Você está na página 1de 174

HERMENÊUTICA

BÍBLICA
Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Hermenêutica Bíblica
Disciplina na modalidade a distância

São Paulo
2021
Créditos
Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Coordenação Acadêmica
Prof. Me. Luiz Alberto Teixeira Sayão

Editoração
Victor de Lima Viana
Sumário

Unidade 1: O QUE É HERMENÊUTICA? ............................................................................................................. 1

Unidade 2: OS ENVOLVIDOS NA INTERPRETAÇÃO E OS SEUS PAPÉIS ............................................................. 18

Unidade 3: PENSAR CONTEXTUALMENTE ...................................................................................................... 34

Unidade 4: GRAMÁTICA: FIXAÇÃO DO TEXTO E ANÁLISE GRAMATICAL ......................................................... 57

UNIDADE 5: FIGURAS DE LINGUAGEM E PANO DE FUNDO HISTÓRICO-CULTURAL ......................................... 75

Unidade 6: A INTERPRETAÇÃO DAS NARRATIVAS E PARÁBOLAS ................................................................... 95

Unidade 7: A INTERPRETAÇÃO DAS CARTAS ................................................................................................ 116

Unidade 8: A INTERPRETAÇÃO DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO ................................................................ 127

Unidade 9: A INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS POÉTICOS E DA SABEDORIA .................................................... 139

Unidade 10: A INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS PROFÉTICOS E DO APOCALIPSE ............................................. 151


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

Unidade 1: O QUE É HERMENÊUTICA?

“Hermenêutica” seria uma palavra aparentemente fácil de definir, caso o seu


significado pudesse ser explicado apenas por uma definição de dicionário. No
entanto, estamos frente a uma palavra que é apenas a porta de entrada para uma
edificação de tamanho praticamente incalculável. Podemos definir hermenêutica
apenas como “arte e técnica de interpretação de textos”, mas deixaríamos de visitar
e conhecer muitos andares do edifício. Mesmo que optemos por uma definição clara
e simples – a hermenêutica evangélica quer “descobrir a intenção do Autor/autor
(autor = agente humano inspirado; Autor = Deus, que inspira o texto) 1”–, ainda assim
diversas perguntas deverão ser feitas sobre a possibilidade de atingir esse objetivo e
sobre como chegar a esse objetivo.
Como é impossível conhecer a imensidão da “hermenêutica” em poucas
páginas, abaixo você encontrará um caminho introdutório à hermenêutica através do
significado do termo e do seu uso.
O nosso foco é a hermenêutica bíblica, embora a hermenêutica abranja
outras áreas do conhecimento, como o direito, a filosofia e a literatura, por exemplo.
O objetivo desta unidade é definir “hermenêutica”, compreender a sua tarefa,
esclarecer as diferenças e as similaridades entre “hermenêutica” e “exegese”, e
conscientizar quanto à importância de se interpretar bem as Escrituras. Para isso,
dividimos a unidade em 3 partes:
1. A definição de hermenêutica
2. A hermenêutica, a exegese e as suas tarefas
3. A importância da boa interpretação

1. A definição de hermenêutica

Hermenêutica está na natureza da própria teologia cristã, por esta ser


centrada na interpretação de textos da Bíblia e da tradição teológica. É seguro
afirmar que a tarefa da teologia é fundamentalmente hermenêutica.

1
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica. São
Paulo: Vida Nova, 2009, p. 29.
Página 1

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

1.1. A hermenêutica é interpretação

O significado básico de hermenêutica é interpretação. A interpretação começa


com a leitura, pois o ato de ler um texto bíblico implica em interpretação, mesmo que
a pessoa que lê nada saiba sobre hermenêutica. Ler é interpretar porque toda leitura
carrega uma pré-compreensão do que é lido. Essa pré-compreensão vem do
conhecimento sobre o que diz o texto, do vocabulário e da nossa bagagem vivencial,
isto é, tudo o que já vivemos e experimentamos faz parte de nós, por isso nunca
chegamos vazios a um texto. Por exemplo, uma pessoa de tradição calvinista tem
uma pré-compreensão do sentido de palavras como “escolheu” e “predestinou” (Ef
1.4,5,11). Quando essas palavras aparecem no texto, o sentido delas será de
acordo com o vocabulário e a doutrina dessa tradição teológica cristã que formou o
pensamento da pessoa leitora. De igual modo, uma pessoa de tradição pentecostal
tem uma pré-compreensão de expressões como “batizados com o Espírito Santo”
(At 1.15; 11.16), ou “línguas” e “profetizar” (At 2.4; 10.46; 19.6; 1Co 12.10). No
entanto, uma pessoa cuja tradição cristã não está ligada à doutrina calvinista ou à
doutrina pentecostal poderá ter pré-compreensões diferentes das mesmas palavras
e expressões.

Nenhuma pessoa, ao aproximar-se da Bíblia, é um recipiente vazio. Todos


já possuem certas ideias sobre Deus e o mundo. Mais ainda: as pessoas
têm os seus interesses, seus anseios, seus sentimentos. A gente se
aproxima da Bíblia com uma determinada pré-compreensão, uma carga
ideológica, uma visão das coisas. Já Lutero viu isso claramente. Toda
pessoa tem um ‘espírito’ próprio. E a Bíblia também tem o seu. Diz o
Reformador ‘(...) importa que coloquemos os escritos de todos os homens
de lado e que apliquemos tanto mais o nosso suor à Escritura quanto mais
presente se fizer o perigo de alguém a compreender pelo seu próprio
espírito, a fim de que o costume deste afã permanente supere este perigo e
nos faça certos do espírito da Escritura, que fora da Escritura não pode ser
encontrado’. Em outros termos, a leitura da Bíblia sempre é um encontro de
dois espíritos (BRAKEMEIER, 2007, p. 43).

Talvez esse aspecto da leitura como interpretação fique ainda mais evidente
se pensarmos numa pessoa que está lendo a Bíblia pela primeira vez, sem ter uma
tradição cristã que a oriente quanto ao significado histórico-contextual e teológico
das palavras que ela está lendo. Quando ela ler “Este é o meu mandamento: Amem-
se uns aos outros” (Jo 15.17), o que esse texto significará para ela? Será que o
sentido de “amor” em nossa cultura vigente é o mesmo que encontramos no Novo
Página 2

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

Testamento? Que referências de amor essa pessoa possui? Tais referências a


levarão para perto ou para longe do sentido de “amor” das palavras de Jesus?
A interpretação, então, está presente desde a leitura. Ela se estende à
tradução das línguas originais para o português, passando pela análise dos textos
em seus devidos contextos históricos até chegar ao processo em que exprimimos e
explicamos a mensagem do texto para uma pessoa, um grupo de estudantes da
Bíblia, ou quando pregamos para uma igreja.
Agora reflita sobre o tamanho dessa responsabilidade. Estamos cientes de
que, ao irmos ao texto bíblico, levamos conosco as nossas interpretações prévias.
Por essa razão, precisamos estar atentos e ser criteriosos para não impormos ao
texto um sentido que ele não tinha quando foi escrito. Parte fundamental da
hermenêutica bíblica é pensar e oferecer um caminho o mais seguro possível para
cumprirmos essa tarefa com excelência.
Se estamos conscientes de que todo leitor é um intérprete e que leitura é
interpretação, então precisamos decidir interpretar bem.

A primeira razão de aprendermos como interpretar é que, quer desejemos


ou não, todo leitor é ao mesmo tempo um intérprete; ou seja, a maioria de
nós toma por certo que, enquanto lemos, também entendemos o que lemos.
Tendemos, também, a pensar que o nosso entendimento é a mesma coisa
que a intenção do autor do texto, ou, indo mais além, a intenção do Espírito
de Deus ao inspirar esse autor. Apesar disso, invariavelmente levamos para
dentro do texto tudo quanto somos, com toda nossa experiência, cultura e
entendimento prévio de palavras e ideias. Às vezes, aquilo que levamos
para o texto, mesmo que sem termos consciência disso, nos leva a atribuir
ao texto ideias que lhe são estranhas (FEE; STUART, 2002, p. 14).

É claro que essa constatação é válida para a leitura de qualquer outro texto.
Ao fazermos a leitura, estamos levando ao texto o nosso conhecimento prévio sobre
as palavras e ideias que ali estão. Isso, que chamamos acima de pré-compreensão
ou “conhecimento prévio”, é a nossa bagagem cultural, vocabulário, formação
doutrinária, ideológica, mas também as expectativas de que o texto diga algo que
nos seja mais confortador do que confrontador. O problema é que é impossível
lermos um texto sem que isso aconteça. Inconscientemente, sempre leremos textos
carregando conosco inúmeros pressupostos. A nossa tarefa, portanto, não é a de
livrar-nos de todos os nossos pressupostos ao lermos e interpretarmos um texto.
Tais pressupostos podem até ser importantes no processo de interpretação. Mas,

Página 3

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

num primeiro momento, precisamos identificar e estar plenamente conscientes de


que, ao lermos um texto, estamos levando para dentro dele as nossas ideias e
definições prévias, atribuindo significado às palavras que encontramos ali. A tarefa
primária é a de identificar tais pressupostos para diminuirmos a quantidade de
informações que carregamos para dentro da Bíblia. Para tanto, a hermenêutica se
coloca como meio para que os sentidos que levamos para dentro do texto sejam
menos determinantes na interpretação, a fim de ouvirmos mais claramente o que o
texto tem a dizer.
Hermenêutica, portanto, tem a ver com método. Ela é uma perspectiva pela
qual lemos e compreendemos um texto. Como método, a hermenêutica define os
pressupostos que serão utilizados no processo de interpretação de um texto. No
processo hermenêutico, os pressupostos deixam de ser inconscientes para serem
definidos e aplicados conscientemente.
Ao longo da história da igreja, foram criados diversos métodos hermenêuticos
para melhor compreendermos e comunicarmos a mensagem da Bíblia. É pelo uso
de um método que lemos, ouvimos e comunicamos o texto bíblico. Mas o que é um
método? Essa é uma palavra que pode parecer assustadora ou tediosa, pois nos
remete a regras, rigor, critérios. Nem todas as pessoas receberiam como um elogio
se fossem chamadas de “metódicas”. Mas não precisa ser assim. Podemos pensar
em método como:

1. Uma ferramenta. Seu valor depende da adequação ao propósito para que é


usada (tente desparafusar com um martelo) e da habilidade de quem usa –
depende muito mais dessa habilidade (que digam as pontas dos dedos de quem
martela sem muita habilidade).
2. Um mapa. Seu valor está na ajuda que oferece à pessoa para chegar ao destino
desejado. Por isso, não pode ser muito complicado, se não a gente se perde
antes mesmo de começar a viagem.
3. Um andaime. Enquanto construímos nosso edifício interpretativo, precisamos dos
andaimes para fixar os tijolos, rebocá-los, pintar as paredes etc. Depois do
edifício pronto, os andaimes são desfeitos e usados para outras finalidades.
4. Uma técnica a serviço da arte. Ler a Bíblia é uma arte e, como toda arte, precisa
de técnicas que facilitem a prática do talento e da criatividade. Técnicas devem
servir à arte, e não dominá-la (ZABATIERO, 2007, p. 27).

Para lançar um pouco mais de luz sobre a hermenêutica, passaremos agora a


estudar o seu significado etimológico.

Página 4

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

1.2. O significado etimológico de hermenêutica2

A palavra latina “hermenêutica” deriva do grego hermeneuein (interpretar) e


hermeneia (interpretação). A maneira como essas duas palavras gregas eram
utilizadas na Antiguidade traz luz ao que hoje chamamos de interpretação.
Hermeneuein e hermeneia, nas suas diversas formas, aparecem inúmeras vezes
nos textos da Antiguidade. Hermeneia aparece muitas vezes nos textos de Platão, e
seu aluno Aristóteles dedicou parte importante de sua obra para tratar o assunto da
interpretação (no grego: peri hermeneias). Há diversas formas do termo na maior
parte dos escritores antigos mais conhecidos: Xenofonte, Plutarco, Eurípedes,
Epicuro, Lucrécio e Longino.
É comum as que definições de hermenêutica partam da associação do termo
ao deus grego Hermes. Essa associação pode ser esclarecedora, pois conforme
mostra Richard E. Palmer (2011, p. 23-25), dela surgem três vertentes essenciais do
seu significado, a partir das quais pode-se extrair ideias sobre seu atual sentido em
interpretação bíblica. Vamos a elas.
A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos. Tanto
hermeios, o verbo hermeneuein e o substantivo hermeneia, que são mais comuns,
remetem para o deus-mensageiro-alado Hermes, de cujo nome as palavras
aparentemente derivam, ou vice-versa.
É significativo que Hermes esteja associado a uma função de transformar
tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que seja compreensível.
As várias formas da palavra sugerem o processo de trazer uma situação ou uma
coisa da ininteligibilidade à compreensão. Assim, os gregos atribuíam a Hermes a
descoberta da linguagem e da escrita, que são as ferramentas que a compreensão
humana utiliza para chegar ao significado das coisas e para transmiti-lo aos outros.
Portanto, a palavra hermenêutica, quando definida à luz do seu antigo uso,
sugere o processo de tornar compreensível, especialmente enquanto esse processo
envolve a linguagem, visto ser a linguagem o meio por excelência no processo de
compreensão.

2
Baseamo-nos aqui na esclarecedora explicação de Richard E. Palmer sobre o significado moderno
de hermenêutica a partir do seu antigo uso: PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70,
2011, p. 23-41. (Coleção: O saber da filosofia - 15).
Página 5

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

Segundo a mitologia grega, Hermes é mediador e portador de uma


mensagem a ser comunicada em forma compreensível, processo composto por três
vertentes implícitas do significado de hermeneuein e hermeneia, no seu antigo uso:
Dizer – falar, exprimir em voz alta; performance;
Explicar – como quando se explica uma situação, ou um termo;
Traduzir – como na tradução de uma língua estrangeira.
O verbo “interpretar”, em língua portuguesa, contém esses três significados,
ao mesmo tempo em que cada um representa um sentido independente e relevante
do termo “interpretação”.

1.2.1. Hermenêutica como dizer

Como Hermes tem uma função anunciadora, podemos pensar no primeiro


sentido de “interpretação” como dizer, falar, exprimir. Esse é um sentido significativo
para a teologia cristã, pois uma das principais razões pelas quais se busca
interpretar a Bíblia é porque queremos comunicar a sua mensagem. A própria
natureza do evangelho aponta para essa direção, pois evangelho é “boa nova”, “boa
notícia”, e notícias precisam ser anunciadas, ditas, proclamadas. Interpretamos
porque temos algo a dizer – já que a “fé vem pelo ouvir” (Rm 10.17), a pessoa que
fala está implícita nesse processo.
Esse sentido de hermenêutica muitas vezes é desconsiderado, ou deixado
exclusivamente a uma área da teologia prática, que é a homilética. No entanto,
quando consideramos que “dizer” faz parte do processo de interpretação, trazemos
luz ao fato de que, por exemplo, uma leitura do texto bíblico em voz alta é um ato
interpretativo, pois uma boa leitura quer chegar ao sentido da palavra e da frase, e
faz isso usando recursos da voz, como a entonação e a ênfase, ou a variação na
velocidade da leitura. Além disso, recordar que a hermenêutica é “dizer” pode ser
um importante auxílio para a tarefa da pregação, pois salienta a importância do
“como dizer” e não apenas do “o quê dizer”. Assim, a forma e o conteúdo da
mensagem são vistos como igualmente importantes.

Página 6

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

1.2.2. Hermenêutica como explicar

O segundo sentido, ligado ao primeiro, é o de explicar. Esse é o sentido mais


óbvio de interpretação. Podemos exprimir, narrar uma situação ou uma história sem
necessariamente explicar aquilo que acabamos de exprimir. O processo de
explicação consiste em racionalização e esclarecimento da situação, da mensagem
do texto, do significado das palavras, do contexto e da finalidade do texto que
interpretamos. Na explicação queremos chegar ao que de fato o texto quer
comunicar.
Enquanto “dizer” se ocupa com o aspecto expressivo da mensagem,
“explicar” se ocupada com o aspecto discursivo e explicativo. As palavras não
apenas dizem, expressam algo, mas também explicam e clarificam.

1.2.3. Hermenêutica como traduzir

Por fim, o terceiro sentido é traduzir. Esse é um aspecto que pode passar
despercebido quando texto e leitor compartilham a mesma língua. Mas se tratando
do texto da Bíblia, não podemos ignorar esse aspecto, pois ele é decisivo. É
evidente que a Bíblia em língua portuguesa é tradução dos originais hebraico,
aramaico e grego. Ela é oriunda de um mundo muito diferente do nosso, distante de
nós no tempo, no espaço e nas línguas. Traduzir a Bíblia é uma tarefa de alto grau
de complexidade. Visto que o processo de tradução não consiste em meramente
encontrar sinônimos entre os idiomas, a pessoa que traduz exerce a função de
intérprete.

O tradutor é um mediador entre dois mundos diferentes. A tradução nos


torna conscientes do fato de que a própria língua contém uma interpretação.
A tradução nos torna conscientes de que a própria língua contém uma visão
englobante do mundo, à qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo
quando traduz expressões individuais. A tradução apenas nos torna mais
totalmente conscientes do modo como as palavras na realidade moldam a
nossa visão de mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de
que a língua é um repositório de experiência cultural; existimos nesse
medium e através dele; vemos através dos seus olhos (PALMER, 2011, p.
37).

Página 7

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

Portanto, nos três sentidos da palavra interpretação que vimos – dizer,


explicar e traduzir –, há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no
espaço ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; há algo
que requer quem exprima, explique e/ou traduza, e que é, de certo modo, “tornado
compreensível”, “interpretado”. As palavras, frases e parágrafos que compõem o
texto bíblico podem estar longe de nós no tempo, no espaço e na linguagem, e
também pode haver outros obstáculos à sua compreensão. A tarefa de interpretação
deverá ser tornar algo que é pouco familiar, distante e obscuro em algo real, próximo
e inteligível.

2. A hermenêutica, a exegese e as suas tarefas

Existem diversos livros/manuais de hermenêutica e exegese publicados em


língua portuguesa, aos quais nos referimos nestas unidades e faremos breves
apresentações dessas obras à medida que as utilizarmos. Nesses manuais nós
encontramos variações quanto à definição de “hermenêutica” e “exegese”. A razão
disso é que as definições de cada termo dependem do papel que lhes é atribuído.
Ou seja, o significado do termo é definido pelo seu uso. Assim, as diferentes
definições estão ligadas não tanto ao significado das palavras, mas à tarefa atribuída
a cada termo.
Antes de encontrarmos os diferentes usos de hermenêutica e exegese é
importante explicar que elas são palavras sinônimas, pois ambas significam
interpretação. Já vimos acima o significado etimológico de hermenêutica, veremos
agora o significado de exegese, o seu uso e a sua relação com a hermenêutica,
conforme encontramos nos manuais mais comuns.
“Exegese” vem do grego exegesis, cujo significado pode ser apresentação,
descrição ou narração como explicação e interpretação. A palavra grega sugere um
movimento de dentro para fora. Assim, a exegese de um texto é a ação de extrair
dele o seu sentido. Na exegese bíblica, o termo tem o sentido específico de
explicação/interpretação, o que permite defini-lo como trabalho de explicação e
interpretação de um ou mais textos bíblicos (WEGNER, 2005, p. 11).

Página 8

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

O teólogo e biblista catarinense Uwe Wegner, faz a seguinte diferenciação


entre hermenêutica e exegese bíblica: hermenêutica designa mais particularmente
os princípios que regem a interpretação dos textos. Exegese bíblica descreve mais
especificamente as etapas ou os passos que cabe dar em sua interpretação3.
Seguindo a linha de raciocínio de Uwe Wegner, podemos dizer que a
hermenêutica é o método pelo qual interpretamos o texto bíblico utilizando a
ferramenta exegese, que é o estudo minucioso do texto, que consiste em passos e
etapas bem definidos para extrair ao máximo a mensagem contida no texto.
Wegner, então, define a tarefa da exegese em três partes (2005, p. 12,13):
1. A primeira tarefa da exegese é aclarar as situações descritas nos textos, ou
seja, redescobrir o passado bíblico de tal forma que o que foi narrado nos
textos se torne transparente e compreensível para nós que vivemos em outra
época e em circunstâncias diferentes.
2. A segunda tarefa da exegese é permitir que possa ser ouvida a intenção que
o texto teve em sua origem.
3. A terceira tarefa da exegese é verificar em que sentido opções éticas e
doutrinais podem ser respaldadas e, portanto, reafirmadas, ou devem ser
revistas e relativizadas.
Com pressupostos diferentes, por ser representes de outra escola de
interpretação bíblica, Gordon Fee e Douglas Stuart definem a exegese como “estudo
cuidadoso e sistemático da Escritura”, e a tarefa da exegese como histórica, isto é, a
exegese se ocupa em descobrir o significado original que foi pretendido pelo autor
do texto, na tentativa de ouvir a mensagem bíblica conforme os leitores originais

3
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 4 ed. São Leopoldo:
Sinodal; São Paulo: Paulus, 2005. 414 páginas. (Atualmente o livro encontra-se na oitava edição,
com 444 páginas). O livro de Uwe Wegner é um dos mais completos manuais de exegese de método
histórico-crítico (que explicaremos mais adiante) que temos em língua portuguesa.
Mesmo se tratando de um livro técnico, a sua organização utiliza tabelas e caixas de texto com
explicações que facilitam o entendimento dos passos exegéticos, bem como o manuseio da obra, ou
seja, o livro foi escrito e organizado com clareza didática. Ele é bastante detalhado, com rica
explicação dos passos exegéticos, desde a tradução literal do texto até a atualização do sentido da
mensagem do texto, em que todo o processo exegético é demonstrado na prática interpretativa do
texto de Mc 2.15-17 e os textos paralelos em Mt 9.10-13 e Lc 5.29-32.
Página 9

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

daqueles textos devem tê-la ouvido. Portanto, a tarefa da exegese é descobrir a


intenção original das palavras da Bíblia4.
Seguindo a linha de raciocínio de Fee e Stuart, a hermenêutica é o passo
seguinte à exegese, pois a sua função é elucidar o sentido e relevância dos textos
antigos para os dias atuais. Sendo assim, o objeto de estudo da exegese são os
textos do passado e o da hermenêutica é a atualização da mensagem desses textos
para os dias atuais; a exegese lida com o passado, enquanto a hermenêutica lida
com o presente.
Para justificar o método escolhido, os autores afirmam que “a razão porque
não devemos começar com o aqui e agora [hermenêutica] é que o único controle
apropriado para a hermenêutica acha-se na intenção original do texto bíblico [que
encontramos por meio da exegese]” (FEE; STUART, 2002, p. 25 – colchetes meus).
Essa é a resposta dos autores para as importantes questões sobre: como garantir
que um texto bíblico diga o que ele realmente quer dizer e não o que nós queremos
que ele diga? Como evitar que um mesmo texto signifique coisas diferentes, em
alguns casos até contraditórias? Como evitar que o texto seja manipulado? No
entendimento deles, a hermenêutica é subjetiva, pois sua tarefa é falar o que a
Bíblia tem a dizer para a atualidade. Porém, só é possível acertar na hermenêutica
se a exegese for bem feita, caso contrário o texto bíblico pode dizer qualquer coisa
que queiramos que ele diga. É a objetividade da exegese, com critérios bem
definidos para análise do texto em seu contexto e línguas originais e de acordo com
o seu gênero literário, que limita o que a hermenêutica poderá dizer sobre o texto,
pois “um texto não pode significar o que nunca significou” (FEE; STUART, 2002, p.
26). E é desta maneira que eles explicam as duas dimensões da interpretação
bíblica:

4
FEE, Gordon.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? Um guia para entender a Bíblia com o
auxílio da exegese e da hermenêutica. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2002. 330 páginas. (Atualmente o
livro encontra-se na terceira edição revista e ampliada, de 2011, com 336 páginas). Este é
possivelmente o manual de exegese bíblica de método histórico-gramatical (que explicaremos mais
adiante) mais popular em faculdades e seminários teológicos de tradição protestante e evangélica.
Gordon Fee é professor emérito do Regent College – Canadá, especialista em Novo Testamento,
com diversos livros escritos sobre teologia do Novo Testamento, exegese e comentários bíblicos.
Douglas Stuart é professor no Gordon-Conwell Theological Seminary – Estados Unidos, especialista
em Antigo Testamento. O aspecto mais importante dessa obra é o método de interpretação de acordo
com os gêneros literários da Bíblia (epístolas, narrativas, evangelhos, leis etc.). É um livro de
linguagem simples, pouco técnico, portanto, um excelente ponto de partida para quem está iniciando
os estudos sobre interpretação bíblica.
Página 10

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

O estudioso crente insiste que os textos bíblicos primeiramente significam


aquilo que significavam. Ou seja, cremos que a Palavra de Deus para nós
hoje é primeiramente aquilo que Sua Palavra era para eles. Temos,
portanto, duas tarefas: Primeiramente, descobrir o que o texto significava
originalmente, esta tarefa é chamada exegese. Em segundo lugar, devemos
aprender a escutar esse mesmo significado na variedade de contextos
novos ou diferentes dos nossos próprios dias; chamamos a esta segunda
tarefa de hermenêutica. No seu sentido clássico, o termo ‘hermenêutica’
abrange as duas tarefas, mas neste livro o usamos conscientemente
somente neste sentido mais estrito. Realizar bem as duas tarefas deve ser o
alvo do estudo bíblico (FEE; STUART, 2002, p. 11).

Utilizamos dois exemplos de diferentes escolas de interpretação para


esclarecer que:
a. A tarefa da exegese que fica clara em ambos os casos é: descobrir o que o
texto significava para então podermos dizer o que o texto significa. Por meio
de pressupostos e critérios diferentes, ambas as escolas de interpretação
querem chegar ao sentido original do texto para comunicar a sua mensagem
com fidelidade ao texto do passado e relevância ao ouvinte moderno;
b. Exegese e hermenêutica significam “interpretação”. Em sentido clássico, no
entanto, “hermenêutica” abrange desde a análise minuciosa dos textos quanto
a atualização do sentido deles para o presente.
c. Mesmo assim, é normal encontrar nos manuais uma diferenciação entre
exegese e hermenêutica, pressupondo duas etapas do processo de
interpretação: a exegese tem o seu olhar voltado para o passado – texto e
autor(es), enquanto a hermenêutica olha para o presente – leitores e ouvintes
modernos. O foco da interpretação, portanto, é o texto e a intenção do autor,
para depois de compreendermos o texto em seu contexto original, extrairmos
dele a mensagem para hoje. Portanto, a exegese é o ponto de partida.
Por fim, vale mencionar a proposta do professor Júlio Zabatiero, cujo Manual
de Exegese propõe um caminho diferente dos manuais tradicionais, pois, entre
outras razões,

não se prende à ordem do hábito acadêmico de interpretação bíblica – você


pode começar com a exegese ou com a hermenêutica. Tanto faz, pois, de
fato, sempre que lemos fazemos as duas coisas simultaneamente. Só as
distinguimos por razões metodológicas e didáticas. Por isso, neste manual,
uso indistintamente os termos exegese, interpretação, leitura, hermenêutica.
São termos que, na história, receberam sentidos diferentes e definiram

Página 11

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

propostas distintas de leitura, mas precisam ser revistos e reconhecidos


5
como sinônimos (ZABATIERO, 2007, p. 22).

Com os três manuais que citamos até o momento já temos um cenário


desenhado acerca do que é hermenêutica, exegese, leitura e interpretação.
Optamos por, assim como Zabatiero, utilizar esses termos como sinônimos para
facilitar a compreensão de quem está iniciando a sua jornada pelos campos da
interpretação bíblica. Também utilizaremos outros manuais ao longo do curso com o
propósito de dar ao estudante uma visão ampla do tema, bem como oferecer uma
bibliografia que lhe sirva como auxílio na interpretação. A escolha desses manuais
levou em consideração a apresentação de diferentes perspectivas interpretativas e a
facilidade de acesso à bibliografia.
Assim, escolhemos não seguir um único método. Tentaremos extrair
princípios e orientações de diferentes métodos e escolas de interpretação que nos
auxiliem em nossa tarefa: ouvir a palavra que Deus tem a nos dizer por meio das
Escrituras e anunciar as suas boas notícias de salvação em nosso tempo.

3. A importância da boa interpretação

A Bíblia é repleta de questões hermenêuticas, sendo que alguns textos são


explícitos ao falarem da dificuldade de interpretação e entendimento de algumas
passagens.
Em diversas ocasiões encontramos nos evangelhos Jesus, fariseus e mestres
da lei discutindo sobre a interpretação das Escrituras, do ensino e das ações de
Jesus e dos seus discípulos 6 . Veremos alguns exemplos que nos ajudarão a
observar na prática o que vimos até aqui.

5
ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007. 159 páginas. O manual de
exegese do prof. Júlio Zabatiero é uma obra que recomendamos por ser uma alternativa aos manuais
tradicionais dos métodos histórico-crítico e histórico-gramatical. A sua perspectiva não substitui esses
métodos, mas busca conciliar e integrar as orientações de métodos tradicionais e modernos, sendo
que os métodos tradicionais (histórico-crítico e histórico-gramatical) focam na intenção do autor e do
texto (passado), enquanto que a tendência de métodos modernos é focar o leitor (presente). Para
tanto, o autor opta por uma perspectiva sêmio-discursiva, cujo foco está na ação no texto e a partir do
texto.
6
Apenas alguns exemplos no evangelho de Mateus: 12.1-37; 15.1-20; 16.1-12; 19.1-12
Página 12

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

3.1. A vulnerabilidade do texto e a necessidade de interpretar bem

Em 2Pedro 3.16 temos uma declaração acerca da dificuldade de


entendimento das cartas de Paulo: “Ele [Paulo] escreve da mesma forma em todas
as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm algumas coisas
difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como também o
fazem com as demais Escrituras, para a própria destruição deles.”
Não se trata, portanto, de apenas interpretar, mas de interpretar bem,
fielmente ao que o autor quer comunicar. Isso porque textos podem ser torcidos.
Eles são vulneráveis à interpretação que deles fazemos. O texto é frágil, pois ele
não pode se defender das interpretações equivocadas e tendenciosas que podem
ser feitas dele. E um processo muito comum, como já revelava a segunda carta de
Pedro, é que por meio da interpretação, podemos fazer com que um texto se torne
algo que ele não é, comunique uma mensagem diferente daquela que queria
comunicar.
A Bíblia é reconhecida pela cristandade como “Palavra de Deus”. Nesse
sentido, ela é palavra infalível. As nossas interpretações, por outro lado, são falíveis.
Foi o que John Stott afirmou:

A Palavra de Deus é infalível, pois o que ele diz é verdade. Mas nenhum
indivíduo, grupo ou igreja já foi ou será intérprete infalível da Palavra de
Deus. As interpretações humanas pertencem à esfera da tradição, e contra
a tradição pode-se sempre apelar-se para a própria Escritura que a tradição
alega estar interpretando (2005, p. 209, 210).

Mesmo que não torçamos o sentido da mensagem de uma passagem bíblica


intencionalmente, como parecia ser o caso dos “ignorantes e instáveis” mencionados
em 2Pedro, podemos errar na interpretação se formos negligentes. A Bíblia nos
coloca diante de inúmeras dificuldades interpretativas, o que exige de nós estudo,
compromisso, disciplina, alegria, prazer e, sobretudo, fidelidade ao nosso Deus, que
se revelou nas Escrituras. A nossa falibilidade e a fragilidade do texto devem,
portanto, nos conduzir à seriedade nos nossos estudos e à humildade quanto às
nossas interpretações.

Página 13

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

3.2. A explicação da Bíblia e o convite que ela faz

Numa outra passagem, At 8.26-40, encontramos uma conversa entre Filipe e


um eunuco etíope. Ao colocar-se ao lado da carruagem do etíope, que lia o rolo do
profeta Isaías, Filipe faz a pergunta: “O senhor entende o que está lendo?” Ao que o
etíope respondeu: “Como posso entender se alguém não me explicar?” E com isso
teve início uma conversa em que Filipe explicou o texto, respondeu perguntas, e a
partir da Escritura (nesse caso, o que hoje conhecemos como Antigo Testamento),
ele apresentou o evangelho para aquele homem.
A pergunta de Filipe ao etíope é a clássica pergunta hermenêutica. Podemos
ler um texto, até mesmo saber o significado das palavras e o sentido de algumas
frases, e mesmo assim não compreendermos o que o texto quer dizer. Era o caso
do etíope, pois lhe faltava a explicação. Aí se observa o papel do intérprete:
transformar o incompreensível em compreensível. Após a explicação de Filipe, o
texto diz que o etíope pediu para ser batizado, o que revela que a mensagem do
texto foi compreendida com clareza.
Observemos também que, no caso específico do texto bíblico, a interpretação
– explicação, tradução e proclamação – convida a um posicionamento pessoal. O
desafio não é interpretar a Bíblia como quem interpreta um manual de uma máquina,
a bula de um medicamento, ou um panfleto informativo. A Bíblia não é mera
informação, é mensagem, proclamação, anúncio. Como bem explicitou Richard
Palmer: a informação apela para a racionalidade, enquanto a Bíblia, por ser
proclamação, acontecimento, apela para a personalidade como um todo (2011, p.
30). O entendimento da mensagem da Bíblia demanda uma tomada de decisão vital
diante do que se lê e se entende.
Por isso, podemos dizer que na hermenêutica bíblica deve confluir técnica,
crítica e espiritualidade. Por espiritualidade nos referimos às descobertas de fé que
fazemos quando a nossa vida entra em contato com o mundo bíblico, suas
personagens, histórias, parábolas, cartas etc. “A Bíblia não se satisfaz em ser
simples objeto de estudo. Quer ser parceira ativa num processo de aprendizagem
em que Deus e o mundo estão em jogo” (BRAKEMEIER, 2003, p. 6). Se a Bíblia
fosse somente o objeto de estudo do intérprete, então a técnica nos bastaria.
Entretanto, a natureza da Bíblia é convidativa. É um livro que nos acolhe em sua
Página 14

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

história e mensagem, convidando-nos para que a nossa caminhada de vida faça


parte da história que lemos nela. A interpretação da Bíblia, portanto, consiste: de um
lado, em processo técnico, analítico, crítico e racional, pois ela é texto histórico,
diverso em gêneros e formas, distante de nós no tempo e no espaço; por outro lado,
consiste em abertura de mente e coração, compromisso de fé, para que por meio
desse processo a nossa história de vida seja ressignificada.

Não basta dissecar a Bíblia com refinados métodos hermenêuticos. É


preciso abrir o coração e a mente à mensagem da qual é porta-voz. A Bíblia
então passa a ser intérprete, e o intérprete passa a ser o interpretado.
(BRAKEMEIER, 2003, p. 44).

Esse é o resultado de uma leitura da Bíblia feita com mente e coração, critério
e obediência, técnica e espiritualidade. A Bíblia, pela ação do Espírito próprio dela e
que igualmente atua em nós pela fé, exerce o papel de intérprete da nossa vida e do
nosso tempo. É o que encontramos no próximo exemplo.
Em Lucas 24.13-35 lemos sobre o encontro de Jesus com dois discípulos que
caminhavam de Jerusalém para Emaús. Os discípulos estavam tristes porque Jesus
fora crucificado. Quando Jesus, ressurreto, se pôs a caminhar e a conversar com
eles, não puderam reconhecê-lo. Então, em resposta às questões que Jesus
levantou, eles revelaram que estavam frustrados, pois haviam colocado as
esperanças em Jesus como o redentor de Israel, mas foram surpreendidos pela sua
morte de cruz (v. 19b-21).
A frustração dos discípulos diante dos fatos ocorridos entre eles exigiu de
Jesus uma interpretação das Escrituras (v. 25-27). Segundo as palavras de Jesus,
conforme a narrativa de Lucas, aqueles discípulos tinham um problema de
entendimento e de fé acerca das palavras dos profetas (v. 25). Jesus mostrou para
eles que o sofrimento do Cristo precedia a sua glória (v. 26), portanto, aqueles
eventos terríveis relacionados à crucificação de Jesus, ao invés de ser motivo de
tristeza e desespero, deveriam ser vistos como cumprimento das Escrituras, ou seja,
a situação não era para lamento e dor, mas para alegria, comunhão e proclamação,
pois tudo estava perfeitamente dentro dos planos de Deus conforme as Escrituras.
Para tanto, Jesus “explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as
Escrituras” (v. 27).

Página 15

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

Note que a situação dos discípulos foi iluminada por meio da interpretação e
exposição das Escrituras feitas por Jesus. Em outras palavras, a interpretação
ocorreu em duas direções:
a. A interpretação da mensagem dos profetas (texto)
b. A interpretação da situação presente de Jesus e dos discípulos por meio das
Escrituras
A cena seguinte apresenta Jesus e os discípulos em comunhão de mesa (v.
28-32), onde finalmente Jesus foi reconhecido por eles enquanto partia o pão (v. 30-
32). Significativas são as palavras deles acerca da explicação das Escrituras: “Não
estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho e nos
expunha as Escrituras?” (v. 32).
A explicação das Escrituras faz arder o coração, muda a perspectiva sobre a
nossa situação, nos leva ao compromisso com Deus e com a sua história. Ela
prepara o cenário para termos comunhão com o Cristo ressuscitado, transformando
a frustração causada pela morte em testemunho da ressurreição (v. 33-35).
Portanto, a Bíblia – a Palavra de Deus –, por ser texto, exige interpretação.
Tal interpretação precisa ser orientada por critérios auxiliadores para termos uma
melhor compreensão do texto. E a mensagem da Bíblia abre o caminho para
interpretarmos a nossa história à luz da história que ela narra.

Nessa unidade vimos

Vimos que hermenêutica é interpretação que acontece mesmo quando nada


sabemos sobre métodos hermenêuticos. Isso porque a leitura já é interpretação,
visto que todos nós nos aproximamos do texto com uma pré-compreensão. É por
meio do conhecimento da hermenêutica como método consciente, criterioso e por
meio do trabalho dedicado de interpretação do texto que evitaremos impor ao texto
um sentido que ele originalmente não possuía.
Os três sentidos de hermenêutica – dizer, explicar e traduzir – nos oferecem
uma visão ampla sobre o que está envolvido na interpretação: a) interpretamos
porque temos algo a dizer, proclamar; b) o trabalho do intérprete consiste em
explicar a mensagem da Bíblia; c) a tradução é interpretação, o que nos leva a

Página 16

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 1: O que é Hermenêutica?

considerar a importância de se conhecer as línguas originais da Bíblia na medida em


que progredimos em nossa caminhada como intérpretes.
A hermenêutica é trabalho para a razão e para a fé; técnica, crítica e
espiritualidade. Só faremos boa interpretação da Bíblia quando colocarmos a nossa
vida nesse processo, pois a mensagem da Bíblia é um apelo divino ao compromisso
humano com a história de Deus; é o chamado do Evangelho para ressignificarmos
as nossas vidas à luz do plano de Deus revelado nas Escrituras.

Saiba mais

FEE, Gordon.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? Um guia para entender a
Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica. 2 ed. São Paulo: Vida Nova,
2002.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 4 ed. São
Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2005.
ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.

Para reflexão

1. O que os três significados de hermenêutica, conforme o seu antigo uso, têm


em comum? Como eles contribuem para o nosso entendimento da
hermenêutica bíblica?
2. Por que devemos partir do princípio de que a hermenêutica é trabalho para fé
e razão?

Página 17

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

Unidade 2: OS ENVOLVIDOS NA INTERPRETAÇÃO E OS


SEUS PAPÉIS

Aprendemos na Unidade 1 que a tarefa da hermenêutica (e termos


correspondentes: exegese, leitura e interpretação) consiste em extrair do texto
bíblico a sua mensagem por meio de um processo de estudo minucioso e crítico,
que envolve tanto técnica quanto espiritualidade, com o propósito de compreender e
proclamar a palavra que Deus quer comunicar ao mundo atual.
Vimos, portanto, que a hermenêutica é trabalho para a razão e para a fé;
técnica, crítica e espiritualidade. Já que só faremos boa interpretação da Bíblia
quando colocarmos a nossa vida no processo, pois a mensagem da Bíblia é um
apelo divino ao compromisso humano com a história de Deus; é o chamado do
Evangelho para a ressignificação das nossas vidas à luz do plano de Deus revelado
nas Escrituras, então precisamos conhecer melhor esse processo.
O objetivo desta unidade é apresentar as partes envolvidas na interpretação
bíblica, bem como os seus respectivos papéis: o Deus Trino, o texto e o(a)
intérprete.
A Unidade 2 está divida da seguinte forma:
1. A inspiração e a autoridade das Escrituras
2. O papel humano no processo de interpretação

1. A inspiração e a autoridade das Escrituras

“Sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa


crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam” (Hb 11.6).
A fé exerce papel fundamental na hermenêutica bíblica. Isso porque não nos
aproximamos de um texto qualquer, mas sim de um conjunto de textos que a
cristandade7 chama de “Bíblia Sagrada”.
A Bíblia recebe o adjetivo “sagrada” pois nesses textos a comunidade de fé
reconhece a revelação divina. É a Bíblia que confere identidade ao cristianismo, pois

7
O termo “cristandade” engloba todos os cristãos e igrejas cristãs de todos os tempos.
Página 18

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

ela “contém o discurso fundante da fé cristã, sendo por isto a norma suprema da
cristandade”, de modo que “não há comunidade cristã sem Bíblia”. É a Bíblia que
“preserva a identidade cristã no decurso dos tempos e na variação dos lugares, das
culturas e dos contextos sociais. [...] Fé que se fundamenta em Jesus Cristo tem
natureza bíblica. É através desses escritos que a voz de Jesus de Nazaré, do Deus
Criador e do Espírito Santo chega a nós.” (BRAKEMEIER, 2007, p. 7).
Por isso a Bíblia, para os cristãos, é a “Palavra de Deus”8. Essa afirmação é
uma declaração de fé da cristandade. Afirmar que a Bíblia é “Palavra de Deus”
revela uma certeza da fé: de que Deus se revelou à humanidade nas – e por meio
das – Escrituras. Por isso mesmo, a Bíblia é a única regra de fé e prática dos
cristãos.
Dessa maneira, a Bíblia é um meio de comunicação e não uma finalidade em
si. Ela é caminho e testemunha para algo maior do que ela mesma: o Deus que se
revela nela e por meio dela. E é justamente por isso que ela é reconhecida pela
cristandade como Escritura Sagrada. Não porque a igreja a preserva como um
objeto sagrado, uma relíquia, como se o livro fosse mágico e pudesse ser usado
como objeto de culto, mas por ser um instrumento escolhido pelo próprio Deus para
se revelar a nós. O reconhecimento dessa revelação de Deus é o que torna
“Sagrada” a “Escritura”, portanto, um primeiro aspecto da Bíblia é a sua
“sacralidade”, o reconhecimento de que ela traz uma mensagem de Deus para a
humanidade.
A revelação divina que encontramos nas Escrituras aconteceu pelo processo
descrito no dogma cristão da “inspiração das Escrituras”. A teologia que se afirma
como cristã reconhece a inspiração divina das Escrituras. Não pode haver dúvidas
quanto a isso. No entanto, ao longo do tempo a igreja se dividiu em diferentes
perspectivas teológicas acerca de como essa inspiração aconteceu9.

8
Assim como se discute sobre como ocorreu o processo de inspiração das Escrituras, também se
discute se a Bíblia é, contém ou torna-se a Palavra de Deus. São dois temas relacionados. Fugiria ao
nosso propósito discutir essa questão aqui. Por isso, quando escrevemos que a “Bíblia é Palavra de
Deus” não estamos fazendo uma opção entre essas três teorias.
9
Há diversas obras que discutem a inspiração da Bíblia. Sugiro aqui duas leituras de perspectivas
teológicas distintas para apresentar ao estudante o debate acerca do assunto: BRAKEMEIER,
Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado – fundamento. 2 ed. São Leopoldo:
Sinodal; EST; CEBI, 2007, p. 33-38; GEISLER, Norman; NIX, William. Introdução bíblica: como a
Bíblia chegou até nós. São Paulo: Vida Acadêmica, 2006, p. 15-24.
Página 19

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

Apesar das controvérsias acerca de como a inspiração aconteceu, é seguro


partir da compreensão de que Deus se revelou dentro do tempo histórico. Isso
significa que os textos da Bíblia nasceram dentro de contextos históricos, estruturas
sociais e econômicas, delimitações geográficas e estágios do desenvolvimento
humano e social. É nesse conjunto que as culturas e as religiões surgem.
Consequentemente, Deus utilizou a cultura, estrutura religiosa, idioma, linguagem e
recursos da humanidade para se revelar. É por isso que a Bíblia não foi escrita em
uma “língua divina”, mas sim em línguas humanas, na linguagem do seu tempo, com
recursos literários próprios da cultura em que ele se revelou10. Assim, o segundo
aspecto da Bíblia é que ela é “escritura”, texto. E esse segundo aspecto conclui o
que é a Bíblia: a Palavra de Deus em palavras humanas:

Os autores bíblicos não anunciam uma ideia de Deus, mas sim, a Palavra
de Deus, porque a Escritura reflete primária e fundamentalmente a palavra
divina, a vontade comunicativa de Deus ao homem. Para isso, o
instrumento genuíno e normal de intercomunicações é a linguagem, e Deus
o assume. Se dizemos que a Bíblia é palavra inspirada, estamos afirmando
que nos encontramos diante de uma questão de linguagem; o autor bíblico
realiza um trabalho com a linguagem, como qualquer outro escritor elabora
uma experiência para torná-la comunicável. O escritor realiza uma
atividade; na tradição grega, a atividade do escritor é poiesis (ação) e o seu
resultado é o poíema (ato, obra) (SCHÖKEL, 1994, p. 23).

