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RENÉ DESCARTES
DISCURSO DO MÉTODO
'*
MEDITACOES
*
OBJECOES E RESPOSTAS
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AS.PAIXOES DA ALMA
CARTAS
Introdução de GILLES-GASTONi GRANG ER;
Prefácio e notas de GÉRARD LEBRUN;
Tradução de J. GUINSBURG e BENTO PRADO JÚNIOR.
PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
NOTA SO:JJRE A EDIÇAÕ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
WTRODUÇAÕ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
DISCURSO DO MÉTODO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
MEDITAÇOES ............... ; . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
ÜBJEÇOES E RESPOSTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
As PAIXO-ES DA ALMA· . . . . . . ." . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
CARTAS . . . . . . . ; . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . 307
ÍNDICE .......................•.......................... 341
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PREFÁCIO.
O leitor encontrará aqui uma coletânea dos mais célebres textos filosóficos
de Descartes. Textos ''filosóficos': isto é, consagrados como tais pela tradição.
Os responsáveis pela edição, quanto a eles, pensariam de bom grado que o méto-
do cartesiano para obter as tangentes às curvas ou o tratado das máquinas sim-
ples ou a explicação do arco-íris ou ainda "a descrição do corpo humano" apre-
sentam tanto interesse ''filosófiqo" quanto os textos mais conhecidos, aqui
publicados. Não se tratava, seguramente, de incluir nesta edição tantos textos
"científicos" (aliás, muitas vezes mais úteis à história das ciências do que às pró-
prias ciências); mas tentou-se, na medida do possível, restituir este Descartes
integral, traído por comentários parciais, e que um trabalho, como o de Gué-
roult, nos ensinou a descobrir.
Isto porque Descartes foi injustamente tratado pela história, muitas vezes,
mesmo quando ela o celebrava. Compare-se, por exemplo, a sua reputação à de
Pascal: não é o bom senso oposto ao gênio, o pensamento claro ao pensamento
fulgurante? Nisso, sem dúvida, não se realça exageradamente este; mas deprecia-
se sorrateiramente aquele. Mas se, cansados das idéias recebidas (''filósofo do
Cogito", "todo francês é cartesiano'), ousamos enfim abordar os próprios textos,
veremos os clichês se desfazerem em pó e a verdadeira originali'dade do autor
aparecer na mesma medida. Este "livre-pensador" é na realidade um católico
convicto; este "progressista" não fala do iefznito se.não ''para se lhe submeter':·
este "idealista" se ocupa. muito mais, em toda a sua correspondência, de Dióp-
trica e da construção de lunetas do que do Cogito; este ''pai dafilosofiafrance-
sa" despreza os "doutos':· os leitores que ele almeja são os profanos em Filosofia
e até em Matemática, "de preferência aos que hajam aprendido segundo o méto-
do ordinário': e os programas de nossas classes de Filosofia, dispostos segundo
a ordem das matérias, fá-lo-iam dar de ombros. Que o leiam - ou melhor, que
o deixem falar - e seus julgamentos temerários, sua tranqiiila presunção acaba-
rão espantando-nos e até escandalizando-nos. É então que começaremos talvez a
compreendê-lo. Voltará a ser para nós este gentil-homem despreocupado com as
usanças universitárias, este algebrista orgulhoso de sua Geometria e conte~
com que os seus pares nada compreendam dela, desdenhoso dos conceitos esco-
lares de seu tempo, ingenuamente seguro de passar à posteridade. "Este cavaleiro
francês que partiu a um passo tão bom': dizia Péguy ...
Tomando assim os textos ao pé da letra, aprendendo a lê-los sem anteparo,
vemos surgir, tanto quanto uma Filosofia inimitável, o solitário severo P. apai.xo-
8 ,PREFÁCIO
.~
nado que lhe é inseparável. O livro de Guéroult, por exemplo, nos faz
compreender melhor não só a ordenação rigorosa dos conceitos cartesianos
como o retrato de Franz Haals. Ao mesmo tempo que o sistema de l)escartes
adquire toda a sua envergadura, o homem reencontra o seu exato lugar: não em
um ''pensamento francês" mítico, entre Pasteur e Victor Hugo, mas na época de
Luís XIII e de Richelieu. Com isso, a França nada perde; a Filosofia e Descartes
ganham.
Isso para justificar o método de leitura que propomos aqui: estrita atenção
ao sentido das palavras e à articulação das ''razões". Escolar na aparência,, este
método, cremos nós, é o único capaz de fazer justiça à lenda de um Descartes
"escolar". Se o leitor não envidar tal esforço, estes textos ser-lhe-ão inúteis, por-
quanto procurará neles apenas cQnfirmação dos ''prejuízos da tradição "(D4car-
tes alinhá-los-ia, sem dúvida ·entre os da "infância'}. Semelhante afirmação, à
frente de um livro sobre Descartes, pareceria a justo título presunçosa. À frente
de um livro de Descartes, constitui apenas um apelo à modéstia: não o julguemos
de cima, a partir do que pensamos saber sobre ele; leiamo-.lo e releiamo-lo como
ele próprio recomendava. Então, não o "julgaremos" mais e teremos talvez
probabilidades de compreender este autor dificil. Alain observava: "É um
homem terrível para se tomar como mestre. Seu olho parece dizer: Mais um que
se vai enganar".
Descartes merece, não viver numa lenda, por mais benevolente que seja,
mas obter leitores "que examinem curiosamente minhas razões". Não que ainda
se possa ser cartesiano, na acepção em que o eram Bossuet ou Mme de Sévigné.
Mas este pensamento ainda é capaz de nos prestar serviços: afastando os obstá-
culos que nos impedem de entendê-lo bem, estabelecemos por aí mes_mo nossas
distâncias em relação às ideologias que, .hoje em dia, nos solicitam. Hegelia-
. nismo, fenomenologia, existencialismo, todo "este rio de mil canais da Filosofia
moderna", tem sua cabeceira, nos diz Guéroult, "no pequeno livro denso e .lacô-
nico das Meditações''. Por isso vale a pena, ao menos uma vez, ler Descartes'
' '
esquecendo que ele teve sucessores, deixando de vê-lo apenas como um pré-hus-
serliano ou pré-sartriano. Depois, quem sabe? Ao voltar para estes, vê-los-emas
antes como pós-cartesianos e a inteligência de suas obras terá lucrado com isso:
saberemos melhor situá-las. Eis o maior beneficio que cabe esperar de Descartes:
que ele nos leve ao dépaysement e nos ensi~ a considerar sob outra luz os auto-
res modernos que nos são familiares. Quando um pensador é capaz, a três sécu-
los de distância, de nos forçar a estes reexames, de que serve dizer que é "ge-
nial"? Amemo-lo ou não, ele nos é indispensável.
GÉRARD LEBRUN
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1.1. Propor ao homem de nosso tempo .que leia ou releia Descartes exige
algumas palavras de explicação. Os filósofos, certamente, não deixam, nem dei-
xarão, .t ão cedo, de interrogá-lo, de solicitá-Jo, de tomá-lo como testemunha.
Mas, para o homem de bem, qu~ pretende apenas um conhecimento geral das
grandes obras do espírito humano, de que vale. o trabalho de ir um pouco além
das fórmulas e das citações sempiternas? O espírito, quando não a letra, do pen-
samento cartesiano já não penetrou suficientemente nossas rrianeiras modernas
de pensar, sendo o rest9 justamente apenas resíduo? É preciso responder sim e
não a este elogio mitigado da grandeza cartesiana. Embora seja verdade que mui~
tos temas que foram outrora conquistas do filósofo francês são hoje lugares-
comuns universais, embora seja verdade, em contrapartida, que o conjunto da
filosofia de Descartes não poderia satisfazer validamente a todas as exigências
da maioria de nossos contemporâneos, não é menos justo ver no sistema do filó-
sofo, tomado como tal, um dos monumentos mais dignos de atenta visita. Nin-
guém gostari~, .talvez, de habitar as vastas salas de Versalhes; ao menos é lícito
compartilhar, em demorando-se nelas, do sentimento com que alguns homens,
cujo estado de alma compreendemos, souberam comprazer-se; e mesmo aí enten-
demos o sentido -das soluções válidas e definitivas que nelas foram dadas a pro-
blemas que nossa arquitetura formula - e portanto resolve - de outra maneira.
É assim, acreditamos, que se deveria ler nosso autor. Não que seja proveitoso
percorrer-lhe os textos como se faz às salas de um museu, e à maneira de um
divertimento. Ele próprío nos adverte de que não e'screve, de modo algum, para
aqueles que lerem suas Meditações "apenas como um romance, para se desente-
diar"1. Tanto mais que não se trata aqui de propor uma coletânea de peças esco-
lhidas, da qual fariam parte apenas morceaux de bravoure. Trata-se antes, sem
dúvida, de fornecer um ponto de vista a partir do qual se descubra uma região
suficientementé extensa, ainda que muitos de seus rincões permaneçam escondi-
dos. Paisagem "de fazer sonhar os maiores palradores", se é permitido tomar
aqui a Descartes uma das raras .flores de seu estilo. Mas é ainda necessário ir
além. Não é nada, ou quase nad~, abranger com o olhar este vasto conjunto: o
que é necessário aqui é compreender, isto é, caminhar ao longo das veredas cuja
trama é tão cerrada que a desatenção de um instante nos extravia. Múltiplas
vezes Descartes adverte seu leitor - nas Respostas às Objeções e nas Cartas:
1.2. Levada ao seu mais agudo grau de exatidão, até o ponto extremo da·
atenção e do discernimento, por um pensamento afeito às delicadezas da análise,
uma tal leitura explicativa de um texto só pode ser coisa de um historiador da
filosofia, na medida em que se revela, ele próprio, um filósofo. Guéroult nos deu,
quanto às Meditações, um modelo admirável. Não se poderia exigir o mesmo do
simples leitor homem de be11'J-. Ao menos, cada um pode convencer-se de que este
ideal de compreensão escrupulosa deve servir-lhe de oriente. Mas se tal é efetiva-
mente a condição de proveitosa leitura das obras filosóficas - e singularmente
de Descartes - , seria restringir-lhe estranhamente o beneficio o ignorar a.neces-
sidade de outra espécie de leitura. Uma vez assegurado o esforço de compreensão
leal, pode e deve desenvolver-se livremente uma reflexão que discuta o texto para
relacioná-lo, de um lado, às circunstâncias históricas que lhe infundem sua relati-
vidade e, de outro, aos termos atuais dos problemas que ele coloca. Tanto seria
injusto ·e vão querer compreender Descartes regendo-o e repreendendo-o em
nome de uma mentalidade que lhe é estranha, quanto seria contrário à admiração
verdadeira que dedicamos a seu gênio recusar, após ex;aminar para nós, homens
do século XX, o conteúdo válido de sua doutrina e de seu método. Compreendê-
lo inicialmente, sem preconceitos, tal· como ele próprio· se exprimiu; meditar, em
seguida, sobre aquilo que nos toca em sua filosofia. Tais são as duas vias ~ue
propomos ao leitor, e as páginas que se seguem oferecem-se-lhe apenas cohio
guia, sem qualquer ambição de acrescentar novo ensaio aos dos seus·
comentadores. 1
2 Por necessidade do texto, usamos sempre "prejuízo" para traduzir préjugé, no se.ntido de pré-
juízo, preconceito. (N. dos T.)
14 INTRODUÇÃO
1
INTRODUÇÃO 15
afortiori todas as perfeições que conheço. É preciso pois que seja de um ser per-
feito, e esta perfeição exclui a hipótese de um Deus enganador.
Assim, fica estabelecida a objetividade de nossas ipéias e, mesmo, aparente-
mente, a constante certeza do conteúdo delas. '
D. O que faz com que, por uma ·inversão dos termos do problema metafi-
sico, trate-se agora de explicar a possibilidade do erro:. sendo Deus onipotente e
veraz, como pode ocorrer, entretanto, que nos engane.m os? É que o erro não é
absolutamente algo real, que dependa de Deus, mas apenas uma carência em
mim que estende o poder de meu livre arbítrio para além de meu entendimento.
Minha vontade, ou poder de julgar, é livre e infinita;: eu me engano quando a
estendo às coisas que não entendo. Assim, o erro tem o:nada por princípio meta-
fisico ·_ o que justifica Deus desta carência que me é própria - e a liberdade
por princípio psicológico, que é em mim, ao contr~i, uma infinita perfeição.
E. Minhas razões de duvidar são pois explicadas e, ao mesmo tempo, supe-
radas. · A dúvida "metafisica" figurada pelo Gênio Maligno é afastada, assim
como a dúvida hiperbólica referente às essências materriáticas. E da certeza obje-
tiva das idéias claras e distintas - como são as idé~s matemáticas - posso
extrair ainda uma prova da existência de Deus. Pois na ,idéia de um Deus perfeito
percebo a existência. A real'idade objetiva que lhe corresponde é portanto um ser
existente. Esta prova estabelece a necessidade da exist~pca de Deus, mas não é
válida para mim, a não ser, é certo, que eu já tenha estabelecido por outra via o
princípio da objetividade das idéias claras e distintas que, por sua vez, d~pen
da existência de Deus. São as duas provas anteriores independentes que a toma-
ram indubitável. Não há círculo aqui, mas concurso.
Resta esclarecer este aspecto de minha dúvida hiperbólica que concernia às
coisas materiais e se baseava na obscuridade e na confusão das idéias sensíveis.
Sem o que, uma ciência bem fundamentada da natureza corpórea não poderia
estender-se para além das demonstrações dos geômetras, "que não se preocupam
com sua existência"..
F. Ora, posso estar certo de que o corpo e a alma - ou seja, aquilo que
pensa - são realmente distintos, posto que posso concebê-los clara e distinta-
mente como separados, e de que a onipotência de Deus pode, por conseguinte,
separá-los. De outro lado, Deus me ·dá, por intermédio do sentimento, que é em
mim uma certa faculdade passiva de conhecer as coisas sensíveis, a idéia de cor-
pos existentes. Não poderia enganar-me nisto, a não ser que me desse ao mesmo
tempo a faculdade de conhecer a causa verdadeira, eminente 4 , dessas idéias;
mas, ao contrário, ele me inclina fortemente a acreditar que essas idéias provêm
das coisaf) corporais: é preciso, pois, confessar que existem.
Tudo o que nelas vejo de claro e distinto é somente de natureza geométrica,
enquanto meus sentidos me fornecem apenas uma idéia confusa e obscura de
suas qualidades. Esta experiência do sentimento revela-me que minha alma, em-
bora essencialmente distinta de meu corpo, é estreitamente "confundida e mistu-
r~da" com ele. Esta união da alma com o corpo permanece incompreensível para
meu entendimento, mas o que me parece possível não é de modo algum um limite
das possibilidades de um Deus infinito, que tudo pode, salvo aquilo que for
contraditório à sua própria essência. Incompreensível é, pois, minha natureza, na
4
. Quer dizer: cuja realidade não seja formalmente aquela que me é dada na idéia que tenho dela.
16 INTRODUÇÃO .1
"
medida em que sou composto de alma e de corpo; mas ela comporta em si
mesma com que subsistir, e Deus proveu-a exatamente da perfeição que lhe con-
vém e à qual ela pode pretender, dando-nos sempre o meio de retificar, pelo
entendimento, os inevitáveis erros de nossos sentidos que nos fornecem não ima-
gens, mas signos das realidades materiais e de nossas necessidades.
1
sua Física das Mat~máics puras, "às quais (ele) almeja mais do que tudo que
ela se assemelhe" (Respostas às Quintas Objeções) e declarar-se "aborrecido"
com os problemas matemáticos: pois estes são apenas um meio e a ocasião de
um exercício.
Matemáticas e Método
3 .4. A Física cartesiana é a explicação das coisas deste mundo; ela deve ao
mesmo tempo desmascarar as ilusões ocasionais de nossos sentidos e explicá-las,
ou seja, ela desenvolve por ordem todas as conseqüências da distinção entre a
alma e o corpo. Neste sentido, ela se opõe radicalmente à Física da Escola, cuja
6
Regra VIII. Cf. sobre este tema o penetrante estudo de J. Vuillemin, in Mathématiquies et
Métaphysique chez Descartes, Paris, .1960. . . ·1
INTRODUÇÃO 19
7
Há aí, como se sabe, duas dificuldades que a mecânica de Leibniz e a de Newton trarão à
plena luz. De um lado, não é a simples extensão que intervém nas leis do movimento, mas a
massa, propriedade dinâmica da matéria. De outro, não se pode dissociar a grandeza das veloci-
dades de sua direção: é preciso figurá-las como grandezas vetoriais, e não como grandezas esca-
lares. Por outro lado, a definição estritamente relativista do movimento, ligada a um ponto de
referência local, não é de modo algun;i clara se examinarmos suas conseqüências, pois parece
então que a quantidade de movimento em um sistema perde toda a significação. Mas a discussão
dessa dificuldade de interpretação do mecanismo cartesiano nos arrastaria demasiado longe.
20 INTRODUÇÃO
se encontra um "mais fraco", perde tanto movimento quanto imprime ao outro ti.
A partir destes princípios estabelece-se a Mecânica cartesiana, que se reduz,
como se vê, a uma teoria da comunicação dos movimentos, ou seja, do· choque
dos corpos. Toda a Física deverá, pois, apresentar-se como uma tentativa
heróica de deduzir daí a diversidade dos fenômenos.
O Homem
3.8. Como quer que seja para nós este malogro, Descartes não lhe foi sensí-
vel; acreditou possuir uma explicação dos fenômenos verdadeiramente convin-
cente para um espírito atento e não preconceituoso. E neste universo o homem
tem seu lugar., eminente, já que participa a um tempo do reinado da extensão,
onde tudo é mecanismo, e do reinado do pensamento, que o introduz na moral e
na religião. Mas depende ainda de uni terceiro reinado, que é o da união entre a
alma e o corpo. Daí o caráter inteiramente singular da antropologia cartesiana,
que· se divide necessariamente em três registros bem distintos.
Enquanto corpo. orgânico, o honiem é animal, o que quer dizer que convém
descrevê-lo como uma máquina, mais complexa certamente que os outros siste-
mas materiais, e que tudo quanto ocorre nesta máquina deve ser fisicamente
explicado. 9 começo do Tratado do Homem expõe claramente este postulado.
Imaginaremos, diz o Autor, homens em tudo a nós semelhantes, mas considera-
remos, inicialmente, neles apenas uma máquina sem alma, sendo esta, como se
sabe, realmente distinta do corpo. Contrariamente à iiiterpretação escolástica do
aristotelismo, para a qual toda organização é· alma, Descartes pretende explicar
a fisiologia animal a partir da circulação, no corpo, das diferentes modalidades
da matéria. Os espíritos animais nada mais são do que as partes mais tênues do
sangue que passam do coração ao cérebro, e a seguir do cérebro aos músculos,
que eles movem à maneira de nossos comandos hidráulicos. O próprio sangue
provém de uma filtragem das partes dos alimentos que o calor do coração irá
destilar. Na Descrição do Corpo Humano, seguida do Tratado da Formação do
22 INTRODUÇÃO
1 0
Assim, Descartes tem a idéia nítida do reflexo, e mesmo do reflexo condicionado. (Cf. Cartas,
a Mersenne, de 18 de março de 1630, sobre o cão fustigado ao som do violino ... ) Acerca desse
ponto, poder-se-á consultar o livro de Canguilhem: La Formation de la Théorie du Réflele au
XVIJeet XVIIIe Siecle, Paris, 1955. 1
INTRODUÇÃO 23
como desta união entre a alm~ e o corpo não seria possível obter uma idéia clara
e distinta, e como seria. necessário raGiocinar precisamente sobre noções obscu-
ras e confusas, a empresa culmina em malogro reconhecido. Descartes nos devol-
ve, ao fim de contas, à obediência à nossa natureza, que "conhece bem melhor
(seu estado) do que um médico, que só vê o exterior".(Colóquio com Burman.)
É renunciar a uma medicina científica.
11 Cf., sobre toda esta questão, Descartes Selon l'Ordre des Raisons, II, caps. XIX e XX, e tam-
bém: Lívio Teixeira, Ensaio.sobre a Moral de Descartes, caps. IX e X. ·
24 INTRODUÇÃO
Contradições da Solidão
Filosofia e Ideologia
4.5. Pouco importa que René Descartes tenha si1::l9, ele próprio, em muitos
aspectos, um.homem sinceramente ligado à religião e ;à ordem social tradicional.
(Seria absurdo descrevê-lo como revolucionário disfa,trçado, que mascarasse sua
incredulidade sob uma piedade simulada e seu radicalismo político sob um apa-
r:ente respeito pelos poderes.) O que conta é a introdm;ão, em seu sistema, de ele-
mentos que vão objetivamente no sentido ae uma ihéia nova do homem e da
natureza. Desligados do contexto rigorosamente enc;adeado em que aparecem,
1
tomar-se-ão as idéias-forças de uma conc.epção getal :a.o mundo sumária mas efi-
caz, posto que diretamente imbriCada em poderosos n~ovimets que dominam a
sociedade dos dois séculos vindouros. Existe realmen;te, neste sentido, uma ideo-
logia cartesiana. :
O primeiro tema seria o da latcização do sabeJ'. ''Concebi uma filosofia",
diz ele a Burman, "de maneira que pudesse ser recebida em todo lugar, mesmo
entre os turcos, sem ofender a ninguém." A universal1~d que a ideologia medie-
val queria obter pela catolicidade da fé cristã, Di~scarte pensa encontrá-la
mediante o apelo ao "bom senso". Tal deslocamento;: qo centro de gravidade do
pensamento concorda manifestamente com a substitl:tição, por relações de troca
em uma sociedade capitalista, das relações de evang<~lzção e comunhão numa
sociedade de tipo medieval. 1
1
·
i
O segundo tema seria o da causalidade. Este prihcípio já pertencia, é certo,
ao racionalismo escolástico; mas Descartes, estabeh\cida a existência de Deus,
interpreta-o num sentido mecanicista, cuja assimilaçã1p há de orientar todo o pen-
samento pragmático do futuro. Produzir efeitos pondo em ação causas adequa-
i
das, tal é o leitmotiv profundo do home·m pós-cartesiano. Por mais que o dissi-
mulemos sob interpretações mágico-rituais, ou éticas :e religiosas, o mito nunca é
mais que uma manifestação de sua má-fé. Descart~\ anuncia o advento de um
mundo positivo e duro, mas que é também aquele em !tiue o homem proclama seu
reinado sobre as potências da natureza. 1·
verso de máquinas, tal é a idéia cartesiana. O sentido !que ela reveste no Filósofo,
e a repercussão renovada que pode ter em nós, homens do século XX, não deve
nos encobrir o acordo elementar e, querendo-se, mistificador que ela pôde espon-
1
1:
!
28 INTRODUÇÃO
necessítasse e de resto impedir que seu lazer lhe fosse arrebatado pela importuni-
dade de pessoa alguma ... " l
O estabelecimento das verdades da ciência é, para Descartes, obra de um
só. É que a ~treia concatenação das razões que se "encadeiam" exige, segundo
ele, que o mêsmo espírito percorra o conjunto de seu 'sistema. O tempo da ciên-
. eia, também, seria um tempo descontínuo, devendo cada um refazer por conta
própria o caminho já percorrido. Um individualismo tão radical, ainda que seja
perfeitamente coerente com a visão cartesiana das coisas,,será aceitável para
nós? Com ele está posta em causa a relação entre o coletivo e o individual. A
ética cartesiana, como doutrina da individuação da máquina corporal, por uma
alma que lhe dá sua finalidade, não nos colocará o mesmo problema? O gene-
roso se recusa a situar a sabedoria ao nível da ordem social; o que ele pede à
organização coletiva são apenas as comodidades "que só se encontram nas gran-
des cidades" (Cartaspa Balzac, de 5 de maio de 1631), e, acima de tudo, a paz.
'semelhante posição, que ainda hoje corresponde a certa concepção da vida pelo
intelectual, nos leva a refletir sobre a antinomia do pensador solitário, empenha-
do, entretanto, em uma empresa cuja parada é a ventura da humanidade.
GILLES-GASTON GRANGER
1 . .·
DISCURSO DO MÉTODO
1 O primeiro título em que pensou o autor era: "Projeto de uma Ciência universal que possa ele-
var a nossa natureza ao seu mais alto grau de perfeição. Mais os Meteoros, a Dióptrica e a Geo-
metria, onde as mais curiosas matérias que o autor pôde escolher para dar prova da ciência uni-
versal que ele propõe são tratadas de tal modo que mesmo aqueles que não estudaram podem
entendê-las". Não se deve esquecer que a obra constitui apenas uma Introdução, que perde muito
de seu sentido quando separada dos três ensaios que ela antecede.
- . .=.:.._
Advertência
Se este discurso parecer demasiado longo para ser lido de uma só vez,
poder-se-á dividi-lo em seis partes. E, na primeira, encontrar-se-ão diversas
considerações atinentes às ciências. Na segunda, as principais regras do método
que o Autor buscou. Na terceira, algumas das regras da Moral que tirou desse
método. Na quarta, as razões pelas quais prova a existência de Deus e da alma
humana, que são os fundamentos de sua metafisica. Na quinta, a ordem das
questões de Física que investigou, e, particularmente, a explicação do movimento
do coração e algumas outras diflculdades que concernem à Medicina, e depois
também a diferença que há entre nossa alma e a dos animais. E, na última, que
coisas crê .necessárias para ir mais adiante do que foi na pesquisa da natureza e
que razões:o levaram a escrever.
me·
('-
PRIMEIRA PARTE
O bom sense é a coisa do mundo nos torna homens e nos distingue dos
melhor partilhada, pois cada qual animais, quero crer que existe inteira-
pensa estar tão bem provido dele, que mente em cada um, e seguir nisso a
mesmo os que são mais difíceis de con- opinião comum dos filósofos, que
tentar em qualquer outra coisa não dizem não haver mais nem menos
costumam desejar tê-lo mais do que o senão entre os acidentes, e não entre as
têm. E não é verossímil que todos se formas ou naturezas dos indivíduos de
enganem a tal respeito; mas isso antes uma mesma espécie 2 •
testemunha que o poder de bem julgar Mas não temerei dizer que penso ter
e distinguir o verdadeiro do falso, que tido muitá felicidade de me haver
é propriamente o que se denomina o encontrado, desde a juventude, em cer-
bom senso ou a razão, é naturalmente tos caminhos, que me conduziram a
igual em todos os homens·; e, destarte, considerações e máximas, de que for-
que a diversidade de nossas opiniões mei um método, pelo qual me parece
não provém do fato de serem uns mais que eu tenha meio de aumentar gra-
racionais do que outros, mas somente dualmente meu conhecimento, e de
de conduzirmos nossos pensamentos alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto
por vias diversas e não considerarmos ponto, a que a mediocridade de meu
as mesmas coisas. Pois não é suficiente espírito e a curta duração de minha
ter o espírito bom, o principal é apli- vida lhe permitam atingir 3 . Pois já
cá-lo bem. As maiores almas são capa- colhi dele tais frutos que, embora no
zes dos maiores vícios, tanto quanto juízo que faço de mim próprio eu pro-
das maiores virtudes, e os que só cure pender mais para o lado da
andam muito lentamente podem avan- desconfiança do que para o da presun-
çar muito mais, se seguirem sempre o ção, e que, mirando com um olhar de
caminho reto, do que aqueles que cor- filósofo as diversas ações e empreendi-
rem e dele se distanciam. mentos de todos os homens, não haja
Quanto a mim, jamais presumi que quase nenhum que não me pareça vão
meu espírito fosse em nada mais per- e inútil, não deixo de obter extrema
feito do que os do comum; amiúde
desejei mesmo ter o pensamento tão
2
É acidente o que pertence a um ser sem per-
tencer à sua essência. - "Os filósofos" desig-
rápido, ou a imaginação tão nítida e nam, como sempre em Descartes, os escolás-
distinta, ou a memória tão ampla ou ticos.
tão presente, quanto alguns outros. E 3
Cf. a definição de sabedoria (assimilada à
não sei de quaisquer outras qualidades, ciência) no Prefácio dos Princípios: "O per-
feito conhecimento de todas as coisas que o
exceto as que servem à perfeição do homem pode saber, tanto para a conduta da
espírito; pois, quanto à razão ou ao vida quanto para a conservação da saúde e a
senso, posto que é a única coisa que invenção de todas as artes".
38 DESCARTES
gos, quando são a nosso favor. Mas ser recebido na classe dos doutos,
estimaria muito mostrar, neste discur- mudei inteiramente de opinião. Pois
so, . quais os caminhos que segui, e me achava enleado em tantas dúvidas
representar nele a minha vida como e erros, que me parecia não haver obti- ~
num quadro, para que cada qual possa do outro proveito, procurando ins-
julgá-la e que, informado pelo comen- truir-me, senão o de ter descoberto
tário geral das. opiniões emitidas a res- cada vez mais a minha ignorância. E,
peito dela, s.ej a este um novo meio de no entanto, estivera numa das mais cé-
me instruir, que juntarei àqueles de que lebres escolas da Europa 6 , onde pensa-
costumo me utilizar. . va que deviam existir homens sapien-
Assim, o meu desígnio não é ensinar tes, se é que existiam em algum lugar
aqui o método que cada qual deve se- da Terra. Aprendera aí tudo o que os
guir para bem conduzir sua razão, mas outros aprendiam, e mesmo, não me
apenas mostrar de que m.aneira me tendo contentado com as ciências que
esforcei por conduzir a minha. Os que nos ensinavam, percorrera todos os li-
se metem a dar preceitos devem consi- vros que tratam daquelas que são
derar-se mais hábeis do que aqueles a consideradas as mais curiosas e as.
quem 9s dão; e, se falham na menor mais raras,. que vieram a cair em mi-
coisa, são por isso censuráveis. Mas, nhas mãos. Além disso, eu conhecia os
não propondo este escrito senão como juízos que os outros faziam de mim; e
uma história, ou, se o preferirdes, não via de modo algum que me julgas-
como uma fábula, na qual, entre al- sem inferior a meus condiscípulos, em-
bora entre eles houvesse alglin.s já des-
4 Os "homens puramente homens" são ho- tinados a preencher os lugares de
mens considerados ao nível da exclusiva "luz nossos mestres. E, enfim, o nosso sécu-
natural", abstraindo-se qualquer ~sitênca lo parecia-me tão florescente e tão fér-
que Deus possa proporcionar-lhes. E doutrina
constante em Descartes que o filósofo deva
deixar ao teólogo toda investigação do sobre- 5
Isto é: a Gramática, a Iíístória, a Poesia, a
natural: "Para o filósofo, basta considerar o Retórica.
homem na medida em que, nas coisas naturais, 6
O colégio dos jesuítas de La Fleche, funda-
só depende de si; e eu, de meu lado, escrevi do em 1604, onde Descartes entrou em 1606.
minha filosofia de modo que possa ser rece- Descartes nunca depreciou La Fleche, ,como
bida em toda parte, mesmo entre os turcos, e pretende a lenda, permanecendo sempre em
que eu não cause escândalo a ninguém". (QoJ. bons termos com seus mestres. Assim, d exce-
com Burman, A.T. VI. 550.) "Não devemos lência do ensin; em La Fleche só acusa n'i.elhor
submeter a teologia a raciocínios." ainda a insuficiência da tradição cultural!
!
DISCURSO DO MÉTODO 39
til em bons espíritos como qualquer quase o mesmo que o conversar com
dos precedentes. O que me levava a os de outros séculos, é o viajar. É bom
tomar a liberdade de julgar por mim saber algo dos costumes de diversos
todos os outros e de pensar que não povos, a fim de que julguemos os nos-
existia doutrina no mundo que fosse tal sos mais sãmente e não pensemos que
como dantes me haviam feito esperar. tudo quanto é contra os nossos modos
Não deixava, todavia, de estimar os é ridículo e contrário à razão, como
exercícios com os quais se ocupam nas soem proceder os que nada viram.
escolas. Sabia que as línguas que nelas Mas, quando empregamos demasiado
se aprendem são necessárias ao enten- tempo em viajar, acabamos tomando-
dimento dos livros antigos; que a gen- nos estrangeiros em nossa própria
tileza das fábulas desperta o espírito; terra; e quando somos demasiado
que as ações memoráveis das histórias curiosos das coisas que se praticavam
o alevantam, e que, sendo lidas com nos séculos passados, ficamos ordina-
discrição, ajudam a formar o juízo; riamente muito ignorantes das que se
que a leitura de todos os bons livros é praticam no presente. Além do mais,
qual uma conversação com as pessoas as fábulas fazem imaginar como possí-
mais qualificadas dos séculos passa- veis muitos eventos que não o são, e
dos, que foram seus autores, e até uma mesmo as histórias mais fiéis, se não
· conversação premeditada, na qual eles mudam nem alteram o valor das coisas
nos revelam tão-somente os melhores para tomá-las mais dignas de serem
de seus f>ensamentos; que a eloqüência lidas, ao menos omitem quase sempre
tem forças e belezas incomparáveis; as circunstâncias mais baixas e menos
que a poesia tem delicadezas e doçuras ilustres, de onde resulta que o resto
muito encantadoras; que as Matemá- não parece tal qual é, e que aqueles que
ticas têm invenções muito sutis, e que regulam os seus costumes pelos exem-
podem servir muito, tanto para conten- plos que deles tiram estão sujeitos a
tar os curiosos, quanto para facilitar cair nas extravagâncias dos paladinos
todas as artes e diminuir o trabalho de nossos romances e a conceber
dos homens; que os escritos que tratam desígnios que ultrapassam suas for-
dos costumes contêm muitos ensina- ças 7 •
mentos e muitas exortações à virtude Eu apreciava muito a eloqüência e
que são muito úteis; que a Teologia en- estava enamorado da poesia; mas pen-
sina a ganhar o céu; que a Filosofia dá sava que uma e outra eram dons do
meio de falar com verossimilhança de espírito, mais do que frutos do estudo.
todas as coisas e de se fazer admirar Aqueles cujo raciocínio é mais vigo-
pelos menos eruditos; que a Jurispru- roso e que melhor digerem 8 seus
dência, a Medicina e as outras ciências pensamentos, a fim de tomá-los claros
trazem honras e riquezas àqueles que e inteligíveis, podem sempre persuadir
as cultivam; e, enfim, que é bom tê-las melhor os outros daquilo que pro-
examinado a todas, mesmo as mais
supersticiosas e as mais falsas, a fim de 7 Descartes dirá que as línguas, a Geografia,
conhecer-lhes o justo valor e evitar ser a História, são adquiridas "sem nenhum dis-
·por elas enganado. curso de razão": elas recorrem apenas à
memória, jamais à razão. Essa distinção entre
Mas eu acreditava já ter dedicado as "ciências racionais" e "históricas" é funda-
bastante tempo às línguas, e mesmo mental nos Clássicos; será mantida por Kant.
também à leitura dos livros antigos, às 8 Digerem: ordenam, segundo o sentido pri-
suas histórias e às suas fábulas. Pois mitivo do latim digerere, cf. Littré.
40 DESCARTES
põem, ainda que falem apenas baixo pretendia, como qualquer outr~ ga-
bretão 9 e jamais tenham aprendido nhar o cêu; mas, tendo aprendido,
retórica. E aqueles cujas invenções são como coisa muito .s~gura, que o seu
mais agradáveis e que as sabem expri- ca.minho não está menos aberto aos
mir com o máximo de ornamento e do- mais ignorantes do que aos mais dou-
çura não deixariam de ser os melhores tos e que as verdades reveladas que
poetas, ainda que a arte poética lhes para lá conduzem estão acima de
fosse desconhecida 1 0 • nossa inteligência, não ousaria su bme- 1
SEGUNDA PARTE
moes de mui diversas pessoas, não se vez para sempre, a retirar-lhes essa
acham, de modo algum, tão próximas confiança, a fim de substituí-las em
da verdade quanto os simples raciocí- seguida ou por outras melhores, ou
nios que um. homem de bom senso então pelas mesmas, depois de tê-las
pode efetuar naturalmente· com· res- ajustado ao nível da razão. E acreditei
peito· às coisas que se lhe apresentam: firmemente que, por este meio, lograria
E assim ainda, pensei que, como todos conduzir minha vida muito melhor do
nós fomos crianças antes de sermos que se a edificasse apenas sobre velhos
homens, e como nos foi preciso por fundamentos, e me apoiasse tão-so-
muito tempo sermos governados por mente sobre princípios de que me dei-
nossos apetites e nossos preceptores, xara persuadir em minha juventude,
que eram amiúde contrários uns aos sem ter jamais examinado se eram
outros, e que, nem uns nem outros, verdadeiros. Pois, embora notasse
nem sempre, talvez nos aconselhassem nesta tarefa diversas dificuldades, não
o melhor, é quase impossível que nos- eram todavia irremediáveis, nem com-
sos juízos sejam tão puros ou tão sóli- paráveis às que se encontram na refor-
dos como seriam, se tivéssemos o uso m~ g~s ip.~_nge s;qia~ p.tmentes ao
inteiro de nossa razão desde o nasci- público. Esses grandes corpos são
mento e se não tivéssemos. ,.sido guia- demasiado difíceis de reerguer quando
dos senão por ela 1 8 • abatidos, ou mesmo de suster quando
É certo que não vemos em parte al- abalados, e suas quedas não podem
guma lançarem-se por terra todas as deixar de ser muito rudes. Pois, quanto
casas de uma cidade, com o exclusivo ·às suas imperfeições, se as têm, como a
propósito de refazê-las de outra manei- mera diversidade existente entre eles
ra, e de tomar assim suas ruas mais basta para assegurar que as têm nume-
belas; mas vê-se na realidade que mui- · rosas, o uso sem dúvida as suavizou, e
tos derrubam as suas para reconstruí- mesmo evitou e corrigiu insensivel-
las, sendo mesmo algumas vezes obri- mente um grande número às quais não
gados a fazê-lo, quando elas correm o se poderia tão bem remediar por
perigo ·de cair por si próprias, por seus prudência. E, enfim, são quase sempre
alicerces não estarem muito firmes. A mais suportáveis do que o seria a sua
exemplo disso, persuadi-me de que mudança; da mesma forma que os
verdadeiramente não seria razoável grandes caminhos, que volteiam entre
que um particular intentasse reformar montanhas, se tornam pouco a pouco
um Estado, mudando-o em tudo desde tão batidos e tão cômodos, à força de
os fundamentos e derrubando-o para serem freqüentados, que é bem melhor
reerguê-lo; nem tampouco reformar o segui-los do que tentar ir mais reto,
corpo das ciências ou a ordem estabe- escalando por cima dos rochedos e
lecida nas escolas para ensiná-las; mas descendo até o fundo dos precipícios.
que, no tocante a todas as opiniões que Eis por que não poderia de forma al-
até então acolhera em meu crédito, o guma aprovar esses temperamentos
melhor a fazer seria dispor-me, de uma perturbadores e inquietos que, não
sendo chamados, nem pelo nasci-
1 8 Desprezo pela erudição livresca, oposição
mento, nem pela fortuna, ao manejo
da razão à história, da evidência conquistada
dos negócios públicos, não deixam de
por nós mesmos ao "preconceito" herdado da neles praticar sempre, em idéia, algu-
tradição, estes leitmotiv cartesianos em parte ma nova reforma. E se eu pensasse
alguma se acham melhor concentrados. haver neste escrito a menor coisa que
44 DESCARTES
pudesse tomar-me suspeito de tal lou- Colégio, que nada se poderia imaginar
cura, ficaria muitó pesaroso de ter tão estranho e tão pouco crível que
aceito publicá-lo. Nunca o meu intento algum dos filósofos já não houvesse
foi além de procurar reformar meus dito; e depois, ao vi~j ar, tendo reco-
próprios pensamentos, e construir num nhecido que todos os que possuem
· terreno que é todo meu. De modo que, sentimentos muito contrários aos nos-
se, tendo minha obra me agradado bas- sos nem por isso são bárbaros ou sel-
tante, eu vos mostro aqui o seu mode- vagens, mas que m-q.itos usam, tanto ou
lo, nem por isso quero aconselhar mais do que nós, a razão; e, tendo
alguém a imitá-lo. Aqueles a quem. considerado o quanto um mesmo
Deus melhor partilhou suas graças homem, com o seu mesmo espírito,
alimentarão talvez desígnios mais ele- sendo criado desde a inf'ancia entre
vados; mas temo bastante que já este franceses ou alemães, toma-se . dife-
seja ousado demais para muitos. A rente do que seria se vivesse s~mpre
simples resolução de se desfazer de entre chineses ou canibais; e como,. até
todas as opiniões a que se. deu antes nas modas de nossos trajes, a mesma
crédito não é um exemplo que cada coisa que nos agradou há dez anos, e
qual deva seguir; e o mundo compõe- que talvez nos agrade ainda antes de
se quase tão-somente de duas espécies decorridos outros dez, nos parece
de espíritos, aos quais ele não convém agora extravagante e ridícula, de sorte
de modo algum. A saber, daqueles que, que são bem mais o costume e o exem-
crendo-se mais hábeis do que são~ não plo que nos persuadem do que qual-
podem impedir-se de precipitar seus quer conhecimento certo e que, não
juízos, nem ter suficiente paciência obstante, a pluralidade das vozes não é
para conduzir por ordem todos os seus prova que valha algo para as verdades
pensamentos: daí resulta que, se hou- - um pouco difíceis de descobrir, por ser
vessem tomado uma vez a liberdade de bem mais verossímil que um só homem
duvidar dos princípios que aceitaram e as tenha encontrado do que todo um
de se apartar do caminho comum, povo: eu não podia escolher ninguém
nunca poderiam ater-se à senda que é cujas opiniões me parecessem dever
preciso tomar para ir mais direito, e ser preferidas às de outrem, e achava-
permaneceriam extraviados d~rante me como que compelido a tentar eu
toda a vida; depois, daqueles que, próprio conduzir-me.
tendo bastante razão, ou modéstia, Mas, como um homem que caminha
para julgar que são menos capazes de só e nas trevas, resolvi ir tão lenta-
distinguir o verdadeiro do falso do que mente, e usar de tanta circunspecção
alguns outros, pelos quais podem ser em todas as coisas, que, mesmo se
instruídos, devem antes contentar-se avançasse muito pouco, evitaria pelo
em seguir as opiniões desses outros, do menos cair. Não quis de modo algum
que procurar por si próprios outras começar rejeitando inteiramente qual-
melhores. quer das opiniões que porventura se
E, quanto a mim, estaria sem dúvida insinuaram outrora em minh'a confian-
no número destes últimos, se eu tivesse ça, sem que aí fossem introduzidas
tido um único mestre, ou se nada sou- pela razão, antes de despender. bas-
besse das diferenças havidas em todos tante tempo em elaborar o projeto da
os tempos entre as opiniões dos mais obra·que ia empreender, e em pro~ua
doutos. Mas, tendo aprendido, desde o o verdadeiro método para chegar ao
1
bISCURSO DO MÉTODO 45
conhecimento de todas as coisas de gras e certas cifras, que se fez dela uma
que meu espírito fosse capaz 1 9 • arte confusa e obscura que embaraça o
Eu estudara um pouco, sendo mais espírito, em lugar de uma ciência que o
jovem, entre as partes da Filosofia, a cultiva'. Por esta causa, pensei ser mis-
Lógica, e, entre as Matemáticas, a ter procurar algum outro método que,
Análise dos geômetras 20 e a Álgebra, compreendendo as vantagens desses
três artes ou ciências que pareciam três, fôsse isento de seus defeitos. E,
dever contribuir com algo para o meu como a multidão de leis fornece amiú-
desígnio. Mas, examinando-as, notei de escusas aos vícios, de modo que um
que, quanto à Lógica, os seus silogis- Estado é bem melhor dirigido quando,
mos e, &·maior parte de seus outros pre-
ceito{ sei-vem mais para explicar a ou- tendo embora muito· poucas, são estri-
tamente cumpridas; assim, em vez
, lrerh ás coisas que já se sabem, ou
desse grande número de preceitos de
mesmo, como a arte de Lúlio, para
que se compõe a Lógica, julguei que
falar, sem julgamento, daquelas que se
ignoram, do que para aprendê-las. E me bastariam os quatro seguintes 2 1 ,
embora ela contenha, com efeito, uma desde que tomasse a firme e constante
porção de preceitos muito verdadeiros resolução de não deixar uma só vez de
e muito bons, há todavia tantos outros observá-los.
misturados de permeio que são ou O primeiro era o de jamais acolher
nocivos, ou supérfluos, qu~ é quase tão alguma coisa como verdadeira que eu
difícil separá-los quanto tirar uma não conhecesse evidentemente como
Diana ou uma Mmerva de um bloco de tal; isto é, de evitar cuidadosamente a
mármore que nem sequer está esbóça- precipitação e a prevenção 22, e de
do. Depois, com respeito à Análise dos nada incluir em meus juízos que não se
Antigos e à Álgebra dos modernos, apresentasse tão clara e tão distinta-
além de se estenderem apenas a maté- mente2 3 a meu espírito, que eu não
rias muito· abstratas, e de não parece- tivesse nenhuma ocasião de pô-10 em
rem de nenhum uso, a primeira perma- dúvida.
nece sempre tão adstrita à O segundo, o de dividir cada umâ
consideração das figuras, que não pode
exercitar o entendimento sem fatigar 2 1 Leibniz foi o primeiro a zombar da banali-
muito a imaginação; e esteve-se de tal dade deste método. E é verdade que o Método
está contido mais nas Regulae do que nessa
forma sujeito, na segunda, a certas re- apresentação esotérica. Não obstante, a leitura
da Geometria - o único dos três ensaios que,
1 9 Houve, portanto, um intervalo entre as segundo o Autor, prova a validade do Método
reflexões de novembro de 1619 e a elaboração - mostra o quanto esta banalidade é aparen-
do método. Aliás, este não resulta daquelas, te. Separadas desta referência, compreendidas
porém bem mais dos trabalhos matemáticos como preceito:'! gerais, as regras seriam, na
em curso (construção, por meio de uma pará- verdade, pouco proveitosas: é o que se esquece
bola, de todos os problemas dos sólidos do ter- com demasiada freqüência.
22 A "precipitação" cohsiste em julgar antes
ceiro e quarto graus).
2
º A Análise designa aqui o método que con- de se ter chegado à evidência, e a "prevenção",
siste em supor conhecida a linha desconhecida, na persistência dos "prejuízos da infância".
23 Cf. Prtndpios, I, 45: "Denomino claro o
em estabelecer as relações que a ligam ·a gran-
dezas conhecidas, até que se possa construí-la que é presente e manifesto a um espírito aten-
a partir destas relações. Entre os Antigos, esse to . . . e distinto o que é de tal modo preciso e
método (válido para outros domínios, além da diferente de todos os outros, que compreende
Geometria) se apresenta sob a forma geomé- em si apenas o que parece manifestamente a
trica. quem o considere como se deve".
46 DESCARTES
para deduzi-las umas das outras, não mais examinar somente estas propor-
pode haver quaisquer tão afastadas a ções em geral3 1 , e supondo-as apenas
que não se chegue por fim, nem tão nos suportes que servissem para me
ocultas que não se descubram. E não tornar o seu conhecimento mais fácil;
me foi muito penoso procurar por ·mesmo assim, sem restringi-las de
quais devia começar, pois já sabia que forma nenhuma a tais suportes, a fim
havia de ser pelas mais simples e pelas de poder aplicá-las tão melhor, em
mais fáceis de conhecer; e, conside- seguida, a todos ·os outros objetos a
rando que, entre todos os que prece- que conviessem. Depois, tendo notado
dentemente buscaram a verdade nas que, para conhecê-las, teria algumas
ciências, só os matemáticos puderam vezes necessidade de considerá-las
encontrar algumas demonstrações, isto cada qual em particular, e outras vezes
é, algumas razões certas e evidentes, somente de reter, ou de compreender,
:qão duvidei de modo algum que não várias em conjunto, pensei que, para
fosse pelas mesmas que eles examina- melhor considerá-las em particular,
ram 2 9 ; embora não esperasse disso devia supô-las em linhas 3 2 , porquanto
nenhuma outra utilidade, exceto a de não encontraria nada mais simples,
que acostumariam o meu espírito a se nem que pudesse representar mais
alimentar de verdades e a não se con- distintamente à minha imaginação e
tentar com falsas razões. Mas não foi aos meus sentidos 3 3 ; mas que, para
meu intuito, para tanto, procurar
. Trata-se, portanto, da mathesis universalis,
31
aprender todas essas ciências particu-
"ciência inteiramente nova pela qual poderão
lares que se chamam comumente mate- ser resolvidos todos os problemas relativos a
máticas 3 °; e, vendo que, embora seus qual gênero de quantidade, contínua ou discre-
objetos sejam diferentes, não deixam ta" (A. T. X, 156) e primeiro fruto do método.
de concordar todas, pelo fato de não Na verdade, o método foi concebido com vis-
conferirem nesses objetos senão as tas a ela. Sobre esta interpenetração da mathe-
sis e do método, cf. Regulae, quarta regra. Não
diversas ações ou proporções que se trata aqui, de modo algum, da Geometria
neles se encontram, pensei que valia "analítica", como às vezes se pretende falsa-
mente.
2 9 Acrescente-se para a claridade do texto: 32
"Lineis recti&", dl.z o texto latino. A linha
"que era preciso começar" . . . ,. . -- Cf. Cal. com reta é escolhida como figuração universal da
Burman: "A Matemática acostuma o espírito a grandeza porque ela é o suporte mais flexível
reconhecer a verdade, porque sempre encon- para a teoria das proporções (pode representar
tramos nela raciocínios rigorosos que não um produto, um quociente, uma raiz, bem
encontraríamos alhures. Em conseqüência, como uma soma ou uma diferença), mas tam-
uma vez afeito o espírito aos raciocínios mate- bém porque permite evitar o incomensurável.
máticos, tê-lo~ems tornado também próprio à O fato de as letras algébricas representarem li-
pesquisa de outras verdades, posto que em nhas e não números (e, em geral, a descon-
toda parte há somente uma e mesma forma de fiança de Descartes para com a aritmética)
raciocinar". (A. T. VI, 550-51.) atesta o que Belaval denomina, em Leibniz
3 0
Alusão à div~ão escolástica das Matemá- Critique Descartes, "a limitação da Álgebra
ticas: Matemáticas Puras (Geometria, Aritmé- pela Geometria". Descartes libertou-se do rea-
tica) e Mistas (Astronomia, Música, Óptica). lismo intuitivo dos gregos (por exemplo, colo-
O que interessa a Descartes é o denominador cando que o resultado de todo cálculo sobre
comum dessas ciências (a ordem e a medida), quantidades figuradas por grandezas retilíneas
ao passo que os Escolásticos desejavam sepa- corresponde, por sua vez, a uma grandeza reti-
rá-las com respeito a seus objetos. Particulari- línea), mas foi só pela metade.
zação que impedia de distinguir, como faz 33
Indispensável ao entendimento em Mate-
Descartes, esta "Matemática comum", que re- mática, a imaginação (a consideração das figu-
quer apenas memória, e "a ciência matemá- ras) não é, entretanto, senão uma auxiliar. Cf.
- tica, que não é bebida nos livros". Regulae, regra catorze.
48 DESCARTES
1
1
DISCURSO DO MÉTODO 49
que se me apresentassem, pois isso atingir uma idade bem mais madura do
mesmo seria contrário à ordem que ele que a dos vinte e três anos que eu então
prescreve. Mas, tendo notado que os contava e antes de ter despendido
seus princípios deviam ser todos toma- muito tempo em preparar-me para
dos à Filosofia, na qual não encon- isso, tanto desenraizando de meu espí-
trava ainda quaisquer que fossem cer- rito todas as más opiniões que nele
tos, pensei que seria mister, antes de acolhera até essa época como acumu-
tudo, procurar ali estabelecê-los; e que, lando muitas experiências, para servi-
sendo isso a coisa mais importante do rem -em seguida de matéria a meus
mundo, e onde a precipitação e apre- raciocínios, e exercitando-me sempre
venção eram mais de recear, não devia no método que me prescrevera, a fim
empreender sua realização antes de de me firmar nele cada vez mais.
TERCEIRA PARTE
crê nela, amiúde uma se apresenta sem xasse talvez de sê-lo, ou quando eu ces-
a outra 3 9 • E, entre várias opiniões sasse de considerá-la como tal.
igualmente aceites, escolhia apenas as Minha segunda máxima consistia
mais moderadas: tanto porque são em ser o mais firme e o mais resoiuto
sempre as mais cômodas para a práti- possível em minhas ações, e em nã0 se-
ca, e verossimilmente 4 0 as melhores, guir menos constantemente do que se
pois todo excesso costuma ser mau, fossem muito seguras as opiniões mais
como também a fim de me desviar duvidosas, sempre que eu me tivf sse
menos do verdadeiro caminho, caso eu decidido a tanto 42 • Imitando niss0 os
falhasse, do que, tendo escolhido um viajantes que, vendo-se extraviJdos
dos extremos, fosse o outro o que deve- nalguma floresta, não devem errar vol-
ria ter seguido. E, particularmente, teando, ora para um lado, ora para
colocava entre os excessos todas as outro, nem menos ainda deter-se r'rnm
promessas pelas quais se cerceia em sítio, mas caminhar sempre o mais reto
algo a própria liberdade 4 1 • Não que possível para um mesmo lado, e não
desaprovasse as leis que, para reme- mudá-lo por fracas razões, ainda que
diar a inconstância dos espíritos fra- no começo só o acaso talvez haja
cos, permitem, quando se alimenta determinado a sua escolha: pois, por
algum bom propósito, ou mesmo, para este meio, se não vão exatamente
a segurança do comércio, algum desíg- aonde desejam, pelo menos chegarão
nio que seja apenas indiferente, que se no fim a alguma parte, onde verossi-
façam votos ou contratos que o bri- milmente estarão melhor que no meio
guem a perseverar nele; mas porque de uma floresta. E, assim como as
não via no mundo nada que permane- ações da vida não suportam às vezes
cesse sempre no mesmo estado, e por- qualquer delonga, é uma verdade
que, no meu caso particular, como pro- muito certa que, quando não está em
metia a mim mesmo aperfeiçoar cada nosso poder o discernir as opiniões
mais verdadeiras, devemos seguir as
vez mais os meus juízos, e de modo mais prováveis; e mesmo, ainda que
algum tomá-los piores, pensaria come- não notemos em umas mais pro babili-
ter grande falta contra o bom senso, se, dades do que em outras, devemos, não
pelo fato de ter aprovado então alguma obstante, decidir-nos por algumas e
coisa, me sentisse obrigado a tomá-la considerá-las depois não mais como
como boa ainda depois, quando dei- duvidosas, na medida em que se rela-
cionam com a prática, mas como
3 9
Existe uma diferença entre um juízo e o
conhecimento deste juízo. Assim, "eu não du-
muito verdadeiras e muito certas, por-
vido de modo algum que cada um tenha em si quanto a razão que a isso nos decidiu
a idéia de Deus, pelo menos implícita. . . não
me surpreendo, no entanto, de ver homens que 42 A fim de evitar um mal-entendido, Descar-
não sentem ter em si esta idéia, ou melhor, que tes formulará esta regra de maneira mais preci-
dela não se apercebem absolutamente". (Car- sa: " ... Não agir menos constantemente se-
tas, a Hyperaspistes, agosto de 1641.) gundo as opiniões que julgamos duvidosas ...
40
A verossimilhança, excluída da ordem teó- quando consideramos não haver outras que
rica, recobrará valor na ordem prática. julguemos melhores ou mais certas, do que se
41 Não será rebaixar os votos religiosos, soubéssemos que aquelas são as melhores''. (A
como pergunta Gilson, encará-los como sim- X:XX, março de 1638.) Não se trata, portanto,
ples remédio para "a inconstância dos espíri- de um voluntarismo cego, "além do que rela-
tos fracos"? Notar-se-á aqui o desprezo de ciono principalmente esta regra às açõd da
Descartes para com "o engajamento" sob vida que não sofrem qualquer delonga dj me
todas as suas formas. sirvo dela apenas provisoriamente".
DISCURSO DO MÉTODO 51
se apresenta como tal 43 . E isto me per- mantes, ou asas para voar como as
mitiu, desde então, libertar-me de aves. Mas confesso que é preciso um
todos os arrependimentos e· remorsos longo exercício e uma meditação amiú-
que costumam agitar as consciências de reiterada pata nos acostumarmos a
desses espíritos fracos e vacilantes que olhar por este ângulo todas as coisas; e
se deixam levar inconstantemente a creio que é principalmente nisso que
praticar, como boas, as coisas que de- consistia o segredo desses filósofos 4 4 ,
pois julgam más. que puderam outrora subtrair-se ao
Minha terceira máxima era a de pro- império da fortuna e, maÍgrado as
curar sempre antes vencer a mim pró- dores e a pobreza, disputar felicidade
prio do que à fortuna, e de antes modi- aos seus deuses. Pois, ocupando-se
ficar os meus desejos do que a ordem incessantemente _em considerar os limi- ·
do mundo; e, em geral, a de acostu- tes que lhes eram prescritos pela natu-
mar-me a crer que nada há que esteja reza, persuadiram-se tão perfeitamente
inteiramente em nosso poder, exceto os de que nada estava em seu poder além
nossos pensamentos, de sorte que, de- dos seus pensamentos, que só isso bas-
pois de termos feito o melhor possível tava para impedi-los de sentir qualquer
no tocante às coisas que nos são exte- afecção por outras coisas; e dispu-
riores, tudo em que deixamos de nos nham deles tão absolutamente, que ti-
sair bem é, em relação a nós, absoluta- nham neste particular certa razão de se
mente impossível. E só isso me parecia julgarem mais ricos, mais poderosos,
suficiente para impedir-me, no futuro, mais .livres ·e mais felizes que quaisquer
de desejar algo que eu não pudesse outros homens, que, não tendo esta
adquirir, e, assim, para me tomar con- filosofia, por mais favorecidos que
tente. Pois, inclinando-se a nossa von- sejam pela natureza e pela fortuna, ja"'"
tade naturalmente a desejar só aquelas mais dispoem assim de tudo quanto
coisas que nosso. entendimento lhe querem 4 5 •
representa de alguma forma como Enfim, para a conclusão dessa
possíveis, é certo que, se conside- moral, deliberei passar em revista as
rarmos todos os bens que se acham diversas ocupações que os homens
exercem nesta vida, para procurar
fora de nós como igualmente afastados
de nosso poder, não lamentaremos escolher a melhor; e, sem que pretenda
dizer
mais a falta daqueles que parecem· que o melhornada sobre as dos outros, pensei
a fazer seria continuar
dever-se ao nosso nascimento, quando naquela mesma em que me achava,
deles formos privados sem culpa isto é, empregar toda a minha vida em
nossa, do que lamentamos não possuir cultivar minha razão, e adiantar-me, o
os reinos da China ou do México; e mais que pudesse, no conhecimento da
que fazendo, como se diz, .da necessi- verdade, segundo o método que me
dade virtude, não desejaremos mais prescrevera. Eu sentira tão extremo
estar sãos, estando doentes, ou estar contentamento, desde quando come-
livres, estando na prisão, do que dese- çara a servir-me deste método, que não
jamos ter agora corpos de uma matéria acreditava que, .nesta vida, se pudes-
tão pouco corruptível quanto os dia- sem receber outros mais doces, nem
l
DISCURSO DO MÉTODO 53
não fosse a de que não continha nada Todavia, esses nove anos escoa-
de certo. E, como ao demolir uma ram-se antes que eu tivesse tomado
velha casa, reservam-se comumente os qualquer partido, com respeito às difi-
escombros para servir à construção de culdades que costumam ser disputadas
outra nova, assim, ao destruir todas as entre os doutos, ou começado a procu-
minhas opiniões que julgava mal fun- rar os fundamentos de alguma Filoso-
dadas, fazia diversas observações e fia mais certa do que a vulgar 50 • E o
adquiria muitas_ experiências, que me exemplo de muitos espíritos excelsos
serviram cdepois para estabelecer ou- que, tendo alimentado precedente-
tras mais certas. E, ademais, conti- mente esse intento, não haviam logra-
nuava a exercitar-me no método que do, parecia-me, realizá-lo, levava-me a
me prescrevera; pois não só tomava o imaginar tantas dificuldades, que não
cuidado de conduzir geralmente todos teria talvez ousado empreendê-lo tão
os meus pensamentos segundo as suas cedo, se não soubesse que alguns já fa-
regras, como reservava, de tempos em ziam correr o rumor de que eu já o le-
tempos, algumas horas, que empregava vara a termo. Não poderia dizer em
particularmente em aplicá-lo nas difi- que baseavam esta opinião; e, se para
culdades de Matemática, ou mesmo isso contribuí com algo por meus dis-
também em algumas outras que eu cursos, deve ter sido por confessar
podia tomar quase semelhantes às das neles mais ingenuamente o que eu
Matemáticas, separando-as de todos os ignorava do que costumam fazer aque-
princípios das outras ciências, que eu les que estudaram um pouco, e talvez
não achava bastante firmes, como ve- também por mostrar as razões que
reis que procedi com várias que são tinha de duvidar de muitas coisas que
explicadas neste volume 4 9 E assim, os outros consideram certas, do que
sem viver, aparentemente, de forma por me j actar de qualquer doutrina.
diferente daqueles que, não tendo outro Mas, tendo o coração bastante altivo
emprego senão passar uma vida doce e para não querer que me tomassem por
inocente, procuram separar os prazeres alguém que eu não era, pensei que
dos vícios, e que, para gozar de seus cumpria esforçar-me, por todos os
lazeres sem se aborrecer, usarri todos meios, para tomar-me digno da reputa-
·os divertimentos que são honestos, não ção que me atribuíam; e faz justamente
deixava de persistir em meu desígnio e oito anos que esse desejo me decidiu a
de orogredir no conhecimento da ver- afastar-me de todos os lugares em que
dade, mais talvez do que se me limi- pudesse ter conhecimentos, e a retirar-
tasse a ler livros ou freqüentar homens me para aqui 5 1 , para um país onde a
de letras. longa duração da guerra levou a esta-
belecer tais ordens, que os exércitos
4 9 Deve referir-se aos pro blernas versados em
nele mantidos parecem servir apenas
Os Meteoros (explicação dos ventos, das
nµvens, do arco-íris) e na Dióptrica (G.
para que os frutos da paz sejam goza-
Milhaud estabelece que Descartes formulou a dos com tanto mais segurança, e onde,
lei da refração por volta de 1626). - Sobre a dentre a multidão de um grande povo
concepção cartesiana da Física Matemática, muito ativo e mais zeloso de seus pró-
cf. Cartas, a Mersenne, de 17 de maio de 1638,
11 de março de 1640, bem corno a de 27 de
julho de 1638: "Pois se lhe apraz considerar o 50 A Filosofia escolástica.
que escrevi do solo, da neve, do arco-íris 51 Início da estada na Holanda, no outono
etc ... saberá efetivamente que toda a minha de 1628, que durará até a partida para a Sué-
Física não é mais do que Geometria". cia, em 1649.
54 DESCARTES
prios negócios, do que curioso dos tem nas cidades m~is freqüentadas,
assuntos dos de outrem, sem carecer de pude viver tão solitário e rehrado
nenhuma das comodidades que exis- como nos desertos mais remotos.
QUARTA PARTE
Não sei se deva falar-vos das pri- nhum, nesse caso, que seja verdadeiro,
meiras meditações que aí realizei; pois resolvi fazer de conta que todas as coi-
são tão metafísicas e tão pouco co- sas que até então haviam entrado no
muns, que não serão, talvez, do gosto meu espírito não eram mais verda-
de todo mundo. E, todavia, a fim de deiras que as ilusões de meus sonhos.
que se possa julgar se os fundamentos Mas, logo em seguida, adverti que,
que escolhi são bastante firmes, vejo- enquanto eu queria assim pensar que
me, de alguma forma, compelido a tudo era falso, cumpria necessaria-
falar-vos delas. De há muito observara mente que eu; que pensava 5 3 , fosse al-
que, quanto aos costumes, é necessário guma coisa. E, notando que esta verda-
às vezes seguir opiniões, que sabemos de: eu penso, logo existo 5 4 ' era tão
serem muito incertas, tal como se fos- firme e tão ~erta que todas as mais
sem indubitáveis, como já foi dito extravagantes suposições ·dos céticos
acima; mas, por desejar então ocupar- não seriam capazes de a abalar, julguei
me somente com a pesquisa da verda- que podia aceitá-la, sem escrúpulo,
de, pensei que era necessário agir exa- como o p~imero princípio da Filosofia
tamente ao contrário, e rejeitar como que procurava.
absolutamente falso ·tudo aquilo em Depois, examinando com atenção o
que pudesse imaginar a menor dúvi- ·que eu era, e vendo que podia supor
da 5 2 ' a fim de ver se, após isso, não que não tinha corpo algum e que não
restaria algo em meu crédito, que fosse havia qualquer mundo, ou qualquer
inteiramente indubitável. Assim, por- lugar onde eu exitisse, mas que nem
que os nossos sentidos nos enganam às por isso podia supor que não exitia; e
vezs~ quis supor que não havia coisa que, ao contrário, pelo fato mesmo de
alguma que fosse tal como eles nos eu pensar em duvidar da verdade das
fazem imaginà.r. E, porque há homen§ outras coisas seguia-se rriui evidente. e
. . . r
que se eqmvocam ao rac10cmar; mui certamente que eu existia; ao
mesmo no tocante às mais simples passo que, se apenas houvesse cessado
matérias de Geometria, e cometem iú de pensar, embora tudo o mais que al-
paralogismos, rejeitei cmp.o falsas, jul- guma vez imaginara fosse verdadeiro,
gando que estava sujeito a falhar como Já não teria qualquer razão de crer que
qualquer outro, todas as razões que eu
tomara até então por demonsgaçÇes. E 53 Cumpre notar que Descartes não diz: "du-
enfim, considerando que todos os mes~ vido, logo ·sou". A dúvida não importa como
mos pensamentos que temos quando ato, mas como conhecimento do fato de que eu
duvido.
desprto~ nos podem também ocorrer 5 4 O Cogito não é um raciocínio: é uma éons-
quando dormimos, sem que haja He- tatação de fato. Por que então se empreg a aqui
1
princípio "Para pensar, é preciso ser" não é a p~rfeito que há em ·meu espírito. Fica estabele-
premissa maior de um raciocínio, como seria cido que: 1.0 esta idéia não pode provir do
"Tudo o. -que pensa é". Trata-se de um adágio nada que há em mi.IJ?. (em virtude do princípio:
sem o qual eu não teria consciência da ligação ex nihilo nihil gignit), 2. 0 que ela não pode vir
necessária entre Cogito e Sum; mas, em de mim, ser imperfeito (não pode haver mais
contrapartida, sem o Cogito eu tampouco teria realidade no efeito do que na causa), ao passo
consciência deste adágio. Por que supor, per- que esta solução seria possível para as idéias
gunta Descartes; "que o conhecimento das que eu tenho das coisas externas. Donde: l.º
proposições partitulares deve sempre ser deu~ existência de outra natureza fora de mim; 2. 0
zido de universal.s"? ... que contém todas as perfeições.
56 DESCARTES
isso acrescentei que, dado que conhe- toda a composição testemunha depen-
cia algumas perfeições que não pos- dência, e que a dependência é manifes-
suía, eu não era o único ser que existia tamente um defeito 6 0 , julguei por aí
(usarei aqui livremente, se vos aprou- que não podia ser uma perfeiçã9 em
ver, alguns termos da Escola); mas que Deus o ser composto dessas duas natu-
devia necessariamente haver algum rezas, e que, por conseguinte, ele rtão o
outro mais perfeito, do qual eu depen- era 6 1 ' mas que, se havia alguns corpos
desse e de quem eu tivesse recebido no mundo, ou então algumas intel~gê
tudo o que possuía 5 9 • Pois, se eu fosse cias, ou outras naturezas, que não fos-
só e independente de qualquer outro, sem inteiramente perfeitos, o seu ser
de modo que tivesse recebido, de .mim d"everia depender do poder de Deus, de
próprio, todo esse pouco pelo qual tal sorte que não pudessem subsistir
participava do" Ser perfeito, poderia sem ele um só momento 62 • 1
sas semelhantes não podiam existir cumpre atribuir-lhe todas as perfeições das
nele, dado que eu próprio estimaria quais possuímos apenas fragmentos e excluir
muito estar isento delas. Além disso, dele as imperfeições que há em nós.
62 Evocação da doutrina da criação contínua: ·
eu tinha idéias de muitas coisas sensí- a) o tempo é radicalmente descontínuo (o
veis e corporais; pois, embora supu- tempo presente não depende do precedente); b)
sesse que estava sonhando e que tudo em cada um desses momentos descontínuos, o
quanto via e imaginava era falso, não estado do mundo e meu pensamento são
podia negar, contudo, que as idéias a conservados no ser por Deus. Tese ligada à
negação das formas substanciais. Enquanto,
respeito não existissem verdadeira- para Santo Tomás, "Deus instituiu uma ordem
mente em meu pensamento; mas, por das coisas, tal que algumas dependem de ou-
já ter reconhecido em mim mui clara- tras pelas quais elas são secundariamente
mente que a natureza inteligente é dis- conservadas no ser·: Descartes afirma não
haver nenhuma "virtude por meio da qual eu
tinta da corporal, considerando que possa fazer com que eu, que sou agora, seja
ainda, um instante após" .
