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Este

imenso
mar
Antologia de autores
contemporâneos
de língua portuguesa
Este
imenso
mar
Antologia de autores
contemporâneos
de língua portuguesa
NOTA DE ABERTURA

A língua portuguesa passou, desde 2019, a contar com um


dia em que, institucionalmente, se assinala no mundo aquela
que é exatamente a dimensão como a vemos e que lhe reco-
nhecemos – a de ser uma língua global.
Celebra-se, assim, anualmente o 5 de maio procurando,
de modo especial nessa data, destacar e relembrar aspetos
que apoiam essa visão da língua portuguesa como uma língua
com história(s), como uma língua do presente desse mundo
que integra, mas também, e sobretudo, como uma língua do
futuro e das suas grandes questões.
Este imenso mar constitui uma iniciativa do Camões I.P.
com a qual se pretende, precisamente, assinalar esta múltipla
dimensionalidade da língua portuguesa.
A criação de uma antologia de textos de autores contem-
porâneos da língua portuguesa constitui em si um exercício
de celebração da diversidade plástica e textual da língua por-
tuguesa que lhe advém do mapa particular da sua geografia e
das histórias que a compõem.
Como a língua portuguesa, esta antologia é um ponto de en- A estes propósitos do Camões I.P. atendeu a organizadora
contro de textualidades e das culturas às quais estas confe- da antologia com mestria, como bem evidencia o texto de
rem substância. Essa dimensão plural da língua portuguesa, apresentação. Ao seu trabalho nesta obra e à colaboração
constituindo uma das suas grandes virtualidades, constitui que de há muito desenvolve com este instituto, o reconhe-
igualmente uma das mensagens fortes das celebrações em cido agradecimento, bem como a todos os autores e/ou seus
que o seu lançamento se integra. representantes na colaboração prontamente disponibilizada
Mas colocamos a língua portuguesa também nas rotas e à equipa de produção.
das grandes questões do presente e do futuro. Como outros Este imenso mar aí fica para, por ocasião da data que se
países de língua portuguesa, Portugal encontra-se empenha- assinala, nos inspirar e ajudar, como nos é proposto “a olhar
do na reflexão sobre os Oceanos, acolhendo uma importante o mundo de forma sempre crítica e renovada”.
conferência, também ela mundial, nesse domínio. Trazer a
centralidade desse tema para a celebração da língua surgiu João Neves
como uma forma simbólica e criativa de marcar essa dimen-
sionalidade múltipla que com ela se afirma.
A antologia toma, assim, o elemento oceânico, no senti-
do mais amplo e mais aberto que o mesmo possa ter, como
referência para a sua organização, de modo algum de forma
exaustiva, mas antes como um percurso possível por entre
visões e experiências vertidas para a palavra por um, ainda
assim, amplo conjunto de escritores.
Eles que são (d)os grandes artífices da língua, constituindo
esta antologia, na divulgação dessa palavra para que procura
concorrer, igualmente uma forma de lhes prestar o devido
reconhecimento.
APRESENTAÇÃO

Por ocasião da realização de mais um conjunto de atividades


em torno da celebração da língua portuguesa, pelo Camões
– Instituto da Cooperação e da Língua, esta antologia vem
propor leituras de autores contemporâneos.
Apresenta-se como um objeto de observação e de encontro.
De observação de textualidades em circulação e de encontro
de modos de escrita e leitura sobre os oceanos, os mares, os
itinerários (ora solitários ora partilhados), as evocações da
experiência histórica.
Contou com os generosos contributos de autores de diver-
sos espaços e gerações e de leitores atentos. São vozes que nos
inspiram profundamente e ajudam a olhar o mundo de forma
sempre crítica e renovada.
Incluem-se aqui poemas de muitas latitudes, únicos nas
escolhas estilísticas e na representação dos olhares sobre ins-
tantes, sujeitos e lugares. Juntamos a este conjunto também
excertos de prosa e epígrafes, bem como um contributo iné-
dito para teatro que sinalizamos como epílogo. As imagens
suportam a rede textual e criam ligações de e com sentido.
A unidade do que se propõe na leitura desta antologia é Surgem igualmente a música e os rumores de todos os
retirada em boa medida das muitas formas de ver a possibili- mundos, passagens rituais, sonhos e lendas, experiências de
dade criativa do que somos hoje, forjada na ideia de partidas conflitos e sinais da paz.
e chegadas, viagens forçadas ou desejadas. O epílogo é uma síntese de encontros sobre os mares e suas
É em múltiplos cais e ancoradouros que se olha não so- trágicas versões contemporâneas, entre privação e mudança,
mente para os oceanos, mas para quem por eles circula, quem vida e morte, em que se recupera a simbologia familiar dos
se evoca, tudo o que se rastreia como matéria sensível ora espaços insulares. Ecoa ainda as narrativas históricas de
adormecida ora observável. As avenidas marginais e as rotas ocupações falhadas.
quotidianas inspiram na sua geometria variável e atualizam Os mares são o palco exato das nossas contradições pre-
os passos que marcam a relação com todos os mapas possíveis. sentes. Neles se perdem vidas, por eles se chega a portos que
Muitos dos velhos e novos barcos são objetos de saber, mostram o lado de lá de tudo e são eles que nos trazem de
navalhas de corte na rota da vida, sombras da luta e do es- volta com mais do que levámos, com menos do que quere-
forço de sobreviver. Estão também representados os objetos ríamos. Sempre exatos nesse lugar de sermos outra coisa, de
que se inscrevem na areia e enquadram o que nela se grava: sabermos que só pela viagem a existência se faz ou desfaz,
redes, escrita, traços provisórios do humano e interrogações olhamos a profunda contradição de existir com os legados
crípticas a desenhar gestos futuros. trágicos dos que ficam pelo caminho e a simultânea figuração
As memórias dos lugares trazem e levam os objetos, chei- das aspirações permanentes.
ros e sons que perduram. São formas de manter impressa a Os tempos convidam-nos à reavaliação da história, ao
luz de sujeitos que lembram, em todas as línguas possíveis, realismo e à esperança. E a poesia e a literatura são o fio exato
linhas imaginárias, fraturas existenciais e narrativas de de encontro destes modos de construção de conhecimento e
exílio, a par das infinitas possibilidades do engenho e da arte. sua partilha. Moldura sempre generosa e atenta do que será.
De entre as utopias que os mapas anunciam, que a infân-
cia em felicidade generosa sublinha, nunca as desacreditan- Ana Maria Martinho
do, ainda que tantas vezes sem bússolas, seguimos por rotas
imaginadas. Sabemos das distopias que nos esperam, falta
sempre em certezas o que sobra em antecipação.
Ocorre então o tempo de partir
e é o tempo das veredas abertas
a sabre de memória
Ruy Duarte de Carvalho

© Luís Abélard
Alda do Espírito Santo

PARA LÁ DA PRAIA

Baía morena da nossa terra


vem beijar os pezinhos agrestes
das nossas praias sedentas,
e canta, baía minha,
os ventres inchados
da minha infância,
sonhos meus ardentes
da minha gente pequena
lançada na areia
da Praia Gamboa.

