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Alberto Velho Nogueira

Ensaios 3

UJaula ou covil onde se encerranm as feras. 11


As expressões artísticas são actos esclarecedores das pró-
prias intenções e razões. O artefacto artirta clarifica as in-
tenções e as razões da obra e do seu auto r. Uma obra não é
a sua publicação exaustiva; uma obra é urn trabalho de análire
da dirporição dor textor, dor actor de linguagem, de modo a propor
urna forma que Jerá, elO mermo tempo, urna requência, um orde-
namento dor e!ementoJ que a constituem. Erte ordenamento, erta
finalização, merrno temporária, não executada pelo autor, dá corno
rerultado um excerro, uma repetição não derejada, uma proporta
não realizada, unicamente erboçada; urna proporta que não teve
e tJão re realizou esteticamente, re bouve na obra indicações robre
or reur valores estéticos (ou anti-estéticos). Fernando Perroa, co-
ligido desta maneira, fornece-nos urna intenção rem ele próprio
concluir urna razão. Pessoa teria escrito mais textos do que
aquilo que deveria depois utilizar, fazendo uma escolha?
Esta é uma nova edição, mais completa, se o termo se apli-
ca aos trabalhos infinitos de Fernando Pessoa. Esta edição
representa um maior volume de textos, com as dificulda-
des inerentes a este tipo de publicação. Pessoa não teve
a oportunidade ou o desejo de corrigir, de alterar ou de
apresentar um texto sobre a personagem Fausto, a per-
sonagem tradicional, tratada por vários escritores antes
dele, de modo a termos hoje, como leitura, uma aproxi-
mação do que seria uma escolha ou um aumento. Não po-
demos saber aquilo que Pessoa quereria escrever e publi-
car se tivesse tido a oportunidade de publicar um texto
revisto. A tragédia rubjectiva aqui editada sofre, portanto,
de repetições e de ausências: algumas palavras, fundamen-
tais para a finalização e a compreensão de alguns versos,
não aparecem. A tragédia rubjectiva é trágica e subjectiva.
Pessoa desvia o assunto do seu Fausto para uma obsessão

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sobre a morte, o sentir a morte e o horror do que ela repre- o interesse em ler o que o autor preparou; por outro lado,
senta em relação ao mistério que o universo encerra. Horror verifica que o esboço está muito pouco seleccionado e que
e mistério são os dois Leitmotive da tragédia subjectiva em a matéria deveria ter - se o autor tivesse tido a oportu-
verso que Pessoa escreveu, seguindo muito mais a sua idios- nidade de levar até ao fim a preparação definitiva da sua
sincrasia do que a do tratamento habitual da personagem obra- uma outra consistência, um outro colocamento da
Fausto. O texto não está acabado, uâa por w· Ji'afJUCUIÓrjo, acção, apesar do brilho poético de Pessoa e do que a sua
mar t?llr uâo ter sido acabado, o que constitui uma outra no- expressão implica como sistema contraditório do pensa-
'
ção, quanto ao seu aspecto fragmentário tido como defi- mento, na qual a arrogância da personagem-Fausto se alia
nitivo ( cfr. Novalis, entre outros). Teresa Sobral Cunha, à da pessoa-Fernando Pessoa, que se considera, como a
no prefácio da edição anterior, cita Pessoa a propósito de personagem Fausto, um ente dramático que viveu e vive
o autor ter dificuldade em acabar o que iniciou. Pessoa uma dramaticidade invulgar e individual, ao mesmo tem-
abandonava o que tinha começado. O abandono não é a po que superior à de todos. Fausto é um emblema do valor
considerar como uma obra em fi'agmentos mas como inaca- do trágico, para Pessoa-ele próprio, uma personagem que
bada. Não são fragmentos o que Pessoa nos deixou. São textos não desafia a morte por saber que ela é irremediável e que
incompletos, inacabados; são esboços. Não se trata de fragmentos se situa no mistério da (in) compreensão do universo.
voluntários cuja fragmentariedade seria uma opção literá- Esta edição não vem acompanhada por um estudo sobre
ria e estética, mas de um abandono do texto - para uma a cronologia dos textos. A edição precedente, feita já por
eventual revisão ulterior? -, com tudo o que o abando- Teresa Sobral Cunha para a Editorial Presença, de 1988,
no significa de inacabamento e de repetições, de escórias indica algumas datas. As datas não são significativas, no
que o autor, se se implicasse na revisão, faria desaparecer. que diz respeito à compreensão do temor e do horror pela
Pessoa não corrigiu o texto, não lhe eliminou as repeti- morte. Pessoa criou uma personagem metafísica e trágica
ções, não criou outras personagens que acompanhassem que elabora um esboço poético, por vezes de grande in-
o seu Fausto, segundo os modelos existentes ou outros. tensidade dramática, embora o ser um esboço lhe retire
Não importa. Pessoa poderia ter criado uma obra fora dos alguma finalidade . Pessoa inscreve-se no Sturm und Drang
modelos precedentes. A tragédia subjectiva centra-se sobre- da personagem de Fausto, embora sem qualquer particu-
tudo sobre Fausto que encontra aqui e ali algumas outras laridade política ou revolucionária. Pessoa inscreve-se, es-
personagens, sendo a principal a da Morte. O texto não teticament~, no tempo de Goethe e do Sturm und Drang,
segue a sequência habitual de uma obra finalizada; é um um posicionamento do autor em relação à percepção que
. esboço do que seria um texto definitivo se fosse prepa- Fausto lhe transmite da época deste movimento estético,
rado pelo escritor. Este posicionamento autoral coloca o apesar de Pessoa estar distante dele. A percepção Sturm
leitor numa situação dupla: por um lado, o leitor descobre und Drang é evidente; Goethe fundou e participou no mo-

