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Ano letivo 2022/2023

Disciplina de Direitos Fundamentais


Regente: Jorge Reis Novais
Docente: Cláudia Monge

Análise do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 843/2022

Discente: Joana Simões Pereira


4º Ano, Turma A, Subturma 3, nº 62898

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”

Luís de Camões

1
Índice
Introdução .................................................................................................................................... 3
1. Bem jurídico e restrição a direitos fundamentais ............................................................. 3
1.1 Bem jurídico – tentativa de preencher um vazio constitucional.......................................... 4
2.Princício da legalidade na vertente da tipicidade .................................................................. 5
2.1Posição do acórdão ............................................................................................................... 5
3.Análise crítica ........................................................................................................................... 6
3.1Bens suscetíveis de justificar uma restrição ......................................................................... 6
3.2Deveres de Proteção ............................................................................................................. 8
3.3 Princípio da proibição do excesso ....................................................................................... 9
3.4 Princípio da legalidade ...................................................................................................... 10
Conclusão ................................................................................................................................... 11
Bibliografia ................................................................................................................................ 12
Jurisprudência: ......................................................................................................................... 14

2
Introdução
O acórdão que passamos a analisar relaciona-se com a questão problemática do crime de
maus-tratos a animais de companhia previsto e punido pelos artigos 387/3º e 389/1º e nº3
Código Penal1 que suscitou dúvidas quanto à sua constitucionalidade tendo sido
interposto recurso para o Tribunal Constitucional. A decisão recorrida fundou-se no
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 867/2021 que julgou inconstitucional as normas
já mencionadas por violação do artigo 27º e 18/2º da Constituição.

O acórdão vem pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 387/3º e
389/1º e nº3 CP por violação do princípio da legalidade previsto no artigo 29/1º da
Constituição por entender que na sua vertente da tipicidade as exigências de determinação
da lei penal não se encontram preenchidas. No entanto, não esqueçamos a questão prévia
que se relaciona com a fase de interpretação e justificação no controlo da
constitucionalidade das restrições aos direitos fundamentais, no caso, a criminalização,
pelo que por razões de coerência e lógica é precisamente por onde iremos começar a nossa
análise.

1. Bem jurídico e restrição a direitos fundamentais


A incriminação consubstanciando uma restrição a direitos fundamentais faz surgir a
questão de saber que bens e de que natureza são suscetíveis de a justificar. A doutrina
constitucional nacional2, assim como a doutrina penal portuguesa, tem entendido que o
direito penal encontra a sua fonte de legitimação material na Constituição3, funcionando
os bens jurídicos como concretizações dos valores constitucionais o que lhes garante
dignidade jurídico-penal4. Para reforçar esta ideia é comum o apelo ao argumento literal
presente no artigo 18/2º da Constituição “as restrições dos direitos, liberdades e garantais
devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente
protegidos”.

1
Doravante CP
2
J. MIRANDA e R. MEDEIROS , Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p.
161
3
N. BRANDÃO, “Bem jurídico e direitos fundamentais: entre a obrigação estadual de proteção e a
proibição do excesso” in estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, 1º Ed.,
2017, p. 239
4
J. FIGUEIREDO DIAS, “O direito penal do bem jurídico como princípio jurídico constitucional – da
doutrina penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações”, XXV anos de
jurisprudência constitucional portuguesa, 2009, Coimbra Editora, p. 35

3
Em sentido contrário Jorge Reis Novais entende que o mais importante para que se possa
invocar uma restrição legítima não será a forma constitucional da consagração de
determinado bem, mas a sua justificação (peso das razões invocadas para restringir)5. Ou
seja, o ponto de partida não deverá a consagração constitucional do bem jurídico, porque
também bens fora da Constituição podem ter igual valor, sendo permitida a cedência de
um direito fundamental para realizar um outro bem igualmente digno de proteção
jurídica6. Assim, como explica não se entrará em incompatibilidades com a ideia de
direitos fundamentais como trunfos7.

Note-se que a criminalização de uma conduta implica uma afetação ao direito de liberdade
presente no artigo 27/1º da Constituição, ou seja, não restam dúvidas que há uma afetação
desvantajosa de um direito fundamental8 ou por outras palavras uma diminuição ou
compressão desse conteúdo9.