5 9 Deus é agora considerado como o meu 63 Um corpo absolutamente pleno: não Sendo
Criador que me mantém no ser e não mais o corpo senão extensão, a extensão que !sepa-
como o autor da idéia de Deus em mim rasse duas partes de matéria seria, ela pr6pria,
existente. um corpo. 1
DISCURSO DO MÉTODO 57
demonstrações. E, tendo notado que sofos terem por máxima, nas escolas,
essa grande certeza, que todo mundo que nada há no entendimento que não
lhes atribui, se funda apens no fato· de haja estado primeiramente nos senti-
serem concebidas com evidência, se- dos 6 5 , onde, todavia, é certo que as
gundo a regra que há pouco expressei, idéias de Deus e da almajamais estive-
notei também que nada havia nelas ram. E me parece que todos os que
que me assegurasse a existência de seu querem usar a imaginação para com-
objeto. Pois, por exemplo, eu via muito preendê-las procedem do mesmo modo
bem que,. supondo um triângulo, cum- que se, para ouvir os sons ou sentir os
pria que seus três ângulos fossem odores, quisessem servir-se dos olhos;
iguais a dois retos; mas, apesar disso exceto com esta diferença ainda: que o
nada via que garantisse haver no sentido da vista não nos garante menos
mundo qualquer triângulo. Ao passo a verdade de seus objetos do que os do
que, voltando a examinar a idéia que
olfato ou da audição; ao passo que a
tinha de um Ser perfeito, verificava que
nossa imaginação ou os nossos senti-
a existência estava ~ inclusa, da
mesma forma como na de um triân- dos nunca poderiam assegurar-nos de·
gulo está incluso serem seus três ângu- qualquer coisa, se o nosso entendi-
los iguais a dois retos, ou na de uma mento· não interviesse.
esfera serem todas as suas partes igual- Enfim, se há ainda homens que não
mente distantes do · seu centro, ou estejam bem persuadidos da existência
mesmo, ainda mais evidentemente; e de Deus e da alma, com as razões que
· que, por conseguinte, é pelo menos tão apresentei, quero que saibam que todas
certo 6 4 que Deus, que é esse Ser perfei- as outras coisas, das quais se julgam
to, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer talvez certificados, como a de terem
demonstração de Geometria. um corpo, haver astros e uma terra, e
Mas o que leva muitos a se persua- coisas semelhantes, são ainda menos
direm de que há dificuldade em conhe- certas. Pois, embora se possua dessas
cê-lo, e mesmo também em conhecer o coisas uma certeza moral, que é de tal
que é sua alma, é o fato de nunca ele- ordem que, exceto sendo-se extrava-
varem o espírito além das coisas sensí- gante, parece impossível pô-la em dú-
veis e de estarem de tal modo acostu- v_ida, todavia também, quando se trata
mados a nada considerar senão da certeza metafisica 6 6 , não se pode
imaginando, que é uma forma de pen- negar, a menos que sejamos desarra-
sar particular às coisas materiais, que zoados, que é motivo suficiente, para
tudo quanto não é imaginável lhes pa-
rece não ser inteligível. E isto é assaz
6 5
Adágio escolástico. Toda essa passagem
constitui um ataque ao excessivo papel conce-
manifesto pelo fato de os próprios filó- dido pelo aristotelismo e pelo tomismo à "ima-
ginação". Em Metafisica, contrariamente ao
6 4
Exposição da prova a priori: " ... ainda que se passa na Física e na Matemática, a
mais evidentemente", porque a inclusão da imaginação não poderia ser de qualquer
existência necessária na essência de Deus é serventia.
uma relação ainda mais simples do que as rela- 6 6
Distinção entre "certeza moral" (suficiente
ções geométricas citadas (ela é antes compa- para a vida prática) e metafisica ("quando pen-
. rável às verdades matemáticas indemonstrá- samos que não é de modo algum possível que a
veis). "Pelo menos tão certo" significa "mais coisa seja diferente do que julgamos"). No pri-
certo": é possível estar seguro da existência de meiro plano, seria loucura duvidar da exis-
Deus, sem o estar da verdade dos teoremas tência das coisas sensíveis; no segundo, é
matemáticos, não sendo o inverso verdadeiro. leviandade estar "seguro" delas.
58 DESCARTES
1
i
DISCURSO DO MÊTODO 59
QUJNTA PARTE
conhecer do que dizendo aqui, suma- diversas partes desta matéria, de modo·
riamente, o que ele contém. Eu preten- que compusesse com ela um caos tão
dia, antes de escrevê-lo, incluir nele confuso quanto os poetas posa~ fazer
tudo o que julgava saber quanto á crer, e que, em seguida, não fizesse
natureza das coisas materiais. Mas, tal outra coisa senão prestar o seJ con-
como os pintores que, não podendo curso comum 7 3 à natureza, e ddixá-la
representar igualmente bem num qua..:- agir segundo as leis por ele est abele- 1
1
DISCURSO DO MÉTODO 61
)
pudesse mesmo fmgir ignorá-la 7 4 • .substância, situação, movimentos e
Além disso, fiz ver quais eram a·s leis toàas as diversas qualidades desses
da natureza; e, sem apoiar minhas céus e desses astros; de sorte que pen-
razões em nenhum outro princípio, a sava ter dito a respeito o suficiente,
não ser no das perfeições infinitas de para fazer compreender que nada se
Deus 7 5 1 procurei demonstrar todas nota nos deste mundo que não devesse,
ou ao menos não pudesse, parecer
aquelas que pudessem suscitar qual- totalmente semelhante nos do mundo
quer dúvida e mostrar que elas são tais que estava descrevendo. Daí vim a
que, embora Deus tivesse criado mui- falar particularmente da terra: como,
tos mundos) não poderia existir um só embora houvesse expressamente su-
em que deixassem de ser observadas. posta que Deus não pusera peso
Depois disso, indiquei como a maior algum 7 7 na matéria de que ela era
parte da matéria desse caos devia, em
7 6 A luz não é um movimento ("Nenhum
seqüência dessas leis, dispor-se e ar-
movimento ocorre no instante», Princípios, II,
ranjar-se de uma certa forma que a art. 39)) mas é uma ação instantânea ("A força
torna semelhante aos nossos céus; da luz não consiste absolutamente na duração
como, entretanto, algumas de suas par- de qualquer movimento") que anima as partí-
tes deviam compor uma tera~ alguns culas da matéria sutil mais próxima ao mesmo
dos planetas e cometas, e outras, um tempo que a mais distante. Assim, as diferen-
tes partes do raio luminoso são contemporâ-
sol e estrelas fixas. E neste ponto, neas, embora· espacialmente dependentes umas
estendendo-me sobre o tema da luz, das outras, e o instante de luz é um estado que
expliquei bem longamente qual era a exclui toda duração (é verdade que a "dura-
que se devia encontrar no sol e nas ção" é apenas "uma maneira de considerarmos
urna coisa enquanto ela continua existi..11do"
estrelas, e como, a partir daí, atraves- Prin., I, 55)) um conceito à medida de nosso
sava num instante os imensos espaços espírito finito). A medição, por Cassini e
dos céus 7 õ, e como se refletia dos pla- Huygb.ens, da velocidade da luz destruirá esta
netas e dos cometas para a terra. Juntei tese do instante como indivisível fora do
a isso também várias coisas atinentes à tempo; "Ao substituir, com efeito, no coração
das coisas criadas, o dinâmico pelo estático
(esta descoberta) impossibilitava a redução do
7 4 Esta referência à Física escolástica toma tisico ao puro geométricd'. (Guéroult, Descar-
sensível o alcance polêmico da. doutrina das tes, I, 273.) Cf. Cartas, a Beeckmann, de 22 de
idéias claras e distintas e da redução da maté~ agosto de 1634, onde é afirmada a importância
ria à extensão. A evacuação das formas subs- capital desta teoria: se ela for falsa, o mundo
tand.ais (isto é, do princípio interno que, em poderá conter vazio, matéria e extensão dei-
cada corpo, governa as operações deste) toma xam de se reciprocar e a Física de Descartes se
esboroará.
a. natureza inteira.ruente transparente ao enten- 7 7 Entenda-se gravitas no sentido de "ten-
dimento. Mas as coisas já não têm "força inte- dência do elemento a se dirigir para baixo". A
rior pela qual eias se.conservam no sern, como gravidade não é uma qualidade última. do
nota um teólogo da época. (Citado por Bré- corpo e tampouco resulta da atração do grave
hier, La Philosophie et son Passé, pág. 132.) pela terra, mas de um empuxo do corpo pela
7 5 Sobretudo a imutabilidade, essencial ao "matéria sutil que gira ao redor da terra".
princípio da inércia (que Descartes foi o pri- Sobre a dificuldade que Descartes tem, a partir
meiro a enunciar: "Cada parte da matéria, em daí, para determinar "o retardamento que rece-
particular, continua no mesmo estado, en- be o movimento dos corpos pesados, devido ao
quanto o encontro com outras não a obrigue a ar em que se movem", cf. Cartas, a Mersenne,
de. 22 de junho de 163 7, e a obra de Alexandre
mudá-lo") e ao princípio de cou';;érvação .çla Koyré. La Lo( de la Chute des Corps. Descar-
quantidade de movimento. ·
tes et' Galilée.
62 DESCARTES
r
composta, todas as suas partes não tivesse sido cdadctda forma como pro-
deixavam de tender exatamente para o \ punha; pois é bem mais verossímil quê,
seu centro; como, havendo água e ar à desde o começo, Deus o, tenha tomado 1
sua superfície, a disposição dos céus e tal como devia ser. Mas é certo,I e é
dos astros, principalmente da Luâ, uma opinião comumente adotada entre
devia nela causar um fluxo e refluxo; os teólogos, que a ação pela qual ele
que fosse semelhante, em todas as suas agora o conserva é exatamente igual
circunstâncias, ao que se observa nos àquela pela qual o criou: de modo que,
nossos mares; e além disso, certo embora não lhe. houvesse dado, no
curso, tanto da água como do ar, do começo, outra forma senão a do Caos,
levante para o poente, tal como se desde que, tendo estabelecido as leis da
observa também entre os trópicos; natureza, lhe tenha prestado seu con-
como as montanhas, os mares, as fon- curso, para ela agir assim como costu-
tes e os rios podiam naturalmente for- ma, pode-se crer, sem prejudicar o
mar-se nela, e os metais aparecerem milagre da criaçã<?, que só por isso
nas minas, e as plantas crescerem nos todas as coisas que são puramente
campos, e em geral todos os corpos materiais poderiam, com o tempo, tor-
chamados mistos ou compostos 7 8 nar-se tais como as vemos no presen-
serem nela engendrados. E entre outras te 8 1 • E sua natureza é bem mais fácil
coisas, já que após os astros nada de conceber, quando as vemos nascer
conheço no mundo, a não ser o fogo, pouco a pouco desta maneira, do que
que produza a luz, apliquei-me a expli- quando já as consideramos totalmeJ).te
car bem claramente tudo o que per- feitas.
tence à sua natureza, çomo ele se faz, Da descrição dos corpos inanima-
como se nutre; como existe às vezes dos e das plantas, passei à dos animais
apenas calor sem luz 7 9 , e outras vezes e particularmente à dos homens.
luz sem calorª 0 , como pode introduzir Mas, como não contava ainda sufi-
diversas cores em diversos corpos e cierite conhecimento p·ara falar deles
diversas outras qualidades; como no mesmo estilo que do resto, isto é,
funde uns e endurece outros; como os demonstrando os efeitos pelas causas,
pode consumir a quase todos ou con- e mostrando de quais sementes e de
verter em cinzas e em fumo; e enfim, que maneira a natureza deve produzi-
como dessas cinzas, pela só violência los, contentei-me em supor que Deus
de sua ação, forma o vidro; pois, pare- formasse o corpo de um homem intei-
cendo-me essa transmutação de cinzas ramente semelhante a um dos nossos,
em vidro tão admirável como nenhuma tanto na figura exterior de seus mem-
outra que se produza na natureza, bros como na conformação interior de
deu-me particular prazer descrevê-la. seus órgãos, sem compô-lo de outra
Todavia, não desejava· inferir, de matéria além da que eu descrevera, e
todas essas coisas, que este mundo sem pôr nele, no começo, qualquer
alma racional, nem qualquer outra
·coisa para servir-lhe de alma vegeta-
7 8Entenda-se: os corpos que são combina-
ções de elementos; pois os elementos carte-
81 "Sendo estas leis a causa de que a matéria
sianos já não são o frio, o quente, o seco e o
úmido, mas três ordens de matéria, defmidas deva tomar sucessivamente todas as formas de
pelo volume e pelo movimento de suas partes. que é capaz, se considerarmos por ordem
Cf. Princípios, III, arts. 52-54. todas estas formas, poderemos, enfim, chegar
1 9 Exemplo: a cal viva. àq\].ela que se enco.ntra presentemente lneste
8 0 Exemplo: as estrelas cadentes. mundo." (Princípios, III, art. 47.)
DISCURSO DO MÉTODO 63
tiva ou sensitiva, senão que excitasse julgar facilmente, a partir dele, o que
em seu coração um desses fogos sem se deve pensar de todos os outros. E,
luz que eu já explicara, e que não con- para que se tenha menos dificuldade de
cebia nenhuma outra natureza, exceto entender o que vou dizei: a esse respei-
a que aquece o feno quando o guardam to, gostaria que todos os que não são
antes de estar seco, ou a que faz ferver versados em anatomia se dessem ao
os vinhos novos quando ficam a fer- trabalho, antes de ler isto, de mandar
mentar sobre o bagaço. Pois, exami- cortar diante deles o coração de um
nando as funções que, em virtude grande animal qµe possua pulmões,
disso, podiam estar neste corpo, encon- pois é em tudo semelhante ao do
trava exatamente todas as que podem homem, e que peçam para que se lhes
estar em nós sem que o pensemos, nem mostrem as duas câmaras ou concavi-
por conseguinte que a nossa alII1.a, ou dades nele existentes. Primeiramente, a
seja, essa parte distinta do corpo cuja que está no lado direito 8 3 , a que
natureza, como já foi dito mais acima, correspondem dois tubos muito largos:
é apenas a de pensar, para tal contri- a saber, a veia' cava, que é o principal
bua, e que são todas as mesmas, o que receptáculo do sangue e como que o
permite dizer que os animais sem tronco da árvore da qual todas as ou-
razão se nos assemelham, sem que eu tras veias do corpo são ramos; e a veia
possa achar para isso qualquer daque- arteriosa 8 4 , que foi assim impropria-
las razões que, sendo dependentes do mente designada, por se tratar efetiva-
pensamento, são as únicas que nos per- mente de uma artéria, a qual, tomando
tencem enquanto homens, ao passo sua origem no coração, se divide, de-
que achava a todas em seguida, ao pois de sair dele, em muitos ramos que
supor que Deus criara uma alma racio- vão espalhar-se por toda a parte nos
nal e que ajuntara a esse corpo de uma pulmões. Depois, a que esta no lado
certa maneira que descrevia 8 2 • esquerdoª 5 , à qual correspondem, da
Mas, a fim de que se possa ver de mesma forma, dois tubos que são tanto
que modo eu tratava esta matéria, ou mais largos que os precedentes: a
quero apresentar aqui a explicação do saber, a artéria venosa 8 6 , que também
movimento do coração e das artérias, foi impropriamente designada, porque
o qual, sendo o primeiro e o mais geral não é outra coisa senão uma veia, que
que se observa nos animais, permitirá vem dos pulmões, onde se divide em
vários ramos, entrelaçados com os da
8 z Trata-se, portanto, de uma reconstituição veia arteriosa e com os desse conduto
imaginária do homem enquanto animal-má- que se chama gasneteª 7 , por onde
quina, antes da inserção da alma. Na realida- entra o ar da respiração; e a grande
de, o corpo humano nunca é uma máquina, artéria 8 8 , que, saindo do coração,
pois está sempre unido a uma alma. Mas esta lança seus ramos por todo o corpo.
redução mostra que a única função da alma é Gostaria também que se lhes mostras-
o pensamento, e que é preciso', portanto, renun-
ciar às noções escolásticas de alma sensitiva sem cuidadosamente as onze pequenas
ou vegetativa. "No homem, a alma é una e é a peles 8 9 , que, como outras tantas pe-
alma racional . . . as faculdades que dão ao
corpo vida e movimento, e que denominamos 83 O ventrículo direito.
nas plantas e nos animais alma vegetativa e 8 4 A artéria pulmonar.
alma sensitiva, encontram-se também no 8 5 O ventrículo esquerdo.
homem; mas, nele, não devemos denominá-las 8 6
As veias pulmonares.
almas. . . elas são de um gênero inteiramente 8 7 A traquéia-artéria.
diferente do da alma racional." (A Regius, 88 A aorta.
maio de 1641.) 89 As válvulas.
64 DESCARTES
quenas portas, abrem e fecham as qua- enfim, que este calor é capaz de fazer
tro aberturas que há nessas duas que, se uma gota de sangue entçar em
concavidades: a saber, três à entrada suas concavidades, ela se infle pronta-
da veia cava 9 0 , onde se acham de tal mente e se dilate, como procedem em
modo dispostas que não podem ·de geral todos os líquidos quando qs dei-
. maneira alguma impedir que o sangue xamos cair gota a gota nalgum vaso
nela contido corra para a concavidade que esteja muito quente.
direita do coração, e todavia impedem Isso porque, depois disso, nad~ mais
exatamente que possa dali sair; três à preciso dizer para explicar o movi-
entrada da veia arteriosa 9 1 , que, estan- mento do coração, salvo que, quando
do dispostas bem ao contrário, permi- as sUas concavidades não estão cheias
tem realmente ao sangue que está de sangue, este corre necessariamente
nessa concavidade passar para os pul-
da veia cava para a concavidade direi-
mões, mas não ao que está nos pul-
ta, e da artéria venosa para a esquerda;
mões voltar para lá; e assim 9 2 duas
já que esses dois vasos se acham sem-
outras à entrada da artêria venosa, que
pre cheios, e que suas aberturas, volta-
deixam fluir o sangue dos pulmões
para a concavidade esquerda do cora- das para o coração, não podem então
ção, mas opõem-se ao seu retorno; e ser tapadas; mas, tão logo tenham
três à entrada da grande artéria 9 3 , que entrado assim duas gotas de sangue,
lhe permitem sair do coração, mas uma em cada concavidade, estas gotas,
impedem o seu retomo. E não há que só podem ser muito grossas, por-
necessidade de procurar outra razão que as aberturas por onde penetram
par a o número dessas peles, senão a de são muito largas, e os vasos de onde
que a abertura da artéria venosa, sendo provêm muito cheios de sangue, rarefa-
oval devido ao lugar onde fica, pode zem-se e dilatam-se por causa do calor
ser comodamente fechada com duas, que aí encontram; por esse meio,
ao passo que, as outras sendo redon- fazendo inflar o coração todo, empur-
das, três podem melhor fechá-las. ram e fecham as cinco pequenas portas
Demais, gostaria que lhes fosse dado
considerar q_ue a grande artéria e a·veia que ficam à entrada dos dois vasos de
arteriosa sao de uma composição onde vêm, impedindo, assim, que desça
muito mais dura e mais firme do que a mais sangue ao coração; e, conti-
artéria venosa e a v·eia cava, e que as nuando a rarefazer-se cada vez mais,
duas últimas se alargam antes de en- empurram e abrem as seis outras
trar no coração, formando aí como que · pequenas portas que ficam à entrada
duas bolsas, chamadas as orelhas do dos dois outros vasos por onde saem,
coração, que se compõem de uma fazendo inflar por esse meio todos os
carne semelhante à deste; e que há ramos da veia arteriosa e da grande
sempre mais calor no coração do que artéria, quase no mesmo instante que o
em qualquer outro lugar do corpo 9 4 , e, coração, o qual, em seguida, inconti-
nenti, se desinfla, como sucede tam-
9 A válvula tricúspide.
o
91 As válvulas sigrhóides no orifício da arté- bém com essas artérias, por se resfriar
ria pulmonar. o sangue que nelas entrou; e suas seis
s2 A válvula mitral. pequenas portas se fecham e as cinco
93
As válvulas sigmóides no orifício da aorta. da veia cava e da artéria venosa
9 4
"O calor que todo mundo reconheçe ser no
coração maior do que em todas as outras· par- reabrem-se, dando passagem aj duas
tes do corpo", diz Descartes. "Todo mundo", outras gotas de sangue,' que vão de
isto é, a medicina grega e a tradição medieval. novo inflar o coração e as artéi~s, tal
DISCURSO DO MÉTODO 65
como as precedentes. E porque o san~ do o gelo neste ponto, e .de ser o pri-
gue, que entra assim no coração, passa meiro a ter ensinado a existência de
por essas duas bolsas que se chamam muitas pequenas passagens nas extre-
suas orelhas, daí resulta que o movi- midades das artérias, por onde o san-
mento dessas é contrário ao seu, e que gue que elas recebem do coração entra
elas se desinflam quando ele se infla 9 5 • nos pequenos ramos das veias, de onde
De resto, a fim de que aqueles que não ele toma a dÍrigir-se para o coração, de
conhecem a força das demonstrações sorte que o seu curso não é mais do
matemáticas, e não estão a.costumados que uma circulação perpétua.. E isso
a distinguir as razões verdadeiras das ele prova muito bem pela experiência
verossímeis 9 6 , não se aventurem a comum dos cirurgiões, que, ligando o
negar tal fato sem exame, quero adver- braço sem apertá-lo muito, acima do
ti-los de que esse movimento que local onde abrem a veia, fazem que o
acabo de explicar segue-se tão necessa- sangue saia dela com mais abundância
riamente da simples disposição dos ór- do que se não o houvessem ligado. E
gãos que se podem ver a olho nu no aconteceria exatamente o contrário, se
coração, e do calor que se pode sentir eles o ligassem abaixo, entre a mão e a
com os dedos, e da natureza do sangue abertura, ou então se o ligassem mui
que se pode conhecer por experiência, fortemente em cima. Pois é manifesto
como o de um relógio segue-se da que ô laço medianamente apertado,
força, da situação e da figura de seus podendo impedir que o sangue, que já
contrapesos e rodas. está no braço, retome ao coração pelas
Mas, se se pergunta como o sangue veias, não impede no entanto que para
das veias não se esgota, fluindo assim aí sempre aflua novo sangue pelas arté-
continuamente para o coração, e como rias, porque estas se situam por baixo
as artérias não se enchem demais, já das veias, e porque suas peles, sendo
que tudo quanto passa pelo coração mais duras, são menos fáceis de pres-
para elas se dirige, não necessito res- sionar, e também porque o sangue pro-
ponder algo mais do que já foi escrito cedente do coração tende com mais
por um médico da Inglaterra,· a quem é força a passar por elas para a mão do
preciso dar dar o louvor de ter rompi- que a voltar daí para o coração pelas
9 5 Gilson, opondo Harvey a Descartes, no.ta
veias. E, como es~ sangue sai do
que o erro deste é triplo: a) o coração é um braço pela abertura que existe numa
órgão passivo; b) a causa da dilatação e da das veias, deve necessarian1ente haver
contração é a mesma; c) a diástole é a fase algumas passagens abaixo do laço, isto
ativa, e a sístole, a fase passiva. é, na dü-eção das extremidades do
9 6
Passagem que pode parecer saborosa, mas braço, por onde possa vir das arté-
que é muito significativa. Descartes julga estar
com a verdade, visto que sua explicação é rias 9 7 • Ele prova, outrossim, muito
estritamente mecânica, ao passo que, para bem o que diz sobre o fluxo do sangue,
Harvey, diz ele, "é mister imaginar alguma por certas pequenas peles, as quais se
faculdade (a contratilidade) que cause este acham de tal modo dispostas em diver-
movimento, cuja natureza é mais dificil de sos pontos ao longo das veias, que não
conceber do que tudo quanto se pretente expli- lhe permitem passar do meio do corpo
car por meio dela". Do mesmo modo, Descar-
tes verá na hipótese da atração, emitida por para as extremidades, mas somente
Gilbert, um recurso às qualidades ocultas. Não •,
retomar das extremidades para o cora- sangue da artéria venosa, tendo estado
ção, e, demais, pela experiência que apenas nos pulmões depois de passar
mostra que todó o sangúe existente no pelo coração, é mais sutil e rarefaz-se
corpo pode dele sair em muito pouco mais forte e mais facilmente do que
tempo por uma única artéria, quando aquele que vem imediatamente da veia
secionada, ainda mesmo que ela fosse cava 1 0 1 ? E o que podem os m édicos 1
rença que se nota entre o sangue que nele se aquece e daí se espalha por
sai das veias e o que sai das artérias só todo o corpo? Donde resulta qu~, se se
pode proceder do fato de que, tendo-se tira o sangue de alguma parte, tjira-se-
rarefeito e como que destilado ao pas- lhe da mesma maneira o calor; e, ainda
sar pelo coração, é mais sutil e mais que o coração fosse tão ardente como
vivo, e mais quente logo depois de sair um ferro abrasado, não bastaria, como
dele, isto ·é, quando nas artérias, do que não basta, para aquecer os pés e as
o é um pouco antes de nele entrar, isto mãos, se não lhes enviasse continua-
é, quando nas veias. E, se se presta mente novo sangue 1 0 2 • Depois, tam-
atenção, verifica-se que tal diferença só bém se sabe daí que a verdadeira utili-
aparece realmente na direção do cora- dade da respiração é trazer bastante ar
ção e de modo algum nos lugares que fresco aos pulmões, para fazer com
dele mais se distanciam 9 9 • Depois, a que o sangue, que para aí vem da
dureza das peles, de que a veia arte- concavidade direita do coração, onde
riosa e a grande artéria se compõem, foi rarefeito e como que transmudado
mostra suficientemente que o sangue em vapores, se espesse e se converta de
novo em sangue, antes de recair na
bate contra elas com mais força do que
concavidade esquerda, sem o que não
contra as veias 100
• E po"r que seriam a
poderia ser próprio para servir de ali-
concavidade esquerda do coração e a mento ao fogo ~ existente 1 0 3 • O que
grande artéria mais amplas e mais lar- se conforma, visto que os animais
gas ·do que a concavidade direita e a
veia arteriosa, se não fosse porque o 10 1 Terceiro argumento: no ventrículo es-
querdo, maior do que o direito, o sangue deve
9 8 Descartes vai mostrar, agora, que só a sua dilatar-se mais. Com efeito, tendo passado
explicação dá conta do mecanismo da ,circula- apenas pelos pulmões, onde se demorou pouco
ção. tempo, "retém mais facilidade em se dilatar e
9 9 Primeiro argumento contra Harvey: ·ele se reaquecer do que possuía antes de entrar no
não explica como, no coração, o sangue veno- coração".
so pode transformar-se em sangue arterial 1 °2 Quarto argumento: -é o sangue que ali-
(ignorava-se, então, que essa transformação menta o calor do corpo; mas onde há de haurir
decorre da respiração pulmonar). este calor, se não for no coração?
1 °0 Segundo argumento: o sangue na artéria 103
Por aí explicar-se-á a função da f,espira-
pulmonar e na aorta, dada a constituição des- ção: condensar, i:io pulmão, o sangue ~ue fora
sas, deve ser sangue ·arterial. Ora, isto só é transformado, no coração, em vapor Ide san-
explicável pelo calor do coração. gue, antes de retornar ao coração.
1
DISCURSO DO MÉTODO 67
desprovidos de pulmões tampouco têm muito pura e muito viva que, subindo
mais do que uma ·só concavidade no continuamente em grande abundância
coração e as crianças, que não podem do coração ao cérebro, dirige-se daí,
usá-los, enquanto encerradas no ventre pelos nervos, para os músculos, e
de suas mães, possuem· uma abertura imprime movimento a todos os mem-
por onde corre o s~gue da veia cava bros 1 ° 5 ; sem que seja preciso imaginar
para a concavidade esquerda do cora- outra causa que leve as partes do san-
ção e um conduto por onde ele vem da gue que, sendo as mais agitadas e as
veia arteriosa para a grande artéria, mais penetrantes, são as mais próprias
sem passar pelo pulmão. Depois a coc- para compor tais espíritos, a se dirigi-
ção, como se faria efa no estômago, se rem mais ao cérebro do que a outras
o coração não lhe enviasse calor pelas partes; mas somente que as artérias,
artériàs, e com esse, algumas das mais que as levam para aí, são aquelas que
fluidas partes do sangue, que ajudam a vêm do coraçãá em linha mais reta de
dissolver os alimentos que foram aí todas, e que, segundo as regras da
postos? E a ação que converteu o suco Mecânica, que são as mesmas da natu-
desses alimentos em sangue, não será reza 1 0 6 , quando várias coisas tendem
ela fácil de conhecer, se se considera a mover-se em conjunto para um
que este se destila, passando e repas- mesmo lado, onde não há lugar sufi-
sando pelo coração, talvez mais de ciente para todas, tal como as partes
cem ou duzentas vezes por dia? E de do sangue que saem da concavidade
que mais se necessita para explicar a esquerda do coração tendem para o cé-
nutrição e a produção dos diversos rebro, as mais fracas e menos agitadas
humores que existem no corpo 1 0 4 , ex- devem ser desviadas pelas mais fortes,
ceto dizer que a força com que o san- que por esse meio aí vão ter sós.
gue, ao rarefazer-se, passa do coração Explicara assaz particularmente
às extremidades das artérias leva algu- todas essas coisas no tratado gue pre-
mas d.e suas partes a se deterem entre tendi outrora publicar 1 0 7 . E, em segui-
as dos membros onde se acham e· a da~ mostrara nele qual deve ser a estru-
tomarem aí o lugar de algumas outras tura dos nervos e dos músculos do
que elas expulsam; e que, conforme a corpo humano, para fazer que os espí-
situação, ou a figura, ou a pequenez ritos animais, estando dentro, tenham
dos poros que encontram, umas vão ter a.força de mover seus membros: assim
a certos lugares mais do que outras, da como se vê que as cabeças, pouco.de-
mesma forma como cada qual pode ter pois de decepadas, se remexem ainda, e
visto diversos crivos que, sendo diver- mordem a terra, não obstante não mais
samente perfurados, servem para sepa- sejam animadas; quais mudanças se
rar diversos grãos uns dos outros? E, devem efetuar no cérebro, para causar
enfim, o que há de mais notável em a vigília, o sono e os sonhos; como a
tudo isso é a geração dos espíritos ani- luz, os sons, os odores, os sabores, o
mais, que são como um vento muito
sutil, ou melhor, como uma chama 1 0 5 A teoria mecanicista há de explicar igual-
resulta que é moralmente impossível assim como entre os homens, e que uns
que . numa máquina existam bastante são mais fáceis de adestrar que outros,
diversas para fazê-la agir em todas as não é crível que um macaco ou um
ocorrências da vida, tal como a nossa papagaio, que fossem os mais perfeitos
razão nos faz agir 11 2 • de sua espécie, não igualassem nisso
Ora, por esses dois meios, pode-se uma criança das mais estúpidas ou
também conhecer a diferença existente pelo menos uma cria...11ça com o cérebro
entre os homens e os animais 1 1 3 • Pois perturbado, se a sua alma não fosse de
é uma coisa bem notável que não haja uma natureza inteiramente diferente da
homens tão embrutecidos e tão estúpi- nossa. E não se deve confundir as pala-
dos, sem excetuar mesmo os insanos, vras com os movimentos naturais, que
que não sejam capazes de arranjar em testemunham as paixões e podem ser
conjunto diversas palavras, e de com- imitados pelas máquinas assim como
pô-las num discurso pelo qual façam pelos animais; nem pensar, como al-
entender seus pensamentos; e que, ao guns antigos, que os animais falam,
contrário, não exista outro animal, por embora não entendamos sua lingua-
mais perfeito e felizmente engendrado gem: pois, se fosse verdade, porquanto
que possa ser, que faça o mesmo. E têm muitos órgãos correlatos aos nos-
isso não acontece porque lhes faltem sos, poderiam fazer-se compreender
órgãos, pois vemos que as pegas e os tanto por nós como por seus semelhan-
papagaios podem proferir palavras tes. É também coisa mui digna de nota
assim' como nós, e todavia não podem que, embora existam muitos animais
falar como nós, isto é, testemunhando que demonstram mais indústria do que
que pensam o que dizem; ao passo que nós em algumas de suas ações, vê-se,
os homens que, tendo nascido surdos e todavia, que não a demonstram nem
mudos, são desprovidos· dos órgãos um pouco em muitas outras: de modo
que servem aos outros para falar, tanto que aquilo que fazem melhor do que
ou mais que os animais, costumam nós não prova que tenham espírito;
inventar eles próprios alguns· sinais, pois, por esse critério, tê-lo-iam mais
pelos quais se fazem entender pot do que qualquer de nós e procederiam
quem, estando comumente com eles, melhor em tudo; mas, antes, que não o
disponha de lazer para aprender a sua têm, e que é a natureza que atua neles
língua. E isso não testemunha apenas segundo a disposição de seus órgãos:
que os animais possuem menos razão assim como um relógio, que é com-
do que os homens, mas que não pos- posto apenas de rodas e molas, pode
suem nenhuma razão. Pois vemos que contar as horas e medir o tempo mais
é preciso muito pouco para saber falar; justamente do que nós, com toda a
e, posto que se nota desigualdade entre nossa prudência.
os animais de uma mesma espécie, Eu descrevera, depois disso, a alma
racional, e mostrara que ela não pode
11 2 O melhor comentário desta passagem é, ser de modo algum tirada do poder da
além do texto citado mais acima, a carta ao matéria, como as outras coisas de que
Marquês de Newcastle, de 23 de novembro de falara, mas que deve expressamente ter
1646. .
1 1 3 Para Descartes, a tese do animal-má- sido 1 1 4 ; e como não basta que esteja
quina, longe de abrir a porta ao materialismo,
é o corolário indispensável do espiritualismo. 11 4 A alma não pode ser engendrada pela
"A teoria dos animais-máquinas é inseparável matéria. É uma "substância" que requer um
do 'Penso, logo existo'", escreve Canguilhem ato especial de criação. E Descartes pensa tê-
(cf. Canguilhem, Connaissance de la Vie, págs. lo estabelecido com mais clareza do que Santo
124-1.60). . Tomás.
70 DESCARTES
-
SEXTA PARTE
Ora, faz agora três anos que chegara entre as minhas, na qual me tivesse
ao fim do tratado que contém todas enganado, não obstante o grande cui-
essas ·coisas, e que coineçara a revê-lo, dado que sempre tomei em não acolher
a fim de pô-lo em mãos de um impres- novas em minha confiança, das quais
sor, quando soube que pessoas, a quem não tivesse demonstrp.ções muito cer-
respeito e cuja autoridade sobre mi- tas, e de não escrever nenhuma que
nhas ações quase não é menor que pudesse resultar em desvantagem para
minha própria razão sobre meus pen- qualquer pessoa. O que bastou para
samentos, haviam desaprpvado uma me obrigar a mudar a resolução que eu
opinião de Física, publicada pouco tomara de publicá-las. Pois, embora as
antes por alguém, opinião que não razões, pelas quais eu a adotara ante-
quero dizer que a partilhasse, mas que riormente, fossem muito fortes, minha
nada reparara nela, antes de a censura- inclinação, que sempre me movera a
rem, que pudesse imaginar ser prejudi- detestar o mister de fazer livros, me
cial à religião ou ao Estado, nem, por ·levou incontinenti a achar muitas ou-
conseguinte, que me impedisse de tras para me escusar dela. E essas
escrevê-la, se a razão mo houvesse razões de uma parte e de outra são
persuadido, e isso me fez recear que se tais, que não só tenho aqui algum; inte-
encontrasse, do mesmo modo, alguma resse em dizê-las, como talvez 0 pú- 1
1·
DISCURSO DO MÉTODO 71
blico também o tenha em conhecê-las. Pois elas me fizeram ver que é possível
Nunca fiz muito caso das coisas que chegar a conhecimentos que sejam
vi.Ilham de meu espírito, e, enquanto muito úteis à vida, e que, em vez dessa
não recolhi outros frutos do método de Filosofia especulativa que se ensina
que me sirvo a não ser que fiquei satis- nas escolas, se pode encontrar uma
feito no tocante a algumas dificuldades outra prática, pela qual, conhecendo a
que concernem às ciências especula- força e as ações do fogo, da água, do
tivas, ou então que procurei regrar ar, dos astros, dos céus e de todos os
meus costumes pelas razões que ele me
outros corpos que nos cercam, tão
ensinava, não me julguei obrigado a
distintamente como conhecemos os
nada escrever a seu respeito. Pois, no
que toca .aos costumes, cada qual diversos misteres ·de nossos artífices,
.segue de tal forma o seu próprio pare- poderíamos empregá-los da mesma
cer que se poderia encontrar tantos maneira em todos os usos para os
reformadores quantas cabeças, se fosse quais são próprios, e assim nos tomar
permitido a outros, além dos que Deus como que senhores e possuidores da
estabeleceu como soberanos dos natureza. O que é de desejar, não só
povos, ou então aos que concedeu sufi- para a invenção de uma infinidade de
ciente graça e zelo para serem profetas, artifícios, que permitiriam gozar, sem
tentar mudá-los, em algo; e, embora
qualquer custo, os frutos da terra e
minhas especulações me aprouvessem
muito, pensei que os outros também ti- todas as comodidades que nela se
nham as suas que lhes agradariam tal- acham, mas principalmente também
vez mais. Mas, tão logo adquiri algu- para a conservação da saúde, que é
mas noções gerais relativas à Física, e, sem dúvida o primeiro bem e o funda-
começando a comprová-las em diver- mento de todos os outros bens desta
sas dificuldades particulares 1 1 6 , notei vida; pois mesmo ·o espírito depende
até onde podiam conduzir, e o quanto
tanto do temperamento e da disposição
diferem dos princípios que foram utili-
zados até o presente, julguei que não dos órgãos do corpo que, se é possível
podia mantê-las ocultas sem pecar encontrar algum meio que tome comu-
grandemente contra a lei que nos obri- mente os homens mais avisados e mais
ga a procurar, no que depende de nós, ·hábeis do que foram até aqui, creio que
o bem geral de todos os homens 1 1 7 • é na Medicina que se deve procurá-
11 6 Segundo Gilson, trata-se do problema da lo 1 1 8 • É verdade que aquela que está
construção das lunetas. agora em uso contém poucas coisas
1 1 7 A Filosofia;SÓ pode, portanto, constituir a cuja utilidade seja tão notável; mas,
fundação de uma prática científica, "útil à
vida". Seu fim não reside na contemplação.
sem que alimente nenhum intuito de
Comparar com esta página - que afasta de desprezá-la, estou certo de que não há
pronto toda interpretação espiritualista do ninguém, mesmo entre os que a profes-
pensamento cartesiano - a passagem em que
Baillet, na Vie de M. Descartes, relata a entre- 118
Juntamente com a Moral e a Mecânica, a
vista do jovem Descartes com o Cardeal de
Medicina é um dos três ramos da árvore cujo
Bérulle. Este "fez-lhe entrever as conse-
qüências que poderiam ter tais pensamen- tronco é a Física. No tempo do Discurso, Des-
tos ... e a utilidade que o público daí tiraria se cartes alimentava ainda a esperança de poder
se aplicasse a maneira de filosofar à Medicina constituir a Medicina baseada em demonstra-
e à Mecânica, das quais uma produziria o ções infalíveis de que fala a Mersenne, em
restabelecimento e a conservação da saúde e a janeiro de 1630. Acerca da evolução de Des-
outra a diminuição e o alívio dos trabalhos dos cartes a este respeito, cf. Guéroult, op. cit., t.
homens". (A. T. I, 164.) II.
72 DESCARTES
sam, que não confesse que tudo quan~o procurar as mais raras e complicadas:
nela se sabe é quase nada, em compa- a razão disso é que essas mais rar;as
ração com o que resta a saber, e que nos enganam muitas vezes, quando se
poderíamos livrar-nos de uma infini- conhecem ainda as causas das m~is
dade de moléstias, quer do espírito, comuns, e que as circunstâncias das
quer do corpo, e talvez mesmo do quais dependem são quase sempre tão
enfraquecimento da velhice, se tivés- particulares e tão pequenas, que é
semos bastante conhecimento de suas muito penoso adverti-las 1 1 9 • Mas 1 a
causas e de todos os remédios de que a ordem que guardei nisso foi a seguin~.
natureza nos dotou. Ora,. tendo o Primeiramente, procurei encontrar em
desígnio de empregar toda a minha geral os princípios, ou primeiras cau-
vida na pesquisa de uma ciência tão sas, de tudo quanto existe, ou pode
necessárià, e tendo encontrado, um existir, . . no mun do, sem nad a cons1"d1.e-
caminho que me parece tal que se deve rar, para tal efeito, senão Deus só, que
infalivelmente achá-la, se o seguirmos, o criou, nem tirá-las de outra parte, ex-
a não ser que disso sejamos impedidos, ceto de certas sementes de verdades
ou pela curta duração da vida, ou pela que existem naturalmente em nossas
falta de experiências, julguei que não almas. Depois disso, examinei quais os
havia melhor remédio contra esses dois primeiros e os mais ordinários efeitos
i~pedmntos do que comunicar fiel- q.ue se podem deduzir dessas causas: e
mente ao público todo o pouco que já
parece-me que, por aí, encontrei céus,
tivesse descoberto, e convidar os bons
espíritos a esforçarem-se por passar astros, uma terra, e mesmo, sobre a
além, contribuindo, cada qual segundo terra, água, ar, fogo, minerais e algu-
sua inclinação e seu poder, para as mas outras dessas coisas que são as
experiências que seria preciso fazer, e mais comuns de todas e as mais sim
comunicando outrossim ao público ples, e por conseguinte as mais fáceis
todas as coisas que aprends~, a fim de conhecer. Depois, quando quis des-
de.que os últimos começassem onde os cer às que eram mais particulares,
precedentes houvessem acabado, e apresentaram-se-me tão diversas, que
assim, juntando as vidas e os trabalhos não acreditei que fosse possível ao
de muitos, fôssemos todos juntos espírito humano distinguir as formas
muito mais longe do que poderia ir ou espécies de corpos que existem
cada um em particular.
sobre a terra, de uma infinidade de ou-
Notara mesmo, no tocante às expe- tras que poderiam nela existir, se fosse
riências, que elas são tanto mais neces-:-
sárias quanto mais avançada a gente 1 1 9 . O desprezo de Descartes pelas experiên-
está no conhecimento. Pois, no come- cias é outra lenda que é necessário denunciar.
ço, mais vale servir-se apenas ·das que É verdade que Descartes prefere a~!Cperiên
se apresentam por si mesmas aos nos- cias inteiramente realizdú~-ná.tu e des-
sos sentidos, e que não poderíamos confia das experiências complicadas. No que
se opõe menos ao "método experimental" do
ignorar, contanto que lhes dediquemos que desconfia dos amantes do maravilhoso e
o pouco que seja de reflexão, em vez de d.os curiosos sem método.
DISCURSO DO MÉTODO 73
medida que fosse descobrindo sua ver- · grandes aqms1çoes, do que tiveram
dade, e proporcionar-lhes o mesmo outrora, quando m~is pobres, em reali-
cuidado que se quisesse mandar impri- zar outras muito menores. Ou então
mi-las: quer para ter mais ocasião de pode-se · compará-los a~s chefes Ide
bem examiná-las, porque sem dúvida exército, cujas forças costumam cres-
se olha sempre mais de perto o que se cer à proporção de suas vitórias, e que
acha dever ser visto por muitos, do que necessitam de mais habilidade, para se
aquilo que se faz apenas para si pró- manterem após a perda de uma bata-
prio, e, amiúde, as coisas que me pare- lha, do que possuem, depois de vencê-
ceram verdadeiras quando comecei a la, para tomar cidades e províncias.
concebê-las pareceram-me falsas quan- Pois é verdadeiramente dar batalhas
do pretendi pô-las no papel; quer para procurar vencer todas as dificuldades e
não perder nenhuma ocasião de benefi- os erros que nos impedem de chegar ao
ciar o público, se é que disso sou conhecimento da verdade, e é ·perder
capaz, e para que, se meus escritos uma acolher qualquer falsa opinião no
valem alguma coisa, os que os possuí- tocante a uma matéria um pouco geral
rem após a minha morte possam usá- e importante; é preciso, em seguida,
los como for mais conveniente; mas muito mais destreza para voltar ao
que não devia de modo algum consen- mesmo estado em que se encontrava
tir que fossem publicados durante a antes do que para fazer grandes pro-.
minha vida, a fim de que nem as oposi- gressos, quando já se têm princípios
ções e as c0ntrovérsias a que estariam que sejam seguros. Quanto a mim, se
talvez sujeitos, nem mesmo a reputa- deparei precedentemente com algumas-
ção, qualquer que ela fosse, que me verdades nas ciências (e espero que as
pudessem granjear, me dessem o coisas contidas neste volume 1 2 2 leva-
menor ensejo de perder o tempo que rão a julgar que descobri algumas),
desejo empregar em instruir-me. Pois, posso dizer que não passam de. conse-
embora seja verdadé que cada homem qüêncjas e dependências de cinco ou
deve procurar, no que depende dele, o seis dificuldades principais que sobre-
bem dos outros, e que é propriamente pujei, e que considero outras tantas
nada valer o não ser útil a ninguém, batalhas em que tive a sorte a meu
todavia é verdade também que os nos- lado. Não temerei mesmo dizer que
sos cuidados devem estender-:-se mais penso precisar ganhar apenas mais
longe que o tempo presente, e que é duas ou três semelhantes para levar
bom omitir as coisas que trariam tal- inteiramente a cabo os meus desígnios;
vez algum proveito aos que vivem, e que minha idade não é tão avançada
quando é com o intuito de fazer outras que, segundo o curso ordinário da
que aproveitarão mais aos nossos vin- natureza, não possa ainda dispor de
douros. Porque, com efeito·, quero que lazer suficiente para tal efeito. Mas
se saiba que o pouco que aprendi até creio estar tanto mais o brigado a pou-
agora não é quase nada, em compara- par o tempo que me resta quanto
ção com o que ignoro, e que não deses- inaior a esperança de poder empregá-
pero de poder aprender; pois acontece lo bem; e teria, sem dúvida, muitas
quase o mesmo . aos que descobrem ocasiões de perdê-lo, se publicasse os
pouco a pouco a verdade nas ciências,
que àqueles que, começando a enrique- 1
1
zz A saber: os três ensaios que seguem o
cer, têm menos dificuldade em realizar Discurso.
1
1
DISCURSO DO MÉTODO 75
buem a todos esses antigos filósofos, do-os, que se abrisse algumas janelas e
cujos escritos não possuímos, nem fizesse entrar a luz nessa adega, para
julgo, por isso, que os seus pensa- onde desceram para se bater. Masj até
mentos tenham sido muito desarrazoa- mesmo os melhores espíritos não
dos, visto serem os melhores espíritos devem desejar conhecê-los: pois, se
de seu tempo, mas apenas julgo que querem saber falar de todas as coisas e
nos foram mal relatados. Porque se vê adquirir a reputação de doutos, hão de
também que quase nunca aconteceu consegui-lo mais facilmente contentan-
que algum de seus sectários os haja do-se com a verossimilhança, que pode
superado: e estou seguro de que os ser encontrada sem grande custo em
mais apaixonados dos que seguem todas as espécies de matérias, do que
agora Aristóteles crer-se-iam felizes se procurando a verdade, que só se desco-
tivessem tanto conhecimento da natu- bre pouco a pouco ~m algumas, e que,
reza quanto ele o teve, embora sob a quando se trata de falar das outras,
condição de nunca o terem maior. São obriga a confessar francamente que a
como a hera, que não tende a subir gente as ignora. Visto que preferem o
mais alto que as árvores que a susten- conhecimento de um pouco de verdade
tam, e que muitas vezes mesmo toma a à vaidade de parecerem nada ignorar,
descer, depois de ter chegado ao seu como sem dúvida é bem preferível, e se
topo; pois me parece que também vol- - pretendem seguir um intento seme-
tam a descer, isto é, tomam-se de certa lhante ao meu, não precisam, para
forma menos sapientes do que se se isso, que lhes diga nada mais do que já
abstivessem de estudar, aqueles que, dísse nesse discurso. Pois, se são capa-
não contentes em saber tudo o que é zes de passar mais adiante do que fui,
inteligivelmente explicado no seu sê-lo-ão também, com maior razão, de
autor, querem, além disso, encontrar achar por si próprios tudo o que penso
nele a solução de muitas dificuldades, ter achado 1 2 5 • Tanto mais que, não
a cujo respeito nada disse e nas quais tendo jamais examinado algo a não ser
nunca talvez pensou. Todavia, a ma- por ordem, é certo que o que me falta
neira de filosofar é muito cômoda para ainda para descobrir é em si mais difí-
aqueles que possuem tão-somente espí- cil e mais oculto do que aquilo que
ritos muito medíocres; pois a obscuri- pude precedentemente encontrar, e te-
dade das distinções e dos princípios de riam mµito menos prazer em aprendê-
que se servem é causa de que possam lo por mim do que por si própr.ios;
falar de todas as coisas tão atrevida- além do que, o hábito que adquirirão,
mente como se as soubessem, e susten- procurando primeiramente coisas fá-
tar tudo o que dizem contra os mais ceis e passando pouco a pouco, gra-
sutis e os mais hábeis sem que haja dualmente, a outras mais difíceis, lhes
meio de convencê-los. Nisso me pare- servirá mais do que poderiam servir-
cem semelhantes a um cego que, para lhes todas as minhas instruções. Por-
se bater sem desvantagem com alguém que, quanto a mim, persuadi-me de
que vê, o fizesse vir ao fundo de algu- que, se me tivessem ensinado, desde a
ma adega muito obscura; e posso dizer juventude, todas as 'verdades cujas
que esses têm interesse que eu me abs- demonstrações procurei depois, e se eu
tenha de publicar os princípios- da 1 2 5 . O Discurso não é, pois, um equivalente
Filosofia de que me sirvo: pois, sendo das Regulae: pode-se. considerá-lo não c~mo
muito simples e muito evidentes, coma·· úma exposição do método mas simplesmente
o são, faria quase o mesmo, publica:Il- como um prefácio a aplicações do método. !
DISCURSO DO MÉTODO 77
não tivesse nenhuma dificuldade em que lhe servissem, não poderiam valer
aprendê-las,· jamais saberia talvez al- outra vez o tempo que teria de empre-
gumas outras, e pelo menos jamais gar a fim de escolhê-las. De modo que,
teria adquirido o hábito e a facilidade, se existisse no mundo alguém, de quem
que penso ter, para sempre descobrír se soubesse que seria seguramente
outras novas, à medida que me aplico capaz de encontrar as maiores coisas e
a procurá-las. E, numa palavra, se hã as mais úteis possíveis ao público, e a
no mundo alguma obra que não possa quem, por essa causa, os demais ho-
mens se esforçassem, por todos os
ser tão bem acabada por nenhum outro
meios, em auxiliar na realização de
exceto pelo mesmo que a começou, é
seus desígnios, não vejo que pudessem
aquela em que trabalho.
fazer mais por ele além de custear os
É verdade que, no concernente às gastos nas experiências de que necessi-
experiências que podem servir para tasse e, de resto, impedir que seu lazer
isso, um homem só não poderia bastar lhe fosse arrebatado pela importuni-
para as fazer todas; mas não poderia dade de pessoa alguma. Mas, além de
também empregar utilmente outras que nao presumo tanto de mim mesmo,
mãos que não as suas, exceto as dos que deseje prometer algo de extraordi-
artífices ou pessoas tais a quem pudes- nário, nem me alimente de pensa-
se pagar, e a quem a esperança do mentos tão vãos, como os de imaginar
ganho, que é um meio muito eficaz, que- o público se deva interessar muito
faria executar exatamente todas as coi- com meus projetos, não tenho também
sas que ele lhes prescrevesse. Pois, a alma tão baixa, que queira aceitar de
quanto aos voluntários, que, por curio- quem quer que seja qualquer favor, que
sidade qu desejo de aprender., se ofere- se possa crer que eu não tenha mereci-
cessem talvez para o ajudar, além de do.
comumente apresentarem mais pro- Todas essas considerações juntas
messas do que resultado e de não faze- foram causa, há três anos, de que eu
rem senão belas proposições de que não quisesse divulgar o tratado que
nenhuma jamais logra êxito, deseja- tinha em mãos, e mesmo que adotasse
riam infalivelmente ser pagos pela a resolução de não elaborar nenhum
explicação de algumas dificuldades, ou outro, durap.te minha vida, que fosse
ao menos por cumprimentos e conver- tão geral, nem do qual se pudesse
sas inúteis, que lhe custariam sempre conhecer os fundamentos de minha Fí-
algum tempo, por pouco que perdesse. sica. Mas em seguida houve de novo
E,. quanto às experiências já feitas duas outras razões~ que me obrigaram
pelos outros, ainda que quisessem lhas a apresentar aqui alguns ensaios parti-
comunicar, o que aqueles que as cha- culares, e .a prestar ao público alguma
mam de segredos nunca o fariam, são, conta de minhas ações e de meus
na maioria, compostas de tantas cir- desígnios. A primeira é que, se dei-
cunstâncias, ou ingredientes supér- xasse de fazê-lo, muitos, que souberam
fluos, que lhe seria muito penoso deci- da intenção que eu alimentava ante-
frar-lhes a verdade; além de que as riormente de mandar imprimir alguns
encontraria quase todas tão mal expli- escritos, poderiam imaginar que as
cadas, ou mesmo tão falsas, porquanto causas pelas quais me abstivera disso
aqueles que as efetuaram esforçaram- fossem mais desvantajosas para mim
se por tomá-las conformes·..com seus do que na realidade o são. Pois, embo-
princípios, que, se algumas houvessem ra não ame a glória em excesso, ou
78 DESCARTES
mesmo, se ouso dizê-lo, a deteste, na que haja tanto· mais ocasiâo, suplico a
medida em que a julgo contrária ao todos os que tiverem quaisquer obje-
repouso, que estimo acima de todas as ções ·a fazer-lhes que se dêem ao tf aba-
coisas, todavia nunca procurei escon- lho de enviá-las ao meu livreiro, para
der minhas ações como crimes, nem que, sendo advertido, procure juntar-
usei muitas precauções para ficar lhes ao mesmo tempo a minha respos-
desconhecido; tanto por crer que isso ta; e por esse meio, os leitores, vendo
me faria mal, como por saber que me em conjunto uma e outra, julgarão
daria uma espécie de inquietação, que tanto mais facilmente a verdade. Pois
seria mais uma vez contrária ao per- prometo nunca lhes dar respostas lon-
feito repouso de espírito que procuro. gas, mas somente confessar minhas
E visto que, tendo-me sempre mantido faltas mui francamente, se as reconhe-
assim indiferente entre o cuidado de cer, ou então, caso não consiga perce-
ser conhecido e o de não sê-lo, não bê-las, dizer simplesmente o que julgar
pude evitar de conquistar certa reputa- necessário para a defesa das coisas que
ção, pensei que devia fazer o máximo escrevi, sem acrescentar a explicação
para me livrar ao menos de a ter má. A de qualquer nova matéria, a fim de não
outra razão que me obrigou a escrever me enredar sem fim entre uma e outra.
este livro é que, vendo todos os dias Se algumas daquelas de que falei, no
tnais e mais o retardamento que sofre o começo da Dióptrica e dos Meteoros,
meu intento de me instruir, por causa chocam de início, por eu as denominar
de uma infinidade de experiências de suposições, e p,or parecer que não an-
que necessito, e que me é impossível seio prová-las, que se tenha a paciência
realizá-lo sem a ajuda de outrem, em- de ler o todo com atenção, e espero que
bora não me lisonjeie tanto a ponto de todos hão de se ver satisfeitos. Pois se
esperar que o público tome grande me afigura que nelas as razões se se-
parte em meus interesses, todavia não guem de tal modo que, como as derra-
quero faltar tanto a mim próprio que deiras .são demonstradas pelas primei-
dê motivo aos que me sobreviverão ras, que são as suas causas, essas
para me censurar um dia de que eu primeiras o são reciprocamente pelas
podia ter-lhes deixado muitas coisas últimas, que são seus efeitos. E não se
bem melhores do que as que deixei, se deve imaginar que cometo com isso a
não tivesse negligenciado demais em falta que os lógicos chamam um círcu-
fazê-los compreender em que poderiam lo 1 2 6 ; pois, como a experiência toma a
contribuir para os meus projetos. maioria desses efeitos muito certos, as
causas das quais os deduzo não servem
E pensei que me era fácil escolher tanto para prová-los como servem
algumas _matérias que, sem estarem para explicá-los; mas bem ao contrá-
expostas a muitas controvérsias, nem rio, são elas que são provadas por eles.
me obrigarem a declarar mais do que E não as chamei suposições só para
desejo sobre os meus princípios, não que se saiba que penso poder deduzi-
deixariam de mostrar assaz claramente las dessas primeiras verdades que
o que posso ou não posso nas ciências. expliquei mais acima, mas que expres-
E nisso eu não poderia dizer se fui bem
sucedido e não quero predispor os juí- 12 6 Cf. Cartas, a Morin, de 13 de julho de
zos de ninguém, falando eu próprio 1638, onde Descartes se defende da acJsação
dos meus escritos; mas estimaria Jo "círculo lógico" e estabelece a dif~rença
muito que fossem examinados e, para entre "provar" e "explicar". !
DISCURSO DO MÉTODO 79
sarnente não o quis fazer para impedir em francês, que é a língua de meu país,
que certos espíritos, que imaginam e não em latim, que é a de meus
saber num dia tudo o que um outro preceptores, é porque espero que aque-
pensou em vinte anos, tão logo ele lhes les que se servem apenas de sua razão
diz apenas duas ou três palavras a res- natural inteiramente pura julgarão me-
peito, e que são tanto mais sujeitos a lhor minhas opiniões do que aqueles
falhar, e menos capazes da verdade, que não acreditam senão nos livros
quanto mais penetrantes e vivos são, antigos. E quanto aos que unem o bom
se1iso ao estudo, os únicos que desejo
não pudessem aproveitar a ocasião
para meus juízes, não serão de modo
para erigir alguma Filosofia extrava-
algum, tenho certeza, tão parciais em
gante sobre o que acreditariam ser os
favor do latim que recusem ouvir mi-
meus princípios, e que depois me atri-
nhas razões, porque as explico em lín-
buíssem a culpa disso. Pois, quanto às
gua vulgar.
opiniões que são totalmente minhas, Além disso, não quero falar aqui,
não as desculpo de serem novas, tanto em particular, dos progressos que no
mais que, se se considerarem bem as futuro espero fazer nas ciências, nem
suas razões, estou certo de que serão me comprometer em relação ao pú-
julgadas tão simples e tão conformes blico com qualquer promessa que não
ao senso comum que parecerao menos tenha a certeza de cumprir: mas direi
extraordinárias e menos estranhas do unicamente que resolvi não empregar o
que quaisquer outras que se possa ter tempo de vida que me resta em outra
sobre os mesmos assuntos. E não me coisa exceto procurar adquirir algum
vanglorio também de ser o primeiro conhecimento da natureza, que seja de
inventor de qualquer delas, mas antes tal ordem que dele se possam tirar re-
de não as ter jamais acolhido, nem gras para a Medicina, mais seguras do
pelo fato de terem sido proferidas por que as adotadas até agora; e que
outrem, nem pelo que possam ter sido, minha inclinação me afasta tanto de
mas unicamente porque a razão mas qualquer espécie de outros desígnios,
fez aceitar. principalmente dos que não pode-riam
Se os artífices não puderem tão cedo ser úteis a uns sem prejudicar a outros,
executar a invenção que é explicada na que, se algumas circunstâncias me
Dióptrica, não creio que se possa compelissem a dedicar-me a eles, não
dizer, por isso, que ela seja má: pois, creio que fosse capaz de lograr êxito.
desde que é preciso destreza e hábito Pelo que, faço aqui uma declaração
para fazer e ajustar as máquinas que que, sei muito bem, não poderá servir
descrevi, sem que nelas falte qualquer para me tomar notável no mundo, mas
circunstância, não me espantaria tampouco tenho qualquer desejo de
menos se eles as lograssem no primeiro sê-lo; e ficarei sempre mais o brigado
lance, do que se alguém conseguisse àqueles graças aos quais desfrutarei
aprender, num dia, a tócar o alaúde sem impedimento do meu lazer, do que
excelentemente, tão-só porque lhe foi o seria aos que me oferecessem os mais
dada uma boa tavolatura. E se escrevo honrosos empregos da terra.
.....,.
MEDITACOES'
1 Para a comodidade das referências, seguimos a numeração da edição Khodoss (P.U.F.): em cada Medita-
ção, cada parágrafo é numerado; as alíneas das Segundas e Quintas Respostas são numeradas com um nú-
mero de três algarismos, dos quais o primeiro designa as Segu.ndas ou Quintas Respostas. Por exemplo, 203
significará Segu.ndas Respostas, § 3, e 529: Quintas Respostas, § 29. A letra G acompanhada de um alga-
rismo remete à exposição geométrica que segue ·as Segu.n~as Respostas.
AOS SENHORES DEÃO E DOUTORES
DA SAGRADA FACuLDADE DE TEOLOGIA DE PARIS
Senhores,
capaz de nos fornecer 2 • Daí por que julguei que não seria absolutamente fora de
propósito que mostrasse aqui por_que meios isto pode ser feito e que via é preciso
tomar para chegar ao conhecimento de Deus com mais facilidade e certeza do
que conhecemos as coisas deste mundo.
E, no que concerne à alma, embora muitos tenham acreditado que não é
fácil conhecer-lhe a natureza, e alguns tenham mesmo ousado dizer que as razões
humanas nos persuadem de que ela morre com o corpo e que somente a fé nos
ensina o contrário, todavia, visto que o Concz?io de Latrão, realizado sob o
pontificado de Leão X, na sessão- 8, os condena e ordena expressamente aos filó-
sofos cristãos que respondam a seus argumentos e empreguem todas as/orças de
seu espírito para dar a conhecer a verdade - ousei efetivamente empreendê-lo
neste escrito. Ademais, sabendo que a principal razão, que leva muitos ímpios a
não quererem acreditar de maneira alguma que há um Deus e que a alma huma-
na é distinta do corpo, é que eles dizem que ninguém até aqui pôde demonstrar
essas duas coisas; embora eu não seja absolutamente dessa opinião, mas, ao
contrário, mantenha que quase todas as razões apresentadas por tantas grandes
personagens, no tocante a essas duas questões, são outras tantas demonstrações
e, quando são bem entendidas, afirme que seja quase impossível inventar novas:
se é que eu creio que nada se poderia fazer mais útil na Filosofia do que procurar
uma vez com curiosidade e cuidado as melhores e mais sólidas razões e dispô-las
numa ordem tão clara e tão exata que dQravante seja certo a todo mundo serem
verdadeiras demonstrações. Enfim, posto que muitas pessoas desejaram isto de
mim 3 , as quais têm conhecimento de que cultivei um certo método para resolver
toda sorte de dificuldades nas ciências; método que, na verdade, não é novo,
nada havendo de mais antigo do que a verdade, mas do qual eles sabem que me
servi assaz felizmente em outras ocasiões; pensei que era de meu dever tentar
algo neste tema.
Ora, trabalhei o melhor que pude para encerrar neste tratado tudo o que
disso se pode dizer. Não que eu tenha acumulado aqui todas as diversas razões
que se poderiam alegar para servir de prova a nosso tema: pois jamais acreditei
que isto fosse necessário, senão quando não haja nenhuma que seja certa; mas
somente tratei as primeiras e principais de tal maneira que ouso efetivamente
propô-las como demonstrações muito evidentes e muito certas. E direi, além
disso, que elas são tais que eu não penso que haja alguma via por onde o espírito
2 Cf. Pascal: "Não é o que diz a Escritura, que melhor conhece as coisas que são de Deus. Ela
diz, ao contrário, que Deus é um Deus oqllto ... Quando afirma, em tantas passagens, que aque-
les que procuram Deus o encontram, não é dessa luz que fala, como sendo o dia em pleno meio-
dia ... " (Pléiade, pág. 1184.) ·
3 Possí.vel alusão ao Cardeal de Bérulle e aos Oratorianos que haviam compreendido o valor
apologético da metafisica cart~sin. Este valor, Descartes o reafirma com muita freqüência na
sua correspondência. Por exemplo: "Relendo o primeiro capítulo do Gênese, dei-me conta, não
sem espanto, que eu podia, de acordo com minhas próprias idéias, explicá-lo inteiramente de
modo bem melhor do que por todas as· maneiras pelas quais os intérpretes o explicaram até
aqui ... Mas agora, após a exposição que fiz de minha Filosofia, formulei o desígnio de mostrar ·
claramente que ela concorda muito mais .com todàs as verdades da Fé do que a de Aristóteles".
(A. T. IV, 698.) Era também a opinião, no· século XVIl, de Bossuet, Malebranche, Arnaud, etc.
A lenda de Descartes antepassado do livre-pensamento nos leva hoje a esquecer demasiado :esse
fato~ Sobre o cristianismo inequívoco d~ Descartes, cf. as Cartas, a Gibieuf(l8 de julho de 1~29)
e a Mersenne (18 de dezembro de 1629 e novembro de 1630).
MEDITAÇÕES 85
4
Descartes dirá, na carta a Clerselier, que dá seqüência às Quintas Respostas: "Peço-lhes consi-
derar que, entre os que são reputados os mais sapientes na Filosofia da Escola, não há cem que
os entendam (os Elementos de Euclides) e que não há um entre dez mi! que entenda todas as
demonstrações de Apolônio ou de Arquimedes, emborà sejam tão evidentes e tão certas quanto
as de Euclides". Este argumento é invocado contra os objetantes que não acham suas razões evi-
dentes, como se se tratasse de uma "evidência" vulgar e não elaborada pela prática das
Matemáticas.
5 O que não quer dizer que o espírito matemático está ao alcance de todos: "Nem todo mundo
razões metafisicas. Sobre esse ponto, cumpre remeter ao livro de Guéroult, em que as nossas
notas se inspiram continuamente, e assimilar a comparação estabelecida entre as duas "ordens"
por Vuillemin (Math. et Méta. chéz Descartes, págs. 119-127).
7 No texto, effort. Ch. Adam s{ipõe que àeva ser effet. (N. dos T.)
86
mas também no que se refere à humana Filosofia, cada um crendo que não é pos-
sível encontrar alhures mais solidez e conhecimento, nem mais prudência e, inte-
gridade para formular seu juízo; não duvido, se vos dignardes a tanto cuidar
deste escrito, a ponto de querer primeiramente corrigi-lo (pois, tendo co~hei
mento não só de minha imperfeição como também de minha ignorância, não
ousaria eu assegurar que não haja nele quaisquer erros) e, depois, após acres-
centar as coisas que lhe faltam, arrematar as que não estão perfeitas e tomar, vós
mesmos, o cuidado de fornecer uma explicação mais ampla às que dela necessi-
tem, ou, ao menos, disso me advertir afim de que nisso trabalhe, e, eefzm, depois
que as razões pelas quais eu provo que há um Deus e que a alma humana difere
do corpo tiverem sido levadas ao ponto de clareza e evidência a que eu tenho cer-
teza ser possível conduzi-las, que deverão ser tomadas como demonstrações
muito exatas, e quiserdes declarar isto mesmo e testemunhá-lo publicament~: eu
não duvido, digo, que, se isto for feito, todos os erros e falsas opiniões que jamais
existiram no tocante a essas duas questões sejam em breve expungidas do espí-
rito dos homens. Pois a verdade fará que todos os doutos e pessoas de espírito
subscrevam vosso julgamento e vossa autoridade, de tal modo que os ateus, que
são de ordinário mais arrogantes que doutos e judiciosos, se despojem de seu
espírito de contradição ou talvez sustentem, eles próprios, as razões que verão
serem recebidas por todas as pessoas de espírito como demonstrações, temendo
parecerem não possuir inteligência; e, eefzm, todos os outros facilmente se rende-
rão ante tantos testemunhos que não haverá mais ninguém que ouse duvidar da
existência de Deus e da distinção real e verdadeira da alma humana em relação
·ao corpo.
Compete a vós, agora, julgar o fruto que proviria dessa crença, se ela fosse
uma vez bem estabelecida, vós que vedes as desordens que sua dúvida produz;
mas não seria gentil de minha parte recomendar ainda mais a causa de Deus e da
Religião àqueles que sempre/oram seus maisfirmes esteios.
RESUMO
cias diferentes) como se concebe o bém ele não perece de modo aigum;
espírito e o corpo, são, com efeíto, mas que o corpo humano, na medida
substâncias diversas e realmente dis- em que difere dos outros corpos, não é
tintas umas das outras; e é o que se formado e composto senão de c6rta
conclui na sexta Meditação. E, na configuração de membros e outros àci-
mesma, também isto .se confirma, pelo dentes semelhantes; e a alma humana,
fato de não concebermos qualquer ao contrário, não é assim composta de
corpo senão como àivisível, ao passo quaisquer acidentes, mas é uma. pura
que o espírito ou a alma .do homem substância. Pois, ainda que todos os
não se pode concebeí senão como L.;_di- seus acidentes se modifiquem, por
visível: pois, com efeito, não podemos exemplo, que ela conceba certas coi-
conceber a metade de alma alguma, sas, que eia queira outras, que ela sinta
como podemos fazer com o menor de outras, etc., é, no entanto, sempre a
todos os corpos; de · sorte que suas mesma alma; ao passo que o corpo hu-
naturezas não são somente reconhe- mano não mais é o mesmo pelo sim-
cidas como diversas, porém mesmo, de ples fato de se encontrar mudada a fi-
alguma maneira, como contr.árias. gura de alguma de suas partes. Donde
Ora, é preciso que saibam que eu não se segue que o corpo humano pode
me empenhei, neste tratado, em dizer facilmente perecer, mas que o espírito
nada mais, tanto porque isto basta ou a alma do homem (o que eu absolu-
para mostrar mui claramente que da tamente não distingo) é imortal por sua
corrupção do corpo não decorre a natureza.
morte da alma, e assim, dar aos ho- Na terceira Meditação, parece-me
mens a esperança de uma segunda vida que expliquei bastante longamente o
após a morte;. como também porque as principal argumento de que me sirvo
premissas das quais é possível concluir para provar a existência de Deus.
a imortalidade da q.lma dependem da Todavia, a fim de que o espírito do lei-
explicação de toda a Física 9 : primeira- tor possa mais facilmente abstrair-se
mente, a fim de saber que~ em geral, dos sentidos, não quis de modo algum
todas as substâncias, isto é, todas as servir-me nesse lugar de quaisquer
coisas que não podem existir ·sem comparações tiradas das coisas corpó-
serem criadas por Deus, são por sua reas, de tal modo que talvez tenham
natureza incorruptíveis e jamais restado muitas obscuridades, as quais,
podem cessar de ser, caso não sejam espero, serão inteiramente esclarecidas
reduzidas a nada por este mesmo Deus nas minhas respostas às objeções que
que lhes queira negar seu concurso me foram propostas depois. Como, por
ordinário. E, em seguida, a fim de que exemplo: é bastante difícil entender
se note que o corpo, tomado em geral, como a idéia de um ser soberanamente
é uma substância, razão p~la qual tarn- perfeito, a qual se .e ncontra em nós,
contém tanta realidade objetiva, isto é,
9 A fim de facilitar a publicação de sua Física é
participa por representação em tantos
que Descartes pede o imprimatur da Sorbonne para
a ~ua Metafisica. Daí por que solicita a Mersemie graus de ser e de perfeição, que ela
que mantenha o projeto em segredo: "Isto poderia deve necessariamente provir de uma
talvez impedir a aprovação da Sorbonne, que eu causa soberanamente perfeita. Mas eu
desejo, e que me parece poder servir extremamente a
meus intuitos: pois eu vos diria que este poucó. de o· esclareci nestas respostas, pela co~
Metafisica que vos envio contém todos os princípios paração com uma máquina muito arti-
de minha Física". (11 de novembrn de 1640.) Em
outros termos: se aprovasse a Metafisica, a Sór- ficial cuja idéia se encontra no espírito
bonne desdizer-se-ia condenanào a Física. de qualquer operário; pois, assim
MEDITAÇÕES 89
CONCERNENTES
À PRMIRA FILOSOFIA
NAS QUAJS A EXISTÊNCIA DE DEUS EA DISTINCÃO REAL
ENTRE A ALMA EO CORPO DO HOMEM
SÃO DEMONSTRADAS
PRIMEIRA MEDITAÇÃO 13
/
Das Coisas que se Podem Colocar em Dúvida
tamente falsa, certamente ao menos as quadrado nunca terá mais do que qua-
cores com que eles a compõem devem tro lados; e não parece possível que
ser verdadeiras. verdades tão patentes possam ser sus-
7. E pela mesma razão, ainda que peitas de alguma falsidade ou incerte-
essas coisas gerais, a saber, olhos, za.
cabeça, mãos e outras sepielhantes, 9. Todavia, há muito que tenho no
possam ser imaginárias, é preciso, meu espírito certa opinião 1 8 de que há
todavia, confessar que há coisas ainda um Deus que tudo pode e por quem fui
mais simples e mais universais, que criado e produzido tal como sou. Ora,
são verdadeiras e existentes; de cuja quem me poderá assegurar que esse
mistura, nem mais nem menos do que Deus não tenha feito com que não haja
da mistura de algumas cores verdadei- nenhuma terra, nenhum céu, nenhum
ras, são formadas todas essas imagens corpo extenso, nenhuma figura, nenhu-
das coisas que residem em nosso ma grandeza, nenhum lugar e que, não
pensamento, quer verdadeiras e reais, obstante, eu tenha os sentimentos de
quer fictícias e fantásticas. Desse gêne- todas essas coisas e que tudo isso não
ro de coisas é a natureza corpórea em me pareça existir de maneira diferente
geral, e sua extensão; juntamente com daquela que eu vejo? E, mesmo, como
a figura das coisas extensas, sua quan- julgo que algumas vezes os outros se
tidade, ou grandeza, e seu número; enganam até nas coisas que eles acre-
como também o lugar em que estão, o ditam saber com maior certeza, pode
tempo que mede sua duração e outras ocorrer que Deus tenha desejado que
coisas semelhantes 1 7 • eu me engane todas as vezes em que
8. Eis por que, talvez, daí nós não faço a adição de dois mais três, ou em
concluamos mal se dissermos que a Fí- que enumero os lados de um quadrado,
sica, a Astronomia, a Medicina e todas ou em que julgo alguma coisa ainda
as outras ciências dependentes da mais fácil, se é que se pode imaginar
consideração das coisas compostas algo mais fácil do que isso. Mas pode
são muito duvidosas e incertas; mas . ser que Deus não tenha querido que eu
que a Aritmética, a Geometria e as ou- seja decepcionado desta maneira, pois
tras ciências desta natureza, que não ele é considerado soberanamente bom.
tratam senão de coisas muito simples e Todavia, se repugnasse à sua bondade
muito gerais, sem cuidarem muito em fazer-me de tal modo que eu me enga-
se elas existem ou não na natureza, nasse sempre, pareceria também ser-
contêm alguma coisa de certo e indubi- lhe contrário permitir que eu me enga-
tável. Pois, quer eu esteja acordado, ne algumas vezes e, no entanto, não
quer esteja dormindo, dois mais três posso duvidar de que ele mo permi-
formarão sempre o número cinco e o ta, 9 •
10. Haverá talvez aqui pessoas que
1 7 O segundo argumento encontra, pois, o seu limi-
preferirão negar a existência de um
te: ele não me permite pôr em ·dúvida os compo-
nentes de minhas percepções, a saber, as "naturezas Deus tão poderoso a acreditar que
simples", indecomponíveis (figura, quantidade, es-
1 8 Essa "opinião" é sustentada pelos teólogos das
paço, tempo), que são o objeto da Matemática. Tais
elementos "escapam, contrariamente aos objetos Segundas Objeções: Deus, dada sua onipotência,
sensíveis, a todas as razões naturais de duvidar", pode nos enganar. Não é o parecer de Descartes: o
sublinha Guéroult, apoiando-se no texto da Quinta engano em Deus constituiria não só um sinal de
Meditação: "A natureza de meu espírito é tal que eu malignidade, mas de não-ser. (Gol. com BurmanJ
não me poderia impedir de julgá-las verdadeiras Isso redunda em afirmar o valor tão-somente meto-
enquanto as concebo clara e distintamente". Daí a dológico dessa suposição antinatural.
necessidade de recorrer ao terceiro argumento que 19
A consideração da bondade, por si só, não basta
abalará esta certeza "natural". para invalidar a suposição. Cf. a nota precedente.