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vimento que a personagem do Fausto representa em si, as desviando-o para uma monotemática que se encarrega de
propriedades mentais da época e do movimento: estados dar-nos uma personagem horrorizada e terrificada pela
de alma, confronto com o elixir que prolongaria a juven- ideia de morrer- de desaparecer- sem que algum rasto
tude- na obra de Pessoa pouco presente e deslocado para de eternidade e de glória (literária) apareça. Pessoa preo-
um prolongamento da vida tout court e não da juventude-, cupa-se com a eternidade literária da sua pessoa, como
sobretudo pela razão de que Pessoa-Fausto não considera poeta grandioso. A tragédia é a do Pessoa-gênio, afastado
as relações amorosas, muito menos as sexuais. A juventu- dos palcos literários, à procura de compreensão, quando
de de Fausto- contacto com o demónio para um contrato ele, lúcido, sabia que a compreensão literária e a glória
eterno de juventude- seria para uma melhor aplicação do correspondente não viriam, não chegariam, na medida
amor, uma eternização do amor. Pessoa, neste esboço, co- em que habitava Portugal e a sua mentalidade reduto-
loca a figura de Fausto fora de qualquer relação amorosa; ra. Pessoa conheceu as reduções mentais do país, para as
uma parte do texto di-lo claramente. O Fausto pessoano é quais, inadequadamente, colaborou.
uma figura dramática, isolada e solitária que espera a mor- A sua poesia faustiana- esta aqui presente- é brilhante e
te como um horror e que é levada pelo mistério em relação infantil, antiquada e mistificadora, gótica e misteriosa, pró-
ao depois da morte e em relação ao universo. É uma per- pria de um Sturm und Drang fatalista e medonho. A morte
sonagem antes do pacto com o diabo. É a razão simples do é uma aparelhagem tremenda, própria de uma expressão
morrer, uma temática pouco moderna, mais ligada a um operática; a figura de Fausto poder-se-ia representar num
Sturm und Drang, e ao consequente romantismo, do que à texto musical composto por um Mussorgsky (1839-1881),
modernidade do tempo do escritor. já que nenhum outro compositor me parece próximo deste
Fernando Pessoa serve-se do Fausto para colocar-se em Sturm und Drang- a não ser Gounod (1818-1893), que tra-
relação a questões de amor e de morte, sem que o erótico tou o tema na sua ópera Faust (1859), se bem que a ma-
do amor ou da morte apareçam. É uma relação fechada, neira de Gounod me pareça mais conservadora, sem que
um solilóquio diminuído pela característica de esboço. se assimile a qualquer aspecto da modernidade inaugurada
A manutenção da figura transposta para Pessoa-ele pró- por Flaubert e por Baudelaire... e por Berlioz (1803-1869),
prio faz da personagem um boomerang, uma personagem com a sua obra La Damnation de Faust (1846) - , que se si-
antiquada e preocupada com uma matéria poética de in- tuasse na época de Pessoa ou antes, e que tenha sido um
tensidade conservadora: de nada nos interessa saber que compositor simbolista, à maneira retrógrada. Um equi-
problemas metafísicos atingiam Pessoa, como entidade valente dos simbolistas Puvis de Chavannes (1824-1898)
humana, no que diz respeito à morte. Escrever sobre a e Odilon Redon (1840-1916), já que os pintores simbolis-
morte deste modo significa que a sua teoria estética é re- tas belgas como Fernand Khnopff(1858-1921) e Félicien
gressiva e que se baseia no texto de Goethe, se bem que Rops ( 1833-1898) são mais diabólicos (c' est !e cas de !e

