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CONSOLAÇ ÃO

DA FILOSOFIA

Boécio
2.ªEdição

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


ISBN: 978-972-31-1405-8

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9 789723 114058
CONSOLAÇÃO
DA FILOSOFI A
«A Filosofia e a escada das ciências, iluminura do séc. XIll».
NB Leipzig, Ms. 1253, fl. 3r
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«A Filosofia e a escada das ciências, iluminura do séc. XIII».


NB Leipzig, Ms. 1253, fl. 3r
CONSOLAÇÃO
DA FILOSOFIA

Boécio
Tradução de
Luís M. G. CER~EIRA

2.ª edição

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Tradução do texto latino
De consolatione Philosophiae
A edição utilizada foi a de Claudio Moreschini (editio altera)
Bibliotheca Graecorurn et Romanorum Teubneriana,
Monachii et Lipsiae, 2005

Reservados todos os direitos de acordo com a lei


Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENK IAN
Av. de Berna Lisboa
2016

ISBN 978-972-3 1- 1405-8


INTRODUÇÃO

Apresento-te, caro leitor, o senador Boécio, um homem


que foi rico e poderoso, que é extremamente culto, mas
que agora está a escrever o texto da Consolação no despo-
jamento de um cárcere sombrio e com a perspectiva pro-
vável da sua execução, pois tem perfeita consciência de
que a acusação de traição que sobre ele impende lhe pode
acarretar a morte. Corre o ano de 524 d. C. O facto de estas
serem as palavras de um homem que está no "corredor
da morte", sem esperança de reabilitação e de regresso
ao seu anterior estatuto de poder, glória e riqueza, dá-lhes
um peso especial, pois têm a liberdade e a franqueza der-
radeiras que só as palavras dos condenados podem ter.
Nesta masmorra, Boécio, inicialmente dominado pelo
desespero e pela prostração, vê aparecer-lhe uma figura
feminina, a Filosofia, que representa o melhor da sabe-
doria antiga, se não é, como diz Abelardo, um alter ego
do próprio Boécio, que vai conversando com ele, proce-
dendo a uma indagação racional das questões fundamen-
tais e perenes da condição humana, na sua busca de feli-
cidade e de compreensão do mundo. A vasta cultura do
nosso senador, única coisa que ninguém lhe pôde tirar,
transforma-se agora, graças à derrocada de todas as pers-
pectivas humanas, num conhecimento que lhe permite
enfrentar as suas tribulações, e já não é apenas cultura,
mas passa ao patamar da sabedoria. Esta sabedoria é

7
sobretudo distanciamento e uma compreensão racional
das suas circunstâncias, numa formulação que ultrapassa
largamente a sua situação pessoal e tocará as almas de
muitos homens, muito depois de sua morte. O seu espí-
rito eleva-se, como ele próprio nos diz, e contempla lá
do alto a mesquinhez das ambições e angústias da vida
humana. O seu percurso interior e a clareza do seu racio-
cínio conduzem-no a uma serenidade que certamente lhe
terá sido útil no dia em que foi executado. Mas na sua
reflexão eleva-se também do seu caso individual e parti-
cular à formulação e discussão dos problemas fundamen-
tais e intemporais que ainda hoje nos atormentam. E é
esta dimensão simultaneamente existencial e intemporal
que confere a este texto o seu carácter extraordinário.
A ambição do tradutor, no caso muito particular deste
texto, seria propiciar ao leitor um encontro pessoal com
as questões colocadas pelas palavras que se seguem,
com um mínimo de ruído erudito, como quem apresenta
uma pessoa a outra e se retira discretamente para dar
lugar a uma conversa importante e privada. Mas os mil
e quinhentos anos que nos separam do momento em que
foi escrita a Consolação - quem o diria? - exigem algum
enquadramento, ainda que sucinto.

Vida

Anício Torquato Severino Boécio (480-524 d. C.) é uma


das figuras mais fascinantes da história da cultura ociden-
tal. Nascido que foi na família dos Anícios, cristãos desde
o século IV, pertence à mais alta aristocracia. Esta família

8
deu a Roma dois papas e um cônsul, o pai de Boécio, após
a morte <;J.o qual o jovem foi adaptado pelo nobre Símaco,
com cuja filha, Rusticiana, acabou por casar.
Boécio recebeu a melhor educação possível no seu
tempo, dedicando-se ao saber numa primeira fase da sua
vida, que depois procurou pôr ao serviço do bem comum,
seguindo os preceitos de Platão, dedicando-se à política,
em que teve uma ascensão fulminante: cônsul em 510 d. C.,
com cerca de trinta anos, alcançou o cargo de magister
officiorum, lugar de topo na corte do rei Teodorico.
Vítima de intrigas palacianas, Boécio é acusado de
traição e cai em desgraça em 523, entrado na casa dos
quarenta anos, precisamente quando estava no auge da
sua riqueza e poder. Encarcerado em Pavia, escreve na
cadeia a Consolação, em que narra como lhe aparece a
Filosofia, sob a forma de uma mulher, que dialogando
com ele o consola e o conduz do seu profundo desespero
até "à alegria de quem alcançou a verdadeira felicidade".
Foi executado de forma brutal nos últimos meses de 524:
depois de torturado com uma corda apertada em volta
das têmporas e dos olhos, foi morto a golpes de maça,
tipo de morte extremamente cruel, que não se aplicaria
normalmente a pessoas da sua condição social.
Viveu nos anos crepusculares do império romano, que
termina oficialmente em 476, com a deposição de Rómulo
Augústulo pelas legiões da Gália, mas que se prolonga
nas instituições e nas formas de vida .das pessoas, para
além das circunstâncias políticas. Depois dos catorze anos
de reinado do bárbaro Odoacro e do seu assassinato, o rei
ostrogodo Teodorico invadiu a Itália em 489 e tomou-se
imperador em 493, teoricamente sujeito ao imperador do

9
Oriente. Teodorico é um bárbaro, que nunca aprenderá a
escrever, mas é também um governante astuto: manteve o
Senado e o sistema consular, as escolas abertas, costumes
e instituições, exercendo contudo um efectivo poder régio.
Cristão ariano, e portanto um herege aos olhos dos seus
súbditos de credo niceno, mostra-se tolerante do ponto de
vista religioso.
Mas os Ostrogodos são um povo ocupante, o que
leva a abusos inevitáveis e a uma natural desconfiança e
animosidade em relação às forças mais tradicionais da
aristocracia itálica. Estas circunstâncias político-religiosas
ajudam a compreender a queda em desgraça de Boécio,
cuja morte dificilmente pode ser entendida como um
martírio motivado por razões exclusivamente religiosas.
Símaco, sogro de Boécio, será também ele executado
poucos meses depois, e o Papa João I, amigo íntimo do
nosso autor, é "convidado" a ir a Constantinopla pedir
ao imperador que pare com as perseguições contra os
arianos: o seu insucesso nesta missão dá a Teodorico a
prova da sua deslealdade e o pretexto que procurava:
o papa não tarda a morrer na prisão.
Hesitamos em dar crédito aos remorsos que, segundo
um cronista, teriam atormentado os últimos dias de
Teodorico. Mais plausível é a informação acerca do seu
esforço de fazer desaparecer os corpos de Boécio e de
Símaco, referida por fonte coeva. As implicações políticas
e religiosas destas mortes eram enormes e Teodorico tinha
razões muito práticas para se arrepender. De facto, na
sequência destes acontecimentos o reinado de Teodorico
entrará num período de impopularidade e de suspeição.
O próprio Teodorico morre, aliás, pouco depois.

10
A obra

Este nosso prisioneiro é um homem de extraordinária


cultura, o último verdadeiro douto do Ocidente antes do
século XII. Profundo conhecedor das obras filosóficas de
Aristóteles em grego, dá também mostras de conhecer
profundamente as teorias filosóficas estóicas e platónicas.
Tinha projectado traduzir para latim Platão e Aristóteles,
com a intenção de demonstrar a sua concordância funda-
mental, mas apenas concluiu a tradução das obras lógicas
de Aristóteles e alguns comentários sobre elas. Mas o
pouco que conseguiu fazer tomou-o um autor da maior
importância para o conhecimento nos mil anos seguintes.
Para providenciar uma introdução à Lógica, traduziu e
comentou a Introdução às Categorias de Aristóteles de
Porfírio, e o seu comentário forneceu o ponto de partida
para a controvérsia entre realistas e nominalistas sobre a
existência dos universais, tão importante na filosofia da
Baixa Idade Média. Traduziu as quatro obras lógicas que
constituem o Organon aristotélico e escreveu comentários
sobre duas delas, escreveu um comentário sobre os Topica
de Cícero e cinco ensaios sobre Lógica de sua autoria,
influenciando o estudo da Lógica medieval e os seus pro-
cessos e formas de expressão, criando vocabulário, formu-
lações e direccionamentos.
Ao ligar a importância destes trabalhos com o impacto
da Consolação no estudo da Filosofia Moral na Idade
Média, começamos a compreender a extraordinária esta-
tura deste vulto, da sua fama e autoridade.
Faz ainda ecoar toda a literatura latina clássica nos
poemas da Consolação: por vezes num só poema ouvi-

11
mos a contemplação filosófica da natureza dos coros da
tragédia de Séneca, a lírica sábia de Horácio, a doçura de
Vergílio. Uma literatura conhecida de cor, com o coração,
pois na cadeia Boécio não tinha a sua biblioteca.
Teve ainda um papel importante nomeadamente no
que diz respeito ao saber científico, que em Roma só teve
raros cultores, em pequenos núcleos. O legado cultural
romano é sobretudo literário, e a aritmética, geometria,
astronomia e música (esta última uma ciência matemá-
tica, na tradição pitagórica) não interessavam aos Roma-
nos na dimensão aprofundada e especulativa a que os
gregos se abalançaram e que Boécio tentou transmitir ao
mundo de língua latina. O seu De Musica, em particular,
ergue-se com a dimensão de uma bíblia da teoria musical
europeia:
Estes conhecimentos científicos •de origem grega que
Boécio se propôs passar para a língua latina constituem
aquilo que a universidade medieval conhecerá como
Quadruuium, os quatro caminhos para a sabedoria, desig-
nação criada por Boécio no prólogo da sua Aritmética, e
a que, por analogia, se acrescentará o Trívio (Gramática,
Retórica e Dialéctica).
É, pois, o último representante do saber antigo na
sua maior profundidade. Daí que lhe tenham chamado
"o último Romano".
Está no fim de um mundo e na origem de outro: o
"último Romano" é simultaneamente o primeiro escolás-
tico, no seu esforço de compreender a fé através da
razão.
O carácter filosófico e racional predominante nas
suas obras e alguns aspectos menos ortodoxos da Conso-

12
lação levaram a que fosse posta em causa a sua autoria
relativamente às obras teológicas, pequenos tratados que
hoje sabemos serem de facto seus, através de um texto de
Cassiodoro entretanto descoberto. Mas a verdade é que
é a Filosofia, e uma Filosofia basicamente pagã, que vem
consolá-lo no seu cárcere, e não a Teologia.
O seu posicionamento ideológico é o de um cristão
que argumenta com base na razão e na ordem do mundo,
de forma que por vezes se cruzam o Cristianismo e filo-
sofia pagã, e surgem ideias e formulações que chocam
com a ortodoxia católica. Se o carácter existencial e lite-
rário da Consolação foi admirado sem reservas, os seus
leitores confrontaram-se por vezes com problemas de
doutrina, como a distinção entre Fado e Providência no
livro IV. Claro que para Gregório Magno, fautor de uma
ruptura decidida com a cultura pagã, esta distinção de
Boécio é censurável, o Fadç não existe, mas para a socie-
dade em que Boécio foi c~iado é uma categoria importante
que ainda é necessário integrar.
Mas o problema do seu cristianismo foi resolvido pela
Igreja, ao canonizá-lo: é S. Severino, cultuado em Pavia,
cidade do seu martírio, tendo-se providenciado uma data
para a sua morte e festividade, vinte e três de Outubro,
ainda que sem fundamento histórico. A sua morte tem sem
dúvida implicações políticas. Diz-nos Boécio que apenas
procurou proteger o Senado das intrigas dos cortesãos de
Teodorico e do poder discricionário, mas ao fazê-lo estava
também a colocar-se ao lado da ortodoxia católica, asso-
ciada a Constantinopla, e a opor-se a um rei cristão ariano.
Isto embora o arianismo de Teodorico fosse tolerante e ele
pretendesse agradar à maioria nicena dos seus súbditos, e

13
a morte de Boécio se explique mais pela paranóia de um
rei desconfiado que se deixa convencer da traição do seu
mais alto servidor, dando ouvidos às intrigas palacianas,
do que por questões exclusivamente religiosas.
Mas não é o político, cuja vida teria apenas um inte-
resse histórico, não é o douto, com o seu acervo de conhe-
cimentos, é o homem Boécio que nos interpela da sua
prisão em Pavia, mantendo a racionalidade e a capaci-
dade de compreender e explicar, numa situação limite.
Como explicar o desconcerto do mundo, sobretudo se
nele está inscrita uma ordem que resulta da existência de
Deus? Como é possível que um homem de consciência
limpa possa ser sujeito a tais sofrimentos? Porque têm os
maus sucesso e os bons são castigados, qual o sentido, se
há algum, de tudo isto? A sua resposta, que ultrapassa
as paredes do seu cárcere, é a da afirmação serena da
ordem universal, apesar das aparências e das circunstân-
cias. O seu saber revela-se sólido e eficaz no embate com
as vicissitudes da vida e perante a perspectiva da morte.
Poderemos perguntar se a firmeza desta crença não
será apenas um construto religioso-filosófico, e se Teodo-
rico, ao mandar matar o nosso autor, não estará a impor
ao filósofo o princípio da realidade. Mas é este afasta-
mento da realidade da natureza através das estruturações
da cultura que faz a nossa humanidade e tem garantido
a nossa evolução específica enquanto espécie superior às
outras.
É esse o fascínio da obra, o reconhecimento nela da
essência da nossa humanidade, preservada numa situa-
ção limite de tribulação, que no longo prazo acaba por ser

14
o triunfo do encarcerado e o reconhecimento da validade
do seu pensamento.
O seu carácter de consolação advém deste sentimento
balsâmico de que afinal há urna ordem universal que
permanece e se manifesta a longo prazo, que reconfortou
muitas almas pelos séculos fora e fortaleceu muitos âni-
mos na nobreza das suas convicções.
Há antecedentes da obra do ponto de vista formal na
literatura antiga. A forma de prosírnetro, isto é, a alter-
nância de prosa e verso, é habitualmente relacionada com
a tradição grega das sátiras rnenipeias, imitadas em latim
por Varrão, e com Marciano Capela e Fulgêncio. Mas é
a própria Consolação que se constitui corno modelo de
prosírnetro para a Idade Média, excluído o lado cínico e
por vezes obsceno da sátira rnenipeia.
A personificação da Filosofia tem antecedentes clás-
sicos importantes, de que salientaria o Intelecto que surge
no início do Hermes Trisrnegisto.
A Consolação como género literário, de que Séneca
nos oferece vários exemplos, é também transformada:
orienta-se agora não no sentido de enquadrar e aliviar
o desgosto provocado pela morte de alguém amado,
mas no sentido da compreensão do sentido da vida e da
fundamentação ética. Tal corno a cultura se transforma
em sabedoria, as influências dão lugar a urna obra lite-
rária original e capaz de suscitar admiração ernulativa.
E agora, caro leitor, deixo-te finalmente a sós com o
senador Boécio, olímpicamente indiferente à sentença
que o condenou à morte há quinze séculos, interpelante,
perturbanternente vivo.

15
Seguimos o texto latino estabelecido por C. Moreschini,
Bibliotheca Teubneriana, Boethius. De consolatione Philo-
sophiae, Monachii et Lipsiae in aedibus K. G. Saur, editio
altera, MMV. Muito pontualmente preferimos lições dife-
rentes das escolhidas por este editor.
Aos leitores interessados num aprofundamento suge-
rimos as seguintes obras:

L. ÜBERTELW, Severino Boezio, Genoa, 1974.

H . CHADWICK, Boethius: The Consolations of Music, Logic, Theology


and Philosophy, Oxford, 1981.

P. CoURCELLE, La Consolation de Philosophie dans la tradition litté-


raire: Antécedents et posterité de Boece, Paris, 1%7.

M. T. GIBSON (ed.), Boethius: His Life, Tlwught and lnfluence,


Oxford, 1981.

M . HOENEN - L. NAUT (ed.), Boethius in the Middle Ages. Latin and


vernacular traditions of the Consolatio Philisophiae, Leiden-New
York-Kõln, 1997.

N. H . KAYWR, The Medieval Consolation of Philosophy, New York,


1992.

16
LIVRO I

Metro 1

Versos a que outrora me dediquei, cheio de entusiasmo,


lavado em lágrimas, oh, sou agora forçado
a usar as vossas cadências!
Eis que as destroçadas Camenas
me ditam o que hei-de escrever
e as faces se me enchem com prantos elegíacos bem reais.
Ao menos a elas nenhum receio as pôde impedir
de continuarem a acompanhar-me na minha jornada.
Consolam-me agora elas os fados de ancião desditoso
com as glórias de outros tempos,
da minha feliz e viçosa mocidade.
Chegou, com efeito, a apressada velhice, inesperada,
com os seus achaques,
e a dor ordenou que chegasse a idade que lhe pertence.
Cãs prematuras espalham-se na minha fronte,
e, exaustas as forças do meu corpo, a pele flácida treme.
Feliz é a morte do homem,
quando não vem interromper doces anos
e chega ao ser instantemente chamada nos anos infelizes.
Oh, com que ouvidos tão surdos
se afasta dos desgraçados
e, cruel, recusa fechar os olhos que choram!
Um só instante bastou
para mergulhar toda a minha vida na tristeza

17
precisamente na altura em que a Fortuna,
em que erradamente confiara,
me bafejava com os seus bens efémeros.
Mas porque ela agora alterou o seu rosto enganador,
carregando-se de nuvens sombrias,
a minha desditosa vida arrasta-se em penosas delongas.
Porque me lançastes vós tantas vezes em rosto
a minha felicidade, meus amigos?
Aquele que soçobrou
é porque não estava em posição firme .

Prosa 1

1 Enquanto eu reflectia silenciosamente sobre estas


coisas para comigo e escrevia com um estilete o meu
lacrimoso queixume, vi aparecer junto de mim, por sobre
a minha cabeça, uma mulher de rosto venerando, olhos
cintilantes e perspicazes mais do que a normal capaci-
dade humana, de cor vívida e de um vigor inexaurível,
embora fosse tão carregada de anos que de modo algum
se pensaria que fosse da nossa geração, com uma estatura
difícil de definir. 2 Na verdade, ora se reduzia ao tamanho
normal dos homens, ora parecia tocar o céu com o cimo
da cabeça. E, quando erguia a cabeça mais alto, penetrava
no próprio céu e escondia-se da vista dos homens que a
contemplavam.
3 As suas vestes eram tecidas com requintado lavor,
com finíssimos fios e com um material indissolúvel,
que, como depois percebi quando ela avançou, ela pró-
pria tecera por suas mãos. A beleza destas vestes tinha
sido coberta por uma patine de vetustez negligenciada,

18
como costuma acontecer com as imagens fumosas1 . 4 Na
sua fímbria inferior lia-se um íl grego, na superior lia-se
um 8 bordado, e entre as duas letras, à maneira de uma
escada, viam-se marcados alguns degraus, para se subir
por eles da letra inferior para a superior 2 • 5 Porém as
mãos de homens violentos tinham rasgado esta mesma
veste e arrebatado os pedaços que cada um conseguira
arrancar. 6 Na sua mão direita estavam os seus livros, na
esquerda tinha um ceptro.
7 Quando viu as Musas da poesia em volta do meu
leito e a ditar-me as palavras para os meus lamentos,
perturbando-se um pouco, enfurecida e com olhar amea-
çador, disse:
8 - Quem permitiu a estas galderiazecas de teatro
aproximarem-se deste infeliz, não para aliviarem com
remédios as suas maleitas mas antes para ainda mais
as alimentarem com doces venenos? 9 São estas, com
efeito, que com os estéreis espinhos das emoções matam a
sementeira da Razão, abundante em frutos, e acostumam
as mentes dos homens à doença, em vez de as libertarem
dela. 10 E se as vossas carícias arrastassem algum inculto,
como costumais fazer, as mais das vezes, eu acharia que
seria algo menos difícil de tolerar, pois ao fazê-lo em nada

1
Referência às máscaras de cera dos antepassados defun-
tos, penduradas no atrium das casas romanas e enegrecidas pelo
fumo.
2 São as letras inicias das palavras gregas que designam

as divisões da Filosofia, a Prática e a Teórica. Esta divisão da


Filosofia encontra-se explicada na obra de Boécio, ln Porphyrium
Dialogus. I.3 (P.L. 64, col. 11).

19
prejudicaríeis as minhas obras, mas logo a este, educado
nos estudos eleáticos e académicos 3!? 11 Fora mas é daqui,
Sereias tão doces que provocais a morte, deixai-o para que
com as minhas Musas eu o cure e salve!
12 Aquele coro, invectivado por estas palavras, pôs os
olhos no chão, entristecido, e, manifestando a sua vergo-
nha pelo rubor das faces, saiu triste do aposento. 13 Eu,
pelo meu lado, que devido às lágrimas tinha o olhar turvo
e não conseguia descortinar quem seria aquela mulher
com tão imperativa autoridade, fiquei embasbacado,
de olhos pregados no chão e silenciosamente fiquei na
expectativa do que iria ela fazer a seguir. 14 Então ela,
chegando-se mais perto, sentou-se na beira do meu catre
e, vendo o meu rosto pesaroso de desgosto e fixo em terra
devido à tristeza, pranteou a perturbação da nossa mente
com os seguintes versos.

Metro 2

Oh, imersa em quão perigoso abismo


se embota esta mente! Abandonando a sua própria luz,
tende a ir em direcção às trevas que lhe são exteriores.
A nociva aflição, constantemente aumentada
pelos sopros terrenais,

3
Alude-se aqui à vasta formação intelectual de Boécio. Os
Eleatas eram urna escola de filosofia grega em Eleia, na Itália, a
que pertenceu Zenão de Eleia, do século V a. C., considerado
o inventor da Dialéctica. A Academia é a designação comum da
escola platónica, pois Platão ensinava nos jardins de Academo,
em Atenas.

20
cresce desmesuradamente!
Este, quando estava em liberdade,
costumava seguir o percurso dos corpos celestes
no céu aberto,
observava o esplendor do róseo sol,
os céus da gélida lua,
e fosse qual fosse a estrela que girasse
no seu curso errante,
regressando através das várias esferas,
este homem conseguia dominá-la como mestre,
compreendendo-a através dos números.
E tinha por costume examinar e descobrir
as causas várias que a natureza esconde,
incluindo mesmo as razões
pelas quais os ventos retumbantes
põem em movimento as águas do mar,
ou que sopro faz rodar o estável orbe,
por que razão o astro que há-de mergulhar
nas hespérias ondas
se levanta num alvorecer rutilante,
que coisa aquece as gratas horas da Primavera,
para que ornamente a terra com róseas flores,
quem concedeu que o fecundo Outono, no final do ano,
faça inchar os pesados bagos de uva.
Agora jaz prostrado, esgotada a luz do seu espírito,
e, com o pescoço oprimido por pesadas cadeias,
andando de cabeça baixa por causa do peso,
é obrigado, oh, a olhar para a estúpida terra!

21
Prosa 2

1 - Mas é tempo de tratamento - disse ela-, mais do


que de queixumes.
2 Então, olhando para mim com atenção, disse:
- Tu não és aquele que, nutrido outrora com o meu
leite, educado com as minhas iguarias, tinhas passado
à robustez de um ânimo viril? 3 E eu tinha-te fornecido
armas tais que, se não tivesses sido o primeiro a lançá-las
fora, te teriam protegido com invencível firmeza. 4 Reco-
nheces-me? Porque te calas? Fazes silêncio por vergonha
ou por perplexidade? Eu preferia que fosse por vergonha,
mas a perplexidade, ao que vejo, tomou posse de ti.
5 E como tivesse visto que eu não só me calava mas
que estava mesmo completamente mudo e sem fala, apro-
ximou suavemente a mão do meu peito e disse:
- Não é nada de perigo, sofre de letargia, doença
comum dos espíritos enganados. A pouco e pouco esque-
ceu-se de si. 6 Recordar-se-á facilmente, se primeiro me
reconhecer a mim. Para que o possa fazer, limpemos um
pouco os seus olhos da nuvem das coisas mortais que lhe
tolda a visão.
7 Isto disse e, dobrando sua veste, fez-lhe uma prega
e enxugou com ela os meus olhos marejados de lágrimas.

Metro 3

Então, dissipada a noite, as trevas deixaram-me


e os meus olhos recuperaram o primitivo vigor,

22
tal como quando as nuvens se aglomeram
com o tempestuoso Coro 4 :
a abóbada celeste eriça-se de nuvens chuvosas,
o sol esconde-se e a escuridão,
não havendo ainda outros astros nos céus,
derrama-se do alto sobre a terra.
Mas se Bóreas, enviado da caverna trácia,
fustigar esta escuridão
e libertar a claridade enclausurada,
Febo resplandece, brilhando com súbito clarão,
E ofusca com os seus raios
os olhos que o contemplam com surpresa.

Prosa 3

1 Dissipadas de igual modo as névoas da tristeza, olhei


o céu e recuperei a presença de espírito, para conhecer o
rosto de quem me tratava. 2 E quando virei para ela os
olhos e fixei nela o olhar, eis que reconheço a minha ama,
a Filosofia, em cuja companhia eu tinha estado desde a
minha juventude. 3 E disse eu:
- Porque vieste tu até estas solidões do nosso exílio, 6
mestra de todas as virtudes, descendo da mais alta esfera?
Foi porventura para seres também tu perseguida, acom-
panhando-me como ré de falsas acusações?
4 Disse ela:
- Então, meu pupilo, eu iria abandonar-te e recusar-
-me a partilhar contigo, num esforço conjunto, o fardo

4
Coro, vento de Nordeste.

23
que tu carregaste por causa do ódio ao meu nome? 5 Seria
sacrilégio a Filosofia deixar sozinho um inocente na sua
jornada. Havia eu de temer, está-se mesmo a ver, os meus
acusadores e assustar-me, como se o que agora acontece
fosse algo de novo? 6 Então tu achas que é esta a primeira
vez que a Sabedoria é sujeita a ataques e tribulações por
parte de homens de maus costumes? Não é verdade que já
entre os Antigos, mesmo antes do tempo do meu Platão 5,
travámos um grande combate contra o atrevimento da
estultícia? E embora ele próprio tenha sobrevivido a estas
lutas, o seu mestre Sócrates, comigo a seu lado, mereceu
a vitória de uma morte injusta 6• 7 Como, posteriormente,
uma multidão de epicuristas, estóicos e outros procuras-
sem cada um por seu lado apoderar-se da herança deste,
e me arrastassem, a reclamar e a debater-me, como um
quinhão de saque, rasgaram a veste que eu tecera com
as minhas próprias mãos e, arrancando alguns farrapos
dela, foram-se embora, julgando que eu lha tinha entre-
gado inteira. 8 Devido ao facto de neles se vislumbrarem
alguns traços da minha indumentária, os insensatos, jul-
gando que estes eram meus amigos, trataram de destruir
alguns deles, por causa da estupidez da multidão igno-
rante. 9 E se não conheceste nem a fuga de Anaxágoras 7

5
Platão viveu c. 429-347 a. C.
6 Sócrates bebeu a cicuta por ordem do tribunal ateniense
em 339 a. C.
7
Anaxágoras, filósofo jónio e amigo de Péricles, abandonou
Atenas c. 432, depois de ter sido alvo de uma acusação de impie-
dade.

24
nem o veneno de Sócrates nem as torturas de Zenão 8, por-
que são coisas distantes, tiveste certamente possibilidade
de conhecer os Cânios 9, os Sénecas10, os Soranos11, em
relação aos quais há uma memória que não é nem muito
antiga nem obscura.
10 A estes nada os levou à morte violenta senão o
facto de, instruídos nos nossos costumes, se apresentarem
como diferentes daquilo que convinha aos interesses dos
ímpios. 11 E por isso não há razão nenhuma para te admi-
rares se no mar desta vida somos atormentados por tem-
pestades que sopram em volta de nós, que temos como
principal propósito desagradar aos maus. 12 Embora
destes haja um numeroso exército, contudo é digno de
desdém, porque não é comandado por um chefe, mas
apenas atirado de um lado para o outro, ao acaso, por uma
ignorância desvairada. 13 E se por vezes este exército se
lança contra nós com mais força, organizando uma linha
de batalha, a nossa capitã faz retirar as suas tropas para a
cidadela, e eles ficam a gastar as suas energias com despo-
jos inúteis. 14 E nós de cima zombamos da insignificância

8 A firmeza de ânimo do filósofo Zenão de Eleia sob tortura

era proverbial na Antiguidade. Há variantes quanto à identi-


dade do torturador.
9
Cânio foi morto pelo imperador Gaio (Calígula) que rei-
nou entre 37-41 d . C. O plural é usado para generalizar o destino
dos filósofos.
10 Lúcio Aneu Séneca, escritor e filósofo, preceptor de Nero,

que foi forçado ao suicídio.


11 Sorano é um filósofo estóico, também forçado por Nero

a suicidar-se.

25
das coisas a que eles lançam mão, seguros quanto a todo
o tumulto tresloucado e protegidos por uma paliçada que
não permitirá à estultícia atacante aproximar-se.

Metro 4

Aquele que sereno, com a sua vida ordenada,


calcou aos pés o Fado soberbo
e, contemplando a pé firme uma e outra Fortuna,
foi capaz de manter o rosto invicto,
a esse não o perturbarão nem as ameaças
nem a fúria do mar
que revolve por completo o turbilhão das vagas
nem o instável Vesúvio sempre que,
destruindo as fornalhas,
expele os seu fogos fumegantes
ou a trajectória do ardente raio
que muitas vezes atinge as altas torres.
Porque será que os infelizes tanto admiram
os cruéis tiranos,
que sem poder se enfurecem?
Nada esperes e nada temas;
desarmarás a ira do homem desenfreado.
Mas quem quer que, hesitante, teme ou deseja,
por não ser firme senhor de si mesmo,
lança fora o escudo e, posto em debandada,
forja as cadeias com que será arrastado.

26
Prosa 4

1 - Compreendes o que te digo - perguntou -, e estas


coisas penetram no teu espírito, ou és como o burro que
ouve a lira? 12 Porque choras, porque te debulhas em lágri-
mas? "Fala, não o escondas na tua mente" 13• Se queres que
alguém te trate, tens de pôr a ferida a descoberto.
2 Então eu, recobrando alento, disse:
- Será que ainda é preciso pôr-me a explicar a aspereza
da fortuna que se encarniça contra mim? Será que ela por
si própria não é já sobejamente manifesta? O aspecto do
lugar em que nos encontramos em nada te impressiona?
3 Será esta a biblioteca que tu própria tinhas escolhido
como tua certíssima morada em minha casa, na qual
conversavas comigo sobre o conhecimento das coisas
humanas e divinas? 4 Era este o meu aspecto, este o meu
semblante, quando contigo perscrutava os segredos da
natureza, quando com o ponteiro me descrevias o curso
dos astros, quando formavas os meus costumes e toda
a minha norma de vida a exemplo da ordem celeste 14 ?
Foram estas as recompensas que eu procurei alcançar,

12 Em Grego no original: õvoç À'ÚQaç. Expressão proverbial,


que se aplicava a pessoas que se dedicam a matérias que ultra-
passam em muito o seu entendimento. A frase era o título de
uma sátira menipeia de Varrão (t27 a. C.), que se perdeu, género
literário seguido por Boécio na Consolatio.
13 Em Grego no original: 'E!;aúôa, µT] XEU0E vócp. Ilíada, 1,

363. Frase de Tétis a seu filho Aquiles, perguntando-lhe qual a


razão das suas lágrimas.
14 Platão, Res publica, 592b.

27
obedecendo aos teus preceitos? 5 E tu sancionaste aquela
frase da boca de Platão segundo a qual os Estados seriam
mais felizes se fossem governados pelos estudiosos da
sabedoria ou se se desse o caso de os seus governantes
a ela se dedicarem15. 6 Tu, pela boca do mesmo varão,
chamaste a atenção para o facto de que a causa que exigia
que os sábios se apoderassem do Estado era a necessidade
de impedir que o abandono do governo das cidades aos
cidadãos ímprobos e infames trouxesse desgraça e pre-
juízo aos bons.
7 Ora eu segui esta autoridade, pois escolhi transferir
para a prática da administração pública aquilo que tinha
aprendido de ti nos recatados ócios. 8 Tu e Deus, que
te instilou nas mentes dos sábios, sois minhas testemu-
nhas de que não me dediquei a nenhum cargo público a
não ser movido por uma solicitude geral para com todos
os homens de bem. 9 Foi /daqui que surgiram graves e
inexoráveis querelas com os ímpios e, coisa que acom-
panha a liberdade de consciência, a indiferença relativa-
mente aos melindres dos poderosos, em nome da obser-
vância da lei.
10 Quantas vezes eu, opondo-me a ele, refreei Conin-
gusto16, que se lançava contra a fortuna de algum infeliz
indefeso; quantas vezes afastei Trrgila17, chefe da casa real,
da malfeitoria iniciada, e até já praticada; quantas vezes
protegi os infelizes que a cobiça impune dos bárbaros

15 Platão, Res publica, 473 D, 487e.


16 Godo com cargo público de grande importância.
17 Um godo, com vasta esfera de influência devido ao seu

cargo de chefe do palácio.

28
atormentava com calúnias sem fim, expondo aos perigos
a minha autoridade! Nunca em caso algum alguém
me arrastou do que era recto para a injustiça. 11 Ver as
fortunas dos provinciais serem delapidadas não só por
roubos de particulares mas também por impostos
públicos custou-me tanto como às próprias vítimas. 12 Em
tempo de fome acerba, como se avizinhasse o perigo de a
província da Campânia ser flagelada pela escassez devido
a uma nociva e inexplicável venda forçada a baixo preço
do cereal18, empreendi uma luta contra o prefeito do pre-
tório, em prol do bem comum: tendo o rei tomado conhe-
cimento da situação, batalhei e consegui que não fosse
exigida a venda forçada .
13 Subtraí Paulino, varão consular19, cujos bens os
cães do palácio teriam devorado, expectantes e cheios
de ganância, às fauces dos que se lançavam contra ele de
bocas escancaradas. 14 Para que a pena de uma acusa-
ção maquinada não caísse sobre Albino, varão consular 20,
opus-me aos ódios do delator Cipriano 21 . 15 Parece-te
que suficientemente exacerbei contra mim grandes

18 A coemptio era uma venda forçada de cereal ao Estado


por baixo preço, imposta (indicta) a uma província em épocas
de especial escassez.
19 Paulino, cônsul em 498.

20 Albino, cônsul em 498 d. C., cujos problemas com o

regime de Teodorico estiveram na origem da queda em desgraça


de Boécio.
21 Romano invulgarmente próximo do regime dos Godos,

que desempenhou funções militares e fez instruir os filhos em


língua gótica.

29
animosidades? Mas eu devia ter sido protegido por outros,
eu que por amor da justiça não tive preocupação alguma
em garantir a minha própria segurança, conseguindo o
favor dos cortesãos. 16 E quem foram os que me atingiram
com a sua denúncia? Destes, Basílio, outrora afastado do
serviço do rei, foi obrigado por causa das suas dívidas à
delação do meu nome. 17 Como a censura régia tivesse
decretado que Opilião 22 e Gaudêncio 23 partissem para o
exílio devido a inúmeras fraudes de todo o tipo e aqueles,
não querendo acatar esta decisão, se defendessem com
a protecção dos edifícios sagrados e isto tivesse sido desco-
berto pelo rei, este decretou que, se não saíssem da cidade
de Ravena dentro do prazo estipulado, seriam expulsos
marcados nas frontes com ferros em brasa. 18 Que coisa
parece poder ser acrescentada a esta severidade? E nesse
mesmo dia, tendo sido apresentada por estes indivíduos
uma denúncia contra mim, foi aceite a delação!
19 Mas então? Foram as nossas actividades que assim
o mereceram ou foi a sua condição de homens a quem
tinha sido aplicada uma condenação que fez deles acusa-
dores credíveis? E assim a Fortuna não teve a mínima ver-
gonha, já não digo pelo facto de ser acusado um inocente,
mas ao menos por causa da torpeza dos acusadores.
20 Mas perguntas tu em que consiste sumariamente o
crime de que sou acusado. Dizem que quis que o Senado
fosse preservado. 21 Queres saber como? Sou acusado de
ter impedido um delator de entregar documentos pelos

22
Irmão de Cipriano e genro de Basílio. Ele e o irmão foram
leais aos Godos e prosperaram após a morte de Boécio.
23 Figura senatorial de menor relevo.

