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BÍBLICA
Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Hermenêutica Bíblica
Disciplina na modalidade a distância
São Paulo
2021
Créditos
Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Coordenação Acadêmica
Prof. Me. Luiz Alberto Teixeira Sayão
Editoração
Victor de Lima Viana
Sumário
1. A definição de hermenêutica
1
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 29.
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Talvez esse aspecto da leitura como interpretação fique ainda mais evidente
se pensarmos numa pessoa que está lendo a Bíblia pela primeira vez, sem ter uma
tradição cristã que a oriente quanto ao significado histórico-contextual e teológico
das palavras que ela está lendo. Quando ela ler “Este é o meu mandamento: Amem-
se uns aos outros” (Jo 15.17), o que esse texto significará para ela? Será que o
sentido de “amor” em nossa cultura vigente é o mesmo que encontramos no Novo
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É claro que essa constatação é válida para a leitura de qualquer outro texto.
Ao fazermos a leitura, estamos levando ao texto o nosso conhecimento prévio sobre
as palavras e ideias que ali estão. Isso, que chamamos acima de pré-compreensão
ou “conhecimento prévio”, é a nossa bagagem cultural, vocabulário, formação
doutrinária, ideológica, mas também as expectativas de que o texto diga algo que
nos seja mais confortador do que confrontador. O problema é que é impossível
lermos um texto sem que isso aconteça. Inconscientemente, sempre leremos textos
carregando conosco inúmeros pressupostos. A nossa tarefa, portanto, não é a de
livrar-nos de todos os nossos pressupostos ao lermos e interpretarmos um texto.
Tais pressupostos podem até ser importantes no processo de interpretação. Mas,
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Baseamo-nos aqui na esclarecedora explicação de Richard E. Palmer sobre o significado moderno
de hermenêutica a partir do seu antigo uso: PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70,
2011, p. 23-41. (Coleção: O saber da filosofia - 15).
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Por fim, o terceiro sentido é traduzir. Esse é um aspecto que pode passar
despercebido quando texto e leitor compartilham a mesma língua. Mas se tratando
do texto da Bíblia, não podemos ignorar esse aspecto, pois ele é decisivo. É
evidente que a Bíblia em língua portuguesa é tradução dos originais hebraico,
aramaico e grego. Ela é oriunda de um mundo muito diferente do nosso, distante de
nós no tempo, no espaço e nas línguas. Traduzir a Bíblia é uma tarefa de alto grau
de complexidade. Visto que o processo de tradução não consiste em meramente
encontrar sinônimos entre os idiomas, a pessoa que traduz exerce a função de
intérprete.
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3
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 4 ed. São Leopoldo:
Sinodal; São Paulo: Paulus, 2005. 414 páginas. (Atualmente o livro encontra-se na oitava edição,
com 444 páginas). O livro de Uwe Wegner é um dos mais completos manuais de exegese de método
histórico-crítico (que explicaremos mais adiante) que temos em língua portuguesa.
Mesmo se tratando de um livro técnico, a sua organização utiliza tabelas e caixas de texto com
explicações que facilitam o entendimento dos passos exegéticos, bem como o manuseio da obra, ou
seja, o livro foi escrito e organizado com clareza didática. Ele é bastante detalhado, com rica
explicação dos passos exegéticos, desde a tradução literal do texto até a atualização do sentido da
mensagem do texto, em que todo o processo exegético é demonstrado na prática interpretativa do
texto de Mc 2.15-17 e os textos paralelos em Mt 9.10-13 e Lc 5.29-32.
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FEE, Gordon.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? Um guia para entender a Bíblia com o
auxílio da exegese e da hermenêutica. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2002. 330 páginas. (Atualmente o
livro encontra-se na terceira edição revista e ampliada, de 2011, com 336 páginas). Este é
possivelmente o manual de exegese bíblica de método histórico-gramatical (que explicaremos mais
adiante) mais popular em faculdades e seminários teológicos de tradição protestante e evangélica.
Gordon Fee é professor emérito do Regent College – Canadá, especialista em Novo Testamento,
com diversos livros escritos sobre teologia do Novo Testamento, exegese e comentários bíblicos.
Douglas Stuart é professor no Gordon-Conwell Theological Seminary – Estados Unidos, especialista
em Antigo Testamento. O aspecto mais importante dessa obra é o método de interpretação de acordo
com os gêneros literários da Bíblia (epístolas, narrativas, evangelhos, leis etc.). É um livro de
linguagem simples, pouco técnico, portanto, um excelente ponto de partida para quem está iniciando
os estudos sobre interpretação bíblica.
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ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007. 159 páginas. O manual de
exegese do prof. Júlio Zabatiero é uma obra que recomendamos por ser uma alternativa aos manuais
tradicionais dos métodos histórico-crítico e histórico-gramatical. A sua perspectiva não substitui esses
métodos, mas busca conciliar e integrar as orientações de métodos tradicionais e modernos, sendo
que os métodos tradicionais (histórico-crítico e histórico-gramatical) focam na intenção do autor e do
texto (passado), enquanto que a tendência de métodos modernos é focar o leitor (presente). Para
tanto, o autor opta por uma perspectiva sêmio-discursiva, cujo foco está na ação no texto e a partir do
texto.
6
Apenas alguns exemplos no evangelho de Mateus: 12.1-37; 15.1-20; 16.1-12; 19.1-12
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A Palavra de Deus é infalível, pois o que ele diz é verdade. Mas nenhum
indivíduo, grupo ou igreja já foi ou será intérprete infalível da Palavra de
Deus. As interpretações humanas pertencem à esfera da tradição, e contra
a tradição pode-se sempre apelar-se para a própria Escritura que a tradição
alega estar interpretando (2005, p. 209, 210).
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Esse é o resultado de uma leitura da Bíblia feita com mente e coração, critério
e obediência, técnica e espiritualidade. A Bíblia, pela ação do Espírito próprio dela e
que igualmente atua em nós pela fé, exerce o papel de intérprete da nossa vida e do
nosso tempo. É o que encontramos no próximo exemplo.
Em Lucas 24.13-35 lemos sobre o encontro de Jesus com dois discípulos que
caminhavam de Jerusalém para Emaús. Os discípulos estavam tristes porque Jesus
fora crucificado. Quando Jesus, ressurreto, se pôs a caminhar e a conversar com
eles, não puderam reconhecê-lo. Então, em resposta às questões que Jesus
levantou, eles revelaram que estavam frustrados, pois haviam colocado as
esperanças em Jesus como o redentor de Israel, mas foram surpreendidos pela sua
morte de cruz (v. 19b-21).
A frustração dos discípulos diante dos fatos ocorridos entre eles exigiu de
Jesus uma interpretação das Escrituras (v. 25-27). Segundo as palavras de Jesus,
conforme a narrativa de Lucas, aqueles discípulos tinham um problema de
entendimento e de fé acerca das palavras dos profetas (v. 25). Jesus mostrou para
eles que o sofrimento do Cristo precedia a sua glória (v. 26), portanto, aqueles
eventos terríveis relacionados à crucificação de Jesus, ao invés de ser motivo de
tristeza e desespero, deveriam ser vistos como cumprimento das Escrituras, ou seja,
a situação não era para lamento e dor, mas para alegria, comunhão e proclamação,
pois tudo estava perfeitamente dentro dos planos de Deus conforme as Escrituras.
Para tanto, Jesus “explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as
Escrituras” (v. 27).
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Note que a situação dos discípulos foi iluminada por meio da interpretação e
exposição das Escrituras feitas por Jesus. Em outras palavras, a interpretação
ocorreu em duas direções:
a. A interpretação da mensagem dos profetas (texto)
b. A interpretação da situação presente de Jesus e dos discípulos por meio das
Escrituras
A cena seguinte apresenta Jesus e os discípulos em comunhão de mesa (v.
28-32), onde finalmente Jesus foi reconhecido por eles enquanto partia o pão (v. 30-
32). Significativas são as palavras deles acerca da explicação das Escrituras: “Não
estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho e nos
expunha as Escrituras?” (v. 32).
A explicação das Escrituras faz arder o coração, muda a perspectiva sobre a
nossa situação, nos leva ao compromisso com Deus e com a sua história. Ela
prepara o cenário para termos comunhão com o Cristo ressuscitado, transformando
a frustração causada pela morte em testemunho da ressurreição (v. 33-35).
Portanto, a Bíblia – a Palavra de Deus –, por ser texto, exige interpretação.
Tal interpretação precisa ser orientada por critérios auxiliadores para termos uma
melhor compreensão do texto. E a mensagem da Bíblia abre o caminho para
interpretarmos a nossa história à luz da história que ela narra.
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Saiba mais
FEE, Gordon.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? Um guia para entender a
Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica. 2 ed. São Paulo: Vida Nova,
2002.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 4 ed. São
Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2005.
ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.
Para reflexão
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O termo “cristandade” engloba todos os cristãos e igrejas cristãs de todos os tempos.
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ela “contém o discurso fundante da fé cristã, sendo por isto a norma suprema da
cristandade”, de modo que “não há comunidade cristã sem Bíblia”. É a Bíblia que
“preserva a identidade cristã no decurso dos tempos e na variação dos lugares, das
culturas e dos contextos sociais. [...] Fé que se fundamenta em Jesus Cristo tem
natureza bíblica. É através desses escritos que a voz de Jesus de Nazaré, do Deus
Criador e do Espírito Santo chega a nós.” (BRAKEMEIER, 2007, p. 7).
Por isso a Bíblia, para os cristãos, é a “Palavra de Deus”8. Essa afirmação é
uma declaração de fé da cristandade. Afirmar que a Bíblia é “Palavra de Deus”
revela uma certeza da fé: de que Deus se revelou à humanidade nas – e por meio
das – Escrituras. Por isso mesmo, a Bíblia é a única regra de fé e prática dos
cristãos.
Dessa maneira, a Bíblia é um meio de comunicação e não uma finalidade em
si. Ela é caminho e testemunha para algo maior do que ela mesma: o Deus que se
revela nela e por meio dela. E é justamente por isso que ela é reconhecida pela
cristandade como Escritura Sagrada. Não porque a igreja a preserva como um
objeto sagrado, uma relíquia, como se o livro fosse mágico e pudesse ser usado
como objeto de culto, mas por ser um instrumento escolhido pelo próprio Deus para
se revelar a nós. O reconhecimento dessa revelação de Deus é o que torna
“Sagrada” a “Escritura”, portanto, um primeiro aspecto da Bíblia é a sua
“sacralidade”, o reconhecimento de que ela traz uma mensagem de Deus para a
humanidade.
A revelação divina que encontramos nas Escrituras aconteceu pelo processo
descrito no dogma cristão da “inspiração das Escrituras”. A teologia que se afirma
como cristã reconhece a inspiração divina das Escrituras. Não pode haver dúvidas
quanto a isso. No entanto, ao longo do tempo a igreja se dividiu em diferentes
perspectivas teológicas acerca de como essa inspiração aconteceu9.
8
Assim como se discute sobre como ocorreu o processo de inspiração das Escrituras, também se
discute se a Bíblia é, contém ou torna-se a Palavra de Deus. São dois temas relacionados. Fugiria ao
nosso propósito discutir essa questão aqui. Por isso, quando escrevemos que a “Bíblia é Palavra de
Deus” não estamos fazendo uma opção entre essas três teorias.
9
Há diversas obras que discutem a inspiração da Bíblia. Sugiro aqui duas leituras de perspectivas
teológicas distintas para apresentar ao estudante o debate acerca do assunto: BRAKEMEIER,
Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado – fundamento. 2 ed. São Leopoldo:
Sinodal; EST; CEBI, 2007, p. 33-38; GEISLER, Norman; NIX, William. Introdução bíblica: como a
Bíblia chegou até nós. São Paulo: Vida Acadêmica, 2006, p. 15-24.
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Os autores bíblicos não anunciam uma ideia de Deus, mas sim, a Palavra
de Deus, porque a Escritura reflete primária e fundamentalmente a palavra
divina, a vontade comunicativa de Deus ao homem. Para isso, o
instrumento genuíno e normal de intercomunicações é a linguagem, e Deus
o assume. Se dizemos que a Bíblia é palavra inspirada, estamos afirmando
que nos encontramos diante de uma questão de linguagem; o autor bíblico
realiza um trabalho com a linguagem, como qualquer outro escritor elabora
uma experiência para torná-la comunicável. O escritor realiza uma
atividade; na tradição grega, a atividade do escritor é poiesis (ação) e o seu
resultado é o poíema (ato, obra) (SCHÖKEL, 1994, p. 23).
