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DANOS CAUSADOS A ANIMAIS1

Mafalda Miranda Barbosa2

1. Introdução

Se há longo tempo se vinha afirmando jurisprudencialmente, em Portugal e além-


fronteiras, a possibilidade de se atribuir uma compensação pelos danos não patrimoniais
sofridos pelo proprietário de um animal em caso de morte deste, o artigo 493º- A Código
Civil vem pôr fim definitivamente à controvérsia que, no nosso ordenamento jurídico,
ainda dividia, quanto ao ponto, a doutrina.

Assim, nos termos do nº3 do artigo 493º-A, “no caso de lesão de animal de companhia de
que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação
grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o seu proprietário tem direito, nos
termos do nº 1 do artigo 496º, a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento
moral em que tenha incorrido, em montante a ser fixado equitativamente pelo tribunal”.

Não se pense, contudo, que o novo preceito elimina as dificuldades a este nível, nem
sequer que silencia as vozes discordantes que, nesta matéria, se vinham pronunciando.

Por outro lado, dispõe-se, no artigo 493º-A, no seu nº1, que, “no caso de lesão de animal,
é o responsável obrigado a indemnizar o seu proprietário ou os indivíduos ou entidades
que tenham procedido ao seu socorro pelas despesas em que tenham incorrido para o seu

1
O texto que agora se publica serviu de base à alocução proferida no I Curso de Pós-Graduação em Direito
da Responsabilidade Civil, organizado pelo Centro de Investigação em Direito Privado da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, sendo disponibilizado para apoio do estudo dos auditores do referido
curso. A nossa análise circunscrever-se-á à responsabilidade aquiliana.
2
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, FDUC. Professora Associada.
Orcid: 0000-0003-0578-4249.

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tratamento, sem prejuízo de indemnização devida nos termos gerais”, sendo a
indemnização devida mesmo que as despesas se computem numa quantia superior ao
valor monetário que possa ser atribuído ao animal.

Significa isto que a norma oferece não só um critério de ajuizamento no que respeita aos
danos não patrimoniais, como também no que concerne aos danos patrimoniais, ou a
alguns deles, estabelecendo um paralelo com o disposto no artigo 495º CC, a propósito
da morte ou lesão grave de uma pessoa, numa solução que suscita muitas dúvidas (ou
mesmo críticas) quer do ponto de vista axiológico, quer do ponto de vista dogmático. Por
outro lado, o artigo em questão, no seu nº2, ao determinar que a indemnização é devida
mesmo que as despesas superem o valor monetário do animal, permite-nos fazer a ponte
para aspetos especificamente indemnizatórios, que se afastam da fundamentação da
responsabilidade.

O artigo 493º-A CC, não sendo imune a críticas, consagra uma disciplina especial em
matéria de danos causados a animais, não podendo, por isso, ser ignorado. Não obstante,
tem de ser articulado com o regime geral da responsabilidade civil: tal revela-se
imprescindível para se conformarem adequadamente as soluções a que aludimos, ao
mesmo tempo que nos permite compreender cabalmente o alcance das referidas críticas
que não podemos deixar de dirigir à norma em apreço.

Acompanhando a natureza dos danos que podem emergir diante de qualquer lesão de um
direito absoluto ou de um interesse legalmente protegido, enquanto projeções negativas
dessa mesma lesão na esfera jurídica concreta de um sujeito, orientaremos a nossa
exposição pela problemática dos danos patrimoniais e pela problemática dos danos não
patrimoniais.

2. Os danos patrimoniais
2.1. Os danos abrangidos e o problema da titularidade do direito à
indemnização

Mantendo os animais o estatuto de objeto da relação jurídica, pese embora tenham


deixado de ser considerados coisas, para passarem a ser vistos como “seres vivos dotados
de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza”, sobre eles
podem incidir os poderes correspondentes à titularidade do direito de propriedade.

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Dispõe, na verdade, o artigo 201º-D CC que, “na ausência de lei especial, são aplicáveis
subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, desde que não sejam
incompatíveis com a sua natureza”, acrescentando o artigo 1302º/2 CC que “podem ainda
ser objeto do direito de propriedade os animais, nos termos regulados neste código e em
legislação especial”.

Significa isto, numa primeira abordagem do problema, ainda propositadamente


superficial, que os animais podem ser objeto do direito de propriedade (ou outro direito
real). Donde, uma vez que este é dotado de eficácia erga omnes, não será difícil encontrar
um ponto de apoio seguro para, em caso de lesão do animal provocada por um terceiro,
se desvelar a ilicitude do comportamento, por via da primeira modalidade do ilícito, sem
sequer termos de indagar acerca da possível violação de disposições legais de proteção
de interesses alheios ou acerca da possível natureza abusiva do direito daquela conduta.

Exigindo-se, para que seja afirmada a responsabilidade, a verificação dos demais


pressupostos da responsabilidade aquiliana, requer-se, nessa medida, que se prove a
existência de danos.

Ora, da violação de um direito de propriedade podem decorrer, desde logo, danos de


natureza patrimonial. Na verdade, é inerente ao direito subjetivo absoluto um dado
conteúdo patrimonial, que se traduz numa nota de utilidade. Sempre que ela não possa
ser realizada, fruto da intervenção de um estranho à esfera de domínio traçado pelo
direito, desenha-se um dano. Este importa a consideração da repercussão que a lesão teve,
já não no titular abstratamente configurado, mas na esfera da pessoa realmente lesada,
uma vez que esse impacto é variável. Imageticamente, podemos configurar duas esferas.
Uma esfera de utilidade geral – traduzida no valor patrimonial do bem objeto do direito
e, mais especificamente, compreendida pela análise das diversas faculdades inerentes ao
conteúdo do direito – e uma esfera de utilidade particular – colimada naquilo que o
concreto titular da posição subjetiva absoluta, dentro do primeiro círculo definido, se
propõe realizar. Com base no cotejo destas duas esferas podemos encontrar a essência do
que é o dano. E mais do que encontrar a essência do que é o dano3, podemos encontrar
aqui um critério de recondução dos danos subsequentes – dos segundos danos – ao dano

3
Cf. CARNELUTTI, Il danno e il reato, Padova, Cedam, 1929, 256 s., afirmando que o dano não atinge o
bem em si, mas a conexão da pessoa com o bem, ou seja, a relação existente entre um sujeito que tem uma
necessidade e o bem apto a satisfazê-la.

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evento (dano primário ou violação do direito subjetivo que, ao nível da primeira
modalidade de ilicitude, assume uma posição charneira em toda a questão imputacional).

A partir dele conseguimos, de facto, saber em que medida é que o que a pessoa perdeu ou
aquilo que deixou de ganhar se inscreve ou não na esfera do direito cuja lesão já tinha
sido imputada a um determinado sujeito. Note-se que a perda de utilidades do bem se
poderá traduzir tanto no prejuízo diretamente sofrido pelo lesado (desvalorização do bem,
despesas que teve de efetuar para repor a utilidade do bem, ou reparando-o ou
encontrando uma alternativa que, momentaneamente ou não, satisfaça a mesma
utilidade4), como naquilo que deixou de ganhar, rememorando-se, portanto, a distinção
entre os danos emergentes e os lucros cessantes. Qualquer um deles pode ser
indemnizado, não se vislumbrando qualquer especificidade quando em causa esteja a
lesão de um animal.

Repare-se que, sendo o dano determinado em concreto e estando em causa quer animais
de companhia, quer animais utilizados como auxiliares do trabalho ou destinados à
exploração económica5, a constatação de qualquer uma das categorias de danos será
sempre variável em função das idiossincrasias do caso concreto6.

Entre os danos emergentes, contabilizam-se as despesas feitas para socorrer ou tratar o


animal lesado e bem assim aquelas que, procurando evitar a morte, hajam sido realizadas
com esse fito. E se em regra, fruto do jogo de preenchimento da responsabilidade a que
fizemos alusão supra, o titular do direito à indemnização é o titular do direito violado, o
artigo 493º-A, n1º, CC, parece abrir uma exceção.

Dispõe, como referido, o preceito que, “no caso de lesão de animal, é o responsável
obrigado a indemnizar o seu proprietário ou os indivíduos ou entidades que tenham
procedido ao seu socorro pelas despesas em que tenham incorrido para o seu tratamento,
sem prejuízo de indemnização devida nos termos gerais”.

4
Problema interessante pode ser equacionado em relação ao que se designa por despesas preventivas. Sobre
o ponto, cf. Mafalda Miranda BARBOSA, “Despesas preventivas”, Revista de Direito Comercial – Liber
Amicorum Pedro Pais de Vasconcelos, 2020, 639-684, e demais bibliografia aí citada.
5
Só o nº3 do artigo 493º-A/3 CC restringe o seu âmbito de aplicação aos animais de companhia.
6
Não era assim no quadro do direito romano. Na verdade, na Lex Aquilia estabelecia-se de modo invariável
o quantum indemnizatório: I – Quando alguém, com injúria, matar um escravo ou animal doméstico
quadrúpede, deve pagar ao dono o valor máximo que eles atingiram, esse ano, no mercado; II – O adstipular
que, enganando o stipulador, aceitasse o dinheiro deste deveria pagar-lhe outro tanto; III – Se alguém, com
injúria, provocar a um escravo, a uma escrava ou a um quadrúpede alheios outro dano, que não o da morte,
deve pagar, ao dono, o preço que a coisa em questão atingiria, nos trinta dias subsequentes.

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A indemnização a que se alude acresce à indemnização pelos danos emergentes e lucros
cessantes que se tenham verificado, não a substituindo, o que significa que a solução
implica um reforço da indemnização, que se estende, inclusivamente, a terceiros não
titulares do direito.

O paralelo entre a solução consagrada pela norma e os artigos 495º/1 e 2 CC é evidente.


O artigo 495º/1CC determina que, em caso de lesão de que proveio a morte, o responsável
é obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem
excetuar as do funeral. E o nº2 dispõe que têm direito à indemnização aqueles que
socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras
pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.
Em face do disposto no preceito do Código Civil, poder-se-ia pensar que em causa
não estaria propriamente uma consequência da ilicitude do ato atentatório da vida, mas a
necessidade de tutelar a posição de terceiros. O argumento poderia fazer sentido se
pensássemos que, em regra, a indemnização é atribuída ao titular do direito e que,
portanto, não está em causa a salvaguarda da vida, mas de interesses patrimoniais dos que
o socorrem. Não cremos, porém, que o argumento proceda. Ao nível do direito civil, os
puros interesses patrimoniais não são protegidos delitualmente. Não faria, por isso,
sentido tutelá-los se, de alguma forma, a solução não se ligasse para os devidos efeitos à
lesão ou tentativa de lesão do direito à vida (ou integridade física). O artigo 495º CC é
pensado para incentivar, ou pelo menos para não desincentivar, atitudes de socorro. Se
em termos valorativos esta solução de incremento da solidariedade se justifica pela
importância dos direitos envolvidos (vida e integridade física), em termos dogmáticos ela
pode ser explicada por referência ao âmbito da ilicitude (que resulta da violação ou
tentativa de violação do direito à vida).

