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imenso
mar
Antologia de autores
contemporâneos
de língua portuguesa
Este
imenso
mar
Antologia de autores
contemporâneos
de língua portuguesa
NOTA DE ABERTURA
© Luís Abélard
Alda do Espírito Santo
PARA LÁ DA PRAIA
13
Alexandre Pinheiro Torres
CALIGRAFIAS
14 15
Amélia Dalomba Ana de Santana
salpicam da espuma
as luzes da cidade
mostrando-me como
se rompem os contornos.
16 17
Ana Mafalda Leite
18 19
descobriu em si a amurada
o cais
a traz enamorada
20 21
António Carlos Cortez
MAR MNEMÓNICO
Falar do mar em poesia é assunto antigo. Fizeram- Cruz. Sim, não podemos, talvez, falar do mar
-no com exemplar rigor Camões e António Nobre, sem compreender que, nele, é a própria poesia
Jorge de Sena e Ruy Belo, mas também Sophia e que acaba por ser o tema principal. Ao escrever
Fiama, esta última num poema inescapável intitu- mergulhamos, através da linguagem, na água
lado “Peregrinação e Catábase” e que, servindo-se lustral da recordação. Em praias vivemos felizes
da imagem da viagem, acaba por partir da me- um dia, ou em praias intuímos o gume da tristeza
táfora do mar – o mar da vida – para se referir à num qualquer crepúsculo, signo do efémero amor
peregrinação interior que, no fundo, toda a poesia vivido como se pudesse ser absoluto. Paul Valéry
acaba por ser. Falar do mar é hoje, por estes dias, o disse de modo único: o mar, o mar para sempre
falar do mar mnemónico, isto é, do mar interno recomeçado, disso se faz a vida. Todo o fim é, até
(há uma distinção para mim entre o mar interior ao fim final, um reinício. Assim a poesia. O poema.
e o mar interno – este é, para mim, mais profundo Quando, descendo às imagens da linguagem, es-
e vasto), o mar que “devasta e enche”, com suas crevemos o poema, as ondas vocálicas vêm na sua
imagens, “as nossas vidas”, como escreveu Gastão aspereza fazer-nos sentir vivos.
22 23
Arlindo Barbeitos Arnaldo Santos
imersa
em sereno de lusco-fusco I
e
suspensa em vazio Do polegar que faz o passo
Do rumo imóvel
São-Tomé As redes crescem.
São-Tomé
suspensa em vazio
e
imersa em sereno de lusco-fusco
24 25
II III
enquanto
no peito da onda
as redes carregam
o nosso grito de fome
ao desfazerem-se na praia…
…MAUNDA MABIXILA!...!!
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28 29
© Ismael
Carlos Morais José Conceição Lima
30 31
Dalila Teles Veras
e o cheiro despudorado
do abacaxi e anular o resto
onze foram os dias
enjoo, sarna e tédio (o brasil tinha cheiro
terceira classe e era de ananás)
paquete santa maria
da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais
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Dina Salústio Edmundo de Bettencourt
TUBARÃO, TUBARÃOZINHO
34 35
Eduardo White
36 37
Fernanda Dias
I – CRÓNICAS DE UM
DIMINUTO PEDAÇO DE CHÃO
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Fernando Martinho Guimarães Fernando Sales Lopes
40 41
Fernando Sylvan
INFÂNCIA
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Filinto Elísio Filipe Zau
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© Lilison Cordeiro
Gisela Casimiro Glória Sofia
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Herberto Helder
50 51
Hirondina Joshua
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Irene Lucília Andrade J. A. S. Lopito Feijóo K.
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João Cabral do Nascimento
O PROMONTÓRIO E O MAR
Abriste-me cavernas sinuosas Que mais querias tu? Se não fora o trabalho
Num corpo que era são, Que tenho tido há séculos, viria
Onde se infiltra o mar e as tuas ondas frias Alguém, de longe, ver-te? Algum poeta, acaso,
Penetram de roldão. De ti nos meus poemas falaria?
Eu, que maciço fui, desempenado e forte, De quantos benefícios sou credor?
Agora vivo cheio de cuidados; Bruto, quanto me deves!
A toda a hora tusso, a toda a hora espirro: Quem te ora visitara, quem te conhecera
Tenho os dias contados. Sem mim? Aves marinhas, lapas e perceves...
Mal sabes tu – lhe replicava o mar – E assim dizendo, o mar continuou na faina
Quanta razão me sobra! De o vencer e moldar, andando-lhe ao redor,
Fiz-te baías, praias, nichos, enseadas, Enquanto o cabo regougava, a espirrar, a tossir,
Criou-te Deus, mas eu findei-lhe a obra. Nas mãos aquosas do escultor.
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José Agostinho Baptista
CANIÇAL
A noite traz consigo os gritos do recém-nascido. Somos muitos na última noite do nosso verão.
