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ALMADA NEGREIROS

OBRAS
COMPLETAS
Voi.V
Ensaios
Introdução de
Eduardo Lourenço

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA


Almada Negreiros

OBRAS COMPLETAS

I. POESIA

Com um texto introdutório de Jorge de Sena

II. NOME DE GUERRA

Prefácio de Antônio Alçada Baptista

Ill. ARTIGOS NO «DIÂRIO DE LISBOA>> ALMADA, ENSAÍSTA? *


Organização e prefácio de E. W. Sapega
por
IV. CONTOS E NOVELAS
EDUARDO LOURENÇO
Com um texto introdutório de Maria Antônia Reis

V. ENSAIOS

Introdução de Eduardo Lourenço

* Conferência proferida no Colóquio sobre Almada Negreiros, realizado pelo


Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte- ACARTE, da Fun-
dação Calouste Gulbenkian, em Outubro de 1984, e publicada no livro Almada,
edição ACARTE, Lisboa 1985.
«Universal não é estatuto de nação nem de sociedade
de todas as nações . Mas é atitude humana que não cabe
senão em pessoa individual»
Sobre Orpheu, 1965

«Pelo amor de Deus não me obriguem a explicar nada


do que digo»
(Texto de 1923)

Convidado a debruçar-me sobre o ensaísmo de Almada, não dese-


jaria enredar-me, desde o início, na glosa hoje corrente, e mais ou
menos labiríntica, do mito-Almada. Quereria, antes, aproveitar a
revisitação rápida desse «ensaísmo», até aqui, pouco tentada, para
compreender, na medida do possível, os ingredientes que confe-
rem a esse mito-Almada a sua aura e a sua verdade. E isto, não
apenas no círculo do nosso espaço cultural português, como no mais
vasto da cultura europeia enquanto risco e enigma. Paradoxalmente,
a obra de Almada Negreiros, tão voltada para o interior português,
obcecada pela exigência de criar a famosa pátria portuguesa que
o merecesse - quer dizer, que merecesse o tipo de homem e ati-
tude novos que ele dizia encarnar do alto dos seus vinte anos
r
provocantes - é uma obra, um estilo, uma enunciação, que ne-
cessitam, como poucos, do exterior, do criticamente europeu e exem-
plar, para ser compreendida. É, sem dúvida, o interior, esse Por-
tugal quase místico que as suas apóstrofes visam, quotidianamente
desmentido pela mediocridade das coisas e gestos portugueses, que
confere ao destino de Almada a forma de uma árvore ao contrá-
rio, com as folhas no lugar das raízes. Mas a sua vocação, a sua

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«direcção única», será a de converter as folhas em raízes e assim, peia. Almada aprendia depressa (por isso parece «sem mestre») e
de algum modo, como o herói de «Paris-Texas» de Wim Wenders, Nietzsche que ele ainda em 1921, designa «de o mais evidente pre-
de caminhar com obstinação para a sua origem, para esse lugar onde cursor da hora presente», é um bom mestre da urgência e da tá-
tinha sido concebido e donde tinha sido expulso, lugar ao mesmo bua rasa. «Quando entrei em casa, abri o Zaratustra, Frederico
tempo pontual e infinito, onde o individual se articula com o uni- Nietzsche tinha, entretanto, escrito com o próprio punho: ''Tu deves
versal, o problemático com o pontual, o evidente com o enigmático. ser o martelo, eu pus o martelo na tua mão! Para quê Zaratustra?
Existo, logo sou. Para afirmar com tal violência o seu eu - como Para quê o martelo?" "Pour cesser d'être des hommes qui rient,
o faz, quase adolescente, no frenético Ultimatum futurista-, para pour devenir des hommes que bénissent' '». Foi na luz deste co-
se instalar no centro do mundo, era preciso, antes, ter sido negado gito sem reflexão, tomado, por assim dizer à letra, e bem à portu-
com simétrica violência. Em suma, era preciso ter sentido, por as- guesa, que Almada recortou o seu próprio verbo reflexivo, não como
sim dizer, na carne, aquele Ódio teatral e teatralizado que dedica acto e processo idealmente autônomos, à maneira dos filósofos, mas
a uma sociedade que o negava por orfandade ou abandono. Al- como verbo capaz de lhe exprimir a vida anterior ao verbo, de lhe
mada ressentiu, antes de reflectir, que 1 + 1 = 1, isto é, que a vida dizer o milagre e o enigma puros da sua existência com nome pró-
é solidão radical de que não se pode sair senão saltando a pés jun- prio, o seu ser Almada, antes, acima e depois de tudo. A partir
tos por cima dela, convertendo a noite em dia, dizendo «sim» ao desta inscrição original da figura de Almada, é bastante estranho
mundo por nossa própria conta. Era o que ele entendia por ter que se possa considerar o autor do «Manifesto» futurista como um
fé, fé de vida, para falar como Jorge Guillén. Pessoa podia passar autêntico ensaísta. A vocação de Almada foi a de dizer-se, de
a vida a regressar ao «outrora feliz» que, afinal, sempre tinha tido. afirmar-se, de passar a vida a ser-se Almada. Ora, é costume supor
Almada parece ter passado a sua a inventar a infância roubada, que um ensaísta é alguém preocupado, objectivamente, com pro-
a construir o lugar matricial da ingenuidade, a imaginar o diálogo blemas ou questões suscitadas pela dificuldade ou perplexidade com
maternal abolido, apenas começado. Em suma, sem o saber muito que a experiência própria, dos outros ou do mundo é vivida ou
bem e sabendo-o cada vez melhor, Almada, apoiado no seu mito ressentida. Como é possível conciliar essa atitude com a de alguém
pessoal, transfigurá-lo-á em invenção de Modernidade enquanto von- que aos 20 anos se sentia já Homem Completo?
tade de origem e originalidade, ja anunciada e inscrita, de diversa Do ensaísta por antonomásia, Montaigne, aprendemos todos que
maneira, por Rimbaud e Nietzsche na dinâmica da cultura euro- aquilo que o instituiu nessa atitude original perante a vida e a cul-

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tura_foi o sentimento de incerteza permanente, a dúvida renovada hermética que Lima de Freitas nos explicará 1 - não pretende
acerca do conhecimento de si e da mesma vida: «que sais-je?» Que furtar-se ao código habitual da comunicação inteligível, mesmo com
sei eu? Não é esse o perfil intelectual e moral, nem o mito, pe- toda a carga das suas afirmações provocantes. Mostração mais do
queno ou grande, que na nossa cultura do século XX, nomeamos que demonstração, o discurso de Almada não só não se furta ao
Almada. A cada etapa da sua vida nunca Almada se define como imperativo da coerência - à parte o gênero cominatório do pan-
ser que duvida. A sua constante autodefinição é a de artista, não fleto de juventude - como é, de facto, muito mais articulado e
na versão romântica dele mas na vanguardista à Picasso, a que con- orgânico do que é costume imaginar para quem o leu apenas frag-
vém àqueles que antes de pensar, encontram. mentariamente. Circula através de todo o texto «ensaístico» de Al-
Todavia seria errado, salvo sob a forma de «Boutade», dizer que mada uma intuição única que podemos resumir assim: tudo está
Almada se auto-apresenta como ser que sabe. O seu caso é, na ver- dito, porque dizer não acrescenta nada ao existente falado no, e
dade, singular. Há em Almada uma espécie de indiferença origi- pelo, que se diz. Para Almada, explicar é reiterar a evidência da
nal acerca da «questão» da Verdade, tal como clássica e banalmente não necessidade de explicação quando nós nos colocamos na pers-
se põe, questão do conhecimento objectivo, fundamentado, sobre pectiva apta a apreender na sua verdade, o explicável.
nós mesmos e o mundo. Almada não é um filósofo, não é mesmo Poderá parecer estranho, mas o futurista Almada não espera re-
o que se costuma designar por «pensador», e, sendo assim, é bem velação alguma do exercício activo do entendimento, salvo a de pro-
difícil poder considerá-lo como ensaísta, se por isso se entende al- clamar uma evidência que nos seria logo acessível se não começás-
guém com a consciência aguda da relatividade da própria afirma- semos por perdê-la, pensando-a. É, de algum modo, a inteligência
ção ou até da questão da «verdade». Todavia, Almada não somente que não nos deixa ver o essencial, é ela que nos priva daquele olhar
pensa, no sentido mais forte do termo, como verbaliza a sua visão que teríamos se fôssemos menos inteligentes. Se fôssemos, por exem-
do mundo em termos de inconfundível enunciação, a meio cami- plo a «eterna criança» que somos sem o saber ou esquecendo-o.
nho entre a parábola e o discurso peremptório. Todos sabemos que É por isso que a marca própria do discurso de Almada consiste em
os seus textos, em geral ligados à circunstância fulgurante, parti- glosar, em duplicar, por assim dizer, a evidência contida na lin-
lhados entre a vidência e a evidência, são dos que não convidam
à indeferença. Como o pai de Zaratustra, também Almada não se 1 Cf. Lima de Freitas, "Almada Negreiros um neo-pitagórico" in Almada,
justifi"ca, proclama, mas aquilo que proclama - salvo na sua face ed. ACARTE, Lisboa 1985.

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guagem com que dizemos ou falamos o mundo. Como ele escreve, xidade ou dúvida. O nosso Robinson-Almada navegou sempre da
a propósito da diferença entre uma pintura de Nuno Gonçalves e modernidade exterior de Picasso para a modernidade sem tempo
uma flamenga: «Há demonstrações que não têm outro desenho que do Douanier Rousseau. Não é difícil descortinar aqui uma secreta
as do seu próprio desenho.» A frase-Almada é, ela própria, uma afinidade com a vocação mítica de Alberto Caeiro que, como se
frase-desenho, porque, no fundo, o desenho - encontro original sabe - ou não se sabe a sério - é o anti-Pessoa de Pessoa. O pen-
do olhar sem conceito e do mundo - é, para · ele, a evidência su- sar mais profundo é, para ambos, o de des-pensar o mal pensado,
prema e, mesmo, única. Aqui, mais do que em qualquer outro para que possamos regressar assim ao ponto zero do nosso contacto
plano, se colhe a diferença entre a «visão» de Almada e a «in-visão» original com a realidade, contacto que não teríamos perdido se a
de Pessoa. O mundo para Almada, é essencialmente o que se vê não tivéssemos reduzido a conceito, pensando-a .
quando como artista se vê. Para Pessoa, o essencial é invisível, é É transparente o que de adivinhado bergsonismo ou até de in-
mesmo «inexistente», não por acidente, mas por fatalidade. Pessoa suspeitada fenomenologia, com o seu lema do regresso às coisas mes-
ensinou-nos a evocar e nomear o que não é visível, a imaginar o mas como condição do pensar concreto, após a apoteose do idea-
ausente ou a matriz dele, a própria Ausência. Almada compreen- lismo do século XIX, circula no texto de Almada Negreiros. Que
deu bem, como o lembrou J.-A. França, que Pessoa nunca tinha seja sob o modo intuitivo, um pouco à maneira do camponês do
desembarcado no mundo. Ora, é a glosa deste desembarque que Danúbio, não é defeito para Almada- é privilégio. Não estranhe-
constitui o fio condutor de Almada, ou se se prefere, a sua voca- mos, pois, que o mesmo Almada nunca tenha abordado «a fundo»,
ção consquistadora, tão outra que a de Pessoa. um tema qualquer, da ordem exterior da vida ou da cultura. Não
Numa perspectiva «não poética», o mundo, a realidade, são é um homem de tradição escolar, embora - e é uma surpresa para
aquilo que precisa ser dito duas vezes para existir. É o que faz a quem o lê com atenção - de uma escolaridade e de uma cultura
linguagem como discurso e comunicação úteis. O artista, o poeta, muito mais vasta e complexa do que se diz. Por exemplo: haveria
mostram que não era preciso . Uma vez chega. Que seja sobre arte, muita gente, em Portugal, em 1935, para escrever, como ele o faz,
política, amor, civilização, Europa, Portugal, sempre o discurso- no que é talvez o mais profundo e revelador dos seus ensaios
-Almada tenderá a mostrar que o importante na nossa relação com - Prometeu - que «O jesuíta espanhol Gracián era dos maiores
esses temas é descobrir a palavra-única que os resume e por detrás pensadores da nossa raça peninsular e também dos maiores pensa-
dela a ingenuidade paradisíaca que a anula como fonte de perple- dores da Humanidade?» j>Jão terá sido apenas isso o que o mau

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aluno do Colégio jesuíta de Campolide aprendeu com os seus mes- da tentação fascista em que soçobrou o seu primeiro ídolo Mari-
tres. Com quem, senão com eles, terá aprendido - e justamente netti. «Direcção única» quer dizer, dzferente para cada qual. Tam-
através do Criticón de Baltasar Gracián - a sua versão alegórica bém aqui a herança libertária, em versão elitista, cara a Nietzsche,
da cena pnmitiva, a fábula das fábulas da criação do Homem como foi, menos que escutada, te-inventada. Almada não é o que dis-
Robinson plantado no meio do paraíso, tal como no-la conta, em pensa mestres mas o que os ' traduz para Almada e o que aconse-
19 32, num dos seus outros textos capitais, o de Direcção Única 2? lha aqueles que têm o instinto de liberdade - quer dizer, os que
É nele que se escreve que o universo foi feito para uma pessoa só. são capazes de imaginar que o mundo foi feito para eles - a fa-
Pode não ser opinião muito ortodoxa, mas essa foi - essa é - a zer o mesmo. Para sua auto-afirmação, Almada, em termos inédi-
fábula, o alfa e ómega se não da visão, pelo menos, do sentimento tos entre nós, forçou a atenção pública, agitando, talvez em ex-
do mundo para quem se chamou Almada Negreiros. O mundo foi cesso, os guizos arlequinescos. Mas, entre nós, o que não é excesso,
feito para Almada Negreiros. Essa é a sua convicção, dita e redita ou o que é excesso? Ele foi o escândalo que a época pedia e mere-
sem fim e sem cansaço. Quem não pensar que o mundo foi feito cia. No fundo, Almada só quis dizer uma só coisa, retomando como
para ele não tem mundo. É a tradução para Nietzsche do relato Nietzsche o lema da sabedoria grega que lhes foi comum ·e Pín-
bíblico. E é a isso e não à tradução sociológica (ou menos ainda daro enunciara assim: tornarmo-nos no que somos. Por isso, por
política) da «fábula», que Almada chama a direcção única. Quer mais que apeteça «matar Almada», como ontem foi aqui sugerido
dizer, a que não tem reverso, a que não vive do que nega como por um jovem ouvinte, um tal Almada-Liberdade e, por conse-
as direcções proibidas, as da mera negação daquilo que nos consti- guinte, libertador e libertante, não é fácil de suprimir, culturalmente
tui e institui como únicos e universais. Direcção única: proclamado falando. O seu famigerado unanimismo não é o da unanimidade
em 1932, este imperativo, parecia ser um eco da tentação totalitá- mas realmente o da pluralidade dos caminhos, tantos como os que
ria então em transe de se inscrever também na <<nossa» ordem po- o «ser único» de cada qual é capaz de traçar. «A pessoa humana
lítica. Felizmente, embora na época o equívoco fosse possível, esse é um negócio particular de cada vida humana» escreveu ele. Como
aparente «mot d 'ordre>> era outra coisa. O intervalo (intransponí- escreveu ainda: «< espín.to é retintamente universal e pessoal a um
vel) que separa Dzrecção única de Única direcção afasta Almada tempo, sem nenhuma parcialidade nem em género nem em nú-
mero.» Será sempre uma honra para Almada o ter mantido o sen-
tido da diferença como sinal distintivo da pessoa humana e base
2
Cf. pp. 29-52 deste volume.
da sua dignidade. De ter sentido fortemente que é uma pura

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OBRAS
ignommta aceitar que a colectividade possa ser mentora do espí-
rito. Num tempo, propício como poucos à sedução totalizante e
COMPLETAS
totalitária, como foi o dele - dentro e fora do País - é reconfor-
tante encontrar sob a sua pluma a contínua afirmação da unidade
indestrutível entre a essência humana e a liberdade, mesmo se a
Ensaios
única expressão cabal dela era para ele a Arte. Não como mero re-
sultado, o que seria fetichismo, mas como gesto original que não
só renova o mundo mas no-lo dá a ver.
Nesta luz é um pouco ocioso saber se Almada foi ou não um
autêntico ensaísta. A questão, no fundo, não interessa. Ele foi, em
todos os sentidos do termo, um poeta, um artista, um criador.
Como Pessoa, cada um de nós tem sobradas razões para lhe agra-
decer ter existido.

