, A., Estudos . . . 1 56; ID., «Ü método em Pedro da Fonseca e no Curso Conimbricense»
in FERRER, D. (coord.), Método e Métodos do Pensamento Filosófico, Coimbra 2007, 7 1 -78;
cf. ln Log. Proem. q.2, a. I , p. 1 3 : «Enim vero trifariam artes, sive scientiae distingui possunt,
videlicet ratione rerum, in quibus versantur: ratione finis, quem spectant: ratione gradus, seu
dignitatis, quam inter se obtinent. »
C4l Cf. GIL, F., Mimésis e Negação, Lisboa 1 984, 40 1 .
C 5l Cf. LIBERA, A. de, «Faculté des arts ou Faculté de philosophie? Sur l' idée de philosophie et
l' idéal philosophique au XIIIe siecle» in WEIJERS, O. & HOLTZ, L. (ed.), L 'enseignement des
disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford Xllle - XVe siecles), Turnhout 1 997, 434.
Introdução Geral 63
patamar para a verdadeira filosofia, a de Platão. Seja como for, esta diferença - mas
não nos esqueçamos que, v.g. , na leitura de facto de Simplício encontravam os nos
sos autores essa mesma orientação - não nos pode impedir de ver que a ideia de um
conjunto filosófico-literário estruturado sistematicamente é muito antiga e nem
sequer escapa à própria epistemologia aristotélica. Recordemos que se iam beber aos
Segundos Analiticos (89b23) quatro perguntas metódicas preliminares : (i) se a filo
sofia existe; (ii) o que ela é; (iii) como é; (iv) por que é - Amónio trata apenas (ii) e
(iii) - e a ocasião era aproveitada para apresentar definições da filosofia, mormente
de Pitágoras, de Platão e de Aristóteles. Sabe-se também que, após esta introdução
geral à filosofia, se seguia uma introdução particular (no caso à Jsagoge) dividida
nos pontos seguintes, todavia, nem todos acolhidos: ( 1 ) finalidade da obra; (2) utili
dade do tratado; (3) autenticidade; (4) o seu lugar na ordem da leitura; (5) razão de
ser do título; (6) parte da filosofia à qual o tratado pertence; (7) divisão em capítu
los; (8) forma do ensino do tratado.
Dito isto, estamos em condições de recapitular os textos programáticos dos dois
Proémios ! Na primeira introdução a todo o Curso, que se lê no início dos Comentá
rios à Physica, e que mais tarde conheceu uma nova versão redigida por Sebastião
do Couto no volume da Logica, repete-se a concepção tradicional da filosofia como
etiologia: «Philosophia est cognitio rerum, ut sunt. Verba illa, ut sunt, idem ualent,
atque per suas causas, si eas habuerint» ? Antes, porém, o Comentário à Physica
citava a tríplice classificação (platónico-estóica) da filosofia: filosofia natural, moral
e dialéctica. A razão devia comprovar e examinar os quadros da primeira; prescrever
à vontade, em função do que é recto e virtuoso, no caso da segunda; e dar a si pró
pria a terceira, pela disposição dos conceitos e dos pensamentos. A vantagem desta
classificação platónica estaria no facto de ela permitir a fusão entre o especulativo
(protagonizado por Sócrates) e o activo (representado por Pitágoras) . Seja como for,
uma vez que o domínio da física não pode ser confundido com a denominada física
ou ciência moderna intersectando-se, por isso, com a metafísica - no que é, como
sabemos após Heidegger, uma verdadeira marca aristotélica - e até depois com a
própria teologia, o lugar da metafísica ou filosofia primeira devia aparecer clara
mente. Ela surge sob diferentes perspectivas.
O Proémio do volume da Lógica classifica as ciências, como se disse, debaixo da
tríplice perspectiva do objecto, do fim e da dimensão ontológica. Em cada uma des
tas perspectivas, deparamo-nos com uma organização distinta. Uma vez que ela
recebeu a atenção de A. Coxito limitemo-nos a reproduzir em esquema as classifica
ções possíveis:
Reais
Sermocinais Gramática
Dialéctica
Lógica
Teóricas Física
Matemática Geometria
Mistas
Aritmética
Teologia Ontologia
Superiores Física
Moral
Teologia
7 artes servis 1
Invenção
Doutrina
Disciplina Metafísica
Física
Matemática
Lógica
Moral
O esquema exige uma breve explicação. Quanto ao seu objecto ( «res» ), a divisão
das ciências ou artes segue a tradicional distinção entre «reales» e «sermocinales»,
compreendendo estas últimas os saberes relativos à palavra exterior e interior (o
pensamento). A razão pela qual a História faz parte da Retórica fica a dever-se ao
facto de ela cuidar também da beleza do discurso e da estimulação dos sentimentos
do leitor. Talvez seja curioso olhar a esta luz toda a informação ou alusão 'historio
gráfica', ou melhor, doxográfica, que aparece no curso. Também é tradicional a
divisão das ciências quanto ao seu fim, conglobando o prático (praxis) e o produtivo
(poiesis) da divisão aristotélica na dupla divisão das práticas, como em São Tomás.
«Face à tradição tomista, a única diferença está em que ( . . . ) não só a moral se inclui
entre as ciências activas (e, portanto, práticas), mas também a lógica. » 1 Num texto
anteriormente traduzido, Sebastião do Couto explica a razão pela qual a lógica pode
ser prática:
«Devemos notar que em qualquer arte prática que pressuponha um método e uma
via de aprendizagem a teoria (doctrina) é de algum modo distinta da sua aplicação
(usus) . A teoria é o modelo ou a norma pela qual uma arte prescreve o modo de
realização de uma obra, tendo, no entanto, uma existência independente desta. A
aplicação [da teoria] é a própria execução da obra; trata-se de uma operação que
pressupõe a norma de que falámos, pela qual aquela é dirigida e ordenada. ( . . . )
Aquele que está de posse do hábito dialéctico, que lhe permite construir um silo
gismo em 'Barbara' , por exemplo, forma antes de mais o seguinte juízo: 'tal silo
gismo deve constar de três [proposições] universais afirmativas dispostas de tal
modo' . Este acto pode existir sem a construção do silogismo. Depois, através de
um acto distinto forma o silogismo em conformidade com a norma mencionada.
O primeiro acto é a teoria ou a ciência actual, e o hábito que a causa chama-se
dialéctica teórica (docens) ; o segundo acto é a aplicação, designando-se por dia
léctica aplicada (utens) o hábito que o possibilita.» 2
< 1 > ln Log. Prooem. q.3, a.2, p. 1 8, onde se remete para o Comentário à Physica.
<2> COXITO, A., Estudos. . . 1 63 .
<3> ln Log. Prooem. appendix p. 54.
<4> COXITO, A., Estudos . . . 1 70.
<5> Cf. SCHMITT, Ch. B . , Aristóteles ... 52.
Introdução Geral 67
Justifica-se plenamente, por isso, que o Proémio da Physica discuta com vagar (6
questões) a divisão da filosofia contemplativa (contemplatrix philosophia), pergun
tando-se - em virtude de uma objecção de António Bemardi, em que este defende,
em Euersionis Singularis Certaminis (Basileia 1 562), a suficiência de uma só ciên
cia2 - sobre a correcção da tríplice divisão seguinte: metafísica ou filosofia primeira,
fisiologia ou filosofia natural e matemática. De notar que paralelismo entre a fisio
logia, a metafísica e as matemáticas não passa de um lugar-comum aristotélico�
Mediante um princípio de economia e um raciocínio de unidade análoga, propu
nha-se a possibilidade de todas as ciências terem a forma de uma só, visto todas as
coisas se unirem quanto ao ser. Benigno Zilli, que não chegou a ver a obra do
Mirandulano, pôs a hipótese de uma tal ciência poder ser já uma espécie de ontolo-
gia geral ! tal como a iremos encontrar em Ch. Wolff no século XVIII, ou antes, já
um ideal afim ao da ciência única como Descartes defenderá no século XVII�
Diferentemente, evocando as primeiras incursões dos Jesuítas ao enfrentarem o
Mirandulano (de Pereira a Suárez, passando por Fonseca), J.-F. Courtine falou antes
de destruição da unidade ontoteológica da metafísica? Depois de todas as cautelas
com que acima abordámos o problema, só teremos de acrescentar que ambas as
interpretações estão longe de colherem.
Pudemos acima aludir ao problema relativo à decisão sobre o tema da analogia
(tomista) e da univocidade (escotista). No que toca a esta decisão ontológica, acen
tuou-se como a gramática da univocidade se direccionou na abertura ou produtivi
dade moderna (Wolft), que não só pensou a existência sob o registo da essência
como chegou a autorizar a separação da metafísica das restantes ciências filosóficas�
Didacticamente, compreende-se a admissão de dificuldade, pelos nossos autores,
porquanto, como sabemos, nos cinquenta anos em que a Ratio foi sendo reescrita
(processo coevo à redacção do Curso) sempre se exigiu (e só se exigia) a leitura de
quatro livros da Metafisica. Na versão de 1 5 86, prescrevia-se a leitura do proémio,
do quinto, do sétimo e do duodécimo livros da Metafisica, o mesmo se repetindo em
1 5 9 1 (MP V 1 06, 280), mas retirando-se, em 1 599, o livro V (MP V 398). Embora
saibamos que Sebastião do Couto não tencionava seguir escrupulosamente a indica
ção lectiva proveniente de Roma e também não desconheçamos que ainda se lia o
livro IV para exame de bacharelato � tratava-se, como é bem de ver, de textos capi-
tais, quer para a articulação sistémica disciplinar, quer para o problema da direcção
do fundamento absoluto: o Livro Alfa (1) com o seu decisivo capítulo 2; o impor
tante dicionário ontológico do Livro Delta (V); o Livro Dzeta (VII), texto de refe
rência para a sensível discussão em tomo da 'ousia' e da 'essência' (viu-se acima
como havia quem preferisse o estudo de De ente et essentia de Tomás); finalmente,
o celebérrimo Livro Lambda (XII), o único ensaio sistemático de Aristóteles acerca
da teologia � Procuraremos entender o que isso pode significar a partir dos textos dos
nossos autores, nomeadamente em tomo de um contexto que chamámos «perturba
ção epistemológica».
No Proémio da Physica (q. 5, a. 2), os Jesuítas de Coimbra aludem aos «filósofos
neotéricos», cujas teses sobre a metafísica como ciência primeira, quer metodologi
camente, quer absolutamente, vão no sentido de uma ciência que considera as causas
supremas das coisas (Deus e as inteligências), os géneros supremos e os transcen
dentais enquanto condições necessárias da possibilidade de todas as outras ciências
(quorum omnium cognitio ad subiecta aliarum scientiarum distincte percipienda
est). A justificação que eles davam estava no facto de ninguém poder conhecer per
feitamente seja o que for, excepto pelo conhecimento das causas e dos predicados
comuns. Afastando a tese do monismo epistemológico de António Bemardi, optar
-se-á, em Coimbra pela referida tríplice divisão: uma metafísica, uma física e várias
matemáticas �
Comecemos por estas últimas. Como se viu, anterior à filosofia natural, de um
ponto de vista da ordem do ensino � em virtude do grau da sua evidência e certeza, a
matemática tem a primazia, quer sobre a filosofia natural, quer sobre a metafísica�
Sendo assim, do ponto de vista da ordem do ensino, a nobreza da metafísica confere
-lhe o último grau. A razão é evidentemente aristotélica: o mais universal não é o que
se apreende em primeiro lugar? Graças à abstracção, traz-se à luz do conhecimento
aquilo que melhor se conhece em si mesmo, um processo que apenas repete hierar
quicamente os degraus das três ciências teóricas� Na matemática, dada a facilidade e
a clareza das suas demonstrações, não se requer qualquer conhecimento prévio, além
nas naturali lumine inuentas, dignitate prima sit; ordine tamen acquisitionis ultimum locum
habet, nec nisi post alias scientias reperta est, igitur termini Metaphysicae, qui omnium commu
nissimi sunt, ueluti ens, bonum, substantia, caeterique eiusmodi in nostram cognitionem deue
nere. Ex quo sequitur maxime universalia non primo a nobis apprehendi.»
<6> Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q. l , a.3, p. 8.
70 Introdução Geral
(I) Cf. ln VIII Libros Physicorum . . q.5, a.4, p. 39: « . . . consideratio Mathematica praeterquam quod
.
difficultatem non habet, ac nullius propemodum eget experientiae; est a maeria sensibili, motu
que absoluta, atque ita minus incerta.»
<2) Cf. ln VIII Libros Physicorum . . . q.5.a.4,p.39.
<3) Cf. ln VIII Libras Physicorum ... q. l ,a.4,p.9.
<4) Cf. ln VIII Libros Physicorum ... q.5, a. ! , p.34: «At Physica cum reconditam naturae uim scrute-
tur, et a uaga, atque errabunda sensuum notitia, magna ex parte pendeat, longi temporis obse
ruationem, ac experientiam requirit, proindeque multo est difficilior, et operosior.»
(S) Cf. ln VIII Libros Physicorum . . . , Prooemium, q. 1, a. 3, p. 26.
<6) Cf. ln VIII Libros Physicorum .. ., Prooemium, q. 1, a. 4, p. 40.
<7) ln VIII Libros Physicorum .. ., Prooemium, q. 1 , a. 4, p. 44; cf. no entanto, ln Dialecticam . . .
Prooemium 2,2, p. 1 5 . Sobre a ordem das ciências e m dignidade, vd. ln VIII Libros Physico
rum .. Prooemium q. 5, a. 4.
(S) A prova desta tese também é remetida para Metaphysica (VI, 1 , text. 2 e XII, 6).
<9) ln III De Anima . . ., Prooemium, q. un., pp. 6- 1 0: «Num intellectiuae animae contemplatio ad
Physiologiae doctrinam pertineat, an non».
( I O)
Cf. ln VIII Libros Physicorum . . . § de duplici distributione, pp. 3-4.
(l
I) Cf. ln VIII Libros Physicorum. . . q.3, a. ! ., p. 22.
Introdução Geral 71
( I ) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.3, a.2, p.24: « . . . non tamen practice, quasi ad id praeceptiones
det, sed tum ob eam causam, quae in argumento adducitur; tum quia diuina bonitas in rebus
creatis elucens a philosopho cognoscitur, cognita amatur. . . » .
(Z) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.3, a.3, p.25 : «Aliam opinionem, quae nobis magis probatur
( . . . ), videlicet Medicinam simpliciter censendam practicam.»
<3) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.3, a.3, p. 25-26: « . . . subiectum attributionis Medicinae est
humanum corpus, quatenus prosperae, et aduersae subest ualetudini; finis vero est sanitatem
restituere, si amissa sit; conseruare, si amissa non sit; quae omnia, ut notum est, ad praxim
spectant. Igitur ars medica simpliciter practica censenda est.»
<4l Cf. ARISTÓTELES, Metaphysica VI 1 , 1 025 b 6- 1 1 .
<5l Cf. ln VIII Libras Physicorum. . . p. 44: «!taque statuendum hosce octo libros, Physicae
auscultationis esse, caeterisque Physiologicis doctrinae ordine praeire. Continent enim commu
nia principia, quibus tota Naturalis Philosophia innititur, explicationemque entis mobilis abso
lute sumpti. Is autem in tradendis disciplinis ordo debet esse (sicuti in Prooemio huius operis et
initio lib. de partibus animalium Aristoteles docet) ut ea primum, quae maxime communia sunt
pertractentur, deinde singula particulatim suis locis exponantur. Vnde facile iam erit intelligere
materiam huic operi subiectam, esse ens mobile in commune, in suppositione simplici, idest, a
suis partibus praecisum, atque in se duntaxat spectatum. Qua ratione distinguitur a subiecto
totius Physicae, quod est ens mobile in suppositione absoluta, hoc est tam secundum se, quam
secundum suas partes consideratum . . . »
<6) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . § de distributione apud Aristotelem, pp. 4 1 -42: as dez partes da
physiologia, são as seguintes: Physica; de Coelo; de Generatione; Meteorum; de Anima; de
Sensu et sensili, de Somno et vigilia, de Vita et morte; Animali historia; e a divisão tripartida da
doctrina de animalibus (de Partibus animalium, de Animalium generatione, de Animalium
incessu or de Animalium motu
72 Introdução Geral
O > Cf. WALLACE, W. A., «Traditional natural philosophy» in The Cambridge History of Renais
sance Philosophy 2 1 2.
<2> Cf. Parva Naturalia, Prooemium.
<3> Cf. PERFETTI, S . , Aristotle 's Zoology and lts Renaissance Commentators (1521-1601), Leu
ven 2000 , que desconhece, por isso, os nossos comentários.
<4> Cf. ln Vlll Libras Physicorum . . . q. l ,a.2,p.6: «Est uero noua; quia nulli unquam Philosophorum
in mentem uenit scientias omnes ad unam reuocare.» Cf. Antonius Bemardus Mirandulanus,
Eversionis singularis certaminis libri XL, in quibus cum omnes iniuriae species declarantur:
tum vera offensionum, & contentionum, quae ex illis nascuntur, honeste atque ex virtute tollen
darum ratio traditur: & praeter multas, ac prope infinitos locas Aristotelis, qui sunt difficilimi,
obiter explicatos, Animi etiam immortalitas ex ipsius sententia ostenditur: Astrologiae quoque
divination omni pene autoritate spoliatur, atque libertas humana stabilitur, Basileae s.d., cf.
também: Antonii Bemardi Mirandulani. . . Disputationes, B asileae 1 562.
Introdução Geral 73
são para uma mera comodidade didáctica � Numa outra versão da tese «bizarra»,
avançava-se com a inutilidade da pluralidade das ciências, sendo suficiente uma só
ciência para o estudo do ser e das suas partes. A afirmação podia provar-se não só
apelando para a unidade da luz da Revelação que nos dá o saber, mas também
mediante a defesa de que tudo é uno no ser, bastando para tal aplicar uma analogia?
Também se podia ler a prioridade da Metafísica sobre as restantes disciplinas pelo
facto de ela subalternizar todas as demais e considerar o sumo género e os transcen
dentais � Ou, por último, estendendo a tese ao sector da física, verificando-se que o
próprio António Bernardi desenvolvera três argumentos sobre a prioridade do de
Coelo por ser uma introdução geral à filosofia natural: tem por objecto a substância
e a natureza, o que também diz respeito à metafísica; esta procura demonstrar a
inexistência das Formas platónicas e o início do de Coelo concerne à própria origem
da physiologia�
É preciso levar em consideração este fundo polémico ao lermos a defesa pelos
Jesuítas do carácter autêntico de uma ciência física. Alegadamente, haveria também
( ! ) Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q. l .a.2,p.6: «Sunt enim qui contendant unam duntaxat esse
scientiam, quae totam entis regionem peruagetur, omnesque eius partes speciatim, ac distincte
consideret, a Philosophis tamen in tria ilia uulgata membra dispertitam fuisse propter addiscen
tium commoditatem; quia tam multa, tamque uaria rerum genera in unum complicata simul
addisci non poterant.» Cf. Eversianis . . . XIII, s.6 et 7, p. 269-73 ; XIV initio, p. 273-5.
<2J Cf. ln VIII Libras Physicorum ... q. l .a. l ,p.5: «Sufficit una scientia ad ens in commune, omnes
que eius partes contemplandas. Igitur superuacanea est scientiarum multitudo. Antecedens sua
detur bifariam. Primum, quia sicut omnia, quae diuinae reuelationis lumine cognoscimus, ad
unam Transnaturalem scientiam; nempe Theologiam, spectant; ita uniuersa, quae natiui luminis
instinctu a nobis sciuntur, ad unam, eandemque naturalem scientiam reduci possunt; cum utro
bique sit par ratio. Secundo, quia cum omnia, analoga unitate, in ente unum sint; nihil impediet
quominus unius scientiae modum cuncta sortiantur.»
(J) Cf. ln VIII Libras Physicarum . . . q.5,a.2,p.36: « . . . e Neotericis Philosophis nonnulli, asserentes
Metaphysicam doctrinae absolute, ac simpliciter priorem esse reliquis disciplines. Primum, quia
considerat supremas rerum causas, nempe Deum, et intelligentias, itemque genera summa, et
transcendentia, quorum omnium cognitio ad subiecta aliarum scientiarum distincte percipienda
necessaria est; cum nemo perfectam alicuius rei intelligentiam habere dicatur, nisi causas, a qui
bus pendet, et communia eius praedicata, intelligat. Deinde, quia reliquae scientiae subalter
nantur Metaphysicae . . . Quare cum scientia subaltemans ordine acquisitionis simpliciter prior sit,
quam subaltemata; siquidem huius principia, ab illius principiis dependent; conspicuunt uidetur
Metaphysicam doctrinae ordine omnium scientiarum primam esse.» Cf. Eversianis . . . XX, s.2, p.
353-5. Vd. também ln VIII Libras Physicarum . . . 1, Prooemium, p. 45 com a alusão à tese de
Alexandre de Afrodísia acerca da Physica como uma introdução ( «Commune prooemium») à
Metaphysica.
<4J Cf. ln VIII Libras Physicarum . . § de ordine materiaeque librorum Physicae p.43-44: « . . . qui
.
contenderent Physicam a libris de coelo inchoari, octo vero libros Physicorum, Primae Philoso
phiae attribuendos esse; fuisseque in Philosophiae vestíbulo positos, non ut partem per se Physi
cae cohaerentem, sed ut Naturali disciplinae in primis utiles, ac necessaries. Eorum praecipua
argumenta sunt, quia in hoc opere agitatur de substantia, et de natura, de quibus prime disserit
Philosophia. Deinde, quia Metaphysici negotii est demonstrare non dari Platonicas formas, quae
per se extra singularia cohaerent, sed alias a materia quidem abiunctas, ueruntamen singulares
( . . . ). Postremo quia initium librorum de coelo illustre continet exordium toti Physiologiae plane
commune.» Cf. Eversianis. . . XV, s.2, p. 290- 1 .
74 Introdução Geral
uma longa e velha linha de pensamento helénico que ou clamava pela impossibili
dade de um conhecimento do mundo ou avançava com teorias do conhecimento que
apelavam para o inatismo ou a reminiscência ! De facto, a física podia ser atacada,
digamos, por cima. Bastaria dizer que ela não era tão perfeita quanto a metafísica?
Num argumento ' ad hominem' (leia-se: contra António Bemardi), contra-atacavam
que, no seu género de conhecimento, a física tinha um perfeito conhecimento do seu
objecto � Depois, ela podia ser combatida também a partir de dentro, da sua própria
natureza, objectos e capacidade: o estudo dos movimentos, dos eclipses e de outros
fenómenos considerados esporádicos ou irregulares não podia convir a uma ciência
certa4 ; ou dizer-se que o estudo do que é acidental não pode constituir uma ciência?
Ora, relativamente a estas objecções, os Jesuítas evidenciam a existência de um nexo
próprio e inquebrantável unindo os seres naturais? ao mesmo tempo que sublinha
vam uma preciosa distinção: o que está sujeito à corrupção são os indivíduos e não
as naturezas comuns que constituem os objectos da ciência? Mais importante ainda,
e em resposta ao ponto relativo aos fenómenos considerados irregulares - cuja natu
reza não é nem necessária nem contingente -, eles evidenciam a necessidade de os
submetermos a condições de certeza, tal como sucede, v.g. , com o número na har
monia musical ou com a linha no caso da óptica? Para terminar, a autonomia da
física e o seu estatuto epistemológico podiam ainda ser atacados, digamos, de fora?
Nesta situação, ora se citava a magia, que, supostamente pertencendo à física, não é
ciência, ora se evocavam os erros da ciência física, ora se apelava para a tese dos
Académicos segundo a qual uma ciência de origem empírica jamais poderia alcançar
o plano do intelecto. Enquanto se limitaram, relativamente à primeira objecção, a
(!) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.2, p . 1 7 : «De Platone uero, ut eius scripta testantur, haud
dubium est quin senserit dari multarum rerum scientiam, et Naturalem Philosophiam in scientiis
esse numerandum. Quanquam in hac assertione tum alia errata inseruit, tum illud, quod nostris
animis priusquam concreti huius et terreni corporis domicilium subirent, innatas esse dixit
omnium rerum intelligibiles formas, et quasi consignatas notiones, easque corporis societate,
tanquam hausto obliuionis poculo, sopiri, deinde accedente studio, atque ope phantasmatum
excitari. !taque nullam denuo a nobis acquiri scientiam, nec quicquam aliud esse discere, nisi
recordari; ut constat ex Menone, et Phaedro, aliisque eius libris.»
<2J Cf. ln VIII Libras Physicarum ... q.2, a. l , 2 arg., p. 1 5 .
<3l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.4, p. 2 1 : « . . . posse Philosophum Naturalem res physicas
perfecte cognoscere in suo genere, id est, in genero physico . . . »
<4l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q. 2, a. ! , l arg., p. 1 5 .
<5l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q. 2 , a. l , 3 arg . , p. 1 6- 1 7 .
<6l Cf. ln VIII Libras Physicarum . . q . 2 , a.4, p . 2 0 : « . . . quia connectiones inter subiecta, e t praedicata
.
essentialia, atque eas affectiones, quae cum subiectorum natura indissolubili nexu cohaerent,
certae sunt et perpetuae.»
<7l Cf. ln VIII Libras Physicarum ... q.2, a.4, p.20: «. . . quia tametsi elementa, et omnino ea, quae ex
subcoelesti material coaluere, corrumpantur; eam tamen corruptionem sola singularia per se
subeunt; naturae vero communes, de quibus proprie scientia est, non nisi per accidens, ratione
singularium, in quibus insunt. Quo sit ut eiusmodi naturae vi sua, in seque spectate, stabiles sint
et firrnae; ea uidelicet firrnitate, quam Philosophi negatiuam vocant...»
(8) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . q.2, a.4, p . 2 1 .
<9J Cf. ln VIII Libras Physicarum . q.2, a. l , 4 , 5 et 6 arg . , p . 1 6 .
..
Introdução Geral 75
distinguir 'goeteían' e 'mageían' , sendo aquela e só ela uma ciência prática, apela
vam, relativamente à segunda objecção, para que se separassem os praticantes da
ciência (que caem em erro) da própria ciência (onde o erro não é possível), já relati
vamente à última objecção os Jesuítas vão dar uma resposta mais pormenorizada ! O
facto pode ser lido no fundo de uma ideologia epocal marcada, v.g. , pela tradução
latina da obra de Diógenes Laércio ( 1 430), por Ambrósio Traversari, ou das obras de
Sexto Empírico ( 1 562, 1 569), ou ainda pela publicação do Quod nihil scitur ( 1 58 1 )
do médico céptico Francisco Sanches ou até dos Essais de Montaigne ( 1 5 80-88). Eis
uma batalha em que Melanchton e os nossos Jesuítas se encontrariam do mesmo
lado da barricada, por isso que todos lutavam contra quem dizia «ser impossível
alcançar a certeza mediante definições verdadeiras», ou ser inútil «O sistema da
lógica de Aristóteles para se adquirir conhecimento», dado que «O conhecimento dos
particulares se toma dúbio ao compreendermos que os sentidos do Homem são frá
geis e dignos de pouca confiança ou que somos inábeis para conhecer os objectos
individualmente», quer dizer: «não podemos alcançar um conhecimento científico
genuíno» ?
Em resposta a este ambiente neo-céptico, ao qual contrapunham a assistência de
uma luz interior que nos põe em comunicação com os princípios comuns isentos de
erro� sete argumentos formam o que poderíamos designar um tratado Jesuíta
conimbricense contra os cépticos. Um primeiro argumento repete a velha ideia de
que o desejo de conhecer não pode ser em vão� O segundo segue a mesma linha,
mas expande-o em chave ética peripatética: o conhecimento constitui a perfeição
humana e esta consiste na contemplação? Topamos depois com uma verificação
sociológica: não são poucos os Homens de intelecto notável que mostram ser possí
vel a prática da ciência verdadeira? Por fim, e antes, quer de um confronto «directo»
com o neo-acadérnico Arcesilau? quer de uma declaração solene sobre a tradição
A B
cognitione distincta actuali, atque adeo accuratae doctrinae et auscultationis ordine, quem sequi
proposuerat, illustriora existunt.»
78 Introdução Geral
O l Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . 1, c . 1 , q. 1 , a. 1 , p. 50: «Cognitionem igitur alia definitiua est,
alia demonstrativa. Definitiua dicitur, quae definitione comparatur; demonstratiua, quae
demonstratione acquiritur. Non sumitur autem a nobis hoc loco definitio, et demonstratio fuso
nominis significatu; sed ita ut eam duntaxat definitionem, quae subiectae rei naturam declarat; et
eam solum demonstrationem, quae ex causis procedit complectamur. Enim uero demonstratio
nes ab effectis, imperfectae sunt, et quasi inchoatae; item vero definitiones, quae rei essentiam
non attingunt, quaedam potius sunt adumbrationes rerum; quam definitiones.»
(Z) PEREIRA, M. B . , Ser e Pessoa . . 297-98 sobre Pedro da Fonseca.
.
<3l Cf. OLIVEIRA, J. B. e, «Sobre a noção de ciência na Lógica Conimbricense» Revista Portu
guesa de Filosofia 19 ( 1 963) 280-82.
<4l SCHMITT, Ch. B & COPENHA VER, B. P., Renaissance Philosophy 348-49.
Introdução Geral 79
- B -
0 Comentário ao De anima
1 . Introdução
( 1 ) PELLEGRINI, P . - «Le D e Anima e t l a vie animale. Trois remarques» i n Corps e t Ame. Sur le
De Anima d 'Aristote, études réunies par C. VIANO, Paris 1 996, 465 : «L' interprete modeme du
De Anima travaille sur un terrain qui est, c' est le moins que l'on puisse dire, herméneutiquement
fort encombré . . . ».
80 Introdução Geral
Livro 1
Livro II
Livro III
Cap. 2: O sentido comum: segunda e terceira Apresenta-se o sentido comum que distingue
funções (o sentido comum torna a sensação as acções dos sentidos externos.
consciente; o sentido comum ajuíza sobre 2 Questões: se os sentidos externos
os sensíveis e unifica o conhecimento) conhecem ou não as suas funções; se há
um sentido comum e se reside no cérebro.
( I J MP II 256: «ln primo libro de anima, nihil est diligendi studio explicandum praeter prooemium;
secundus vero liber et tertius exacte sunt praelegendi.» De referir a posição de Jerónimo Torres
( 1 532- 1 6 1 1 ) no plano do curso dado em Roma no ano lectivo de 1 5 6 1 -62, ibid. 456: «Primi libri
prohemium explicandum videtur. Veterum opiniones non omnino praetermittendae videntur,
nam in illis confutandis Aristotelis opinio circa multa innotescit, sed perstringendae. Secundus
et tertius liber accurate explicandi.»
c 2i ln Primum Aristotelis de Anima, Scholia, Ms. 2399, foi. 9v: «Deinceps toto reliquo hoc libro
veterum philosophorum opiniones de anima prosequi.» Este Comentário termina porém no
Livro II (foi. 82r) e é seguido por um Comentário à Metafísica (83r - l 03r) também incompleto,
e interpolado (92r - 94r) por um título «De Missa», de outra mão.
C 3l Parece que o termo «psicologia» ocorre a primeira vez em 1 575, na obra de Johannes Thomas
Freigius, Catalogus locorum communium, mas só no século XVIII, com a obra intitulada Psy
chologia empirica de Ch. Wolff ( 1 732) ele se tornará corrente; vd. BAKKER, P. J. J. M., «Natu
ral Philosophy, Metaphysics, or Something in Between? Agostino Nifo, Pietro Pomponazzi, and
Marcantonio Genua on the Nature and Place of the Science of the Sou!», in BAKKER, P. J. J.
M. & THIJSSEN, J. M. M. H. (ed.), Mind, Cognition and Representation. The Tradition of
Commentaries on Aristotle 's De Anima, Aldershot - Burlington 2007, 1 77 .
C4l DES CHENE, D., Life 's Form ... 7 7 , n. 1 9 ; SALATOWSKI, S., D e Anima . . . 1 86.
Introdução Geral 89
O l Cf. BOLDUC, C. R., «L' origine dês hérésies de Spinoza: une pensée radicale» Cahiers de
Philosophie. Série A, fase. X (2007) 25-62.
90 Introdução Geral
lino, a capacidade dos vedares ou sobre os sentidos do Homem em relação aos res
tantes animais 1 ).
Finalmente, quanto ao livro III, também dividido em quatro partes como o ante
rior, interessa-lhes o número dos sentidos externos (c. 1 ), o número dos sentidos
internos (cc. 2 e 3), o tema do intelecto (cc. 4 a 8) e do princípio do movimento dos
seres animados (cc. 9 a 1 3). Sobressai, de facto, o número impressionante - oito -
das questões do capítulo oitavo que Aristóteles consagrou, nas palavras de E. Bar
botin, ao tratamento da «distinção e coordenação das faculdades do conhecimento»,
e que para os Jesuítas é o lugar de investigação sobre o intelecto passivo (sua natu
reza, número) e sobre o pensamento (verbo, espécies inteligíveis, objecto, conceitos
das coisas singulares, conhecimento de si mesmo, necessidade das imagens). Em
contraste, repare-se na ausência de questões no capítulo quarto, no sexto e no sétimo
(os temas são mais ou menos remetidos para o oitavo ou aí tratados), o mesmo suce
dendo nos capítulos nove a doze (relegados para o estudo das relações von
tade/intelecto nas cinco questões do último capítulo do livro). A importância dada à
natureza do pensar é patente também nas seis questões do capítulo cinco, o qual,
mais do que sobre a distinção entre os dois intelectos, versa, segundo os Jesuítas,
sobre o intelecto agente (sua natureza e tarefas), e sobre as espécies inteligíveis.
A divisão em nove partes dos três livros, com as setenta e uma questões que
dizem respeito a essas nove partes, parece confirmar a afirmação de Katherine Park,
que a autora apoiou sobretudo na leitura que fez de Margarita philosophica (c.
1490) de C . Reschius: «a doutrina sobre a percepção é sobremodo o aspecto mais
complicado e pormenorizado das obras do Renascimento dedicadas à alma orgâ
nica» ? No caso dos Jesuítas portugueses, a verificação é igualmente flagrante, mas o
conspícuo interesse pelo universo do sensorial detecta-se também, v.g. , no plano de
João Maria ( 1 535- 1 624) para o ano lectivo de 1 5 6 1 162 em Roma� Quase cinquenta
por cento das questões dos Jesuítas de Coimbra (35 questões para sermos exactos)
dedicam-se à teoria do conhecimento sensível, quinze questões versam a natureza e
a essência da alma e catorze ocupam-se do intelecto. Impõe-se, portanto, esta obser
vação: não só o caso Pomponazzi parece não ser obsessivo como parecem ter, da
psicologia aristotélica, uma visão mais afim à de Lloyd (a psyché é a forma de um
corpo vivo em potência4 ) do que à da tradição antiga da metafísica da alma. Dito de
uma outra maneira: o comentário parece estar mais próximo de uma leitura organi-
(I ) Cf., neste último caso, ln III De Anima . . II c. 9, q. 5; vd. também M. S. de Carvalho & F.
.
Medeiros, «Em torno do paradigma da visão no século XVI: luz, visão e cores no Comentário
Jesuíta Conimbricense ( ' De Anima' II 7)» Revista Filosófica de Coimbra 1 8 (2009) 43-70.
<2) PARK, C., «Organic Soul» in The Cambridge History of Renaissance Philosophy ... 470.
<3l Cf. MP II 443-44.
<4l LLOYD, G. E. R., «Aspects of the relationship Between Aristotle' s Psychology and His Zool
ogy» in Essays on Aristotle 's De Anima, ed. NUSSBAUM, M. C. & OKSENBERG-RORTY,
A., Oxford 1 992, 1 47- 1 67.
Introdução Geral 91
O l SHIELDS, Ch., «Sou! and Body in Aristotle» Oxford Studies in Ancient Philosophy 6 ( 1 988)
103: «Aristotle concems himself with many of the issues we now recognise under the general
rubric 'the philosophy of mind ' » ; também IRWIN, T. H., «Aristotle' s philosophy of mind», in
EVERSON, S. (ed.), Companions to Ancient Thought 2: Psychology, Cambridge New York
1 99 1 , 56-83.
<2l Cf. ANDRADE, A. A. B . de, «Teses ... » 1 1 4- 1 9 .
<3l Tratactio Aliquot Problematum. . . p. 5 3 3 «Post tractationem singulorum sensuum, aliquot
problemata ad eos spectantia, ut in aliis nostrorum commentariorum locis, ubi opus erat, feci
mus, breuiter exponemus» e ibid. p. 558: «Atque hactenus de problematis, quae ad exteriores
animae potentias spectant. Neque uero de aliis eiusdem animae facultatibus institutum perse
quimur, quoniam doctrinae popularis, qualem solet Aristoteles in Problematis adhibere, mate
riam non suppeditant.»
92 Introdução Geral
4
( l ) GARIN, E., L 'umanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento, Roma Bari 2004,
1 59.
C Zl Cf. ANDRÉ , J. M', Renscimento e Modernidade. Do poder da magia à magia do poder, Coim-
bra 1 987.
C 3l SALATOWSKI, S., De Anima ... 1 52.
C4l Cf. In lI/ De Anima ... II, c.2, q.2, a. l , p. 29 1 .
C 5l ln VIII Libras Physicorum . . II c . 9, q. 2, a. 1 , p. 328: «Est enim totius corporae naturae
.
universalis finis, homo, ut post Platonem asseruit Aristóteles 1° Politicorum, cap. 5º docentque
palres communi consensu, quia Deus spectabilem hunc mundum hominis gratia procreavit,
eique singulari beneficio subiecit omnia; tum quia homo iure insitae nobilitatis et eminentioris
formae praerogativa, lotam corpoream naturam ad se convocat, sibique arrogat. Est enim natu
rae lege comparatum ut quae inferioris notae sunt ad praestantiora, si eis praesertim aliquomodo
usui esse possint, referantur. Quo pacto forma elementi, quae omnium despicatissima est ad
formam corporis mixti ordinatur; haec tandem ad animam rationalem, quae omnium formarum
numeros et perfectionem in se cohibet.»
Introdução Geral 93
atque adeo de intelligibili, futurum ut nulla alia disciplina praeter Physiologiam superesset;
uidetur enim huiusmodi consecutio nullius esse momenti : tum quia pari ratione sequeretur nul
lam esse philosophiam praeter primam, cum haec de intellectu et intelligibili disputet, tum quia
ex eo quod detur scientia, quae de intelligibili agat, haud probe infertur reliquas scientias e
medio tolli, cum eandem rem alio atque alio modo spectatatam diversae scientiae tractare pos
sint.»
<3l Cf. LIBERA, A. de, Raison et Foi. Archéologie d'une crise d'Albert le Grand à Jean Paul II,
Paris 2003, 94, 99.
<4l FRÉRE, J., «Fonction ... » 33 1 .
94 Introdução Geral
< 1 > PELLEGRINI, P. «Le De Anima . . . » 468: «II me semble que l'étude de l' âme ( . . . ) peut cumuler
ces deux valeurs parce que la psychologie est bifide, noétique d'un côté et naturelle de I' autre.
La 'recherche sur l ' âme' (e tes psuches historía, 402a3) doit 'à juste titre être placée au premier
rang' parce que l ' intellect, dont l ' étude n' est pas facile aux êtres matériels que nous sommes,
n' est pas sans parenté avec la divinité, mais aussi parce que l' âme naturelle peut être connue
•
Physica II, c. II, text. 22 1 ) ; b) porque a própria resposta à pergunta 'o que é o
Homem?' , enquanto este é participante dos seres animados (pars subiecta enti
mobili), depende obviamente da física; e) porque a caracterização do ser humano
como constituído de um corpo e participando de um espírito racional (homo est
animal constans corpore et animus rationis participe) é assunto da física. Este
último argumento é definitivo porque leva a sério a ideia de uma participação da
razão pelo corpo, princípio bem aristotélico e de base nitidamente orgânica, como
era em S. Tomás ? Mas, conjugado com o segundo argumento, não será menos
definitivo, apesar de introduzir uma diferença e, como veremos, um problema. De
facto, embora acolhendo uma antropologia tradicionalista cristã - referimo-nos à
Patrística grega, que havia legado a ideia do homo-nexus, patente, por exemplo, seja
em Alberto Magno, sej a em Tomás de Aquino, seja também em quaisquer interpre
tações renascentistas neoplatonizantes do aristotelismo -, ele anuncia ainda uma
perspectiva que não pode ser inteiramente confundida com idêntica assunção por
parte de Tomás . De maneira não menos clara, já no Proémio da Physica (q . 4, a. 3)
se lê - e contra quem procurava pôr em causa a definição da física como ciência que
estuda o ente móbil, porquanto na parte respeitante à alma o seu objecto seria um
movimento não material (q. 4, a. 2) - que, das três maneiras de considerar a alma, só
uma diz respeito à metafísica, quando ela se encontra fora do corpo. Nos outros dois
casos, i. e. , quer no seu estado corpóreo (statum in corpore), quer mesmo no caso do
exame da sua essência absoluta, diz-se explicitamente que a alma, a racional inclu
sive, depende da matéria na sua quididade. Por esta razão, cabe ao físico investigar a
essência do Homem só o podendo fazer mediante o conhecimento da natureza da
alma� Isto tem como consequência que a verdadeira discussão não seja entre uma
física e uma metafísica, mas sobre a maneira como tal divisão se pode inscrever
numa psicologia mais radical ou radicial. Escusado será dizer que Aristóteles é, por
este lado, claramente ultrapassado, além de que esta posição do Colégio dos Jesuítas
também não pode ser identificada, v. g. , nem com a solução de Paulo de Veneza (que
adicionava à sua Summa philosophiae naturalis um tratado de metafísica), nem com
a de Agostinho Nifo (que chegou a tratar a psicologia como uma scientia media
entre a física e a metafísica)� De facto, desenvolvendo uma intuição do Pseudo
-Simplício, Nifo havia defendido a ideia segundo a qual, na sua dimensão vegetativa
O) Trata-se de ARISTÓTELES, Physica 1 94 a 1 5 -27, cuja explanatio lê: « . . . re uera pertinere, cum
tam materia, quam forma sint partes compositi Naturalis, quod Physicus considerat, eiusdemque
artificis munus sit, partes, et quod ex partibus coalescit, contemplari ( . . . ). Probat utriusque natu
rae inspectionem Physici negotii esse, in hunc fere modum. Cum ars naturae solertiam, qua
potest, inititur, ut se habet ars ad artefacta, ita se habebit Naturalis scientia ad res Physicas, atqui
ars non formam duntaxat, sed materiam etiam considerat. Igitur Naturalis scientia non solam
rerum physicarum formam, sed earundem quoque materiam expendet.»
<2> Cf LIBERA, A. de, Thomas d 'Aquin. L ' Unité de l 'lntellect contre les Averroi'stes, suivi dês
Textes contre Averroes antérieurs à 1270, Paris 2 1 997, 2 1 0; cf. trad.port. de M. S. de Carvalho,
1 68 .
<3> ln VIII Libras Physicorum . . . Prooemium q. 4 .
<4> Cf. KESSLER, E. & K., «The Concept...» 456-57. Cf. BAKKER, P. J . J . M . , «Natural Philoso
phy, Metaphysics, or Something in Between? . . . » 1 5 1 - 1 77.
96 Introdução Geral
< l l Cf. PALADINI, A., La scienza animastica di Marco António Genua, Galatina 2006.
<Zl De Memoria e . 2, p. 5: «Quod ad finem librorum de Anima in Tractatu de anima separata
planius disseremus.»
<3l ln Ili De Anima . III, e . 13, q. 5 , a. 4, pg. 439-440: «Hactenus disceptatum de anima, quatenus
..
corporis constricta nexu, et contubernio addicta, ad functiones exercendas suas illius operam
emendicat, deinceps de eadem scribemus eo iam uinculo exoluta, et de separata separatam ins
tituemus tractionem. Praestet utinam propitium Numen, ut quemadmodum de coniuncta anima,
quali potuimus industria, opus confecimus, et de separata dicturi gradum addimus ulteriorem:
sic solutus aliquando e corpore, cui coniunctus nunc animus est, in statum euadat liberiorem, ubi
soli Deo insolubili iam nexu adstrictus, et ab humanis longissimo abiunctus interuallo, uitam
auspicetur iucundissimam, et possideat beatissimam.»
<4l Tractatus de Anima Separata . . . , Prooemium, p. 44 1 : «Quoniam Aristoteles libris superioribus
nihil de anima separata disseruit, de qua multae, ac graues quaestiones inter Philosophos,
Theologosque uersantur, quarum explicatio et intelligentia non minus necessaria, quam iucunda
est: operae pretium duximus eam disputationem in praesenti suscipere; licet enim consideratio
eorum, quae ad animam praecise, ut extra corpus est, spectant, Metaphysici potius, quam Phy
siologi sit, ut in primi libri prooemio commonuimus ; quia tamen scientia de anima sine hoc
quasi suplemento absolutionem suam adipisci non poterat, fortasseque in libris primae Philoso
phiae apud Aristotelem commentatio haec non adeo opportunum locum habet, istiusmodi trac
tationem superioribus libris potius attexere, quam illuc reiicere statuimus. Neque uero eas
quaestiones disputabimus; quae ad utrumque animae statum, separationis, uidelicet, atque
informationis indifferenter spectant, quales illae.»
Introdução Geral 97
comentário à Metafísica - que é, outrossim, a última das ciências ' - se justifica uma
indagação sobre a alma separada? Como se sabe Suárez - como aliás, de certo
modo, o luteranismo - defenderá que o estudo da alma separada é assunto da teolo
gia? Ora, esse «suplemento» editorial é de ordem filosófica, conforme se provaria se
atentássemos, v.g. , no teor ético, físico e metafísico das provas em prol da imortali
dade da alma? Sendo assim, trata-se de um suplemento ontologicamente justificado,
pois só ele (ou melhor a sua matéria) pode completar o último horizonte de uma
ciência da alma que, começando por ser física, deverá realizar o amplo projecto
especulativo da ligação entre o tempo e a eternidade. Repetimo-nos: também se
compreende assim a inclusão de um segundo apêndice, a Tractatio Aliquot Proble
matum, representando a segunda dimensão, porém, incompleta, do exame aristoté
lico. Ao atribuir-se esta feição psicológica à física fica em aberto uma tarefa, a de
concebê-la de uma maneira tal que não a faça coincidir com, ou superar, a perspec
tiva unitarista de Alexandre e de Averróis no que ao estudo da alma dizia respeito.
Que psicologia natural é esta?
Os Jesuítas de Coimbra também conhecem o texto de De Partibus Animalium (1
1 , 64 1 a l 8 -b l O), em que Aristóteles estabelecia uma linha de demarcação entre
psicologia natural (física) e psicologia noética1 Acontece, porém, que o horizonte da
sua discussão em tomo da utilidade, da ordem e do tema do De Anima, não é mais o
de Aristóteles. Conhecedores da tese de Paulo Veneto ( 1 369/72- 1 429), que susten
tava que o tema do De Anima era o corpo animado� os Conimbricenses preferem
seguir a opinião mais generalizada segundo a qual a obra trata da alma? De acordo
com a primeira interpretação (a do corpo animado), os Parva natura/ia representa
riam uma introdução ao De Anima, «quasi accessio quaedam sunt» ? Porém, a ordem
sistemática que adoptam é a de que o De Anima se segue aos Meteorológicos. Em
conformidade, o texto a seguir traduzido aparece como a quinta das cerca de dez
C4l PELLEGRINI, P., «Le De Anima ... » 467 : «Aristote envisage plusieurs manieres possibles de
construire une science de l' âme. ( . . . ) Or la question d' Aristote dans ce passage des Parties des
Animaux, était de savoir si la physique devait s' occuper de toute l' âme ou de certaines parties de
l' âme seulement». No Proémio da Physica (q. 5, a. 4) remete-se para o c. 1 de De Part. An. a
tese de que a ciência do perecível é mais certa do que a do que é eterno, apesar de ser ciência
menos digna.
(S) Cf. ln III De Anima . . . , Prooemium, p. 3. A Summa philosophiae naturalis do A. foi publicada
em Veneza em 1 503 e o seu Scriptum super libras de Anima também de Veneza 1 408; sobre
Paulo de Veneza, vd. KESSLER, E., «The Intellective Soul» 488-90 e PARREIAH, A. R., Paul
of Venice: A Bibliographical Sketch, Bowling Green 1 986.
(6l Cf. TOLEDO, ln tres libras Aristotelis de Anima . . Prooemium q. 3 , p. 1 8.
.
Genua (De ordine librorum naturalium in Aristotelis disputatio, Veneza 1 562-74; de Jacopo
Zabarella, De rebus naturalibus libri XXX, Veneza 1 607 ; ou Francesco Piccolomini, Libri ad
scientiam de natura attinentes, Veneza 1 596 (cf. KESSLER, K & E., «The Concept of Psycho
logy» in The Cambridge History of Renaissance Philosophy . . . 456 n. 6).
98 Introdução Geral
Alma vegetativa em si
2. Exclusivamente sensitiva
(anima bestiarum)
3. Alma racional
( 1 ) Cf. ln VIII Libras Physicorum . . . , Prooemium, § 'De distributione' pag. 50: «Quinta, in libris de
anima inquirit causas, et rationes tum animae in commune, tum eius, quae ratione, et intelligen
tia praedita est.» As partes são: Physica, De Coelo, Meteorum, De Anima, Parva Naturalia,
Historia Animalium, Partibus Animalium, De Animalium Generatione, De Animalium incessu
et de animalium motu, cf. ln VIII libros Physicorum, Prooemium § De Distributione, pg 50-52.
<2l ln III De Anima ... , Prooemium, p. 3 : « ... anima uero non per corpus organicum animalis, sed per
corpus organicum uiuentis in commune definitir.»
<3l DES CHENE, D .. Life 's Fonn. . 1 2. .
por todo o corpo ou apenas por uma parte do corpo (II c. 1 , q. 9) ! Na polémica que
separava nominalistas, escotistas e tomistas, os nossos Jesuítas tomam partido, evi
dentemente, por estes últimos. Eles põem-se, assim, ao lado de quem defende a
distinção real entre as faculdades da alma e a alma propriamente dita? Mais uma vez,
isto não significa que não vejam sentido, designadamente no nominalismo. De facto,
a propósito da vexata quaestio que consistia em saber «Se a alma cobre todas as
partes do corpo de maneira a que toda ela esteja presente em qualquer uma das par
tes do corpo» , distinguem três acepções de «totum» (integral ou quantitativo, poten
cial ou das faculdades e essencial ou físico-metafísico3 ; o manuscrito anónimo de
1 559 distingue: ratione essentiae, ratione qualitatis e ratione potestatis4) . Em
conformidade, eles vão defender que, enquanto indivisível, considerada como um
todo essencial, a alma está em qualquer parte do corpo e que, considerada quantitati
vamente, qualquer uma das suas partes está em qualquer parte do corpo? O horizonte
nominalista interpretava a caracterização aristotélica de 4 1 3b 1 2 com o recurso ao
princípio augustinista de que a alma é as suas faculdades (intelecto, memória e von
tade): não três vidas, nem três mentes, mas uma só que, enquanto vegetal, é alma,
enquanto contempla, é espírito, enquanto sente, é sentido, sendo alma por saborear,
e mente ao pensar, e razão ao discernir, e memória ao recordar, e vontade ao querer,
diferenças estas apenas nominais ? Ao que os Jesuítas de Coimbra respondem não só
- ou nem tanto - que a citação em que se baseiam, também retirada do De spiritu et
anima, é apócrifa, «como os doutores de Lovaina claramente demonstraram», mas
que afinal a autoridade de Agostinho caminha no próprio sentido deles: identidade
de todos os graus essenciais da alma numa só essência?
Porém, a sua obsessão pela definição da alma deve dar rigor a este acolhimento.
Os Jesuítas Conimbricenses tomam como ponto de partida a correcção (q. 1 , a. 2, p.
34) da primeira definição da alma dada por Aristóteles em 412 a 20: « ... a alma é
uma substância no sentido de forma de um corpo natural que possui a vida em
potência» . À sua maneira habitual, explicam a definição (anima est actus primus
substantialis, corporis organici, potentia uitam habentis) atomisticamente: diz-se
«acto» ou «enteléquia» a fim de excluir a pura potencialidade e a impura actualidade
da composição natural ou artificial 8 ; diz-se «primeiro» para excluir qualquer tipo de
operação segunda; é «substancial» de maneira a remover os actos primeiros aci-
(S) ln lll De Anima . . . II c. 1 , q. 9, a. 2, p. 93-94. Cf. S. Salatowsky, De Anima . . . 1 77, n. 1 79, que
não compreendeu o problema.
<6 l ln lll De Anima . II c. 3, q. 4, a. ! , p. 1 1 5 . ARISTÓTELES, De Anima II 4 1 3 b 1 2- 1 3 : « . . . a
..
alma é o princípio das faculdades ( . . . ) e define-se por elas: nutritiva, sensitiva, intelectiva e pelo
movimento.»
l 7 l ln lll De Anima . . . II c. 3, q. 4, a. 3, p. 1 1 7 .
l3 l Sobre a «enteléquia», vd. ln lll D e Anima . . I I , q. 1 , a. 7, pg 44; cf. sobretudo SALATOWSKI,
.
S , De Anima . . . passim.
Introdução Geral 101
dentais; e «do corpo», quer para excluir as várias substâncias separadas (q. 1 , a. 1 , p.
32), quer para incluir o corpo como sujeito da alma, constituindo uma unidade com
ela (q. 1 , a. 1 , p. 33); por último, é «natural e possui a vida em potência» de modo a
excluir as formas naturais dos seres não vivos (ibid.) .
Daqui julgam eles poderem extrair cinco conclusões. Três negativas ou polémicas
sobre a alma em geral: ela não pode ser definida como temperamento (q. 1 , a. 3, p.
37), por ser uma substância 1 ; não é acidental, mas uma forma substancial (q. l , a.4,
p. 38), não é matéria nem corpo (q. 1 , a.5, p. 40). Duas outras sobre a alma intelec
tiva: ela é espiritual ou de substância espiritual (q. 1 , a.6, p. 4 1 ) ; mas não é uma parte
da mente divina (q. 1 , a.6, p. 43).
Duas notas tradicionais merecem ser apontadas sobre estas cinco conclusões: a
primeira, que nesta altura compreendemos, diz respeito ao tratamento conjunto da
alma com a alma intelectiva; a segunda, aos argumentos produzidos para provar a
sua incorporalidade, imaterialidade e espiritualidade substancial. Deixaremos de
parte a alusão mais difícil ao tratamento de ' substância' aplicado à alma, à luz de
uma linhagem mais estóica do que aristotélica, na esteira de uma citação de Gregó
rio de Nissa? A alma não pode ser um corpo por razões de ordem metafísica, i.e, que
se prendem ao próprio hilomorfismo e dependem do carácter radical da scientia de
anima; não é por acaso que ao explicarem a primeira definição da alma os autores
identificam «corpo orgânico» com «ter a vida em potência» � A matéria é sujeito
prévio à indução da forma, mas é potência e, por isso, isenta de actividade; a matéria
comum a todos os seres não pode ser ao mesmo tempo a razão de ser da sua identi
dade e da sua diferença. Depois, porque a alma é o que anima o corpo (corpus in se
insinuat, omniaque eius membra permeat) ; porque a alma não é celeste, nem ele
mentar nem misto de elementos; e porque, de acordo com o princípio da Physica
«omne quod movetur ab alio moveri» (VIII, c. 4, text. 28), há diferença entre um
princípio que move (a alma) e um princípio movido (o corpo)� Mas não há só uma
causalidade da matéria, pois também a forma tem a sua causalidade própria sobre o
composto. Por que é que a alma intelectiva deve ser de natureza espiritual sem que
se caia, a contragosto, numa tese afim à que virá a ser o monismo de Espinosa?
Porque as suas operações (intelectuais e volitivas) ultrapassam a matéria e a condi
ção do corpo. Isto pode provar-se, quer pelo lado do intelecto - ele conhece nature
zas comuns abstraídas da matéria singular e forma conceitos de coisas imateriais -,
quer pelo lado da vontade: esta domina o que é sensitivo e material, e os actos da von
tade (querer, não querer, amar, etc) estão acima dos sentidos e do apetite� Temos,
( l l Cf. DES CHENE, D., Life 's Fonn . 69-76 e mais em geral para a definição da alma 67- 1 02.
..
diuersum esse a re quae mouetur nemo ambigit. Sed idem quoque notum esse inquit iis, quae
interno principio secundum naturam aguntur, hoc est in uiuentibus, haec enim ab alio moueri
constat, licet quonam moda ab eo quod mouet, distinguantur, haud satis manifestum sit.»
<5l ln III De Anima . II, q. 1, a. 6, p. 4 1 -42.
..
1 02 Introdução Geral
O J Cf. ln III De Anima . . . II, q. 1 , a.7; cf. SALATOWSKY, S., De Anima . . 1 88.
.
<2> ln III De Anima . . . II, q. 7, a. 2, p. 82; cf. Tractatus de Anima Separata d. l, a. 2, p. 445 .
<3> ln VIII Libros Physicorum . VIII, c.6, q. l , a.2, p. 324; cf. CERTEAU, M., La Fable mystique,
..
1: XVf-XVJf siecles, Paris 1 982, 1 42; sobre a recepção do Areopagita no século imediatamente
anterior, vd. LUSCOMBE, D., «Denis the Pseudo-Areopagite in the Writings of Nicholas of
Cusa, Marsilio Ficino and Pico della Mirandola» in BENAKlS, L. G (ed.), Néoplatonisme et
Philosophie médiévale. Actes du Colloque de Corfou (6-8 octobre 1 995) organisé par la Société
Intemationale pour l ' Étude de la Philosophie Médiévale, Tumhout 1 997, 93- 1 07 .
<4> ln III D e Anima . . . I I , q. 6, a. 3, p. 78.
Introdução Geral 105
sequer se detêm a esclarecer uma acepção deveras sensível, como é a de 'natural', ora
empregue em relação às actividades do corpo (e, portanto, no quadro de uma base
orgânica do pensamento), ora em relação ao próprio pensar (i. e. no âmbito de uma
consideração teológica criacionista de tal actividade).
Passemos agora ao segundo «erro» de Averróis : saber se as almas racionais são
individuais (utrum animae rationis participes ad numerum hominum multiplicentur,
an non). Diga-se desde já que os Jesuítas Conimbricenses entendem ser pacífico que
Aristóteles não defendeu a tese do monopsiquismo (unitas animarum), que era então
considerada sobretudo como proveniente de Averróis � Este era um ponto contro
verso, mas para os Jesuítas seria capital manter relação apertada entre Aristóteles e a
doutrina católica. Mais uma vez o curioso está, porventura, nos textos aduzidos para
confirmar a opinião anti-averroísta. Vej amos o seguinte texto do Livro 1 (402 b 5-9):
«Cuidemos não omitir a seguinte questão: há apenas uma só definição para a alma e
para o animal, ou cada espécie de alma tem uma definição particular, por exemplo, a
do Cavalo, a do Cão, a do Homem, a de Deus? Neste caso, o animal tomado univer
salmente ou não seria nada ou seria logicamente posterior. O mesmo se diria de
qualquer outro atributo comum que lhe conferíssemos.» Do capítulo III do mesmo
Livro, outro passo (407 b 20-27) : «Üra, os nossos teóricos esforçam-se apenas em
determinar que tipo de ser é o da alma, mas nada determinam relativamente ao corpo
que a deve receber; é como se, tal como nos mitos pitagóricos, qualquer alma pene
trasse em qualquer corpo ! Um absurdo, pois parece que cada corpo possui uma
forma e uma figura próprias. A teoria deles equivale a dizer mais ou menos que a
arte do carpinteiro desce para as flautas. É preciso de facto que a arte se sirva dos
seus instrumentos e a alma do seu corpo.»
Segue-se a passagem imediatamente anterior à que já referimos, a do capítulo III
do Livro XII da Metafísica (texto 1 6), e a do capítulo VIII do mesmo Livro (texto
49), bem como a do Pseudo-Aristóteles, Problemas XXX, § 5 (e não 4). Sendo irre
levantes para Tomás de Aquino aquelas duas passagens de De Anima� a sua respec
tiva correlação nos Jesuítas justifica-se antes de mais pedagogicamente, haja em
vista que o tema do erro é apresentado sistematicamente a seguir e no quadro da
teoria antiga da metempsicose. Na verdade, esta associação é curiosa, posto que,
assim, textualmente, os cinco argumentos de Averróis citados e o seu respectivo
fundamento aristotélico textual são apresentados (q. 7, a. l , p. 79-80) num quadro
mais vasto de erro e de fantasias a condenar? Tratar-se-ia, então, de fazer face ao
paganismo ! 4
comum e em espécie, e que o universal não é separado (quer contra a teoria platónica em geral
quer contra a Alma do Mundo). Sobre a segunda 407 b 20-27 refere a insuficiência da dou
- -
exoleuit, et inter poetarum fabulas uersatur, occurrit alia sententia existimantium in disciplina
Aristotelis ponendam esse unam duntaxat animam intellectricem, siue unum intellectum, qui
omnibus hominibus assistat, ut Solis lumen uniuersitati. . . »
<4> Cf. DES CHENE, D . , Life 's Form . . . 50-5 1 .
1 06 Introdução Geral
( J J ln /// De Anima . . II, q. 7, a. 1 , p. 79-80: «Contendit igitur Arabs unicum tantum dari intellectum
.
separatum quidem re a singulis hominibus, sed eisdem assidentem, et coniunctum per imagines,
quae in cuiusque phantasia insident; atque ab his imaginibus eius luce collustratis ait transmitti
in ipsum intellectum intelligibiles formas, quibus ille consignatus rerum notiones capiat. Sicque
fieri ut nos per eiusmodi intellectum separatum intelligere dicamur. Addit etiam, quadam
consecutionis serie de absurdis absurda colligens, animam intellectricem non esse ueram
hominis formam, nec hominem per eam essentialiter a belluis distingui, sed per aliam formam,
quam cogitatricem nominat; et ad hanc pertinere uult cognitionem singularium, hanc cum
quolibet homine progigni, unaquam interire, et hominum numero multiplicari.»
<2l SALATOWSKY, S . , De Anima ... 250.
<3l Cf. MP V 397.
Introdução Geral 107
uma única forma informadora (informantem)� Aqui, a forma informans, que não
pode ser confundida com a tese jesuítica ou tomista homónima, poderia designar
também o único intelecto do Homem, tese que se lê em Paulo de Veneza, o qual,
segundo Nardi, seguiria nisto Sigério de Brabante? Este ponto merece ser destacado
por revelar o seu conhecimento de uma forma mais extrema de materialismo no
sentido em que a única alma que informa cada indivíduo, ao pluralizar-se, se sub
mete inteiramente à morte ? Ora, o Homem só pode superar a natureza dos animais
(ultra animalis naturam assurgere) dizem - se ele não for constituído exclusiva
-
mente por uma alma orgânico-sensitiva, quer dizer, se a alma que o informa indivi
dualmente lhe permitir a ilustração intelectiva dos fantasmas de uma maneira indivi
dualizada. Isto significa que eles interpretam as novas ideias gnosiológicas nomina
listas e averroístas de um Paulo de Veneza, e.g., no sentido moral e religioso da
defesa de uma alma informante humana e mortal. Ou ainda: que conhecem o
extremo da alternativa posta por Caetano de Tiena, por Bessarion ou por Pompo
nazzi (aliás, de modo diversificado entre os três) segundo a qual ou o intelecto é
individual ou é mortal1 Isto significa, por fim, que Kessler pode ter razão quando
afirma (a propósito de Alessandro Achillini, que aqui é citado pelos nossos Jesuítas)
que a adaptação da psicologia averroísta às necessidades do conceptualismo ockha
mista abriu a porta à invasão do neoplatonismo no debate psicológico? Pode de facto
ser tudo isto, mas, seguramente, o que os Comentários de Coimbra testemunham é
novamente uma refutação das teses 'averroístas' de António Bemardi�
<Zl ln III De Anima . . II, q. 7 , a. 3 , p. 8 3 : «Loca uero ex Aristotele adducta alium sensum habent,
.
non eum quem aduersarii uolunt. Non enim Aristoteles intellectum uocat separatum quidpiam,
et immixtum, quod semper re ipsa extra materiam uersetur, sed quod non sit potentia ex mate
riae coalitu orta, aut organo corporeo affixa.»
<3l ln III De Anima . II, q. 7, a. 3, p. 83: «lntellectum autem propterea lumini comparat, quod ut lux
. .
cum coloribus uisilium rerum imagines elicit, sic ille cum phantasmatis concurrat ad producen
das intelligibiles species in intellectum possibilem inhaerentem animae, non quidem separatae,
ut finxit Auerroes, sed corpori unitae, ipsumque informanti. Ait quoque intellectum extrinsecus
aduenire, quia non educitur e potestate materiae, ut caeterae formae physicae, sed a Deo infun
ditur e creatur.»; vd. o meu «La critique d' Averroes dans les Commentarii Collegii Conimbri
censis Societatis Iesu ln tres libras de Anima» (no prelo).
Introdução Geral 1 09
vaux et théorie cartésienne», in J. Biard et R. Rashed (ed.), Descartes et le Moyen Age. Actes du
colloque organisé à la Sorbonne du 4 au 7 juin 1 996, Paris 1 997, pp. 1 8 1 -82.
C 3J F. SU Á REZ, Commentaria una cum quaestionibus in libras De Anima. Comentários a los
libras de Aristóteles Sobre e/ alma d.8, q. l , n.2 1 , (ed. S. Castellote, Madrid 1 99 1 , III p. 40).
C4 l Cf. GILSON, E., lndex . . 266-68 e passim; SIMMONS , A., «The Sensory Act: Descartes and
.
the Jesuits on the Efficient Cause of Sensation», in S. F. Brown (ed.), Meeting of the Minds. The
Relations between Medieval and Classical Modem European Philosophy, Turnhout 1 998, 63-
-76; ARMOGATHE, J.-R. «Les sens . . . », pp. 1 74- 1 84.
110 Introdução Geral
phantasia como uma «notion passage» ? quer atendendo ao seu carácter dualista�
quer à sua tripla função� Seja como for, nem todos estes elementos receberam trata
mento equitativo nos vários comentários (muito menos no respeitante ao De Anima)
e nem todos eles teriam a mesma acutilância, tratando-se de autores que sobrepõem
o teórico ao prático.
Na verdade, no que diz respeito à fantasia ou imaginação (phantasia, imaginatrix
facultas), o ponto principal tem a ver com a respectiva discussão no âmbito do
conhecimento, mormente no quadro dos sentidos internos. Um outro ponto, obvia
mente, seria concomitante à crítica da posição averroísta; ao recusar o intelecto a
qualquer Homem individual, o averroísmo definia-o pela faculdade imaginativa
(cogitativa), dimensão que muito interessaria ao modelo do homo artificialis do
Renascimento, mas que os Jesuítas procuraram refutar, como atrás se explicou.
Interessa-lhes antes a questão relativa ao número dos sentidos internos e, con
forme lembrado, decidem-se a acompanhar a posição económica e moderna de
Pedro da Fonseca, que os reduz a dois, senso comum e fantasia4 na linha, aliás, do
< 1 > Cf. FRERE, J., «Fonction représentative et représentation. 'Phantasía' et ' phántasma' selon
Aristote» in Corps et Ame . . 347 : «Aristote part du niveau !e plus frustre, celui que l ' on ren
.
contre chez ! ' animal, chez !e rêveur, chez !e fou: ici la phantasía renvoie à la sensation en son
double versant physiologique et psychologique. Puis Aristote se dégage de cette entreprise du
corps sur la phantasía, d' abord avec ce faire neuf qu' est l ' activité du savant ou celle de l ' orateur,
mais ensuite, de façon toute nouvelle par rapport à Platon, avec l ' analyse de la phantasía dans !e
domaine de l ' art».
<2> FRÉ RE, J., «Fonction ... » 34 1 : «Ainsi s'opposent les deux niveaux de la phantasía aristotéli
cienne. Premierement une phantasía primaire (aisthetiké), deuxiemement une phantasía élaborée
débordant l ' aisthetiké. II y a d' abord une phantasía qui conserve, plus ou moins bien ce qui fut
présent, et !ui accorde une quasi-présence: celle de la rêverie, celle du rêve, celle de la mémoire,
celle qui guide la maigre pensée et !e comportement de ! ' animal. II y a, s ' y surajoutant, une
phantasía auxiliaire et de l ' intellect pensant et de l ' intellect guidant la práxis: rien sans elle ne
peut s' envisager pour l ' être doué de raison. La premiere conserve, la séconde élabore. II y a une
phantasía qui guide et qui oriente (!' animal), une phantasía que retrouve (l' homme) et une
phantasía formatrice (formant une seule image de plusieurs). C' est toute l ' opposition entre III, 3
(la représentation premiere, la représentation animale), et III, 7 ou la phantasía devient ici
l' auxiliaire indispensable de la pensée et de ! ' agir. Apprendre, comprendre, contempler, affir
mer, nier, la synthese (sumploké), !e calculer, surtout !e délibérer.»
<3> FRÉRE, J., «Fonction . . . » 346: «La phantasía selon Aristote n' est pas double. Elle est tripie. II y
a !e phántasma plus ou moins ressemblent face à ce qui a été senti: c ' est la phantasía aisthetiké,
dans !e rêve, dans !e souvenir, dans la folie, mais avant tout chez ! ' animal. II y a la phantasía
constructive, volue, énoncée, pénétrée de raison: la phantasía logistiké et bouleutiké, laquelle
anime le domaine de !' epistéme comme celui de la práxis éthico-politique. La phantasía du rhé
teur rej oint celle du géometre. Mais il y a enfin la phantasía constructive-artiste, !e poiein
(comme chez Platon mais tout autrement fondé que chez Platon), la fonction représentative du
peintre, du sculpteur, du poete, celle des métaphores du métaphysicien. Toujours et partout la
phantasía implique !e venir-à-paraitre (phaínesthai), venir à la lumiere (phos), faire un de plu
sieurs».
<4> ln III De Anima ... II, c.3, p. 3 1 0. São, vulgarmente, cinco os sentidos internos: sentido comum e
imaginação (localizados no ventrículo cerebral anterior), fantasia e estimativa (no ventrículo
médio) e memória (no posterior), cf. PARK, K., «The Organic Sou!» 470-7 1 , 480-8 1 , 466 e
474.
Introdução Geral JJ1
(B) ln III De Anima . . . p. 3 1 1 - 1 2: não se distinguindo da vis cogitativa, compõe, divide e constrói
silogismos com termos singulares, não por influência da parte sensitiva, mas por participar da
intelectiva. Remetem para I", q. 8 1 , a. 3 e ln Quaest. de An. A. 1 3 , sobre o texto 20 do capítulo V.
(9l ln III De Anima . . . II, p. 303.
112 Introdução Geral
( I J BARTHES , R., Sade, Fourier, Loyo/a, trad. , Madrid 1 997, 63-7 1 ; HÕ PFL, H . , Jesuit Political
Thought . . 29: «Any account of the Jesuits which ignores their spirituality would be absurd»;
.
DIAS , 1. S . da S., Correntes ... 65 1 sg. Veja-se também, por fim, MASSIMI, M . , Palavras,
almas e corpos no Brasil colonial, São Paulo 2005 .
<2l BARTHES , R., Sade . . . 70.
<3l ln Ili De Anima . . II c.7, expl. p. 1 62; ibid. q.6, a. l, p. 1 83 .
.
<4J Cf. CAR VALHO, M. S . d e & MEDEIROS, F . , «Em tomo d o paradigma d a visão n o século
XVI: luz , visão e cores no Comentário Jesuíta Conimbricense ( 'De Anima' II 7)».
Introdução Geral 113
(!) Cf. ln III De Anima . . . II, c. 6, q. 5: Vtrum sensibile commune propriam speciem sensiterio
inurat; ibid. c. 7, q. 5: Vtrum uisio fiat emissis ab oculo radiis, an receptis ab obiecto imagini
bus. Cf. também ln III De Anima . . . II c . 3 , q. 5, a. 2, p. 1 2 1 para o caso da visão de dois objectos
de diferente espécie, com a análise de DES CHENE, D., Life 's Fonn . . . 1 25- 1 26.
(l) PICHOT, A., «Introduction» in Galien. CEuvres médica/es choisies. Trad. de Ch. Daremberg;
choix, présentation et notes par A. Picho!, Tome I, Paris 1 994, xxxv, xxxvii.
<3l ln III De Anima ... II c. 6, q. !, a. !, p. 1 36: « . . .intellectus uero agens praeparat primo patientem
ad agendum, imprimendo illi intelligibiles rerum imagines: quo etiam pacto obiectum sensile,
quod a sensu re ipsa distinguitur, sensum praeparat, ac disponit, sui ad ipsum transmittendo
similitudinem.»
114 Introdução Geral
mada, realmente sente � Houve quem tivesse salvaguardado, por isso, alguma simili
tude entre esta teoria e a doutrina cartesiana, segundo a qual, embora os sentidos
sejam faculdades passivas da alma, em qualquer caso também esta exerce uma acti
vidade eficiente na produção das sensações? Isto equivale, sem dúvida, à recepção
quinhentista de uma velha polémica atinente ao sentido agente � Mais uma vez, ela
não atesta só a profunda complexidade do «sistema dos sentidos»� mas decerto mais
uma das dimensões em que é possível falar-se da actividade da alma, logo na sua
primeira dimensão, a sensível, sem beliscar a sua unidade fundamental, traduzindo
-se desse modo um certo distanciamento em relação à passividade sensível aristoté
lica, a que ainda se não prestou a atenção merecida.
Uma derradeira palavra sobre a faculdade da imaginação justificaria evocarmos a
tese kantiana sobre o poder criativo da imaginação (Einbildungskraft), precisamente
no sentido da transformação de um objecto. Trata-se de o interiorizar, como que
conferir-lhe «uma outra natureza a partir da matéria que a natureza efectiva lhe dá» ?
E não teríamos outra maneira de justificar este atrevido paralelo com a terceira Crí
tica senão chamando a atenção para o modo etimológico (a nominis etymologia)
como os Jesuítas de Coimbra são sensíveis à palavra de Aristóteles que remetia
phantasia para phos (429 a 3), na versão de Argirópulo, « . . . quod nomen imaginatio
ab ipso lumine sumpsit, phantasiaque dicitur, quia sine lumine visio fieri nequit» �
quer dizer: « . . . chamamos-lhe 'fantasia' , pois o nome 'imaginação ' é tomado da
própria luz, já que sem a luz é impossível a visão». Como seria de esperar, além de
se sublinhar a afinidade ou a relação entre a sensação e a imaginação, aponta-se
inequivocamente para uma componente que permite a passagem do gnosiológico ao
ético, e do conhecer ao pensar, defendendo o seu estado de permanência na mente de
quem está a fazer o seu exercício individual de discernimento. É pelo facto, escre
vem os Jesuítas, de a «fantasia tomar o seu nome da visão, que ocupa o lugar princi
pal entre todos os sentidos externos, visto que o recebe da luz» que, das duas partes
da partícula do texto grego «apó tou pháous kaí tes staseos» - menção contraban
deada esta, vale a pena assinalá-lo, porque não se encontra no texto de Aristóteles -,
a segunda parte dessa partícula (i. e. : 'tes staseos ' ), continuam, sem deixar de remeter
O l ln Ili De Anima . . . II e. 6, q. 1 , a. 2, p. 1 39: «Si igitur primo, uel tertio modo consideretur, haud
dubie potentia passiua est; cum sic non operetur, sed patiatur: si secundo modo, est potentia
actiua; quia sic non patitur, sed operatur. Pro qua re lege D. Nemesium capite 6. de natura
hominis.»
<2l SIMMONS, A., «The Sensory Act. . . » 75. Neste mesmo lugar, a autora remete ainda para um
seu estudo, que não pudemos conhecer, «Explaining Sense Perception: A Scholastic Challenge»
Philosophical Studies 73 ( 1 994) 257-75.
<3l Cf. PATTIN, A., Pour l 'histoire du sens agent. La controverse entre Barhélemy de Bruges et
Jean de Jandun. Ses antécedents et son évolution, Leuven 1 988.
<4l Cf. BIARO, J., «Le systeme des sens dans la philosophie naturelle du XIVe siecle (Jean de
Jandun, Jean Buridan, Blaise de Parme)» Micrologus. Natura, scienze e società medievali 1 0
(2002) 335-5 1 .
<5l KANT, 1., Crítica da Faculdade do Juízo § 49. Introd. , trad. e notas de A . Marques e V . Roh
den, Lisboa 1 992, 2 1 9.
<6l ln Ili de Anima . . . III e. 3, textus 1 62, p. 1 98.
Introdução Geral /15
para uma profilaxia das paixões da alma, «indica o que se toma permanente e de
certo modo justo (permanens et quidem merito), visto que a imaginação permanece
(permanet) quando a função dos sentidos externos cessa. » 1 Passámos assim da
memória sensitiva à memória intelectiva, sendo a propósito desta que os autores de
Coimbra farão coincidir o IIIº livro do De Anima de Aristóteles com o Xº do De
Trinitate de Agostinho ?
(l) ln Parva Natura/ia: D e memoria c. I , p.3: «lntellectivam tradidit Aristoteles 3 º D e Anima cap. 4,
text. 6, cum docuit animam esse locum specierum, non totam sed intellectum; de qua etiam
interpretandus est D. Augustinus libra 1 0º De Trinitate cap. 1 1 cum ait memoriam, intelligen
tiam et voluntatem unam esse mentem, hoc est in unam eademque mente inharere.»
O l Cf. para o que se segue, o nosso «A doutrina do intelecto agente no Comentário ao 'De Anima'
do Colégio Jesuíta de Coimbra» in FERNANDO SELLÉS , J. (ed.), El Intelecto Agente en la
Escolástica Renacentista, Pamplona 2006, 1 55- 1 83 .
116 Introdução Geral
<Zl ln Ili De Anima ... III, c. 5, q. 1, a. 2, p. 323 : «Hanc assertionem loco citato confirmauit
Aristoteles ex eo quia id, quod est in potentia, eget aliquo, a quo ad actum deducatur. Cum igitur
intellectus possibilis sit in pura potentia necessario erit danda aliqua facultas, a qua ad
intelligendi actum deduci possit: haec autem est intellectus agens . . . ». ln Ili De Anima . . . II c. 6,
q. 1 , a. 1 , p. 1 36: «Agentem uero intellectum ideo a patiente Aristoteles distinxit, quia, ut ibi
enuncleatius exponemus, in tota ratione rerum aliud est id, quod ad agendum praeparatur; aliud,
quod primo praeparat. . .»
<3l Cf. ln Ili D e Anima . . . III c. 5, q. 1 , a. 3, p. 325 .
<4l Cf. ln Ili De Anima . . . III c. 5, q. 1 , a. 3, p. 325 .
<5l ln Ili D e Anima . . . III, c. 5 , q. 1 , a . 2, p . 324: «Ex his duabus opinionibus neutra sane
improbabilis uidetur . . . »; cf. KESSLER, E., «The Intellective Soul» 5 1 3 .
<6l ln Ili D e Anima . . . III, c. 5, q. 1 , a . 2 , p. 3 2 3 : «Sic uniuersales causae, u t intelligentiae, e t corpora
coelestia distinguuntur a mundo elementari, quem ad generationes rerum instruunt, ac
promouent; sic ignis distinguitur a ligno, quod calefacit; aqua a manu, quam refrigerat: color,
caeteraque obiecta sensuum externorum ab ipsis sensibus externis, quibus sui similitudinem
inurunt; et sensus externi ab internis, ad quos rerum a se perceptarum species mittunt; atque ita
in caeteris res habet. Quare consentaneum est, ut etiam intellectus agens, qui patientem per spe
cies intelligibiles ad intelligendum disponit, realiter ab eo differat.»
<7l ln Ili De Anima . . III, c. 5, q. 1, a. 2, p. 324: «!taque huiusce opinionis ratio, ac fundamentum
.
tema das espécies, mas também a discussão sobre a relação entre o s dois intelectos.
Acerca deste assunto, eles esclarecerão que só ao intelecto possível compete julgar e
pensar, sendo o agente como que o auxiliar do possível (quasi administer). E, se
nada há de mais elevado do que pensar, então a aplicação da tese aristotélica da
superioridade do acto sobre a potência (aprovada por Agostinho, acrescentam 1 ) às
relações entre o intelecto agente e o intelecto passivei, não deve ser interpretada em
sentido absoluto, mas qualificado (praecise consideratione)?
Estabelecida a necessidade do intelecto agente e a sua provável distinção real do
intelecto possível, eles estudam as três funções referidas do intelecto agente. A pri
meira é a da iluminação efectiva, um episódio mais da constante história da luz antes
do Iluminismo, que os autores inscrevem no texto 1 8 (430 a 1 4) ? Noutro lugar do
Comentário esta metáfora da iluminação serve aos autores para a condenação da tese
averroísta da unicidade universal da alma intelectiva (incluindo, dessa maneira, os
intelectos agente e possível)� Agora, o tom é polémico (é uma das características da
filosofia desta época) e, por isso, o diferendo Durandoffomás reaparece� sobretudo
sob a perspectiva de discussões mais modernas, como, por exemplo, a tese de Cae
tano sobre a «iluminação objectiva» 6 e as teorias de João Capréolo e de Francisco
Silvestre de Ferrara, sobre a «iluminação radical» ? Tratava-se, primeiro, de contra
riar quem concebia a iluminação das representações sensíveis como uma determi
nada qualidade em que tais representações seriam levadas pelo intelecto agente à
O l ln III De Anima . . III c. 5, q. 2, a. 1 , p. 327: «Sunt qui iliam putent consistere in productione
.
certe qualitatis; cuius merito, ac ui phantasma ah intellectu agente excitetur ad gignendam for
mam spiritalem, hocest, speciem intelligibilem. » ; cf. SPRUIT, L., Classical Roots . 282.
. .
<2l Os autores citam explicitamente, para a negar, a seguinte passagem sobre o intelecto agente,
TOM Á S de AQUINO, Summa contra Gentiles II 77: « . . . est igitur in anima intellectiva virtus
activa in phantasmata, faciens ea intelligibilia actu»; cf. ANDRADE, A. A. B. de, «Teses ... »
1 25 .
<3l MÜLLER, H. J., Die Lehre vom verbum mentis i n der spanischen Scholastik, Münster 1 968,
24 1 -2 que remete para D. Bafíez, Scholastica Commentaria in Primam Partem Ange/ici Docto
ris D. Thomae Aquinatis, Venetiis 1 59 1 , s.p.
<4l Cf. ANDRADE, A. A. B . de, «Teses ... » 1 26, que remete para PEDRO da FONSECA,
Commentariorum . . V, c. 28, q. 8, sec. 3, c. 1 025-29.
.
sua primeira função, ele apenas eleva as representações sensíveis ao nível da natu
reza comum representada pelas espécies inteligíveis � Ao aprofundarem esta questão,
os autores dizem ser nos termos da causa eficiente, e não da causa material, que a
imagem sensível concorre com o intelecto agente para produzir espécies inteligíveis.
Frente aos fundamentos daqueles (como Caetano, Ferrariense e Capreolo) que
defendem que essa causa é instrumental e aos fundamentos dos que dizem (como
Escoto) que ela é parcial� os Jesuítas de Coimbra preferem assinalar aos seus alunos
serem ambas prováveis (utraque harum opinionum admodum probabilis uidetur),
embora concedam mais espaço ao exame da posição escotista das causas parciais �
Na metáfora do intelecto agente como luz efectiva, o ser representativo ou a razão da
representação (rationem repraesentandi seu esse repraesentatiuum) da espécie inte
ligível é causada efectivamente pela imagem sensível, e a espécie inteligível recebe
o respectivo ser inteligível (esse spiritale) dos dois intelectos: do agente, como causa
efectiva, e do possível, como causa subjectiva ou material�
De acordo com a segunda tarefa do intelecto agente (jacere obiectum intelligibile
actu), «actualizar o objecto inteligível equivale a fazer com que um determinado
objecto seja representado numa espécie inteligível» � Na geração desse princípio
formal da intelecção, que é a espécie inteligível, a conjugação duplamente efectiva,
qual a das imagens sensíveis com o intelecto agente, causa no intelecto possível a
ciência e o hábito provocado pelo exercício da ciência. O que era inteligível em acto
(i. e. objecto do intelecto agente) toma-se inteligido ou pensado em acto no intelecto
possível. A prioridade de natureza do inteligível em acto sobre a intelecção feita
pelo intelecto possível vai a par da afirmação da necessidade da espécie inteligível
considerada como pré-requisito e suporte da intelecção� Tendo agora presente que
aqui se devia visar directamente a tese de Caetano, depreende-se que um entendi
mento correcto da iluminação (sem conferir ao intelecto agente a capacidade de
pensar nem de gerar de imediato qualquer pensamento, a iluminação tem, contudo,
um papel efectivo7 ) exige tomar uma posição exterior à epistemologia, porquanto
< 1 > P. da FONSECA, Commentariorum. . . V, c. 28, q. 8, sec.4, c. 1 032: « . . . intellectus agentis func-
tio non sit cognoscere, quemadmodum nec pati seu recipere, sed agere. . . »; cf. também GRAU I
ARAU, A., «La función dei entendimiento agente en la epistemología de Francisco Suárez
( 1 548- 1 6 1 7)» Revista Espanola de Filosofía Medieval 9 (2002) 1 96.
<2> Cf. ln Ili De Anima ... III c . 5, q. 6, a. 2, p. 358.
<3> Cf. ln Ili De Anima ... III c . 5, q. 6, a. 2, p. 359. Cf. também P. da FONSECA, Commentario-
rum . . . V, c. 28, q. 8, sec. 5, c. 1 035, no sentido da causa eficiente.
<4> ln Ili De Anima . . . III c. 5, q. 6, a. 2, p. 358: «Namque rationem repraesentandi, seu esse reprae
sentatiuum, accipit species a phantasmate, quemadmodum et esse spiritale ab utroque intellectu;
ab agente, ut ab effectrici; a possibili ut a causa subiectiua seu materiali.»
<5> ln Ili De Anima ... III c. 5, q. 2, a. 2, p. 329: «Quo patet reddere obiectum intelligibile actu, nihil
esse aliud, quam efficere ut obiectum repraesentetur in specie intelligibili.»
<6> Cf. ln Ili De Anima . . . III e. 5, q. 2, a. 2, p. 329.
<7> ln III De Anima ... III c. 5, q. 2, a. 2, p. 330: « . . . sententia quae decemit intellectum agentem non
intelligere, nec ullam intellectionem immediate producere, et communior est, et uerior.»
Introdução Geral 121
relativa a essa região que abarca o último limite do sensível e o primeiro limite do
inteligível.
Compreende-se também por que é que os Jesuítas não tomam a questão nuclear
da possibilidade intelectiva na perspectiva da recepção da espécie (secundum recep
tionem speciei), mas sim segundo o próprio carácter da intelecção (ratio intellectio
nis). Não correríamos grande risco se dissessemos que se confrontam com uma
pergunta implícita: «O que significa pensar?» «Por intermédio da sua imagem, o
inteligível em acto, em conjunto com (una) o intelecto possível, toma efectiva a
acção intelectiva» ! Isto equivale a regressar - dizem eles - ao De Trinitate IX, 1 2,
que defende que o conhecimento (notitia) se explica a potentia et obiecto, ao que
parece um refrão habitual entre os autores ibéricos � mas que aqui reivindica uma vez
mais a correcção do princípio da iluminação, quer dizer, a aproximação entre o
físico e o mental pela própria natureza da intelecção. Em conformidade, os nossos
Jesuítas insistirão na teoria da actividade do intelecto possível: se o intelecto possí
vel tem uma relação de pura passividade ou receptividade com o objecto, já relati
vamente ao processo intelectivo o intelecto possível terá de ser considerado activo,
porque nem o intelecto agente nem a imagem são suficientes por si para a realização
do pensar.
Os textos ocupados com a última das tarefas do intelecto agente (producere spe
cies intelligibiles in patientem) permitem aos autores duas comparações. O intelecto
agente está para o possível como a arte para a matéria, o que quer dizer que ele
induz (inducere) as espécies inteligíveis no intelecto possível. Se o comparamos
com o hábito, o intelecto agente deve ser tomado em sentido lato, i. e. , não no sentido
em que falamos dos hábitos dos primeiros princípios, mas no sentido de compreen
der (complectitur) qualquer faculdade que opere? Noutro lugar, também se lia
competir ao intelecto agente preparar o intelecto possível para este agir, o que suce
deria mediante a impressão das imagens das coisas inteligíveis� É claro que tudo isto
não é propriamente uma clarificação e, sobretudo, escamoteia problemas de inter-
O l ln III De Anima . . . III e. 5, q. 2, a. 2, p. 329-30: « . . . intelligibile actu per suam imaginem una
cum intellectu possibili intelligendi actionem effectiue edit. Vnde illud ex Diuo Augustino lib.
9. De Trinitate capit. 1 2. a potentia, et obiecto paritur notitia.»
(Z) SPRUIT, L., Classical Roots . . . 1 8 1 ; P. da FONSECA, Commentariorum . . V, e . 28, q. 8 , sec. 4,
.
e . 1 029: « ... intellectus possibilis simul cum specie intelligibili, per quam res est facta intelligi
bilis in actu, producit actum intelligendi, iuxta commune illud Philosophorum pronuntiatum, 'A
potentia et obiecto paritur notitia. ' » .
(3) ln III D e Anima . . . I I I e . v, q. 2, a. 2, p. 33 1 : «Sed quaesierit adhuc forte aliquis cur Aristoteles
capit. 5. huius libri text. 1 7 . dixerit intellectum agentem habere se ad possibilem ut artem ad
materiam. Item cur illum eodem capit. textu 1 8 habitum uocarit. Ad primum horum dicendum
comparasse intellectum agentem arti, quia ut ars infert in materiam formas artificiales, ita intel
lectus agens inducit in possibilem species intelligibiles. ( . . . ) Ad posterius dubium respondendum
est intellectum agentem non uocari habitum ab Aristotele, quod sit habitus primorum principio
rum, ut arbitrati sunt nonnullis ( . . . ) . Dicendum est igitur intellectum uocari ab Aristotele habi
tum, late accepta habitus appellatione, ut complectitur quamlibet uim, aut facultatem ad operan
dum.»
<4l ln III De Anima ... II e . 6, q. 1, a. 1 , p. 1 36 : « . . .intellectus uero agens praeparat primo patientem
ad agendum, imprimendo illi intelligibiles rerum imagines . . . »
122 Introdução Geral
pretação dos textos aristotélicos. Seja como for, tal demonstra que os Jesuítas pre
tendem atribuir ao próprio texto de Aristóteles uma autêntica doutrina da iluminação
e ensinar que essa doutrina é indefensável, se não se der ao «intelecto que é capaz de
se tomar todas as coisas», a sua base objectiva material mediante a postulação da
necessária existência do intelecto agente e das espécies, já na sua dimensão espiri
tual, já na sua dimensão representativa do que é sensível.
Um tratado sobre as espécies inteligíveis completa a doutrina do intelecto agente �
Estando os seres materiais em potência para serem entendidos, a sua necessária
desmaterialização com vista à representação no intelecto, também ele imaterial,
acontece por meio das espécies inteligíveis, semelhantes ao intelecto nas suas for
mas inteligíveis.
As três características destas espécies inteligíveis demonstram isto mesmo2 :
1 . imagens ou representações das coisas que podem ser pensadas;
2. princípios constituintes da intelecção conjuntamente com o intelecto (dada a
sua perfeição, estas duas primeiras características podem dar-se no intelecto
beatífico);
3 . inerentes ao intelecto após retirá-las da natureza do acidente.
O l ln Ili De Anima . . III c. 5, q. 3, a. 2, p. 333: «Secundo, quia cum intellectus ad hanc, uel iliam
.
rem percipiendam indiscriminatim se habeat; cumque in se spectatus sit pura potentia, necessa
rio ad intelligendum requirit aliquam formam, qua actuetur, et eget aliquo formali principio,
unde intelligendi actum promat, et quo ad hoc potius, quam illud concipiendum determinetur.
Haec uero forma, et principium non aliud est, quam species intelligibilis.» Os autores enumeram
hierarquicamente (ln de An. III c. 5, q. 3, a. 2, p. 335) os seguintes tipos de espécies, «ordine
dignitatis» : (i) dos sentidos externos; ii) dos sentidos internos (que não confundem com o sen
tido comum); iii) inteligíveis; iv) do intelecto angélico. Cf. ANDRADE, A. A. B, de «Teses . . . »
1 23- 1 37 ; SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . 289-93 ; SPRUIT, L., Classical Roots . . 2 1 ,
. .
1 79- 1 86.
c 2> Cf. ln li/ De Anima ... III c. 5 , q. 3, a 2, p. 334.
C 3l Como é sabido L. SPRUIT (Classical Roots . . 68) afirma que os autores do Collegium
.
Conimbricense S. J. reduzem a lista de Toledo relativa aos autores que negam a existência das
espécies, mas, como referimos, enquanto não for estudada a tradição manuscrita do curso aquela
afirmação não pode ser interpretada em termos consequentes.
C4l ln Ili De Anima . . III c. 5 , q. 3, a. 1 , p. 332: «Cum igitur phantasia, et intellectus sint potentiae
.
subordinatae, ratio ordinis postulat, ut phantasia, quae est potentia natura prior, repraesentet
intellectui obiectum, quod ille confestim apprehendat absque alia specie. »
Introdução Geral 123
Santo Tomás).
C 3l ln III De Anima. . . III e . 5, q. 3, a. 3, p. 335 : «Nec enim facultati appetenti sic obiectum
repraesentatur ut quod a cognoscente apprehenditur, ipsa etiam cognoscat: sed eatenus dicitur ei
repraesentari obiectum, quatenus in id tendere non ualet, nisi a cognoscente praeconceptum sit.
Quo patet, esto phantasia, et intellectus sint potentiae sub ordinatae; non probari hoc argumento
sat esse repraesentari obiectum a phantasia: ut in id intellectus illico absque specie sibi inhae
rente feratur.»
C4l Cf. ln III De Anima . . III. e. 5, q. 1 , a. 1 , p. 32 1 .
C 5 l Cf. ln III De Anima. . . III e . 5 , q . 3 , a . 2 , p . 334.
124 Introdução Geral
do objecto e na latência do pensar ! Eles também remetem para o que haviam escrito
no capítulo 2 do Comentário ao De memoria et reminiscentia (onde, além de uma
memória sensitiva, localizada na cabeça, falavam de uma memória intelectiva) e
defrontam, sem o explicitarem quem, como Henrique de Gand, admitindo as espé
cies sensíveis, parecia excluir qualquer tipo de memória intelectual, «quod est contra
experientiam» ? Se atentássemos ainda em que aquela passagem de De memoria
aparece colacionada com a teoria de Agostinho (De Trinitate X, 1 1 ) relativa à tripla
estrutura da mente humana, memória, inteligência e vontade� percebeóamos melhor
a extensão do preconceito neoplatónico que justifica a necessidade das espécies
inteligíveis.
Em tomo do capítulo VIII, os autores do Curso tratam da diferença entre espécies
inteligíveis, intelecção, verbo e objecto ou «res intellecta» e defendem uma dife
rença real entre espécie inteligível e intelecção, porque: a) a espécie é causa parcial
da intelecção e b) ao cessar a intelecção a espécie permanece, podendo Deus, se a
espécie se retirar, produzir um acto intelectivo. Esta última significa que toda a cau
salidade da causa eficiente pode ser superada pela potência divina. No artigo 2 da
terceira questão, eles defendem que o verbo e a intelecção não se distinguem real
mente, mas pela razão, distinguindo-se ambos realmente do objecto. Voltaremos
mais à frente a estas distinções.
Quanto ao tema candente do conhecimento dos singulares mediante espécies
inteligíveis próprias, tema que dividia tomistas e escotistas (agitatur haec quaestio
inter Philosophos magna dissidentium partium contentione4 ), avaliou-se a posição
dos Jesuítas de Coimbra como sendo «débil» ( «relaxed attitude» ) ? Isto porque, ape
sar de se inclinarem para a negação da possibilidade de se conhecer singulares
mediante espécies inteligíveis próprias, hesitam entre teses prováveis ? Importa ava
liar essa «hes'itação», mas convém repetir que, baseados numa perspectiva de aco
modação ao filum doctrinae dos seus comentários, eles norteiam os alunos para a
negação da existência de espécies inteligíveis próprias dos singulares? Os autores de
Coimbra põem-se, de facto, ao lado de Tomás, de Capreolo, de Caetano, de Argen
tina e do Ferrariense, apoiados sobretudo nos textos 1 0 (429 b 1 5 -20) e 1 6 (430 a
( I J ln III De Anima . . . III, e. 5, q. 3, a. 2, p. 335: «ln tertio species intelligibiles nostri intellectus,
quae obiecto non existente, et cessante intellectione, perseuerant; cumque immateriali subiecto
insint, postquam ei semel inhaeserunt perpetuae, atque indelebiles sunt.»
(Zl ln III De Anima . . . III e . 5, q. 3, a. 2, p. 334.
<3l De Memoria e. !, p. 4.
<4l Cf. ln III De Anima . . . III e. 5, q. 4, a. ! , p. 337.
<5l SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . . 29 1 ; cf. também KESSLER, E., «lntellective Sou!»
513.
<6l ln III De Anima . . . III e . 5 , q . 4 , a . 3, p . 34 1 : «His ita disputationis utraque pars quaestionis
probabilis uidetur, etsi propositum nobis sit tueri potius negatiuam, quae Aristotelicae doctrinae
magis consentanea existimatur. .. »
<7l Cf. ln III De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 3, p. 345 .
Introdução Geral 125
cies inteligíveis eram imateriais no seu modo de ser, mas no modo de representar ! E
que o motivo da hesitação é também textual prova-o de novo a discussão dedicada
ao símile da linha, acerca do qual mostram-se conhecedores de uma interpretação
relativa apenas à diferença entre as faculdades que conhecem singularmente e uni
versalmente�
Posto isto, é evidente haver razões de probabilidade em ambas as teses. Deve até
observar-se que há todo um artigo ocupado com o exame crítico dos argumentos de
ambas as partes a fim de facilitar uma tomada de posição dos estudantes. Uma tese
como a da intelecção do conceito singular (esse rei singularis conceptum) próprio e
adequado - quer dizer, do caso em que se apreende Sócrates enquanto Sócrates e
não do caso em que se apreende Sócrates como Homem (conceito comum) - deve
até ser colacionada com a afirmação, mais adiante no Comentário, de um tipo de
conhecimento intuitivo na linha de Ockham e de Duns Escoto� Como então avaliar
toda esta hesitação? Haveria uma resposta óbvia imediata que não gostaríamos de
descartar apressadamente: sob o peso absoluto da tradição escolar e da polémica, os
Jesuítas de Coimbra regressam ao texto de Aristóteles, não vendo nele razões que
lhes permitam dirimir o problema. Se esta nossa resposta for sustentável, haverá
então que reconhecer o trabalho de objectividade interpretativa e a admissão implí
cita de que aquela tradição peripatética deve ser expurgada sob a bitola de um novo
«filum doctrinae» �
Esclarecendo este problema, A. Coxito atentava na imitação que o redactor do
Curso fazia da tese de Pedro da Fonseca de um conhecimento reflectido ou 'infle
xivo' , i. e. , distinto de um conhecimento reflexivo do singular? Lia-se isso, precisa
mente, no Comentário à Metafísica de Fonseca (lc2q3s5), e na Física de Góis
(lc l q4a3) explicava-se que conhecemos as coisas singulares por meio das espécies
das naturezas comuns, espécies que formamos a partir das imagens sensíveis. Deste
modo, dir-se-ia que o entendimento levava a cabo uma inflexão, uma descida, ao
socorrer-se de uma potência inferior (phantasia) . A referida inflexão com que se
descrevia o conhecimento do singular seria como que uma linha curva (linea flexa),
linha que se distenderia quando o entendimento percebe o universal mediante uma
conversão a si próprio, afastando-se finalmente dos objectos sensíveis.
Entroncando com a doutrina aristotélica das categorias, estão algumas das onze
teses (assertiones) relativas às espécies que os intelectos produzem enquanto a alma
se encontra unida ao corpo. Este tópico aparece explicitamente motivado pela neces
sidade de combater: i) a teoria estóica sobre a origem das espécies a partir das ima
gens sensíveis; ii) a teoria platónica, que via tal origem nas ideias separadas; e iii) a
teoria avicenista das inteligências separadas. Basta-nos referir as sete teses respei
tantes ao tipo de espécies que o intelecto agente pode gerar, na linha da sua terceira
função atrás enumerada !
TESE 1 : «todas aquelas espécies das quais possuímos imagens sensíveis
(phantasmata) próprias».
TESE 2: «as espécies de todas as substâncias corpóreas» .
TESE 3 : «as espécies inteligíveis d e todas a s quantidades físicas».
TESE 4: «as espécies inteligíveis das qualidades materiais, ou por si mesmas ou
por outros sensíveis».
TESE 5 : «as espécies inteligíveis de algumas relações».
TESE 6: «as espécies inteligíveis de algumas acções e paixões dos corpos».
TESE 7 : «as espécies inteligíveis respeitantes às restantes quatro categorias».
A tese 1 é basilar, mas nada acrescenta ao que até aqui temos vindo a dizer. Tra
tando-se de uma afirmação empirista clara, interpretada, embora, na perspectiva
neoplatónica de Agostinho (De Trinitate XI, 8), ela determina a possibilidade de as
espécies das substâncias corpóreas serem produzidas pelo intelecto agente, desde
que nada impeça a formação das imagens sensíveis com que o intelecto agente vai
concorrer no acto de pensar, quer dizer, no plano do conhecimento incarnado�
Situando-se no centro de um debate sobre o conhecimento da verdade substancial, a
( 1 ) Omitimos dois casos: Tese 10 (ln III De Anima . . . III c. v, q. 5, a. 2, p. 35 1 ) : «Hoc uitae statu
non dantur in nostro intellectu species intuitiuae.»Tese 1 1 (ln de An. III c. 5, q. 5, a. 2, p. 352):
«ln utramque partem probabile est dari in nostro intellectu, etiam hoc uitae statu, aliquarum
rerum immaterialium species.»; cf. ANDRADE, A. A. B. de, «Teses . . . » 1 36-37.
<2l ln III De Anima . . III c. 5, q. 4, a. 1, p. 346: «His ergo erroribus exclusis asserendum est cum
.
Schola Peripatetica species intelligibiles produci in animam, dum est unita corpori, ab intellectu
humano, ut constat ex iis, quae ab Aristotele capite 5. huius libri disputata sunt. Cum autem du
plex in nobis sit intellectus, agens, et patiens; quaenam species a quo intellectu gignantur,
aliquot assertionibus exponemus. Prima sit. Ab intellectu agente produci possunt species
intelligibiles earum rerum duntaxat, et earum omnium, quarum propria phantasmata habemus.
Haec assertio, quae communi philosophorum consensu recepta est, ex eo probatur, quia
intellectus agens non elicit species, nisi una cum phantasmatis, et prout ab iis determinatur, ut ex
superioribus constat, docetque D. Augustinus libro 1 1 . de Trinitate capite 8. cum ait nullam
speciem dari in intellectu nisi sensi intercedente, at nihil impedit quominus intellectus cum
omnibus phantasmatis discriminatim iungi queat ad species intelligibiles producendas.»
128 Introdução Geral
substantiarum corporearum. De ueritate huius assertionis non liquet inter Philosophos. Est enim
ea de re triplex opinio . . . »; cf. também P. da FONSECA, Commentariorum . . . V, e . 28, q. 8, sec.
4, e . 1 03 1 . Cf. SPRUIT, L., Renaissance Controversies . . . 29 1 - 3 ; ANDRADE, A. A. B. de,
«Teses . . . » 1 30-33.
<2> Cf. ln III De Anima .. . III e . 5, q. 5, a. 1, p. 347.
<3J Cf. ln III De Anima ... III e. 5 , q. 5 , a. 1 , p. 347: « . . . aliique nonnulli putant uim cogitatricem
hominis, quam nos a phantasia non distinguimus, proprium exprimere idolum singularis subs
tantiae. Quae sententia nobis placet. Nam cum multo operosius sit ab uno singulari ad aliud dis
currendo progredi, quam ex accidentium inuolucro proprium substantiae phantasma eruere:
cumque primum illud cogitatrici hominis facultati, ut superius ostendimus, concedatur, non est
cur eidem hoc posterius denegetur.».
<4J Cf. ln lll De Anima . . . III e. 5, q. 5, a. 1, p.347; cf. ANDRADE, A. A. B . de, «Teses . . . » 1 3 1 .
(S) ln III De Anima . . . III e . 5 , q . 5 , a. 1 , p . 347 : «Fauet plane Aristoteles hoc i n libro cap. 4 . text. 1 0.
ubi ait cognitionem huius carnis singularis pertinere ad potentiam sensitiuam: et D. Augustinus
lib. 1 0. De Trinitate cap. 1 0. ubi corporum cogitationem imaginatrici facultati atribuit. Non
credimus tamen cogitatiuam ut primum recipit speciem accidentis confestim elicere expressam
imaginem latentis in eo substantiae: sed primo agressu apprehendere tale accidens: deinde ex il
Iius praenotione in substantiae notitiam penetrare. » ; cf. SPRUIT, L., Rennaissance Controver
sies . . . 292.
<5J Cf. ln III De Anima ... II e . 1, q. 7, a. 1 e a. 3 ; ln lll De Anima ... III e. 5, q. 5, a. 1 e e . 6 explanatio f).
Introdução Geral 129
< 1 > Ver o meu estudo «The Concept of Time According to The Coimbra Commentaries», in The
Medieval Concept o/ Time. Studies on the Scholastic Debate and lts Reception in Early Modem
Philosophy, ed. by PORRO, P., Leiden 200 1 , 353-382; SOLÉRE, J.-L., «Descartes et Jes dis
cussions médiévales sur le temps», J. Biard et R. Rashed (ed.), Descartes et le Moyen Age. Ac
tes du colloque organisé à la Sorbonne du 4 au 7 juin 1 996, Paris 1 997, pp. 329-348.
<2> ln Ili De Anima ... III c. 5, q. 5 , a. l, p. 348: «Species intelligibiles omnium quantitatum
corporalium generari possunt ab intellectu agente. Haec suadetur, quia nulla quantitas corporalis
phantasiae praesertim humanae captum excedit; proindeque potest phantasia earum omnium
idolum formare. Dubitet forte aliquis de tempore, quod prae caeteris quantitatibus latet. Non est
tamen de eo dubitandum. . . »; cf. ln VIII Libros Physicorum . . . III, c. 7, q. 5 e 6.
<3> ln Ili De Anima . . III c. 5, q. 5 , a. l , p. 348: «Qualitatum materialium, seu per se, seu aliter
.
sensibilium, species intelligibiles edi possunt ab intellectu agente. Haec patet, quia omnes is
tiusmodi qualitates ueniunt in cognitionem phantasiae, cum re uera sensibiles sint.»
<4> ln ll/ De Anima ... III c. 5, q. 5 , a. l , p. 348-49 : «Multaram relationum species intelligibiles
possunt ab intellectu agente effici. ( . . . ) aduertendum relationem, et quantitatem non producere
immediate species in sensus externos, (siquidem quantitas non est sensibile proprium, sed com
mune, quod tantum species modificat; relatio autem nec proprium, nec commune sensibile est)
sortiri tamen species beneficio phantasiae eruentis, formantisque ipsarum idolum, cum quo in
tellectus agens concurrit ad producendam speciem intelligibilem.»
<5> ln Ili De Anima ... III c. 5 , q. 5, a. l , p. 348-49: «Licet autem eiusmodi concursus, etiam ex parte
idoli, actiuus sit, sicuti et concursus speciei intelligibilis ad eliciendum conceptum, non proinde
tamen asserendum relationem, aut quantitatem in se aliquam agendi uim possidere: esto eam fa
cultatem fortiatur eius species: quod certe haudquaquam mirandum est, cum species transeat in
meliorem categoriam, uidelicet, qualitatis, cui prope soli conuenit esse immediatum agendi
principium, ut libro secundo Physicorum ex instituto disseruimus.»
<6> ln VIII Libros Physicorum ... II c. 7, q. 19, a. 3 , p. 303 : « ... etsi species concurrant actiue ad
intellectionem, et uerbum; non tamen omnia, quorum illae species sunt rite dici per eas actiue
concurrere, nisi talia sint, ut ad eiusmodi specierum generationem proxime, uel remote aliquam
uim actiuam contulerint...»
130 Introdução Geral
ram (como vimos) pensar a iluminação como uma qualidade como também retira
ram às imagens sensíveis qualquer capacidade exclusiva (vis sua) para gerarem uma
espécie inteligível ! Todavia, quando perguntam «se uma e a mesma imagem sensí
vel é capaz de formar várias espécies inteligíveis» - preferindo ater-se à posição
daqueles que defendem ser só uma a espécie inteligível gerada pela imagem sensível
(excluindo assim que, v.g. , perante algo branco se verifique, para além da espécie
respectiva também a espécie da cor) - dizem ser uma vis agendi que exprime a tota
lidade daquela imagem (ex se toto)? Ao afastarem uma representação exclusiva da
natureza comum pela imagem sensível, também propõem que isso se fica a dever a
uma «vis repraesentandi» ? Ora, tal proposta seria ininteligível se não tivéssemos
presente a teoria da iluminação efectiva no quadro metafísico neoplatónico apon
tado. À s imagens sensíveis cabe uma quota-parte da causalidade eficiente particular.
Não é por acaso que o tratado das espécies termina estudando esta participação cau
sal nos seguintes termos : as imagens são a necessária causa particular para o inte
lecto, competindo ao intelecto agente, no processo da iluminação efectiva, conferir a
necessária dimensão universal� A tese 6, sobre as espécies das acções e das paixões
dos corpos, exclui aquelas que fogem ao âmbito corpóreo? E, por fim, a tese 7
limita-se a aludir às restantes categorias ( 'onde' , 'quando' , 'estar numa posição' e
'ter' 6 ).
Seguem-se ainda duas teses respeitantes às espécies inteligíveis exclusivamente
produzidas pelo intelecto possível. Cabe tratá-las na sua relação com o intelecto
agente, posto que os autores também procuram delimitar a contribuição deste inte
lecto relativamente àquele. Frente àquele tipo de filosofias (como no do caso do
judeu português Leão Hebreu) que valorizavam em excesso o intelecto agente ao
ponto de lhe darem a missão de aperfeiçoar o intelecto passivo, encontrámos por
várias vezes a atribuição de uma actividade ao intelecto passivo.
TESE 8: «as espécies dos géneros, caso se removam os impedimentos, são gera
das exclusivamente pelo intelecto possível» ?
TESE 9: «o intelecto possível forma, por vezes, imagens inteligíveis das ínfimas
espécies» �
( I ) ln Ili De Anima . . . IIIe . 5, q. 5, a. 2, p. 349: « . . . si nihil absit, uel obsit, id quod primum a sensu
tam externo, quam interno percipitur, est singulare sensibile speciei infimae, cuius phantasma
una cum intellectu agente non nisi intelligibilem imaginem speciei infimae producet; atque adeo
si elicienda sit imago intelligibilis, quae naturam genericam referat, oportebit accedere operam
intellectus possibilis, qui a natura specifica abstrahat genericam . . . »; cf. também P. da
FONSECA, Commentariorum . . . V, e . 28, q. 8, sec. 4, e . 1 030. Cf. ANDRADE, A. A. B. de,
«Teses . . . » 1 32, mas sobretudo COXITO, A. A, «0 problema dos universais . . . » 52-60.
<2> ln Ili De Anima ... III e . 5, q. 5, a. 2, p. 350: «Nam quod species primo genita ab intellectu
agente, si nihil impediat, non sit species generis; tum aliis argumentis concluditur, tum eo
potissimum quod omnis causa naturalis, si nihil desit, uel obsit, edit primo nobilissimum
effectum, quem potest, nobilior autem effectus est imago repraesentans hominem, quam
animal.» cf. ANDRADE A. A. B. de, «Teses . . . » 1 32-33; cf. SPRUIT, L., Renaissance Contro
versies . . . 293.
<3> ln Ili De Anima ... III e . 5 , q. 6, a. 2, p. 359: « ... quomodo se intellectus agens, et phantasma ad
species intelligibiles: itemque intellectus patiens, et species intelligibiles ad intellectionem.»
<4> ln Ili De Anima . . . e. 5, q. 6, a. 1, p. 354.
132 Introdução Geral
( 1 ) ln III De Anima . . . III e . 5, q. 6, a. ! , p. 355 : «Verum quod unus tantum sensus interior sit proxi
mus minister intellectus, nempe is, qui inter caeteros dignitate emitet (quem nos phantasiam
ponimus) maiori probabilitate asserit Caietanus . . . » De referir que o aspecto citado de Apolinário
Offredus é omisso no dossier de SPRUIT, L., Classical Roots . . . 392-94.
(2) ln III De Anima . III e . 5, q. 6, a. 1, p. 355 : «Vt uero phantasiae satellitium melius percipiatur,
. .
tria occurrunt explicanda. Primum est, utrum phantasma impressum, an expressum concurrat
cum intellectu agente ad producendas species intelligibiles. Secundum, concurrat ne phantasma
ea praecise ratione, qua communem naturam repraesentat, nec ne. Tertium, an unum, idemque
phantasma ad plures species intelligibiles educendas idoneum sit.»
(J) ln III De Anima . III e . 5 , q. 6, a. 1, p. 355 : «Ad primum horum, longiori disputatione omissa,
. .
respondendum est immediate concurrere phantasma expressum, quod ab impresso elicitur. Patet
hoc ex eo, quia phantasia non concurrit cum intellectu nisi operando, dum uero operatur rei
apprehensae phantasma exprimit. Deinde, quia cum in phantasia sint impressae uariarum rerum
imagines, et intellectus agens indiscriminatim se habeat ad usum, seu ministerium huius, uel
illius; oportet ut ad id deterrninetur: non est autem alia ratio, qua determinari possit, nisi eli
ciente phantasia ex una aliqua illarum imaginum phantasma expressum rei per eam significa
tae.»
C4J Cf. ln /II De Anima . . III e . 5, q. 6, a. 2, p. 359.
