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Modernista – Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo – ISSN 2182-1488

Um quarto num castelo


A álise do texto dra ático A orte do Prí cipe - Luísa Monteiro

Pessoa é um alquimista. Podemos situá-loà u àla o at ioàlite ioà ua doàdiz:à Oàg ioà àu aà
al ui ia .à Eisà aà f ula:à Dei a -se, primeiro, apodrecer as sensações; depois de mortas
embranquecem-se com a memória; em seguida, rubificam-se com a imaginação; finalmente se
su li a àpelaàe p ess o . 1
É nesse laboratório literário e com esse método alquímico que se operam as quatro fases
para a concretização da obra de arte. Em primeiro lugar, temos a maturação das sensações de
Pessoa ortónimo. Depois de mortas, as sensações ganham corpo para poderem ser
embranquecidas – ou seja, tornam-se criaturas cénicas, personagens com fisicalidade própria,
inseridas naturalmente num texto dramático propriamente dito. Depois, esses corpos-actores
ganham vida, deixam o seu estatismo cénico, ficam com sangue nas veias e surgem como poetas,
como heterónimos, rubificados, animados, os quais constroem os seus próprios poemas,
sublimando por fim, e pela expressão, as sensações do génio criador.
É aqui que eu vejo a lógica dos textos dramáticos propriamente ditos de Fernando Pessoa
dentro da sua imensa e tão bem gerida obra artística – servem para ensaio, para dar rosto, dar
corpo, molde ao poema-gente que há-de vir a ser e expressar-se, afirmando-se com a sua própria
vontade e rosto. Como se fossem personagens-cobaias ao abrigo de uma experiência que visa a
criação de individualidades literárias. O teatro pessoano é um laboratório de experiências.
Pessoa afigura-se-nos como uma espécie de Pigmalião que cria as suas próprias
companhias e nelas se recria, outra-se, e ama-se tal qual um Narciso: porque ele acha-se feio, mas
através de Campos, por exemplo, não lhe faltam conquistas e seduções; tal como um Ícaro, ele
viaja com Reis por diversos planos geográficos e históricos, morre e ressuscita. No seu laboratório
alquímico, as sensações estão em constante viagem, com a supervisão atenta e higiénica de
Caeiro, o Mestre.
Artaud diz- osà ueà e ua toà aà al ui ia,à at av sà deà seusà sí olos,à à o oà u à Duploà
espiritual de uma operação que só tem eficácia no plano da matéria real, também o teatro deve
ser considerado como o Duplo não dessaà ealidadeà uotidia aàeàdi e ta,à[…]àe à ueàosàP i ípios,à
como golfinhos, assim que mostram a cabeça, apressam-seà aà volta à à es u id oà dasà guasà […],à
aliás, é preciso notar a estranha afeição que todos os livros dedicados à matéria alquímica
professam pelo termo teatro, como se seus autores tivessem sentido desde logo tudo o que

1
Cf. Pessoa, Fernando. Páginas sobre Literatura e Estética. Ed. António Quadros. Lisboa: Publicações Europa-América,
1986, p. 42;

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Análise do texto dramático A orte do Prí cipe - Luísa Monteiro