Quem está no mar ignora as tumultuosas leis do Já não podemos amar a primeira lua,
parto. já não podemos amar.
Quem está no mar tem outro sangue nas mãos. Este mês antes de agosto é tão cruel como as suas
Os atuns da madrugada esvaem-se. armas, arremessando-as devagar.
A sua pele brilha, quase encostada aos archotes. A escuridão aperta-me nos seus braços frios e
Eles sabem que na boca dos homens há uma praga que aquele que nasce
explode. nasce ao lado da morte dos meus irmãos.
As estrelas da sua água dormem profundamente. O sangue desvenda sobre as pedras um segredo antigo,
O anzol prende-se à carne como uma garra de fogo. as trevas cedem à luz,
Maldito aço curvo e mortal. os gritos prolongam-se na manhã das vilas e não
Malditas as mães que dão à luz os assassinos. tarda o silêncio com todos os lamentos, com o
Ninguém acode a esta dor lancinante. terror por dentro.
Oxalá enlouqueçam as vagas Em setembro a procissão irá pelo mar.
e os homens se enredem nas linhas com todos os
lamentos,
com o terror por dentro.
Trabalham nas minhas guelras os pincéis vermelhos
de um pintor louco.
Não quero ouvir as pancadas dos meus irmãos, ao
fundo,
sobre as tábuas.
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José Rodrigues de Paiva
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José Tolentino de Mendonça Júlio Hortas
O MAR SALTO DE FÉ
frondes de palmeiras
imóveis contra os céus
mas a eternidade caía sobre nós
com todo o peso da sua carne
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Leonor Sampaio da Silva
FORMULÁRIO DE CLASSIFICAÇÃO
DE PASSAGEIROS
É triste deixar o ninho.
O arbítrio da vida, severo, se tenho viajado?
já deu seu brado. nunca menos que incessantemente. eu sou aquela
que se afasta de silêncios e de passados como quem
Cair é se deixar cair, larga pêlo nas estações, só que as minhas estações
Então se foi. são marés: bússolas cambaleantes fazem-me parar em
Asas feridas, todas as escalas, aves marinhas pousam nas minhas asas
rastro de sangue no ar. e curam-nas.
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Luís Cardoso Maria Alexandre Dáskalos
O IMPÉRIO
Era uma quinta-feira quente, aquele
dia do mês de junho de 1990. Como Algures um barco a afundar-se. Algures no Índico onde
fazia todas as manhãs, atravessei o rio tudo começou. As
de barco. Um costume adquirido para tetravós envoltas em lãs saboreando a maresia, depois as
saborear um gosto antigo. sobrinhas-netas
adolescentes. Usam cachos nos cabelos fartos. Blusas
Ele, o velho, teria certamente de levar brancas com
uma vida para fechar os olhos. Meio babados, golas subidas a arrematar em renda de frioleiras.
século. Sozinho, no meio do mar, fez 0 comandante passeava de quando em quando pela ala
então outra travessia. A da sua memó- das senhoras e
ria, árida e seca como a planície de Beloi conversava-se sobre os trópicos. 0 barco estava cheio
com os seus ai-loks e os espinhos que se de homens.
lhe espetavam no peito. ... Na mesma paisagem cactos gigantes. A flor de cacto-
cardo e flor da
noite. De novo o deserto e logo a montanha. Leite morno
e mais tarde
queijo curado. Lá fora no jardim as couves-flores
apoquentavam pela
ferrugem. Na cozinha os homens mexiam as saladas.
Intermezzo. Lento
ma no troppo. Ainda me lembro do primo afastado que
chegou e disse:
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Maria de Lourdes Hortas
CÍRCULO
A infância partida
depois tudo passagem
assim me leva a vida
sempre numa viagem
ponte para que eu volte
ao eixo desse corte.
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Mia Couto
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Odete Costa Semedo
MAR
Miro o mar
entro na sua fúria
pelas tuas mãos
tu que inventas paredes-meias
entre as mãos de homens
e a natureza rebelde
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© Litos
Orlando da Costa Ovídio Martins
POEMA SALGADO
Eu nasci na ponta-da-praia
por isso trago dentro de mim
todos os mares do Mundo
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Paula Tavares
CONTANDO AS HORAS
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Priscila Branco Ruy Cinatti
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Ruy Duarte de Carvalho Sangare Okapi
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Teresa Rita Lopes Tony Tcheka
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Vera Duarte Waldir Araújo
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Yao Feng
VIAGEM
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© Félix Mula
EPÍLOGO
Ricardo Cabaça
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K Aquilo que mais gosto é de sentir o mar à nossa volta, tinha ligado. O que chegou perguntou se o outro estava
respirar este ar que me faz tão bem. Para onde quer que bem, então o que já estava disse que tinha perdido
olhe só vejo mar, é o melhor horizonte possível. Não ver o filho mais novo. Os meus sentimentos, disse o que
prédios é uma benção. chegou.