.
rese ! Esta admissão não põe em causa a tese aristotélica de que a alma nasce despro
vida de quaisquer espécies (q. 1 , a. 3), quer dizer, que o intelecto passivo, sob a
perspectiva gnoseológica, é originariamente (ex sua primaeua origini) pura potên
cia. Eles não vêem como esta tese pode colidir com a afirmação anterior de uma
inata «sanctitas naturalis a Deo impressa», sobretudo levando em conta o princípio,
que defendem, de uma unidade específica ou radical do intelecto com as suas activi
dades?
E. Kessler considerou ser a respeito do processo de intelecção que os Jesuitas de
Coimbra manifestaram uma tese própria, recusando as posições quer de tomistas,
quer de escotistas � De facto, como em Melanchton, segundo Kessler, e em tantos
outros mais, segundo Müller, a intelecção caracteriza-se por ser geradora do verbo,
razão pela qual pensar nada mais é do que uma linguagem interior, tese que reabilita
e reequaciona a ideia augustinista claramente evocada� Em qualquer caso, a reequa
ção desta herança aparece moldada num quadro epistemológico peripatético e
tomista e está longe de poder ser justificada exclusivamente por razões de índole
religiosa ou teológica, como Kessler pretende. Para conhecer, requere-se a presença
da potência cognitiva não apenas como princípio que determina o acto (ut princi
pium sui actus elicitiuum), mas este no seu ser objectivo (in esse obiectiuo, ac ter
minatiuo). Outro argumento na mesma linhagem, i. e. , quer de uma intencionalidade
inerente ao acto de conhecimento, quer de um entendimento deste como manifesta
ção e representação: o conhecimento, que é uma dada assimilação entre a coisa
conhecida e o sujeito que conhece, produz-se quando há a produção da semelhança
expressa da coisa; diz a este propósito Aristóteles que o intelecto em acto é a própria
coisa que é conhecida, isto não em sentido real, mas como uma certa assimilação ou
expressão. Os textos do De Anima a que os nossos autores aludiam eram nem mais
nem menos do que 430 a 6-9 e 43 l b 20-432 a 3, ou seja, a parte final do capítulo IV
e o início do capítulo VIII, interpretados pelas respectivas explanationes da seguinte
maneira: os entes materiais não são inteligíveis por si5 ; a alma é de certo modo todas
primis principiis speculatiuis assensum damus, qui dicitur habitus principiorum; alter quo
assentimur primis principiis practicis, qui uocatur synderesis: igitur cum eadem sit ratio in spe
ciebus intelligibilibus, erunt quoque hae nobis insitae. Antecedens probatur, primum quia
huiusmodi habitus dicuntur naturales, non nisi quia inditi nobis sunt a natura. Deinde, quia id
etiam de habitu syndereseos palam affirmant, tum D . Augustinus super psalmum 57. et D. Epi
phanius Iibro 2. Contra haeresibus tom. 2. tum D. Hieronymus in Epistola ad Demetriadem
hisce uerbis. Est in animis nostris quaedam sanctitas naturalis a Deo impressa, quae ueluti in
arce animi residens, parui et recti iudicium exercet. Patet igitur nostrum intellectum non esse
puram potentiam in eo sensu, de quo agimus».
<2l ln III De Anima . . . III, q. 2, a. 2, p. 373: «asserendum tamen cum communi Philosophorum
schola intellectum patientem hominis esse unam specie facultatem.»
<3l KESSLER, E., «The Intellective Sou!» 5 14.
<4l Depois de estabelecerem o variado uso de lógos por parte de teólogos e filósofos, escrevem (ln
/// De Anima . . III c.8, q.3, a.2, p.378): «Sicut ergo est duplex os, ita et duplex loqui, atque adeo
.
et duplex uerbum, unum uocis, aliud mentis, cum loqui nihil aliud sit quam uerbum proferre.
Verbi autem appelatio magis proprie cadit in uerbum mentis, quam uocis . . . »; M ÜLLER, H. J.,
Die Lehre . . 1 4 1 -42.
.
E. «The Intellective sou!» 5 1 4: «That is, knowing and the known were identical in being, but
differed formally in so far as the former concemed the fact that the mental word was in the
process of coming-to-be (verbum in fieri), while the latter signified that the process was termi
nated at every moment. If one considers that this concept of intellection as mental discourse was
also applied to Christ, who was God's mental word, it is obvious that once again human intel
lection was reconstructed in order to save a theological principie.»
Introdução Geral 135
( l l ln Vlll libros Physicorum . . . II c.7, q.3, a.2, p.246: «Imago expressa rei artefactae».
<2l ln Vlll libros Physicorum ... II c.7, q.3, a.2, p.246: « ... res ipsa artefacta quam mente concipit».
<3l Cf. SCHMUTZ, J., «Un Dieu indifférent. La crise de la science divine durant la Scolastique
moderne», in BOULNOIS , O. et ai. (ed.), Le Contemplateur et les idées. Modeles de la science
divine, du Néoplatonisme eu XVllle siecle, Paris 2002, 204- 1 8 .
<4l Cf. SCHMUTZ, J . , «Un Dieu . . . » 2 1 3- 1 4.
(S) G. B IEL, Collectorium circa quattuor libros Sententiarum, Prol. q. l, a.4 (ed. W. Werbeck et al. ,
Tübingen 1 973, p. 23): «Et ille actus intelligendi est naturalis similitudo, non in essendo, sed in
repraesentando, cuius obiectum non est aliiquid fictum in anima, sed res significata extra ani
mam . . . »
<6l Cf. G. de OCKHAM, ln Sent. 1, Prologus, q. l, n. 1 5-3; 1, 25-28, 3, n. 4-24; 1, 3 1 -32; dist. 3, q.
6, n. 4- 1 3, II, 492.
<7l G. de OCKHAM, ln Sent. Adnotationes 1, dist. 3 , q. 1 4T: «Nec debet species poni propter
repraesentationem. Repraesentatum debet esse prius cognitum, aliter repraesentans numquam
duceret in cognitionem repraesentati, tamquam in simile. Statua enim Herculis numquam decu
ret me in cognitionem Herculis, nisi prius vidissem Herculem; nec etiam scire possem utrum
statua sit sibi similis aut non. Secundum autem ponentes speciem, species est aliquid praevium
omni actui intelligendi obiectum; ergo non potest poni propter repraesentationem obiecti» .
136 Introdução Geral
III (AT VII 34): «Ego sum res cogitans, id est dubitans, affinnans, negans, pauca intelligens,
multa ignorans, volens, nolens, imaginans etiam et sentiens . . . »; ID. Méditations (AT IX 27).
<4> ln ll/ De Anima ... II e. 3 , q. 4, a. 3 , p. 1 1 7 .
138 Introdução Geral
5 . Vontade e intelecto
6. Para finalizar
-C
Apêndices
1 . Quadro cronológico
"
Datas Acontecimentos
Datas Acontecimentos
(IJ Os números das páginas remetem para a primeira edição da obra acessível em-linha.
Introdução Geral 143
=
Obra referente: Obra referida:
3 . Prepósitos-gerais ( 1 5 5 5 - 1 6 1 5 )
( I ) Cf. GOMES, J. P., «ÜS Professores de Filosofia do Colégio das Artes» Revista Portuguesa de
Filosofia 1 1 12 ( 1 955) 524-529.
146 Introdução Geral
Physicorum li
2º Curso
Ethicorum Ili
32 Curso
42 Curso
1 561 1 562
w, lº Curso Praedicamenta
22 Curso Physicorum
3º Curso De coe/o
4º Curso
12 Curso Perihermenias
De coe/o
32 Curso Physicorum
Sphaera
4º Curso De generatione
1º Curso Priorum I
Physicorum Ili
2º Curso Topicorum
Ethica
Sphaera
3º Curso Physicorum
Meteora
42 Curso De generatione
148 Introdução Geral
-D
B ibliografia
Edições Nacionais
(I) Cf. ANDRADE, A. A., «Introdução» xiv-xix para mais indicações, enquanto esperamos um
levantamento definitivamente exaustivo.
Introdução Geral 149
Traduções :
The Conimbricenses. Some Questions on Signs. Translated with Introduction and Notes
by John P. Doyle, Milwaukee 2001.
Cambridge Translations of Renaissance Philosophical Texts. 1: Moral Philosophy. Ed.
by J . Kraye, Cambridge 1997, pp. 81-87 .
Manuel de Góis, S.J. Tratado da Felicidade. Disputa Ili do 'Comentário aos Livros das
Éticas a Nicómaco . Estudo e Introdução complementar de Mário S. de Carvalho;
'
( 1 ) Não se regista a totalidade das obras citadas na Introdução Geral, mas apenas as mais directa
mente relevantes para o estudo do Curso dos Jesuítas.
150 Introdução Geral
DINIS, A., «Ü Comentário Conimbricense à Física de Aristóteles (Nos 400 anos da sua
primeira edição)» Brotéria 1 34 ( 1 992), pp. 398-406.
DOYLE, J. P. «Collegium Conimbricense», in Routledge Encyclopedia of Philosophy 2
( 1 998), pp. 406-08 . DUCEUX, 1 . , La introducción dei aristotelismo en China a tra
vés dei 'De Anima' . Siglos XVI-XVII, México D.F. 2009.
DOYLE, J., «The Conimbricenses on the Semiotic Character of miror images» The Mod
em Schoolman 76 ( 1 998-99), pp. 1 7-32.
DOYLE, J. P. «lntroduction», in The Conimbricenses. Some Questions on Signs. Trans
lated with Introduction and Notes by John P. Doyle, Milwaukee 200 1 , pp. 1 5-29.
FONSECA, F. T. DA, «A Imprensa da Universidade no Período de 1 537 a 1 772» in Id. et
al. , Imprensa da Universidade. Uma História dentro da História, Coimbra, 200 1 ,
pp.7-52 .
FONSECA, N . DA, «Ü 'Curso Conimbricense' e m Português» Brotéria 6 6 ( 1 958), p p . 320-
-330.
Fl.JERTES HERREROS, J. L., «La Escolástica dei B arroco : presencia dei 'Cursus Conimbri
censis ' en e! 'Pharus Scientiarum' ( 1 659) de Sebastián Izquierdo» , in Mª C. Pacheco
et J. Meirinhos (ed.), lntellect et imagination dans la Philosophie Médiévale / lntel
lect and lmagination in Medieval Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia
Medieval. Actes du XI' Congres Intemational de Philosophie Médiévale de la S . 1.
E. P. M. (Porto, du 26 au 3 1 aofit 2002), Tumhout, 2006, pp. 1 59-200.
GIARD, L. «La constitution du systeme éducatif jésuite au XVIe siecle» in O. Weijers
(ed.), Vocabulaire des colleges universitaires (XII/e - XV/e siecles), Tumhout 1 993,
pp. 1 3 1 - 1 48.
GIARD, L. (ed.), Les Jésuites à la Renaissance. Systeme éducatif et production du savoir,
Paris 1 995.
G!ARD, L. «Sur !e cycle des 'artes' à la Renaissance» in O. Weijers & L. Holtz (ed.),
L 'enseignement des disciplines à la Faculté des arts (Paris et Oxford XII/e - XVe
siecles), Tumhout 1 997, pp. 5 1 1 -5 3 8 .
GILSON, E., lndex Scolastico-cartésien, Paris 1 9 1 3 .
GOMES, J. F. , «Introdução» in Pedro da Fonseca. Instituições Dialécticas. lnstitutionum
Dialecticarum Libri Octo. Introdução, estabelecimento do texto, tradução e notas de
J. F. Gomes, Coimbra 1 964, pp. XIX-LXVIII.
GOMES, J. F., «No quarto centenário das Instituições Dialécticas de Pedro da Fonseca»
Revista Portuguesa de Filosofia 20 ( 1 964), pp. 273-92.
GOMES, J. P., «Üs Professores de Filosofia do Colégio das Artes» Revista Portuguesa de
Filosofia 1 1 /2 ( 1 955), pp. 520-545 .
GOMES, J. P., Os professores de Filosofia do Colégio das Artes (1555-1 759), Braga
1 95 5 .
GOMES, J. P., «Colégio d e Jesus» i n Verbo. Enciclopédia Luso-Brasileira d e Cultura,
vol. 5, Lisboa s.d.
GOMES, P., «Conimbricenses» in ID., Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa 1 987,
pp. 6 1 -64.
2
GOMES, P., Os Conimbricenses, Lisboa 1 992; 2005 .
154 Introdução Geral
HATIAB, H . , «Üne Cause or Many? Jesuit Influences on Descartes ' s Division of Causes»
in S . F. Brown (ed.), Meeting of the Minds. The Relations between Medieval and
Classical Modem European Philosophy, Tumhout I 998, pp. 1 05- I 20.
HENRIQUES, M. C. «Descartes e a possibilidade da ética» in Mª. J. Cantista & J. F. Mei
rinhos (coord.), Descartes. Reflexão sobre a Modernidade, Porto I 998, pp. 253-266.
Os Jesuítas e a Ciência (Sécs. XVI-XVIII). Assinalando o 4º Centenário de Giovanni
Battista Riccioli, SJ (1598- 1671), Braga I 998 ( Revista Portuguesa de Filosofia
=
LIV).
KESSLER, E., «The Intellective Sou!» in Ch. B. Schmitt & Q. Ski nner (ed.), The Cam
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History of Renaissance Philosophy, Cambridge I 988, pp. 303-386.
LAVAJO, J. C . , «Molina e a Universidade de Évora» in I . Borges-Duarte (org.), Luís de
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LEIJENHORST, C . , The Mechanisation of Aristotelianism. The Late Aristotelian Setting of
Thomas Hobbes ' Natural Philosophy, Leiden - Boston - Kõln 2002.
LINES, D. A., Aristotle 's 'Ethics ' in the Italian Renaissance (ca. 1300-1 650). The Uni
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LUIS ABELLÁN, J., História crítica dei pensamiento espaiiol. Tomo li: La Edad de Oro,
Madrid I 979, pp. 5 87-589.
MARTINS, A. M., «Conimbricenses» in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filoso
fia, vol. I , Lisboa I 989, pp. I 1 1 2- I I 26.
MARTINS, A. M., «Ü Conimbricense Manuel de Góis e a eternidade do mundo» Revista
Portuguesa de Filosofia 52 ( 1 996), pp. 487-499 .
MARTINS, A. M., «The Conimbricenses» in Mª C. Pacheco et J. Meirinhos (ed.), Intellect
et imagination dans la Philosophie Médiévale / Intellect and Imagination in Medie
val Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medieval. Actes du XI"
Congres Intemational de Philosophie Médiévale de la S . I. E. P. M. (Porto, du 26 au
3 I aofit 2002), Turnhout, 2006, pp. l O I - 1 1 7 .
MARTINS, A. M., «Pedro d a Fonseca e a recepção d a 'Metafísica' d e Aristóteles na
segunda metade do séc. XVI» Philosophica I4 ( 1 999) I 65- I 7 8 .
MARYKS, R. A . , Saint Cicero and the Jesuits. The Injluence of the Liberal Arts o n the
Adoption of Moral Probabilism, Aldershot - Burlington 2008.
MAURÍCIO, D. «Ü Curso Conimbricense, expressão do patriotismo português» Revista
Portuguesa de Filosofia I I ( 1 955), pp. 45 8-467 .
MIRANDA, M. Código Pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum da Companhia de Jesus
(1599). Regime Escolar e Curriculum de Estudos, Lisboa 2009 .
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu . I: I 540- 1 556, ed. L. Lukács, Romae 1 965 .
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. II: 1 557- 1 572, ed. L. Lukács, Romae 1 974.
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. III: 1 557- 1 572, ed. L. Lukács, Romae 1 974.
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. IV: I 573- 1 5 80, ed. L. Lukács, Romae I 98 1 .
Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. V: Ratio atque Institutio Studiorum Societatis
Iesu (1586 1 591 1599), ed. L. Lukács, Romae 1 986.
Introdução Geral 1 55
respeitar a pontuação. Outro tanto já não dizemos da divisão em parágrafos, que foi
bastante acatada.
Enfim, como dissemos já, optámos por oferecer uma tradução que respeitasse ao
máximo o elemento literal. Isso será mais notório na terminologia sobremaneira
técnica, cujos matizes procurámos verter sempre que possível. Algumas, muito pou
cas, correcções ao texto de 1 598 (todas elas acolhidas na presente edição) justificam
-se por se tratarem de lapsos. Apenas um exemplo: na página 422 daquela edição,
lemos «diductio» em vez de «deductio», autorizados pela ocorrência catorze linhas
mais abaixo. Também por contingências de ordem técnica surgidas durante a prepa
ração da presente publicação, vimo-nos forçados a não incluir a tradução das notas
marginais do texto original, que se podem ver nas duas reproduções feitas na Intro
dução.
IHS
Coimbra
Impressão de António Mariz, da Tipografia da Universidade
Estes Comentários podem ser publicados porque nada contêm que ofenda os bons
costumes e a Religião Cristã.
D. Alphonsvs Episcopvs Comes
Livro Primeiro
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1 1 88
( I ) A presente edição não publica os dois apêndices, Tractatus de Anima Separata e Tractatio
aliquot problematum de rebus ad quatuor mundi e/ementa pertinentibus, in totidem sectiones
distributa. Por esta razão também não reproduzimos os índices desses apêndices.
Livro Segundo
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1 1 97
atribuída ou não
ARTIGO ! Em princípio não parece correcta,
mas está correctamente atribuída 268
QUESTÃO II - Se há cinco géneros de potências e quatro de seres vivos
ARTIGO 1 Há cinco géneros de potências 27 1
ARTIGO II São quatro os géneros dos seres vivos 272
entre si realmente
ARTIGO ! Opinião dos que consideram que elas se distinguem
realmente entre si 286
ARTIGO II Demonstra-se a parte negativa. Destroem-se os argumentos
dos adversários 288
ou também activa
ARTIGO 1 Diferentes opiniões dos autores e sua refutação 295
ARTIGO II Conclusão da questão 297
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V 46 1
ou se há vários
ARTIGO ! Que argumentos parece que demonstram que há vários 511
ARTIGO II No homem, o intelecto paciente é único em espécie.
Os argumentos aduzidos contra a parte contrária
não são concludentes 512
como imagem, a inferior, como exemplar. Acontece que a doutrina da alma é como
um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um
outro conhecimento da verdade. Mostra também o brilhante fruto desta contempla
ção aquilo que Santo Agostinho afirma, no livro 2 de A Ordem, capítulo 8º: Sem
dúvida que há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra
acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra,
que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa,
aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bem-aventurados.
As coisas escritas acerca desta matéria mostram à evidência que a reflexão sobre
a alma é própria da grande estatura, tanto dos Padres, como dos filósofos gentios.
Com efeito, São Dionísio, no capítulo 4º de Os Nomes Divinos, recorda que tinha
escrito acerca da alma; S. Justino, filósofo e mártir, fez um livro sobre este mesmo
tema, como refere S. Jerónimo, no livro Escritores Eclesiásticos. Santo Agostinho
escreveu o livro A Imortalidade da A lma, um outro A Grandeza da A lma, e quatro
livros Sobre a A lma e a Sua Origem . São Gregório de Nissa recordou uma longa
disputa em cartas trocadas entre si e Soror Macrina, sobre A A lma e a Ressurreição.
Tertuliano compilou um livro sobre A A lma. Na verdade, já os autores pagãos
tinham escrito muita coisa acerca dela. Trismegisto, Platão, Teofrasto, Platino, Cal
cídio, Proclo, Jâmblico, Túlio e o autor da obra De sapientia secundum Aegyptios.
Além destes três livros, Aristóteles também deixou outro sobre questões da alma,
que a iniquidade do tempo destruiu.
Temístio testemunha o grande cuidado com que esta obra foi elaborada e con
cluída por Aristóteles, com as palavras seguintes do seu Proémio : uma vez que todos
os escritos de Aristóteles são de tal modo apreciados, que a sua superioridade se
torna motivo de admiração fácil, não existe nenhuma reflexão na qual Aristóteles
tenha igualmente mostrado a sublimidade e a força do seu engenho como naquela
em que aborda a noção de alma, quer se inquira uma infinidade de questões, quer
uma quantidade de coisas belíssimas, quer a subtileza da doutrina. Os livros sobre A
Alma são de tal modo assim, que parece que todas as coisas constantes do texto que
respeitam a este género, existiram e foram feitas por um só homem.
Opõe-se, neste ponto, que deve ser investigado em primeiro lugar, o que é discu
tido pelas opiniões dos intérpretes que discordam quanto a saber que lugar esta ciên
cia reclama entre as restantes partes da fisiologia, pela ordem e pelo método da dou
trina. Mas, omitida disputa mais longa, deve estabelecer-se, com Teofrasto, segundo
Temístio, livro 3 desta obra, capítulo 39º da sua Paráfrase, e com São Tomás, que
os autores mais recentes geralmente adaptam, que a ciência da alma segue os livros
dos Meteorológicos, e antecede toda a disciplina atinente aos seres animados. Na
verdade, como São Tomás e Teófilo advertiram no Proémio desta obra, tal como a
Física é o exórdio de toda a fisiologia, porque contém a explicação integral dos
princípios naturais, é conveniente que o início da reflexão sobre os seres animados
seja o estudo da alma, que é o princípio comum dos animais. No entanto, Alexandre
de Afrodísia, no seu primeiro livro sobre A Alma, e Averróis, no livro 4 dos Meteo
rológicos, trataram em primeiro lugar As Partes dos Animais. Primeiro, porque a
observação da matéria antecede a observação da forma; com efeito, as partes ou
órgãos são a matéria e o substrato da alma. Segundo, porque a alma é definida a
Livro Primeiro, Proémio 181
partir do corpo orgânico; foi preciso que Aristóteles declarasse, em primeiro lugar,
por que é que a definição progride a partir do desconhecido.
Mas estes argumentos não concluem. Com efeito, as partes orgânicas dos ani
mais, de que Aristóteles trata no livro As Partes dos Animais, respeitam, em parte, à
matéria, visto que recebem em si as funções corpóreas da alma, e as disposições são
necessárias para a introdução da alma, como expusemos no seu lugar. Mas, como as
partes orgânicas são mais facilmente conhecidas do que a alma, cuj a natureza é
secreta e recôndita, não devemos debruçar-nos em primeiro lugar sobre elas, mas
antes sobre a alma, como há pouco pretendíamos dizer, e como Aristóteles chama a
atenção, no primeiro capítulo do livro primeiro da Física, e nos capítulos 1 º e 3º do
livro primeiro de As Partes dos Animais, depois de Platão, no Fedro e de Hipócra
tes, no livro A Natureza Humana. Em toda a disciplina correctamente estabelecida,
devem ser primeiramente tratadas aquelas coisas que se estendem de modo mais
amplo, em que há mais coisas gerais, para não sermos levados a repeti-las muitas
vezes. Na verdade, considera-se a alma mais ampla do que as partes dos animais,
uma vez que estas apenas estão nos animais, e ela está presente em todos os seres
vivos. O exame da matéria precede o exame da forma. Se algo postula a razão da
doutrina, é que não se defina a alma através do corpo orgânico do animal, mas do
corpo orgânico do ser vivo em geral. Não foi preciso que isto fosse declarado por
Aristóteles antes da doutrina da alma, visto que para compreender a definição de
alma não se requer um conhecimento distinto e absoluto do corpo orgânico, bas
tando um conhecimento pouco claro, que possa ser facilmente comparado. Na ver
dade, não se exige menos a ciência da alma para o conhecimento do corpo orgânico,
do que o conhecimento do corpo orgânico para a ciência da alma. Por isso, na defi
nição, a alma também se acrescenta ao corpo orgânico, uma vez que ele se define
como aquilo que foi afectado aos órgãos adequados para ir ao encontro das funções
da alma. Pelo que, é evidente que o argumento, se algum peso tiver, pode ser retor
quido contra os adversários.
Examinemos agora qual é o objecto destes livros. Veneto, neste ponto, e alguns
do grupo dos filósofos mais recentes, estabelecem que não é a alma, mas o corpo
animado. Provam-no, em primeiro lugar, porque esta doutrina é uma certa parte da
fisiologia. É assim necessário que a sua matéria seja de maneira a que acerca dela se
enuncie o objecto de toda a fisiologia, como uma parte inferior e não tão extensa
mente evidente. Porém, é claro que o ente móvel é assim chamado por causa do
corpo animado e não da alma. Depois, porque ou foi aqui que Aristóteles discutiu
sobre o corpo animado, ou não foi em lado nenhum. É absurdo que não se tenha
ocupado em nenhum lado. Na verdade, tão notável espécie de ente natural não pôde
ficar envolta em silêncio por parte do Filósofo. Portanto, ocupou-se dessa espécie
nesta obra e, por isso, o corpo animado é o objecto da obra. Terceiro. Porque o
objecto de cada disciplina é aquele em que, primeiro e por si, convêm as afecções
que nela são investigadas . Ora, alimentar-se, sentir, mover-se, querer, pensar e
outras afecções desta natureza, sobre as quais se discute nestes livros, dizem respeito
primeiro e por si, não à alma mas ao corpo animado, quer em geral, quer nas suas
partes como diz Aristóteles, no capítulo 4º do primeiro livro, texto 54. Por isso, não
parece que se deva negar que o objecto desta obra é o corpo animado.
1 82 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
meira afirmação, que embora pareça contrária ao pensar comum, não é improvável,
responder-se-ia com os argumentos aduzidos contra a parte contrária. Embora Aris
tóteles nestes livros tenha investigado muito cuidadosamente a definição de alma e a
tenha transmitido, não pendeu para isso, sobretudo, por causa da alma, mas por
causa do corpo animado, que ele examina como escopo da obra toda. Com efeito, ele
não observou as faculdades da alma somente quanto ao seu princípio, mas do modo
como equipam todo o composto, isto é, o corpo animado. Mais. A doutrina da alma
é superior às restantes partes da filosofia, não porque verse precisamente acerca do
corpo animado em geral, mas porque discute acerca da alma racional, que supera na
dignidade da natureza as restantes formas da consideração física. Por fim, escreveu
estes livros sobre A A lma, não como sendo ela o seu objecto principal, mas a sua
parte principal, que por isso se pode chamar o objecto, tal como o corpo animado é o
objecto, conforme certos filósofos dizem.
Eis o que respeita à divisão da obra. No primeiro livro Aristóteles fala acerca da
essência da alma, contra as opiniões dos antigos. A partir da sua própria opinião, nos
capítulos 1 º e 2º do livro segundo; a parte restante deste livro trata das potências da
alma em geral, das faculdades relativas à alma vegetativa, e dos sentidos externos.
Trata do sentido interno, nos primeiros três capítulos do livro terceiro; do intelecto,
do capítulo quarto ao nono; daí até ao fim do livro, trata do movimento e de certas
afecções, que dizem respeito à totalidade dos seres animados.
QUESTÃO ÚNICA
Se o estudo da alma intelectiva respeita
à doutrina da fisiologia, ou não
ARTIGO !
Várias opiniões dos filósofos
ARTIGO II
Resolução de toda a questão
Para dar satisfação à questão proposta, deve notar-se que se pode considerar, que
a alma participa da razão de três maneiras. Uma, quando se une ao corpo e nele
executa as suas funções. Outra, consoante os atributos que lhe pertencem, separada
da matéria, como o estar no seu preciso lugar, o receber as espécies do influxo supe
rior da luz, o pensar sem recurso aos fantasmas e outras coisas deste tipo. Terceira,
quanto à sua própria natureza e essência.
Posto isto, eis a primeira conclusão. Nenhuma das três considerações anteriores
sobre a alma diz respeito a uma única ciência intermédia entre a filosofia primeira e
a natural . Esta conclusão recomenda-se porque não existe intermédio naquele género
de filosofar, pois a ciência contemplativa divide-se perfeitamente em Natural, Meta
física e Matemática, como no Proémio da Física amplamente discutimos. Nos seus
livros, Aristóteles não fez qualquer menção a uma disciplina intermédia. A isto não
obsta que a alma seja o limite do ser corpóreo e do mundo inteligível, como que um
certo elo. Com efeito, não há qualquer meio entre estas duas extremas, para que se
reclame uma abstracção média, distinta daquelas que produzem uma variedade tri
partida de filosofia contemplativa, como mostrámos no lugar citado.
Eis a segunda conclusão. O primeiro modo de consideração pertence, por obriga
ção, à filosofia natural. Aprova-se esta conclusão, porque respeita ao físico examinar
o ente natural. Compete-lhe examinar o todo e as partes, e a alma entendida deste
modo é parte do ente natural, em acto, do homem. Além disso, porque as operações,
que a alma executa quando está no corpo, dependem da matéria e, como têm cone
xão com ela, apenas recaem sob a observação do especialista que disserta sobre a
matéria, isto é, do fisiólogo.
Eis a terceira conclusão. A observação da alma tomada do segundo modo trans
cende os fins da fisiologia e pertence ao metafísico. Para compreender esta conclu
são deve observar-se que a alma racional é suprema, entre as formas existentes na
matéria, e conforme o testemunho de São Dionísio, no capítulo 7º de Os Nomes
Divinos, a parte mais elevada do mais baixo toca na parte mais baixa do mais alto.
Livro Primeiro, Proémio, Questão Única, Artigo II 1 85
Quando se afasta do corpo, ela passa, a seu modo, para o estado das substâncias
separadas, em conformidade com aquelas afecções, que acima recordámos, as quais
não possuem comércio com a matéria. Este estado, como ensina S. Tomás, l ª parte
da Suma Teológica, questão 79, artigo 1 º, não lhe é natural, mas pretematural.
Donde, resulta que a discussão sobre a alma racional, nesta acepção, deve pertencer
à mesma ciência das inteligências completamente livres da contaminação da matéria.
A conclusão já proposta demonstra-se, porque examinar as coisas que estão separa
das da matéria real e racionalmente, respeita somente ao filósofo primeiro. Ora, as
afecções que concernem à alma, na medida precisamente em que ela subsiste fora da
matéria, são deste modo, como será evidente ao observador.
Eis a quarta conclusão. Investigar a natureza e a essência da alma, que era o ter
ceiro exercício acerca dela, respeita ao filósofo natural. A verdade desta conclusão
convence, porque a alma pela sua noção e natureza é a forma do corpo, daí que seja
explicada por definição essencial, quando é chamada acto primeiro do corpo orgâ
nico. Donde, acontece que para conhecer requer necessariamente a matéria. As rea
lidades que a possuem, integram-se nos limites da investigação física, tal como a
própria matéria, como ensina Aristóteles, no livro segundo da Física, capítulo 2º,
texto 22: que examinar a forma e a matéria compete ao mesmo especialista, porque é
evidente que se requerem mutuamente, como consta do mesmo livro e capítulo,
texto 26. Estabelece-se a mesma conclusão, a seguir, porque, uma vez que o homem
é uma parte integrante do ente móvel, cujo conhecimento o físico promove, e uma
vez que a essência do homem não pode ser conhecida, a não ser que se chegue ao
conhecimento da alma, através da qual ela se constitui no seu próprio grau e espécie,
pretende-se que indagar a essência da alma diga respeito à filosofia natural. É assim,
porque se crê que aquela definição indistintamente divulgada de homem, 'o homem
é um animal constituído por um corpo e uma alma que participa da razão ' , não foi
transmitida e inventada por outrem senão pelo filósofo natural.
Aqui, alguém poderia talvez perguntar se a consideração da alma como algo de
imaterial, subsistente por si e inteligível, atributos que são de tal modo intrínsecos à
alma que tanto na matéria como fora dela a integram, se uma consideração desse
teor, digo, é física ou antes metafísica. A esta dúvida deve responder-se, que se estes
predicados forem tomados não em toda a sua amplitude, mas restritos ao grau pró
prio e específico da alma racional, de tal modo que sejam recíprocos com ela, sem
dúvida que o estudo do imaterial, do subsistente por si e do inteligível, pertence à
física, visto que conhecer a natureza própria e particular da alma racional pertence à
doutrina da fisiologia, como a seguir consideramos Se, porém, forem tomados de
maneira comum, que tanto se adeqúem à alma como às inteligências, então é à meta
física. Porque incumbe ao metafísico examinar a substância, a relação, a qualidade e
as paixões do ente, como conceitos comuns e gerais, tal como mostrámos no ponto
citado. É por isso que eles, embora em parte estejam presentes na matéria, são toda
via, em si, indiferentes, ainda que estejam na matéria. Assim, também, conhecer o
inteligível por si, subsistente e imaterial, em comum, é da competência do metafí
sico. Porque ainda que esses predicados digam respeito à alma racional, cujo conhe
cimento da essência própria e recíproca pertence ao fisiólogo, em si, eles dizem
respeito indiscriminadamente à alma e às inteligências, que não possuem nenhuma
conjunção com a matéria.
1 86 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO Ili
Explicação dos argumentos que pareciam
ser contrários às afirmações anteriores
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1
a. cum omnem 402 al - Existem acima de tudo duas coisas que tomam as almas
dos homens mais inclinadas a aprender, a dignidade da ciência e o método cor
recto de ensinar. A dignidade da ciência inclui por sua vez mais três. A certeza, a
superioridade do objecto e a utilidade. Aristóteles expõe-nas todas, neste Proé
mio. Não passou, entretanto, em silêncio, a dificuldade da matéria acolhida, quer
porque ela também impele o observador a não permanecer no ócio, como adver
tem os intérpretes Gregos, quer para que ninguém exija evidência em matéria
difícil e profunda, como a presente, que caracteriza a natureza do assunto, quer,
finalmente, para ordenar desde o início aos espíritos que não sej am rudes e indo
lentes. Por isso, os velhos mestres da filosofia tiveram isso fortemente em vista,
ao envolverem, em virtude da insuficiência das palavras, os mistérios da natureza
em véus de enigmas, dando valor à sua obra, com o argumento de afastarem os
vagarosos e os pouco aptos a ouvir, da indagação das coisas excelentes e ocultas.
b. Bonam ac honorabilem 402 a l O bem e o excelente convêm na realidade e
-
ciência é algo ilustre e é tida em honra e apreço e, por isso, consideramos mais
vantajosa do que outra, a que trata das coisas mais elevadas e mais claras. Se por
ventura entre as outras ciências estiver também a relativa à doutrina da alma com
razão a colocaremos entre as primeiras. Sobre a premissa menor, na qual Aristó
teles compara a ciência da alma com as outras, subsiste discussão entre os
comentadores, se esta comparação apenas deve ser compreendida em absoluto,
com todas as disciplinas, ou apenas com as partes da fisiologia. Seguem a pri
meira explicação, além de outros, o Comentador, Alberto Magno, e Caetano uma
e outra. A segunda, aprova São Tomás, Egídio, Simplício, Filópono e o Ferra
riense. A primeira parece melhor, visto que das palavras de Aristóteles não se
Livro Primeiro, Explicação do Capítulo I 189
em absoluto, ao princípio dos seres animados, mas quase princípio, para distin
guir, como diz Simplício, do primeiro e infinito princípio que não depende de
nada; acerca disto, livros 7 e 8 da Física e 1 2 da Metafísica. Ou melhor, como
afirma São Tomás, porque a partícula oíov, isto é, quase, foi usada como muitas
outras vezes, neste ponto, não em razão da semelhança ou limitação, mas por
causa do estilo.
f. Contemplari autem 402 a 7 - Na doutrina da alma afirma que tem de se investi
gar duas coisas. Uma, que pertence à definição, é a essência e substância da
alma. Outra, que concerne à razão da demonstração, são as disposições, isto é, as
potências e operações, quer particulares da própria alma, que estão presentes na
alma intelectiva, como o intelecto e a contemplação, quer comuns ao corpo, isto
é, que são recebidas no órgão material, embora dimanem da alma como da fonte,
como as potências sensitivas e o acto de sentir.
g. At vero 402 a 10 Diz, acerca da alma, ser muito difícil estabelecer aquilo que
-
tratamento difícil, a partir daquelas que são comuns a outras coisas, cuja natureza
pretendemos esclarecer com uma definição, trazemos agora para o cerne as coi
sas que são particulares a este comentário sobre a alma: quais as suas partes ou
espécies, disposições e operações.
i. Animal autem universale, aut nihil est 402 b 6 -Uma das questões que causam
dificuldade na matéria é, diz Aristóteles, aquela em que se inquire se a alma é
género ou é espécie e se a sua definição é como a do género, como a definição de
animal, se é como a da ínfima espécie. Porque disse que se define animal, para
que ninguém suspeite que ele considera animal como universal separado, con
soante a ideia platónica, Aristóteles afasta essa suspeita afirmando que o animal
como universal (entenda-se o mesmo acerca das restantes naturezas comuns) ou
não é nada, se se considerar como é ensinado por Platão, que pretendia que os
universais subsistiam por si, antes de todos os singulares, ou é algo posterior
mente, isto é, uma vez recolhido dos singulares por intervenção do intelecto. Os
intérpretes narram este passo diferentemente, mas a nossa exposição é a comum.
k. non solum autem 402 b 16 São várias as explicações deste passo. Agrada-nos a
-
difícil, mas muito útil e oportuna para o objecto desta obra. Dela dependem os
fundamentos da disputa acerca da imortalidade das almas, visto que, se a alma
Livro Primeiro, Explicação do Capítulo l 191
conclusões. Uma, é que as disposições da alma comuns ao corpo devem ser defi
nidas através da matéria. Tal como da matéria têm o ser e a incluem no seu con
ceito, assim também são conhecidas através dela. Donde, a ira é correctamente
definida como a vontade de vingança da ofensa com ardor sanguíneo no coração.
A outra conclusão é, os filósofos ou discutem o ser de toda a alma, ou de uma
determinada. E acrescenta «de uma determinada>>, como alguns interpretam, ou
por causa das inteligências denominadas almas celestes, cuja consideração
excede a meta da física, ou por causa da alma racional, cujo estudo não pertence
totalmente à fisiologia, como dissemos acima. O argumento desta segunda con
clusão é o seguinte. Como é a partir do modo de definição de cada matéria que se
conclui a que ciência pertence, visto que a definição é o princípio, também a
diversidade dos princípios demonstra a diversidade da ciência. Uma vez, pois,
que aquelas coisas que são definidas através da matéria dizem respeito ao físico,
e a forma é definida através da matéria, então também o é a alma, que é uma
certa forma. A consequência é que o estudo da alma respeita à fisiologia. Aquelas
palavras do texto, ab hoc huius gratia, designam a causa eficiente e final, e o fim
da ira é determinado pela forma, porque a forma sobrevém geralmente ao fim e,
por isso, se diz abaixo que a forma entra na definição de casa quando é usada,
«por causa do qual», isto é, do fim. q. Diverso autem modo 403 a 29 Numa -
ria e são substrato para os sentidos, não, porém, enquanto existem assim, mas
abstraindo-as da matéria, que nas definições de modo algum ele utiliza. Mas o
filósofo primeiro, dado considerar as coisas que pela própria realidade estão fora
da matéria, usa-a muito menos ao definir. Aristóteles traz a este ponto o tema do
método e o da noção de definição, para que conste que a via para inquirir e divi
dir as coisas que estuda deve acompanhar a definição de alma.
Na parte restante deste livro Aristóteles percorre, segundo o seu costume, o que
os mais Antigos escreveram acerca da alma e refere as opiniões, em ampla disputa,
antes de estabelecer algo de preciso relativamente à sua própria opinião. Foi tão
firme a disputa sobre este assunto que parece não ter havido nenhuma maior e mais
prolongada nas escolas dos filósofos. Omitida a opinião daqueles que afirmaram que
a alma nada é em absoluto, que o seu nome é de todo vazio, e que em vão se cha
mam animados aos seres, posições que Marco Túlio menciona, no livro 1 das
Questões Tusculanas, os restantes filósofos, podem ser pacificamente distribuídos
em três grupos, como se conclui dos capítulos 2º e 5º deste livro, e do capitulo 9º do
terceiro. O primeiro grupo investigava a natureza da alma a partir do movimento. O
segundo, a partir do conhecimento e, além disso, eles procuravam saber por que é
que as coisas animadas parecem distinguir-se das inanimadas nestes dois pontos. O
terceiro, inquiria a partir da noção de incorpóreo, porque acreditavam que era neces
sário que a alma fosse algo subtil, desprovida de massa, que se infunde por todo o
corpo e atravessa todas as partes dele.
No primeiro grupo contam-se, entre outros, Demócrito, Pitágoras, Anaxágoras,
Platão, Alcméon. Para Demócrito nada existe que não agregue uma multidão de
átomos. Ele acreditava que a alma consistia num aglomerado casual, causado por
corpúsculos indivisíveis e redondos que se agitavam em perpétuo movimento e que,
em consequência, pareciam estar juntos, os quais, por sua vez, punham em movi
mento e também arrebatavam outros, de seguida. Os Pitagóricos não foram de modo
algum alheios aos princípios de Demócrito. Com efeito, uns consideraram alma os
corpos indivisos que giram no ar em constante revolução, outros, a causa do seu
1 94 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1
a. Dicimus itaque 4 1 2 a 3 Dado que para chegar à definição de uma coisa, é van
-
pensam quanto a este ponto que a substância tomada em geral, é dividida por
Aristóteles em substância corpórea e incorpórea. Não seguramente de modo
expresso, mas de forma tácita e obscura, pois, ao dizer que os corpos parecem
sobretudo substâncias, significa que há outras, desprovidas de massa corpórea,
que são de natureza mais nobre e mais excelente, embora recaiam menos sob o
nosso conhecimento. Averróis, Temístio e Filópono acreditam que não se trans
mite aqui, nenhuma divisão nova, visto que esta nova divisão não parece dizer
respeito ao tema. Dizem, portanto, que, aqui, Aristóteles compara entre si os
membros da segunda divisão, acima assinalada, e ensina que os corpos, isto é, as
substâncias compostas de matéria e de forma, são mais perfeitas do que a matéria
e a forma. Compara, a partir daí, os corpos naturais com os artificiais, afirmando
que os naturais são mais substâncias. Na verdade, os artefactos obtêm a forma a
partir da arte, que é um certo acidente; a matéria, que é substância, obtêm-na a
partir da natureza. Por isso, sucede que as substâncias reivindicam a sua noção,
em parte da matéria por causa da natureza, e que as coisas naturais são mais
substâncias, pois aquilo cujo valor e vantagem cada coisa adquire por causa de
uma certa natureza é mais dessa natureza.
d. Naturalium uero corporum 4 1 2 a 1 3 Assinala a quarta divisão, que divide a
-
meiro que ela é acto, porque a alma participa da vida, quer do corpo, quer do
próprio acto. Ora, não é o corpo. Será, portanto, acto e forma do corpo. A pre
missa maior é evidente a partir das afirmações anteriores. Demonstrou-se, com
efeito, que o corpo vivo se concretiza em duas partes, a alma que é pura potência
e a matéria, que é acto e enteléquia. A premissa menor recomenda-se pelo facto
de que o corpo não é um substrato mas é antes a matéria e o substrato em que a
Livro Segundo, Explicação do Capftulo I 1 99
alma se encontra. A alma será, portanto, acto e forma do corpo que participa da
vida e etc.
f. Sed cum perfectio 4 1 2 a 22 Prova que a alma é acto primeiro. Ora, porque o
-
acto é duplo, isto é, primeiro e segundo, como é evidente a partir do que foi dito,
é necessário que a alma seja acto primeiro, visto que, por ela, umas vezes se dá a
vigília, como na actividade da vida, outras o sono, como na cessação da activi
dade. Mas se se duvidar, justamente, por que motivo se diz que a alma de vez em
quando repousa, visto que o acto de nutrir nunca se interrompe, pois todo o ser
vivo, enquanto vive, se alimenta, é costume responder-se a esta questão de forma
variada. Sem dúvida que, embora a alma não repouse da actividade de nutrição,
no entanto interrompe outras funções, que ela deixa de operar, não na realidade,
mas que por sua natureza pode cessar, porque não repugna à natureza da alma
por vezes ser separada do acto segundo; isto quanto a uma natureza, como é a
nutritiva, que opera sempre.
g. Et ta/is plane 4 1 2 b 4 Com o argumento, mostra pela premissa menor, que a
-
alma é o acto do corpo orgânico, isto é, que ela tem instrumentos para alcançar as
funções da vida. A alma da planta é o acto do corpo orgânico. Portanto, também
as restantes almas. A conclusão é evidente. Se a alma da planta ou vegetativa,
que consiste no grau mais baixo, tem preparado nos órgãos o substrato, sem
excepção, as almas sensitiva e intelectiva, que são mais nobres, também o terão.
Na verdade, aonde a forma é mais perfeita, requer-se um substrato mais apetre
chado. A proposição é evidente porque vemos troncos nas raízes das árvores,
fibras, medulas como veias, ainda que, à primeira vista e pelo juízo dos sentidos,
não se depreenda tão facilmente que são órgãos, tal como a boca nos animais, a
goela, o ventre, o fígado, o coração e outros deste género. É por isso, que pare
cem ser corpos simples das estirpes, embora devam ser antes considerados cor
pos orgânicos. Também se pode compreender isto, a partir das diversas funções
das partes. Na verdade, as raízes, como a boca, captam o alimento e absorvem o
suco da terra, e as fibras desempenham o lugar das veias, e igualmente as restan
tes funções, antes referidas, operam para si, e ao mesmo tempo, servem ao todo,
prestando-lhe trabalho mútuo. Teofrasto disse muito acerca deste assunto no livro
1 , A História das Plantas, capítulos 7°, 4° e 1 4º. Plínio no livro 1 7 , capítulo 38º.
h. Iccirco non quaerere 4 1 2 b 6 Do que foi dito, Aristóteles infere a conclusão, de
-
que não deve ser procurada outra causa por que resulta um uno da alma e do
corpo. Como o corpo é a própria matéria e pura potência, a forma substancial é o
acto a que a matéria primeiro pertence. Mas a pura potência e o acto do mesmo
género, isto é, substancial, pelo seu carácter inato unem numa única natureza,
unidade que não acontece por nenhum vínculo. Aristóteles levanta a dúvida sobre
este mesmo assunto e resolve-o do mesmo modo no livro 8 da Metafísica, capí
tulo 6º, texto 1 5 , a não ser que ali não indague apenas sobre a alma e o corpo,
como aqui, mas sobre a matéria e a forma. Leia-se, se se entender, o que acerca
do assunto, discutimos no livro 1 da Física.
t. Per inde sane 4 1 2 b 1 1 Com o duplo exemplo, um recebido da arte, outro da
-
natureza, prova que a alma é acto substancial do qual, como primeira razão de
ser, o corpo se diz animado. O primeiro é assim. Tal como existe a forma da
coisa artificial, por exemplo, a forma do machado para o machado, assim tam-
200 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
bém, numa certa proporção existe a alma para o corpo animado; mas, se o
machado fosse um composto físico, a sua configuração seria a própria forma
substancial donde a noção do machado seria acima de tudo constituída. E na ver
dade, uma vez ela posta, subsiste e consta do machado, e uma vez desapare
cendo, ele perece. Portanto, a alma será a forma substancial do corpo animado. O
segundo exemplo é o seguinte. Se o olho fosse um animal (entende olho na acep
ção como algo da potência de ver e constituído pelo órgão) a sua alma seria a
vista, porque, dada a vista, diz-se o olho verdadeira e propriamente, e retirada a
vista, é dito somente de modo equívoco e apenas nominalmente, tal como o que
está esculpido ou pintado. Ora, a relação que existe entre a vista e o olho é a
mesma que a alma tem para todo o corpo animado. Logo, a alma é forma própria
do corpo animado. Esta última proposição tem força, porque tal como a facul
dade de ver enforma de tal modo a matéria do olho, que o olho é feito de ambos,
donde resulta a acção de ver, assim o corpo animado é formado pela alma e pelo
órgão corpóreo que está em potência para executar as funções da vida.
k. Non est autem id 4 1 2 b 25 Explica de que modo o corpo, que tem a alma como
-
acto, se diz que tem a vida em potência, e afirma que o corpo de uma coisa viva
não tem a vida em potência, como se carecesse de alma, embora esteja apto a
possuí-la, tal como uma semente, mas como o que contém a alma em acto e está
pronto a exercer as operações em que consiste a vida dos acidentes.
1. Animam igitur 413 a 4 - Dado que tinha definido a alma como acto do corpo,
poder-se-ia opinar que a alma de modo algum é separável do corpo. Ora acontece
que isso é claro, quanto a algumas partes da alma que indubitavelmente são acto
do corpo e estão fixas e juntas directamente à matéria, todavia nada impede que
outras, como estão libertas da matéria, possam existir fora dela. O que Aristóteles
tinha significado com o nome de partes, exporemos de caminho. Ele ainda não
explica se, do que foi dito, consta que a alma existe para o corpo como o piloto
para o navio, como Platão considerou, ou se não consta.
QUESTÃO !
Se Aristóteles definiu correctamente a alma ou não
ARTIGO I
Esclarece-se a definição peripatética de alma
Com base naquilo que Aristóteles ensinou no capítulo anterior resulta a seguinte
definição de alma: a alma é o acto primeiro substancial de um corpo orgânico que
tem a vida em potência. Esta definição tem de ser explicada ponto por ponto.
Chama-se à alma acto, EVTÉÀEXELa, vocábulo com um sentido tão lato que com
preende tanto os actos substanciais quanto os acidentais, como registámos no con
texto. Diz-se, portanto, acto, a fim de excluir a matéria prima, que é pura potência, e
quaisquer coisas que não são simplesmente acto, como as coisas compostas, tanto
naturais, quanto artificiais. Primeiro, para rejeitar os actos segundos, especialmente
as operações, como observaram Temístio, neste livro, capítulo 4º e Alberto Magno
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo I 201
acto do corpo e de que maneira a intelectiva o é, a saber, aquelas são actos insepará
veis, esta é separável. Todavia é verdadeira a opinião contrária, seguida por São
Tomás, Egídio e muitos outros intérpretes latinos, na primeira parte da Suma Teoló
gica, questão 76, artigo 4º e no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 79º. Ainda que
seja próprio da alma intelectiva enformar a matéria de tal modo, que dela se possa
separar e subsistir, por si, fora do corpo, ela é, no entanto, verdadeira e propria
mente, forma do corpo humano e participa da natureza comum à alma, que é trans
mitida na definição proposta, em igualdade com os restantes animais.
ARTIGO II
Argumentos contra a definição anterior
Não faltam, porém, argumentos com os quais se pode atacar a definição apresen
tada de alma. Em primeiro lugar, será possível objectar assim: a alma é um acto
segundo; logo, não é um acto primeiro. Prova-se a afirmação anterior. Efectiva
mente, quando a versão latina, na definição de alma, regista, acto, o contexto grego
regista ÉV'tEÀÉXELU, o que, na tradução de Cícero, no primeiro livro das Questões Tus
culanas, não é outra coisa senão o movimento perpétuo e perene. Mas o movimento
não é acto primeiro, mas segundo, tal como uma operação. Donde, São Nemésio, no
livro A Natureza do Homem, capítulo segundo, estar convencido que Aristóteles não
julgou que a alma é substância, uma vez que lhe chamou enteléquia. E por causa
disso, São Gregório de Nissa, no livro segundo de A Alma, capítulo 4º e Justino
Mártir na Oratione paraenetica ad gentes, afirmam que Aristóteles considera a alma
intelectiva como mortal. Depois, confirma-se o mesmo antecedente, porque é neces
sário que a alma seja acto de maneira eminente. Na verdade, o acto segundo é supe
rior ao primeiro, pois aquele está ordenado para este, como para o fim; com efeito,
cada qual existe por causa da sua operação, como ensina Aristóteles, no segundo
livro de O Céu, capítulo 3º, texto 17 e livro 9 da Metafísica, capítulo 9º, texto 1 5 .
Segundo. A alma não é substância, portanto, não é acto substancial. Galeno prova
a premissa menor, nos capítulos 3º e 4º do livro, intitulado, Quod animi mores
corporis temperamentum sequantur. A alma não é outra coisa senão Kpãmc;, ou
composição e mistura das quatro primeiras qualidades. Mas esta é um acidente, não
uma substância. Portanto, a alma não é substância, mas acidente. Prova a premissa
maior de duas maneiras. Primeiro, porque parece que a alma é aquilo que, quando
desaparece, faz com que o animal morra. Também é certo que o animal morre, uma
vez desfeita a composição. Depois, porque o afecto ou as paixões têm origem, em
nós, a partir da diferente composição dos corpos. Por exemplo, os melancólicos
tendem para a tristeza, os coléricos para a ira, mas as afecções provêm da alma,
como que de uma fonte. Por isso, a alma não é senão a referida composição. Acresce
a autoridade dos antigos, como a de Dinorco e a de Empédocles, que ensinavam ser
a alma harmonia, não, certamente, de sons, mas de qualidades contrárias, unindo-se
numa única composição. Também a autoridade do músico Aristoxeno que, não se
desviando da sua arte, considerou que a alma subsiste no homem, pela mesma razão
que a melodia subsiste no canto e nas cordas da lira. Assim, tal como as cordas bem
estendidas executam a sinfonia, também a conjunção firme das partes do corpo e de
todos os membros, em uníssono, num esforço único, produz os movimentos animais.
204 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
Terceiro. A alma é um corpo. Logo, não é acto do corpo. De outro modo, algo de
um corpo seria corpo. Prova-se o antecedente. Na verdade, todo o conhecimento,
com base na doutrina de Platão, no Timeu e de outros velhos filósofos, se dá através
de certa semelhança e afinidade entre a coisa conhecida e o que a conhece. Donde,
Empédocles, filosofando poeticamente, diz:
A potência térrea percebe a s terras, a potência líquida a s ondas
O ar é sentido pelo ar, o fogo pelo fogo
A paz exorta à paz, a áspera disputa vive de disputa.
Por isso, como entre o corpo e aquilo que está livre de corpo, nenhuma seme
lhança existe, se a alma não fosse um corpo não obteria conhecimento de nenhuma
coisa corpórea. Dado que isto é manifestamente falso, deverá perfilhar-se que a alma
é constituída pela mistura de outros corpos. Corrobora-se a mesma proposição ante
rior, pois a alma padece pelo corpo quando, por exemplo, o delírio frenético ou a
embriaguez perturba a intelecção. Também o corpo padece igualmente pela alma,
quando somos afectados pelo rubor da vergonha e ficamos brancos devido ao medo.
Uma vez que é necessário o contacto para a acção e para a paixão mútuas e isso
acontece somente entre corpos, por intervenção da quantidade, não parece que deva
negar-se que a alma é corpo. Santo Agostinho, no livro 22 de A Cidade de Deus,
capítulo 1 1 º, afirma que Aristóteles foi desta opinião ao dizer que na doutrina peri
patética, a alma é uma quinta substância, isto é, formada a partir da matéria e da
natureza celeste.
Quarto. A alma racional fora do corpo é alma de verdade mas, nesse estado, não é
acto do corpo. Portanto, esta parte não deve ser acrescentada à definição. Acres
cente-se que Aristóteles, neste livro, capítulo 1 º, texto 1 1 , afirma que é claro que
certas partes da alma não podem ser separadas do corpo, porque é evidente que são
acto dele. Logo, se, na opinião de Aristóteles, pode subsistir fora do corpo, então
não é acto do corpo.
Quinto. O substrato através do qual se define a forma, deve ser anterior à própria
forma. Mas o corpo orgânico não é anterior à alma. Portanto, não é correcto conside
rar-se que a alma é acto de um corpo orgânico. Prova-se a premissa menor, porque
só são chamadas partes orgânicas, aquelas que já são dotadas de potências vitais.
Visto que as estas potências se orientam para a alma, necessariamente a supõem e,
por isso, o corpo orgânico é posterior à alma.
Sexto. Quando o anjo, a partir do ar espesso, reproduz para si, um corpo de
órgãos diferenciados e nele se move com movimento de marcha, fala, come e exerce
outras funções vitais, toda a definição de alma lhe assenta, e contudo não é alma.
Portanto, a definição de alma não é recíproca com a coisa definida.
ARTIGO Ili
Que a alma não é um composto
Para que os argumentos, acima descritos, sejam explicados de maneira mais con
veniente e com maior desenvolvimento, teremos primeiro de refutar certos princí
pios falsos. Expõe-se, em primeiro lugar, o erro de Galeno, em que incorreram cer-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo IV 205
tos heréticos, por certo, Carpócrates, Epifânio, Pródigo e Caiano, também Antitacta
como refere Teodoreto no livro De divinis decretis. Galeno, no livro 3, De Zoeis
affectis, capítulo 6º e na sua obra acima citada, considerou que a alma é um com
posto das qualidades primárias, o que já, no Fédon de Platão, Sócrates criticara. São
Tomás explica a sua posição deste modo, no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 63º
e na Questão Disputada sobre a Alma, artigo l º, ainda que alguns digam que ele
pensava diferentemente ou, pelo menos, que não teve certeza sobre a questão, de tal
modo que parece que não houve doutrina que seguisse ou opinião para que se incli
nasse. O próprio Galeno indica-o claramente no livro De Naturalibus facultatibus
substantialibus e no livro Symptomatum e no livro 3 de De usu partium, onde afirma
ignorar o que é a alma.
Qualquer que tenha sido o seu pensamento, a primeira conclusão nesta discussão
é a seguinte. É erro intolerável, também na filosofia, que a alma seja um composto.
Conclui-se destes argumentos que a alma é a forma das coisas vivas. Efectivamente,
através dela, o que é vivo recebe o ser. A alma não é, portanto, um composto.
Demonstra-se a consequência, porque uma composição é acidente, ou melhor, mui
tos acidentes, como as quatro qualidades que primeiro se atribuem à proporção. Por
isso, como cada ser vivo é substância essencialmente, composto da sua forma e
matéria, se a sua forma fosse um acidente, a substância seria composta de acidentes,
o que toda a filosofia repele.
Segundo. As funções oriundas da alma são de mais alta condição do que as que
provêm das primeiras qualidades. Destas, de facto, provêm o calor, o frio, a humi
dade, a excitação. Da alma provém o acto de alimentar, de crescer, de se movimen
tar no lugar, de sentir e de inteligir, e ninguém ignora que estas últimas funções são
mais nobres. Portanto, a alma não consiste nas primeiras qualidades, mas é de uma
natureza mais eminente e mais notável.
Terceiro. A alma que participa da razão, dirige os movimentos que surgem no
apetite sensitivo e modera as paixões, como é manifesto nas paixões nela contidas
em si. No entanto, a perturbação das qualidades não é capaz de fazê-lo, porque é a
partir dela, enquanto causa reguladora e estimuladora, que na maior parte do tempo
as paixões nascem e são alteradas, consoante a sua intensidade e fraqueza. Portanto,
pelo menos, a alma racional, não é medida ou composto das primeiras qualidades.
Por fim, visto que aqueles, que dizem que a alma é um composto, negam que ela
seja substância, a fim de os refutar prevalecerão também todos os argumentos com
que, no artigo seguinte, demonstraremos que a alma não é acidente mas substância.
ARTIGO IV
Que a alma é substância
A segunda conclusão desta questão é que a alma não é acidente mas substância.
Esta conclusão não apresenta qualquer dúvida, também na filosofia, embora de entre
os físicos antigos, tenham negado a sua existência aqueles que, para além da matéria
prima, não admitem nenhum princípio das coisas da natureza. Platão não discordou
disto, embora no Timeu tenha chamado número à alma que participa da razão e da
inteligência. Não considerou a alma, por isso, número de quantidade, mas seguiu a
206 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
filosofia transmitida desde tempos antigos e o costume dos Pitagóricos, que repor
tavam todas as coisas aos números. Quis deste modo representar a dignidade e o
poder da alma.
Ele chamou então, número à alma, ou porque esta contém em si os números de
todas as coisas, visto que ela foi confirmada com as formas ou as imagens dessas
coisas, ou porque, tal como os números matemáticos ficam a meio entre as coisas
naturais e as divinas, assim a alma ocupa um lugar intermédio entre as formas total
mente desligadas da matéria e aquelas que estão ligadas à matéria. Platão também
adequou a natureza da alma ao círculo, porque tal como o círculo dá a volta sobre si
mesmo, assim a alma, ao inteligir, por um percurso do conhecimento, reflecte sobre
si própria. Ele atribui-lhe também a harmonia, quer porque os sentidos que usa como
intermediários se deleitam com a sintonia das coisas sensíveis, como a música, quer
em razão do consenso, da ordem das faculdades e das potências da alma. Final
mente, compôs a definição de alma a partir do próprio movimento, afirmando que a
alma é número que se move, porque, quer contemple, quer sinta, quer imprima
movimento diz-se que a alma se move. Por isso é fonte e princípio da operação e
não se move por outra via, como as coisas desprovidas de vida. Na verdade, se são
estas as opiniões de Platão acerca da alma, por que razão Aristóteles as considerou
de outro modo e as censurou tão asperamente? Certamente porque, como salientou
São Tomás, no primeiro livro desta obra, na lição 8, Aristóteles não refuta o pensa
mento de Platão, mas repudia um primeiro sentido das suas palavras, a fim de que o
grande número de filósofos que está preso às palavras e ignora o sentido recôndito e
profundo de Platão, não se alucine, pensando que a alma é, realmente, número, cír
culo ou harmonia. Não só os Platónicos mas, em primeiro lugar, ilustres Peripatéti
cos como Teofrasto, nos livros em que explica os pontos de Aristóteles tratados até
agora (cuja obra Temístio recorda na sua Paráfrase ao primeiro de A A lma capítulo
1 7º); Filópono nos Comentários ao capítulo terceiro; Bessarion no livro 2 Contra os
Caluniadores de Platão; Macróbio, no Sonho de Cipião, capítulos 1 5º e 1 6º, esfor
çam-se por defender Platão desta acusação.
Pode, em suma, demonstrar-se que a alma é substância, como expôs, magnifica
mente Gregório de Nissa na disputa A A lma. Do mesmo modo, que quem vê no
mundo, a variedade harmónica das coisas, a paz diferenciada dos opostos, a disputa
em que se chega a acordo, depressa constata, se concluir correctamente, que existe
uma certa potência divina, que se espalha por todas as partes do mundo, contendo e
encerrando todas as coisas no seu movimento, assim também constatará que em
qualquer coisa viva as qualidades contrárias são conservadas para serem reconduzi
das à harmonia. Não só as afecções opostas dos órgãos para que não se destruam
mutuamente, se contêm numa determinada lei, mas também, funções tão diferentes
são governadas com tanta ordem e consenso, que se compreende plenamente que
existe uma única forma de cujo mérito e benefício se perfazem todas as coisas,
forma esta que não poderá ser acidental, mas substancial, porque não são próprios de
um acidente tanta eficácia, tanto poder sobre os membros das coisas vivas, bem
como o governo das qualidades contrárias. Esta forma não será outra, senão a alma,
visto que na mesma matéria não podem existir várias formas substanciais, como
demonstrámos noutro ponto. Por essa razão, é evidente que a alma é substância.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão /, Artigo V 207
ARTIGO V
Que a alma não é nem matéria, nem corpo
vemos os animais dirigirem-se para lugares variados, por apetite e mediante apreen
são. Por último, como no oitavo livro da Física, capítulo 4º, texto 28, Aristóteles
ensina que é necessário que todo o corpo que se move a si mesmo integre duas coi
sas. Uma, que mova e não seja movida, outra que seja movida e não mova. Também
o animal se move e nele o motor é a alma, mas o que é movido é o corpo. Donde, a
alma não é corpo. Para além dos argumentos anteriores existem também outros que
são próprios e particulares com vista a demonstrar que a alma intelectiva não é maté
ria nem corpo, mas adiá-los-emos para o próximo artigo.
ARTIGO VI
Que a alma intelectiva é uma substância espiritual,
mas não é uma partícula da mente divina
tanto, têm origem na potência e na forma imaterial. Esta é a alma intelectiva. Logo,
a alma intelectiva é substância imaterial ou espírito. Em seguida, da parte da von
tade, recomenda-se a premissa menor. A vontade, com o empenho da honestidade,
refreia o apetite sensitivo que está presente na matéria e comanda. Mas esse poder é
próprio de uma potência mais alta do que a corpórea. Logo, a vontade não é coisa
corpórea, mas espiritual. O que também deverá ser dito da alma humana, da qual
flúi. Segundo. O mesmo se confirma, porque, queira-se ou não, os actos de amar e
de venerar a Deus, estão largamente acima dos sentidos e dos apetites e, portanto,
proclamam, de forma evidente, uma potência de outra ordem, isto é, espiritual, de
onde também brota a forma espiritual. Pelo que, é evidente que a alma intelectiva é
espírito.
Esta mesma verdade também é corroborada pelo testemunho dos Padres, como
Santo Ambrósio, que no livro Noé e a A rca afirma que a alma racional é um certo
espírito divino, e prova-o a partir do capítulo 1 º do Génesis, onde se diz que Deus
inspirou em Adão o espírito da vida, isto é, o espírito que vivifica o corpo. O mesmo
afirma São Dionísio no capítulo 4º de Os Nomes Divinos que chama à alma substân
cia intelectual ou espiritual, dotada de vida inesgotável. Igualmente testemunham
São Damasceno, no livro 2 da Fé Ortodoxa, capítulo 1 2º e livro 3, capítulo 1 6º;
Santo Agostinho, livro 6, A Trindade, capítulo 6º e no livro 2 das Retratações,
capítulo 56º; São Gregório Magno, no livro 4 dos Diálogos, capítulo 5º e livro 2, de
Os Morais, capítulo 2º; São Gregório Nazianzeno, no Apologético 1 ; São Gregório
de Nissa, no livro A Criação do Homem, capítulos 4º e 1 5º, e no livro 2 da Filosofia,
quando afirma que também Platão tinha esta opinião; o que Plotino, Amónio e
Numénio também disseram, sobre o assunto.
O mesmo se colhe, quer de alguns passos da Sagrada Escritura, em que a alma
humana é chamada espírito, com o significado em que o espírito se distingue do
corpo, como no último capítulo do Eclesiastes: o pó retoma à sua terra, donde era, o
espírito retoma a Deus, que o deu. Também em Lucas 23 : nas tuas mãos, entrego o
meu espírito; e na Carta aos Romanos 8 : o Espírito Santo deu testemunho ao nosso
espírito. Do primeiro Concílio de Latrão, sob Inocêncio III, quando se escreve o
seguinte: Deus criou desde o princípio e a partir do nada a criatura corporal, não só a
espiritual, angélica, mas naturalmente, também a mundanal ; donde, a criatura
humana, constituída como que em comum de corpo e de espírito. Refere-se isto na
Extra acerca da Suma Trindade e da Fé Católica, capítulo Firmiter credimus.
Depois, no sexto Concílio de Constantinopla, 1 1 º acto, diz-se que o Verbo divino
assumiu a carne e a alma racional numa forma corpórea. Por fim, Graciano, causa
24, questão 3, capítulo Quidam autem haeretici, refere entre as heresias o erro dos
que consideram que a alma intelectiva não é espírito.
Haverá quem oponha às afirmações anteriores, o testemunho do bispo de Tessa
lónica, João, dizendo que as almas são corpóreas porque o Concílio de Niceia (que é
o sétimo sínodo geral) declara no início da quinta sessão e não o reprova. Sobre os
anjos, diz ele, e os arcanjos e as suas potestades, às quais acrescento as nossas almas,
a própria Igreja considera que são verdadeiramente inteligíveis, que não são total
mente privados de corpo e invisíveis, mas providos de um corpo subtil e aéreo ou
ígneo. E mais abaixo: ninguém disse que os anjos, os demónios ou as almas eram
incorpóreos. Deve opor-se, todavia, que o Sínodo sagrado nada estabelece acerca da
2/0 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles
substância das almas ou dos anjos. Mas a sentença daquele Padre, era de tal forma
seguida, que aprovava o uso das imagens sobre o qual havia discussão. Por isso,
concluiu que as imagens devem ser veneradas, mas a razão com que o aconselhava,
porque as almas e os anjos são corpos, não colhe. João foi tão fortemente iludido por
tal sentença que declarou que a Igreja Católica considerava isso.
Também deverá, aqui, atentar-se, se alguma vez São Basílio, Atanásio, Damas
ceno, Metódio, Jerónimo, o autor do livro De Ecclesiasticis dogmatibus e outros
Padres, chamam à alma racional, corpórea. Isto não deve ser tomado como se pre
tendessem que a alma, na realidade, fosse um corpo, ou fosse composta de corpo,
mas para mostrarem que a alma, numa comparação corpórea de certo modo afron
tosa a Deus, é grosseira, porque se afasta infinitamente da simplicidade e excelência
da mente divina. Os Padres também assim o entenderam, para rejeitarem as loucuras
dos que consideravam a alma humana gerada da substância de Deus. Contra eles.
Eis a quinta conclusão. A alma intelectiva não é uma partícula da mente divina.
Para se compreender esta conclusão deve-se conhecer Carpócrates, como Ireneu
refere, livro l , Contra os Hereges, capítulo 24º. Depois, Cerdo, como afirma Teodo
reto no livro De diuinis decretis. Também os Gnósticos, os Maniqueus e os Prisci
lianistas, segundo diz Santo Agostinho, livro Sobre as Heresias capítulos 46º e 70º e
São Jerónimo na Epístola a Marcelino, caíram nesse erro, ao acreditarem que o espí
rito do homem é uma substância originária de Deus. O que parece que também
Fílon, o Judeu, considerou no livro intitulado Quod deterius potiori insidietur, onde
afirma que Deus inspirou os corpos humanos com algo, do alto da sua divina
majestade. Como parece credível, pergunta ele, que tão exígua mente humana, com
a membrana do cérebro ou com o coração, capte a magnitude do mundo, o tamanho
do céu, limitado por amplos espaços, a não ser que seja uma partícula indivisível da
alma divina e ditosa? Efectivamente, Plutarco, De quaestionibus Platonicis, deixou
escrito isto: a alma, tomada partícipe da mente, não só é obra, mas também parte de
Deus, não foi feita por ele, mas dele e a partir dele. A que também alude:
O corpo cheio
Dos vícios passados também sobrecarrega o espírito,
E deita por terra a partícula do sopro sagrado.
ARTIGO VII
Destroem-se os argumentos do artigo segundo
Damos agora satisfação aos argumentos que se opunham a esta definição de alma.
A favor da primeira explicação deve observar-se o que noutro lugar registámos, que
entre os comentadores de Aristóteles e uns certos críticos recentes, muitos discutem
a etimologia e a interpretação do termo ÉV'tEÀÉXEta. Em primeiro lugar a opinião
comum (embora Francisco Florido na Apologia contra Linguae latinae calumniato
res, opine diferentemente) é que Aristóteles foi o inventor do vocábulo. Na verdade,
uma vez que o seu significado e sentido é um pouco obscuro, são muitos os que
dizem que o pensaram com base em Aristóteles, como meio de se esquivarem, ou
como capa de ignorância, não para esclarecerem, mas para esconderem a misteriosa
natureza da alma. Mas Júlio Escalígero, ilustre defensor da doutrina peripatética,
defende-o desta calúnia no Exercício 308, Sobre Cardano. Também Cícero, como
dizíamos no argumento, primeiro livro das Questões Tusculanas resolve esta discus
são contínua e duradoura. Parece, na verdade, que Aristóteles considerou, segundo o
uso ático, a palavra ÉV'tEÀÉXEta como ÉvÕeÀÉXEta, que acolheu a mudança de <') em 't
em àrró wü ÉvÕeÀ.exwc;, que em latim significa de forma contínua ou perene. Esta
interpretação, embora seja justificada por alguns, como por Policiano nas Miscella
neis, capítulo 1 º, é criticada por muitos. Nem Aristóteles se viu constrangido, contra
os preceitos da sua doutrina, a chamar à alma movimento, coisa que em Platão mais
lhe desagradava, como é claro a partir do que expôs contra ele, no capítulo 3°, livro
1 desta obra.
Por essa razão deve dizer-se, de preferência, que Aristóteles chama à alma ÉV'tEÀÉXEta,
isto é, hábito perfeito, ou, como traduz Hermolao na Paraphrasi Themistii, expri
mindo de novo uma palavra nova, perfectihabiam. Na verdade, tal como a matéria é
ser em potência e por isso, imperfeita, a forma, pelo contrário, completa a coisa e é
quase e�tc; 't�c; 'tEÀ.e1ó-rri-rw isto é, hábito e possessão de perfeição, ou acto perfeito.
Pelo que é evidente a razão pela qual Aristóteles chamou assim à alma, para dela
não excluir a noção de substância ou de acto primeiro. Também injustamente, Plo
tino nas Enéadas 4, livro 2, desprezou de tal modo esta definição acerca da essência
da alma, que a considerou indigna de refutação, pelo facto de nela a alma se chamar
ÉV'tEÀÉXELa. Não é verdade que quem diz que a alma é acto do corpo, negue que ela
seja imortal, como pensaram alguns, visto que não é necessário que todo o acto do
corpo esteja de tal modo sujeito e ligado à matéria, que não possa subsistir fora dela.
Portanto, ao argumento deve negar-se o antecedente e em relação àquilo que é
primeiro aduzido para a sua confirmação, responder como dissemos. Quanto ao que
se defende no fim, deve dizer-se que nem todo o acto segundo é mais perfeito do que
o acto primeiro e que nem todo o fim supera, em excelência, a própria natureza, nas
coisas ordenadas para um fim. Isto é verdadeiro no que se refere ao último fim
absolutamente e sem excepção, como no livro 2 da Física expusemos. Há outra
solução, neste ponto, em Caetano.
Ao segundo, tem de negar-se o antecedente e a maior do silogismo, aonde isto é
provado. Para responder à sua primeira afirmação, que uma vez desfeita a composi
ção o animal morre, conclui-se correctamente que o corpo não pode ser enformado
pela alma, a não ser que, entretanto, tenha sido provido com disposições convenien-
212 Sobre o s Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles
tro elementos comuns, existe uma outra quinta substância do corpo, mais eminente e
divina do que os próprios elementos. Novamente, no livro 2, A Geração dos Ani
mais, capítulo 3º, afirma que a alma participa de um certo corpo de elementos divi
nos. Na verdade, Aristóteles, nem naquele ponto, nem noutro lugar pensou que a
alma fosse corpo, visto que nessa obra, no ponto citado, demonstrou o oposto em
termos claros. Portanto, atribuiu à alma aquele corpo, e referiu a posição de Platão e
dos Académicos, que afirmavam que a alma sofria o cárcere tenebroso do nosso
corpo, num certo corpúsculo luminoso circundante. Ou, pelo nome de corpo, com
preende, nomeadamente, o espírito vital e animal que no livro A respiração, e mui
tas vezes noutros pontos chama rrveüµa eµcpu·rov, isto é, espírito inato, que governa
as funções do corpo por obra da alma, como expusemos no livro A Geração e a
Corrupção. Aristóteles considera este corpo mais divino do que os elementos, por
que nenhuma faculdade dos elementos alcança a excelência das operações que se
realizam por ministério dos espíritos.
Ao quarto, deve ser concedida a premissa maior e deve ser negada a menor, e
afirmar, para prová-lo, que a alma racional que está separada do corpo, embora não
forme o corpo, por sua natureza é acto e forma dele, de tal modo que todas as vezes
que o formar, possa conferir-lhe habilidade e potência para executar as acções da
vida no lugar do órgão. Mas relativamente à citação de Aristóteles, note-se que não
consta entre os comentadores o que Aristóteles quis dizer, naquele passo, com o
nome de partes. Filópono pensa que ele considerou as partes sujeitas à alma, isto é, a
alma vegetativa e a sensitiva. Alexandre, Simplício, São Tomás e outros cuja inter
pretação é afim, acreditam que designa as potências da alma intelectiva e que ele
assegurou não haver dúvida que algumas delas não podem estar com a alma juntas
ao corpo, porque são potências orgânicas e inerentes ao corpo. Por isso, Aristóteles
não pensa que a alma, que é acto do corpo, não possa separar-se do corpo, ou ainda,
que a que pode separar-se do corpo, não é acto do corpo.
Ao quinto, concedida a premissa maior, negue-se a menor. Para refutar a sua
prova, deverá advertir-se que são trazidas a este ponto duas das chamadas partes
orgânicas, para além da matéria, a composição de certa figura, com a disposição
adequada e a potência, que é a própria forma do órgão. Portanto, o órgão tomado no
primeiro modo, antecede a alma pela prioridade da natureza, no género da causa da
disposição e da causa material, porque a preparação necessária para a introdução da
alma na matéria é assim, como adverte Caetano. Mas tomado na segunda acepção
não, porque as potências da própria alma não são antecipadamente exigidas para a
receber na matéria, como é evidente. E para que se diga que se define a alma pelo
corpo orgânico, como por algo anterior, basta que, tanto a matéria em si, quanto a
afectada aos diferentes órgãos, segundo o primeiro modo, anteceda a alma na ori
gem. Nem na verdade, é necessário que o substrato, através do qual a forma se
define, seja anterior à forma, em todos os sentidos.
Ao sexto, deve negar-se a premissa maior e dizer-se que a definição de alma não
é adequada ao anjo em relação ao corpo que ele assume, quer porque não é acto ou
forma de tal corpo, mas apenas motor, quer porque aqueles órgãos, embora sejam
verdadeiras coisas, não são, todavia, órgãos próprios e verdadeiros. Para isso exi
gem-se dois pressupostos, como registámos há pouco. Um, é a efígie e a figura com
uma certa proporção de qualidades, outro, as próprias potências vitais inerentes à
214 Sobre o s Três Livros 'Da A lma ' d e Aristóteles
matéria. Como estas não se distinguem nos corpos que os anjos assumem, tais
potências não lhe são inerentes, seja o que for que haja nas restantes, exigidas pela
noção dos órgãos. A consequência é que os corpos não devem pura e simplesmente
ser chamados orgânicos. Daí que os anjos não exercem neles funções vitais, visto que
o acto é-o daquilo que está em potência, como ensina Aristóteles no livro O Sono e a
Vigília, capítulo 1 º; não obsta que pareça que os anjos falem, andem e se alimentem.
Certas coisas comuns às funções dos viventes, podem ser observadas nuns e noutros
·
do género, como o som na fala, o movimento no andar, o deglutir o alimento ao
comer e outras coisas próprias, como o som que é emitido através de instrumentos
vocais pela faculdade que lhes é inerente e, igualmente, que uma acção seja execu
tada pela faculdade motriz com sede nos músculos, e a separação do alimento feita
por aquilo que pela sua natureza se pode converter em substância. Dado que nestas
operações as coisas que são próprias dos seres vivos faltam aos anjos, deve, em
absoluto, negar-se que eles executem as acções vitais nos corpos que assumem e que
são o acto do corpo orgânico. São Tomás assinala-o, além de outros, na primeira
parte da Suma Teológica, questão 5 1 , artigo 3º; Egídio no segundo livro das Senten
ças, distinção 8; Gabriel, no mesmo livro, distinção 8, questão primeira, artigo 3º;
São Boaventura ibidem; Ricardo, questão 5; Maior, questão única; Bassolius, ques
tão única, artigo 3º.
QUESTÃO II
Se a alma é algo subsistente ou não
ARTIGO !
Argumentos para alcançar a verdade da matéria proposta
Porque cada coisa é tal como é produzida, e é tal como opera, existem duas pro
vas com as quais depreendemos se alguma coisa criada é subsistente, isto é, exis
tente por si e determinada. Uma é, se é produzida por si, isto é, pela acção que lhe é
própria, e determinada. Outra, se opera por si mesma, alcançando para si a operação
que lhe é própria ou determinada. Também, porque a presente questão deve ser
compreendida tanto relativamente à alma dos animais como à dos homens, provar
-se-á, primeiro, a partir da primeira prova, que as almas dos animais são subsistentes,
da maneira que se segue. Na primeira criação das coisas as almas dos animais foram
produzidas por Deus, congruentemente com as suas naturezas, mas foram produzi
das por acção própria e independente da matéria e, por isso, determinadas. Logo, as
almas dos animais por sua natureza são subsistentes. Prova-se a premissa menor,
porque Deus não produziu estas formas com os elementos que concorrem para isso,
seminal ou activamente, mas apenas passivamente, pelo que toda a acção se deu a
partir de Deus, do mesmo modo que a produção da alma intelectiva, que é evidente
que, por si, delimita a própria alma.
Segundo. A acção, pela qual a alma do leão, por exemplo, é produzida, é real
mente distinta daquela pela qual ela se une à matéria. Ora, a união é delimitada pela
forma que não existe na matéria mas dela depende. Logo, a produção será fixada
Livro Segundo, Explicação do Capítulo l, Questão li, Artigo l 215
para ela mesma, por si e para o fim, que é produzido como determinado. Prova-se a
premissa maior. Na verdade, quando algumas acções são dispostas de tal modo que
ambas mutuamente se podem separar e uma pode existir sem a outra, ao menos pelo
poder divino, necessariamente se distinguem entre si na realidade. Demonstra-se que
as referidas acções são assim. Deus pode produzir a alma do cavalo na matéria, não
a unindo a ele e depois pode unir essa mesma alma que antes foi produzida por si, à
matéria, e assim, no primeiro momento dar-se-á a produção sem união, no seguinte,
a união sem produção.
Depois, no que concerne às almas racionais, prova-se, a partir da segunda prova,
que elas não são subsistentes. As almas racionais não operam por si mesmas, logo,
não são subsistentes. O antecedente demonstra-se, porque para a alma racional ope
rar por si, ou opera sem dependência do corpo, ou possui uma operação imaterial,
que recebe em si. Se for o primeiro, tal modo de operar não pertence à alma quando
está no corpo, visto que a sua intelecção depende dos fantasmas, de acordo com o
que diz a passagem de Aristóteles, livro 3 , desta obra, capítulo 8°, texto 9: é necessá
rio que o que intelige observe os fantasmas. Se for o segundo, isto não é suficiente
para se demonstrar que a alma pode existir por si. Parece que nada daí pode ser
coligido, além de que a alma é substância espiritual dado produzir e sustentar a
acção espiritual. Que não se comprova com um argumento suficientemente firme
que a intelecção da alma foi recebida na própria alma como numa substância espiri
tual, mas não no órgão corpóreo, é o recomendado. Com efeito, São Tomás con
firma-o, na 1 ª parte da Suma Teológica, questão 75, artigo 2º, porque se a alma inte
ligisse através do órgão corpóreo, não poderia perceber todos os corpos, daí que,
pela doutrina de Aristóteles, livro 2 desta obra, capítulo 1 0º, texto 1 04, e livro 3,
capítulo 1 °, textos 4 e 5 , o que existe dentro proíbe o conhecimento do que é exte
rior. Donde, nem a faculdade de ver perceberia todas as cores, se a pupila, na qual
reside, fosse penetrada pela cor nalguma parte. Nem a língua, uma vez impregnada
de humor bilioso, distinguiria as diferenças dos sabores. Mas demonstra-se que este
argumento não tem valor, porque a fantasia reside no órgão corpóreo e, contudo,
percebe todos os outros corpos e o anjo é uma substância espiritual, e no entanto
apreende pelo conhecimento todas as outras substâncias espirituais. Daí que, por
igual razão, embora a alma inteligisse através do órgão corpóreo, isto não obstaria
que obtivesse conhecimento de todos os outros corpos.
Outro. Que a alma racional não opera como tal, mas mediante tal, parece ensinar
Aristóteles livro 1 desta obra, capítulo 4º, texto 64 quando diz assim: todavia, afir
mar que a alma se indigna ou que teme, seria o mesmo que alguém dissesse que
alma compõe ou edifica. Na verdade, é melhor talvez dizer que não é a alma, mas o
homem que, pela alma, se compadece, apreende ou raciocina. E o seguinte: donde,
acontece que, como alma racional é aquilo pelo qual o todo existe, ela não operará
assim, a não ser como aquilo, pelo qual, correcta e verdadeiramente se costuma
dizer, que cada coisa é tal como opera. O mesmo se pode confirmar, porque não se
diz que nenhuma alma é algo determinado, mas já se diria se ela agisse como tal.
216 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Explicação da questão resolução dos argumentos
No que respeita ao argumento pelo qual São Tomás mostra que a intelecção é
recebida na própria alma, como numa substância espiritual, mas não no órgão corpó
reo, é fácil encará-lo por si, pela via a seguir. Porque se o intelecto estivesse no
órgão corpóreo não poderia inteligir todos os corpos, visto que, muitas vezes, não
poderia perceber o próprio órgão, dado que a potência orgânica não se pode reflectir
nem acima da sua operação, nem acima do seu próprio órgão, como a partir do Livro
das Causas, os filósofos ensinam em consenso geral. Também, porque, uma prova
deste tipo se firma naquela sentença aristotélica, segundo a qual o que existe no
interior proíbe o conhecimento do que está fora. Porque esta afirmação é, por um
lado, bastante clara, por outro, um tanto obscura, é necessário ponderar como deve
ser compreendida. Averróis discute este assunto, no livro 3 de A A lma, comentário
4; São Tomás em A Verdade, questão 22, artigos 1º ao 8º; Caetano na primeira parte
da Suma Teológica, questão 75, artigo 2º; o Ferrariense no livro 2 Contra os Gen
tios, capítulo 98º. Omitida discussão mais longa, deve dizer-se que se pode encontrar
acima de tudo uma dupla causa, para o facto daquilo que existe na potência cogni
tiva ou daquilo, em que a potência cognoscente existe, impedir o conhecimento das
outras coisas. A primeira causa é porque obsta a que a potência possa manifestar as
espécies das outras coisas. Deste modo, se a pupila fosse colorida, o olho não pode
ria ver cores estranhas, porque as espécies visíveis não são recebidas no corpo limi
tado e opaco, que é, normalmente, o que foi afectado pela cor. Mas esta causa não
tem lugar na substância e na potência, nas coisas espirituais, as quais nada impede
que sejam indeterminadas para receber as espécies de todas as coisas inteligíveis.
Donde, São Tomás, no lugar citado, afirmar que a referida proposição não é verda
deira para as faculdades cognitivas dirigidas para objecto universal, como o inte
lecto. Mas aquela mesma causa já tem lugar nas potências orgânicas, enquanto
podem receber as imagens dos outros singulares que lhes pertencem. Porém, por
causa da matéria a que estão inerentes, a limitação e a imperfeição juntam-se de tal
modo às condições individuais, que apenas podem obter imagens de sensíveis sin
gulares e, assim, conhecerem apenas os sensíveis singulares. Isto também acontece
ria ao intelecto caso ele incidisse no órgão material e corpóreo. Ele não perceberia,
de facto, nenhuma coisa espiritual, nem as espécies das coisas imateriais mas, pelo
contrário, apenas as individuais, porque nem as espécies das coisas imateriais repre
sentam quer as coisas comuns, quer as singulares, nem as espécies das coisas corpó
reas, que representam as coisas comuns, podem ser recebidas no órgão corpóreo,
porque ambas devem ser espirituais. Isto, porque, nem os tipos que as coisas espiri
tuais referem, nem aqueles que as naturezas corpóreas comuns referem, podem não
ser espirituais. Este é o argumento adequado para o assunto, porque as imagens
corporais, devido à sua origem obscura e à sua materialidade, não podem, ao repre
sentar, ir além da matéria delimitada e das coisas corpóreas singulares. E, por isso,
Platão, no Teeteto mostra que o intelecto conhece muitas coisas que não podem ser
percebidas pelo instrumento corpóreo, tais como a natureza comum, o belo e o bom.
A outra causa pela qual o que está dentro proíbe o conhecimento do que está fora,
é a de que, embora a potência possa receber as espécies de outras coisas, se ocupa de
tal modo do objecto presente, que, ou de nenhum modo, ou apenas de um modo
confuso lhe pode prestar atenção. Daí que alguns atacam de tal modo aquela propo
sição, que chegam ao ponto de dizer que não existe dentro, mas que aparece dentro,
livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão li, Anigo li 219
ou seja, que o objecto que é oferecido à potência cognitiva em acto impede o conhe
cimento das outras coisas. Daqui a razão por que, estando a língua doente, uma vez
atacada a zona que sofre de bílis amarela, ainda que se aproximem do exterior coisas
gostosas e providas de óptimos sabores das quais ela recebe as imagens, ela não as
sente, porque aquele sabor que se fixou, que primeiro ocorre ao paladar, reclama
para si todo o empenho da faculdade perceptiva. De tal modo costuma acontecer
assim, que não é apenas o mesmo sentido que é levado para os outros sensíveis que
se lhe oferecem, mas todos os restantes, a serem também levados para os seus
objectos, sempre que a alma, para perceber algo, se aplica com tanto esforço e inten
ção, que não fica disponível para conhecer outras coisas.
Com estas advertências, é evidente que o argumento de São Tomás e, ainda mais,
o de Aristóteles, a favor do qual discutimos esta matéria, conserva a sua força, e é
evidentesendo claro que é correctamente apresentado. Se o intelecto estivesse no
órgão corpóreo, aconteceria que ele não perceberia todos os outros corpos, e a partir
daquela proposição, 'o que existe dentro impede o conhecimento do que está fora' ,
de modo algum se demonstra que o anjo não intelige todas as substâncias separadas
e que a fantasia não percebe outros corpos. Segue-se que ele não percebe todas as
coisas pela primeira causa transmitida para explicação daquela proposição.
Resta resolver o último argumento do primeiro artigo. São Tomás responde à
primeira parte deste argumento, na 1 ª parte da Suma Teológica, questão 75, artigo 2
ao 2º, que Aristóteles, nesse ponto, não emite a sua própria opinião mas a de outros.
Responde em segundo lugar que o Filósofo apenas pretende, que não se deve afir
mar que a alma intelige como algo subsistente perfeito e completo; com efeito, a
intelecção respeita, não à alma, mas ao homem. Acerca da outra parte do mesmo
argumento, há quem diga que a alma enquanto está no corpo não existe como tal,
mas mediante tal, como seminatureza, como diz Caetano: embora separada do corpo
exista como tal como semipessoa, pois, na verdade, para complemento absoluto da
pessoa, falta-lhe o ser completo do ente, visto que fora do corpo a sua natureza é
uma parte do homem. Porém, é preferível dizer que tanto no corpo, como fora do
corpo, ela existe como tal . Para isto, com efeito, é suficiente que subsista por si
mesma, conforme a segunda acepção, porque, quer o corpo a enforme, quer não,
pertence-lhe perpetuamente. Na verdade, o que chega para que alguma coisa seja
produzida como tal, deve chegar para que ela exista por si mesma como tal . Mas é
suficiente que subsista do segundo modo, como se considera que alguma coisa é
produzida como tal, como é evidente na própria alma racional, que se considera ter
sido criada por si mesma e como tal. Decerto que a sua criação, como também as
restantes acções produtivas, é dirigida para algum fim como tal. Posto que não é
conduzida para outro fim além da alma (nem, com efeito, o homem pode ser esse
fim, porque este não é criado) a consequência é que a alma é produzida como tal.
Mas, sem dúvida, se a alma fora do corpo começasse a ser como tal, e como semi
pessoa, dado que esse modo de ser seria dotado de maior perfeição do que o ser
mediante tal, e como seminatureza, seguir-se-ia que a alma fora do corpo, e, por
tanto, no estado pretematural, possuiria um modo de existir mais perfeito, do que no
corpo, e do que no estado natural, o que São Tomás nega que deva admitir-se, muito
justamente, na primeira parte da Suma Teológica, questão 89, artigo 2º e no 4º livro
das Sentenças, distinção 43, questão primeira, artigo 1 ao 4º. Embora a alma quando
220 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles
está separada do corpo alcance um modo de inteligir mais elevado e mais livre,
como defendemos em seu lugar, não é contudo verdade que atinja, então, um ser
mais perfeito, pois isso acontece quando está no corpo e cumpre excelentemente a
sua função, que é a de dar o ser ao composto e de o constituir na própria espécie.
Acrescente-se que, se a alma fora do corpo existisse como tal, e no corpo mediante
tal, seguir-se-ia que na ressurreição, quando o corpo tivesse regressado, iria abando
nar aquela condição mais nobre de subsistir, o que não é verosímil. Não satisfaz a
resposta de Caetano, dizendo que a alma, no corpo glorioso, há-de subsistir como
tal. Na verdade, se não o conseguia no corpo mortal, porque era parte de um todo,
como, depois da ressurreição, é uma futura parte do mesmo, ela será chamada à
mesma condição de subsistir, que tivera antes, no corpo mortal.
Deverá advertir-se, para se explicar a outra parte do mesmo argumento principal,
relativamente ao qual, nos debruçamos agora, que a alma existente no corpo, sub
siste como tal, não obstante ser mediante tal, por uma consideração diversa. De
facto, subsiste como tal, enquanto existe independentemente no seu ser, e existe
mediante tal, enquanto é aquilo pelo qual o todo existe. Donde, segundo uma noção
e outra, se possa negar e conceder que a alma é algo determinado. Negar, se este
algo for tomado por um subsistente completo, conceder, se for tomado por um sub
sistente incompleto.
QUESTÃO III
Se as almas intelectivas são criadas por Deus ou não
ARTIGO I
Diversas opiniões acerca da origem das nossas almas
não resultaria uma unidade, por si, a partir dos dois, por outro lado, a uma qualquer
potência natural passiva corresponde uma activa, também natural, como ensina
Aristóteles no livro 5 da Metafísica, capítulo 1 2º, texto 1 7, e livro 9, capítulo 1 º,
texto 2. Logo, existe um agente físico que gera a alma racional. Este, porém, não
pode ser outro senão o pai, que com a potência da semente faz surgir a alma a partir
do interior da matéria. Portanto, a alma racional é propagada pela potência da
semente. Outro, os restantes animais fazem nascer as formas da sua descendência da
potência da matéria, mas o homem não deve estar numa situação de condição mais
inferior. Logo, a alma humana é produzida pelo próprio homem. O argumento não
refere que a alma é substância imaterial, mas que a potência geradora, que o homem
usa como instrumento para gerar é material. O instrumento pode, com efeito, elevar
-se acima da própria potência, para produzir algo mais nobre, como vemos indistin
tamente noutras coisas. Por isso, a causa que atinge a última disposição de uma
forma possui a potência produtiva dessa forma. Certamente que a forma, como
ensina Aristóteles no livro 2 da Física, capítulo 7°, texto 74 é o fim da geração e
todo o agente, que pela própria potência fornece o meio ao fim, pode alcançar o fim
por si mesmo, como se lê, também, em Aristóteles, no livro 7 da Metafísica, capítulo
9º, texto 30. Além disso, o homem alcança a última preparação para a introdução da
alma racional, visto que ele, não só transporta para a matéria a ordenação das res
tantes qualidades, como também delineia e produz os próprios órgãos com o minis
tério da potência formadora. E corrobora-se o argumento porque quem gera,
segundo a espécie, algo semelhante a si, produz o mesmo e a forma da coisa gerada
pela qual a espécie existe. Ora, o homem, graças à potência ínsita na semente, gera o
homem.
Eis os argumentos a favor da opinião dos que defenderam que as almas dos
homens são produzidas pelos anjos. Conforme o testemunho de Aristóteles no capí
tulo 4º, texto 34 deste livro, é perfeito o que produz algo semelhante a si; ora, as
substâncias imateriais são muito mais perfeitas do que as corporais; logo, embora
elas produzam outras semelhantes a si, segundo a espécie, por maioria de razão, os
anjos puderam procriar alguma substância incorpórea de natureza inferior, isto é, a
alma humana. Segundo. A ordem nas coisas espirituais é maior e mais divina, do
que nas coisas corporais, mas a partir da doutrina de São Dionísio, no capítulo 4º de
Os Nomes Divinos, os corpos inferiores são governados e feitos pelo poder dos supe
riores. Portanto, também os espíritos inferiores, ou seja, as almas racionais, são
produzidos através dos superiores, isto é, através das inteligências.
ARTIGO II
O que se deve pensar acerca do assunto
tulo 8º, e no livro 9 O Génesis à letra, capítulo 1 5º; e São Damasceno, no livro 2 da
Fé Ortodoxa, capítulo 3º e os professores de Teologia Escolástica no 2º livro das
Sentenças, distinção 1 , os anjos não podem ser criadores de nada, isto porque a cria
ção é produção a partir do nada, isto é, a partir de nenhum substrato prévio, e todas
as causas segundas requerem um substrato anterior em que aj am, seja para criar, seja
tão-só do primeiro agente, cuja potência, é de tal modo infinita, que não é limitada
nem por um substrato, nem por um certo modo de agir.
Por fim, que as almas humanas são criadas por Deus, foi revelado nas Sagradas
Escrituras de forma clara, quer noutros lugares, quer sobretudo, quando é dito em
Génesis 1 , a propósito da procriação de outros animais: que as águas sejam povoa
das com o réptil, como ser vivo e com a ave, por sobre a terra. Que a terra seja
povoada com a alma que vive no seu género, dos jumentos, dos répteis e dos ani
mais da terra. Mas quando é chegada a vez do homem, que a sua alma é infundida e
criada por Deus, é indicado com estas palavras : formou Deus o homem do limo da
terra e inspirou na sua face o sopro da vida. Acrescente-se o decreto de Leão 1, na
Epístola 93, ao Bispo asturicense Tonbio, estabelecendo que as almas não são
incorporadas por nada, a não ser por Deus, seu próprio criador.
Terceira asserção. As almas racionais não foram criadas por Deus antes dos cor
pos, mas são criadas e infundidas nos próprios corpos uma a uma. Para se com
preender esta conclusão deve advertir-se que Platão no Timeu disse que Deus
modelou todas as almas humanas antes dos corpos e que, ao mesmo tempo que as
criava, as constituiu de acordo com as estrelas; que elas, então, tomadas pelo tédio
das coisas celestes e pelo amor das coisas terrenas, a fim de expiarem estes horríveis
pecados, foram lançadas para os corpos como se fossem lançadas para um cárcere. O
mesmo considerou Orígenes, como é evidente a partir do seu primeiro livro Tiepl
àpxwv, e Epifânio refere na Epístola A João de Jerusalém. Também igualmente,
alguns hebreus rabinos afirmam, em parte, que todas as almas foram formadas no
princípio, para não concederem que Deus criava alguma coisa de novo, mas sem se
admitir que, antes de penetrarem os corpos, cometeram pecado algum.
Na verdade, este erro é rejeitado por consenso unânime dos Padres, por Santo
Epifânio, na Epístola citada; por São Jerónimo, na Epístola a Pamáquio, contra o
mesmo João; por Teófilo Alexandrino, livro 1 do Paschal; por Agostinho, Epístola
28, a Jerónimo; por Cirilo de Alexandria, livro primeiro sobre o Evangelho de João,
capítulo 9º, onde opõe vinte e três argumentos. Aquele erro também foi, primeiro
,condenado no Concílio Bracarense, capítulo sexto e por Leão 1 na Epístola a Torí
bio, quando o Sumo Pontífice contra os que proclamavam aquela opinião, escreveu
assim: A fé católica afasta-os do corpo da sua unidade, afirmando firme e verdadei
ramente que as almas dos homens não existiram antes de inspiradas nos seus corpos.
Também os autores das opiniões anteriores, ao concordarem que as almas são
criadas antes de terem existido os corpos, podem ser refutados do seguinte modo. É
natural para cada forma unir-se ao corpo. Se não fosse constituído de forma e de
matéria seria algo para além da natureza. Mas primeiro é dado a cada um, o que lhe
pertence segundo a sua natureza, em vez do que lhe pertence para além da natureza.
Aquilo que, pertence a algo, para além da natureza, é-lhe inerente por acidente. E
aquilo que lhe pertence por natureza é-lhe inerente por si mesmo. Portanto, pertence
224 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles
primeiro à alma ser unida ao corpo, do que ser separada do corpo. Logo, ela não é
criada antes do corpo a que se une.
Segundo. Conforme diz São Tomás na 1ª parte da Suma Teológica, questão 76,
artigo 1 , ao 6º argumento, e outros Doutores aprovam por consenso geral, a alma
tem uma propensão inata para o corpo e, portanto, não alcança a perfeição própria
senão unida ao corpo. Mas Deus, a partir do qual as obras foram concluídas na pri
meira preparação das coisas, criou-as segundo o estado, devido e congruente, da sua
natureza. Donde, também viu que eram muito boas todas as coisas que fez. Portanto,
não criou as almas fora dos corpos.
Terceiro. Se as almas existissem antes dos corpos, como a natureza não permite
que exista no mundo nada de ocioso e sem operação própria, como correctamente
ensina Aristóteles, capítulo 8º, livro 10 da Ética, as almas teriam tido sempre
naquele estado alguma ciência e conhecimento das coisas. Mas não é assim, visto
que é claramente evidente que os conhecimentos são por nós adquiridos com longo
estudo e trabalho. Logo, as almas não existiram antes dos corpos. Não basta que os
Académicos, afirmando com Platão, no Fedro, no livro 10 de A República e noutros
pontos, que as almas quando são lançadas para os corpos, em virtude da junção com
a matéria impura, como que, esvaziada a taça do esquecimento, perdem a memória
de todas as coisas. Não basta, diga-se. Com efeito, uma vez que é natural que as
almas se unam ao corpo, Platão não teve de conceber essa perda por causa da união
com a matéria própria e natural. No livro da Metafísica teremos de discutir, con
forme estabelecido, contra este erro. Santo Agostinho impugna-o amplamente, no
livro 1 2 de A Cidade de Deus, último capítulo; Tertuliano no livro A Alma; Alberto
Magno, no livro 1 da Metafísica, tratado 1 , capítulo 8º; São Tomás quer noutro
ponto, quer no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 83º.
Quarto. Que as almas foram inspiradas antes dos corpos, não deixando entrar
nenhuma mancha de pecado, é evidente a partir da doutrina de São Paulo Aos
Romanos 5, quando afirma que através de um homem entrou o pecado neste mundo.
Mas a alma não é o homem, como certos autores falsamente consideraram e São
Tomás ensina, quer noutros pontos, quer na l ª parte da Suma Teológica, questão 75,
artigo 4º. Também no capítulo 9 da referida Epístola, quando São Paulo diz que
Jacob e Esaú, antes de terem sido dados à luz, nada de bom ou de mau fizeram.
Depois, que as almas não teriam emigrado para os corpos, mostra-se, porque seguir
-se-ia que a união do corpo e da alma não seria um bem da natureza mas antes um
mal qualquer, como que uma punição de tudo. Mas isto é impossível, visto que
nunca se procura um mal por si, mas a natureza procura por si a geração do homem
e a união da alma e do corpo. Acresce que do mal não provém o bem, a não ser por
acidente. Por isso, se pela culpa da alma separada, a alma se unisse ao corpo, como
isto é um certo bem, aconteceria por acidente e, por isso, o homem teria sido criado
por Deus por acaso. O que também é nitidamente falso, porque uma nobilíssima
parte do mundo corpóreo, que é o homem, não pode ter sido produzida por um
evento fortuito do autor da natureza, que fez todas as coisas com conta, peso e
medida.
É evidente que Aristóteles, de modo algum, pensou que o aparecimento das almas
acontece antes dos corpos, porque reprovou a reminiscência platónica em muitos
pontos, tal como no livro 1 dos Posteriores, capítulos 1 º e 3º, e em A Alma, capítulo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão Ili, Artigo Ili 225
4º, texto 1 4, quando afirma que o intelecto do homem é como que uma tábua nua, na
qual nada está escrito. Depois, porque no livro 1 2 da Metafísica, capítulo 3º, textos
1 6 e 1 7 , ele ensina que a causa eficiente precede o seu efeito, a formal (que é a
alma), de modo algum. Não obsta que no segundo de A Geração dos Animais, capí
tulo 3º, ele diga que o pensamento vem do exterior. De facto, com estas palavras,
não referia a vida da alma fora da matéria e anterior à união com o corpo, mas a sua
origem divina, criação e também a independência da matéria, como mostra o próprio
contexto da oração. Assim é, na verdade. Resta, portanto, que apenas a mente pro
vém do exterior, e que só esta é divina. De facto, nenhuma acção corporal comunica
com a sua acção. Por isso, não é correcto o que escreveu Pletho no capítulo 9º, livro
De iis, quibus A ristoteles a Platone dissentit, afirmando que Aristóteles não nega,
com Platão, seu mestre, a anterioridade das almas.
No que ensinámos acima, acerca da produção quotidiana das almas, nada impede
que, no segundo do Génesis, se diga que Deus descansou de toda a obra, que con
cluíra. Primeiro, porque não se diz que Deus descansou em absoluto, mas descansou
da obra que terminara, isto é, dos seis primeiros dias. Embora se saiba que Deus
completou o trabalho do mundo em seis dias e, assim, no sétimo dia, deixou de criar
a máquina do mundo. Outro argumento. Porque, como São Tomás interpreta, no
livro 2 Contra os Gentios, capítulo 84º, e no comentário ao 2° livro das Sentenças,
distinção 1 8 , questão 2, artigo 1 , ao 7º; e Alberto Magno, na Suma do Homem,
questão 1 5 , o repouso de Deus deve ser compreendido como o cessar da produção de
novas espécies, não todavia, de novos indivíduos, que precederam os semelhantes,
segundo a espécie. Como todas as almas intelectivas e todos os homens são de uma
única espécie, não obsta ao referido descanso, que Deus crie todos os dias almas. De
passagem, acrescente-se a isto que se diz que as novas espécies de animais e de
outras coisas de composição variada que existiram no decurso dos tempos, também
foram produzidas de certo modo na primeira origem do mundo, não em si, mas nas
suas causas. Leia-se Santo Agostinho, no livro A Origem da Alma a S . Jerónimo.
E, na verdade, acerca da alma do primeiro homem existe até agora uma conside
ração peculiar. De facto, Santo Agostinho, no livro sétimo de O Génesis à letra,
capítulo 24º; Hugo de São Victor; o autor da História Escolástica e o Mestre das
Sentenças duvidaram se tinha sido criada juntamente com os anjos antes da forma
ção do corpo. Mas não tem de haver ambiguidade sobre este assunto, visto que os
argumentos acima aduzidos, concluem que nenhuma alma foi directamente produ
zida por Deus, antes do corpo. Deus formou, assim, naquele momento, o corpo do
primeiro homem e infundiu-lhe a alma, como pensa São Gregório de Nissa, no livro
O Homem, capítulos 29º e 30º; São Damasceno, no livro 2, Fé Ortodoxa, capítulo
1 2º; São Jerónimo, Epístola 6 1 a Pamáquio sobre os erros de Orígenes e Epístola
1 39 a Cipriano; Leão, Epístola 91 . Também Santo Agostinho propende para esta
opinião no livro 1 2 de A Cidade de Deus, capítulo 23º.
ARTIGO Ili
Resolução dos argumentos do primeiro artigo
sensitiva dos mesmos foi criada pelos anjos. Assim pensa Fílon no livro A obra dos
seis dias e no livro De profugis e recolheu-o do Timeu de Platão, no qual se induz
que Deus, uma vez criado o espírito do homem partícipe da razão e de um plano,
com os segundos deuses, isto é, os anjos, falou-lhes e ordenou-lhes, que eles pró
prios fabricassem o que restava do homem, quer dizer, o corpo e as almas, vegeta
tiva e sensitiva. Esta opinião, todavia, deve ser totalmente refutada. Contra ela se
lançaram São Basílio, São Crisóstomo e Teodoreto, comentando o primeiro capítulo
do Génesis; Santo Agostinho, no livro 1 6 de A Cidade de Deus, capítulo 6º; São
Cirilo no livro Contra Juliano. E, decerto, com toda a justiça. Primeiro, porque no
homem não existem mais almas, mas apenas uma, a intelectiva, como no livro l de
A Geração mostrámos. Depois, porque aquelas almas não puderam ser produzidas
pelos anjos, através da criação, como se patenteia nas afirmações feitas, nem através
de outra acção, porque as substâncias separadas do corpo não podem introduzir na
matéria, por potência própria, nenhuma forma física, como demonstrámos no pri
meiro livro da Física. Porque, de facto, o corpo dos primeiros pais não pôde ser feito
pelos anjos como Platão e Fílon acreditaram, visto que a formação do corpo dos
seres animados mais perfeitos não pode ser concluída por nenhuma potência da
natureza, para além da faculdade formativa, assim como também os seres animados
não podem ser gerados pela natureza de outra maneira senão pela intervenção da
semente e da potência formativa, como provámos no livro 2 de O Céu. Finalmente,
se os anjos, embora sem terem reproduzido o corpo dos primeiros pais, manifesta
ram, no entanto, algo de uma função servil, por exemplo, recolhendo o pó ou forne
cendo algo semelhante, esta questão é provável de ambas as partes. O Abulense
seguiu a afirmativa no capítulo 1 0, Génesis, questão 395 ; o Alense, a negativa, 2ª
parte da Suma Teológica, questão 78, membro 2, artigo lº; Santo Agostinho inclina
-se para a primeira, livro 9, Sobre o Génesis à letra, capítulo 1 5º.
QUESTÃO IV
Em que momento do tempo parece ser infundida
no corpo a alma intelectiva
ARTIGO I
Acerca da ordem e do percurso das almas na matéria do feto antes
da infusão da alma intelectiva. Opiniões diferentes dos autores
segunda parte da Suma Teológica, questão 87, membro 3 , artigo 6°, que considera
que as funções da vida, que aparecem no embrião, como a vegetativa e o cresci
mento, não existem a partir da sua alma, mas a partir da alma da mãe ou da potência
formativa inerente à semente. Mas esta opinião refuta-se porque, como é pensa
mento comum dos filósofos, as operações vitais devem provir não do exterior mas
do princípio interior da vida, que se diz que age ou opera. Daqui se segue que
quando, primeiro, o embrião começa a ser nutrido e a crescer, já a alma existe nele.
Mas, na verdade, os que atribuem alma ao embrião foram por diferentes cami
nhos. Uns dizem que o feto tem primeiro a alma vegetativa e que a ela sobrevém a
alma sensitiva e depois a intelectiva, num certo espaço de tempo, tal como, num
mesmo homem, permanecem ao mesmo tempo as três almas. Mas o que aqui não é
possível ser por nós provado, foi-no nos livros de A Geração e a Corrupção, quando
mostrámos que não podem, ao mesmo tempo, no mesmo composto, ser adquiridas,
nem várias almas, nem várias formas substanciais de qualquer outra natureza.
Outros, portanto, que rejeitam a pluralidade de almas, asseguraram que uma
mesma alma, que primeiro foi vegetativa, por acção da potência seminal, aos pou
cos, se aperfeiçoa, de tal modo que acaba por se tomar sensitiva. De seguida, que a
sensitiva, pela potência divina, operante e extrinsecamente assistente, devém intelec
tiva. São Tomás refuta-os com muitos argumentos na 1ª parte da Suma Teológica,
questão 1 1 8, artigo 2º. Mas basta, por ora, que a alma não pode admitir o acréscimo
de um novo grau substancial, sem ser aumentada, tal como acontece com a brancura,
pela adição de um novo grau ou de uma maior perfeição, visto que nenhuma subs
tância pode ser produzida ou aumentada na categoria da substância, como ensina
Aristóteles com o assentimento geral dos filósofos.
Outros declaram que o embrião, logo ao princípio, recebe a alma intelectiva,
embora não empreenda de imediato as funções que lhe são particulares, mas pri
meiro as acções da vegetativa, em seguida da sensitiva, e também, a seu tempo, as
da intelectiva. Mas esta opinião afasta-se da verdade, como imediatamente se evi
denciará.
ARTIGO II
Solução da dúvida proposta
tuma observar isto nos animais imperfeitos, é consentâneo que o mesmo se aplique
aos animais de natureza mais elevada, e acima de tudo, à descendência humana, cuja
forma, quanto mais eminente for mais requer uma maior preparação. Ela não deve
ser infundida numa massa de matéria bruta e desordenada, mas no corpo conve
niente e artisticamente munido de órgãos. Assim, conquanto o feto permaneça na
matéria alguns dias, sob a forma vegetativa, a seguir a esta intervenção, sucede a
forma sensitiva, e do mesmo modo, a esta, a intelectiva. Não admira que as duas
primeiras formas não se extingam, por nenhum ataque ou embate de inimigo
externo. Na verdade, como a primeira é via ou preparação para a segunda e a
segunda para a terceira, as duas primeiras recebem na matéria as disposições,
somente mantidas durante certo espaço de tempo, e dão lugar à forma principal, à
qual, precedendo, servem assim de guardiãs. Que a alma intelectiva não enforma
imediatamente, desde o princípio, a matéria do feto, amplamente o demonstram
alguns decretos dos Cânones sagrados, que o afirmam; para omitirmos os restantes,
capítulo 'Sicuti' 32, questão 2, quando se diz que não é cometido homicídio por
aquele que mata, no útero, o feto antes da infusão da alma, isto é, da racional, porque
ainda não se pode dizer que nasceu um homem.
Ainda, quanto ao período de tempo (que estava no princípio da questão proposta)
relativo ao espaço de dias em que a alma intelectiva é infundida no corpo, subsiste
discussão entre os filósofos. Mas concordam em que ela é infundida logo que o
corpo esteja perfeito e formado com os órgãos que são próprios à prole humana, o
que alcança enquanto não é de tamanho maior do que aquele que é próprio da maior
formiga, como afirma Aristóteles, livro 7 de A História dos Animais, capítulo 3º, e o
Abulense no capítulo 1 º de Mateus, parte 1 , questão 5 3 . É verdade que nem sempre
este tamanho é o mesmo. Acerca deste assunto, Fernélio escreveu o seguinte, no
livro A Procriação do Homem, capítulo 1 0º: observámos muitas vezes o feto abor
tado no quadragésimo dia, de meio dedo (como afirma Aristóteles), com o verda
deiro tamanho de uma formiga grande e inteiramente formado. A cabeça era seme
lhante a uma avelã, maior por relação ao resto do corpo, os olhos saídos como pin
ças, o nariz, as orelhas, os braços, as mãos, as pernas, os pés neles, os dedos separa
dos. Também os filósofos concordam em que o corpo da fêmea por falta de calor e
de potência formativa é delineado mais lentamente. Todavia, os que até então escre
veram sobre este assunto, discordam sobre o tempo em que a obra daquele projecto
se conclui. Leia-se Plutarco, livro 5, As Opiniões, capítulo 2 1 º; Hipócrates, no livro
O Feto; Fernélio, no livro A Procriação do Homem; Célio no livro 25 , Lectiones
Antiquae, capítulo 23º; Ambrósio, Pareum, livro 23, capítulo 2º. Todavia é mais
comum e verdadeira a opinião de que nos machos a obra se encontra concluída por
volta do quadragésimo dia, nas fêmeas, do octogésimo. O que se confirma da melhor
forma porque, na velha lei, se a mulher parisse um macho, ficava em casa quarenta
dias, se uma fêmea, oitenta dias, e deixava de entrar no templo. Na verdade os intér
pretes das palavras divinas dizem que este número foi prescrito para imitação da
natureza e do tempo em que o corpo se forma no útero.