Deus nos deu sua palavra, e esta chegou até nós pelo trabalho de escritores.
Esses escritores não nos contaram as suas ideias sobre Deus, suas conjecturas
teológico-filosóficas, nem escreveram dicionários de teologia. Eles nos contaram as
experiências de vida, deles próprios e do seu povo. E nessas experiências de vida
narradas, juntamente com as suas poesias e canções, leis, profecias, salmos,
provérbios e cartas é que encontramos a sua “teologia”, isto é, o que eles tinham a
dizer sobre a vida humana que acontece diante do Deus que se revela e sobre o
Deus que intervém na história e vida humanas. Em tudo isso, pela fé, se percebe a

10
Sugerimos a leitura do seguinte livro, que é ótima pesquisa sobre as influências culturais
envolvidas no processo de revelação de Deus por meio da história do povo de Israel, no Antigo
Testamento, e a Igreja, no Novo Testamento, especialmente as páginas 331-342: REINKE, André
Daniel. Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.
Página 20

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

inspiração, o “sopro divino” (2Tm 3.16) que transforma histórias comuns – como a
nossa! – numa grande história de reconciliação entre Deus e sua criação11.
Em resumo, vimos os dois aspectos da Bíblia enquanto “Escritura Sagrada”.
Ela é “sagrada” pelo reconhecimento que os cristãos fazem de que há nela uma
mensagem da parte de Deus para a humanidade. Ela é “escritura” porque é texto,
fruto da criatividade humana expressa na linguagem e na sua diversidade literária.
Assim, ela é uma construção também humana, sem perder o seu aspecto divino.
Portanto, na própria existência da Bíblia, enquanto texto, já temos o milagre que ela
própria quer nos contar: a reconciliação entre Deus e a humanidade, o divino e o
humano. Por isso não se pode subtrair da Bíblia a sua qualidade divina, da mesma
forma como não se pode subtrair a sua qualidade humana.
Por isso mesmo, o motivo mais significativo para a necessidade de
interpretação da Bíblia é encontrado na natureza da Escritura. Historicamente a
igreja tem compreendido a natureza da Escritura muito semelhante à sua
compreensão da Pessoa de Cristo: a Bíblia é, ao mesmo tempo, humana e divina.
Assim como Cristo, ela é verbo divino que se fez carne; palavra divina que se fez
texto. Ela é Palavra de Deus comunicada em palavras de pessoas dentro do tempo
histórico. É essa natureza dupla da Bíblia que exige da nossa parte a tarefa da
interpretação.
A Bíblia é relevante porque é Palavra de Deus que fala para toda a
humanidade em todas as eras e em toas as culturas. Se a nossa fé está mesmo
correta em afirmar a Bíblia como Palavra de Deus, significa que Deus quer se
comunicar por meio dela e ser conhecido pela humanidade que criou em amor. Ao
mesmo tempo, se ela é Palavra de Deus, devemos escutar o que ela diz e a
obedecer. Aceitamos a autoridade da Bíblia porque pela fé entendemos que é Deus
quem fala por meio dela. Como bem disse o biblista Carlos Mesters:

A fé nos diz que a Bíblia é a palavra de Deus para nós. “... Nem só de pão
viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt
4.4; Dt 8.3b). Uma palavra tem a força e o valor daquele que a pronuncia. A

11
“Reconciliação” é um termo chave para compreendermos a história bíblica. Recomendo a seguinte
obra de Enio R. Mueller, que apresenta a mensagem da Bíblia sob a perspectiva da reconciliação:
MUELLER, Enio R. Caminhos de reconciliação: a mensagem da Bíblia. Joinville: Grafar, 2010. Em
especial, recomendo a leitura dos capítulos 17 e 18 (páginas 158-189), que são dedicados à
explicação do método hermenêutico utilizado pelo autor.
Página 21

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

palavra humana pode errar e enganar, pois o homem é fraco e não oferece
segurança total. Mas a palavra de Deus não erra nem engana. Ela é prego
seguro e firme que sustenta a vida de quem nela se agarra e por ela se
orienta. Por isso, “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino,
para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o
homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra”
(2Tm 3.16-17). Assim, “por meio da perseverança e do bom ânimo
procedentes das Escrituras, mantenhamos a nossa esperança” (Rm 15.4)
(MESTERS, 1991, p. 12).

Mas porque Deus escolheu falar sua Palavra através das palavras humanas
na história, todo livro na Bíblia também tem particularidade histórica; cada
documento é condicionado pela linguagem, pela sua época, e pela cultura em que
originalmente foi escrito (e em alguns casos também pela história oral que teve
antes de ser escrito). A interpretação da Bíblia é exigida pela “tensão” que existe
entre relevância eterna e sua particularidade histórica (FEE; STUART, 2002, p. 17).
Como os autores bíblicos não estão acessíveis a nós para responderem as
nossas perguntas sobre o sentido das palavras que eles usaram – se devemos
entender isso ou aquilo como literal ou metáfora –, nem podem nos dar explicações
acerca de frases e parágrafos, tampouco eles estão aqui para elucidar as passagens
mais difíceis que escreveram e explicarem a sua “teologia”, cabe à tarefa da
hermenêutica trazer à luz a resposta para essas questões.
Como temos enfatizado, a hermenêutica é tarefa para fé e razão, pois o seu
objeto de estudo é um livro divino-humano; é arte e técnica porque a realizamos com
paixão e critério. Passaremos agora a discorrer sobre o papel humano na
interpretação e como Deus nos ajuda a interpretar.

2. O papel humano no processo de interpretação

Como vimos, leitura é interpretação. Mas é preciso ir além da leitura em


sentido comum. A leitura que agora devemos fazer é interpretação cuidadosa e
criteriosa, feita com fé e razão. Interpretamos porque queremos compreender, pois é
a nossa vida que está em jogo, bem como a mensagem de Deus que devemos
comunicar ao mundo. E como a fé está envolvida nesse processo, é correto falar
que a hermenêutica é um processo em que a fé está em busca de compreensão.

Página 22

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

Iniciaremos esse assunto com um texto de Kevin Vanhoozer sobre o


significado da expressão “fé em busca de compreensão” quando aplicada à
hermenêutica:

O que poderia significa “fé em busca da compreensão” quando essa


proposição for usada para descrever não a tarefa da teologia, mas a da
hermenêutica? A compreensão textual é uma questão da fé, da razão, ou
talvez de ambas as coisas? Seria a fé uma condição necessária para a
compreensão da Bíblia? Søren Kierkegaard conta três parábolas sobre a
hermenêutica a fim de incitar seus leitores a um exame de si mesmos.
Teriam eles a fé que busca compreensão, a fé de que a compreensão
aparentemente necessita? (2005, p. 18).

O autor prossegue a argumentação a partir de três parábolas sobre leitura e


reflexão, propostas pelo filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, Søren
Kierkegaard:

Comecemos com a leitura feita por Søren Kierkegaard de Tiago 1.22-27.


Aquele que ouve a Palavra de Deus e a segue é como uma pessoa que se
olha no espelho e passa a se lembrar do que vê dali em diante. Que tipo de
olhar sobre si mesmo no espelho a Palavra de Deus, pergunta ele, é
necessário a fim de que se receba uma bênção verdadeira? Ele responde
que só se beneficia do olhar em direção à Palavra aquele que vai além de
observar apenas o espelho para ver a si próprio. Assim, a parábola de Tiago
“alerta contra o erro de se passar a examinar o espelho, em vez de olhar-se
no espelho”.
“Ver a si mesmo no espelho”. A leitura de Kierkegaard dessa imagem
bíblica imediatamente nos apresenta um problema de e para a
interpretação. O que Kierkegaard quer dizer com “ver a si mesmo?” Estaria
ele sugerindo que não há nada no texto, de forma que o leitor descobre
apenas a si mesmo nele, ou que só se pode realmente ver a si próprio
quando se consegue captar o significado bíblico, digamos, do pecado e da
salvação? Em outras palavras, os leitores projetam a si próprios sobre o
texto ou descobrem a si próprios no texto? Essa “imagem do espelho”
suscita aquilo que acredito seja a pergunta mais importante para as teorias
de interpretação, quer da Bíblia quer de qualquer outro livro: existe alguma
coisa no texto que reflita uma realidade independentemente da atividade
interpretativa do leitor, ou o texto apenas reflete a realidade do leitor?
A segunda parábola de Kierkegaard, a “carta do amante”, é sobre um
homem que recebe de sua amada uma carta escrita em uma língua
estrangeira. Desesperado para ler a carta, ele pega um dicionário e começa
a traduzir uma palavra por vez. Um conhecido entra, interrompe a sua
tradução, e diz: “Ah, você está lendo uma carta de sua amada”. O amante
responde: “Não, meu amigo, estou aqui me esfalfando com um dicionário.
Se você chama isso de leitura, está zombando de mim”. A posição de
Kierkegaard é a de que a erudição linguística e histórica não é uma leitura
verdadeira. É como examinar e explorar o próprio espelho – como olhar
para o espelho, em vez de olhar no espelho. Esse, sugere ele, é o perigo da
moderna crítica bíblica [moderna em relação ao tempo de Kierkegaard -
século XIX].

Página 23

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

Na parábola do “decreto real”, Kierkegaard nos pede que imaginemos um


país no qual é promulgada uma ordem real. No entanto, em vez de
obedecer à ordem, os súditos do rei começam a interpretar. A cada dia,
surgem novas interpretações da ordem. Em pouco tempo, a população mal
consegue acompanhar a enorme quantidade de interpretações: “Tudo é
interpretação – mas ninguém lê a ordem real de forma a poder obedecê-la”.
Ora, a Palavra de Deus é, ao mesmo tempo, carta de amor e decreto real.
Nós olhamos para ela ou nela? Nós a seguimos ou a “interpretamos”? Nós
nos vemos ou nos projetamos nela? Essas parábolas deveriam estimular os
leitores a examinarem a si próprios a fim de verem de estão “na fé” quando
buscam o entendimento. Acredito que aquilo que era verdadeiro no tempo
de Kierkegaard é ainda mais verdadeiro em nosso tempo. Precisamos
examinar a teoria e a prática da interpretação contemporânea para ver se
elas se encontram “na fé”, pois alguns leitores tramam privar a Bíblia de sua
autoridade por meio da interpretação. Kierkegaard lamenta: “‘Minha casa
será casa de oração; mas vocês fizeram dela um covil de ladrões’. E a
Palavra de Deus – qual é, segundo seu propósito, e em que nós a
transformamos?”
A moral das parábolas de Kierkegaard é a de que os leitores deixaram de
ter o privilégio e a responsabilidade de interpretar com seriedade. O
propósito da interpretação não é mais recuperar e relacionar-se com uma
mensagem vinda de alguém diferente de nós, mas precisamente evitar tal
confronto. O empreendimento da interpretação é um impedimento:
constantemente produzir leituras para impedir que se responda ao texto.
Qual o objetivo de cada interpretação? A resposta de Kierkegaard é cínica,
porém perspicaz: “Olhem mais de perto, e vocês verão que essa é uma
forma de defesa contra a Palavra de Deus”. A fim de evitar verem-se a si
mesmos nas Escrituras como realmente são, alguns leitores preferem ou
olhar para o espelho, ou projetar suas próprias, e mais lisonjeiras, imagens.
12
(VANHOOZER, 2005, p. 18-20 – colchetes meus) .

Para não cairmos no erro exposto por Vanhoozer, a saber, o de praticar uma
interpretação que evita que sejamos confrontados pela mensagem das Escrituras;
que não nos leva à obediência, tampouco à paixão pela Palavra de Deus, é
necessário praticar uma leitura integral da Bíblia, em que a fé e a razão atuam
juntas, pois, se a Bíblia é simultaneamente obra divina e humana, como vimos
acima, então não será possível compreender o seu sentido e verdade se não for

12
O livro de Kevin Vanhoozer se insere na discussão sobre as novas perspectivas hermenêuticas
vindas desde a modernidade e pós-modernidade, entrando em discussão com os principais
postulados das escolas filosóficas de interpretação literária, defendendo uma hermenêutica que siga
a tradição reformada, sem deixar de dialogar e tentar responder aos questionamentos
contemporâneos. É uma importante obra sobre a hermenêutica contemporânea, fruto de uma sólida
pesquisa. Para o seu melhor aproveitamento é requerido ao menos um pouco de familiaridade com a
discussão em pauta. VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os
enfoques contemporâneos. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005. 663 páginas.
Página 24

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

pelo acesso integral: a força da fé iluminada pela razão13. Adiante retomaremos esse
assunto para elucidar o significado de uma leitura crítica, portanto, racional da Bíblia.
É valido grifar o que o autor diz sobre a interpretação da Bíblia ser um
privilégio e uma responsabilidade, que nos permite cumprir a meta de recuperar e de
nos relacionar com a mensagem que vem de Deus a nós pelas Escrituras. O acesso
à verdade bíblica, portanto, deve se dar por meio de instrumentos que o próprio
Deus concedeu a nós.

2.1. Não interpretamos a Bíblia sozinhos

John Stott (1921-2011), importante e influente líder cristão, dedicou grande


parte de sua produção literária a comentários bíblicos e livros que discutem a
relevância da fé cristã para o mundo contemporâneo. Uma de suas obras foi uma
introdução à Bíblia, em que o teólogo inglês enfoca a hermenêutica bíblica em boa
parte da obra14. No sétimo capítulo do livro, intitulado “A interpretação da Bíblia” (p.
209-246), Stott fala de três mestres que Deus nos concedeu para nos instruírem na
interpretação: o Espírito Santo, nós mesmos e a Igreja. Nas páginas seguintes
focaremos nos dois primeiros mestres mencionados por Stott, com o objetivo de
conhecermos o papel do Espírito e o nosso na interpretação. Traremos outras fontes
para tentarmos compreender o que envolve e é necessário para a tarefa
hermenêutica. Começaremos pela participação do Espírito Santo nesse processo.

2.1.1. A fundamental ajuda do Espírito Santo

O Espírito Santo nos orienta no processo de interpretação da Bíblia, o que faz


dele o primeiro mestre a nos conduzir por suas páginas. Por sua vez, a
hermenêutica bíblica deve estar consciente quanto à natureza da Bíblia: ela é

13
Esta é uma importante contribuição da obra da exegeta francesa Anne-Marie Pelletier, que discute
sobre os problemas e oportunidades que a hermenêutica bíblica tem na atualidade. PELLETIER,
Anne-Marie. Bíblia e hermenêutica hoje. São Paulo: Loyola, 2006.
14
O livro de Stott é uma introdução à Bíblia que dedica grande parte à sua mensagem, interpretação
e uso. Recomendamos o livro porque reúne uma introdução à Bíblia com enfoque hermenêutico,
sendo, a meu ver, uma das melhores obras de hermenêutica bíblica em perspectiva histórico-
gramatical em língua portuguesa. STOTT, John. Entenda a Bíblia. Ed. Rev. São Paulo: Mundo
Cristão, 2005.
Página 25

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

inspirada por Deus (2Tm 3.16). Na Bíblia encontramos narrativas, poesias e


canções, profecias, cartas... enfim, elementos da linguagem humana, dentro da
capacidade humana de criação, utilizadas por Deus para se comunicar conosco:
“pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da
parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).
A ação do Espírito Santo no processo de interpretação da Palavra de Deus
pode ser entendida em dois estágios. O primeiro estágio, relacionado à origem das
Escrituras, é a revelação, como vimos anteriormente. O segundo estágio é a
iluminação, relacionado a nós, que hoje lemos a Palavra inspirada. A iluminação é
para a tradição cristã o processo pelo qual o entendimento humano da Bíblia recebe
o esclarecimento vindo do Espírito Santo. Portanto, esse aspecto de fé, devoção e
espiritualidade deve ser um pressuposto da hermenêutica bíblica: a confiança de
que contamos com a orientação do Espírito Santo quando lemos e
interpretamos as Escrituras. De acordo com Stott: “cada um dos processos é
indispensável. Sem a revelação não haveria verdade alguma a ser discernida; sem a
iluminação, nenhuma faculdade com a qual discerni-la” (2005, p. 210). É por meio do
Espírito Santo, portanto, que temos acesso à verdade bíblica.
Interpretação e novo nascimento. O acesso à verdade da Escritura se dá
pelo relacionamento vital que temos com ela. A pessoa iluminada pelo Espírito
Santo é a pessoa regenerada, que teve uma experiência de novo nascimento. Esse
princípio pode ser visto na conversa entre Jesus e Nicodemos: “Em resposta, Jesus
declarou: ‘Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de
novo’” (Jo 3.3). Semelhantemente, Paulo escreveu aos coríntios: “Quem não tem o
Espírito não aceita as coisas que vêm do Espírito de Deus, pois lhe são loucura; e
não é capaz de entendê-las, porque elas são discernidas espiritualmente” (1Co
2.14). Assim, a verdade da Escritura só pode ser acessada e reconhecida a partir da
conversão, pois a Bíblia faz sentido e se torna viva para quem crê, uma vez que crer
é muito mais do que acreditar.
Interpretação e obediência. Crer no que a Bíblia diz é assumir um
compromisso existencial com ela; é abrir-se para a sua verdade transformadora da
vida. Uma pessoa pode acreditar em histórias e fatos, na lógica de uma proposição,
ou na existência histórica de Jesus e até mesmo na existência de Deus. Afinal, até
os demônios acreditam que Deus existe (Tg 2.19), da mesma maneira que é
Página 26

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

possível acreditar que uma aeronave é um meio de transporte comprovadamente


seguro, e mesmo assim se recusar a embarcar em uma por causa do medo de
queda. O divisor de águas é o compromisso, o relacionamento vital; quem crê se
orienta pelas palavras da Bíblia porque aprendeu a confiar. E não podemos deixar
de lado que, uma vez que o Espírito Santo nos dá uma nova mentalidade (Rm 8.1-8;
1Co 2.15,16), a Bíblia é, sem dúvidas, um instrumento primordial para a construção
dessa nova mente e nova vida.
Isso que chamamos acima de compromisso existencial com a Bíblia é o que
Tiago chamou de praticar a palavra: “Sejam praticantes da palavra, e não apenas
ouvintes, enganando-se a si mesmos” (Tg 1.22-25), ensino que está em perfeita
harmonia com o que Jesus espera das pessoas que ouvem as suas palavras (Mt
7.24-29), e que por tantas vezes reafirmou aos seus discípulos: “Quem tem os meus
mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama.” (Jo 14.21a, 23; 8.51; 15.12-
14; Mt 28.18-20). Como o propósito da Bíblia não é a mera informação e acúmulo de
conhecimento, mas principalmente a salvação (2Tm 3.15), o Espírito Santo está
preocupado com a reação dos leitores à sua Palavra. Afirma Stott: “Ninguém que
não pratica aquilo que já sabe pode esperar avançar em seu conhecimento” (2005,
p. 214). Conhecer a verdade bíblica tem a ver com estar em comunhão com aquele
que é a Verdade, pois para Jesus, “estar na verdade é condição para conhecer a
verdade” (Jo 18.37,38) (MUELLER, 2005, p. 16). Portanto, a verdade que buscamos
na Bíblia por meio da interpretação está em estreita relação com a prática. Ouvimos
a voz do Espírito que fala conosco por meio da Bíblia para que pratiquemos tudo o
que temos ouvido, de modo que a nossa resposta seja praticar, obedecer, viver de
acordo com a verdade do Evangelho (Gl 2.14).
Assim, podemos afirmar que o que a Bíblia espera dos seus leitores é
adesão, participação. É por isso que ela é o texto primário e fundamental para
formação espiritual dos cristãos. Jamais foi dada aos cristãos a opção de buscarmos
alimento para nutrirmos a nossa vida em fontes aleatórias, escolhidas de acordo
com critérios estabelecidos por nós mesmos. Pelo contrário, a fonte capaz de
produzir vida é a Bíblia, por ser ela o testemunho que aponta para o Filho de Deus, a
Palavra que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1.1-4,14; 4.13,14). A edificação dos
cristãos acontece por obra do Espírito Santo, seguindo os textos da Palavra de

Página 27

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

Deus. Portanto, vamos à Bíblia porque ela é o instrumento perfeito, de origem


divina, em palavras humanas, para o aperfeiçoamento dos cristãos.

Atualmente, há um enorme interesse na alma humana. Nas igrejas, esse


interesse pela alma é evidenciado num reavivamento da atenção nas
questões de direção e formação espiritual. No entanto, não há um
reavivamento correspondente no interesse pelas Sagradas Escrituras. A
direção e a formação espiritual exigem que dependamos da obra do Espírito
Santo em nossa vida individual, corporativa e pública. No entanto, aqueles
que são entusiastas em relação a essa obra, com frequência (e até
tipicamente) são desinteressados pelas Sagradas Escrituras, o livro que nos
foi dado por intermédio do Espírito Santo. Com urgência precisamos fazer
com que o nosso interesse pela nossa alma seja equiparado por um
interesse pelas Escrituras – e pela mesma razão: ambos são o campo
primário da ação do Espírito Santo. Um interesse pela alma divorciado
de um interesse pelas Escrituras deixa-nos sem um texto que modele a
alma. Da mesma forma, um interesse pelas Escrituras divorciado de
um interesse pela alma nos deixa sem qualquer material sobre o qual o
15
texto possa trabalhar (PETERSON, 2004, p. 13,14 – destaques meus) .

Interpretação e humildade. A interpretação é também um exercício de


humildade. O orgulho da sabedoria humana é um impedimento à compreensão das
Escrituras (Mt 11.25,26; 1Co 2.6-15; Ef 1.17-19). É fácil uma pessoa agir
orgulhosamente por causa do conhecimento alcançado por meio da habilidade
hermenêutica que adquiriu, pois o estudo disciplinado da Bíblia trará aumento
proporcional de conhecimento. No entanto, uma pessoa que vive pela graça de
Deus revelada no Evangelho não tem mais motivos para se orgulhar em si mesma
(2Co 11.30; Fp 3.1-16), e essa verdade deve ser levada conscientemente para
dentro do processo de interpretação. Afinal, a Bíblia quer nos ensinar exatamente o
oposto do orgulho: “... O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica. Quem
pensa conhecer alguma coisa, ainda não conhece como deveria. Mas quem ama a
Deus, este é conhecido por Deus” (1Co 8.1b-3).
Interpretação e comunicação. A Palavra de Deus é Evangelho, isto é, boa
notícia. Sua natureza, portanto, exige comunicação, pois boas notícias devem ser

15
Julgo importantíssimo unir espiritualidade e técnica no processo hermenêutico. Essa citação é do
livro: PETERSON, Eugene. Coma este livro: as Sagradas Escrituras como referência para uma
sociedade em crise. Niterói: Textus, 2004. O subtítulo original é “a arte da leitura espiritual”, muito
mais adequado ao conteúdo. Eugene Peterson (1932-2018), famoso pastor e teólogo estadunidense,
professor do Regent College, autor de diversos livros e tradutor da Bíblia A Mensagem, nessa obra
busca resgatar a importância da leitura espiritual da Bíblia, a Lectio Divina, tão importante na tradição
cristã e que jamais deveria ser deixada de lado para ser substituída por uma leitura puramente
acadêmica da Bíblia. Considero um dos melhores livros sobre o assunto.
Página 28

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

comunicadas, proclamadas. Manter o Evangelho em segredo ou escondido é pecar


contra a sua essência, pois não se pode esconder o que Deus manifestou (Mt 5.14-
16). Lembremos que, como vimos na primeira unidade, um dos sentidos de
hermenêutica é dizer, exprimir. O caráter proclamador da hermenêutica está
inteiramente vinculado à mensagem que a Bíblia quer comunicar (Rm 10.14-17; At
1.8; 4.18-20).

2.1.2. O empenho humano na interpretação: o estudo e a crítica

O estudante da Bíblia tem um papel ativo no processo interpretativo, pois a


ajuda do Espírito Santo ao iluminar quem crê, como vimos acima, bem como uma
leitura obediente, humilde e em vistas à proclamação do Evangelho não são todo o
processo interpretativo, embora sejam parte imprescindível. O fato é que precisamos
que o Espírito Santo nos ilumine enquanto fazemos a nossa parte.
Deus nos deu a capacidade de raciocinar, julgar, discernir. A razão humana,
como vimos, foi utilizada por Deus no processo redacional da Bíblia, pois ela não
caiu pronta dos céus. A sua linguagem e as suas histórias são humanas. Então, a
mesma capacidade de discernimento deve estar envolvida na interpretação.
Em diversas partes da Bíblia lemos não apenas sobre a capacidade humana
de discernir, mas a necessidade de sermos críticos diante do que lemos e ouvimos
(exemplos: Lc 12.57; At 4.19; 1Co 10.15; 1Jo 4.1-6). Sem o senso crítico podemos
ser facilmente enredados por ensinos enganosos. Em diversas partes do Novo
Testamento, especialmente nas cartas, desvios doutrinários são combatidos. Esse é
um processo que podemos chamar de crítico.
Discernir é julgar, avaliar. Para isso, critérios precisam ser estabelecidos. O
texto de 1Jo 4.1-6, cujo assunto é discernir entre o Espírito de Deus e o espírito do
anticristo, estabelece critérios pelos quais esse julgamento deve ser realizado:

Vocês podem reconhecer o Espírito de Deus deste modo: todo espírito que
confessa que Jesus Cristo veio em carne procede de Deus; mas todo
espírito que não confessa Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito do
anticristo, acerca do qual vocês ouviram que está vindo, e agora já está no
mundo (1Jo 4.2,3).

Página 29

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

Todo julgamento precisa de critérios pré-estabelecidos, assim como todo jogo


precisa de regras. Saber jogar implica em conhecer as regas do jogo, assim como
interpretar exige conhecimento e aplicação das regras da interpretação. Um bom
jogador de xadrez domina as regras do jogo; um bom intérprete deve dominar regras
hermenêuticas.
Portanto, parte da tarefa da hermenêutica é refletir e propor as regras,
os critérios pelos quais a interpretação do texto deverá se orientar.
É isso que afirmamos quando falamos sobre uma leitura crítica da Bíblia.
Entretanto, a expressão “leitura crítica da Bíblia” possui sentidos diferentes na
história da hermenêutica, especialmente depois da Reforma Protestante. Duas
vertentes da hermenêutica bíblica surgiram após a Reforma do século XVI, e ao
longo de séculos foram se consolidando como os dois principais métodos
hermenêuticos da teologia cristã. Uma delas é o método histórico-gramatical e a
outra é o método histórico-crítico16.
Para o método histórico-gramatical, a leitura crítica consiste critérios bem
fundamentados e justificados acerca da tarefa da interpretação. Nas palavras de D.
A. Carson, importante erudito canadense que trabalha com o método histórico-
gramatical:

Uma interpretação crítica das Escrituras é aquela que possui justificação


adequada – lexical, gramatical, cultural, teológica, histórica, geográfica ou
de qualquer outro tipo. Em outras palavras, exegese crítica neste sentido é
aquela que dá boas razões para as escolhas que faz e as posições que
adota. A exegese crítica é contrária a opiniões simplesmente pessoais,
reivindicações de autoridades ilegítimas (do intérprete ou de qualquer outra
pessoa), interpretações arbitrárias e pontos de vista especulativos. Isto não
significa negar que os assuntos espirituais são espiritualmente discernidos
ou argumentar que a piedade é irrelevante; antes, significa que nem mesmo
a piedade e o dom do Espírito Santo garantem interpretações infalíveis
(CARSON, 2001, p. 14).

16
Indicamos na Unidade 1 obras representantes de cada um dos métodos, a saber, os livros de Uwe
Wegner (histórico-crítico) e de Gordon Fee e Douglas Stuart (histórico-gramatical). O método
histórico-gramatical é o método comum da ala conservadora, reformada, evangelical da teologia
cristã. Sua principal característica é a baixa crítica quanto à formação dos textos e a concentração do
método no sentido literal e gramatical do texto. Destaca-se também a ênfase que dá à inspiração
verbal das Escrituras e a consequente doutrina da inerrância bíblica. A maioria dos comentários
bíblicos em língua portuguesa mais populares são de hermenêutica histórico-gramatical. O método
histórico-crítico, por outro lado, é mais comum entre os herdeiros da teologia liberal alemã, sendo a
sua principal característica a análise crítica e histórica do processo de formação dos textos bíblicos e
o seu impacto no sentido dos mesmos.
Página 30

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

O método histórico-crítico, por sua vez, inclui esse sentido de crítica, mas vai
além, ao incorporar os critérios de investigação da ciência histórica aos textos
bíblicos. Assim, o método histórico-crítico:

É um método histórico, porque trabalha com fontes históricas muito antigas,


vistas dentro de uma perspectiva de evolução histórica e que devem ser
analisadas dentro das condições históricas de sua época e origem. O
método é crítico, porque nessa análise histórica a intenção é ir ao fundo das
questões e emitir juízos críticos sobre essas fontes, questionando-se o
condicionamento da interpretação por pressupostos dogmáticos ou
filosóficos (VOLKMANN, 2008, p. 431,432).

Certamente temos muito a aprender com ambos os métodos, pois as suas


contribuições permanecem valiosas. Como não existem métodos inspirados por
Deus, pois métodos são criações nossas para chegarmos ao sentido do texto
conforme pretendido pelos seus autores, ambos apresentam os seus pontos fortes e
outros frágeis. No entanto, o que queremos mostrar aqui é que independentemente
do nível de crítica histórica e literária do método, bem como de seus pressupostos
teológicos, em ambos os métodos o estudante é colocado diante de uma tarefa que
lhe exigirá esforço e dedicação apaixonada. É impossível fazer hermenêutica sem
que muito tempo de estudo seja investido.
Em ambos os métodos, por exemplo, quanto mais o estudante se aprofundar,
mais perceberá que é imprescindível o conhecimento das línguas originais da Bíblia,
pois um vasto universo de compreensão se descortina quando somos capazes de
ler e estudar um texto sem a mediação de uma tradução. Como vimos na Unidade 1,
hermenêutica inclui tradução. O conhecimento das línguas originais conduzirá o
estudante às edições críticas do Antigo e do Novo Testamento. Para tanto, novos
conhecimentos e habilidades deverão ser adquiridos e desenvolvidos.
Tudo depende de até onde o estudante quer chegar. É claro que não
devemos cair na armadilha do academicismo, restringindo a capacidade de
interpretação da Bíblia a um pequeno grupo de peritos em línguas originais e crítica
histórica e literária. Dificilmente alguém crerá que os destinatários da mensagem de
salvação em Cristo que Deus quis comunicar ao mundo pela Bíblia é um restrito
grupo de acadêmicos. Afinal, a Bíblia nos leva a concluir o oposto disso: “Naquela
hora Jesus, exultando no Espírito Santo, disse: ‘Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da
terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos
Página 31

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado’” (Lc 10.21). Entretanto, é um fato
que o conhecimento das línguas hebraica e grega trará contribuições significativas, e
muitas vezes, determinantes, para a tarefa hermenêutica.
A hermenêutica, portanto, traz consigo uma diversidade de ângulos que
precisam ser observados. O estudo profundo de um texto precisa ser realizado em
perspectiva lexical, gramatical, cultural, teológica, histórica, geográfica, bem como a
conexão de cada texto estudado com o restante do livro em que a passagem se
encontra, e com o restante da Bíblia. É, realmente, uma tarefa que exigirá grande
esforço e dedicação:

Às vezes nosso crescimento na compreensão é inibido por uma


autoconfiança orgulhosa e distante da oração, mas outras vezes por pura
preguiça e indisciplina. Aqueles que desejam crescer no conhecimento de
Deus devem humilhar-se diante do Espírito da verdade e empenhar-se a
17
uma vida inteira de estudo (STOTT, 2005, p. 217) .

“Quando tudo lhe parecer muito difícil, lembre-se do antigo provérbio que nos
foi transmitido por Platão: chalepá tá kalá – as coisas belas são difíceis!”
(BRANDÃO, 2009, p. 18).
Na próxima unidade começamos a nos aproximar do texto bíblico. Toda
interpretação começa com a leitura, e com ela, vem a observação. Aprenderemos
como fazer uma primeira leitura atenta da Bíblia e para onde devemos dirigir a nossa
atenção a fim de iniciarmos os nossos estudos.

Nessa unidade vimos

Vimos que a Bíblia é Escritura Sagrada: sagrada porque é revelação divina


para a humanidade, e por isso é a única regra de fé e prática dos cristãos; escritura
porque a Palavra de Deus, pelo processo da inspiração, chegou à humanidade em
linguagem humana, por meio do trabalho de escritores. Vimos também que, por
esses aspectos divino e humano das Escrituras, é necessário que a fé e a razão
atuem juntas no trabalho do intérprete da Bíblia. Dessa forma, contamos com a

17
Karl Barth também faz um apelo ao estudo diligente, feito com oração e esforço, como mostras de
fidelidade ao labor teológico: BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. 9 ed. revisada São
Leopoldo: EST; Sinodal, 2007. P. 101-115.
Página 32

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 2: Os Envolvidos na Interpretação e os Seus Papéis

orientação do Espírito Santo para interpretarmos as Escrituras, ao mesmo tempo em


que se faz necessário também o esforço humano do estudo do texto bíblico
mediante aplicação de critérios interpretativos propostos pela hermenêutica.

Saiba mais

BRAKEMEIER, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado –


fundamento. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal; EST; CEBI, 2007.
GEISLER, Norman; NIX, William. Introdução bíblica: como a Bíblia chegou até nós.
São Paulo: Vida Acadêmica, 2006, p. 15-24.
PETERSON, Eugene. Coma este livro: as Sagradas Escrituras como referência para
uma sociedade em crise. Niterói: Textus, 2004.
STOTT, John. Entenda a Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os
enfoques contemporâneos. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005.

Para reflexão
1. Interpretar a Bíblia sem ser confrontado por sua mensagem é um erro
exposto por Vanhoozer a partir das parábolas de Kierkegaard. De que forma
esse erro acontece? Como podemos evitá-lo?
2. Por que a orientação do Espírito Santo é fundamental para a interpretação
das Escrituras?
3. Qual a importância dos métodos hermenêuticos?

Página 33

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Unidade 3: PENSAR CONTEXTUALMENTE

Aprendemos nas duas primeiras unidades que o processo de interpretação da


Bíblia deve partir do entendimento de que o texto bíblico é palavra divina e humana,
sem que o aspecto divino anule o humano, e o humano anule o divino.
Interpretar esse texto exige conhecimento e experiência com os dois aspectos
constituintes das Escrituras. Por isso, a hermenêutica implica em utilização de
métodos por meio dos quais se extrai do texto a sua mensagem. Ao mesmo tempo,
a Bíblia exige dos seus leitores um posicionamento existencial. Ela apela para a vida
em termos de adesão, compromisso para a transformação da vida. Ou seja, a Bíblia
não apela somente para o entendimento intelectual. Ela quer fazer parte da vida, ou
melhor, da nova vida que emerge do encontro com Deus nas páginas da Bíblia,
guiado pelo Espírito Santo. Assim, razão e fé estão unidos em um movimento
dinâmico em que a interpretação integral do texto bíblico se torna possível.
A partir desta unidade, vamos conhecer os componentes e estágios para uma
interpretação séria das Escrituras. Esta e as próximas unidades estão divididas em
dois grandes temas: a Hermenêutica Geral – o conhecimento necessário dos
componentes dos textos bíblicos e os estágios da interpretação –, e a Análise de
Gênero, que consiste em critérios e passos interpretativos de acordo com os
gêneros literários que compõem os livros bíblicos.
O objetivo desta unidade é apresentar os primeiros passos da Hermenêutica
Geral. Ela está dividida da seguinte forma:
1. Contexto histórico
2. Contexto literário

1. O contexto histórico

“Contexto” é palavra-chave em hermenêutica bíblica, pois todo texto está


inserido em dois contextos: histórico e literário. Começaremos com o histórico.
Observemos três textos bíblicos que podem elucidar a importância do contexto
histórico para a interpretação bíblica:

Página 34

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Gálatas 4.4: “Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu
Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da Lei” (Nova Versão
Internacional – NVI).
João 1.14: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e
de verdade” (NVI).
Hebreus 1.1-3: “Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias
maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes
últimos dias falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de
todas as coisas e por meio de quem fez o universo” (NVI).

Em Gálatas 4.4, Paulo afirma que Deus enviou o seu Filho ao mundo na
“plenitude do tempo”. Ele nasceu de mulher – como todos nós –, debaixo da Lei –
como todo judeu –, herdeiro das Escrituras, alianças e promessas entre Deus e o
seu povo. Ao final do primeiro século, João, escrevendo sobre Jesus, disse que
aquele que é a Palavra se fez carne e habitou entre nós. Ambos os textos apontam
para o fato de que Jesus não se fez carne em sentido geral, ao contrário, ele se fez
carne em sentido particular, nascido especificamente de uma mulher, Maria,
prometida em casamento para um descendente de Davi, José. Jesus se fez carne
como judeu, debaixo da Lei, galileu e nazareno. Seu nascimento, formação,
ministério, morte e ressurreição foram delimitados histórica e geograficamente.
Consequentemente, língua, cultura, política, economia, sociedade, religião – todos
esses elementos que estão na base e no entorno de todos nós –, estiveram
igualmente presentes na vida do Filho de Deus.
O terceiro texto, Hebreus 1.1-3, fala de um contexto amplo no qual Jesus se
insere, que é o da revelação de Deus e de sua vontade para o seu povo e,
consequentemente, para toda a humanidade. Os primeiros cristãos entenderam que,
em Jesus, Deus estava falando e agindo. Esse era um povo acostumado com um
Deus que se revela, como o texto deixa subentendido pela afirmação “Há muito
tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por
meio dos profetas”. Em seu Filho, Deus estava utilizando um novo meio de
comunicação com o seu povo: “mas nestes últimos dias falou-nos por meio do
Filho”. Essa comunicação, obviamente, estende-se a nós. Porém, para que
chegasse até nós, ele falou anteriormente com os primeiros ouvintes e leitores
dessa mensagem que conhecemos como Evangelho. Para dizer de outra forma, a
Bíblia não foi diretamente escrita a nós que vivemos no século XXI. Perceba o
aspecto temporal que há na frase: “mas nestes últimos dias falou-nos por meio do

Página 35

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Filho”. O óbvio precisa ser dito: aqueles foram os primeiros a terem contato com as
narrativas da vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus, bem como o
significado de tudo isso como salvação para quem crê. Jesus, como fala de Deus,
aconteceu num momento específico da história da humanidade. E como tudo o que
acontece no tempo, ele também aconteceu no espaço: a Palestina do primeiro
século da era cristã. É por causa da importância do contexto que Lucas faz
referências ao tempo histórico dos eventos que ele narrou (por exemplo: Lc 1.5; 2.1-
3; 3.1,2).
O contexto histórico é um fator determinante na interpretação de um texto,
pois todo texto está inserido em um contexto que envolve a cultura, o estilo de vida,
os costumes, o sistema de valores e a economia.

As passagens bíblicas não expressam somente o fluxo de pensamento do


escritor, mas também refletem o seu modo de vida, que de muitas formas é
radicalmente diferente daquele do leitor dos dias atuais. A literatura e os
acontecimentos registrados na Bíblia tiveram origem há milhares de anos.
Além de refletir os idiomas, as culturas e os estilos de vida antigos, os
escritores da Bíblia escreveram as suas mensagens para pessoas
diferentes de nós. Por causa disso, toda vez que estudamos um texto
bíblico, temos que estar conscientes dessas dimensões transculturais e de
distância no tempo. Cada passagem foi a Palavra de Deus para as outras
pessoas antes de se tornar a Palavra de Deus para nós. Em um sentido, a
Bíblia sempre chega até nós de segunda mão, através de terceiros que
viveram em épocas e em lugares diferentes. Essa é a base de um princípio
importante da hermenêutica: A interpretação correta de uma passagem
bíblica será consistente com o cenário histórico-cultural da passagem
(KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 387).

Vamos a alguns desdobramentos do princípio hermenêutico de que a


interpretação correta de uma passagem será consistente com o contexto
histórico da passagem.
Em primeiro lugar, sem o conhecimento do contexto histórico, as palavras e
frases de um texto podem significar muitas coisas. Assim, o entendimento do
contexto literário depende do entendimento do contexto histórico. Ou seja,
interpretar sem entendimento do contexto histórico nos coloca em uma janela de
risco em que podemos atribuir significado às palavras segundo o nosso próprio
contexto, em vez de descobrir o significado do texto a partir da intenção do autor.
Dentro da própria Bíblia, uma palavra pode ter significados diferentes, que variam de
acordo com o contexto histórico e literário.

Página 36

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Uma única palavra ou frase pode ter vários sentidos, dependendo do


contexto em que é empregada. A palavra tronco pode significar o caule de
uma árvore, uma parte do corpo humano, um antigo instrumento de tortura,
um cárcere, um elemento geométrico ou um termo de telecomunicações. É
claro que não pode ter todos esses sentidos nem vários deles ao mesmo
tempo num único emprego. O leitor pode descobrir o sentido com base no
emprego da palavra na frase (ZUCK, 1994, p. 75).

O mesmo vale para a maneira como um autor empregou uma palavra em


diferentes textos. Por exemplo, Paulo utiliza a palavra grega sarx, que normalmente
se traduz como “carne”, em: 1) sentido literal (carne humana e de animais: 1Co
15.39: carne de peixes, aves etc.; 2Co 12.7: dor e sofrimento na carne; Rm 2.28: a
circuncisão é feita na carne; Cl 1.22: O corpo de Jesus era de carne; 1Co 15.50: a
carne é perecível, e não pode herdar o reino de Deus); 2) sinônimo de corpo (soma,
em grego): 1Co 5.3 / Cl 2.5: ausente e/ou presente: no corpo (soma) e/ou na carne
(sarx); 3) A natureza humana não regenerada, ainda dominada pelo pecado (Rm
8.8). Nesse sentido de sarx, aqueles que nasceram de novo vivem em conflito por
causa da carne e da nova vida no Espírito: Gl 5.16-26.
“Na Bíblia, o contexto é o que fornece a situação subjacente ao texto. O fato é
que não há significado fora de um contexto, mas apenas vários significados
possíveis” (OSBORNE, 2009, p. 43). Interpretar um texto bíblico consiste em
descobrir o que esse texto significou para os seus primeiros leitores/ouvintes. A
regra hermenêutica aqui é: “um texto não pode significar o que nunca significou”
(FEE; STUART, 2011, p. 39). Para entendermos a mensagem de um texto bíblico
para nós precisamos primeiro perguntar o que esse texto significou para aqueles
que primeiro tiveram contato com ele. O processo de extrair a mensagem de um
texto bíblico para o mundo de hoje é comumente chamado de “atualização de
sentido”. Mas para que um sentido seja “atualizado”, é necessário antes descobrir o
sentido primeiro que ele teve.
1. Já que um estudo sério da Bíblia exige conhecimento do contexto histórico do
livro, que por sua vez foi escrito por um autor para os seus primeiros leitores,
quatro aspectos do contexto histórico devem ser levados em consideração.
Esses quatro aspectos estão interligados:
i. Determinação da autoria. Grande parte dos livros bíblicos são anônimos.
Isso é um fator que dificulta o trabalho de interpretação. Não estamos
Página 37

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

certos quanto a autoria do livro de Hebreus. Mateus é o nome que dá título


ao primeiro evangelho, mas em nenhum lugar do próprio livro é
mencionado que Mateus o escreveu. Existem duas linhas principais na
história da interpretação bíblica acerca da autoria. O método histórico-
crítico dá um peso maior para a determinação da autoria de um texto,
rejeitando as autorias dos textos que já estão atribuídas por meio da
tradição da igreja, segundo o testemunho dos antigos escritores cristãos.
O método histórico-gramatical tende a aceitar o que a tradição disse
acerca dos autores desses textos anônimos, sem levantar muitas
suspeitas históricas. Na prática interpretativa, podemos nos valer de obras
de referência vindas das duas escolas, sem que seja necessário escolher
exclusivamente uma delas. Certamente ambas têm muito a contribuir para
o nosso melhor entendimento e possibilidades de interpretação do texto a
partir das conclusões que chegaram por meio dos seus diferentes
métodos.
ii. Determinação da data. Não basta saber quem escreveu, mas também
importa saber quando o texto foi escrito. Paulo, apóstolo, escreveu ao
longo de seu ministério itinerante. Filipenses, a chamada “carta da
alegria”, contém insistentes imperativos de Paulo para que os irmãos
filipenses se alegrassem no Senhor. Ler esse texto pensando em Paulo ao
redor de uma mesa banqueteando-se na companhia de seus amigos,
desfrutando momentos de plena alegria, segundo os padrões normais do
que chamamos de “alegria”, ou, ler o texto pensando em Paulo como um
prisioneiro do império romano, há anos, aguardando julgamento que pode
colocá-lo em liberdade, ou condená-lo definitivamente, pode nos fazer
entender as suas palavras de forma diferente. Tudo depende do
entendimento de quando o texto foi escrito.
iii. Determinação dos destinatários. As pessoas para quem os textos foram
escritos têm um papel importante em nossa descoberta do significado do
texto. Faz diferença no entendimento do texto se os destinatários dele
estão vivendo sob dura perseguição, como no caso de 1 Tessalonicenses,
1 Pedro ou Apocalipse. Assim como, saber se os destinatários de Mateus
e Hebreus são judeus, gentios ou ambos. Quando lemos os profetas,
Página 38

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

precisamos entender como se encontrava a nação ao receber a


mensagem: eram do reino do norte ou do reino do sul? A mensagem era
para ambos? O que estava acontecendo com o povo naquele tempo? A
determinação dos destinatários se soma à determinação da data para nos
dizer que povo em que contexto recebeu aquelas palavras.
iv. Determinação do propósito. O quarto aspecto que envolve o contexto
histórico de um livro é a visão geral do mesmo para detectarmos qual é o
propósito e os temas que o compõe. Quando olhamos para 1 Coríntios,
por exemplo, vemos Paulo respondendo a perguntas feitas pela igreja e o
desenvolvimento de assuntos sobre os quais Paulo julgou necessário
escrever para corrigir ideias e práticas que estavam influenciando a
vivência daquelas pessoas. Essa é a visão do todo de um livro que nos
ajudará a entender as partes que o compõe.
2. Cada livro bíblico tem um contexto histórico particular. Assim como não podemos
cair no erro de interpretar um texto à luz do nosso contexto, não podemos errar
interpretando os livros bíblicos como se todos viessem de um mesmo contexto
histórico. Precisamos distinguir o tempo e contexto de cada livro para que essa
regra hermenêutica seja efetiva.
Como vimos acima, todo texto e/ou livro bíblico foi escrito por alguém para
ouvintes ou leitores específicos, que se encontravam num contexto histórico
específico, e com um objetivo específico. É por essa razão que a tarefa da
hermenêutica será descobrir essas especificidades de cada texto. Somente depois
de descobrirmos o significado de um texto para os seus primeiros leitores/ouvintes é
que poderemos atualizar o sentido do mesmo, ou seja, descobrir o que o texto tem a
dizer para nós hoje. Roy Zuck propõe um exemplo:

Deus mandou Noé construir uma arca. Mas por acaso isso significa que
todo cristão moderno deve construir uma arca? Precisamos entender a
ordem que Noé recebeu dentro de um contexto histórico e geográfico
específico. Jesus disse que seus 12 discípulos não entrassem em nenhuma
cidade dos samaritanos (Mt 10.5). É óbvio que isso não significa que os
leitores de hoje nunca devam entrar numa cidade de Samaria (1994, p.
74,75).

