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AVISO SOBRE DIREITOS AUTORAIS

O material a seguir foi selecionado e resumido


com o intuito de servir apenas como
referência de estudo, respeitando assim os
direitos autorais de seus criadores, com os
devidos créditos destacados na manutenção da
capa da obra.
ainda considerados crurunosos, mas sem repercussão na consciência
social de nosso tempo, marchará certamente, cedo ou tarde, parn
uma profunda reforma do direito penal legislado, revalorizando e
recolocando no centro da construção do novo sistema a proteção
de bens jurídicos, por forma e dentro de limites que reflitam as reais
necessidades do mundo em que vivemos. E de tal sorte que a justi1;a
criminal, emperrada por uma enorme carga de delitos de pequena
importância, possa afinal dedicar-se aos fatos e delinqüentes mais
graves que, desafiadoramente, aí estão crescendo e se multiplicando
diante de nossos olhos atônitos.
Diga-se, ainda, que não se deve confundir bem jurídico tutelado
com objeto material do crime 34• No crime de homicídio, por exem-
plo, objeto material é o corpo humano, bem jurídico é a vida. Isso
revela, conforme acentuamos de início, que o objeto de tutela são §· 3. 0 Princípio da legalidade ou da reserva
valores ético-sociais, não apenas as coisas materiais sobre que recai
a ação criminosa 35. legal e seus desdobramentos
12. Por último, é oportuno acentuar que, se o crime deve ser
ofensa real ou potencial a um bem jurídico, tal ofensa não basta
13. O princ1p10 da legalidade, segundo o qual nenhum fato
para .a caracterização do ilícito penal. O crime tem uma estrutura
jurídica complexa, devendo somar-se à ofensa ao bem jurídico outras pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser apli-
circunstâncias não menos importantes para o seu aperfeiçoamento. cada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei
Pode-se, pois, afirmar que o bem jurídico orienta a elaboração do o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao
tipo, esclarece o seu conteúdo, mas não o esgota. Os elementos poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. Daí
subjetivos do · tipo são igualmente importantes. O mesmo se diga sua inclusão na Constituição, entre os direitos e garantias fundamen-
da antijuridicidade e da culpabilidade, sem as quais não há que se tais, no art. 5.º, XXXIX e XL, in verbis: "não haverá crime sem lei
falar em crime. É um equívoco, porém, a nosso ver confundir-se anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal"; "a lei
dano, evento danoso, com ofensa ao bem jurídico. Isso seria incor- penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". O princípio da
rer na confusão inicialmente apontada entre objeto material do crime legalidade costuma ser enunciado por meio da expressão latina nullum
e bem jurídico tutelado. Na tentativa idônea de homicídio pode não crimen, nulla poena sine lege, esta última construída por Feuerbach,
haver dano algum, mas, apesar disso, haverá sempre um ataque ao no começo do século XIX 1 • Significa, em outras palavras, que a ela-
bem jurídico vida humana. O que faz com que a pena seja, nessa boração das normas incriminadoras e das respectivas sanções cons-
hipótese, menor que a do crime consumado são fatores de política titui matéria reservada ou função exclusiva da lei. Embora Feuer-
criminal, o grau e a intensidade da ofensa, a frustração do ato crimi- bach tenha tido o mérito da construção da fórmula latina, além de
noso, o que não significa ausência de ofensa ao bem jurídico, por dar-lhe uma fundamentação jurídico-penal, não só política, o certo
falta de um resultado meramente material.
é que esse princípio já se encontra na Magna Charta Libertatum
(século XIII), no Bill of Rights das colônias inglesas da América
34. Bettiol, Dfritto penale, cit., p. 177; Maurach, Deutsches Strafrecht,
cit., p. 215.
35. No mesmo sentido, Bettiol, Diritto penale, cit., p. 177. 1. Lehrbuch des Gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Recht,
l. ed., 1801.

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do Norte e na Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen, da
entendida como autêntica "função de garantia individual das comi-
Revolução Francesa, de onde se difundiu para os demais países 2 •
nações penais" 5.
Ftinda-se na idéia de que há direitos inerentes à pessoa huma-
na que não são nem precisam ser outorgados pelo Estado. Sendo a) "Le'x praevia" (exigência de lei anterior). Decreto-ki e
assun, e como não se pode negar ao Estado o poder de estabelecer medida provisória
certas limitações ou proibições, o que não estiver proibido está per-
mitido (permittitur quod non prohibetur). Daí a necessidade de 15. A lei que institui o crime e a pena deve ser anterior ao
editarem-se proibições c;isuísticas, na esfera penal, o que, segundo o fato que se quer punir. E só a lei em sentido estrito pode criar crimes
princípio em exame, compete exclusivamente à lei. e pertas criminais.

14.. O nullum crimen, nulla poena sine lege tem sua longa his- 16. O extinto Tribunal Federal de Recursos assim decidiu, em
tória, por vezes acidentada, com fluxos e refluxos. Por isso já foi sessão plenária,-em incidente de inconstitucionalidade (RTFR, 82:15,
objeto. de muitas interpretações, conforme acentua Maurach, cada e 85:209). O Supremo Tribunal Federal não teve ainda, ao que
uma delas desempenhando papel político de realce, antes que se che- parece, oportunidade de enfrentar diretamente a questão. Não obs-
gasse à concepção atual, mais OlJ menos cristalizada na doutrina. tante, o voto do Min. Moreira Alves, no HC 55.191, sugere clara-
Presentemente, essa concepção é obtida no quadro da denominada mente, de passagem, idêntica conclusão, in verbis: " ... Se se enten-
"função de garantia da lei penal" 3 que provoca o desdobramento der - como pretende o impetrante - que esse artigo criou um
do princípio em exame em quatro outros princípios, a saber: novo tipo delituoso como modalidade de apropriação indébita, é indu-
bitável que incursionou ele em área que lhe era vedada: o direito
a) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; penal. Nem se diga, como o faz o voto do Sr. Ministro Aldir G.
b) nullum crimen, nulla poena. sine lege scripta; Passarinho, que se trata de sanção pelo não-recolhimento de imposto,
motivo por que diz respeito a matéria referente a finanças públicas.
e) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta;
Em se tratando de definição de crime novo, ainda que o ato tido
d) nullum crimen, nulla poena sine lege certa. como delituoso seja lesivo às finanças públicas, a norma que esta-
belece é penal, e não financeira ou tributária, tanto que a ela se apli-
Lex praevia significa proibição de edição de leis retroativas que cam os princípios gerais do direito criminal. Por outro lado, e ainda
fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição partindo da premissa que partiu o impetrante, não se pode afastar
da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito o vício da incompetência para legislar sobre direito penal por meio
consuetudinário. Lex stricta, a proibição· da fundamentação ou do de Decreto-Lei, sob o fundamento de que o Diploma impugnado foi
agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam par- aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo 28 de
tem). Lex certa, a proibição de leis penais indeterminadas 4 • 1967, havendo, assim, ocorrido a concorde dos dois Po-
Com a aplicação concomitante desses quatro princípios, conti- deres - o Legislativo e o Executivo - tal como sucede as mais das
dos por implicitude no princípio geral antes referido, constrói-se a vezes em se tratando de lei. Não procede tal fundamentação, porque
denominada função de garantia da lei penal, que pode também ser a Lei e o Decreto-Lei são figuras diversas no processo legislativo,
somente se admitindo este em circunstâncias e em hipóteses taxativas.
A aprovação do Congresso Nacional não tem o condão de mudar a
2. Com mais detalhes, consulte-se Hungria, Comentários ao Código Penal, natureza do Decreto-Lei, transformando-o em Lei, e permitindo-lhe,
v. 1, t. 1, p. 25 e s. portanto, extravasar do âmbito estreito em que é admitido. Portanto,
3, Cf. Maurach, Deutsches Strtefrecht, cif., p. 106; Jescheck, Lehrbuch,
cit., p. 103 e s.; Heinz Zipf, lntroducci6n a la política criminal, p. 69.
4. Albin Eser, Strafrecllt, v. 1, p. 32 e s.
5. Maurach, Deutsches Strafrecht, cit., p. 107.