Canta criança minha


teu sonho gritante
na areia distante
da praia morena.

Teu tecto de andala


à berma da praia
teu ninho deserto
em dias de feira,
mamã tua, menino,
na luta da vida.

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Alexandre Pinheiro Torres

CALIGRAFIAS

Passeio pela marginal, Porto Interior,


Gamã pixi à cabeça e demoro-me na Avenida do avô do Ruy Cinatti.
na faina do dia
maninho pequeno, no dorso ambulante Até que ponto, por estes cais,
e tu, sonho meu, na areia morena o mar é ilegível?
camisa rasgada
no lote da vida, Descubro nas suas águas
na longa espera, duma perna inchada a caligrafia desgrenhada
de um velho manuscrito
Mamã caminhando p’ra venda do peixe onde todos os paleógrafos esbarram.
E tu, na canoa das águas marinhas
- Ai peixe, à tardinha Eis como a letra do mar nos faz sofrer?
na minha baía Mais nos valera tropeçar
mamã minha serena no alfabeto braille de cego
na venda do peixe e tactear nele o voto do destino.
pela luta da fome
da gente pequena.

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Amélia Dalomba Ana de Santana

FRASES FEITAS BARCO ABERTO

Difícil é cantar comum pensamento Como um pão aberto


Sombras em frases feitas onde nada é tão antigo assim te ofereço
Como chegar e partir este rio em prata
sorrindo

para que te embebedes


da certeza de que
os caminhos se fazem,

como este barco


perseguido por pássaros
enfeitiçados
de todas as latitudes

salpicam da espuma
as luzes da cidade
mostrando-me como
se rompem os contornos.

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Ana Mafalda Leite

NAVEGA-ME A ALMA UMA ILHA

seu corpo é vestido de búzios e algas


deixa na areia um rasto de prata
Glória de Sant’Anna
seu rosto voltado a oriente
o linho enrolado no corpo
navega-lhe pelos dedos
a demorada monção
navega-me a alma uma ilha
o espírito antigo de um barco em viagem o súbito vento
porque tem as mãos juntas
penélope de m’siro enfeitada e desenha astrolábios
olha o minarete mais alto diademas colares
do horizonte rosas de areia

e medita sobre as ruínas do cais porque tem as mãos juntas


o porto ancorado do sonho entre seus fios
rosários de prata
por entre os seus dedos deslizam corais de sonho
enfeites colares
fios de missanga cresce os muitos braços
fios de prata os sábios guizos nos tornozelos dança o
fios de ouro linho ao vento seu corpo esguio no mar
ondula infinito de azuis
ourivesaria atenta do silêncio e perfuma o ar de múltiplas geografias

18 19
descobriu em si a amurada
o cais

penélope de m’siro enfeitada


seus cabelos refulgem estrelas
búzios peixes conchas pontilhadas
e lembram finas cordagens o oriente começa no seu rosto de músico, açafrão,
enlaçadas de algas ébano e anil
búzios ondulantes navegam o ritmo de suas ancas
o rosto sextante um barco no peito
as mãos navegando os fios de contas perladas por suas mãos tece
os fios de prata
as mãos soltando essas estranhas domésticas especiarias os fios de ouro
de m’siro enfeitada os fios de sonho
penélope grava na areia
os brilhos ourives as sedas as cabaias os linhos e rede
tece seus fios seus cabelos seus seios na púrpura no coração da água
turbante azul índigo ancorada
das índicas águas
não é por ulisses que ela aguarda
mas por um estranho destino
que o espírito das águas
levando-a ao cimo das nuvens
a oriente a ocidente
no coração da ilha há séculos
a encanta e a demora

a traz enamorada

20 21
António Carlos Cortez

MAR MNEMÓNICO

Ce toit tranquille, où marchent des colombes


Entre les pins palpite, entre les tombes;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencée!
Paul Valéry, Le Cimetière Marin (1920)

Falar do mar em poesia é assunto antigo. Fizeram- Cruz. Sim, não podemos, talvez, falar do mar
-no com exemplar rigor Camões e António Nobre, sem compreender que, nele, é a própria poesia
Jorge de Sena e Ruy Belo, mas também Sophia e que acaba por ser o tema principal. Ao escrever
Fiama, esta última num poema inescapável intitu- mergulhamos, através da linguagem, na água
lado “Peregrinação e Catábase” e que, servindo-se lustral da recordação. Em praias vivemos felizes
da imagem da viagem, acaba por partir da me- um dia, ou em praias intuímos o gume da tristeza
táfora do mar – o mar da vida – para se referir à num qualquer crepúsculo, signo do efémero amor
peregrinação interior que, no fundo, toda a poesia vivido como se pudesse ser absoluto. Paul Valéry
acaba por ser. Falar do mar é hoje, por estes dias, o disse de modo único: o mar, o mar para sempre
falar do mar mnemónico, isto é, do mar interno recomeçado, disso se faz a vida. Todo o fim é, até
(há uma distinção para mim entre o mar interior ao fim final, um reinício. Assim a poesia. O poema.
e o mar interno – este é, para mim, mais profundo Quando, descendo às imagens da linguagem, es-
e vasto), o mar que “devasta e enche”, com suas crevemos o poema, as ondas vocálicas vêm na sua
imagens, “as nossas vidas”, como escreveu Gastão aspereza fazer-nos sentir vivos.

22 23
Arlindo Barbeitos Arnaldo Santos

IMERSA EM SERENO DE LUSCO-FUSCO TRÊS POEMAS DAS REDES

imersa
em sereno de lusco-fusco I
e
suspensa em vazio Do polegar que faz o passo
Do rumo imóvel
São-Tomé As redes crescem.

carrocel de montanhas Também de mim e dos meus rumos


carregador de nuvens as redes entrelaço.
transportador de sonhos
irrompendo E as malhas
de abismo de espuma nascem dos nossos dedos
e Prisões de frutos
sumindo Que o mar nos nega.
em precipício de bruma

São-Tomé

suspensa em vazio
e
imersa em sereno de lusco-fusco

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II III

A lavra do mar era grande No arco de mar


Mas as malhas onde as redes se deitaram
Não tinham a largura dos seus grãos
No seu luando de ondas
Colhiam corpos túmidos de cardumes
que vinham à tona de um sonho hebo.
As redes não se entregaram
Quando as mabangas dobradas sob íntimas grades.
prenderam os pés das redes na lama do mar
então A quijila da sereia
As redes d’água sentiram
a espessura dos seus cabelos crespos. Que na oração dos nossos dedos inábeis
apodreceu os velhos cabos de mateba
Deixou-nos sozinhos na areia

enquanto
no peito da onda
as redes carregam
o nosso grito de fome
ao desfazerem-se na praia…
…MAUNDA MABIXILA!...!!

