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Apêndice: as conclusões secundárias de Marcos1

Com 16,8 termina o evangelho de Marcos. No decurso da transmissão do texto,


criaram-se diversos finais ampliados. Não parecia satisfatório o final da obra de Marcos. Tal
impressão nasceu, em grande parte, da comparação com as conclusões dos restantes
evangelhos.
A seção 16,9-20 é a conclusão secundária mais conhecida.2 Inclusive chegou a ser
admitida na numeração dos versículos do evangelho. E, evidentemente, a tiveram em conta
os evangelhos posteriores.3 Mas, simultaneamente, os manuscritos neotestamentários
oferecem outras conclusões. O quadro é variado. O problema é, antes de tudo, de crítica
textual. Segundo a panorâmica oferecida por Kurt Aland4, pode resumir-se o testemunho dos
manuscritos da seguinte maneira:

1. O texto termina com 16,8. Atestam isso o Códice Vaticano (Séc. IV) e o Sinaítico
(Séc. IV) e o minúsculo 304 do século XII. O testemunho deste último é digno de ter-
se em conta, porque demonstra que a construção primeira se manteve nos manuscritos
do texto até a Idade Média avançada. Há que ter presente o Sirosinaítico.5
2. 16,1-8 + a chamada conclusão mais breve. Até o presente esta forma de texto está
documentada somente no manuscrito Bobbiensis dos séculos IV/V. (E elas
proclamaram concisamente tudo aquilo que lhes havia encarregado de falar aos que
estavam ao redor de Pedro. Mas depois, também, Jesus mesmo enviou desde o

1
Cf. GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. II. 411.
2
Considerando o texto de Mc 16,9-20, afirma Rudolf Pesch: O considerado final mais amplo, que Mateus
e Lucas não tinham ainda lido no Evangelho de Marcos, vem reunido a 16,8 no início do secundo século;
esse final não faz parte da obra original, mas foi declarado pelo Concílio de Trento parte do cânon
neotestamentário (conforme a Vulgata; Decretum de canonicis Scripturis de 8 de abril de 1546). Esta
decisão merece tanto mais respeito pelo fato de que não se pode desconsiderar que a conclusão canônica
de Marcos tenha resumido tradições do período apostólico (e, por isso, corresponda a um fundamental
critério de canonicidade). Cf. PESCH, Rudolf. Il Vangelo di Marco. Vol. II. Brescia: Paideia, 1980, p. 793.
O mesmo autor afirma no Vol. I, p. 93 deste comentário, que tal final mais amplo corresponde a 99% de
toda a tradição manuscrita.
3
Tal final é posterior à composição dos evangelhos canônicos. O terminus ante quem é estabelecido por
Pesch (Vol. I, p. 93) no ano 180, uma vez que Santo Irineu, na obra Adversus Haereses cita Mc 16,19 como
sendo o final do Evangelho de Marcos. Pesch considera que a expressão πανταχοῦ ἐκήρυξαν encontrada na
I Apologia de São Justino (45,5) possa ser uma referência a Mc 16,20 e que a expressão “no mundo inteiro”
encontrada no Pastor de Hermas (102,2) possa ser um aceno a Mc 16,15. Se assim for, esse final mais longo
seria conhecido antes do ano 150. A frase de Gnilka parece despertar-nos algumas dúvidas. Parece, à
primeira vista, sugerir que os evangelhos posteriores (Mt e Lc) se inspiraram nesse final de Marcos. É
possível que Gnilka esteja considerando a hipótese deste final acrescentado a Marcos ser fruto de uma
tradição anterior, que fazia parte de uma compilação de narrativas pascais. Nesse sentido se poderia supor
que os autores de Mt e Lc tenham tido contato com essa tradição comum. Em síntese, afirma Pesch:
Constatamos que Mc 16,9-20 não depende dos evangelhos canônicos, mais remonta, ao menos em parte,
a tradições mais antigas e pode ser entendido principalmente como estrato de um contexto tradicional pré-
lucano. Tal constatação concorda com as ulteriores observações segundo as quais o texto não é
evidentemente composto como conclusão do Evangelho de Marcos, mas (em forma parcialmente diversa)
existia já antes como compilação ou estrato de narrativas pascais. (cf. Pesch, vol. II, p. 796).
4
KURT, Aland. Bemerkungen zum Schluss des Markusevangelium. In: Neotestamentica et Semitica,
Edinburgh, 1969, 157-180.
5
Palimpsesto do séc. IV encontrado no Monte Sinai no final do século XIX. Trata-se de uma versão
aramaica (siríaca) do Novo Testamento.

1
Oriente até o Ocidente, através deles, a santa e indestrutível mensagem da salvação
eterna. Amém.
3. 16,1-8 + 9-20, onde a dúvida acerca da pertença de 9-20 ao texto se expressa por meio
de anotações ou sinais.
4. 16,1-8 + 9-20 em texto contínuo.
5. 16,1-8 + 9-14 + Freer-logion (ver abaixo) + 15-20. Esta forma do texto está
documentada, até hoje, somente no Codex Freerianus, dos séculos IV/V e, segundo
Aland, é um desenvolvimento especial da quarta forma do texto.
6. 16,1-8 + a chamada conclusão mais breve + 9-20. Pelo que se refere à transmissão
grega do texto, se encontra esta forma em quatro manuscritos maiúsculos, em um
minúsculo e em um lecionário uncial (além disso, aparece como nota marginal em
um manuscrito minúsculo).

De acordo com a forma textual do sexto grupo, apresentamos primeiro a conclusão


mais breve. Nenhum manuscrito documenta a colocação de 9-20 diante da conclusão mais
breve.

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Códice Washingtoniano (séc. IV/V): contém os evangelhos. Foi adquirido no Egito em 1906
por Charles Freer, por isso também é chamado de manuscrito dos “Evangelhos Freer”. Ele se
encontra no Museu Freer na Instituição Smithsoniana (instituição fundada por James
Smithson no século XIX para promoção e disseminação do conhecimento), em Washington.
Neste Códice encontramos o chamado “Freer Logion” de Mc 16,14: “E eles se desculparam
dizendo: Esta era de impiedade e incredulidade está sob o domínio de Satanás, que não
permite que a verdade e o poder de Deus prevaleçam sobre as imundícias dos espíritos [ou:
‘não permite que o que jaz sob os espíritos imundos entenda a verdade e o poder de Deus’].
Por isso, revela agora a tua justiça – assim disseram a Cristo. E Cristo lhes replicou: O
limite de tempo do poder de Satanás está cumprido, mas outras coisas terríveis se
aproximam. Pelos que pecaram eu fui entregue à morte, para que retornem à verdade e não
pequem mais, a fim de que possam herdar a glória espiritual e incorruptível da justiça que
está no céu.6
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Uma parte deste acréscimo aparece em Jerônimo, na sua carta dirigida a Pelágio (2,15): “E
eles se desculparam dizendo: Esta era de impiedade e incredulidade está sob o domínio de
Satanás, que não permite que a verdade e o poder de Deus prevaleçam sobre as imundícias
dos espíritos [ou: ‘não permite que o que jaz sob os espíritos imundos entenda a verdade e o
poder de Deus’]. Por isso, revela agora a tua justiça” (‘et illi satisfaciebant dicentes:
Saeculum istud iniquitatis et incredulitatis [=sub Satana?] est, quae non sinit per immundos
spiritus veram Dei apprehendi virtutem: idcirco iamnunc revela iustitiam tuam’). (cf. NA 28
p. 176)

6
PAROSCHI, Wilson. Origem e transmissão do texto do Novo Testamento. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2012, pp. 56-57.

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