O exemplo proposto por Zuck esclarece a regra de entender um texto


primeiro em seu contexto original para então, e só então, descobrirmos a sua
Página 39

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

mensagem para hoje. Esse critério nos ajudará a discernir entre o que é narrativo,
informativo e normativo.
Nem todos os textos das Escrituras são normativos. Esse postulado é
fundamental para a interpretação especialmente de textos narrativos, que formam a
maior parte da Bíblia. Isso porque textos narrativos não trazem um ensino de forma
direta e explícita, embora em diversas ocasiões ilustrem um ensino explícito
encontrado em outras partes da Bíblia18.
Por exemplo, Davi cometeu adultério porque cobiçou a mulher de Urias e
depois, para livrar-se de um problema maior, porque Bate-Saba ficou grávida,
arquitetou a morte de Urias em batalha, o que sabemos que aconteceu conforme o
plano de Davi (2Sm 11). Em nenhum lugar nessa narrativa encontraremos
aplicações do tipo: Então, com os erros de Davi, aprendemos que cobiçar, adulterar
e matar, conforme a lei de Êxodo 20.1-17, são ações que Deus reprova. Ou seja, a
narrativa sobre o pecado de Davi ilustra um ensino que, em outra passagem bíblica,
foi dado diretamente. A normatividade de um texto, portanto, precisa ser atestada
por uma visão de todo da Escritura. Acredito que o seguinte exemplo de Luiz Sayão
pode esclarecer:

Numa outra ocasião, em minhas jornadas, encontrei dois cristãos


evangélicos num debate acalorado, discutindo se devemos ou não mentir
em certas situações. Independentemente da discussão sobre a possível
legitimidade de uma inverdade ou omissão da verdade em certas situações
(como o caso de mentir ou omitir para salvar uma vida), o que estamos
discutindo é o uso de textos bíblicos de maneira indevida. O argumento dos
debatentes era o de que Abraão, servo do SENHOR, e amigo de Deus, em
uma situação de necessidade, mentiu (Gn 12.18-20), o que legitimaria o
procedimento. A questão aqui não é tão difícil: o simples relato de um texto
histórico não o define como norma. Muitas vezes o texto bíblico conta-nos
os erros e falhas de seus personagens exatamente para enaltecer o poder
de Deus na vida de um ser humano frágil. Muita gente, porém, tenta ver
méritos e qualidades especiais em cada detalhe de vida do personagem
bíblico, sem contrastar o comportamento dos mesmos com as normas
divinas. Assim, com base nos fatos de que Moisés ficou irado, Abraão
mentiu, Jacó enganou Labão, Raabe mentiu em Jericó, Davi foi polígamo
etc., alguns tentam justificar seus pecados, afirmando que homens e
mulheres de Deus do passado fizeram tais coisas e não foram punidos por
isso. O equívoco é muito claro. Não podemos fazer isso: um texto narrativo
não é necessariamente normativo (in: MAZZACORATI; SAYÃO; SOUZA,
2017, p. 26,27).

18
Como afirma FEE; STUART, 2002, p.113. Voltaremos a esse assunto quando estudarmos a análise
de textos narrativos.
Página 40

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Podemos também pensar em Atos 2.42-47 e 4.32-37, onde por duas vezes
Lucas escreve sobre uma prática da primeira igreja: vender os bens e entregar o
valor da venda aos apóstolos para que distribuíssem entre dos demais da
comunidade para que todos fossem assistidos em suas necessidades. Existe aqui
uma narrativa que nos fornece uma informação sobre um costume da primeira
igreja, que não encontra no restante do Novo Testamento nenhuma recomendação
para que seja adotado por todas as comunidades cristãs como uma lei. Trata-se,
portanto, de um texto informativo e não normativo.
Mesmo assim, devemos observar o princípio que orienta essa ação dos
primeiros cristãos de Jerusalém, e desse princípio, extrair o ensino dessa narrativa
para nós hoje. Sabemos que o amor a Deus e ao próximo, como um movimento
único, é a lei que orienta a vida da pessoa cristã (exemplo: Mt 22.34-40; Gl 5.13-16;
Rm 13.8-10; 1Jo ). Ajudar os necessitados é uma prática que certamente expressa o
amor de uns pelos outros, bem como é imperativo explícito nos textos didáticos do
Novo Testamento, que são especialmente as cartas. Paulo, ao contar que a
liderança da igreja em Jerusalém havia reconhecido o seu chamado aos gentios,
escreve: “Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, o que me esforcei
por fazer” (Gl 2.10). Tiago afirma: “A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como
pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não
se deixar corromper pelo mundo” (Tg 1.27). João insiste: “Nisto conhecemos o que é
o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por
nossos irmãos. Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em
necessidade, não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de
Deus? Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em
verdade” (1Jo 3.16-18).
Portanto, a atualização de sentido dessas passagens de Atos não consiste
em vender o que temos e entregar para os líderes das nossas igrejas, contando que
estes distribuirão a cada um conforme as suas necessidades. Tampouco o texto
proíbe que isso eventualmente aconteça, caso alguém entender que em alguma
situação específica essa ação seja válida e necessária. O texto nos informa o que

Página 41

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

aqueles cristãos fizeram, dentro daquele contexto e por razões que não estão
explícitas no texto19, e não o que devemos fazer.
Em síntese, a pesquisa que precisamos fazer sobre o contexto histórico
envolve: 1) o cenário do livro bíblico e 2) o cenário que envolve as passagens
específicas do livro. Na primeira etapa do estudo, sobre o cenário do livro,
procuramos determinar autor, data, destinatário e propósito do livro. Na segunda
etapa, olhamos para as passagens específicas do livro e procuramos examinar os
fatores históricos e culturais que estão envolvidos no texto. O seguinte roteiro de
perguntas ajudará na investigação:

No lado cultural, o estudante deve identificar e buscar entender as


características refletidas no texto. Em quais características que o estudante
deve prestar atenção? Observe o leque seguinte de categorias. Quais delas
aparecem na sua passagem? O que mais se pode aprender sobre elas que
trarão luz ao seu entendimento da passagem?
Visão de mundo: valores, mentalidade ou ponto de vista do autor/editor, dos
destinatários e de outras pessoas mencionadas no texto, ou da sociedade
como um todo.
Estruturas societais: padrões de casamento e da família, os papeis do
homem ou da mulher, questões raciais.
Características físicas: clima, estruturas, ferramentas ou facilidade e meios
de transporte.
Estruturas econômicas: meios de ganhar a vida, questões de saúde e da
pobreza, da escravidão ou da mobilidade social.
Clima político: estruturas, ou alianças, incluindo hierarquias reais.
Padrões de comportamento, vestimentas e costumes.
Práticas religiosas, centros de poder, convicções, rituais e afiliações (KLEIN;
BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 401,402).

Essas informações acerca do entorno do texto precisam ser pesquisadas em


obras especializadas. Por isso, antes de prosseguir para o contexto literário, vamos
conhecer um pouco as ferramentas que temos para nos auxiliarem no trabalho
hermenêutico.

1.1. As ferramentas do estudante


Vimos na Unidade 1 que um método é como um mapa. “Seu valor está na
ajuda que oferece à pessoa para chegar ao destino desejado. Por isso, não pode ser

19
Uma das razões que podem ter levado aqueles irmãos a venderem os seus bens e propriedades
era a expectativa de que o fim estava próximo, logo, não havia necessidade de manter propriedades.
Nos primeiros anos da Igreja, a expectativa da volta de Cristo era que esse evento glorioso
aconteceria naquele tempo, com aquela geração. Apenas depois que essa expectativa mudou na
maneira de pensar dos cristãos.
Página 42

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

muito complicado, se não a gente se perde antes mesmo de começar a viagem”


(ZABATIERO, 2007, p. 27). Até aqui buscamos trazer à luz os aspectos mais
importantes que envolvem o contexto histórico dos textos bíblicos, para os quais
toda interpretação séria da Bíblia precisa estar atenta. Isso tudo pode parecer muito
complicado de início. Mas não é. Certamente é uma tarefa que exige tempo e
esforço, mas que com a prática irá se tornando em algo natural. Descomplicamos
quando conhecemos e aprendemos a usar as ferramentas que dispomos. Aproveite
esse momento para começar a montar a sua biblioteca. Ela será como a sua “caixa
de ferramentas”, fundamentais para o trabalho que temos pela frente.
O primeiro grupo de livros que devemos ter são os dicionários bíblicos. Eles
são ferramentas primárias. Fornecem informações sobre contextos históricos e
geográficos, biográficos, explicam palavras e fornecem estudos biográficos. É o caso
da obra: YOUNGBLOOD, Ronald F. (editor) Dicionário ilustrado da Bíblia. São
Paulo: Vida Nova, 2004. Um dicionário muito útil é o de Paulo e suas cartas:
HAWTHORNE, G.F.; MARTIN, R.P. (orgs). Dicionário de Paulo e suas cartas. São
Paulo: Vida Nova; Paulus; Loyola, 2008.
Um atlas bíblico também é ferramenta indispensável. Um que recomendo é
este: REINKE, André Daniel. Atlas Bíblico Ilustrado. 2 ed. São Paulo: Hagnos, 2018.
Considero este o melhor que temos em língua portuguesa. Ele não é apenas um
atlas geográfico, mas também histórico, baseado em sólida pesquisa. Ele é repleto
de mapas, tabelas e ilustrações que elucidam bastante os diferentes períodos da
história bíblica. Um outro bom atlas é o seguinte: LAWRENCE, Paul. Atlas histórico
e geográfico da Bíblia. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008.
As introduções ao Antigo e Novo Testamentos são obras que fornecem
informações acerca dos contextos histórico e literário. Nas introduções
encontraremos informação e discussão sobre autoria, data, destinatários e propósito
de cada livro. Como vimos acima, os métodos histórico-crítico e histórico-gramatical
diferem quanto a como determinar essas informações. Temos no mercado obras
escritas a partir dos dois métodos. Recomendo que o estudante comece por obras
de linha histórico-gramatical para depois conhecer mais o método histórico-crítico. O
ideal é que cheguemos ao ponto de saber aproveitar o que há de melhor em ambos
os métodos, sem que seja preciso optar exclusivamente por um deles.

Página 43

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Método histórico-gramatical:
ARCHER JR., Gleason L. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2012.
CARSON, D. A. Carson; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
LASOR, William S.; HUBBARD, David A; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2002.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento do Antigo Testamento.
São Paulo: Hagnos, 2008.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento do Novo Testamento.
São Paulo: Hagnos, 2008.
WRIGHT, N.T.; BIRD, Michael. The New Testament in Its World. Grand Rapids,
Michigan: Zondervan, 2019.

Método histórico-crítico:
BROWN Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 2004.
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. V. 1 - história, cultura e religião
do período helenístico. São Paulo: Paulus, 2005.
______. Introdução ao Novo Testamento. V. 2 – história e literatura do cristianismo
primitivo. São Paulo: Paulus, 2005.
KUMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições
Paulinas, 1982.
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. 5 ed. São Leopoldo: EST;
Sinodal, 1994.

Os comentários bíblicos são ferramentas de grande ajuda. Eles não só,


geralmente, têm uma introdução ao(s) livro(s) que traz resultados de pesquisa
histórico-cultural, como também fornecem perspectivas sobre autoria, data,
destinatários e propósito. Como o nome já diz, seu foco está em comentar o
significado do texto. Existem comentários mais técnicos e outros menos. Podemos
aqui fazer a mesma recomendação que fizemos quanto às introduções. Começar
com comentários menos técnicos e ir progredindo aos poucos. Até porque os
comentários técnicos trabalham com crítica textual e línguas originais. Assim, eles
Página 44

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

serão mais bem aproveitados na medida em que o estudante se familiarizar com


essas outras áreas da formação teológica. Sugiro aqui alguns ótimos comentários
em língua portuguesa, a partir dos quais o estudante poderá conhecer outros
volumes dessas coleções.
Os comentários bíblicos da ABU editora contêm alguns escritos por John
Stott, importante teólogo anglicano. A série de comentários do Antigo e Novo
Testamento da Editora Vida Nova, que está há muitos anos no mercado, é uma
ótima referência também. Por fim, a série de comentários bíblicos da editora Cultura
Cristã. Em método histórico-crítico, estão sendo publicados alguns comentários pela
editora Sinodal, de São Leopoldo, RS (por exemplo: WESTERMANN, Claus. O livro
de Gênesis. São Leopoldo: EST; Sinodal, 2013). Para o estudante que tem acesso
à leitura em inglês, recomendo os comentários Hermeneia Commentary Series, em
cinquenta volumes, que podem ser adquiridos em versão digital por meio da
ferramenta Logos Bible Software. Esses são comentários exegéticos escritos em
linguagem acadêmica e técnica.
Obras sobre contexto histórico-cultural da Bíblia ampliam e aprofundam o
que encontramos de forma mais resumida e dirigida aos propósitos de cada tipo de
livro, isto é, introduções, atlas, dicionários e comentários. São diversas obras desse
tipo que temos à nossa disposição. Vou mencionar apenas algumas:

ARENS, Eduardo. Ásia Menor nos Tempos de Paulo, Lucas e João: aspectos
sociais e econômicos para a compreensão do Novo Testamento. São Paulo: Paulus,
1997.
BRUCE, F.F. História do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2019.
CAMACHO, F. MATEOS, J. Jesus e a sociedade de seu tempo. São Paulo: Paulus,
1992.
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. 2 ed. São Paulo: Vida
Nova, 1986.
HORSLEY, Richard A. Arqueologia, história e sociedade na Galileia: o contexto
social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000.
JEREMIAS, Joachim Jerusalém nos tempos de Jesus. 3 ed. São Paulo: Paulus,
1983.

Página 45

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

MEEKS, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo.


São Paulo: Paulus; Santo André: Academia Cristã, 2011.
REINKE, André Daniel. Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e
sua atuação no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.
______. Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua
atuação no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
STAMBAUGH, John E.; BALCH, David L. O Novo Testamento em seu ambiente
social. 2 ed. São Paulo: Paulus, 2008.
STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. História Social do
Protocristianismo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2004.
Por fim, as obras de teologia do Antigo e Novo Testamentos são
importantes para entendermos o propósito geral do livro e os temas abordados por
eles. Existem obras que estão organizadas pelos livros bíblicos, isso é chamado de
“abordagem canônica”. Ou seja, são obras sobre propósito, mensagem e teologia de
cada livro do Novo Testamento, ao invés de uma visão geral da teologia deste ou
daquele autor. É o caso de MARSHALL, Howard. Teologia do Novo Testamento.
São Paulo: Vida Nova, 2007; THIELMAN, Frank. Teologia do Novo Testamento: uma
abordagem canônica e sintética. São Paulo: Shedd Publicações, 2007; MORRIS,
Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. Esse tipo de
obra, pela maneira como está organizada, ajuda o estudante a se orientar. Há outras
obras que não seguem essa abordagem, mas que também serão muito úteis para
explicar o pensamento de um autor bíblico. É o caso de LADD, George Eldon.
Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2003, ou DUNN, James. A
Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. Duas obras de teologia do
Antigo Testamento que eu recomendo para início dos estudos na área são: SMITH,
Ralph. Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo:
Vida Nova, 2001; KAISER JR., Walter C. Teologia do Antigo Testamento. 2 ed. São
Paulo: Vida Nova, 2007. Outra obra de grande valor para a teologia do Antigo
Testamento, focada em ouvir o texto bíblico para dar respostas ao mundo
contemporâneo: BRUEGGEMANN, Walter. Teologia do Antigo Testamento:

Página 46

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

testemunho, disputa e defesa. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus,
2014.

1.1.1. Quando usar as ferramentas?

Devemos consultar a literatura especializada nos diferentes aspectos de


contexto histórico e literário somente depois que estivermos familiarizados com o
texto. Ou seja, recomenda-se que o estudante leia repetidamente o texto, elabore
um esboço provisório do livro, faça anotações quanto a palavras e frases de sentido
obscuro, observe e destaque substantivos, adjetivos e verbos e faça perguntas ao
texto. Esse processo é chamado de observação, que é parte do método indutivo de
estudo da Bíblia. Ele é fundamental porque é dele que surgirá o material a ser
consultado na literatura especializada. Grant Osborne nos oferece um ótimo motivo
para iniciarmos o estudo do texto somente com o texto bíblico, para depois irmos às
obras de referência:

Um método indutivo normalmente significa um estudo intensivo e pessoal


de um texto, sem a ajuda de outras ferramentas de estudo como, por
exemplo, comentários. Assim, posso sair do texto e tirar minhas próprias
conclusões sobre o significado, em vez de me valer das conclusões de
terceiros para compreendê-lo. Essa medida de controle é essencial e me
protege de ser excessivamente influenciado por comentários e outras fontes
ao estudar o texto com mais profundidade. Primeiro, é necessário que eu
forme minhas próprias opiniões antes de interagir com as conclusões de
terceiros. Caso contrário, eu estaria apenas repetindo as ideias de outros. O
material das introduções me aproxima da situação subjacente à passagem
bíblica, e meu estudo indutivo me fornece dados preliminares com os quais
posso avaliar criticamente os comentários (é importante frisar “preliminares”,
porque o estudo com as ferramentas irá aprofundar e muitas vezes corrigir
minha decisão original) (OSBORNE, 2009, p. 47).

1.1.2. A escolha do texto a ser estudado, leitura e familiarização

Sugere-se começar a observação de uma passagem pequena de um livro


(Mc 1.14-20, por exemplo), ou de um livro pequeno (Rute, Jonas ou Filemom, por
exemplo). A intenção é ler a passagem, ou o livro, até obter uma familiaridade com
ele. Isso significa ler atenciosamente repetidas vezes o mesmo texto, de preferência
em voz alta. Sabemos que estamos familiarizados com o texto quando fechamos a
Página 47

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Bíblia e sabemos dizer o que estava escrito na passagem lida, sem precisar recorrer
ao texto. Por isso, no começo, quanto menor for a passagem, melhor para praticar o
exercício de familiarização, que deverá ser ampliado na medida em que
progredirmos na leitura.
Sugere-se também que a escolha do livro seja adequada ao nível de
conhecimento da história e da mensagem bíblica que o(a) leitor(a) possui. Ou seja,
para quem está iniciando os seus estudos bíblicos, a carta aos Romanos, o
Apocalipse, ou o livro de Jó podem ser leituras complexas demais para aplicarmos o
que estamos aprendendo aqui. São textos que exigirão muitos mais recursos
interpretativos e conhecimento prévio de outros assuntos relacionados à história e à
teologia dos livros bíblicos. Por isso, para quem está iniciando a sua jornada de
leitura da Bíblia com vistas ao estudo, o ideal são livros menores, ou textos
narrativos curtos ou médios. Sugestões: Rute, Ester, Jonas, João, Marcos,
Filipenses, Filemom, 1João.
Um recurso muito útil para essa etapa é retirar do texto todos os números de
capítulos e versículos, bem como os títulos e subtítulos que são sugeridos pelas
traduções bíblicas. A divisão da Bíblia em capítulos e versículos só ocorreu no
século XIII (capítulos) e no século XVI (versículos). Os títulos e os subtítulos das
partes de um livro bíblico são, também, inserções mais recentes. Tais elementos
incorporados ao texto bíblico visam facilitar a nossa “navegação” pelas páginas da
Bíblia. No entanto, apesar dos esforços dos editores bíblicos, muitas vezes os
capítulos, versículos, títulos e subtítulos acabam por atrapalhar (quando uma quebra
de texto é inserida equivocadamente), ou a pré-determinar o conteúdo de uma
passagem (como é o caso dos títulos e subtítulos).
O texto bíblico pode ser encontrado em aplicativos para celular, tablet e
computadores (Olive Tree e Your Version, por exemplo), bem como em sites
(https://www.bibliaonline.com.br | http://www.sbb.org.br), nas traduções mais
comuns: Nova Versão Transformadora (NVT), Nova Versão Internacional (NVI),
Almeida Revista e Atualizada (ARA), Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH),
Bíblia de Jerusalém, entre outras. É possível copiar e colar os textos para um editor
de texto para retirarmos tudo o que não for próprio do texto bíblico (capítulos,
versículos, subtítulos, divisões). Isso nos ajuda a termos uma visão do texto menos
influenciada pelas divisões e marcas colocadas pelos editores das traduções.
Página 48

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Depois de ler o texto repetidas vezes até nos familiarizamos com ele,
devemos fazer as primeiras anotações sobre ele. Basicamente, funciona como uma
investigação: observar, anotar o que se vê, elaborar perguntas. Anote as suas
primeiras impressões sobre o texto:
 O que o texto diz? – Qual é o sentido explícito do texto conforme o seu
entendimento?
 Quais dúvidas ele levanta? – Acerca de palavras, frases, ideias, imperativos.
 Quais ações ele repreende, propõe ou exige? – Sobre comportamento, ética.
 Quais ideias você teve quando o leu? – Lembrança de outras passagens, algo
pessoal, um insight; clareou um questionamento ou uma dúvida que você
tinha sobre outro texto bíblico ou assunto?
 Quais sentimentos ele provoca? – Choro, riso, inquietação, raiva etc.
Não se esqueça de observar e anotar o que é óbvio, o que está nítido, claro
de se ver no texto: personagens e nomes, lugares, movimentos (partiu de… voltando
de… etc.), ideias explicitas, proposições etc. É normal um texto conter partes nas
quais o que está escrito e o seu sentido são obscuros. Por isso, concentre-se
primeiro no que está claro, e a tendência é que o que está obscuro seja clareado
conforme progredimos no texto. As seguintes perguntas-chave ajudam a esclarecer
o que está no texto, e também a fazer o levantamento de perguntas:
 Quem escreveu? Quem está falando, ou quem falou? Quem são as principais
personagens? Quem são as pessoas mencionadas? A quem está falando?
Sobre quem está falando?
 Quais são os acontecimentos? Quais são as ideias? Quais são os
ensinamentos? Quais as características dessas pessoas? Quais as coisas de
que o texto mais fala? Qual foi seu objetivo ao dizer isso?
 Quando foi escrito? Quando aconteceu? Quando acontecerá? Quando ele
disse isso? Quando fez isso? Quando as pessoas devem agir?
 Onde isto foi feito? Onde está quem escreve? Onde está(ão) a(s) pessoa(s)
para quem se escreve? Onde isto foi dito? Onde irá acontecer?
 Por que havia necessidade de escrever isso? Por que isso foi mencionado?
Por que tanto ou tão pouco espaço foi dedicado a esse ou àquele

Página 49

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

acontecimento ou ensino? Por que essa referência foi mencionada? Por que
deveriam fazer tal coisa?
 Como isso é feito? Como aconteceu? Como essa verdade é exemplificada?
As respostas para essas perguntas precisam sair do próprio texto. O silêncio
do texto diante de uma pergunta é igualmente importante, e precisa ser anotado. No
processo interpretativo, esse silêncio pode ganhar uma voz.
Anote as suas dúvidas e organize-as por áreas. As mais comuns são sobre
contexto. Existem no texto convenções culturais, informações históricas, assuntos
religiosos etc., que precisam ser esclarecidos?
Também podem surgir questões acerca da normatividade, como vimos mais
acima. Existem imperativos no texto, aspectos doutrinários ou afirmações teológicas
que levantam dúvidas acerca da sua normatividade para hoje? (Por exemplo: a
circuncisão [Gn 17]; a proibição quanto a fazer tatuagens [Lv 19.28]; a utilização do
“véu” ou “cobertura” [1Co 11.6]; um homem não poder deixar os cabelos crescerem
[1Co 11.14-15]; a mulher ter que permanecer em silêncio na igreja [1Co 14.34]).
Lembrando que é preciso estabelecer critérios interpretativos para
discernirmos o que permanece para nós hoje e o que era somente para o tempo em
que o texto foi escrito, por questões culturais, ou entendimento que as pessoas
tinham sobre questões teológicas e práticas. Lembrando que a Bíblia traz dentro de
si textos escritos ao longo de aproximadamente 1400 anos. Isso significa que há
nela uma grande diversidade cultural, social e teológica. Ou seja, Deus – e
consequentemente, a sua vontade –, foi compreendido pelo povo de maneiras
diferentes. Por isso, uma leitura cristã da Bíblia precisa estar atenta para questões
de normatividade de muitas passagens, distinguindo entre o que no texto é
informativo e o que é normativo.
Fique atento a dúvidas sobre questões teológicas e doutrinárias. Durante a
leitura, dúvidas podem surgir acerca de uma determinada forma de o texto falar
sobre Deus e a sua ação. É importante notar como Deus é apresentado no texto, em
seu falar e em seu agir.
Por fim, perceba como o texto está construído. Uma maneira didática de se
fazer isso é colorir os substantivos (nomes), os adjetivos (palavras descritivas e
qualificativas) e os verbos (palavras que dão ação e movimento), com cores
diferentes, facilitando uma visão geral da construção gramatical do texto. Em todos
Página 50

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

esses passos, obviamente, você terá lido o texto diversas vezes. Não se esqueça de
que é fundamental que o texto “vá para dentro” de você, se torne visceral.

2. O contexto literário

O contexto literário, que em alguns manuais de hermenêutica por ser


chamado de contexto lógico20, juntamente com o contexto histórico, forma o que há
de mais fundamental na interpretação. Gordon Fee e Douglas Stuart definem
contexto literário da seguinte maneira:

Em termos essenciais, o contexto literário significa primeiro que as palavras


somente fazem sentido dentro de frases, e segundo que as frases na Bíblia,
em sua maior parte, somente têm significado claro em relação às frases
anteriores e posteriores (2002, p. 35).
Entender uma palavra de um texto, portanto, exige uma visão mais
abrangente: a frase, os parágrafos, o livro todo, toda a Bíblia. O princípio
hermenêutico aqui é que o particular precisa ser interpretado à luz do todo e o
todo à luz do particular. É como uma espiral. Podemos observar o contexto lógico
de uma passagem com o auxílio da seguinte ordem, partindo do todo para o
específico:

Contexto da Bíblia inteira


Contexto do Antigo ou Novo Testamento
Contexto do autor do livro
Contexto do livro inteiro
Contexto da seção principal
Contexto imediato
A passagem que estamos
estudando, que precisa passar por
análise gramatical e vocabular.

20
É o caso de OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
Página 51

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Por exemplo, vamos partir do particular: Romanos 13.8-10, em que o assunto


é o amor ao próximo como cumprimento da lei. Esse parágrafo é precedido por
parágrafos que falam sobre como devem ser as relações entre as pessoas cristãs,
começando pelo amor (12.9-21), seguido de um parágrafo sobre como deve ser o
procedimento dos cristãos diante das autoridades governamentais (13.1-5), depois
sobre o pagamento de impostos (13.6,7) e sucedido por parágrafos que estão
falando sobre a esperança cristã direcionando os cristãos para a santificação (13.11-
14), para depois introduzir o longo assunto sobre “os fracos e os fortes” (14.1ss).
Esse é o contexto imediato da passagem. Seguindo esse exemplo, Romanos 13.8-
10 jamais deverá ser interpretado sem que seja dentro desse contexto imediato,
assim como provavelmente erraremos na interpretação de 13.1-7 (submissão às
autoridades e impostos), caso não olhemos para o contexto imediato dessa
passagem (amor ao próximo e fazer o bem [12.9-21] e amor ao próximo como
cumprimento da lei e santificação [13.8-14]). O contexto imediato está dentro de uma
seção principal da carta, desde a transição de 12.1, que é a partir desse ponto que
o assunto da carta foca no desenvolvimento prático do que está escrito nos onze
primeiros capítulos.
O contexto do livro inteiro é a Carta aos Romanos, cujo contexto do autor
nos leva ao apóstolo Paulo. Significa que a passagem em questão precisa ser
estudada à luz do(s) propósito(s) do livro e do(s) tema(s) dominante(s) 21 . Essas
informações devem ser extraídas primeiramente do próprio texto por meio do
processo de observação, mas certamente se farão necessárias consultas à literatura
especializada, como introduções e comentários.
O contexto da Bíblia inteira é o elemento final a ser analisado, e é o “mais
controvertido e mais difícil de controlar” (KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017,
p. 381). Aqui se pressupõe a visão de todo da Escritura, que é Palavra de Deus em
sua mensagem como um todo. Ou seja, a Bíblia como um todo conta uma grande
narrativa de redenção, em que Deus está em busca do ser humano que se perdeu
no pecado e na morte. É possível perceber o tema central de toda a Escritura nas
seguintes palavras de Paulo:

21
Veja a ótima explicação de KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 378-381.
Página 52

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Pois o amor de Cristo nos constrange, porque estamos convencidos de que


um morreu por todos; logo, todos morreram. E ele morreu por todos para
que aqueles que vivem já não vivam mais para si mesmos, mas para aquele
que por eles morreu e ressuscitou. De modo que, de agora em diante, a
ninguém mais consideramos do ponto de vista humano. Ainda que antes
tenhamos considerado Cristo dessa forma, agora já não o consideramos
assim. Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas
antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas! Tudo isso provém de
Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o
ministério da reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava
reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos
homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação. Portanto, somos
embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por
nosso intermédio. Por amor a Cristo lhes suplicamos: Reconciliem-se com
Deus. Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que
nele nos tornássemos justiça de Deus (2Co 5.14-21).

Por fim, podemos sintetizar o trabalho com o contexto literário em três


princípios22:
1. Cada afirmação deve ser entendida de acordo com o seu sentido natural no
contexto literário em que se apresenta. Desse princípio depende o
entendimento da palavra em separado e o seu sentido dentro da frase
completa. Ele exige que o estudante considere atentamente aquilo que o
autor buscava alcançar no seu contexto, preservando a integridade da linha
de raciocínio que está em desenvolvimento ao longo do livro.
2. Um texto sem contexto é um pretexto. Esse princípio é um desdobramento do
primeiro, mas vale ser enfatizado para que jamais os textos sejam utilizados
fora da intenção pretendida pelo autor.
3. Quanto menor for a passagem estudada, maior a chance de erro. Analisar
isoladamente uma pequena passagem, ou uma única frase, fora do seu
contexto é entrar numa enorme margem de erro. Como já vimos, uma palavra
pode significar muitas coisas. Uma frase também. É a maneira como a
palavra e a frase estão colocadas dentro dos seus contextos literário e
histórico que determinam o que significam.
Um conjunto de perguntas pode ser muito útil no processo de análise de
contexto literário23:
Para o contexto imediato, perguntamos a nós mesmos:

22
KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 370,371.
23
Baseamo-nos em: GORMAN, Michael J. Introdução à exegese bíblica. Rio de Janeiro: Thomas
Nelson do Brasil, 2017. P. 96-100.
Página 53

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

 Qual é o assunto do parágrafo ou dos dois parágrafos que precedem esta


passagem? Como esse material conduz à passagem em questão?
 Qual é o assunto do parágrafo ou dos dois parágrafos que sucedem a
passagem em questão? O/s parágrafo/s que segue/s o texto faz/em uma
conexão diretamente a ele ou ajuda/m a explicá-lo?
 Essa passagem trabalha em conexão com o seu contexto imediato para
alcançar um objetivo retórico em particular?
Para o contexto da seção principal da passagem e para o contexto do
livro, perguntamos:
 Em que lugar essa passagem ocorre dentro da estrutura do livro? De que
seção mais ampla ela faz parte? Que significância tem essa posição?
 O que “aconteceu” (tanto na narrativa quanto no argumento etc.) no livro até
aquele momento e o que vai acontecer depois?
 Qual parece ser a função do texto na seção e no livro como um todo? Como
essa passagem mostra que serve ao propósito do trabalho como um todo?
Para o contexto da Bíblia inteira, perguntamos:
 Que papel (caso exista) esse texto e/ou temas primários e personagens
desempenham no restante das Escrituras?
 Qual é, especificamente, a relação (caso exista) entre esse e outros textos no
outro Testamento (Antigo ou Novo)?
 Com quais outras passagens bíblicas ou temas seu texto se harmoniza ou se
relaciona?
 Com quais outros textos bíblicos ou temas seu texto parece estar em conflito?
Essa tensão pode ser resolvida?

Nessa unidade vimos

Vimos os primeiros elementos da Hermenêutica Geral: o contexto histórico e


o contexto literário. Observamos como as palavras possuem diversos significados,
de maneira que a consideração do contexto é fundamental para a compreensão do
significado da palavra em cada texto em que é empregada. Ressaltamos que, para
entender como a mensagem de um texto bíblico fala ao mundo hoje, é preciso

Página 54

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

primeiro entender o que o texto significou para os primeiros leitores – o que requer a
consideração de aspectos como autoria, data, destinatários e propósito de cada livro
bíblico. Destacamos que o estudo do contexto histórico nos ajuda a estabelecer
critérios para discernir entre o que é narrativo, informativo e normativo nas
Escrituras.
Identificamos algumas ferramentas úteis ao estudante no trabalho de
interpretação da Bíblia: dicionários bíblicos, atlas bíblico, introduções ao Antigo e
Novo Testamentos, comentários bíblicos, obras de contexto histórico-cultural e obras
de teologia do Antigo e Novo Testamentos. E apresentamos alguns procedimentos e
perguntas centrais para o processo de observação do texto bíblico, que é parte do
método indutivo de estudo da Bíblia.
Analisamos ainda a importância do contexto literário no estudo de uma
passagem das Escrituras, mostrando como cada passagem deve ser interpretada à
luz: do seu contexto imediato; do contexto da seção do livro bíblico; do contexto do
livro bíblico inteiro; do contexto do autor bíblico; do contexto do Antigo ou Novo
Testamento; e do contexto da Bíblia como um todo.

Saiba mais

O contexto lógico, ou literário, pode ser também visualizado como um


esquema de círculos concêntricos, conforme exemplificaram: OSBORNE, 2009, p.
45-47; e KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 372-387.
A visão de todo da Bíblia é fundamental para a hermenêutica. Nesse ponto
percebe-se o diálogo que a hermenêutica deve manter com outras áreas da teologia,
especialmente com a Teologia Bíblica e a Teologia Sistemática. Uma ótima
referência para a visão de todo da mensagem da Bíblia é o livro do teólogo e biblista
Enio R. Mueller: MUELLER, Enio R. Caminhos de reconciliação: a mensagem da
Bíblia. Joinville: Editora Grafar, 2010.
Grant Osborne propõe um caminho que alguns estudantes podem considerar
objetivo para a análise do contexto literário. Trata-se de como mapear um livro e
como elaborar diagrama gramatical, de fluxo de frases e linear ou de blocos:
OSBORNE, 2009, p. 47-68.

Página 55

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 3: Pensar Contextualmente

Para reflexão

1. O que significa: “Cada passagem foi a Palavra de Deus para as outras


pessoas antes de se tornar a Palavra de Deus para nós”?
2. Resuma: contexto histórico e contexto literário.
3. Qual é a importância da análise de contexto histórico para o entendimento de
um texto bíblico?
4. Em quais contextos uma passagem está inserida? Explique brevemente cada
um deles.

Página 56

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

Unidade 4: GRAMÁTICA: FIXAÇÃO DO TEXTO E ANÁLISE


GRAMATICAL

A Bíblia, como vimos, é a Escritura Sagrada. É Palavra de Deus que chegou


a nós em forma de texto. Por isso, como todo texto, precisa ser lido e interpretado de
acordo com diretrizes orientadoras para a boa compreensão.
A hermenêutica bíblica compartilha com outros tipos de texto – como os do
universo da literatura, por exemplo – diversos aspectos do trabalho de interpretação.
Especialmente quando o assunto são textos antigos, como no caso da Bíblia e de
outros textos da literatura dos judeus, dos gregos e dos romanos, por exemplo, dos
quais temos apenas cópias das cópias, ou até mesmo, alguns pequenos
fragmentos. Estamos diante de um trabalho que envolve grande quantidade de
manuscritos que precisam ser comparados uns com os outros. As línguas em que
foram escritos são muito diferentes das nossas. O hebraico e o grego, as línguas
bíblicas, não são as mesmas das respectivas línguas modernas.
Por isso, o estudante de hermenêutica bíblica precisa tomar conhecimento
dos processos preliminares da exegese. É verdade que poucos estudantes se
tornam especialistas nos assuntos da crítica textual – que veremos abaixo –, já que
ele é amplo e complexo, exigindo um tempo considerável de estudos nas línguas
originais e em outros idiomas, já que a bibliografia técnica sobre o assunto é
predominantemente em inglês e alemão. Porém, espera-se que todos os estudantes
de hermenêutica bíblica familiarizem-se com o processo por meio do qual o texto
bíblico chegou até nós e que compõe o trabalho da exegese. Parte do objetivo desta
unidade é apresentar ao estudante o que está envolvido nesse processo.
Chegamos a esse assunto mais denso do universo da hermenêutica e da
exegese quando perguntamos pelo como a Bíblia que é lida pelos crentes como
fonte de alimento para sua fé e devoção chegou às nossas mãos, com diversas
traduções em língua portuguesa, de modo organizado, com capítulos e versículos,
títulos, subtítulos e notas de rodapé. Já sabemos que o processo de tradução
envolve interpretação, porém aqui queremos saber o seguinte: qual texto foi
traduzido e interpretado, já que existem milhares de cópias e fragmentos? As cópias
dos textos vindas de lugares e épocas diferentes são exatamente iguais? Como se

Página 57

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

lida com divergências textuais entre os manuscritos? Como se chegou a esses


textos que serviram de base para as traduções e para a exegese? Para quais
aspectos de um texto precisamos atentar? Neste módulo vamos estudar sobre os
elementos formativos do texto com que vamos trabalhar. Pense nesse estudo como
um mapa que nos orienta sobre por onde devemos andar. Começaremos pelo
processo de fixação do texto, depois veremos sobre a importância da análise
gramatical.
O objetivo desta unidade é:
1. Apresentar o processo de fixação de texto e as suas implicações para a
hermenêutica;
2. Apresentar o que envolve campo da análise gramatical.

1. Fixação do texto: o trabalho da crítica textual

Os textos do Antigo Testamento, em hebraico, e do Novo Testamento, em


grego, primeiramente precisaram ser fixados. Esse processo, denominado fixação
do texto, é necessário porque existem muitos manuscritos da Bíblia em suas
línguas originais, em formatos e materiais variados, vindos de lugares e épocas
diferentes e distantes umas das outras.
É importante tentar visualizar esse fenômeno, pois estamos falando de textos
registrados em materiais e de formas muito diferentes do que estamos
acostumados. Hoje os textos são impressos e encadernados, artisticamente
diagramados, tudo feito para proporcionar uma experiência de leitura fácil e
agradável. Muitos de nós já se acostumaram a ler a Bíblia por meio de dispositivos
eletrônicos, como em smartphones e tablets e pouco usam livros impressos. Os
textos bíblicos, por outro lado, foram escritos, copiados e preservados de modo
diferente. Os materiais usados foram pergaminhos e papiros. Os tipos de escrita
podem ser unciais, isto é, letras maiúsculas, ou cursivas, isto é, letras menores e
geralmente ligadas umas às outras. Esses documentos, manuscritos, são chamados
de tradições textuais, tipos, famílias e códices.

A forma-padrão de se produzir um documento na antiguidade era escrever


em papiro. Normalmente, um rolo tinha de 20 a 25 centímetros de altura e
Página 58

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

até 10,5 metros de comprimento. Em gral, só se escrevia de um lado, já que


o papiro não é um material muito denso. O texto era disposto em duas
colunas de 5 a 10 centímetros de largura, com cerca de 25 a 45 linhas por
coluna. Além disso, por causa do custo e do espaço necessário,
normalmente não havia pontuação nem divisão de palavras, sentenças e
parágrafos. Tudo era escrito em letras maiúsculas, e, portanto, uma linha
desse texto ficava mais ou menos assim: SÓUMANÃODISSESEUNOME. É claro
que podemos ler “Só uma não disse seu nome” ou “Só um anão disse seu
nome”. Questões de interpretação surgem simplesmente pela falta de
separação entre as letras ou pela ausência de pontuação. Além disso, não
havia capítulos e versículos nos manuscritos originais do NT antes do início
da Idade Média! (WITHERINGTON III, 2005. p. 20).

Figura 1 – Papiro Rylands 457 (P52): fragmento antigo do evangelho de João

A fixação de texto realiza dois procedimentos. O primeiro é a crítica textual,


que consiste na comparação dos diferentes manuscritos, já que eles podem
apresentar leituras bastante diferentes. A crítica textual é a ciência que procura
restabelecer o texto original de um trabalho escrito cujo manuscrito original da obra
já não existe mais. Os manuscritos originais são chamados de autógrafos. Os
autógrafos da Bíblia não existem mais, de modo que todo texto antigo das Escrituras
que temos documentado hoje, seja em hebraico, aramaico ou grego, são cópias. Por
essa razão, é preciso determinar qual manuscrito serviu de base para outro. O
critério da antiguidade do manuscrito é importante nesse processo.

Página 59

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

O segundo processo é a análise dos manuscritos, que visa determinar onde


palavras e frases começam, onde terminam e se devem estar ligadas umas às
outras. Isso é necessário, principalmente se tratando do texto hebraico, pois não
havia pontuação, espaço entre palavras e vogais. O mesmo problema se aplica ao
texto do NT, conforme vimos na citação acima, embora o grego tenha vogais.

Figura 2 – Bíblia Hebraica Stuttgartensia

Página 60

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

Figura 3 – Novo Testamento Grego Nestle-Aland


As edições da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento Grego trazem em seus
aparatos críticos as variantes textuais. Ao estudar a exegese do Antigo e do Novo
Testamentos, os estudantes aprendem a utilizar os aparatos críticos. Alguns editores
de Bíblias em língua portuguesa sinalizam em rodapé quando existem variações de
palavras e frases entre os manuscritos. Essa é apenas uma pequena amostra do
trabalho da crítica textual. Em algumas ocorrências, os leitores da Bíblia em língua
portuguesa poderão encontrar nas notas de rodapé algumas referências a variantes
textuais. Vejamos dois exemplos:
 Em João 1.18, a Nova Versão Internacional (NVI) traz a tradução: “Ninguém
jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou
conhecido”. Em “Deus Unigênito” ela sinaliza uma nota de rodapé, na qual
lemos: Vários manuscritos dizem o Filho. Ou seja, os manuscritos variam
entre “Deus Unigênito” e “o Filho Unigênito”.
 Em 1 Coríntios 13.3, a Nova Versão Transformadora (NVT) traz a tradução:
“Se desse tudo que tenho aos pobres e até entregasse meu corpo para ser
queimado, e não tivesse amor, de nada me adiantaria”. Em “meu corpo para

Página 61

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

ser queimado” ela sinaliza uma nota de rodapé, na qual lemos: Alguns
manuscritos trazem entregasse meu corpo, de modo que me gloriasse.