Colocadas assim as afirmações, respondemos à questão suscitada no início. A
alma intelectiva é infundida e unida ao corpo no instante em que, primeiro, pela
matéria e pela forma dos membros, e pelos restantes acidentes exigidos por essa
forma, foi provida e disposta, o que costuma acontecer à volta daquele dia que dis-
230 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles
semos há pouco. Todavia, o Corpo de Cristo, nosso Salvador não observou no útero
da Virgem Mãe esta lei da formação sucessiva. Na verdade, o que o período de qua
renta dias pela potência da natureza, aos poucos devia formar, foi absolutamente
concluído num momento, pela potência divina e por obra do Espírito Santo, como é
doutrina comum dos Padres e dos professores de Teologia Escolástica. Assim,
Sofrónio, no Concílio Sinonense, acto 1 1 º; Basílio, Homilia 25 , da geração humana
de Cristo; Damasceno, livro 3, capítulo 2º; Euthymio, Mateus, capítulo lº; Fulgên
cio, no livro De incarnatione, capítulo 3º; Leão, na Epistola 1 1 a Juliano; São Tomás,
na 3ª parte da Suma Teológica, questão 30, artigo 1 º; e outros doutores no 3º livro das
Sentenças, distinção 3; o Alense, 3ª parte da Suma Teológica, questão 8, membro 2.
QUESTÃO V
Se todas as almas intelectivas são iguais em dignidade da natureza
ARTIGO !
Argumentos da parte negativa
essência das próprias almas. Logo, uma alma supera a outra pela nobreza da essên
cia. Prova-se a premissa menor desta argumentação porque se uma alma, por si, não
se ordenasse para um certo corpo, mas para qualquer coisa, ela seria indefinida.
Quando Deus infunde a alma, por exemplo, de Sócrates, no seu corpo, poderia, con
servada a ordem da natureza e sem milagre, infundir nele a alma de Platão, criado
depois. E assim, Sofronisco em lugar de Sócrates, que então gerou, teria podido
gerar Platão. De onde se segue que o mesmo efeito singular pode ser produzido por
duas causas totais, o que nega a melhor parte dos que correctamente filosofam.
Quarto. A diferença de perfeição segundo a natureza louva mais o Universo e
acrescenta-lhe mais em beleza e encanto do que a igualdade, visto que as coisas
iguais não possuem por si a ordem, donde nasce a beleza no grau mais elevado.
Portanto, foi mais conveniente que as almas fossem entre si desiguais na perfeição
da natureza do que incluídas num mesmo grau de perfeição.
Quinto. Do mesmo modo que os géneros se contraem por diferenças específicas
de perfeição desigual, também as espécies podem ser contraídas por diferenças sin
gulares que não são, igualmente, perfeitas. Portanto, numa mesma natureza comum,
as almas intelectivas, ou são, ou pelo menos podem ser, umas mais, outras menos
perfeitas. Prova-se o antecedente, porque isso não é incompatível da parte de Deus,
criador das almas, visto que contém eminentemente em si graus infinitos de novas
perfeições que pode transmitir às coisas. E também não o é da parte das próprias
almas, porque não se manifesta uma tal incompatibilidade.
Ú ltimo. Que as diferenças individuais das almas não podem ser igualmente per
feitas, parece mostrar-se pelo facto de que se não fosse assim conviriam entre si, de
modo unívoco; atendendo a que são iguais, naquilo em que são iguais, convêm uni
vocamente. Mas que esta conveniência não deve, de modo algum, ser admitida, é
claro, porque aquilo em que conviessem dividir-se-ia por outras diferenças, relati
vamente às quais retornaria a mesma questão, se fossem iguais: se o fossem, por
igual razão, conviriam univocamente, como as primeiras, e assim dar-se-ia um pro
cesso infinito. Portanto, não parece que haja tais diferenças e, por isso, parece que as
almas, que são constituídas por essas diferenças, não têm entre si igual perfeição de
natureza.
A isto acresce a autoridade dos doutores parisienses, que condenam a igualdade
das almas em determinado artigo. Se alguém, dizem, afirmar que pela origem, todas
as almas são iguais, erra, porque a alma de Cristo não seria mais perfeita do que a
alma de Judas. Henrique de Gand recorda este artigo no terceiro Quodlibet, questão
quinta, e Durando no 2º das Sentenças, distinção 32, questão 5. Por aqui também se
compreende a afirmação de Aristóteles neste livro, capítulo nono, texto 94: são
brandos de carne, bem aptos e engenhosos de mente. Com estas palavras, da bran
dura da carne e da superioridade de carácter ele compreende, portanto, a nobreza da
alma e a maior superioridade do intelecto. Também a isto diz respeito o passo de
Salomão, Sabedoria 8: era uma criança sábia e coube-me uma alma boa.
232 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Argumentos a favor da parte afirmativa
São Tomás, livro 2 Contra os Gentios, capítulo 84º: porque ainda que as almas,
sejam umas mais nobres do que outras em natureza, a perfeição do universo não
seria variável em função da sua multiplicação, tal como também não é variável com
o nascimento e as mortes, todos os dias, de novos indivíduos de diversas espécies,
entre as quais, é claro que existe uma desigualdade de perfeição, não apenas segundo
a espécie, mas também segundo as razões individuais. Embora os singulares da
mesma espécie, entre si, sejam iguais em perfeição, se forem comparados com desi
guais, de outras espécies, sem dúvida que serão diferentes, tal como as naturezas
específicas nas quais se inscrevem. Por fim, o terceiro argumento, por absurdo,
aceita que cada alma tem a sua particular quididade; como se, efectivamente, não se
tivesse, necessariamente, de reconhecer isso, tanto na igualdade das almas como na
desigualdade. Acima de tudo, quer as almas sejam consideradas iguais quer não, não
se deve negar que a cada uma, intrinsecamente, corresponde a sua diferença indivi
dual e, até, a sua particular quididade. A não ser que, se as almas forem iguais, as
diferenças possuam igual perfeição, se desiguais, diferente. Depois, pelo facto de as
almas serem formadas como desiguais, não se segue que a cada uma delas se deva
atribuir uma definição particular mais do que se elas fossem iguais. Com efeito, as
definições são aplicadas para explicar as naturezas das coisas, quer iguais, quer
desiguais. Donde, se fossem produzidas duas espécies que tenham igual perfeição da
natureza, ainda que qualquer delas reclamasse uma definição própria, isso mostraria
não a desigualdade, mas a diversidade da natureza. Assim, de facto, a causa pela
qual os filósofos tratam muito pouco as definições dos singulares, não é porque os
indivíduos sob uma mesma espécie alcancem igual perfeição, mas porque sob o
conhecimento das ciências não recaem senão aquelas, que tanto são permanentes,
como pela sua natureza são conhecidas por muitos, que é o que sucede não com as
naturezas singulares, mas com as naturezas comuns. Acrescente-se também que os
individuais não respeitam propriamente à arte, porque não se incluem num número
definido, tal como as espécies, como Porfírio ensinou no capítulo sobre a espécie,
com base em Platão no Filebo.
Omitidos, portanto, estes argumentos, quer porque são pouco eficazes, quer por
que se apropriam de algo alheio à verdade, poderá, sem dúvida, o objecto ser con
firmado de outro modo, a saber: se todas as almas intelectivas tivessem entre si uma
perfeição desigual quanto às naturezas singulares, o mesmo também deveria ser dito
de todos os outros individuais, pelo menos das substâncias dessa ínfima espécie,
visto que em todas se encontra uma igual razão; mas como isto não deve ser admi
tido, também não deve aquilo. A premissa maior é concedida pelos adversários. A
premissa menor prova-se. Na verdade, se esses individuais tivessem uma perfeição
desigual, seguir-se-ia que todos os efeitos singulares seriam continuadamente uma
degeneração das suas causas. Na verdade, como eles não podiam ser mais nobres,
visto que nenhum efeito é mais nobre do que a sua causa principal, uma vez que,
como afirmam, não podem ser iguais, a consequência é que são de dignidade infe
rior. Todavia, isto opõe-se ao axioma geral dos filósofos que afirmam que qualquer
causa unívoca produz um efeito totalmente igual a si, mal são levantados os obstá
culos.
Segundo. A razão principal pela qual os adversários provam a desigualdade das
almas é a da desigualdade da perfeição ao operar. Ora, este argumento não con-
234 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO III
Considera-se provável uma e outra parte da controvérsia.
Prefere-se a afirmativa. São rebatidos os argumentos dos adversários
Disputada assim esta matéria, parece-nos provável uma e outra parte da contro
vérsia. A afirmativa, porque se aproxima mais da doutrina peripatética, como teste
munham claramente os pontos de Aristóteles que citámos há pouco. Acolhemo-la de
preferência. Mas também nos inclinámos para ela no livro segundo da Física. Pas-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V, Artigo Ili 235
inferiores, através das diferenças, contracção esta que as diferenças não admitem,
quer por outras causas, quer porque, se não fosse assim, dar-se-ia aquela progressão
até ao infinito, o que se retira do argumento. Por isso, para a univocidade, não basta
aquela igualdade, que as diferenças das coisas singulares alcançam, incluídas na
mesma ínfima espécie. Além disso, de preferência, sempre as diferenças que con
vêm univocamente numa natureza universal acrescentam um grau de perfeição
acima dela, visto que uma natureza universal não pode conter em acto toda a perfei
ção das inferiores, pelas quais se reparte.
Mas no que concerne ao artigo parisiense, Durando responde, no local citado, que
uma alma intelectiva é mais perfeita do que outra, se se examinar do ponto de vista
das potências sensitivas e vegetativas. Com efeito, concede-se que estas possam ser
de natureza mais excelente sob a mesma ínfima espécie. Ele também afirma que esta
desigualdade parece ser suficiente para examinar a autoridade do artigo, visto que
apenas estabelece que as almas são desiguais, não determinando o modo certo da
desigualdade. Esta resposta não satisfaz. Primeiro, porque o artigo respeitante à
desigualdade, segundo as diferenças individuais, no qual consistia a controvérsia,
declarou uma posição. Depois, porque, como acima mostrámos, todas as potências
contidas sob a mesma ínfima espécie alcançam igual dignidade de natureza, embora
algumas funções executem as suas de modo mais perfeito do que outras, em virtude
da melhor proporção dos órgãos. Deve dizer-se, portanto, de preferência que a auto
ridade do artigo não é pequena, mas que não é irrefutável fora da escola parisiense.
O passo de Aristóteles, baseado no terceiro livro de A Alma, somente indica que a
delicadeza da carne é indício de bom carácter, à maneira acima explicada, mas não
de uma maior nobreza de alma. Igualmente, as palavras de Sabedoria 8, omitindo as
restantes interpretações, são explicadas de dois modos. Um, que diz que Salomão
recebeu uma alma boa, isto é, de egrégia propensão para a sabedoria e virtudes, não
exactamente de maior superioridade ínsita na própria alma, mas do estado e dispo
sição do corpo, que, como acima dissemos também muito contribui para as acções
imateriais. Outro, que fala da bondade das virtudes pela graça divinamente conce
dida. Aqui, por fim, advertimos que alguns, nesta questão, trazem os testemunhos de
muitos Padres para provar a igualdade das almas. Mas omitimo-los porque nenhum
deles parece ter falado acerca da alma segundo as diferenças individuais, mas
segundo a sua natureza comum.
QUESTÃO VI
Se a alma intelectiva é verdadeira forma do homem ou não
ARTIGO I
Que argumentos parecem afirmar a parte negativa da questão
Para abrirmos caminho aos argumentos que podem ser produzidos para aconse
lhar a parte negativa, deve, antecipadamente, dizer-se, a partir de São Tomás 2 Con
tra os Gentios, capítulo 68º, que são necessárias duas condições para se dizer que
alguma coisa é, em sentido verdadeiro e próprio, a forma substancial de outra. Uma,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão VI, Artigo J 237
que seja substancialmente o princípio de ser daquela de que é a forma. A outra, que
se segue da primeira, que a forma e a matéria se juntem na natureza de um único
composto e num ser completo. Parece, portanto, que estas coisas em nada respeitam
à alma intelectiva e, por isso, demonstra-se do seguinte modo, que não é a forma do
homem. O que não pode comunicar à matéria a sua própria potência e operação, não
lhe poderá dar o seu ser, visto que nem a potência, nem a acção são mais simples e
mais abstractas do que a essência da qual brotam a capacidade e a potência. Ora, a
alma racional não pode comunicar o intelecto ao corpo, ou a intelecção, que é a sua
própria operação. Logo, não lhe poderá comunicar o seu ser espiritual, o que, como
dissemos, é exigido pela noção de forma.
Segundo. As coisas que distam muito entre si, não podem juntar-se de modo ade
quado. Ora, a alma intelectiva, como é uma substância espiritual, dista o máximo da
matéria impura, da materialidade do corpo humano. Logo, não pode adaptar-se ao
corpo e à matéria, congruentemente, segundo a composição de uma coisa una.
Acrescente-se que, como a alma intelectiva fica livre com a morte, pois o corpo
humano é corruptível, não se vê de que maneira eles podem, corresponder a si, em
proporção.
Terceiro. A forma relaciona-se com a matéria como um correlato transcendente.
Ora, a alma intelectiva não pode ser assim correlacionada. Portanto, não é forma.
Prova-se a menor, porque um correlato transcendente depende, quanto ao seu ser,
daquilo com que se relaciona. Mas a alma não depende, quanto ao seu ser, da maté
ria, visto que pode permanecer fora dela.
Quarto. Visto que a alma do homem é algo por si subsistente, não é possível que
se una ao corpo, a não ser para algum bem dele. Ora, ou é por causa do bem essen
cial ou dos bens dos acidentes. Por causa do bem essencial, não, visto que pode
subsistir fora do corpo. Por causa dos bens dos acidentes, também não, pois isso
pareceria ser, sobretudo, o conhecimento da verdade adquirido pelo ministério dos
sentidos. Isto também não se deve dizer, porque a alma pode alcançar a ciência fora
do corpo a partir do influxo do movimento celeste. Logo, etc. Acrescente-se que não
é próprio de um sábio artista causar entrave à sua obra e que a alma intelectiva, na
associação com o corpo, está impedida de conhecer, visto que o corpo, que se cor
rompe, oprime a alma. Donde aquele passo de Virgílio:
Não os entorpecem corpos prejudiciais, nem as articulações mortais e os membros
caducos os enfraquecem.
Razão pela qual não parece que Deus tenha juntado a alma do homem com o
corpo, como forma por si.
Quinto. Ou a união da alma com o corpo é uma substância ou é um acidente. Se é
substância, então uma substância desaparece na alma, quando o homem morre, o que
é claramente falso porque a alma racional quanto à sua substância, em parte alguma
sobrevém à morte. Se é um acidente, então a alma constitui o homem, não por si,
mas por acidente. Donde se segue, que da alma e do corpo não se faz algo único no
género da substância e, portanto, a alma intelectiva não é própria e verdadeira forma
do homem.
238 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Não pode negar-se que a alma intelectiva é verdadeira
e propriamente forma do homem
tico. Donde, o próprio Concílio de Latrão, sob Leão X, ter estabelecido o seguinte,
na sessão 8, onde estão escritas estas palavras : condenamos e reprovamos todos os
que afirmam que a alma intelectiva é mortal e uma só para todos os homens, e os
que põem em dúvida estas afirmações, visto que ela existe verdadeiramente por si,
não só essencialmente como forma do corpo humano, verdadeiro e imortal, mas
também multiplicável singularmente pela multiplicidade dos corpos em que é infun
dida. Não só foi multiplicada, mas deve multiplicar-se.
Segunda conclusão. A alma humana não só quanto ao grau sensitivo e vegetativo
e aos restantes, superiores, mas também quanto ao grau intelectivo é verdadeira e
propriamente forma do homem. Prova-se isto porque, dado que compreendemos as
formas das coisas por meio das operações, e é próprio do homem inteligir e racioci
nar, é necessário que a alma racional mostre também, quanto àquele grau, do qual
provêm essas acções, que é verdadeira e própria forma do homem. Segundo, porque
a alma intelectiva no presente estado da vida experimenta todo o conhecimento
através dos sentidos e no que diz respeito, também, ao uso das espécies, pelo menos
da maior parte, depende do corpo, pois é necessário que o que intelige considere os
fantasmas. O que certamente não aconteceria, se não houvesse também quanto ao
grau intelectivo, uma relação com o corpo, enformando-o de facto, pois essa depen
dência, quanto à operação, somente tem origem no nexo natural entre a alma e o
corpo. Terceiro. Porque, se a alma humana, no referido grau, não estivesse ligada ao
corpo como sua forma, nada conduziria a composição do corpo até à perspicácia do
espírito e a experimentar as acções da intelecção, cujo contrário a experiência
ensina, como acima argumentávamos. Quarto. O mesmo se estabelece, porque, tal
como os Concílios de Viena e de Latrão decretaram de modo inequívoco, a alma
intelectiva é verdadeiramente e, por si, forma do corpo humano; no grau de inteligir,
a alma intelectiva obteve o seu ser próprio e particular, sendo inquestionável que
este decreto acerca da alma, deve ser compreendido nestes termos, no que toca a
esse grau.
Terceira conclusão. Não só foi ratificado pela fé, mas também se conclui pela
razão natural, que a alma intelectiva é verdadeiramente e por si, forma do corpo.
Estabelecemos esta conclusão contra certos filósofos mais recentes que afirmam
incorrectamente, que apenas pela fé se sustenta que a alma racional é forma do corpo
e que ela é ao mesmo tempo imortal, como se, de facto, com base nas opiniões da
filosofia, não pudesse, nenhuma forma do corpo, subsistir fora da matéria. Com
preende-se o seu engano, porque, no que respeita à imortalidade, o Concílio de
Latrão estabeleceu claramente que a alma humana também é imortal segundo a
filosofia, o que mostramos, de caminho, com argumentos filosóficos. Além disso, no
que respeita à noção de forma, é evidente a partir da discussão anterior, que também
sem a luz da fé, naturalmente se conclui e se convence com base no que dissemos,
que a alma intelectiva é desde logo forma do corpo.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão VI, Artigo Ili 241
ARTIGO Ili
Contrariam-se os argumentos propostos no início da questão
Com efeito, também os correlatos segundo o ser, visto que nas suas naturezas são
relativos a algo, obtêm o seu ser em ordem a algo. Todavia, porque são simultâneos
em natureza, esse algo não é nada de anterior. Outros autores concordam em que
nem todo o correlato transcendente reclama a causa em relação ao fim. Noutro lugar
abordaremos este assunto.
Ao quarto. Deve dizer-se que a alma se junta ao corpo por causa do bem substan
cial do todo, isto é, para que a espécie humana se realize na sua união com o corpo e,
também, por causa de uma certa perfeição acidental própria, de maneira a comple
tar-se pelo conhecimento intelectivo congruente com a sua natureza, que adquire
pelo ministério dos sentidos. De facto, este modo de inteligir é-lhe sempre natural.
Não impede que, quando se afastar do corpo, conheça a ciência a partir do influxo da
luz superior. Isto, contudo, pertence à espécie humana mais em razão da separação
do corpo, do que por mérito.
Ao quinto. De modo a tomar-se claro o que se deve responder, importa observar
que a união da alma com o corpo acontece de três maneiras. Primeira, pela acção
através da qual se une a alma ao corpo. Segunda, pela relação de conjugação entre
elas. Terceira, pelo fundamento desta relação, que não é outra coisa senão a causali
dade da forma e da matéria, isto é, a forma transmite-se à matéria, actuando-a e
completando-a; por sua vez, a matéria que subjaz à forma, suportando a forma e
conservando-a, de tal modo, que o todo emirja desta troca complexa. Ora, a união
compreendida na primeira ou na segunda maneira é um acidente; a compreendida na
terceira é um certo modo que não deve, simplesmente, considerar-se nem acidente,
nem substância, mas um modo da substância, como dissemos nos livros da Física.
Portanto, para explicar o argumento, embora a união compreendida na primeira e
segunda maneiras seja um acidente, não é por isso que a alma se une ao corpo por
acidente, pois a união pelo acidente não se dá porque a acção de unir e a relação são
acidentes, mas pela natureza e condição dos que se unem; estes são de tal modo, que
não podem, simplesmente, unir-se num só, não sendo o caso na questão proposta,
pois a alma e o corpo são um acto e uma potência do mesmo género, tendo entre si
um hábito natural e proporção para criar um uno substancial como foi por nós,
acima, referido. No que concerne à terceira união, mesmo que a alma, quando se
afasta do corpo a abandone (de facto, uma vez separada, ela não actua ou completa a
matéria), contudo há algo da sua própria essência ou substância que não perece,
porque, como dissemos, aquela maneira, não é simplesmente, nem acidente, nem
substância, mas um modo da substância, modos que podem faltar e estar presentes
na essência íntegra da coisa. Pode-se verificar isto, quer noutros exemplos, quer com
a gota de água, que existindo à parte é um substrato e quando se junta a outra água,
deixa de ter a natureza do substrato e, assim, abandona aquele modo, em que o prin
cípio da suposição consiste, modo este que, como dizíamos acerca da causalidade da
forma, não é, simplesmente, nem acidente nem substância, mas um modo da subs
tância.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V//, Artigo l 243
QUESTÃO VII
Se as almas que participam da razão se multiplicam
pelos vários homens, ou não
ARTIGO !
Acerca da transmigração e da unidade da forma assistente
que alguns inventaram
inteligir através do intelecto separado. Ele acrescenta também, que, por um certo
encadeamento de consequências, produzindo absurdos sobre absurdos, que a alma
intelectiva não é a verdadeira forma do homem, nem o homem se distingue por ela,
essencialmente, dos animais, mas através de outra forma que ele chama cogitativa.
Averróis pretende que o conhecimento dos singulares lhe é próprio, que esse conhe
cimento nasce com qualquer homem e que apenas perece e se multiplica com o
número dos homens.
Podem porém ser aduzidos os seguintes argumentos a favor deste tipo de inven
ção. Cada um é como opera, visto que a acção segue sempre o ser. Também o inte
lecto tem uma operação sem corpo, visto que percebe as coisas universais, separadas
do consórcio da matéria. Não existe, portanto, unido ao corpo. Demonstra-se que é
apenas um. Primeiro, porque a quantidade que existe segundo o número não diz
respeito senão às formas que dependem da matéria. Também, porque para iluminar
todas as coisas inteligíveis que se observam é suficiente a luz do Sol; logo para ilu
minar todos os inteligíveis é suficiente a luz de um único intelecto comum. Porque
as pré-noções comuns à alma e os princípios em que todos concordam parecem não
provir de outra parte senão de um único intelecto comum. Por outro lado, porque,
salvo se a inteligência de todos fosse a mesma, nem o professor poderia ensinar,
nem o discípulo poderia aprender coisa alguma. Ou a mesma ciência em número,
que existe no mestre é comunicada ao discípulo, ou uma ciência diferente. Diferente
não, visto que uma ciência procriaria outra como o fogo procria o fogo, mas este
modo de operar pertence somente às coisas físicas. Logo, é comunicada a mesma
ciência e, portanto, o intelecto do mestre e do discípulo são um só e o mesmo.
Prova-se que na verdade aquele tinha sido o pensamento de Aristóteles. Primeiro,
porque no livro 3, desta obra, capítulo 5º, texto 1 8, Aristóteles compara o intelecto à
luz, porque ilumina os fantasmas com o seu esplendor, do modo antes explicado.
Daí, que no livro 2 de A Geração dos Animais, capítulo 3º, ele afirme que o intelecto
advém do exterior, isto é, não está agarrado ao corpo mas assiste-o extrinsecamente.
Por último, porque, como na sua opinião o mundo é eterno, a alma que participa da
inteligência não morre. Se o intelecto não fosse único existiriam, agora, em acto,
infinitas almas, contra a opinião do mesmo autor, no livro 3, Lições da Física. Preci
samente este argumento concita também muitos dos recentes peripatéticos para a
referida unidade do intelecto defendida na doutrina de Aristóteles, de entre os quais
se contam Tomás Ânglico, Achillino, Odo, Janduno, Mirandulano, Zimara, Vico
mercato e outros mais. Levado pelo mesmo, Bessarion, não menos erudito na disci
plina aristotélica do que na platónica, no livro 3, Contra o Caluniador de Platão,
capítulo 2 1 º, estabelece que uma das duas afirmações deve ser aceite como a posição
de Aristóteles. Ou existe um único intelecto imortal ou muitos, todos sujeitos à
morte. No entanto há uma divergência entre os autores. Uns, de facto, acerca do
pensamento de Aristóteles, consideram que se deve estabelecer em todos os homens
uma e a mesma forma assistente, como dissemos. Outros, formadora, como Miran
dulano, livro 32 De euersione singularis certaminis, secção 1 e livro 33, secções 2 e
6 e Achillino, livro De intelligentiis.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão V//, Artigo li 245
ARTIGO II
Refuta-se o erro do Comentador que considera apenas um intelecto
ou forma assistente
assim, seria necessário que lhe pertencessem, a par, o erro e a ciência, o vício e a
virtude e que, ao mesmo tempo, fosse por ela mesma exercida a acção torpe e a
honesta e que, ela mesma fosse maculada pela mancha do pecado e se inclinasse
para o esplendor do Céu e da Graça Divina. Finalmente, deveria admitir-se que uma
única alma é ré de todos os crimes que algum dia foram cometidos pelos homens e
que lhe serão dadas as penas de todos, e que, também, justamente alcançará as
recompensas de tudo o que se vier a fazer. Todas estas afirmações estão plenas de
impiedade e de disparate.
Sexto. A partir daqui é evidente que a unidade das almas é contrária à doutrina
peripatética, porque Aristóteles, no capítulo 1 º, texto 8, deste livro, depois de apre
sentar a definição de alma, na qual compreende a alma intelectiva, ensina que a alma
não enforma qualquer corpo, mas o que lhe é próprio e determinado. O que já ensi
nara no primeiro livro, capítulo 3º, texto 53 e, pelo mesmo motivo, condena a trans
migração pitagórica. Outro, no livro 1 2 da Metafísica, capítulo 3º, texto 1 6, Aristó
teles nega que alguma alma anteceda o corpo. Mas antecederia se existisse apenas
uma, por isso, antes do corpo de Sócrates teria existido a sua alma. E também no
mesmo livro, capítulo 8º, texto 49, ele afirma que, multiplicada a matéria, se multi
plica a forma. Finalmente, nos Problemas, secção 30, questão 4, assume aberta
mente que existem muitas almas em muitos homens.
Por último, junta-se, para confirmar a nossa afirmação, o decreto do concílio de
Latrão, sessão 8 sob Leão X, que é composto por estas palavras: Condenamos e
reprovamos todos os que afirmam que a alma intelectiva é mortal e uma só, para
todos os homens, e os que põem em dúvida estas afirmações, visto que ela não só
existe verdadeiramente por si, não apenas essencialmente como forma do corpo
humano, verdadeiro e imortal, mas também multiplicável singularmente pela multi
plicidade dos corpos em que é infundida. Não só foi multiplicada, mas deve multi
plicar-se.
Também contra o erro, de que outrora os Maniqueus estavam imbuídos, disputa
São Gregório de Nissa nos capítulos 7º e 8º do livro 2 de A Filosofia; e Santo Epifâ
nio no tomo 2, do livro 2 Contra Haereses; São Tomás, no capítulo 73 do livro 2º
Contra os Gentios e no parágrafo 1 6 do opúsculo que se intitula A Unidade do Inte
lecto contra os Averroístas. Alberto Magno no tratado sobre o mesmo tema, onde
propõe trinta argumentos contra este erro e resolve com outros tantos aduzidos para
ele. Durando no 2º livro das Sentenças, distinção 1 7 , questão l ; Gregório, no mesmo
passo, artigos 1° e 2º; Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 43, questão 2;
Henrique de Gand, no Quodlibet 9, questões 1 4 e 15; Ockham no Quodlibet 1 ,
questão 1 1 ; Herveu no Quodlibet 1 , questão 1 1 ; Egídio no livro O Intelecto, tratado
3, capítulo 24º.
ARTIGO Ili
São falsos os argumentos apresentados no início
guado suficientemente nenhuma delas. Leia-se São Tomás, Contra os Gentios, livro
2, capítulo 8 1º e o livro 3 da Física, capítulo 8º, questão 1 , que referimos acerca
deste mesmo assunto.
QUESTÃO VIII
Se todas as almas são divisíveis ou não
ARTIGO I
Refutam-se as opiniões falsas de alguns
a alma destes seres vivos se secciona com a divisão da quantidade e, uma vez feita a
divisão, reside separadamente nas partes. O que também Aristóteles, neste livro,
capítulo 2º, texto 20, e no livro A Juventude e a Velhice, capítulo 1 º, ensina, afir
mando que a alma da planta e a de certos animais é una em acto com várias faculda
des, porque eles vivem apesar de seccionados. O mesmo pensa Santo Agostinho no
livro A Grandeza da A lma, capítulo 3 1 º e outros autores em consenso geral. Toda
via, deve notar-se, com base nos animais que vivem seccionados em partes, que
algumas, após a divisão, conduzem a uma vida menos longa, porque os instrumentos
com que se podem conservar não subsistem durante muito tempo. Por último, tam
bém a partir das plantas, como testemunha Aristóteles no citado livro A Juventude e
a Velhice, algumas, cortadas, não vivem, outras desenvolvem-se com o corte, pois as
que estão mais unidas à sua protecção, separadas da matriz, secam.
A outra opinião pertenceu a alguns autores recordados por Sixto Senense, no livro
1 , Bibliotheca sancta, anotação 8. Também a de um certo Gerando, que Argentinas
refere no 1 º livro das Sentenças, distinção 8, questão 2, artigo 1 º, considerando que
todas as almas são divisíveis. Todavia, esta asserção, que em parte compreende a
alma intelectiva, contém a falsidade de um erro absurdo. Se, efectivamente, a alma
intelectiva fosse extensa não seria substância espiritual, cuja oposição acima
demonstrámos. Também dependeria, quanto ao seu ser, da matéria, como as restan
tes formas divisíveis, e pelo seu fluxo esvair-se-ia aos pedaços por acção do calor,
no líquido que a assola. E assim, não seria já imortal, mas caduca e sujeita à morte.
Leiam-se em Durando muitos argumentos contra esta posição, no 1 º livro das Sen
tenças, distinção 8, questão 3, na segunda parte da distinção, quando considera que
pela mesma fé com que defendemos que a alma intelectiva é imortal e espiritual,
também defendemos que não é dividida ou extensa.
Também não pensam correctamente Janduno questão 5, livro 3 desta obra e Pom
ponácio no livro 1 , A Nutrição, capítulo 2º afirmando que apenas pela fé se sustenta
que a alma racional é indivisível. E porque, efectivamente, se pode concluir, por
razões físicas, que ela é incorpórea e uma substância espiritual, como demonstrámos
acima, e que é imortal, como será evidente no seu lugar, também se pode refutar que
ela é inséctil e inextensa, com os argumentos requeridos pela própria natureza.
Porém, o que deve ser considerado sobre os restantes animais, estabeleceremos de
caminho.
ARTIGO II
Explicam-se as opiniões de outros autores
tém, que aumenta segundo as partes formais, mas não segundo as materiais, porque
os animais perfeitos, enquanto vivem, conservam a mesma forma, embora não con
servem a mesma matéria. Por isso, é evidente que, para Aristóteles, as suas almas
são indivisíveis, ainda que fluam e se transformem juntamente com a matéria. Toda
via, objecta-se que o movimento animal existe a partir do apetite e da fantasia, que
têm certa e determinada sede no animal, portanto, as almas não permanecem em
qualquer parte de um animal não seccionado, donde se segue que, na realidade,
aquela parte não vive. Deve responder-se, que a fantasia, nos animais deste tipo, e o
apetite, existem, de modo diferente, nos outros animais. Com efeito, não têm um
lugar totalmente determinado, donde sucede que vivem seccionados, desde que a
divisão não se faça segundo a longitude, mas transversalmente e que a parte seccio
nada, que deve viver, não seja muito exígua, como diz Alberto, 1 º de A Alma.
A outra posição, que atribui a indivisão apenas à alma racional entre todas as
formas substanciais, é defendida por Durando no primeiro livro das Sentenças, dis
tinção 8, questão 3; por Egídio, na mesma distinção, questão última; Argentinas,
questão 2, artigo 2º; Gabriel, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 6, questão única;
Janduno, neste livro, questão 7; Apolinário, questão 6; Toletano, questão 2, artigo
20º; Marcelo, no seu primeiro livro sobre A Alma, capítulo 9º; Tomás Garbio, tra
tado 5, questão 49; o Comentador, no primeiro De substantia orbis, e no 8º da
Física, comentário 78. E para a mesma se inclina Ricardo, no 2º livro das Sentenças,
distinção 1 5 , no princípio do 2º, questão 2; e, como parece, o Alense, 2ª parte da
Suma Teológica, questão 62, membro 1 ; e que esta posição foi comum no seu
tempo, testemunha-o Caetano na primeira parte da Suma Teológica, questão 76,
artigo 8º. De facto, estes autores apoiam-se na Suma Teológica, principalmente nos
argumentos seguintes. Aquilo que é adicionado à matéria, que se encontra no seu
interior, tem as condições da matéria, se não todas, pelo menos a que primeiro a
segue, que é a extensão, e todas as formas físicas, exceptuando a intelectiva, estão
imersas na matéria, totalmente fixas a ela, porque não podem estar unidas fora dela.
Donde, todas, com excepção da intelectiva, são extensas e divisíveis. Não são de
modo diferente as formas acidentais que acompanham a matéria, sobretudo porque
em ambas parece existir uma natureza igual. Em segundo lugar, as formas desperta
das pelo poder da matéria são afectadas assim, de modo a que a parte provenha da
parte, o todo do todo. Assim, por exemplo, toda a forma do leão, não parece pree
xistir numa exígua porção da matéria e, portanto, não deve pensar-se que é toda
retirada de uma qualquer parte, mas do todo, e uma parte da parte. Portanto, visto
que todas as formas com excepção da intelectiva provêm da potência da matéria,
todas terão extensão e partes correspondentes às partes do todo da matéria. Terceiro.
A acção, pela qual a alma é produzida, também no animal perfeito, com excepção do
homem, é divisível, visto que é recebida no substrato da quantidade. Logo, dado que
essa acção é idêntica à alma e não pode distinguir-se realmente do seu fim, é preciso
que também a própria alma seja divisível e extensa. Quarto. É difícil de compreenser
de que modo a alma do cavalo é indivisível e, todavia, não é substância espiritual.
Mas, como é evidente, não é substância espiritual, logo não é indivisível.
252 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles
ARTIGO III
Solução da questão. Explicação dos argumentos de uma e de outra parte
QUESTÃO IX
Se toda a alma está em todo o corpo e toda ela em qualquer parte dele
ARTIGO !
Discussão da dúvida proposta
Não chamamos à questão se a alma está no sangue e nos restantes humores. Com
efeito, já no primeiro livro sobre A Geração considerámos que, quer os humores,
quer outras coisas, embora fossem contadas, de qualquer modo, entre as partes dos
animais, eram destituídas não só de alma mas também das funções vitais. Portanto, a
questão será acerca da alma comparada ao corpo, apenas quanto às partes dotadas de
vida. O sentido da questão é, se a alma no corpo existe de tal modo que nenhuma
parte do corpo carece de alma, e de tal modo, que em qualquer parte, tal como em
cada uma, esteja toda.
Pode ser recomendada a parte negativa da controvérsia, examinada de acordo
com o primeiro sentido. Primeiro, porque a alma parece estar somente no cérebro,
entendendo-se que o que tem o regimento de todo o corpo reside no cérebro como
ponto capital. Depois, porque apenas na cabeça vigiam, ao mesmo tempo, todos os
sentidos internos e externos que são intermediários e como que intérpretes das coisas
que têm de ser compreendidas. Terceiro, porque a faculdade de raciocinar é pertur
bada naqueles cujas meninges foram lesadas. Este argumento considera que o inte
lecto e a própria alma residem ali, mas não nas partes do corpo em que não recebe
igual revés.
Pelo contrário, que a alma apenas pode residir no fundo do coração, prova-se
assim. Porque o coração é fonte de vida, por cujo benefício se realiza toda a acção
vital, e pelo qual o calor, difundido por cada uma das partes do corpo, aquece todos
os membros e dispõe as suas faculdades. Porque o coração para as comoções fortes
da alma, como a ira, o temor e o desejo se inflama com veemência. A favor há tam
bém aquelas palavras do nosso Salvador em Mateus 1 5 , «do coração saem pensa
mentos», passo do qual, São Jerónimo, livro segundo, Comentários ao Evangelho de
Mateus ao mesmo capítulo, recolhe, a partir do ensinamento de Cristo, que a alma
não está no cérebro como dizia Platão, mas no coração.
Outro. A forma deve corresponder à proporção da matéria; ora, a alma, por ser
forma do corpo é uma certa essência simples ; logo, não lhe corresponde na matéria
múltipla, que é a que consta da diversidade do órgão, por isso a alma não está nas
254 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles
partes orgânicas. Depois, parece existir uma mesma proporção da alma para o corpo,
tal como a que existe da inteligência motriz para a esfera celeste; portanto, como a
inteligência não está em toda a esfera, como ensina Aristóteles no livro 8 da Física,
capítulo 1 0º, texto 84, mas de modo certo e em lugar definido, assim também não
está a alma no corpo todo. Mais, se uma artéria for amarrada, o que está abaixo do
nó não se move; logo, visto que o movimento é índice da alma, parece que aquilo
que permanece abaixo do nó é destituído da presença da alma. Por último, o indivi
sível somente se iguala ao indivisível; donde, como nenhuma parte do corpo é indi
visível, nenhuma alma será indivisível em parte alguma do corpo.
Acresce, por fim, o passo de Aristóteles no livro O Movimento dos Animais,
capítulo sétimo, quando afirma com palavras claras que a alma não tem sede em
qualquer parte do corpo, mas numa certa parte do corpo. Devemos assim, diz, consi
derar o animal constituído como uma cidade bem regida e moderada por leis. Nesta,
depois do sistema de governo ser instituído a primeira vez, não é preciso, uma vez o
príncipe ausente, que ele esteja presente nas coisas que são tratadas uma a uma, mas,
pelo contrário, que qualquer um cumpra as suas funções como foi ordenado e que se
execute e estabeleça uma coisa após a outra, de acordo com o costume. E, nos ani
mais acontece o mesmo pela natureza, porque cada uma das coisas e também os
membros são constituídos de tal modo que estão dispostos a executar correctamente
a sua função. Pelo que não faz falta que a alma esteja presente em cada membro
mas, uma vez que consiste num certo princípio, os outros membros, que lhe estão
ligados, vivem e as suas funções morrem por natureza.
No que respeita à outra parte da questão, pela qual se pergunta se em cada uma
das partes está presente toda a alma, provar-se-á que não está presente em cada uma.
A alma move-se por acidente no movimento do corpo em que está, e assim, quando
ele repousa, ela repousa. Portanto, se a alma está toda em cada uma das partes do
corpo, como num espaço de tempo, a mão repousa, o pé se move, uma mão se agita
para o alto e a outra para baixo, toda a alma se moverá ao mesmo tempo e toda
repousará, tendo, durante aquele período, movimentos contrários. Segundo. Quando
alguma coisa está toda nalguma parte, nada dela está de fora, portanto, se toda a
alma está na cabeça nenhuma parte dela estará no pé. Terceiro. Toda a alma do
homem estará em qualquer parte do corpo humano? Então qualquer parte do
humano é homem. Prova-se a consequência porque a essência integral do homem
encontra-se no corpo e na alma.
ARTIGO II
São refutadas várias opiniões dos filósofos.
Estabelece-se a posição correcta
A posição dos mais antigos, nesta questão, não foi única, como, além de outros,
refere São Gregório de Nissa no livro A Criação do Homem capítulo 1 2º; Lactâncio,
no livro A Criação de Deus, capítulo 1 6º; Tertuliano, no livro A A lma ; Cícero, no
primeiro das Questões Tusculanas. De facto, alguns situaram a alma na cabeça,
como no topo, de entre os quais Xenócrates, no vértice; Hipócrates, no cérebro;
Herofílo, no cérebro côncavo ou base. Estratão e Erasístrato, nas membrânulas . O
físico Estratão, entre as sobrancelhas. Outros, noutras partes. Parménides e Epicuro,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo /, Questão IX, Artigo li 255
em todo o peito. Fílon Judeu, no livro intitulado Quod deterius potiori insidetur, no
coração. Também os estóicos a situaram no coração ou no espírito à volta do cora
ção, Diógenes, na artéria côncava do coração. Outros, num qualquer lugar escondido
a partir do qual, à maneira de uma aranha, percorre todo o corpo, em proveito geral.
No livro a respeito da doutrina de Platão, capítulo 23º, Alcino explica o que pen
sou nesta matéria, do seguinte modo. À alma imortal do homem, a partir do primeiro
Deus, os deuses criadores, fundadores dos géneros mortais, juntaram-lhe, como
dissemos, duas partes mortais. Para que a força da alma imortal e divina não fosse
atingida pelos delírios mortais, estabeleceram o seu lugar no alto do corpo, de
acordo com os princípios de todas as coisas. Quiseram, efectivamente, que o seu
habitáculo fosse a cabeça, figura esta a partir da qual o mundo foi feito. A ela sujei
taram o restante corpo para ministério, como meio. Imputaram as funções próprias a
cada uma das partes mortais. As vísceras, à cólera, a cupidez ao lugar intermédio
entre o umbigo e o diafragma e aí uniram a força como a de um animal furioso e
selvagem.
Para explicar esta controvérsia deve advertir-se que o todo, que é o assunto do
presente estudo, pode ser tomado de três modos. Do primeiro modo, diz-se todo
integral ou quanto. Do segundo, todo pelo poder ou faculdade que, evidentemente,
contém muitas faculdades ou potências, as quais de vez em quando também são
chamadas partes por Aristóteles, nestes livros. Do terceiro modo, todo essencial, que
é o composto pelas partes da essência, quer físicas, quer metafísicas. Nem, de facto,
se deve ignorar que a alma está toda em qualquer parte do corpo, o que pode enten
der-se de dois modos. De um modo positivo, no sentido em que a alma segundo
todas as partes que realmente a constituem, se encontra presente em qualquer parte
do corpo. De outro, negativo, se se disser que ela está não numa parte do corpo,
segundo uma parte, e segundo outra, noutra, mas que seja o que for que ela tem,
quer se una pelas partes, quer não, o todo está contido em qualquer parte do corpo.
Seja a primeira asserção. A alma tanto divisível, quanto indivisível, enforma
qualquer parte do corpo. Esta afirmação é extraída de São Tomás, livro segundo,
Contra os Gentios, capítulo 72º e de outros peripatéticos em consenso geral . Prova
-se, porque nenhuma substância corpórea vive a não ser porque tem alma, que é fonte
e princípio da vida. Portanto, embora as partes do corpo animado vivam uma a uma,
visto que todas se alimentam, francamente se conclui que qualquer parte do corpo
animado é enformadao pela alma. Acrescente-se que, como em cada composto natu
ral está presente apenas uma forma substancial, tal como defendemos no primeiro
livro sobre A Geração e a Corrupção, a alma existe necessariamente em todo o
corpo. De outro modo, alguma parte da matéria teria sido destituída de toda a forma
substancial, o que de modo algum pode acontecer pelas forças da natureza. Acres
cente-se o testemunho de Aristóteles neste livro, capítulo 2º, texto 20, quando ensina
que a alma das plantas se espalha por todo o corpo.
Segunda asserção. A alma, enquanto é um todo pelo poder, é quer divisível, quer
indivisível, não se contendo em qualquer parte do corpo. Esta afirmação é evidente,
porque embora as potências imateriais, inerentes à alma intelectiva, como o intelecto
e a vontade, estejam em qualquer parte do corpo, também a própria alma o está. As
outras potências orgânicas não são assim, mas à excepção de poucas, como a facul
dade nutritiva que está espalhada por todo o corpo, a maior parte são todas separadas
256 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
e distintas nas sedes, como será evidente em seu lugar. Assim, por exemplo, a alma
ocupa, conforme a vista, os olhos, conforme o ouvido, os ouvidos, conforme a fanta
sia, o cérebro.
Há quem objecte que não estabelecemos correctamente a diferença entre orgâni
cas e não orgânicas, porque todas as potências em geral inerem na alma. Prova-se o
antecedente, porque todas as potências irradiam da alma, e isto através de uma acção
imanente (se todavia fluíssem por acção transitiva, já a sua emanação não se chama
ria acção própria mas imprópria, cuj o oposto ensinámos na Física), pelo que é
necessário que todas as potências permaneçam na própria alma. Alguns, de entre os
quais Janduno, neste livro, questão 7, concedem que todas as potências são recebi
das na alma. Ma,s não é assim. Na verdade, visto que as potências, segundo a dou
trina comum dos filósofos são umas materiais e extensas, as que se dizem orgânicas,
outras imateriais e inextensas, como as operações de umas e outras, não é possível
que as orgânicas sejam inerentes à forma indivisível, mas é necessário que sejam
recebidas na matéria, não na matéria nua, mas enquanto inclui os órgãos e se encon
tra sob a forma substancial, no modo que discutimos no primeiro livro sobre A
Geração e a Corrupção. Também a partir desta disputa será fácil perceber que as
potências orgânicas não inerem a todo o composto, embora Egídio, Quodlibet 3 ,
questão 1 0 ; Caetano, O Ente e a Essência, capítulo 7°, questão 1 6; Soncinas, livro 7 ,
Metafísica, questão 7 e outros considerem o contrário. E não obsta o que Aristóteles
ensinou no primeiro livro desta obra, capítulo 4º, texto 66, que as funções da alma
são próprias do conjunto, donde se segue que também as potências, no próprio con
junto, isto é, em todo o ser, visto que o passa a acto é o mesmo que o que está em
potência, segundo idêntico testemunho de Aristóteles no livro O Sono e a Vigília
capítulo 1 º. Não obsta, digo, porque no mesmo ponto, apenas se quer dizer que o
sentir e outras operações do género não se realizam sem o consórcio da alma e do
corpo, contra Platão que considerou que as operações dos sentidos são próprias da
alma e lhe são inerentes. Mas quanto ao argumento a favor da posição de Janduno,
deve responder-se que nem todas as potências flúem da alma pela acção que reside
na própria alma, mas apenas as potências espirituais. Por isso as potências materiais
flúem, por uma acção transitiva, para a matéria, na qual são recebidas. E daí não se
segue que os fluxos sej am acções propriamente ditas, visto que são como que um
certo resultado.
Terceira asserção. A alma divisível, enquanto é um todo, no primeiro ou no ter
ceiro modo, não está presente toda, em qualquer parte do corpo. Esta afirmação
demonstra-se, porque como a alma é divisível pela extensão da matéria e da quanti
dade, também é extensa. Será necessário que as suas porções correspondam às partes
da matéria uma a uma e, por isso, não estará toda quanto à substância em qualquer
parte do corpo. Não há razão para se duvidar se as partes metafísicas da alma se
estendem com a própria alma. Com efeito dado que elas não diferem realmente da
substância da alma, será necessário para a sua extensão que também se estendam a
seu modo.
Quarta asserção. A alma indivisível enquanto é um todo, no terceiro modo, está
toda em qualquer parte do corpo, mas segundo a noção do todo, tomado no primeiro
modo pode dizer-se negativamente que está em qualquer parte do corpo. Esta afir
mação é evidente quanto à primeira parte, porque embora a alma enforme qualquer
Livro Segundo, Explicação do Capítulo !, Questão IX, Artigo lll 257
parte do corpo vivo, como mostrámos na primeira asserção, será necessário que a
alma que carece de partes estej a toda em qualquer parte do corpo. Aquilo, de facto,
que é indiviso, onde quer que esteja, é um todo. Demonstra-se igualmente, quanto à
segunda parte, a mesma asserção, porque uma vez que a alma indivisível não é com
posta de partes integrantes, pode dizer-se até aqui, conforme a anterior consideração
do todo tomado no primeiro modo que ela está toda em qualquer parte do corpo,
visto que não mantém uma parte integrante numa parte do corpo, e outra na outra.
ÁRTIGO ill
Explicação dos argumentos do primeiro artigo
8º, questão 76 da primeira parte da Suma Teológica, que quando a mão se move, a
alma não se move nem por si, nem por acidente, porque de forma alguma se diz que
as substâncias imateriais recebem movimento, excepto quando aquilo em que preci
samente existem se move. A alma, com efeito, não existe precisamente na mão.
Outros, de entre os quais São Tomás, As Criaturas Espirituais, questão única, arti
gos quarto ao 7º; Egídio, no primeiro livro das Sentenças, distinção 8, 2ª parte da
distinção ao princípio da questão terceira, não consideram nada absurdo admitir que
a alma simultaneamente se movimenta e repousa. Isto, porque em si ela não recebe
movimento nem repouso, mas antes as diferentes partes do corpo que a alma
enforma, ainda que isso não possa acontecer nas que se movem por si, ou que de
qualquer modo recebem em si movimento. E por fim, outros consideram que a alma
se move por acidente no movimento da mão, mas negam que ao mesmo tempo des
canse, quando o pé descansa. Na verdade, visto que o repouso é privação que nega
em absoluto o movimento, não se afirma, dizem, que a alma descansa, a não ser que
todo o corpo, no qual se dá, estej a isento de movimento. Destas três soluções,
embora nenhuma desaprove totalmente, a primeira agrada mais. À segunda pode
negar-se, primeiro de tudo, o antecedente. Diz-se que uma coisa está toda em
alguma parte, desde que toda ela esteja onde está contida toda, ou também que ela
seja admitida nas coisas que precisa e delimitadamente existem nalgum lugar, tal
como no seu primeiro e adequado perfectível, razão pela qual as formas indivisíveis
não estão em qualquer parte do corpo. Esta solução é de São Tomás nas Questões
Disputadas sobre a Alma, artigo 1 0º, ao 3º.
Ao terceiro, deve negar-se a conclusão. De facto, não se diz que o homem é com
posto de alma racional e de qualquer matéria, mas da que é o primeiro e adequado
perfectível, a qual não é parte da matéria.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO II
ção de alma, pela qual explicita, de forma mais distinta, as espécies de almas,
estabelece o método e o modo da doutrina, como costuma fazer, dado que existe
grave controvérsia. Ele afirma, portanto, que quer avançar a partir das coisas
obscuras por natureza, mas para nós mais conhecidas, até àquelas que são mais
conhecidas, de acordo com a razão, e transmite a definição que contém a causa.
Com efeito é necessário declarar não só que a coisa existe, mas porque existe.
Mas que coisas chamamos de natureza mais conhecida ou mais obscura, expu
semos em longa discussão no primeiro livro Lições da Física.
b. Nunc autem definitionum 4 1 3 a 1 6 -É evidente que existem três géneros de
definições com base no primeiro livro dos Posteriores, capítulo 7º. Umas são
transmitidas através da forma ou da matéria. Outras, pela causa final ou eficiente.
Outras, compreendem um e outro género de causa. Aquela que consta de um
género, chama-se, ora conclusão, quando é demonstrada através de outra, ora
meio, quando demonstra outra. Aquela, porém, que se compõe de um e de outro,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo II 259
definições que explicam a causa da coisa, e outras que não são assim, o exemplo
pedido é extraído da Geometria. O que, para se entender, deve advertir-se que,
dado um quadrilátero rectângulo, se pode dar um quadrado envolvendo área
igual. Mas o quadrilátero é a figura quadrangular de dois lados iguais, como A.
mais obscuro por natureza e mais conhecido para nós, para o que é mais conhe
cido por natureza. Ele observa esse método. Aristóteles avança do ser animado
para a alma, e é evidente que o ser animado é posterior em natureza, à alma.
Certamente diz-se animado porque participa da alma e recebe o nome a partir da
alma. O que recebe o nome a partir de algo é-lhe posterior. É claro também que o
ser animado é mais evidente para nós do que a alma, pela qual o todo é composto
e vem primeiro à mente (entenda-se quanto a um conhecimento confuso) do que
a sua parte. Mas a alma é uma parte do corpo animado. É evidente, também, que
o ser animado quanto a um conhecimento distinto, é mais obscuro por natureza
do que a alma, tal como o todo, mais do que a sua parte. Logo, Aristóteles parte
do que é animado explicando a diferença entre animado e inanimado, a saber,
que o animado vive, isto é, move-se por si e pratica as acções através do princí
pio interno da vida. Donde, Simplício anota que a vida em grego (w� se diz à7to
Toü (ÉELV, isto é, a partir da agitação porque agita-se por si e por dentro, quer
dizer, age ou move e é movido.
e. Quapropter 4 1 3 a 25 Porque a vida se diz de muitas maneiras, são quatro os
-
enumerara pouco antes, abrange quatro graus de vida. O primeiro é próprio dos
vegetais ou dos que se alimentam, crescem e declinam; o segundo, daqueles que
não só são vegetativos, mas também se salientam pelo sentido; o terceiro, dos
vegetativos, dos que também são dotados de sentido e se movem com o movi
mento de locomoção. O quarto, daqueles que além de possuirem os três graus
anteriores também detêm o grau de inteligir. Ensina, de facto, que estes graus se
Livro Segundo, Explicação do Capítulo li 261
distinguem entre si. Nas plantas o primeiro encontra-se sem os outros. Em certos
animais os dois primeiros sem os restantes, como nos animais marinhos, que
estão presos às rochas. Nos animais perfeitos os três primeiros sem o último. No
homem os quatro. E assim, nestes graus, existe este tipo de ordem, para que pos
sam existir os primeiros sem os últimos, não o contrário.
g. Atque quam 413 b 9 Diz que de caminho vai explicar por que é que a potência
-
explicação da anterior acabe por ser mais fácil. A solução está contida na frase a
seguir. Não é difícil ver que nalguns seres animados as potências não se distin
guem pelo substrato e lugar, noutros é difícil ver, mas é evidente que todos dife
rem entre si pela razão e pela definição. Na verdade, existem três partes desta
afirmação, das quais a primeira, se se referir às plantas, insectos e às potências
que lhes respeitam, é manifestamente verdadeira. Com efeito, as partes arranca
das da planta contêm a potência vegetativa e nutritiva, apenas porque não só a
alma da planta, mas também as suas potências se difundem por todo o corpo.
Também, o lagarto dividido em duas partes ainda assim se move e sente. O
movimento e o sentido acompanham a imaginação e o apetite. Logo, elas existem
mediante os membros do lagarto e do desenvolvimento do ramo. Por outro lado,
se estivessem circunscritas a lugares definidos, apenas poderiam manter-se nes
ses lugares, enquanto se mantêm.
k. De intellectu 4 1 3 b 24 Esta é a segunda parte da frase, na qual Aristóteles mos
-
tra ser difícil e ainda ambíguo saber se a potência intelectiva está confinada a
certo órgão, porque ainda não explicou suficientemente se é uma faculdade orgâ
nica. Todavia diz que parece que a alma intelectiva é de outra natureza e ordem e
que se distingue das restantes coisas sublunares, pela imortalidade. Daqui se
segue que a potência de inteligir não se encontra fixa ao corpo e pode separar-se
dele, mas não assim as restantes potências, visto que estão fixas e adjudicadas
262 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
aos órgãos, como é claro, a partir do que se disse acima, ainda que falte quem
afirme que elas também se podem separar da matéria.
1. Ratione uero 4 1 3 b 27 - Confirma a partir das suas operações a terceira parte da
afirmação, visto que todas as potências se distinguem pela razão ou definição. As
potências, na verdade, distinguem-se pelos seus actos. Por isso, como os sentidos
e o apetite produzem actos diferentes, como que tendentes para objectos diferen
tes, também obtêm assim diferente razão e definição. A seguir, naquelas palavras
«também quanto às outras», como São Tomás interpreta, resolve a primeira
questão, afirmando que cada um dos quatro predicados, vegetativo, sensitivo,
movimento no lugar e intelectivo são quer a alma, quer uma faculdade da alma.
São a alma, quando apenas está presente um deles, e assim, nas plantas, o vege
tativo é a alma. Quando estão presentes muitos, aquilo que é mais elevado pre
domina, como no homem o intelectivo. O que deve ser entendido de tal modo
que, por exemplo, o vegetativo, tomado por si, por convenção, é alma, ao qual
apenas este grau pertence, e do mesmo modo, quanto aos três restantes referidos.
Cada um deles pode ser tomado como alma ou como potência, tal como o vege
tativo, como faculdade vegetativa que brota da essência da alma da planta, ou
como a própria alma da planta. No entanto, os intérpretes gregos pretendem que
aqui se contém a confirmação da afirmação proposta, relativa à distinção das
potências segundo a razão. Porque os seres vivos alcançam, uns mais, outros
menos, faculdades da alma, mostrando necessariamente que elas, muitas vezes,
se distinguem pela razão. E esta explicação dos gregos parece mais verdadeira; a
primeira parece um pouco forçada.
m. Quoniam autem 4 1 4 a 4 - A partir da definição encontrada neste capítulo, Aristó
teles determina que ela demonstra a definição que transmitira no capítulo ante
rior. Estabelece primeiro que há duas maneiras pelas quais dizemos que se sabe;
pela ciência, enquanto forma, pela alma, enquanto substrato. Também há duas
maneiras porque dizemos que nos curamos, a saber, pela saúde, enquanto forma,
no corpo, ou nalguma parte do corpo, enquanto substrato. Assim, dizemos que
vivemos de duas maneiras, uma como forma, outra como matéria, na qual está a
forma. Efectivamente, a forma ou acto não pode estar em qualquer substrato, mas
num certo e determinado, tal como o agente não age indiscriminadamente em
qualquer um, mas naquele que é idóneo e apto para receber a sua impressão.
n. Anima autem 4 1 4 a 12 - Prova que a alma é forma. Aquilo pelo qual vivemos é
forma, mas vivemos pela alma, logo a alma é forma. A menor convence, porque
a substância é tripla, forma, matéria e composto, como já acima foi dito. Mas o
composto é o que vive, e como o corpo ou matéria é ente em potência, não é pos
sível dizer que por ele vivemos, mas sim através da alma, que é acto. A partir das
afirmações anteriores, pode concluir-se a explicação do seguinte modo. Aristó
teles demonstra a primeira definição de alma pela segunda. Aquilo, pelo qual
primeiramente vivemos, sentimos, nos movemos no lugar e inteligimos é o acto
primeiro substancial do corpo natural que tem a vida em potência; ora, a alma é
aquilo pelo qual primeiramente vivemos, sentimos, nos movemos no lugar e
inteligimos; logo, a alma é o acto primeiro substancial e etc.
o. lccirco recte 4 1 4 a 1 9 - Do anterior quase se retira, como corolário, que os que
afirmam que a alma não é o corpo, nem é sem o corpo, pensam correctamente,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo //, Questão Única, Artigo / 263
porque embora a alma intelectiva separada subsista fora do corpo, todavia, por
sua natureza, a sua forma e o seu estado natural é no corpo, e que depende dele
quanto à função de enformar.
p. Non in quouis 4 1 4 a 23 Os pitagóricos aventaram que a alma pode
-
QUESTÃO ÚNICA
Se a segunda definição de alma foi correctamente transmitida
e se a primeira é por ela demonstrada
ARTIGO I
Foi correctamente transmitida
Aristóteles definiu assim a alma, no capítulo anterior: alma é aquilo pelo qual
vivemos, sentimos, nos movemos no lugar e inteligimos. Demonstra-se que esta
definição está errada. Primeiro, porque parece respeitar a Deus, o Melhor e Mais
Eminente, visto que Deus é o princípio da vida, do movimento e do próprio ser,
segundo São Paulo no décimo sétimo capítulo dos Actos. Como não está distante de
cada um de nós, então nele vivemos, nos movemos e somos. Porque aqui, a alma é
definida em geral, tal como na primeira definição, quando Aristóteles disse, no texto
décimo segundo, que a definição respeita só à alma racional, já que apenas aquelas
quatro partes tomadas em conjunto lhe podem ser atribuídas. Por outro lado, porque
a outra definição não se lhe aplica em parte, visto que a alma que participa da razão
não é aquilo pelo qual inteligimos, mas aquilo que intelige, pois é singular, subsis
tente por si, pertencendo-lhe o agir por si. Outro. Porque a alma separada do corpo é
verdadeiramente alma e, no entanto, não é aquilo pelo qual vivemos e sentimos.
Todavia, não é por estes argumentos que se deve provar se a definição aristotélica
está correctamente explicada e compreendida. Não colhe, também, a opinião de
Egídio, considerando que Aristóteles, com aquelas palavras, não transmitiu uma,
mas quatro definições sobre o número de almas. De facto, a definição referida é una,
e como una foi investigada e proposta por Aristóteles, tal como é evidente no
decurso dos capítulos anteriores. Depois, Egídio não estabeleceu bem quatro almas,
pois apenas se contaram três, como em seu lugar se tomará claro. Mais, a definição
deve entender-se da maneira a seguir. Como se diz que alma é aquilo pelo qual
vivemos, isto é, o princípio interno da vida, isto em nada corresponde a Deus, no
que às coisas vivas concerne, posto que Deus penetra no íntimo de todas as coisas
conferindo-lhes o ser, mas não as constitui intrinsecamente. Também aquelas quatro
partes, 'vivemos, sentimos etc.' não devem ser tomadas conjuntamente, mas separa-
264 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
das. Não porque cada uma se distinga singularmente, como que dizendo que a alma
é aquilo pelo qual vivemos, sentimos, nos movemos no lugar ou inteligimos, mas de
maneira a que a separação se faça com a j unção das partes precedentes e se diga que
a alma é aquilo pelo qual vivemos, ou também sentimos, ou também nos movemos
no lugar, ou também inteligimos. Por isso, é evidente que Simplício não considerou
correctamente que esta definição apenas se pode aplicar à alma intelectiva. Outro.
Dionísio Sofista foi justamente condenado porque definiu a vida a partir do movi
mento de nutrição, como se não existisse outro modo de vida. E com base nisto
responde-se claramente aos dois primeiros argumentos.
Aos restantes, dizemos que, embora a alma racional, considerada em si, seja
aquilo que intelige, uma vez junta ao próprio composto, é aquilo pelo qual inteligi
mos e, por isso, uma vez separada, é aquilo pelo qual vivemos, isto é, pela sua natu
reza e princípio de vida ou, o que vai dar ao mesmo, é o princípio pelo qual pode
mos viver e sentir.
ARTIGO II
De que forma as definições de alma podem por si
demonstrar-se mutuamente
reclama-a em potência, como de igual modo para aquela ordem e igualmente para a
causa final, visto que pode ser dirigida para ela pelo seu eficiente.
Posto isto, seja a primeira conclusão. Se se considerar a segunda definição de
alma, na medida em que respeita ao princípio das operações da própria alma, ela
pode ser demonstrada através da primeira, por uma demonstração causal, mas não a
primeira, através daquela. Esta afirmação prova-se assim. Pelo menos, segundo o
nosso modo de compreender, a alma é mais acto do corpo, do que princípio das suas
operações e aquilo é a razão disto. Logo, também a definição de alma respeitante ao
princípio de vegetar, etc. pode demonstrar-se através daquela que respeita ao acto do
corpo, por uma demonstração causal. O antecedente demonstra-se do modo a seguir.
O ser está para a operação como o princípio do ser para o princípio de operar, visto
que o efeito tem esta relação com o efeito, tal como a causa com a causa; ora, o ser é
anterior à operação, em natureza; logo, também o princípio de ser o é em relação ao
princípio de operar. Mas a alma é o acto do corpo e o ser é princípio de ser, pois
assim actua, compõe, constitui; ora, o ser é aquilo pelo qual vivemos ou vegetamos e
é fonte e princípio de operar; portanto, etc. Outro. O ser de uma coisa é que deter
mina o princípio da sua operação e não o contrário. Portanto, porque a alma é acto
do corpo, é princípio de vegetar. Logo, demonstrar-se-á isto através daquilo, não
aquilo através disto, como algo anterior e como causa.
Sej a a segunda conclusão. A segunda definição, dado respeitar às operações da
alma, como aos seus efeitos, pode ser demonstrada por uma demonstração causal
através da primeira e esta através daquela, por uma demonstração do que a coisa é,
não vice-versa. A verdade desta conclusão é evidente, porque os efeitos podem ser
demonstrados através da sua causa e a causa através dos efeitos, mudada a razão de
demonstrar segundo este modo. Mas a primeira definição contém a causa das opera
ções da alma, e por isso é relativa à sua essência, que é causa das funções vitais dela.
A segunda, porém, respeita aos efeitos. Porque de facto os efeitos, visto que são
efeitos, não podem demonstrar a sua causa através da primeira, o que é mais claro do
que a luz. O sentido desta conclusão está conforme à verdadeira opinião de São
Tomás, como acima referimos, contanto que não se oponha à terceira conclusão,
como desde logo sugerimos.
Sej a a terceira conclusão. Se a segunda definição de alma for examinada como
dizendo respeito às operações da alma, na medida em que são o fim da própria alma,
poder-se-á, através dela, demonstrar a primeira por uma demonstração causal. Deve
entender-se esta conclusão acerca da alma considerada segundo o modo por que
dissemos que as causas eficiente e a final podem alcançar as naturezas das coisas. E
é evidente, porque a segunda definição assim considerada, respeita à causa da pri
meira. Aristóteles pode ser correctamente compreendido em conformidade com o
sentido desta conclusão, quando no capítulo anterior declarou que queria transmitir a
definição que contém a causa. Embora Caetano tenha exposto isto de outro modo, a
saber, não acerca da causa final, mas da formal, considerando que o princípio de
operar, a respeito da alma, existe primeiro no género da causa formal, do que no acto
do corpo. Todavia o argumento através do qual estabelecemos a primeira conclusão,
excluiu esta interpretação, que também tem a sua probabilidade.
A partir do que dissemos é evidente o que deve ser respondido aos argumentos
aduzidos no início da questão. As palavras ao início do capítulo segundo têm de ser
266 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles
compreendidas acerca da causa final . Outro. Visto que Aristóteles numa e noutra
definição, que tem de ser indagada, tinha caminhado a partir do conhecimento das
operações da alma para o conhecimento da própria alma, é bastante evidente que
nesta matéria tenha sido seguido o modo ordinário de investigação da Física, dos
efeitos para as causas. Para o respeitar não foi preciso proceder da definição que
compreende os efeitos apenas, para aquela que só contem as causas. Mas ele conju
gou engenhosamente uma e outra ordem, isto é, a da apurada doutrina, que é a das
causas para os efeitos, e a da primeira investigação da Física que é a dos efeitos para
as causas, quando, ao mesmo tempo, procedeu não só das causas para os efeitos,
mas dos efeitos para as causas, segundo uma e outra consideração, como dissemos.
suem um ténue vestígio de desejo. A outros apraz que o apetite da ira e do desejo
estejam juntos, porque a ira está sempre presente no concupiscível como sua
defensora e vingadora, contra as coisas que impedem que o animal atinja o bem
que procura e decline o mal que evita. Leia-se São Tomás 1ª parte da Suma Teo
lógica, questão 8 1 , artigo 2º.
c. De imaginatione 4 1 4 b 16 Aristóteles afirma não ser ainda claro se a faculdade
-
homens pelo intelecto e se são dotados de razão como Sócrates e Platão afirma
vam. Acerca do assunto, leia-se Platão, nos livros 2 e 1 0 de A República, no
Fedro, no Epiménides, e noutros pontos. É evidente que acima da natureza
humana, está a angélica, que é desprovida de corpo e se salienta pelo intelecto.
e. Perspicuum igitur 4 1 4 b 1 9 Ele resolve a questão, que propusera no primeiro
-
capítulo do livro anterior, sobre se, na verdade, existe uma definição comum de
alma, e responde às duas proposições com uma certa comparação recolhida a
partir da figura. A primeira é. Tal como não existe uma figura comum separada,
realmente, das figuras, uma a uma, assim também não existe uma alma separada,
realmente, de todas. Por isso, não se pode propor, em absoluto, uma definição
que diga respeito à alma separada dos indivíduos, porque não há uma definição
de figura comum que se aplique à figura por si subsistente além das singulares,
como falsamente pensavam os defensores das Ideias. A outra proposição é. Tal
como a definição geral de figura é própria de uma natureza comum, que todavia
se encontra nas coisas particulares e não se encontra separada delas, assim tam
bém acontece com a definição comum de alma.
f. At uero quemadmodum 4 1 4 b 28 Ensina que nas figuras, umas são posteriores a
-
outras e mais perfeitas, e que o mesmo também acontece nas almas. Com efeito,
existe entre elas uma ordem de perfeição. Certamente a vegetativa é a mais
imperfeita de todas. À sensitiva cabe o segundo lugar. A terceira, participa da
razão. E, como as anteriores figuras se inscrevem nas seguintes, por exemplo, o
triângulo no quadrado e o quadrado no pentágono, assim também a vegetativa
está contida na sensitiva, a sensitiva na intelectiva. Daí prossegue mostrando por
que razão os graus da vida foram distribuídos por diversos graus de seres vivos, e
os que são próprios de cada um.
g. Postremo 4 1 5 a 7 Chama à espécie humana o último e o mínimo. O último,
-
porque procedendo das imperfeitas para as mais perfeitas ocupa o último grau,
isto é, o mais perfeito, entre os corpos vivos; o mínimo, porque não pode ser
dividido em outras espécies.
h. Quibus enim mortalium 4 1 5 a 9 Diz que a razão lhes pertence, isto é, a potência
-
de inteligir convém aos restantes graus de vida, desde que sejam mortais. Por que
razão Aristóteles acrescenta esta limitação, exporemos na questão. Depois,
afirma que certos animais vivem só com a imaginação, não porque apenas a
tenham, também são dotados de sentido e da faculdade vegetativa, mas porque se
268 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
diz que cada um vive por causa do que nele é mais eminente. Aristóteles fala
neste ponto não da imaginação imperfeita, que após sentir-se se dissipa imedia
tamente, mas daquela que permanece, isto é, que conserva as imagens das coisas,
quando está junta a memória, como aqui São Tomás chama a atenção.
QUESTÃO !
Se a variedade tripartida das almas
está correctamente atribuída ou não
ARTIGO I
Em princípio não parece correcta,
mas está correctamente atribuída
devem contar-se precisamente outras tantas almas, nem mais, nem menos. É evi
dente que não se deve aprovar a opinião de Platão, no Timeu, quando apresenta uma
divisão diferente da alma, isto é, em irascível, concupiscível e racional. Nesta maté
ria errou duplamente. Primeiro, porque dividiu a alma racional, e ela não deve ser
dividida excepto do modo explicado há pouco. Depois, porque estabelece três almas
num mesmo homem, realmente distintas, o que no livro A Geração e a Corrupção
mostrámos estar longe da verdade, embora não falte quem interprete o preceito de
Platão, não sobre três almas, mas sobre três faculdades da mesma alma.
Respondamos agora aos argumentos propostos ao início. Ao primeiro, dizemos
que embora contemos três almas, não compreendemos três géneros, nem três ínfi
mas espécies, mas três almas distintas, no diferente modo de animar a matéria cor
pórea. Do mesmo modo que nesta variedade tripartida se contêm dois géneros, a
alma vegetativa e a sensitiva e também uma espécie, isto é, a alma que participa da
razão.
Deve conceder-se, ao segundo, como o argumento directamente comprova, que as
almas vegetativa e sensitiva se dividem em várias espécies mas, uma vez que todas
as almas vegetativas têm entre si o mesmo modo de operar, também todas as sensiti
vas o têm entre si, de modo igual. Por isso, a alma não se divide em mais partes, do
que aquelas três, porque nesta divisão as partes não se multiplicam, a não ser apenas
de acordo com a diversidade de operações, segundo a referida animação maior,
menor e acima da matéria.
Ao terceiro, deve responder-se que o facto de as plantas rejeitarem as seivas inú
teis e atraírem as úteis não resulta de nenhuma faculdade sensitiva e cognoscente
existente nelas, mas da potência que atrai e da que repele, as quais, anteriormente a
todo o sentido e conhecimento, servem a alma nutritiva, como no primeiro livro
sobre A Geração e a Corrupção ensinámos de modo claro. Mais, aquela perseguição
ou fuga das coisas saudáveis ou nocivas, reconhecível em certas plantas, tem origem
nas suas potências inatas, tal como a antipatia e a simpatia latentes, sem que nenhum
conhecimento ou sentido o ordenem. De facto, a juventude e a velhice, tal como o
sexo e o acasalamento, somente em sentido figurado se lhes aplica.
Para se resolver o quarto argumento é tido em consideração o seguinte. A alma
vegetativa em geral, pode ser tomada em toda a sua amplitude, tal como o corpo
animado em geral, como a parte formal na composição física, pelo que recebe o
nome que dimana em primeiro lugar daquela potência de vegetar. Assim, divide-se a
alma vegetativa na que é apenas vegetativa, a alma das plantas, na alma sensitiva de
que o animal em geral é formado, chamada sensitiva, porque dela nasce, primeiro, a
faculdade de sentir, e na alma racional. Por outro lado, a sensitiva em geral divide-se
em apenas sensitiva (apenas nega o grau ulterior), que é a alma dos animais, e em
intelectiva. Pelo que é evidente que a alma vegetativa em geral, uma vez que é ape
nas considerada um certo género para a vegetativa, e existe para a sensitiva e a inte
lectiva, está nestas formalmente presente. E, de igual modo, a sensitiva em geral, só
na sensitiva e a intelectiva (na verdade todo o género incluído formalmente nas suas
espécies), mas apenas na alma sensitiva, isto é, na alma do animal, não está formal
mente presente só a vegetativa ou a alma da planta. Por igual razão, a apenas sen
sitiva, isto é, a dos animais, também não está formalmente contida, na alma intelec
tiva, visto que são espécies distintas entre si. Logo, daqui resulta a clara solução do
Livro Segundo, Explicação do Capítulo III, Questão li, Anigo / 271
argumento. A divisão da alma deve ser compreendida de tal modo que o seu pri
meiro membro seja tão só a alma vegetativa, o segundo, não mais do que a sensitiva,
o terceiro, a intelectiva, razão pela qual não estão dispostos por ordem, em série
directa, um sob outro. Atente-se, no entanto, que se diz que a alma vegetativa tão
somente está contida em potência na faculdade sensitiva, e ambas na racional, uma
vez que a sensitiva não exerce apenas as operações que lhe são próprias, isto é, as
funções dos sentidos, mas também as operações que a vegetativa, e de modo seme
lhante a intelectiva, executam com a sensitiva e com a vegetativa.
QUESTÃO II
Se há cinco géneros de potências e quatro de seres vivos
ARTIGO I
Há cinco géneros de potências
ARTIGO II
São quatro os géneros dos seres vivos
entanto, esta interpretação obnubilou a opinião sobre a animação dos corpos celestes
que, nos livros sobre O Céu, mostrámos não ser verdadeira, nem peripatética. Por
tanto, deve antes dizer-se que Aristóteles emitiu aquelas palavras não como opinião
própria, mas por causa dos platónicos que imaginavam certos demónios dotados de
corpo e de razão, mas carentes de sentido.
A partir do exposto, fica demonstrado que há três almas, cinco géneros de potên
cias e quatro géneros de seres vivos . Mas realce-se, por fim, que se o ser vivo se
reconhecer, como se diz, não pela vida acidental, isto é, pela operação vital, ou pela
potência para tal operação, mas pela vida substancial, que é a própria alma, então
não há quatro géneros de seres vivos, mas convém instituir três, o vegetativo, o
sensitivo e o intelectivo, a partir das três almas vegetativa, sensitiva e intelectiva.
QUESTÃO III
Se as potências da alma brotam da sua essência
ARTIGO !
Argumentos da parte negativa
ARTIGO II
Explicação da questão e dos argumentos
Deve, todavia, afirmar-se que as potências da alma têm origem na sua essência.
Com efeito, visto que as potências são formas acidentais próprias e inatas ao subs
trato e lhe conferem um ser determinado, é necessário que provenham daquilo que
primeiro atribui ao sujeito o ser substancial, isto é, da forma substancial, como que
associadas à essência. Este é o argumento de São Tomás, 1 ª parte da Suma Teoló
gica, questão 77, artigo 6º. Mas deve ainda saber-se que cabe à alma três géneros de
causas em relação às potências, a saber, a agente, a final e a material, ainda que Jan
duno na questão 9 deste livro atribua à alma uma única natureza de causa material.
Portanto, a alma recebe a causalidade da agente, porque espalha as potências por si
activamente; da final, porque as potências existem por causa da alma, como que
devido ao fim a que se destinam por natureza; da material, porque as recebe e sus
tenta em si. Isto, no entanto, deve ser entendido apenas acerca das potências imate
riais da alma humana. As restantes são recebidas na matéria, enquanto subjaz à
forma, como demonstrámos no livro A Geração e a Corrupção. Apolinário escreveu
algo a favor da parte contrária, na questão sétima deste livro; também Janduno, na
questão décima, afirmando que todas as potências são recebidas na alma nua. Se
assim fosse, certamente que a visão seria inerente à alma racional, visto que onde
está a potência aí está o seu acto imanente e vital. Mas é manifesto que a visão não
está na alma racional, visto que esta é desprovida de divisão e é imaterial, e aquela é
material e extensa. Acrescente-se que se todas as potências estivessem na alma nua,
Aristóteles não teria correctamente ensinado, neste livro, capítulo quarto, texto trigé
simo terceiro, que algumas das potências são orgânicas, ou seja, inerentes aos órgãos
corporais, e que outras não o são. Na verdade, a alma não é a principal causa efi
ciente das suas potências, mas a causa geradora ou produtiva, à qual incumbe tudo o
que é devido à coisa no instante da geração. Mais, a alma é como que a causa ins
trumental do que gera e as potências são formadas por ela de modo remoto, mas
principal, e pela alma, de modo próximo, mas menos principal. Assim, estas quatro,
essência, potência, dimane a operação, objecto seguem esta ordem, para que a
potência dimane da essência; a partir da potência, a operação, e esta tenda para o
objecto, como correctamente conclui Ficino no livro 1 0 de A Teologia de Platão,
capítulo 9º.
Refutemos os argumentos que invocámos contra a parte contrária. Ao primeiro,
dizendo que a emanação não é uma acção física, visto que não se conjuga com o
movimento, nem é propriamente uma acção, como noutro ponto dissemos. Ela é
aquilo de onde emanam, precisamente, as potências materiais, como a faculdade de
ver ou de ouvir e as restantes deste género, inerentes ao órgão corpóreo, que não são
recebidas na própria alma, a partir da qual têm origem, como atalhávamos ao argu
mentar, mas são recebidas na matéria. Portanto, de acordo com este tipo de acção
não se segue que agir e padecer são o mesmo. Quanto a isto, se falarmos das potên
cias imateriais, como do intelecto, que reside na própria alma, então não há incon
veniente que agir e padecer sejam o mesmo, sobretudo se aquilo que padece, não é o
próprio agente principal e a acção não é física e propriamente uma acção. Sobre ela,
Aristóteles só discute no ponto citado.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Ill, Questão IV, Artigo l 2 75
QUESTÃO IV
Se as potências da alma diferem dela própria ou não
ARTIGO }
Diversas opiniões dos filósofos
potências da alma como coisas diferentes entre si. Logo, não devem ser diferencia
das. Prova-se a premissa menor porque assim como a matéria sem outra faculdade
adicional é a sua potência passiva para receber a forma, e os acidentes que agem são
a sua potência passiva para agir, assim a substância da alma, por si, poderá ser a sua
potência activa para operar, sobretudo porque a alma é superior em dignidade, quer à
matéria, quer aos acidentes. E corrobora-se o argumento porque as potências, para
aqueles que as distinguem da alma, flúem de forma imediata da essência da alma.
Por isso, eles afirmam que a própria alma é o princípio próximo delas. E a ser assim
por que é que não será também o princípio imediato das suas funções?
Outro. As diferenças essenciais não podem ser recebidas dos acidentes; ora, o
racional e o sensível são diferenças essenciais tomadas da razão, do intelecto e do
sentido; logo, o intelecto e o sentido não são acidentes, mas a própria substância das
coisas a que respeitam.
Terceiro. O princípio de operar é a potência; mas a alma é princípio de operar -
como define Aristóteles, a alma é aquilo, pelo qual vivemos, sentimos, nos move
mos no lugar e inteligimos -; logo, a alma é as próprias potências. Também Santo
Agostinho parece que foi desta opinião, no sermão A Imagem, capítulo 2º, quando
diz que a alma é intelecto, é memória e é vontade, e no 1 0º livro de A Trindade,
capítulo 1 1 , quando ensina que a memória, a inteligência e a vontade não são três
vidas, mas apenas uma vida, nem três pensamentos, mas apenas um pensamento.
Também no livro sobre O Espírito e a Alma, capítulo 1 3º, afirma que se chama
alma, quando vegeta; espírito, quando contempla; sentido, quando sente; espírito,
quando sabe; quando intelige, mente; quando discerne, razão; quando se recorda,
memória; quando quer, vontade. Estas coisas, no entanto, não diferem na substância,
tal como nos nomes, porque uma alma é tudo isto precisamente, propriedades dife
rentes, mas uma única essência. Quarto. Se as potências se distinguissem realmente
da alma, elas poderiam separadamente ser conservadas por acção divina, o que no
entanto repugna, logo etc. Prova-se a premissa menor, quer porque, como as potên
cias incluem na sua definição o substrato ao qual inerem, de modo algum poderão
ser dela separadas, quer porque, se pudessem existir fora da alma, poderiam também
ser vistas a operar, e assim, o intelecto a inteligir, a vontade a querer, o olhar a per
ceber, o que é absurdo.
Por último. O princípio imediato da geração é a forma substancial geradora, logo,
também o princípio imediato da nutrição, que é uma certa geração parcial. E, por
consequência, também o princípio imediato do crescimento será a mesma substân
cia, visto que o crescimento não exige uma potência distinta da nutrição. A premissa
menor prova-se, porque a substância somente é produzida pela substância e, por
outro lado, se fosse produzida por acidente, quer como pela causa principal, como
pela menos importante, algo agiria para lá da sua espécie e natureza, o que é
absurdo. Por isso, não parece que deva negar-se que ao menos as potências da alma
vegetativa se identificam realmente com a alma, como Durando afirmava.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo J/l, Questão IV, Artigo 11 277
ARTIGO II
O que se deve pensar na questão proposta
Deve abraçar-se a opinião de São Tomás, quer noutros pontos, quer na 1 ª parte da
Suma Teológica, questão 77, ao 1 º; de Caetano, no mesmo lugar; do Alense, 2ª parte
da Suma Teológica, questão 65, membro 1 ; de Egídio, Quodlibet 3, questão 1 0 ; de
Capréolo, no 1 º livro das Sentenças, distinção 3, questão 3, artigo 2º; de Alberto
Magno, distinção 3, artigo último e 2º livro de A Alma, primeiro tratado, capítulo
décimo primeiro; de Apolinário, neste livro, questão 7; de Janduno, questão 9; de
Herveu, Quodlibet 1 , questão 9; e de muitos outros que afirmam que todas as potên
cias se distinguem realmente da alma, o que também deve ser entendido acerca das
restantes faculdades activas das outras coisas. Primeiro, porque de nenhuma maneira
seria provável que as potências de tal modo se identificassem realmente com a alma,
que não divergissem formalmente dela. Tal concluiu-se porque, de outro modo,
diríamos que ela quer com o intelecto, intelige com a vontade, vê com o ouvido, o
que vai contra o senso comum e o modo de falar. E ainda. Aquilo que por si é indife
rente para actos diferentes, é necessário que se determine para eles por algo adicio
nado; ora, a essência da alma considerada em si é indiferente para qualquer dos actos
que produz (de outra maneira, como a essência da alma é una e os actos muitos, e
distintos pela própria coisa, o mesmo, enquanto é o mesmo, seria determinado ao
mesmo tempo para vários actos realmente diferentes, o que não é possível) ; é neces
sário, portanto, que a essência da alma sej a determinada por algo, para este e para
aquele acto. Isso não é senão as próprias faculdades ou potências . Portanto, as potên
cias são algo adicionado à essência.
Persuade-se que as potências sobrevêm à alma que dela realmente diferem, da
seguinte maneira. Nenhuma substância pode ser o princípio imediato da sua opera
ção. Logo, a potência através da qual a alma opera não é a própria substância da
alma. O antecedente não só é defendido por Averróis, 7º livro da Metafísica,
comentário 3 1 , mas também parece conforme ao pensamento de Aristóteles em O
Sentido, capítulo segundo, quando ensina que o fogo, a terra e os restantes seme
lhantes não teriam nascido, a não ser que tivessem o oposto, isto é, o calor, o frio e
outras qualidades, por intervenção das quais operam. Depois prova-se o antecedente,
porque tal como a substância não existe sem acidentes também não age sem eles . De
igual modo, porque se as substâncias pudessem por si só executar as suas acções, a
natureza teria produzido em vão tanta variedade de acidentes e aparato de substân
cias.
Outro. Os elementos que são extremamente activos possuem faculdades de operar
realmente diferentes das suas formas substanciais, isto é, qualidades primárias como
o calor do fogo e a secura, a frescura na água e a humidade. Logo, por igual razão,
as faculdades de agir inerentes à alma, distinguem-se dela. O mesmo também se
pode mostrar a partir das faculdades do movimento, digo, do peso e da leveza. Na
verdade, o argumento demonstra que elas diferem realmente dos corpos a que per
tencem, porque podem existir separadamente pela potência divina, sem a forma
substancial, como está patente no sacramento da Eucaristia, quando, após a substân
cia do pão deixar de ser, lhe subsiste todavia o peso com a quantidade, fora do subs
trato. Também o peso e a leveza são certas potências naturais, oriundas, primeiro,
das formas dos elementos e comunicadas às composições corpóreas . Se elas diferi-
2 78 Sobre os Três Livros 'Da A lma ' de Aristóteles
rem realmente das suas formas, por que é que não se deverá dizer o mesmo das
restantes faculdades activas? Acrescente-se o testemunho de São Dionísio, capítulo
2º de Os Nomes Divinos, quando afirma que os espíritos celestes se dividem na
essência, na potência e na operação. Estas palavras indicam que são três coisas dis
tintas. Por isso, muito mais a alma será por um lado essência, por outro, faculdade.
ARTIGO Ili
Solução dos argumentos do primeiro artigo
unânime. À segunda impugnação, deve responder-se que as acções vitais, tal como
não podem ser vitalmente provocadas apenas por Deus, como muitos filósofos
daquela época aprovam, assim também não podem ser provocadas pela potência, a
não ser que esta seja inerente à própria alma e lhe esteja intimamente ligada, funda
mento este que será amplamente tratado noutro lugar. Ao último, deve negar-se o
antecedente e para prová-lo dizer que a substância não é gerada, como pela causa
principal, excepto pela substância, mas que os acidentes podem agir para além da
sua espécie e atingir a produção das formas substanciais, não pela sua potência, mas
porque são o instrumento da substância geradora, como no livro 2, Lições da Física
abundantemente discutimos.
QUESTÃO V
Se as potências se distinguem pelos actos e pelos objectos ou não
ARTIGO I
Parece que não se distinguem
espécie, e, no entanto, ambas caem sob uma mesma espécie, seguramente sob a
vista.
Terceiro. A intelecção tem como termo o verbo expresso por ela e a coisa que
inteligimos. Portanto, a intelecção ou toma a espécie somente do verbo, ou apenas
da coisa inteligida, ou de um e de outra. Não apenas do verbo ou da coisa inteligida,
visto que é determinada por um e por outra. Não de um e de outra, visto que o verbo
e a coisa conhecida diferem em espécie, e um acto em espécie não pode levar a dois
termos em espécie. Logo, de modo algum, a intelecção se distingue em espécie atra
vés do termo, o que igualmente se deverá dizer em relação aos restantes actos do
intelecto. De onde se segue que as potências não se distinguem pelos actos, visto que
a relação dos actos para os termos é a mesma que a das potências para os actos.
ARTIGO II
As potências distinguem-se pelos actos e objectos.
Os argumentos aduzidos em contrário não têm força
rem dificuldades inexplicáveis, nas quais muitos laboram em vão quanto ao que
deve ser esclarecido.
Ao primeiro dos argumentos que propusemos no início, rejeitada a solução de
alguns, nele veiculada, deve dizer-se que, embora o intelecto produza diversas
acções diferentes em espécie, tal como também a vontade, todos os actos do inte
lecto, na medida em que tendem para os objectos que permanecem sob a razão do
inteligível, introduzem a razão de uma única espécie; o mesmo sucede com todos os
actos da vontade que movem até aos objectos, visto que são considerados sob a
razão do que é querido. Segundo este tipo de considerações, os actos do intelecto
atribuem a espécie ao intelecto e os actos da vontade à vontade.
Ao segundo. O objecto que é tomado materialmente de uma única espécie pode
alcançar diversas razões formais distintas em espécie. De facto, a cor, consoante é
vista, obtém a razão do visível, consoante é percebida pelo intelecto, obtém a razão
do inteligível e; do mesmo modo, dois objectos, que considerados materialmente
diferem em espécie, podem convir numa razão formal, como a brancura e a negrura,
sob a visibilidade.
Ao terceiro. Que existem certos fins para os quais os actos se ordenam, como a
edificação para a casa e a intelecção para a coisa inteligida, e outros que se ordenam
para os próprios actos, como o verbo mental para a intelecção; com efeito, o verbo é
formado de tal modo que a coisa é representada no intelecto, através dele. Portanto,
quando se diz que os actos recebem a espécie dos termos, isto deve ser compreen
dido segundo o primeiro género dos termos. São estes, de facto, aos quais os actos
por si dizem respeito e para os quais eles são são levados por um hábito transcen
dente.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IV
meira é que já tenha atingido o estado perfeito, isto é, que estejam na idade apro
priada à geração. Daí que as crianças não gerem. A segunda, que não estejam
privados ou mutilados por outras causas e impedidos por defeitos da natureza. A
terceira, que não sejam de geração espontânea, tal como os que têm origem na
putrefacção, como os vermes e os mosquitos. De facto, geralmente, estes não
geram. Sobre esta opinião leia-se o que escrevemos no livro 2 de O Céu, capítulo
7º, questão 7, artigo 3º.
c. /d enim ipsum 4 1 5 a 29 Prova, por fim, que a acção de gerar é sobretudo natu
-
em si, isto é, para o qual directamente se persegue, e o fim a que, quer dizer, a
que a coisa é comparada, e relembra que a perpetuidade é o fim em si, dos seres
vivos, ou sej a, que cada um dos seres vivos através da geração pretende atingir.
Mas o próprio ser vivo é um fim a que. Aristóteles adverte que nem todos os
seres vivos participam igualmente da eternidade, mas que uns participam mais,
outros menos, embora todos tendam a conservar-se, ao menos em espécie, por
que não o podem em número. Leia-se o que nesta opinião Boécio brilhantemente
dissertou no livro 3, A Consolação da Filosofia, prosa II.
e. Est autem anima 4 1 5 b 7 Ensina que à alma pertence um tríplice género de
-
causa. Formal, quer porque através dela, os seres que vivem intrinsecamente têm
o seu ser substancial, quer porque é o acto primeiro do corpo orgânico. Final,
porque tal como aquilo que opera pela razão e pela arte, u.g. o operário, dispõe a
matéria pela forma artificial, assim também a natureza, devido à forma natural
que nas coisas vivas é a alma prepara e dispõe a matéria e, pela sua acção, devido
ao fim a que, produz toda a variedade de membros e a distinção dos órgãos. O
que Aristóteles 1 As Partes dos Animais, capítulo 5º e livro 4 A Geração dos
Animais, capítulo 1 º e Galena 1 , De usu partium, declaram. Por fim, eficiente,
porque é o governo próprio dos seres vivos, como a acção, pela qual se movem, e
se esta faculdade não se encontra em todos, também não se encontra na sensação,
que é impropriamente uma certa alteração, aumento e outras funções deste
género, que pertencem apenas às coisas animadas.
f. Atque hac in parte 4 1 5 b 28 A partir do que ficou dito, Aristóteles aproveita a
-
mas superiores das plantas, porque a boca e as raízes são órgãos iguais. Com
efeito, diz-se que os instrumentos ou são idênticos ou diferentes, porque são prin
cípios da mesma operação ou de uma operação diferente. Mas a boca nos animais
284 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
tos, porque como eles têm propensão nativa para o local próprio, ou algo os con
tém e encerra ou nada. Se é nada, seria necessário que eles se dissipassem ime
diatamente. Se é algo, isso será o princípio de crescimento, e tal será a alma. Por
essa razão o movimento de crescimento não é dos elementos, mas da forma dos
próprios seres vivos.
1. Sunt autem quibus 4 1 6 a 9 Refuta-se a opinião de Leucipo e de Demócrito que
-
que é nutrida. Deve ser mudado nela, mas toda a mutação dá-se, de algum modo,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IV 285
igual à coisa nutrida ou o contrário como há pouco ensinou. Há quem pense que
deve ser igual, porque crescemos e alimentamo-nos a partir dele; diferente e
contrário, apenas se faltar para crescer, ou melhor, para destruir, visto que sem
pre o que é contrário a outro tende para a destruição. Outros afirmam que é pre
ciso que o alimento seja diferente e contrário, porque nada é alterado a não ser
pelo diferente e pelo contrário. Mas é evidente que o alimento é alterado pelo ser
vivo que o assimila e digere, embora o ser vivo não sej a alterado pelo alimento,
visto que a matéria sujeita à arte é alterada e é mudada pelo artífice. O artífice
não é alterado pela matéria a não ser que se chame paixão à alteração pelo
repouso e ócio à operação e ao acto. Aqui atente-se que quando Aristóteles diz
que o alimento é alterado pelo ser vivo, não o contrário, de modo nenhum se
contradiz, no 1 º livro de A Geração, capítulo 7º, texto 53, quando afirma que
entre o alimento e a coisa viva se dão acção e paixão recíprocas. Com efeito,
aqui, como realçou Averróis, comentário 45, não nega de modo absoluto que o
alimento age no próprio ser vivo, mas que age através da acção pela qual o
mesmo se converte em si. Mas ali, de facto, tratava-se da acção em comum.
n. At enim interest 4 1 6 b 3 Cria uma vigorosa controvérsia afirmando que os
-
defensores de uma e doutra parte, estão uns a favor da variedade, outros não. Na
verdade, o alimento deve ser semelhante e diferente, contrário e não contrário.
Igual e não contrário no fim ou depois de ser cozinhado e digerido, e o argu
mento aduzido prova isto a favor da primeira opinião. Diferente e contrário no
princípio, ou quando está cru e a cozinhar, o que também conclui o argumento da
opinião seguinte.
o. Cum autem nihil 4 1 6 b 9 Ensina como é o alimento, afirmando que o alimento
-
está ordenado por si para o ser animado, visto que o que é desprovido de vida, ou
de alma, não pode ser nutrido. Adverte, depois, que se pode considerar o ali
mento de três modos. De um modo, quanto à substância e é, por isso, objecto de
nutrição. Mas é necessário que as partes substanciais do ser vivo, que pela acção
do calor natural perpetuamente perecem, sejam ressarcidas em benefício da
substância. Outro, segundo a quantidade e é assim que o alimento que se toma é
objecto do crescimento. De facto, a coisa cresce por acessão da quantidade. Ter
ceiro modo, no que toca ao que é supérfluo ao alimento e, por isso, pertence à
geração. Com efeito, daquilo que sobej a da nutrição, a natureza exclui uma certa
parte do alimento da terceira parte da cozedura, que recebe a faculdade seminal e
generativa, numa certa parte do corpo que a ela é destinada.
p. Quae tale quidam 4 1 6 b 1 7- Aristóteles transmite a noção de potência nutritiva,
dizendo que ela deve ser recebida do fim mais elevado que é a geração. A defini
ção é a seguinte. A potência nutritiva é aquela pela qual o ser vivo, enquanto
vive, se conserva. E porque tinha dito que o alimento é preparado para a nutrição
e é o princípio da nutrição, explica a razão pela qual a alma vegetativa e o pró-
286 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
existe no ser vivo perfeito, isto é, a que pode gerar o semelhante a si, a partir da
semente. A alma vegetativa, diz, é esse princípio de gerar que ela tem. Com
preenda-se princípio no sentido de primeiro ou principal, pois menos principal e
próxima, é a própria faculdade coadjuvante da geração.
s. /d autem quod nutrit 4 1 6 b 25 Deste modo, diz, o piloto tem duas coisas por
-
intervenção das quais rege o navio, a mão e o leme. Destas, a mão é movida pelo
piloto e move o leme. Efectivamente o próprio leme já não move o que quer que
seja, senão como instrumento. A alma requer assim duas coisas que usa para a
função de nutrição, isto é, o calor e o alimento. O calor recebido delas é como
que movido pela própria alma e move ou altera o alimento. O próprio alimento já
não move mais nada que seja meio para mover alguma coisa. Esta explicação
parece afim ao passo no qual os expositores gregos divergem, quer entre si, quer
dos latinos. Quem quiser ler a respeito da sua divergência, consulte Filópono,
Simplício, Averróis, São Tomás, Alexandre e Temístio.
t. Necesse est 4 1 6 b 27 Mostra que o calor se diz de tal maneira aquilo por que o
-
ser vivo se alimenta, que é preciso a digestão do calor. Daqui conclui que o calor
é necessário a todo o ser vivo, visto que todo o ser vivo se alimenta e toda a
nutrição produz calor. Conclui que, no presente tratado, não expõe com muito
cuidado e de um modo geral acerca do assunto, pois vai tratar dele, de forma
mais rigorosa, noutro lugar. Na verdade, Aristóteles disputa abundantemente
acerca dos alimentos dos animais, do crescimento e do perecimento do corpo, da
natureza da semente e de outras matérias deste género, nos livros sobre Os Ani
mais, à excepção da nutrição e do crescimento, que trata acuradamente nos livros
sobre A Geração e a Corrupção, onde também nós, de acordo com o precei
tuado, examinámos a mesma coisa.
QUESTÃO ÚNICA
Se as potências vegetativas da alma diferem entre si realmente
ARTIGO I
Opinião dos que consideram que elas se distinguem realmente entre si
Nas controvérsias anteriores dissertámos com Aristóteles sobre aquilo que res
peita, em geral, às potências da alma. Agora disputaremos com ele sobre cada uma
das potências. Em primeiro lugar sobre as vegetativas, que pela ordem da geração
são as primeiras de entre todas. Aristóteles no capítulo anterior enumerou três fun
ções da alma vegetativa: nutrição, crescimento e geração. Destas, a primeira respeita
à conservação do indivíduo, a segunda à sua perfeição quanto à grandeza do corpo, a
terceira à propagação e conservação da espécie. Subsiste efectivamente a questão de
saber se a par do número destas operações se devem estabelecer três potências real-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IV, Questão Única, Artigo I 287
ARTIGO II
Demonstra-se a parte negativa.
Destroem-se os argumentos dos adversários
só e a mesma faculdade na realidade, embora não deva negar-se haver entre elas
uma distinção formal, como é manifesto a partir das diferentes definições que foram
assinaladas por Aristóteles no capítulo anterior.
Respondamos agora aos argumentos das partes adversárias. Ao primeiro deles,
que pretendiam demonstrar que a potência do crescimento se distingue da nutritiva,
deve negar-se que quando o ser vivo chega a adulto, se extingue a faculdade de
crescimento. Galeno afirma o seguinte no livro De nutrimento: embora sem recons
tituir mais do que enfraquecer, mesmo assim é a mesma potência, mas menos firme
e robusta do que antes, tal como a potência de ver em Sócrates j ovem observa mais
perspicaz e subtilmente do que nele depois de velho. Assim, não deve admitir-se que
depois de adulto, a mesma faculdade de nutrição permaneça e não permaneça, mas
que permanece a mesma, menos forte e válida.
Ao segundo argumento, respondemos que mesmo que os actos de crescer e de
nutrir sejam levados para objectos diferentes, de todo o género, no entanto, essa
diversidade não é suficiente para que se defenda uma potência realmente distinta,
quando os actos estão subordinados entre si e necessariamente conjugados do modo
anteriormente explicado. Mas à sua primeira argumentação, com a qual se parecia
demonstrar que a potência de gerar diferia, na realidade, da nutritiva, afirmamos que
a potência de gerar tem como objecto o alimento, enquanto que por sua intervenção
se gera aquilo que é igual em espécie. Também a faculdade de crescer possui como
objecto o alimento, mas enquanto com a sua apreensão o próprio objecto aumenta.
Mas dessa diversidade não se segue uma distinção real na potência, nem isso se
prova a partir dos adversários. À segunda argumentação, deve dizer-se que onde
quer que ocorra a potência nutritiva, dá-se também a geração, visto que é uma e a
mesma faculdade, mas não, que onde quer que se dê o acto de nutrir, possa imedia
tamente dar-se o acto de gerar. Quer porque se requer maior perfeição no ser vivo
para este acto do que para aquele, como ensinámos, no contexto, com Aristóteles,
quer porque é possível que a faculdade que reclama actos diversos esteja impedida,
de vez em quando, de poder desencadear algum deles, ainda que, entretanto, prati
que outros. Por exemplo, como nos livros A Geração discutimos, uma mesma
potência também atrai o alimento e o retém, do mesmo modo que a faculdade do
magnete atrai e detém o ferro. Mas, por vezes, resulta da doença, que a força atrac
tiva no ser vivo exerce o primeiro acto, mas não o segundo.
À terceira, o que quer que haja de verdade na premissa maior, deve dizer-se, em
relação à menor, que os adversários não podem negar que a formação dos membros
é executada também pela faculdade nutritiva. Isto é visível nas árvores em que os
ramos cortados voltam a crescer e atingem a justa medida e a forma devida, o que
não é obra de outra potência senão do ministério da nutritiva. Também se vê o
mesmo nos homens, principalmente nas crianças, em que não raro, alguns membros
inteiros costumaram regenerar-se, e também nos adultos, em que algumas vezes
acontece isso. Mais ainda, os últimos dentes, a que chamam do siso, nascem e for
mam-se em idade já avançada. O delinear dos membros, também respeita à facul
dade nutritiva. Embora incumba à obra da geração total e por isso não produza a
coisa por partes, mas a partir do todo, ela realiza o referido delinear, não por partes
mas após o decurso da idade e, além disso, oferece a coisa gerada na totalidade. Não
obsta que o braço amputado não seja reconstituído pelo ser vivo. Isto, efectivamente,
290 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V
sensitiva, que segundo o lugar, depois da vegetativa, mostra ser mais geral do
que as restantes. E disputa primeiro genericamente sobre ela, como é seu cos
tume, ensinando de que maneira ela está para o sensível em comum. Neste capí
tulo, portanto, Aristóteles determina ensinar acima de tudo duas coisas. Uma, que
a potência sensitiva é passiva. A outra, o que é que leva a potência sensitiva a
acto. Estabelece, pois, esta hipótese, que o sentido, isto é, a sensação se dá,
quando algo se move e padece, como no capítulo 4º, texto 38 foi dito. Certamente
que aquilo que sente sofre alteração e o que sofre uma alteração, ao recebê-la,
padece. E porque estava à mão a questão de saber por que é que a potência
sensitiva sofre, se pelo semelhante se pelo dissemelhante, ele responde que já o
tinha dito, nomeadamente nos livros sobre A Geração e a Corrupção.
b. Habet autem 4 1 7 a 2 - Para resolver a questão proposta, acrescenta outra, o que,
como Teófilo chama a atenção, ele tinha por costume fazer, quando a solução da
controvérsia a seguir esclarece de que modo se deve responder à questão prece
dente. E ela é a de saber por que razão o sentido não se sente a si próprio, por
Livro Segundo, Explicação do Capítulo V 291
exemplo, por que razão a vista não se vê? Depois, por que razão os sensíveis,
como os elementos, somente são percebidos se realizados pelo movimento exte
rior quando ele ou as suas qualidades estão presentes no tacto.
c. At enim 4 1 7 a 6 Explicou o que propusera a seguir, afirmando porque é que a
-
potência existe por si, não em acto e, portanto, não pode por si precipitar-se para
o acto a não ser que seja provocada por aquilo que está em acto, isto é, pelo sen
sível. Tal como o combustível, que tem a potência comburente, não arde espon
taneamente por si, mas pela obra e potência de outro, que pode inflamar. Não é
assim suficiente que o sensório tenha em si as qualidades dos elementos para que
o sentido as perceba enquanto se encontram ligadas, mas é necessário que o sen
tido, dado estar em potência para receber a espécie, seja levado a acto pelo sensí
vel que desta maneira produz a espécie. Também pode aqui ser resolvida a outra
dúvida, porque é que o sentido não se conhece nem a si, nem ao seu sensitério.
Certamente porque não pode ser movido por si, nem pelo seu sensitério, mas por
outro agente externo. Sobre este assunto falaremos mais, de caminho.
d. At uero quoniam 4 1 6 a 9 Antes de afirmar de que modo o sentido avança da
-
potência para o acto, ensina que o sentido umas vezes está em potência, outras
em acto. Está em acto porque opera em acto; em potência, quando não exerce
nenhuma função, mas pode exercer. Isto é claro em quem dorme, que tem o
poder da faculdade de ver, e não vê em acto. Então, porque disse que aquilo que
sente está em acto, a fim de que não se considere que o acto é alguma forma
permanente e de outra natureza, expõe-no, afirmando que chama acto à paixão,
ao movimento e à operação, porque o movimento é um certo acto, ainda que
imperfeito. Ora, aquilo que sente, move-se e padece. Donde, também ser evi
dente que se deve conceder algo de diferente, constituído em acto, através do
qual, aquilo que sente, possa padecer e ser movido. Àquilo que questionam, se o
sentido deve ser movido pelo semelhante ou pelo dissemelhante, responde-se que
é movido pelo dissemelhante antes da paixão acontecer, mas que, depois da pai
xão permanece igual ao paciente. Na verdade, antes do sensível produzir a sua
espécie no órgão do sentido, é dissemelhante, depois de a produzir, é semelhante.
Seguramente por causa da sua imagem e da semelhança que imprimiu no sentido.
Daí que se diga que o que é conhecido é como que afim ao que conhece.
e. Deinde distinguendum 4 1 7 a 21 Expõe de quantos modos se diz que algo está
-
acto de sentir, a não ser que, não atendendo ao significado próprio das palavras,
se queira alcançá-las de outro modo.
h. Sicut nec aedificatorem 4 1 7 b 9 - O que afirmou logo a seguir, Aristóteles
explana por uma semelhança com a edificação, dizendo que, tal como o que edi
fica não se diz propriamente que é alterado (entenda-se, com efeito, que enquanto
edifica pode ser alterado pelo trabalho de outrem), também não se diz do que
sabe, enquanto exerce a ciência. E também não daquele que é dotado de sentido,
enquanto ocorre a sensação, visto que naquela mutação que consiste na passagem
do descanso para a operação, sem a perda ou a corrupção de algo, não se dá uma
noção legítima e natural de alteração. Mas, de passagem, ele objecta que o que já
seguiu o hábito da ciência, porquanto avança da potência próxima para o acto de
contemplar, não se pode dizer correctamente que foi ensinado, visto que nada
aprendeu de novo, mas que isso deve ser significado com outro vocábulo. É
assim que Filópono interpreta este ponto.
i. At quod ex eo 4 1 7 b 1 2 Antes, Aristóteles tinha ensinado que aquele que se
-
move do hábito da ciência para o acto de contemplar, não sofre, nem é alterado
em sentido próprio. Afirma que não se deve dizer o mesmo acerca daquele que
de novo adquire o acto da ciência. Na verdade, um e outro se aperfeiçoam, e se
distinguem, mas nenhum é levado à destruição ou acarreta prejuízo. Onde não
Livro Segundo, Explicação do Capítulo V 293
intervêm estas coisas não existe paixão nem alteração, a não ser que estes vocá
bulos sej am empregues num significado mais lato, como já acima foi realçado.
k. Haec cum ita sint 4 1 7 b 1 6 - Agora declara o que é que leva o sensitivo ao acto.
Para que tal se intelija, é necessário advertir-se que o sensitivo em potência
remota é aquilo que carece de alma e, portanto, também de sentido, mas que pode
no entanto recebê-la, como a semente. Mas o sensitivo em potência próxima é
aquilo que é dotado de alma e de sentido. Logo, Aristóteles diz que o que recon
duz o sensitivo da potência afastada ao acto, gerando um ser ou produzindo um
animal, é o que atribui ao mesmo tempo potências ao gerado para empreender as
funções, tal como aquele, que ensina transmite, à sua maneira, o hábito da ciência
à mente do discípulo. Com efeito o sentido é comparável ao hábito da ciência, tal
como o acto de sentir o é ao acto de contemplar. Aqui adverte que se diz o que
transmite à prole as potências gera, pois transmite-lhe a alma de onde elas bro
tam. Donde, visto que o que gera o homem, não produz a alma já que esta é
criada por Deus, mas dele apenas alcança a união com a matéria, não se diz que
as potências contribuem para ela, a não ser por disposição, visto que prepara a
matéria em que Deus infunde a alma.
1. Differentia tamen est 4 1 7 b 20 - Aquilo que move o sentido para o acto de sentir
é o sensível, como também o que impele o intelecto para a contemplação é o
inteligível. Mas Aristóteles diz haver uma diferença, porque aquilo que move o
sentido externo é o objecto externo, o que está presente, isto é, o que existe e está
presente em acto, porque a sensação se ocupa assim dos singulares, mas que o
intelecto é relativo aos universais, abstraídos do lugar e da existência, e assim,
estão no intelecto através da sua espécie, para que os possamos também inteligir,
estando os singulares ausentes, sempre que se quiser, pois a sensação requer a
presença e a existência dos seus singulares. Afirma que se pode inteligir os uni
versais quando se quiser. Deve interpretar-se isso acerca dos universais depois de
terem sido por nós percebidos, tal como Temístio e Filópono explicam. Na ver
dade, é deveras evidente que não está no nosso poder compreender quando que
remos as coisas que ainda não percebemos com a mente.
m. Pari modo res 4 1 7 b 26 Aristóteles diz que as ciências das coisas sensíveis
-
estão para os singulares, como os sentidos externos estão para eles. Mas chama
ciências dos sensíveis, como Filópono e Temístio interpretam, às artes mecâni
cas. Como estas se ocupam da confecção dos artefactos singulares, necessaria
mente, esta sua operação requer os sensíveis singulares, como também as funções
dos sentidos exigem sensíveis singulares semelhantes para os quais sej am levados.
n. Nunc id sit a nobis 4 1 7 b 28 - Expõe, conforme alegou, a distinção anterior de
potência, decerto para concluir facilmente de que forma o sensitivo se diz con
forme às duas potências, uma afastada, outra próxima, tal como a criança está em
potência remota para ser soldado e para usar as armas, mas quando chegar a
idade própria estará em potência próxima. E embora não nos sobejem palavras
para distinguir as potências, é suficiente saber que elas são diferentes entre si, tal
como para significar a alteração e a paixão, tanto própria como imprópria, usa
mos aqueles nomes como próprios, embora não sej am próprios.
294 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VI
dos seus objectos que são os sensíveis que lhes pertencem. Trata primeiro do
sensível tomado em geral, que afirma poder ser dito de três formas. E, na ver
dade, uma coisa é o sentido por si próprio; outra, o sentido comum por si; outra,
o sensível por acidente. Mas para maior clareza divide-se deste modo. O sensível
é uma coisa, por si, outra, por acidente. Além disso, o sensível por si, ou é pró
prio ou comum.
b. Proprium id 4 1 8 a 1 1 O sensível próprio define aquilo que somente é percebido
-
por um sentido e sem erro, isto é, que pode ser percebido bem pelo sentido
externo e, além disso, por aquele cujo objecto se diz existir, e isto sem alucinação
do sentido, tal como a cor se diz o objecto da vista, o sabor do gosto, o som do
ouvido, o odor do olfacto, o calor, o frio e outras qualidades tácteis deste género
do tacto.
c. Tactus autem 4 1 8 a 1 3 Para que ninguém duvide se porventura o tacto tem um
-
sensível próprio, dado tratar das diferenças das coisas e de muitas oposições,
como do calor, do frio, do seco, do húmido, do duro, do mole e de outras deste
género, remove tal dúvida. Afirma que tão diferente variedade das coisas perce
bidas pelo tacto não obsta a não considerarmos todas aquelas que obtêm a noção
do próprio sensível a respeito do próprio tacto, visto que o tacto as conhece, tal
como os restantes sentidos conhecem os sensíveis próprios, e que não erra ao
percebê-los.
d. Visus enim 4 1 8 a 15 Mostra de que forma, nos sentidos, o engano sobre o pró
-
prio sensível pode ou não existir. A vista não erra, diz, quando percebe a cor;
nem o ouvido quando percebe o som; ou outros sentidos quando apreendem os
objectos próprios. Mas sim quando agrega um sensível próprio a um sujeito a que
não pertence, tal como o gosto percebe o alimento doce como amargo por causa
do humor bilioso com que a língua está afectada.
e. Communia uero 4 1 8 a 1 7 -Descreve o sensível comum ensinando que ele é
aquilo que é percebido, não por um mas por muitos sentidos, como o movimento pela
vista e pelo tacto. Enumera cinco, a saber, movimento, repouso, número, figura,
tamanho. Diz que o sensível por acidente é aquele que não move por si o sentido,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão /, Artigo l 295
mas se diz que é sentido apenas por causa de se encontrar ligado ao que recai sob o
sentido. Assim como o filho de Diares se diz sensível por acidente, porque move o
sentido não em si, ao ser uma certa substância, mas enquanto é branco.
QUESTÃO !
Se o sentido é apenas uma potência passiva ou também é activa
ARTIGO I
Diferentes opiniões dos autores e sua refutação
eia que recebe a espécie e sobre aquela que, em união com a espécie, produz o acto
de conhecer, negamos que seja preciso que ela se distinga como duas potências entre
si.
A opinião de outros autores é que o sentido é uma potência somente passiva. Mas
estes avançam por um caminho bifurcado. Uns consideram que o sentido não faz
mais do que receber a espécie da coisa objecto e assim, que a sensação é produzida
não pelo sentido, mas pela coisa sensível. Outros acham que a sensação é feita pela
alma e pela espécie gravada no sentido, mas que a própria potência não manifesta
nenhum concurso activo para tal, mas somente passivo, ao modo da matéria-prima, à
qual apenas cabe receber as formas e suportá-las, quando as recebe. Egídio seguiu a
primeira via na questão 1 , O Conhecimento Angélico; Nifo, no livrinho O Sentido
Agente ; Veneto, na Suma sobre A A lma, capítulo 1 0º; o Tienense, neste ponto,
comentário 6 1 ; e Caetano, que chama pobres aos seguidores da parte contrária, não
de espírito, mas de inteligência. Prova-se esta parte com o argumento de que sentir
não é senão perceber a coisa que recai sob o sentido, e todas as vezes que o sentido é
marcado pela espécie da coisa diz-se que a percebe na sua imagem. Aristóteles
parece que ensinou isto, no livro 2, capítulo 5º, texto 52, quando afirma que, na
potência activa, os sentidos estão fora da operação. Também no livro 3, capítulo 2°,
texto 1 3 8 quando ensinou que o acto do sentido e do sensível é um e o mesmo.