Vence, 1 de Dezembro de 1984.

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O DESENHO

Senhoras e Senhores :

Vou falar-vos do desenho e creio poder dizer-vos alguma coisa


de novo sobre a mais antiga das expressões. Nenhuma outra forma
de pensamento chegou até nós mais próximo do seu aspecto pri-
mitivo do que o desenho. Todas as origens se dispersaram pelas
infinitas direcções do tempo e da geografia, mas as rochas conser-
vam os traços que nem o tempo desfez nem a geografia mudará
Jamals.
Tem o desenho um sentido universal que o distingue de qual-
quer outra expressão universal do homem. Se fosse possível reunir
os desenhos de crianças de todo o mundo e desconhecendo as res-
pectivas nacionalidades, ninguém saberia, através desses desenhos,
indicar as pátrias dos seus autores. As crianças de todo o mundo
são iguais na espontaneidade dos traços instintivos do homem.
São iguais até que o instinto deixa de ser a única força que
as conduz. Em cada criança a natureza procede a uma renovação
total como se fosse a humanidade primitiva, ela própria, na pes-
soa da criança. Depois o ambiente influi sobre ela como a sua as-
cendência, e é então que ao lado do instinto começa a surgu a
consciência.
No desenho há instinto e consciência.
O meu propósito é falar do desenho como força determinada
que faz parte da vida de cada um, seja quem for, artista ou nega-
ção da Arte.

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* Mas não esqueçam VV. Ex ..as que, primeiramente, o pintor an-
Os frades de um mosteiro acordaram em pintar as paredes do dou um ano a ver! Esta é a ordem dos factos e só falaremos preci-
seu refeitório. Procuraram um pintor e encarrregaram-no dos fres- samente do que aconteceu ao pintor durante esse ano, pois que
cos. Veio o pintor, encostou uma escada à parede, abriu a caixa em verdade a pintura que ficou nas paredes do refeitório não é
das tintas, pôs os pincéis em ordem e, quando tudo estava prepa- o que mais interessa agora.
rado, foi-se embora dizendo: - até amanhã. No dia seguinte não Os frades encarregaram-no dos frescos porque sabiam que ele
apareceu, nem tão-pouco em toda aquela semana; nem passado um era pintor. Mas, na realidade, só depois de passado um ano, o ano
mês. No entanto tudo estava preparado para que ele começasse a simbólico, o pintor foi pintor, porque além das tintas e pincéis,
pintar. ele tinha também o que é principal na pintura, na arte, na ciência
Passados uns meses, um frade, ao regressar do seu passeio, con- e em toda e qualquer posição social do homem: a autoridade pes-
tou aos seus companheiros que tinha visto na feira o pintor, ro- soal.
deado de uma multidão de curiosos e feirantes. E pareceu-lhe que Nada há mais moral nem de maior valentia que a autoridade
o pintor tinha esquecido para sempre as paredes do refeitório. Pas- pessoal. Se há no mundo postos ambicionados~ só um há de di-
sados três meses, outro frade encontrou-o no campo, sentado numa reito para cada um: a sua autoridade pessoal.
pedra, mas não quis dar-se a conhecer, não fosse ele julgar que Es.ta velha história, escolhida para iniciar estas palavras foi in-
era para recordar-lhe as pinturas. Passados quatro meses, viram-no tencionalmente escolhida. Nela está claramente apontado o que nos
interessa mais do que a própria arte que fica nas pinturas: o cami-
em plena noite, à luz do luar. Outra vez, num dia de sol,
nho do pintor, desde as paredes nuas do refeitório até à pintura
encontraram-no muito longe do mosteiro, por entre as árvores de
dos frescos, ou seja até que as suas cores deixaram de ser tintas
uma estrada. Outro frade, no seu peregrinar, tinha-o visto à beira-
e passaram a ser a sua autoridade pessoal.
-mar, com as mãos nos bolsos, sem lápis nem papel, nem aparên-
Na anedota não se disse o nome do pintor e não se disse por-
cia de quem toma notas ou apontamentos. Na praia ninguém di-
que ele pode ser qualquer, desde que tenha autoridade pessoal.
ria que era pintor. Passado um ano, os frades tornaram a ver o
Giotto, por exemplo, e independentemente da História está den-
pintor no mosteiro. Aproximo u-se da escada, das tintas e dos pin-
tro deste caso, com a sua autoridade pessoal: e para mais sabemos
céis como se os tivesse deixado na véspera. E começou a pintar as
que Giotto não viu nunca outros pintores, não soube o que se ti-
paredes do refeitório. Enquanto pintava não falava com ninguém.
nha feito em pintura antes dele, não recebeu lições de arte de pintar
E os frades começaram a ver que ele ia reproduzindo os lugares e, ao contrário, como acontece na referida história , só viu a paisa-
onde cada um deles o tinha visto. A feira, o mar, a noite, a lua, gem, as pessoas, a natureza, e sobretudo o que tinha dentro dos
as pessoas, o campo, as árvores, o sol, tudo nascia nas paredes do seus olhos. Desconhecendo toda a ciência e sabedoria da Arte,
refeitório pela arte do pintor que durante um ano andou procurando Giotto foi o iniciador da arte naturalista, representativa da arte eu-
o assunto para as suas cores. ropeia, ocidental.
Grande foi este pintor e bons os frades, que não lhe pediram Mas, repetindo, não falaremos da pintura, mas sim do cami-
o assunto, mas somente a pintura. Estes bons frades andaram neste nho que conduz a ela. A pintura é já campo da personalidade e
caso como sábios, não tirando a escada, nem as tintas, nem os pin- nós vamos ainda a caminho desse campo.
céis donde o pintor os tinha deixado , e apesar dele não ter vol- E, embora não sejamos os donos da nossa personalidade e por
tado durante todo o ano. Mas ele voltou. Voltou passado um ano. longe que ainda estejamos de o ser, não teremos pressa de possuí-
O ano simbólico desta história antiga. -la antes do devido tempo. Nós seguimos o nosso caminho, segu-

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ros, mais atentos à nossa autoridade pessoal de hoje do que a uma Mas entendimento não é o mesmo que inteligência. Esta é a
personalidade que conseguiremos talvez um dia. Em verdade, o que ligação e a harmonia entre os entendimentos pessoais.
imediatamente nos interessa é a nossa autoridade pessoal. Esta, sim, O povo que não conhece a palavra inteligência tem, todavia,
que já nos pertence hoje mesmo e antes de termos direito a urp.a o seu entendimento e até a gente do povo de quem sabe muito:
personalidade. ela diz memória.
Quer dizer, melhor, muito melhor que o valor da nossa arte Diz a gente do povo de quem sabe muito: que boa memória tem!
de hoje é a claridade e a dignidade do nosso caminho até amanhã. Quer dizer, memória é o que fica para sempre no entendimento.
Neste momento em que ficam bem delimitados os diferentes Perguntaram a alguém porque desenhava e este respondeu: para
conceitos de personalidade e de autoridade pessoal, meditemos um fixar a atenção.
pouco sobre esta e deixaremos aquela aos que a têm já. Assim como Um livro do século XVIII sobre o desenho começa com estas
há pouco nos abstivemos de falar de pintura, para ver melhor o palavras: o desenho é a única maneira de fixar a atenção.
caminho que nos conduz a ela, também agora a personalidade nos E a verdade é que não sendo todos desenhadores, todos temos
interessa menos do que a autoridade pessoal daqueles que a bus- desenhado. Porquê?
cam. Temos, pois, um caminho até à personalidade: a autoridade É necessário o respeito pelo desenho.
pessoal, e um caminho até à pintura: o desenho. Quer dizer, O desenho, se marca a nossa mtctauva, começa por impor-nos
a pintura coincide com a personalidade, enquanto o desenho cor- uma obediência absoluta, única condição de êxito. E esta obediên-
responde à autoridade pessoal. Deve ser este o sentido do que In- cia não é senão a nossa lealdade para com nós próprios, para com
gres disse do desenho: «le dessin est la probité de /'art.» os nossos sentidos, órgãos do entendimento.
O desenho não é, como pode julgar-se, simplesmente um con- Se o entendimento ao abrir o seu caminho parece agressivo pe-
junto de linhas ou traços, um gráfico representando qualquer coisa rante a inteligência humana, bom é que o pareça para depois pro-
existente. var que o não foi.
O desenho é o nosso entendimento a fixar o instante . É tão pessoal o entendimento que, quando não oferece origi-
A célebre frase de Napoleão, dizendo: «vale mais um pequeno nalidade desaparece o autor.
''croquis'' do que um longo relatório» contém todo o sentido do Nós, das raças meridionais, onde a precocidade é espontânea
desenho. e natural, devemos buscar a compensação no oposto, isto é, na ma-
Ao contrário do trabalho, da construção que exige tempo, com- turidade.
posição e volume, o nosso entendimento é rápido, claro e simples. Pascal, que não é da nossa raça, tem autoridade para nos dizer
A perfeição do entendimento é momentânea e, por consequência, que no melhor livro do mundo, o catecismo, há um erro grave no
há que fixá-la. que se refere à idade da razão. Diz Pascal que a idade do uso da
Por isso o desenho é o melhor amigo do entendimento. razão é muito posterior. Mas antes de chegar a esta idade e no no-
É corrente, quando alguém não percebe o que se lhe diz, acres- bre sentido que lhe atribui Pascal, já a consciência tem o seu pa-
centar: precisas que te faça um desenho? pel na função do entendimento. É já a autoridade pessoal de cada
E o facto é que este é o processo definitivo. um quando, contudo, ainda não é consciente nem desfruta da sua
1
De uma boa descrição literária se costuma dizer: parece um de- personalidade: [ ... ] .

senho. Não é indispensável fazer linhas ou traços para desenhar.


Tudo o que contém clareza de entendimento tem a função do
1 [ ... ] ilegível no jornal; não se possui o original. [Nota da 1. • edição.]
desenho.

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Duas épocas tem o desenho: a primeira, época da atenção res- Tinha razão Henri Matisse . O seu apostolado da arte produzia,
peitando o instinto, a outra, a da correcção do instinto procurando afinal, nos seus discípulos um resultado igual ao que ele tão deci-
a harmonia. Passa de sinceridade primária ou romântica à impassi- didamente combatia. E assim a sua experiência levou-o à mesma
bilidade construtiva ou clássica naquele mesmo sentido em que In- conclusão de Picasso: não há discípulos, há só mestres .
gres definiu a obra clássica: a que não faz rir nem chorar. O erro do que estuda não é sofrer as influências dos mestres,
O desenho tem o seu valor e o seu limite. O desenho é 0 meio mas sim ficar preso da influência de um único.
e o homem a finalidade . É a nossa admiração pelos vários mestres que melhor pode
P~ré~ , aquele~ que ?rocuram, priocipalmeote, a própria ex- conduzir-nos ao descobrimento da grande novidade : a nossa per-
pressao v1vem multo ma1s preocupados com o aspectos da época sonalidade.
do que com o valor do próprio entendimento. O homem moderno não fixa nunca a sua posição, nem antes,
Preocupa-os demasiado a palavra modernismo. nem durante, nem depois da sua personalidade.
Seguramente ignoram que a personalidade não se recebe dos Disse Balzac que o mundo se divide em três classes de pes-
outros,_ ma sim ?ecessira que cada um a liberte de si próprio. soas: os ociosos, os ocupados e os artistas . Quer dizer que o artista
~ntao, onde fica o modernismo para aquele que procura, to- não é nem ocioso nem ocupado. Pois bem, é esta em definitivo
davia, a sua personalidade? a expressão do homem moderno: a de artista.
Uma época não é apenas uma questão de tempo mas essencial- Não é a ociosidade o que nos apetece, nem a ocupação o que
mente um sentido do novo no eterno. procuramos. Amanhã o mundo saberá o que é.
Tão-pouco a novidade é uma impressão recebida do exterior _
ma é o pr6prio fundo da alma que faz a ua aparição do sol. Madrid, junho de 1927 .
. Er~tretanro, os artistas de hoje vivem preocupados com 0 estilo In A Ideia Nacional, 9 de Julho de 1927
cah~rafi o do nosso tempo, ju lgando- e de cobridores da autêntica
novidade.
Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira
de vestir mas sim uma maneira de ser.
Ser ~oderno não é fazer a caligrafia moderna , é ser 0 legítimo
descobndor da novidade.
O pintor Henri Matisse manteve durante anos uma academia
até que um dia e sem dizer nada a ninguém, a abandonou par~
sempre. E~tretanco os seus discípulos ontinuavam a esperá- lo para
o prossegutmento das suas lições. lntrigados de princípio, depressa
compreenderam que o mestre alguma coisa queria significar com
a sua ausência.
Um dia um discípulo encontrou-o a pintar um porto de mar.
Porque nos abandonou o mestre?
Porque, depois de tantos anos de academia não consegui nunca
que um só dos meus discípulos fizesse um traço, uma linha que
fosse sua.

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DIRECÇÃO ÚNICA *

A José Luis Durán de Cottes

* Na edição das Obras Completas de Almada Negreiros, levada a efeito pela


Editorial Estampa, o presente texto foi incluído no volume 6 , Textos de Inter-
venção, Lisboa, 1972.
Minhas Senhoras e meus Senhores:

Dit-ec ão Unic são as duas palavras postas ao lado uma da ou-


tra ara in icar o ú~~CõCa.nllõho por onde deve seguir toda a gente.
E, para que não haja confusõés possíveis, encontramos pelas es-
quinas e encruzilhadas uns discos pintados de encarnado, servindo
de fundo e chamariz a umas letras brancas que dizem claramente,
para quem quer que seja, e até para os cegos e para os analfabe-
tos: f!.irecção proibida.
Ora as êüiecções proibidas não nos interessam absolutamente nada.
Não quer isto dizer que vamos desprezar esses discos das direc-
ções proibidas e desobedecer às suas ordens dadas tão visível e in-
timativamente para todos sem excepção.
Não senhor, não é nada disso.
Pelo contrário: até lhes agradecemos de todo o coração a esses
avisos tão bem postos aí nos seus lugares, que ninguém pode vir
depois com desculpas de não ter sido avisado a tempo.
A nós não nos interessam as direcções proibidas pela simples
razão de que só nos imP..~ a direcção única.
Temos todo o' nosso tempo muito certinho muito bem contado,
e é o justo para podermos seguir em linha recta pela direcção única.
Se nos enganássemos e fôssemos por qualquer descuido ou ca-
pricho nosso por alguma das muitíssimas direcções proibidas que
nos aparecem a cada passo, a cada esquina, a cada momento, em
todas as encruzilhadas, arriscávamo-nos a não chegar a horas ao fim
da nossa viagem, que é como quem diz, ao fim destas linhas que
VV. Ex.as tão amáveis, estão escutando com tanta atenção.