1.1 Bem jurídico – tentativa de preencher um vazio constitucional


O Tribunal Constitucional preocupou-se em averiguar qual o bem jurídico protegido com
o crime de maus-tratos a animais uma vez que o bem estar animal não encontra
acolhimento constitucional expresso.

Para quem procura alguma expressão na Constituição existe uma primeira possibilidade
que é a de reconduzir ao artigo 66º da Constituição “direito a um ambiente de vida
humano”, assim os animais fazendo parte da natureza estariam abrangidos pela proteção
da norma e seriam também um bem constitucional10. Ainda quem defenda tratar-se de um
bem complexo que seria definido como um interesse de toda e cada uma das pessoas na
preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, em função de uma
certa relação atual com o agente do crime e minimamente ligado à dignidade da pessoa
humana11.

5
J. REIS NOVAIS , Limites dos Direitos Fundamentais – fundamento, justificação e controlo, Almedina,
2021, p. 227
6
REIS NOVAIS, Limites dos Direitos Fundamentais, p. 221
7
REIS NOVAIS, Limites dos Direitos Fundamentais, p. 227
8
REIS NOVAIS, Limites dos Direitos Fundamentais, p. 218
9
J. MIRANDA e R. MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p.
159
10
C. AMADO GOMES, Desporto e proteção dos animais: Por um pacto de não agressão, ponto 2.1.1.3
consultado em https://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/cej-animais_revisto.pdf
11
T. QUINTELA DE BRITO, “Os crimes de maus-tratos a animais de companhia: Direito Penal Simbólico?
In Revista CEDOUA nº2, 2016, p. 13

4
Outra opção diz respeito a reconduzir a uma consagração através da dignidade da pessoa
humana, onde funcionaria como um espelho, ou seja, maltratar um animal seria atentar
contra a dignidade do próprio maltratante12. Consideramos ser um excessivo moralismo
paternalista13, sobre esta questão Luís Greco entende que o tipo da crueldade com animais
protege o animal e não as pessoas, porque os animais por si possuem uma restrita
capacidade de autodeterminação14.

Existem outras vias exploradas pela doutrina, seja por via direta ou indireta, de tentativa
de preencher um vazio constitucional, no entanto, não abordaremos todas no presente
trabalho precisamente porque em sede de análise crítica, tentaremos explicar que esta
procura incessante por uma consagração constitucional não é mais que um formalismo
conceptual.

2.Princício da legalidade na vertente da tipicidade


2.1Posição do acórdão
O Tribunal Constitucional considerou que os artigos 387/3º e 389º do CP eram
inconstitucionais por violação do princípio da legalidade na sua vertente da tipicidade
artigo 29º da Constituição – em causa estava o conceito de animal de companhia como
sendo qualquer animal que seja “detido” ou “destinado a ser detido por seres humanos”,
a expressão “infligir dor, sofrimento” e ainda “motivo legítimo”.

O princípio da legalidade como explica Jorge Figueiredo Dias assume um papel


fundamental, uma vez que para uma norma cumprir a sua função motivadora do
comportamento é necessário que os cidadãos saibam através de lei anterior, estrita e certa,
por onde passa a fronteira que separa os comportamento puníveis dos não puníveis15. Este
princípio assume também um papel de garantia dos cidadãos contra a atuação punitiva do
Estado, sendo um verdadeiro “princípio-garantia”16.

12
J. DANILO TAVARES LOBATO, “O meio ambiente como bem jurídico e as dificuldades de sua tutela
pelo direito penal” in revista liberdades nº5, 2010, p. 69
13
L. ALIER VALENTIM NOGUEIRA, A indeterminação do bem jurídico protegido nos crimes contra
animais de companhia”, 2019, p. 18 consultado em
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/28987/1/Vers%C3%A3o%20final%C3%ADssima.pdf
14
L.GRECO, “Proteção de bens jurídicos e crueldade com animais” in Revista Liberdades nº3, 2010, p.
58
15
J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – Parte Geral Tomo I, Questões Fundamentais, Doutrina Geral
do crime, 2º Ed., Coimbra Editora, 2007, p. 186
16
J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7º ed., Almedina, 2003, p.
1167