Deus nos deu sua palavra, e esta chegou até nós pelo trabalho de escritores.
Esses escritores não nos contaram as suas ideias sobre Deus, suas conjecturas
teológico-filosóficas, nem escreveram dicionários de teologia. Eles nos contaram as
experiências de vida, deles próprios e do seu povo. E nessas experiências de vida
narradas, juntamente com as suas poesias e canções, leis, profecias, salmos,
provérbios e cartas é que encontramos a sua “teologia”, isto é, o que eles tinham a
dizer sobre a vida humana que acontece diante do Deus que se revela e sobre o
Deus que intervém na história e vida humanas. Em tudo isso, pela fé, se percebe a
10
Sugerimos a leitura do seguinte livro, que é ótima pesquisa sobre as influências culturais
envolvidas no processo de revelação de Deus por meio da história do povo de Israel, no Antigo
Testamento, e a Igreja, no Novo Testamento, especialmente as páginas 331-342: REINKE, André
Daniel. Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.
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inspiração, o “sopro divino” (2Tm 3.16) que transforma histórias comuns – como a
nossa! – numa grande história de reconciliação entre Deus e sua criação11.
Em resumo, vimos os dois aspectos da Bíblia enquanto “Escritura Sagrada”.
Ela é “sagrada” pelo reconhecimento que os cristãos fazem de que há nela uma
mensagem da parte de Deus para a humanidade. Ela é “escritura” porque é texto,
fruto da criatividade humana expressa na linguagem e na sua diversidade literária.
Assim, ela é uma construção também humana, sem perder o seu aspecto divino.
Portanto, na própria existência da Bíblia, enquanto texto, já temos o milagre que ela
própria quer nos contar: a reconciliação entre Deus e a humanidade, o divino e o
humano. Por isso não se pode subtrair da Bíblia a sua qualidade divina, da mesma
forma como não se pode subtrair a sua qualidade humana.
Por isso mesmo, o motivo mais significativo para a necessidade de
interpretação da Bíblia é encontrado na natureza da Escritura. Historicamente a
igreja tem compreendido a natureza da Escritura muito semelhante à sua
compreensão da Pessoa de Cristo: a Bíblia é, ao mesmo tempo, humana e divina.
Assim como Cristo, ela é verbo divino que se fez carne; palavra divina que se fez
texto. Ela é Palavra de Deus comunicada em palavras de pessoas dentro do tempo
histórico. É essa natureza dupla da Bíblia que exige da nossa parte a tarefa da
interpretação.
A Bíblia é relevante porque é Palavra de Deus que fala para toda a
humanidade em todas as eras e em toas as culturas. Se a nossa fé está mesmo
correta em afirmar a Bíblia como Palavra de Deus, significa que Deus quer se
comunicar por meio dela e ser conhecido pela humanidade que criou em amor. Ao
mesmo tempo, se ela é Palavra de Deus, devemos escutar o que ela diz e a
obedecer. Aceitamos a autoridade da Bíblia porque pela fé entendemos que é Deus
quem fala por meio dela. Como bem disse o biblista Carlos Mesters:
A fé nos diz que a Bíblia é a palavra de Deus para nós. “... Nem só de pão
viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt
4.4; Dt 8.3b). Uma palavra tem a força e o valor daquele que a pronuncia. A
11
“Reconciliação” é um termo chave para compreendermos a história bíblica. Recomendo a seguinte
obra de Enio R. Mueller, que apresenta a mensagem da Bíblia sob a perspectiva da reconciliação:
MUELLER, Enio R. Caminhos de reconciliação: a mensagem da Bíblia. Joinville: Grafar, 2010. Em
especial, recomendo a leitura dos capítulos 17 e 18 (páginas 158-189), que são dedicados à
explicação do método hermenêutico utilizado pelo autor.
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palavra humana pode errar e enganar, pois o homem é fraco e não oferece
segurança total. Mas a palavra de Deus não erra nem engana. Ela é prego
seguro e firme que sustenta a vida de quem nela se agarra e por ela se
orienta. Por isso, “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino,
para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o
homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra”
(2Tm 3.16-17). Assim, “por meio da perseverança e do bom ânimo
procedentes das Escrituras, mantenhamos a nossa esperança” (Rm 15.4)
(MESTERS, 1991, p. 12).
Mas porque Deus escolheu falar sua Palavra através das palavras humanas
na história, todo livro na Bíblia também tem particularidade histórica; cada
documento é condicionado pela linguagem, pela sua época, e pela cultura em que
originalmente foi escrito (e em alguns casos também pela história oral que teve
antes de ser escrito). A interpretação da Bíblia é exigida pela “tensão” que existe
entre relevância eterna e sua particularidade histórica (FEE; STUART, 2002, p. 17).
Como os autores bíblicos não estão acessíveis a nós para responderem as
nossas perguntas sobre o sentido das palavras que eles usaram – se devemos
entender isso ou aquilo como literal ou metáfora –, nem podem nos dar explicações
acerca de frases e parágrafos, tampouco eles estão aqui para elucidar as passagens
mais difíceis que escreveram e explicarem a sua “teologia”, cabe à tarefa da
hermenêutica trazer à luz a resposta para essas questões.
Como temos enfatizado, a hermenêutica é tarefa para fé e razão, pois o seu
objeto de estudo é um livro divino-humano; é arte e técnica porque a realizamos com
paixão e critério. Passaremos agora a discorrer sobre o papel humano na
interpretação e como Deus nos ajuda a interpretar.
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Para não cairmos no erro exposto por Vanhoozer, a saber, o de praticar uma
interpretação que evita que sejamos confrontados pela mensagem das Escrituras;
que não nos leva à obediência, tampouco à paixão pela Palavra de Deus, é
necessário praticar uma leitura integral da Bíblia, em que a fé e a razão atuam
juntas, pois, se a Bíblia é simultaneamente obra divina e humana, como vimos
acima, então não será possível compreender o seu sentido e verdade se não for
12
O livro de Kevin Vanhoozer se insere na discussão sobre as novas perspectivas hermenêuticas
vindas desde a modernidade e pós-modernidade, entrando em discussão com os principais
postulados das escolas filosóficas de interpretação literária, defendendo uma hermenêutica que siga
a tradição reformada, sem deixar de dialogar e tentar responder aos questionamentos
contemporâneos. É uma importante obra sobre a hermenêutica contemporânea, fruto de uma sólida
pesquisa. Para o seu melhor aproveitamento é requerido ao menos um pouco de familiaridade com a
discussão em pauta. VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os
enfoques contemporâneos. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005. 663 páginas.
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pelo acesso integral: a força da fé iluminada pela razão13. Adiante retomaremos esse
assunto para elucidar o significado de uma leitura crítica, portanto, racional da Bíblia.
É valido grifar o que o autor diz sobre a interpretação da Bíblia ser um
privilégio e uma responsabilidade, que nos permite cumprir a meta de recuperar e de
nos relacionar com a mensagem que vem de Deus a nós pelas Escrituras. O acesso
à verdade bíblica, portanto, deve se dar por meio de instrumentos que o próprio
Deus concedeu a nós.
13
Esta é uma importante contribuição da obra da exegeta francesa Anne-Marie Pelletier, que discute
sobre os problemas e oportunidades que a hermenêutica bíblica tem na atualidade. PELLETIER,
Anne-Marie. Bíblia e hermenêutica hoje. São Paulo: Loyola, 2006.
14
O livro de Stott é uma introdução à Bíblia que dedica grande parte à sua mensagem, interpretação
e uso. Recomendamos o livro porque reúne uma introdução à Bíblia com enfoque hermenêutico,
sendo, a meu ver, uma das melhores obras de hermenêutica bíblica em perspectiva histórico-
gramatical em língua portuguesa. STOTT, John. Entenda a Bíblia. Ed. Rev. São Paulo: Mundo
Cristão, 2005.
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Julgo importantíssimo unir espiritualidade e técnica no processo hermenêutico. Essa citação é do
livro: PETERSON, Eugene. Coma este livro: as Sagradas Escrituras como referência para uma
sociedade em crise. Niterói: Textus, 2004. O subtítulo original é “a arte da leitura espiritual”, muito
mais adequado ao conteúdo. Eugene Peterson (1932-2018), famoso pastor e teólogo estadunidense,
professor do Regent College, autor de diversos livros e tradutor da Bíblia A Mensagem, nessa obra
busca resgatar a importância da leitura espiritual da Bíblia, a Lectio Divina, tão importante na tradição
cristã e que jamais deveria ser deixada de lado para ser substituída por uma leitura puramente
acadêmica da Bíblia. Considero um dos melhores livros sobre o assunto.
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Vocês podem reconhecer o Espírito de Deus deste modo: todo espírito que
confessa que Jesus Cristo veio em carne procede de Deus; mas todo
espírito que não confessa Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito do
anticristo, acerca do qual vocês ouviram que está vindo, e agora já está no
mundo (1Jo 4.2,3).
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Indicamos na Unidade 1 obras representantes de cada um dos métodos, a saber, os livros de Uwe
Wegner (histórico-crítico) e de Gordon Fee e Douglas Stuart (histórico-gramatical). O método
histórico-gramatical é o método comum da ala conservadora, reformada, evangelical da teologia
cristã. Sua principal característica é a baixa crítica quanto à formação dos textos e a concentração do
método no sentido literal e gramatical do texto. Destaca-se também a ênfase que dá à inspiração
verbal das Escrituras e a consequente doutrina da inerrância bíblica. A maioria dos comentários
bíblicos em língua portuguesa mais populares são de hermenêutica histórico-gramatical. O método
histórico-crítico, por outro lado, é mais comum entre os herdeiros da teologia liberal alemã, sendo a
sua principal característica a análise crítica e histórica do processo de formação dos textos bíblicos e
o seu impacto no sentido dos mesmos.
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O método histórico-crítico, por sua vez, inclui esse sentido de crítica, mas vai
além, ao incorporar os critérios de investigação da ciência histórica aos textos
bíblicos. Assim, o método histórico-crítico:
pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado’” (Lc 10.21). Entretanto, é um fato
que o conhecimento das línguas hebraica e grega trará contribuições significativas, e
muitas vezes, determinantes, para a tarefa hermenêutica.
A hermenêutica, portanto, traz consigo uma diversidade de ângulos que
precisam ser observados. O estudo profundo de um texto precisa ser realizado em
perspectiva lexical, gramatical, cultural, teológica, histórica, geográfica, bem como a
conexão de cada texto estudado com o restante do livro em que a passagem se
encontra, e com o restante da Bíblia. É, realmente, uma tarefa que exigirá grande
esforço e dedicação:
“Quando tudo lhe parecer muito difícil, lembre-se do antigo provérbio que nos
foi transmitido por Platão: chalepá tá kalá – as coisas belas são difíceis!”
(BRANDÃO, 2009, p. 18).
Na próxima unidade começamos a nos aproximar do texto bíblico. Toda
interpretação começa com a leitura, e com ela, vem a observação. Aprenderemos
como fazer uma primeira leitura atenta da Bíblia e para onde devemos dirigir a nossa
atenção a fim de iniciarmos os nossos estudos.
17
Karl Barth também faz um apelo ao estudo diligente, feito com oração e esforço, como mostras de
fidelidade ao labor teológico: BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. 9 ed. revisada São
Leopoldo: EST; Sinodal, 2007. P. 101-115.
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Saiba mais
Para reflexão
1. Interpretar a Bíblia sem ser confrontado por sua mensagem é um erro
exposto por Vanhoozer a partir das parábolas de Kierkegaard. De que forma
esse erro acontece? Como podemos evitá-lo?
2. Por que a orientação do Espírito Santo é fundamental para a interpretação
das Escrituras?
3. Qual a importância dos métodos hermenêuticos?
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1. O contexto histórico
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Gálatas 4.4: “Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu
Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da Lei” (Nova Versão
Internacional – NVI).
João 1.14: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e
de verdade” (NVI).
Hebreus 1.1-3: “Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias
maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes
últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de
todas as coisas e por meio de quem fez o universo” (NVI).