30
quais tornaria o Senado réu do crime de lesa majes-
tade. 22 Que achas então, Mestra? Hei-de negar a culpa,
para não te envergonhar? Mas eu quis e nunca deixarei
de querer proteger o Senado. Confessarei? Mas cessou o
trabalho de impedir o delator. 23 Porventura chamarei
sacrilégio ao facto de ter escolhido a salvação daquela
ordem senatorial? Ela é que, na verdade, com os seus
decretos contra mim, fez que isto fosse considerado
sacrilégio. 24 Mas a insensatez, que sempre mente a si
mesma, não pode mudar a realidade dos factos do pro-
cesso, nem julgo que para mim fosse lícito, seguindo a
regra de Sócrates 24, ter ocultado a verdade ou ter condes-
cendido com a mentira. 25 Na verdade, de que forma isto
seja, deixo-o ao julgamento dos sábios, para que o exami-
nem. A verdade dos acontecimentos e a sua sucessão,
essas confiei-as à memória e à escrita, para que a posteri-
dade os possa conhecer.
26 Na verdade, acerca das cartas forjadas, pelas quais
me acusam de ter tido esperanças na liberdade romana,
o que há a dizer? A fraude destas teria ficado patente,
se me tivesse sido permitido servir-me do texto dos pró-
prios denunciantes, elemento que em todos os processos
tem grande peso. 27 Na verdade, que liberdade pode
esperar-se ainda? E oxalá se pudesse esperar alguma. Eu
teria respondido com a frase de Cânio, que ao ser acusado
por Gaio César, filho de Germânico 25, de ser cúmplice
de urna conspiração feita contra si, disse: "Se eu tivesse
sabido do que se passava, tu não chegarias a sabê-lo."

24 Platão, Theaetetu s, 151 e Res publica, 485c.


25 Gaio César, i. e., Calígula, era filho de Germânico. Cf. 1P3.9.

31
28 Nesta situação, a aflição não obnubilou os meus
sentidos a ponto de eu me queixar do facto de homens
malvados terem empreendido ataques criminosos contra
a virtude; o que muito me espanta é que tenham conse-
guido aquilo que pretendiam. 29 Na verdade, a vontade
de fazer mal talvez seja uma fraqueza nossa, mas que
um qualquer patife seja capaz de poder contra a inocên-
cia seja o que for que lhe passe pela cabeça, havendo um
Deus a observá-lo, isso já é uma coisa espantosa. 30 Daí
que um dos teus amigos tenha perguntado com razão:
"Se Deus existe, de onde vem o mal? De onde vem o bem,
se Deus não existe?" 26 31 Mas era normal que os patifes
que desejam o sangue de todos os homens de bem e de
todo o Senado quisessem que nós, que eles tinham visto
que defendíamos os homens de bem e o Senado, fôssemos
destruídos. 32 Mas será que eu também merecia uma
atitude semelhante da parte dos senadores?
Estás lembrada, julgo eu, visto que tu própria esti-
veste sempre presente, indicando-me o que havia de dizer
e de fazer, estás lembrada, dizia eu, de que em Verona,
quando o rei, desejoso de um massacre geral, procurava
transferir para o conjunto do Senado e de toda a ordem
senatorial o crime de lesa majestade denunciado a res-
peito de Albino, eu defendi a inocência de todo o Senado,
com completa indiferença pelo risco que corria. 33 Sabes
que estou a dizer a verdade e que nunca me vangloriei.
O íntimo de uma consciência que se aprova a si mesma é
de algum modo diminuído sempre que alguém faz alarde

26
O amigo da Filosofia é Epicuro. A citação é retirada de
Lactâncio, De ira Dei, 13.21.

32
dos seus actos e recebe a recompensa da fama. 34 Mas vê
o resultado da minha inocência: por prémio de verdadei-
ras virtudes, sofro a punição de um falso crime. 35 Por-
ventura alguma vez a confissão manifesta de algum crime
provocou tal consenso de severidade entre os juízes que
a própria falibilidade do engenho humano ou a condição
instável de todos os mortais perante a Sorte não condu-
zisse alguns deles à clemência? 36 Se eu fosse acusado de
ter querido lançar fogo aos templos, de degolar por sacrí-
lega espada os sacerdotes, de maquinar a morte de todos
os homens de bem, uma sentença ter-me-ia punido, mas
estando eu presente, tendo eu confessado ou sido decla-
rado culpado. Mas, na presente situação, sou condenado à
morte e à proscrição a uma distância de praticamente qui-
nhentas milhas, sem possibilidade de usar da palavra e de
me defender, por causa de uma atitude mais benevolente
para com Senado. Ó senadores, que não mereceis que mais
ninguém possa ser por semelhante crime condenado!
37 Os próprios denunciantes se aperceberam de que tal
acusação era dignificante: para a turvarem com a mistura
de algum crime, mentiram dizendo que tinha manchado a
minha consciência pelo sacrilégio, devido a ambições liga-
das à carreira política. 38 Mas também tu, implantada em
mim, afastavas da morada do meu espírito todo o desejo
das coisas mortais, e sob o teu olhar não era possível haver
lugar para o sacrilégio 27 . Com efeito, todos os dias insti-
lavas nos meus ouvidos e nos meus pensamentos aquele

27 Os estudos filosóficos e científicos de Boécio


prestavam-se
a acusações de magia negra, acusação que já tinha levado à morte
dois senadores em 510, no ano em que Boécio fora cônsul.

33
preceito de Pitágoras, "segue o deus" 28 . 39 Nem era con-
veniente que eu captasse a protecção de espíritos tão vis,
eu que tu preparavas para a excelência de me tornares
semelhante a Deus. 40 Além disso, o imaculado recesso
do meu lar, o grupo de amigos de toda a probidade, até
o meu sogro 29, homem íntegro, tão venerável como tu
própria, me defendem de qualquer suspeita de um crime
destes. 41 Mas - ó sacrilégio! - aqueles acreditam em tão
grande crime por tua causa, e é por isso mesmo que se
pensa que tomei parte do malefício, pelo facto de estar
imbuído das tuas disciplinas, de ter sido educado nas tuas
normas de vida. 42 Assim, não basta que nada me tenha
adiantado ter-te reverenciado, mas ainda por cima és tu
que és atingida pelo ultraje que me é feito a mim.
43 Mas às minhas desgraças vem ainda somar-se como
última tribulação o facto de que a avaliação da maior
parte dos homens não tem em conta a verdade dos factos,
mas o resultado da Fortuna, e acha que só foram provi-
denciadas por Deus as coisas que a felicidade outorga,
com o que sucede que uma boa reputação é a primeira
coisa a abandonar os que caem em desgraça. 44 Não me
apetece agora lembrar os boatos da populaça nem até
que ponto são múltiplas e discordantes as opiniões. Direi
apenas isto: quando algum crime é assacado aos infe-
lizes, o derradeiro fardo da adversa Fortuna consiste em
supor-se que eles merecem as provações que sofrem.
45 E eu, espoliado de todos os meus bens, afastado dos

28
Em Grego no original: b rou 0ecp.
29 Símaco, que também virá a ser executado por Teodorico.

34
meus cargos, desonrado na minha reputação, sofri o
suplício em paga do bem que fiz.
46 Parece-me que estou a ver as locandas dos cele-
rados, esfuziantes de gáudio e alegria, a ver o mais vil dos
denunciantes a lançar-se contra mim com novas calúnias,
os bons desalentados, prostrados devido ao pavor que a
minha tribulação inspira, um patife qualquer a ser insti-
gado a empreender um crime devido à impunidade e a
consumá-lo por causa das recompensas, os inocentes pri-
vados não só da sua segurança mas até da possibilidade
de se defenderem. E assim, apetece exclamar:

Metro 5

Ó Criador do céu estrelado,


que apoiado no eterno sólio
fazes rodar o céu com veloz turbilhão
e obrigas os astros a obedecer a uma lei,
de modo que a lua, ora brilhante com o como cheio,
reflectindo de frente todas as chamas do irmão,
esconda as estrelas mais pequenas,
ora pálida, com o como obscuro,
perca a luz, mais próxima de Febo.
Ordenas a Vésper, que, no irúcio da noite,
conduz à sua frente o surgir dos frios astros,
mude as rédeas costumadas, empalidecendo,
agora como Lúcifer, quando nasce o sol 30!

30A estrela da tarde, Vésper, e a estrela da manhã, Lúcifer,


eram para os antigos qualquer planeta que brilhasse mais no

35
Tu, quando o frio do Inverno
faz brotar abundante folhagem,
fazes o dia mais breve;
tu, quando vem o cálido Verão,
reduzes a metade as rápidas horas da noite.
O teu poder tempera as variações do ano,
De modo que as frágeis folhas que o sopro de Bóreas leva,
o Zéfiro as traz de novo,
as sementeiras que Arcturo viu,
abrasa-as Sírio quando são altas searas.
Nada está isento da Tua lei antiga,
escapando ao trabalho da estação própria.
Todas as coisas governando com um limite preciso
apenas rejeitas controlar os actos dos homens,
como governante, com limites adequados.
Na verdade, porque faz a escorregadia Fortuna
girar tão grandes alternâncias?
A pesada pena devida ao crime
atormenta os inocentes,
mas os costumes perversos
tomam assento em alto trono
e os malvados calcam aos pés pescoços sagrados,
em vez de pescoços injustos.
A preclara virtude, escondida em obscuras trevas,
fica ignorada e o justo sofre a acusação do iníquo.
Nenhum dano trazem aos que os cometem
os perjúrios, a fraude da calúnia.

crepúsculo e no alvorecer, normalmente Vénus ou Júpiter.


Boécio chama a atenção para o facto de o mesmo planeta poder
ser numa altura estrela da tarde e noutra estrela da manhã.

36
Mas quando apetece a estes homens,
temidos por inúmeros povos, usar as suas forças,
alegram-se por serem capazes de submeter excelsos reis.
Oh, contempla já as míseras terras,
sejas Tu quem fores que unes todas as coisas
em perfeita harmonia!
Nós, os homens, parte não vil de tão grande obra,
somos sacudidos pelo mar da Sorte.
Ó governante, modera as ondas alterosas
e com o mesmo pacto com que reges os imensos céus
dá paz às terras, concedendo-lhes estável concórdia.

Prosa 5

1 Quando estas coisas acabei de vociferar, devido a


um sofrimento prolongado, ela, de rosto sereno e em nada
perturbada com os meus queixumes, disse:
2 - Por te ter visto triste e choroso percebi imedia-
tamente que estavas caído em desgraça e exilado, mas
ignorava quão remoto era o teu desterro, não fora o teu
discurso revelar-mo. 3 Mas tu não foste expulso para tão
longe da pátria, antes foste tu que te afastaste dela! E se
preferes que pensem que foste expulso, foste tu próprio
que te expulsaste. Na verdade, nunca teria sido permitido
a outrem fazê-lo em relação à tua pessoa. 4 Com efeito,
se te lembrares de que pátria és por origem, ela não é
governada, como outrora a dos Atenienses, pelo governo
da multidão, mas "há um só senhor, um só rei" 31 , que se

31 Em Grego no original: dç xoí.Qavóç tunv, ELÇ ~amÀ.l::Ílç,


Ilias, 2, 204.

37
alegra com a grande quantidade dos cidadãos e não com
a sua expulsão, e a suprema liberdade é ser conduzido
pelas suas rédeas e obedecer às suas leis.
5 Ou será que ignoras aquela antiquíssima lei da tua
verdadeira cidade, segundo a qual foi sancionado que não
existe o direito de exilar quem quer que seja que prefira
estabelecer nela a sua morada? Na verdade, quem está
dentro das suas trincheiras e dos seus muros, esse não
tem medo absolutamente nenhum de incorrer na pena
do exílio. Por outro lado, quem deixar de querer habitá-la
deixa ao mesmo tempo de o merecer. 6 E assim, não me
perturba tanto o aspecto deste lugar como o teu rosto,
nem me fazem tanta falta as paredes da biblioteca, ornada
com vidro e marfim, como a morada da tua mente, na
qual coloquei outrora não os livros, mas aquilo que toma
os livros valiosos, as ideias dos meus livros.
7 E tu, de facto, disseste coisas verdadeiras acerca
dos teus méritos em prol do bem comum, pecaste ape-
nas por defeito, tendo em conta a multidão das coisas que
realizaste. 8 Lembraste coisas que todos conhecem, sobre
a verdade e a falsidade das acusações que te foram feitas.
Achaste com razão que devias referir de forma contida os
crimes e fraudes dos que denunciaram, pois todas essas
coisas serão divulgadas melhor e mais abundantemente
pela boca do povo, que tudo vem a saber. 9 Censuraste
ainda com energia a actuação injusta do Senado. Deplo-
raste também a acusação feita contra mim própria, cho-
raste os danos causados à minha reputação. 10 Por fim,
a tua dor encarniçou-se contra a Fortuna, e lamentaste
que te tivessem sido dadas recompensas que não estavam
à altura dos teus méritos. E, no final do teu poema de

38
homem enfurecido 32, colocaste os teus votos de que a paz
que rege os céus governasse também as terras.
11 Mas visto que um enorme tumulto de emoções
se lançou sobre ti e a dor, a ira e o desgosto te arrastam
cada uma para seu lado, no teu actual estado de espírito
ainda não te convêm os remédios mais fortes. 12 Assim,
u sarei durante algum tempo remédios mais suaves, que
amoleçam aquelas coisas que endureceram a ponto de se
tornarem um tumor pela influência das perturbações,
para que recebam mais facilmente a acção de um medica-
mento mais poderoso.

Metro 6

Quando ferve o astro de Câncer,


oprimido pelo raios de Febo,
então aquele que confiou
larga sementeira a estéreis sulcos,
enganado pela fé em Ceres,
que se dirija às árvores dos carvalhos.
Nunca vás ao bosque purpúreo
para colher violetas,
quando a planície se eriça estridente
com tempestuosos Aquilões,
nem, se te apetecer comer uvas,
procures com mão ávida
deitar mão às videiras na Primavera;
é antes no Outono

32 Isto é, no final do Metro 5.

39
que Baco apresenta os seus frutos .
Deus distribui as estações
dando a cada uma as suas funções próprias
e não permite que sejam confundidas
as alternâncias que Ele próprio determinou.
Mas aquilo que por caminho desenfreado
abandona a ordem definida
não pode ter feliz resultado.

Prosa 6

1 - Em primeiro lugar, permitirás tu que eu, em meia


dúzia de questões, averigúe e sonde o teu estado de espí-
rito, a fim de perceber qual é a maneira de te curar?
2 Eu respondi:
- Tu pergunta o que achares por bem, e eu te respon-
derei.
3 Então ela disse:
- Tu achas que este mundo é conduzido por azares
fortuitos e ocasionais ou crês que existe nele algum
governo racional?
4 Disse eu:
- De modo algum me passaria pela cabeça que coisas
tão precisas se movessem por fortuito acaso, mas antes
sei que Deus criador preside à sua obra e nunca haverá
um único dia em que eu me afaste da verdade desta
asserção.
5 - Assim é - disse ela -; na verdade isso mesmo can-
taste há pouco, e lamentaste que apenas os homens esti-

40
vessem privados da solicitude divina. De facto, não tinhas
quaisquer dúvidas, em relação às restantes coisas, que
fossem dirigidas pela razão. 6 Irra! Então muito me intriga
porque é que tu, estribado em tão sã opinião, te encontras
doente. Mas perscrutemos mais profundamente. Está-me
a parecer que falta não sei o quê. 7 Mas diz-me, uma vez
que não tens dúvidas quanto ao facto de que o mundo
é regido por Deus: apercebes-te também através de que
ditames é governado?
8 - A custo - disse eu - compreendo o sentido da tua
questão, menos ainda sou capaz de responder ao que me
perguntas.
9 - Estás a ver como não me escapou - disse - que
havia alguma deficiência, através da qual, como se fosse
por um buraco na madeira da paliçada, a doença das
perturbações se insinuou no teu espírito? 10 Mas diz-me:
lembras-te de qual é o fim das coisas e para onde se enca-
minha o tender de toda a natureza?
- Já me foi dito - disse eu -, mas o sofrimento toldou-
-me a memória.
11 - E sabes de onde provêm todas as coisas?
- Sei sim - respondi-, tudo vem de Deus.
12 - E como pode ser então - disse ela - que tu, conhe-
cendo o princípio das coisas, ignores qual é a sua fina-
lidade? 13 Na verdade é isto que as perturbações costu-
mam fazer, é tal o seu poder que são capazes de afastar
um homem do seu posto, mas não são capazes de o pôr
em debandada e de o escorraçar completamente de si
próprio. 14 Mas gostaria que me respondesses ainda ao
seguinte. Lembras-te de que és um homem?
- Como é que não me havia de lembrar? - disse eu.

41
15 - Será que és então capaz de me dizer o que é um
homem?
- Perguntas-me se sei que sou um animal racional e
mortal? Sei-o, e declaro que é isso que eu sou.
16 E ela:
- Não sabes que és alguma coisa mais?
-Não.
17 - Já estou a ver - disse ela - qual é a outra causa,
se não a maior, da tua doença: é que deixaste de saber
aquilo que tu próprio és. E assim descobri completamente
quer a causa do teu sofrimento quer o caminho para
recuperares o bem-estar. 18 Na verdade, porque andas
confuso devido ao esquecimento de ti mesmo, sentiste
dor não só por teres sido exilado, mas também por teres
sido espoliado dos teus bens; 19 porque ignoras qual é
a finalidade do mundo, julgas que os homens malvados
são poderosos e felizes; porque te esqueceste dos ditames
com que o mundo é governado, pensas que estas alter-
nâncias das Fortunas surgem ao acaso, sem alguém que
as conduza, razões bastantes não só para a doença mas
até para a morte. Mas dêmos graças Àquele que provi-
dencia a salvação pelo facto de a natureza não te ter
ainda abandonado por completo. 20 Temos ao menos a
acendalha da tua salvação, a tua recta opinião acerca do
governo do mundo, pois não pensas que este está depen-
dente da incerteza dos acasos mas sim da razão divina;
portanto nada receies, em breve resplandecerá para ti
o calor da vida, a partir desta pequeníssima centelha.
21 Mas, tendo em conta que ainda não é altura para remé-
dios mais poderosos e que é sabido que a natureza das
mentes é de tal ordem que, quando rejeitam as opiniões

42
verdadeiras, são envolvidas por opiniões falsas, e a névoa
de perturbações, resultante dessas opiniões, confunde a
visão verdadeira, eu tentarei para já atenuar esta névoa,
com suaves e moderados remédios, de tal modo que, afas-
tadas as trevas das enganosas emoções, tu sejas capaz de
reconhecer o esplendor da verdadeira luz.

Metro 7

Os astros escondidos
por negras nuvens
nenhuma luz podem espargir.
Se o túrbido Austro,
revolvendo o mar,
o fizer misturar-se em torvelinho,
a água, ainda pouco antes cristalina
e semelhante aos dias soalheiras,
pouco depois, turvada pela imundície,
impede a visão.
O regato que flui das altas montanhas
muitas vezes se imobiliza
de encontro ao obstáculo de urna pedra
solta de um penedo.
Também tu, se queres ver a verdade
com clara luz e percorrer um caminho
em linha recta, afasta os prazeres,
o temor afasta, afugenta a esperança,
e que também o desgosto esteja ausente.
Onde estes reinam,
a mente fica obnubilada
e enleada por cadeias.

43
LIVRO II

Prosa 1

1 Depois disto, fez silêncio durante uns instantes e,


quando, com a sua modesta reserva, conseguiu a minha
atenção, começou assim:
2 - Se bem entendi as causas e o estado do teu sofri-
mento, definhas de saudade e desgosto relativamente à
tua anterior Fortuna. Foi tão-somente uma parte do teu
espírito que ela subverteu ao alterar-se, que é o que tu
pensas que aconteceu. 3 Conheço bem as multiformes
e falaciosas aparências desse monstro. Ela a tal ponto
aparenta uma suavíssima afabilidade com aqueles que
procura iludir, que depois é com intolerável dor que aflige
aqueles que inesperadamente abandonou. 4 Se te recor-
dasses da sua natureza, costumes e valor, saberias que
não tiveste nela nada de belo nem nada de belo perdeste;
mas, ao que julgo, não será preciso que me esforce muito
para fazer com que te lembres destas coisas.
5 Costumavas, com efeito, atacá-la com palavras viris,
quer quando estava presente quer mesmo quando te
acariciava, e afastava-la do nosso santuário pronunciando
os teus juízos. 6 Mas toda a súbita mudança na situação
de um indivíduo implica uma espécie de sobressalto
das almas, e assim sucedeu que também tu perdesses a
tua tranquilidade. 7 Mas agora é tempo de tomares e de
saboreares algo suave e agradável que, penetrando no teu
organismo, abra caminho a mais robustos tragos.

45
8 Assista-me então a persuasão da doçura retórica,
que não só avança pelo caminho recto mas também não
se afasta dos nossos ensinamentos, e que a música, minha
serva, nascida em minha casa, a acompanhe, ora com
modos ligeiros ora com modos austeros.
9 Então que coisa, ó homem, te lançou no luto e na
tristeza? Estou em crer que viste algo novo e inusitado.
Tu pensas que a Fortuna mudou em relação à tua pessoa:
estás enganado. 10 São estes os seus costumes de sempre,
esta a sua natureza. O que ela fez foi manter em relação a
ti a constância que lhe é própria, que é a sua mutabilidade
característica. Já era assim quando te acariciava, quando
brincava contigo com as armadilhas de uma felicidade
enganosa. 11 Viste o rosto inconstante de uma divindade
cega. Aquela que ainda oculta a outros a sua verdadeira
face revelou-se-te completamente. 12 Se gostas dela, apro-
veita as vantagens do seu modo de agir, não te queixes.
Se te causa horror a sua inconstância, despreza-a e afasta-a,
pois ela brinca com coisas que trazem a destruição.
Na verdade, aquela que é agora causa de tanta tris-
teza para ti, deveria ser a própria causa da tua serenidade.
Quem te abandonou, com efeito, foi aquela que ninguém
pode estar seguro de não ser por ela abandonado. 13 Ou
será que tu consideras preciosa uma felicidade que irá
desvanecer-se? Será que te é grata a presença da Fortuna,
em cuja durabilidade não se pode ter confiança, e que,
quando desaparecer, irá trazer a tristeza? 14 E se não pode
ser retida por decisão humana e ao fugir toma os homens
desgraçados, que é isto senão um indício da desgraça
futura? 15 Com efeito, não basta ver o que está diante dos
olhos: a prudência toma em linha de conta o resultado

46
das coisas, e a própria mutabilidade, para o bem e para
o mal, faz com que não se deva nem recear as ameaças da
Fortuna nem desejar os seus favores.
16 Por fim, uma vez que tenhas submetido a cerviz
ao seu jugo, é preciso que suportes com espírito igual
tudo o que se passa dentro da arena da Fortuna. 17 E se
quiseres ditar uma lei relativa à permanência ou ao afasta-
mento àquela que por tua iniciativa tomaste por senhora,
não é verdade que não só serás injusto, mas ainda agra-
varás, recalcitrando, uma sorte que não podes alterar?
18 Se confiares as velas ao vento, não avançarás para onde
a tua vontade quer, mas para onde os ventos te impelirem;
se lançares sementes aos campos, terás anos de colheitas
abundantes, contrabalançados por anos de escassez.
Entregaste-te à Fortuna para que ela te governasse, tens
de te conformar com a forma de agir da tua senhora.
19 Mas tu tentas, pelo contrário, parar o ímpeto da roda
que gira? Mas, ó mais estúpido dos mortais, no momento
em que se detivesse deixaria de ser a Fortuna!

Metro 1

Esta, quando com a sua tirânica mão


tiver subvertido as alternâncias,
diz-se que à maneira do estuante Euripo1,
aniquila reis que ainda há pouco infundiam temor
e ergue, enganosa, o rosto baixo do vencido.

1 O Euripo é um pequeno canal que separa a ilha grega de


Eubeia do continente.

47
Ela não dá ouvidos aos infelizes
nem se preocupa com os prantos
e zomba mesmo dos gemidos que, inexorável, provocou.
Assim ela brinca, assim experimenta as suas forças,
dá grandes provas do seu poder,
e mostra aos seus servos um extraordinário prodígio,
o de o mesmo homem surgir aos nossos olhos
desesperado e feliz no espaço de uma só hora.

Prosa 2

1 - Gostaria de te confrontar com as palavras da


própria Fortuna sobre umas quantas coisas; tu vê se são
justas as suas reclamações.
2 - "Porque é que tu, homem, me acusas com quei-
xas constantes? Que ofensa te fiz eu? Que bens te roubei?
3 Pleiteia comigo, com o juiz que tu quiseres, acerca da
posse de riquezas e dignidades, e, se demonstrares que
alguma destas coisas é pertença de algum dos mortais,
concederei que já eram tuas as coisas que reclamas.
4 Quando a natureza te fez nascer do útero de tua
mãe, acolhi-te nu e desprovido de tudo, acalentei-te com
os meus recursos e, coisa que agora faz com que te irrites
contra mim, eduquei-te propensa ao favor e com bastante
indulgência, rodeei-te de todas as coisas que por direito
me pertencem, com abundância e esplendor. 5 Agora
apetece-me voltar atrás com a mão: estás em obrigação, na
medida em que usaste de bens alheios, e não tens direito a
queixas, como se tivesses perdido algo que te pertencesse
inteiramente. 6 Porque te lamurias então? Não cometemos
contra ti nenhuma violência: riquezas, honrarias e coisas

48
quejandas caem sob a minha alçada. As escravas conhe-
cem bem a sua senhora: vêm comigo e, quando eu me
afasto, também elas se vão. 7 Eu afirmaria audaciosa-
mente que, se fossem tuas as coisas que te queixas de ter
perdido, de modo algum as terias perdido.
8 Serei eu, porventura, a única a ser proibida de
exercer os meus direitos? É lícito ao céu apresentar dias
luminosos e escondê-los com noites tenebrosas; é lícito
ao ano ora coroar o rosto da terra com flores e frutos ora
desfeá-lo com nuvens e geadas; é lícito ao mar ora acari-
ciar com uma superfície lisa ora encapelar-se com proce-
las e vagas: a mim, a insaciada cupidez dos homens há-de
prender-me a uma constância que não está nos meus
hábitos? 9 É esta a minha força, é este o jogo que conti-
nuamente jogo: faço girar a roda com o seu volúvel cír-
culo, divirto-me a passar para cima o que está em baixo
e para baixo o que está em cima. 10 Sobe, se te apraz,
mas com a condição de depois não considerares injusto
que as regras do meu jogo te façam descer. 11 Ou será
que ignoras os meus costumes? Não sabias que Creso, rei
dos Lídios, que fora pouco antes uma ameaça para Ciro,
logo a seguir se tomou objecto de dó, e só não foi entre-
gue às chamas da pira porque uma chuva enviada do céu
o impediu? 12 Porventura te escapa que Paulo chorou
lágrimas de compaixão pelas desgraças do rei Perseu, por
si aprisionado 2? Que coisa pranteiam os gritos das tragé-

2 L. Errúlio Paulo (cônsul em 170 a. C.) derrotou o último


rei da Macedónia, Perseu. Lívio e outros historiadores referem
as sensatas reflexões de Paulo sobre a instabilidade da prospe-
ridade humana.

49
dias senão a Fortuna que, com golpes desferidos a torto
e a direito, subverte os reinos prósperos? 13 E então não é
verdade que, quando eras ainda jovenzinho, aprendeste
que se encontram na soleira de Júpiter dois tonéis, um
com as coisas boas e outro com as coisas más 3? 14 De que
te queixas tu então, se tomaste mais abundantemente da
parte dos bons? De que te queixas tu, se eu não me afastei
completamente de ti? De que te queixas tu, se esta mesma
mutabilidade que me é própria é para ti justa causa de ter
esperança em coisas melhores? Não desanimes, porém.
Querias, apesar de viveres num reino comum a todos os
homens, viver segundo leis feitas só para ti?"

Metro 2

Ainda que a Abundância, com o como repleto,


derrame tantas riquezas
quantas as areias o mar agitado por violentos ventos faz
rolar,
quantos astros brilham num céu limpo,
nas noites estreladas,
e não volte atrás a mão, nem assim
o género humano deixará de se lastimar
com míseros queixumes.
Ainda que Deus acolha benevolente os votos,
pródigo de grandes quantidades de ouro,

3
Homero, Ilias, XXIV, 527. Em Grego no original: ôúo
m'.0ouç, .óv eva xaxwv , .óv ôe E'tEQov eáwv.

50
e ornamente com preclaras honrarias os que ardentemente
as ambicionam,
nada disto será considerado suficiente,
mas a cruel ganância,
devorando aquilo que tinha perseguido,
inventa novas necessidades.
Que freios hão-de travar, com um limite fixo,
o desejo que se lança para diante de cabeça,
se quanto mais abundantemente tem, mais quer ter?
Nunca poderá ser rico o homem
que, temeroso e descontente, se julga necessitado.

Prosa 3

1 - Ora se a Fortuna falasse nestes termos contigo


em sua defesa, não terias realmente nenhuma razão para
abrir a boca e refutar as suas palavras. Mas se tens algo a
dizer que justifique os teus queixumes, é necessário que
o apresentes, dar-te-emos ocasião de falares.
2 Então eu disse:
- Estas coisas são muito bonitas, e untadas com o doce
mel da retórica e da música agradam-nos mal as ouvi-
mos, mas os infelizes têm uma percepção mais aguda dos
males e assim, quando estas coisas deixarem de soar aos
ouvidos, o desgosto que está no meu íntimo continuará a
pesar-me na alma.
3 E ela disse:
- Assim é. Estas coisas, de facto, não são ainda os
remédios da tua doença, mas é que ainda subsistem
alguns resquícios de desgosto pertinaz, que recalcitra

51
contra a cura. 4 Quando for a altura apropriada, então
aplicarei remédios que se entranhem profundamente.
Contudo, não queiras ser considerado infeliz. Então já te
esqueceste da quantidade e dimensão das tuas alegrias?
5 Passo em silêncio o facto de, quando perdeste o teu
pai, teres sido objecto da solicitude por parte de homens
notáveis, e, tendo sido escolhido para privar com os prín-
cipes da cidade, o que é o mais precioso dos géneros de
proximidade, te teres tomado estimado por eles mais do
que um indivíduo simplesmente próximo. 6 Quem não
te diria felicíssimo com o extraordinário prestígio dos
teus sogros, com o recato da tua esposa, e ainda com o
nascimento oportuno dos teus filhos varões? 7 Já não falo
(apraz-me, com efeito, omitir as coisas banais) das honra-
rias que te foram outorgadas na juventude, ao passo que
eram negadas a anciãos.
Dá-me gosto chegar agora ao singular píncaro da tua
felicidade: 8 se é verdade que o êxito nas coisas mortais
tem algum peso no que diz respeito à felicidade, alguma
vez poderia porventura a memória daquele dia glorioso
ser destruída pela mole das desgraças que caem sobre ti,
fosse ela qual fosse, aquele dia em que tu viste dois dos
teus filhos, cônsules ao mesmo tempo4, serem conduzidos

4
Em 522 d. C., imediatamente antes de Boécio ascender ao
lugar de magister officiorum. Era coisa invulgar nesta época dois
ocidentais deterem o consulado ao mesmo tempo e dois homens
que fossem da mesma família já desde 395 d. C. que não parti-
lhavam este cargo. Isto é um sinal de que Boécio tinha amigos
nos mais altos círculos de Constantinopla, onde se tomavam as
decisões finais sobre o consulado.

52
a casa acompanhados pelos senadores, no meio da alga-
zarra da plebe, quando tu, estando eles sentados na cúria
nas cadeiras curuis 5, mereceste como orador do panegí-
rico régio a glória do talento e da eloquência, quando no
Circo, ladeado pelos dois cônsules, saciaste a expectativa
da multidão que vos rodeava com uma algazarra seme-
lhante à que acompanha um general em triunfo? 9 Foste
tu, a meu ver, quem forneceu argumentos à Fortuna,
quando ela te tratava bem, te mimava com as suas delí-
cias. Arrebataste um quinhão que ela nunca tinha conce-
dido a nenhum particular. Queres então fazer as contas
com a Fortuna?
10 Agora, pela primeira vez, pôs em ti um olhar
malevolente. Se tiveres em consideração a quantidade e
os diversos graus dos felizes e dos infelizes, ainda não
poderás dizer-te infeliz. 11 E se achas que não és afortu-
nado, porque desapareceram aquelas coisas que então te
pareciam boas, também não é caso para te achares infeliz,
porque também passam aquelas coisas que agora se pensa
que são tristes.
12 Será que chegaste agora pela primeira vez, como
hóspede repentino, ao teatro desta vida? Pensas que
existe alguma constância nas coisas humanas, quando um
rápido momento muitas vezes destrói o próprio homem?
13 Na verdade, embora seja rara a estabilidade e durabi-
lidade das coisas que estão sujeitas à sorte, o último dia
da vida é também uma espécie de morte para a Fortuna,
mesmo a que perdurou. 14 Que diferença julgas tu que

5 As cadeira curuis eram cadeiras sem encosto, de marfim,


reservadas aos magistrados superiores.

53
faz seres tu a abandoná-la, morrendo, ou ela a abando-
nar-te a ti, indo-se embora?

Metro 3

Quando Febo começa a espalhar pelo pólo


a luz com as róseas quadrigas,
empalidece a estrela, ofuscado o seu rosto luminoso
pelas chamas opressoras.
Quando o bosque com as rosas primaveris enrubesce,
com o sopro do tépido Zéfiro,
basta que sopre desvairadamente o Austro nebuloso
e a beleza das suas pétalas apartar-se-á dos espinhos.
Muitas vezes resplandece o mar, com bom tempo,
com as ondas imóveis;
muitas vezes o Aquilão desencadeia
tempestuosas procelas,
subvertendo a lisa superfície das águas.
Se é rara a forma que perdura no mundo,
se varia com tantas alterações,
fia-te agora nas efémeras fortunas dos homens,
fia-te nos fugazes bens!
É coisa conhecida e está estabelecido por uma lei eterna
que nada do que foi criado seja firme.

