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3 A ANISTIA PENAL.

3.1 CARACTERÍSTICAS GERAIS.

Na legislação brasileira, o instituto da anistia engloba duas espécies: a anistia tributária e a


anistia penal1. A anistia tributária é classificada pelo Código Tributário Nacional como uma
modalidade de exclusão do crédito tributário (arts. 180 a 182). A sua concessão tem a
consequência de impedir a constituição do credito decorrente de infrações tributárias
administrativas (não abrange, assim, crimes ou contravenções penais) praticadas pelo sujeito
passivo – tal como, por exemplo, não manter os livros contábeis na forma exigida pelo sujeito
ativo – impedindo que a sanção que seria cabível possa ser aplicada. Ocorre através de lei
específica, editada pelo ente federativo que possui competência para instituir o tributo. O seu
objetivo é diminuir a carga tributária de empresas, geralmente em situações de conjuntura
econômica desfavorável.
A anistia penal é o ato pelo qual o Estado renuncia ao seu direito de punir os que
cometeram crimes e contravenções. Tem origem etimológica na palavra grega amnestia, que
significa esquecimento, algo que diz muito sobre a sua finalidade.
O primeiro registro de anistia penal que se possui vem do ano 403 a.C., em Atenas,
Grécia. No curso de uma guerra civil, que objetivava derrubar uma ditadura espartana que
governava a cidade desde o fim da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C), o líder da insurgência,
Trasíbulo, fez um acordo com o rei de Esparta, Pausanias. Por esse acordo, os espartanos
devolveriam a administração da cidade aos atenienses e, em troca, não sofreriam represálias. Para
cumprir o acordo, Trasíbulo editou uma lei proibindo todos os cidadãos de relembrar o conflito2.
A remissão histórica já indica o papel que a anistia penal exerce: trata-se de uma medida
adotada diante da necessidade de trazer paz social em momentos delicados, quase sempre
envolvendo uma transição entre um regime político e outro, ou ao término de um conflito armado
interno. Com a impossibilidade de responsabilização penal dos grupos adversários, espera-se que

1
Embora essas sejas as duas espécies básicas do instituto da anistia, a sua acepção foi ampliada no decorrer dos
tempos, de modo que é utilizado atualmente para se referir a qualquer tipo ato punitivo, independentemente da sua
natureza.
2
REMÍGIO, Rodrigo Ferraz de Castro. Democracia e Anistia Política: Rompendo com a Cultura do Silêncio,
Possibilitando uma Justiça de Transição. Revista de Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Ministério da
Justiça nº. 1. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/anistia> Acesso em 28 mai. 2010.
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o clima de tensão tenha fim e as agressões cessem, fazendo com que a reconciliação seja mais
fácil de ser alcançada. Como também garante que os governantes do antigo regime não sofram
punições pelos crimes que possam ter apoiado, a anistia penal facilita a caminhada rumo a outro
sistema político, já que estes se sentem mais seguros para abandonar o poder. A Lei nº 6.683/79
claramente não foge a esta regra, já que, conforme mostrado, foi um instrumento importante no
processo de fim da ditadura e retorno da democracia. Isso também se constata nas outras anistias
concedidas no decorrer da história do Brasil3.
Outro objetivo que também se atribui a essa espécie de anistia relaciona-se com as
injustiças que a legislação penal pode gerar quando da sua aplicação. Sendo a arma sancionatória
mais poderosa que o Estado possui contra o indivíduo, é corriqueiro que, em momentos de
instabilidade política, sejam editadas normas excessivamente rigorosas, que punem mais do que a
ética geral considera necessário. Quando essa instabilidade desaparece ou ao menos se torna mais
fraca, pode ocorrer que se constate o exagero existente nas punições anteriormente aplicadas.
Para corrigir essa distorção, é feito uso da anistia penal. Novamente, essa circunstância também é
perceptível na edição da Lei nº 6.683/79, que visou suavizar os rigores da Lei de Segurança
Nacional que teve vigência entre 1969 e 1978 (Decreto-lei nº 898, de 29 de setembro de 1969),
na qual eram previstos tipos penais com conceitos muito indeterminados e penas severas,
incluindo-se a prisão perpétua e a pena de morte (esta última nunca aplicada formalmente).
Embora não estivesse mais em vigor quando a Lei de Anistia foi editada, ainda era aplicável a
quem tivesse sido condenado por sentença irrecorrível, em função de que a lei penal, naquela
época, somente retroagia para alcançar acusados cujos processos ainda não haviam transitado em
julgado, nos termos do art. 2º, parágrafo único, do Código Penal, antes da reforma de 19844.
O fundamento que embasa a existência da anistia penal relaciona-se com a idéia de
soberania que todo Estado possui sobre o seu território, dentro do qual se considera que está
inserido o poder de exercer um ato de clemência. Mas um esclarecimento acaba sendo necessário:
a sua concessão não deve ser encarada como um desapegado ato de caridade estatal – embora, em