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se correta estivesse para mim a premissa assentada pelo impetrante Note-se que, nesses exemplos, o mal causado (prisões, arromba-
- o artigo 2.º, caput, do Decreto-Lei 326/67 criou modalidade nova mentos, violações de sigilo) é irreversível, mesmo na hipótese de
de apropriação indébita - não teria dúvida em considerá-lo íncons- desaprovação pelo Congresso da medida provisória. Isso sem falar
titucional ... " (RT], 86:412-3). nas conseqüências funestas de certas atividades policiais ostensivas,
praticadas com grande publicidade, em geral causadoras de desonra
17. A Constituição de 1988, no art. 62, substitui o decreto-lei ou ofensas à integridade física de pessoas, as quais de repente poderão
pela medida provisória, sem tradição no direito brasileiro, e não esta- ser transformadas em vis criminosos pelo curto espaço de tempo de
beleceu, de modo expresso, limites objetivos para a edição desta trinta dias durante a vigência do malogrado arremedo de lei.
última, exigindo apenas "relevância e urgência", requisitos genéricos Aos brasileiros que, nos dias de hoje, assistem atônitos à edição
e pouco confiáveis. Parece-nos, contudo, que a exigência de lei for- em série dessas medidas provisórias, é bom lembrar que, por decreto-
mal, em sentido estrito, permanece e deve permanecer, entre nós, lei, já tivemos "leis" de segurança nacional, o que poderá sugerir, a
por duas ordens de consideração: 1.ª) a medida provisória, pelos seus qualquer momento, uma tentativa de recaída nessa linha de orien-
contornos constitucionais, é espécie do gênero "lei delegada", de efi- tação, desta feita obviamente por "medida provisória".
cácia condicionada à expressa aprovação do Congresso Nacional;
Fiquemos, pois, com o princípio. da reserva legal em suas linhas
2.ª) a Constituição veda delegação em matéria de legislação sobire
tradicionais. Disso não teremos que nos penitenciar, um dia, como
direitos individuais (art. 68, § l .º), dentre os quais se destaca de modo
ocorreu em alguns países da Europa, em épocas de triste
maiúsculo o direito à liberdade, enunciado no caput do art. 5.0 e
explicitado em vários dos incisos da proclamação dos direitos e ga-
b) "Lex scripta" (hipóteses de exclusão e de
rantias fundamentais. Tal vedação será atingida, por via reflexa, se
permitida for a criação de tipos penais por medida provisória. admissibilidade dos costumes)
Ora, a medida provisória, por não ser lei, antes de sua apro- 18. Da afirmação de que só a lei pode criar crimes e penas
vação pelo Congresso, não pode instituir crime ou pena criminal (in- resulta, como corolário, a proibição da invocação do direito consue-
ciso XXXIX). Se o faz choca-se com o princípio da reserva legal, tudinário para a fundamentação ou a agravação da pena, como ocor-
apresentando um vício de origem que não se convalesce pela sua even- reu no direito romano e medieval. Não se deve, entretanto, cometer
tual aprovação posterior, já que pode provocar situações e males irre- o equívoco de supor que o direito costumeiro esteja totalmente abo-
paráveis. Considere-se o que foi dito inicialmente: os tipos legais de lido do âmbito penal. Tem ele grande importância para elucidação
crime constituem verdadeira autorização primária para que o Estado do conteúdo dos tipos. Além disso, quando opera como causa de
possa intervir em certas áreas reservadas, na esfera da liberdade indi- exclusão da ilicitude (causa supralegal), de atenuação da pena ou
vidual (supra, n. 3). da culpa, constitui verdadeira fonte do direito penal. Nessas hipóteses,
Sendo assim, não se faz necessária muita acuidade para perceber como é óbvio, não se fere o princípio da legi;ilidade por não se estar
que a criação de figuras penais e até a simples agravação de penas piorando, antes melhorando, a situação do agente do fato.
através de medida provisória poderiam prestar-se para coisas desta
natureza: 19. Note-se, porém, que a simples omissão da autoridade em
reprimir determinados crimes ou contravenções não basta para revo-
a) extirpação da liberdade de ir e vir, através da prisão em fla-
gar por desuetudo a norma incriminadora penal. Nesse sentido re-
grante por crimes recém-criados, por medidas provisórias;
cente julgado do Superior Tribunal de Justiça, de que foi relator o
b) extirpação da inviolabilidade da residência e do sigilo .da cor- autor desta obra, assim ementado: "Penal. Contravenção do 'jogo do
respondência, nas mesmas hipóteses, pondo por terra as garantias dos bicho'. Acórdão absolutório fundado na perda de eficácia da norma
incisos XV, XI e XII, já que a possibilidade de criação de tipos contravencional ('a conduta embora punível deixa de sê-lo social-
penais novos é quase ilimitada. mente'). Decisão que nega vigência ao art. 58, § Lº, 'b', do De-

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ereto-Lei 6.259/44. Reconhece-se, em doutrina, que o costume, sem-
De um modo geral é possível, portanto, afirmar-se, conclusiva-
pre que beneficie o cidadão, é fonte do Direito Penal. Não obstante,
mente, com o autor por último citado, que: "Toda regra jurídica é
para nascimento do direito consuetudinário são exigíveis certos requi-
suscetível de aplicação analógica - não só a lei em sentido estrito,
sitos essenciais (reconhecimento geral e vontade geral de que a norma
mas também qualquer espécie de estatuto e ainda a norma de direito
costumeira atue como direito vigente), não identificáveis com a mera
consuetudinário. As conclusões por analogia não têm apenas cabi-
tolerância ou omissão de algumas autoridades. A circunstância de o
mento dentro do mesmo ramo do direito, nem tampouco dentro de
próprio Estado explorar jogos de azar não altera esse entendimento
cada Código, mas verificam-se também de um para outro Código e
porque, no caso em exame, o que se pune é uma certa modalidade
1. de um ramo do direito para outro" 8 . Essa a regra.
de jogo: a clandestina, proibida e não fiscalizada" (REsp. 2.202-SP,.
D], 2 abr. 1990, p. 2461). 21. No direito penal, contudo, importa distinguir duas espé-
cies de analogia: a analogia in malam partem e a analogia in bonam
partem. A primeira fundamenta a aplicação ou agravação d.a pena
e) "Lex stricta" (exclusão e admissibiliào.de da analogia) em hipóteses não previstas em lei, semelhantes às que estão previstas.
A segunda fundamenta a não-aplicação ou a diminuição da pena nas
20. Outro corolário do princípio da legalidade é a proibição mesmas hipóteses. A primeira agrava a situação do acusado, a segun-
da aplicação da analogia para fundamentar ou agravar a pena (ana- da traz-lhe benefícios.
logia in malam partem). A analogia, por ser uma forma de supri-
22. A exigência da lei prévia e estrita impede a aplicação, no
rem-se as lacunas da lei, supõe, para sua aplicação, a inexistência de
direito penal, da analogia in malam partem, mas não obsta,
norma legal específica. Baseia-se na semelhança.
mente, a aplicação da analogia in bonam partem, que JUStl- .
Estando regulamentada em lei uma situação particular, aplica-se ficativa em um princípio de eqüidade. ·É preciso notar, porem, que
por analogia essa mesma regulamentação a outra situação particular, a analogia pressupõe falha, omissão da lei, não tendo aplicação quan-
semelhante mas não regulamentada. É uma conclusão que se extrai do estiver claro no texto legal que a mens legis quer excluir de certa
do particular para o particular 6 • Conclui a respeito de um caso o regulamentação determinados casos semelhantes. Segundo Bettiol,
que se aplica a outro caso semelhante. Um exemplo, citado por proibição do procedimento ·analógico em matéria pe_nal .assi-
Engisch, é a aplicação da eficácia justificadora do consentimento do nalar limites precisos. Recai sobre todas as normas mcnmmatonas e
ofendido, em certas lesões corporais, para excluir igualmente o crime todas as que (mesmo eximentes) sejam verdadeiramente excepcio-
na privação da liberdade (cárcere privado), sob fundamento de que nais . . . Quaisquer outras normas do Código Penal são suscetíveis de
a ofensa corporal e a privação da liberdade apresentam certas seme- interpretação analógica" 9 •
lhanças, de sorte que aquilo que for justo para a primeira sê-lo-á
igualmente para a segunda 7 • 23. As restrições feitas à analogia não se aplicam por inteiro
à denominada interpretação extensiva, ou 'analógica, embora esta
A analogia pode ser considerada sob ·o aspecto da lei ou do
apresente problemas semelhantes. Na interpretação extensiva. am-
direito: analogia da lei e analogia do direito. No primeiro caso,
plia-se 0 . espectro de incidência da norma legal de 1:1-?do a sttua_r
parte-se de um preceito legal isolado; no segundo, parte-se de um
sob seu alcance fatos que, numa interpretação restritiva (procedi-
conjunto de normas, extraem-se delas o pensamento fundamental ou
mento oposto), ficariam fora desse alcance. Não. se .trata, de
os princípios que as informam para aplicá-los a caso omisso, -seme-
lhante ao que encontraria subsunção natural naquelas normas ou analogia, visto que a ampliação referida está potentia
palavras, mais ou menos abrangentes, da propna lei. O tema
princípios.
controvertido, pois quase sempre, nestes casos, tropeça-se com a

