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Algumas Considerações Sobre a Súmula 231 do STJ

Felipe Heringer Roxo da Motta 1

Introdução

Eis um dia em virtude do qual a vida de muitos brasileiros teve o rumo


modificado: 7 de dezembro de 1940. Tal é a data do Decreto-Lei n. 2.848/40, que
instituiu o Código Penal. Foi influenciado por toda uma conjuntura política nacional e
internacional: plena Segunda Guerra “Mundial”, Congresso desfeito, Constituição
outorgada, caça aos inimigos da vez (os “comunistas”) e assim por diante.
Em 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas decreta a dissolução do Congresso
Nacional e anuncia a nova Constituição (que dentre outras coisas, acabava com os
partidos políticos). Começava o chamado “Estado Novo”. A Constituição de 1937
expandia consideravelmente as prerrogativas do chefe do Poder Executivo. Além disso,
permitia a censura nos meios de comunicação e instituía a pena de morte.
No período da guerra, o Brasil não assumia uma posição clara. Alguns atuantes
no governo possuíam posições em favor das políticas de socialismo nacional dos países
integrantes do Eixo e outros se colocavam contra. Essa dúvida de posicionamento
manteve - se durante o período de 1940 e apenas em 1941, por acordos entre o Brasil e
um banco dos EUA (Eximbank), que a posição foi ficando mais definida. Em janeiro de
1942 foi firmada a aliança entre o Brasil e os EUA.
É em meio a tudo isso que, em 7 de dezembro de 1940, é publicado o Decreto-
Lei 2.848/40. É promulgado usando dos poderes conferidos ao Presidente pelo art. 180
da Constituição de 1937 2 .
O Código de 1940 é, portanto, um misto de posições ideológicas, influenciado
pela legislação italiana, outorgado por meio de Decreto-Lei (pois não havia Congresso
para tramitasse o processo legislativo) e fundado em uma ordem constitucional imposta.
Teve sua vigência prolongada em virtude da “morte prematura” do Código Penal de
1969 e em 1984, nos últimos anos em que a ditadura ainda tentava se manter, teve sua

1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestrando em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina.
2
O artigo 180 da Constituição de 1937 tem a seguinte redação: “Enquanto não se reunir o Parlamento
nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos – leis sobre todas as matérias da
competência legislativa da União”.
2

Parte Geral substituída.


Sobreveio a Constituição de 1988, fruto da “redemocratização”: a “Constituição
cidadã”, alguns diziam. Desde esta última Constituição até hoje, a política criminal
oscila entre seu reforço e sua minimização, entre uma Lei de Crimes Hediondos (talvez
o único crime realmente hediondo seja a própria lei) e uma Lei dos Juizados Especiais
(aclamada por uns e fortemente criticada por outros).
Em 1999 sobreveio a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça. É sobre ela
que versará o presente artigo, propondo-se um breve apanhado histórico, passando por
questões teóricas que envolvem sua discussão. Deve-se, portanto, começar por uma
exposição rápida sobre o atual sistema de aplicação da pena. É a antiga, mas que de
forma alguma perdeu a relevância na atualidade, discussão quanto à possibilidade de
utilização das circunstâncias atenuantes para aplicar a pena abaixo do mínimo cominado
à conduta típica.

1. O sistema trifásico de aplicação da pena

Durante a vigência da antiga Parte Geral do Código Penal, os arts. 42 e 50 3


suscitaram alguma polêmica quanto ao sistema de aplicação da pena. Basicamente, as
posições em discussão era a do sistema trifásico (defendida por Nelson Hungria) e o
sistema bifásico (sustentada por Roberto Lyra). No primeiro modelo (trifásico), a
conduta deveria ser avaliada com base no art. 42 (circunstâncias judiciais), para ser
fixada a pena-base. Seguia-se pelas circunstâncias legais e, por último, aplicavam-se as
causas especiais de aumento e diminuição. Já nos moldes de Roberto Lyra, a conduta
deveria ser avaliada de forma geral, já aplicando as circunstâncias legais e judiciais,
para encontrar a pena-base. Por último, caso necessário, aplicar-se-iam causas especiais
de aumento ou diminuição 4 .
A posição de Nelson Hungria acabou prevalecendo e, com uma nova Parte Geral
superveniente em 1984, tornou-se modelo fixado no próprio Código, em seu art. 68. O
sistema trifásico resulta na aplicação da pena, como é possível deduzir do próprio nome,