26 27
28 29

© Ismael
Carlos Morais José Conceição Lima

ÁLVARO DE CAMPOS DESCOBERTA


TERMINAL DO JET-FOIL
Após o ardor da reconquista
Nada somos sem os outros e sem o mundo, não caíram manás sobre os nossos
mas deles e dele não fazemos parte. campos.
E na dura travessia do deserto
Não temos mapa, não chegaremos a oriente algum. Aprendemos que a terra prometida era
Não há ilhas encantadas. Nada existe nesse mar. aqui.
Ainda aqui e sempre aqui.
Sobras tu. O real, lembras-te? Duas ilhas indómitas a desbravar.
Só é real o que se ama ou alguma vez se amou. O padrão a ser erguido
Pela nudez insepulta dos nossos
* punhos.

Macau, três da manhã. As mãos frias e uma sede piró-


mana, capaz de incendiar o mundo. Yat-lo-ghiiiiiii... [1978]

30 31
Dalila Teles Veras

(ao que vinham


para o trabalho
ver o trabalho
CHEGADA era o limite)

Para a frente era só o inegável via-se


Sob o clamor de um sol inabitável :
Sophia de Mello Breyner Andresen corpos gingantes, a estiva
torsos negros azuis suados

e o cheiro despudorado
do abacaxi e anular o resto
onze foram os dias
enjoo, sarna e tédio (o brasil tinha cheiro
terceira classe e era de ananás)
paquete santa maria

da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais

aos emigrantes, o delimitado espaço


do porto, aos turistas
a cidade (entre)vista
do cais

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Dina Salústio Edmundo de Bettencourt

TUBARÃO, TUBARÃOZINHO

O grito vitorioso da ave noturna avisou Tubarão anda no mar


que a história, agora, finalmente, ia como anda o mar no universo.
arrancar. A praia escura e deserta Grande bicho, que mais não quer ao mar
encheu-se de sons diferentes, de novas do que o mar o quer a ele.
vidas e outras eras. Trata apenas de si,
devora tudo quanto encontra
nos caminhos das águas.
Come os irmãos,
e há-de um dia devorar o mar.
Assim lhe dita todo o instinto
da sua mastigação,
que o mar deve estar nele inteiramente,
e não ele no mar…

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Eduardo White

As redes que sobre o chão encontro


estendidas, são cartas oceânicas que
escreve o fundo do mar. Do texto salta a
prata dos peixes, o verde amaciado das
algas e uma estrela imóvel que explode,
por dentro, a terra toda a girar. Claro que
a areia as grava. Nossa forma de escrita
E continua comendo, nunca farto, mais milenar que a geringonça mágica
até que um dia o mar o deixa só, de Gutemberg. Porque Deus descansa
caído no abismo da fome insaciável. aqui, ao cair da noite. Silenciosamente
medita por entre as lágrimas das tar-
Agora é ele apenas e o mar. tarugas que junto a ele vêm desovar,
Vai medir forças! ou de um negro macua, estirado sobre
Enche o mar todo, o desgosto, a chorar um amor que, por
ele é o mar, o mar é ele, teimosia, não quer morrer.
oh, confusão!
E ao tentar matar de vez a sua fome,
oh, confusão!
devora as próprias entranhas…

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Fernanda Dias

I – CRÓNICAS DE UM
DIMINUTO PEDAÇO DE CHÃO

A chuva ama o delta inchado e lamacento


cordas de água vibram em uníssono
com o cio do céu, bendito céu fecundo
no âmago das águas correm lendas
contos dos mares do sul, navios submersos
pérolas cor de alga pútrida escorrendo

Ao largo o mar sobre as ilhas se encapela


barcos soltam bramidos na neblina
fêmeas sereias gemem

Picos de arranha-céus na bruma diluídos


dão uma trégua plúmbea ao céu da tarde
o Sol oculto cede mais breu à noite
Um pescador no paredão
ao lado do tumulto do casino
busca no rumor da noite
o exausto coração do rio

Delicado, antigo esquisso


mas cana de pesca muito cara
não atrai peixe extinto

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Fernando Martinho Guimarães Fernando Sales Lopes

ALI PARA OS LADOS DA MARGINAL DIAS DE VERÃO

Ali para os lados da marginal As noites são longas


nos domingos de verão ao final do dia como os dias cinzentos
a luz que o mar reflecte e vazios.
enche a avenida de uma luminosidade É o jet lag das voltas trocadas
coada e quieta por hemisférios e paralelos.
E a ilha é toda atmosfera sem fim
A terra e o mar tornam-se coisa indistinta Aqui no meio do Atlântico, caro Vinícius, vivo
E tudo no horizonte é tépido as garotas de Ipanema
a saber a aconchego de estar sem calçadão.
sem que esforço seja preciso
Sopra do lado do mar Em cada crioula que passa
uma aragem levemente húmida com a sua chinela chinesa
E o cais é sonho de o ser as ruas da calçada prometida
Sem chegadas ou partidas e as avenidas esburacadas de promessas
Nem anseios ou notícias para dar transformam-se num espelho de prata.
Uma marginal assim quando calha
ser verão e domingo e mar
com luz coada e quieta
a espraiar-se pelo mundo inteira
só ao entardecer do bulício do dia.

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Fernando Sylvan

INFÂNCIA

as crianças brincam na praia dos seus pensamentos


e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas


e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem


sem voltar à praia e sem voltar ao mar
Com o seu andar ondulante e esquivo
e o seu sorriso solarengo e sensual
lá vai cheia de graça

ela também é bossa nova


em cada coladeira do destino

Dirão que este foi o Verão mais ameno,


aquele em que as águas atlânticas
se misturaram

oferecendo um mar calmo e quente

sem o frio das férias contrariadas o tempo é festa

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Filinto Elísio Filipe Zau

VIAGEM ESTE MAR

Em torno da odisseia das ilhas, creio levar ESTE MAR,


Neste puro desejo que me transcende, a senha ESTE MAR GRANDE,
E a palavra-chave de os labirintos serem aqui GUARDA SEGREDOS MEUS NO FUNDO.
Simples lugares de passagem, apenas paisagem...
ESTE MAR,
O andarilho palmilha todas as dunas, areias ESTE IMENSO MAR,
De intermináveis desertos e todas as ondas ESTE SALGADO LAGO ESTRANHO,
Que os oceanos concedem, quando furibundas É UM GIGANTE
ou, mesmo, serenadas e das praias acariciadas... SEM TAMANHO.