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dire!), no sentido faustiano da ligação do corpo e da alma, ainda preenchida pelos elementos que faziam de um ar-
da crítica ao religioso e ao grandioso, e da presença do tista-génio uma personalidade que informava o mundo
amor absolutamente sexuado, ia a dizer sifilítico, na me- de modo idiossincrático, sem que isso trouxesse qualquer
dida em que a doença estava presente, inconscientemen- ideia analítica e crítica à sua obra. Ser-se artista colocava
te, como uma ameaça física que pertencia simultanea- o escritor no campo da genialidade e da atracção p.o r um
mente e ainda ao registo da moral. O simbolismo recuou certo efeito idiossincrático que o artista poderia compor
na direcção de um abismo mental e romântico, tipo Salome sem que houvesse distanciação em relação à obra. O artis-
(1891) e Portrait of Dorian Gray (1890), ambas obras de ta protegia o seu voo poético, mesmo quando não precisa-
Oscar Wilde (1854-1900). Os mais próximos composito- va de qualquer protecção.
res deste horizonte serão Arrigo Boi to ( 1842-1918) e a sua Eduardo Lourenço cita Gomes Leal como um dos con-
obra Mejirtofele (1868) ou Ferruccio Busoni (1866-1924) tactos possíveis; outros, como George Steiner, citam
e a sua ópera Doktor Faurt (1916-1924), ou ainda, noutro Schopenhauer como ligação de Pessoa a uma estética e a
contexto de modernidade, Richard Strauss, embora este uma dramaturgia, a uma compreensão das artes que, des-
seja mais moderno e conservador, como nos seus poemas de o alemão até hoje, foram modificadas por muitas ou-
sinfónicos, nos quais as características artísticas do que tras perspectivas, de modo a considerar-se que as ideias
era a imposição e a grandiosidade de se ser artista estão de Schopenhauer, aplicadas aos fenómenos artísticos de
presentes. Pessoa serve-se do mundo construtivo da poe- hoje, deverão sofrer de deficiências conceptuais, se bem
sia dramática, com o seu rigor retórico e de grandiosida- que, para a época de Pessoa, a sua proposta estética fosse
de metafísica - e não só, o termo metafísica não cobre ainda de alguma actualidade. A figura humana e literária
tudo e todos -, à procura de ideias que tivessem vindo de Pessoa situa-se numa problemática semelhante à de
de outros horizontes, como a filosofia, já que a figura de Nietzsche, no que diz respeito a uma atitude de grande-
Fausto, pelo menos desde Marlowe e Goethe, continha za do acto escrito e à personalidade literariamente destinada
problemáticas filosóficas sobre o destino, a morte, a ve- ao domínio público - como valor a demonstrar aos outros
lhice, o envelhecimento, o amor... A carga problemática -, sendo, no entanto, uma perronagem introvertida em rela-
da figura de Fausto está aqui presente, embora de forma ção ao contacto com o mundo exterior. A procura de grandeza
reduzida. Não foi por acaso que Christoph Marthaler pôs não favorecia a procura de contacto. Nietzsche e Pessoa
em cena o Fausto de Fernando Pessoa, embora reduzido fecharam-se ao mundo, abrindo-se através da realidade
no seu texto cénico (1995). A realização de Marthaler ficcional ou da autobiografia da genialidade para o mundo
foi centrada na figura múltipla de Pessoa e na sua incon- da expressão a colocar no domínio público, sabendo que
gruência-congruência efectiva, na sua sabedoria e no seu a grandeza surge - falsa ou verdadeira, institucional ou
misticismo genial, no mistério e na inteligência artista, mercantil- quando a sociedade diz compreender o artis-