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A primeira anistia concedida no Brasil vem de 1654 e beneficiou os portugueses e brasileiros que colaboraram com
a ocupação que a Holanda manteve em Pernambuco. A segunda foi editada em 1822 e atingiu os que cometeram
crime de injúria contra a monarquia, em função da independência do país. A terceira foi concedida em 1930 e
abrangeu os envolvidos em movimentos contrários ao governo Getúlio Vargas. Em 1945, próximo ao fim da ditadura
do Estado Novo, Vargas concedeu a quarta anistia a quem havia cometido crimes políticos.
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Art. 2º. Parágrafo único. A lei posterior, que de outro modo favorecer o agente, aplica-se ao fato não
definitivamente julgado e, na parte em que comina pena menos rigorosa, ainda ao fato julgado por sentença
condenatória irrecorrível.
3

outras épocas, era realmente concebido como um ato de benevolência do monarca – visto que é
resultado de um contexto político complexo, onde paira uma perigosa ameaça a própria
integridade estatal. Esse aspecto é corroborado por Lauro Joppert Swensson Júnior:

Quando falamos em ato de clemência para nos referimos à anistia, ao indulto, à


graça e a comutação da pena, dá-se a entender que o Estado está sendo
benevolente com os seus destinatários, o que não é verdade. Por exemplo, não
há que se dizer que o Estado que concede anistia é benevolente, bondoso,
gracioso ou clemente. A anistia (...) não é um simples presente concedido
gratuitamente aos seus destinatários, mas o resultado de acordo político, com
interesses, condições, finalidades etc. preestabelecidos. 5

A concessão da anistia ocorre através de uma lei. Mas, ao contrário do que poderia se
pensar inicialmente, não se trata de uma lei de efeitos concretos – que são apenas atos
administrativos aprovados por meio do processo legislativo – mas sim de uma lei propriamente
dita, já que a anistia é dirigida à sociedade em geral e não à sujeitos determinados e nem à
circunstâncias específicas. Por isso, as leis anistiantes mencionam os seus destinatários e os
delitos que abrange de forma genérica, impessoal e abstrata, sem fazer menção a situações
particulares.
Na atual ordem normativa, o projeto de lei de anistia cabe a qualquer um dos legitimados
para iniciar o processo legislativo, mencionados no art. 61 da Constituição, com exceção do
Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e do Procurador-Geral da República 6. Por
ser uma lei ordinária, o quórum exigido para a sua aprovação é a maioria simples, e é de
competência privativa da União (CF, art. 21, XVII), dado o interesse nacional que a questão
possui e que, por isso mesmo, não pode ficar nas mãos de Estados ou Municípios. À época da Lei
nº 6.683/79, a iniciativa cabia exclusivamente ao Presidente da República, que antes deveria
consultar o Conselho de Segurança Nacional, nos termos determinados pelo art. 57, VI, da
Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda à Constituição nº 01/69.
Outra característica da anistia penal é a circunstância de que se refere apenas a condutas
típicas já consumadas ou tentadas. Não existe, logo, anistia que englobe crimes futuros e isso
ocorre por uma questão de segurança: se fosse possível, haveria um estímulo para que
5
SWENSSON JÚNIOR, Lauro Joppert. Problemas de Validade na Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683). 1 Ed.
Curitiba: Juruá, 2007. p. 142.
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A impossibilidade de os tribunais e do Procurador-Geral da República apresentarem um projeto de lei de anistia
decorre do fato de que a legitimidade conferida a esses sujeitos, sendo uma conseqüência da autonomia
administrativa que o Ministério Público e o Judiciário possuem, está restrita a leis que versem sobre as respectivas
instituições.
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criminosos, já sabendo previamente que a punição não poderia ser aplicada em determinado
período, violassem a legislação penal livremente. Dessa forma, percebe-se que a anistia possui
natureza apenas retroativa, já que alcança somente fatos que lhe são anteriores.
O efeito gerado pela edição de uma lei de anistia é impossibilitar que o preceito primário
da norma penal tenha aplicação aos agentes que estão dentro do seu campo de abrangência,
impedindo o exercício da punibilidade que surge da contrariedade a tal norma. Para que isso seja
compreendido adequadamente, é preciso delinear alguns aspectos do modo de positivação de uma
regra criminal.
As normas penais são classificadas em duas categorias: normas não incriminadoras e
normas incriminadoras. As normas não incriminadoras possuem a função de estabelecer
excludentes de ilicitude e culpabilidade, fornecer conceitos e orientar a aplicação da legislação.
São exemplos desse tipo os arts. 23, 28, §1º, 327 e 59, todos do Código Penal.
Normas penais incriminadoras são aquelas voltadas à finalidade elementar do Direito
Penal: a proibição ou a imposição de condutas, sob a ameaça de uma sanção. São essas normas
que descrevem o comportamento que, se praticado, autoriza a aplicação da pena prevista. Estão
estruturadas com base em dois elementos: o preceito primário e o preceito secundário. As lições
de Rogério Greco explicam no que cada um consiste:

O primeiro deles, conhecido como preceito primário (preceptum iuris), é o


encarregado de fazer a descrição detalhada e perfeita da conduta que se procura
proibir ou impor; ao segundo, chamado preceito secundário (sanctio iuris), cabe
a tarefa de individualizar a pena, cominado-a em abstrato.
Assim, no preceito primário do art. 155 do Código Penal, temos a seguinte
redação: Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia imóvel.
Logo em seguida, vem o preceito secundário: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4
(quatro) anos, e multa.
Então, aquele que praticar a conduta descrita no preceito primário do art. 155,
caput, do Código Penal terá como conseqüência a aplicação da pena também
nele prevista.7
(destaques do original)

A partir do momento em que é concedida, a anistia retroage para o fim de tornar sem
eficácia, em relação aos seus destinatários, o preceito primário da norma incriminadora. Para o
anistiado, não existe (formalmente) aquela disposição, inclusive para cômputo de reincidência.
Com isso, fica inviável aplicar o comando sancionatório estabelecido no preceito secundário e o

7
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 6 Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. p. 24.
5

Estado não pode exercer o seu direito de punir. Não é por outra razão que a legislação prevê que
a anistia leva a extinção da punibilidade (CP, art. 107, II).
Todavia, embora a responsabilização criminal não seja possível, a anistia não abrange
outras instâncias. Assim, ainda é possível promover a responsabilidade civil do beneficiado,
obrigando-o a reparar os danos causados pelo seu ato, bem como sancioná-lo no âmbito
administrativo, caso seja um funcionário público, e na esfera política, na hipótese de ser um
detentor de mandato eletivo. Dessa forma, por exemplo, é cabível um processo de impeachment
contra um prefeito municipal, mesmo que o fato que o embasa esteja coberto pela anistia.
No campo prático, as suas conseqüências irão depender do momento em que se encontra a
persecução penal. Se já houver ação penal em curso, o juiz deve encerrá-la, através de sentença
declaratória de extinção da punibilidade. O mesmo deve ocorrer se a sentença penal condenatória
estiver em fase de execução. Já se há apenas um inquérito policial em trâmite, o Ministério
Público deve promover o seu arquivamento, a ser homologado pelo juiz. Porém, existem
doutrinadores que entendem que, mesmo nessa fase pré-processual, deve-se declarar a extinção
da punibilidade. Um exemplo desta corrente são Nestor Távora e Rosmar Antonini:

Por sua vez, estando presente causa extintiva da punibilidade, não haveria razão
alguma para o exercício da ação penal, afinal o direito de punir não mais poderá
ser efetivado. Logo, propício o arquivamento, seja quando presente a
prescrição, ou qualquer outra causa semelhante (artigos 107 et seq, CP). O mais
adequado é que o magistrado, ao invés de simplesmente arquivar o inquérito ou
as peças de informação, declare expressamente a extinção da punibilidade. 8

A decisão de extinção da punibilidade possui a natureza de uma sentença declaratória e,


sendo assim, é própria de um processo judicial. Como, na fase do inquérito, o juiz exerce uma
função administrativa, com o objetivo de controlar os atos de investigação, não consideramos que
seja possível a emissão de um ato desse cunho neste momento. O caminho tecnicamente viável é
mesmo apenas promover o arquivamento.
Ainda dentro desta questão do arquivamento do inquérito, precisamos externar um
posicionamento pessoal. Embora seja consenso a afirmação de que a anistia gera a extinção da
punibilidade, consideramos que este não deve ser o fundamento da promoção de arquivamento,
visto que o fim da pretensão punitiva é apenas o seu efeito indireto. O primeiro e verdadeiro