Prosa 4

1 Então eu disse:
- É verdade tudo o que tu recordas, ó ama de todas
as virtudes, e eu não posso negar o velocíssimo curso da

54
minha prosperidade. 2 Mas o que mais me atormenta
quando me lembro de tudo isso é que, de todos os tipos
de adversidade da fortuna, o género mais infeliz de infor-
túnio é ter sido feliz.
3 - Mas tu não podes imputar à realidade dos factos
a culpa dos teus erros de julgamento. Na verdade, se te
impressiona esta felicidade dependente da Fortuna, que
não corresponde a coisas nenhuma, é caso para exami-
narmos os dois quão bem tu te saíste, as muitas e gran-
des benesses que te couberam. 4 Ora se, pela vontade de
Deus, ainda preservas intacto e inviolado aquilo que em
todo o censo da tua fortuna possuías de mais precioso,
poderás, retendo as coisas melhores, queixar-te com razão
do infortúnio? 5 E permanece firme aquela preciosíssima
glória do género humano, o teu sogro Símaco, por quem
tu darias a tua vida de bom grado, varão todo ele feito
de sabedoria e de virtudes, que sofre com os ultrajes que
te são feitos, estando ele próprio seguro de que não lhos
façam a si.
6 É viva a tua esposa, de temperamento reservado,
extraordinária em pudicícia e pudor, e, para resumir
todas as suas qualidades, semelhante a seu pai. Vive, digo
eu, e, embora cansada desta vida, mantém o ânimo só por
tua causa, apesar de eu própria ter de reconhecer que a
tua felicidade diminui só pelo facto de ela estar a defi-
nhar de saudades tuas, em lágrimas e sofrimento. 7 Que
direi acerca dos teus filhos, varões consulares, nos quais já
resplandece a imagem do talento quer do pai quer do
avô, quando tinham a sua idade? 8 Embora a principal
preocupação dos mortais seja manterem-se vivos, feliz
de ti, se é que tens consciência dos teus bens, a quem

55
não faltam mesmo agora aquelas coisas que ninguém
tem dúvidas de serem mais gratas do que a própria vida!
9 Por isso, estanca as tuas lágrimas, a Fortuna ainda não
vos fez soçobrar a todos até ao último, nem caiu sobre
ti uma tempestade demasiado forte, pois te seguram
âncoras tenazes, que não deixam que te faltem nem o
consolo do tempo presente nem a esperança quanto ao
tempo futuro.
10 - E que elas segurem - disse eu - é o que eu peço,
pois, permanecendo elas, seja como for que as coisas se
apresentem, havemos de nos manter à tona. Mas estás a
ver quanto ela se afastou dos nossos êxitos.
11 E ela disse:
- Já avançámos um pouco, se tu ainda não deploras
a totalidade da tua sorte. Mas é-me muito difícil suportar
as tuas venturas, pelo facto de tu te queixares tão angus-
tiada e amargamente da perda de uma parte da tua felici-
dade. 12 Quem existe, com efeito, com uma felicidade tão
perfeita que não esteja em algum aspecto descontente
com a qualidade do seu estado? A natureza dos bens
humanos implica uma grande dose de angústia, pois ou
nunca chega na totalidade ou nunca subiste perpetua-
mente. 13 Este é rico, mas a sua baixa extracção causa-
-lhe vergonha; àquele torna-o notável a nobreza, mas,
por causa da escassez do património familiar, preferiria
ficar fechado em casa e ignorado. 14 Aquele, embora
tenha riqueza e nobreza, lamenta o facto de não ser
casado; aqueloutro, feliz com o casamento, sem ter filhos,
acumula riquezas para um herdeiro alheio; outro, que
teve a alegria de gerar descendência, chora desgostoso
por causa dos delitos do filho ou da filha. 15 Por isso

56
ninguém está facilmente satisfeito com a condição da sua
sorte; existe, com efeito, em cada urna das coisas algo que
sem as experimentar se desconhece, mas que ao experi-
mentá-lo se abomina. 16 Acresce a isto o facto de que é
muito delicada a sensibilidade de quem é feliz, e estes
homens, a não ser que a um aceno de cabeça tudo apa-
reça, sem qualquer contrariedade, são derrubados pela
mais pequena coisa, e por isso qualquer incómodo basta
para roubar a felicidade completa aos muito afortunados.
17 Quantos julgas tu que não pensariam estar perto do céu
se lhes caísse nas mãos urna pequeníssima parte do que
resta da tua ventura? Este mesmo lugar, a que tu chamas
exílio, é urna pátria para os que nele habitam.
18 Por isso nada é miserável, a não ser que assim o
consideres, e, por outro lado, é feliz a sorte de todo aquele
que a suporta com serenidade. 19 Quem há tão feliz que
não escolha alterar o seu estado, cedendo à insatisfação?
20 Com quantas amarguras está salpicada a doçura da
felicidade humana! E ainda que esta seja considerada
jucunda por aquele que dela goza, quando quiser ir-se
embora não pode ser retida. 21 Está, pois, claro quão
mísera é a felicidade relativa às coisas mortais, que nem
perdura para sempre junto dos espíritos serenos nem
deleita completamente os angustiados.
22 Porque procurais então, ó mortais, fora de vós a
felicidade que dentro de vós está? Sois confundidos pelo
erro e pela ignorância. 23 Vou mostra-te em poucas pala-
vras a essência da suma felicidade. Será que existe para ti
algo mais precioso do que tu próprio? Nada, dir-rne-ás.
Então, se tu fores senhor de ti, possuirás aquilo que nem
tu quererás alguma vez perder nem a Fortuna te poderá

57
tirar. 24 E para que percebas que a verdadeira felicidade
não pode assentar nestas coisas fortuitas, toma atenção
ao seguinte.
25 Se a verdadeira felicidade é o sumo bem de uma
natureza que goza de racionalidade e não é sumo bem
aquilo que de algum modo pode ser roubado, porque o
sumo bem está para além daquilo que pode ser subtraído,
é manifesto que a instabilidade da Fortuna não pode
aspirar a alcançar a felicidade. 26 Em relação a estas coisas,
aquele que é bafejado por esta felicidade efémera ou sabe
como ela é ou ignora o seu carácter volúvel. Se o ignora,
que feliz sorte pode ser essa, se essa felicidade é causada
pela cegueira da ignorância? Se a conhece, é inevitável
que tema perder aquilo que não tem dúvida de que
pode ser perdido. E o contínuo receio que daí resulta não
lhe permite ser feliz. 27 Ou achará porventura que, se a
perder de facto, isso _não é grave? É um bem de pouca
monta aquele cuja perda pode ser suportada com sereni-
dade. 28 E visto que tu és aquele mesmo que foi persua-
dido por múltiplas demonstraçõe s e em quem se arreigou,
eu sei-o bem, que as almas dos seres humanos de modo
nenhum são mortais, uma vez que é claro que é posto
um fim, pela morte do corpo, à felicidade que depende
do acaso, não se pode duvidar de que toda a raça dos
mortais desliza, através do fim que é a morte, para a
desgraça. 29 Mas se sabemos que muitos procuraram
o fruto da verdadeira felicidade não só pela morte, mas
até mediante tormentos e suplícios, de que modo é que a
felicidade, quando está presente, pode tomar felizes aque-
les que, quando desaparece, não pode tomar infelizes?

58
Metro4

Quem, munido de cautela,


quiser estabelecer morada duradoura
e, firme, não quiser ser derrubado
pelo sopro do Euro sonoro
e procura desdenhar do mar
que ameaça com suas ondas,
evite o cume do alto monte,
evite as áridas areias:
o violento Austro assola
aquele com todas as forças,
estas, sem consistência,
recusam suportar o peso
que ameaça desabar.
Fugindo a uma funesta sorte
para a tua aprazível morada,
lembra-te, resolutamente,
de fixar a tua casa numa rocha humilde,
ainda que o vento troveje em chuvosa intempérie,
encapelando as águas, tu,
resguardado na tranquilidade,
feliz pela robustez da fortaleza,
avançarás serenamente na idade,
zombando das iras do éter.

Prosa 5

1 - Mas, visto que os remédios das minhas razões


começam já a penetrar no teu íntimo, penso que é altura
de usar outros mais fortes. 2 Vá, então, se os dons da

59
Fortuna não fossem já de si as coisas efémeras e momen-
tâneas, o que há nelas que possa alguma vez tornar-se
verdadeiramente vosso ou não se mostre vil ao ser exami-
nado e observado com atenção?
3 As riquezas são preciosas pela sua natureza ou
pela vossa? Que há nelas de melhor? 4 O ouro e a força
acumulada do dinheiro? Tais coisas brilham mais ao
serem espalhadas do que ao serem acumuladas. Se é facto
que a ganância toma sempre as pessoas odiosas, a gene-
rosidade toma-as ilustres. 5 E se aquilo que é transferido
para outrem não pode permanecer na posse de quem quer
que seja, então o dinheiro só é precioso quando, transfe-
rido para outros pela prática da generosidade, deixa de
ser possuído. 6 Mas se todo o dinheiro do mundo for
arrecadado por um só, isso privará dele todos os outros.
E se um som enche do mesmo modo os ouvidos de
muitos, as vossas riquezas, a não ser que as tomeis meno-
res dividindo-as, não podem passar para muitos, e, se isto
acontecer, tomará necessariamente pobres aqueles que
elas abandonam. 7 Oh, pois, estreitas e pobres riquezas,
que nem é lícito a muitos tê-las todas, e que não cabem a
ninguém sem que isso implique a pobreza dos restantes!
8 Não é verdade que o brilho das pedras preciosas
atrai o olhar? Mas o que há neste esplendor de funda-
mental é o brilho da pedra, não o dos homens, pelo que
muito me espanta que os homens as admirem. 9 Que há,
com efeito, privado de movimento da alma e de sua união
com o corpo, que pareça belo com razão a uma natureza
animada e racional? 10 Estas coisas, embora tenham
algum reflexo de beleza, por serem obra do Criador e
graças à sua própria variedade, contudo, porque se

60
encontram colocadas abaixo da vossa excelência, de modo
algum deviam merecer a vossa admiração.
11 Porventura vos deleita a beleza dos campos? Claro
que sim. Com efeito é uma bela parte de uma obra belís-
sima. 12 Assim nos alegramos por vezes com o aspecto
do mar calmo, assim admiramos o céu, os astros, a Lua e
o Sol. Será que alguma destas coisas te pertence, será que
te atreves a gloriar-te por causa do esplendor de alguma
dessas coisas? 13 Será que tu próprio te ornamentas
com flores primaveris ou a tua fertilidade dá origem a
novos frutos? 14 Porque é que te deixas arrebatar por
inanes gáudios, porque abraças como se fossem teus os
bens que te são exteriores? 14 Jamais a Fortuna fará teu
aquilo que a natureza das coisas fez alheio à tua pessoa.
15 De facto, os frutos das terras são sem dúvida alguma
devidos aos seres animados para serem seus alimentos,
mas se quiseres prover às necessidades, que é quanto
basta à natureza, não há razão para procurares o auxílio
da Fortuna. 16 A natureza contenta-se com poucas coisas,
de facto, e muito pequenas. Se quiseres sobrecarregar a
saciedade desta com coisas supérfluas, aquilo que acres-
centares ou se tomará desagradável ou prejudicial.
17 Por outro lado, consideras coisa bonita resplan-
decer com vestes coloridas: mas se a beleza destas é agra-
dável à vista, é a qualidade do material ou o engenho do
alfaiate que eu admirarei. 18 Será, então, uma longa fila
de servidores que te fará feliz? Mas estes, se forem de
costumes depravados, tomam-se uma perniciosa carga
para a casa, que só prejudica o seu próprio dono; se, por
outro lado, forem gente de bem, como é que a probidade
alheia poderá ser contada entre as tuas riquezas?

61
19 De todas estas coisas, nada do que tu consideras
corno sendo os teus bens se apresenta claramente corno
sendo um bem teu. E se nestas não há nenhuma beleza
desejável, por que razão sofres com as coisas perdidas
ou te alegras com as que guardas? 20 E se são belas por
natureza, o que é que isso tem a ver contigo? Na verdade,
estas coisas ter-te-iam agradado por si mesmas, ainda que
não fizessem parte das tuas riquezas. 21 Com efeito, não
são preciosas porque se juntaram às tuas riquezas, mas
foi porque pareciam preciosas que tu quiseste que fossem
incluídas nas tuas riquezas.
22 Mas que pretendeis da Fortuna, fazendo tanto
estrépito com as vossas súplicas? Penso que procurais
afugentar a indigência através da abundância. 23 Mas
isto redunda para vós na coisa oposta, pois são neces-
sários muitos apoios para vigiar a variedade das coisas
preciosas que possuís e é verdade a frase segundo a qual
quem muitas coisas tem, de muitos precisa, e ao invés,
os que limitam as suas posses às necessidades naturais
e não aspiram à superfluidade do fausto precisam de
muito pouco.
24 Não tendes, então, nenhum bem que seja vosso
e que resida dentro de vós, de tal modo que tendes de
procurar os vossos bens em coisas exteriores e aparta-
das de vós? 25 De tal maneira foi subvertida a condição
das coisas que um ser vivo que é divino pela dádiva da
razão pensa que o brilho da sua glória depende da posse
de urna luz inanimada. 26 E os outros animais estão satis-
feitos com as suas coisas, vós, porém, semelhantes a Deus
pelo vosso espírito, procurais adquirir os ornamentos da
excelsa natureza a partir de coisas baixíssimas e não com-
preendeis quão grande ofensa fazeis ao vosso Criador.

62
27 Aquele quis que o género humano suplantasse
todas as coisas terrenas; vós rebaixais a vossa dignidade
abaixo das coisas mais baixas. 28 Na verdade, se aparen-
temente todo o bem que cada um possui é mais precioso
do que aquele a quem pertence, quando julgais que os
vossos bens são as coisas mais vis, é a vós próprios que
vos diminuís através delas, devido à vossa avaliação.
29 O que acontece com alguma razão, pois esta é a con-
dição da natureza humana: quando se conhece suplanta
tudo o mais, mas ela mesma é rebaixada a um nível infe-
rior ao dos animais, se deixar de se conhecer a si própria.
Na verdade, para os outros animais é próprio da natureza
ignorarem-se a si mesmos, mas para os homens isto só
acontece por erro.
30 Ora como é claramente óbvio este vosso erro de
julgardes que algo pode ser embelezado com ornamentos
alheios! 31 Tal não é possível, pois, em boa verdade, se
algo se mostrar belo pelo facto de lhe serem acrescentados
ornamentos, são as próprias coisas que são acrescentadas
que são louvadas, mas aquilo que elas cobrem e escondem
mantém na mesma a sua fealdade.
32 Ora eu afirmo que não há nenhum bem que seja
nocivo àquele que o possui. Será que minto em relação a
isto? De modo nenhum, dizes. 33 Mas as riquezas preju-
dicaram muitas vezes os seus proprietários, quando
alguém da pior espécie, e por isso mais cobiçoso do
alheio, se considera unicamente a si mesmo como digno
de possuir tudo quanto há de ouro e pedras preciosas.
34 Tu, portanto, que agora temes, cheio de aflição, a lança
e o gládio, se tivesses entrado como viandante despro-
vido no caminho desta vida, cantarias ao deparar com um

63
ladrão. 35 Oh, que preclara felicidade é realmente esta
a das riquezas dos mortais, que mal a tenhas alcançado
deixas de estar em segurança!

Metro S

Oh feliz, demasiado feliz o tempo de antanho,


satisfeito com campos bem conhecidos,
e não perdido por um luxo langoroso,
que costumava mitigar a fome,
que só tardiamente chegava,
com a fácil bolota!
Não sabiam misturar as dádivas de Baco
com o cristalino mel
nem tingir os resplandecentes tecidos de Seres
Com o corante tírio 6.
A erva proporcionava saudáveis sestas
e o rio deslizante prodigalizava também bebida,
sombra o alto pinheiro.
Este não sulcava ainda as profundezas do mar
nem o estrangeiro contemplava novas plagas
por causa de mercadorias em todo o mundo recolhidas.
Então estavam silenciosas as cruéis trombetas de guerra
e o sangue derramado devido a ódios acerbos
não manchara ainda os ásperos campos.
Porque quereria o furor guerreiro

6
A seda, vinda da China, Seres, era tingida com púrpura,
importada de Tiro, na Fenícia.

64
ser o primeiro a iniciar uma guerra,
ao considerarem os homens a possibilidade
de ferimentos terríveis
e a ausência de qualquer proveito ganho
pelo sangue derramado?
Oxalá os nossos tempos voltassem aos antigos costumes!
Mas, mais destrutivo que os fogos do Etna,
arde fervente o desejo de ter.
Oh, quem foi o primeiro que
escavou maquias de ouro enterrado,
pedras preciosas que queriam estar escondidas,
preciosos perigos?

Prosa 6

1 - Que hei-de eu dizer, por outro lado, acerca dos


cargos de dignitários e do poder, que vós, ignorantes da
verdadeira dignidade e do verdadeiro poder, colocais nos
píncaros do céu? Se estas coisas recaíram sobre alguém
muito malvado, que Etnas, que dilúvios provocarão
alguma vez devastação tão grande? 2 Como julgo que tu
te recordas certamente, os vossos antepassados desejaram
abolir o poder consular, que fora o princípio da liberdade,
por causa da soberba dos cônsules. Eles que, por causa da
mesma soberba, tinham banido da cidade a palavra "rei".
3 E quando, o que é coisa muito rara, estas honrarias
forem outorgadas a homens de bem, o que agrada nelas
senão a probidade dos que as detêm? Assim sucede que
a glória se vem unir às virtudes, não por causa das digni-
dades, mas une-se às dignidades por causa da virtude.

65
4 O que é, na verdade, esse vosso poder desejável e
preclaro? Então não vedes, ó animais da terra, sobre quem
é óbvio que exerceis o poder? Ora, se entre os ratos visses
um que se arrogasse o poder e o direito sobre os demais,
que grande gargalhada soltarias! 5 Que coisa serás capaz
de descobrir mais fraca do que o homem, se olhares
para o corpo, que muitas vezes uma simples picada de
uma pequena mosca ou a entrada de vermes rastejantes
em algum órgão interno leva à morte? 6 Como poderá
alguém impor alguma lei a outrem, a não ser apenas no
que diz respeito ao corpo e àquilo que ainda é inferior ao
corpo - refiro-me à Fortuna? 7 Será que podes dar ordens
a alguém de espírito livre? Será que podes privar uma
mente que se encontre na sólida posse de si mesma do
estado de tranquilidade que lhe é próprio? 8 Pensando
um tirano que ia obrigar certo indivíduo, através da
execução do seu filho, a denunciar os cúmplices de uma
conspiração urdida contra si, ele mordeu a língua, cor-
tando-a, e cuspiu-a no rosto do tirano que o seviciava 7•
Assim, a tortura que o tirano julgava ser instrumento de
crueldade, o sábio varão fê-la ser instrumento de valor.
9 Por outro lado, que coisa há que uma pessoa tenha o
poder de fazer a alguém que o próprio não esteja também
sujeito a que lha façam a si? 10 Aprendemos que Busíris,
que tinha por costume matar os seus hóspedes, foi morto
pelo seu hóspede Hércules 8 • 11 Régulo tinha posto a

7
Esta história do filósofo Anaxágoras e do tirano Nicro-
ceonte, rei de Chipre, é contada por Diógenes Laércio, 9, 59.
8 Busíris, rei do Egipto, costumava sacrificar um estrangeiro

no altar de Zeus uma vez por ano. Quando Hércules estava pres-

66
ferros muitos dos Cartagineses, pns10neiros da guerra,
mas depois foi ele próprio que teve de estender as mãos
para as cadeias dos vencedores 9. 12 Achas então que tem
algum poder o homem que não pode evitar que lhe façam
a si o que ele tem a capacidade de fazer aos outros?
13 Em relação a isto, se as honrarias e poderes fossem
bons por natureza, nunca recairiam sobre os energúme-
nos. Com efeito, os opostos não costumam associar-se, e
a natureza rejeita que os contrários se unam. 14 Assim,
uma vez que não há dúvidas de que são os homens muito
maus que gozam da maior parte das honrarias, é também
evidente que estas não são bens por natureza, visto que
admitem ser ligadas a homens muito malvados. 15 Então
aquilo que de todos os dons da fortuna pode ser consi-
derado mais digno são precisamente as coisas que mais
abundantemen te recaem sobre os homens mais malvados.
16 Em relação a estas, penso que deve considerar-se o
seguinte: ninguém tem dúvidas de que é forte aquele em
quem se vê que existe força, e é obviamente veloz aquele
que tem em si velocidade. 17 Assim, a Música faz os
músicos; a Medicina, os médicos; a Retórica, os retores.
A natureza de cada coisa faz aquilo que lhe é próprio e

tes a ser sacrificado, libertou-se e matou-o. A história é contada


por Heródoto, 2.45.
9 Régulo foi um herói romano da Primeira Guerra Púnica

(264-241 a. C.); capturado pelos Cartagineses, foi libertado para


apresentar, de volta a Roma, condições de paz ignominiosas, sob
o juramento de voltar se a sua missão falhasse. Em Roma, argu-
mentou eloquentemente contra o tratado proposto e, quando
este foi rejeitado, regressou honradamente a Cartago, onde foi
executado de forma cruel.

67
não se mistura com os efeitos das coisas contrárias, antes
afasta as coisas que lhe são opostas. 18 E nem as rique-
zas são capazes de extinguir uma cobiça insaciável, nem
o poder toma senhor de si aquele a quem os prazeres
da devassidão enleiam com cadeias que se não podem
desatar. E as dignidades conferidas aos malvados não
só não os tomam dignos, mas antes revelam e expõem
os indignos. E porque acontece isto? É que vós gostais
de designar por falsos nomes coisas que são de natureza
diversa, nomes que facilmente são desmentidos pelo
efeito das próprias coisas, e assim, nem aquelas coisas a
que chamais riquezas, nem aquilo a que chamais poder
ou isto a que chamais honrarias podem ser assim chama-
dos correctamente. 20 Por fim, pode concluir-se o mesmo
em relação à totalidade da Fortuna, na qual é evidente
que não existe nada de desejável, nada de intrinsecamente
bom, pois esta nem sempre se associa aos bons nem toma
bons aqueles a que tiver sido associada.

Metro 6

Sabemos quão grandes desgraças causou outrora


aquele que, incendiada a urbe 1º
e assassinados os senadores,
morto o irmão 11, se manchou, fero,

10 Alusão ao incêndio de 64, que rumores atribuíram ao


próprio Nero, e à chacina de senadores que este levou a cabo.
11
Tibério Cláudio César, filho de Cláudio, assassinado pelo
irmão adoptivo em 55 d. C.

68
com o sangue derramad o de sua mãe12,
e, percorrendo com o olhar o corpo frio,
não banhou o rosto com lágrimas,
mas foi capaz de se arvorar em juiz da beleza extinta13 •
E, no entanto, era este que com o ceptro regia os povos
que Febo contempla ao mergulhar os seus raios no mar,
ao erguer-se do longínquo Oriente,
os povos que os sete gélidos Triões oprimem14,
aqueles que o violento Noto caustica com o seu sopro árido,
recozendo as areias escaldantes.
Porventura o seu extraordinário poder
foi capaz de modificar a raiva do depravado Nero?
Oh, triste sorte, quando o iníquo gládio
se vai juntar ao cruel veneno!

Prosa 7

1 Então eu disse:
- Tu própria sabes que a ambição das coisas mortais
não teve sobre mim poder algum, mas procurei a opor-
tunidade de governar para que a virtude não se desvane-
cesse sem se manifestar.

12 Nero mandou matar a própria mãe, Agripina, em 59 d. C.


13 O boato de que o matricida tinha olhado com um olhar
de avaliação a beleza do cadáver da mãe é repetido por Tácito,
Annales, 14, 3 ss.
14 O Septentrião são as sete estrelas que constituem a cons-

telação da Ursa Maior, dada como referência das frias regiões a


Norte, donde o adjectivo "septentrional".

69
2 E ela retorquiu:
- Esta é, na verdade, a única coisa que poderá aliciar
os espíritos superiores por natureza, mas que ainda não
alcançaram a completa perfeição das virtudes, a saber, o
desejo da glória e a fama de grandes serviços ao Estado.
3 Considera corno esta é insignificante e vã, reflectindo
do seguinte modo. É sabido que todo o âmbito da terra,
conforme aprendeste com as demonstrações astronó-
micas, não passa de um pequeno ponto em comparação
com as dimensões do céu, isto é, ao ser comparada à gran-
deza do globo celeste, concluir-se-á que não tem tamanho
nenhum. 4 Ora é aproximadamente a quarta parte desta
região tão pequena no universo, conforme aprendeste
com os argumentos de Ptolomeu, que é habitada por
seres animados, tanto quanto sabernos15 . Se a esta quarta
parte subtraíres mentalmente tudo aquilo que é ocupado
por mares e pântanos e pela vasta extensão dos desertos
áridos, fica uma pequeníssima área habitável para os
homens. 6 Ora é enclausurados e fechados neste peque-

15 Cláudio Ptolomeu foi um famoso matemático, astrónomo


e geógrafo que ensinou em Alexandria no séc. II d . C. Grande
parte da sua doutrina, nomeadamente a que aqui é referida, foi
conhecida pela Idade Média através do Commentum in Somnium
Scipionis de Macróbio, escrito no séc. V, obra copiada sob a égide
de Símaco, sogro de Boécio. Cf. em particular II. 5. A Syntaxis
mathematica de Ptolomeu foi a autoridade sobre Geografia no
mundo grego e árabe (que lhe chamou Almagesto, o grande, para
distinguir a sua obra de outra com título semelhante) e depois no
mundo latino, onde as suas teorias foram aceites até Copérnico.
Boécio traduziu um tratado grego de Ptolomeu sobre Astrono-
mia e talvez tenha escrito ele próprio um em Latim. Cf. 2, 12.

70
níssimo ponto que vós pensais em divulgar a fama, em
espalhar o renome, para que a vossa glória, apertada
em tão estreitos e exíguos limites, tenha algo de grandioso
e magnífico? 7 Acrescenta a isto o facto de ocuparem esta
pequena área habitável muitos povos, diferentes na lín-
gua, costumes, em todo o seu modo de vida, aos quais,
não só pelas dificuldades das viagens, mas também pela
diversidade das línguas e pela inexistência de contactos
comerciais regulares, não só não consegue chegar a fama
de homens singulares mas nem sequer a fama das cida-
des. 8 E, para rematar, no tempo de Marco Túlio Cícero,
como ele próprio dá a entender em determinado passo 16,
a fama da república romana ainda não passara além do
monte Cáucaso, e contudo era nesse tempo já desenvol-
vida, temida pelos Partos e restantes povos dessa região.
9 Estás tu, por conseguinte, a ver quão estreita, quão
insignificante é a glória que vós vos esforçais por dilatar
e propagar? Ou será que aonde a fama do nome de Roma
não consegue chegar, há-de chegar a glória de um indi-
víduo romano?
10 E então que havemos de dizer quanto às divergên-
cias que os diferentes povos apresentam quer nos costu-
mes quer nas suas instituições, de tal modo que aquilo
que para uns é considerado digno de louvor é para outros
merecedor de duro castigo? 11 Com o que sucede que,
se a divulgação da fama traz alegrias a alguém, de modo
algum isso leva a que o seu nome se espalhe por entre
muitos povos. 12 Ficará então cada um satisfeito com uma
glória disseminada entre os seus, e aquela ilustre imorta-

16 Cícero, De Republica, 6, 22.

71
lidade da fama ficará estreitame nte confinada , dentro dos
limites de um só povo.
13 Mas quantos varões, de grande nomeada no seu
tempo, o oblívio fez desaparec er, por falta de quem escre-
vesse sobre eles! E de que adiantam os próprios escritos,
se uma antiguida de muito longa e cheia de obscurida des
pesa sobre eles e sobre os seus autores? 14 Vós julgais
dilatar a vossa imortalid ade, pensando na fama dos
tempos vindouros . 15 Mas se olhares bem para isso em
comparaç ão com os infinitos espaços da eternidad e, que
razão tens para te alegrares com a duração do teu pres-
tígio? 16 A duração de um só momento , com efeito, se
for comparad a com dez mil anos, uma vez que ambos
os espaços são definidos, embora mínima, tem, contudo,
alguma porção, mas este mesmo número de anos, e seja
qual for o múltiplo deste, nem sequer pode ser comparad o
à eternidad e. 17 Com efeito, se houver nas coisas finitas
alguma comparaç ão entre si, não pode, contudo, haver
nenhuma entre o infinito e o finito. 18 E assim sucede
que a fama de um tempo, por alargada que seja, se for
pensada em comparaç ão com a eternidad e, parecerá não
ser pequena, mas antes nem sequer existir de todo. 19 Vós,
porém, não sabeis proceder bem senão em função da aura
popular e dos inanes rumores e, abandona da a superiori-
dade da consciênc ia e da virtude, procurais recompen sas
no falatório de outras pessoas.
20 Vê quão espirituos amente alguém disse a seguinte
piada a propósito da leviandad e de uma arrogânci a
deste tipo. Na verdade, como alguém tivesse atacado com
insultos um homem que se fazia passar por filósofo, não
para uso da verdadeir a virtude mas por soberba vangló-

72
ria, e tivesse acrescentado que já iria saber se aquele era
de facto filósofo, se ele tolerasse com doçura e paciência
as ofensas proferidas contra si, aquele fingiu por um
momento a paciência e, recebido o insulto, dirigiu-se ao
outro de forma desabrida e, por sua vez, disse: "Reconhe-
ces, finalmente, que eu sou um filósofo?" E o outro, com
mordacidade, replicou: "Teria reconhecido, se tivesses
ficado calado."
21 Por que razão os homens eminentes (é destes que
falamos) , que procuram a glória através da virtude, por
que razão, digo eu, é tão importante para eles a fama,
depois de o corpo ter sido destruído pela morte derra-
deira? 22 Na verdade, se os homens morrem totalmente,
coisa em que os nossos raciocínios não permitem que se
acredite, então não existe absolutamente nenhuma gló-
ria, uma vez que aquele a quem se diz que ela pertence
não existe em absoluto. 23 Se, ao invés, a mente bem
consciente de si, libertada do cárcere terreno, se dirige
livre para o céu, não será que despreza todos os assuntos
terrenos, aquela que, fruindo do céu, se alegra por se ter
eximido às coisas terrenas?

Metro 7

Quem quer que procure só a glória com entusiasmo


e a julgue o sumo bem,
contemple as regiões do éter, que vastamente se abrem,
e a acanhada extensão das terras.
Envergonhar-se-á de um nome que, expandido,
não consegue preencher um espaço tão pequeno.

73
Oh, porque é que vós, homens orgulhosos,
ansiais furiosamente por aliviar os pescoços
do jugo da condição humana?
Ainda que a fama,
disseminando-se por entre povos remotos,
ao espalhar-se solte as línguas,
e uma grande casa resplandeça com títulos ilustres,
a morte não tem consideração pela alta glória
e envolve do mesmo modo o homem humilde
e o eminente,
nivela o mais baixo com o mais elevado.
Onde estão agora os ossos do fiel Fabrício17,
que é feito de Bruto ou do rígido Catão? 18
A ténue fama que deles perdura assinala
com meia dúzia de letras um nome inane.
Mas pelo facto de conhecermos belos nomes
será que nos é dado conhecer os que morreram?
Jazeis, pois, desconhecidos,
e nem a fama faz com que vos conheçamos.
E se julgais que a vida se prolonga
com a fama do nome mortal,
quando o dia derradeiro vos arrrebatar também isto,
é uma segunda morte que vos aguarda.

17
Fabrício foi um herói da guerra contra Pirro (e. 280 a. C).
18
Quer Bruto seja o que expulsou os reis etruscos quer o
assassino de César, e Catão seja o Censor ou Catão de Ótica, são
exemplo de heróis romanos de grande nomeada.

74
Prosa 8

1 - Mas, para que não julgues que travo um guerra


sem quartel contra a Fortuna, admito que há ocasiões
em que ela não é de todo enganosa e se comporta bem
para com os homens, nomeadamente quando se revela,
quando mostra o seu rosto e proclama a sua maneira de
agir. 2 Porventura ainda não compreendes o que estou
a dizer. Aquilo que eu desejo ardentemente explicar é
estranho, e por isso tenho dificuldade em exprimir o meu
pensamento por palavras. 3 Com efeito, penso que é mais
útil aos homens a Fortuna adversa do que a Fortuna favo-
rável: aquela finge sempre uma aparência de felicidade,
quando se mostra branda; esta é sempre verdadeira, ao
mostrar-se instável com as suas reviravoltas.
4 Aquela engana, esta instrui; aquela enleia as mentes
dos que fruem com a aparência dos falsos bens; esta
liberta, através da compreensão de quão frágil é a felici-
dade. E, assim, verás aquela emproada, instável, sempre
ignorante de si; esta sóbria, contida, e sábia através da
experiência da adversidade. 5 Por fim, a agradável arrasta
para longe do verdadeiro bem aqueles que desencaminha
com carícias; a adversa, na maioria das vezes, reconduz
aos verdadeiros bens os que andam deles arredados,
com um gancho de ferro . 6 Porventura consideras coisa
pouca o facto de esta áspera, esta horrível Fortuna revelar
as mentes dos amigos que te são fiéis? Ela faz a destrinça
entre os rostos sinceros dos companheiros e os rostos
fingidos, ao partir leva os seus, deixa os teus. 7 Quanto
não darias tu por isto, quando estavas incólume e eras,
ao que pensavas, afortunado? Lamenta agora as riquezas

75
perdidas: descobriste quem são os teus amigos, o mais
precioso género de riqueza.

Metro 8

Em regular harmonia se move o mundo,


com suas variações.
Guardam os elementos discordantes duradouro pacto,
traz Febo o róseo dia com seu carro dourado,
de forma que Febe governe as noites por Héspero trazidas,
e o ávido mar mantenha as suas ondas
por um limite preciso confinadas,
de modo que não seja permitido às terras vaguear
e expandir os seus vastos confins.
Tudo isto une o Amor, governando terras e mares, regendo
o céu.
Se este as rédeas soltasse, todas as coisas que agora se amam
entre si de imediato se combateriam,
tentando destruir a máquina do mundo,
que agora com mútua confiança fazem mover
em graciosos movimentos.
É ele que une os povos aliados num sagrado pacto.
É ele que o sagrado laço do matrimónio fundamenta.
Liga os mortais com castos amores
e dita a sua lei aos companheiros leais.
Feliz raça humana, se vossos espíritos reger o Amor
que rege os céus!

76
LIVRO III

Prosa 1

1 Já aquela tinha terminado o seu canto e a doçura do


carme ainda me tinha preso, ávido de a escutar, ainda com
os ouvidos atentos. 2 E assim, um pouco depois, eu disse:
- Ó supremo consolo dos ânimos abatidos, corno tu
me animaste, tanto pela autoridade das ideias corno
pela suavidade do canto, a ponto de, depois disto, eu já
me considerar capaz de suportar os golpes da Fortuna!
E assim não só já não receio os remédios que há pouco
dizias serem um pouco mais enérgicos, mas até tos peço
com veemência, cheio de vontade de os ouvir.
3 Então ela retrocou:
-Apercebi-me disso, enquanto ouvias as minhas pala-
vras silencioso e atento, e estive à espera que fosse esse o
estado da tua mente ou, para ser mais verdadeira, fui eu
própria quem lhe deu origem. Com efeito é de tal ordem
o que ainda tenho para te dizer que, se for apenas degus-
tado, amarga, mas, se for acolhido interiormente, toma-se
doce. 4 Mas aquilo que tu te dizes desejoso de ouvir, com
que ardor te inflamarias se soubesses para onde preten-
demos conduzir-te!
5 - Para onde? - perguntei eu.
- Para a verdadeira felicidade - disse ela -, aquela
que também o teu espírito deseja, mas que, por teres a tua
visão limitada às aparências, és incapaz de descortinar.

77
6 Então eu disse:
- Vá, por favor, mostra-me sem demora qual é essa
verdadeira felicidade!
7 - Fá-lo-ei com gosto, por causa de ti - disse-, mas
em primeiro lugar vou procurar esclarecer com palavras e
definir os contornos de uma questão que te é mais fami-
liar, de modo que, percebida esta, quando voltares os
olhos para o lado contrário, possas reconhecer o rosto da
verdadeira felicidade.

Metro 1

Quem quiser semear um solo virgem


liberta primeiro o campo de rebentos,
corta com a foice os silvados e o mato
para que uma nova Ceres avance carregada
com o peso dos frutos.
O fruto do labor das abelhas é mais doce
se a boca experimentar primeiro um sabor desagradável.
Os astros brilham de forma mais grata
quando o Noto pára de dar estrondos
que anunciam a chuva.
Só depois de Lúcifer ter afastado as trevas
É que o dia resplandecente avança
com os seus róseos corcéis.
Também tu, olhando primeiro os falsos bens,
começa a fugir com a cerviz ao jugo.
É a partir daí que os verdadeiros bens
começarão a entrar no teu espírito.