2. Análise gramatical

A hermenêutica nos fornece princípios orientadores gerais para a


interpretação de textos, desde a sua leitura até a sua aplicação aos dias atuais, o
que acontece no processo de comunicação. Já aprendemos, na primeira unidade,
que a exegese pode ser entendida como a ferramenta apropriada para a análise de
textos. Ou seja, a tarefa da exegese é descobrir o que o texto significava para então
podermos dizer o que o texto significa. Por isso, a exegese está no coração de toda
teoria hermenêutica.
Todo texto foi escrito em algum idioma. Todo idioma tem um conjunto de
regras, sem as quais não há comunicação. O trabalho exegético consiste em captar
o significado do texto. Por isso, o estudante precisa conhecer as línguas originais da
Bíblia, caso contrário sempre será dependente de traduções, que por sua própria
natureza, são interpretações.
Uma vez que o texto bíblico foi fixado, a tarefa agora é olhar para ele, ler e
entender o significado de suas palavras e frases: o que o texto está comunicando?
Para responder essa questão, a análise gramatical é fundamental. Primeiramente,
vamos entender o que é a gramática:

[...] A gramática é o projeto arquitetônico da comunicação e revela como as


várias partes de um discurso se relacionam entre si. O fato é que a
gramática é a chave para entendermos o significado da palavra, e a análise
semântica (estudo da palavra) depende dela, uma vez que palavras têm
significado somente quando se relacionam com as outras palavras de uma
frase (OSBORNE, 2009. p. 78).

Os estudantes de teologia e da Bíblia não devem se contentar em ler,


interpretar e ensinar a partir de uma tradução bíblica. Para isso, precisamos ter
diante de nós um caminho no qual vamos progredir, já que começamos a ler a Bíblia
em nossa língua materna. É com as traduções que estamos familiarizados e com as
quais fazemos nossas leituras devocionais. Essa progressão pode ser vista em
etapas.
Página 62

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

A primeira situação é a de todas as pessoas que se converteram a Cristo e


aprenderam que a sua jornada de fé será alimentada pela Bíblia. Seu ingresso no
mundo da Bíblia se dará por uma tradução. Essas pessoas precisam ser motivadas
à prática da leitura e do estudo bíblicos como hábito, como disciplina espiritual.
Precisam que alguém as instrua acerca do papel vital que a Bíblia exerce no
desenvolvimento da vida de fé, bem como sobre como ler e entender os textos. A
função das escolas bíblicas dominicais, grupos de estudo bíblico ou pequenos
grupos é vital nesse processo. Geralmente é nessa situação que as pessoas são
apresentadas às diferentes traduções da Bíblia.
A segunda situação é das pessoas que já leem a Bíblia em português,
conhecem diferentes traduções, mas descobriram que para se entender o texto em
profundidade será necessário investir mais tempo em estudos. Isso acontece porque
as perguntas que vão surgindo da leitura atenta da Bíblia não podem ser
respondidas pelo próprio texto bíblico. Nesse caso, a leitura e a interpretação da
Bíblia serão auxiliadas por dicionários bíblicos, atlas e comentários. As pessoas que
adquirem esse conhecimento porque se dedicaram ao estudo geralmente se tornam
instrutoras de outras que estão iniciando. Vamos de leitores a professores de Bíblia.
Necessariamente, os estudos se intensificam.
A terceira situação é a do entendimento de que a melhor compreensão da
Bíblia acontecerá quando tivermos acesso às línguas originais. Visto que as
gramáticas hebraica e grega são diferentes entre si e também da nossa língua
materna, a dedicação aos estudos se estende das questões históricas relacionadas
aos textos e se concentra também na gramática dos textos, na formação das
palavras e das frases. Isso não significa que somente quem é capaz de ler a Bíblia
em suas línguas originais a entenderá com clareza. A história da Igreja é composta
por inúmeros irmãos e irmãs que se tornaram grandes proclamadores do Evangelho
sem que soubessem as línguas originais. Mas perceba que alguém precisou
conhecer as línguas originais, estudar, traduzir, comentar etc., para que tais pessoas
recebessem o texto de modo compreensível em sua própria língua. O estudo das
línguas originais não é imprescindível para a compreensão da mensagem bíblica,
porém, é fortemente recomendável que faça parte do repertório do estudante de
teologia.

Página 63

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

Dentro da terceira situação, temos níveis ou estágios que vão nos levando às
“águas mais profundas” das línguas bíblicas. Desde os primeiros contatos com o
hebraico e com o grego, o estudante perceberá que não é tão complexo estudar as
línguas originais da Bíblia. Certamente é trabalhoso, mas prazeroso pelas
recompensas de conhecimento vindas das descobertas que fazemos ao ver o
sentido de palavras originais, os jogos artisticamente elaborados pelos autores e os
tempos verbais diferentes dos nossos e como eles impactam a compreensão que
tínhamos e agora passamos a ter do texto. É justamente por essas razões que os
cursos de teologia têm disciplinas de grego e hebraico, hermenêutica e exegese
aplicadas.

2.1. O que envolve a interpretação gramatical de um texto?

O estudo gramatical está no cerne de toda teoria hermenêutica: “O estudo


gramatical é estratégico para a interpretação correta porque os idiomas bíblicos às
vezes transmitem nuances que são difíceis de captar na tradução em português”
(KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR, 2017. p. 430).
24
Três aspectos estão envolvidos no estudo gramatical de um texto .
Lembremos que estamos levando em consideração o estudo da Bíblia a partir das
línguas originais. São eles:
1. Lexicologia – o significado as palavras
2. Morfologia e classes morfológicas – a forma e a função das palavras
3. Sintaxe – a relação entre as palavras

2.1.1. O significado das palavras

O primeiro aspecto é o significado das palavras do texto, e recebe o nome


de lexicologia. Pergunta-se aqui pela etimologia, ou seja, a origem e a evolução de
uma palavra dentro de uma língua. Existem em língua portuguesa ótimos léxicos e
dicionários das línguas bíblicas, tanto impressos como digitais.

24
ZUCK, Roy. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia. São Paulo: Vida Nova,
1994. p. 115-141.
Página 64

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

Precisamos estar atentos nesse assunto, pois algumas armadilhas nos


aguardam pelo caminho. Uma delas é que nem sempre o significado original de uma
palavra será decisivo para dizer o seu significado em uso, seja no texto bíblico, seja
hoje em dia.

O significado original do termo grego eirene era paz, antônimo de guerra;


depois, veio a significar paz interior ou tranquilidade; depois, bem-estar, e
no Novo Testamento é comumente empregado em referência a um bom
relacionamento com Deus. É evidente, então, que a “etimologia da palavra
não diz respeito a seu significado, mas à sua história” (ZUCK, 1994. p. 118).

De modo semelhante, outro risco reside justamente nas palavras que foram
originadas de outras. Por exemplo, a palavra grega dynamis, que originou a palavra
dinamite. Em Atos 1.8, dynamis é usada por Jesus para dizer o que os discípulos
receberiam quando o Espírito Santo descesse sobre eles. Em Romanos 1.16, Paulo
afirma que o evangelho é dynamis de Deus para a salvação de todo aquele que crê.
Dynamis significa “força”, “poder”. Obviamente que Jesus e Paulo não estavam
pensando no poder destrutivo da dinamite, um artefato explosivo inventado no
século XIX! Logo, não podemos fazer paralelos entre dynamis e dinamite para
compreender o significado da palavra usada em Atos e em Romanos.
A língua é dinâmica, pois as palavras estão em uso constante e são
empregadas em novos contextos. Por essa razão, como no exemplo acima do
sentido da palavra paz, a análise etimológica precisa levar em consideração também
o uso ou emprego de uma palavra, bem como o contexto em que ela está sendo
utilizada.
Uma vez realizada a consulta em um léxico ou dicionário etimológico de uma
palavra, deve-se perguntar: como essa palavra foi utilizada nos textos bíblicos? Para
que seja possível realizar essa tarefa, devemos dirigir essa pergunta para livros ou
autores específicos. Por exemplo, de que maneira Paulo usa a palavra pneuma
(espírito)? De que maneira Paulo usa a palavra sarx (carne)? Essas perguntas
revelam que o contexto pode ser determinante para o entendimento de uma palavra.
Por exemplo, o estudo dos empregos que Paulo fez da palavra sarx revela
uma variedade de sentidos. A carne pode ser a condição humana (Rm 3.20), pode
se referir ao corpo humano (2Co 12.7), que por sua vez é sarx assim como animais,
pássaros e peixes (1Co 15.39). Sarx pode ser a inclinação da natureza humana ao
Página 65

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

pecado (Rm 8.6,7; Ef 2.3). A sarx é corruptível e não pode herdar o reino de Deus
(1Co 15.50), ao mesmo tempo, Jesus Cristo veio ao mundo em sarx (Cl 1.22). Tais
detalhes não podem ser percebidos por meio de uma tradução, pois assim como
sarx pode ser traduzido como corpo, soma é a palavra grega comumente usada
para corpo.
As palavras possuem tipos de sentido. Esse é um aspecto importantíssimo
do estudo do vocabulário bíblico, visto que nele encontramos grande variedade de
gêneros literários que usam as palavras de modos variados25.
Uma palavra pode ter um sentido literal, ou referencial. Esse sentido é
aquele que a palavra realmente se refere. Nesse caso, quando lemos “árvore”, o
texto se refere à grande planta com galhos e folhas verdes que vejo da minha janela
enquanto escrevo.
Uma palavra pode ter um sentido denotativo, que é o sentido preciso e direto
de uma palavra. Nesse caso, as “árvores são plantas altas e lenhosas, normalmente
dotadas de um caule chamado tronco. São os maiores e mais velhos seres da Terra,
sendo que algumas delas vivem centenas ou até milhares de anos”26.
Uma palavra pode ter um sentido conotativo ou figurado. Esse é o sentido
que de alguma maneira se baseia no sentido denotativo, mas o extrapola. Por
exemplo, a palavra “cão” pode se referir ao animal quadrúpede e peludo, mas
também pode ser uma expressão de reprovação de uma ação: seu cachorro! Ou
uma expressão pejorativa, como quando Paulo se referiu aos da “falsa circuncisão”:
“cuidado com os cães...” (Fp 3.2). Seguindo o exemplo da árvore, em 1Pe 2.24
lemos que Jesus foi pendurado no madeiro ou em “uma árvore”, querendo dizer
cruz.
O sentido contextual de uma palavra, isto é, o emprego da palavra em um
contexto específico, a limitará ao sentido denotativo ou ao conotativo. Na frase:
“Aquela árvore é maior e mais bonita do que aquela outra”, o sentido exigido é o
denotativo. Na frase: “O passeio para praia deste final de semana subiu na árvore”
(semelhante à expressão “subiu no telhado”), o sentido exigido é o conotativo.

25
KLEIN, William W.; BLOMBERG, Craig L.; HUBBARD JR., Robert L. Introdução à Interpretação
Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017. p. 412,413.
26
https://escola.britannica.com.br/artigo/árvore/482704 [Acesso em 28/12/2020]
Página 66

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

Uma recomendação prática para o estudante é sobre a escolha de quais


palavras selecionar para um estudo minucioso. Já que a maioria das palavras de um
texto terá os seus sentidos claros, vale se concentrar na escolha de palavras que se
enquadrem nos seguintes casos27:
1. Palavras difíceis. Seja a palavra encontrada em uma tradução, ou mesmo na
língua original. Pode-se revelar uma palavra de tradução complexa que
merece atenção.
2. Palavras importantes. São palavras-chave em um parágrafo ou livro/carta.
Atentar para a repetição de palavras em um mesmo texto costuma revelar
palavras que são importantes.
3. Palavras com conteúdo teológico. São palavras que carregam um peso
teológico maior do que outras. Palavras como graça, justificação, santificação,
evangelho etc., são termos de grande importância teológica.
4. Palavras com poucas ocorrências. Palavras ou expressões usadas poucas
vezes exigem uma atenção especial, visto que haverá poucas referências em
outros livros bíblicos para compreender o seu significado.
5. Palavras figuradas/conotativas. Como vimos acima, são palavras que vão
além do sentido denotativo, por isso, precisam de atenção para que se
entenda corretamente o seu uso na frase.
Uma ferramenta indispensável ao estudante é um dicionário teológico do
Antigo e do Novo Testamento que reúne a análise das palavras, os diferentes
contextos em que ela aparece e as possibilidades de sentido e tradução.
Por fim, Roy Zuck elenca seis princípios a serem considerados quando
observarmos o significado das palavras (ZUCK, 1994. p. 128,129):
1. Geralmente, uma palavra não tem o mesmo significado original, e nem
sempre os elementos que a compõe determinam o seu significado.
2. Os significados de palavras em nossa língua não devem ser transportados
para os textos bíblicos.
3. Uma mesma palavra pode ter significados diversos em todas as suas várias
ocorrências na Bíblia.

27
Adaptado de: KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR, 2017. p. 413.
Página 67

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

4. Cada palavra ou expressão normalmente só tem um significado, que é


indicado por seu emprego na frase e/ou em um ou mais contextos.
5. Um mesmo termo da Bíblia nem sempre possui o mesmo sentido.
6. Não se deve atribuir a uma palavra todos os seus possíveis significados em
qualquer situação. O contexto de uma declaração normalmente determinada
o único sentido pretendido dentre todos os vários possíveis. Por outro lado, é
preciso admitir que às vezes existe ambiguidade.

2.1.2. A forma das palavras

O segundo aspecto é a morfologia, que é o estudo de como as palavras são


formadas e conjugadas. Vejamos um exemplo usando o verbo “interpretar”:
interpretei, interpreto e interprete. Qual é a variação nessas palavras? Os sufixos -ei,
-o e -e. Interpretei é pretérito-perfeito. Interpreto é presente. Interprete pode ser um
subjuntivo ou um imperativo, dependendo do uso na frase. O acréscimo de um
acento no terceiro exemplo indica um substantivo, e não mais um verbo: intérprete.
Assim como em língua portuguesa, no hebraico e no grego as palavras têm o
sentido determinado por meio de flexões no início, no meio ou no final das palavras.
As palavras pertencem a classes morfológicas, indicando a função que uma
palavra exerce em uma frase. As classes morfológicas podem ser visualizadas a
partir de dois sistemas: o nominal e o verbal.
O sistema nominal é a família dos substantivos:
 O substantivo nomeia algo, como pessoas (Pedro, Paulo – substantivo
próprio), lugares (Jerusalém, São Paulo – substantivo próprio), coisas (pão,
vinho – substantivo concreto), conceitos (justiça, paz – substantivo abstrato) e
ações (ascensão, descida – substantivo abstrato). Eles variam em gênero
(masculino e feminino [também neutro, no caso do grego]), número (singular
e plural) e grau (aumentativo e diminutivo).
 O pronome é uma palavra usada para substituir o substantivo fazendo
referência a elementos já citados ou que ficaram subentendidos. São
classificados como pessoal: eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas; possessivo:

Página 68

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

meu, minha; demonstrativo: este, aquela; indefinido: outro; interrogativo:


quem?; e relativo: que, qual, cujo.
 O adjetivo caracteriza, qualifica o substantivo e o pronome: a casa é bonita;
ela é simpática; o pão está maravilhoso. Nesses casos, o adjetivo deu uma
qualidade para coisas e pessoas: bonita, simpática, maravilhoso. O adjetivo
também pode designar tamanho ou quantidade: São Paulo é uma cidade
grande; encontramos cinco ovos.
 A preposição uma palavra que liga um elemento a outro numa frase, criando
uma ligação entre eles. As preposições estabelecem uma grande variedade
de relações, como: instrumental: salvos pela graça; origem: justiça de Deus;
lugar: em Samaria; etc.
O sistema verbal é a família dos verbos:
 Os verbos são palavras que indicam ação ou estado de um substantivo
ou pronome. Eles variam em tempo (passado, presente e futuro), voz
(ativa, passiva, reflexiva) e modo (indicativo, imperativo, subjuntivo). Os
idiomas compartilham essa estrutura, mas com variações. Para o hebraico
bíblico, por exemplo, o aspecto do verbo é mais importante do que o
tempo. Há dois tempos verbais: o perfeito e o imperfeito. O perfeito
expressa uma ação que se completou. O imperfeito enfatiza a ação
incompleta. Os verbos que denotam o estado do ser ou da mente, como
“eu amo”, usam o perfeito para denotar o estado presente.
 O advérbio é uma palavra que modifica ou caracteriza um verbo (comer
muito), um adjetivo (muito bom), ou uma frase (felizmente ele retornou).
Ele exprime circunstância de tempo, modo, lugar, qualidade, causa,
intensidade, oposição, afirmação, negação, dúvida, aprovação etc.
 As conjunções ligam palavras, locuções ou orações: e, mas, portanto,
como etc.
 As interjeições são palavras que, por si sós, formam uma frase que
exprime uma emoção (ai!), uma ordem (força!), um apelo (olá!).
O estudo da morfologia e das classes morfológicas é fundamental na
interpretação da Bíblia porque revela características das palavras e dos seus
respectivos usos na frase que não seriam perceptíveis a partir de uma tradução. Ser

Página 69

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

capaz de diferenciar as características dos tempos verbais do hebraico e do grego


fará grande diferença no entendimento de passagens em que as traduções não são
capazes de trazer o sentido da palavra original porque na língua portuguesa não
existem paralelos quanto ao tempo verbal ou aspecto da ação.

2.1.3. Sintaxe

A sintaxe é um ramo da gramática que estuda a disposição das palavras de


maneira a formarem uma frase28. A palavra sintaxe é de origem grega, súntaksis,
que significa “organização, composição”. Uma palavra isolada de outras raramente
transmite uma ideia completa. É na junção organizada de palavras que se forma
uma ideia. Assim, o olhar que a sintaxe lança sobre o texto é estrutural.
A organização da frase é a sintaxe. Por exemplo, se vistas isoladamente, as
palavras “menino”, “mordeu”, “cachorro” e “feio”, têm significados etimológicos e
pertencem a classes morfológicas. Porém, isoladas, não transmitem uma ideia. Para
isso, precisam ser agrupadas. Mas é a maneira como serão agrupadas que
determinará o sentido da frase. São as mesmas palavras, mas dependendo da
organização da frase, transmitem uma mensagem completamente diferente.
 O cachorro mordeu feio o menino.
 O cachorro mordeu o menino feio.
 O cachorro feio mordeu o menino.
 O menino mordeu feio o cachorro.
 O menino mordeu o cachorro feio.
 O menino feio mordeu o cachorro.
Esse simples exemplo é suficiente para mostrar a importância que deve ser
dada ao estudo da sintaxe. Quando levamos o assunto para as línguas bíblicas,
descobriremos que existem similaridades e diferenças em relação à língua
portuguesa. O procedimento de tradução de um texto bíblico encontra nesse ponto
grandes dificuldades, pois as línguas originais (grego e hebraico) não possuem a

28
Grant Osborne divide o trabalho da exegese, relacionado ao texto propriamente dito, em três
partes: gramática, semântica e sintaxe. Nem todos os manuais de hermenêutica e exegese usam
esse método de trabalho. Porém, dentro do projeto do livro deste autor, ele é muito útil e auxilia o
estudante a perceber com maior clareza o que envolve a análise exegética e os seus procedimentos.
Página 70

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

mesma maneira gramatical de expressar ideias que a língua receptora em questão,


o português. Por isso, são necessárias adaptações formais na língua receptora (o
português, por exemplo) a fim de preservar e transmitir o significado do texto
original.
Uma constatação que os professores de línguas bíblicas geralmente fazem é
que parte da dificuldade dos estudantes em aprender grego e hebraico não diz
respeito ao estudo do idioma em si, mas ao conhecimento gramatical e sintático da
língua portuguesa. Temos aqui uma oportunidade de melhorar o nosso
entendimento da nossa língua, algo que trará muitos outros benefícios ao estudante.
Assim, fica claro que no trabalho exegético não procuramos apenas o
significado etimológico das palavras que compõem a frase. Aliás, o trabalho
exegético é incompleto se resumir-se ao estudo de vocabulário ou termos-chave de
um texto. A exegese também não está completa quando estende o estudo
etimológico/lexical para o estudo morfológico e das classes morfológicas. Esses dois
são passos fundamentais do trabalho exegético, como vimos acima, mas não podem
ser separados da sintaxe, pois o que buscamos é o desenvolvimento e o significado
de uma ideia como um todo, transmitida por meio de um enunciado.
Grant Osborne é enfático em sua obra sobre a importância que os estudos
exegéticos devem dar à gramática e à sintaxe, sem que um desses receba mais
importância do que o outro. Porém, sempre será o significado do enunciado o
objetivo de toda análise exegética:

Nenhum dos elementos da estrutura de superfície [que é o texto] pode se


tornar um fim em si mesmo. Não estamos procurando principalmente
quiasmos e clímax. Não estamos em busca apenas de genitivos subjetivos
ou particípios circunstanciais. Não queremos nos concentrar no estudo das
palavras de cada expressão isolada, como se o significado de todo o
parágrafo pudesse ser reduzido a uma expressão-chave. Em vez disso,
queremos elucidar o desenvolvimento e o significado de todo o enunciado.
Na comunicação nunca isolamos palavras ou enunciados em particular
como se representassem o significado do todo. Raramente nos fixamos
numa parte de uma frase ou de um parágrafo e desprezamos o resto. Em
vez disso, nosso objetivo é que o significado seja transmitido basicamente
pelo enunciado tomado como um todo (OSBORNE, 2009, p. 141 –
colchetes meus).

Ao mesmo tempo, é impossível compreender o todo sem as partes. Dessa


maneira, o trabalho exegético é semelhante ao círculo hermenêutico: um movimento

Página 71

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

de ida e de volta entre o todo e as partes do texto. Já que um texto é uma unidade
de sentido formada por diversas partes, as unidades de significado que o estudante
irá normalmente analisar são as seguintes, da menor para a maior29:
 Palavras (estudo lexicográfico e morfológico)
 Segmentos de frases (períodos – simples e compostos)
 Frases (ou enunciados)
 Segmentos de texto (parágrafos, estrofes e pequenos grupos de frases)
 O texto propriamente dito (como um todo)

Nessa unidade vimos

Vimos que o texto bíblico que temos em mãos passou por um minucioso
trabalho de fixação do texto. A crítica textual é um vasto campo de trabalho dentro
do universo dos estudos bíblicos.
A análise exegética está no cerne de toda teoria hermenêutica. Ela envolve
fundamentalmente a análise gramatical e a sintaxe. Há mais ramificações de ambas
que compõe a exegese, porém, por limitações de espaço, ficaram de fora desta
unidade. É imprescindível que o estudante aprofunde os seus conhecimentos a
partir das recomendações de leituras feitas ao longo deste estudo.

Saiba mais

Grant R. Osborne sintetiza alguns critérios comuns à tarefa da fixação do


texto do Antigo e do Novo Testamento: OSBORNE, Grant. A espiral hermenêutica:
uma nova abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 71-77.
Apesar de ser uma publicação antiga, o manual de crítica textual do Novo
Testamento de Wilson Paroschi ainda é uma valiosa referência: PAROSCHI, Wilson.
Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993.
Um trabalho recente que reúne boas informações sobre a origem,
transmissão e fixação do texto bíblico, de maneira concisa e didática, é o de Paulo

29
Adaptado de: GORMAN, Michael J. Introdução à exegese bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson
do Brasil, 2017. P. 126,127.
Página 72

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

Won: WON, Paulo. E Deus falou a língua dos homens: uma introdução à Bíblia. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson, 2020. p. 23-115.
CARSON, D.A. Os perigos da interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova,
2005. Anteriormente publicado com o título A exegese e suas falácias. Nesta obra,
D.A. Carson apresenta aos estudantes muitos aspectos a serem considerados na
tarefa da interpretação bíblica a partir dos equívocos mais comuns cometidos por
intérpretes.
Um ótimo texto para aprofundar no assunto do estudo das palavras é o de
KLEIN, William W.; BLOMBERG, Craig L.; HUBBARD JR., Robert L. Introdução à
Interpretação Bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017. p. 403-427.
Dicionários teológicos são ferramentas valiosas para análise etimológica das
palavras da Bíblia, que leva em consideração a origem, a evolução e os usos das
palavras. Indicamos os seguintes:
COENEN, Lothar; BROWN, Colin (orgs.). Dicionário internacional de teologia do
Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. (Obra em 2 volumes).
HARRIS, Laird R; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (orgs.). Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
BERLEJUNG, Angelika; FREVEL, Christian (orgs.) Dicionário de termos teológicos
fundamentais do Antigo e do Novo Testamento. São Paulo: Paulus; Loyola, 2011.
Embora o estudo gramatical – morfologia e sintaxe – faça parte das
disciplinas de Grego e Hebraico, o estudante que quiser conhecer um pouco mais
sobre esse assunto encontrará nesta obra uma valiosa visão panorâmica:
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 79-98.
Como destacado na conclusão, o assunto dessa unidade precisa ser
aprofundado e, assim, acrescido de mais informações. Sugerimos a seguinte obra
como ponto de partida: OSBORNE, Grant. A espiral hermenêutica: uma nova
abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 69-197.

Para reflexão

1. Você já havia pensado sobre o processo que envolve uma tradução da


Bíblia?
Página 73

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 4: Gramática: Fixação do Tempo e Análise Gramatical

2. Por que o conhecimento das línguas originais da Bíblia é importante?


3. Em que consiste a análise gramatical?
4. Por que a sintaxe é importante?
5. O trabalho exegético é semelhante ao círculo hermenêutico. Por quê?

Página 74

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

UNIDADE 5: FIGURAS DE LINGUAGEM E PANO DE FUNDO


HISTÓRICO-CULTURAL

Antes de prosseguirmos para os estudos de figuras de linguagem e vermos


em que consiste o pano de fundo histórico-cultural dos textos bíblicos, vamos
recapitular alguns fundamentos que precisam estar bem fixados:
1. A hermenêutica é uma tarefa necessária, pois a leitura e a interpretação da
Bíblia estão sendo feitas; a Bíblia está sendo ensinada. Ler a Bíblia é um ato
interpretativo. Assim, precisamos nos certificar se a interpretação que
fazemos ao ler o texto bíblico é boa ou ruim, correta ou errada. Por isso,
temos que nos orientar por critérios para interpretar bem, isto é, com
fidelidade ao que o texto comunica. Estudar hermenêutica nos torna
conscientes da tarefa da interpretação e nos dá diretrizes para usar as
ferramentas/regras para a boa interpretação. Tratando-se da interpretação
bíblica, como vimos, nunca estaremos diante de um ofício meramente
acadêmico e técnico. Lemos a palavra de Deus e é ela que queremos
interpretar, entender bem, pois ela é a fonte de alimento para a nossa vida;
ela é o instrumento primordial do Espírito Santo para a transformação da
nossa vida.
2. Hermenêutica e exegese são inseparáveis, de tal modo que podem até ser
tratadas como sinônimas pelos manuais. Na realidade, a hermenêutica
abrange todo o campo da interpretação, o que inclui a exegese. Para fins
metodológicos, diferenciamos a exegese como o estudo cuidadoso e
sistemático, histórico e gramatical, dos textos bíblicos, cuja intenção é
descobrir a mensagem original dos textos. A hermenêutica trabalha com
regras para que essa mensagem original seja comunicada ao mundo de hoje
com fidelidade ao texto e relevância contemporânea.
3. Todo texto bíblico deve ser interpretado à luz de dois contextos: histórico e
literário. A observação desses contextos é imprescindível para a boa
interpretação.
a. O contexto histórico diz respeito ao tempo histórico e ao ambiente
social em que o texto surgiu, para quem foi escrito, ou em que se

Página 75

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

passa a história narrada (por exemplo, o livro de Rute é da época da


monarquia, mas conta uma história do tempo dos juízes). Vimos que a
observação do contexto nos leva a considerar: a autoria (quem
escreveu? – às vezes essa pergunta pode ser respondida, às vezes,
não), a data (quando o texto foi escrito? – características como a
determinação de autor, destinatários ou assunto do texto ajudam na
datação), os destinatários (para quem foi escrito? – pode ser um texto
escrito para uma comunidade inteira, como a maioria das cartas de
Paulo, ou podem ser textos pessoais, como as cartas pastorais, por
exemplo) e o propósito do texto (por que o texto foi escrito? – qual foi a
intenção do autor ao escrever esses assuntos?).
b. O contexto literário (ou “contexto lógico”: OSBORNE, 2009, p. 45-68),
consiste no entendimento da relação das partes com o todo e do todo
com as partes do texto. Fee e Stuart resumem bem: “contexto literário
significa que as palavras somente fazem sentido dentro de frases, e,
na sua maior parte, as frases na Bíblia somente têm significado em
relação às frases anteriores e posteriores” (FEE; STUART, 2002, p.
23). Olhamos o texto a partir de sua menor parte, que é a palavra. Mas
sozinha, a palavra pouco ou nada comunica. Isso porque palavras só
comunicam algo quando são organizadas numa frase. A partir daí a
abrangência é cada vez maior: o parágrafo, o livro, (os demais livros do
mesmo autor), o testamento (AT ou NT), a Bíblia como um todo. O
princípio aqui é sempre ter em mente que as partes são
imprescindíveis para interpretar o todo e o todo é imprescindível para
interpretar as partes.
4. O que nos leva ao fato de que a Bíblia deve ser interpretada dentro das
regras da gramática e da sintaxe de suas línguas originais. Mas esse trabalho
já pode – e deve! – começar antes que o estudante aprenda hebraico e
grego. Começando pela observação gramatical em língua portuguesa,
recorrendo também às diferentes traduções bíblicas, com recurso aos
comentários exegéticos e dicionários bíblicos e teológicos, o estudante deve
progredir em seus estudos com o objetivo de interpretar o texto bíblico a partir
das línguas originais.
Página 76

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

5. Lembremos que o texto bíblico não foi escrito com as divisões de capítulos e
versículos.
Agora a nossa atenção deve retornar ao texto, observando mais dois
aspectos fundamentais para a boa interpretação. O primeiro está ligado aos
elementos artísticos do texto, que são as figuras de linguagem. O segundo diz
respeito ao ambiente histórico-cultural dos textos. Nesse segundo aspecto estamos
retomando o assunto que vimos na Unidade 3: aprendendo a pensar
contextualmente. Porém, agora veremos mais detalhes a serem observados pelo
estudante, bem como áreas do conhecimento que lançam luz sobre os textos
bíblicos.

1. As figuras de linguagem

Na Unidade 4 aprendemos que a palavra pode ter sentido denotativo, que é o


sentido preciso, direto, literal. Há também o sentido conotativo, que é o figurado,
formado a partir do denotativo, mas modificado de alguma forma. Visto que na Bíblia
a linguagem figurada é abundante, os manuais de hermenêutica e exegese
costumam separar um capítulo inteiro somente para esse assunto.

1.1. Definição, uso e efeitos

Comecemos, então, pela definição: o que são as figuras de linguagem? Uma


figura de linguagem é qualquer desvio intencional do emprego literal ou uso comum
de uma palavra ou frase que enfatize, esclareça ou embeleze a linguagem, seja ela
escrita ou falada. De todas as categorias de linguagem figurada, certamente a
metáfora se destaca. Tomaremos ela como exemplo representativo das figuras de
linguagem.
Roy Zuck fornece uma bela e esclarecedora citação sobre a linguagem
figurada, escrita pelo professor de literatura inglesa W. MacNeile Nixon, em 1937:

Se me perguntassem qual foi a maior força utilizada na formação da história


[...] eu responderia [...] a linguagem figurada. Os homens vivem pela
Página 77

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

imaginação; a imaginação governa nossas vidas. A mente humana não é


um foro de debates, como querem os filósofos, mas sim uma galeria de
arte. [...] Elimine as metáforas [ou seja, a linguagem figurada] da Bíblia e
seu espírito vivo se dissipará. [...] Os profetas, os poetas, os líderes são
todos mestres da metáfora, e com ela cativam a alma humana (Apud ZUCK,
1994, p. 167).

Eugene Peterson, especialista em línguas bíblicas e teologia pastoral e


espiritual, autor da tradução da Bíblia “A Mensagem”, escreveu o seguinte sobre o
uso da metáfora na Bíblia e o seu efeito sobre nós:

A metáfora é uma palavra que nos carrega para transpormos o abismo que
separa o invisível do visível. A contradição presente entre o que a palavra
denota e o que ela conota cria uma tensão em nossa mente, e somos
estimulados a um ato de imaginação no qual nos tornamos participantes do
que está sendo dito. A metáfora é a nossa testemunha lexical da
transcendência – do que é mais, do que está além, do interior – de tudo o
que não pode ser explicado por nossos microscópios e telescópios, por
nossa álgebra e geometria, por pesos e medidas… uma testemunha de
todas as operações da Trindade. [...] Os escritores das Escrituras são todos
mestres da metáfora, usando a linguagem como testemunha da inter-
relação de todas as coisas visíveis e invisíveis (PETERSON, 2009, p. 37).

O livro de Eugene Peterson de onde extraímos essa explicação é todo


dedicado ao estudo de uma metáfora cuja presença é abundante na Bíblia, que é a
metáfora do caminho. Qual é o sentido denotativo de caminho? Os dicionários
definem “caminho” como uma faixa de terreno por onde pessoas ou veículos
circulam de um lugar para outro. É também um espaço que se percorre andando.
Por fim, caminho é um trajeto, percurso, itinerário. Esse é o sentido direto, literal,
comum. Mas o mesmo dicionário mostra que há um sentido figurado, isto é,
conotativo. Nesse caso, caminho pode ser destino, rumo, a fórmula para se
conseguir alguma coisa.
Assim, o caminho é uma rua, uma trilha, uma estrada que leva do ponto A ao
ponto B. Mas Jesus afirmou ser “o caminho” (Jo 14.6). É obvio que Jesus não queria
dizer que ele era literalmente uma estrada. Jesus não é pavimentado, asfaltado,
nem tem guia, canteiro ou placas de sinalização. Seria absurdo pensar no
significado de caminho dessa maneira quando lemos essa afirmação de Jesus. Ao
mesmo tempo, lemos e ouvimos a palavra “caminho” e, por causa do seu sentido

Página 78

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

contextual, 30 ela se revela como uma metáfora. Assim, logo identificamos que o
sentido literal da palavra é inadequado para o entendimento do que se quer
comunicar. Lemos Jesus afirmar ser o caminho e logo a imaginação é ativada.
Somos transportados para dentro do texto, para a companhia do escritor. Ou seja,
aqui o dicionário que define o significado original da palavra já não pode nos ajudar.
Precisaremos recorrer à imaginação para entender o significado. Mais uma vez,
Eugene Peterson nos ajuda a entender o efeito da metáfora:

A metáfora [...] faz de mim um participante no ato de criar o significado e


entrar na ação da palavra. Não consigo mais entender a palavra
consultando-a no dicionário, pois ela já não é ela mesma. Está viva e em
movimento, convidando-me a participar do significado. Quando os escritores
das Escrituras usam a metáforas, nós nos envolvemos com Deus, quer
queiramos, quer não, às vezes quer saibamos, quer não (PETERSON,
2009, p. 38).

Mas o estudante atento, desde já, pode questionar: recorrer à imaginação


para entender o significado de uma palavra ou frase não é subjetivo? Afinal, a
imaginação pode criar sentidos que não estavam presentes no texto original. Esse é
um válido e importante questionamento, pois embora as figuras de linguagem
estimulem a nossa imaginação, como bem argumentou Peterson, ela não é o único
recurso que temos para entender uma metáfora. Isso porque as figuras de
linguagem são criadas e usadas a partir do mundo do autor do texto, com objetivos
que levaram o escritor a escolher e aplicar: causar impacto, enfatizar, explicar, ou
simplesmente embelezar. Por esse motivo, as figuras de linguagem nos obrigam a
analisar o contexto histórico, mais especificamente, elas nos impõem a necessidade
de conhecer o ambiente histórico-cultural que originou as palavras e frases do texto.
É por essa razão que trazemos o estudo das figuras de linguagem juntamente com o
estudo do pano de fundo histórico-cultural da Bíblia. Voltaremos a esse assunto.
Roy Zuck propõe seis razões para o uso das figuras de linguagem (ZUCK,
1994, p. 169,170). Vejamos abaixo os seus argumentos, com alguns acréscimos e
modificações.
 As figuras de linguagem acrescentam cor e vida: “O Senhor é a minha
rocha” (Sl 18.2), ou “O Senhor é o nosso escudo” (Sl 33.20), são formas

30
Que vimos na Unidade 3.
Página 79

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

coloridas e vivas de se dizer que podemos depender e confiar no Senhor,


pois ele é forte, inabalável e nos protege. São palavras que transmitem a
mesma mensagem com um auxílio visual, imaginativo e belo.
 As figuras de linguagem chamam a atenção. Elas possuem o poder de
despertar a atenção de leitores e ouvintes quando colocam diante deles as
suas singularidades. Quando Paulo pediu para que os filipenses
tomassem cuidado com os “cães” (Fp 3.2), certamente a atenção
daqueles leitores foi mais exigida do que se ele apenas dissesse “cuidado
com os judaizantes”. Símiles, metáforas e hipérboles sobressaem nesse
aspecto.
 As figuras de linguagem tornam os conceitos intelectuais ou abstratos
mais concretos. É por isso que Jesus explicou diversos aspectos do Reino
de Deus pelo uso de parábolas, metáforas e analogias. Da mesma forma,
a frase “por baixo de ti estende os braços eternos”, de Dt 33.27, transmite
uma ideia mais concreta do que “O Senhor cuida e sustenta”.
 As figuras de linguagem ficam mais bem registradas na memória. Figuras
de linguagem conseguem imprimir ideias em tinta indelével. É o caso das
palavras de Jesus: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas!
Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão
cheios de ossos e de todo tipo de imundície. Assim são vocês: por fora
parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e
maldade (Mt 23.27,28 – NVI). A segunda parte esclarece o que ele queria
dizer: parecem justos por fora, mas por dentro são cheios de hipocrisia e
maldade. Todavia, o uso da linguagem figurada na primeira parte deu um
peso muito maior para a sua crítica: sepulcros caiados, ossos e todo tipo
de imundície – palavras fortes e pesadas, marcantes.
 As figuras de linguagem sintetizam uma ideia. Porque ativam a
imaginação, colocando a palavra em movimento, elas são capazes de
sintetizar uma grande quantidade de informações em uma única palavra
ou frase. Por exemplo, “O Senhor é o meu pastor”, do Salmo 23.1, é uma
simples frase que carrega inúmeras ideias sobre o relacionamento de um
pastor com suas ovelhas.

Página 80

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

 As figuras de linguagem estimulam a reflexão. Diante de algumas figuras


de linguagem, é impossível não pararmos para refletir sobre o que lemos
ou ouvimos. Por exemplo, Provérbios 4.18,19: A vereda do justo é como a
luz da alvorada, que brilha cada vez mais até a plena claridade do dia.
Mas o caminho dos ímpios é como densas trevas; nem sequer sabem em
que tropeçam (NVI). Como não visualizar um nascer do sol e ponderar
sobre o que essa imagem comunica sobre a vereda do justo? Como não
se imaginar tentando andar em meio a densas trevas e refletir sobre o
caminho dos ímpios?
1.2. A classificação das figuras de linguagem

As figuras de linguagem podem ser classificadas em seis categorias básicas:


comparação, acréscimo, incompletude, contraste, figuras pessoais e relação ou
associação31. Vamos observar algumas delas:
As figuras de linguagem de comparação são comparações diretas entre
elementos, com uma pequena diferença.
 Símile: estabelece a relação com o uso de um conectivo – por exemplo,
como: “O Reino de Deus é como um grão de mostarda”.
 Metáfora: faz uma comparação subentendida em que é esperado que o
ouvinte ou leitor entenda que se trata de uma comparação sem que seja
necessário usar o conectivo: “Vocês são o sal da terra”; “Eu sou o pão da
vida”. Com isso, percebe-se o quanto as metáforas e símiles são muito
usadas na Bíblia, de modo que muito de sua mensagem essencial, como o
Sermão do Monte, foi comunicada com esse recurso da linguagem.
Importante: O estudante não pode passar rapidamente por essas imagens
sem se perguntar o que elas representavam no seu contexto original. Para nós,
leitores da Bíblia que vivem a uma distância abismal do mundo do texto, palavras de

31
Conforme OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 153-161. A categorização das figuras de linguagem varia
entre os autores e manuais. Por exemplo, Martinez categoriza em: figuras de comparação (metáfora
e símile); figuras de dicção (pleonasmo e hipérbole); figuras de relação (sinédoque e metonímia);
figuras de contraste (ironia, paradoxo, lítotes e eufemismo ); e figuras de natureza pessoal
(personificação e apóstrofe). MARTINEZ, José M. Hermeneutica bíblica: como interpretar las
Sagradas Escrituras. Barcelona: Editorial Clie, 1984.

Página 81

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

comparação podem ter pouco impacto, ou geram imagens muito diferentes daquelas
geradas nos primeiros ouvintes, até que sejam entendidas a partir do seu contexto
original. Osborne alerta:

O intérprete não deve passar por cima dessas imagens cheias de vida, pois
estão fundamentadas nos próprios padrões de vida dos tempos antigos e
tinham uma força enorme naquele contexto. O contraste entre o anseio
ardente de Jesus e a obstinação dos judeus não poderia ser mais bem
retratado do que pelo símile de Mateus 23.37 (OSBORNE, 2009, p. 154).

No grupo das figuras de linguagem de acréscimo, temos:


 Pleonasmo: uso de uma redundância pelo emprego de sinônimos para
enfatizar uma ideia: “Ele respondeu e disse”, João 9.36;
 Paronomásia: uso de palavras com sonoridade semelhante para produzir
sentidos diferentes. É também chamado de trocadilho ou jogo de palavras;
 Epizeuxe ou epanadiplose: quando uma palavra essencial é repetida para dar
ênfase: “Santo, santo, santo”; “Em verdade, em verdade” – um recurso muito
utilizado no evangelho de João;
 Hipérbole: o uso do exagero como um meio para comunicar enfaticamente
uma ideia: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que
um rico entrar no Reino de Deus” – o contraste entre o maior e o menor:
camelo/fundo de uma agulha para enfatizar a dificuldade de uma pessoa rica
se converter;
 Hendíadis: a substituição de um conceito por duas ou mais palavras ligadas
entre si: “ministério e apostolado”, isto é, ministério apostólico; “fogo e
enxofre”. Em alguns casos é difícil decidir se são dois conceitos ou um só, ou
seja, um caso de hendíadis. Por exemplo: “cheio de graça e de verdade”, que
tanto pode ser uma ocorrência de hendíadis como podem ser dois conceitos
importantes do hebraico do Antigo Testamento – hesed (amor de aliança) e
’emet (fidelidade de aliança). Em casos assim, são os contextos histórico e
literário que deverão auxiliar na decisão.
Em contraste com as figuras de linguagem de acréscimo, as incompletas,
como a nomenclatura já diz, suprimem.
 Elipse: quando uma palavra ou palavras são omitidas e obrigam o leitor a
completar o pensamento: “... e apareceu a Pedro e depois aos doze” (1Co
Página 82

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

15.5) – quem são os doze? O complemento “apóstolos” deve ser introduzido


pelo leitor.
 Zeugma: quando dois substantivos, sem relação direta um com o outro, são
associados a um mesmo verbo. Literalmente Lucas 1.64 diz “sua boca se
abriu e sua língua falava louvando a Deus”. A ARA acrescenta “desimpedida”
antes de “língua” para soar melhor aos leitores em português.
 Aposiopese: quando parte da oração é suprimida para produzir ênfase ou
efeito retórico: “Se vier a dar fruto, bem está; se não, mandarás cortá-la” – o
que acontecerá se a figueira der fruto? Ela poderá se desenvolver e não será
cortada.
As figuras de linguagem de contraste ou atenuação são:
 Ironia: Muito usada na Bíblia, a ironia enuncia algo que significa exatamente o
oposto do que se pretende dizer. É um dos mais importantes recursos
retóricos. Pode ser usada em contextos de polêmica, capaz de ridicularizar
em forma de elogio. Geralmente a ironia apresenta um tom de sarcasmo, por
isso, costumam ser usados sem distinção. Um bom exemplo é a maneira com
que Paulo se referiu aos que buscava criticar em 2Co 11.5: “Todavia, não me
julgo nem um pouco inferior a esses ‘super-apóstolos’”. Outro exemplo é a
fala de Mical a respeito de Davi, seu marido: “Voltando Davi para casa para
abençoar sua família, Mical, filha de Saul, saiu ao seu encontro e lhe disse:
‘Como o rei de Israel se destacou hoje, tirando o manto na frente das
escravas de seus servos, como um homem vulgar!’” O início da frase parece
que Mical está elogiando a ação de Davi, porém, conclui com a sua
verdadeira intenção de reprová-lo.
 Lítotes: faz uma afirmação negando o seu oposto: “Eu sou judeu, natural de
Tarso, cidade não insignificante da Cilícia” (Atos 21.39 – ARA). Traduções
mais recentes, como a NVI e a NVT eliminaram a figura de linguagem:
“cidade importante da Cilícia.”
 Eufemismo: substitui uma palavra ou expressão que pode ser ofensiva,
geralmente associada a tabus ou sexo, por uma mais suave ou refinada.
Eufemismos são muito usados para falar da relação sexual, como “conhecer”,
“conheceu” e “descobrir a nudez”.

