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Bloco IV

Obra Lucana
(Lc e At)

OBRA LUCANA (LC E AT) – 1


Bloco IV: Obra Lucana (Lc e At)

Índice

Tema 10: ATUALIDADE E UNIDADE DA OBRA LUCANA ................................. 3


1. Atualidade de Lucas ................................................................................................. 3
a) Um evangelizador apaixonado ......................................................................... 3
b) Aspectos atrativos da obra de Lucas ................................................................ 5
2. Unidade da obra lucana ............................................................................................ 6

Tema 11: COMPOSIÇÃO LITERÁRIA E TEOLÓGICA ........................................ 8


1. Prólogo ..................................................................................................................... 8
2. Linguagem e estilo da diégesis lucana ..................................................................... 9
3. Elementos característicos e estruturantes ............................................................... 10
a) A importância de Jerusalém ........................................................................... 10
b) Sincronia com a história político-religiosa ..................................................... 11
c) Sumários e quadros sinóticos ......................................................................... 11
d) Cinco unidades principais .............................................................................. 11
e) Em relação a Marcos ...................................................................................... 12
4. Proposta de estrutura global ................................................................................... 12
a) Da estrutura à teologia .................................................................................... 13

Tema 12: DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS ....................................................... 15


1. Dimensão cultual .................................................................................................... 16
2. Promessa - cumprimento ........................................................................................ 16
3. Boa Nova para os pobres ........................................................................................ 16
4. Aspecto salvífico .................................................................................................... 16
5. Incredulidade de Israel............................................................................................ 17
6. Êxodo de Jesus ....................................................................................................... 17

Tema 13: LUCAS, HISTORIADOR E TEÓLOGO ................................................. 18


1. Na exegese moderna ............................................................................................... 18
2. Na exegese contemporânea .................................................................................... 18
3. Rumo a um melhor equilíbrio................................................................................. 19
a) A obra lucana é uma história .......................................................................... 19
b) É uma história teológica ................................................................................. 19
4. Breve indicação bibliográfica ................................................................................. 20

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Tema 10: ATUALIDADE E UNIDADE DA OBRA LUCANA
A amplitude do Evangelho de Lucas (o mais longo dos três Evangelhos Sinóticos,
mais longo do que o de Mateus, embora a subdivisão posterior lhe tenha atribuído
quatro capítulos em menos) ajuda a garantir-lhe um lugar de grande importância na vida
da Igreja. A estrutura litúrgica do tempo pascal (Páscoa-Ascensão-Pentecostes) é
retirada de Lucas-Atos e dos dois primeiros capítulos de Lucas são retirados os hinos
que articulam o dia litúrgico da Igreja: o Benedictus (Laudes), o Magnificat (Vésperas)
e o Nunc dimittis (Completas).

NOTA: Os estudos sobre a obra de Lucas se


multiplicaram nos últimos 40 anos. O livro de
Conzelmann, El centro del tiempo. La teología de
Lucas, (Madrid 1974), tem sido decisivo na
orientação destes estudos, de tal forma que
praticamente todos os estudos se referem a ele, quer
para a aceitar quer para se distanciar do seu
pensamento.

1. Atualidade de Lucas

No início do terceiro milênio, a Igreja continua preocupada com a evangelização.


Lucas tem alguma coisa a nos dizer sobre este assunto? Parece que sim.

a) Um evangelizador apaixonado

Muito se pode dizer de Lucas, autor do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos.
É um escritor perspicaz, um hábil contador de histórias com um bom background
histórico e literário. Conforme o parecer de várias pessoas, ele é também um teólogo de
primeira classe. Mas o aspecto mais marcante é a sua paixão pelo Evangelho, uma
dedicação impressionante à missão evangelizadora, à qual deve ter se consagrado
totalmente.

A Igreja antiga o relembra como companheiro de Paulo. E com boas razões. Lucas,
de fato, partilha plenamente a causa apostólica de Paulo e o espírito universal que ele
promove.

NOTA: Um certo Lucas, médico e companheiro de


Paulo, é mencionado em Cl 4,14; Fm 24 e 2Tm 4,11.

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A tradição da Igreja antiga atribui a este personagem
a composição do terceiro evangelho (S. Ireneu, Adv.
Haer. III, 1,1). Eusébio relata sobre a origem
antioquena de Lucas (Hist. Eccl. III, 4,6). Estes
testemunhos não entram em contradição com o que
emerge da obra de Lucas (Evangelho e Atos).

Seguindo os passos de Paulo, Lucas se dirige ao grande público, que vem do


paganismo, e dialoga com o mundo grego. Dedica o seu relato (diégesis, em grego), em
dois volumes (Evangelho e Atos), a uma pessoa com um nome grego, Teófilo. E, mais
do que Marcos e Mateus, está preocupado em tornar o Evangelho compreensível em
contextos culturais diferentes do judaico-palestiniano, em traduzir a mensagem original
em categorias de pensamento próximas do mundo helenístico-romano. Com outras
palavras, Lucas procura "inculturar a fé".

No terceiro evangelho falta a palavra euangelion, tão estimada por Marcos. Em


compensação, Lucas usa o verbo euangelizomai 25 vezes (10 vezes em Lc e 15 vezes
em Atos) mostrando, também através do seu vocabulário, que o seu interesse é a
evangelização, mais sobre a atividade do que o evento em si.