8
TÁVORA, Nestor; ANTONINI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3 Ed. Bahia: JusPodivm, 2009. p.
98.
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efeito da anistia, conforme já demonstrado, é tornar atípica a conduta do seu destinatário. Por
isso, entendemos que o fundamento da peça deve ser a atipicidade da conduta e não a mera
extinção da punibilidade. Essa distinção é crucial, já que a decisão que tem como base a ausência
de conduta típica é a única, dentre as hipóteses de arquivamento, que gera coisa julgada material,
impedindo a reabertura do inquérito de forma definitiva.
Se ainda não houver inquérito instaurado, a lei anistiante impede a autoridade policial de
fazê-lo. Afinal, a norma cuja violação seria apurada não incide para o beneficiado e não se pode
iniciar inquérito para apurar uma conduta se é visível que não está tipificada. As implicações da
anistia são muito amplas, na medida em que impede o desenvolvimento de qualquer ato de
investigação criminal, como se pode constatar.
Por fim, tendo em conta a necessidade de evitar confusões, é preciso diferenciar a anistia
penal de outros três institutos que também geram a extinção da punibilidade: a abolitio criminis,
o indulto e a graça.
A abolitio criminis é a revogação da norma penal, de modo a tornar penalmente lícita a
conduta antes criminalizada. Afeta tanto a vigência do seu preceito primário quanto de seu
preceito secundário, fazendo com que a sua vigência cesse totalmente. Além desse aspecto
formal, se diferencia da anistia em relação ao alcance de seus efeitos, já que não possui natureza
apenas retroativa, mas também abrange condutas futuras.
O indulto é um ato privativo do Presidente da República (CF, art. 84, XII), pelo qual se
impede que a sentença condenatória seja executada. A vigência da norma não é afetada de forma
alguma. O mesmo ocorre com os efeitos da sentença, que poderá ser levada em consideração para
a apuração de reincidência. Há apenas um obstáculo para que a decisão seja efetivamente
cumprida. O ato que concede o indulto se dirige genericamente a grupos de condenados,
geralmente os que já cumpriram uma parte significativa da pena. Tradicionalmente, é praticado
próximo ao fim do ano, no que se convencionou chamar de indulto natalino. O último deles foi
concedido através do Decreto nº 7.046, de 22 de dezembro de 2009.
A graça é idêntica ao indulto, com a ressalva de que não abrange um grupo genérico de
condenados, mas somente presos especificamente identificados. Por isso, também é chamada de
indulto individual.

3.2 CLASSIFICAÇÃO.
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A anistia penal é um instituto passível de ser classificado sob diversos pontos de vista. A
classificação exposta a seguir é a mais abrangente encontrada na doutrina que trata do assunto,
extraída das obras de Lauro Joppert Swensson Júnior 9, Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos10 e
José Frederico Marques.11
a) Geral: ocorre quando a anistia, uma vez que determina a natureza de crimes que
envolve (crimes comuns, crimes políticos, crimes conexos...), não faz restrições quanto aos tipos
criminais e pessoas que abrange. Também chamada de anistia com imunidade geral.
b) Parcial: quando a anistia exclui de seu alcance determinados sujeitos e/ou condutas.
Também conhecida como anistia com imunidade parcial.
c) Especial: quando a anistia engloba crimes políticos.
d) Comum: quando a anistia envolve crimes comuns.
e) Unilateral: concedida apenas a agentes que atuavam contra o Estado.
f) Bilateral: concedida a agentes contrários ao governo existente e também aos agentes
apoiados pelo Estado. Esse tipo de anistia também é chamada de anistia em branco e anistia de
via dupla. A prática de anistiar os agentes a serviço do próprio regime é chamada de autoanistia.
g) Condicional: quando são exigidos requisitos para que um agente possa se beneficiar
dos efeitos da anistia.
h) Incondicional: quando não são feitas exigências para que o destinatário usufrua dos
efeitos anistiantes.
i) Com legitimidade local: quando a lei de anistia é promulgada por um regime
democrático e/ou foi submetida a aprovação popular, por meio de referendo ou plebiscito.
j) Sem legitimidade local: quando a anistia penal é editada por um governo instituído pela
força, que não possui aprovação popular.
k) Com legitimidade internacional: quando o ato anistiante é proferido com intermediação
de organismos internacionais.
l) Sem legitimidade internacional: quando a anistia é concedida sem participação de
organizações internacionais.

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SWENSSON JÚNIOR, Lauro Joppert. Problemas de Validade na Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683). 1 Ed.
Curitiba: Juruá, 2007.
10
BASTOS, Lúcia Elena Arantes Ferreira. Anistia. 1 Ed. Curitiba: Juruá, 2009.
11
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal – Vol. III. 4 Ed. Campinas: Millenium, 2002.
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