96 DESCARTES
todas as outras coisas são incertas. dosas de alguma maneira, como aca-
Mas não lhes resistamos no momento e bamos de mostrar, e todavia muito
suponhamos, em favor delas, que tudo prováveis, de sorte que se tem m,\iito
quanto aqui é dito de um Deus seja mais razão em acreditar nelas do que
uma fábula. Todavia, àe qualquer em negá-las. Eis por que penso que me
maneira que suponham ter eu chegado utilizarei delas mais prudentemente se,
ao estado e ao ser que possuo, quer o tomando partido contrário, empregar
atribuam a algum destino ou fatali- todos os meus cuidados em enganar-
dade, quer o refiram ao acaso, quer me a mim mesmo, fingindo que todos
queiram que isto ocorra por uma contí- esses pensamentos são falsos e imagi-
nua série e conexão das coisas, é certo nários; até que, tendo de tal modo
que, já que falhar e enganar-se é uma sopesado meus prejuízos, eles não pos-
espécie de imperfeição, quanto menos sam inclinar minha opinião mais para
poderoso for o autor a que atribuírem um lado do que para o outro, e meu
minha origem tanto mais será provável juízo não mais seja doravante domi-
que eu seja de tal modo imperfeito que nado por maus usos e desviado do reto
me engane sempre. Razões às quais cai;ninho que pode conduzi-lo ao co-
nada tenho a responder, mas sou obri- nhecimento da verdade. Pois estou se-
gado a confessar que, de todas as opi- guro de que, apesar disso, não pode
niões que recebi outrora em minha haver perigo nem erro nesta via e de
crença como verdadeiras, não há ne- que .não poderia hoje aceder dema-
nhuma da qual não possa duvidar siado à minha desconfiança, posto que .
atulmen~ não por alguma inconside- não se trata no momento de agir, mas
ração ou leviandade, mas por razões somente de meditar e de conhecer.
muito fortes e maduramente considera- 12. Suporei, pois, que há não um
das: de sorte que é necessário que verdadeiro Deus,· que é a soberana
interrompa e suspenda doravante meu fonte da verdade, mas certo gênio
juízo sobre tais pensamentos, e que maligno 2 1, não menos ardiloso e enga-
não mais lhes dê crédito, como faria nador do que poderoso, que empregou
com as coisas que me parecem eviden- toda a sua indústria em enganar-me.
temente falsas, se desejo encontrar Pensarei que o· céu, o ar, a terra, as
algo de constante e de seguro nas cores, as figuras, os sons e todas as
ciências 2 0 • coisas exteriores que vemos são apenas
11. Mas não basta ter feito tais ilusões e enganos de que ele se serve
considerações, é preciso ainda que para surpreender minha ·credulidade.
cuide de lembrar-me delas; pois essas Considerar-me-ei a mim mesmo abso.:.
antigas e ordinárias opiniões ainda me lutamente desprovido de mãos, de
voltam amiúde ao pensamento, dan- olhos, de carne, de sangue, desprovido
do-lhes a longa e familiar convivência de quaisquer sentidos, mas dotado da
que tiveram comigo o direito de ocu- falsa crença de ter todas essas coisas.
par meu espírito mau grado meu e de Permanecerei obstinadamente apegado
tornarem-se quase que senhoras de a esse pensamento; e se, por esse meio,
minha crença. E jamais perderei o cos-
tume de aquiescer a isso e de confiar 2 1 A função do Deus enganador e do Gênio Malig-
nelas, enquanto as considerar como no é a mesma: porém o Gênio Maligno é um artifi-
cio psicológico que, impressionando mais a rrtinha
são efetivamente, ou seja, como du.vi-. imaginação, levar-me-á a tomar a dúvida m~is a
sério e a inscrevê-la melhor em minha memóda ("é
2 º A dúvida é agora universalizada. preciso ainda que cuide de lembrar-me dela").
.. _Jd~DITAÇÕES 97
<laço de cera) e conquista da terceira mais alta; deve apenas inaugurar a cadeia das
certeza. razões.
- . __:-- -
100 DESCARTES
lhantes sutilezas 2 9 • Mas, antes, deter- qual seja tocado e do qual receba a
me-ei em considerar aqui os pensa- impressão. Pois não acreditava de
mentos que anteriormente nasciam por i modo algum que se devesse atribuir à
si mesmos em meu espírito e que eram natureza corpórea vantagens como ter
inspirados apenas por minha n,,atureza, de si o poder de mover-se, de sentir e
quando me aplicava à consideração de de pensar; ao contrário, espantava-me
·meu ser. Considerava-me, inicial- antes ao ver .que semelhantes faculda-
mente, como provido de rosto, mãos, des se encontravam em certos cor-
braços e toda essa máquina composta pos31
de ossos e carne, tal como ela aparece 7. Mas eu, o que sou eu, agora que
em um cadáver, a qual eu designava suponho 3 2 que há alguém que é extre-
pelo nome de corpo.. Considerava, mamente poderoso e, se ouso dizê-fo,
além disso, que me alimentava, que malicioso e ardiloso, que emprega
caminhava, que sentia e que pensava e
todas as suas forças e toda a sua indús-
relacionava todas essas ações à
tria em enganar-me? Posso estar certo
alma 3 0 ; mas não me detinha em pen-
de possuir a menor de todas as coisas
sar em que consistia essa alma, ou, se
que atribuí há pouco à natureza corpó-
o fazia, imaginava que era algo extre-
mamente raro e sutil, como um vento, rea? Detenho-me em pensar nisto com
uma flama ou um ar muito tênue, que atenção, passo e repasso todas essas
estava insinuado e . disseminado nas coisas em meu espírito, e não encontro
minhas partes mais grosseiras. No que nenhuma que possa dizer que exista
se referia ao corpo, não duvidava de em mim. Não é necessário que me de-
maneira alguma de sua natureza; pois more a enumerá-las. Passemos, pois,
pensáva conhecê-la mui dístintamente aos atributos da alma e vejamos se há
e, se quisesse explicá-la segundo as alguns que existam em mim. Os pri-
noções que dela tinha, tê-la-ia descrito meiros são alimentar-me e caminhar;
desta maneira: por corpo entendo tudo mas, se é verdade que não possuo
o que pode ser limitado por alguma corpo algum, é verdade também que
figura; que pode ser compreendido em não posso nem caminhar nem alimen-
qualquer lugar e preencher um espaço tar-me. Um outro é sentir; mas não se
de tal sorte que todo outro corpo dele pode também sentir sem o corpo; além
seja excluído; que pode ser sentido ou do que, pensei sentir outrora muitas
pelo tato, ou pela visão, ou pela audi-
coisas, durante o sono, as quais reco-
ção, ou pelo olfato; que pode s·er movi-
nheci, ao despertar, não ter sentido .
do de muitas maneiras, não. por . si efetivamente. Um outro é pensar; e
mesmo,, mas por algo de alheio pelo
verifico aqui que o pensamento é um
29
Sobre este método de determinação do pro-
atributo que me pertence; só ele não
blema por segregação, cf. o diálogo: Recherche de
3 1 Este conhecimento "natural" que eu tenho de
la Vérité (Pléiade, págs. 892-94). Ao interlocutor
aturdido que acaba de responder: "Diria, portanto, mim mesmo antes da prova da dúvida será inteira-
que sou um homem", o cartesiano replica: "Não mente falso? Não. Se a alma é concebida à maneira
prestais atenção ao que perguntei e a resposta que dos escolásticos, em troca a distinção entre o corpo
.apresentais, embora vos pareça simples, lançar- e o espírito (indispensável à Física) está aí presente,
vos-ia em questões muito árduas e muito embaraço- mas a título de opinião provável, sem fu:ndamento.
sas, se eu quisesse apertá-las por menos que seja ... Cf. Respostas, 204.
Não entendestes bem a minha pergunta e respondeis 3 2 Mudança de plano. Do pensamento inspirado
a mais coisas do que vos perguntei. . . Dizei-me, por "minha natureza" passamos à só idéia de mim
pois, o que sois propriamente, na medida em que mesmo compatível com a instauração da dúvida, da
duvidais". indeterminação psicológica à determinação metafi-
J o Cf. Respostas, 508. sica.
102 DESCARTES
e desviar o espírito dessa maneira de de mim mesmo? Pois é por si tão evi-
conceber a fim de que ele próprio dente que sou eu quem duvida, quem
possa reconh('.cer muito distintamente entende e quem deseja que não é neces-
sua natureza3 7 • . sário nada acrescentar aqui para expli-
9. Mas o que sou eu, portanto? cá-lo. E tenho também certamente o
Uma coisa que pensa. Que é uma coisa poder de imaginar; pois, ainda que
que pensa? É uma coisa que duvida, possa ocorrer (como supus anterior-
que concebe, que afirma, que nega, que mente) que as coisas que imagino não
quer, que não quer, que imagina tam- sejam verdadeiras, este poder de imagi-
bém e que sente 3 8 • Certamente não é ; nar não deixa, no entanto, de existir
pouco se todas essas coisas pertencem ! realmente em mim e faz parte do meu
à minha natureza. Mas por que não lhe pensamento. Enfim, sou o mesmo que
pertenceriam? Não sou eu próprio esse sente, isto é, que recebe e conhece as
mesmo que duvida de quase tudo, que, coisas como que pelos órgãos dos sen~
no entanto, entende e concebe certas tidos, po'sto que, com efeito, vejo a luz,
coisas, que assegura e afirma que ouço o ruído, sinto o calor. Mas dir-
somente tais coisas são verdadeiras, me-ão que essas aparências são falsas
que nega todas as demais, que quer e e que eu durmo. Que assim seja; toda-
deseja conhecê-las mais, que não quer via,. ao menos, é muito certo que me
ser enganado, que imagina muitas coi- parece que vejo, que ouço e que me
sas, mesmo mau grado seu, e que sente aqueço; e é propriamente aquilo que
também muitas como que por inter- em mim se chama sentir e isto, tomado
médio dos órgãos do corpo? Haverá . assim precisamente, nada é senão pen-
algo em tudo isso que não seja tão ver- sar . Donde, começo a conhecer o que
dadeiro quanto é certo que sou e que sou, com um pouco mais de luz e de
existo, mesmo se dormisse se~pr e distinção do que anteriormente 3 9 •
ainda quando aquele que me deu a 10. Mas não me posso impedir de
existência se servisse de todas as suas crer· que as coisas corpóreas 40 , cnjas
forças para enganar-me? Haverá, tam- imagens se formam pelo meu pensa-
bém, algum desses atributos que possa mento, e que se apresentam aos senti-
ser distinguido de meu pensamento, ou dos, sejam mais distintamente conheci-
que se possa dizer que existe separado das do que essa não sei que parte de
3 7 Em virtude desse princípio, não me é dado abso-
mim mesmo que não se apresenta à
lutamente o direito de recorrer à imaginação, pois imaginação: embora, com efeito, seja
"tudo quanto posso compreender por seu meio" foi uma coisa bastante estranha que coisas
excluído pela dúvida. Por aí eu sei, ao mesmo que considero duvidosas e distantes
tempo, que minha natureza é .puro _pensamento
exclusivo de todo elemento corporal. E· a segunda sejam mais claras e mais facilmente
verdade, a qual não se deve confundir com a distin- · conhecidas por mim do que aquelas
ção real entre a alma e o corpo, estabelecida somen-
te na Meditação Sexta. Cf. 510.
3 8 Cumpre observar a diferença relativamente ·à 3 9
A saber, um pensamento: a) distinto dos corpos,
definição do § 7: "Isto é, um espírito, um entendi- se os houver; b) distinto das faculdades não propria-
mento ou uma razão". Aí determinava-se a essência mente intelectuais, como a imaginação, que só me
da substância "coisa pensante"; aqui ela é descrita pertencem porque implicam este pensamento puro.
revestida de seus diferentes modos. Desse novo 40
Novo assalto do pensamento imaginativo ine-
ponto de vista, reintegra-se na "coisa pensante" o rente à "minha natureza" e do qual não posso ainda
que fora excluído de sua essência. Todos esses me desprender: estou convencido, mas não persua-
modos (imaginar, sentir, querer), embora não per- 1 <lido. Daí a necessidade de uma contraprova que
tençam à minha natureza, não podem ser postos em servirá para estabelecer a terceira verdade. Como
dúvida, na medida em que se beneficiam da certeza todas as figuras de retóricà das Meditações, esta
do Cogito. integra-se na ordem.
104 DESCARTES
que são verdadeiras e certas e que per- todas as coisas que se apresentavam ao
tencem à minha própria natureza. Mas paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao
vejo bem o que seja: meu espírito tato, ou à audição, encontram-se rnu- 1
apraz-se em extraviar-se e não pode dadas e, no entanto, a mesma cer;i per-
ainda conter-se nos justos limites da manece. Talvez fosse corno penso
verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda urna atualmente, a saber, que a cera não era
vez, as rédeas a fim de que, vindo, em nem essa doçura do mel, nem esse
seguida, a libertar-se delas suave e agradável odor das flores, nem essa
oportunamente, possamos mais facil- brancura, nem essa figura, nem esse
mente dominá-lo e conduzi-lo 41 • som, mas somente um corpo que um
11. Comecemos pela consideração pouco antes me aparecia sob certas
das coisas mais comuns e que acredi- formas e que agora se faz notar sob
tamos compreender mais distinta- outras. Mas o que será, falando preci-
mente, a saber, os corpos que tocamos samente, que eu imagino quando a
e que vemos. Não pretendo falar dos concebo dessa maneira? Considere-
corpos em geral, pois essas noções ge- mo-lo atentamente e, afastando todas
rais são ordinariamente mais confusas, as coisas que não pertencem à cera,
porém de qualquer corpo em particu- vejamos o que resta. Certamente nada
lar. Tornemos, por exemplo, este peda- permanece senão algo de extenso, flexí-
ço de cera que acaba de ser tirado da vel e mutável. Ora, o que é isto: flexí-
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura vel e mutável? Não estou imaginando
do mel que continha, retém ainda algo que esta cera, sendo redonda, é capaz
do odor das flores de que foi recolhido; de se tornar quadrada e de passar do
sua cor, sua figura, sua grandeza, são quadrado a urna figura triangular?
patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se Certamente não, não é isso, posto que
nele batermos, produzirá algum som. a concebo capaz de receber urna infini-
Enfim, todas as coisas que podem dade de modificações similares e eu
distintamente fazer conhecer um corpo não poderia, no entanto, percorrer essa
encontram-se neste. infinidade com minha imaginação e,
12. Mas eis que, enquanto falo, é por conseguinte, essa concepção que
aproximado do fogo: o que nele resta- tenho da cera não se realiza através da
va de sabor exala-se, o odor se esvai, minha faculdade de imaginar 4 2 •
sua cor se modifica, sua figura se alte- 13. E, agora, que é essa extensão?
ra, sua grandeza aumenta, ele toma-se Não será ela igualmente desconhecida,
líquido, esquenta-se, mal o podemos já que na cera que se funde ela aumen-
tocar e, embora· nele batamos, nenhum ta e fica ainda maior quando está intei-
ramente fundida e muito mais ainda
som produzirá. A mesma cera perrna- .
nece após essa modificação? Cumpre quando o calor aumenta? E eu não
conceberia claramente e segundo a ver-
confessar que permanece: e ninguém o dade o que é a cera, se não pensasse
pode negar. O que é, pois, que se que é capaz de receber mais variedades
conhecia deste pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente nãb pode 42
Raciocínio em duas partes: 1. 0 o que me permite
ser nada de tudo o que notei nela por reconhecer a mesma cera é sua identidade na medi-
intermédio dos sentidos, posto que . da em que a cera é coisa extensa; 2. 0 mas este con-
teúdo só pode ser idéia e não imagem da extensão
que o corpo ocupa atualmente ou daquelas (em nú-
41
Em outros termos: façamos de conta que inter- mero finito) que poderia ocupar em seguida. Cf.
rompemos a ordem a fim de seguir o senso comum Quintas Respostas: "As faculdades de entencier e de
em seu próprio· terreno. Sobre o fato de ser esta imaginar diferem não só segundo o mais e o menos,
transgressão apenas aparente, cf. o importantíssimo poréIIJ. como duas maneiras de agir totalmente
§ 515 das Respostas. diferentes". 1
MEDITAÇÕES 105
segundo a extensão do que jamais ima- la, senão chapéus e casacos que podem
ginei. É preciso, pois, que eu concorde cobrir espectros ou homens fictícios
que não poderia mesmo conceber pela que se movem apenas por molas? Mas
imaginação o que é essa cera e que julgo que são homens verdadeiros e
somente meu entendimento é quem o assim compreendo, somente pelo poder
concebe 4 3 ; digo este pedaço de cera de julgar que reside em meu espírito,
em particular, pois para a cera em : aquilo que acreditava ver com meus
geral é ainda mais evidente. Ora, qual 'olhos.
é esta cera que não pode ser concebida 15. Um homem que procura elevar
senão pelo entendimento ou pelo espí- seu conhecimento para além do
rito? Certamente é a mesma que vejo, comum deve envergonhar-se de apro-
que toco, que imagino e a mesma que veitar ocasiões para duvidar das for-
conhecia desde o começo. Mas o que é mas e dos termos do falar do vulgo;
de notar é que sua percepção, ou a prefiro passar adiante e considerar se
ação pela qual é percebida, não é uma. eu concebia com maior evidência e
visão, nem um tatear, nem uma imagi- perfeição o que era a cera, quando a
nação, e jamais o foi, embora assim o percebi inicialmente e acreditei conhe-
parecesse anteriormente, mas somente cê-la por meio dos sentidos exteriores,
uma inspeção do espírito, que pode ser ou ao menos por meio· do senso
imperfeita e confusa, como era antes, : comum, como o chamam, isto é, por
0u clara e distinta, como é presente- meio do poder imaginativo, do que a
mente, conforme minha atenção se di- concebo presentemente, após haver
rija mais ou menos às coisas que exis- examinado mais exatamente o que ela
tem nela e das quais é composta. é e de que maneira pode ser conhecida.
14. Entretanto, eu não poderiaA es- Por certo,. seria ridículo colocar isso
pantar-me demasiado ao considerar o em dúvida. Pois, que havia nessa pri-
quanto meu espírito tem de fraqueza e : meira percepção que fosse distinto· e
de pendor que o leva insensivelmertte · evidente e que não pudesse cair da
ao erro. Pois, ainda que sem falar eu . mesma maneira sob os sentidos do
considere tudo isso em mim mesmo, as i menor dos ·animais? Mas quando dis-
palavras detêm-mei todavia, e sou , tingo a cera de suas formas exteriores
quase enganado pe os termos da lin- e, como se a tivesse despido de suas
guagem comum; pois nós dizemos que vestimentas, considero-a inteiramente
vemos a mesma cera, se no-la apresen- nua 4 4 , é certo que, embora se possa
tam, e não que julgamos que é a ainda encontrar algum erro em meu
mesma, pelo fato de ter a mesma cor e : juízo, não a posso conceber dessa
a mesma figura: donde desejaria quase · forma sem um espírito humano 4 5 •
concluir que se conhece a cera pela
visão dos olhos e não pela tão-só ins- 4 4 Cf. 513, onde Descartes se defende de ter pre-
peção do espírito, se por acaso não tendido "abstrair o conceito da cera de seus aciden-
olhasse pela janela homens que pas- tes". "Os acidentes são contige~s em relação à
sam pela rua, à vista dps quais não substância, mas não a acidentalidade", especifica
Guéroult. (Descartes, I, pág. 56.)
deixo de dizer que vejo · homens da 4 5 Tal é o sentido exato do "pedaço de cera": eu
mesma maneira que digo que vejo a nada posso conhecer através da percepção ou da
imaginação sem compreender (ou reconhecer), atra-
cera; e, entretanto, que vejo d~sta jane- vés do. pensamento, a essência da coisa. Tenho ou
não razão de reconhecer esta essência? Não sei
43 Por onde fica provado não só que a imaginação . ainda. Pois não se trata aqui de saber se eu dispo-
não pode me dar a conhecer a natureza dos corpos .nho efetivamente do conhecimento da essência do
que se lhe apresentam (o que era o objetivo da corpo, mas· de saber em quais condições posso estar
contraprova), mas ainda que o pensamento puro é o seguro de possuir a idéia clara e distinta deste
único capaz de fazê-lo. corpo. Cf. Guéroult, op. cit., págs. 144-45.
106 DESCARTES
16-. Mas, enfim, que direi desse espí- nitidez não deverei eu conhecer-me 4 7 ,
rito, isto é, de mim mesmo 4 6 ? Pois até posto que todas as razões que servem
aqui não admiti em mim nada além de para conhecer e conceber a natureza
1
um espírito. Que declararei, digo, de da cera, ou qualquer outro corpo, pro-
mim, que pareço conceber com tanta vam muito mais fácil e evidentemente
nitidez e distinção este pedaço de cera? a natureza de meu espírito? E encon-
Não me conheço a mim mesmo não só tram-se ainda tantas outras coisas no
com muito mais verdade e certeza, mas próprio espírito que podem contribuir
também com muito maior ·distinção e ao esclarecimento de sua natureza, que
nitidez? Pois, se julgo que a cera é ou aquelas que dependem do corpo (como
existe pelo fato de eu a ver, sem dúvida esta) não merecem quase ser enumera-
segue-se bem mais evidentemente que das.
eu próprio sou, ou que existo pelo fato 18. Mas, enfim,. eis que insensivel-
de eu a ver. Pois pode acontecer que mente cheguei aonde queria; pois, já
aquilo que eu vejo não seja, de fato,
que é coisa presentemente conhecida
cera; pode também dar-se que eu. não
tenha olhos para ver coisa alguma; por mim que, propriamente falando, só
mas não pode ocorrer, quando vejo ou concebemos os corpos pela faculdade
(coisa que não mais distingo) quando de entender em nós existente e não pela
penso ver, que eu, que penso, não seja imaginação nem pelos sentidos, e que
alguma coisa. Do mesmo modo, se não os conhecemos pelo fato de os ver
julgo que a cera existe, pelo fato de que ou de tocá-los, mas somente por os
a toco, seguir-se-á ainda a mesma conceber pelo pensamento, reconheço
coisa, ou seja, que eu sou; e se o julgo com evidên~a que nada há que me seja
porque minha imaginação disso me mais fácil de conhecer do que meu
persuade, ou por qualquer outra causa espírito. Mas, posto que é quase
que seja, concluirei sempre a mesma impossível desfazer-se tão prontamente
coisa. E o que notei aqui a respeito da de uma antiga opinião, será bom que
cera pode aplicar-se a todas as outras eu me detenha um pouco ·neste ponto, .a
coisas que me são exteriores e que se fim de que, pela amplitude de minha
encontram fora de mim. meditação, eu imprima mais profunda-
17. Ora, se a noção ou conheci- mente em minha memória este· novo
mento da cera parece ser mais nítido e conhecimento.
mais distinto após ter sido descoberto
não somente pela visão ou pelo tato, 4 7
É a terceira verdade: o espírito é mais fácil de
conhecer do que o corpo. Com efeito, obtenho
mas ainda por muitas outras causas, imediatamente o conhecimento da existência e da
com quão maior evidência, distinção e 'natureza de meu espírito, ao passo que o meu pensa-
mento me proporciona apenas a idéia clara e dis-
4 6 Passamos, com este parágrafo, à confirmação tinta dos corpos cuja existência ainda é problemá-
da segunda verdade: quando percebo o pedaço de tica. Guéroult comenta: "Quando Descartes declara
cera, seja compreendendo clara e distintamente sua que o conhecimento da alma é o mais fácil dos
natureza, seja apenas imaginando-o ou tocando-o, conhecimentos, quer dizer que é a mais fácil das
só uma coisa é certa, no ponto em que me encontro. verdades científicas e o primeiro dos conhecimentos
É que eu penso percebê-lo, . . Mostrando que este na ordem da ciência. Não quer dizer .que a ciência é
"pensamento" era indispensável ao conhecimento mais fácil do que o conhecimento vulgar. A passa-
da coisa, a análise precedente deu confirmação a gem do senso comum à ciência é, com efeito, a mais
esta verdade. difícil das ascensões". (Op. cit., pág. 128.)
MEDITAÇÃO TERCEIRA 48
1. Fecharei agora os olhos, tampa- que pensa, isto é, que duvida, que afir-
rei meus ouvidos, desviar-me-ei de ma, que nega, que conhece poucas coi-
todos os meus sentidos, apagarei sas, que ignora muitas, que ama, que
mesmo de meu pensamento todas as odeia, que quer e não quer, que tam-
imagens de coisas corporais, ou, ao bém imagina e que sente. Pois, assim
menos, uma vez que mal se pode fazê- como notei acima, conquanto as coisas
lo, reputá-las-ei como vãs e como fal- que sinto e imagino não sejam talvez
sas; e assim, entretendo-me apenas co- absolutamente nada fora de mim e
migo mesmo e considerando meu nelas mesmas, estou, entretanto, certo
interior, empreenderei tomar-me de que essas maneiras de pensar, que
pouco a pouco mais conhecido e mais
chamo sentimentos e imaginações so-
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa
mente na medida em que são maneiras
4
a Plano da Meditação: de pensar, residem e se encontram cer-
§§ 1-4: recapitulação; tamente em mim. E neste pouco que
§5: a questão de Deus;
§§6-9: discriminação dos dados do pro- acabo de dizer creio ter relatado tudo o
blema. que sei verdadeiramente, ou, pelo
A) § § 10-14: primeiro caminho para o exame
do valor objetivo das idéias: o senso comum.
menos, tudo o que até aqui notei que
B) §§15-29: segundo caminho: sabia.
(§§16-17): princípios de causali-. \
dade e correspondência; : 2. Agora considerarei mais exata-
(§ 18): colocação do problema: em mente se talvez não se encontrem abso-
quais condições reconheceria eu o -lutamente em mim outros conheci- ·
valor objetivo de uma idéia?
(§§ 19-21): exame das diferentes mentas que não tenha ainda percebido.
espécies de idéia sob este novo Estou certo de que sou uma coisa pen-
prisma; sante; mas não saberei também, por-
(§22): a idéia de Deus reconhecida
como dotada de valor objetivo = tanto, o que é requerido para me tomar
primeira prova; certo de alguma coisa? Nesse primeiro
(§§23-28): reflexões sobre esta
prova. conhecimento só se encontra uma
C) §§29-42: segunda prova: clara e distinta percepção daquilo que
(§§29-30): necessidade de outra conheço; a qual, na verdade, não seria
prova;
(§§31-32): primeiro momento, pri- suficiente para me assegurar de que é
meira hipótese: eu existo por mirn verdadeira se em algum momento
mesmo como por uma causa; pudesse acontecer qut! uma coisa que
(§§33-34): primeiro momento, se-
gunda hipótese: eu existo sem eu concebesse tã_o clara e distintamente
causa; sé verificasse falsa. E, portanto, pare-
(§35): segundo momento;
(§§36-37): reflexões subsidiárias. ce-me que já posso estabelecer como
§§38-42: reflexão sobre o conjunto. regra geral que todas as coisas que
108 DESCARTES
tituem apenas uma comparação destinada a expli- tão certo como os outros (parece-me que eu jul-
car a função da idéia. Não se trata, de forma algu- go ... ). Mas cumpre excluí-fo da indagação, na me-
ma, de assimilar a idéia intelectual à imagem dida em que consiste em afirmar ou em negar sem
sensível. Cf. o protesto contra Hobbes nas Terceiras! fundamento, que o conteúdo de minha idéia corres-
Respostas: "Pelo nome de idéia, ele quer somente! ponde a uma realidade fora dela. Ou ainda: afirma
que se entendam aqui as imagens das coisas mate-1 ou nega que o conteúdo de uma idéia (sua "reali-
riais pintadas na fantasia corpórea; e sendo issoi dade objetiva") possui um \Valor objetivo, sem exa-
suposto, é-lhe fácil mostrar que não se pode ter; minar previamente o conteúdo desta idéia.
5 6 Restrição que tem sua importância. Tomar-se-á
nenhuma idéia própria e verdac:JJ:ira de Deus nem de'
um anjo ... "; assim como G ,2: "Pelo nome de compreensível no § 19 desta Meditação.
5 7 "Parecem"· indica que Descartes se coloca ao
idéia ... " Sobre a novidade do sentido dado por
Descartes à palavra "idéia", cf. Gilson, Discours, nível do senso comum. Aqui, com efeito, começa a
pág. 319. crítica da classificação das idéias segundo o senso
53 Por esta primeira classificação, distinguem-se:' comum e dos preconceitos que ela implica - •é o
1. 0 as idéias; 2. 0 os conteúdos nos quais uma ação\ "primeiro caminho" possível da investigação; o
do espírito se acrescenta às idéias. segundo inicia-se no § 15.
110 DESCARTES
mP.smo. Pois, que eu tenha a faculdade e convincentes 5 8 • Quando digo que m.e
de conceber o que é aquilo que geral- parece que isso me é ensinado pela
mente se chama uma coisa ou uma ver- natureza 5 9 , entendo somente por essa
dade, ou um pensamento, parece-me palavra natureza uma certa incla~ão
que não o obtenho em outra parte que me leva a acreditar nessa coisa, e
senão em minha própria natureza; mas não uma· luz natural que me faça
. se ouço agora algum ruído, se vejo o conhecer que ela é verdadeira. Ora,
sol, se sinto calor, até o presente jul- essas duas coisas diferem muito entre
guei que estes sentimentos procediam si; pois eu nada poderia colocar em dú-
de algumas coisas que existem fora de vida dàquilo que a luz natural me reve-
mim; e enfim parece-me que as sereias, la ser verdadeiro, assim como ela me
os hipogrifos e todas as outras quime- fez ver, há pouco, que, do fato de eu
ras semelhantes são ficções e inven- duvidar, podia concluir que existia. E
ções de meu espírito. Mas também tal- não tenho em mim outra faculdade, ou
vez eu possa persuadir-me de que poder, para distinguir o verdadeiro do
todas essas idéias são do gênero das falso, que me possa ensinar que aquilo
que eu chamo de estranhas e que vêm que essa luz me mostra como verda-
de fora ou que nasceram todas comigo deiro não o é, e na qual eu me possa
ou, ainda, que foram todas feitas por fiar tanto quanto nela. Mas, no que se
mim; pois ainda não lhes descobri cla- refere a inclinações· que também me
ramente a verdadeira origem. E o que parecem ser para mim naturais, notei
devo fazer principalmente neste ponto freqüentemente, quando se tratava de
é considerar, no tocante àquelas que escolher entre as virtudes e os vícios,
me parecem vir de alguns objetos loca- que elas não me levaram menos ao mal
lizados fora de mim, quais .as razões do que ao bem; eis por que não tenho
que me o brigam a acreditá-las seme- motivo de segui-las tampouco no refe-
lhantes a esses objetos. rente ao verdadeiro e ao falso.
13. E, quanto à outra razão, segun-
11. A primeira dessas razões é que do a qual essas idéias devem provir de
me parece que isso me é ensinado pela alhures, porquanto não dependem de
natureza; e a segunda, que experi- minha vontade, tampouco a acho mais
mento em mim próprio que essas convincente 6 0 • Pois, da mesma forma
idéias não dependem, de modo algum, que· as inclinações, de que falava há
de minha vontade; pois amiúde se pouco, se encontram em mim, não o bs-
apresentam a mim mau grado meu, tante não se acordarem sempre com
como agora, quer queira quer não, eu minha vontade, e assim talvez haja em
sinto calor, e por esta razão persuado- mim alguma faculdade ou poder pró-
me de que este sentimento ou esta idéia prio para produzir essas idéias sem
de calor é produzido em mim por algo
diforente de mim mesmo, ou seja, pelo 58
Começo da crítica do senso comum, que
compreenderá três argumentos.
calor do fogo ao pé do qual me encon- 59
Primeiro árgumento: impossibilidade de confiar
tro. E nada vejo que pareça mais num instinto pretensamente "natural" ...
razoável do que julgar que essa coisa
60
Segundo argumento: ... nem na independência
aparente das idéias adventícias em relação à minha
estranha envia-me e imprime em mim vontade, para concluir que essas idéias têm certa-
sua semelhança, mais do que qualquer mente por origem uma coisa exterior a mim. É de
notar que a idéia de uma faculdade desconhecida
outra coisa. que era rejeitada na Meditação Segunda, porque ela
12. Agora é preciso que eu veja se não podia valer contra uma idéia clara e distinta, é
aqui admitida. Mas é para mostrar que nada P,Osso
estas razões são suficientemente fortes concluir na ausência de _l!aid~ clara e distinta.
MEDITAÇÕES 111
luz natural que deve haver ao menos zido em um objeto que dele era priva-
tanta realidade na causa eficiente e do anteriormente se não for -por uma
total quanto no seu efeito: pois de·_onde coisa que seja de uma ordem, .de um
é que o efeito pode tirar sua realidade grau ou de um gênero ao menos tão
senão de sua causa? E como poderia perfeito quanto o calor, e assim :os
esta causa lha comunicar se não a outros. Mas ainda, além disso, a ideia
tivesse em si mesma 6 4 ? do calor, ou da pedra, não pode estar
17. Daí decorre 6 5 não somente que em mim se não tiver sido aí colocada
o nada não poderia produzir coisa por alguma causa que contenha erd. si
alguma, mas também que o que é mais ao menos _tanta realidade quanto aque-
perfeito, isto é, o que contém em si la que concebo no calor ou na pedra.
mais realidade, não pode ser uma Pois,. ainda que essa causa não trans-
decorrência e uma dependência do mita à minha idéia nada de sua reali-
menos perfeito. E esta verdade não é dade atual ou formal, ne_m por isso se
somente clara e evidente nos seus efei- deve imaginar que essa causa deva ser
tos, que possuem essa realidade que os menos real; mas deve-se saber que,
filósofos chamam de atual ou formal, sendo toda idéia uma obra do espírito,
mas também nas idéias onde se consi- sua natureza é tal que não exige de si
dera somente a realidade que eles cha- nenhuma outra realidade formal além
mam de objetiva: por exemplo, a pedra da que recebe e toma de empréstimo
que ainda não foi, não somente não do pensamento ou do espírito, do qual
pode agora começar a ser, se não for ela é apenas um modo, isto é, uma
produzida por uma coisa que possui maneira ou forma de pensar. Ora, a
em si formalmente, ou eminentemen- fim de que uma idéia contenha uma tal
te 6 6 , tudo o que entra na composição realidade objetiva de preferência a
da pedra, ou seja, que contém em si as outra, ela o deve, sem dúvida, a algu-
mesmas coisas ou outras mais excelen- ma causá, na qual se encontra ao
tes do que aquelas que se encontram menos tinta realidade formal quanto
na pedra; e o calor não pode ser produ- esta idéia contém de realidade o bjeti-
6 4 Primeiro princípio invocado como "manifesto
va 6 7 • Pois, se supomos que existe algo
pela luz natural": princípio de causalidade (cf. 211 e
G 20, 21). Mas será este princípio, enunciado geral- 6 7
Do ponto de vista de sua realidade formal, as
mente, aplicável ao caso das idéias que nos preocu- idéias são simplesmente conteúdos do pensamento;
pam? Daí a necessidade de completá-lo com o prin- mas, do ponto de vista de sua realidade objetiva,
cípio expresso no parágrafo seguinte, que Guéroult "aquela não há de satisfazer quem disser (somente)
denomina: "princípio de correspondência da idéia e que o próprio entendimento é a causa delas". (Pri-
de seu·ideatum". . meiras Respostas) Trata-se de uma inovação de
6 5 Nesse parágrafo difícil, mostra-se que o princí- Descartes. Para a Filosofia tomista, "não havia pro-
pio de causalidade vale tanto no caso de uma "reali- blema especial da causa do conteúdo das idéias ...
dade atual ou formal" quanto no caso de uma "rea- porque este conteúdo; não sendo considerado como
lidade objetiva". Traduzamos. Seja uma substância do ser, não requeria nenhuma causa própria ...
existente em ato: uma pedra, um homem. É evidente Nessas condições, o ser formal de meu conceito re-
que há na causa que a prodlfziu pelo menos tanta quer uma causa (o intelecto que apreende' a forma
realidade quanto nesta substância mesma. Seja da pedra), mas o ser objetivo de meu conceito não a
agora a idéia que eu tenho desta substância (isto é, requer". (Gilson, Discours, 322.) Com Descartes,
uma "realidade objetiva" e não mais uma "reali- ao contrário, coloca-se uma questão que para a
dade atual ou formal"). É igualmente evidente que Escolástica não tinha sentido: posso fiar-me na
há no ser existente ("atual ou formalmente") que. é idéia para afirmar o que se me aparece através dela?
causa desta idéia (ou desta "realidade objetiva") "Como é que o sendo para n6s é o próprio sendo?·:
pelo menos tanta realidade quanto nesta idéia traduz Guéroult, ao fim. de seu livro. (Op. cit., II,
mesma. 305.) Através dos termos da ontologia medieval; é a
6 6 Uma causa contém "formalmente" seu efeito
ontologia do que se convencionou chamar "o idea-
quando ela lhe é homogênea, e o contém "eminente- lismo moderno"_. de Fichte a Husserl que aqui se
mente", no caso contrário. Cf. G 4. desenha.
MEDITAÇÕES 113
na idéia que não se encontra em sua tiradas, mas que jamais podem conter
causa, cumpre, portanto, que ela obte- algo de maior ou de mais perfeito 7 0 •
nha esse algo do nada; mas, por imper . .
feita que seja essa maneira de ser pela 18. E quanto mais longa e cuidado-
qual uma coisa é objetivamente. ou por samente examino todas estas coisas,
representação no entendimento por sua tanto mais clara e distintamente reco-
idéia 6 8 , decerto não se pode dizer, nq nheço que elas são verdadeiras. Mas,
entanto, que essa maneira ou essa enfim, que concluirei de tudo isso?
forma não seja nada, nem por canse.., Concluirei que, se a realidade objetiva
guinte que essa idéia tire sua origem dq de alguma de minhas idéias· é tal que
nada. Não devo também duvidar que eu reconheça claramente que ela não
seja necessário que a realidade esteja está em mim nem formal nem eminen-
formalmente nas causas de minhas temente e que, por conseguinte, não
idéias, embora a realidade que eu con- posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí
sidero nessas idéias seja somente obje- decorre necessariamente que não exis-
tiva, nem pensar que basta que essa to sozinho no mundo, mas que há
realidade se encontre objetivamente em, ainda algo que existe e que é a causa
suas causas 6 9 ; pois, assim como essa desta idéia; ao passo que, se não se
maneira de ser objetivamente pertence encontrar em mim uma tal idéia, não
às idéias, pela própria natureza delas; terei nenhum argumento que me possa
do mesmo modo a maneira ou forma convencer e me certificar da existência
de ser formalmente pertence às causas de qualquer outra coisa além de mim
dessas idéias (ao menos às primeiras e mesmo; pois procurei-os a todos cui-
principais) pela própria natureza delas. dadosamente e não pude, até agora,
E ainda que possa ocorrer que uma encontrar nenhum 7 1 •
idéia dê origem a uma outra idéia, issd
todavia não pode estender-se ao infini. . 19. Ora, entre essas idéias, além
to, mas é preciso chegar ao fim a uma daquela que me representa a mim
primeira idéia, cuja causa seja um mesmo, sobre a qual não pode haver
como padrão ou original, na qual toda aqui nenhuma dificuldade, há uma
a realidade ou perfeição esteja contida outra que me representa um Deus, ou-
formalmente e em efeito, a qual só se tras as coisas corporais e inanimadas,
encontre objetivamente ou por repre- outras os anjos, outras os animais,
sentação nessas idéias. De sorte que a outras, enfim, que me representam ho-
luz natural me faz conhecer evidente- mens semelhantes a mim. Mas, no que
mente que as idéias são em mim como se refere às idéias que me representam
quadros~ ou imagens, que podem na outros homens ou animais, ou anjos,
verdade facilmente não conservar a
perfeição das coisas de onde foram 7
° Conhecido pela luz natural, este princípio,
como o anterior, faz parte dessas noções primitivas
que escapam ao domínio do Grande Embusteiro.
6
ª Há imperfeição na medida em que o conteúdo Isso não significa que as idéias sejam efetivamente
representativo é privado da existência própria ad as imagens das coisas, porém me permite apenas
objeto que representa. Cf. Primeiras Respota~: "A aplicar o princípio de causl~de entre uma reali-
maneira de ser pela qual uma coisa existe objetiva- dade objetiva e uma realidade atual.
71 Recapitulação da exposição precedente (desde o
mente ou por representação no entendimento por
sua idéia é imperfeita". § 15) e posição do problema: encontrarei eu uma
ª 9 Outra objeção possível: a idéia não terá como idéia cuja realidade objetiva seja tal que me seja
causa outra idéia e assim sucessivamente ao infini- absolutamente impossível imputar a sua causa a
to? Resposta: esta regressão é possível, mas, cedo meu exclusivo pensa.111ento? Estapositio quaestionis
ou tarde, chega-se a uma causa que possui uma reali- exige, pois, uma nova enumeração e classificação
dade "formal ou atual". dos diversos gêneros de idéias.
114 DESCARTES
concebo facilmente que podem sei for- falsidade material 7 4 , a saber, quando
madas pela mistura e composição de elas representam o que nada é como se
outras idéias que tenho das coisas cor- fosse alguma coisa. Por exemplo, i as
idéias que tenho do calor e do frio kão
porais e de Deus, ainda que não hou-
tão pouco claras e tão pouco distintas,
vesse, fora de mim, no mundo, outros que por seu intermédio não posso dis-
homens, nem quaisquer animais ou cernir se o frio é somente uma priva-
anjos 72 • E quanto às idéias das coisas ção do calor ·ou o calor uma privação
corporais, nada reconheço de tão gran- do· frio, ou ainda se uma e outra são
de nem de tão excelente que não me qualidades reais ou não o são~ e visto
pareça poder provir de mim mesmo; que, sendo as idéias como que ima-
pois, se as considero de mais perto, e gens, não pode haver nenhuma que não
se as examino da mesma maneira nos pareça representar alguma coisa,
como examinava, há pouco, a idéia da se é certo dizer que o frio nada é senão
cera, verifico que pouquíssima coisa privação do calor, a idéia que mo
nela se encontra que eu conceba clara representa como algo de real e de posi-
e distintamente: a saber, a grandeza ou tivo será sem despropósito chamada
a extensão em longura, largura e falsa, e assim outras idéias semelhan-
tes; às quais certamente não é neces-
profundidade; a figura que é formada sário que eu atribua outro autor exceto
pelos termos e pelos limites dessa eu mesmo. Pois, se elas são falsas, isto
extensão; a situação que os corpos é, se representam coisas que não exis-
diferentemente figurados guardam tem, a luz natural me faz conhecer que
entre si; e o movimento ou a modifica- procedem do nada, ou seja, que estão
ção dessa situação; aos quais podemos em mim apenas porque falta algo à
acrescentar a substância, a duração e o minha natureza e porque ela não é
número 7 3 • Quanto· às outras coisas, inteiramente perfeita. E se essas idéias
como a luz, as cores, os sons, os odo- são verdadeiras, todavia, já que me
res, os sabores, o calor, o frio e as ou- revelam tão pouca realidade que não
tras qualidades que caem sob o tato,. posso discernir. nitidamente a coisa
representada do não-ser, não vejo
encontram....:se em meu pensamento
razão pela qual não possam ser produ-
com tanta obscuridade e confusão que .zidas por mim mesmo e eu não possa
ignoro mesmo se são verdadeiras ou ser o seu autor 7 5 •
falsas e somente aparentes, isto é, se as
idéias que concebo dessas qualidades 7 4 Cf. a nossa nota ao § 9. Além da falsidade for-
mente em mim, posto que sou apenas sas corporais, isto é, das idéias "dos atributos que
pertencem às coisas às quais são atribuídas". (Prin-
uma coisa que pensa; mas, já que são cfpios, I, 57.) .
~º Aplicação do mesmo princípio de causalidade.
1 s C) Exclusão.de umà primeira classe de idéias das
Contendo um máximo de realidade objetiva, a idéia
coisas corporais. : de Deus envia necessariamente a uma causa que
conterá no mínimo, um máximo absolut.o de reali-
11 "A noção que·femos da substância criada refe-
dade fo~al. Como eu não posso ser esta causa, é
re-se da mesma maneira a todas, isto é, àquelas que mister concluir que Deus existe. Até agora procura-
são imateriais assim como àquelas que são mate- va-se apenas, aparentemente, que idéia em mim
riais ou corporais; pois, para entender que são subs: podia ser reconhecida como investida de um valor
tâncias, é preciso apenas perceber que podem existll! objetivo. Acabamos de achá-la, mas achamos ao
sem a ajuda de qualquer coisa criada." (Princfpios,: mesmo tempo a primeira prova da existência de
I 52.) Esta unívocidade, de que se lança mão aqui; Deus pelos efeitos. Este § 2~ constitui uma volta
v'ale apenas para as "substâncias criadas", pois ~ decisiva. Pois a quarta verdade que acabamos assim
palavra "substância", em compensação, já não tem de estabelecer não é da mesma ord~m que as prece-
o mesmo sentido quando aplicada a Deus e às cria- dentes: ela confere, por exemplo, sua verdade ao
turas. (lbid., § 5-1.) Cogito, ainda que eu não pense nele atualmente. Ela
1 s Cf. Princfpios, I, 55: "Pensamos somente que 3; abole o poder do Grande Enganador; para nos
duração de cada coisa é um modo ou uma maneira transferir ao de um Deus garante da verdade de mi-
como consideramos cada coisa enquanto ela conti~ nhas idéias claras e distintas. Veja-se, a respeito
nua sendo"; e 57. deste ponto, a obra de Guéroult.
116 DESCARTES
noções, consultar o cap. IV do Leibniz Critique de por mim mesmo? A)Admitamos que sou o autor de
Descartes, de Belaval. mim mesmo ...
118 DESCARTES
32. E não devo imaginar que as coi- man~ir alguma das outras; e assim do
sas que me faltam são talvez mais difí~ fato de ter sido um pouco antes não se
ceis de adquirir do que aquelas das segue que eu deva ser atualmef}.te, a
quais já estou de posse; pois, ao nao - ser que neste momento aliguma
contrário, é bem certo que foi muito causa me produza e ine crie, por assim
mais difícil que eu, isto é, uma coisa ou dizer, novamente, isto é, me conserve.
uma substância pensante, haja saído 34. Com efeito, é uma coisa muito
do nada, do que me seria adquirir as clara e muito evidente 9 0 (para todos os
luzes e os _.conhecimentos de muitas que considerarem com atenção a natu-
coisas que ignoro, e que são apenas reza do tempo) que uma substância,
acidentes dessa substância. E, assim, para ser conservada em todos· os
sem dificuldade, se eu mesmo me tives- momentos de sua duração, precisa do
se dado esse mais de que acabo de mesmo poder e da mesma ação, que
falar, isto é, se eu fosse o autor de meu seria necessário para produzi-la e
nascimento e de minha existência, eu criá-la de novo, caso não existisse
não me teria privado ao menos de coi- ainda. De sorte que a luz natural nos
sas que são de mais fácil aquisição, a mostra claramente que a conservação
saber, de muitos conhecimentos de que e a criação não diferem senão com res-
minha natureza está despojada 8 8 ; não peito à nossa maneira de pensar, e não
me teria tampouco privado de ·nenhu- em efeito. Cumpre, pois, apenas que eu
ma das coisas que estão contidas na me interrogue a mim mesmo para
idéia que concebo de Deus, pois não saber se possuo algum poder e alguma
há nenhuma que me pareça de mais virtude que seja capaz de fazer de tal
difícil aquisição; e se houvesse alguma, modo que eu, que sou agora;sej a ainda
certamente ela me pareceria tal (su- no futuro: pois, já que eu sou apenas
pondo que tivesse por mim todas as uma coisa pensante (ou ao menos já
que não se trata até aqui precisamente
outras coisas que possuo), porque eu
senão dessa parte de mim mesmo), se
sentiria. que minha força acabaria neste
um tal poder residisse em mim, decerto
_ponto e não seria capaz de alcançá-lo.
33. E ainda que possa supor que eu deveria ao menos pensá-lo e ter
talvez tenha sido sempre como sou conhecimento dele: mas não sinto ne-
nhum poder em mim 9 1 e por isso reco-
agora 8 9 , nem por isso poderia evitar a nheço evidentemente que dependo de
força desse raciocínio, e não deixo de algum ser diferente de mim.
conhecer que é necessária que Deus 35. Poderá também ocorrer que este
seja o autor de minha existência. Pois ser de que dependo não seja aquilo que
todo o tempo de minha vida pode ser chamo Deus e que eu seja produzido
dividido em uma infinidade de partes, ou por meus pais ou por outras causas
cada uma das quais não depende de
9 ° Cumpre justificar ·a equação entre criação e
88
É impossível, em virtude do princípio: "Quem conservação, colocada ao fim do parágrafo anterior
pode o mais pode o menos". Ora, é mais difícil criar e sem a qual a refutação já não disporia de força.
uma substância (mesmo finita) do que atribuir Mas trata-se de um princípio ainda imposto pela
perfeições que jamai"s são algo exceto acidentes (cf. descontinuidade dos momentos do tempo.
G 23). Logo, como não posso produzir o menos (as 91 Cf. o § 13, onde a hipótese de uma faculdade
perfeições de que tenho idéia), não posso produzir o desconhecida não era repelida; mas tratava-se de
mais (ser o autor do meu ser). A hipótese é absurda. uma faculdade "própria para produzir idéias", e
89
B) Admitamos que eu exista sem causa. A aqui trata-se de uma faculdade que poderia produzir
descontinuidade e a independência dos momentos a mim próprio com meu desconhecimento. Ora,
do tempo invalidam de pronto esta hipótese, por- dado que eu aqui me considero sempre como sendo
quanto implicam a necessidade para mim de ser nada mais do que uma coisa pensante, tal hipótese é
conservado, em cada instante, por uma causa. dessa vez inaceitável.
MÉDITAÇÕES 119
menos perfeitas do_ que ele 9 2 ? Muito não pode haver progresso ·até o infini-
ao contrário, isso não pode ser assim. . to, posto que não se trata tanto aqui da
Pois, como já disse anteriormente, é causa que me produziu outrora como
uma coisa evidente que deve haver ao : da que me conserva presentemente.
menos tanta realidade na causa quanto 36. Não se pode fingir também que
em seu efeito. E portanto, já que sou talvez muitas causas juntas tenham
urna coisa pensante, e tenho em mim concorrido em parte para me produzir,
alguma idéia de Deus, qualquer que e que de uma recebi a idéia de uma das
seja, enfim, a causa que se atribua à perfeições que atribuo a Deus, e de
minha natureza, cumpre necessaria- outra a idéia de alguma outra, de sorte
mente confessar que ela deve ser de que todas essas perfeições se encon-
igual modo uma coisa pensante e pos- tram na verdade em algumà parte do
suir em si a idéia de todas as perfeições Universo, mas não se acham todas jun-
que atribuo à natureza divina 9 3 • Em tas e reunidas em uma só que seja
seguida, pode-se de novo pesquisar se
Deus. Pois, ao contrário, a unidade, a
essa causa tem sua origem e sua exis-
simplicidade ou a inseparabilidade de
tência de si mesma ou de alguma outra
todas as coisas que existem em Deus é
coisa. Pois se ela a tem de si própria , 9 4
uma das principais perfeições que con-
segue-se, pelas razões que anterior-
cebo existentes nele; e por certo a idéia
mente aleguei, que deve ser, ela
dessa unidade e reunião de todas as
mesma, Deus; porquanto, tendo a vir-
perfeições de Deus não foi colocada
tude de ser e de existir por si, ela deve
também, sem dúvida, ter o poder de em mim por nenhuma causa da qual eu
possuir atualmente todas as perfeições não haja recebido também as idéias de
cujas idéias concebe, isto é, todas todas as outras perfeições. Pois ela não
aquelas que eu concebo como existen- · mais pode ter .feito compreender juntas
tes em Deus. Se ela tira sua existência e inseparáveis, sem fazer ao mesmo
de alguma outra causa diferente de tempo com que eu soubesse o que elas
si 9 5 , tornar:.se-á a perguntar, pela eram e que as conhecesse a todas de al-
mesma razão, a respeito desta segunda guma maneira •
9 6
causa, se ela é por si, ou por outrem, 37. No que se refere aos meus pais,
até que gradativamente se chegue a aos quais parece que devo meu nasci-
uma última causa que se verificará ser mento, ainda que seja verdadeiro tudo
Deus. E é muito manifesto que nisto quanto jamais pude acreditar a seu res-
peito, daí não decorre todavia que
92 Segundo momento da prova: eu sei agora "que sejam eles que me conservam, nem que
dependo de algum ser diferente de mim", mas este me tenham feito e produzido enquanto
ser não poderá ser algo mais exceto Deus?
93 Invocação do princípio de causalidade e aplica- coisa pensante, pois apenas puseram
. ção ao caso precedente. algumas disposições nessa matéria, na
9 4 A) Esta causa estranha existe por si; ela deve,
qual julgo que eu, isto é, meu espírito
portanto, causar-se com todas as perfeições de que
tenho idéia. Portanto, ela é Deus. · - a única coisa que considero atual-
9 5 ii) Esta causa é, por sua vez, produzida por
mente como eu próprio - se acha
outra, mas é possível remontar assim indefrnida- encerrado; e, portanto, não pode haver
rn.ente na série das causas? Não; aqui, não nos
assiste o direito, pois não se trata da causa que me aqui, quanto a eles, nenhuma dificul-
produziu (posso subsistir sem os meus pais), mas da dade, mas é preciso concluir necessa-
causa que me criou ou me conserva no ser a cada
instante do tempo. Vemos quão ligada se encontra riamente que, pelo simples fato de que
esta segunda prova à idéia cartesiana do tempo,
imposta pela Física. (Cf. Guéroult, op. cit., I, págs.
272-85.) 9 6 Cf. Cal. com Burman, A. T., V, págs. 154-55.
120 DESCARTES
espírito dos sentidos e notei tão exata- com igual distinção e clareza; e do
mente que há muito poucas coisas que simples fato de que essa idéia se encon-
se conhecem com certeza no tocante às tra em mim, ou que sou ou existo, eu
coisas corporais, que há muito mais que possuo esta idéia, concluo tão
que nos são conhecidas quanto ao evidentemente a existência de Deus e
espírito humano, e muito mais ainda que a minha depende inteiramente dele
quanto ao próprio Deus 1 0 1 , que agora em todos os momentos de minha vida,
desviarei sem nenhuma dificuldade que não penso que o espírito humano
meu pensamento da consideração das possa conhecer algo com maior evi-
coisas sensíveis ou imagináveis, para dência e certeza 102 . E já me parece
dirigi-lo àquelas que, sendo despren- que descubro um caminho que nos
didas de toda matéria, são puramente conduzirá desta contemplação do ver-
inteligíveis. . dadeiro Deus (no qual todos os tesou-
2. E certamente a idéia que tenho ros da ciência e da sabedoria estão
do espírito humano, enquanto é uma encerrados) ao conhecimento das ou-
coisa pensante e não extensa, em lon- tras coisas do Universo 1 0 3 •
gura, largura e profundidade, e que 3. Pois, primeiramente, reconheço
não participa de nada que pertence ao que é impossível que ele me engane
corpo, é incomparavelmente mais dis- jamais, posto que em toda fraude e
tinta do que a idéia de qualquer coisa embuste se encontra algum modo de
corporal. E quando considero que imperfeição. E, conquanto pareça que
duvido, isto é, que sou uma coisa poder enganar seja um sinal de sutileza
íncompleta e dependente, a idéia de um ou de poder, todavia querer enganar
testemunha indubitavelmente fraqueza
1 °0
Plano da Meditação: ou malícia. E, portanto, isso não se
§§ 1-2: recapitulação; pode encontrar em Deus.
§ § 3-5: esboço de uma solução para ino- 4. Em seguida, experimento em
. centar Deus do erro;
§6: rejeição desta solução;
§§7-8: dois argumentos metafisicas pos- 1 º 2 Reconheço, pois, agora, que Deus é a coisa·
mim mesmo certa capacidade de jul- modo que não. devo espantar-me se me
gar, que sem dúvida recebi de Deus, do engano.
mesmo modo que todas as outras coi- 5. Assim, conhe_ço que o er~o en-
sas que possuo; e como ele não quere- quanto tal n·ão é algo de real que
ria iludir-me, é certo que ma deu tal dependa de Deus, mas que é apenas
que não poderei jamais falhar, quando uma carência; e, portanto, que não
a usar como é necessário. E não resta- tenho necessidade, para falhar, de
ria nenhuma dúvida quanto a esta ver- algum poder que me tenha sido dado
por Deus particularmente para esse
dade, se não fosse possível, ao que efeito, mas que ocorre que eu me enga-
parece, inferir dela a conseqüência de ne pelo fato de o pÓder que Deus me
que assim nunca me enganei; pois se doou para discernir o verdadeiro do
devo a Deus tudo o que possuo e se ele falso não ser -infinito em mim 1 0 5 .
não me deu nenhum poder para falhar, 6. Todavia, isto ainda não me satis-
parece que nunca devo enganar-me 1 0 4 . faz inteiramente 1 0 6 ; pois o erro não é
E, na verdade, quando penso apenas uma pura negação, isto é, não é a sim-
em Deus, não descubro em mim ples carência ou falta de alguma perfei-
nenhuma causa de erro ou de falsida- ção que me não é devida, mas antes é
de; mas em seguida, retomando a mim, uma privação de algum conhecimento
a experiência me ensina que estou, não que parece que eu deveria possuir. E,
obstante, sujeito a uma infinidade de considerando a natureza de Deus, não
me parece possível que me tenha dado
erros ·e, ao pro~ua de mais perto a alguma faculdade que seja imperfeita
causa deles, nóto que ao meu pensa- em seu gênero, isto é, à qual falte algu-
mento não se apresenta somente uma ma perfeição que lhe seja devida; pois,
idéia real e positiva de Deus, ou seja, se é verdade que, quanto mais um arte-
de um ·ser soberanamente perfeito, mas são é perito mais as obras que saem de
também, por assim dizer, uma certa suas mãos são perfeitas e acabadas,
idéia ne.gativa do nada, isto é, daquilo que ser imaginaríamos nós que, produ-
que estfi. infinitamente distante de toda zido por esse soberano criador de
sorte de perfeição; e que sou como que todas as coisas, não fosse perfeito e
um meio entre Deus e o nada, isto é, inteiramente· acabado em todas as suas
colocado de tal maneira entre o sobe- partes? E por c~rto não há dúvida de
rano ser e o não-ser que nada se encon- que Deus só pode me ter criado de tal
tra em mim, na verdade, que me possa maneira que jamais eu pudesse enga-
conduzir ao erro, na medida em que nar-me; é certo também que ele quer
sempre aquilo que é o melhor: ser-me-
um soberano ser me produziu; mas
á, poi's, mais vantajoso falhar do que
que, se me considero participante -de
não falhar 1 0 7 ?
alguma maneira do nada .ou do não-
ser, isto é, na medida em que não sou 1 0 5
Estando o erro no homem devi.do ao fato de ele
eu próprio o soberano ser, acho-me também participar do nada e não sendo o nada
exposto a uma infinidade de faltas, de causa de nada (G 20), pode parecer que o erro fica
assim explicado e Deus desculpado ...
10 6
Por quê? É que o erro não está em mim como
1 ° 4 E no entanto eu me engano. . . É a próprra simples falta de ser, como admite com demasiada
colocação do problema da Teodicéia: Deus,- meu r~pidez a solução anterior, mas como uma "imper-
criador, é infinitamente perfeito; ora, o erro e o mal feição positiva". Não é uma simples ignorância,
existem de fato; como desculpar Deus disso'? A bem mas uma ignorância que eu dou por uma verdade.
dizer, o problema assim colocado preocupa menos Mais do que uma negação: uma privação.
Descartes do que este outro: como, salvaguardando 1 0 7 O reconhecimento do erro como privação des-
definitivamente a veracidade de Deus, garantir loca o problema: já que Deus quer' sempre o melhor,
deimitivamente a possibilidade "do conhecimento será melhor que o homem tenha sido afetado de
das outras coisas do Universo"? uma privação?
MEDITAÇÕES 125
7. Considerando isso com mais mesma coisa que poderia talvez, com
atenção, ocorre-me inicialmente ao alguma forma de razão, parecer muito
pensamento que me não devo espantar imperfeita, caso estivesse inteiramente
se minha inteligência não for capaz. de só, apresenta-se muito perfeita em sua
compreender por que Deus faz o que natureza, caso seja encarada como
faz e que assim não tenho razão algu- parte de todo este Universo. E, embo-
ma de duvidar de sua existência, pelo ra, desde que me propus a tarefa de
fato de que, talvez, eu veja por expe- duvidar de todas as coisas, eu tenha
riência muitas outras coisas sem poder conhecido com certeza apenas minha
compreender por que razão nem como existência e a de Deus, todavia tam-
Deus as produziu 1 0 8 • Pois, sabendo já bém, já que reconheci o infinito poder
que minha natureza é extremamente de Deus, não poderia negar que ele não
fraca e limitada, e, ao contrário, que a tenha produzido muitas outras coisas,
de Deus é imensa, incompreensível e ou, pelo menos, que não as possa pro-
infinita 1 0 9 , não mais tenho dificuldade duzir, de sorte que eu exista e seja
em reconhecer que há uma infinidade
de coisas em sua potência· cujas causas· colocado no mundo como parte da
ultrapassam o alcance de meu espírito. universalidade de todos os seres.
9. E, em seguida, olhando-me de
E esta única razão é suficiente para
persuadir-me de que todo esse gênero mais perto e considerando quais são
meus erros (que apenas testemunham
de causas que se costuma tirar elo
haver imperfeição em mim), descubro
fim não é de uso algum nas coisas físi-
cas ou naturais; pois não me parece que dependem do concurso de duas
que eu possa sem temeridade procurar causas, a saber, do poder de conhecer
e tentar descobrir os fins impenetráveis que existe em mim e do poder de esco-
lher, ou seja, meu livre arbítrio; isfo é,
de Deus 11 0 •
8. Demais, vem-me ainda ao espí·- de meu entendimento e conjuntamente
rito que não devemos considerar uma de minha vontade • Isto porque, só
11 2
aquela que me deu; e, por hábil e enge- sinto ser em mim tão grande, que não
nhoso operário que eu mo represente, concebo absolutamente a idéia de
nem por isso devo pensar que devesse nenhuma outra mais ampla e i;nais
pôr em cada uma de suas obras todas extensa: de sorte que é principalmente
as perfeições que pôde pôr em algu- ela que me faz conhecer que eu trago a
mas. Não posso tampouco me lastimar imagem e a semelhança de Deus. Pois,
de que Deus não me tenha dado um ainda que seja incomparavelmente
livre arbítrio ou uma vontade bastante maior em Deus do que em mim, quer
ampla e perfeita, visto que, com efeito, por causa do conhecimento e do poder,
eu a experimento tão vaga e tão exten- que, aí se encontrando juntos, a tor-
sa que ela não está encerrada em nam mais firme e mais eficaz, quer por
quaisquer limites 113 . E o que me pare- ce-usa do objeto, na medida em que a
ce muito notável neste ponto é que, de vontade se dirige e se estende infinita-
todas as outras coisas existentes em mente a mais coisas; ela não me pare-
mim, não há nenhuma tão perfeita e ce, todavia, maior se eu a considero
tão extensa que eu não reconheça efeti- formal e precisamente nela mesma 11 6 •
vamente que ela poderia. ser ainda Pois consiste somente em que podemos
maior e mais perfeita. Pois, por exem- fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto
plo, se considero a faculdade de conce- é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir)
ber que há em mim, acho que ela é de ou, antes, somente em que, para afir-
uma extensão muito pequena e grande- mar ou negar, perseguir ou fugir às
mente limitada e, ao mesmo tempo, eu coisas que o entendimento nos propõe,
me represento a idéia de uma outra agimos de tal maneira que não senti-
faculdade muito mais ampla e mesmo mos absolutamente que alguma força
infinita; e, pelo simples fato de que me exterior nos obrigue a tanto 11 7 • Pois,
posso representar sua idéia, conheço para que eu seja livre, não é necessário
sem dificuldade que ela pertence à que eu seja indiferente na escolha de
natureza de Deus. Da mesma manei- um ou de outro dos dois contrários;
ra1 1 4 , se examino a memória ou a mas antes, quanto mais eu pender para
imaginação, ou qualquer outro poder, um, seja porque eu conheça evidente-
não encontro nenhum que não seja em mente que o bom e o verdadeiro aí se
mim muito pequeno e limitado e que encontrem, seja porque Deus disponha
em Deus não seja imenso e infinito 11 5 . assim o interior do meu pensamento,
Resta tão-somente a vontade, que eu tanto mais livremente o escolherei e o
abraçarei. E certamente a graça divina
11 J Nota-se que a infinídade da vontade é primeiro
evocada quanto à grandeza: "Não se encontra
encerrada em -quaisquer limites. . . a idéia de outra 11 6 Passagem que significa: a vontade marca a
mais ampla e mais extensa". É por aí, com efeito, minha semelhança com Deus, menos por ser ela
que ela mais difere do entendimento, para o qual há infinita em grandeza (pois este infinito ainda é ape-
coisas iricognoscíveis de direito (o conteúdo do infi- nas indefinido com respeito a Deus) do que por ser,
nito em Deus). ' Nele tanto quanto em mim, poder absoluto do sim e
1 1 4 Esta -passagem quererá dizer que a finitude do do não.
1 1 1 Esse poder absoluto nunca está mais próximo,
entendimento é do mesmo gênero que a da imagina-
ção? Guéroult nega e observa (op. cit., págs. no homem, daquele que há em Deus, do que ao ser
328-29) que, se a finitude da imaginação é corporal, ele iluminado pelo entendimento. Eis por que
a do entendimento é antes uma "indefinitude": importa distinguir aqui esta "potência real e posi-
nosso conhecimento pode aumentar "gradativa- tiva de se determinar" que Deus nos concedeu da
mente até o infinito", o que constitui uma espécie de "indiferença'', estado no qual a vontade, não sendo
finitude em face da infinitude positiva de Deus. iluminada por nenhuma razão num ou noutro senti-1
1 1 5 É uma maneira de falar, pois a memória (que do, está afastada ao máximo da de Deus. Cf. Car-
supõe a suce~ão temporal) e a imaginação (que tas, a Mesland, 2 de maio de 1644. Esta "indife-
supõe a união a um corpo) não se encontram em rença" possível da vontade humana desempen.hará
Deus. papel decisivo no parágrafo seguinte.
MEDITAÇÕES 127
pode manter, ao mesmo tempo e sem contradição, a precedente, mostrando-me como devo usar meu
iiberdade-indeterminação e a liberdade-esponta- livre arbítrio a fim de evitar o erro; ao mesmo
neidade. Cf. uma crítica desta )Íltima em Sartre, tempo, orientam-nos para outra verdade: a confir-
Situations, I, pág. 317. mação definitiva da veracidade de Deus.