O trabalho de evangelização começa de cima. Estão envolvidos os mensageiros de


Deus (Lc 1,19; 2,10), João Batista (Lc 3,18) e, sobretudo, o Senhor Jesus. A sua missão
é "evangelizar os pobres" (de acordo com as palavras de Is 61,1 citadas em Lc 4,18 e
7,22). Jesus passou pelas cidades e aldeias pregando e anunciando a Boa Nova do Reino
de Deus (Lc 4,43; 8,1).

Os Doze e várias mulheres, entre elas Maria Madalena, Joana e Susana, estão
estavelmente associadas ao seu trabalho de evangelização (8,1-3); eles "partiram, indo
de povoado em povoado, anunciando a Boa Nova e operando curas por toda a parte"
(9,6). Todos devem ter a oportunidade de ouvir a Boa Nova e de se converterem ao
amor de Deus revelado em Jesus. Para esta missão se organiza uma atividade
sistemática. Outros 72 colaboradores são acrescentados como missionários itinerantes e
são enviados, dois a dois, à frente de Jesus "a toda cidade e lugar aonde ele próprio
devia ir" (Lc 10,1).

Para Lucas, Jesus é o ponto de apoio de uma intensa atividade evangelizadora


envolvendo homens e mulheres. Esta atividade está decididamente centrada na
proclamação do Reino de Deus e é dirigida a todo Israel, com uma preferência
particular pelos pecadores, publicanos e prostitutas, pessoas marginalizadas pelos chefes
espirituais do judaísmo contemporâneo.

A evangelização de Jesus e do seu grupo segue uma trajetória que começa na


Galileia, passa pela Samaria e dirige-se resolutamente para Jerusalém (9,51). Todo o
Evangelho de Lucas mostra uma forte orientação para Jerusalém e, mais
especificamente, para o coração de Jerusalém, o templo. No coração da cidade santa e
do judaísmo Jesus é sempre aquele que evangeliza (Lc 20,1).

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De Jerusalém, Lucas projeta a evangelização para todas as nações, "até aos confins
da terra" (Lc 24,47 e Atos 1,8).

Na obra lucana se encontra a gestação e os primeiros passos da igreja primitiva,


especialmente de Pedro e dos apóstolos. Os discípulos de Jerusalém, tendo de
abandonar a cidade devido à perseguição, transformam a situação adversa numa ocasião
favorável para divulgar a Boa Nova (Atos 8,4; 11,20). Entre eles, em particular o
diácono Filipe, que evangeliza Samaria (At 8,12.25) e, depois, a zona costeira, desde
Azot até Cesareia (At 8,40).

Por último, Paulo, "instrumento eleito" para levar o nome do Senhor Jesus "diante
das nações gentílicas, dos reis, e dos israelitas" (Atos 9,15; 22,21). Como sabemos, o
segundo livro de Lucas termina com a chegada de Paulo a Roma, acorrentado por causa
da Palavra, que, no entanto, não perde a oportunidade de proclamar "o Reino de Deus e
ensinar o que se refere ao Senhor Jesus Cristo com toda a intrepidez e sem
impedimento" (Atos 28,31).

Desta forma, Lucas realiza o projeto da sua obra em dois volumes. No primeiro
volume ele mostra como a Lei e os Profetas alcançam uma mudança decisiva na figura
de João, que abre a porta à evangelização do Reino de Deus realizada no Senhor Jesus.
No segundo volume ele mostra como a Palavra empreende seu caminho através da
Igreja e, partindo de Jerusalém, chega aos confins do mundo (ou seja, Roma).

b) Aspectos atrativos da obra de Lucas

O Jesus que fascina os nossos contemporâneos é geralmente aquele que aparece no


Evangelho de Lucas: um Salvador com um rosto humano, um Jesus que na sua bondade
revela o mistério da misericórdia de Deus, vindo buscar e salvar o que estava perdido:
como o pastor procura as suas ovelhas, como a mulher procura a moeda, como o Pai
espera o filho que saiu de casa (cf. Lc 15 e o encontro com Zaqueu).

Lucas sublinha a predileção de Jesus pelas categorias de pessoas chamadas fracas e


marginalizadas: os pobres, os pecadores, as mulheres, as crianças... Estes aspectos são
realçados em algumas parábolas memoráveis típicas de Lucas, como o samaritano, o
fariseu e o publicano, o homem rico e pobre Lázaro...

Os grupos e movimentos de hoje são atraídos por uma série de valores que Lucas
sublinha: comunhão fraterna, alegria, louvor e oração, partilha de bens, pobreza...
Dimensões que estão em fala na nossa cultura.

Mas Lucas também tem um fascínio pelo compromisso sociopolítico, apresentando a


imagem de uma igreja que acredita no poder da fraternidade e da partilha; veja em
particular Atos 2,43-47 e 4,32-37 onde se afirma que “a multidão dos que tinham crido
era um só coração e uma só alma” e colocavam em comum seus bens. A dimensão
sociopolítica, à qual Lucas está particularmente atento, entrelaça as realidades
espirituais de louvor, alegria e oração. Um belo sinal são os cânticos, colocados como

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pérolas preciosas nos primeiros capítulos do Evangelho, mas também a insistência na
oração de Jesus (3,21; 6,12; 11,1; 22,41-44) e o próprio fato de que a interpretação
programática da sua missão em Nazaré tem lugar no contexto do culto da sinagoga, no
Sábado (Lc 4,16-22).

2. Unidade da obra lucana

Embora estejam separados no cânone bíblico, o terceiro evangelho e Atos dos


Apóstolos devem originalmente ter constituído uma única obra, em dois volumes, razão
pela qual nos referimos ao conjunto como "obra lucana" e não simplesmente como "os
escritos lucanos", ou o corpus lucano.