6. Karl Engisch, Introdução. cit., p. 234.


7. Introdução. cit .. p. 234. 8. Introdução, cit., p. 238. .
9. Instituições de direito e de processo penal, p. 111.

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dúvida, hipótese em que o princ1p10 in dubio pro reo afasta a pos- Ao invés, a interpretação analógica é uma forma de interpretação
sibilidade da extensão. Pensamos, contudo, que a melhor solução extensiva, como dizia Bobbio; é simplesmente um raciocínio jurídico,
não está na exclusão dessa forma de interpretação, ou na sua subs- uma aplicação imanente do Direito, que às vezes se encontra, de
tituição simplista pela restritiva ou pela puramente gramatical, mas modo taxativo, exigida pelos códigos, até empregando a palavra
sim na utilização adequada de todas as formas de analogia' (Normas para la interpretación en El Criminalista, tomo V,
Haverá, pois, interpretação restritiva, quando o exigir a compatibi- pág. 195, Hermenêutica no Direito Brasileiro, pág. 182-4). Estamos
lização do preceito com a sua finalidade ou com o todo do sistema. em que, na espécie, o egrégio Tribunal a quo valeu-se da analogia
Um exemplo nos é dado por Hungria: "Quando, no seu art. 24, o para configurar um tipo não previsto em lei. Se o ofendido não
Código declara que a emoção, a paixão ou a embriaguez (voluntária art. 343 do C. Penal, como agente passivo do delito, não
ou culposa) 'não excluem a responsabilidade penal', tem-se de enten- se pode recorrer à analogia para inserir na norma legal um novo
der que se refere a esses estados psíquicos quando não patológicos, tipo. Pelo exposto, proponho o exame dessa preliminar. O meu voto
pois, de outro modo, seria irreconciliável o citado art. 24 com o é no sentido de reconhecer que a condenação dos pacientes fun-
10
art. • Outro exemplo do mesmo autor: quando o Código incri- dou-se na analogia e de conceder o habeas corpus por falta de justa
mina a bigamia (art. 125), está necessariamente implícito que abrange causa para o processo" (RT/, 66:687-8).
na incriminação a poligamia. E assim por diante.
Esse problema agrava-se quando, no tipo, encontramos elemen- 25. Note-se, finalmente, que a analogia é admitida sem restri-
tos normativos. Dependendo eles de um juízo valorativo, ensejam ções no processo penal. Assim já decidiu o Supremo Tribunal
a interpretação restritiva ou ampliativa. É óbvio que o princípio do deral, em acórdão que traz a seguinte ementa: "I. O art. 3.º, do
in dubio pro reo, bem como o da prevalência dos elementos descri- C. P. Penal, admite expressamente a aplicação analógica e o suple-
tivos sobre os normativos, além dos já mencionados critérios siste- mento dos princípios gerais de Direito. II. Não viola a Constituição
mático e teleológico, pontos de referência seguros paira Federal, nem discrepa de jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-
a decisão final sobre a ampliação ou restrição do preceito que se deral, o acórdão que condena o querelante vencido a indenizar os
quer interpretar. honorários do advogado que defendeu vitoriosamente o querelado.
Essa decisão, longe ofender o art. 114 do C. P. Civil de 1939,
24. O Supremo Tribunal Federal, em acórdão do Pleno, da interpretou-o bem razoavelmente em harmonia com os arts. 4.º e 5.º
lavra do Min. Bilac Pinto, teve a ocasião de estabelecer a distinção da Lei de Introdução ao Código Civil e com o art. 3.º, do C. P.
acima apontada, entre analogia e interpretação extensiva ou analó- Penal" (Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RT/, 73:909).
gica, decidindo que a vítima de um crime somente através da anallo-
gia poderia ser equiparada a "testemunha" para a configuração do
tipo do art. 343 do Código Penal (corrupção ou suborno de teste- d) "Lex certa"
munha). Na hipótese, foi concedida a ordem para trancamento da
ação penal, concluindo o voto do Relator, após transcrever citaç:ão 26. A exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que
de Alípio Silveira: " ... 'Devemos repelir a analogia, porque, se o não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de
Direito Penal é um direito liberal, não admite de modo algum esses normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios. Para
perigos à liberdade do homem e do cidadão. Mas uma coisa é repelir que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o
a analogia, e outra admitir interpretação analógica. A analogia é comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos,
a aplicação, a um caso concreto, de uma lei, cuja vontade não era não só aos juristas. Infelizmente, no estágio atual de nossa legislação,
captar este fato que aparece no horizonte da realidade quotidiana. o ideal de que todos possam conhecer as leis penais parece cada vez
mais longínquo, transformando-se, por imposição da própria lei, no
10. Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 80. Note-se que o autor se refere aos dogma do conhecimento presumido, que outra coisa não é senão pura
arts. 24 e 22, substituídos pelos de n. 28 e 26 pela Lei n. 7.209/84. ficção jurídica.

28 29
a ah-rogação (revogação total) de uma lei penal por outra, deve
encontrar solução por meio da aplicação das regras dos 2. 0 e
3. do Código Penal.
0

a) "Lex gravior". Irretroatividade absoluta

1.
28. A lei penal mais grave não se aplica aos fatos ocorridos
antes de sua vigência, seja quando cria figura penal até então ine-
xistente, seja quando se limita a agravar as conseqüências jurídico-
penais do fato, isto é, a pena ou a medida de segurança. Há, pois,
uma proibição de retroatividade das normas mais severas de direito
penal material. · (Sobre as normàs. de processo ou de execução, não
§ 4. 0 Vigência da lei penal no tempo (prin· submetidas a essa proibição, v., infra, n. 41.) Note-se, porém, que
a questão de saber quando uma norma é, ou não, de direito material
cípios de direito penal intertemporal) deve ser decidida menos em função (falei que a-contenha do que em
razão da natureza e essência da própria norma, pois o Código de
Processo Penal e a Lei de Execução contêm normas de direito ma-
27. A eficácia da lei penal no tempo subordina-se a uma re- terial, assim como o Código Penal contém normas de direito pro-
geral e a várias exceções, como· se infere dos preceitos contidos cessual. ·
no art. 5.º, XL, da ConstituiÇão, --e nos arts. 2.º e 3.º do Código
Penal. A regra geral é a da prevalência da lei do tempo do fato 29. Segundo Maurach, os preceitos que estabelecem a exigên-
( tempus regit actum), isto é, aplica-se a lei vigente quando da rea- cia de representação (querela) ou o caráter público da ação penal,
lização do fato. Com isso preserva-se o princípio da legalidade e bem como os que fixam os prazos prescricionais, são . de natureza
da anterioridade da lei penal. Havendo, porém, sucessão de· leis processual, apesar de constarem do Código Penal. Assim, em re-
penais que regulem, no todo ou em parte, as mesmas questões, e se lação a eles não prevaleceria a proibição em exame. Sem compro-
o fato houver sido cometido no período de vigência da lei anterior, metermo-nos, por ora, com o tema polêmico da natureza das nor-
dá-se, infalivelmente, uma das seguintes hipóteses: mas sobre prescrição, que no Brasil têm sido consideradas de direito
material (STF, RHC 55.294, RTJ, 83:146), concordamos com a
a) a lei posterior apresenta-se mais severa em comparação
parte essencial da observação do penalista citado, pois, no ordena-
com a lei anterior (lex gravior) ;
mento jurídico brasileiro, há igualmente certa arbitrariedade na lo-
b) a lei posterior aboliu o crime, tornando o fato impunível calização de determinadas normas, parecendo-nos fora de dúvida
( abolitio criminis) ; que a Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84) possui inúmeras
e) a lei posterior é mais benigna no tocante à pena ou à me- de direito penal material (exemplo: arts. 49 a 56, 126, 130 etc.),
dida de segurança ( lex mitior) ; ao passo que os arts. 100 a 102 do· Código Penal contêm várias de
direito processual, identificáveis com relativa facilidade.
d) a lei posterior contém alguns preceitos mais severos e
outros mais benignos, em determinados aspectos. 30. Em suma, a n()rma de direito material mais severa só se
Cada uma dessas situações, que podem ocorrer sempre que se aplica, enquanto vigente, aos fatos ocorridos durante sua vigência,
dá a edição de nova lei, com a derrogação (revogação parcial) ou vedada em caráter absoluto a sua retroatividade.· Tal princípio