5
Ora, a vertente que está aqui em causa diz respeito ao princípio da tipicidade, ou seja, à
determinação da lei penal que deverá ser clara o suficiente para os destinatários das
normas conseguirem compreender o seu conteúdo proibido. Parece-nos estar intimamente
relacionado com a segurança jurídica e a proteção da confiança porque a restrição e a
medida concreta da sua aplicação ao não ser determinada com suficiente precisão deixará
de existir uma confluência com um Estado de Direito, em que a determinabilidade e
clareza funcionam como uma verdadeira garantia de segurança jurídica17. Note-se que só
assim o cidadão poderá conformar autonomamente os seus planos de vida conhecendo o
que lhe é permitido ou não fazer, naquilo que é o espaço de intervenção do Estado18, assim
a determinabilidade é também uma exigência da proibição de excesso19, porque perante
uma restrição sem contornos antecipados haverá dúvidas quanto às ações ou omissões a
evitar.

Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem que do princípio da legalidade retiramos um


corolário que assenta fundamentalmente na exigência de suficiente especificação do tipo
de crime o que torna inaceitável a utilização de conceitos vagos e incertos20. Ora, é
precisamente através das concretizações do princípio que seremos capazes de analisar
criticamente a decisão do Tribunal Constitucional.

3.Análise crítica
Exposto os problemas, concentramos a nossa análise crítica em quatro pontos – um
primeiro relacionado com os bens suscetíveis de justificar uma restrição, um segundo com
os deveres de proteção e os últimos quanto ao princípio da proibição do excesso e o
princípio da legalidade por esta ordem.

3.1Bens suscetíveis de justificar uma restrição

O artigo 18/2º da Constituição diz expressamente que as restrições devem limitar-se ao


necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos, mas o que
poderá querer dizer esta expressão? Como mencionámos numa primeira fase deste
trabalho a doutrina tradicional dos direitos fundamentais apoiada pela doutrina penal
entende que os interesses ou direitos constitucionalmente protegidos são os que são

17
J. REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, 2º ed., Almedina, 2022, p. 298
18
J. REIS NOVAIS, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela
Constituição, Coimbra Editora, 2º edição, p. 770
19
REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, p. 309
20
J. GOMES CANOTILHO e V. MOREIRA, Constituição da república anotada, 4º ed., Coimbra Editora,
2007, p. 494

6
mencionados no texto constitucional, assim a proteção dos animais seria insuscetível de
ser protegido porque obrigaria a restringir outros direitos como o direito à livre iniciativa
económica privada, ao desenvolvimento da personalidade ou liberdade de profissão21,
mas não nos parece que assim seja.

Lembramos que a Constituição remonta a 1976 onde as preocupações sociais e políticas


eram diferentes, o que antes não era uma preocupação, hoje é socialmente aceite como
um tema sensível – é precisamente o caso dos maus-tratos a animais de companhia. Ainda
assim, desde há muito existem leis que proíbem a crueldade sobre animais como o caso
da proibição dos touros de morte22. Significaria isto que se a constitucionalidade de outras
leis em vigor, que proíbem condutas contra animais fosse questionada, no entendimento
do tribunal teriam que ser necessariamente inconstitucionais.

Para além disso, acrescentamos como argumento o artigo 16/1º da Constituição que
admite a possibilidade de encontrar outros direitos fundamentais que não os
expressamente previstos, conhecida como cláusula aberta ou de não tipicidade dos
direitos fundamentais23, pelo que não compreendemos as últimas decisões do Tribunal
Constitucional24 face a este problema.

