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APRESENTAÇÃO DIREITO PENAL

RITA:

No ordenamento jurídico português, não existe qualquer sanção penal para quem vende serviços

sexuais de livre vontade, nem para quem adquire esses mesmos serviços. Contudo, quem

profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por

outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos . Está aqui

em causa o crime de lenocínio simples, previsto no artigo 169.º n.º 1 do Código Penal.

Hoje vamos apresentar o Acordão do Tribunal Constitucional n.º 134/2020. Este Acordão é

pioneiro em matéria do crime de lenocínio, porque, pela primeira vez, depois de muitas

decisões em sentido contrário, o Tribunal Constitucional decidiu pela inconstitucionalidade da

norma incriminatória prevista no artigo 169.º n.º 1 CP.

KIKA

Antes de passarmos à análise do acordão, vamos referir dois aspetos centrais inerentes à

criminalização do lenocídio no nosso ordenamento jurídico.

Em primeiro lugar, cabe dizer que a norma que criminaliza o lenocídio já sofreu inúmeras

alterações, tanto ao nível da sua redação, como ao nível do seu enquadramento sistemático.

Quando aprovado em 1982, o Código Penal inseriu o crime de lenocídio no âmbito dos crimes

contra os valores e interesses da vida em sociedade, numa construção dogmática nitidamente

moralista. Só mais tarde, com a revisão do Código ocorrida em 1995, é que assistimos ao

abandono desta conceção moralista, com a inserção dos crimes sexuais no Título I (dos crimes

contra as pessoas), Capítulo V (crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual). Dito isto,

é também de referir que a Reforma ao Código Penal trouxe uma alteração de vulto ao nível do

lenocídio, pois eliminou-se do tipo legal “exigência de exploração de situação de abandono ou

necessidade económica”, com a inerente criminalização de condutas que até então não eram

punidas. Esta alteração tornou difícil averiguar a natureza do bem jurídico que a disposição em

causa pretende tutelar, não existindo consenso na doutrina a cerca deste matéria

RITA

Passando agora para o acordão 134/2020, o Tribunal Constitucional afirma que a incriminação

prevista no artigo 169.º n.º 1 é inconstitucional, por violação dos artigos 18.º n.º 2 e 27.º n.º 1 da

Constituição.

Antes de referirmos os argumentos a favor inconstitucionalidade do artigo 169.º n.º 1 CP,

importa olhar para os argumentos a favor da constitucionalidade deste preceito, reiterados pelo

Tribunal Constitucional numa sucessão de vários acordãos, desde logo o acordão 144/2004.

… Argumentos a favor da constitucionalidade

KIKA

Argumentos a favor da inconstitucionalidade

• Como primeiro e principal argumento, o Tribunal Constitucional considera que a norma que

criminaliza o lenocídio é inconstitucional por violação do artigo 18.º n.º 2 da Constituição.

Antes de explicar este argumento, cabe explicar sucintamente a norma constante do artigo 18.º n.º 2

da Constituição. Esta norma é essencial por fixar limites à intervenção do direito penal, dela se

retirando dois princípios basilares: o princípio da da proporcionalidade e o princípio da

subsidariedade do direito penal.

Falando brevemente do princípio da proporcionalidade, inerente ao próprio Estado de Direito,

importa dizer que este se desdobra em três vertentes. Temos a vertente da adequação, que estabelece

que as sanções penais legalmente previstas devem revelar-se adequadas à prossecução dos fins

visados por lei. Temos a vertente da necessidade, que nos diz que as sanções penais têm de ser

necessárias, no sentido de que os fins prosseguidos pela lei não podem ser obtidos por meios menos

onerosos. Por fim, temos a vertente da proporcionalidade em sentido estrito, que exige a limitação

da gravidade da sanção à gravidade do mal causado pelo crime. Passando para o princípio da

subsidariedade do direito penal, concretização do princípio da proporcionalidade, este parte da