30 31
aplica-se a todas as normas de direito material, pertençam elas à tiva, pois, no crime continuado, tanto se considera momento da
Parte Geral ou à Especial, sejam normas incriminadoras (tipos legais ação o do primeiro fato parcial quanto o do último. O agente que
de crime), sejam normas reguladoras da imputabilidade, da dosime- prosseguiu na continuidade delitiva após o advento da lei nova tinha
tria da pena, das causas de justificaçfo ou de outros institutos de possibilidade de motivar-se pelos imperativos desta ao invés de per-
direito penal. Aléin disso, para aferir-se da maior gravidade de um sistir na prática de seus crimes. Submete-se, portanto, ao novo re-
dispositivo legal, é necessário verificar-se não o dispositivo isolado gime, ainda que mais grave, sem surpresas e sem violação do prin-
e sim o conjunto de determinações ou de conseqüências acarretadas cípio da legalidade. Há, entretanto, um caso que merece melhor
pela norma em questão, devendo afasta:r:-se aquela que produzir o
atenção. Com o advento da nova Parte Geral, que inovou o tra-
resultado final mais gravoso para o agente do fato.
tamento do crime continuado, no parágrafo único do art. 71, per-
mite-se o aumento de pena até o triplo (anteriormente o aumento
não poderia ir além de dois terços - CP de 1940, art. 50, § 2. 0 )
b) Tempo do crime para fixação da lei aplicável nos-crimes dolosos cometidos com violência ou grave ameaça à pes-
soa. Assim, podem ocorrer duas hipóteses: a) o agente de crimes
31. A nova Parte Geral (Lei n. 7.209/84) dispõe-no art. 4. 0 de roubo, por exemplo, cometeu vários roubos antes e depois do
que o crime se considera praticado "no momento da ação ou omis-
·início de vigência da nova Parte Geral; b) o agente dos mesmos
são, ainda que outro seja o momento do resultado". Esse dispo-
crimes cometeu vários roubos antes da vigência da lei e apenas um
sitivo fundado na denominada "teoria da ação", que já era acolhida
depois dessa vigência. Admitindo-se que tanto na primeira como
pela doutrina para solucionar questões de direito intertemporal 1 , tem
inteira aplicação para a fixação do tempo do crime e da lei aplicável. na segunda hipótese configura-se uma única série de delitos continua-
Assim, se a ação era lícita, no momento de sua realização, mas já dos, parece-nos que só na primeira (vários roubos antes e depois
não o era, no momento do resultado (delitos à distância, nos quais da vigência da nova lei) se poderá aplicar o aumento de um triplo,
um é o momento da açãq, outro o do resultado), não haverá puni- tendo em conta que o seguimento da série, situado sob a lei nova,
ção possível, pois, conforme destaca Bettiol, "é no momento da ação bastaria para tanto. Como os fatos anteriores integram a éontinui-
que o imperativo da norma pode atuar como motivo no processo dade delitiva, aplica-se a pena de um só dos crimes, ou a mais grave,
psicológico da própria ação" 2 • Nos crimes permanentes, cuja exe- aumentada até o triplo. Na segunda hipótese (somente um roubo
cução tenha tido início sob o império de uma lei, prosseguindo sob na vigência da lei nova), parece-nos que, levando-se em conta o
o de outra, aplica-se a lei nova se esta tem início de vigência 1en- conjunto das determinações e das conseqüências acarretadas pela
quanto dura a conduta ilícita 3 . Nos crimes continuados, se a nova nova regulamentação do crime continuado, não se poderá fazer in-
lei intervém no curso da série delitiva, só se pode aplicar a lei nova cidir o critério mais grave da lei nova (aumento até um· triplo),
- se mais grave - ao segmento da série continuada ocorrido du- porque isso significaria aplicar-se, a uma hipótese de delitos conti-
rante a sua vigência, caso os fatos anteriores sejam impuníveis pela nuados, pena mais grave do que a devida se fosse tomada a série
lei da época. Se os fatos anteriores já eram punidos, tendo ocorri- delitiva anterior em concurso material com o único delito posterior.
do somente a agravação da pena, aplica-se, em salvo hi- Neste caso, para não ser infringido o preceito constitucional da an-
pótese adiante examinada, o critério da lei nova a toda a série deli- tei:ioridade da lei penal, a única solução possível será a punição de
toda a série pelo critério da lei anterior.
1. Maggiore, Diritfo penale, v. 1, t. 1, p. 152-3; Bettiol, Diritto penale,
cit., p. 146-7; Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 109. 32. E se o crime ocorre no período de vacatio legis, ou seja,
2. Diritto penale, cit., p. 146-7. depois da publicação da lei nova mas antes do dia fixado para início
3. Maggiore, Diritto penale, cit., v, 1, t. 1, p. 153. de sua vigência? ·

32 33
\';

Predomilla o entendimento da plena aplicabilidade da lei antiga revogação dos preceitos que o transformaram em crime contra a se-
até que a lei nova tenha início efetivo de vigência 4 • Não nos cons- gurança nacional. Cabia, pois, diante da revogação da norma da lei
ta, aliás, que o malogrado Código de 1969, que não conseguiu ultra- especial, aplicar-se o Código Penal como lei geral mais benigna
passar o seu longo período de vacatio, tenha tido alguns de seus (RCrim 1.331, 1.378 e 1..381, RTJ, 94:501).
preceitos aplicados a algum caso, em algum lugar.
Esse entendimento tem apoio doutrinário, pois aqui não se trata
de fazer ressurgir das cinzas norma revogada. Cuida-se, ao contrá-
rio, de fazer aplicar a norma geral, de vigência incontestável, que
e) "Abolitio criminis" 1.
todavia cedia lugar à norma especial prevalecente por força do prin-
cípio da especialidade. Revogada esta, a norma geral volta a inci-
33. Verifica-se a abolitio criminis quando a lei nova exclui da
dir por inteiro para regular os fatos antes abrangidos pela norma
órbita penal um fato considerado crime pela legislação anterior.
de caráter especial.
Trata-se de uma hipótese de descriminalização. Quando isso ocorre,
extingue-se a punibilidade (CP, art. 107, III), arquivando-se os pro-
cessos em curso, no tocante ao crime abolido, ou cessando a exe-
cução e os efeitos penais da sentença condenatória, ainda que tran-
d) "Lex mitior''
sitada em julgado. Assim dispõe o art. 2. 0 , caput.
36. Denomina-se mais benigna a lei mais favorável ao agente,
34. Nos processos pendentes, o juiz ou o tribunal, em qual- no tocante ao crime e à pena, sempre que, ocorrendo sucessão de
quer fase, declarará de ofício a extinção da punibilidade (CPP, . leis penais no tempo, o fato previsto como crime tenha sido prati-
art. 61). Nos processos findos, compete ao juízo da execução tal cado na vigência da lei anterior. Será mais benigna a que "de qual-
providência (LI CPP, art. 13, e LEP, art. 66, I), nos termos da ju- quer modo favorecer o agente", podendo, portanto, ser a lei ante-
risprudência sobre aplicação da lex mitior (RTJ, 87: 1067, 88: 1098, rior ou a posterior. Nos termos do art. 5.º, XL, da Constitui-
Súmula 611). ção, a .lei mais benigna prevalecerá sempre, em favor do agente,
quer se1a a anterior (ultra-atividade) quer seja a posterior (retroa-
35. Note-se, contudo, que, segundo o entendimento do Supre- tividade). Já vtmos que a abolitio crimi.nis - hipótese mais evi-
mo Tribunal Federal, haver abolitio criminis deve haver uma dente de lei posterior mais benigna retroage sempre em benefício
completa do preceito penal, e não somente de uma no:- do réu; vimos, igualmente, que a lex gravior só se aplica aos fatos
ma singular referente a um fato que, sem ela, se contém numa incri- cometidos sob sua vigência, vedada em caráter absoluto sua retroa.:.:
minação pen.al" 5 • É o caso do roubo a estabelecimento de crédito ção. Fixados tais limites extremos, há uma gama variada de bipó- .
anteriormente abrangido pelo tipo do art. 157 e parágrafos do Códi- teses intermediárias nas quais a definição da lei mais benigna só
go Penal, depois erigido em crime contra a segurança nacional pelo pode ser obtida em concreto, ou seja, diante da avaliação, caso .a
Decreto-lei n. 898/69, finalmente excluído desse último estatuto pela caso, do resultado a ser obtido com a aplicação de uma ou de
Lei n. 6.620/78. Entendeu a Suprema Corte não ter ocorrido, em outra lei 6 • A lei cuja aplicação produzir resultado final mais favo-
tal caso, a abolitio criminis porque o fato sempre fora incriminado rável para o agente é a que deve ser aplicada.
pelo Código Penal cujas normas voltaram a incidir sobre ele, após a
37. Pode-se, entretanto, afirmar que;, de um modo geral, salvo
excepcional demonstração em contrário, reputa-se mais benigna a lei
.4. Assim Frederico Marques, Tratado de dweito penal, v. l, p. 229; . na qual:
Hungria, Comentários, cit., v. l, t. 1, p. 109, nota 9.
5. RCrim 1.381, Pleno, Rel. Min. Cordeiro Guerra, Um decênio de
;udicatura, v. 1, p. 112; RT], 94:504. 6. Assim, Heleno Fragoso, Lições de direito penal; parte geral, p. 108.