3
“Art. 42. Compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do
dolo ou grau de culpa, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime:
I – determinar a pena aplicável, dentre as cominadas alternativamente;
II – fixar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicável”.
“Art. 50. A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quantidade fixa ou dentro de determinados
limites, é a que o juiz aplicaria se não existisse causa de aumento ou de diminuição”
4
FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena, p. 56.
3

em três fases. A primeira está prevista no art. 59 do CP. O magistrado, então, estabelece
“atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do
agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao
comportamento da vítima, estabelecerá conforme seja necessário e suficiente para a
reprovação e prevenção do crime”. Os critérios aqui presentes são as chamadas
“circunstâncias judiciais”. Tal dispositivo é de suma relevância, pois daí é possível
atribuir que a pena deve, no sistema penal vigente, ter função retributiva (mostrando a
reprovação “social” diante da conduta) e preventiva (no caso, a prevenção negativa 5 ,
evitando que o agente – prevenção especial – e outros – prevenção geral – venham a
cometer tal conduta novamente).
A questão dos fins da pena e do cárcere, que ainda hoje é questão bastante
discutida, suscita reflexões de extrema relevância, como o caso de suas funções
declaradas e ocultas 6 . Os objetivos ideológicos aparentes envolvem aquilo difundido
com o discurso penal (controle da criminalidade, ressocialização do delinqüente,
repressão a criminosos, etc.), enquanto os objetivos reais ocultos tratam da questão da
reprodução das relações produtivas, controle do exército industrial de reserva, dentre
outros 7 . Porém, para que se mantenha na discussão proposta, este tema não poderá ser
aqui desenvolvido.
Outro ponto que é aqui relevante, mas não poderá receber o tratamento devido, é
a questão da culpabilidade. Do art. 29 do CP é possível perceber que no ordenamento
nacional, a culpabilidade “funciona como elemento de determinação ou de medição da
pena” 8 . Isso não ocorre apenas na doutrina nacional. Jescheck, por exemplo, explica que
o princípio da culpabilidade garante que não exista pena sem culpa, bem como a pena só
é aplicada de acordo com a medida da culpa (“keine Strafe ohne Schuld, Strafe nur nach
9
dem Mass der Schuld”) . Porém, as noções de culpabilidade são atacadas
constantemente, havendo quem diga que a culpabilidade é um conceito cada vez mais
vazio 10 , sendo necessário torná-lo mais preciso 11 . É tema amplo e que não poderá ser

5
Há autores que tratam da chamada prevenção geral positiva. A atuação positiva da prevenção geral
pode ser dividida em duas fundamentações teóricas principais. As duas, tanto com Roxin, quanto com
Jakobs, têm a finalidade de representar a pena como forma de garantir a obediência ao Direito, mantendo
ou restaurando a confiança no ordenamento, enquanto meio de controle social. (SANTOS, J. C. dos.
Direito Penal, pp. 459-461).
6
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro, pp. 112-113.
7
SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical, p. 128.
8
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 607.
9
. JESCHECK, Hans-Heinrich. Wandlungen des strafrechtlichen Schuldbegriffs in Deutschland und
Österreich, p. 01:2.
10
FABRICIUS, Dirk. Culpabilidade e seus fundamentos empíricos, p. 14-15.
4