existe de representativo, ou seja, de teatral, na série completa dos símbolos através dos quais se
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ealizaàespi itual e teàaàG a deàO a.
Foi com O Marinheiro ueà Pessoaà i i iouà u à i loà deà as i e tosà eà o tesà deà ge teà
i agi al ,à o oà di iaà He ià Co i .à “eà a uelaà peçaà te osà asà Velado asà o oà u aà esp ieà deà
i v lu oà doà se àa tesàdeà as e ,à A morte do Príncipe temos uma outra veladora, igualmente
serena e pronta a acolher um novo ser. No final da peça, o Príncipe questiona-a se ela se encontra
na vida que há-seàsu gi àouàai daà a ueleà astelo,à ueàeleà ue à ueàa da:à Fala- e…àDeà ueàladoà
3
daà i haàal aà à ueàsoaàaàtuaàvoz? Abro aqui um parênteses para lembrar que a fixação deste
texto por Teresa Rita Lopes deveria ter sido um puzzle de monumental resolução: há numerações
de páginas sobrepostas, pedaços de páginas sem numeração, umas escritas à mão, outras à
máquina, frases escritas na vertical e na horizontal, enfim, um verdadeiro quebra-cabeças
composto por 26 folhas.
“eà aà a epç oà deà Fou ault,à aà auto iaà ide tifi a-se com a sua própria exterioridade
manifesta, o que quer dizer que a escrita é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao
seu conteúdo sig ifi ativoàdoà ueà àp p iaà atu ezaàdoà sig ifi a te ,àe t oà oà sujeitoà daàes itaà
desapa e e.àássi àse do,à aà a aàdoàes ito à oà à aisàdoà ueàaàsi gula idadeàdaàsuaàaus ia:à
é-lheà e ess ioà ep ese ta àoàpapelàdeà o toà oàjogoàdaàes ita 4.
Num capítulo anterior, referi-me ao texto O Marinheiro, como sendo o advento ou o
berço de Campos. Este regresso ao mesmo espaço cénico, um quarto num castelo, na peça A
morte do Príncipe, não significa um prenúncio da morte de Campos, mas sim uma expressão de
uma metafísica capaz de ser alcançada do lado de fora do quarto, ou seja, uma outra
compreensão do mundo. Note-se que quer uma, quer outra, integram o projecto de Pessoa para
oà teat oà est ti o ,à a osà su o di adosà aà pla osà est ti osà deà i te se ç o:à O Marinheiro, a
intersecção da dúvida e do sonho; A morte do Príncipe, a intersecção do mistério com a
sensação5.
Porém, esse novo universo de pensamento não poderá ser re-criado estando ele deitado
numa cama, preso a um corpo. Pede, por isso, que a sua interlocutora lhe abra a janela, o único
elo semi-comunicativo entre uma realidade objectiva e uma realidade transcendente, a qual só é
possívelà a o te e à at av sà daà o aà deà a te.à O a,à A morte do Príncipe a palavra cousa é

2
Artaud, Antonin. O Teatro e o seu duplo. SP: Martins Fontes Editora, s/d, p. 49;
3
Lopes, Teresa Rita. Fernando Pessoa et le Drame Symboliste (Héritage e Création). Paris: Centro Cultural Português da
F. Gulbenkian, 1977, p. 532-541; [BNP/E3, 11-11 – 9-16];
4
Foucault, M.. O que é um autor. Tradução de António Fernandes Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Vega, 4ª. Edição,
2000;
5
[BNP/E3, 48-1-5];

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e p egueà àvezes.àáà ousa é um dos três elementos basilares da definição pessoana de obra
de arte7,àaàpa àdosà o eitosàdeà i p ess o àeà ideia .à
Assim, A morte do Príncipe é berço de um outro Campos, não o Campos decadente da
Primeira Era, como classifica Teresa Rita Lopes, mas sim um Campos da Segunda Era e da segunda
fase, ou seja, um Campos que se deixa morrer como sensacionista e renasce como poeta
metafísico8.
Aventuro-me a dizer, embora com eventuais reservas, que este texto cénico é o molde no
qual Campos renasce, provavelmente em 1926, começando, naturalmente, por revisitar Lisboa,
num novo estado de lucidez. Não quero com isto dizer que o texto é desta data. Provavelmente, é
bastante anterior. Este Campos traz das velhas sensações ainda a memória da língua inglesa,
intitulando-o por isso de Lisbon Revisited (refiro-me ao poema de 1926 e não ao de 1923). Creio
que é a partir deste texto que ficamos a conhecer o Campos metafísico, situação que almeja
desde A Passagem das Horas, poema de 1916 onde enumera sucessivas coisas das quais se afirma
a sado,à o oàpo àe e plo,àdeàse àu aà pa tidaàdeà ad ezà oà o v sàdu àt a satl ti o àeào deà
manifesta um elevado desejo de outrar-se para poder conhecer os mistérios das coisas. Parece
que não o conseguiu ao longo dessa década, por ser excessivamente Pessoa, o que o impedia de
atingir realmente o conhecimento pela experiência caótica das coisas. Questiona neste texto
i o:à Eàasàfigu asàdeà ad ezàeàasàdasà a tasàdeàjoga àouàadivi ha à– seremos nós mais que elas
9
o deàaàvidaà àvida?
Há que abrir a janela, deixar o corpo (de Pessoa?) e mergulhar no lado de fora do quarto,
no caos, onde é possível alcançar uma metafísica que o leve a ter um outro conhecimento acerca
doà ist ioàdasà oisas .àássi àoàafi a:à estaàho aà ueàestouà e t eàoà ueà oàfuiàeào que não
10
se ei .