Para tanto haveremos de ter em conta que o ilícito se desvela pelo resultado e que, por
isso mesmo, deverá ser ligado a um comportamento humano. Assim sendo, há que
distinguir, em termos indemnizatórios, a chamada causalidade fundamentadora da
responsabilidade da causalidade preenchedora da responsabilidade. A primeira liga a ação
à lesão do direito absoluto; a segunda liga a lesão do direito absoluto aos danos
subsequentes. Se nenhuma dúvida existe quanto à conexão entre a ação e o resultado 7,

7
Podem, em concreto, porém, colocar-se interessantes problemas imputacionais, que se reconduzem àquilo
que vai conhecido pela causalidade psicológica. Pense-se na hipótese de A, com o seu comportamento, ter
perturbado de tal modo B que o leva a cometer suicídio. Pode o resultado lesivo ser imputado a A?

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resta problemática a ligação da lesão do direito aos danos sofridos pelos terceiros8.
Reconduz-se àquela lesão a preterição de todos os interesses que fossem abarcados pelo
âmbito do direito, donde as despesas realizadas para evitar a lesão hão de ser
contempladas na indemnização.

Como sublinhámos anteriormente, para o cálculo da indemnização, deve ser feita uma
comparação entre o que o direito subjetivo absoluto possibilitaria e o que, de facto, ele
possibilita, uma vez lesado, levando-se a cabo um duplo juízo. Primeiro, há que saber se
a utilidade que o lesado invoca se integra ou não dentro das potencialidades inerentes ao
conteúdo do direito preterido; em segundo lugar, há que estabelecer uma subtração entre
o que o lesado teria, dispondo de tal utilidade, e o que tem agora. Para estabelecer a
subtração comparativa a que se alude, não temos de pensar numa qualquer situação,
dependente do curso virtual dos acontecimentos, mas antes olhar para o que em concreto
o direito potenciaria ao seu titular (fruto da recondução do seu interesse específico ao
núcleo de faculdades que compõem o seu conteúdo) e o que ele potencia. Isto quer dizer
que o titular do direito à vida que o vê ameaçado tem direito a ser indemnizado por todas
as despesas que leve a cabo para evitar ou tentar evitar essa lesão. Havendo um dever de
auxílio por parte de terceiros quando esteja em causa a potencial violação do direito à
vida ou à integridade física, não se estranha que aquela indemnização inclua também as
despesas suportadas por esses terceiros. No fundo, o direito à vida inclui também o direito
a uma conduta positiva por parte de terceiros e é isso que justifica o alargamento da tutela
aos interesses patrimoniais destes (que assim se substituem ao próprio titular).

Ora, este raciocínio não é transponível para a interpretação do aditado artigo 493º-A/1
CC. Não existindo um dever de agir por parte do terceiro relativamente ao objeto da
propriedade alheia (ainda que desclassificada como coisa), não é possível falar-se de uma

8
No texto, tentamos justificar a solução (embora excecional) à luz do funcionamento da causalidade
preenchedora da responsabilidade. Importa, contudo, não esquecer que o artigo 495º CC pode encerrar
também problemas atinentes à causalidade fundamentadora da responsabilidade. Basta para tanto que o
terceiro que socorre o primeiro lesado sofra também ele uma lesão num direito absoluto.
Veja-se, ainda, a questão da integração no artigo 495º CC do ressarcimento pelos lucros cessantes. Sobre o
ponto, cf., com particular interesse, Carneiro da FRADA, “Danos económicos puros”, Forjar o Direito,
Almedina, Coimbra, 2015, 173, debatendo o problema de saber se se pode obter uma indemnização a
mulher que, em virtude do acidente que o marido sofreu, teve de fechar o estabelecimento comercial que
explora para dele cuidar e admitindo essa ressarcibilidade, na esteira da jurisprudência, alicerçando o seu
entendimento no dever legal de socorro e auxílio que existe entre os cônjuges. No fundo, a atuação da
mulher vem substituir um socorro que seria realizado por um terceiro e cujos custos poderiam sempre ser
imputados ao lesante. . Isto mostra que, como referido supra, o problema pode ser compreendido noutra
perspetiva, no seio da qual se pode tornar clara a questão dos danos puramente patrimoniais.

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transferência das despesas da esfera do segundo para a esfera do primeiro. Ora, isto
significa que no âmbito de influência do direito de propriedade não é possível integrarem-
se as despesas feitas pelo terceiro e, simultaneamente, que o nosso problema não pode ser
perspetivado sob a ótica do preenchimento da responsabilidade, mas da própria
fundamentação dela. A esse nível, deparamo-nos com problemas evidentes: em primeiro
lugar, parece não existir um direito absoluto violado na esfera jurídica do terceiro, donde,
afinal, e sem aparente razão justificativa (que não seja uma valorização excessiva dos
animais), parece estar em causa a admissibilidade de – no caso concreto – se
indemnizarem danos puramente patrimoniais. Em segundo lugar, e porque em causa está
a própria fundamentação da responsabilidade, haveremos de considerar que a
indemnização devida ao terceiro não opera automaticamente, tendo de se verificar um
nexo de imputação entre os danos que ele experimenta e o comportamento do lesante.
Pense-se, por exemplo, no caso em que A lesa um animal e B o socorre prontamente,
incorrendo em despesas, tendo-se, contudo, verificado um comportamento prévio
agressivo por parte daquele animal. Neste caso, porque a tutela do interesse patrimonial
do terceiro parece ser autónoma relativamente ao direito de propriedade sobre o animal,
perde-se a ligação entre a despesa efetuada e o comportamento do suposto lesante.

Além disso, pergunta-se se o rigor dogmático não determinaria como preferível, em


qualquer caso, que o reembolso fosse efetuado pelo proprietário, nos termos da gestão de
negócios (artigo 468º CC), computando-se essa despesa do proprietário na indemnização
que lhe seria devida (pelo que, afinal, aquele reembolso se repercutiria economicamente
na sua esfera). Aliás, por essa via garantiríamos, a priori, a inexistência de um reembolso
que não ultrapassasse as regras do enriquecimento sem causa se não houvesse
conformação da atuação do terceiro com o interesse e a vontade do dono do negócio. Quid
iuris, na verdade, se o terceiro atuou e a vontade do próprio proprietário era contrária a
tal operação de socorro, por o animal ser dotado de particulares fragilidades que o
impedem de cumprir a função para a qual foi adquirido e envolvem avultados custos? E
quid iuris, se a operação imediata de socorro não se afigurava imprescindível, tendo sido
determinada por uma estima exagerada do terceiro pelos animais?

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2.2. A primazia da reconstituição natural
Estas dúvidas parecem fazer tanto mais sentido quanto o nº2 do artigo 493º-A CC
determina que a indemnização prevista no nº1 é devida mesmo que as despesas se
computem numa quantia superior ao valor monetário que possa ser atribuído ao animal.
Impõem-se, portanto, umas breves palavras sobre o problema da primazia da
reconstituição natural.
Trata-se esta de uma opção do legislador, também afirmada em geral, no artigo 566º/1
CC. Importa, contudo, notar, por um lado, que a amplitude da primazia afirmada
genericamente não é tao grande como aquela que aqui conhecemos, e que a solução –
mesmo afirmada genericamente – configura uma opção do legislador, que não conhece
paralelo em todos os ordenamentos jurídicos9. Consoante explica David Magalhães, numa
interessante abordagem histórica do problema, esta não é uma herança do direito romano,
resultando antes da influência das Sagradas Escrituras, da teologia cristã, do direito
canónico e do jusracionalismo10. Em causa não estão, portanto, razões económicas, mas
ético-axiológicas, procurando-se tutelar a integridade patrimonial do lesado e não o valor
venal ou de troca11. Nessa rationes de justiça encontramos uma ligação à função
reipercussória da responsabilidade civil e à ideia de reafirmação contrafáctica do valor
intrínseco dos bens jurídicos lesados.
Esta primazia não é, porém, como se anunciou, absoluta. De acordo com o artigo 566º/1
CC, a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstrução natural não seja
possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o
devedor. O preceito permite-nos, desde logo, extrair uma conclusão: existem duas
possíveis formas de indemnização – a indemnização específica e a indemnização em
dinheiro. Entre elas, não existe uma relação de pura alternativa, havendo uma precedência
necessária da primeira em relação à segunda12.