Os argumentos para tal posição se baseiam em critérios de linguagem, estilo e


teologia, sendo os mais representativos os seguintes:

1. O próprio Lucas sublinha a ligação entre os seus dois livros


Compus meu primeiro relato, ó Teófilo, a respeito de todas as coisas que
Jesus fez e ensinou desde o início, até o dia em que foi arrebatado, depois de
ter dado instruções aos apóstolos que escolhera sob a ação do Espírito Santo.
Ainda a eles, apresentou-se vivo depois de sua paixão, com muitas provas
incontestáveis: durante quarenta dias apareceu-lhes e lhes falou do que
concerne ao Reino de Deus.

Essa passagem remite a Lc 1,1-4


Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se
cumpriram entre nós — conforme no-los transmitiram os que, desde o
princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra — a mim
também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o
princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques
a solidez dos ensinamentos que recebeste.

2. Além disso, do próprio evangelho emerge um esquema histórico e teológico que


só é plenamente realizado no segundo volume, em Atos.

Tal "esquema" é evidente se considerarmos a seguinte estrutura interna:

A. Galileia: Lc 4,14 - 9,50


B. Viagem a Jerusalém através da Samaria e Judeia: Lc 9,51 - 19,40
C. Jerusalém: Lc 19,41 - 24,49
D. Ascensão: Lc 24,50-51
D1. Ascensão: Atos 1,4-11
C1. Jerusalém: Atos 1,12 - 8,1a
1
B . Judeia e Samaria: Atos 8,1b - 11,18
1
A . "Até aos confins do mundo": Atos 11,19-28,31

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Note-se que o esquema começa a partir de 4,14, considerando o prólogo e a seção
1,5-4,13 como introdução. Veja também que no centro está a ascensão de Jesus ao céu,
que é o elemento onde o evangelho fecha e começa Atos.

3. Os "fatos que se cumpriram entre nós", mencionados no prólogo do evangelho


(Lc 1,1), são também os fatos mencionados no segundo volume.

Consequentemente, os dois livros devem, de fato, serem tomados como uma unidade
e estudados em conjunto, mesmo se não sabemos se foram concebidos desde o início
como uma obra em duas partes ou se o evangelho foi escrito primeiro, como uma obra
independente, e depois os Atos, como uma continuação. Dadas os limites do nosso
curso e a amplitude do assunto, contentar-nos-emos com algumas pinceladas de
natureza puramente introdutória. Sugiro que leia atentamente o texto que lhe proponho,
com todas as citações bíblicas indicadas.

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Tema 11: COMPOSIÇÃO LITERÁRIA E TEOLÓGICA

1. Prólogo
Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se
cumpriram entre nós — conforme no-los transmitiram os que, desde o
princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra — a mim
também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o
princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques
a solidez dos ensinamentos que recebeste.

Lucas é o único Evangelho que começa com um "prólogo" de natureza histórica; este
é um gênero muito comum na época de Lucas, especialmente no que diz respeito à
dedicação da obra a um personagem ilustre (Teófilo).

Em Lucas 1,1-4 faltam os termos "história" ou "historiografia", mas encontramos os


seus antigos equivalentes, pois tais são os termos diégesis ou "narração" e prágmata ou
"acontecimentos/atos".

Alguns filólogos pensam que os primeiros 4 versículos de Lucas poderiam ter vindo
da mão de um excelente historiador grego, por causa do cuidado com que são escritos.
Note como, uma forma solene e concisa, estes versos indicam:
 v. 1: o assunto e aqueles que já lidaram com ele antes
 v. 2: o valor da informação que remonta ao testemunho direto
 v. 3: A pesquisa pessoal e cuidadosa de Lucas
 v. 4: o objetivo de tal investigação: uma exposição exaustiva de tal forma que
Teófilo tome consciência da "solidez" (asfaleia - da mesma raiz de "asfalto")
da catequese recebida.

No prólogo, Lucas se distingue daqueles que "foram testemunhas desde o início" e


daqueles que já tentaram escrever o que foi transmitido (paradosis = tradição). Ele
também declara a sua intenção e o seu método: investigou "cuidadosamente" a fim de
escrever um relato exaustivo dos "fatos que se cumpriram".

Se aqueles que o precederam começaram desde o início (ap' arxês), Lucas pretende
voltar às origens (ánôthen) dos acontecimentos que se realizaram perante a comunidade
eclesial. E esta busca das origens tem como objetivo captar o profundo significado
contido nos acontecimentos relativos à vida e ministério de Jesus, a fim de mostrar ao
seu interlocutor, Teófilo, a "solidez" da tradição apostólica.

A “solidez”, a asfaleia do ensino eclesial, só pode ser alcançada recorrendo à


tradição (paradosis) das primeiras testemunhas. É particularmente importante notar
como se situa essa nova obra em relação à narração dos antecessores, entendida como
fontes da tradição (v. 1), e determinar o seu valor como fontes (v. 2).

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Este autoconhecimento é fundamental para o autor do Evangelho de Lc, pois ele sabe
que o resto do seu relato (diegese) é distinto da pregação apostólica (e daquela do
próprio Jesus) e do ensino da Igreja. Na verdade, Lucas não chama a sua diégesis –
como o faz Mc 1,1 – de euangelion, mas o seu escrito se insere, a título de
esclarecimento, ao ensino eclesial que, segundo o v. 4, instruiu o destinatário.