6
Diz- osà Pessoaà osà seusà te tosà so eà Est ti a,à ueà u aà ousa à :à u aà ealidade ,à u aà ealidadeà e te io ,à
i depe deàdaàe oç oà ueàaàp oduziu àeà ueà àdaào de àdasà ousasàfa i adas .à
Se a obra de arte é uma realidade, então a sua realidade frente à inteligência induz a um movimento de recomeço,
g açasà à atu ezaàdupla e teà pe ipie te àdaài telig ia,à ueàte deàaà epeti àoà i de idível àeàaàe pe tativaàdeà
pe e e àestaà ousa à - seja como material (ou exterior), seja como espiritual (ou interior). Para António Mora, a
o aà deà a teà à u aà ousaà daà o de à dasà ousasà p oduzidasà peloà Ho e .à E t o,à u aà ousaà à u aà ideiaà ovaà
realizada, e somente o Homem é capaz de produzir ideias, logo, a obra de arte poderá realizar-se a si mesma
enquanto recriação da hu a idade.à Co lui do,à aà o aà deà a te,à ua doà agluti aà osà o eitosà deà ousa ,à
i p ess o à eà ideia à e à o ju to,à as e deà aoà est dioà deà i de idível ,à ueà ,à oà e te de à deà Pessoa,à oà ueà
caracteriza qualquer tomada de consciência acerca da Realidade. Deste modo, esta nova tomada de consciência da
Realidade ultrapassa a visão parcelar da obra de arte como matéria (cousa) e como espírito (impressão e ideia) e
alcança um estado de transcendência. E é este o estado para o qual o Príncipe se encaminha;
7
Para Pessoa,àasà a tesàtodasàs oàu aàfutilidadeàpe a teàaàlite atu a .àEstaàpeçaàa a aà o àoàsegui teàpe sa e to:à
todoàesteàu ive soà àu àliv oàe à ueà adaàu àdeà sà àu aàf ase.àNe hu àdeà s,àpo àsià es o,àfazà aisà ueàu à
pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um
ve dadei a e teà ue àdize . àIsto,àe à oaàpa te,à o o o aàoàp o essoàal uí i oàdaào aàdeàFe a doàPessoa;
8
Cf. Campos, Álvaro de. Poesia. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p.27;
9
Op. Cit., p. 533;
10
Idem., 534;

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Análise do texto dramático A orte do Prí cipe - Luísa Monteiro