9
Sobre o ponto, cf. David MAGALHÃES, “A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por
equivalente: contributos jurídico-históricos para a análise do direito português”, Responsabilidade civil:
cinquenta anos em Portugal, 15 anos no Brasil, II, Instituto Jurídico, Universidade de Coimbra, Coimbra,
2018, 105 s.
10
David MAGALHÃES, “A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por equivalente:
contributos jurídico-históricos para a análise do direito português”, 108 s.
11
David MAGALHÃES, “A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por equivalente:
contributos jurídico-históricos para a análise do direito português”, 110.
12
Sobre o ponto, cf. Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil, VII, Almedina, Coimbra, 2020, 724.
Veja-se, igualmente, Maria da Graça TRIGO, Responsabilidade civil – temas especiais, UCE, 2015, 42-3,
enunciando – a propósito da danificação de um veículo automóvel – diferentes formas de indemnização: a)
condenação a remover pessoalmente o dano causado ao veículo; b) condenação a pagar a um terceiro, que
não o lesado, as despesas de reparação; c) condenação a entregar ao lesado uma quantia pecuniária para

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Importa, portanto, perceber quando é que se pode lançar mão da indemnização em
dinheiro. Assim, ela terá lugar quando não seja possível a reparação natural, o que
ocorrerá sempre que o bem lesado não seja fungível13; quando haja mais danos do que
aqueles que podem ser reparados através da reconstituição natural14; quando esta seja
demasiado onerosa para o lesante. De acordo com Menezes Cordeiro, devemos aferir a
excessiva onerosidade para o lesante à luz do princípio da boa fé. É este que nos vai
determinar quando é que a exigência da indemnização em dinheiro é demasiado gravosa,
tendo em conta as vantagens que daí resultam para o lesado.
Este problema da alternativa entre a indemnização específica e a indemnização em
dinheiro tem sido colocado com particular acuidade a propósito dos veículos
automóveis15. Tradicionalmente, entendia-se que a questão deveria ser ponderada com
base no valor comercial do automóvel, isto é, com base no valor que o proprietário obteria
se o tivesse vendido imediatamente antes do acidente. Comparando-se este valor com o
custo da reparação, concluir-se-ia ou não se a reparação era excessivamente onerosa: seria
se o valor comercial fosse inferior àquela reparação; não seria no cenário inverso16. Tal
valor comercial (critério por que era aferido o valor venal do bem) era também a base do
cômputo da indemnização.
Mas, não é difícil divisarem-se as insuficiências que a fórmula comportava para os
lesados: se A fosse proprietário e utilizador de um automóvel antigo que satisfazia todas
as suas necessidades, porque o seu valor comercial era muito baixo, aquilo que ele
receberia a título de indemnização não seria suficiente para permitir a aquisição de um
bem que cumprisse a mesma função17. A situação agravava-se no quadro de

que este suporte os custos da reparação já efetuada; d) condenação a entregar ao lesado uma quantia
pecuniária para que este suporte os custos da reparação, a efetuar no futuro; e) condenação a entregar ao
lesado um veículo equivalente; d) condenação a entregar ao lesado uma quantia pecuniária para que este
adquira um veículo equivalente. Segundo a autora, as três primeiras hipóteses corresponderiam a formas de
reparação natural.
13
Cf. Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil, VII, 725.
14
Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil, VII, 725, sublinha que nestas hipóteses nada impede que
haja lugar a uma indemnização específica e que, nos danos remanescentes, haja uma “entrega pecuniária
compensatória”. Esta parece, aliás, ser a solução que melhor se coaduna com a intencionalidade normativa
da norma, que dá prevalência à reconstituição in natura.
15
Sobre o ponto, cf., inter alia, Júlio GOMES, “Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição.
Anotação ao acórdão STJ 27/2/2003”, Cadernos de Direito Privado, nº3, 2003, 55 s.; Maria da Graça
TRIGO, Responsabilidade civil, 42 s.
16
Dando conta disto mesmo e das dificuldades que a partir daí surgiam, cf., numa importante análise da
evolução jurisprudencial na matéria, Maria da Graça TRIGO, Responsabilidade civil, 45 s.
17
Evidenciando isto mesmo e considerando que em causa podia estar uma verdadeira forma de
expropriação privada, cf. Maria da Graça TRIGO, Responsabilidade civil, 48. Falando também de uma ideia
de expropriação, cf. JÚLIO Gomes, “Custo das reparações, valor venal”, 58.

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funcionamento dos seguros de responsabilidade civil automóvel, já que aí nem seriam
contabilizados outros danos que não fossem os assim calculados, ficando de fora
eventuais privações de uso e eventuais danos não patrimoniais experimentados.
Atualmente, quer a jurisprudência, quer o quadro legal se alteraram. Em primeiro lugar,
passou a ter-se em conta o interesse do lesado na reparação. Em segundo lugar, o valor
venal é agora medido pelo valor de substituição (isto é, pelo custo de aquisição no
mercado de um veículo com as mesmas características, que cumpra as mesmas funções
que estavam destinadas ao veículo danificado)18.
Fora das especificidades do mundo automóvel, parece ser a boa fé o critério guia na
determinação da excessiva onerosidade.
David Magalhães parece ir mais longe na sua análise, propondo que se tenha em conta
um critério de exigibilidade assente na ponderação entre o interesse do lesado na
integridade da sua esfera jurídica e o esforço do lesante para ela ser reposta em espécie,
de tal sorte que a reconstituição só será excessivamente onerosa quando conduza à lesão
de bens jurídicos superiores a essa integridade19. Assim, nas palavras do autor, “se foram
lesados bens jurídicos de manifesta importância (trabalho, saúde, vida familiar), a
reconstituição não é excessivamente onerosa. Por exemplo, com a privação do automóvel
(mesmo de escasso valor comercial) perdem-se utilidades como a possibilidade de
deslocação para o trabalho, transporte da família, ida ao médico, etc. No fundo, núcleos
essenciais da vida do lesado seriam perturbados pelo dano de algo com o relevo que tem
hoje um automóvel. O mesmo se diga de uma lesão da integridade física que impõe
internamento hospitalar, de um instrumento de trabalho, de um animal de companhia ou
do retrato de um familiar falecido que, sendo único, assume valor estimativo”20.
Não cremos, porém, que a solução possa ser acolhida sem mais. Em primeiro lugar, a
excessiva onerosidade, dizendo respeito não à fundamentação da responsabilidade, mas

18
Cf. Maria da Graça TRIGO, Responsabilidade civil, 49 s., considerando que se devem convocar diversos
fatores como o estado de conservação, eventuais beneficiações, custos próprios de procura e aquisição de
um veículo de substituição, custos adicionais se a substituição tiver sido feita com urgência, desvantagens
que resultam de não ser possível encontrar um veículo idêntico (por exemplo, o consumo superior de
combustível).
Particularmente importante a este ensejo é o DL nº291/2007, que estabelece qual o valor venal e os critérios
de determinação da perda total do veículo. Sobre a questão de saber se as regras do diploma vinculam ou
não a jurisprudência, cf. Maria da Graça TRIGO, Responsabilidade civil, 49 s.
19
David MAGALHÃES, “A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por equivalente:
contributos jurídico-históricos para a análise do direito português”, 110
20
David MAGALHÃES, “A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por equivalente:
contributos jurídico-históricos para a análise do direito português”, 110.

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à determinação da modalidade de indemnização, o que significa que – no momento da
colocação do problema – já se firmaram as bases de uma relação entre pessoas certas, não
pode deixar de convocar, como sublinha Menezes Cordeiro, o princípio da boa fé como
critério ajuizador. Tal implicará que se tenham de ter em conta as especificidades do caso
concreto, de tal modo que deixa de ser possível valorar, na ponderação que se leve a cabo,
apenas a natureza do bem jurídico lesado e a possível ligação ao núcleo de essencialidade
do sujeito. Em segundo lugar, o autor parece esquecer, com os exemplos que oferece, a
complementaridade da compensação por danos não patrimoniais.
Não nos parece, por isso, de aplaudir a solução plasmada no artigo 493º-A/2 CC, quando
determina que a indemnização é devida mesmo que as despesas se computem numa
quantia superior ao valor monetário que possa ser atribuído ao animal, quer esteja em
causa a indemnização devida pela morte ou lesão do animal, quer esteja em causa a
indemnização devida pelas despesas em que o titular do direito ou um terceiro incorreu
para o tentar salvar, até porque a eventual ligação ao núcleo de afetividade do sujeito que,
de acordo com uma subjetivação do critério da excessiva onerosidade, pudesse justificar
a solução refrate-se, afinal, ao nível de uma possível compensação por danos não
patrimoniais. Repare-se, aliás, a diferença entre o nº2 e o nº3 do citado preceito,
restringindo-se o âmbito de relevância do último aos animais de companhia.

3. Os danos não patrimoniais


Traduzindo-se os danos não patrimoniais em danos que não são suscetíveis de avaliação
pecuniária, a possibilidade do seu ressarcimento surgiu envolta em forte controvérsia.
Vários foram os argumentos apontados contra a ressarcibilidade. Em primeiro lugar,
entendia-se que não seria possível, pela natureza que os caracteriza, reparar os danos não
patrimoniais, não fazendo sentido, em relação a eles, falar-se de uma indemnização. Por
outro lado, considerava-se que poderia parecer imoral tentar compensar um dano com
uma soma pecuniária, como se tudo pudesse ser comprado pelo dinheiro. Finalmente,
temia-se que, pela sua natureza, os danos não patrimoniais se pudessem repercutir por
diversas pessoas21.

21
Cf., a este propósito, Cunha GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil
Português, vol. XII, cit., 422 s. (diz-nos Cunha Gonçalves, a propósito da discussão que teria lugar em
França, que “a indemnização do dano moral será o meio de provocar, a cada passo, um chuveiro de ações,
porque é impossível limitar a esfera dos sofrimentos causados por uma morte; além dos descendentes e
ascendentes, podem alegar a sua dor o cônjuge ou o noivo, os colaterais, os afins, os afilhados, os

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 152


Tais argumentos não são, contudo, incontornáveis. Ainda que não seja possível tornar o
lesado indemne, seria preferível atribuir-lhe uma indemnização que o compensasse do
mal sofrido do que obrigá-lo a suportar integralmente o dano, não chamando à
responsabilidade o autor do mesmo. E compreende-se que assim seja. É um ideal de
justiça que entra em jogo e, como impressivamente nos diz Pinto Monteiro, “mais imoral
seria negar essa compensação ao lesado e deixá-lo sem nada”22. Acresce que, como
vimos, à responsabilidade civil não tem de associar-se necessariamente uma ideia
reparadora estrita, podendo falar-se, ao invés e na associação aos danos não patrimoniais,
de uma ideia de compensação ou de satisfação23. Por último, o risco de dispersão dos
danos deixa de ser real a partir do momento em que o ponto de ancoragem do dano seja
a lesão do direito: a regra é a de que o titular da indemnização é o titular do direito
lesado24.
O artigo 496º/1 CC acabaria por consagrar a regra da indemnizabilidade dos danos não
patrimoniais. A solução é, portanto, mais generosa do que aquela que resulta de outros
ordenamentos jurídicos, como o alemão ou o italiano25, exigindo-se, todavia, que os danos

concubinos, os empregados e operários, os amigos, os admiradores e até as pessoas coletivas a que o