Com outras palavras, Lucas é o "teólogo historiador" que pretende mostrar como o
hoje eclesial está solidamente enraizado na tradição recebida, na paradosis das
primeiras testemunhas.

Note-se que Lucas se apresenta como o compilador e


transmissor normativo da paradosis apostólica, razão
pela qual - ao contrário dos proêmios profanos - não
pode falar depreciativamente dos seus predecessores.
Pelo contrário, segundo ele, estes primeiros escritos são
particularmente "próximos" dos apóstolos e isto, do
ponto de vista da tradição, nunca será suficientemente
apreciado. Em qualquer caso, a paradosis parece ser um
processo oral e a iniciativa de a estabelecer por escrito,
no tempo de Lucas, parece precisar ainda de alguma
justificação (uma vez que...).

Sobre a solidez repousa o ministério da Palavra na Igreja de então e de hoje. Temos


de aprender esse método. Lucas tem muito a ensinar à igreja do nosso tempo sobre as
ousadas fronteiras da evangelização.

Outro aspecto de grande importância é a dinâmica relacional que percorre o prólogo:


muitos... entre nós... a mim... para ti... É a dinâmica eclesial: os "acontecimentos" que
interessam a Lucas são aqueles que se realizaram "entre nós".

2. Linguagem e estilo da diégesis lucana

Quem ouve o relato de Lucas nota o corte entre o prólogo (1,1-4), onde fica evidente
a mão do escritor antigo, erudito, que está em contacto com os historiadores da época, e
o chamado "Evangelho da Infância" (1,5 – 2,52), onde se tem a impressão de que Lucas
se retira voluntariamente para deixar falar, o máximo possível, a tradição local (judaico-
palestiniana), utilizando um grego semítico, parecido com aquele da tradução grega do
Antigo Testamento (a Septuaginta, LXX).

No prólogo, Lucas nos dá uma amostra dos seus dons literários; ele poderia ter
continuado neste mesmo ritmo, mas o faz só ocasionalmente (compare também 3,1-2).
Incoerência? Ecletismo estilístico?

É possível que haja uma razão mais profunda para esta variedade de estilos; talvez o
respeito pelas fontes, talvez a intenção de contar a história de Jesus e da primeira

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comunidade cristã usando uma linguagem mais apropriada à realidade narrada: o grego
da LXX, considerado uma língua sagrada.

Lucas tem um vocabulário muito rico. Segundo Morgenthaler (Statistik des


neutestamentlichen Wortschatzen) Lc tem 2.055 palavras, das quais 971 são hápax
legomena (palavras usadas uma única vez). Isso, somado às 943 hápax legomena
presentes em Atos, dá-nos uma ideia de quão rico e variado é o seu vocabulário!

3. Elementos característicos e estruturantes

Como de costume, vamos considerar alguns sinais característicos presentes no texto.


À primeira vista é difícil descobrir o que é característico do terceiro evangelho, tirando
a forma sugestiva de se apresentar e de escrever. Também porque, ao contrário de
Mateus que concentra o seu próprio material em blocos bem claros, Lucas prefere
distribui-lo com astúcia, alternando-o com o material que tem em comum com Mt ou
com Mc. Todavia, olhando bem, Lucas também tem seus elementos próprios.

a) A importância de Jerusalém

- O terceiro Evangelho começa e termina em Jerusalém, mais exatamente no coração


da cidade santa, no templo:
 Começa no templo, com o anúncio do anjo a Zacarias (1,5ss)
 Termina também ali, com a imagem dos Onze que "estavam continuamente
no Templo, louvando a Deus." (24,53).

- O evangelho da infância nos leva novamente duas vezes ao templo, após o anúncio
do anjo a Zacarias: na apresentação do menino Jesus (2,22-38) e na sua peregrinação a
Jerusalém, para a Páscoa, quando tinha 12 anos (2,41-50).

- Um sinal do interesse de Lc por Jerusalém também pode ser visto no fato de que,
ao contrário de Mateus, ele termina a série de tentações na cidade santa, colocando a
terceira no pináculo do templo (4,9-12).

- Para Jerusalém é orientado o caminhar de Jesus. É uma viagem particularmente


extensa, no Evangelho de Lucas, porque é no âmbito desta viagem (9,51 – 19,28) que
ele coloca a grande parte do seu próprio material, coisa que não tem paralelo em Mc e
Mt.

- A fixação por Jerusalém leva, algumas vezes, o evangelista a fornecer dados


topográficos imprecisos (4,44; 9,52 e especialmente 17,11).

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b) Sincronia com a história político-religiosa

Lucas apresenta a sua obra como uma "narrativa ordenada" (kathexês - v.1,3). Por
isso devemos esperar que as histórias tenham uma ordem (não necessariamente
cronológica).

O sincronismo entre a história profana e a história da salvação, que encontramos em


Lc 3,1-2, assinala claramente uma mudança em relação ao bloco anterior. Atenção:
Lucas é o único evangelista que situa a história de Jesus e da Igreja dentro da história
humana; esta é a razão das suas referências a dados e personagens da história.

c) Sumários e quadros sinóticos

Encontramos frequentemente, na obra de Lucas, uma espécie de "sumário" da


atividade de Jesus ou da comunidade cristã que, através de um título, introduz os vários
episódios que ele narra em seguida.