Porém, revisitar Lisboa torna-se numa das suas mais profundas declarações sobre a
alienação humana. Nega constantemente as ideias feitas da civilização que se lhe depara, e que
11
aisà oà à doà ueà u aàs ieà deà o tas-entes ligadas por um fio- e ia .à ‘ev à Lis oaà eà
Tejoà eà tudo ,à asà aà sià oà seà ev .à Dizà es oà Fe ha a -me todas as portas abstractas e
e ess ias.à/àCo e a à o ti asàdeàtodasàasàhip tesesà ueàeuàpode iaàve à aà ua . 12
Tal como refere Teresa Rita Lopes no programa da peça O Marinheiro pelo Teatro
Pl sti o,à doà Po to,à levadaà à e aà e à 009,à esteà P í ipeà o i u do à ,à à se elha çaà d O
Marinheiro,à ta àu àpe eg i oàat av sàdessaà di e s oàdes o he ida àdoàpe sa e to:à Po à
o deà à ueàeuàvouàa da do?...à[…]àVejo,àvejo…àVejoàat av sàdasà oisas.àásà oisasàes o dia …àásà
oisasà oà e a à se oà u à v u…à E gue-se um pano, ergue-seà oà pa oà doà teat o…à Te hoà edo,à
te hoà edo…à[…]àásà idadesàso hadasà à ueàe a à eaisà[…]à“ àoà ueà u aàseàto ouà ealà à ueà
e isteà eal e te…àOà ueàa o te e àoà ueàDeusàdeitaàfo a…àOà ueàpa e eà oà à eal,à àasà ostasà
dasà osà deà Deus,à aà so aà dosà seusà gestos… .à áà e saístaà o ti ua:à Co oà asà Velado asà eà
“alo ,àdaàpeçaàho i a,à o te po eaà[…],àoàP í ipeà àu àvisio io .à
Para entender-se esta peça como um momento de transcendência, logo, de um re-
nascimento, é necessário trabalhá-la com actores. O ponto de partida, é que se trata de um teatro
alquímico. E aqui, não podemos deixar de encontrar semelhanças com aquilo que Artaud
preconizou mais tarde para u à ovoàteat o,àaà ueà ha ouà teat oàdaà ueldade .àDiz-nos em O
Teatro e o seu duplo que a crueldade é sobretudo necessidade e rigor. É a decisão implacável e
irreversível de transformar o homem num ser lúcido. Desta lucidez nasce um novo teatro. Todo o
nascimento implica também uma morte. Mas Artaud teoriza isto no ano em que Pessoa morre
(1935).
Este teatro alquímico encontra uma expressão artística paralela, que é o butoh, dança-
teatro nascida no Japão nos anos 60 como forma de reclamar uma nova vida teatral e artística
após a devastação de Hiroshima e Nagasaki.
Resumidamente, a preparação do actor de butoh passa por um processo bastante
idêntico ao método alquímico de Pessoa para a construção do génio artístico; esta arte
performativa, que permite conteúdos pessoais e transpessoais, tem em vista o resgate da
consciência corporal face às relações com todo o universo que rodeia o ser, através de exercícios
que ampliam a percepção, tendo por objectivo a construção de um novo pensamento e uma
reformulação de valores.

11
Op. Cit., p. 301;
12
Idem, p. 300;

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Anteriormente, na preparação das actrizes na encenação de O Marinheiro, recorri


essencialmente ao butoh para a parte respeitante à respiração e à percepção do espaço. Para A
morte do Príncipe, adoptei todos os elementos que definem essa estética. Esta linha conceptual
foi escolhida por dois motivos evidentes: o peso excessivo da palavra e a androginia que domina
o texto:
- o excesso e o peso da palavra nesta peça, torna-se de difícil corporalidade em palco. A
palavra esmaga o gesto, conduz o corpo à inércia. Não obstante, a qualidade elástica desta peça
leva o ouvinte a espaços inimagináveis do pensamento e do espírito. Impera no espírito da peça
um desejo de envolvimento do público numa atmosfera pelo avesso. Deste modo, os actores em
palco exprimem esses espaços através do corpo, tendo escolhido apenas alguns excertos do texto
para serem ditos. O ponto de partida, assente na máxima dos modernistas de Orpheu deà a to -
artista-pe feito àfoiàoàdeàt a alha àosàa to esàat àseàto a e àe àpoetas-actores-dançarinos cuja
paisagem interior, neste caso, o texto cénico, escorresse por fora do corpo;
- a androginia é um dos aspectos mais a a tesàd A morte do Príncipe. Num momento,
dizàoàP í ipe:à T atai- eàa tesàdeà“e ho a…à“ouàu aàp i esaàdeà ue àseàes ue e a à ua doà
13 14
us a a à ai ha… ;à u àout o:à “i to- eà osei aàtodaàpe fu ada . Ou seja, as polaridades,
as oposições, os contrários reúnem-se num só corpo. Só através desta ligação de ideias antípodas
é que se torna possível entrar na pluralidade dos sentidos, entrar no exercício do "sair-de-si". Só
deste modo o corpo sensorial pode embrenhar-se no oculto e perder a identidade nas múltiplas
possibilidades que excitam a própria ideia de loucura. Lembremos que a loucura, a morte e o
esquecimento, são os três meios que Campos procura para atenuar o desespero que lhe advém
doà pe sa e toà o sessivoà pelasà oisas à eais.à Foi,à ali s,à estaà o sessão e reiteração da palavra
oisa à oàte toàdoàP í ipeà ueàdeài ediatoà osàlevouàaàide tifi a àaàpe so age à o oàse doà
Álvaro de Campos. A par disso, o hábito de elencar coisas, tal como faz nos seus poemas de maior
f lego;à ali s,à asà es asà oisas:à u do ,à idades ,à paisage s ,à he ldi a ,à pe sa e to ,à
Ho e ,à po ta ,à ja elas ,à osasà a as ,à li ho ,à ua to ,àet .
áài te ç oà oàt a alhoà o àoàa to à aà o st uç oàdaàpe so age à P í ipe àfoiàaàdeà ia à
um ser neutro-activo em situação de fuga de si mesmo, o mais longe possível do eu narcísico.
Nestas viagens, o actor-poeta-dançarino despersonaliza-se e deixa para trás mais um pedaço de
auto-reconhecimento. Através da estratégia andrógina, a unidade-plural resulta em absoluto e
em voz única.