34 35
a) a pena cominada· for mais branda, por sua natureza, quan- quer das leis em jogo" 8 . No mesmo sentido, Heleno Fragoso 9 , e
tidade, critérios de aplicação e dosimetria ou modo de execução; Aníbal Bruno 10 • Opinam favoravelmente à possibilidade da combi-
b) forem criadas novas circunstâncias atenuantes, causas de nação de leis, Basileu Garcia 11 e Celso Delmanto 12 , entre outros.
diminuição da pena ou benefícios relacionados com a extinção, sus- Frederico Marques, partidário desta última corrente, é o que ofere-
pensão ou dispensa de execução da pena, ou, ainda, maiores facili- ce melhores argumentos em prol da tese, in verbis: "Dizer que o
dades para o livramento condicional; Juiz está fazendo lei nova, ultrapassando assim suas funções consti-
tucionais, é argumento sem consistência, pois o julgador, em obe-
e) forem extintas circunstâncias agravantes, causas de aumen- diência a princípios de eqüidade consagrados pela própria Consti-
to de pena ou qualificadoras; tuição, está apenas movimentando-se dentro dos quadros legais para
d) se estabelecerem novas causas extintivas da punibilidade ou uma tarefa de integração perfeitamente legítima. O órgão judiciá-
se ampliarem as hipóteses de incidência das já existentes, notada- rio não está tirando ex nihilo a regulamentação eclética que deve
mente quando são reduzidos prazos de decadência, de prescrição, ou imperar hic et nunc. A norma do caso concreto é construída em
se modo mais favorável de contagem desses prazos; função de um princípio constitucional, com o próprio material for-
e) se extinguirem medidas de segurança, penas acessórias ou necido pelo legislador. Se ele pode escolher, para aplicar o man-
efeitos da condenação;· damento da Lei Magna, entre duas séries de disposições legais, ·a
que lhe pareça mais benigna, não vemos porque se lhe vede a com-
f) forem ampliadas as hipóteses de inimputabilidade, de atípi-
binação de ambas, para assim aplicar, mais retamente, a Constitui-
cidade, de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpabilidade ou de
ção. Se lhe está afeto escolher o 'todo', para que o réu tenha o
isenção de pena.
tratamento penal mais favorável e benigno, nada há que. lhe obste
Note-se, contudo, que o rol acima apresentado, que é com pe- selecionar parte de um todo e parte de outro, para cumprir uma
quenas variações muito semelhante ao oferecido por Nélson Hun- regra constitucional que deve sobrepairar a pruridos de lógica formal.
gria 7 , estará submetido sempre à ressalva da avaliação final do re- Primeiro a Constituição e depois o formalismo jurídico, mesmo por-
sultado, já que, em concreto, o enunciado mais benigno de uma lei que a própria dogmática legal obriga a essa subordinação, pelo
pode ser apenas ilusório se acarretar maiores ônus para o agente, papel preponderante do texto constitucional. A verdade é que não
no instante da aplicação da sanção ou no momento de sua execução. estará retroagindo a lei mais benéfica, se, para evitar-se a transação
e o ecletismo, a parcela benéfica da lei posterior não for aplicada
pelo Juiz; e este tem por missão precípua velar pela Constituição e
e) Combinação de leis ("lex tertia") tornar efetivos os postulados fundamentais com que ela garante e
proclama os direitos do homem" 13 •
38. Questão polêmica é a de saber se, na determinação da llei
mais benigna aplicável, pode o juiz tomar os preceitos ou os crité- 39. O Supremo Tribunal Federal tem decidido pela impossi-
rios mais favoráveis da lei anterior e, ao mesmo tempo, os da lei bilidade dessa combinação de leis, a ·partir do acórdão do Pleno, no
posterior, combiná-los e aplicá-los ao caso concreto, de modo a ex- já citado RCrim 1.381, no qual se discutiu a aplicação do Código
trair o máximo benefício da aplicação conjunta só dos
aspectos mais favoráveis de duas leis. Nélson Hungria opina con-
trariamente a essa possibilidade de o juiz, arvorando-se em legisla- 8. Comentários, cit.,. v. 1, t. 1, p. 109-10.
dor, criar "uma terceira lei, dissonante, no. seu hibridismo, de qual- 9. Lições, cit., p. 108.
10. Direito penal, cit., t. 1, p. 256.
11. Instituições, cit.,. v. 1, t. 1, p. 150.
12. Código Penal anotado, p. 5.
7. Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 109 e s. 13. Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. 210-1.

36 37
Penal, como lei mais benigna, a crime de roubo contra estabeleci- outras. Não obstante, não vemos como negar razão a esta prudente
mento de crédito, após o advento da Lei n. 6.620/78. Nesse jul- observação de Basileu Garcia: "Esse critério, como orientação geral,
gad?,. por votação unânime, no particular, afirmou-se que "é lícito é exato. Mas há casos em que a sua observância estrita leva a con-
_ao JUIZ no confronto das leis, a mais favorável, e aplicá-la seqüências clamorosamente injustas, e será necessário temperá-lo com
em sua mtegndade, porém não lhe é permitido criar e aplicar uma um pouco de eqüidade ... " 14.
'terza legge diversa' de modo a favorecer o réu, pois, nessa hipóte-
se, se. transformaria em legislador" (RTJ, 94: 505). Em julgado
postenor, a 2. ª Turma do mesmo Pretório deu como assente -aquele f) Normas de direito processual penal e de execução
entendimento (RCrim 1.412, RTJ, 96:541).
41. A Constituição Federal, ao estabelecer o princípio da ante-
40. Nossa opinião é a de que, em matéria de direito transi- rioridade da lei, em matéria penal, diz expressamente que tal prin-
não se. pod_e dogmas rígidos como esse da proibi- cípio se aplica ao crime e à pena (art. 5.0 , XXXIX).· O Código Penal,
da de leis. Nessa área, a realidade é muito mais nos arts. l.º e 2.º, tem igualmente endereço certo ao "crime" e à
nca d.? pode imaginar a nossa "vã filosofia". Basta ver que, "pena", por se apresentar como regulamentação da norma constitu-
no propno Julgado relativo ao RCrim 1.412, em que a 2.ª Turma cional. Nada impede, pois, tratamento diferenciado em relação às
do Supremo Tribunal Federal reafirmava a -proibição de combina- normas de processo e de execução, não abrangidas pelos menciona-
ção de leis, não se logrou impedir, em certa medida, esse mesmo dos preceitos. É o que dispõe expressamente o Código de Processo
fenômeno ao a impossibilidade de aplicação da pena Penal: "Art. 2.º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem
?e multa do Cod1go Penal (a lei mais benigna aplicada), para não prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei ante-
mcorrer-se na reformatio in peius. Com isso o resultado final do rior. Art. 3.º A lei processual penal admitirá interpretação exten-
julgamento foi o seguinte: no tocante à multa, prevaleceu o critério siva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios
Decreto.-lei n. 898/69 (lei de segurança nacional revogada) que gerais de direito". O Projeto de Código de Processo Penal d!e 1983,
.ª previa; no tocante à pena privativa da liberdade, prevaleceu 0 em tramitação no Congresso Nacional, contém idênticos dispositivos
Cod1go Penal. É certo que, se tivesse havido recurso do Ministé- nos arts. 2.0 e 3.0 •
rio Público, a decisão poderia ter sido outra, para manter-se a coe-
rência com a doutrina acolhida pelo acórdão. Essa possibilidade Frise-se, porém, que nos referimos a "normas de processo e de
entretanto, não nega o fato de que, no mundo da realidade, execução", o que significa, conforme já foi dito (supra, n. 28), nor-
forma de combinação de leis pode ocorrer, sem nenhum prejuízo mas que não sejam de direito material, isto é, que tenham a natureza
para a ordem e a segurança jurídicas. e a essência de normas puramente processuais, não aquelas que, ape-
sar de se localizarem no estatuto processual ou na lei de execução,
Feita essa constatação, parece-nos que uma questão de direito disciplinam uma relação de direito material como as que regulam,
trans.itório - saber que normas devem prevalecer para regular de- v. g., a decadência do direito de queixa ou de representação, a re-
t:rmmado /fato, quando várias apresentam-se como de aplicação pos- núncia, o perdão (CPP, arts. 38, 49, 51), direitos do preso ou do con-
:--: so pode ser resolvida com a aplicação dos denado etc.
prmc1p1os de hermeneut1ca, sem exclusão de qualquer deles. E se,
no concreto, a necessidade de prevalência de certos princíp!os 42. Assim, a dificuldade maior consistirá em separar-se o- que
supenores (como, no exemplo do acórdão citado, a proibição da há de direito material no Código de Processo Penal e na Lei de
reformatio in peius) conduzir à combinação de leis, não se deve Execução Penal e o que há de direito processual no Código Penal,
temer este resultado desde que juridicamente valioso. Estamos pois
de con:i os que p:-ofligam, como regra geral, a alquimia de
preceitos de leis sucessivas, quando umas se destinam a substituir as 14. Instituições, cit., v. 1, t. 1, p. 150.