33
Foi esta, minhas senhoras e meus senhores, a pnmeua vez que
uma pessoa se viu sozinha neste mundo.
Era um homem. Um pobre homem.
Fazia dó vê-lo ali sozinho, metido no meio de todas as rique-
~as do mundo. Tudo aquilo só para ele e para mais ninguém. Pois
se havia só ele em todo o mundo!
Há-de haver muita gente a quem faça inveja uma situação tão
desafogada como esta, contudo foi esta a primeira desgraça humana
que houve no Mundo. Todas as riquezas da terra não eram o bas-
tante para que ele não caísse na tristeza do isolamento, na angús-
tia da solidão, nesse inferno verdadeiro ao ar livre.
Mundus a Domino constitutus est. Mas Deus reparou logo nessa sua falta e emendou a mão.
Mundo autem condito, homo foctus est. Logo que apanhou o homem a dormir, viu que lhe tinha posto
Viro Admus, mulien' Eva nomen fuit.
uma costela a mais. E é que não lhe fazia mesmo falta nenhuma
SULPÍCIO SEVERO como se provou logo a seguir. E vai Deus tirou-lha.
A direcção única não é assim uma coisa tão recente como toda Neste momento o homem acordou e pronto, já estava acompa-
a gente o pode imaginar à primeira vista. Muitíssimo antes de haver nhado! ---
automóveis, carruagens e carroças, muitíssimo antes mesmo de ter Já eram duas as pessoas que havia em todo o mundo!
sido inventada a própria roda, já havia no mundo a direcção única. Não eram comRletamente iguais uma à outra. Havia umas pe-
Ela data já daquele dia memorável em que Deus, depois de quenas diferenças. Enfim, há palavras para dizer exactamente essas
ter criado o Mundo, deu alternativa ao Homem. diferenças: homem e mulher.
Mas entre ~Deus e o Homem há uma diferença dos diabos. Duas p-e'Ssoas, duas!
Entregou Deus ao Homem o nosso planeta inteirinho, com to- Feitas ambas para se pertencerem uma à outra, para que não
das as suas maravilhas, com todo o esplendor de todas as suas múl- se aborrecessem para aí sozinhos, para que não andasse cada um
tiplas fortunas, e ao confiar-lhe desta maneira todas as riquezas da perdido no mundo sem saber o que fazer com todas as riquezas
terra, disse-lhe: da Terra.
- Toma para ti, tudo isto tem uma direcção única. E então Deus disse com os seus botões:
E levou ao máximo a sua lealdade de Deus para com o Ho- Não há dúvida! Eu tinha criado o mundo para uma pessoa só.
mem, avisando-o como bom e verdadeiro amigo, de que havia tam- Tinha-me esquecido disso mesmo. Os seres isolados não participam
bém direcções proibidas e, por conseguinte, que tivesse muito cui- da vida. São seres isolados. Fora do conjunto. Longe de tudo.
dadinho com elas. Ã parte d;-j,rópria vida~
Mas contemos exactamente como as coisas se passaram: - E já estamos no dia oito do mundo.E quando em todo o mundo
Comecemos exactamente pelo princípio. Pois ao princípio não não há senão duas pessoas, e que estas são precisamente um ho-
havia nada. E sete dias depois já estava feito tudo. Mas mesmo mem e uma mulher, não há perigo de haver engano: foram feitos
o que se chama tudo. um para o outro.
E tudo isto que levou sete dias a fazer foi tudo feito expressa- Mas Deus, que vê muito mais longe que as pessoas, não havia
mente para uma pessoa só. maneira de se esquecer daquele horroroso espectáculo que oferece

34 35
uma pessoa quando está sozinha neste mundo, e então tomou as Mas por causa das dúvidas, e não estando completamente se-
suas precauções para que aquilo não se tornasse a repetir. E fez guro dos resultados por causa deles, não fossem eles estragar-lhe
então a mulher para que fossem duas pessoas e uma única combi- a sua obra, (Deus sabe muito bem o que faz), arranjou as coisas
nação entre elas. de tal maneira que a Humanidade se multiplicasse e continuasse
Pensava, é claro, também nos outros homens e nas outras mu- pelos séculos ainda mesmo naqueles casos em que não fosse possí-
lheres que viessem depois destes dois. E as suas contas estavam lin- vel o entendimento entre a mulher e o homem. -
damente bem feitas:
Isto é, a direcção única de ser eternamente a mesma, ainda que
Uma mulher e um homem são duas pessoas, mas só são dois
em toda a História da Humanidade não se fizessem senão disparates.
quando nã~ tê-;- nada que ver um com o outro. Por conseguinte
Tudo o que se está contando passou-se nos primeiros dias d~
- ~s verdadeiro dizer que os dois são uma coisa só, única, um par.
mundo à sombra de uma árvore. E daqui v~m porem agora todas
Foi esta a condição que Deus pôs a todos os que entrassem no
as culpas à árvore . Cham; m-lhe a árvore do bem e do mal. Pois •
Paraíso Terrestre para gozarem todas as riquezas da Terra: que vies- .....__ - ~- -
sim, agora chamem-lhe nomes! E desta maldita mania que temos
.
sem aos pares, que fossem sempre juntinhas os dois, como os pom-
de pôr sempre a culpa aos outros. E quando, como nesse dia não
binhos, como as cegonhas, como os elefantes, como os cavalos, como
os burros, ambos ao mesmo tempo por toda a parte, sem ter cada há mais ninguém a quem se possa pôr as culpas, pomo-las ao que
um nada que pensar em si-próprio, sendo-lhes apenas consentido está mais à mão, - à árvore!
pensarem nos dois ao mesmo tempo. Numa palavra: a direcção única. Mas a verdade do que se passou é a seguinte:
A direcção única era os dois ao mesmo tempo. E as direcções O par. .. Ah! agora me lembro de como se chamavam os dois:
proibidas cada um para seu lado. Adão e Eva!
E repetimos: queria Deus com estas advertências fazer todo o Pois este par andou por toda a terra, pelas cinco partes do
possível para apagar de vez na face da terra aquele espectáculo hor- mundo, o qual por esse tempo era todo conhecido e não tinha ainda
roroso de ver uma pessoa isolada no meio do mundo. Cortou-lhe nenhum pedaço por descobrir; conheceu e gozou todas as maravi-
o coração aquilo e agora tomava as suas medidas para que não tor- lhas, todas as fortunas, todas as riquezas, todas as infinitas felici-
nasse a repetir-se per omnia secula seculorum. Ámen. dades que Deus deitou ao Mundo, até que um dia, dia maldito
Mas como dizemos, tomava apenas as suas medidas, as suas, na História do nosso planeta, depois de já terem feito o que lhes
e eles que fizessem como lhes parecesse melhor. estava permitido fazer, já não tinham mais novidades do que aquelas
, E assim foi que Deus fez o homem e a mulher semelhantes que eram yroibid ~s.
um ao outro, mas de caracteres opostos, antagônicos; de naturezas Oh curiosidade! Oh apetite!
independentissimas cada um deles , acérrimos disputadores da igual- E claro está também fizeram o que era proibido .
dade no par, inimigos do sexo alheio mas irresistivelmente atraí- Dizem que foi ela quem começou, mas fosse qual fosse, 1sso
dos um pelo outro, inseparáveis de verdade, e condenados para sem- é secundário, o importante é que acabaram os dois.
pre à fatalidade da sua única unidade comum. E então foi o diabo!
Por outras palavras, fez Deus do homem e da mulher dois ani- Desde essse momento escangalhou-se tudo. Tudo! .E foi-se por
mais selvagens que não podem ser domados isoladamente . Fez o água abaixo a primeira colaboração que se fazia no mundo.
isolamento ainda pior do que era, tornou a solidão ainda mais Cada um para seul ado, cada um no seu isolamento, cada qual
amarga do que devia ser e indicou a direcção única da colaboração na .sua solidão. Exactamente como se em vez de um houvesse dois
entre ambos: 1 + 1 = 1. mundos iguais e uma pessoa só para cada mundo.

36 37
Era 0 castigo de Deus. Cumpria-se pontualmente naquele ins- Pedimos a VV. Ex.as a fineza de repararem em que a História
tante em que eles saíram da direcção única e meteram por outras da Humanidade começa exactamente por um fracasso, ~o fracasso
proibidas. da primeira colaboração entre pessoas .
Desde esse mesmo instante todas as coisas deste mundo Qerde- . Ao primeiro homem e à primeira mulher não lhes bastou te-
ram o seu único sentidq e ficaram com }1tiQ.s, .!.!!!1 único ,l;>om e rem por sua conta todo o Paraíso Terrestre, completo . Ainda q!;J.i-
tpdos os outros maus, dificílimo de distinguir os maus do bom, seram mais do que ter tudo . Ah! não há dúvida nenhuma de que
parecidíssimos todos , uma trapalhada. ambos eram muito humanos!
Foi este o pecado mais original que se fez no mundo até hoje. Por outro lado, ele tinha lá as suas ideias, suas dele, e ela ti-
Tão original que aqueles que não puseram para aí nem prego nem nha as dela, suas dela. Pagavam-se na mesma moeda .
estopa também pagam as mesmíssimas favas que os verdadeiros cul- Mas ideias que eram de ambos ao mesmo tempo, essas que eram
pados. as únicas dos dois, essas que eram a própria direcção única, foram-
E agora sim que não é mania ,pormos as culpas aos outros. Foi -se pelas direcções particulares, pelas direcções proibidas. Palavra
por culpa deles! Por culpa desses dois curiosos de direcções proibi- ~h~a que até parece q ue eram portugueses!
das! Por causa dessa senhora e desse cavalheiro! Por culpa desses E os seus filhos lá sairam também aos pais.
dois caloiros da humanidade, nunca mais ninguém soube no mundo Caim e Abel não querem nada a meias. Ou tudo para Caim ,
até hoje como se fazem as coisas espontaneamente . ou tudo para Abel.
E, continuem reparando VV. Ex. as o fracasso da colaboração en-
E porque já não sabemos fazer as coisas ao natural, não temos
tre pessoas prossegue na História da Humanidade, de pais para fi-
mais remédio agora do que aprendermos a fazê-las com técnica.
lhos é hereditário o fracasso, e vai de mal para pior, porque Caim
O que VV. Ex . as acabam de ouvir é nem mais nem menos do
já n~o pode aguentar tamanho desentendimento com o mano e
que a maneira como começa a História do Mundo. Estamos segu-
tem de matar Abel.
ros de que absolutamente nenhum dos mortais ignora estas coisas.
E se o não mata, seria Abel quem mataria Caim. O essencial
Por isso mesmo as escolhemos. Para que a novidade não fique pela
?
era que desaparecess~ um . deles .. Não importa qual dos dois . . in-
anedota mas sim no seu verdadeiro e único sentido .
Tão-pouco aqui cabem as opiniões . A maneira como começou
o mundo e a humanidade é uma, e não chegam até lá as opiniões
particulares de quem quer que seja, inclusive as dos sábios.
A maioria das pessoas julga que a novidade está no material
t suportável é que haJa d01s . Do1s estorvam-se um ao outro, e ne-
cessário que fique só um . Não importa qual deles .
A humanidade não compreende isto de que cada um seja como
é, a não ser o próprioq ue assim ~pensa, mas este quer por força
- que todos sejam como ele.
que se emprega para o que seja, quando afinal o material empre- E aqui temos uma família desgraçada: o pai e a mãe não se
gado não serve senão de veículo para pôr a claro o sentido único entendem, os filhos saem aos pais, e com esta desgraçada família
e puro dessa novidade. começou a Humanidade.
Por isso escolhemos esta história conhecida de todos . E tam- Começou e continuou e ainda cá estamos na mesma, graças a
bém porque ela não consente nenhuma espécie de divergência nos todas civilizações que nos fizeram andar vestidos cada uma da sua
comentários. De modo que estamos obrigados, quer o queiramos maneira e graças a Deus também.
ou não, a encontrar aqui o seu verdadeiro e único sentido que está E agora vamos lá a saber uma coisa:
arrecadado na História, ou seja, neste caso , a própria experiência O que diriam VV. Ex .as se lhes disséssemos que esta família
da Humanidade. nunca existiu?

38 39
E sabeis porque não existiu? Porque é um símbolo. pessoas divertidas, ou por qualquer outra morfina que sem ser au-
Como quereis que a humanidade tenha podido guardar até têntica morfina tenha o mesmo efeito que a morfina; nós já sabia-
os nomes próprios do primeiro homem e da primeira mulher que mos isto tudo, mas, francamente, é um espectáculo que não nos
viram este mundo? Não vedes que isto tudo é feito com a imagi- agrada, que não vai com o nosso feitio, esse de entrarmos nós tam-
nação e a tradição oral? Metade sonhado e metade vivido! Isto é, bém para a bicha das pessoas que estão à espera de que lhes che-
um símbolo. Uma criação da Arte. Poesia pura. Verdade por cima gue a vez de irem buscar mais lenha para se queimarem .
.da realida<!e. Tragédiaautêntica. ~ tragédia do Mundo. A própria Fomos instados pelas mais cavalheirescas pessoas da nossa terra
tragédia em pessoa. A própria tragédia human~
para que trouxessemos aqui à nossa gente alegria a rodos, coragem
A impossibilidade de pôr a vontade de cada um onde há ou-
aos potes, tanks de felicidade, transatlânticos de entusiasmo, e a
tras, onde estão todas as vontades do Mundo.
nossa resposta foi esta:
Adão e Eva, Abel e Caim, ainda não morreram, estão ainda
Alegria sim. Faremos todo o possível. Mas que não confundam
aqui neste mundo, são os nossos nomes próprios, minhas senhoras
e meus senhores. a alegria com o riso. ~o é a expressão ,das caveiras. E a alegria
_j para os vivos, a coisa mais séria da vida!
Na hum~nidade há pelo menos todas as maneiras de ser, de
_L\legria é saber muito bem por onde se vai, é ter a certeza de
modo que o humanamente lógico é deixar viver todas as maneira~
de ser. , - que o caminho é o bom, que a direcção é a G nica.
Rogamos portanto, a VV. Ex. as que não vejam na palavra tra-
Respeitemos a próP.ria realidade. Não raciocinemos contra o pró-
prio raciocínio: - gédia nada de trágico, desanimador, irremediável, fatal, pelo con-
A individualidade é um fenómeno espontâneo, sem interven- trário, .( na Qrópri;J. tragédia que está toda a claridade do Mundo.
ção do Homem, é o próprio papel da natureza. Hoje, neste admirável século XX, herança legítima d~ todos os
, Ao passo que o do Homem é o que vem precisamente depois mais séculos da História, já não ficou por nenhuma parte nenhum
. do da natureza e consiste em fazer relacionar-se entre si tudo o mistério com o qual se possa ainda meter medo do papão aos mais
que é de verdade independente e oposto. meninos. Hoje a claridade é tal que cada palavra retoma o seu sen-
Isto é, como se houvesse ~mundos metidos um no outro tido único, cada valor da terra regressa íntegro de todas as espécies
e ocupando o mesmo espaço do que um único: no primeiro mundo, da fantasia à sua própria essência, tudo o que é falso dura apenas
o da natureza, a vida natural; e no segundo mundo, o da huma- a própria falsidade, tudo o que é provisório serve apenas para isso
nidade, a vida é social. mesmo, o que é natural é natural, o que é sobrenatural é sobrena-
E tanto no mundo natural como no social a vida é unânime tural, as coisas são, tudo é do seu verdadeiro tamanho, a própria
feita de todas as coisas e não sobeja nenhuma. E fora dessa unani~ Terra descobriu por fim os seus próprios limites, e a tragédia parece-
midade não há vida -possível, não há senão, isolamento, solidão,
pior do que a própria morte, a morte antes de morte:-;-morte em
-nos maior do que nunca porque o é de verdade, porque a clari-
dade jamais foi tamanha como hoje e mostra-nos completamente -
vida.
Não é nossa pretensão assustar VV. Ex.as com palavras tão an-
tipáticas e pensamentos tão desusados como estes sobre a morte
----
·-n~;sem. disfarce, sem hipocrisias, sem mistério a grande tragédia
que afoga a humanidade.
Hoje, neste admirável século XX, trágico e alegre, a claridade
a desgraça, a tragédia , o isolamento, a solidão; já sabemos de an~ é tanta que podemos ver a imensidade da nossa próp;G, tragécUa
temão que VV. Ex. as não querem saber de desgraças e que dão em toda a sua extensão e domínios, e ainda nos fica muita para
o cavaquinho pelas tardes bem passadas, pelas boas piadas, pelas t~ com ela uma vez para sempre todas as direcções proibidas,