13
Op. Cit., p. 537;
14
Idem, p. 538;

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Na encenação desta peça, os actores usam apenas uma tanga e todo o corpo é pintado de
branco. No aspecto da cenografia, dada a frequência da invocação de rosas brancas, o leito é a
copa de um roseiral. E apenas isto.
Resumidamente, enveredei pelo que Artaud preconiza quando fala da necessidade de um
teat oà o deà o o aà aà etafísi aà daà li guage à a ti ulada ,à istoà ,à faze à o à ueà aà li guage à
sirva para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo,
excepcional e incomum, é devolver-lhe as suas possibilidades de comoção física, é dividi-la e
15
distribuí-laà a tiva e teà oà espaçoà […] Ou seja, já que é de metafísica que se trata a peça A
morte do Príncipe, então configuremos-lhe uma linguagem adequada no que concerne à sua
encenação.
Usar a linguagem de um modo novo é dar supremacia ao corpo, que é, a par da voz, o
instrumento basilar de um actor. O corpo, de resto, é um dos aspectos mais interessantes na
poesia de Campos – o tema deu já lugar a uma antologia editada por Anna M. Klobucka e Mark
Sabine16. Até mesmo no conto filosófico de Pêro Botelho, intitulado O vencedor do Tempo, vemos
aài po t iaàdoà o poà aào aàpessoa a.à‘efe eàoàp ofesso à“e zedas:à aàp ovaà ueàDeusàpe saà
em nós é que temos corpo. Deus pensa-nos, por isso fisicamente somos: por isso também
17
pe sa os.àOà ossoà o poà àaà ost aàvisualàdaà ossaàli itaç o.
Que à O Marinheiro,à ue à A morte do Príncipe, ambos os espaços cénicos são um
castelo, um espaço de transformação e sacralidade, que abriga um outro espaço, eminentemente
feminino e maternal: o quarto.
Sendo o castelo uma casa, torna-se, na acepção de Erich Neumann representativo do
arquétipo da Grande Mãe; dentro dele, o quarto que ocupa o valor simbólico do vaso feminino,
que acolhe o corpo humano, o qual é veí uloàdeàviage .àMaisàdoà ueàisso,àaà asa àdeàPessoaà àoà
seuà “e à la à eà ú i aà a te io à ealidade ,à o oà f isouà Te esaà ‘itaà Lopesà aà Ho e age à aà
Fernando Pessoa na Corunha em 1996 18.
São espaços fechados por contraponto às cidades e nações que são invocadas, as quais,
não obstante de serem espaços abertos são igualmente femininos, na medida em que reúnem as
quatro características que dominam o arquétipo da Grande Mãe: abrigam, protegem, alimentam
e transformam.

15
Op. Cit., p. 46;
16
Klobucka, Anna, Sabine, Mark, O corpo em Pessoa – corporalidade, género, sexualidade. Assírio e Alvim; Lisboa, 2010;
17
Cf. Pessoa, Fernando. Ficção e Teatro. Ed. António Quadros. Lisboa: Publicações Europa-América, 1986, p. 55;
18
Cf.àLopes,àTe esaà‘ita.à Pessoaàfi ç oàdeàsiàp p io .à Homenagem a Fernando Pessoa. Lisboa: Edições Colibri, 1999,
p.17;