Sem culpa, nem sina – ou de job puro devedor -, ESTE MAR


Percorro de lés a lés o mapa que é de ti e do mundo COM FLORA E FAUNA,
Como quem responde à morte o saldo estival... ESTE PRIMÁRIO ELEMENTO,
É FORÇA BRUTA
Como quem salta para a eterna idade da vida EM MOVIMENTO.
E fica suspenso entre a estrela e sua cadência
A riscar, de viajar tão-somente, o céu da noite... ESTE MAR, DE VIDA E MORTE,
É ESTRADA PARA UMA TRAVESSIA
COM ESTÓRIAS, MITOS
E FANTASIA.

QUANTAS VEZES ME PERGUNTO,


EM QUE CORRENTES DESTE MAR
EU ME DEIXEI ACORRENTAR?

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© Lilison Cordeiro
Gisela Casimiro Glória Sofia

HÁ UM RISCO MAR, ÓH MAR

Há um risco na pedra da praia Traz-me a tua onda


onde devo deixar o meu nome Invade o meu
coração e leva as
mágoas
O dia Leva os risos dos
desalmados
Ver o mar num dia triste A raiva dos vencidos
é transformar o dia noutra coisa. Mar, Óh Mar
Abraça-me como
abraças as ilhas
Beija-me com beijas
as rochas
Para trás Ama-me como amas
as areias
À luz desta tragédia,
de onde quer que se olhe
alguém ficou para trás.

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Herberto Helder

Mar de Cabo Verde TODAS PÁLIDAS,


AS REDES METIDAS NA VOZ.
Água da vida
Água da esperança Todas pálidas, as redes metidas na voz.
Água dos sonhos Cantando os pescadores remavam
Caminho que salga a no ocidente – e as grandes redes
alma leves caíam pelos peixes abaixo.
Encontro de todas as Por cima a cal com luz, por baixo os pescadores
lágrimas cheios de mãos cantando.
Mar Cresciam as barcas por ali fora, a proa
Berço dos aberta como uma janela ao sal.
pescadores Metida na voz, toda pálida, a proa
Oração das peixeiras rimava no ocidente com a cal que os pescadores
Alegria das crianças remavam, cantando grande, pe-
Leveza das la luz fora. Ao sol, ao sal.
melancolias
Mar E o espírito de Deus como um livro
Estrada eterna que movia-se sobre as águas.
separa os corpos Com seu motor à popa, veloz, peixe
Estrada eterna que sumptuoso, o espírito de Deus, motor de um nú-
une os continentes mero de cavalos, galgava
Mar a antiga face pálida das águas. Enquanto,
Sonhos dos ilhéus cantando as redes,
Destroços dos os pescadores metiam as mãos cheias
Corações de cal pelos grandes peixes abaixo.

50 51
Hirondina Joshua

E pelas barcas fora a luz remava pe-


lo ocidente todo pálido, rimando
as redes leves com a proa.
MIGRAÇÃO DO OVO
E o peixe espírito de Deus, rangendo
o motor, rompia com um número, a casca antes de nascer invoca seus sanguinários
remando todo pálido os seus grandes destinos
cavalos. Deus o primeiro: está na palavra água
cantava no ocidente sobre as redes de cal, - é preciso não ter paz para ovular.
a proa aberta – como as guelras o segundo movimento anda de trás para frente
da luz. E os pescadores dentro das combustões. há ainda água clara por
metiam as redes pelo espírito de Deus abaixo. inventar no círculo cinza e sedento: as mortes
E os remos rimavam com as redes feitas nas pequenas circunstâncias escorregam
leves no peixe sumptuoso. para dentro e fora de bocas abertas nas raízes das
Por ali fora as guelras caíam na voz matrizes. água pode ser fogo - disse a criança que
dos grandes pescadores. salta nos espaços separados.
estávamos no eco.
E Deus metido então nas redes, puxando havia alguma coisa que nos trazia uma espécie de
cor de cal para dentro magma entrelaçado nos signos
das barcas, as mãos cantando cheias o movimento fazia o mesmo som que da casca grossa
de pescadores. eram animais a mostrar o ouro.
E sobre as águas rangentes, rompendo era o ouro apresentando a líquida parte das sensa-
o leve ocidente, os pescadores remavam ções primitivas
o espírito de Deus para terra – peixe eram as sensações na forma primária e rápida das
de motor à popa – e a proa alumiações
grande aberta. eram as alumiações no líquido ouro.
E cantavam o seu peixe sumptuoso, espírito - estávamos no eco.
pálido na leve cal do ocidente permanecidos em buracos ao lado de tudo. o ovo é
cantando. o que não sabe. levanta e dorme. adoece.

52 53
Irene Lucília Andrade J. A. S. Lopito Feijóo K.

VERTIGINOSA PRAIA À PARTIDA DESCONHECIDA

é a oscilação das vertentes não é praia de farta e segura pesca.


quando o inverno se distrai Contemplando insossas – onduladas marés
afiando agulhas e tecendo redes
a razão louca das águas lançando anzóis e dominando encantos
insiste desmedida incauta aprendemos na Zanga-dyá-Ngunga:
e o chão despenha-se
- Nem sempre traz à rede honesto peixe
é por isso que o mar nem sempre é o peixe que cai na rede.
junto às fajãs Podemos tão bem algures apanhar
ensaia a sanha o medo e a repulsa invisíveis cranianos de gente amarrada.
Envenenadas espinhas de lixados marinheiros
a espuma é apenas invisíveis e assanhadas almas doutro mundo
o frágil esgar da ira e coloridos mistérios de outra encarnação.
a terrível passagem do arrepio. NÃO SERVEM PARA BANHO NEM PARA PESCAS
NOSSAS ENGALANADAS PRAIAS DESCONHECIDAS.

54 55
João Cabral do Nascimento

O PROMONTÓRIO E O MAR

Afasta-te, insolente – ao mar o promontório Difusa e verde é a luz, e dir-se-ia


De vez em quando lhe dizia. – Subir da profundeza em fantásticos feixes.
Tens-me tornado fraco, tens-me feito doente, Prendem-se à rocha anémonas e búzios,
E hoje preparas-me a agonia. Cruzam nas águas límpidas os peixes.

Abriste-me cavernas sinuosas Que mais querias tu? Se não fora o trabalho
Num corpo que era são, Que tenho tido há séculos, viria
Onde se infiltra o mar e as tuas ondas frias Alguém, de longe, ver-te? Algum poeta, acaso,
Penetram de roldão. De ti nos meus poemas falaria?

Eu, que maciço fui, desempenado e forte, De quantos benefícios sou credor?
Agora vivo cheio de cuidados; Bruto, quanto me deves!
A toda a hora tusso, a toda a hora espirro: Quem te ora visitara, quem te conhecera
Tenho os dias contados. Sem mim? Aves marinhas, lapas e perceves...