falecido pertencia. O réu ficará totalmente arruinado. Se esta multidão for repelida, limitando-se os autores,
ficará destruído o sistema e cometer-se-á uma arbitrariedade. Será pôr o princípio e rejeitar as suas lógicas
consequências”); Guilherme MOREIRA, Instituições do Direito Civil Português, vol. I, Parte Geral,
Imprensa da Universidade, Coimbra, 1907, 596; Vaz SERRA, “Reparação do dano não patrimonial”, Boletim
do Ministério da Justiça, nº83, 1959, 69-111 (em especial 71 s.). Dando conta disso mesmo, veja-se,
recentemente, Fernando Pessoa JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina,
Coimbra, 1999, 374 s.; Maria Gabriela Páris FERNANDES, Sobre a reparação do dano moral no domínio do
código civil de 1867 e a titularidade do direito à sua indemnização, 2012, 51 s.
22
Cf. Pinto MONTEIRO, “Sobre a reparação dos danos morais”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano
1, nº1, 1992, 20 s.
23
Sobre estas finalidades, cf. Mafalda Miranda BARBOSA, Lições de Responsabilidade Civil, Princípia,
2017, 301 s.
24
Este ponto requer alguns esclarecimentos, sobretudo tendo em conta o artigo 496º/2 e ss. CC.
25
No ordenamento jurídico alemão, de acordo com o § 253 BGB, só são indemnizados os danos não
patrimoniais nos casos previstos na lei.
A este propósito, cf. Maria Manuel VELOSO, “Danos não patrimoniais”, Comemorações dos 35 anos do
Código Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, 509/510, considerando que existem dois grupos de
ordenamentos jurídicos, no tocante às hipóteses de morte de um sujeito: aqueles que baseiam a solução da
questão na titularidade dos danos e aqueles que adotam o critério do choque para compensar os terceiros.
Assim, por exemplo, na Alemanha, não existe um dano da perda de vida e a transmissibilidade dos direitos
do falecido depende de ter ou não ocorrido morte imediata; por seu turno, não existe um dano de luto,
falando-se de um dano de choque, para o que se requer um efetivo dano à saúde – cf. pág. 524.
Repare-se, contudo, que os dois problemas não se confundem. A própria autora, citando Von BAR, The
Common European Law of Torts, Clarendon Press, 76-77, o admite e ilustra tal possibilidade com o
Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de novembro de 1995 (no âmbito do qual foi concedida uma
indemnização pelo abalo psicológico que o autor sofreu em virtude de ter assistido à morte de um amigo
num acidente de viação).
A propósito do dano do choque nervoso, cf., ainda, Martin EBERS, “Austrian Case note on Hoge Raad,
Judgmente of 22 February 2002 – On compensation for psychiatric injury and emotional distress suffered
by close relatives”, European Review of Private Law, 3/2003, 460-465; André JANSSEN, “German Case

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 153


sejam graves e que mereçam, por essa gravidade, a tutela do direito26. A gravidade deve
ser apreciada em termos objetivos, evitando estados de especial sensibilidade, o que não
significa que não se tenham em conta alguns índices de subjetividade27.
Nem por isso, contudo, se elimina a controvérsia em torno da compensação dos danos
não patrimoniais. Se alguns autores sustentam que tais danos podem resultar da lesão de
bens patrimoniais e ser, ainda assim, acolhidos, outros rejeitam este posicionamento.
Parece-nos que a melhor posição passa por defender que tais danos podem resultar quer
da preterição de direitos de natureza pessoal, quer da lesão de direitos de natureza

note on Hoge Raad, Judgmente of 22 February 2002 – On compensation for psychiatric injury and
emotional distress suffered by close relatives”, European Review of Private Law, 3/2003, 433-441; Gaëlle
MEILHAC-REDON, “French Case note on Hoge Raad, Judgmente of 22 February 2002 – On compensation
for psychiatric injury and emotional distress suffered by close relatives”, European Review of Private Law,
3/2003, 441-448; Katarzyna MICHALOWSKA, “Polish Case note on Hoge Raad, Judgmente of 22 February
2002 – On compensation for psychiatric injury and emotional distress suffered by close relatives”,
European Review of Private Law, 3/2003, 472-476; Barbara PASA, “Italian Case note on Hoge Raad,
Judgmente of 22 February 2002 – On compensation for psychiatric injury and emotional distress suffered
by close relatives”, European Review of Private Law, 3/2003, 448-460; Arianna PRETTO, “English Case
note on Hoge Raad, Judgmente of 22 February 2002 – On compensation for psychiatric injury and
emotional distress suffered by close relatives”, European Review of Private Law, 3/2003, 425-432; Horst
ZINNEN, “Belgian Case note on Hoge Raad, Judgmente of 22 February 2002 – On compensation for
psychiatric injury and emotional distress suffered by close relatives”, European Review of Private Law,
3/2003, 412-424.
Veja-se, igualmente, BRÜGGEMEIER, Haftungsrecht, Struktur, Prinzipen, Schutzbereich zur Europäisierung
des Privatrechts, Springer, Berlin, Heidelberg, New York, 2006, 76 s.; DEUTSCH, Allgemeines
Haftungsrecht, 2. völlig neugestaltete end erw. Aufl., Carl Heymanns Köln, Berlin, Bonn, München, 1996,
384 s.; Michael JONES, “Liability for Psychiatric Ilness – more principle, less subtlety?”, 4 Web Journal of
Current Legal Issues, 1995, 4 (www.webjcli.ncl.ac.uk/article4/jones4.html); Ramanan RAJENDRAN, “Told
nervous shock: has the pendulum swung in favour of recovery by television viewers?”, Deakin Law Review,
31, 2004 (www.ausflit.edu.au/journals/DeakinLRev/2004/31.html); Paolo FORCHIELLI, Il rapporto di
causalità nell’illecito civile, CEDAM, Padova, 1960, 128 s., n. 2
Para uma análise da jurisprudência estrangeira sobre a matéria, vide, inter alia, os precedentes Victorian
Railways Commissioners v. Coultas (1888); Alcock v. Chief Constable of South Yorkshire Police (1992);
Page v. Smith (1996) [cf. www.publications.parliament.uk/palld199899/djudgmt/jd981203/white01.htm
No tocante ao ordenamento jurídico italiano, vigora o artigo 2059º CC, nos termos do qual só há
ressarcimento dos danos não patrimoniais nas hipóteses previstas na lei, designadamente – e por força da
previsão do Código Penal – quando o ilícito envolva o cometimento de um crime. A restrição legal acaba
por ser contornada pelo labor da jurisprudência e da doutrina que, autonomizando algumas categorias de
danos e considerando que as mesmas não configuram danos morais, embora sejam danos extrapatrimoniais,
permite que elas escapem à limitação do artigo 2059º CC. Em causa estariam os danos que implicassem a
lesão de bens jurídicos protegidos ao nível da constituição, que seriam assim acolhidos pelo artigo 2043º
CC, como danos injustos. Assim, por exemplo, o dano biológico, o dano existencial e, para o que nos
interessa nesta reflexão, o dano de afeição. Cf., a este propósito, P. ZIVIZ, “Bene affetivamente relevante e
risarcimento del dano”, Responsabilità civile e previdenza, LXVI, nº3, 2001, 672 s.
26
Antunes Varela e Almeida Costa entendem que estão em causa dois requisitos: gravidade, merecimento
da tutela do direito; Maria Manuel Veloso elege como requisito único a gravidade – cf. Antunes VARELA,
Das obrigações em geral, I, Almedina, Coimbra, 2003, 606; Maria Manuel VELOSO, “Danos não
patrimoniais”, 501; Almeida COSTA, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, 602
s.,
27
Antunes VARELA, Das obrigações em geral, 606; Maria Manuel VELOSO, “Danos não patrimoniais”, 505
s. (considerando que os tribunais têm em conta fatores subjetivos como a doença, a idade, a debilidade,
etc.).

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 154


patrimonial28. A sua emergência explica-se como resultado da dimensão axiológica do
direito subjetivo que, para lá do seu conteúdo concreto, apresenta uma ligação estreita à
pessoa, à qual vai buscar o seu sentido e fundamentos últimos29. Mas pode explicar-se,
igualmente, noutras situações, pela preterição de uma ou mais faculdades inerentes ao
conteúdo do direito subjetivo violado. Se no primeiro caso somos confrontados com os
danos morais (propriamente ditos), a traduzir-se em dores, angústia, ansiedade,
sofrimento; no segundo caso, lidamos com danos extrapatrimoniais (de que aqueles são
apenas uma categoria)30.
Alvo de profundo debate é, todavia, a categoria do dano de afeição, enquanto dano não
patrimonial resultante de uma relação sentimental que liga o sujeito, titular do direito, a
uma coisa.
Se, no âmbito de vigência das Ordenações Filipinas31, se admitia a compensação não só
pela estimação da coisa, mas também pela afeição, a doutrina mais recente tem-se
mostrado muito reticente quanto à sua admissibilidade. Entre nós, na senda da doutrina
mais antiga, Filipe Albuquerque Matos sustenta que, por natureza, os danos não

28
Não existe, portanto, uma perfeita continuidade entre a natureza do direito violado e a natureza dos danos
que emergem. O caráter patrimonial ou não patrimonial se afere em relação ao dano propriamente dito e
não em relação à natureza do direito ou interesse lesado. Quer isto dizer que o direito lesado pode ser de
natureza patrimonial e o dano que resulta ser não patrimonial; sendo o inverso igualmente verdadeiro. A
lesão da integridade física pode gerar um dano de tipo patrimonial, a par de danos não patrimoniais; a lesão
do direito de propriedade pode dar ocasião a um dano não patrimonial (em virtude da ligação afetiva que o
proprietário tinha com a coisa, por exemplo). O dado pode explicar-se por o direito ou interesse legalmente
protegido integrarem no seu âmbito interesses/situações vantajosas de tipo patrimonial, moral e espiritual.
Sobre o ponto, cf. Menezes CORDEIRO, Tratado II/III, 513; Antunes VARELA, Das obrigações, 603; Pinto
MONTEIRO, “Sobre a reparação dos danos morais”, 17 s.; Menezes LEITÃO, “A reparação de danos
emergentes de acidentes de trabalho”, Temas Laborais, Estudos e pareceres, Almedina, Coimbra, 2006,
32.
A este propósito convém, no entanto, tecer alguns esclarecimentos adicionais.
Em primeiro lugar, a posição que apresentamos em texto parece não ser unânime. Ainda que os autores
aceitem que a partir da lesão de direitos de natureza pessoal podem surgir danos patrimoniais, parecem ligar
insofismavelmente a existência de danos não patrimoniais à preterição de posições subjetivas de natureza
pessoal. Sobre o ponto, cf. Antunes VARELA, Das obrigações, I, 601 s.; Maria Manuel VELOSO, “Danos
não patrimoniais”, 499; Almeida COSTA, Direito das Obrigações, 602 s. Por outro lado, partindo da
diferenciação entre os danos não patrimoniais e os danos morais, patenteiam-se dúvidas na doutrina acerca
da possibilidade de se indemnizarem os segundos por referência às lesões de direitos patrimoniais. Em
causa estaria o chamado dano de afeição, de que trataremos em texto.
In fine, sublinhe-se que a possibilidade de o dano não patrimonial resultar da lesão de um direito avaliável
em dinheiro resulta do facto de este poder integrar no seu conteúdo interesses de natureza pessoal e a
possibilidade de o dano patrimonial resultar da lesão de um direito de natureza pessoal resulta do facto de
este poder ter um conteúdo de destinação suscetível de aproveitamento económico.
29
Sobre o ponto, cf. Sandra PASSINHAS, Propriedade e personalidade no direito civil português, Coimbra,
2016
30
Cf. Pinto MONTEIRO, “Sobre a reparação dos danos morais”, 17 s.; Maria Manuel VELOSO, “Danos não
patrimoniais”, 498; Almeida COSTA, Direito das Obrigações, 601, n.1
31
Livro III, título 86, § 16