W E se tivesses de ir embora de repente? K Que história horrível. Tu nem sequer tens filhos, pára
K Como, se o próximo barco só vem cá daqui a quatro lá com essas conversas macabras, não quero ouvir essas
meses? Não vejo nenhum motivo para ter de ir embora coisas.
antes de terminarmos esta missão. Além do mais, quero W Lembrei-me dessa história que se passou um pouco
subir ao Pico algumas vezes, fotografar toda a ilha, ver antes de virmos.
o pôr-do-sol, olhar o mar e não ver nenhum cruzeiro K E agora vais esquecê-la. Olha lá para cima, pensa que
nem cargueiro, não quero ver nada que não faça parte um dia vamos estar lá e colocar a nossa bandeirinha.
da natureza. Quero sentir a chuva enquanto caminho
em direção à falésia para ver a ondulação. Eu vim cá W Isto não é o Everest.
pelo ambiente e pela ciência, tu conheces-me, somos K Desculpa, só estou a tentar aliviar o clima.
amigos há muitos anos, sabes que também vim para W Está tudo bem, não há nada para aliviar.
cumprir um lado espiritual.
W Somos amigos há muitos anos. (Silêncio.)
K Vamos todos?
W Nós os dois e um pescador que conhece todos os recan- K Eu terminei aqui, tenho o equipamento preparado.
tos da costa, é ele quem nos vai guiar sempre. Sabes se no barco dá para carregar as baterias, se for
necessário?
K Que privilégio! Nunca pensei passar por esta experiên-
cia. Porra, estamos na Tristão da Cunha! Eu sei que é W É um pequeno barco de pesca, não acredito que tenha
pouco espiritual, mas queria ter internet para partilhar eletricidade. Devias ter tudo pronto para o teu trabalho.
esta experiência. Não ganho para pagar o satélite. K És insuportável quando estás de mau humor, insupor-
W Devias escrever um livro sobre a experiência. tável. Não sei como é que a Helena te atura, coitada da
rapariga.
K Está tudo bem contigo?
W Não estou de mau humor. Quando fui rever o planea-
W Uma vez ouvi uma conversa no comboio entre dois mento de hoje, acabei por ler um email.
amigos. O que chegou perguntou se o outro tinha ligado
para ele, o que já estava disse ao outro que não, não K O que é que tem? Isso é uma coisa normal, não é?
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W O email não era para mim. K Eu sei disso.
K Metes como não lido e esquece isso. W Aconteceu uma tragédia.
W O email era para ti. K Os meus pais?
K Tudo bem, não te preocupes, acontece. W Não, está tudo bem com eles. Foi o teu pai que escreveu
W Vou buscar uma bebida, estou a precisar. o email.
(W levanta-se e regressa pouco depois com dois copos (W começa a balbuciar e a chorar.)
e uma garrafa de whiskey.)
W A Patrícia morreu.
W Não te preocupes com isto, hoje não vamos trabalhar. K A Patrícia? Não, deve ser engano, só pode, não faz o
K Mas há pouco disseste que íamos começar a recolha. mínimo sentido. Ela estava bem, ela está bem, não está?
Diz-me que ela está bem!
W Hoje temos folga.
W A Patrícia morreu. Queria tanto dizer-te outra coisa,
K E vamos beber porque estamos de folga ou a razão é tanto, tanto…
outra?
W É por causa do e-mail. (K agarra na garrafa, a tremer, e bebe até se
K Mas chegaste a ler o e-mail? engasgar com o choro. Os dois abraçam-se, choram
W Não sei como dizer uma coisa destas, não sei. Desculpa, compulsivamente. Quem está no bar olha expectante,
não sou forte o suficiente. algumas pessoas aproximam-se.)
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pessoas a pé pela costa. Apareceu ao final do dia. Teve
um ataque cardíaco, foi súbito. Ela não sofreu.
K Impossível não sofrer..
W Eu vou entrar em contacto com o Presidente da
República, alguma coisa tem de ser feita.
K Vou ficar nesta ilha terrível, a olhar o mar, perto da
falésia. Talvez a mesma água e a mesma corrente que
afogaram a Patrícia esteja a vir para aqui, talvez eu me
lance à mesma água, talvez caia da falésia. Vou ficar
nesta ilha, obrigado todos os dias a ver o mar, sem
poder sentir que só temos terra, um continente imenso,
seco, sem água. Ficar à espera que esta ilha desapareça
no mar.
Longe de tudo, longe da Patrícia.
W Não vamos desistir.
K É inútil.
K Longe de tudo.
(K enche o copo de Z, depois o seu. Brinda com o copo do
amigo e bebe de uma só vez, W nem tempo teve para
brindar. K levanta-se e começa a fechar as janelas do
bar, até ficarem na penumbra total.)
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