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ta. Os dois artistas ficaram de fora da influência social; não e na direcção de um simbolismo, através da personagem
foi e não é por acaso que as figuras literárias e artistas que de Fausto, Pessoa, apesar de ter sido surdo em relação ao
se inscrevem ainda hoje nos mercados da multiplicação e mundo da expressão musical, centra a atenção da sua tra-
da reprodução ao infinito das suas obras- ao contrário dos gédia subjectiva numa perspectiva de personagem de ópe-
mercados da obra única- dependem da atmosfera mental ra. Teria lido Pelléas et Mélisande, de Maurice Maeterlinck
criada pelos mercados institucionais ou mercantis. A for- (1893; o livret para a ópera de Debussy é de 1902), antes
ça poética do artista, o seu estatuto de pessoa genial(!), de ter presenciado ou ouvido alguma versão da obra de
ultrapassava a esfera dos textos, na medida em que o ar- Maeterlinck, que passou ao sonoro clássico ocidental, não
tista era considerado uma pessoa à parte. Fernando Pessoa directamente como no caso de Debussy, mas em versão
colocava-se à parte, assim como era considerado pela po- in trumcnta l: Fauré (1898) , Sibelius ( 1905), Schonberg
pulação que o lia. Schopenhauer servirá de justificação de ( 1902- I903).
uma certa aura artista e de uma visão filosófica da arte e Pessoa, no seu esboço, dá poucas indicações cênicas. As
da função do artista na sociedade, como valor e como ge- didascálias são raras, o que corrobora a ideia de que Pessoa
nialidade. É mais evidente situar-se o problema no campo não tinha como característica terminar os seus planos,
da luta contra o positivismo, que encontrou, da parte dos mais por necessidade de abandoná-los do que por fal-
artistas à volta da realização (tardia) do Fausto de Pessoa, ta de tempo de revisão, apesar de ter vivido uma curta
e antes de Pessoa, uma proposta controversa. vida para uma vasta obra. O pormenor correctivo não lhe
A degenerescência não é um tema de Pessoa. O poeta interessava, não se preocupava com a regularidade ou o
Pessoa não é um degenerescente, nem no caso de Fausto, compromisso laboral consigo próprio. Não construiu uma
nem das suas justificações do que é o artístico. Pessoa não obra; fê-la à medida da sua ansiedade, do seu desassos-
é um decadente, nem se considera como tal. A sua tragé- sego. A tragédia subjeciiva Fausto é uma proposta de cena
dia faustiana é uma aceitação das premissas do artista e com um carácter de intimidade que o Fausto goethiano não
da sua qualidade aurística, sem que haja negatividade de- tem. A presença e o diálogo com várias personagens dão
generescente, muito menos no sentido que Max Nordau ao Fausto de Goethe uma convivialidade e uma bravura que
dá ao termo, tomado pelo ensaísta como definitivamente o Fausto pessoano não tem. Nem quer ter. O de Pessoa é
negativo. Pessoa é Fausto na sua compreensão da grandeza um isolado, horrorizado pelo demónio que ele próprio é,
da personagem literária. Pessoa aproveita-se da grandeza criando-se um horror pela morte boomerang. Como na peça
da personagem segundo a proposta feita por Goethe. de Maeterlinck, Pessoa elaborou um texto p élico longe
O meio operático e a ópera em geral eram formas artísti- da rea lidàde; neste sentido, o autor Pessoa aprox ima-se do
cas predominantes durante o século XIX em relação às ex- simbolista e da sua perspectiva de linguagem unicamente
pressões de espectáculo. Neste ambiente Sturm und Drang ao serviço de um conceito de poesia como era praticado