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Sobre esta questão, o investigador Lelandà‘o e tàGu e àafi aà ueà Pessoaàat i uiàu aà
significação especial às imagens espaciais que emprega. Têm algo mais que um valor pitoresco.
19
Co àf e u ia,às oàsí olosàdoàtipoà aisàt a s e de te.
Assentando a sua investigação em Mircea Eliade, Jung, Gaston Bachelard, Ernst Cassirer,
Gil e tà Du a d,à E i hà Neu a à eà uitosà out os,à o se vaà ueà à Ca posà ue à aisà
entusiasticamente procura o conhecimento e a compreensão através da imagística da janela e da
20
po ta. Na perspectiva deste ensaísta, vejamos o valor simbólico de algumas destas realidades:

21
- castelo:à se veàdeà asa,àsedeàdeàpode ,àfo talezaàeàsuge eàu à e toàg auàdeàespi itualidade ;
a olheà aàho aàdaà o teà– a hora da transformação – é aqui o templo, a culminância da vida, o
22
estádio final da muta ilidadeàhu a a ;àest à asso iadoà o àoàpode oso,àoàdivi oàe,àpo ta to,à
23
o àoà o he i e to ;
24
- janela:à eaàdeàt a sfe iaàdoàsa e ;
25
- porta:à à u àsí oloà ueàilust aàaàdi oto iaàdoàespaçoàsag adoàeàdoàp ofa o ;
26
- cortina: “uma via para a percepção do eu- asa ;
- corpo:à u à dosà aisà í ti osà í ulosà du aà s ieà deà u ive sosà o t i os,à à ta à aà
27
e p ess oàa uetípi aàdoà o eitoàfe i i oàdeàfo aç o ;
– cama/leito:à estadoà deà isola e to,à pa ífi oà eà apaziguado ,à di igidoà pa aà de t o,à o deà o
u ive soà à aisàpe ue o,à aisà a ej velàeà e t adoàe àsià[…];à o fe eàu àaltoàali e toàpsí ui oà
28
eàfísi o .

Não há neste estudo de Guyer qualquer alusão às rosas brancas. Ora dentro de uma
antropologia do imaginário, as rosas brancas estão associadas ao culto de Ísis, a qual tem ao colo
o filho Horus, fruto de uma relação com o seu irmão-esposo, sem recurso ao actor sexual29. Mais

19
Guyer, Leland Robert. Imagística do espaço fechado na poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: INCM, 1982, p. 182;
20
Idem, p. 75;
21
Id., p. 126;
22
Id., p. 135;
23
Id., p. 127;
24
Id., p. 63;
25
Id., p. 66;
26
Id., p. 67;
27
Id., p. 91;
28
Id., p.115;
29
Segundo a lenda, Seth, com inveja de Osiris por este ter herdado o reino da terra faz-se ajudar por 72 conspiradores e
esquarteja Osiris em 14 pedaços. Enfurecida, a mulher-irmã, Isis, transforma-se em milhafre e procura os restos
mortais do esposo-irmão para o poder mumificar. Foi-o, de facto, mas sem os órgãos sexuais. Por devoramento
destes ou por artes mágicas., Isis engravidou de Osiris, dando à luz Horus. Posteriormente, Osiris irrompeu dos
mortos para se tornar no primeiro Faraó do Egipto. Cf. BUDGE, E.A. T. Wallis. Osiris and the Egyptian resurrection.
New York: Dover Publications Inc., 2 ed., 1973, V.1, p.4;