Como, portanto, o acto sensível é a produção da espécie, a sensação não será outra
coisa senão a produção da espécie.
O segundo modo de sustentar que o sentido é somente potência passiva tem como
patrono Alberto Magno na 2ª parte de A Suma do Homem, no tratado sobre os senti
dos da alma. Pode comprovar-se, porque a sensação é uma acção única e simples
que não pode ter origem em dois agentes imediatos, distintos pela própria coisa,
como a potência e a espécie. Como, portanto, ela nasce da espécie (a espécie é a tal
ponto formada pela natureza que a alma sente através dela), resta que a potência não
produz o acto de sentir mas que apenas o recebe.
Esta posição, independentemente do modo como os seus autores a defendem, não
nos agrada. Escoto rejeita-a no 3º livro das Sentenças, distinção 1 4, questão quarta,
artigo 2º; Capréolo, na primeira questão; Caetano, na primeira parte da Suma Teoló
gica, questão 74, artigo 2º; Gregório, no primeiro das Sentenças, distinção 3, questão
primeira; Filópono, ao texto 1 2 1 , e outros. A respeito da posição explicada conforme
o primeiro modo, segue-se, contra a doutrina de Aristóteles, no nono livro da Meta
fisica, capítulo nono, texto 1 6, que a visão não é uma acção imanente, visto que a
acção imanente deve ser recebida naquilo em que ela tem origem e, todavia, na opi
nião deles, a sensação é realizada a partir de um único objecto. Segue-se também
que muitas vezes recebemos a espécie da coisa no olho, mas não vemos a coisa, o
que não seria possível se a recepção da espécie fosse a visão. É evidente que esta
opinião se opõe claramente a Aristóteles, porque ele ensinou, neste livro, capítulo 4º,
texto 36, que a alma é causa eficiente da sua alteração, o que acontece segundo as
funções dos sentidos . Também repete o mesmo no livro A Memória e a Reminiscên
cia. E no livro O Sentido e o Sensível critica Demócrito que afirma que a visão é
uma operação do objecto, caso em que também o espelho veria, uma vez que o
objecto se mostraria nele através da espécie por ele produzida. Acrescente-se a auto
ridade de Santo Agostinho, livro 2 de A Trindade, capítulo 2º, quando ensina que
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão /, Artigo li 297
ARTIGO II
Conclusão da questão
A partir da refutação das opiniões anteriores não será difícil perceber qual deve
ser a conclusão da questão proposta. Deve dizer-se que a potência sensitiva pode ser
considerada de três modos, a saber, quando recebe a espécie do objecto; quando,
formada aquela, produz o acto de sentir; e quando recebe aquele acto em si. Se se
considerar do primeiro ou terceiro modos, não há dúvida que é uma potência pas
siva, dado que não opera mas sofre. Se se considerar do segundo modo, é uma
298 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
potência activa, porque não sofre mas opera. Em relação a esta matéria, leia-se São
Nemésio, capítulo 6º de A Natureza do Homem. Também é claro, com base nestas
afirmações, que não se deve aprovar a opinião dos intérpretes gregos que, como é
evidente, com base em Filópono e Simplício, afirmam que não se deve dizer que é a
potência sensitiva que sofre, mas que é, sim, o seu órgão. Concordamos preferen
cialmente com os latinos que não só ajustam a paixão ao órgão mas também as
potências. Uma vez que, quer a espécie, quer a operação do sentido não é recebida
no órgão imediatamente, mas por intervenção da potência, não deve negar-se que
tanto o sensório como a potência sofrem, quando recebem. São Tomás aprova esta
opinião, 1 ª parte da Suma Teológica, questão 79, artigo 3°, e também os seus segui
dores, como Capréolo, no 3° livro das Sentenças, distinção 1 4, questão 1 , e no 2º,
distinção 3, questão 2; o Ferrariense, livro 2 Contra os Gentios, capítulo 82º.
Haverá, no entanto, quem ainda pretenda provar que não se pode considerar
activa por nenhuma razão, a potência dos sentidos. Primeiro argumento. Porque
Aristóteles no capítulo anterior afirma de forma categórica que o sentido é uma
potência passiva, o que não teria dito se o sentido por alguma consideração fosse
uma potência activa. Principalmente porque não existiria nenhuma razão, por que
devesse chamar-se potência passiva, mais do que activa. Segundo. Porque a potência
activa, como é definida por Aristóteles, no livro 5 da Metafísica, capítulo 1 2º, texto
1 7 , é o princípio da mudança de alguma coisa. Ora, o sentido exprime a partir de si,
ao máximo, a acção de sentir e não muda coisa nenhuma através dela. Terceiro.
Porque Aristóteles, na secção 3 1 dos Problemas, questões 1 2 e 1 3 , parece que nega
aos sentidos toda a faculdade de agir. Como tinha inquirido por que é que a parte
direita é mais forte do que a esquerda e, no entanto, vemos igualmente do olho
esquerdo e do direito, responde, primeiro, que a parte direita se toma mais forte pelo
exercício, mas que exercitamos igualmente ambos os olhos; e, segundo, que as
potências sensitivas são modificadas pelo objecto, mas o objecto age igualmente no
esquerdo e no direito. Quarto argumento. Porque o sentido não é mais activo do que
o intelecto a que chamam paciente. Parece efectivamente que este, de modo algum é
potência activa, porque Aristóteles chama ao próprio inteligir, padecer, no livro 3
desta obra, capítulo 4°, texto 2.
Ao primeiro destes argumentos, deve dizer-se que Aristóteles chama potência
passiva, de preferência a activa, porque no ponto citado conjugava as potências com
os objectos, a partir dos quais se produz a espécie. Também, porque umas potências
agem para os seus objectos, como as nutritivas para o alimento, e outras, suportam
-nos, ao receberem em si as suas imagens, como os sentidos. Foi por isso, precisa
mente, que chamou potências passivas, para repelir os preceitos dos antigos filóso
fos que tinham ensinado que os sentidos não sofrem a partir dos objectos, mas, pelo
contrário, que agem neles.
Ao segundo, deve dizer-se que aquela definição de potência não respeita a toda a
potência, mas apenas à potência física, cuja acção transita para uma outra matéria.
Ao terceiro argumento, deve dizer-se que Aristóteles, naquele ponto, apenas ensina
que as potências sensitivas são mudadas pelos objectos, mas não nega que elas ope
ram afluindo simultaneamente com as espécies. Ao quarto, deve conceder-se aquilo
que em primeiro lugar se assumiu, negando que o intelecto paciente é potência
puramente passiva, e respondendo, para confirmação desta matéria, que Aristóteles
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li, Artigo l 299
disse que o inteligir é um certo sofrer, porque o intelecto, enquanto recebe acto de
inteligir originado a partir de si, recebendo-o sofre. Ou então mostrou isto em sen
tido causal, como que dizendo que a intelecção se dá porque, em primeiro lugar, o
intelecto sofre ao receber a espécie e, enformado por ela, avança para o acto de inte
ligir e forma os conhecimentos das coisas. Assim, o que neste ponto dissemos sobre
o sentido, também pretendemos afirmar acerca do intelecto paciente, que pertence à
natureza da potência activa e da passiva e que mantém a mesma natureza nos dois
casos. Entretanto, no livro 3, temos um ponto particular para refutar os que recusa
ram completamente toda a acção do intelecto paciente.
QUESTÃO II
Se algumas espécies se imprimem nos sentidos
para que as operações se realizem
ARTIGO I
Os que negaram as espécies e quais os argumentos que aduziram
ARTIGO II
Estabelece-se a parte afirmativa da questão.
Resolvem-se os argumentos da parte adversária
isso seria sobretudo o próprio objecto, que não aflui por intervenção de nenhuma
espécie. Mas demonstra-se que não pode ser assim. Na verdade, ou o objecto aflui
efectivamente, ou não. Se aflui efectivamente, visto que muitas vezes dista da facul
dade cognoscente e nada faz primeiro à distância, deveria sobretudo agir primeiro no
intermédio e depois na potência. Ora bem, suprimida a espécie nada mais há, através
do qual possa agir assim, e que suscite a potência a operar. Não pode, portanto,
retirada a espécie, concorrer efectivamente. Se não concorresse efectivamente mas
apenas formalmente, de forma extrínseca, e limitando o acto da potência, seguir-se
-ia que a vista não seria impedida nem pelas trevas, nem pela grande distância, o que
vai contra a experiência. A consequência prova-se, porque as coisas não são vistas
nas trevas, porque as cores precisam da luz para enviarem a sua espécie. Também
não percebemos as coisas a uma grande distância porque as espécies que elas trans
mitem, enfraquecem no meio e desaparecem.
Segundo argumento. Alguns vêem de forma mais acutilante com uma lente côn
cava, apenas porque, então, as espécies se juntam mais ao centro e tomam-se mais
eficazes a representar, do mesmo modo que os raios solares se juntam mais na cavi
dade do vidro. Não deve, portanto, negar-se tais espécies. Terceiro. O olho não se vê
a si mesmo, todavia verá, se se confrontar com um espelho. Isto, apenas porque a
sua própria imagem é produzida pelo olho no espelho, que daí se reflecte para o olho
e forma o acto de ver pela enformação dessa potência. Existe, portanto, uma tal
espécie. Quarto. Demonstra-se o mesmo no sentido interno. Quando observamos um
homem, que não vimos antes, pouco depois, com os olhos fechados, formulamos o
seu conhecimento, interiormente, por nenhuma outra razão senão porque absorve
mos a sua imagem na vista, e uma vez absorvida, retemo-la no sentido interno.
Logo, é evidente que há espécies assim. O que também é evidente a partir da memó
ria sensitiva não só do homem, mas também dos animais, visto que a recordação se
faz apenas pelo ministério das espécies.
Por último, prova-se que na doutrina de Aristóteles as referidas espécies têm
necessariamente de existir. Na verdade, neste livro, capítulo 1 2º, textos 1 2 1 e 1 24
ele ensina que o sentido é aquilo que pode substituir as imagens, isto é, as formas
sensíveis sem a matéria, porque a espécie da brancura, por exemplo, não é material e
propriamente o branco, mas aquilo que representa o branco. Também no livro sobre
A Memória, capítulo l º, ao investigar por que razão nos recordamos de uma coisa
ausente, responde que isso se dá em virtude dos simulacros das coisas conservados
no sentido interno. E, assim, Aristóteles atribui as espécies não só aos sentidos inter
nos mas também aos externos. Santo Anselmo é da mesma opinião no Monológio,
capítulo 36º; São Damasceno, no livro 2 sobre A Fé Ortodoxa, capítulo 20º; Santo
Agostinho, no livro lO das Confissões, capítulo 1 0°, capítulo 1 5º e no livro 1 2 Sobre
o Génesis, capítulo 1 0º e no livro 1 1 sobre A Trindade, capítulo 2º e noutros pontos,
que Capréolo cita no 2º livro das Sentenças, distinção 3, questão 2, artigo 3º. Por
fim, o mesmo é considerado pela maior e melhor parte dos filósofos. São Tomás, na
primeira parte da Suma Teológica, questão 55, artigo 1º; no 3º livro Contra os Gen
tios, capítulo 49º e noutros pontos; o Alense, na 2ª parte da sua Suma, desde a ques
tão 22 à 26 ; Alberto Magno, 2ª parte de A Suma do Homem, tratado 4, questão 14 e
De quattuor coaevis, questão 5 ; São Boaventura, no 2º livro das Sentenças, distinção
3, artigo 4º, questão 1 ; Escoto, questões 10 e 1 1 ; Argentinas, questão 2, artigo 4°;
302 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
matéria, não requerem prévia alteração ou uma transmutação sucessiva, basta que no
substrato existe a potência natural para as receber e que elas mesmas dependam,
quanto à sua execução e conservação desse substrato ou tempo ou momento em que
são extraídas. Visto que estas duas condições pertencem às espécies sensíveis, não
há razão para que se negue que elas são extraídas do seio da matéria em que são
recebidas. Adverte, no entanto, no argumento afim, que prova que as espécies dos
sentidos são divisíveis, que elas não são divisíveis porque provenham da potência da
matéria. Na verdade, as almas dos animais mais perfeitos provêm da potência da
matéria e, todavia, como é opinião dos autores mais importantes, são indivisíveis e
inextensas. O argumento é legítimo porque elas são recebidas num substrato extenso
e o que é recebido assim adapta-se à natureza do recipiente e permanece extenso e
dividido, se ele também o for.
Ao quarto, deve negar-se que as espécies sensíveis sej am de natureza mais nobre
do que os acidentes que elas representam e dos quais resultam. Na verdade, a cor é
algo mais perfeito do que a sua imagem e por isso ao ser intencional das imagens
chama-se diminuído e imperfeito. As espécies não podem, em absoluto, dizer-se
formas intermédias entre as coisas materiais e os acidentes espirituais. Elas como
que alcançam o lugar intermédio, em dignidade, porque emergem ligeiramente da
matéria, visto que não recaem sob os sentidos, como as que lhes são semelhantes,
mas também não atingem a natureza espiritual. Nem é porque se tomam instrumen
tos das funções vitais que são transportadas para um grau mais elevado da natureza,
sobretudo porque só se juntam às funções deste género como formas substitutas dos
objectos, de que tomam o lugar, como diremos a seguir. Mas isto não obsta que as
espécies inteligíveis dos acidentes materiais sustentem largamente estes acidentes,
ainda que sejam simplesmente espirituais.
ARTIGO Ili
Explicam-se certas dúvidas
Nesta questão subsistem duas situações que têm de ser aprofundadas. Uma, de
que modo as espécies concorrem com a potência para a acção. Outra, se as espécies
impressas nos sentidos externos apenas se conservam neles, na presença do objecto.
No que concerne à primeira, há quem pense que as espécies apenas concorrem no
género da causa material, isto é, determinando a potência que existe indiscrimina
damente para perceber qualquer coisa particular compreendida sob o seu objecto,
como dissemos há pouco. Provam que as espécies não concorrem com a potência
como causas parciais activas para o mesmo efeito, porque a acção vital pode provir
apenas de um princípio de vida, que não é a espécie. Depois, porque quaisquer duas
causas parciais activas se relacionam de tal maneira que uma pode produzir um
efeito sem a outra, ainda que um efeito imperfeito. À semelhança de duas luminá
rias, cada uma das quais produzindo luz, embora menos intensa do que as duas ao
mesmo tempo, similarmente, nem a espécie sem potência, nem a potência sem a
espécie podem operar por si. Embora esta opinião tenha a sua probabilidade é muito
mais verosímil a contrária, que estabelece que a espécie concorre também activa
mente com a potência para a sua acção. Escoto segue-a, no primeiro das Sentenças,
distinção 3, questão 7, e no Quodlibet, questão 1 5 ; São Tomás, na primeira parte da
304 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
tempo obj ecto actual, sobretudo porque neste caso, apenas existe a causa parcial da
acção, não a causa total.
Portanto, ao primeiro argumento da opinião contrária, diz-se que, embora o
conhecimento derive da espécie, ele é contudo originado pela alma como fonte de
vida e causa principal das funções vitais de que são instrumentos a potência e a
espécie. Se este argumento tivesse força, de igual modo provaria que, uma vez que o
intelecto e a vontade operam através dos hábitos das faculdades que lhe são ineren
tes, uma tal operação não é vital e que estes hábitos, de modo algum podem concor
rer activamente, o que está em contradição com a opinião geral dos filósofos e dos
teólogos. Ao segundo, dizemos que nem sempre que duas causas parciais confluem
para algum efeito, qualquer delas pode, por si, produzir o efeito, a saber, quando
concorrem de modo a que a segunda não existe pela natureza para operar mais
facilmente, mas simplesmente para operar, como a espécie está em relação à potên
cia, de facto a potência não pode de modo algum operar sem a espécie.
No que respeita à segunda dúvida, a saber, se as imagens das coisas que estão
impressas nos sentidos externos dependem de tal modo da presença dos objectos,
que quando estes se afastam imediatamente elas se desvanecem, alguns intérpretes
de Aristóteles seguiram a parte negativa no livro O Sentido e os Sensíveis e no livro
Os Sonhos, concedendo que quando o sensível se afasta ainda acontecem por algum
tempo, certas sensações obtidas a partir das espécies que ainda não se extinguiram.
Pode-se provar a esta afirmação assim. Estas espécies têm a sua intenção e graus de
incremento, segundo os quais podem sucessivamente ser acrescentadas e diminuí
das. Portanto se o objecto for subitamente afastado, permanecerão segundo uma
parte da sua intenção nos sensitérios, e os sentidos poderão usá-las para continuar a
sensação. Expõe-se o antecedente porque, quanto mais próximo o objecto está da
vista (conservada todavia a distância adequada) tanto mais distintamente se vê, posto
que a espécie se divide mais e move a potência de modo mais perfeito, de acordo
com os seus novos graus. Também sobre este ponto, o som e o cheiro são percebidos
se forem mais fortes, mas não se forem mais fracos, porque emitem espécies bas
tante mais intensas e eficazes.
Segundo. A brancura e o cheiro, uma vez afastada a causa eficiente e conserva
dora, persistem, não obstante, no substrato. Logo, também as espécies impressas nas
potências puderam ser conservadas nestas, pelo menos algum tempo, ainda que os
objectos pelos quais foram produzidas não estejam presentes, embora num e noutro
caso pareça proceder igual razão. Terceiro. Acresce a experiência que Santo Agosti
nho aduz, no livro 10 de A Trindade, capítulo 20º, com as palavras seguintes.
Quando olhamos o Sol durante muito tempo e em seguida fechamos os olhos, como
que tamborilam certas cores luminosas na vista, as quais devemos entender que são
da forma que foi produzida no sentido, enquanto se via o corpo brilhante. E abaixo
acrescenta que a visão é uma forma assim. Santo Agostinho considera que, uma vez
afastado o corpo luminoso, a sua espécie persiste no sentido. Aristóteles escreveu
coisas consentâneas com estas, no livro Os Sonhos, capítulo 2º. Os próprios sen
síveis, afirma, produzem em nós a sensação através dos sensórios singulares e a
afecção que eles causam não só está presente nos sensórios, quando os sentidos
agem, mas também quando se afastam da obra. E um pouco mais abaixo, afirma: se
o sentido se dirigir do Sol para a sombra, a afecção acompanha-o, e chega, certa-
306 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
mente, a nada ver, pelo facto de a impressão que provém da luz ainda ocupar os
olhos. Também, se olharmos longamente algo branco ou verde, parece-lhe da
mesma cor tudo o que levarmos à nossa vista. Aristóteles afirmou isto. E Averróis,
no seu tratado O Sono e a Vigília, também afirma que nos sonhos sentimos os sensí
veis externos através dos cinco sentidos, apesar de ausentes. Isto acontece com o que
vem dos sentidos internos para os externos, com as imagens das coisas ausentes. Tal
como, diz ele, durante a vigília, os sensíveis externos movem os sentidos externos e
estes movem o sentido comum, que move a imaginativa, assim também, durante o
sonho, em ordem inversa, a imaginação move o sentido comum e este, os sentidos
externos. Portanto, os sentidos externos podem produzir operações sobre os
sensíveis ausentes.
Embora esta opinião seja bastante provável, sobretudo pela autoridade de Aristó
teles e de Santo Agostinho, a contrária, que afirma que as espécies dos sentidos
externos somente em presença dos sensíveis se conservam, e durante muito pouco
tempo, parece mais verosímil e mais comum. Com efeito, a experiência, em que
principalmente se apoiam os adversários é inteiramente falsa. Também não rara
mente acontece, fora da doença e dos sonhos (Santo Agostinho chama a atenção
disto, livro 1 1 de A Trindade, capítulo 4º) que, aquilo que alguém produz no sentido
interno, o intelecto considera-o percebido pelo externo. E, muitas vezes, acontece
que, quando o sentido é lesionado por um sensível forte, a faculdade de ver fica
menos apta a perceber outros objectos, e por isso é que a fantasia se ilude em relação
ao sentido quando julga que é o mesmo sensível que antes. Certamente que, se um
sensível externo muito forte imprimisse no sentido a espécie com tanta eficácia ao
ponto de a conservar, mesmo na ausência dela, isso aconteceria sempre ou na maior
parte das vezes. Mas isto contraria a experiência. Donde, Aristóteles neste livro,
capítulo 5º, textos 52 e 59 estabelece a diferença entre sentido e intelecto porque
aquele exige a presença do objecto, mas este não.
Os argumentos produzidos contra a parte contrária têm a explicação seguinte. Ao
primeiro, admitido o antecedente deve negar-se a consequência. A condição e a
natureza destas espécies é tal, que quanto mais tiverem sido aplicadas no substrato,
mais rapidamente se perdem, e não podem permanecer sem o influxo da sua causa
eficiente, embora isto aconteça de outro modo em muitos outros efeitos. Pelo que,
também é evidente o que se deve responder ao segundo argumento. Ao terceiro,
dizemos que, afastado o objecto luminoso, não pode já produzir-se a sua visão, mas
que o engano acontece do modo anteriormente explicado. E assim o entenderam os
autores referidos no argumento, isto é, que afastado o sensível, as sensações não se
dão na realidade, mas aparentemente ou segundo uma avaliação errónea. O esclare
cimento mais claro desta dúvida, que deverá ser pormenorizadamente analisado na
próxima questão, escapa-lhes.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão III, Artigo I 307
QUESTÃO III
Se pode ser produzido algum conhecimento abstractivo
nos sentidos externos graças ao poder divino
ARTIGO I
O que parece dever pensar-se na questão proposta
tes. Além disso, Sócrates concorre para essa visão no género da causa formal extrín
seca, determinando-a e especificando-a. Por outro lado, demonstra-se que esta
dependência não obsta que se possa produzir uma tal visão, porque Sócrates ausente
e não existente pode determiná-la e atribuir-lhe uma espécie, do modo pelo qual um
eclipse, que será o único no ano, determina e confere a espécie ao conhecimento,
que sobre ele o astrólogo tem agora. Sem dúvida que esta razão de determinar e de
especificar, não requer uma existência nem naquilo que é especificado, nem naquilo
que especifica e determina.
A segunda parte da conclusão é recomendada com o fundamento seguinte. Por
que, afastado Sócrates, Deus pode conservar a espécie que Sócrates imprimiu no
meu olho, dado que apresenta Sócrates à vista, do mesmo modo que antes, ainda
com ele presente. Isto pode ser confirmado com aquelas coisas que no mistério da
divina Eucaristia entretanto se manifestam. Na verdade, de vez em quando, Deus
representa a criança, a carne, a mão e certas outras coisas nos olhos, produzindo
neles as espécies dessas coisas, mesmo que elas não estejam presentes, como ensina
São Tomás, 3ª parte da Suma Teológica, questão 73, artigo 8º; Durando, no 4º livro
das Sentenças, distinção 1 0, questão 4 e outras. Assim, a vista é conduzida para elas,
como se estivessem presentes. Daí que também o intelecto, a não ser que seja ins
truído de outro lado, retenha o juízo e as julgue presentes.
Por último, comprova-se a terceira parte da conclusão, porque os sentidos exter
nos são de natureza tal que tendem para os objectos, conforme existem aqui e agora,
isto é, conforme existem afectados pelas condições de quantidade, de distância e de
lugar e pelas coisas materiais, como na presença, pela parte da coisa, ou pelo menos
representada como presença. Por isso, não poderão os sentidos externos de modo
algum ocupar-se da coisa ausente, enquanto tal. Mais, os objectos dos sentidos
externos acrescentam intrinsecamente esta condição ao objecto do intelecto e da
fantasia. De facto, o intelecto é levado tanto para a coisa ausente como para a coisa
presente, tanto singular, quanto universal. Também a fantasia, para a coisa presente
e para a ausente, mas apenas singular. Mas os sentidos externos, que pertencem ao
ínfimo grau das faculdades cognoscitivas, tendem apenas para uma coisa singular e
presente, ou exibida na espécie como presente. Nesta repartição dos cognoscíveis
não fizemos menção do senso comum, porque este está como que no interstício dos
sentidos internos e externos, pertencendo a uns e a outros, visto que conhece as
sensações dos externos e transmite-as aos internos . Daí que comungue, de algum
modo, da natureza de uns e de outros. Na verdade, enquanto os sentidos externos se
ocupam dos seus objectos, o sentido comum leva a perceber os mesmos objectos e
assim, certamente, apenas apreende os singulares presentes. Mas nos sonhos, como é
a opinião de muitos que expusemos nos livros dos Pequenos Naturais, ele reconhece
os singulares, mesmo na sua ausência. E, deste modo, apreende tanto na sua pre
sença, como na ausência, em função da diferença da vigília e do repouso.
Da conclusão acima será lícito deduzir a segunda, que responde directamente à
questão proposta. Advertindo que em relação a ela, em primeiro lugar, subsiste a
dúvida sobre se para o conhecimento intuitivo se requer que a potência tenda, por si,
para o objecto que está presente na própria coisa, ou se basta que sej a levado para a
coisa que, embora ausente, é representada como presente, e assim o conhecimento
tende para a coisa presente enquanto imaginariamente presente. Nesta dúvida,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão li/, A rtigo li 309
embora quem concorde refira pouco a outra parte, apraz-nos mais a segunda, pelo
facto de que o conhecimento abstractivo parece ser livre e separado de todo o tipo de
presença. Eis, portanto, a segunda conclusão. Nos sentidos externos também não se
dá o conhecimento abstractivo, mesmo pelo poder divino. Prova-se. Porque o
conhecimento deste tipo é levado para a coisa em si, afastada a presença e a existên
cia. Porém, os sentidos externos, são levados para os seus objectos, representados
muitas vezes como presentes, como é claro a partir do que se afirmou. E assim, o
referido conhecimento, pelo qual o sentido externo é levado para o obj ecto que não
está presente, pela parte da coisa deverá chamar-se intuitivo.
ARTIGO II
Argumentos contra os que foram referidos
no artigo anterior e sua resolução
Contra a primeira parte da conclusão em que afirmámos que o sentido pode per
ceber pelo poder divino oferecem-se estes argumentos. Ou o objecto do sentido
externo compreende tanto o sensível presente quanto o ausente, ou apenas o pre
sente. Se acontecer o primeiro caso, segue-se que o sentido externo, pelo seu enge
nho, pode tender para a coisa ausente, visto que qualquer potência pode pela sua
própria força atingir o seu objecto. Se o segundo, ter-se-á de mostrar que pela potên
cia divina o sentido não pode incidir sobre a coisa ausente, visto que repugna que a
potência vagueie fora do próprio objecto. Por isso não parece consentânea com a
verdade a primeira parte da conclusão.
Segundo argumento. De novo se impugna a mesma conclusão, porque se a coisa
ausente puder ser sentida, poderá ser degustado o mel não existente, ser nutrida uma
coisa sem se alimentar, poderá ser tocado o fogo inexistente e o animal ser por ele
queimado, poderá ser ouvido o címbalo que não existe e o ouvido ser lesado pelo
seu som e muitas outras coisas que parecem envolver embaraço. Terceiro. Porque se
seguiria que são geradas duas proposições contraditórias simultaneamente verda
deiras. Com efeito, seria verdadeiro pensar-se Sócrates correndo, visto que se apre
senta à potência também correndo, e pensar-se nele não correndo, porque na reali
dade não corre.
Depois, contra a segunda parte da conclusão que estabelece que o sentido externo
pode ser levado para um objecto ausente, mas que é oferecido como presente pela
potência divina, é costume objectar-se que, nesse evento, uma vez que o intelecto
julga que a coisa que não está presente, está presente, deverá admitir-se que Deus,
que imprime a espécie, ou antes, a conserva impressa, é causa deste mesmo erro e
engano, o que ninguém diria.
Finalmente, contra a terceira parte que afirma que o sentido externo não pode
tender para o objecto a não ser sob a razão de presente. De facto, existe uma menor
proporção entre a essência divina e o intelecto criado do que entre o sensível não
existente e o sentido externo, visto que há uma distância infinita entre Deus e as
criaturas e somente finita entre as próprias criaturas; ora, o intelecto criado eleva-se
ao conhecimento intuitivo da divina essência; logo, também o sentido externo
poderá ser promovido por Deus para compreender a coisa não existente.
310 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles
Mais. Os sentidos externos podem pela potência divina tender para fora do seu
objecto. Poderão, portanto, ser levados para uma coisa que não exista. Prova-se o
antecedente, porque elevar a água à produção da graça no Baptismo não é menos do
que despertar uma potência para uma operação, fora dum objecto que não o seu.
Logo, como aquilo é feito divinamente também isto poderá suceder e não repugna
que os sentidos externos versem sobre um objecto que não exista, embora isto não
esteja contido entre os limites do objecto que lhes pertence.
Todavia não será difícil satisfazer com os seguintes argumentos. Ao primeiro,
contra a primeira parte da primeira conclusão, deve dizer-se que, quando se trata do
objecto de alguma potência, podemos falar ou do objecto pura e simplesmente ade
quado ou do obj ecto não adequado. Um obj ecto pura e simplesmente adequado é
aquele para que a potência é levada ou por faculdade própria ou com a ajuda divina.
Um objecto não adequado é aquele para que a potência tende por uma faculdade
própria. Se portanto, se falar acerca do objecto dos sentidos externos pura e sim
plesmente adequado, dever-se-á responder que ele é o sensível presente ou não pre
sente, representado todavia como presente. Se for acerca do objecto não adequado
ele é o sensível presente na realidade. Daqui não se segue que o sentido externo ou
possa por faculdade própria ser levado para um objecto não presente, ou, aposto pela
potência divina não possa para ele tender, visto que enquanto persiste em tomo dele
não vagueia fora do próprio objecto tomado de modo absoluto, como é claro a partir
do que se afirmou. Ao segundo argumento, contra a mesma parte da conclusão, deve
responder-se que não existe nenhuma contradição no facto de o mel não existente ser
degustado por intervenção da sua imagem fixada no gosto. Não pode todavia, a
partir do que se afirmou, seguir-se que a coisa se nutre sem alimento, porque a nutri
ção importa a conversão do alimento na substância da coisa viva. Afastado o ali
mento, aquela conversão não se produz. Também não existe nenhum embaraço em
que o fogo não existente seja sentido através das espécies das qualidades tangíveis
do fogo. Mas não se diz que o animal se queima com as espécies, porque a queima
dura não se faz a não ser pelo calor realmente inerente à coisa que é queimada. Nem
também há embaraço no facto de um címbalo não existente ser ouvido através das
espécies de som existentes, pelas quais, no entanto, não se segue ser o ouvido atin
gido, porque este choque não é das espécies ou do som, mas sim o som da forte
agitação do ar e a espécie da referida agitação. Ao terceiro argumento, deve negar-se
que se segue darem-se duas proposições contraditórias verdadeiras ao mesmo tempo.
As proposições «vejo Sócrates a correr» e «vej o Sócrates a não correr» não são
contraditórias, mas são-no sim estas : «vejo Sócrates a correr, não vejo Sócrates a
correr» como noutro ponto ensinámos. Mas estas não são, ao mesmo tempo, verda
deiras, porque, no exemplo proposto, a que diz «Vejo Sócrates a correr», isto é, que
se me apresenta a correr, é verdadeira, e aquela que diz «não vejo Sócrates a correr»,
isto é, que se me apresenta a correr, é falsa. Nem, de facto, as primeiras, em predi
cado infinitivo, são ambas verdadeiras, se o vocábulo «correndo» for usado no
mesmo modo de predicação, como será claro aos que prestarem atenção.
Ao que foi obj ectado contra a segunda parte da mesma conclusão, deve respon
der-se, que o intelecto, no caso proposto, de vez em quando, julga que a coisa está
presente quando no entanto ela não está presente. Não se conclui daqui, contudo,
que Deus engane. Não se diz que engana a não ser que produza ou pronuncie algo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão III, Artigo II 311
com vontade de enganar, mesmo que alguns, imprudentemente, retirem daí o motivo
de errar. Acerca desta questão consulte-se São Crisóstomo, livro primeiro, De
Sacerdotio, e Santo Agostinho, no livro Contra os Mentirosos e no Enquirídio,
capítulo 6º.
Ao primeiro, contra a terceira parte, dizemos que é maior a distância e a despro
porção entre a essência divina e o intelecto criado no género do ente, do que entre o
sentido externo e o sensível não existente (entenda-se também entre o representado
como não presente e não existente), mas não segundo a razão e proporção da cog
noscibilidade. Com efeito, a essência divina mantém-se dentro da latitude do objecto
adequado do intelecto criado, mas se tomarmos o sensível não existente no modo
referido, ele não é incluído dentro dos limites do objecto adequado pertencente ao
sentido externo. Leia-se São Tomás, primeira parte da Suma Teológica, questão 1 2,
artigos 1 º e 3º e aí, os seus intérpretes. Ao segundo, respondemos que, tal como a
água é assumida por Deus como instrumento para a produção da Graça, também o
sentido externo pode ser aproveitado pela potência divina para uma operação acima
da sua faculdade, pela qual não tenda para o seu objecto natural como, por exemplo,
a potência de ver para atrair a si o ar. Também não repugna o que dissemos, isto é,
que o sentido externo não pode vaguear fora do seu objecto. Isto deve ser entendido
acerca do sentido, segundo as operações vitais que lhe são próprias, as quais, dado se
referirem ao seu objecto natural como relação transcendente, dependem dele essen
cialmente, não sendo possível que segundo elas a potência de alguma forma ultra
passe um tal objecto.
Mas haverá quem pense que pode ser contraditório com aquilo que Santo Agosti
nho, no último livro A Cidade de Deus, capítulo 29º, quando falou sobre o estado
beatífico, escreveu o seguinte. Faculdade mais poderosa será a dos olhos dos bem
-aventurados, não porque vejam mais acutilantemente, tal como se diz que as ser
pentes e as águias vêem. Com efeito, por mais penetrante que sej a a vista destes
animais, nada mais podem ver do que os corpos. Mas para eles verem mesmo as
coisas incorpóreas. Com estas palavras Santo Agostinho indica a vista segundo a
função vital que lhe é própria, que é a acção de ver, que pode tender para a coisa
espiritual, a qual como é evidente está fora dos limites do objecto dos sentidos
externos. Mas tem de atalhar-se com São Tomás, na 1ª parte da Suma Teológica,
questão 1 2, artigo 3º ao 2º, que Santo Agostinho pronuncia estas coisas não tanto
para afirmar quanto para argumentar, e que o seu pensamento era o de que, como é
evidente a partir daquilo que pouco depois apresenta, os bem-aventurados, a partir
do que vêem com a vista e da refulgência da divina claridade que aparece nos cor
pos, vão conhecer com a singular perspicácia do intelecto a presença de Deus, mas
não devem ver a própria natureza divina em si, ou algo de espiritual com os olhos
corporais.
De passagem note-se que, como não é possível que algo de espiritual recaia sob
os sentidos externos, assim também não é possível que recaia sob os internos,
mesmo pela potência divina, visto que uma mesma contradição se dá num e noutro,
pois o espiritual transcende os limites do objecto sensível. O que se deve afirmar
igualmente acerca do apetite sensitivo, cujo objecto é o sensível bom. Há quem
objecte que a gravidade da ofensa a Deus é determinada de algum modo para Deus e
que ela frequentemente se dá no apetite sensitivo, e, por isso, que o apetite inferior e,
312 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ao mesmo tempo, a fantasia, cuja apreensão ele persegue, tende para a realidade
espiritual, Deus. Dever-se-á responder que nem o apetite inferior, nem a fantasia
tendem para Deus distintamente e por si, mas confusamente e sob alguma razão
sensível. Da forma que São Tomás afirma, na 1ª parte da Suma Teológica, questão
1 2, artigo 3º, quando Isaías, capítulo 6º, narra que vê o Senhor sentado sobre o Sol,
isso deve ser entendido como uma visão imaginária que representa Deus segundo
um modo de semelhança corpórea, através do qual na Sagrada Escritura as coisas
divinas frequentemente são-nos declaradas e costumam revelar-se.
QUESTÃO IV
Se existem cinco sensíveis comuns
ARTIGO I
Parece que menos, parece que mais
Aristóteles enumerou cinco sensíveis comuns no capítulo 6º deste livro, texto 64,
isto é, o movimento, o repouso, o número, a figura e o tamanho. Subsistem todavia
argumentos da parte contrária. Em primeiro lugar, porque parecem ser menos nume
rosos. Na verdade, o movimento, dado que não cessa e corre rapidamente, não pode
ser compreendido sem a memória e a força colectora, que colige e junta entre si as
partes passadas e futuras. No entanto, isto é próprio de uma potência mais alta, não
dos sentidos externos. Outro argumento. Os animais de modo algum numeram, por
que isto só respeita ao homem, como ensina Aristóteles nos Problemas, secção 30,
questão 5. Assim, o número não parece ser apreendido pelos sentidos dos animais,
portanto, também não, pelos nossos, que são, como eles, da mesma espécie e facul
dade. Terceiro. O mesmo pode ser demonstrado no repouso que, como é uma priva
ção, não recai por si sob nenhum sentido. Por esta razão, nem o movimento, nem o
número, nem o repouso parecem ser correctamente contadc;i s por Aristóteles entre os
sensíveis comuns.
Por outro lado, há quem demonstre que Aristóteles devia ter enumerado mais sen
síveis comuns. Com efeito, os estudiosos da Perspectiva, como refere Vitélio, no
início do livro terceiro, enumeram muitos mais, por exemplo, a distância, o sítio, a
diferença, a aspereza, a curvatura, a recta e outros. Além disso, o tempo, como
ensina Aristóteles, no 4º livro da Física, capítulo 1 1 º, texto 98, é percebido pelos
sentidos, não por acidente, visto que parece afectar o sentido da mesma forma que o
movimento de que é a medida. Portanto, é percebido por si e por isso também deve
ser colocado entre os sensíveis comuns. Não satisfará quem disser que o tempo está
contido no movimento porque se identifica realmente com ele; se fosse assim, tam
bém a figura, que não difere na realidade do tamanho, deveria ser trazida para o
tamanho, o que não sucede. Acrescente-se que a substância, porque concorre para
imprimir as imagens destes sensíveis nos sentidos, concorre como causa principal,
pois todas as acções são dos supostos; ela poderá justamente ser acrescentada aos
restantes sensíveis comuns.
livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão IV. Anigo li 313
ARTIGO II
Existem apenas cinco sensíveis comuns.
Não se conclui o oposto dos argumentos anteriores
Mas não é por estes e por outros argumentos iguais a estes, que deverá ser afas
tada a opinião de Aristóteles. O que fez Cristóforo, de entre os médicos mais recen
tes, no livro 1, De arte medendi, capítulo 5°, quando afastou o movimento e o
repouso do número dos sensíveis comuns ; e antes dele Galena, livro 3, De dignos
cendis pulsibus, quando estabeleceu que se conhece o movimento pela razão, não
pelo sentido; ora, como a razão está junta ao sentido, e o percurso da mente é rapi
díssimo, por vezes, parece ser apreendido não pela razão, mas pelo sentido. Mas
para respondermos aos argumentos anteriores a favor de Aristóteles deve advertir-se
que, para a noção de sensível comum, não se exige que se percebam por todos os
sentidos, mas por muitos. Com efeito, ou não há nenhum sensível, ou há sobretudo o
movimento, o qual está dependente de todos os sentidos externos, para se tomar
claro a quem experimenta. Por isso é que Averróis, não sem razão, neste ponto,
comentário 64, repreende Temístio, porque afirmara que os sensíveis comuns são
universalmente percebidos por todos os sentidos.
Segundo. Deve advertir-se que Aristóteles não enumera todos os sentidos comuns
em particular, mas cinco gerais principais a que os restantes deviam ser reconduzi
dos, como de imediato será claro. Ao primeiro dos argumentos, que sustentavam
demonstrar que o movimento não recai sob os sentidos externos, deve responder-se
que se reconhece perfeitamente o movimento apenas do modo expresso no argu
mento e que cada um respeita a uma faculdade mais elevada; imperfeita e quase
materialmente, sem nenhuma das partes entre si .
Ao segundo. Conhece-se o número de dois modos, ou contando um a seguir ao
outro, sej a replicando o número maior sobre o menor, seja acrescentando uma nova
unidade ao número menor, aumentando assim uma série numérica com os seus
acrescentos e este modo de conhecer apenas diz respeito aos homens. Ou então
compreendendo a pluralidade discreta que faz o número, como dois ou três sons, três
ou quatro pedras diferentes entre si, da forma que o número é conhecido pelos senti
dos externos, tanto dos homens como dos animais.
Ao terceiro. O repouso não é sentido positivamente por si, como aquilo que ao
agir move o sentido, mas negativamente porque, tanto quanto a privação o consente,
modifica a espécie da coisa que é percebida, tal como se apreende uma coisa numa
certa consistência, não em devir.
Os argumentos que pareciam provar que havia muitos sensíveis comuns, devem
ser resolvidos da seguinte maneira. Ao primeiro, dizendo que os estudiosos da Pers
pectiva dividem mais minuciosamente os sensíveis deste tipo, porque as suas dife
renças são apreciadas uma a uma, para que a partir da reflexão dos raios, da refrac
ção, da incidência ou da curvatura e de outras afecções deste género, dêem a causa
exacta das diversidades visíveis. Isto não respeita ao físico, que apenas observa que
os sensíveis comuns movem o sentido com razões previamente certas e determina
das. E assim, todos os sensíveis comuns que os estudiosos da Perspectiva acrescen
tam podem ser reduzidos à aristotélica, como a distância e o lugar, ao tamanho, a
distinção, ao número, a aspereza, a curvatura e a linha recta à figura, e os restantes,
314 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
QUESTÃO V
Se o sensível comum imprime uma espécie própria no sensitério
ARTIGO I
Opinião dos que se inclinam para a parte afirmativa
São várias as opiniões dos intérpretes acerca do modo pelo qual os sensíveis
comuns afectam os sentidos. Mas deixadas de lado as duas tidas por mais célebres,
avancemos para o meio. Uma é a de Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 1 2,
questão 3 ; de Egídio, capítulo 6º deste livro; de Janduno, questão 1 8 e de Gentil, que
Simão Pórcio refere e refuta no capítulo 5º sobre A Cor. Estes são de opinião que os
sensíveis comuns produzem nos sentidos uma semelhança própria a si, diferente da
espécie dos sensíveis próprios. O que parece que se conclui com os argumentos
seguintes. Ou o sensível comum imprime algo no sentido, ou nada. Se não imprime
nada, é um sensível por acidente. Se imprime alguma coisa, imprime apenas a espé
cie, portanto, etc. Segundo argumento. O tamanho e a cor são formas distintas, por
tanto exigem imagens distintas pelas quais são sentidas. Também, são percebidos
por sensações diferentes, portanto também por diversos tipos, que são os princípios
de sentir; mas estes só são produzidos pelos próprios objectos. Também, se alguém
chegar a mão ao corpo celeste sentirá grande resistência, não por alguma qualidade
táctil, pois nenhuma está presente no céu, como ensina Aristóteles no primeiro livro
sobre O Céu, capítulo 3º, texto 20. Portanto, o próprio tamanho do corpo celeste sem
o consórcio do sensível imprime-a. Quarto argumento. Muitas vezes uma torre
observada de longe é vista de tal modo que não se distingue se é branca ou se está
pintada de outra cor. Portanto, a vista percebe a quantidade nua da coisa sem outra
qualidade visível e, portanto, através da própria espécie introduzida pela quantidade.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI, Questão V, Artigo li 315
ARTIGO II
A parte negativa é verdadeira, e nada prova
os argumentos dos adversários
QUESTÃO VI
Se o sentido erra acerca do sensível próprio ou não
ARTIGO I
Propõem-se os argumentos das partes contrárias
ARTIGO II
Explicação da controvérsia
Nesta discussão houve primeiro duas posições extremas. Uma, dos epicuristas,
que confiavam somente nos sentidos, os quais diziam que nunca falhavam, colo
cando neles todo o juízo verdadeiro. Quanto a este assunto Santo Agostinho, livro 8
de A Cidade de Deus, capítulo 7°; Túlio, nas Questões Académicas. A outra, de
certos Académicos, que afastaram toda a confiança nos sentidos, contra os quais
também Santo Agostinho escreveu três livros. O Mirandulano descreveu acurada
mente as rixas de todos os filósofos antigos sobre a presente disputa, no livro 2, De
examine uanitatis.
A terceira opinião, intermédia entre as duas anteriores, peripatética e totalmente
verdadeira, para cuj a compreensão se tem de chamar a atenção, afirma que os senti
dos nem erram permanentemente, nem se enganam nunca. Porque o erro propria
mente só acontece no juízo pelo qual consideramos que algo existe ou não, mas nos
sentidos externos não se dá nenhum juízo deste tipo, nem expressamente, nem vir
tualmente, a tal ponto que apenas se pode dizer que os sentidos erram sobre os pró
prios sensíveis na medida em que fazem sair os conhecimentos para as potências
superiores, às quais o juízo respeita, levando-as ao erro e a uma falsa consideração.
Segundo. Não se deve omitir que o sensível próprio pode ser tomado de duas for-
318 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles
mas, no que diz respeito a cada sentido. Ou sob a razão comum, como o branco
enquanto é colorido, o som agudo, apenas enquanto é som, o sabor doce, enquanto é
sabor. Ou segundo a sua natureza particular, como a brancura, consoante a sua natu
reza específica de branco, e igualmente para os restantes sensíveis particulares.
Explicadas assim estas coisas, a primeira asserção é a seguinte. O sentido nunca
erra acerca do próprio sensível considerado do primeiro modo. Esta é conhecida
porque não pode suceder que a potência se estenda para além do seu próprio objecto
e assim a vista somente pode perceber o visível e o ouvido, apenas o som. E por esta
razão, não acontece nenhuma alucinação directamente nas sensações deste tipo.
Segunda asserção. O sentido engana-se acerca do sensível próprio considerado do
segundo modo. O argumento demonstra plenamente a asserção que propusemos no
fim do artigo anterior. Onde, atente-se, se forem afastados todos os impedimentos,
tanto da parte do órgão como de outra proveniência, também os sentidos não irão ser
iludidos sobre o sensível próprio tomado segundo as suas naturezas particulares,
como apontaram Temístio, Simplício e Janduno.
Facilmente se explicam os argumentos que procuravam provar que os sentidos
externos de forma alguma caem em erro. Ao primeiro, responde-se que não pode
haver nenhuma ciência humana se os sentidos nada derem a conhecer, mas iludirem
permanentemente a acuidade da mente. A questão, de facto, é muito diferente. Ordi
nariamente não erram. Ainda que por vezes se enganem, não é destruída a experiên
cia que nasce da conjunção de muitas sensações concordantes entre si e contribui
grandemente para o assentimento dos primeiros princípios.
No que respeita ao segundo argumento, agitados por ele, Alberto Magno, tratado
3 , capítulo 5º e Apolinário, questão 1 3 , asseguram que de forma alguma o sentido se
alucina com o próprio sensível, que o erro deve ser avaliado consoante a espécie
formada no sentido. Deve responder-se de forma adequada ao que dissemos. Ainda
que o sentido exprima uma sensação tal qual a espécie, e a espécie sej a a imagem
natural daquilo que representa, no entanto o sentido erra, visto que o sensível
apreende como se alguma coisa tivesse em si uma qualidade que na realidade não
tem, pelo menos como é apreendida. Acontece assim, por exemplo, quando o gosto
percebe o alimento como amargo, ainda que simplesmente não seja amargo, por
causa do sensível maior, isto é, por causa do amargo do humor bilioso em que está
contido e que também impregna nalguma parte o alimento. Apreende o alimento
apenas como amargo, não reconhecendo nele a doçura que detém. Donde, o intelecto
tem ocasião de julgar que o referido alimento é absolutamente amargo. E assim, a
espécie do sabor amargo transporta verdadeira e sinceramente o sabor amargo. O
engano não intervém, deste modo, na nua apreensão, mas no erro do sabor amargo
como ligação ao substrato estranho, como dissemos. Quanto a isto, objecta-se que o
alimento tem na realidade algum sabor amargo injectado pelo humor bilioso e que o
gosto o percebe sob este amargor, não havendo aí nenhum engano ou ocasião de
errar. Ocorre que ainda que o alimento tenha algum sabor amargo, porque o conside
ramos doce (de outro modo não haveria um exemplo para esta matéria), diz-se que
houve, de facto, lugar a erro, uma vez que o gosto, pela causa antes referida, nele
não apreende o sabor doce, mas apenas o amargo. E assim, atribui-lhe simplesmente
o sabor amargo, porquanto não o percebe senão como amargo. Ao terceiro deve
dizer-se que se refuta com o argumento de Tertuliano os que criticavam que os
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII 319
sentidos caem em erro permanente, e que não tinham nada para dar ao intelecto.
Todavia não se conclui que eles nunca se enganam.
objecto da vista, uma a uma. Trata primeiro da cor, que ensina estar compreen
dida sob o visível em comum. Mas diz que este é visível por si porque lhe é pró
prio poder cair sob a vista. É-lhe próprio, digo, não do primeiro modo das coisas
pelas quais algo se diz ser por si, tal como no primeiro dos Analíticos Posteriores
foi declarado - pois o visível não pertence à sua essência, que é o objecto ade
quado da vista - mas é do segundo modo que lhe é próprio, porque dimana da
sua natureza. Assim São Tomás, Caetano e Averróis compreendem assim este
ponto, embora Simplício, Temístio e Filópono o interpretem de outro modo.
b. Colar autem omnis 4 1 8 a 3 1 Define cor afirmando que é aquilo que move a
-
vista em acto, isto é, que impregna o transparente iluminado em acto pela sua
semelhança. Infere então que a cor não pode ser vista sem a luz, visto que, sem o
referido movimento não há luz e o transparente sem a luz não pode ser iluminado
em acto. Conclui, em segundo lugar, que nesta disputa sobre o objecto da vista se
deve tratar da luz e, porque o transparente é o substrato da luz, diz o que é o
transparente. O transparente é o visível, não por si, mas pela cor alheia, isto é,
não própria, mas por via da luz que depende da presença do corpo luminoso a
partir do qual é produzida. É o caso do ar, da água, do gelo e outras coisas deste
género.
c. Lumen autem 4 1 8 b 9 Transmite a definição de luz. A luz é o acto do transpa
-
Sol. Mas a luz é quase cor, porque assim como é colorida pela cor, também as
coisas são vistas pela luz transparente.
d. Nam neque ignis 4 1 8 b 1 3 - Refuta a opinião dos que consideram que a luz é um
corpo, primeiro a partir da definição de luz. A luz é o acto do corpo transparente
e incide nele de acordo com toda a dimensão, por isso, se fosse um corpo, então
dois corpos penetrar-se-iam e conter-se-iam, ao mesmo tempo, no mesmo lugar.
Segundo, porque as trevas são privação do acto transparente ou da forma inerente
ao transparente, resultantes da presença do corpo luminoso, e assim a luz aci
dental é uma certa forma. Terceiro, porque se a luz fosse corpo, mover-se-ia no
lugar, e assim, a iluminação não aconteceria no instante, mas no tempo, o que
repugna à experiência, porque vemos que a luz se difunde de imediato e sem
nenhuma demora, de um lado para outro. A afirmação de Empédocles segundo a
qual a luz parece percorrer o espaço num instante, que é chamado um tempo bre
víssimo, não satisfaz. Não satisfaz, digo, porque embora (afirma Aristóteles)
possa parecer que a acção em que um espaço exíguo é percorrido se realiza num
instante, ainda que demore tempo, todavia aquela acção que atravessa todo a
distância de Oriente a Ocidente, tal como o primeiro Sol espargindo a luz sobre o
horizonte, não pode encobrir a demora e não se vê claramente em que tempo ela
se perfaz.
e. At uero non universa 4 1 9 a 1 - Ele avança para as restantes coisas contidas sob o
objecto da vista e ensina que muitas são corpos luminosos, os quais, enquanto tal,
para caírem na vista (isto é próprio das cores, que apenas são vistas pela luz
adventícia), não exigem o meio iluminado a partir de outro corpo, mas são vistos
de noite e nas trevas pelas quais foram tingidos, mal são avistados à luz. São
deste género o fungo, as escamas dos peixes e outros semelhantes. A causa disto
é que alguns são corpos dotados de luz ténue, que iluminam o meio apenas o
necessário para serem vistos, não para que as cores espalhem as próprias imagens
que se dão na vista. Depois, mostra por um certo indício que é pela luz que o
corpo se toma o meio transparente em acto; de facto, não é por outra causa que a
cor é vista se posta em frente ao órgão da vista, a não ser porque é necessário que
a cor, primeiro, mova o espaço iluminado em acto, depois, por sua intervenção, o
mecanismo de sentir.
f. Non enim hoc loco 4 1 9 a 1 5 - Censura Demócrito por ter dito que nós veríamos
com precisão se o meio fosse o vazio, como se o meio fosse um impedimento
para a vista. É por esta razão que Demócrito afirmou que se todo o espaço que há
entre a terra e céu fosse vazio, então poderiamos ver uma formiga que existisse
no céu. Aristóteles mostra a falsidade deste parecer, porque a visão não existe, a
não ser que, primeiro, o órgão do sentido seja mudado pelo objecto, e não pode
ser mudado por ele imediatamente, mas pelo intervalo em que passam as
imagens. A partir do que se disse é claro o que se deve pensar sobre o meio da
cor segundo a doutrina peripatética, a saber, que o diáfano se interpõe entre a
coisa observável e o sensitério, onde reside a faculdade de ver.
g. Eadem autem est 4 1 9 a 25 - Ele tinha dito que a vista carece do meio, através do
qual a coisa dirige os objectos para o sensitério. Agora mostra que acontece o
mesmo com os restantes sentidos, pois também os seus objectos, que estão fora
deles, não podem produzir a sensação. Também diz que isto acontece no gosto e
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão /, Artigo / 321
no tacto, embora nestes a coisa costume ser menos evidente. Depois, como que
de caminho, explica os meios dos outros sentidos, afirmando que o meio do som
é o ar; o do odor, algo sem nome; o da cor, o ar e a água, consoante os corpos são
transparentes ou diáfanos e as mesmas coisas consideradas sob outra ordem, o
meio do odor. Na verdade, ele prova que o cheiro emana através do ar ou da
água, porque os animais aquáticos na água percebem o cheiro. Os que vivem na
terra apenas cheiram por atracção do ar. Sobre estes assuntos, em devido lugar,
mais ampla e claramente se tratará.
QUESTÃO !
Aristóteles definiu correctamente o transparente e a cor, ou não?
ARTIGO !
Definiu correctamente o transparente
são iluminadas, ora não, como o ar, a água, o cristal, o vidro e outras deste género.
Apenas quis abranger estas, como é evidente, porque logo a seguir sustentou que a
luz é como que a cor do corpo transparente, visto que é transparente em acto a partir
do fogo e de outro corpo deste tipo, como o Sol.
Tendo isto em conta, deve responder-se ao primeiro argumento, que o fogo é
transparente, mas que não se explica por tal definição aristotélica, porque é sempre
transparente em acto e possui luz própria, ainda que seja visível por si, como de
imediato se dirá. No que respeita ao ar, dado que a visibilidade flúi de qualquer
coisa inominada que é comum à cor e à luz, tal como todas as coisas coloridas são
visíveis por si, também todas aquelas que possuem luz o são. E tal como as coisas
coloridas não podem ser vistas em acto se não existir um meio iluminado, assim
também não chegam à vista as coisas dotadas de luz, a não ser que sejam compactas
e densas. Por isso, o fogo e o ar que são impregnados com a luz em acto, são certa
mente visíveis por si, embora não sej am vistos por nós por causa da ausência da
requerida densidade, tal como as coisas coloridas, postas nas trevas, por sua natureza
são tidas por visíveis, pois não só elas conservam as cores como a visibilidade
acompanha a sua natureza. Portanto, é evidente o que se deve responder ao primeiro
argumento, no que respeita ao ar. Ao segundo, dir-se-á, que a Lua fulge, quer com
luz própria, quer emprestada, e que é um dado corpo transparente, embora determi
nado, o que, portanto, a definição aristotélica não compreende.
Das afirmações conclui-se que quando se chama transparente ao que é percebido
pela luz alheia, isso deve ser entendido de tal modo que seja visto o todo em si, se
assim não fosse a definição diria respeito às cores que são vistas não com luz própria
mas com a luz que sobrevém. Por último, não se ignorará que existem várias dife
renças de transparente tomadas em sentido geral, que umas mais, outras menos par
ticipam da sua natureza. Sem dúvida que, de entre todas, a mais transparente é o céu;
em segundo lugar o elemento fogo depois o ar; a seguir a água; e na mesma ordem
as que são formadas pela mistura constante destes elementos. A razão desta ordem
está em que a natureza celeste não possui a opacidade e a espessura terrenas. Daí
que, primeiro o fogo, depois o ar, etc.
ARTIGO II
Também definiu muito bem a cor
relação à coisa definida. Outra. Visto que a cor nasce da mistura das primeiras qua
lidades que atravessam todo o corpo, incide não só na superfície mais afastada, mas
também na mais interior; portanto, é indevidamente que se define a cor como limite
do transparente. Pode-se responder que aquela definição explica a faculdade da cor,
não em si, mas enquanto é visível numa superfície única, visto que só nela delimita a
vista. De novo se objecta contra isto, que existem algumas pedras em cuja profun
didade se vêem cores; também dentro do âmbar aparecem como que pequenos mos
quitos. Pelo que sucede que não é só na extremidade dos corpos que se vêem cores.
Diga-se ao primeiro destes argumentos que a definição de cor deve ser com
preendida assim. Que a cor move o transparente em acto, mas não tem a faculdade
de tomar o transparente em acto, como a faculdade do Sol tem e é notório que está
presente nos restantes astros. Ao segundo, que a cor preta é chamada por Aristóteles
privação num uso indevido do termo, porque, evidentemente, se se comparar o
negro com o branco, é como que a privação deste, dado não ser tão bem conhecido.
Como noutro ponto chamámos à atenção, Aristóteles também ensina isto acerca de
duas espécies quaisquer contidas sob um mesmo género, uma das quais vence sem
pre a outra em dignidade de natureza. Ao terceiro argumento, opor-se-á correcta
mente o seguinte. Ao que foi efectivamente avançado contra a solução, deve respon
der-se que essas cores não são vistas excepto na extremidade e na superfície externa
das pedras transparentes, embora a espécie visível que está no fundo, quando é
enviada pela superfície, penetre toda a sua substância. Mas no que respeita ao âmbar
e a outros corpos semelhantes, dizemos que as suas cores não se distinguem na pro
fundidade, ainda que se vej am os insectos nele encarcerados no que toca à sua super
fície externa.
QUESTÃO II
Se a natureza da cor e da luz é a mesma ou não
ARTIGO I
Quem considera ser a mesma e com que argumentos
Os filósofos antigos têm várias opiniões acerca da natureza das cores. Plutarco
relembra-as, no primeiro de As Opiniões, capítulo 1 5º; Alexandre, no livro l º das
Questões Naturais, capítulo 1 3º. Omitidas as restantes, Pitágoras, atribuía tudo a
razões matemáticas e de quantidade, quando considerou que a cor era a própria
superfície do corpo, levado pelo argumento de que, uma vez que a cor tem uma
natureza séctil, mas não é corpo ou linha, será necessariamente superfície; não uma
qualquer, mas a da extremidade que se mostra claramente à vista. Platão, no Timeu,
ensinou que as cores são luz. A vempace e Alfarabi acolheram também aquela opi
nião, como se vê em Averróis, comentário 65 . E também Avicena, livro 6, parte 3 ,
capítulo 1 º , afirmando que n a ausência d a luz não h á n o corpo cor alguma, mas que
as cores são produzidas pelo seu contacto e que não diferem da própria luz recebida
no corpo. Esta opinião foi seguida pelo Poeta, quando diz na Eneida 6, «a noite traz
às coisas outra cor» . Alberto Magno como que o sustenta, no livro O Sentido e o
Sensível, tratado 2, capítulo primeiro, quando pende mais para o lado que considera
324 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
que a cor é a luz num transparente delimitado, mas que quando brota a luz, uma
certa qualidade originária das primeiras qualidades permanece, que é como que a
matéria da cor e a luz a sua forma.
Pode, portanto, provar-se que a cor não é senão luz, primeiro, porque vemos as
nuvens tingirem-se consoante a radiação diferente do Sol, quer de branco, quer de
vermelho, umas mais, outras menos obscurecidas. Também o mar, pela mesma
causa, ora enrubesce, ora embranquece, avistando-se branco ao longe, negro ao pé.
Vemos também que as cabeças das pombas e as caudas dos pavões com um aspecto
diverso da luz variam as cores extraordinariamente. Tudo isto está presente no
argumento que diz que as cores não são outra coisa senão a própria luz.
Segundo. Prova-se o mesmo, porque não é por outra razão, que os olhos quando
vêem corpos brancos se cansam e fatigam, quando vêem verdes e verdej antes, se
deleitam e ficam mais vigorosos, a não ser porque a brancura tem muita luz dissi
pada pelo órgão visual; já a cor verde possui uma certa medida de luz, que se mostra
à vista como uma moderada e certa harmonia e por isso nada lesa. Portanto, as cores
são da natureza da luz. Umas exprimem-na mais, outras menos.
Terceiro. Confirma-se o mesmo, suprimida a proposição dos filósofos, que afir
mam que a cor é o objecto comum e adequado da vista, o que certamente não seria
verdade se a cor e a luz se distinguissem entre si. Com efeito, como a luz recai sob a
vista, nem todo o visível seria cor. A favor da mesma opinião labora o que Aristóte
les, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 1 º afirma, ou sej a, que todos os corpos
têm cor. E também a definição de cor referida no último capítulo, texto 67 : a cor é o
que move o transparente em acto. Esta definição respeita tanto à luz como à cor,
visto que ambas movem, isto é, impressionam a vista com a própria semelhança e
assinalam o transparente.
Por fim, a favor da opinião de Alberto Magno, está o argumento de que a cor
desaparece na ausência de luz que considerada em si não é visível, mas que recebe
da luz a visibilidade, e que não encontra a espécie por si mesma, sem o consórcio da
luz. Donde, acontece que a luz, comparada à cor pela sua perfeição, pode e deve
dizer-se, com todo o direito, forma e acto.
ARTIGO II
As cores aparentes não se distinguem da luz.
As verdadeiras distinguem-se.
A favor da explicação desta controvérsia deve apontar-se que existem dois géne
ros de cores. Umas, pelas quais a vista é iludida (a que chamam aparentes), outras
verdadeiras . São aparentes as que são espalhadas pelos corpos apenas pela luz, de
acordo com a sua visão diferenciada, como acontece no arco-íris e no que referimos
no primeiro argumento do artigo anterior. As cores verdadeiras são as que sobrevêm
não da luz, mas da mistura das qualidades primárias e da variedade dos elementos,
como a brancura no cisne, a negrura no corvo. Tendo em conta estas questões, a
primeira conclusão é. As cores aparentes não são mais do que luz. Esta conclusão é
evidente, porque as cores deste tipo apresentam-se à vista, segundo uma diferente
visão, distância e lugar em relação ao corpo luminoso, como de caminho será evi
dente; o que sem dúvida, indica que estas coisas não são mais do que a própria luz
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão II, Artigo II 325
visto que as toma visíveis em acto; mas não a sua forma interna, do mesmo modo
que as cores, a partir da luz, uma vez que é composta de um acto próprio e essencial,
visto que a luz e a cor são duas espécies, cada uma perfeita e completa no seu
género, que em nada podem adequar-se a uma natureza única, como é divulgado na
/sagoge de Porfírio, capítulo 6º, passim.
QUESTÃO III
Qual a origem e proveniência das cores
ARTIGO I
Das cores aparentes e fictícias
A quantidade de cores é tanta, a sua mistura é tão múltipla, que seria correcto
dizer que em nenhum outro lugar a natureza depositou as suas obras de forma mais
copiosa e tão ambiciosamente, visto que animais, plantas, ervas, flores, metais, jóias,
mármores e, finalmente, quase tudo o que gerou, revestiu e distinguiu com uma
variedade matizada de cores. Daí que muitos filósofos se esforçassem por explicar,
atraídos pelo estudo da natureza, as causas das cores e de tantas diferenças notáveis.
Platão no Timeu; Aristóteles em parte aqui, em parte no livro que agora se conhece,
intitulado As Cores (se é que aquela obra é sua) e no primeiro livro dos Meteoroló
gicos, capítulo 5º e livro 3, capítulo 4º; livro 5, A Geração dos Animais, capítulos 4º,
5º e 6º; Galeno, no livro 2, De temperamentis, capítulo 5º; Contareno, livro 5, De
elementis; Simão Pórcio, no livro composto sobre este assunto; Escalígero no exer
cício 325 , Sobre Cardano, e alguns outros. Avançando, dado que nas cores, como
afirmámos na questão anterior, umas são verdadeiras, outras são aparentes, umas e
outras, são em parte parecidas, em parte diferentes entre si. São parecidas, primeiro,
porque são coisas verdadeiras. Com efeito, nem as cores aparentes são designadas
por este nome por não possuírem uma entidade expressa e verdadeira, mas porque
segundo a su natureza não são verdadeiras e apenas se chamam cores, por analogia
com as cores verdadeiras que são originadas por uma dada mistura de qualidades
primárias. São parecidas, em segundo lugar, porque uma e outra respeitam propria
mente ao objecto da vista e movem a vista. Em terceiro lugar, porque não movem se
não estiverem num corpo congruentemente denso e configurado, em que a vista se
possa fixar. Daí que, dada a sua subtileza, não se distinga a direcção do fogo. Mas as
cores diferem entre si, não só por causa daquela diferença comum da natureza, a de
que as aparentes são formalmente luz porque são verdadeiras as segundas qualida
des, mas porque as cores verdadeiras têm sempre um ser fixo e subsistem, contanto
que não mude a mistura das qualidades donde se originam. Mas as aparentes não se
fixam durante muito tempo e geralmente mudam com a diferença da luz, do meio,
do lugar, da vista, quer para a luz, quer para as cores verdadeiras, como ensina
Aristóteles no livro sobre As Cores, capítulo 3º, livro 1 ; Meteorológicos, livros 3 e 4.
As cores aparentes também se distinguem entre si no que concerne aos substratos.
Efectivamente, ou estão num corpo determinado ou indeterminado, e num corpo
determinado, precisamente, nascem muitas vezes da oposição variada das cores
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão III, Artigo I 32 7
verdadeiras à luz. Ou a cor verdadeira é única, como a cor verde, ou várias e estas,
ou estão juntas por natureza como nas penas dos pavões, ou pela arte, como nas
texturas dos lanifícios e dos tecidos. De facto, tomam-se nessa altura noutras novas
cores através da incidência da luz e dos raios, visto que os raios se reflectem, quer os
directos, quer os reflexos, quer os refractados, ou os que de outro modo refluem.
Acontece assim frequentemente que os lados limítrofes das coisas são banhados
pelas cores.
Do mesmo modo, num corpo indeterminado as mesmas cores provêm da irradia
ção da luz e são alteradas pela diferente compleição do luminoso, como se vê
quando os raios da Lua ou do Sol cortam o vapor e quando entram através de certos
corpos de vidro, divididos em muitos ângulos. Então, quando olhamos para o alto
vemos uma incrível variedade e distinção deste tipo de cores, não sem grande sedu
ção do olhar e deleite da alma. Mas, ao mesmo tempo, por vezes, um corpo indeter
minado, transparente, junta-se com outro opaco, de tal modo que, quando os raios
atravessam um vidro verde que incidindo de lado, como que derramam uma verdura
herbescente.
No que toca às cores verdadeiras, os elementos puros não lhes dizem respeito,
porque é claro que elas nascem da mistura das primeiras qualidades. E assim nada
impede que uma cor amarela inunde o fogo que conhecemos. De facto, a mistura da
terra opaca tal produz, mistura de que o fogo elementar nada tem na própria região
onde está puro e livre do resíduo terreno. As cores verdadeiras nascem da combina
ção das primeiras qualidades, não de uma combinação qualquer, mas de uma deter
minada. Algumas são corpos mistos em que é necessário encontrar todas as quatro
primeiras qualidades que não são coloridas, como o humor cristalino no olho, de que
falaremos noutro lugar.
Aristóteles ensina no livro sobre As Cores que o branco e o negro seguem os ele
mentos simples, isto é, um elemento mais do que outro, no caso de suporem a mis
tura de todos. Assim, a mistura em que predominam o ar e a água, acaba por ser
branca. Naquela em que predomina o fogo, amarela. Naquela em que predomina a
terra, negra. Diz, no mesmo livro, que a cor negra tem origem numa certa alteração
do humor aquoso em secura. E depois diz que sucede que os revestimentos das cis
ternas que permanecem debaixo de água, ficam negros. Também que o fumo da
lenha húmida é negro baço e os carvões negros, ou seja, com um fumo mais gros
seiro e impregnado de água. Mas os que são queimados tomam-se brancos, fundidos
em cinzas pelo consumo do fumo negro, embora algo da cinza ainda retenha o seu
tinto e fique, por isso, clara. Esta, se tiver sido totalmente consumida pela força do
fogo, como na cal, é vista como puro brilho, branca. Outros absorvem tudo isto mais
ou menos do modo seguinte. A cor branca nasce de vários elementos, como da
quantidade de humor aquoso não amadurecido, o que é evidente nas raízes escondi
das na terra. Também, quando o calor exterior altera a cor natural, como as cãs nos
velhos. Também, quando acrescenta calor ao húmido daí que o leite com a fervura
se toma branco, as águas quentes tomam o cabelo branco, as frias, negro. Se, no
entanto, o quente for misturado com a porção terrena, produz preferencialmente o
negro. Daí que os que habitam ao sul são em grande parte negros ou morenos.
Também quando alguns elementos se juntam um a um, num composto, associam
de tal modo as cores que o branco permanece no seco e na terra, isto é, acompanha a
328 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
porção térrea. Na verdade, esta cor é vista nas cinzas, rochas, areias, fogo ou coisas
ressequidas pelo Sol. O verde dá-se no húmido lodoso que tem a água como que por
origem, de tal modo que quando se toma mais lodosa enverdece. O azul dá-se num
húmido subtil que é feito de ar. Na verdade, existem coisas azuis celestes. O amarelo
dá-se no calor que tem origem no fogo, visto que quando este se condensa resulta
em amarelo. Mas esta conformidade das cores com cada um dos elementos não
existe ao ponto de se considerar que apenas são extraídas cores dos elementos refe
ridos, ou que estas cores também não podem nascer de outros elementos, mas sim,
que é evidente que não existe nenhum elemento desprovido de cor originária. De
onde também se dever anotar diligentemente que não existe nenhuma inconsistência
doutrinal, ao atribuir diferentes cores, no composto, a um mesmo elemento. Com
efeito, do diferente grau de outras qualidades, quer das qualidades primeiras, quer
das segundas (estas também a seu modo produzem cores variadas) acontece que, por
vezes, sendo o mesmo elemento dominante, surge aquela diversidade, sobretudo
porque entretanto produz cores discrepantes com pouca diferença de gradação. Mas
não se deve ignorar que para o nascimento e variedade das cores, confluem na mis
tura um maior ou menor afastamento da transparência e da luz. Está mais próximo
da luz, temos a brancura, brilhando menos no corpo opaco, está mais afastado da
luz, a negrura afectando mais o opaco. Do mesmo modo, as cores intermédias ace
dem mais ou menos à luz, consoante a sua diferente proporção e gostam mais ou
menos do opaco. Quanto mais luminosas são, tanto mais visíveis, e o contrário, por
que a luz é sobretudo o visível.
Mas as cores intermédias têm igualmente origem, como as cores extremas, na
combinação das primeiras qualidades, consoante as suas causas se aproximam mais
ou menos das causas donde nascem as primeiras qualidades. Tal como as intermé
dias participam de certo modo das extremas, assim também o nascimento daquelas
tem uma relação com a origem destas e têm uma proporção.
ARTIGO II
Da variedade, dos nomes e da mudança das cores
As cores extremas são duas, o branco e o negro. Destas, o branco é como a posse,
o negro como a privação, como explicámos noutro ponto da doutrina de Aristóteles.
Não que o negro não seja ente verdadeiro e positivo, dado que move, por si, a vista,
e isso diz pouco respeito à privação, mas porque, dado que sob o mesmo género
estão contidas duas espécies e a que é mais mal conhecida é uma privação de certo
modo mais perfeita. E é evidente que a cor branca é mais perfeita do que a negra,
porque, como dissemos há pouco, o branco aumenta mais a luz, a partir da qual as
cores como que se debilitam. Daí que as trevas do negro retirem a espécie e aquelas
coisas a partir das quais se reflecte pouca luz para a vista parecem escurecer, como
as sombras e os lugares opacos. É assim que a água escurece com a agitação, por
que, uma vez agitada a superfície, a luz dissipa-se, e a nuvem, de certo modo, com a
escuridão densa, toma-se opaca, porque o Sol não admite repouso. Pelo contrário, as
coisas brancas são visíveis porque retêm grande quantidade de luz na matéria rara.
Daqui resulta que o branco, segundo Aristóteles, no livro 1 0, Metafísica, capítulo
1 0º, texto 23, é definido como a cor que desagrega a vista e o negro como a cor que
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão Ili, Artigo li 329
As cores alteram-se quando uma primeira perece e outra ocupa o seu lugar. Como
a seara quando amarelece, a cabeça quando embranquece, a erva quando enrubesce.
Não só as que são assim, mas também as que se tingem, do modo há pouco expli
cado, ao perderem as cores naturais e admitirem alterações na própria coisa. Como
os humores, que surgem para juntar o que não está acabado têm a faculdade de alte
rar as primeiras qualidades, cuja diversidade acompanha a mudança das cores. Quem
quiser saber que cores manifestam exteriormente o estado de espírito (na verdade,
para a variedade das paixões que se desencadeiam em nós, também são variadas as
cores que se exprimem na linguagem) leia o que Cláudio escreveu sobre Os Emble
mas de Alciato.
QUESTÃO IV
Se a luz é necessária à visão em razão do meio, apenas do obj ecto,
ou em razão de um e de outro
ARTIGO I
Diferentes opiniões dos filósofos
Sobre o exame atento da luz, de que Aristóteles tratou neste ponto, costuma tra
zer-se a esta controvérsia, se a luz é substância ou acidente, se apenas existe no
meio, mentalmente, ou na realidade. Na verdade, estas questões foram por nós trata
das nos livros sobre O Céu, quando abordámos a luz dos céus. No que respeita à
presente discussão, os filósofos não estão de acordo entre si. Os que pensam que as
cores não se distinguem da luz ou que a luz interior é a forma delas, apenas preten
dem que a luz é formada pelas cores que é necessário que, da parte do objecto visí
vel, a luz não deva ser o que formalmente se vê, nem que nada mais além da luz seja
observado por nós, nos corpos. Mas resta-lhes a liberdade de opinar se a luz também
é necessária pela natureza do meio, de tal modo que a coisa não possa ser vista a não
ser que o meio esteja iluminado em acto.
Avicena, no livro 6 dos Naturais, parte 3, capítulo l º, conclui que a luz só é exi
gida por causa do objecto. Pode-se demonstrar que assim é, porque o olho, num
lugar escuro, vê ao longe o objecto se ele for difundido pela luz. Contrariamente, se
o objecto estiver no escuro, não é visto, mesmo se o olho estiver em lugar ilumi
nado. Isto é evidente, quer pelos exemplos do quotidiano, quer porque, de dia, as
estrelas parecem buracos muito fundos, como Galeno testemunha no livro 1 0, De
usu partium. Também os olhos dos felinos, os lavagantes e os carvalhos velhos
brilham nas trevas, como Aristóteles escreveu, neste mesmo capítulo, texto 72.
Caetano e o Ferrariense respondem a este argumento, neste ponto, a respeito dos
exemplos apresentados, que é exigida sempre a luz no meio, perto do olho, ainda
que não seja evidente, e que perto do objecto mais espesso, é exigida a luz no meio
para receber primeiro a espécie e para a transmitir, como na restante parte do espaço.
Mas esta resposta não parece satisfazer, visto que é ridículo afirmar que se produz a
luz em todo o meio até ao olho, que não é reconhecida pela vista, nem se comprova
que sej a produzida pela razão.
Uvro Segundo, Explicação do Capítulo VII, Questão IV, Artigo li 331
Outros, de entre os quais Averróis, pensam que se exige a luz apenas pela natu
reza do meio; São Tomás também o afirma, neste ponto. Na 1 ª parte da Suma Teoló
gica, questão 79, artigo 3º, explicadas uma e outra opinião, parece que ele se inclina
mais para a que considera que a luz é requerida da parte do objecto. Ele ensina o
mesmo nas questões sobre A Verdade, questão 8, artigo 1 4º. Também diz, no pri
meiro livro Contra os Gentios, capítulo 76º, que a cor é o objecto material da vista e
que a luz é o objecto formal. Donde, diz ele, observamos a cor e a luz com a mesma
visão pela qual a cor se toma visível em acto. E pode provar-se a opinião que afirma
que não se exige a luz em razão do objecto. Primeiro, porque a cor é visível por si e
por sua natureza, pois é o objecto da vista e seu sensível próprio. Por isso, Aristóte
les, neste capítulo, texto 66, ensinou que na cor, em si própria, reside a causa, por
que é o objecto da visão. Segundo, porque o odor, o som e os restantes objectos de
outros sentidos, embora enviem a semelhança de si, não têm necessidade do consór
cio de outra causa; logo, a cor também não, porque não parece ser dotada de menor
eficácia para tal.
ARTIGO II
Conclui-se que a luz é necessária para a visão,
tanto em razão do meio como do objecto
pela cor pudesse ser iluminado, então a cor dependeria da própria espécie. Prova-se,
digo, porque a luz se junta como causa parcial à cor para emitir a espécie, pelo que
acontece que ela é requerida por si, também da parte da cor. Que é assim que a luz
concorre, não só como disposição do meio ou do objecto, confirma-o argumento
segundo o qual nenhum agente natural postula uma forma de natureza mais elevada,
enquanto única disposição requerida, para uma forma mais desprezível. Mas a luz é
mais excelente, tanto pela imagem da cor, como pela própria cor. Por isso, a luz não
é exigida apenas como disposição para transmitir as imagens das cores para o olho,
mas como a causa que as produz parcialmente, ao mesmo tempo com a cor do
objecto. Também as cores quanto mais forem iluminadas tanto mais as vemos
melhor; elas tomam-se, portanto, visíveis em acto com a participação da luz.
Resolvamos agora os argumentos que aduzimos a favor das opiniões acima, visto
que são contra aquilo que defendemos. Ao primeiro, respondia-se convenientemente
a favor de Avicena. Para refutação da resposta, dever-se-á dizer que, embora a luz
nem sempre sej a por nós claramente conhecida em todo o meio em que se dá a
visão, se argumenta que ela o deva ser pela razão que há pouco referimos. Certa
mente, se o obj ecto que primeiro gera a espécie no meio, requer nele a luz, muito
mais requer o meio para estender a espécie. Ao primeiro argumento, a favor da
segunda opinião, que consideramos de certo modo provável, deve dizer-se que a cor
é visível a partir de si, isto é, que pode ser vista por sua natureza, embora para que
sej a vista em acto requeira alguma outra coisa. Aristóteles também deve ser inter
pretado deste modo, quando diz que a cor em si, possui a causa por que é vista, o
qual, embora não tenha expressamente ensinado que se requer a luz em razão do
objecto, todavia não o negou. Ao segundo argumento, que é característico das cores
o facto de apenas transmitirem a espécie em conjunto com a luz, como lhes é pró
prio, do mesmo modo que os defensores da segunda posição aceitam exigir a ilumi
nação do diáfano como preparação para a passagem das espécies. Não é de admirar
que o mais nobre dos sentidos externos solicite um aparelho deste tipo, para executar
as suas funções.
QUESTÃO V
Se a visão se faz pelos raios emitidos pelo olho
ou pelas imagens recebidas a partir do objecto
ARTIGO I
A opinião de certos filósofos, principalmente de Platão,
e sua confirmação
incide na pupila, dá-se a visão. Afrodísia seguiu a posição de Platão, no livro 1 dos
Problemas, questão 75 ; Séneca, no livro 1 , Questões Naturais; Calcídio, no
Comentário ao Timeu; Euclides, no libelo A Perspectiva; Ptolomeu, no Catóptrico;
Alquindi, no livro De aspectibus; Lactâncio, no livro De opifice Dei, capítulo 8º,
quando nega que as espécies visuais sejam necessárias, porque pensa que é a mente
que imediatamente vê através dos olhos, como através de janelas que, no interior,
são transparentes. Galeno examina a mesma opinião de Platão, no livro 7 De placitis
Hippocratis & Platonis, também no livro 1 0, De usu partium e no livro l dos Prog
nósticos, sentença 1 9, acrescentando de que modo os nervos transmitem a sensação
ao cérebro, do qual recebem a faculdade de sentir, tal como o ar externo adequado
ao acesso dos raios, que saem dos olhos, é reflectido para transmitir a alteração do
visível ao olho.
É costume, para confirmar a posição de Platão, avançar muitos argumentos, que
Teófilo reuniu neste ponto, texto 69 e Macróbio, no livro 7 das Saturnais, capítulo
1 4º. E primeiro, pode mostrar-se que a vista lança, por si, raios visuais, porque a
natureza não parece ter acendido o humor ígneo na vista por outra razão. Depois,
porque nenhuma razão se pode aventar para o facto de que aquilo que foi cercado de
ar nebuloso não veja a névoa próxima, mas veja a distante, a não ser porque os raios
visuais, dado saírem dos olhos, são mais fortes e, assim, penetram a névoa vizinha;
já os que vão mais longe, enfraquecem, pois não podem vencer a névoa, e assim dela
retomam como de um corpo opaco, em direcção os olhos. Depois, uma coisa encos
tada à pupila não é vista e isto acontece porque o raio é impedido de se espalhar fora
de si; portanto, a visão faz-se pela emissão dos raios.
A seguir, prova-se que a visão não ocorre a partir dos simulacros recebidos do
objecto, porque, de modo algum, é verosímil que tipos de coisas inumeráveis, que
vemos, por um impulso, desfilem ao mesmo tempo, nos olhos. E uma tão exígua
pupila guarda tanta quantidade de imagens afluentes, que elas mutuamente colidem
entre si e estorvam-se, sobretudo porque não há nada que a pupila forme e distinga
que não deixe numa massa desordenada. Outro argumento. Ou deixamos cair estas
imagens, como peles das coisas, como sucede com aquele que quer ver, ou elas
surgem naturalmente também quando ninguém vê. Se é o primeiro, então de que
mando acorrem elas imediatamente? Se é o segundo, elas dimanam em fluxo per
manente dos corpos, não sem grande desgaste o que Aristóteles opõe aos discípulos
de Demócrito, que afirmam que as acções dos corpos se fazem por defluxo) e não
erram indistintamente em nenhuma ordem, o que é absurdo.
Além disso, a imagem nos espelhos remete quem a observa para a uma imagem
oposta, o que, todavia, caso partisse de nós, uma vez que ela sai em linha recta,
deveria mostrar a sua parte posterior, tal como um actor quando põe a máscara, isto
é, veste uma personagem na face, somente vê a abertura posterior. Por isso, de forma
alguma se deve admitir que a visão se realiza através das imagens emitidas pelas
coisas, as quais não podem ser emitidas por elas.
334 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Explicação da posição verdadeira
quer ponto do meio transparente, se produz a luz, contanto que não se interponha
qualquer corpo opaco, também a partir de qualquer parte de um corpo colorido, é
produzida a semelhança do mesmo para qualquer ponto do meio iluminado em acto,
contido dentro da sua esfera, contanto que não se interponha nenhum corpo opaco.
Isto é evidente, porque, como os agentes naturais são levados por necessidade da
natureza para as suas acções, afastados os impedimentos, eles não podem deixar de
agir segundo todas as suas partes em qualquer ponto do espaço. E por isso, os cor
pos, marcados tanto pela transparência como pela cor, que os torna maiores, por
causa disso manifestam a luz e a sua semelhança num espaço mais vasto. De facto,
como agem em qualquer ponto do espaço segundo todas as suas partes, quanto mais
e mais amplas forem, tanto mais a luz, como a imagem, produzidas na parte do
espaço vizinha do obj ecto, terão potência maior para mais vastamente se difundirem.
Isto também acontece quando as coisas são maiores, podendo por isso serem vis
tas de um local mais afastado, de maneira que, em qualquer ponto, ou em qualquer
parte do meio iluminado em acto, o corpo todo como objecto é representado no
órgão do sentido, e também cada uma das suas partes, a partir das quais é possível
traçar uma linha recta para um ponto ou parte do meio, de tal modo que em qualquer
parte do meio a sua semelhança seja impressa por qualquer parte do objecto colo
rido. Isto é o que a experiência confirma; que de qualquer parte do meio é suficiente
observar o objecto e todas as suas partes, em direcção às quais é possível prolongar
uma linha recta a partir do olho do observador, se nada se interpuser impedindo a
produção contínua da espécie por todo o espaço. Ora, não podemos observar todas
as partes a não ser através da sua semelhança; logo, todas e cada uma das partes dos
objectos coloridos, produzem a sua semelhança em qualquer parte do meio, e, por
isso, em qualquer parte, estão representadas todas e cada uma das partes do objecto.
Depois, prova-se o mesmo, deste modo. Qualquer parte do objecto colorido é um
agente natural e muito pouco livre para produzir a sua semelhança e existe indiscri
minadamente para agir em qualquer parte do meio iluminado em acto incluído den
tro da sua esfera, em direcção à qual é possível traçar uma linha recta. Portanto,
qualquer parte do objecto em qualquer parte do meio imprime a sua imagem e, por
consequência, em qualquer parte estão representadas uma a uma, todas as partes do
objecto. Por fim, prova-se o mesmo, porque se diferentes partes do objecto visível
produzirem a sua semelhança em diferentes partes do meio, mas não todas na
mesma, o Sol, que o astrólogos dizem que é pouco mais ou menos 1 67 vezes maior
do que toda a Terra, não poderia ser avistado todo por nós, em qualquer parte do
meio. Na verdade, para todas as suas partes produzirem a semelhança com ele
necessitariam de um espaço de tanta magnitude quanta a do próprio Sol, o que
repugna à experiência, visto que observamos o Sol de qualquer parte do meio. Por
isso, é necessário que todas as partes do objecto visível encontrem a sua semelhança
em qualquer parte do meio em que estão representadas.
Deve, além disso, advertir-se que as diversas partes de um mesmo objecto não
estabelecem as suas diferentes semelhanças numa mesma parte do meio em que são
vistas, mas ao mesmo tempo numa que é mais exacta e mais perfeita do que se fosse
enviada, uma a uma, de qualquer parte. Mais ainda, uma espécie desta natureza,
posto que recebe o seu ser de cada parte do objecto, como de agentes parciais, repre
senta as suas partes uma a uma, tanto quanto são dissemelhantes na intenção, no
336 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO Ili
Solução dos argumentos que foram propostos no primeiro artigo
argumento, mas sim porque é necessário iluminar o meio para trazer a espécie. Ao
terceiro argumento, que não é de admirar que todas as imagens das coisas estejam
impressas no olho, acorrendo à vista, ao mesmo tempo. É que todo o diáfano em
acto está repleto destas imagens, de tal modo que não lhe servem de obstáculo, não
oprimem a potência, nem são expulsos pela sua massa ou oposição, visto que não
são corpos, nem têm contrário, nem se perturbam, embora se reúnam no mesmo
sítio, porque onde quer que se dêem, retêm por si a potência de significar e a distin
ção da sua natureza. As imagens no diáfano permanentemente iluminado são deste
tipo, porque são naturalmente emitidas pela coisa visível; nem é de temer que elas
errem desordenadamente para ali e para acolá, mais do que a luz que a acompanha e
quase a sustenta, pois iluminadas pelo seu concurso, como acima dissemos, são
geradas e perecem quando ela desaparece. Por isso, é evidente o que se deve respon
der ao quarto argumento.
Ao quinto, dizendo, em primeiro lugar, que a imagem não se vê no espelho, como
será evidente de caminho, mas que a coisa que é objecto é vista através da imagem
lançada pela coisa, do espelho para o olho. É vista, digo, pela face da frente, não da
de trás, porque a espécie deste tipo não é como a máscara do actor, que numa face
mostra outra, mas é uma coisa simples, pura, representando o objecto de uma e de
outra face (digamos assim) . Pelo que acontece que as partes direitas do corpo do
objecto são produzidas como esquerdas no espelho, e o contrário. Sem dúvida, por
que a imagem repercutida da coisa para o olho, representa a coisa para nós a sair e
por isso embora a coisa vista não seja contrária, a mão como que muda e a sua
direita corresponde à nossa esquerda. Porque de outro modo seria necessário que
acontecesse vermos Sócrates a aparecer de frente, quando antes estava de costas.
Então, efectivamente, a mão direita corresponde à nossa esquerda. E assim, toda a
razão desta diferença está no facto de a espécie não ser diferente nem de costas nem
de frente.
QUESTÃO VI
Se a composição dos olhos é apropriada para a vi são, ou não é
ÁRTIGO I
Da superioridade dos olhos, seu lugar e sua forma
A visão é tida como o mais excelente de todos os sentidos. Primeiro, porque usa
para as suas funções as imagens transmitidas somente através do diáfano iluminado,
mai s subtis e mais libertas de resíduos da matéria e não recebe do objecto qualquer
mudança real, mas apenas nocional, como por exemplo, não embranquece quando
vê o branco. Segundo, porque a sua acção é rapidíssima, pois ocorre num instante.
Terceiro, porque atinge as coisa de maior extensão. Quarto, porque (omitindo as
restantes prerrogativas) abarca muitas diferenças das coisas, visto que fruímos com a
beleza da luz, observamos os enfeites e a arquitectura do mundo, distinguimos a
variedade das cores, compreendemos o repouso, o movimento, o lugar, a proporção,
o número, a forma, o tamanho de todos os corpos. Por isso, nenhum sentido é mais
idóneo para comparar o conhecimento com a própria descoberta. Donde, Platão no
338 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
Timeu refere que a filosofia é agradável à vista, e o seu imitador, Fílon Judeu, no
livro De specialibus legibus, diz que a filosofia dimana do céu para as almas dos
homens, mas foi trazida pelos olhos, mediadores do acolhimento. Na verdade, eles
avistaram primeiro, os caminhos magníficos que se dirigem do céu para nós. Tam
bém no livro A Criação do Mundo, diz que a mente está na alma, o olho está no
corpo. Uma e outro vêem. Uma, as coisas inteligíveis, o outro, as sensíveis. A visão
da mente, para conhecer as coisas incorpóreas, os olhos, para contemplação dos
corpos, facto que aproveita a muitas coisas e, primeiro, àquilo que é supremo, isto é,
à filosofia.
No que respeita ao lugar dos olhos, apraz referir, neste ponto, o que Santo
Ambrósio, livro 6 do Hexâmero, capítulo 9º, escreveu acerca deste assunto. Os olhos
estão ligados a sobrancelhas de grande volume, que protegem, zelando do topo do
monte e, colocadas no alto, avistam de longe todo um espectáculo superior. Não
convinha que os olhos fossem humildes como os ouvidos, ou como a boca ou como
as próprias cavidades interiores das narinas. Efectivamente, o lugar de observação
está sempre no topo para poderem ser detectados os ataques dos bandos hostis que
chegam, para não ocuparem de surpresa o povo desprevenido da cidade, ou o exér
cito do imperador. Assim, também se protegem dos ataques dos mercenários se os
observadores estiverem colocados nas muralhas ou nas torres, ou num cume de um
monte, para observarem, do alto, as planícies das regiões onde os ataques dos sol
dados não possam passar despercebidos. Estando no mar, se alguém se tentar apro
ximar da terra, o observador sobe aos cumes do mastro, aos elevados píncaros das
antenas e aqui, saúda a terra de longe, invisível aos restantes navegadores. E se
eventualmente se atalhar: se foi necessário tão alto observatório, então por que é os
olhos não foram colocados no topo da cabeça, tal como nos caranguejos ou nos
escaravelhos onde se encontram no cimo, pois ainda que eles não tenham cabeça,
pescoços ou dorsos, estão no entanto mais elevados do que o resto do corpo? Dir-se
á que neles a casca sólida não tem uma membrana tão delicada, tal como nós,
podendo facilmente ser ofendida pelas silvas e rasgada pelos restantes órgãos dos
sentidos. E assim, é necessário que os nossos olhos sejam colocados na parte quase
mais alta do corpo defendidos de toda e da mais pequena ofensa, já que são duas
situações opostas. Na verdade, se estivessem em baixo, por causa da protecção, a
função ficaria impedida; se estivessem no topo, estariam expostos à agressão. Isto,
segundo Santo Ambrósio. Leia-se também S. Basílio, homilia undécima, Hexâmero.
Sem dúvida que a natureza maravilhosa provê que os olhos possam existir e que as
coisas que sobrevêm de fora, repilam as agressões e, por isso, encerrou com abertu
ras côncavas e com nós, rodeados pelo abrigo das pálpebras (embora apenas a aves
truz alada, as tenha dos dois lados, como o homem), as quais abrem não só o acesso
às imagens das coisas que acolhem, muitas vezes com grande celeridade, mas tam
bém impedem os incidentes e os prejuízos. Então, também fornece as sobrancelhas
adornadas de pêlos pequenos, movendo-se alternadamente, repelindo o suor que cai
da cabeça e da fronte. Ora estas, como adverte Plínio, no 2 da História Natural,
capítulo 37º, indiciam principalmente a altivez. A soberba tem aqui a sede e não
noutro receptáculo. Nasce no coração, cresce até lá e daí pende. Nada de mais alto e
abrupto se encontra, ao mesmo tempo, no corpo, onde fica isolada.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão VI, Artigo // 339
Acerca da forma dos olhos, temos o seguinte. Os olhos existem com a forma de
globo, principalmente por duas causas . Primeira, porque a forma globular está mais
disposta para a agilidade, revolve-se em todas as direcções e difunde a vista. Deus,
autor da natureza, quis que a vista se movesse circularmente (diz Timeu), para imi
tarmos, no uso da nossa mente, as órbitas que se movem no céu, reconduzindo as
idas e as vindas que lhes são afins, apesar de desordenadas, à sua composição, e às
revoluções feitas por Deus, que se dão sem qualquer erro. Depois, porque, tal como
os matemáticos demonstram, se os olhos não fossem redondos não poderiam
apreender a quantidade das coisas, nem perceberiam nada, a não ser o que é igual a
si. Na verdade, a vista dá-se por linhas rectas incidindo sobre o olho na perpendicu
lar. Por isso, se o olho fosse de superfície plana não entrariam nele as linhas perpen
diculares a não ser de igual superfície e, assim, apenas se veria o igual.
ARTIGO II
Das coisas que respeitam à função interna dos olhos
Chegamos agora à composição interna dos olhos. Os olhos são formados, no que
respeita à presente consideração, por sete músculos motores e por cinco membranas,
ainda que haja quem enumere de modo diferente, três humores e dois nervos. Os
músculos são-lhes dados pela natureza, para moverem facilmente o globo da vista.
Um, para cima, outro, para baixo. Dois movem para a direita e para a esquerda.
Outros dois, em movimento circular e o sétimo sustenta e liga. Das membranas, a
interna chama-se especular porque como um espelho reluz e brilha; em grego, por
causa da relação com a aranha, à imagem das teias, ápaxvoe1õ�ç. A seguir a esta, em
grego, áµqnÀ�Gpoe1õ�ç, em latim ditas, reticular, porque muitas veias e artérias mos
tram uma forma entrelaçada em rede. A terceira, em grego payo e tõ�ç , em latim úvea
porque é igual ao folículo da uva, de que se encontra cortado o pedúnculo. A quarta,
em grego KE p aT O ELÕ� ç , em latim córnea, porque cortada representa lâminas finíssi
mas e é brilhante e diáfana. A quinta, em grego ÉmnecpuKwç, em latim adnata ou
conjuntiva porque para seu benefício o olho está cercado por todos os lados, num
todo, sendo também chamada assim por causa da cor branca.
Dos humores, o interior diz-se em grego Kpu <JT aÀÀo e tÕ �ç , do latim cristalino ou
glacial, porque se assemelha ao cristal ou vidro na transparência, embora seja pouco
flexível. A seguir, em grego úaÀoELÕ�ç, em latim vítreo ou albumina, porque é
semelhante à consistência e cor do vidro fosco ou do branco da clara do ovo. O
terceiro, em grego úcSaTWÕfJÇ, em latim aquoso, pela semelhança com a água.
Depreende-se que a composição destas partes tem a seguinte ordem entre si. O
olho, como dissemos, tem a configuração do globo. O humor cristalino ocupa o seu
centro, que a membrana especular rodeia por todos os lados. O centro deste humor,
juntamente com o humor vítreo que segue de muito perto, está imerso nele e como
que flutua. A seguir, a túnica reticular rodeia o humor vítreo na parte posterior, que
delimita quando o humor glacial começa a sobressair sobre o vítreo. Depois apre
sentam-se duas membranas. A úvea, por cuj os orifícios se vêem o humor cristalino e
a pupila, e também por cuja cor desta túnica que é variegadamente tingida, dizemos
que os olhos são negros, azuis, verdes e imbuídos de outra cor. A outra túnica é a
córnea, que rodeia todo o olho e tem brilho. Entre estas duas membranas está con-
340 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
QUESTÃO VII
Se a visão se dá no humor cristalino
ARTIGO I
Com que argumentos parece mostrar-se que não se dá aí
ARTIGO II
Estabelece-se a parte afirmativa da questão
Nesta controvérsia alguns, de entre os quais Avicena, que Célio refere, livro 4,
capítulo 20º; Ciruelo, livro 1, da Perspectiva, capítulo 3º, conclusão 6 e Vitélio, livro
3, teoremas 4 e 20, consideram que a visão se produz na união do nervo óptico, com
o que aprova o último argumento do artigo anterior. Mas esta posição refuta-se,
porque se a visão se fizesse aí, seguir-se-ia que os homens em quem esses nervos de
maneira alguma se juntam entre si (consta que foram encontrados casos destes) ou
careceriam em absoluto de visão, ou, como pretendem os defensores da opinião
contrária, veriam todas as coisas a dobrar, o que a experiência comprovou ser falso.
Segundo. Considera-se que a visão se faz no olho, porque, afectado o olho, a vista
é imediatamente afectada não por outra causa a não ser porque onde reside a facul
dade de ver, aí se encontra a função. Não satisfaz quem disser que quando o olho é
afectado a vista é lesada porque a denúncia das espécies ao nervo fica impedida.
Com efeito, o traj ecto das imagens é tão moroso e difícil, que se deve considerar que
a ofensa do meio o prejudica. E, por fim, confirma-se que a vista se dá no crista
lóide, porque este humor está colocado no meio de todos os outros humores. Se ele
estiver lesado perde-se a visão. Também esta parte do olho é muito brilhante e visí
vel e não está impregnada por nenhuma cor, porque cumpre sobretudo a função de
ver. Daí Galeno, 8 De usu partium capítulo 6º ensinar que as restantes partes do olho
foram criadas por causa deste humor, para o conterem ou para o sustentarem. Tam
bém no livro 1 O, desta obra, capítulo 1 º estabeleceu que o órgão da vista consiste
num humor desta natureza. O mesmo pensa Aristóteles, no livro 1 sobre A Geração
dos Animais, capítulo 5°, quando afirma que a visão se produz na parte que é toda
nítida e brilhante, para poder ser movida por qualquer cor e pela luz. Também, mais
abertamente no livro 1 , A História dos Animais, capítulo 9º. Vitélio afirma o mesmo,
no livro 3, Perspectiva, teorema 4; Valésio, no livro 2 Controversiarum, capítulo 8º;
Veiga, sobre Galeno, De Zoeis affectis, livro 4, capítulo 1º.
Os argumentos que aduzimos contra a parte contrária facilmente são explicados.
Ao primeiro respondia-se convenientemente. O que depois se objectou, resolve-se
dizendo que, embora a cor difundida no sensitério houvesse de impedir a visão das
outras cores, todavia a luz que o humor cristalino recebe do ar iluminado não
impede que se vejam as restantes luzes, porque a luz é o objecto da vista como tam
bém é o meio, por cuja intervenção todas as coisas são vistas, o que, do mesmo
modo não deveria inibir nenhuma visão. Ao segundo, dir-se-á o seguinte. Quando a
alma está muito atenta a outras coisas, de tal modo que não presta atenção à coisa
que vê, a visão não se dá, porque não se produz a sua causa perfeita, isto, pela defi
ciente ligação da própria faculdade da qual brota a acção de ver. Ao terceiro, conce
dida a premissa maior, deve ser negada a menor e para prová-la dizer que a pirâmide
se encerra num ponto, mas que a partir dos dois olhos não é traçada uma pirâmide,
mas de cada um a sua. Não obsta que o objecto seja um, porque da mesma coisa
podem sair infinitas pirâmides. Ao quarto, dizendo que não é pela causa referida no
argumento, que se conjuga com o nervo óptico. Na verdade, que não é necessário
que nele confluam as espécies para que se mostrem as coisas é plenamente evidente,
porque, de outro modo, seria necessário no cérebro algum nervo em que as espécies
audíveis depois se juntassem numa só, para não parecerem dois sons simples. Mas a
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão V/li, A rtigo l 343
causa pela qual, na visão geminada nos olhos, e na audição, nos ouvidos, não apa
rece geminado aquilo que é simples, exporemos nos Problemas.
QUESTÃO VIII
Se a imagem é vista no espelho ou não
ARTIGO I
Argumentos da parte afirmativa
É evidente que existem certos corpos que devolvem as imagens, como a água, o
bronze polido e certas jóias. Mas também não as restituem igual e claramente, os
espelhos de vidro que têm o chumbo escuro na parte contrária. Na verdade, o vidro
recebe as imagens facilmente por ser mais liso e transparente, mas não as devolve
impressas, a não ser que as retenha no reverso de um corpo denso e escuro. Aqui, o
hábil engenho da natureza parece formar os olhos dos animais à imagem dos espe
lhos, pois junta uma certa negrura da pele ao humor cristalino, a partir do qual sai
uma imagem para os que olham para dentro da pupila dos outros. Daí se dizer habi
tualmente que tal como o espelho é o olho da arte, os olhos são o espelho da natu
reza. Antes de chegar à questão proposta, avisamos que a matéria, neste ponto, isto
é, o uso dos espelhos, que em grande parte decorre do brilho, não pode conferir
pouco proveito à alma. Daqui Sócrates, como refere Apuleio, usar o espelho para
disciplinar os costumes. Também recomendava aos adolescentes que o fizessem,
pois se tivessem uma figura digna não a manchariam com vícios e se fossem de
aspecto deformado, compensá-la-iam com a elegância dos costumes. No que res
peita ao que Séneca referiu nas Questões Naturais, livro 1 , capítulo 1 7º, os espelhos
não foram inventados para que o homem retirasse a barba da face, ou para alisar a
face do homem, mas para que o homem se conhecesse a si próprio. Muitos obtive
ram, por causa dele, o primeiro conhecimento de si, e daí também um certo acon
selhamento, formoso, para evitar a infâmia, disforme, para saber que deve ser res
gatado pelas virtudes o que quer que falte ao corpo. Jovem, para ser aconselhado na
flor da idade; é o tempo de aprender, de ouvir as coisas valorosas ; velho, para depor
as coisas indignas do cínico e pensar algo sobre a morte. Foi para isto que a natureza
das coisas nos deu a faculdade de nos vermos a nós mesmos. Fonte transparente para
cada um, parede que retlecte desajeitadamente; há pouco vi-me na praia. Uma vez
que o mar permanece calmo de ventos, qual julgas ter sido o aspecto dos que se
viam a este espelho? Aquela idade mais simples, contida pelas coisas fortuitas, ainda
não corrompia o benefício, nos vícios, nem arrebatava a juventude da natureza para
o luxo e para a devassidão.
Posto isto, é costume trazer à controvérsia se num espelho (o que do mesmo
modo se poderá entender sobre outros corpos cujos simulacros das coisas se lançam
até à vista) se, digo, se vê a imagem da coisa, ou melhor, a coisa por ele represen
tada. Séneca omitiu esta controvérsia, livro 7, Questões Naturais, capítulo 5º, visto
que a declarou resolvida. Parece claro que se deve afirmar que se vê a imagem, tanto
pela consideração comum dos homens, quanto pelo próprio sentido. Outro. Porque
344 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
se é o objecto que é captado e não a imagem, vemos o objecto no seu próprio sítio e
lugar e sob um tamanho determinado, que é o que possui ao pé da coisa. O objecto
que vemos, apenas nos chega colocado frente ao espelho e aparece muito menor e
também a uma distância maior do que a que está. Terceiro argumento. Porque num
espelho plano, colocado segundo o horizonte, a parte superior da coisa vista, aparece
acima, em baixo, a do fundo. E num espelho partido vêem-se as coisas simples aos
pares e, em certos espelhos dispostos de uma determinada maneira, não só duas, mas
uma grande quantidade de coisas. Tudo isto não parece provir senão do modo dife
rente como a imagem é recebida nos espelhos e daí se oferece à visão. Último argu
mento. Porque é a partir do ar, como entretanto acontece, que o reflexo se faz para a
vista, o que se vê não é a própria coisa, mas o seu simulacro - o que Aristóteles
transmite de modo claro, no livro 3, Meteorológicos, capítulo 4º, quando diz que,
para uma certa pessoa (pensam que este Antiferonte Oretano existiu) - era sempre a
sua imagem habitual repercutida pelo ar, diante dos olhos, que era vista. E assim,
Aristóteles não julga que se trata do próprio Antiferonte, mas que a sua imagem
costumava ser vista no ar. Ele também, certamente, disse isto acerca do espelho,
posto que faz totalmente sentido nos dois casos.
ARTIGO II
A imagem não é vista no espelho
Na questão proposta são várias as opiniões dos autores. Escoto, no 2º livro das
Sentenças, distinção 1 3 , questão 1 ; Averróis, no livro O Sentido e o Sensível, capí
tulo l º; São Tomás, A Verdade, questão 8, artigo 5º e artigo 1 5º, afirmam que a
pedra e a sua imagem no espelho são vistas ao mesmo tempo; e o mesmo repete, na
l ª parte da Suma Teológica, questão 58, artigo 3º. Capréolo narra mais desenvolvi
damente este exemplo no primeiro livro das Sentenças, distinção 35, questão 2,
artigo 1 º, nas soluções dos argumentos contra a 2ª conclusão, afirma que o visível
produz a espécie a partir de si até ao espelho, a qual reproduz apenas o visível e que,
então, do espelho até ao olho é infundida apenas uma espécie que representa um e
outro. São da mesma opinião Caetano, l ª parte da Suma Teológica, questão 56,
artigo 3º; Célio, livro 15, capítulo l º; João Gandavense, questão 9, O Sentido e o
Sensível; Thimon, 3 Meteorológicos, questão 4.
Todavia, é verdadeira a opinião contrária que todos os estudiosos da Perspectiva
acolheram pouco mais ou menos, como se vê em Ciruelo, livro 2, Perspectiva,
capítulo 2º, conclusão 1 3 e Vitélio, livro 5 ; Ricardo, no 4º das Sentenças, distinção
1 1 , questão 1 , no 6º principal; Apolinário, neste livro, questão 1 7 , e muitos outros.
Explicar-se-á com esta conclusão. No espelho não se vê apenas a imagem da coisa,
nem a coisa ao mesmo tempo com a imagem, mas apenas a coisa cuja imagem está
impressa no espelho. Esta afirmação consta de três partes. Quanto à primeira, con
clui-se assim. Qualquer coisa vista ou é cor, ou é luz. Apenas estas estão contidas no
objecto da vista. Ora, a imagem não é nenhuma delas, logo não é vista. Segundo. A
espécie visual é homogénea e qualquer parte sua reproduz todo o objecto, como
dissemos acima; mas, no espelho, apresentam-se à vista, numa parte, a cabeça, nou
tra, os pés e os restantes membros; portanto, aquilo que é visto não pode ser a espé
cie visual. Terceiro. Porque a imagem é difundida em todo o espelho, mas aquilo
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vil, Questão Vil/, Artigo li 345
que é visto não é visto no espelho todo. Quarto. Porque a imagem está numa única
superfície do espelho feito de aço e, no entanto, a coisa vista aparece no fundo.
Quinto. Porque se a imagem fosse vista no espelho, uma vez que nada se perceberia
a não ser pela semelhança impressa da potência, ou a imagem seria vista pela seme
lhança da mesma espécie ou pela sua diferença. Não da mesma; quer porque o ser
nocional, como é o da imagem, se distingue sempre em natureza, daquilo que signi
fica; quer porque a semelhança da imagem difere em espécie, daquilo de que é o
simulacro; quer, por fim, porque as semelhanças se distinguem em espécie, através
dos objectos que representam. Visto, portanto, que a cor e a sua semelhança alcan
çam natureza diferente em espécie, a consequência é que também a imagem da cor e
a imagem da semelhança da própria cor alcançam diferente natureza em espécie.
Mas que não se vê a imagem no espelho através de outra semelhança diferente da
espécie, recomenda-se, porque, então, a visão que é feita no espelho, não seria
reflexa, pois é conduzida do espelho para o olho em linha recta. Se algum adversário
disser que o objecto se vê por linha curva, a imagem pela linha recta, já nega que se
vej a apenas a imagem, o que afirmava antes. Segundo, a luz directa e a reflexa são
da mesma espécie, logo a imagem que se estende em linha recta do objecto para o
espelho e por linha curva do espelho para o olho, serão da mesma espécie e apenas
representam o objecto. Logo, também aquilo.
É evidente que a imagem e a coisa significada através dela não são vistas ao
mesmo tempo, porque diz-se que a coisa e a imagem apenas são vistas ao mesmo
tempo enquanto for o mesmo o movimento para a imagem e para a coisa, que a
imagem representa, como Aristóteles escreveu no livro A Memória e a Reminiscên
cia, capítulo 2º, porque, como se mostrou que a nossa vista de modo algum é limi
tada pela imagem que incide no espelho, é plenamente aceite não poder dizer-se que
nós vemos no espelho a imagem e a coisa que a imagem significa.
Resta, portanto, que para que se vej a a coisa no espelho ela deve estar em frente
ao espelho. Por exemplo, quando Sócrates se vê a si mesmo no espelho, vê-se nele
através da espécie que salta do espelho, porque imprime primeiro a sua imagem no
espelho, a seguir a imagem reflectida retoma do espelho para os olhos, através da
qual, impressos os olhos do próprio Sócrates, estes chegam a ver e tendem para
Sócrates, não no próprio sítio, mas num diferente, isto é, naquele de onde a imagem
ressalta para a vista. Nem é de admirar o facto de ser visto, pois isto é típico da visão
reflexa. Sobre este assunto veja-se mais em Vitélio, livro 5, Perspectiva e seguintes.
Respondamos agora aos argumentos da parte contrária. Ao primeiro, dizendo que,
embora não só o vulgo, mas muitos sábios declarassem ter visto a imagem no espe
lho, e que tal parecia ser assim para o sentido, na realidade acontece de modo dife
rente, como demonstrámos. Ao segundo, é evidente o que se deve dizer, a partir das
afirmações seguintes. Ao terceiro, que a variedade no lugar, pela qual a coisa obser
vada se apresenta nos espelhos, e também a duplicação, ou o seu grande número,
tem origem no próprio lugar ou na disposição dos espelhos e no modo pelo qual a
imagem retoma e através da qual a coisa é vista. Se tivéssemos de explicar todas as
coisas, pormenorizada e claramente, seria necessário acrescentar sobre o assunto o
tratamento completo e também o que se opõe à presente disposição.
346 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
QUESTÃO IX
Se aqueles que comummente são chamados vedores das águas
as vêem realmente debaixo do solo
ARTIGO I
Discussão de uma e de outra parte da questão
sinal particular é se antes do nascer do Sol, ao longe aparece aos observadores uma
exalação nebulosa muito ténue que eles observam inclinados com o queixo encos
tado à terra. Também existe, como afirma Plínio no ponto citado, outra avaliação,
somente conhecida dos peritos, que eles seguem no calor escaldante em horas muito
quentes do dia, como o brilho reflectido de qualquer lugar. Na verdade, se aquele
lugar estiver mais húmido do que a terra ressequida, faz crescer uma indubitável
esperança. Mas é preciso tanta atenção dos olhos, que chegam a doer, acabando por
fugir para outras experiências, e etc. Há outros que dizem observarem as águas
cobertas pela terra. A nossa questão é acerca disto. Na verdade, parece mostrar-se
que tal é completamente falso porque, como a visão não acontece senão pelas espé
cies transmitidas ao objecto através do diáfano iluminado em acto, a terra é opaca,
não se deixando atravessar pela luz. De que modo pode ser vista a água da terra que
se esconde em lugar oculto? Segundo. Porque isso, nestes homens, ou provém da
perspicácia e da acutilância, ou de qualquer qualidade intrínseca, por dom da natu
reza. O primeiro deve negar-se, porque estes homens não vêem de modo mais pene
trante do que os restantes. O segundo também, porque não é claro que exista alguma
qualidade desta natureza. Logo, etc. Acontece que alguns que se gabam desta função
não são em si menos falsos do que a água que vêem debaixo da terra, e fizeram disto
profissão. Por isso, alguns deles, por cuj a afirmação foram descobertas águas em
poços escavados, tombaram na suspeição de pacto com os demónios.
Também não faltam argumentos à parte contrária. Primeiro. Que embora seja de
espantar, todavia não deve considerar-se impossível que existam alguns homens
dotados de uma dádiva da natureza que vêem a água debaixo da terra. Pode conce
der-se como provável com exemplos de muitos homens, aos quais foram dados cer
tos dons particulares, além da ordem comum e costume do próprio nascimento.