40 41
'

e depois sobra ainda o bastante para irmos abrindo o novo cami- é precisamente levar o que está por resolver. O indivíduo, a famí-
nho da direcção única. lia e a colectividade, não são três caminhos diferentes, são um único
Avisa-se o público de que estão espalhados por aí uns restos ~do, a direcção única. Se uma pessoa se mete apenas por uma
podres que ficaram de ontem, podres e fedorentos, intrujando os dessas três direcções: O individualismo, a família ou o colectivismo,
nossos sentidos porque à sombra têm a fosforescência dos fogos- pode quando muito ser prestável a qualquer das três mas ficará
-fátuos, mas é que são fogos-fátuos, não é mistério nenhum, e ao exactamente na terceira parte do seu próprio caminho neste mundo.
vir a claridade foi-se-lhes logo aquela luzinha mentirosa. Juramos Isolar o que seja do próprio conjunto a que pertence tudo é fazer
que estão podres. De resto, cheiram que tresandam! _disso mesmo uma direcção proibida.
Referimo-nos lealmente neste momento a alguns sábios (assim Não se pode separar absolutamente nada do que quer que seja.
lhes chamam ainda os da sua laia) e que vêm-;-público com J±_m a Todas as coisas se relacionam entre si. A própria claridade só é cla-
autoridade, que ninguém sabe como a têm nem quem lha deu, ridadef>orque existe de verdade a tragédia. Sen~ão fazia falta
e dizem frases importantes e definitivas como estas: nenhuma a claridade e estaríamos todos no Paraíso Terrestre.
O individualismo morreu. _ Mas vêm os simplistas, todos arranhados de ciência, e querem
Estamos na época colectivista. logo a todo o custo que a direcção única caiba por força pelo cu
Or;-muito beffi. Analisemo;- Se eles dissessem: O indivíduo de uma agulha. Ora ~ direcção é única porgue é para todos . .ê_:
não existe isso já era outro cantar, e estava certo, diziam~grande única coisa que é comum a toda a humanidade é a própria vida,
~dade. Mas dizer: o individualismo morreu é aceitar como defi- é o próprio mundo, não cabe pelo cu de uma agulha.
nitivo, para sempre, esse facto. Ou então, para fazer valer melhor Não aleijemos a pobre humanidade mais do que ela já está com
apenas o que eles querem como seja, isto é, a vitória do colecti- tantas sacudidelas da direita para a esquerda e da esquerda para
vlsmo.
a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Do individua-
Ora, isto é falso. Nem o individualismo morreu nem o colecti- lismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo.
vismo ganhou. Nem o individualismo pode morrer nunca nem o Não sejamos tão crianças que queiramos levantar ao ar a esfera pre-
colectivismo pode jamais sair vencedor por esmagamento do indi- tendendo agarrá-la apenas pelo hemisfério da direita ou apenas pelo
vidualismo.
da esquerda, ou apenas pelo hemisfério superior, porque a única
Aqueles que tão falsamente se julgam iluminados para cantar maneira de agarrá-la bem tão-pouco é pôr-lhe as mãos por baixo,
em público o colectivismo como única solução, das duas uma: ou nem ainda abraçando-a com os dois braços e os dedos metidos uns
não sabem o que dizem ou então sabem-no muito bem. Se não nos outros para não deixar escapar as mãos e com o próprio peito
o sabem são míopes, e se o sabem são de recear. do lado de cá a ajudar também; a única maneira de equilibrar a
Como se houvesse hoje alguma solução separada de qualquer esfera no ar é deixá-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor,
outra! Tudo são problemas determinados, cada problema tem a sua às voltas à roda do sol, como a lua à roda de nós e assegurada
solução, mas a única, essa que o mundo inteiro unanimemente contra todos os riscos dos disparates da humanidade.
busca hoje nas cinco partes, é cada problema relacionada com as Não temos mais remédio do que ir aprender tecnicamente como
de todos e a de qualquer outro. funcionam estas coisas tão naturais!
É supinamente cómodo resolver uma complicação como o fa- O Mundo da Natureza é o modelo dos modelos de todas as
zem os simplistas, excluindo todas as outras complicações que não maquinarias, porque não havemos então de acertar também o
sejam aquela. Mas isso é do que nós já estamos fartos. É a isso mundo social no seu próprio funcionamento como todas as outras
mesmo o que se chama uma direcção proibida. E a direcção única máquinas do mundo?

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Actualmente comemora-se no mundo inteiro o centenário da ~ssa própr~a solidão. Seja qual for o século em que fale o gé-
morte de um homem, o qual todos os povos das cinco partes são nio, todos os génios coincidem no mesmo. E quanto mais a Terra
unânimes em considerar o mais universal dos Europeus. Chamava- se vai enchendo de gente, quanto mais a Humanidade se multi-
-se Goethe. plica, maior se vai tornando ainda a solidão de cada um dos seus
Fixem bem VV. Ex.as estes dois títulos máximos de Goethe: indivíduos.
Europeu e Universal. E hoje? Vejam aí com os seus olhos: coitadinho do Charlot que
As suas duas obras principais, se é que alguma pode ser a pre- não pára de vagabundear!
ferida ou separada da própria vida do autor, são o Werther e o Goethe, apesar da fama do seu nome em vida, apesar da sua
Fausto. vida de grande senhor; Goethe a quem o próprio Napoleão disse:
Goethe é um génio. Ninguém se arrisca a perder uma reputa- vaus êtes un homme, monsieur Goethe! Apesar da sua própria na-
ção de crítico ao afirmá-lo. Está assente que o é. tureza dotadíssima, privilegiada, excepcional, robustíssima, completa,
E então vejamos a obra mais conhecida do génio no Werther genial; apesar de tudo, a sua vida é um desastre. Um desastre com-
e no Fausto. pleto, levado até ao fim. Goethe morreu velho. Um desastre he-
Goethe não conhece senão o indivíduo. Para ele o indivíduo róico levado dignamente até à última, e com aquela verticalidade
é o próprio espelho da humanidade inteira. exclusiva do próprio Goethe.
Ao terminar o Werther faz suicidar-se o indivíduo e ponto final. Ao filho de Goethe chamavam-lhe «O filho da criada». O filho
Depois vem o Fausto. Como é natural, Fausto segue o cami- do génio é o filho da criada. Nunca ninguém lhe chamou o filho
nho oposto ao do suicida. Canta a coragem de viver, canta a ac- do génio!
ção, sempre a acção, sempre a coragem de viver. É o primeiro O génio continuava efectivamente sozinho.
Fausto. E já não é a primeira vez que o homem está sozinho no mundo.
Trinta e sete anos depois outra vez o Fausto, outra vez a acção, Por esse tempo nascia na Europa o Romantismo e era como uma
outra vez a coragem de viver. libertação de todos os indivíduos, de todos aqueles que tinham le-
Fausto é uma obra genial. gitimamente a sua vida para vivê-la, a hora dos Prometeus desen-
Mas afinal talvez Werther tivesse tido mais razão em suicidar- candeados.
-se do que Fausto .em teimar ir tanto para· diante. E é curioso, isto só o podemos ver nós hoje, depois de passado
Em resumo, dois desgraçados: Werther e Fausto. E um génio: um século, o Romantismo nascia na Europa ao mesmo tempo que
Goethe. na mesma Europa Goethe acabava de pôr nessa mesma esquina do
Bem feitas as contas serão três os desgraçados. Mas um deles, Romantismo o disco encarnado com as letras em branco: direcção
o autor, falou pelos três, falou por toda a gente. No seu século proibida.
tão grande, tão elevado, tão luminoso, tão invejável, o indivíduo Era o mesmíssimo beco sem saída onde Werther se tinha suici-
era afinal tão desgraçado como em qualquer outra idade da Histó- dado e donde Fausto não tinha podido sair, onde o ideaL e_a_ac-
ria menos esclarecida do que aquela. ção individuais estavam sepultadas para sempre. f ', i. ~
O génio no-lo revela na sua obra e com a sua própria vida. Ne~ outro hom; m mais próximo de nós foi mais justo e
Mas não se espantam VV. Ex.as com estas coisas. Isto já não mais preciso do que Goethe pondo toda a claridade no caos da
é nenhuma novidade para nós. É a eterna tragédia dos filhos de nossa própria tragédia humana de isolados, de sozinho~ . É o ver-
Adão e Eva. Desde o princípio do mundo que estamos todos con- dadeiro génio. Aquele que viu mais e melhor. E então todos à uma
denados à maior das desgraças humanas: o nosso próprio isolamento, quiseram ver também, todos qu1seram ver com os próprios olhos

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como o génio, e entraram todos um por um, naquela direcção proi- isso mesmo a direcção é única, porque é para todos, o que é, aliás,
bida que já tinha sido tapada para sempre pelo próprio Goethe. como Deus manda.
E todos ficaram românticos. Uns passaram a chamar-se Werther e ~iferença entr:_ so~ução e direcção será esta: a solução é sem-
outros Fausto. Uns suicidaram-se e aqueles. que não se mataram pre um remédio passageiro para disfarçar a desgraç~. ao passo que
ficaram sem uma gota de esperança. Sinceros todos. a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para
Goethe não tinha deixado ali por onde sair o indivíduo. Ele que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa
tinha, na verdade, falado de uma maneira diferente daquela que dignidade.
O OUVIram. E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista,
E depois ainda veio~~~~ç_l}e e quis também ele sozinho che- na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a
gar até ao Homem! E mais para lá também até ao Super-Homem, própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades
mas quem sabe? Se calhar é capaz de lá ter chegado. Nós é que irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impas-
já nunca mais soubemos nada dele. O pobre Nietzsche, de repente, sível, desde cima, assistiu ao desenrolar da tragédia. E viu o mundo
pôs-se a falar sozinho com a sua loucura. inteiro por cima de todas as cabeças, e viu a Europa toda e com
Não vos assustais com esta Humanidade onde aqueles que não cada um dos seus pedaços, e viu cada indivíduo da Humanidade
são anónimos, e precisamente os mais conhecidos, são suicidas, de- como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na pará-
sesperados, sozinhos ou loucos?! bola da sua própria trajectória, e viu que de todos os seres deste
Não! Não vos assusteis, porque remos que ir ainda mais para mundo o único que errava o seu fim era o Homem, o dono da
diante. E se é a alegria o que vós lealmente quereis e pedis, tende Terra! E viu q-ue era na Humanidade que estavam os ú~ seres
confiança que é por aqui o caminho e já lá chegaremos se Deus deste mundo que ~o cumpriam com o seu próprio destino, e fi-
Nosso Senhor quiser. nalmente viu! Viu com os seus próprios olhos o que ninguém ti-
Falámos já muito de ÇJ.oethe. Mas ele disse tantas coisas que nha visto antes dele. Viu pela humanidade inteira, viu por toda
sabe de cada um de nós, que não é demais toda a nossa curiosi- a Europa e viu por cada indivíduo. E compreendeu o mundo, e
dade a seu respeito. concebeu uma Europ ~ e para todos os indivíduos da Terra abriu
E na verdade, o seu génio não se limitou a pôr direcções proi- de par em par a direcção única.
bidas pelas esquinas e encruzilhadas. Além disso, e aqui precisa- Goethe, o génio, é universal, europeu e alemão.
mente é que ele foi o génio, também marcou e magistralmente Goethe, o indivíduo Goethe, também pertence a essas três uni-
a direcção única. - dades, humana, europeia e alemã, as quais três são uma única,
Permitam VV. Ex.as uma pequena observação antes de seguir- a dele.
mos o nosso pensamento deste momento. Nós os Portugueses pertencemos à Humanidade, à Europa e a
A direcção única não é uma solução, é infinitamente melhor Portugal. Não somos três coisas distintas, senão uma única, inteira,
do que uma solução, é uma direcção, e a única. a nossa.
Quanto mais aflita está a Humanidade mais se desespera à pro- Cada indivíduo não pode chegar até si mesmo senão através des-
cura de soluções. Até se podia inventar este rifão: buscas solução sas três unidades a que pertence: o mundo, aquela das cinco par-
estás cheünho de aflição. tes do mundo onde está a sua terra, e a sua terra.
Ora aqui não é nenhuma agência de empregar a amigos e pa- A terra de cada indivíduo não está limitada pelas legítimas fron-
rentes e trata-se nem mais nem menos do que colocar a toda a teiras físicas e políticas do seu próprio território, é além disso um
gente, seja quem for, nos seus devidos postos neste mundo. Por pedaço determinado de uma quinta parte do mundo inteiro.

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E 0 indivíduo está tão longe de si mesmo que para chegar até E no mapa, exactamente nesse sítio, está escrito: Portugal.
si tem primeiro que dar a sua volta ao mundo, completa, até ao E por cima de Portugal há um grande E , a primeira letra de
ponto de partida. uma palavra que começa em Portugal e que vai subindo para o
E todo aquele que queira encontrar dentro de si mesmo a sua Norte sempre em grandes letras, seis grandes letras, seis grandes
própria personalidade, ficará romanticamente sozinho no meio das letras que iluminam as cinco partes do mundo, seis grandes letras
multidões, na mais terrível solidão de todos os tempos, uma soli- que juntam os povos mais independentes do mundo, até onde acaba
dão onde o próprio deserto está cheio de arranha-céus e as ruas a Rússia, que é debaixo das seis grandes letras da Europa, aquela
inundadas de gente! terra dos indivíduos que ficam mais longe de Portugal.
O indivíduo nunca pertenceu a si mesmo. Pertence em abso- E aqui é o destino único de seis milhões e meio de indivíduos
luto à sua colectividade. E a sua colectividade é a sua própria Terra neste mundo , aqui na Europa, aqui na Península Ibérica , aqui no
e mais aquela das cinco partes do mund<;> onde está a sua terra Sul e aqui no Ocidente da principal das cinco partes da Terra.
e mais o mundo inteiro também. «A Europa é a mãe de numerosos filhos. É Goethe, o europeu,
Mas que não se julgue por estas palavras que o indivíduo há- quem nos abre os olhos, para que tenhamos a consciência uns dos
-de servir apenas de instrumento à sua própria colectividade. Não! outros, para que tenhamos vergonha de nos caluniarmos e de nos
nem vice-versa tão-pouco. É um jogo simultâneo da colectividade odiarmos.
I I Para fazer uma Europa, é necessário uma Alemanha, um Por-
para os seus indivíduos e de cada indivíduo para a sua colectividade.
E se hoje o indivíduo não existe, isto é, se não tem nem pode tugal, uma França, uma Espanha, uma Inglaterra, uma Suíça, uma
ter acção própria, não é tal, de maneira nenhuma, porque a colec- Itália e o resto . Será necessário também uma Ásia, duas Américas,
-rividade lhe tenha usurpado também o seu lugar, é apenas porque uma África, uma Austrália, negros, vermelhos e amarelos para fa-
ninguém está capacitado da obediência que deve a si próprio, é zer, um dia, o mundo .
- ~penas por ignorância do que, justamente, ninguém devia ignÕ- Goethe , poderoso alemão, não pretende que a Europa seja
.rar: o seu Qróprio destino neste mundo. alemã, nem que a França ou a China o venham a ser alguma vez .
O destino não é coisa que se saiba pelas sinas , nem obra do acaso, Para que a Europa seja verdadeiramente ela mesma, é necessário
nem artes para adivinhos ou leitores de palmas de mão, nem nada que a Alemanha seja o mais alemã possível, a França o mais fran-
que se modifique com caprichos da fatalidade . O destino de cada cesa que possa, a Espanha o mais espanhola, Portugal o mais por-
indivíduo neste mundo está por cima do seu próprio caso pessoal.' tuguês, Inglaterra a mais inglesa, e qualquer outra terra o mais ela
Q_Q_nico procedimento para conhecer o destino de cada qual própria porque apenas nos seus superlativos, nos seus máximos, nos
- ~7 ~este: Vai -se buscar uma esfera terrestre . Faz-se dar voltas ao seus cúmulos é viável o acordo, a colaboração entre os povos inde-
mundo, e quando passe diante de nós aquela das cinco partes em pendentes e bem contornados pelas fronteiras invulneráveis .» (Goe-
que se divide a geografia, e que nos parece a mais bonita, procura-se the, Andres Suares.)
aí com o dedo aquela terra que conhecemos como ninguém e onde
entendemos tudo o que lá se diz e pronto, deixa-se ficar o dedo
aí. É o dedo do Destino, e nós julgamos que é com o nosso dedo
que indicamos no mapa.
E há seis milhões e meio de indivíduos que puseram o dedo
no mesmo sítio. Seis milhões e meio de pessoas cujo destino é o
mesmo.