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tarde, o Cristianismo veio a associar também as rosas brancas à imagem da Virgem com o filho ao
colo. Isis, deusa do lar, é a mãe e a natureza inteira, senhora de todos os elementos, princípio e
fim de todos os séculos. A rosa branca simboliza a transformação através do segredo, sempre
associada ao elemento feminino e com uma função especial: a de acalmar a alma dos mortos.
Este símbolo do segredo advém do facto de Isis ter engravidado de um morto e do facto dela ter
também roubado o nome secreto do deus supremo, Rá. A partir daí, tornou-se deusa suprema e
universal. Nos círculos esotéricos, é considerada como a iniciadora, a que detém os segredos da
vida, da morte e da ressurreição. É representada frequentemente apenas por uma rosa branca,
como encarnação do princípio feminino de toda a fecundidade.
Porém pergunto: o que dizem estas formas simbólicas ao espectador de hoje? Já regresso
a esta questão.
Agora, e de tudo quanto expus, o que me interessa como encenadora 30 é, essencialmente,
a questão do corpo como espaço. Deste modo, parece que entro na área da performance, no pós-
dramático - e o drama pessoano, que é estático, que não tem acção, não tem narrativa, parece
inserir-se no pós-dramático, tão propalado hoje em dia através do estudo de Hans-Thies Lehman.
Mas não, entro apenas na área do teatro mental a que eu designo por teatro da suspensão.
Na performance, como se sabe, o actor não representa – é ele próprio a executar uma
acção sem estar subalternizado a um texto. Defendo contudo, que a livre criação do actor-poeta-
dançarino e a interiorização do texto em simultâneo, mesmo que não seja dito, podem constituir
acontecimento. Não aquele acontecimento que é preconizado pelo pós-dramático, que é um
acontecimento contingente, ou seja, ocorreu, mas poderia ter não ocorrido, mas também um
acontecimento não contingente, isto é, que não só ocorreu como não poderia deixar de ter
ocorrido. Regressando ao ideal de Artaud, o corpo do actor torna-se na matéria de uma
arquitectura de signos que irrompe os limites de um espaço fixo, na procura de uma linguagem de
gestos feitos para evoluir no espaço, e que não podem ter significado fora dele.
O actor não irá representar a personagem, mas usará o seu corpo para que o texto dele
transborde. Aqui, eu atraiçoo deliberadamente a performance, na medida em que assumo a
osmose da performance com a palavra, a literatura, pois não concebo a ausência do verbo em
nenhuma manifestação artística.
Como nos alerta Pirandello, quando a personagem morre, o público sabe que a actriz
continua viva. O acto de representar gera assim um distanciamento entre a realidade e a ficção.

30
Note-se que um encenador, mais do que nunca, procura no seu trabalho a criação de cenas onde se dissolva a
estrutura sígnica atribuída a um texto dramático, podendo essa cena ser criada através de um fragmento ficcional,
sonoro ou pictórico – a dramaticidade resulta precisamente desse choque entre todos esses elementos, com vista à
criação de um universo sensorial de forte intensidade;

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Apesar do actor saber que ele não é a personagem, mesmo manifestando o seu corpo na cena,
ele não deixa de estar protegido pela máscara da personagem.
Noà asoàd A morte do Príncipe, em momento algum o actor-poeta-dançarino verbaliza o
te toà oà ualà dizà vouà o e ,à poisà u à o ju toà deà a ç esà a te io esà to a a à estaà f aseà
desnecessária. O corpo do actor transformou-se num espaço simbólico: o corpo como signo,
como espaço onde se constrói uma gestualidade significante. Ele não representa: é ele próprio
uma presença no espaço que comunica com tudo o que acontece nesse instante e que não está
previsto nem foi encenado. E isto porque todos sabemos que vamos morrer. Porém, nem todos
vemos castelos a arder no nosso dia-a-dia.
Para encerrar esta breve incursão naquilo que eu designo por teatro da suspensão,
importa referir que até ao momento ainda não disse em que espaço eu pretendo apresentar A
morte do Príncipe. E isto é matéria próxima da Arquitectura, um dos aspectos caros deste teatro
da suspensão. Ao que tudo indica, seria num castelo, porém, as formas simbólicas da
contemporaneidade não são as mesmas que as do primeiro quartel do século XX. O espectador é
outro. E o que já não é, torna-se também suspenso. Escolheria, por isso, um aeroporto. Neste
novo milénio, é esta a imagem simbólica que mostra a intromissão dos aparelhos de poder entre
a pessoa e o seu próprio percurso e mostra como a identidade pessoal foi substituída pela
identificação.
Se Campos revisitasse a Lisboa de hoje, mesmo que enfeitasse a Praça da Figueira como
prometia a Cesário Verde, já não encontraria a unidade de cidade, mas sim favos urbanos com
características e estilos diferentes. E quem sabe se ele não gostaria. Do TGV, pelo menos,
presumo que fosse um defensor. E era vê-loà pa ti à o à oà Poe aà e à li haà e ta à aà o a:à Ó
p í ipes,à eusài os,à/àá e,àestouàfa toàdeàse ideuses!à/àO deà à ueàh àge teà oà u do?

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