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pelos poetas da época de Maeterlinck e pelos que vieram Maeterlinck, Pessoa criou este ambiente gótico de morte
depois dele, poetas como Pessoa ou Rilke. O paralelo com e mistério sem cenário. Um cenário para o Faurto pessoano
Rilke aparece-me unicamente neste esboço; não na grande deveria ser uma estância íntima sem que houvesse qual-
parte da poesia de Pessoa. quer vestígio corporal, a não ser a da própria persongem:
Um aparelho psicológico surgiu na literatura assim como Arnold Bocklin, Selbrtbildnir mit jiedelndem Tod (1872).
nas outras formas artísticas, na época de Pessoa. Pessoa Poema recitativo, drama estático e contemplativo segun-
conheceu intrinsecamente esse elemento expressivo que do a ideia de que não se escapa ao destino; um fatalismo
o colocou na continuidade do romantismo, no caso deste duplamente pressentido na medida em que Pessoa, como
Faurto. Esta razão psicológica vem dos pré-rafaelitas, dos todos os poetas da sua época, teria um rentido segundo que
simbolistas e dos nazarenos: a morte é um Leitmotiv e a estaria próximo da revelação, da adivinhação do futuro. E
representação sofredora feminina e sedutora da morte é a morte é mais do que adivinhada: é o futuro certo! Com a
uma ideia que a poética tem como sequência visível e ima- sua realidade inevitável é o horror. Existe um paralelo pos-
gética (e que esconde a razão de ser religiosa da morte, sível entre Pessoa e Virgínia Woolf: o tratamento feminino
no sentido cristão, tratada pelos pré-rafaelitas, pelos na- do horror do Fausto pessoano está próximo do que deveria
zarenos e pelos simbolistas, como se se tratasse da morte ter vivido Virgínia Woolf como pessoa: a possibilidade de
vista segundo um prisma religioso: a perda do corpo e o encontrar a loucura, ou a possibilidade de confirmar aos
valor da alma e da eternidade). Daí que se inscreva Pessoa outros que aquilo que eles chamam a loucura de Virgínia
numa corrente agnóstica que virá do Sturm und Drang até Woolf, está à vista. Virgínia Woolf escondeu o seu esta-
ao simbolismo faustiano. Pessoa trata do simbólico da do psicótico, o que os observadores íntimos chamavam o
morte como de um fenómeno da não transparência da re- seu ertado. Pessoa tê-lo-ia escondido no seu quotidiano; as
lação do corpo com a alma, da metamorfose invisível do suas personagens plurais, não. Fausto é um heterónimo,
corpo na alma. Pessoa não tem esta confiança sofredora uma faculdade de exprimir-se multiplicando as facetas do
que resulta da relação misteriosa. O escritor cria uma per- modo cultural psicótico. Cada heterónimo é um conceito
sonagem sem a vantagem que o Fausto obtém na obra de plural da personalidade woolfiana.
Goethe: um contrato de juventude eterna e uma realiza- O ambiente pré-rafaelita ou o do movimento simbolista é
ção amorosa que a juventude favorece. O Faurto pessoano desejado como intemporal e etéreo, apesar de as persona-
tem só horror em relação à morte e mistério em relação gens estarem localizadas, figurativa ou discursivamente,
à incompreensão do universo. Pessoa diz não compreen- entre o nascimento e a morte de Jesus Cristo e a Idade
der o que bem compreende: que será uma alma de escritor Média. No caso simbolista, a realidade ambiental vai mais
sem finalidade, sem eternidade e sem glória literária. Uma longe, celebrando o êxtase entre o ambiente decorativo
alma bêbeda. Teatro poético do etéreo como é a obra de e o decorativo do espírito, numa exaltação saturante do