48 4 49
O indivíduo e a colectividade são as duas únicas expressões hu-
manas do_ mundo social como o homem e a mulher são as duas
únicas expressões humanas do mundo natural.
E assim como a mulher e o homem estão condenados à fatali-
dade da sua única unidade comum, também acontece o m~s~O,
- paralelamente, no mundo social com a colectividade e o indivíduo.
São unicamente quatro as expressões da humanidade: o homem,
a ~~lher, a colectividade e o indivíduo. C'!..d.L l!!lla delas sepa-
r adame; te é o próprio isolamento, a autênti~a solidão, a dtrecção
proibida. E todas as quatro juntas são exactamente a direcção única.
Agora, neste momento, entramos decididamente no mundo so-
cial : a colectividade e o indivíduo.
,8._ çplectividade é, qualitativa e quantitativamente, o conjunto
Este assumo é de uma actualidade desesperadora. Ou melhor,
de todos os indivíduos que a formam. Mas que não nos sirva de
sejamos ainda mais claros, é o único assunto que preocupa o mundo
atrapalhação tanta gente junta. Pelo contrário: já cá estamos, fi-
inteiro .
nalmente, no nosso caminho .
Artistas e cientistas, trabalhadores e desempregados, temos to-
A colectividade, apesar de ser o conjunto de todos os seus in-
dos os olhos fixos nessas duas palavras que fazem estremecer hoje
divíduos, funciona exactamente como um indivíduo a mais. Assim
o mundo de alto a baixo: colectividade , indivíduo.
como se no mundo houvesse toda a gente que existe e mais uma
O indivíduo não existe. É um resto que ficou ainda de ontem.
pessoa: esta pessoa seria exactamente todos num só .. A colectivi-
Já não hin'a da mais do que o espacço que ele ontem ocupava no
dade é também um indivíduo, um indivíduo como qualquer ou-
seu lugar. E a colectividade? Também. É um resto que ficou ainda
~s '
to ' . -
indivíduo colectivo, na verdade colectivo e indivíduo.
de ontem. Já não existe nada mais âo que o lugar que ela ontem
Com a vantagem sobre qualquer outro de não estar sujeito, como
ocupava.
nós, às vacilações de um organismo mortal. A colectividade o in- Não é só o indivíduo que não existe , hoje também não existe
divíduo imortal. Feito da mesma massa humana que qualquer de a colectividade. São apenas dois restos que ficaram de ontem .
nós, os indivíduos mortais. Não existe nenhum deles por causa do outro. São inseparáveis
Já cá temos por conseguinte, o_ modelo invariável para os nos- de verdade.
sos actos individuais: a colectividade . Acabou-se o mundo antigo. Fica para a História. Hoje nasce
- Senão reparem VV. Ex. as em como é feito o nosso próprio corpo: o ~~!;d'C; ~a vez, des~ o princípio. Não há absolutamente nada:
Está form-ado por vários órgãos, distintos uns dos outros, e ne- ·TeffiOs de fazer tudo outra vez: a colectividade e o indivíduo. Es-
nhum deles com vida própria, ou melhor, dependente cada um ~ dois valores iguais, recíprocos, que dependem um do outro e
deles da vida total e unânime do nosso organismo individual, isto que isoladamente se suicidam por suas próprias mãos.
é, da unidade da qual faz apenas parte. E é esta minhas senhoras e meus senhores, a grande tragédia
- Pois o- indivíduo no mundo é exactamente como um dos nos- da unidaili: .' ~ªº á indiv.íduos porque não existe a coleZ~i;I'dade
sos órgãos no nosso próprio corpo. Nós não temos vida própria. ~-;-ão há coi~ctividade porque não existem os indivíduos.
Dependemos da vida total e unânime do organismo colectivo, e - O mundo inteiro está sozinho. Cada pessoa vive isolada no meio
de cuja unidade fazemos apenas parte; o que não é pouco nem das multidões. As multidões são formadas por indivíduos, por nu-
muito, senão o justo para cada um de nós. merosíssimos indivíduos isolados uns dos outros.

50 51
As palavras caem perdidas no chão. Estas três letras SOS são as mesmas com que se escreve em por-
Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade inteira tuguês o plural de indivíduo isolado: Sós~
está reduzida à solidão de cada um dos ~s indivíduos. Nós, que somos portugueses, somos por isso mesmo aqueles que
menos podemos alegar a ignorância dos valores recíprocos da co-
O mundo inteiro está dividido em tantos mundozinhos indivi-
lectividade e o indivíduo.
duais, pequeníssimos, microcóspicos, quantos são os seus habitantes.
Na História de Portugal, a primeira e a segunda dinastias são
Mas aquele mundo da colaboração de todos, o único mundo
em todo o mundo um modelo exemplar da formação e funciona-
realafinal de contas, esse, já não exisg: . Veio cada qual roubar-lhe
mento da colectividade. Na primeira dinastia funda-se e fixa-se a
o seu pedacito e o mundo ficou feito em migalhas, reduzido a grãos colectividade portuguesa. São estes os primeiros passos do indiví-
de areia, pó, nada! duo: Tornar fixa na terra a sua própria colectividade.
Vós , indivíduos das cidades, e dos campos, vós, indivíduos de Nessa dinastia temos como expressão máxima do indivíduo da
todas as partes e que fazeis parte de todas as multidões, respondei colectividade a el- rei D. Dinis, o primeiro português que já pode
todos um por um: começar a cuidar em conjunto das nossas coisas colectivas. E o facto
Com quem comunicas tu? de fixar os quilômetros de areias com o pinhal de Leiria é o sím-
Não te perguntamos com quem tratas todos os dias , nem com bolo da vontade e constância de uma colectividade que quer man-
quem falas, nem com quem vives, nem com quem dormes. ter invariável através dos séculos o seu próprio e único perfil geo-
Perguntamos-te unicamente com quem te entendes? gráfico.
Com ninguém! Símbolo imponente da realidade feita pelo povo que chega até
Estás tão sozinho no meio de toda a gente ou ainda mais do aos dias de hoje, o decano das gentes da Europa nas suas frontei-
que se não houvesse no mundo mais ninguém do que tu. ras pnmltlvas.
E ainda não sabes de memória tudo quanto possa dizer-te toda Na segunda dinastia, a colectividade portuguesa é para o mundo
inteiro a própria maravilha da máquina social. Cada indivíduo da
a gente? Ainda não sabes de cor as várias opiniões do mundo in-
nossa terra tem o seu lugar determinado na nossa colectividade.
teiro?
E um deles chamar-se-á ~o da Gama , e ainda antes mesmo de
Ainda não sabes de cor e salteado todas as notícias de todos
ter realmente chegado a este mundo, já estava destinado pelos in-
os Jornais que se publicam diariamente pela manhã, à tarde e à
~~-comuns da colectividade portuguesa para vir a ser o maior
noite nas cinco partes da terra?
marinheiro do mundo!
Ainda não sabes de memória todas as novidades da útlima hora E não era outra diferente desta a razão por que houve gente
que nos traz a cada instante a rádio de todos os lados do mundo? também na Grécia Antiga. Era a de que havia uma Grécia An-
E as que dirá amanhã, e depois de amanhã, e daqui a um ano tiga. Era a de que havia uma Grécia, uma colectividade que criava
e sempre , sempre a mesma notícia para quem ainda não a saiba, os seus próprios indivíduos.
sempre a mesma cantilena a buzinar-nos os ouvidos: Felizes os tempos em que em Portugal cada português podia
SOS perdidos, desencontrados, sozinhosl SOS est.amos todos de- ter o seu próprio valor , porque a colectividade portuguesa também
sencontrados, estamos todos sozinhos, perdidos todos! SOS sozi- tinha o seu, e estava à altura de si-mesma, e não se prejudicava
nhos! SOS desencontrados! SOS perdidos! SOS sós! SOS sós! SOS. a si-própria nem aos seus indivíduos!
SOS é o sinal internacional de telegrafia a pedir socorro . Felizes os tempos em que Portugal tinha a direcção única e era
Está formado pelas três iniciais da frase inglesa: «Save Our Sou- esta a única maneira como cabiam aqui todos os mais diferentes
les», que quer dizer em português: «Salvai Nossas Almas». dos Portugueses!

52 53
Hoje o mundo é do seu verdadeiro tamanho. Nem uma pole-
gada a menos nem uma ilusão a mais.
Das cinco partes da Terra todos regressam aos territórios das suas
próprias colectividades. O mundo está o mesmo por toda a I:_arte.
A realidade é sempre a mesma em todos os lados do mundo. E_im-
'põssível fu.gis_da realidade. ~ quer queiramos ou não, hoje temos OS PIONEIROS
de :;t'i:~ dos profetas na nossa própria terra. - Para a histórta do movimento moderno em Portugal
Acabaram-se as iniciativas particulares. Acabaram-se os caprichos
dos··;;iajantes isolados. Acabaram-se os génios que cantavam cho-
rando a solidão dos indivíduos . Hoje pedimos todos à uma, a co-
lectividade que nos represente, á-coTectiviaã dea que temos direito
que é ela mesma a nossa colectividade, o nosso próprio e úniCõ
direito à vida. A humanidade é con_g_ame_porque as suas épocas são diversas.
Queremos a colectividade portuguesa à altura de si-própria, vista Ãq~eles que ao findar o século assitiram simultaneamente ao
de tõdos os lados da terra. Que cada português, dentro ou fora da nascimento do novo século, puderam verificar uma modificação total
"lloSSãterra, seja-o perfeito indivíduo da n~ssa própria colectividade. no aspecto exterior dos valores imutáveis da humanidade. Por grande
Estamos todos incondicionalmente ao lado da colectividade por- casualidade ;-idade dos séculos coincidindo com a idade das épocas.
tuguesa passo a passo, egoistamente, como quem sabe exactamente As épocas surgem na humanidade tão naturalmente como as
o sítio onde está a sua própria vida de indivíduo português . idades no indivíduo. E fica posto o problema: ajustar cada um com
Exactamente neste momento terminaram as nossas palavras da
as suas idades com as da humanidade .
direcção única. Fizemos todo o nosso possível para que elas fossem
Uns começam primeiro do que outros a ver como nasce de novo
a própria alegria, a coisa mais séria da vida. Se na verdade não
o mundo para o presente, este presente que todos havemos de fre-
o conseguimos, pedimos perdão a VV. Ex.as por lhes termos feito
perder esta meia hora do vosso tempo. Na certeza porém, de que quentar e que bem poucos saberão viver. Os primeiros são os pio-
o nosso desejo de colaborar na obra comum da direcção única é neiros e não deve haver posição de herói nem mais invejável nem
leal, tão leal que estamos seguros de não termos emitido nenhuma mais difícil de sustentar do que esta.
opinião pessoal nem nossa nem de outrem, e que apenas nos ser-
vimos dos próprios exemplos da Bíblia, da História, dos génios e
dos clássicos para com estes factos conhecidos, aceites e consagra- *
dos estabelecer a ligação entre as distâncias mais diferentes e lon-
gínquas da Humanidade, e podermos dizer com elas que a direc- Com uma herança literária e artística bastante desorientadora,
ção é efectivamente única para todos aqueles que a possam ver e sobretudo para os que se iniciavam nas letras e nas artes; uma he-
também para os que não a virem nunca. rança literária e artística resumida aos talentos isolados de um pe-
Lisboa, Abrtl 1932. ,
ríodo manifestamente decadente; num meio hostil, congestionado
de realidades políticas que tiranizavam exclusivisticamente todo o
(Conferênci~ ~ealizada em Lisboa ~o Teatro Nacional de Almeida Garrett, a wn- país; num desinteresse máximo e nacional pelas coisas chamadas
\ vzte de Amelza Rey-Colaço, repetzda em Cozmbra no Salão Nobre da Assoczação
Acadêmica, a convite da revista Presença, e editada pelas Oficinas Gráficas UP do espírito; tais foram os primeiros dias que couberam por sorte
\ de Lisboa, julho de 1932.) aos desta geração.

54 55
Na contracorrente era imperioso intensificar o caso particular. Entretanto, 1912, o grupo preparava e fazia sair uma revista
Literatos e pintores, entregues a si próprios, reuniam-se em grupo literária chamad~ &pheu. Pouco depois outra, Portugal Futurista,
de camaradas, obstinados a não existir sem dignidade estética. Ha- a qual mereceu uma recolha total pela polícia. Depois ainda a Con-
via tanto que destruir como de construir, isto é, impunha-se viver. temporânea mas esta já defendida materialmente teria na verdade
Discutia-se a acção: se não nos entendessem, ao menos que nos maior duração do que teve se não tivesse sido desvirtuado o sen-
ouvissem gritar! tido do grupo nas suas próprias páginas! Generosas intenções? Im-
Não tardou muito que uns quantos se sentissem visados. A sua previdentes fraquezas.
oposição excedeu as nossas expectativas e começava a ter efeito in- A completar a série das nossas publicações, e como para repa-
directamente mas de uma maneira material, eficaz e concludente. rar o caminho da Contemporânea, saíram ainda vários números de
Chegaram a apelar para a polícia e para o manicômio, acusando- uma quarta revista intitulada Athena. Mas o grupo estava virtual-
-nos de andarmos à solta. Enfim, ódio puro. Um ódio tão evidente mente terminado na sua acção de apresentação. Agora ficavam do
e tão incontido que tendo começado por nos surpreender acabava grupo, os autores.
por fazer-nos ver que afinal tínhamos feito já alguma coisa de bom. Qual foi o sentido do nosso grupo? Este: direcção nenhuma,
Repito: surpreendeu-nos o ódio q~e levantámos contra nós.m o colaboração convidada por unanimidade entre todos os colabora-
tinha sido tão conscientemente que a nossa posição de fé fizera tais dores.
rivais. Não os tínhamos adivinhado tão concretos. Pelo contrário,
julgávamos os erros que atacávamos e a rotina que queríamos romper
como defeitos de nós todos, mais do que apenas de alguns que
- Procedíamos conscientemente na formação de um grupo de élite,
sem chefes e todos autores, o que na verdade -só é possível entre
,ge ~ de Arte . O nosso desiderato era por conseguinte só um: os
se sentiram molestados nos seus prestígios. autores. E foi o que ficou.
- O público interessava-se pela batalha. Os nossos rivais tinham Mário de Sá-Carneiro, o_gr ap.de animador, o entusiasta sem li-
direitos adquiridos na imprensa onde nos ofendiam sem defesa ou mites do novo, seria ainda hoje o maior aliciador da mocidade para
nos votavam ao silêncio, e esta desvantagem nossa trouxe-nos a sim- a Arte, se tivesse podido resistir à violência do seu próprio caso
patia geral. Da parte da mocidade era evidente que nos preferiam, pessoal.
mas prudentemente, moralmente . f<;rnando Pessoa, o valor de mais peso na literatura acrual por-
Nesta desigualdade de meios prosseguia violenta a polêmica, tuguesa, difícil e agudo, conflito pessoalíssimo escapado por várias
mas no fundo, calmamente, a discussão era exactamente esta: nós, personalidades pseudónimas, o mais lúcido companheiro literário
como independentes e modernistas, defendíamos o clássico, e eles que possa alguma vez ter um autor, e o porta-bandeira erudito do
também o defendiam; a dificuldade era maior da parte deles do nosso grupo.
que nossa para que o público reparasse que o clássico deles não Simultaneamente ao nosso movimento literário, o grupo
era o clássico dos clássicos. completava-se com os pintores vindos de Paris de 1914. Completava-
Então, o seu último recurso foi o aproveitarem-se do momento -se e excedia-se. Guilherme de Santa-Rita e Amadeu de Sousa-
propício e políticas para estabelecerem a confusão em público a nosso -Cardoso, du;;; fortes personalidades opostas, plenas de modernismo
respeito: a hora era efectivamente propícia, mas ainda mais evi- e absolutamente inéditas na ideologia e sensibilidade portuguesas,
dente foi para o público que nenhum de nós sentia a mínima mas_p9rruguesa22 encontraram-se menos exilados no seu próprio país
curiosidade por política. Em vez de procurarem ter melhores ra- do que o haviam previsto, ao encontrarem-se com o grupo literá-
zões do que nós, preferiram parecer mais espertos . Até que por rio. Desta maneira fortificado o grupo foi tal a produção variada
unanimidade o grupo decidiu: li n 'y a rien à faire avec eux. e prolífica dos nossos, que o inimigo estremeceu visivelmente pela