Alexandre da Macedónia exalava um odor suavíssimo da pele e dos membros, e
Demofonte, que superintendia às suas mesas ao Sol, enregelava no banho e fervia à
sombra. Tibério César, acordado de noite, durante pouco tempo e não noutro sítio
senão à média luz, avistava aos poucos todas as coisas obscurecidas pelas trevas.
Também no nosso tempo, um certo cidadão de Bragança, cidade da Lusitânia, de
noite via tão acutilantemente que distinguia cada mínima coisa. Atenágoras Argivo
não sentia dor quando mordido pelos escorpiões. Os Tintyritas, habitantes do Egipto,
viviam impunemente entre os crocodilos. Uma certa tribo de Etíopes, frente aos
Meroes até ao rio Hydaspes, diante do perigo, devorava serpentes venenosas. Seria
longo continuar. De facto, a natureza costuma, com estas digressões, dançar fora do
coro, para produzir a beleza da extraordinária variedade do universo.
Outro. Demonstra-se que não repugna que as águas se vejam do modo referido,
porque diz-se que os linces são aqueles que vêem as coisas que estão por detrás de
uma barreira. O que também os historiadores trouxeram à memória, acerca de um
certo argonauta, chamado Linceu . O facto de não se ver através da obscuridade da
terra não impede que as imagens possam ser transmitidas da água para a vista. Com
efeito não é improvável o que os filósofos estóicos defendiam, isto é, que a terra está
impregnada de alguma luz, logo também as coisas, que em lugar oculto da terra
foram colocadas, pelo menos a alguma distância, emitem as suas próprias imagens
mesmo ténues, que normal e comummente não coincidem com a faculdade de ver,
mas com a de que os vedores são dotados. Não é verdadeiro o argumento que diz
348 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
que a densidade da terra impede o trajecto das espécies, pois o cristal é mais denso
do que a terra e, no entanto, transmite as espécies por difusão da luz.
ARTIGO II
Explicação da questão
Disputada assim uma e outra parte, alguns ilustres filósofos do nosso tempo abra
çam a afirmativa. Sem dúvida que há homens que vêem realmente as águas latentes
na terra. Mas são levados, tal como se opina, não tanto por razões filosóficas, mas
pela experiência. Também existiram muitos, e aqui referimos alguns, que em muitos
sítios, com a sua inspecção, mostraram a potência oculta da água. Um exame acu
rado e diligente persuade que não interveio nisto obra dos demónios, matéria em que
a probidade do juízo público foi explorada pela autoridade deles. São também trazi
dos à colação certos animais irracionais aos quais a natureza deu esta potência de
ver, com o argumento que em certos sítios eles batem em retirada quando, ao esgra
vatar a terra, vêem a descoberto as águas que correm debaixo.
Os que seguem a parte negativa remetem aquelas coisas que dissemos resultarem
da experiência, para sinais exteriores, para envenenamentos, para metais, para a
morte. Se no entanto eles quiserem seguir a parte afirmativa, ao primeiro argumento
dos adversários, responderão com os estóicos, dizendo que a terra é decerto opaca e
obscura, não porque não admita directamente a luz interior, pelo menos dentro dos
poros, mas porque isso é de tal maneira exíguo que não é tido para nada, sobretudo
porque não cai ordinariamente sob a vista. Mas os vedores não vêem a água sem
alguma luz, com o argumento de que os que estão prestes a inspeccionar, procuram a
luz do meio-dia e o esplendor do Sol, pelo qual certamente extraem as espécies a
partir do fundo e as concitam à vista. Estas espécies atravessam o ar, fortemente
arremessadas pelos poros da terra.
À segunda, dizendo que em grande parte isso não provém da excessiva perspicá
cia, pelo menos a respeito de todos os visíveis, como prova o argumento, mas de
uma peculiar afecção oculta, que a proporção da vista tem para uso de tais espécies e
de luz tão exígua. Conquanto entretanto se diga que com esta proporção foi desco
berto o admirável aguilhão para ver todas as coisas tão ao longe, como o argonauta
Linceu de que fizemos menção acima, que não só via com a terra interposta, mas se
dizia que também costumava, quando saía de Cartago o exército cartaginês, conhe
cer claramente o número dos navios do alto de Lybicana. E o mesmo, o que acontece
a pouco mortais, viu no mesmo dia a última Lua e a primeira no signo de Carneiro.
Ao último, não é de admirar que alguns que vêem as águas fingissem não as
verem. Com efeito, nada é tão certo e evidente nestas coisas como encontrar um
falsário.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VII/ 349
vão produzir o som, para o que desenvolveu algumas condições propostas . A pri
meira é porque são duros, resistem mutuamente e ferem o ar interposto. Por falta
desta condição, os corpos de lã não produzem som. A segunda é porque são lisos,
porque as coisas lisas têm uma superfície uniforme, em que todo o ar percutido
soará ao mesmo tempo e nem reduzido a pedaços resulta em silêncio. Terceira,
porque são côncavos. Com efeito, estes corpos são os mais aptos para produzir o
som, porque o ar que se introduz depois de percutido repercute-se para os lados
côncavos como vemos nas campainhas. Trata do meio do som e ensina que é o ar
e a água, ainda que estas não sejam a principal causa produtora do som, mas os
corpos sólidos que comprimem o ar, tal como o movimento de percutir antecede
e demonstra a dispersão do ar. Donde, acontece que a percussão rápida tem de
ser impelida com força, visto que o ar espalha-se sem o som. Aristóteles afirma-o
com um exemplo. Efectivamente, se alguém bater rapidamente e com força num
amontoado de areia a pique, produz som, por causa da velocidade. Acontece o
contrário se bater ao de leve e devagar na areia.
d. Fit autem Echo 4 1 9 a 25 Fala da formação do eco ou do som reflectido. Diz
-
que ele se dá quando o som resulta do som, isto é, quando o ar, uma vez percu
tido, se lança no corpo que lhe resiste e, como depois não pode avançar, afasta-se
e estala, como uma bola. E ensina que acontecem sempre deste modo vozes que
se repetem, embora enfraqueçam perante o sentido devido à sua debilidade, o que
também acontece com a luz. Na verdade, embora a luz não resplandeça desta
maneira para nós, ressalta sempre, também nas partes onde existe sombra, visto
que onde quer que existam trevas, excepto nos lugares opostos ao Sol, aí, o
esplendor e o raio claramente se estendem. Assim, o reflexo do som existe sem-
350 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
pre, porque o ar percutido, por causa do som, encontra sempre um corpo, donde
recua. Mas não é sempre ouvido, ou porque as espécies que percorrem são muito
fracas e já quase morta ou porque chegam espécies directas ou que não existiam
antes, porque o que está em causa, é se o eco é percebido como um som distinto.
Ele avisa que é por isso que os filósofos antigos afirmaram sem sombra de
dúvida que o ar é o meio pelo qual se percebe o som, que muda então de modo
mais apto, como acontece com a audição, visto que todo o ar interposto entre um
corpo que soa impressiona a faculdade de ouvir para as espécies poderem ser
transmitidas ao ouvido.
e. Inest autem auditui 420 a 3 Explica por que razão o aparelho auditivo é movido
-
pelo som. Com efeito, o ouvido tem o ar congénito com o seu órgão, o qual
sendo movido nocionalmente pelo ar externo, também é movido pelo som nocio
nalmente, isto é, é movido através das espécies. E, por isso, os órgãos de ouvir
não sobressaem pela sua potência em todos os animais, porque o ar não existe em
todos, mas apenas nos ouvidos no interior dos quais se esconde. Além disso,
existe uma diferença entre o ar externo e aquele que possuímos por natureza no
ouvido, porque, embora um e outro esteja privado de som, aquele facilmente se
espalha e produz o som e este permanece parado para compreender e conhecer
todos os géneros de sons, tal como o humor cristalino está livre de toda a cor,
para perceber todas as cores. Por isso, também ouvimos dentro de água, porque a
água não se introduz no ar congénito ao ouvido. Se alguma vez nele irromper
com uma pancada violenta não se percebe o som. Isso acontece igualmente
quando a membrana que encerra o ar padece de algum defeito.
f. At enim signum 420 a 1 5 Mostra, por um certo indício, que o ar congénito e
-
som é o que percute ou o que é percutido. Responde que a causa do som está
num e noutro, embora por razões diferentes. O corpo percutido, ao resistir, o que
percute, ao infligir, e a causa está em que o ar interposto estala, visto que o som
nasce do embate dos dois corpos e do impulso do ar. A seguir, explica de novo
como devem ser os corpos que colidem para provocar o som e que é necessário que
sejam lisos e planos, porque dos ásperos, por causa das rugosidades e da superfície
desigual, não brota junto o ar necessário ao som, mas escorre e espalha-se.
h. Atque differentiae sonorum 420 a 26 Investiga as espécies ou as diferenças do
-
som e ensina por que razão as percebemos, dizendo que, tal como a vista não
distingue as cores sem a luz, assim também o ouvido não discerne os sons, a não
ser quando são produzidos em acto. Explica o grave e o agudo nos sons, através
da semelhança retirada dos que ferem o tacto. Neles, diz-se agudo aquilo que
cessando na extremidade, em tempo breve, causa uma grande lesão; surdo, o que
não bate durante muito tempo. Assim, chamamos agudo, àquele som que, ouvido
durante pouco tempo, move mais fortemente o ouvido; grave, o que move pouco.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VIII, Questão /, Artigo J 351
parte dele, isto é, da voz. Como dá uma definição completa de voz, examina as
suas partes, uma a uma. Adverte, primeiro, que a voz é o som do animal. Se
alguém objectar que também se diz que a flauta e outros instrumentos com que se
faz um concerto, produzem voz, reponde-se que se lhes dá o nome de voz, não
em sentido próprio, mas por analogia. Nem a voz respeita a todos os animais,
visto que alguns carecem de sangue e, nos que são dotados de sangue, também os
peixes carecem. Há uma causa comum a todos eles, é não respirarem. Também a
natureza lhes negou instrumentos para a voz, visto que a voz não pode ser produ
zida sem a respiração do ar atraído. Não obsta, afirma Aristóteles, que se diz que
os peixes do rio Aqueloo têm voz. Na verdade, não é uma verdadeira voz, mas
eles emitem certos sons das guelras, da boca, ou da cauda. Considera haver ainda
uma outra parte da definição, a saber, que a voz é, seguramente, o som do animal
que respira.
k. Iam enim ipsa natura 420 b 20 Diz que são duas as funções do ar sem interven
-
ção do qual a voz não pode existir. Uma, necessária à vida, outra, apenas útil. O
ar é necessário para a respiração dos animais, para que o calor do coração aqueça
com a sua vinda e movimento recíproco e, ao mesmo tempo, também se con
serve, visto que se junta ao animal por pouco tempo com muito ardor e fervor.
Deu atenção também ao ar útil e adaptado à vida, visto que, sem ele, as vozes e a
fala não podem existir, porque há dois usos da língua. Um, necessário ao paladar,
outro, de utilidade, para a voz. Finalmente, apresenta uma definição de voz. A
voz é o impacto do ar atraído pela respiração, existente a partir da alma para os
pulmões, quando é produzido por um certo pensamento. Esclareceremos, de
caminho, esta definição.
QUESTÃO !
O que é o som e qual a sua causa efectiva
ARTIGO I
Estabelecem-se algumas proposições
Esta questão tem de ser explicada com algumas proposições. A primeira é. O som
não é o próprio movimento dos corpos que entrechocam. Esta proposição, que o
senso comum dos filósofos aprova e é transmitida por Avicena, livro sexto dos
352 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Transmitem-se outras proposições
Quinta proposição. Em ambas as partes, é possível não só que o som sej a produ
zido pela percussão do ar como também pela percussão da água. Defendem a parte
afirmativa, neste ponto, Simplício, Temístio, Avicena, 6º dos Naturais, parte 2,
capítulo 6º, com o argumento de que os rios emitem sons, se se remexerem as
pedras. Também Escalígero exercício 297, no Comentário sobre Cardano, confirma
que o som se dá pelo choque das nuvens, que são da natureza da água. Acontece que
o som é transportado não só através do ar, mas também através da água, segundo
Aristóteles, texto 76. Se é assim, então porque que é que o som não se gera na água?
Filópono, comentário 79; Alberto Magno, tratado 3, capítulo 1 8º; Egídio, comentá
rio 77; São Tomás e muitos intérpretes latinos perfilham a negativa. Filópono argu
menta que o som não é feito pelos corpos sempre que se embatem, mas pela pan
cada, e não por meio do corpo, sempre que é batido, mas de uma forma imediata.
Pelo que, como a água é um corpo pesado, e devido à espessura, antes que dois
corpos sólidos se choquem, ela é esmagada aos poucos, não na totalidade, segue-se
que o som é gerado por qualquer pancada sua. Mas nem este argumento, nem o
primeiro concluem totalmente. Os adversários respondem-lhe que o ar, pela sua
leveza, penetra a água e que as nuvens e os rios não ressoam com o atrito da sua
água. Também se exige menos para transportar o som do que para produzi-lo, e, por
isso, embora a água tenha a faculdade de anunciar o som não pode ter a faculdade de
o efectivar. Já quanto ao argumento da outra parte, dever-se-á dizer que a força que
impele a água que corre pode ser tão forte que antes dela correr ela é separada ade
quada e consequentemente em vista do som. Por isso, não é de admirar que em rela
ção ao que se repercute dentro de água, os peixes que nadam não produzam som,
visto que não movem a água desse modo. Neste ponto, Teófilo Zimara escreveu,
muito bem, que aqueles que negam que o som possa resultar da colisão da água,
devem apoiar-se, preferencialmente, no argumento, que é da natureza do ar e da
água, que a um e a outra pertencem a faculdade de transportar o som e que, todavia,
para gerar o som, como seu atrito, não é a água, mas o ar que tem essa faculdade.
Também se deve ter por certo, mesmo entre os que defendem a primeira posição,
que a natureza da água é muito mais condutora do som do que a natureza do ar.
Dizem ter sido esta a razão por que Aristóteles, ao tratar dos corpos que colidem
entre si, mencionara o ar e não a água, para a geração do som.
Sexta proposição. Não é necessário que o movimento pelo qual se produz o som
atinja os ouvidos. A verdade desta proposição é evidente, porque, quando o som da
campainha é percebido à distância de uma légua, seria necessário que todo o ar
intermédio fosse agitado, o que é ridículo. Segundo. Porque duas pessoas, gritando
do mesmo lugar, não podem ouvir-se mutuamente, visto que os movimentos contrá
rios, que acorrem do lado oposto, se impediriam mutuamente. Terceiro. Porque os
peixes nos pântanos ouvem os sons através da água parada e nós também, nos luga
res fechados, onde não passa o movimento do ar, percebemos os sons produzidos ao
longe. Mas há quem pense o contrário e afirme que todo o ar é movido até ao
ouvido, tal como uma parte contígua a uma campainha, uma vez recebida a pancada,
atinge a que está junto a si e, igualmente, esta atinj a a outra até que o ar interior
chegue às cavidades dos ouvidos. Assim, o movimento empurra o som para o sensó-
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VI//, Questão II, Artigo l 355
rio, com sucesso. Alexandre, autor desta posição, segundo Filópono e Simplício, e
que Averróis seguiu, comentário 78, explica isto à semelhança da água batida por
uma pedra que lhe tenha sido atirada. Temístio disse que o ar, que primeiro ressoa,
não se afasta de maneira a aceder ao ouvido, mas move o ar que lhe está próximo e o
contém. Em seguida, excita outro, do modo que observamos nas vagas, em que uma
impele a outra e, uma vez arremessada, de caminho, impele a seguinte. Do mesmo
modo, Vitrúvio diz que a voz move-se em infinitos fluxos de círculos, tal como,
estando a água em repouso, uma vez arremessada uma pedra, nascem inúmeros
círculos de ondas que aumentam a partir do centro, e conquanto pudessem espalhar
-se muito, a estreiteza do lugar não se modificaria nesse espaço. Por isso, na água, os
círculos movem-se para o largo numa superfície igual, tal como a voz se proj ecta em
latitude e em altitude, e sobe aos poucos. Não faltam argumentos que podem com
provar esta opinião. Para transportar o som, todo o ar é movido para o ouvido. Pri
meiro que tudo, porque não parece ser por outro motivo que o som e as suas espé
cies em sucessão de tempo chegam aos ouvidos, a não ser porque são levadas pelo
movimento do ar (donde, segundo Aristóteles, no livro O Sentido, capítulo 7º, os que
estão mais próximos ouvem primeiro o som, no entanto as espécies das cores che
gam ao olho, num instante) . Depois, porque soprando o vento para uma outra parte
ouvem-se menos os sons, porque o movimento do ar é impedido ou é retido até nós.
Acrescente-se também o testemunho de Aristóteles, que há pouco, no capítulo atrás,
texto 82, parece ter ensinado claramente isto, quando afirmou que é um e o mesmo o
ar a mover-se continuamente até ao ouvido. Não obstante, respondemos, ao primeiro
destes argumentos, que o som e as espécies audíveis são levadas, não no instante,
mas no tempo, ainda que as espécies visíveis sej am transmitidas aos olhos num
ápice, porque tanto o som como as suas espécies são mais materiais do que as ima
gens das cores. Ao segundo, deve dizer-se que quando o vento sopra em direcção
contrária, ora o som e as suas espécies são levadas para outro lado pelo ar, ora tam
bém resistem ao movimento, pelo qual o ar próximo costuma ser agitado pelos cor
pos, a alguma distância, e, por isso, perturbar muito a percepção dos sons. Por
último, deve compreender-se o ponto de Aristóteles, não acerca do movimento local,
mas acerca daquele pelo qual o ar é alterado ao receber o som e as suas espécies.
QUESTÃO II
Qual é o substrato do som e qual é o seu meio
ARTIGO I
O som não é recebido nos corpos sólidos, é produzido pelo seu embate
e o ar e a água são o seu meio
A opinião de alguns é que o som é recebido apenas no corpo capaz de soar. Pri
meiro. Porque como o cheiro, a cor, o sabor e as qualidades que recaem sob os senti
dos, são inerentes ao objecto, mas não ao meio, parece consentâneo que o mesmo se
dê em relação ao som e, por isso, é apenas recebido no corpo que ouvimos. Outro.
Porque os próprios corpos que produzem som têm o nome do som e nós dizemos
que os ouvimos, apenas, decerto, porque, em si, eles têm som. Deve afirmar-se, no
356 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
entanto, o seguinte. Quando dois corpos sólidos têm o ar no meio, ou como alguns
pretendem, produzem som na água, esse som é recebido, não nos corpos sólidos,
mas no meio. Tal como o som resulta da fracção e compressão do corpo situado no
meio, assim parece ser nele recebido, não nos corpos sólidos; de outra maneira, o
som também poderia ser produzido no vácuo e os corpos celestes gerarem uma har
monia, de maneira que, além do meio aéreo que recebe o movimento, para isso nada
lhes faltasse. Facilmente resolve os argumentos da parte contrária, quem disser, ao
primeiro, que o som tem a propriedade e a particularidade de não estar fixo ao
objecto. A causa desta diferença está em que as restantes qualidades sensíveis têm
um ser fixo e estável, mas o som não existe senão quando é feito e onde é gerado,
isto é, no corpo intermédio em que é recebido como num suporte. Quanto ao que
deve ser dito acerca dos restantes sentidos, no respeitante ao meio, será claro de
caminho. Ao segundo argumento, deve responder-se que os corpos que produzem o
som, são chamados sonantes não por serem afectados pelo som, mas porque podem
produzir som, tal como se chamam sonoros os que estão aptos a produzir o som de
forma mais prolixa.
No que respeita ao veículo do som, isto é, ao meio pelo qual o som ou a sua espé
cie chegam ao ouvido, deve dizer-se que ele é, quer o ar, quer a água, como Aristó
teles ensina, neste ponto, texto 79, que acerca do ar a coisa é de facto clara, mas que
também é evidente acerca da água, quer pelo testemunho dos que mergulham, quer
porque os peixes ouvem sob as águas, visto assustarem-se com as vozes. Daí, o
silêncio dos pescadores. Também Plínio, livro 1 0, História Natural, capítulo 70º,
dirá que os peixes acostumados ao ruído se juntam para comer, em certos viveiros.
Nas piscinas de César, quer um certo género de peixes, quer também de outros que
respondem pelo nome, mostrando que ouvem, especialmente, o mugem, o lobo
-marinho, o badejo, os crómidas e, sobretudo, os golfinhos, que não só ouvem, mas
também se diz que se deleitam com o som das músicas. Mostra-se com Aristóteles,
nos Problemas, secção 1 1 , questão 6, muito clara e facilmente, que os sons são tanto
transmitidos através do ar, como através da água. São enfraquecidos e suprimidos
pela espessura da água, tal como as espécies visíveis. Por esta razão os sons são
percebidos menos nitidamente em tempo de chuva, com o ar humedecido, do que
com o céu sereno e limpo.
ARTIGO II
De que modo o som e as suas espécies são transmitidas ao ouvido
para a geração do eco, não se exige que todo o ar se agite até ao lugar donde as
vozes respondem. Nem também é necessário que o som, segundo o ser real, o atinja,
e se dê sempre a reflexão das espécies pelas quais se percebe o som, como é evi
dente a partir do que acima se disse. Porém acontece uma só voz não atingir duma
vez o ouvido apenas pela reciprocidade, mas muitas vozes, como de vez em quando
se ouve um sem número de vozes, tal como os Paduanos contam ter acontecido em
certo lugar, e outrora no pórtico de Olímpia a que chamavam, por isso, dos sete
sons, já que a mesma voz costumava voltar sete vezes, segundo Plínio, livro 36,
História Natural, capítulo 1 5º. Na verdade, quando uma voz repercutida uma só vez
incide nos locais próximos e nas curvaturas côncavas, a partir das quais estala em
reflexos repetidos, essa mesma voz atravessa muitas vezes os ouvidos. Não são
ouvidas no eco senão, mais ou menos, as últimas palavras, porque embora se faça o
retomo da voz toda, no entanto, as suas primeiras partes são atrapalhadas pelas últi
mas, impelidas da retaguarda. Por isso, apenas aquelas partes, cujo retomo não se
encontra impedido, que são as últimas, costumam ser por nós percebidas.
Pode objectar-se. Os corpos sólidos, contanto que sejam translúcidos, transportam
espécies da cor, logo também transportam as espécies do som, visto que parece
proceder razão semelhante a uma e a outra. Depois, as toupeiras ouvem debaixo da
terra, compensando com o ouvido a cegueira permanente com que foram lesadas
pela natureza. Em terceiro lugar, não parece que se deva negar que os sons se ouvem
através do fogo interposto. Em quarto, os bem-aventurados depois da ressurreição,
no domicílio da pátria celeste, onde nem ar, nem água existem, falam entre si com a
palavra exterior, como é opinião comum dos Padres. Portanto, não só o ar e a água,
mas também outros corpos têm potência condutora dos sons .
À primeira destas objecções, deve dizer-se, que tal como a vista é superior ao
ouvido e as espécies visuais mostram ser de conhecimento mais nobre do que as
auditivas, assim também o meio da vista é claramente mais manifesto do que o do
ouvido e as espécies daquele passam por mais corpos, do que as deste. À segunda,
que as espécies do som não são transmitidas às toupeiras através do elemento terra,
mas através do ar que está dentro dos poros da terra. À terceira, parece também que
os sons atravessam o fogo, mais ainda, que se originam com uma pancada dele. Na
verdade, Aristóteles não falou senão dos meios mais célebres e mais conhecidos ou
dos substratos dos sons. À quarta, dizemos com São Tomás, no segundo livro das
Sentenças, distinção 2, questão 2, artigo 3° ao 5°, que no pulmão e garganta dos
bem-aventurados, há-de estar um certo ar conatural que lhes foi concedido por Deus
na ressurreição, não por necessidade de respirar ou de expirar, posto que neles não
será necessário o uso da expiração ou da respiração, mas para formar as vozes.
Encontrando-se esse ar livre junto da artéria vocal, e percutido com a língua, com os
dentes e com os restantes aparelhos vocais, formarão a voz de um modo mais imate
rial do que entre nós, ou sej a, apenas difundida segundo o ser intencional pelo corpo
celeste. Não admira que Aristóteles não tivesse tratado deste assunto, uma vez que o
não conheceu.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo VIII, Questão III, Artigo l 359
QUESTÃO III
De que modo se forma a voz e qual é a sua natureza
ARTIGO I
Da formação dos instrumentos e da competência da voz
músculos, colocados por todo o lado, que a linha média separa à direita e à esquerda,
e como é sumamente volúvel, para não se soltar em excesso na fala, atada por baixo,
como que presa por correias. Mas a língua separa a fala ou (o que é o mesmo) forma
a voz articulada, que deixa para o discurso. Então o ar, que salta da cavidade da
artéria e cai na abertura da boca, quebra-se de modo diferenciado e divide-o e
separa-o pela variedade das palavras, para o que se exige que tenha de ser adequa
damente dada uma certa temperatura. Por isso, se a língua está mais húmida e mais
mole, como nas crianças, e algumas vezes nos mais velhos, leva ao balbucio, porque
os músculos não estão firmemente constituídos. Daí que os ébrios às vezes balbu
ciem e falem de modo confuso, quer porque o cérebro está banhado por muita humi
dade, quer porque a língua fica muito pesada devido à muita quantidade dela. Mas
os que são gagos por natureza, ou têm o cérebro excessivamente húmido, ou a lín
gua, ou um e outra. O palato alonga-se até aos dentes da frente e é áspero com mui
tas rugosidades, para que nelas a voz se detenha, quer por outras vantagens, quer por
aquela que normalmente ajuda a voz, porque o palato é côncavo e, em consequência,
as vibrações da voz são repetidas durante muito tempo para os seus lados. Também
os dentes contribuem em grande parte para a voz. Como Plínio, livro 7, Historia
Natural, capítulo 1 6º, diz, que os dentes da frente têm o comando da fala e da voz
em concerto, suportando o golpe da língua e o conjunto da estrutura, mas, pelo
tamanho, os dentes incisivos e os molares enfraquecem as palavras e com o defluxo
impedem toda a pronúncia. Finalmente, os lábios manifestam muita utilidade para
formar a voz, visto que a distinção das letras, sílabas e palavras se contém em parte,
na sua grande extensão e compressão. E assim, temos nos lábios as diferenças da
fala e das vozes, como os flautistas, com o trabalho dos dedos, modelam o sopro nas
flautas e a harmonia do canto.
ARTIGO II
Explica-se a definição de voz transmitida por Aristóteles
A partir do que se disse não será difícil compreender a definição de voz transmi
tida, por Aristóteles, no capítulo atrás, texto 90. A voz é o impacto do ar atraído pela
respiração, existente a partir da alma para os pulmões, quando é produzido por um
certo pensamento. Atente-se, em primeiro lugar, na diferença entre som, voz e fala.
O som também respeita aos corpos inanimados. A voz, apenas aos animados, visto
que não é feita a não ser com instrumentos que são próprios dos animais. A fala,
apenas respeita aos homens, porque apenas estes têm razão e sentidos da mente
quando se comunicam aos outros, o que se faz através da fala.
Em segundo lugar, observar-se-á aquilo que já acima concluímos e que Aristóte
les adverte, neste capítulo, isto é, assim como a voz respeita apenas aos animais, não
respeita, no entanto, a todos. Na verdade, os animais que não têm sangue e os que
são imperfeitos não produzem voz e, geralmente, nenhum deles respira, apenas
emitem um certo som semelhante à voz, como as cigarras. Com efeito, uma vez
recebido o espírito móvel debaixo do peito, indo ao encontro da membrana interior
de dentro, eles ressoam com o seu atrito. Outros fazem um zumbido, como as mos
cas e as abelhas, quando se erguem em voo e param. Os peixes também não têm voz.
Donde, Pitágoras, como Plutarco refere em Quaestionibus conuiualibus, proibiu que
Livro Segundo, Explicação do Capítulo Vlll, Questão l/l, Artigo li 361
QUESTÃO IV
Da faculdade auditiva
ARTIGO I
Qual é a sua eficácia, qual o seu aparelho
cavidade com o humor ceroso formado dos resíduos das partes, de maneira que se
um insecto ou algo de prejudicial se introduzisse ficaria preso e agarrado, como no
visco. Também, dentro da referida abertura está uma membrana (a que chamam o
tímpano do ouvido) que abrange transversalmente uma dada parte orbicular da cavi
dade, fortalecida por três pequenos ossos. Um deles apoia-se em dois pedúnculos de
bigorna, outro no do martelo, um terceiro assume a figura de um estribo. Dentro dele
encontra-se um certo ar visível nas dissecações, pelas quais se encontra uma certa
sede vazia. O referido ar é retido desse modo com uma estaca, porque de outra
maneira dissipar-se-ia com veementes estrondos. Por fim, tal como os olhos nos
nervos ópticos ou visórios se afastam, assim o tímpano do ouvido está ligado a um
dado nervo que desce do cérebro, através do qual, quer os espíritos animais chegam
ao tímpano, quer as espécies dos sons passam para o sentido comum.
ARTIGO II
Em que parte se constitui a faculdade de ouvir
Exposto o aparelho auditivo, resta vermos em que parte dele incide a própria
faculdade de ouvir. Embora, para os restantes sentidos também sirvam muitas partes
do ouvido, é necessário que exista uma principal, que tome a vez do instrumento
primário, como, na vista, o humor cristalino. Temístio pensa que o principal órgão
do ouvido é o sopro, para que através do ar inato, como um mensageiro doméstico,
os sons sej am transmitidos, mas está iludido. Na verdade, como o sopro tem em
comum com o sangue a mesma natureza (dado que o sopro não é outra coisa senão o
sangue reduzido a grande subtileza) e, por isso, é desprovido de alma, como no
primeiro livro A Geração e a Corrupção claramente mostrámos, acontece que de
modo algum poderia ser o instrumento da potência vital ou substrato, visto que desse
modo a alma realizaria a função vital onde ela mesma não reside. Outros, de entre os
quais Vesálio, no livro primeiro, De humanis corporis fabrica, capítulo 8º, pensam
que o órgão do ouvido são os ossículos postos dentro do tímpano. Mas não aprova
mos esta opinião, porque os ossos, pela espessura terrena que têm, não são aptos a
ter sensações, e, por isso, nem com o tacto, a não ser de um modo mais ou menos
tosco e obscuro.
Logo, rejeitadas estas opiniões, acolhemos a opinião de Aristóteles, no segundo
livro As Partes dos Animais, capítulo 1 0º, que considera que o ar produzido ou acu
mulado nos ouvidos, que dissemos estar encerrado na membrana para não escapar
para fora, nem estar patente às agressões externas, é o verdadeiro e o próprio instru
mento de ouvir. Aristóteles também o considerou de forma clara, no capítulo ante
rior, texto 83, quando ensinou que é necessário que o ar esteja assim imóvel e
parado para perceber os sons externos e conhecer todas as diferenças . Galeno, além
de outros, seguiu Aristóteles, no livro 8, De usu partium, capítulo 6º, no ponto em
que escreveu o seguinte. Todo o sensório é alterado por qualquer sensível ; o bri
lhante e luminoso, pelas cores; o aéreo, pelos sons; o vaporoso, pelos odores; digo,
em suma, que é conhecido como semelhante pelo semelhante e comum. Com estas
palavras, para provar esta opinião, Galeno indicou um argumento assim. O sensório
deve ser de tal modo que possa ser afectado pelo próprio objecto, ao receber em si as
suas imagens ; é desta maneira que o ar está, de facto, dentro dos ouvidos. Tal como
364 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
aquilo que de preferência recebe e atravessa os sons é o elemento do ar, assim tam
bém para os receber segundo o seu ser nocional, o mais idóneo é o referido ar ínsito
em nós, e assim, é afim ao que constitui o órgão do ouvido.
Pode alguém objectar. Aquele ar encerrado nos canais auditivos ou é da mesma
natureza do elemento do ar, ou de outra. Se é da mesma, então não é animado e, por
isso, a potência auditiva não pode ser deformada. Se é diferente, então está apto a
receber as espécies dos sons. Parece dever responder-se a este argumento que esse ar
apenas por analogia se chama ar; é animado, como diz Simplício, e o argumento
prova que não recebeu o nome de ar a não ser pela semelhança com o ar elementar,
que é ténue e permeável, como ele. Não repugna que uma pequena porção do corpo
animado, sej a de tal modo ténue e subtil, quase aérea, visto que assim postula a
natureza da faculdade que aí tem sede, apesar de todo o corpo, como uma unidade
acabada da alma, não poder em tanta subtileza estar apto para a formação da alma. E
para receber as espécies audíveis não é necessário que o sensitério do ouvido sej a da
mesma natureza do ar elementar, a ligação reside na afinidade, na subtileza e na
raridade.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IX
estudo do ouvido e da vista, dada a afinidade e a relação que aquele sentido tem
com estes, como de caminho será evidente. Neste capítulo, Aristóteles explica
quatro pontos respeitantes ao odor: a natureza do odor, as espécies de odores, o
meio e o instrumento. Primeiro, avisa que este estudo é difícil, porque o sentido
do odor por defeito e inaptidão do órgão é pouco nítido em nós. Assim, não
podemos perceber exactamente os odores, nem penetrar e conhecer bastante a
sua natureza e variedade. Afirma com o argumento que nós cheiramos de modo
tão débil, que apenas percebemos aqueles odores que penetram mais vivamente o
sentido e produzem a dor ou o desejo. Mostra-o fazendo uma dada comparação.
Assim como os animais, cujos olhos se apresentam com uma membrana dura e
densa não atingem aquela subtileza que existe nos restantes, e por isso, embora
percebam as cores, eles não discernem as suas diferenças sem medo ou desejo,
sem prazer ou dor, isto é, sem um forte movimento da coisa vista (quer se hesite
ou não é o que significam estas palavras no contexto), assim também sucede com
os homens na percepção dos odores. Atente-se que aqui, os olhos duros, como os
dos peixes e dos animais chamados insectos e crustáceos, de que Aristóteles fala
no livro 2, As Partes dos Animais, capitulo 1 3º, vêem menos acutilantemente por
duas causas. Primeiro, porque, como a sua membrana é espessa e grosseira,
recebe de modo menos evidente as imagens das coisas que há para observar.
Depois, porque estão geralmente a descoberto e são proeminentes, e neles as
espécies não podem reunir-se ao centro, tal como se reúnem nos sensórios enco
bertos e profundos. Leia-se Aristóteles, livro 1 , A História dos Animais, capítulo 1 Oº.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX 365
res e os odores. Ela existe porque tal como uns são oleosos, outros ácidos, outros
amargos, outros doces, também assim se contam as diferenças de outros tantos
odores, que em grande parte reclamam o mesmo nome, porque afectam igual
mente o sentido. Com efeito, o sabor ácido, por exemplo, corrói o gosto, tal
como o odor ácido o olfacto. Mas algumas palavras dos sabores, quando são
transferidas para os odores, são menos comuns aos ouvidos latinos, como dire
mos de caminho.
d. At qui sicut auditus 42 1 b 5 Mostra que o olfacto convém com os restantes
-
sentidos, porque não apenas conhece o sensível próprio como também a sua pri
vação. Como a luz percebe a vista e as trevas; o ouvido, o som e o silêncio, assim
também o odor percebe o que tem cheiro e o inodoro. Depois, avisa que há três
maneiras de falarmos do inodoro, a saber, o que é totalmente desprovido de
cheiro, o que tem um cheiro desconhecido, o que cheira mal. Diz que pode afir
mar-se o mesmo acerca daquilo que recai sob o sentido do gosto. De que modo
os sentidos conhecem as privações, expusemos noutro lugar.
e.Fit autem olfactus 42 1 b 8 Trata do meio pelo qual se transmitem os odores e diz
-
serem quer o ar quer a água. Porque talvez alguém pudesse duvidar, no que toca
à água, afasta a dúvida com o argumento de que também aqueles que vivem na
água são atraídos para locais distantes pelo odor dos alimentos. Diz que é seguro
que, não só os animais que vivem fora das águas, mas também os aquáticos, e
num e noutro género, quer os animais dotados de sangue, quer os desprovidos
dele, sentem o cheiro. E porque os animais que têm pulmões absorvem cheiros,
inspirando, e os restantes, sem inspirar, enceta a ocasião de perguntar se todos os
animais sentem o cheiro da mesma maneira. Responde que todos sentem da
mesma maneira, nomeadamente segundo a espécie. Mostra isto com dois argu
mentos. Primeiro, porque é o mesmo objecto em todos, certamente tanto o bom,
como o mau odor das coisas que têm cheiro. Depois, porque é necessário que
seja o mesmo sentido a ser atingido pelos mesmos sensíveis. Também o olfacto
de todos os animais costuma ser agredido pelo odor forte, como é o do pez, do
enxofre, e de outras coisas do género.
f. Atque huius instrumentum 42 1 b 26 - Assim como os animais ditos de olhos
duros, têm olhos sem pálpebras, e estão permanentemente preparados para serem
dirigidos para o objecto que se vê, aos restantes são-lhes dadas as pálpebras, que
escondem os olhos. Também os animais que se salientam pela respiração têm o
órgão do cheiro num lugar retirado e munido de um certo revestimento. Daí que,
nas águas, onde não pode existir atracção do sopro cheirem menos, visto que
aqueles em que o sensitério está à vista, não estão, em absoluto, privados de
captar os odores, pela inspiração. Aristóteles diz que assim como, a diversidade
de ver não prova a diversidade da visão, também não será suficiente a variedade
no cheirar para distinguir, na espécie, a faculdade olfactiva. No livro O Sentido e
o Sensível, capítulo 5º, ele levanta esta dificuldade e, da mesma maneira, resolve-a.
g. Est autem odor 422 a 6 Explicando em poucas palavras a natureza do odor,
-
afirma que o odor está para o seco, como o sabor para o húmido, isto é, porque
no substrato do odor o húmido é vencido pelo seco. Contrariamente, no substrato
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Artigo l 367
do sabor, o seco é vencido pelo húmido. Acerca deste assunto há mais nas
Questões.
h. Ipsum vera 422 a 7 Afirma que o órgão da faculdade de cheirar é em potência o
-
que o próprio odor é em acto, isto é, os instrumentos dos sentidos têm aptidão
para suportarem os objectos e então suportam essa capacidade, ao menos em
razão das imagens que os anunciam, acabando por tomar-se semelhantes aos
objectos.
QUESTÃO 1
Se o odor consiste na exalação do corpo odorífero ou não
ARTIGO I
Argumentos da parte afirmativa
ARTIGO II
O odor não é uma exalação fúmida nem os argumentos
anteriormente aduzidos concluem isso
Seja a seguinte conclusão. O odor não é uma exalação fúmida do corpo odorífero
mas uma qualidade do sensível dotado de odor. Esta conclusão é evidente, quanto à
primeira parte, porque se o odor fosse uma exalação, pois esta é uma substância,
visto que se move por si e se evade para lugar elevado, seguir-se-ia que o odor não
seria um sensível por si, pois nenhuma substância por si recai sobre o sentido.
Acresce o testemunho de Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5º,
quando refuta Heraclito, Platão e outros filósofos antigos, entre os quais era comum
a opinião contrária. A segunda parte da mesma conclusão é evidente, porque como o
odor não é uma substância, como foi provado, e denomina uma qualidade do subs
trato e age por si no olfacto, segue-se que é correctamente dito uma qualidade do
sensível que tem odor. Na verdade, tomar-se-á mais clara a natureza do odor, como
de caminho diremos, quando tratarmos da geração dos odores.
Respondamos agora aos argumentos que se opunham a esta nossa asserção.
Àquilo que no início aduzimos, deve negar-se a premissa menor e, para a sua pri
meira prova, dizer, com Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5º, que
o odor não alimenta. Ele apenas nutre o que se converte na substância da coisa viva.
Mas isto diz respeito somente à substância, não ao odor, que é um acidente, como
foi provado. E assim, o que é narrado sobre os Astomos é falso, como já nos livros A
Geração e a Corrupção referimos. Quanto ao que os médicos dizem, que nos seres
vivos, certas partes subtis, isto é, os espíritos, se nutrem e sustentam com o odor do
sopro vital, se isso for entendido acerca do odor, foge à verdade, se se entender
acerca da substância aérea através da qual o odor é levado, deve ser admitido até
certo ponto. Porque o ar, como demonstrámos no livro citado, nutre o espírito com
nutrição imprópria, como aquela por meio da qual se alimenta a luzerna de óleo e de
ar circundante. Porém, esta substância aérea, quando foi imbuída com o odor, justa
mente a partir das outras qualidades, que acompanham o odor, também favorece e
conserva admiravelmente os espíritos. Daí, ser costume atribuir-se a certos odores
virtude benéfica para os espíritos, para o cérebro, e para alegrar o coração. Também
por alguma qualidade superveniente, dado penetrarem nas aberturas do corpo, tra
zem muitos prejuízos, por causa dos humores pútridos que só deles são exalados e
viciam o ar. Não se segue que o odor é uma substância, mas que é inerente à subs
tância em conjunto com as referidas afecções. Donde é já evidente a solução do
primeiro argumento e de todas as suas afirmações.
À primeira parte do segundo argumento, deve dizer-se que a inspiração para os
animais, não para todos, mas para aqueles que respiram, se encarrega de afastar uma
pequena cobertura com a qual, como diz Aristóteles se encerra o olfacto. Quando tal
acontece, a espécie do odor ou o próprio odor é ao mesmo tempo atraído, colocado
no ar, a partir do hálito, como de caminho exporemos. Mas daqui nada se alcança
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão //, Artigo l 369
contra as afirmações . À parte seguinte, deve conceder-se que muitas vezes a subs
tância fúmida é emitida a partir das coisas odoríferas, mas deve negar-se que essa
substância sej a o odor. Aristóteles, nos Problemas, secção 3, questão 5, e no capítulo
2º sobre O Sentido e o Sensível chamou odor ao hálito, não formalmente, mas relati
vamente ao substrato, porque em grande parte está presente no hálito donde é tra
zido. Deste modo, também terão de ser explicados outros pontos, em que ele chama
odor ao hálito fúmido, ou vapor fúmido. E no mesmo sentido podem ser acolhidas as
opiniões, se não de todos, pelo menos de certos autores, que referimos no início do
artigo.
QUESTÃO II
De que maneira nasce o odor e qual é o seu substrato
ARTIGO !
Explicação da dúvida proposta
impregnada durante muito tempo. Prevalece, então, o humor, não a secura. Final
mente, acrescentamos 'calor fervente e excitante que destrói a humidade' porque
não haverá odor a não ser que se acrescente a força do calor, que quase dilui e con
some o húmido. Aristóteles, nos Problemas, secção 1 2, questão 1 2, afirma que as
sementes que cheiram são cálidas porque o odor produz calor. Também na mesma
secção, questão 4, ensina que todas as coisas que têm cheiro são abundantes de
calor. E o mesmo diz Galeno, no livro 4, De simplicium medicamentorum facultate,
capítulo 22º. E é esta a razão por que os alhos plantados junto às rosas as tomam
mais cheirosas, porque as aquecem e excitam e, desse modo, provocam o odor,
como afirma Contareno no livro 5 de Os Elementos. Todavia pode acontecer por
outra causa, nomeadamente, porque qualquer coisa atrai para si o alimento adequado
e, desse modo, os cheiros fortes do tipo dos do alho, atraem o alimento mal cheiroso
e deixam nas ervas e nas plantas o alimento mais puro. Experimente-se também a
água destilada das rosas que, enquanto aquece ligeiramente com o fogo, expira um
hálito mais suave e, geralmente, as que são odoóferas, exalam mais cheiro quando
aquecem do que quando arrefecem, e mais durante o dia do que durante a noite, mais
na Primavera do que no Inverno, mais no Verão do que na Primavera. Daí que se
acreditasse que Alexandre da Macedónia, como Plutarco escreve, na sua Vida,
libertasse um suave odor dos membros, resultante da temperatura ígnea e muito
quente do corpo. E o mesmo Plutarco, no livro As Causas Naturais, capítulo 25º,
resolvendo a questão por que é que a chuva toma difícil a busca feita pelas feras,
afirma que a causa está em que os hálitos dos odores, apenas se podem soltar dissol
vidos e espalhados pelo calor, mas que o frio, que mais fortemente comprime e
cerra, não os derrete nem os impele a atravessar os instrumentos de sentir, sendo
também por isso que diz que as vinhas durante o Inverno são menos perfumadas . A
partir do que foi dito, é evidente qual deve ser a definição de odor, a saber, o odor é
a qualidade resultante da reunião das qualidades primárias, com o domínio do seco e
do calor, que move o olfacto. É evidente também qual é substrato dos odores, isto é,
aquilo em que o odor, em primeiro lugar, nasce. Ora, como o odor é uma qualidade
nascida de certa mistura das qualidades primárias, o que apenas se fica a dever aos
corpos mistos, por si, acontece que o substrato nativo e próprio dos odores é tal qual
o do corpo misto. Donde Plínio, no livro 1 5 da História Natural, capítulo 27º, diz ser
admirável, que os três elementos principais da natureza, a água, o ar e o fogo, exis
tam sem sabor e sem odor. Tinha podido acrescentar a terra, tal como Aristóteles
acrescentou, no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 5°, avisando, no entanto, que
se deve entender assim, a não ser que os elementos tenham mistura. Com ela vemos
que o mar cheira e também a terra, principalmente quando se empapa depois de
longa aridez, como anteriormente dissemos, e Teofrasto escreveu no livro 6, As
Plantas, capítulos 24º e 27º. Sobre este assunto, veja-se Janduno questão 26, O Sen
tido e o Sensível.
Mais ainda, existem várias espécies de odores que desconhecemos, em parte, por
causa da lentidão e falta de precisão deste sentido. Pois quando falta o sentido ao
homem, também falta a ciência, no que concerne aos assuntos pertencentes a esse
sentido, dado que o nosso conhecimento nasce dos sentidos. Como, portanto, chei
ramos de modo fraco, e somente percebemos com exactidão aqueles odores que
pulsam e irritam o órgão, acontece que retemos menos as diferenças de odores.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão li, Artigo li 3 71
Deste modo, não lhes atribuímos significados usando palavras próprias, mas tradu
zidas e declinadas conforme os diferentes sabores. Portanto, tal como os sabores,
também dizemos que os odores são penetrantes, amargos, graves e suaves, indicando
as diferenças mútuas e as suas espécies quanto à designação. Há, assim, um sabor
penetrante, que fere o sentido, rápida e fortemente, sem hesitação. Um amargo, que
pica com uma certa mordacidade. Um grave, que move pouco e indolentemente e
que, em virtude de fragrância mais densa que o odor da artemísia e por causa do
hálito fétido, ofende as narinas. Um suave, que é docemente grato e agradável.
Acerca deste assunto e das espécies de odores, Tomás Gárbio, na Suma, questão 69;
Marcelo, no seu A Alma, livro 3, capítulo 24º; Alberto Magno, 2ª parte, Suma do
Homem, tratado sobre o olfacto, e livro 2, A A lma, tratado 3, capítulo 24º; São
Damasceno, livro 2, A Fé Ortodoxa, capítulo 1 8º; Teofrasto, livro 6, De causis
plantarum, capítulos l º, 4º e 1 3º, quando aponta que, se costumamos dar nomes dos
sabores aos odores, isso, no entanto, não se confirma em todos os nomes. Ninguém
chama directamente falso a um odor. Quanto a isto, Galeno também escreveu no
livro 4, De simplicium medicamentorum facultate, capítulo 2 1 º.
Donde deve advertir-se, com Aristóteles, O Sentido e o Sensível, capítulo citado,
que existem certos odores agradáveis, pois, como correspondem aos sabores, deno
tam coisas amigas do paladar. E assim tomam-se agradáveis para os que comem,
mas não trazem nenhum prazer de saciedade. Outros odores produzem por si delei
tação, sem relação com os sabores, como os que são emanados de certas flores e, diz
Aristóteles, não servem para excitar o apetite de alimento, antes se lhe opõem. Daí
aquilo que sobre Eurípides disse Estrátis:
Quando a lentilha está cozida, não tem cheiro.
Deve advertir-se, depois, que em certos corpos estão presentes odores simples,
tais como os que provêm da natureza e outros, compostos, de composição variada,
que em grande parte são aqueles que a arte dos perfumistas mistura com unguentos,
para o luxo e o deleite. Plínio, livro 1 3 , capítulo 3º, diz que este abuso é maior do
que o das j óias e vestes preciosas . De facto, estas conservam-se durante muito tempo
e são transmitidas aos herdeiros, mas os perfumes expiram imediatamente e morrem
na hora. Cada libra ultrapassa os quatrocentos denários . Quem o usa não o sente, e
estima-se de preço elevado se, ao passar, o perfume também chamar a atenção de
quem se ocupa com outra coisa. Por tão alto preço se cria paixão funesta. Acres
cente-se que efeminam um espírito viril, pelo que não carece de fundamento o
seguinte dito: Não cheira bem quem cheira sempre bem. Leia-se São Jerónimo,
Epístola 8 a Demétria, sobre jovens de cabelo ondulado e peles finas e com cheiro a
almíscar.
ARTIGO II
Resolução de algumas objecções
parte. Como, pois, o sabor é feito do húmido, tal como Aristóteles ensina neste
capítulo, texto 1 00, se o odor resultar predominantemente da secura, sobressairá na
mesma parte do substrato o seco e o húmido, o que repugna. Terceiro. Muitos cor
pos, além de húmidos são cheirosos, como as águas destiladas, o bálsamo, o vinho e
muitos outros sucos do género; logo, o cheiro não provém de um seco abundante.
Quarto. Os aromas cheiram mais amargamente e conservam o odor mais demorada
mente em cinza defumada, do que no fogo e na goma. Também as lágrimas odorífe
ras, quando são consumidas pelo fogo nenhum odor se desprende delas e, no
entanto, o fogo é mais quente do que a cinza. Portanto o calor, ao ferver, não leva a
efeito a expiração do odor; se a levasse a efeito, quanto mais eficaz fosse a força do
calor, tanto mais se sentiria a emanação amarga do cheiro. Quinto. São três os cor
pos mais nobres na excelência dos odores, a saber, o mosqueto, o âmbar e o zibeto.
Também nestes não abundam a secura e o calor, portanto o odor não nasce do domí
nio destas qualidades. Prova-se a premissa menor, porque se diz que o mosqueto é
feito do sangue de um certo animal que tem o aspecto de uma raposa; o zibeto, do
suor de certos felinos; ora, o suor e o sangue são mais húmidos do que secos. Tam
bém parece que o âmbar nasce da baleia que é habitante do mar e por isso é de
constituição fria, logo, também o âmbar que nasce dentro dela.
Ao primeiro destes argumentos, Aristóteles responde, nos Problemas, secção 1 2,
questão 2 e questões 4 e 9, que as flores cheiram mais suavemente de longe, porque
o odor é levado para um lugar distante, odor mais rarificado do que a porção térrea,
mais purificado pelo fumo, do que os vapores densos que viciam o odor e enfraque
cem a própria faculdade de cheirar. É todavia necessário que a distância não seja
tanta que o cheiro desapareça no trajecto.
Ao segundo, não pode negar-se, entretanto, que com o odor suave o sabor se
toma maduro e agradável. Na verdade, acontece em grande parte o contrário, princi
palmente se se falar de odores suavíssimos, os quais é necessário examinar, como a
coisa mais elevada no seu género, quando consideramos a natureza dos odores.
Acrescente-se que também se diz que o odor provém da secura, o sabor da humi
dade, porque uma mesma coisa é não só cheirosa, mas também saborosa. Se a secura
está patente, numas partes, noutras, a humidade, o odor segue a porção mais seca, o
sabor a mais húmida. Outro, porque as coisas que são cheirosas, em iguais circuns
tâncias, quanto mais secas mais odor exalam, como é evidente no cinamomo, no
garro e em outras, o que acontece de modo diferente nas que têm sabor. Daí que o
órgão odorífero seja seco, o gustativo, húmido, de maneira que o sabor, também nos
corpos de terra, como que aprecia as partes húmidas, mas nem na língua é discernido
pelo gosto, a não ser que ela seja molhada interiormente por algum humor.
Ao terceiro, é evidente a resposta, a partir do que antes foi dito. Ao quarto, deve
dizer-se que cheira mais a ocre na cinza defumada do que no fogo, porque o fogo
consome o hálito odorífero muito depressa, o que no calor da cinza se verifica pau
latinamente. Daí não se segue que a exalação não se faça pelo calor, mas que, para
que se mostre adequada para transportar e conservar o odor, se requer a potência
moderada do calor que está na cinza. Por isso, estando demasiado queimadas não
cheiram, porque o odor requer alguma seiva.
Sobre o último argumento, em primeiro lugar, no respeitante ao mosqueto, os
autores divergem acerca da sua origem. Alguns contam que o mosqueto resulta do
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão li/, Anigo / 373
sangue espesso daquela fera que referimos, incluído naqueles folículos que são tra
zidos até nós, preferencialmente do campo das Cínaras. Outros, que essa fera, uma
vez morta com uma pancada, depois putrefacta, se desfaz em partículas, as quais são
o mosqueto que se conserva nos referidos ventrículos. Outros contam outra coisa.
Leia-se Matíolo, no 1 º livro Sobre Dioscórides, capítulo 20º; Escalígero, no exercí
cio 2 1 , Sobre Cardano. O que quer que se diga, é evidente que o mosqueto tem
secura que basta ao cheiro do sangue e enquanto não coagula será sangue húmido. O
que se deve dizer, igualmente, do suor espesso dos felinos.
Sobre a origem do âmbar, a dúvida é maior. Para muitos parece ser algo inato às
baleias. Na verdade, onde se avistam muitas, maior é a abundância de âmbar e é
certo que, por vezes, se encontra no seu ventre, quando são capturadas, quer durante
a tempestade, feridas pelo flagelo, quer nas redes dos pescadores, vencidas pelas
amarras. Outros consideram que é uma espécie de fungo marinho do fundo, ou das
rochas, onde nasce, arrancado ao mar, sacudido pelas ondas, porque é transportado
para as costas e aí costuma muitas vezes ser recolhido. Mas apareceria nas baleias,
não porque nascesse nelas, mas porque o monstro marinho se deleita com o seu
alimento com o maior empenho, tal como os terrestres e as demais aves. Leia-se
Matíolo no livro Sobre Dioscórides, capítulo 2 1 º; Fuchio no livro De componendis
medicamentis. Mas quer seja esta ou outra a origem do âmbar, negamos que lhe falte
o calor necessário para atrair o odor.
Haverá quem oponha que Aristóteles, nos Problemas, secção 1 3 , problema 4,
afirma que nenhum dos animais vivos ou mortos, excepto a pantera, solta um cheiro
suave. Razão pela qual é falso o que dissemos acerca daquelas feras. Deve opor-se
que, ou Aristóteles desconheceu isso, tal como outras coisas, que no seu tempo ainda
não tinham sido descobertas, mas que no decurso dos tempos se tomaram conheci
das, ou que isso foi retirado apenas do saber comum, tal como muitas outras que se
lêem na mesma obra, como alguns intérpretes observaram.
QUESTÃO III
De que forma o odor se difunde e qual é o meio
pelo qual chega ao olfacto
ARTIGO I
Da difusão do odor
tenha necessidade de se decompor, ou se for de tal modo compacta que não admita
desagregação, embora isto raramente aconteça nos corpos odoríferos.
Seja a segunda conclusão. Também quando a coisa cheirosa exala vapor e o odor
não é sentido por toda a parte, dá-se uma exalação odorífera. Esta conclusão está de
acordo com o pensamento de Averróis, texto 97, deste livro; de São Tomás, ibidem e
no 2º livro das Sentenças, distinção 2, questão 2 ao 5 ; de Alberto, tratado 3, capítulo
2 1 º; de Egídio, texto 1 00; num e noutro de Caetano; de Apolinário, questão 26; do
Ferrariense, questão 1 7 ; de Janduno, O Sentido e o Sensível, questão 27 e neste
livro; de Contareno, livro 5 , Os Elementos; de Marcelo, 3 A Alma, capítulo 72º; do
Conciliador, diferença 1 5 5 e de outros. Todavia são contra, Avicena 6, Questões
Naturais, parte 2, capítulo 5º; Alberto Magno, na Suma do Homem; Galeno, no 4,
De simplicium medicamentorum facultate, capítulo 2 1 º; Femélio, livro 6, Fisiologia,
capítulo 1 º e outros que consideram que o odor não se produz sem o vapor exalado.
Prova-se todavia a nossa conclusão, porque muitas vezes o odor é sentido plena
mente nos locais afastados, como atestam os abutres e outras aves que procuram, ao
longe, os cadáveres, atraídas pelo cheiro. Mas para que a exalação seja espalhada tão
longe e de forma tão lata, seria necessário que a coisa cheirosa, com o defluxo, fosse
totalmente consumida e terminasse em fumo. Segundo, porque o odor é sentido na
mais breve paragem de tempo, que o movimento da substância de fumo para o
olfacto exige, Terceiro, porque o vapor, dado ser leve, dirige-se para o alto, de
acordo com o testemunho de Aristóteles, O Sentido e o Sensível, capítulo 5º e, no
entanto, o cheiro também é sentido em lugar inferior, como é evidente na caça dos
crocodilos que acorrem, ao apelo do cheiro, em direcção às carnes suspensas fora de
água.
Seja a terceira conclusão. O odor é difundido fora da exalação de fumo, segundo
o ser intencional. Pode também ser difundido segundo o seu ser real. Esta conclusão
quanto à primeira parte é afirmada por aqueles que há pouco referimos a favor da
segunda conclusão. E é evidente, porque o vapor de fumo, como mostrámos, não
pode ser comunicado a um lugar muito longínquo e portanto também não pode, o
odor nele existente. A consequência é que o odor se comunicaria por si, muitas
vezes segundo o ser intencional. A parte seguinte desta conclusão é inteiramente
dúbia. Só a consideramos como provável. Alexandre defende-a no livro O Sentido e
o Sensível, capítulo do odor; Amónio e Boécio, no capítulo 2º dos Antepredicamen
tos; também Gárbio, na Suma, questão 69 e alguns dos filósofos mais recentes. E
recomenda-se pelo testemunho de Aristóteles, neste livro, capítulo 1 2º, texto 1 27,
quando afirma que o meio suporta o som e o odor. Assim, também o ar suporta a
coisa cheirosa que exala o cheiro. Como nada pode cheirar a não ser que sej a afec
tado pelo cheiro segundo o ser real, tal como necessariamente o branco, a não ser
que tenha brancura, Aristóteles parece conceder que o odor real é recebido no ar.
Acrescente-se que, da mesma maneira ele afirma que o ar suporta o odor e o som, Já
acima mostrámos que suporta realmente o som, Não deve considerar-se, no entanto,
que o odor é espalhado segundo o ser real a toda a distância em que é sentido, visto
que não é verosímil que nele esteja presente tanta força para se difundir, principal
mente, porque a maior parte considera que ele, de forma alguma, age realmente, mas
apenas intencionalmente,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão III, Artigo I 375
no que respeita à sua potência. Na verdade, para que a coisa visível se diga presente
à vista, deve apresentar-se-lhe em linha recta a partir do ponto em que é vista. Para
que a coisa cheirosa presente ao olfacto seja sentida, é necessário e suficiente que a
espécie do odor se estenda do objecto até ao sentido, o que acontece quer por trans
missão em linha recta quer em curva. Donde, não se cheira a não ser o que é odorí
fero existente em acto (entenda-se a designação como de vapor odorífero, ou odor,
ou coisa que se espalhe de outra forma) e sendo-lhe inerente um meio através do
qual a espécie se difunde para o sensitério. Mas a conservação deste tipo de espécie
depende do próprio obj ecto, de tal modo que, desaparecendo este, rapidamente se
dissipa, tal como a espécie de outros sensíveis, uma vez retirado o objecto.
Ao quinto (em que preferencialmente se apoiam, e certamente com muita proba
bilidade, os que negam que se dê odor real sem a coisa cheirosa e o vapor de fumo),
deve responder-se que, embora o odor resulte da mistura das qualidades primárias,
como também de outras segundas qualidades, ele pode, no entanto, ser produzido no
elemento, não certamente num puro e simples mas num elemento que partilhe a
mistura destas qualidades, como acima ensinámos a partir de Aristóteles e de Teo
frasto. Deve negar-se que o odor não sej a mais activo do que a cor. De facto, o odor
pode difundir-se na própria coisa, produzindo outro odor, tal como o som, que gera
outro som. Não é de admirar, visto que se requer menos para a geração e comunica
ção das qualidades que permanecem nos substratos, desaparecendo pouco depois, do
que para a produção da cor que também tem natureza mais nobre e é de qualidade
fixa e permanente, por natureza própria.
ARTIGO II
O meio do odor é o ar e a água
Há dois meios pelos quais o odor se transmite, o ar e a água, como ensinou Aris
tóteles, neste livro, capítulo 9º, texto 97 e no livro A História dos Animais, capítulo
8º; Teofrasto, livro 6, De causis plantarum, capítulo l º; Alberto Magno, 2ª parte de
A Suma do Homem, no tratado sobre o olfacto; Fernélio, livro 6, Fisiologia, capítulo
1 0º; Gárbio, na Suma, questão 69 ; Temístio, neste livro, capítulo 34º da sua Pará
frase; Teófilo Algazel; Avicena; Simplício e outros autores em consenso geral.
É evidente que o ar é o meio do odor porque os animais terrestres e aéreos captam
os odores através do ar. Que também a água é um meio, é claro a partir do cheiro
dos peixes nas águas. Aristóteles também anota isto com base em muitos indícios,
no ponto citado, A História dos Animais. De facto o pescador atrai muitos peixes
que se escondem nas grutas para as entradas das cavernas untadas com salmoura.
Também muitos acorrem de cima, ao encontro de certos cheiros fortes, como em
direcção a bocadinhos de carne queimada de chocos e pólipo assado, que são lança
dos para as redes. Deitam ao múrex isco fétido de múrex e capturam-no, enganado
por ele. O pólipo, como não pode ser arrancado da pedra a que está preso, mas sofre,
de preferência, um corte, é repelido pelo odor da anémona. Finalmente, sabe-se que
os peixes exploram o engodo com o olfacto antes de comer. Ninguém oponha, diz
Filópono, que os peixes procuram os alimentos para si com a vista e não com o
olfacto, visto que aqueles que são desprovidos do sentido da vista, procuram e sen
tem os seus alimentos.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão IV, Anigo / 377
Haverá quem duvide, por que razão o ar e a água são o meio apto para transmitir
os odores, visto que estes elementos surgem como húmidos e um deles, a água, é
frio. A humidade e o frio seriam considerados estranhos à natureza dos odores, de tal
modo têm origem no seco e no quente. Deve responder-se que, embora estas quali
dades contribuam menos para a origem natural dos cheiros, e para a sua longa con
servação se apliquem menos aos cheiros, não obstante, o ar e a água são muito ade
quados ao seu trajecto, porque o vapor fúmido, que de imediato se consome no fogo,
não pode passar através da terra. Porém, Aristóteles ensina, no texto 67, capítulo 7º,
de que modo no meio da cor se dá uma certa afecção, em razão da qual as espécies
visíveis são conduzidas para a vista, a que chama ôtacpavéc;. Assim, a um certo meio
do olfacto, isto é, ao ar e à água, respeita uma certa afecção inominada que transmite
os odores. Com efeito os filósofos posteriores, entre os quais Teofrasto, chamaram à
mesma ô lo a µo v , isto é, como traduziu Hermolao, capítulo 34ºda Paráfrase de
Temístio, perolaria, ou perodoraria. Se é verdade que os animais cheiram ao respirar,
como é que é possível que os animais aquáticos que não respiram, tenham cheiro?
Responde Plínio, no livro 9 da História Natural, capítulo 7º, que todos os animais
aquáticos respiram e julga que isso acontece pela intervenção do ar escondido na
água. Mais ainda, pretende que o odor não passa de ar inacabado. Mas não filosofa
correctamente. Primeiro, porque o ar não pode ser retido debaixo de água, mas onde
debaixo dela se forma, imediatamente emerge, como diz Aristóteles, no livro O
Sentido e a Sensação, capítulo 5°, quer dizer, uma vez que mais leve do que as
águas, pela força da natureza passa para um lugar superior. Depois, toma-se evidente
que o odor não é inacabado, com base no que já foi discutido por nós, onde mostrá
mos que o odor é uma qualidade e não uma substância. Também mostrámos, como
estabelecido, que nem todos os animais aquáticos respiram, nos livros dos Pequenos
Naturais, a partir de Aristóteles e outros filósofos, contra o que sobre o mesmo
assunto dizem Plínio, Rondelécio e outros autores antigos, sobretudo Anaxágoras e
Diógenes. Quanto ao argumento, deve dizer-se que nem todos os animais cheiram ao
respirar, como Aristóteles ensinou, no último capítulo, mas os que têm um órgão
olfactivo interior, o qual se abre pela atracção do ar, órgão este que raramente cabe
por herança aos animais aquáticos, e nem a todos os terrestres, mas em maior
número, aos que voam.
QUESTÃO IV
Qual o órgão do olfacto
ARTIGO I
Várias opiniões
Surge principalmente o nariz a tal ponto alto e proeminente no rosto que, como
um vestido, oculta as fossas nasais. Correspondem a três funções. A primeira, a
atrair e emitir o ar, uma parte do qual é arrastado e se introduz no cérebro, a outra no
coração por uns certos poros, acerca dos quais falaremos adiante. A segunda, para
que escorra a mucosa nasal, sendo por isso evidente que o nariz se estende em meio
declive. A terceira, para captar os odores. Donde, os animais que têm narizes mais
3 78 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Explicação da tese verdadeira
Esta dificuldade deve ser explicada com um certo número de asserções. Eis a pri
meira. O olfacto não reside nos ventrículos do cérebro. Prova-se. Primeiro, porque a
substância do cérebro, como argumentava Averróis, não está apta para as funções
dos sentidos externos. É por isso que com dificuldade se evidencia no tacto. Por essa
razão, a potência de cheirar não residirá nele, como em nenhum outro dos sentidos
externos. Segundo, porque como as exalações do odor não se dirigem para o cére
bro, convém antepor-lhe a faculdade exploratória dos hálitos, para que o vapor mau
possa ser discernido antes que danifique o cérebro. Esta faculdade é a faculdade de
cheirar. Acrescente-se que o prazer e a dor, que os odores transmitem, não são senti
dos no cérebro.
Segunda asserção. O odor não reside na membrana das narinas ou no nervo que
se prolonga através das narinas. Recomenda-se isto, primeiro, porque, como Galeno
correctamente opunha, se a faculdade de cheirar consistir nessa membrana, dado que
ela desce em direcção às extremidades mais afastadas do nariz, seguir-se-ia que a
coisa dotada de cheiro, quando lhes chegasse, sem inspiração, seria imediatamente
sentida, o que iria contra a experiência. Depois, porque os nervos das narinas são
constituídos para a função de tocar, não de cheirar. Nem o tacto, nem o olfacto
requerem a mesma composição. Em terceiro lugar, porque não nos parece que se
percebam os odores, excepto em lugar mais interior.
Terceira asserção. O odor reside nos tubérculos mamilares. Esta afirmação é de
Avicena 5, fen 3, do Cânone 1 ; Alberto Magno, 2ª parte de A Suma do Homem, no
tratado sobre o olfacto, que cita Algazel a favor desta opinião. É também de Filó
pono, capítulo 9º; do livro Conciliador, diferença 45 ; de Gárbio, questão 69; de
Fernélio, no livro As Partes do Corpo Humano, capítulo 9º; de Realdo, livro 8, da
Anatomia, capítulo 2º e de outros mais. Mas ela recomenda-se, porque, como a
faculdade odorífera não está situada nem no cérebro, nem na membrana das narinas,
como é evidente a partir do que foi dito, também não pode estar naquele osso poroso
de que antes fizemos menção, porque os ossos, em virtude da matéria terrestre, não
sentem nada ou sentem pouco. Resta que reside nas referidas carúnculas, sobretudo
380 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
porque não se vê para que outra função a natureza, que nada faz em vão, produziu
esses tubérculos.
Deve resolver-se agora as objecções do primeiro artigo, visto que se opõem às
questões anteriores. Portanto, ao primeiro argumento a favor da opinião de Galeno
deve conceder-se que o sentido do olfacto não reside nem na membrana das narinas,
nem na cartilagem, nem no osso. Ao segundo, deve dizer-se que o cérebro é ali
mentado pelos odores, que os odores não são directamente recebidos no sentido e
conhecidos por ele, mas impressionados pelas qualidades benéficas que acompa
nham o cheiro inerente ao hálito. Ao terceiro, que se requer certa afinidade entre o
sensitério e o seu objecto e que ela se encontra, quanto baste, entre os tubérculos e o
odor. De facto, eles possuem a secura misturada com o calor, tal como o odor está
repleto de hálito húmido, e além disso faltavam-lhe outras vantagens para assistir ao
olfacto, como é evidente a partir das afirmações. Ao quarto, se a faculdade de chei
rar não residir no cérebro, é, no entanto, necessária a inspiração, pela razão que a
seguir exporemos.
Ao primeiro argumento a favor da opinião de Averróis, dizemos que os referidos
tubérculos são formados de matéria um pouco parecida à substância do cérebro, mas
apenas diferente na qualidade mais compacta e menos fria e, assim, mais apta para a
função de cheirar. Ao segundo, deve dizer-se, em primeiro lugar, que ele pode vol
tar-se com força igual contra o autor. Na verdade, como Averróis diz que o sensório
do olfacto é a membrana das narinas que se estende até às aberturas, pode perguntar
-se por que não sentimos o cheiro dos alimentos através delas. Ora, em primeiro
lugar, a razão é porque aquele odor do alimento está bastante misturado na boca e,
por isso, não pode ser sentido por nós, ainda que seja percebido por alguns, a cujas
narinas chega mais purificado. Outro, porque não sentimos o odor excepto quando
inspiramos, mas a inspiração conduz o ar para a garganta e para o pulmão e, assim, o
odor não pode, a partir da boca ou do ventrículo, chegar ao olfacto, visto que daí não
atraímos o ar, mas antes o impelimos para lá.
O último argumento postula que digamos o que Aristóteles considerou sobre a
sede do olfacto. Valésio livro 2, Controversiarum medicarum, capítulo 26º, afirma
que ele julgava que esse órgão é o nariz (o que parece que Platão também sustentou
no Timeu) . Com efeito, Aristóteles, no livro 1 , A História dos Animais, capítulo 1 1 º,
diz que também o olfacto, ou seja o sentido do odor, é produzido por essa mesma
parte, isto é, pelo nariz, e no livro 5 A Geração dos Animais, capítulo 2º, diz que as
narinas que foram mais alongadamente estendidas, como as dos cãezinhos da Lacó
nia, são eficazes para o olfacto, pois, na verdade, os movimentos não são interrom
pidos mas entram integral e directamente nos sensórios. O próprio Valésio segue
esta posição como aristotélica. Outros pensam que Aristóteles colocou o olfacto no
cérebro. A estes favorece aquilo que, nos Problemas, secção 1 3 , no problema 5, ele
escreveu, designadamente, que nós cheiramos, então, quando os odores chegam ao
cérebro. Teófilo, neste livro, texto 1 00, considera que nesta matéria Aristóteles foi
dúbio, a tal ponto que em parte alguma explicou a opinião com palavras claras
(como em questões ambíguas costumava entretanto fazer). Também Galeno, no livro
De instrumento odoratus, acusa Aristóteles de ter sido dúbio, porque, embora tendo
sido pai da eloquência e da linguagem de modo algum esclareceu este assunto num
discurso, antes o enovelou, de tal maneira que é preciso vaticinarmos o que teve em
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão IV, Artigo II 381
mente acerca desta matéria. Para a nossa opinião, que situa o odor nas carúnculas
mamilares, consideramos correctas as palavras do Filósofo, capítulo 2º, O Sentido e
o Sensível, onde afirma que o instrumento do odor reside no cérebro, e no livro 2, A
Geração dos Animais, capítulo 4º, quando ensina que tem origem no cérebro. Na
verdade, aquelas carúnculas ficam ao pé do cérebro e propagam-se a partir dele.
E não obstam os pontos em que Aristóteles parece indicar que as narinas são o
instrumento do cheiro. Com efeito, ele somente pretende que estas sirvam o olfacto,
como no livro 5, A Geração dos Animais, capítulo 2º, ensina. E chama-lhes sensó
rios porque contêm as papilas mamilares e, muitas vezes, acabam nelas. Outro.
Quando afirma que nós cheiramos, quando os odores vêm ao cérebro, apenas quer
dizer que para cheirar é necessário o gozo dos odores, que, ordinariamente, também
são levados ao cérebro, sobretudo porque foram constituídos por sua causa, pela
natureza, embora este não sej a o seu fim completo e adequado, como será mais evi
dente de caminho.
Resta, para explicar esta questão, se é verdade o que Aristóteles transmitiu, sobre
a membrana do olfacto. De facto, neste livro, capítulo 9º, texto 1 00, e no livro O
Sentido e o Sensível, capítulo 5º; também no livro 4, A História dos Animais, capí
tulo 8º; no que também o Gárbio seguiu e Alberto Magno; o Conciliador; Alexan
dre; Temístio; Marcelo; Averróis; São Tomás e outros, ele afirmou que nos animais
que respiram, sobretudo nos homens, o sensório do olfacto foi protegido e coberto
por uma certa membrana, que quando o odor penetra no órgão se deve elevar, sendo
por isso necessária a inspiração do ar que, atraído pela força, ergue a película. Eles
pretendem que sej a esta mesma a causa pela qual os referidos animais não cheiram,
a não ser que a inspiração se dê antes. Muitos censuraram Aristóteles neste ponto.
Primeiro, porque os professores de Anatomia negam que haja tal membrana.
Segundo, porque, com o ímpeto do ar que naturalmente irrompe as películas não se
abrem menos do que atraídas pela força da própria inspiração. Mas isto é evidente
mente falso, de outra maneira o olfacto dar-se-ia de vez em quando sem a respira
ção. Terceiro, porque não se vê nenhuma razão suficiente pela qual se deva defender
isso. Não, para tutela da potência, visto que no nariz o olfacto está bastante prote
gido e abrigado das agressões exteriores.
Não há razão para nos afastarmos de Aristóteles, visto que pode facilmente ser
livrado dessa calúnia. Deve dizer-se que Aristóteles, com o nome de membrana não
compreendeu algo diferente daquilo que enumerámos acima, ao avançar a definição
da estrutura e composição do nariz. Isso não é observado na dissecação, mas ele quis
referir-se à última pequena membrana dos buracos do nariz que cai por cima das
carúnculas mamilares e se ergue na inspiração. É o que parece indicar o capítulo
nono deste livro, texto 1 00, ao afirmar que o revestimento que a natureza deu ao
olfacto mostra-se pelas veias dilatadas e pelos canais. A força do ar não pode,
porém, dilatar ou remover a membrana que obstrui, porque o ar não pode nela entrar,
a não ser que saia o que está dentro, mas não sai a não ser atraído pela inspiração.
Por isso, ainda que alguém, diz Galeno, num compartimento cheio de odores, pro
jecte o ar para as narinas, pelo canal, não sentirá o odor sem a inspiração. Aquilo
que, de facto, dizem, que o instrumento não necessita da membrana do odor, é falso,
se se estiver a falar acerca do que afirmámos ter-lhe sido dado, nem isso mesmo se
distingue do próprio nariz, necessário para manutenção do calor, do frio e de outras
382 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
agressões semelhantes. Acrescente-se, também, que dado que muitos odores são
repugnantes ou perigosos, foi conveniente que o órgão do olfacto fosse revestido,
para que não estivesse necessariamente sempre à disposição de todos os odores, mas
que, entretanto, pudéssemos impedir e inibir a sua percepção, durante algum tempo,
pela inspiração.
Retire-se, do que ficou dito, o múltiplo uso e vantagem que a inspiração do
olfacto confere. Com efeito, ela atrai, primeiro, junto com o ar, a exalação odorífera
ou o odor por si, ou a espécie do odor. Segundo, remove a membrana. Terceiro, com
o seu movimento irrita o sentido embotado por natureza. Mas destas três funções,
apenas a segunda é absolutamente necessária para cheirar. Entenda-se isto em rela
ção aos animais que respiram. Na verdade, uma exalação odorífera sem atracção
pode aproximar-se das vias respiratórias e, assim, introduzir-se com a própria coisa,
que sobe por uma e por outra vias. Do mesmo modo, o odor e as espécies odoráveis,
visto que com ela se difundem por ali, dada a sua natureza, dirigem-se para regiões
superiores, posto que penetrem as narinas, rapidamente, com muito ar atraído. Mais,
embora o olfacto seja um pouco suscitado pela agitação do ar, sem aquele movi
mento, ele percebe por si o odor, como é evidente nos exemplos dos animais que
estão privados do uso de respirar. E, a não ser que a película se afaste, não haverá
nenhum acto de cheirar. O que é evidente, porque nos animais que respiram é neces
sária a inspiração para cheirarem, como ensinou Aristóteles, no capítulo anterior e
noutros pontos, e a própria experiência demonstra. Acrescenta que, por isso, que não
cheiram debaixo de água (o que é claro com base no testemunho dos mergulhado
res). Não é, no entanto, necessária para cheirar em virtude da sua primeira ou ter
ceira funções, que anteriormente referimos, como é manifesto a partir do que foi
dito, nem, na verdade, por outra coisa que se pode aduzir e por mor dela exigida. É
apenas precisa para abrir a membrana e para alongar as vias dos órgãos do olfacto.
Donde, também se pode levar o argumento a comprovar o citado invólucro, que
Galena, no livro De instrumento odoratus, e muitos outros negam. Se, de facto, o
acto de cheirar não se produz sem inspiração e esta não é necessariamente exigida
para que se cheire, a não ser que por sua intervenção a membrana se aparte, segue-se,
então, não poder negar-se que tal membrana se encontra nos animais que respiram.
Mas insiste-se, e Galena persiste, que o olfacto não devia ser protegido por uma
película, porque é de longe mais excelente, e o que quer que se sinta está sempre
desimpedido e à vista, para ser conduzido ao seu objecto. Não obsta, afirma, que a
natureza dê pálpebras aos olhos mais sensíveis, que servem de cobertura e de defesa.
Como poderiam ser facilmente danificados pelos acidentes, para os defender, deu
-lhes as pálpebras, como umas certas defesas . Também por causa do sono. Efectiva
mente, não podemos dormir na claridade a não ser com os olhos tapados. Daí que,
nos animais desprovidos de pálpebras, como nas lagostas, em certos peixes e nos
caranguejos a natureza tenha dado receptáculos e certas pregas, que no momento do
sono, como quartos de dormir, recolhem todos os olhos, dos quais emergem no fim
do repouso. É evidente, com quanta utilidade a natureza teceu os olhos com pálpe
bras ou ocultou o tempo de sono em esconderijos. Ora, não se vê por que é que
deveria envolver o olfacto com uma película.
Deve responder-se a este argumento que o sentido deve corresponder às funções
que executa, tanto quanto a razão da natureza e a ordem o exigem, mas que ele não
Livro Segundo, Explicação do Capítulo IX, Questão V, Artigo I 383
postula que o olfacto, nos animais de espécie mais nobre, que são os que respiram,
esteja necessariamente exposto à percepção continuada dos odores, pela causa há
pouco assinalada. Deve igualmente ser coberto do modo que referimos. Nem isto
implica dar descanso desnecessário ao sentido, especialmente porque tal ócio,
estando presente uma coisa dotada de cheiro, não dura, a não ser quando enviamos o
ar para fora, que logo a seguir, num movimento contrário, atraímos.
QUESTÃO V
Se o olfacto do homem é mais fraco do que o dos outros animais
ARTIGO !
A superioridade do olfacto.
Argumentos a favor da parte negativa da questão proposta
condicionalismos. É o que acontece com o órgão do nosso olfacto, visto que abunda
em humidade, dada a vizinhança do coração. Mas o odor é de natureza ígnea e cria
dor de secura.
Terceiro. O homem percebe mais diferenças de odores do que outros animais;
logo, o homem cheira mais penetrantemente. Prova-se o antecedente, porque os
animais não sentem os odores repugnantes e fétidos, porque não os repelem como
nós, segundo o testemunho de Aristóteles, no capítulo 5º de O Sentido, e o Sensível.
Outro argumento. Porque não parece que se deleitem com os odores das flores e de
outras coisas semelhantes, como afirma Aristóteles, no mesmo ponto, livro 3, Ética,
capítulo 1 0º. Demonstra-se que apenas percebem os odores do alimento, porque não
afectam o conhecimento dos odores, no que toca ao próprio conhecimento, mas
apenas em relação aos alimentos, visto que também não lhes foram dados os senti
dos para a filosofia, como ao homem, mas apenas para seguirem as coisas úteis e
rejeitarem as nocivas.
ARTIGO II
Resolução da controvérsia
distância, pois quem percebe muitas, diz-se simplesmente que compreende mais o
objecto, e neste género de conhecimento parece ser mais vantaj oso conhecer mais
coisas menos intensamente do que poucas, mais intensamente.
Mas que o homem não percebe mais cheiros na realidade, demonstra-se pela
inaptidão do órgão que toma a potência fraca para cheirar ao longe e igualmente a
faz fraca para sentir muitas diferenças de odores. Outro. É evidente que os animais
percebem muitas diferenças de odores que o homem não percebe, visto que aqueles
conhecem pelo olfacto muitas coisas que são inodoras para o homem, como o rasto
das feras. Os cães procuram os donos ausentes pelo cheiro e reconhecem-nos de
noite, entre muitos. O tigre que deu à luz encontra as crias roubadas, pelo cheiro. As
panteras deleitam-se com o cheiro de um único animal, e por isso o perseguem,
como refere Plínio, no livro 8, Historia Natural capítulo 1 7º, depois de Aristóteles,
os Problemas, secção 1 3 , questão 4; e Teofrasto, no livro 6, De causis plantarum,
capítulo 5º. Mas o olfacto humano não atinge este tipo de odores. Depois, que os
animais não percebam só os cheiros dos alimentos, e para abrir o apetite, mas tam
bém outros, é evidente, quer pelos exemplos anteriores, quer porque o odor afugenta
as moscas do enxofre e as serpentes da resina; o cheiro das rosas mata os cantari
lhos, o dos unguentos, os abutres, como escreveu Teofrasto, livro 6 De causis plan
tarum, capítulos 4º e 5º. Por fim, porque vemos os cães de caça sentir os cheiros das
flores. É por isso que nos prados floridos, apossando-se dessa exalação dos odores,
costumam ficar perturbados e impedidos de perseguir as feras. Não satisfazem os
que respondem que os cães se detêm quando avistam uma variedade matizada de
flores. Efectivamente também se detêm onde não existe nenhum matiz de flores,
mas apenas uma erva odorífera. E assim, deve negar-se em absoluto que também são
sentidos pelos animais os odores que não respeitam aos alimentos, de cuja percepção
parecia que os animais eram superados pelo homem.
Há também alguns que, embora concedam que os odores são percebidos por eles
deste modo, negam que os animais se deleitem com eles. Assim, Alexandre, no O
Sentido e o Sensível, comentário 47 ; Boccaferro, lição 45 ; Janduno, questão 20;
Teofrasto, no livro 6, De causis plantarum, capítulo 2º; Marcelo, 3, A A lma, capítulo
77º; Alberto, na Suma do Homem, tratado sobre o olfacto; Apolinário, no 2 de A
Alma, questão 27 . Na verdade, como os animais obtêm os seus prazeres de outras
coisas, não há razão para considerarmos que os que provêm desses odores, lhes
fossem negados pela natureza. A deleitação dos odores, que formalmente pertence
ao apetite, dá-se em nós, pela razão de que os odores existem para o nosso apetite
enquanto úteis e convenientes à natureza. Nenhum argumento, porém, prova que os
referidos odores não possam ser representados do mesmo modo para o apetite dos
animais, sob alguma espécie de conveniência geradora de deleitação. Quem conside
rar que as feras perseguem o odor da pantera sem ser por alimento (nem, com efeito,
lhes serve de alimento) e que também a perseguem com perigo de vida, não consi
dera então que a seguem porque se deleitem com o seu odor? Certamente neste
ponto também quadra aquilo que Virgílio disse, que o seu desejo também arrasta
ambos. Estas coisas não impedem que muitas vezes alguns odores sejam suaves ou
desagradáveis aos homens, outros aos animais, dada a diferença das composições.
Fica demonstrado, portanto, com esta disputa, que o odor do homem é mais fraco,
do que o de muitos animais, e isto tanto no que respeita à distância, como à varie-
386 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
dade dos odores percebidos. Mas Filópono pergunta se o homem cheira deficiente
mente por defeito da potência ou do instrumento. Esta dúvida foi resolvida por
Aristóteles, no capítulo anterior, texto 92, quando ensinou que a nossa falta de saga
cidade é originada pelo defeito do órgão, o que também diz Alberto Magno, livro 2
de A Alma, tratado 3 , capítulo 23º. Há em nós um aparelho odorífero junto ao cére
bro que foi dado mais ao homem, por causa do tamanho do corpo, do que aos res
tantes animais, como ensina Aristóteles, livro 2 de As Partes dos Animais, capítulo
7º, e que abunda em humidade, segundo o mesmo Aristóteles, no livro O Sentido e o
Sensível, daí se difundindo para o aparelho olfactivo. Acontece que as imagens dos
odores menos firmes e menos articuladas imprimem-se em nós e excitam de modo
débil a potência, a qual também como que adormece, entorpecida, no húmido, porque
no cálido e seco deveria antes manter-se em vigília, tal como os próprios odores
nascem da composição do seco e do cálido. Mas Alberto Magno anotou, na Suma do
Homem, tratado sobre o odor, que nós raramente sonhamos com odores porque as
suas espécies também são fracas e efémeras no nosso sentido interno.
Respondamos agora aos argumentos que pretendiam provar que o olfacto do
homem não é mais imperfeito do que o dos outros animais. Ao primeiro, deve dizer
-se que o olfacto do homem tem origem na forma mais eminente, ou sej a, na intelec
tiva. Isto, não segundo o grau em que é superior a outras formas, pelo qual se deno
mina intelectiva, mas segundo o grau sensitivo de que todos os animais participam
de modo igual . Donde, não há razão por que o odor receba maior perfeição de essên
cia no homem do que nos animais. Ao segundo, deve negar-se o antecedente, e para
sua prova dizer, que ainda que sofra algo do agente deve ser diferente dele em qua
lidade, pelo menos quanto ao grau recebido, visto que nada nele age que sej a total
mente semelhante a ele. Também o órgão de cada sentido não deve ser por isso
afectado de qualidades contrárias à natureza do objecto para que tende e por que
sofre, ou despojado daquelas que são consentâneas com o objecto. Deve outrossim
adequar-se ao objecto, para que se tome hábil e proporcionado para o perceber,
como ensina Teófilo, a partir de Empédocles e de Galena, no texto 94 deste livro.
Ao terceiro, negando o que aceita, e para sua confirmação, dizer que também os
animais sentem odores fétidos e horrendos, como ficou patente nos exemplos acima
referidos. Também Aristóteles não o nega, no ponto citado, no livro O Sentido. Com
efeito, ele é somente de opinião que os animais evitam menos cheiros deste género e
que, ordinariamente, são por eles menos agredidos. Também, quer aí, quer na Ética
ele não nega, em absoluto, que os animais percebam os cheiros das flores ou que
com eles se deleitam, mas que são tão habilmente captados com as suas delícias,
como os homens, como apontou Escalígero no exercício 33, Sobre Cardano. Por
fim, o que se objectava em último, que os animais só conheciam os cheiros dos
alimentos, é evidente que é falso com base no que se disse. Ainda que não percebam
os odores apenas por virtude do conhecimento, há outros fins além da nutrição e do
conhecimento, para os quais podem ser conduzidos por comando da natureza, quando
são cheirados. Por exemplo, para evitarem as coisas cujas exalações são nocivas e para
alcançarem as propícias. É evidente, portanto, a partir disto, que existem muitos odores
deste género que não respeitam ao alimento. Atente-se, por último, que o que Temístio
afirma, que o olfacto não é dado ao homem para o conhecimento e para a filosofia,
não é absolutamente verdadeiro, mas deve ser acolhido, ampliando a afirmação, para
significar a debilidade e a imperfeição deste sentido no homem.
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X 387
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO X
tos dentro da água a alguma distância, por exemplo, o mel mergulhado na água,
razão pela qual os sabores não são percebidos sem o meio externo. Acontece
neste caso que o mel não é sentido através da água como um meio, mas porque
toda a água infusa pelo sabor é alguma coisa degustável.
c. Color autem 422 a 14 - Como a partir do conhecimento do que é comum e pró
prio se investiga e se depreende a natureza da coisa, ensina o que o gosto tem de
próprio e de comum com os outros sentidos e, em primeiro lugar, com a vista. O
que lhe é próprio é que o degustável se misture com o húmido para que seja sen
tido. Mas com o visível não é assim. Na verdade as cores não se ajustam pela
mistura ou no transparente, nem dimanam dos corpos, como Demócrito, Leucipo,
Empédocles e Platão consideraram. Por isso, é diferente o meio de uma e de
outra potência, embora se encontrem nele, porque tal como a cor determina o
acto de ver, assim o sabor determina o de gostar.
d. Atqui nihil 422 a 17 Porque os sabores estão em corpos muito secos, Aristóte
-
les ensina que os corpos saborosos, se não em acto, ao menos em potência, são
húmidos. Esta potência manifesta-se facilmente naqueles corpos que se derretem
ao ligeiro contacto com um corpo húmido, como o sal que também se dissolve no
humor com a saliva da língua e humedece a própria língua. Acrescente-se tam
bém que nos que não se liquefazem, como os aromas, basta a potência de receber
o humor comunicado à língua.
e. At uero sicuti 422 a 20 Continua a mostrar o que é que o gosto tem em comum
-
Kal TO arrúp11vov, isto é, que carece de pés e está privado de caroço. E o sentido é
que por vezes se diz invisível, não o que careça totalmente de potência para ser
388 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
visto, tal como o som ou o anjo, mas que carece para ser clara e correctamente
visto, do mesmo modo que umas coisas se dizem destituídas de potência para
andar e outras destituídas de caroço, porque têm os pés pequenos ou um caroço
diminuto.
g. Videtur autem 422 a 3 1 Como os sabores apenas são sentidos com a humidade,
-
res, ensinando de que modo, a partir das espécies das cores, umas são opostas e
contrárias, outras intermédias. Assim, nos sabores, uns são opostos e contrários,
designadamente o doce e o amargo, outros intermédios. De entre estes, uns são
vizinhos deste ou daquele oposto. Aristóteles afirma que os sabores intermédios
são feitos dos contrários. De que forma isto deve ser entendido, explicaremos nos
livros da Filosofia Primeira.
QUESTÃO !
Da origem e natureza do gosto e das suas espécies
ARTIGO !
As coisas que concorrem para a génese do gosto e qual é a sua definição
Nesta questão deve primeiramente supor-se que nenhum corpo simples, contanto
que tenha em si a devida pureza, é saboroso, visto que o sabor é uma qualidade
segunda nascida da mistura das quatro primeiras, que não podem dar-se ao mesmo
tempo no elemento que conserva o estado primitivo. Por isso, também a água que
banha a terra se fosse pura, não receberia nenhum sabor. E esta, quanto menos
saborosa é, tanto mais é considerada pura e sublime. Acontece, também, que o gosto
é o sentido do alimento, como ensina Aristóteles, no livro O Sentido e o Sensível,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X, Questão /, Artigo / 389
capítulo 4º. Posto que os sabores foram dados pela natureza para temperar o ali
mento, este não é um elemento puro, como no primeiro livro A Geração e a Corrup
ção mostrámos ser consentâneo com o facto de os sabores não pertencerem a
nenhum elemento puro. Afasta-se, por isso, a afirmação de Empédocles, de Anaxá
goras, de Demócrito e de outros (sobre a qual Aristóteles, no livro O Sentido e Sen
sível, capítulo 4º; Teofrasto, no livro 6, De causis plantarum, capítulo 2º e outros
autores), afirmando, com Alberto Magno, na Suma do Homem; também em O Sen
tido, e o Sensível, tratado 2; Apolinário, neste livro, questão 29; Gárbio, na Suma,
questão 7 1 ; Contareno, livro 5 dos Elementos; no Conciliador, diferença 1 45 ; Mar
celo, no terceiro sobre A Alma, capítulo 80º, na sequência de Aristóteles no ponto
citado; também Teofrasto, no citado livro, capítulo 3º, que para a génese do sabor
concorrem sobretudo três coisas, a secura terrestre, a humidade e o calor da água. A
experiência demonstra que a secura da terra intervém nas coisas saborosas. Deve ser
a secura da terra, não do fogo, porque a secura do fogo é demasiado ténue na matéria
e é, por isso, efémera e pouco apta para produzir o gosto que, como é o único dos
sentidos de natureza mais espessa e lodosa, exige o objecto na matéria mais espessa.
É também evidente que o humor concorre para gerar o sabor, porque muitos corpos
se tornam saborosos quando são irrigados pelo humor. Deve, também, este húmido,
ser de água, não de ar, porque só no húmido, que tem a faculdade de alimentar, e por
isso tem a matéria densa e compacta, o sabor é excitado. Tal é, de facto, ordinaria
mente, o húmido aquoso, não aéreo, porque se dissipa facilmente. Por outro lado,
para o nascimento do sabor é necessário que o húmido se sobreponha ao seco, por
que tal como o odor consiste mais no seco do que no húmido, assim o sabor consiste
mais no húmido do que no seco, como discutimos na disputa acerca da natureza dos
odores, baseados em Aristóteles. Finalmente, o calor é necessário para criar o sabor,
porque o sabor costuma originar-se somente na presença do seco e na digestão do
húmido, através da qual o húmido se mistura directamente com o seco. Mas esta
digestão acontece pela potência e pelo ministério do calor. Daí vermos que os sabo
res desaparecem com o frio, porque o frio impede a digestão. Consideramos, tam
bém, que os frutos são mais amargos em zonas frias, e que com o aumento do calor
das terras o amargo desaparece e se torna doce em toda a parte. Mais ainda, como
para o sabor concorrem estes três elementos, o seco e o húmido pertencem à consi
deração da matéria, o calor tem a condição da causa eficiente.
A partir daqui não será difícil compreender o que é o sabor, que Teofrasto define,
no primeiro capítulo, livro 6, De causis plantarum. O sabor é o derramamento da
parte seca e terrena no humor. Mais exactamente, Aristóteles, no livro O sentido e o
sensível, capítulo 4º. O sabor é a afecção no húmido aquoso, que pelo seco terrestre
e pela cozedura do calor, produz o gosto que está em potência e que por uma altera
ção é levado ao acto. Nesta definição não só se exprime a matéria e a causa eficiente
do sabor de que falávamos há pouco, mas também a forma, quando se diz que o
sabor é afecção e também fim, quando se acrescenta que o gosto é levado, etc. Na
verdade, a alteração pela qual o sabor move a potência é o fim do sabor.
Quem objectar que não parece que o humor seja matéria dos sabores. Efectiva
mente, as cinzas são amargas, mas não húmidas. O gengibre e a pimenta têm sabor
acutilante, mas não húmido. Mais, porque se os sabores fossem os próprios alimen
tos e fossem húmidos, seria necessário que todo o alimento fosse húmido, o que é
390 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
falso, visto que a fome é o apetite do alimento, e no livro 3, A Alma, capítulo 3º,
texto 28, ela é definida como apetite do quente e do seco. Mas deve opor-se, que
embora a matéria dos sabores seja húmida, não se segue que todo o sabor está intei
ramente na coisa que possui mais humor do que secura, mas naquela cuj o sabor
provém mais do humor do que da secura, como afirma Teofrasto no livro 6, De
causis plantarum, embora na coisa, entretanto, resida mais humor do que secura. E
assim, também o sabor que está nas cinzas nasce sobretudo do humor, do qual as
cinzas não se encontram totalmente destituídas. O que igualmente se deve dizer
acerca do gengibre e da pimenta. Apontando que nem todo o alimento é húmido,
indicamos também que este, como é saboroso, exige mais humor do que secura e
que, na coisa saborosa, se existem umas partes mais secas e outras mais húmidas, o
sabor prolifera mais nas húmidas do que nas secas.
Por fim, quem duvida sobre se o sabor, que provém da referida mistura, inerente à
coisa, que recai sob o gosto, e conserva a espécie que lhe pertence, é alterado pela
natureza da potência. Há razão para duvidar disso, porque parece evidente, por
experiência, que uma mesma erva é doce para o boi e amarga para o homem. No
entanto, deve afirmar-se o contrário, contra alguns autores referidos por Teofrasto,
no capítulo 2º, livro 6, De causis plantarum. Na verdade, como o gosto em todos os
animais é da mesma natureza, afastados os impedimentos, não se engana acerca do
próprio sensível. É necessário que a doçura, que existe numa mesma erva, seja
percebida segundo a natureza e a espécie da doçura. Por isso, os animais costumam
ingerir avidamente certas ervas e alimentos que os homens rejeitam, e o contrário. A
causa não é porque a doçura inerente à coisa não sej a percebida por uns e outros,
mas porque, a partir da diversidade de misturas, acontece que o que é para um doce,
para outro é desagradável e danoso, ou vice-versa. Com efeito, também para o nosso
gosto, as coisas doces são, por vezes, nocivas, como é claro no exemplo do pau de
canela. Contareno observou isso no livro 5, Elementos.
ARTIGO II
Que espécies de sabores existem
No que toca às espécies de sabores, os filósofos não estão de acordo quanto à sua
fixação. Com efeito, uns afirmam que elas não podem ser reduzidas a um número
certo, outros consideram oito espécies, outros sete. Plínio, no livro 1 5 , História
Natural, capítulo 27º, enumera treze: doce, suave, gorduroso, amargo, áspero, acre,
picante, azedo, ácido e salgado. E além destas, diz ele, há três géneros de natureza
admirável. Um, em que são igualmente sentidos muitos sabores, como nos vinhos,
nos quais saboreamos o áspero, o picante, o doce, o suave, todos eles diferentes. O
outro é o género onde existe um sabor distinto, mas que é seu e próprio, como no
leite, e que por isso lhe é inerente, pelo que não se pode dizer, em rigor, doce, gordu
roso e suave, conservando a delicadeza que aparece no sabor, alternadamente. Daí
imputar-lhe um certo paladar a água saborosa. Mas deve ser aprovada a opinião de
Aristóteles no capítulo anterior, que acedendo mais à razão filosófica, enumera oito
espécies de sabores (embora não deva repugnar muito constituir mais espécies, divi
dindo mais ou menos minuciosamente, falando mais genericamente): o doce, o
amargo, o gorduroso, o salgado, o acre, o azedo, o picante e o ácido. O doce no mel,
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X, Questão /, Artigo li 391
por exemplo, nos figos, também sentido nas uvas maduras. O amargo na bílis, no
ópio, no absinto e na giesta. O gorduroso na manteiga, no leite e no azeite. O sal
gado no sal e na água salgada. O picante na pimenta e no alho. O azedo que é cha
mado picante e ácido ou acidulado, nos frutos não maduros e nos frutos do mirto.
Á cido, nos óleos, amarga no vinagre e no saramago ou no rábano. A partir destes
sabores Aristóteles ensinou que o gorduroso é inerente ao doce, isto é, que se pode
tomar doce, e o salgado, amargo não porque convenham em espécie, mas pela maior
ligação que têm com eles.
Há grande discórdia sobre quais são os sabores extremos. Platão, no Timeu;
Galeno, no livro 4, Simplicium Medicamentorum, ao capítulo 1 0º; o Conciliador,
diferença 1 45 , consideram que não há doce e amargo, conforme defendeu Aristóte
les, mas picante e azedo. O fundamento desta opinião é que estes sabores que ava
liamos como extremos, sobrevêm mais às primeiras qualidades extremas. Também o
sabor picante é mais vizinho do calor mais elevado, o ácido, do frio mais elevado,
compreenda-se isto, pela natureza da mistura de que resulta. Acrescente-se que os
sensíveis extremos danificam os sentidos, embora o sabor doce muito pouco, pois
restaura e deleita. Também o trânsito do azedo para o acre é feito através do sabor
doce, mas não é costume que o trânsito seja feito, nas qualidades, através do
extremo, mas através do meio. Deve acolher-se a posição de Aristóteles, que São
Tomás examina, em O Sentido e o Sensível, lição 1 1 ; Averróis, neste ponto, texto
1 05 , e no quinto, Collectaneorum, capítulo 27º; Gárbio, na Suma, livro 1 , tratado 5 ,
questão 7 1 ; Contareno, n o livro D e elementis; Javelo, neste livro, questão 4 6 . É
necessário tomar em atenção, se os sabores forem considerados quanto às primeiras
qualidades de que provêm, que se deve negar não poder dizer-se que o salgado e o
picante, pela razão anteriormente aduzida, são extremos. Esta consideração dos
sabores não é própria dos sabores, enquanto sabores, mas porque integram a com
posição do corpo, que os médicos têm sobretudo em conta. Dado que discutia acerca
dos sabores, de acordo com a própria natureza dos mesmos, isto é, enquanto movem
o gosto, Aristóteles fixou correctamente como sabores opostos, o doce e o amargo,
porque afectam sobretudo a potência em sentido contrário, tal como a experiência
demonstra. Assim, por exemplo, não consideramos que as cores sej am opostas, por
excesso das qualidades primárias, mas a partir do modo como a visão é impressio
nada, porque uma desagrega, o branco, outra agrega, o negro. Mais ainda, o sabor
doce impressiona muito bem o sentido, o amargo, muito mal, porque aquele nasce
de uma boa composição, este do contrário. De facto, como os sabores são produzi
dos a partir da paixão do húmido provocada pelo calor térreo, através do concurso
do calor, serão muito perfeitos e, sobretudo, adaptados ao sentido, os que obtêm a
cozedura mais perfeita do húmido, como o doce. Os outros, a mais imperfeita, por
que muito má, como o amargo. Portanto, para fundamento da opinião contrária,
visto que procura comprovar que os sabores salgado e picante são totalmente opos
tos, deve negar-se que a oposição dos sabores deva ser tomada das primeiras quali
dades, como é evidente a partir das afirmações de há pouco. Para responder ao outro.
Os sabores têm isto de particular, que um dos seus extremos, a saber, o doce, não
fere muito, porque nos sabores, o dano é originada pelo excesso das qualidades
primárias, o qual está, de longe, ausente do sabor doce. A razão está em que, através
do excesso, é feito o trânsito do azedo para o ácido, não por si, mas por acidente,
392 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
QUESTÃO II
Se o gosto difere do sentido do tacto, ora pelo órgão, ora por natureza
ARTIGO I
Difere primeiro em natureza
Há quem pense que o gosto não difere do tacto, mas que está contido nele, como
a espécie no género. A opinião pode ser provada, em primeiro lugar, porque o
objecto de um e de outro parece ser o mesmo. Na verdade, o gosto percebe a água a
qual, visto ser destituída de sabor, não é conhecida como táctil mas como degustá
vel. Daí Aristóteles, no capítulo atrás, texto 1 O 1 , ter afirmado que o degustável é de
certo modo táctil. Segundo. Porque Aristóteles, neste livro, capítulo 3º, texto 28,
ensinou que o tacto é o sentido do alimento. Por isso, embora o alimento respeite ao
gosto, parece ser objecto comum destes sentidos. Terceiro. Porque o paladar que
percebe os sabores, também percebe o humor, visto que o sabor não pode mover o
gosto se não estiver no húmido, em acto. Acrescente-se o testemunho de Aristóteles,
no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 4º, também no livro 3 desta obra, capítulo
1 2º, texto 64 e livro 2 sobre As Partes dos Animais, capítulo 1 7º, onde afirmou que o
gosto é de algum modo tacto e, por outro lado, o capítulo 2º, O Sentido e o Sensível,
onde diz que o gosto é uma espécie de tacto. Por fim, neste livro, capítulo 2º, texto
23 e livro 3, capítulo 1 2º, texto 68, ensina que apenas o tacto é necessário ao animal,
e diz o mesmo em O Sentido e Sensível, capítulo 4º, que o animal não pode viver
sem o gosto. Se Aristóteles entendesse que o gosto e o tacto não diferiam em espé
cie, estes passos estariam em contradição.
Todavia, deve notar-se, que o tacto pode ser entendido de dois modos. De um
modo, enquanto é dito de qualquer potência, que não percebe a coisa sem contacto,
isto é, cuj o objecto não é sentido por um meio afastado que atravessa as espécies, tal
como se percebe a cor, que manda a sua imagem em direcção à vista, através do ar,
mas unida ao meio. Assim, o gosto é levado para os sabores e o tacto para o calor e
para as outras qualidades deste género que lhe dizem respeito. Não é necessário que
o sabor passe, da coisa saborosa para o gosto, através do ar, e igualmente que o calor
passe para o tacto. Do segundo modo, o tacto é tomado pelos filósofos, em sentido
próprio e mais restrito. Foi costume tomarem eles mesmos o táctil, seguramente por
uma qualquer qualidade, que para recair na sua potência não requer meio externo, ou
apenas pelas qualidades que são chamadas tácteis no preciso termo. Posto isto, se se
considerar o lacto de acordo com a primeira noção, dizemos que é correctamente
que se considera tacto, não só a faculdade de tocar, mas também a de gostar, visto
que nem uma nem outra carecem de meio externo para perceber o obj ecto. Se na
Livro Segundo, Explicação do Capítulo X, Questão II, Artigo l 393
ARTIGO II
Também difere pelo órgão
O tacto e o gosto fazem uso do mesmo órgão, ainda que na parte do corpo em que
está presente a faculdade de conhecer os sabores também esteja a faculdade de tocar,
embora não se encontre, pelo contrário, a potência táctil em qualquer lugar em que
também a faculdade de gostar sej a sentida. A língua é o instrumento do gosto, ou
então aquilo que corresponde à língua naqueles que a não têm, como Aristóteles
ensina, no primeiro livro sobre A História dos Animais, capítulo 1 1 º e no 2º de As
Partes dos Animais, capítulos 1 7º, e 4º da mesma obra, capítulo 1 1 º. A língua (para
dizermos alguma coisa sobre a sua composição) liga a raiz à garganta, que é mais
longa, por um osso forte, como base, apoia-se e sustenta-se no que é chamado pelos
gregos úoaô�ç, que tem a forma da letra Y. Uma substância rara e ampla, como os
humores, que são veículos do sabor, facilmente a embebe. Ela está envolvida por
uma túnica muito fina que é comum a toda a boca. Compõe-se de nove músculos
divididos pela linha média, à direita e à esquerda, para que também este instrumento
seja geminado à sua maneira. Ramifica-se em duas veias maiores e noutras tantas
artérias e em dois conjuntos de nervos . Num, mole, destinado a conhecer os sabores;
noutro, mais duro que, repartido pelos músculos, impele os movimentos. É necessá
rio, de facto, que a língua seja expedita, quer para falar, se também conservar a fun
ção da fala, quer para transformar o alimento que detém na boca, em ordem a ser
capaz de o mastigar e o submeter, com diferente atrito dos dentes. Há quem
considere que a faculdade do paladar está principalmente na raiz da língua. Primeiro,
porque a saliva, que conserva o gosto é gerada aí. Existem, de facto, nas raízes da
língua duas glândulas de carne (chamam salivares), geradoras da saliva. Segundo,
porque ali são avistados os nervos maiores. Todavia a opinião contrária, como
Aristóteles ensinou, no livro 1 sobre A História dos Animais, capítulo 1 1 º, e no livro
2, As Partes dos Animais, capítulo 1 7º é verdadeira, a saber, que na ponta da língua
está presente o gosto mais apurado. Isso é evidente pela experiência. Quando o
alimento é devolvido para as raízes da língua deleita menos, de tal modo que o
remetemos para a cúspide da língua. Quando, pelo contrário, queremos saborear
algo, deitamo-lo imediatamente nas partes inferiores da língua. A razão é porque no
declive da língua reside maior potência gustativa, dado que esta é a parte mais mole
da língua e os seus nervos, embora menores, são, no entanto, mais tenros e mais
aptos para perceber os sabores. Não obsta que a saliva seja muito abundante na raiz.
De facto, se a quantidade do humor for pouca, cria um obstáculo ao gosto. Com
efeito, ainda que a referida faculdade resida principalmente na língua, como Santo
Agostinho, no livro 2 de As Palavras do Senhor, e São Damasceno, no livro 2 sobre
A Fé Ortodoxa, capítulo 1 8º; São Nemésio, no livro A Natureza do Homem, capítulo
9º; Plínio, no livro 1 1 , capítulo 37º consideram que parece que também algo se
estende em direcção ao palato, onde estão espalhados indiscriminadamente os
nervos gustativos . Isto não vai contra a opinião de Aristóteles, que apenas fala do
órgão principal, porque no próprio livro 4, As Partes dos Animais, capítulo 1 1 º,
também situa o gosto na goela. O deleite de todo o manj ar, diz, prova-se ao engolir.
De facto, enquanto deglutimos, sentimos as coisas viscosas, salgadas, doces e outras
deste género. Também a suavidade de quase todos os condimentos e dos manjares,
na mastigação, existe por causa do tacto da garganta. Plínio afirma que, embora no
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI 395
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XI
e de cheirar. Portanto, a carne também seria o meio, mas não o órgão do tacto,
embora existisse junta ao órgão, enquanto é a mesma forma do próprio animal, o
que não se ajusta aos meios dos três referidos sentidos, que são elementos des
providos de solidez e, por isso, os seres vivos não seriam enformados por
nenhumas formas.
d. Indicat autem plures 423 a 17 Este ponto é obscuro. Os intérpretes não estão de
-
acordo na sua explicação. Mas Aristóteles parece que continua a questão relativa
à unidade do tacto e afasta a oportunidade de se considerar que o tacto é só um.
Ele pensa que existe apenas uma potência de tocar, porque o seu instrumento é só
um. Afasta-o, portanto, porque embora só exista um instrumento, a existência de
vários objectos é suficiente para multiplicar a faculdade. É o que parece evidente
no gosto e no tacto da língua, que mostrámos serem sentidos diferentes, embora
sej am percebidos numa e na mesma língua, porque o tacto trata das qualidades
tácteis, o gosto das gustativas. Se, portanto, o tacto tivesse mais obj ectos, o sen
sório e também o meio seriam um só. Isto não obstaria a que mais potências
devessem existir.
e. At uero dubitabit 423 a 2 1- Embora tivesse dito acima que o tacto tem um meio
congénito, agora, a fim de dar uma explicação mais ampla, desenvolve uma
questão, a saber, se o tacto tem algum meio externo. Na verdade, como entre dois
corpos (compreenda-se, sólidos, que tenham umas partes rebaixadas, outras
salientes) existe sempre ar ou água, interpostos, como é evidente quando se
tocam na água, quando entre eles permanentemente se encontra alguma humi
dade, ou o que igualmente acontece no ar, embora seja menos claro neste ele
mento, parecerá que deve afirmar-se, absolutamente, que todas as vezes que sen
timos pelo tacto algum corpo deste tipo, intervém sempre o meio ar ou água e
que, assim, para o sentido do tacto, estes corpos são tidos como meios externos
para produzir a sensação.
f. Utrum igitur 423 b 1 Apresenta uma outra questão. Se todos os sentidos são
-
levados para os seus objectos através do meio externo. Responde que para todos
os sentidos é comum perceber os objectos através do meio externo, quer para o
gosto, quer para o tacto, quando provamos e tocamos corpos sólidos, porque
entre eles, como há pouco foi referido, a água e o ar permanecem sempre como
meio. Efectivamente os três restantes sentidos divergem do gosto, e do tacto,
porque neles o meio externo é movido pelo objecto mudado. Mudado o meio,
altera-se a potência. Nestes, portanto, em virtude da junção da coisa percebida e
da pequenez do intervalo, o meio e a potência mostram-se movendo-se ao mesmo
tempo. O que se expõe com o exemplo do escudo. Se alguém for batido através
do escudo, não dizemos que o escudo é batido pela lança, mas que ele é batido
pelo escudo e que recebe a pancada juntamente com o escudo. Acrescente-se que
o gosto e o tacto somente por acidente resultam do meio externo, visto que não é
possível que os corpos se toquem imediatamente, mas os restantes sentidos por si
e pela natureza dos objectos externos solicitam um meio.
g. Omnino autem 423 b 17 Explica detalhadamente o sensório, o objecto e o meio
-
do tacto. Ensina, primeiro, que a carne não é órgão, mas o meio do tacto, tal
como o ar é o meio da vista e do ouvido. Prova-o, porque o sensível aposto ao
sentido não é percebido. Com efeito, se o branco tocar os olhos, o som se juntar
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão /, Artigo / 397
afirmando ser o que está em potência para ser tangível em acto, por isso é neces
sário que aquilo que sente o faça por um sensível semelhante, posto que aquilo
que suporta a potência é da mesma natureza daquilo pelo qual a suporta. Como,
portanto, o objecto do tacto é principalmente o quente, o frio, o seco e o húmido,
o seu sensório será afectado de modo a poder ser mudado por estas qualidades.
Existe, pois, uma diferença entre o tacto e os restantes sentidos, porque os órgãos
destes são desprovidos das qualidades que sentem, como o humor cristalino, das
cores, os movimentos mamilares, dos odores e outros do mesmo género. Mas o
instrumento do tacto, visto que é um corpo formado pela mistura das primeiras
qualidades, necessariamente integra em si em acto as primeiras qualidades que
são objecto do tacto, ainda que as deva obter no meio termo, a fim de conhecer
convenientemente os extremos e os excessos, pois é o juiz na média dos extre
mos.
1. Praeterea ut visus 424 a lO Do mesmo modo que estabelece nos outros senti
-
dos dois sensíveis, um, propriamente sensível, como um hábito, o outro, como
uma privação, também diz que a coisa existe no tacto, de maneira que tal como a
vista está para a coisa visível e a invisível, assim também o tacto está para o tan
gível e o intangível. Chama, de facto, intangível, quer àquilo que tem as qualida
des tácteis completamente débeis, quer ao que possui aquelas que se excedem de
tal modo que destroem o sensório.
QUESTÃO !