Mal sabes tu – lhe replicava o mar – E assim dizendo, o mar continuou na faina
Quanta razão me sobra! De o vencer e moldar, andando-lhe ao redor,
Fiz-te baías, praias, nichos, enseadas, Enquanto o cabo regougava, a espirrar, a tossir,
Criou-te Deus, mas eu findei-lhe a obra. Nas mãos aquosas do escultor.

Cavei-te grutas longas onde os barcos


Entram, e os homens se demoram
E tão embevecidos, tão maravilhados
Que uns riem de prazer e outros, de encanto, choram.

56 57
José Agostinho Baptista

CANIÇAL

A noite traz consigo os gritos do recém-nascido. Somos muitos na última noite do nosso verão.
Quem está no mar ignora as tumultuosas leis do Já não podemos amar a primeira lua,
parto. já não podemos amar.
Quem está no mar tem outro sangue nas mãos. Este mês antes de agosto é tão cruel como as suas
Os atuns da madrugada esvaem-se. armas, arremessando-as devagar.
A sua pele brilha, quase encostada aos archotes. A escuridão aperta-me nos seus braços frios e
Eles sabem que na boca dos homens há uma praga que aquele que nasce
explode. nasce ao lado da morte dos meus irmãos.
As estrelas da sua água dormem profundamente. O sangue desvenda sobre as pedras um segredo antigo,
O anzol prende-se à carne como uma garra de fogo. as trevas cedem à luz,
Maldito aço curvo e mortal. os gritos prolongam-se na manhã das vilas e não
Malditas as mães que dão à luz os assassinos. tarda o silêncio com todos os lamentos, com o
Ninguém acode a esta dor lancinante. terror por dentro.
Oxalá enlouqueçam as vagas Em setembro a procissão irá pelo mar.
e os homens se enredem nas linhas com todos os
lamentos,
com o terror por dentro.
Trabalham nas minhas guelras os pincéis vermelhos
de um pintor louco.
Não quero ouvir as pancadas dos meus irmãos, ao
fundo,
sobre as tábuas.

58 59
José Rodrigues de Paiva

DE VOLTA ÀS ILHAS CIRCUM-NAVEGADAS

Ao mar das ilhas circum-navegadas


nos trouxe o som do búzio, o canto grave,
que invadia janeiros flagelados,
tardes cheias de ocasos e andorinhas, A solidão dos ventos cavalgamos
verdes sombras da infância, garças brancas, perseguindo as visões que nos fugiam
nos trouxe aqui o vento das lembranças. entre as dobras das dunas pressentidas
ondulando memórias mergulhadas
Ao acaso das brisas dessas tardes nas águas do sol-pôr, na luz do ocaso,
percorremos estradas esquecidas perdidas sobre as ondas do mar raso.
que entre o tempo e a vida nos trouxeram
navegando memórias marinheiras, *
pois somos navegantes de outros mares
inventando viagens singulares. E como o rio seguindo entre os salgueiros
nossos passos prosseguem, seguem as águas,
Descobrimos verões abrasadores seguem rotas sem cartas, seguem cursos,
que nos queimaram a pele no caminho seguem ventos marinhos que nos chamam
da travessia do deserto antigo, a refazer perdidas caminhadas
oceano de areia sem oásis de volta às ilhas circum-navegadas.
onde nós fomos velhos beduínos,
cavaleiros dos sonhos de meninos.

60 61
José Tolentino de Mendonça Júlio Hortas

O MAR SALTO DE FÉ

Descemos a correr o pontão Em beira de desfiladeiro,


como se não tivéssemos perdido mar agitado,
ainda a oportunidade está o homem, apátrida ou não,
de viver algo mais do que uma lenda a depender do arbítrio temporal.

quando entrámos no mar Temer a queda é assumi-la,


ingénuos de novo naqueles tropeções ou ao menos parece.
brilhavam entre os espinhos da coroa É o mar que me chama,
enigmas superiores aos nossos ou eu que o desejo?
uma baía larga e lisa como vidro
o areal sem um murmúrio Se ao menos asas
a folhagem muito verde da mata de sabiá depenado...
alinhava-se nessa tentativa Mas até mesmo estas
de reencontrar o mundo parecem pesadas de bater.

frondes de palmeiras
imóveis contra os céus
mas a eternidade caía sobre nós
com todo o peso da sua carne

62 63
Leonor Sampaio da Silva

FORMULÁRIO DE CLASSIFICAÇÃO
DE PASSAGEIROS
É triste deixar o ninho.
O arbítrio da vida, severo, se tenho viajado?
já deu seu brado. nunca menos que incessantemente. eu sou aquela
que se afasta de silêncios e de passados como quem
Cair é se deixar cair, larga pêlo nas estações, só que as minhas estações
Então se foi. são marés: bússolas cambaleantes fazem-me parar em
Asas feridas, todas as escalas, aves marinhas pousam nas minhas asas
rastro de sangue no ar. e curam-nas.

O sol inveja a liberdade se tenho chegado bem?


que sente o ferido. nunca menos que suficientemente. gosto de aportar
Perdido, mas ainda assim aos futuros ainda antes de partir, medindo o mistério,
Inteiramente consigo. pesando o sonho, talvez o encontre no único lugar
a que falta a lente que me foi dada à nascença para
encontrar o mundo, dar-lhe um nome, amá-lo
e morrer.

o que faço quando lá chego?


nunca menos que partir de novo. trago no sangue estirpes
impermanentes. posso desembarcar e desfazer a mala,
até passar a noite, mas um minuto a mais e já sinto sede;
a ilha que falta, o poema desconhecido, o mapa
desdobrado no rumor iniciático da água nascem
e chamam-me.

64 65
Luís Cardoso Maria Alexandre Dáskalos

O IMPÉRIO
Era uma quinta-feira quente, aquele
dia do mês de junho de 1990. Como Algures um barco a afundar-se. Algures no Índico onde
fazia todas as manhãs, atravessei o rio tudo começou. As
de barco. Um costume adquirido para tetravós envoltas em lãs saboreando a maresia, depois as
saborear um gosto antigo. sobrinhas-netas
adolescentes. Usam cachos nos cabelos fartos. Blusas
Ele, o velho, teria certamente de levar brancas com
uma vida para fechar os olhos. Meio babados, golas subidas a arrematar em renda de frioleiras.
século. Sozinho, no meio do mar, fez 0 comandante passeava de quando em quando pela ala
então outra travessia. A da sua memó- das senhoras e
ria, árida e seca como a planície de Beloi conversava-se sobre os trópicos. 0 barco estava cheio
com os seus ai-loks e os espinhos que se de homens.
lhe espetavam no peito. ... Na mesma paisagem cactos gigantes. A flor de cacto-
cardo e flor da
noite. De novo o deserto e logo a montanha. Leite morno
e mais tarde
queijo curado. Lá fora no jardim as couves-flores
apoquentavam pela
ferrugem. Na cozinha os homens mexiam as saladas.
Intermezzo. Lento
ma no troppo. Ainda me lembro do primo afastado que
chegou e disse:

66 67
Maria de Lourdes Hortas

CÍRCULO

A infância partida
depois tudo passagem
assim me leva a vida
sempre numa viagem
ponte para que eu volte
ao eixo desse corte.