- Em 4,14 há um "sumário" que enquadra a atividade de Jesus na Galileia e em 9,51


encontramos outro que anuncia a viagem em direção a Jerusalém.
 Jesus voltou então para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama
espalhou-se por toda a região circunvizinha (Lc 4,14).
 Quando se completaram os dias de sua assunção, ele tomou resolutamente o
caminho de Jerusalém (Lc 9,51).

- Em Lc 23,5 há uma indicação que confirma a ordem da atividade de Jesus: os


chefes dos sacerdotes declararam a Pilatos que Jesus tinha ensinado (incitando o povo!),
começando na Galileia, em toda a Judeia e em Jerusalém.
 Eles, porém, insistiam: ‘Ele subleva o povo, ensinando por toda a Judeia,
desde a Galileia, onde começou, até aqui’.

- Outra imagem que resume a atividade de Jesus se encontra em Lucas 24,19-20, no


relato dos dois discípulos a caminho de Emaús.
 "Quais?", disse-lhes ele. Responderam: "O que aconteceu a Jesus, o
Nazareno, que foi um profeta poderoso em obra e em palavra, diante de Deus
e diante de todo o povo: nossos chefes dos sacerdotes e nossos chefes o
entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram” (Lc 24,19-20).

d) Cinco unidades principais

Após o prólogo (1,1-4), onde Lucas declara a sua própria intenção e a forma de
proceder (objetivo e método), podem distinguir-se cinco articulações principais na
primeira obra:

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1. Origens de João e Jesus, os assim ditos "relatos/evangelhos da infância" (1,5
- 2,52)
2. Início do ministério público de Jesus ligado à figura do Batista (3,1 - 4,13)
3. Ministério de Jesus na Galileia (4,14 - 9,50)
4. Viagem para Jerusalém (9,51 - 19,28)
5. Cumprimento em Jerusalém (19,29 - 24,53).

e) Em relação a Marcos

Lucas segue essencialmente a narrativa de Marcos, de quem parece extrair grande


parte das suas informações.

O material da tradição Q é inserido por Lucas em dois blocos de tamanho variável:


 pequena inserção (6,20 - 8,3)
 grande inserção (9,51 - 18,14).

São próprios de Lucas os dois primeiros capítulos, alguns episódios da vida pública e
várias parábolas.

4. Proposta de estrutura global


Ao ler Lucas, deve ser dada extrema atenção a todas as modificações que ele
introduz em termos de ordem, vocabulário, etc., a fim de sublinhar o sentido geral da
sua obra ou os temas conscientemente escolhidos. A análise da composição supõe,
portanto, um trabalho muito cuidadoso.

A estrutura que encontra maior acordo entre os estudiosos é a teológica-geográfica,


que, no evangelho, vai para Jerusalém e, em Atos, parte de Jerusalém. O esquema
preferível parece ser o seguinte:

Prólogo literário 1, 1-4


INTRODUÇÃO A. As origens (1,5 - 2,52)
B. Prelúdio da missão: 3,1 - 4,13
PARTE PRIMEIRA Na Galileia (4,14 - 9,50)
PARTE SEGUNDA Caminho de Jesus para Jerusalém (9,51 - 19,28)
PARTE TERCEIRA Em Jerusalém (19,29 - 24,53)
PARTE QUARTA Caminho da Igreja de Jerusalém (At 1-12)
Novo prólogo (At 1)
Testemunho da Igreja de Jerusalém (2,1-8,3)
Testemunho da Igreja fora de Jerusalém (8,4-
12,25)
PARTE QUINTA Caminho de Paulo para o confim do mundo (At 13-

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a) Da estrutura à teologia

Na primeira narração lucana, impacta a orientação em direção a Jerusalém, constante


em todo o evangelho (ver acima).

A importância de Jerusalém é evidente também do ponto de vista estatístico: aparece


90 vezes em Lc-At. Esse número representa quase dois terços das 139 vezes que o
termo aparece no NT. Lucas conhece as duas formas do nome da cidade santa, o
helenístico Ierosolyma (4 vezes no evangelho e 22 em Atos) e o semita: Ierusalem (27
vezes no evangelho e 37 em Atos).

Existe uma estratégia teológica neste enfoque “para Jerusalém” (Lc) e, dali para os
confins da terra (Atos)?

Conzelmann vislumbra no conjunto as três grandes etapas da história da salvação:


1. tempo de Israel
2. tempo de Jesus
3. tempo da Igreja.

As três etapas "geográficas" da viagem histórica de Jesus (Galileia, Caminho,


Jerusalém) não correspondem à geografia de Lucas, nem ao itinerário que ele propõe na
sua obra. Podemos ver que Lucas conhece dois começos: o de Jesus (Lc 3,23 e 4,14) e o
da pregação apostólica a partir de Jerusalém (Lc 24,47 e Atos 1,8).

- Galileia caracteriza a realidade inicial de Jesus: isto é indicado por 4,14.31, por um
lado, e, por outro, pelas alusões de 23,5.49.55 e Atos 10,37; 13,31.
Parece claro que Jesus pregou a partir da Galileia.

- No entanto, lemos com surpresa Lc 4,44 (as edições críticas leem assim: "sinagogas
da Judeia" e não "da Galileia"). Não é que a situação mude, mas que a Judeia
apareça (no sentido da Palestina) sem que isso diminua a referência à Galileia
(é interessante comparar Lc 6,17 com Mc 3,7).

Parece que Lucas desenvolva o plano teológico geográfico já presente em Marcos:


Galileia, Caminho, Jerusalém, mas com uma diferença: o movimento que percorre o
Evangelho de Marcos parte da Galileia e regressa à Galileia (passando por Jerusalém);
enquanto a perspectiva que guia o Evangelho de Lucas vai de Jerusalém para
Jerusalém.