Qual é o órgão do tacto e qual é o seu meio
ARTIGO I
Diferentes opiniões dos filósofos acerca do órgão do tacto
e qual delas deve ser perfilhada
Subsiste grande discordância entre os filósofos sobre o local onde reside o ins
trumento do tacto. Temístio, na sua Paráfrase, capítulos 39º e 40º e Simplício, texto
l l 6, colocam o tacto no coração, levados pelas palavras de Aristóteles, no livro O
Sentido e o Sensível, capítulo 2º; em A Velhice, capítulo 2º e em As Partes dos Ani
mais, livro 2, capítulo l Oº, onde o Filósofo parece fazer do coração a sede do tacto e
do gosto. Mas Averróis, na Paráfrase sobre O Sentido, e no livro 2 das Generalida
des Médicas, capítulos 8º e 1 8º, e em As Partes dos Animais, capítulos lº e oitavo,
afirma que a carne é o sensitério do tacto. O mesmo considerou Filópono, texto 1 24
398 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
nós tomado, neste ponto, em sentido preciso, mas entendemos que deve ser com
preendido na acepção da epiderme e da pele e outras deste género. Nós considera
mos assim, a presença do tacto, por muito exígua que seja, em qualquer parte do
corpo, ainda que os ossos e certas outras partes, por causa da espessura da terra, ou
de outros elementos deste género inaptos para sentir, careçam da potência do tacto.
Mas a verdade da nossa asserção convence, porque onde está o sensório aí está a
sensação. O sentido do tacto reside efectivamente aí, onde é sentida a lesão e é sen
tida em todo o lado, como a experiência ensina. É evidente que o tacto reside
sobretudo na epiderme. Também conhecemos muito melhor com ela as diferenças
das primeiras qualidades, do que com outra parte do corpo, o que foi feito com sin
gular providência, de tal modo que elas podem prejudicar o animal com o seu
excesso e podem ser permanentemente evitadas onde atingem o corpo. Mas sobre a
própria pele, sente mais a que reveste a palma da mão, como realça Galeno no capí
tulo 1 0º, livro primeiro, De temperamentis. E isto também foi disposto pela Natu
reza, porque usamos a mão como instrumento comum para tocar e apanhar as coisas .
Se alguém objectar que parece que as primeiras têm de ser conduzidas neste sentido,
pelos nervos, deve dizer-se que a divisão do contínuo que provoca dor, sentem-na
mais os nervos quanto mais duros e mais densos forem, mas que a pele se salienta
por um sentido mais agudo para distinguir as oposições das qualidades, porque o
nervo se afasta do frio e do seco por composição, mas não a pele, que tem a medida
exacta.
No que respeita a Aristóteles, ele parece ter estabelecido o tacto, quer apenas no
nervo, quer apenas na carne, dizendo, primeiro, no capítulo atrás, que quando afas
tou o instrumento do tacto da carne, não definiu esta matéria em absoluto, mas ape
nas disputou ao modo dialéctico. Deve responder-se aos seus argumentos, que o
tacto é constituído em nós, na carne, não tanto pela razão de que sentimos a coisa
mal se chega à carne, mas pelas causas explicadas há pouco. Depois, que nem todo o
sentido requer um meio exterior e que a carne pode sentir o objecto encostado a si,
se não na parte que toca muito perto o objecto, pelo menos, na outra algo distante
dela. Sobre este assunto, trataremos mais abaixo. Já aqueles pontos em que Aristó
teles atribuiu à carne a potência de tocar, devem ser acolhidos de maneira a conside
rar que ela está presente na carne mas não somente nela.
ARTIGO II
Do meio do tacto
Ainda sobre o meio do tacto, poucas coisas há a dizer. Também pode inquirir-se
sobre o meio interno ou externo. Há pouco declinámos que seja exigido ou requerido
o meio do tacto. Como afirmámos, tanto a carne como o nervo são um instrumento
seu, embora não se possa chamar à carne apenas órgão, mas de algum modo o meio
interno, no que diz respeito ao nervo, visto que este se altera e se move por interven
ção do seu objecto.
Acerca do meio externo Averróis considera, neste ponto, que ele é necessário,
sustentando que nada pode agir sobre o tacto, se não estiver interposto entre o agente
e o animal um corpo, como parece que Aristóteles ensinou nos textos 1 1 3 e 1 1 4. Se
se opõe a Averróis, que quando o ar e a água atingem imediatamente o animal agem
400 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
nele, de tal forma que nem sempre se exige o meio externo. Responder-se-á que o ar
e a água, dado serem os lugares naturais dos animais, não agem na sua disposição
natural, ou são por eles sentidos. Se o ar e a água se alteram fora do estado natural, e
as qualidades que agem no tacto resultam dos corpúsculos quentes e frios que
admitem em si, então o animal sente estes corpúsculos, que, no entanto, não agem
nele de forma imediata, mas por meio do ar, da água ou do meio interposto.
Esta posição não tem de ser aprovada, dado que de modo algum se deve negar
que os elementos agem nos corpos dos animais, também no estado natural, pois
superam-nos pelo excesso das qualidades primárias, e uma acção pode ser produzida
pela qualidade que se sobrepõe tanto no lugar natural como fora dele. De outro
modo, nem os elementos enquanto estão contidos nas suas próprias sedes agiriam
mutuamente nos que lhe estão próximos. O contrário disto, para além do que está
patente, foi demonstrado por nós noutro ponto. Por isso, deve afirmar-se que um
corpo externo, como o ar e a água, pode agir imediatamente no sensório do tacto e
que o tacto - o que igualmente se deve dizer do gosto - não requer um meio externo.
Deve ainda acrescentar-se, com São Tomás e com o Tienense, ao texto 1 1 4; com
Caetano, capítulo 1 0º; Alberto Magno, no tratado 3, capítulo 32º; Nifo e outros, que
os corpos moles se podem tocar imediatamente. Subsiste uma controvérsia sobre se
os corpos duros se podem tocar. Os autores citados consideram que os corpos duros
não se podem unir no ar e na água, porque nem o ar nem a água são meios. Marcelo,
no livro 2, A Alma, capítulo 1 9º; o Conciliador, diferença 42; Avicena, 6 Metafísica,
capítulo 3º; o Turisano 3; A Arte, comentário 54; Apolinário, livro 2, A Alma, ques
tão 3 1 , artigo 1 º; Gárbio, na Suma, livro 1 , tratado 5, questão 24; Escoto, livro 2, A
Alma, questão 3 , defendem o oposto disto. Esta dúvida deve ser explicada, de modo
a dizermos que os corpos duros que têm umas partes côncavas, outras convexas não
possam juntar-se de tal modo, que no meio não exista outro corpo, de outro modo
dar-se-ia o vácuo nas partes côncavas . As que são inteiramente aplanadas e lisas,
como as vítreas, sem dúvida que podem juntar-se, visto que nenhuma razão deter
mina o contrário. Por este motivo, quando Aristóteles afirmou, no capítulo atrás, que
o ar e a água estão permanentemente interpostos, quando se encontram dois corpos
nos lugares dos elementos, disse-o questionando e não afirmando (como parece a
alguns) e deve ser entendido sobre os corpos de superfícies desiguais. Há quem
objecte também que, quando as superfícies são desiguais, o ar não parece estar sem
pre interposto no lugar do ar, porque de outro modo se seguiria que o ar interposto
sustém a massa muito grande e dura que pesa na substância da pedra, porque tam
bém seria de conceder que quando as tormentas bélicas destroem uma torre, tod_a
aquela força é arremessada para a torre por intervenção do ar que se interpõe, o que
não parece possível porque o ar é um corpo muito ténue e mole. Deverá opor-se que,
quando algumas partes de tais corpos se tocam imediatamente, elas são suficientes
para sustentar o peso aplicado e por seu intermédio pode imprimir-se o impulso à
torre, se não todo uma parte. E ao mesmo tempo, uma parte desse impulso (mas
falamos da parte extensiva) é emitida por intervenção do ar, que, quer o corpo seja
mole, quer ténue, obstruído necessariamente pela estreiteza do lugar, recebe a força
exterior e funde-a no corpo vizinho. Mas acrescentamos ainda, que se pode dar o
caso de dois corpos inteiramente planos, duas tábuas, estarem juntas de tal modo que
entre elas permaneça o ar que sustenta a tábua superior, sobretudo se o superior se
Livro Segundo, Explicação do Capítulo XI, Questão II, Artigo / 401
unir ao inferior, ao mesmo tempo, em todas as partes, como no livro 4, Física, mos
trámos. Mas nada de estranho se passa aí, então, visto que não podia ser de outro
modo. Se assim não fosse, se todo o ar, saísse nesse momento e nada restasse no seu
meio, seria necessário que todo o ar abandonasse ao mesmo tempo qualquer ponto
das tábuas, em que não estava primeiro, o que é impossível, como defendemos no
ponto citado.
QUESTÃO II
Se há um tacto ou vários
ARTIGO I
Diversas opiniões dos filósofos
Há quem considere que existe apenas um tacto e há quem considere que existem
muitos. Temístio, capítulo 39º; Averróis e Egídio, comentário 1 08 ; Janduno, questão
27 ; Apolinário, questão 40; Marcelo, no 3, A Alma, questão 3 8 ; Avicena, livro 6,
Questões Naturais, parte 2, capítulo sobre o tacto; Alberto Magno, 2º de A Alma,
tratado 3, dizem que há muitos. Parece que esta opinião pode concluir-se do argu
mento que Aristóteles, no capítulo anterior, texto 1 07, usou para o comprovar, a
saber, existe um só sentido para uma só oposição; ora o tacto exerce-se sobre mais
oposições, visto que percebe o calor e o frio, o seco e o húmido, o áspero e o macio,
o duro e o mole, e igualmente o pesado e leve. Logo, o tacto não é uno, mas múlti
plo. E pode corroborar-se a força deste argumento, porque diferentes oposições
primeiras, do tipo das oposições do calor e do frio, do húmido e do seco, não podem
ser reduzidas a um único género. Com efeito, uma única espécie de potência exige o
substrato de um só género. Acontece que a dor e o prazer, que costumam ser perce
bidos a partir do contacto com as qualidades tácteis, respeitam ao tacto. Mas doer e
deleitar-se parece ser uma espécie de potência distinta daquela pela qual se sentem
as próprias qualidades tácteis.
Os que seguem esta parte avançam para posições diferentes. Uns enumeram tan
tos tactos quantos os opostos, como Temístio e Avicena, mas no entanto não expli
cam quantas oposições existem. Parece que Avicena estabeleceu um sentido para
quem experimenta a dor de uma ferida, outro para quem experimenta a carícia.
Outros autores, apenas consideram dois tactos, como Egídio, um para o calor e o
frio, outro para o seco e o húmido, mas o Comentador, no livro 2, Generalidades
Médicas, capítulo 1 3º, considera o tacto da carícia e depois o tacto do estômago, que
é, nomeadamente, a fome e a sede. De entre os autores mais recentes, também Car
dano, no livro 1 3 , A Subtileza, distingue quatro tactos: um, das primeiras quatro
qualidades; outro, do pesado e do leve; um terceiro do prazer e da dor; e um quarto
da carícia. Também Caetano, neste ponto, embora se incline mais para a parte que
considera mais tactos, entende que nada de certo se pode afirmar nesta discussão,
porque a potência se distingue pelos actos e o acto pelos objectos. A razão formal
dos obj ectos tácteis não foi explorada, porque não é certa a razão formal na qual
afluem as duas primeiras oposições do calor e do húmido, do frio e do seco. Por esta
402 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
razão, visto que não está estabelecido o próprio princípio da distinção, é indevida
mente que se define algo sobre esta matéria.
ARTIGO II
Conclui-se que existe apenas um tacto em espécie.
Refutam-se os argumentos dos que consideram que existem mais
QUESTÃO III
Se sentimos o sensível que se apresenta excedendo o sentido
ARTIGO I
Argumentos da parte afirmativa
delas, dado que nada impediria que elas enviassem as suas espécies para os sensó
rios, a partir de alguma distância.
ARTIGO II
Expõem-se as diferentes opiniões dos filósofos sobre a questão proposta
e defende-se a posição comum
Muitos autores divergem entre si nesta controvérsia. Escoto, neste livro, questão
4, afirma que, se o assunto for conduzido à regra da verdade, a proposição de Aris
tóteles afirmando que não se sente o sensível que excede o sentido, é verdadeira se
for entendida relativamente à visão confrontada com os corpos opacos. De facto, no
caso destes sensíveis excederem o olho, não podem ser vistos, pois estão privados da
luz intermédia para transportar a espécie. Mas a proposição é falsa, se se tratar quer
dos restantes sentidos, quer da própria vista ordenada para os corpos translúcidos
iluminados em acto. Aristóteles não pretende senão que os sensíveis que excedem o
sentido, dado que o mudam por uma acção real, não são sentidos, mas que são con
tudo percebidos,pelo motivo de que o afectam nocionalmente, imprimindo-lhe a sua
imagem. Alexandre, conforme o testemunho de Averróis, neste local, e alguns
médicos, são de opinião serem três os sentidos que precisam de algum meio entre os
objectos e o instrumento, a vista, o ouvido e o olfacto. Também o Comentador, São
Tomás, ambos e Caetano, neste ponto; Janduno, na questão 29; Javelo, na questão
50; Apolinário, na questão 34; o Ferrariense, na questão 1 9 ; Alberto Magno, 2ª
parte, Suma do Homem, questão sobre o tacto; Egídio, quer neste ponto, quer no
livro 2 do Hexâmero, capítulo 1 2º e muitos outros, afirmam que é verdadeiro acerca
de todos os sentidos, que nenhum deles percebe o objecto que se lhe apresenta. Pro
vam-no, com o testemunho de Aristóteles que, neste livro, capítulo 6º, texto 75 e
capítulo 8º, texto 98, ensinou isto, de modo absoluto e sem qualquer restrição. Nem
a interpretação de Escoto é consonante com a de Aristóteles, visto que ele não dizia
que o sensível que se apresenta ao sentido, tomado deste ou daquele modo, não é
sentido, mas que de modo nenhum é sentido, sendo por isso necessário aquele meio.
O principal argumento através do qual os referidos autores confirmam a sua posição
é aquele que vimos no artigo anterior, isto é, porque como o objecto precisa de ser
percebido, exige-se uma certa acomodação ou proporção entre a espécie do objecto e
a potência, mas não se discerne tal proporção entre a espécie do objecto imediata
mente produzida e a potência. Quando sai primeiro do objecto a espécie é, de facto,
totalmente grossa e espessa e, paulatinamente, depõe essa materialidade no meio,
como pela experiência é claro na espécie visível. Esta atenua-se aos poucos, por
causa daqueles que no limite são mais fracos, e quanto mais longe ela é produzida é
menos bem feita, pois para discernir eles requerem uma imagem mais espessa.
Como esta posição é comum na escola peripatética, damos satisfação aos argu
mentos, que no primeiro artigo lhe opusemos. Ao primeiro, dizemos que, se alguma
coisa dentro do olho o humor condensar, não é captado o que tinha ocupado o cris
talino, mas o que está um pouco afastado dele. Ao segundo, que a luz, que de noite
se avista, quando se esfrega o olho, se difunde até ao humor cristalino, visto que a
visão não se faz a não ser por um meio iluminado, mas não é vista segundo aquela
parte que está dentro do órgão, mas segundo a parte distante, o que igualmente se
406 Sobre os Três Uvros 'Da Alma ' de Aristóteles
deve dizer acerca de qualquer outra luz que se estende para o próprio sensório de
ver. Ao outro argumento, sobre o ouvido, respondemos que o zumbido não é esti
mulado no órgão, mas numa cavidade que existe junto do tímpano. Quanto ao que
respeita ao olfacto, resolve o argumento quem disser que se algumas vezes o odor
segundo o ser real chegar às formações mamilares não é percebido segundo a sua
parte extensa, que reside no órgão, ou que o atinge de perto, mas sim, segundo a
parte afastada. Isto também se deve dizer acerca do humor bilioso que impregna a
língua. De facto, ele não é percebido no gosto segundo a parte que atinge os nervos,
em que principalmente reside o órgão de gostar, mas segundo outra, distante dele. E
do mesmo modo é costume responder-se àquilo que é objectado acerca do tacto.
Nomeadamente, que o sensório do tacto sente a zona que acolhe, não percebendo o
próprio sensível segundo a parte que o atinge de perto, mas segundo a parte afastada.
ARTIGO III
Resolvem-se os argumentos pertencentes ao tacto e ao gosto.
Propõe-se uma outra opinião
A explicação dos argumentos com que se costuma provar que o gosto e o tacto
percebem os objectos que se lhe apresentam é a mesma. Foram por nós aduzidos
argumentos de ambas as partes, e para os que ponderaram a sua solução parece ser
mais verosímil a afirmação que muitas vezes exceptua o gosto e o tacto daquela
opinião, quer porque parece falso que, quando o órgão é queimado pelo fogo pró
ximo, o tacto não perceba a alteração da temperatura que acontece na parte que é
atormentada e que, de tal forma, nenhuma parte do órgão sinta a sua própria destrui
ção, mas também, e de igual modo, que a língua não perceba o amargo que incide
sobre si. Parece que este argumento é, pelo contrário, alheio à verdade. O instru
mento do tacto é aquecido uniforme e disformemente. Posto isto, se nenhuma parte
do órgão que sente percebe a destruição da composição que imediatamente que
corresponde, visto que qualquer parte aquece mais, ou menos, que outra (é esta a lei
da forma que uniforme e disformemente se difunde através do substrato), segue-se
que o tacto sente mais numa parte do órgão, menos noutra, como é evidente, pois a
lesão é desigual em todas as partes, conforme estabelecemos. Mais, como nenhuma
parte percebe a ofensa própria, mas a ofensa da outra parte, segue-se que o tacto
deve perceber tanto menos quanto mais calor houver. Mas parece que conceder nisto
é, sem dúvida, um absurdo.
Não aprovamos, no entanto, a opinião daqueles que apontam que o gosto ou o
tacto podem conhecer o objecto sensível sem a semelhança. Na verdade, a espécie é
intermediária, de acordo com as regras da natureza e a ordem entre o conhecimento
sensitivo e a coisa conhecida. Nem da coisa sensível, que é demasiado material para
o conhecimento, que sobrevém propriamente à natureza imaterial, se faz o trânsito
sem o meio, mas com a intervenção da espécie, que tem menos materialidade do que
o objecto sensível. Donde Aristóteles, neste livro, capítulo 1 2º, a seguir, texto 1 2 1 ,
ensina firmemente que as formas sem matéria são comuns aos sentidos, isto é , que
estes recebem as imagens dos objectos. Ora, parece, relativamente a esta opinião
acerca da imediação do gosto e do tacto, que consideramos mais provável ser pró
pria destes dois sentidos que eles não requerem intervalo entre a potência e o objecto
pelo qual a espécie se atenue. Na verdade, tal como as restantes espécies são mais
espessas, assim também a espécie produzida muito perto do objecto lhe pode ser
conforme.
reúne neste capítulo, certas coisas que lhes são comuns. Primeiro, os sentidos
recebem as formas sem matéria, isto é, as imagens das coisas, não as próprias
coisas. Mostra-o numa comparação com o selo. A cera recebe a figura e a ima
gem da estatueta, não a própria matéria da estatueta em que está a imagem. Não
obsta a isto que o tacto e o gosto, como é claro a partir das afirmações anteriores,
recebam em si mesmos, não apenas os tipos das coisas tácteis e das qualidades
gustativas, mas também as qualidades. Na verdade, não foi ideia de Aristóteles
negá-lo, mas afirmar que para as potências sensitivas externas empreenderem as
408 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
dente, tal como o som não sacode a terra, por si, ou derruba a árvore, porque está
junto a uma grande força de ar. Por isso, apenas vemos agir os sensíveis naquilo
que pode sentir e na medida em que é dotado de sentido.
f. At enim 424 b 1 2 A favor da parte afirmativa, que é a verdadeira, disserta deste
-
o odor, Aristóteles objecta assim. Cheirar é receber o odor, mas no meio o corpo
recebe o odor em si, portanto, é cheiroso e, por isso, sente. Responde a esta
objecção. Cheirar consiste no substrato suportar o que não pertence ao ar, para
sentir o odor.
QUESTÃO ÚNICA
Se o sentido é afectado pelo sensível que o excede ou não
ARTIGO I
Disputa-se primeiro a favor da parte negativa,
mas é confirmada a parte afirmativa da questão
potências naturais, nada há, portanto, capaz de provocar a lesão no sentido, Terceiro,
Os objectos agem nos sentidos, pelas suas espécies, mas estas não produzem
nenhuma acção pela qual mudem a composição do órgão ou abalem o sentido, Não
podem, portanto, prejudicar o sentido. Prova-se a premissa menor, porque as ima
gens têm um ser imperfeito e diminuto, visto que degeneram da natureza das coisas
que representam. Donde, o seu ser não é chamado pelos filósofos pura e simples
mente real, mas nocional, como que intermédio entre o ser real e o ser de razão.
Donde, acontece que a espécie do calor não parece poder gerar o calor, sobretudo
porque ela é de pior qualidade que o calor. E são do mesmo modo as imagens, em
comparação com as coisas que representam. Quarto. O intelecto, pelo qual as coisas
mais nobres, para cuj a contemplação se inclina, colhe nisso maior satisfação, não só
porque não é lesado pela percepção dos objectos iluminados, mas também está mais
preparado e acutilante para a percepção dos objectos mais elevados. Donde, caminha
das causas para os efeitos, das substâncias para os acidentes, mas quanto a isto, o
que se dá no intelecto, dá-se no sentido. Portanto, o sentido não percebe nenhuma
lesão de um sensível excessivo.
Aristóteles ensinou, no capítulo atrás, texto 1 23, e depois no capítulo 2º, livro 1 2
texto 1 4 1 ; São Tomás, nas Questões Disputadas sobre A Alma, artigo 8 ; Galeno, no
livro 1 0 De usu partium e outros autores, que os sensíveis excessivos prejudicam os
sentidos e que, por vezes, os enfraquecem totalmente. O mesmo também é evidente
pela experiência. Porque a composição idónea do órgão, sem a qual não é possível
que os sentidos tenham vigor e desempenhem integralmente as suas funções, não só
consiste numa forma congruente e apta, mas também numa certa simetria e modera
ção de qualidades primárias. Mas esta é, em parte, destruída pela potência dos sensí
veis excessivos e pela acentuada mudança interior, acontecendo que os sensíveis
destroem a própria potência que também reside no órgão ou, de quando em vez,
danificam-na e impedem-na de operar perfeitamente. Temístio, no livro 42 da sua
Paráfrase, considerou isto digno de fé, pela semelhança retirada de Aristóteles, do
seguinte modo. É evidente, diz ele, que um sensível excessivo prejudica o sensório.
Se uma força maior sobrevier, para que ela possa ser suportada pelo sentido, é
necessário que, da sua parte, se siga uma perda, porque a composição e a natureza
são desagregadas e falham. Na verdade, a composição não é mais do que uma certa
medida, uma medida do meio termo, Todo o processo é resolvido pela mudança,
como a modulação nas cordas da lira e no canto. Se as cordas e as vozes se agudi
zam ou excitam mais vigorosamente, como postula a natureza do esforço e da har
monia, imediatamente começam a desafinar e depressa toda a harmonia se desfaz.
ARTIGO II
Explica-se sobretudo de que forma os sentidos são prejudicados um a um
por um sensível excessivo e resolvem-se os argumentos apresentados
no início da questão
calor e abre o caminho através do qual os humores vitais saem para fora, sem cujo
trabalho a visão não pode funcionar. Assim acontece até que se atinj a a cegueira.
Galeno, no livro 10 De usu partium, refere exemplos claros desta matéria. Os nossos
olhos, afirma, são ofendidos por um brilho violento. Ensinaram isto, por certo, os
soldados de Xenofonte, que fazendo um percurso através de muita neve foram vee
mentemente feridos nos olhos. Também o experimentaram aqueles que � aídos de um
cárcere muito obscuro, levados de repente pelo tirano Dionísio para uma casa
esplendorosa, lavada e lustrosa, subitamente ficaram cegos, sofrendo pelo encontro
repentino com uma luz brilhante. Por essa razão, sem dúvida que os pintores,
quando pintam as cores brancas, pelas quais a vista é ferida, opõem cores foscas e
azuladas, para que aqueles que observam com atenção recreiem os olhos. Do mesmo
modo, a luz fere os que padecem de oftalmia; e ele retorca que, no entanto, as luzes
foscas e azuladas são olhadas sem dor. Já, com efeito, se explicados os inconve
nientes de se observar o próprio Sol com os olhos mal protegidos rapidamente os
perdemos, como acontece a muitos que durante o eclipse do Sol, o vêem com os
olhos fixados, quando observam desejosos da vontade de conhecer, e ficam cegos.
Isto, quanto a Galeno. Também Alberto Magno, tratado 4, capítulo 9º, acrescenta
que as trevas à sua manenira, prejudicam a vista, visto que na escuridão por causa da
ausência de luz e calor os espíritos se retiram para o mais profundo e uma excessiva
frieza condensa e congestiona as partes do olho, de tal modo que, por vezes, os olhos
não podem ser recuperados.
No que respeita aos restantes sentidos, um som muito alto danifica o ouvido, por
causa do grande movimento do ar, por onde é transportado. Daí o testemunho de
Plínio, no livro 6, capítulo 29 da História Natural. Quando o Nilo se precipita dos
montes mais altos, toma surdos, com o ruído, os que habitam na vizinhança. Já
quanto ao olfacto, segundo Aristóteles, livro 2, desta obra, capítulo 9º, texto 99, são
nocivos os odores de tal modo fortes pelo calor excessivo da exalação fúmida, pelo
qual entretanto chegam até às formações mamilares. E por fim, as coisas tácteis e
degustáveis, por causa do calor, do frio e de outras qualidades deste género, lesam o
tacto e o gosto. Visto que os sensíveis excessivos provocam a agressão nos sentidos,
também os moderados deleitam, como a cor verde, a vista, as vozes temperadas, o
ouvido e também no número ouvido, as harmoniosas, e o mesmo acontece com os
restantes. Resolvamos agora os argumentos propostos ao início. Ao primeiro, con
cedida a premissa maior, deve responder-se à menor, que nada se inclina natural
mente para o que o lesa. Os objectos dos sentidos não danificam por si os sentidos,
mas por acidente, quando afastam o excessivo e lesam o órgão. Ao segundo, conce
dida também a proposição maior, deve dizer-se que as potências sensitivas não têm
contrário. Também não são corrompidas por si, mas dissolvidas pela composição do
órgão. Mas opõe-se que esta é destruída pelo excesso, pois a composição consiste na
média. Ao terceiro argumento é costume responder-se de modo variado. Há quem
pense que as espécies dos sensíveis lesam por si, produzindo uma qualidade que
destrói o órgão, porque ainda que tenham o ser diminuto e imperfeito, no entanto,
como são instrumentos dos objectos donde são enviadas, podem ter a mesma facul
dade de onde saem. Mas esta opinião, como mostrámos noutro ponto, é menos
provável . Portanto, aqueles cuja opinião acolhemos afirmam que as espécies não por
si, mas em razão de outras qualidades que as acompanham, são transmitidas apenas
412 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
pelo obj ecto e produzem efeito deste modo. Ao último, deve dizer-se que o intelecto
não é lesado pelo conhecimento das coisas mais elevadas, porque não é uma potên
cia inerente ao órgão corpóreo, cuja composição pode ser perturbada pelo excesso
das qualidades que sobrevêm.
Após ter indagado, no primeiro livro, com base na opinião dos filósofos antigos,
não tanto o que eles pensavam mas o que se deveria pensar sobre a natureza da alma
e de, no segundo, ter proposto a definição de alma, coligida e descoberta por si e ter
dissertado acuradamente acerca das suas potências e funções, Aristóteles investiga
agora, não com menos diligência e cuidado, neste livro, que se encontra dividido em
quatro partes, as questões concernentes à divisão do assunto. Na primeira, que se
perfaz num só capítulo, trata do número dos sentidos externos, acerca dos quais
disputou um a um, no livro anterior. Na segunda, contida em dois capítulos, aborda
o tratado dos sentidos internos. Na terceira, discute sobre o intelecto, desde o quarto
até ao oitavo capítulos. Na quarta, do capítulo nono até ao fim do livro, aprofunda o
princípio da marcha dos animais. Entre os comentadores, subsiste muita discussão
acerca do exórdio deste livro. Na verdade, Averróis, Alberto Magno, Egídio e Cae
tano pretendem que os três primeiros capítulos concernem ao segundo livro, ini
ciando-se este no quarto capítulo. Filópono, Temístio, Simplício, São Tomás, Teó
filo, Argirópolo e outros seguem a nossa divisão, que é a preferida pelos exemplares
gregos e que é hoje em dia vulgarmente acolhida.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO 1
a. Sensum autem 424 b 22 Dado que a faculdade sensitiva não se encontra igual
-
b. Nam sic nunc 424 b 24 - Prova o antecedente do silogismo proposto, isto é, que
todos os sentidos existem no homem, a partir dos objectos, dos instrumentos e
dos meios. Dos objectos, porque todos os homens percebem os sensíveis. Dos
instrumentos, porque não lhes falta nenhum órgão para realizar as funções dos
sentidos. Dos meios, porque todos os meios lhes servem para o trajecto dos sen
síveis.
c. Cuius sensus est 424 b 25 - Prova que compreendemos todas as coisas que
recaem sob os sentidos, porque se compreendemos pelo tacto todas as diferenças
das qualidades tangíveis que são amplamente manifestas, o mesmo também
deverá ser afirmado acerca dos restantes objectos dos sentidos .
d. Praeterea si sensus 424b 27 - Antes de provar que todos os meios existem para
nosso uso, ele ensina que não é possível possuirmos um sentido a que falte o sen
sório. Há efectivamente uma correspondência recíproca, do mesmo modo que os
sentidos sem os instrumentos não podem executar as funções próprias e os ins
trumentos sem as potências são supérfluos e não podem, por isso, existir sem
elas, pois apenas existem por causa das suas operações, segundo Aristóteles tam
bém ensina no último capítulo do livro 4, Meteorológicos; no capítulo 1 °, livro 1 ,
As Partes dos Animais; no capítulo 3º, livro 1 , Política ; capítulo 2°, livro 3 , A
Geração dos Animais e noutros sítios.
e. Omnis sensus 427 b - Prova que não nos falta nenhum meio. Na verdade, há um
meio, quer interno, quer externo. Como é evidente no livro anterior, nós usamos
ambos para sentir. A partir daí explica a simpatia e a conexão que intervêm entre
o meio, tomado formalmente ou quase formalmente, e o próprio sentido, e afirma
que, se o meio formalmente é um, então também o sentido que o usa deve ser
considerado formalmente um; materialmente existem vários, pelo que a visão é
um sentido, embora as espécies visíveis atravessem o ar e a água. Com efeito,
estes dois elementos têm uma razão formal, segundo a qual transmitem as ima
gens visíveis, isto é, a transparência. O ar não tem essa razão formal, pois trans
porta as espécies das cores e as espécies dos odores. Donde acontece que, embora
exista materialmente um meio, ele pertence contudo a dois sentidos. Atente-se
que Aristóteles fala aqui, ora dos sensórios, ora dos meios, por causa do conhe
cimento entre a natureza do meio e a do sensório.
f. Nam ex hisce 425 a 3 Confirma o proposto, pela parte dos órgãos. Na verdade,
-
de vista, deve ser respondido, que embora ela careça de vista possui um certo
esboço de olhos, e que quase se poderá dizer que a Natureza teve primeiramente
a intenção de lhe dar os olhos, mas que não deu, porque a vista não é necessária
ao ser vivo nas tocas subterrâneas . Outros pretendem que Aristóteles não consi
derou a toupeira um animal perfeito, mas imperfeito e que ele tinha argumentado
parecer que a vista não está tão presente nela, tal como se dissesse que se a tou
peira, que é um animal de conhecimento inferior, tem vista, como a própria
forma dos olhos apesar de tosca o mostra, por maioria de razão os animais per
feitos acolhem a visão e os restantes sentidos. Mas, na questão, aprenderemos o
que deve ser dito acerca da visão da toupeira.
h. At uero neque 425 a 1 3 Refuta do modo seguinte quem disser que existe, além
-
dos cinco sentidos, um outro, que trata dos sensíveis comuns como do sensível
que lhe é próprio . Nenhum sensível próprio pode recair noutro sentido por si e
todo o sensível comum recai por si noutros sentidos. Logo, nenhum pode ser
próprio de outro. Prova a premissa menor, porque os sensíveis comuns agem nos
outros cinco sentidos e são sentidos por eles, por si, visto que é sentido por si
aquilo que afecta a potência. Mostra-o com estas palavras: sentimos pelo movi
mento, isto é, conhecemos quando as coisas mudam ou movem a potência. A
partir disto, prova que os referidos sensíveis comuns mudam as potências. Na
verdade, o tamanho move a vista e, portanto, a figura, que é o seu limite, não se
distingue dele realmente, o mesmo se passando com os restantes.
i. Quod si ita non esset 425 a 24 Prova o mesmo com a razão que quase recai no
-
anterior. Se o sensível comum fosse conhecido, por si, por um outro sentido, não
poderia ser sentido por outros a não ser por acidente, mas não é assim. Logo, o
sentido comum não pertence por si a algum outro sentido. A premissa maior é
evidente, porque o sensível próprio de um sentido é conhecido por outro, por aci
dente, como o doce pela vista, não porque o doce mova a potência de ver, mas
porque está junto, por acidente, ao branco, que por si move a vista. Porque o sen
sível comum não é sentido de maneira a ser percebido de outro modo, senão por
aquele pelo qual se percebe o filho de Cléon. Por isso, aquele não se diz que é
sentido por acidente porque é sentido, por si, por outro sentido, mas porque é o
substrato em que está aquilo que é sentido, por si. Prova a premissa menor, por
que o sensível comum move por si as potências de sentir e é conhecido por si a
partir delas .
k. Propria autem 425 a 30 Ensina, por exemplo, porque vejo que a maçã branca é
-
ao mesmo tempo doce e a bílis verde é amarga; a uma faculdade por si cabe jul
gar que o branco é doce e que o verde é amargo e diz que não pertence à vista em
si, mas que compete a uma outra potência, isto é, ao sentido comum, que sente
junto com os sentidos externos e une o objecto de um ao objecto do outro, por
exemplo, o branco ao doce. Acerca deste assunto trataremos mais amplamente de
caminho.
1. Quaeri potest 425 b 24 Suscita a questão de saber por que é que a Natureza
-
QUESTÃO ÚNICA
Se existem cinco sentidos externos ou não
ARTIGO I
Parece que são menos. Parece que são mais
Demonstra-se agora a parte contrária, a saber, por que se devem estabelecer mais
sentidos do que cinco. É necessário admitir a existência de uma faculdade sensitiva
que preste atenção ao objecto para o qual os sentidos são levados um a um. Portanto,
dá-se um outro sentido externo, para além dos cinco mais vulgares. Confirma-se o
antecedente, porque muitas vezes os olhos, por exemplo, são impressionados pela
imagem de uma coisa visível e, no entanto, não desencadeiam a visão. Sem dúvida
que isto não acontece por outro motivo, a não ser porque não prestamos atenção. Por
isso, é necessário estabelecer um outro sentido ao qual respeite a função de prestar
atenção. Mas mostra-se que este sentido não é a própria faculdade de ver porque o
acto da faculdade de ver é apenas a visão. Ora, o ministério de prestar atenção não
consiste na visão, visto que a antecede na ordem da natureza.
Outro. O tamanho, a forma e outros que chamamos sensíveis comuns, não são
sensíveis por acidente, mas por si, como há pouco Aristóteles ensinou. Ora, a diver
sidade específica dos objectos que por si caem sob a alçada das potências, introdu
zem nestas uma diferença específica. Como o tamanho, por exemplo, que é um sen
sível por si, difere mais da cor do que do som, não deixa de exigir menos outra
faculdade distinta, através da qual seja percebido. Desta maneira, constituir-se-ão
mais sentidos externos do que cinco.
ARTIGO II
De facto não existem nem mais nem menos
sentidos externos do que cinco
Não obstante, de acordo com o pensamento comum, tanto dos que filosofam
como dos que não filosofam, deve defender-se de modo unânime que há cinco senti
dos externos, nem mais, nem menos. Aristóteles no capítulo atrás estabeleceu esse
número; o autor da obra De secretiore sapientia secundum Aegyptios, no livro 2,
capítulo 9º; Platão, no Teeteto; S . Damasceno, em A Fé Ortodoxa, livro 2, capítulo
1 8º; São Gregório de Nissa, na oração 6 do Comentário ao Cântico ; Santo Ambró
sio, no Comentário ao Apocalipse, capítulo 1 8º; Santo Agostinho, no livro A Gran
deza da A lma, capítulo 23º; São Gregório, no Comentário a Ezequiel, Homília 1 7;
São Jerónimo, no Comentário ao Salmo 141 ; Orígenes, Homilia 3, no Comentário
ao Levítico e Homília 3, no Comentário ao Cântico.
Além disso, Filópono esforça-se por corroborar esse número, com a autoridade de
Platão, partindo do número dos corpos simples. Na verdade, se os corpos simples
são cinco e, além disso, as figuras sólidas são cinco, a pirâmide, o cubo e as formas
de oito, doze e vinte lados, é necessário que existam sentidos que as reconheçam.
Santo Agostinho, no livro 3, O Génesis à letra, capítulo 5º, distingue o mesmo
número, através da observação retirada dos quatro elementos do universo, do modo
seguinte. Porque o sentir não é próprio do corpo, mas da alma através do corpo,
420 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ainda que se diga de forma arguta que os sentidos do corpo se dividem consoante a
diversidade dos elementos corpóreos, todavia, a alma, em que está presente a facul
dade de sentir, uma vez que não é corpórea, produz a faculdade de sentir através do
corpo mais subtil. Por isso, a partir da subtileza do fogo ela imprime o movimento a
todos os sentidos, mas não chega da mesma maneira a todos. Efectivamente, na
vista, reprimido o calor, ela chega até à sua luz. No ouvido, penetra até ao ar mais
líquido com o calor do fogo. No olfacto, porém, atravessa o ar puro até à exalação
húmida. Daí, que este odor subsista mais condensado. Entretanto, no gosto, ela atra
vessa e chega ao humor mais espesso, o qual, também, uma vez penetrado e atraves
sado, quando chega ao peso terreno, produz o último sentido, o do tacto. Isto, de
acordo com o preceito de Santo Agostinho. Se, no entanto, quisermos falar mais
claramente e de acordo com as matérias que, nesta obra, foram aprofundadas, poder
-se-á extrair o número dos sentidos dos quatro elementos do universo, dizendo que o
olfacto corresponde ao fogo, por causa do calor e da secura; o ouvido ao ar, por
causa do tímpano; a vista à água, por causa do humor cristalino; o tacto e o gosto à
terra, por causa da espessura. Por outro lado, tanto estas razões quanto as de Filó
pono e as de Santo Agostinho são somente prováveis e não confirmam tanto o
número dos sentidos, quanto, por analogia e por uma certa semelhança, correspon
dem a outros corpos. E apenas como provável se recomenda aquele preceito tripar
tido de Aristóteles, que expusemos no contexto, extraído dos objectos, dos instru
mentos e dos meios, que Alberto Magno, na 2ª parte da Suma do Homem, no tratado
sobre os sentidos, e o Alense, na 2ª parte da Suma Teológica, questão 66, membro 2,
também explicam amplamente.
Todavia, São Tomás, na Suma Teológica, parte 1 , questão 78, artigo 3º, provando
menos outros argumentos retirados dos órgãos e dos meios, confirma o mesmo
número. Fá-lo pelo modo e pela variedade, pela qual o sentido, que não é só potên
cia activa, mas também passiva, é movido pelo objecto sensível, mais ou menos
assim. Há uma mudança de dois tipos; uma natural, outra espiritual ou intencional.
Diz-se natural, aquela pela qual a forma do que muda é recebida no paciente,
segundo o ser natural, como o calor na coisa aquecida. Chama-se espiritual, àquela
pela qual a forma do que muda é recebida no paciente, segundo o ser espiritual, isto
é, através da sua imagem, tal como através da espécie da cor na pupila. Portanto,
para a mutação requer-se a mudança espiritual de um qualquer sentido, no órgão, de
outro modo não se produzirá nenhuma sensação. Mas esta diferença dá-se na reali
dade. Na verdade, ou o objecto apenas muda o meio intencionalmente, e o órgão é
objecto da vista, ou mentalmente e na realidade, e um e outro são objecto do tacto e
do gosto, nos quais ainda reside uma diferença. Com efeito, o tacto é necessaria
mente alterado, consoante a qualidade que, em particular, o impressiona, como con
soante o calor. Isto não acontece com o órgão do gosto. Na verdade, não é necessá
rio que a língua se torne doce ou amarga, ou seja, que requeira prévia humidade,
para que se perceba o sabor. Finalmente, ou o objecto muda o meio, ou alguma parte
dele realmente, mas o órgão mentalmente, o que compete ao olfacto, embora de
modo diferente. Com efeito, ou exige uma alteração prévia e é o odor que pertence
ao olfacto, ou um prévio movimento local e é o som que respeita ao objecto da audi
ção. Na verdade, para que o odorífero exale o odor, o calor é necessário, pelo menos
ordinariamente. Também o som é produzido por uma certa colisão. Visto, portanto,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Anigo II 421
que há tantos sentidos externos quantos os modos que podem ser alterados pelo
objecto próprio e estes são apenas cinco, é evidente que são cinco os sentidos exter
nos, nem mais, nem menos. Esta afirmação também não é considerada demonstra
tiva mas apenas provável e só demonstra que não há mais sentidos por natureza. Não
parece, contudo, que deva negar-se que possam existir mais, pela potência divina e,
do mesmo modo, mais sensíveis que modifiquem os órgãos de modo diferente.
A prova anterior de São Tomás é defendida pelos seus seguidores. Para falarmos
adequadamente das coisas que estabelecemos, quando tratámos dos sentidos um a
um, teremos, enfim, de construir este argumento de modo mais diversificado. De
facto, o tacto e o gosto, posto que são mais toscos do que os restantes sentidos, tam
bém parecem, por si mesmos, ser realmente alterados pela própria qualidade que
sentem. Todavia há uma diferença entre eles, porque um é alterado de acordo com a
qualidade da combinação que o altera, como acima dissemos. O outro não, ou seja,
requer uma prévia humidificação. Além disso, é provável que o objecto do olfacto e
do ouvido por vezes altere o órgão, também realmente, visto que, decerto, o sensório
existe no espaço através do qual, realmente, o odor e o som se difundem. Posta a
questão deste modo, o número dos sentidos deverá ser alterado. Ou o objecto do
sentido muda o meio e o órgão, apenas intencionalmente, e pertence à vista, ou
realmente e intencionalmente, os dois ao mesmo tempo e, então, pertence ao tacto e
ao gosto; de maneira diferente, no entanto, porque o objecto do tacto muda o órgão
por si mesmo, consoante a qualidade alteradora da mistura e o objecto do gosto,
segundo outra qualidade. Ou então muda o meio, em parte realmente, em parte
intencionalmente e o órgão, por si, mas sempre intencionalmente. Algumas vezes,
na verdade, como que por acidente, também o muda realmente e pertence ao olfacto
e ao ouvido. Mas de maneira diferente, porque o objecto do ouvido muda segundo a
qualidade, que requer para a sua produção um movimento local, enquanto o objecto
do olfacto, segundo a qualidade que exige uma alteração prévia. Mas se alguém
repudiar esta conclusão, porque consideramos que apenas a vista é intencionalmente
mudada pelo objecto, dado que a luz, realmente, também o afecta, dever-se-á res
ponder que nada tratámos acerca da luz, porque ela costuma ser comummente consi
derada, não tanto como objecto da vista, mas como a razão pela qual o objecto é
percebido. Acrescente-se que ela, uma vez que altera assim o sentido, conserva
muito pouco a natureza do objecto. É evidente, portanto, que os sentidos externos
são cinco e que não devem ser admitidos nem mais, nem menos.
Mas o tacto é o primeiro de todos os sentidos, pela origem e pela necessidade,
porque tem origem em particular nas primeiras qualidades cuja composição é a pri
meira disposição para a alma e o primeiro fundamento da vida; desfeita esta, não só
o próprio tacto, mas também o animal sucumbem. Por isso, este sentido quase sem
pre também se atribui aos animais, porque, com a sua actividade, eles podem cuidar
da abundância das qualidades primárias cujo excesso conduz à destruição. Mas o
tacto é o último em dignidade, como diz Proclo no Comentário ao Timeu, porque é
sobretudo espesso e corpóreo. De facto, tal como o tacto é o último, assim a vista
alcança o primeiro lugar em dignidade, o ouvido o segundo, o olfacto o terceiro, o
gosto o quarto, o tacto o quinto, o que, com base nas matérias estudadas, uma a uma,
acerca dos sentidos, qualquer um facilmente compreenderá.
422 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
Não existem todos os sentidos em todos os animais, e quer o tacto quer o gosto
convêm a todos aqueles aos quais não convém mais nenhum, como ensina Aristóte
les, neste livro, capítulo 1 2º, texto 62 e no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 1 º.
Na verdade, o gosto, acerca do qual se pode estar em dúvida, também pertence às
ostras e a outros animais deste género, que estão fixos às rochas marinhas, situados
entre as plantas e os animais, na fronteira, entre uns e outros. São ambíguos, como
diz Aristóteles, A Geração dos Animais, livro 1 , capítulo 20º, donde serem chama
dos pelos gregos (wócpurn isto é, zoófitos. O argumento tem como fundamento que
o gosto existe neles, pois nem todos os sabores aparecem confundidos, como notou
Plínio, na História Natural, livro 1 0, capítulo 7 1 º. Quanto a isto, dissemos no livro
anterior, capítulo 1 0º, questão 1 , artigo 2º, ao fim, que esses animais são destituídos
de gosto. Isto deve ser entendido no tocante ao gosto perfeito, de que apenas falá
vamos por comparação ao tacto, que Aristóteles concede a alguns animais perfeitos;
aqui apenas lhes imputa um gosto imperfeito e incompleto. Como este sentido zela
pela vida, vem na dianteira, como explorador de alimento e, do mesmo modo que o
olfacto é o provador antecipado do gosto, assim também o é o gosto, relativamente
ao estômago e à faculdade de nutrição.
Visto, porém, que os sentidos foram atribuídos aos animais pela natureza, em
parte para respeitar a conservação, em parte para conduzir a vida mais conveniente
mente, como explica o autor da obra De divina sapientia secundum Aegyptos, livro
5, capítulo l º, os sentidos conferem ao homem uma utilidade particular, a fim de
levar, através deles, as diferentes imagens das coisas até à mente, para o conheci
mento intelectivo, o que alguns explicam recorrendo a uma comparação com uma
cidade, que recebe a multidão dos homens que entram, ao mesmo tempo, por diver
sas portas. Por isso, também os sentidos da alma costumam chamar-se janelas da
alma, através das quais, não só o conhecimento, mas os estímulos dos vícios muitas
vezes penetram, pelo defeito da negligência. Donde, aquele passo de São Jerónimo,
em Adversus lovinianum, livro 2, capítulo 7 1 º. Se alguém se deleita com os j ogos
circenses, com a luta dos atletas, com o movimento dos actores, com o brilho das
jóias e com outras coisas deste género, realiza-se a profecia: a morte entrou pelas
j anelas.
Deve observar-se o que se retirou das afirmações de há pouco e que São Tomás
realçou, na Suma Teológica, primeira parte da segunda parte, questão 35, artigo 2°,
ao 3º e Santo Alberto Magno, no livro 1, Metafísica, tratado 1 , capítulo 4º. Embora
de modo algum os animais exerçam as funções dos sentidos só para conhecer, mas
em busca de coisas necessárias e úteis, ou para evitar as nocivas, o homem, todavia,
usa frequentemente o ministério dos sentidos apenas pelo gosto de conhecer, de
obter ciência, porque compreende, quer a ciência ou doutrina, quer a experiência.
Para aquela, o ouvido, para esta, a vista é certamente mais adequada e mais apta,
como é claro a partir do que Aristóteles ensina no livro 1, Metafísica, capítulo l º e
no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 1 º.
Ao procurar saber se os sentidos externos dos animais e dos homens, como a vista
e também o olfacto, se distinguem entre si na espécie, Jâmblico responde que se
distinguem. Diz, ainda, que apenas de modo equívoco é que o sentido se lhes ade
qua, e é por isso que o sentido humano se volta para si, o que não é próprio do ani
mal. Nem esta afirmação é provável, nem o seu argumento tem peso. De facto, dado
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo Ili 423
que os sentidos do homem e dos animais são conduzidos para os mesmos objectos e
são modificados do mesmo modo, não há razão para que entre eles se estabeleça
uma distinção. Além disso, nenhum sentido, quer externo, quer interno, quer do
homem, quer do animal reflui ou retoma sobre si como será evidente, de caminho.
São, assim, da mesma espécie, embora difiram na perfeição acidental. Com efeito, o
homem, como noutro lugar sublinhámos, supera os restantes animais no tacto e no
gosto. É, todavia, ultrapassado por muitos, na vista, no ouvido e no olfacto, dado que
as águias vêem de modo mais perspicaz, as toupeiras ouvem de modo mais acuti
lante, os abutres e os cães cheiram de forma mais subtil e excelente. Há quem diga
que o homem foi vencido no gosto pelo animal Protogeuste Indico e pelas aranhas,
no tacto. Daí, aquele famoso passo:
O javali supera-nos pelo ouvido, o lince pela vista, o macaco pelo gosto
O abutre pelo cheiro, a aranha pelo tacto.
Todavia deve ser tida em conta a opinião comum dos filósofos, que Aristóteles
transmite, na Historia dos Animais, livro 1, capítulo 1 5º e no livro 2 desta obra,
capítulo 9º, texto 94, ensinando que o homem no tacto e no gosto é superior a todos
os seres animados. Isto sucede porque a boa qualidade do tacto e do gosto, consi
derada um certo tipo de tacto, provém da boa qualidade da combinação. Isto foi
dado ao homem de forma mais eminente do que aos restantes compostos, como
mostrámos no livro A Geração e a Corrupção. Por isso, o que é narrado naquele
poema acerca do macaco e da aranha deve ser interpretado poética e não filosofi
camente. Alguns, de facto, consideraram que o macaco é particularmente dotado de
um gosto exímio, porque, quando come, faz gestos denunciadores do grande prazer
que sente ao degustar. Acreditou-se, igualmente, que a aranha sozinha se evidencia
pelo tacto, porque também sente claramente, no fim da teia, o levíssimo movimento
do insecto caído na rede. De facto, estas coisas nada provam. Na verdade, o macaco,
como é um animal gesticulador noutras ocasiões, é-o ainda mais quando ingere o
alimento, porque mais se deleita nessa ocasião. No que respeita à aranha, retira-se de
Alberto Magno que o seu tacto é menos perfeito porque é de temperatura fria e
abundante em humidade viscosa, emitindo um tacto imperfeito e tosco. Não é de
admirar que sinta a presa que cai, através do sinal, quer porque está sempre alerta em
relação às emboscadas e como que à espreita do imprevisto, porque fiou os fios com
tão fina linha e estende a teia de modo uniforme, quer porque suspende os fios com
tão elevada subtileza pelo centro da obra, em direcção a qualquer lugar, que, embora
não seja dotada de um tacto peculiar, facilmente a agitação a desperta da rede sus
pensa. Acrescente-se que a eficácia do tacto se avalia, não a partir do movimento,
mas pela percepção das qualidades primárias.
ARTIGO Ili
Resolve-se o primeiro argumento do primeiro artigo.
Estabelece-se contra os médicos que os sentidos externos
não são faculdades adquiridas mas inatas
Platonis, livros 6 e 7, e outros médicos, consideram que os sentidos externos não são
potências inatas dos órgãos, como se estivessem fixadas, mas são faculdades que se
expandem a partir do cérebro mediante uma certa forma de irradiação e que apenas
subsistem no órgão durante o tempo em que dura a operação. Portanto, Sócrates, a
dormir, não tem nos olhos a potência de ver, nem nos ouvidos a de ouvir, mas elas
são irradiadas a partir do cérebro sempre que vê, sempre que ouve. Eles tentam for
talecer esta afirmação pelo facto de que, uma vez obstruído o caminho a partir do
qual o cérebro comunica com os sentidos externos, cessa toda a sua actividade.
Quanto a isto, se alguém responder que, nesse momento, os sentidos repousam, não
porque o trajecto desta faculdade que se expande esteja impedido, mas porque estão
fechadas as vias através das quais os espíritos animais são levados para os sentidos
eles refutam esta resposta, pois isso é possível, como quando não falta uma abun
dância de tais espíritos no órgão, como por exemplo quando alguém começa a dor
mir, e no entanto o sentido não pode, de forma alguma, executar a sua função. É por
isso que, se se regista a falta de alguma outra coisa no órgão, em razão de cuj o aban
dono o sentido fica entorpecido, isso não pode ser senão aquela faculdade que
emana do cérebro. Esta é, portanto, a faculdade que executa as funções dos sentidos
enquanto seu princípio imediato.
Esta posição, embora na escola dos médicos sej a considerada como certa, parece
todavia alheia à verdade. Em primeiro lugar, por um lado, posto que médicos ilustres
distingam aquela comunicação da faculdade emanada do cérebro e, o que é mais,
com o nome ilusório de irradiação, porque não obstante, eles deixam a própria
questão na dúvida e nem a defendem dos argumentos. Primeiro, tal como a irradia
ção do Sol é a produção de um raio no meio diáfano, também aquela comunicação é
a produção da potência sensitiva no corpo dos seres animados; segue-se, então, que,
assim como uma parte da luz gera outra no diáfano, assim também uma parte da
potência sensitiva gera outra no corpo do animal. O que na filosofia se encontra no
que toca ao ouvido, também se segue. Tal como a luz, quanto mais dista do foco
luminoso, mais fraca é, do mesmo modo, a faculdade sensitiva, quanto mais se
encontra na parte do corpo mais distante do cérebro, tanto é mais débil e menos
eficaz. Prova-se a consequência, porque todas as coisas que são produzidas desta
maneira costumam espalhar-se de um modo uniforme, deformando-se e debilitando
-se imperceptivelmente até à ausência de grau. Demonstra-se, por isso, a falsidade
do consequente. Porque o tacto, como a experiência e os próprios médicos ensinam,
floresce mais nas extremidades dos dedos da mão do que na parte restante do braço,
ainda que eles distem mais do cérebro. Depois, as potências naturais brotam da alma
na própria origem, como ensinámos no primeiro livro desta obra acerca da posição
comum dos filósofos. Portanto, as potências orgânicas não derivam do cérebro à
maneira da luz, mas encontram-se fixas e estáveis nos órgãos. Também o calor, o
frio e outros acidentes desta natureza, de qualidade menor, não se dissipam quando a
obra acaba, mas permanecem nos próprios sensórios. Por fim, prova-se que aquela
faculdade não pode ser única, pois as faculdades sensitivas distinguem-se, em espé
cie, pelos actos e pelos objectos, como mostrámos no segundo livro. Por isso, uma
vez que os sentidos têm objectos diversos em espécie e são mudados por eles
segundo os modos diferentes em espécie, segue-se que não são uma faculdade
activa, mas muitas e que estas diferem em espécie.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo IV 425
ARTIGO IV
Resposta aos restantes argumentos do primeiro artigo
cado, é destruído. Isto apenas sucede, porque a potência de sentir reside no próprio
órgão. E esta razão vale também para refutar Numénio, Jâmblico e Plotino que con
sideram que os sentidos e, portanto, as suas operações, estão fixos na própria subs
tância da alma. Também, por isso, a obstrução do nervo óptico impede a visão, por
que impede o trânsito dos espíritos animais a partir do cérebro. A visão fica parali
sada com a sua falta, embora, por outro lado, a composição do órgão permaneça
íntegra, mas não porque esteja impedido o caminho das espécies visíveis do olho
para o cérebro.
Em relação ao terceiro argumento deve negar-se, de igual modo, que diga respeito
ao assunto em análise haver um sentido para os sensíveis, tal como o intelecto para
os inteligíveis. Na realidade, a faculdade intelectiva, visto que é de uma ordem
muito superior, pode recolher e abranger, numa só, as coisas que foram divididas e
espalhadas por muitos. Leia-se São Tomás, questão 25, A Verdade, artigo 3°.
Acerca do quarto argumento atente-se, primeiro, que Jâmblico não prova o racio
cínio pelo qual Aristóteles tentou demonstrar o número dos sentidos por indução das
diferenças dos animais, visto que desconhecemos muitas delas. Deve, no entanto,
dizer-se que este argumento, se for correctamente entendido, não deve ser rejeitado.
Com efeito, para concluir, não é necessário que todos os animais conhecidos pos
suam todas as coisas perfeitas e não é preciso que os seres animados perfeitos um a
um, tenham todos os cinco sentidos, mas que naquele que possui maior grau de
perfeição não estejam presentes mais do que cinco. Para provar basta verificar isso
no homem, que é ponto assente que é o mais perfeito de todos.
Quanto ao que se diz acerca da cegueira da toupeira, é ambíguo. Não teria acre
ditado, afirma Simplício, que a toupeira carece em absoluto da própria faculdade de
ver e do seu acto, mas da que sobressai. Comunga, pois, da visão, mas através de
certas peles, assim como nós, também, com as pálpebras fechadas, nos apercebemos
de alguma luz. Não é, de facto, possível que a natureza tenha feito em vão os olhos
sob a pele, mas com certeza que eles funcionam por esta pele, mas de modo algo
difícil, dada a sua debilidade, tal como as faculdades que se desgastam de noite.
Também Alberto Magno em A Alma, tratado 2, ao fim, livro 2, se, por um lado, nega
às toupeiras a composição perfeita dos olhos, que outros parecem conceder, como
Aristóteles, A História dos Animais, livro 4, capítulo 8º, e Galeno em De usu par
tium, livro 1 4, capítulo 6º, por outro, afirma que, apesar de tudo, elas vêem, ainda
que imperfeitamente, se saírem das pequenas tocas para a luz, por um instante, em
busca de alimento. Quanto a este facto, afirma que o observou e registou, não apenas
por uma vez. Outros também negam, em absoluto, que a vista exista na toupeira. De
entre eles, Aristóteles, no livro 1 , A História dos Animais, capítulo 9°, e no livro 4,
capítulo 8º, quando escreveu que o homem e todos os animais terrestres procriam e
também os que têm sangue e dão à luz, constatando que todos eles têm todos os
sentidos, salvo um ou outro que foi lesionado ou ferido, como a espécie das toupei
ras à qual falta a visão. Esta, com efeito, não tem os olhos a descoberto . Levantada a
pele espessa, o local da visão encontra-se cego e, no interior, vêem-se os olhos que
possuem todas aquelas partes componentes de uns olhos íntegros. De facto, têm um
pequeno círculo que escurece e que está contido dentro da que chamam pupila e
também à volta, a parte branca, mas não tão evidente quanto os olhos, que se perce
bem e salientam. Não podem mostrar-se ao exterior, dada a espessura da pele sobre-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo /, Questão Única, Artigo IV 42 7
sentidos, o que não se estabelece, a não ser pela distinção dos sensíveis próprios e
por si, segundo os vários modos da mudança, como no artigo segundo, com São
Tomás, expusemos.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO II
a. Cum autem 425 b 1 1 Como temos a experiência de possuir duas funções, uma
-
pela qual conhecemos a própria sensação, como a visão, outra, através da qual
distinguimos os diversos sensíveis, como o branco do doce, Aristóteles investiga
neste capítulo se existe alguma faculdade interna à qual respeitem aquelas opera
ções; se, de facto, devem ser atribuídas aos sentidos, tal como sentimos que
vemos pela vista, que ouvimos pelo ouvido e, do mesmo modo, em relação à
função própria dos restantes sentidos. Argumenta desta forma, portanto, para
recomendar a segunda parte. Se conhecêssemos a visão por outro sentido, perce
beríamos também por ele, a cor, visto que, como a visão é a percepção da cor,
não seria possível que se desse sem a percepção da cor. Por isso, como é absurdo
que duas potências tratem da cor, acontece que só a vista compreende a sua
visão. Mais, porque a não ser que os sentidos, um a um, conheçam as suas fun
ções, dar-se-ia uma progressão infinita. Na verdade, existiria um sentido para
perceber a vista e depois outro para perceber a sua operação e assim sucessiva
mente, sem nenhum limite.
b. At hinc oritur 425 b 17 Disputa assim a favor da parte contrária. Sentir com a
-
vista é ver. Mas ver não é mais do que perceber a cor ou o colorido; ora a visão
não é a cor, nem é algo afectado pela cor; logo a visão não pode ser sentida pela
vista, mas por outro sentido; de outra maneira a potência de ver sairia fora do
próprio obj ecto, o que não é possível.
c. Patet igitur 425 b 20 Soluciona de duas maneiras o argumento aduzido a
-
seguir, por causa da disputa. Primeiro, negando que para a vista o sentir não é
outra coisa senão o ver, pois na verdade percebemos certas coisas com a vista
que não vemos, como as trevas, e sentimos algumas com o ouvido, que não
ouvimos, como o silêncio. Depois, negando que a visão não é colorida, ou que o
que vê, enquanto vê, não pode dizer-se que é de algum modo colorido, quando a
espécie da cor se impõe ao órgão, espécie esta que se imprime nos sentidos,
como é evidente; com efeito pensamos uma coisa ausente, o que não acontece
sem o ministério das espécies. Na verdade, porque os sentidos costumam retirar
as imagens dos objectos, diz-se que recebem o sensível sem a matéria, isto é, não
segundo o seu próprio ser natural, como a cor segundo a natureza da cor, mas
segundo o ser intencional que está contido na imagem.
d. Atqui operatio rei 425 b 25 Agora, ainda que de modo pouco claro, responde à
-
questão proposta, estabelecendo que o sentido externo não percebe a sua opera
ção. Confirma-o, porque não se diz que o sentido externo opera a não ser quando
está no exercício de sentir. Na verdade, a potência e aquilo que é sentido por ela,
ou o objecto, que nela age, realiza ao mesmo tempo este acto, nomeadamente
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo II 429
produzindo na potência a espécie que concorre juntamente com ela para a acção.
Por isso, visto que nem a visão em relação ao olho, nem a operação de outro sen
tido produzem a própria potência de sentir, a consequência é que a visão de
maneira nenhuma pode ser sentida pela vista, nem qualquer operação pelo sen
tido que exerce. Aristóteles adverte, em seguida, que se diz que tanto a faculdade
como o objecto estão em potência e em acto. Mas a faculdade está em potência
porque não gera mas pode gerar a acção ; também o objecto, quando não move,
está porém apto a mover. Também diz que ambos estão em acto, que a faculdade
percebe o objecto em acto e o objecto move a faculdade em acto. Por esta razão o
obj ecto e a potência tomam-se de certo modo um, quando a faculdade através da
imagem da coisa se faz uma só com a coisa, e ambas se conjugam numa só
acção, que não é necessário que se dê no agente externo, isto é, no objecto, mas
no paciente, isto é, no órgão e na potência, porque a acção e a paixão são um e o
mesmo acto, mas sabe-se, e na Física prova-se, que a paixão é da coisa que sofre.
e. Actus igitur 426 a 6 - Diz que o acto do corpo é duplo; o que tem a faculdade de
emitir som, seguramente, quer o som que produz, quer a própria geração do som.
De igual modo, o seu acto também é duplo; o que tem a potência de ouvir,
nomeadamente a recepção da forma do som através da sua espécie e a sensação
do próprio som. Na verdade o ouvido e o som também são de dois modos, um em
potência, outro em acto. Diz-se som em potência quando ainda não é produzido;
o ouvido em potência é a própria potência de ouvir considerada em si. O som
está em acto quando se actualiza; o ouvido em acto é a potência que exerce o
acto. E o mesmo acontece nos restantes sensíveis e sentidos. Nalguns subsistem
nomes para significar a acção que é em parte tanto do sensível como do sentido,
como o som e o ouvido. Nos outros falta o nome para ela, como a acção da vista
se diz visão, mas a acção da cor não tem nome e a acção do gosto chama-se pala
dar, e a acção do sabor é inominada.
f. Haec cum ita sint 426 a 16 - Aproveitado o ensejo, a partir daquilo que tinha dito
acerca do sentido e do sensível resolve duas dúvidas. Uma, se o sentido e o sen
sível são simultâneos. Outra, por que razão um sensível superior enfraquece o
sentido. Responde ao primeiro: se um e outro forem tomados em acto, um e outro
dão-se ao mesmo tempo e por uma necessidade recíproca, visto que a operação
de ambos é uma só. Isto deve ser entendido acerca da operação que apresente o
objecto mediante a sua espécie junto com a potência, que não é outra coisa senão
a percepção da coisa sensível. Mas se o sentido e o sensível forem considerados
segundo a potência, ele afirma que não existem ao mesmo tempo, visto que a cor
não pode existir no que não existe para a vista.
g. Non recte 426 a 20 - A partir das afirmações, que os filósofos antigos, entre os
quais se encontrava Demócrito, como consta do livro 4 da Metafísica, capítulo
5º, que tinham dito que o sensível desaparece quando é retirado o sentido,
embora isso pudesse ter sido dito de algum modo correctamente, como há pouco
foi referido, isto é, se se afirmasse acerca do sentido e do sensível em acto
demonstra que, isso não pôde todavia ter sido referido por eles em sentido abso
luto e universal.
h. Atque ob id 426 a 30 - Resolve a controvérsia seguinte, afirmando que um sensí
vel superior destrói o sentido, porque o sensitério consiste numa certa proporção
430 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
e composição, de maneira que se o obj ecto for excessivo e demasiado intenso age
no órgão provocando uma lesão ou destruição, tal como também provocam o
deleite nos sentidos aqueles sensíveis que conservam a proporção equilibrada,
como a harmonia nos sons, os condimentos nos sabores, os meios nas cores e,
por fim, as coisas que são compostas pelas misturas dos extremos.
1. Unusquisque igitur 426 b 8 - Para u m a explicação mais ampla d a controvérsia,
através da qual se questiona a que faculdade diz respeito perceber as funções de
cada sentido, estabelece três. Primeiro, que cada um dos sentidos requer objectos
próprios, que percebe e pelos quais é influenciado. Segundo, que qualquer sen
tido é uma faculdade inerente ao próprio sensório, pela qual é o que é, ou seja,
consoante é afectado por certas qualidades idóneas para alcançar a função de
sentir. Terceiro, que a cada sentido cabe conhecer as diferenças do seu objecto,
como o negro e o branco à visão, o calor, o duro e o mole ao tacto e igualmente
para os restantes.
k. At enim cum a/bum et dulce 426 b 12 - Estabelece e prova que existe um único
sentido a que chamamos comum, cuja função é conhecer as operações de todos
os sentidos externos e filosofa do modo a seguir. Experimentamos que não só
percebemos as diferenças dos objectos pertencentes a cada um dos sentidos,
como o branco, o negro, o amargo, o doce; na verdade, também julgamos acerca
das diferenças de todos os objectos, mas este juízo é executado pelo sentido, por
que é feito sobre a coisa sensível, que pertence em primeiro lugar ao sentido, mas
não pode ser feita por um sentido externo, nem por vários, mas por um diferente
deles.
l. Quo patet 426 b 15 - Filópono considera que Aristóteles, neste ponto, quer dizer
que a carne, isto é, o corpo, não é o sentido comum, porque o corpo só julga
quando uma sua parte toca outra parte sensível, não podendo assim discernir os
sensíveis, porque é sabido que aquilo que leva ao juízo deve ser um só com o
todo sobre o que ajuíza. Segundo a opinião de Filópono, Aristóteles chama ao
sentido comum o último instrumento porque todos os sentidos terminam nele,
colocado à parte, como as linhas para um centro. Outros pretendem que Aristó
teles prova que o sentido comum não é o tacto, pois talvez pudesse ser outro,
porque o tacto é o fundamento dos restantes sentidos e difunde-se por todo o
corpo, ao estar presente em todos os animais. Conforme for a interpretação assim
se apresentará a razão do que se deve compreender. Se o sentido comum fosse o
tacto, dado que o tacto percebe as coisas tocando, não poderíamos emitir juízo
acerca do som e do branco, a não ser tocando-os, o que é manifestamente falso,
pois é evidente que estas coisas são conhecidas sem o tacto. A quem concordar
com esta explicação, dir-se-ão as seguintes palavras. É evidente que se deve
entender que a carne não é o último instrumento, pois é claro que a carne, que é
instrumento do tacto, não é o órgão do sentido comum e que, o que vai dar no
mesmo, o sentido comum não é o tacto.
m. Fieri igitur 426 b 1 7 - Que o referido juízo, não é exercido por vários sentidos
externos, por exemplo que a vista e o gosto não julgam acerca do branco e do
doce, persuade o facto de isso equivaler a serem percebidos por dois homens, por
um, o branco, por outro, o doce; o que, todavia, de modo algum se pode pensar
correctamente, visto que é necessário que o árbitro conheça a causa de uma e de
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo li 43 1
outra parte, de outro modo emitiria uma opinião acerca de uma coisa desconhe
cida.
n. Dicit igitur 426 b 21 - Se é um só, diz por que é que expõe que um difere do
outro. É necessário que ele mesmo conheça quer um sensível quer outro, se não
fosse assim não os distinguiria. E diz que um difere do outro, assim como inte
lige e como sente, porque, tal como afirma, também ajuíza pelo intelecto, posto
que o intelecto segue o sentido.
o. At hinc patet 426 b 22 O ponto é obscuro, afirma, visto que quem diz que isto é
-
bom e aquilo é mau, diz que é o mesmo e ao mesmo tempo, porque quando diz
um, também diz outro. Assim, também o sentido comum, tal como diz ou julga
assim conhece. Ora, diz ao mesmo tempo a diferença do branco e do doce; logo,
também percebe que é o mesmo e ao mesmo tempo, um e outro, visto que julga
que isto não é aquilo. Mas quando proferimos que é num e no mesmo momento
que isto se faz, compreendemo-lo não por acidente, mas por si. Na verdade nesta
frase 'digo agora que Platão e Dionísio navegaram para a Sicília' , o 'agora' pode
referir-se, quer ao digo, quer à navegação, tal como ou percebo agora que digo o
que aconteceu outrora, ou digo aquilo que acontece agora. O primeiro agora faz
de algum modo que a coisa sej a agora por acidente, mas o segundo, por si. Por
tanto, acerca da diferença dos dois objectos sensíveis, o sentido comum quase diz
agora na primeira significação, porque no mesmo instante percebe um e outro,
mas também na segunda significação, porque não só são percebidos como tam
bém existem ao mesmo tempo sensíveis contrários.
p. At uero fieri 426 b 30 Objecta contra as afirmações anteriores. Se o sentido
-
comparação com o ponto, cuja força consiste no facto de se dizer que o ponto é,
de algum modo, vários e um. Vários, visto que é o princípio a partir do qual as
linhas fazem uma circunferência; um, consoante é o fim no qual as linhas toma
das a partir da esfera se unem. Assim, o sentido comum é um, visto que é o fim
dos sentidos externos, porque as suas próprias operações e objectos são levados
através das espécies para o seu julgamento. Mas ao mesmo tempo é múltiplo,
consoante é a origem e o princípio dos sentidos externos, porque sem dúvida que
a potência sensitiva se precipita de um para os outros. Mas não é absurdo que os
contrários existam segundo o seu ser intencional, ao mesmo tempo, na mesma
432 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
faculdade. Por isso, não apenas no sentido comum, mas num mesmo olho dão-se
ao mesmo tempo as espécies das cores preta e branca, visto que vê ambas ao
mesmo tempo. Assim, a solução consiste em que, como as percepções dos sensí
veis contrários, na realidade, não são contrárias, nada impede que elas existam ao
mesmo tempo no mesmo.
QUESTÃO !
Se os sentidos externos percebem as suas funções ou não
ARTIGO I
Parece demonstrar-se a parte afirmativa com estas razões
daquela que recebeu da coisa apresentada. Esta, porém, não é a imagem da própria
operação, como é bastante evidente, mas somente do próprio objecto; logo, etc.
Quinto. O intelecto compreende os seus actos e reflecte sobre eles, portanto, tam
bém o sentido. Prova-se a consequência porque esta reflexão não parece ser tão
elevada que não tivesse podido e devido ser comunicada também aos sentidos exter
nos, particularmente porque, para estes, nada é mais próximo e presente do que a sua
própria operação. Acrescente-se o testemunho de Platão, no Teeteto, quando afirma
que o sentido sente aquilo que sente e aquilo que não sente.
ARTIGO II
Aprovação da parte negativa.
Resolução dos argumentos do artigo anterior
QUESTÃO II
Se deverá admitir-se um sentido comum e se este residirá no cérebro
ARTIGO {
Por que indícios se fala do sentido comum
alta e mais comum, para a qual são levadas tais imagens das funções, e que não é
outra senão o sentido comum. Não apraz quem disser que aquela faculdade é o pró
prio intelecto. Na verdade, ela também é necessária aos animais irracionais, aos
quais a natureza também não a pôde negar. Também, porque, como argumentáva
mos atrás, esta percepção das sensações não se eleva acima da potência das faculda
des dos que sentem.
Terceiro. Comprova-se o mesmo assim. Porque, como se colhe daquilo que
Aristóteles ensinou neste livro, no fim do capítulo segundo e São Gregório de Nissa
escreveu, no livro de Viribus animae, livro 2, capítulo 1 º, parece que Platão disse,
como registou Marsílio, no início do Teeteto, que tem de existir um sentido interior,
que não só receba, em primeiro lugar, as imagens extraídas dos sensíveis, como o
último argumento mostrava, mas que, como juiz e árbitro, discirna e julgue os
objectos dos diversos sentidos, visto que qualquer sentido particular se ocupa
somente das diferenças do sensível próprio, como a vista do preto e do branco e, do
mesmo modo, os diferentes sentidos. Mas este sentido é aquele a que chamamos
comum, porque para a acção de julgar, os próprios sentidos externos não são, de
qualquer modo, suficientes por si. Daí que seja evidente por que é que existem
igualmente muitos sentidos e muitos homens. Por isso, tal como estes não podem
opinar acerca de coisas diferentes, não conhecendo senão uma a uma, o mesmo se
passa com os sentidos no que toca às diferenças dos outros sensíveis a que não
dizem respeito, como Temístio mostrou, neste ponto, no capítulo 7º da sua Pará
frase. Assim, embora muitos tabeliães e escrivães assistam aos magistrados, de
facto, há apenas um que emite o direito de sentença lavrada. Por isso, ainda que haja
muitos instrumentos e mecanismos no corpo do animal, para que os simulacros das
coisas sejam recebidos, deve haver uma só potência arbitral a pronunciar, julgar e
conhecer todas as coisas. Por essa razão é evidente que os seres animados possuem
todos a potência judicativa necessária, porque se o animal não discernir o que é
nocivo, o que é salutar, o que é mais ou menos conveniente, o que deve ser evitado
ou acolhido, em breve se precipitará na morte.
Mas, além disso foi atribuída ao sentido comum uma função, isto é, dar aos senti
dos externos uma faculdade para executar as suas operações através da comunicação
dos espíritos animais, que a partir de si, como que de uma fonte, envia ao primeiro
instrumento do sentir, como consta daquilo que Aristóteles ensina, no livro 2 de As
Partes dos Animais, capítulo 1 0º e no livro A morte e a Vida, capítulo l º. Donde,
quando está obstruído o caminho através do qual os espíritos saem, como acontece
no sono, é necessário que os sentidos externos descansem. Aristóteles diz o mesmo
no livro O Sono e a Vigília, capítulo 3º. Além do mais, sempre que o sentido comum
fraqueja e se encontra mal, também os sentidos próprios são destituídos das funções
próprias, quer total, quer parcialmente, como a visão nos que vêem chegada a hora
da morte. Nestes, a composição do sensório principal é desfeita e extinta. Também
nos paralíticos e apoplécticos, em que os nervos se encontram impedidos, os espíri
tos animais são encaminhados para os sensitérios externos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo li, Questão li, Artigo II 437
ARTIGO II
O sentido comum não reside no coração mas no cérebro
No que respeita à outra parte da questão subsiste grande discórdia entre os filóso
fos sobre o lugar onde a faculdade comum ou primária de sentir tem o seu órgão.
Com efeito, Aristóteles, ainda que no capítulo anterior tenha dito que o sentido
comum é quase o centro de todos os sentidos externos, não ensinou, todavia, em que
parte do corpo esse centro está. De facto, coloca-o noutro lugar, no coração ou na
parte que corresponde, em proporção, ao coração, como no livrinho A Juventude e a
Velhice, capítulo 2º; no livro 2 de As Partes dos Animais, capítulos 1 º e 1 0º e no
livro 3, capítulo 4º; no livro O Sentido e o Sensível, capítulo 2º; em O Sono e a Vigí
lia, capítulo 2º e em O Movimento dos Animais, capítulo 9º. Nele, o fundamento
para aquela posição foi porque tinha como certo que o coração, não só era a origem
das coisas naturais e vitais, mas também das faculdades animais.
Os médicos atacam isto acerrimamente e mostram que embora o princípio das
artérias e das funções vitais esteja no coração, no entanto reside no fígado a fonte
das veias, do sangue e das operações naturais, e no cérebro a origem dos nervos, do
movimento voluntário e das acções sensitivas. Dado que examinámos minuciosa
mente esta dificuldade no primeiro livro de A Geração e a Corrupção, quando
seguimos a opinião dos médicos, atestada satisfatoriamente, em parte pelos precei
tos, em parte pelas experiências da ciência anatómica, não há razão para neste ponto
as tratarmos. Portanto, chamamos de novo à atenção de que se se tratar do princípio
afastado do sentir, não há dúvida que ele tem de ser imputado ao coração, visto que
floresce nele a fonte do calor inato e são procriados os espíritos vitais, sem cuja obra
nenhum movimento pode ser produzido e nenhuma função dos sentidos externos ou
internos pode ser executada. Se Aristóteles, nas passagens antes citadas se tivesse
ocupado deste princípio, não haveria razão pela qual fosse abandonado por nós ou
pelos médicos, nesta disputa. Quem tiver examinado aqueles pontos, facilmente
concluirá que ele coloca o princípio do movimento e da sensação, não afastado, mas
próximo, no coração, e que, como que confiou ao órgão do único princípio, como
rei, o governo de todo o corpo. Consulte-se Galeno no livro De symptomatum cau
sis, capítulo 8º e no livro De usu pulsum; Fernélio, livro 5 da Fisiologia, capítulo
1 1 º. Leia-se também, se se entender, Averróis, no livro 2 de As Partes dos Animais,
capítulo 7° e no livro 2, Collectaneorum, capítulo 1 1 º, ao disputar a favor de Aristó
teles contra Galeno.
E assim, o sentido comum não está no coração, mas no cérebro, onde também
têm assento os restantes sentidos internos, aos quais, como de caminho expomos,
transmite os simulacros das coisas. Daí, subsistir motivo para, quando a cabeça está
fortemente lesionada, as funções dos sentidos internos ficarem perturbadas e serem
dados remédios para o cérebro, quando ocorre uma agressão nos sentidos. Deve
todavia saber-se que o sentido comum, nos animais que permanecem vivos uma vez
seccionados, não se encontra delimitado a uma certa parte. Quanto a isto, é ponto
assente, porque eles depois de seccionados ainda se movem com um movimento
animal e este movimento é o do apetite através da força motriz. Ora, o apetite nada
reclama, a não ser que a fantasia mande e dirij a; não pode negar-se que nas partes
divididas ficou junta com o apetite uma fantasia imperfeita, a qual, nos animais
desse tipo, não difere do sentido comum.
438 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
a. Cum autem 427 a 1 8 Como alguns dos mais antigos autores definiam a alma a
-
intelecto não se distingue do sentido, foi a seguinte: visto que sentimos pelas coi
sas semelhantes, também compreendemos pela inteligência coisas semelhantes.
Donde, conjecturaram que tanto o sentido como o intelecto incidem num órgão
corpóreo, visto que percebem os corpos, e por isso é que o intelecto é um sentido,
pois toda a faculdade que conhece, que é inerente à matéria, é um sentido.
c. Oportebat autem 427 a 29 - Considera que os Antigos falaram acerca do
conhecimento, mas que nada lembraram acerca do erro e não explicaram as cau
sas da ignorância e da decepção, que era necessário que fossem por eles transmi
tidas e inculcadas, sobretudo porque a ignorância nos é mais própria e familiar,
quer porque nos ocupamos nela muito mais tempo, quer, como acrescenta São
Tomás, porque nós erramos e apenas costumamos aprender a partir do ensino e
da obra de outrem. A não ser que alguém queira desculpar os antigos afirmando
que eles não tinham falado do erro porque consideraram que todas as coisas são
verdadeiras e que não existe nenhum engano. Ou certamente (o que tinha sido
inculcado por eles) porque consideraram que o conhecimento é verdadeiro, por-
Livro Terceiro. Explicação do Capítulo Ili 439
que toca a alma com a semelhança, como o fogo toca a partícula ígnea da alma; o
erro, com a dissemelhança, como o fogo toca a porção aquosa da mesma alma.
Visto que conhecer pelo semelhante parece ser contrário a conhecer através do
dissemelhante, o erro e a ciência são contrários, isto é, acontecem de modo
oposto. De facto isto é absurdo e ridículo visto que entretanto erramos, e a alma
não é formada pela união dos elementos ou pela carne do corpo, como é claro
com base no que se disputou no primeiro livro.
d. Non igitur idem 427 b 6 Conclui com o argumento duas coisas, que nem o
-
tindo que fala da fantasia em sentido próprio, não metafórico. Entretanto chama
mos fantasia metaforicamente ao intelecto e a qualquer sentido e àquelas coisas
que aparecem à vista. Porque, numa palavra, a fantasia é a potência pela qual
dizemos que se produz o que é visto ou os fantasmas, talvez pareça que ela deve
ser contada entre os sentidos externos, pelos quais as coisas nos são representa-
440 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
sentido, porque o sentido está sempre presente nos animais, pois os recém nasci
dos usam de imediato o sentido e usam a imaginação, pelo menos a exacta, ape
nas no decurso do tempo. Em terceiro, porque o sentido pertence a todos os ani
mais, a imaginação, a perfeita, entenda-se, não pertence a todos. Mas a imagina
ção imperfeita e confusa está presente em todos. Em quarto lugar, porque o sen
tido nunca erra acerca dos próprios sensíveis, a imaginação engana-se muitas
vezes. Em quinto, porque as coisas que percebemos afectarem os sentidos de
modo bem exacto não costumamos dizer que nos parecem assim, o que todavia
dizemos, quando imaginamos. Finalmente, porque aquelas coisas cuj as imagens
vemos pelo sentido, imaginamo-las com os olhos fechados e com os sensíveis
ausentes, enquanto que o sentido é levado apenas para a coisa presente.
k. Atqui nec ullus 428 a 16 Afirma que a imaginação não é ciência, nem intelec
-
m. Patet enim si imaginatio 428 a 26 Mostra de que forma se deve tomar a opi
-
nião, caso se diga que a fantasia é a opinião em conjunto com o sentido. Porque,
de facto, a fantasia é própria de um e do mesmo, ainda que a opinião em conjunto
com o sentido que é a fantasia, não deva ser uma outra opinião, mas a que versa
sobre a mesma coisa para a qual o sentido é conduzido, como quando dizemos
que a fantasia é o composto da opinião do branco e do sentido do mesmo, e que
portanto não pode ser preenchida pela opinião do branco e pelo sentido do bem.
É necessário, portanto, caso a fantasia surja do sentido e da opinião, que nenhum
outro ser em si apareça segundo a fantasia, senão aquele de que se conjectura ser
sentido por si e não por acidente. Mas ele refuta esta posição porque, por vezes,
certas aparências são falsas de acordo com a fantasia nascida do sentido, sobre as
quais temos opinião verdadeira. Na verdade, a imaginação percebe, por exemplo,
que o Sol mede um pé, e segundo a verdadeira opinião, que acolhe do matemá
tico, considera o Sol maior do que a massa da Terra.
n. Fit igitur 428 b 4 Para compreender este ponto São Tomás adverte, a partir de
-
falsa. Diz que isto acontece porque imaginamos o que percebemos pelos senti
dos, mas eles enganam-se. Efectivamente, visto que o objecto dos sentidos se
divide em três, ou é próprio ou comum ou por acidente, a alucinação acontece em
todos eles e se menos frequentemente no sensível próprio, mais frequentemente
no sensível por acidente, porque embora a vista não erre quando, por exemplo,
apreende o branco, todavia erra na sua ligação, isto é, quando, a seu modo, aco
moda a brancura ao substrato no qual não existe e percebe como branca a coisa
que não é branca. Também no sensível comum ocorre o engano acerca do tama
nho, da figura e do movimento, como acima referimos.
q. Motus igitur 428 b 24 Conforma os erros que acontecem à imaginação, àquela
-
tripla percepção dos sensíveis externos, afirmando que eles podem dar-se nela de
igual modo, salvo se a imaginação se acostumou a ocupar-se tanto das coisas
presentes, como das coisas ausentes ou que estão mais longe. Conclui, então, que
se as coisas que foram ditas respeitam à imaginação e se a imaginação reivindica
o que foi dito, resta que a imaginação será um movimento feito pelo sentido que
opera em acto, isto é, por intervenção das espécies que o sentido lhe transmite
quando percebe as coisas.
r. Cum autem uisus 429 a 2 Mostra o conhecimento do sentido e da fantasia com
-
QUESTÃO !
Se o número dos sentidos internos foi correctamente
estabelecido pelos filósofos
ARTIGO I
Com que argumentos foi estabelecida a pluralidade
dos sentidos internos
Os filósofos aduziram, acima de tudo, três razões para constituir uma pluralidade
de sentidos internos. Uns, a partir dos ventrículos do cérebro, onde dizem que foram
colocados os mecanismos do sentir, ventrículos esses que, como consta pelas obser
vações dos anatomistas, são vários, nomeadamente três ou quatro. Mas outros, não
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo ///, Questão /, Artigo / 443
sem grande probabilidade, consideram este argumento pouco eficaz. Primeiro, por
que como os sentidos são qualidades que não ocupam lugar e, portanto, não reque
rem moradas onde se recolham, é incerto que existam, deste ou daquele modo,
células destinadas a este uso ou a outro melhor, pela natureza, quer dizer, para aper
feiçoar os espíritos animais, como consideram Vesálio, no livro 7, capítulo 6º e
Realdo Colombo, no livro De cerebro et nervis, capítulo 1 º. Ou também para remo
ver os resíduos do cérebro, como consideram outros, o que também torna possível a
quantidade de matéria de secreção húmida que neles se vê. Confirma-o Fernélio, no
livro De partium humani corporis descriptione, capítulo 9º, afirmando que as maté
rias excedentárias que se acumulam nos ventrículos escorregam por uns pequenos
canais, insensivelmente, até àquele ponto do cérebro que se chama bacia ou funil e,
daí para a glândula, enquanto, a pouco e pouco, humedecem o palato e se precipitam
para fora. Também Galeno, no livro 8, De usu partium, ensina que as duas primeiras
cavidades do cérebro, da inspiração e da expiração, também foram constituídas por
causa da exalação dos vapores. Além disso, para a emissão dos resíduos, e depois
para dissolver os espíritos animais, que atravessam daí até à cavidade posterior onde
se libertam. Que os sentidos internos não residem nos referidos ventrículos pode,
além disso, estabelecer-se, porque se diz que o sentido comum está na primeira parte
do cérebro, onde, todavia, não se encontra uma só cavidade em que resida, mas duas,
uma à esquerda, outra à direita; que em seguida eles afluem, com o seu próprio
movimento, à terceira, que reside na parte média do cérebro. Quanto a este assunto,
se alguém disser que o sentido comum tem sede numa ou noutra cavidade, refuta-se
da maneira seguinte. Porque, como esta faculdade é quase o centro das faculdades
externas, tal como acima ensinámos, com base em Aristóteles e noutros autores, é
próprio que ela ocupe uma só sede como um centro, mas não uma dupla sede.
Quanto a isto, quem afirmar, com alguns autores, que as primeiras cavidades do
cérebro não são duas, mas que na realidade é uma, o que acontece porque ainda não
foi depositado nele o sentido interno, este argumento convence. Porque, como
Vesálio mostra, no · ponto citado, os nervos ascendentes dos órgãos dos sentidos
externos para o cérebro, pelos quais as imagens dos sensíveis são transportadas, não
confluem nesse ventrículo. Seria necessário que confluíssem nele, como afirmam, se
aí estivesse o sentido comum, para o qual as faculdades externas de sentir transmi
tem os simulacros das coisas em todas as direcções.
Outros autores, de entre os quais Galeno, constituíram muitos sentidos internos
em lugares distintos, porque vemos, por vezes, que os sentidos internos estão lesa
dos quanto a uma operação, não quanto a outra. Decerto que isto não parece provir
de outra coisa senão porque eles se distinguem entre si e têm uma actividade em
parte diferente do cérebro. De facto, quebrada assim a composição numa só parte do
cérebro, este permanece intacto na outra e, além disso, a faculdade que ocupa a parte
intacta desempenha excelentemente a sua função, o que não acontece, do mesmo
modo, com a parte lesada. Mostram, entretanto, que tal lesão acontece, mas do modo
referido. Porque, por vezes, surgem visões nos doentes, que não são reais, certa
mente tecidas pela imaginação, embora, por outro lado, ajuízem correctamente, e o
contrário. Houve também quem admitisse inteiramente, que a faculdade de recordar
sobrevive na apreensão e no juízo. Galeno refere exemplos de tudo isto, em vários
pontos e, em primeiro lugar, no livro De symptomatum differentiis, capítulo 3º, onde
444 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles
narra que um certo médico, Teófilo, embora, por um lado, respondesse muito bem
aos pareceres sobre os quais o questionavam, imaginou que certos flautistas tinham
estado a cantar sem parar, a um canto da casa, enquanto ordenava que fossem pos
tos na rua. Do que se deduz que a sua faculdade de imaginar se encontrava aluci
nada. Enquanto pensava que ouvia e via os flautistas, o juízo permanecia incólume,
quer porque interrogava e respondia adequadamente, quer porque ordenava aos
flautistas que partissem, pois se ficassem poderiam prejudicá-lo. Mas outros sofrem
uma afecção contrária, neles erram o juízo e a avaliação quando não compreendem
que vêem o que não vêem, como Galeno mostra noutro exemplo, no livro 4, De Zoeis
affectis, capítulo !º. Com efeito, em Roma, um certo louco, estando preso num
quarto, esgueirando-se do leito, aproximou-se da janela, através da qual, podia ser
visto e avistar os que passavam. E daí, mostrando recipientes de vidro, perguntou,
um a um, se lhe davam ordem para que os atirasse. Dado que os que riam e aplaudiam
o mandaram fazer, ele, pegando, atirou-os todos, o que foi recebido com grande
alarido e risadas. Em seguida, perguntou se lhe ordenavam que atirasse também a
criança que tinha junto de si. Como insistissem que o fizesse, atirou também a
criança pela j anela. Neste caso, portanto, a faculdade que compreende permaneceu
intacta, porque compreendia exactamente os que pretendiam os vasos e a criança,
mas a faculdade judicativa encontrava-se atrofiada, porque de forma insana conside
rava que os vasos e a criança deviam ser atirados. Não inferia que os vasos se deviam
partir e a criança morrer. Além disso, nalguns, estanto por vezes lesada a memória,
permaneceu intacta a imaginação e o juízo, segundo o testemunho de Tucídides. O
mesmo confirma Galeno, no livro De dif.ferentiis symptomatum, capítulo 8º e no
livro 2 De causis symptomatum, capítulo último, onde refere que certas pessoas que
tinham escapado à peste, nem a si mesmos nem aos outros reconheceram, e também
refere outras que na velhice sofreram estas mesmas afecções, e que também vira
outros que se tinham esquecido totalmente das artes e das letras e até dos seus
nomes nos quais, no entanto, os outros sentidos internos permaneciam incólumes.
Mas também esta razão relativa às diferenças dos sentidos internos e dos seus
diferentes órgãos deve ser contrariada; para muitos com propriedade, parece ter
pouco peso, como para os que afirmam que a composição pode ser lesada na mesma
parte do cérebro, de tal maneira que o dano impeça, por exemplo, a tarefa de com
preender, mas não a de julgar ou a de julgar, mas não a de compreender, ou a de
relembrar, e o contrário. Ainda que as faculdades que se ocupam do alimento resi
dam em todo o ventrículo, isto é, as de atrair, de reter, de alterar, de expelir as for
ças, quando cada uma delas é danificada, ou a operação de alguma está impedida,
todas ficam lesadas, tal como as suas funções. Decerto, porque qualquer alteração da
composição que, por exemplo, altere a retenção do alimento, é suficiente para impe
dir a atracção do mesmo alimento.
Outros ainda acrescentam diferenças dos sentidos internos a partir da diversidade
das funções e das operações que eles executam. Isto porque estas tarefas e funções
são tão variadas e diferentes que, necessariamente, exigem muitas faculdades. É tido
como firme e certo por todos, na escola dos filósofos, este argumento de multiplicar
as potências, embora nem todos considerem o mesmo número de sentidos internos,
mas uns mais, outros menos. Com efeito, Avicena, no livro 6 dos Naturais, parte 4,
capítulo 2º; Algazel, no seu livrinho A alma, tratado 4, capítulo 7°; João de Gand, no
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo III, Questão /, Artigo II 445
livro 2 desta obra, questão 37, estabelecem cinco sentidos internos. Estes, embora
concordem no número, dissidem muito nas funções que lhes devem ser atribuídas e
ordenadas. Algazel e Alberto põem em primeiro lugar o sentido comum, o qual
compreende e conhece os objectos dos sentidos externos. Em segundo, a faculdade
imaginativa, para que o sentido comum conserve as imagens e receba as coisas sen
tidas na sua ausência. Em terceiro, a estimativa, para perceber os objectos não senti
dos, por exemplo, o ódio e a amizade. Em quarto, a fantasia, para conj ugar as espé
cies entre si, de um modo variado, as sentidas com as sentidas, tal como de ouro e de
monte se produz monte áureo; as não sentidas com as sentidas, tal como, ao mesmo
tempo, percebe o quente e o útil; as não sentidas com as não sentidas, tal como o
carneiro apreende a mãe para si querida e amiga. Em quinto, a memória para con
servar aquelas coisas que a fantasia percebe. Contudo, Avicena estabelece a fantasia
em terceiro lugar, em quarto a faculdade imaginativa, e crê que esta nada conhece
por si, mas somente as espécies, que repõe e conserva, trazidas a si pelo sentido
comum. Mas, para constituir este número, estes autores têm o argumento que refe
rimos, a saber, parece que aquelas cinco variedades de funções e tarefas solicitam
igual número de potências.
A opinião de São Tomás é outra, no Opúsculo 43, capítulo 4º e na Suma Teoló
gica, lª parte, questão 78, artigo 4º; de Caetano, no mesmo lugar; de Averróis, neste
livro, comentário 6; do Ferrariense, questão 4 e de outros que consideram que são
quatro os sentidos internos, a saber, o sentido comum, cujas funções expusemos
muitas vezes; a imaginação ou fantasia, que reúne entre si as coisas sentidas e que é
como que o armazém das imagens do sentido comum; a cogitativa (nos animais
irracionais chamada estimativa) que compreende e dispõe as coisas não sentidas, do
modo explicado antes; a memória que reúne e conserva as espécies não sentidas e se
recorda, a partir delas. A afirmação destes filósofos inicia-se, igualmente, com a
distinção das operações e das funções para multiplicar as potências, a não ser que
aquela se refira a potências menos numerosas, como mais adiante mostraremos.
A terceira afirmação é de Galeno, que, a partir daquela tríplice espécie de delírio,
que lembrámos acima, defendeu três faculdades internas, a fantasia, que confundiu
com o sentido comum, a razão, isto é, a capacidade judicativa, e a memória. São
Gregório de Nissa estabeleceu também um mesmo número, no livro 4 sobre As
Faculdades da Alma, capítulo 6º, São Damasceno, no livro 2 da Fé Ortodoxa, capí
tulo 1 7º, São Nemésio, em A Natureza Humana, capítulo 6º, e muitos outros autores.
ARTIGO II
Estabelece-se o número dos sentidos internos a partir
da opinião comum dos filósofos
portanto dos diversos órgãos, e uma potência para receber junto a si as imagens das
coisas, usando-as na presença do objecto. Diferente, digo, da que é requerida para as
conservar no futuro, durante muito tempo. Com efeito, as húmidas recebem com
cuidado mas não retêm; as secas, embora recebam a custo, conservam muito tempo.
Uma vez que é claro que as espécies emitidas pelos sentidos externos são imediata
mente recebidas por um único sentido para o qual são trazidas e, além disso, dado
que é patente que os simulacros das coisas percebidas pelos seres animados perfei
tos, às vezes são conservados muito tempo, o que nos livros Pequenos Naturais
claramente demonstrámos, então, por isso, para além do órgão do sentido comum,
que foi destinado a empreender a primeira função, deve ser considerado outro, de
composição mais seca e outra faculdade, que, em seguida, ministre a tarefa de reter a
espécie. E esta é aquela a que se dá o nome particular de fantasia, e também de ima
ginativa.
Segunda afirmação. Para além da fantasia deve conceber-se uma outra faculdade
sensitiva que compreenda as coisas não sentidas e as conjugue, quer entre si, quer
com as sentidas, de um modo variado. E além desta, deve constituir-se outra, que
seja como que o tesouro das espécies pelas quais as coisas são assim representadas.
A primeira parte desta afirmação demonstra-se de imediato. Como não só os homens
mas também os animais reproduzem conhecimentos do ódio e da amizade, como a
ovelha que compreende o lobo como seu inimigo, é necessário constituir uma potên
cia sensitiva que cumpra esta função, designadamente, aquela que é chamada cogi
tativa nos homens e estimativa nos animais irracionais. O argumento defende que
ela se destingue da fantasia, porque conhecer as coisas não sentidas e compô-las do
modo referido é uma função bastante elevada de actividade e, portanto, de uma
potência um pouco mais alta do que a fantasia. Prova a segunda parte da afirmação o
argumento pelo qual há pouco mostrámos que a fantasia se distingue do sentido
comum. Pois, tal como a fantasia é considerada como repositório ou tesouro do
sentido comum, assim também se considera a memória, para a faculdade imagina
tiva.
Terceira afirmação. Para além das quatro faculdades referidas, não é necessário
introduzir uma quinta. Isto prova-se, porque não é necessária uma faculdade para
executar as operações, em razão das quais os seus defensores a introduzem. De
facto, para juntar as coisas sentidas entre si é suficiente a fantasia. Para obter estas e
as coisas não sentidas, quer entre si, quer com as sentidas, que têm de ser misturadas
de maneira diferente, a cogitativa é suficiente. Mas há quem objecte que a fantasia
nada faz, mas que apenas retém e examina as espécies a si confiadas. Portanto, tem
de conceder-se alguma potência que una entre si as coisas sentidas e daí, também
uma outra, que se ocupe das não sentidas. Esta objecção deve negar o que concebe.
Com efeito, a fantasia não é empregada apenas nas espécies que devem ser conser
vadas, mas também descobre as suas sensações, dado que é potência, não só passiva,
mas também activa; de outra maneira, seria mais fraca do que o sentido comum.
Donde, Aristóteles ter ensinado, no capítulo anterior, que o acto da fantasia ou da
faculdade imaginativa é a imaginação e o conhecimento da coisa. E assim, tal como
o sentido comum distingue e compara os objectos dos sentidos externos, na presença
deles, também a fantasia o faz, na sua ausência. E além disso, faz algo, como, de
caminho, diremos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo III, Questão !, Artigo til 447
Mas pode-se objectar, por outro lado, que a cogitativa, que se ocupa das coisas
não sentidas, trata também das coisas sentidas e que, entretanto, como junta as não
sentidas com as sentidas, não pode juntar também as sentidas entre si e que, por essa
razão, a fantasia parece supérflua. Deve opor-se que, embora, por vezes, uma potên
cia ulterior exerça as funções da primeira, pelo menos numa parte, nem por isso a
primeira potência é supérflua, visto que a natureza, sobretudo nas coisas constantes
da matéria, que progridem naturalmente, dispõe gradualmente as potências materiais
e distribui as suas funções pela ordem que parece idónea, para exercer de um modo
mais adequado as funções continuadamente e, também, de modo mais desembara
çado. Esta disposição e a vantagem da ordem serão mais bem conservadas se a fan
tasia mantiver e juntar primeiramente entre si apenas as espécies sentidas e, depois, a
potência ulterior obtiver não só estas, mas também as não sentidas, e as juntar entre
si e, por fim, a memória conservar as outras que lhe foram transmitidas .
Um certo filósofo, de entre os mais recentes, opõe, também, que elas são mais ou
menos da mesma espécie e que, por isso, não parece correcto distinguir-se a memó
ria da cogitativa, porque uma mais, outra menos, conservaria a imagem das coisas.
Resolve-se facilmente isto. Na verdade, não deve considerar-se que estas potências
se distinguem pelo facto de a afecção pertencer ao órgão, não à potência; por outro
lado, nomeadamente pela diversidade da composição, que as faculdades exigem no
órgão (isto é, como um é húmido e o outro seco, um menos e o outro mais, conser
variam os simulacros gravados das coisas), como de um certo indício da natureza se
colhe que elas têm sensórios distintos e, que, portanto, são potências diferentes. Na
verdade, a sua distinção deve ser colhida, a priori, da diversidade dos objectos, por
que a cogitativa versa sobre o cogitável, pelo qual existe, e do mesmo modo, a
memória persiste em tomo do memorável .
Ainda que seja provável que existam quatro sentidos internos, como dissemos na
última afirmação, não parece menos provável que existam apenas três, a saber, o
sentido comum, a fantasia e a memória. Aconselha-se esta afirmação, defendida,
quer por alguns filósofos mais antigos, quer por muitos filósofos do nosso tempo, da
seguinte maneira. Porque todas aquelas funções que há pouco atribuíamos a uma
dupla faculdade, a da fantasia e a da cogitativa, podem ser reconduzidas com vanta
gem àquela potência intermédia que dá pelo nome de fantasia. Efectivamente, con
quanto sej a função de sinal mais eminente perceber e investigar as coisas não senti
das do que ocupar-se só das sentidas, não parece por isso necessário acrescentar
mais faculdades para estas duas realizarem o ministério, visto que, uma e a mesma
faculdade, como é evidente no nosso intelecto, executa operações, umas mais,
outras, menos nobres. Não é, de todo, necessário interpor tanta variedade nestas
potências, posto que sejam materiais.
ARTIGO Ili
Acrescenta-se uma outra opinião menos comum,
considerada todavia mais provável do que as restantes
Estabelecemos no artigo anterior que algo deveria ser decidido acerca do número
dos sentidos internos, partindo do parecer comum dos autores. Há, além disso, uma
outra opinião, ainda que não da antiguidade, que parece a alguns mais consentânea
448 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
com a verdade. Defende-a, além de outros filósofos ilustres do nosso tempo, Fon
seca, no livro 5 da Metafisica, capítulo 28º, questão 7, secção 4, afirmando que só
existem duas potências sensitivas internas, o sentido comum e a fantasia. Devemos,
portanto, examinar esta posição, para afirmarmos que o sentido comum executa as
funções que lhe atribuímos acima e a fantasia as restantes, que delegámos nos outros
sentidos internos. Refuta-se, com efeito, que existam tantas potências, porque
nenhum argumento obriga a que sejam constituídos mais sentidos, como facilmente
verá quem prestar atenção à resolução dos argumentos que muitos recomendavam.
Na verdade, que todas as funções da faculdade cogitativa podem ser reduzidas à
fantasia, já acima demos a conhecer. Porém, quanto ao ofício da memória, que sub
sistia como único, ele poderia ser desempenhado por ela mesma. Mais ainda, que a
fantasia o leve a cabo na própria realidade, prova-o, em primeiro lugar, o facto de
não ser necessário nenhum órgão totalmente diferente para reter as imagens das
coisas, mas uma parte distinta do mesmo órgão, que seja mais seca e retenha mais
consistentemente, como a alguns apraz. Ou, que nos parece, de preferência, dever
afirmar-se com Fernélio, no livro 5 da sua Fisiologia, e com Teófilo ao texto 1 62,
que numa e mesma parte do órgão são recebidas, de novo, as espécies para pensar e
para uso da memória, porque este órgão é de tal modo dotado de composição que,
imediatamente apreende as próprias imagens das coisas que passaram há pouco
tempo, na medida do necessário, para logo as usar, e para que também seja possível
conservá-las durante muito tempo. Sobretudo se, quer por um acto veemente, quer
pela apreensão repetida da mesma coisa, elas são profunda e firmemente inculcadas.
Com efeito, embora atrás, perante a opinião comum, tenhamos dito que é necessária
a existência de um sensitério húmido para receber primeiro as espécies, de outro
seco, para as conservar, porque os húmidos facilmente recebem e não retêm e os
secos recebem defeituosamente e conservam durante muito tempo, parece-nos, no
entanto, que pode haver composição nesta média, para não receber com dificuldade
e para reter muito tempo as coisas recebidas. Pode, por isso, efectivamente, provar
-se que as imagens são impressas e permanecem na mesma parte do órgão, não só
para uso da memória, mas também para empreender outras funções. Porque, de outra
forma, quando quiséssemos discorrer com o sentido interno acerca das coisas sin
gulares que apreendemos alguns anos antes, seria necessário que, por nosso arbítrio,
de outro sítio, isto é, do repositório da memória, evocássemos e retirássemos as
espécies, o que parece completamente fictício, improvável e indigno da superiori
dade da faculdade estimativa, a qual, decerto, se concordou carecer pouco das ima
gens das coisas. E assim, não parece que para a memória seja imprescindível a
diversidade do sensório. A diferença das outras potências era demonstrada com a sua
prova mais poderosa, ou seja, que no fundo não existe parte diferenciada no mesmo
órgão. Por isso, não há razão para considerarmos que a memória se distingue das
outras potências, pelo lugar, ou pela natureza.
Além disso, este argumento prova que não há dois repositórios, um das espécies
sentidas, outro das espécies não sentidas, como muitos afirmam, porque a mesma
faculdade, como eles próprios concedem, obtém das espécies sentidas as não senti
das, junta-as entre si diversamente, e compõe-nas. Mais, como ela pratica o acto de
recordar, discorre frequentemente das coisas não sentidas para as sentidas e, ao con
trário, destas para aquelas. Mas, não pode executar isto, pelo menos rapidamente e
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Ili, Questão I, A rtigo IV 449
de forma expedita, a não ser que retenha em si própria, tanto as espécies destas últi
mas, como as das coisas de que alcança a sensação.
Por fim, que esta nossa opinião não repugna ao princípio peripatético, demonstra
-se do modo seguinte. Porque Aristóteles, nos capítulos segundo e terceiro deste livro,
quando examinou cuidadosamente as potências sensitivas internas, não encontrou
nem constituiu mais do que duas, a saber, o sentido comum e a fantasia. Não obsta
que tenha escrito um dos livros dos Pequenos Naturais, a que chamou A Memória e
a Reminiscência. De facto, não o fez, porque tivesse separado a faculdade de lem
brar da fantasia, pelo lugar ou em espécie. Na verdade, no capítulo primeiro deste
mesmo livro coloca o acto de lembrar nesta parte da alma, isto é, na potência em que
reside a imaginação e a fantasia. Daí, ter sido essa a razão do título, porque aí tratava
do acto de lembrar, de acordo com o qual esta potência recebe o nome de memória.
Do mesmo modo, é chamada fantasia, porque as coisas aparecem nela, não de qual
quer maneira, mas de tal modo que, afastados os sensíveis, permaneça a noção deles,
tal como depois Aristóteles explicou, no capítulo anterior, texto 1 62.
Haverá, contudo, quem pergunte se um pequeno número de sentidos internos nos
é assim favorável, porque não reduzimos todos a um. Respondemos que o Alense,
de facto, na segunda parte da Suma Teológica, questão 70, membro segundo, con
cede que, na realidade, não há várias potências, apesar de se dizer que são muitas
pela diversidade do modo de operar. Mas a autoridade de Aristóteles, antes de tudo,
obsta a que pensemos assim. Este, no capítulo citado, a partir do texto 55, provou
que a fantasia é faculdade à parte, diversa do sentido comum. Depois obstam as
seguintes razões. Primeiro, porque o sentido comum e a fantasia são alterados de
modo diferente; de facto, o sentido comum é alterado imediatamente pelos sentidos
externos, a fantasia apenas mediatamente, por intervenção daquele. Depois, o sen
tido comum apenas apreende em presença dos objectos e, ao mesmo tempo, com os
sentidos externos; a fantasia, quando também estes cessam, ainda percebe coisas
muito afastadas. O sentido comum somente conhece as coisas sentidas, a fantasia
também conhece as não sentidas e executa outras funções que lhe são próprias,
acerca das quais tratámos acima.
Fica demonstrado, portanto, partindo da disputa anterior, que existem duas facul
dades internas de sentir, o sentido comum e a fantasia, as quais, pela diversidade das
funções, não só têm vários nomes, como acima referimos, mas também são uma
potência múltipla, não em natureza e em espécie, mas, pode dizer-se, em abundância
de operações. Por isso, alguns dizem de que modo Galeno deve ser interpretado, isto
é, que de entre as três espécies de delírio frenético, ele compreendeu não três potên
cias distintas, mas três operações da mesma faculdade e que é possível ser-se ata
cado por três enfermidades de delírio frenético. Eles são credores das palavras de
Galeno, no livro segundo De musculorum motu, quando estabeleceu que a fantasia e
a memória são uma e a mesma potência.
ARTIGO IV
Da sede dos sentidos internos
gação mais diligente desta questão para este lugar, tenhamos considerado, mais do
que duas, a partir da opinião comum dos filósofos. No que toca à presente dúvida,
tratam dos sentidos internos Avicena, na primeira fen do primeiro livro do Cânone,
doutrina 6, capítulo 5º; Hécio, sermão segundo; o segundo livro do Tetrabiblos,
capítulo 2º; Fernélio, no livro As Faculdades Naturais, capítulo 1 0º; São Tomás,
Suma Teológica, parte 1 , questão 78, artigo 4º e Opúsculo 43, capítulo 4º e outros.
São Nemésio, no livro A Natureza do Homem, capítulo 6º e S . Damasceno, livro
2 de A Fé Ortodoxa, capítulos 1 9º e 20,º situam os sentidos internos nos espíritos.
Mas esta opinião não colhe, porque como no livro 1 de A Geração e a Corrupção,
claramente mostrámos, os espíritos não são animados e as potências vitais, a partir
das quais a alma executa as suas funções, apenas têm de estar presentes no corpo
que é enformado pela alma. Resta, portanto, que os referidos sentidos se situam no
cérebro. Efectivamente, é costume os médicos duvidarem se estão presentes na
medula do cérebro ou nas suas membranas ou invólucros, chamados meninges.
Fernélio afirma que estão nas membranas, com o argumento da dor, porque a
medula do cérebro carece do sentido do tacto. A membrana, porém, que é mais
espessa, tem um sentido do tacto apuradíssimo. Diz que, encontrando-se profunda
mente feridas e uma vez o crânio aberto, elas tinham sido reconhecidas nos exames,
durante as patologias. Com efeito, no frenesi, no delírio e na letargia, estando a
medula do cérebro ferida, normalmente nenhuma dor atormenta, mas se por um
breve instante, quer um humor, quer um vapor mais ácido for levado até à meninge,
sobrevirá uma grande dor. Mas Galeno, cuja opinião se aprova mais no livro 7, De
placitis, situa os sentidos internos na própria medula do cérebro, como sede princi
pal donde são propagados os nervos, através dos quais as imagens das coisas sensí
veis são transportadas. Ele diz que as meninges foram dadas pela natureza para
encerrar e conter aquela substância. O argumento de Fernélio não é concludente.
Primeiro, porque a medula do cérebro carece totalmente do sentido do tacto, ainda
que sinta de um modo ténue e grosseiro. Além disso, porque a composição, que
ajuda menos o tacto em virtude da moleza da água, pode, a respeito dos sentidos
internos, possuir maior vantagem.
Mas ainda subsiste controvérsia sobre em que parte da medula e com que separa
ção foram repostos estes sentidos. Fernélio não admite que se encontrem separados
em nenhum sítio e lugar. Afirma que a opinião contrária deve ser eliminada e ata
cada como absurda e sem autoridade, embora sej a a de quase todos os autores mais
recentes. Esta opinião, diz ele, nascida primeiro da facção do partido dos Árabes, foi
estabelecida sem quaisquer argumentos. Em parte formada sem ponderação, em
parte sem pensar, às cegas, assim teve acolhimento no povo. E, um pouco mais
abaixo, continua: Se eles não cedem aos argumentos dos peripatéticos e de Aristó
teles, ouvem, por vezes, a farm1ia inteira dos médicos Gregos que, todos sem excep
ção, foram formados pelos mesmos princípios. Danificada a memória, decidem
aplicar os remédios, não só ao occipício, mas a todo o cérebro, ratificando que a
parte da alma cpavrnanK�<;, o que quer que ela seja, se recorda e conserva as
impressões das coisas. Não é porque ele destrói a opinião contrária, que atribui
vários órgãos aos sentidos internos, dado que São Tomás e Alberto Magno, filósofos
de grande autoridade, e muitos outros, o sustentam. Nós, portanto, que não conside
ramos nem mais nem menos do que dois sentidos internos distintos em espécie,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo l/l, Questão /, Artigo V 451
como que percorremos a via intermédia. Assim, não consideramos nem mais nem
menos, do que estes dois instrumentos. Estabelecemos, portanto, o sentido comum
na parte anterior do cérebro, para onde se abrem os orifícios de uma certa via, atra
vés dos quais se dirigem, do exterior, os simulacros concebidos das coisas. Trata-se
de um lugar do cérebro um pouco mais húmido e, por isso, mais apto para receber.
Situamos porém a fantasia em todo o restante cérebro, onde existe aquela composi
ção, sobre a qual falámos antes, mais idónea para aquela potência, isto é, composta
de seco e de húmido.
Mas, desde logo, alguém poderá insistir que parece que a memória está somente
no occipício, porque aí captou as repercussões das coisas no esquecimento, argu
mento que usámos noutro ponto para confirmar aquela posição. Opor-se-á contudo
que, havendo mesmo uma ferida, a memória não é lesada, porque ela residia apenas
aí, ela que, demonstrámos, nem pelo lugar, nem pela natureza se desliga da fantasia.