56 57
primeira vez nas suas trincheiras. A vitória prosseguia naturalmente
_s_em outra manobra que o trabalho artístico individual do nosso
grupo. E hoje, passados vinte anos, sabe-se em Portugal q~ são
nomes a respeitar, os de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa,
Guilherme de Santa-Rita e Amadeu de Sousa-Cardoso.
Qual foi o destino que juntou estes nomes senão uma única UM ANIVERSÁRIO
fé que animava estas personalidades tão distintas umas das outras? ORPHEU
Mário de Sá-Carneiro suicidou-se em Paris ao peso de todas as
suas razões pessoais. Guilherme de Santa-Rita, o espírito mais bri-
lhante que conheci, alma veemente de iluminado traída por uma
natureza ingrata que o acabou por fim antes quase de começar a
sua vida. Pintor em essência mais do que de oficina, alguém seu
A 21 de Março de 1915 Lisboa conhece o primeiro número da
íntimo cumpriu com a sua última disposição de aniquilar as suas
revista literária Orpheu. Passados vinte anos, como ninguém até
produções. Amadeu de Sousa-Cardoso, o pintor por excelência, o
autêntico génio do grupo, o exemplo mais formidável de artista fioje tivesse a curiosidade de escrever a sua história que o público
português de hoje em qualquer parte do mundo, é levado em plena desconhece, agradecemos ao suplemento literário do Dián'o de Lis-
vida em meia dúzia de horas por uma epidemia, no instante mesmo boa o convite que para este fim dirigiu ao colaborador do Orpheu
em que o seu espírito exuberante produzia inúmeras das suas telas que escreveu estas linhas.
mais vigorosas. Vive ainda Fernando Pessoa na serenidade da sua lia formação de Orpheu os primeiros nomes que aparecem são
imaginação literária, e sempre pronto para tudo o que seja elevado, os do poeta português Luiz de Montalvor e o do escritor brasileiro
superior, de élite, isto é, tudo o que não sejam actualidades força- Ronald de Carvalho.
das e sem longo efeito perene. Ronald de Carvalho há bem pouco falecido no Brasil vítima de
Pelo grupo passaram uma infinidade de flutuantes, o mais dís- um desastre de automóvel, era além de escritor, diplomata e se-
pares possível, mas não era dos seus destinos elevarem em Arte os cretário da Presidência da República, tendo sido recentemente eleito
seus nomes à altura destes. «Príncipe das Letras Brasileiras».
Actualmente a mocidade portuguesa não reza pelas artes e tal- A seguir vêm Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
vez que seja pelo heroísmo que é necessário para receber a estafeta A estes juntam-se-lhes José Pacheco, Santa-Rita Pintor, José de
das mãos ardentes dos que ficam apontados. Em todo o Portugal Almada Negreiros, Eduardo Guimarães (br:asileiro ), Alfredo Gui-
apenas três pintores, entre todos os artistas, trabalham decidida- sado e Cortes Rodrigues.
mente dentro da maneira unânime como pinta a Europa de hoje. Tiveram colaboração extra, o poeta Ângelo de Lima e o filó-
Para terminar, e visto ser a primeira vez que se publica este sofo Dr. Raul Leal. -
assunto, falta ainda citar no grupo os nomes dos pintores Eduardo Morreram já Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, Ângelo
Afonso Viana e * de Lima, José Pacheco e Ronald de Carvalho.
Mo!edo do Minha, Outubro de 1934. E eis os nomes de todos e quantos colaboraram em Orpheu.
lí. O escândalo que o aparecimento de Orpheu produziu no pú-
'o blico, foi e ficou inédito na vida literária portuguesa. Portugal lei-
* [Publicado nesta forma na 1. a edição.] ,--;- tor, de Norte a Sul, delirava de regozijo, exactamente como se cada

58 59
português tivesse sido o achador daqueles loucos à solta. Nem mais _A Histoire de Potugal par Coeur de José de Almada Negreiros
nem menos. e a Mensagem de Fernando Pessoa, dua§ produções portuguesas que
Foi essa a reacção mais viável encontrada pelos leitores de Or- tiveram a aceitação de todos, são doi; documentos portuguese5;sem
pheu para justificar o incômodo que a revista lhes causou lá em nacionalismos, sem regionalismos, seus indigenismos. Os seus au-
seus npanços. tores são dois colaboradores de Orpheu.
Não tinha sido tão conscientemente que fizemos tais rivais. Não São documentos portugueses, disse, mas portugueses de Portu-
os tínhamos adivinhado tão concretos. Pelo contrário, julgávamos gal, do único Portugal comum a todos 05 portugue~es . M;ts_há já
QUrtos que ata~~am.Q~ e a rotina que queríamos romper co~Õ­ muito temp-;- que deixou de haver portugueses em Portugal. Foi
defeitos e nós todos, mais do que apenas de alguns que se senti- então que com~çou o__português à antiga pom:guesa, que é_mais
ram lesado nos seus prestígios. moderno ~ue o português, e é o resultado de estarem interrompi-
Mas, não é verdade que parece extraordinário uma revista lite- dos os portugueses: escreve Fernando Pessoa em 1923. E outro co-
rária ter o condão de fazer saltar dos seus respectivos buracos tanta laborador de Orpheu enviava de Madrid em 1928 uns versos onde
gente sensata, indignada com tal emprego das palavras?! Não é ver- se lia:
dade que autênticos loucos, não era esta a espécie de indignação «É fado nosso,
que provocariam nas gentes?! é nacional,
Mais extraordinário parecerá ainda quando se disser que Qw heu não há portugueses,
_.;.ra e ch.lsiv_ameme JiteW.io ue não tinha o ma~ J?equeno vislum- há Portugal. »
bre olítico , que não era. como os jornais revistas ·rerárias portu-
guesas da actualidade , nas quais é afinal a política que se mascara Ora o que queriam os ~olaboradores de Orpheu era que hou-
<i letras. Orphezt era honradamente literário! ves~e Portugal e também- portugueses. Portugueses sobretudo, visto
Sem programa, a não ser o de reunir autores, assim se fez Or- que Po~g~l já há. Orpheu dirigia-se especialmente ao caso das
pheu. Todos autores e sem chefes, o que de verdade só é possível
várias pessoas portuguesas, aos vários casos do português, ao por-
entre gente de Arte. Independência da colaboraÇão . Até a ortogra-
tuguês.
fia era a dos autores. E fo.i esta independência da colaboração o
É mesmo este o único caminho para ir à conquista da élite por-
que afinal deíxava perceber uma unanimidade de ideias entre o
tuguesa. A élite é coisa séria , é até a mais séria de todas onde haja
seus colaboradores: A necessidade da élite portuguesa, a qual não
um povo; não cuida apenas do governo do povo pois que reco-
estava em parte nenhuma!
nhece já a pessoa humana também . A élite não se resume na ciência
~-~-d ~tada a cabeça de Portugal!
política, é sobretudo o conhecimento do humano, o que é de carne
A razão de Orpheu era Qrofundamente aristocrática, não no seu
efêmero sentido de sangue, mas na sua verdadeira essência de valores. e osso.
S~as possibilidades individuais portuguesas o que falta sobre-
Qrj2/;Jg_tt era urna coosequência fatal de determinados portugue-
ses, desligando-se dos outros portugueses, porém ligados entre si tudo em Portugal.
pela me ma fé na élt'te de Portugal. As uas personalidades vinham ' O único exemplo que vale para as pessoas é o exemplo dos he-
já esclarecidas o bastante para uma dignidade comum , por isso róis. Herói é aquele que se ultrapassa, que vale além das possibili-
mesmo éramos portugueses sem sermos nacionalistas, nem regio- dades comuns. Ora as possibilidades comuns portuguesas já cá es-
nalistas, nem indigenistas. Queríamos apenas o mais difícil dos tí- tão, já são comuns; e agora vamos a outras, a novas, portuguesas
tulos portugueses: sermos portugueses simplesmente! também, nossas!

60 61
Outra característica de Orpheu era o europeísmo. Como se vê por este comentano, tinha razão de ser o ensa10
Dirão: Como pode ser se estavam em Orpheu dois brasileiros? do conde de Keyserling.
Dois americanos?! Isto mesmo ajuda-vos a responder. E na resposta E vai ser difícil o português entender o Portugal europeu. Bem
fica também demonstrada a independência que dissemos já dos cola- mais difícil do que o brasileiro entender o Brasil americano.
Enfim, foram estas as duas características mais importantes de
boradores de Orpheu.
Ronald de Carvalho, precisamente o escritor brasileiro, colabo- Orpheu: p~tuguesa e europeia.
rador de Orpheu, escreve nos Estudos brastleiros: «0 nosso dever Para a conquista da élite portuguesa encontrava Orpheu o ca-
é destruir o preconceito europeu . . . Deixemos de pensar em eu- minh9 . herÓico:~7iihura individual, portugJ!.eg__ e_~_uopeia.
Não se há-de enganar quem vir no escândalo produzido pelo
ropeu. Pensemos em americano.» Isto quer dizer: o que para o por-
aparecimento de Orpheu, ~ gregyiça 12-0rtJlguesa fortemente inco-
tuguês representa o europeísmo, é evidentemente para o brasileiro
modada por este desafio de _acção. ~preguiça individual portu-

--
o americanismo. O brasileiro há-de encontrar a sua humanidade
guesa, igo, que é pelos vistos incomparavelmente maior do que
dentro do americanismo. O português é que não pode deixar de
ser europeu, e cada vez menos pode deixar de o ser, pela simples a_ preguiça colectiva portuguesa.
razão de que a Europa é cada vez mais Europa.
!f que Orpheu, meus senhores, ~oi o primeiro grito moderno
que se deu em Portugal.
Já lá vão aqueles tempos em que Portugal foi a mais rica nação
-- - -·oipheu é o pioneiro do movimento moderno em Portugal!
da Europa. E foi ao tornar-se Portugal a nação mais rica que dese-
E segue.
quilibrava por isso mesmo a Europa inteira.
Hoje a Europa é uma unidade nascente. Longinquamente ini-
Lisboa, Março de 1935
ciada pelas Descobertas marítimas dos portugueses, esta unidade
In Diáno de Lisboa, de 8-3-1935
da Europa concretiza-se hoje nos nossos dias. Portugal, que provo-
cou essa unidade será acaso o primeiro a surpreender-se agora com
ela? 1
Não deixava de ter razão de ser, digo razão de ser, o ensaio
«Portugal» do conde de Keyserling.
É um europeu quem pergunta porquê Portugal, que foi o me-
lhor dos europeus nos tempos em que a Europa apenas começava,
não o é hoje também quando a Europa entra já na sua maioridade?
~ As respostas portuguesas a este ensaio vieram todas zangadas.
E difícil de compreender o europeísmo.
Descobrimento de 1931, revista literária (perdão, «de cultura»),
termina o seu comentário ao ensaio de Keyserling com estas palavras:
«Basta-me que deste comentário ressalte o erro do ponto de vista
europeu para observar e compreender Portugal.»

1
De «As cinco unidades de Portugal», de José de Almada Negreiros, 1930
(v. página 67 deste volume.)

62 63
PORTUGAL
NO MAPA DA EUROPA

O mapa tem a sua erudição própria. Através do mapa político


do mundo cada povo tem a sua expressão própria no seu respec-
tivo lugar.
No mapa da Europa, Portugal define-se perfeitamente no ex-
tremo sudoeste, ou seja, fazendo parte integrante do ocidente e
do sul da Europa, exactamente SW.
No mapa da península também Portugal se define perfeitamente
independente da unidade espanhola com a que mantém grandes
pontos de contacto.
A Espanha é como Portugal peninsular, ocidental e meridional
a um tempo; a Península, o Oeste e o Sul são-lhe comuns, mas
enquanto a costa portuguesa é exclusivamente atlântica, a espanhola
é atlântica e mediterrânea. A Espanha tem como a França a sua
costa mediterrânea e atlântica, mas a condição de peninsular de
Espanha distingue-a da de continental da França. Estas diferenças
que parecem mínimas entre vizinhos no mapa são afinal toda a
essência da sua originalidade e independência.
Através do mapa político da Europa podemos fazer ainda ou-
tra observação de ordem visual: A de que as nações europeias ocu-
pam uma maior extensão territorial de Norte a Sul do que de Este
a Oeste. O facto é evidente e deve portanto obedecer a uma causa.
Não há efeitos sem causa. E nas nações europeias é bem geral esta
coincidência. A causa será a de haver maior diferença de caracteres
humanos de Norte a Sul do que Este a Oeste.

65
A Europa ocupando lugar na zona temperada, abrange uma Só as raças de civilização podem servir de base às respectivas nacio-
maior extensão continental nos paralelos do que nos meridianos. nalidades.
Ao passo que na zona tórrida é menos sensível a diferença de lati- Portugal, a civilização portuguesa, depende das civilizações ibé-
tudes e longitudes. rica, greco-latina, ocidental-europeia, europeia e universal.
Esta convergência dos meridianos nos pólos faz com que se vão
rareando as extensões habitáveis à medida que subimos para o In Sudoeste, n. 0 1, Junho de 1935
Norte. Rareando em espaço e diminuindo a temperatura, por uma
e por outra razões hão-de forçosamente ser mais sensíveis estas di-
ferenças do que nas extensões tomadas dentro do mesmo paralelo,
as quais são em dimensão e temperatura respectivamente iguais e
equidistantes do Equador.
Por isto mesmo apenas a maiores distâncias começam a diver-
gir os caracteres humanos no sentido Este-Oeste do que no sentido
Norte-Sul.
Será esta a causa pela qual as nações europeias ocupam na sua
generalidade uma maior extensão Norte-Sul do que Este-Oeste.
A formação de uma unidade política não podia deixar de atender
a estes dois sentidos da terra perpendiculares um ao outro. Sobre-
tudo isto mesmo deve ter sido levado em conta no início longín-
quo das colectividades europeias e mais fortemente ainda na for-
mação das respectivas nacionalidades. Não é pela repetição em
número dos mesmos caracteres humanos que pode fazer-se resultar
o conjunto para uma nacionalidade. Pelo contrário, uma nacio-
nalidade necessita de abranger no seu conjunto único, a maior di-
versidade de caracteres humanos, respectivamente ao seu carácter
comum e deduzido de entre todos; e sem o que não será possível
nenhuma espécie de unidade colectiva, nacional ou política que con-
tenha em si mesma a própria essência da vitalidade e da perpetui-
dade .
Uma raça de sangue não pode formar uma nacionalidade, pelo
menos, uma nacionalidade que perdure através dos séculos.
Exemplo: a raça judaica. É uma raça sem nacionalidade. Será
sempre um raça sem nacionalidade na Europa. Não cabem na Eu-
ropa as autonomjas de raça de sangue . Na Europa, sobretudo na
Europa Central e mais categoricamente na Europa Ocidenr:al, as raças
de sangue já há muito que foram reunidas em raças de civilização:
Greco-latinos, teutões, eslavos, caucasianos, e asiático-indo-europeus.

66 67
AS 5 UNIDADES DE PORTUGAL

PORTUGAL

2 3 4 5
Unidade unidade unidade unidade unidade
individual colectiva peninsular europeia universal
portuguesa portuguesa ibérica

Pela ordem da importância de cada uma das cinco unidades.


Primeira: a pessoa humana portuguesa.
Segunda: a colectividade portuguesa.
Terceira: a civilização peninsular portuguesa.
Quarta: a civilização europeia.
Quinta: a civilização universal.

1.

A pessoa humana portuguesa

Neste mundo tudo é meio menos o Homem. A pessoa humana


é a única finalidade de tudo quanto acontecer na Terra.
Tudo quanto seja destino de Portugal deve estar dirigido com
a finalidade única da pessoa humana portuguesa.