Na realidade, mais do que uma verdadeira diferença, trata-se talvez de um


desenvolvimento. O que Marcos faz, terminando o Evangelho na Galileia (a terra da
proclamação do Reino por Jesus), Lucas o desdobra em Atos, onde o movimento de

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pregação, que parte de Jerusalém, alcança os confins da terra. Neste caso, a Galileia
corresponde, simetricamente, ao extremo da terra.

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Tema 12: DIMENSÕES CARACTERÍSTICAS

Propomos apresentar nesta seção uma abordagem teológica da obra de Lucas.


Optamos por seguir a pista de algumas dimensões que encontramos na cena
programática de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-30), à qual Lucas parece ser
particularmente sensível.

Esta é a nossa opção metodológica nesse tema, sabendo que poderia haver muitas
outras possibilidades e sabendo igualmente que, dentro desta mesma opção, poderíamos
aprofundar muito mais a nossa pesquisa.

Abordagens mais clássicas tentam ler uma "teologia da história", outras preferem
estudar a obra de Lucas como uma proposta de caminhada (de fato, o caminho de Jesus
em Lucas é o mais longo - ocupa 10 capítulos -, seguido pelo caminho da Igreja em
Jerusalém e, finalmente, o caminho de Paulo).

16Ele foi a Nazaré, onde fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia
de sábado na sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. 17Foi-lhe entregue
o livro do profeta Isaías; abrindo-o, encontrou o lugar onde está escrito: 18O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os
pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a
recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos 19e para
proclamar um ano de graça do Senhor. 20Enrolou o livro, entregou-o ao
servente e sentou-se. Todos na sinagoga olhavam-no, atentos. 21Então
começou a dizer-lhes: "Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem
da Escritura". 22Todos testemunhavam a seu respeito, e admiravam-se das
palavras cheias de graça que saíam de sua boca. E diziam: "Não é o filho de
José?" 23Ele, porém, disse: "Certamente ireis citar-me o provérbio: Médico,
cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum,
faze-o também aqui em tua pátria". 24Mas em seguida acrescentou: "Em
verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria. 25De
fato, eu vos digo que havia em Israel muitas viúvas nos dias de Elias,
quando por três anos e seis meses o céu permaneceu fechado e uma grande
fome devastou toda a região; 26Elias, no entanto, não foi enviado a
nenhuma delas, exceto a uma viúva, em Sarepta, na região de Sidônia.
27Havia igualmente muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu;
todavia, nenhum deles foi purificado, a não ser o sírio Naamã". 28Diante
dessas palavras, todos na sinagoga se enfureceram. 29E, levantando-se,
expulsaram-no para fora da cidade e o conduziram até um cimo da colina
sobre a qual a cidade estava construída, com a intenção de precipitá-lo de lá.
30Ele, porém, passando pelo meio deles, prosseguia seu caminho...

OBRA LUCANA (LC E AT) – 15


1. Dimensão cultual

Lucas é muito sensível à dimensão orante e, sobretudo, litúrgica. Isto é demonstrado


pelos quatro cânticos que marcam os dois primeiros capítulos de Lucas e pelo fato de o
terceiro evangelho abrir e fechar no templo de Jerusalém, o lugar eminente do encontro
com Deus e da oração de Israel. O cenário do início do ministério público de Jesus, na
sinagoga de Nazaré, confirma esta característica.

Lucas apresenta frequentemente Jesus rezando. Ele coloca a confissão messiânica de


Pedro num contexto de oração, convidando o leitor a aprofundar a fé cristológica na
mesma "onda".

2. Promessa - cumprimento

Outro aspecto característico do terceiro evangelho é a dimensão "cumprimento da


promessa". Em Jesus, no seu hoje, a Escritura profética se realiza. Como se deve
entender este "hoje"? Como limitado e circunscrito à pessoa e missão históricas de Jesus
(tal como Conzelmann o entende), ou melhor, como algo que se estende à comunidade,
à Igreja, que tem a sua origem nele? O conjunto da obra lucana sugere a segunda
alternativa. O hoje de Jesus continua, de fato, no hoje de Pedro e João que dão
testemunho. Em nome de Jesus de Nazaré, tanto hoje quanto então, a salvação é obtida
(ver Atos 4,9 e o seu contexto).

3. Boa Nova para os pobres

Uma terceira característica sublinhada por Lucas é os pobres como destinatários da


Boa Nova. Este aspecto tece em conjunto a humanidade requintada do Salvador, a sua
misericórdia e predileção pelos pobres e pecadores, aspectos evidenciados em algumas
parábolas indeléveis e exclusivas de Lucas. O texto profético, proclamado na sinagoga
de Nazaré (Is 61,1-2), não deixa dúvidas sobre a preferência de Jesus e Lucas: os
pobres, os presos, os cegos e os oprimidos (no sentido histórico e teológico) são os
destinatários diretos da missão evangelizadora do consagrado pelo Espírito. A salvação
prometida se cumpre para os pobres.

4. Aspecto salvífico

Para o terceiro evangelho Jesus é essencialmente o Salvador (cf. 2,11 e 23,43). Mais
do que Marcos e Mateus, Lucas apresenta Jesus como o revelador supremo da vontade
de perdão e de misericórdia do Pai. Em Nazaré ele proclama o ano do jubileu [no ano
do jubileu as dívidas eram perdoadas e os escravos libertados: Lv 25:8-17,23-25 e Jr

OBRA LUCANA (LC E AT) – 16


34,8-22], a oferta de perdão e libertação plena (Lc 4,18), sem alguma referência ao dia
da vingança presente no texto de Isaías (Is 61,2).