Em Gálatas 4.4, Paulo afirma que Deus enviou o seu Filho ao mundo na
“plenitude do tempo”. Ele nasceu de mulher – como todos nós –, debaixo da Lei –
como todo judeu –, herdeiro das Escrituras, alianças e promessas entre Deus e o
seu povo. Ao final do primeiro século, João, escrevendo sobre Jesus, disse que
aquele que é a Palavra se fez carne e habitou entre nós. Ambos os textos apontam
para o fato de que Jesus não se fez carne em sentido geral, ao contrário, ele se fez
carne em sentido particular, nascido especificamente de uma mulher, Maria,
prometida em casamento para um descendente de Davi, José. Jesus se fez carne
como judeu, debaixo da Lei, galileu e nazareno. Seu nascimento, formação,
ministério, morte e ressurreição foram delimitados histórica e geograficamente.
Consequentemente, língua, cultura, política, economia, sociedade, religião – todos
esses elementos que estão na base e no entorno de todos nós –, estiveram
igualmente presentes na vida do Filho de Deus.
O terceiro texto, Hebreus 1.1-3, fala de um contexto amplo no qual Jesus se
insere, que é o da revelação de Deus e de sua vontade para o seu povo e,
consequentemente, para toda a humanidade. Os primeiros cristãos entenderam que,
em Jesus, Deus estava falando e agindo. Esse era um povo acostumado com um
Deus que se revela, como o texto deixa subentendido pela afirmação “Há muito
tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por
meio dos profetas”. Em seu Filho, Deus estava utilizando um novo meio de
comunicação com o seu povo: “mas nestes últimos dias falou-nos por meio do
Filho”. Essa comunicação, obviamente, estende-se a nós. Porém, para que
chegasse até nós, ele falou anteriormente com os primeiros ouvintes e leitores
dessa mensagem que conhecemos como Evangelho. Para dizer de outra forma, a
Bíblia não foi diretamente escrita a nós que vivemos no século XXI. Perceba o
aspecto temporal que há na frase: “mas nestes últimos dias falou-nos por meio do
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Filho”. O óbvio precisa ser dito: aqueles foram os primeiros a terem contato com as
narrativas da vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus, bem como o
significado de tudo isso como salvação para quem crê. Jesus, como fala de Deus,
aconteceu num momento específico da história da humanidade. E como tudo o que
acontece no tempo, ele também aconteceu no espaço: a Palestina do primeiro
século da era cristã. É por causa da importância do contexto que Lucas faz
referências ao tempo histórico dos eventos que ele narrou (por exemplo: Lc 1.5; 2.1-
3; 3.1,2).
O contexto histórico é um fator determinante na interpretação de um texto,
pois todo texto está inserido em um contexto que envolve a cultura, o estilo de vida,
os costumes, o sistema de valores e a economia.
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Deus mandou Noé construir uma arca. Mas por acaso isso significa que
todo cristão moderno deve construir uma arca? Precisamos entender a
ordem que Noé recebeu dentro de um contexto histórico e geográfico
específico. Jesus disse que seus 12 discípulos não entrassem em nenhuma
cidade dos samaritanos (Mt 10.5). É óbvio que isso não significa que os
leitores de hoje nunca devam entrar numa cidade de Samaria (1994, p.
74,75).
mensagem para hoje. Esse critério nos ajudará a discernir entre o que é narrativo,
informativo e normativo.
Nem todos os textos das Escrituras são normativos. Esse postulado é
fundamental para a interpretação especialmente de textos narrativos, que formam a
maior parte da Bíblia. Isso porque textos narrativos não trazem um ensino de forma
direta e explícita, embora em diversas ocasiões ilustrem um ensino explícito
encontrado em outras partes da Bíblia18.
Por exemplo, Davi cometeu adultério porque cobiçou a mulher de Urias e
depois, para livrar-se de um problema maior, porque Bate-Saba ficou grávida,
arquitetou a morte de Urias em batalha, o que sabemos que aconteceu conforme o
plano de Davi (2Sm 11). Em nenhum lugar nessa narrativa encontraremos
aplicações do tipo: Então, com os erros de Davi, aprendemos que cobiçar, adulterar
e matar, conforme a lei de Êxodo 20.1-17, são ações que Deus reprova. Ou seja, a
narrativa sobre o pecado de Davi ilustra um ensino que, em outra passagem bíblica,
foi dado diretamente. A normatividade de um texto, portanto, precisa ser atestada
por uma visão de todo da Escritura. Acredito que o seguinte exemplo de Luiz Sayão
pode esclarecer:
18
Como afirma FEE; STUART, 2002, p.113. Voltaremos a esse assunto quando estudarmos a análise
de textos narrativos.
Página 40
Podemos também pensar em Atos 2.42-47 e 4.32-37, onde por duas vezes
Lucas escreve sobre uma prática da primeira igreja: vender os bens e entregar o
valor da venda aos apóstolos para que distribuíssem entre dos demais da
comunidade para que todos fossem assistidos em suas necessidades. Existe aqui
uma narrativa que nos fornece uma informação sobre um costume da primeira
igreja, que não encontra no restante do Novo Testamento nenhuma recomendação
para que seja adotado por todas as comunidades cristãs como uma lei. Trata-se,
portanto, de um texto informativo e não normativo.
Mesmo assim, devemos observar o princípio que orienta essa ação dos
primeiros cristãos de Jerusalém, e desse princípio, extrair o ensino dessa narrativa
para nós hoje. Sabemos que o amor a Deus e ao próximo, como um movimento
único, é a lei que orienta a vida da pessoa cristã (exemplo: Mt 22.34-40; Gl 5.13-16;
Rm 13.8-10; 1Jo ). Ajudar os necessitados é uma prática que certamente expressa o
amor de uns pelos outros, bem como é imperativo explícito nos textos didáticos do
Novo Testamento, que são especialmente as cartas. Paulo, ao contar que a
liderança da igreja em Jerusalém havia reconhecido o seu chamado aos gentios,
escreve: “Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o que me esforcei
por fazer” (Gl 2.10). Tiago afirma: “A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como
pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não
se deixar corromper pelo mundo” (Tg 1.27). João insiste: “Nisto conhecemos o que é
o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por
nossos irmãos. Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em
necessidade, não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de
Deus? Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em
verdade” (1Jo 3.16-18).
Portanto, a atualização de sentido dessas passagens de Atos não consiste
em vender o que temos e entregar para os líderes das nossas igrejas, contando que
estes distribuirão a cada um conforme as suas necessidades. Tampouco o texto
proíbe que isso eventualmente aconteça, caso alguém entender que em alguma
situação específica essa ação seja válida e necessária. O texto nos informa o que
Página 41
aqueles cristãos fizeram, dentro daquele contexto e por razões que não estão
explícitas no texto19, e não o que devemos fazer.
Em síntese, a pesquisa que precisamos fazer sobre o contexto histórico
envolve: 1) o cenário do livro bíblico e 2) o cenário que envolve as passagens
específicas do livro. Na primeira etapa do estudo, sobre o cenário do livro,
procuramos determinar autor, data, destinatário e propósito do livro. Na segunda
etapa, olhamos para as passagens específicas do livro e procuramos examinar os
fatores históricos e culturais que estão envolvidos no texto. O seguinte roteiro de
perguntas ajudará na investigação:
19
Uma das razões que podem ter levado aqueles irmãos a venderem os seus bens e propriedades
era a expectativa de que o fim estava próximo, logo, não havia necessidade de manter propriedades.
Nos primeiros anos da Igreja, a expectativa da volta de Cristo era que esse evento glorioso
aconteceria naquele tempo, com aquela geração. Apenas depois que essa expectativa mudou na
maneira de pensar dos cristãos.
Página 42
Página 43
Método histórico-gramatical:
ARCHER JR., Gleason L. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2012.
CARSON, D. A. Carson; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
LASOR, William S.; HUBBARD, David A; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2002.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento do Antigo Testamento.
São Paulo: Hagnos, 2008.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento do Novo Testamento.
São Paulo: Hagnos, 2008.
WRIGHT, N.T.; BIRD, Michael. The New Testament in Its World. Grand Rapids,
Michigan: Zondervan, 2019.
Método histórico-crítico:
BROWN Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 2004.
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. V. 1 - história, cultura e religião
do período helenístico. São Paulo: Paulus, 2005.
______. Introdução ao Novo Testamento. V. 2 – história e literatura do cristianismo
primitivo. São Paulo: Paulus, 2005.
KUMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições
Paulinas, 1982.
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. 5 ed. São Leopoldo: EST;
Sinodal, 1994.
ARENS, Eduardo. Ásia Menor nos Tempos de Paulo, Lucas e João: aspectos
sociais e econômicos para a compreensão do Novo Testamento. São Paulo: Paulus,
1997.
BRUCE, F.F. História do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2019.
CAMACHO, F. MATEOS, J. Jesus e a sociedade de seu tempo. São Paulo: Paulus,
1992.
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. 2 ed. São Paulo: Vida
Nova, 1986.
HORSLEY, Richard A. Arqueologia, história e sociedade na Galileia: o contexto
social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000.
JEREMIAS, Joachim Jerusalém nos tempos de Jesus. 3 ed. São Paulo: Paulus,
1983.
Página 45
Página 46
testemunho, disputa e defesa. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus,
2014.
Bíblia e sabemos dizer o que estava escrito na passagem lida, sem precisar recorrer
ao texto. Por isso, no começo, quanto menor for a passagem, melhor para praticar o
exercício de familiarização, que deverá ser ampliado na medida em que
progredirmos na leitura.
Sugere-se também que a escolha do livro seja adequada ao nível de
conhecimento da história e da mensagem bíblica que o(a) leitor(a) possui. Ou seja,
para quem está iniciando os seus estudos bíblicos, a carta aos Romanos, o
Apocalipse, ou o livro de Jó podem ser leituras complexas demais para aplicarmos o
que estamos aprendendo aqui. São textos que exigirão muitos mais recursos
interpretativos e conhecimento prévio de outros assuntos relacionados à história e à
teologia dos livros bíblicos. Por isso, para quem está iniciando a sua jornada de
leitura da Bíblia com vistas ao estudo, o ideal são livros menores, ou textos
narrativos curtos ou médios. Sugestões: Rute, Ester, Jonas, João, Marcos,
Filipenses, Filemom, 1João.
Um recurso muito útil para essa etapa é retirar do texto todos os números de
capítulos e versículos, bem como os títulos e subtítulos que são sugeridos pelas
traduções bíblicas. A divisão da Bíblia em capítulos e versículos só ocorreu no
século XIII (capítulos) e no século XVI (versículos). Os títulos e os subtítulos das
partes de um livro bíblico são, também, inserções mais recentes. Tais elementos
incorporados ao texto bíblico visam facilitar a nossa “navegação” pelas páginas da
Bíblia. No entanto, apesar dos esforços dos editores bíblicos, muitas vezes os
capítulos, versículos, títulos e subtítulos acabam por atrapalhar (quando uma quebra
de texto é inserida equivocadamente), ou a pré-determinar o conteúdo de uma
passagem (como é o caso dos títulos e subtítulos).
O texto bíblico pode ser encontrado em aplicativos para celular, tablet e
computadores (Olive Tree e Your Version, por exemplo), bem como em sites
(https://www.bibliaonline.com.br | http://www.sbb.org.br), nas traduções mais
comuns: Nova Versão Transformadora (NVT), Nova Versão Internacional (NVI),
Almeida Revista e Atualizada (ARA), Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH),
Bíblia de Jerusalém, entre outras. É possível copiar e colar os textos para um editor
de texto para retirarmos tudo o que não for próprio do texto bíblico (capítulos,
versículos, subtítulos, divisões). Isso nos ajuda a termos uma visão do texto menos
influenciada pelas divisões e marcas colocadas pelos editores das traduções.
Página 48
Depois de ler o texto repetidas vezes até nos familiarizamos com ele,
devemos fazer as primeiras anotações sobre ele. Basicamente, funciona como uma
investigação: observar, anotar o que se vê, elaborar perguntas. Anote as suas
primeiras impressões sobre o texto:
O que o texto diz? – Qual é o sentido explícito do texto conforme o seu
entendimento?
Quais dúvidas ele levanta? – Acerca de palavras, frases, ideias, imperativos.
Quais ações ele repreende, propõe ou exige? – Sobre comportamento, ética.