Página 83

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

 Antítese: é o contraste entre dois elementos em forma de oposição:


luz/trevas, noite/dia, carne/espírito, morte/vida etc. Os textos de Paulo e João
são repletos de antíteses.
A metonímia e a sinédoque são figuras de associação ou relação.
 Sinédoque: substitui a parte pelo todo, ou o todo pela parte: “primeiro do
judeu, depois do grego” (Rm 1.16), sendo que grego quer dizer todos os
gentios. A NVT eliminou a sinédoque: “primeiro os judeus, e também os
gentios”.
 Metonímia: substitui uma palavra por outra: os da circuncisão no lugar de
judeus (Gl 2.7-9); trono no lugar de reinado (1Cr 17.12).
As figuras de linguagem que ressaltam a dimensão pessoal.
 Personificação: quando uma ideia ou alguma coisa é personificada. É o caso
da “sabedoria” no livro de Provérbios: “Grita na rua a Sabedoria, nas praças,
levanta a voz” (Pv 1.20 etc.). Pode ocorrer também como atribuição de
características humanas, como sentimentos e ações: “os montes e os
outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo
baterão palmas” (Is 55.12).
 Apóstrofe: é um tipo de personificação que se dirige a objetos imaginários
como se fossem pessoas: “Por que fugir, ó mar? E você, Jordão, por que
retroceder?”; “Estremeça na presença do Soberano, ó terra, na presença do
Deus de Jacó!” (Sl 114.5,7). A mensagem, na verdade, se dirige ao povo de
Deus, que com esse recurso figurado, ganha poder e ênfase.

1.3. As figuras de linguagem compostas

As figuras de linguagem não consistem somente em palavras e frases.


Existem formas mais extensas, claras em alguns casos, nem tanto em outros, mas
que precisamos estar atentos às suas características. José Martinez as chama de
figuras compostas32, dentre as quais a mais importante é a parábola. Veremos as

32
Conforme MARTINEZ, José M. Hermeneutica bíblica: como interpretar las Sagradas Escrituras.
Barcelona: Editorial Clie, 1984. P. 169-173.
Página 84

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

características das parábolas separadamente, em outra unidade. Neste momento,


mostraremos apenas duas: a alegoria e o enigma.
 Alegoria. Geralmente ocorre em forma narrativa, usando uma sucessão de
metáforas. Sua principal característica é a pluralidade de pontos de aplicação,
diferente da metáfora simples que tem apenas um. A alegoria de João 10.7-
18, por exemplo, traz uma série de metáforas simples como palavras-chave:
pastor, ovelhas, rebanho, ladrões e bandidos, assalariados. Cada uma delas
expressa de modo figurado uma realidade diferente: o pastor é Cristo, as
ovelhas são os discípulos, os ladrões e os assalariados são os líderes
religiosos do povo, os falsos guias33.
 Enigma. É um dito que visa esconder algo propositalmente. Ele é usado para
estimular a reflexão por meio da intriga, levando o leitor/ouvinte a buscar
respostas para descobrir o que ficou encoberto. Por exemplo, o diálogo
enigmático entre Jesus e Nicodemos (Jo 3.1-21); ou quando Jesus disse aos
discípulos: “Tenho algo para comer que vocês não conhecem” (Jo 4.23), que
imediatamente provoca uma conversa entre os discípulos sobre o significado
dessas palavras, porém, a real intenção do narrador é levar os seus
leitores/ouvintes a averiguar o que isso significa. Outro caso é quando Jesus
ordenou que os discípulos vendessem a capa para comprar uma espada (Lc
22.36). Será que a intenção de Jesus era literalmente armar os seus
discípulos para a luta que se aproximava? As palavras do próprio Senhor nos
impedem de resolver o enigma dessa maneira (Mt 26.52; Jo 18.36). Também
não devemos espiritualizar o texto, como se Jesus estivesse se referindo à
espada do Espírito da analogia de Paulo (Ef 6.17). Se observarmos bem o
contexto, parece que o mais apropriado é reconhecer o caráter heroico que é
exigido dos discípulos de Jesus frente às oposições deste mundo, em que a
espada era um símbolo da bravura e da luta que os aguardava.

33
Note que alegoria é um recurso da linguagem muito bem empregado pelos autores bíblicos. Não
devemos confundir esse recurso com a alegorização, que é um método de interpretação em que o
intérprete dá ao texto um significado diferente do pensamento e do propósito original. Existem muitas
alegorias na Bíblia, mas isso não significa que temos a liberdade de arbitrariamente alegorizar textos
que originalmente não eram alegorias, isto é, eram textos que exigiam uma interpretação literal.
Página 85

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

1.4. As figuras de linguagem nos convidam ao bom uso da linguagem

Finalmente, o entendimento e a boa interpretação das figuras de linguagem


presentes na Bíblia devem nos conduzir também ao bom uso delas. Ou seja, já que
a Bíblia é o texto fundante da nossa fé e visão de mundo, devemos aprender com
ela a arte e a técnica da boa comunicação. Por essa razão, com o estudo apropriado
da forma e do uso das figuras de linguagem, a pregação e o ensino da Bíblia serão
enriquecidos em seu poder de comunicação. Grant Osborne nos incentiva nessa
direção:
As figuras de linguagem são principalmente ricas fontes de imagens. [...]
Gostaria de observar também o valor que elas têm para o sermão. Para
mim, as melhores ilustrações não surgem apenas de belas histórias ou de
uma conversa informal, mas do próprio texto e especificamente dos
antecedentes da linguagem figurada. A visão de Ricoeur a respeito do valor
das metáforas em todo o mundo serve para nos ajudar a lembrar que nossa
tarefa é imergir a audiência não simplesmente em histórias interessantes,
mas na própria Palavra. Devemos ajudar nossa igreja a viver de uma nova
forma a mensagem do Deus que se revelou no texto, e a sentir o poder que
ela tem para transformar sua situação. As incríveis reverberações de
significado inerente às figuras de linguagem na Bíblia é o melhor lugar para
começar, pois elas estão vivas e traduzem ideias poderosas e vívidas. Ao
recapitular a vitalidade e a apresentação veemente da linguagem,
auxiliaremos nossos ouvintes a se colocarem no lugar dos receptores
originais da mensagem eterna, fazendo com que a revitalizem e apliquem.
Cada figura de linguagem é uma ilustração que precisa ser descortinada.
Basta-nos contextualizar a metáfora para o nosso tempo, e teremos uma
ilustração memorável (OSBORNE, 2009, p. 161,162).

2. O contexto histórico-cultural

Na Unidade 3, em que estudamos os contextos histórico e literário,


aprendemos que o texto bíblico é histórico, o que, entre outras coisas, significa que
foi produzido em ambientes culturais que imprimiram nele as suas marcas.
Relembremos aqui alguns dessas marcas a serem consideradas na interpretação
(KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR., 2017, p. 401,402):

No lado cultural, o estudante deve identificar e buscar entender as


características refletidas no texto. Em quais características que o estudante
deve prestar atenção? Observe o leque seguinte de categorias. Quais delas
aparecem na sua passagem? O que mais se pode aprender sobre elas que
trarão luz ao seu entendimento da passagem?

Página 86

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

 Visão de mundo: valores, mentalidade ou ponto de vista do


autor/editor, dos destinatários e de outras pessoas mencionadas no
texto, ou da sociedade como um todo.
 Estruturas societais: padrões de casamento e da família, os papeis
do homem ou da mulher, questões raciais.
 Características físicas: clima, estruturas, ferramentas ou facilidade e
meios de transporte.
 Estruturas econômicas: meios de ganhar a vida, questões de saúde
e da pobreza, da escravidão ou da mobilidade social.
 Clima político: estruturas, ou alianças, incluindo hierarquias reais.
 Padrões de comportamento, vestimentas e costumes.
 Práticas religiosas, centros de poder, convicções, rituais e
afiliações.

A afirmação de que a Bíblia é fruto de inspiração divina e, ao mesmo tempo,


um texto histórico significa que Deus se revelou ao falar e agir de modo concreto,
real, na história passada do povo bíblico no Antigo e no Novo Testamentos. Deus
não se revelou transportando-nos à sua realidade, mas se manifestou na realidade
da sua Criação, desde os aspectos mais complexos do cosmos até à vida cotidiana
dos seres humanos. A vida dos personagens bíblicos, os eventos nacionais de
Israel, a vinda do seu filho ao mundo, a Igreja que vive pelo poder do Espírito que
nela habita, são todos eventos históricos. Por essa razão, a compreensão da
mensagem bíblica passa pela compreensão do pano de fundo histórico-cultural dos
textos. Como vimos também na Unidade 3: a interpretação correta de uma
passagem bíblica será consistente com o cenário histórico-cultural da
passagem.

2.1. História e cultura

História e cultura, portanto, são os dois elementos em que estão envolvidos


os textos bíblicos. Seguindo a explicação de Osborne (2009, p. 198), ao falarmos de
história, estamos abordando tudo o que for relativo ao ambiente no qual os autores
bíblicos produziram as suas obras: os tempos e os eventos em que a revelação de
Deus se expressou. Quando falamos em cultura, olhamos para as instituições, os
modos, os costumes e os princípios que caracterizam cada um desses tempos em
particular – a cultura forma o ambiente cotidiano das personagens da Bíblia.
Por exemplo, o livro de Rute situa-se na história. Logo no início da narrativa
ficamos sabendo que aqueles eventos se passaram na época dos juízes (aspecto

Página 87

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

temporal), em um período em que houve fome na região e uma família de Belém de


Judá (aspecto histórico) se muda para as terras de Moabe (aspecto geográfico) –
Rute 1.1,2. Ao final do livro, lemos que a narrativa é concluída com o nascimento de
Obede, um antepassado do rei Davi (4.17-22). Portanto, o livro não pode ter sido
escrito antes do período da monarquia, mais especificamente, do tempo do rei Davi.
Esse dado deve levar o intérprete a considerar essas duas eras da história do povo
bíblico.
Os tempos dos juízes e da monarquia são marcados por uma transição na
estrutura organizacional do povo, narrada no primeiro livro de Samuel. Sob a
liderança de Samuel, o povo conhecerá Saul como o seu primeiro rei, mas que
exerceria um tipo de liderança semelhante às dos juízes, para depois ganhar os
contornos de uma monarquia de fato, sob a liderança de Davi. Samuel é o
personagem em que essa transição acontece. São tempos, portanto, de grandes
transformações sociais, políticas e religiosas para o povo. Visto que se trata de uma
grande mudança que atinge os aspectos culturais da vida diária do povo, somado ao
fato de que entre os eventos narrados em Rute e o tempo da monarquia com Davi
temos um espaço temporal considerável, o narrador se vê na obrigação de explicar
costumes daquela época dos juízes, caso contrário, os destinatários da sua narrativa
não seriam capazes de entender. É o caso de Rute 4.7: Naqueles dias, havia o
seguinte costume em Israel: quando alguém queria transferir o direito de resgate e
troca, tirava a sandália e a entregava à outra pessoa para validar publicamente a
transação. É um aspecto cultural obviamente desconhecido dos seus destinatários,
por isso, foi preciso ser explicado para que a ação do personagem fosse
compreendida pelos destinatários da narrativa. Assim como aspectos culturais
precisaram ser elucidados pelos próprios narradores visando o público-alvo dos
seus textos, diversos outros precisam ser elucidados para hoje, visando o correto
entendimento da mensagem do texto.
O mesmo acontece em alguns casos nos evangelhos, em que palavras
aramaicas são explicadas (Jo 20.16); são oferecidas notas sobre geografia, como
distâncias (Lc 24.13; Jo 11.18); e aos leitores são dadas pistas para datação dos
eventos narrados (Lc 1.5; 2.1; 3.1-3). Por que esses detalhes são importantes na
Bíblia? Parece que os próprios autores bíblicos prezaram por fornecer dados de
referência para que suas narrativas fossem corretamente situadas na história,
Página 88

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

dando-nos as pistas para o entendimento da cultura que deixou suas marcas no


texto. Osborne explica bem as duas intencionalidades da literatura bíblica:

A literatura bíblica tem duas dimensões: uma intencionalidade histórica, em


que o autor supõe certa informação compartilhada com seus leitores
originais, e uma intencionalidade literária, em que ele codifica uma
mensagem no seu texto. Os autores ou discursam (literatura profética e
epistolar com um caráter histórico presente) ou descrevem (narrativa
histórica com caráter histórico passado) situações de pano de fundo. Em
ambos os casos existem “suposições compartilhadas” entre o autor e seus
leitores originais, informações não encontradas no texto, i.e., dados que
eles sabiam, mas nós não. Embora a pesquisa semântica e a análise
sintática possam desvendar a dimensão literária, um estudo de pano de
fundo histórico é necessário para revelar um nível mais profundo de
significado subjacente ao texto bem como ao próprio texto (OSBORNE,
2009, p. 199).

2.2. O que envolve o pano de fundo histórico-cultural

Antes de prosseguir, precisamos lidar com uma questão. Já vimos que a boa
interpretação bíblica não acontecerá exclusivamente por meio do conhecimento do
grego e do hebraico, embora sejam ferramentas importantes e que precisam estar
no horizonte de estudos daqueles que se colocam na posição de ensinar as
Escrituras a outros. De igual modo, a boa interpretação bíblica não é uma
possibilidade apenas para os eruditos em história, geografia e arqueologia bíblicas.
Vale introduzirmos neste ponto uma valiosa doutrina vinda da ortodoxia protestante
dos séculos XVI e XVII, que toca precisamente a tarefa da hermenêutica: a
perspicuidade das Escrituras. Essa doutrina afirma que a Bíblia é capaz de
autocomunicação, não necessitando de autoridades especiais que exerçam função
intermediadora entre a Bíblia e as pessoas comuns. A sua mensagem de salvação
em Cristo é clara e é direta quanto ao que quer comunicar sobre o que devemos crer
e fazer. A premissa da perspicuidade não ignora as dificuldades da interpretação
bíblica, tampouco os riscos da má interpretação. Porém, “as coisas que precisam ser
conhecidas, cridas e observadas para a salvação estão claramente expostas e
explicadas...” (Confissão de fé de Westminster, I, 4).

Página 89

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

No entanto, Eugene Peterson faz um importante alerta, para que a doutrina


da perspicuidade das Escrituras não se torne uma desculpa para não investirmos
tempo em estudo sério e disciplinado da Bíblia, chamando a atenção ao caráter
histórico, literário e cultural da Bíblia:

Isso [a doutrina da perspicuidade], porém, não significa que não é preciso


muito cuidado. Cada livro da Bíblia tem sua forma própria, e em geral, um
leitor cuidadoso começa a aprender como ler cada um deles escavando
lentamente e com cuidado ao seu redor por um longo tempo, até que
encontra a chave. Um leitor atento (um exegeta) avançará com cautela,
permitindo que o livro mesmo o ensine como deve ser lido. Logo se torna
óbvio que nossa Escritura Sagrada não foi composta em prosa anacrônica e
sem vida, numa linguagem angelical e hiper espiritual com a exclusão de
todas as peculiaridades e idiossincrasias da história local e dos dialetos de
camponeses. Há verbos que precisam ser precisamente conjugados,
cidades e vales que precisam ser localizados num mapa e costumes há
muito esquecidos que precisam ser restaurados (PETERSON, 2004, p. 56).

Já que estamos diante de um texto histórico, escrito em línguas humanas,


cheio da vida do povo que os produziu, precisamos nos dedicar à tarefa de
pesquisar para conhecer seus verbos e substantivos, bem como, suas cidades e
costumes.

2.2.1. Áreas de estudo de pano de fundo histórico-cultural e o material


para pesquisa

O que exatamente está envolvido quando falamos de pano de fundo histórico-


cultural? A resposta é simples, pois remete os estudantes a áreas do conhecimento
humano. São elas: arqueologia, geografia, política, economia, práticas culturais e
religião.
 Arqueologia. É uma ferramenta que possibilitou ser trazidos à luz aspectos
da sociedade e da vida comum dos povos da antiguidade, aos quais não
teríamos acesso de outra forma. Diversas afirmações bíblicas foram
comprovadas arqueologicamente, embora existam ressalvas quanto ao uso
apologético da arqueologia, isto é, usar a arqueologia para provar a

Página 90

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

autenticidade dos textos bíblicos34. Sua principal contribuição está em revelar


aspectos sociológicos, iluminando a compreensão contemporânea sobre
economia, relações sociais, estruturas sociais, religião, hábitos, arte etc. Em
geral, as obras de introdução ao Antigo Testamento e ao Novo Testamento
trazem dados provenientes da arqueologia. Embora existam obras inteiras
35
sobre o assunto , as contribuições do campo da arqueologia estão
pulverizadas nas introduções e comentários bíblicos.
 Geografia. Área que revela aspectos como distâncias entre cidades,
topografia, limitações que um povo encontrou por força da natureza, bem
como as dimensões dos textos que tocam aspectos políticos, chamada de
geopolítica. É comum lermos na Bíblia sobre os montes, os rios, os mares, o
clima, rotas etc. Tudo isso pode ser conhecido por meio dos estudos
geográficos da Bíblia. Uma antiga mas ainda valiosa obra é a de TOGNINI,
Enéas. Geografia da Terra Santa e das terras bíblicas. São Paulo: Hagnos,
200936.
 Política. Não é exagero algum afirmar que sem o conhecimento da política
envolvida nos textos da Bíblia não seremos capazes de realmente entender a
sua mensagem. O fato é que uma leitura meramente religiosa da Bíblia tende
a esconder a dimensão histórica e, necessariamente, política que envolvem
os textos. Talvez os melhores exemplos dessa importância são os textos dos
profetas do Antigo Testamento e a vida de Jesus. A presença de força militar
e da guerra em toda a Bíblia mostra, também, esse importante aspecto do
poder envolvido na experiência dos povos e dos períodos da Bíblia. Existem
muitas obras dedicadas a esse tema. Apenas como exemplo, três autores
com obras traduzidas para o português que têm se dedicado ao tema:

34
Veja uma boa discussão sobre esse assunto em OSBORNE, 2009, p. 199-202. Também o artigo de
Fábio Augusto Darius e Elder Hosokawa. Breve história da arqueologia bíblica: contribuição e crítica
estadunidense. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/Caminhando/article/download/8438/6078 Acesso em 3 de fev. de 2021.
35
Por exemplo: PRICE, Randall; HOUSE, Wayne. Manual de arqueologia bíblica Thomas Nelson. Rio
de Janeiro: Thomas Nelson, 2020; RICHELLE, Matthieu. A Bíblia e a arqueologia. São Paulo: Vida
Nova, 2017; KAEFER, José Ademar. Arqueologia das terras da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2012.
(Volume I); KAEFER, José Ademar. Arqueologia das terras da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2016.
(Volume II).
36
Já recomendamos as seguintes obras na Unidade 3: LAWRENCE, Paul. Atlas histórico e
geográfico da Bíblia. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008; REINKE, André Daniel. Atlas
Bíblico Ilustrado. 2 ed. São Paulo: Hagnos, 2018.
Página 91

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

Richard Horsley, Walter Brueggeman e N.T. Wright. O aspecto político dos


textos bíblicos também constituiu um tema de grande importância para a
teologia latino-americana, especialmente a teologia da libertação.
 Economia. A realidade socioeconômica é um fator determinante de toda
cultura. Os estudos sobre economia dos povos e dos períodos que compõem
a história bíblica é complexo, embora necessário. Nossos olhos precisam
perceber a dimensão econômica e as suas implicações sociais, por exemplo,
nos períodos de transição, como do nomadismo à economia agrária; a
economia mercantil de Israel no tempo de Salomão e a situação sob
dominação estrangeira, como no tempo do Novo Testamento – note como
impostos e dinheiro são temas de muitas conversas de Jesus. Livros sobre
história de Israel e história do tempo do Novo Testamento abordam o tema.
Citamos várias obras de referência na Unidade 3.
 Práticas culturais. O conhecimento dos costumes de um povo, como já
vimos, possibilita revelar alguns aspectos escondidos de nós, que não somos
os leitores originais dos textos. O que estava claro para os primeiros ouvintes
e leitores, especialmente no que diz respeito a práticas culturais, não está
evidente para nós, que somos de culturas muito diferentes daquelas. Aqui
estão envolvidos costumes familiares (casamento, criação de filhos), materiais
(moradia, vestimentas), costumes cotidianos (alimentação, higiene), esportes
e atividades de recreação (jogos, eventos esportivos – veja 1Co 9.24-27),
música e arte (instrumentos, ofício de artesãos)37.
 Religião. A religião faz parte do ambiente cultural das sociedades,
determinando costumes cotidianos. No Antigo Testamento nos deparamos
com mudanças significativas nos aspectos religiosos de época em época do
povo bíblico de Israel. Esse é um importante conhecimento para que nossa

37
Encontramos literatura sobre os temas em geral, ou de maneira mais específica. Um olhar geral
para o pano de fundo histórico-cultural da Bíblia: WALTON, John; MATTHEWS, Victor;
CHAVALAS, Mark. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2013; KENNER, Craig. S. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Novo Testamento: São Paulo: Vida
Nova, 2017. Um olhar específico, por exemplo, sobre o mundo de Jesus: DANIEL-ROPS, Henri.
A vida diária nos tempos de Jesus. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 1986. Sobre o tempo de Paulo:
Meeks, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo:
Paulus; Santo André: Academia Cristã, 2011. Sobre as instituições do Antigo Testamento: VAUX,
Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004; WOLFF, Hans
Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007.
Página 92

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

leitura da Bíblia não parta do pressuposto de que a religião praticada pelo


povo de Deus foi sempre a mesma. Os patriarcas lidaram com sua fé e se
relacionaram com Deus de maneiras bem distintas do povo sob o reinado de
Davi, por exemplo. De igual modo, o povo que conheceu o Deus que os
libertou do Egito desenvolveu práticas religiosas diferentes do que viria a ser
a religião do Templo a partir de Salomão. As muitas práticas religiosas que
encontramos no Novo Testamento devem igualmente chamar a nossa
atenção quando estivermos buscando compreender aquelas culturas, por
exemplo, a teologia e as práticas de grupos como fariseus, saduceus,
essênios38.

Nessa unidade vimos

Vimos a importância do estudo das figuras de linguagem para a interpretação


do texto bíblico. Observamos que as palavras podem ser usadas não apenas em
sentido denotativo (direto, literal), mas também em sentido conotativo (figurado).
Consideramos algumas razões para o uso de figuras de linguagem – estimulam a
imaginação, chamam a atenção, dão concretude a conceitos abstratos, fixam a
memória, sintetizam a ideia e estimulam a reflexão. Analisamos a classificação das
figuras de linguagem segundo as categorias de comparação, acréscimo, figuras
incompletas, contraste ou atenuação, associação ou relação, dimensão pessoal e
figuras de linguagem compostas.
Ressaltamos que o entendimento das figuras de linguagem na Bíblia requer
não apenas o uso da imaginação, mas também o conhecimento do pano de fundo
histórico-cultural bíblico que originou as figuras, construindo seu significado. Sobre
esse pano de fundo, descrevemos as dimensões da história (tempos e eventos em
que a revelação de Deus se expressou) e da cultura (instituições, modos e costumes

38
Um destaque especial para os dois livros de André Daniel Reinke, cujo projeto, em Os outros da
Bíblia é contar a história e os elementos culturais dos povos que entraram na narrativa bíblica, mas
que pouco sabemos deles a partir do próprio texto, e a forma como estes influenciaram o povo bíblico
de Israel. A segunda obra, Aqueles da Bíblia, é uma história cultural do povo bíblico de Israel,
mostrando as identidades histórico-culturais assumidas pelo povo de Deus no Antigo Testamento até
a Igreja: REINKE, André Daniel. Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua
atuação no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019. REINKE, André Daniel.
Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua atuação no plano divino. Rio de
Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
Página 93

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 5: Gramática: Figuras de Linguagem e Pano de Fundo Histórico-Cultural

que formam o ambiente cotidiano das personagens da Bíblia). Por fim,


apresentamos algumas áreas envolvidas no estudo do pano de fundo histórico-
cultural: arqueologia, geografia, política, economia, práticas culturais e religião.

Saiba mais

Já que a Bíblia contém tantas figuras de linguagem, o estudante precisa


aprofundar os seus conhecimentos nesse assunto. Sugerimos duas obras. A
primeira, sobre figuras linguagem em sentido geral. A segunda, sobre as figuras de
linguagem especificamente da Bíblia:
 GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever
aprendendo a pensar. 26 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. P. 104-122.
 OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à
interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 150-162.

Para reflexão

1. Quais efeitos as figuras de linguagem presentes no texto bíblico produzem no


leitor?
2. Por que a doutrina da perspicuidade das Escrituras (sua capacidade de
autocomunicação) não exclui a importância do estudo do pano de fundo
histórico-cultural da Bíblia?

Página 94

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

Unidade 6: A INTERPRETAÇÃO DAS NARRATIVAS E


PARÁBOLAS

A narrativa é o tipo mais comum de literatura na Bíblia. No Antigo


Testamento, a narrativa predomina desde Gênesis até Ester, mas também marca
presença em alguns dos profetas, como Jeremias e Ezequiel. Jonas, embora entre
os profetas menores, é narrativo. O livro de Jó, que é literatura sapiencial, contém
partes substanciais de narrativa. No Novo Testamento, os quatro evangelhos e Atos
são textos narrativos. Estima-se que mais de 40% do Antigo Testamento e quase
50% do Novo Testamento são composições narrativas. Walter Kaiser não exagera
ao afirmar que “a narrativa é claramente a principal estrutura de sustentação da
Bíblia” (KAISER, 2002, p. 65).
Mas o que é uma narrativa? Na literatura de referência sobre o tema
encontramos diversas definições. Uma simples e direta é a seguinte: “narrativas são
histórias significativas que recontam os eventos históricos do passado com a
intenção de dar sentido e direção a um determinado povo no presente” (FEE;
STUART, 2011, p. 110). Essa definição de Gordon Fee e Douglas Stuart aplica-se
muito bem à função da narrativa na Bíblia, em que contar os eventos passados
nunca é um mero registro, mas um testemunho do agir de Deus e da experiência do
povo, com o propósito de dar sentido ao tempo presente e dar direção para o futuro.
Mas se faz necessária uma definição que também ilumine as características
distintivas desse gênero literário. A seguinte é de Walter Kaiser:

A narrativa em seu sentido mais amplo é um relato de acontecimentos


específicos no tempo e espaço com participantes cujas histórias são
registradas com um começo, meio e fim. Diferentemente da prosa, em que
as coisas são declaradas diretamente, a narrativa apresenta coisas
indiretamente. Seu estilo deriva da seleção do escritor (dentre um vasto
número de detalhes possíveis), disposição (não necessariamente
estritamente sequencial ou cronológica), e recursos retóricos. O último inclui
declarações-chave proferidas pelas figuras centrais da narrativa, permitindo
ao autor desse modo apresentar os pontos que revelam o foco e o propósito
da contar a história (KAISER, 2002, p. 66).

Página 95

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

1. Características gerais das narrativas

Na definição de Kaiser encontramos algumas características da narrativa. Em


primeiro lugar, a narrativa precisa de tempo e espaço. Um poema, por exemplo,
independe de uma situação histórica e temporal. A narrativa, por sua vez, só é
possível por causa da temporalidade:

A característica comum da experiência humana, que é marcada, articulada,


clareada pelo ato de contar sob todas as suas formas, é seu caráter
temporal. Tudo o que contamos acontece no tempo, leva tempo,
desenvolve-se temporalmente; e o que se desenvolve no tempo pode ser
contado. Talvez, até todo processo temporal só seja reconhecido como tal
na medida em que é contável de uma maneira ou de outra (RICOEUR, Paul
apud MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 28).

De igual modo, o que acontece no tempo é marcado no espaço. Mesmo que


seja uma terra imaginária de uma narrativa fantástica, ou no caso de uma narrativa
histórica, as referências temporal e espacial andam juntas: “Era uma vez (tempo),
em uma terra distante (espaço)”; “Quando (tempo) Herodes era rei da Judeia
(espaço)”. Esses são os elementos necessários para que se construam as cenas de
uma narrativa. É na sequência de cenas que acontece a ação, o movimento da
história narrada. As narrativas bíblicas acontecem dentro da dimensão espacial e
temporal. E esse é um dado fundamental para a hermenêutica, mas também para a
teologia cristã: a Bíblia narra o testemunho do povo de Deus sobre a sua revelação
no tempo e no espaço. O Deus da Bíblia se revela dentro do tempo histórico,
envolve-se com as narrativas pessoais e comunitárias do seu povo. Esse é um
aspecto a ser cuidadosamente observado na Bíblia.
Em segundo lugar, a definição de Walter Kaiser aponta para três elementos
da narrativa: a seleção, a disposição e os recursos retóricos (KAISER, 2002, p.
65,66). Vejamos cada um deles.
 Seleção. O evangelista, como os demais, teve que fazer escolhas quanto ao
que iria compor a sua narrativa sobre Jesus e o que ficaria de fora. Ele até
explica essa inevitável, às vezes dolorosa, tarefa do narrador: “Jesus também
fez muitas outras coisas. Se todas fossem registradas, suponho que nem o
mundo inteiro poderia conter todos os livros que seriam escritos” (Jo 21.25 –
NVT). Dentre as muitas coisas que Jesus fez, João escolheu aquelas. O
Página 96

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

trabalho de seleção é duro, mas não consiste somente em o que escolher


contar, mas também em o que não escolher contar.
 Disposição. O material escolhido pelo narrador precisa ser organizado para
formar um enredo. Criar uma narrativa não é apenas dizer o que aconteceu,
como quem faz recortes de eventos históricos e os dispõe aleatoriamente. Ao
contrário, a ofício do narrador é como o da costureira que recorta os tecidos
com precisão e os costura para formar uma roupa sob medida. Suas costuras
devem ser imperceptíveis, ao mesmo tempo, firmes e resistentes. A
organização do material selecionado para compor a narrativa não precisa
seguir uma ordem cronológica. É possível, por exemplo, que para os
propósitos do narrador, uma orientação geográfica atenda melhor. Esse é o
caso do Evangelho Segundo Lucas, cuja ordem é geográfica. O Evangelho
Segundo Marcos também tem um movimento em direção a Jerusalém, em
que o drama, os diálogos, os confrontos e o ensino de Jesus aos discípulos
se intensificam à medida que se aproximam de Jerusalém. O melhor capítulo
para se observar isso é Mc 10. Na execução dessa tarefa do narrador
encontramos os quatro parâmetros da narrativa, ou seja, o que é necessário
para que haja narrativa:
 Uma sucessão temporal de ações/fatos;
 A presença de um agente-herói animado por uma intenção que leva
a narrativa ao seu fim;
 Um enredo que sobrepuje a cadeia de peripécias e as integre na
unidade de uma mesma ação;
 Uma relação de causalidade-consecução estruturante do enredo
mediante um jogo de causas e efeitos39.
 Recursos retóricos. Em que o narrador utiliza palavras-chave e/ou
declarações-chave que serão ditas pelas personagens principais da narrativa.
Tais recursos permitem que o narrador apresente elementos que revelam o
propósito da narrativa. Por exemplo, o Evangelho Segundo João apresenta
Jesus de uma maneira diferente dos demais. Logo no prólogo (Jo 1.1-18),
Jesus é apresentado como a Palavra encarnada. É a partir desse título

39
Conforme MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 29.
Página 97

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

cristológico que o narrador faz as suas afirmações acerca de Jesus. Ou seja,


essa informação está logo nas primeiras frases da narrativa para que os
leitores saibam de antemão que aquele que está em foco é a Palavra divina,
agente da criação, que se fez carne. É ele quem torna Deus conhecido (Jo
1.18). Sua narrativa é repleta de recursos retóricos: luz/trevas, dia/noite,
verdade/engano; os termos: mundo, vida eterna, Verdade, Caminho, a
fórmula “Eu Sou” etc., são elementos de fundamental importância para a
composição narrativa de João. Estes são exemplos do que o intérprete
precisa observar ao trabalhar com uma narrativa.

2. As narrativas na Bíblia

As narrativas bíblicas formam uma grande narrativa. Essa grande narrativa


torna-se o princípio interpretativo das narrativas menores. Esse é um dos casos
mais importantes para a observação do princípio hermenêutico em que as partes
são interpretadas pelo todo e o todo é interpretado pelas partes. Tratando-se
especialmente das narrativas, é imprescindível que o conhecimento das partes
(narrativas menores) e do todo (a grande narrativa) estejam presentes no ato
interpretativo. Como bem explicam Fee e Stuart:

Nada há de errado em estudar qualquer narrativa individual isoladamente.


Realmente, é altamente desejável fazer isso. Mas para achar o sentido mais
pleno, você deve finalmente ver aquela narrativa individual dentro do seu
contexto maior (FEE; STUART, 2002, p. 66).

É para esse contexto maio que primeiro precisamos lançar o nosso olhar.
Para tanto, é necessário entender o Antigo Testamento como narrativa fundamental
da história do desenvolvimento da fé cristã. Ou seja, sem o entendimento da
narrativa do Antigo Testamento não seremos capazes de interpretar corretamente a
narrativa do Novo Testamento. É necessário compreender as promessas e a
vocação de Deus para o povo bíblico de Israel que se cumprem em Jesus e na
formação da Igreja. Se uma leitura bíblica ignora esse fundamento o resultado será
uma separação indevida da narrativa do AT e do NT, como assuntos diferentes,
chegando até mesmo a heresias como afirmação de que o “deus” do AT é punitivo,
Página 98

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

vingador, e o “Deus” do NT é o verdadeiro Deus, misericordioso e perdoador. Essa


ideia é apenas um exemplo dos absurdos que podem ser ditos sobre a Bíblia
quando narrativas menores são elevadas a um patamar acima da grande narrativa,
que nos conta a história de um único Deus que está se envolvendo com a história da
humanidade no mundo que ele criou com o propósito de reconciliar consigo o ser
humano que se rebelou contra ele.
Existe uma diferença entre as narrativas bíblicas e as demais: elas foram
inspiradas pelo Espírito Santo e como história de Deus ela torna-se a nossa história,
pois ele nos escreve e nos inscreve nela. Para conhecer essa história é preciso
conhecer as narrativas: o que são elas e como se desenvolvem. A Bíblia, portanto, é
uma grande narrativa, cujo enredo é composto, em poucas palavras, por: criação;
rebelião ou queda; desenvolvimento da história da salvação – revelação de Deus na
história por meio das diversas etapas da história bíblica de Israel: patriarcas, êxodo
e formação do povo, divisão das tribos na terra prometida, os juízes, a monarquia, a
divisão do reino, os exílios e o retorno de Judá –; a história da redenção: Jesus
Cristo; e a formação da Igreja – o povo escatológico de Deus que está em missão no
mundo, no poder do Espírito, cuja esperança é o retorno de Cristo e a consumação
da história.
Com isso em mente, podemos observar os três níveis da narrativa na
Bíblia, conforme explicaram Gordon Fee e Douglas Stuart (2002, p. 64-66):
 O nível superior. Diz respeito ao plano universal de Deus para sua criação.
Essa é uma visão teológica da narrativa bíblica, que possibilita olhar para a
Escritura como um todo, sendo que a linha que unifica as diversas partes é a
salvação realizada em Cristo. O nível superior é a afirmação da Bíblia como
uma metanarrativa, que pode ser chamada de “história da redenção” ou
“história redentora”, como resumida acima, mas que deve ser mais bem
estudada e compreendida a partir de algumas obras que se dedicaram ao
assunto. Por exemplo:
BARTHOLOMEW, Craig G.; GOHEEN, Michael W. O drama das Escrituras:
encontrando o nosso lugar na história bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2019.
MUELLER, Enio R. Caminhos de Reconciliação: a mensagem da Bíblia.
Joinville: Grafar, 2010.

Página 99

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

CHO, Bernardo. O enredo da salvação: presença divina, vocação humana e


redenção cósmica. São Paulo: Mundo Cristão, 2021.
 O nível intermediário. Consiste na história do povo bíblico de Israel e o povo
que constitui a Igreja, isto é, o povo redimido por Deus para viver em relação
com ele e, assim, estar em missão no mundo. Duas alianças são firmadas
com esse povo, a antiga e a nova aliança. A primeira é a história do povo
bíblico de Israel que foi iniciado em Abraão se estabelecendo através dos
patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó). Depois da escravidão no Egito, foi
libertado por Deus, que fez sua aliança com eles no monte Sinai precedendo
a conquista da terra prometida de Canaã. Suas promessas e alianças se
complementam ao longo da história, apesar da infidelidade do povo, que
quebrou sua parte na aliança inúmeras vezes. Deus, porém, permanece fiel e
cumpre a sua promessa, fazendo uma nova aliança por meio do sacrifício do
próprio filho, Jesus, o Cristo. As narrativas do nível intermediário estão
dispostas ao longo dos textos do AT e do NT, e precisam ser interpretadas: 1)
à luz dos seus contextos históricos e literários; 2) à luz do nível superior. As
seguintes obras nos ajudam a entender melhor a história bíblica de Israel, das
promessas e das alianças:
KAISER JR. Walter C. O plano da promessa de Deus. São Paulo: Vida Nova,
2011.
REINKE, André Daniel. Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico
de Israel e sua atuação no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson
Brasil, 2021.
 Nível inferior. O nível inferior é onde se encontram todas as micronarrativas
que se ligam umas às outras na composição dos níveis anteriores. São
exemplos de narrativas do nível inferior: o livro de Rute, o livro de Ester, a
narrativa do chamado de Abraão, a narrativa sobre Davi e Absalão, o livro de
Jonas, a narrativa de Ana pedindo um filho ao Senhor etc. Um encontro, um
milagre, uma conversa – Jesus e Nicodemos; Jesus e a mulher samaritana –
ou a história de alguém; enfim, são centenas de narrativas que constituem
esse primeiro nível.
Essa divisão constitui um fundamento hermenêutico importantíssimo. Levar
isso em conta é transformar em princípio de leitura aquilo que Jesus disse em João
Página 100

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

5.39, “as Escrituras [...] dão testemunho [dele]”. É o que nos torna capazes de,
assim como Jesus fez, olharmos a Bíblia como um todo: “Então Jesus os conduziu
por todos os escritos de Moisés e dos profetas, explicando o que as Escrituras
diziam a respeito dele” (Lc 24.27 – NVT).

2.1. Características da narrativa bíblica

2.1.1. O narrador

É aquele que seleciona o que narrar, decide como tecer a intriga, isto é, a
disposição das cenas escolhidas e com quais recursos retóricos irá trabalhar. O
narrador é onisciente, envolvendo e dominando toda a narrativa. É importante saber
que seu papel é fazer com que o leitor se sinta incluído na história ao ponto de ver
os fatos como quem está participando deles. Por outro lado, como Marguerat e
Bourquin ensinam (2009, p. 22ss), é parte do processo de leitura dar ao narrador um
voto de confiança, reconhecendo sua onisciência e deixando-se ser por ele guiado
em sua narrativa. Para entrar em contato com a narrativa de modo engajado, isto é,
tomando o posto de mais do que leitor, mas narratário, esse “contrato” é implícito.
Não há como mergulhar na narrativa sem aderir ao sistema de valores do narrador.
Além disso, é ele o responsável pelo ponto de vista a partir do qual será
contada a história, apresentando sempre, no início ou em qualquer outra parte do
enredo, o ponto de vista de Deus. Segundo Darrel Bock (2002, p. 211) ele possui “o
ponto de vista do olhar de um pássaro, que vê os eventos do alto e tem uma
compreensão completa do que acontece”. É importante estar atento ao ponto de
vista, pois ele aponta para o significado da narrativa. Segundo Grant Osborne (2009,
p. 260), especialistas em narrativa hebraica identificaram cinco áreas em que o
ponto de vista opera:
 A dimensão psicológica, através da qual o mundo interior (sentimentos e
pensamentos, por exemplo) das personagens é apresentado;
 O ponto de vista valorativo ou ideológico, através do qual os conceitos de
certo e errado podem vir a se esconder por trás da narrativa;

Página 101

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

 A perspectiva espacial, ao longo da qual o narrador passeará livremente


pelos lugares de sua história: ora o narrador está com os discípulos no barco,
ora está com Jesus vindo sobre as águas, por exemplo.
 A perspectiva temporal, por meio da qual o narrador pode situar os eventos
de dentro da história ou mesmo do futuro;
 O ponto de vista fraseológico, que se refere aos diálogos e falas de uma
narrativa. Onipotente, o narrador proporciona ao leitor a oportunidade de ouvir
conversas que ele não ouviria comumente, como a de Natã e Davi, por
exemplo.
É através desses olhares que o narrador constrói para o leitor o mundo dentro
do qual a sua narrativa acontece – compreendê-los é, portanto, fundamental. Afinal,
narrar consiste em criar para o leitor ou ouvinte um mundo composto por
personagens cujas trajetórias se entrelaçam de variadas formas, num jogo de causa
e efeito, num preciso quadro temporal e espacial, dispostos num enredo, isto é, um
percurso com um claro ponto de partida, que leva um problema a ser solucionado,
encaminhando a um ponto de chegada. Esse esquema é válido tanto para narrativas
históricas quanto para as ficcionais.
Na Bíblia, além disso, é comum que o narrador use a fala de um personagem
para revelar qual é o ponto de vista divino. Sendo assim, é necessário ler as
narrativas buscando encontrar que ponto de vista está direcionando a história, afinal,
ela não deve tornar-se um fim em si mesma, mas servir como meio através do qual
Deus revela sua mensagem para hoje.

2.1.2. Os componentes da narrativa

 Cena. As cenas são momentos que constituem a narrativa. Ela é construída


por meio dessas cenas que se juntam e formam o todo da história,
concedendo movimento à narrativa. Cada uma das cenas envolvidas nessa
sequência tem sua própria individualidade, tanto que é bem comum ouvirmos
a pregações que se fazem a partir de somente uma cena e não da narrativa
inteira junto com todas as outras que a compilam.

Página 102

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

 Personagens. As personagens são os elementos principais da cena na


narrativa bíblica. São sempre caracterizados, não por sua aparência física,
mas por questões como as de posição, profissão ou tribo. Exemplo: Salomão,
o sábio; José, ministro do Egito; Golias, filisteu. É comum nas narrativas as
personagens serem inseridas dentro de uma relação com outras personagens
a fim de serem caracterizadas. Para serem caracterizadas, as personagens
aparecem dentro de relações de contraste, mas também de relações de
paralelo/semelhança. Um exemplo de contraste é o de José e seus irmãos;
um exemplo de paralelo é de João Batista e Elias. O modo predominante de
caracterização ocorre nas palavras e ações das personagens, e não nas
próprias descrições do narrador.
Ainda que os comentários do narrador sejam importantes para o
desenvolvimento da personagem dentro da narrativa, na escrita hebraica esse
desenvolvimento se dá principalmente pelas vias de ação da própria personagem.
Não é o narrador quem diz que José filho de Jacó está se desenvolvendo
moralmente ao longo de sua narrativa, mas o próprio José, através de suas posturas
e diálogos (um dos métodos principais de caracterização) é quem vai demonstrando
tal crescimento. Isso nos faz entender que a caracterização dos personagens é
realizada predominantemente a partir de suas palavras e ações.
 Enredo. Uma narrativa se movimenta através do enredo, ou seja, através de
uma sucessão de cenas/eventos que dentro da dinâmica causa e efeito
constituem o início, o meio e o fim da narrativa, conduzindo o leitor ao clímax
e envolvendo-o na história narrada. Não existe narrativa sem enredo. Por trás
de todo enredo existe uma relação constante entre um conflito ou problema e
uma resolução. É no enredo que os personagens interagem, dialogam, se
opõem, são colocados em comparação por semelhança ou contraste etc.
Uma definição concisa de enredo: o enredo é a “sistematização dos fatos que
constituem a história contada. Esses fatos são ligados um ao outro por um
liame de causalidade (configuração) e inseridos em um processo cronológico
(consecução)” (BOURQUIN; MARGUERAT, 2009, p. 56).
A estrutura do enredo. O tipo de enredo mais comum é o esquema quinário,
que é “um modelo estrutural que decompõe o enredo da narrativa em cinco
momentos sucessivos” (BOURQUIN; MARGUERAT, 2009, p. 59):
Página 103

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

1. Situação inicial. Circunstâncias da ação (moldura, personagens); se for o


caso, é mencionada uma falta (enfermidade, dificuldade, ignorância), e a
narrativa vai mostrar a tentativa de sua eliminação.
2. Nó. Elemento desencadeador da narrativa, que introduz a tensão narrativa
(desequilíbrio no estado inicial ou complicação na busca).
3. Ação transformadora. Resultado da busca, alterando a situação inicial: a
ação transformadora situa-se no nível pragmático (ação) ou cognitivo
(avaliação).
4. Desenlace (ou resolução). Liquidação da tensão pela aplicação da ação
transformadora ao sujeito.
5. Situação final. Enunciado do novo estado adquirido pelo sujeito depois da
transformação. Estruturalmente, esse momento corresponde à alteração da
situação inicial pela eliminação de uma falta.
Um ótimo exercício é a leitura do livro de Rute, que é o melhor texto bíblico
para se perceber o esquema quinário. Faça a leitura e tente localizar cada um dos
cinco momentos que compõe o esquema.