Mas sej a o que for que não lesa uma só potência quanto a uma operação, prejudica-a
continuadamente quanto às restantes, como já acima advertimos. O que também
escreveu Femélio, no livro De functionibus et humoribus, capítulo 45º, afirmando
que, quando uma faculdade, no que concerne a uma operação, pela natureza ou por
alguma contrariedade superveniente, está menos resistente, agredindo-a causas noci
vas, ela resiste pouco e perturba-se mais prontamente, por causa disso. Ao contrário,
a que se encontra forte e íntegra, pouco ou nada sofre e perde. E assim, quando a
potência está íntegra, por exemplo, quanto ao acto de apreender, mas não ao de
julgar, danificado o juízo, a apreensão mantém-se íntegra. Se sobrevier uma causa
forte de enfermidade, a ponto de a potência sucumbir relativamente a todas as fun
ções por igual, então há perda total de todas as operações e segue-se o perfeito delí
rio.
ARTIGO V
Que sentidos internos pertencem aos seres animados
Sem dúvida que nem todas as faculdades internas de sentir estão totalmente pre
sentes nos seres animados, embora não exista nenhum que careça de sentido comum,
como ensinámos anteriormente, quando falámos acerca do assunto. No que respeita
à fantasia, se se examinar, segundo os actos de compor, de dividir e de discorrer
acerca das coisas singulares, que, na questão seguinte, consideramos deverem ser
-lhe atribuídos, sabe-se que ela, assim caracterizada, de modo algum pertence aos
animais. Se também se considerar quanto ao acto de lembrar, entende-se como firme
e certo que ela não pertence a todos os animais, dado que nem todos são dotados de
movimento no lugar, como os que estão fixos aos portos marítimos, e que nem todos
os que são dotados de movimento local costumam retomar à morada donde vieram.
De facto, a memória foi dada aos seres animados de forma mais poderosa para se
dirigirem para qualquer lugar afastado que antes conheciam, para obter alguma coisa
ou para evitá-la. Mas, se a fantasia for diligentemente examinada quanto aos outros
actos que lhe dizem respeito, acerca dos quais acima falámos, de que espécie são,
que espécies não sentidas obtém das espécies sentidas e se juntam entre si de modo
variado, deve dizer-se, que como estes actos totalmente eminentes são superiores e
conhecidos, não parece que sej am praticados a não ser pelos seres animados mais
452 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
nobres e, portanto, por todos aqueles que praticam os actos de lembrar. Adiantam-se
argumentos contra as afirmações anteriores. Aristóteles, livro 1 , Metafísica, capítulo
1 º, concede a imaginação a todos os seres animados e no capítulo 9º daquele livro,
texto 56, ensina que o sentido, a imaginação e o apetite são todos comuns. Portanto,
de entre as faculdades internas de sentir, um só sentido comum não diz respeito a
todas. Segundo. Também os animais de natureza mais desprezível, como os lagartos,
conhecem a inimizade, pois fogem da vista do homem. Portanto, alcançar as espé
cies não sentidas a partir das sentidas não pertence só aos animais mais perfeitos.
Terceiro. Dado que a abelha retoma aos cortiços e as formigas retomam aos seus
formigueiros, não pode negar-se que elas têm memória e, todavia, não têm imagina
ção, como ensinou Aristóteles, no capítulo anterior, texto 1 06. Portanto, nem todos
os animais superiores em memória, executam o acto de imaginar.
Ao primeiro destes argumentos deve dizer-se, que se entendermos a imaginação
de forma restrita e em sentido próprio, conforme neste ponto tratámos dela e em
nada a separámos da fantasia perfeita, ela não está presente em todos os animais. Se
a entendermos de forma lata, também compreende o sentido comum, e está presente
em todos. Esta noção também foi acolhida de muito perto por Aristóteles nos pontos
citados no argumento. Ao segundo, que aqueles animais de condição mais baixa de
modo algum alcançam as espécies não sentidas a partir das sentidas, mas que fogem
dos adversários por instinto, que é neles um certo tipo de juízo mais incerto do que
aquele que os animais mais perfeitos costumam formar. Ao terceiro argumento,
abandonada a controvérsia dos autores acerca da explicação deste ponto, vej a-se
sobre ela São Tomás, Egídio, Tienense, Janduno, Alberto, Averróis. Dir-se-á que
Aristóteles nega a imaginação ou a fantasia às abelhas e às formigas, não qualquer
uma, mas a que se conjuga com a aptidão para de algum modo alcançar a disciplina.
A fantasia pertence aos elefantes, aos cavalos e a alguns outros animais que se dizem
hábeis, visto que se habituam à voz do homem, como domador, para fazerem
alguma coisa. A habilidade não pertence todavia nem às formigas, nem às abelhas,
embora conservem como que uma certa forma de organização.
QUESTÃO II
Se algum sentido interno divide, compõe e discorre
ARTIGO 1
Argumentos da parte negativa
estão presentes nos sentidos não lhes pertencem por si, mas provêm do defluxo, da
proximidade da razão, da qual os animais estão muito longe.
Ocorrem, portanto, estes argumentos, a favor da parte negativa. Primeiro. Que a
potência reflicta acima do seu acto, ou que conheça a proporção dos meios em rela
ção ao fim, é inferior a compor e dividir; ora, ela não pertence a nenhum sentido,
como noutro ponto mostrámos; logo, nem este. Segundo. Em qualquer proposição
dá-se a cópula do predicado com o sujeito que é uma relação de razão, mas no sen
tido, nem se pode dar uma relação de razão, nem ser percebida por ele, porque per
tence apenas ao intelecto e à razão; logo, uma proposição não pode ser produzida no
sentido. Terceiro. Se a potência sensitiva discorrer, der assentimento à proposição
feita por si e, dessa maneira, à própria proposição, segue-se também que conhece o
seu próprio acto, mas o sentido não vai para além do seu acto, portanto não discorre.
Quarto. Nenhuma faculdade pode discorrer se não conhecer aquelas regras comuns e
princípios com que se inicia todo o discurso, nomeadamente, 'o que é dito de tudo, é
dito de nada' ; ora, estas regras escapam ao conhecimento do sentido, porque con
sistem em termos comuns; logo, nenhuma faculdade sensitiva pode discorrer. Por
fim, acrescente-se o testemunho de Aristóteles, neste livro, capítulo 6º, texto 22,
quando ensina que composição, divisão e, portanto, o discurso, são funções próprias
do intelecto.
ARTIGO II
Explicação da dificuldade proposta
Visto que considerámos como mais provável que somente houvesse dois sentidos
internos, decidiremos a controvérsia em relação ao exemplo proposto desta opinião.
Seja a primeira conclusão. O sentido comum não compõe, não divide ou discorre.
Esta conclusão parece firmada no consenso de todos os autores, excepto daqueles
que confundem o sentido comum com os restantes sentidos internos, em natureza e
em espécie. Mas prova-se, porque se algum sentido interno ascender a estas funções,
apenas obtém o que atrás dizíamos a partir do defluxo do intelecto, ao qual sobre
vém, logo a seguir, em dignidade, e ao qual imediatamente serve. Também o sentido
comum não é o primeiro, em dignidade, de entre os sentidos, como é evidente a
partir das afirmações anteriores, nem apresenta imediatamente o ministério ao inte
lecto, como na devida ocasião mostrámos. Não há, portanto, razão para que digamos
que as operações referidas deviam ser atribuídas ao sentido comum. Todavia,
alguém objecta que o sentido comum, não só observa as funções dos sentidos exter
nos e os objectos destas, mas estabelece a diferença entre elas e julga-as, como
Aristóteles acima ensinou. Daí que, também por São Gregório, Livro 1 1 dos Morais,
capítulo 8º, o sentido comum é chamado juiz do cérebro com estas palavras: visto
que existe um sentido juiz do cérebro, que preside interiormente, mas conhece os
cinco sentidos através de vias próprias. Por isso, como tal não parece ser feito sem a
combinação de um e de outro, necessariamente parece dever mostrar-se que o sen
tido comum forma proposições. Dever-se-á responder que se interpreta juízo, de três
maneiras. Primeira, como um qualquer conhecimento da simples potência, que
atinge o objecto que lhe é adequado, embora não distinga a própria adequação, como
Aristóteles disse, no livro 2 dos Posteriores, último capítulo, e livro 2 dos Tópicos,
capítulo 2º: sentir é de algum modo julgar; e neste livro, capítulo 2º, texto 1 3 8 : Com
454 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
a vista nós j ulgamos as trevas e a luz. Também Santo Agostinho fala deste juízo no
livro 6, A Música, capítulo 4º, e em A verdadeira religião capítulos 32º e 33º quando
afirma que certos juízos naturais existem nos sentidos que julgam os sensíveis.
Acerca disto, também Ricardo, no 2º livros das Sentenças, distinção 24, questão 2
sobre o 3° princípio, onde é interpretado o passo do capítulo 1 2º do Livro de Job: O
ouvido não julga as palavras? Da segunda maneira, interpreta-se juízo como conhe
cimento simples, pelo qual, quer a semelhança, quer a conveniência do obj ecto, mas
também a diferença entre algumas coisas é conhecida. E da terceira, como juízo
enunciativo. Posto isto, dizemos que embora o juízo não sej a um terceiro género
para nós, sem a proposição, todavia o j uízo tomado, na primeira e na segunda
maneiras, é produzido sem ela. Tais são, efectivamente, os juízos que pertencem ao
sentido comum.
Segunda conclusão. A fantasia pode obter proposições de um outro termo singu
lar e discorrer acerca da pertença das coisas singulares ao seu objecto. Esta afirma
ção é de São Tomás, 1 ª parte, Suma Teológica, questão 78, artigo 4° ao 5º, e no
opúsculo As Potências da A lma, capítulo 4º, e na segunda parte da segunda, questão
47, artigo 3º, e de Caetano, no mesmo local; de Gregório, no 1º livro das Sentenças,
distinção 3, questão 1 , artigo 1 º; de Capréolo, no primeiro livro, distinção trigésima
quinta, questão 2, e no 3º livro, distinção 36, questão única, artigo 3º ao 4° principal,
e no 4º livro, distinção 1 0 , questão 4, artigo 3º; de Marsílio, no 2° livro, questão 1 6 ,
c. l ; d e Gabriel, questão 3 d o Prólogo, artigo 2 º ; d o Alense, 2 ª parte, questão 67,
membro primeiro; do Cameracense, questão 3 do Prólogo, artigo primeiro; de Son
cinas, no 1 0º da Metafísica, questão 1 6; do Ferrariense, neste livro, questão 9; de
Averróis, no 2º desta obra, comentário 62; de Avicena, no livro 6 dos Naturais, parte
4, capítulo 2º e de outros mais.
Ensina, então, São Tomás, nos pontos citados, que a faculdade cogitativa (que nós
não distinguimos da fantasia) tem no homem excelência para compor, dividir e usar
o silogismo composto de termos singulares. Não a obtém, como há pouco dissemos,
j ustamente, da parte sensitiva, mas do defluxo da razão, porque esta potência da
mesma alma que participa da razão, como que dimana da mesma fonte máxima que
se conjuga com ela, tanto quanto é lícito à parte sensitiva. Donde, acontece que
costuma chamar-se razão universal, cogitativa particular e intelecto passivo, como
também advertiu São Tomás, questão 8 1 , artigo 3° da primeira parte da Suma Teoló
gica, e na Questão da Alma, artigo 1 3º, e se alcança de Aristóteles, no livro 3 desta
obra, capítulo 5º, texto 20. Esta opinião pode também ser provada assim. Tal como o
apetite sensitivo no homem, pela união que tem com a vontade, e porque tem origem
na mesma alma racional, participa da liberdade, como a doutrina comum dos filóso
fos e dos teólogos estabeleceu, também é assim adequado que a cogitativa alcance
alguma coisa da razão, a partir do consórcio da potência intelectiva. Principalmente,
porque o grau superior da natureza inferior costuma atingir o grau menor da supe
rior, como diz S. Dionísio, no capítulo 7° de Os Nomes Divinos. Acrescente-se o
testemunho de Aristóteles, no livro 1 da Metafísica, capítulo 1 º, no livro 2 dos Pos
teriores, último capítulo, quando concede o raciocínio à memória sensitiva, e no
livro A Memória e a Reminiscência, capítulo 2°, quando afirma que o acto de reme
morar, que atribui à memória sensitiva, é como o silogismo pelo qual se investiga
um a partir do outro. Donde, São Tomás, que separa a memória, da cogitativa, não
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Ili, Questão ll, Artigo Ili 455
ARTIGO III
Solução dos argumentos do primeiro artigo
cidos pela potência que apenas discorre acerca das coisas singulares, mas do inte
lecto que executa os silogismos dos termos universais, aos quais aquelas regras e
princípios comuns dizem respeito. Ao último, diga-se que a opinião de Aristóteles,
neste ponto, é que ao intelecto, por si, apenas convém a composição, a divisão e o
discurso, o que não impede que o mesmo, num grau inferior, não respeite também à
fantasia, não por si, mas por causa da conjugação com o intelecto. Também se colhe
desta solução porque é que a fantasia do homem não se distingue, em espécie, da
fantasia do cavalo. Uma vez que as operações deste tipo lhes pertencem, não por si e
por aquilo que é próprio da parte sensitiva, mas por acidente e benefício de outro, de
modo algum se demonstra ser correcta uma distinção da natureza, como adverte São
Tomás, na primeira parte, Suma Teológica, questão 78, artigo quarto, na resposta ao
quinto argumento.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IV
a. De anima autem ea parte 429 a 1 0 Filópono entende que por parte da alma se
-
significa a alma intelectiva, que é uma parte, isto é, uma certa espécie de alma.
Simplício, Temístio, São Tomás e outros, cuj a interpretação é mais parecida,
afirmam que por parte da alma se designa a potência ou a faculdade da alma que
é o intelecto, através do qual a alma intelige e sente. Sobre isto, Aristóteles diz
que se deve discutir se ela é separável segundo a extensão, isto é, pela própria
coisa e substrato, se não é separável pelo substrato, mas apenas pela razão. Ele
acrescenta isto, quer porque sobre estes dois pontos que têm de ser tratados a
controvérsia acerca da separação do intelecto não parece ser pequena, quer por
que, independentemente da maneira como a entendermos, é necessário conside
rarmos os dois pontos sobre o intelecto. Filópono e Simplício afirmam que Aris
tóteles, com estas palavras, propõe o seu objecto como pretendendo explicar três
coisas, de entre as quais a primeira é se o intelecto pode ser separado ou não.
Nisto, eles discordam. Filópono entende esta questão acerca da separação do
corpo, se é o sentido ou o intelecto separável em extensão, isto é, se é imortal e
pode permanecer fora do corpo. Simplício, porém, se o intelecto está separado
das restantes potências da alma, pelo substrato e pelo lugar, como acreditava
Platão. Mas apraz mais dizermos que Aristóteles apenas propõe examinar os
assuntos que dissemos.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo IV 457
opinião deste passo é que inteligir está para sentir (na verdade são afins) como
sentir para padecer ou, se não se quiser chamar paixão, uma coisa qualquer é tal
como intelige. Com efeito, nem alguma destas coisas é dita paixão em sentido
próprio, visto que ela apenas é atribuível propriamente às mortais.
c. Vacare igitur 429 a 1 5 A partir da semelhança que existe entre o sentido e o
-
intelecto conclui que sucedem três coisas no intelecto que se verificam no sen
tido. A primeira, é que o intelecto é desprovido de paixão, isto é, daquela que
acarreta a sua corrupção. A segunda, que o intelecto é por natureza apto a receber
as formas ou imagens das coisas. A terceira, que o intelecto é forma em potência,
não em acto; tal como a matéria por si é pura potência, no género das coisas natu
rais, assim é o intelecto, no género das inteligíveis, visto que por si não é mar
cado por nenhumas imagens das coisas, mas pode ser marcado por elas. Mas
acrescenta que o sentido é da mesma maneira etc. Uma certa compreensão de
todas as coisas em que o intelecto se junta ao sentido.
d. Quare necesse est 429 a 18 Declara qual a natureza do intelecto possível ensi
-
nando que ele não é corpóreo, nem mistura de coisas corpóreas ou por elas for
mado. Adverte que alguns dos antigos pensam que o intelecto se alimenta dos
princípios de todas as coisas para compreender todas as coisas, que foi o princí
pio de Empédocles. Contra, efectivamente, Anaxágoras que pensou que o inte
lecto é dotado de uma natureza simples e que não tem em si nada de corpóreo.
Aristóteles, neste ponto, relembra a sua doutrina e afirma que uma vez que o
intelecto compreende todas as coisas é em potência todas as coisas, isto é, devem
ser recebidas as imagens de todas as coisas inteligíveis e de um certo modo ser
dominadas . Na verdade, se o intelecto fosse algo dessas coisas não poderia per
cebê-las todas, porque o que é estranho e está em potência impede a correcta per
cepção de todas as coisas, tal como é patente no gosto, cujo órgão, quando está
afectado por humor bilioso, não conhece os sabores das outras coisas. Assim, se
algum corpo fosse conatural ao intelecto, ou melhor, se o intelecto fosse congé
nito a algum corpo como a um órgão, certamente não estaria impedido de perce
ber todas as coisas. Além disso, qual a força deste argumento de Aristóteles e de
que modo se deve inteligir o que de dentro impede o conhecimento da potência,
já foi por nós declarado noutro ponto desta obra.
e. Is igitur 429 a 22 A partir do facto de o intelecto, não o agente, mas aquele ao
-
qual é próprio inteligir, isto é, o paciente, ser em potência todas as coisas inteli
gíveis, Aristóteles conclui que antes de inteligir ele não deve ser em acto nada do
que pode inteligir e que de modo algum está junto a um órgão corpóreo, quer
porque seria necessário que fosse dotado de qualidades corpóreas, quer porque
lhe seria dado algum órgão no corpo à semelhança das restantes faculdades cor
póreas, o que é evidente que não é assim.
f. Atque bene, recteque 429 a 27 Como o intelecto está em potência para as for
-
mas de todas as coisas ou para receber as imagens, conclui que foi correctamente
afirmado por Platão que a alma é o lugar das formas, isto é, que as espécies pelas
quais se conhece estão depositadas na própria alma. O que, no entanto, deve ser
afirmado não de toda a alma mas apenas da alma intelectiva. E deve ser afirmado
sobre esta, não como se tivesse sido fixada às imagens das coisas desde o pri-
458 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de A ristóteles
meiro nascimento, como considerou Platão - daí ter acreditado que a nossa ciên
cia não é senão reminiscência -, mas porque as imagens deste género penetram
pelo ministério e intervenção tanto dos sentidos externos como dos internos.
g. Atqui passionis 429 a 29 - Como acima tinha ensinado que o acto não é propria
mente paixão, nem de inteligir, nem de sentir, para que ninguém pense que o
sentido e o intelecto têm a mesma ausência de paixão declara qual é a diferença
entre um e outro. Na verdade, quando um sensível forte é percebido, o sentido
costuma ficar impedido de conhecer inteiramente outras coisas e, por vezes, o
órgão é abalado pela veemência daquilo que atinge o sentido e a potência fica
lesada ou é extinta, como j á noutro ponto, nesta obra, foi explicado. Além disso,
o que esteve ocupado com outro objecto que o ultrapassa, quando esteve ocupado
sentindo apenas algum tempo, não compreende a seguir tão bem os sensíveis
menores. Isto de modo algum acontece ao intelecto. Na verdade, como ele per
cebe as coisas mais nobres e mais elevadas, mais agudamente percebe as meno
res. A causa é porque o sentido é lesado pelo sensível mais forte e porque o sen
tido é inerente ao órgão corpóreo, cuja mistura só pode ser mudada e dissolvida
pelo agente exterior.
h. Factus autem unumquodque 429 b 6 Tratou do intelecto em potência, disputa
-
agora sobre o intelecto em acto e ensina que o intelecto pode estar em acto de
duas maneiras. Numa, porque obtém as espécies que usa à sua vontade, de tal
modo que adquire o hábito da ciência com o qual pode chegar à ciência em acto.
Noutra, quando a partir das espécies adquiridas avança para o acto de inteligir.
Mas há uma diferença entre os actos, porque enquanto o intelecto está no pri
meiro, permanece aí em potência para o segundo, quando chega ao segundo,
existe em acto perfeito, já não se diz ser potência, e é capaz, quer de se conhecer
a si mesmo, porque como o intelecto, no presente estado de vida, apenas se
conhece a si próprio reflexamente, sobre o seu acto, quer, em suma, de considerar
que se pode inteligir a si próprio, visto que realiza o acto de inteligir. Trataremos,
de caminho, amplamente deste assunto.
i. Cum autem aliud sit 429 b 1 0 Para ensinar a que potência pertence o conheci
-
si própria como uma linha recta inflectida sobre si mesma. Tal como uma quanti
dade inflectida se desdobra numa recta, a mesma linha que antes era dobrada ou
curva toma-se recta, e não difere de si realmente, mas somente pela razão.
Assim, provavelmente (com efeito não dirime, de todo, aqui, a controvérsia pro
posta), existe uma faculdade, pela qual é conhecido, por um lado, o universal, por
outro, o sensível singular. Outros pretendem que esta semelhança da linha recta e
curva é trazida de Aristóteles para significar os singulares sensíveis entendidos
pelo nosso intelecto por um conhecimento reflexo. Explicámos esta interpretação
no livro 1 da Física, capítulo 1 º, questão 4, artigos 1 º e 3º e discuti-la-emos de
caminho. O intérprete que quiser ler as discussões para explicar este ponto con
sulte Temístio, Simplício, Filópono, Averróis, São Tomás e Alberto Magno.
k. Rursus in hisce 429 b 1 8 Aquilo que tinha afirmado na física é agora aplicado
-
objecto, tal como o sentido, perguntou por que razão isto acontece. Na verdade,
como o intelecto é desprovido de matéria, como é evidente com base no que
transmitimos nos livros de A Geração e a Corrupção, de que modo uma paixão
poderá ser levada ao intelecto?
m. Praeterea ambiget 429 b 27 Coloca outra questão, a saber, se o próprio inte
-
reza de que participa quando se toma inteligível. Por essa razão, uma vez que
uma e outra são absurdas, porque o sentido é simples e nem tudo o que é inteli
gido é intelecto, parece que deverá negar-se que o intelecto é inteligível.
n. At enim ipsum pati 429 b 29 Resolve a primeira controvérsia com base numa
-
certa distinção de paixão, proposta no livro 2 desta obra, capítulo 5º, texto 57.
Há, efectivamente, duas paixões, consoante as qualidades contrárias. Uma, que
apenas respeita às coisas sujeitas à corrupção e que se chama corruptiva. Outra,
pela qual dizemos que as coisas geram a perfeição e o próprio acto sem nenhum
prejuízo ou perigo de ruína e que se chama aperfeiçoadora. Destas paixões, a pri
meira requer sempre a matéria, mas a segunda, não; o intelecto também a
suporta, quando intelige, porque então é conduzido ao acto e à perfeição que lhe
é adequada. Efectivamente, ele está em potência a partir da sua primeira erigem
para todos os inteligíveis, visto que por si não tem inata a noção de nada, mas
pode inteligir todas as coisas com ciência e estudo provenientes da passagem do
tempo, tal como a tábua antes de ser escrita, ou a pintura, nada contêm em acto
das coisas que podem ser escritas e pintadas, mas apenas em potência, a aptidão
para receber nelas o que quer que sej a que a mão tenha expressado, escrito ou
pintado. Esta é uma passagem contra Platão, que ensina, no Ménon, no Fedro e
noutros lugares, que os nossos espíritos antes de descerem para os nossos corpos
mortais e caducos tinham tido em si impressas as noções de todas as coisas, mas
que, pelo contágio do corpo, como que em virtude do orgulho de um presídio
repugnante, se tinham esquecido da inteligência superior, mas que ao aprender se
recordam, pelo que toda a nossa ciência é uma certa recordação. Refutaremos
este erro de acordo com o preceituado no início do primeiro livro dos Analíticos
Posteriores, quando Aristóteles os recorda.
o. Est autem intelligibilis 430 a 2 Explica a questão posterior, para cuj a elucida
-
ção, a fim de ser percebida, se deve advertir, que os entes imateriais são ditos
inteligíveis por si, mas não as coisas materiais. Para que as coisas materiais
recaiam sob o intelecto, é preciso que de algum modo se disponha a matéria para
que as coisas que lhe são semelhantes e que ele abarca cheguem ao intelecto,
visto que são representadas ao intelecto, através das espécies inteligíveis que são
imateriais. As coisas imateriais, porque são desprovidas de matéria, embora
requeiram as espécies inteligíveis que se apresentam ao intelecto, não exigem
todavia que elas abandonem a matéria e se assemelhem mais ao intelecto. Por
tanto, Aristóteles responde à questão proposta, conforme Filópono interpreta, que
o próprio intelecto é inteligível, designadamente por si, do mesmo modo que
todas as restantes coisas que são inteligíveis por si, porque é imaterial. De facto,
nas coisas que são desprovidas de matéria o que intelige e o que é inteligível são
o mesmo. E, além disso, diz que também a ciência contemplativa, isto é, o pen
samento, enquanto contempla, e a coisa que recai sob a contemplação, são o
mesmo; certamente porque a coisa inteligida se junta ao intelecto através da sua
espécie e está, de algum modo, junto dela. Adverte aqui duas coisas. Uma é,
embora Aristóteles tenha afirmado especialmente acerca do intelecto especula
tivo que ele mesmo se identifica com a coisa inteligida, não o nega todavia
quanto ao intelecto prático, se for comparado com o seu objecto, visto que a
mesma razão procede nos dois casos. A outra é, não só as coisas imateriais, mas
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V 461
também as que têm matéria, são o mesmo com o intelecto, em razão das formas
inteligíveis, que não fazem as vezes do objecto, ainda que ele lá estej a presente,
porque as coisas imateriais têm um maior conhecimento com o intelecto, que
também é imaterial, do que aquelas coisas que estão juntas com a matéria.
Mas ao argumento, pelo qual se parecia demonstrar, se o intelecto fosse inteligí
vel por si, todo o inteligível por si é intelecto, deve responder-se que a regra dos
especialistas da dialéctica somente é entendida acerca dos predicados, que por si
pertencem primeiro e adequadamente aos sujeitos, tal como o sentido participa
da comparação com o animal ; com efeito pertence ao animal, primeiro e por si,
como é claro, e corresponde-lhe. Mas ser inteligível por si não respeita ao inte
lecto, mas à natureza imaterial recebida em comum, na qual se contém o intelecto.
p. Sed cur non semper 430 a 5 Pergunta porque que é que, sendo a própria
-
inteligência o que intelige e o que é inteligido, por que razão não se intelige sem
pre a si própria. Diz que a causa disto deve ser inquirida e não a explica no
momento. Na verdade, tal acontece porque a inteligência não se intelige por si,
mas sobre o seu acto, reflectindo-se a si própria. Não se entrega sempre a essa
reflexão quando não há nada que o force a isso. Os intérpretes gregos afirmam
que a causa está na união e conjunção com o corpo, levada a cabo sempre que
examina as coisas que estão juntas à matéria ignóbil, mas não a si mesma, e as
outras coisas que são por si inteligíveis em acto.
q. ln iis autem 430 a 6 Retoma à questão anterior afirmando que os entes mate
-
riais não são inteligíveis por si, mas apenas em potência. Decerto porque estão
em potência, à maneira de um depósito material, para se tomarem imateriais por
acção das espécies inteligíveis que se apresentam ao intelecto. Daí conclui que não
lhes cabe a capacidade de inteligir porque esta é imaterial e inteligível por si. Porém,
como nega o intelecto às materiais, fala daquelas que são materiais numa parte do
todo. Na verdade, o homem é material e todavia evidencia-se pelo intelecto.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO V
a. Cum autem 430 a 1 0 Até aqui Aristóteles discutiu apenas sobre o intelecto
-
vemos que a alma produz este efeito, isto é, o acto de inteligir, é necessário que
nela exista uma faculdade que seja regulada e receba a preparação para esse
efeito. Esta faculdade é o intelecto paciente. Outra faculdade, que conduz e pre
para a disposição e é o intelecto agente. Mas o paciente dispõe-se a receber as
espécies inteligíveis que são os princípios de inteligir; o agente dispõe ao produ
zir as espécies deste tipo, a partir dos fantasmas, que ele ilumina como uma luz
reflectida à maneira da luz externa e material que ilumina as cores e as toma
visíveis em acto, dado que antes da chegada da luz apenas são visíveis em potên
cia. De caminho exporemos de que modo estas coisas devem ser entendidas.
b. Et is intellectus 430 a 17 Declara qual a natureza do intelecto agente e expõe
-
alguns dos seus atributos. O primeiro é ser separável, isto é, não fixado ao órgão
corpóreo, como as potências materiais. O segundo, ser sem mistura, isto é, não
constituído por percepções corpóreas, como Empédocles, Demócrito e certos
outros filósofos mais antigos consideram. O terceiro, desprovido da paixão que,
sem dúvida, corrompe ou de algum modo lesa. Confirma isto porque o agente é
mais nobre do que o paciente e é superiormente mais eficaz do que a matéria.
Logo, como os atributos anteriores pertencem ao intelecto paciente, como é evi
dente com base naquilo que acima discutimos, pertencem com mais direito ao
intelecto agente.
c. Scientia autem ea 430 a 19 Neste ponto, Aristóteles chama ao intelecto ciência
-
QUESTÃO !
Se o intelecto agente reside na alma humana ou não
ARTIGO I
Diversas opiniões dos que filosofam
ARTIGO II
O intelecto agente existe na alma humana;
que diferença há entre ele e o intelecto paciente
Tomás, Suma Teológica, 1 ª parte, questão 54, artigo 1 º ao 1 º; também na questão 79,
artigo l üº; no 2º livro das Sentenças, distinção 17, questão 2, artigo 1 º; também no
3º, distinção 14, questão 2, artigo 1 º; e no 3º, distinção 1 4, questão 2, artigo 1 º; tam
bém no opúsculo 3, capítulo 83º; e no livro 2 Contra os Gentios, capítulos 77º e 78º;
e seus seguidores. Além disso, Alberto Magno, na Suma do Homem, tratado sobre o
Intelecto agente, questão 6; Escoto, no 1 º livro das Sentenças, distinção 3 , questão 8,
e muitos outros, pelos quais este argumento é, acima de tudo, sufragado. Na ver
dade, observou-se nas outras coisas, que todas as vezes que duas são afectadas, de
maneira a uma preparar eficientemente e a dispor a outra para a operação, aquela
que dispõe distingue-se sempre realmente daquela que é disposta. Assim, as causas
universais, como as inteligências e os corpos celestes, distinguem-se do mundo
elementar, que elas dispõem e fazem avançar nas gerações das coisas . Também o
fogo se distingue da madeira, que aquece e a água, da mão, que arrefece; a cor e
outros objectos dos sentidos externos, dos próprios sentidos externos, nos quais
imprimem a sua semelhança; os sentidos externos dos internos, aos quais enviam as
espécies das coisas por si percebidas. E assim acontece no resto das coisas . Por isso,
é próprio que também o intelecto agente, que dispõe o paciente, através das espécies
inteligíveis para inteligir, difira dele na realidade.
Seguiram a segunda opinião Maior, no 2º livro das Sentenças, distinção 1 6,
questão única; Tiago de Viterbo, Quodlibet l , questão 1 2 ; Nifo, livro 1 , O Intelecto,
tratado 4, capítulo 2 1 º; o Abulense, questão 70, no capítulo 23º do Êxodo. Da opi
nião deles se deve dizer que o intelecto possível reclama dois géneros de acções,
para passarmos em silêncio, por agora, as restantes, a saber, a intelecção e a produ
ção das espécies pelos fantasmas. Certamente que para o primeiro género de opera
ções dispõe-se a si próprio, porquanto possui o nome de agente. Já para o segundo,
de facto, muito pouco. Além disso, ainda que nas coisas materiais, aquilo que sem
pre simplesmente dispõe se distinga realmente, daquilo que é disposto, já nas espi
rituais, como é o caso do intelecto, não acontece assim. Não admira que São Tomás,
no livro 2 Contra os Gentios, capítulo 1 00º, tenha dito que tudo que nas coisas
corpóreas está espalhado por potências diferentes, nas incorpóreas se encontra junto
e reduzido ao poder de uma única faculdade; como o que pertence ao duplo apetite
sensitivo, sob uma única vontade, e o que é compreendido por vários sentidos, tanto
internos como externos, que cai sob um único possível. E, por isso, o argumento e
fundamento desta posição será o de que as coisas não devem ser multiplicadas sem
necessidade, e que nenhuma necessidade obriga a estabelecer um duplo intelecto,
visto que, tanto a produção das espécies inteligíveis a partir dos fantasmas, como o
seu uso ou a intelecção alcançada através delas se podem reduzir a uma a mesma
faculdade intelectiva. Se alguém objectar que nada pode produzir o princípio das
suas acções, o que esta afirmação admite, enquanto mostra que o próprio intelecto
possível produz as espécies que são os princípios de inteligir, deverá responder-se
que nada pode produzir o princípio da sua primeira operação e que, por isso, o inte
lecto não produz, em si, o princípio de extrair as espécies dos fantasmas. Na ver
dade, esta extracção é a sua primeira operação, cujo princípio nada produz, mas
prepara para si as acções subsequentes, isto é, os princípios das intelecções, que são
as espécies inteligíveis. E não se segue desta opinião que o agente e o paciente sejam
simplesmente idênticos em relação a uma mesma forma. Na verdade, o intelecto
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão !, Artigo Ili 467
ARTIGO Ili
Resposta aos argumentos propostos ao início da questão
cem de intelecto agente, mas conhecem tanto as coisas universais, como as singula
res através das espécies colocadas em si, por Deus. O que é consentâneo com que
ensina São Dionísio, capítulo 7º, Hierarquia Celeste; São Damasceno, no livro 2, Fé
Ortodoxa, capítulo 3º, Santo Agostinho, no livro 2 do Génesis à letra, capítulo 8º, e
também no livro 4, capítulo 24º. Na verdade, não se requer o intelecto agente nos
anjos para, com a sua luz, iluminar o intelecto possível, porque para julgarem da
verdade basta-lhes a própria força do intelecto possível, a qual pela sua própria natu
reza é um certo lume derivado da fonte da luz eterna e divina. Por isso, para esta
parte do argumento, dizemos que o intelecto agente nos é dado, porque como o
nosso intelecto possível, desde a sua primeva origem, carece das imagens das coisas
de forma directa, necessariamente lhe teve de ser dada pelo autor da natureza
alguma potência cuj a obra é adquirir as imagens dessa maneira, o que não tem lugar
nos anjos.
Mas relativamente à segunda parte deste argumento, na qual se questiona se o
sentido agente deve ser considerado distinto do paciente, já esta questão foi tratada
por nós acima, quando constituímos a parte negativa e mostrámos haver uma razão
diferente no intelecto e no sentido, visto que o objecto sensível pode, por poder
próprio, mover a potência sensitiva, transmitindo-lhe a sua imagem. Nem esta espé
cie ascende do grau material ao grau imaterial, de modo a que se deva buscar outra
faculdade de ordem mais alta, através da qual o objecto ou potência se eleve, tal
como acontece na extracção das espécies inteligíveis a partir dos fantasmas. Por fim,
o que se objecta neste argumento acerca da vontade agente, facilmente resolve quem
disser que essa potência é supérflua, uma vez que a vontade não tem necessidade das
espécies ou de outro princípio de operação que lhe tenha de ser trazido de outro
lugar, pois basta-lhe que a coisa seja proposta nela mesma pelo intelecto para ser
levado até ela.
Ao último argumento, deve responder-se que só o intelecto possível, não o
agente, julga e compreende, como discutiremos na próxima questão, embora por
certos filósofos tenha sido visto de outro modo. Efectivamente, quanto ao que se
opõe acerca da nobreza do intelecto possível, dizemos que ele é mais nobre do que o
agente, ainda que o Ferrariense pense de outro modo, na questão 9 deste livro,
depois de São Tomás, no 2º livro das Sentenças, distinção 20, questão 2, artigo 2º, e
em A Verdade, questão 1 0, artigo 8º. Primeiro, porque o intelecto agente é como que
auxiliar do paciente dado que se ocupa todo na extracção das espécies que aquele
usa. Depois, porque é considerada mais eminente aquela faculdade cuja operação é
mais nobre, e a intelecção é a operação mais nobre do homem. Daí, a felicidade
humana, que pertence à potência mais excelente e ao seu acto mais nobre, consistir
na acção do intelecto possível, isto é, na contemplação do Sumo Bem. E não é obs
táculo a afirmação de Santo Agostinho e de Aristóteles, que o que age é mais nobre
do que o que é passivo. Isto, na verdade, foi pensado e afirmado, caso se considere
um, precisamente pela razão em que é passivo, e o outro enquanto age, pois o agir é
mais nobre do que o padecer. Por isso, caso se considere em absoluto o intelecto
agente, enquanto produz as espécies inteligíveis para o paciente, e o paciente,
enquanto padece ao recebê-las, sem dúvida que sob esta consideração precisa o
intelecto agente antepõe-se ao paciente. Mas isto não impede que o paciente, se for
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão li, Anigo / 469
examinado segundo as próprias acções que produz, deva ser simplesmente preferido
ao agente.
QUESTÃO II
Quais são as funções do intelecto agente
ARTIGO I
Da iluminação dos fantasmas
por isso, os fantasmas se digam iluminados por ele, se nada executa neles, nem com
eles. Segundo, porque, caso se diga que os fantasmas são iluminados, porque o
intelecto que age, presente, lhes assiste sem excepção, todos os fantasmas dos
homens, quer dos que dormem, quer dos que estão em vigília, deverão dizer-se per
manentemente iluminados, uma vez que têm sempre presente a luz do intelecto
agente. Acerca dos fantasmas dos que dormem, contudo Caetano nega. Terceiro,
porque, como correctamente opõe o Ferrariense 2, Contra os Gentios, capítulo 77º,
ainda que o fantasma sej a objectivamente irradiado, permanece, no entanto, no
órgão corpóreo e é extenso, não podendo mostrar a natureza sem as condições da
matéria, como ensina Caetano. Nem o exemplo da luz solar, cuja cor e não o sabor é
visível com o raio, se aplica ao assunto, pois, de facto, só a cor se manifesta a quem
vê, porque só a cor, não o sabor, cai sob a vista. Mas também a coisa singular se
pode mostrar ao intelecto, visto que não só os universais, mas também os singulares
são percebidos por nós no seu próprio conceito, como demonstraremos no devido
lugar. Depois, se apenas se observar a produção de espécies inteligíveis, o fantasma,
como mostraremos de caminho, não se junta a ela em sentido preciso, enquanto
refere a natureza comum, mas porque representa tanto a comum como a singular. O
que não sucede pelo facto de a natureza singular dos fantasmas ficar oculta por véus.
Finalmente, porque se no fantasma apenas brilhasse a quididade universal, sem
dúvida que as coisas universais apenas existiriam na fantasia, visto que nela são
representadas sem as diferenças individuantes.
O Ferrariense, neste livro, questão 9, e Capréolo no ponto citado, consideram que,
tal como a faculdade cogitativa do homem, em virtude da conjunção com o inte
lecto, reivindica um privilégio particular que não pertence à cogitativa dos animais,
pelo facto de que, certamente, divide, compõe e discorre acerca das coisas singula
res, assim também prevalece a fantasia, a partir da mesma conjunção, a tal ponto
que, por si, manifesta os fantasmas bastante iluminados e operativos, cada um, em
conjunto com o intelecto agente, podendo produzir as espécies inteligíveis. Por isso
dizem que é nisto que consiste os fantasmas serem iluminados pelo intelecto agente,
o que parece ser afim ao que pensa São Tomás. Esta explicação, embora sej a prová
vel, não satisfaz totalmente. Parece, com efeito, que o nome de iluminação, que
significa acção, serve de modo demasiado impróprio e inadequado para transmitir a
excelência inata que existe anteriormente ao acto do intelecto agente e que é em si
mesma primitiva, consistindo nela como que a raiz ou conjunção da fantasia natural
com o intelecto. Por ela certamente, os fantasmas, pela excelência da estirpe e pelo
esplendor, como que devem ser chamados mais convenientemente de luminosos do
que de iluminados.
Concordamos, portanto, com esta afirmação que é aceite pelos filósofos mais
recentes, que afirmam que a iluminação dos fantasmas não é objectiva, como afirma
Caetano, nem apenas radical como consideram Capréolo e o Ferrariense, mas efec
tiva. Não como se o intelecto agente imprimisse algo de luminoso aos fantasmas,
mas porque a luz externa, com o consórcio do seu raio, leva activamente os fantas
mas a produzir a espécie inteligível despoj ada de diferenças individuais, na qual a
natureza comum está representada e permanece perceptível apenas pelo intelecto. E
assim, de modo algum também deve ser aprovada a opinião de Henrique de Gand,
Quodlibet 4, questão 2 1 , e Quodlibet 8, questões 1 2 e 1 3 , considerando que a ilumi-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão II, Artigo II 471
nação dos fantasmas não se dá como dissemos, mas pouco mais ou menos do modo
estabelecido por Caetano, e que o intelecto possível serve para inteligir os fantasmas
assim iluminados. Então, mais evidente será a falsidade disso, pois mostrámos que o
intelecto possível não pode produzir o acto de inteligir sem a intervenção das espé
cies inteligíveis, que são geradas pelo intelecto agente juntamente com os fantasmas
que ilumina. Isto, acerca da primeira função do intelecto agente.
ARTIGO II
Acerca da outra dupla função do intelecto agente
nem decerto Policleto introduziu a forma humana e vivente na estátua, mas a forma
da arte, assim, também a mente, através do intelecto agente, somente transporta para
o paciente formas inteligíveis. Leia-se São Tomás, no livro 2, Contra os Gentios,
capítulo 76º e o Ferrariense, nos comentários deste capítulo.
À dúvida seguinte deve responder-se, que o intelecto agente não é chamado por
Aristóteles de hábito, porque o hábito é próprio dos primeiros princípios, como con
sideram alguns, de entre os quais lembra-se São Boaventura, no 2º livro das Senten
ças, distinção 24, artigo segundo, questão 4; Alberto Magno, na Suma do Homem,
na questão em que pergunta se há o intelecto agente, artigo segundo. E também
Egídio, neste livro, texto 1 8, cuj o absurdo da opinião se refuta, com São Tomás,
porque o hábito dos primeiros princípios é a qualidade da primeira espécie recebida
no intelecto possível para conhecer as primeiras verdades indemonstráveis, suposto
o conhecimento dos fins. Mas o intelecto agente conta-se entre as qualidades de
segunda espécie, porque é uma faculdade inata por natureza. Com efeito, não supõe
o conhecimento dos fins, nem assenta no intelecto possível, nem é dado pela natu
reza para inteligir, mas para abstrair as espécies, dos fantasmas. Qualquer um terá
facilmente depreendido todas estas coisas, de entre as que foram até aqui debatidas
por nós. Deve dizer-se, portanto, que o intelecto é chamado por Aristóteles de
hábito, da forma amplamente aceite com o nome de hábito, para abarcar qualquer
potência ou faculdade de operar.
QUESTÃO III
Se as espécies inteligíveis existem necessariamente
no nosso intelecto, ou não
ARTIGO !
V árias opiniões dos filósofos
potências que se ordenam entre si, o objecto é representado para a seguinte, pelo
acto da primeira, como para a vontade, através do acto do intelecto, e para o apetite
sensitivo, através do acto da fantasia. Visto, portanto, que a fantasia e o intelecto são
potências subordinadas, a razão da ordem pede que a fantasia, que é potência pri
meira em natureza, represente o objecto para o intelecto, que ele apreende imedia
tamente sem outra espécie. Segundo. O mesmo se prova, porque como o bem está
para o afecto, assim está a verdade para o intelecto. E o bem não está no afecto atra
vés de alguma espécie ou semelhança de si. Portanto, também não está a verdade
para o intelecto. Terceiro. Porque se as espécies inteligíveis existissem no intelecto,
dado que estas são consideradas como causas naturais das intelecções, não poderia
um qualquer intelecto parar o seu uso e estaria sempre ocupado em compreender as
coisas que através delas são representadas, o que repugna à experiência. Quarto.
Porque se estas espécies estivessem no nosso intelecto, seria necessário que nós as
conhecêssemos, do mesmo modo que conhecemos claramente os nossos actos, tanto
os da vontade como os do intelecto. Quinto. Porque pensamos coisas cujas espécies
não possuímos. Na verdade, não podemos alcançar as imagens inteligíveis, nem de
Deus, nem das substâncias separadas, nem de outras coisas desprovidas de matéria,
visto que estas coisas não movem o sentido e, além disso, não podemos ter os seus
fantasmas. Todavia, é patente que nós formamos conceitos destas coisas. Por fim,
demonstra-se que nem para os anjos são simplesmente necessárias as espécies inte
ligíveis. Na verdade, o anjo, sem intervenção da espécie, conhece-se, através da sua
essência, e conhece os outros anjos através das suas substâncias que lhe são presen
tes. Prova-se isto, quanto à primeira parte, porque a essência do anjo, tal como é acto
sem mistura de matéria, é inteligível por si em acto e está em acto, em conjunção
íntima com o próprio intelecto para com ele concorrer para o conhecimento de si.
Quanto à parte seguinte, demonstra-se o mesmo assunto. Na verdade, qualquer anjo
poderia, assim, juntar-se ao intelecto de outro, para possuir desse modo a eficiência
da forma inteligível, no que respeita à intelecção por ele obtida. Por isso, parece
concluir-se destes argumentos que pensa bem quem nega que se devem admitir
espécies inteligíveis.
ARTIGO II
Não deve negar-se, contra Avicena, que a s espécies inteligíveis existem
e que estas, cessando o acto de pensar, permanecem no intelecto
Esta opinião, todavia, não tem de ser provada, mas deve afirmar-se, com a escola
peripatética, pelo assentimento comum dos filósofos, que as espécies inteligíveis
existem no intelecto, que os princípios de pensar existem, tal como também os sen
síveis são produzidos nos sentidos, como demonstrámos no livro anterior, quando
trouxemos ao terreno muitos defensores desta verdade. Certamente que Santo Agos
tinho pensa estar de tal maneira convencido que as espécies existem daquela forma,
que, no livro 2, A Trindade, capítulo 2º, afirma que duvidar disso é próprio de uma
mente retardada. Prova-se, portanto, esta afirmação, assim. Porque tal como o inte
lecto existe para a própria função, assim também o sentido existe para a sua. Mas os
sentidos, como no ponto citado tomámos claro, de forma alguma podem sentir pelas
espécies sensíveis. Segundo. Porque, como o intelecto existe para compreender esta
ou aquela coisa indiscriminadamente, e como considerado em si é pura potência,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão Ili, Artigo li 475
nião afasta-se largamente da verdade e apoia-se num argumento muito débil. São
Tomás refuta-a, além de outros, no livro 2, Contra os Gentios, capítulo 74º, e em A
Verdade, questão 1 0, artigo 2º, e na Suma Teológica, parte 1 , questão 79, artigo 6º.
Com efeito, o conhecimento intelectivo é muito mais perfeito do que o sensitivo.
Portanto, se as espécies são conservadas, como proclama Avicena, serão, justa
mente, muito mais conservadas para o intelectivo, principalmente porque o intelecto
possível é muito mais duradouro do que é próprio da matéria corpórea, que se des
vanece lentamente e perece, na qual, enfim, se sustentam as potências sensitivas.
Depois, porque se esta posição fosse verdadeira, nenhuma razão da memória se
daria na parte intelectiva, nem nos recordaríamos que extraímos conceitos das coisas
universais, o que é contra a experiência. Leia-se, se se entender, o que acerca deste
assunto comentámos nos livros Pequenos Naturais e em A Memoria e a Reminis
cência, capítulo 2º.
Ao argumento de Avicena deve responder-se que, se ser recebido inteligivel
mente vale o mesmo que ser recebido de forma adequada no intelecto, sem dúvida
que as espécies inteligíveis são recebidas na nossa inteligência, inteligivelmente. Se,
de facto, é o mesmo, como ser recebido, tal como o conhecido no cognoscente, por
que se diz que é recebido quando é apreendido, então as espécies não são assim,
porque não é necessário que sej am apreendidas quando são recebidas pelo intelecto.
Mais, as espécies escalonam-se segundo graus que manifestam os princípios do
conhecimento. No grau mais baixo, estão as espécies dos sentidos externos, que
apenas permanecem em presença do objecto e durante a sensação. No segundo, as
espécies dos sentidos internos (mas não do sentido comum), que se conservam
depois da sensação e afastado o objecto, mas, porque estão dentro do órgão corpó
reo, enfraquecem e perecem naturalmente com a decadência da matéria. No terceiro,
as espécies inteligíveis do nosso intelecto, as quais, não existindo o objecto e ces
sando a intelecção, permanecem, pois estão presentes no substrato em qualquer
circunstância depois de terem estado a ele fixadas, são perpétuas e indeléveis. E, não
obsta que muitas vezes abandonem o hábito das ciências e das qualidades fixas ao
intelecto ou à vontade. Com efeito, tal perda não provém da falta do substrato, mas
do desacordo e da oposição dos contrários que lhes cabem (dado que omitimos
aquela perda dos hábitos sobrenaturais que acontece por nossa culpa, através da
subtracção divina que é, por isso, desperdício da graça) . Mas as espécies, quer inte
ligíveis, quer sensíveis, necessitam dos contrários, de outro modo não poderiam
estar ao mesmo tempo presentes as imagens de brancura e de negrura, no ar ou no
olho. O que é claramente falso, visto que avistamos ao mesmo tempo um e outro. No
quarto grau, estão as espécies do intelecto angélico, que para além de outras, em
perfeição, ficam acima da espécie do nosso intelecto, porque não foram causadas em
qualquer momento dos tempos ou dos instantes, mas incriadas desde o princípio
com os próprios anjos.
ARTIGO Ili
Solução dos argumentos do primeiro artigo
QUESTÃO IV
Se as espécies inteligíveis, que são próprias das coisas singulares,
existem no nosso intelecto, ou não
ARTIGO I
Argumentos da parte negativa
Esta questão é agitada entre os filósofos com grande polémica entre as partes em
contenda. São Tomás, quer noutros pontos, quer no livro 2, Contra os Gentios,
capítulo 1 00º, e na primeira parte da Suma Teológica, questão 86, artigo 1 º; Caetano,
no mesmo passo; Capréolo, no 1 º livro das Sentenças, distinção 35, questão 2, na
solução dos argumentos contra a quarta conclusão; Argentinas, no 4º das Sentenças,
distinção 50, questão 1 , artigo 3º; o Ferrariense, no livro 1 , Contra os Gentios, capí
tulo 65º, e neste livro, questão 1 3 , consideram que as espécies das coisas singulares
não se encontram no nosso intelecto e o mesmo observam alguns filósofos do nosso
tempo que afirmam que nada é mais alheio à doutrina peripatética do que admitir
essas espécies. Provam a sua opinião da maneira seguinte. A forma é recebida no
sujeito segundo a condição e o modo de receber, mas a alma está privada de matéria,
portanto, as espécies que nela são recebidas devem ser imateriais ao representar e,
por isso, não poderão representar condições da matéria singular, mas apenas a natu
reza comum, delas avulsa e liberta. Também se confirma a força do argumento com
o preceito comum dos peripatéticos, que foi colhido de Aristóteles, neste livro,
capítulo 4º, texto 1 6. As coisas materiais tomam-se inteligíveis quando são abstraí
das da matéria. Na verdade, dado que esta abstracção não deve ser interpretada como
se as coisas tivessem de ser subtraídas pelo intelecto à própria matéria de que são
compostas, tem sobretudo de ser interpretada de maneira a dizer-se que as coisas se
tomaram inteligíveis no momento em que as mentes são impressionadas pelas espé
cies que representam, não a matéria individual, na qualidade mais grosseira e mais
baixa, mas somente a matéria comum.
Segundo argumento. O intelecto humano ocupa o lugar intermédio, entre o sen
tido e o intelecto das substâncias separadas. Ora, as espécies que se imprimem nos
sentidos representam só os singulares, os quais no entanto são do género das subs
tâncias separadas, e referem distintamente tanto os singulares como os universais,
como mostraram os escritores escolásticos no 2º livro das Sentenças, distinção 3.
Portanto, a ordem e a proporção das coisas determinam que as espécies que são
adquiridas pelo intelecto humano representem apenas as naturezas comuns. Acres
cente-se que, tal como o intelecto angélico percebe distintamente através de uma
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão IV, Artigo li 4 79
única espécie, o que o nosso percebe por muitas, também é natural que o que é
conhecido pelo sentido através de muitas espécies, seja inteligido pelo nosso inte
lecto através de uma só, o que aconteceria de outro modo, se o nosso intelecto
pudesse ser impressionado pelas imagens dos singulares.
Terceiro. É uma disposição da natureza não ter por costume fazer com muito o
que pode fazer com pouco. Ora, as espécies inteligíveis das naturezas comuns ser
vem para compreender os singulares unidos aos seus fantasmas. Não há, portanto,
necessidade alguma de introduzir as espécies inteligíveis dos singulares. Prova-se a
premissa menor, porque tal como os fantasmas se conjugam com o intelecto agente
para produzir as espécies inteligíveis, assim também poderão conjugar-se com o
paciente, enformado já pela coisa comum, não apenas em sentido exemplar, mas
também em sentido activo, determinando-o a receber a coisa singular da qual o fan
tasma provém, principalmente, porque nada de absurdo daí se segue.
Ú ltimo argumento. Ao preceito aristotélico opõem-se os que atribuem as espécies
das coisas singulares ao intelecto humano. É evidente o que Aristóteles ensinou,
neste livro, capítulo quarto, texto 1 0, que a nossa alma conhece a carne com a potên
cia sensitiva, isto é, os singulares materiais afectos às qualidades sensíveis, o calor, o
frio e outras deste género. Mas é outra faculdade que percebe o próprio ser da carne,
ou uma faculdade separável, isto é, diferente daquela pela qual conhece as coisas
singulares, ou que estej a para si mesma do mesmo modo como uma linha curva que
tivesse sido estendida. Neste ponto, que muitos intérpretes referiram, Aristóteles
declara abertamente que as coisas singulares são compreendidas por nós, não direc
tamente, mas por cognição reflexa. Mas se as espécies inteligíveis das coisas singu
lares fossem produzidas em nós, não há dúvida que as poderíamos compreender
directamente.
ARTIGO II
Argumentos da parte afirmativa
A parte contrária desta controvérsia tem defensores. Escoto, no quarto livro das
Sentenças, distinção 45, questão 3; Gregório Ariminense, no primeiro livro, distin
ção 3, na questão primeira, artigo 2º; Ricardo, no 2º, distinção 24, questão quarta;
Apolinário, neste livro, questão 1 2; o Tienense e Burleu, livro 1 , Física e outros.
Prova-se do modo seguinte. Nada impede que as espécies das coisas singulares se
possam dar no nosso intelecto; portanto, elas podem dar-se. Os adversários negam o
antecedente e afirmam que é incompatível, quer da parte das próprias espécies inte
ligíveis, pois não parece consentâneo que sejam assim limitadas, de maneira a que
apenas uma a uma representem as coisas indivisas, quer da parte do intelecto possí
vel, que é mister que seja muito pouco afectado pelas espécies circunscritas . E, no
entanto, não é difícil que se ponha termo às divergências, da seguinte maneira. Na
verdade, a espécie que representa a natureza singular é mais nobre do que aquela que
apenas significa a natureza comum; logo, aquela limitação em nada deprecia a dig
nidade da espécie, nem a espécie da coisa singular menos do que a da coisa comum,
dado aj ustar-se mais à superioridade do intelecto. Prova-se o antecedente, porque a
superioridade da imagem, contanto que as restantes sejam iguais, resulta da coisa
que representa, mas a natureza singular é mais excelente do que a comum, visto que
as inferiores contêm em si mais graus de essência do que as superiores. Daí que, o
480 Sobre os Três Livros 'Da Alma' de Aristóteles
conceito de coisa singular seja tido como mais perfeito do que o de coisa comum.
Em seguida, prova-se assim que as referidas espécies são produzidas no nosso inte
lecto pela própria coisa. As causas naturais, quando não impedidas, produzem um
efeito nobilíssimo, sempre que puderem; ora, o intelecto agente e o fantasma são
causas naturais das espécies inteligíveis; logo, produzem a espécie nobilíssima, que
podem produzir, se não forem impedidas. Mas a espécie nobilíssima é a espécie da
coisa singular, como está patente a partir do que aqui se afirma, e não há nada que
impeça a sua geração. Portanto, produzem-na. Outro argumento. O nosso intelecto
enforma conceitos particulares e distintos das coisas singulares, mas estes não
podem ser acessíveis sem as suas próprias espécies; por isso, as próprias espécies
das coisas singulares são produzidas. A premissa maior, embora sej a negada por
alguns, será, todavia, demonstrada por nós daqui a pouco. Por isso, recomenda-se a
menor, porque uma vez que a espécie da coisa comum somente de um modo con
fuso e implícito representa as coisas singulares, o intelecto não poderá ser levado por
ela a conceber este singular em vez do outro, mas flutuará com um vago e errante
movimento. Há quem responda que embora, a espécie inteligível apenas refira a
natureza comum, todavia o intelecto é determinado por ela para compreender a coisa
singular, de cuj o fantasma a própria espécie é retirada por causa da afinidade que a
espécie tem com tal fantasma. Mas isto refuta-se facilmente. Com efeito, ou esta
espécie, com um direito de afinidade, representa desta maneira singular na realidade,
ou não. Se concederem o primeiro, então, no nosso intelecto já existirão as espécies
que referem não só as naturezas universais, mas também as individuais, o que, efec
tivamente, a escola dos teólogos atribui só às espécies de substâncias separadas . Se
concederem o segundo, de forma alguma a espécie aplicará a potência intelectiva a
algum singular, de modo definido.
Outros consideram que o nosso intelecto, afectado pela imagem da natureza
comum é determinado pelo fantasma para compreender a coisa singular, do modo
que explicámos no terceiro argumento do artigo anterior. Mas, de facto, a conclusão
deles não satisfaz. Na verdade, tal como o nosso intelecto, como mostrámos acima,
não pode usar só o fantasma como princípio de inteligir, mas requer para si, inte
riormente, o princípio conjunto e inerente do qual retira o acto de pensar (de outra
maneira, muitas vezes, para compreender as coisas singulares de modo algum teria
necessidade das espécies inteligíveis), de modo que compreende isto, melhor do que
aquilo a assistência externa do fantasma não lhe chega, mas carece do princípio
interno pelo qual é determinado activamente para ele. Não obsta que o intelecto do
bem-aventurado concorra com a divina essência para o acto da visão beatífica, visto
que a essência divina não é interior ao próprio bem-aventurado. Mas isto sucede,
como já anteriormente chamámos à atenção, porque a essência divina, em virtude da
sua infinita eminência, pode suprir esse modo de íntima conjunção, sem o qual a
espécie criada não pode concorrer com o intelecto para o acto de inteligir. Além
disso, não obsta que qualquer anjo se compreenda pela sua essência. Na verdade, a
essência do anjo está intimamente ligada ao seu intelecto, visto que o intelecto está
fixo à sua própria essência. Mas o fantasma não está assim para o nosso intelecto,
visto que aquele incide no órgão corpóreo, este na própria substância da alma. E
corrobora-se, por isso, o argumento acima, porque o conceito que através da inte
lecção da coisa singular é gerado na mente é quase filho do próprio objecto conhe-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão IV, Anigo lll 481
cido, como ensina Santo Agostinho, no livro 9, A Trindade, capítulo 1 2º. É necessá
rio, por esta razão, que quando este é gerado, o objecto sej a mantido na mente. Não
pode, porém, aí existir, por si, mas pela sua como que semente, que é a imagem
própria e particular dele mesmo. De facto, a espécie da coisa comum não é mais
qualidade desta do que a espécie da coisa singular é daquela.
Outro argumento. As espécies de muitas coisas singulares desprovidas de matéria
são produzidas no nosso intelecto, logo muitas vezes devem ser admitidas as espé
cies destas coisas singulares. Prova-se o antecedente, porque aquele que obtém o
acto do amor de Deus ou a intelecção da natureza universal recorda, depois, o acto
que desta forma alcançou. Ora, toda a recordação do intelecto tem origem na espécie
inteligível. Logo, o nosso intelecto tem espécies inteligíveis que representam os
actos singulares. Não basta dizer que esta recordação não parte da memória sensi
tiva, mas da intelectiva. Com efeito, a faculdade orgânica não apreende as coisas
espirituais, tal como o são as acções do intelecto e da vontade, visto que estão fora
dos limites do objecto da potência corpórea, nem a memória sensitiva recorda que
nós percebemos o homem em comum, visto que somente se debruça sobre as natu
rezas singulares.
Ainda outro. A alma separada recorda-se dos sensíveis singulares através das
espécies que transporta. Logo, quando estava no corpo, possuiu as espécies inteligí
veis desses singulares. Acolhe-se o antecedente com o exemplo do conviva rico,
mencionado no décimo sexto capítulo do Evangelho de Lucas, que nos infernos se
recordará dos seus irmãos. E este argumento prova que ele obtinha a recordação não
das espécies infundidas, mas daquelas que adquirira do ministério dos fantasmas.
Porque a recordação é a percepção da coisa conhecida, enquanto conhecida antes.
Mas o rico não tinha conhecido antes os irmãos através das espécies infundidas, mas
através das adquiridas. Por esta razão não parece que se deva negar que no nosso
intelecto são produzidas as espécies inteligíveis próprias das coisas singulares.
ARTIGO Ili
Considera-se provável a outra parte da controvérsia. Prefere-se, todavia,
a negativa como mais peripatética e resolvem-se os argumentos da outra
reflexo e directo, mas para a diferença entre a potência com que se conhece o sin
gular e o universal, sobre a qual versava a questão. Donde resulta que, aí, nada é
totalmente considerado acerca do modo e da ordem, no que respeita à natureza sin
gular e universal de conhecer.
Esta explicação resolve facilmente todo a máquina do argumento em que se
apoiam sobretudo os que opinam que os singulares são inteligidos por nós de modo
reflexo. Nem, como dizem alguns, a afirmação está no Timeu de Platão, que Aristó
teles imitou ali, que os singulares são percebidos reflexamente por nós. De facto,
quando Platão recorda o conhecimento reflexo e compara as acções do intelecto
primeiramente à linha recta, a seguir ao círculo e, no interior, ao que retoma, não
filosofa sobre o conhecimento das coisas singulares. Ele fá-lo antes acerca daquilo
pelo qual a mente do homem no caminho correcto para alcançar a ciência de outras
coisas, como que primeiro sai para fora de si, depois, avisada pelo oráculo, volta a
si, aplicando-se no conhecimento de si próprio. Por causa disto, os filósofos costu
mam chamar à alma que faz um círculo sobre si mesma da esfera intelectual. É por
esta razão que Hugo de S. Vítor observa o seguinte, no Didascalicon, capítulo 2º. A
nossa mente concentra o movimento em dois orbes, quer porque através dos sentidos
sai em direcção aos sensíveis, quer porque através da inteligência ascende para as
coisas que os sentidos abandonam; revira-se trazendo para si as semelhanças das
coisas. Ou deve dizer-se, como Filópono interpreta, que Platão como que por
enigma significou, através da linha curva, de modo indefinido, as acções do inte
lecto, que em si próprio tem o poder de debruçar-se sobre si mesmo; e pela linha
recta as restantes funções vitais, que não são senão um certo caminho da alma vivifi
cante para algo ou para aquilo que sustenta a vida, isto é, para o corpo, tal como a
linha recta a partir de um ponto acaba noutro.
Vamos explicar agora os argumentos da parte afirmativa. Ao primeiro, deve
negar-se o antecedente, e para sua prova deve dizer-se que a espécie que representa a
coisa singular é, numa parte, mais nobre, isto é, enquanto refere a natureza que con
tém em si vários graus, como prova o argumento, mas noutra parte é considerada de
conhecimento bastante fraco, designadamente enquanto está limitada a um só sin
gular. Porém, a espécie da coisa universal não só representa a natureza comum a
muitas coisas como pode dedicar-se ao conhecimento de todos os singulares sob
uma mesma espécie em conjunto com os seus fantasmas, como é dito no terceiro
argumento do primeiro artigo.
Ao segundo, deve responder-se que a espécie própria da coisa indivisível não é
um efeito absolutamente eminente que o intelecto agente pode produzir, quer por
causa da limitação referida, quer porque, para não produzir a espécie deste modo,
opõe-se o engenho da própria natureza, que não costuma produzir com mais quando
pode produzir com menos. Mas o intelecto paciente pode inteligir as naturezas sin
gulares através das espécies das coisas comuns, ajudado pelo concurso dos fantas
mas .
484 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
à coisa imaterial, como no decurso desta obra expomos. Portanto, a partir da espécie
rememorativa da coisa apreendida pelo fantasma, por ela obtida a partir dele, a espé
cie poderá ser determinada, já que o intelecto antes obtivera o conceito referido da
coisa indivisa imaterial. É assim que o intelecto sem a espécie própria das coisas
singulares, quer estas sejam coisas materiais, quer imateriais, pode produzir a recor
dação delas.
Ao quinto argumento, abandonada a opinião de alguns, referidos por Caetano na
1 ª parte, Suma Teológica, questão 79, artigo 6º, que afirmam que a alma separada
conhece os singulares através das espécies adquiridas ou que levou de cá, deve res
ponder-se com São Tomás, nas Questões Disputadas sobre a Alma, artigo 20º e na
parte 1 , Suma Teológica, questão 89, artigo 4º; com Caetano, no mesmo lugar; com
o Ferrariense, ao capítulo 74º, do livro 2, Contra os Gentios; com o Abulense, ao
capítulo 25º de Mateus, questões 607 e 6 1 0 e outros, que a alma separada conhece os
singulares através das espécies que lhe foram incutidas, ao afastar-se do corpo, e que
as espécies são iguais àquelas que os anjos receberam da primeira origem; na ver
dade, elas representam não só os universais, mas também os singulares. E, do
mesmo modo que, nos anjos, as espécies inteligíveis que por si indiscriminadamente
representam com propriedade os singulares, são determinadas para estes, e aquelas
determinadas para significar os singulares em acto, quando eles existem em acto; tal
como a existência é condição para determinar a espécie desses singulares, assim
também na alma separada, as espécies que representam universalmente e, além
disso, as que existem de igual modo para todas as coisas suas significadas, são
determinadas para certos singulares, que pertencem ao estado da alma. Isto porque a
alma recebe em vista deles um hábito particular, quer por alguma afecção, quer por
um conhecimento anterior, quer por ordenação divina, ou algo semelhante. A alma
do homem rico mantinha o hábito em relação aos irmãos que deixara entre os vivos.
A isto, efectivamente, deve dizer-se o que o argumento em seguida opunha, que
embora a recordação seja própria da coisa conhecida, tal como foi conhecida, uma
vez repetido o conhecimento, não é necessário que este sej a repetido a partir da
mesma espécie. Com efeito, é suficiente que sej a alcançado de outra espécie,
suposto o conhecimento anterior, o que deveremos explicar no Tratado da Alma
Separada, de modo mais claro.
Assim, é evidente por que razão, devem ser resolvidos os argumentos de ambas
as partes. Porque, como acima advertimos, consideramos que a parte que nega que
são produzidas espécies das coisas singulares, é vista como mais consentânea com a
doutrina aristotélica, como também defendemos no primeiro livro das Lições da
Física. A ela ajustaremos o nexo da doutrina nos nossos comentários. Na solução
dos argumentos referimos os que são aduzidos a seu favor, caso se oponham àqueles
que estabelecemos noutro lugar, para que devam aceitar-se as afirmações a partir dos
argumentos dos adversários.
486 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
QUESTÃO V
Se as espécies inteligíveis são produzidas pelo intelecto agente
ARTIGO !
Rejeitadas as opiniões de uns, estabelecem-se algumas asserções
cogitativa do homem, como mostrámos acima, não há razão para que o segundo lhe
seja recusado. Aristóteles é plenamente favorável, neste livro, capítulo 4º, texto 1 0,
quando diz que conhecer esta carne singular pertence à potência sensitiva. Também
Santo Agostinho, no livro 10, A Trindade, capítulo 1 0º, quando atribui o conhe
cimento dos corpos à faculdade imaginativa. Não acreditamos, contudo, que a cogi
tativa, quando recebe primeiro a espécie do acidente retire imediatamente a imagem
expressa da substância nele latente, mas que, chegado em primeiro lugar, apreende
tal acidente, e depois penetra no conhecimento da substância a partir da sua pré
-noção. E assim, consideramos que as espécies das substâncias corpóreas são
produzidas pelo intelecto agente, com o argumento de que nada obsta a que forme
mos os seus fantasmas, visto que o intelecto agente se apresenta junto com eles. Mas
que o intelecto agente não retira a espécie da substância a partir do fantasma do
acidente, como pensam os autores acima referidos, demonstra-se assim. Porque, tal
como o fantasma do acidente não representa directamente e por si senão o acidente
para o qual é determinado pela sua natureza, assim também não parece que possa
concorrer por si mesmo a não ser para produzir a imagem do acidente, ainda que a
fantasia possa, a partir dele, ao investir, pôr a descoberto a imagem da substância
singular. Porém, esta nossa segunda asserção tem de ser compreendida no que res
peita aos próprios compostos. Na verdade, certas partes deles, como as diferenças
metafísicas, dado que se escondem em lugar recôndito, não caem sob o conheci
mento dos sentidos internos.
Terceira asserção. As espécies inteligíveis de todas as quantidades corporais
podem ser geradas pelo intelecto agente. É uma asserção recomendável, porque
nenhuma quantidade corporal ultrapassa o poder de compreensão sobretudo da fan
tasia humana. E, daí, a fantasia pode formar a imagem de todas elas. Se alguém, por
acaso, duvidar sobre o tempo, que escapa às restantes quantidades, não o deve no
entanto fazer, visto que a memória e a reminiscência que, com propriedade, se ade
quam ao sentido interno, versam sobre o passado. Como no livro A Memória, capí
tulo primeiro, Aristóteles diz: uma vez que o passado é conhecido e para que o
tempo seja apreendido pertence-lhe as diferenças entre passado e futuro. Teófilo
todavia, neste livro, ao texto 22, afirma que a fantasia não compreende o próprio
tempo, nem a razão do que em si passou, mas as coisas que existiram no tempo
passado. E o mesmo parece que considera Temístio. Todavia, parece-nos melhor o
contrário, principalmente se se falar acerca da fantasia humana, sobre a qual tratá
mos na conclusão. Acrescentamos nesta conclusão a partícula sobre as coisas corpo
rais, por causa das quantidades espirituais, porque é evidente que estas não são com
preendidas pelo sentido interno, como é o caso da duração do seu movimento, cuja
extensão em contínua sucessão, por exemplo, ganha o modo de ser da justiça na
vontade, o que considerámos noutro ponto que pode ser possível .
Quarta asserção. As espécies inteligíveis das qualidades materiais, quer por si,
quer diversamente pelos sensíveis podem ser produzidas pelo intelecto agente. Esta
afirmação é evidente, porque todas as qualidades deste tipo vêm da fantasia para o
conhecimento, visto que são sensíveis na realidade. Não estendemos a asserção a
todas as qualidades materiais, porque algumas são inerentes ao órgão corpóreo, são
portanto, materiais, não percebidas por nenhum sentido interno, tal como as espécies
sensíveis da fantasia e do hábito, quer das virtudes, quer dos vícios e de um e de
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, A rtigo / 489
outro apetite sensitivo. Estas, como mostrámos de caminho, não costumam ser per
cebidas, a não ser pela potência que se reflecte, primeiro, acima do seu acto; depois,
acima do hábito do qual provém o acto. De facto, nenhum sentido se reflecte acima
do próprio acto.
Quinta asserção. As espécies inteligíveis de muitas relações podem ser produzi
das pelo intelecto agente. Esta afirmação demonstra-se, porque a fantasia, também
dos animais, representa a imagem da amizade e do ódio e a relação de certas outras,
como a da diversidade e semelhança entre alguns objectos. Todavia, esta afirmação
é um pouco ambígua, porque, talvez o sentido interior não apreenda formalmente as
próprias relações em si, mas os seus fundamentos. Não há, no entanto, dúvida que
muitas relações são produzidas, mesmo materiais, em que a fantasia não segue o
conhecimento, dado que muitas provêm, também, da força do intelecto. Há, no
entanto, quem oponha que o objecto concorre activamente para gerar a espécie, mas
que nem a relação, nem a quantidade podem concorrer activamente, visto que não
possuem nenhuma potência de agir, como mostrámos nos livros da Física. Portanto,
nem a relação, nem a quantidade, podem obter para si, uma espécie própria. A favor
da solução, tem de se advertir que a relação e a quantidade não produzem, imedia
tamente, as espécies para os sentidos externos (porquanto a quantidade não seja
sensível próprio, mas comum, porque apenas modifica a espécie. A relação, contudo
nem é sensível próprio, nem comum). E que a espécie é obtida pelo benefício da
fantasia, que se põe a descoberto e que forma a imagem delas, com a qual o intelecto
agente concorre para produzir a espécie inteligível. Embora, porém, o concurso
desta e também da parte da imagem sej a activo, tal como o concurso da espécie
inteligível para obter um conceito, não se deve, no entanto, afirmar que a relação ou
a quantidade possui em si alguma faculdade de agir, ainda que a sua espécie tenha
essa faculdade. O que, de modo algum, é motivo de admiração, visto que a espécie
transita para a categoria melhor, isto é, a da qualidade, para a qual quase só é conve
niente que exista o princípio imediato de agir, como a partir do livro segundo da
Física afirmámos. E, assim, esta consequência não é válida, a espécie da relação ou
da quantidade age, logo a relação ou a quantidade têm em si a faculdade de agir.
Quando, porém, neste ponto, dizemos que os simulacros das relações são produzidos
pela fantasia, não acerca de todas as relações, mas somente daquelas que de modo
algum ultrapassam a faculdade do sentido interno, pretendemos que isso deve ser
entendido não sobre todas as relações, mas somente sobre as que de modo algum
ultrapassam a faculdade do sentido interno.
Sexta asserção. As espécies inteligíveis das paixões e de muitas acções corporais
podem ser produzidas pelo intelecto agente. Mas não de todas. Quanto à primeira
parte isto é evidente. Porque o calor, por exemplo, e o frio, e muitas outras acções e
paixões deste género, são percebidas, não só pelo sentido interno, mas também pelo
externo. No que respeita à seguinte demonstra-se, porque muitas vezes as operações
da fantasia não podem ser por ela apreendidas, visto que nenhuma potência incidente
no órgão corpóreo se reflecte acima do seu acto, como há pouco dissemos.
Sétima asserção. As espécies inteligíveis das coisas que respeitam às restantes
quatro categorias (se todavia se acolher a eviternidade dos anjos e outras durações
espirituais, a partir da opinião daqueles, que a estabelecem na categoria «quando», o
490 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
que noutro ponto examinámos) podem ser obtidas pelo intelecto agente, dado que os
seus distintos objectos se apresentam aos primeiros sentidos.
ARTIGO II
Transmitem-se outras asserções acerca das espécies
geradas apenas pelo intelecto possível
Discutimos acerca das espécies que são produzidas pelo intelecto agente. A
seguir, argumentamos sobre aquelas que são geradas apenas pelo intelecto paciente.
Seja a 8ª asserção. As espécies dos géneros, se forem removidos os impedimentos,
são produzidas apenas pelo intelecto paciente. Acolhe-se esta razão porque, como
ensinámos na Física, se nada faltar ou se opuser, aquilo que primeiro é percebido,
tanto pelo sentido externo como pelo interno, é o singular sensível da ínfima espé
cie, da qual o fantasma, junto com o intelecto agente, apenas produz a imagem inte
ligível da ínfima espécie. Por isso, se se tem de obter uma imagem inteligível que
refira a natureza genérica, será necessário que se dê a operação do intelecto possível,
que abstrai a natureza genérica da natureza específica, a partir de cuj a concepção se
terá de abandonar a imagem que representa a mesma natureza genérica. Na verdade,
embora se costume duvidar se da imagem da ínfima espécie se pode obter o con
ceito, não só da natureza específica, mas também da genérica, através da qual a
imagem da natureza genérica é produzida no intelecto, não deve, todavia, duvidar-se
deste assunto; porque, embora a imagem própria da espécie apenas exprima a espé
cie formalmente e de modo adequado, não obstante também representa as naturezas
superiores, com propriedade ou de modo inadequado e esta representação é sufi
ciente para que, a partir dela, sej am recebidos os conceitos dos géneros. Isto é o que
afirmam não só São Tomás, mas também Escoto; Liqueto, no lº livro das Sentenças,
distinção 3, questão 6; Bárgio, distinção 3, questão primeira; António Andreas, no
livro 7 da Metafísica, questão 1 3 ; Trombeta, no livro 7 da Metafísica, questão 8 .
Também h á quem, contra a mesma conclusão, afirme que nada impede que as
espécies inteligíveis possam ser produzidas a partir dos géneros pelo intelecto
agente. De entre estes estão Escoto, no livro 2 das Sentenças, distinção 3, questão
primeira; Liqueto, no 1 º livro, distinção 3, questão 2. Pode, todavia, confirmar-se
isso, primeiro, porque o fantasma deste homem representa também, adequadamente,
este animal, tal como a espécie do homem representa o animal em comum. Não é
claro, por que razão um tal fantasma, visto que representa este animal, não pode
juntar-se com o intelecto agente para produzir a espécie do animal. Depois, é neces
sário que o que intelige contemple os fantasmas. Portanto, enquanto o intelecto
apreende o animal, ao mesmo tempo a fantasia formará a imagem deste animal. Isto,
removidos os impedimentos. Portanto, etc. Além disso, a opinião contrária, que
estabelecemos na nossa conclusão, é comum e bastante verosímil. Na verdade, que a
espécie em primeiro lugar gerada pelo intelecto agente, se nada obstar, não é a espé
cie do género, conclui-se, quer por outros argumentos, quer sobretudo por aquele
que diz que toda a causa natural, se nada faltar ou obstar, produz primeiro o efeito
mais nobre que puder. Ora, a imagem que representa o homem é efeito mais nobre
do que a do animal. E que, depois da produção da primeira espécie pelo intelecto
agente e pelo fantasma não é gerada outra espécie própria do animal, demonstra-se,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão V, Artigo li 491
porque, como ensina Aristóteles, livro 8 da Física, capítulo 6º, texto 5 3 , aquilo que é
de um mesmo modo produz somente o mesmo. Por isso, não só o intelecto agente,
mas também o fantasma, geraram primeiro um tipo de natureza específica e não há
razão para que depois não gerem outro. Mas ao primeiro argumento da parte contrá
ria, deve responder-se que não é suficiente aquela representação virtual para que,
além disso, o intelecto e o fantasma produzam a espécie do animal, pois as razões a
seguir aduzidas mostram que deve ser o contrário. Ao segundo, deve dizer-se que,
tal como se diz que o que intelige observa os fantasmas, é bastante que seja perce
bido pela fantasia algo indiviso contido sob uma natureza comum, como Sócrates,
quando concebe um animal.
Nona asserção. À s vezes o intelecto possível produz imagens inteligíveis das
espécies ínfimas. Isso é evidente, porque após a espécie da natureza humana ter sido
produzida pelo intelecto agente, por exemplo, e o intelecto paciente ter dela tomado
conhecimento, pode, depois, a partir da mesma imagem, obter o conceito de alguma
propriedade pertencente ao homem, como a capacidade de rir. Por isso, a partir
daquele conceito a imagem de tal propriedade inteligível permanece no intelecto. E
inversamente, depois de recebida a imagem daquele acidente no intelecto, próprio de
alguma natureza específica, pode o intelecto paciente, a partir dela, extrair o con
ceito de tal natureza específica, através do qual produza a espécie inteligível própria
e a ele adequada.
Costuma-se perguntar se as espécies intuitivas são produzidas no nosso intelecto,
isto é, as que por si mesmas representam, de forma determinada a coisa sob o ser do
momento presente, e outras condições de individuação e de que forma somos para
elas levados através do conhecimento intuitivo. Seja a décima asserção. No presente
estado da vida não são produzidas, no nosso intelecto, as espécies intuitivas. Esta
asserção é consentânea com a doutrina dos que consideram que não são produzidas
pelo nosso intelecto espécies das coisas singulares, como supra, quando acolhemos,
de preferência, a doutrina peripatética. Na verdade, como só as coisas singulares
caem sob o conhecimento intuitivo, se as suas espécies não são produzidas em nós, é
evidente que não são produzidas as espécies, que, por si, primeiramente estão fora
do conhecimento intuitivo. Dissemos, no presente estado da vida, porque as espécies
que são infundidas na alma, com o afastamento do corpo, servem-na, por si, tanto
para o conhecimento abstracto, como para o intuitivo, tal como as espécies do anjo
não criadas desde a primeira origem, como se colhe de São Tomás, na primeira parte
da Suma Teológica, questão 89, artigo 4º, e questão 1 9, A Verdade, artigo 2º, e
questão única sobre A Alma, artigo 20º, mas o tema era sempre sobre o conheci
mento dos anjos, através das espécies incutidas em relação às coisas singulares.
Não deve contudo negar-se que, no presente estado da vida, se pode dar no inte
lecto algum conhecimento intuitivo. Embora, de facto, não exista nenhuma espécie
que represente intuitivamente a coisa a partir de si, pode, todavia, ser determinada
pelo fantasma, o qual apresenta a coisa, sob o ser da presença e de outras condições
individuais. De tal modo que obtenha o conhecimento da coisa singular nas condi
ções há pouco mencionadas, conhecimento que será, sem dúvida, intuitivo. Por isso
não aprovamos a opinião de Capréolo, no 2º livro das Sentenças, distinção 23,
questão única, artigo 3º; de Durando, na questão 3 do Prólogo, artigo 2º; de Bassó
lio, no mesmo ponto, questão primeira, e de outros que negam esse conhecimento ao
492 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
zidas pelo intelecto agente. Ao segundo, diga-se que embora não se deva negar que
existe aquele modo de extrair os primeiros conceitos das coisas imateriais a partir
das espécies das coisas imateriais, todavia, porque ele é pouco activo e menos
rápido, de modo algum serão inúteis as espécies das coisas imateriais para chamar
de novo os conceitos semelhantes no futuro com maior facilidade.
Costuma-se perguntar se alguma espécie inteligível que represente as cogitações
da mente pode existir em qualquer criatura. Responde-se que não pode com Cae
tano, 1 ª parte da Suma Teológica, questão 57, artigo 4º; com São Boaventura, no 2º
livro das Sentenças, distinção 8, questão última; com Ricardo, no mesmo, artigo 2º,
questão 4; e Gregório, distinção 9, na questão primeira. Prova-se, porque da Sagrada
Escritura consta que só Deus é perscrutador dos corações. O que não aconteceria se
alguma criatura, por natureza, fosse capaz de conhecer os pensamentos da mente.
Acontece que, se isto fosse possível, não teria sido demonstrada directamente pelos
santos, a divindade de Cristo, porque tal criatura veria os pensamentos dos outros. E
não obsta que os anjos falem entre si por meio das espécies em si incriadas, que
percebem os conceitos dos outros. De facto, estas espécies não representam de modo
absoluto os conceitos dos outros, mas de um modo dependente da direcção pela qual
um anjo dirige os seus conceitos a outro, com quem fala, como ensina São Tomás,
na primeira parte da Suma Teológica, questão 1 07, artigo 5º, em A Verdade, questão
9, artigo 4º, e no 2º livro das Sentenças, distinção 1 1 , questão 2, artigo 3º. E por
algum sinal externo, pelo qual os seus pensamentos se manifestam, como considera
Gregório Ariminense, no 2º livro das Sentenças, distinção l O, questão 2; Marsílio, na
questão 7, artigo 2º, e Chlicthoveu, sobre Damasceno, livro 2, da Fé, capítulo 3º e
outros.
QUESTÃO VI
Se todos os sentidos internos concorrem com o intelecto
agente para produzir as espécies inteligíveis
e em que género de causa o fazem
ARTIGO I
Explica-se a primeira parte da controvérsia
Comecemos nesta discussão por aquilo que, em primeiro lugar, nos propusemos
tratar. De facto, temos de filosofar de acordo com a opinião dos que consideram que
somente existem dois sentidos internos, a saber, o sentido comum e a fantasia, aos
quais acima delegámos todas as funções que outros atribuem a três ou quatro potên
cias sensitivas internas. Não perguntámos, porém, se todos os sentidos internos ser
vem, de algum modo, o intelecto. É evidente, de facto, que todos o servem, também
os externos, visto que transmitem à fantasia as imagens do universo dos sensíveis.
Portanto, apenas chamamos à controvérsia, se todos os sentidos internos ou apenas
um, o servem de perto. Que são todos, considera Apolinário, neste livro, questão 6, e
parece que foi transmitido por São Tomás, nas Questões Sobre A Verdade, questão
1 8, artigo 8º. Isto pode ser demonstrado porque se entendeu que, tal como todas as
faculdades externas de sentir afluem de muito perto para o sentido comum, assim
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão VI, Artigo / 495
todos os sentidos internos agem de modo imediato para o intelecto possível, forne
cendo a matéria ao intelecto agente para abstrair, operando somente com ele.
Segundo. Porque uma vez que toda a força intelectiva, como a alma racional, existe
em qualquer parte do corpo e assiste ao sentido comum localmente e na imediação
da presença, nada impede que use também o seu ministério próximo.
De facto, que um só sentido interior é o servidor próximo do intelecto, designa
damente aquele que sobressai em dignidade de entre os restantes (que chamamos
fantasia), com maior probabilidade, afirma Caetano, lª parte da Suma Teológica,
questão 73, artigo 3º, e questão 85, artigo 1 º, com o seguinte argumento principal.
Porque a ordem da dignidade e a óptima constituição da natureza postulam que
apenas esta potência se junte ao intelecto na operação e lhe preste a seguir a assis
tência que se aproxima propriamente dele, em dignidade, de acordo com a afirmação
de São Dionísio 7º, capítulo de Os Nomes Divinos: o supremo do ínfimo atinge o
ínfimo do supremo. Ora, a fantasia é a suprema entre os sentidos, os quais obtêm nas
potências cognoscentes um lugar ínfimo, e o intelecto humano é o ínfimo entre as
faculdades intelectivas que nessas mesmas potências reclamam o lugar supremo. Por
isso, não se vai de um extremo a outro extremo a não ser pelo meio. Mas entre o
intelecto e os sentidos, tanto o comum como os externos, que são como que extre
mos, interpõe-se a fantasia. Portanto, para que a partir deles algo sensível se dirija ao
intelecto é necessário que primeiro caia na fantasia, e daí que sej a a fantasia e não
outro sentido de seguida a fornecer a assistência ao intelecto. Portanto, ao primeiro
argumento da parte contrária, que noutro lugar não nos tinha desagradado, deve
negar-se que seja igual a razão nos sentidos externos em comparação com o sentido
comum, e nos internos, em comparação com o intelecto. Mas a diferença entre os
acabados de referir, patenteia-se claramente. Ao segundo argumento, diz que o sen
tido comum não presta uma servidão imediata ao intelecto, porque não é impedido
pela distância local, que não é nenhuma, mas porque a ordem da natureza que refe
rimos não o suporta.
De facto, para que o guardião da fantasia seja mais bem compreendido, ocorrem
três situações que têm de ser explicadas. A primeira, se o fantasma impresso ou
expresso se junta ao intelecto agente para produzir as espécies inteligíveis. A
segunda, se o fantasma concorre, pela precisa razão pela qual representa a natureza
comum, ou não. A terceira, se um e o mesmo fantasma é idóneo para extrair muitas
espécies inteligíveis. Relativamente à primeira delas, omitida disputa mais longa,
deve responder-se que o fantasma expresso concorre imediatamente porque é obtido
pelo impresso. Isso é evidente, porque a fantasia não concorre com o intelecto a não
ser operando, mas quando opera exprime o fantasma da coisa apreendida. Depois,
dado que na fantasia foram impressas as imagens de várias coisas e que o intelecto
agente, indiscriminadamente, existe para uso ou ministério desta ou daquela, é
necessário que seja determinado para isso. Ora, não há outra razão para que possa
ser determinado, a não ser que a fantasia recolha de entre alguma das imagens o
fantasma expresso da coisa significada por ela.
No que diz respeito à segunda, por certo deve considerar-se que o fantasma não
representa a natureza comum nua e livre das diferenças individuais, mas representa
em conjunto com elas, como está patente nas matérias que acima foram por nós
disputadas. Efectivamente, embora a coisa seja assim, quer a natureza comum quer a
496 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
singular, pela parte da coisa, reúnem-se numa única realidade não dividida. Não
faltam, porém, argumentos em que se pode ver que os seus próprios fantasmas
admitem aquela distinção, de tal modo que, sempre que concorre com o intelecto
para produzir a espécie inteligível, esta não significa senão a natureza comum.
Assim, também o fantasma não concorre a não ser pela precisa razão que representa
a mesma natureza comum. Portanto, o fantasma que refere Sócrates, é distinto em
espécie do fantasma que significa Platão, como muitos autores importantes conside
ram. Todavia, um e outro produzem a imagem inteligível da sua espécie, a saber, do
Homem, o que certamente não provém de outra coisa senão porque ambos concor
rem segundo a conveniência e a afinidade que têm entre si, isto é, dado que repre
sentam a natureza comum do Homem. Além disso, o efeito imita a sua causa, mas a
espécie inteligível não imita o fantasma como singularidade, mas representa como
natureza comum. Portanto, o fantasma não é causa da espécie, segundo significa a
singularidade, mas a natureza comum.
Mas deve ser acolhida a opinião contrária, que afirma que o fantasma não con
corre por aquela precisa razão pela qual mostra a natureza comum, mas tanto a
comum, quanto a singular. O que se prova da seguinte maneira. Uma vez que o
fantasma é causa natural, aplica toda a sua força e age segundo o último grau da
potência, como as restantes formas que são princípios naturais de agir. Logo, produz
o efeito por si, segundo toda a sua faculdade de representar e segundo a razão que
lhe é própria e particular. E, portanto, não concorre enquanto nele se manifesta como
que isoladamente só a natureza comum. E corrobora-se o argumento, porque como o
fantasma refere todo o indivíduo e exprime indistintamente tanto a natureza comum
como a singular, não concorre com o intelecto a não ser que represente esse todo.
Aos argumentos que recomendavam o oposto, deve responder-se que os dois
fantasmas produzem a imagem inteligível de uma espécie, ainda que difiram em
espécie, porque representam os indivíduos contidos sob uma mesma ínfima espécie.
Mais ainda, que eles não produzem um efeito igual a si no todo, embora concorram
todos. Porque muitas vezes acontece que o efeito não acompanha a semelhança
perfeita da sua causa eficiente quanto a todas as coisas, embora a causa eficiente aj a
segundo toda a sua perfeição, o que acontece por motivos diferentes, por exemplo,
por causa do intervalo do espaço no qual a sua potência enfraquece e aos poucos se
suprime. Da forma que a luz de oito graus recebida numa primeira superfície, logo
depois daquela primeira superfície não difunde já a luz de oito graus, mas progressi
vamente menos intensa até à ausência de grau . Ou em razão da matéria ou do subs
trato em que o efeito é recebido, de forma que o fantasma deste branco não produz
senão a espécie inteligível do branco em geral, posto que o intelecto possível não é
um substrato apto para uma tal espécie, representa somente a natureza singular,
como acima estabelecemos. E assim, deve dizer-se que o efeito imita a sua causa
tanto quanto pode e que, por isso, a espécie inteligível não pode imitar o fantasma
quanto à representação da singularidade.
À terceira, há quem conceda que o intelecto agente pode, a partir do mesmo fan
tasma, extrair mais espécies inteligíveis, como do fantasma do branco, uma espécie
do branco, outra do colorido. A opinião contrária, todavia, apraz mais, como é
patente a partir do que se disse e pelo argumento que acima referimos. De facto,
como o fantasma manifesta toda a sua faculdade de agir agindo, e age em si todo,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V, Questão VI, Artigo II 497
não concorrerá se não se exprimir por ele este branco e, por isso, apenas gera a espé
cie do branco. Falamos do fantasma que representa este branco nitidamente e é ade
quado para produzir a espécie de branco. Com efeito, se apenas manifestar este
colorido, então só as espécies do colorido e não as do branco é que serão obtidas por
ele, porque, neste caso, o máximo do seu esforço não atinge mais.
ARTIGO II
Explica-se a outra parte da controvérsia proposta
agente, o que todavia não obsta a que, tomado o vocábulo em sentido lato, se possa
chamar instrumento. A quem porém tenha agradado mais a segunda opinião, dirá ao
argumento da parte contrária que o fantasma não só determina o intelecto agente,
como a causa particular determina a universal, mas que também a ele se subordina.
Todavia, o intelecto agente não opera à maneira do próprio instrumento, por seu
intermédio, mas porque não pode agir sem o seu consórcio e obriga a agir aquilo que
está além das próprias faculdades. De maneira que ambos em parte e imediatamente
concorrem para o efeito, o qual, nem o fantasma sem o intelecto, nem o intelecto
sem o fantasma, de algum modo produzirão. Quanto a isto se alguém opuser que
quando duas causas concorrem assim, quando quiserem podem por si só produzir o
efeito da sua mesma espécie, embora menos perfeito, tal como dois archotes
produzem luz. Deve contrapor-se que isto não é sempre verdadeiro, porque acontece
de outro modo nas causas que são heterogéneas em comparação com os efeitos, tal
como o intelecto agente e o fantasma para as espécies inteligíveis, e também como o
intelecto agente e as espécies inteligíveis para a intelecção.
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO VI
b. Quod si eorum etiam 430 b 1 Ensina que a falsidade não só acontece nos
-
enunciados em razão das coisas concebidas, ou seja, quando ligamos as que não
devem ser relacionadas, como se dissermos que o homem não é animal (com
efeito ainda que se diga todas as coisas pela divisão, isto é negar as que são
afirmadas), mas também, por outro lado, quando os termos estão bem ligados
entre si, mas o tempo do verbo não está correctamente unido; por exemplo,
doença e Sócrates ligam-se entre si quando Sócrates está doente, se no entanto
alguém dissesse que Sócrates adoecera, mudando o tempo presente em pretérito,
teria dito o que é falso.
c. Dupliciter indiuisibile 430 b 6 Ele distingue claramente a primeira operação do
-
indivisível aquilo que respeita a uma espécie, embora seja composto de partes
não contínuas, como o homem, a casa, o exército, e diz que a alma compreende
isto num tempo indivisível, por uma potência indivisível, como é o intelecto.
Acrescenta também, que embora as coisas que são indivisíveis em espécie,
tenham, pela razão, alguma divisão das partes, todavia as divisíveis são com
preendidas por acidente, não enquanto são divisíveis, quer pela sua parte que
pensa, quer pela parte do tempo, mas enquanto são indivisíveis, porque existe
algo indivisível nas partes divididas, designadamente a própria espécie, que o
intelecto compreende de modo indiviso. Porque se inteligisse as partes como
divididas, ou sej a, a carne por si, os ossos por si e do mesmo modo para as res
tantes, então não inteligiria num tempo indivisível. Aristóteles defende ter
demonstrado a semelhança entre este modo e o anterior. Assim como neste modo
há algo indivisível, nomeadamente a espécie que faz de todas as partes um só ser,
também talvez esteja presente no contínuo alguma coisa não separável dele, isto
é, indivisível, que é a causa para que o tempo e o tamanho seja unos, quer se diga
que o ponto existe na linha e o momento no tempo, quer se diga a própria espécie
do tamanho ou do tempo. Mas isto difere, porque esse indivisível encontra-se do
mesmo modo no todo contínuo, no tempo, e na linha, mas o indivisível em espé-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VII 501
cie não se encontra do mesmo modo em todos os que têm a mesma espécie, já
que certas coisas são formadas de partes homogéneas, que têm a mesma espécie
e recebem o nome do todo; outras, de partes heterogéneas, que existem de outro
modo. São Tomás interpreta assim este ponto como obscuro.
e. Punctum autem 430 b 20 - Aristóteles afirma que é indivisível do terceiro modo
aquilo que é indivisível não só em acto, mas em potência, como o ponto. Mas a
este chama-se divisão porque tal como as partes se unem graças a ele, também
por ele se dividem, quando mutuamente se separam dele, o que se deve dizer de
igual maneira acerca do momento. Mostra de que modo este indivisível recai sob
o intelecto ensinando que ele não se intelige por si, mas pelo seu contrário, ou
quase contrário: efectivamente é percebido pela negação do contínuo, tal como a
privação através da forma que nega, como o mau através do bom, e o negro atra
vés do branco. Porém conta o negro entre as privações, ou porque, como São
Tomás interpreta, sempre um dos contrários que é mais imperfeito alcança o
modo de privação relativamente ao outro, como já expusemos noutros pontos, ou
porque tomou o branco pela luz e o negro pelas trevas.
f. /d autem quod cognoscit 430 b 23 Ensina que conhecer um contrário por outro,
-
ou pela privação da forma negada, tal como pelo conhecimento de um, o inte
lecto avança para o conhecimento do outro, é próprio da faculdade intelectiva,
que está em potência e não em acto puro, como é o caso do intelecto humano.
Porque se existe algum outro, em que o prévio conhecimento de um só contrário
não leve ao conhecimento do outro, mas compreenda em si próprio todas as coi
sas pura e simplesmente, é necessário que ele sej a o acto puríssimo, separado da
matéria e da potencialidade, como é a própria inteligência divina. É neste sentido
que São Tomás e Filópono explicam este ponto, mas Temístio e Simplício expli
cam-no noutro sentido, o do intelecto separado, que eles imaginam assistir ao
intelecto humano para alcançar o conhecimento das coisas. Todavia é verdadeira
e legítima a primeira interpretação e está de acordo com o que foi escrito por
Aristóteles sobre o pensamento divino, no livro 1 2, Metafísica, capítulos 7° e 8º.
g. Est autem dictio 430 b 26 - Aristóteles retoma ao ponto de partida, a saber, à
-
Entenda-se porém que não se distingue pelo substrato, visto que tal como são
originários da mesma alma, também estão presentes no mesmo animal; de outra
maneira seriam diferentes pela razão, ou melhor ainda, na realidade.
f. Animae autem 43 1 a 14 Repete de novo a diferença entre o intelecto
-
sentidos. Tal como as linhas são conduzidas para o centro, assim as operações
são levadas para o tribunal do sentido comum. Em número, porque como o cen
tro que é uno tem uma ordem para muitas linhas, o sentido comum, visto ser
único, conserva o hábito para muitos sentidos e, assim, o sentido comum e o
centro seguem o mesmo número, isto é, não variam de modo nenhum em
número, antes se compõem na sua unidade. Outros, cuja interpretação parece
mais fácil, em conformidade àquelas palavras «elas próprias são um» explicam
-nas no que respeita à proporção entre o sentido e o intelecto em relação aos seus
objectos, porque os sensíveis estão para os seus fantasmas como o sentido para o
intelecto. Aristóteles demonstra-o com o argumento retirado dos sensíveis,
advertindo que conta pouco que os sensíveis pertençam a um sentido externo ou
a vários. Por esta razão, assim como o branco está para o negro, assim o fantasma
do branco está para o fantasma do negro. Portanto, mudada a proporção, tal como
o branco está para os seus fantasmas, assim o negro está para os seus. Se, por
conseguinte, os fantasmas do branco e do negro se unem num e respeitam a uma
potência única que é o sentido comum, e se a faculdade é única consoante a
coisa, mas diferente segundo a razão, assim também todos os fantasmas respeita
rão a uma única potência, isto é, ao intelecto, que é uma faculdade única na reali
dade, mas diferente pela razão. E tal como o sentido comum apenas percebe as
coisas por intervenção dos sentidos externos, assim o intelecto apenas intelige
pelo ministério dos fantasmas, não que seja necessário inteligir os próprios fan
tasmas, mas as coisas representadas por eles . Aristóteles propõe este argumento,
recorrendo aos elementos, como noutros pontos costumava fazer.
k. Et ut in illis 43 1 b 3 Mostra de que modo o intelecto activo é levado a deliberar
-
acerca daquilo que deve ser seguido ou evitado, a saber, que algumas vezes é
movido pelos sensíveis presentes só com o estímulo da fantasia. Efectivamente,
quem viu uma refrega agitada e dura como significando uma investida hostil, na
presença da coisa sensível, é impelido pela vista a lutar contra os inimigos. Mas,
entretanto, ainda que nenhum objecto presente a excite, quando a fantasia pensa
nas coisas futuras e confere umas com as outras, faz com que o intelecto delibere
sobre aquilo que é preciso fazer, ensine qual deve ser a acção a tomar, julgue as
coisas que são boas ou prejudiciais e ordene prossegui-las ou evitá-las.
1. Ipsum autem uerum 43 1 b 10 Ensina que o verdadeiro e o falso que dizem
-
respeito à acção estão contidos no mesmo género em que estão o bom e o mau,
isto é, todos eles respeitam a um só e mesmo intelecto na realidade. Efectiva
mente, o intelecto prático e o especulativo não são potências realmente distintas.
Também não tendem para objectos simplesmente diferentes. Na verdade, o espe
culativo trata do conhecimento do verdadeiro e do falso em absoluto, e o prático
em ordem à obra e, por isso, enquanto é adequado ou não adequado, bom ou
mau. Esta distinção do objecto não é bastante para que o intelecto prático e o
especulativo se distingam na realidade. Acerca deste assunto, de caminho, dire
mos mais. m. At uero res eas 43 1 b 1 2 Como tinha afirmado que o intelecto
-
aquelas coisas que, estando embora na matéria, não estão todavia na matéria
sensível, o que ilustra com o exemplo da concavidade ou curva do nariz. Se
efectivamente tal curvatura existe, como se julga, necessariamente na sua
consideração envolve o nariz e a matéria sensível, mas não, se se observar
segundo a razão comum da curvatura em absoluto. Tratámos, no proémio da
Física, questão 1 , artigo 3º, acerca da matéria sensível e inteligível e acerca de
toda a variedade de abstracções que acontecem nas ciências.
n. Omnino autem 43 1 b 1 6 Repete o que tinha ensinado acima, a saber, que o
-
intelecto é aquilo que intelige. E isto é verdadeiro pela razão que já expusemos e
que trataremos no capítulo a seguir. Por fim, duvida se o intelecto enquanto está
no corpo pode alcançar o conhecimento das substâncias separadas. Remete para
outro ponto a resolução desta dúvida. Mas nós tratamo-la no Comentário à Filo
sofia Primeira.
sobre o sentido e o intelecto, afirmando que alma é, de certo modo, todas as coi
sas. E na verdade, todo o ente ou é sensível ou é inteligível. A alma, em razão
dos sentidos, é todas as coisas sensíveis; em razão do intelecto, todas as coisas
inteligíveis. Mas expõe de que modo isto é consonante com a verdade, afirmando
que tanto o objecto do sentido como o do intelecto, que tanto o sentido como o
intelecto se podem dizer de duas maneiras, em potência ou em acto. É tomado
em acto o objecto de um e de outro quando é percebido em acto pela faculdade
cognoscente; em potência, quando não é conhecido em acto, mas está apto a ser
conhecido. Do mesmo modo, o que é inteligido diz-se em acto quando é contem
plado em acto, e em potência, quando pode ser contemplado. Semelhantemente,
o sentido está em acto enquanto produz a sensação em acto, em potência, quando
a pode provocar. A alma, portanto, uma vez que está em potência para conhecer
todas as coisas, diz-se todas as coisas em potência quando está em acto de conhe
cer, diz-se que é em acto as coisas que recaem sob o seu conhecimento. Além
disso, deve entender-se que a alma é todas as coisas, mas não realmente. Com
efeito, a alma não é a pedra que ela intelige, ou a cor que captamos, mas apenas
nocionalmente, ou seja, de acordo com as imagens das coisas e as semelhanças
que assinala.
b. Quare anima est ut manus 432 a 1 Tinha dito que a alma contém em si as for
-
mas, quer dizer, as imagens a partir das quais produz o conhecimento. Explica-o
através de uma certa comparação. Tal como a mão, que é o instrumento que
forma os restantes instrumentos e, portanto, o órgão de todos os instrumentos,
usa outros instrumentos, também a alma, que é uma forma, admite outras formas
e usa-as ao conhecer, tanto em razão do intelecto como do sentido, a não ser que
o intelecto receba as formas, isto é, as imagens das coisas, tanto imateriais como
506 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
materiais e possa assim ser chamado forma das formas ; mas o sentido, somente
pode sê-lo, das coisas imateriais e dos sensíveis.
c. Cum autem nulla res 432 a 3 Como nem as coisas matemáticas, nem as físicas
-
e as suas afecções (na verdade aqui trata-se apenas deste género de coisas) sub
sistem fora dos sensíveis em que estão presentes e por isso as suas imagens inte
ligíveis são extraídas das formas sensíveis, Aristóteles conclui que o intelecto na
consideração delas não pode tratá-las sem o auxílio dos sentidos, que em pri
meiro lugar as percebem. Pretende, então, que o intelecto depende dos fantasmas
não só quando absorve novamente as espécies, mas também ao comparar as
espécies quando contempla. É necessário que ele contemple ao mesmo tempo
com os fantasmas, porque o sentido externo está para os objectos como o inte
lecto para os fantasmas. Por isso, tal como ele não sente sem a presença do
objecto, assim este nada intelige sem os fantasmas, a não ser porque os sensíveis
externos se encontram profundamente enterrados na matéria, mas os fantasmas
são formas sem matéria, porque são, na verdade, não as próprias coisas sensíveis
mas as suas imagens.
d. Est autem 432 a l O Considera a diferença entre o acto do intelecto e o acto da
-
QUESTÃO !
Se o intelecto paciente é uma potência passiva
e totalmente pura, ou não
ARTIGO I
O intelecto paciente é uma potência tanto passiva, como activa
junto com a espécie, de tal forma que já a causa material não coincide totalmente
com a eficiente. Acerca deste assunto trata-se mais amplamente na Física.
ARTIGO II
O intelecto paciente num certo sentido não é pura potência ;
investiga-se se o é noutro.
ARTIGO Ili
O intelecto paciente é pura potência no género dos inteligíveis
desde a sua primeira origem
perfeito o inteligir sem o seu concurso. Sobretudo, visto que tais espécies deveriam
ser infundidas pelo seu género, como as que foram colocadas nos anjos, no instante
da criação. É manifesto, de facto, que não as usamos imediatamente, visto que antes
que o próprio conceito no-lo tivesse mostrado, já algum de nós, por ordem da luz
livre da razão, agiria, obteria e mereceria, o que é falso. Não satisfará, quem disser
que o uso da razão depende dos sentidos internos, na condição de que eles sejam
tidos como separados e perfeitos. É que, uma vez que eles se aperfeiçoam paulati
namente, acontece que, embora a alma seja provida de espécies inteligíveis, goza
todavia de livre arbítrio. Não satisfará, digo, porque, como afirmámos, as espécies
que pela sua natureza são infusas pela acção divina, de tal modo que não carecem da
acção dos fantasmas, não requerem a perfeição e a desagregação dos sentidos inter
nos, para que a alma exerça livremente as acções de inteligir e de querer por inter
venção delas. Segundo. Aconselha-se o mesmo, porque se as espécies nos fossem
inatas, também seriam inatos os hábitos das ciências, visto que, em ambos, a razão
seria igual. E claramente que não é assim porque ninguém experimenta em si tais
hábitos, antes os alcança com grande trabalho e dificuldade nas disciplinas que
devem ser adquiridas. Acrescente-se que, visto que as espécies inteligíveis podem
ser adquiridas por nós através do intelecto agente, intervindo a obra dos sentidos
internos, como acima está patente, não foi necessário que elas nos fossem atribuídas
por acção divina.
Além disso, São Tomás prova o mesmo, na Suma Teológica, parte 1 ª, questão 84,
artigo 5º, porque se a alma intelectiva não aceitasse as espécies a partir dos sentidos,
mas de outro lugar, ela não existiria, porque afectaria a ligação do corpo e unir-se-ia
à matéria. E não pode dizer-se que ela se unia por causa do próprio corpo, visto que
a forma não existe por causa da matéria, mas, pelo contrário, a matéria por causa da
forma. Porém, parece sobretudo que o corpo é necessário à alma intelectiva para a
sua própria função que é o inteligir, visto que, além disso, ela em si não depende do
corpo, porque se já recebeu as espécies do influxo da luz suprema, já não tem neces
sidade do corpo para inteligir. Se, todavia, alguém opuser que a alma humana não só
se une ao corpo para inteligir, mas para compor o todo e que, embora pelo ministério
dos sentidos não receba nenhumas espécies, não será por isso uma ligação desneces
sária. Deve opor-se que, já que cada um existe, principalmente, por causa da própria
operação, como ensina Aristóteles, livro 2, O Céu, capítulo 3º, texto 1 7, também esta
conjunção do espírito e do corpo é feita em virtude de outro fim. Não pode, contudo,
alegar-se que deva considerar-se inútil, pela parte da operação. Certamente, que não
se une ao corpo por causa da operação, visto que nem Deus, nem a natureza permi
tem que alguma coisa exista inutilmente, também em relação àquela parte.
Respondamos agora aos argumentos que aduzimos a favor da opinião dos adver
sários. Ao primeiro, deve dizer-se com São Tomás, na Suma Teológica, primeira
parte, questão 55 artigo 2º, que as almas humanas, dado serem formas dos corpos,
pelo seu próprio modo de ser, cabe-lhes atingir através dos corpos a sua perfeição
inteligível, isto é, através dos sentidos ligados aos órgãos corpóreos produzirem
imagens das coisas. Já as substâncias superiores, como os anjos, porque são total
mente desligadas dos corpos e subsistentes no ser inteligível fora da matéria, foi
preciso que recebessem as imagens intelectuais das coisas, da primeira origem pelo
fluxo da luz superior.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão li, Artigo I 5/J
Ao segundo, deve dizer-se que a matéria não pode, pelas forças da natureza, per
manecer sem forma. No entanto, o intelecto humano pode existir sem as espécies. E,
por isso, não é a mesma a razão nele e na matéria prima. Ao terceiro, deve respon
der-se que ainda que Deus não tivesse dado ao homem as espécies para inteligir, lhe
atribuiu, no entanto, o intelecto agente, cuj a obra as produz com o ministério dos
sentidos. Isto foi bastante para que não se diga que lhe tinham sido recusadas as
coisas necessárias à intelecção e à ciência, tal como também as armas e as coisas
naturais não lhe foram dadas pela natureza como protecção do corpo. Por essa razão,
não tem de se considerar que não houve um plano do autor da natureza para as coi
sas que dizem respeito à manutenção da vida, se, efectivamente, lhe atribui o enge
nho e o poder como instrumento comum para procurar e para executar todas essas
coisas, como noutro ponto, a partir de Aristóteles, de Séneca e de outros autores
salientámos.
A favor da explicação do quarto argumento deve saber-se que Capréolo, no pró
logo das Sentenças, questão 3 ao 5, contra a primeira conclusão; Viguerio Grana
tense, no capítulo 3º das suas Instituições Teológicas e certos outros autores conside
ram que o hábito dos primeiros princípios nos é inato por natureza. Mas esta opinião
de modo algum é do nosso acordo, e refutamo-la explicitamente no livro 1 dos Pos
teriores. Respondemos, portanto, ao argumento, que os hábitos dos primeiros prin
cípios, tanto aqueles que respeitam à contemplação, como à acção e à prática, são na
realidade adquiridos por nós pelo assentimento que recai acima dos primeiros prin
cípios especuláveis e operáveis. Todavia dizem-se naturais, visto que, deste modo os
princípios por si mesmos, e pela faculdade dos seus fins, são de tal modo visíveis
que, necessariamente, assentimos quanto à espécie do acto e não a podemos negar
em pensamento. Também parece que São Tomás examinou isto na Suma Teológica,
na primeira parte da segunda, questão 5 1 , e no livro 2, Contra os Gentios, capítulo
78º, quando ensinou que o hábito dos princípios, em parte é natural, em parte é
adquirido. O que, efectivamente, referimos a partir das afirmações dos Santos
Padres, mas não deve ser interpretado acerca do hábito que é acrescentado ao inte
lecto, porque não se distingue da própria faculdade de inteligir. A isto, efectiva
mente, São Jerónimo chama santidade natural, porque ilustra o pensamento para
provar os princípios comuns que a norma de viver justamente contém.
QUESTÃO II
Se o intelecto paciente no homem é único em espécie ou se há vários
ARTIGO I
Que argumentos parece que demonstram que há vários
Que o intelecto paciente não é único em espécie, mas múltiplo, tentar-se-á demons
trar com estes argumentos. A razão e o intelecto, isto é, a potência que raciocina e a
que intelige diferem entre si em espécie. Ora uma e outra faculdade é uma força
intelectiva; logo, o intelecto paciente não é uno em espécie. Prova-se a premissa
maior, primeiramente, com o testemunho de Boécio, livro 5, A Consolação, prosa 4,
512 Sobre o s Três Livros 'Da Alma ' d e Aristóteles
quando afirma que o intelecto está para a razão como a eternidade para o tempo. Por
isso, visto que o tempo e a eternidade se distinguem entre si, diferem também, pelo
menos em espécie, o intelecto e a razão. Além disso, porque Aristóteles, livro 6 da
Ética, capítulo 1 º, ensina que o princípio, pelo qual a alma necessariamente percebe,
distingue-se daquele pelo qual opina e raciocina.
O intelecto especulativo e o intelecto prático diferem entre si em espécie. Há,
portanto, vários intelectos distintos em espécie. Prova-se a premissa menor, porque
uma diferente razão do objecto diferencia a natureza da potência e o objecto do
intelecto especulativo é o verdadeiro. Com efeito, a contemplação versa sobre a
verdade, mas o objecto do intelecto prático é o bom ou o mau porque o intelecto
prático ordena e dirige a obra e também o bom ou mau que deve ser acolhido ou
rej eitado. Confirma-se a força deste argumento, porque há menos diferença mútua
entre o objecto do intelecto angélico e o do humano que é, em absoluto, o verdadeiro
inteligível, do que entre o objecto do intelecto especulativo e do prático de um
mesmo homem. Mas o intelecto humano e o angélico diferem em espécie, assim
como o homem e o anjo. Portanto, também o intelecto prático e o especulativo.