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que escapa à realidade ou do que se encontra ~ora dela, se fico correspondente à sua época. Ficam as metáforas que
bem que constituindo uma realidade outra, mats profunda atravessaram as épocas, sem nenhuma relação com os co-
e misteriosa. A intemporalidade não é visível mas é uma nhecimentos científicos, psicológicos e sociais da época de
atribuição simbólica do tempo, como se o simbolismo da Pessoa. Nisto está claramente uma intenção de propor um
cultura ocidental tivesse a sua origem no cristianismo, no Fausto preso aos Faustos precedentes. Faz parte da retórica
Novo Testamento, e nos símbolos que aí estão presentes poética do seu período ficar pela ideia de incompreensão.
e que se desenvolveram através dos tempos. É o mundo «Mas o quê? Q}lando vi e compreendi I Compreendendo,
cristão, desde a sua génese, nas suas datas entre o nasci- só na incompreensão I Eu encontro o terror disso que foi I
mento e a morte de Cristo, que surge, mental e expres- Essa revelação» (p. 182).
sivamente falando, nas obras simbolistas e nas anterio- O que a retórica poética procura no poeta é a forma su-
res obras pré-rafaelitas ou nazarenas. Pessoa não escapa blime de dizer o que os leitores- os outros- exprimem
a esta simbologia. Fausto fá-lo entrar em contacto com banalmente: verdades retóricas. A poesia não se libertou
a relação Deus-Demónio na qual Pessoa intervém como (ainda hoje) destes pesos, como se pudesse criar expressão
pessoa e como autor, apesar de o seu Fausto não concluir interessante se e quando canalizada para uma linguagem
um contrato com o demónio. Não há nenhum contrato no na direcção do transcendente. A retórica pessoana passa
Fausto pessoano. Pessoa encontra-se, esteticamente falan- por dizer que a vida poderia ser mais bela, embora o fa-
do, no fim de uma época simbolista, na qual a morte re- talismo o impeça. «D'outra vida mais bela I A esperança
presenta um símbolo e, simultaneaménte, uma realidade já desesperada I A gélida e constante aspiração>> (p. 251).
irremediável sem contrato. O contrato que Pessoa forma- Um projecto conservador. A presença religiosa está na
lizou foi com a cabalística nacional. O início da cabalística ligação que o poeta faz da passagem da vida à morte. É
nacionalista está na criação da personagem Pessoa-Fausto. nesta interrogação que Pessoa chama o Deus para que haja
A poesia faustiana de Pessoa inscreve-se na tradição da poe- uma resposta que ele sabe impossível. Mas a religiosidade
sia entre mistério agnóstico, cosmos e divindade, religião e instala o valor da eternidade e a ligação da vida real a uma
esoterismo, na qual o pensamento ocupa o lugar de vítima. outra vida que, fatalmente, não lhe parece que seja ames-
O sonho é uma escapatória e uma oposição à realidade, sem ma, não um continuum mas uma resolução da eternidade
que seja uma prova da existência do inconsciente. A função só poderá existir se houvesse, não digo fé, mas a partici-
do sonho é a de sair da realidade. É uma imposição literá- pação do divino que a sociedade transmitia, mesmo aos
ria para sair-se do consciente, não necessariamente para se que se diziam fora da religião. A participação do divino é
entrar no inconsciente. [j}J_4em sonba üurariamelllc teme o in- uma sociabilidade. Fausto-Pessoa tem uma dúvida que lhe
consciente. O mundo descrito é pueril e próprio de quem não causa o borrar e o mistério do universo, os dois termos repe-
tem ou não quer aplicar o conhecimento racional e cientí- tidos na obra. Cfr. o filme de Sokurov, Faust (2011), outro

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tratamento da personagem e da obra de Goethe, à qual o


poder demoníaco no qual se inscreve o filme de Sokurov,
cineasta juntou elementos do Doktor Faustus, de Thomas
quarto episódio de uma tetralogia sobre o poder, analisado
Mann: o trabalho está finalizado, dentro das normas do
pelas obras sobre Hitler (Moloch, 1999), Lenin (Taurus,
que é possível chamar um trabalho artístico finalizado,
2001) e Hirohito (Le Solei!, 2005), até ao Faust, vítima do
embora se tenha a noção de que o filme nos é apresentado poder de Mefistófeles.
em condições lógicas de proposta artística evidente.
Enquanto um autor estiver vivo, a obra não tem um fim
assegurado. Qualquer correcção poderá ser executada
pelo autor. Quando se trata de uma obra de natureza
cinematográfica o caso é diferente, na medida em que as
alterações ou são alterações possíveis - já filmadas e a
acrescentar ao que já foi proposto- ou, então, será muito
difícil reiniciar filmagens que acrescentem qualquer outro
elemento. A obra de Sokurov inscreve-se na época do Fausto
goethiano, embora alguns elementos do discurso tenham
sido retirados da obra de Thomas Mann. O ambiente é
o da alquimia e da transformação da vida em morte e da
morte em vida, num mix que vai além do texto para ser
uma obra corrompida por uma lepra demoníaca que está nas
personagens - na forma como elas são caracterizadas pelo
cineasta- e na decoração fílmica, que acrescenta um clima
de contaminação. As personagens, além de serem o que elas
são, contaminam-se e têm na presença de Mefistófeles a
lógica pertinente do que assalta os humanos: a curiosidade
pelo drama que cresce no interior das pessoas-personagens
que representam e se representam no turbilhão entre o
que é a vida e o que as contagia até as levar à morte. O
que as contagia é representado por elementos das obras
de Goethe e de Thomas Mann, os eternos problemas da
existência entre a avidez, a concupiscência e a lucidez de
que não se é eterno. A morte é a conclusão do mundo do

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