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 155


patrimoniais reportam-se a ofensas de bens de índole pessoal, sendo muito duvidoso que
se possam qualificar como graves os incómodos ou as perturbações causados por terceiros
a quem seja destruída uma coisa ou frustrada uma certa possibilidade material (v.g.,
desfrutar do descanso de uma viagem), até porque os mesmos, de acordo com uma lógica
de adequação social, devem ser tidos como custos da vida em sociedade. Ademais, correr-
se-ia o risco de cair numa subjetividade indesejável forçando o juiz a fazer apreciações
em áreas mais ou menos insondáveis32.
Não cremos, porém, que as objeções procedam. Se é certo que a regra poderá ser o não
cumprimento dos pressupostos de compensação dos danos morais, nada impede que, caso
o dano seja em concreto grave e mereça a tutela do direito, possa haver direito a uma
indemnização. Pense-se, por exemplo, no caso da destruição de um computador através
do qual os pais conversam com o filho que vive num país distante, ou no caso de
destruição de uma joia de família que tinha sido oferecida pelo pai falecido. Do mesmo
modo, não nos parece viável argumentar com um eventual risco de subjetivação,
porquanto os critérios de aferição da gravidade de tais danos não podem ser senão
objetivos, como referido anteriormente33. In fine, recorde-se que a possibilidade de o dano
não patrimonial resultar da lesão de um direito avaliável em dinheiro resulta do facto de
este poder integrar no seu conteúdo interesses de natureza pessoal e a possibilidade de o
dano patrimonial resultar da lesão de um direito de natureza pessoal resulta do facto de
este poder ter um conteúdo de destinação suscetível de aproveitamento económico. E,
igualmente, se remore que os danos morais propriamente ditos resultam da dimensão
axiológica de qualquer direito subjetivo que, para lá do seu conteúdo concreto, apresenta
uma ligação estreita à pessoa, estabelecendo-se não raras vezes um continuum entre o ser
e o ter.

32
Cf. Filipe Albuquerque MATOS, “A compensação do dano não patrimonial do proprietário por morte de
animal de estimação, anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de fevereiro de 2015”,
Revista de Legislação e de Jurisprudência, 144.º, n.º 3993, 493 s. Do autor, veja-se, igualmente,
Responsabilidade Civil por Ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Almedina, Coimbra, 2011, 569 s.
Em sentido, igualmente, crítico, por referência ao ordenamento jurídico francês, cf. TUNC, “Obligations et
contrats spéciaux – Obligations em général et responsabilité civile”, Revue Trimestrielle de Droit Civil, 61,
1962, 317 s.
33
Para outras considerações acerca da responsabilidade civil por lesão de um animal, cf. Filipe Albuquerque
MATOS/Mafalda Miranda BARBOSA, O novo estatuto jurídico dos animais, Gestlegal, 2018, 119 s. (de notar
que, na obra em questão, se sublinham as divergências dos autores no que respeita ao dano de afeição).
Sobre o dano de afeição no direito português mais antigo, cf., numa perspetiva crítica da categoria (admitida
ao nível das ordenações filipinas), Cunha GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em comentário ao Código
Civil Português, XIII, Coimbra Editora, Coimbra, 1939, 530 s.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 156


O artigo 493º-A, nº3, CC vem agora admitir expressamente a compensação do dano de
afeição.
Nas hipóteses de morte, privação de importante órgão ou membro ou de afetação grave e
permanente da capacidade de locomoção do animal, o seu proprietário tem direito à
compensação pelo desgosto ou sofrimento moral em que haja incorrido.
A solução vinha sendo já desenhada ao nível jurisprudencial.
Em França, a Cour de Cassation, num aresto de 16 de janeiro de 1962, reconheceu a
compensação por danos não patrimoniais, na sequência da morte de um cavalo, Lunus,
depois de ter mordido um cabo de eletricidade, que havia ficado na box onde o seu
treinador o colocou antes de participar numa prova da sociedade hípica34; em Espanha,
ainda no século XX, a Audiência Provincial de Madrid aceitou a ressarcibilidade dos
danos não patrimoniais, estando em causa a morte de um cão, com o qual a pessoa havia
partilhado durante vários anos o seu dia-a-dia35. Igualmente, em Itália, admite-se a
compensação de tais danos, embora não automaticamente. Se sempre que o dano surge
como bagatelar a indemnização é afastada36, situações haverá em que a morte ou lesão de
um animal se pode configurar como um dano existencial (pense-se na hipótese de morte
de um cão guia, fundamental para a vida de um cego) ou como um dano moral. Quanto a
estes, porém, pelas limitações conhecidas do ordenamento jurídico italiano decorrentes
do artigo 2059º CC, na ausência de relevo relacional, parece não ser possível a sua
compensação37.
Entre nós, os tribunais têm vindo a reconhecer, com base na consideração dos interesses
dos proprietários, a gravidade dos danos resultantes da morte ou lesão de um animal de
estimação, viabilizando as pretensões indemnizatórias que são deduzidas38.
Pense-se, a título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de
fevereiro de 201539, onde se pode ler que “constitui um dado civilizacional adquirido nas
sociedades europeias modernas o respeito pelos direitos dos animais, a aceitação de que

34
Cf. Recueil Dalloz, 1962, 199 s. Cf., igualmente, Recueil Dalloz, 1963, 92 s. (caso de um cão que foi
morto na sequência de um ataque de um pastor alemão, cada um pertencendo a uma pessoa diferente).
35
Cf. Vera CAMILO, Dano de apego relativo a animais, Coimbra, 2015, 54 s.
36
Cf. Cass. Sez. Un. 11 nov. 2008
37
Cf. Vera CAMILO, Dano de apego relativo a animais, 76.
38
Para uma listagem da jurisprudência relevante nesta matéria, cf. Carlos MARINHO, Os animais e a
jurisprudência dos tribunais – palestra proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em
19 de abril de 2018 (http://www.trl.mj.pt/PDF/animais_jurisprudencia-carlos_marinho.pdf)
39
Proc. nº 1813/12.6TBPNF.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida. Cf. a este propósito, Carlos
MARINHO, Os animais e a jurisprudência dos tribunais, 2.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 157


os animais são seres vivos carecidos de atenção, cuidados e proteção do homem, e não
coisas de que o homem possa dispor a seu bel-prazer, pelo que a relação do homem com
os seus animais de companhia possui já hoje um relevo à face da ordem jurídica que não
pode ser desprezado justificando que seja atendido como dano não patrimonial suscetível
de tutela jurídica o desgosto sofrido com a morte de um animal de companhia”. No
mesmo sentido, no Acórdão de 21 de novembro de 201640, o Tribunal da Relação do
Porto sustentou que “os animais, não obstante considerados pelo nosso ordenamento
jurídico como coisas (nos termos do artigo 202º, nº 1), fazem parte daquele tipo de
propriedade a que tradicionalmente se chama propriedade pessoal, ou seja, propriedade
de certos bens que estão ligados à autoconstrução da personalidade, razão pela qual na
sua atividade valorativa e coordenadora, o juiz tem de atender ao valor pessoalmente
constitutivo que o animal possa ter para o seu dono”. Do mesmo modo, o Tribunal da
Relação de Coimbra, no Acórdão de 18 de novembro de 200841, vem admitir, num caso
que envolveu a morte de uma catatua, a compensação por danos não patrimoniais,
correspondentes ao desgosto da perda do animal de estimação, pese embora tivesse
reduzido o quantum indemnizatório com base na existência de um comportamento
culposo dos lesados.
O fundamento normativo das decisões é encontrado no artigo 496º CC, denotando-se que
o interesse tutelado é o do próprio proprietário e não o do animal autonomamente
considerado. Do mesmo modo, considera-se que não poderá haver compensação pelo
eventual sofrimento que um terceiro, que assista à morte do animal, sinta. Tal torna-se
evidente ao nível do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de outubro de 200542,
onde se considera que “os sofrimentos morais que as dores e violências infligidas aos
animais e os espetáculos de Barrancos causaram aos associados da Sociedade Protetora,
atingindo-os na sua sensibilidade, honra e dignidade, não podem, pese a merecida
deferência, ser aqui levados em conta na atribuição de uma indemnização ao ente jurídico
deles diferenciado que é a própria Sociedade”.
A introdução do artigo 493º-A/3 CC não implica, por isso, uma modificação radical no
quadro normativo relativo aos animais. Importa, não obstante, esclarecer alguns pontos
fulcrais, sob pena de, a partir das alterações legislativas se subverter a intencionalidade