69
O respeito pela humanidade começa exactamente em cada um A Península Ibérica já foi cabeça do mundo com a forte Espa-
de nós. nha e o heróico Portugal. A Península Ibérica fez a América Latina.
Sem o respeito pela individualidade e personalidade de cada A Península Ibérica espalhou por toda a terra o sangue de Es-
ser humano, seja ele qual for, não há nada começado neste mundo. panha e os padrões de Portugal.
O respeito devido a cada vida de per si é um respeito tão exacto Ficaram eternos no mundo Portugal e Espanha. Pela primeira
que se distingam as próprias entranhas da terra uma por uma. vez na História, dois povos independentes realizam uma mesma
O respeito por cada uma das pessoas humanas é a única liga- e única civilizção: Portugal e Espanha criaram a Civilização Ibérica.
ção que teremos no diálogo das gerações e no encontro da huma- O litoral da terra e as imensidades dos mares e dos continentes
nidade com a própria humanidade. Enquanto em Portugal cada ficaram pela primeira vez ligados praticamente ao universal por ini-
uma das pessoas humanas portuguesas não tiver a possibilidade de ciativa e feitos dos portugueses. Depois, os espanhóis participaram
entregar-se totalmente a fundo, à incógnita da sua própria perso- grandemente do segredo português, com uma expansão ultrama-
nalidade, continuará tudo ainda por começar. rina ao lado da nossa. A descoberta dos caminhos dos mares, a des-
O humano é a única varonia da humanidade. O humano de- coberta dos novos continentes e a do perfil de todos os litorais e
ver ser a única varonia de Portugal. a primeira volta ao mundo, feitos por portugueses e espanhóis, fo-
ram o primeiro material para a unidade política da Terra.
A dualidade Portugal e Espanha é afinal o segredo da vitali-
2.
dade da Península Ibérica e da sua civilização.
A colectividade portuguesa Portugal e Espanha são dois opostos e não dois rivais. Os opos-
tos são complementos iguais de um todo. Este todo está represen-
A cruz de Cristo, a esfera armilar, a caravela, a roda de Santa tado geograficamente pela Península Ibérica e em espírito pela ci-
Catarina, o pelicano, a Imaculada Conceição, a coroa real e o bar- vilização ibérica.
rete frígio, são episódios da história de Portugal. A primeira parte da missão da civilização ibérica já foi cum-
As quinas são o único sinal representativo de Portugal. prida: o império colonial português e o império colonial espanhol,
A colectividade portuguesa é a legítima defesa da pessoa hu- a América Latina, e o sangue português e espanhol espalhados pelo
mana portuguesa. Seis milhões e meio de portugueses são seis mi- mundo inteiro.
lhões e meio de vidas portuguesas sob a garantia da colectividade A segunda parte da missão da civilização ibérica começa em nos-
portuguesa. Toda e qualquer raridade da pessoa humana portuguesa sos dias: criar a cultura do entendimento português e a do enten-
há-de caber inteira na colectividade portuguesa. dimento espanhol, não só para os actuais peninsulares como tam-
bém para todos os originários da nossa civilização comum e dual.
Além disto, pesam sobre as actuais gerações portuguesa e espa-
3.
nhola, as respectivas e comuns responsabilidades de criarem os no-
A civtfização peninsular ibérica vos colaboradores peninsulares do conjunto europeu e do universal.
Cada português terá de ser mais português do que nunca em
Civilização ibérica, sim. Sempre. face do espanhol mais espanhol do que nunca e sobretudo, portu-
União ibérica, não. Nunca. gueses e espanhóis teremos de ser mais portugueses e espanhóis do
Aljubarrota mais Toro igual a zero. que nunca, em face do alemão mais alemão do que nunca, do in-
Península Ibérica igual a Espanha mais Portugal. glês mais inglês do que nunca, do francês mais francês do que

70 71
nunca, do italiano mais italiano do que nunca, do russo mais russo
do que nunca, enfim, de todo e qualquer povo mais nacional hoje
do que ontem, mais ele mesmo hoje do que nunca.

3. e 4.
CIVILIZAÇÃO E CULTURA
A civzlização europeia e a civtlização universa/ 1

In Sudoeste, n. 0 1, Junho de 1935

Uma mesa cheia de feijões.


O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os sepa-
rar, um por um, do dito montão.
O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo do
que o segundo.
Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões es-
tariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é traba-
lho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas.

-----
O Qrimeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pes-
soa,;de~-;;-~~ te~i; é o processo da CIVILIZAÇÃO.
0 segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma
civilização é o processo clã CULTURA.
E mais difícil a pass~gem de civilização para cultura do que a
formação de civilização.
A civilização é um fenómeno colectivo.
A c~hu;;: é um fenómeno individual.
Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem
cultura.
(Aqui há uma ilustração, cujo desenho representa uma balança perfeitamente
equilibrada com a civilização num dos pratos e a cultura no outro.)

FIM

Justaposição disto mesmo a Portugal: ma civilização sem cultura.


1 As excepções, inclusive as geniais, não fazem senão confuma-lo.
. • No artigo, remete-se o leitor para o artigo aparecido no mesmo número
Intitulado Prometeu, Ensaio Espiritual da Europa (v. pp. 83-110, deste volume.) In Sudoeste, n. 0 1, Junho de 1935

72 73
PORTUGAL
OFERECE-NOS O ASPECTO DE

1. Uma nação formada .


2. Um Estado a formar-se.
3. Uma sociedade inculta.
4. Um povo novamente à procura da sua dinâmica própria.

1. Portugal é hoje a mais antiga nacionalidade da Europa,


aquela que conserva mais justas as suas fronteiras primitivas. Isto
representa por si a explicação do aspecto que nos oferece hoje Por-
tugal, quanto à nação, de uma civilização fortemente contida e man-
tida em fronteiras metropolitanas fixas e invariáveis. Tendo por várias
vezes fraquejado o · Estado português, a nação portuguesa resistiu
sempre a todos os lapsos governativos.
A integérrima civilização portuguesa tem profundos depósitos
de resistência para quaisquer momentos que lhe sejam adversos.
E assim aconteceu até hoje.

2. O Estado é efectivamente a verdadeira política da colectivi-


d~çl!. O Estado português deve ser a verdadeira política da colecti-
vidade portuguesa.
Este assunto é exclusivo da competência dos governantes e po-
líticos.

3. Mas o mais assombroso está no que se refere a.Q capítulo


da Cultura em Portugal. Aqueles a quem em Portugal através das
gerações lhes coube em destino a cultura portuguesa, nunca sou-
beram ou não conseguiram levar o conhecimento até à alma do

75
nosso povo, conjugar o conhecimento da cultura com o entendi- À colectividade pode exigir-se-lhe ordem, fortaleza e o nosso
-;Tiento popular, fazendo com este entendimento e aquele conheci- lugar, o que não se lhe pode exigir é cultura. Esta depende exac-
mento uma linguagem única e na qual o popular e o erudito não tamente de cada uma das suas pessoas e das élites por estas forma-
se distinguissem um do outro. Excepção de Gil Vicente, toda a mais das nos valores do conhecimento. A civilização é um fenômeno
cultura dos autores portugueses parece erudita ou então francamente colectivo. A cultura é um fenômeno individual. A colectividade por-
popular como a dos anônimos e da dos romanceiros. tuguesa está feita de Afonso Henriques até hoje, agora faltam os
A verdadeira cultura portuguesa, a que fosse em sua lingua- portugueses, as pessoas portuguesas, as pessoas humanas portuguesas.
gem a um tempo erudita e popular, apenas a encontramos na ge- Nem todos têm a educação precisa para saber exigir de si próprios
nial excepção de Gil Vicente, e de lá até nós não lhe vemos a se- tudo quanto lhes é devido, não apenas para o seu caso pessoal como
quência. Em todo o caso ao falarmos hoje com os mais humildes também no da colaboração com a colectividade.
dos portugueses, incultos e até analfabetos, somos obrigados a re- O primeiro movimento de qualquer de nós sobretudo ao iniciar-
conhecer que intimamente uma forte civilização os mantém ínte- mos a vida pública, é o de exigirmos da colectividade os seus de-
gros a despeito da falta mais completa de conhecimentos eruditos veres para connosco individualmente.
e até do alfabeto.
Ora, a colectividade, seja qual for o grau de civilização em que
Isto prova que Portugal é uma nação longa e fortemente for-
ela se encontre, não dispõe de lugares individuais para os seus ser-
mada por uma civilização evidentíssima, a qual nem a falta de
vidores senão no sentido literal de burocracia. Mas a colectividade
conhecimento erudito nem até o analfabetismo, conseguem apagá-la
serve desta maneira os seus indivíduos, não supondo que estes es-
nos seus indivíduos. Mas isto quanto à civilização portuguesa.
gotem todas as suas capacidades pessoais no simples lugar do ser-
E quanto aos portugueses? Não é uma tirania trazer seres huma-
viço público. A colectividade pressupõe que cada indivíduo ultra-
nos subjugados a uma civilização ancestral e da qual eles talvez não
passe o seu dever civil e que fique apto por sua vez a servir a
participem afinal conscientemente? Uma civilização não pode ter
colectividade com o seu próprio valor pessoal, original e inédito.
fé em cada um dos que lhe ·pertencem, senão quando cada um
destes é servido por uma cultura que o mantenha cônscio indivi- Seria muito pouco para um civilizado se os seus deveres públicos
dual e colectivamente da sua missão nacional. Pode objectar-s; que estivessem limitados aos obrigatórios, àqueles que a sociedade pre-
a fé substitui a falta de cultura. Muito bem. É sabido que toda viamente lhe ditou como inalienáveis. Não, além destes, a socie-
a fé promete conhecimento, mas também se sabe que em Portu- dade aguardará de cada uma das suas pessoas que lhe tragam no-
gal urge a generalização do conhecimento para a colaboração colec- vas expressões para a sua fé, novas iniciativas para a sua unidade,
tiva. Conhecimento é uma coisa, generalização do conhecimento novas revelações para o seu eterno.
é outra, e urgência de generalização do conhecimento ainda outra. Porém, hoje em dia, vemos que a. tradição pode afinal ser mal
Parecerá que estou fazendo mais um dos mil e um artigos que interpretada.
em Portugal se têm escrito contra o analfabetismo. Não é bem isso. A tradição, o único valor positivo da tradição é o de servir com
Desejo descobrir outro campo e talvez mais absurdo este do que os seus exemplos históricos a iniciativa individual dos actuais de
o dos alvitres para debelar o analfabetismo em Portugal. Se depen- uma mesma civilização. A descoberta do caminho marítimo para
desse efectivamente do Estado a generalização do conhecimento, esta a Índia por Vasco da Gama mais do que a Portugal pertence ao
seria em todos os casos mais longa do que urgia. A única solução século XV. O feito ficou exactamente no século XV. Bem pouco
depende efectivamente de cada um dos portugueses, tomando à sua seria para o Portugal de hoje apenas o orgulho de ter-nos perten-
conta própria o encargo da sua curiosidade pessoal do conhecimento. cido há cinco séculos esta descoberta, se não fosse o exemplo le-

76 77
gado a todos e especialmente a nós por Vasco da Gama. Luís de Mas vamos ao caso mais célebre e genial que nos conta a histó-
Camões ao referir-se ao português Fernão de Magalhães diz: ria sobre o sentido do culto e do erudito: Publius Lentulius, go-
vernador da Judeia, envia para Roma, ao César, uma carta com
«Ü Magalhães; no feito, com verdade um retrato que faz de Jesus Cristo e na qual se lê esta frase:
Português; porém, não na lealdade.» «Apesar de quase não possuir instrução, conhece todas as ciên-
Cias.»

Apesar da não lealdade de Fernão de Magalhães, este cabe per- 4. Uma colectividade, cuja nação está formada, o Estado a
feitamente na história e n'Os Lusíadas, pelo seu «Efeito, com ver- formar-se a sociedade inculta, é um povo novamente à procura da
dade português», sua dinâmica própria. É nestas circunstâncias, as quais apenas o es-
Isto é, o exemplo da iniciativa individual dado na História por pírito resolverá, que se impõem duas linguagens que precipitarão
Fernão de Magalhães, apesar da sua não lealdade serve melhor na os resultados comum e particulares para os quais se caminha: o ci-
sua tradição os portugueses do que outros povos porque o seu feito nema e o teatro.
Uma civilização sem cultura dá como resultado a falta de pro-
foi «com verdade português».
fundidade tão evidente nos portugueses. O cinema como anima-
Há muita gente que conhece História, mas nem todos conser-
dor da nossa civilização e o teatro como animador da cultura indi-
vam o instinto de saber viajar pelo passado. Por outras palavras,
vidual, têm o papel mais importante do espírito na renovação dos
chama-se indevidamente culto a quem não é afinal senão erudito,
nossos valores.
àqueles que em vez , da imaginação usam apenas a memória. Por Gil Vicente, o pioneiro do teatro europeu do Ocidente, aguarda
outro lado, à imaginação «cette reine créactrice» (Baudelaire) os seus sucessores e o cmema português os seus pioneiros 1 •
confundem-na com a fantasia. Todas as maravilhosas capacidades
do humano instinto têm sido aniquiladas sistematicamente pela ver- In Sudoeste, n . 0 1, Junho de 1935
borreia da erudição, toda essa ciência de memória sem ligação com
a terra do sentimento. A cultura ficou enterrada por debaixo da
leitura dos lidos, relidos e treslidos .
Com a História da Arte passa-se um caso curioso que diz res-
peito à cultura e à erudição: Há duas Histórias de Arte!
Uma escrita pelos críticos e historiadores, outra feita pelos pró-
prios autores de arte, com as suas próprias obras. Na verdade, a
primeira é a única que interessa ao público. Mas de verdade tam-
bém, o processo de informação da tradição não é o mesmo para
os autores que para os historiadores de arte e o público. Pelo me-
nos, os autores não seguem a História da Arte feita pelos críticos
e historiadores para serem por sua vez autores de arte e sucessores 1 No original, remete-se o leitor para os artigos «Cinema é uma Coisa e Tea-
dos seus maiores. Aos autores bastam-lhes os autores. E pelo con- tro é Outra» e «Encorajamento à Juventude Portuguesa para o Cinema e para o
trário, a erudição da História de Arte rouba-lhes a claridade da arte, Teatro», saídos no n. 0 2 do mesmo Sudoeste.
o culto do humano e do belo. (V. pp. 127-131 , deste volume.)

78 79
ARTE E POLÍTICA

A grande actualidade que traz curiosos os ânimos é uma possí-


vel colaboração espiritual entre Arte e Política. À parte esta actua-
lidade, Arte e Política não estão feitas para colaborar uma com a
outra , e o único encontro possível de ambas é nos resultados das
suas acções particulares, ao produzir-se a presença de uma e da outra
na vida da humanidade.
Vejamos o que são na sua essência a Arte e a Política.
Em Grego antigo a Arte diz-se Tekné, e quer dizer indistinta-
mente Arte e Ciência. Política é uma palavra composta de tekné
e polis. Polis quer dizer cidade .
A arte, a qual entre os gregos antigos tinha uma palavra que
a designava e ao mesmo tempo também à Ciência . chegou até nós
reduzida quase exclusivamente para representar as artes plásticas.
Ora, os Gregos, reunindo a Arte e a Ciência na Tekné, procura-
vam desta maneira não separar o conhecimento do sentimento hu-
manos .
A geometria é a medição da natureza com o entendimento hu-
mano . E o entendimento não é mais do que a união íntima do
conhecimento com o sentimento humanos.
Nas antigas universidades as Artes eram o humanismo e a teo-
logia.
Na escola de Alexandria as artes liberais eram a Geometria, a
Retórica, a Filosofia, a Poesia, a Música, a Dança e a Astrologia.
A Arte foi tomando os vários aspectos de artes plásticas, belas-
-artes, artes visuais, artes mecânicas, etc., até servir a sua palavra

81
de raiz para tudo quanto significasse movimento ou criação de mo- é o instinto do conhecimento; Ciência é o conhecimento do ins-
vtmento. tinto. Por isso mesmo a arte precede constantemente a Ciência.
Exemplo: a palavra política em Grego (tekné, polis) arte da ci- Apenas as realidades políticas pretendem que a Arte proceda
dade, quer dizer literalmente movimento ou criação do movimento dos factos e não que os preceda. Ora, precisamente é a Política
da cidade. que há-de estebelecer-se sobre o resultado determinante dos fac-
Mas a palavra Tekné em política (tekné, polis) funciona apenas tos. E quando a política surge como animadora dos factos é sim-
como componente importante junto do outro componente impor- plesmente por necessidade de desfazer os factos artificiais deriva-
tante polis, na composição da única palavra. Exactamente como dos de erros de outras políticas» 1 •
quando dizemos artes liberais, artes plásticas, etc., são sentidos úni-
cos compostos por várias palavras, embora não formem palavras úni-
*
cas, como em belas-artes ou em polis-tekné, mas onde a palavra
arte ou tekné entra na sua composição. Há de facto no destino da humanidade uma política universal
Contudo, por si só, a palavra Tekné tem um valor absoluto, e única. Tanto a arte como qualquer política não podem deixar
o qual, servindo todas as suas compostas, não só não sofre a in- de se integrar nesta única política universal. Mas a História ensina-
fluência de cada uma destas, como também apenas as · serve por -nos que esta «política universal tem duas correntes fundamentais
conservar a unidade do seu próprio sentido profundamente geral. e eternas: a política prática e a idealista, a diplomática e a ética,
Aqui está porque as palavras tekné e arte têm nos gregos ta- a política do Estado e a da Humanidade».
manha importância e entre nós apenas nas antigas universidades Exemplos: «Erasmo e Maquiavel». «Pouco tempo antes de mor-
são empregadas simplesmente, sem ligação com outras na forma- rer, Erasmo, legando às gerações futuras a mais nobre das missões:
ção de um novo sentido nem na composição de nova palavra. realizar a concórdia europeia, aparece em Florença um dos livros
As artes nas antigas universidades eram o humanismo e a teo- mais importantes e o mais ousado da História, O Príncipe, de Ni-
logia, isto é, o conhecimento e os sentimentos humanos ligados colau Maquiavel. Neste tratado de uma precisão matemática onde
na mesma palavra. Tekné e arte são palavras que encerram em si se exalta a política da força e da realização (reussite), encontra-se
o único conceito unânime do humano no universo. O facto de as formulada, como num catecismo, a contrapartida dos princípios de
antigas universidades porem no plural artes deve seguramente ter Erasmo. Claro está que a concepção de Maquiavel que glorifica o
estreita relação com a Tekné dos Gregos, Ciência e Arte ao mesmo princípio da força soube impor-se na História.»
tempo. «Não é a política da humanidade de Erasmo, mas a política
«Arte e Ciência não podem deixar de estar estreitamente liga- da violência fiel ao espírito do Príncipe a que determinou o curso
das entre si. Mostra-o a Tekné dos Gregos e as Artes nas antigas dramático da história europeia. É o espírito da discórdia e não o
universidades. É a íntima união do sentimento com o conhecimento da concórdia o que fornece a todos os povos as energias mais apai-
humanos, formando o entendimento da humanidade. xonadas.»
Ciência sem Arte é ciência pela ciência, é a substituição das Hu- «0 pensamento de Erasmo» (apesar de Erasmo ter sido a maior
manidades pela sociologia, é confiar demasiado nas estatísticas e personalidade da sua época, como nenhuma personalidade em ne-
de menos no instinto humano. nhuma outra época) «não conseguiu nenhum papel importante na
Arte sem Ciência é arte pela arte, mero deleito ou passatempo.
O que torna inseparáveis a Arte e a Ciência é a ligação perma-
nente que existe entre o conhecimento e o instinto humanos: Arte 1
«Tekné, a cabeça da colectividade» do autor.