Parece-nos que a necessidade por parte da doutrina de encontrar um bem jurídico com
relevo constitucional, não são mais que construções artificiais que servem como desculpa
para não reconhecer que o facto de existir um interesse digno, o que nos parece ser
precisamente o caso de proteção dos animais de companhia, basta para reconhecer a
proteção constitucional. Se partirmos da premissa que a Constituição tem de mencionar
tudo expressamente ou pelo menos indiretamente, então estamos perante um formalismo
total e absoluto onde direitos tão ou mais dignos são reféns desta exigência – imaginemos
que alguém ataca o cão de família e deixa-lo morrer em agonia, para qualquer pessoa isto
seria condenável, assim também o considerou a Assembleia da República quando
criminalizou os maus-tratos a animais de companhia, no entanto, atendendo ao
entendimento do Tribunal Constitucional a criminalização seria inconstitucional.

21
J. REIS NOVAIS, Maus-tratos a animais e Constituição, disponível no blog da disciplina de direitos
fundamentais nos textos de apoio, 2023, p.5 https://fundamentais.blogs.sapo.pt/
22
REIS NOVAIS, Maus-tratos a animais e Constituição, p. 6
23
REIS NOVAIS, Maus-tratos a animais e Constituição, p. 14
24
Referimos-mos ao acórdão n.º 867/2021 do Tribunal Constitucional disponível em
https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210867.html

7
Como explica Jorge Reis Novais ainda que não possamos encontrar um bem jurídico com
expressão constitucional e, portanto, tratar-se-á de um bem de natureza
infraconstitucional, isto não significa que não possa no caso concreto ter um peso
substantivo superior ao do bem fundamental25, ou seja, uma coisa não invalida a outra –
trata-se de uma reserva imanente de ponderação.

3.2Deveres de Proteção

Admitindo que a proteção dos animais merece tutela constitucional e reconhecida a sua
dignidade constitucional cabe-nos ainda colocar a seguinte questão: será que o Estado
tem um dever de proteção para com os animais? Isto porque do conteúdo dos direitos
fundamentais deduz-se uma obrigação jurídico-constitucional de proteção, um dever de
tutela reforçado por parte do legislador e do Estado, sendo os direitos fundamentais uma
espécie de barreiras para deter os ataques contra os particulares26.

Como explica Carla Amado não estamos perante “direitos dos animais”, assentes numa
ideia de reconhecimento de equiparação às pessoas, porque os animais apesar de sofrerem
danos não têm a capacidade por si de responder à agressão o que poderia consistir um
verdadeiro risco civilizacional, uma vez que chegaríamos a resultados insólitos onde
comer carne, fazer experiências e usar a sua pele como matéria-prima seriam sempre a
prática de violência para com os animais27. Logo, estaremos perante deveres de proteção
para com os animais, não partindo do pressuposto que estes têm direitos, mas que da
dignidade constitucional impõe-se deveres de cuidado das pessoas que garante a certos
animais o direito a ter um modo de vida de acordo com a sua espécie, protegidos dos
abusos dos seres humanos. Contudo, da Constituição não decorre nenhuma obrigação
absoluta de criminalização, parece-nos que impõe antes a garantia de uma tutela efetiva28
por parte do Estado que atua como guardião de direitos fundamentais, mas esta proteção
é através de ingerência porque conflitua com os particulares.

25
REIS NOVAIS, Maus-tratos a animais e Constituição, p. 1
26
BRANDÃO, Bem jurídico e direitos fundamentais, p. 244
27
C. AMADO GOMES, “Direito dos animais: um ramo emergente? In Atas digitais do Colóquio
Animais: Deveres e Direitos”, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa:
ICJP, 2015, p. 55 disponível em:
https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_animais_deveres_direitos_2015.pdf
28
BRANDÃO, Bem jurídico e direitos fundamentais, p. 259

8
3.3 Princípio da proibição do excesso

O esclarecimento das dúvidas sobre a legitimidade das razões e a constitucionalidade da


restrição deve ser vista no caso concreto e, portanto, na fase de controlo. Neste sentido,
consideramos importante sujeitar a questão a um último teste que se relaciona com os
limites aos limites, neste sentido, importa referir os princípios estruturantes. Teremos
agora em conta o artigo 18/2º da Constituição na parte em que diz “devendo as restrições
limitar-se ao necessário”. Mesmo para quem defenda uma relação de referência recíproca
entre ordem penal e constitucional esta relação não será suficiente, porque teremos
sempre que perceber se no caso concreto, a proteção penal de qualquer bem selecionado
foi necessária, portanto, devemos analisar se a restrição tem fundamento e se não poderia
ter sido assegurada por meios menos agressivos para os direitos fundamentais29.