Quais ideias você teve quando o leu? – Lembrança de outras passagens, algo
pessoal, um insight; clareou um questionamento ou uma dúvida que você
tinha sobre outro texto bíblico ou assunto?
Quais sentimentos ele provoca? – Choro, riso, inquietação, raiva etc.
Não se esqueça de observar e anotar o que é óbvio, o que está nítido, claro
de se ver no texto: personagens e nomes, lugares, movimentos (partiu de… voltando
de… etc.), ideias explicitas, proposições etc. É normal um texto conter partes nas
quais o que está escrito e o seu sentido são obscuros. Por isso, concentre-se
primeiro no que está claro, e a tendência é que o que está obscuro seja clareado
conforme progredimos no texto. As seguintes perguntas-chave ajudam a esclarecer
o que está no texto, e também a fazer o levantamento de perguntas:
Quem escreveu? Quem está falando, ou quem falou? Quem são as principais
personagens? Quem são as pessoas mencionadas? A quem está falando?
Sobre quem está falando?
Quais são os acontecimentos? Quais são as ideias? Quais são os
ensinamentos? Quais as características dessas pessoas? Quais as coisas de
que o texto mais fala? Qual foi seu objetivo ao dizer isso?
Quando foi escrito? Quando aconteceu? Quando acontecerá? Quando ele
disse isso? Quando fez isso? Quando as pessoas devem agir?
Onde isto foi feito? Onde está quem escreve? Onde está(ão) a(s) pessoa(s)
para quem se escreve? Onde isto foi dito? Onde irá acontecer?
Por que havia necessidade de escrever isso? Por que isso foi mencionado?
Por que tanto ou tão pouco espaço foi dedicado a esse ou àquele
Página 49
acontecimento ou ensino? Por que essa referência foi mencionada? Por que
deveriam fazer tal coisa?
Como isso é feito? Como aconteceu? Como essa verdade é exemplificada?
As respostas para essas perguntas precisam sair do próprio texto. O silêncio
do texto diante de uma pergunta é igualmente importante, e precisa ser anotado. No
processo interpretativo, esse silêncio pode ganhar uma voz.
Anote as suas dúvidas e organize-as por áreas. As mais comuns são sobre
contexto. Existem no texto convenções culturais, informações históricas, assuntos
religiosos etc., que precisam ser esclarecidos?
Também podem surgir questões acerca da normatividade, como vimos mais
acima. Existem imperativos no texto, aspectos doutrinários ou afirmações teológicas
que levantam dúvidas acerca da sua normatividade para hoje? (Por exemplo: a
circuncisão [Gn 17]; a proibição quanto a fazer tatuagens [Lv 19.28]; a utilização do
“véu” ou “cobertura” [1Co 11.6]; um homem não poder deixar os cabelos crescerem
[1Co 11.14-15]; a mulher ter que permanecer em silêncio na igreja [1Co 14.34]).
Lembrando que é preciso estabelecer critérios interpretativos para
discernirmos o que permanece para nós hoje e o que era somente para o tempo em
que o texto foi escrito, por questões culturais, ou entendimento que as pessoas
tinham sobre questões teológicas e práticas. Lembrando que a Bíblia traz dentro de
si textos escritos ao longo de aproximadamente 1400 anos. Isso significa que há
nela uma grande diversidade cultural, social e teológica. Ou seja, Deus – e
consequentemente, a sua vontade –, foi compreendido pelo povo de maneiras
diferentes. Por isso, uma leitura cristã da Bíblia precisa estar atenta para questões
de normatividade de muitas passagens, distinguindo entre o que no texto é
informativo e o que é normativo.
Fique atento a dúvidas sobre questões teológicas e doutrinárias. Durante a
leitura, dúvidas podem surgir acerca de uma determinada forma de o texto falar
sobre Deus e a sua ação. É importante notar como Deus é apresentado no texto, em
seu falar e em seu agir.
Por fim, perceba como o texto está construído. Uma maneira didática de se
fazer isso é colorir os substantivos (nomes), os adjetivos (palavras descritivas e
qualificativas) e os verbos (palavras que dão ação e movimento), com cores
diferentes, facilitando uma visão geral da construção gramatical do texto. Em todos
Página 50
esses passos, obviamente, você terá lido o texto diversas vezes. Não se esqueça de
que é fundamental que o texto “vá para dentro” de você, se torne visceral.
2. O contexto literário
20
É o caso de OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
Página 51
21
Veja a ótima explicação de KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 378-381.
Página 52
22
KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 370,371.
23
Baseamo-nos em: GORMAN, Michael J. Introdução à exegese bíblica. Rio de Janeiro: Thomas
Nelson do Brasil, 2017. P. 96-100.
Página 53
Página 54
primeiro entender o que o texto significou para os primeiros leitores – o que requer a
consideração de aspectos como autoria, data, destinatários e propósito de cada livro
bíblico. Destacamos que o estudo do contexto histórico nos ajuda a estabelecer
critérios para discernir entre o que é narrativo, informativo e normativo nas
Escrituras.
Identificamos algumas ferramentas úteis ao estudante no trabalho de
interpretação da Bíblia: dicionários bíblicos, atlas bíblico, introduções ao Antigo e
Novo Testamentos, comentários bíblicos, obras de contexto histórico-cultural e obras
de teologia do Antigo e Novo Testamentos. E apresentamos alguns procedimentos e
perguntas centrais para o processo de observação do texto bíblico, que é parte do
método indutivo de estudo da Bíblia.
Analisamos ainda a importância do contexto literário no estudo de uma
passagem das Escrituras, mostrando como cada passagem deve ser interpretada à
luz: do seu contexto imediato; do contexto da seção do livro bíblico; do contexto do
livro bíblico inteiro; do contexto do autor bíblico; do contexto do Antigo ou Novo
Testamento; e do contexto da Bíblia como um todo.
Saiba mais
Página 55
Para reflexão
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Página 59
Página 60
Página 61
ser queimado” ela sinaliza uma nota de rodapé, na qual lemos: Alguns
manuscritos trazem entregasse meu corpo, de modo que me gloriasse.
2. Análise gramatical
Página 63
Dentro da terceira situação, temos níveis ou estágios que vão nos levando às
“águas mais profundas” das línguas bíblicas. Desde os primeiros contatos com o
hebraico e com o grego, o estudante perceberá que não é tão complexo estudar as
línguas originais da Bíblia. Certamente é trabalhoso, mas prazeroso pelas
recompensas de conhecimento vindas das descobertas que fazemos ao ver o
sentido de palavras originais, os jogos artisticamente elaborados pelos autores e os
tempos verbais diferentes dos nossos e como eles impactam a compreensão que
tínhamos e agora passamos a ter do texto. É justamente por essas razões que os
cursos de teologia têm disciplinas de grego e hebraico, hermenêutica e exegese
aplicadas.
24
ZUCK, Roy. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia. São Paulo: Vida Nova,
1994. p. 115-141.
Página 64
De modo semelhante, outro risco reside justamente nas palavras que foram
originadas de outras. Por exemplo, a palavra grega dynamis, que originou a palavra
dinamite. Em Atos 1.8, dynamis é usada por Jesus para dizer o que os discípulos
receberiam quando o Espírito Santo descesse sobre eles. Em Romanos 1.16, Paulo
afirma que o evangelho é dynamis de Deus para a salvação de todo aquele que crê.
Dynamis significa “força”, “poder”. Obviamente que Jesus e Paulo não estavam
pensando no poder destrutivo da dinamite, um artefato explosivo inventado no
século XIX! Logo, não podemos fazer paralelos entre dynamis e dinamite para
compreender o significado da palavra usada em Atos e em Romanos.
A língua é dinâmica, pois as palavras estão em uso constante e são
empregadas em novos contextos. Por essa razão, como no exemplo acima do
sentido da palavra paz, a análise etimológica precisa levar em consideração também
o uso ou emprego de uma palavra, bem como o contexto em que ela está sendo
utilizada.
Uma vez realizada a consulta em um léxico ou dicionário etimológico de uma
palavra, deve-se perguntar: como essa palavra foi utilizada nos textos bíblicos? Para
que seja possível realizar essa tarefa, devemos dirigir essa pergunta para livros ou
autores específicos. Por exemplo, de que maneira Paulo usa a palavra pneuma
(espírito)? De que maneira Paulo usa a palavra sarx (carne)? Essas perguntas
revelam que o contexto pode ser determinante para o entendimento de uma palavra.
Por exemplo, o estudo dos empregos que Paulo fez da palavra sarx revela
uma variedade de sentidos. A carne pode ser a condição humana (Rm 3.20), pode
se referir ao corpo humano (2Co 12.7), que por sua vez é sarx assim como animais,
pássaros e peixes (1Co 15.39). Sarx pode ser a inclinação da natureza humana ao
Página 65
pecado (Rm 8.6,7; Ef 2.3). A sarx é corruptível e não pode herdar o reino de Deus
(1Co 15.50), ao mesmo tempo, Jesus Cristo veio ao mundo em sarx (Cl 1.22). Tais
detalhes não podem ser percebidos por meio de uma tradução, pois assim como
sarx pode ser traduzido como corpo, soma é a palavra grega comumente usada
para corpo.
As palavras possuem tipos de sentido. Esse é um aspecto importantíssimo
do estudo do vocabulário bíblico, visto que nele encontramos grande variedade de
gêneros literários que usam as palavras de modos variados25.
Uma palavra pode ter um sentido literal, ou referencial. Esse sentido é
aquele que a palavra realmente se refere. Nesse caso, quando lemos “árvore”, o
texto se refere à grande planta com galhos e folhas verdes que vejo da minha janela
enquanto escrevo.
Uma palavra pode ter um sentido denotativo, que é o sentido preciso e direto
de uma palavra. Nesse caso, as “árvores são plantas altas e lenhosas, normalmente
dotadas de um caule chamado tronco. São os maiores e mais velhos seres da Terra,
sendo que algumas delas vivem centenas ou até milhares de anos”26.
Uma palavra pode ter um sentido conotativo ou figurado. Esse é o sentido
que de alguma maneira se baseia no sentido denotativo, mas o extrapola. Por
exemplo, a palavra “cão” pode se referir ao animal quadrúpede e peludo, mas
também pode ser uma expressão de reprovação de uma ação: seu cachorro! Ou
uma expressão pejorativa, como quando Paulo se referiu aos da “falsa circuncisão”:
“cuidado com os cães...” (Fp 3.2). Seguindo o exemplo da árvore, em 1Pe 2.24
lemos que Jesus foi pendurado no madeiro ou em “uma árvore”, querendo dizer
cruz.
O sentido contextual de uma palavra, isto é, o emprego da palavra em um
contexto específico, a limitará ao sentido denotativo ou ao conotativo. Na frase:
“Aquela árvore é maior e mais bonita do que aquela outra”, o sentido exigido é o
denotativo. Na frase: “O passeio para praia deste final de semana subiu na árvore”
(semelhante à expressão “subiu no telhado”), o sentido exigido é o conotativo.
25
KLEIN, William W.; BLOMBERG, Craig L.; HUBBARD JR., Robert L. Introdução à Interpretação
Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017. p. 412,413.
26
https://escola.britannica.com.br/artigo/árvore/482704 [Acesso em 28/12/2020]
Página 66
27
Adaptado de: KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR, 2017. p. 413.
Página 67
Página 68
Página 69
2.1.3. Sintaxe
28
Grant Osborne divide o trabalho da exegese, relacionado ao texto propriamente dito, em três
partes: gramática, semântica e sintaxe. Nem todos os manuais de hermenêutica e exegese usam
esse método de trabalho. Porém, dentro do projeto do livro deste autor, ele é muito útil e auxilia o
estudante a perceber com maior clareza o que envolve a análise exegética e os seus procedimentos.
Página 70
Página 71
de ida e de volta entre o todo e as partes do texto. Já que um texto é uma unidade
de sentido formada por diversas partes, as unidades de significado que o estudante
irá normalmente analisar são as seguintes, da menor para a maior29:
Palavras (estudo lexicográfico e morfológico)
Segmentos de frases (períodos – simples e compostos)
Frases (ou enunciados)
Segmentos de texto (parágrafos, estrofes e pequenos grupos de frases)
O texto propriamente dito (como um todo)
Vimos que o texto bíblico que temos em mãos passou por um minucioso
trabalho de fixação do texto. A crítica textual é um vasto campo de trabalho dentro
do universo dos estudos bíblicos.