78
Prosa 2

1 Então, fixando um pouco o olhar e, como que


recolhendo-se à veneranda morada da sua mente, come-
çou assim:
2 - Todo o afã dos mortais, embora as motivações
devidas a interesses variados o façam percorrer caminhos
diversos, se esforça por alcançar o mesmo objectivo, o
da felicidade. Ora esta é o bem que uma vez alcançado
já ninguém é capaz de desejar algo mais para além dele.
3 Este é, realmente, o maior de todos os bens, contendo
em si mesmo a súmula de todos eles. Se algo lhe faltasse,
não poderia ser o sumo bem, porque ficaria fora de si algo
que pudesse ser desejado. É, pois, evidente que a felici-
dade é o estado acabado em que se reúnem todos os bens.
4 É este, conforme dissemos, que todos os mortais pro-
curam alcançar através de caminhos diversos. Existe, com
efeito, naturalmente implantado nas mentes dos homens,
o anelo do verdadeiro bem, mas um desvio enganoso
desencaminha-nos no sentido das coisas falsas.
5 Alguns homens julgam que o maior bem é não care-
cer de nada, de modo que se esforçam por se encherem de
riquezas; outros, julgando que o sumo bem consiste em
ter um estatuto venerando, procuram, alcançando honra-
rias, ser objecto de reverência por parte dos seus concida-
dãos. 6 Há quem coloque o sumo bem no poder máximo,
e estes querem reinar eles próprios ou associar-se aos que
reinam. Mas aqueles a quem o melhor parece ser uma
espécie de brilho da fama, estes apressam-se a espalhar
um nome glorioso através das actividades da guerra
ou da paz. 7 A maioria mede o fruto do bem pelo gozo
e pela alegria, e estes julgam que a maior felicidade é a

79
que resulta do prazer. 8 Há ainda quem troque as causas
e os fins destas coisas uns pelos outros, como aqueles que
desejam as riquezas por causa do poder e dos prazeres ou
procuram o poder por causa das riquezas ou de terem o
seu nome a andar de boca em boca.
9 Ora nestas coisas e noutras semelhantes se esgota
a orientação dos actos e desejos humanos, tal como a
nobreza e o favor popular, que parecem assegurar uma
espécie de glória; a esposa e os filhos, que se procuram
por causa do prazer. Só os amigos, espécie de facto san-
tíssima, é que são considerados como pertencendo ao
âmbito não da Fortuna, mas da virtude. Todas as outras
relações humanas são estabelecidas ou por causa do poder
ou por causa do deleite. 10 Já os bens do corpo se está
mesmo a ver que têm relação com as coisas precedentes.
Com efeito, a força e o tamanho são condição para se ter
capacidade física; a beleza e a velocidade, fama; a saúde,
o prazer. 11 É óbvio que através de todas estas coisas é só
a felicidade que se procura. Na verdade cada um procura
antes de mais aquilo que julga ser o maior bem. Ora nós
definimos o maior bem como sendo a felicidade, por isso
toda a gente pensa que a condição que deseja mais do que
todas as outras é aquela que lhe traz a felicidade .
12 Tens então postas diante dos olhos praticamente
toda as formas da felicidade humana: riquezas, honrarias,
poder, glória e prazeres. Epicuro, considerando apenas
estas coisas, estabeleceu consequentemente que para si o
maior bem era o prazer, urna vez que tudo o resto tam-
bém parece trazer deleite ao espírito1 .

1
Epicuro, Fragmenta 348. Cf. Santo Agostinho, De ciuitate
Dei, 19, 1.

80
13 Mas volto aos interesses dos homens, cujo espírito,
embora com a memória toldada, procura encontrar de
novo o maior bem, mas é como um ébrio que não conse-
gue encontrar o caminho de regresso a casa. 14 Será que
devemos então pensar que estão enganados aqueles que
procuram libertar-se de qualquer tipo de necessidade ?
Mas não há nenhuma outra coisa que possa proporciona r
a felicidade do mesmo modo que o estado de abundân-
cia em todos os bens, sem se precisar do alheio e tendo
o próprio a sua auto-suficiê ncia. 15 Será que se enganam
os que acham que aquilo que é melhor é também o que
é mais digno de respeito? De maneira nenhuma. Com
efeito não é coisa vil e desprezível aquilo que o esforço
de quase todos os mortais procura alcançar. 16 Será que
o poder não deve ser contado entre as coisas boas? Será
que deve ser considerado fraco e sem forças aquilo que
é obviamente a coisa mais eficaz para conseguir seja o
que for? 17 Porventura o prestígio deve ser considerado
como algo sem valor? Mas não pode ser escamotead o
que o que é de grande excelência é também considerado
como muito ilustre. 18 Na verdade, que importa dizer
que a felicidade não é ansiosa nem triste, nem sujeita às
dores e aos incómodos, se até nas coisas mais pequenas se
procura aquilo que dá gosto ter e usufruir? 19 E assim,
são estas coisas que os homens procuram alcançar, e por
isso desejam riquezas, dignidades, reinos, glória e praze-
res, porque pensam que através disto alcançarão a abas-
tança, a honra, o poder, a fama e a alegria. 20 É então o
bem aquilo que os homens procuram com demandas tão
diversas. E assim se mostra facilmente quão grande é a
força da natureza, quando as opiniões, embora discordan-
tes e variadas, concordam em prezar o objectivo do bem.

81
Metro 2

Agrada revelar com melodioso canto


e cordas tocadas lentamente com que poderosas rédeas
com que leis a Natureza, senhora das coisas,
preserva providente o imenso orbe,
controla tudo, unindo cada coisa com firmes laços.
Embora os leões cartagineses andem com belas cadeias,
apanhem com as patas a comida que lhes é oferecida,
e temam o cruel domador, habituados a sofrer golpes,
se o sangue lhes tingir os hórridos focinhos,
regressam os ânimos outrora calmos,
lembram-se daquilo que são com um poderoso rugido.
libertam a cerviz dos nós desatados
e o domador, dilacerado pelo dente ensanguentado,
é o primeiro a sofrer as raivosas iras.
A ave que canta gárrula nos altos ramos
é fechada no recesso de uma gaiola:
a esta, embora a solicitude divertida dos homens
lhes ministre a taça untada com mel
e comida em abundância,
se, espreitando por uma nesga do apertado entrançado
da gaiola,
vislumbrar as gratas sombras dos bosques,
pisará com as patitas, espalhando-os, os alimentos,
e, infeliz, só pelos bosques anseia,
é pelas florestas que chama o seu doce chilrear.
O ramo dobra para baixo o seu cimo,
forçado em dado momento por poderosas forças,
mas se a mão que o verga o largar,
erguer-se-á para o céu, endireitando-se.

82
Mergulha Febo nas águas hespéreas,
mas de novo, por secreto caminho,
orienta o carro para o sítio onde costuma nascer.
Todas as coisas voltam a procurar
os caminhos que lhes são próprios,
e alegram-se quando a eles regressam,
e não perdura a ordem outorgada a coisa alguma,
a não ser que se trate de algo que ligue o princípio ao fim
e dê estabilidade ao orbe 2 .

Prosa 3

1 - Vós também, ó animais da Terra, embora com


imagem ténue, mas ainda assim vislumbrais em sonhos
a vossa origem e apercebeis-vos daquele verdadeiro
objectivo, que é a felicidade, embora sem uma compreen-
são clara, e para aí vos conduz a tendência natural, para
o verdadeiro bem, e também daí vos afasta um erro com
múltiplas formas . 2 Considera, com efeito, se aquelas
coisas pelas quais os homens julgam que vão alcançar a
felicidade são capazes de chegar ao objectivo proposto.
3 Se, de facto, quer o dinheiro quer as honras e coisas
desse tipo trouxerem algo a que não pareça faltar nenhum
dos bens, nós também admitiremos que alguns se tomam
felizes ao alcançá-las. 4 Mas, se não são capazes de reali-
zar aquilo que prometem e lhes faltam muitos bens, não
é verdade que é falsa a sua aparência de felicidade?

2
Alguns comentadores entendem aqui orbe por círculo,
imagem geométrica e abstracta da perfeição do mundo.

83
5 Em primeiro lugar ponho-te a ti, que ainda há pouco
tinhas montes de riquezas, a questão: no meio daquelas
riquezas abundantíssim as nunca nenhuma preocupação,
nascida de qualquer ofensa, perturbou o teu espírito?
6 - É verdade - respondi - que não consigo lembrar-
-me de estar de espírito livre, mas antes estava sempre
angustiado por causa de qualquer coisa.
7 - Não é verdade que ou te faltava algo que não que-
rerias que te faltasse ou estava presente algo que não
quererias que estivesse?
- Assim é - concordei.
8 - Desejavas então a presença daquilo e a ausência
disto?
- Admito-o - anuí.
9 - Sente então cada um a falta daquilo que deseja? -
perguntou.
- Sente - disse eu.
- Ora quem sente a falta de alguma coisa não é com-
pletamente auto-suficiente .
- De todo, não é - concordei.
Ela continuou:
10 - E assim tu, embora cheio de riquezas, continua-
vas a não ser auto-suficiente?
- É certo - disse eu.
11 - Por conseguinte, as riquezas são incapazes de
libertar seja quem for de toda a necessidade e de o tomar
auto-suficiente, que era precisamente o que pareciam pro-
meter. 12 E assim penso que é importante reparar no facto
de que o dinheiro, por sua natureza, não tem nada que
evite que seja retirado àqueles que o possuem, contra sua
vontade.

84
- Admito-o - anuí.
13 - Como serias tu capaz de não o admitir, se todos
os dias alguém mais forte o retira ao seu possuidor contra
a sua vontade. Donde vêm, com efeito, as queixas em
tribunal, senão do facto de, ou por força ou por fraude,
serem reclamados montantes que foram roubado aos seus
proprietários, apesar da sua vontade?
- Lá isso é verdade - concordei.
14 - Precisarás, portanto, de um auxílio que é solici-
tado exteriormente, para que cada um possa preservar o
seu pecúlio.
15 - Quem seria capaz de afirmar o contrário? - per-
guntei.
- E não careceria desse auxílio se não tivesse dinheiro
de que pudesse ser privado.
- Não se pode pôr isso em dúvida.
16 - As coisas acabaram por se inverter: as riquezas,
que se julgava tomarem as pessoas auto-suficientes, afi-
nal antes as fazem necessitadas da ajuda alheia. 17 Como
é que a necessidade é afastada pelas riquezas? Será que
os ricos não podem passar fome e sede, será que não
sentem o frio do Inverno, que faz tanto mal à saúde?
18 Mas os opulentas - dir-me-ás tu - têm com que matar
a fome, com que afastar a sede e o frio. Mas o que acon-
tece é que a necessidade pode ser assim mitigada, mas
não pode ser completamente eliminada. Na verdade, se
esta, sempre de fauces escancaradas e sempre a exigir
algo mais, é saciada pelas riquezas, é inevitável que fique
sempre alguma necessidade por saciar.
19 Já nem menciono o facto de que para a Natureza
basta pouca coisa, mas para a ganância nada é suficiente.

85
Ora se as riquezas não podem erradicar a necessidade, e
elas próprias criam a sua, por que razão julgais que elas
vos proporcionam a suficiência?

Metro 3

Ainda que o ganancioso,


rico em ouro devido ao abismo que flui,
recolha riquezas que não são capazes de o satisfazer,
e carregue o pescoço com pérolas do Mar Vermelho,
com cem bois lavre campos de magnífica fertilidade,
nem a mordaz angústia o abandona enquanto é vivo,
nem as efémeras riquezas o acompanham quando morre.

Prosa 4

1 - Mas as honrarias - continuou ela - tornam vene-


rável e respeitado aquele a quem eventualmente tenham
sido concedidas. Será que os magistrados têm o poder de
as outorgar para instilarem as virtudes nas mentes dos
que as recebem e para delas apartarem os vícios? 2 E não
obstante, o normal é que não só não fazem desaparecer
a maldade, mas antes a tornam mais notória. Daí resulta
que nos indignemos com o facto de elas muitas vezes
caberem aos homens mais celerados. Daí que Catulo
chame "escrófula" a Nónio, apesar de este tornar assento
na cadeira curul 3 • 3 Estás a ver quanta vergonha as honra-

3Catulo, poeta do século I a. C., carmen 52. 2: "sella in curuli


struma Nonius sedet". Não sabemos por que razão Catulo consi-

86
rias acrescentam aos maus? E a sua indignidade seria
menos notória se não fossem muito conhecidos devido a
qualquer dignidade. 4 Será que tu, apesar de teres sido
pressionado por tantas tribulações, consideraste possível
partilhar um cargo com Decorato, ao perceberes que esse
indivíduo tinha a mente de um patife da pior espécie e de
um delator 4 ?
5 Não podemos, pois, julgar dignos de reverência, por
causa das honrarias, aqueles que consideramos indignos
das próprias honrarias. 6 E se visses alguém dotado de
sabedoria, será que poderias julgar que essa pessoa não
é digna de reverência ou digno daquela sabedoria de que
está dotado?
- De modo nenhum.
7 - Com efeito, existe uma dignidade própria e intrín-
seca à virtude, que depois transvasa para aqueles que à
virtude estão associados. 8 Ora uma vez que as honras
populares não são capazes de conseguir isto, é evidente
que estas não têm a beleza própria da verdadeira digni-
dade.
9 E nisto há ainda que ter em conta que, em boa
verdade, se alguém é tanto mais abjecto quanto mais é
desprezado por um grande número, então, visto que a
honraria não é capaz de tomar respeitáveis aquele que

derava Nónio, que desempenhava a função de edil, uma chaga


no corpo político de Roma.
4 Decorato era um advogado que serviu Teodorico como

questor do palácio na década de 510 ou no início da década de


520, tendo morrido antes de Boécio. Desconhecem-se as razões
que levam Boécio a considerá-lo um patife e um delator.

87
coloca sob o olhar de muitos, antes os toma mais despre-
zíveis. 10 E isto não acontece sem uma outra consequên-
cia: os maus, de facto, tomam por seu turno semelhantes
a si as dignidades, que mancham com o contágio da sua
vileza.
11 E para que percebas que a verdadeira reverência
não pode ser alcançada através destas honrarias de apa-
rência, repara no seguinte. Se alguém que desempenhou
por várias vezes o cargo de cônsul for, por acaso, parar a
nações bárbaras, será que a honraria o tomará respeitado
perante os bárbaros? 12 Ora se esta fosse uma função
natural das dignidades, também de modo algum cessa-
riam o seu efeito, fosse em que povo fosse, tal como o fogo
nunca deixa de aquecer, seja qual for a região da terra.
13 Mas porque os cargos públicos não têm a capacidade
de conferir automaticamente prestígio a essas pessoas,
mas é antes a falaz opinião dos homens que o outorga,
estas dignidades desvanecem-se imediatamente ao serem
transplantadas para junto daqueles para quem elas não
existem.
14 Mas isto é o que acontece nas nações estrangeiras.
Mas será que mesmo entre aqueles em cujas sociedades
surgiram elas se mantêm sempre? 15 A pretura foi em
tempos uma magistratura de grande poder, e agora não
passa de uma palavra vã e de uma pesada carga para o
tesouro do Senado. Se outrora alguém tivesse a incum-
bência de tratar do aprovisionamento de cereal do povo
e sua distribuição, era considerado uma pessoa muito
importante; agora, o que haverá de mais baixo que este
cargo? 16 Com efeito, conforme dissemos há pouco,
aquilo que não tem nada de beleza própria, ora recebe

88
esplendor ora o perde em função da oprmao dos que
são servidos por esses cargos. 17 Se então as dignida-
des não podem tomar os homens respeitáveis, se além
disso elas próprias se aviltam com o contacto doentio dos
homens ímprobos, se perdem a sua grandeza em função
do critério dos povos, por que razão haviam de ter em
si algo de beleza desejável, e muito menos de a propor-
cionar a outros?

Metro4

Embora o altivo Nero, de luxúria desenfreada,


se cobrisse com púrpura e com brancas pérolas,
era odiado por todos. Mas outrora este malvado
outorgava a venerandos patrícios vergonhosos
cargos curuis.
Quem considerará felizes aqueles
que receberam honrarias
outorgadas por um miserável?

Prosa 5

1 - Serão então os reinados e a proximidade aos reis


capazes de tomar alguém poderoso? Como havia de ser
de outro modo, se a felicidade deles perdurar para sem-
pre? 2 Mas a verdade é que a Antiguidade está cheia de
exemplos, cheio de exemplos está também o tempo pre-
sente, de reis que passaram da prosperidade à desgraça.
Oh que ilustre poder é este, que nem sequer se mostra

89
suficientemente eficaz na preservação de si próprio!
3 E se este poder dos reinados é a origem da felicidade,
não é verdade que, se faltar em alguma parte, diminuirá a
felicidade e trará a miséria? 4 Mas, por muito vastamente
que se estendam os impérios humanos, é necessário
que restem muitos povos que não estejam submetidos
a nenhum rei. 5 Ora no momento em que desaparece o
poder que toma as pessoas felizes, aí começa a falta de
poder que as torna infelizes. Deste modo, por conse-
guinte, é necessário que haja nos reis urna porção maior
de miséria do que de felicidade. 6 Conhecedor por expe-
riência do seu quinhão de perigos, um tirano simulou
os medos do governo real com o terror de urna espada
suspensa sobre a cabeça 5.
7 Que poder é este, então, que não é capaz de repelir
as dentadas das preocupações, de evitar os aguilhões dos
medos? Estes homens quereriam viver em segurança, mas
não conseguem. E depois vangloriam-se do seu poder!
8 Será que tu consideras poderoso aquele que vês querer
aquilo que não pode realizar, consideras poderoso aquele
que resguarda o seu flanco com um guarda-costas, que
receia ainda mais aqueles que ele próprio aterroriza do
que eles o receiam a ele, aquele que, para parecer pode-
roso, se encontra no dependência dos servidores?

5
A famosa espada de Dârnocles, cortesão de Dionísio I,
tirano de Siracusa no século IV a. C., que, tendo manifestado o
seu fascínio pela excessiva felicidade do tirano, foi por este colo-
cado, em pleno banquete, sob urna espada presa por um cabelo,
para que ele experimentasse a natureza precária da felicidade
associada ao poder.

90
9 Na verdade, que hei-de eu dizer acerca dos que
privam com os reis, se demonstro que os próprios reina-
dos estão cheios de tão grande fragilidade? A estes der-
ruba-os muitas vezes o poder régio, umas vezes man-
tendo-se incólume, outras vezes ao soçobrar. 10 Nero
forçou Séneca, seu cortesão e preceptor, à decisão de
escolher o tipo de morte, Antonino entregou Papiniano,
áulico poderoso durante muito tempo, às espadas dos
soldados 6 . 11 E ambos estes homens quiseram renunciar
ao seu poder, e Séneca tentou até entregar a Nero as suas
riquezas e retirar-se da vida pública. Mas foi a sua própria
grandeza que os arrastou para a queda e nenhum deles
conseguiu nada daquilo que pretendia.
12 Ora que poder é então este, que se receia quando
se detém, que nos priva de toda a segurança quando
procuramos alcançá-lo, que quando o queremos largar
não podemos fugir-lhe? 13 Será que os amigos são uma
protecção, aqueles amigos que te granjeia não a virtude
mas a Fortuna 7? Mas aquele que a prosperidade fez teu
amigo, o infortúnio fá-lo-á teu inimigo. 14 E que praga
mais eficaz para te fazer mal haverá do que um próximo
teu inimigo?

6 Papiniano era um famoso jurista romano, mandado exe-


cutar por Antonino Caracala em 212 d . C.
7 A amicitia romana não equivale aqui à amizade, e é
difícil de traduzir. Está próxima dos "conhecimentos", relações
pessoais de conveniência.

91
Metro 5

Quem quiser ser poderoso,


esse domine os feros ânimos
e não submeta a cerviz
vencida pela luxúria a sórdidas rédeas.
Com efeito, ainda que lá longe a terra indiana
trema sob as tuas leis
e a longínqua Tule seja tua súbdita 8,
contudo não terás poder algum
se não fores capaz de afastar as negras angústias
e os tristes queixumes.

Prosa 6

1 - Quão enganosa é na verdade muitas vezes a glória,


quão torpe! Daí que não é sem razão que o autor trágico
exclama:

"Ó glória, glória, a milhares de mortais sem valor


ergueste tu a uma vida de grandeza! 9"

2 - Muitos, com efeito, arrebataram frequentemente


uma grande nomeada graças a falsas opiniões do vulgo.

8
A Índia e Tule (Islândia) representam os limites do mundo
conhecido.
9
Eurípides, Andromache, 319-320. Em grego no original:
<li ôó;a, ôó;a, µvQLOWt ÔTJ ~Qo-twv/ ouôtv yeywm ~(ornv
wyx.woaç µtyav.

92
Que se poderá imaginar que seja mais torpe do que isto?
Na verdade, aqueles que são falsamente prezados, deviam
era corar de vergonha ao ouvirem os seus encórnios.
3 E mesmo que estes louvores tenham sido alcançados
por méritos, que acrescentarão, ainda assim, à consciência
do sábio, que mede o seu bem não pelo rumor popular,
mas pela verdade da consciência? 4 E se é considerado
algo notável ter propagado o renome, é lógico que não o
ter feito será considerado mau. 5 Mas, visto que é neces-
sário, corno expliquei há pouco, que haja muitos povos
aos quais a fama de um só indivíduo não consegue
chegar, acontece que aquele que tu consideras cheio de
glória, na parte da terra imediatamente contigua à tua já
não goza de glória nenhuma.
6 Nesta questão da fama eu considero que o favor
popular nem sequer é digno de menção, visto que não
provém de um juízo nem nunca perdura firme. 7 Por outro
lado, quem não verá até que ponto é oco, até que ponto
é fútil o prestigio da nobreza? Este, se tem alguma coisa
a ver com a glória, é com urna glória alheia; a nobreza,
com efeito, é urna glória que vem dos méritos dos ante-
passados. 8 Ora, se é o reconhecimento do mérito que
faz o renome, é necessário que sejam pessoas notáveis
aqueles de quem se fala, porque o brilho da glória alheia,
se não tens a tua própria, não te tornará ilustre. Ora, se
há na nobreza algo de bom, estou em crer que é apenas
o facto de ser imposta aos nobres a obrigação de estarem
à altura da virtude dos seus antepassados.

93
Metro 6

Toda a raça humana surge no mundo


de uma mesma origem.
Com efeito um só é o pai das coisas,
um só tudo providencia.
Ele deu a Febo os raios, os cornos às Lua.
Deu até às terras os homens, deu ao céu os astros.
Ele encerrou as almas nos corpos,
fazendo-as descer de excelsas moradas10,
e por conseguinte uma nobre origem
gerou todos os mortais.
Porque fazeis alarde da vossa estirpe
e dos vossos antepassados?
Se tiverdes em conta os vossos primórdios e Deus,
vosso Criador,
Não há ninguém que seja de baixa extracção,
desde que não abandone a própria origem
dando pelos vícios a primazia às coisas vis.

Prosa 7

1 - Que direi eu acerca dos prazeres do corpo, a


apetência dos quais está repleta de ansiedade e cuja satis-
fação, por outro lado, está cheia de arrependimento?
2 Quão graves doenças, que dores intoleráveis aqueles
prazeres costumam causar aos corpos dos que deles

10
Implica uma pré-existência da alma, sob qualquer forma,
o que é certamente heterodoxo.

94
gozam, como se fosse uma espeoe de fruto da devas-
sidão! 3 ão sei que alegria tenha o desvario destes
prazeres. Quem queira lembrar-se dos seus prazeres,
compreenderá que são tristes os resultados das volúpias.
4 Se os prazeres podem tomar felizes, então não há razão
para que os rebanhos não sejam chamados felizes, eles
cuja orientação fundamental se precipita para a concreti-
zação das necessidades físicas. 5 Já seria honestíssima a
alegria trazida pela esposa e pelos filhos, mas infelizmente
é bem a realidade aquilo que alguém disse, que encontrou
nos próprios filhos o seu torturador. Não é, aliás, neces-
sário chamar-te a ti a atenção para isto, a ti que tens já a
experiência da verdade do adágio e que neste mesmo
momento te encontras numa situação de angústia11 .
6 No que aprovo a frase do meu Eurípides12, que afir-
mou que aquele que não tem filhos é feliz no infortúnio.

Metro 7

Isto tem toda a luxúria:


espicaça com aguilhões os que dela gozam,
semelhante à alada abelha
que mal acaba de derramar o delicioso mel
foge e fere com picada demasiado pungente
os corações que tocou.

11 A preocupação com os filhos é um acrescento ao sofri-


mento de quem passa por uma situação de tribulação.
12 Eurípides, Andromache, 418 ss.

95
Prosa 8

1 - Não haja, pois, dúvida nenhuma de que estes


caminhos para a felicidade são antes uma espécie de des-
vios, e de que nunca poderão conduzir alguém àquilo a
que prometem levar. 2 Mostrarei de forma muito sucinta
com que grandes desgraças estão os prazeres associados.
E então? Tencionas esforçar-te por amealhar riquezas?
Terás de as subtrair a quem as tem. 3 Queres brilhar com
honrarias? Suplicarás a quem tem o poder de as outorgar e
tu, que desejas ultrapassar os outros homens, tomar-te-ás
vil ao rebaixares-te a uma situação de pedinte. 4 Desejas o
poder? Sujeitar-te-ás a expor-te aos perigos próprios dos
que estão sujeitos às intrigas. 5 Procuras eventualmente
a glória? Renuncias a estar tranquilo, arrastando-te por
tribulações de todo o tipo. 6 Levas uma vida de prazeres?
Mas quem não há-de desprezar o escravo da mais vil e
frágil das coisas, o corpo? 7 Ora os que têm em grande
conta os bens do corpo em que pobre e frágil propriedade
se apoiam! Porventura sereis capazes de superar os ele-
fantes em mole, os touros em força, porventura ultrapas-
sareis os tigres em agilidade?
8 Contemplai a extensão do céu, a sua estabilidade
e célere movimento, e de uma vez por todas deixai de
admirar coisas vis. E o céu não é mais admirável, em boa
verdade, do que a ordem com que é governado. 9 Como
é arrebatadora a magnificência da sua beleza, como é
veloz e mais fugaz do que a mutabilidade das flores
primaveris!

96
10 E se, como diz Aristóteles, os homens usassem dos
olhos de Linceu13, de tal modo que a sua visão atraves-
sasse os obstáculos, não é verdade que o famoso corpo
de Alcibíades, de extraordinária beleza à superfície, ao
verem-se no interior as entranhas, se apresentaria como
feiíssimo? Por conseguinte, aquilo que te faz parecer belo
não é a tua natureza, mas as limitações dos olhos que te
contemplam. 11 Mas sobrestimai quanto quiserdes os bens
do corpo, desde que saibais que tudo aquilo que admirais
pode ser destruído pelo fogo de uma febre de três dias.
12 De tudo isto, o que se pode concluir de essencial é
que estas coisas não são capazes de proporcionar os bens
que prometem nem se encontram na perfeita reunião de
todos os bens; não são caminhos que conduzam à felici-
dade, nem por si mesmas tomam os homens felizes.

Metro 8

Oh, que ignorância desencaminha os infelizes!


Não é em verde árvore que ides procurar ouro,
nem colheis pedras preciosas nas videiras,
não armais laços no alto dos montes
para com peixe enriquecerdes a comida da vossa mesa.
Se vos apetecer caçar cabras montesas,
não será às águas do mar Tirreno
que vos haveis de dirigir.

13 Linceu, um dos Argonautas, dotado de uma vista pene-


trante.

97
Pelo contrário, os homens conhecem bem os recessos
do mar,
escondidos nas ondas,
sabem quais são as águas mais produtivas
de brancas pérolas e de rubra púrpura,
quais as costas que proporcionam peixes moles
ou duros crustáceos.
Mas já onde se esconde o bem
que os homens desejam,
cegos, insistem em ignorá-lo.
E procuram embrenhados na terra
aquilo que está lá longe,
para além do céu estrelado,
Que insulto hei-de eu usar
que seja adequado a espíritos tão obtusos?

Prosa 9

1 - Até agora patenteei suficientemente a natureza da


felicidade enganosa, e, se esta foi por ti compreendida,
o passo seguinte é mostrar agora o que é a verdadeira
felicidade.
2 - Percebo agora - disse eu - que nem a auto-sufi-
ciência em recursos, nem o poder dos reinados, nem
a reverência conseguida através das dignidades, nem a
celebridade através da glória, nem o gozo através dos
prazeres podem alcançá-la.
- Porventura também compreendeste as causas devido
às quais assim é?

98
3 - Parece-me, de facto, que as entrevejo, corno que
através de urna fresta estreita, mas preferiria que tu mas
explicasses mais desenvolvidamente.
4 - O raciocínio é muito fácil. O problema é que o erro
humano separa aquilo que é simples e indiviso por natu-
reza, e de verdadeiro e perfeito torna-o falso e imperfeito.
Porventura pensas que aquilo que de nada carece está
desprovido de poder?
- De modo nenhum - disse.
5 - E tens razão. Na verdade, se existe algo que numa
determinada situação seja mais fraco de forças, é neces-
sário que nessa circunstância precise de protecção alheia.
· - Assim é - confirmei.
6 - Portanto a auto-suficiência e o poder têm urna só e
mesma natureza.
-Assim parece.
7 - E achas que urna coisa auto-suficiente e poderosa
deve ser desprezada ou, pelo contrário, é mais digna de
veneração d o que tudo o mais?
- Mas isto - disse eu - nem sequer pode ser posto em
dúvida.
8 - Acrescentemos, pois, a reverência à suficiência e
ao poder, concluindo que estas três coisas são urna só.
- Acrescentemos, se realmente queremos afirmar coi-
sas verdadeiras.
9 - E achas - inquiriu - que isto será urna coisa obscura
e desconhecida, ou será antes mais evidente que qualquer
outra coisa? 10 Pensa bem se aquilo que se admitiu que
de nada carece, que é poderosíssimo e cheio de dignidade
por causa de honrarias, pode carecer de prestígio, que
não pode dar a si próprio, e por causa disso em alguma
medida se pode revelar corno vil.

99
11 - Não posso - disse eu - admitir que isto, sendo
como é, não seja também famosíssimo.
12 - A consequência disto é afirmarmos que o pres-
tígio em nada difere das três coisas anteriores.
- É a consequência - corroborei.
13 - Aquele, então, que não necessita de ninguém
alheio, que tudo pode com as suas próprias forças, que é
ilustre e respeitável, não é óbvio que será também muito
alegre?
14 - Nem sequer consigo imaginar - disse eu - de
onde poderá sobrevir a alguém assim alguma tristeza,
porque é necessário admitir que ele está cheio de alegria,
se se mantiverem as coisas que referimos anteriormente.
15 - Então também é necessário que, embora os nomes
sejam variados, a saber, auto-suficiência, poder, ilustração,
respeito, alegria, a essência de todas estas coisas não seja
diferente de modo nenhum.
- É necessário - confirmei.
16 - O problema é que a falta de sensatez dos homens
fragmenta o que é uno e simples por natureza, e procura
alcançar uma parte de uma coisa que não tem partes, e
assim o homem não consegue nem uma porção, que não
existe, nem alcança a coisa propriamente dita na sua tota-
lidade, que aliás não procura de todo.
17 - De que modo? - perguntei.
- Aquele que procura as riquezas - explicou - para
escapar à penúria, não se esforça por alcançar o poder,
antes prefere ser desconhecido e discreto. Põe também de
parte muitos prazeres que lhe seriam naturais, de forma a
não perder a fortuna que amealhou. 18 Mas deste modo
nem sequer alcança a auto-suficiência, pois é abandonado

100
pelo vigor físico, atormentado pelo incómodo, rebaixado
pela vileza, escondido pelo anonimato. 19 Por outro lado,
aquele que apenas deseja ser poderoso prodigaliza rique-
zas, desdenha os prazeres e as honrarias desprovidas de
poder, e também não dá à glória valor algum. 20 Mas
bem vês quantas coisas faltam também a este: acontece,
com efeito, que por vezes carece das coisas necessárias,
que é atormentado por preocupações, e, ao não ser capaz
de afastar estas coisas, desiste também daquilo que era
o seu objectivo fundamental, ser poderoso. 21 Podemos
fazer uma reflexão semelhante em relação às honrarias, à
glória e aos prazeres. Na verdade, sendo cada uma destas
coisas o mesmo que as outras, quem quer que procure
uma delas sem as outras não chega sequer a alcançar
aquela que procura.
22 - E, então - disse eu-, se alguém desejar alcançar
tudo isso ao mesmo tempo?
- Esse quererá a súmula da felicidade, mas será que
a encontrará nessas coisas, que demonstrámos não pode-
rem proporcionar aquilo que prometem?
23 - De modo nenhum - disse eu.
- Ora a felicidade não deve de forma alguma ser pro-
curada nestas coisas que se pensa proporcionarem coisas
particulares do conjunto das coisas que se desejam.
- Confesso - disse eu - e nada do que se possa dizer é
mais certo do que isso.
24 - Tens, então, - disse - não só a forma mas também
as causas da falsa felicidade. Volta agora o olhar do teu
espírito para o lado oposto: aí verás imediatamente a
verdadeira, que te prometemos.
25 - E esta - disse eu - até um cego pode vê-la, e tu
ainda há pouco ma mostraste, ao procurares patentear as

101
causas da falsa. 26 Na verdade, se não estou enganado,
a verdadeira e perfeita felicidade é aquela que toma o
homem auto-suficiente, poderoso, respeitado, célebre e
alegre. 27 E, para que saibas que eu compreendi de
forma aprofundada, posso dizer-te que sei já que aquela
que pode proporcionar verdadeiramente o conjunto de
todas estas coisas, porque todas elas são a mesma coisa,
essa é sem dúvida a felicidade plena.
28 - Ó meu pupilo, feliz por causa dessa maneira de
pensar, se tão-só lhe acrescentares uma coisa! - disse ela.
- Então o quê? - perguntei.
29 - Achas que existe algo nestas coisas efémeras e
mortais que possa conferir uma condição deste tipo?
- De modo nenhum - disse eu-. Parece-me que isso
foi por ti demonstrado de forma a não se poder exigir
mais prova nenhuma.
30 - Ora estas coisas parecem dar aos mortais imagens
do verdadeiro bem ou alguns bens imperfeitos, mas não
podem proporcionar o bem verdadeiro e perfeito.
- Concordo - disse eu.
31 - Ora, visto que já compreendeste qual é a verda-
deira felicidade e quais as coisas que a simulam, agora
falta conheceres onde se pode procurar a verdadeira.
- É isso mesmo que eu já há algum tempo espero com
ansiedade.
32 - Mas - disse ela - visto que, tal como o nosso
Platão gosta de dizer no Timeu14, também nas coisas mais
pequenas se deve implorar o auxílio divino, o que achas

14
Platão, Timaeus, 27C.

102
que se deve fazer agora, para merecermos encontrar a
sede d aquele sumo bem?
33 - Devemos invocar o Pai de todas as coisas - disse
eu -, sem o qual não se pode dar ritualmente irúcio a
nada.
- Tens razão - concordou.
E de imediato começou a cantar assim:

Metro 9 15

Ó Criador do céu e da terra,


que com eterna razão governas o mundo,
que, a partir da eternidade, fazes avançar o tempo
e que, permanecendo imóvel, a tudo dás movimento,
Tu, que causas exteriores não impeliram a criar
a obra da instável matéria,
mas foi antes a beleza intrínseca e imaculada do sumo bem
que Te levou a criar tudo segundo o modelo celeste,
Tu, sendo belíssimo tu próprio, governas o belo mundo
a partir da tua mente, formando-o à tua imagem,
ordenando que partes perfeitas
dêem origem a um todo perfeito!
Tu unes os elementos através de proporções matemáticas,
de modo que os frios se liguem às chamas,
as coisas áridas às líquidas,
de modo que o fogo, mais subtil, não se evole

15 Este notável poema filosófico, tão lido e comentado na


Idade Média, é um epítome da primeira parte do Timaeus de
Platão.

103
ou o peso da água empurre para baixo
as terras submersas.
Tu, unindo a alma da tripla natureza16,
que tudo liga e move,
liberta-la disseminando-a por membros harmoniosos,
a qual quando, separada,
tiver juntado o movimento em dois orbes17,
a si mesma regressa, envolve a mente profunda
e transforma o céu à sua imagem e semelhança.
Tu crias as almas através de processos semelhantes
e as formas de vida inferiores,
ligando as mais altas a leves carros,
semeia-las pelos céus e terras,
e quando estas se voltam para Ti,
com benévola lei fazes que a ti regressem,
trazidas pelo fogo.
Concede-me, ó Pai, ascender à augusta morada do bem,
concede-me contemplar do bem a fonte,
concede-me que fixe em ti, encontrada a luz,
a clara visão do espírito.
Dissipa as névoas e os entraves da massa terrena!
e resplandece com o Teu esplendor.
Tu, na verdade, és a serenidade,

16 Trata-se aqui da Alma do Mundo, anima mundi. A natu-


reza é formada por mens, anima e materia, sendo a anima o
elemento de ligação, distribuído por todas as coisas, a que dá
movimento e união.
17 A alma divide-se em duas partes, cujos movimentos

tomam a forma de dois círculos, que acabam por voltar à sua


origem.