40
Proc. nº3091/15.6T8GDM.P1, relator Manuel Domingos Fernandes
41
Proc. nº1775/04.3.TBPBL.C1
42
Proc. nº05B1629, relator Lucas Coelho. Cf. Carlos MARINHO, Os animais e a jurisprudência dos
tribunais, 5.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 158


que subjaz ao ordenamento jurídico. Em causa está designadamente a correta
interpretação da remissão para o artigo 496º CC.
Os nossos tribunais superiores tiveram já oportunidade de se pronunciar sobre alguns
casos que mobilizam a aplicação do nº3 do artigo 493º-A CC.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de julho de 202143, questionou-se a
possibilidade de compensação de uma senhora pelos danos não patrimoniais sofridos na
sequência da morte do seu animal de estimação. O caso conta-se em poucas palavras: a
senhora dirigiu-se à rua e encontrou o seu animal inanimado, depois de ter sido atacado
por um pastor alemão, que não tinha trela nem açaime. Embora não tenha presenciado o
ataque, a proprietário do animal sentiu-se extremamente nervosa, tendo-se dirigido de
imediato a um hospital veterinário com o seu cão, posteriormente encaminhado para
cremação. Sentiu, por isso e porque já tinha perdido outro animal de estimação nas
mesmas circunstâncias, um profundo desgosto. O Tribunal reconheceu o direito a uma
indemnização por danos não patrimoniais, admitindo até que, caso se tivessem provado
determinados fatores, o montante da compensação poderia até (e eventualmente) sido
superior. Entre tais fatores, contava-se a idade do animal, o tempo que a sua proprietária
o tece em sua companhia; a maior ou menor intensidade da relação que tinha com o seu
animal, pois “se há pessoas que têm com os seus cães fortes laços afetivos, quase como
se fossem um amigo ou membro da família, outras há que não chegam a desenvolver uma
relação significativa”. O coletivo de juízes considerou que, a partir da reação da autora,
se poderia denotar que “tinha efetivamente uma relação afetiva com o seu cão” e
sublinhou que “não se está aqui a cuidar de indemnizar o dano patrimonial da perda do
animal, visto como objeto do direito de propriedade, pelo que nos parece despiciendo ou
desajustado afirmar, como se faz na sentença, que é possível obter com um animal da
mesma raça o mesmo tipo de lazer e companhia que o outro traria. O que releva é o choque
e o desgosto associados à morte do concreto e insubstituível animal de estimação,
considerando as circunstâncias em que ocorreu”. O Tribunal admite, ainda, que a
responsabilidade civil deve assumir, a este nível, uma vertente punitiva, já que o cão da
ré, “ainda que dócil e treinado, mostrou ser um animal perigoso, nos termos do artigo
3º/b), ii), do (…) DL nº 315/2009. Pese embora à data do ataque ora em apreço pudesse
não merecer essa classificação, certo é que já tinha, noutras ocasiões, provocado situações

43
Proc. nº23105/19.0T8LSB.L1-2, relatora Laurinda Gemas

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 159


de incómodo a outros vizinhos, o que faz com que seja mais censurável a atuação da Ré,
por não ter tido o cuidado de o passear na rua com trela (ou, pelo menos, com açaime),
de modo a evitar que atacasse outros animais e/ou pessoas”.
Descontada que seja a questão da função punitiva da responsabilidade44, que, por si só,
não autoriza a condenação do agente num montante indemnizatório superior, a decisão
da Relação de Lisboa é paradigmática por denotar que a gravidade do dano fica
dependente da existência de uma relação de afetividade com o animal de estimação.
Significa isto que, independentemente da presunção judicial de que lança mão – matéria
atinente à formulação da convicção do julgador –, a remissão para o artigo 496º CC não
pode deixar de ser entendida como uma remissão par aos dois requisitos de compensação
dos danos não patrimoniais: a gravidade e o merecimento da tutela do direito.

Dito de outro modo, a aplicação do artigo 493º-A/3 CC não é automática ou imediata,


exigindo-se uma averiguação ponderada dos requisitos atrás mencionados, consagrados
no artigo 496º CC, bem como dos critérios mencionados no artigo 494º45.

Outro problema suscitado pela remissão do artigo 493ºA/3 para o artigo 496º CC prende-
se com a questão de saber se a indemnização pode ser atribuída a um terceiro que, não
sendo proprietário do animal, estabeleceu com ele uma importante relação afetiva.

A dúvida levanta-se pelo facto de, no caso de morte da pessoa, o artigo 496º/2 e 3 CC
admitir a possibilidade da compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelos
familiares sobrevivos46.

44
Sobre a questão e as diversas perspetivas de compreensão dessa função punitiva, cf. Mafalda Miranda
BARBOSA, “Reflexões em torno da responsabilidade civil: teleologia e teleonomologia em debate”, Boletim
da Faculdade de Direito, 81, 2005, 511 s.
45
Sobre o ponto, cf. Filipe Albuquerque MATOS/Mafalda Miranda BARBOSA, O novo estatuto jurídico dos
animais, Gestlegal, 2018, 161 s. Sublinhem-se, contudo, as nossas divergências de pensamento
relativamente ao nosso coautor no tocante ao específico problema da compensação dos danos não
patrimoniais e ao problema da compensação do dano de afeição.
46
A remissão para o citado preceito suscita ainda outros temores a Filipe Albuquerque Matos. O autor
considera que o artigo 496º CC não viabiliza, por não se poder abrir a porta à indemnização de danos
reflexos, a compensação dos danos experimentados por um terceiro, na sequência de uma grave ofensa à
integridade física de um sujeito, pelo que, com a solução propugnada pelo novo artigo 493º-A CC, pode-se
temer que este preceito venha reforçar as razões justificativas da admissibilidade de compensação por danos
não patrimoniais nos termos do artigo 496º, nº4, na sequência de um facto lesivo que provoque a tal
incapacidade corporal grave do animal. Cf. Filipe Albuquerque MATOS/Mafalda Miranda BARBOSA, O
novo estatuto jurídico dos animais, 165. Como nessa mesma obra tivemos oportunidade de sublinhar, em
dissenso com o autor, não cremos que este posicionamento seja aceitável, desde logo porque nenhuma
objeção encontramos para que, por via do artigo 496º CC não possam ser indemnizados os danos sofridos
pelos familiares ali elencados, pela ordem nele estabelecido, em caso de lesão grave da integridade física
da pessoa. Em primeiro lugar, há boas razões para ver nestes danos não patrimoniais danos diretos e não
reflexos; em segundo lugar, a analogia que preside a qualquer ato de realização do direito justifica-o; em

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 160


Quanto ao ponto, haveremos de considerar que há boas razões para entender que os danos
sofridos pelos familiares sobrevivos são danos diretos.

Nos trabalhos preparatórios do Código Civil, Vaz Serra considerava que, “no caso de
morte de uma pessoa, pode ser concedida aos parentes, afins ou cônjuge dessa pessoa
satisfação pelo dano não patrimonial que a morte dela lhes causou, desde que quanto
àqueles, pela proximidade do parentesco ou afinidade, seja de presumir que tivessem pelo
falecido uma afeição que justifique a mesma satisfação. Esta é de excluir se se mostrar
que os referidos cônjuges, parentes ou afins não tinham a dita afeição”. Como alternativa,
era pensável que, “no caso de morte de uma pessoa, podem as pessoas da família dela
exigir a satisfação do dano não patrimonial a elas causado. Essas pessoas são, em
conjunto, o cônjuge e os descendentes, observando-se, quanto a estes, a precedência da
lei sucessória (…). O direito de satisfação destas pessoas supõe a existência de laços
afetivos que o justifiquem, e as regras da precedência podem ser alteradas quando as
circunstâncias do cado o impuserem”47. Designadamente, pode reconhecer-se o direito à
satisfação a outros parentes, a afins ou a estranhos, desde que essas pessoas estivessem
ligadas à vítima de modo a constituírem uma família com ela48. No seu articulado – artigo
759º/4 – o insigne civilista dispunha que “o direito de satisfação por danos não
patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, mesmo que o facto lesivo
tenha causado a sua morte e esta tenha sido instantânea”. O nº2 do artigo 476º da 1ª
revisão ministerial consagraria a mesma solução: “o direito de satisfação por danos não
patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, ainda que o facto lesivo
tenha causado a sua morte imediata”. Com a 2ª revisão ministerial, o nº2 do artigo 498º
consagra que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais
cabe aos familiares49. Note-se que, como referido anteriormente, Antunes Varela parte da

terceiro lugar, o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão uniformizador da jurisprudência, admite-o


expressamente. Sobre o ponto, cf. Mafalda Miranda Barbosa, “A (im)pertinência da autonomização dos
danos puramente morais? Considerações a propósito dos danos morais reflexos”, Cadernos de Direito
Privado, 45, 2014, 3 s. e Mafalda Miranda BARBOSA, Lições de responsabilidade civil, Princípia, 2017,
312 s.
Nesta medida, também não podemos afirmar que o artigo 493º-A CC tutele mais amplamente o titular do
direito no caso de lesão de um animal do que no caso de lesão grave da integridade física de uma pessoa.
47
Vaz SERRA, “Direito das obrigações – Anteprojecto (parte extensa)”, Boletim do Ministério da Justiça,
100, 1960, 358.
48
Vaz SERRA, “Direito das obrigações – Anteprojecto (parte extensa)”, Separata do Boletim do Ministério
da Justiça, 1960, 624 s.
49
Sobre o ponto, Antunes VARELA, Das obrigações em geral, I, 612 s., numa análise crítica das diversas
revisões ministeriais. Diz-nos o autor que, com a 2ª revisão, “eliminou-se muito significativamente a
disposição que consagra a transmissão aos herdeiros do direito de indemnização por danos não

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 161


análise articulada das diversas formulações para chegar à conclusão de que nenhum
direito de indemnização se atribui aos herdeiros pelos danos morais correspondentes à
perda da vida, quando a morte tenha sido imediata; e de que toda a indemnização
correspondente aos danos morais cabe, não aos herdeiros por via sucessória, mas aos
familiares por direito próprio. Não cremos que o argumento histórico – conducente à
negação do ressarcimento do dano da morte como um dano autónomo – possa ser tido em
conta, mas, e pese embora nos afastemos de qualquer perspetiva subjetivista da
interpretação, torna-se inegável – até pela leitura do que lhe antecedeu – que o preceito
estabelece um modelo ressarcitório preciso, assente na identificação dos titulares do
direito à indemnização, para as situações em que ocorre a morte do lesado direto. Assume,
portanto, uma opção normativa, em contraposição com outros ordenamentos jurídicos,
em que a questão se centra na qualificação do dano para efeitos de ascender ou não ao
patamar da ressarcibilidade.
A intenção do preceito parece ser, pois, claramente restritiva. Essa tem sido a posição da
doutrina quanto ao ponto. Menezes Cordeiro afirma, a este propósito, que “a morte de
uma pessoa pode causar desgosto a um número indeterminado de pessoas. O Código
sentiu, então, a necessidade de delimitar, precisamente, quem sofreu danos, para efeitos
do Direito, sob pena de se perder qualquer indemnização útil, esvaída num sem fim de
prejudicados (…)”50. Assim, “o artigo 496º/2 corresponde, visceralmente, a toda uma
conceção restritiva, relativa aos danos morais…”51.
O legislador parte de uma dada compreensão da família como uma comunidade de afetos,
em que os laços de união são tão fortes que o dano sofrido por um se estende aos demais.
Simplesmente, ao fazê-lo, e porque concludentemente considerámos que os danos a que
o artigo 496º/2 se refere são os danos dos familiares ali elencados, está a resolver,
também, um problema imputacional. Na verdade, se entendemos que – mesmo com um
intuito restritivo – se parte da ideia do sofrimento que a morte inflige a toda a família,
então a intencionalidade normativa da norma não se cumpre quando, pese embora a
pessoa se integre na categoria de familiar prevista, os laços de afeição não lhe

patrimoniais, quando o facto lesivo tivesse causado a morte imediata da vítima”. Por outro lado, “enquanto
o nº3 do artigo 476º da 1ª revisão ministerial do projeto (…) se limitava a conceder aos familiares da vítima
a indemnização dos danos morais que elas próprias houvessem sofrido com a perda da vida do seu cônjuge
ou parente, o nº2 do artigo 498º saído da 2ª revisão ministerial passou a dizer (…) que (…) o direito à
indemnização por danos não patrimoniais cabe aos ditos familiares, sem distinguir, nessa atribuição, entre
os danos morais sofridos pela própria vítima e os causados aos seus parentes ou ao seu cônjuge”.
50
Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil, VII, 518.
51
Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil, VII, 519.