A análise exegética está no cerne de toda teoria hermenêutica. Ela envolve
fundamentalmente a análise gramatical e a sintaxe. Há mais ramificações de ambas
que compõe a exegese, porém, por limitações de espaço, ficaram de fora desta
unidade. É imprescindível que o estudante aprofunde os seus conhecimentos a
partir das recomendações de leituras feitas ao longo deste estudo.
Saiba mais
29
Adaptado de: GORMAN, Michael J. Introdução à exegese bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson
do Brasil, 2017. P. 126,127.
Página 72
Won: WON, Paulo. E Deus falou a língua dos homens: uma introdução à Bíblia. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson, 2020. p. 23-115.
CARSON, D.A. Os perigos da interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova,
2005. Anteriormente publicado com o título A exegese e suas falácias. Nesta obra,
D.A. Carson apresenta aos estudantes muitos aspectos a serem considerados na
tarefa da interpretação bíblica a partir dos equívocos mais comuns cometidos por
intérpretes.
Um ótimo texto para aprofundar no assunto do estudo das palavras é o de
KLEIN, William W.; BLOMBERG, Craig L.; HUBBARD JR., Robert L. Introdução à
Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017. p. 403-427.
Dicionários teológicos são ferramentas valiosas para análise etimológica das
palavras da Bíblia, que leva em consideração a origem, a evolução e os usos das
palavras. Indicamos os seguintes:
COENEN, Lothar; BROWN, Colin (orgs.). Dicionário internacional de teologia do
Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. (Obra em 2 volumes).
HARRIS, Laird R; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (orgs.). Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
BERLEJUNG, Angelika; FREVEL, Christian (orgs.) Dicionário de termos teológicos
fundamentais do Antigo e do Novo Testamento. São Paulo: Paulus; Loyola, 2011.
Embora o estudo gramatical – morfologia e sintaxe – faça parte das
disciplinas de Grego e Hebraico, o estudante que quiser conhecer um pouco mais
sobre esse assunto encontrará nesta obra uma valiosa visão panorâmica:
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 79-98.
Como destacado na conclusão, o assunto dessa unidade precisa ser
aprofundado e, assim, acrescido de mais informações. Sugerimos a seguinte obra
como ponto de partida: OSBORNE, Grant. A espiral hermenêutica: uma nova
abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 69-197.
Para reflexão
Página 74
Página 75
5. Lembremos que o texto bíblico não foi escrito com as divisões de capítulos e
versículos.
Agora a nossa atenção deve retornar ao texto, observando mais dois
aspectos fundamentais para a boa interpretação. O primeiro está ligado aos
elementos artísticos do texto, que são as figuras de linguagem. O segundo diz
respeito ao ambiente histórico-cultural dos textos. Nesse segundo aspecto estamos
retomando o assunto que vimos na Unidade 3: aprendendo a pensar
contextualmente. Porém, agora veremos mais detalhes a serem observados pelo
estudante, bem como áreas do conhecimento que lançam luz sobre os textos
bíblicos.
1. As figuras de linguagem
A metáfora é uma palavra que nos carrega para transpormos o abismo que
separa o invisível do visível. A contradição presente entre o que a palavra
denota e o que ela conota cria uma tensão em nossa mente, e somos
estimulados a um ato de imaginação no qual nos tornamos participantes do
que está sendo dito. A metáfora é a nossa testemunha lexical da
transcendência – do que é mais, do que está além, do interior – de tudo o
que não pode ser explicado por nossos microscópios e telescópios, por
nossa álgebra e geometria, por pesos e medidas… uma testemunha de
todas as operações da Trindade. [...] Os escritores das Escrituras são todos
mestres da metáfora, usando a linguagem como testemunha da inter-
relação de todas as coisas visíveis e invisíveis (PETERSON, 2009, p. 37).
Página 78
contextual, 30 ela se revela como uma metáfora. Assim, logo identificamos que o
sentido literal da palavra é inadequado para o entendimento do que se quer
comunicar. Lemos Jesus afirmar ser o caminho e logo a imaginação é ativada.
Somos transportados para dentro do texto, para a companhia do escritor. Ou seja,
aqui o dicionário que define o significado original da palavra já não pode nos ajudar.
Precisaremos recorrer à imaginação para entender o significado. Mais uma vez,
Eugene Peterson nos ajuda a entender o efeito da metáfora:
30
Que vimos na Unidade 3.
Página 79
Página 80
31
Conforme OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 153-161. A categorização das figuras de linguagem varia
entre os autores e manuais. Por exemplo, Martinez categoriza em: figuras de comparação (metáfora
e símile); figuras de dicção (pleonasmo e hipérbole); figuras de relação (sinédoque e metonímia);
figuras de contraste (ironia, paradoxo, lítotes e eufemismo ); e figuras de natureza pessoal
(personificação e apóstrofe). MARTINEZ, José M. Hermeneutica bíblica: como interpretar las
Sagradas Escrituras. Barcelona: Editorial Clie, 1984.
Página 81
comparação podem ter pouco impacto, ou geram imagens muito diferentes daquelas
geradas nos primeiros ouvintes, até que sejam entendidas a partir do seu contexto
original. Osborne alerta:
O intérprete não deve passar por cima dessas imagens cheias de vida, pois
estão fundamentadas nos próprios padrões de vida dos tempos antigos e
tinham uma força enorme naquele contexto. O contraste entre o anseio
ardente de Jesus e a obstinação dos judeus não poderia ser mais bem
retratado do que pelo símile de Mateus 23.37 (OSBORNE, 2009, p. 154).
Página 83
32
Conforme MARTINEZ, José M. Hermeneutica bíblica: como interpretar las Sagradas Escrituras.
Barcelona: Editorial Clie, 1984. P. 169-173.
Página 84
33
Note que alegoria é um recurso da linguagem muito bem empregado pelos autores bíblicos. Não
devemos confundir esse recurso com a alegorização, que é um método de interpretação em que o
intérprete dá ao texto um significado diferente do pensamento e do propósito original. Existem muitas
alegorias na Bíblia, mas isso não significa que temos a liberdade de arbitrariamente alegorizar textos
que originalmente não eram alegorias, isto é, eram textos que exigiam uma interpretação literal.
Página 85
2. O contexto histórico-cultural
Página 86
Página 87
Antes de prosseguir, precisamos lidar com uma questão. Já vimos que a boa
interpretação bíblica não acontecerá exclusivamente por meio do conhecimento do
grego e do hebraico, embora sejam ferramentas importantes e que precisam estar
no horizonte de estudos daqueles que se colocam na posição de ensinar as
Escrituras a outros. De igual modo, a boa interpretação bíblica não é uma
possibilidade apenas para os eruditos em história, geografia e arqueologia bíblicas.
Vale introduzirmos neste ponto uma valiosa doutrina vinda da ortodoxia protestante
dos séculos XVI e XVII, que toca precisamente a tarefa da hermenêutica: a
perspicuidade das Escrituras. Essa doutrina afirma que a Bíblia é capaz de
autocomunicação, não necessitando de autoridades especiais que exerçam função
intermediadora entre a Bíblia e as pessoas comuns. A sua mensagem de salvação
em Cristo é clara e é direta quanto ao que quer comunicar sobre o que devemos crer
e fazer. A premissa da perspicuidade não ignora as dificuldades da interpretação
bíblica, tampouco os riscos da má interpretação. Porém, “as coisas que precisam ser
conhecidas, cridas e observadas para a salvação estão claramente expostas e
explicadas...” (Confissão de fé de Westminster, I, 4).
Página 89
Página 90
34
Veja uma boa discussão sobre esse assunto em OSBORNE, 2009, p. 199-202. Também o artigo de
Fábio Augusto Darius e Elder Hosokawa. Breve história da arqueologia bíblica: contribuição e crítica
estadunidense. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/Caminhando/article/download/8438/6078 Acesso em 3 de fev. de 2021.
35
Por exemplo: PRICE, Randall; HOUSE, Wayne. Manual de arqueologia bíblica Thomas Nelson. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson, 2020; RICHELLE, Matthieu. A Bíblia e a arqueologia. São Paulo: Vida
Nova, 2017; KAEFER, José Ademar. Arqueologia das terras da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2012.
(Volume I); KAEFER, José Ademar. Arqueologia das terras da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2016.
(Volume II).
36
Já recomendamos as seguintes obras na Unidade 3: LAWRENCE, Paul. Atlas histórico e
geográfico da Bíblia. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008; REINKE, André Daniel. Atlas
Bíblico Ilustrado. 2 ed. São Paulo: Hagnos, 2018.
Página 91
37
Encontramos literatura sobre os temas em geral, ou de maneira mais específica. Um olhar geral
para o pano de fundo histórico-cultural da Bíblia: WALTON, John; MATTHEWS, Victor;
CHAVALAS, Mark. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2013; KENNER, Craig. S. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Novo Testamento: São Paulo: Vida
Nova, 2017. Um olhar específico, por exemplo, sobre o mundo de Jesus: DANIEL-ROPS, Henri.
A vida diária nos tempos de Jesus. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1986. Sobre o tempo de Paulo:
Meeks, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo:
Paulus; Santo André: Academia Cristã, 2011. Sobre as instituições do Antigo Testamento: VAUX,
Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004; WOLFF, Hans
Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007.
Página 92
38
Um destaque especial para os dois livros de André Daniel Reinke, cujo projeto, em Os outros da
Bíblia é contar a história e os elementos culturais dos povos que entraram na narrativa bíblica, mas
que pouco sabemos deles a partir do próprio texto, e a forma como estes influenciaram o povo bíblico
de Israel. A segunda obra, Aqueles da Bíblia, é uma história cultural do povo bíblico de Israel,
mostrando as identidades histórico-culturais assumidas pelo povo de Deus no Antigo Testamento até
a Igreja: REINKE, André Daniel. Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua
atuação no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019. REINKE, André Daniel.
Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua atuação no plano divino. Rio de
Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
Página 93
Saiba mais
Para reflexão
Página 94
Página 95
39
Conforme MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 29.
Página 97
2. As narrativas na Bíblia
É para esse contexto maio que primeiro precisamos lançar o nosso olhar.
Para tanto, é necessário entender o Antigo Testamento como narrativa fundamental
da história do desenvolvimento da fé cristã. Ou seja, sem o entendimento da
narrativa do Antigo Testamento não seremos capazes de interpretar corretamente a
narrativa do Novo Testamento. É necessário compreender as promessas e a
vocação de Deus para o povo bíblico de Israel que se cumprem em Jesus e na
formação da Igreja. Se uma leitura bíblica ignora esse fundamento o resultado será
uma separação indevida da narrativa do AT e do NT, como assuntos diferentes,
chegando até mesmo a heresias como afirmação de que o “deus” do AT é punitivo,
Página 98
Página 99
5.39, “as Escrituras [...] dão testemunho [dele]”. É o que nos torna capazes de,
assim como Jesus fez, olharmos a Bíblia como um todo: “Então Jesus os conduziu
por todos os escritos de Moisés e dos profetas, explicando o que as Escrituras
diziam a respeito dele” (Lc 24.27 – NVT).
2.1.1. O narrador
É aquele que seleciona o que narrar, decide como tecer a intriga, isto é, a
disposição das cenas escolhidas e com quais recursos retóricos irá trabalhar. O
narrador é onisciente, envolvendo e dominando toda a narrativa. É importante saber
que seu papel é fazer com que o leitor se sinta incluído na história ao ponto de ver
os fatos como quem está participando deles. Por outro lado, como Marguerat e
Bourquin ensinam (2009, p. 22ss), é parte do processo de leitura dar ao narrador um
voto de confiança, reconhecendo sua onisciência e deixando-se ser por ele guiado
em sua narrativa. Para entrar em contato com a narrativa de modo engajado, isto é,
tomando o posto de mais do que leitor, mas narratário, esse “contrato” é implícito.
Não há como mergulhar na narrativa sem aderir ao sistema de valores do narrador.