39
38
para, após tal separação, aplicarem-se às normas de direito material com a pena, não é necessário que esteja prevista em lei anterior· ao
os princípios de direito penal intertemporal, aqui estudados, e às fato, e não se distingue entre a lex mitior e a lex gravior no sentido
normas de direito processual os princípios que lhes são próprios. da retroatividade: regem-se as medidas de segurança pela lei vi-
(Sobre o tema, consultem-se: Frederico Marque.s, Tratado de direito gente ao tempo da sentença ou pela que· se suceder durante a exe-
processual penal, v. 1, p. 68 e s.; Rogério Lauria Tucci, Direito in- cução (art. 75)".
tertemporal e a nova codificação processual penal, p. 114 e s.; Fer-
nando da Costa Tourinho Filho, Processo penal, v. 1, p. 91 e. s.) 45. Apoiados em tais afirmações, alguns autores têm dito
Segundo lição de Hélio Tornaghi, "a norma de Direito judiciário que, a respeito de medidas de segurança, vige o princípio da legali-
penal tem que ver com os atos processuais, não com o ato delitivo. dade (exige-se previsão legal) mas não o da anterioridade da lei 1s.
Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma
Vimos, contudo, que o princípio da legalidade se desdobra em
de lei que lhe seja anterior, mas. nada impede que ela seja posterior.
quatro outros princípios, dentre os quais se inclui necessariamente
à infração penal. Não há, nesse caso, retroatividade da lei proces-
o da lex praevia. Falar-se em legalidade sem anterioridade da lei,
sual, mas aplicação imediata. Retroatividade haveria se a lei -pro-
em relação à conduta que autoriza a medida, é dizer-se muito pou-
cessual nova modificasse ou invalidasse atos processuais praticados
co, pois sabido é que a lei retroativa pode igualmente, em certas
antes de sua entrada em vigor" 15 •
circunstâncias, ser posta a serviço do arbítrio, do autoritarismo.
Daí as restrições feitas por Heleno Fragoso 17 quanto à inobservân-
43. Convém, entretanto, alertar para o fato de que, mesmo na
cia do princípio em exame, em relação a tais medidas.
área do direito processual intertemporal, há exceções à regra da
aplicação imediata estatuída no art. 2. 0 do Código de Processo Penal, Parece-nos, não obstante, que o tema perde boa dose de im-
que podem derivar de disposições transitórias, geralmente editadas portância, entre nós, diante da reformulação da Parte Geral (Lei
pelo legislador, ou da aplicação de princípios adotados pela jurispru- n. 7.209 /84), com a extinção da medida de segurança para os
dência, como ocorre em certas hipóteses de modificação da compe- agentes imputáveis, bem como diante da abolição das medidas de
tência do juízo, com repercussão sobre o julgamento dos recursos, segurança meramente detentivas ou de caráter· patrimonial. Tais
ou, ainda, em relação ao procedimento aplicável aos recursos inter- inovações, por serem induvidosamente mais benéficas, devem mesmo
postos na vigência da lei anterior (RTJ, 96:547). ter aplicação imediata, sem acarretar problemas maiores. Para o
futuro, se o legislador pátrio pretender restabelecer algumas das
medidas abolidas, que apresentam aspec;tos comuns com as penas
g) Medidas de segurança (medidas detentivas, confisco, interdições e semelhantes), seria pru-
dente que, como consta do Código Penal da Áustria (art. l.º, 2), se
44. O art. 7 5 do Código Penal de 1940, não reeditado na lhes estendesse a exigência de anterioridade da lei em relação ao
Lei n. 7.209/84 (nova Parte Geral), dispunha: "As medidas de fato causador da medida, admitindo-se tão-somente a aplicaçãO ime-
segurança regem-se pela lei vigente ao tempo da sentença, prevale- diata da lei nova a fatos anteriores quando a medida da época da
cendo; entretanto, se diversa, a lei vigente ao tempo da execuçã.o". sentença seja pe1o menos comparável à que estava prevista na lei
Comoctais medidas não são penas, sobre elas assim se expressou a vigente. à época da realização da conduta. Em relação às medidas
Exposição de Motivos do Min. Francisco Campos: "Preliminarmen- de caráter puramente assistencial ou curativo, estabelecidas em lei
te, é o princípio da legal.idade das medidas de segurança; para os inimputáveis, parece-nos evidentemente correta a afirmação
mas, por isso mesmo que a medida de segurança não se confunde
/ 16. Assim Nélson Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 138; Salgado
Martins, Direito penal, p. 433; Magalliães Noronha, Direito p.enal, v. 1, p. 542.
15. Instituições de processo penal, v. 1, p. 114. 17. Lições, cit., p. 111.

40
41
1
1
duta proibida para outras normas legais, regulamentares ou adminis-
de sua aplicabilidade imediata, quando presente o estado de perigo-
trativas. Um exemplo temo-lo no art. 269 do Código Penal ("dei-
sidade, ainda que possam apresentar-se mais gravosas, pois os remé-
xar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja noti-
dios reputados mais eficientes não podem deixar de ser ministrados
ficação é compulsória"). Para saber, em concreto, se determinada
aos pacientes deles carecedores só pelo fato de serem mais amargos
conduta omissiva realiza o tipo penal em foco, torna-se necessário
ou mais dolorosos. Aqui, sim, se poderia falar em diferença subs-
recorrer-se às normas complementares extrapenais que relacionam
tancial entre a pena e a medida, para admitir-se a exclusão da última
quais sejam as doenças de notificação compulsória. Como esses ti-
das restrições impostas à primeira pelo art. 5.º, XXXIX e XL, da
pos penais sofrem alteração de conteúdo sempre que se alteram as
Constituição.
respectivas normas complementares (no exemplo, o rol das doenças
Cavaleiro de Ferreira, comentando a legislação portuguesa, cuja de notificação compulsória), surge a questão de saber se, em relação
Constituição, diversamente da nossa, dispõe que "ninguém pode so- a essas alterações, deve incidir a mesma regra da retroatividade da
frer medida de segurança privativa da liberdade mais grave do que lex mitior, considerando-se abolido o crime sempre que a alteração
as previstas no momento da conduta", conclui: "não é assim quanto da norma complementar importar na cessação da exigência cuja inob-
a todas· as medidas de segurança; há medidas de segurança que se servância caracterizava o crime. A questão é bastante controver-
justificam não só pelo interesse social mas são também justificadas tida, conforme resenha apresentada por Frederico Marques 19• Pen-
inteiramente pelo interesse da pessoa a quem são aplicadas: só me- samos que, também aqui, não se deve adotar um pensamento radical,
didas terapêuticas ou curativas poderão ser aplicadas· imediata- que, em direito penal, quase sempre não é o melhor. O decisivo,
mente ... " 18 • no caso, é saber se a alteração da norma extrapenal implica, ou não,
Não há razão, pois, para pensar diferentemente no Brasil, onde supressão do caráter ilícito de um fato. No exemplo do citado
a Constituição e a lei não impõem as mesmas restrições da legislação art. 269, a revogação da norma que incluía certa doença no rol das
portuguesa. que eram de notificação compulsória, . torna a omissão do médico,
em relação a essa doença, um fato lícito penal, pelo que não pode
deixar de ser retroativa. Nessa hipótese o qÚe se alterou foi a própria
h) Problemas particulares de direito intertemporal matéria da proibição, com redução da área de incidência do tipo, o
que, evidentemente, diz respeito ao "crime e à pena". Não assim,
46. Sucessão de várias leis. Nos termos da Exposição de Mo- porém, quando, para simples atualização de valores monetários, se
tivos do Min. Francisco Campos, ." ... no caso de sucessão de várias modificam os quantitativos de tabelas de preço, como no exemplo da
leis, prevalece a mais benigna, pois é evidente que, aplicando-se ao transgressão de tabelas de preço do art. 2. 0 , VI, da Lei n. 1.521/51.
fato a lei posterior somente quando favorece o agente, em caso algum Frederico Marques, embora manifestando-se pela não-retroatividade
se poderá cogitar da aplicação de qualquer lei sucessiva mais rigorosa, das regras extrapenais, não deixa de admitir a distinção em foco,
porque esta encontrará o agente já favorecido por lei intermediária in verbis: "Não há dúvida de que certas distinções podem ser feitas.
mais benigna". Se uma lei penal fala em menoridade pura e 'simples, para a tutela,
Tais considerações continuam plenamente válidas, nada havendo então à lei civil cumpre cobrir o branco assim existente. Alterada
a aduzir. a última, com a fixação do termo final da situação de alieni juris
em idade inferior à da lei até então vigente, não há dúvida de que
47. Norma penal em branco. Denominam-se normas penais deve ser aplicado retroativamente o novo preceito, embora extra-
em branco aquelas que estabelecem a cominação penal, ou seja, a penal, porque a tutela da menoridade pela norma punitiva está liga-
sanção penal, mas remetem a complementação da descrição da con- da estreitamente ao conceito desta pelo Direito privado. Nos cri-

19. Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. 222 e s.


18. Direito penal português, v. 1, p. 127.

42 43
nies entretanto, que dependem de tabelamento administrativo, a
não se justifica. Seria o mesmo que admitir-se a eficá-
cia retroativa de uma notma técnica de trânsito posta em vigor paira
facilitar o tráfego e a circulação, tal coino se o trânsito à direita
passasse a ser contramão, e à esquerda a mão de direção.. Em face
dessa mudança, poder-se-ia declarar extinta a punibilidade por nov.a-
tio legis, do motorista que fora declarado imprudente (e por isso .
condenado) por trafegar contramão? A norma penal não proíbe a
venda pelo preço X, e sim, a venda acima do tabelamento, como 1.

imprudência também existe em trafegar contramão, e não pela es-


querda ou pela direita" 20.

48. Lei excepcional ou temporária. Dispõe o art. 3. 0 do Có-


digo Penal que "a lei excepcional ou temporária, embora decorrido
o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a deter- § 5. 0 Vigência da lei penal no espaço (prin-
minaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência". O c:a- cípios de direito penal internacional)
ráter excepcional da lei, editada em períodos anormais, de convulslio
social ou de calamidade pública, justifica a solução adotada. Como
tal lei é promulgada para vigorar por tempo predeterminado, seda 49. A solução de problemas relacionados com a vigência espa-
totalmente ineficaz se não fosse ultra-ativa. Assim, ainda quando cial da lei penal se resolve de acordo com as normas de direito po-
mais severa, a lei temporária, por sua natureza, será sempre apli- sitivo, aí compreendidos os tratados e as convenções internacionais,
cável aos fatos cometidos durante .sua vigência. E isso não fere, bem como segundo certos princípios aceitos, em doutrina, sem muita
segundo se tem entendido, o princípio da retroatividade da lei pos- variação. São esses princípios: o da territorialidade, o do pavilhão
terior mais benigna 21. (ou bandeira), o da personalidade (ou nacionalidade), o da defesa
(ou real), o da universalidade .(ou da justiça universal).
Dentre todos, o princípio da territorialidade é o mais funda-
mental, por apresentar-se como norma geral, no art. 5. 0 , caput, do
Código Penal. Os demais são princípios complementares que- ope-
ram como norma especial, nas hipóteses específicas em que têm
aplicação.

a) Princípio da territorialiàade. Território nacional.