128 DESCARTES
dimento nao tem nenhum conheci- me deu uma inteligência mais capaz,
mento, mas geralmente também a ou uma luz natural maior do que aque-
todas aquelas que ele não descobre la que dele recebi, posto que, com efei-
com uma clareza perfeita no momento to, é próprio do entendimento finito
em que a vontade delibera sobre elas; não compreender uma infinidade de
pois, por prováveis que sejam as conje- coisas e próprio de um ~ntedim.o
turas que me tomam inclinado a julgar criado o ser finito: mas tenho todos os
alguma coisa, o tão-só conhecimento motivos de lhe render graças pelo fato
que tenho de que são apenas conjetu- de que, embora jamais me devesse
ras e não razões certas e indubitáveis algo, me tenha dado, não obstante,
basta para me dar ocasião dé julgar o todo o pouco de perfeição que existe
contrário. Isto é o que experimentei emvnim; estando bem longe de conce-
suficientemente nesses dias passados, ber sentimentos tão injustos como o de
ao estabelecer como falso tudo o que imaginar que ele me tirou ou reteve
tivera antes como muito verdadeiro, injustamente as outras perfeições que
pelo simples fato de ter notado que se não me deu 1 2 2 • Não tenho também
podia duvidar disso de alguma manei- motivo de me lastimar do fato· de me
ra. haver dado uma vontade mais ampla
13. Ora, se me abstenho de formu- do que o entendimento, uma vez que,
lar meu juízo sobre uma coisa, quando consistindo a vontade em apenas uma
não a concebo com suficiente clareza e coisa, e sendo seu sujeito como que
distinção, é evidente que o utilizo indivísivel, parece que sua natureza é
muito bem e que não estou enganado; tal que dela nada se poderia tirar sem
mas, se me determino a negá-la ou a destruí-la; e, certamente, quanto maior
assegurá-la, então não me sirvo como for ela, mais tenho que agradecer a
devo de meu livre arbítrio; se garanto o bondade daquele que ma deu 1 2 3 • E,
que não é verdadeiro, é evidente que enfim, não devo também lamentar-me
me engano, e até mesmo, ainda que jul- de que Deus concorra comigo para for-
gue segundo a verdade, isto não ocorre mar os atos dessa vontade, isto é, os
senão por acaso e eu não deixo de fa- juízos nos quais eu me engano, porque
lhar e de utilizar mal o meu livre arbí- esses atos são inteiramente verdadeiros
trio; pois a luz natural nos ensina que e absolutamente bons na medida em
o conhecimento do entendimento deve que dependem de Deus; e há, de algu-
sempre preceder a determinação da ma forma, mais perfeição em minha·
vontade. E é neste mau uso do livre natureza, peio fato de que posso
arbítrio que se encontra a privação que formá-los, do que se não o pudesse 1 2 4 •
constitui a forma do erro 1 2 1 • A priva- Quanto à privação, que consiste na
ção, digo, encontra-se na operação na única razão formal do erro e do peca-
medida em que procede de mim; mas do, não tem necessidade de nenhum
ela não se acha no poder que recebi de concurso de Deus, já que não é uma
Deus, nem mesmo na operação na me-
dida em que ela depende dele. Pois não
1 22 a) A finitude de meu entendimento não pode
tenho certamente nenhum motivo de ser imputada a Deus como uma imperfeição. Cf.
me lastimar pelo fato de que Deus não Princípios I, 36.
1 2 3 b) Quanto à vontade, não só não tenho por
que me queixar, mas devo ser reconhecido a Deus
1 2 1 O erro é, portanto, agora reconhecido como por ma ter dado infinita.
privação, contrariamente ao que se passava na 1 2 4 c) Que minha vontade possa formar juízos é
pseudo-solução do § 5. E, não obstante, Deus será ainda uma perfeição. Assim, tomados um a um, os
disso desculpado por quatro considerações: "Não elementos que concorrem ao erro humano não cons-
tenho nenhum motivo de me lastimar ... " tituem sinal de nenhum ·não-ser ou de nenhum mal.
MEDITAÇÕES 129
que consiste a maior e principal perfei- preciso concluir que uma tal concep-
ção do homem, considero não. ter ção ou um tal juízo é verdadeiro 1 2 9 •
ganho pouco com esta Meditação, ao 17. De resto, não somente aprendi
haver descoberto a causa das falsida- hoje o que devo evitar para não mais
des e dos erros. falhar, mas também o que devo f~zer
16. E, certamente, não pode haver para chegar ao conhecimento da ver-
outra além daquela que expliquei; pois, dade. Pois, certamente, chegarei a
todas as vezes que retenho minha von- tanto se demorar suficientemente
tade nos limites de meu conhecimento, minha atenção sobre todas as coisas
de tal modo que ela não formule juízo que conceber perfeitamente e se , as
algum senão a respeito das coisas que separar das outras que não cdm-
preendo senão com confusão e obsbu-
lhe são clara e distintamente represen- ridade. E disto, doravante, cuid<Írei
tadas pelo entendimento, não pode zelosamente. ;
ocorrer que eu me engane; porque toda
concepção clara e distinta é sem dúvi- 129 Daí a oitava verdade: as idéias daras e distin-
da algo de real e de positivo, e portanto tas têm um valor objetivo imediatamente certo. A
não pode ter sua origem no nada, mas regra segundo a qual "todas ás coisas que conce-
bermos muito clara e muito distintamente são
deve ter necessariamente Deus como verdadeiras'', que obtive P.Or reflexão sobre o Cogi-
seu autor; Deus, digo, que, sendo sobe- to, no começo da Meditação Terceira (§ 2), é agora
objetivamente validada. Doravante, não mais preci-
ranamente periclto, não pode ser causa sarei efetuar o Cogito a fim de provar a verdade
de erro algum; e, por conseguinte, é dessa regra; bastará lembrar-me dela.
MEDITAÇÃO· QUINTA, 30
por mim, conquanto esteja em minha tudo o que é verdadeiro é alguma coisa
liberdade pensá-las ou não pensá-las; e já demonstrei amplamente acima que
mas elas possuem suas naturezas ver- todas as coisas que conheço chrra e
dadeiras e imutáveis. Como, por exem- distintamente são verdadeiras. E,1 con-
plo, quando imagino um triângulo, quanto não o tivesse demonstrado,
ainda que não haja talvez em nenhum todavia a natureza de meu espírito é tal
lugar do mundo, fora de meu pensa- que não me poderia impedir de julgá-
mento, uma tal figura, e que nunca las verdadeiras enquanto as concebo
tenha havido alguma, não deixa, entre- clara e distintamente·13 5 • E me recordo
tanto, de haver uma certa natureza ou de que, mesmo quando estava ainda
forma ou essência determinada, dessa fortemente ligado aos objetos dos sen-
figura: a qual é imutável e eterna, que tidos, tivera entre as mais constantes
eu não inventei absolutamente e que verdades aquelas que eu concebia clara
não depende, de maneira alguma, de e distintamente no que diz respeito às
meu espírito; como parece, pelo fato de figuras, aos números e às outras coisas
que se pode demonstrar diversas pro- que pertencem à Aritmética e à Geo-
priedades desse triângulo, a saber, que metria.
os três ân.gul<_?s são i~uas a dois ret~s, 7. Ora, agora 1 3 6 , se do simples fato
que o ma10r àn·gulo e oposto ao mai~r de que posso tirar de meu pensamento
lado e outras semelhantes, as quais a idéia de alguma coisa segue-se que
agora, quer queira, quer não, reco- tudo quanto reconheço pertencer clara
nheço mui claramente e mui evidente- e distintamente a esta coisa pertence-
mente estarem nele, ainda que não lhe de fato, não posso tirar disto um
tenha antes pensado nisto de maneira argumento e uma prova demonstrativa
alguma, quando imaginei pela primeira da existência de Deus? É certo que não
vez um triângulo; e, portanto, não se encontro menos 1 3 7 em mim sua fdéia,
pode dizer que eu as tenha fingido e isto é, a idéia de um ser soberanamente
inventado. perfeito, do que a idéia de qualquer fi-
6. E aqui só posso me objetar que gura ou de qualquer número que seja.
talvez essa idéia de triângulo tenha E não conheço menos clara e distinta-
vindo ao meu espírito por uitermédio mente que uma existência atual e eter-
de meus sentidos, porque vi algumas na pertence à sua natureza do que
vezes corpos de figura triangular; pois conheço que tudo quanto posso de-
posso formar em meu espírito uma monstrar de qualquer figura ou de
infinidade de outras figuras, a cujo res- qualquer número pertence verdadeira-
peito não se pod.e ali~entr a me~or mente à natureza dessa figura ou desse
suspeita de que Jamais tenham caido número. E, portanto, ainda que tudo o
sob os sentidos e não deixo, todavia, de que concluí nas Meditações anteriores
poder demonstrar diversas proprie-
dades relativas à sua natureza, bem 13 5
Retorno ao plano da "natureza" - o da Medi-
como à do triângulo: as quais devem tação Primeira-, onde me é impossível duvidar de
ser certamente todas verdadeiras, visto fato de uma verdade matemática quando ela se me
apresenta atualmente.
que as concebo claramente 1 3 4 • E, por-
, J s "Agora" = depois que estamos metafisica-
tanto, elas são alguma coisa e não um mente certos do valor objetivo das idéias claras e
puro nada; pois é muito evidente que distintas.
, J 1 Notar a partir daí os "não ... menos" e "ao
menos": a existência de Deus, legível em sua essên-
, J
4
As idéias das essências matemáticas não são, cia, não é menos certa do que as verdades matemá-
portanto, simuladas nem provenientes do sensível (§ ticas, mas tampouco o é mais. Devemos colocá-la
6). Cf. 543. Enquanto idéias claras e distintas, no mesmo plano que essas verdades essenciai,s que a
correspondem, pois, a algo. dúvida natural não conseguia abalar. !
MEDITAÇÕES 133
em sua crítica à prova ontológica: a existência não porque conheço uma infinidade de ou-
é uma perfeição que pertença ao conceito. Cumpre, tras coisas em Deus, das quais nada
todavia, observar que Descartes não tira a exis- posso diminuir nem mudar.
tência de Deus da idéia que eu tenho dele. Depois de
estabelecer que a idéia de Deus corresponde a uma 11. De resto, de qualquer prova e
essência, mostra que, estando eu atento a esta essên- argumento que eu me sirva, cumpre
cia Gá não se trata da idéia como representação da
essência), percebo nela necessariamente a existên- sempre retomar a este .. ponto, isto. é,
cia. que são somente as coisas que concebo
1 MEDITAÇÕES 135
. .
c1ara e d1stmtamente 1
que tem
"
a iorça
'
natureza que, tão logo compreenda
de me persuadir futeiramente. E, embo- algo bastante clara e distintamente,
ra, entre as cois~ que concebo dessa sou naturalmente levado_ a acreditá-lo
maneira, haja ba verdade algumas verdadeiro; no entanto, já que sou tam-
manifestamente jconhecidas de qual- bém de tal natureza que não posso
quer, e haja outras também que não se manter sempre o espírito ligado a uma
revelam senão àgueles que as conside- mesma coisa, e que amiúde me recordo
ram de mais perto e que as examinam de ter julgado uma coisa verdadeira,
mais exatamente; to d avia,
• 1 . uma vez quando deixo . de considerar as razões
descobertas, n~o são consideradas que me obrigaram a julgá-la dessa
menos certas urnas do que as outras. maneira, pode acontecer que nesse ín-
Como, por exemplo, em todo triângulo terim outras razões se me apresentem,
retângulo, aind~ que não pareça tão as quais me fariam facilmente mudar
facilmente, de início, que o quadrado de opinião se eu ignorasse que há um
da base é igual abs quadrados dos dois Deus 1 4 4 • E, assim, eu jamais teria uma
outros lados, corho é evidente que essa ciência verdadeira e certa de qualquer
base é oposta do maior ângulo, não coisa que seja, mas somente opiniões
obstante, uma ve~ que isto foi reconhe- vagas e inconstantes.
cido, ficamos persuadidos tanto da 14. Como, por exemplo, quando
verdade de um cbmo da de outro. E no considero a natureza do triângulo,
que con~e?1 ~1 Deu~, certamente,. se conheço evidentemente, eu que sou um
meu esp1nto nao estivesse prevemdo pouco versado em Geometria, que seus
três ângulos são iguais a dois retos e
• 1 • /
por quaisquer pnleJmzos e se meu pen-
samento não se encontrasse distraído não me é possível não acreditar nisso
pela presença 9ontínua das imagens enquanto aplico meu pensamento à sua
das coisas sení~i, não haveria coisa demonstração; mas, tão logo eu o des-
alguma que eu conhecesse melhor nem vie dela, embora me recorde de tê-la
mais facilmente ~o que ele. Pois have- claramente compreendido, pode ocor-
rá algo por si mkis claro e mais mani- rer facilmente que eu duvide de sua
festo do que perlsar. que há um Deus, verdade caso ignore que há um
isto é, um ser sÓberano e perfeito, em Deus 1 4 5 . Pois posso persuadir-me de
cuja idéia, e sondente nela, a existência ter sido feito de tal modo pela natureza
necessária ou eterna está incluída e, que possa enganar-me facilmente,
por conseguinte, !que existe? · mesmo nas coisas que acredito com-
12. E, conquanto, para bem conce- preender com mais evidência e certeza;
ber essa verdadeJ eu tivesse necessitado principalmente, visto que me lembro
de grande aplickção de espírito, pre- de haver muitas vezes estimado muitas
sentemente, tod+ia, estou mais seguro 1 4 4 Compreende-se aqui por que a prova ontoló-
dela do que de tudo quanto me parece gica, em relação às outras, não é apenas uma prova
mais certo: mas, lalém disso, noto que a a mais: ela nos fornece imediatamente no plano da
certeza de todas as outras coisas dela "natureza", isto é, da Psicologia, a certeza de que
Deus existe eternamente. Poupa, assim, o constante
depende tão absolutamente que, sem r:ecurso às dificeis provas a priori. O raciocínio
esse conhecimen to, é impossível jamais
1
matemático, por exemplo, está assegurado, sem que
conhecer algo p9rfeitamente 1 43 • eu tenha necessidade, ao efetuá-lo, de reativar as
"razões" da Meditação Terceira.
13. Pois, ainüa que eu seja de tal
l
1 4 5 As provas a priori garantem a evidência atual
coisas como verdadeiras e certas,· que, pela qual me certifico da verdade, era
em seguida, outras razões me levaram levado a acreditar nelas por razões que
ajulgar absolutamente falsas. reconheci depois serem menos fortes
15. Mas, após ter reconhecido do que então imaginara. O que niais
haver um Deus, porque ao mesmo poderão, pois, objetar-me? Que talvez
tempo reconheci também que todas as eu durma (como eu mesmo me objetei
coisas dependem dele e que ele não é acima) ou que todos os pensamentos
enganador, e que, em seguida a isso, que tenho atualmente não são mais
julguei que tudo quanto concebo clara verdadeiros do que os sonhos que ima-
e distintamente não pode deixar de ser ginamos ao dormir? Mas, mesmo que
verdadeiro: ainda que não mais pense estivesse dormindo, tudo o que se apre-
nas razões pelas quais julguei tal ser s.enta a meu espírito com evidência é
verdadeiro, desde que me lembre de absolutamente verdadeiro. E, assim,
tê-lo compreeµdido clara e distinta- reconheço muito claramente que a cer-
mente, ninguém pode apresentar-me teza e a verdade de toda ciência depen-
razão contrária alguma que me faça ja- dem do tão-só conhecimento do verda-
mais colocá-lo em dúvida; e, assim, deiro Deus: de sorte que, antes que eu
tenho dele urna ciência certa e verda- o conhecesse, não podia saber perfeita-
deira. E esta mesma ciência se estende mente nenhuma outra coisa: E, agora
também a todas as outras coisas que que o conheço, tenho o meio de adqui-
me lembro ter outrora demonstrado, rir uma ciência perfeita no tocante a
como as verdades da Geometria e ou- uma infinidade de coisas, não somente
tras semelhantes: pois, que me poderão· das que existem nele mas também das
objetar, para obrigar-me a colocá-las que pertencem à natureza corpórea, na
em dúvida'! Dir-me--ão que minha natu- medida em que ela pode servir de obje-
reza é tal que sou mui.to sujeito a en ga- to às demonstrações dos geômetras, os
nar-me? Mas. já sei que me não posso quais não se preocupam, de modo
enganar nos juízos t;ujas razões conhe- algum, com sua existência 1 4 6 •
ço claramente. Dir-me-ão que outrora
tive muitas coisas por verdadeiras e 1 4 6 Esta Meditação Quinta contém a nona verdade
certas, as quais mais tarde reconheci da ordem das razões: temos certeza absoluta de que
serem falsas? Mas eu não havia conhe- as propriedades das essências são as propriedades
das coisas e, no que concerne à essência de Deus, de
cido clara nem distintamente tais coi- que aí está inscrita a existência necessária, portanto
~as e, não conhecendo ainda esta regra eterna.
.,,.
ção, ou concepção. Por exemplo, quan- posso conceber sua figura, assim come
do imagino um triângulo, não o· conce-
bo apenas como uma figura composta
1 a do quiliógono, sem o auxílio da
e determinada P.or três linhas, mas, imaginação; mas posso também imagi-
além disso, considero essas três linhas ná-la aplicando a ~tenção de meu espí-
como presentes !pela força e pela apli- rito a· cada um de seus cinco lados e,
cação interior de meu espírito; e é
ao mesmo tempo, à área ou ao espaço
propriamente is so que chamo imagi-
1
pág. 162): na sensaç;ão, "as imagens são traçadas nação e a "infinitude" do entendimento, cf. Medita-
pelos objetos externok, e estando estes presentes, ao ção Quarta, § 8. É a primeira presunção em favor
passo que na outra elas o são pela alma, sem obje- da existência de um outro, além do pensamento, que
tos externos e, por askim dizer, com todas as janelas explicaria esüt "particular contenção de espírito" e
fechadas". que poderia muito bem ser o corpo.
MEDITAÇOES 139
apetites, como também certas inclina- daquelas que eu mesmo podia simular,
ções corporais para a alegria, a triste- em meditando, ou do que as que
za, a cólera e outras paixões semelhan- encontrava impressas em minha me-
tes; e, no exterior, além da extensão, mória, parecia que não podiam probe-
das figuras, dos movimentos dos cor- der de meu espírito; de sorte que era
pos, notava neles a dureza, o calor e necessário que fossem causadas em
todas as outras qualidades que se reve- mim por quaisquer outras coisas. Coi-
lam ao tato. Demais, aí notava a luz, sas das quais não tendo eu nenhum
cores, odores, sabores e sons, cuja conhecimento senão o que me forne-
variedade me fornecia meios de distin- ciam essas mesmas idéias, outra coisa
guir o céu, a terra, o mar e geralmente me podia vir ao espírito, só que essas
todos os outros corpos uns dos outros. coisas eram semelhantes às idéias que
8. E, por certo, considerando as elas causavam.
idéias de todas essas qualidades que se 10. E já que eu me lembrava tam-
apresentavam ao meu pensamento, e bém que me servira mais dos sentidos
as quais eram as únicas que eu sentia do que da razão e reconhecia que as
própria· e imediatamente, não era sem idéias que eu formava por mim mesmo
razão que eu acreditava sentir coisas não eram tão expressas quanto aquelas
inteiramente diferentes de meu pensa- que eu recebia dos sentidos e, mesmo,
mento, a saber, corpos de onde proce- que eram, as mais das vezes, compos-
diam essas idéias 1 5 9 • Pois eu experi- tas de partes destas, eu me persuadia
mentava que elas se apresentavam ao facilmente de que não havia nenhuma
meu pensamento sem que meu consen- idéia em meu espírito que não tivesse
timento fosse requerido para tanto, de antes passado pelos meus sentidos.
sorte que não podia sentir objeto 11. Não era também sem alguma
algum, por mais vontade que tivesse, razão que eu acreditava que este corpo
se ele não se encontrasse presente ao (que, por um certo direito particular,
órgão de um de meus sentidos; e não eu chamava de meu) me pertencia mais
estava de maneira alguma em meu propriamente e mais estreitamente do
poder não o sentir quando ele aí esti- que qualquer outro. Pois, com efeito,
vesse presente. jamais eu podia ser separado dele
9. E, dado que as idéias que recebia como dos outros corpos; sentia nele e
pelos sentidos eram muito mais vivas, por ele todos os meus apetites e todas
mais expressas e mesmo, à sua manei- as minhas afecções; e, enfim, eu era to-
ra, mais distintas do que qualquer uma cado por sentimentos de prazer e de
1 5 9
". • • e sobre que fundamento era apoiada
dor em suas partes e não nas dos ou-
minha crença ... ": enumeração até o § 12 das tros corpos que são separados dele.
motivações dos "prejuízos da inf'ancia". Os argu- 12. Mas, quando examinava por
mentos serão os seguintes: a) a coerção (cf. Princí-
- pios, II, § 1: "Não está em meu poder fazer com que que desse não sei que sentimento de
ex.\)~mntos um sentimento de preferência a dor segue a tristeza do espírito, e do
outro ... "); b) vivacidade particular das idéias sentimento de prazer nasce a alegria,
sensíveis; c) maior importância aparente das idéias
sensíveis, na qual se baseia a teoria escolástica do ou, ainda, por que esta não sei que
conhecimento e todo empirismo· em geral; d) não emoção do estômago, que chanio
posso ser separado de meu corpo como dos outros
corpos; e) é nele que sinto minhas afecções e meus
fome, nos dá vontade de comer, e a se-
apetites (noção do corpo próprio); f) é em suas par- cura da garganta nos · dá desejo de
tes que sinto prazer e dor; g) o laço entre os estados beber, e assim por diante, não podia
fisiológicos e as afecções da alma (contrações do
estômago e fome) pode provir tão-somente de um apresentar nenhuma razão, senão que
ensinamento da natureza. a natureza mo ensinava dessa maneira;
!
MEDITAÇÕES 141
pois não há, certamente, qualquer afi- 14. E a essas razões de dúvida
nidade nem qualquer relação (ao acrescentei ainda, pouco depois, duas
menos que eu possa compreender) outras bastante gerais. A primeira é
entre essa emoção do estômago e o de- que jamais acreditei sentir algo, estan-
sejo de comer, assim como entre o sen- do acordado, que não pudesse, tam-
tirnento da coisa que causa a dor e o bém, algumas vezes, acreditar sentir,
pensamento de tristeza que esse senti- ao estar dormindo; e como não creio
mento engendra. E, da mesma manei- que as coisas que me parece que sinto
ra, parecia-me que eu aprendera da ao dormir procedam de quaisquer
natureza todas as outras coisas que eu objetos existentes, não via por que
julgava no toca.~e aos objetos dos sen- devia ter antes essa crença no tocante
tidos; porque eu notava que os juízos, àquelas que me parece que sinto ao
que eu me acostumara a formular a estar acordado. E a segunda é que, não
respeito desses objetos, formavam-se conhecendo ainda ou, antes, fingindo
em mim antes que eu tivesse o lazer de não conhecer o autor de meu ser, nada
pesar e considerar quaisquer razões via que pudesse impedir que eu tivesse
que me pudessem obrigar a formulá- sido feito de tal maneira pela natureza
los1 60. que me enganasse mesmo nas coisas
13. Mas, depois 1 6 1, muitas expe- que me pareciam ser as mais verdadei-
riências arruinaram, pouco a pouco, ras.
todo o crédito que eu dera aos senti- 15. E, quanto às razões que me ha-
dos. Pois observei muitas vezes que viam anteriormente persuadido da ver-
torres, que de longe se me afiguravam dade das coisas sensíveis, não tinha
redondas, de perto pareciam-me qua- muita dificuldade em rejeitá-las. Pois,
dradas, e que colossos, erigidos sobre parecendo a natureza levar-me a mui-
tas coisas de que a razão me desviava,
os mais altos cimos dessas torres, pare-
não acreditava dever confiar muito nos
ciam-me pequenas estátuas quando as
ensinamentos dessa natureza. E, embo-
olhava de baixo; e, assim, em uma infi-
ra as idéias que recebo pelos sentidos
nidade de outras ocasiões, achei erros
não dependam de minha vontade, não
nos juízos fundados nos sentidos exte-
pensava que se devesse., por isso, con-
riores. E não somente nos sentidos
cluir que procediam de coisas diferen-
exteriores, mas mesmo nos interiores:
tes de mim, posto que talvez possa
pois haverá coisa mais íntima ou mais
haver em mim alguma faculdade (ape-
interior do que a dor? E, .no entanto, sar de ter até agora permanecido
aprendi outrora de algumas pessoas, desconhecida para mim) que seja a
que tinham os braços e as pernas cor- causa dessas idéias e que as produ-
tados, que lhes parecia ainda, algumas za 1 .62
vezes, sentir dores nas partes que lhes 16.· Mas, agora que começo a me-
haviam sido amputadas; isto me dava lhor conhecer-me a mim mesmo e a
motivo de pensar que eu não podia àescobrir mais claramente o autor de
também estar seguro de ter dolorido minha origem, não penso, na verdade,
algum de meus membros, embora sen-
tisse dores nele. 1 62 Crítica dos argumentos a) e g) expostos
anteriormente: como já notara a Medítação Tercei-
, 6o É a definição do "pré-juízo". ra, a "natureza" pode contravir a razão, e o argu-
1 61 "E, depois, examinarei as razões que me obri- mento proveniente da coerção é abalado pela hipó-
garam em seguida a colocá-las em dúvida ... " Os tese de uma faculdade desconhecida que podéria
§§ 13 e 14 recapitulam as razões tiradas da Medita- produzir, sem o nosso conhecimento, as idéias
ção Primeira. · sensíveis.
142 DESCARTES
que deva temerariamente admitir todas já que, de um lado, tenho uma idéia
as coisas ·que os sentidos parecem ensi- c~ar e distinta de mim mesmo, na me-
n.ar-nos, mas não penso tampouco que dida em que sou apenas uma coisa
deva colocar em dúvida todas em pensante e inextensa, ·e que, de dutro,
·geral 163 . tenho uma idéia distinta do corpb, na
17. E, primeiramente, porque sei medida em que é-. apenas uma toisa
que todas as coisas que concebo clara extensa e que não pensa, é certo que
e distintamente podem ser produzidas este eu, isto é, minha alma, pela qual
por Deus tais como as concebo, basta eu sou o que sou, é inteira e verdadei-
que possa conceber clara e distinta- ramente distinta de meu corpo e que
mente uma coisa sem uma outra para ela pode ser ou existir sem ele 1 6 6.
estar certo de que uma é distinta ou 18. Ainda mais, encontro em imim
diferente da outra, já que podem ser faculdades de pensar totalmente ~arti
postas separadamente, ao menos pela culares e distintas de mim, as faculda-
onipotência de Deus; e não importa des de imaginar e de sentir, sem as
por que potência se faça essa separa- quais posso de fato conceber-me clara
ção, para que se.ia obrigado a julgá-las e distintamente por inteiro, mas que
difenmtes 1 6 4 • E, portanto, pelo pró- não podem ser concebidas sem mim,
prio fato de que conheço com certeza isto é, sem uma substância inteligente
que existo, e que., no entanto, noto que à qual estejam ligadas. Pois, na noção
que temos dessas faculdades, ou (para
não pertence necessariamente nenhu-
servir-me dos termos da Escola) no seu
ma outra coisa à minha natureza ou à
minha essência, a não ser que sou uma conceito formal, elas encerram alguma
coisa que pensa, concluo efetivamente yspécie de intelecção: donde concebo
que minha essência consiste somente que são distintas de mim, como as
em que sou uma coisa que pensa ou figuras, os movimentos e os outros
uma substância da qual toda a essên- modos ou acidentes dos corpos o são
cia ou natureza consiste apenas em dos próprios corpos que os sustentam.
pensar. E, embora talvez (ou, antes, 19. Reconheço, também, em mim
certamente, como direi logo mais) eu algumas outras faculdades, como as de
tenha um corpo ao qual estou muito mudar de lugar, de colocar-me em
estreitamente conjugado 1 6 5 , todavia, múltiplas posturas e outras semelhan-
tes,. que não podem ser concebidas,
1 6 3 "E, enfim, considerarei o que devo a respeito
assrm como as precedentes, sem algu-
delas agora acreditar." Em outros termos, não se ma substância à qual estejam ligadas, e
trata mais "agora" de voltar aos "prejuízos" elimi- nem, por conseguinte, existir sem ela;
nados pela prova da dúvida; mas tampouco se trata mas é muito evidente que essas facul-
de recusar os dados sensíveis em geral, sem anali-
sá-los à luz da veracidade divina. Começa, aqui, a dades, se é verdade que existem, devem
parte principal dessa Meditação, em que serão esta- ser ligadas a alguma substância corpó-
belecidas as três últimas verdades. .
1 6 4 É o elemento essencial da prova da distinção:
rea ou extensa,. e não a uma substância
Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo inteligente, posto que, no conceito
clara e distintamente. Só este princípio basta para claro e distinto dessas faculdades, há
invalidar todas as conclusões derivadas da união de de fato alguma sorte de extensão que
fato entre a alma e o corpo.
1 6 5 Notar a reserva: não sabemos ainda se a prova se acha contida, mas de modo nenhum
poderá ser aplicada. Cf.: "E se Deus mesmo ]un- qualquer inteligência 1 6 7 • Demais, en-
tasse tão intimamente corpo e alma que fosse
impossível uni-los mais, e fizesse um composto des-
1 6 6
tas duas substâncias assim unidas, concebemos • _ É a décima verdade. Acerca das noções de dis-
também que permaneceriam realmente distintas, tmcao real e modal, cf. Prtncíp ios, I, 60-61.
7 Esta distinçâo dos modos da substância exten-
não obstante tal união, porque, quàlquer que seja a 1 6
ligação que Deus estabeleça entre elas, não poderia sa e dos módos da substância inteligente anuncia
desfazer-se do seu poder de separá-las . .. "{Princí~ que deve haver em mim outra coisa além do puro
pios, I 1 60.) pensamento.
MEDITAÇÕES 143
contra-se em mim certa faculdade pas- mente. Pois, não me tendo dado nenhu-
siva de sentir, isto é, de receber e ma faculdade para conhecer que isto
conhecer as idéias das coisas sensí- seja assim, mas, ao contrário, uma
veis 1 6 8 ; mas ela me seria inútil, e dela fortíssima inclinação para crer que
não me poderia servir absolutamente, elas me são enviadas pelas coisas cor-
se não houvesse em mim, ou em porais ou partem destas, não vejo
outrem, uma faculdade ativa 1 6 9 , capaz como se poderia desculpá-lo de embai-
de formar e de produzir essas idéias. mento se, com efeito, essas idéias par-
Ora, essa faculdade ativa não pode tissem de outras causás que não coisas
existir em mim enquanto sou apenas cor"póreas, ou fossem por elas produzi-
uma coisa que pensa, visto que ela não das. E, portanto, é preciso confessar
pressupõe meu pensamento 1 7 0 , e, tam- que há coisas corpóreas que exis-
bém, que essas idéias me são freqüen- tem, 7 z.
temente representadas sem que eu• em 21. Talvez elas nao sejam, todavia,
nada contribua para tanto e mesmo, inteiramente coino nós as percebemos
amiúde, mau grado meu; é preciso, pelos sentidos, pois essa percepção dos
pois, necessariamente, que ela exista sentidos é muito obscura e confusa em
muitas coisas; mas, ao menos, cumpre
em alguma substância diferente de
confessar que todas as coisas que, den-
mim, na qual toda a realidade que há
objetivamente nas idéias por ela produ- tre elas, concebo clara e distintamente,
isto é, todas as coisas, falando em
zidas esteja contida formal ou eminen-
geral, compreendidas no objeto da
temente (como notei antes). E esta
Geometria especulativa. aí se encon-
substância é ou um corpo, isto é, uma tram verdadeiramente. Mas, no que se
natureza corpórea, na qual está conti- refere a outras coisas, as quais ou são
da formal e efetivamente tudo o que
apenas particulares, por exemplo, que
existe objetivamente e por represen..:. o sol seja de uma tal grandeza e de
tação nas idéias; ou -então é o próprio uma tal figura, etc., ou são concebidas
Deus, ou alguma outra criatura mais
menos claramente e menos distinta-
nobre do que o corpo, na qu~ isto mente, como a luz, o som, a dor e ou-
mesmo esteja contido eminentemen- tras semelhantes, é certo que, embora
te 1 11. sejam elas muito duvidosas e incertas,
20. Ora, não sendo Deus de modo
todavia, do simples fato de que Deus
algum enganador, é muito patente que não é enganador e que, por conse-
ele não me envia essas idéias imediata- guinte, não permitiu que pudesse haver
mente por si mesmo, nem também por
alguma falsidade nas minhas opiniões,
intermédio de alguma criatura_, na qual
que não me tivesse dado também algu-
a realidade das idéias não esteja conti- ma faculdade capaz de corrigi-la, creio
da formalmente, mas apenas e:a:iinente- poder concluir seguramente que tenho
em mim os meios de conhecê-las com
1 6 8 Passagem à prova da existência das coisas certeza 1 7 3 .
materiais. Parte-se do reconhecimento em mim da
existência de uma sensibilidade passiv·a.
1 69
"Se acreditei que a ação e a: paixão são apenas 1 72 Se Deus não nos proporcionou nenhum meio
uma única e mesma coisa a que se atribuíram dois de reconhecer ou de evitar um erro, é porque esta-
nomes diferentes ... " (A Hyperaspistes, 2 7 de julho mos diante de uma verdade: processamento análogo
de 1641.) - ao de uma prova por absurdo. Assim, fica estabele-
1 7 0 Se esta faculdade ativa pressupusesse meu cida a décima primeira verdade: certeza absoluta da
pensamento, eu haveria de sabê-lo. existência dos corpos ..
1 71 Esta faculdade ativa deve estar colocada numa 1 73 O valor do sentimento é especificado: ele vai
substância fora de mim que, em virtude do princípio mais longe do que a simples atestação da existência
de causalidade, será, ou mais "nobre" do que o dos corpos. Por menor que seja o valor objetivo da
corpo-(causa eminente), ou o próprio corpo (causa verdade sensível, esta possui, no entanto, um valor.
formal). Ora, a primeira dessas possibilidades Sem embargo, não é ainda visível qual a verdadeira
infringiria o princípio da veracidade divina. função do sentimento e o fim que o justifica.
144 DESCARTES
considerando a máquina do corpo hu- homem, tomada desse modo, seja falí-
mano como formada por Deus para ter vel e enganadora 1 8 1 • •
em si todos os movimentos que costu- 33. Para começar, pois, este exame,
meiramente estão aí, eu tenha motivo noto aqui,-primeiramente, que há gran-
de pensar que ela não segue a ordem de de diferença entre espírito e corpo, pelo
sua natureza quando a garganta está fato de ser o corpo, por sua própria
seca e que beber prejudica-lhe a con- natureza, sempre divisível e o espírito
servação; reconheço, todavia, que este inteiramente indivisível. Pois, com efei-
último modo de explicar a natureza é to, quando considero meu espírito, isto
muito diferente do outro 1 8 0 • Pois esta é, eu mesmo. na medida em que ·sou
não é outra coisa senão uma simples apenas uma coisa que pensa, nao
denominação, a qual depende inteira- posso aí distinguir partes algumas,
mente do meu pensamento, que com- mas me concebo como uma coisa
para um homem doente e um relógio única e inteira. E, conquanto, o espí-
mal feito com a idéia que tenho de um rito todo pareça estar unido ao corpo
homem são e de um relógio bem feito, todo, todavia um pé, um braço ou
e a qual não significa nada que se qualquer outra parte estando separada
encontre na coisa da qual ela é dita; ao do meu corpo, é certo que nem por isso
passo que, pela outra maneira de expli- haverá aí algo de subtraído a meu espí-
car a natureza, entendo algo que se rito. E as faculdades de querer, sentir.
encontra verdadeiramente nas coisas e, conceber, etc., nao podem propria-
portanto, não deixa de ter alguma mente ser chamadas suas partes: pois o
verdade. :1Ilesmo espírito emprega-se todo em
3 2. Mas, certamente, embora em querer e também todo em sentir, em
relação ao corpo hidrópico trata-se conceber, etc. Mas ocorre exatamente
apenas de uma denominação exterior, o contrário com as coisas corpóreas ou
quando se diz que sua natureza está extensas: pois não há uma sequer que
corrompida, pelo fato· de que, sem ter eu não faça facilmente em pedaços por
necessidade de beber, não deixa de ter meu pensamento, que meu espírito não
a garganta seca e árida; todavia, com divida mui facilmente em muitas par-
tes e, por consegumte, que eu não reco-
respeito à totalidade do composto, isto
nheça ser divisível. E isso bastaria
é, do espírito ou da alma unida a este
para ensinar-me que o espírito ou a
corpo, não se trata de pura denomina-
alma do homem é inteiramente dife-
ção, mas, antes, de verdadeiro erro da
rente do corpo, se já não o tivesse
natureza, pelo fato de ter sede, quando
.suficientemente _aprendido alhures 1 a 2.
lhe é muito nocivo o beber; e, portanto, 34. Noto também que o espírito não
resta ainda examinar como a bondade recebe imediatamente a impressão de
de Deus nã:o impede que a natureza do todas as partes do corp~, mas somente
do cérebro, ou talvez mesmo de uma
1 8 0 Antes de passar à justificação de Deus, Des-
onde se exerce a faculdade que cha- mas somente algumas de suas partes
mam o senso comum, a qual, todas as que passam pelos rins ou pelo pescoço,
vezes que está disposta da mesma isso excite, não obstante, os mesmos
maneira, faz o espírito sentir a mesma movimentos no cérebro que poderiam
coisa 1 8 3 , embora as outras partes do nele ser excitados por um ferimento
corpo possam estar diversame.nte dis- recebido no pé, em decorrência do que
postas, como o testemunha uma infini- será necessário que o espírito sinta no
dade de experiências, que aqui não é pé a mesma dor que sentiria se aí tives-
necessário relatar 1 8 4 • se recebido um ferimento. E cumpre
35. Noto, além disso, que a natu- julgar algo semelhante a respeito de.
reza do corpo é tal que nenhuma de todas as outras percepções de nossos
suas partes pode ser movida por outra sentidos 1 8 5 •
parte um pouco distanciada, que não 36. Enfim, noto que, como de todos
possa sê-lo também da mesma forma os movimentos que se verificam na
por cada uma das. partes que estão parte do cérebro do qual o espírito re-
entre as duas, ainda que esta parte cebe imediatamente a impressão, cada
mais distante não aja de modo algum. um causa apenas um certo sentimento,
Como, por exemplo, a corda ABCD nada se pode desejar nem imaginar
que está inteiramente tensa, se chegar- nisso de melhor, senão que esse movi-
mos a puxar e mexer a última parte D, mento faça o espírito sentir, entre
a primeira A não se mexerá de maneira todos os sentimentos que é capaz de
diferente da que poderíamos fazê-la causar, aquele que é mais próprio e
mexer-se, se puxássemos uma das par- mais ordinariamente útil à conserva-
tes médias B ou C, e a última D, no ção do corpo humano quando goza de
entanto, permanecesse imóvel. E, da plena saúde 1 8 6 • Ora, a experiência nos
mesma maneira, quando sinto uma dor leva a conhecer que todos os senti-
no pé, a medicina me ensina que esse mentos que a natureza nos deu são tais
sentimento se comunica por meio de corria acabo de dizer; e, portanto, nada
nervos dispersos no pé, que se acham se encontra neles que não tome paten-
estendidos como cordas desde esse tes o poder e a bondade de Deus, que
lugar até o cérebro, quando eles são os produziu 1 8 7 .
37. Assim, por exemplo, quando os
. puxados no pé, puxam também, ao
mesmo tempo, o lugar do cérebro de nervos que estão no pé são movidos
fortemente, e mais do que comumente,
onde provêm e onde chegam, e aí exci- seu movimento, passando pela medula
tam certo movimento que a natureza
instituiu para fazer sentir dor ao espíri- 1 8 5 O sistema nervoso é apresentado como um
to, como se essa dor estivesse no pé. feixe de fios que partem da periferia para o centro.
Mas, já que esses nervos devem passar Por isso, qualquer que seja o nível do nervo de onde
se desencadeia o movimento (pé, perna, coxa, rins),
pela perna, pela coxa, pelos rins, pelas ele chegará sempre ao mesmo ponto.
costas e pelo pescoço, para estender-se 1 8 6 Seja qual for o ponto de partida da tração exer-
desde os pés até o cérebro, pode ocor- cida sobre ela, a glândula só pode, portanto, receber
um único movimento, o que acarreta uma limitação
rer que, embora suas extremidades que .considerável da integração nervosa. Deus precisou
se acham no pé não sejam movidas, escolher, para o conjunto dos movimentos indife-
rençáveis de cada nervo, a sinalização mais útil ao
homem.
1 83 A glândula pineal. 1 8 7 Essa solução do problema, conforme ao princí-
1 8 4Somente ao nível da glândula pode o espírito pio do melhor, possibilita todavia o erro. Mas ela
receber as impressões sensoriais, e o sentimento só surge agora como o preço inevitável do mal míni-
varia em função da variação na disposição dessa mo, tomando-se, pois, compatível com a bondade
pequena glândula. de Deus.
MEDITAÇÕES 149
da espinha dorsal até o cérebro, provo- dor como se ela estivesse no pé e o sen-
ca uma impressão no espírito que lhe tido será naturalmente enganado; por-
faz sentir algo, isto é, dor, como estan- que o mesmo movimento no cérebro
do no pé, pela qual o espírito é adver- não podendo causar no espírito senão
tido e excitado a fazer o possível para o mesmo sentimento e este sentimento
afugentar sua causa, como muito peri- sendo muito mais freqüentemente exci-
gosa e nociva para o pé. tado por uma causa que fere o pé, do
38. É verdade que Deus podia esta- que por alguma outra que esteja alhu-
belecer a natureza do homem de tal res, é bem mais razoável que ele leve
sorte que esse mesmo movimento no ao espírito a dor do pé do que a dor de
cérebro fizesse com que o espírito sen- alguma outra parte 1 8 8 • E, embora a
tisse uma coisa inteiramente diferente: secura da garganta nem sempre prove-
por exemplo, que o movimento se nha, como de ordinário, do fato de que
fizesse sentir a si mesmo, ou na medida beber é necessário para a saúde do
em que está no cérebro, ou na medida corpo, mas algumas vezes de uma
em que está no pé, ou ainda na medida causa inteiramente contrária, como
em que situado em qualquer outro experimentam os hidrópicos, todavia é
lugar entre o pé e o cérebro, ou, enfim, muito melhor que ela engane neste
qualquer outra coisa, tal como ela caso do que se, ao contrário, ela enga-
possa ser; _mas nada disso teria contri- nasse sempre quando o corpo está bem
buído tão bem para a conservação do disposto; e, assim, em relação às ou-
corpo quanto aquilo que lhe faz sentir. tras coisas.
39. Da mesma maneira, quando 42. E certamente essa consideração
temos necessidade de beber, nasce daí me serve muito, não somente para
certa secura na garganta que move reconhecer todos os erros a que minha
seus nervos e, por intermédio deles, as naturez:a .está sujeita, mas também
partes interiores do cérebro; e esse para evitá-los ou para corrigi-los mais
movimento faz com que o espírito facilmente: pois, sabendo que todos os
experimente o sentimento da sede por- meus sentidos me significam mais
que, nessa ocasião, nada há que nos ordinariamente o verdadeiro do que o
seja mais útil do que saber que temos falso no tocante às coisas que se refe-
necessidade de beber, para a conserva- rem às comodidades ou incomodi-
ção da saúde; e assim quanto aos dades do corpo, e podendo quase sem-
outros. pre me servir de vários dentre eles para
40. Donde é inteiramente manifesto examinar uma mesma coisa e, além
que, não obstante a soberana bondade disso, podendo usar minha memória,
de Deus, a natureza do homem, en- para ligar e juntar os conhecimentos
quanto composto do espírito e do presentes aos passados, e meu entendi-
corpo, não pode deixar de ser, algumas mento, que já descobriu todas as cau-
vezes, falível e enganadora. sas de meus erros, não devo temer
41. Pois, se há alguma causa que
1 8 ª "Justificação" da ilusão dos amputados. Po-
excite, não no pé, mas em qualquer
uma das partes do nervo que está ten- der-se-ia perguntar se Deus é inteiramente descul-
pado. Afinal de contas, por que colocou ele os
dido desde o pé até o cérebro, ou dados do problema da união de maneira que não
mesmo no cérebro, o mesmo movi- haja solução perfeita? A Meditação Quarta, porém,
nos ensinou que ignoramos quais são os fins de
mento que se faz ordinariamente quan- Deus e que a imperfeição do pormenor pode contri-
do o pé está mal disposto, sentir-se-á a buir para a perfeição do conjunto.
150 DESCARTES
to. Por que, analog_amente, não poderia quanto os contraditores não souberam elevar-se ao
plano da Metafísica como ciência rigorosa, con-
acrescentar a qualquer grau de ser que forme Descartes .a compreende: interpretando as
Meditações como um "ensaio" (na acepção moder-
4 Esta segunda objeção, destinada a mostrar que a na) e não como um tratado científico, eles opõem
primeira prova a posteriori não é probante, é parti- fatos extraídos da experiência corrente a verdades
cularmente confusa. que se situam ao nível do encadeamento das razões.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .157
soberano ser; e então seremos os pri- não sabeis ·ainda que sois uma- coisa
meiros a nos render a vosso raciodnio, pensante, porquanto, segundo vós, tal
e dar-nos-emos todos as mãos. Ora, conhecimento depende do conheci-
que tal idéia procede dessas noções mento claro de um Deus existente, que
antecipadas, patenteia-se, parece, ainda não demonstrastes, nos lugares
assaz claramente do fato de os cana- onde concluís que conheceis clara-
denses, os hurões e os outros homens mente o que sois. Adicionai a isso que
selvagens não possuírem neles ·tal um ateu conhece clara e distintamente
idéia, a qual podeis até formar do que os três ângulos de um triângulo
conhecimento que tendes das coisas são iguais a dois retos, embora esteja
corporais; de sorte que vossa idéia muito longe de crer na existência de
nada mais representa senão esse Deus, posto que a negou completa-
mundo corporal, que abrange todas as mente: porque, diz ele, se Deus existis-
perfeições que poderíeis imaginar; de se, haveria um soberano ser e um sobe-
sorte que não podeis concluir outra rano bem, isto é,. um infinito; ora, o
coisa, exceto que há um ente corpóreo que é infinito, em todo gênero de
muito perfeito; a não ser que junteis· perfeição, exclui toda outra coisa que
algo mais, que eleve vosso espírito ao seja não somente toda espécie de ser e
conhecimento das coisas espirituais ou de bem mas, outrossim, toda espécie de
incorpóreas. Ainda aqui é possível não-ser _e de mal; no entanto, há mui-
afirmar que a idéia de um anjo pode tos seres e muitos bens,. assim como
existir em vós, tanto quanto a de um muitos não-seres e muitos males; obje-
ser mais perfeito, sem que haja necessi-
ção à qual julgamos ser oportuno que
dade, para tanto, de que seja formada
vós respondais, de modo que aos ím-
em vós por um anjo realmente existen-
te, embora o anjo seja mais perfeito do pios nada mais reste a objetar, e que
que vós. Mas não tendes a idéia de possa servir' de pretexto à sua impieda-
de.
Deus, assim como a de um número ou
a de uma linha infinita; e, ainda que Em quarto lugar, negais que Deus
pudésseis tê-la, este número é inteira- possa mentir ou enganar; conquanto se
mente impossível. Adicionai a isto que encontrem escolásticos que sustentam
a idéia de unidade e simplicidade de o contrário, como Gabriel, Arirni-
uma única perfeição que envolva e nensis e alguns outros, os quais pen-
contenha todas as outras constitui-se sam ~ u q Deus mente, falando absolu-
unicamente pela operação do entendi- tamente, isto é, que ele significa algo
mento que raciocina, assim como se aos homens contra sua intenção, e con-
constituem as unidades universais, que tra o que decretou e resolveu, como
quando, sem acrescentar condição, diz
não estão nas coisas, mas somente no
aos ninivi tas por seu profeta: A inda ·
entendimento, corno é visível pela uni-
quarenta dias, e Nínive será subver-
dade genérica, transcendental, etc.
tida, e ao dizer muitas outras coisas
Em terceiro lugar, como ainda não que não aconteceram, porque não pre-
estais certo da existência de Deus e tendeu que tais palavras correspon-
dizeis, no entanto, que não podeis estar dessem à sua intenção ou a seu decre-
seguro de coisa alguma, ou conhecer to. Por que se empederniu e cegou o
coisa alguma clara e distintamente, se Faraó, e, se pô.s nos profetas um espí-
primeiro não conheceis certa e clara- rito de mentira, corno podeis afirmar
mente que Deus existe, segue-se que que não podemos ser enganados por
158 DESCARTES
ele? Não pode Deus comportar-se com espírito que a governa e, se, ao contrá-
os homens como um médico com seus rio, expõe-se ao perigo, quando perse-
doentes, e um pai com seus filhos, que gue e abrange os conhecimentos, obs-
tanto um como outro enganam tão curos e confusos do entendimento,
amiúde, mas sempre com prudência e notai que daí parece possível inferir
utilidade? Pois se Deus nos mostrasse que os turcos e os outros infiéis não só
a verdade inteira e nua, que olho ou, não pecam quando não abraçam a reli-
antes, que espírito possuiria bastante gião cristã e católica mas até mesmo
força para suportá-la 8 ? pecam quando a abraçam, pois não
Ainda que, a bem dizer, não seja conhecem sua verdade nem clara nem
necessário supor um Deus enganador, distintamente. Ainda mais, se for ver-
para que sejais decepcionados nas coi- dadeira essa regra que estabeleceis,
sas que pensais conhecer clara e distin- não será dado à vontade abranger
tamente, visto que a causa dessa senão pouquíssimas coisas, visto que
decepção pode estar em vós, embora não conhecemos quase nada com a
nem sequer o sonheis. Pois como sa- clareza e distinção que exigis, para
beis que vossa natureza não é tal que constituir uma certeza que não esteja
ela se engana sempre, ou ao menos sujeita a nenhuma dúvida. Tomai,
com muita freqüência? E onde vos pois, cuidado, se vos apraz, para que,
informaram que, no tocante às coisas pretendendo firmar o partido da verda-
que pensais conhecer clara e distinta- de, não proveis mais do que o necessá-
mente, é certo que nunca estivestes rio, e para que, em vez de apoiá-lo, não
enganado, e que não o podeis estar? o derrubeis.
Pois quantas vezes verificamos que as Em sexto lugar, nas vossas respostas
pessoas se enganam em coisas que às objeçQes precedentes, parece que
pensavam ver mais claramente do que deixastes de tirar a devida conclusão
o sol! Portanto, esse princípio do do seguinte argumento: O que entende-
conhecimento claro e distinto deve ser mos pertencer clara e distintamente à
explicado tão clara e distintamente natureza, ou à essência, ou à forma
que, doravante, ninguém dotado de imutável e verdadeira de qualquer
espírito razoável possa ficar decepcio- coisa, pode ser dito ou afirmado com
nado nas coisas que julgar conhecer verdade desta coisa; mas (depois de
clara e distintamente 9 ; de outro modo, observar assaz cuidadosamente o que é
ainda não vemos nada que possamos Deus) entendemos clara e distinta-
responder com certeza sobre a verdade mente que pertence à sua verdadeira e
de qualquer coisa. imutável natureza, que ele existe 1 0 •
Em quinto lugar, se a vontade nunca
1 0 O silogismo das Primeiras Respostas ao qual se
pode falhar, ou não peca de maneira alude é o seguinte: o que concebemos clara e distin-
alguma, quando segue e se deixa con- tamente pertencer à natureza de uma coisa, pode-
tluzir pelas luzes claras e distintas do mos afirmar com verdade desta coisa; ora, concebe-
mos clara e distintamente que pertence à natureza
de Deus existir; logo, Deus existe. As Primeiras
ª Oposição - embaraçosa para o autor - do Respostas concedem que "a dificuldade da menor
Deus cartesiano ao Deus antropomórfico das não é pequena": 1. 0 devido à distinção que fazemos
Escrituras. entre essência e existência "em todas as outras coi-
9 O princípio de clareza e distinção é ele mesmo sas"; 2. 0 devido ao fato de que a idéia de Deus pre-
claro e distinto? Ou então não designa ele senão cisa corresponder a uma "natureza verda~i e
uma certeza psicológica e subjetiva, não passando, imutável" e de que eu devo poder verificar qhe ela
por conseguinte, como dirá Leibniz, de "uma marca não foi forjada pelo meu entendimento. Desbartes
de certeza obscura e sujeita ao capricho dos responde a essas duas dificuldades prejudic~s ao
homens"? fim das Primeiras Respostas. l
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 159
nhecer tanto melhor uma coisa quanto mais útil para alcançar um firme e se-
mais particularidades dela conhece- guro conhecimento das coisas do que
mos; assim, temos mais conhecimento acostumar-se, antes de estabelecer
daqueles com quem conversamos algo, a duvidar de tudo e principal-
todos os dias do que daqueles de que mente das coisas corporais, embora
só conhecemos o nome ou o rosto; e houvesse visto há longo tempo muitos
todavia não julgamos que esses nos livros escritos pelos céticos e acadê-
sejam inteiramente desconhecidos; micos sobre a matéria e não fosse sem
nesse sentido penso ter suficientemente certo fastio que ruminava um alimento
demonstrado que o espírito, conside- tão comum, não pude todavia dispen-
rado sem as coisas que se costumam sar-me de lhe conceder uma Meditação
atribuir ao corpo, é mais conhecido inteira; e gostaria que os leitores
que o corpo considerado sem o espíri- empregassem não apenas o pouco
to. E é tudo o que pretendia provar tempo necessário para lê-la, mas al-
nessa Meditação Segunda. guns meses, ou ao menos algumas
Mas bem vejo o que pretendeis semanas, em considerar as coisas de
dizer, a saber, que, havendo eu escrito que ela trata, antes de passar além;
apenas seis Meditações sobre a Filoso- pois assim não duvido que aufiram
fia primeira, os leitores se espantarão lucro bem melhor da leitura do restan-
de que, nas duas primeiras, não con- te.
clua nada mais senão o que acabo de Ademais, por não termos tido até.
declarar nesse instante, e por isso hão agora quaisquer idéias das coisas per-
de achá-las demasiado estéreis e indig- tencentes ao espírito que não fossem
nas de terem sido trazidas à luz 1 6 • A muito confusas e misturadas às idéias
isso respondo somente não temer que das coisas sensíveis, e por ter sido esta
aqueles que houverem lido com discer- a primeira e principal razão pela qual
nimento o restante do que escrevi te- não se pôde entender assaz claramente
nham ocasião de suspeitar que eu haja nenhuma das coisas que se diziam de
malogrado no trato da matéria; mas Deus e da alma, pensei que não faria
que me pareceu muito razoável que as pouco se mostrasse como é preciso dis-
coisas que exigem particular atenção, e tinguir as propriedades ou qualidades
devem ser consideradas separadamente do espírito das propriedades ou quali-
das outras, fossem postas em Medita- dades do corpo, e como é preciso
ções separadas 1 7 • reconhecê-las; pois, embora muitos já
Eis por que, não conhecendo nada tenham dito que, para bem entender as
coisas imateriais ou metafisicas, é
1 6 "Isto poderia ser dito em quatro palavras e esta-
necessário distanciar o nosso espírito
ríamos todos de acordo. Se eu devesse gastar tantas
palavras e tempo para aprender uma coisa de tão
dos sentidos, não obstante ninguém,
pouca importância, teria dificuldade de me resignar que eu saiba, mostrou ainda por que
a isso", é o que Descartes faz dizer a seu adversário meio é possível realizá-lo. Ora, o
no diálogo La Recherche de la Vérité. Kant terá de verdadeiro, e a meu juízo, o único meio
defender-se da mesma censura e fará muitas vezes
observar que é preciso distinguir entre o tema da para isso está contido na minha Medi-
finitude .de nosso conhecimento, lugar-comum da tação Segunda 1 8 ; mas é de tal ordem
Metafisica, e a demonstração e determinação preci-
sa dos limites de nosso conhecimento.
1 1 Cf. Cartas, a Mersenne, de 24 de dezembro de 1 8 Este ·"único meio" é "o método de segregação"
1640, sobre a diferença essencial entre a ordem das (Guéroult, t. I, 69): não posso me conceber 'clara e
matérias e a ordem das razões: "Não intento abso- distintamente senão excluindo tudo de mim ~alvo o
lutamente dizer em um mesmo lugar tudo quanto pensamento (distinção real), não posso con~ber as
pertence a uma matéria, porque me seria impossível faculdades não intelectuais de meu espírito sem
prová-lo efetivamente ... " incluir nelas o pensamento (distinção modal).·
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 163
que não basta tê-lo encarado uma vez, dar algum. Pois, o que direis vós? Que
cumpre examiná-lo amiúde e conside- essas coisas são realmente distintas,
rá-lo durante muito tempo, a fim de podendo cada qual existir sem a outra?
que o hábito .de confundir as coisas Mas eu tomaria a perguntar-vos de
intelectuais com as corporais, que se onde sabeis que uma coisa pode existir
enraizou em nós no curso de toda a sem a outra. Pois, para que isso consti-
nossa vida, possa ser expungido por tua um signo de distinção, é necessário
um hábito contrário, o de distingui-las, que seja conhecido.
adquirido pelo exercício de alguns Alegareis talvez que os sentidos vo-
dias. E isso me pareceu uma causa lo fazem conhecer, por que vedes uma
bastante justa para que não versasse coisa na ausência de outra, ou porque
outra matéria na Meditação Segunda. a tocais, etc. Mas a fé dos sentidos é
Perguntais aqui como demonstro mais incerta que a do entendimento; e
que o corpo não pode pensar; mas per- pode acontecer de muitas maneiras que
doai-me se respondo que ainda não dei uma só e mesma coisa se apresente a
lugar a tal questão, tendo apenas nossos sentidos sob diversas formas,
começado a tratá-la ·na Meditação ou em diversos lugares· e maneiras,
Sexta, pelas seguintes palavras: É sufi- sendo assim tomada por duas. E enfim,
ciente que eu possa clara e distinta- se vos recordais do que foi dito da cera
mente conceber uma coisa sem outra, ao termo da Meditação Segunda, sa-
para ser certo que uma é distinta ou beis que os corpos mesmos não são
diferente da outra, etc. E pouco depois: propriamente conhecidos pelos senti-
A inda que eu tenha um corpo que me dos, ma:s só pelo entendimento; de tal
seja mui estreitamente ligado, no en- modo que sentir uma coisa sem uma
tanto, porque, de um lado, possuo uma outra nada é senão ter a idéia de uma
idéia clara e distinta de mim próprio, coisa, e entender que essa idéia não é a
na medida em que sou apenas uma mesma que a idéia de uma outra: ora,
coisa que pensa, e não extensa, e que, isso só é cognoscível pelo fato de que
de outro, possuo uma idéia clara edis- uma coisa é concebida sem a oqtra; o
tinta do corpo, na medida em que é que não pode ser certamente conheci-
apenas uma coisa extensa, e que não do, se não se tem a idéia clara e dis-
pensa, é certo que eu, isto é, meu espí- tinta dessas duas coisas: e assim esse
rito, ou minha alma, pela qual sou o signo de real distinção deve reduzir-se
que sou, é inteira e verdadeiramente ao meu para tomar-se certo.
distinta de meu corpo, e que pode ser Porque, se há os que negam haver
ou existir sem ele. Ao que é facil adi- idéias distintas do espírito e do corpo,
cionar: Tudo o que pode pensar é espí- nada posso fazer, exceto pedir-lhes que
rito, ou se chama espírito. Mas como o considerem assaz atentamente as coi-
corpo e o espírito são realmente distin- sas contidas nessa Meditação Segunda,
tos, nenhum corpo é espírito. Logo, ne- e notem que a opinião, por eles adota-
nhum corpo pode pensar. E certamente da, de que as partes do cérebro concor-
·nada vejo nisso que possais negar; pois rem com o espírito para formar nossos
negareis vós que basta concebermos pensamentos não se baseia em nenhu-
claramente uma coisa sem outra, para ma razão positiva, mas apenas em que
sabermos que são realmente distintas? jamais experimentaram ter existido
Dai-nos, portanto, algum signo mais sem corpo, e que com muita freqüência
certo da distinção real, se é que se pode foram impedidos por ele em suas
164 DESCARTES
se livre a si mesmo dos prejuízos que lhes prestar grande atenção. Ora, de
lhe ofuscam talvez a luz natural, e se tudo isso, conclui-se mui manifesta-
acostume a dar crédito às primeiras mente que Deus existe 2 1 • E todavia,
noções, cujos conhecimentos são tão em favor daqueles cuja luz natural é
verdadeiros ~ tão evidentes, como nada tão fraca, que não vêem que constitui
mais pode sê-lo, de preferência às opi- uma primeira noção que toda a peifei-
niões obscuras e falsas, mas que um ção que está objetivamente numa idéia
longo uso gravou profundamente em deve estar realmente em alguma de
nossos espíritos. suas causas, ainda a demonstrei de
Pois que nada exista em um efeito maneira fácil de conceber, mostrando
que não tenha existido de forma seme- que o espírito que tem esta idéia não
lhante ou mais excelente na causa é pode existir por si próprio; e, portanto,
uma primeira noção, e tão evidente, não vejo o que podeis desejar mais
que não há nada mais claro; e esta para me dardes as mãos, como haveis
outra noção comum, que de nada nada prometido.
se faz, a compreende em si, porque, se Não vejo tampouco que tenhais pro-
se concorda que exista algo no efeito vado algo contra mim, dizendo que tal-
que não existiu na sua causa, cumpre vez eu tenha recebido a idéia que me
concordar também que isso procede do representa Deus dos pensamentos que
nada; e se é evidente que o nada não concebi anteriormente, dos ensina-
pode ser a causa de algo, é somente mentos dos livros, dos dis.cursos de
porque, nesta causa, não haveria a meus amigos, etc., e não somente de
mesma coisa do que no efeito. · meu espírito. Pois meu argumento terá
sempre a mesma força, se, dirigindo-
Constitui também uma primeira me àqueles de quem se diz que eu a
noção que toda a realidade, ou toda a recebi, eu lhes perguntar se.~ têm por
perfeição, que só está objetivamente si mesmos, ou por outrem, em vez de
nas idéias, deve estar formal ou emi- perguntá-lo a mim próprio; e eu con-
nentemente nas suas causas; e toda cluirei sempre que este outro é Deus,
opinião que jamais nutrimos sobre a de quem ela é primeiramente derivada.
existência das coisas fora de nós Quanto ao que acrescentais neste
apóia-se tão-somente nela. Pois de ponto, de que ela pode ser f armada da
onde nos poderia advir a suspeita de consideração das coisas corporais, não
que existissem, se não do simples fato me parece mais verossímil do que se
de suas idéias virem pelos sentidos disserdes que não dispomos de qual-
ferir nosso espírito? quer faculdade auditiva, mas que, pela
Ora, que há em nós alguma idéia de simples visão das cores, chegamos ao
um ente soberanamente poderoso e conhecimento dos sons. Pois pode-se
perfeito, e também que a realidade afirmar que há mais analogia ou rela-
objetiva desta idéia não se encontra em ção entre as cores e os sons do que
nós, nem formal, nem eminentemente, entre as coisas corporais e Deus. E
isto tornar-se-á manifesto aos que pen- quando pedis que eu adicione alguma
sarem seriamente no assunto, e quise-
rem dar-se ao trabalho de meditá-lo 2 1 Toda essa página é menos uma resposta do que
comigo; mas não poderia ~nfiá-lo à uma retomada da primeira prova pelos efeitos cujas
força no espírito dos que lerem as mi- articulações Descartes se limita a pôr em evidência
(localização do problema, axiomas, raciocínio por
nhas Meditações apenas como um exclusão). O que mais responder aos que não soube-
romance, para se desenfadar, e sem ram situar-se no plano da "luz natural"?
166 DESCARTES
se fossem distintas, por causa da fra- crível que ele não tenha conseguido compreender,
como afirma, o que eu entendo pela idéia de
queza de nosso entendimento, e que Deus ... visto que não entendo por ela outra coisa
experimentamos como tais em nós, exceto o que ele próprio deve necessariamente ter
não convém a Deus e a nós na forma compreendido quando vos escreveu que não a
entendia de modo algum? ... De qualquer m!aneira
denominada unívoca nas Escolas. que concebamos (Deus), temos uma idéia dele,
Assim também sabemos que, das mui- posto que nada poderíamos exprimir por nossas
palavras, quando entendemos o que dizemos, sem
tas coisas particulares que não têm que daí mesmo seja certo que temos em nós it idéia
fim, cujas idéias possuímos, tais como da coisa que é significada por nossas palavras!'.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 167
les que misturam a esta algumas outras pode· ser concebida pelo exclusivo
idéias compõem por tal meio um Deus entendimento e que, de fato, não é
quimérico em cuja natureza existem outra coisa senão aquilo que ele nos
coisas que se contrariam; e, após tê-lo faz conhecer, seja pela primeira, seja
assim composto, não é de espantar que pela segunda, seja pela terceira de suas
neguem que tal Deus, que lhes é repre- operações. E pretendo manter que, do
sentado por uma falsa idéia, existe. simples fato de alguma perfeição, que
Assim, quando vós falais aqui de um está acima de mim, tomar-se o objeto
ser corporal mui perfeito, se tomais a de meu entendimento, de qualquer
denominação mui perfeito de modo forma que se lhe apresente - por
absoluto, de maneira que entendais que exemplo, do simples fato de eu perce-
o corpo é um ser onde se encontram ber que nunca posso, enumerando,
todas as perfeições, dizeis coisas que se chegar ao maior de todos os números,
contrariam 2 4 , posto que a natureza do e daí eu conhecer que existe algo, em
corpo encerra muitas imperfeições, por matéria de números, que ultrapassa
exemplo, a que o corpo seja divisível minhas forças - , posso concluir ne-
em partes, que cada uma de suas par- cessariamente não que existe na verda-
tes não seja a outra, e outras semelhan- de um número infinito, nem tampouco
tes; pois é algo evidente por si que que sua existência implica contradi-
constitui maior perfeição não poder ser ção, como dizeis, mas que este poder
dividido do que poder sê-lo. Pois se que tenho de compreender que há sem-
entendeis apenas o que é mui perfeito pre alguma coisa a mais a conceber no
no gênero do corpo, isto não é de maior dos números, que eu jamais
modo algum o .verdadeiro Deus. posso conceber, não provém de mim
O que acrescentais da idéia de um mesmo, e que eu o recebi de algum
anjo, o qual é mais perfeito do que nós, outro ser que é mais perfeito do que
a saber, que não é necessário que tenha sou.
sido posta em nós por um anjo, estou E importa muito pouco que se dê o
facilmente de acordo; pois eu próprio nome de idéia a esse conceito de um
declarei, na Meditação Terceira, que número indefinido, ou que não lho
ela pode compor-se das idéias que dêem. Mas, para entender qual é esse
temos de Deus e do homem. E isso não ente mais perfeito do que eu e saber se
me é de forma alguma, contrário. não é esse mesmo número, cujo fim
Quanto aos que negam possuir em si não posso encontrar, que é realmente
a idéia de Deus e em seu lugar forjam existente e infinito, ou se é outra coisa
algum ídolo, etc., esses, digo eu, negam qualquer, cumpre considerar todas as
o nome e concedem a coisa. Pois certa- outras perfeições, as quais, além do
mente não penso que tal idéia seja da poder de me dar esta idéia, podem exis-
mesma natureza que as imagens das tir na mesma coisa em que existe este
coisas materiais pintadas na fantasia; poder; e assim verificamos que esta
mas, ao contrário, . creio que. ela só coisa é Deus.
Enfim, quando Deus é dito inconce-
2 4 "O ser corporal mui perfeito" é uma expressão bível, por isso se entende uma plena e
contraditória se referirmos "corporal" à sua defini- inteira concepção, que compreende e
ção cartesiana (extensão divisível); mas não, se
compreendermos apenas por corporal uma "subs- abrange perfeitamente tudo quanto há
tância sensível", como procedem os teólogos. As nele, e não essa concepção medíocre e
próprias palavras não têm o mesmo sentido. "Não
se define bem o corpo como uma substância sensí-
imperfeita que há em nós, a qual no
vel." (A Morus, 5 de fevereiro de 1649.) entanto basta para conhecer que ele
168 DESCARTES
existe. E nada provais contra mim, ensinada por ele sentir em si próprio
dizendo que a idéia àa unidade de que não pode se dar que ele pense, caso
todas as perfeições que há em Deus é não exista. Pois é próprio de nosso1
ma entender aquilo que exclui a exis- parecé que lhe são atribuídas algumas
tência das coísas tmítas, e que ele nada paixões humanas.
pode saber da natureza de uma coisa Pois todos conhecem suficiente-
que ele pensa não ser absolutamente mente a distinção que há entre essas
nada, e por conseguinte não ter nenhu- maneiras de falar de Deus, de que a
ma natureza, exceto a que está contida Escritura se serve comumente, que se
na simples e ordinária significação do acomodam à capacidade do vulgo e
nome dessa coisa 2 7 • contêm de fato alguma verdade, mas
Ademais, para que serviria o infmito apenas na medida em que esta se rela-
poder desse infmito imaginário, se não ciona aos homens, e as que expressam
pudesse jamais criar algo? E enfim, uma verdade mais simples e mais pura
por experimentarmos haver em nós e que não muda de natureza, embora
mesmos certo poder de pensar, conce- não se lhes relacione de modo
bemos facilmente que tal poder possa algum 2 9 ; destas é que cada qual deve
existir em alguém mais, e até maior do usar ao filosofar e foi delas que preci-
que em nós; mas, ainda que pensemos sei utilizar-me principalmente nas mi-
que aquele cresce ao infmito, não nhas Meditações, visto que mesmo aí
tememos por isso que o nosso se tome eu não supunha ainda que algum
menor. O mesmo sucede com todos os homem me fosse conhecido, e não me
outros atributos de Deus, inclusive o
considerava tampouco composto de
do poder de produzir alguns efeitos
corpo e espírito, mas um espírito
fora de si, desde que suponhamos que somente.
nada há em nós sem que esteja subme-
tido à vontade de Deus; portanto, é De onde se toma evidente que não
possível entendê-lo como totalmente falei nesse ponto da mentira que se
infinito sem qualquer exclusão das coi- exprime por palavras, mas apenas da
sas criadas 2 8 • malícia interna e formal contida no
Em quarto lugar, quando digo que engano: se bem que, no entanto, essas
Deus não pode mentir, nem ser enga- palavras que citais do profeta: A inda
nador, penso convir com todos os teó- quarenta dias, e Nínive será subver-
logos que alguma vez existiram e hão tida, não constituam mesmo uma men-
de existir no futuro. E tudo quanto ale- tira verbal, porém uma simples amea-
gais em contrário não possui mais ça, cuja ocorrência dependia de uma
força do que se, tendo negado que condição; e quando é dito que Deus
Deus se encoleriza, ou que esteja sujei- empederniu o coração do Faraó, ou
to às outras paixões da alma, me obje~ algo semelhante, não cumpre pensar
tardes as passagens da Escritura onde que o tenha feito positivamente, mas
apenas negativàmente, a saber, não
2 7 Passamos agora à prova da não existência de dando ao Faraó uma graça eficaz para
Deus alegada pelos teólogos. Em primeiro lugar, a que se convertesse.
definição do infinito é fabricada sob medida e tanto
mais arbitrariamente quanto o ateu se limita a tor- Não desejaria, apesar de tudo, con-
nar explícito um nome, porquanto recusa a colocar denar aqueles que afirmam que Deus
uma essência. pode proferir por seus profetas alguma
28 Em segundo lugar, não se pode dizer que o infi-
nito seja exclusivo da pluralidade das coisas· cria- mentira verbal, tais como o são aque-
das. Notar-se-á o caráter spinozista do raciocínio las de que se servem os médicos quan-
do ateu. A pluralidade existe, diz ele, logo o infinito
não existe. O infinito existe, logo é preciso que a
pluralidade seja ilusória, dirá Spinoza. As conclu- 2 9 Distinção, que será retomada por Spinoza, entre
sões são inversas, mas a incompatibilidade é a a linguagem antropomórfica das Escrituras e a ver-
mesma. dade filosófica que ela reveste.