Além disso, é ele o responsável pelo ponto de vista a partir do qual será
contada a história, apresentando sempre, no início ou em qualquer outra parte do
enredo, o ponto de vista de Deus. Segundo Darrel Bock (2002, p. 211) ele possui “o
ponto de vista do olhar de um pássaro, que vê os eventos do alto e tem uma
compreensão completa do que acontece”. É importante estar atento ao ponto de
vista, pois ele aponta para o significado da narrativa. Segundo Grant Osborne (2009,
p. 260), especialistas em narrativa hebraica identificaram cinco áreas em que o
ponto de vista opera:
A dimensão psicológica, através da qual o mundo interior (sentimentos e
pensamentos, por exemplo) das personagens é apresentado;
O ponto de vista valorativo ou ideológico, através do qual os conceitos de
certo e errado podem vir a se esconder por trás da narrativa;
Página 101
Página 102
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Página 105
Ainda que possamos aprender muito com as histórias bíblicas, já vimos que
narrativas individuais não devem ser entendidas como palavras de instrução direta
da parte de Deus. Com o propósito de evitar essa inclinação, abaixo temos os
equívocos hermenêuticos mais comuns (FEE; STUART, 2002, p. 76-78):
1. Alegorização. Cuidado para não se concentrar em significados para além do
texto! A Bíblia contém alegorias, mas narrativas históricas não são alegorias.
2. Descontextualização. Cuidado para não se afastar do contexto dentro do
qual está inscrita a narrativa bíblica que você está lendo! O contexto indica
como interpretar o texto.
3. Seletividade. Cuidado para não escolher palavras específicas que legitimem
sua interpretação, mas que desrespeitem o todo em que elas estão escritas!
4. Moralização. Cuidado com uma hermenêutica que busca a todo momento
princípios morais a serem aplicados! Nem toda narrativa quer conceder lições
de vida, mas apenas demonstrar o desenvolvimento da grande história de
redenção.
5. Personalização. Cuidado com a busca exagerada de passos práticos
individuais em cada narrativa. Não necessariamente a história da mula de
Balaão quer te ensinar a falar menos. Fique atento para não fazer uma leitura
bíblica individualista e egocêntrica.
6. Apropriação indevida. Cuidado para não se apropriar de movimentos que
não lhe foram direcionados. Não é porque Gideão “provou” a Deus que a sua
espiritualidade deve ser construída desse mesmo jeito.
7. Falsa apropriação. Cuidado para não levar ao texto antigo influências
hermenêuticas da cultura contemporânea. A fim de fazer uma alusão à
homossexualidade dizem que Davi e Jônatas tiveram relações desse gênero,
todavia, isso é estranho ao propósito da narrativa e do seu ponto de vista.
8. Falsa combinação. Cuidado com uma abordagem de interpretação que
combina elementos separados de uma passagem e tira uma lição de sua
combinação mesmo que eles não estejam vinculados. Segundo Fee e Stuart
(2011, p.127):
Página 106
Por fim, Fee e Stuart propõem dez princípios em forma de teses para a
interpretação das narrativas. Vale transcrevê-los aqui:
1. Geralmente uma narrativa não apresenta um ensino doutrinário direto e
explícito.
2. Ainda que não contenha um ensino doutrinário direto, uma narrativa pode
ilustrar uma ou mais doutrinas que estão diretamente explicitadas em outros
lugares das Escrituras.
3. Narrativas contam o que aconteceu e não o que deveria ter acontecido. É
essa a essência do alerta: não busque aplicações morais em todas as
narrativas.
4. Não é porque uma ação está narrada no texto bíblico que ela deve ser
imitada. Não é porque Judas traiu Jesus e isso está na narrativa bíblica que
você deve fazer o mesmo.
5. A Bíblia não é um livro de pessoas perfeitas.
6. Os narradores nem sempre fazem juízo de valor das histórias que acabaram
de narrar. Isso fica a critério do leitor, que deve construir seu senso valorativo
levando em conta o ensino bíblico espalhado por toda a Bíblia.
7. Nenhuma narrativa é escrita pretendendo contar todos os detalhes da
história. O narrador, inspirado por Deus insere em seu texto aquilo que ele
julga importante para o leitor.
8. As narrativas não são escritas para responder a todas as nossas questões.
Cada uma delas tem um propósito e é preciso saber disso ao lê-las.
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40
Baseado em FEE; STUART, 2002, p. 69.
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Página 110
interpretada, sem dúvida ela passa então a ser entendida, e talvez ainda seja
divertida (pelo menos compreendemos aquilo que deveria ter provocado nossos
risos), mas com certeza não terá o mesmo impacto. Logo, já não funciona da
mesma maneira (FEE e STUART, 2002, p. 125).
As parábolas têm como vocação evocar em seu ouvinte uma resposta. Quer
fazer com que as pessoas parem, pensem e repensem suas posturas e respondam
a Jesus e ao seu ministério. Tal como as piadas, as parábolas visavam identificação
imediata (um bom contador de histórias considera e aplica isso ao contar parábolas)
com seus ouvintes, e essa natureza de cada uma delas suscita pra nós um grande
desafio, afinal, não somos seus ouvintes imediatos. Somos leitores a dois milênios
de distância temporal, sem contar a distância cultural. Esse é o problema
hermenêutico das parábolas e, portanto, a origem das diretrizes exegéticas e
hermenêuticas desse gênero literário. A pergunta a se fazer é: como resgatar o
impacto das parábolas para hoje? A resposta dessa pergunta depende da detecção
dos pontos de referência. Mais uma vez, o contexto é decisivo.
Página 111
da resposta que ele pretendia evocar: a ira de Davi. Tendo conseguido sua resposta
Natã vira o jogo e aponta para Davi como aquele que precisaria parar e repensar
sua postura diante do Deus que o chamou, e da ira que agora ele sentia contra si
mesmo. A parábola, portanto, provocou uma resposta que fez com que Davi se
identificasse com o homem injustiçado, ou seja, Natã fez com que Davi, sem
perceber imediatamente, se colocasse no lugar de Urias.
Por isso, identificação é uma função primordial da parábola. As parábolas de
Lucas 10.29-37 – o Bom Samaritano –, e Lucas 15 – o filho pródigo –, são
poderosas justamente porque causam a identificação dos ouvintes com as
personagens, suas ações e as situações narradas.
Ainda que algumas parábolas não forneçam pistas de seu contexto histórico,
continue determinando os pontos de referência e o público-alvo. Pergunte-se: “que
tipo de pessoa teria se identificado com essa história?” e prossiga seu estudo
considerando seriamente o público como indicador da lição a ser proporcionada.
Saiba mais
Para reflexão
1. Por que uma narrativa não é apenas um relato aleatório de eventos? Como
funciona a composição de uma narrativa?
2. Quais princípios e precauções para a interpretação das narrativas foram mais
significativos em seu aprendizado pessoal no estudo dessa unidade?
3. Por que as parábolas não são alegorias? Qual o propósito das parábolas?
Página 115
Página 116
O mesmo problema pode ser visto quando lemos as cartas mais com a
necessidade de responder aos problemas que suas partes suscitam às doutrinas
das quais estamos convictos, do que realmente com o desejo de aprender sobre o
seu significado:
Página 117
1.1. Diversidade
As cartas não são uma coleção uniforme. Diversidade é uma marca das
cartas: autor(es), destinatário(s), linguagem, recursos literários e propósito(s). Por
exemplo, a carta aos Romanos foi escrita para uma igreja até então desconhecida
para Paulo, e nem mesmo foi ele quem a escreveu, antes, a ditou para um escritor
identificado como Tércio (Rm 16.22). Tito e as duas cartas a Timóteo são pessoais.
Filemom, embora pessoal, é endereçada à igreja que se reunia em sua casa. 1 e 2
Coríntios resolvem conflitos entre os integrantes da igreja e visam solucionar
confusões doutrinárias e de prática de culto.
Portanto, as cartas são instruções para igrejas específicas. Os assuntos nelas
tratados surgiram da necessidade de correção doutrinária e moral, orientação
quanto aos relacionamentos sociais e familiares, ensino sobre os papeis dos
discípulos e das discípulas de Jesus nas comunidades de fé e as orientações para a
liderança nova das igrejas. Isso é importante para não lermos as cartas como quem
lê um livro de teologia hoje, embora tenhamos cartas teologicamente bem
elaboradas, como Romanos e Hebreus. Mesmo assim, não deixam de ser cartas e
nunca foram escritas com os propósitos de uma publicação literária teológica
moderna. Dito de outra forma, as cartas não possuem o propósito de ser tratados
teológicos. Certamente contêm teologia e se dedicam a assuntos teológicos, mas
não são um resumo teológico direto, são escritos de teologia prática, isto é, uma
teologia em resposta às demandas específicas de cada comunidade.
Página 118
A validade dessa distinção pode ser observada a partir da forma das cartas
antigas que também é encontrada nas cartas do Novo Testamento. São seis partes,
nas quais já introduziremos algumas notas para observação, importantes para a
interpretação. Observe lendo 1Coríntios e Filemom, por exemplo:
Nome do escritor / remetente (Paulo). Pergunta interpretativa: Quem é o
remetente? Observe se há apenas um remetente. Geralmente as cartas
possuem mais pessoas ao nome dos remetentes com os quais nos
acostumamos. No caso de 1Coríntios, “e o irmão Sóstenes”. Em Filemom, “...
e o irmão Timóteo”.
Nome do destinatário. Pergunta interpretativa: Para quem a carta é
endereçada? A resposta está no versículo 2, capítulo 1: “à igreja de Deus que
está em Corinto”. Ao mesmo tempo, Paulo inclui aqui, ao lado do remetente
principal, “todos os que em toda parte invocam o nome de nosso Senhor
Jesus Cristo...”. Em Filemom: “à Áfia, a Arquipo... e à igreja que se reúne com
você em sua casa”. O que é dito sobre os destinatários? Nem sempre essa
pergunta obterá resposta, mas em alguns casos pode ser importante observar
Página 119
Página 120
Página 121
isolamos do seu entorno. Walter Kaiser escreve sobre um hábito necessário para o
intérprete:
motivo por trás de cada parágrafo, enxergar a razão de ser de cada parágrafo. Duas
perguntas facilitam nossa chegada até essa resposta:
O que o autor escreveu?
Por que o autor escreveu aquilo? (Exercício de leitura: Gálatas 5.13-
15):
Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade
para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros
mediante o amor. Toda a Lei se resume num só mandamento: “Ame o seu
próximo como a si mesmo”. Mas se vocês se mordem e se devoram uns
aos outros, cuidado para não se destruírem mutuamente (Gálatas 5.13-15 –
NVI).
O que o autor escreveu? A sua resposta deve ser um resumo que reafirme
sinteticamente o que está dito. Por exemplo: Fomos chamados para a liberdade,
mas não devemos confundi-la como uma permissão para fazermos tudo o que a
nossa natureza carnal desejar. Depois explique com as suas próprias palavras,
buscando sempre ser fiel ao argumento do autor. Por exemplo: O bom uso da
liberdade consiste na prática do amor de uns pelos outros. Esse bom procedimento
está de acordo com a vontade revelada de Deus e impedirá que nos destruamos
mutuamente.
Porque o autor escreveu isso? A resposta deve observar o texto em
questão, mas também o seu contexto imediato – os parágrafos anteriores e
posteriores. Nesse caso, se Paulo se ocupou em dar essa instrução, podemos
concluir que nas igrejas da Galácia havia problemas de relacionamentos entre os
irmãos. Note que as palavras de Paulo são pesadas: “se vocês se mordem e se
devoram uns aos outros” – uma imagem bestial para descrever um mau
comportamento humano. Palavras como “serviço”, “amor”, “mutualidade” descrevem
o comportamento correto que Paulo quer ensinar às igrejas. Visto dessa maneira,
descobriremos que:
No contexto anterior (5.1-12), a prática da liberdade também está em pauta
em perspectiva doutrinária: o ensino dos judaizantes acerca da circuncisão e
o ensino correto acerca da graça.
No texto em questão (5.13-16) não era apenas uma doutrina e uma prática
religiosa que ameaçava a liberdade que os gálatas receberam de Cristo. As
Página 124
Saiba mais
Há três assuntos que precisam ser considerados com muita atenção pelos
estudantes:
O aspecto histórico e situacional das cartas;
O assunto da relatividade cultural presente nas cartas;
41
Um ótimo estudo sobre esse assunto encontra-se em: FEE, Gordon. Paulo, o Espírito e o povo de
Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 143-158.