O mais interessante é que Lucas parte da salvação (e de uma salvação universal),


presente logo nos primeiros capítulos do seu evangelho. Além dos hinos e da citação de
Is 40,5 em Lc 3,6, temos de esperar até a chegada na casa de Zaqueu para encontrar a
palavra "salvação" (sôtería). Em que consiste tal salvação?

No Benedictus são especificados três aspectos: salvação para nós, salvação dos
nossos inimigos e salvação que se concretiza no "perdão dos pecados"; os pecados de
todos, e não só os de certas categorias de pessoas (os chamados "pecadores").

A oferta de salvação está sempre ligada ao livre arbítrio. Desde o início, o Salvador
Jesus é apresentado como um "sinal de contradição" (cf. 2,34). O discurso
programático, na sinagoga da sua cidade, traça um paralelo dramático entre os
nazarenos e os israelitas contemporâneos de Elias e Eliseu, que não beneficiaram da sua
atividade taumatúrgica. Não basta serem israelitas e concidadãos do Messias para serem
curados e beneficiados por ele. A salvação continua a ser uma escolha livre, também na
cruz (cf. 23,39-43).

5. Incredulidade de Israel

A incredulidade dos nazarenos antecipa a grande rejeição que se verifica em


Jerusalém, nos dias da Paixão, e na hostilidade experimentada pela igreja primitiva. O
paralelo de Atos 13,46-48 e Atos 28,28, textos em que a incredulidade dos judeus é
contrastada com a alegre aceitação da Palavra pelos pagãos, é esclarecedor a este
respeito.

6. Êxodo de Jesus
Por último, impressiona a peregrinação contínua de Jesus, a sua "partida". Este é
outro aspecto característico da teologia de Lucas (veja JOSEP RIUS-CAMPS, El éxodo del
hombre libre. Catequesis sobre el Evangelio de Lucas, Córdoba 1991). No monte da
transfiguração, Moisés e Elias falarão do seu "êxodo" (Lc 9,31: a expressão é típica do
terceiro evangelista), que Jesus "deverá realizar em Jerusalém". A expulsão da sinagoga
e da cidade de Nazaré é o prelúdio para esse êxodo. Começa a peregrinação de Jesus, a
sua partida para Cafarnaum, depois para as outras cidades da Galileia e, finalmente, para
Jerusalém e, de lá, para o céu (cf. Atos 1,10).

Esta singular "partida" de Jesus evangelizador é um exemplo único para a igreja de


Lucas e para todas as gerações: sugere que nenhuma dificuldade ou perseguição pode
bloquear a propagação da Palavra (Atos 8,4). O ponto de chegada de Jesus, o lugar onde
se realiza o seu "êxodo" - Jerusalém - torna-se o ponto de partida para o caminhar da
Igreja: de Jerusalém chegará todas as nações (cf. Lc 24,47).

OBRA LUCANA (LC E AT) – 17


Tema 13: LUCAS, HISTORIADOR E TEÓLOGO

1. Na exegese moderna

Nos tempos modernos, os aspectos teológicos e históricos da obra de Lucas são


vistos de maneira conflitiva. Isso implica em posições que se alternam, uma contínua
oscilação de pareceres que ora pendem para o lado de Lucas como um historiador e ora
para Lucas como teólogo.

A famosa escola de Tübingen, fundada por Ferdinand Christian Baur (1792-1860),


lançou suspeitas sobre a obra de Lucas e declarou que a sua reconstrução histórica era
tendenciosa. Lucas omite vários detalhes que Paulo menciona e de outros dá pelo menos
uma versão "diferente" (confronte especialmente Atos 15,20-29 com Gl 2,6). Além
disso, ele tende a glorificar tanto Pedro quanto Paulo: ambos são apresentados como
abertos aos pagãos; de facto, significativamente, a abertura aos pagãos é inaugurada por
Pedro (Atos 10,1 – 11,18). Por outro lado, o Paulo de Atos parece bem em harmonia
com as tradições hebraicas: aceita as cláusulas do Concílio de Jerusalém, faz com que
Timóteo seja circuncidado (Atos 16,1-3), faz um voto como um nazireu (Atos 18,18).
Porém, na realidade, esta leitura da história tem o objetivo de transmitir as intenções
teológicas de Lucas: ele quer ultrapassar o conflito entre judeus-cristãos e pagãos-
cristãos, convidando-os à moderação, com o exemplo dos seus respectivos líderes
históricos. De acordo com esta escola de pensamento, a imagem de Paulo é
supostamente "judaizada" na reconstrução de Lucas.

Nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do século XIX, foi de novo
adotada uma abordagem predominantemente histórica. A. von Harnack (1851-1930) é
entusiasta de Lucas: reavalia as pretensões literárias e volta a considerar Atos como uma
obra essencialmente histórica, sem tendências ideológicas históricas (Lukas der Arzt,
der Verfasser des dritten Evangeliums und der Apostelgeschichte: Beitrage zur Einl. em
das NT, 1, Leipzig 1906, p. 117). O trabalho de Lucas expressa um verdadeiro otimismo
para a cultura humana, aproxima-se do espírito grego e contribui para a cristianização
do helenismo que está na origem da nossa civilização.