170 DESCARTES
l
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 171
possa tê-la das coisas obscuras e con- a tomaram dos sentidos ou de algum
fusas, por pouca obscuridade ou con- falso preconceito. De nada vale, ou-
fusão que nelas observemos; pois tal trossim, que alguém suponha que tais
obscuridade, qualquer que seja, é coisas parecem falsas a Deus ou aos
causa assaz suficiente para nos fazer anjos, porque a evidência de nossa per-
duvidar dessas coisas. Tampouco po- cepção não permitirá que ouçamos a
demos tê-la das coisas percebidas ape- quem o tenha suposto e nos queira
nas pelos sentidos, não importa a cla- per su adir 3 2 •
reza que ocorra em sua percepção, Há m;itras coisas que nosso entendi-
porque muitas vezes já notamos que no mento também concebe muito clara-
sentido pode haver erro, como quando mente, quando observamos de perto as
um hidrópico sente sede, ou a neve pa- razões de que depende seu conheci-
rece amarela a quem sofre de icterícia; mento; e, por issó, não podemos,
pois este último não a vê menos clara e então, duvidar dele. Mas, dado que
distintamente desta forma do que nós a podemos esquecer as razões, e no
quem ela parece branca. Resta, portan- entanto recordar as conclusões daí
to, que, se podemos tê-la, é somente extraídas, pergunta-se se é possível ter
das coisas que o espírito concebe clara uma firme e imutável persuasão sobre
e distintamente. essas conclusões, ao passo que nos
Ora, entre tais coisas, algumas há lembramos de que foram deduzidas de
tão claras e ao mesmo tempo tão sim- princípios mui evidentes; pois esta
ples que nos é impossível pensar nelas lembrança deve pressupor-se para que
sem que as julguemos verdadeiras: por possam chamar-se conclusões. E eu
exemplo, que existo quando penso, que respondo que só podem tê-la os que
as coisas que foram alguma vez feitas ·conhecem de tal modo Deus a ponto
não podem não ter sido feitas e outras de saberem que não pode acontecer
semelhantes, das quais é manifesto que que a fa~ulde de entender, que lhes
· possuímos perfeita certeza. foi dada por ele, tenha por objeto outra
coisa se não a verdade; mas que os ou-
Pois não podemos duvidar dessas
tros não a têm. E isso foi tão clara-
coisas sem pensar nelas; mas não
mente explicado ao fim da Meditação
podemos jamais pensá-las sem acredi-
Quinta que não penso dever aqui
tar que sejam verdadeiras, como acabo
acrescentar-lhe algo.
de dizer; logo, não podemos duvidar Em quinto lugar, surpreendo-me de
delas sem as crermos verdadeiras, isto que negueis que a vontade corre o peri-
é, nunca podemos duvidar delas 3 1 • go de falhar, quando persegue e envol-
E de nada serve alegar que verifi- ve os conhecimentos obscuros e confu-
camos muitas vezes que pessoas se sos do entendimento. Pois, o que é que
enganavam em coisas que pensavam pode tomá-la certa, se o que ela segue
ver mais claramente que o sol. Pois não é claramente conhecido? E qual
nunca vimos, nós nem ninguém, que foi o filósofo, ou o teólogo, ou o sim-
isso tenha acon;ecido aos que tiraram ples homem no uso da razão, que não
tão-só do entendimento toda a clareza haja alguma vez confessado que o peri-
de suas percepções, mas antes aos que
3 2 Os teólogos interpretaram a certeza como um
3 1 Uma vez que atingi a certeza, sabendo que satis- estado psicológico entre outros. Para Descartes, o
fiz a suas condições, não mais posso duvidar diante termo é mais determinado: pensamento de um obje-
da evidência: a dúvida já não seria senão um artifí- to tal que, devido ao próprio fato de eu pensá-lo,
cio sem qualquer sentido. não posso duvidar de sua verdade.
172 DESCARTES
go de falhar a que nos expomo.s é tanto interior, pela qual, tendo Deus nos
menor quanto mais clara a coisa que _aclarado sobrenaturalmente, possuí-
concebemos antes de lhe dar nosso mos confiança certa de que as coisas
consenso? E que pecam os que, sem propostas à nossa crença foram por ele
conhecimento de causa, prónunciam reveladas, e de que é inteiramente
algum juigamento? Ora, nenhuma con- impossível que ele seja mentiroso e nos
cepção é dita obscura ou confusa, ex- engane: e isso é mais seguro do que
ceto porque nela está contido algo que qualquer outra luz natural, e amiúde
não é conhecido. até mais evidente, por cauda da luz da
Portanto, aquilo que o b~etais . · no graça .
33
De resto, peço-vos aqui que lembreis que pretendeis, a premissa maior devia
de que, no tocante às coisas que a von- ser assim: Aquilo que concebemos
tade pode abranger, sempre estabeleci clara e distintamente pertencer à natu-
grande distinção entre a prática da reza de alguma coisa pode ser dito ou
vida e a contemplação da verdade. afirmado com verdade pertencer à
Pois, no que concerne à prática da natureza dessa coisa. E assim não con-
vida, tanto faz que eu pense ser preciso teria senão uma inútil e supérflua repe-
seguir apenas as coisas que conhece- tição. M'as a premissa maior do meu
mos mui claramente, como, ao contrá- argumento foi a seguinte: Aquilo que
rio, que eu sustente que nem sempre se concebemos clara e distintamente per-
deve contar com o mais verossímil, tencer à natureza de alguma coisa
sendo preciso algumas vezes, entre pode ser dito ou afirmado com verdade
muitas coisas completamente desco- dessa coisa. Isto é, se ser animal per-
nhecidas e incertas, escolher uma e se tence· à essência ou à natureza do
lhe apegar, e em seguida crer nela não homem, pode-se assegurar que o
menos firmemente, enquanto não vir- homem é animal; se ter os três ângulos
mos razões em contrário, do que se a iguais a dois retos pertence à natureza
tivéssemos escolhido por razões certas do triângulo retilíneo, pode-se assegu-
e mui evidentes, como já expliquei no rar que o triângulo retilíneo tem seus
Discurso do Método 3 4 . Mas, onde se três ângulos iguais a dois retos; se exis-
trata tão-somente da contemplação da tir pertence à natureza de Deus, pode-
verdade, quem jamais negou que é pre- se assegurar que Deus existe, etc. E a
ciso suspender o julgamento em rela- premissa menor foi a seguinte: Ora, é
ção às coisas obscuras e que não sejam certo que pertence à natureza de Deus
assaz distintamente conhecidas? Ora, existir. Daí é evidente que se deva con-
que em minhas Meditações só se veri- cluir como eu o fiz, a saber: Logo,
fica essa contemplação da verdade, pode-se com verdade assegurar, quan-
além de se reconhecer este fato bas- to a Deus, que ele existe; e não como
tante claramente por elas próprias, eu desejais: Logo, podemos assegurar
o declarei em palavras expressas no com verdade que pertence à natureza
fim da Primeira, ao dizer que nunca de Deus o existir.
seria demais duvidar, nem haveria Portanto, para usar da exceção que
demasiada descoefzança naquele apresentais em seguida, deveríeis negar
ponto, tanto mais que não me aplicava a premissa maior e dizer que aquilo
então às coisas concernentes à prática que concebemos clara e distintamente
da vida, mas apenas à busca da pertencer à natureza de alguma coisa
verdade. não pode por isso ser dito ou afirmado
Em sexto lugar, onde censurais a dessa coisa, a não ser que sua natureza
conclusão de um silogismo por mim seja possível, ou não repugne de modo
formulado, parece-me que vós próprios algum. Mas notai, peço-vos,. a fraqueza
pecais na forma; pois, para concluir o dessa exceção. Pois, ou pelo termo
possível entendeis, como se faz ordina-
3 4 Daí por que, contrariamente à Física e à Metafi- riamente, tudo o que não repugna ao
sica, a Moral deverá recorrer à noção do provável e
à experiência. "Reencontramos entre a Ciência e a pensamento humano, acepção em que
Sabedoria ... esta separação à qual Descartes pare- é manifesto que a natureza de Deus? da
cia pôr fim e. . . que era uma das características
dos moralistas da Renascença." (Guéroult, op. cit.,
forma como a descrevi, é possível, por-
II, 237.) que nada supus nela, exceto o que,con-
174 DESCARTES
quer coisa que esteja fora do entendi- corpo humano, na medida em que dife-
mento, porque, pelo próprio fato de re dos outros corpos, compõe-se so-
uma coisa estar fora do entendimento, mente de certa configuração de mem-
se toma manifesto que ela não implica bros, e outros acidentes semelhan-
de modo algum, mas que é possível. tes3 8 ; e, enfim, que a morte do cor-
Ora, a impossibilidade com que nos po depende somente de alguma divi-
deparamos em nossos pensamentos são ou mudança de figura. Ora,
provém apenas de serem eles confusos não temos nenhum argumento, ou
e obscuros, e não pode haver nenhuma qualquer exemplo, que nos persuada de
impossibilidade nos que são claros e que a morte ou o aniquilamento de
distintos; por conseguinte, a fim de uma substância tal como é o espírito
podermos estar seguros de que conhe- deva decorrer de uma causa tão ligeira
cemos bastante a natureza de Deus como o é uma mudança de figura, que
para sabermos que não há qualquer não é senão um modo, e ainda um
repugnância em que ela exista, é sufi- modo, não do espírito, mas do corpo,
ciente que entendamos clara e distinta- que é realmente distinto do espírito. E
mente todas as coisas que percebemos não dispomos mesmo de qualquer
haver nela, embora tais coisas sejam argumento nem exemplo que nos possa
apenas em pequeno número em relação convencer de que há substâncias sujei-
às que não percebemos, posto que tas ao aniquilamento. O que basta para
estas também estejam nela; e que co.m concluir que o espírito, ou a alma do
isso notemos que a existência neces- homem, na medida em qu~ isso pode
sária é uma das coisas que percebe- ser conhecido pela Filosofia natural, é
mos, assim, existir em Deus. imortal.
Em sétimo lugar, já dei a razão, no Mas caso se pergunte se Deus, por
resumo de minhas Meditações, pela seu absoluto poder, não determinou
qual nada disse aqui sobre a imortali- talvez que as almas humanas cessem
dade da alma 3 7 ; já mostrei também · de existir, ao mesmo tempo que são
mais acima como provara suficiente- destruídos os corpos a que estão uni-
mente a distinção que há entre o espí- das, só a Deus compete respondê-lo. E
rito e toda espécie de corpo. como agora ele nos revelou que isso
Quanto ao que acres~nti, que da nunca ocorrerá, não deve subsistir a
distinção da alma com o corpo não se respeito nenhuma dúvida. ·
segue que ela seja imortal, porque, ape- De resto, devo agradecer-vos muito
sar disso, se pode dizer que Deus afez por vos terdes dignado tão obsequiosa-
de tal natureza que sua duração finda mente, e com tanta franqueza, adver-
com a da vida do corpo, confesso que tir-me não só das coisas que vos pare-
nada tenho a responder; pois não ali- ceram dignas de explicação mas
mento tanta presunção a ponto de ten- também das dificuldades que me po-
tar determinar, pela força do racio- .diam ser opostas pelos ateus, ou por
cínio humano, algo que depende alguns aborrecedores e maldizentes.
Pois, a.inda que não veja nada, entre
apenas da pura vontade de Deus.
O conhecimento natural nos ensina as coisas que me propusestes, que não
que o espírito é diferente do corpo, e houvesse de antemão rejeitado ou
que é uma substância; e também que o 3 8
A substância extensa é indestrutível, mas não as
substâncias corporais particulares; os corpos não
3 7
No resumo, nota Descartes que as Meditações são verdadeiras substâncias, como os espíritos, mas
permitem estabelecer que a morte da alma não apenas especificações da extensão. E isso é tão ver-
decorre da corrupção do corpo; mas uma demons- dade no tocante ao corpo humano (enformado por
tração da imortalidade da alma exigiria "a explica- uma alma) como em relação à máquina (do animal),
ção_ de toda a Física". apesar da diferença existente entre ambos.
176 DESCARTES
fim de impugnar a verdade, ele se toma conselho, procurarei aqui imitar a sín-
menos capaz de compreendê-la, por- tese dos geômetras e efetuarei um r.esu-
quanto desvia o espírito da considera- mo das principais razões que usei para
ção das razões que o persuadem dela demonstrar a existência de Deus e a
para aplicá-lo à busca das que a distinção que há entre o espírito e o
destroem. corpo humano: o que não servirá
Mas, não obstante, para testemu- pouco, talvez, para aliviar a atenção
nhar o quanto condescendo com vosso dos leitores.
RAZÕES
Definições
I. Pelo nome de pensamento, com- enformam o próprio espírito, que se
preendo tudo quanto está de tal modo aplica a esta parte do cérebro.
em nós que somos imediatamente seus III. Pela realidade objetiva de uma
conhecedores. Assim, todas as opera- idéia, entendo a entidade ou o ser da
ções da vontade, do entendimento, da coisa representada pela idéia, na medi-
imaginação e dos sentidos são pensa- da em que tal entidade está na idéia; e,
mentos. Mas acrescentei imediata- da mesma maneira, pode-se dizer uma
mente, para excluir as coisas que se- perfeição objetiva, ou um artificio
guem e dependem de nossos objetivo, etc. Pois, tudo quanto conce-
pensamentos: por exemplo, o movi- bemos como estando nos objetos das
mento voluntário tem, verdadeira- idéias, tudo isso está objetivamente, ou
mente, a vontade como princípio, mas por representações, nas próprias
ele próprio, no entanto, não .é um idéias 4 4 .
pensamento. IV. As mesmas coisas são ditas
II. Pelo nome de idéia, entendo esta estarem formalmente nos objetos das
forma de cada um de nossos pensa- idéias, quando estão neles tais como as
mentos por cuja percepção imediata conebms~ e são ditas estarem neles
eminentemente, quando, na verdade,
temos conhecimento desses mesmos
não estão aí, como tais, mas são tão
pensamentos. De tal modo que nada grandes, que podem suprir essa carên-
posso exprimir por palavras, ao com-· cia com a excelência delas 4 5 .
preender o que digo, sem que daí
mesmo seja certo que possuo em mim 4 4 A realidade objetiva de uma idéia é seu con-
a idéia da coisa que é significada por teúdo na medida em que é dotado de valor represen-
minhas palavras. E assim não dou o tativo. Cumpre não conftindi-la, pois, com seu valor
objetivo, ao qual ela .não permite, por si só,
nome de idéfa às simples imagens que prejulgar. .
são pintadas na fantasia; ao contrário, 4 5
Se considerarmos que a idéia de Deus, enquanto
não lhes dou aqui esse nome, na medi- idéia, é forçosamente inferior àquele de quem ela é
cópia, Deus será denominado causa eminente desta
da em que se encontram na fantasia idéia. Se considerarmos que não pode haver na rea-
corporal, isto é, na medida em que são lidade objetiva da idéia do perfeito, enquanto idéia
do perfeito, nada que seja menos perfeito do que o
pintadas em algumas partes do cére- próprio ser perfeito, Deus pode então ser denomi-
bro, mas somente na medida em que nado causa formal de sua idéia.
180 DESCARTES
semelhantes; e que assim exercitem sível está contida, mas além disso a
essa clareza do entendimento que lhes necessária. Pois, daí só, e sem qualquer
foi dada pela natureza, mas que as raciocínio, conhecerão que Deus exis-
percepções dos sentidos acostumaram te; e não lhes será menos claro e evi-
a perturbar e obscurecer, que a exerci- dente, sem outra prova, que lhes é
tem, digo eu, totalmente pura e liberta manifesto que dois é um número par, e
de seus prejuízos; pois, por este meio, a três um número ímpar, e coisas seme-
verdade dos axiomas seguintes lhes lhantes 4 8 • Pois há coisas que são
será fortemente evidente. assim Gonhecidas sem provas por
Em quarto lugar, que examinem as alguns, enquanto outros só as enten-
idéias dessas naturezas que contêm em dem por um longo discurso e raciocí-
si um conjunto de muitos atributos, nio.
como a natureza do triângulo, a do Em sexto lugar, que, considerando
quadrado ou de qualquer outra figura; com cuidado toc;los os exemplos de que
bem como a natureza do espírito, a falei nas minhas Meditações, de uma
natureza do corpo e, acima de todas, a clara e distinta percepção, e todos cuja
natureza de Deus ou de um ser sobera- percepção é obscura e confusa, habi-
namente perfeito. E que tomem nota de tuem-se a distinguir as coisas clara-
que se pode assegurar, com verdade, mente conhecidas das obscuras; pois
que existem em si próprias todas essas isso se aprende melho'r por exemplos
coisas que concebemos claramente do que por regras, e penso que disso
estarem aí contidas 4 7 . Por exemplo, não se pode dar um exemplo, sem que
porque na natureza do triângulo retilí- éujánão o haja aflorado um pouco.
neo está contido que seus três ângulos Em sétimo lugar, postulo que os lei-
são iguais a dois retos, e porque na tores, levando em conta que nunca
natureza do corpo ou de uma coisa reconheceram qualquer falsidade nas
extensa a divisibilidade acha-se com- coisas que conceberam claramente e
preendida (pois não concebemos a que, ao contrário, nunca encontraram,
coisa extensa tão pequena que não pos- senão por acaso, qualquer verdade nas
samos dividi-la ao menos pelo pensa- coisas que conceberam apenas com
mento), é certo dizer que os três ângu- obscuridade, considerem que seria algo
los de todo triângulo retilíneo são inteiramente desarrazoado se, por al-
iguais a dois retos, e que todo corpo é guns prejuízos dos sentidos, ou por
divisível. algumas suposições feitas à vontade, e
Em quinto lugar, postulo que se fundadas em algo obscuro e desconhe-
detenham longamente em contemplar a cido, pusessem em dúvida as coisas
natureza do ser soberanamente perfei- que o entendimento concebe clara e
to; e, entre outras coisas, que conside- distintamente. Mediante isso, admiti-
rem que, nas idéias de todas as outras rão facilmente os seguintes axiomas
naturezas, a existência possível encon-
tra-se de fato contida, mas que, na 4 8
O conhecímento da necessidade da existência de
idéia de Deus, não só a existência pos- Deus é, portanto, comparável ao das verdades mate-
máticas conhecidas sem prova. "O pensamento últi-
mo de Descartes é, pois, não cabe dúvidas, que o
4 7 É a premissa maior da prova a priori que é aqui argumento ontológico não comporta prova e que ele
postulada. Nas Meditações, ela era demonstrada reside inteiramente na percepção direta de uma rela-
pela primeira prova: "Aquilo mesmo que tomei há ção necessária .inclusa em uma essência imediata-
pouco por uma regra, a saber, que as coisas que mente apreendida pela intuição; mas que nem por
concebemos mui clara e mui distintamente são isso deixa de permanecer totalmente comparável às
todas verdadeiras, só fica assegurado porque Deus é verdades matemáticas, pelo menos àquelas que são
ou existe e porque é um ser perfeito ... " indemonstráveis." (Guéroult, op. cit., I, pág. 352.)
182 DESCARTES
I. Não há coisa existente da qual que o vemos? Mas essa visão não afeta
não se possa perguntar qual a causa de modo algum o espírito, a não ser na
pela qual ela existe. Pois isso se pode medida em que é uma idéia: uma idéia,
perguntar até mesmo de Deus: não que digo, inerente ao próprio espírito, e
tenha necessidade de alguma causa não uma imagem pintada na fantasia;
para .existir, mas porque a própria e, por ocasião dessa idéia, não pode-
imensidade de sua natureza é a causa mos julgar que o céu existe, a não ser
ou a razão pela qual não precisa de que suponhamos que toda idéia deve
qualquer causa para existir. ter uma causa de sua realidade obje-
II. O tempo presente não depende tiva que seja realmente existente; causa
daquele que imediatamente o prece- que julgamos ser o céu mesmo; e assim
deu; eis por que não é necessário uma por diante 5 0 •
VI. Há diversos graus de realidade
menor causa para conservar uma
.ou de entidade: pois a substância tem
coisa, do que para produzi-la pela pri- mais realidade do que o acidente ou o
meira vez. modo, e a substância infinita mais .do
III. Nenhuma coisa, ou perfeição que a finita. Eis por que também há
alguma dessa coisa atualmente existen- mais realidade objetiva na idéia de
te, não pode ter o Nada, ou uma coisa substâ.llcia do que na de acidente, e
não existente, como a causa de sua mais na idéia de substância infinita do
existência. que na de substância finita 5 1 •
IV.· Toda a realidade ou perfeição VII. A vontade se dirige voluntária
que existe numa coisa encontra-se for- e livremente (pois isto é de sua essên-
mal, ou eminentemente, na sua causa ci.a), mas no entanto de modo infalível,
primeira e total. ao bem que lhe é claramente conheci-
V. Daí se segue também que a reali- do. Daí por que, se ela chega a conhe-
dade objetiva de nossas idéias requer cer quaisquer perfeições que não pos-
uma causa, em que esta mesma reali- sua, entregar-se-lhes-á imediatamente,
dade seja contida, não só objetiva, mas caso estejam ao seu alcance; pois reco-
também formal, ou eminentemente 49 • 50
Notar-se-á aqui, com Guéroult, o caráter funda-
E cumpre notar que este axioma deve mental do princípio da correspondência entre a
ser tão necessariamente admitido, que idéia e o ideado. O fato de certos pensamentos se
só dele depende o conhecimento de apresentarem certa ou erradamente como "produzi-
dos-por-seu-objeto" é "uma propriedade original
todas as coisas, tanto sensíveis como que não se pode adquirir pela experiência; é uma
insensíveis. Pois, como sabemos, por condição primeira de meu conhecimento, e mesmo
de minha percepção sensível". (Guéroult, op. cit., I,
exemplo, que o céu existe? Será por 199.)
51
Dizer que as idéias das substâncias têm mais
4 9 Do axioma IV, segue-se que a causa da reali-
realidade objetiva que as dos acidentes, significa
dade objetiva da idéia há de ser uma realidade for- ·que "participam por representação em mais graus
mal. Daí a necessidade de uma causa atualmente de ser ou de perfeição do que as que me representam
existente para o efeito atualmente conservado. Esta somente modos ou acidentes". E um princípio evi-
dependência entre os axiomas explica a reserva dente por luz natural que os acidentes são rhenos
acima: "Confesso que muitos dentre eles ... deve- que a substância. Daí por que será preciso aiguma
riam ser propostos mais como teoremas do que coisa a mais para criar a substância do que! para
como axiomas, se eu quisesse ser mais exato". criar os acidentes.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 183
nhecerá que lhe é um maior bem ceita de uma coisa limitada, a exis-
possuí-las do que não as possuir 5 2 • tência possível ou contingente acha-se
VIII. O que pode fazer o mais, ou o apenas contida, e no conceito de um
mais difícil, também pode fazer o ser soberanamente perfeito está com-
preendida a perfeita e necessária exis-
menos, ou o mais fácil. tência 53 .
IX. É algo maior e mais difícil criar 52 Esta defmição da vontade como apetência
ou conservar uma substância do que necessária do bem é de origem escolástica. Mas Gil-
criar ou conservar seus atributos ou son (Commentaire du Discours, pág. 333) observa
propriedades; mas não é algo maior ou que os escolásticos não poderiam utilizar essa
noção a fim de provar a existência de Deus. Com
mais difícil criar uma coisa do que efeito, é mister que o homem seja dotado de uma
conservá-la, como já foi dito. vontade infinita para que se torne "um ser que, de
direito, queira para si todas as perfeições que Deus,
X. Na idéia ou no conceito de cada causa sui, quer para si e se dá".
coisa, a existência está contida, porque 53 A finitude da realidade objetiva nas idéias das
nada podemos conceber sem que seja coisas fmitas é que exclui delas a existência necessá-
ria. Por meio dessas, posso conhecer com certeza a
sob a forma de uma coisa existente; possibilidade de seu objeto, mas nunca a existência
mas com a diferença de que no con- deste.
PROPOSIÇAÕ PRIMEIRA
A EXISTÊNCIA DE DEUS É CONHECIDA PELA SIMPLES CONSIDERAÇÃO
DE SUA NATUREZA
Demonstração
PROPOSIÇAÕ SEGUNDA
A EXISTÊNCIA DE DEUS É DEMONSTRADA POR SEUS EFEITOS, PELO
SIMPLES FATO DE SUA IDÉIA ESTAR EM NÓS
Demonstração
A realidade objetiva de cada uma de qual esta mesma realidade esteja conti-
nossas idéias requer uma causa na da, não objetiva, mas formal ou emi-
184 DESCARTES
eminentemente (pelo quinto. axioma). sexto axioma), e que ela não pode estar
Orq., é certo que temos em nós a contida em ninguém mais exceto em
idéia de Deus (pela segunda e oitava Deus mesmo (pela oitava definição).
Logo, a idéia de Deus, que há em
definições), e que a realidade objetiva
nós, exige Deus como causa: por
dessa idéia não está contida em nós, conseguinte, Deus existe (pelo terceiro
nem formal, nem eminentemente (pelo axioma).
PROPOSIÇÃO TERCEIRA
A EXISTÊNCIA DE DEUS É AINDA DEMONSTRADA PELO FATO DE NÓS
PRÓPRIOS, QUE TEMOS EM NÓS A IDÉIA DE DEUS, EXISTIRMOS
Demonstração
COROLÁRIO
DEUS CRIOU O CÉU E A TERRA, E TUDO O QUE NELES ESTÁ CONTIDO.
E, ALÉM DISSO, PODE FAZER TODAS AS COISAS QUE CONCEBEMOS
CLARAMENTE, DA MANEIRA COMO NÓS AS CONCEBEMOS
Demonstração
Todas essas coisas seguem-se clara- por aquele em quem ela se encontra,
mente da proposição precedente. Pois não só o céu e a terra, etc., devem ter
provamos aí a existência de Deus, por sido criados, mas também todas as ou-
ser necessário que haja um ser existen- tras coisas que conhecemos como
te, no qual todas as perfeições, de que
possíveis.
há em nós alguma idéia, estejam conti-
das formal ou eminentemente. Logo, provando a existência de
Ora, é certo que temos em nós a Deus, provamos também a seu respeito
idéia de um poder tão grande, que, só todas essas coisas.
PROPOSIÇAÕ QUARTA
O ESPÍRITO E O CORPO SÃO REALMENTE DISTINTOS
Demonstração
Tudo o que concebemos claramente 7) que podem existir uma sem a outra
pode ser feito por Deus da maneira· (como acabo de provar) 5 5 •
como rrós o concebemos (pelo corolá- Logo, o espírito e o corpo ~são real-
rio precedente). mente distintos.
E é preciso observar que me servi
Mas concebemos claramente o espí- aqui da onipotência de Deus para tirar
rito, isto é, uma substância que pensa, dela a minha prova 5 6 ; não que seja
sêm o corpo, isto é, sem uma-súbs- necessário qualquer poder extraordi-
tância extensa (pelo postulado 2); e, de nário para separar o espírito do corpo,
outra parte, concebemos também cla- mas porque, não tendo tratado senão
ramente o corpo sem o espírito (como de Deus nas proposições anteriores,
cada um concorda facilmente). não podia tirá-la de outro lugar exceto
dele. E não importa de modo algum
Logo, ao menos pela onipotência de por qual poder duas coisas sejam sepa-
Deus, o espírito pode existir sem o radas, para sabermos que são real-
corpo, e o corpo sem o espírito. mente distintas.
Pois bem, as substâncias que podem 5 5 A fim de que as substâncias estejam realmente
existir uma sem a outra são realmente separadas, basta provar que são substâncias e não
distintas (pela definição 1O). substâncias existentes.
5 6
A prova através da onipotência de Deus, aqui
Ora, é certo que o espírito e o corpo imposta pela ordem sintética, ameaça dissimular
são substâncias (pelas definições 5, 6 e· que o conceito essencial é o da "distinção real".
RESPOSTAS DO AUTOR
ÀS QUINTAS OBJEÇÕES
FORMULADAS PELO SENHOR GASSENDI
Do Senhor Descartes ao Senhor Gassendi
Senhor,
bém, os filósofos em muitas ocasiões; e zelo da verdade, bem mostra que ele
aquele que chama isto recorrer a uma próprio não quer servir-se desta oandu-
máquina, forjar ilusões, procurar des- ra filosófica, nem pôr em uso as
vios e novidades e que diz que isto é razões, m'as atribuir somente às coisas
indigno da candura de um filósofo e do os ouropêis e as cores da retórica.
sentimento e ao andar, refiro-os tam- qual desejais ser chamado, tendes tão
bém, na maior parte, ao corpo e nada pouco comércio com o espírito que
atribuo à alma do que lhes diz respeito, não pudestes notar a passagem em que
exceto, apenas, que é um pensamento. corrigi esta imaginação do vulgo pela
504. Ademais, que razão tendes de qual fingimos que a coisa que pensa é
dizer que não havia necessidade de tão semelhante ao vento ou a algum outro
grande aparelhamento para provar corpo dessa espécie 6 0 ? Pois corrigi-o,
minha existência? Certamente penso sem dúvida, quando mostrei que se
ter muita razão em inferir de vossas pode supor que não há vento, nem
próprias palavras que o aparelhamento fogo, nem qualquer outro corpo no
do qual me servi não foi ainda suficien- mundo, e que, entretanto, sem mudar
temente grande, posto que não pude essa suposição, todas -as coisas pelas
fazer ainda com que compreendêsseis quais conheço que sou uma coisa que
bem a questão; pois, quando dizeis que pensa não deixam de permanecer em
poderia concluir a mesma coisa de sua totalidade 61 . E, portanto, todas as
cada uma de minhas ações indiferente- perguntas que me fazeis em seguida,
mente, vós vos enganais bastante, j~ por exemplo: Por que não poderia eu,
que não há nenhuma entre elas de que pois, ser um vento? Por que não pode-
eu esteja inteiramente certo - refiro- ria preencher um espaço? Por que não
me àquela certeza metafisica, única poderia ser movido de várias manei-
certeza de que aqui se trata - exceto o ras? e outras semelhantes, são tão vãs
e tão inúteis que não necessitam de
pensamento. Pois, por exemplo, não resposta.
seria boa a seguinte conseqüência: eu 506. III. O que em seguida acres-
passeio, logo existo, senão na medida centais não é mais sólido, a saber: se
em que o conhecimento interior que eu sou um corpo sutil e tênue, por que
tenho disto é um pensamento, do qual não poderia ser alimentado?; e o resto.
somente esta conclusão é certa, não do Pois nego absolutamente que eu seja
movimento do corpo, o qual às vezes um corpo 6 2 • E, para acabar de uma
pode ser falso, como nos nossos vez por todas com essas dificuldades,
sonhos, embora nos pareça então que po.rque me objetais quase sempre a
passeamos; de maneira que, do fato de mesma coisa, e não combateis minhas ·
que eu penso passear, posso muito bem
inferir a existência de meu espírito, que 60
Texto de Gassendi: "Dizei-me, eu vos peço, ó
alma, ou o que quer que sejais, corrigistes até aqui
tem este pensamento, mas não a do este pensamento pelo qual vos imaginais ser algo
meu corpo que passeia. O mesmo semelhante ao vento ou a qualquer outro corpo
acontece com todos os outros. desta natureza, espalhado em todas as partes de
vosso corpo? Certamente não o fizestes". Em ou-
505. II. Começais, em seguida, por tros termos: quem vos autoriza a sustentar que só o
uma figura de retórica bastante agra- pensamento pode ser separado de mim? Por que
não seria este pensamento um corpo?
dável que se chama prosopopéia, a me 61
'Em suma, Gassendi não compreendeu o método
interrogar, não mais como um homem de redução, implicado pela dúvida hiperbólica. Ele
inteiro, mas como uma alma separada se coloca ao nível de uma investigação física e fisio-
lógica, quando se trata de uma separação de essên-
do corpo; no que parece que tenhais cias no plano metafísico. ·
querido advertir-me de que essas obje- 62
Resta-vos provar, dizia Gassendi, que o corpo
não é capaz de pensamento, "que esse corpo gros-
ções não partem do espírito do sutil seiro e pesado em nada ·contribui para o vosso
filósofo, mas de um homem preso aos pensamento, conquanto jamais tenhais estado sem
sentidos e à carne. Dizei-me, portanto, ele e nunca tenhais pensado algo estando separado
dele ... " Para Descartes, essas constatações de fato
suplico-vos, ó carne, ou quem quer que não poderiam valer contra a certeza metafísica de
sejais, e qualquer que seja o nome pelo direito. 1
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 191
um conceito claro e distinto dessa dade por causa do equívoco que reside
substância, no qual nada está contido na palavra alma 6 7 , mas eu a esclareci
que pertença ao da substância corpo- nitidamente tantas vezes que me enver-
ral, isso me basta plenamente para gonho de repeti-lo aqui; e é por isso
assegurar que, enquanto eu me conhe- que direi apenas que os nomes foram
ço, nada sou senão uma coisa que ordinariamente impostos por pessoas
pensa; e isso é tudo o que assegurei na ignorantes, o que faz com que não con-
Meditação Segunda, da qual se trata venham sempre propriamente às cpisas
nesse momento; e não deveria admitir que significam; no entanto, desde que
que esta substância pensante fosse um foram aceitos, não temos liberdade de
corpo sutil, puro, tênue, etc., na medi- mudá-los, mas podemos apenas corri-
da em que não tive nenhuma razão que gir suas significações quando vemos
disso me persuadisse; se tendes algu- que não são bem compreendidas.
ma, a vós cabe no-la ensinar e não exi- Assim, visto que os primeiros autores
gir de mim que prove que algo é falso dos nomes talvez não distinguiram em
quando não tive outra razão para não nós aquele princípio pelo qual somos
admiti-lo senão o fato de me ser desco- alimentados, crescemos e realizamos,
nhecida essa razão. Pois fazeis o sem o pensamento, todas as outras fun-
mesmo que se, dizendo que estou ções que partilhamos com os animais,
atualmente na Holanda, dissésseis que daquele outro pelo qual nós pensamos,
não devo ser acreditado se não provar eles denominaram ambos os princípios
ao mesmo te~po que não estou na com o mesmo nome de alma; e, vendo
China ou em qualquer outra parte do pouco depois que o pensamento era
mundo; visto que talvez possa ocorrer diferente da nutrição, deram o nome de
que um mesmo corpo, pela onipotência espírito a esta coisa que em nós tem a
faculdade de pensar e acreditararri que
de Deus, esteja em muitGs lugares. E
era a parte principal da alma. Mas eu,
quando acrescentais que devo também
tendo cuidado que o princípio pelo
_provar que as almas dos artim~s_ não
qual somos alimentados é inteiramente
são corpóreas e que o corpo em nada diferente daquele pelo qual pensamos,
contribui para o pensamento, fazeis disse que o nome alma, quando se refe-
ver não somente que ignorais a quem re ao mesmo tempo a um e a outro, é
pertence a obrigação de provar uma equívoco, e que, para tomá-lo precisa-
coisa mas também que não sabeis o mente como esse primeiro ato ou essa
que cada um deve provar; pois, quanto f arma principal do homem, ele deve
a mim, não creio nem que as almas dos ser somente entendido como aquele
animais não sejam corpóreas nem que princípio pelo qual pensamos; dessa
o corpo em nada contribua para o maneira, chamei-o o mais das vezes
pensamento; mas somente digo que pelo nome de espírito, para evitar esse
não é este o lugar de examinar essas
6 1 Gassendi: "Eu pensava falar a uma alma huma-
coisas 6 6 . na ou então a esse princípio interno pelo qual o
508. IV. Buscais aqui a obscuri- homem vive, sente, se move e entende, e no entanto
falava apenas a um puro espírito; pois vejo que sois
6 6 O fim do parágrafo fornece bom exemplo da despojado não unicamente do corpo, mas também
"dialética" de Descartes: por que deveria eu provar de uma parte da alma". Ele acredita, portanto, que
como falsas idéias que se apresentam apartadas Descartes rechaça da alma as faculdades não inte-
tão-somente pela evidência fenomenológica? Dialé- lectuais ao mesmo título que o corpo. Isto significa
tica sempre útil contra as falsas ciências, que ape- confundir a distinção real entre alma e corpo e a
nas exigem a prova da falsidade por não poder dar distinção modal entre o entendimento e as demais
a da verdade. faculdades. '
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 193
equívoco e essa ambigüidade. Pois não contrário, posto que não sabia então se
considero o espírito como uma parte o corpo era uma e mesma coisa que o
da alma, mas como toda a alma espírito ou se não o era, eu nada queria
pensante. adiantar, mas somente considerei o
509. Mas, dizeis, sentis dificuldade espírito até que, enfim, na Meditação
em saber se eu não considero, portan- Sexta, não somente adiantei mas de-
to, que a alma pensa sempre. Mas por monstrei mui claramente que ele era
que não pensaria ela sempre, uma vez· realmente dÍstinto do corpo. Mas vos
que é uma substância pensante? E que enganais nisto a vós mesmo, e muito,
maravilha há em que não nos lembre- pois, não tendo a menor razão para
mos dos pensamentos que ela teve no mostrar que o espírito não é distinto do
ventre de nossas mães, ou durante a corpo, não deixais de afirmá-lo sem
letargia, já que não nos lembramos, prova alguma 6 9 •
mesmo, de muitos pensamentos que 511. V. O que eu disse da imagina-
sabemos muito bem que tivemos quan- ção é bastante claro, desde que sequei-
do adultos, sãos e despertos, pela ra examiná-lo cuidadosamente, mas
razão de, para nos lembrarmos de não é estranho se parecer obscuro
pensamentos que o espírito concebeu àqueles que jamais meditam e que não
uma vez, enquanto conjugado ao fazem reflexão alguma sobre o que
corpo, ser necessário que restem deles pensam. Mas devo adverti-los de que
alguns vestígios impressos no cérebro, as coisas que asseverei, não perten-
para os quais o espírito se volta e apli- cerem ao conhecimento que tenho de
ca-lhes seu pensamento, a fim de mim mesmo não são, de modo algum,
lembrar'""se; ora, que há de maravilhoso incompatíveis com aquelas que ante-
se o cérebro de uma criança ou de um riormente disse não saber se perten-
letárgico não é próprio para receber ciam à minha essência, na medida em
tais impressões 6 8 ? que pertencer à minha essência e per-
510. Enfim, onde eu disse que tal- tencer ao conhecimento que tenho de
vez possa ocorrer que aquilo que eu mim mesmo são duas coisas inteira-
mente diferentes 7 o.
não conheço ainda (a saber, meu
corpo) não seja diferente de mim que 512. VI. Tudo o que aqui alegais, ó
conheço (a saber, de meu espírito), que boníssima carne, não me parece tanto
nada sei disso, que não o discuto, 69
A objeção de Gassendi se relacionava com a
etc . .. , vós me objetais: Se vós não o Meditação Segunda, § 7. Como podeis afirmar que
sabeis, se não o discutis, por que dizeis nada sois exceto uma coisa que pensa e, ao mesmo
que não sois nada disso? Ora, não é tempo, admitir que "essas coisas que suponho nada
serem talvez sejam algo real qu~ não difere absolu-
verdade que eu tenha adiantado algo tamente de mim que conheço"? Ele ignora, assim,
que não soubesse; pois, exatamente ao que nesta passagem a certeza de que nada sou além
de uma coisa pensante não adquiriu iiinda validade
objetiva.
7 ° Cf. Segunda Meditação, · § 8. Não sei, objeta
68 Cabe perguntar em que medida esse parágrafo
concorda com o princípio segundo o qual nada há Gassendi, se as coisas que caem sob a imaginação
em nós de que não tenhamos consciência. Mas a não pertencem à minha essência. É sempre o mesmo
doutrina, neste ponto, é mais complexa do que pàre- mal-entendido. Descartes verificou simplesmente:
ce. Por exemplo, Descartes pôde escrever: "Temos reconheci que existia sem recorrer às imagens das
realmente um conhecimento atual dos atos ou das coisas corporais e mesmo reputando essas coisas
operações de nosso espírito, mas nem sempre de como falsas. Gassendi, por sua vez, transpõe, em
suas faculdades, a não ser em potência". (Quartas afirmação ontológica, esta análise do simples
Respostas a Amauld.) De modo que, quando o espí- conhecimento. Ora, neste ponto, assiste-me o direito
rito deixa de lembrar-se, conserva em potência cer- de excluir o corpo do conhecimento de minha natu-
tas faculdades ou propriedades dares cogitans. reza, mas não de minha natureza.
194 DESCARTES
za, visto que um não se demonstra sem tem a virtude de conhecer-lhe a dureza,
outro 7 2 • E não vejo o que podeis dese- outro que pode conhecer a modifica-
jar de mais, no que se refere a isto, a ção dessa dureza ou a liquefação, etc.,
não ser que se vos diga qual é o odor e pois alguém pode conhecer a dureza
qual é o sabor do espírito humano, ou sem por isso conhecer a brancura,
de que sal, enxofre .e mercúrio é ele como é o caso de um cego de nascença
composto; pois quereis que, como por e assim por diante. Donde se vê clara-
uma espécie de operação química, a mente que não há coisa alguma de que
exemplo do vinho, nós o passemos se con,heçam tantos atributos quanto
pelo alambique, a fim de saber o que os de nosso espírito, pois, na medida
entra na composição de sua essên- em que os conhecemos nas outras coi-
cia 7 3 • O que certamente é digno -de sas, podemos contar tantos outros no
vós, ó carne, e de· todos aqueles que, espírito, pelo fato de que ele os conhe-
nada concebendo senão mui confusa- ce; e, portanto, sua natureza é mais
mente, não sabem o que se deve pes- conhecida do que a de qualquer outra
quisar de cada coisa. Mas, quanto a coisa 7 4 •
mim, jamais pensei que, para tomar 515. Enfim, vós me argüis aqui de
uma substância manifesta, fosse neces- passagem pelo fato de que, nada tendo
sária outra coisa além de descobrir-lhe admitido em mim a não ser o espírito,
os diversos atributos; de sorte que, eu fale todavia da cerca que vejo e que
quanto m·ais atributos conhecemos de toco, o que no entanto não se pode
alguma sub-stância, mais perfeitamente fazer sem olhos ou sem mãos; mas de-
veis haver notado que adverti expressa-
também conhecemos-lhe a natureza; e,
mente que não se tratava aqui da visão
do mesmo modo, podemos distinguir
ou do tato, que se fazem por inter-
mui diversos atributos na cera: um que
médio dos órgãos corpóreos, mas
ela é branca, outro que é dura, outro
somente do pensamento de ver e de
que, de dura, toma-se líquida, etc.; do tocar, que não necessita desses órgãos,
mesmo modo, há tantos atributos no como experimentamos todas as noites
espírito: um que ele tem a virtude de em nossos sonhos 7 5 ; e certamente vós
conh~er a brancura da cera, outro que o notastes muito bem, mas quisestes
apenas mostrar quantos absurdos e
72 Cf. Meditação Segunda, § 16. Gassendi: "Não
substância não tem realidade alguma como também talvez de qualquer outra
que não. haja tomado das idéias dos · coisa que exista no mundo, por peque-
acidentes segundo os quais ou à manei- na que seja; e não é verdade que conce-
ra dos quais ela é concebida, mostrais bemos o infinito pela negação qo fini-
claramente que não tendes idéia algu- to, visto que, ao contrário, toda
ma da substância que seja distinta, limitação contém em si a negação do
pois esta não pode jamais ser. conce- infinitoª 2 .
bida à maneira dos acidentes, nem 552. Não ê verdade também que a
tomar-lhes de empréstimo sua realida- idéia que nos representa todas as
de; mas, ao contrário, os acidentes são perfeições que atribuímos a Deus não
comumente concebidos pelos filósofos tem mais realidade objetiva do que têm
como substâncias, a saber, quando eles as coisas finitas. Pois confessais, vós
os concebem como reais; pois não se mesmo, que todas essas· perfeições são
pode atribuir aos acidentes realidade ampliadas por nosso espírito, a fim de
alguma (isto é, entidade alguma mais que possam ser atribuídas a Deus; pen-
do que modal) que não seja tomada à sais, portanto, que as coisas assim
idéia da substância 8 1 • ampliadas não são maiores do que as
Enfim, onde dizeis que não forma- que não o foram; e de onde nos pode
mos a idéia de Deus senão sobre aqui- vir essa faculdade de ampliar todas as
lo que aprendemos e ouvimos dos perfeições criadas, isto é, de conceber
outros, atribuindo-lhe, a exemplo algo de maior e de mais perfeito do que
deles, as mesmas perfeições que vimos elas são, se não do simples fato de que
os outros atribuírem-lhe, eu desejaria temos em nós a idéia de uma coisa
que tivésseis também acrescentado de maior, a saber, do próprio Deus? E,
onde é, pois, que esses primeiros enfim, não é verdade também que
homens, de quem aprendemos e ouvi- Deus seria pouca coisa se não fosse
mos essas coisas, obtiveram essa maior do que o concebemos; pois con-
mesma idéia de Deus. Pois, se a obtive- cebemos que ele é infinito e nada pode
ram de si mesmos, por que não pode- haver de maior do que o infinito. Mas
ríamos nós obtê-la de nós mesmos? confundis intelecção com imaginação
Porque, se Deus lhas revelou, Deus e supondes que imaginamos Deus
existe conseqüentemente. como algum grande e poderoso gigan-
E, quando acrescentais que aquele te, como o faria aquele que, jamais
que chama úma coisa infinita dá a uma tendo visto um elefante, o imaginasse
coisa que não compreende um nome semelhante a um oução de altura e de
· que tampouco enlende, não fazeis a largura desmesuradas, o que concordo
distinção entre a intelecção conforme convosco ser muito impertinente 83 .
ao alcance de nosso e.spírito, tal como
cada um reconhece suficientemente em 82 Sobre a Meditação Terceira, § 15. Gassendi
si mesmo te,,!" do infinito, e a concepção nega a positividade da idéia de infmito. Ora, para
inteira e perfeita das coisas, isto é, que Descartes, "esta idéia é evidentemente positiva,
visto ser idéia do infmito apenas porque encerra a
compreende tudo o que há de inteli- realidade (objetiva) do infmito; pretender extraí-la
gível nelas, que é de tal ordem que nin- do fmito surge então como imediatamente absurdo,
guém a teve jamais não só do infinito pois seria querer tirar a realidade objetiva infmita
de uma realidade fmita". (Guéroult, op. cit., I, 190.)
83 Como no caso dos dois sóis, tudo se baseia na
81 Acerca da definição da substância, cf. Princí- recusa de Gassendi de distinguir intelecção e imagi-
pios, I, 51. Acerca da necessidade de distinguir sem- nação. Por conseguinte, não pode ele ter idéia posi-
pre os modos na substância e a própria substância, tiva do infmito. A posição de Gassendi é. neste
cf. Princípios, I, 64. ponto bastante próxima da de Kant. 1
OBJEÇÕES E RESPOSTAS/ .199
V. Dizeis aqui muitas coisas para vosso costume usar argumentos e pro-
fazer de conta que me contradizeis e var o que dizeis. Provais isto com o
entretanto nada dizeis contra mim, exemplo do dedo que não pode bater
po:sto que concluís a mesma coisa que em si mesmo e do olho que não pode
eu 8 4 . Mas, todavia, mesclais aqui e ver-se a si mesmo a não ser num espe-
acolá várias coisas com as quais n,,ão lho: ao que é fácil responder que não é
estou de acordo; por exemplo, que este o olho que se vê a si mesmo, nem o
axioma, nada há num efeito que não espelho, mas antes o espírito, o qual
tenha estado primeiramente em sua somente conhece não só o espelho
causa, se deve entender mais da causa como o olho e a si mesmo. Podemos
material do que da eficiente; pois é mesmo, também, dar outros exemplos,
impossível conceber que a perfeição da entre as coisas corpóreas, da ação que
forma preexista na causa material, mas uma coisa exerce sobre si, como quan-
tão-somente na causa eficiente, e tam- do um tamanco se vira sobre si
bém que a realidade formal de uma mesmo; esta conversão não será uma
idéia seja uma substância, e muitas ou- ação que ele exerce sobre si 8 6 ?
tras coisas semelhantes. 5 25. Enfim, é mister observar que
523. VI. Se tivésseis algumas ra- eu não afirmei que as idéias das coisas
zões para provar a existência das coi- materiais derivavam do espírito, como
sas materiais, sem dúvida tê-las-íeis quereis aqui fazer crer; pois demons-
aqui relatado 8 5 . Mas, uma vez que trei expressamente depois que elas pro-
perguntais somente se é, então, verda- cediam muitas vezes dos corpos, e que
deiro que eu não esteja certo de que é com isso que se prova a existência
haja alguma coisa diferente de mim das coisas corpóreas; mas somente
que exista no mundo, e que supondes apontei nessa passagem que não há
que não há necessidade de procurar as nelas tanta realidade que, por causa da
razões de uma coisa tão evidente, e seguinte máxima: Nada há num efeito
assim vos referis somente aos vossos que não tenha estado em sua causa,
antigos prejuízos, mostrais bem mais formal ou emint~ se deva con-
claramente que não tendes mais qual- cluir que elas não puderam derivar do
quer razão para provar o que afirmais tão-só espírito; o que não impugnais de
do que se não houvésseis dito coisa maneira nenhuma 8 7 •
alguma. No que dizeis a respeito das 526. VII. Não dizeis nada aqui que
idéias, isto não tem necessidade de res- não tenhais dito anteriormente e que eu
posta, porque retringis o nome de idéia não haja refutado inteiramente. Adver-
apenas às imagens pintadas na fanta- tir-vos-ei aqui apenas, no tocante à
sia; e eu estendo-o a tudo o que conce- idéia do infinito (a qual dizeis não
bemos com o pensamento. poder ser verdadeira a não ser que
524. Mas, pergunto-vos, . de passa-
gem, por que argumento provais que· a· 6 A objeção de Gassendi supunha que a cons-
nada age sobre si mesmo. Pºois não é ciência de si podia ser apenas um desdobramento, a
contemplação exterior do eu como a de uma coisa.
Ora, para Descartes não existe P.iferença de natu-
8 4 Trata-se do princípio: "Há pelo menos tanta reza entre pensar e pensar que se pensa.
realidade formal na causa da idéia quanta realidade 8 7 Repreendendo Descartes por não ter provado
objetiva na própria idéia". Gassendi prefere reser- que eu pudesse produzir, por mim só, as idéias cor-
var a aplicação deste princípio à causalidade mate- porais, Gassendi mostra que não compreendeu o
rial (o sêmen com respeito ao filho, o material com sentido da passagem: somente no caso da idéia de
respeito à casa) do que à causa eficiente (o pai ou o Deus é que posso estar certo de se tratar de uma
arquiteto). idéia que não poderia ser produzida por mim
8 5 Cf. Meditação Terceira,§§ 20, 21. mesmo.
200 DESCARTES
compreenda o infinito, e que o que dele erro quando negais que possamos ter
conheço é, quando muito, apenas uma uma verdadeira idéia de Deus: pois,
parte do infinito e mesmo uma parte ainda que não conheçamos todas as
minúscula, que não representa melhor coisas que existem em Deus, todavia,
o infinito que o retrato de um simples tudo o que conhecemos existir nele é
cabelo representa um ho~em intero)~ inteiramente verdadeiro. Quanto ao
advertir-vos-ei, digo, que repugna que que dizeis, que o pão não é mais per-
eu compreenda alguma coisa e que o feito do que aquele que o deseja, e que,
que eu compreendo seja infinito; pois, do fato de eu conceber que algo está
para ter uma idéia verdadeira do infini- atualmente contido numa idéia, não se
to, ele não deve ser de maneira alguma segue que ela esteja atualmente na
compreendido, tanto mais que a in- coisa da qual é idéia, e também que
compreensibilidade mesma está conti- formulo juízo sobre aquilo que ignoro,
da na razão formal do infinitoª 8 ; e e outras coisas semelhantes, tudo isso,
entretanto é coisa manifesta que a digo, nos demonstra apenas que pre-
idéia que temos do infinito não repre- tendeis temerariamente impugnar vá-
senta somente uma de suas partes mas rias coisas das quais não compreendeis
o infinito em sua totalidade, conforme o sentido; pois, do fato de alguém dese-
deve ser representado por uma idéia jar pão, não se infere que o pão seja
humana; _embora seja certo que Deus mais perfeito do que ele, mas somente
ou algunià. outra natureza inteligente que aquele que necessita de pão é
dele possa ter outra idéia muito mais menos perfeito do que quando não
perfeita, isto é, muito mais exata e necessita dele. E, do fato de alguma
mais distinta do que aquela que os ho- coisa estar contida numa idéia, não
mens têm, da mesma maneira que dize- concluo que essa coisa exista atual-
mos que aquele que não é versado na mente, a não ser quando não se pode
Geometria não deixa de possuir a idéia designar nenhuma outra causa para
de todo o triângulo, quando o concebe essa idéia exceto a própria coisa que
como uma figura composta de três ela representa como existente atuàl-
linhas, embora os geômetras possam inente; o que demonstrei que não se
conhecer várias outras propriedades pode dizer de muitos mundos, nem de
do triângulo e notar muitas coisas em qualquer outra coisa que seja, exceto
sua idéia que o não versado na Geome- de Deus, apenas 8 9 • E não julgo tam-
tria não observa. Pois, como é sufi- pouco do que ignoro, pois apresentei
ciente conceber uma figura composta as razões do juízo que formulava,
de três linhas para ter a idéia de todo o razões que são tais que não pudestes
triângulo, assim é suficiente conceber até agora refutar nem a mais frágil.
um.a coisa que não está encerrada em 528. IX. Quando negais que tenha-
limites alguns para ter uma verdadeira mos necessidade do concurso e da
e ill.teU:a idéia de todo o infinito. influência contínua da causa prímeíra
527. VIII. Incorreis aqui no mesmo para sermos conservados 90 , negais
8 9 Podemos ter a idéia de muitas coisas que não
88
Se não posso compreender Deus, já que está
além do finito, posso ao menos entender que é existem atualmente, objetava Gassendi. Resposta: a
incompreensível. "Longe portanto de me tornar idéia de Deus em mim é a única de que estou certo
Deus incognoscível, a incompreensibilidade, embo- que só poderia ser gerada por aquilo mesmo que ela
ra envolva certa limitação necessária de meu conhe- representa como existente. A objeção pressupõe,
cimento (eu jamais poderia esgotar o infinito, pos- pois, que Gassendi interpretou falsamente a aplica-
suir dele um conhecimento 'adequado', isto é, ção que é feita do princípio de clareza e distinÇão e
completo), é ao mesmo tempo ... o que me permite que não atentou para o caráter eminentemente origi-
conhecer o infinito como tal." (Guéroult, op. cit., t. nal da idéia de Deus. ·
I, 206.) 9
° Cf. Meditação Terceira,§ 33.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 201
riam convir à natureza humana; o que que temos de Deus forma-se sucessiva-
me basta inteiramente para demonstrar mente do aumento das perfeições das
a existência de Deus; pois sustento que criaturas; ela se forma inteiramente e
tal virtude, de aumentar e de acrescer de uma vez pelo fato de .concebermos
as perfeições humanas até o ponto de por nosso espírito o s13r infinito, inca-
não mais serem humanas, mas infinita- paz de qualquer espécie de aumento.
mente elevadas acima do estado e da 532. E, quando perguntais como
condição humanos, não poderia existir provo que a idéia de Deus existe em
em nós se não tivéssemos um Deus nós como a marca do operário im-
como ó autor de nosso ser. Mas, para pressa sobre sua obra, qual é a manei-
não mentir, espanto-me muito pouco ra dessa impressão e qual a forma
de que não vos pareça que eu o tenha dessa marca 9 5 , é o mesmo que se,
demonstrado bastante claramente; pois reconhecendo em qualquer quadro
até aqui não percebi que tivésseis tanto artificio que eu não julgasse pos-
compreendido bem qualquer de mi- sível que esta obra saísse de outras
nhas razões. mãos senão as de Apeles, e que che-
531. X. Quando retomais aquilo gasse a dizer que tal artificio inimitável
que eu disse, a saber, que nada se pode é como que determinada marca que
acrescentar nem diminuir à idéia de Apeles imprimiu em todas as suas
Deus 9 4 , parece que não cuidastes bem obras para distingui-las de todas as
do que dizem comumente os filósofos, outras, me perguntásseis qual é a
ou seja, que as essências das coisas são
forma dessa marca e qual a maneira de
indivisíveis; pois a idéia representa a
sua impressão . Certamente, parece que
essência da coisa, a qual se toma
seríeis então mais digno de riso do que
imediatamente a idéia de outra coisa se
se lhe acrescenta ou se lhe diminui de resposta. E quando prosseguis, se
esta marca não é diferente da obra,
algo: assim se figurou outrora a idéia
sois pois, vós mesmo, uma idéia, não
de uma Pandora; assim foram elabora-
sois nada além do que uma maneira de
das as idéias dos falsos deuses por
pensar, sois tanto a marca impressa
aqueles que não concebiam como é
necessária a idéia do verdadeiro Deus. quanto o sujeito da impressão, o que
Mas, desde que se concebeu uma vez a dizeis não será tão sutil quanto se,
idéia do verdadeiro Deus, ainda que tendo eu dito que o artificio pelo qual
nele se possam descobrir novas perfei- os quadros de Apeles são distintos dos
ções que até então não se haviam per- outros não é diferente dos próprios
cebido, sua idéia não foi, entretanto, quadros, objetásseis que tais quadros
acrescida ou aumentada, mas apenas não passam, portanto, de um artificio,
e
tornada mais distinta mais expressa, que não são compostos de matéria al-
visto que essas novas perfeições deve- guma e que são apenas uma maneira
riam estar todas contidas nesta mesma ae pintar' etc.?
idéia que se tinha anteriormente, já que 533. E quando, para negar que
se supõe que era verdadeira; da mesma tenhamos sido feitos à imagem e seme-
maneira que a idéia do triângulo não é
aumentada quando se notam nele mui-
9 5
Cf. Meditação Terceira, § 39. A partir desse
ponto, Gassendi critica e escarnece o conhecimento
tas propriedades que até então se igno- que as Meditações nos proporcionam de Deus.
ravam. Pois não penseis que a idéia "Como se pode concebê-lo por razão natural? ...
Já o haveis visto face a face para poder assegurar,
fazendo comparação entre vós e ele, que lhe sois
9 4
Cf. Meditação Terceira,§ 38. conforme?"
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .203
lhança de Deus, dizeis que Deus tem, obra, como parece quando um pmtor
pois, a f arma de um homem e em faz um quadro que se lhe assemelha.
seguida relacionais todas as coisas nas 534. Mas, com quão pouca fideli-
quais a natureza humana é diferente da dade apresentais minhas palavras
divina, sois nisto mais sutil do que se, quando fingis que eu disse que não
para negar que quaisquer quadros de concebo essa semelhança que tenho
Apeles tenham sido feitos à seme- com Deus .na medida em que conheço
lhança de Aiexandre, dissésseis que ser uma co'isa incompleta e depen-
Alexandre se assemelha, portanto, a dente, visto que, ao contrário, só disse
um quadro e, todavia, que os quadros isso para mostrar a diferença existente
são compostos de madeira e de cores e entre Deus e nós, de medo que se acre-
não de carne como Alexandre? Pois ditasse que eu queria igualar os ho-
não é da essência de uma imagem ser mens a Deus e as criaturas ao criador !
em tudo semelhante à coisa de que ela Pois, nesse mesmo lugar, disse que não
é imagem, mas basta que se lhe asse- concebia somente que eu era nisso
melhe em alguma coisa. E é mui evi- muito inferior a Deus, e que aspirava,
dente que essa virtude admirável e mui no entanto, a essas maiores coisas que
perfeita de pensar que concebemos eu não possuía, mas também que essas
coisas maiores a que eu aspirava
existir em Deus é representada pÓr
encontravam-se em Deus atualmente e
aquela que existe em nós, ainda que
de maneira infinita, às quais no entan-
muito menos perfeita. E, quando prefe-
to encontrava em mim alguma coisa de
ris comparar a criação de Deus com a
semelhante, já que ousava de algum
operação de um arquiteto a fazê-lo
modo aspirar a elas.
com a geração de um pai, vós o fazeis Enfim, quando dizeis que há motivo
sem nenhuma razão; pois, embora de espantar porque todo o resto dos
essas três maneiras de agir sejam total- homens não tem os mesmos pensa-
mente diferentes, a distância não é tão mentos de Deus que eu tenho, já que
grande entre a produção natural e adi- ele imprimiu neles sua idéia do mesmo
vina quanto entre a artificial e a modo que em mim, é como se vos
mesma produção divina. Mas não pen- espantásseis do fato de que, tendo todo
seis nem que digo que há a mesma mundo a noção do triângulo, cada um,
relação entre Deus e nós que a que entretanto, não notasse a mesma quan-
existe entre o pai e seus filhos; nem que tidade de propriedades, e que haja tal-
é verdadeiro também que jamais haja vez mesmo alguns que lhe atribuam
qualquer relação entre o operário e sua falsamente muitas coisas.
liberdade, pois não só a sinto em mim portanto, voltar-se para coisas às quais
mesmo como também vejo que, tendo o entendimento não a dirige, e no
o desígnio de combatê-la, em lugar de entanto era isto o que negáveis há
opor-lhe boas e sólidas razões, vós vos pouco e no que consiste presentemente
contentais simplesmente em negá-la. E o tema d~ nossa discuss-ão; se ela é
talvez eu encontrasse mais crédito no determinada pelo entendimento, não é
espírito dos outros afirmando o que ela, portanto, que se mant~ sob sua
experimentei, e que cada um pode tam- guarda; mas somente ocorre que, como
bém experimentar em si mesmo, do ela se voltava anteriormente em dire-
que vós, que negais uma coisa pelo
ção ao falso que lhe era por ele propos-
simples fato de que jamais talvez a ha-
to, da mesma maneira por acaso ela se
veis experimentado 1 0 5 . E, no entanto,
volta agora para o verdadeiro, porque
é fácil julgar por vossas próprias pala-
o entendimento lho propõe. Mas, além
vras que aigumas vezes a experimen-
disso, eu desejaria saber qual é a natu-
tastes: pois, quando negais que possa-
reza do falso que concebeis e como
mos impedir-nos de cair em erro,
porque não quereis que a vontade se pensais que pode ser objeto do entendi-
dirija a coisa alguma sem que a tanto mento. Pois, para mim, que não enten-
seja determinada pelo entendimento, do pelo falso nada que não seja a pri-
vós estais de acordo que podemos pro- vação do verdadeiro, julgo haver uma
ceder de maneira a não perseverarmos inteira repugnância que o entendi-
nisto, o que não se pode fazer de modo mento apreenda o falso sob a forma ou
algum sem a liberdade que tem a von- a aparência do verdadeiro, o que seria
tade de se dirigir a isto ou aquilo sem todavia necessário se ele jamais deter-
esperar a determinação do entendi- minasse a vontade a abraçar a falsida-
mento; liberdade que, todavia, não de.
quereis reconhecer. Pois, se o entendi- 539. IV. No que concerne ao fruto
mento determinou uma vez a vontade a destas Meditações, parece-me ter ad-
fazer um falso juízo, eu vos pergunto, vertido suficientemente no prefácio, o
quando ela começa pela primeira vez a que penso que lestes, que ele não será
querer cuidar de não perseverar no grande para aqueles que, não se dando
erro, o que é que a determina a ao trabalho de compreender a ordem e
tanto 1 0 6 ? Se for ela própria, poderá, o nexo de minhas razões, cuidarem
10 s Até agora a dialética parece mais brilhante do
apenas de procurar em todas as oca-
que convincente: por que deveria Gassendi apresen- siões motivos de disputas. E quanto ao
tar razões onde Descartes se contenta em invocar o método pelo qual poderíamos discernir
testemunho do "que se pode sentir e experimentar
em si mesmo"? Qual a sua culpa, se se recusa a as coisas que concebemos de fato cla-
admitir o que não experimentou? Mas Descartes irá ramente das coisas de que apenas nos
justamente demonstrar (pelo ahsurdo) que seu
adversário não podia deixar de efetuar essa expe- persuadimos conceber clara e distinta-
.-\~ca <lo \)vre arbítrio. mente, embora eu pense tê-lo ensinado
10 6 O dilema é o seguinte: Gassendi admite que
podemos nos coibir de perseverar no erro; mas de maneira bastante exata, como já o
como é determinada a vontade para isso? disse, não ousaria prometer que seria
A) ou por si própria - e a tese de Gassendi se
esboroa; facilmente compreensível aos que tra-
B) ou pelo entendimento - solução que engen- balham tão pouco em se despojar de
dra um absurdo, pois cumpriria admitir que o enten-
dimento mesmo nos pode induzir a perceber ci falso seus prejuízos, a ponto de se queixar de
sob a forma do verdadeiro. Vemos por aí no que a que fui demasiado longo e exato no
tese do livre arbítrio e da vontade responsável pelo
erro é inseparável do princípio da clareza e da mostrar o meio de se desfazer de tais
distinção. prejuízos.
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 207
é em relação a elas senão uma denomi- a tenhamos concebido ela própria, mas
nação exterior, que não lhes causa antes o verdadeiro triângulo. Da
nenhuma transformação; e, todavia, mesma maneira que, quando lançamos
não se pode duvidar que elas sejam o olhar sobre um papel onde há alguns
conformes a esta verdadeira natureza traços dispostos e arranjados de tal
das coisas que foi feita e construída modo que representam o rosto de um
pelo verdadeiro Deus: não que haja no homem, a visão não excita tanto em
mundo substâncias que tenham com- nós a idéia dos. próprios traços quanto
primento sem largura, ou largura sem a idéia de um homem: o que não ocor-
profundidade; mas porque as figuras reria, se o rosto de um homem não nos
geométricas não são consideradas fosse conhecido de outro lugar, e se
como substâncias, mas somente como não estivéssemos mais acostumados a
os limites nos quais a substância está pensar nele do que em seus traços, os
contida. No entanto, não concordo quais mui amiúde não poderíamos dis-
com que as idéias dessas figuras nos tinguir uns dos outros se estivéssemos
tenham jamais caído sob os sentidos, um pouco distanciados. Assim, certa-
como cada um se persuade ordinaria- mente, não poderíamos jamais conhe-
mente; pois, ainda que não haja dúvida cer o triângulo geométrico através
que possam existir no mundo, tal como daquele que vemos traçado sobre o
os geômetras as consideram, nego, no papel, se nosso espírito não recebesse a
entanto, que existam quaisquer em sua idéia de outra parte 1 o 8 .
torno de nós, a não ser que sejam tão 544. II. Não vejo aqui a que gênero
pequenas que não nos impressionem os de coisas quereis que a existência per-
sentidos: pois são ordinariamente com- tença, nem por que ela não pode ser
postas de linhas retas, e não penso que denominada uma propriedade 109 ,
jamais tenha tocado nossos sentidos como a onipotência, tomando o nome
parte alguma de uma linha que fosse de propriedade para toda espécie de
verdadeiramente reta. Por isso, quando atributo ou para tudo o que pode ser
chegamos a olhar através de uma lune-
ta aquelas que nos haviam parecido as
108
Para refutar a doutrina cartesiana das essên-
cias como verdades eternas, Gassendi expunha que
mais retas, vemo-las inteiramente irre- as essências são generalidades constituídas empiri-
gulares e curvadas em todas as partes, camente, que só tiram sua verdade das coisas singu-
lares de que são abstraídas. Responde Descartes:
como ondas. E, portanto, quando per- Como poderíamos extrair as idéias geométricas do
cebemos pela primeira vez em nossa sensível, visto que elas jamais aí se encontram?