Por último, os apetites superior e inferior, no testemunho de todos os filósofos,
diferem em espécie. Portanto, também a razão superior e a inferior, visto que nos
dois casos há nela um conflito por causa da distinção. Acrescenta também que a
sindérese, de que fizemos menção na questão anterior, não parece ser um hábito,
como aí dissemos. Na verdade Aristóteles, no livro 6 da Ética, capítulo 3º, quando
enuncia os hábitos intelectuais não enumera, entre eles, a sindérese. Parece, por
tanto, que a sindérese é alguma potência intelectiva e decerto distinta do intelecto,
visto que é dividida por São Jerónimo, ao capítulo 1 º de Ezequiel, em confronto com
a faculdade apetitiva e a racional . Por isso, parece que deve reconhecer-se que o
intelecto não é uma potência em espécie, mas várias.
ARTIGO II
No homem, o intelecto paciente é único em espécie.
Os argumentos aduzidos contra a parte contrária não são concludentes
Deve afirmar-se, todavia, com a escola comum dos filósofos que o intelecto
paciente do homem é uma faculdade em espécie. Também, como expusemos no
primeiro livro desta obra, as potências não se distinguem segundo a variedade das
condições particulares que estão presentes no objecto, mas segundo a razão comum
que todas as coisas contidas no objecto obtêm por si mesmas. Se esta razão for una,
será una a potência. E todas as coisas que caem sob o intelecto possível fazem-no
sob uma razão de verdade e de inteligibilidade, tal como também sob um modo de
mudar a potência, como ali expusemos. Por isso, deverá declarar-se que o intelecto
possível é uma só potência.
Respondamos, portanto, aos argumentos que consideravam recomendável o
oposto. Ao primeiro, dizemos que a mesma faculdade é chamada não só intelecto,
mas também razão. Intelecto, porque, simplesmente, apreende a verdade inteligível.
Razão, visto que raciocina progredindo de um termo para outro. Daí que os anj os,
que percebem as coisas com a simples intuição, se chamem inteligências . Mas os
homens, que procedem inquirindo das mais conhecidas para as desconhecidas,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VII/, Questão 1/, A rtigo 1/ 513
dizem-se racionais. Por isso, tal como o intelecto é comparado à eternidade, a razão
é, por Boécio, comparada ao tempo, porque como a eternidade é estável, assim tam
bém o é o intelecto, a seu modo, quando capta a noção das coisas sem discurso. E
assim como o tempo consiste no fluxo, também a razão passa de uma coisa para
outra. Para explicar este ponto de Aristóteles, deve dizer-se que nada mais foi aí
ensinado senão que os princípios com que conhecemos as coisas necessárias e as
prováveis e pelos quais pensamos, não são os mesmos hábitos, mas diferentes. E,
assim, nada se trata nesse ponto sobre a distinção da potência intelectiva.
Ao segundo, deve dizer-se que aquelas coisas que acontecem ao objecto por aci
dente não mudam a potência. Com efeito, por exemplo, o grande e o pequeno, que
acontecem ao objecto colorido, distinguem a faculdade de ver. Os objectos do inte
lecto prático e do especulativo apenas diferem por uma razão acidental. De facto, um
e outro por si apenas se ocupam da verdade inteligível, embora o intelecto especula
tivo não regule a verdade apreendida para a acção. O prático, no entanto, regula-a e
concerne ao bom e ao mau, mas não primeiramente e por si. Regulando-se ou não
regulando-se pelo intelecto, estão para a verdade inteligível por acidente. É líquido,
portanto, que os intelectos especulativo e prático não são vários, mas são uma
mesma potência. Para confirmação deste argumento tem de negar-se que há mais
diferença entre o intelecto humano prático e o especulativo, do que entre o intelecto
humano e o angélico. Efectivamente, o intelecto humano tende para a verdade, que
possui dependência e relação com a fantasia e com os sensíveis pelos quais a
absorve. Mas o angélico tende para a verdade, enquanto recebida pelo influxo de luz
superior. Esta razão, altera o objecto não por acidente, como acerca do prático e do
especulativo dissemos, mas por si, e portanto introduz uma diferença específica.
Ao terceiro, deve responder-se que o apetite inferior, visto ser uma potência mate
rial, difere necessariamente em espécie do superior, isto é, da vontade, que é uma
faculdade imaterial, como em devido lugar foi mais claramente declarado por nós.
Mas a razão superior e a inferior é a mesma faculdade de inteligir, pois debruça-se
acerca do mesmo objecto do intelecto e da sua razão formal sobre a qual há pouco
falámos, ainda que receba nomes diferentes consoante um ou outro modo por que é
considerada. Chama-se, portanto, razão superior porque contempla a verdade imutá
vel e divina, inferior quando considera as coisas inferiores. Donde, porque a verdade
imutável é mais forte e mais pura do que a verdade criada, e através dela somos
iluminados para a compreender e para nos aperfeiçoar, Santo Agostinho compara a
razão superior ao homem varão que comanda e ensina a mulher, a inferior à mulher
que é governada e regida pelo varão. Leia-se São Tomás, Suma Teológica, parte 1ª,
questão 79, artigo 9º, e no 2º livro das Sentenças, distinção 24, questão 2, artigo 2º;
Ricardo, no mesmo, questão 4, sobre o segundo principal . Ao que no mesmo argu
mento se refutava relativo à sindérese, rejeitada a opinião daqueles que pens aram
que a sindérese é uma certa potência mais alta quanto à razão, deve resp onder-se,
com S. Tomás, artigo 3º da questão citada anteriormente, que a sindérese é um certo
hábito da faculdade intelectiva. Com efeito, assim como a razão nas cois as q ue per
tencem à especulação é deduzida de certos princípios conhecidos por si, aos q uais se
dá o nome de hábito do intelecto, também é necessário que a razão práti ca _ par�a _de
alguns princípios por si conhecidos, tal como « O mal não deve ser feito » CUJ O � �
h bi o
cula veis
se chama smderese.
,
· Al em
, dºisso, porem,
, como o h a'bº1to d os pnn c i'pio s espe
·
514 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
não requer no homem uma potência diferente do intelecto, assim também não o
requer o hábito dos princípios, que é a sindérese, para a prática do que deve ser feito.
Porém, São Jerónimo separa-a da parte racional, não porque a separe do intelecto,
mas porque chama intelecto à parte racional, enquanto atende às coisas menores,
mas sindérese enquanto atende às maiores. E não obsta que Aristóteles, no livro 6 da
Ética, capítulo 3º, não fizesse menção expressa da sindérese, de entre outros hábitos
intelectuais. De facto, não enumera aí todos pelo nome, visto que não recordou, de
um modo geral, nenhum hábito prático que trata dos princípios, embora sob o nome
de hábito tivesse encarado todos.
Dos restantes, S . Boaventura, no 2º livro das Sentenças, distinção 39, artigo l º,
questão 1 , e o Alense, parte 3 da Suma Teológica, questão 27, membro 2, artigo 3º
consideram que a sindérese não se encontra no intelecto, mas na vontade. Para o que
também pende Henrique, Quodlibet 1 , questão 1 8 . E pode-se prová-lo, na medida
em que a função própria da sindérese é instigar ao bem. É evidente, porém, que o
bem, enquanto tal, não pertence ao intelecto, mas à vontade. Todavia deve acolher
-se a opinião contrária que o argumento de São Tomás, acima aduzido, prova, e que
o mesmo Santo Doutor seguiu, não só na Suma Teológica, parte 1 ª, no local citado,
mas também na primeira da segunda, questão 94, artigo 1º, e com frequência noutros
locais; Alberto Magno, na Suma do Homem, tratado da sindérese, questões 1 e 3, e
outros tantos, de entre os antigos, como não poucos de entre os mais recentes. O
mesmo considera São Jerónimo, no ponto citado, e ao capítulo 1 º de Ezequiel,
quando chama sindérese à centelha superior da razão e compara-a à águia que vê
mais acutilantemente que as restantes aves e voa mais alto. Também S. B asílio,
homilia 1 , sobre os Provérbios, e Santo Agostinho, no livro 2, O Livre A rbítrio,
capítulo 20º, chamam-lhe juízo natural, pelo qual distinguimos as coisas boas das
coisas más. É evidente, porém, que o juízo se refere à potência intelectiva. E, por
outro lado, o mesmo Santo Agostinho, no livro 1 2, A Trindade, capítulo 2º, afirma
que parece que a sindérese e a razão são o mesmo. Advirta-se todavia, que a sindé
rese não foi aceite por estes Padres como hábito do intelecto, mas, como entretanto é
costume, como a própria faculdade de inteligir ou luz natural, enquanto mostra que o
bem deve ser seguido e o mal afastado. Ao argumento a favor da opinião contrária à
daqueles que consideram que a sindérese pertence à vontade, deve responder-se que
a sindérese não tende para o bem, sob a razão do bem, mas sob a razão do verda
deiro prático, contido sob o objecto do intelecto. Diz-se, todavia, que instiga ao bem,
que deplora o mal e sussurra, por causa das normas plenas de verdade e imutáveis,
que propõe à vontade que as não viole, que avisa continuamente e condena os viola
dores, por muito perdidas que sejam as vidas. Leia-se São Tomás, questão 1 7 , A
Verdade, artigo 3º.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo V//J, Questão //J, Artigo I 515
QUESTÃO III
Se o verbo é produzido através da intelecção, ou não
ARTIGO I
Com que argumentos se parece mostrar que não é produzido
ARTIGO II
Explicação da questão
vra, que por si próprio é gerada, com um vocábulo particular, se dê o nome de enun
ciado.
Mais ainda, o verbo é significado, por São Tomás, com muitos nomes. Ora é
chamado intenção da coisa inteligida, como no primeiro livro Contra os Gentios,
capítulo 54º; ora intenção inteligida, como no livro 4 da mesma obra, capítulo 1 1 º;
noutras ocasiões, concepção do intelecto, como no mesmo livro, capítulo 1 2º. São
cinco os pontos respeitantes à razão do verbo, como se recolhe também de São
Tomás, A Verdade, questão 4, e na primeira parte da Suma Teológica, questão 34
artigo 1 º. Primeiro. O verbo é algo na mente. Donde Santo Agostinho, livro 5, A
Trindade, capítulo 8º, afirmar que o verbo se conhece através dos signos corporais,
que usamos com a mente. Segundo. O verbo é algo gerado pelo intelecto, como que
um filho, gerado através da acção inteligível que é o acto de dizer. Donde, a afirma
ção de Santo Agostinho, livro 9, A Trindade, capítulo 8°: que em nós temos o con
ceito verídico das coisas, enquanto verbo, e ao falar gera-se dentro, e ao nascer não
se afasta de nós. Terceiro. O verbo é a semelhança da coisa e da sua imagem, como
testemunha Santo Agostinho, livro 1 5 , A Trindade, capítulo 1 2º: o verbo, diz ele, é a
semelhança da coisa conhecida, da qual é gerado, e é a sua imagem. Quarto. O verbo
é expressivo da coisa, tal como o testemunha Santo Agostinho, no livro 1 5 de A
Trindade, capítulo 1 2º: o verbo, que soa de fora, revela o verbo que se esconde den
tro, assim, o verbo, que se esconde dentro, dá nome à coisa de que é verbo. Donde,
atente-se que o verbo importa uma dupla relação, uma de expressão e outra de signo.
Aquela de modo principal, esta de modo secundário; aquela para dizer, esta para o
obj ecto significado. Quinto. Ele não permanece quando cessa o acto de conhecer,
como também afirma Santo Agostinho, no mesmo livro, capítulo 1 1 º.
ARTIGO III
Resolve-se o primeiro argumento proposto no início da questão
e estabelece-se que a intelecção não é uma qualidade
mas uma verdadeira e própria acção
ARTIGO IV
Resolvem-se os restantes argumentos do primeiro artigo
QUESTÃO IV
De que maneira as espécies inteligíveis, a intelecção,
o verbo e o objecto diferem entre si
ARTIGO I
A intelecção distingue-se realmente da espécie inteligível
ARTIGO II
O verbo e a intelecção identificam-se na realidade, mas não são
o mesmo pela razão. Distinguem-se realmente pelo objecto
A segunda conclusão nesta controvérsia é que o verbo não difere na própria reali
dade da intelecção. Assim pensa Henrique de Gand, Quodlibet 1 , questão 3 ;
Durando, n o 1 ° livro das Sentenças, distinção 1 7, questão 2; Ockham e Gabriel,
questão 2; Liqueto, Bárgio e Mairónio na mesma distinção; Paludano, no mesmo
local, questão 4; Alberto, artigo 7º; São Boaventura, questões 1 e 4; Ricardo, no 2º
livro, questão principal 1 ; o Alense, 1ª parte da Suma Teológica, questão 62, mem
bro 1 , artigo 1 º, e outros de entre os teólogos mais recentes. Todavia é recomendável
a nossa conclusão porque qualquer acção, quer seja física, quer não, está para um
fim produzido por ela, tal como o movimento está para o mesmo; ora, como mos
trámos na Física, o movimento identifica-se realmente com o seu fim; portanto,
também a intelecção com o verbo, que é o seu fim. Não satisfaz o Ferrariense, no
ponto citado, ao afirmar que o movimento é acto do imperfeito, isto é, da coisa
existente em potência e depois em acto. Mas a intelecção é acto do perfeito. Por isso,
embora o movimento se identifique com o fim, não obstante, a intelecção distingue
-se dele. Não satisfaz, digo, porque de qualquer maneira a acção existe, quer sej a
acto d o imperfeito, quer não. Não é senão a própria coisa e m devir (se assim s e pode
falar) e daí, não se distinguir realmente do seu fim, sobretudo porque nenhuma
necessidade obriga a multiplicar as realidades. Ademais, em vista disto que disse
mos, a identidade real da intelecção com o seu fim é um efeito, de modo que os
Santos Padres chamam algumas vezes verbo à intelecção, como São Damasceno, no
1 da Fé Ortodoxa, capítulo 1 8º; Santo Agostinho, nos livros 9 e 1 5 de A Trindade, e
um e outro, no capítulo 1 0º, e em De cognitione uerae uitae, capítulo 1 6º, e S anto
Anselmo, no Monológio, capítulo 3 1 º; Santo Ireneu, livro 2 Contra as Heresias,
capítulo 47º. Objectam todavia os adversários que todo o efeito se distingue real
mente da sua causa. Portanto, também o verbo se distingue da intelecção, que é a sua
causa. Mas deve negar-se que a intelecção seja causa do verbo. Não é, de facto, causa
dele, mas uma produção e como que uma via pela qual o intelecto exprime o verbo.
A terceira conclusão é que o verbo não é formalmente intelecção. Esta está contra
o citado de Durando. Mas é evidente, porque o verbo é o fim da intelecção. Toda a
acção, de facto, se distingue muitas vezes formalmente do seu fim, como no citado
ponto da Física, mostrámos. Segundo, porque o verbo, de acordo com Santo Agosti
nho, no livro 1 5 A Trindade, capítulo 1 2º é a imagem expressa pelo intelecto e é a
semelhança formal da coisa conhecida. A intelecção de facto, como intelecção, não é
semelhança.
A quarta conclusão é que o verbo se distingue realmente do objecto. Esta conclu
são está contra Auréolo no 1 º livro das Sentenças, distinção 1 . Prova-se, todavia,
porque, como ensina Santo Agostinho, livro 1 5 , A Trindade, capítulos 1 0º, 1 1 º, 1 4º e
1 5º o verbo mental, pela sua natureza, está dentro da mente e a coisa conhecida é
extrínseca ao intelecto. Mais, porque o verbo é produzido através da intelecção, mas
o objecto, muito pouco, como é evidente. Das afirmações se conclui que a intelecção
se distingue realmente do objecto. Efectivamente, se a intelecção e o objecto fossem
o mesmo, também seriam o mesmo o objecto e o verbo, pois o verbo e a intelecção
são realmente o mesmo. Isso, no entanto, tem de conceder-se no caso de se considerar
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão V, Artigo / 525
não só o objecto conhecido, acerca do qual incide a nossa conclusão, mas precisamente,
enquanto conhecido, quer expresso pelo conhecimento, quer também pelo verbo; nesse
caso, o obj ecto não é realmente diferente da intelecção e do verbo. As razões agora
aduzidas não mostram o oposto disto, como é manifesto.
QUESTÃO V
Se possuimos conceitos próprios das coisas singulares
ARTIGO I
Argumentos da parte negativa
ARTIGO II
A parte afirmativa da controvérsia é a verdadeira
Mas a opinião dos que afirmam que as coisas sensíveis singulares são inteligidas
por nós por meio de um conceito próprio e particular é inteiramente verdadeira.
Segue-a Escoto, no 4º livro das Sentenças, distinção 45, questão 3; Gregório, no
primeiro livro, distinção 3, questão 1 , artigo l º, conclusão 3; Durando, no 2º livro,
distinção 3, questão 7; Ricardo, no 2º livro, distinção 24, questão 4, a respeito da 3º
principal; Burleu, no 1 da Física, e outros. Comprova-se, o primeiro. Se os sensíveis
singulares não podem ser conhecidos por nós, por si, e com um conceito próprio, ou
não podem porque são singulares, ou porque são sensíveis. Não porque são singula
res, de outro modo nenhum singular também inteligível e imaterial se ofereceria ao
nosso intelecto por si mesmo, nem ainda mais, ao intelecto divino. Não porque são
materiais, de outro modo as naturezas comuns providas de matéria não seriam inte
ligidas por si mesmas. Logo, etc. Os defensores da parte contrária respondem a este
argumento, que a intelecção própria desta forma dos singulares repugna ao nosso
intelecto, não porque são singulares ou inteiramente materiais, como o argumento
prova, mas porque são singulares materiais. Porque é necessário que a coisa conhe
cida por si mesma pelo intelecto seja abstraída da matéria indivisível. No entanto,
esta resposta não satisfaz de modo algum, porque não defende nenhuma razão idó
nea para que a matéria singular mais do que a matéria comum impeça o conheci
mento intelectivo.
Segundo. O nosso intelecto estabelece a diferença e a conformidade entre o sin
gular e o universal através das suas razões próprias e particulares, como quando
julga evidente que Homem é mais extenso do que Sócrates e que Sócrates se identi
fica com Homem. Portanto o nosso intelecto percebe o universal e o singular própria
e distintamente. Os adversários vão contra este argumento, afirmando que não é
necessário, para quem julga acerca da conveniência ou diferença entre duas coisas,
que distinga uma e a mesma faculdade e que é suficiente que seja percebido pelo
mesmo homem ainda que com duas potências, e que isso acontece na questão pro
posta. Efectivamente, dizem, o singular é por nós conhecido pela faculdade cogita
tiva e o universal pela intelectiva. Mas, na verdade, aquele argumento refuta esta
resposta, porque como aquele acto de julgar é único e simples, necessariamente
pertencerá a uma e mesma potência; ora, não pertence à cogitativa, quer porque não
é necessário que a faculdade inferior julgue o objecto da superior, quer porque
nenhuma potência ligada ao órgão corpóreo tende para a coisa universal. Logo, um
tal acto diz respeito ao intelecto. Por isso, para que ele não julgue acerca de uma
coisa para si desconhecida, conhece por si tanto o universal como o singular. Cor
robora-se a força deste argumento pela autoridade de Aristóteles, neste livro, capí-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão V, Artigo II 52 7
tulo segundo, nos textos 145 e 1 46, quando prova que tem de haver uma faculdade
sensitiva (a saber, o sentido comum) que reconhece por si todos os sensíveis exter
nos, pois experimentamos que estabelecemos a diferença entre os objectos dos sen
tidos externos. E se para estabelecer este juízo e diferença não fosse necessário que
as coisas a que se refere o juízo caíssem na mesma potência, Aristóteles não teria
afirmado apropriadamente que é preciso que todos os sensíveis externos se distin
gam dela mesma por aquela faculdade.
Outro. O intelecto infere o universal de entre muitas proposições singulares. Por
tanto, percebe os singulares, de outra maneira concluiria o consequente do antece
dente que desconhece, o que é ridículo. Não satisfará quem disser que é suficiente
que o antecedente seja por ele percebido de modo confuso, porque este argumento
seria muito pouco claro e quase impossível de alcançar, ainda que os princípios
comuns das ciências costumem ser obtidos deste modo, como testemunha Aristóte
les, no livro 2 dos Posteriores, capítulo último, e no 1° da Metafísica, capítulo 1 .
Ainda outro. A vontade domina o acto da potência cogitativa e fá-lo apenas se o
conhecimento do intelecto o preceder, a quem compete propor à vontade a coisa que
deve ser apetecida ou recusada. Portanto, o intelecto conhece o acto da potência
cogitativa que é um certo singular que incide na matéria. Corrobora-se o argumento,
porque aquela reflexão que experimentamos em nós acerca das funções dos sentidos
externos não pode ser atribuída aos próprios sentidos, mas a alguma potência mais
nobre, isto é, ao intelecto, como ensinou Aristóteles, no 1 º livro desta obra, capítulo
3º, texto 46. Além disso, porque o intelecto costuma corrigir os erros que acontecem
no sentido, quer externo, quer interno, o que não faria se não conhecesse a própria
acção dos sentidos e a coisa singular acerca da qual eles se enganam.
Mais um. Tudo o que uma força inferior pode, pode uma superior. Portanto, o que
quer que a fantasia, que é inferior ao intelecto, conheça, o intelecto conhece. Ora, a
fantasia percebe os singulares pelo próprio conhecimento; portanto, também o inte
lecto. Respondem que aquilo que pode a faculdade inferior também pode a superior,
mas não o pode de um mesmo modo, mas de um modo mais nobre; e é assim que o
intelecto conhece as coisas singulares em comum, isto é, quanto à natureza da espé
cie, não quanto à singularidade. Não respondem, efectivamente, que quem conhece
Sócrates de modo confuso tem um conhecimento mais perfeito do que quem o
conhece de um modo mais claro. E se o intelecto não conhece os singulares senão
quanto à sua natureza comum, e na medida em que percebe os universais contidos
naquela natureza certamente que só de um modo confuso e implícito é que ele inte
lige os singulares.
Ú ltimo. Estabelece-se o mesmo, porque a deliberação e as acções da arte e da
prudência pertencem ao intelecto. Estas versam, efectivamente, sobre os singulares,
como ensina Aristóteles, no livro 3 da Ética, capítulo 3º. Não há dúvida, que fre
quentemente os singulares deste tipo existem a partir dos sensíveis. Por isso, de
forma alguma parece dever negar-se que os sensíveis singulares são percebidos pelo
nosso intelecto num conceito próprio e particular. Se, de facto, este conceito é
reflexo ou não, e de que forma é obtida da espécie inteligível da coisa comum, j á
expusemos noutro ponto deste livro.
528 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO Ili
Resolução dos argumentos que foram aduzidos a favor
da parte negativa da questão
Ao primeiro dos argumentos que foram aduzidos a favor de outra parte da ques
tão, artigo 1 º, deve negar-se a premissa maior, e para sua prova deve dizer-se, que o
intelecto agente não é defendido a fim de abstrair a natureza das diferenças indivi
duais, isto é, dado que a coloca no estado em que só pode ser inteligida sem as dife
renças, seja o que for que Averróis e alguns outros tenham considerado. Mas sim, a
fim de obter as espécies inteligíveis a partir dos fantasmas das coisas singulares, sem
os quais as coisas não podem ser percebidas pelo intelecto.
Ao segundo, deve responder-se que, embora o intelecto perceba os singulares,
nem por isso esse conhecimento será supérfluo, tal como não é inútil o conheci
mento pelo qual o sentido comum conhece e discerne todos os objectos dos sentidos
externos. Ora, na verdade, a faculdade de inteligir seria imperfeita, a não ser que
esse conhecimento lhe competisse, porque a perfeição e a ordem da natureza exige
que nas potências subordinadas o que algo inferior pode, possa também o superior.
E daí não se segue que possam ser confundidos os objectos do sentido e os do inte
lecto. Primeiro, porque o intelecto percebe tanto os singulares como os universais,
mas os sentidos, apenas os singulares. Segundo, porque também os singulares pró
prios detêm uma razão formal quando recaem no intelecto, e outra quando recaem
nos sentidos. Pertencem a um, efectivamente, sob o plano da inteligibilidade, a outro
sob o plano da sensibilidade.
Ao terceiro, que o conhecimento que é requerido para o objecto, em comparação
com a potência, não é de uma natureza semelhante; de outra maneira nenhum sensí
vel seria percebido por Deus ou por um anjo. Mas é de natureza conforme ou apta,
para que recaia na potência, e proporcional, pela qual não excede a sua força. Deve
ser dito, sobre este ponto de Aristóteles, no 1 da Física, que o pensamento do Filó
sofo é que o intelecto difere pelo sentido na medida em que este apenas conhece os
singulares, e aquele também os universais.
QUESTÃO VI
Se o nosso intelecto pode inteligir muitas coisas
em simultâneo ou não
ARTIGO I
Os que seguiram a parte negativa, com que argumentos a provaram
São Tomás, quer noutro lugar, quer na primeira parte da Suma Teológica, questão
85, artigo 4º; também Caetano, no mesmo ponto e lugar; o Ferrariense, neste livro,
questão 14, e no livro 1 , Contra os Gentios, capítulo 55º; Capréolo, no 2º livro das
Sentenças, distinção 3, questão 2; Herveu, no Quodlibet 7, questão 1 6 ; Silvestre, no
Conflato, da primeira parte, questão 1 2, artigo 1 0º; e antes deles, o Alense, na parte
4 da Suma Teológica, questão 98, membro 2; Alberto Magno, no 3º livro das Sen-
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão VI, Artigo I 529
tenças, distinção 30, artigo 4º; Durando, no prólogo das Sentenças, questão l , artigo
1 º, número 24, afastaram-se da parte negativa da questão proposta. Formularam, de
facto, várias hipóteses para explicá-la. A primeira é que as formas apresentam-se ao
sujeito de três modos. De um modo apenas como poder, de maneira que não repugna
que elas existam ao mesmo tempo, porque a potência é própria dos contrários. O
segundo modo, quanto ao acto imperfeito, e assim podem também ser encontradas
ao mesmo tempo. De facto, por exemplo, enquanto um sujeito embranquece está
nele presente quer a brancura, quer algo de contrário. O terceiro, segundo o acto
perfeito, como quando a brancura já obteve toda a sua perfeição; de modo que duas
formas de um só género não podem de modo algum estar ligadas, pois de outra
maneira seria preciso que a mesma potência fosse determinada ao mesmo tempo
para diversos actos perfeitos, o que é tão impossível como uma linha ser definida
por pontos opostos em direcção ao mesmo lado.
A segunda hipótese é que todas as formas inteligíveis estão contidas num único
género porque as coisas para que são levadas podem ser de diversos géneros, mas
respeitam à mesma potência intelectiva. Pelo que acontece que todas, tanto pelo
poder, quanto segundo o acto imperfeito, que é o meio entre a potência e o acto
perfeito, podem ser obtidas ao mesmo tempo. É deste modo que temos as espécies
inteligíveis. Não as usamos mas podemos usá-las. Existem, na verdade, como que
adormecidas, e como por elas inteligimos em acto, conservam o modo perfeito e
exacto da sua natureza.
A terceira é que aquelas que são múltiplas, podem ser consideradas de duas
maneiras, ou enquanto múltiplas, ou enquanto sustentam a razão de uma só. Por
exemplo, com as partes de um contínuo, se se tomar uma qualquer parte por si, elas
são múltiplas mas, enquanto estão num contínuo, porque se unem através dele, como
que são tidas por um em si.
A quarta é que como o que quer que seja por nós inteligível em acto, enquanto
tem na mente a sua semelhança, todas as coisas que podem ser inteligidas por uma
espécie, podem ser tomadas como um inteligível, e as que podem ser por muitas,
como muitos. Com efeito, independentemente da espécie que exprime primeira
mente uma única natureza, as coisas que são conhecidas por uma única espécie cor
respondem para que convenham naquela natureza representada pela espécie; e assim
acordam numa noção do inteligível. Mas as que são conhecidas por muitas espécies,
uma vez que tais espécies não as representam como tendo alguma razão comum, não
são percebidas como um certo inteligível, mas como muitos.
Posto isto, respondem deste modo à questão proposta. Múltiplas coisas, enquanto
múltiplas, não podem ser por nós inteligidas, mas podem-no enquanto são uma. O
que assim recomendam. Múltiplas coisas, enquanto múltiplas, apenas são repre
sentadas por muitas espécies; ora, as que são assim, não podem ser concebidas pelo
nosso intelecto ao mesmo tempo. Logo, múltiplas, enquanto múltiplas, não podem
ser por nós compreendidas ao mesmo tempo. A premissa maior é evidente pela
quarta hipótese, a menor prova-se a partir da primeira e da segunda, porque muitas
formas deste género não podem existir ao mesmo tempo segundo o acto absoluto e
perfeito, e muitas espécies inteligíveis que levam ao conhecimento existem em acto
perfeito e completo. Portanto, não podem dar-se ao mesmo tempo. E assim, é
impossível que múltiplass coisas, enquanto múltiplas, sejam conhecidas por nós.
530 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
ARTIGO II
Podem ser compreendidas ao mesmo tempo muitas coisas,
enquanto muitas
A nossa afirmação todavia é que o intelecto humano pode ao mesmo tempo inte
ligir muitas coisas, enquanto são muitas . Escoto defende-a, no primeiro livro das
Sentenças, distinção 3, questão 6; Gregório, no primeiro livro, distinção 1 , questão
1 , artigo 3º; Liqueto, na distinção 3, questão 1 ; Marsílio, na distinção 3, questão 1 1 ;
Gabriel, na distinção 1 , questão 1 0, conclusão 6; Ockham, no 2º livro, distinção 2 1 ,
e outros. E prova-se isto deste modo. A faculdade de discernir vê ao mesmo tempo
muitas coisas, enquanto muitas, tal como quando numa mesma carta examina a
negrura dos caracteres e a brancura do papiro. Portanto, também a faculdade de
inteligir, visto que é muito mais perfeita, poderá inteligir ao mesmo tempo muitas,
como muitas. O Ferrariense responde que o olho não vê a negrura e a brancura,
como sendo muitas, mas como uma, porque discerne uma e outra através de uma
espécie, de que uma parte refere a negrura, e outra a brancura. Mas não se filosofa
correctamente. Primeiro, porque coisas diferentes em espécie não imprimem a
mesma imagem, mas uma imagem diversa em espécie nos sentidos. Depois, porque
como no segundo livro desta obra, capítulo 6º, questão 2, artigo 2º, e no capítulo 7º,
questão 5, artigo 2º mostrámos, as imagens visuais, embora sejam enviadas por
diversos objectos, não ocupam partes diversas do olho, mas qualquer uma incide em
toda a pupila. De qualquer modo, visto que a pupila é tão exígua, ocupada por pou
cas espécies, não pode ao mesmo tempo compreender coisas tão diferentes e varia
das com o olhar. Terceiro, porque uma parte da imagem não representa uma parte da
coisa vista e a outra parte a outra, mas qualquer uma representa toda a coisa vista, do
modo que expusemos no lugar citado. Outro. Todas as vezes que muitas coisas são
conhecidas distintamente, são conhecidas como muitas, mas podemos ao mesmo
tempo ver distintamente três colunas, portanto podemos conhecê-las como muitas e,
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Vil/, Questão VI, Artigo Ili 53 1
isto, tanto pelo sentido, como pelo intelecto, posto que aquelas que o sentido per
cebe, o intelecto, ao mesmo tempo, intelige.
Terceiro. O nosso intelecto intelige ao mesmo tempo a pedra e o homem como
muitos, quando forma a proposição seguinte: A pedra não é homem; portanto, etc.
Não satisfazem os adversários que afirmam que o intelecto apreende, então, a pedra
e o homem como algo único. E, efectivamente, como eles próprios declaram e esta
belecem como fundamento da sua opinião, todas as coisas que são representados por
muitas espécies, não existem para o intelecto como uma, mas como muitas ; mas
homem e pedra são representados no nosso intelecto por duas espécies.
Quarto. O intelecto presta no mesmo instante atenção à premissa menor e à con
clusão, como mostrámos com Aristóteles, no primeiro dos Analíticos Posteriores,
capítulo 1 º. Ora, estes acordos caem sob enunciações diversas, enquanto são diver
sas e muitas. Logo, o juízo do intelecto mostra em conjunto muitas, enquanto mui
tas. A mesma razão e a mesma dificuldade ocorre, no que respeita à coisa presente,
quer no juízo, quer na apreensão. Logo, o nosso intelecto apreende ao mesmo tempo
muitas, enquanto muitas.
Por fim. Não repugna menos que a vontade sej a levada ao mesmo tempo para
muitas coisas, enquanto muitas, do que o intelecto o seja. Ora, a vontade é levada de
tal modo que quando no mesmo momento repele uma coisa percebe o desejo de
outra. Logo, etc.
Além disso, o que dizemos acerca do intelecto humano deverá também afirmar
-se, com muito maior razão, acerca do angélico, visto que a mente das substâncias
separadas é muito mais perspicaz e compreende ao mesmo tempo muito mais coisas.
Embora os defensores da parte contrária estendam a sua afirmação também ao inte
lecto angélico, refuta-os, um argumento, quanto a esta parte, porque os anjos em
particular, como é maRifesto, nunca cessam o seu conhecimento, e no entanto
entrementes percebem outras coisas para as quais os objectos só são conduzidos
enquanto muitos. É desta forma que alcançam o conhecimento, não pela mesma
espécie, mas pela sua substância e que inteligem as restantes pelas suas próprias
imagens.
ARTIGO III
Resolução dos argumentos do primeiro artigo
mutuamente no mesmo corpo, mas não duas ou mais espécies inteligíveis, por mais
perfeitas e absolutas que sej am.
Ao segundo, diga-se que a intenção da mente na coisa conhecida não é um outro
acto distinto do conhecimento. Por isso, como podem dar-se muitas intelecções,
assim também podem dar-se muitas intenções.
Porém o passo de Aristóteles do 2º dos Tópicos, significa que nós entrementes
sabemos muitas coisas segundo o hábito, as quais todavia segundo o acto não inteli
gimos ao mesmo tempo. Isto, de facto, não é contrário à nossa opinião. Ao quarto,
nada respeita responder, visto que esta parte, que é provada, se opõe muito pouco à
nossa conclusão.
QUESTÃO VII
Se a alma humana se intelige pela sua essência,
e igualmente se a potência de inteligir se conhece, bem como
as próprias funções e os hábitos a ela inerentes
ARTIGO I
Exercitação da questão nas diversas partes
Terceiro. Provar-se-á que o intelecto não conhece a própria função. De facto, seja
o que for que se conheça, é conhecido por algum acto. Se, portanto, o intelecto
conhece a sua função, percebê-la-á por algum acto e, mais ainda, aquela por outro e,
assim, dar-se-á uma progressão infinita na intelecção, o que de modo algum parece
que deva acontecer. Mais, porque se o intelecto conhece os seus actos, conhece os
actos sobrenaturais da fé, e de igual modo perceberá os actos da vontade, e de entre
estes, o acto de esperança e o da caridade infusa, e por isso qualquer um sabe que
está em Graça quando nela tenha estado, o que nega a autoridade da Sagrada Escri
tura naquelas palavras do Eclesiastes 9: E todavia o homem desconhece se é digno
de amor ou de ódio, mas todas as coisas se conservam incertas no futuro. Mas o
contrário, que de facto não deve negar-se que o intelecto conhece os seus actos,
ensina Santo Agostinho, no livro A Trindade, capítulos 1 0º e 1 1 º. Também, porque
se o intelecto não percebesse os seus actos, como os actos da vontade, ninguém
poderia saber se ele inteligia alguma coisa, se queria, e nada há de mais absurdo.
Quarto. Que não são conhecidos pelo intelecto os hábitos que lhe são inerentes
convence-se, porque qualquer um conheceria seja o que for se tivesse os dons do
Espírito Santo, e portanto a Graça, o que refutámos antes. Ao contrário, que a capa
cidade de inteligir conhece plenamente os seus hábitos, demonstra-o a máxima
seguinte: aquilo pelo qual alguma coisa é, é mais do que aquilo que a coisa é. Por
isso, como o intelecto conhece as restantes coisas e as espécies inteligíveis pelo
hábito, segue-se que os próprios hábitos recaem primeiro no seu conhecimento e na
sua ciência.
ARTIGO II
Resolução da controvérsia
forme Averróis registou, a matéria prima no género dos sensíveis, assim também a
mente humana obteve o último lugar entre as substâncias intelectuais. Com efeito,
como a matéria prima está em potência para as formas sensíveis, assim está a alma
para as formas inteligíveis. E como aquela na ordem dos sensíveis, assim esta na
série dos inteligíveis, é pura potência. Donde, tal como a matéria apenas cai sob o
sentido pelo benefício da forma que lhe sobrevém, assim a alma não se reduz ao acto
inteligível, isto é, não está apta para se inteligir a si própria (enquanto não passar
para outro estado), a não ser pela chegada das espécies. Daí que Aristóteles, neste
livro, capítulo 4º, texto 1 5 , tenha ensinado que a nossa alma se intelige a si própria,
assim como também intelige outras coisas, a saber, pelas espécies. Também o texto
8 diz que a alma não realiza nada em absoluto segundo o intelecto, a não ser quando
já está em acto primeiro pelas espécies. Pelo que é possível que ela não sej a imedia
tamente capaz de se conceber a si própria, mas seja levada pela percepção das outras
coisas ao conhecimento de si, porque, como é evidente, primeiramente apreende
aquilo cuj a espécie é extraída pelos sentidos, por exemplo, a natureza do homem, a
seguir reflecte sobre o seu acto, e percebe-o, e a partir dele conhece, quer a imagem,
quer a potência pela qual ela chega a acto. A seguir, dado ter descoberto que a ima
gem da coisa comum não pode ser algo material ou corpóreo, mas totalmente des
provida de matéria, e que por isso consiste apenas numa potência espiritual e numa
substância incorpórea, como num sujeito, percebe-se finalmente como uma certa
substância imaterial, que participa da razão e da inteligência.
Mas que a alma não se intelige pela espécie que lhe é própria, demonstra-se, além
disso, com os argumentos que provam que não são produzidas as espécies das coisas
singulares, argumentos acima referidos, e também aqueles que recomendam que não
se produzem no nosso intelecto no presente estado da vida espécies das coisas ima
teriais. Isto pode ser confirmado, porque o que é inteligido pela própria espécie, é
inteligido por um acto directo, mas a experiência testemunha que em nós somente
pelo acto reflexo é que o conhecimento chega à nossa alma. Consulte-se São Tomás,
questão 1 0, A Verdade, artigo 8º, e o Ferrariense, no livro 3 Contra os Gentios,
capítulo 46º. Dizemos que a alma quando está no corpo não se conhece de forma
imediata porque fora do corpo, visto que passa de certo modo para o estado das
substâncias separadas e tem um modo mais independente de inteligir, já não intelige
por reflexão sobre os fantasmas . Toma-se por si inteligível em acto primeiro e por
isso intelige-se a si mesma imediatamente pela sua substância, como ensina São
Tomás, Suma Teológica, 1 ª parte, questão 89, artigo 2º, e outros, noutros pontos;
também Henrique de Gand, no Quodlibet 1, questões 12 e 1 3 . Mas acerca disto de
forma mais límpida se tratará no Tratado da Alma Separada. Fica já patente do
excurso anterior de que modo o intelecto quando está no corpo se conhece não só a
si, mas também conhece as próprias funções e os hábitos que lhe são inerentes, que
era a outra parte da questão. O que dissemos acerca da apreensão da espécie, deve
afirmar-se também de certos hábitos. De facto, a alma conhece-os através dos actos,
porque experimenta operar com a facilidade e a prontidão própria dos hábitos. No
que diz respeito aos actos de vontade, deve julgar-se daqui a pouco sobre eles. Com
efeito, visto que estão presentes ao intelecto obj ectivamente, primeiro, e inteligivel
mente por si mesmos, os actos da vontade podem ser percebidos por ele, por conhe
cimento directo; mas não como actos de inteligir, pois, uma vez que resultam do
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VIII, Questão Vil, Artigo Ili 535
mesmo intelecto, nele a intervenção dá-se por uma acção reflexa e secundária para
captar o conhecimento deles. Mas o intelecto conhece os hábitos da vontade quase
como os seus, quer dizer, pela facilidade com que se experimenta que a vontade age.
Leia-se São Tomás, no ponto citado, artigo quarto.
ARTIGO Ili
Explicação dos argumentos que tinham sido aduzidos
contra ambas as partes
os penetra distintamente e quanto ao modo particular de cada um, mas apenas confu
samente. Pelo que acontece que a partir deste conhecimento ninguém pode saber se
está em Graça. Mas a outra parte deste mesmo argumento prova correctamente que
os próprios actos são conhecidos pelo intelecto, embora não conhecidos pela essên
cia, visto que, para esta reciprocidade exige-se a espécie inteligível de alguma coisa
a partir de cujo conceito a mente progride para a noção dos referidos actos.
Ao quarto, embora a alma conheça do modo referido os hábitos da ordem natural
que lhe são inerentes, decerto que não pode conhecer excepto se lhe chegarem divi
namente os dons do Espírito Santo, que lhe são próprios, a Graça e a Caridade, por
que não é claro se a doçura e a inclinação para exercer as acções diligentes que estes
hábitos trazem consigo, é originada por estes, se por outros hábitos naturais que
podem ser alcançados sem a Graça. À segunda parte do argumento deve dizer-se,
que aquela afirmação, 'aquilo pelo qual alguma coisa é, é mais do que aquilo que a
coisa é' , deve ser inteligida e aplicada deste modo à força do argumento: que
quando, por exemplo, se conhece alguma coisa pelo facto de se conhecer uma outra
coisa, é necessário que seja mais conhecido isso em virtude do qual a conhecemos.
Ora, as coisas são conhecidas porque as suas espécies e hábitos são conhecidos;
portanto, etc . Como, portanto, a premissa menor é negada por nós por ser falsa, é
evidente, por esta prova, que os hábitos não são conhecidos primeiro por nós, mas
que são conhecidos pela ordem que explicámos.
QUESTÃO VIII
Se é necessário que o que intelige deve tomar em consideração
os fantasmas, ou não
ARTIGO I
Que argumentos recomendam que não é necessário
perfeito e mais livre de inteligir, independente do corpo. Por isso, poderá inteligir
sem a obra dos sentidos, visto que poderá inteligir livremente.
Segundo. A fantasia depende mais do sentido externo do que o intelecto depende
da fantasia, visto que o intelecto, como é uma potência imaterial, está por isso muito
mais separado do corpo do que alguma faculdade fixa a um órgão material. Ora a
fantasia, cessando todo o acto dos sentidos externos, pode produzir as suas funções.
Logo, também, o intelecto.
Terceiro. O intelecto contempla as coisas imateriais incorpóreas, como Deus e as
inteligências, mas estas de modo algum caem debaixo da fantasia, visto que estão
fora dos limites das forças corpóreas. Portanto, pelo menos a alma, não considera os
fantasmas para a intelecção de todas as coisas. Acrescente-se que Aristóteles, no
ponto antes citado, quando mostrava uma tal consideração, ocupava-se apenas da
ciência das coisas da física e da matemática. Assim sendo, não parece tê-la indicado
para os obj ectos de todas as disciplinas que têm de ser percebidos.
Quarto. Os que durante o êxtase são arrebatados para a contemplação das coisas
divinas, separam-se dessas funções dos sentidos, tanto externos como internos; por
tanto, pelo menos ao inteligirem eles não tomam em consideração os fantasmas.
Prova-se a premissa menor. Primeiro, porque esta própria palavra, ' arrebatamento ' ,
também significa êxtase. Depois, é evidente que aqueles que estão absolutamente
dirigidos para a observação de alguma coisa não vêem um objecto que entretanto se
apresente, e isto pela razão de que, como a potência da alma é finita e limitada, se se
ocupa intensamente de alguma coisa por uma única potência cessa a operação da
outra; portanto, a aplicação da mente na consideração de qualquer objecto pode ser
tão intensa que se produzirá perfeitamente por todas as funções tanto dos sentidos
externos como internos. E, que isto aconteceu algumas vezes aos insignes santos
varões pelo dom da contemplação é evidente, a tal ponto que quando se abstraíam
dos sentidos não sentiam a aproximação do fogo.
ARTIGO II
Diversas opiniões dos autores e explicação do verdadeiro parecer
desta lei geral uma certa sublime e eminente contemplação, pela qual a mente,
embora vivendo no corpo, se eleva de algum modo sobre a massa do corpo, de
maneira que já não parece cuidar da afluência dos fantasmas que lhe sobrevêm.
A nossa posição é a seguinte. A alma junta ao corpo não glorioso, pelo menos
quando exerce intelecções habituais ou comuns, toma necessariamente em conside
ração os fantasmas. Aristóteles transmite esta afirmação, neste livro, capítulo 7º,
texto 30, e no capítulo 8º, texto 39, embora nestes pontos lhe junte a moderação da
qual trataremos daqui a pouco, embora pareça que ele também tinha falado expres
samente, sobretudo naquele texto, não acerca do conhecimento de todas as coisas,
mas somente do conhecimento das coisas sensíveis.
Prova-se, portanto, a verdade desta matéria com um duplo indício. O primeiro,
porque vemos que todas as vezes que os sentidos internos, ou por interferência do
sono, ou por outro impedimento, foram aprisionados, também é perturbado e atado o
juízo do intelecto, e ele não desempenha correcta e pontualmente as suas funções.
Isto, decerto, não provém de outra coisa a não ser porque, embora a faculdade de
inteligir não pertença ao corpo, ela requer todavia o consórcio das forças internas
que incidem nos órgãos corpóreos. O segundo indício é que, aquilo que em si pró
prio seja quem for experimenta quando se esforça por compreender alguma coisa, é
a formação para si de umas dadas imagens materiais ou fantasmas com os quais de
alguma maneira observa aquilo para cuja intelecção dirige o espírito. A isso diz
respeito o seguinte, que São Gregório de Nazianzo, em A Teologia, na oração
segunda, escreveu. Não é possível por nenhuma razão que alguém decida andar para
além da sua sombra (na verdade, quanto mais a perseguir, mais ela chega sempre
primeiro), ou que o olho se ligue às coisas que recaem na vista além da luz intermé
dia e do ar, ou que os peixes saiam fora das ondas. Da mesma maneira também é
impossível àqueles que estão encerrados nos corpos, sem o auxílio das coisas corpó
reas e dos sentidos, inteligirem aquilo que está totalmente ligado pelo espírito e pela
razão. Com efeito, sempre que algum sensível sobrevenha, de passagem, a nossa
mente, ainda que separada ao mais alto grau do contacto das coisas que se podem
observar e recolhida em si própria, esforça-se por ter comércio com as coisas afins
que escapam à penetração dos olhos .
Existe, porém, uma dúvida neste ponto, donde sobrevém à alma esta necessidade
de se virar para os fantasmas? Escoto, no primeiro livro das Sentenças, distinção 3,
questão 3, e no 4º livro, distinção 45, questão 2, alega uma dupla causa, a saber, ou o
pecado original, para cuja pena a alma decaiu e foi vergada até ao corpo, a que res
peita a afirmação de Santo Agostinho, no livro 15 de A Trindade, capítulo 27º: 'Que
causa há para que não possas ver a própria luz, a não ser a doença? Quem ta causou,
senão a iniquidade?' Ou a ordem natural das potências, pelo que acontece que
quando uma atinge o objecto próprio, a outra, que está apta a ser levada para o
mesmo objecto, dirige-se ao mesmo tempo para ele. De entre estas causas, a pri
meira não parece correctamente transmitida. Com efeito, tal como a dependência
que o intelecto possível tem dos fantasmas quanto à recepção das espécies inteligí
veis que são produzidas pelo intelecto agente com o ministério daqueles de modo
algum teve origem no pecado original (se os primeiros pais não tivessem pecado, os
seus descendentes produziriam por obra dos seus fantasmas, tanto as espécies inteli
gíveis, como as ciências, como São Tomás ensina na primeira parte da Suma Teoló-
Livro Terceiro. Explicação do Capítulo Vll/, Questão Vlll. Artigo li 539
quanto ao uso da ciência infundida, nem adquirida, esteve privada do recurso aos
fantasmas, porque quer em razão da união, quer em razão da beatitude, não estava
subordinada ao corpo ou dele dependente. Acrescentámos, quando a alma administra
as intelecções habituais ou comuns, para excluirmos a contemplação, que é feita
pelo êxtase perfeito e pelo arrebatamento. Nela, com efeito, cessam tanto os sentidos
externos como os internos, como prova o último argumento do artigo anterior.
ARTIGO Ili
Explicam-se certas dúvidas
Ocorrem todavia, neste ponto, umas certas dúvidas, cuja solução muito contribui
para perceber melhor a dependência do intelecto dos fantasmas. A primeira é de que
modo a alma bem-aventurada no corpo glorioso pode expor-se às funções dos senti
dos e recorrer ao fantasma quando quiser, se acontece o contrário àqueles que têm o
êxtase nesta vida mortal, dado que o conhecimento intuitivo da natureza divina é de
tal forma sublime que chama mais a alma a si, a tal ponto que abstrai dos sentidos.
A outra é se no êxtase não só cessam totalmente as operações animais, mas também
as naturais e as vegetativas, visto que a mesma razão parece existir numas e noutras.
A terceira, se o êxtase se pode dar pela força da natureza. À primeira destas dúvidas
deve dizer-se com São Tomás, Suma Teológica, 2ª parte da 2ª, questão 1 75 , artigo
4º, que embora os bem-aventurados, uma vez assumidos os corpos gloriosos, devam
ser levados para Deus em toda a intenção da mente, todavia neles não se há-de dar a
abstracção dos sentidos, em virtude de uma certa redundância do intelecto para os
sentidos. Por isso, segundo a própria regra da visão beatífica poderá a alma ao
mesmo tempo prestar atenção aos fantasmas e aos sensíveis externos, não porque
esta contemplação sej a mais eminente do que as restantes, nem porque a mente não
seja para ela levada por um contacto muito mais veemente, mas porque com a luz
divina será de tal modo iluminada que pode ir ao encontro de ambos. Não obsta que
São Paulo, também segundo aqueles que pensam que ele viu a essência divina no
arrebatamento, tenha sido apartado dos sentidos, como anotou São Tomás, no ponto
citado; faltou-lhe, isso sim, a referida redundância para as faculdades inferiores da
alma, porque contempla a divina essência não de maneira duradoura, como os bem
-aventurados na pátria, mas de maneira breve e apenas com uma visão transitória.
Acrescente-se que não é claro se a alma de São Paulo esteve nessa altura separada
do corpo, visto que o próprio confessou desconhecer isso. Daí que não podemos
afirmar se algo lhe aconteceu realmente quanto à abstracção dos sentidos, isto é, se
num corpo morto pela separação da alma os sentidos se extinguiram nele, ou se num
corpo não morto apenas ficaram profundamente adormecidos. Leia-se São Tomás,
na mesma questão, artigos 5º e 6º.
À segunda dúvida responde o Abulense, no ponto citado, que no êxtase todas as
potências além do intelecto estão em repouso. Para explicação deste assunto apre
senta a diferença entre a ligação das potências que existe no sono e aquela que existe
no êxtase. No sono, as faculdades cognitivas encontram-se impedidas, isto é, assim
como os sentidos externos não agem em absoluto, também os internos e o intelecto,
ou estão totalmente desocupados, posto que as insónias não dominam, ou operam
somente de modo obscuro e imperfeito. Mas, uma vez efectivamente ligadas as
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo VI/l, Questão VIII, Artigo I/l 54 1
que o êxtase imperfeito, no qual não cessa totalmente a operação da fantasia, pôde
acontecer naturalmente àqueles homens, visto que, como dissemos, o presbítero
Restituto narrava que quando era arrebatado do sentido, ouvia as vozes dos que
exclamavam, como que ao longe, como refere Santo Agostinho no mesmo passo.
Então, se percebia as vozes e dado que nele não estava adormecido o sentido da
audição, é porque não se encontrava num êxtase perfeito.
ÁRTIGO IV
Resposta aos argumentos do primeiro artigo
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO IX
a. Cum autem animalium autem 432 a 1 5 Como havia definido a alma como
-
do intelecto. Ele inquiriu sobre a potência motora não por acaso, mas porque é o
princípio da locomoção e da marcha dos animais; se ela é uma parte ou faculdade
da alma; se é a própria substância da alma; e, ainda, se tiver de existir uma
potência da alma, se ela se distingue das restantes ou não.
b. Atque hic existit continuo dubitatio 432 a 22 Como as questões propostas não
-
da marcha não é o sentido, porque é claro que existem certos animais que não se
movem no lugar, mas vivem fixos no mesmo lugar (os gregos chamam-lhes zoó
fitos, os latinos podem chamar-lhes plantanimais) que possuem sentido, mas não
possuem a referida faculdade de movimento local, visto que carecem de órgãos
para se dirigirem para lugares diferentes.
e. At uero neque ratiocinandi uis 432 b 26 Prova que a faculdade motora e a
-
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO X
motora não era, agora mostra o que ela é. E visto que a faculdade motora ou é
directora ou impulsionadora ou executiva, ensina quais são os princípios pelos
quais é dirigida e impelida a potência que executa o movimento. Estabelece,
portanto, que o intelecto prático e o apetite são princípios do movimento de
locomoção e avisa que, pela designação de intelecto prático, se compreende tam
bém a imaginação, porque partilham entre si a função. Com efeito, tal como os
homens pela razão, se dirigem para o movimento e para toda a acção, assim tam
bém os animais irracionais, pela imaginação e, por vezes, também os homens,
quando a perturbação do espírito vence a razão. E ele prova esta afirmação, por
que tanto o apetite, como o intelecto respeitam a um fim que deve ser alcançado
com o movimento de locomoção. Atente-se, porém, que o intelecto prático é o
princípio dirigente, o apetite, o princípio impulsionador, porque cabe ao intelecto
prático propor o que deve ser evitado e acolhido, e é função do apetite evitar ou
acolher. Afirma também que o intelecto que move, calcula em vista de alguma
coisa, porque o contemplativo investiga a verdade por causa de si, mas o prático,
por causa da obra, pois todo o apetite é conduzido em direcção a alguma coisa
que deve ser prosseguida, e o intelecto prático é o que move o apetite, daí tam
bém se chamar apetecível o fim a partir do qual começa a consideração do inte
lecto prático.
b. Intellectus igitur rectus est omnis 433 a 26 - Com base no que disse tem a
oportunidade de explicar por que razão de vez em quando nos enganamos nos
apetites e nos movimentos, afirmando em primeiro lugar que todo o intelecto está
certo, o que deve ser entendido acerca do assentimento dos princípios comuns ou
dos que pertencem à contemplação, como 'qualquer todo é maior do que a parte' ,
o u que pertencem à acção, como 'não é lícito prejudicar ninguém' . E assim,
nenhum erro atinge os primeiros princípios, nem as coisas que são ordenadas
pelos primeiros princípios práticos, visto que de maneira certa e hábil considera
mos o que deve ser querido ou repudiado. Se, em suma, o apetecível move sem
pre, ou ele é simplesmente o bem, porque corresponde à regra e ao juízo da recta
razão, ou é o que transporta apenas a espécie do bem, através da qual não atrai a
si nenhum apetite. Se não forem representados como bem e como apetecível, não
se produz nenhum movimento, o que no argumento é com certeza atribuído ao
apetite que tem o primeiro lugar entre outras coisas que movem interiormente o
próprio animal.
c. Constar etiam eos oportere 433 b 1 Rejeita a divisão platónica das faculdades
-
outro modo, realmente é na verdade uma única e a mesma a potência que intelige
e a que delibera.
d. Cum autem appetitiones 433 b 5 Declara que o apetite que move o homem é
-
duplo; superior, o que segue a razão, e inferior, o que é movido pelo comando da
fantasia, mas prova-o a partir das acções contrárias sobre o mesmo objecto, as
quais escolhemos num mesmo tempo. Mas esta oposição dos apetites encontra-se
apenas no homem, porque só ele percebe exactamente a separação entre o tempo
futuro e o presente.
e. Cum tria sint 433 b 1 3 Conclui que são três as componentes respeitantes ao
-
movimento dos animais. A primeira é aquilo que move; a segunda, aquilo por
que move; a terceira, o que se move. Por sua vez aquilo que move é duplo. Ou,
com efeito, é imóvel, ou tal como move assim também é movido. O imóvel é o
próprio apetecível. O que move e é movido é o apetite que, movido pelo objecto,
move os membros. Acrescente-se a este movente a faculdade directiva, quer sej a
o intelecto, quer sej a a fantasia, a qual movida pela espécie move o apetite, visto
que não apetecemos senão o que conhecemos. Mas aquilo que se diz que é em
absoluto movido é o animal. E por isso, aquilo com que move é a parte do corpo
pela qual o movimento é executado.
f. Nunc ut in summa 433 b 2 1 Conclui sucintamente o que se deve dizer acerca do
-
EXPLICAÇÃO DO CAPÍTULO XI
pio do movimento nos homens, e diz que é a razão deliberativa, a qual pertence
apenas aos animais dotados de inteligência e de razão, porque deliberar sobre o
que deve ser evitado ou acolhido é tarefa de ordem mais elevada do que a que
pode caber aos animais irracionais. Mas avisa que na sua deliberação deve ser
respeitada uma regra ou fim ou algo deste género, porque avaliamos o que deve
preferencialmente ser feito, porque qualquer um é levado para aquilo que consi
dera superior. Mas isso apenas segundo um certo padrão, isto é, consoante se
atinge aquilo que é costume considerar como mais elevado. Donde, é evidente,
diz ele, que a razão deliberativa faz de todas as coisas uma só, na medida em que
antepõe uma às restantes. E, na verdade, das três coisas que se lhe oferecem,
rejeita uma, usa outra como medida, aprova e acolhe a terceira E a causa disto é
porque aos animais irracionais não cabe julgar, pois embora tenham fantasia não
podem usar o silogismo através do qual concluem que uma deve ser preferida a
outra.
b. Vincit autem interdum 434 a 1 6 Ele adverte entretanto que a deliberação da
-
o pior. Isto somente acontece por intervenção da nutrição. Quanto à segunda parte,
ela recomenda-se porque os corpos compostos não perfeitos, como as plantas, nas
quais domina abundantemente a espessura da terra, não podem ter o tacto, que é o
primeiro de entre todos os sentidos e fundamento dos restantes, pois o tacto exige
uma certa medida e alguma presença da matéria para receber as formas sensíveis.
tacto e de gosto, que é um certo tacto. Prova isto, porque na natureza nada acon
tece por acaso, mas todas as coisas tendem para um fim, por isso, os animais que
se movem localmente terão necessariamente a faculdade de andar em razão de
um fim, perseguir as coisas saudáveis e rejeitar as nocivas ; mas não o podem
fazer, se não forem dotados de tacto e de gosto; logo, têm estes dois sentidos. Se
se objectar que as lapas e os animais que estão fixos a algumas rochas não se
podem mover localmente e que todavia vivem e sentem. Responde que esses
animais carecem da faculdade de ºse mover localmente, porque têm junto o ali
mento, mas os restantes têm-no longe, razão pela qual o têm de procurar com o
movimento.
b. Fieri autem nequit 434 b 3 Pode alguém dizer que os animais que caminham,
-
caso estejam na posse da faculdade intelectiva, podem através dela j ulgar o agra
dável e o nocivo, razão pela qual o sentido não é necessário. Responde que não
pode suceder que um corpo tenha o pensamento e não tenha a faculdade sensi
tiva, porque se não fosse assim a união de uma tal alma e do corpo não termina
ria, nem no bem da alma, nem no bem do corpo. Não no bem da alma, porque a
alma intelectiva está unida ao corpo a fim de que o ministério dos sentidos pre
pare o conhecimento das coisas e aquele fim cessaria então. Não no bem do
corpo, porque a união do corpo não se tomaria mais firme ou mais duradoura.
c. Quod quidem ex hisce perspicuum 434 b 1 1 De novo é de opinião que o tacto e
-
o gosto estão presentes em todos os animais, mas não assim os restantes sentidos,
o ouvido, a vista, o olfacto, os quais não são dados ao animal por necessidade,
mas por utilidade, e pertencem acima de tudo àqueles que se deslocam. Com
efeito, são dados pela natureza para as coisas que têm de ser percebidas de longe.
Donde, os seus objectos mudarem primeiro o meio externo e depois levarem a
sua imagem através dele para os sensitérios. Mas de que modo se deve entender
que o gosto está presente em todos os animais e qual seja a sua necessidade, já
expusemos noutro ponto desta obra.
nos compostos. Daí que aqueles animais que têm em abundância muita matéria
terrestre careçam de sentido, ainda que vegetem, tal como as plantas, e seus
parentes e afins, como os cabelos e os ossos.
b. Haec cum ita sint 435 b 4 A segunda conclusão é a seguinte. Quando é des
-
QUESTÃO !
Se o apetite se divide correctamente em intelectivo e sensitivo
ARTIGO I
Não parece correctamente dividido
Temos de examinar, neste ponto, as coisas que foram ditas sobre o apetite e a
faculdade motriz nos capítulos anteriores. Primeiramente suscitamos a questão pro
posta apenas acerca do apetite que acompanha o conhecimento. É evidente, de facto,
que para além do apetite sensitivo e do intelectivo também existe um outro, comum
tanto aos seres animados, como às coisas inanimadas, denominado natural, que não
é outra coisa, senão a inclinação, pela qual, sem nenhum conhecimento prévio cada
um é levado para alguma coisa que é conveniente para si, como a propensão da
matéria para a própria forma. Acerca deste assunto leia-se São Dionísio, 4º capítulo
de Os Nomes Divinos; São Tomás, nas questões A Verdade, questão 25, artigo l º, na
lª parte da Suma Teológica, questão 78, artigo 1 °, e na Suma Teológica, 1ª parte da
2ª, questão 26, artigo 1 º. Que, portanto, tal apetite tomado também nesta restrição
não se divide correctamente em sensitivo e intelectivo, parecem-no mostrar os
argumentos seguintes. As potências distinguem-se pelos objectos e estes dois apeti
tes são conduzidos para o mesmo objecto. Não são, portanto, potências diferentes.
Prova-se a premissa menor, porque um e outro são inclinação para o seu bem, e
alcançado este, colhem igualmente deleitação. Segundo argumento. Tal como o
apetite segue a apreensão, assim o movimento local segue o apetite. Ora, a faculdade
que move em relação ao l u gar não é diferente naqueles que carecem de razão e nos
que são dotados dela. Portanto, também a faculdade apetitiva. Terceiro. A potência
cognoscente não é apetite sensitivo nerri intelectivo. Mas é apetite. Logo, aquela
divisão não é perfeita. Prova-se a premissa menor, porque as perturbações ou as
paixões da alma são próprias do apetite, e no entanto estas observam a potência
cognoscente. De facto, a doença, segundo o testemunho de Cícero, livro 4 das
Questões Tusculanas, é definida como uma convicção actual do mal presente, em
550 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
que parece ser certo o estar-se abatido e retraído no espírito; a alegria, como a con
vicção actual do bem presente, em que se considera ser rectamente levado; e o
medo, como a convicção do mal iminente. Por último, cada uma das restantes afec
ções chama-se convicção ou consideração que, como é evidente, somente respeita à
potência cognitiva. Acrescente-se o que disse Santo Agostinho, no livro 1 2 de A
Trindade, capítulo 1 2º: a serpente, que aconselhou o pecado aos primeiros pais,
fingia e simbolizava o apetite sensitivo. Mas persuadir pertence à potência cognos
cente. Quarto. A admiração e o riso são afecções do apetite, mas não do intelectivo
ou do sensitivo. São-no, portanto, de outro. Por isso, por um lado parece que se
distinguem muitos apetites, por outro, muito poucos.
ARTIGO II
É estabelecida a parte afirmativa da questão
Deve afirmar-se, todavia, com Aristóteles, neste livro, capítulo 1 0º texto 1 7, e no
livro 1 da Grande Moral, capítulo 1 7º, e a escola comum dos filósofos, que temos
um duplo apetite, um intelectivo, que segue o conhecimento do intelecto, e que se
chama vontade; o outro sensitivo, que o conhecimento do sentido interno antecede.
Mas prova-se esta afirmação. Primeiro, quanto ao apetite intelectivo, porque é evi
dente que apetecemos as coisas espirituais e comuns em relação às quais não pode
mos ser levados pela faculdade do órgão corpóreo, visto que a referida faculdade
tão-somente persegue as coisas que a fantasia produz. A fantasia, contudo, não com
preende nem os objectos espirituais, nem os universais. Por isso terá necessaria
mente de existir em nós uma potência apetitiva que sej a movida pelo movimento do
conhecimento intelectivo. Mas esta é a vontade. Depois, que para além dela haja
outro apetite, o sensitivo que tende apenas para os singulares sensíveis, aconselha
-se, dado vermos que os animais perseguem e evitam as coisas nocivas, funções
estas que sem dúvida brotam do apetite. Mas que em nós reside não só o apetite
superior, mas também o inferior, quer porque temos em comum com os animais a
natureza sensitiva (e portanto se lhes pertence a eles, também a nós pertencerá esta
faculdade), quer porque, como Aristóteles concluía no capítulo 1 0º, experimentamos
em nós, ao mesmo tempo a repulsa e o apetite da mesma coisa. Como quando, por
exemplo, o apetite apetece algo de bom e deleitável, mas a vontade repudia isso
mesmo e coíbe a apetição que surge de outra parte. Como estes actos não podem
existir pela mesma potência, é evidente o argumento de que em nós tem lugar um
duplo apetite do qual aquelas brotam.
Porém, dado que os referidos apetites se distinguem em natureza e em espécie,
facilmente se pode concluir das afirmações, por que é que então reclamam objectos
diferentes. Na verdade, a vontade é levada para o bem, tanto universal, como singu
lar, tanto o causado pela matéria, como o privado dela. Mas o apetite inferior é ape
nas levado para o bem material e singular. Além disso, porque a vontade é potência
imaterial, mas o apetite sensitivo é uma faculdade corpórea. As coisas que são desta
maneira não podem encontrar-se numa mesma natureza específica. Não obsta que
Aristóteles, no ponto citado antes, texto 59, tenha escrito que estas potências cons
tituem um uno, que se distinguem, no entanto, em número. Com efeito, com estas
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xll/, Questão !, Artigo li/ 551
palavras não quis indicar outra coisa, senão que elas obtêm uma razão genérica e
única comum, que uma não é a outra, mas que na realidade são contadas como duas.
ARTIGO Ili
Em que diferem entre si o apetite sensitivo e o intelectivo
Existem, contudo, entre estes dois apetites várias diferenças. A primeira, de facto,
é que a vontade segue o comando da razão, o apetite sensitivo segue a imaginação
ou fantasia. Mas poder-se-á objectar que a vontade, contra o conselho da razão per
segue os prazeres, declina as coisas saudáveis, principalmente quando o medo, o
desejo e outras perturbações atormentam como tempestades ventosas . Nesse caso, a
razão, ocultada por nuvens, não afasta os raios nem domina as velas. Logo, não foi
correctamente que dissemos que a vontade segue o governo da razão. Deve respon
der-se que embora a vontade nem sempre se constitua pela regra da virtude e abrace
o conselho da recta razão, todavia segue sempre a razão, isto é, aquilo que o inte
lecto a si próprio propõe, visto que, como Santo Agostinho, no livro 10 de A Trin
dade, capítulo 1 º, afirma, nada é querido que não sej a conhecido.
Segunda. Eles diferem, porque as acções da vontade são simplesmente livres, mas
as do apetite sensitivo apenas o são em virtude de uma certa oculta e imperfeita
liberdade, também comunicada de outro lado, quer dizer, da conjunção com a von
tade. O apetite inferior, por isso, alcança aquela liberdade apenas no homem, não
nos animais irracionais, que são levados pelo ímpeto da natureza e pela necessidade,
não pela vontade. Por isso, uma vez o objecto representado, é inteiramente próprio
da vontade querer ou não querer, ou pelo menos suspender o acto (a não ser que ele
seja o sumo bem claramente visto, porque aí, é de tal modo arrebatada que a vontade
do apetite não é capaz de inibir o acto do amor), enquanto o apetite dos animais
irracionais, quando a fantasia lhe apresenta a coisa como agradável e apetecível,
necessariamente é levado para ela. Portanto, os animais irracionais, como afirma São
Damasceno, no livro 2 da Fé Ortodoxa, capítulo 27°, são mais conduzidos, do que
agem. Advirta-se todavia, que há certos actos de vontade que os teólogos chamam
'anteriores ao primeiro' , pois apenas são exercidos por um conhecimento prévio;
dado seguirem o juízo da razão não livre, mas repentino e necessário, eles não são
livres, nem está no nosso poder suspendê-los, o que igualmente deve ser dito acerca
dos actos que as crianças, os loucos e outros a quem foi impedido o uso da razão,
praticam. Mas alguns pensam que estes têm alguma liberdade. Acerca deste assunto
falaremos noutro ponto.
Terceira diferença. A vontade é uma potência imaterial que assenta na substância
da alma, mas o apetite sensitivo é uma faculdade corpórea que está presente na
matéria; sucede assim que a vontade reflecte acima dos seus actos, porque ela quer o
querer, mas não acontece o mesmo com o apetite sensitivo, como dizíamos noutro
ponto acerca do intelecto e dos sentidos internos. Com efeito, aquele pode reflectir
-se acima de si próprio, estes, porém, muito pouco. Certamente que esta reciproci
dade é própria de obra mais elevada do que da que pode ser feita pelo que é material.
Quarta. A vontade, conforme dissemos, é levada tanto para as coisas singulares
como para as comuns, tanto para as que as que são desprovidas de matéria, como
para as que estão imersas na matéria. Já o apetite sensitivo, só para as singulares e
552 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
materiais. Isto é evidente a partir daquilo que discutimos antes. De facto, o apetite
sensitivo, visto que é inerente ao órgão corpóreo, não pode elevar-se acima da sin
gularidade e da espessura da matéria, tal como a imaginação, que acompanha o que
a precede.
Quinta. A vontade move, por si mesma, o apetite sensitivo pela ordem natural, de
acordo com o Génesis 4, no fundo de ti estará o teu apetite e tu o dominarás. Isto
porque a vontade leva vantagem de três maneiras. De uma maneira, por intervenção
do conhecimento sensitivo, isto é, ordenando ao sentido interno que apreenda que
este e aquele afecto podem excitar o apetite. Por exemplo, para que pense acerca da
morte, para excitar o temor, ou acerca da coisa agradável, para o desejo. De uma
segunda maneira, ordenando imediatamente ao próprio apetite, para que acerca do
objecto que lhe é apresentado escolha, mantenha ou reprima um acto. De forma que
o homem forte, como ensina Aristóteles, no livro 4 da Ética, quando se excita, para
lutar com força, ordena ao apetite que se tome furioso. Ainda que o apetite nem
sempre obedeça à vontade, mas entretanto lhe resista, conforme S. Paulo aos Roma
nos 7, vejo outra lei nos meus membros que repugna à lei da minha mente. São
Tomás explica a causa disto, na Suma Teológica, parte 1 , questão 8 1 , artigo 3º, e na
1 ª parte da 2ª, questão 9, artigo 2º, a partir de Aristóteles, 1 º livro da Política capí
tulo 3º, porque a vontade não domina com apetite despótico, mas com domínio
senhorial, real e político, isto é, não para os servos, que não rejeitam as ordens do
senhor, mas para os cidadãos que algumas vezes as recusam. Terceira maneira. A
vontade move o apetite, conforme alguns pretendem, por um certo fluxo ou redun
dância; como, por exemplo, por causa do vigor o acto da vontade faz redundar no
apetite sensitivo um movimento semelhante sobre a mesma coisa, por causa da con
junção e da ordem que estas duas potências têm entre si.
Com efeito, não só a vontade move o apetite, mas também move as restantes
potências aptas a obedecer, designadamente, porque em todas as potências activas
ordenadas, aquela que observa um fim universal excita as que se ocupam de fins
particulares, como parece acontecer tanto nos assuntos físicos, como nos políticos.
Com efeito, os corpos celestes, que procuram a conservação comum do mundo sub
lunar movem os corpos inferiores, cada um dos quais procura para a sua espécie,
quer a tutela, quer a conservação do indivíduo. Também o Rei, que se ocupa do bem
comum de todo o reino, move com o seu império príncipes e governadores dos cida
dãos, que tendo seus súbditos aplicam o seu cuidado no governo. Todavia, o objecto
da vontade é o bem e o fim em comum, ou em toda a sua amplitude, mas uma qual
quer potência tende para algum bem particular que lhe é conveniente. Por essa razão,
será próprio da vontade excitar as restantes potências para os seus actos para além
das faculdades da alma vegetativa, que não estão subordinadas ao nosso comando.
Acrescente-se a estas a potência motora, enquanto exerce o seu acto no coração e
nas artérias. Com efeito, este movimento não depende da vontade. Leia-se São
Tomás, Suma Teológica, parte 1 , questão 82, artigo 4º, e A Verdade, questão 1 4,
artigo 1º.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão l, Artigo IV 553
ARTIGO IV
Resolvem-se os três argumentos do primeiro artigo
ARTIGO V
Resolve-se a primeira parte do quarto argumento
e trata-se da admiração
ARTIGO VI
Resolução da outra parte do argumento;
disputa acerca do riso
Acorramos agora à outra parte do mesmo argumento que mostra que devemos
analisar em que consiste o riso, e outras coisas a ele respeitantes. Questão certa
mente pouco risível, que muito inquieta os filósofos, acerca da qual está aquilo que
Cícero diz, no segundo, O Orador: Demócrito analisou o que é o próprio riso, de
que modo é suscitado, quando existe, de que forma existe, e como irrompe repenti
namente, como quando cheios de vontade não o podemos conter, e de que modo
preenche ao mesmo tempo o tronco, a boca, as veias, o rosto. Mas isto, de facto, não
é assunto para aqui. Se o fosse não seria vergonhoso que eu o desconhecesse, porque
nem os próprios que o dizem deter o conhecem. Mas eis o assunto. Em primeiro
lugar, no que respeita ao objecto do riso, ou às coisas que suscitam o riso, elas são,
como explica Fracastório no livro A Simpatia, capítulo 20º, coisas novas, súbitas,
leves e lúdicas, que possuem uma certa argúcia e boa disposição para alguma coisa;
como as coisas que têm graça, e as que são representadas por comediantes ou acto
res, ou também as coisas estranhas que acontecem por acaso, súbita e airosamente,
como quando, alguém, caminhando com elegância e avançando como que distraído,
escorrega na lama.
O riso também é gerado da seguinte maneira. Oferecendo-se-nos uma coisa agra
dável, que pode excitar o riso, o espírito é inundado pela alegria e pela felicidade,
pela qual, o coração afectado se dilata, impaciente pela demora, e aumenta a difusão
de sangue efervescente e de espíritos vitais; segue-se o movimento dos músculos do
peito, sobretudo do diafragma (com efeito, o diafragma é uma certa membrana, em
parte dura, em parte constituída por uma nervura precordial, separando as vísceras,
que Aristóteles, no livro terceiro de As Partes dos Animais, capítulo 1 0º, chama
556 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
subfrénico, cuja função pensa ser a de impedir que os vapores do ventrículo subam e
lesem o coração). Mas, do movimento e no prolongamento do diafragma estendem
-se ao mesmo tempo os músculos situados ao lado da boca, e produz-se o movi
mento da boca a que se chama riso, através do qual se exprime o gáudio do espírito e
a alegria. Será, portanto, a causa eficiente do riso, sendo a alma a causa principal, a
instrumental o apetite, e a faculdade que executa o movimento, e ao mesmo tempo o
alastramento do sangue e dos espíritos, que são como que escravos que avançam à
frente do riso; a causa final, o desenrolar da alegria ou do gáudio, é a própria forma
da boca e a distensão da face. Assim, o riso costuma ser definido da seguinte
maneira: o riso é uma dada excitação da alma, movida por uma coisa agradável, para
explicar o conceito interior de gáudio, pelo qual os músculos da boca e do tórax são
movidos por um certo ímpeto.
Porém, há alguns propensos ao riso, outros severos. Na verdade, como o objecto
do riso é a novidade, aqueles a quem qualquer coisa parece nova, como as crianças e
a plebe, riem facilmente por este motivo, mas não assim os velhos e os filósofos.
Além disso, como o objecto do riso é a coisa agradável e alegre, são levados habi
tualmente para o riso aqueles que por sua natureza são alegres. Costumam ser nor
malmente os que têm muito sangue, o doce, não o bilioso, nem o melancólico.
Posta assim a questão, para ilustrar as coisas que em primeiro lugar referimos,
deve responder-se à dúvida que o riso, quanto ao gáudio e à deleitação que ele signi
fica, pertence a um qualquer apetite. Porque o gáudio, em particular, está compreen
dido na vontade, a deleitação também está compreendida no apetite inferior. No que
respeita, efectivamente, à própria distensão da face, em que formalmente consiste o
riso, ela origina-se de forma imediata pela faculdade que executa o movimento, e
assim diz-lhe respeito, como seu efeito próximo.
QUESTÃO II
A vontade é mais nobre do que o intelecto, ou não?
ARTIGO I
Os que seguem a parte afirmativa e com que argumentos a provam
Houve quem considerasse a vontade e a potência intelectiva como que duas irmãs
nascidas do mesmo parto, insignes e de nobreza igual. Mas a opinião comum de
Aristóteles e de outros filósofos refutou-os, afirmando que as espécies são como os
números. Tal como dois números não podem ser iguais nas unidades, mas um qual
quer é maior do que os restantes, assim não se podem achar duas espécies, em que
uma seja igual à outra na dignidade da natureza. Nem Santo Agostinho nos contra
ria, no livro 1 0, A Trindade, capítulo 1 1 º, quando afirma que a memória, a inteligên
cia e a vontade são mutuamente iguais entre si. De facto, ele não afirma isso acerca
da igualdade da perfeição, possuída por uma qualquer destas potências em si, mas
pelo facto de todas serem parte do sujeito, que é sem dúvida nenhuma igual, visto
que todas são inerentes à mesma substância da alma como num substrato.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xll/, Questão li, Artigo I 557
ARTIGO II
Conclui-se que o intelecto é mais nobre do que a vontade e,
ao mesmo tempo, infirmam-se os argumentos da parte adversária
Embora esta opinião a favor da qual dissertámos no último artigo, sej a inteira
mente verosímil, todavia, nós, com São Tomás, adoptamos a contrária como mais
verdadeira e consentânea com a doutrina peripatética, quer noutros pontos, quer na
primeira parte da Suma Teológica, questão 82, artigo 3º, e com Caetano, no mesmo
local; com Durando, no quarto livro das Sentenças, distinção, 49, questão 4; com o
Paludano, questão 3 ; com Herveu, Quodlibet 8, questão 9; com Capréolo, no pri
meiro das Sentenças, distinção 1 , questão 2, e distinção 3, questão 3, artigo 2º; com
o Abulense ao capítulo 5º de Mateus, questão 3 3 . E para ao mesmo tempo
confirmarmos a nossa opinião e refutarmos os argumentos dos adversários, tecemos,
tal como acima, um mesmo fio de prova, do seguinte modo. Deve considerar-se
mais nobre a potência cujo hábito, acto e objectos são mais excelentes. É o caso do
intelecto se for comparado com a vontade. Portanto, é mais nobre. Prova-se a pre
missa menor quanto ao hábito, porque se examinarmos aqueles hábitos que são
adquiridos pela potência natural, são mais nobres os actos do intelecto, por exemplo,
a sapiência, a prudência, do que a justiça e os restantes hábitos da vontade. Mas se
observarmos os actos sobrenaturais (embora neste momento, como acertadamente
afirma São Tomás, a nossa indagação sobre a alma não seja sobre as coisas que a
superam), o mais excelente entre todos os que são infundidos no intelecto por Deus,
a saber, a luz da Glória, vence em nobreza o mais excelente de entre todos os que
são dados à vontade, isto é, a caridade. Não obsta que os Serafins possuam o apelo
do amor. Eles não o receberam todavia do nobilíssimo dom sobrenatural que alcan
çam na Pátria, mas do elevadíssimo hábito operativo que tiveram no caminho, isto é,
da caridade. Segundo. Porque também pode dizer-se que esse nome lhes foi dado
não pelo seu hábito nobilíssimo, mas pelos próprios efeitos, porque de facto exercem
outros. Na verdade, é uma função própria dos Serafins ensinar assim os inferiores,
de tal modo que os entusiasmem individualmente pela iluminação e pela doutrina
admirável ao amor do poder divino. Demonstra-se que as acções do intelecto são
mais sublimes, porque, embora a vontade mova outras potências e a própria potência
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão II, Anigo II 559
intelectiva quanto ao exercício do acto, e esta, pela parte que diz precisamente res
peito ao intelecto ceda perante a vontade, todavia o intelecto reclama um outro modo
mais alto de mover, que justamente sujeita a si a vontade e que a vence absoluta
mente em dignidade. De facto, move ordenando, regendo, mandando, como a von
tade numa rainha, embora cega, por carecer da luz intelectual, mas o próprio inte
lecto é o imperador que fixa e anula as leis à vontade. Acrescente-se que a vontade
não pode ser levada para coisa nenhuma, a não ser que seja movida pelo intelecto,
porque nada pode ser querido se não for conhecido, embora o intelecto, para o seu
primeiro acto, não exija previamente o movimento da vontade. Por isso, como os
anjos, que guiam as esferas celestes, são a seguir a Deus, os primeiros motores deste
mundo corpóreo, também o intelecto, no pequeno mundo, isto é, no homem, é o
primeiro motor depois de Deus, pelo qual a vontade, o apetite, a força motora, e
enfim os movimentos do corpo, são movimentados, como São Tomás, livro 3 Con
tra os Gentios, capítulo 25º, explicou. Depois, recomenda-se o que se propõe, por
que o acto de inteligir é o mais interior de entre todos os actos imanentes, mas a
vontade efectivamente quando opera, dá-se de um certo modo para fora, porque a
coisa conhecida é arrebatada para a coisa amada, mas o intelecto permanece dentro,
porque traz a coisa para si. Como registou São Tomás, questão 22, A Verdade, artigo
1 1 º, é muito mais elevado o que possui em si aquilo por que se aperfeiçoa, do que
quem vagueia por fora buscando por isso. Além do mais, o acto em que consiste a
felicidade do homem é mais nobre, conforme afirma Aristóteles, no livro 1 0, Ética,
capítulo 7º, mas ela consiste na contemplação das substâncias separadas, como
ensina o mesmo Aristóteles, no livro 1 0, Ética, capítulo 8º. Portanto, as acções do
intelecto são mais nobres do que as da vontade. E isto não invalida que São Dionísio
atribua à vontade e não à intelecção, a potência unitiva a que a beatitude deve per
tencer. Ele fala, aí, de facto, acerca da união afectiva, através da qual no amante e no
amado existem as forças de querer e de não querer, mas não acerca da união do
assentimento e da compreensão, na qual consiste a beatitude. Nem também impede
que pelo amor, e não de facto pela intelecção, o homem se tome simplesmente bom;
isto só prova, com efeito, que o acto de amar é o mais eminente no género da moral,
mas não no género da natureza, sobre o qual versa a nossa discussão. E por isso
dizemos que o acto do amor toma o homem simplesmente bom no que respeita à
moral, mas o conhecimento toma-o melhor, isto é, mais perfeito no género do ser. E
a estes também dizemos, de modo adequado, que embora o oposto do amor, que
respeita à razão moral, seja pior do que o oposto do conhecimento, todavia, no
género da natureza ou do ser, é pior o oposto do conhecimento, porque se opõe à
coisa mais nobre que é o conhecimento.
Ao último, prova-se que o objecto do intelecto é superior ao objecto da vontade
em dignidade de natureza, embora o bem, se examinado segundo a noção de causa
lidade, sej a mais elevado do que a verdade, pois a superior causalidade do fim
funda-se na bondade da coisa, embora também o bem e a verdade, quanto à mútua
inclusão sejam iguais (é por isso que cada um materialmente considerado está con
tido no outro, porque tal como o bem é de alguma maneira verdade, também a ver
dade é de alguma maneira bem) . Todavia, em absoluto a noção do verdadeiro é mais
excelente, porque é algo de mais divino e de mais abstracto. Efectivamente, no acto
perfeito, a vontade nada apetece, a não ser em ordem à existência, e por isso con-
560 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
eretamente, visto que o bem é apetecido para ser possuído. Mas na verdade as coisas
não se passam assim. Inteligimos a coisa segundo a sua quididade, e penetramos a
própria verdade mediante um perfeito conhecimento, ainda que nada pensemos
acerca da sua existência e materialidade. Em relação ao que dizem - que da maior
abstracção não se demonstra a maior nobreza da coisa, como é totalmente evidente
na quantidade matemática e na substância sensível - dizemos com Caetano, na pri
meira parte da Suma Teológica, questão 82, artigo 3°, que entre iguais são mais
nobres os que são mais abstractos, mas que na questão proposta não se trata de
iguais, porque a quantidade é um acidente enquanto a substância sensível é uma
substância. Ao concluírem que também o intelecto é menos elevado, porque está
ligado aos fantasmas, eles não concluem correctamente. Primeiro, de facto, esta
ligação não se ajusta a todo o intelecto, mas somente ao humano; nem ao mesmo
intelecto, em qualquer estado, mas conforme acima expusemos. Com efeito, a nossa
discussão versa sobre o intelecto tomado em sentido absoluto. Além disso, como à
vontade apenas apetece o que é conhecido, tal como o intelecto quando é recebido
neste corpo tem necessidade dos fantasmas para inteligir, também a vontade, ainda
que remotamente, precisa deles. Por fim, a dependência do nosso intelecto dos fan
tasmas não retira maior simplicidade e abstracção do objecto do intelecto, como
dissemos, pela qual deve ser principalmente estimada a sua nobreza e eminência.
Por isso, fica estabelecido que o objecto da faculdade intelectiva é em absoluto mais
nobre do que o objecto da vontade, visto que os argumentos anteriores não só con
firmaram a nossa opinião, mas esclareceram as razões da parte oposta, conforme
perceberá facilmente quem tenha prestado atenção. Não há pois razão para que res
pondamos separadamente.
QUESTÃO III
Se a vontade difere realmente do intelecto ou não
ARTIGO !
Com que argumentos parece dar-se a conhecer
a parte negativa da questão
dade porque é inerente ao substrato livre, porque se assim fosse, as faculdades uni
versais do homem seriam livres, mas o substrato é livre porque possui uma potência
livre. Portanto, se pertence à razão da liberdade possuir o juízo do seu acto, é neces
sário que aquela potência pela qual o homem é livre, seja julgadora do seu acto, o
que somente pode pertencer à faculdade de conhecer.
Segundo. Não repugna que os actos subordinados sej am originados pelo mesmo
princípio activo, visto que não só o calor, mas também a iluminação do ar, provêm
da mesma luz do Sol. Mas conhecer e apetecer são actos subordinados, porque nada
apetecemos excepto por um conhecimento prévio. Podem, portanto, nascer do
mesmo princípio absoluto, e então o intelecto e a vontade serão uma e a mesma
coisa.
Terceiro. Se o intelecto e a vontade fossem potências diferentes, poderia pela
potência divina alcançar-se o acto da vontade sem o acto do intelecto. Mas não pode,
porque nada, a não ser o conhecido, é amado, como ensina Santo Agostinho, livro 9,
A Trindade, capítulo 4°. Não são, portanto, potências diferentes. A premissa maior
prova-se, porque se estas faculdades fossem distintas, não haveria outra dependência
dos actos da vontade dos actos do intelecto, excepto a da causa parcial efectiva,
porque a intelecção junta-se parcialmente com a vontade para os actos dela. No
entanto, Deus pode suprir toda a causalidade eficiente das causas ; portanto, etc.
Quarto. Não diferem em realidade absoluta aquelas potências cujos objectos não
são diferentes em realidade absoluta. Mas o objecto do intelecto é o ente, o objecto
da vontade é o bem, os quais são mutuamente recíprocos e incidem na mesma reali
dade. Por último, Auréola prova que foi este o pensamento do Filósofo, segundo
Capréolo, no primeiro das Sentenças, distinção 3, questão 3, porque Aristóteles no
livro 3, Ética, capítulo 3º, chama à escolha apetite deliberativo das coisas, e mais
claramente, no livro 6 da mesma obra, capítulo 2º, afirma que a escolha pertence ao
apetite intelectivo ou ao intelecto apetitivo. Com estas palavras indica que o inte
lecto e a vontade são a mesma potência da alma.
ARTIGO II
A parte negativa da controvérsia é verdadeira.
Os argumentos acima aduzidos não colhem
QUESTÃO IV
Se, para que a vontade produza o seu acto, se requer
no intelecto o conhecimento judicativo ou não
ARTIGO }
Disputa contra a parte afirmativa da questão
Deve admitir-se, nesta controvérsia, que podem existir quatro actos no nosso
intelecto, o que constitui o presente objecto. O primeiro deles é o conhecimento
apreensivo. O segundo, o juízo, pelo qual o intelecto julga que a coisa apreendida é
boa ou má. O terceiro, é o outro juízo ou ditame prático, pelo qual o intelecto, que
pelo juízo precedente considerara a coisa boa ou má, considera que ela deve ser
acolhida ou recusada. Por fim, o quarto é o discurso ou silogismo prático, pelo qual
a razão conclui desse modo o ditame. Todos, portanto, parecem ajustar-se, embora
da parte do intelecto todos aqueles actos levem vantagem, como nos homens pru
dentes, os quais empreendem as coisas, sobretudo as dos momentos importantes,
apenas com deliberação e juízo maduro. Simplesmente, como a vontade se dirige
para o acto, não é necessário o silogismo prático. Isso é bastante evidente nos
movimentos súbitos e repentinos, chamados anteriores ao primeiro. Também não há
grande dificuldade se também para as acções humanas e livres se exige que aquele
ditame sej a concluído pelo silogismo prático, pois, aqui e ali, experimentamos que
queremos ou não queremos muitas coisas sem aquele ditame. Portanto, toda a con
trovérsia consiste nisto: se se requer o juízo pelo qual o intelecto avalia se o objecto
é bom ou mau, saudável ou nocivo, agradável ou aborrecido.
Ora, existem duas opiniões sobre este assunto. A primeira é a de Escoto, no
segundo livro das Sentenças, distinção 6, questão primeira; de Gabriel, no mesmo
ponto, artigo 3, dúvida 2; e a de Marsílio no 2º livro, questão 1 6, artigo l º, que con
sideram que não se requer tal juízo mas que é suficiente o conhecimento apreensivo.
Pois bem, visto que este pode ser duplo, um, simples, o que é feito sobre a composi
ção e a divisão, o outro, complexo, pelo qual apreendemos o significado de alguma
proposição, como: 'o remédio é saudável' , eles dizem que é necessário para o acto
de vontade uma só apreensão simples. Esta posição é recomendável. O conheci
mento pelo qual se propõe à vontade o objecto material e formal em simultâneo, isto
é, quer o objecto para que se dirige, quer a razão pela qual se dirige para aquilo, é
suficiente para que a vontade produza o acto sobre tal objecto. O objecto material
também pode ser representado para a vontade através do simples conhecimento, isto
é, a coisa boa e formal, ou seja, a sua bondade. Portanto, ela basta para que a von
tade conclua o seu acto.
564 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
Segundo. A vontade não tem menor eficácia do que o apetite sensitivo para se
dirigir para o próprio objecto, mas para que o apetite sensitivo dos animais irracio
nais seja levado ao seu objecto, é bastante a simples apreensão produzida pelo sen
tido interno. Donde, para que a vontade se dirija para o seu objecto, é suficiente a
simples apreensão feita através do intelecto.
Terceiro. Os movimentos são chamados actos anteriores ao primeiro porque são
praticados sem o juízo da razão. Donde, nem para todo o acto da vontade se requer
um juízo. O antecedente prova-se, porque se o juízo interviesse nos movimentos,
eles estariam inteiramente em nosso poder e poderíamos achar neles pecado, o que o
consenso comum dos teólogos nega.
Quarto. Os que delineiam os caracteres repentinamente e os que tocam a cítara,
praticam tantos actos de vontade quantos os movimentos dos dedos, uma vez que os
dedos apenas se soltam pelo comando da vontade. No entanto, não é verosímil que
precedam tantos juízos quantas as flexões e os movimentos dos dedos, sobretudo
porque enquanto escrevem ou tocam, pensam. Portanto, parece claro que não se
exige um juízo prévio para todos os actos da vontade.
ARTIGO II
Disputa da controvérsia contra a parte que nega
verdadeiro, quer seja falso, o que neste lugar afirmamos aparecer como bom. Donde,
etc.
Segundo. Demonstra-se o mesmo, porque temos a experiência de que os animais
irracionais são, por um lado, movidos para os objectos de que têm simples conheci
mentos, por outro, não movidos, como é evidente no cavalo, que não é levado a
beber a água que vê, a não ser que tenha sede. Portanto, visto que o apetite sensitivo
segue naturalmente, e não de modo livre, o conhecimento dos sentidos, parece que
isso não provém de outra causa, senão de que apenas a apreensão do objecto não é
suficiente para mover o apetite, mas que se requer o juízo pelo qual a coisa apreen
dida é considerada conveniente. Como aquele juízo nem sempre está presente, daí
sucede que o apetite sensitivo nem sempre é levado para a coisa que se apresenta.
Terceiro. O mesmo se estabelece pela autoridade de Aristóteles, neste livro,
capítulo 3º, texto 1 54, quando escreveu assim: Quando opinamos,ou seja, quando
julgamos que algo é mau e terrível, continuamente nos perturbamos, e igualmente
também quando opinamos que alguma coisa é de tal modo que nela não se deve
confiar. Da mesma maneira, quando imaginamos coisas semelhantes, isto é, quando
apreendemos sem um juízo, somos igualmente impressionados, tal como se obser
vássemos imagens iguais numa pintura. Além disso, no mesmo livro, capítulo 9º,
texto 46, ensina que o apetite não é movido pelo intelecto contemplativo, mas pelo
prático, porque aquele nada percebe do que deve ser acolhido ou recusado, como
este. Parece, portanto, que o Filósofo considera que para executar as acções do
apetite não é suficiente o conhecimento apreensivo, mas se requer, necessariamente,
o judicativo.
ARTIGO Ili
Consideram-se prováveis ambas as partes da controvérsia
e explicam-se os argumentos de uma e de outra
Das duas opiniões anteriores, nenhuma nos parece improvável ou oposta à dou
trina peripatética. Por isso, explicam-se os argumentos de uma e de outra parte, para
que se defenda a que mais prove. Ao primeiro deles, que retiramos da parte afirma
tiva, dever-se-á responder que o objecto formal do apetite, para o qual o apetite é
levado ao acto, não é bom de qualquer modo, mas bom porque assim é considerado.
Ao segundo, concedida a premissa maior, deve ser negada a menor, e dizer-se que,
embora nos animais irracionais não se produza uma composição ou divisão, todavia,
no seu lugar, produzem-se juízos sensitivos de composição e de divisão com os
quais eles julgam que os objectos apreendidos pelos sentidos são agradáveis ou
nocivos, que devem ser perseguidos ou evitados, como ensina São Tomás, Suma
Teológica, 1 ª parte, questão 83, artigo 1 º, e em A Verdade, questão 24, artigo 2º.
Mas os animais irracionais não realizam proposições ao formarem os referidos juí
zos, porque não julgam mediante inquirição ou discussão, como os homens mas
apenas por comando da natureza e por instinto. Ao terceiro, deve dizer-se, que tam
bém os actos da vontade anteriores ao primeiro são praticados pelo referido juízo,
não livre, mas intempestivo, e sem qualquer deliberação tanto formal, como virtual.
Esta deliberação é todavia necessária para poder nessas acções ser encontrada a
mancha do pecado. Ao quarto, é costume responder-se que há tantos juízos quantos
566 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
os movimentos dos dedos, mas que como eles são feitos de forma muito célere nós
não os conseguimos discernir. O que, na verdade, embora pareça maravilhoso não
deve ser considerado alheio à verdade. Nem, com efeito, se deve negar que aquele
que escreve reproduz diferentes concepções de diferentes caracteres que reconhece
como uma letra, e também o modo como deve escrever. Por isso, por igual razão,
puderam ser formados por ele diversos juízos em simultâneo.
Ao primeiro dos argumentos que foram aduzidos a favor da outra opinião deve
responder-se, que para que o objecto se mostre bom, não é necessário o conheci
mento judicativo, mas que basta que o objecto sej a apreendido como revestido de
uma bondade congruente. De facto, porque todas as coisas não são igualmente
apreendidas sob a referida bondade, resulta daí que não temos apetite de todas as
coisas ou que as recusamos, mas que por vezes ficamos suspensos na dúvida. Ao
segundo, admitida a experiência, deve dizer-se que isso não provém do facto de o
conhecimento judicativo ser necessário, mas porque, quando o animal se saciou ou
está de tal modo enfraquecido que rejeita a água ou o alimento, não compreende a
comida e a bebida como algo agradável ou bom para si. À afirmação de Aristóteles
deve dizer-se, que com o primeiro ponto ele não quis decerto dizer outra coisa senão
que nós não somos alterados pelas coisas que imaginamos, porque ao mesmo tempo
compreendemos que elas não existem assim, tal como a nossa imaginação as produz.
Acontece do mesmo modo quando vemos as coisas pintadas, porque sabemos que
elas são apenas a semelhança das coisas, não as próprias coisas que se mostram à
vista, e que, por isso, ao olhá-las, não somos excitados pelo medo, nem pela espe
rança, nem, igualmente, por algum afecto. Porém, em ponto posterior, ele tratou
somente do movimento feito sob o comando do intelecto, não daquele que é reque
rido para excitar a vontade a propor-lhe a repugnância ou a conveniência do objecto.
Este provém, de facto, do intelecto prático, mas aquele não.
QUESTÃO V
Se a faculdade que dirige, impele e executa, concorre
para o movimento dos animais ou não
ARTIGO I
Discussão da questão contra a parte negativa
Mas quanto à faculdade que impele, ou seja, o apetite, prova-se que não produz
movimento no homem, porque como acima advertimos a partir de Aristóteles, no
primeiro livro da Política, capítulo 3º, o intelecto ou razão comanda o irascível e o
concupiscente com poder político. É por isso que o apetite sensitivo tem algo de pró
prio com que pode resistir ao império da razão. Por isso, se a acção do apetite fosse
necessária para o movimento, seguir-se-ia que, nem sempre, sob o império da von
tade, os membros eram movidos, mas que o movimento seria inibido por um apetite
relutante. Isto, de facto, opõe-se à experiência e a Aristóteles, naquele mesmo ponto
em que afirma que os membros do corpo, quanto ao movimento, obedecem à razão
despótica, isto é, como o costume dos servos que não têm a faculdade de resistir em
nada ao poder do senhor, pois nada possuem por direito próprio. Também, os ani
mais imperfeitos, como os vermes e as lombrigas dissecadas, sem coração e por isso
sem influxo do apetite que reside no coração, executam movimentos arbitrários.
Portanto, executam-nos também os restantes animais sem o referido influxo, sobre
tudo porque aqueles animais que são de natureza superior, têm necessidade de pou
cos apoios para operar. Mais ainda, a imaginação, sobre cuja força e poder muitas
coisas foram transmitidas pelos autores, parece que pode por si mover os membros,
porque só a imagem da coisa no interior põe em movimento os objectos do corpo de
modos variados. Portanto, não só é função da imaginação dirigir o movimento,
como também executar o próprio movimento sem o consórcio e a eficiência con
junta do apetite.
No que respeita à potência que executa o movimento, parece concluir-se que ela
não se distingue do apetite, porque é supérfluo introduzir uma outra faculdade dife
rente para apreender o movimento. Porque se o movimento fosse uma acção coman
dada apenas pelo apetite e não provocada, dado que os actos impostos precedem de
vez em quando o apetite, por vezes, o movimento precederia o apetite do animal, o
que não acontece. Também, porque a natureza faz sempre o melhor que pode, e
decerto que é mais nobre que o movimento do animal seja provocado pela faculdade
do animal, que é o apetite, do que apenas pela potência vital do tipo de qualquer
outra faculdade motriz. Por fim, porque esta parece ser a opinião explícita de Aris
tóteles, neste livro, capítulo 9º, texto 44, e de um modo geral em todo o capítulo 1 Oº,
quando, acerca do princípio eficiente do movimento local dos animais, investigando,
conclui que é o apetite, o que também apresenta no livro que escreveu sobre O
movimento dos animais.
ARTIGO II
Das duas faculdades. A que dirige o movimento e a que o ordena
Para explicar esta controvérsia deve observar-se, a partir de São Tomás, opúsculo
35, sobre O movimento do coração, que a força motriz nos animais é dupla, uma
natural, outra animal. Diz-se natural aquela que age apenas pelo ímpeto da natureza,
não requer apreensão anterior, tal como a força de pulsar que move o coração no
movimento de dilatação e constrição pulsa as artérias e tem origem no coração.
Animal é a que segue um conhecimento prévio e costuma chamar-se movimento do
arbítrio.
Segundo. Deve advertir-se que existem três géneros de seres vivos que são movi
dos pelo movimento animal. No primeiro, integram-se aqueles que sobressaem tão-
568 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
-só pelo tacto e pelo gosto e que apenas se movem no seu interior, ao estender e con
trair os membros para dentro, dado que, além disso, passam a vida num local inteira
mente estável, como a concha. Estes, porém, em pouco excedem os movimentos das
plantas que estão presas à terra pelas raízes, situam-se como que a meio, entre as
plantas e os animais. O segundo género pertence àqueles que têm uma faculdade
sensitiva perfeita. Não só conhecem na presença, explorando com o tacto, mas tam
bém na ausência. Mas, efectivamente, de entre estes, alguns só operam com o ins
tinto da natureza, não ultrapassam em si o fim da sua acção ou o movimento, como
os irracionais. Outros, agem e operam tendo em conta a escolha e o fim a que se
propõem. São, sem dúvida, os homens, que de tal modo têm o principado sobre os
restantes animais, que sustentam um movimento mais nobre e que pertencem ao
terceiro e mais eminente dos corpos vivos.
Mais ainda, não indagamos aqui acerca do movimento natural, mas do movi
mento do arbítrio. Nem, com efeito, acerca do movimento em geral, mas do movi
mento de locomoção, acerca do qual também na parte final deste livro Aristóteles
falou.
Primeira conclusão. Ao movimento de locomoção junta-se a potência dirigente,
que nos homens é a razão e a imaginação, nos restantes animais. Esta conclusão é de
Aristóteles, neste livro, capítulo 4°, texto 1 6, e capítulo 1 0º, texto 48; de S. Tomás
no mesmo ponto; de Avicena, livro 6, Naturais. Mas é recomendável porque a Natu
reza instituiu a locomoção para investigar as coisas convenientes e para recusar as
adversas, o que de modo algum poderá ser alcançado a não ser que haj a alguma
faculdade que represente os objectos ao apetite, e o leve para a coisa originada nesta
ou naquela parte, sobretudo porque por si o apetite existe para prosseguir isto e
aquilo. Mas esta faculdade é a razão ou a imaginação.
Segunda conclusão. O apetite junta-se ao movimento da locomoção, como causa
agente e por um modo de comando. Esta é também a posição de Aristóteles, neste
livro, capítulo 1 0º, texto 52; e de Avicena, livro 7, Naturais; e de São Tomás, Opús
culo 43, capítulo 4º, e no livro segundo Contra os Gentios capítulo 82º; e do Ferra
riense, no mesmo local; e de outros. Prova-se com um argumento, porque como a
locomoção existe, como dissemos, para procurar as coisas saudáveis e afastar as
nocivas que o sentido conhece, ao apetite pertence o afecto do amor ou da fuga de
tais coisas. Convém que o movimento pelo qual se dirige para elas, seja executado e
comandado pelo apetite. Isto, todavia, importa, quanto ao movimento de homens e
de animais, pois o apetite dos animais não é movido por outro apetite superior, mas
o apetite dos homens é indubitavelmente movido pela vontade. E por isso, o apetite
sensitivo, no homem, existe como a esfera inferior que percorre a superior na rota
ção.
ARTIGO III
Da faculdade que executa o movimento
Terceira conclusão. Para além do apetite tem de dar-se uma certa faculdade ine
rente aos membros que logo a seguir executa o movimento. O argumento a seguir
comprova-o. Porque como as funções provocadas pela faculdade apetitiva lhe são
imanentes, mas o movimento da locomoção é uma acção transitiva, é necessário
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo Xll/, Questão V, Artigo li/ 569
que, além do apetite, se constitua outra faculdade intrínseca aos membros, que se
ocupe de tal movimento. A faculdade difere assim do apetite, não só por definição,
mas também na realidade, o que é evidente, em primeiro lugar, pela distinção do
órgão. Este tem sede no coração, aquela nos músculos espalhados por todo o corpo.
Segundo. Porque como nas substâncias separadas, a faculdade motora se distingue
realmente do seu apetite intelectivo, conforme mostrámos no segundo livro sobre O
Céu, capítulo 5º, questão 7, por maioria de razão se distinguirá nas coisas dotadas de
matéria, visto que não é nada conveniente que as que se uniram nas coisas corpó
reas, nas incorpóreas que são de natureza mais excelente, degenerem em muitas. E
assim, a acção da faculdade que executa o movimento depende do apetite, de
maneira a que por ele não se produza, como sua própria e adequada causa, mas para
que se ordene para o modo pelo qual geralmente a vontade suscita em nós o apetite
sensitivo. A vontade exerce assim sobre ele o movimento e o domínio, para que
entretanto o apetite manifeste imediatamente o seu acto a partir de si. Com a dife
rença, no entanto, que os membros para empreenderem o movimento obedecem à
razão e à vontade, enquanto o apetite se conforma apenas política e civilmente com a
fuga ou a prossecução do seu objecto, como foi por nós declarado acima.
Perguntar-se-á, contudo, se quando o apetite concita a faculdade motriz o faz
através de alguma acção prévia que ela recebe, a partir da qual depois se alcança o
movimento da faculdade, ou de outro modo. Respondemos que não se requer uma
tal acção do acto da faculdade motora, prévia a algo distinto dele, mas que o apetite,
como agente mais universal, concorre com a faculdade movente como causa parti
cular e que o movimento é produzido por ambas as causas através de um único e
mesmo impulso provindo das duas causas. De uma, como universal e que ordena, de
outra, como particular e especialmente produtora. Do mesmo modo que o intelecto
costuma mover a vontade e a vontade costuma mover o apetite inferior.
Subsiste também uma dúvida, neste ponto, sobre se a referida faculdade executa
activamente o movimento. São Tomás, no segundo livro Contra os Gentios, capítulo
82º, ensina que ela não concorre com o movimento tanto à maneira da eficiente, mas
como disposição, posto que prepara e toma aptos os membros a obedecer e a receber
o movimento que o apetite produz, e na Suma Teológica, primeira parte, questão 75,
artigo 3º, afirma que o acto desta faculdade não é mover, mas ser movido. Para a
mesma opinião se inclina o Ferrariense, no ponto citado, Contra os Gentios e na
questão 1 8 deste livro, mas esta apraz-nos menos, sobretudo porque a faculdade que
executa o movimento é conhecida pelos filósofos entre as potências animais, como
está patente na doutrina de Aristóteles, no livro segundo desta obra, capítulo 3º,
texto 27, e no livro 3, capítulo 9º, texto 4 1 , quando divide a faculdade animal em
vegetativa, sensitiva e apetitiva, de movimento local e inteligente. A faculdade de
todo o animal é simplesmente a potência activa, concedida com vista a executar as
funções animais. Por isso é que apenas deve considerar-se que a faculdade que exe
cuta o movimento concorre de modo activo para o movimento, sobretudo porque os
membros parecem, por outro lado, já dispostos de modo apto a recebê-lo, sem
dúvida, devido à composição e à mistura de outras qualidades de que são compostos.
Além disso, eles afirmaram também que nos órgãos dos sentidos, para além das
próprias potências sensitivas, há faculdades particulares diferentes em forma e em
570 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles
composição, com que os órgãos se tomam aptos a receber as sensações, o que toda
via se opõe totalmente aos preceitos comuns dos que filosofam.
Mas esta faculdade que executa o movimento (como no primeiro livro de A
Geração mostrámos, a partir do consenso da escola hipocrática) deriva do coração,
de forma afastada, tal como da fonte de todas as faculdades e funções que se encon
tram nos animais, mas deriva do cérebro, de forma chegada. Referimos o argumento
que discute onde são originados os nervos que se movem. Mais. Porque, obstruída a
via, de imediato cessa o movimento dos membros, tomando-se todo o corpo
insensível. Não aprovámos, todavia, no ponto citado, a opinião dos médicos que
consideram que nenhuma faculdade animal se encontra fixa e estável nos membros,
como a potência de ver no olho, e a de mover nos músculos, mas que todas se
espalham e emanam do cérebro, através de um certo modo de irradiação, e que, ora
se afastam, ora voltam. Nem para além deste, quase como um raio que vai e vem, se
produz outra faculdade inata para sentir e mover. Uma vez que claramente refutámos
esta opinião noutro lugar, não há razão para nela de novo nos determos na sua
reprovação.
No que, efectivamente, diz respeito ao órgão do movimento, omitidas as contro
vérsias, deve advertir-se, a partir de Galeno, livro 1 2, De usu partium, e de Vesálio,
livro 2, capítulo 2º, que se requerem duas condições ao instrumento idóneo para o
movimento. Uma, que seja eficaz no sentido, outra que produza o impulso.
Nenhuma delas pode subsistir sem a outra. É não só necessária a firmeza para
mover, mas também é necessária a consistência para sentir a delicadeza (donde, as
que são duras, ou não criam nenhum sentido, ou um, muito enfraquecido e gros
seiro). A melhor natureza reflectiu a razão pela qual juntava ambas de modo admi
rável. Com efeito, juntou o ligamento, que por vezes é mais duro com o nervo que é
mais mole e envolveu um e outro, isto é, o ligamento e o nervo, como que em cor
respondência, em pequenas partes com carne, com nervos e com artérias. Esta acu
mulação chama-se músculo e este instrumento da força motora é divulgado entre
filósofos e médicos porque se difunde de modo assaz amplo nos corpos dos animais,
como é bastante evidente nos membros idóneos para sustentar o movimento do
arbítrio.
Mas a faculdade motora não poderá ser usada com este instrumento, a não ser que
ele esteja impregnado de qualidades adequadas. Por sua falta, os membros esgotam
-se entretanto e ficam destituídos de todo o movimento. Também é necessário que os
membros sejam alimentados pelo afluxo permanente dos espíritos animais. O pare
cer deste assunto, para além de outros, é que não podemos sustentar o corpo durante
o desmaio e o pânico com o espírito animal que suporta os membros, que conflui do
cérebro para todo o corpo. Essa também é a razão para a morte súbita, precedida da
perda dos sentidos, daqueles que giram à volta de si mesmos. Não há dúvida que o
espírito, que tem de ser levado a circular directamente através dos nervos, uma vez
caído o corpo, afastando-se das raízes dos nervos, converge para outro sítio.
Livro Terceiro, Explicação do Capítulo XIII, Questão V, Artigo IV 571
ARTIGO IV
Responde-se aos argumentos propostos ao início
Falta agora responder aos argumentos do primeiro artigo. À primeira parte do que
propusemos ao início, deve dizer-se que, embora no sono careçamos da liberdade de
juízo, todavia não é entravada a acção do intelecto e de certos j uízos imperfeitos,
dado ser evidente que muitos concebem e disputam generalidades durante o sono.
Efectivamente, não se requer a liberdade de raciocínio ou de juízo para que o movi
mento sej a sempre exercido por nós, como também é bom de ver nos ébrios e nos
frenéticos. Respondendo à segunda parte do mesmo argumento, embora o apetite
sensitivo, ordenando a vontade e dirigindo a razão, não possa inibir o movimento
dos membros, ou de outro modo mudar de acordo com a vontade, pode todavia,
pensando o intelecto alguma coisa, e não ordenando a vontade, mover os membros
do corpo com um movimento não deliberado, como muitas vezes acontece. Por isso,
não é supérfluo, o concurso das faculdades superiores, visto que é necessário para o
movimento deliberado. Nem no homem, quanto à dignidade do apetite inferior,
alguma coisa obsta a que por si, e somente por faculdade sua, cause o movimento
aos membros. De facto, como Caetano, na primeira parte da Suma Teológica, ques
tão 8 1 , artigo 3º, anotou, embora em nós, a natureza sensitiva não possua a nobreza
do comando que tem nos animais, a sua perda, todavia, é compensada pela conjun
ção e o comércio com a razão e com o apetite intelectivo. E com efeito, eleva-se o
que é inferior, pela vizinhança do mais sublime, embora esteja mais abaixo. O que
também é evidente naqueles assuntos que dizem respeito aos costumes, como nos
políticos, pois as potências trabalham mais perfeitamente obedecendo à caridade do
que sozinhas, e é mais nobre assistir ao rei do que ter o regimento da aldeia. Daqui
se conclui que não repugna que aqueles que caminham tomados pelo sono sem o
influxo da potência intelectiva pratiquem o movimento de andar, apenas com a ima
ginação e o apetite excitando a força motriz, visto que isto também acontece fre
quentemente aos que estão em vigília.
Mas o segundo argumento resolve-se, dizendo à sua primeira parte que embora o
apetite, quanto aos outros actos, obedeça politicamente à razão, quanto ao movi
mento dos membros, no entanto, apenas obedece despoticamente. Esta solução, que
não concede que a razão e a vontade, imediatamente e sem intervenção do apetite,
movam os membros, parece-nos correcta. À segunda, que nenhum animal, ainda que
pequeno e imperfeito, se move localmente sem o influxo do apetite e da imaginação,
nem existe nenhum animal que pela sua natureza esteja privado destas faculdades e
que, ainda que imperfeitas, não as tenha definidas em certa parte do corpo, conforme
dissemos noutro lugar. Donde, é por isso que os lagartos, os vermes e outros animais
deste género, vivem depois da dissecação e se movem, porque uma vez divididos
também retêm a imaginação e o apetite nas partes. Todavia deve-se mostrar que
Aristóteles, quando nos capítulos anteriores tratou do movimento, apenas discutiu
acerca ou sobretudo sobre aquele que pertence aos animais perfeitos . À terceira,
deve negar-se o que defende e dizer que a imaginação, não por si, mas por interven
ção do apetite, ao qual apresenta coisas tristes ou alegres, horríveis ou agradáveis,
concita os humores, e o sangue a mover os espíritos, e assim impressiona o corpo de
maneiras diferentes. Leia-se São Tomás, na primeira parte, Suma Teológica, questão
1 1 7, artigo 3º, e no livro 3, Contra os Gentios, capítulo 1 03º.
572 Sobre os Três Livros 'Da Alma ' de Aristóteles