Os ventos desse corte


me dispersam na vida
pois em cada partida
só estou de passagem
quem ficou nesse corte
esperando que eu volte?
“sobrevoava aquela terra encarnada” — descia noutro
planeta. Depois Há um mar nesse corte
abrimos os baús de retratos a óleo e a carvão e desfilaram que me cortou a vida
as fotografias me dizendo que volte
em Pangim e Bombaim. Retratos e passado. ao porto da partida
Circum-navegação. assim tudo é passagem
De madrugada estavam estoirados e incapazes de refazer à véspera da viagem.
o puzzle. Não
sabíamos da dificuldade: recomeçar no que se foi para
sair mais tarde ileso
e impune.

68 69
Mia Couto

Em minha sina um corte


corta a linha da vida
e mesmo que eu volte
resta a sina partida Você guia o barco, eu conduzo o furacão.
há cruzes na passagem
na trilha da viagem.
A infância que volte
há de ser só passagem
sonho que o sonho corte
rumo a outra viagem.
Há um doer de corte
a me lembrar que volte.

70 71
Odete Costa Semedo

MAR

Miro o mar
entro na sua fúria
pelas tuas mãos
tu que inventas paredes-meias
entre as mãos de homens
e a natureza rebelde

Esqueces da minha compleição


talhas cercos
tolhes-me o caminho
e eu me enfureço
abro a barriga da terra
penetro bolanhas adentro
entro feito furacão
tudo derrubo à minha volta
viro macaréu
e volto a ser eu
água líquida no seu lugar

72 73

© Litos
Orlando da Costa Ovídio Martins

POEMA SALGADO

Eu nasci na ponta-da-praia
por isso trago dentro de mim
todos os mares do Mundo

Meu correio são as ondas


que me trazem e levam
Qualquer dia este sonho é uma lenda: recados e segredos

Trazer-te nos braços desperta E meus bilhetes


Pela areia branca de uma praia (meus bilhetinhos de saudade)
Que não há nome que se lhe ponha são suspiros salgados
E deixar-te onde a água desmaia que as sereias recolhem
E cede tudo à terra que começa da crista das ondas
Beijar-te nos olhos os olhos e a vida
Afundar-te nos lábios a despedida Nas conchas e búzios
Acender-se um sol de pescaria de todos os mares do Mundo
E partires como um coral ficaram encerradas
E ficar eu rocha no areal minhas canções de amor
Esperando o vento e a maresia
Que eu nasci na ponta-da-praia
Por isso trago dentro de mim
todos os mares do Mundo.

74 75
Paula Tavares

CONTANDO AS HORAS

Para São lava o corpo


inaugura o rio
enche com o eco da tristeza
a lavra da vida
que se desconta
morrendo
O que queres esconder de mim
Filha de sulamite Não me contes histórias
vem-te nas mãos não podes olhar o tempo
esculpidas da pedra da muralha deixa que o fruto
de maduro
As canções antigas dos teus olhos te caia no regaço
são oráculos
cuja linguagem solene Eu vou bordar o tapete
pulsa no mesmo sangue fazer-te as tranças
que corre nestas veias de mulher partilhar contigo
o vinho amargo
deste país inocente
Quando inventas o mar
sou eu que estou sentada Depois podemos ficar
na curva da baía contando as horas
colhendo do silêncio na curva da baía
a lágrima comprida
que te desce pelas tranças

76 77
Priscila Branco Ruy Cinatti

UM DIA OLHAREMOS PARA TRÁS QUANDO EU PARTIR…


E VEREMOS AREIA
Quando eu partir, quando eu partir de novo,
o mar terá ido embora A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
deixou filhos perdidos morrendo no fundo Quando eu partir…
Como se um outro ser nascesse
encalhou mais de mil barcos em seu útero De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre lhe abrisse
escorreu segredos pelas montanhas ainda úmidas As janelas da vida…
Então pertencer-me-ei.
largou cada homem à sua própria seca Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
foi embora E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
nunca olhou para trás Nada ficará no lugar que eu ocupei.

desinventou o horizonte O último adeus virá daquelas mãos abertas


faliu bússolas Que hão de abençoar um mundo renegado
rasgou a história No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre.
hoje passa bem Mas ali
Hei de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente…
Para sempre.

78 79
Ruy Duarte de Carvalho Sangare Okapi

FALA DE DIOGO CÃO O BARCO ENCALHADO


ÀS PORTAS DO ZAIRE
Aterra a saudade sobre o meu terraço.
Deste lado da história Aço azul do céu. Seta certa perto do peito.
o rio morre aqui. Emakhuwa é como onda no asfalto.
Lembra-nos a casa, a cana, o caniço
Do mar sabemos nós e aos capitães ou bambu. Nosso barco encalhado com terra,
a fama da conquista. transportando marítimo o silêncio da Ponta da Ilha
(tufo mudo na cicatriz da tarde).
Faço-me ao sul Onde em Maputo porque circuncisos garotos somos
porque pertenço ao norte nossas garotas o rosto de m’siro maquilham?
e a costa só me serve é para cumprir A máscara? O cântico? A corda? A capulana na praça?
tarefas de demanda. Ó, mofina de todos os dias com o mar perto!
Resgatasse o Índico o que do oriente com o tempo soube
Meu fim é circular ir mais além. sufragar.
Os barcos todos com as velas hirtas e as gentes.
Suas as pérolas mais os rubis. O aljôfar. Luzindo no ar.
Minha fracturada chávena árabe-persa na cal
ou resplandecente a missanga cravada no ventre d’água,
qual sinal dos que de além mar chegaram
e partiram com baús fartos…
Fobia dos que ficamos. Mas herdeiros.

80 81
Teresa Rita Lopes Tony Tcheka

QUASE DIÁRIO DE UM MILAGRE

Já que não posso fazer mais nada


enquanto esperamos
escrevo.
É a minha maneira de rezar
para que os navios das forças da paz
cheguem depressa e bem.
Juntemos os nossos sopros
para empurrar as inexistentes velas E aqui desembarco (…) Não! Não sigo nesta viagem. (…)
das novas caravelas
que as transportam:
Força! Mais força ainda!
Sopremos todos ao mesmo tempo!