1 0 9 A recusa de Gassendi em considerar a exis-
infância uma figura triangular traçada tência como uma propriedade ou uma perfeição
sobre o papel, tal figura não nos pôde anuncia a crítica kantiana da prova ontológica.
ensinar como era necessário conceber Gassendi escreve, por exemplo: "O que existe e que,
além da existência, tem muitas perfeições, não tem a
o triângulo geométrico, posto que não existência como perfeição singular. . . mas como
representava melhor do que um mau forma ou ato pelo qual a coisa mesma e su.as perfei-
desenho representa uma imagem per- ções são existentes, e sem a qual nem a coisa nem
suas perfeições existiriam de modo algum . . . Se
feita. Mas, na medida em que a idéia uma coisa carece de existência, não se diz que está
verdadeira do triângulo já estava em privada de alguma perfeição, mas que é nula ou que
ela não é absolutamente". Em Gassendi, como em
nós, e que nosso espírito podia conce- Kant, esta recusa provém da impossibilidade de
bê-la mais facilmente do que a figura ·considerar a existência de outro modo, a não ser
menos simples ou mais composta de como existência sensível, tal como notará Hegel
(Enciclopédia, Introdução § 51). Quanto à crítica de
um triângulo pintado, daí decorre que, Marx à posição kantiana, cf. a Dissertação sobre
tendo visto essa fig_ura composta, não Demócrito e Epicuro, infine. j
1
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 209
atribuído a uma coisa, éomo efetiva- ter sido tão fácil de resolver. No que
mente deve ser aqui entendido. Mas, concerne ao que acrescentais em segui-
antes, a existência necessária é verda- da, já respondi suficientemente; e enga-
deiramente em Deus uma propriedade nai-vos grandemente quando dizeis
tomada no sentido menos amplo, por- que não se demonstra a existência de
que apenas a ele convém, e porque só · Deus como se demonstra que todo
nele faz parte de sua essência. Eis por triângulo retilíneo tem seus três ângu-
que também a existência do triângulo los iguais a dois retos; pois a razão é
não deve ser comparada com a exis- semelhante nos dois casos, exceto que
tência de Deus, porque ela tem em a demonstração que prova a existência
Deus uma relação manifestamente di- de Deus é muito mais simples e evi-
ferente com a essência, que não tem no dente do que a outra. E enfim, silencio
triângulo 11 0 ; e não cometo mais aqui sobre o restante do que prosseguis,
o erro que os lógicos chamam de peti- porque, quando dizeis que não explico
ção de princípio, quando coloco a exis- bastante as coisas e que minhas provas
tência entre as coisas que pertencem à não são convincentes, penso que a me-
existência de Deus, do que quando, lhor título poder-se-ia dizer o mesmo
entre as propriedades do triângulo, co- de vós e das vossas.
loco a igualdade da grandeza de seus 545. III. Contra tudo o que apre-
três ângulos com dois retos. Não é ver- sentais aqui de Diágoras, de Teodoro,
dade também que a essência e a exis- de Pitágoras· e de vários outros, opo-
tência em Deus, tanto quanto no triân- nho-vos os céticos, que colocavam em
gulo, podem ser concebidas uma sem a dúvida as próprias demonstraçÕe$ de
outra, porque Deus é seu próprio ser e Geometria, e sustento que eles não o
o triângulo não. E, todavia, não nego teriam feito se tivessem tido o conheci-
que a existência possível seja uma per- mento certo da verdade de um
feição na idéia do triângulo, como a Deus 111 ; e mesmo se uma coisa pare-
existência necessária é uma perfeição cer verdadeira a mais pessoas, isto não
na idéia de Deus, pois isso a torna provará que essa coisa seja mais notó-
mais perfeita do que o são as idéias de ria e mais manifesta do que outra;
todas essas quimeras que supomos não prová-lo-á antes o fato de que aqueles
poderem ser produzidas. E, portanto, que têm um conhecimento suficiente de
não diminuístes em nada a força de uma e de outra reconhecem que uma é
meu argumento e permaneceis sempre primeiramente conhecida, mais evi-
enganado por este sofisma que dizeis dente e mais segura do que a outra.
va da verdade das coisas que existem algum vapor, algum ar, ou qualquer
fora de nós, no que não vejo que corpo que seja, por sutil e tênue que
tenhais dito coisa alguma de verda- possa ser 11 4 ; mas, quanto a saber se
deiro. efetivamente era diferente do corpo,
548. III. Não me detenho aqui em disse nessa ocasião que não era o
_coisas que tantas vezes repisastes e que momento de discuti-lo. Tendo-o reser-
ainda nesta passagem repetis tão vã- vado para esta Meditação Sexta, foi
mente; por exemplo, que há muitas nela que tratei amplamente de tal tema
coisas que adiantei sem prova, as quais e onde decidi esta questão por uma
afirmo, não obstante, ter demonstrado demonstração mui forte e verdadeira.
mui evidentemente; como também que Mas vós, ao contrário, confundindo a
somente quis falar do corpo grosseiro e questão que concerne a como pode o
palpável quando excluí o corpo de espírito ser concebido com aquela que
minha essência; ainda que, todavia, se refere ao que ele ê efetivamente, não
meu desígnio tenha sido excluir de dais a entender outra coisa senão que
minha essência toda espécie de corpo, nada compreendestes distintamente de
por pequeno e sutil que possa ser 1 1 3 , e todas estas coisas.
outras coisas semelhantes; pois, que se 549. IV. Perguntais aqui como
poderá aqui responder a tantas pala- considero que a espécie ou a idéia do
vras ditas e adiantadas, sem qualquer corpo, que é extenso, pode ser recebida
fundamento razoável, se não negá-las em mim que sou uma coisa inexten-
mui simplesmente? Contudo, direi de sa1
1 5
. Respondo que nenhuma espécie
passagem que gostaria de saber sobre corporal é recebida no espírito, mas
o que vos fundamentais para dizer que que a concepção ou intelecção pura
falei mais do corpo maciço e grosseiro das coisas, corpóreas ou espirituais, é
do que do corpo sutil e tênue. É, decla- feita sem qualquer imagem ou espécie
rais, porque eu disse que tenho um corpórea; e quanto à imaginação, que
corpo ao qual estou conjugado e tam- não pode ser senão das coisas corpó-
bém que é certo que eu, isto é, minha reas, é verdade que para elaborar uma
alma, é distinta de meu corpo, onde é necessário uma espécie que seja um
confesso que não vejo por que tais verdadeiro corpo e à qual o espírito se
palavras não poderiam também ser aplique, mas não que seja recebida no
relacionadas ao corpo sutil e impercep- espírito. O que dizeis da idéia do soí,
'tível, assim como àquele que é mais que um cego de nascença forma pelo
grosseiro e palpável; e não creio que simples conhecimento que tem de seu
tal pensamento possa ocorrer ao espí- calor, é facilmente refutável 1 1 6 ; pois
rito de outrem além de vós. De resto, esse cego pode perfeitamente ter uma
mostrei claramente, na Meditação Se- 11 4 Gassendj lembra que a Meditação Segunda
gunda, que o espírito poderia ser con- não prova absolutamente que eu não seja "um
cebido como uma substância existente, vento, um fogo, um vapor, um ar", o que Descartes
recusa em nome da ordem das razões.
antes mesmo que soubéssemos se há 11 5 Como poderia a idéia do corpo, pergunta Gas-
no mundo algum vento, algum fogo, sendi, representá-lo, se ela não fosse, por sua vez,
extensa? E se nosso espírito não fosse uma coisa
113 Sobre a Meditação Quarta, § 17. A dificul- extensa, como poderia ela residir.nele?
dade, julga Gassendi, não está em saber se meu 11 6 Gassendi:· se um cego de nascença dissesse que
espírito difere do "corpo maciço e grosseiro" - o sol é uma "coisa que esquenta'', não teria disso
isso é certo - , mas em saber se o espírito não é uma idéia clara e distinta. Quem vos garante que
"um corpo sutil e fino difuso neste corpo espesso e tendes uma idéia clara e distinta de vós mesmo
maciço". quando vos definis como uma "coisa que pensa"?
212 DESCARTES
idéia clara e distinta do sol como de houvesse alguém que quisesse dizer
uma coisa que aquece, embora não a que Bucéfalo é uma música, não seria
tenha como a idéia de uma coisa que em vão e sem razão que tal coisa seria
aclara e ilumina. E é sem razão que me negada por outrem. E certamn~ em
comparais a esse cego; primeiramente todo o resto que acrescentais aqui para
porque o conhecimento de uma coisa provar que o espírito tem extensão 1 1 9 ,
que pensa se estende muito mais longe na medida, dizeis .vós, em que ele se
do que aquele de uma coisa que aque- serve do corpo que é extenso, não me
ce·, e mesmo é muito mais amplo do parece que raciocinais melhor do que
que qualquer conhecimento que tenha- se, pelo fato de Bucéfalo relinchar e
mos de qualquer outra coisa que seja, assim emitir sons que podem ser rela-
como mostrei no devido lugar, e tam- cionados com a música, tirásseis a
bém porque não há ninguém que possa conseqüência de que Bucéfalo é, por-
mostrar que essa idéia do sol que o tanto, uma música. Pois, ainda que o
cego elabora não contenha tudo o que espírito seja unido a todo o corpo, não
se possa conhecer dele, exceto aquele se segue daí que ele seja extenso por
que, sendo dotado do sentido da vista, todo o corpo, pois não é próprio do
conhece, além disso, sua figura e sua espírito ser extenso, mas somente pen-
luz; mas, quanto a vós, não só não sar. E ele não concebe a extensão por
conheceis mais do que eu no tocante uma espécie extensa que exista nele,
ao espírito como também não perce- embora imagine voltando-se e aplican-
beis aí tudo o que vejo 1 1 7 , de sorte que do-se a uma espécie corpórea que é
nisto seja antes vós que pareceis um extensa, como o disse anteriormente.
cego, e posso no máximo, · do vosso E, enfim, n.ão é necessário que o espí-
ponto de vista, ser chamado de vesgo rito seja da ordem e da natureza do
ou pouco clarividente, com todos os corpo, conquanto tenha a força ou a
demais homens. virtude de movê-lo.
550. De resto, não acrescentei que o 551. V. O que dizeis nessa passa-
espírito não era extenso para explicar gem, no que se refere à união entre o
como ele é e dar a conhecer sua nature- espírito e o corpo, é semelhante às difi-
za, mas somente para advertir que se culdades precedentes. Nada objetais
enganam aqueles que pensam que ele é contra minhas razões, mas colocais
extenso 1 1 8 • Da mesma maneira que, se some.n te dúvidas que vos parecem deri-
var de minhas conclusões, embora
11 7 Por "pensamento", Gassendi e Descartes não
Senhor,
de toda e~péci de prejuízo, nada mais existo, o autor das Instâncias quer que
é preciso do que se resolver a nada eu suponha esta premissa maior: aque-
afirmar ou negar de tudo o que ante- le que pensa é; e, assim, que tenha já
riormente se afirmou ou negou, senão esposado um prejuízo. No que ele se
após havê-lo novamente examinado, engana novamente quanto ao uso da
ainda que não se deixe de reter todas palavra prejuízo: pois, embora se
as mesmas noções na memória. Disse, possa dar esse nome a tal proposição
todavia, que seria difícil expulsar quando a proferimos sem atenção, e
assim de nossa crença tudo o que aí quando somente acreditamos que ela é
anteriormente se havia colocado, em verdadeira porque recordamos já tê-la
parte porque é necessário ter alguma assim julgado anteriormente, não se
razão de duvidar antes de se determi- pode dizer, todavia, que ela seja lim
nar a tanto (e foi por isso que propus prejuízo quando a exammamos, por-
as principais dessas razões em minha que parece tão evidente ao entendi-
Primeira Meditação), e em parte tam- mento que este não poderia impedir-se
bém porque, qualquer que seja a reso- de crer nela, ainda que seja a primeira
lução que tomemos de nada afirmar ou vez em sua vida que nela pense e que
negar, esquecemo-nos facilmente dela por conseguinte não tenha quanto a
em seguida se não a imprimirmos for- isso qualquer prejuízo 1 2 2 • Mas o erro
temente na memória; eis por que dese- que é aqui mais considerável é que esse
jei que se pensasse nisso cuidadosa- autor supõe que o conhecimento das
mente. proposições particulares deve sempre
ser deduzido das universais, segundo a
555. A segunda objeção é apenas
ordem dos silogismos da dialética 1 2 3 ,
uma suposição manifestamente falsa;
no que mostra saber bem pouco de que
pois, embora eu houvesse dito ser
maneira se deve procurar a verdade;
mesmo necessário esforçar-se por pois é certo que para encontrá-la cum-
negar as coisas que anteriormente
pre sempre começar pelas noções par-
eram tidas por demasiado asseguradas,
ticulares, para em seguida chegar às
limitei expressamente que isto só se
gerais, embora seja possível também,
deveria fazer durante o tempo em que
reciprocamente, tendo-se encontrado
se dirigisse toda a atenção à procura
as gerais, deduzir delas outras particu-
de algo mais certo do que tudo quanto
lares. Assim, quando se ensina a uma
assim se poderia negar, tempo em cujo
criança os elementos da Geometria,
transcurso é evidente que não se pode-
não a faremos enteqder em geral que,
ria deixar de se revestir de algum pre-
quando, de duas quantidades iguais,
juízo que fosse danoso.
tiramos partes iguais, os restos perma-
556. A terceira também nada con- necem iguais, ou que o todo é maior do
tém senão uma cavilação; pois, embo- que suas partes, se não lhes mostrar-
ra seja verdadeiro que a dúvida apenas mos exemplos em casos particulares. E
não basta para estabelecer qualquer foi por não ter cuidado disso que nosso
verdade, ela não deixa de ser útil para autor enganou-se em tantos falsos
preparar o espírito a estabelecê-la raciocínios, com os quais engrossou
após, e é somente nisto que eu a seu livro; pois ele nada fez senão com-
empreguei. por falsas premissas maiores à sua f an-
tasia, como se eu tivesse delas dedu- substância pensante haver julgado que
zido as verdades que expliquei. é intelectual, porque notou em si todas
558. A segunda objeção que ano- as propriedades das substâncias inte-
tam aqui vossos amigos é que, para lectuais, e não pôde advertir aí nenhu-
saber que se pensa, é preciso saber o ma das pertencentes ao corpo, pergun-
que é o pensamento; o que não sei de ta-se)he ainda como sabe se não é um
modo algum, dizem eles, porque tudo corpo mais do que uma substância
neguei. Mas eu apenas neguei os pre- imaterial.
juízos e nunca as noções, como estas, 561. A quinta objeção é seme-
que se conhecem sem qualquer afirma- lhante: Embora eu não encontre exten-
ção ou negação. são em meu pensamento, não se segue
559. A terceira é que o pensamento que ele não seja extenso, já que meu
não pode existir sem objeto; por exem- pensamento não é a regra da verdade
plo, sem o corpo. Onde.-é preciso evitar das coisas. E também a sexta: Pode
o equívoco da palavra pensamento, acontecer que a distinção que descubro
que se pode tomar como a coisa pen- por meu pensamento entre o pensa-
sante e também como a ação dessa mento e o corpo seja falsa. Mas cum-
coisa 1 2 4 ; ora, nego que a coisa pen- pre notar aqui particularmente o equí-
sante tenha necessidade de outro obje- voco que existe nestas palavras: meu
to além de si mesma para exercer sua pensamento não é a regra da verdade
ação, embora ela possa também esten- das coisas; pois se quer dizer que meu
dê-la às coisas materiais quando as pensamento não deve ser a regra dos
examma. outros para obrigá-los a crer em uma
560. A quarta é que, embora eu coisa que penso verdadeira, estou de
tenha um pensamento de mim mesmo, pleno acordo; mas isto não vem aqui a
não sei se este pensamento é mais uma propósito, pois não quis obrigar nin-
ação corporal ou um átomo_ que se guém a seguir minha autoridade; ao
move do que uma substância imaterial; contrário, adverti em diversos lugares
no que o equívoco do nome pensa- que não nos devemos deixar persuadir
mento é repetido, e não vejo aqui nada apenas pela evidência das razões. Ade-
afora uma questão sem fundamento e mais, se tomamos indiferentemente a
que é semelhante à seguinte: julgais palavra pensamento por todas as espé-
que. sois um homem porque percebeis cies de operações da alma, é certo que
em vós todas as coisas na ocorrência podemos ter muitos pensamentos dos
das quais chamais de homens aqueles quais nada se pode inferir no referente
em que elas se encontram; mas, como às coisas existentes fora de nós; mas
sabeis se não sois um elefante e não isso também não vem a propósito
um homem, por algumas outras razões nesse lugar, quando se trata apenas de
que não podeis perceber? Pois, após a pensamentos que são percepções cla-
ras e distintas e de juízos que cada um
1 2 4 A respeito dessa distinção, cf. Princípios, I, deve fazer consigo em seguida a essas
63-64. E nomeadamente: "Quando os consideramos
(o pensamento e a extensão) como as propriedades percepções 1 2 5 • Eis por que, no sentido
das substâncias de que dependem, distinguimo-los
facilmente dessas substâncias e os tomamos tais 12 5
Distinção entre: a) meu pensamento indivi-
como são verdadeiramente; ao passo que, se quiser- dual; b) o pensamento na medida em que recobre
mos considerá-los sem substância, isso poderá não importa qual cogitatio; c) o pensamento claro e
levar-nos a tomá-los por coisas que subsistem por si distinto que, só ele, constitui autoridade. Para Des-
mesmas". Todavia, esta distinção de razão entre a cartes, o pensamento (ou razão) não é um·a facul-
cogilatio e a res cogitans não significa que o ser dade psicológica que a gente declararia arbitraria-
pensante enquanto tal seja outra coisa senão o mente infalível, mas um domínio engendrado pela.
pensamento. evidência intelectual.
218 ·DESCARTES
em que essas palavras devem ser enten- persuadiram delas; 4. 0 e que, do fato
didas aqui, digo que o pensamento de de que me reconheço imperfeito, não se
cada um, isto é, a percepção ou conhe- segue que Deus exista. Mas, se se toma
cimento que tem de uma coisa, deve a palavra idéia da maneira pela qual eu
ser para ele a regra da verdade dessa disse expressamente que a tomava, sem
coisa, isto é, que todos os juízos que se escusar pelo equívoco daqueles que
sobre ela tiver feito devem ser confor- a restringem às imagens das coisas
mes a essa percepção para serem bons; materiais que se formam na imagina-
mesmo no tocante às verdades da fé, ção 1 2 7 , não se poderia negar que
devemos perceber alguma razão que temos alguma idéia de Deus, a não ser
nos persuada de que elas foram revela- que não se entenda o que significam
das por Deus, antes de nos determi- estas palavras: a coisa mais perfeita
narmos a crer nelas 1 2 6 ; e, ainda que os que possamos conceber; pois é isto que
ignorantes façam bem em seguir o todos os homens chamam de Deus. E é
juízo dos mais capazes quanto às coi- chegar a estranhos extremos, para que-
sas de difícil conhecimento, é preciso rer levantar objeções, dizer que não se
todavia que seja a sua percepção que entende o que significam as palavras
lhes ensine que são ignorantes e que que são mais comuns na boca dos
aqueles cujos juízos querem seguir não homens 1 2 8 ; além do que, a confissão
o são tanto, talvez; de outra maneira, mais ímpia que alguém possa fazer é
fariam mal em ~egui-los e agiriam mais dizer de si mesmo, no sentido em que
como autômatos ou como animais do tomei a palavra idéia, que não tem
que como _homens. Assim, é o erro nenhuma idéia de Deus: pois não con-
mais absurdo e mais exorbitante que siste somente em dizer que não o
um filósofo possa admitir o querer conhece pela razão natural, mas tam-
fazer juízos que não se relacionem às bém que, nem pela fé ou qualquer
percepções que ele tem das coisas;. e outro meio, poderia saber coisa algu-
todavia, não vejo como nosso autor ma dele, porque se não se possui qual-
poderia escusar-se de ter caído nesse quer idéia dele, isto é, qualquer percep-
erro na maioria· de suas objeções; pois ção que corresponda à significação
ele não quer que cada um se detenha dessa palavra Deus, em vão se dirá
em sua própria percepção, mas pre- crer que Deus é, pois equivale a afir-
tende que se deva crer nas opiniões ou mar que se crê que nada é e assim se
nas fantasias que lhe apraz pro-ns~ permanece no abismo da impiedade e
embora nao as perceba de modo no extremo da ignorância.·
algum. 563. O que acrescentaffi, dizendo
que, se eu tivesse essa idéia, eu a
562. Contra a Meditação Terceira, compreenderia, é afirmado sem qual-
vossos amigos notaram: 1. º que todo quer fundamento: pois, já que a pala-
mundo não experimenta em si a idéia vra compreender significa alguma limi-
de Deus; 2. 0 que, se eu tivesse essa tação, um espírito finito não poderia
idéia, eu a compreenderia; 3. 0 que mui- compreender Deus, que é infinito; mas
tos leram minhas razões e não se isto não impede que ele o perceba,
assim como se pode tocar uma monta-
12 6 "Ainda que se diga que a fé tem por objeto
nha, ainda que não se possa abraçá-
coisas obscuras, não obstante a razão pela qual
acreditamos nelas não é obscura, mas é mais clara
do que qualquer luz natural." (Segundas respostas.) 1 2 1 Cf. as definições 2 e 3 da exposição geomÇtrica
Mesmo no domínio da fé, a decisão permanece das Segundas Respostas. i
racional e a vontade não pode dispensar as razões. 1 2 e Cf. Cartas, a Mersenne, julho de 1641. ·
OBJEÇÕES E RESPOSTAS 219
la 129 . Aquilo que dizem também de tas noções que existem em nós, dizen-
minhas razões, afirmando que muitos do em seguida que não se pode estar
as leram sem por elas serem persuadi- certo de coisa alguma sem saber antes
dos, pode facilmente ser refutado, pois que Deus existe; 2. 0 e que o conheci-
há alguns outros que as compreen- mento de Deus de nada serve para
deram e ficaram com elas satisfeitos; adquirir o das verdades matemáticas;
pois deve-se crer mais em um só que 3. 0 e que ele pode ser enganador. Vede
diz, sem intenção de mentir, que viu ou a respeito minha resposta às Segundas
que compreendeu alguma coisa, do que Objeções e o fim da segunda parte da
em mil outros que a negam pelo sim- Resposta às Quartas.
ples fato de que não puderam vê-la ou 566. Mas eles acrescentam no fim
compreendê-la: assim como na desco- um pensamento que não sei se nosso
berta dos antípodas acreditou-se muito autor escreveu em seu livro de Instân-
mais no relato feito por alguns mari- cias, embora seja um pensamento bas-
nheiros que fizeram a volta da terra do tante semelhante aos seus: Muitos
que em milhares de filósofos que não excelsos espíritos, dizem eles, acredi-
acreditaram que ela fosse redonda. E tam ver claramente que a extensão
já que alegam aqui os Elementos de matemática, a qual estabeleço como
Euclides, como se fossem fáceis para princípio de minha Física, não é. outra
todo mundo, peço a eles que conside- coisa senão meu pensamento, e que ela
rem que entre aqueles que se estima não tem nem pode ter nenhuma subsis-
serem os mais sábios na Filosofia da tên"cia fora de meu espírito, sendo ape-
Escola não há um entre cem que os nas uma abstração que faço do corpo
compreenda e que não há um em dez fisico/ e portanto que toda a minha Fí-
mil que entenda todas as demonstra- sica só pode ser imaginária e fictícia,
ções de Apolônio ou de Arquimedes, como o são todas as Matemáticas
embora elas sejam tão evidentes e tão puras; e que, na Física real das coisas
certas quanto as de Euclides. que Deus criou, é preciso uma matéria
5 64. Enfim, quando afirmam que real sólida e não imaginária. Eis a
do fato de que reconheço em mim al- objeção das objeções, e a suma de toda
guma imperfeição não se segue que a doutrina dos excelsos espíritos, que
Deus exista, com isso nada provam; aqui são alegados. Todas as coisas que
pois eu não a deduzi imediatamente podemos entender e· conceber não são
disso sem acrescentar-lhe algo mais; e para eles senão imaginações e ficções
apenas me fazem recordar o artificio de nosso espírito e que não podem ter
desse autor que costuma truncar mi- qualquer subsistência: donde se segue
nhas razões e não apresentar delas que nada há, exceto o que não se pode
senão algumas partes para fazê-las de modo algum entender, conceber ou
parecer imperfeitas. imaginar, que se deva admitir como
565. Nada vejo em tudo o que nota- verdadeiro 130 : isto é, que é preci,so fe-
ram a respeito das três outras Medita- char inteiramente a porta à razão e
ções a que não tenha já amplamente
1 3 o A objeção - de espírito ao mesmo tempo
respondido· alhures, como àquilo que
empirista e aristotélico - pretende que "a extensão
objetam: 1. 0 que cometi um círculo dos geômetras" não passa de uma ficção forjada
provando a existência de Deus por cer- por nosso espírito. Descartes traduz: é uma ficção
porque podemos concebê-la clara e distintamente, e
não poupa trabalho em denunciar, por conseguinte,
1 2 9 O conhecimento da natureza de Deus pode ser uin absurdo no antimatematicismo de seus adversá-
fiel sem ser total. rios.
220 DESCARTES
- - -~
OBJEÇÕES E RESPOSTAS .221
rio, que tudo o que existe em nós, e que sos corpos dependem da alma 3 , ao
não concebemos de modo algum como passo que se devia pensar, ao contrá-
passível de pertencer a um corpo, deve ;io, que a alma só se ausenta, quando
ser atribuído à nossa alma 2 . se morre, porque esse calor cessa, por-
que os órgãos que servem para mover
Art . 4. Que o calor e o movimento dos o corpo se corrompem.
membros procedem do corpo, e os
pensamentos, da alma. Art. 6. Que diferença há entre um
corpo vivo e um corpo morto.
Assim, por não concebermos que o
corpo pense de alguma forma, temos
razão de crer que toda espécie de pen- A fim de evitarmos, portanto, esse
samento em nós existente pertence à erro, consideremos que a morte nunca
alma; e, por não duvidarmos de que sobrevém por culpa da alma, mas
haja corpos inanimados que podem somente porque alguma das principais
mover-se de tantas diversas maneiras partes do corpo se corrompe; e julgue-
que as nossas, ou mais do que elas, e mos que o corpo de um homem vivo
que possuem tanto ou mais calor (o difere do de um morto como um reló-
que a experiência mostra na chama, gio, ou outro autômato (isto é, outra
que possui, ela só, muito mais calor e máquina que se mova por si mesma),
movimento do que qualquer de nossos quando está montado e tem em si o
membros), devemos crer que todo o princípio corporal dos movimentos
calor e todos os movimentos em nós para os quais foi instituído, com tudo o
existentes, na medida em que não que se requ,er para a sua ação, difere
dependem do pensamento, pertencem do mesmo relógio, ou outra máquina,
apenas ao corpo. quando está quebrado e o princípio de
seu movimento pára de agir 4 .
Art. 5. Que é erro acreditar que a alma
dá o movimento e o calor ao corpo. Art. 7. Breve explicação das partes do
corpo e de algumas de suasfunções.
Por esse meio, evitaremos um erro
considerável em que muitos caíram, de Para tornar isso mais inteligível,
sorte que o reputo a principal causa explicarei, em poucas palavras, a
que até agora impediu que se pudessem forma toda de que se compõe a má-
explicar bem as paixões e as outras 3
A alma está implantada na máquina do corpo,
coisas pertencentes à alma. Consiste mas não é seu princípio de formação nem conserva-
em ter-se imaginado, vendo-se que ção. "Trata-se simplesmente de íntima associação
todos as corpos mortos são privados ·da alma com o todo e as partes da máquinajáfei-
/a . •. Assim a natureza física realizaria mecanica-
de calor e depois de movimento, que mente uma máquina muito complicada, com dispo-
era a ausência da alma que fazia cessar sições tais que uma alma poderia de alguma forma
calçá-Ia, sem que tenha tido algo com a fabricação
esses movimentos e esse calor; e assim e a imbricação de suas partes." (Guéroult, II, pág.
se julgou, sem razão, que o nosso calor ,181.)
natural e todos os movimentos de nos-
4
No caso do homem, a deterioração da máquina
não conduz apenas à sua destruição, mas também à
~eparção da alma e do corpo. A doutrina da união
2 Lembrança do princípio da distinção das subs- da alma e do corpo na separação exclui, assim, radi-
tâncias enunciado na Meditação Sexta. calmente todo animismo ou vitalismo. :
AS PAIXÕES DA ALMA 229
quina de nosso· corpo 5 . Não há quem dam de que todas as veias e artérias do
já não saiba que existem em nós um corpo sejam como regatos por onde o
coração, um cérebro, um estômago, sangue não pára de correr muito rapi-
músculos, nervos, artérias, veias e coi- damente, começando seu curso na
sas semelhantes; sabe-se também que cavidade direita do coração pela veia
os alimentos ingeridos descem ao estô- arteriosa, cujos ramos se espalham por
mago e às tripas, de onde o seu suco, todo o pulmão e se juntam aos da arté-
correndo para o fígado e para todas as ria venosa, pelo qual ele passa do pul-
veias, se mistura com o sangue que mão ao lado esquerdo do coração; de-
elas contêm, aumentando, por esse pois segue daí para a grande artéria,
meio, a sua quantidade 6 • Aqueles que cujos ramos, esparsos pelo resto do
ouviram falar, por pouco que seja, da corpo, se unem aos ramos da veia que
medicina sabem, além disso, como se levam de novo o mesmo sangue à cavi-
compõe o coração e como todo o san- dade direita do coração, de sorte que
gue das veias pode facilmente correr essas duas cavidades são como eclu-
da veia cava para seu lado direito, e sas, através de cada uma das quais
daí passar ao pulmão pelo vaso que passa todo o sangue em cada volta que
denominamos veia arteriosa, depois faz pelo corpo. Demais, s2.be-se que
retornar do pulmão ao lado esquerdo todos os movimentos dos membros
do coração pelo vaso denominado dependem dos músculos e que estes
artéria venosa 7 , e, enfim, passar daí músculos se opõem uns aos outros, de
para a grande artéria, cujos ramos se tal modo que, quando um deles se
espalham pelo corpo inteiro. E mesmo encolhe, atrai para si a parte do corpo
todos os que não foram cegados intei- a que está ligado, o que provoca ao
ramente pela autoridade dos antigos, e mesmo tempo o alongamento do mús-
que quiseram abrir os olhos para exa-
culo que lhe é oposto; depois, se acon-
minar a opinião de Harvey no tocan-
tece numa outra vez que este último se
te à circulação do sangueª, não duvi-.
encolha, leva o primeiro a alongar-se e
5 Sendo possível (arts. 3, 4, 5) e indispensável à
puxa para si a parte a que eles estão
inteligência das paixões a distinção entre as fun.ções ligados. Enfim, sabe-se que todos esses
que dependem do corpo e as funções que dependem movimentos dos músculos, assim
da alma, Descartes irá agora descrever sucessiva-
mente as funções essenciais de um e de outro. Até o
como todos os sentidos, dependem dos
§ 17, as funções do corpo. nervos, que são como pequenos fios ou
6 Cf. Tratado do Homem (Plêiade; págs. 808-809):
como pequenos tubos que procedem,
devido à fermentação que se produz no estômago,
"as partes mais sutis" dos alimentos formam o todos, do cérebro, e contêm, como ele,
quilo, que é levado para o fígado, onde sofre a ação certo ar ou vento muito sutil que cha-
da hematose. "Este licor aí se sutiliza ... adquire mamos espíritos animais 9 •
cor e toma a forma do sangue ... Ora, este sangue,
assim contido nas veias, só tem uma única passa-
gem manifesta por onde possa sair delas, a saber, a Art. 8. Qual é o princípio de todas
que conduz à concavidade direita do coração."
7 Veia arteriosa: artéria pulmonar; artéria venosa: essas funções.
veia pulmonar.
8
Descartes recusava atribuir a ação do coração a Mas não se sabe comumente de que
uma contração muscular, mas aderia inteiramente à
teoria circulatória de Harvey. "A opinião do Sr. forma esses espíritos animais e nervos
Descartes sobre a circulação do sangue", relata contribuem para os movimentos e os
Baillet, "granjeara-lhe grande crédito entre os dou- sentidos, nem qual é o princípio corpo-
tos e contribuíra maravilhosamente para restabe-
lecer nesta m~téria a reputação de William Harvey,
que se vira maltratada por diversos médicos dos 9 O Tratado do Homem dirá: "Um certo vento
Países-Baixos, a maioria dos quais ignorante ou muito sutil, ou melhor, uma chama muito viva e
obstinada em antigas máximas de suas faculdades." muito pura".
230 DESCARTES
ral que os faz agir; eis por que, embora mente, em todas as artérias e veias,
já tenha tratado algo do assunto em mediante o que leva o calor que adqui-
outros escritos 1 0 , não deixarei de dizei- re no coração a todas as outras partes
aqui sucintamente que, enquanto vive- do corpo e lhes serve de alimento.
mos, há um contínuo calor em nosso
coração, que é uma espécie de fogo aí Art. 10. Como se produzem no cérebro
mantido pelo sangue das veias, e que os espíritos animais.
esse fogo é o princípio corporal de
todos os movimentos de nossos mem- Mas o que há nisso de mais·notável
bros11. é que todas as partes mais vivas e mais
sutis do sangue que o calor rarefez no
Art. 9. Como se faz o movimento do coração entram incessantemente em
coração 1 2 . grande quantidade nas cavidades do
cérebro. E a causa que as conduz para
O seu primeiro efeito é dilatar o san- aí, de preferência a qualquer outro
gue que enche as cavidades do cora- lugar, é que todo sangue saído do cora-
ção; e isso é causa de que esse sangue, ção pela grande artéria toma seu curso
tendo necessidade de ocupar maior em linha reta para esse sítio, e que, não
espaço, passe com impetuosidade da podendo entrar todo, porque o lugar
cavidade direita para a veia arterial, e possui apenas passagens muito estrei-
da esquerda para a grande artéria; tas, só passam as suas partes mais agi-
depois, cessando essa dilatação, torne tadas e mais sutis, enquanto o resto se
incontinenti a entrar da veia cava para espalha por todos os outros locais do
a cavidade direita do coração, e da corpo. Ora, tais partes do sangue
artéria venosa para a esquerda; pois há muito sutis compõem os espíritos ani-
pequenas peles nas entradas desses mais1 3 ; e não precisam, para tal efeito:
quatro vasos, dispostas de tal modo receber qualquer modificação no cére-
que fazem com que o sangue não possa bro, exceto a de serem separadas das
penetrar no coração senão pelas duas outras partes do sangue menos sutis 1 4 ;
últimas, nem sair dele exceto pelas pois o que- denomino aqui espíritos não
duas outras. O novo sangue que entra são mais do que corpos e não têm
no coração é aí imediatamente rarefei- qualquer outra propriedade, exceto a
to, do mesmo modo que o precedente; de serem corpos muito pequenos e se
é só nisso que consiste a pulsação ou o
batimento do coração e das artérias; 13 Em Galena (De Usu Partium), os espíritos vitais
··------
AS PAIXÕES DA ALMA -231
moverem muito depressa, assim como acham, a saber, quando não encon-
as partes da chama que sai de uma tram passagens abertas para sair, e às
tocha; de sorte que não se detêm em vezes correndo para o músculo oposto.
nenhum lugar e, à medida que entram Tanto mais que há pequenas aberturas
alguns nas cavidades do cérebro, tam- em cada um desses músculos ppr onde
bém saem outros pelos poros existentes tais espíritos podem correr de um para
na sua substância, poros que os condu- o outro e que estão de tal modo dispos-
zem aos nervos e daí aos músculos, tas que - quando os espíritos vindos
por meio dos quais movem o corpo em do cérebro para um deles possuem, por
todas as diversas maneiras pelas quais pouco que seja, mais força do que os
esse pode ser movido 1 5 . que vão para o outro 1 6 - abrem
todas as entradas por onde os espíritos
Art. 11. Como se fazem os movimen- do outro músculo podem passar para
tos dos músculos. ele e fecham, ao mesmo tempo, todas
por onde os espíritos desse podem pas-
Pois a única causa de todos os sar ao outro; dessa maneira, todos os
movimentos dos membros é que os espíritos antes contidos nesses dois
músculos se encolhem e seus opostos músculos se reúnem num deles mui
se alongam, como já foi dito; e a única prontamente e assim o inflam e o enco-
causa que faz um músculo encolher-se lhem, enquanto o outro se alonga e se
mais do que seu oposto é que recebe, distende.
por pouco que seja, mais espírito do
cérebro do que o outro. Não que os Art. 12. Como os objetos de fora
espíritos que vêm imediatamente do atuam sobre os órgãos dos sentidos.
cérebro bastem por si sós para move-
rem tais músculos, mas determinam os Resta ainda saber as causas que
outros espíritos. que já existem nesses levam os espíritos a não correrem sem-
dois músculos a saírem todos mui pre da mesma forma do cérebro para
prontamente de um deles e a passarem os músculos e a se dirigirem às vezes
ao outro; dessa maneira, aquele de mais a uns do que a outros 1 7 . Pois,
onde saem torna-se mais longo e mais afora a ação da alma, que é verdadei-
lasso e aquele no qual entram, sendo ramente em nós uma dessas causas,
rapidamente inflado por eles, se enco- como direi mais abaixo, há ainda duas
lhe e atrai o membro a ele ligado. E outras que não dependem senão do
isso é fácil de conceber, desde que se corpo e que é preciso observar. A pri-
saiba que pouquíssimos espíritos ani- meira consiste na diversidade dos
mais vêm continuamente do cérebro movimentos excitados nos órgãos dos
para cada músculo, mas que em cada sentidos por seu objetos, a qual já foi
um há sempre grande quantidade de por mim assaz amplamente explicada
outros encerrados no mesmo músculo na Dióptrica; mas, para que os que
que nele se movem muito depressa, às 1 6 "Os espíritos", dirá Descartes no artigo seguin-
vezes girando apenas no lugar onde se te, "nem sempre correm do cérebro para os múscu-
los da mesma maneira." Esta diferença na força de
1 5 Cumpre imaginar o encéfalo "como uma espé- lançamento comanda a regulamentação dos espíri-
cie de reservatório central, o ventrículo, onde vem tos já contidos nos músculos e, por esse meio, os
abrir-se a tubagem dos nervos destinada a engolfar movimentos musculares.
todos os espíritos disponíveis: estes filtram-se atra- 1 7 Por que esta -diversidade no escoamento dos
vés dos poros do tecido coroidiano, que reveste espíritos? Primeira causa (arts. 11 e 12): os movi-
como um dossel o ventrículo". (Mesnard, art. cit., mentos produzidos no cérebro por ocasião das
pág. 207.) impressões sensíveis.
232 DESCARTES
virem o presente escrito não tenham disso, é fácil conceber que os sons, os
necessidade de ler outros, repetirei odores, os sabores, o calor, a dor, a
aqui que há três coisas a considerar fome, a sede e, em geral, todos os obje-
nos nervos, a saber: a sua medula, ·ou tos, tanto dos nossos demais sentidos
substância interior, que se estende na externos como dos nossos apetites
forma de pequenos filetes a partir do internos, excitam também alguns mo-
cérebro, onde toma origem, até as vimentos em nossos nervos, que se
extremidades dos outros membros aos transmitem por meio deles até o cére-
quais esses filetes estão ligados; depois bro; e além de esses diversos movimen-
as peles que os envolvem e que, sendo tos do cérebro fazerem com que a alma
contíguas com as que envolvem o cére-
tenha diversos sentimentos, podem
bro, compõem pequenos condutos em
também fazer, sem ela 1 9 , que os espíri-
que ficam encerrados esses pequenos
filetes; depois, enfim, os espíritos ani- tos sigam mais para certos músculos
mais que, levados por esses mesmos do que para outros, e, assim, que
condutos do cérebro até os músculos, movam nossos membros, o que prova-
são a causa de tais filetes permane- rei aqui somente através de um exem-
cerem aí inteiramente livres e estendi- plo. Se alguém avança rapidamente a
dos, de tal modo que a menor coisa mão contra os nossos olhos, como
que mova a parte do corpo à qual se para nos bater, embora saibamos tra-
liga a extremidade de algum deles leva tar-se de nosso amigo, que faz isso só
a mover, pelo mesmo meio, a parte do por brincadeira e tomará muito cuida
cérebro de onde vem, tal como ao se do para não nos causar nenhum mal,
puxar um a das pontas de uma corda temos todavia muita dificuldade em
move-se a outra 1 8 . impedir que se fechem; isso mostra que
não é por intermédio de nossa alma
Art. 13. Que esta ação dos objetos de que eles se fecham, pois é contra a
fora pode conduzir diversamente os
nossa vontade, a qual é, se não a única,
espíritos aos músculos.
ao menos a sua principal ação; assim
Expliquei também na Dióptrica porque a máquina de nosso corpo é de
como todos os objetos da visão comu- tal modo composta que o movimento
nicam-se conosco apenas porque dessa mão contra os nossos olhos exci-
movem localmente, por intermédio dos ta outro movimento em nosso cérebro,
corpos transparentes que existem entre o qual conduz aos músculos os espíri-
eles e nós, os pequenos filetes dos ner- tos animais que fazem baixar a~
vos ópticos que se acham no fundo de pálpebras 2 0 .
nossos olhos, e em seguida os lugares
do cérebro de onde provêm esses ner- Art. 14. Que a diversidade existente
\IOS~ que os movem, digo eu, de tantas
maneiras diversas que nos fazem ver entre os espíritos também pode diversi-
diversidades nas coisas, e que não são .ficar-lhes o curso.
imediatamente os movimentos que se 19 Há, portanto, dois circuitos possíveis: a) movi-
efetuam no olho, mas sim os que se mento sensorial-sentimento da alma-ação; b) movi-
efetuam no cérebro, que representam mento sensorial-ação automática. O art. 16 especifi-
para a alma esses objetos. A exemplo cará o funcionamento desta ação automática.
2 º Sobre a teoria cartesiana do reflexo, consultar o
A outra causa 2 1 que serve para con- lido mais de certas partes do que de
duzir diversamente os espíritos ani- outras, porque os nervos e os músculos
mais aos músculos é a agitação desi- que respondem a essas partes o pres-
gual desses espíritos e a diversidade de sionam ou agitam mais, e porque, con-
suas partes. Pois, quando algumas de forme a diversidade das partes de onde
suas partes são mais grossas e mais vem mais, dilata-se diversamente no
agitadas do que as outras, passam coração, e em seguida produz espíritos
mais à frente em linha reta nas cavida- dotados de qualidades diferentes.
des e nos poros do cérebro, e por esse Assim, por exemplo, o que provém da
meio são levadas a músculos diferentes parte inferior do fígado, onde está o fel,
daqueles para onde iriam se tivessem dllata-se no coração de maneira dife-
menos força. rente da do sangue oriundo do baço, e
este de modo diferente do do prove-
Art. 15. Quais são as causas de sua niente aas veias dos braços ou das per-
diversidade. nas, e enfim este diferentemente do
suco dos alimentos, quando, tendo de
E essa desigualdade pode proceder novo saído do estômago e dos intesti-
das diversas matérias de que se com- nos, passa rapidamente pelo fígado até
pÕem, como se vê nos que beberam · o coração.
muito vinho cujos vapores, entrando
prontamente no sangue, sobem do Art. 16. Como todos os membros
coração ao cérebro, onde. se convertem podem ser movidos pelos objetos dos
em espíritos que, sendo mais fortes e sentidos e pelos espíritos sem a ajuda
mais abundantes do que aqueles que aí da alma.
se encontram comumente, são capazes
de mover o corpo de muitas maneiras Enfim, é preciso notar que a má-
estranhas. Esta desigualdade dos espí- quina de nosso corpo é de tal modo
ritos pode também proceder das diver- composta que todas as mudanças que
sas disposições do coração, do figado, ocorrem no movimento dos espíritos
do estômago, do baço e de todas as ou- podem levá-los a abrir alguns poros do
tras partes que contribuem para a sua cérebro mais do que outros, e recipro-
produção; pois cumpre principalmente camente que, quando algum desses
observar aqui certos pequenos nervos poros está pouco mais ou menos aber-
insertos na base do coração, que ser- to que de costume pela ação dos ner-
vem para alargar e estreitar as entra- vos que servem aos sentidos 2 2 , isso al-
das dessas concavidades, por meio do tera algo no movimento dos espíritos e
que o sangue, dilatando-se nelas mais determina que sejam condu2idos aos
ou menos fortemente, produz espíritos músculos destinados a mover o corpo
diversamente dispostos. É preciso
notar também que, embora o sangue 22 O Tratado do Homem descreve com maior pre-
cisão este mecanismo. "Se o fogo A se encontra
· que penetra no coração provenha de perto do pé B", as partes do fogo estirarão um nervo
todos os outros lugares do corpo, toda- e abrirão "no mesmo instante a entrada do poro
via acontece muitas vezes ser ele impe- contra o qual este pequeno fio termina ... Ora,
estando assim aberta a entrada do poro, os espíritos
animais da concavidade entram nele, e são levados
21 Segunda causa: o efeito de lançamento variável por ele, em parte aos músculos que servem para reti-
segundo a desigualdade dos espíritos, podendo esta rar este pé deste fogo, em parte aos que servem para
desigualdade provir de causas diversas que o artigo volver os olhos e a cabeça a fim de olhá-lo, e em
seguinte especificará. A terceira causa: a ação da parte aos que servem para adiantar as mãos e do-
álma (cf. art. 12) será analisada nos arts. 34-36. brar todo o corpo para defendê-lo."
234 DESCARTES
conhecimentos, isto é, tudo o que, na alma, não tem saber que a queremos, nem sabê-to a não ser por
a alma como única origem. A partir dai, Descartes, uma idéia; mas não afirmo de modo algum que esta
por distinções sucessivas, irá delimitar as paixões idéia seja diferente da própria ação." (Cartas, a
no sentido estrito. Mersenne, 28 dejulho de 1641.)
AS PAIXÕES DA ALMA 235
ginar alguma cofaa que não existe 2 6 , mesmo a nada2 9 . Ora, ainda que algu-
como a representar um palácio encan- mas dessas imaginações sejam paixões
tado ou uma quimera, e também quan- da alma, tomando a palavra na sua
do se aplica a considerar algo que é· mais própria e mais perfeita significa-
. somente inteligível e não imaginável, ção, e ainda que possam ser todas
por exemplo a sua própria natureza, as assim denominadas, se se tomar o
percepções que tem dessas coisas de- termo em uma acepção mais· geral,
pendem principalmente da vontade que todavia, posto que não têm uma causa
tão notável e tãtr determinada como as
a leva a percebê-las; eis por que secos-
percepções que a alma recebe por
tuma considerá-las como ações mais
intermédio dos nervos, e parecem ser
do que como paixões 2 7 .
apenas a sombra e a pintura destas,
antes que as possamos distinguir bem
Art. 21. Das imaginações que só têm cumpre considerar a diferença que há
por causa o corpo. entre estas outras.
Entre as percepções que são causa- Art. 22. Da diferença que existe entre
das pelo corpo, a maior parte depende as outras percepções.
dos nervos; mas há também algumas
que deles não dependem, e que se cha- Todas as percepções que ainda não
mam imaginações 2 8 , como essas de expliquei vêm à alma por intermédio
que acabo de falar, das quais, não obs- dos nervos 3 0 , e existe entre elas essa
tante, diferem pelo fato de nossa vonta- diferença pelo fato de relacionarmos
de não se empenhar em formá-las, o umas aos objetos de fora, que ferem
que faz com que não_ possam ser incluí- nosso"s sentidos, e as outras ao nosso
corpo oli a algumas de suas partes, e
das no número das açõ~s da alma, e outras enfim à nossa alma.
procedam apenas de que, sendo os :
espíritos diversamente agitados, e. en~. Art. 23. Das percepções que relacio-
contrando os traços de diversas· im- namos com os·objetos que existem/ora
pressões que precederam no cérebro,· de nós.
tomem aí seu curso fortuitamente por . As que referimos ·a coisas situadas
c·ertos poros mais do que por outios. fora de nós, a. saber, aos objetos de
Tais ·são as ilusões de nossos sonhos e· nossos sentidos, sao causadas, ao
também os devaneios a que nos entre-
29
Acerca desses devaneios, cf. Cartas, a Elisabeth,
gamos muitas vezes estando. despertos, de 6 de outubro de 1645. Se o sonho não suprime o
quando nosso pensamento erra n_egli- pensamento, a imaginação aí se liberta da vontade:
não posso sair do sonho à minha vontade (é o corpo
gentemente sem se aplicar por si que é respcmsável pelo despertar). Permitindo às
representações resultantes do corpo viver uma vida
2 s A imaginação voluntária ("se aplica") ou cria-
própria, o sonho não ameaça, todavia,· o Cogito,
dora também pertence a este grupo. · visto que. o pensamento passivo ainda acolhe aí as
imagens como ·imagens. Eis por que é sempre. possí-
·2 1 O campo das paixões propriamente ditas já está vel passar da imaginação-paixão à imaginação
reduzido: só "as percepções que têm o corpo co~ controlada. (Cf. Cartas, a Elisabeth, maio ou junho
causa" merecem verdadeiramente esse nome. de 1645.)
2 8 Arts. 21 a 27: b) as percepções que têm o corpo 3 0
2. 0 as que dependem dos nervos. Podemos divi-
como causa. Distinguem-se: 1. 0 as que não resultam . di-las em três rubricas: a) percepções referidas aos
de uma mensagem sensorial e são produzidas pelo objetos (art. 23); b) às cüecções do corpo (art. 24); c)
curso fortuito dos espíritos. à alma em particular (art. 25).
236 DESCARTES
mesmas coisas que a alma percebe por ções da alma, que referimos particular-
intermédio dos nervos lhe podem ser mente a ela, e que são causadas, manti-
também representadas pelo curso for- das e fortalecidas por algum
tuito dos espíritos, sem que haja outra movimento dos espíritos 3 5 .
diferença exceto que as impressões vin-
das ao cérebro por meio dos nervos Art. 28. Explicação da primeira parle
costumam ser mais vivas e mais dessa definição 3 6 •
expressas do que as excitadas nele
pelos espíritos; o que me levou a dizer Podemos eh amá-las percepções
no art. 21 que as últimas são como a quando nos servimos em geral desse
sombra e a pintura das outras. É preci- termo para significar todos os pensa-
so. também notar que ocorre algumas mentos que não constituem ações da
vezes ser essa pintura tão semelhante à alma ou vontades, mas não quando o
coisa representada, que podemos enga- empregamos apenas para significar
nar-nos no tqcante às percepções que conhecimentos evidentes; pois a expe-
se relacionam aos objetos fora de nós, riência mostra que os mais agitados
ou então quanto às que se relacionam por suas paixões não são aqueles que
a algumas partes de nosso corpo, mas melhor as conhecem, e que elas perten-
não podemos equivocar-nos do mesmo cem ao rol das percepções que a
modo no tocante às paixões, por-: estreita aliança entre a alma e o corpo
quanto são tão próximas e tão interio- torna confusas e obscuras 3 7 . Podemos
res à nossa alma que lhe é impossfvel também chamá-las sentimentos, por-
senti-las sem que.J sejam verdadeira- que são recebidas na alma do mesmo
mente tais como ela as sente. Assim, modo que os objetos dos sentidos exte-
muitas vezes quando dormimos, e riores, e não são de outra maneira 3 8
mesmo algumas vezes estando acorda- conhecidos por ela; mas podemos cha-
dos, imaginamos tão fortemente certas
coisas que pensamos vê-las diante de 3 5 Definição das paixões no sentido estrito.
nós, ou senti-las no ·corpo, embora aí 3 6
Explicação da definição precedente do ponto de
vista da alma. Em que podem as paixões ser deno-
não estejam de modo algum; mas, minadas percepções (no sentido mais amplo do
ainda que estejamos adormecidos e termo), senlime111os (ou sensações), emoções?
sonhemos, não podemos sentir-nos 3 7 Não pode haver, portanto, conhecimento claro
sário saber que a alma está verdadeira- mite falar de uma "alma corporal" em um sentido
muito particular, que Descartes ressalta na carta de
mente unida ao corpo todo 4 0 , e que 26 de julho a Arnauld: "Se por corporal entende-
não se pode propriamente dizer que ela mos o que pertence ao corpo, embora seja de outra
esteja em qualquer de suas partes com natureza, a alma também pode ser dita corporal, na
medida em que está apta a unir-se ao corpo; mas se
por corporal entendemos o que participa da natu-
3 9
Constituindo as paixões um dos aspectos da reza do corpo, esse peso não é mais corporal do que
comunicação entre o corpo e a alma, serão agora a nossa própria alma".
analisadas as modalidades desta. 43
Segunda modalidade da união: a alma deve ter
40 Primeira modalidade da união: a alma, justa- sua sede em um órgão que governa o movimento
mente por não ter extensão alguma, não enforma dos espíritos animais. (Cf. Lívio Teixeira, op~ cit.,
qualquer parte do corpo humano, em especial. pág. 154.)
1
1
-- -~
AS PAIXÕES DA ALMA 239
esta parte é o cérebro, ou talvez o cora- duas mãos, duas orelhas, e enfim todos
ção: o cérebro, porque é com ele que se os órgãos de nossos sentidos externos
relacionam os órgãos dos sentidos; e o são duplos; e que, dado que não temos
coração, porque é nele que parece senão um único e simples pensamento
sentirem-se as paixões. Mas, exami- de uma mesma coisa ao mesmo tempo,
nando o caso com cuidado, parece-me cumpre necessariamente que haja
ter reconhecido com evidência que a algum lugar onde as duas imagens que
parte do corpo em que a alma exerce nos vêm pelos dois olhos, onde as duas
imediatamente suas funções não é de outras impressões que recebemos de
modo algum o coração, nem o cérebro um só objeto pelos duplos órgãos dos
todo 4 4 , mas somente a mais interior de outros sentidos, se possam reunir em
suas partes, que é certa glândula muito uma antes que cheguem à alma, a fim
peque_na, situada no meio de sua subs- de que não lhe representem dois obje-
tância, e de tal modo suspensa por tos em vez de um só. E pode-se conce-
cima do conduto por onde os espíritos ber facilmente que essas imagens ou
de suas cavidades anteriores mantêm outras impressões se reúnem nessa
comunicação com os d.a posterior, que glândula, por intermédio dos espíritos
os menores movimentos que nela exis- que preenchem as cavidades do cére-
tem podem contribuir muito pa.Fa mo- bro, mas não há qualquer outro local
dificar o curso desses espíritos, e, no corpo onde possam assim unir-se,
reciprocamente, as menores modifica- senão depois de reunidas nessa glându-
ções que sobrevêm ao curso dos espíri- la 4 6.
tos podem contribuir muito para alte-
rar os movimentos dessa glândula 4 5 . Art. 33. Que a sede das paixões não
fica no coração.
Art. 32. Como se conhece que essa
glândula é a principal sede da alma. Quanto à opinião dos que pensam
que a alma recebe as suas paixões no
coração, não pode ser de modo algum
A razão que me persuade de que a
considerável, pois se funda apenas no
alma não pode ter, em todo o corpo,
fato de que as paixões nos fazem sentir
nenhum outro lugar, exceto essa glãn-
aí alguma alteração 4 7 ; e é fácil notar
dula, onde exerce imediatamente suas
que essa alteração só é sentida, como
funções é que considero que as outras
que no coração, por· intermédio de um
partes do nosso cérebro são todas
pequeno nervo que desce do cérebro
duplas, assim como tempos dois olhos,
para ele, assim como a dor é sentida
como que no pé, por intermédio dos
4 4 Objetar-s~á a Descartes que a gente não tem
cérebro em excesso para pensar. Já Galeno, no De
4 6 A glândula pituitária, pregada no osso esfe-
Usu Pari ium, escrevia: "Crer que esse corpo (a
glândula pineal) preside a passagem do espírito é nóide, satisfaria essa condição, mas não dispõe da
dar prova de ignorância e atribuir demasiado a essa mobilidade da pineal. (Cartas, a Mersenne, 24 de
glândula. Se assim fosse, uma glândula desempe- dezembro de 1640.)
4 7 Trata-se de uma ruptura com a tese peripatética
nharia o papel e teria a dignidade de cérebro". Mes-
nard, que cita esse texto no artigo já mencionado e estóica. Mme Rodis-Lewis, na sua edição do Trai-
(págs. 208-209), conclui daí que Descartes· ri ão té (pág. 9 1), assinala um texto de 1641 onde esse
conhecia Galeno, a não ser por uma obra de J. Syl- rompimento com a tradição é atenuado: "As pai-
vius, aparecida em 1555, onde o autor assume por xões, na medida em que pertencem ao corpo, têm
desventura, precisamente sobre este ponto, posição como sede principal o coração, visto ser o principal
oposta à do grande empírico. órgão que elas alteram; mas, na medida em que afe-
4 5 A mobilidade da glândula é uma das condições tam também a alma, aquela reside somente no cére-
essenciais que Descartes invoca a fim de convertê-la bro, pois só por meio dele é que a alma pode ser
em sede da alma. · imediatamente tocada".
240 DESCARTES
nervos do pé, e os astros são percebi- mas que pode também ser diversa-.
dos como que no céu por intermédio de mente movida pela alma 4 8 , a qual é de
sua luz e dos nervos ópticos; de sorte tal natureza que recebe em si tantas
que não é mais necessário que nossa impressões diversas, isto é, que ela tem
alma exerça imediatamente as suas tantas percepções diversas quantos
funções no coração para nele sentir as diferentes movimentos sobrevêm nessa
suas paixões do que é necessário que glândula; como também, reciproca-
ela esteja . no céu para nele ver os mente, a máquina do corpo é de tal
astros. forma composta que, pelo simples fato
de ser essa glândula diversamente mo-
Art. 34. Como agem a alma e o corpo vida pela alma ou por qualquer outra
wn contra o outro. causa que possa existir, impele os espí-
ritos animais que a circundam para os
Concebamos, pois, que a alma tem a poros do cérebro, que os conduzem
sua sede principal na pequena glândula pelos nervos aos músculos, mediante o
que existe no meio do cérebro, de onde que ela os leva a mover os membros.
irradia para todo o resto do corpo, por
intermédio dos espíritos, dos nervos e Art. 35. Exemplo da maneira como as
mesmo do sangue, que, participando impressões dos objetos se unem na
das impressões dos espíritos, podem glândula quefica no meio do cérebro.
levá-los pelas artérias a todos os mem-
bros; e, lembrando-nos do que já foi . Assim, por exemplo, se vemos
dito acima com respeito à máquina de algum animal vir em nossa direção, a
nosso corpo, a saber, que os pequenos luz refletida de seu corpo pinta duas
filetes de nossos nervos acham-se de imagens dele, uma em cáda um de nos-
tal modo distribuídos em todas as suas sos olhos, e essas duas imagens for-
partes que, por ocasião dos diversos mam duas outras, por intermédio dos
movimentos aí provocados pelos obje- nervos ópticos, na superfície interior
tos sensíveis, abrem dive;samente os do cérebro defronte às suas concavida-
poros do cérebro, o que faz com que os des; daí, em seguida, por intermédio
espíritos animais contidos nessas cavi- dos espíritos que enchem suas cavida-
dades entrem diversamente nos múscu- des, essas imagens irradiam de taJ
los, por meio do que podem mover os sorte para a pequena glândula envol-
membros de todas as diversas manei- vida por esses espíritos, que o movi-
ras que esses são capazes de ser movi-
mento componente de cada ponto de
dos, e também que todas as outras cau- uma das imagens tende para o mesmo
sas que podem mover diversamente os
ponto da glândula para o qual tende o
espíritos bastam para conduzi-los a
movimento que forma o pontó da
diversos músculos; juntemos aqui que
a pequena glândula, que é a principal 4 8
É a terceira causa da diversidade no curso dos
sede da alma, está de tal forma sus- espíritos que procedem do cérebro (cf. arts. 12 a
pensa entre as cavidades que contêm 16). Cabe notar que a correspondência entre as
esses espíritos que pode ser movida por impressões da alma e os movimentos da glândula
constitui uma descrição e de maneira alguma uma
eles de tantos modos diversos quantas explicação da união (cf. Lívio Teixeira, op. cil'., pág.
as diversidades sensíveis nos objetos; 155).
AS PAIXÕES DA ALMA 241
espíritos (art. 27 e 29). O que significa "movimento exemplar da união íntima entre alma e corpo. Na
particular dos espíritos"? 1. 0 que esse movimento medida em que produzem esta acomodação espon-
dos espíritos não é comumente fortuito; 2. 0 que não tânea é que "as paixões são todas boas" (art. 2 L 1).
é produzido pela variação da figura do movimento Cf. a definição das paixões dada no Tratado do
(como nas sensações ou "sentimentos"), mas pela Homem: "Movimentos. . . que servem para dispor
variação da quantidade de movimento com respeito o coração e o fígado, bem como todos os outros ór-
à normal. Do ponto de vista psicofisiológico, pode- gãos dos quais pode depender o temperamento' do
se definir a "paixão" como emoção da alma ligada sangue e em seguida o dos espíritos, de tal sorte que
a um automatismo circular de auto-reforçamento os espíritos que nascem então estejam aptos a cau-
capaz de múltiplos condicionamentos. sar os movimentos exteriores que devem ·seguir"
AS PAIXÕES DA ALMA 243
tal modo livre que nunca pode ser outros, excitando, por esse meio, um
compelida; e, das duas espécies de movimento particular na glândula, que
pensamentos que distingui na alma, representa à alma o mesmo objeto e
das quais uns são suas ações, isto é, lhe faz saber que se trata daquele do
suas vontades, e os outros as suas pai- qual queria lembrar-se.
xões, tomando-se esta palavra em sua
significação mais geral, que com- Art. 43. Como a alma pode imaginar,
preende todas as espécies de percep- estar atenta e mover o corpo.
ções, os primeiros estão absolutamente
em seu poder e só indiretamente o Assim, quando se quer imaginar
corpo pode modificá-los, assim como,
. algo que nunca se viu, essa vontade
ao contrário, os últimos dependem tem o poder de levar a glândula a
absolutamente das ações que os produ-mover-se da maneira necessária para
zem, e a alma só pode modificá-los impelir os espíritos aos poros do cére-
. indiretamente, exceto quando ela pró-bro por cuja abertura essa coisa pode
pria é sua causa 5 3 . E toda a ação da
ser representada; assim, quando se pre-
alma consiste em que, simplesmente tende fixar a atenção para considerar
por querer alguma coisa, leva a peque-
por algum tempo um mesmo objeto, tal
na glândula, à qual está estreitamente
vontade retém a glândula, durante esse
unida, a mover-se da maneira neces- tempo, inclinada para um mesmo lado;
sária a fim de produzir o efeito que se
assim, enfim, quando se quer andar ou
relaciona com esta vontade. mover o próprio corpo de alguma
maneira, essa vontade faz com que a
Art. 42. Como encontramos em nossa
memória as coisas de que nos quere- glândula impila os espíritos para os
músculos que servem para tal efeito.
mos lembrar.
Assim, quando a alma quer lem- Art. 44. Que cada vontade é natural-
brar-se de algo, essa vontade faz com mente unida a algum movimento da
que a glândula, inclinando-se sucessi- glândula; mas que, por engenho ou por
vamente para diversos lados, impila os hábito, se pode uni-la a outros.
espíritos para diversos lugares do cére-
bro, até que encontrem aquele onde Todavia, nem sempre é a vontade de
estão os traços deixados pelo objeto de provocar em nós algum movimento ou
que queremos nos lembrar; pois esses algum outro efeito que pode levar-nos
traços não são outra coisa senão os a excitá-lo; mas isso muda conforme a
poros do cérebro, por onde os espíritos natureza ou o hábito tenham diversa-
tomaram anteriormente seu curso devi- mente unido cada movimento da glân-
do à presença desse objeto, e adquiri- dula a cada pensamento 5 4. Assim, por
ram, assim, maior facilidade que os
5 4 Nossa vontade não pode excitar quaisquer
outros, para sererri de novo abertos da
movimentos em nós. Certos movimentos, reflexos
mesma maneira pelos espíritos que ou mecanismos adquiridos só podem ser executados
para eles se dirigem; de sorte que tais por ocasião de outros movimentos voluntários. A
espíritos, encontrando esses poros, en- alma ignora como se efetuam esses movimentos que
são executáveis apenas mediatamente: "Esta incli-
tram neles mais facilmente do que nos nação da vontade é seguida pelo curso dos espíritos
nos nervos, e de tudo o que é requerido para o movi-
53 "Se existe algo absolutamente em nosso poder, mento, o que ocorre por causa da disposição conve-
são os nossos pensamentos, a saber, aqueles que niente do corpo, de que a alma pode realmente não
provêm da vontade e do livre arbítrio." (Cartas, a ter de modo algum conhecimento ... " (Cartas, a
Mersenne, 3 de dezembro de 1640.) Arnauld, 29 de julho de 1648.)
244 DESCARTES
mão, assim pode sobrepujar facilmente pode ser advertido em nós que repugne
as paixões menores, mas não as mais a nossa razão; de modo que não há
violentas e as mais fortes, a não ser de- nisso outro combate exceto que, como
pois que se apaziguou a emoção do a pequena glândula que fica no meio
sangue e dos espíritos. O máximo que ·do cérebro pode ser impelida, de um
pode fazer a vontade, enquanto essa lado, pela alma, e, de outro, pelos espí-
emoção está em vigor, é não consentir ritos animais, que são apenas corpos,
em seus efeitos e reter muitos dos como já disse acima, acontece às vezes
movimentos aos quais ela dispõe o
1
_l _·~
AS PAIXÕES DA ALMA 247
Art. 51. Quais as primeiras causas das Art. 52. Qual o seu emprego e como
paixões. podemos enumerá-las.
Já se sabe, pelo que se disse mais Observo, além disso, que os objetos
acima 6 4 , que a última e mais próxima que movem os nossos sentidos não
causa das paixões da alma não é outra provocam em nós diversas paixões de-
senão a agitação com que os espíritos vido a todas as diversidades que exis-
movem a pequena glândula situada no tem neles, mas somente devido às
meio do cérebro. Mas isso não basta diversas formas pelas quais nos podem
para podermos distingui-las umas das prejudicar ou beneficiar, ou então, em
outras; é mister procurar suas fontes e geral, ser importantes; e que o emprego
examinar suas primeiras causas; ora, de todas as paixões consiste apenas no
ainda que possam algumas vezes ser fato de disporem a alma a querer coi-
causadas pela ação da alma, que se sas que a natureza dita serem úteis a
determina a conceber estes ou aqueles nós, e a persistir nessa vontade, assim
objetos, e também pelo exclusivo tem- como a mesma agitação dos espíritos
peramento do corpo ou pelas impres- que costuma causá-las dispõe o corpo
sões que se encontram fortuitamente aos movimentos que servem à execu-
no cérebro, como acontece quando nos ção dessas coisas; eis por que, a fim de
sentimos tristes ou alegres sem que enumerá-las, cumpre apenas examinar,
possamos dizer o motivo 6 5 , parece, no por ordem, de quantas maneiras dife-
entanto, pelo que foi dito, que todas rentes que nos importam 6 7 podem os
elas podem também ser excitadas pelos nossos sentidos ser movidos por seus
objetos que afetam os sentidos e que objetos; e farei aqui a enumeração de
tais objetos são suas causas mais co-
6 7 " . • • dita serem úteis a nós": sobre o alcance
muns e principais; daí se segue que, desta doutrina, cf. Cal. com Burman. «É possível
para encontrar todas, basta considerar que, se um médico permitisse a seus doentes os ali-
todos os efeitos desses objetos 6 6 • mentos e as bebidas que estes reclamam amiúde, a
saúde deles se restabelecesse bem melhor do que
com essas drogas que dão náusea ... em tais casos,
6 4 No art. 34. a natureza chega a restabelecer-se sozinha: ela tem
6 5 Distinção das três causas possíveis da agitação perfeita consciência, interiormente, de seu estado, e
dos espíritos. o conhece bem melhor que um médico, que só vê o
6 6 Não são as diferenças entre os objetos, mas exterior."" ... que nos importam": palavras essen-
entre os efeitos que podem produzir cm nós que ser- ciais; segundo Lívio Teixeira (op. cil., pág. 164) e
virão de base para a classificação. "Descartes diz Guéroult (op. cil., II, pág. 253), atestam que não se
que se devem considerar todos os efeitos dos objetos tratará de uma notação estritamente fisiológica das
exteriores sobre nós, o que entendemos incluir tanto paixões (é o programa que Mesnard atribui a
o estudo dos fenômenos fisiológicos como dos Descarles), mas que a ordem da enumeração obede-
psicológicos, que é realmente o que ele vai fazer." cerá ao critério da prática e da conveniência
(Lívio Teixeira, op cit., pág. 162.) biológicas.
252 DESCARTES
ordem, distingo os tempos 7 1 e, consi- ção, que nos dispõe a deliberar e tomar
derando que elas nos levam a olhar o conselho. À última opõe-se a coragem
futuro muito mais do que o presente, ou a ousadia, de que a emulação cons-
ou o passado, começo pelo desejo. titui uma espécie. E a covardia é con-
Pois, não somente quando se deseja trária à coragem, tal como o medo ou
adquirir um bem que ainda não se pos- o pavor à ousadia.
sui, ou evitar um mal que se julga pas-
sível de sobrevir, mas também quando Art. 60. O remorso.
se deseja apenas a conservação de um
bem ou a ausência de um mal, que é E, se estamos determinados a algu-
tudo aquilo a que essa paixão pode ma ação, antes que seja suprimida a
estender-se, é evidente que ela encara irresolução, isso engendra o remorso
sempre o futuro. de consciência, o qual não considera o
tempo vindouro, como as paixões
Art. 58. A esperança, o temor, o precedentes, mas o presente ou o
ciúme, a segurança e o desespero. passado.
Art. 63. A satisfação de si mesmo e o Art. 68. Por que essa enumeração das
arrependimento. paixões é diferente da comumente
aceita.
Podemos também considerar a Eis a ordem que me parece melhor
causa do bem ou do ·mal, tanto pre- para enumerar as paixões. Sei muito
sente como passado. E o bem que foi bem que nisso me afasto da opinião de
feito por nós mesmos nos dá uma satis- todos os que até agora escreveram
fação interior, que é a mais doce de sobre elas, mas não o faço sem grande
todas as paixões, ao passo que o mal razão. Pois os outros tira~ suas
provoca o arrependimento, que é a enumerações do fato de distinguirem
mais amarga. na parte sensitiva da alma dois apeti-
tes, que chamam um concupiscível e o
Art. 64. O favor e o reconhecimento. outro irascível 7 2 • E, como não conhe-
ço na alma nenhuma distinção de par-
Mas o bem praticado por outros é tes, o que já disse acima, isto não me
causa de que os tenhamos em favor, parece significar outra coisa senão que
ainda que não seja feito a nós; e, quan- ela tem du<!..s faculdades, uma ·de dese-
do o é, ao favor juntamos o reconheci- . jar e a outra de se irritar; e, posto que
mento. ela tem da mesma forma as faculdades
de admirar, amar, esperar, temer e,
Art. 65. A indignação e a cólera. assim, de receber em si cada uma das
outras paixões.1, ou de praticar as ações
Do mesmo modo, o mal praticado a que essas paixões a impelem, não
por outros, não se relacionando a nós, vejo por que quiseram relacionar todas
faz somente com que desperte a nossa com a concupiscência ou a cólera.
indignação para com eles; e, quando se Além do que, tal enumeração não
compreende todas as principais pai-
relaciona conosco, sucit~ também a
cólera. xões, como creio que esta o faz. Falo
apenas das principais, porque se pode-
riam ainda distinguir muitas outras
Art. 66. A glória e a vergonha.
mais particulares, pois seu número é
indefinido.
Além disso, o bem que existe ou
existiu em nós, quando relacionado Art. 69. Que há somente seis paixões
com a opinião que os outros podem ter primitivas 7 3 •
a seu respeito, excita em nós a glória, e
o mal, a vergonha. Mas o número das que são simples e
72 As obras que tratam das paixões, numerosas no
Art. 67. O fastio, o pesar e a alegria. século XVI, respeitavam ainda quase todas a divi-
são escolástica dos apetites entre o concupiscível e
o irascível (proveniente de Platão, cf. Repdblica,
E às vezes a duração do bem provo- 436 a 441 e). No concupiscível a alma sofre apenas
ca o tédio ou o fastio, ao passo que a a força de atração ou de repulsão do bem e do mal;
no irascível, ela tende a enfrentar a dificuldade. A
do mal diminui a tristeza. Enfim, do distinção entre a alma e o corpo torna caduca esta
bem passado resulta o pesar, que é divisão que Descartes julga arbitrária.
73 A enumeração de Descartes é superior, pénsa
uma espécie de tristeza, e do mal pas-
ele, pelo fato de permitir distinguir as paixões primi-
sado resulta o júbilo, que é uma espé- tivas. Mas Descartes não nos informa segundo qual
cie de alegria. critério se efetua esta distinção.