premissa de que o direito penal implica as restrições mais graves aos direitos fundamentais,

designadamente à liberdade. Consequentemente, o recurso ao direito penal não pode ocorrer sem

mais, sempre que se dê a violação de um bem jurídico. Para que o ordenamento jurídico-penal

intervenha, criminalizando determinada conduta humana, é preciso que esteja em causa um bem

jurídico dotado de relevância constitucional, isto porque, como as sanções penais sacrificam bens

constitucionalmente protegidos, o recurso a estas sanções só encontra justificação se tiver por

finalidade a tutela de bens também dotados de relevância constitucional. Para além disso, é preciso

que estes bens não possam ser eficazmente tutelados por outros ramos do direito.

No entendimento do Tribunal Constitucional, a norma do artigo 169.º n.º 1 do Código Penal viola o

artigo 18.º n.º 2 da Constituição, mais precisamente o princípio da

Tal como referi na introdução, na reforma ao Código Penal de 1998, o legislador eliminou do tipo

legal do crime de lenocídio a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à

Com isto, há uma nítida violação do artigo 18.º n.º 2, particularmente do princípio da

proporcionalidade na vertente

azes de afastar a circunstância de que, na sua con guração atual, o tipo


legal de crime do lenocínio simples abrange mais hipóteses do que aquelas
que, à luz daqueles mesmos argumentos, se justi caria que abrangesse

Com isto, há uma nítida violação do artigo 18.º n.º 2 da Constituição, particularmente do

ativo foi, de uma forma geral, fortemente crítica – cfr., por todos,
Figueiredo Dias, “O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio
constitucional…”, XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa,
Coimbra, 2009, 31 s., 39, para quem, «tendo o legislador ordinário eliminado
a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à “exploração
de situações de abandono ou de necessidade económica”, eliminou a
referência do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da
autodeterminação sexual e tornou-se in el ao princípio do direito penal do
bem jurídico», «surgindo a incriminação − pode ler-se em Direito penal.
Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007. p. 124 − referida à tutela de puras

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situações tidas pelo legislador como imorais»; Anabela Rodrigues, “Anotação


ao art. 170.º”, Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial, I,
Coimbra, 1999, p. 519, para quem a incriminação do lenocínio visa «proteger
bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal –
o que se tem hoje por ilegítimo

De facto, com a formulação dada ao crime de lenocídio

intervir quando estão em causa bens jurídicos dotados de relevância constitucional e, para os quais,

O Prof. Dr. Figueiredo Dias, (in Parte geral, Tomo I, 118 e 119), entende
que a formulação dada pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, ao crime de
lenocínio previsto no art.°170.º, n.º1 do Código penal, eliminando a exigência
de que o favorecimento da prostituição se ligasse necessariamente à
exploração de situações de abandono ou de necessidade económica, leva à
incriminação de puras situações tidas pelo legislador como imorais, sem
ligação ao bem jurídico da liberdade ou autodeterminação sexual da
prostituta, pelo que a incriminação é materialmente inconstitucional

não parece sustentável que a ideia geral e abstracta de dignidade da


pessoa, desvinculada de qualquer dimensão garantística da
autodeterminação de quem se prostitui, conserve ainda um conteúdo

constitucionalmente determinado, capaz de validar a restrição a direitos


fundamentais que a criminalização representa.

Contudo, em face da letra e hist ria do n. o1, do art. 169. o, n o admiss vel essa interpreta o
restritiva. N o s a exig ncia da explora o de uma situa o de vulnerabilidade da pessoa que se
prostitui n o consta do tipo, como foi intencionalmente retirada pelo legislador e deslocada para a
al nea d) do n. o 2 do mesmo preceito, ainda que em termos algo recon gurados, visto que o
aproveitamento (n o sendo j necess rio que tenha havido explora o) de uma circunst ncia de
especial vulnerabilidade da v tima passou a constituir elemento quali cativo de um tipo legal de
base que se pretendeu subsistisse sem ele 39.


















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