82 83
Vera Duarte Waldir Araújo

DISCURSO ALUCINADO SOBRE MURMÚRIOS


A EXISTÊNCIA DE MIM
Dizem que são murmúrios os ecos
Hoje tive sonhos do fundo do mar. Ia a andar pela marginal, que chegam do fundo deste mar
a baía coalhada de barcos, do cais novo desprendiam-se re- São palavras soltas aos ventos
cordações de infância feliz e despreocupada. A mã-gatchada frases melódicas para somar
e o namoro clandestino atrás dos velhos guindastes de ferro
enferrujado e do escuro, eu penetrava no mar, um mar verde Murmúrios que escondem feitiços
e lodento que se me escorregava debaixo dos pés e me cau- segredos e estórias por desmontar
sava náuseas, com a água pela cintura e os braços em arco, São lamentos de cores mestiços
passava por entre os barcos das minhas viagens de antanho, São sombras desenhadas ao luar
marinheiro descobridor do mundo e das noites interminá-
veis no mar alto – gilica, manilica, manel ildut – e aspirava o No fundo deste mar o silêncio fala
cheiro fedorento do vómito nos porões, eu amo-te meu amor. grita e clama como a força das marés
Com impulsos violentos de revolta suportada, com silêncios Não longe essa voz alguém embala
gritantes de paixão não assumida, eu sonhei e no sonho re- Não longe os ecos se escutam no convés
cuperei os infinitos perdidos dos meus horizontes. Os meus
olhos mergulharam para além do monte – cara que se recorta No fundo deste mar há tormentos
nítido no pôr-do-sol faustoso que da minha janela contemplo, Há vontade de um silêncio romper
sou criança, só me interessa a mã-gatchada e a tua presença Querer e vontade não são lamentos
aqui amor debaixo da cama, quando a luz se apaga e as nossas No fundo, este mar esconde um poder!
brincadeiras se transformam em jogos lúdicos e inocentes, eu
sonhei e no sonho se compôs a imagem de perdida felicidade.
Componente primeira LIBERDADE, e o sonho se desfez em
pesadelos, porquê morrer se não sou feliz.

84 85
Yao Feng

VIAGEM

Torci a sombra atrás de mim


para fazer uma corda.
Caminho em silêncio
levando a corda à estrada, este cavalo velho.

Todos os dias o pôr-do-sol é um aborto


e o relógio tem em si a suficiência do tempo.
No fundo da noite não há direção
só o redor, o além.

Um por um, tiro do corpo os fósforos


cuja cabeça encarnada
rompe com o muro escuro.

86
© Félix Mula
EPÍLOGO

Ricardo Cabaça

“O TEMPO BALANÇA NA ÁGUA”

(Uma pequena delegação internacional de cientistas


está na Ilha Tristão da Cunha. Além de terem como
missão estudar o impacto das alterações climáticas,
observam ainda o decréscimo da população de
lagostas. K e W estão no Albatross Bar.)

K Ouviste o que eu disse?


W Sim, ouvi tudo o que disseste, mas estava a pensar
noutra coisa.
K Ter vindo para aqui foi uma das melhores decisões.
W Acabámos de chegar, ainda falta muito tempo.
K Tenho a certeza daquilo que digo, foi a melhor decisão.
Já reparaste na forma da ilha? É praticamente um
círculo. Um mundo no meio do oceano, é assim que a
vejo, como se aqui estivéssemos no centro do planeta.
W Hoje vamos começar a avaliar a qualidade da água e a
observar a costa, vamos num pequeno barco. Temos de
recolher muitas amostras.

91
K Aquilo que mais gosto é de sentir o mar à nossa volta, tinha ligado. O que chegou perguntou se o outro estava
respirar este ar que me faz tão bem. Para onde quer que bem, então o que já estava disse que tinha perdido
olhe só vejo mar, é o melhor horizonte possível. Não ver o filho mais novo. Os meus sentimentos, disse o que
prédios é uma benção. chegou.
W E se tivesses de ir embora de repente? K Que história horrível. Tu nem sequer tens filhos, pára
K Como, se o próximo barco só vem cá daqui a quatro lá com essas conversas macabras, não quero ouvir essas
meses? Não vejo nenhum motivo para ter de ir embora coisas.
antes de terminarmos esta missão. Além do mais, quero W Lembrei-me dessa história que se passou um pouco
subir ao Pico algumas vezes, fotografar toda a ilha, ver antes de virmos.
o pôr-do-sol, olhar o mar e não ver nenhum cruzeiro K E agora vais esquecê-la. Olha lá para cima, pensa que
nem cargueiro, não quero ver nada que não faça parte um dia vamos estar lá e colocar a nossa bandeirinha.
da natureza. Quero sentir a chuva enquanto caminho
em direção à falésia para ver a ondulação. Eu vim cá W Isto não é o Everest.
pelo ambiente e pela ciência, tu conheces-me, somos K Desculpa, só estou a tentar aliviar o clima.
amigos há muitos anos, sabes que também vim para W Está tudo bem, não há nada para aliviar.
cumprir um lado espiritual.
W Somos amigos há muitos anos. (Silêncio.)
K Vamos todos?
W Nós os dois e um pescador que conhece todos os recan- K Eu terminei aqui, tenho o equipamento preparado.
tos da costa, é ele quem nos vai guiar sempre. Sabes se no barco dá para carregar as baterias, se for
necessário?
K Que privilégio! Nunca pensei passar por esta experiên-
cia. Porra, estamos na Tristão da Cunha! Eu sei que é W É um pequeno barco de pesca, não acredito que tenha
pouco espiritual, mas queria ter internet para partilhar eletricidade. Devias ter tudo pronto para o teu trabalho.
esta experiência. Não ganho para pagar o satélite. K És insuportável quando estás de mau humor, insupor-
W Devias escrever um livro sobre a experiência. tável. Não sei como é que a Helena te atura, coitada da
rapariga.
K Está tudo bem contigo?
W Não estou de mau humor. Quando fui rever o planea-
W Uma vez ouvi uma conversa no comboio entre dois mento de hoje, acabei por ler um email.
amigos. O que chegou perguntou se o outro tinha ligado
para ele, o que já estava disse ao outro que não, não K O que é que tem? Isso é uma coisa normal, não é?

92 93
W O email não era para mim. K Eu sei disso.
K Metes como não lido e esquece isso. W Aconteceu uma tragédia.
W O email era para ti. K Os meus pais?
K Tudo bem, não te preocupes, acontece. W Não, está tudo bem com eles. Foi o teu pai que escreveu
W Vou buscar uma bebida, estou a precisar. o email.

K Antes de irmos para o mar? K Conta logo!