Assim, esta incriminação parece-nos idónea para a proteção dos interesses dos animais
de companhia contra a inflição dos mesmos, relembramos que a idoneidade exige que a
medida restritiva se mostre adequada ao objetivo almejado30 ou que contribua para
alcançar o fim numa forma sensível31, no caso em concreto, tendo em conta a fragilidade
dos animais e a necessidade de os proteger num juízo de prognose ex ante a medida seria
apta. Quanto à indispensabilidade ou necessidade apesar da incriminação ser uma
restrição intensa, notamos que produzirá efeitos preventivos e dissuasórios que podem
contribuir para uma maior tutela face aos animais de companhia, tutela esta que não seria
suficiente com o ilícito de mera ordenação social32, pelo que ainda que a medida restritiva
seja mais gravosa há um acréscimo sensível da eficácia na realização do fim 33, estará
respeitado o princípio da necessidade. Quanto ao princípio da proporcionalidade a
incriminação visa exclusivamente a proteção dos animais de companhia. Na apreciação
desse princípio, temos por um lado o bem que se pretende proteger com a restrição e, do
outro lado, o bem jusfundamental agredido que é afetado, mas não se trata de uma
ponderação de bens, mas de comparação de sacrifícios, pelo que o sacrifício imposto não
é desproporcionado face ao fim visado que é a proteção dos animais de companhia e não
qualquer animal.

29
P. SOARES DE ALBERGARIA e P. MENDES LIMA – “Sete vidas: a difícil determinação do bem
jurídico nos crimes de maus-tratos e abandono de animais” in revista julgar, nº 28, 2016, p. 132
30
JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, p. 162
31
REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, p 111
32
Note-se que é através da ameaça legal penal que o Estado dá cumprimento ao seu dever de proteção
33
REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, p. 121

9
Posto isto, consideramos que a incriminação em causa não viola o princípio da proibição
do excesso.

3.4 Princípio da legalidade


Quanto ao princípio da legalidade que surgiu a propósito dos conceitos previstos nas
normas dos artigos 387º e 389º CP não nos parece que a decisão de inconstitucionalidade
do Tribunal Constitucional seja correta. Ainda que concordemos como alguma doutrina
que a margem de indeterminação é “dificilmente escapável”34, ainda assim consideramos
que a intenção do legislador foi de não abranger qualquer animal, mas só aqueles que têm
patamares mínimos de capacidade para estabelecer uma relação afetiva com os seres
humanos. Por isso, a noção deve ser alargada com vista a abranger todos os animais que
o Homem socialize de forma intensa, fazendo com que percam as referências naturais e
por isso aumentando as suas responsabilidades relativamente ao seu bem estar35.

Além do mais, conseguimos compreender a essência do proibido, ou seja, os destinatários


das normas conseguem compreender que é proibido maltratar animais de companhia,
sendo os maus-tratos identificados como comportamentos com caráter violento e que
sejam idóneos a refletir-se de forma negativa na saúde dos animais. Quanto à expressão
“sem motivo legítimo” surgem dúvidas se a intenção do legislador foi de remeter para as
causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, mas não nos parece que assim seja porque
não é possível a legítima defesa contra um animal de companhia.

Recordamos que para estarmos perante a violação deste princípio não basta que o
legislador utilize conceitos vagos ou menos precisos, é necessário que se deixe de
compreender o desvalor expresso no tipo legal, dependendo sempre do grau de imprecisão
e do conteúdo da norma36. Partindo desta premissa, estamos capazes de discordar da
posição adotada, porque embora suscite dúvidas em relação à sua interpretação, não nos
parece que haja espaço às manipulações elaboradas dos conceitos produzidas pelo
Tribunal Constitucional.