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correspondem. Haverá, aí, que proceder a uma restrição teleológica do preceito, não
concedendo a compensação. Do mesmo modo, sempre que esteja em causa um sujeito
que esteja unido pelos laços do amor com o falecido, não obstante não seja seu familiar
ou não o seja no grau mais próximo, então dever-se-á operar uma extensão teleológica da
norma52.

52
No mesmo sentido, cf. Menezes CORDEIRO, Tratado de direito civil, VII, 519: “uma criança é abandonada
pelos pais, sendo recolhida e criada pelos avós; pessoas imputáveis matam-na; o desgosto é, todo, dos avós;
vai-se atribuir uma indemnização aos pais? Porque não aos avós, se é esse (e é!) o espírito da lei?”
Note-se que os autores apontam para o preceito uma intencionalidade restritiva. Para além das referências
bibliográficas já inseridas supra, cf., a este propósito, Ac. TC 86/2007, cujo relator foi Paulo Mota Pinto.
Pode aí ler-se que a “morte de uma pessoa é um evento que é suscetível de causar danos não patrimoniais
a um círculo alargado de pessoas. E pode também concordar-se com a conveniência em evitar que o lesante
por mera culpa se veja assoberbado por pretensões indemnizatórias deduzidas por um número ilimitado de
pessoas. Por estas razões, compreende-se que no n.º 2 do artigo 496º o legislador se tenha preocupado em
enumerar o círculo de pessoas cujos danos não patrimoniais, causados pela morte da vítima, são atendíveis,
e que se tenha mesmo preocupado em dividir tais pessoas em três grupos (primeiro, o cônjuge não separado
judicialmente de pessoas e bens e os filhos ou outros descendentes; “na falta destes”, os pais ou outros
ascendentes; e, “por último”, os irmãos ou sobrinhos que os representem). Isto, aliás, diversamente do que
acontecia no anteprojeto do articulado relativo ao direito das obrigações, para o Código Civil de 1966, o
qual previa, no seu artigo 759º, n.º3, que no caso de morte de uma pessoa, “quando as circunstâncias o
impuserem, pode reconhecer-se direito de satisfação a outros parentes, a afins ou estranhos à família, desde
que tais pessoas estivessem ligadas à vítima de maneira a constituírem de facto família dela”. Não obstante,
admite que “sob a perspetiva do fundamento para o reconhecimento da compensação – que reside,
obviamente, na verificação da dor e do sofrimento por causa do falecimento da vítima, e na justeza de uma
compensação por tais danos –, não se vê como possa relevar a existência de um vínculo matrimonial, em
lugar apenas de uma convivência em união estável e duradoura com outra pessoa, em condições análogas
às dos cônjuges, para excluir completamente a atendibilidade dos padecimentos sofridos por esta. Estes não
são, na verdade, nem qualitativa, nem quantitativamente menos merecedores da tutela do direito por não
existir um vínculo matrimonial”. Posto isto, “não se divisando, pois, fundamento razoável na exclusão da
ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos por quem vivia em união de facto com a vítima,
chegar-se-ia, por esta via, a uma conclusão de inconstitucionalidade, por violação do princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição”. E ainda que se considere que o vínculo matrimonial
determina soluções diferentes, “há-de, porém, necessariamente interrogar-se sobre a existência de uma
justificação atendível para a solução de excluir de plano e em abstrato todos e quaisquer danos não
patrimoniais sofridos pessoalmente por quem convivia com a vítima de um homicídio doloso em condições
análogas às dos cônjuges”. Depois de considerar que não há uma obrigação constitucional para tratar de
modo absolutamente igual aqueles que estão unidos pelo matrimónio e aqueles que não estão
(designadamente para se salvaguardar o direito a não estar casado), o TC considera que é necessário
ponderar “a ratio da delimitação, pelo n.º 2 do artigo 496.º, dos titulares de um direito a uma
“indemnização” (compensação ou “satisfação”) por danos não patrimoniais por morte da vítima, e em
particular no que toca ao problema da exclusão daqueles que de facto, tendo em conta as circunstâncias do
caso, eram mais próximos desta” e alerta que o problema é muito anterior a qualquer questão que pudesse
ter sido colocada pela união de facto. E conclui que “a norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na
parte em que exclui o direito a indemnização por danos não patrimoniais da pessoa que vivia em união de
facto com a vítima mortal de acidente de viação resultante de culpa exclusiva de outrem, não viola nem o
princípio da igualdade nem o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição conjugado com o princípio da
proporcionalidade, parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente (já que nada mais se pode retirar,
no sentido da inconstitucionalidade, da invocação da “conceção constitucional de família vertida no
art.º67.º, n.º 1 da Constituição”, que não tenha já sido considerado na fundamentação que antecede)”.
O problema no tocante ao unido de facto perde sentido com a introdução do novo nº3 do artigo 496º CC.
Importa sublinhar, in fine, que o TC se pronuncia acerca da conformidade da norma com os preceitos
constitucionais. O facto de decidir pela não inconstitucionalidade da norma não significa que, fora deste
quadro de pensamento, a solução não possa ser a da extensão teleológica do preceito. Ou seja, ainda que
não imposto pela Constituição, tal pode ser determinado pela intencionalidade própria do direito civil.

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Estas formas de interpretação corretiva são autorizadas pela contemplação da vontade
normativa da norma e levam a pensar que, afinal, a atribuição da compensação fica
dependente da verificação, em concreto, de uma lesão da personalidade da vítima indireta.
Em jogo entra, portanto, a violação de um direito de personalidade, dotado de eficácia
absoluta, afastando-se, concomitantemente, a ideia de ressarcimento dos danos em
ricochete. A nossa perspetiva será, portanto, a de que a delimitação dos titulares do direito
à compensação dos danos se deve operar por via da concretização do conceito de ilícito
por referência ao direito geral de personalidade53.
Perguntar-se-á, então, qual o sentido útil do preceito, já que à mesma solução se poderia
chegar na ausência dele? Cremos que o que a sua disciplina nos comunica é, e como
referido, a resolução de um problema imputacional ou mais precisamente a resposta à
questão – sempre presente ao nível da primeira modalidade de ilicitude extracontratual –
da dita causalidade fundamentadora da responsabilidade. Isto é, em abstrato, o legislador
vem considerar que a esfera de risco/responsabilidade criada ou incrementada por aquele
que, negligente ou dolosamente, põe em causa a vida alheia integra, nos seus contornos,
a lesão da personalidade dos familiares mais próximos, unidos à vítima direta por vínculos
de afeto. Note-se que, tal como no tocante à identidade dos sujeitos titulares do direito à
indemnização, também neste segmento imputacional a solução positivamente consagrada

Vejam-se, ainda, os Acs. TC. 275/2002 e 87/2007.


Cf., a este propósito, VAZ SERRA, “Reparação do dano não patrimonial”, 96 s. Relativamente à titularidade
do direito à indemnização, o autor aduz que “tal direito deve ser reservado para os familiares da vítima, que
são as pessoas nas quais é de presumir a existência de sentimentos de afeição bastante fortes. Mas, por um
lado, esses sentimentos podem ser ainda mais fortes da parte de pessoas estranhas à família juridicamente
entendida; e, por outro lado, o facto de ser membro da família não implica necessariamente a existência de
uma afeição suficiente”. A família deveria, portanto, ser vista como aquele conjunto de pessoas ligadas por
laços de afeição. Mas continua o autor dizendo que, no entanto, “poderia também entender-se que só às
pessoas ligadas juridicamente por laços de família (cônjuge, parentes e afins) deveria reconhecer-se o
direito à satisfação de danos não patrimoniais. As outras não tinham o direito de contar com a continuação
da situação de facto em que se encontravam com o falecido e não poderiam, portanto, alegar danos,
patrimoniais ou não, resultantes da morte dele. Assim, a concubina ou a noiva não poderiam reclamar a
referida satisfação, nem o poderiam fazer outras pessoas colocadas de facto na situação de familiares. Dadas
as razões que podem ser invocadas num sentido e no outro, talvez seja preferível usar uma fórmula que
permita à jurisprudência decidir como lhe parecer melhor, ou, reconhecendo, em princípio, o direito de
satisfação aos parentes, permitir que se atribua tal direito a pessoas estranhas à família, mas ligadas à vítima
de modo a constituírem de facto família dela” (p. 97). Propõe, assim, que a lei não indique taxativamente
quem pode ter direito à indemnização, aludindo, apenas, aos parentes próximos.
53
Sobre o ponto, cf. Carneiro da FRADA, “Nos 40 anos do Código Civil Português. Tutela da personalidade
e dano existencial”, Themis, Revista de Direito, 2008, 50 s. Segundo Carneiro da Frada, o artigo 496º,
conjugado com o artigo 70º CC, permitiria a indemnização do dano existencial, e, portanto, dos “prejuízos
sofridos pelo sujeito nas suas aptidões familiares ou afetivas, como quando fica lesada a sua capacidade
procriativa — ou, em todo o caso, a possibilidade de levar uma vida familiar normal sem encargos para
terceiros” (p. 52).