104
Tu o tranquilo repouso dos piedosos.
Contemplar-Te é o fim e o princípio,
ó guia, ó chefe, caminho e destino.

Prosa 10

1 - Uma vez que já viste qual é a forma do bem im-


perfeito e também a do bem perfeito, agora penso que é
a altura de mostrar onde reside esta felicidade perfeita.
2 E ao fazê-lo penso que se deve primeiramente indagar
se pode existir nas coisas da natureza algum bem do
género que há pouco definiste, de forma que não nos
engane uma reflexão vã e feita só de aparência, afastada
do que é de facto a questão em análise. 3 Mas não pode
negar-se que existe e que é como que uma espécie de
fonte de todos os bens. De facto, é sabido que tudo aquilo
que se diz ser imperfeito o é por diminuição do perfeito.
4 De onde resulta que, se em qualquer categoria algo se
apresenta como imperfeito, é necessário que nessa cate-
goria haja também algo perfeito. De facto, suprimida a
perfeição, nem sequer se pode imaginar de onde é que
proviria aquilo que é considerado imperfeito.
5 E a natureza das coisas não tomou o seu início a
partir de coisas diminutas e incompletas, mas antes decai
a partir de coisas íntegras e absolutas até ao nível das
coisas actuais, último grau da sua degradação e desgaste.
6 E se, como mostrámos há pouco, existe alguma feli-
cidade imperfeita que é um bem frágil, não podemos
duvidar de que exista alguma sólida e perfeita.
- Conclusão muito firme e muito verdadeira.

105
7 - Ora vê onde é que ela se encontra, do seguinte
modo: a concepç ão comum dos espíritos humano s aprova
que Deus, o príncipe de todas as coisas, é o bem. Na ver-
dade, visto que não é possível imagina r nada melhor do
que Deus, quem porá em d úvida que é o bem aquilo que
é melhor do que tudo o mais? 8 E assim, a razão de tal
modo demonst ra que Deus é o bem, que nos convenc e
que n'Ele se encontra também o bem perfeito. 9 Ora, se
assim não fosse, Ele não poderia ser o príncipe de todas as
coisas, existiria com efeito algo melhor do que Ele, que
seria detentor do bem perfeito, que pareceri a ser mais
importan te e mais antigo do que Ele, pois é óbvio que as
coisas perfeitas são anteriores às menos íntegras . 10 Para
que o raciocínio não avance até ao infinito, tem de se
admitir que o sumo Deus está repleto do sumo e perfeito
bem; ora nós estabele cemos que a verdade ira felicidad e
era o sumo bem, portanto é necessár io que a verdade ira
felicidade encontre o seu lugar em Deus altíssimo .
- Concord o - anuí - e não há absoluta mente nada que
se possa dizer em contrário .
11 - Mas peço-te - disse ela - que prestes bem atenção
ao carácter sério e definitiv o da tua anuência relativa-
mente à afirmaçã o de que o sumo Deus está repleto do
sumo bem.
- E então porquê? - pergunte i.
12 - Para não presumi res que este Pai de todas as
coisas recebeu do exterior aquele sumo bem de que consi-
deras que está cheio, ou penses que o tem de urna forma
de tal modo natural que sejam diferente s em essência
a felicidade que Deus tem e Deus que tem a felicidad e.
13 É que, se julgares que foi recebido de fora, poderás

106
considerar mais grandioso o que deu do que o que rece-
beu, mas nós admitimos, e com muita adequação, que este
era o mais excelente de todos os seres. 14 Ora se Ele tem
intrinsecamente esta felicidade de forma natural, mas é
diverso pela faculdade da razão, falando nós do príncipe
das coisas, isto é, de Deus, imagine quem puder quem
é que lhe terá acrescentado estas coisas diversas de si.
15 Por fim, o que é diverso de qualquer coisa não pode
ser a coisa de que se entende ser diverso, por isso aquilo
que por sua natureza é diverso do sumo bem, isso não é o
sumo bem. O que é sacrilégio pensar acerca d' Ele, melhor
do que o qual é sabido que não existe coisa nenhuma.
16 De facto, a natureza seja de que coisa for não pode
ser melhor do que o seu princípio. Por isso, aquilo que
for o princípio de todas as coisas, isso também eu concluí,
através de um raciocínio muito verdadeiro, que era, pela
sua essência, o sumo bem.
- Certíssimo - disse eu.
17 - Mas admitiste que o sumo bem era a felicidade.
- É verdade - confirmei.
- Então - retrocou ela - é necessário admitir que Deus
é a própria felicidade.
- Não posso refutar as afirmações precedentes e dou-
-me conta de que isto é a consequência lógica que delas
resulta.
18 - Vê agora - disse ela - se a mesma coisa se pode
provar com igual certeza a partir do seguinte: não podem
existir dois sumos bens que sejam diferentes entre si.
19 Com efeito, havendo bens que sejam diferentes, é evi-
dente que um não é aquilo que é o outro; por isso nenhum
deles pode ser perfeito, porque a cada um deles falta o

107
outro. Aquele que não for perfeito, é claro que esse não
é o sumo bem. De facto, de modo algum os bens que são
sumos podem ser diversos. 20 Ora nós concluímos que a
felicidade e Deus são o sumo bem, por isso é necessário
que a suma felicidade seja o mesmo que a suma divin-
dade.
21 - Nada - disse eu-, em boa verdade, se pode con-
cluir que seja mais verdadeiro nem mais logicamente
firme ou mais digno de Deus.
22 - Ora, então, a partir destas conclusões - disse ela-,
tal como os geómetras costumam inferir a partir das pro-
posições demonstradas aquilo que eles chamam deduções,
assim eu te darei como que um corolário. 23 Na verdade,
visto que os homens se tomam felizes ao alcançarem a
felicidade, e a felicidade, por seu turno, é a própria divin-
dade, é óbvio que alcançar a divindade é tomar-se feliz.
24 Mas tal como os homens se tomam justos ao alcançar
a justiça, sábios quando alcançam a sabedoria, assim tam-
bém, pela mesma ordem de ideias, é necessário que os
que alcançam a divindade se tomem deuses. 25 Todo o
homem feliz é, portanto, Deus. Mas por natureza, verda-
deiramente, Deus é um só, porém pela participação nada
impede que haja muitos.
26 - É bela e preciosa - disse eu - esta dedução ou
corolário, se preferes esta designação!
27 - E também não há nada mais belo do que a
seguinte ideia, que a razão persuade a ligar a estas coisas.
- Qual? - perguntei.
28 - Uma vez que a felicidade parece conter muitas
coisas - disse ela - dirias que todas estas coisas formam
ao unir-se como que um só corpo da felicidade, através

108
da variedade das partes, ou que existe alguma destas
coisas que preencha a essência da felicidade, sendo as
outras corno que um complemento desta?
29 - Gostaria - disse eu - que tu esclarecesses isso,
fazendo menção das próprias coisas em concreto.
- Não é verdade - disse - que achamos que a felici-
dade é um bem?
- É verdadeiramente o maior - corroborei.
30 - Então - continuou - podemos acrescentar este
bem a todos os outros. Na verdade, a felicidade é consi-
derada a suma auto-suficiência, o sumo poder, e também
o respeito, a ilustração e o prazer. 31 Mas todas estas
coisas, a auto-suficiência, o poder e o resto são conside-
radas um bem, na medida em que são corno que urna
espécie de membros da felicidade ou estão simplesmente
relacionadas com o bem corno se este fosse a sua cabeça?
32 - Compreendo o problema e estou com vontade de
ouvir o que é que propões.
33 - Escuta então a solução deste problema. Se todas
estas coisas fossem os membros da felicidade, discrepa-
riam entre si reciprocamente, pois é essa, com efeito, a
natureza das partes: sendo diversas, formarem um só
corpo. 34 Ora foi demonstrado que todos estes bens são
a mesma coisa. Portanto, de modo algum são membros.
De outro modo pareceria que a felicidade é constituída a
partir de um só membro, o que não pode ser.
35 - Isso, de facto - disse eu-, não tem dúvida, mas
estou à espera do que falta.
36 - É evidente que as restantes coisas estão rela-
cionadas com o bem. Por isso é que a auto-suficiência é
procurada, porque se julga que é um bem, por isso é pro-

109
curado o poder, por também ele ser considerado um bem.
O mesmo se diga do respeito, do prestígio e do prazer.
37 Por conseguinte a razão básica, a causa de procurar
todas estas coisas é o bem. Aquilo que não retém em si
nenhum bem, nem real nem aparente, isso de modo
nenhum pode ser objecto de procura. 38 Por outro lado,
até aquilo que por natureza não é bom, se, todavia, o pare-
cer, é procurado como se o fosse verdadeiramente. O que
leva a que a razão básica, o eixo, a causa de procurar todas
as coisas se considera com razão que é o bem que nelas
existe. 39 Ora a razão que leva a que se procure alguma
coisa é o objectivo realmente desejado, como, por exem-
plo, se por causa da saúde alguém quiser andar a cavalo:
não é tanto a actividade da equitação como o efeito da
saúde que pretende. 40 Ora visto que todas as coisas são
procuradas por causa do bem, não são elas que todos
desejam, mas o próprio bem. 41 Mas aquilo por causa do
qual as restantes coisas são desejadas admitimos nós que
é a felicidade, por isso do mesmo modo é também unica-
mente a felicidade que é procurada. 42 A partir disto se
vê claramente que é uma só e a mesma a essência do bem
propriamente dito e a da felicidade.
- Não vejo nenhuma razão para que alguém possa
pensar outra coisa que não essa.
43 - Mas nós demonstrámos que Deus e a verdadeira
felicidade são uma só e mesma coisa.
- É verdade - confirmei.
- Portanto, é lícito concluir com segurança que tam-
bém a essência de Deus se encontra no próprio bem e em
mais lado nenhum.

110
Metro 10

Vinde cá todos juntamente, vós os cativos


que a falaz libido, apoderando-se das mentes terrenas,
prende com ímprobas cadeias.
Aqui encontrareis repouso para as vossas canseiras,
o porto da plácida e duradoura tranquilidade,
o único refúgio aberto aos infelizes.
Nada daquilo que o Tejo, com as suas areias de ouro,
pode dar,
ou o Hermo, com a sua margem rutilante18,
ou o Indo, próximo da zona tórrida,
misturando pedras verdes com brancas,
iluminará o olhar do homem,
antes mergulha ainda mais nas trevas os espíritos cegos.
Qualquer destas pedras,
que agradam e excitam as mentes,
foi nas suas cavernas mais profundas que a terra as gerou,
mas o esplendor com que se rege e anima o céu
evita as sombrias ruínas da alma.
Quem puder aperceber-se desta luz
fará pouco caso até dos resplandecentes raios de Febo.

18 O Tejo aparece recorrentemente na literatura latina como


rio aurífero, havendo de facto uma mina de ouro romana na
margem sul do nosso estuário, que deu nome a Almada, em
árabe "a mina" . O Hermo era um rio aurífero da Ásia Menor,
cujas margens aqui são descritas como avermelhadas devido à
presença de pedras preciosas.

111
Prosa 11

1 - Concordo - disse eu - , pois efectivarnente vê-se


que tudo resulta logicamente de raciocínios muito sólidos.
2 Então ela disse:
- Que valor darias ao facto de saber o que é o próprio
bem?
3 - Um valor infinito - respondi -, sobretudo se me
fosse dado conhecer também Deus, que é o verdadeiro
bem.
4 - Ora eu vou-te revelar isto com um raciocínio abso-
lutamente verdadeiro, desde que se mantenham válidas
aquelas coisas que há pouco se concluíram.
- Manter-se-ão.
5 - Ora não é verdade que demonstrámos que aquilo
que a maior parte dos homens procura não são bens
autênticos e perfeitos, pois se contradizem mutuamente,
e, faltando urnas coisas a uns e outras a outros, não
podem trazer o bem pleno e absoluto? Por outro lado,
não demonstrámos nós também que o verdadeiro bem
tem lugar quando se reúnem como que numa só forma e
eficácia, de tal modo que aquilo que é a auto-suficiência
é também o poder, o respeito, a glória e o prazer e, a não
ser que todas estas coisas sejam uma só e a mesma coisa,
nada têm que leve a considerá-las como coisas que se
devem procurar?
6 - Foi realmente demonstrado - anuí -, e não pode
de modo algum ser posto em causa.
7 - Ora se estes bens parciais não são verdadeiramente
bons por serem diferentes, mas se tomam bons quando
começam a ter unidade, não é verdade que é através do
acto de alcançarem a unidade que passam a ser bons?

112
-Assim me parece - disse eu .
8 - Mas admites ou não que tudo o que é bom o é pelo
facto de participar do bem?
-Assim é.
9 - É pois necessário, seguindo a mesma ordem de
ideias, que admitas que é a mesma coisa o Uno e o bem;
na verdade, a mesma essência é própria daquilo que não
tem naturalmente um efeito diverso.
- Não posso negá-lo - respondi.
10 - Então não sabes - disse ela - que tudo o que
existe permanece e subiste enquanto for uno, mas perece
e é destruído quando deixar de o ser?
- E como é isso?
11 - Por exemplo nos seres animados - explicou -,
quando se juntam num só e permanece espírito e corpo, o
mesmo é chamado ser animado, mas quando esta unidade
é destruída pela separação de ambas as coisas, morre, e é
claro que deixa de ser chamado ser animado. 12 Também
o próprio corpo, quando mantém uma forma única, pela
união dos membros, apresenta um aspecto humano, mas,
se esta unidade for destruída pela separação das partes
do corpo cada uma para seu lado, deixa de ser aquilo
que era. 13 E do mesmo modo, se fores ver o que se passa
com as restantes coisas, tomar-se-á patente sem dúvida
alguma que cada coisa subsiste enquanto é una, mas
perece quando deixa de o ser.
- Quando me ponho a passar em revista uma série de
coisas, dá-me a impressão de que é exactamente assim.
14 - Existe então - perguntou - algo que, agindo de
acordo com a natureza, abandone o desejo de sobrevi-
vência e se oriente para a morte, desejando a corrupção?

113
15 - Se observar os animais - disse eu -, que têm
alguma capacidade natural de querer e de não querer,
não encontro nenhuma razão, exceptuadas as coacções
externas, para que abdiquem da tendência para sobre-
viver e para que se apressem espontaneamente para a
morte. 16 Na verdade, todo o ser animado procura asse-
gurar a sua vida e foge à morte e à destruição. 17 Mas já
não tenho a certeza até que ponto estou de acordo no que
d iz respeito às ervas e às árvores e, enfim, a todos os seres
inanimados.
18 - Mas não há razão para teres dúvidas acerca disto,
se reparares que as ervas e as árvores nascem em primeiro
lugar nos sítios que lhes são propícios, onde, quanto a
sua natureza o permita, não estejam sujeitos a secar rapi-
damente e a morrer. 19 Na verdade, urnas nascem nas
planícies, outras nas montanhas, os pauis geram outras, as
areias estéreis são fecundas noutras e, se alguém as quiser
transplantar para outros lugares, secam. 20 Mas a natu-
reza dá a cada urna aquilo que lhe convém, e procura que
não morram, enquanto são capazes de perdurar. 21 Por
que razão todas elas, corno que mergulhando a boca nas
terras, extraem o alimento através das raízes e espalham
o vigor pela medula e pela casca? 22 Por que razão é
que a sua parte mais mole, corno é a medula, está sempre
resguardada numa posição interior, enquanto que na
camada exterior a seguir há alguma firmeza da madeira
e, na parte que fica de fora, a casca se opõe à intempérie
do céu corno se fosse um defensor capaz de aguentar as
agressões exteriores? 23 Quão grande é também a dili-
gência da natureza para que tudo se propague através da
multiplicação das sementes! 24 E toda a gente sabe que

114
estes processos naturais não se destinam apenas ao tempo
de vida da planta, mas, através da reprodução, são como
que um mecanismo que se orienta para a sobrevivência
perpétua.
25 Não é verdade que mesmo aquelas coisas que
se pensa serem inanimadas procuram cada uma delas,
de forma idêntica, aquilo que é próprio à sua natureza?
26 Porque é que, na verdade, a leveza conduz as chamas
para cima, o peso pressiona as terras para baixo, senão
pelo facto de estas orientações e movimentos convirem
a cada um deles? 27 Além disso, cada coisa é preservada
através do que lhe é conveniente, tal como é corrompida
pelas coisas que lhe são contrárias. 28 As coisas que são
duras, corno as pedras, resistem a fragmentar-se facil-
mente, através da tenaz coesão das suas partes. 29 Já as
coisas fluidas, como o ar e a água, cedem facilmente àquilo
que as divide, mas depressa voltam àquilo de que foram
separadas; o fogo, por seu lado, não pode ser seccionado.
30 E nós não estamos neste momento a tratar dos
movimentos voluntários da alma cognoscente, mas de
processos instintivos, como digerir a comida que ingeri-
mos, sem termos consciência disso, ou respirar enquanto
dormimos, sem darmos por isso. 31 De facto, nos seres
animados, o desejo de sobrevivência nem sequer resulta
das vontades da alma, mas vem de princípios da natureza.
32 Na verdade, muitas vezes a vontade abraça a morte,
à qual a natureza tem horror, se houver causas que a ela
levem, e, ao invés, por vezes a vontade põe freio à única
coisa que permite o perdurar das coisas mortais, isto é, à
reprodução, coisa que a natureza sempre procura. 33 De
tal modo este amor de si não resulta de um movimento
do espírito racional, mas de uma inclinação natural; com

115
efeito, a Providência concedeu às coisas criadas por si esta
motivação básica para a sobrevivência, que é desejarem
de forma natural permanecer, na medida em que lhes
for possível. 34 Não há razão nenhuma que te permita
duvidar, seja de que modo for, de que tudo o que existe
procura naturalmente permanecer de forma constante,
fugindo ao aniquilamento.
35 - Confesso - disse eu - que vejo agora sem dúvidas
aquilo que há pouco se me apresentava como incerto.
36 - Ora aquilo - continuou ela - que procure subsistir
e permanecer deseja ser uma unidade. Com efeito, supri-
mido isto, nada preservará a existência.
- É verdade - concordei.
37 - Todas as coisas, por conseguinte - disse ela -,
desejam ser o Uno.
- Concordo.
- Mas já demonstrámos que esse Uno é a mesma coisa
que o bem.
- Assim é.
38 - Todas as coisas, portanto, procuram o bem, o qual
se pode de facto definir do seguinte modo: o bem é aquilo
que é desejado por todos.
39 - Nada mais verdadeiro se pode imaginar - disse
eu - , na verdade, ou as coisas carecem de relação com o
Uno e, desprovidas de um Uno que funcione como um
ponto de referência, andarão à deriva, sem piloto, ou
então, se existe algo para o qual todas as coisas se dirigem
pressurosamente, isso será o maior de todos os bens.
40 E ela disse:
- Muitíssimo me alegro, meu pupilo! Acertaste em
cheio no alvo da verdade. E através este raciocínio tomou-
-se evidente para ti aquilo que há pouco dizias ignorar.

116
- O quê? - perguntei.
41 - Qual é - esclareceu - o fito de todas as coisas:
é aquilo que é desejado por todos. Ora uma vez que con-
cluímos isto que era o bem, temos de afirmar que o bem
é o objectivo de todas as coisas.

Metro 11

Quem investiga profundamente a verdade


e quer evitar ser enganado por falsos caminhos,
volte para si próprio a luz da visão interior
e obrigue, mostrando-lhes a direcção,
os longos movimentos19 a irem em direcção a um círculo,
ensine ao seu espírito que possui,
escondido no meio dos seus tesouros,
seja o que for que exteriormente procura.
Aquilo que há pouco uma nuvem negra de erro cobriu
resplandecerá mais brilhantemente
do que o próprio Febo,
pois o corpo, com o seu peso de oblívio,
não con segue afastar da mente toda a luz.
De facto, lá no íntimo está fixa interiormente
a centelha da verdade
que é despertada pelo sopro do conhecimento.
a verdade, como é que, ao serdes interrogados,
saberíeis espontaneamente o que é certo,
se isso não estivesse vivo mergulhado
no fundo do coração?

19 Os movimentos da alma racional.

117
E se fala verdade a Musa de Platão,
aquilo que cada um aprende
é a recordação de algo que esqueceu 20•

Prosa 12

1 Então eu disse:
- Concordo plenamente com Platão, é já a segunda
vez que me recordas destas coisas, de que eu me esqueci,
a primeira vez devido à influência rnalsã do corpo 21, a se-
gunda por estar deprimido devido ao fardo da angústia .
2 Então ela:
- Se reparares nas coisas que anteriormente admitiste,
nem tardará muito que te recordes de urna outra coisa,
que tu há pouco confessaste ignorar.
- O quê? - perguntei.
3 - Com que ditames é o mundo governado - retor-
quiu ela.
- Lembro-me - disse eu - de ter admitido a minha
ignorância, mas, embora já esteja a ver aonde queres
chegar, gostaria de te ouvir um pouco mais desenvolvi-
damente.

20
Para a teoria platónica da reminiscência cf. Phaedo, 72-76.
21
A Filosofia lembrou a Boécio esta doutrina, primeiro na
sua juventude, pois, como acontece com todos os homens, a
alma de Boécio tinha-a esquecido quando entrou no seu corpo
(cf. 3Mll), e agora uma vez mais, pois esquecera-a devido à
aflição resultante da sua situação de desgraça.

118
Disse ela:
4 - Lembro-me de que há pouco achavas que nunca se
deve duvidar de que este é governado por Deus.
- Tão-pouco agora penso que isso possa ser posto em
dúvida, nem nunca tal pensarei, e vou explicar sucinta-
mente a linha de pensamento que me leva a isso. 5 Este
mundo de forma alguma se teria congregado numa forma
una, a partir de partes tão diversas e contrárias, se não
houvesse algo que congregasse coisas tão diversas. 6 Por
outro lado, a própria diversidade discordante das natu-
rezas dissociaria e despedaçaria as coisas unidas, se não
houvesse alguém que mantivesse aquilo que uniu. 7 Por
outro lado ainda, uma ordem tão calculada da natureza
não disporia movimentos tão ordenados relativamente a
lugares, tempos, eficiência, espaços e qualidades, se não
houvesse algo que, permanecendo estável ele próprio,
organizasse a variedade destas mudanças. 8 Isto, seja o
que for, graças ao qual as coisas criadas permanecem e se
agitam, designo por Deus, com a palavra habitualmente
usada por todos.
9 Então ela:
- Visto que é assim que pensas, acho que não me fica
muito trabalho para que, na posse da felicidade, voltes a
ver a pátria, são e salvo. 10 Mas olhemos para aquilo que
apresentámos. Não é verdade que incluímos a suficiência
dentro da felicidade e que concordámos que Deus é a
própria felicidade?
- Assim é, verdadeiramente.
11 - E para governar o mundo - disse ela - não preci-
sará de nenhuns apoios extrínsecos. Se for de outro modo,
se precisar de algum, não terá suficiência plena.

119
- Assim é, necessariamente - concordei.
12 - Por si só, portanto, tudo dispõe?
- Não pode ser negado - disse eu.
13 - E demonstrou-se que Deus é o próprio bem.
- Lembro-me - confirmei.
14 - Através do bem, então, tudo dispõe, se de facto
por si tudo rege aquele que nós concordámos que é o pró-
prio bem, e este é como que o timão e o leme com que
a máquina do mundo é preservada estável e incorrupta.
15 - Em absoluto - disse eu - , e já há algum tempo
que previ que era isso que ias dizer, embora não tivesse a
certeza.
16 - Estou em crer - disse ela - , segundo julgo, que
estás a voltar os teus olhos para ver a verdade. Mas aquilo
que eu vou dizer não é menos evidente.
- O quê? - perguntei.
17 - Visto que julgas, e correctamente, que Deus
governa todas as coisas com o leme da bondade, e que
todas essas coisas, conforme ensinei, se orientam pressu-
rosamente para o bem por tendência natural, será que se
pode duvidar de que os seres dotados de vontade própria
se governam e se põem em consonância com os desígnios
d' Aquele que tudo dispõe como que por uma adequação
obsequiosa para com o seu chefe?
18 - É necessário que assim seja - confirmei - nem
seria um governo feliz, se fosse o jugo dos descontentes,
em vez da salvação dos obedientes.
19 - Nada há, portanto, que acatando a natureza, pro-
cure ir contra Deus?
- Nada - disse eu.

120
20 - E se procurasse? - perguntou ela - Será que por
fim conseguiria algo contra Aquele que nós concordámos,
e com razão, que era o mais poderoso no que diz respeito
à felicidade?
- Sem dúvida - disse eu - que não teria nenhum
êxito.
21 - Não há, portanto, nada que queira ou possa
resistir a este sumo bem?
- Não creio - disse eu.
22 - Existe então - continuou - um sumo bem que
tudo governa com fortaleza e tudo organiza com suavi-
dade.
23 Então eu disse:
- Quanto me deleitam não só a súmula dos raciocí-
nios, a que se chegou, mas muito mais aquelas próprias
palavras que tu usas, de tal modo que, de uma vez por
todas, a estultícia, que dilacera as coisas grandiosas, tenha
vergonha de si própria.
24 - Aprendeste nas histórias que os Gigantes ataca-
ram o Céu, mas também a eles, conforme foi adequado,
a benigna força derrubou. 25 Mas queres que façamos
chocar uns contra os outros os próprios raciocínios?
Talvez de um choque deste género salte uma bela cen-
telha de verdade.
- Como queiras - disse eu.
26 Ela começou assim:
- Ninguém duvidará de que Deus é quem tem o poder
sobre todas as coisas.
Respondi:
- Quem estiver no seu juízo não poderá duvidar.

121
27 - Então aquele que tem o poder sobre todas as
coisas, nada há que não possa.
- Nada - confirmei.
28 - Porventura então Deus pode fazer o mal?
29 - De modo nenhum - disse eu.
- O mal, por conseguinte, nada é, uma vez que não
pode fazê-lo Aquele que nada deixa de poder.
30 - Zombas de mim - disse eu - tecendo um labirinto
inextricável com raciocínios, tu que pareces entrar por
onde saíste ou sair por onde entraste? Ou será que traças
de forma complexa o círculo admirável da divina simpli-
cidade? 31 Com efeito, há pouco, começando a partir da
felicidade, dizias que ela era o sumo bem, e dizias que
ela se encontrava em Deus. 32 Davas também a conhe-
cer, como se fosse um pequeno presente, que o próprio
Deus era o sumo bem e a plena felicidade, a partir do qual
ninguém seria feliz a não ser aquele que fosse também
Deus. 33 E dizias ainda que a forma do bem é a essência
de Deus e da felicidade e ensinavas que o próprio Uno é
esse bem que é procurado por todas as coisas da natureza.
34 E afirmavas ainda que Deus governa o Universo com o
leme da bondade e que tudo lhe obedece voluntariamente
e que não há mal algum na natureza. 35 E explicavas
estas coisas sem recorrer a premissas externas, mas com
uma coisa a tomar a outra verosímil, com provas internas
e específicas do nosso âmbito de raciocínio.
36 Então ela disse:
- Não zombo de ti, de modo algum. Chegámos à con-
clusão mais importante de todas, por dom de Deus, que
há pouco invocávamos. 37 Esta é, com efeito, a natureza
da essência divina, que nem passa para coisas externas

122
nem ela própria recebe em si algo externo, mas, como
disse dela Parménides 22, "como o corpo de uma esfera,
perfeitamente redondo por todos os lados", faz girar o
orbe das coisas enquanto ela própria se mantém imóvel.
38 E se também não procuramos razões exteriormente,
mas situadas dentro do âmbito do assunto que estáva-
mos a tratar, não há razão para que te espantes, ao apren-
deres, com a aprovação de Platão, que a linguagem de
que nos servimos deve estar relacionada com as coisas
a que se refere.

Metro 12

Feliz aquele que do bem


pôde contemplar a fonte esplendorosa,
feliz aquele que pôde soltar amarras da pesada terra!
Outrora o trácio vate, chorando da esposa a morte,
depois de, com chorosos cantos,
ter coagido as florestas a correr, tomando-as móveis,
obrigou os rios a susterem o seu curso.
A corça aproximou sem receio o flanco dos ferozes leões,
e a lebre não receou o cão, amansado pelo canto.
Como um fervor mais aceso
lhe queimasse o íntimo do peito
e as melodias que tudo tinham submetido

22 Citação grego no original, :n:ávt00Ev EuxúxÀ.ov o<j>aí.Qriç

ÊvaÀ.íyxwv õyxcp. Cf. Diels, Fragmente der Vorsokratiker (28B8, 43) .


Este passo de Parménides é citado por Platão no Sophista, 244E,
e por muitos neoplatónicos.

123
se mostrassem inúteis para confortar o seu senhor,
lamentando a crueldade dos deuses,
entrou nas moradas infernais.
Lá, entoando suaves cantos,
acompanhando-se com as sonoras cordas,
tudo aquilo que bebera das nobres fontes
da deusa sua mãe,
todos os sentimentos que o luto incontrolável lhe causava,
luto que o amor duplicava,
ele pranteia, comovendo o Tenário,
e com doce prece pede vénia aos senhores das trevas.
O tríplice porteiro, dominado por um canto novo,
queda-se estupefacto,
As deusas vingadoras dos crimes,
que com terror atormentam os culpados,
já se desfazem em lágrimas, condoídas;
A veloz roda não faz girar a cabeça de Íxion,
E Tântalo, desesperado devido à sede prolongada,
despreza as águas correntes.
O abutre, saciado com as modulações,
não debica o fígado de Tício.
Por fim, o Senhor das Sombras, diz, compadecido:
"Damo-nos por vencidos. Entregamos ao varão
a sua esposa por companheira, resgatada pelo canto,
mas que uma lei condicione as dádivas:
Que até deixar o Tártaro não lhe seja lícito
voltar atrás o olhar."
Quem poderá ditar leis aos amantes?
O amor é para si mesmo a lei mais poderosa.
Oh, perto do fim das trevas, Orfeu viu,
perdeu e fez morrer Eurídice.

124
Esta história diz-vos respeito a vós,
quantos procurais erguer o espírito para a luz do alto.
Na verdade, aquele que, vencido,
voltar o olhar para a caverna do Tártaro
perde, ao contemplar o mundo inferior,
o que quer que de excelente levar consigo.

125
LIVRO IV

Prosa 1

1 Quando a Filosofia acabou de cantar estes versos,


suave e docemente, sem perder a dignidade da postura e
a gravidade do semblante, eu, ainda não completamente
esquecido do meu sofrimento interior, interrompi a sua
concentração, quando se preparava para dizer ainda algo
mais, e disse:
2 - Ó tu, que preludias a verdadeira luz, tudo aquilo
que até agora o teu arrazoado me prodigalizou não só se
mostrou divino ao ser contemplado, mas também irre-
futável graças aos teus argumentos. Aquelas coisas que
me disseste, embora recentemente esquecidas devido ao
desgosto causado pelas minhas desventuras, não me eram
todavia completamente desconhecidas anteriormente.
3 Mas esta mesma é que é a causa da nossa tristeza, que,
embora havendo um bom governante do mundo, os males
possam existir sequer ou que escapem impunes. Ora, ao
considerar isto, vês que só por si é realmente digno de
um enorme espanto. 4 Mas a este outro mal se junta:
é que a virtude, devido à predominância e florescimento
da maldade, não só está privada de recompensas mas é
até calcada aos pés pelos criminosos, e expia a punição
em vez dos facínoras. 5 Ninguém pode deixar de se sur-
preender, ninguém pode queixar-se o suficiente por coisas
destas terem cabimento no reino de um Deus omnisciente
e omnipotente, que quer apenas o bem.

127
6 Então ela disse:
- E seria coisa de infinito espanto e mais horrível do
que todos os portentos se, conforme tu julgas, na casa
muito bem organizada de tão grandioso pai de família,
os recipientes vis fossem estimados e os preciosos se
enchessem de sujidade. 7 Mas não é assim: na verdade,
se aquilo que há pouco concluímos se mantém inabalável,
com a ajuda d' Aquele acerca de cujo reino estamos a falar,
perceberás que os bons são sempre poderosos e os maus
vis e fracos, e que não há vícios sem castigo nem virtu-
des sem recompensa, que as coisas felizes cabem sempre
aos bons e os infortúnios aos maus e muitas coisas deste
quilate, as quais, acalmados os queixumes, te darão firme
fortaleza. 8 E já que há pouco vislumbraste a essência da
verdadeira felicidade, mostrando-a eu, percebeste também
em que é que se baseia, percorrendo todos os aspectos que
considero necessário referir, vou mostrar-te o caminho
que te pode reconduzir a casa. 9 Vou dar asas ao teu espí-
rito, com as quais ele possa elevar-se para o alto, de modo
que, afastada a perturbação, regresses à pátria são e salvo,
com a minha orientação, pelo meu caminho e pelos meus
meios.

Metro 1

Tenho, com efeito, asas velozes 1,


para subir às alturas do céu:
quando o ágil espírito as veste,

1 Cf. Platão, Phaedrus 249c: só a inteligência do sábio recebe


asas.

128
olha lá do alto as terras com desdém,
ultrapassa o globo do imenso éter,
deixando as nuvens atrás de si,
para além do vértice de fogo
causado pelo subtil movimento do éter 2,
até se elevar às moradas estreladas 3,
tomando-se soldado do astro flamejante 4,
até se unir a Febo no seu trajecto,
até acompanhar no seu trajecto o frio ancião 5,
e correr ao longo do círculo estrelado,
onde a noite cintilante se ilumina.
Quando já estiver bastante fatigado,
voa para além da esfera mais distante
para subir ao cimo do céu, partilhando a luz veneranda.
Aqui o Senhor dos reis empunha o ceptro,
refreia as rédeas do orbe,
e rege, firme, o alado carro,
como resplandecente juiz das coisas.
Se para aqui, ó exilado,
te levar o caminho que agora procuras
sem dele te conseguires lembrar,
"esta é", dirás, "já me lembro, a minha pátria,
daqui provenho, aqui me deterei."

2 O éter, região superior do ar, era ígneo (" éter" vem de

atew, acender) e alimentava os astros que se moviam para pro-


curar este alimento.
3
Os signos do Zodíaco.
4 Alusão a Marte. O espírito segue na sua ascensão o tra-

jecto de urna estrela.


5 Saturno.

129
E se te agradar contemplar em baixo
a noite das terras, que abandonaste,
verás que é em condição de exilados
que aí se encontram os tiranos
com o seu ar ameaçador,
temidos pelos povos infelizes.

Prosa 2

1 - Ena - disse eu-, que grandes coisas prometes tu!


E não tenho dúvidas de que serás capaz de as realizar,
contanto que não me faças esperar, agora que me aguçaste
a curiosidade.
2 - Ora em primeiro lugar - disse ela -, irás poder
perceber que sempre assiste aos bons o poder, e que os
maus estão completamente desprovidos de forças, sendo
uma destas afirmações demonstrada a partir da outra.
3 Na verdade, visto que o bem e o mal são coisas contrá-
rias, se se tornar patente que o bom é poderoso, fica clara
a fraqueza do mau, e, se a fragilidade do mau for paten-
teada, então a força do bom toma-se evidente. 4 Mas para
que a verdade da minha opinião seja mais completa, pro-
varei ambas as asserções, confirmando as ideias propostas
ora a partir de um ora de outro raciocínio.
5 São duas as coisas em que assenta a realização dos
actos humanos, a saber, a vontade e o poder. Se faltar um
destes, nada há que possa ser completamente levado a
cabo. 6 Com efeito, faltando a vontade, ninguém irá fazer
aquilo que não quer, mas se faltar o poder, em vão exis-
tirá a vontade. 7 Daqui resulta que, se vires que alguém

130
quer realizar algo que não consegue realizar de maneira
nenhuma, não poderás duvidar de que a este faltou a
capacidade de obter aquilo que queria.
- É claro - disse eu - e de modo nenhum pode ser
negado.
8 - E aquele que tu vejas que realizou aquilo que
queria, será que podes duvidar de que tinha a capacidade
de o fazer?
- Claro que não.
9 - Ora, então, deve julgar-se que cada um é pode-
roso em função do que pode fazer; é fraco em função
daquilo que não pode.
- Admito - disse eu.
10 - Lembras-te, então - continuou ela-, de que dos
raciocínios anteriores se concluiu que toda a orientação da
vontade humana, ainda que repartindo-se por interesses
diversos, se dirige ansiosamente para a felicidade?
- Lembro-me - disse eu - de que também isso foi
demonstrado.
11 - E lembras-te, então, de que a felicidade é o pró-
prio bem, e que, desse modo, quando se procura a felici-
dade, é o bem que por todos é desejado?
- Não é de todo coisa de que tenha de me lembrar -
disse eu-, porque o tenho bem presente no meu espírito.
12 - Portanto, todos os homens, bons e maus junta-
mente, se esforçam por chegar ao bem, numa orientação
que não é diferente nuns e noutros.
- Sim - disse eu -, é lógico.
- Mas é certo que a aquisição do bem os toma bons?
- É certo.
- Alcançam, então, os bons aquilo que procuram?