___ j_ ____ _ _ __
AS PAIXÕES DA ALMA 255
primitivas não é muito grande. Pois, Art. 71. Que nesta paixão não ocorre
passando em revista todas as que enu- qualquer mudança no coração nem no
merei, pode-se facilmente notar que há sangue.
apenas seis que são tais, a saber: a
admiração, o amor, o ódio, o desejo, à E esta paixão tem a particularidade
alegria e a tristeza; e todas as outras de não notarmos de modo algum que
seja acompanhada de qualquer mudan-
compõem-se de algumas dessas seis,
ça no coração e no sangue, como acon-
ou então são suas espécies 7 4 . Por isso,
tece com outras paixões. A razão é
para que sua multidão não embarace
que, não tendo nem o bem nem o mal
nossos leitores, !ratarei aqui separada- por objeto, mas só o conhecimento da
mente das seis primitivas; e, em seg~i- coisa que se admira, ela não se rela-
da, mostrarei de que forma todas as ciona ao coração e ao sangue, dos
outras tiram daí sua origem. quais depende todo o bem do corpo,
mas apenas ao cérebro, onde ficam os
Art. 70. Da admiração; sua definição órgãos dos sentidos que servem a esse
e causa. conhecimento.
vocam. O que não se julgará incrível, fortalecer e conservar outros nos quais
se se considerar que uma razão aná- não vale a pena deter-se.
loga faz com que, estando a planta de
nossos pés habituada a um contato Art. 75. Para que serve particular-
bastante rude, devido ao peso do corpo mente a admiração.
que sustenta, sintamos muito pouco
esse contato quando andamos; ao
passo que outro muito menor· e mais E pode-se dizer particularmente da
suave, como o das cócegas, nos é admiração que ela é útil porque nos
quase insuportável, por não nos ser leva a aprender e a reter' em nossa
comum. memória coisas que dantes ignoráva-
mos; pois só admiramos o que nos pa-
rece raro e extraordinário; e coisa al-
Art. 73. O que é o espanto.
guma pode ·parecer-nos assim senão
porque nós a ignoravamos, ou também
E essa surpresa tem tanto poder porque é diferente das coisas que
para levar os espíritos localizados nas conhecíamos; pois é essa diferença que
cavidades do cérebro ao lugar onde nos leva a chamá-la extraordinária.
está a impressão do objeto admirado Ora, ainda que uma coisa que nos era
que, por vezes, impele todos para lá e desconhecida se apresente de novo ao
os deixa de tal modo ocupados em nosso entendimento ou aos nossos sen-
conservar essa impressão que nenhum tidos, não a retemos por isso em nossa
deles passa ao cérebro, nem mesmo se memória, se a idéia que dela temos não
desvia de alguma forma das primeiras for fortalecida em nosso cérebro por
pegadas que seguiu no cérebro: o que alguma paixão, ou pela aplicação de
faz que o corpo inteiro permaneça nosso entendimento, que a nossa von-
imóvel como uma estátua e que só per- tade determina a uma atenção e refle-
cebamos do objeto a primeira face que xão particulares. E as outras paixões
se apresentou, e por conseguinte não podem servir-nos para notar as coisas
possamos adquirir dele um conheci- que parecem boas ou más, mas só dis-
merito mais particular. É isso o que se pomos da admiração para as que pare-
chama comumente estar espantado; e cem tão-somente raras. Por _isso,
,o espanto é um excesso de admiração vemos que os que não possuem qual-
que só pode ser mau. quer inclinação natural para essa pai-
xão são ordinariamente muito ignoran-
Art. 74. Para que servem todas as pai- tes.
xões e no que elas prejudicam.
Art. 76. No que ela pode prejudicar e
Ora, é fácil saber, pelo que foi dito como se pode suprir sua falta e corrigir
acima, que a utilidade de todas as pai- seu excesso.
xões consiste apenas em fortalecer e
fazer durar na alma pensamentos, os Mas acontece muito mais admirar-
quais é bom que ela conserve, e que mos em demasia e nos espantarmos ao
poderiam facilmente, sem isso, ser perceber coisas que merecem pouca ou
obliterados. Assim como todo o mal nenhuma consideração, do que admi-
que podem causar consiste em fortale- rarmos demasiado pouco. E isso pode
cer e conservar esses pensamentos subtrair inteiramente ou pervt~ o
--mais do que o necessário, ou então em uso da razão. Daí por que, emboraj seja
i
1
AS PAIXÕES DA ALMA 257
bom ter nascido com alguma inclina- encontramos coisas raras que admira-
ção para esta paixão, porque isso nos mos, mais nos acostumamos a cessar
dispõe para a aquisição das ciências, de admirá-las e a pensar que todas as
devemos todavia esforçar-nos em se- que podem apresentar-se depois são
guida para nos libertar dela o mais vu.lgares, todavia, quando é excessiva e
possível 7 6 . Pois é fácil suprir a sua nos leva somente a deter a atenção na
falta por uma reflexão e atenção parti- primeira imagem dos objetos que se
culares, a que a nossa vontade sempre _apresentarem, sem adquir~ deles outro
pode obrigar nosso entendimento conhecimento, deixa atrás de si um há-
quando julgamos que a coisa que se bito que dispõe a alma a deter-se do
apresenta vale a pena; mas não há mesmo modo em todos os outros obje-
outro remédio para impedir o admirar tos que se apresentem, desde que lhe
excessivo senão adquirir o conheci- pareçam, por pouco que seja, novos. E
mento de muitas coisas e exercitar-nos é isso que faz durar a moléstia dos que
na consideração de todas as que pos-
são cegamente curiosos 7 7 , isto é, que
sam parecer mais raras e mais estra-
procuram as raridades somente para
nhas.
admirá-las e não para conhecê-las:
pois tornam-se pouco a pouco tão
Art. 77. Que não. são nem os mais
admirativos, que coisas de importância
estúpidos nem os mais hábeis os mais
nula não são menos capazes de retê-los
propensos à admiração.
do que aquelas cuja pesquisa é mais
útil.
De resto, embora só os embrute-
cidos e estúpidos não· sejam levados
naturalmente à admiração, isto não Art. 79. As definições do amor e do
significa dizer que os mais dotados de ódio 78 .
espírito sejam os mais inclinados a ela;
mas são principalmente os que, embo- O amor é uma emoção da alma cau-
ra possuam um senso comum assaz sada pelo movimento dos espíritos que
bom, não têm, todavia, em grande a incita a unir-se voluntariamente aos
conta sua própria suficiência. objetos que lhe parecem convenientes.
E o ódio é uma emoção causada pelos
Art. 78. Que o seu excesso pode espíritos que incita a alma a querer
converter-se em hábito quando se estar separada dos objetos que se lhe
deixa de corrigi-lo. apresentam como nocivos. Eu digo que
tais emoções são causadas pelos espíri-
E, conquanto essa paixão pareça tos a fim de distinguir o amor e o ódio,
diminuir com o uso, pois, quanto mais que são paixões e dependem do corpo,
tanto dos juízos que levam também a
7 6 A admiração pode estar na origem da ciência, alma a se unir voluntariamente às coi-
mas, enquanto paixão, ela nos distancia do exercí- sas que ela considera boas e a se sepa-
cio da ciência. Encontram-se na correspondência de rar daquelas que considera más como
Descartes muitos ataques contra os amantes de
maravilhas. Por exemplo, a propósito da história de
uma jovem que apresenta todos os dias sobre o
7 7 O excesso de uma paixão é uma doença, desde
corpo as chagas dos mártires cujas festas são cele-
bradas, escreve: "O bom padre Mersenne é tão que não se tome a palavra no sentido patológico.
curioso e fica tão alegre em ouvir alguma maravilha 7 8 O autor vai analisar as cinco outras paixões do
que escuta favoravelmente todos os que lhe contam ponto de vista psicológico (arts. 79-96) e depois
uma". (A Huyghens, 12 de março de 1640.) fisiológico (arts. 96-136).
258 DESCARTES
das emoções que só esses juízos exci- valência, isto é, unimos-lhe também
tam na alma 79 . voluntariamente as coisas que cremos
lhe serem convenientes: o que é um dos
Art. 80. O que significa unir-se ou principais efeitos do amor. E se julgar-
separar-se voluntariamente. mos que é um bem possuí-lo ou lhe
estar associado de outra forma que não
De resto, pela palavra voluntaria- a voluntária, desejamo-lo: o que é tam-
mente, não pretendo falar aqui do bém um dos mais comuns efeitos do
desejo 8 0 , que é uma paixão à parte e se amor.
relaciona com o porvir; mas do con-:-
sentimento pelo qual nos consideramos Art. 82. Como paixões muito diferen-
presentemente unidos com o que ama- tés combinam na medida em que parti-
mos, de sorte que imaginamos um todo cipam do amor.
do qual pensamos constituir apenas
uma parte, e do qual a coisa amada é a Não é necessário também distinguir
outra. Como, ao contrário, no ódio tantas espécies de amor quantos os
nos consideramos como um todo só diversos objetos que se podem amar;
inteiramente separado da coisa pela pois, por exemplo, embora a paixão
qual se tem aversão. que um ambicioso nutre pela glória,
um avarento pelo dinheiro, um bêbado
Art. 81. Da distinção que se costuma pelo vinho, um bruto pela mulher que
fazer entre o amor de concupiscência e deseja violar, um homem de honra por
o de benevolência. seu amigo ou por sua amante e um
bom pai por seus filhos, sejam muito
Ora, distinguem-se comumente duas diferentes entre si, todavia, por partici-
espécies de amor, uma das quais é eh a- parem do amor, são semelhantes. Mas
mada amor de benevolência, isto é, que os quatro primeiros têm amor apenas
incita a querer o bem para o que se pela posse dos objetos aos quais se re-
ama; a outra é chamada amor de fere sua .Paixãoª 1 , e não o têm pelos
concupiscência, isto é, que leva a dese- objetos mesmos, pelos quais nutrem
jar a coisa que se ama. Mas me parece somente desejo misturado com outras
que essa distinção considera apenas os paixões particulares, ao passo que o
efeitos do amor, e não a sua essência; amor de um bom pai por seus filhos é
pois, tão logo nos unimos voluntaria- tão puro que nada deseja deles e não
mente a algum objeto, de qualquer quer possuí-los de outra maneira senão
natureza que seja, temos por ele bene- como o faz, nem estar unido a eles
mais estreitamente do que já o está;
7 9 Enquanto paixão, o amor não é apenas a anteci- mas, considerando-os como outros
Qação consciente do bem ao qual desejo estar tantos ele próprio, procura o bem deJes
unido: esta antecipação torna-se inseparável de sua
ressonância orgânica. Sobre os sentimentos pura- co"mo o seu próprio, ou mesmo com
mente intelectuais, cf. art. 147. mais cuidado, porque, representando-
80 O amor, neste sentido, deve ser diferenciado do
desejo (o amor no sentido comum será, ao contrá-
rio, o desejo que nasce do agrado, cf. art. 90). Ele 81 A sexualidade está portanto afastada da essên-
não é a consciência da necessidade que se refere ao cia do amor. Sobre esta ideologia do amor (insepa-
alimento ou ao objeto sexual, mas reveste ao mesmo rável no século XVII do preciosismo) e seu con-
tempo o amor pela glória, pelo dinheiro, pela pá- teúdo social, poder-se-á consultar: René Bra~, La
tria ... É em outro nível, como há de indicar o arti- Préciosité et les Précieux; Octave Nada, Le Senti-
go seguinte, que o amor poderá compor-se com o ment de l'Amour dans l'Oluvre de Corneille;f Paul
desejo. Bénichou, Morales du Grand Siecle. ;
i
___ J
AS PAIXÕES DA ALMA 259
se formar com éles um todo, do qual país ou nossa cidade, e mesmo por um
não é a melhor parte, prefere muitas homem particular, quando o estima-
vezes os interesses deles aos próprios e mos mais do que a nós próprios. Ora, a
não teme perder-se para salvá-los. A diferença que existe entre essas três
afeição que as pessoas de honra sen- espécies de amor aparece principal-
tem por seus amigos é dessa natureza, mente através de seus efeitos; pois,
embora raramente seja tão perfeita; e a posto que em todas nos consideramos
que sentem pela amada participa unidos e juntos à coisa amada, esta-
muito dela, mas também participa um mos sempre prontos a abandonar a
pouco da outra. parte menor do todo que se compõe
com ela para conservar a outra; o que
Art. 83. Da diferença entre a simples faz com que, na simples afeição, se
afeição, a amizade e a devoção 82 •
prefira sempre a si próprio ao que se
ama e que, ao contrário, na devoção se
Pode-se, parece-me, com melhor prefira de tal modo a coisa amada ao
razão ainda distinguir o amor pela esti- eu próprio que não se receia morrer
ma que se dedica ao que amamos em para conservá-la. Viram-se muitas
comparação com nós próprios; pois, vezes exemplos disso nos que se expu-
quando estimamos o' objeto de nosso seram à morte certa em defesa de seu
amor menos que a nós mesmos, senti- príncipe ou de sua cidade, e até, algu-
mos por ele simples afeição; quando o mas vezes, de pessoas particulares às
estimamos tal como a nós próprios, quais se haviam devotado.
isso se chama amizade; e, quando o
estimamos mais, a paixão que alimen- Art. 84. Que não há tantas espécies de
tamos pode ser chamada devoção. ódio como de amor.
Assim, pode-se ter afeição por uma
flor, por um pássaro, por um cavalo; De resto, ·ainda que o ódio seja dire-
porém, a não ser que se tenha o espí- tamente oposto ao amor, não se distin-
rito muito desregrado, não se pode nu- guem nele todavia tantas espécies, por-
trir amizade senão pelos homens. E que não se nota tanto a diferença que
eles são de tal modo objeto dessa pai- existe entre os males de que se está
xão, que não há homem tão imperfeito separado voluntariamente como a que
que não se lhe possa dedicar amizade existe entre os bens a que se está unido.
muito perfeita, quando se pensa ser
amado por ele e se tem a alma verda- Art. 85. Do agrado e do horror.
deiramente nobre e generosa, conforme
o que será explicado mais adiante nos E não encontro senão uma única
artigos 154 e 156. No que concerne à distinção considerável que seja aná-
devoção, seu principal objeto é, sem loga num e noutro. Consiste em que os
dúvida, a soberana Divindade, em rela- objetos, tanto do amor como do ódio,
ção à qual não podemos deixar de ser podem ser representados à alma pelos
devotos quando a conhecemos como se sentidos exteriores, ou então pelos inte-
deve; mas podemos também sentir riores e por sua própria razão; pois
devoção por nosso príncipe, pelo nosso denominamos comumente bem ou mal
aquilo que nossos sentidos interiores
82 Acerca desse artigo, cf. Cartas, a Chanut, de 1. 0 ou nossa razão nos levam a julgar
de fevereiro de 164 7. conveniente ou contrário à nossa na.tu-
260 DESCARTES
Art. 88. Quais são as suas diversas Art. 90. Qual é o que nasce do agrado.
espécies.
Ao· contrário; o agrado foi particu-
Haveria mais razão de distinguir o larmente instituído pela natureza para
desejo em tantas espécies diversas representar o gozo do que agrada
quão diversos os objetos que se procu- como o maior de todos os bens perten-
ram; pois,. por exemplo, a curiosidade, centes ao homem, o que faz desejar
que não é senão um- desejo de conhe- ardentemente esse gozo. É verdade que
cer, difere muito do desejo de glória, e há diversas espécies de agrados e que
este do desejo de vingança, e assim por os desejos daí oriundos não são todos
diante. Mas aqui basta saber que há igualmente poderosos; pois, por exem-
tantos desejos quantas espécies de plo, a beleza das flores nos incita
amor ou de ódio e que os mais conside- somente a mirá-las, e a dos frutos, a
ráveis e os mais fortes são os que nas- comê-los 8 6 • Mas o principal é o prove-
cem do agrado e do horror. niente das perfeições que imaginamos
numa pessoa que pensamos capaz de
Art. 89. Qual é o desejo que nasce do tornar-se outro nós mesmos; pois, com
horror. a diferença do sexo, que a natureza
estabeleceu nos homens bem como nos
animais destituídos de razão, ela esta-
Ora, conquanto seja apenas um beleceu também certas impress5es no
mesmo desejo que tende à busca de um cérebro que fazem com que, em certa
bem e à fuga do mal que lhe é contrá- idade e em certo tempo, nos conside-
rio, assim como já foi dito, o desejo remos como defeituosos e como se não
que nasce do agrado não deixa de ser fôssemos senão a metade de um todo,
muito diferente daquele que nasce do do qual uma pessoa do outro sexo deve
horror; pois este agrado e este horror, constituir a outra metade, de sorte que
que verdadeiramente são contrários, a. aquisição dessa metade é confusa-·
não são o bem e o mal que servem de mente representada pela natureza
objetos a tais desejos, mas somente como o maior de todos os bens imagi-
duas emoções da alma que a predis- náveis. E, ainda que se veja muitas pes-
põem a buscar duas coisas muito dife- soas desse outro sexo, nem por isso se
rentes, a saber: o horror é instituído deseja muitas ao mesmo tempo, posto
pela natureza para representar à alma que a natureza não leva a imaginar que
uma morte súbita e inopinada, de sorte se necessite de mais de uma metade.
que, embora seja às vezes apenas o Mas, quando numa se observa algo
contato de um vermezinho, ou o rumor
de uma folha tremulante, ou a sua s 6 Reafirmação de uma simples diferença de grau
sombra, que provoque o horror, sente- entre o agrado sensual e o prazer estético.
262 DESCARTES
que agrada mais do que aquilo que se gozo que ela frui do bem que seu
observa ao mesmo tempo nas outras, entendimento lhe representa como
isso determina a alma a sentir somente seu 8 8 . É verdade que, enquanto a alma
por ela todo o pendor que a natureza está unida ao corpo, essa alegria inte-
lhe dá para procurar o bem que ela lhe lectual não pode deixar de ser acompa-
representa como o maior que se possa nhada da outra, que é uma paixão;
possuirª 7 ; e esta inclinação ou este de- pois, tão logo o nosso entendimento
sejo que nasce assim do agrado leva percebe que possuímos algum bem,
mais comumente o nome de amor do embora este bem possa ser tão dife-
que a paixão de amor acima descrita. rente de tudo quanto pertence.ao corpo
Por isso, produz os mais estranhos que não seja de modo algum imaginá-
efeitos e é ele que serve de principal vel, a imaginação não deixa de provo-
matéria aos fazedores de romances e car incontinenti alguma impressão no
aos poetas. cérebro, da qual se segue o movimento
dos espíritos que excita a paixão da
Art. 91. A definição da alegria. alegria.
suas causas, a saber, quando este bem Mas a causa de ser a alegria de ordiná-
ou este mal provocam suas impressões rio seguida pelo prazer é que tudo o
no cérebro sem· o intermédio da que se chama prazer ou sentimento
alma 8 9 , às vezes porque pertencem agradávél consiste em que os objetos
apenas ao corpo, e outras vezes tam- dos sentidos excitam nos nervos algum
bém, ainda que pertençam à alma, por- movimento que seria capaz de prejudi-
que ela não os considera como bem ou cá-los se não tivessem bastante força
mal, mas sob outra forma qualquer, para lhe resistir, ou se o corpo não esti-
cuja impressão está unida à do bem e vesse bem disposto; o que provoca
do mal no cérebro 9 º. uma impressão no cérebro, a qual,
sendo instituída pela natureza a fim de
Art. 94. Como essas paixões são exc'i- testemunhar esta boa disposição e esta
tadas por bens e males que se referem força, a representa à alma como um
apenas ao corpo, e no que consistem :o bem que lhe pertence, na medida em
prazer fisico 91 e a dor. que está unida ao corpo, e assim excita
nela a alegria. É quase a mesma razão
Assim, quando gozamos de plena que nos leva a obter naturalmente pra-
saúde e o tempo é mais sereno do que zer em nos sentirmos comovidos por
de costume, sentimos em nós um todas as espécies de paixões, mesmo
contentamento que não provém de com a tristeza e o ódio, quando essas
nenhuma função do entendimento, mas paixoes são causadas apenas pelas
somente das impressões que o movi- estranhas aventuras a cuja represen-
mento dos espíritos provoca no cére- tação assistimos num teatro 93 , ou por
bro; e sentimo-nos igualmente tristes outros meios semelhantes, que, não
como quando o corpo está indisposto, podendo nos prejudicar de maneira
embora não saibamos que ele o esteja. alguma, parecem aprazer nossa alma,,
Assim, o prazer dos sentidos é seguido tocando-a. E a causa de que a dor pro-
de tão perto pela alegria, e a dor pela duz de ordinário a tristeza é que o sen-
tristeza, que a maioria dos homens não timento chamado dor provém sempre
os distingue de modo algum 9 2 • To- de alguma ação tão violenta que ofen-
davia, diferem tanto que podemos de os nervos; de sorte que, sendo insti-
a~gums vezes sofrer dores com alegria tuído pela natureza para significar à
e receber prazeres que desagradam. alma o dano que o corpo recebe por
essa ação, e a sua fraqueza no fato de
89 "Sem o intermédio da alma não significa que não lhe ter podido resistir, representa-
não tenhamos consciência desses estados, porque se lhe um e outro como males que lhe são
assim fosse elas não seriam paixões, mas apenas sempre desagradáveis, exceto quando
que a causa deles não é a idéia de algum bem que
possuímos ou de um mal que nos afeta. A causa causam alguns bens que ela aprecia
deles é um estado puramente fis_iológico." (Lívio mais do que a eles.
Teixeira, op. cit., pág. 174.)
90 Ou então sua causa pode ser uma associação
tornada inconsciente. "Assim, quando somos leva-
dos a amar alguém sem que saibamos a causa, 92 Assim como a alegria intelectual e a "paixão"
podemos crer que isso vem do fato de haver algo na qual ela se insere, cumpre distinguir o bem-estar
nele de semelhante ao que houve em outro objeto fisiológico e a paixão de alegria que ele produz.
que amamos anteriormente, embora não saibamos o 93 O estudo fisiológico começa pela descrição dos
que é." (Cartas, a Chanut, 6 de junho de 1647.) movimentos corporais observados em cada uma das
91 Em francês chatouillement: prazer proveniente cinco paixões. Cf. Cartas, a Elisabeth, maio de
de cócegas. Traduzimos por "prazer físico" por 1646: "É verdade que tive dificuldade em distinguir
falta de correspondente exato para o termo. (N. dos os que pertencem a cada paixão porque elas nunca
T.) estão sós".
264 DESCARTES
Art. 95. Como podem também ser em que servem à produção do sangue e
excitados por bens e males que a alma depois dos espíritos; pois, embora
não nota, ainda que lhe pertençam; todas as veias conduzam o sangue que
como são os prazeres que tiramos do elas contêm para o coração, acontece,
aventurar-se ou do lembrar-se do mal no entanto, às vezes, que o de algumas
passado. é impelido para ele com mais força do
que o de outras; e acontece também
Assim, o prazer que sentem muitas que as aberturas por onde entra no
vezes as pessoas jovens em empreender
coração, ou, então, aquelas por onde
coisas difíceis e em expor-se a grandes
sai, são às vezes mais largas ou mais
perigos, embora não esperem daí qual-
apertadas umas que as outras.
quer proveito ou qualquer glória, surge
neles porque o pensamento de que é
difícil aquilo que empreendem provoca Art. 97. As principais experiências
em seus cérebros uma impressão que, que servem para conhecer esses movi-
unida àquelá que poderiam formar se mentos no amor.
pensassem que é um bem sentir-se bas-
tante corajoso, bastante feliz, bastante Ora, considerando as diversas alte-
destro ou bastante forte, para se arris- rações que a experiência mostra em
car a tal ponto, é causa de que obte- nosso corpo enquanto nossa alma é
nham prazer disso. E o contentamento agitada por diversas paixões, observo
que sentem os velhos quando se lem- no amor, quando está só, isto é, quan-
bram dos males que sofreram provém do não se acha acompanhado de qual-
de que eles se representam ser um bem quer intensa alegria, ou desejo, ou tris-
o fato de terem podido, apesar de tudo, teza, que o batimento do pulso é igual
subsistir. e muito maior e mais forte que de cos-
tume; que se sente um doce calor no
Art. 96. Quais são os movimentos do peito, e que a digestão dos alimentos se
sangue e dos espíritos que causam as faz mui prontamente no estômago, de
cinco paixões precedentes 9 4. modo que essa paixão é útil para a
saúde.
As cinco paixões que comecei a
explicar aqui se acham de tal modo Art. 98. No ódio.
unidas ou opostas umas às outr.as que
é mais fácil considerá-las todas em Observo, ao contrário, no ódio, que
conjunto do que tratar de cada uma o pulso é desigual e mais fraco, e amiú-
separadamente, assim como se tratou de mais rápido; que se sentem frialda-
da admiração; e diferentemente dessa, des entremescladas de certo calor áspe-
a causa dessas paixões não reside uni- ro e picante no peito; que o estômago
camente no cérebro, mas também no deixa de cumprir sua função e tende a
coração, no baço, no fígado e em todas vomitar e rejeitar os alimentos ingeri-
as outras partes do corpo, na medida dos, ou ao menos a corrompê-los e a
convertê-los em maus humores.
9 4 Sobre o prazer ambíguo que o espetáculo trá-
gic9 proporciona, cf. Cartas, a Elisabeth, 6 de outu- Art. 99. Na alegria.
bro de 1645. Descartes já escrevia no Compendium 1
Musicae: "As elegias mesmas e as tragédia·s nos
Na alegria, que o pulso é igt)al e
1
não é tão forte ou tão grande como no vos do sexto par, aos músculos situa-
amor; e que se sente um calor agradá- dos em torno dos intestinos e do estô-
vel que não fica apenas no peito, mas mago, da forma requerida a levar o
se espalha também por todas as partes suco dos alimentos, que se converteu
externas do corpo, com o sangue que em sangue novo, a passar prontamente
para lá aflui em abundância; e que no ao coração sem se deter no fígado, e,
entanto se perde às vezes o apetite, sendo aí impelido com mais força do
porque a digestão se faz pior do que de que o é em outras partes do corpo, a
costume. entrar no coração com maior abun-
dância e excitar nele um calor maior,
Art. 100. Na tristeza. por ser mais grosso do que aquele que
já foi rarefeito muitas vezes ao passar e
Na tristeza, que o pulso é fraco e repassar pelo coração; o que o faz en-
lento, e que sentimos em tomo do viar também espíritos ao cérebro cujas
coração como laços, que o apertam, e partes são mais grossas e mais agita-
pedaços de gelo que o gelam e comuni- das que de ordinário; e esses espíritos,
cam sua frialdade ao resto do corpo; e fortalecendo a impressão que o pri-
que, apesar disso, não se deixa de ter meiro pensamento do objeto amável
por vezes bom apetite e sentir que o nele ocasionou, obrigam a alma a
estômago não deixa de cumprir o seu deter-se nesse pensamento; e é nisso
dever, contanto que não haja ódio mis- que consiste a paixão do amor.
turado à tristeza.
Art. 103. No ódio.
Art. 101. No desejo.
Ao contrário, no ódio, o primeiro
Enfim, noto, de particular, no dese- pensamento do objeto que produz
jo, que este agita o coração mais aversão conduz de tal modo os espíri-
violentamente do que quaisquer das tos existentes no cérebro para os mús-
outras paixões, e fornece ao cérebro culos do estômago e dos intestinos que
mais espíritos, os quais, passando daí impedem o suco dos alimentos de se
aos músculos, tornam todos os senti- misturar com o sangue, apertando
dos mais agudos e todas as partes do todas as aberturas por onde costuma
corpo mais móveis. correr; e condu-los também de tal
modo aos pequenos nervos do baço e
Art. 102. O movimento do sangue e da parte inferior do fígado, onde fica o
dos esp(rftos no amor 9 5 • receptáculo da bile, que as partes do
sangue que costumam ser rejeitadas
Essas observações, e muitas outras para esses lugares deles saem e correm,
que seria demasiado longo relacionar, com o sangue que está nos ramos da
deram-me motivo para julgar que, veia cava, para o coração; o que causa
quando o entendimento se representa muitas desigualdades em seu calor,
qualquer objeto de amor, a impressão tanto mais que o sangue proveniente
que tal pensamento efetua no cérebro do baço não se aquece e não se rarefaz
conduz os espíritos animais, pelos ner- senão a custo, e que, ao contrário, o
procedente da parte inferior do fígado,
9 5 Estudo dos fenômenos circulatórios nas paixões onde há sempre fel, se abrasa e dilata
e de suas causas (arts. 102-111). mui rapidamente; daí. se segue que os
266 DESCARTES
que algumas vezes o sangue, ou outro ódio. E se pode ver a olho nu que há no
suco que entrava no coração, era um figado inúmeras veias ou condutos
alimento mais -conveniente que o bastante largos, por onde o suco dos
comum para nele manter o calor, que é alimentos pode passar da veia porta
o princípio da vida; o que levava a para a veia cava, e daí para o coração,
alma ajuntar voluntariamente a si esse sem se deter de modo algum no fig ado;
alimento, isto é, a amá-lo, e ao mesmo mas há também uma infinidade de ou-
tempo os espíritos corriam do cérebro · tras menores, onde ele pode deter-se, e
para os músculos, que podiam pressio:.. que contêm sempre sangue de reserva,
nar ou agitar as partes de onde viera como faz também o baço; sangue esse
ao coração, para fazer que estas lhe que, sendo mais grosseiro do que aque-
enviassem mais; e tais partes eram o le que se acha em outras partes do
estômago e os intestinos, cuja agitação corpo, pode melhor servir de alimento
aumenta o apetite, ou também o figado ao fogo que há no coração, quando o
e o pulmao, que os músculos do dia- estômago e os intestinos deixam de lho
fragma podem pressionar: eis por que fornecer.
desde então esse mesmo movimento
dos espíritos sempre acompanhou a Art. 109. Na alegria.
paixão do amor 9 7 .
Aconteceu também algumas vezes,
Art. 108. No ódio. no começo de nossa vida, que o sangue
contido nas veias era um alimento bas-
Algumas vezes, ao contrário, chega- tante conveniente para manter o calor
va ao coração algum suco estranho, do corpo, e que elas o continham em
que não era próprio para manter o tal quantidade que não havia a necessi-
calor, ou que podia mesmo extingui-lo; dade de buscar qualquer alimento·
o que levava os espíritos que subiam athures; o que excitou na alma a pai-
do coração para o cérebro a provocar xão da alegria e fez, ao mesmo tempo,
na alma a paixão do ódio; e ao mesmo com que os orificios do coração se
tempo também esses espíritos iam do abrissem mais do que de costume e que
cérebro aos nervos que podiam impelir os espíritos corressem, abundante-
o sangue do baço e das pequenas veias mente, do cérebro, não só para os ner-
do figado para o coração, a fim de obs- vos que servem para abrir esses orifí-
tar que aí entrasse esse suco nocivo; e, cios, mas também, em geral, para
demais, àqueles que podiam repelir todos os outros que impelem o sangue
esse mesmo suco para os intestinos e das veias para o coração, e impedem
para o estômago, ou também às vezes que a ele venha de novo o do figado,
obrigar o estômago a vomitá-lo: daí do baço, dos intestinos e do estômago;
resulta que esses mesmos movimentos eis por que esses mesmos movimentos
costumam acompanhar a paixão do acompanham a alegria.
9 7 Existe uma ligação primitiva entre o movimento
mais rubra do que durante a alegria, espíritos ao cérebro que não podem ser .
porque a cor do sangue parece tanto daí regularmente conduzidos para os
mais viva quanto corre menos rapida- músculos. .
mente, e também porque assim se pode
reunir mais nas veias da face do que Art. 119. Da languidez.
quando os orifícios do coração estão
mais abertos. Isto transparece princi- A languidez é uma disposição para
palmente na vergonha, que é composta relaxar e ficar sem movimento, que é
de amor a si próprio e de um desejo pre- sentida em todos os membros; provém,
mente de evitar a infâmia presente, o tal como o tremor, do fato de não irem
que faz vir o sangue. das partes interio- suficientes espíritos para os nervos,
res para o coração, depois daí, através mas de uma forma diferente; pois a
das artérias, para a face, e com isso causa do tremor é que não os há bas-
uma moderada tristeza que impede tantes no cérebro para obedecerem às
esse sangue de voltar ao coração. O determinações da glândula quando ela
mesmo transparece tão comumente os impele para algum músculo, ao
quando se chora; pois, como direi logo passo que o langor procede do fato de
mais, é o amor unido à tristeza que a glândula não os determinar a ir para
causa a maioria dàs lágrimas; e o alguns músculos de preferência a ou-
mesmo surge na cólera, onde amiúde tros.
um rápido desejo de vingança se mistu-
ra ao amor, ao ódio e à tristeza. · Art. 120. Como ela é causada pelo
amor e pelo desejo.
Art. 118. Dos tremores.
E a paixão que causa mais comu-
Os tremores têm duas causas diver- mente este efeito é o amor, unido ao
sas: uma consiste no fato de chegarem desejo de uma coisa cuja aquisição não
às vezes muito poucos espíritos do cé- se imagina possível no momento pre-
rebro para os nervos, e a outra de às sente; pois o amor ocupa de tal forma
vezes chegarem aí em demasia para a alma em considerar o objeto amado,
poderem fechar bem as pequenas pas- que emprega todos os espíritos que se
sagens dos músculos que, segundo foi encontram no cérebro em representar-
dito no artigo 11, devem ser fechados lhe a imagem e detém todos os movi-
para determinar os movimentos dos mentos da glândula que não sirvam
membros. A primeira causa aparece na para tal efeito. E cumpre notar, no
tristeza e no medo, assim como quan- tocante ao desejo, que a propriedade
do trememos de frio, pois estas paixões que lhe atribuí de tornar o corpo mais
podem, da mesma maneira que a frial- móvel só lhe convém quando se imagi-
dade do ar, espessar o sangue de tal na que o objeto desejado é tal que se
forma que não forneça ao cérebro bas- pode desde esse momento fazer algo
tantes espíritos para enviá-los aos ner- que sirva para adquiri-lo; pois se, ao
vos. A outra causa aparece amiúde nos contrário, se imagina que é impossível
que desejam ardentemente algo, e nos naquele momento fazer algo de útil
que estão fortemente comovidos pela para isso, toda a agitação do desejo
cólera, como também nos que estão permanece no cérebro, sem passar de
ébrios: pois estas duas paixões, assim modo algum aos nervos, e sendo aí
como o vinho, fazem ir às vezes tantos inteiramente empregada em fort!alecer
1
_.. _______
AS PAIXÕES DA ALMA 271
a idéia do objeto desejado, deixa o meio que ele abafa o fogo, o qual cos-
resto do corpo languescente. tuma manter quando entra no coração
apenas com medida.
Art. 121. Que também pode ser causa-
da por outras paixões. Art. 123. Por que não se desmaia de
tristeza.
É verdade que o ódio, a tristeza e
mesmo a alegria também podem ·cau- Parece que uma grande tristeza
sar certo langor quando são muito vio- sobrevinda inopinadamente deve aper-
lentos, porque ocupam inteiramente a tar de tal modo os orifícios do coração
alma em considerar seu objeto, princi- que pode também extinguir-lhe o fogo;
palmente quando se lhe junta o desejo mas, não obstante, não se observa que
de uma coisa para cuja aqu_isição em isso aconteça, ou, se acontece, é muito
nada podemos contribuir no momento raramente; a razão disso, creio, é que
presente. Mas, como nos detemos não pode haver no coração tão pouco
muito mais a considerar os objetos que sangue que não baste para manter o
unimos a nós voluntariamente do que calor, quando esses orifícios estão
aqueles de que nos separamos ou quase fechados.
quaisquer outros, e como a languidez
não depende de uma surpresa, mas Art. 124. Do riso.
necessita de algum tempo para se for-
mar, ela se encontra muito mais no O riso consiste em que o sangue que
amor do que em todas as outras procede da cavidade direita do coração
paixões. pela veia arteriosa, inflando de súbito e
repetidas vezes os pulmões, faz com
Art. 122. Do desmaio. que o ar neles contido seja obrigado a
sair daí com impetuosidade pelo gas-
O desmaio não está muito afastado nete, onde forma uma voz inarticulada
da morte, pois se morre quando o fogo e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao se
que há no coração se extingue por inflarem, quanto este ar, ao sair, impe-
completo, e só se cai em desmaio lem todos os músculos do diafragma,
quando ele é de tal modo abafado que do peito e da garganta, mediante o que
ainda permanecem alguns restos de movem os do rosto que têm com eles
calor que podem em seguida reacen- qualquer conexão; e não é mais que
dê-lo. Ora, há muitas indisposições do essa ação do rosto, com essa voz inar-
corpo que nos podem levar assim a ticulada e estrepitosa, que chamamos
tombar em desfalecimento; mas entre riso.
as paixões apenas a extrema alegria,
nota-se, dispõe desse poder; e creio que Art. 125. Por que ele não acompanha
a forma para causar tal efeito é que, as maiores alegrias.
abrindo extraordinariamente os orifi-
cios do coração, o sangue das veias Ora, ainda que pareça ser o riso um
entra nele tão de repente e em tão gran- dos principais sinais da alegria, essa
de quantidade, que o calor não pode não pode todavia provocá-lo, exceto
rarefazê-lo assaz prontamente para quando é apenas moderada e há algu-
levantar as pequenas peles que fechaI11 ma admiração ou algum ódio mistu-
as entradas dessas veias: é por esse rado com ela: pois verificamos por
272 L)ESCARTES
experiência que, quando estamos ex- mão, há sempre algum peq{ieno motivo
traordinariamente alegres, nunca o de ódio, ou ao menos de admiração. E
motivo dessa alegria nos leva a estou- aqueles cujo baço não é muito sadio
rar de riso, e não podemos mesmo ser estão sujeitos a ser não só mais tristes,
a ele levados por qualquer outra causa, mas também, por intervalos, mais ale-
exceto quando estamos tristes; e a gres e mais dispostos a rir que os
razão disso é que, nas grandes alegrias, outros: posto que o baço ·envia ,duas
o pulmão está sempre tão cheio de san- espécies de sangue para o corá.ção,
gue que nao pode encher-se mais uma muita espessa e grosseira, que
repetidamente. causa a tristeza; a outra muito fluida e
sutil, que causa a alegria. E amiúde,
Art. 126. Quais são as suas principais depois de rir muito, sentimo-nos natu-
causas. ralmente inclinados à tristeza, porque,
estando esgotada a parte mais fluida
E só posso notar duas caus~ que do sangue do baço, a outra, mais gros-
façam assim subitamente inflar o pul- seira, segue-a para o coração ..
mão. A primeira é a surpresa da admi-
ração, a qual, estando unida à alegria,
Art. 127. Qual é sua causa na indigna-
pode abrir tão prontamente os orifícios ção.
do coração que grande abundância de
sangue, entrando de repente em seu
Quanto ao riso que acompanha
lado direito pela veia cava, aí se rare-
algumas vezes a indignação, é comu-
faz e, passando daí à veia. arteriosa, mente artificial e fingido; mas, quando
infla os pulmões. A outra é a mistura natural, parece vir da alegria que senti-
de· algum líquido que aumenta a rarefa- mos ao verificar que o mal que nos
ção do sangue; e não encontro nada indignou não pode ofender-nos e, com
inais próprio para isso do que a parte isso, que estamos surpresos com a
mais fluida daquele que procede do novidade ou com o encontro inopinado
baço, parte que, sendo impelida para o deste mal; de modo que a alegria, o
coração por alguma ligeira emoção de ódio e a admiração par.a ele contri-
ódio, ajudada pela surpresa da admira- buem. Todavia, quero crer que é possí-
ção e misturando-se com o sangue que vel também produzi-lo sem qualquer
vem dos outros lugares do corpo, o alegria, pelo . simples movimento. da
qual a alegria faz entrar nele com aversão, que envia sangue do baço ao
abundância, pode levar este sangue a coraç1io, ·.onde é rarefeito e impelido
dilatar-se aí muito mais que de ordiná- para o pulmão ao qual .infla facilmente
rio; da mesma maneira que vemos uma se o encontra. quase vazio; e em geral
porção de outros líquidos se inflarem tudo o que pode inflar subitamente o
óe repente, estando sobre o fogo, quan- pulmão desta maneira causa a ação
do se lança um pouco de vinagre no exterior do riso, exceto quando a tris-
vasilhame em que se acham; pois a teza a tr-ansmuda na dos gemidos e dos
mais fluida parte do sangue prove- gritos que acompanham as lágrimas. A
niente do baço é de natureza seme- esse propósito, Vives escreveu de si
lhante à do vinagre. A experiência próprio que, estando uma vez muito
também nos mostra que, em todas as tempo sem comer, os primeiros boca-
circunstâncias que podem produzir dos que metia na boca o obrigavfim a
este riso estrepitoso que vem do pul- rir; o qµe podia provir do fato de seu
AS PAIXÕES DA ALMA 273
pulmão, vazio de sangue devido à falta mais abundantes, desde que não sejam
de alimento, se encher prontamente com isso mais agitados, se convertem
com o primeiro suco que passava do também em água, o que é causa do
estômago para o coração, e que só a suor que surge quando se faz algum
imaginação de comer podi~ levá-lo, exercício. Mas então os olhos não
antes mesmo que o dos alimentos inge- suam, porque, durante os exercícios do
ridos aí chegasse. corpo, como a maioria dos espíritos
vai para os músculos que servem para
Art. 128. Da origem das lágrimas. movê-lo, vão menos para os olhos,
através do nervo óptico. E é apenas
Assim como o riso jamais é causado uma e mesma matéria que compõe o
pelas maiores alegrias, também as lá- sangue, enquanto está nas veias ou nas
grimas nunca provêm de extrema tris- artérias, e os espíritos quando ele está
teza, mas somente da que é moderada no cérebro, nos nervos ou nos múscu-
e acompanhada, ou seguida, de algum los, e os vapores quando sai em forma
sentimento de amor, ou também de ale- de ar, e enfim o suor ou as lágrimas
gria. E, para compreender bem a sua quando se espessa em água sobre a
origem, cumpre observar que, embora superficie do corpo ou dos olhos.
saia continuamente uma porção de
vapores de todas as partes de nosso
corpo, não há todavia nenhuma de Art. 130. Como o que causa dor ao
onde saiam tantos como dos olhos, por olho excita-o a chorar.
causa da grandeza dos nervos ópticos
e da multidão de pequenas artérias por E não consigo notar senão duas cau-
onde eles lhes vêm; e que, assim como sas que façam os vapores que saem dos
o suor se compõe apenas de vapores olhos se transmudarem em lágrimas. A
que, saindo das outras partes, ·se con-
primeira é quando a figura dos poros
vertem em água em suas superficies,
por onde passam é mudada por qual-
do mesmo modo as lágrimas se tornam
vapores que saem dos olhos. quer acidente que seja: pois isso, retar-
dando o movimento desses vapores e
Art. 129. Da maneira como os vapores modificando sua ordem, pode levá-los
a se converterem em água. Assim,
se transmudam em água.
basta que um argueiro caia no olho
para arrancar-lhe algumas lágrimas
Ora, como já escrevi nos Meteoros,
porque, excitando neles a dor, altera a
ao explicar de que forma os vapores do
disposição de seus poros; de sorte que,
ar se convertem em chuva, que isso
provém do fato de serem mais abun- tornando-se alguns mais estreitos, as
dantes ou menos agitados· que· de ordi- pequenas partes dos vapores passam
nário, assim creio que, quando os que neles menos depressa, e que, em vez de
saem do· corpo são muito menos agita- saírem como antes igualmente distan-
dos que de costume, ainda que não tes umas das outras, e permanecerem
sejam tão abundantes, não deixam de assim separadas, acabam por encon-
se converter em água, o que provoca os .trar-se, porque a ordem destes poros
suores frios que procedem algumas está perturbada, mediante o que elas se
vezes da fraqueza, quando se está juntam e assim se convertem em
doente; e creio que, quando são muito lágrimas.
274 DESCARTES
Art. 131. Como se chora de tristeza. Art. 133. Por que choram facilmente
os velhos e as crianças.
A outra causa é a tristeza seguida de
amor ou de alegria, ou em geral de As crianças e os velhos são mais
qu~ler causa que leva o coração a inclinados a chorar do que os de meia-
impelir mais sangue pelas artérias. A idade, mas é por razões diversas. Os
tristeza é aí requerida porque, res- velhos choram amiúde de afeição e de
friando todo o sangue, estreita os alegria; pois essas duas paixões unidas
poros dos olhos; mas, como à medida em conjunto envian:i muito sangue ao
que os estreita diminui também a coração e daí muitos ·vapores aos
quantidade de vapores a que devem olhos; e a agitação desses vapores é de
dar passagem, isto basta para produzir tal forma retad~ pela frialdade de
lágrimas se a quantidade desses vapo- suas índoles que se convertem facil-
res não for ao mesmo tempo aumen- mente em lágrimas, conquanto nenhu-
tada por alguma outra causa; e nada a ma tristeza as precedesse. Porque se al-
aumenta mais do que o sangue enviado guns velhos choram também mui
ao coração, na paixão do amor. Por facilmente por irritação, não é tanto o
temperam.ento de seus corpos mas o de·
isso vemos que os que estão tristes não
derramam continuamente lágrimas, seus espíritos que os dispõe a tanto; e
isso só acontece aos que são tão fracos
mas apenas por intervalos, quando
fazem alguma nova reflexão sobre os que se deixam sobrepujar inteiramente
objetos pelos quais têm afeição. por pequenos motivos de dor, medo ou
piedade. O mesmo ocorre com as
Art. 132. Dos gemidos que acompa- crianças, que não choram quase de ale-
nham as lágrimas. gria, mas muito mais de tristeza,
mesmo quando ela não é acompa-
nhada de amor; pois têm sempre bas-
E então os pulmões também se en-
chem às vezes de repente pela abun- tante sangue para produzir muitos
vapores, os quais, tendo seu movi-·
dância do sangue que entra aí dentro e
menta retardado pela tristeza, se con-
que expulsa o ar que costumam conter,
vertem em lágrimas.
o qual, saindo pélo gasnete, engendra
os gemidos e os gritos que costumam
acompanhar as lágrimas; e esses gritos Art. 134. Por que algumas crianças
são comumente mais agudos do que os empalidecem em vez de chorar.
que acompanham o riso, embora sejam
produzidos quase da mesma maneira; Todavia, há algumas que empali-
a ra2ão disso é que os nervos que ser- decem em vez de chorar quando estão
vem para alargar ou estreitar os órgãos ~angds; o que pode testemunhar
da voz, para torná-la mais grossa, ou haver nelas um juízo e uma coragem
mais aguda, estando unidos aos que extraordinários, a saber, quando isso
abrem os orifícios do coração durante provém do fato de considerarem a
a alegria e O::, contraem durante a tris- grandeza do mal e se prepararem para
teza, fazem com que esses órgãos se forte resistência, tal como fazem os
alarguem ou se estreitem ao mesmo que são mais idosos; mas trata-se [nais
tempo. comumente de marca de má índqle, a
i
1
___ j
AS PAIXÕES DA ALMA 275
saber, quando isto provém do fato de presente, e que não são sempre as mes-
serem propensas ao ódio ou ao medo; mas ações que unimos aos mesmos
pois estas são paixões que diminuem a pensamentos; pois isso basta para dar
matéria das lágrimas, e vê-se, ao a razão de tudo quanto cada um de nós
contrário, que as que choram mu,i pode advertir de particular em si ou em
facilmente são propensas ao amor e a outrem, no tocante a esta matéria, e
piedade. que não foi ainda explicado 1 0 0 • E, por
exemplo, é fácil pensar que as estra-
Art. 135. Dos suspiros. nhas aversões de alguns, que os impe-
dem de suportar o odor das rosas ou a
A causa .dos suspiros é muito dife- presença de um gato, ou coisas seme-
rente da causa das lágrimas, embora lhantes, provêm apenas do fato de
pressuponham, como essas, a tristeza; terem· sido no começo de suas vidas
pois, ao passo que somos incitados a fortemente ofendidos por quaisquer
chorar quando os pulmões estão cheios objetos parecidos, ou então de terem
de sangue, somos incitados a suspirar compartilhado do sentimento de suas
quando se acham quase vazios, e quan- mães, que se viram por eles ofendidas
do alguma imaginação de esperança quando grávidas; pois é certo que há
ou de alegria abre o orifício da artéria relação entre todos os movimentos da
venosa, que a tristeza estreitara, por- mãe e os da criança que está em seu
que então, caindo o pouco sangue que ventre, de rri'odo que o que é contrário
resta nos pulmões de repente no lado a uma prejudica a outra. E o odor das
esquerdo do coração por essa artéria iosas pode ter causado grande dor de
venosa, e sendo para aí impelido pelo cabeça a uma criança quando ainda se
desejo de alcançar esta alegria, o qual achava no berço, ou então um gato
agita ao mesmo tempo todos os mús- pode tê-la amedrontado fortemente,
culos do diafragma e do peito, o ar é sem que ninguém tivesse reparado
impelido prontamente pela boca para nisso ou que em seguida restasse qual-
os pulmões, a fim de preencher neles o quer lembrança, embora a idéia da
lugar deixado por esse sangue; e é isso aversão que tivera então por estas
que se chama suspiro. rosas ou por este gato permaneça
impressa em seu cérebro até o fim da
Art. 136. De onde_provêm os efeitos vida.
das paixões que são pafriculares a cer-
tos homens. Art. 137. Do uso das cinco paixões
aqui explicadas, na medida em que se
De resto, para suprir aqui em pou- relacionam ao corpo 1 0 , .
cas palavras tudo quanto se poderia
acrescentar no tocante aos diversos
efeitos ou às diversas causas das pai- Depois de ter dado as definições do
xões, contentar-me-ei em repetir o
1 ºº "Todos os cérebros não se acham dispostos da
princípio em que se apóia tudo o que mesma maneira'', dizia o art. 39. A explicação do
escrevi, a saber, que há tal ligação mecanismo geral das paixões pode ser, pois, com-
pletada por uma psicologia individual e histórica.
entre a nossa alma e o nosso corpo Lívio Teixeira (págs. 179-80) mostra no que as li-
que, quando se uniu um a vez qualquer nhas que seguem antecipam certos temas da psica-
ação corporal com algum pensamento, nálise. Cumpre notar, no entanto, que, em Descar-
tes, a relação de associação se reduz à contigüidade
nenhum ds dois torna a apresentar-se de dois "traços" e que não é expressiva, como em
a nós sem que o outro também esteja Freud. ·
276 DESCARTES
apenas o corpo, ou se este fosse a semos sê-lo ainda mais pelo amor ao
nossa melhor parte; mas, desde que é bem, ao qual é contrário, ao menos
somente a menor, devemos principal- quando este bem e este mal são bas-
mente considerar as paixões na medida tante conhecidos; pois confesso que o
em que pertencem à alma, em relação ódio ao mal, que só se manifesta pela
· à qual o amor e o ódio provêm. do dor, é necessário com respeito ao
conhecimento 1 0 4 e precedem a alegria corpo; mas não falo aqui senão daque-
e a tristeza, exceto quando essas duas le que resulta de um conhecimento
últimas tomam o lugar do conheci- mais claro, e relaciono-o apenas com a
mento, de que são espécies. E, quando alma. Digo também que nunca existe
este conhecimento é verdadeiro, isto é, sem tristeza, porque, sendo o mal ape-
quanqo as coisas que ela nos leva a nas uma privação, não pode ser conce-
amar são verdadeiramente boas, e as bido sem algum sujeito real em que
que nos leva a odiar são verdadeira- exista; e nada há de real que não tenha
mente más, o amor é incompara- em si alguma bondade, de modo que o
velmeríte melhor do que o ódio; ele não ódio que nos afasta de algum mal afas-
poderia ser demasiado grande e nunca ta-nos, pelo mesmo meio, do bem a
deixa de produzir a a)egria. Digo que que está unido 1 0 5 , e a privação desse
este amor é extremamente'bom porque, bem, sendo representada à nossa alma
unindo a nós verdadeiros bens, nos como um defeito que é seu, excita nela
aperfeiçoa outro tanto. Digo também a tristeza: por exemplo, o ódio que nos
que não poderia ser demasiado grande, distancia dos maus costumes de al-
pois tudo o que o mais -excessivo pode guém distancia-nos pelo mesmo meio
fazer é nos unir tão perfeitamente a de sua convivência, na qual pode-
esses bens que o amor que temos parti- ríamos sem isso auferir algum bem
cularmente por nós mesmos não intro- cuja privação nos irrita. E assim em
duza aí qualquer distinção, o que creio todos os outros ódios pode-se notar
nunca poderá ser mau; e é necessária- algum motivo de tristeza.
mente seguido de alegria, porque nos
representa o que amamos como um Art. 141. Do desejo, da alegria e da
bem que nos pertence. tristeza.
poderíamos nos abandonar demais ao mal, ainda que seja ap~ns para evitá-
amór e à alegria, nem evitar demais o lo; e, muitas vezes, mesmo uma falsa
ódio e a tristeza; mas os movimentos alegria vale mais que uma tristeza cuja
corporais que o acompanham podem causa é verdadeira. Mas não ouso
ser todos nocivos à saúde, quando são dizer o mesmo do amor em relação ao
muito violentos, e, ao contrário, ser-lhe ódio; pois, quando o ódio é justo, afas-
úteis quando são apenas modera- ta-nos apenas do objeto que contém o
dos, 0 6 • mal de que é bom estar separad6, ao
passo que o amor que é injusto nos une .
Art. 142. Da alegria e do amor, com- a coisas que podem prejudicar, ou, ao
parados com a tristeza e o ódio. menos, que não merecem ser tão consi-
deradas por nós como o são, o que nos
De resto, posto que o ódio e a tris- avilta e nos rebaixa.
teza devem ser rejeitados pela alma,
mesmo quàndo procedem de verda- Art. 143. Das mesmas paixões, na
deiro conhecimento, com maior razão medida em que se referem ao dese-
devem sê-lo quando provêm de alguma jo 1 os.
falsa opinião. Mas é de duvidar que o
amor e a alegria sejam bons ou não E é mister notar exatamente que o
quando se acham tão mal fundados; e que acabo de dizer dessas quatro pai-
parece-me que, se os considerarmos
xões só se verifica quando são conside-
precisamente naquilo que são em si radas precisamente em si próprias e
próprios com respeito à alma, podere-
não nos levam a nenhuma ação; pois,
mos· dizer que, embora a alegria seja
na medida em que excitam em nós o
menos sólida e o amor menos vanta- desejo, por cujo intermédio regulam os
joso do que quando possuem um me- nossos costumes, é certo que todas
lhor fundamento, não deixam de ser aquelas cuja causa é falsa podem
preferíveis à tristeza e ao ódio tão mal prejudicar, e que, ao contrário, todas
fundados 1 0 7 : de modo que, nos recon- aquelas cuja causa é justa podem ser-
tros da vida em que não podemos evi-
vir, e mesmo que, quando são igual-
tar o azar de sermos enganados 1 0 8 , mente mal fundadas, a alegria é comu-
agimos sempre melhor pendendo para mente mais nociva que a tristeza,
as paixões que tendem para o bem do porque esta, infundindo retenção e
que para aquelas que dizem respeito ao receio, predispõe de alguma maneira à
1 0 6 Por estar a alma unida a um corpo, o amor e a prudência, ao passo que a outra torna
alegria, intrinsecamente bons, podem ser excessivos incm;siderados e temerários os que se
e o ódio e a tristeza, intrinsecamente maus, não lhe abandonam.
devem no entanto ser banidos em absoluto. Vê-se
aqui no que a Moral, enquanto baseada na Psicofi-
siologia, difere de uma Moral de "espíritos puros". Art. 144. Dos desejos cuja realização
\lê-se também no que é perigoso falar de uma Moral
de Descartes: os preceitos podem diferir segundo as só depende de nós.
condições em que o problema é colocado.
1 0 1 E a concessão extrema que Descartes pode
Mas, dado que essas paixões não
tazer na linha de uma Moral psicofisiológica. Des-
cartes expressará opinião diferente na carta a Elisa-
beth, de 6 de outubro de 1645, na qual a mesma 1 0 9 Com essa última rubrica, aparece a Moral
questão é examinada, não mais psicologicamente, prôpriamente dita. A questão da verdade ou da f al-
porém na perspectiva do bem absoluto. sidade da paixão, que permanecia bastante secun-
1 0 8
É preciso ainda adquirir a certeza de que o dária nos parágrafos precedentes, passa agdra ao
"verdadeiro conhecimento" é impossível no imedia- primeiro plano. Daí a oposição entre os arts. j 142 e
to. · 143. :
AS PAIXÕES DA ALMA 279
podem levar a nen})uma ação, exceto rar com atenção a bondade do que é de
por intermédio do desejo que excitam, desejar.
é particularmente esse desejo que deve-
mos ter o cuidado de regular; e é nisso Art. 145. Dos que não dependem
que consiste a principal utilidade da senão de outras causas, e o que é a
Moral 11 0 : ora, como disse há fortuna.
pouco 1 1 1 ) esse desejo é sempre bom,
quando segue um verdadeiro conheci-
Quanto às coisas que não dependem
mento, assim não pode deixar de ser de modo algum de nós, por boas que
mau, quando se funda em algum erro.
possam ser, jamais devemos desejá-las
E me parece que o erro mais comu-
com paixão 1 1 5 , não só porque podem
mente cometido no tocante aos desejos
não acontecer, e por isso nos afligir
é o de não distinguirmos suficiente-
tanto mais quanto mais tivermos dese-
mente as coisas que dependem inteira-
jado, mas principalmente porque, ocu-
mente de nós das que não dependem de
pando nosso pensamento, elas nos des-
modo algum 1 1 2 : pois, quanto às que
viam de dedicar nossa afeição a outras
dependem tão-somente de nós, isto é,
coisas cuja aquisição depende de nós.
de nosso livre arbítrio, basta saber que E há dois remédios geraiscontra esses
são boas para não poder desejá-las desejos vãos: o primeiro é a generosi-
com demasiado ardor 11 3 , porque é se- dade, de que falarei abaixo; o segundo
guir a virtude fazer as coisas boas que é que devemos amiúde refletir sobre a
dependem de nós, e é certo que nunca providência divina, e nos representar
se poderia ter um desejo ardente de- que é impos~vel que alguma coisa
mais pela virtude, além de que, não aconteça de maneira diferente da deter-
podendo deixar de lograr o que deseja- minada desde toda a eternidade por
mos dessa forma, porquanto só de nós esta providência; de sorte que ela é
é que depende, recebemos sempre a como uma fatalidade ou uma necessi-
satisfação que daí esperávamos 11 4 • dade imutável que cumpre opor à for-
Mas a falta que se costuma cometer tuna para destruí-la como uma quime,
nesse particular nunca é desejar dema- ra que provém apenas do erro de nosso
siado, mas somente desejar demasiado entendimento 1 1 6 . Pois não podemos
pouco; e o soberano remédio contra desejar senão o que consideramos de
isso é libertar o espírito, tanto quanto uma maneira como possível, e não
possível, de toda espécie de outros podemos considerar possíveis as coisas
desejos menos úteis, e depois procurar que só dependem de nós na medida em
conhecer muito claramente e conside- que pensamos que dependem da fortu-
na, isto é, que julgamos que possam
1 1 0 A Moral não é, portanto, entendida como téc- acontecer, e que outrora aconteceram
nica de regulamentação deduzida da explicação do outras semelhantes. Ora, essa opinião
fenômeno psicofisiológico, mas como resposta à
pergunta: como devemos regrar a paixão do desejo? baseia-se apenas no fato de não conhe-
'El.a aparece como técnica concernente a uma pai-
xão particular.
1 1 5 Segunda parte da resposta. Cf. Cartas, a Elisa-
1 1 1 No art. 141.
11 2 Quanto à retom.ada por Descartes dessa Q.istin- beth, maio de 1646.
ção estóica - que permitira responder à questão 11 6 O desconhecimento da concatenação universal
ética - , cf. Cartas, a Elisabeth, 4 de agosto de dos fenômenos provoca não a ilusão do livre arbí-
1645. trio, como em Spinoza, mas a crença na fortuna,
113. É a primeira parte da resposta. isto é, numa providência caprichosa cujas decisões
'.1 •1 4 Nota epicurista: a virtude é concebida como são imprevisíveis em si (e que nada tem a ver com o
um meio a serviço da felicidade. Deus cartesiano).
280 DESCARTES
cermos todas as causas que contri- sar que, com respeito a nós, nada
buem para cada efeite; pois, quando acontece que não seja necessário e
uma coisa que estimamos depender da como que fatal, de sorte que não pode-
fortuna não ocorre, isso testemunha mos sem erro desejar que àconteça de
que alguma das causas necessárias outra forma 1 1 9 • Mas, como a maioria
para produzi-la falhou, e, por conse- de nossos desejos se estende a coisas
guinte, que era absolutamente impossí- que não dependem de nós nem todas
vel, e que jamais aconteceu outra de outrem, devemos exatamente distin-
semelhante, isto é, produção da qual guir nelas o que depende apenas de
houvesse faltado também uma causa nós, a fim de estender nosso desejo
semelhante: de modo que, se não tivés- tão-somente a isso; e quanto ao mais,
semos ignorado isso de antemão, embora devamos considerar sua ocor-
nunca a teríamos considerado como rência inteiramente fatal e imutável, a
possível, nem, por conseguinte, a tería- fim de que nosso desejo não se ocupe
mos desejado 1 1 7 • de modo algum com isso, não devemos
Art. 146. Dos que dependem de nós e deixar de considerar as razões que
de outrem. lev.am mais ou menos a esperá-la, a fim
de que essas razões sirvam para regu-
É mister, portanto, rejeitar inteira- lar nossas ações 1 2 0 : pois, por exem-
mente a opinião vulgar de que há fora plo, se tivéssemos de tratar de algo em
de nós uma fortuna que faz com que as um lugar onde pudéssemos ir por dois
coisas sobrevenham ou não sobreve- caminhos diversos, um dos quais cos-
nham, a seu bel-prazer, e saber que tuma ser muito mais seguro do que o
tudo é conduzido pela providência outro, embora talvez o decreto da
divina, cujo decreto eterno é de tal providência seja tal que, se formos
modo infalível e imutável que, exce- pelo caminho considerado mais segu-
tuando as coisas que este mesmo ro, seremos certamente roubados, e
decreto quis pôr na dependência de que, ao contrário, poderemos passar
nosso livre arbítrio 1 1 8 , devemos pen- pelo outro sem qualquer perigo, não
devemos por isso ser indiferentes à
1 1 1 Não é, pois, a ignorância que é condenável,
tamos. E é certo que, quando nos exer- za, e as lágrimas que a acompanham
citamos em distinguir assim a em nada podem diminuir sua força. E
·:\l. fatalidade da fortuna, habituamo-nos
f.
quando lemos aventuras estranhas
facilmente a regrar de tal modo nossos num livro, ou quando as vemos repre-
desejos, na medida em que sua realiza- sentadas num teatro, isso excita às
ção não depende senão de nós, que eles vezes em nós a tristeza, outras vezes a
podem sempre nos proporcionar intei- alegria, ou o amor, ou o ódio, e geral-
ra satisfação. mente todas as paixões, segundo a
diversidade dos objetos que se ofere-
Art. 147. Das emoções interiores da cem à nossa imaginação; mas com isso
alma. temos prazer de senti-las erguerem-se
em nós, e esse prazer é uma alegria ·
Acrescentarei somente mais uma intelectual que pode tanto nascer da
consideração que me parece servir tristeza como de todas as outras
muito para nos impedir de receber paixões.
qualquer incomodidade das paixões;
nosso bem e nosso mal dependem Art. 148. Que o exercício da virtude é
principalmente das emoções interiores um soberano remédio contra as pai-
que são excitadas na alma apenas pela xões.
própria alma, no que diferem dessas
paixoes, que dependem sempre de Ora, posto que essas emoções inte-
algum movimento dos espíritos; e, em- riores nos tocam mais de perto e têm,
bora essas emoções da alma estejam por conseguinte, muito mais poder
muitas vezes unidas às paixões que se sobre nos do que as paixões que se
lhes assemelham, podem amiúde tam- encontram com elas, e das quais dife-
bém encontrar-se com outras, e mesmo rem, é certo que, contanto que a alma
nascer das que lhe são contrárias 1 2 1 • tenha sempre do que se contentar em
Por exemplo, quando um marido chora seu íntimo, todas as perturbações que
sua mulher morta, que (como acontece vêm de outras partes não dispõem de
às vezes) ele ficaria irritado de vê-la poder algum para prejudicá-la; mas
ressuscitada, pode suceder que seu antes servem para aumentar a sua ale-
coração seja oprimido pela tristeza que gria, pelo fato de, vendo que não pode
nele provocam·o aparato dos funerais e ser por eles ofendida, conhecer com
a ausência de uma pessoa a cujo conví- isso sua própria perfeição. E, para que
vio estava acostumado; e pode suceder a nossa alma tenha assim do que estar
que alguns restos de amor ou de pieda- contente, precisa apenas seguir estrita-
de que se apresentam à sua imaginação mente a virtude 1. 22 • Pois, quem quer
arranquem verdadeiras lágrimas de 122 A ação moral não resuita, portanto, do conhe-
seus olhos, não obstante sentir secreta. cimento do verdadeiro, mas da tendência para o
melhor. Ela se derme menos pela espera objetiva do
1 2 1 A tranqüílidade da alma pode ficar assim bem do que pelo .intento de esperá-lo. Essa dissocia-
resguardada pelas emoções da própria alma que ção da sabedoria e da ciência permite, portanto,
podem estar em contradição com as paixões. urna aproximação com a "vontade boa" kantiana.
282 DESCARTES
que haja vivido de tal maneira que sua nunca têm poder suficiente para per-
consciência não possa censurá-lo de turbar a tranquilidade de sua alma.
nunca ter deixado de fazer todas as 123 Guéroult (op. cit., II, 264), assinalando que
esse texto desmente o art. 50, acrescenta: "Pode-se
coisas que julgou serem as rnelho- tentar conciliar esses textos concebendo que, no _
res 1 23 (que é o que chamo aqui seguir homem que tem consciência de haver agido para o
que ele cria ser o melhor, isto é, virtuosamente, este
a virtude), recebe daí urna satisfação pesar não poderia perturbar a tranqüilidade da
alma. Na realidade, Descartes oscila entre duas
tão poderosa para tomá-lo feliz que os posições diferentes sem poder optar definitivamente
mais violentos esforços da paixão por nenhuma delas".
·.
I
.
TERCI~ PARTE
do que por falta de boa vontade que as são naturalmente levados a. fazer gran-
cometem; e, como· não pensam ser des coisas, e todavia a nada empreen-
muito inferiores aos que possuem mais der de que não se sintam capazes; e,
bens ou honras, ou mesmo mais espíri- como nada estimam mais do que fazer
40, mais saber, mais beleza, ou em bem aos outros homens e desprezar o
egeral que os superam em algumas ou- seu próprio interesse, por esse motivo
tras perfeições, també~ não se julgam são sempre perfeitamente corteses, afá-
muito acima dos que superam, porque veis e prestativos para com todos. E
todas essas coisas lhes parecem muito com isso são inteiramente senhores de
pouco consideráveis em comparação suas paixões 1 3 5 , particularmente dos
com a boa vontade, pela qual tão-so- desejos, do ciúme e da inveja, porque
mente eles se apreciam, e que supõem não há coisa cuja aquisição dependa
também existir, ou ao menos poder deles que julguem valer bastante para
existir, em cada um dos outros ho- ser muito desejada; e do ódio para com
mens1 33 . os _homens, porque os estimam a todos;
e do medo, porque a confiança que
Art. 155. Em que consiste a humildade depositam na sua própria virtude os
virtuosa. tranqüiliza; e enfim da cólera, porque,
apreciando muito pouco todas as coi-
Assim, os mais generosos cqstumam sas dependentes de outrem, nunca con-
ser os mais humildes; e a humildade cedem tanta vantagem a seus inimigos
virtuosa consiste apenas em que a a ponto de reconhecer que são por eles
reflexão que fazemos sobre a debili- ofendidos.
dade de nossa natureza e sobre as fal-
tas que podemos ter cometido outrora, Art. 157. Do orgulho.
ou somos capazes de cometer agora,
que não são menores do que as que Todos os que concebem boa opinião
podem ser cometidas por outros, é de si próprios por alguma outra causa,
causa de não nos preferirmos a nin- qualquer que seja, não têm verdadeira
guém e de pensarmos que os outros, generosidade, mas somente orgulho,
tendo seu livre arbítrio tanto quanto que é sempre muito vicioso, embra o
nós, também podem usá-lo bem. seja tanto mais quanto a causa pela
qual nós nos estimamos for mais injus-
Art. 156. Quais são as propriedades da ta; e a mais injusta de todas é quando
generosidade e como ela serve de remé- se é orgulhoso sem nenhum motivo;
dio contra todos os desregramentos 1 3 4 isto é, sem que se pense por isso haver
das paixões. em si qualquer mérito pelo qual se
deva ser estimado, mas só porque não
Os que são generosos dessa forma se faz caso do mérito, e porque, imagi-
1 3 3 Ela possibilita também a fundação de uma nando-se que a glória não passa de
Moral universal, isenta de preconceitos de casta ou uma usurpação, crê-se que os que se
de "classe". Embora a "boa vontade" cartesiana
nada tenha a ver com a "vontade boa" kantiana, atribuem mais glória são os que a têm
vemos surgir, aqui, uma exigência bastante compa-
13 5 A generosidade não extirpa as paixões: é a
rável de universalidade ética.
1 3 4 Cumpre distinguir desregramento e excesso reguladora destas. Daí sua importância em Moral,
das paixões, pois o excesso constitui apenas um dos pois a principal utilidade daquela é justamente a
casos do desregramento. "regulação do desejo" (art. 144).