2.1.3. O que as narrativas não são

Uma maneira de entendermos melhor as narrativas é descontruindo algumas


práticas interpretativas comuns, mas equivocadas. Gordon Fee e Douglas Stuart
separam uma parte do capítulo de análise das narrativas para explicar o que as
narrativas não são (2002, p. 66-68):
1. As narrativas do Antigo Testamento não são alegorias ou histórias
cheias de significados ocultos. Alegoria é uma figura de linguagem usada para
expressar um ou mais significados que estão para além do sentido literal da
expressão. As narrativas do AT nem sempre apresentam significados fáceis de
compreender, mas não é por isso que as interpretaremos como alegorias. Dizer que
cada uma das 5 pedras que Davi usou para lutar contra o gigante Golias (1Sm 17)
representa um significado que está para além do sentido literal (pedras são pedras)
é um exemplo desse tipo de interpretação. Já se ouviu dizer que cada uma das
pedras é “um símbolo dos 5 ministérios” que Paulo apresenta em Efésios 4

Página 104

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

(apostólico, profético, evangelístico, pastoral e de ensino-mestre); esse é um


exemplo dessa interpretação. É necessário cuidado com um possível “vício” de
buscar alegorias ao longo de todo o texto bíblico, pois isso pode gerar “um
isolamento individualista de detalhes selecionados que passam a se ajustar aos
caprichos dos propósitos do intérprete” (KAISER, 2002, p. 66).
2. As narrativas individuais do AT não têm a intenção de ensinar lições
de moral. A intenção das narrativas individuais é narrar o que Deus fez na história
de Israel, não oferecer lições de comportamento moral em forma de histórias.
Existem possíveis aprendizados morais nessas histórias? Mas é claro que sim! No
entanto, não é esse o propósito das narrativas e não é procurando por isso que
leremos essas histórias. Fazendo isso corremos o risco de destruir a unidade da
mensagem da Bíblia desvalorizando a história redentora de Cristo presente em cada
narrativa.
3. As narrativas do AT não necessariamente trazem um ensinamento de
forma direta, elas frequentemente ilustram o que é ensinado em outros trechos
de forma explícita e categórica. Como dito acima, ainda que apresentar
diretamente ensinamentos não seja o objetivo das narrativas, é possível que eles
sejam encontrados. São, assim, ensinamentos implícitos nas histórias que lemos. A
narrativa ilustra as consequências negativas da idolatria no povo de Israel, mas
quem ensina isso diretamente é a Lei de Deus em Êxodo, nos dez mandamentos. É
importante lembrar que implícito é diferente de secreto. Implícito significa que a
mensagem pode ser absorvida a partir do que é dado ainda que ela não tenha sido
declarada objetivamente. O ensino implícito está claramente presente na narrativa,
ainda que não seja verbalmente estabelecido. Ler o que está implícito é como ler
nas entrelinhas; interpretar os espaços em branco do texto. Por exemplo, a narrativa
de Rute implicitamente diz que:
 Rute se converteu à fé no Senhor, o Deus de Israel;
 Boaz era um israelita justo que guardava a lei mosaica, embora muitos outros
israelitas não o fizessem – como problematiza o livro de Juízes;
 Uma mulher estrangeira pertence à linhagem do rei Davi – e, por extensão,
de Jesus Cristo.

Página 105

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

2.2. Algumas precauções finais

Ainda que possamos aprender muito com as histórias bíblicas, já vimos que
narrativas individuais não devem ser entendidas como palavras de instrução direta
da parte de Deus. Com o propósito de evitar essa inclinação, abaixo temos os
equívocos hermenêuticos mais comuns (FEE; STUART, 2002, p. 76-78):
1. Alegorização. Cuidado para não se concentrar em significados para além do
texto! A Bíblia contém alegorias, mas narrativas históricas não são alegorias.
2. Descontextualização. Cuidado para não se afastar do contexto dentro do
qual está inscrita a narrativa bíblica que você está lendo! O contexto indica
como interpretar o texto.
3. Seletividade. Cuidado para não escolher palavras específicas que legitimem
sua interpretação, mas que desrespeitem o todo em que elas estão escritas!
4. Moralização. Cuidado com uma hermenêutica que busca a todo momento
princípios morais a serem aplicados! Nem toda narrativa quer conceder lições
de vida, mas apenas demonstrar o desenvolvimento da grande história de
redenção.
5. Personalização. Cuidado com a busca exagerada de passos práticos
individuais em cada narrativa. Não necessariamente a história da mula de
Balaão quer te ensinar a falar menos. Fique atento para não fazer uma leitura
bíblica individualista e egocêntrica.
6. Apropriação indevida. Cuidado para não se apropriar de movimentos que
não lhe foram direcionados. Não é porque Gideão “provou” a Deus que a sua
espiritualidade deve ser construída desse mesmo jeito.
7. Falsa apropriação. Cuidado para não levar ao texto antigo influências
hermenêuticas da cultura contemporânea. A fim de fazer uma alusão à
homossexualidade dizem que Davi e Jônatas tiveram relações desse gênero,
todavia, isso é estranho ao propósito da narrativa e do seu ponto de vista.
8. Falsa combinação. Cuidado com uma abordagem de interpretação que
combina elementos separados de uma passagem e tira uma lição de sua
combinação mesmo que eles não estejam vinculados. Segundo Fee e Stuart
(2011, p.127):

Página 106

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

Um exemplo extremo desse erro de interpretação, demasiadamente


comum, seria a conclusão de que o relato da tomada de Jerusalém por Davi
em 2Samuel 5.6,7 deve ter sido uma retomada dessa cidade, uma vez que
Juízes 1.8 - uma parte mais antiga da mesma narrativa,, que abrange toda a
trajetória de Josué até 2Reis - diz que ela já havia sido conquistada pelos
israelitas.

9. Redefinição. Cuidado para não redefinir os textos que não corresponderam


às suas expectativas emocionais, espirituais ou que te confrontaram
profundamente.

2.3. Alguns princípios para interpretação das narrativas

Por fim, Fee e Stuart propõem dez princípios em forma de teses para a
interpretação das narrativas. Vale transcrevê-los aqui:
1. Geralmente uma narrativa não apresenta um ensino doutrinário direto e
explícito.
2. Ainda que não contenha um ensino doutrinário direto, uma narrativa pode
ilustrar uma ou mais doutrinas que estão diretamente explicitadas em outros
lugares das Escrituras.
3. Narrativas contam o que aconteceu e não o que deveria ter acontecido. É
essa a essência do alerta: não busque aplicações morais em todas as
narrativas.
4. Não é porque uma ação está narrada no texto bíblico que ela deve ser
imitada. Não é porque Judas traiu Jesus e isso está na narrativa bíblica que
você deve fazer o mesmo.
5. A Bíblia não é um livro de pessoas perfeitas.
6. Os narradores nem sempre fazem juízo de valor das histórias que acabaram
de narrar. Isso fica a critério do leitor, que deve construir seu senso valorativo
levando em conta o ensino bíblico espalhado por toda a Bíblia.
7. Nenhuma narrativa é escrita pretendendo contar todos os detalhes da
história. O narrador, inspirado por Deus insere em seu texto aquilo que ele
julga importante para o leitor.
8. As narrativas não são escritas para responder a todas as nossas questões.
Cada uma delas tem um propósito e é preciso saber disso ao lê-las.

Página 107

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

9. As narrativas podem ensinar tanto de forma explícita como de forma implícita.


10. Lembre-se sempre: Deus é o herói de todas as narrativas bíblicas40.

2.4. A interpretação das parábolas

Visto que as parábolas são narrativas, muito do que se leu sobre as


narrativas se aplica diretamente às parábolas, especialmente a forma: estrutura do
enredo e personagens.
As parábolas compõem um gênero literário muito utilizado por Jesus durante
seu ministério: não são poucas as vezes em que as encontramos nas páginas dos
evangelhos. Todavia, elas não aparecem somente nos evangelhos. O Antigo
Testamento também é rico em parábolas, como por exemplo, 2Samuel 12.1-10, em
que Natã utiliza uma parábola para confrontar Davi quanto ao seu pecado. Nesse
pequeno trecho se percebe claramente o poder comunicador da parábola.
Mesmo assim, percebe-se o quanto elas foram importantes na pedagogia de
Jesus. Para o seu bom entendimento, é necessário que o estudante se dedique ao
estudo dos evangelhos e a sua interpretação. Sugerimos o estudo sequencial dos
capítulos 4-7 de FEE; STUART, 2002, p. 63-135. Essa sequência agrupa os textos
narrativos da Bíblia, começando com as narrativas do Antigo Testamento, passando
para os textos narrativos do Novo Testamento: Atos e os Evangelhos. Dentro dos
evangelhos encontramos as micronarrativas contadas por Jesus, que são as
parábolas.
Em Marcos 4.10-12, segundo Fee e Stuart (2002, p. 178), “Jesus parece ter
sugerido que elas continham mistérios para os de dentro, ao passo que endureciam
os de fora”. Perceba como é interessante essa condição de dentro e de fora. O
teólogo Luterano Ênio Mueller (2005, p.16) diz que:

Para Jesus, estar na verdade é condição para conhecer a verdade [...] Há


um caminho que leva à verdade. A verdade, então, não é algo de que se
tem posse, mas um rumo em direção ao qual se anda [...] Verdade, então,
seria um caminhar numa relação com o evangelho.

40
Baseado em FEE; STUART, 2002, p. 69.
Página 108

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

Ou seja, a verdade do evangelho não é só uma informação a ser recebida,


mas um conhecimento a ser experimentado dentro de uma relação interpessoal, e
as parábolas traziam isso à tona de modo muito claro.
Uma das dificuldades em interpretar as parábolas tem a ver com uma
tendência em tratá-las como alegorias, ou seja, busca-se a todo momento descobrir
um círculo interno de significados em que cada elemento, sem exceção de nenhum
pormenor, representa algo para além dele mesmo. Essa tendência nasce do
equívoco em lidar com o aspecto misterioso que Jesus revela existir nesse gênero
literário.
Agostinho, buscando entender as parábolas alegoricamente, propôs, por
exemplo, que na história do bom samaritano Jerusalém era a cidade celestial da
paz, propôs que a hospedaria era a igreja e que o sacerdote e o levita que não
pararam representavam o sacerdócio e o ministério do Antigo Testamento. Muito
interessante, mas se nos aplicarmos às parábolas com algumas diretrizes
hermenêuticas fundamentais que aprenderemos mais à frente, veremos que não era
isso que Jesus queria dizer.
Mas se as parábolas não são mistérios alegóricos, como explicar aquilo que
lemos em Marcos 4.10-12? Segundo Fee e Stuart (2002, p.181), o significado do
ministério de Jesus e o segredo de seu reino não podia ser percebido pelos de fora
pois era como um enigma para eles. Assim, o discurso em parábolas fazia parte do
enigma maior que todo seu ministério apresentava. Mas sabemos que o problema
não era tanto com a compreensão das parábolas, mas em se deixar mover à
obediência a partir do impacto do que Jesus propôs. O mestre não estava
procurando ser confuso, queria ser entendido, entretanto, precisamos amenizar
nossos pressupostos hermenêuticos e encurtarmos a distância para procurar ouvir o
que eles, seus primeiros ouvintes, ouviram a fim de sermos movidos à mesma
obediência que Jesus pretendia provocar.
Existem tipos diferentes de parábolas. Os manuais de hermenêutica e
exegese variam quanto à nomenclatura e quantidade, mas este quadro resume bem:

TIPO DEFINIÇÃO EXEMPLO

Página 109

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

A ovelha perdida, o filho


Parábola Uma história pura e simples, pródigo, a grande ceia, os
verdadeira com começo, meio e fim. trabalhadores na vinha, o rico e
Lázaro e as dez virgens.

Símile tem a ver com O fermento que leveda a massa,


Similitude semelhança. São ilustrações o semeador e o grão de
extraídas da vida diária. mostarda.

São parecidas com as


Metáforas ou
similitudes, mas distinguem- O sal da terra e a luz do mundo.
ditos parabólicos
se nas lições.

2.4.1. Como as parábolas funcionam?

É da natureza da parábola provocar uma resposta do seu ouvinte. Essa


resposta pode ser emocional e/ou racional – a narrativa envolve o ouvinte/leitor
como um todo. Observe a reação de Davi ao ouvir a parábola de Natã –, pode ser
uma tomada de decisão. Essa característica essencial da parábola pode ser um dos
nossos grandes dilemas em sua interpretação.
De acordo com Fee e Stuart, de alguma maneira, interpretar uma parábola é
destruir o que ela era em sua origem. É como interpretar uma piada. Toda a razão
de ser de uma piada, e aquilo que a torna divertida, é o contato imediato que o
ouvinte tem com ela enquanto é contada. É divertida para o ouvinte exatamente
porque ela o captura no momento em que é ouvida. Mas somente pode “capturá-lo”
se ele conseguir compreender os pontos de referência na piada, ou seja, sem o
contexto e os símbolos plenamente entendidos pelo ouvinte, ela não teria graça. Se
precisarmos interpretar a piada tentando explicar a piada, tentando explicar os
pontos de referência, isso já não vai capturar o ouvinte, e, por conseguinte, tal
atitude falhará em provocar a mesma qualidade de risadas. Quando a piada é

Página 110

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

interpretada, sem dúvida ela passa então a ser entendida, e talvez ainda seja
divertida (pelo menos compreendemos aquilo que deveria ter provocado nossos
risos), mas com certeza não terá o mesmo impacto. Logo, já não funciona da
mesma maneira (FEE e STUART, 2002, p. 125).
As parábolas têm como vocação evocar em seu ouvinte uma resposta. Quer
fazer com que as pessoas parem, pensem e repensem suas posturas e respondam
a Jesus e ao seu ministério. Tal como as piadas, as parábolas visavam identificação
imediata (um bom contador de histórias considera e aplica isso ao contar parábolas)
com seus ouvintes, e essa natureza de cada uma delas suscita pra nós um grande
desafio, afinal, não somos seus ouvintes imediatos. Somos leitores a dois milênios
de distância temporal, sem contar a distância cultural. Esse é o problema
hermenêutico das parábolas e, portanto, a origem das diretrizes exegéticas e
hermenêuticas desse gênero literário. A pergunta a se fazer é: como resgatar o
impacto das parábolas para hoje? A resposta dessa pergunta depende da detecção
dos pontos de referência. Mais uma vez, o contexto é decisivo.

2.4.2. Descobrindo os pontos de referência

Fee e Stuart (2002, p. 125-127), explicam que o conhecimento dos pontos de


referência e o rumo inesperado, tanto nas piadas quanto nas parábolas, são
elementos cativantes e essenciais para que esses gêneros cumpram suas funções.
Diante disso é necessário revisitar o cuidado em distinguir parábolas de alegorias.
Ainda que uma se aproxime da outra, a função de cada uma delas é que as
diferencia, fique atento: quando a moral da porção textual em vista estiver contida
nos pontos de referência, estaremos diante de uma alegoria; entretanto, quando a
lição, apesar dos pontos de referência, estiver na resposta pretendida, estaremos
diante de uma parábola.
Um exemplo que traz à tona essa dinâmica de contar uma história para
evocar uma resposta, como citado acima, está muito bem explicitada no confronto
de Natã ao Rei Davi (2 Samuel 12. 1-7). Ao ler o texto você verá que o foco de Natã
não era trazer significados específicos a partir de cada elemento colocado em sua
narrativa (os dois homens, as ovelhas, o viajante etc.), mas usá-los todos em favor

Página 111

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

da resposta que ele pretendia evocar: a ira de Davi. Tendo conseguido sua resposta
Natã vira o jogo e aponta para Davi como aquele que precisaria parar e repensar
sua postura diante do Deus que o chamou, e da ira que agora ele sentia contra si
mesmo. A parábola, portanto, provocou uma resposta que fez com que Davi se
identificasse com o homem injustiçado, ou seja, Natã fez com que Davi, sem
perceber imediatamente, se colocasse no lugar de Urias.
Por isso, identificação é uma função primordial da parábola. As parábolas de
Lucas 10.29-37 – o Bom Samaritano –, e Lucas 15 – o filho pródigo –, são
poderosas justamente porque causam a identificação dos ouvintes com as
personagens, suas ações e as situações narradas.

2.4.3. Identificando o público-alvo

Se o resgate do impacto de cada parábola tem a ver com uma hermenêutica


empática, isto é, que consegue se colocar ao lado dos ouvintes e ouvir não apenas
as palavras que constituíram a parábola, mas o significado de cada uma delas,
desvendar o público-alvo é um movimento fundamental para o intérprete
comprometido em encurtar distâncias a fim de se aproximar da Palavra de Deus
para seu povo.
Sabendo que nossas dificuldades exegéticas se encontram principalmente na
distância cultural entre você e o público original de Jesus, não negligencie o uso de
comentários exegéticos e leve em conta as seguintes dicas que querem te orientar
nesse processo. São elas:
 Leia e escute a parábola várias vezes seguidas;
 Identifique os pontos de referência que Jesus usou;
 Identifique em que contexto no ministério de Jesus a parábola foi contada;
 Observe quais as cenas antecedem a parábola contada;
 Procure entender como os ouvintes originais teriam se identificado com a
história para descobrir o que foi que eles ouviram;
 Tenha em mãos obras sobre o contexto e cultura, já citadas nas unidades
anteriores, como: DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus. 2
ed. São Paulo: Vida Nova, 1986.
Página 112

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

2.4.4. Parábolas sem contexto

Ainda que algumas parábolas não forneçam pistas de seu contexto histórico,
continue determinando os pontos de referência e o público-alvo. Pergunte-se: “que
tipo de pessoa teria se identificado com essa história?” e prossiga seu estudo
considerando seriamente o público como indicador da lição a ser proporcionada.

2.4.5. Parábolas do Reino

Existe um grupo de parábolas que está para além do contexto conflituoso de


Jesus e os fariseus, são as parábolas do reino. Elas são identificadas por uma
expressão introdutória comum que diz que “o reino dos céus é semelhante a…”.
Essa expressão introdutória significa “é assim com o Reino de Deus…”, ou
seja, ela irá nos contar alguma coisa acerca da natureza do Reino a fim de
conclamar seus ouvintes a uma vida de obediência e submissão ao Reinado de
Deus que havia chegado em Cristo Jesus. Como quaisquer parábolas, elas evocam
às multidões, discípulos em potencial, uma resposta diante da missão e do
discipulado com o Filho de Deus.
O propósito dela é querigmático, ou seja, uma pregação que exige uma
resposta, um posicionamento. Elas são também proféticas, isto é, denunciam uma
era diante da qual sobrevirá iminente julgamento catastrófico ao mesmo tempo em
que anunciam que a salvação chegou junto com o Reino de Deus, sua dádiva ao
universo caído.

Nessa unidade vimos

Vimos as características fundamentais do gênero literário das narrativas.


Constatamos que as narrativas são marcadas por referências temporais e espaciais,
e ressaltamos que são construídas mediante a seleção do material a ser narrado, a
disposição desse material num enredo e o emprego de recursos retóricos.
Estudamos os três níveis das narrativas na Bíblia, fundamentais para que nenhuma
Página 113

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

narrativa seja interpretada de forma isolada: o nível superior (o plano universal de


Deus, a história da redenção), o nível intermediário (a história do povo de Deus no
AT e NT) e o nível inferior (as micronarrativas). Observamos a importância do
narrador e do ponto de vista segundo o qual ele narra, que é determinante para a
compreensão do significado da narrativa na revelação da mensagem de Deus.
Descrevemos também os componentes da narrativa: cena, personagens e enredo.
Alertamos quanto a diversos perigos na interpretação das narrativas, tais
como a alegorização e a extração direta de lições de moral – uma vez que as
narrativas ensinam frequentemente de forma implícita aquilo que é ensinado de
forma direta e categórica em outras passagens das Escrituras.
Analisamos também alguns princípios específicos para a interpretação das
parábolas. Vimos que as parábolas, mediante a compreensão de seus pontos de
referência, capturam os ouvintes e os provocam a responderem, refletindo e
repensando suas posturas. Observamos a importância de resgatar esse impacto das
parábolas para hoje.

Saiba mais

A seguinte obra que pode ajudar o/a estudante a entender a necessidade de


uma visão de todo da Bíblia, isto é, a Bíblia como metanarrativa:
MCGRATH, Alister. Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e como conseguimos que
as coisas façam sentido. São Paulo: Hagnos, 2015.
Sobre os personagens:
MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à
análise narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009. P. 75-95.
VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 2016. P. 77-
109.
Algumas obras marcaram a história recente da interpretação das parábolas.
Aqui estão nomes nacionais e internacionais especialistas na interpretação delas:
BAILEY, Kenneth. As parábolas de Lucas. São Paulo: Vida Nova, 1995.
BRAKEMEIER, Gottfried. As parábolas de Jesus: imagens do reino de Deus. São
Leopoldo: Sinodal, 2016.
DODD, C. H. The Parables of the Kingdom. London: Nisbet & Co., 1935.
Página 114

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 6: A Interpretação das Narrativas e Parábolas

JEREMIAS, Joachim. As Parábolas de Jesus. 5 ed. São Paulo: Paulus, 1986.


WESTERMANN, Claus. The parables of Jesus in the light of Old Testament.
Minneapolis: Fortress Press, 1990.

Para reflexão

1. Por que uma narrativa não é apenas um relato aleatório de eventos? Como
funciona a composição de uma narrativa?
2. Quais princípios e precauções para a interpretação das narrativas foram mais
significativos em seu aprendizado pessoal no estudo dessa unidade?
3. Por que as parábolas não são alegorias? Qual o propósito das parábolas?

Página 115

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

Unidade 7: A INTERPRETAÇÃO DAS CARTAS

Esta unidade trata das características principais das cartas do Novo


Testamento e como os intérpretes podem proceder para o seu correto entendimento.
Temos aprendido que a tarefa da hermenêutica consiste em interpretação.
Esta sempre terá duas direções. A primeira é em direção ao texto e o seu mundo,
em que a pessoa que interpreta precisa observar os contextos histórico e literário,
bem como o que está envolvido em ambos: sociedade, cultura, língua, linguagem,
recursos literários etc. Por meio desses procedimentos, a interpretação visa resgatar
o sentido original da mensagem do texto. A segunda direção é ao mundo do
intérprete, para o qual deverá comunicar, explicar e aplicar o sentido do texto
interpretado.
Talvez as cartas sejam os melhores exemplos da necessidade da boa
interpretação, como também das suas dificuldades. Interpretar uma carta é como
ouvir apenas um lado de uma conversa telefônica. Com raras exceções, apenas
podemos supor o que estava acontecendo, o que motivou a redação da carta, quem
eram as pessoas que causavam os problemas que a carta visava solucionar etc.
Mas essa dificuldade não significa uma impossibilidade de compreensão. Com
esforço e critério, podemos entender basicamente tudo o que foi escrito. Ao mesmo
tempo, elas são ensino direto, diferente das narrativas – em que o ensino é indireto
– e das parábolas – cujo principal propósito é causar impacto e convocar a audiência
a uma decisão. As cartas foram elaboradas como substituições do discurso oral
presencial, portanto, foram escritas como recursos para instruir comunidades na
ausência física dos seus líderes, como Paulo, Pedro, Tiago e João, por exemplo.
Esses detalhes sobre os conteúdos das cartas nos fazem considerar que
todos nós já praticamos a interpretação delas, mesmo sem ter conhecimentos de
hermenêutica. Ler é um ato interpretativo. Por exemplo, quando lemos “Não devam
nada a ninguém, a não ser o amor de uns pelos outros, pois aquele que ama seu
próximo tem cumprido a Lei” (Rm 13.10 – NVI), sabemos que é um mandamento a
ser obedecido por todos os cristãos. Mas quando lemos “Não continue a beber
somente água; tome também um pouco de vinho, por causa do seu estômago e das
suas frequentes enfermidades” (1Tm 5.23 – NVI), também sabemos que se tratava

Página 116

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

de uma orientação de Paulo para Timóteo e não a tomaremos como um


mandamento para nós. Todavia, nem sempre essa distinção do que deve ser
obedecido e do que não deve ser obedecido é tão clara. Nesse caso, alguns
elementos entram no jogo interpretativo:
 O lugar do intérprete: sua tradição religiosa e doutrinária – inevitavelmente
interpretamos com pressupostos definidos pela nossa educação doutrinária e
moral;
 O público para quem o texto será explicado e a maturidade das pessoas: nem
todas as pessoas estão prontas para todas as instruções, logo, uma
explicação de um texto complexo, ou que suscita polêmicas, deve ser
destinada a um público que tenha condições de apreciar o ensino com
maturidade, caso contrário não haverá edificação – veja Hebreus 5.11-6.3.
 O bom-senso: que sempre será relativo à cultura da pessoa que interpreta, o
que envolve as suas tradições cristãs, formação doutrinária e moral.
Esses elementos que compõem o jogo interpretativo podem ser mais bem
evidenciados quando consideramos um problema de interpretação e a aparente
arbitrariedade quanto a quais partes do texto se aplicam a nós e quais não se
aplicam mais:

Como é que em muitas igrejas evangélicas as mulheres são proibidas de


falar nas igrejas, com base em 1Coríntios 14.34-35, porém em muitas das
mesmas igrejas tudo o mais no capítulo 14 é contra-argumentado como não
pertencente ao século XX? Como é que os vv. 34-35 pertencem a todos os
tempos e a todas as culturas, ao passo que os vv. 1-5, ou 26-33, e 39-40,
que dão regulamentos para o dom de profecia e o falar em línguas,
pertencem apenas à igreja do século I? (FEE; STUART, 2002, p. 47).

O mesmo problema pode ser visto quando lemos as cartas mais com a
necessidade de responder aos problemas que suas partes suscitam às doutrinas
das quais estamos convictos, do que realmente com o desejo de aprender sobre o
seu significado:

E você já notou como nossos compromissos teológicos prévios levam


muitos de nós a atribuir aquele compromisso a alguns textos ao passo que
contornamos outros? É uma surpresa total para alguns cristãos quando
descobrem que outros cristãos acham apoio para o batismo das crianças
pequenas em textos tais como 1Coríntios 1.16, 7.14 ou Colossenses 2.11-
12, ou que outras acham evidência em prol da Segunda Vinda em duas

Página 117

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

etapas em 2Tessalonicenses 2.1, ou em Tito 3.5. Para muitos na tradição


arminiana, que enfatizam o livre arbítrio e a responsabilidade do crente,
textos tais como Romanos 8.30; 9.18-24; Gálatas 1.15; e Efésios 1.4-5 são
embaraçosos. De modo semelhante, muitos calvinistas têm suas próprias
maneiras de contornar 1Coríntios 10.1-13; 2 Pedro 2.20-22; e Hebreus 6.4-6
(FEE; STUART, 2002, p. 48).

Conscientes dos problemas que enfrentamos com a intepretação das cartas,


precisamos entendê-las melhor. Começando pelas características gerais delas e
observando algumas diretrizes para a interpretação.

1. Características gerais das cartas

1.1. Diversidade

As cartas não são uma coleção uniforme. Diversidade é uma marca das
cartas: autor(es), destinatário(s), linguagem, recursos literários e propósito(s). Por
exemplo, a carta aos Romanos foi escrita para uma igreja até então desconhecida
para Paulo, e nem mesmo foi ele quem a escreveu, antes, a ditou para um escritor
identificado como Tércio (Rm 16.22). Tito e as duas cartas a Timóteo são pessoais.
Filemom, embora pessoal, é endereçada à igreja que se reunia em sua casa. 1 e 2
Coríntios resolvem conflitos entre os integrantes da igreja e visam solucionar
confusões doutrinárias e de prática de culto.
Portanto, as cartas são instruções para igrejas específicas. Os assuntos nelas
tratados surgiram da necessidade de correção doutrinária e moral, orientação
quanto aos relacionamentos sociais e familiares, ensino sobre os papeis dos
discípulos e das discípulas de Jesus nas comunidades de fé e as orientações para a
liderança nova das igrejas. Isso é importante para não lermos as cartas como quem
lê um livro de teologia hoje, embora tenhamos cartas teologicamente bem
elaboradas, como Romanos e Hebreus. Mesmo assim, não deixam de ser cartas e
nunca foram escritas com os propósitos de uma publicação literária teológica
moderna. Dito de outra forma, as cartas não possuem o propósito de ser tratados
teológicos. Certamente contêm teologia e se dedicam a assuntos teológicos, mas
não são um resumo teológico direto, são escritos de teologia prática, isto é, uma
teologia em resposta às demandas específicas de cada comunidade.
Página 118

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

1.2. Cartas, epístolas e estrutura

Segundo alguns estudiosos, é possível distinguir cartas de epístolas. As


cartas eram conteúdos específicos destinados a um público determinado do qual o
autor tinha conhecimento e consciência. Já a epístola era uma forma de literatura
destinada para o público em geral, uma carta para a igreja inteira. É quase a mesma
diferença entre enviar um e-mail para um grupo de pessoas ou publicar uma carta
aberta em alguma rede social. Embora seja uma distinção feita por alguns
estudiosos, não necessariamente precisamos adotá-la na prática. Podemos
continuar falando apenas de “cartas”, sabendo que por trás dessa palavra existe
essa distinção técnica.

A epístola é uma carta. As cartas do NT são menos literárias, formais e


artísticas que os vários tratados gregos, mas geralmente são ainda mais
longas, têm estrutura mais cuidadosa, e são mais didáticas que a
correspondência típica pessoal (KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD JR, 2017.
p. 674).

A validade dessa distinção pode ser observada a partir da forma das cartas
antigas que também é encontrada nas cartas do Novo Testamento. São seis partes,
nas quais já introduziremos algumas notas para observação, importantes para a
interpretação. Observe lendo 1Coríntios e Filemom, por exemplo:
 Nome do escritor / remetente (Paulo). Pergunta interpretativa: Quem é o
remetente? Observe se há apenas um remetente. Geralmente as cartas
possuem mais pessoas ao nome dos remetentes com os quais nos
acostumamos. No caso de 1Coríntios, “e o irmão Sóstenes”. Em Filemom, “...
e o irmão Timóteo”.
 Nome do destinatário. Pergunta interpretativa: Para quem a carta é
endereçada? A resposta está no versículo 2, capítulo 1: “à igreja de Deus que
está em Corinto”. Ao mesmo tempo, Paulo inclui aqui, ao lado do remetente
principal, “todos os que em toda parte invocam o nome de nosso Senhor
Jesus Cristo...”. Em Filemom: “à Áfia, a Arquipo... e à igreja que se reúne com
você em sua casa”. O que é dito sobre os destinatários? Nem sempre essa
pergunta obterá resposta, mas em alguns casos pode ser importante observar
Página 119

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

que Paulo chama Filemom de “amado cooperador” e Arquipo é “nosso


companheiro de lutas”.
 Saudação. A saudação é uma expressão de desejo e oração do autor, uma
forma de pedido de bênção sobre os destinatários: “A vocês, graça e paz da
parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo” (v.3). Note que “graça e
paz” não são meras palavras automáticas. São expressões reais do que o
autor deseja que os destinatários recebam. O que pode ser mais valioso do
que receber a graça e a paz de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo? De igual
modo, note o tratamento de Paulo a Deus e a Jesus. Deus é Pai. Jesus é
Senhor. São duas afirmações fundamentais na teologia do apóstolo.
 Oração, um desejo ou ação de graças. Perguntas interpretativas: Qual, ou
quais, são os motivos de gratidão? Quais são os pedidos a Deus sobre os
destinatários? Ao expressar a gratidão, o autor já nos dá pistas sobre as
características do(s) destinatário(s). Em 1Coríntios descobrimos uma igreja
espiritualmente bem suprida (embora no corpo da carta descobriremos que
precisava de muita orientação). Em Filemom descobrimos um homem de
ótimas e evidentes qualidades provenientes da sua fé em Cristo,
especialmente o amor (Fm 4-7). Pode ser que na oração, ou na expressão de
um desejo do autor sobre o destinatário, apareçam assuntos relacionados ao
corpo da carta. Por exemplo, em 1Co 1.4-9, em gratidão a Deus, Paulo fala
sobre os dons da igreja em Corinto. Esse assunto será abordado no corpo.
De igual modo, em Filemom, o amor evidente na vida de Filemom deverá ser
colocado à prova pelo pedido de Paulo (Fm 8-10).
 Corpo – o desenvolvimento do texto. É a parte da carta em que o
remetente desenvolve o assunto. É a parte mais longa e pode ter um assunto
condutor (Romanos), ou vários assuntos (1Coríntios). Observar os esboços
das cartas é de grande utilidade para o intérprete. Com a prática, o próprio
intérprete deverá fazer as divisões no texto e propor um esboço para a carta.
Esse procedimento ajuda a visualizar as partes do texto e como elas se
relacionam com o todo.

Página 120

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

 Parte final. É a parte em que o remetente faz as considerações finais e se


despede. Geralmente encontra-se ali uma palavra de oração ou bênção: a
graça do Senhor Jesus seja convosco.
Todas as cartas do Novo Testamento têm algo em comum e isso deve ser
levado em conta como importantíssimo princípio de interpretação: são documentos
que nascem de uma ocasião específica. Ou seja, as cartas são situacionais.
Embora sejam textos que carregam os nomes das grandes personagens da história
da igreja e são escritas para igrejas, embora sejam inspiradas por Deus, elas são
documentos do primeiro século e não textos que chegaram diretamente a nós. Não
éramos nós e as nossas igrejas que estavam no pensamento de Paulo quando ele
escreveu 1Coríntios! Por essa razão, reforçamos as implicações dessa
especificidade das cartas e sua distância em relação a nós, leitores de hoje:

Os autores escreveram as epístolas para momentos específicos para


abordar destinatários individuais que estavam enfrentando problemas
determinados. O intérprete deve reconstruir essas “situações” e propósitos
da forma mais precisa possível para separar os princípios eternos das
aplicações específicas para essa situação (KLEIN; BLOMBERG; HUBBARD
JR, 2017. p. 674).

Por isso, a regra hermenêutica mais elementar se aplica diretamente às


cartas: um texto não pode significar hoje aquilo que nunca poderia ter significado
para os seus primeiros leitores e para o seu(s) remetente(s). Essa regra vale ouro na
interpretação das cartas. Como lembram Fee e Stuart, ela nem sempre nos ajudará
a entender o significado do texto, mas sempre nos ajudará a estabelecer limites
sobre o que ele não pode significar (FEE; STUART, 2002, p. 48).
Uma segunda regra geral deve ser levada em consideração: quando
compartilhamos hoje situações comparáveis àquelas dos primeiros destinatários da
carta, o que se aplicou a eles também se aplica a nós. Esta é a regra que nos
conecta diretamente aos cristãos do primeiro século, especialmente no que diz
respeito aos assuntos da teologia e da moral cristã (cf. FEE; STUART, 2002,
p.49,50). Todavia, identificar essas situações comparáveis exige o estudo de
contexto histórico da carta em questão.
Esses fatores certamente dificultam a interpretação. Descobrimos que
existem limites na interpretação. Mas são fatores fundamentais para que ela seja

Página 121

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

possível. Geralmente, o motivo desses escritos se resume a três possibilidades.


Nelas estão as três dimensões da vida cristã:
 Um comportamento a ser corrigido: moral
 Um erro doutrinário (intencional ou não) a ser endireitado: teológico
 Um desentendimento a serem resolvido: relacional

2. O contexto histórico das cartas

Como vimos acima, a tarefa do intérprete consiste em reconstruir as situações


e propósitos que estão envolvidos nas cartas. Isso é possível por meio da aplicação
de um conjunto de perguntas para a carta em estudo:
 O que estava acontecendo na comunidade que levou o autor a escrever a
carta? (Exercício de leitura: 1Co 1.10-17; 3.1-9; Gl 1.6-9; Rm 1.8-15; 15.23-
29).
 Como o autor ficou sabendo desses acontecimentos? (Exercício de leitura:
1Co 1.11; 1Ts 3.1-6).
 Que tipo de relacionamento e/ou contato anteriores o autor teve com o(s)
destinatário(s)? (Exercício de leitura: 1Co 2.1-5; 5.9; 2Tm 1.1-7).
 Existem ensinos (ou pessoas) sendo combatidos na carta? O que a carta nos
permite ver sobre isso? (Exercício de leitura: Cl 2; Gl 5.1-15; 1Co 15; 2Co
11.1-15).
Os exercícios de leitura propostos acima ajudarão o estudante a perceber
como o texto responde às perguntas interpretativas. Mas nem sempre a resposta
será tão evidente. Por isso, algumas ferramentas e dicas serão úteis:
 Consulte um Dicionário Bíblico ou leia a introdução do comentário bíblico da
carta que você está estudando. As informações procedentes dessa consulta
te farão ler as epístolas com outros olhos.
 Desenvolva o hábito de ler a carta inteira de uma vez só. Esse procedimento
lhe dará uma visão panorâmica do texto. Ler em voz alta e anotar rápidos
apontamentos também é importante.
O hábito de ler as cartas inteiras é altamente recomendado, por mais óbvio
que deveria ser. Acostumamo-nos a ler pequenas porções de textos bíblicos e os
Página 122

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

isolamos do seu entorno. Walter Kaiser escreve sobre um hábito necessário para o
intérprete:

Deveríamos ler completamente toda a epístola diversas vezes, talvez em


diferentes versões, até que nos tornemos bastante familiarizados com seu
conteúdo, seus interesses e propósitos aparentes do autor, o modo como o
argumento é desenvolvido, e assim por diante (KAISER, 2002, p. 120).

Mais algumas instruções pra te ajudar a reconstruir o problema que gerou a


carta na hora de fazer esses apontamentos:
 Escreva as características que você percebeu sobre quem recebeu a carta.
Eram judeus ou gentios? Quais características dos destinatários, tanto
positivas quanto negativas, aparecem no texto?
 Qual é a postura do autor ao escrever a carta? O que se sabe sobre a sua
situação? O autor está alegre? Preocupado? Irritado?
 Quais são as divisões evidentes da carta? Quantos e quais assuntos são
tratados no texto?
Após levar em conta as repartições lógicas da carta, vá pelo seguinte
caminho:
 Leia a totalidade de cada parte para perceber o argumento inteiro.
 Aliste tudo que possa ter a ver com os problemas da comunidade que recebe
a carta.
 Faça uma lista de palavras-chave que sejam centrais no desenvolvimento
daquele conteúdo. São palavras-chave: termos carregados de sentido
teológico (santificação, salvação, justificação, redenção etc.); palavras que se
repetem, seja num período do texto ou nele como um todo.

3. O contexto literário das cartas

O contexto literário, como aprendemos em unidades anteriores, consiste na


forma como o texto foi construído. Então, depois de absorver todas essas práticas
em sua interpretação bíblica, o estágio seguinte constitui uma parte crucial do
processo: pensar em parágrafos. O texto é construído em parágrafos, que são
unidades de pensamento. Por isso, o procedimento ajuda a descobrir e a listar o
Página 123

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

motivo por trás de cada parágrafo, enxergar a razão de ser de cada parágrafo. Duas
perguntas facilitam nossa chegada até essa resposta:
 O que o autor escreveu?
 Por que o autor escreveu aquilo? (Exercício de leitura: Gálatas 5.13-
15):

Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade
para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros
mediante o amor. Toda a Lei se resume num só mandamento: “Ame o seu
próximo como a si mesmo”. Mas se vocês se mordem e se devoram uns
aos outros, cuidado para não se destruírem mutuamente (Gálatas 5.13-15 –
NVI).

O que o autor escreveu? A sua resposta deve ser um resumo que reafirme
sinteticamente o que está dito. Por exemplo: Fomos chamados para a liberdade,
mas não devemos confundi-la como uma permissão para fazermos tudo o que a
nossa natureza carnal desejar. Depois explique com as suas próprias palavras,
buscando sempre ser fiel ao argumento do autor. Por exemplo: O bom uso da
liberdade consiste na prática do amor de uns pelos outros. Esse bom procedimento
está de acordo com a vontade revelada de Deus e impedirá que nos destruamos
mutuamente.
Porque o autor escreveu isso? A resposta deve observar o texto em
questão, mas também o seu contexto imediato – os parágrafos anteriores e
posteriores. Nesse caso, se Paulo se ocupou em dar essa instrução, podemos
concluir que nas igrejas da Galácia havia problemas de relacionamentos entre os
irmãos. Note que as palavras de Paulo são pesadas: “se vocês se mordem e se
devoram uns aos outros” – uma imagem bestial para descrever um mau
comportamento humano. Palavras como “serviço”, “amor”, “mutualidade” descrevem
o comportamento correto que Paulo quer ensinar às igrejas. Visto dessa maneira,
descobriremos que:
 No contexto anterior (5.1-12), a prática da liberdade também está em pauta
em perspectiva doutrinária: o ensino dos judaizantes acerca da circuncisão e
o ensino correto acerca da graça.
 No texto em questão (5.13-16) não era apenas uma doutrina e uma prática
religiosa que ameaçava a liberdade que os gálatas receberam de Cristo. As

Página 124

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

vontades da carne precisam ser freadas, sendo substituídas por atitudes de


serviço e amor ao próximo.
 Que o contexto posterior (5.16-26), o famoso texto sobre as obras da carne e
o fruto do Espírito, precisa ser interpretado como a resposta de Paulo a um
problema comunitário (5.15). Logo, o “fruto do Espírito” não deve ser lido
como uma instrução individualizada, mas como parte de um ensino que diz
respeito à vida comunitária, pois é a mutualidade que está em pauta aqui41.

Nessa unidade vimos

Interpretar as cartas do Novo Testamento consiste em um exercício que


ajudará o estudante a perceber com clareza o que está envolvido no processo
hermenêutico. Em princípio, elas parecem ser fáceis de serem interpretadas. Mas
essa facilidade esconde o problema de que as lemos baseados em pré-
compreensões do texto. Talvez por tanto ouvirmos pregações baseadas nelas e
basicamente toda a teologia cristã estar baseada em seleções de versículos
extraídos delas, achamos que o significado do texto sempre corresponderá ao que já
sabemos sobre ele. Esse é o grande alerta da interpretação das cartas: deixemos de
buscar nelas a sustentação das nossas ideias já fixadas, como também, deixemos
de lado a tendência de ler tentando contornar textos que confrontam nossas práticas
e convicções doutrinárias. O significado do texto se tornará visível na medida em
que o lermos com critérios hermenêuticos claros, honestidade, humildade e
reverência.

Saiba mais

Há três assuntos que precisam ser considerados com muita atenção pelos
estudantes:
 O aspecto histórico e situacional das cartas;
 O assunto da relatividade cultural presente nas cartas;

41
Um ótimo estudo sobre esse assunto encontra-se em: FEE, Gordon. Paulo, o Espírito e o povo de
Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 143-158.
Página 125

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 7: A Interpretação das Cartas

 O problema da aplicação do ensino de uma carta para os dias de hoje.


Enfaticamente recomendamos a leitura de dois textos que aprofundam sobre
essas questões:
FEE, Gordon; STUART, Douglas. Entendes o que lês? São Paulo: Vida Nova, 2002,
p. 45-62 (Capítulo 3 – As epístolas: questões hermenêuticas);
KAISER Jr., W. C. e SILVA, Moises. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2002, p. 117-133 (Capítulo 7 – Como ler uma carta);
KLEIN, William W.; BLOMBERG, Craig L.; HUBBARD JR, Robert L. Introdução à
interpretação bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017, p. 673-694.

Para reflexão

1. Por que as cartas do Novo Testamento são documentos situacionais? Quais


as implicações dessa especificidade das cartas para a nossa tarefa de
interpretá-las?
2. Tudo o que está escrito nas cartas do Novo Testamento é normativo para os
cristãos? Como discernir a adequada aplicação do ensino das cartas para os
dias de hoje?

Página 126

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

Unidade 8: A INTERPRETAÇÃO DA LEI DO ANTIGO


TESTAMENTO

Para quase tudo em nossa vida há sempre uma regrinha básica; para
muitas coisas há sempre alguma norma a observar, mesmo não escrita, e
para outras tantas existem leis discutidas, aprovadas, promulgadas e
publicadas por escrito para serem cumpridas. As normas estão por todo
canto: na família, na escola, no trabalho, no condomínio, no comércio, nos
parques, nas ruas, na igreja, no restaurante, no banco e na fila do ônibus.
Até as brincadeiras infantis mais simples têm suas regas. Nos esportes
também há regras e até leis e um tribunal próprio. Já pensou no que seria
da cidade se não existissem regras, nem leis, e se cada um pudesse fazer o
que bem entendesse? Como seria viver num país totalmente sem lei?
(SOARES, 2013, p. 13,14).