131
-Assim parece.
14 - Ora se os maus alcançassem aquilo que pro-
curam, o bem, não poderiam ser maus.
-Assim é.
15 - Ora, uma vez que ambos procuram o bem, mas
uns o alcançam de facto, e outros não o alcançam de todo,
não há dúvida de que os bons são poderosos, e de que
os maus, por seu lado, o não são.
16 - Quem disso duvidar - retorqui - não pode ter em
consideração nem a natureza das coisas nem a lógica dos
raciocínios.
17 - Por outro lado - disse ela -, se houver duas
pessoas a quem seja proposta a mesma acção natural,
e destas uma faça isso mesmo e o leve a cabo com um
procedimento natural, e a outra de modo nenhum for
capaz de executar o que foi proposto de forma adequada
à natureza, mas macaqueie apenas o comportamento do
que a realiza de forma completa, qual dos dois pensas que
será mais capaz?
18 - Embora já esteja a ver - disse eu - aonde queres
chegar, contudo gostaria de ouvir a tua ideia de forma um
pouco mais desenvolvida.
19 - Negarás - disse ela - que o movimento do andar
é para os homens uma coisa natural?
- De modo nenhum.
20 - E será que tens dúvidas de que essa função seja
natural aos pés?
- Também não - respondi.
21 - Ora se alguém, capaz de avançar pelo seu pé,
andar, e outro, a quem falte esta função natural dos pés,
procurar deslocar-se apoiando-se nas mãos, qual destes se
pode com razão considerar como mais poderoso?

132
22 Disse eu:
- Podes avançar e tratar outros assuntos, pois nin-
guém tem dúvidas de que é mais capaz o que domina
aquilo que é a função natural do que aquele que não con-
segue fazer o mesmo.
23 - Mas o sumo bem que, proposto de igual modo aos
bons e aos maus, os bons procuram pela função natural
das virtudes, os maus, por seu turno, através de desejos
de vária ordem, o que não é o processo natural de alcan-
çar o bem, isso é o mesmo objectivo que ambos procuram
alcançar. Ou tu achas que é de outra maneira?
24 - Não - disse eu-, pois é evidente a consequência
lógica: tendo em conta as coisas que admiti, é necessário
que os bons sejam fortes e os maus fracos .
25 - Antecipas-te - disse ela - com exactidão, e isso
é sinal de uma natureza animosa e resistente, o que
costuma levar os médicos a fazerem bons prognósticos.
26 Mas já estou a ver que tu és muito rápido a compre-
ender, e por isso aduzirei razões mais copiosas. Vê, com
1
efeito, como se mostra grande a fraqueza dos homens
viciosos, que nem sequer são capazes de alcançar aquilo
a que a tendência natural os conduz e quase obriga.
27 E que aconteceria, se fossem abandonados por este
grande e quase invencível auxílio da natureza, que lhes
mostra o caminho? 28 Considera, na verdade, quão grande
é a impotência que se apodera dos homens celerados.
Com efeito, não são prémios ligeiros ou frívolos que
almejam e que não são capazes de procurar e obter, mas
é relativamente à conquista das coisas mais elevadas, do
próprio cume das coisas, que eles falham, e nem na única
coisa que dia e noite se esforçam por alcançar os infelizes

133
conseguem ter êxito. E nisto se manifestam com clareza as
forças dos bons. 29 Com efeito, tal como julgarias muito
poderoso, no que diz respeito ao avançar andando, aquele
que fosse pelo seu pé tão longe quanto é possível ir, assim
também é necessário que consideres poderosíssimo aquele
que alcança o objectivo último dos seus anseios, para
além do qual nada mais existe. 30 Daqui decorre o que se
contrapõe a isto, que os maus se apresentam a nossos
olhos como desprovidos de quaisquer forças. 31 Então,
porque é que procuram os vícios, abandonando a virtude?
Será por ignorarem o bem? Mas que há mais frágil do
que a cegueira da ignorância? Será que conheceram o
que devia ser procurado, mas a concupiscência os afasta
do bom caminho? Assim, são também fracos, devido à
intemperança, os que não são capazes de resistir ao vício.
32 Porventura abandonam o bem conscientemente e por
sua vontade, inclinando-se para os vícios? Mas deste modo
não só deixam de ser poderosos, mas deixam mesmo de
ser em absoluto. Na verdade, aqueles que abandonam as
coisas que são, abandonam juntamente o objectivo comum
de todos e, simultaneamente, deixam também de ser.
33 Isto pode, de facto, parecer eventualmente estranho
a alguém, dizer que os maus, que são a maioria dos
homens, não são, mas é realmente assim. 34 Na verdade,
não nego que os que são maus são maus, mas nego pura
e simplesmente que sejam. 35 Realmente, tal como dirias
que um cadáver é um homem morto, não poderás é, em
boa verdade, chamar-lhe simplesmente homem, assim
também eu admitiria que os viciosos são maus, mas não
posso é admitir que sejam em absoluto. 36 É, com efeito,
aquilo que se mantém dentro de uma ordem e que pre-

134
serva a sua natureza; aquilo que, por seu lado, se afasta
desta abandona inclusivamente o ser, que assenta na
sua natureza. 37 Mas, replicarás tu, os maus são pode-
rosos. Não serei eu quem dirá o contrário, mas este seu
poder não resulta das suas forças, mas da sua fraqueza.
38 Podem, realmente, coisas más, que nada valeriam se
tivessem sido capazes de permanecer na capacidade
de fazer coisas boas. 39 Esta possibilidade demonstra de
forma mais evidente que eles nada podem: na verdade,
se, como há pouco concluímos, o mal nada é, então é
evidente que os maus nada podem, porque só são capazes
de fazer o mal.
- Está claro.
40 - E para que tu compreendas qual é a força deste
poder, já estabelecemos há pouco que nada é mais pode-
roso do que o sumo bem.
- Assim é - confirmei.
- Mas esse mesmo - disse ela - é incapaz de fazer o
mal.
- Absolutamente.
41 - Existe então alguém - continuou ela - que julgue
que os homens tudo podem?
- A não ser alguém que esteja fora do seu juízo, não
há ninguém.
- E os mesmos homens são capazes de fazer o mal?
- Antes não fossem - respondi.
42 - Ora visto que Aquele que é poderoso apenas rela-
tivamente ao bem tudo pode, não poderão tudo os que
são poderosos relativamente ao mal, e é evidente que
aqueles que podem os males, podem menos. 43 Acresce
a isto o facto de termos demonstrado que todo o poder

135
deve ser contado entre as coisas desejáveis e que todas
as coisas desejáveis estão relacionadas com o bem, que
é como a realização completa da sua natureza. 44 Mas a
possibilidade de cometer o crime não pode estar ligada ao
bem, por conseguinte não é desejável. E se todo o poder
é desejável, toma-se, então, evidente que a possibilidade
de fazer o mal não é um poder. 45 De tudo isto se vê sem
dúvida alguma que o poder cabe aos bons, a fraqueza
aos maus, e fica clara aquela frase de Platão, segundo a
qual só os sábios podem fazer o que desejam, e os maus
não podem fazer aquilo que lhes agrada nem alcançar a
realização daquilo que desejam 6• 46 Façam, com efeito,
o que fizerem, se através destas coisas com que se delei-
tam julgam que hão-de alcançar aquele bem que desejam;
mas não o alcançam de todo, porque as acções reprová-
veis não levam à felicidade.

Metro 2

Aqueles reis que vês altivos,


sentados no alto dos seus tronos,
magníficos com as suas roupas
de púrpura resplandecente,
rodeados de tristes armas, olhando com ar ameaçador,
resfolegando com a sanha do seu coração,
se alguém lhes retirar, a estes soberbos,
a cobertura do seu vão aspecto exterior,

6
Gorgíae, 466 DE. A distinção entre desejar e comprazer-se
corresponde à subtileza do próprio Platão.

136
logo verá que lá por dentro aqueles homens altivos
carregam apertadas cadeias:
de um lado, o desejo faz-lhes voltear os corações
com venenos de ansiedade,
do outro, a torva ira flagela-lhes a mente,
erguendo vagas de furor,
ou então é a tristeza que faz esmorecer
aqueles de que se apoderou,
ou é uma esperança enganadora que os atormenta.
Ora, embora tu vejas muitos tiranos,
eles fazem parte, no fundo, de um só indivíduo,
e esse, subjugado por amos iníquos,
não faz aquilo que ele próprio quer.

Prosa 3

1 - Vês então em quão grande imundície as acções


reprováveis se encontram, com que luz resplandece a
probidade? Isto mostra claramente que nunca faltam às
boas acções as suas recompensas, nem aos crimes a sua
punição. 2 Com efeito, das coisas que são feitas, aquilo
por causa de que é feita cada coisa pode parecer com
razão que é o prémio dessa coisa, tal como o prémio de
correr no estádio é aquilo por que se corre, a coroa. 3 Ora
mostrámos que a felicidade é o próprio bem por causa
do qual tudo se faz: os actos humanos têm, assim, o pró-
prio bem como objectivo comum. 4 E mostrámos também
que isto não pode ser separado dos bons, nem pode ser
chamado bom sem faltar à verdade aquele que carece do
bem. É por isso que os bons comportamentos não deixam

137
de ter as respectivas recompensa s. 5 Sejam quais forem,
então, os estragos causados pelos maus, não cairá a coroa
da cabeça do sábio, não há-de murchar.
E a maldade de outrem não retira aos bons espíritos
a glória que lhes é própria. 6 E se a alegria do homem de
bem resultasse de algo recebido do exterior, isto podia ser
retirado por outrem ou até pelo próprio que lho tivesse
dado, mas, visto que é sua própria probidade que traz
a cada um esta recompensa , o homem de bem só ficaria
sem o seu prémio quando deixasse de ser probo. 7 Por
fim, quando todo o prémio é procurado pelo facto de se
julgar que é bom, quem julgará que aquele que está na
posse do bem não tem parte no prémio?
8 E de que prémio? Do maior e mais belo de todos.
Lembra-te, com efeito, daquele corolário, que há pouco
te dei como sendo o principaF, e tira as tuas conclusões:
9 uma vez que a felicidade é o próprio bem, é evidente
que todos os bons, pelo próprio facto de serem bons, se
tomam felizes. 10 Por outro lado, aqueles que são felizes
é razoável que sejam deuses. Existe, com efeito, um pré-
mio dos bons, que nenhuma passagem do tempo pode
corroer, nenhum poder, seja de quem for, pode diminuir,
nenhuma maldade pode ofuscar, e esse prémio é toma-
rem-se deuses.
11 Assim sendo, o sábio não pode duvidar também
do inevitável castigo dos maus, pois, visto que tal como o
bem e o mal, assim também os castigos e as recompensa s
se opõem diametralm ente: aquilo que vemos acontecer
com a recompensa do bom, isso mesmo é necessário que,

7 Cf. infra, 3, P 10.

138
em contrapartida, corresponda ao que acontece com o
castigo do mau. 12 Tal como a honestidade em si mesma
se toma o prémio para os bons, assim também a própria
maldade é o castigo para os maus. E, na verdade, quem
for atingido pelo castigo não tem dúvida de que foi atin-
gido pelo mal. 13 Ora, se quiserem avaliar a sua condi-
ção, será que se considerarão com tendo ou não parte no
castigo aqueles a quem o vício, o pior de todos os males,
não só atingiu, mas até corrompeu em grande medida?
14 Vê, porém, do lado contrário aos bons, que castigo
cabe aos maus. Aprendeste há pouco que tudo o que é,
é uno, e que o próprio uno é o bem. Ora daí resulta que
parece que tudo o que é, isso é também bom. 15 Deste
modo, tudo o que se afasta do bem, deixa de ser. A con-
sequência disso é que os maus deixam de ser aquilo que
eram. A forma humana do seu corpo, que se mantém,
ainda atesta que foram homens, mas, porque se voltaram
para a maldade, perderam também a natureza humana.
16 Mas visto que só a probidade é capaz de levar alguém
para além dos homens, assim também é necessário
que aqueles que a maldade fez descer abaixo da condi-
ção humana, os rebaixe também com justiça abaixo dos
homens. 17 Violento ladrão, inflama-se com a ganância
das riquezas alheias: dirás que é semelhante a um lobo.
Feroz e agitado, exercita a língua em litígios: a um cão
será comparado. 18 Dissimulado urdidor de intrigas,
alegra-se com ter surripiado qualquer coisa com enganos:
será igual às raposas. Ruge, incapaz de dominar a ira:
considerar-se-á que tem o ânimo do leão. 19 Temeroso e
fugidio, tem medo de coisas que não merecem ser temi-
das: seja considerado semelhante a um cervo. Entorpece,

139
indolente e pasmado: vive como um burro. 20 Volúvel e
inconstante, muda de interesses: em nada difere das aves.
Chafurda em prazeres repugnantes e sórdidos, é aprisio-
nado pela volúpia da porca imunda. 21 Assim acontece
que aquele que deixa de ser homem, ao abandonar a
honestidade, por não lhe ser possível passar à condição
divina, acaba por se transformar em animal.

Metro 3

O Euro 8 impeliu as velas do chefe nerício 9


E os navios que erravam no pélago
em direcção a uma ilha
em que residia uma formosa deusa10,
filha do Sol.
Ela prepara para os hóspedes recém-chegados
bebidas envenenadas com feitiços.
A mão que sabia usar as ervas
metamorfoseou-os em formas variadas:
a este cobriu-o o focinho do javali,
àquele, tomado leão de Mármara11,
crescem-lhe os dentes e as garras;

8
Vento de sudeste.
9
Ulisses. Nerito era uma montanha de Ítaca, sua pátria, e
também uma ilhota próxima.
°
1
Circe, filha do Sol.
11
Mármara era uma região daquilo q4e hoje é a Líbia,
sendo, portanto, o equivalente a "leão africano" .

140
aqueloutro, que acabou de se juntar aos lobos,
quando vai para chorar acaba a uivar.
Aquele, qual tigre indiano,
anda de um lado para o outro diante do palácio.
Mas embora o nume do árcade alado12,
compadecido do chefe cercado por múltiplas desgraças,
o tenha libertado do veneno da anfitriã,
contudo os marinheiros já tinham afastado
da boca as taças malvadas,
já tinham trocado, transmutados em porcos,
os alimentos de Ceres pela bolota,
e nada a estes desgraçados fica como era,
nem a voz nem a forma do corpo.
Só a mente, estável acima dos prodígios,
deplora aquilo por que está a passar.
Ó mão demasiado fraca, ó ervas tão pouco poderosas,
que embora possam mudar os corpos,
não são contudo capazes de transformar os corações!
É dentro do homem que está a sua força,
Escondida numa cidadela inacessível.
Os venenos capazes de fazer
o homem esquecer-se de si próprio
são mais poderosos e mais letais. 13
E embora não causem mal ao corpo
ferem gravemente o espírito.

12 Hermes / Mercúrio.
13 Os venenos que transformam a alma do homem, como
a ira, a ganância. Cf. 4P3.17.

141
Prosa 4

1 Então eu disse:
- Admito-o e vejo que não é injustamente que se d iz
que os viciosos, embora mantenham fisicamente o aspecto
humano, se transformam contudo em animais, no que diz
respeito à qualidade dos seus espíritos. Porém eu prefe-
riria que não lhes tivesse sido permitido inflamar em des-
vario a sua mente atroz e celerada com o fito de destruir
os bons.
2 - E não é - disse ela -, conforme se mostrará em
lugar conveniente, mas, se for retirado aquilo mesmo que
se julga que lhes é permitido, a pena dos homens crimi-
nosos é em grande parte aliviada. 3 Com efeito, coisa
que talvez pareça inacreditável a alguém, é necessário que
sejam mais infelizes os maus quando conseguem o que
pretendem do que se não forem capazes de realizar o
que desejam. 4 Na verdade, se é coisa miserável ter
querido coisas más, ter podido realizá-las é ainda mais
miserável, pois sem esta capacidade o efeito da vontade
miserável ter-se-ia desvanecido. 5 Assim, visto que cada
uma destas coisas comporta a sua desgraça específica,
é inevitável que sejam vítimas de um triplo infortúnio
aqueles que tu vejas a querer o crime, a poder fazê-lo e a
consumá-lo.
6 - Concordo - disse eu - e desejo vivamente que,
perdendo a capacidade de cometer o crime, fiquem rapi-
damente livres deste infortúnio.
7 - Ficarão livres mais depressa - retrucou ela - do que
tu eventualmente queres ou eles próprios julgam que tal
acontecerá. Com efeito, nada acontece tão lentamente nos

142
limites tão breves desta vida que o espírito imortal consi-
dere que é muito demorado esperar por isso. 8 As gran-
des expectativas destes e a imponente máquina dos seus
crimes são frequentemente destruídas por um fim repen-
tino e inesperado, coisa que põe de facto um termo à sua
desgraça. Na verdade, se a maldade toma os homens mise-
ráveis, é inevitável que seja mais miserável quem é mau
durante mais tempo. 9 Julgaria estes os mais infelizes dos
homens, se ao menos a morte, por fim, não pusesse cobro
às suas malfeitorias. Com efeito, se é verdade aquilo que
concluímos acerca do infortúnio da maldade, é óbvio
que seria infinita uma desgraça que durasse eternamente.
10 Então eu disse:
- Espantosa ilação, na verdade, e difícil de aceitar,
mas reconheço que é completamente adequada àquilo
que anteriormente admitimos.
11 - Ajuízas bem - disse ela - , mas quem tem relu-
tância em concordar com a conclusão é justo que faça
uma de duas coisas: ou que demonstre que houve alguma
coisa falsa nos raciocínios prévios ou que mostre que o
encadeamento das proposições não dá origem a uma
conclusão necessária; a não ser assim, aceites os raciocí-
nios precedentes, então não há razão para pôr em causa
a conclusão. 12 Aquilo que eu vou dizer a seguir, aliás,
vai parecer igualmente espantoso, mas resulta de forma
igualmente necessária daquelas coisas que foram tomadas
como premissas.
13 - E então o que é? - inquiri.
- Que são mais felizes os malvados que sofrem o cas-
tigo do que aqueles que não são submetidos a nenhuma
pena da justiça. 14 E agora não vou desenvolver aquela
ideia que vem naturalmente ao espírito de qualquer um,

143
que os maus costumes são corrigidos pelo castigo e con-
duzidos à rectidão pelo terror do suplício, e que também
para os restantes o castigo serve de exemplo, para evita-
rem as coisas culpáveis. Mas penso que de alguma outra
forma os ímprobos que não sofrem o castigo são mais
infelizes, embora não exista nenhuma forma de correcção
nem tenha lugar nenhuma chamada de atenção através
do exemplo.
15 - E qual será - perguntei - esse modo, para além
dos outros?
E ela explicou:
- Não é verdade que admitimos que os bons são
felizes e que os maus, por seu lado, infelizes?
- Assim é - concordei.
16 - Se então - disse - alguma coisa boa for acrescen-
tada à miséria de um indivíduo, não será que este é mais
feliz do que aquele cuja miséria é completa e absoluta,
sem a mistura de qualquer bem?
- Assim parece - anuí.
17 - E então, se ao mesmo infeliz, que careça de todos
os bens, além daquelas coisas por causa das quais é infeliz,
se juntar algum mal, não será que deve ser julgado muito
mais infeliz do que aquele cujo infortúnio é aliviado pela
junção de um bem?
- Como havia de ser de outro modo? - concordei.
18 - Mas é óbvio que é justo que os maus sejam casti-
gados, e injusto que escapem impunes.
- Quem o negaria?
19 Disse ela:
- Mas tão-pouco alguém negará que é bom tudo
aquilo que é justo e, ao contrário, que aquilo que é injusto
é mau.

144
20 Respondi que tal era evidente.
- Têm então os maus, quando são punidos, de facto
algo de bom acrescentado, a saber, a própria pena, que,
pelo facto de ser justa, é boa; e esses mesmos, quando
estão isentos de castigo, têm ainda o acrescento de algum
mal, a própria impunidade, que tu admitiste ser um mal,
pelo facto de ser injusta.
21 - Não posso negá-lo.
- Por conseguinte, são muito mais felizes os maus
agraciados com urna impunidade injusta do que os que
são punidos com um justo castigo.
22 Então eu disse:
- Estas coisas são o corolário daquilo que há pouco
concluímos. Mas, pergunto-te - continuei-, não reservas
nenhum castigo às almas depois de o corpo ter sido des-
truído pela morte?
23 - E grandes são eles, de facto - disse ela -, dos
quais uns acho que são aplicados em função da dureza
das penas, outros, porém, com urna clemência que se
destina à purificação. Mas agora não tenho intenção de
dissertar sobre este assunto.
24 De facto, até agora conseguimos que tu compreen-
desses que o poder dos maus, que a ti te parecia escanda-
loso, não é de facto nenhum, e que visses que aqueles que
te lamentavas de ficarem impunes nunca ficam livres dos
castigos da sua maldade, que aprendesses que a impuni-
dade, que tu reclamavas que chegasse rapidamente ao seu
termo, não é duradoura e que quanto mais se prolonga
mais toma as pessoas infelizes, e que seria infelicíssima se
fosse eterna. Na sequência disto, afirmámos que são mais
miseráveis os maus que se eximem ao castigo através de

145
uma injusta impunidade do que os que são punidos por
um justo castigo. 25 Deste raciocínio decorre que, quando
parece que eles escapam ao castigo, são de facto atormen-
tados por um castigo ainda mais pesado.
26 Então eu disse:
- Quando considero as tuas razões, acho que ninguém
diz nada mais verdadeiro, mas, se voltar aos juízos huma-
nos, quem existirá capaz, já não digo de considerar estas
como críveis, mas ao menos de as olhar como dignas de
serem ouvidas?
27- Assim é - disse ela. - Não podem erguer os olhos
habituados às trevas para a clara luz da verdade, e são
semelhantes àquelas aves cuja visão a noite ilumina e o
dia cega. Enquanto, com efeito, não virem a realidade da
ordem das coisas, mas apenas as suas paixões, julgam que
é fonte de felicidade quer a licenciosidade quer a impuni-
dade dos crimes. 28 Mas vê o que determina a lei eterna:
se conformares o teu espírito com as coisas melhores, não
há necessidade de um juiz que te recompense, pois tu
próprio te colocaste entre os melhores. 29 Se, por outro
lado, desviaste eventualmente o teu espírito para as coisas
piores, não procures fora de ti um justiceiro, pois tu pró-
prio te rebaixaste às coisas mais torpes. É como se olhares
alternadamente o céu e a terra suja de vícios: parece que,
pela própria acção de contemplar, cessando todas as
coisas exteriores, te encontras ora na imundície ora nas
estrelas. 30 Mas o vulgo não vê essas coisas. E então será
por isso que iremos aproximar-nos daqueles que mos-
trámos serem semelhantes aos animais? 31 O quê? Se
alguém, tendo perdido completamente a visão, se esque-
cesse até de ter tido vista e julgasse que nada lhe faltava

146
para a perfeição humana, julgaríamos porventura que os
cegos vêem as mesmas coisas que as pessoas normais?
32 Na verdade, nem sequer admitem o facto de que se
apoia numa sólida fundamentaçã o de raciocínios a asser-
ção de que são mais infelizes os que cometem injustiças
do que os que as sofrem.
33 - Gostaria - disse eu - de ouvir essas mesmas
razões.
- Negarás - disse ela - que todo o malvado é mere-
cedor de castigo?
- De modo algum.
34 - É claro, de múltiplas formas, que são infelizes os
que são maus?
- Assim é - concordei.
ão tens então dúvidas de que são miseráveis os
que são merecedores de castigo?
- Estou de acordo - disse eu.
35 - Ora - continuou ela - se tomasses assento como
juiz, a quem acharias que devia ser dado o castigo, ao que
cometeu a ofensa ou àquele que a sofreu?
- Não tenho a menor dúvida - respondi - de que daria
satisfação à vítima através do sofrimento daquele que lhe
causou dano.
36 - Parecer-te-ia, pois, mais miserável o que causou
a ofensa do que aquele que a recebeu.
37 Disse eu:
- É o que daí decorre logicamente.
- Por conseguinte, por esta e outras causas, apoiando-
-nos naquele fundamento de que a torpeza, por sua
própria natureza, toma miseráveis os homens, toma-se
evidente que a ofensa feita a quem quer que seja é des-
graça não do que a sofre mas daquele que a pratica.

147
38 Ora actualmente - disse ela - os oradores fazem
exactamente o contrário: procuram excitar a compaixão
dos juízes em favor daqueles que sofreram algo grave
e acerbo, quando uma compaixão mais justificada seria
devida aos culpados, os quais era preciso que fossem
conduzidos a julgamento não por acusadores irados
mas antes propícios e compassivos, como os doentes são
levados ao médicos, para que através do castigos lhes
fossem extirpadas as maleitas da culpa. 39 Deste modo,
todo o trabalho dos defensores ou deixaria de ter razão
de ser ou, se preferisse ter alguma utilidade para a huma-
nidade, transformar-se-ia em algo parecido com a acusa-
ção. 40 Também os próprios maus, se lhes fosse permitido
espreitar por alguma frestazinha a virtude que abando-
naram e vissem que iam deixar para trás a sordidez dos
vícios graças aos tormentos das penas, em compensação
por alcançarem a honestidade nem pensariam que se
tratava de tormentos e rejeitariam o trabalho dos seus
defensores e entregar-se-iam totalmente nas mãos dos
acusadores e dos juízes. 41 É por causa disto que entre
os sábios não existe absolutamente nenhum lugar para o
ódio. Na verdade, quem, a não ser alguém muito estú-
pido, odiará os bons? E odiar os maus, por seu lado, não
tem razão de ser. Com efeito se, tal como o enfraqueci-
mento do corpo, assim também a maldade é como que
uma doença das almas e, se julgarmos que os que estão
doentes do corpo não são de modo algum merecedores de
ódio, mas antes de compaixão, assim também não deve-
mos perseguir aqueles cujas mentes são atormentadas
pela maldade, coisa mais atroz do que qualquer doença,
mas antes devemos ter dó deles.

148
Metro 4

Porque vos apraz suscitar tão grande frenesim


e procurar a morte por vossa própria mão?
Se procurais a morte,
olhai que ela se aproxima por sua iniciativa
e não demora os seus cavalos alados.
Aqueles que a serpente, o leão, o tigre, o urso e o javali
atacam à dentada, esses mesmos são os que se atacam
uns aos outros à espadeirada.
Será que os homens movem injustos exércitos,
iniciam guerras atrozes
e querem morrer com projécteis lançados
uns contra os outros
pelo facto de serem de terras afastadas
e de costumes diferentes?
Não é suficientemente razoável tal explicação
de tanta crueldade.
Queres dar a cada um aquilo que ele merece?
Estima com razão os bons e tem compaixão dos maus.

Prosa 5

1 Então eu disse:
- Vejo que a felicidade ou a miséria dependem dos
próprios méritos dos bons e dos malvados. 2 Mas nesta
Fortuna em si mesma, como o povo a entende, não me
parece que haja nada de bom ou de mau. Com efeito,
não há nenhum dos sábios que prefira antes ser exilado,
pobre, ignominioso, em vez de prosperar permanecendo

149
na sua cidade, abundante em recursos, respeitável na
honra, forte em poder. 3 Ora a função da sabedoria é
manifestada de forma mais clara e torna-se mais eficaz-
mente reconhecida quando de algum modo a felicidade
dos governantes é transferida para os povos que lhes
estão sujeitos, e especialmente quando o cárcere, a exe-
cução e os restantes tormentos das penas legais são apli-
cados, isso sim, aos cidadãos criminosos, por causa dos
quais foram aliás estabelecidos. 4 Muito me intriga por
que razão é que isto é invertido, e os castigos dos crimes
afligem os bons enquanto os maus arrebatam os prémios
das virtudes, e gostaria que me explicasses qual possa ser
a causa de tão injusta confusão. 5 Em boa verdade, menos
me admiraria se achasse que tudo acontece de forma
caótica, devido a acasos fortuitos. Mas, assim, a noção de
um Deus que tudo governa exacerba a minha perplexi-
dade. 6 Visto que este atribui muitas vezes coisas agradá-
veis aos bons e desagradáveis aos maus e, ao invés, con-
cede coisas duras aos bons e aos maus coisas que desejam,
se não se percebe a causa, em que é que esta situação se
apresenta como algo diferente dos acasos fortuitos?
7 - Não admira que uma coisa seja julgada confusa
e ocasional, se não se conhecer a lógica da sua razão
de ser. Mas tu, embora ignores a causa de uma ordem de
tão grande dimensão, contudo não duvides de que tudo
acontece com justiça, pois existe um bom governante que
orienta o mundo.

150
Metro 5

Se alguém desconhece que os astros de Arcturo


deslizam próximos do pólo mais elevado,
e por que razão o Boieiro conduz vagaroso a sua carroça,
e mergulha as chamas demoradas no mar,
embora depois nasça de forma extremamente rápida14,
pasmará com a lei do alto éter.
Empalideçam os cornos da lua cheia,
eclipsados pelos bordos de urna escuridão opaca
e descubra Febe confusa15 os astros
que cobrira com a sua face fulgente,
e logo o erro popular perturba as gentes
e estas percutem os bronzes com repetidas pancadas16 .
Ninguém estranha que os sopros do Coro
assolem o litoral com vagas frernentes 17
nem que a massa da neve endurecida pelo frio
seja derretida pelo calor causticante de Febo.
Aqui, com efeito, é fácil vislumbrar as causas;
nos outros casos, contudo,

14 Ilusão de óptica sem correspondência astronómica.


15 A Lua em eclipse.
16 Referência à antiga superstição segundo a qual haveria

risco de a Lua desaparecer definitivamente, aquando de um


eclipse lunar, pelo que as pessoas procuram fazer que a Lua
regressasse tocando freneticamente instrumentos de percussão.
Cf. Juvenal, Satyrae, 6, 442ss.
17 O vento já referido em 1, M3. Alguns comentadores,

porém, entendem aqui o Coro como um rio da Arábia que


desagua no Mar Vermelho.

151
o desconhecimento das causas perturba os corações.
Todas as coisas raras que o correr do tempo traz consigo
causam espanto ao vulgo inseguro,
pelo seu carácter inesperado.
Se desaparecer o nevoento erro da ignorância,
estas coisas cessarão de uma vez por todas
de parecer espantosas.

Prosa 6

1 - Assim é - disse eu-, mas visto que é da tua alçada


revelar as causas escondidas e explicar as razões veladas
pela névoa, peço-te que me expliques em pormenor o que
tu sabes sobre esta questão, porque este é um fenómeno
estranho, que muito me impressiona.
2 Então ela, sorrindo levemente, disse:
- Chamas-me ao assunto mais ponderoso de inves-
tigar de todos, que dificilmente pode ser resolvido de
forma completa. 3 A matéria é de tal ordem que, resol-
vida uma dúvida, aparece logo uma multidão delas,
como se fossem as cabeças da Hidra, e não haverá um
termo senão se der o caso de alguém as dominar com o
vivacíssimo fogo da mente18 . 4 Dentro deste problema é
costume serem colocadas as questões da simplicidade da
Providência, da cadeia do Fado, dos acasos repentinos, do
conhecimento e da predestinação divinos, do livre arbí-

18Tal como Hércules conseguiu que as cabeças cortadas da


Hidra não voltassem a crescer, cauterizando-as com uma tocha.