28.8 DESCARTES
dos aspectos mais importantes desta Terceira Parte. xima da "má-fé" no sentido sartriano. 1
AS PAIXÕES DAALMA 289
menos, e porque se afigura que a virtu- que os que menos se conhecem são os
dB não concorda fap.to com a paixão mais sujeitos a· se ensoberbecerem e a
como ~ faz o víciQ. Todavia,_não v~jo se ·humilharem mais do que devem,
razão que impeça que o mesmo movi- porque tudo quanto lhes acontece de
.:mento dos espíritos que serve para for- novo os surpreende e faz com que, atri-
? talecer um pensamento, quando tem buindo-o a si próprios, se admirem e
· um fundamento que é mau, não. o que se estimem ou se desprezem, con-
possa fortalecer também, quando o seu forme Julguem que o ·que lhes sucede é
fundamento é justo; e como o orgulho ou não em seu proveito. Mas, como
e a generosidade consistem apenas na. muitas vezes após uma coisa que os
· boa opinião que temos de nós próprios, ensoberbeceu sobrevém outra que os
e só diferem em que esta opú;iião é
injusta num e justa na outra, parece-
~umila, ?e
o1moviment? suas pai;cões
e variel~ ao contrario, nada ha na
me. que podemos relacioná-los a uma
generosidade que não seja compatível
mesma paixão, que é excitada por um
com a humildade virtuosa, nem aliás
movimento composto pefos da admira-
que as possa mudar, o' que torna seus
_ção, da alegria e do amor, tanto do que
movimentos firmes, constantes e sem-
temos por nós próprios como do que
pre_ muito semelhantes a si próprios.
temos pela coisa que leva alguém a se
estimar: como, ao contrário, o movi- Mas não surgem tão de surpresa, por-
mento que excita a humildade, quer quanto os que se estimam dessa manei-
virtuosa, quer viciosa, é composto dos ra conhecem suficientemente quais são
da admiração, da tristeza e do amor as causas que os fazem estimarem-se;
que se sente por si próprio, misturado todavia, pode-se dizer que essas causas
com o ódio que se nutre pelos próprios são. tão maravilhosas (a saber, o poder
defeitos, que fazem com que a gente· se de usar nosso livre arbítrio, que nos
despreze; e toda a diferença que obser- leva a nos apreciarmos a nós mesmos,
vo nesses movimentos é que o da admi- e as imperfeições do sujeito em que~
ração goza de duas propriedades: a está esse poder, que nos levam a não
primeira, que a surpresa a torna forte nos estimarmos demais) que todas as
desde o começo, e a outra, que é igual vezes que no-las representamos de
em sua continuação, isto é, que os espí- novo proporcionam sempre nova ad-
ritos continuam movendo-se na mesma miração.
proporção no cérebro. Dessas proprie-
dades a primeira encontra-se bem mais 1\rt. 161. Como pode ser adquirida a
no orgulho e na baixeza do que na generosidade.
generosidade e na humildade virtuosa;
e, ao contrário, a última se nota mais
naqyelas. do g~e nessas d1:a.s outras j a É mister notar que o" que chamamos
razao disso e que o v1c10 provem comumente virtudes são hábitos da
ordinariamente da ignorância 1 3 8 , e alma que a dispõem a certos pensa-
mentos, de modo que· são diferentes
1 3 8 Como observa Lívio Teixeira, é assaz difícil
destes pensamentos, mas podem pro-
encontrar um critério objetivo que possa separar
orgulho e generosidade ( vício e virtude ), dado duzi-los e reciprocamente serem por
que nascem do mesmo mecanismo psicofisiológico. eles produzidas. É preciso notar tam-
Aparentemente, o critério é puramente fisiológico:
variação ou regularidade no movimento dos espíri- bém que tais pensamentos podem ser
tos. Na realidade, é de ordem intelectual (conheci- gerados somente pela alma, mas ocor-
mento ou ignorância que engendra a surpresa). Cf. o
adágio canis peccans est ignorans que. Descartes · . re muitas vezes que algum movimento
relembra aMerserin,e (27 de abril de 1637). dos espíritos os fortaleça e, nesse caso,
290 DESCARTES
no entanto, tão abillxo de nós que não disposição da alma que a ·persuade de
nos pode causar nem um nem outro. E que a coisa desejada não advirá; e é de
o movimento dos espíritos que o excita notar que, embora essas duas paixões
é composto dos que provocam a admi- sejam contrárias, é possível tê-las as
(ação, a segurança ou a ousadia. duas juntas, a saber, quando se repre-
sentam ao mesmo .tempo diversas
Art. 164. Do uso dessas duas paixões. razões; das quais umas fazem julgar
que a realização do desejo é fácil e ou-
São a generosidade, a fraqueza do tras a fazem parecer difícil.
espírito ou a baixeza que determinam o
bom e o mau uso dessas duas paixões: Art. 166: Da segurança e do desespero.
pois, quanto mais a alma é nobre e E nunca uma dessas paixões acom-
generosa, tanto maior é a inclinação panha o desejo sem que não deixe
para tributar a cada qual o que lhe algum lugar à outra: pois, quando a
pertence 1 4 4 ; e assim não se tem esperança é tão forte que expulsa intei-
somente uma mui profunda humildade ramente o temor, ela muda de natureza
perante Deus, mas também se rende e se chama segurança ou confiança; e,
sem repugnância toda a honra e o res- quando estamos· certos de que aquilo
peito que é devido aos homens, a cada que desejamos advirá embora conti-
um segundo o grau e a autoridade que nuemos a querer que advenha, deixa-
tem no mundo, e desprezam-se apenas mos, no entanto, de ser agitados pela
os vícios. Ao contrário, os que pos- paixão do desejo, que levava a buscar
suem o espírito baixo e fraco estão com inquietação sua ocorrência; do
sujeitos a pecar por excesso, às vezes mesmo modo, quando o receio é tão
por reverenciarem e temerem coisas extremo que tira todo lugar à esperan-
que são dignas unicamente de despre- ça, converte-se em desespero; e esse
zo, e outras vezes por desdenharem desespero, representando a coisa como
insolentemente as que mais merecem impossível, , extingue inteiramente o
respeito; e passam amiúde mui pronta-· desejo, o quàl só se dirige às coisas
mente da extrema impiedade à supers- possíveis.
tição, depois da superstição à impieda-
de, de sorte que não há vício nem Art. 167. Do ciúme.
desregramento de espírito de que não
sejam capazes. O ciúme é uma espécie de temor que
se relaciona ao desejo de conservar a
Art. 165. Da esperança e do temor. posse de algum bem; e não provém
tanto da força das razões que fazem
A esperança é uma disposição da julgar que se pode perdê-lo como da
alma para se persuadir de que advirá o grande estima que se lhe concede, a
que deseja, a qual é causada por um qual leva a examinar até os menores
movimento particular dos espíritos, a motivos de suspeita e a tomá-los por
saber, pelo da alegria e do desejo mis- razões fortemente consideráveis.
turados em conjunto; e o temor é outra
Art. 168. Em que essa paixão pode ser
1 4 4 A generosidade, envolvendo uma justa ~precia
honesta.
ção da liberdade, impede, assim, o desregramento
das paixões que concernem às "causas livres". . E, porque se deve ter mais cuidado
292 DESCARTES
1 4 1Nova distinção entre a paixão e o hábito cios heróis da história romana, que se devotaram
homônimo. Cf. Cartas, a Elisabeth, de 6 de outubro aos' deuses infernais para obter a vitória numa
de 1645. batalha.
294 DESCARTES
mam muito os males que lhes aconte- sar com razão apenas dos bens de for-
cem e consideram-nos dignos deles. tuna~ pois, quanto aos da alma ou
mesmo do corpo, na medida em que os
Art. 180. Do uso da troça. temos de nascença, é suficiente para
sermos dignos deles tê-los recebido de
Pelo que respeita à troça modesta, Deus, antes de estarmos capacitados a
que repreende utilmente os vícios, cometer qualquer mal.
fazendo-os parecer ridículos, sem que
entretanto a gente mesma se ria disso Art. 183. Como pode ser justa ou
nem testemunhe nenhum ódio contra injusta.
as pessoas, não é uma paixão, mas
uma qualidade de homem de bem, que
patenteia a alegria de seu humor e a Mas quando a fortuna envia bens a
tranqüilidade de sua alma, as quais alguém que verdadeiramente não os
constituem marcas de virtude e muitas merece, e quando a inveja não é provo-
vezes também a finura de seu espírito, cada em nós senão porque, amando
por saber dar uma aparência agradável naturalmente a justiça, ficamos des-
às coisas de que zomba. gostosos pelo fato de ela não ser obser-
vada na distribuição desses bens, é um
Art. 181. Da utilidade do riso na troça. zelo que pode ser desculpável, mor-
mente quando o bem que invejamos a
E não é desonesto rir quando se outros é de tal natureza que pode
ouvem as troças de um outro; elas · converter-se em mal nas mãos deles;
podem mesmo ser tais que significaria como 1 4 9 é o caso de algum cargo ou
estar pesaroso não se rir delas; mas, serviço em cujo exercício eles possam
quando troçamos nós próprios, é mais comportar-se mal, e desejamos para
·conveniente abstermo-nos disso, a fim nós o mesmo bem e somos impedidos
de não parecermos surpresos com as de tê-lo, porque outros menos dignos o
coisas que dizemos, nem admirados possuem, isso torna essa paixão mais
com a finura que temos em inventá- violenta, e ela não deixa de ser descul-
los; e isto faz com que surpreendam pável, desde que o ódio nela contido se
tanto mais aos que as ôuvem. relacione apenas com a má distribui-
ção do bem que se inveja e não com as
Art. 182. Da inveja. pessoas que o possuem ou o distri-
buem. Mas há poucas que sejam tão
O que se chama comumente inveja é justas e tão generosas a ponto de não
um vício que consiste numa perversi- alimentar ódio por aqueles que os
dade de natureza que leva certa gente a impedem de adquirir um bem que não
se desgostar com o bem que vê aconte- é comunicável a muitos, e que haviam
cer aos outros homens; mas sirvo-me
desejado para eles próprios, embora os
aqui dessa palavra para significar uma
que o adquiriram sejam tanto ou mais
paixão que nem sempre é viciosa. A in-
dignos. E o que é ordinariamente mais
veja portanto, enquanto é uma paixão,
invejado é a glória; pois, embora a dos
é uma espécie de tristeza mesclada de
outros não impeça que a ela possamos
ódio que nasce do fato de se ver acon-
tecer o bem àqueles que julgamos 1 4 9 No que Descartes afasta-se de Aristóteles, para
indignos dele: o que só podemos pen- quem a inveja é sempre viciosa. Cf. art. 195.
296 ·DESCARTES
aspirar, ela torna, todavia, o seu acesso Art. 186. Quais são os mais compas-
mais difícil e encarece o seu preço. sivos.
Art. 184. De onde vem que os invejo- Os que se sentem muito fracos e
sos estejam sujeitos a. ter a tez plúm- muito expostos às adversi~ da for- .
bea. tuna parecem ser mais inclinados do
que os outros a esta paixão, porque se '
De resto, não há nenhum vício que representam o mal de outrem como
prejudique tanto a felicidade dos ho- podendo acontecer-lhes; e assim são
mens como o da inveja: pois, os que comovidos à piedade mais pelo amor
trazem esta mácula, além de se afligi- que dedicam a si próprios do que pelo
rem a si próprios, perturbam também que dedicam aos outros.
ao máximo de seu poder o prazer dos
outros e têm ordinariamente a tez Art. 187. Como os mais generosos são
plúmbea, isto é, mesclada de amarelo e tocados por essa paixão.
preto como que de s~gue pisado: daí
vem que a inveja seja chamada livor Entretanto, os que são mais genero-
em latim; o que concorda muito bem sos e têm o espírito mais forte, de
com o que foi dito mais acima· dos modo que não temem nenhum mal em
movimentos do sangue na tristeza e no relação a si próprios e se mantêm para
ódio; pois este faz com que a bile ama- além do poder da fortuna, não estão
rela, proveniente da parte inferior do isentos de compaixão quando vêem a
fígado, e a negra, proveniente do baço, imperfeição dos outros homens e
espalhem-se do coração pelas artérias ouvem suas queixas; pois é uma parte
em todas as veias; e aquela faz com da generosidade ter boa vontade ·para
que o sangue das veias tenha menos com todos. Mas a tristeza desta comi-
calor e corra mais lentamente do que seração não é mais amarga 1 5 0 ; e,
de ordinário, o que basta para tornar como a que é causada pelas ações
lívida a cor. Mas como a bile, tanto a funestas que se vê representarem num
amarela quanto a negra, pode também teatro, ela está mais no exterior e no
ser enviada às veias por muitas outras sentido do que no interior da alma, a
causas, e como a inveja não as impele qual tem; entretanto, a satisfação de
para aí em quantidade bastante grande · pen.s ar que cumpre o seu dever, pelo
para mudar a cor da tez, a não ser que fato de compadecer:..se dos aflitos. E há
seja muito grande e de longa duração, nisto a diferença de que~ ao passo que
não se deve pensar que todos os que o vulgo tem compaixão dos que se las..:
apresentam essa cor sejam propensos a timam, porque pensa que os mqles que
ela. sofrem são muito deploráveis, o princi-
pal objeto da compaixão dos maiores
Art. 185. Da compaixão. homens é a fraqueza dos que vêem
lastimar-se, porque não julgam que ne-
A compaixão é uma espécie de tris- nhum acidente que possa acontecer
teza misturada de amor ou de boa von- seja um mal tão grande quanto a
tade para com aqueles a quem vemos covardia dos que não podem sofrer
sofrer algum mal de que os julgamos com constância; e, embora odeiem ;os
indignos. Assim, é contrária à inveja vícios, nem por isso odeiam os que a
em virtude de seu objeto, e à zombaria
por considerá-los de outra maneira. 1 so Cf, Cartas, a Elisabeth, de 18 de maio de 16~5.
AS PAIXÕES DA ALMA 297
eles estão sujeitos, e sentem por eles serve senão para produzir um orgulho
apenas compaixão 1 5 1 . e uma arrogância impertinente: é o que
se pode observar particularmente nos
Art. 188. Quais são os que não são que, crendo-se devotos, são apenas
por ela tocados. carolas e supersticiosos; isto é, que, à
sombra de irem amiudadamente à igre-
Mas só os espíritos malignos e inve- ja, de recitarem muitas preces, de usa-
josos odeiam naturalmente todos os rem cabelos curtos, de jejuarem, de
homens, ou então os que são tão bru- darem esmola, pensam ser inteira-
tais, e de tal forma estão cegados pela mente perfeitos, e imaginam-se tão
boa fortuna, ou desesperados pela má, grandes amigos de Deus, que nada
que pensam que nenhum mal possa poderiam fazer que lhe desagradasse, e
acontecer-lhes, são insensíveis à com- que .tudo quanto lhes dita sua paixão é
paixão. bom zelo, embora ela lhes dite às vezes
os maiores crimes que os homens pos-
Art. 189. Por que esta paixão excita a sam cometer; como trair cidades,
chorar. matar príncipes, exterminar povos in-
teiros, só porque não seguem as suas
opiniões 1 5 2 .
Além disso, chora-se mui facilmente
nessa paixão, porque o amor, enviando
muito sangue ao coração, faz com que Art. 191. Do arrependimento.
saiam muitos vapores pelos olhos, e
porque a frialdade da tristeza, retar- O arrependimento é diretamente
dando a agitação desses vapores, os contrário à satisfação de si próprio, e é
faz transformarem-se em lágrimas, se- uma espécie de tristeza proveniente de
gundo o que foi dito acima. se julgar que se praticou qualquer má
ação; e é muito amarga, porque sua
causa procede apenas de nós; o que
Art. 190. Da satisfação de si próprio.
não impede, no entanto, que seja muito
útil quando é verdade que a ação de
A satisfação que sempre têm os que
que nos arrependemos é má e quando
seguem constantemente a virtude é um
temos disso um conhecimento certo,
hábito de sua alma que se chama
visto que ela nos incita a proceder me-
tranqüilidade e descanso de consciên-
lhor outra vez. Mas acontece muitas
cia; mas a que se adquire de novo
vezes que os espíritos fracos se arre-
quando se praticou recentemente algu-
pendem de coisas que praticaram sem
ma ação que se julga boa é uma pai-
saber seguramente que eram más;
xão, a saber, uma espécie de alegria, a
persuadem-se disso unicamente porque
qual creio ser a mais doce de todas,
o temem; e se houvessem feito o
porquanto sua causa depende apenas
contrário, arrepender-se-iam da mesma
de nós próprios. Todavia, quando essa
maneira: o que constitui neles uma
causa não é justa, isto é, quando as
imperfeição digna de compaixão; e os
ações de que se tira muita satisfação
não são de grande importância, ou são 1 52 "Os que são verdadeiramente pessoas de bem
mesmo viciosas, ela é ridícula e não não adquirem a reputação de ser devotos tanto
quanto os supersticiosos e hipócritas." (Dedicatória
1 5 1 Esta piedade do generoso, no fim de contas dos PrincípiosJ Essa passagem dá testemunho da
desdenhosa, permite-nos medir quão distante está a separação instituída entre moral e religião: a fé não
generosidade da caridade cristã. - poderia dispensar a moralidade definida laicamente.
298 DESCARTES
abundância e à natureza da bile a que Art. 201. Que há duas espécies de cóle-
está misturado, excita um calor mais ra e os que têm mais bondade são os
áspero e mais ardente do que o que mais sujeitos à primeira.
podem aí excitar o amor ou a alegria.
Isso nos adverte de que se podem
Art. 200. Por que os que ela faz enru- distinguir duas espécies de cólera: uma
bescer são menos de recear do que os que é muito rápida e se manifesta
que elafaz empalidecer. muito por fora, mas que no entanto
tem pouco efeito e pode facilmente
aplacar-se; outra que não aparece
E os sinais exteriores dessa paixão tanto no início, mas que rói mais o
são diferentes, conforme os diversos coração e tem efeitos mais perigosos.
temperamentos das pessoas e a diversi- Os que possuem muita bondade e
dade das outras paixões que a com- muito amor são os mais sujeitos à pri-
põem ou se lhe juntam. Assim, há· os meira; pois ela não nasce de um pro-
que empalidecem ou tremem quando fundo ódio, mas de uma pronta aver-
se encolerizam e há os que enrubescem são que os surpreende, porque, sendo
ou mesmo choram; e julga-se comu- propensos a imaginar que todas as coi-
mente que a cólera dos que empali- sas devem seguir segundo a maneira
decem é mais de temer do que a cólera que julgam ser a melhor, tão logo
dos que enrubescem: a razão disso é acontecem de outra forma admiram-se
que, quando não se quer, ou não se ·e ofendem-se, amiúde, mesmo sem que
pode tirar vingança de outra forma, ex- a coisa os haja tocado em particular,
visto que, tendo muita afeição, interes-
ceto pela expressão ou por palavras,
emprega-se todo o calor e toda a força sam-se por aqueles a quem amam tal
como por si próprios 1 5 7 . Assim, o que
desde o início da comoção, o que é
seria, para outro, motivo apenas de
causa de enrubescer; além do que, às
indignação, é para eles motivo de cóle-
vezes, o pesar e a piedade que se tem ra; e porque a inclinação que têm para
por si próprio, porque a gente não amar os leva a ter muito calor e muito
pode vingar-se de outra maneira, são sangue no coração, a aversão que os
causas de chorar. E, ao contrário, os surpreende não pode enviar para ele
que se reservam e se decidem a uma tão pouca bile que não cause de início
maior vingança tornam-se tristes por- grande emoção neste sangue; mas esta
que se julgam a isso obrigados pela emoção quase não dura, porque a
ação que os põe em cólera; e sentem força da surpresa não continua e por-
algumas vezes receio dos males que que, tão logo se apercebem de que o
))Odem seguir-se da resolução por eles motivo que os irritou não devia emo-
tomada, o que os torna primeiro páli- cioná-los tanto, arrependem-se 1 5 8 •
dos, frios e trêmulos; mas, quando che-
gam em seguida a executar a sua vin- 1 5 7
Cf. Cartas, a Chanut, 1.0 de fevereiro de 1647.
gança, esquentam-se tanto mais
1 58
"São comumente os melhores homens que,
vendo de um lado a morte de um filho e de outro o
quanto mais frio sentiram no começo, perigo de um irmão, são por isso mais viol~nta
tal como vemos que as febres que se mente comovidos. Eis por que as faltas assim come-
tidas, sem nenhuma malícia premeditada, são, pare-
iniciam pelo frio costumam ser as mais ce-me, as mais desculpáveis." (Cartas, a Huyg.hens,
fortes. 1648J !
AS PAIXÕES DA ALMA 301
Art~, 202.. Que são as almas fracas e remédio que se possa encontrar contra
baifas que se deixam dominar pela seus excessos, porque, levando-nos a
outra. apreciar muito pouco todos os bens
que podem ser arrebatados, e ao
A outra espécie de cólera, em que contrário, a estimar muito a liberdade
predomina o ódio e a tristeza, não é de e o império absoluto de nós próprios,
começo tão aparente, a não ser talvez e, ainda, a deixar de tê-lo quando qual-
porque faz empalidecer o rosto; mas quer pessoa nos pode ofender, ela faz
sua força é aumentada pouco a pouco com que tenhamos apenas desprezo ou
pela agitação de ardente desejo de se quando muito indignação em face das
vingar ~xcitado no sangue, o qual, injúrias com que os outros costumam
estando misturado com a bile que é ofender-se 1 5 9 •
impelida para o coração da parte infe-
rior do fígado e do baço, provoca nele Art. 204. Da glória.
um calor fortemente áspero e picante.
E como são as almas mais generosas O que recebe aqui o nome de glória
que sentem mais reconhecimento, é uma espécie de alegria fundada no
assim são as mais orgulhosas, mais amor que se tem. por si próprio e que
baixas e mais débeis que se deixam provém da opinião ou da esperança de
mais dominar por essa espécie de cóle- sermos .louvados por alguns outros.
ra; pois as injúrias parecem tanto Assim, é diferente da satisfação inte-
maiores quanto mais o orgulho nos rior que nasce da opinião de se ter feito
leva a nos estimarmos a nós próprios, alguma boa ação; pois às vezes somos
e também tanto maiores quanto mais louvados por coisas que não cremos
apreciamos os bens que elas tiram, os ser boas e censurados por outras que
quais se estimam tanto .mais quanto , cremos ser melhores: mas uma e outra
mais fraca e mais baixa é a alma, por- são espécies de estima que temos por
que são bens que dependem de outrem. nós próprios, bem como espécies de
alegria; pois é motivo de nos apre-
ciarmos o ver que somos apreciados
Art. 203·. Que a generosidade ·Serve de pelos outros 1 6 0 •
remédio contra seus excessos.
Art. 205. Da vergonha.
Demais, ainda que essa paixão seja
útil para nos dar vigor a fim de repelir A vergonha, ao contrário, é uma
as injúrias, não há, todavia, nenhuma espécie de tristeza também fundada no
de que se devam evitar os excessos amor a si próprio e que provém da opi-
nião ou· do temor ele sermos censura-
com mais cuidado, porque, pertur-
bando o juízo, levam muitas vezes a 1 5 9 Cf. Cartas, a Chanut, 1.0 de novembro de
cometer faltas de que depois se tem 1646. A generosidade, por implicar o conhecimento
do verdadeiro valor do homem, o livre arbítrio é o
arrependimento, e mesmo porque algu- meio de nos curar da cólera, sem que posam~ ser
mas vezes impedem que essas injúrias acusados de covardia. A gente só se livra da cólera
livrando-se da excessiva auto-estima e da suscetibi-
sejam tão bem repelidas como pode- lidade e injúria daí decorrente. Nisso Descartes se
ríamos fazer se sentíssemos menos aparta uma vez mais do ideal aristocrático.
emoção. Mas, como nada há que a 1 60
_ Análise que pode ser aplicada à glória come-
torne mais excessiva do qµe o orgulho, hana - , a~ mesr_no tempo estima por si próprio e
creio que a generosidade é o melhor amor-propno social.
302 DESCARTES
dos; é, além do mais, uma espécie de em que uma e outra são boas, as.sim
modéstia ou de humildade e descon- como a ingratidão se opõe ao reconh~
fiança de .si próprio: pois, quando a cimento e a crueldade à compaixão. E
gente se estima tanto que não pode a principal causa do descaramento
imaginar-se desprezada por ninguém, decorre de termos recebido muitas
não se pode facilmente ter vergonha. vezes grandes afrontas; pois não há
pessoa que, quando jovem, não imagi-
Art. 206. Do uso dessas duas paixões. ne que o louvor é um bem e a infâmia '
um mal muito mais importantes à vida
Ora, a glória e a vergonha têm o do que se verifica por experiência mais
mesmo uso pe~o fato de nos incitarem tarde, quando,. tendo-se recebido algu-
à virtude, uma,.pela esperança e a outra mas afrontas assinaladas, a gente se vê
pelo temor; é somente necessário ins- inteiramente privada de honra e des-
truir o juízo no tocante ao que é verda- prezada por todos. Eis por que se tor-
deiramente digno de censura ou lou- nam descarados os que, não medindo o
vor, a fim de não ficarmos bem e o mal sertão pelas comodidades
envergonhados de proceder bem e não do corpo, vêem que continuam gozan-
auferirmos vaidade de nossos vícios, do destas, após tais afrontas, tanto
como acontece a muitos. Mas não é quanto antes, ou mesmo às vezes bem
bom despojar-se inteiramente dessas mais, porque ficam desobrigados qe
paixões, tal como faziam outrora os cí- muitas coerções que a honra lhes
nicos; pois, ainda que o povo julgue impunha e porque, se a perda de bens
muito mal, dado que não podemos estiver unida à sua desgraça, encon-
viver sem ele, e que nos importa ser- tram-se pessoas caridosas que lhos
mos estimados por ele, devemos mui- dão.
tas vezes seguir suas opiniões mais do
que as nossas, no tocante ao exterior Art. 208. Do fastio.
de nossas ações 1 6 , .
O fastio é uma espécie de tristeza
Art. 207. Da impudência. proveniente da mesma causa de que
proveio antes a alegria; pois somos de
A impudência ou o descaramento, tal forma compostos, que a maioria
que é um desprezo pela vergonha, e das coisas de que desfrutamos são
amiúde também pela glória, não é uma boas em relação a nós apenas por certo
paixão, porque não há em nós nenhum tempo, e tornam-se em seguida incô-
movimento particular dos espíritos que modas: o que transparece principal-
a excite; mas é um vício oposto à ver- mente no beber e no comer, que são
gonha, e também à glória, na medida úteis apenas enquanto temos apetite e
são nocivos quando não mais o temos;
1 61 O Discurso falava das "opiniões mais modera- e, porque cessam de ser então agradá-
das e mais afastadas do excesso que fossem comu-
mente recebidas nà prática pelos mais sensatos veis ao gosto, .chamou-se essa paixão
daqueles com os quais eu devia viver". Confissão de fastio.
oportunismo e conformismo? Esse conformismo,
responde Lívio Teixeira, "vem da clareza com que
se percebem as limitações da Moral social, bem Art. 209. Do pesar.
como as dificuldades que deparam aqueles que se
propõem transformá-la. Este conformismo social de O pesar é também uma espé~i de
Descartes é, antes de tudo, uma atitude de inteli-
gência e boa vontade, em uma palavra, de generosi- tristeza, que é uma particular arriargu-
dade". (Op. cit., pág. 209.) ra, pelo fato· de estar sempre unida a
AS PAIXÕES DA ALMA 3.03
Minha Senhora,
O favor com que Vossa Alteza me E posso dizer, com verdade, que ·a
honrou, fazendo-me receber suas or- questão proposta por Vossa Alte-
dens por escrito, é maior do que jamais za 1 parece-me ser a que me podem for-
ousaria esperar e ele alivia melhor as mular com mais razão, em .virtude dos
minhas faltas do que aquele que eu escritos que publiquei. Pois, havendo
almejara com paixão, que era o de duas coisas na alma humana, das
recebê-las de viva voz, se me fosse quais depende todo conhecimento que
dada a honra de prestar-lhe reverência podemos ter 'de sua natureza, uma das
e oferecer-lhe os meus mui humildes quais é que ela pensa e a outra, que,
préstimos, quando estive ultimamente estando unida ao corpo, pode agir e
em Haia. Pois eu teria maravilhas em padecer com ele, quase nada disse da
demasia para admirar ao mesmo última e empei;ihei-me apenas em acla-
tempo; e, vendo emanar discursos mais rar bem a primeira, porque o meu prin-
do que humanos de um corpo tão cipal intuito era provar a distinção que
semelhante ao que os pintores conce- há entre a alma e o corpo; para o que,
dem aos anjos, ficaria extasiado da somente esta podia· servir e a outra
mesma maneira que me parecem dever seria nociva 2 • Mas, como Vossa Alte-
ficar os que, vindos da terra, entram de za vê tão claro que não se poderia
novo no céu. E isso ter-me-ia tomado dissimular-lhe qualquer coisa, esfor-
menos capaz de responder a Vossa çar-me-ei aqui por explicar a maneira
Alteza, que sem dúvida já observou em pela qual concebo a união da alma
mim este defeito, quando tive anterior- com o corpo e como tem ela a força de
mente a honra de lhe falar; e a clemên- movê-lo.
cia de V. A. quis consolá-la, confian- Primeiramente, con~ider haver em
do-me os traços de seus pe:q.samentos nós certas noções primitivas, as quais
sobre um papel, onde, relendo-os mui- são como originais, sob cujo padrão
tas vezes e acostumando-me a conside- formamos todos os nossos outros
rá-los, deixam-me verdadeiramente 1 A saber: como pode a alma mover o corpo?
menos deslumbrado, porém com tanto 2 As Meditações insistiram na separação das subs-
maior admiração, ao observar que não tâncias e, por razões metodológicas, deixaram na
parecem somente engenhosos à pri- sombra a substância psicofísica, isto é, a união de
fato no homem. das duas substâncias · i;eparadas.
meira vista, mas tanto mais judiciosos Mas não se deve falar de um corte entre a alma e o
e sólidos quanto mais são examinados. cori}o humano em Descart~
310 DESCARTES
conhecimentos. E não há senão muito Por isso, visto que, nas Meditações
poucas dessas noções; pois, após as que Vossa Alteza se dignou ler, procu-
mais gerais, do ser, do número, da rei fazer conceber as noções que só
duração, etc., que convêm a tudo quan- pertencem à alma, distinguindo-as das
to possamos conceber, possuímos, em que pertencem só ao corpo, a primeira
relação ao corpo em particular, apenas coisa que devo explicar em seguida é a
a noção da extensão, da qual decorrem maneira de conceber as que pertencem
as da figura e do movimento; e, quanto à união da alma com o corpo, sem as
à alma somente, temos apenas a do que pertencem só ao corpo, ou só à
pensamento, em que se acham com- alma. A isso me parece que pode servir
preendidas as percepções do entendi- o que escrevi no fim da minha Res-
mento e as inclinações da vontade; posta às Sextas Objeções; pois não
enfim, quanto à alma e ao corpo em podemos buscar essas noções simples
conjunto, temos apenas a de sua união, em outra parte exceto em nossa alma
da qual depende a noção da força de que, por sua natureza, as tem todas em
que dispõe a alma para mover o corpo, si, mas que nem sempre as distingue
e o corpo para atuar sobre a alma, cau- suficientemente umas das outras, ou
sando seus sentimentos e suas pai- não as atribui aos objetos aos quais
xões3 devemos atribuí-las.
Considero também que toda a ciên- Assim, creio que confundimos até
cia dos homens consiste tão-somente agora 4 a noção da força com que a
em bem distinguir essas noções e não alma atua no corpo e aquela com que
atribuir cada qual senão às coisas a um corpo atua em outro; e que atri- .
que pertencem. Pois, ao querer expli- buímos ambas não à alma, pois não a
car alguma dificuldade por uma noção conhecíamos ainda, porém às diversas
que não lhe pertence, não podemos dei~ qualidades dos corpos, como a gravi-
xar de nos equivocar, assim como ao dade, o calor e as outras, que imagina-
querer explicar uma dessas noções por mos serem reais, isto é, possuírem uma
outra; pois, sendo primitivas, cada existência distinta da do corpo e, por
uma delas só pode ser entendida por si conseguinte, serem substâncias, embo-
mesma. E já que a prática dos sentidos ra as denominássemos qualidades. E
nos tornou as noções da extensão, das nos servimos, para concebê-las, ora de
figuras e dos movimentos muito mais noções que se encontram em nós para
familiares do que as outras, a principal conhecer o corpo, ora das que aí se
causa de nossos erros está em que encontram para conhecer a alma, con-
pretendemos comumente nos servir forme o que lhes atribuímos fosse
dessas noções para explicar as coisas a material ou imaterial 5 • Por exemplo,
que não pertencem, como quando se supondo que a gravidade é uma quali-
quer utilizar a imaginação para conce- dade real, da qual não possuímos q'ual-
ber a natureza da alma, ou então, quer outro conhecimento, exceto que
quando se quer conceber a maneira tem a força de mover o corpo, no qual
pela qual a alma move o ·corpo, 4
Isto é: quando estávamos ainda sob o domíilio
mediante aquela pela qual um corpo é dos "prejuízos da inf'ancia", antes de termos alcan-
movido por -outro corpo. çado as noções claras e distintas. i
5
Sempre possuímos a idéia da união, mas !aplica-
mo-la, descabidamente, aos fenômenos natur~is que
3
Exemplo de distinção das "regiões" que, como devem explicar-se apenas por figuras e porl movi-
dirá Descartes, é a característica da ciência. mentos.
CARTAS 311
;~.!#
se ,á~a para o centro da terra, não nos explicar-me, e seria demasiado presun-
é ~'Wicl conceber como ela move esse çoso se ousasse pensar que minha res-
corpo, nem como está unida a ele; e posta deve satisfazê-la inteiramente;
não pensamos que isso se realiza pelo mas procurarei evitar uma e outra,
contato real de uma superfície com nada mais acrescentando aqui, exceto
outra, pois experimentamos, em nós que, se sou capaz de escrever ou de
próprios, que não dispomos de uma dizer algo que lhe possa agradar, terei
noção particular para conceber tal sempre por mui grande favor tomar a
coisa; e creio que usamos mal essa pena, ou ir a Haia, para tal fim, e que
noção, aplicando-a à gravidade, que nada há no mundo que me seja tão
não é algo realmente diferenciado do caro como poder obedecer a seus dita-
corpo, como espero mostrar na Física, mes. Mas não consigo achar aqui lugar
mas que nos foi dada para conceber a para a observância do juramento de
maneira pela qual a alma move· o Hipócrates que ela me impõe, pois que
corpo 6 • ela nada me comunicou que não mere-
Não testemunharia conhecer assaz o ça ser visto e admirado por todos os
incomparável espírito de Vossa Alteza, homens. Só posso dizer, a este respeito,
se empregasse mais palavras para que, apreciando infinitamente a carta
que recebi de Vossa Alteza, usá-la-ei
6 O exemplo é retomado nas Sextas Respostas:
como os avaros usam seus tesouros, os
"Pensava que a gravidade conduzisse os corpos
para o centro da terra como se ela tivesse em si
quais escondem quanto mais os esti-
algum conhecimento deste centro". Como ele julga mam, e, recusando sua vista ao resto
que a gravidade deve explicar-se pelo exclusivo do mundo, aplicam seu soberano con-
impulso da matéria sutil, Descartes rejeita com des-
prezo a noção de atração. (Cartas, a Roberval, 20 tentamento em contemplá-los. Assim,
de abril de 1646.) Deve-se notar que Galileu, por estarei à vontade para desfrutar sozi-
seu turno, concebe o fenômeno da queda como um nho do bem de vê-la; e minha maior
"movimento natural': o único que ele retém da Físi-
ca escolástica. "Ele abandona tanto quanto pode os ambição é poder dizer-me, e ser verda-
erros da Escola", dirá Descartes. deiramente, etc.
A ELISABETH
Minha Senhora,
1
_ _j _ _ _ _ _ _ _ __
-
CARTAS 315
que é mais fácil atribuir matéria e Enfim, como creio ser necessário
extensão à alma do que atribuir-lhe compreender bem, uma vez na vida, os
capacidade de mover um corpo e de princípios da Metafisica, porque são
ser movida por ele, sem possuir maté- eles que nos fornecem o conhecimento
ria, suplico-lhe que queira livremente de Deus e de nossa alma, creio tam-
atribuir esta matéria e esta extensão à bém que seria muito prejudicial ocupar
alma; pois isto não é mais do que amiúde o entendimento para meditar
concebê-la unida ao corpo 1 2 • E, depois neles, porque ele não poderia aplicar-
de haver bem concebido tal coisa e tê- se tão bem às funções da imaginação e
la experimentado em si própria, ser- dos sentidos; mas que o melhor é
lhe-á fácil considerar que a matéria contentar-se em reter na memória e na
que Vossa Alteza terá atribuído a esse crença as conclusões que foram algu-
ma vez tiradas e depois empregar o
pensamento não é o pensamento
tempo restante para o estudo, nos
mesmo; e que a extensão dessa matéria
pensamentos em que o entendimento
é de natureza diferente da extensão
atua com a imaginação e os sentidos.
desse pensamento, pelo fato de ser a A extrema devoção que dedico ao
primeira determinada em certo lugar, serviço de Vossa Alteza me faz esperar
do qual exclui qualquer outra extensão que minha franqueza não lhe será
de corpo, o que não faz a segunda. E desagradável e ter-me-ia empenhado
assim Vossa Alteza não deixará de aqui num discurso mais longo, onde
voltar facilmente ao conhecimento da tentaria esclarecer dessa vez todas as
distinção entre a alma e o corpo, não dificuldades da questão proposta; mas
obstante tenha concebido a sua união. uma deplorável nova que acabo de
receber de Utrecht, onde o Magistrado
1 2 A união não é uma soma das duas substâncias, me intimou, para verificar o que escre-
porém sua mistura total. Pode-se dizer que a alma
tem, de algum modo, extensão, visto que se espalha
vi de um de seus ministros, conquanto
em todas as partes do corpo. No entanto, nem por seja um homem que me caluniou mui
isso se toma divisível, pois está inteira em cad~ indignamente, e o que escrevi sobre ele,
parte. Possui, portanto, uma "extensão", sem ser para minha justa defesa, não seja
uma substância extensa. Trata-se, sem dúvida, da
definição mais precisa que Descartes dá do orga- senão demasiado notório a todo
nismo humano como totalidade - Ganzheit. Cabe mundo, compele-me a terminar aqui,
notar aqui como Descartes logra encerrar ao máxi- para ir consultar os meios de me livrar,
mo noções impossíveis de exprimir no pathos meca-
nicista do claro e do distinto (cf. Guéroult, op. cit., o mais cedo que eu possa, dessas
II, págs. 186-191). chicanices. Sou, etc.
A ELISABETH
Todavi.a 1 5 , como um vaso pequeno causa dos diversos objetos aos quais se .-
pode ficar tão cheio como outro maior, estendem 1 6 •
ainda que contenha menos líquido, A terceira, que consideremos, en-
assim, tomando o contentamento de quanto nos conduzimos assim, o quan-
cada qual pela plenitude e pelá. realiza- to pudermos, segundo a razão, que
ção de seus. desejos regrados segundo a todos os bens que não possuímos
razão, não duvido que os mais pobres encontram-se também inteiramente
e os mais desgraçados pela fortuna ou fora de nosso poder tanto uns como
pela natureza possam estar inteira- outros, e que, por este meio, nos acos-
mente contentes e satisfeitos, assim tumemos a não desejá-los; pois nada
como os outros, embora não desfrutem há, como o desejo, o pesar ou o
de tantos bens. E não é senão desta arrependimento, que nos possa impedir
espécie de contentamento que se trata de estar contentes: mas se fizermos
aqui, pois a outra não está de nenhum sempre tudo o que nos dita a nossa
modo em nosso poder e sua busca razão, nunca teremos qualquer motivo
seria supérflua. de nos arrependermos, ainda que os
Ora, parece-me que cada um pode acontecimentos nos levassem a ver, em
ficar contente consigo mesmo, sem seguida, que nos havíamos enganado,
nada esperar de outras partes, con- porque isso . não se deu por culpa
tanto que observe apenas três coisas, nossa. E o que faz com que não deseje-
às quais se relacionam as três regras mos ter, por exemplo, mais· braços ou
da Moral, que estabeleci no Discurso mais línguas do que temos, mas que
do Método. desejemos realmente ter mais saúde ou
A primeira é que nos esforcemos mais riquezas, é apenas porque imagi-
sempre por servir-nos, da melhor ma- namos que tais coisas poderiam ser
neira possível, de nosso espírito, para adquiridas por nossa conduta, ou,
conhecer o que devemos ou não fazer então, que são devidas à nossa nature-
em todas as circunstâncias da vida. za, e que esta não é. a mesma das
outras: opinião de que podemos nos
A segunda, que mantenhamos a
desfazer, considerando que, como se-
firme e constante resolução de execu-
guimos sempre o conselho de nossa
tar tudo quanto a razão nos aconse-
razão, nada omitimos do que estava
lhar, sem que nossas paixões ou nossos
em nosso poder, e que as moléstias e os
apetites nos desviem; e é a firmeza
infortúnios não são menos naturais no
desta resolução, que creio dever ser to-
homem do que a prosperidade e a
mada pela virtude, embora eu não
saúde.
saiba de alguém mais que a tenha algu-
ma vez explicado assim; mas dividi- De resto, nem todas as espécies de
ram-na em muitas espécies, a que desejos são incompatíveis com a beati-
·fcn:am. dados diversos nomes, por tude; a não ser os que são acampa-:
nhados de impaciência e tristeza. Não
1 s O termo é importante. Descartes admite que
1 6 Não há senão uma virtude, diversificada pelos
mais vale possuir as duas espécies de bens do que
apenas o segundo. Mas, como se verifica que a pri- objetos aos quais se estende, "assim como todas as
meira pode não estar ao nosso alcance, não deve- ciências reunidas não são nada mais do que a sabe-
mos apegar-nos à busca desses bens que não depen- doria humana, que se mantém sempre una, sempre a
dem de nós, se nós não os possuímos. Atitude mesma, por variados que sejam os objetos aos quais
eudemonista exposta em linguagem estóica. elas se aplicam ... " (Regulàe, reg. 1.)
CARTAS 319
Minha Senhora
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES
Mas como, quando existe em alguma Eis por que julgo poder concluir
parte um prêmio para atirar ao alvo, aqui que a beatitude não consiste
suscita-se o desejo de atirar àqueles a senão no contentamento do espírito,
quem se mostra este prêmio, sem que isto é, no contentamento em geral;
por isso possam ganhá-lo, se não vêem pois, embora haja contentamentos que
o alvo, e os que o vêem não são por dependem do corpo, e outros que dele
isso induzidos a atirar, se não sabem não dependem de modo algum, não há
que há um prêmio a ganhar, assim a todavia qualquer outro, exceto no espí-
virtude, que é o alvo, não se faz desejar rito: mas, para haver um contenta-
muito, quando a vemos totalmente só; mento que seja sólido, é preciso seguir
e o contentamento, que é o prêmio, não a virtude 3 4 , isto é, ter uma vontade
pode ser adquirido, a não ser que a firme e constante de executar tudo o
sigamos 3 3 • que julgarmos ser o melhor e empregar
toda a força de nosso entendimento em
33 A imagem do arqueiro e do tiro ao alvo encon-
tra-se muitas vezes entre os moralistas antigos. Ela
bem julgar. Reservo para outra vez o
é criticada pelo estoicismo, que se recusa a compa- considerar o que Sêneca escreveu a
rar o fim da sabedoria com um fim exterior à ação. este respeito; pois minha carta já está
(Cf. Cícero, De Finibus, III, 7.)
3 4 Conclusão epicurista: é o enunciado mesmo do demasiado longa, e só me resta o espa-
imperativo hipotético kantiano. ço necessário para escrever que sou,
Minha Senhora,
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES
Minha Senhora,
do o poder de raciocinar, tiram tam- limites da união, visto que a vontade é nele reduzida
à ineficácia (não depende de mim acordar, nota
bém o de gozar de uma satisfação de Descartes), o Cogito mantém aí seus direitos e eu
espírito racional; e isto me informa que posso, em certa medida, controlar meus sonhos.
326 DESCARTES
nós mesmos, a não ser enquanto nos podem servir para facilitar o uso da
pertencemos, e significa menos perder virtude 3 7 ; pois todas as ações de nossa
a vida do que perder o uso da razão; alma que nos conseguem alguma per-
pois, mesmo sem os ensinamentos da feição são virtuosas, e todo o nosso
fé, só a Filosofia natural leva nossa contentamento consiste apenas no
alma a esperar um estado mais feliz, " nosso testemunho interior de possuir-
após a morte, do que aquele em que se mos alguma perfeição. Assim, jamais
encontra presentemente; não há coisa poderíamos praticar qualquer virtude
que ela lhe faça temer como mais (isto é, fazer o que nossa razão nos
deplorável do que estar ligada a um persuade que devemos fazer), se daí
corpo que lhe rouba inteiramente a não recebêssemos satisfação e prazer.
liberdade. Mas há duas espécies de prazer: uns
Quanto às outras indisposições, que que pertencem ao espírito só e outros
não perturbam totalmente o senso, mas que pertencem ao homem, isto é, ao
alteram apenas os humores, e fazem espírito enquanto unido ao corpo; e
com que a gente se sinta extraordina- esses últimos, apresentando-se confu-
riamente inclinada à tristeza, à cólera samente à imaginação, parecem muitas
ou a alguma outra paixão, dão sem dú- vezes maiores do que são, principal-
vida pena, mas podem ser sobrepuja- mente antes de os possuirmos, o que é
das, e até proporcionam à alma motivo fonte de todos os males e de todos os
de uma satisfação tanto maior quanto erros da vida. Pois, segundo a regra da
foram mais dificeis de vencer. E creio razão, cada prazer dever-se-ia medir
também o mesmo de todos os impedi- pela grandeza da perfeição que o pro-
mentos exteriores, como do brilho de duz, e é assim que medimos aqueles
cujas causas nos são claramente co-
um grande nascimento, dos galanteios
nhecidas. Mas amiúde a paixão nos faz
da corte, das adversidades da fortuna e
também de suas grandes prosperi- julgar certas coisas melhores e mais
dades, as quais ordinariamente obstam desejáveis do que o são; pois, quando
que se possa desempenhar o papel de nos demos muito trabalho em adquiri-
las e perdemos, entretanto, a ocasião
.filósofo mais do que o fazem as des-
de possuir outros bens mais verdadei-
graças. Pois, quando temos tudo quan- ros, o gozo nos faz conhecer seus defei-
to desejamos, esquecemos de pensar tos, e daí provêm os desdéns, os pesa-
em nós, e quando, em seguida, a sorte res e os arrependimentos. Eis por que o
muda, vemo-nos tanto mais surpresos verdadeiro oficio da razão é examinar
quanto mais nos fiávamos nela. Enfim, o justo valor de todos os bens cuja
pode-se dizer em geral que não há aquisição pareça depender de alguma
coisa capaz de nos subtrair inteira- maneira de nossa conduta,. a fim de
mente o meio de nos tornarmos felizes, que nunca deixemos de envidar todos
desde que ela não perturbe nossa os nossos cuidados no esforço de obter
}'.a:Lão; e que nem sempre as que pare- aqueles que são, com efeito, os mais
cem mais aborrecidas são as que mais desejáveis; no que, se a fortuna -se opõe
prejudicam. a nossos desígnios e impede seu bom
Mas, a fim de saber exatamente o êxito~ teremos ao menos a satisfação
quanto cada coisa pode contribuir
para o nosso contentamento, cumpre 3 7 Esboço de um cálculo dos prazeres em função
considerar quais são as causas que o da grandeza da perfeição que os produz. A função
da razão, diz ainda Descartes, consiste em "saber
produzem, e isso constitui também um exatamente o quanto cada coisa pode contribuir
dos principais conhecimentos que para nosso contentamento". (6 de outubro de 1645.)
CARTAS 327
;<>:,,,_
(de n1tda haver perdido por nossa falta, apenas. Digo comumente; pois nem
·"e não deixaremos de desfrutar de toda todos os do espírito são louváveis, por-
a beatitude natural cuja aquisição haja que podem ser fundados em alguma
1
!1,A, ,estado ao nosso alcance. falsa opinião, como o prazer que se
Assim, por exemplo, a cólera pode sente em maldizer, que se funda apenas
)às vezes_ exc~tar em nós desejos de ~in em que alguém pensa dever ser tanto
[··· gança tao v10lentos que nos levara a, mais estimado quanto menos o forem
[ · imaginar maior prazer em castigar os outros; e eles podem também enga-
,.,.:"'" nosso inimigo do que em conservar nar-nos por sua aparência, quando al-
nossa honra ou nossa vida, induzindo- ~uma forte paixão os acompanha,
nos a expor imprudentemente uma e como ocorre no que dá a ambição.
outra por esse motivo. Ao passo que, Mas a principal diferença existente
se a razão examina qual o bem ou a entre os prazeres do corpo e os do espí-
perfeição em que se baseia este prazer rito consiste em que, sendo o corpo
que tiramos da vingança, não encon- sujeito a mudança perpétua e depen-
trará nenhum outro (ao menos quando dendo mesmo sua conservação e seu
tal vingança não serve para impedir bem-estar desta mudança, todos os
que nos ofendam de novo), exceto que prazeres que lhe concernem quase não
isso nos faz imaginar que dispomos de duram 3 9 ; pois procedem apenas da
alguma sorte· de superioridade e algu- aquisição de algo que é útil ao corpo, .
ma vantagem sobre aquele de quem no momento em que os recebe; e, tão
nos desafrontamos. O que constitui logo cessa de lhe ser útil, eles também
amiúde apenas vã imaginação, que não
cessam, ao passo que os da alma
merece ser estimada em comparação
podem ser imortais como ela, contanto
com a honra ou a vida, nem sequer em
comparação com a satisfação que que tenham um fundamento tão sólido
teríamos de ver-nos senhores de nossa que nem o conhecimento da verdade
cólera, abstendo-nos de nos vingar. ou qualquer falsa persuasão os des-
E algo semelhante acontece em truam.
todas as outras paixões; pois não há De resto, o verdadeiro uso de nossa
uma única que não nos represente o razão para a conduta da vida consiste
bem ao qual ela tende com mais brilho apenas em examinar e considerar sem
do que merece, e que não nos leve· a paixão o valor de todas as perfeições,
imaginar prazeres bem maiores antes tanto do corpo como dó espírito, que
que os possuamos, os quais não encon- podem ser adquiridas por nossa condu-
tramos em seguida, quando os ta, a fim de que, sendo de ordinário
temos 3 8 O que faz comumente repro- obrigados a nos privar de algumas,
var a voluptuosidade, porque nos ser-
escolhamos sempre as melhores 4 0 • ~'
vimos desta palavra apenas para signi-
como as do corpo são as menores,
ficar prazeres que~nos enganam muitas
vezes por sua aparência, e nos fazem pode-se dizer em geral que, sem elas,
negligenciar outros muito mais sólidos,
3 9
Os prazeres do corpo não são suspeitos em
mas cuja expectativa não toca tanto, nome de um ideal ascético: verifica-se apenas que
como são comumente os do espírito são passageiros e proveitosos a curto prazo.
40
Toda esta passagem ilustra as páginas de Max
Scheler sobre a subordinação dos valores vitais aos
3 8 A crítica das paixões será uma crítica da repre- valores de utilidade e a diferença entre o ascetismo
sentação imaginativa que nos leva a sobrestimar os moderno e o antigo ou evangélico. (Cf. L 'Homme
prazeres e uma previsão do prazer efetivo. du Ressentiment, Von Umsturze der Werte.)
328 DESCARTES
.há meio de se tom~ felizes 41 • Toda- isentar-nos de ter paixões; basta 4-óe as~
via,· não sou, de modo algum, de opi- assujeitemos à razão e, uma vez asim'~·
nião que devamos desprzá-l~ inteira-:- domesticadas, algumas são tanto maisJu'i:,,
úteis quanto mais pendem para 01 •
mente, ou mesmo que devamos · excesso. E jamais terei outra mais 1
•
Minha Senhora,
de Vossa Alteza
o mui humilde e mui obediente servidor,
DESCARTES
-· -----------------
A CHANUT
A amável carta que acabo de rece- somente por sua vontade mas também
ber de vossa parte não me permite realmente e de fato, na maneira que lhe·
repousar enquanto não' lhe houver convém estar unida, o movimento de
·dado resposta; e, embora proponhais sua vontade, que acompanha o conhe-
nela questões que outros mais eruditos cimento que ela tem de ser-lhe um
do que. eu teriam muito trabalho para bem, é sua alegria; e se está ausente, o
examinar em pouco tempo, todavia, movimento de sua vontade que acom-
porque sei que, mesmo se eu empre- panha o conhecimento que ela tem de
gasse muito tempo nisso, não poderia ser dele privado, é sua tristeza; mas
resolvê-las inteiramente, prefiro pôr aquele que acompanha o conheci-
prontamente sobre o papel aquilo que mento que ela tem de que seria bom
o.zelo, que me incita, me ditará do que adquiri-lo é seu desejo. E tod~ estes
pensar. com mais vagar e não escrever movimentos da vontade nos quais con-
em seguida nada melhor. sistem o amor, a alegria e a tristeza, e
Quereis saber minha opinião no o desejo, na medida em que são pensà-
tocante a três coisas: 1 - o que é o mentos racionais, e não paixões, po-
amor; 2 - se só a luz natural nos ensi- der-se-iam achar em nossa alma, ainda
na a amar a Deus; 3 - qual dos dois que esta não tivesse corpo algum 4 2 •
desregramentos e mau~ usos é pior, o Pois, por exemplo, se ela percebesse .
do amor ou o do ódio? que há na natureza muitas coisas a .
conhe'cer, que são muito belas, sua
Para responder ao primeiro ponto,
vontade dirigir-se-ia infalivelmente a
distingo entre o amor que é puramente
amar o conhecimento destas coisas,
intelectual ou racional e o que é uma
isto é, a considerá-lo como lhe perten-
paixão. O primeiro consiste, parece-
cendo. E se notasse, ademais, possuir
me, apenas em que, quando nossa
este conhecimento, isso dar-lhe-fa ale-
alma percebe algum bem, seja presen,-
gria; se considerasse que não o pos-
te, seja ausente, que julga lhe ser
suía, isso .. dar-lhe-ia tristeza; se pen-
conveniente, ela se lhe junta volunta-
sass.e queihe seria bom adquir-lo~ isso
riamente, isto é; considera-se a si pró-
dar-lhe-ia desejo. E. nada haveria em
pria, com este bem, .qual um todo, de
todos esses movimentos de sua vonta-
que ele é uma parte e ela a outra. Em
seguimento do que, se ele está presente, 42 Delimitação do doIÍlÍnio puramente racional da
isto é, se ela o possui, ou é por ele pos- ciência das paixões: os sentimentos que concernem
suída, ou, enfim, caso se lhe una não à alma somente.
330
haverem estado em nós como primei- afetividade confusa de origem orgânica, proveniente
r~s e as únicas que possuímos antes de do princípio do prazer, que se poderia comparar à
"fome de prazer", desviada pelo "recalque primá-
nosso nascimento; e creio também que rio", segundo a psicanálise. Não obstante, esses tex-
eram então apenas sentimentos ou tos evocam apenas superficialmente o freudismo:
seria impossível, no contexto cartesiano, empreen-
pensamentos muito confusos; porque a der, ·por exemplo, a formação do sintoma (por
alma se achava de tal forma presa à impossibilidade do recalque puro e simples e neces-
matéria que não podia ainda aplicar-se sidade de tomar como "representante" um afeto
arcaico bastante ambíguo para que o eu possa tole-
a outra coisa salvo a receber dela as rá-lo). O homem passional de Descartes está ligado
apenas a uma inf'ancia abstrata; o condicionamento
4 6 O amor é um atrativo que suscita na alma o de- não é a regressão. Em suma, é a falta da dimensão
sejo de tudo fazer com vistas a mapter "todas as histórica e da dimensão do sentido que invalida
disposições requeridas para conservar a união". toda aproximação entre Descartes e Freud.
1
1.
332 DESCARTES
se reconheça no que ele consiste mente por alguns ídolos que cha'rnam 1
propriamente. O que é principalmente com seu nome; do mesmo modo que~ ...
notável no tocante ao desejo; pois é to- . Ixíon, no dizer dos poetas, abraçava F .~ :
mado tão comumente pelo amor que uma nuvem em vez da Rainha dos
isso leva a distinguir duas espécies de Deuses. Todavia, ·. não alimento a
amores: uma que· se chama amor de menor dúvida de que possamos amar ~ :'. :.
benevolência, no qual este desejo não verdadeiramente Deus pela excl~1siva ~'
aparece tanto, e a outra que se chama força de nossa natureza. Não asseguro, '\,
amor de concupiscência, o qual não é de forma alguma, que tal amor ! seja :t,
senão um desejo muito violento, basea- meritório sem a graça e deixo o desen- -....
do num amor amiúde fraco. redar disso aos teólogos; mas ouso
Mas seria preciso escrever um alen- dizer que, com respeito a esta vida, é a
tado volume para tratar de todas as mais arrebatadora e a mais útil paixão
coisas que pertencem a esta paixão; .e, que possamos ter; e, mesmo, que ela
embora sua índole seja a de fazer com pode ser a mais forte, embora haja
que nos comuniquemos o mais possí- necessidade, para tanto, de meditação
vel, de modo que me incita a tentar mui atenta, porque somos continua-
aqui dizer-vos mais coisas do que sei, mente distraídos pela presença de ou-
quero no entanto conter-me, no temor tros objetos.
de que a longura desta carta vos enfa- Ora, o caminho que julgo devermos
de Assim, passo à vossa segunda seguir, pa:r;a chegar ao amor a Deus, é
questão, a saber: se só a luz natural o de considerá-lo um espírito, ou uma
nos ·ensina a amar a Deus e se se pode coisa pensante, donde, como a natu-
amá-lo pela força desta luz. Vejo que reza de nossa alma possui alguma
há duas fortes razões para duvidar . semelhança com a sua, acabamos
disso; a primeira é que os atributos de persuadindo-nos de que é uma emana-
Deus que consideramos rriais comu- ção de sua soberana inteligência et
mente acham-se elevados tão acima de divinae quasi particula aurae 4 9 • Do
nós que não concebemos de maneira mesmo modo, como nosso conheci-
alguma que nos possam ser convenien- mento parece poder aumentar gradati-
tes, o que é causa de não nos unirmos a vamente até o infµiito, e como, sendo o
eles voluntariamente; a segunda é que de Deus infinito, está ele no alvo a que
em Deus nada há que seja imaginável; visa o nosso, se não considerarmos
o que faz com que, mesmo se tivés- nada mais, podemos chegar à extrava-
semos por ele algum amor intelectual, gância de desejarmos ser deuses e
não pareça possível dedicar-lhe qual- assim, por um erro mui grande, amar
quer amor sensitivo, porque deveria somente a divindade em vez de amar a
passar pela imaginação para vir do Deus. Mas se, além disso, advertimos a
entendimento ao sentido. Eis por que infinidade de seu poder, pela qual ele
não me espanto se alguns filósofos se criou tantas coisas, de que somos ape-
persuadem de que só há a religião cris- nas a menor parte; a extensão de sua
tã que, ensinando-nos o mistério da providência, que o faz ver com um só
encarnação, pelo qual Deus se abaixou pensamento tudo o que foi, é, será e
até tomar-se semelhante a nós, nos poderia ser; a infalibilidade de seus
toma capazes de amá-lo 4 8 ; e que
aqueles que, sem o conhecimento deste 48
Descartes admite que só a religião cristã nos
mistério, parecem nutrir paixão por al- permite amar a Deus, mas não - como Pascal.:._
que só ela nos permite reconhecê-lo.
guma divindade, não a nutrem, por 49 Horácio, Sátiras, II, 2, v. 79; "quase uma parce-
decretos, que, embora não perturbem · aparte muito do comércio dos sentidos,
nosso livre arbítrio, não podem de para se representar as verdades que
forma alguma ser mudados; e enfim, nela provocam este amor; daí resulta
de um lado, a nossa pequeneza e, de que não parece que ela possa comuni-
outro, a grandeza de todas as coisas cá-lo à faculdade imaginativa para tor-
criadas, reparando de que modo elas ná-lo uma paixão. Mas, apesar disso,
dependem de Deus e considerando-as não duvido de que ela lha comuni-
de maneira que tenham relação com que 5 2 • Pois, embora nada possamos
sua onipotência, sem encerrá-las numa imaginar do que existe em Deus, o
esfera, como procedem os que preten- qual. é o objeto de nosso amor, pode-
dem que o mundo seja finito 5 0 : a mos imaginar o nosso amor mesmo,
meditação de todas essas coisas enche que consiste em querermos unir-nos a
um homem que as entende bem de uma algum objeto, isto é, à vista de Deus,
alegria tão extrema que, longe de ser considerar-nos pequeníssima parte de
injurioso e ingrato com Deus a ponto toda a imensidade das coisas que ele
de desejar ocupar-lhe o lugar, pensa já criou; porque, conforme sejam objetos
ter vivido o bastante por haver Deus diversos, podemos unir-nos a eles ou
lhe feito a graça de levá-lo a tais juntá-los a nós, de diversas maneiras; e
conhecimentos; e, unindo-se-lhe total e a simples idéia desta união basta para
voluntariamente, ama-o tão perfeita- excitar o calor em tomo do coração e
mente que nada mais deseja no mundo, causar violentíssima paixão 5 3 •
exceto que seja feita a vontade de É verdade também que o uso de
Deus. E isso é causa para ele não mais nossa língua e a civilidade dos cumpri-
temer a morte, nem as dores, nem as mentos não permitem que digamos,
desgraças, porquanto sabe que nada aos que pertencem a uma condição
pode aconter-Ih~, salvo o que Deus muito acima da nossa, que os amamos,
houver' decretado; e ele ama de tal mas somente que os respeitamos, hon-
forma este divino decreto, estima-o tão ramos, estimamos e que empregamos
justo e tão necessário, sabe que deve zelo e devoção no serviço deles; e a
depender tão inteiramente dele, que, razão disso parece-me ser que a amiza-
mesmo na expectativa da morte ou de de de homem para homem toma de
algum outro mal, ·se pudesse, por certa maneira iguais aqueles em quem
impossível que seja, mudá-lo, não teria ela é recíproca; e, assim, que, enquanto
vontade de fazê-lo. Mas, se não recusa nos esforçamos por nos fazer amar por
os males ou as aflições, porque lhe vêm algum grande, se lhe disséssemos que o
da providência divina, recusa ainda amamos, poderia pensar que o trata-
menos todos os bens ou prazeres líci- mos de igual e que lhe fazemos mal.
tos de que pode gozar nesta vida, por-
que também vêm dele; e, recebendo-os
51
A submissão à vontade de Deus ajusta-se assim
ao naturalismo moral: a concordância entre minha
com júbilo, sem ter qualquer receio vontade e a de Deus não atua necessariamente em
pelos males, seu amor o toma perfeita- detrimento de minha felicidade nesta vida.
62
Distinção entre a via do entendimento puro, que
mente feliz 5 1 • leva ao conhecimento da verdade, e a via imagina-
É certo ser necessário que a alma se tiva, que conduz ao amor desta verdade.
63
"Por aí Descartes encontraria em certa medida
50
O conhecimento da infinidade positiva de Deus .os caminhos de Inácio de Loiola ... Quando se
nos impede de confundir est.a infinidade com a inde- · trata de engendrar um sentimento religioso vivo e
finidade do progresso de nosso conhecimento e verdadeiro, uma paixão, por exemplo, o amor de
proíbe, no fim de contas, qualquer teoria humanista Deus, Descartes, como Inácio de Loiola, recomenda
do progresso. A transcendência de Deus (indispen- a representação imaginativa, isto é, concreta (por
sável à ciência) opõe, assim, obstáculo ao natura- impressão distinta) de nossa união com o ser infini-
lismo e ao humanismo. · to." (Guéroult, op. cit., II, pág. 226.)
334 DESCARTES
Mas, como os filósofos não costumam que nós, por exemplo, se amamos uma
dar diversos nomes às coisas conve- flor, um pássaro, um edifício, ou coisa
nientes a uma mesma definição, e semelhante, a mais alta perfeição a que
como não sei de outra definição de possa atingir este amor, segundo seu
amor, exceto que é uma paixão que nos verdadeiro uso, não pode levar-nos a
leva a juntar-nos voluntariamente a pôr nossa vida em qualquer risco para
algum objeto, sem distinguir se este ob- a conservação destas coisas, porque
jeto é igual a nós, ou maior, ou menor elas não são partes mais nobres do
do que nós, parece-me que, para falar a todo que compõem conosco, assim
linguagem deles, devo dizer que se como nossas unhas e nossos cabelos
pode amar a Deus. quanto ao nosso corpo; e seria uma
E se eu vos perguntasse, em sã cons- extravagância pôr o corpo todo em
ciência, se não amais de modo algum a risco para a conservação dos cabelos.
esta grande Rainha, junto à qual estais Mas quando dois homens amam-se
presentemente, em vão poderíeis afir- mutuamente, a caridade quer que cada
mar que lhe devotais respeito, venera- um dele estime seu amigo mais do que
ção e admiração, e eu não deixaria de a si próprio; eis por que sua amizade
julgar que lhe dedicais também ~ui não será de modo algum perfeita, se
ardente afeição. Pois o vosso estilo não estiverem prontos a dizer, um em
corre tão bem, quando falais dela, que, favor do outro: Me me adsum quifeci,
embora eu creia em tudo o que dizeis a in me convertite ferrum, etc. 5 4 • Da
respeito, porque sei que sois muito sin- mesma maneira, quando um particular
cero e o ouvi também dizer de outros, se une voluntariamente a seu príncipe,
não acredito entretanto que pudésseis ou a seu país, se o seu amor é perfeito,
descrevê-la como o fazeis, se não tivés- ele deve estimar-se apenas como parte
seis muito zelo, nem que pudésseis muito pequena do todo que· compõe
estar junto de tão grande luz sem dela_ com eles, e assim não temer ir de
receber calor. · encontro a uma morte certa a seu ser-
E muito menos é verdade que o viço, mais do que se teme tirar um
nosso amor pelos objetos que se achàm pouco de sangue do braço para fazer
acima de nós seja pienor do que o que que o resto do corpo se porte melhor. E
temos pelos outros; creio que, por sua vemos todos os dias exemplos deste
natureza, é mais perfeito, e que leva a amor, mesmo em pessoas de baixa
abraçar com mais ardot os interesses condição, que dão as vidas de bom
daquilo que se ama. Pois pertence à grado para o bem do seu país, ou para
natureza do amor fazer com que nos a defesa de um grande pelo qual se
consideremos com o objeto amado afeiçoam. Em conseqüência disso, é
como um todo de que somos apenas evidente que nosso amor para com
uma parte, e que transfiramos de tal Deus deve ser incomparavelmente o
modo os cuidados que habitualmente maior e o mais perfeito de todos.
temos por nós mesmos à conservação Não receio que esses pensamentos
deste todo, que dele não retemos para metafísicos dêem demasiado labor a
nós em particular s'enão uma parte tão vosso espírito; pois sei que ele é muito
grande ou tão pequena quanto cremos
ser uma parte grande ou pequena do capaz em tudo; mas confesso que can-
todo ao qual demos o afeto: de sorte sam o meu, e que a presença 1dos obje-
que, se nos unimos voluntariamente a 5 4
Virgílio, Eneida, IX, 427. "Fui eu quem fez;
um objeto que estimamos menor do voltai o ferro contra mim." ·
i
·.•,~./'" ···
CARTAS
qual dos dois desregramentos é pior, o . contra nele qualquer dificuldade: pois
do amor, ou o do ódio? Mas acho-me o ódio é sempre acompanhado de tris-
mais impedido a respondê-la do que às teza e pesar; e, qualquer que seja o pra-
duas outras, porque haveis explicado zer que algumas pessoas sintam em
muito menos a vossa intenção e porque fazer mal aos outros, creio que a
esta dificuldade· pode entender-se em voluptuosidade delas é semelhante à
diversos sentidos, que me parecem dos demônios, que, segundo a nossa
dever ser examinados separadamente. religião, não deixam de estar danados,
Pode-se dizer que uma paixão é pior embora imaginem continuamente vin-
do que outra, porque ela nos toma gar-se de Deus, atormentando os ho-
menos virtuosos; ou porque ela repug- mens nos infernos. Ao contrário, o
na mais ao nosso contentamento; ou, amor, por mais desregrado que seja,
enfim, porque nos arrasta a excessos proporciona prazer. e, embora os poe-
maiores e nos dispõe a infligir maior tas dele se queixem muitas vezes em
mal aos outros homens. · seus versos, creio, não obstante, que os
Quanto ao primeiro ponto, acho-o homens se absteriam naturalmente de
duvidoso. Pois, considerando as defini- amar se não encontrassem nele mais
ções dessas duas paixões, julgo que o doçura do que amargura; e que todas
amor que temos por um objeto que não as aflições, cuja causa se atribui ao
o merece nos pode tomar piores do que amor, provêm apenas das outras pai-
o ódio que temos por outro que deve- xões que o acompanliam, a saber, dese-
ríamos amar; porque há mais perigo jos temerários e esperanças mal funda-
em estar unido a uma coisa que é má, e das.
de ser como que transformado -nela, do
Mas se se pergunta qual dessas duas
que em estar separado voluntariamente
paixões nos arrasta a maiores excessos
de uma coisa que é boa. Mas, quando
e nos toma capazes de infligir maior
tomo em conta as inclinações ou hábi-
mal ao resto dos homens, parece-me
tos que nascem dessas paixões, mudo
que devo dizer que é o amor; posto que
de parecer: pois, vendo que o amor,
por mais desregrado que seja, tem sem- possui naturalmente mais força e mais
pre o bem por objeto, não me parece vigor do que o ódio; e que amiúde a
que possa corromper tanto nossos cos- afeição que se tem por um objeto de
tumes como o ódio, que se propõe ape- pouca importância causa incompara-
nas o mal. E vemos, por experiência, velmente maiores males do que pode-
que a gente de mais bem toma-se ria fazê-lo o ódio a outro de mais
pouco a pouco maliciosa quando se vê valor. Provo que o ódio tem menos
obrigada a odiar alguém; pois, ainda vigor do que o amor pela origem de um
que seu ódio seja justo, representam-se e de outro. Pois, se é verdade que os
tão amiudadamente os males que rece- nossos primeiros sentimentos de amor
bem de seus inimigos e também os que vieram do fato de nosso coração rece-
desejam a eles, que isto os acostuma ber abundância da nutrição que lhe era
pouco a pouco à malícia. Ao contrá- conveniente e, ao contrário, que nossos
rio, os que se entregam a amar, mesmo primeiros sentimentos de ódio foram
que seu amor seja desregrado e frívolo, causados por um alimento nocivo que
não deixam de se tomar amiudada- vinha ao coração e que agora os mes-
mente gente mais honesta e mais vir- mos movimentos acompanham ainda
""-· :;Mo_
.336 ----DESCARTES
. as mesmas paixões, assim, como foi há ruína está pronto a provocar, a fim de
pouco dito, é evidente que, quando que isso sirva de ceva à extravagância
·.t.'.
amamos, o mais puro sangue de nossas de seu furor. Dir-se-á talvez que o ódio
veias corre abundantemente para o é a causa mais próxima dos males que
coração, o que envia uma porção de se atribuem ao amor, porque, se ama- •
espíritos animais ao cérebro e assim
nos dá mais força, mais vigor e mais
mos alguma . coisa, oàiamos, pelo
mesmo meio, tudo o que lhe é contrá-
'> ;
coragem; ao passo que, se alimen- rio. Mas o amor é sempre mais culpa-
tamos ódio, a amargura do fel e. a do do que o ódio dos males que se \pro- ;,
agrura do baço, misturando-se com o duzem dessa maneira, tanto mais que é
nosso sai.1gue, é causa de que ele não a primeira causa deles, e que o amor a
aflua tanto, nem tais espíritos venham um só objeto pode assim engendrar o
1
--·· -·-·---·-------------
.l
ÍNDICE
PREFÁCIO ........................................... . . 7
NOTA 9
INTRODUÇÃO ........................................ . 11
D iscurs-o do método . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........... . 33
Primeira parte ................................... . 37
Segunda parte .................................... . 42
Terceira parte .................................... . 49
Quarta parte ..................................... . 54
Quinta parte ..................................... . 59
Sexta parte ...................................... . 70
MEDITAÇÕES ...................................... . 81
Aos Senhores Deão e Doutores da Sagrada Faculdade de Teo-
logia de Paris .................................... . 83
Resumo das Seis Meditações ......................... . 87
Primeira Meditação: Das coisas que se podem colocar em dúvida 93
Meditação Segunda: Da natureza do.espírito humano; e de co-
mo ele é mais fácil de conhecer do que o corpo ........... . 99
Meditação Terceira: De Deus; que ele existe ............. . 107
Meditação Quarta: Do verdadeiro e do falso ............. . 123
Meditâção Quinta: Da essência das coisas materiais; e, nova-
mente, de Deus, que ele existe ........................ . 131
Meditação Sexta: Da existência das coisas materiais e da dis-
tinção real entre a alma e o corpo do homem ............. . 137
l*'·.~ ' .
OBJEÇÕES E RESPOSTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
Segundas Objeções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
Segundas Respostas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
Quintas Respostas às Quintas Objeções . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
AS PAIXÕES DA ALMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
Primeira parte: Das paixões em geral e ocasionalmente de
toda a natureza do homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22?-· j. <.
Segunda parte: Do número e da ordem das paixões e a explica-
ção das seis primitivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Terceira parte: Das paixões particulares . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
CARTAS ............................................ 307
A Elisabeth, 21 de maio de 1643 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3if9
À mesma, 28 de junho de 1643 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
À mesma, 4 de agosto de 1645 ........................ 317
À mesma, 18 de agosto de 1645 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321 ·
À mesma, l.º de setembro de 1645 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
A Chanut, l. 0 de fevereiro de 164 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329
1
1.
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