Página 125
Para reflexão
Página 126
Para quase tudo em nossa vida há sempre uma regrinha básica; para
muitas coisas há sempre alguma norma a observar, mesmo não escrita, e
para outras tantas existem leis discutidas, aprovadas, promulgadas e
publicadas por escrito para serem cumpridas. As normas estão por todo
canto: na família, na escola, no trabalho, no condomínio, no comércio, nos
parques, nas ruas, na igreja, no restaurante, no banco e na fila do ônibus.
Até as brincadeiras infantis mais simples têm suas regas. Nos esportes
também há regras e até leis e um tribunal próprio. Já pensou no que seria
da cidade se não existissem regras, nem leis, e se cada um pudesse fazer o
que bem entendesse? Como seria viver num país totalmente sem lei?
(SOARES, 2013, p. 13,14).
Esse pequeno texto nos leva a refletir sobre o papel que as leis exercem na
vida em sociedade. Palavras como lei, mandamento, ética, moral, normas e regras
fazem parte de um vocabulário relacionado ao certo e ao errado, ao que deve ser
feito e ao que não deve ser feito. Por isso, elas fazem parte de todos os ambientes
em que transitamos no dia a dia, e não apenas dos ambientes religiosos e jurídicos.
Vejamos o esporte, por exemplo. O que viabiliza um jogo de futebol é um conjunto
de regras. Sem regras justas e aplicadas a todos, não haveria Jogos Olímpicos,
quebra de recordes ou competitividade. Talvez as palavras que compõem esse
vocabulário não nos remetam à diversão, mas, sem ele, não haveria diversão
alguma em uma partida de futebol ou de vôlei, nem sentido em competir uma prova
de natação ou nos cem metros do atletismo. Um atleta não pode se nomear
vencedor de uma maratona porque ele decidiu que a sua maratona teria apenas 10
quilômetros, enquanto outros competidores correriam os 42 quilômetros e 195
metros oficiais. As leis existem para promover justiça e igualdade de oportunidades
para todos. Sabemos também que aqui está um problema, pois nem sempre a
justiça prevalece, nem sempre as leis são justas, ou porque as pessoas não as
cumprem. Se tratando da lei divina na Bíblia, esse era o problema denunciado pelos
profetas: a desobediência à lei fazia prevalecer a injustiça e a opressão. Na Bíblia,
desobedecer à lei do Senhor significa ser desleal à aliança com ele, por isso, um ato
de rebelião contra Deus.
Esta unidade é dedicada à interpretação da lei do Antigo Testamento. Porém,
levaremos em conta a abrangência do conceito bíblico de “lei”, visto que esse não é
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um assunto restrito ao AT. O Novo Testamento, por exemplo, faz referência à “lei de
Cristo” (1Co 9.21; Gl 6.2). As cartas de Paulo são repletas de imperativos que
também são vistos pela igreja como ordenanças, embora estejam abertos à
interpretação quanto à sua validade para hoje (assunto já abordado e com literatura
recomendada na Unidade 7 – a interpretação das cartas). Portanto, iniciaremos com
uma explicação sobre o que é a lei e o seu papel na Bíblia. Depois veremos algumas
diretrizes hermenêuticas sobre como os cristãos devem ler as leis do Antigo
Testamento.
1. O que é a lei?
Página 128
Por isso, ela se faz presente literalmente em passagens como Êxodo 20, mas está
em pauta nas narrativas, nas poesias, na sabedoria e nos profetas.
As leis da Bíblia estão intimamente ligadas com o ser de Deus. O Deus bíblico
é Santo e exige a santidade do seu povo (Lv 11.44,45; 19.2; 20.7; 1Pe 1.15,16). Ele
não tolera o mal, a injustiça, o pecado. Assim, ao formar um povo, Deus revela a sua
vontade quanto ao certo e ao errado, aos direitos e aos deveres do povo de Deus.
Tudo isso faz sentido porque o Deus da Bíblia chama um povo à comunhão. Como
bem percebeu Walter Kaiser: “Israel [...] não tinha escolha no assunto do bem e do
mal se quisesse desfrutar da comunhão constante daquele cujo próprio caráter não
tolerava nem toleraria o mal” (KAISER, 2011, p. 83).
Como tudo o que temos aprendido neste curso, precisamos de contexto aqui
também. Certamente o ponto de partida para o assunto “lei” na Bíblia é o livro do
Êxodo, que consiste na narrativa de como Deus libertou o seu povo da escravidão
na terra do Egito e os conduziu pelo deserto rumo à terra prometida. Ao longo dessa
jornada, Deus deu ao povo a sua lei e ordenou a construção do tabernáculo, que era
uma espécie de templo móvel, que revelava o desejo do Senhor de habitar no meio
do seu povo. Esse contexto fornece a moldura em que a lei é dada ao povo de
Deus.
Portanto, as leis foram dadas por Deus para o povo que havia sido libertado
da escravidão no Egito, sendo que Deus foi o agente da libertação. A liberdade
consiste em privilégios e responsabilidades, direitos e deveres. A leitura de Êxodo
Página 129
Assim, o Deus libertador dá a lei ao seu povo. Note como o prólogo dos Dez
Mandamentos é uma afirmação sobre quem diz aquelas palavras e o que ele fez
pelo povo que as recebe: “E Deus falou todas estas palavras: ‘Eu sou o SENHOR, o
teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão’” (Êx 20.1,2). O nosso
entendimento correto das leis depende do contexto em que elas são dadas: o
contexto da libertação do povo da escravidão do Egito. Portanto, os mandamentos
foram dados visando à preservação da liberdade, e não a uma nova escravidão.
O Deus que faz exigência éticas é o Deus que antes libertou o povo da
escravidão. As exigências éticas, então, devem ser vistas como parte do
processo de libertação. Num primeiro momento, Deus libertou o povo da
escravidão social, política e cultural que o Egito lhe havia imposto. [...] Os
mandamentos foram dados para a preservação da liberdade recém
conquistada. Portanto, seu tema é a liberdade e não um jugo ou uma nova
escravidão. Os Mandamentos não querem ser lei que engessa, mas
instruções para a preservação da liberdade contra os inimigos da mesma
(MUELLER, 2005, p. 93,96).
Página 130
A lei era como um presente de Deus ensinando o seu povo a viver de modo a
preservar a liberdade que recebeu no Êxodo. A lei é a pedagogia da liberdade. Ela
posicionava o povo à parte de um entorno pagão ao mesmo tempo em que o
ensinava a viver em amor e aliança. O papel da lei, portanto, não era ser um meio
de salvação. Paulo a entendeu assim também, ao dizer que ninguém é justificado
pela prática da lei (Gl 2.16,21; 3.11). A salvação que os tirou do Egito e os conduziu
à terra prometida é um ato de graça e fidelidade da parte de Deus. A lei, portanto, é
dada para um povo que precisava aprender a se relacionar de maneira justa com
Deus em lealdade e uns com os outros. Ela não buscava ser exaustiva e eventual,
mas paradigmática e essencial, isto é, ela não queria prender o povo em cada uma
de suas estipulações, mas através destas buscava gerar no povo a consciência
necessária para lidar com sua liberdade e, assim, preservar e promover a vida.
A lei se apresentou ao povo em duas formas: a lei apodítica e a lei
casuística. A primeira, apodítica, era direta, do tipo faça ou não faça. São leis
diretas que afirmam o que deveria ser feito e o que não deveria ser feito para o
Página 131
cumprimento da parte do povo em sua aliança com o Deus libertador. Ainda que
fossem mandamentos diretivos, seu objetivo era a formação da consciência,
justamente porque leis não dão conta de tudo o que todos, em todos os lugares,
devem ou não devem fazer, em todas as circunstâncias. Era nesse ponto que
acontecia boa parte das discussões dos fariseus e escribas com Jesus, que
justificavam suas ações, por exemplo, no cumprimento literal da lei, mas sem levar
em consideração a aplicabilidade da lei em situações específicas, como, por
exemplo, colher espigas ou curar no sábado (Mt 12.1-13). Vista dessa maneira, as
leis têm mais a ver com uma constituição do que com um código, ou seja, através de
exemplos selecionados ensinavam princípios abrangentes.
Seja forte e corajoso, porque você conduzirá este povo para herdar a terra
que prometi sob juramento aos seus antepassados. Somente seja forte e
muito corajoso! Tenha o cuidado de obedecer a toda a lei que o meu servo
Moisés lhe ordenou; não se desvie dela, nem para a direita nem para a
esquerda, para que você seja bem-sucedido por onde quer que andar. Não
Página 132
Por fim, sabemos que o povo bíblico de Israel estava cercado por outros
povos. Cada um deles tinha o seu corpo jurídico, muito mais antigo que as leis de
Israel, como o código de leis acadiano – Leis de Eshunna (1800 a.C.) – e o Código
de Hamurabi (1726 a.C.). Quando comparados, percebem-se semelhanças e
diferenças. A partir dessa comparação pode-se afirmar que o código de leis do
Antigo Testamento já trazia um padrão moral elevado, um grau notório de progresso.
Porém, isso não significa que a lei do Antigo Testamento representa o padrão mais
alto possível do ensino moral e de prática da justiça (FEE; STUART, 2002, p. 146-
148). Dentro da Bíblia, esse padrão de perfeição e de possibilidade de cumprimento
vem somente com o ensino de Jesus Cristo no Novo Testamento, que envolve o seu
sacrifício como o cumprimento das exigências da lei, bem como a vinda do Espírito
Santo como o poder de Deus para uma vida realmente segundo a vontade de Deus
(veja Romanos 6-8). Mesmo assim, a lei do Antigo Testamento realmente demonstra
um grau notável de progresso além dos padrões estabelecidos antes dela.
Página 133
(Mt 5.21-37). E quanto ao sábado, já que ele faz parte dos Dez
Mandamentos? O princípio hermenêutico é o mesmo: devemos interpretar a
lei do sábado de Êxodo 20.8-11 seguindo a atitude e o ensino de Jesus
quanto a esse mandamento: Jo 7.23; Mt 12.1-8; Mc 2.23-3.6; Lc 6.1-11;
13.10-17).
Vimos que as leis do Antigo Testamento devem ser lidas à luz do seu
contexto primeiro: o Êxodo. Mesmo assim, elas estão presentes em todo o Antigo
Testamento, em forma de reflexão poética, aplicada em narrativas, anunciada pelos
profetas. Até mesmo o Novo Testamento se vale delas, ao interpretá-las e distinguir
entre o que permanece e o que não permanece como uma obrigação para o povo da
nova aliança – a comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, em forma
de “lei de Cristo”.
Oferecemos cinco diretrizes norteadoras para uma hermenêutica das leis e
algumas referências bibliográficas sobre o assunto. Por fim, mais uma contribuição
em forma de lembretes no ajudará nesse processo. Elas são basicamente uma
recapitulação de assuntos que vimos nesta unidade:
1. As leis do Antigo Testamento fazem parte da palavra de Deus, inspirada por ele e
dirigida a nós, mesmo que as mesmas leis não sejam mandamentos diretamente
aplicáveis a nós.
2. As leis do Antigo Testamento, principalmente as que estão no Êxodo, fazem parte
da história do povo bíblico de Israel como estatutos da aliança com Deus. Não
pense nelas como obrigatórias para nós que estamos na nova aliança, a não ser que
tenham sido especificamente renovadas e aplicadas no Novo Testamento.
3. As leis do Antigo Testamento revelam os contornos da santidade e da justiça de
Deus. Não se esqueça de observar que o amor e a misericórdia de Deus são
revelados de igual modo (veja Êx 34.1-7).
4. As leis do Antigo Testamento não são um tratado legal exaustivo. Veja as leis
como um paradigma de postura de coração e comportamento que Deus espera do
seu povo.
Página 136
Saiba mais
Para reflexão
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Página 139
1. A poesia bíblica
Página 140
usada para falar com Deus ou consigo mesmo sobre o sofrimento, a brevidade da
vida, o medo, enfim, a angústia da existência humana. Profetas transmitiram ao
povo a palavra de Deus por meio da poesia.