152
trio. Tu próprio podes avaliar a natureza e a importância
destas questões.
5 Mas uma vez que conhecer estas coisas é também
uma parte do teu tratamento, embora estejamos limitados
por um espaço de tempo restrito, contudo eu esforçar-
-me-ei por dizer alguma coisa sobre elas. 6 E se te delei-
tam as doçuras do canto, é preciso que adies um pouco
este prazer, enquanto eu encadeio os raciocínios uns nos
outros de forma organizada.
- Como queiras - disse eu.
7 Então, como se começasse a partir de um novo prin-
cípio, assim dissertou:
- A geração de todas as coisas, o evoluir das natu-
rezas mutáveis e tudo o que de algum modo está sujeito
ao movimento, as causas, a ordem, as formas, tudo é
determinado a partir da estabilidade da mente de Deus.
8 Esta, na cidadela serena da sua simplicidade, estabe-
leceu um múltiplo modo para as governar. Este modo,
quando é contemplado na própria pureza da inteligência
divina, é chamado Providência; quando, por outro lado,
se refere àquelas coisas que move e dispõe, foi chamado
Fado pelos antigos. 9 Facilmente se tomará claro que são
coisas diferentes, se atentarmos reflectidamente no poder
de cada um deles. Na verdade, a Providência é a própria
razão divina, apanágio do sumo príncipe de todas as
coisas, que tudo dispõe; o Fado é a disposição inerente
às coisas móveis, através da qual a Providência integra
cada coisa na sua ordem respectiva. 10 A Providência, de
facto, abarca todas as coisas ao mesmo tempo, apesar
da sua diversidade e infinitude; o Fado, por seu lado, põe
cada uma das coisas em movimento, distribuindo-as por

153
lugares, formas e tempos, de tal modo que este desenvol-
vimento da ordem temporal, unido ao desígnio da mente
divina, é Providência, e a mesma relação, quando distri-
buída e concretizada nos tempos, é chamada Fado. 11 Estas
duas coisas, embora sejam diferentes, contudo dependem
uma da outra: na verdade, a ordem do Fado deriva da
simplicidade da Providência. 12 Com efeito, tal como o
artífice concebe primeiro na sua mente a forma da coisa
que pretende fazer, e depois a executa de forma concreta,
transferindo para a ordem temporal aquilo que de forma
simples e actual tinha imaginado, assim Deus, através da
Providência, dispõe de forma singular e estática o que
deve ser feito, e através do Fado administra estas mesmas
coisas, dispondo-as de forma múltipla e temporal.
13 Ora então, quer o Fado se realize através de alguns
espíritos divinos servidores da Providência quer através
de uma alma19 quer através da acção subsidiária da Natu-
reza inteira, ou pelos movimentos celestes dos astros, pela
virtude dos anjos ou pela variada astúcia dos demónios,
seja por algumas destas coisas ou por todas elas concer-
tadas, é urdida a cadeia do Fado. É claramente manifesto
que a Providência é a forma imóvel e simples de realizar
as coisas, e que o Fado é o nexo móvel e a ordem tem-
poral daquelas coisas que a divina simplicidade dispôs
para serem realizadas.
14 Resulta daqui q ue tudo o que está sujeito ao Fado
está também submetido à Providência, à qual o próprio
Fado está sujeito, mas algumas coisas que estão sob a

19
A Alma do Mundo do Neoplatonismo.

154
alçada da Providência superam a cadeia do Fado. Estas
são as que, estando mais próximas da primeira divindade
e estavelmente fixas, excedem a ordem da mobilidade do
Fado. 15 Na verdade, podemos estabelecer uma compa-
ração com círculos que giram em volta do mesmo eixo: o
que está mais do lado de dentro aproxima-se da simplici-
dade do centro, e funciona como uma espécie de eixo em
volta do qual giram os círculos que estão mais do lado de
fora . O círculo mais exterior, rodando com maior ampli-
tude, afasta-se da unidade do ponto central tanto mais
quanto evolui por espaços mais largos. Se, por outro lado,
se ligar e associar àquele centro, é forçado à simplicidade
e pára de se espalhar e dispersar no espaço. O mesmo
acontece com aquilo que se afastou mais da mente pri-
meira: é enleado por maiores liames do Fado. Uma coisa
está tanto mais livre do Fado quanto mais se aproxima
do eixo de todas as coisas. 16 E, se se agarrar à firmeza
da primeira mente, estando livre do movimento do Fado,
também supera a necessidade. 17 Portanto, tal como o
raciocínio está para o intelecto, aquilo que é gerado em
relação àquilo que existe, o tempo relativamente à eterni-
dade, o círculo em relação ao ponto central, assim está a
móvel cadeia do Fado em relação à estática simplicidade
da Providência.
18 Esta cadeia move o céu e os astros, equilibra os
elementos uns em relação aos outros e transforma-os
através de mudanças alternadas, ela mesma faz que as
coisas nasçam e morram, e renova tudo através da repro-
dução de seres semelhantes, gerando crias e sementes.
19 Esta condiciona por uma indissolúvel conexão de
causas os actos e até a sorte dos homens; ora, uma vez que

155
este encadeamento de causas tem a sua origem na imóvel
Providência, é necessário que também ele seja imutável.
20 Assim, com efeito, as coisas são optimamente gover-
nadas se, permanecendo na mente divina, a simplicidade
manifestar a invariável ordem das causas, e esta ordem,
por seu turno, condicionar com a sua própria imutabili-
dade as coisas mutáveis que de outro modo se degrada-
riam ao acaso. 21 Donde resulta que, embora para vós,
que não sois minimamente capazes de avaliar esta ordem,
tudo pareça confuso e caótico, uma norma específica orga-
niza cada coisa, dispõe tudo orientando-o para o bem.
22 Nada há, na verdade, que aconteça por causa do mal,
nem sequer a partir dos próprios maus, os quais, como
foi largamente demonstrado, foram desviados da procura
do bem por um erro insensato. Nem a ordem que flui do
centro do sumo bem se pode desviar para uma direcção
diferente daquela que está na sua origem.
23 Que confusão, dirás tu, porém, pode ser mais
injusta do que acontecerem aos bons tanto coisas boas
como más, e aos maus tanto coisas desejáveis como coisas
detestáveis? 24 Será que os homens têm tal integridade da
mente ao longo da sua vida que aqueles que eles conside-
ram bons e maus, é necessário que sejam tal e qual como
eles julgam? 25 E sobre isto os juízos dos homens entram
em contradição: uns acham determinados indivíduos dig-
nos de recompensa, outros acham os mesmos dignos de
castigo. 26 Mas concedamos que alguém possa distinguir
os bons dos maus: será que poderá ver a constituição
íntima das almas, como se costuma dizer a propósito dos
corpos? 27 Com efeito, até os sábios ficam perplexos ao
tentarem perceber por que razão, no que diz respeito aos

156
corpos saudáveis, a uns convêm as coisas doces e a outros
as amargas, por que razão são uns doentes ajudados por
coisas suaves e outros por coisas mais violentas. 28 Mas o
médico, que conhece a natureza e o equilíbrio da própria
saúde e da doença, não se espanta com nada disto. 29 Ora
o que parece ser a saúde das almas senão a probidade; a
doença senão os vícios? E quem é Aquele que preserva
os bons e derruba os maus, como governante e terapeuta
das mentes, senão Deus? 30 Mal Ele olha, do alto da
torre de vigia da Providência, de imediato percebe o que
convém a cada um e proporciona-lhe aquilo que viu ser
adequado. 31 É então que se dá o extraordinário prodígio
da ordem do Fado, que é a sabedoria divina fazer coisas
que os ignorantes não são capazes de compreender.
32 Na verdade, para sintetizar as poucas coisas que a
razão humana consegue abarcar acerca da profundidade
divina a este respeito, aquele que tu consideras justíssimo
e muitíssimo guardador do justo pode ser visto de for-
ma completamente diferente pela Providência, que tudo
conhece. 33 E já o nosso correligionário Lucano 20 chamou
a atenção para o facto de que a causa vencedora agradou
aos deuses, mas a vencida a Catão 21 . 34 Então, seja o que
for que tu vires acontecer de forma diferente daquilo que
seria de esperar, não esqueças que existe, todavia, uma
ordem correcta para essas coisas, embora a ti te pareça

20 Catão, tal como Boécio, é um seguidor do Estoicismo.


21 Bellum ciuile, 1, 128. Os deuses colocam-se ao lado de
César, imagem do tirano para Lucano, e dão-lhe a vitória; Catão,
símbolo da probidade e rectidão, bandeia-se com Pompeio, o
que o levará à morte. Boécio não retém a ironia de Lucano.

157
tratar-se de um confusão perversa. 35 Mas suponhamos
que exista alguém de tão bons costumes que em relação
a esse indivíduo concorde o juízo dos homens e de Deus.
Se algo de adverso lhe acontece e ele deixar eventual-
mente de cultivar a inocência, através da qual não lhe foi
possível manter a sua Fortuna, mostrar-se-á pusilânime.
36 Assim, a sábia distribuição poupa aquele que a adver-
sidade poderia degradar, de modo a não permitir que se
ache em dificuldades aquele que não tem capacidade para
as suportar. 37 Há outro que é perfeito em todas as virtu-
des, santo e próximo de Deus. A este a Providência julga
que é injusto que seja atingido por quaisquer adversi-
dades, de tal modo que nem sequer permite que seja ator-
mentado pelas doenças do corpo. 38 Na verdade, tal como
alguém melhor do que eu disse "o corpo do homem santo
é feito de puro éter" 22 .
39 Acontece, porém, frequentemente que o comando
supremo das coisas seja entregue aos bons, de modo que
a maldade desenfreada seja reprimida. 40 A uns a Provi-
dência distribui uma mistura de prosperidade e adversi-
dade, conforme a qualidade das almas, a outros inquieta-
-os para que não se entreguem à moleza devido a uma
felicidade prolongada, a outros atormenta-os com coisas
duras, para que robusteçam as virtudes da alma pelo uso e
pela prática da paciência. 41 Uns receiam fardos que facil-
mente poderiam suportar, enquanto outros subestimam
fardos que não são capazes de aguentar. A estes condu-los
através das tribulações ao conhecimento de si próprios.

22
Em grego no original: àvÔQOÇ ÔTJ ÍEQO'l! Ôɵaç ai8EQEÇ
olxoôóµrioav. A origem deste verso não é conhecida.

158
42 Alguns compraram um nome venerando pelos sécu-
los, pagando o preço de uma morte gloriosa; outros, resis-
tindo invencivelmente às torturas, d eram aos restantes
um exemplo de que a virtude não pode ser vencida pelo
mal. Não há dúvida nenhuma de que estas provações são
boas e benéficas para aqueles que as sofrem.
43 Na verdade, também o facto de acontecerem aos
maus ora tristezas ora coisas desejáveis resulta das mes-
mas causas. 44 E em relação às tristezas, em boa verdade
ninguém se admira que assim seja, porque toda a gente
acha que eles merecem o mal. Os castigos que sofrem, de
facto, não só afastam os outros dos crimes mas também
emendam aqueles que os sofrem. As coisas agradáveis,
por outro lado, falam eloquentemente aos bons, mostran-
do-lhes o que devem pensar acerca de um género de feli-
cidade que frequentemente vêem estar ao serviço dos
ímprobos.
45 E é nesta ordem de ideias que eu penso ser talvez
outorgada a prosperidade de alguém tão precipitado e de
natureza tão intempestiva que a escassez do património
familiar o poderia mais facilmente exasperar e levar ao
caminho do crime. A Providência trata a doença deste
através do remédio que consiste em cumulá-lo de rique-
zas. 46 Este indivíduo, reconhecendo a sua consciência
conspurcada com acções vergonhosas e comparando-se
a si próprio com a sua Fortuna, assusta-se talvez com a
penosa perspectiva de perder aquilo que lhe sabe bem
usar: mudará então os seus costumes, e, ao recear perder
a Fortuna, abandonará a maldade. 47 A outros é a feli-
cidade injustamente conseguida que os precipita numa
merecida destruição: a alguns é concedido o direito de

159
punir, para que existisse um estímulo para os bons e urna
causa de castigo para os maus. 48 Na verdade, tal corno
não há nenhum pacto entre bons e maus, assim também
os maus são incapazes de conseguir a concórdia entre si.
49 E corno havia de ser de outro modo, se cada um se
afasta de si próprio, dilacerando a sua consciência com
os próprios vícios, e fazem muitas vezes coisas de que
depois se arrependem?
50 E é por isso que muitas vezes a excelsa Providência
realiza um extraordinário prodígio, que é o de os maus
tomarem os maus bons. 51 Na verdade, quando alguns
se acham vítimas de injustiças infligidas por maus, cheios
de raiva em relação aos que lhes fizeram mal, regressam
à rnorigeração da virtude, ao procurarem ser diferentes
daqueles que odiavam. 52 A força divina é, com efeito,
a única para quem os males são também bens, quando,
usando adequadamente deles, produz o efeito do bem
de alguém. 53 É que todas as coisas se integram numa
certa ordem, de modo que aquilo que se afastar da função
que lhe foi atribuída relativamente a essa ordem, embora
passe a urna outra situação, contudo volta a integrar-se
nessa ordem, para que nada no reino 23 da Providência
fique sujeito ao acaso.
"É-me difícil contar-te tudo isto, corno se eu fosse
um deus." 24

23
Significativo que se use em latim res publica, o que parece
dar razão a uma pretensão de fortalecimento do Senado, contra
a autocracia.
24 Homero, Ilias, XII, 176. Em grego no original: ÃQyaÃ.fov

ÔÉ flE i:afrm 0EÓV &ç rr.ávi:' àyoQEÚELV.

160
54 É que não é lícito ao homem nem compreender
pela inteligência todos os mecanismos da obra divina nem
explicá-los por palavras. 55 Isto nos baste, ter percebido
que Deus, que tudo criou, é também quem tudo organiza,
orientando-o para o bem. E ao cuidar com solicitude para
que tudo o que criou preserve a semelhança com Ele,
elimina todo o mal do território do seu reino, através
do encadeamento da necessidade do Fado. 56 Daí que,
se atentares na Providência que tudo dispõe, verás que o
mal que se julga abundar no mundo não o é de facto.
57 Mas estou a ver que tu, já há algum tempo fatigado
pela gravidade da questão e pela extensão do raciocínio,
anseias pela doçura de um poema. Recebe então este
trago, para que, refeito, ataques com mais firmeza o que
se segue.

Metro 6

Se queres escrutinar, solerte, com mente pura,


as leis do excelso Tonante,
olha para os cimos do alto céu:
lá, os astros guardam uma paz antiga,
graças ao harmonioso pacto das coisas.
O Sol não perturba, violento, com o rútilo fogo,
a gélida órbita de Febe,
nem a Ursa, que no mais alto vértice do mundo
percorre o seu veloz trajecto,
ao ver os outros astros mergulhar no mar do Ocidente,
deseja alguma vez mergulhar as suas chamas no Oceano.
Sempre Vésper, nas alternâncias regulares do tempo,

161
anuncia as sombras do crepúsculo
e Lúcifer reconduz o dia benfazejo.
Assim o Amor recíproco governa as órbitas eternas,
e a desavença da guerra está excluída das regiões astrais.
Esta concórdia harmoniza os elementos,
com medidas equilibradas,
de modo que as coisas húmidas
se contrapõem às coisas secas, e lhes cedem a vez,
e os frios fazem aliança com as chamas,
o fogo leve se ergue para o alto
e as terras pesadas se afundam com o seu peso.
Pelas mesmas causas, na tépida primavera,
a estação que traz as flores respira perfumes;
o Verão causticante seca os cereais,
o Outono regressa carregado de frutos.
A chuva que cai molha o Inverno.
Esta combinação alimenta e produz
tudo o que no mundo vive
e é também ela que, arrebatando-o,
o suprime e faz desaparecer,
mergulhando as coisas geradas na morte derradeira.
Entretanto o Criador senta-se lá no alto
e governando flecte as rédeas das coisas,
Rei e senhor, fonte e origem, lei e sábio juiz do que é justo,
e tudo aquilo que pôs em movimento,
também o faz parar, sustendo-o, e fixa as coisas errantes.
Na verdade, se não reconduzir aquelas coisas,
que agora estão inseridas numa ordem estável,
ao seu verdadeiro caminho e as colocar de novo
nas suas órbitas circulares,
isoladas da sua fonte estas pereceriam.

162
É para Ele que vai o amor de todos os seres
e todos procuram unir-se de novo ao bem, meta universal,
porque de outro modo não poderiam susbsistir,
senão refluindo de novo, conduzidos pelo amor,
para a causa que lhes deu o ser.

Prosa 7

1 - Já estás, então, a ver o que decorre de tudo aquilo


que dissemos
- E o que é? - perguntei.
2 - Que toda a Fortuna é, por conseguinte, boa -
retrucou.
- E como é que isso pode ser? - indaguei.
3 - Presta atenção - disse ela. - Visto que toda a
Fortuna, seja agradável ou dura, é concedida não só
para recompensar e pôr à prova os bons, mas também
para punir e corrigir os maus, toda ela é boa, pois é óbvio
que ou é justa ou é útil.
4 - É realmente muito verdadeiro esse raciocínio e, se
eu considerar a explicação que há pouco me deste sobre a
Providência e o Fado, uma ideia apoiada em fortes argu-
mentos. 5 Mas, se não te importas, coloquemo-la entre
aquelas que há pouco estabeleceste como paradoxais.
- Porquê? - inquiriu ela.
- É que a maneira comum de falar dos homens cos-
tuma dizer, e é realmente coisa muito frequente, que a
Fortuna de alguns homens é má.
7 - Queres então - retorquiu - que nos aproximemos
um pouco da linguagem do vulgo, para que não pareça

163
que nos afastamos demasiado da comum forma de agir
da humanidade?
- Se fazes favor - disse eu.
8 - Ora bem, então não é verdade que consideras bom
aquilo que é útil?
- Assim é - disse eu.
9 - Então aquilo que exercita ou corrige é bom?
- Admito - respondi.
- Então a Fortuna é boa?
- E porque não? - redargui.
10 - Mas esta é então a situação própria daqueles que,
estabelecidos na virtude, travam combate com a adver-
sidade ou daqueles que, ao afastarem-se dos vícios, enve-
redam pelo caminho da virtude.
- Não posso dizer que não - confirmei eu.
11 - E então a Fortuna agradável que é atribuída como
recompensa aos bons, será que o vulgo a considera má?
- De modo nenhum, o vulgo pensa que é óptima,
como é de facto.
12 - Ora bem, e a outra, que embora seja áspera,
pune os maus com justo castigo, será que o vulgo a consi-
dera boa?
13 - Pelo contrário - disse eu -, julga que é a coisa
mais miserável de todas as que se podem imaginar.
14 - Tem, pois, cuidado, não vá dar-se o caso de que,
seguindo a opinião do povo, estabeleçamos algo que é de
natureza completamente inconcebível.
- O quê? - inquiri.
15 - Destas coisas com que concordaste - respondeu -
resulta na verdade que toda a Fortuna daqueles que estão
na posse ou no aperfeiçoamento ou na aquisição da vir-

164
tude, seja ela a Fortuna que for, é boa, mas que toda a
Fortuna, para os que permanecem na maldade, é péssima.
16 - Isso é verdade - anuí-, embora ninguém ouse
admiti-lo.
17 - Por isso - ripostou - o homem sábio não deve
suportá-la como incómodo, sempre que é sujeito aos
embates da Fortuna, tal como não fica bem a um guerreiro
valente indignar-se sempre que se desencadear o tumulto
da guerra. 18 A dificuldade reside para ambos naquilo
mesmo que é o seu objectivo: para um, aumentar a glória;
para o outro alcançar a sabedoria. 19 Também se chama
virtude porque, apoiando-se nas próprias forças, não é
vencida pelas adversidades 25 . E vós que vos encontrais
no caminho do aperfeiçoamento na virtude não viestes
até aqui para vos deixardes amolecer com facilidades nem
para perder o vosso vigor por causa do prazer. Combateis
pois energicamente com os vossos espíritos contra qual-
quer Fortuna, para que nem a triste vos acabrunhe nem
a agradável vos corrompa. 21 Ocupai o terreno do meio
com firmes forças: tudo o que fica abaixo ou para além
implica abrir mão da felicidade e não alcançar o prémio
do esforço. 22 Está na vossa mão a natureza da Fortuna
que preferis criar para vós. Com efeito, toda aquela que
parece dura ou põe a virtude à prova ou emenda ou então
castiga.

25Em latim uirtus significa virtude no sentido moral, mas


etimologicamente significa valor guerreiro, coragem, relacio-
nado com a ideia de força (uis) .

165
Metro 7

O vingador filho de Atreu,


tendo guerreado durante dez anos,
expiou o ultraje feito ao tálamo de seu irmão,
pela destruição da Frígia 26 .
Quando pretende navegar com a armada grega
e congraçar os ventos por uma dádiva de sangue,
faz desaparecer o pai infeliz, e, como triste sacerdote,
corta o pescoço à própria filha.
Ulisses chorou a perda dos seus companheiros,
que o feroz Polifemo, recostado na sua vasta caverna,
mergulhou no seu enorme estômago.
Mas pagou este gozo com lágrimas de desespero,
louco de fúria ao perder o seu único olho 27.
Duros trabalhos tornaram Hércules famoso:
subjugou os soberbos Centauros,
arrebatou o espólio ao terrível leão,
trespassou as aves com setas certeiras,
roubou as maçãs de ouro ao dragão que as guardava,
com a mão esquerda mais pesada
por causa das correntes de ouro,

26 Agamémnon, filho de Atreu, liderou os Gregos na Guerra


de Tróia, para vingar a honra ultrajada de seu irmão Menelau, a
quem o troiano Páris raptara a esposa, a bela Helena. Quando
a armada grega ficou retida em Áulis por ventos contrários,
sacrificou a sua filha Ifigénia para aplacar a ira de Diana.
27
Ulisses, rei de ítaca, ao regressar da Guerra de Tróia, sofreu
muitas provações, entre as quais um encontro com Polifemo, rei
dos Ciclopes, gigantes com um só olho, que devorou cinco dos
seus homens. Ulisses venceu-o embriagando-o e cegando-o.

166
arrastou Cérbero com um tripla cadeia.
diz-se que, vitorioso,
deu de comer o seu dono aos terríveis cavalos.
A Hidra pereceu, queimado o veneno,
O rio Aqueloo, envergonhado por causa da fronte,
mergulhou os olhos pudibundos nas margens;
derrubou Anteu nas areias da Líbia,
Caco aplacou a cólera de Evandro,
E o javali manchou com o seu espumejar os ombros
sobre os quais havia de assentar o alto orbe,
pois o último trabalho foi aguentar o céu
no seu pescoço firme e por isso uma vez mais
mereceu o prémio do céu 28 .

28 Euristeu, rei de Micenas, obrigou Hércules a realizar


os célebres Doze Trabalhos. São referidos no poema, por esta
ordem: derrotou os Centauros; matou o leão de Nemeia, cuja
pele Hércules passou a usar; destruiu as aves do lago Estínfalo;
conseguiu roubar as maçãs de ouro do Jardim das Hespérides,
guardadas por um dragão; raptou o monstro Cérbero, cão mons-
truoso com três cabeças, guardião dos Infernos, que ligou com
correntes e trouxe para o mundo superior; deu a comer aos seus
próprios cavalos carnívoros o rei trácio Diomedes; matou a
Hidra de Lema; libertou Djanira de uma união odiosa com o rio
Aqueloo, com quem lutou metamorfoseado em touro e a quem
arrancou um corno da fronte; matou o gigante Anteu; matou o
monstro Caco, que roubava o gado e Evandro; matou o terrível
javali do monte Erimanto, que carregou aos ombros; e por fim
segurou o céu aos ombros, substituindo Atlas. Ao levar a bom
termo estes trabalhos o herói alcançou a imortalidade, sendo
aqui apresentado, à maneira estóica, como herói não só do valor
físico mas também moral.

167
Ide agora, homens fortes, pelo excelso caminho
Por onde vos conduz tão grande exemplo.
Por que razão voltais cobardemente
as costas em debandada?
Superar a terra alcança-vos as estrelas.

168
LIVRO V

Prosa 1

1 Acabara de falar e mudava já o rumo do discurso


para tratar e esclarecer outras questões. 2 Então eu disse:
- É correcta, de facto, a tua exortação e além disso
realmente digna de ser acatada, mas aquilo que há pouco
disseste acerca da Providência, que é uma questão que
está ligada a muitas outras, isso é o que eu experimento
na minha situação. 3 E eu pergunto, com efeito, se existe
de facto em absoluto alguma coisa que seja o acaso e o
que deve ser considerado como tal.
4 Então ela respondeu:
- Apresso-me a cumprir a minha promessa e a abrir-
-te o caminho pelo qual possas ser reconduzido à pátria.
5 Estas coisas, porém, embora sejam de grande interesse
do ponto de vista do conhecimento, contudo afastam-se
um pouco do percurso que nos propusemos, e é de recear
que, fatigado pelos desvios, não tenhas forças suficientes
para percorrer até ao fim o recto caminho.
6 Retorqui:
- Não te preocupes com isso. Na verdade, para mim,
conhecer aquilo com que mais me deleito é uma forma de
descanso. 7 Por outro lado, apresentando-se toda a ampli-
tude da tua exposição, com clareza inequívoca, não haverá
dúvidas nenhumas em relação ao que vier a seguir.
8 Então ela retrucou:
- Far-te-ei a vontade.

169
E de imediato assim começou:
- Se alguém definir o acaso como um acontecimento
produzido por um movimento fortuito e sem qualquer
conexão de causas, eu não corroboro de modo nenhum
que isso seja o acaso, e afirmo que se trata de uma pala-
vra vazia e privada de significado seja de que coisa for.
De facto, que lugar pode haver deixado ao acidental, se
Deus mantém todas as coisas numa ordem determinada?
9 Na verdade, é noção acertada aquela que diz que do
nada nada vem, que nunca ninguém de entre os antigos
refutou1, embora eles tenham chegado a esta conclusão
não a partir de um primeiro motor mas a partir de um
sujeito material, e tenham estabelecido isto como um fun-
damento de todos os argumentos relativos à natureza.
10 E se alguma coisa surgir sem causa alguma, parecerá
ter surgido do nada, mas, se isto não pode ser, não é
possível a existência de um acaso do tipo daquele que
definimos há pouco.
11 - E então? - disse eu. - Não há nada a que se possa
chamar com correcção acaso ou sorte? Porventura existe
algo, embora escondido ao comum dos mortais, a que
estas palavras se apliquem?
12 - O meu Aristóteles definiu isto na Física, de forma
breve e com argumentação próxima da verdade2.
- Então como? - quis eu saber.

1
Os filósofos da Antiguidade, nomeadamente Parménides.
2
Physica, 2.4-5. Paralelo mais próximo em Metaphysica,
1025ª14 ss.

170
13 Respondeu:
- Sempre que se procura realizar algo com um deter-
minado objectivo - explicou - e sucede algo diferente
daquilo que se pretendia, devido a determinadas causas,
chama-se-lhe acaso. Por exemplo, quando alguém, por
cultivar um campo, ao cavar a terra encontra urna quantia
de ouro enterrada. 14 Em boa verdade, pensa-se então
que isto aconteceu por acaso, mas não nasceu do nada:
tem as suas causas próprias, cujo concurso imprevisto
e inopinado parece ter criado o acaso. 15 Na verdade, se o
lavrador não cavasse a terra do campo, se a pessoa que
o guardou não tivesse escondido o seu pecúlio nesse
lugar, o ouro não teria sido encontrado. 16 São estas então
as causas do ganho ocasional, que resulta de causas que
se cruzam e confluem umas com as outras, não da inten-
cionalidade de um agente. 17 Com efeito, nem aquele que
enterrou o ouro nem o que trabalhava o campo tinham
como intenção que aquele tesouro fosse descoberto, mas,
tal como disse, reúnem-se e concorrem os factos de este ter
cavado e de aquele ter enterrado. 18 É, por conseguinte,
lícito definir o acaso como um acontecimento inopinado,
resultante de causas confluentes em situações que resul-
tam de algum objectivo. 19 Ora o que faz concorrer e
confluir as causas é aquela ordem que avança por inexo-
rável conexão e que, descendo da fonte da Providência,
dispõe todas as coisas nos seus lugares e ocasiões.

171
Metro 1

Nos penedos das Rochas Aqueménias 3,


onde os guerreiros em fuga, voltando-se,
cravam flechas nos peitos dos perseguidores 4,
o Tigre e o Eufrates brotam de uma só fonte
e depois, separando-se as águas,
vai cada um para seu lado.
Se de novo se reunirem no seu curso
e de novo forem chamados a ser um só,
se confluir aquilo que a água de cada rio arrasta,
encontrar-se-ão os barcos,
os troncos arrancados pela corrente,
e as águas misturar-se-ão aparentemente ao acaso.
Estes acontecimento variados, contudo,
são regidas pelos próprios declives da terra,
pelos saltos do rio e pela lógica da corrente ao deslizar.
Assim, também a Fortuna,
que parecia andar desgovernada,
à rédea solta, ela própria sofre freios
e avança submetida a uma lei.

Prosa 2

1 - Apercebo-me - disse eu - e concordo que é assim


como dizes. 2 Mas nesta sucessão de causas que se ligam

3
Estes rochedos ficam na actual Arménia, onde nascem
o Tigre e o Eufrates.
4
Os cavaleiros Partos eram famosos pela sua destreza a
disparar o arco enquanto galopavam em retirada.

172
entre si, será que há alguma liberdade do nosso arbítrio,
ou será que a cadeia do destino constrange também os
próprios movimentos dos espíritos humanos?
3 - Há - disse ela-, e não existiria nenhuma natureza
racional, se esta mesma não tivesse liberdade de arbítrio.
4 Na verdade, aquilo que pode naturalmente servir-se da
Razão, isso tem também o discernimento com que pode
estabelecer distinções relativamente ao que quer que seja;
5 por si mesma distingue, pois, o que se deve evitar e o
que se deve procurar. Ora toda a gente procura aquilo que
é desejável e evita aquilo que acha que deve ser evitado.
6 Por isso, naquele mesmo em que se encontra a razão
está também a liberdade de querer e de não querer, mas
não afirmo que esta seja igual em todos os seres. 7 Na ver-
dade, as substâncias divinas e supemas têm à sua dispo-
sição o juízo perspicaz, a incorrupta vontade e o poder
efectivo de obter o que desejam. 8 Por seu turno, é neces-
sário que as almas humanas sejam de facto mais livres
quando se conservam na contemplação da mente divina,
e menos livres quando descem aos corpos, menos ainda
quando se ligam aos membros terrenos. 9 A derradeira
escravidão tem lugar quando perderam a posse da pró-
pria razão, submetida aos vícios. 10 Na verdade, quando
desviam os olhos das luzes da suma verdade para as
coisas inferiores e sombrias, turvam-se com a névoa da
ignorância, são perturbadas pelas emoções perniciosas e,
cedendo-lhes e anuindo-lhes, reforçam a escravidão que
chamaram a si e ficam, de algum modo, cativas da pró-
pria liberdade. 11 Coisas que Aquele que tudo observa da
eternidade vê com a visão da Providência, dispondo cada
uma delas, predestinada de acordo com os seus méritos.

173
Metro 2

Canta Homero, de cuja boca escorre o mel,


que o claro Febo, com a sua luz pura,
" tudo vê e tudo ouve" 5•
Este, no entanto, não consegue romper
nem as recônditas entranhas da terra
nem do pélago.
Com o criador do magno orbe
tal não acontece: para Ele,
que do alto tudo contempla,
as terras com a sua massa não são um obstáculo,
a noite não se lhe põe diante
com as suas nuvens negras:
de urna assentada
vê o que é, o que foi e o que há-de vir,
pois é o único a observar todas as coisas,
aquele a quem poderás chamar verdadeiro Sol.

Prosa 3

1 Então eu disse:
- Eis que de novo sou confundido por urna dificul-
dade ainda maior.
2 - E qual é ela? - perguntou-. Já estou a adivinhar
o que te perturba.

5 Citação de Homero (flias, 3, 277; Odyssea, 11, 109), em que


se diz relativamente ao Sol. A citação é ligeiramente modificada
para se adaptar à sintaxe. Em grego no original: Ilávt' E<j>oQâv
xal, návt' EJID'X.O'ÍJELV.

174
3 - Parece ser demasiado paradoxal e contraditório
que Deus tudo conheça e que exista algum livre arbítrio.
4 Na verdade, se Deus tudo vê, e de modo nenhum se
pode enganar, é necessário que aconteça o que a Provi-
dência preveja que vai acontecer. 5 Porque, se da eterni-
dade Ele conhece previamente não só os actos dos homens
mas também as suas intenções e vontades, não existe livre
arbítrio algum. E com efeito, não poderá existir nenhum
outro acto nem vontade alguma senão aquela que a divina
Providência, que não sabe o que seja enganar-se, tenha
conhecido de antemão. 6 Se, realmente, as coisas puderem
ser orientadas num sentido diferente daquele para que
foram providenciadas, já não existiria presciência segura
do futuro, mas antes uma opinião incerta, o que penso
não ser lícito crer acerca de Deus.
7 Tão-pouco aprovo aquele raciocínio segundo o
qual muitos pensam que se pode resolver este problema.
8 Dizem, com efeito, que as coisas não acontecem porque
a Providência prevê que acontecerão, mas é antes ao con-
trário, é porque vão acontecer que não podem ser igno-
radas pela divina Providência, e assim é necessário que
a necessidade recaia sobre a parte contrária. 9 De facto,
não é necessário que aconteçam as coisas que são provi-
denciadas, mas é necessário que as coisas que vão acon-
tecer sejam previstas. Há dificuldade em definir qual das
duas coisas é causa da outra, se é a Providência que é a
causa da necessidade dos acontecimentos futuros, ou se
é a necessidade dos acontecimentos futuros a causa da
Providência. Não nos esforcemos por demonstrar, seja
qual for a ordem das causas, que é necessário o aconte-
cimento das coisas previamente conhecidas, ainda que o

175
conhecimento prévio não pareça conferir necessidade de
acontecer às coisas futuras. 10 Com efeito, se alguém se
sentar, é necessário que a opinião que considera que ele
está sentado seja verdadeira, e ao invés, por outro lado,
se for verdadeira a opinião acerca de alguém de que está
sentado, é necessário que esteja sentado. 11 Por conse-
guinte, em ambos os casos se verifica a necessidade: num,
a de estar sentado; no outro, a de ser verdade. 12 Mas não
é por isso que alguém está sentado, por ser verdadeira a
opinião, mas antes esta é verdadeira porque alguém pre-
viamente se sentou. 13 Assim, como a causa da verdade
procede da outra parte, está presente, contudo, em ambas
uma necessidade comum.
14 É óbvio que algo semelhante se deve pensar acerca
da Providência e das coisas futuras. Na verdade, se é por
causa do facto de virem a suceder que são previstas, não é
na verdade por serem previstas que acontecem. De qual-
quer modo, é necessário quer que as coisas que hão-de
suceder sejam previstas por Deus quer que as coisas
previstas aconteçam. O que é por si só suficiente para
destruir o livre arbítrio. 15 Quão disparatado seria, pois,
dizer-se que o facto de as coisas temporais acontecerem
é a causa da eterna presciência! 16 Que é, de facto, pen-
sar que é pelo facto de serem coisas que vão realizar-se
que Deus prevê as coisas futuras, senão julgar que as
coisas que num dado momento aconteceram são a causa
daquela excelsa Providência? 17 Por outro lado, quando
sei que existe algo, é necessário que isso mesmo exista,
e, quando sei que algo vai suceder, é necessário que isso
mesmo aconteça, e assim se vê que o acontecimento de
uma coisa previamente conhecida não pode ser evitado.

176
18 Por fim, se alguém conceber uma coisa de modo
diferente daquilo que ela é na realidade, isto não só não é
ciência, mas é opinião enganosa, muito diversa da verdade
da ciência. 19 Por isso, se algo é de tal ordem que a sua
concretização não é certa nem necessária, quem poderá
prever que isso irá acontecer? 20 Com efeito, tal como o
próprio saber não está misturado com a falsidade, assim
também aquilo que é concebido pela ciência não pode ser
diferente da sua concepção. 21 E, na verdade, é por esta
razão que a ciência está isenta de mentira, pelo facto de
ser necessário que a realidade seja tal como a ciência a
compreende.
22 E então, de que modo é que Deus conhece de
antemão estas coisas futuras incertas? De facto, se pensa
que vão inevitavelmente acontecer coisas que até é pos-
sível que não aconteçam, engana-se, coisa que é sacri-
légio não só dizer, mas até pensar. 24 E se são assim, de
tal modo Ele conhece essas coisas futuras que sabe que
elas tanto podem acontecer como não, que presciência
é esta, que não abarca nada de certo, nada de seguro?
25 Ou então será que algo disto tem a ver com aquele
risível vaticínio de Trrésias?:

"O que quer que diga ou será ou não" 6•

26 Em que é que a divina Providência seria superior à


opinião humana se, como acontece com os homens, consi-

6 Trrésias, adivinho cego de Tebas. Citação de Horácio,


Sermones, 2.5.59, em que é apresentada uma conversação paró-
dica de Trrésias com Ulissses, que tem lugar nos Infernos.

177
derar incertas as coisas cuja realização é duvidosa? 27 Ora,
se no seio daquela seguríssima fonte de todas as coisas
nada pode existir de incerto, é certo o desenlace daquelas
coisas que Ele souber de antemão que irão acontecer.
28 Por isso não existe liberdade alguma para as decisões e
acções humanas, as quais a mente divina, prevendo todas
as coisas sem erro ou falsidade, liga e obriga a um único
desenlace.
29 Uma vez aceite isto, toma-se patente quão grande
desabar das coisas humanas daqui resulta. 30 Em vão,
com efeito, são prometidos prémios aos bons e castigos
aos maus, coisa que nenhum movimento dos seus espí-
ritos mereceu livre e voluntariamente. 31 E aquilo que
agora é considerado a mais justa de todas as coisas, o facto
de os maus serem punidos e os bons recompensados, uma
vez que não é a vontade própria que os leva para uma
ou outra coisa, mas é a necessidade certa do futuro que
os coage. 32 Por conseguinte, nem os vícios nem as vir-
tudes terão qualquer significado, mas haverá antes uma
confusão misturada e inextricável de todos os méritos.
E isto é o mais blasfemo pensamento que se pode imagi-
nar, visto que toda a ordem das coisas decorre da Provi-
dência e nada é confiado às decisões humanas, acontece
que também os nossos vícios têm na sua origem o Autor
de todos os bens.
33 Portanto não há razão nenhuma nem para ter espe-
rança nem para fazer súplicas através da oração. Que
há-de, com efeito, esperar cada um ou até deprecar, se
uma cadeia inflexível determina todas as coisas que o
homem deseja? 34 Será assim suprimido o único trato
entre os homens e Deus, a saber, esperar e deprecar, se

178
merecermos a inestimável recompensa da graça divina
pelo preço da justa humildade, que é o único modo pelo
qual os homens parecem poder conversar com Deus
e unir-se àquela luz inacessível, mesmo antes de alcan-
çarem o que pedem, pelo próprio processo da súplica.
35 Se se julgar que estas coisas, uma vez aceite a necessi-
dade das coisas futuras, não têm poder algum, que coisa
haverá através da qual possamos unir-nos e ligar-nos
àquele sumo príncipe do mundo? 36 Por isso será inevi-
tável que o género humano, como há pouco cantavas,
definhe separado e isolado da sua fonte.

Metro 3

Que causa discordante quebra os pactos entre as coisas?


Que deus estabeleceu tamanhas guerras
entre estas com duas verdades,
que aquilo que isoladamente é cada coisa,
isso mesmo se recusa a ser submetido
misturado a um mesmo jugo?
Talvez não haja discórdia alguma
entre as coisas verdadeiras
e estas duas certezas estejam sempre ligadas entre si,
mas é a mente que, embaraçada pela cegueira do corpo,
não consegue, com o fogo de uma luz oprimida,
entender os subtis nexos das coisas?
Mas porque se inflama então com tão grande anseio
de encontrar os sinais ocultos da verdade?
Será que tem noção de que não entende
aquilo que ansiosamente procura?
Mas quem se esforça por saber coisas conhecidas?