Esse pequeno texto nos leva a refletir sobre o papel que as leis exercem na
vida em sociedade. Palavras como lei, mandamento, ética, moral, normas e regras
fazem parte de um vocabulário relacionado ao certo e ao errado, ao que deve ser
feito e ao que não deve ser feito. Por isso, elas fazem parte de todos os ambientes
em que transitamos no dia a dia, e não apenas dos ambientes religiosos e jurídicos.
Vejamos o esporte, por exemplo. O que viabiliza um jogo de futebol é um conjunto
de regras. Sem regras justas e aplicadas a todos, não haveria Jogos Olímpicos,
quebra de recordes ou competitividade. Talvez as palavras que compõem esse
vocabulário não nos remetam à diversão, mas, sem ele, não haveria diversão
alguma em uma partida de futebol ou de vôlei, nem sentido em competir uma prova
de natação ou nos cem metros do atletismo. Um atleta não pode se nomear
vencedor de uma maratona porque ele decidiu que a sua maratona teria apenas 10
quilômetros, enquanto outros competidores correriam os 42 quilômetros e 195
metros oficiais. As leis existem para promover justiça e igualdade de oportunidades
para todos. Sabemos também que aqui está um problema, pois nem sempre a
justiça prevalece, nem sempre as leis são justas, ou porque as pessoas não as
cumprem. Se tratando da lei divina na Bíblia, esse era o problema denunciado pelos
profetas: a desobediência à lei fazia prevalecer a injustiça e a opressão. Na Bíblia,
desobedecer à lei do Senhor significa ser desleal à aliança com ele, por isso, um ato
de rebelião contra Deus.
Esta unidade é dedicada à interpretação da lei do Antigo Testamento. Porém,
levaremos em conta a abrangência do conceito bíblico de “lei”, visto que esse não é
Página 127

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

um assunto restrito ao AT. O Novo Testamento, por exemplo, faz referência à “lei de
Cristo” (1Co 9.21; Gl 6.2). As cartas de Paulo são repletas de imperativos que
também são vistos pela igreja como ordenanças, embora estejam abertos à
interpretação quanto à sua validade para hoje (assunto já abordado e com literatura
recomendada na Unidade 7 – a interpretação das cartas). Portanto, iniciaremos com
uma explicação sobre o que é a lei e o seu papel na Bíblia. Depois veremos algumas
diretrizes hermenêuticas sobre como os cristãos devem ler as leis do Antigo
Testamento.

1. O que é a lei?

Tradicionalmente, faz-se referência aos cinco livros de Moisés como os livros


da lei – o Pentateuco. Segundo os especialistas no assunto, o Antigo Testamento
possui mais de seiscentos mandamentos que o povo de Deus deveria observar a fim
de viver em lealdade ao seu Deus. Essas leis estão distribuídas em quatro livros do
Pentateuco: Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Porém, já sabemos que a
maior parte do livro do Êxodo é texto narrativo e Gênesis, também narrativo, não
contém leis. Mesmo assim, estes são chamados “livros da lei”. Logo, não existe uma
relação evidente entre esses livros e “a lei”. Apenas sabemos que esses livros
contêm textos que são leis, mas não se refere à totalidade do conteúdo deles. As
leis foram dadas ao povo dentro das situações descritas na narrativa. É o bastante
observar em qual contexto Moisés entrega os Dez Mandamentos ao povo, em
Êxodo 20.
Já o Novo Testamento faz referência à lei como se falasse do Antigo
Testamento como um todo, “visto que a função da maioria dos livros do Antigo
Testamento é, em grande medida, ilustrar e aplicar a lei que se acha no Pentateuco
(ver, por exemplo, Mt 5.17-18; Lc 16.17; Tt 3.9)” (FEE; STUART, 2002, p. 139). Ou
seja, a lei na Bíblia não está restrita aos Dez Mandamentos ou ao Pentateuco. Ela é
a revelação da vontade de Deus para o seu povo no que diz respeito à santidade,
organização do povo, justiça social e sistema sacrificial. As leis tratam de como deve
ser a relação de cada indivíduo e de todo o povo com Deus e uns com os outros.

Página 128

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

Por isso, ela se faz presente literalmente em passagens como Êxodo 20, mas está
em pauta nas narrativas, nas poesias, na sabedoria e nos profetas.
As leis da Bíblia estão intimamente ligadas com o ser de Deus. O Deus bíblico
é Santo e exige a santidade do seu povo (Lv 11.44,45; 19.2; 20.7; 1Pe 1.15,16). Ele
não tolera o mal, a injustiça, o pecado. Assim, ao formar um povo, Deus revela a sua
vontade quanto ao certo e ao errado, aos direitos e aos deveres do povo de Deus.
Tudo isso faz sentido porque o Deus da Bíblia chama um povo à comunhão. Como
bem percebeu Walter Kaiser: “Israel [...] não tinha escolha no assunto do bem e do
mal se quisesse desfrutar da comunhão constante daquele cujo próprio caráter não
tolerava nem toleraria o mal” (KAISER, 2011, p. 83).

Os textos das leis também seguem um “gênero literário” próprio, o “gênero


normativo”, ou legislativo, para alguns, que pode ser entendido assim: vimos
como são necessárias as regras para o bom andamento da vida em
comum. Ora, na medida em que as regras são forjadas e fixadas na vida de
uma sociedade, elas vão se constituindo em “corpo jurídico” dessa
sociedade, o qual se expressa por meio de estruturas e formas cada vez
mais próprias e adequadas de linguagem, tanto oral quanto escrita. Surge,
assim, a forma literária que chamamos de “gênero normativo”, um padrão
de linguagem próprio para as leis, normas, decretos, estatutos etc. As
muitas leis contidas na Bíblia formam o “corpo jurídico” bíblico e, como não
poderia deixar de ser, seguem o padrão dessa linguagem (SOARES, 2013,
p. 19).

2. O enquadramento hermenêutico da lei

Como tudo o que temos aprendido neste curso, precisamos de contexto aqui
também. Certamente o ponto de partida para o assunto “lei” na Bíblia é o livro do
Êxodo, que consiste na narrativa de como Deus libertou o seu povo da escravidão
na terra do Egito e os conduziu pelo deserto rumo à terra prometida. Ao longo dessa
jornada, Deus deu ao povo a sua lei e ordenou a construção do tabernáculo, que era
uma espécie de templo móvel, que revelava o desejo do Senhor de habitar no meio
do seu povo. Esse contexto fornece a moldura em que a lei é dada ao povo de
Deus.
Portanto, as leis foram dadas por Deus para o povo que havia sido libertado
da escravidão no Egito, sendo que Deus foi o agente da libertação. A liberdade
consiste em privilégios e responsabilidades, direitos e deveres. A leitura de Êxodo

Página 129

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

19 e 20 é imprescindível para uma boa compreensão da função das leis na Bíblia.


Pois ser povo de Deus consiste em viver em obediência a ele. Não é possível ser
povo de Deus e viver segundo as diretrizes dos próprios interesses ou dos ídolos.
Êxodo 19.5,6 deixa clara a relação entre privilégios e responsabilidades:

Agora, se me obedecerem fielmente e guardarem a minha aliança, vocês


serão o meu tesouro pessoal dentre todas as nações. Embora toda a terra
seja minha, vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação
santa. Essas são as palavras que você dirá aos israelitas (Êxodo 19.5,6 –
NVI).

Assim, o Deus libertador dá a lei ao seu povo. Note como o prólogo dos Dez
Mandamentos é uma afirmação sobre quem diz aquelas palavras e o que ele fez
pelo povo que as recebe: “E Deus falou todas estas palavras: ‘Eu sou o SENHOR, o
teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão’” (Êx 20.1,2). O nosso
entendimento correto das leis depende do contexto em que elas são dadas: o
contexto da libertação do povo da escravidão do Egito. Portanto, os mandamentos
foram dados visando à preservação da liberdade, e não a uma nova escravidão.

O Deus que faz exigência éticas é o Deus que antes libertou o povo da
escravidão. As exigências éticas, então, devem ser vistas como parte do
processo de libertação. Num primeiro momento, Deus libertou o povo da
escravidão social, política e cultural que o Egito lhe havia imposto. [...] Os
mandamentos foram dados para a preservação da liberdade recém
conquistada. Portanto, seu tema é a liberdade e não um jugo ou uma nova
escravidão. Os Mandamentos não querem ser lei que engessa, mas
instruções para a preservação da liberdade contra os inimigos da mesma
(MUELLER, 2005, p. 93,96).

Portanto, a lei dada por Deus ao povo recém-libertado da escravidão tem


como objetivo a manutenção da liberdade, o que ela faz valorizando e promovendo a
vida. Aqui temos a primeira e mais valiosa perspectiva hermenêutica sobre as leis no
Antigo Testamento: elas visam à liberdade e à promoção da vida. Por mais que
muitas delas sejam difíceis de entender no contexto de hoje, vale a pena nos
esforçarmos nessa tarefa, com o desejo de “encará-las porque são parte importante
da Bíblia. E não existe nenhum outro livro tão interessado em nos fazer conhecer as
regras do bem viver e ser feliz” (SOARES, 2013, p. 19). Somente quando entendidas
como mandamentos dados pelo Deus libertador é que seremos capazes de as
compreender como Tiago, por exemplo, que enxergou liberdade e felicidade onde

Página 130

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

normalmente veríamos o oposto: “Mas o homem que observa atentamente a lei


perfeita, que traz a liberdade, e persevera na prática dessa lei, não esquecendo o
que ouviu, mas praticando-o, será feliz naquilo que fizer” (Tiago 1.25 – NVI – itálicos
meus).
O conjunto dos mandamentos forma uma lei única, direcionada a três
aspectos da vida individual e coletiva: a lei moral, a lei civil e a lei cerimonial. A lei
moral consiste nas exigências de Deus acerca da conduta do povo quanto ao certo e
ao errado, ao bom e ao mau, sendo que o padrão de referência é própria santidade
de Deus, seu caráter perfeito e imutável. Assim, a lei orienta o povo a avaliar a sua
ética tendo o próprio Deus como seu valor de referência. A lei civil é a aplicação da
lei moral à vida em comunidade. O povo deveria ser constituído e a liderança
nacional tem o dever de praticar a justiça proveniente da lei. A lei cerimonial instruía
o povo quanto ao culto, ao serviço prestado a Deus e à purificação por meio do
sistema de sacrifícios.

3. A função da lei na vida do povo de Deus

A lei era como um presente de Deus ensinando o seu povo a viver de modo a
preservar a liberdade que recebeu no Êxodo. A lei é a pedagogia da liberdade. Ela
posicionava o povo à parte de um entorno pagão ao mesmo tempo em que o
ensinava a viver em amor e aliança. O papel da lei, portanto, não era ser um meio
de salvação. Paulo a entendeu assim também, ao dizer que ninguém é justificado
pela prática da lei (Gl 2.16,21; 3.11). A salvação que os tirou do Egito e os conduziu
à terra prometida é um ato de graça e fidelidade da parte de Deus. A lei, portanto, é
dada para um povo que precisava aprender a se relacionar de maneira justa com
Deus em lealdade e uns com os outros. Ela não buscava ser exaustiva e eventual,
mas paradigmática e essencial, isto é, ela não queria prender o povo em cada uma
de suas estipulações, mas através destas buscava gerar no povo a consciência
necessária para lidar com sua liberdade e, assim, preservar e promover a vida.
A lei se apresentou ao povo em duas formas: a lei apodítica e a lei
casuística. A primeira, apodítica, era direta, do tipo faça ou não faça. São leis
diretas que afirmam o que deveria ser feito e o que não deveria ser feito para o

Página 131

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

cumprimento da parte do povo em sua aliança com o Deus libertador. Ainda que
fossem mandamentos diretivos, seu objetivo era a formação da consciência,
justamente porque leis não dão conta de tudo o que todos, em todos os lugares,
devem ou não devem fazer, em todas as circunstâncias. Era nesse ponto que
acontecia boa parte das discussões dos fariseus e escribas com Jesus, que
justificavam suas ações, por exemplo, no cumprimento literal da lei, mas sem levar
em consideração a aplicabilidade da lei em situações específicas, como, por
exemplo, colher espigas ou curar no sábado (Mt 12.1-13). Vista dessa maneira, as
leis têm mais a ver com uma constituição do que com um código, ou seja, através de
exemplos selecionados ensinavam princípios abrangentes.

Olhe de perto, por exemplo, as leis de bem-estar social na época da


colheita, nos v.9 e 10 (Lv 19.9-14). Note que somente as colheitas do
campo (trigo, cevada, etc.) e das uvas são mencionadas especificamente.
Isso quer dizer que, se você criasse ovelhas ou colhesse figos ou azeitonas,
não teria obrigação alguma de compartilhar seus produtos com os pobres e
com os estrangeiros residentes? [...] Claro que não. A Lei é paradigmática -
estabelece um padrão por um exemplo, em vez de mencionar toda
circunstância possível (FEE, STUART, 2002, p. 142).

Entender esses princípios é fundamental para compreender a segunda forma,


a casuística, justamente porque ela era uma lei que funcionava na dinâmica caso a
caso. Os elementos dessa forma de lei são condicionais, e em contraste com as
apodíticas, elas destacam casos particulares que se aplicam somente a algumas
pessoas e situações, e não a todos em todas as situações. Deuteronômio 15.12-17,
por exemplo, é aplicável somente no caso de ser um israelita com um escravo. É
condicional e nenhuma delas é renovada no Novo Testamento, mas o que importa é
o que podemos aprender dessa lei acerca de Deus.
A prática da lei estabelece o que Deus sempre esperou do seu povo: um
relacionamento pautado pela obediência à vontade de Deus. A boa vida é
decorrente dessa obediência. Penso que um dos textos que melhor exemplifica essa
verdade é Josué 1.6-8:

Seja forte e corajoso, porque você conduzirá este povo para herdar a terra
que prometi sob juramento aos seus antepassados. Somente seja forte e
muito corajoso! Tenha o cuidado de obedecer a toda a lei que o meu servo
Moisés lhe ordenou; não se desvie dela, nem para a direita nem para a
esquerda, para que você seja bem-sucedido por onde quer que andar. Não

Página 132

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e de


noite, para que você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito. Só
então os seus caminhos prosperarão e você será bem-sucedido (itálicos
meus).

Por fim, sabemos que o povo bíblico de Israel estava cercado por outros
povos. Cada um deles tinha o seu corpo jurídico, muito mais antigo que as leis de
Israel, como o código de leis acadiano – Leis de Eshunna (1800 a.C.) – e o Código
de Hamurabi (1726 a.C.). Quando comparados, percebem-se semelhanças e
diferenças. A partir dessa comparação pode-se afirmar que o código de leis do
Antigo Testamento já trazia um padrão moral elevado, um grau notório de progresso.
Porém, isso não significa que a lei do Antigo Testamento representa o padrão mais
alto possível do ensino moral e de prática da justiça (FEE; STUART, 2002, p. 146-
148). Dentro da Bíblia, esse padrão de perfeição e de possibilidade de cumprimento
vem somente com o ensino de Jesus Cristo no Novo Testamento, que envolve o seu
sacrifício como o cumprimento das exigências da lei, bem como a vinda do Espírito
Santo como o poder de Deus para uma vida realmente segundo a vontade de Deus
(veja Romanos 6-8). Mesmo assim, a lei do Antigo Testamento realmente demonstra
um grau notável de progresso além dos padrões estabelecidos antes dela.

4. Algumas diretrizes para uma interpretação cristã das leis do Antigo


Testamento

O Novo Testamento, como vimos, faz referência às leis do Antigo


Testamento, bem como as interpreta: seja Jesus, no Sermão do Monte (Mt 5.17-20),
Paulo escrevendo aos Romanos e Gálatas – sobre o sentido da lei e como lidamos
com ela agora que estamos em Cristo –, ou a carta aos Hebreus – especialmente
sobre as leis cerimoniais. Isso é um indicador de que o assunto “leis” precisou de um
esclarecimento diante da nova fé em Jesus como o Messias. Por isso, como
cristãos, precisamos observar algumas diretrizes para um bom entendimento das
leis. Vamos observar cinco diretrizes com base em FEE; STUART, 2002, p. 138-141
– os autores escreveram seis diretrizes, mas concluo que duas delas são uma só,
então, cinco ao todo:

Página 133

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

1. A lei do Antigo Testamento é uma aliança. Essa afirmação consiste em ler


a lei como quem lê um contrato firmado entre duas partes, em que ambas
possuem obrigações especificadas no contrato. Essa natureza pactual da Lei
faz com que entendamos o papel dos profetas que buscam desenvolver no
povo um senso de fidelidade e obediência à aliança com Deus, pois
obediência à lei significa lealdade a Deus.
2. O Antigo Testamento não é o nosso testamento. Ou seja, o Antigo
Testamento não é a nossa aliança. Logo, as evidências de lealdade que Deus
esperava do seu povo no Antigo Testamento e as que ele espera de nós hoje
são diferentes. Mas precisamos ser cautelosos na interpretação das leis do
Antigo Testamento. Não devemos nos precipitar, resumindo a questão com o
reducionismo que afirma que elas não valem mais para nós. Como vimos, as
leis estavam aplicadas a diversos aspectos da vida. Certamente existem leis
mais fáceis de percebermos que não foram renovadas pela nova aliança, por
isso, já não falam mais diretamente conosco, tais como as leis cerimoniais ou
rituais, como o sacrifício de animais, assim como as leis civis, que regulam
diversos aspectos da vida civil, como crimes e suas punições, por exemplo.
Mas outras leis, como acerca da cobiça, do assassinato, do adultério etc.
(observe como Jesus interpretou e aplicou esses mandamentos no Sermão
do Monte) permanecem como revelação da vontade de Deus para o seu
povo. O que cabe a nós, cristãos, é interpretar tais mandamentos à luz da lei
do amor de Jesus Cristo (Mt 22.34-40; Mc 12.28-31), seguido por Paulo (Gl
5.13,14; Rm 13.8-10) e João (1Jo 2.3-9; 3.16-24; 4.7-21). Sabemos que não
estamos mais debaixo da lei, mas sim, debaixo da graça (cf. Rm 6.14,15), e
que também isso não significa a ausência de um padrão de santidade – pois
o povo da graça é aquele que não se submete à escravidão do pecado, mas
que tem no seu horizonte de ação a conduta correta, a santidade, segundo a
vontade de Deus (Rm 6-8). Portanto, permanecem sobre o povo da nova
aliança somente leis que tenham sido reformuladas ou reforçadas no Novo
Testamento. Esse é um importante tópico das disciplinas de Teologia do
Novo Testamento e de Ética Cristã.
3. Parte da antiga aliança é renovada na nova aliança. Existem alguns
aspectos das leis do Antigo Testamento que foram renovados pela nova
Página 134

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

aliança em Cristo. Aqui, a fonte hermenêutica é a própria hermenêutica de


Jesus no Sermão do Monte (especialmente Mt 5.21-48), bem como em
passagens que citamos acima, como a sua resposta acerca do maior
mandamento. Assim, ele mostrou ao povo os aspectos por trás de alguns
mandamentos, redefinindo algumas leis em termos de amor a Deus e ao
próximo. É uma nova interpretação para uma antiga formulação, isso faz com
que a Lei evolua ao ser conhecida em seus aspectos mais profundos. Fee e
Stuart são enfáticos ao usar a palavra “aspectos”, pois não se trata da própria
lei, já que Jesus as redefiniu de modo a incluir mais do que o seu escopo
original e a maneira como eram interpretadas pelos judeus em seu tempo.
4. A totalidade da lei do Antigo Testamento ainda é a Palavra de Deus
dirigida a nós, mesmo que ainda não continue a ser o mandamento de
Deus para nós. Talvez esse seja um dos princípios hermenêuticos mais
importantes. Entra aqui a questão da normatividade dos textos. Não é porque
algumas leis deixaram de ser uma obrigação para o povo da nova aliança que
devemos desconsiderar a sua importância. Mesmo sem ser normativas para
nós, tais leis revelam a maneira como Deus conduziu o seu povo. Elas nos
permitem conhecer o coração de Deus e ouvir sua voz na época em que a lei
foi constituída. Não nos é proibido comer carne de porco, mas observar esse
mandamento à luz de seu contexto nos faz conhecer um Deus que cuida de
seu povo preocupando-se com sua saúde, por exemplo. Um exemplo pode
nos ajudar a fixar essa diretriz. Em Mateus 11.4, Jesus ordena que os
discípulos de João deveriam voltar a anunciar o que estavam ouvindo e
vendo. Ao ler esse texto, somos informados acerca de um mandamento,
mesmo que ele tenha sido dado aos discípulos de João, e não a nós.
5. Somente aquilo que é explicitamente renovado na lei do Antigo
Testamento pode ser considerado parte da “lei de Cristo” no Novo
Testamento. Como vimos na introdução, Paulo fez referência à existência de
uma “lei de Cristo” (Gl 6.2; 1Co 9.21). Em que essa lei consiste? Onde
encontramos esses mandamentos? Eles estão espalhados pelo Novo
Testamento e são renovações das leis do Antigo Testamento aplicadas ao
povo da nova aliança. Os Dez Mandamentos são um ótimo exemplo de leis
que foram renovadas e podem ser consideradas como “lei de Cristo” para nós
Página 135

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

(Mt 5.21-37). E quanto ao sábado, já que ele faz parte dos Dez
Mandamentos? O princípio hermenêutico é o mesmo: devemos interpretar a
lei do sábado de Êxodo 20.8-11 seguindo a atitude e o ensino de Jesus
quanto a esse mandamento: Jo 7.23; Mt 12.1-8; Mc 2.23-3.6; Lc 6.1-11;
13.10-17).

Nessa unidade vimos

Vimos que as leis do Antigo Testamento devem ser lidas à luz do seu
contexto primeiro: o Êxodo. Mesmo assim, elas estão presentes em todo o Antigo
Testamento, em forma de reflexão poética, aplicada em narrativas, anunciada pelos
profetas. Até mesmo o Novo Testamento se vale delas, ao interpretá-las e distinguir
entre o que permanece e o que não permanece como uma obrigação para o povo da
nova aliança – a comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo, em forma
de “lei de Cristo”.
Oferecemos cinco diretrizes norteadoras para uma hermenêutica das leis e
algumas referências bibliográficas sobre o assunto. Por fim, mais uma contribuição
em forma de lembretes no ajudará nesse processo. Elas são basicamente uma
recapitulação de assuntos que vimos nesta unidade:
1. As leis do Antigo Testamento fazem parte da palavra de Deus, inspirada por ele e
dirigida a nós, mesmo que as mesmas leis não sejam mandamentos diretamente
aplicáveis a nós.
2. As leis do Antigo Testamento, principalmente as que estão no Êxodo, fazem parte
da história do povo bíblico de Israel como estatutos da aliança com Deus. Não
pense nelas como obrigatórias para nós que estamos na nova aliança, a não ser que
tenham sido especificamente renovadas e aplicadas no Novo Testamento.
3. As leis do Antigo Testamento revelam os contornos da santidade e da justiça de
Deus. Não se esqueça de observar que o amor e a misericórdia de Deus são
revelados de igual modo (veja Êx 34.1-7).
4. As leis do Antigo Testamento não são um tratado legal exaustivo. Veja as leis
como um paradigma de postura de coração e comportamento que Deus espera do
seu povo.

Página 136

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

5. A essência das leis do Antigo Testamento está evidentemente presente na fala


dos profetas e nos textos do Novo Testamento: os Dez Mandamentos e a lei do
amor.
5. Tenha em mente que a razão de ser das leis é a preservação da liberdade e a
promoção da vida.

Saiba mais

No livro clássico, Cristianismo puro e simples, C.S. Lewis argumenta com


muita precisão que o simples fato de os seres humanos terem uma noção comum de
certo e errado é uma evidência de há algo superior neste mundo. Pela Bíblia,
sabemos que Deus é quem deu ao ser humano a noção de certo e de errado, como
também revelou a sua vontade para o povo bíblico por meio da lei. Assim, o Deus da
Bíblia não é indiferente à conduta humana. Ele exige a prática da justiça, sendo que
ele mesmo é quem define em que consiste essa justiça. Recomendamos a leitura
desse texto como uma ótima maneira de se compreender as leis como revelação da
vontade de Deus quanto ao certo e o errado em perspectiva cristã: LEWIS, C.S.
Cristianismo puro e simples. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
Como temos aprendido, o entendimento histórico e teológico do Pentateuco
forma as bases de entendimento das leis na Bíblia. Recomendo a leitura abaixo
como fundamental para esse propósito: KAISER JR., Walter C. O plano da
promessa de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 69-92 (Capítulo 3).
A ética do Antigo Testamento merece uma atenção especial por parte dos
cristãos. Considero que uma das melhores contribuições para esse assunto foi feita
por John Goldingay, PhD pela Universidade de Nottingham e professor de Antigo
Testamento no Fuller Theological Seminary. Ainda não dispomos de uma tradução
em língua portuguesa desta obra: GOLDINGAY, John. Old Testament Ethics: a
guided tour. Downers Grove: InterVarsity Press, 2019.
É fundamental que entendamos bem como os primeiros cristãos
desenvolveram a sua compreensão acerca das leis que haveriam de reger a vida da
igreja. Essa compreensão não aconteceu desvinculada da referência de lei que eles
já possuíam, que era a lei do Antigo Testamento. Mas como eles fizeram essa
releitura das leis a partir de Cristo? O importante teólogo do Novo Testamento e
Página 137

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 8: A Interpretação da Lei do Antigo Testamento

especialista em teologia do apóstolo Paulo, James Dunn, tem um capítulo


esclarecedor sobre esse assunto: DUNN, James. A teologia do apóstolo Paulo. São
Paulo: Paulus, 2003. p. 704-800.

Para reflexão

1. O que o contexto histórico da entrega da lei da parte de Deus para o povo de


Israel nos esclarece sobre a finalidade da lei?
2. De que forma os cristãos devem ler a lei do Antigo Testamento? Que luzes o
Novo Testamento lança sobre o significado e aplicação da lei no contexto da
nova aliança?

Página 138

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

Unidade 9: A INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS POÉTICOS E


DA SABEDORIA

No Mundo Antigo, que é período da história em que o mundo bíblico está


inserido, a arte poética exercia um papel fundamental na vida social, na educação
que visava à formação do cidadão. Em grandes cidades da antiguidade, como
Atenas e Esparta, por exemplo, era por meio da arte poética que os ideais de
bravura, lealdade, honradez, enfim, o ideal heroico era incutido nos jovens para
estimulá-los a lutar em favor da pólis. As crianças eram estimuladas a decorar os
textos dos grandes poetas que falavam dos heróis, e assim elas eram motivadas a
imitá-los ou, até mesmo, buscar superá-los. Dessa maneira, para muito além da
guerra, outros aspectos vitais para a vida em sociedade eram transmitidos dessa
forma, tais como ética, política, estética, religião, costumes etc. (SILVANO, 2014,
p.13-17).
No mundo do povo bíblico de Israel não era tão diferente. A arte poética era o
veículo para a difusão de valores éticos, para a reflexão acerca de Deus e sobre a
vida, sobre as relações humanas em todos os sentidos – casamento, sexo,
espiritualidade, justiça, amizade etc. –, e também sobre a guerra – por exemplo, o
Cântico de Débora (Jz 5). Assim, é por toda a extensão da Bíblia que encontraremos
textos poéticos, e não somente no grupo de livros que tradicionalmente chamamos
de poéticos: Jó, Salmos, Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes. Embora
existam discussões técnicas no mundo acadêmico sobre o elemento desses textos,
de modo geral são eles que compõem o grupo.
Aqui, portanto, temos que estabelecer uma diferença entre livros de sabedoria
e textos poéticos. A categoria “Sabedoria”, ou “Sapiencial”, abarca os livros citados
acima. Esses são livros escritos em forma poética. Porém, eles não são os únicos
lugares da Bíblia em que a forma poética é encontrada. Temos poesia em quase
toda a Bíblia, incluindo o Novo Testamento, como em Lc 1.46-55; Jo 1.1-18, Fp 2.6-
11, Cl 1.15-20. Portanto, os livros de sabedoria são poéticos, mas o uso da poesia
na Bíblia é quase tão abundante quanto à narrativa. E existe uma diversidade
quanto à literatura poética. Esses são assuntos que trataremos aqui.

Página 139

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

Nesta unidade vamos aprender sobre essas duas categorias. Em primeiro


lugar, olharemos para algumas características da poesia e faremos recomendações
de literatura especializada sobre o assunto para aprofundamento. Em seguida,
observaremos as características principais da sabedoria no Antigo Testamento. Por
fim, usaremos o livro de Provérbios como um exemplo para aplicação de algumas
diretrizes hermenêuticas.

1. A poesia bíblica

Vimos que a narrativa é o gênero literário mais comum na Bíblia. A poesia


vem logo atrás. Cerca de um terço do Antigo Testamento foi escrito em forma
poética. Para dimensionarmos esse dado, pense que se juntarmos toda a literatura
poética do Antigo Testamento num só volume teremos uma obra mais volumosa que
todo o Novo Testamento. Uma das marcas distintivas da poesia é o uso de figuras
de linguagem, sobre as quais já estudamos. Certamente que o livro dos Salmos é a
poesia mais conhecida da Bíblia, seguido de Provérbios (KAISER, 2002, p.81).
Narrativa e poesia são gêneros literários distintos. E a poesia bíblica tem uma
particularidade em relação às formas e usos da poesia no Mundo Antigo. Essa
particularidade é a maneira como os escritores do Antigo Testamento usavam a
poesia de modo separado das suas narrativas. Robert Alter, um importante
estudioso da literatura hebraica, explica assim:

Talvez a maior peculiaridade da poesia bíblica entre as literaturas do antigo


mundo mediterrâneo seja o aparente evitar da narrativa. Os escritores
hebreus usavam versos para canção de celebração, canto fúnebre, oráculo,
oratória, profecia, argumento reflexivo e didático, liturgia e, muitas vezes,
como um reforço ou resumo inserido nas narrativas em prosa – mas apenas
marginal e minimamente para contar uma história (ALTER, 1985, p. 27 –
tradução minha).

Notemos também o uso da poesia no Antigo Testamento, resumido por Alter.


Eles expressavam poeticamente o que viviam, sentiam, pensavam, almejavam.
Vemos a poesia formando canções de celebração a Deus por sua intervenção na
vida do povo, concedendo vitória na guerra, por exemplo. Mas também cantos
fúnebres ou uma reflexão sobre as angústias da vida, pois a poesia também era

Página 140

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

usada para falar com Deus ou consigo mesmo sobre o sofrimento, a brevidade da
vida, o medo, enfim, a angústia da existência humana. Profetas transmitiram ao
povo a palavra de Deus por meio da poesia.
A análise poética da Bíblia é uma área bastante complexa, pois envolve
inúmeras complicações. A primeira delas é a ausência de uma nomenclatura única
para os conceitos que a arte poética da Bíblia envolve, o que torna difícil nomear
elementos da poética bíblica e confunde a conversa sobre o tema. A segunda é a
dificuldade de tradução da poesia, visto que ela, dentre todas as formas literárias, é
a que mais usa figuras de linguagem. Sendo que as figuras de linguagem são
extraídas do mundo concreto dos escritores, as distâncias linguísticas, culturais,
geográficas e históricas em relação a nós, tornam a tradução da poesia uma tarefa
quase impossível. Há quem diga que realmente não existe tradução de uma poesia,
pois uma vez traduzido, perdeu-se a sua referência às figuras tiradas do mundo da
experiência do autor do texto. Nesse caso, o que acontece é uma reescrita do texto
em outra língua. Por isso, é comum que uma poesia seja mudada em uma tradução
para ser compreendida em outro idioma, ou que a alteração no conteúdo aconteça
para preservar a métrica e a sonoridade, como é o caso comum da tradução de
músicas. A análise poética da Bíblia, ou poetologia bíblica, é um campo
tremendamente vasto e complexo. Walter Kaiser nos alerta sobre essa limitação que
temos no campo da interpretação da poesia bíblica:

Apesar da quantidade de poesia na Bíblia e a riqueza do nosso


conhecimento acerca de poesia clássica dos poetas gregos e latinos, os
intérpretes da Bíblia muitas vezes desconhecem as exigências
hermenêuticas especiais da poesia. Parte do problema está dentro da
própria disciplina de interpretação da Bíblia, pois algumas das mais
importantes decisões sobre como devemos tratar a poesia ainda não foram
resolvidas satisfatoriamente pelos estudiosos desse gênero literário. Isso
significa que devemos sempre ter uma atitude mais hipotética na
interpretação da poesia bíblica (KAISER, 2002, p. 82).

Cientes dessa complexidade, voltaremos os nossos olhos agora para o que


está ao alcance de todo leitor da Bíblia e nos ocuparemos com as principais
características da poesia bíblica.

Página 141

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

1.1. As principais características da poesia bíblica

O que podemos saber sobre a poesia bíblica que esteja em nosso campo de
atuação como leitores e intérpretes que buscam a compreensão do texto bíblico?
Vamos olhar para alguns desses aspectos da poesia bíblica, começando pelos tipos
de poesia.
 A poesia lírica era usada para ser cantada ou acompanhada por instrumentos
musicais. O melhor exemplo desse tipo de poesia é o livro dos Salmos. Esse
é um elemento comum entre a poesia bíblica e a grega. Havia uma relação
íntima entre a poética e a música, as duas eram importantes para que o povo
se expressasse religiosamente. Essa é a razão pela qual a música e a poesia
são tão marcantes na Bíblia.
 A poesia didática consiste em ditos e frases, por meio dos quais se comunica
a sabedoria voltada para os assuntos do cotidiano. É a poesia da reflexão
sobre si, sobre a vida, sobre Deus e as fronteiras de todas essas dimensões
da experiência da vida. Eclesiastes e Provérbios são os melhores
representantes desse tipo de poesia.
 A poesia dramática é composta por diálogos, em que diferentes personagens
interagem entre si, argumentam, contra argumentam, complementam-se. É o
que encontramos em Jó e Cântico dos Cânticos.
 O paralelismo tem sido considerado como um elemento característico da
poesia hebraica. Ele consiste na correspondência de um verso com outro, ou
de uma linha com outra. Essa equivalência pode ser uma reafirmação pelo
uso de sinônimos, por exemplo, ou também pode ser um contraste. Existem
três tipos de paralelismo:
 Paralelismo sinonímico. Quando a segunda linha repete o que foi dito na
primeira usando palavras que não adicionam nem subtraem o significado
da primeira linha. Basicamente, a segunda linha funciona como um
sinônimo da primeira. Nesse caso, as palavras, os conceitos e as ideias
principais são relevantes para a interpretação. Exemplo:42

42
Veja mais exemplos de paralelismo sinonímico em: Jz 5.28; Pv 1.8, 3.13,14, 4.24, 19.6.
Página 142

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

Levantam os rios, ó SENHOR,


levantam os rios o seu bramido;
levantam os rios o seu fragor (Salmos 93.3 – ARA).

 Paralelismo antitético. Quando segunda linha afirma o contrário da


primeira, criando um contraste ou uma negação. Exemplo43:

Pois o SENHOR aprova o caminho dos justos,


mas o caminho dos ímpios leva à destruição! (Salmos 1.6 – NVI).
Como jaz solitária
a cidade outrora populosa! (Lamentações 1.1a – ARA).

 Paralelismo sintético. Quando uma frase resume ou completa o sentido


da outra. Esse tipo de paralelismo é menos comum que os anteriores, o
que impede um consenso entre os especialistas quanto a ele. Mesmo
assim, o encontramos em alguns textos. Exemplo44:

Cria em mim, ó Deus, um coração puro


e renova dentro de mim um espírito inabalável (Salmos 51.10 – ARA).

Resumindo, a poesia bíblica é composta por figuras de linguagem e estilos


poéticos. Nos poemas, o principal modo de falar do sagrado é a analogia,
comparando uma verdade eterna com algo do cotidiano. Na composição dos
poemas, a escolha das palavras era cuidadosa a fim de criar sonoridade e ritmo,
sem a necessidade de criar rimas ou de seguir uma métrica (SILVANO, 2014).
Dessa maneira, a poesia fornece um meio em que “aprende-se [...] mais pelos
sentidos do que pela explicação pura e simples” (REINKE, 2014, p. 52). Existem
muitos outros elementos característicos da poesia bíblica, mas somente a literatura
especializada poderá fornecer ao estudante essas informações.

43
Veja mais exemplos de paralelismo antitético em: 1Sm 15.22; Sl 32.10; Pv 10.1,2, 11.19, 13.7,
30.21-23.
44
Veja mais exemplos de paralelismo sintético em: Sl 1.3, 19.8-10, 148.7-12; Pv 14.27. 21.28.
Página 143

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

2. A função da sabedoria na Bíblia

Embora toda a Bíblia seja uma fonte de sabedoria (2Tm 3.15-17), a sabedoria
bíblica é composta por uma ampla coleção de ditados provenientes de uma tradição
oral e posteriormente escritos, compostos para ensinar o povo de Deus a viver na
presença de Deus. Em outras palavras, a sabedoria bíblica ensina o povo a temer o
Senhor.

Com efeito, segundo uma experiência inculcada muitas vezes, o elemento


central do conhecimento é o temor de Deus (Pv 1.7; 9.10; 15.33; Jó 28.28;
Sl 111.10). Isso se aplica à competência profissional, a um estilo de vida
razoável e às decisões sociais e políticas. Quem quiser julgar devidamente
o ser humano em suas possibilidades deve ter em conta a importância do
temor de Deus para suas percepções. [...] O temor de Deus é o elemento
central da sabedoria, porque a sabedoria é, em primeira e última instância,
a sabedoria de Deus da qual o ser humano participa por meio de poucas
palavras sussurradas que percebeu (WOLFF, 2007, p. 312-321).

O temor do Senhor é o que vinculava a promessa de Deus aos patriarcas à lei


e à sabedoria. Desde Gênesis, o temor a Deus deve produzir obediência e fé na
promessa de Deus. Isso está representado na obediência de Abraão, quando lhe foi
exigido entregar o seu único filho, Isaque, em sacrifício ao Senhor (Gn 22). Aqui, a
prova da obediência e da fé se torna uma constante na jornada de Deus com o seu
povo. Quando a lei foi entregue por Deus, que aprendemos na unidade anterior, o
seu cumprimento era uma questão de lealdade ao Deus com quem o povo estava
aliançado. Mas é no livro de Deuteronômio que o temor do Senhor se torna um foco
ainda mais ajustado (veja: Dt 4.10; 5.29; 6.2,13,24; 8.6; 10.12,20; 13.4; 14.23; 17.19;
28.58; 31.12,13). O ensino de Deuteronômio acerca do temor ao Senhor era
totalmente prático, sendo a resposta do povo ao que ouviu e aprendeu da palavra de
Deus. Temer ao Senhor é entregar-se a ele pela fé. Para tanto, era necessário que o
povo de Deus aprendesse a temer ao Senhor e ter no temor ao Senhor o princípio
orientador para todos os aspectos da vida, o que incluía a obediência, o amor, a
lealdade e a adoração (KAISER, 2017, p.142-144).
Essa é a função da sabedoria: ensinar o povo a temer ao Senhor:

O temor do SENHOR
é o princípio do conhecimento,
mas os insensatos desprezam

Página 144

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

a sabedoria e a disciplina (Pv 1.7).

Agora que já se ouviu tudo,


aqui está a conclusão:
Tema a Deus
e obedeça aos seus mandamentos,
porque isso é o essencial para o homem (Ec 12.13).

Mas o que é a sabedoria? Hoje associamos a sabedoria com conhecimento.


Logo, sabedoria, como o conhecimento, ganharam o sentido de quantidade de
informação adquirida. Porém, sabedoria não é isso. Ser sábio é ter a capacidade de
tomar decisões corretas mesmo que resultem em prejuízo pessoal ou sofrimento. Na
Bíblia, é decidir segundo a vontade de Deus. Sabedoria, portanto, é capacidade de
discernimento moral.
A Bíblia nos apresenta o ser humano como que a caminho da liberdade.
Nessa jornada acontece o constante aprendizado. Por isso, a sabedoria é o que o
ensina a lidar com o mundo e com os outros seres humanos. Já que é aplicada ao
cotidiano, a sabedoria deve ser aprendida durante toda a vida. Esse processo
educacional acontece em diversos lugares: no lar, entre amigos, na escola. O
convívio do povo de Deus com a sua palavra é orientador para todos os aspectos da
vida em sociedade. É por isso que os ditos de sabedoria falam das coisas simples
do cotidiano no lar, como também da conduta dos reis e dos mestres.
Assim como há salmos em outros lugares da Bíblia – e não só no livro de
Salmos –, também esses quatro livros não são compostos exclusivamente de textos
sapienciais. Apesar disso, prevaleceu a classificação vide a grande maioria deste
estilo presente nos livros. Em cada um dos livros prevalece um tipo de sabedoria
diferente. Veja a tabela abaixo:

Jó Sabedoria especulativa acerca da injustiça da vida

Provérbios Sabedoria proverbial acerca de atitudes práticas

Sabedoria especulativa aplicada de forma cínica e com


Eclesiastes
realce à sabedoria

Cântico dos Sabedoria lírica e dramática acerca do sexo

Página 145

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

Cânticos

O livro de Provérbios é um ótimo exemplo tanto da essência da sabedoria


bíblica, como também de como devemos proceder ao interpretar esse tipo de
literatura. Para finalizar essa unidade, dentre os livros sapienciais do Antigo
Testamento, tomaremos Provérbios como exemplo para oferecer algumas diretrizes
hermenêuticas. Não temos como abordar todos os livros, então novamente
recomendamos a literatura especializada, como também, uma boa obra de
introdução ao Antigo Testamento acerca da literatura de sabedoria:

3. Um exemplo: Provérbios

Um provérbio não é uma afirmação completa e absoluta a respeito da


verdade das coisas, antes, é um estilo literário cheio de ritmo, repetição de sons,
vocabulário próprio e figuras de linguagem, além de sempre serem curtos, para que
facilite a memorização dos ensinamentos gerais e breves sobre uma vida boa. Por
isso, é necessário cautela para não fazer uma interpretação literal dos provérbios,
nem os aplicar em qualquer situação. Lembre-se: provérbios não são promessas
categóricas e sempre aplicáveis, mas sim verdades gerais e sugestões especiais
que devem ser analisadas em seus próprios termos.
Os objetivos dos Provérbios são revelados logo no primeiro capítulo, dentre
os quais se destaca a sabedoria e a prudência.

Eles ajudarão a experimentar


a sabedoria e a disciplina;
a compreender as palavras
que dão entendimento;
a viver com disciplina e sensatez,
fazendo o que é justo, direito e correto;
ajudarão a dar prudência
aos inexperientes
e conhecimento e bom senso aos jovens (Pv 1.2-4).