(W levanta-se e regressa pouco depois com dois copos (W começa a balbuciar e a chorar.)
e uma garrafa de whiskey.)
W A Patrícia morreu.
W Não te preocupes com isto, hoje não vamos trabalhar. K A Patrícia? Não, deve ser engano, só pode, não faz o
K Mas há pouco disseste que íamos começar a recolha. mínimo sentido. Ela estava bem, ela está bem, não está?
Diz-me que ela está bem!
W Hoje temos folga.
W A Patrícia morreu. Queria tanto dizer-te outra coisa,
K E vamos beber porque estamos de folga ou a razão é tanto, tanto…
outra?
W É por causa do e-mail. (K agarra na garrafa, a tremer, e bebe até se
K Mas chegaste a ler o e-mail? engasgar com o choro. Os dois abraçam-se, choram
W Não sei como dizer uma coisa destas, não sei. Desculpa, compulsivamente. Quem está no bar olha expectante,
não sou forte o suficiente. algumas pessoas aproximam-se.)

W O instituto já sabe, disseram que vão mobilizar todos


(W bebe mais um copo.) os esforços diplomáticos para que alguém venha cá
buscar-te.
K Não estou a gostar disto, conta logo o que leste.
K Como é que foi?
(W volta a encher e bebe de um só trago. O copo nunca está
vazio. Bebe várias vezes em poucos minutos.) W Ela estava na praia e de repente desapareceu. Estava a
nadar, o mar estava calmo, mas desapareceu. Durante
W Sabes que estamos presos nesta ilha, nenhum motivo é horas procuraram a Patrícia, barcos, helicópteros e
forte o suficiente para vir um barco.

94 95
pessoas a pé pela costa. Apareceu ao final do dia. Teve
um ataque cardíaco, foi súbito. Ela não sofreu.
K Impossível não sofrer..
W Eu vou entrar em contacto com o Presidente da
República, alguma coisa tem de ser feita.
K Vou ficar nesta ilha terrível, a olhar o mar, perto da
falésia. Talvez a mesma água e a mesma corrente que
afogaram a Patrícia esteja a vir para aqui, talvez eu me
lance à mesma água, talvez caia da falésia. Vou ficar
nesta ilha, obrigado todos os dias a ver o mar, sem
poder sentir que só temos terra, um continente imenso,
seco, sem água. Ficar à espera que esta ilha desapareça
no mar.
Longe de tudo, longe da Patrícia.
W Não vamos desistir.
K É inútil.

(K bebe o resto da garrafa.


Vai ao bar e traz outra garrafa.)

K Longe de tudo.
(K enche o copo de Z, depois o seu. Brinda com o copo do
amigo e bebe de uma só vez, W nem tempo teve para
brindar. K levanta-se e começa a fechar as janelas do
bar, até ficarem na penumbra total.)

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Índice de autores Ficha técnica

Alda do Espírito Santo 13 J. A. S. Lopito Feijóo K. 55 Edição Design gráfico


Alexandre Pinheiro Torres 15 João Cabral do Nascimento 56 Camões, I.P., 2022 vivóeusébio

Amélia Dalomba 16 José Agostinho Baptista 58 Organização Agradecimentos


Ana de Santana 17 José Rodrigues de Paiva 60 Ana Maria Martinho Academia Cabo-Verdiana de Letras,
Alexandre Tadeu Pinheiro Torres,
Ana Mafalda Leite 18 José Tolentino de Mendonça 62 Coordenação geral Ana Salgueiro, Andreia Falcão
António Carlos Cortez 22 Júlio Hortas 63 João Neves Mendes, António Nunes, Catarina
Cristina Caetano Cruzeiro, Celeste Sebastião, Conceição
Arlindo Barbeitos 24 Leonor Sampaio da Silva 65 Ribeiro, Cristina Faustino, Dany
Coordenação Editorial Spinola, David Capelenguela, João
Arnaldo Santos 25 Luís Cardoso 66
Neuza Polido Paulo Pereira, João Pignatelli,
Carlos Morais José 30 Maria Alexandre Dáskalos 67 Maria de Lourdes Hortas, Maria
Autores Manuela Ferreira, Marta Lança,
Conceição Lima 31 Maria de Lourdes Hortas 69
Alda do Espírito Santo, Alexandre Ricardo Costa, Riccardo Greco, Rute
Dalila Teles Veras 32 Mia Couto 71 Pinheiro Torres, Amélia Dalomba, Magalhães, Sádia Nallá, Sandro
Dina Salústio 34 Odete Costa Semedo 72 Ana de Santana, Ana Mafalda Leite, Costley-White, Sociedade Cabo-
António Carlos Cortez, Arlindo -Verdiana de Autores, Susete Albino,
Edmundo de Bettencourt 35 Orlando da Costa 74 Barbeitos, Arnaldo Santos, Carlos Tereza Sena, União de Escritores
Eduardo White 37 Ovídio Martins 75 Morais Lopes, Conceição Lima, Dalila Angolanos, Vasco David, Vera Borges,
Teles Veras, Dina Salústio, Edmundo Vera Duarte, Zeferino Coelho
Fernanda Dias 38 Paula Tavares 76 de Bettencourt, Eduardo White,
Fernanda Dias, Fernando Martinho ISBN
Fernando Martinho Guimarães 40 Priscila Branco 78
Guimarães, Fernando Sales Lopes, 978-989-8751-34-8
Fernando Sales Lopes 41 Ruy Cinatti 79 Fernando Sylvan, Filinto Elísio, Filipe
Zau, Gisela Casimiro, Glória Sofia, Imagem da capa
Fernando Sylvan 43 Ruy Duarte de Carvalho 80
Herberto Helder, Hirondina Joshua, © Pawel Czerwinski
Filinto Elísio 44 Sangare Okapi 81 Irene Lucília Andrade, J. A. S. Lopito
Filipe Zau 45 Teresa Rita Lopes 82 Feijóo K., João Cabral do Nascimento,
José Agostinho Baptista [www.
Gisela Casimiro 48 Tony Tcheka 83 joseagostinhobaptista.com], José
Glória Sofia 49 Vera Duarte 84 Rodrigues de Paiva, José Tolentino
de Mendonça, Júlio Hortas, Leonor
Herberto Helder 51 Waldir Araújo 85 Sampaio Silva, Luís Cardoso, Maria
Hirondina Joshua 53 Yao Feng 86 Alexandre Dáskalos, Maria de Lourdes
Hortas, Mia Couto, Odete Semedo,
Irene Lucília Andrade 54 Ricardo Cabaça 91 Orlando da Costa, Ovídio Martins,
Paula Tavares, Priscila Branco,
Ricardo Cabaça, Ruy Cinatti, Ruy
Duarte de Carvalho, Sangare Okapi,
Teresa Rita Lopes, Tony Tcheka, Vera Camões, Instituto da
Duarte, Waldir Araújo, Yao Feng Cooperação e da Língua, I.P.
www.instituto-camoes.pt
Este
imenso
mar
Antologia de autores
contemporâneos
de língua portuguesa

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