179
E, se não entende,
porque continua a procurar cegamente?
Quem, com efeito, em estado de ignorância,
desejará seja o que for?
Ou quem será capaz de perseguir aquilo que não conhece?
Como o encontrará? Quem será capaz de reconhecer
a Forma quando a encontrar, se a ignora?
Porventura, quando contemplava a Mente profunda,
conhecia ao mesmo tempo a totalidade e cada coisa,
agora envolta na nuvem do corpo,
não se esqueceu completamente de si
e tem a noção da totalidade,
perdendo a compreensão de cada uma das coisas.
Portanto, quem procura as coisas verdadeiras
não tem nem uma nem outra condição:
na verdade nem conhece nem ignora tudo completamente,
mas, lembrando-se da totalidade, que retém,
recorre às coisas que viu no Alto, recordando-as,
para poder acrescentar as partes esquecidas
às partes lembradas.

Prosa 4

1 Então ela disse:


- É antiga esta discussão acerca da Providência e foi
grandemente debatida por Marco Túlio, quando estabe-
leceu os tipos de adivinhação 7 e além disso o assunto
foi longamente investigado por ti próprio, mas de modo

7
Cícero, De diuinatione, 2, 8 ss.

180
algum foi por algum de vós resolvido com suficiente dili-
gência e clareza. 2 A razão desta incerteza é o facto de a
acção do raciocínio humano ser incapaz de se aproximar
da simplicidade da presciência divina, cujo entendimento,
se de algum modo fosse possível, seria a única coisa capaz
de eliminar toda a incerteza. 3 Eu vou então tentar escla-
recer e resolver este assunto, começando por examinar
atentamente as coisas que te preocupam.
4 Pretendo, com efeito, saber por que razão consideras
menos pertinente aquele raciocínio dos que apresentam
soluções, segundo o qual, porque considera que a pres-
ciência não é causa da necessidade das coisas futuras, a
liberdade de arbítrio em nada é prejudicada pela pres-
ciência. 5 Com efeito, onde irás tu buscar o argumento
da necessidade das coisas futuras, senão ao facto de que
aquilo que é conhecido de antemão não pode não acon-
tecer? 6 Ora se o conhecimento prévio não aduz neces-
sidade alguma às coisas futuras, coisa que tu há pouco
admitias, por que razão a realização voluntária das coisas
está obrigada a uma realização predeterminada? 7 Com
efeito, por hipótese, para que te dês conta do que daí
resulta, suponhamos que não existe presciência nenhuma.
8 Então, nesta ordem de ideias, será que aquilo que resulta
do arbítrio está sujeito à necessidade?
- De modo nenhum.
9 - Suponhamos, por outro lado, que a presciência
existe, mas que não implica nenhuma necessidade de
que as coisas aconteçam: permanecerá, segundo creio, a
mesma liberdade de vontade, íntegra e absoluta. 10 Mas
a presciência, dirás, embora não seja a necessidade de que
aconteçam as coisas futuras é, contudo, um sinal de que

181
aquelas coisas irão acontecer necessaria mente. 11 Deste
modo, pois, ainda que não tivesse havido pré-cogni ção,
verificar-se-ia que as realizações das coisas futuras são
necessárias. Com efeito, todo o sinal mostra apenas o que
é, mas não dá origem àquilo que designa. 12 Por isso é
preciso demonstr ar primeiro que nada acontece senão por
necessida de, para que de modo algum se tome evidente
que a notícia prévia é sinal desta necessida de. De outro
modo, se esta não existe, também aquela, de facto, não
poderá ser sinal de uma coisa que não existe. 13 Ora, por
outro lado, sabe-se que a prova está dependen te de um
argument o firme, não a partir de sinais nem de argu-
mentos buscados exteriorm ente, mas antes que deve ser
concluída de causas plausíveis e necessária s.
14 Mas corno pode não acontecer aquilo que se sabe
previame nte que vai acontecer? Na verdade, é corno se
nós pensássem os que aquilo que a Providênc ia sabe que
vai acontecer não acontecerá, em vez de pensarmo s antes
que esses acontecim entos, embora sucedam, contudo não
têm pela sua própria natureza necessida de de aconte-
cerem. 15 Coisa que com o seguinte exemplo compreen -
derás facilmente . Nós vemos, com efeito, muitas coisas a
acontecer em diante dos nossos olhos, corno as que vemos
os aurigas fazerem, ao conduzir as quadrigas e a guiá-las,
e assim por diante. 16 Porventur a alguma necessida de
obriga a que alguma daquelas coisas aconteça corno
acontece?
- De modo nenhum. Em vão, com efeito, existiria o
efeito da técnica, se tudo se movesse de forma obrigatóri a.
17 - Então aquelas coisas, quando ocorrem, não têm
necessida de de acontecer, e antes de acontecer em tam-

182
bém não. 18 Existem, portanto, algumas coisas que irão
acontecer, cuja realização está, contudo, livre de toda a
necessidade. 19 Na verdade, acho que ninguém dirá que
aquilo que acontece agora, antes de acontecer não era algo
que iria acontecer. Ora também as coisas conhecidas de
antemão têm realizações livres. 20 Na verdade, tal como
o conhecimento das coisas presentes não implica a neces-
sidade para as coisas que acontecem, assim também a
presciência das coisas futuras não comporta necessidade
para as coisas que hão-de acontecer.
21 Mas, dizes tu, é discutível se poderá haver algum
conhecimento antecipado daquilo que não tem realização
necessária. 22 Com efeito, parece haver contradição: jul-
gas que alcançam necessidade se forem conhecidas ante-
cipadamente; se não houver necessidade, pensas que de
modo nenhum são conhecidas de antemão, pois nada
pode ser conhecido pela ciência senão aquilo que é certo.
23 Ora, se são previstas como certas aquelas coisas cuja
realização é incerta, tu pensas que isso é opinião vaga e
não verdade da ciência. Achas, com efeito, que se se julgar
que uma coisa é diferente daquilo que é na realidade nos
afastamos da certeza da ciência.
24 A causa deste erro é o facto de que tudo aquilo que
alguém conhece acha que é conhecido apenas pela força e
natureza daquilo que é conhecido. 25 Ora é exactamente
ao contrário. Tudo aquilo que é conhecido é percebido não
em função da sua essência, mas antes segundo a faculdade
daqueles que o conhecem. 26 Na verdade, para que isto
fique claro com um breve exemplo, o carácter redondo
de um corpo é conhecido de uma maneira pela visão e de
outra pelo tacto: aquela, mantendo-se à distância, vê a

183
totalidade de uma assentada, com um olhar; o tacto, por
seu lado, agarrando-se à superfície curva e movendo-se
em volta do seu perímetro, percebe a rotundidade por
partes.
27 Também o próprio homem é visto de maneiras
diferentes pelos sentidos, pela razão e pela inteligência.
28 Os sentidos, com efeito, avaliam a figura conforme é
constituída na matéria em que se apresenta; a imaginação,
por seu lado, avalia apenas a figura sem o elemento mate-
rial. 29 A razão, porém, transcende ainda esta, e avalia a
própria espécie que existe em cada coisa através da consi-
deração do que é universal. 30 O olhar da inteligência é
ainda superior. Na verdade, tendo passado para além da
esfera do universal, contempla a própria forma simples
com o olhar puro da mente.
31 Nisto é sobremaneira de ter em conta que a força
superior de compreensão abarca a inferior; a inferior,
porém, de maneira nenhuma se eleva ao nível da superior.
32 E, na verdade, nem os sentidos têm capacidade para
nada além da matéria nem a imaginação vê as espécies
universais nem a razão percebe as formas simples; mas
a inteligência, como que olhando lá do alto, concebida a
forma, avalia tudo o que existe, mas de um modo que com-
preende a própria forma, que não poderia ser percebida
por nenhuma outra forma de conhecimento. 33 Na ver-
dade, conhece não só o universal da razão, mas também a
figura da imaginação e a matéria sensível, não se servindo
nem da razão nem da imaginação nem dos sentidos, mas
vendo tudo diante de si ao nível da forma simples, para
me exprimir assim, graças unicamente à acção do espí-
rito. 34 Também a razão, quando vê algo universal, com-

184
preende as coisas imagináveis ou sensíveis sem se servir
da imaginação ou dos sentidos. 35 Esta é, com efeito,
aquela que define assim o carácter universal da sua con-
cepção: "o homem é um animal bípede racional". 36 Sendo
esta uma noção universal, também ninguém ignora que é
uma coisa imaginável e sensível, que a razão conhece não
pela imaginação ou pelos sentidos mas através de uma
concepção racional. 37 Também a imaginação, embora
tenha tomado a sua origem a partir dos sentidos de ver e
de formar figuras, apreende todas as coisas sensíveis sem
a ajuda da sensibilidade, através de um método de conhe-
cimento que não é sensorial mas imaginativo.
38 Vês então como, no processo de conhecimento,
todas estas coisas se servem mais das suas faculdades do
que das faculdades daquilo que é conhecido? 39 E tal não
acontece sem razão: na verdade, uma vez que todo o juízo
resulta do acto daquele que julga, é necessário que cada
um desempenhe a sua função não a partir de um poder
exterior, mas a partir do seu próprio poder.

Metro 4

Produziu outrora o Pórtico8


anciãos demasiado obscuros,
que achavam que as sensações e imagens
oriundas dos corpos se imprimiam nas mentes
do mesmo modo que se costuma escrever com ágil estilete

8 Monumento de Atenas situado perto da Ágora, onde se

reuniam os primeiros filósofos estóicos.

185
na página outrora lisa, sem qualquer traço,
a marca das letras.
Mas se a mente vigorosa
nada explica com os seus próprios movimentos,
mas está apenas reduzida a urna função passiva,
sofrendo as impressões dos corpos
e reflecte, corno um espelho,
imagens irnateriais das coisas,
então de onde vem aos espíritos
esta capacidade de tudo examinar?
Que força é esta que percebe cada urna das coisas
ou que analisa as coisas que conhece,
que reúne aquilo que analisou e,
fazendo um caminho alternado,
ora se imiscui nas coisas mais elevadas
ora desce às mais pequenas,
e tornando-se a si mesma corno critério,
refuta as coisas falsas com as verdadeiras?
Esta é, de longe, urna causa eficiente mais poderosa
do que aquela que apenas sofre as marcas impressas
da matéria.
As sensações, num corpo vivo,
vão, contudo, adiante, a mostrar o caminho,
convocando e pondo em movimento as forças do espírito
quer quando a luz atinge os olhos
quer quando o som chega aos ouvidos.
Então o vigor da mente, despertado,
chamando as formas que tem dentro de si
a movimentos semelhantes,
aplica-as às impressões exteriores
e voltando para o interior
mistura as imagens com as formas recônditas.

186
Prosa 5

1 - E se já o espírito, no acto da percepção dos


objectos, apesar de serem as qualidades apresentadas
exteriormente a impressionar os órgãos sensoriais e de ser
a experiência física, que chama a si a acção da mente e
desperta entretanto as formas que estão adormecidas no
interior desta, que antecede o vigor da acção do espírito,
se na percepção dos objectos, dizia eu, o espírito não é
condicionado pela experiência física que lhe é apresen-
tada, mas é a partir da sua própria capacidade que julga
a experiência do corpo, quanto mais as categorias de inte-
ligência que estejam isentas de todas as influências físicas
estão livres de estímulos exteriores no processo de conhe-
cimento, usando livremente, isso sim, do seu próprio
poder intelectual! 2 E foi assim, em função deste processo,
que surgiram múltiplas formas de conhecimento, a partir
da diversidade e das diferenças entre os seres. 3 Com
efeito, aos seres vivos que se não movem, como as con-
chas do mar e outros seres que se alimentam agarrando-se
às rochas, coube apenas a sensibilidade, privada de todas
as outras formas de conhecimento; a imaginação, por seu
turno, coube aos animais que se movimentam, nos quais
parece existir já alguma faculdade de desejar e de evitar.
4 A razão, porém, é específica e exclusiva do género
humano, tal como a inteligência o é do divino. Com o
que sucede que este tipo de conhecimento é superior ao
dos restantes seres, pois não só conhece pela sua natureza
aquilo que lhe é específico, mas conhece também aquilo
que é objecto dos outros tipos de conhecimento.

187
5 E então, se a sensibilidade e a imaginação puserem
em causa a acção da razão, negando o carácter universal
que a razão julga entrever? 6 Afirmam, com efeito, que
o que resulta da sensibilidade ou da imaginação não pode
ser universal, ou então que é verdadeiro o juízo da razão
e que não existe nada sensível, ou, visto que a maior parte
das coisas que a razão conhece está sujeita aos sentidos e à
imaginação, que não tem qualquer realidade a concepção
da razão, a qual considera o que é sensível e particular
corno algo universal. 7 Se a razão contrapusesse a isto que
ela, realmente, vê não só o que é sensível, mas também o
que é imaginável do ponto de vista do seu carácter uni-
versal, que aquelas coisas, na verdade, não podem aspirar
ao conhecimento da universalidade, porque o seu conhe-
cimento não pode ir além das formas corporais e que se
deveria acreditar antes, no que toca ao conhecimento das
coisas, num juízo mais firme e perfeito. Ora numa disputa
de tal ordem, corno poderíamos nós, que ternos não só a
capacidade de raciocinar mas também de imaginar e de
sentir, aprovar preferentemente a causa da razão?
8 Algo de semelhante sucede quando a razão humana
julga que a inteligência divina não é capaz de ver as
coisas futuras a não ser corno a própria razão as conhece.
9 Na verdade, é este o teu entendimento: se algo não tiver
de algum modo urna consumação certa e necessária, isso
não pode ser pré-conhecido com segurança. 10 Em rela-
ção a estas coisas, por conseguinte, não há presciência
nenhuma, a qual, se julgarmos que existe mesmo nestas
circunstâncias, não será nada mais do que o resultado da
necessidade. 11 Ora se nós pudéssemos ter a capacidade
de juízo da mente divina, do mesmo modo que somos

188
participantes do uso da razão, tal como julgámos que a
imaginação e a sensibilidade se deviam submeter ã razão,
assim também julgaríamos razoável que a razão humana
se submetesse ã mente divina. 12 Por isso, se o podemos
fazer, elevemo-nos até ao cume daquela suprema inte-
ligência: aí, com efeito, a razão verá aquilo que em si
mesma não é capaz de intuir, a saber, de que modo até
aquelas coisas certas que, não têm contudo realização
certa, são objecto de um conhecimento prévio, certo e pre-
ciso, e que isto não é opinião, mas antes a simplicidade
de uma ciência que não é condicionada por limitações de
espécie alguma.

Metro 5

Com quão grande variedade de formas


os animais percorrem as terras!
De facto, uns têm um corpo alongado e arrastam-se no pó,
marcando no solo um sulco contínuo
ao arrastarem-se esforçadamente,
outros têm a leveza errante das asas,
para fustigarem os ares
e atravessarem em voo os espaços do amplo céu;
outros ainda, deslocando-se a andar,
alegram-se ao imprimirem no solo
a marca dos seus passos,
seja para atravessarem verdes planícies
seja para se embrenharem nos bosques.
O facto de todos estes animais,
embora os vejas diferentes entre si

189
pela variedade das formas,
terem a face voltada para baixo
basta para lhes tomar embotados e pesados os sentidos.
Só a raça dos homens ergue mais alto a excelsa cabeça,
e, leve, ergue-se com o corpo direito
e olha de cima para as terras.
O que esta postura ensina, a não ser que,
como ser terreno, não percebas mesmo nada, é o seguinte:
Tu, que procuras o céu com o rosto levantado,
e ergues a fronte,
ergue também o teu espírito para o alto,
para que a mente, pesada,
não tenda para baixo, sendo inferior ao corpo
que se ergue com maior leveza para as alturas.

Prosa 6

1 - Ora, uma vez que, como pouco antes foi demons-


trado, tudo aquilo que é sabido é conhecido não a partir
da sua natureza, mas da natureza dos que o conhecem,
vejamos agora, quanto é humanamente possível, qual é
a natureza da substância divina, para podermos com-
preender também qual seja o seu tipo de conhecimento.
2 É juízo partilhado por todos os que cultivam a Razão
que Deus é eterno. 3 Consideremos agora que coisa seja a
eternidade: esta, com efeito, revela-nos ao mesmo tempo
a natureza de Deus e o seu conhecimento.
4 A eternidade é a perfeita possessão, total e em simul-
tâneo, da vida infinita, coisa que fica mais clara graças à
comparação com as coisas temporais. 5 Na verdade, tudo

190
o que vive no tempo, vive no presente, avançando do
passado para o futuro, e nada existe de estabelecido no
tempo de tal ordem que seja capaz d e abarcar ao mesmo
tempo todo o espaço da sua vida: de facto ainda não
apreende as coisas do dia seguinte e já perdeu, por outro
lado, as do dia anterior. E mesmo na vivência do pre-
sente não viveis mais do que naquele momento móvel e
transitório. 6 Ora tudo aquilo que está sujeito à condição
do tempo, mesmo aquilo que, conforme pensou Aristó-
teles acerca do mundo 9, não tenha começado a existir
num dado momento nem cesse de existir, e cuja vida se
prolongue pela infinitude do tempo, contudo ainda não
é de tal natureza que com razão se julgue que é eterno.
7 De facto não abarca ao mesmo tempo todo o espaço da
vida infinita, pois ainda não possui o futuro e já não tem
as coisas passadas. 8 Ora aquilo que simultaneamente
abarca e possui a plenitude da vida infinita, a que não
falte nada do futuro nem nada do passado tenha esca-
pado, isso considera-se com razão que é eterno, e é neces-
sário que isso não só esteja em plena posse de si, sempre
presente para si mesmo, mas tenha também presente a
infinitude do tempo móvel.
9 Daí que alguns, erradamente, quando ouvem dizer
que Platão achou que este mundo não teve início de
tempo nem terá fim 10, pensam que deste modo o mundo

9
Aristóteles, De Caelo, 283b, 26 ss.
10Boécio tem em mente uma interpretação corrente no seu
tempo de passagens platónicas como Politicus, 270A e Timaeu s,
28B.

191
criado se toma eterno juntamente com o seu Criador.
10 Uma coisa, com efeito, é viver uma vida infinita, coisa
que Platão atribui ao mundo, outra é abarcar ao mesmo
tempo toda a actualidade da vida infinita, o que é clara-
mente próprio da mente divina. 11 E não se deve pensar
que Deus é mais antigo do que as coisas criadas, devido
à extensão do tempo, mas antes que é anterior devido à
propriedad e da Sua natureza simples. 12 Com efeito, o
movimento infinito das coisas temporais imita o estado
actual da vida imóvel, e, por não ser capaz de o repro-
duzir e igualar, decai da imobilidade para o movimento,
da simplicidad e do actual reduz-se no sentido da quanti-
dade infinita do futuro e do passado, e embora não con-
siga possuir ao mesmo tempo toda a plenitude da sua
vida, pelo próprio facto de, de algum modo, nunca deixar
de existir, parece rivalizar até certo ponto com aquilo que
é incapaz de atingir ou mesmo de reproduzir, ligando-se
a uma qualquer actualidade deste instante exíguo e fugi-
tivo. Como esta actualidade tem alguma semelhança com
a actualidade que permanece, confere a tudo aquilo que
tocar uma aparência de ser. 13 Ora porque não foi capaz
de permanecer , lançou-se no percurso infinito do tempo,
e deste modo aconteceu que, movendo-se, prolongasse
a vida cuja plenitude não foi capaz de abraçar permane-
cendo. 14 E assim, se quisermos dar às coisas designações
adequadas, diremos, seguindo Platão, que Deus é real-
mente eterno, e que o mundo é perpétuo11 •

11
Timaeus 370. A distinção formal entre eternidade e perpe-
tuidade surge de facto apenas nos neoplatónico s gregos, talvez
comProclo.

192
15 Ora uma vez que todo o juízo compreende aquilo
que lhe é apresentado segundo a sua própria natureza, e
que Deus está sempre numa situação de eterno presente,
também o Seu conhecimento, tendo transcendido todo o
movimento do tempo, permanece na simplicidade da sua
actualidade. Abarcando os infinitos espaços do passado
e do futuro, tudo contempla na Sua cognição simples,
como se já estivesse a ser realizado. 16 E assim, se quiseres
avaliar a actualidade com que tudo conhece, avaliarás
mais correctamente que não é como que uma presciência
do futuro, mas um conhecimento de uma actualidade que
nunca passa. Daí que não é previdência, mas antes Provi-
dência que é preferível chamar-lhe, porque, estabelecida
muito longe das coisas mais baixas, vê tudo como que do
cimo do alto cume das coisas. 18 Então porque é que tu
exiges que se tomem necessárias as coisas que são ilumi-
nadas pela luz divina, visto que os homens também não
conferem carácter necessário àquilo que vêem existir?
19 Porventura será que a tua visão acrescenta alguma
necessidade àquelas coisas que vês presentes?
- De modo nenhum.
20 - E, se é que é possível fazer uma comparação ade-
quada entre a visão presente humana e divina, tal como
vós vedes as coisas no vosso presente transitório, é assim
que Ele tudo contempla no seu presente eterno, pois este
divino conhecimento prévio também não altera a natureza
e as características próprias das coisas, vê simplesmente
diante de Si as coisas futuras, tal como acontecerão um
dia no tempo. 22 E não confunde os juízos sobre as coisas:
com um só olhar da sua mente distingue tanto o que acon-
tecerá necessariamente como o que acontecerá não neces-

193
sariamente. Tal como vós quando vedes que um homem
caminha na terra e que o sol nasce no céu: embora vejais
ambas as coisas em simultâneo, considerais que uma é
voluntária e outra é necessária. 23 Contemplando deste
modo claramente todas as coisas, a visão divina em nada
perturba a qualidade das coisas presentes diante de si,
futuras do ponto de vista temporal. 24 Com o que sucede
que isto não é opinião, mas antes conhecimento apoiado
na verdade, quando conhece o que vai existir e não ignora
que parte disso carece de necessidade de existência.
25 E agora, se disseres que aquilo que Deus vê que
vai acontecer não pode deixar de acontecer, e, por outro
lado, que o que não pode não acontecer acontece por
necessidade, se me vinculares a esta palavra necessidade,
confessarei que é de facto algo de solidíssima verdade,
a que dificilmente alguém, excepto um contemplador
do divino, terá acesso. 26 Responderei, na verdade, que
o mesmo acontecimento futuro, quando se refere a um
conhecimento divino, é necessário; quando é avaliado
na sua natureza, mostra-se livre e absoluto. 27 São duas,
com efeito, as necessidades: uma é simples, como, por
exemplo, é necessário que todos os homens sejam mor-
tais; outra é relativa à condição, como, por exemplo, se
se sabe que alguém anda, é necessário que essa pessoa
ande. 28 Aquilo que cada um sabe, isso não pode ser de
outro modo senão aquele segundo o qual é conhecido.
Mas esta condição não traz de modo algum consigo a
necessidade simples. 29 Com efeito, não é a natureza
específica que cria esta necessidade, mas o acrescento
da condição. De facto, nenhuma necessidade obriga a
que avance aquele que avança por sua vontade, embora

194
seja necessário que aquele avance, à medida que anda.
30 Ora, do mesmo modo, se a Providência vê algo como
presente, é necessário que isso exista, embora não tenha
nenhuma necessidade própria à sua natureza. 31 E Deus
vê como coisas actuais as coisas futuras que resultam do
livre arbítrio. E assim, estas, relativamente à visão divina
tomam-se necessárias graças à condição do conhecimento
divino, mas consideradas por si não se eximem à absoluta
liberdade da sua natureza. 32 Acontecerão, portanto, sem
dúvida nenhuma, as coisas que Deus conhece de antemão
como futuras, mas destas, umas resultam do livre arbítrio,
as quais, embora aconteçam, contudo não perdem, pelo
facto de existirem, a sua natureza própria, de acordo com
a qual antes de serem realizadas também poderiam não
acontecer.
33 Mas, dirás tu, que interessa que não sejam necessá-
rias, se, por causa da condição do conhecimento divino,
acontecerão de qualquer modo, como se fossem necessá-
rias? 34 Por exemplo, aquelas duas situações que expus
há pouco, o sol que nasce e o homem que anda, que no
momento em que acontecem não podem não acontecer,
contudo destas coisas, uma antes de acontecer já era
também necessário que existisse, a outra não. 35 Assim
também aquelas coisas que Deus vê de forma actual exis-
tirão sem dúvida, mas delas umas resultam da necessi-
dade das coisas; outras do poder daqueles que as fazem.
36 É, portanto, com razão que dizemos que estas coisas, se
forem consideradas em si mesmas, estão livres dos liames
da necessidade. Assim acontece também com tudo o que
se oferece aos sentidos: se o referires à razão, é universal;
se o tomares em relação a si mesmo, é particular.

195
37 Mas se está na minha mão, dirás, mudar as minhas
intenções, então eliminarei a Providência, ao mudar aquilo
que ela eventualmente conhece de antemão. 38 Respon-
derei que tu, em boa verdade, podes mudar a tua inten-
ção, mas uma vez que a Providência com o seu conhe-
cimento infalível e actual não só sabe que o podes fazer
mas também se o fazes e para onde te orientas, dir-te-ei
que não podes escapar à presciência divina, tal como não
te será possível fugir à visão de um olho próximo de ti,
embora te orientes para uma ou outra acção, em função
da tua livre vontade.
39 E então? O conhecimento divino é alterado em
função da minha decisão, pois, pelo facto de agora querer
uma coisa e depois outra, o conhecimento divino é tam-
bém forçado a alterar-se. 40 Não é de todo assim. A visão
divina, de facto, antecipa toda a acção futura, e recondu-la
e enquadra-a na actualidade da cognição que lhe é pró-
pria; e não sofre alterações, como tu pensas, admitindo
alternativas de pré-conhecer ora isto ora aquilo, mas
prevê e abarca de uma assentada, mantendo-se igual,
as tuas mudanças. 41 Esta actualidade que tudo abarca
e vê decorre para Deus não do desenrolar das coisas
futuras, mas da Sua própria simplicidade. 42 A partir
daqui fica também resolvido o problema que há pouco
colocaste, de que seria indigno dizer-se que as coisas futu-
ras forneciam a causa do conhecimento divino. 43 Tal é
a força deste conhecimento, que tudo abarca de forma
actual, estabelecendo ele mesmo uma forma de existir
para todas as coisas, sem depender das acções que virão
a ter lugar.

196
44 Assim sendo, permanece intacta a liberdade de
arbítrio dos mortais, e não são injustas as leis que pro-
põem recompensas ou castigos às nossas vontades, que
estão isentas de toda a necessidade. 45 Deus, que tudo
sabe de antemão, permanece também como espectador
lá do alto, e a eternidade sempre actual da sua visão con-
corre com a natureza futura dos nossos actos, dispensando
recompensas aos bons e castigos aos maus. 46 E não é em
vão que colocamos as nossa esperanças em Deus ou Lhe
fazemos preces, que, quando são rectas, não deixam de
ser eficazes.
47 Afastai, por conseguinte, os vícios, cultivai as vir-
tudes, erguei o vosso espírito para as esperanças rectas,
levantai humildes preces às alturas. 48 A única grande
necessidade que realmente vos é imposta é a de uma vida
recta, isto se não quiserdes fazer de conta de que não estais
cientes da realidade, pois as vossas acções estão diante do
olhar de um juiz que tudo vê.

197
ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS

Abundância, 50. Circo, 53.


Académicos, 20. Ciro, 49.
Albino, 29. Coningusto, 28.
Alcibíades, 97. Coro, 23, 151.
Anaxágoras, 24. Creso, 49.
Anteu, 166. Decorato, 87.
Antonino Caracala, 91. Deus, 28, 34, 41, 50, 55, 94, 106,
Aqueloo, 166. 107, 108, 110, 119, 120, 121,
Aquilão 39, 54. 122, 127, 153, 157, 158, 161,
Arcturo 36, 151 . 175, 176, 177, 178, 179, 190,
Aristóteles, 97, 170, 191. 192, 193, 195, 196, 197.
Atenienses, 37. Eleatas, 20.
Atreu, 166. Epicuro, 80.
Austro 43, 54, 59. Epicuristas, 24.
Baco, 40, 64. Estóicos, 24.
Basílio, 30. Etna, 65.
Boieiro, 151. Eufrates, 172.
Bóreas, 23, 36. Euripo, 47.
Bruto, 74. Eurípides, 95.
Busíris, 66. Euro, 140.
Caco, 167. Eurídice, 124.
Camenas, 17. Evandro, 167.
Campânia, 29. Fabrfcio, 74.
Câncer, 39. Fado, 152, 153, 154, 155, 161, 162.
Cânio, 25. Febe, 151, 161.
Cartagineses, 66. Febo, 35, 39, 54, 69, 76, 83, 94,
Catão, 74, 157. 111, 117, 129, 174.
Catulo, 86. Filosofia, 24, 127.
Cáucaso, 71. Fortuna, 34, 46, 47, 48, 50, 51,
Centauros, 166. 53, 56, 57, 58, 60, 61, 62, 75,
Cérbero, 166. 80, 159, 163, 164, 165, 172.
Ceres, 39, 78, 141. Frígia, 166.
Cícero (Marco Túlio), 71 . Gaio César (Calígula), 31.
Cipriano, 29. Gaudêncio, 30.

199
Germânico, 31. Polifemo +, 166.
Gigantes, 121. Pórtico, 185.
Hércules, 66, 166. Providência, 152, 153, 154, 155,
Hermo, 111. 156, 157, 158, 159, 160, 161,
Héspero, 76. 162, 171, 173, 175, 176, 177,
Hidra, 152, 166. 178, 180, 182, 193, 195, 196.
Homero, 174. Ptolomeu, 70.
Índia 92. Ravena, 30.
Indo, 111. Régulo, 66.
ÍXion, 124. Rochas Aquenénias, 172.
Júpiter, 50. Roma, 71 .
Líbia, 167. Séneca, 25, 91 .
Lucano, 157. Sereias, 20.
Lúcifer, 35, 78, 162. Seres, 64.
Lídios, 49. Símaco,55.
Linceu, 97. Sírio, 36.
Lua, 94. Sócrates, 24, 31.
Mar Trrreno, 97. Sol, 140, 161.
Mar Vermelho, 86. Sorano, 25.
Mármara, 140. Tântalo, 124.
Musa(s), 20, 118. Tártaro, 124.
Nerito, 140. Tejo, 111.
Nero, 69, 89, 91. Tenário, 124.
Nónio, 86. Tonante, 161.
Noto, 69, 78. Tfcio, 124.
Oceano, 161. Tigre, 172.
Opilião, 30. Trrésias, 177.
Orfeu, 124. Trrgila, 28.
Oriente, 69. Trro, 64.
Papiniano, 91 . Triões, 69.
Parménides, 123. Tule, 92.
Partos, 71. Ulisses, 166.
Paulino, 29. Ursa, 151.
Paulo Emílio, 49. Verona, 32.
Perseu, 49. Vésper, 35, 161.
Pitágoras, 34. Vesúvio, 26.
Platão, 24, 28, 118, 136, 191, Zenão, 25.
192. Zéfiro, 36, 54.

200
ÍNDICE GERAL

INTRODUÇÃO ............................................................. 7

LIVRO I ......................................................................... 17

LIVRO 11............. ............................................................ 45

LIVRO III ...... ..... ... ... .. ...... ............. .. .... ... ... ...... .. ....... ...... 77

LIVRO IV....................................................................... 127

LIVRO V......................................................................... 169

ÍNDICE DE NOMES PRÓPRIOS ............................. 199

201 _
Esta 2." edi ção de CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA,
de Boécio,
fo i impressa e encadernada para
a Fundação Calouste Gulbenkian,
na Gráfica ACD Print, S.A.
www.acdprint.pt

A tiragem é de 500 exemplares

Fevereiro de 20 16

Depósito Lega l n.º 404 O16/16


ISB 978-972-3 1-1405-8
EDIÇÕES DA FUNDAÇÃO
CALOUSTE GULBENKIAN

TEXTOS CLÁSSICOS
Próxima publicação:
Princfpios de Política Econ6mica
Walter Eucken

CULTURA PORTUGUESA
Próxima publicação:
Obra Selecta do Padre Luís Arcber, S.].
VoL II

MANUAIS UNNERSITÁRIOS
Próxima publicação:
Critica do Direito do Trabalho
AlainSupiot
EDIÇÕES
DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

TEXTOS CLÁSSICOS - As raízes da cultura estão naquelas obras chamadas clás-


sicas, obras cuja mensagem se não esgotou e permanecem fontes vivas do progresso
humano. Por isso a Fundação, ao esquematizar o seu Plano de Edições, julgou que
seria indispensável colocar ao alcance do público lusófono livros que marcassem mo-
mentos decisivos na história dos vários sectores da civilização. Da ciência pura à tec-
nologia, da quantidade abstracta ao humanismo concreto, procurar-se-á que os
depoimentos mais representativos figurem nesta nova série editorial. Para dificultar
ao mínino o acesso do leitor, todas as obras serão vertidas em português e apresen-
tadas com a dignidade e a segurança que naturalmente lhes são devidas. Integrando
na língua pátria estes grandes nomes estrangeiros, supomos contribuir para uma mais
perfeita consciência da própria cultura nacional, cujos clássicos terão também o lugar
que lhes compete no Plano de Edições da Fundação Calouste Gulbenkian.
ANÍCIO TORQUATO SEVERINO BOÉCIO (480-524 d. C.) é uma das figuras mais
fascinantes da história da cultura ocidental. Pertence à mais alta aristocracia, nascido
que foi na família dos Anícios, cristãos desde o século IV. Boécio recebeu a melhor edu-
cação possível no seu tempo, dedicando-se ao saber numa primeira fase da sua vida, que
depois procurou pôr ao serviço do bem comum, seguindo os preceitos de Platão, dedi-
cando-se à política, em que teve uma ascensão fulminante: cônsul em 51 O d. C., com
cerca de trinta anos, alcançou o cargo de magister officiorum, lugar de topo na corte do
rei Teodorico. Vítima de intrigas palacianas, Boécio é acusado de traição e cai em des-
graça em 523, precisamente quando estava no auge da sua riqueza e poder. Encarcerado
em Pavia, escreve a sua obra mais célebre, a Consolatio, imaginando que lhe aparece a
Filosofia personificada, com a qual dialoga, procedendo a uma indagação racional das
questões fundamentais e perenes da condição humana, na sua busca de felicidade e de
compreensão do mundo. Foi executado de forma brutal nos últimos meses de 524.
Homem de extraordinária cultura, traduziu e comentou a Introdução às Categorias de
Aristóteles de Porfirio, traduziu as quatro obras lógicas que constituem o Organon aris-
totélico e escreveu comentários sobre duas delas, escreveu um comentário sobre os
Topica de Cícero e cinco ensaios sobre Lógica de sua autoria, influenciando profunda-
mente o estudo medieval da Lógica. Teve ainda um papel importante no que diz respeito
ao saber científico, menos cultivado em Roma que na Grécia, tendo escrito vários tra-
tados científicos, nomeadamente o De Arithmetica e o De Musica. Este último, em par-
ticular, alcançou a dimensão de uma verdadeira bíblia da teoria musical europeia. Estes
conhecimentos científicos de origem grega que Boécio se propôs passar para a língua
latina constituem aquilo que a universidade medieval conhecerá como Quadriuium, os
quatro caminhos para a sabedoria (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia), de-
signação criada por Boécio no prólogo da sua Aritmética, e a que, por analogia, se acres-
centará o Trívio (Gramática, Retórica e Dialéctica).
LUÍS MANUEL GASPAR CERQUEIRA nasceu em Lisboa em 1962. Licenciou-se na
Faculdade de Letras de Lisboa, onde fez o mestrado sobre o De Musica de Boécio e onde
se doutorou em Literatura Latina em 2000, com uma tese sobre A música especulativa
na tradição hispânica medieval. Realizou paralelamente uma formação musical no Con-
servatório Nacional e na Escola Superior de Música de Lisboa, na área do órgão. É Pro-
fessor Auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa, instituição em que tem leccionado
Latim, Literatura Latina, Cultura Medieval, Música e Literatura. Colabora também com
a Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, instituição em que tem
leccionado Latim. As suas publicações incidem sobretudo nas áreas da épica latina, da
musicologia antiga e medieval e das relações entre a música e a literatura.

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