Princípio do pavilhão ou da bandeira

50. Diz o art. 5. 0 do Código Penal: "Aplica-se a lei brasi-


leira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito inter-
nacional, ao crime cometido no território nacional". Isso significa
20. Tratado de direito penal, cit., v. 1, p. que, como regra, são submetidos à lei brasileira os crimesi cometidos
21. Frederico Marques, Tratado de direito penal, cit., v. 1, p . .222. dentro da área terrestre, do espaço aéreo, e das águas fluviais e ma-
44
45
rítimas, sobre os quais o Estado brasileiro exerce . sua sobei:ania, (cf. Exposição de Motivos ao Código de 1969, fonte de inspiração
pouco importando a nacionalidade do agente. A lei prevê álgumas do preceito).
exceções a essa regra, ressalvando as convenções, tratados e regras
de direito internacional. Um exemplo temo-lo nos agentes,. diplo- 53. O princípio da territorialidade, aparentemente de aplicação
máticos que, pela Convenção de Viena, promulgada no Brasil pelo muito simples, pode oferecer dificuldades inesperadas nos delitos
Decreto n. 56.435, de 8 de junho de 1965, gozam de "imunidade de permanentes e continuados que, em certas circunstâncias, se consi-
jurisdição penal do Estado acreditado" ( art. 31, 1), sujeitando-se deram praticados em mais de um país. Assim ocorre, freqüente-
exclusivamente à jurisdição do Estado acreditante ( art. 31, 4). As- mente, com as quadrilhas internacionais de tráfico de drogas, hipó-
sim, tais agentes, quando praticam crime no território do Estado onde 1. tese em que o princípio da territorialidade e o da universalidade
desempenham suas funções diplomáticas, não se submetem ao prin- entram em questão. Recentemente o Supremo Tribunal, ao julgar o
cípio da territorialidade, mas só respondem pelo fato perante a jus- caso Buscetta, manifestou entendimento segundo o qual: "O princí-
tiça do próprio Estado que representam. pio da universalidade, inspirado no art. 5.º, II, a, do Código Penal
(atual 7.º, II, a), não obsta a concessão da extradição ao Estado no
5 l. O território nacional abrange toda a extensão terrestre c}ual ocorreram as práticas delituosas. Preferência da extradição re-
situada até os limites das fronteiras do país, incluindo mares inte- querida pelo Estado que - em caso de prática de crimes de igual
riores, lagos e rios; abrange ainda o mar territorial, as ilhas, sobre gravidade, admita-se - pediu, em primeiro lugar, a entrega do extra-
os quais o Brasil exerce a sua soberania, e o espaço aéreo que cobre ditando (art. 79, § 1.º, II, da Lei 6.815/80)" (Extradição 415).
essas 1•

Consideram-:-se, igualmente, extensão do território nacional "as


embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a
b) Princípio da personalidade (ou .da nacionalidade)
viço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como 54. O Brasil não concede extradição de nacionais, exceto o
as aeronaves e as embarcações brasileiras mercantes ou de proprie-
naturalizado quando se tratar de crime comum (CF, art. 5.º, LI, e
dade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo cor- Lei n. 6.815, de 19-8-1980, art. 77, I). Conseqüência disso é submeter
respondente ou em alto-mar" (art. 5. 0 , § 1.º).
à lei brasileira os nacionais que tenham cometido crime no estrangeiro
i(CP, art. 7.º, II, b), desde que ingressem no território nacional e se
52. O princípio do pavilhão (ou da bandeira) atribui ao Es- cumpram os demais requisitos do § 2.º do art. 7 .º do Código Penal.
tado sob cuja bandeira está registrada a embarcação ou aeronave o Esse é hoje o principal fundamento do denominado princípio da
poder de sujeitar à sua jurisdição penal os responsáveis por crimes nacionalidade, que portanto é subsidiário do princípio da territoria-
praticados a bordo ·dessa embarcação ou aeronave, ainda que em lidade 3. Tanto é assim que um dos requisitos para aplicação do prin-
alto-m;rr ou em território ·estrangeiro 2 • Trata-se de um princípio cípio em exame é o de que o agente já não teJ.?-ha cumprido pena ou
complementar ao da territorialidade, previsto nas convenções de
sido absolvido no país onde praticou o crime (§ 2.º, d).
Chicago e de Tóquio. Em razão desse princípio, adotado no art. 7. 0 ,
II, e, do Código Penal, aplica-se a lei brasileira aos crimes praticados
a bordo de aeronaves ou navios brasileiros, mercantes ou de proprie- e) Princípio da defesa (ou real)
dade privada (hipótese diversa da prevista no art. 5. 0 , § 1.°, que
trata de embarcações ou aeronaves públicas, militares, ou a serviço 55. Este princípio tem em vista a titularidade ou a naciona-
do governo), quando no estrangeiro e áí não tenham sido punidos lidade do bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão pelo

1. Cf. Heleno Fragoso, Lições, cit., p. 114.


2. Cf. Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 131-2. 3. Nesse sentido, Cavaleiro de Ferreira, Direito penal, cit., v. 1, p. 139.

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crime cometido. E assim que o art. 7.0 , I, a a e, sujeita à lei bra- considera praticado "no lugar em que ocorreu a ação ou om1ssao,
sileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes contra a vida no todo ou çfil parte, bem como onde produziu ou deveria produzir-
ou a liberdade do Presidente da República, contra o patrimônio ou a se o resultado" (art. 6.º). ·
fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Territáirio, A teoria da ubiqüidade não tem acarretado na prática grandes
de Municípios etc. problemas (v. g. duplicidade de julgamentos, no país e no estran-
Anota Nélson Hungria que o princípio em causa resulta da ne- geiro), visto como a exigência de entrada ou permanência no terri-
cessidade "de se acautelarem os Estados contra os crimes qm: se tório, ou de extradição, beJ,11 como a possibilidade de detração penal
praticam no estrangeiro contra seus interesses vitais" 4 • (art. 8. 0 ), afastam os possíveis inconvenientes.

d) Princípio da universalidade (ou da justiça universal)

56. À luz do princípio da universalidade, os Estados, em es-


treita cooperação na .luta contra o crime, deveriam obrigar-se a
punir o criminoso que se encontra em seu território, seja qual for a
nacionalidade do agente ou o lugar prática do crime. Este prin-
cípio não pode, obviamente, ter aplicação senão secundária, em ca-
sos restritos, dada a diversidade dos sistemas penais existentes e
os problemas resultantes dos denominados crimes políticos. Nossa
legislação, contudo, o adota restritamente no art. 7. 0 , II, a ( crilmes
que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir),
sendo exemplos mais freqüentes: o tráfico internacional de drogas,
a falsificação de moeda, o tráfico de mulheres e outros. O Supremo
Tribunal, contudo, ·tem afirmado o caráter subsidiário desse princí-
pio, dando prevalência ao da territorialidade, em matéria de extra-
dição ( cf. Extradição 415) .

Lugar do crime

57. Os princípios anteriormente examinados servem, como se


viu, para possibilitar a definição dos limites da jurisdição penal do
Estado, bem como para fixar as hipóteses de aplicação do di1reito
estrangeiro. Questão prévia, entretanto, nessa matéria, que interessa
igualmente à teoria do crime, é a fixação do lugar do delito, o locus
delicti commissi. Por isso o Código. Penal, no art. 6. 0 , adotando
doutrina predominante da ubiqüidade, estatuiu que o se

4. Comentários, cit., v. 1, t. 1, p. 144.

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Trata-se, pois, nesse exemplo, de uma das várias espec1es de
"concurso aparente de normas'', para cuja solução a doutrina pre-
dominante oferece alguns critérios a seguir expostos.

a) "Lex specialis derogat legi generali"