82 83
História nem exerceu nenhuma influência sensível sobre o destino si e até adversos, sacrificam três dos maiores heróis de uma mesma
da Europa: o grande sonho dos humanistas, a solução (applanisse- corrente fundamental e eterna, clássica e europeia, o conhecimento
ment) dos conflitos num espírito de equidade, esta união desejada e o espírito. Três lastimáveis mal-entendidos, três vítimas inúteis,
pelas nações sob o signo da cultura geral, ficou uma utopia, nunca sem lucro para ninguém, com perda para todos.
foi realizada e talvez não possa ser realizada no domínio dos fac- O inevitável resultado dos mal-entendidos.
tos. Mas no do espírito , há lugar para todas as posições: precisa- Erasmo e Maquiavel têm ambos os seus respectivos antecessores
mente o que não triunfa nunca na realidade conserva por isso e sucessores.
mesmo um dinamismo eficaz, e são exactamente os sonhos que não As duas correntes fundamentais e eternas da política universal
se realizam aqueles que se mostram mais invencíveis» 1 • prosseguem nos seus rumos autónomos.
Estes dois exemplos: Erasmo e Maquiavel são bem representati- Em todo o caso o humano pode, abstraindo da realidade ime-
vos um e outro do que sejam as duas correntes fundamentais e eter- diata, prescindir do social, enquanto que o social, ao mesmo tempo
nas da política universal. Erasmo representando a arte e Maquiavel que conquista o Poder pretende também conquistar a arte e a hu-
a política. manidade.
Arte sinónimo de humano. Política sinónimo de social.
«A arte, para nós, - diz Mussolini - é uma necessidade pri-
Se o social enche toda e qualquer realidade, o humano dura
mordial e essencial da vida, a nossa própria humanidade.»
enquanto durar a humanidade. O social tem urgências e actuali-
Fala o político, o maquiavélico. Fala da arte como «uma neces-
dades, o humano é invariável e perene. O social e o humano não
sidade primordial e essencial da vida», como sinónimo de «a nossa
são opostos nem sequer adversários . Não são opostos porque não
própria humanidade».
se complementam, não são adversários porque não se disputam,
«A nossa própria humanidade, para nós», diz Mussolini. São
nem disputam nada de comum, são ambos a mesma e única hu-
legítimas estas palavras na boca de Mussolini, simplesmente esta
manidade na sua realidade actual e física e na sua eterna presença
humanidade a que se refere não é a humanidade de toda a huma-
do espírito. O social é meio constante, o humano, princípio, meio
e fim únicos. nidade. Por isso faz bem ao falar em humanidade chamar-lhe
Tão-pouco chega a haver nunca a oposição entre arte e polí- «nossa», tendo previamente avisado «para nós)),
tica, são apenas contrapartidas uma da outra, as duas correntes fun- Que determinado território do mundo esteja ansioso de formar
damentais e eternas da mesma política universal. a sua própria humanidade, parece legítimo porém é legítimo tam-
Entre o espírito e a política houve sempre mal-entendidos, o bém que nenhuma humanidade parcial possa ter outro modelo que
que não quer dizer que estes mal-entendidos tenham conseguido a humanidade autêntica, nem outra integração que esta própria.
formar uma oposição entre ambos ou estabelecer sequer a rivali- Por mais geral e total que seja uma política não consegue atin-
dade. São puros mal-entendidos, factos lastimáveis. gir jamais o unânime da arte.
Galileu, Miguel Servet e Lavoisier são três exemplos histórias
sacrificados pelos interesses imediatos da realidade política. *
Roma, Calvino e a Revolução Francesa, três poderes temporais
bem distanciados uns dos outros no tempo, e bem distintos entre A posição do artista e de toda a aristocracia do espírito em face
das políticas jamais teve nada de dúbio. Em face dos poderes cons-
tituídos, em face de todo e qualquer poder constituído, a atitude
1
«Erasmo», Stefan Zweig. do artista e da aristocracia do espírito é invariavelmente a mesma.

84 85
O artista e toda a aristrocracia do espírito servem lealmente o
conhecimento e o espírito, e estão por conseguinte em franca cola-
boração com tudo quanto esteja dirigido também para o conheci-
mento e para todas as oposições do espírito. O que poderá parecer
dúbio é esta constância, esta invariabilidade, esta lealdade da po-
PROMETEU
sição da arte e da aristocracia do espírito em face da sucessão dos
valores sociais e políticos. Ensaio espiritual da Europa
A corte que a política faz à arte é profundamente lógica, é «uma
necessidade primordial e essencial da vida» (para a política), «a sua
própria humanidade».
A arte não combate nenhuma política, resume-se a colaborar
ou a não poder colaborar com ela. E neste caso ficarão imediata- Imediatamente antes da Grande Guerra, vários jornais europeus
mente prejudicadas ambas: a política e a arte. Entre arte e política do Ocidente fizeram de combinação entre si um inquérito para os
não há oposição nem tão-pouco é possível rivalidade. A rivalidade seus leitores com esta única pergunta: Qual é o assunto e o seu
dá-se entre as diversas opiniões políticas ou entre as várias opiniões herói que mais têm interessado até hoje ao público europeu?.
da arte. Fechado o inquérito, a resposta que o ganhou e com uma mato-
O político só poderá ser rival de outros políticos, e o artista de ria esmagadora foi a seguinte: PROMETEU!
outros artistas. É 0 caso de se dizer que a resposta foi superior à pergunt~.
Pelo menos, o inquérito não supunha levantar uma quase unam-
midade entre os mais diversos leitores do Ocidente europeu.
* A espontaneidade da resposta alcançando tão evide~te. mai~ria
não pode deixar de ser encarada como profundamente stgntficatlva:
ressuscitava pela milionésima e uma vez na História este assunto
e o seu herói Prometeu .
A gravidade dos acontecimentos da actualidade na humanidade
e os quais intimam a intervir a cada um na vida comum, é com- *
pletamente independente das relações que nunca exitiram entre Arte
e Política, a não ser no seu único encontro possível, o da presença Através dos textos antigos estava-nos infelizmente interdito este
de uma e da outra na vida da humanidade. De modo que, ao in- conhecimento.
tervir cada qual na vida comum por imperiosidade do momento Pelas várias traduções tão-pouco era fácil converter em actual
colectivo e individual, fá-lo-á exclusivamente à sua maneira pes- 0 seu primitivo sentido. Até que um poema incompleto de Goe-
soal e tomará partido livremente, por sua vontade ou simpatia, in- the, intitulado Prometeu, veio trazer a luz a este assunto.
teresse ou convicção, ou então por aluvião místico do ,colectivo. A acção do poema está distribuída pelos versos dos três, ac~os
incompletos: Prometeu o homem, consegue pelos seus propnos
In Sudoeste, n. 0 1, Junho de 1935 meios humanos roubar os segredos dos deuses. Estes, vendo-se rou-
bados, enviam emissários a Prometeu para que lhes restitua os se-
gredos que lhes pertencem. Prometeu nega-se terminantemente,

86 87
dizendo-lhes que foi com as suas próprias forças e poderes huma- Mundo: Américas e Austrália, é prematuro definir-lhes a expres-
nos que conseguiu encontrar os segredos iguais aos dos deuses. são pessoal e colectiva das quais resulte a espiritual. Mas não acon-
«Se as crianças e os mendigos tece o mesmo com as do Velho Mundo: na Ásia nasceu o religioso,
não fossem loucos, cheios de esperanças, na África o feitiço e na Europa o mitológico. E são estas as três
Vós, ó deuses, clamaríeis de fome. » fases do nascimento do espírito: o selvagem, o divino e o humano;
África, Ásia e Europa.
diz Prometeu aos deuses e termina por estas palavras: A mitologia com todo o seu maravilhoso de deuses, semideu-
«Eis-me aqui ; formo os homens ses e heróis fabulosos da antiguidade, chega-nos hoje ao século XX
à minha imagem menos confusa do que para quaisquer outros séculos intermédios.
uma raça igual a mim , Sobretudo neste particular essencialíssimo: a mitologia é o mundo
para sofrer, chorar, do espírito com a prevalência do humano; como o religioso é o
viver e sentir a alegria. » mundo do espírito com a prevalência do divino.
A confusão do maravilhoso mitológico com a maravilhoso cris-
Foi este assumo e o seu herói Prometeu que ganharam o in- tão de que é acusado de ter incorrido n' Os Lusíadas Camões, longe
quérito dos jornais do Ocidente europeu. de ser herético é legitimamente europeu. A leal distinção entre o
Haverá alguém a quem lhe pareça uma casualidade um assunto humano e o divino não estava perfeitamente definida no tempo
ter ganho por grande maioria um inquérito feito entre os leitores de Camões, embora o estivesse já no âmbito do nosso poeta .
de jornais de várias nacionalidades do ocidente da Europa? Um século depois de Camões, o jesuíta espanhol Baltasar Gra-
Há três factores comuns que interessam profundamente neste cian, dos maiores pensadores da nossa raça peninsular e também
inquérito: ser europeu o assunto da resposta vencedora, serem eu- dos maiores pensadores da humanidade, esclarece com toda a sua
ropeus os jornais e europeus do Ocidente os leitores . autoridade de filósofo, humanista e teólogo: «Devemos servir-nos
Com estes três factores comuns se verifica que uma unanimi- dos meios humanos como se não houvesse os divinos, e dos divi-
dade de espírito, pelo menos esboçada, assenta sobre determinada nos como se os não houvesse humanos .»
parte da Europa.
Isto quer dizer que a nossa ideologia de europeus manda que
cada qual saiba ser por si mesmo, como Erasmo de Roterdão que *
era homo pro se.
Com o modelo clássico de Prometeu cada qual tomará para si Prometeu é o protagonista do humano . O primeiro protago-
a responsabilidade do seu próprio destino na Terra. nista do humano.
Prometeu, herói da mitologia grega, personagem da tragédia
grega, é a verdadeira descoberta do humano.
* Depois vem Jesus Cristo, aquele onde o humano e o divino não
se aniquilam mutuamente; antes pelo contrário, cabem perfeita-
Os continentes têm a sua expressão espiritual ao lado da geo- mente um e outro na personalidade humana: o humano e o divino.
grafia física e política.
Os Gregos não faziam uma distinção precisa entre o humano
, Os três continentes do Velho Mundo: Ásia, África e Europa, e o religioso. Os seus templos fundamentavam-se na proporção hu-
tem a sua expressão espiritual própria. Dos dois continentes do Novo mana, mas os seus deuses, semideuses e heróis não estavam bem

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separados pela fronteira que delimitasse o mundo dos deuses do Prometeu, personagem da Grécia Antiga, o berço genuíno da
mundo dos humanos. Europa, descobriu ou preparou a maior descoberta humana: o hu-
Prometeu, em manifesto prejuízo do divino, faz a descoberta mano.
do humano: isola-o na mitologia. E com efeito, são exclusivamente A originalidade da Europa nasce no meio da indecisão mitoló-
humanas certas faculdades que os deuses guardavam em seu segredo. gica com seres entre divinos e humanos, até que Prometeu arrisca
Quando aparece Jesus Cristo, a religião dos Gregos e Romanos toda a sua fé no humano independente do divino. Esta indecisão
é afinal uma tirania tão grande como a dos Judeus ~ a da Roma da mitologia Grega apenas tinha uma saída: a de Prometeu, a do
dos Césares. Pelo menos três tiranias ao mesmo tempo pesam so- humano. A outra maneira de sair desta indecisão era a do divino:
bre a mesma humanidade! esta, porém, já era a expressão asiática.
Então Jesus Cristo, por verdadeira inspiração, descobre para além Prometeu é a personagem puramente europeia, o pioneiro de
da descoberta do humano por Prometeu, a individualidade ou per- toda a originalidade privativa da Europa, sem nenhuma espécie de
sonalidade humana. O templo cristão toma logo as proporções de antecedência oriental: o vértice inicial da ideia clássica greco-latina
receber seja a quem for. Jesus Cristo faz a reconcialiação da huma- que fez a civilização e cultura da Europa.
nidade com o Único Deus de todos, contra os numerosos e incer-
tos deuses da mitologia, mesclas confusas de semideuses e heróis.
Mais tarde, em plena Europa, na tão ocidental Idade Média,
*
os nossos templos sobem os seus muros com os tectos em agulha Prometeu é uma personagem da tragédia Grega. Não existiu
a picar as nuvens. E é bem esta uma maneira gráfica e arquitectó- em pessoa. Mas é possível idealizar uma personagem de teatro que
nica de fazer predominar o divino sobre o humano: apontar para não corresponda imediatamente a muitas mais pessoas incompara-
o céu.
velmente do que a uma só? Claro que não . É exactamente esta
Mas, ao fazer-se o predomínio de um sobre o outro, produzia- a significação da personagem de teatro: o caso particular mais ge-
-se em realidade a sua separação: na terra o humano e no céu o neralizado entre todas as pessoas. Isto é, exactamente o que acon-
divino. teceu no inquérito dos jornais do ocidente da Europa com a per-
Prometeu limitara a sua descoberta ao humano na terra. Jesus gunta de qual era o assunto e o herói que mais tinham interessado
Cristo não contraria a descoberta de Prometeu, apenas a completa até hoje o público europeu: Prometeu!
juntando-lhe o divino. A catedral da Idade Média é afinal a união
dos dois valores autónomos, o divino e o humano, reunidos no *
mesmo edifício; os dois opostos formando a mesma unidade.
A tragédia grega , tem, como todas as manifestações do espí-
Prometeu e Jesus Cristo são fundamentais no nascimento e vida
rito, particularidades que a colocam exactamente na ordem do nosso
da Europa. Jesus oriundo da Ásia, é o portador da expressão do
conhecimento geral. A particularidade mais evidente na tragédia
seu continente: o religioso. Na Ásia nasceram todas as religiões,
grega é a da fatalidade. Esta fatalidade persegue a todas as perso-
todas: inclusive a cristã. Em todo o caso, apesar de estar mais pró-
nagens da tragédia grega e, sem excepção, cai também sobre Pro-
ximo dos asiáticos pela noção do divino, estava também ligado aos meteu.
Gregos pela de humano. De todas as maneiras não foi entre os Prometeu vai afinal restituir aos deuses os segredos que lhes rou-
asiáticos mas sim na Europa que Jesus Cristo conseguiu generalizar bou em vista de os seus semelhantes não os saberem usar por conta
a sua doutrina.
própria, como ele?! ...

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