2. Na exegese contemporânea
O trabalho de estudiosos como H. J. Cadbury (The Style and Literary Method of
Luke) tem ajudado a destacar a unidade linguística e estilística da obra de Lucas. O
próprio Dibelius deve concordar que Atos não é simplesmente uma coleção de
episódios pré-existentes na tradição oral.

O trabalho de Conzelmann (citado no início deste bloco) teve uma grande influência
nos estudos de Lucas. Em continuidade com as premissas de Bultmann, Conzelmann
argumenta que a teologia de Lucas tem o seu ponto de partida num problema central e

OBRA LUCANA (LC E AT) – 18


decisivo: o atraso da Parusia. Lucas tenta resolver o problema crucial mostrando as
razões do atraso, ou seja, porque é que a Parusia não pode se realizar logo. O seu ponto
crucial se encontra em Atos 1,6-8. Jesus não só rejeita a expectativa de uma Parusia
iminente (como em Lc 17,20; 19,11 e 21,7) e rechaça a incerteza do momento (cabe ao
Pai!), mas também acrescenta uma resposta contraditória: "Mas recebereis uma força, a
do Espírito Santo, que descerá sobre vós".

Para Conzelmann este "mas", em Atos 1,8, expressa uma "substituição" decisiva. À
questão da Parusia Lucas responde com a necessidade de um "tempo da Igreja". Nasce
assim uma "reestruturação" da expectativa escatológica: o esquema binário original
(promessa - cumprimento) é reestruturado num esquema ternário: promessa – Jesus -
Igreja. Não é tanto uma questão de quando o Reino virá, mas de pertencer a ele, de estar
nele.

Ernst Käsemann também vê o atraso da Parusia como o ponto de partida da teologia


Luca, mas, ao contrário de Conzelmann, acredita que Lucas enfatizou o já muito mais
do que o ainda não. Com outras palavras, Lucas introduziu uma ideia bastante
triunfalista da igreja, uma igreja que detém a salvação e que, num certo sentido,
suplanta o Reino.

3. Rumo a um melhor equilíbrio


A fase mais recente da exegese sobre Lucas atinge a sua posição de maior
serenidade.

a) A obra lucana é uma história

É característico da história apresentar uma sucessão de acontecimentos com as suas


interrelações mútuas. Embora a maior parte do material da obra consista em episódios
que poderiam ser independentes, o autor os apresenta em relação uns com os outros
através de vários procedimentos (indicações temporais e geográficas, sumários, etc.).

b) É uma história teológica

À base dos relatos está o fato de que é Deus (através dos seus enviados) que liga os
vários acontecimentos. Deus Pai é o responsável final pelo que acontece: as suas
promessas dirigem a história e a fazem avançar para o cumprimento do que foi
prometido (João, Jesus, a Igreja, a incredulidade judaica, etc. são apresentados como o
cumprimento do AT).

Deus age através do Espírito Santo, que dirige Jesus e a Igreja.

OBRA LUCANA (LC E AT) – 19


Por sua parte, Jesus é o grande protagonista presente ao longo da obra, de acordo
com o seu duplo estatuto: primeiro como profeta itinerante pelas estradas da Palestina,
depois como o Senhor glorificado que continua a agir através do testemunho da sua
Igreja. O seu comando determina a ação da Igreja: todo o livro de Atos corresponde à
obediência ao comando de Jesus:
Mas recebereis uma força, a do Espírito Anto que descerá sobre vós, e
sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até
os confins da terra” (Atos 1,8)

Jesus anuncia perseguições que a comunidade experimenta, anuncia a Paulo


dificuldades que são narradas mais tarde (cf. 9,16; 18,9; 23,11).

A presença abundante de elementos espetaculares é mais um sinal de que Deus está


presente, dirigindo a história e confirmando os seus enviados.

Lucas quer narrar a realização de um projeto de Deus, que continua a acontecer no


presente do leitor e avança para a sua plena realização no futuro. O leitor tem de entrar
nesta história assumindo as suas próprias responsabilidades inerentes ao seu momento,
como a primeira comunidade fez no seu tempo.

Lc-Atos representa o primeiro grande projeto de autoconhecimento da segunda


geração cristã, dentro da História da Salvação, que começou com Israel e continua na
Igreja.

4. Breve indicação bibliográfica

Para um estudo exaustivo e detalhado, os comentários científicos em espanhol são:

J. A. FITZMYER, El evangelio según Lucas, 4 vols. publicados, Madrid: 1986-


2006.
J. A. FITZMYER, Hechos de los Apóstoles, Madrid 1972.
JOSEP RIUS-CAMPS, El éxodo del hombre libre. Catequesis sobre el Evangelio de
Lucas, Córdoba 1991
J. RIUS-CAMPS, De Jerusalén a Antioquía. Génesis de la Iglesia Cristiana.
Comentario lingüístico y exegético a Hch 1-12 (Córdoba 1989).
J. RIUS-CAMPS, El camino de Pablo a la misión de los paganos. Comentario
lingüístico y exegético a Hch 13-28 (Madrid 1984).

Entre os clássicos da teologia lucana, um pouco discutido, mas com intuições muito
significativas:
H. CONZELMANN, El centro del tiempo. La teología de Lucas, (Madrid 1974)

Em Atos, além da introdução do manual do curso, temos obras interessantes,


especialmente do ponto de vista informativo:

OBRA LUCANA (LC E AT) – 20


Los Hechos de los apóstoles, (Cuadernos Bíblicos, 21) Estella 122000.

OBRA LUCANA (LC E AT) – 21

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