A análise poética da Bíblia é uma área bastante complexa, pois envolve
inúmeras complicações. A primeira delas é a ausência de uma nomenclatura única
para os conceitos que a arte poética da Bíblia envolve, o que torna difícil nomear
elementos da poética bíblica e confunde a conversa sobre o tema. A segunda é a
dificuldade de tradução da poesia, visto que ela, dentre todas as formas literárias, é
a que mais usa figuras de linguagem. Sendo que as figuras de linguagem são
extraídas do mundo concreto dos escritores, as distâncias linguísticas, culturais,
geográficas e históricas em relação a nós, tornam a tradução da poesia uma tarefa
quase impossível. Há quem diga que realmente não existe tradução de uma poesia,
pois uma vez traduzido, perdeu-se a sua referência às figuras tiradas do mundo da
experiência do autor do texto. Nesse caso, o que acontece é uma reescrita do texto
em outra língua. Por isso, é comum que uma poesia seja mudada em uma tradução
para ser compreendida em outro idioma, ou que a alteração no conteúdo aconteça
para preservar a métrica e a sonoridade, como é o caso comum da tradução de
músicas. A análise poética da Bíblia, ou poetologia bíblica, é um campo
tremendamente vasto e complexo. Walter Kaiser nos alerta sobre essa limitação que
temos no campo da interpretação da poesia bíblica:
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O que podemos saber sobre a poesia bíblica que esteja em nosso campo de
atuação como leitores e intérpretes que buscam a compreensão do texto bíblico?
Vamos olhar para alguns desses aspectos da poesia bíblica, começando pelos tipos
de poesia.
A poesia lírica era usada para ser cantada ou acompanhada por instrumentos
musicais. O melhor exemplo desse tipo de poesia é o livro dos Salmos. Esse
é um elemento comum entre a poesia bíblica e a grega. Havia uma relação
íntima entre a poética e a música, as duas eram importantes para que o povo
se expressasse religiosamente. Essa é a razão pela qual a música e a poesia
são tão marcantes na Bíblia.
A poesia didática consiste em ditos e frases, por meio dos quais se comunica
a sabedoria voltada para os assuntos do cotidiano. É a poesia da reflexão
sobre si, sobre a vida, sobre Deus e as fronteiras de todas essas dimensões
da experiência da vida. Eclesiastes e Provérbios são os melhores
representantes desse tipo de poesia.
A poesia dramática é composta por diálogos, em que diferentes personagens
interagem entre si, argumentam, contra argumentam, complementam-se. É o
que encontramos em Jó e Cântico dos Cânticos.
O paralelismo tem sido considerado como um elemento característico da
poesia hebraica. Ele consiste na correspondência de um verso com outro, ou
de uma linha com outra. Essa equivalência pode ser uma reafirmação pelo
uso de sinônimos, por exemplo, ou também pode ser um contraste. Existem
três tipos de paralelismo:
Paralelismo sinonímico. Quando a segunda linha repete o que foi dito na
primeira usando palavras que não adicionam nem subtraem o significado
da primeira linha. Basicamente, a segunda linha funciona como um
sinônimo da primeira. Nesse caso, as palavras, os conceitos e as ideias
principais são relevantes para a interpretação. Exemplo:42
42
Veja mais exemplos de paralelismo sinonímico em: Jz 5.28; Pv 1.8, 3.13,14, 4.24, 19.6.
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43
Veja mais exemplos de paralelismo antitético em: 1Sm 15.22; Sl 32.10; Pv 10.1,2, 11.19, 13.7,
30.21-23.
44
Veja mais exemplos de paralelismo sintético em: Sl 1.3, 19.8-10, 148.7-12; Pv 14.27. 21.28.
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Embora toda a Bíblia seja uma fonte de sabedoria (2Tm 3.15-17), a sabedoria
bíblica é composta por uma ampla coleção de ditados provenientes de uma tradição
oral e posteriormente escritos, compostos para ensinar o povo de Deus a viver na
presença de Deus. Em outras palavras, a sabedoria bíblica ensina o povo a temer o
Senhor.
O temor do SENHOR
é o princípio do conhecimento,
mas os insensatos desprezam
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Cânticos
3. Um exemplo: Provérbios
do leitor maior bom senso interpretativo para não concluir precipitadamente o que
tão poucas palavras figurativas querem dizer.
Em quarto lugar, como um desdobramento da terceira diretriz, os provérbios
precisam de uma boa tradução para ser devidamente apreciados hoje. Isso porque,
como já enfatizamos, a linguagem figurada do texto poético é extraída do mundo da
experiência dos autores e dos ouvintes/leitores. Assim, a distância entre nós e eles é
um impedimento ao entendimento direto do significado dessas palavras. Para seguir
essa diretriz, faça uma comparação entre as traduções e busque um bom
comentário bíblico específico para explicações do significado dessas palavras e
exemplos de coisas que não fazem parte do nosso mundo de hoje, mas que eram o
cotidiano daquelas pessoas.
Essas diretrizes foram alistadas por Fee e Stuart em nove conselhos ou
regras para termos em mente ao ler os provérbios:
1. Os provérbios são frequentemente parabólicos.
2. Os provérbios são intensamente práticos, não teoricamente teológicos.
3. Os provérbios têm uma redação memorável, mas não tecnicamente precisa.
4. Os provérbios não objetivam apoiar o comportamento egoísta – muito pelo
contrário!
5. Os provérbios que refletem fortemente a cultura antiga podem precisar de
uma “tradução” sensata, para que sua relevância não se perca.
6. Os provérbios não são garantias da parte de Deus, mas sim diretrizes
poéticas para o bom comportamento.
7. Os provérbios podem empregar linguagem altamente específica, exagero ou
qualquer uma das variedades de técnicas literárias para transmitir sua
mensagem.
8. Os provérbios dão bons conselhos para abordagens sábias de certos
aspectos da vida, mas não são exaustivos naquilo que abrangem.
9. Empregados de forma errada, os provérbios podem justificar um estilo de vida
estúpido e materialista. Empregados de forma correta, os provérbios
fornecerão conselhos práticos para a vida diária.
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Saiba mais
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Para reflexão
Página 150
Página 151
Sobre esses profetas temos apenas referências e breves relatos, especialmente nos
livros de Samuel e Reis. Por exemplo: Natã, Elias e Eliseu.
Uma organização mais adequada dos livros proféticos os divide por períodos
históricos. Foram três períodos:
a. A profecia pré-exílica, que data de 750 a 586 a.C. No século VIII a.C. estão os
profetas Amós e Oseias (Israel), e Isaías e Miqueias (Judá). No século VII
a.C. estão os profetas Naum, Sofonias, Habacuque e Jeremias.
b. A profecia exílica, que data de 586 a 538 a.C., período de atividade do profeta
Ezequiel.
c. A profecia pós-exílica, que data de 538 a 460 a.C., período de atividade dos
profetas Ageu, Zacarias e Malaquias (SAYÃO, 2012, p.138,139).
Essa divisão mais adequada permite que visualizemos outro importante
elemento sobre a profecia no Antigo Testamento. Pois, as três divisões acima
referem-se à profecia clássica, que foi a atividade profética desde o século VIII a.C.
até o século V a.C. Porém, não foi nesse período que a profecia surgiu na história
bíblica de Israel. Os antecedentes da profecia clássica remontam a um período
muito anterior. É em Moisés que encontramos o profeta sem igual, que se torna uma
referência de ofício profético (Dt 34.10-12). Mas o primeiro fenômeno profético de
Israel aconteceu no século XI a.C., cuja característica marcante era o êxtase (veja
1Sm 10.5).
2. O significado da profecia
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45
Conforme FEE; STUART, 2002, p. 154-159.
Página 154
maldição pudessem ser claramente compreendidos pelo seu povo. Como vimos,
Moisés foi o mediador da Lei de Deus quando este a anunciou pela primeira vez, e,
portanto, é um paradigma de profeta e da função que a profecia ocuparia na vida do
povo de Deus. Por meio dos profetas, Deus relembra às pessoas nas gerações que
sucederam a Moisés que, se a Lei fosse guardada, haveria bênçãos como resultado;
mas se isso não ocorresse, o resultado seria o castigo. Portanto, a origem da
palavra profética é de fundamental importância: os profetas não inventaram as
bênçãos ou as maldições que proclamavam. Eles reproduziam a Palavra de Deus, e
não a sua própria palavra. Cada profeta desempenhou o seu ofício segundo as suas
particularidades, bem como as do seu tempo: estilo, vocabulário, linguagem,
dramatização etc. Deve-se notar também que as bênçãos ou as maldições não
garantem a prosperidade ou a miséria para qualquer indivíduo específico. Na
maioria das vezes são coletivas, uma vez que se referem à nação como um todo. A
característica comunitária da profecia é um elemento essencial para nos
aproximarmos do sentido de profecia no Novo Testamento e hoje.
Assim diz o Senhor, o seu redentor, o Santo de Israel: “Eu sou o Senhor, o
seu Deus, que lhe ensina o que é melhor para você, que o dirige no
caminho em que você deve ir (Is 48.17).
Então o Espírito do Senhor veio sobre mim e mandou-me dizer: “Assim diz o
Senhor”: É isso que vocês estão dizendo, ó nação de Israel, mas eu sei em
que vocês estão pensando. Vocês mataram muita gente nesta cidade e
encheram as suas ruas de cadáveres (Ez 11.5).
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“Ai daquele que constrói o seu palácio por meios corruptos, seus aposentos,
pela injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem
pagar-lhes o devido salário (Jr 22.13).
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Como vimos, a uma profecia era uma forma de pregação, onde a realidade
religiosa e social do povo era confrontada pela Palavra de Deus vinda ao profeta.
Vejamos alguns exemplos.
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4. Diretrizes hermenêuticas
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Por fim, considero de grande valia três considerações de Fee e Stuart (2002,
169-174) em forma de alertas para a hermenêutica dos profetas:
Uma precaução: o profeta como prenunciador do futuro. Já vimos o
problema do reducionismo que é pensar no profeta apenas como um vidente, e aqui
cabe uma ênfase a esse respeito: cuidado para não forçar os oráculos proféticos
para que eles sirvam ao que você gostaria que eles dissessem. Devemos tentar
escutar aquilo que Deus tem a intenção de dizer. E lembre-se: na maioria das vezes,
os profetas profetizaram a respeito do futuro imediato de Israel, isso tem a ver com
sua vocação histórico-social. E o que lhes era imediato, para nós é temporalmente
muito distante – milênios atrás.
Uma preocupação: a profecia e o segundo sentido. Existem profecias que
se cumpriram no futuro imediato, mas que ganharam sentido pleno em Jesus. Isaías
53, por exemplo, segundo alguns estudiosos, estava se referindo ao Rei Ciro, mas
em Jesus essa profecia é plenificada em seu segundo sentido. Assim como isso é
possível, também é possível que escritores canônicos, isto é, que foram inspirados,
releiam uma profecia e deem a ela um segundo sentido, como Paulo em 1Co 10.4,
referindo-se ao milagre das águas que brotaram das rochas com Moisés (Ex 17.1-7).
Mas só escritores que foram inspirados tiveram essa autoridade, hoje isso não
acontece mais e, portanto, devemos ler a bíblia sabendo que pelo Espírito somos
iluminados em nossa leitura, mas não inspirados e, portanto, sem a função de
procurar um suposto segundo sentido das profecias. Esse sentido mais pleno da
profecia, ou sensus plenior, portanto, precisa ter sido definido pelo Novo
Testamento. Fee e Stuart escrevem:
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46
Conforme WEGNER, Uwe; VOIGT, Emilio. Apocalipse: manual de estudo. São Leopoldo:
Sinodal/EST, 2013. P.10.
Página 162
6. O livro do Apocalipse
47
Conforme FEE; STUART, 2002, p. 218-221; WEGNER; VOIGT, 2013, p.11.
Página 163
Página 164
Saiba mais
Página 166
testemunho, disputa e defesa. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus,
2014. p. 805-838.
O especialista em Antigo Testamento, Walter Brueggemann, escreveu no final
da década de 70 um dos livros mais instigantes sobre a atualidade da atividade
profética e, até que ponto, ela conclama a Igreja de Jesus Cristo para ser uma
comunidade profética em atividade no mundo. O argumento central do livro é
construído sobre Moisés como o protótipo bíblico de profeta: BRUEGGEMANN,
Walter. A imaginação profética. São Paulo: Paulinas, 1983.
Uma ótima síntese do uso de símbolos e modelos de interpretação do
Apocalipse pode ser encontrada em: WEGNER, Uwe; VOIGT, Emilio. Apocalipse:
manual de estudo. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2013. P.19-24.
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