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pode ser corrigida se, em concreto, e por virtude do devido cotejo de esferas de risco se
considerar que a imputação deve ser excluída.
São, pois, duas as lições que do artigo 496º/2 podemos extrair: em primeiro lugar, a morte
de uma pessoa pode configurar uma lesão à personalidade dos que se integram no seu
núcleo familiar; em segundo lugar, tal lesão pode reconduzir-se à esfera de
responsabilidade do agente lesivo.
A resposta prévia que o artigo 496º/2 disponibiliza para a questão imputacional pode
explicar-se pelo impacto que a morte de uma pessoa tem no seio familiar e pelo facto de
a pessoa não viver no isolamento. Assim, aquele que erige uma esfera de
risco/responsabilidade, pondo em causa a vida de uma pessoa, tem de ter, pelo menos,
aventado a possibilidade da lesão desses terceiros que com a vítima estabelecem uma
plena união, porque, com a morte daquele, é também uma parte do próprio familiar que
se perde irremediavelmente, mesmo tendo em conta o reencontro futuro numa outra forma
de vida54. Posto isto, haverá situações que, não envolvendo a morte, mas outrossim a lesão
de diferentes bens jurídicos/direitos absolutos, podem igualmente desencadear lesões da
personalidade de algum ou alguns familiares55. Sustentamos, portanto, que o artigo 496º
CC não configura uma exceção à regra da indemnizabilidade dos danos diretos.
A este propósito, tenha-se em conta o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência
nº6/2014, proferido em 9 de janeiro de 2014. Reunidas em plenário as secções cíveis do
Supremo Tribunal de Justiça, fixou-se jurisprudência uniforme sobre a matéria (processo
nº6430/07. OTBBRG.S1). Em causa estava saber em que medida podia ou não ser
indemnizada B, casada com A, que tinha sofrido, na sequência de um acidente de viação,
graves lesões, pelo sofrimento experimentado por ver o que aconteceu ao seu cônjuge.
Considerando que se impõe uma interpretação atualista dos preceitos do Código Civil, o

54
Alguns esclarecimentos adicionais se impõem a este propósito. Em primeiro lugar, urge referir que a
culpa não terá de se referir ao dano concreto, bem como não terá de se referir à concreta violação do direito.
Na verdade, como a outro ensejo tivemos oportunidade de sublinhar, a culpa tem como ponto de referência
uma esfera de responsabilidade/risco que se erige a partir da preterição de deveres de cuidado que unem o
sujeito aos seus semelhantes. Será a partir dela que se lançam as bases para a formulação de um juízo
imputacional objetivo (outrora perspetivado sob a égide da causalidade). Para lá de critérios concretos de
recondução do dano lesão à esfera edificada, importará desde logo saber se a violação do direito se integra
como uma das possíveis (não improváveis, embora não necessariamente prováveis) consequências da
conduta do agente. É a esta primeira inquirição que o preceito em análise parece vir dar resposta. Para
outros desenvolvimentos acerca deste modo de perspetivar a questão imputacional, cf. Mafalda Miranda
BARBOSA, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo para a compreensão da natureza
binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, Princípia,
2013, 897 s.
55
Cf. Vaz SERRA, “Reparação do dano não patrimonial”, 99

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tribunal veio defender que – independentemente da qualificação dos danos como reflexos
ou diretos – eles devem ser indemnizados, em determinadas circunstâncias, impondo-se
uma delimitação subjetiva e objetiva dos mesmos. Relativamente a saber quem pode ser
indemnizado, o STJ veio sustentar que terá de ser alguém no círculo de proximidade do
lesado, não competindo, porém, ao tribunal dizer “quais, dos chegados ao lesado, podem
pedir compensação pelo sofrimento próprio”. No que respeita aos danos incluídos na
indemnização, aduz que eles têm de ser “particularmente graves e têm de determinar no
outro sofrimento muito relevante”56.
Particularmente interessante é, também, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência
nº12/2014. Em causa estava um caso com a seguinte intencionalidade problemática: A,
condutor de um veículo, morre num acidente de viação do qual foi o exclusivo culpado.
A questão que se colocou foi saber se os familiares da vítima poderiam ou não receber da
seguradora uma indemnização pelos danos morais sofridos em virtude da morte.
Entendeu o STJ que, não havendo neste caso direito a uma indemnização a pagar pela
seguradora pela morte, por causa da culpa exclusiva do condutor, não faria sentido que
se indemnizassem os danos não patrimoniais que decorreriam dessa mesma morte.
Considerou-se, portanto, que o dano dos familiares seria um dano indireto. A decisão
motivou votos de vencido, por se entender que o dano não deveria ser qualificado como
indireto, mas como direto e por se sublinhar que não faria sentido que, se um filho fosse
passageiro, se admitisse a indemnização pelos danos não patrimoniais próprios sofridos
com o acidente e não se concedesse a compensação num caso como este. De notar, porém,
que, mais do que a compreensão da dogmática da responsabilidade civil – no tocante aos
danos previstos no artigo 496º CC –, estava igualmente em causa a interpretação da
intencionalidade subjacente às exclusões que o regime do seguro de responsabilidade
civil automóvel previa, designadamente o artigo 7º DL nº522/85, na redação dada pelo

56
Em apelo da doutrina fixada pelo Bundesgerischtshof, pode ler-se no acórdão que “o dano psíquico tem
de ser grave” e que “tem de ser compreensível face ao motivo e tem que existir entre quem o sofre e o
lesado uma relação pessoal especial”. Mais se sustenta que “o dano tem de ter atingido a pessoa na sua
saúde de modo nítido; tem de ter ultrapassado claramente o normalmente sofrido por outras pessoas
colocadas na mesma situação, sendo excluído se corresponder ao normal risco da vida em virtude de
envolvimento nos acontecimentos do mundo”.
Preste-se, no entanto, particular atenção a alguns votos de vencido, designadamente ao de Maria Pizarro
Beleza. Sustenta a conselheira que deverá haver indemnização, no caso, por se constatar a lesão direta e
grave de um direito da autora, nos termos do artigo 483º/1 e 496º/1 CC: direito ao desenvolvimento da
personalidade, especialmente no contexto dos efeitos pessoais do casamento. A sua posição não é isolada.
Outros foram os conselheiros que sustentaram que não poderia haver lugar a uma indemnização por não se
ressarcirem os danos reflexos ou indiretos fora dos casos previstos nos artigos 495º e 496º CC.

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DL nº130/95. Por isso, importa ter em conta, quanto ao ponto, o novo regime do referido
seguro de responsabilidade civil automóvel. Determina o artigo 14º DL nº291/2007, de
21/08, na redação dada pelo DL nº153/2008, de 6/08, que se excluem da garantia do
seguro o cônjuge, ascendentes, descendentes ou adotados das pessoas referidas nas
alíneas a) a c), entre os quais se inclui o condutor, assim como outros parentes ou afins
até ao 3º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou
vivam a seu cargo e aqueles que, nos termos dos artigos 495º, 496º e 499º do Código
Civil, beneficiem de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma
das pessoas referidas nas alíneas anteriores do preceito. Há, no entanto, de considerar que
do regime legal não se pode extrair um argumento que contrarie o nosso entendimento
segundo o qual o dano sofrido pelos familiares é um dano direto. Na verdade, o que está
em causa ao nível do DL nº291/2007 é, com grande amplitude, excluir da garantia do
seguro uma série de danos, independentemente da sua natureza. O critério legal não se
refere a esta, mas tem em conta a ligação entre o titular do seguro e os lesados.
Compreendido desta forma o artigo 496º CC, não é viável pensar que a remissão que para
ele seja feita a partir do artigo 493º-A CC pode determinar, mesmo que dependente da
verificação dos requisitos da gravidade e do merecimento da tutela do direito, o
surgimento de um direito indemnizatório a favor de terceiros ou de quaisquer terceiros.

Ainda que se pudesse entender a remissão como uma forma de resolução, por via
legislativa, de um problema imputacional, à semelhança do que sucede ao nível dos
comportamentos que causem a morte (ou, acrescentamos, a lesão grave da integridade
física) de uma pessoa, sempre teríamos de encontrar um ponto de ancoragem da ilicitude
polarizada nesse terceiro, não bastando a invocação de um qualquer sofrimento.

Assim, parece ser de admitir a compensação de um não proprietário pela morte de um


animal de companhia que, simultaneamente, lhe serve de cão guia, tanto quanto possa,
nesse caso, afetar-se uma dimensão essencial da personalidade do sujeito. Do mesmo
modo, pode ser de admitir a compensação de um não proprietário pela morte de um
animal de companhia que a qualquer título se mantinha na sua detenção, quando esse
animal era a única forma de se manter ativo ou servia como instrumento fundamental para
a recuperação de uma qualquer patologia, e bem assim naquelas situações em que o
sujeito utiliza ao animal no desempenho da sua atividade desportiva/profissional, que
assim fica frustrada. Repare-se, contudo, que, em hipóteses como esta, porque o titular

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do direito de propriedade acaba por não desenvolver com o animal uma relação de
afetividade que funde a gravidade do eventual desgosto que venha a sofrer, se deve operar
uma correção do preceito, inviabilizando-se a compensação do proprietário, ao mesmo
tempo que se atribui ao terceiro. Mas para que esta solução seja possível é necessário,
como se referiu, que possa discernir-se a ilicitude, que não será desvelada pela lesão do
direito de propriedade, mas de outro direito de que o terceiro seja titular57.

Por isso, não será admissível a compensação do eventual desgosto, angústia ou


perturbação que um sujeito sinta, por força da sua militância na causa da libertação
animal, quando assiste à morte de um animal. É que, uma hipótese como esta, dificilmente
será discernível a ilicitude do comportamento do sujeito que aniquilou o animal, quando
referida a um direito deste terceiro.

4. Breve reflexão conclusiva

As grandes alterações em matéria de responsabilidade civil por danos a animais,


introduzidas pela Lei nº8/2017, de 3 de março, verificam-se mais no campo da
determinação da indemnização por danos patrimoniais do que no quadro da compensação
por danos não patrimoniais. No que a estes respeita, denota-se uma linha de continuidade
entre as soluções consagradas no artigo 493º-A/3 CC e a prática jurisprudencial anterior,
o que nos permite concluir que, pese embora um reforço das preocupações com a causa
animal, a tutela que se dispensa é (e bem) polarizada no titular do direito, ou seja, na
pessoa e não no animal. A descoberta desta intencionalidade permite-nos ser
particularmente rigorosos no que respeita à delimitação dos eventuais titulares de uma
pretensão indemnizatória procedente.

57
Pode estar em causa a titularidade de um bem da personalidade ou, em alternativa, de um direito pessoal
de gozo ao qual seja estendida a tutela possessória, inclusivamente as regras ressarcitórias.

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