Como vimos, o pressuposto de toda a sabedoria é o temor a Deus, assim, o


relacionamento com Deus precede o comportamento ético. Já que Provérbios
fornece conselhos para a vida cotidiana, sendo que a maior parte deles quase não
Página 146

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

faz menção direta a Deus, precisamos observar os discursos acerca da sabedoria


nos capítulos 1.8-9.18. Eles servem como um guia hermenêutico para a
interpretação do livro todo, já que fornecem um sólido suporte religioso e teológico
aos provérbios encadeados a partir do capítulo 10 (DILLARD, LONGMANN III, 2006,
p. 228,229).
Fee e Stuart (2011, p. 209-216) fornecem algumas importantes diretrizes a
interpretação de provérbios.
Em primeiro lugar, os provérbios não são garantias legais da parte de Deus.
Embora eles abordem a vida cotidiana com conselhos sobre o que fazer e o que não
fazer, não há garantias divinas de que haverá sucesso em todos os casos. Eles
mencionam bênçãos e recompensas no sentido de probabilidade e não como um
compromisso divino de abençoar e recompensar o bom procedimento ou amaldiçoar
o mau procedimento. Por exemplo, 15.25: “O SENHOR derruba a casa do
orgulhoso, mas mantém intactos os limites da propriedade da viúva.” Todavia,
sabemos pelos próprios textos bíblicos que propriedades de viúvas foram violadas
por fraude ou credores cobiçosos (veja Mc 12.40 e Jó 24.2,3), e que orgulhosos vão
bem na vida e se tornam motivo do questionamento dos justos (veja Sl 73.1-12).
Quando lemos esse provérbio, e outros exemplificados nesse, ao lado de passagens
como Pv 23.10,11 e Lc 1.52,53, veremos que o seu real significado é a certeza de
que Deus está do lado daqueles que foram vitimas das injustiças desse mundo, dos
oprimidos, da viúva e do órfão, e se opõe aos orgulhosos e gananciosos.
Em segundo lugar, os provérbios devem ser lidos como uma coletânea. A má
compreensão de um provérbio isolado do restante das Escrituras pode nos conduzir
a práticas inapropriadas. Por exemplo, alguns dos provérbios usam o recurso
literário da hipérbole, como 21.22: “O sábio conquista a cidade dos valentes e
derruba a fortaleza em que eles confiam”. É evidente que a pessoa sábia não vai
literalmente atacar uma cidade ou derrubar uma fortaleza. O que o provérbio ensina
é que a sabedoria pode ser mais desejável e poderosa do que o poder militar, ou
fortificações de uma cidade. Portanto, um retrato simbólico do poder da sabedoria.
Em terceiro lugar, os provérbios utilizam um tipo de redação para serem
memoráveis e não para serem teoricamente acurados. Em outras palavras, nenhum
dos provérbios contém uma declaração completa da verdade. Os provérbios são
breves e parabólicos na declaração dos seus princípios. Esse fato sobre eles exige
Página 147

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

do leitor maior bom senso interpretativo para não concluir precipitadamente o que
tão poucas palavras figurativas querem dizer.
Em quarto lugar, como um desdobramento da terceira diretriz, os provérbios
precisam de uma boa tradução para ser devidamente apreciados hoje. Isso porque,
como já enfatizamos, a linguagem figurada do texto poético é extraída do mundo da
experiência dos autores e dos ouvintes/leitores. Assim, a distância entre nós e eles é
um impedimento ao entendimento direto do significado dessas palavras. Para seguir
essa diretriz, faça uma comparação entre as traduções e busque um bom
comentário bíblico específico para explicações do significado dessas palavras e
exemplos de coisas que não fazem parte do nosso mundo de hoje, mas que eram o
cotidiano daquelas pessoas.
Essas diretrizes foram alistadas por Fee e Stuart em nove conselhos ou
regras para termos em mente ao ler os provérbios:
1. Os provérbios são frequentemente parabólicos.
2. Os provérbios são intensamente práticos, não teoricamente teológicos.
3. Os provérbios têm uma redação memorável, mas não tecnicamente precisa.
4. Os provérbios não objetivam apoiar o comportamento egoísta – muito pelo
contrário!
5. Os provérbios que refletem fortemente a cultura antiga podem precisar de
uma “tradução” sensata, para que sua relevância não se perca.
6. Os provérbios não são garantias da parte de Deus, mas sim diretrizes
poéticas para o bom comportamento.
7. Os provérbios podem empregar linguagem altamente específica, exagero ou
qualquer uma das variedades de técnicas literárias para transmitir sua
mensagem.
8. Os provérbios dão bons conselhos para abordagens sábias de certos
aspectos da vida, mas não são exaustivos naquilo que abrangem.
9. Empregados de forma errada, os provérbios podem justificar um estilo de vida
estúpido e materialista. Empregados de forma correta, os provérbios
fornecerão conselhos práticos para a vida diária.

Nessa unidade vimos

Página 148

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

Nessa unidade aprendemos que a poesia é um gênero literário muito


presente na Bíblia, perdendo quantitativamente apenas para a narrativa. Por isso, a
poesia é muito mais do que um conjunto de livros, pois ela marca presença em toda
a Bíblia. Isso nos diz algo muito especial: a arte da linguagem utilizada na Bíblia é
repleta de beleza e criatividade, capaz de tocar o ser humano como um todo: na
mente e no coração; no intelecto e nas emoções.
Os livros de Sabedoria, a literatura sapiencial, são predominantemente
poéticos. A função deles é ensinar o povo a viver na presença de Deus, em
relacionamento com ele. Por isso, o temor do Senhor é a sua principal marca. Nesse
conjunto de livros aprendemos que a obediência à lei do Senhor consiste em uma
vida com ele, totalmente consciente da sua presença, seu conselho, sua provisão,
seu amparo, bem como, sua correção e disciplina. Assim, eles não são
especulações filosóficas abstratas e teóricas, mas instruções aplicadas ao cotidiano
do povo que está no mundo em comunhão e jornada com Deus.

Saiba mais

Este é um excelente manual, bastante completo e prático para o estudo do


assunto: SILVANO, Zuleica. Introdução à análise poética de textos bíblicos. São
Paulo: Paulinas, 2014. (Coleção Bíblia em Comunidade: Série Bíblia como
Literatura; v. 5).
Robert Alter é um dos mais importantes especialistas em literatura bíblica,
embora a sua pesquisa tenha como objeto a Bíblia Hebraica: ALTER, Robert. The
art of biblical poetry. New York: Basic Books, 1985. Paralelo a este livro, temos A
arte da narrativa bíblica, já recomendado em nosso curso. Ambos são muito valiosos
para a matéria.
O que já estudamos sobre recursos literários e retóricos, e sobre as figuras de
linguagem, se aplica especialmente ao estudo da poesia na Bíblia. Nossa sugestão
é que o estudante recorde o que já vimos em unidades anteriores e aprofunde os
seus conhecimentos por meio do estudo da bibliografia indicada e da prática de
exercícios de interpretação. A melhor maneira de assimilar todo o conteúdo exposto
nas unidades é a prática!

Página 149

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 9: A Interpretação dos Textos Poéticos e da Sabedoria

Recomendo a leitura de um capítulo elucidativo sobre a educação e a


sabedoria no Antigo Testamento: WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo
Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 311-321 (Capítulo 23 – Sábios e néscios
[Mestres e alunos]).
A seguinte obra introdutória ao Antigo Testamento é muito clara quanto aos
aspectos contextuais dos livros, como também oferece uma visão geral da obra em
perspectiva teológica. Recomendamos que a prática interpretativa dos livros
sapienciais seja orientada por obras como essa: DILLARD, Raymond B.;
LONGMANN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
2006. p. 189-254.

Para reflexão

1. Quais as principais características da poesia bíblica? De que forma o


conhecimento dessas peculiaridades nos ajuda a interpretar a poesia bíblica?
2. O que é a sabedoria na Bíblia?
3. Por que os Provérbios não devem ser lidos como promessas categóricas e
sempre aplicáveis?

Página 150

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Unidade 10: A INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS


PROFÉTICOS E DO APOCALIPSE

O fenômeno da profecia é marcante na Bíblia. Grandes personagens da


história bíblica estavam, de alguma forma, relacionadas a atividade profética:
Moisés, Samuel, Davi, João Batista, Jesus. Além destes, há um conjunto de livros
categorizados como “Proféticos”. Não menos importante foi a atividade profética de
pessoas como Elias, Eliseu e Natã, por exemplo. Assim, a função da profecia na
vida do povo de Deus e no mundo, bem como a atividade profética, são uma
poderosa fonte de inspiração para a Igreja.
O objetivo desta unidade é fornecer uma visão abrangente sobre os livros
proféticos e o Apocalipse. Partiremos da organização dos livros proféticos, passando
pelo significado da profecia e as características poéticas presentes nelas.
Ofereceremos algumas diretrizes hermenêuticas para a interpretação dos profetas.
Nesse momento, será preciso fazer uma diferenciação entre profecia e apocalíptica,
para, então, lançarmos o olhar sobre o livro do Apocalipse.
Como o estudante já está acostumado, serão feitas recomendações de
literatura para aprofundar nos assuntos. Aproveitamos para enfaticamente
recomendar que o estudante busque essa bibliografia e realmente aprofunde os
seus conhecimentos.

1. A organização dos livros proféticos

Chamamos de profetas literários aqueles que possuem livros com os seus


nomes. É o caso de Isaías, Jeremias, Amós, Ezequiel etc. Esses profetas tiveram as
suas profecias conservadas em forma de texto. A divisão da Bíblia cristã se dá entre
profetas maiores e profetas menores. “Maior” e “menor” designam o tamanho dos
registros textuais que deles foram preservados, e não em sentido de importância ou
cronologia. Porém, essa divisão é pouco proveitosa. Os profetas pré-literários são
aqueles que não deixaram – ou dos quais não foi preservado – um livro próprio.

Página 151

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Sobre esses profetas temos apenas referências e breves relatos, especialmente nos
livros de Samuel e Reis. Por exemplo: Natã, Elias e Eliseu.
Uma organização mais adequada dos livros proféticos os divide por períodos
históricos. Foram três períodos:
a. A profecia pré-exílica, que data de 750 a 586 a.C. No século VIII a.C. estão os
profetas Amós e Oseias (Israel), e Isaías e Miqueias (Judá). No século VII
a.C. estão os profetas Naum, Sofonias, Habacuque e Jeremias.
b. A profecia exílica, que data de 586 a 538 a.C., período de atividade do profeta
Ezequiel.
c. A profecia pós-exílica, que data de 538 a 460 a.C., período de atividade dos
profetas Ageu, Zacarias e Malaquias (SAYÃO, 2012, p.138,139).
Essa divisão mais adequada permite que visualizemos outro importante
elemento sobre a profecia no Antigo Testamento. Pois, as três divisões acima
referem-se à profecia clássica, que foi a atividade profética desde o século VIII a.C.
até o século V a.C. Porém, não foi nesse período que a profecia surgiu na história
bíblica de Israel. Os antecedentes da profecia clássica remontam a um período
muito anterior. É em Moisés que encontramos o profeta sem igual, que se torna uma
referência de ofício profético (Dt 34.10-12). Mas o primeiro fenômeno profético de
Israel aconteceu no século XI a.C., cuja característica marcante era o êxtase (veja
1Sm 10.5).

Tais comunidades proféticas parecem ter se estabelecido tendo até mesmo


seus líderes específicos. Daí a ideia de “escola dos profetas”. Nesse
contexto surgem as figuras de Elias e Eliseu. Apesar de serem
caracterizados por milagres extraordinários (Elias nem chega a morrer, cf.
2Rs 2.11-12), não são meros extáticos. Elias atua no período de Acabe e
Acazias (874-852). Não pertencia a qualquer comunidade, e declarou
guerra ao baalismo do rei Acabe, casado com uma cananita, Jezabel.
Retoma a fé em Javé em um contexto diferente e prepara o caminho para
os profetas éticos. Sua profecia não é dirigida contra o povo, pois sua
mensagem afirma que Deus mantém seu favor para com Israel. Eliseu é
chamado de sucessor de Elias e prossegue com o mesmo zelo religioso.
Todavia, manteve um grupo de seguidores, ao contrário de Elias, e teve
grande participação política. Sua atuação se dá na época da dinastia de Jeú
(SAYÃO, 2012, p.138).

2. O significado da profecia

Página 152

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Uma pergunta recorrente que os leitores da Bíblia fazem é se existem


profetas hoje. O Novo Testamento faz referência a profetas (Ef 4.11; 1Co 11.4,5;
12.28,29, 14.3-5, 29-32). Mas será que hoje o fenômeno da profecia é exatamente
igual ao que vemos no Antigo Testamento? Certamente que a atividade profética do
Antigo Testamento é uma referência para a Igreja. Porém, alguns esclarecimentos
precisam ser feitos para prosseguirmos.

2.1. Quem eram os profetas e o que é uma profecia?

Profecia, geralmente, é uma palavra sobre o futuro, uma predição. Pelo


menos é assim que as pessoas costumam pensar. No entanto, a ideia de que
profecia é uma predição é restrita demais para a profecia bíblica. Se tomarmos a
profecia em Israel nesse sentido, então um profeta é um vidente, alguém que faz
uma predição de acontecimentos futuros. “Vidente”, por exemplo, aparece em 1Sm
9.9, e fazia parte dos antecedentes da profecia clássica. No entanto, é uma palavra
anterior, que foi substituída por “profeta” (LASOR; HUBBARD; BUSH, 2002, p. 239).
Em certo sentido, um profeta também fazia anúncios direcionados ao futuro do povo.
No entanto, no Antigo Testamento a atividade do profeta não estava limitada à
predição do que ainda não aconteceu. O ofício profético era mais amplo, pois as
páginas bíblicas mostram os profetas como pessoas comprometidas com o seu
tempo.
A palavra profecia deriva do verbo grego pro-phemi, que significa “falar diante
de”, “falar em nome de”. Em linhas gerais, um profeta é um mediador entre Deus e
os seres humanos, aquele que fala da parte de Deus para as pessoas. Por isso, os
profetas eram considerados como mensageiros, porta-vozes de Deus. Eram
chamados de “homem de Deus”, “mensageiro do Senhor”, “atalaia”. Era em nome do
Senhor que os profetas exigiam mudanças dos governantes e do povo no presente e
apontavam a direção para a ação de Deus no futuro. Eles denunciavam as injustiças
dos governantes, da liderança político-religiosa e do povo, e anunciavam a vontade
de Deus. Eram pessoas que tinham visões, sonhos e audições que eram
interpretadas como mensagens divinas. A profecia é fruto da ação de Deus, que se
comunica com o seu povo através de pessoas escolhidas. Os profetas, então,
desempenham um papel mediador entre Deus e o seu povo.
Página 153

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Alguns reis consultavam profetas antes de tomar uma decisão importante


(1Rs 22). Havia profetas que trabalhavam na corte, servindo o rei, como o profeta
Natã (2Sm 7; 12; 1Rs 1). O fato de um profeta trabalhar na corte real não impedia
que ele criticasse o rei. O exemplo de Natã (2Sm 12) mostra que um profeta da corte
pode ser crítico. Havia também profetas que atuavam no ambiente do templo e
estavam ligados aos sacerdotes. Podem ser chamados de profetas cultuais. Por fim,
havia os profetas independentes, que não estavam ligados nem à corte, nem ao
templo. Entre os profetas independentes estão Elias e o seu discípulo Eliseu (1Rs 17
- 2Rs 13).
A fala do profeta é baseada na Lei. Ou seja, o profeta não carrega uma
palavra original. Certamente eles se expressaram de maneiras novas, criativas e
poéticas. No entanto, a função de suas profecias é chamar o povo ao
arrependimento baseado na Lei do Senhor. Esse é um ponto central para o
entendimento da profecia na Bíblia: a centralidade da Palavra revelada do Senhor.
Os profetas falam para fazer valer as bênçãos e as maldições contidas no estatuto
da aliança. Logo, o profeta é o agente divino para a preservação da aliança do povo
com o seu Deus.
Luiz Sayão (2012, p. 139) alistou nove temas fundamentais da profecia
clássica:
 A reafirmação do monoteísmo javista
 A universalidade de Deus
 A relação transcendência/imanência de Deus
 A santidade de Deus
 Arrependimento/perdão
 O dia do Senhor
 A justiça social
 O formalismo religioso
 O Messias
Em síntese, podemos afirmar que os profetas eram mediadores para fazer
cumprir a aliança 45 . Foi por meio deles que Deus anunciou a aplicação, tanto
positiva quanto negativa, da sua Lei, a fim de que os eventos da bênção ou da

45
Conforme FEE; STUART, 2002, p. 154-159.
Página 154

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

maldição pudessem ser claramente compreendidos pelo seu povo. Como vimos,
Moisés foi o mediador da Lei de Deus quando este a anunciou pela primeira vez, e,
portanto, é um paradigma de profeta e da função que a profecia ocuparia na vida do
povo de Deus. Por meio dos profetas, Deus relembra às pessoas nas gerações que
sucederam a Moisés que, se a Lei fosse guardada, haveria bênçãos como resultado;
mas se isso não ocorresse, o resultado seria o castigo. Portanto, a origem da
palavra profética é de fundamental importância: os profetas não inventaram as
bênçãos ou as maldições que proclamavam. Eles reproduziam a Palavra de Deus, e
não a sua própria palavra. Cada profeta desempenhou o seu ofício segundo as suas
particularidades, bem como as do seu tempo: estilo, vocabulário, linguagem,
dramatização etc. Deve-se notar também que as bênçãos ou as maldições não
garantem a prosperidade ou a miséria para qualquer indivíduo específico. Na
maioria das vezes são coletivas, uma vez que se referem à nação como um todo. A
característica comunitária da profecia é um elemento essencial para nos
aproximarmos do sentido de profecia no Novo Testamento e hoje.

3. Características gerais da profecia

3.1. Formas de anúncios proféticos

A expressão mais comum utilizada pelos profetas com o propósito de


introduzir a sua mensagem vinda da parte de Deus é: “Assim diz o Senhor”. Outra
característica marcante de ditos proféticos era o anúncio da palavra “Ai”, que
provém de ritual de lamentação fúnebre. Vamos a alguns exemplos:

Assim diz o Senhor, o seu redentor, o Santo de Israel: “Eu sou o Senhor, o
seu Deus, que lhe ensina o que é melhor para você, que o dirige no
caminho em que você deve ir (Is 48.17).

Então o Espírito do Senhor veio sobre mim e mandou-me dizer: “Assim diz o
Senhor”: É isso que vocês estão dizendo, ó nação de Israel, mas eu sei em
que vocês estão pensando. Vocês mataram muita gente nesta cidade e
encheram as suas ruas de cadáveres (Ez 11.5).

Página 155

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Ai de vocês que adquirem casas e mais casas, propriedades e mais


propriedades, até não haver mais lugar para ninguém e vocês se tornarem
os senhores absolutos da terra! (Is 5.8).

“Ai daquele que constrói o seu palácio por meios corruptos, seus aposentos,
pela injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem
pagar-lhes o devido salário (Jr 22.13).

Duas outras formas de profecia são o processo jurídico e a promessa. O


processo jurídico é uma forma literária alegórica em que Deus é retratado como
todas as partes envolvidas no processo jurídico (o demandante, o promotor público,
o juiz e o oficial de justiça) contra o réu, o povo de Israel. Os elementos de um
processo estão ali, explicitamente ou subentendidos: acusação, evidências, veredito.
Exemplo: Isaías 3.13-26. A promessa, também conhecida como “oráculo da
salvação”, contém referências ao futuro, geralmente introduzidas com a expressão
“Naquele dia”. Ela faz menção a mudanças significativas, com palavras de
restauração e ordenação do que está doente, quebrado, fora de lugar na vida do
povo de Deus. Fala também de bênçãos por meio de palavras como prosperidade,
vida, saúde, abundância e segurança – todas provenientes da aliança com o Senhor
(FEE; STUART, 2002, p. 165,166). Portanto, o juízo e a esperança faziam parte da
mensagem profética. Jeremias foi chamado por Deus para arrancar e despedaçar,
arruinar e destruir, bem como, para edificar e plantar (Jr 1.10). A profecia de
Jeremias não se resumiu ao juízo divino contra Judá, mas também na restauração e
na promessa da Nova Aliança.
Havia também a linguagem simbólica, muitas vezes teatral, para se
comunicar de forma lúdica a mensagem de Deus. Era realmente uma dramatização
fazia uso do componente visual, narrativo e poético para comunicar. Foi o caso de
Isaías, que andou nu em Jerusalém para advertir Judá sobre o perigo de uma
revolta contra a Assíria (Is 20.3-5); Jeremias utilizou muitos elementos e atos
simbólicos: um cinto de linho (Jr 13), renúncia ao casamento (Jr 16.2), botija de
barro (Jr 19), canga no pescoço (Jr 27), compra de um terreno (Jr 32), pedras (Jr
43.8ss), livro (Jr 51.63ss); Oseias foi chamado a se casar com uma prostituta e
adúltera para falar da relação de Deus (esposo) com o seu povo (esposa) – Os 1.3;
3.1-3).

Página 156

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Por fim, Robert B. Girdlestone elencou seis características da profecia bíblica,


mesmo que nem todas as profecias se encaixem em todas elas:
1. A profecia bíblica prevê de maneira clara as coisas que estão por vir, sem
envolvê-las em ambiguidades como faziam os oráculos das nações pagãs.
2. A profecia bíblica é planejada para ser uma previsão e não uma declaração
retrospectiva, uma profecia não-intencional, ou uma adivinhação que por um
acaso acabou acontecendo.
3. Ela é escrita, publicada ou proclamada antes da ocorrência do acontecimento
a que se refere e de um modo que não poderia ter sido previsto pela simples
sagacidade humana.
4. Ela é cumprida subsequentemente, de acordo com as palavras da previsão
original.
5. Ela não causa o seu cumprimento, porém mantém-se como testemunha até
que o acontecimento tenha ocorrido.
6. Uma profecia bíblica não é uma previsão isolada, mas pode estar relacionada
a outras profecias, formando, portanto, uma longa série de previsões (apud
KAISER, 2002, p.136).

3.2. A profecia e a poesia

Os profetas se utilizaram de uma linguagem simbólica para comunicar as


suas mensagens. Esse recurso é importante porque ativa a imaginação e facilita a
assimilação da mensagem. Assim, ao ler e interpretar os profetas vamos nos
deparar com uma quantidade significativa de poesia. Por essa razão, o que
estudamos na unidade anterior, sobre a poesia, bem como a literatura indicada para
aprofundamento, é igualmente aplicável aqui.

3.3. A profecia como pregação

Página 157

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Como vimos, a uma profecia era uma forma de pregação, onde a realidade
religiosa e social do povo era confrontada pela Palavra de Deus vinda ao profeta.
Vejamos alguns exemplos.

O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as


cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo o jugo? Não é
partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o
nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? (Is 58.6-7 – NVI).

Nas palavras de Isaías há duas denúncias. Uma era de ordem religiosa: o


jejum que o povo fazia não agradava a Deus. A outra era de ordem social: havia
problemas sociais, como a fome e a opressão no meio do povo de Deus. Se o povo
se arrependesse e corrigisse esses problemas, a realidade poderia ser mudada.
Isaías continua dizendo: “Aí sim, a sua luz irromperá como a alvorada, e
prontamente surgirá a cura; e a sua retidão irá adiante de você, e a glória do Senhor
estará na sua retaguarda” (Is 58.8 – NVI). Portanto, a atividade profética tinha a
função de denunciar o pecado e anunciar as consequências, tanto positivas quanto
negativas do arrependimento ou da falta dele.
Uma profecia pode ser a predição de um evento futuro, cuja veracidade será
atestada apenas pelo cumprimento. No caso bíblico, a profecia não é uma vidência,
como se os profetas fossem como cartomantes. O Deus da Bíblia não prevê coisas
sem propósito, apenas por curiosidade. O Deus bíblico faz promessas. Deus vê a
história em seu desenvolvimento e planeja o futuro. Ao olhar para alguns exemplos
bíblicos, percebemos que quando ele fala acerca do futuro, há duas intenções:
revelar seus planos e provocar arrependimento no povo.
Vejamos o primeiro exemplo no livro de Jonas: “A palavra do Senhor veio a
Jonas, filho de Amitai, com esta ordem: Vá depressa à grande cidade de Nínive e
pregue contra ela, porque a sua maldade subiu até a minha presença. (...) Jonas
entrou na cidade e a percorreu durante um dia, proclamando: Daqui a quarenta dias
Nínive será destruída” (Jn 1.1-2;3.4). Aparentemente, o assunto está resolvido. Deus
vai destruir a cidade de Nínive. No entanto, essa profecia contra a cidade tinha a
intenção de conduzir aquele povo ao arrependimento. E foi o que aconteceu. A
seguinte frase resume o arrependimento daquelas pessoas: “Os ninivitas creram em
Deus...” (Jn 3.5). A consequência do arrependimento foi: “Tendo em vista o que eles

Página 158

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

fizeram e como abandonaram os seus maus caminhos, Deus se arrependeu e não


os destruiu como tinha ameaçado” (Jn 3.10). Nesse caso, o anúncio do futuro tinha o
propósito não de destruir a cidade, mas de demonstrar a misericórdia de Deus em
perdoar aquele povo. No caso de Jonas, essa era muito mais do que uma
mensagem histórica, ocorrida com personagens no passado, mas a mensagem
sempre atual de que Deus é misericordioso até mesmo com o estrangeiro e
impiedoso, quando este ouve a sua mensagem e se arrepende.
Vamos ao segundo exemplo: “Esta é a aliança que farei com a comunidade
de Israel depois daqueles dias, declara o Senhor: porei a minha lei no íntimo deles e
a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles e eles serão o meu povo” (Jr
31.33). Em outra passagem: “Darei a vocês um coração novo e porei um espírito
novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de
carne. Porei o meu Espírito em vocês e os levarei a agirem segundo os meus
decretos e a obedecerem às minhas leis” (Ez 36.26-27). Essas profecias foram
proferidas por Jeremias e Ezequiel. Muitos séculos depois, o apóstolo Paulo mostra
que elas se cumpriram a partir da obra de Cristo: “Vocês demonstraram que são
uma carta de Cristo, resultado do nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o
Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de corações
humanos” (2Co 3.3).
Nesse segundo exemplo temos uma revelação clara da intenção de Deus,
onde o cumprimento da profecia não dependia da humanidade, mas simplesmente
da vontade de Deus em realizar seu plano.

4. Diretrizes hermenêuticas

A hermenêutica aplicada aos textos proféticos consiste em ler esses textos


dentro dos seus respectivos contextos históricos. Por meio desse procedimento,
sobre o qual já aprendemos em variados momentos do nosso curso, queremos ouvir
o que Deus dizia ao seu povo naquele tempo para então sermos capazes de
compreender o sentido dessa mensagem para hoje.
4.1. Contextos

Página 159

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Por isso, o que aprendemos sobre contexto histórico e contexto literário se


aplicam aqui como um primeiro passo necessário. Pois somente depois de escutar a
mensagem dos profetas no seu tempo e para o seu tempo é que seremos capazes
de aplicá-la hoje. Esse é um princípio simples e elementar que, se for
desconsiderado, incorremos no erro hermenêutico: dizer hoje o que o texto não
disse no seu contexto de origem. É por desconsiderar esse princípio hermenêutico
que encontramos tantas aplicações precipitadas e irrealistas de profecias do
passado a eventos históricos de hoje.
Esse é um caso em que precisamos de ajuda das obras de introdução ao
Antigo Testamento e de comentários bíblicos especializados. Geralmente, as obras
introdutórias já nos fornecem dados necessários para entrarmos nos livros dos
profetas com segurança. Dentre elas, destaco duas sobre esse assunto:
 LASOR, William S.; HUBBARD, David; BUSH, Frederic W. Introdução ao
Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2012.
 LONGMANN III, Tremper; DILLARD, Raymond B. Introdução ao Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2001.
O que ficará claro para os estudantes é que a primeira fonte de contexto para
os profetas é o próprio Antigo Testamento. As obras de introdução ao AT nos
ajudam a identificar a atividade profética nos livros de Samuel, Reis e Crônicas. Em
alguns casos, as fontes para contexto histórico são os próprios livros dos profetas.
O contexto literário dos profetas deverá levar em consideração: as
características da linguagem profética e a estrutura dos seus livros. Comentários
bíblicos são as ferramentas mais importantes nesse passo.
Cada profecia ou oráculo tem o seu contexto literário, isto é, a sua delimitação
dentro do livro do profeta. O livro de Jeremias, por exemplo, compreende um
período de tempo muito extenso em que o profeta esteve em atividade. Logo, será
necessário identificar as delimitações das suas mensagens para colocá-las nos seus
devidos contextos históricos. Em Ageu e nos primeiros capítulos de Zacarias existe
uma indicação de data, mas nem sempre é assim. É comum não sabermos quando
começa e quando termina cada oráculo, mas uma atenção especial às suas formas
de pronunciamento pode nos ajudar a identificá-los com maior segurança.
4.2. Alertas para a hermenêutica dos profetas

Página 160

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

Por fim, considero de grande valia três considerações de Fee e Stuart (2002,
169-174) em forma de alertas para a hermenêutica dos profetas:
Uma precaução: o profeta como prenunciador do futuro. Já vimos o
problema do reducionismo que é pensar no profeta apenas como um vidente, e aqui
cabe uma ênfase a esse respeito: cuidado para não forçar os oráculos proféticos
para que eles sirvam ao que você gostaria que eles dissessem. Devemos tentar
escutar aquilo que Deus tem a intenção de dizer. E lembre-se: na maioria das vezes,
os profetas profetizaram a respeito do futuro imediato de Israel, isso tem a ver com
sua vocação histórico-social. E o que lhes era imediato, para nós é temporalmente
muito distante – milênios atrás.
Uma preocupação: a profecia e o segundo sentido. Existem profecias que
se cumpriram no futuro imediato, mas que ganharam sentido pleno em Jesus. Isaías
53, por exemplo, segundo alguns estudiosos, estava se referindo ao Rei Ciro, mas
em Jesus essa profecia é plenificada em seu segundo sentido. Assim como isso é
possível, também é possível que escritores canônicos, isto é, que foram inspirados,
releiam uma profecia e deem a ela um segundo sentido, como Paulo em 1Co 10.4,
referindo-se ao milagre das águas que brotaram das rochas com Moisés (Ex 17.1-7).
Mas só escritores que foram inspirados tiveram essa autoridade, hoje isso não
acontece mais e, portanto, devemos ler a bíblia sabendo que pelo Espírito somos
iluminados em nossa leitura, mas não inspirados e, portanto, sem a função de
procurar um suposto segundo sentido das profecias. Esse sentido mais pleno da
profecia, ou sensus plenior, portanto, precisa ter sido definido pelo Novo
Testamento. Fee e Stuart escrevem:

Não podemos reescrever ou redefinir a Escritura por nossa iluminação.


Somente podemos perceber um sensus plenior, com qualquer certeza,
portanto, depois do fato. A não ser que for definido como sensus plenior no
Novo Testamento, não pode ser identificado como tal no Antigo Testamento
por nós, conforme nossa própria autoridade (2002, p. 172).

Um benefício final: a ênfase dual sobre a ortodoxia e a ortopraxia. Por


meio dos profetas, Deus conclamou o povo a viver o equilíbrio entre crença correta
(ortodoxia) e ação correta (ortopraxia). E ele deseja o mesmo de nós: que à luz dos
profetas possamos nos lembrar de que Deus está a todo tempo cumprindo sua

Página 161

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

aliança, ou seja, nos chamando para um relacionamento de amor e fidelidade. Para


o nosso bem e para a sua glória.

5. A diferença entre profecia e apocalíptica

O termo “apocalíptica” refere-se a um tipo de literatura judaica, comum em


alguns textos proféticos da Bíblia, mas também em diversos “apocalipses” judaicos,
como 1 e 2 Enoque, os Testamentos dos Doze Patriarcas, o Apocalipse de Esdras,
o Apocalipse de Baruc, a Ascensão de Isaías, entre outros. Essa forma literária está
presente em partes de livros do Antigo Testamento, como em Ezequiel, Daniel e
Zacarias. Certamente os melhores representantes da apocalíptica judaica na Bíblia
são os livros de Daniel e o Apocalipse de João. Portanto, a diferença é que a
apocalíptica é um tipo de literatura específica que foi usada em algumas partes da
Bíblia, embora poucas.
A observação dessa literatura levou especialistas a listarem algumas
características principais46:
 Amplo uso de imagens e símbolos;
 Representavam uma “sabedoria secreta”, acessível a poucos;
 Atribuição de visões a personagens históricos destacados da história de
Israel, como Esdras ou Enoque;
 Pensavam a vida de maneira universal e abrangente e não de pessoas
isoladas, isto é, o objeto da reflexão da apocalíptica era a perdição ou
salvação dos povos e do mundo;
 Tendência ao pessimismo, encarando o mundo e o futuro como separados de
Deus e para além da possibilidade de recuperação;
 Subdividir a história em etapas para sinalizar quando Deus haveria de intervir,
e geralmente a intervenção divina seria em breve.

46
Conforme WEGNER, Uwe; VOIGT, Emilio. Apocalipse: manual de estudo. São Leopoldo:
Sinodal/EST, 2013. P.10.
Página 162

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

6. O livro do Apocalipse

Em vez de narrativas e cartas que contêm declarações claras de fatores e


de imperativos, chegamos a um livro cheio de anjos, trombetas, terremotos,
bestas, dragões e abismos sem fim (FEE; STUART, 2011, p.217).

O livro de Apocalipse data do final do primeiro século da era cristã, com um


estilo literário completamente diferente de todos os outros presentes tanto na Bíblia
quanto na contemporaneidade. Basta ler o Novo Testamento que, ao chegarmos
nesse livro, parece que adentramos outro mundo. As dificuldades de interpretação
são grandes. Há falas diretas do autor, há falas carregadas de simbologia, há falas
para o presente do autor, há falas a respeito do futuro, entre outras coisas. Essa
complexidade gerou pelo menos cinco escolas de interpretação do Apocalipse, sem
contar as suas variações internas. Portanto, é necessária uma postura humilde e
não dogmática na interpretação do livro.

6.1. Algumas observações prévias sobre o Apocalipse

O primeiro passo para uma boa interpretação, como já vimos, é identificar o


estilo literário do livro que se lê. Apocalipse, entretanto, combina diversos estilos
literários. O predominante é a apocalíptica, mas possui também profecias e cartas47.
Um primeiro elemento do Apocalipse como apocalítica é o contexto de
perseguição, sofrimento e opressão. Logo, a morte, a vida, a ressurreição e a
segunda vinda de Jesus são eventos históricos decisivos que movem e determinam
a história. A grande preocupação do Apocalipse, portanto, é o julgamento final da
história: uma perspectiva do fim que alimenta a esperança e é fonte de
perseverança daqueles que sofrem no presente – a vitória pertence ao Senhor, que
julgará com justiça e triunfará sobre o mal e sobre a morte.

47
Conforme FEE; STUART, 2002, p. 218-221; WEGNER; VOIGT, 2013, p.11.
Página 163

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

6.2. A linguagem apocalíptica

O livro do Apocalipse não pretende ser uma mensagem secreta exclusiva


para uns poucos, mas sim uma mensagem para as comunidades (1.1ss e 22.6ss).
Mas aqui também reside uma dificuldade, pois nenhum outro livro em toda a Bíblia
possui tantas imagens e símbolos como o Apocalipse. Os símbolos e as imagens
podem ser agrupados em: Cores: branco, vermelho, preto etc.; Números: 3, 7, 24,
144, 666 etc.; Elementos da natureza: ferro, cristal, arco-íris, mar etc.; Elementos do
mundo animal: dragão, besta, cordeiro, águia etc.; Elementos do corpo humano e da
experiência humana: cabelos, olhos, noiva, virgem, prostituição etc.; Elementos do
império romano: trono, espada, arco etc. Suas imagens e visões simbólicas, como
besta com dez chifres e sete cabeças (13.1), a mulher vestida de sol (12.1), ou os
gafanhotos com caudas de escorpiões e cabeças humanas (9.7-10), portanto,
compunham uma mensagem que poderia ser entendida pelas comunidades, mas
dificilmente seria entendida por quem não era um cristão. Logo, a linguagem
simbólica protegia os cristãos dos seus perseguidores. Além disso, a mensagem do
Apocalipse não deveria ser “selada” para ser aberta em um futuro, pois o tempo do
seu cumprimento estava próximo (22.10).

6.3. Apocalipse como profecia

Uma das principais diferenças do Apocalipse de João para os outros


apocalipses é a ausência de pseudônimos, ou seja, o uso de um nome ou nomes
fictícios usados pelo autor original para assinar o texto que ele mesmo escreveu.
Isso se dá, provavelmente, porque a preocupação do apóstolo não é prever o fim
simplesmente, afinal, o fim já havia sido inaugurado em Jesus e João estava
inserido nesse período da história. Apesar de tratar explicitamente do fim, o texto era
também uma palavra profética para a igreja da sua época (Ap 1. 3, 9, 10-11; 2.18-
19; 19.10; 20.4), ou seja, uma Palavra da parte de Deus para o presente.

Página 164

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

6.4. Apocalipse como epístola

Lendo, por exemplo, trechos como os de Apocalipse 1.4-7 e 22.21 são


evidentes todas as características principais de uma carta. Nos três primeiros
capítulos temos sete cartas. É fundamental para entender o livro levar em
consideração seu aspecto ocasional investigando seu contexto histórico original.

6.5. Necessidade da exegese

O livro de Apocalipse sofre com muitas interpretações equivocadas pela falta


de exegese responsável, séria e boa. O principal são interpretações que aplicam
partes do Apocalipse aos eventos históricos do passado, presente e futuro mundiais
sem qualquer critério exegético. Portanto, se faz relevante repetir alguns princípios
exegéticos aplicados ao texto de João. São eles (FEE; STUART, 2011, p.221-224):
1. O significado do Apocalipse é aquilo que o seu autor pretendeu que
significasse – o que, por sua vez, deve também ter sido algo que seus leitores
poderiam ter entendido como sendo seu significado. Logo, nós temos
dificuldades para interpretar o que os seus destinatários originais não tinham.
O que só reforça a necessidade de uma interpretação do livro à luz do seu
contexto histórico.
2. Na interpretação da Bíblia pela própria Bíblia, não deve haver inclinação para
um modo em que se tenha de fazer de outras Escrituras as chaves
hermenêuticas para destravar o Apocalipse. As chaves para a interpretação
do Apocalipse devem ser buscadas dentro do próprio Apocalipse, ou de forma
disponível aos leitores originais, dentro do seu próprio contexto histórico.
Relacionar diretamente partes do Apocalipse com outras profecias, sermões
escatológicos etc., é um procedimento que tende a ser mais aleatório e
subjetivo do que criterioso e objetivo.
3. Por causa da natureza apocalíptica/profética do livro, há algumas dificuldades
adicionais no nível exegético, especialmente no que diz respeito à linguagem
figurada. Sobre esse assunto, seguem algumas sugestões:
a. É preciso ser sensível ao rico pano de fundo de ideias que está
presente na composição do Apocalipse;
Página 165

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

b. Quando o próprio João interpreta as suas próprias figuras de


linguagem, essas figuras interpretadas devem ser sustentadas com
firmeza e devem servir de ponto de partida para compreender
outras;
c. Devemos ver as visões como um todo e não forçar alegoricamente
todos os pormenores.
4. João espera que seus leitores ouçam os ecos do Antigo Testamento como a
continuação – e consumação – dessa história.
5. Os apocalipses em geral, e o Apocalipse de João em especial, raras vezes
pretendem oferecer uma narrativa detalhada e cronológica do futuro. Logo,
não leia o Apocalipse como se fosse “um mapa do fim”, a ser decifrado.

Nessa unidade vimos

Nessa unidade estudamos sobre a interpretação dos textos proféticos e vimos


algumas características e perspectivas para a interpretação do Apocalipse. A
natureza desses livros e do tipo de literaturas referidas nessa unidade mostra, mais
uma vez, a necessidade de uma criteriosa pesquisa acerca do contexto histórico.
Especialmente se tratando da profecia e do Apocalipse, estamos diante de textos
que trazem armadilhas interpretativas específicas, principalmente pela tendência de
interpretá-los como diretamente aplicados a nós. Relacionar as profecias bíblicas e
as imagens e símbolos do Apocalipse ao cenário mundial contemporâneo, por
exemplo, são atitudes mais comuns do que gostaríamos.
Nesses casos, o recurso a uma boa bibliografia especializada é vital para a
correta interpretação. Faça uso das referências indicadas ao longo do curso.

Saiba mais

Walter Brueggemann faz uma excelente explicação do profeta como


mediador. Recomendamos o seguinte capítulo de sua grande obra para um
aprofundamento sobre a pessoa do profeta, o fenômeno da profecia e a linguagem
poética dos profetas: BRUEGGEMANN, Walter. Teologia do Antigo Testamento:

Página 166

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Métodos de Estudo para EAD
Unidade 10: A Interpretação dos Textos Proféticos e do Apocalipse

testemunho, disputa e defesa. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus,
2014. p. 805-838.
O especialista em Antigo Testamento, Walter Brueggemann, escreveu no final
da década de 70 um dos livros mais instigantes sobre a atualidade da atividade
profética e, até que ponto, ela conclama a Igreja de Jesus Cristo para ser uma
comunidade profética em atividade no mundo. O argumento central do livro é
construído sobre Moisés como o protótipo bíblico de profeta: BRUEGGEMANN,
Walter. A imaginação profética. São Paulo: Paulinas, 1983.
Uma ótima síntese do uso de símbolos e modelos de interpretação do
Apocalipse pode ser encontrada em: WEGNER, Uwe; VOIGT, Emilio. Apocalipse:
manual de estudo. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2013. P.19-24.

Para reflexão

1. Por que as profecias bíblicas não são simplesmente predições do futuro?


Quais as principais finalidades das profecias bíblicas?
2. Quais as dificuldades para a interpretação do Apocalipse? Quais cuidados
hermenêuticos o intérprete do Apocalipse precisa ter para lidar com essas
dificuldades?

Página 167

Todos os direitos reservados  Faculdade Teológica Batista de São Paulo


Referências Bibliográficas

ALTER, Robert. The art of biblical poetry. New York: Basic Books, 1985.
BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. 9 ed. Revisada. São Leopoldo:
EST; Sinodal, 2007.
BERLEJUNG, Angelika; FREVEL, Christian (orgs.) Dicionário de termos teológicos
fundamentais do Antigo e do Novo Testamento. São Paulo: Paulus; Loyola, 2011.
BOCK, Darrel. Studying the Historical Jesus: A guide to Sources and Methods.
Grand Rapids: Baker, 2002.
BRAKEMEIER, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado –
fundamento. São Leopoldo, RS: Sinodal, Centro de Estudos Bíblicos, 2003.
BRANDÃO, Jacyntho Lins; SARAIVA, Maria Olívia de Quadros; LAGE, Celina
Figueiredo. Helleniká: introdução ao grego antigo. 2 ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.
CARSON, D. A. Os perigos da interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2001.
COENEN, Lothar; BROWN, Colin (orgs.). Dicionário internacional de teologia do
Novo Testamento. 2 ed. São Paulo: Vida Nova, 2000. (Obra em 2 volumes).
DILLARD, Raymond B.; LONGMANN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento.
São Paulo: Vida Nova, 2006.
FEE, Gordon.; STUART, Douglas. Entendes o que lês? Um guia para entender a
Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica. 2 ed. São Paulo: Vida Nova,
2002.
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever
aprendendo a pensar. 26 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
GEISLER, Normam; NIX, William. Introdução bíblica: como a Bíblia chegou até nós.
São Paulo: Vida Acadêmica, 2006.
GORMAN, Michael J. Introdução à exegese bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson
do Brasil, 2017.
HARRIS, Laird R; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (orgs.). Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
KAISER JR., Walter C. O plano da promessa de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2011.
KAISER Jr., W. C. e SILVA, Moises. Introdução à Hermenêutica Bíblica: como ouvir
a palavra de Deus apesar dos ruídos de nossa época? São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2002.
KLEIN, William W.; BLOMBERG, Craig L.; HUBBARD JR, Robert L. Introdução à
interpretação bíblica. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2017.
KLEINE, Michael. Antigo Testamento: manual de estudos. São Leopoldo: Sinodal,
2011.
MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à
análise narrativa. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
MAZZACORATI, Israel; SAYÃO, Luiz; SOUZA, Itamir Neves de. De volta à Palavra:
a vida e o ensino dos apóstolos João, Paulo e Pedro. São Paulo: RTM, 2017.
MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. 4 ed.
Petrópolis: Vozes, 1991.
MUELLER, Enio R. Teologia cristã em poucas palavras. São Paulo: Editora
Teológica; São Leopoldo, RS: Escola Superior de Teologia, 2005.
______. Caminhos de reconciliação: a mensagem da Bíblia. Joinville: Grafar, 2010.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação
bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2011. (Coleção: O saber da
filosofia – 15).
PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova,
1993.
PELLETIER, Anne-Marie. Bíblia e hermenêutica hoje. São Paulo: Loyola, 2006.
PETERSON, Eugene. Coma este livro: as Sagradas Escrituras como referência para
uma sociedade em crise. Niterói: Textus, 2004.
______. O caminho de Jesus e os atalhos da igreja. São Paulo: Mundo Cristão,
2009. (Série Teologia Espiritual).
REINKE, André Daniel. Antigo Testamento: curso intensivo. Disponível em:
https://andredanielreinke.com.br/wp-content/uploads/2020/01/Antigo-Testamento-
Curso-Intensivo.pdf Acesso: 29. jan. 2021.
______. Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua
atuação no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.
______. Os outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação
no plano divino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2019.
SAYÃO, Luiz A. T. Bíblia de estudo comentada em áudio. 2. ed. São Paulo: Rádio
TransMundial, 2012. (Manual de apoio da Bíblia de estudo comentada em áudio).
SCHÖKEL, Luis Alonso. Apuntes de hermenéutica. Madrid: Editorial Trotta, 1994.
SILVANO, Zuleica. Introdução à análise poética de textos bíblicos. São Paulo:
Paulinas, 2014. (Coleção Bíblia em Comunidade: Série Bíblia como Literatura; v. 5).
SOARES, Paulo Sérgio. Introdução ao estudo das Leis na Bíblia. São Paulo:
Paulinas, 2013. (Coleção Bíblia em Comunidade: Série Bíblia como Literatura; v. 4).
STOTT, John. Entenda a Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
VANHOOZER, Kevin. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os
enfoques contemporâneos. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005.
VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia: primeiros passos de um método. São
Paulo: Paulinas, 2016. (Coleção: A Bíblia como literatura).
VOLKMANN, Martin. Exegese histórico-crítica. IN: BORTOLLETO FILHO, Fernando
(org.). Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE, 2008. p. 431-433.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 4 ed. São
Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2005.
WEGNER, Uwe; VOIGT, Emilio. Apocalipse: manual de estudo. São Leopoldo:
Sinodal/EST, 2013.
WITHERINGTON III, Ben. História e histórias do Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2005.
WON, Paulo. E Deus falou a língua dos homens: uma introdução à Bíblia. Rio de
Janeiro: Thomas Nelson, 2020.
ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007.
ZUCK, Roy. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia. São
Paulo: Vida Nova, 1994.

Você também pode gostar