§ 6.° Concurso aparente de normas ou de
59. Se entre duas ou mais normas legais existe uma relação
leis penais de especialidade, isto. é, de gênero para espécie, a regra é a de que
a norma especial afasta a incidência da norma geral. Considera-se
especial (lex specialis) a norma que contém todos os elementos da
geral (lex generalis) e mais o elemento especializador 2 • Há, pois,
58. A tipicidade de uma conduta, ou seja, a subsunção de de- a norma especial um plus, isto é, um detalhe a mais que sutilmente a
terminada ação humana a um tipo legal de crime, pode oferecer ao distingue da norma geral. No exemplo do tráfico internacional de
aplicador da lei dificuldades significativas quando a mesma conduta drogas, o legislador acrescentou, na Lei de Tóxicos, a capacidade de
criminosa apresente características previstas em mais de um tipo incri- certos produtos de entorpecer ou de causar dependência, para dis-
minador. tinguir tais espécies de. produtos do gênero, isto é, de todos os demais
que possam ser objeto de importação clandestina ou proibida. Logo,
Assim, por exemplo, no tráfico internacional de entorpecentes, se a substância contrabandeada tem essa característica particular, o
sob a modalidade de importação clandestina, concorrem para a puni- fato realiza o tipo especial do art. 12 da Lei n. 6.368/76, não o geral
ção dessa conduta criminosa o art. 12 da Lei n. 6.368/76 ("impor- do art. 334, caput, do Código Penal. Há, exemplificativamente, rela-
tar . . . substância entorpecente . . . sem autorização legal") e o ção de especialidade entre tipos básicos e tipos privilegiados (furto
art. 334, caput, do Código Penal ("importar . . . mercadoria proi-
simples e furto privilegiado, homicídio simples e homicídio privile-
bida"). giado), entre tipos básicos e tipos especiais autônomos (homicídio e
Ocorrendo uma hipótese de "contrabando" internacional de tóxi- infanticídio) etc.
cos, surge então a questão de saber se o agente praticou aqueles dois
delitos ou apenas um deles, e, neste caso, qual deles.
Um exame mais acurado, porém, dos tipos penais acima referi- :' b) "Lex primaria derogat legi subsidiariae"
dos leva-nos à conclusão de que a carga de ilicitude e de culpabili-
dade do tráfico internacional de drogas encontra descrição e punição 60. Segundo Honig, há subsidiariedade quando diferentes nor-
exaustiva e mais específica no art. 12 da Lei de Tóxicos, sem deixar mas protegem o mesmo bem jurídico em diferentes fases, etapas ou
margem à incidência concorrente de outro tipo penal. graus de agressão. Nessa hipótese o legislador, ao punir a conduta da
É que, entre as duas normas penais em foco, existe uma certa
fase anterior, fá-lo com a condição de que o agente não incorra na
punição da fase posterior, mais grave, hipótese em que só esta última
relação de hierarquia 1 , de modo que a aplicação de uma esgota a
punição do fato, excluindo a aplicação cumulativa da outra. O con- prevalece. Expor a perigo a vida de outrem constitui o crime do
curso de normas não existia, em verdade, era só aparente. art. 132 do Código Penal, cuja pena é de detenção de três meses a
um ano "se o fato não constitui crime mais grave". Essa norma é
1. Consulte-se a respeito Eduardo Correia, Teoria do concursá em direito
criminal, p. 124; Damásio de Jesus, Direito penal, v. 1, p. 98. 2. Bettiol, Diritto penale, cit., p. 620.

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subsidiária em relação à da tentativa de homicídio, etapa mais grave nem se colocam numa posição de maior ou menor grau de execução
subseqüente da mera exposição a perigo. do crime. Um exemplo disso temos na violação do domicílio (CP,
art. 150), que lesa a liberdade da pessoa, e no furto (art. 155), lesivo
A norma secundária só é aplicável na ausência de outra norma
- a norma primária - , já que esta última envolve por inteiro a ao patrimônio.
primeira. Se, todavia, a violação da residência é o meio empregado para
A subsidiariedade é expressa quando a própria lei ressalva a a consumação do furto, a punição deste último crime absorve a puni-
possibilidade de ocorrência de punição por fato mais grave, como bilidade do primeiro. A norma mais ampla, mais abrangente, do
ocorre no art. 132, citado. São exemplos de tipos expressamente :sub- 1. furto, ao incluir como um de seus elementos essenciais a subtração,
sidiários: o do art. 177, § l.º, 1, do Código Penal, em relação ao do ou seja, o apossamento da coisa contra a vontade do dono, abrange
art. 3.º, X, da Lei n. 1.521/51; o do art. 132 em relação ao do a hipótese de penetração na residência, contra a vontade do dono,
art. 133 do Código Penal; o do art. 129, § 3.º, em relação ao do para o apossamento da coisa. Essa norma mais ampla consome, absor-
art. 121 do Código Penal etc. Nem sempre, porém, a subsidiariedade ve a proteção parcial que a outra menos abrangente objetiva.
vem expressa na lei. Há subsidiariedade tácita nos tipos delitivos que
descrevem fase prévia, de passagem necessária para a realização do Note-se que a violação do domicílio não é etapa ou passagem
delito mais grave cuja punição abrange todas as etapas anteriores de necessária para o furto, como ocorre com a lesão corporal em rela-
execução. Assim ocorre com a tentativa em relação ao crime consu- ção ao homicídio, pelo que a aplicação do princípio da subsidiarie-
mado, com as lesões corporais em relação ao homicídio etc. dade tácita seria discutível, embora defensável. Mas, estando esse
fato prévio abrangido pela prática do crime mais grave, numa relação
Note-se que há uma zona cinzenta entre o princípio da subsi-
de meio para fim, é por este consumido ou absorvido.
diariedade e o da consunção a seguir examinado, a ponto de não se
poder distinguir com clareza, em certas hipóteses, o domínio de um O mesmo ocorre com certas modalidades de f alsum e ·estelio-
ou outro,· divergindo os autores a respeito. nato, quando aquele se exaure na fraude, que constitui elemento
essencial deste último. Isso acontece, por exemplo, na falsificação
de um documento que, usado como fraude para obtenção de lucro
.d "Lex derogat legi consumptae" patrimonial indevido, se esgota em sua potencialidade lesiva, per-
manecendo sem qualquer outra finalidade ou possibilidade de uso
61. O princípio ne bis in idem, freqüentemente invocado em (ex.: alguém falsifica a assinatura do correntista em um cheque e
direito penal, impede a dupla punição pelo mesmo fato. obtém, no Banco sacado, o pagamento indevido). Como o cheque
Esse o pensamento orientador do princípio da consunção, muito esgotou-se na consumação do estelionato, não podendo mais ser utili-
discutido, de conceituação pouco precisa e, em alguns casos, de utili- zado para outros fins, o crime-fim de estelionato absorve o falsum.
dade problemática ante a possibilidade de solução satisfatória com a Assim, porém, não ocorre na falsificação de certos documentos
aplicação dos princípios anteriormente examinados. que, utilizados na prática do estelionato, continuam com a potencia-
Todavia, há casos sem dúvida não abrangidos pela especialidade lidade lesiva para o cometimento de outros delitos da mesma ou de
ou subsidiariedade (pós-fato impunível) que encontram solução com variada espécie. Nesta hipótese verifica-se o concurso formal de
aplicação do princípio da consunção, motivo suficiente para sua acei- crimes (falso e estelionato), como ocorre, por exemplo, com a falsi-
tação doutrinária. ficação de um instrumento de mandato para a emissão de cheque do
Há, na lei penal, tipos mais abrangentes e tipos mais especfficos pretenso mandante e seu recebimento no Banco sacado. Consumado
que, por visarem a proteção de bens jurídicos diferentes, nifo se o estelionato, a procuração, se contiver poderes para outros saques
situam numa perfeita relação de gênero para espécie (especialidade) ou para outros fins, não se exaure na fraude daquele· delito.

52 53
d) Antefato e pós-fato impuníveis
62. Hipótese de antefatos impuníveis temo-los nos exemplos
acima da violação de domicílio, no furto, e de certas falsificações,
no estelionato. Alguns autores (caso de Wessels) consideram que, no
antefato impunível, verifica-se um caso de subsidiariedade tácita 3 .
O resultado não se altera essencialmente.
O pós-fato impunível se ajusta, sem dúvida, ao princípio da con- 1.
sunção. Ocorre, em geral, com atos de exaurimento do crime consu-
mado, os quais estão previstos também como crimes autônomos. A
punição do primeiro absorve a dos últimos. Assim, o furto consu-
mado com a posterior destruição ou danificação pelo uso da coisa
pelo próprio agente do furto. Como o agente, ao furtar a coisa, fê-lo
para uso ou consumo, a punição pela lesão resultante do furto abran- § 7.º O Código Penal brasileiro.
ge a lesão posterior pelo crime de dano (art. 163). Evolução hist6rica
Note-se, porém, que, se o agente vende a coisa para terceiro
de boa-fé, comete estelionato em concurso material, com o antece-
dente furto, por empreender nova lesão autônoma contra vítima dife- a) Direito penal indígena e Ordenações do Reino.
rente, através de conduta não compreendida como conseqüência na-
Livro V das Ordenações Filipinas
tural e necessária da primeira 4 •
63. O direito penal dos povos indígenas, nas terras brasileiras,
na época do descobrimento (século XVI), era tão primitivo e rudi-
mentar quanto a formação cultural dos aborígenes que habitavam
esta parte do continente americano. Baseava-se, exclusivamente, em
costumes e crenças tribais que, segundo documentos da época, in-
cluíam, entre outras práticas, o canibalismo (geralmente em ritual
no qual se devorava o prisioneiro), a vingança compensatória ( es-
pécie de talião aplicado pelo próprio ofendido), sem falar na per-
missividade, em certos casos, do uxoricídio, do infanticídio, do abor-
to, da eutanásia etc. 1 • Tratava-se de um direito penal - se é que
assim poderia denominar-se - difuso, inexorável, pautado pela res-
ponsabilidade objetiva e coletiva, que facilmente transitava do agente
para terceiros 2 , permeado de mitos e tabus. Comó salienta o autor
citado, é extremamente difícil tentar compreender a vida de um

1. Cf. Bernardino Gonzaga, O direito penal indígena, p. 85-6, 109, 125,


134-7, 157.
3. Direito penal, cit., p. 181.
4. Wessels, Direito penal, cit., p. 181. 2. Bernardino Gonzaga, O direiJo penal, cit., p. 113-4; 119.

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