34
SOARES DE ALBERGARIA e MENDES LIMA, Sete vidas, p. 158
35
AMADO GOMES, Direito dos animais: um ramo emergente? p. 58
36
M. FERNANDA PALMA, Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria
da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, 4º Ed., AAFDL
EDITORA, 2020, p. 136

10
Conclusão
Em sede de conclusão, importa esclarecer que consideramos a proteção dos animais de
companhia um bem com dignidade constitucional. Assim, será um bem suscetível de
justificar uma restrição não devendo a questão de constitucionalidade dos maus-tratos a
animais de companhia ser resolvida através do argumento da reserva de lei, porque
devemos interpretar o artigo 18/2º da Constituição no sentido de se referir não a outros
“interesses constitucionalmente protegidos”, mas a “interesses igualmente dignos de
proteção jurídica”. Neste sentido, pelos motivos que procurámos expor e desenvolver ao
longo da análise crítica não nos parece que a decisão do Tribunal Constitucional seja
correta, também em relação à questão do princípio da legalidade na vertente da tipicidade,
pois não vemos uma abstração tal que possa conduzir a um juízo de inconstitucionalidade.

Para que a problemática possa ser ultrapassada a solução passará, com certeza, pela
consagração constitucional do bem estar dos animais no texto da Constituição, alteração
que se espera com a revisão constitucional de 2023, dando voz (finalmente) às novas
preocupações com os animais – nas palavras de Luís de Camões “mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades” e para que não restem dúvidas mude-se a Constituição.

11
Bibliografia

ALIER VALENTIM NOGUEIRA, L:


− A indeterminação do bem jurídico protegido nos crimes contra animais de
companhia”, 2019,
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/28987/1/Vers%C3%A3o%20final
%C3%ADssima.pdf

AMADO GOMES, C:

− Desporto e proteção dos animais: Por um pacto de não agressão


https://www.icjp.pt/sites/default/files/papers/cej-animais_revisto.pdf
− Direito dos animais: um ramo emergente? In Atas digitais do Colóquio Animais:
Deveres e Direitos”, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa. Lisboa: ICJP, 2015
https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/ebook_animais_deveres_
direitos_2015.pdf

BRANDÃO, N:

− Bem jurídico e direitos fundamentais: entre a obrigação estadual de proteção e a


proibição do excesso, in estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel da
Costa Andrade, 1º Edição., 2017

DANILO TAVARES LOBATO, J:

− O meio ambiente como bem jurídico e as dificuldades de sua tutela pelo direito
penal, in revista liberdades nº5, 2010

FERNANDA PALMA, M

− Direito Penal. Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da


lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, 4º
Edição, AAFDL EDITORA, 2020

FIGUEREDO DIAS, J.:

− Direito Penal – Parte Geral Tomo I, Questões Fundamentais, Doutrina Geral do


crime, 2º Edição, Coimbra Editora, 2007
12
− O direito penal do bem jurídico como princípio jurídico constitucional – da
doutrina penal, da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações,
XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa, 2009, Coimbra Editora

GOMES CANOTILHO e Moreira, V:


− Constituição da república anotada, 4º edição, Coimbra Editora, 2007

GOMES CANOTILHO, J.:


− Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7º edição, Almedina, 2003

GRECO, L.:
− Proteção de bens jurídicos e crueldade com animais, in Revista Liberdades nº3,
2010

MIRANDA, J e Medeiros, R:

− Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005

REIS NOVAIS, J.:

− As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela


Constituição, Coimbra Editora, 2003
− Limites aos direitos fundamentais – fundamento, justificação e controlo,
Almedina, 2021
− Maus-tratos a animais de companhia e Constituição, textos de apoios no blog da
disciplina de direitos fundamentais, 2023 https://fundamentais.blogs.sapo.pt/
− Princípios estruturantes de Estado de Direito, 2º edição, Almedina; 2022

SOARES DE ALBERGARIA e MENDES LIMA, P.:


− Sete vidas: a difícil determinação do bem jurídico nos crimes de maus-tratos e
abandono de animais” in revista julgar, nº 28, 2016

QUINTELA DE BRITO, T.
− Os crimes de maus-tratos a animais de companhia: Direito Penal Simbólico? In
Revista CEDOUA nº2, 2016

13
Jurisprudência:

− Acórdão n.º 867/2021 do Tribunal Constitucional


https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210867.html

14

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