tratado devidamente aqui, mas é deixada a ressalva de que a noção de culpabilidade será
usada aqui conforme normalmente usada pela doutrina, pois o aprofundamento da
crítica não influenciaria o resultado pretendido aqui.
Retomando a linha de reflexão, é a partir do art. 59 do CP que o juiz estabelecerá
a pena-base (caso esteja convencido da presença dos elementos para aplicar uma pena
privativa de liberdade), a partir da qual se trabalham as sucessivas modificações com
base nos critérios do Código. Aqui temos a pena “que seria aplicada caso não existissem
circunstâncias atenuantes ou agravantes ou causas de aumento ou de diminuição” 12 .
Corresponde à primeira fase da aplicação da pena.
Na segunda fase da aplicação da pena são avaliadas as circunstâncias legais, ou
seja, as agravantes (art. 61 do CP) e atenuantes (arts. 65 e 66 do CP). Com base nos
critérios previstos para esta fase, o juiz aumentará ou diminuirá a pena (a partir da pena-
base). Deve sempre deixar claro o fundamento para a aplicação de uma das
circunstâncias, bem como a quantia de pena a ser acrescida ou reduzida. Não há limites
especificados na lei para o aumento ou a diminuição, devendo o juiz adequá-los ao caso
concreto de acordo com o entendimento próprio, sendo que é possível o controle
judicial em caso da aplicação equivocada pelo magistrado.
Em um terceiro e último momento para a definição da quantia de pena a ser
aplicada, tem-se o uso das causas de aumento e diminuição. Não estão previstas em
apenas um ponto do Código, mas em locais esparsos na Parte Geral e na Parte Especial.
Neste ponto, ao contrário da fase anterior, o quantum da pena que pode ser modificado
para mais ou para menos vem posto na própria lei em limites fixos (um terço, metade,
etc.) ou variáveis (de um terço à metade, de um sexto a dois terços, etc.), devendo o juiz
fixar o aumento ou diminuição nos extremos ou em algum ponto do intervalo.

2. A súmula 231 do STJ e suas conseqüências

No Brasil, muito se discutiu quanto à possibilidade de aplicação de circunstância


atenuante para levar a pena abaixo do mínimo cominado para a conduta na Parte
Especial. Muito de tal discussão é anterior a 1984, quando havia uma presença mais

11
CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo, p. 38.
12
FERREIRA, G. Aplicação da Pena, p. 63.
5

forte da problemática entre os sistemas trifásico e bifásico 13 . Sempre houve a afirmação


genérica de que a pena-base não pode ser estabelecida aquém do mínimo legal, mas na
análise das causas de aumento e diminuição da pena tal limite poderia ser ultrapassado.
No sistema bifásico, então, não havia muita discussão, já que aquilo que não era causa
de aumento ou diminuição da pena, era usado para estabelecer a pena-base. No modelo
trifásico, há um momento intermediário (as circunstâncias legais), o que ensejava ainda
mais controvérsias, que foram reaquecidas quando sobreveio a Parte Geral de 1984
adotando as idéias de Nelson Hungria.
A aplicação atual, com base na Súmula 231 do STJ, possui forte herança da
doutrina dominante a partir da década de 1940. O que prevaleceu, desde então, foram os
argumentos expostos por Roberto Lyra nos Comentários ao Código Penal, com os quais
sustentava que a aplicação partia da média aritmética entre os valores máximo e mínimo
cominados. Nas palavras do próprio autor, as circunstâncias “agravantes e atenuantes,
quer as legais (...), quer as judiciais (...), apontam ao juiz o máximo ou o mínimo, para
que se aproxime de um ou de outro conforme o caso” (grifos no original) 14 . Assim, se o
juiz “tem a pena de seis a vinte anos para aplicar, estará perto do máximo ou mínimo, a
partir dos 13 anos para cima ou para baixo, respectivamente” 15 . Pelo fato de se partir da
média aritmética entre o máximo e mínimo cominados, para aquela época, não chamava
tanto a atenção a discussão aqui presente. Porém, conforme será visto, como atualmente
a dosimetria da pena parte do mínimo legal, salvo se houver alguma circunstância
judicial que justifique o contrário, estamos diante de uma situação completamente
diferente.
A posição dominante era a favor da impossibilidade de utilização das
circunstâncias legais para levar a pena além ou aquém dos limites previstos no tipo. Isso
se deve ao seguinte argumento: nas causas de aumento e diminuição da pena (terceira
fase de aplicação da pena), o próprio legislador estipulou os limites os quais o
magistrado deve utilizar, enquanto nas circunstâncias legais (caso ultrapassar os limites
da pena cominados fosse possível), haveria um poder discricionário muito grande na
mão do juiz. Assim, o juiz “não pode diminuir a pena aquém do mínimo ou aumentá-la
acima do máximo legal, porque com isto estaria burlando o princípio da legalidade. Mas
pode ultrapassar esses limites em razão das causas especiais de aumento ou de

13
TUBENCHLAK, James. Atenuantes: pena abaixo do mínimo, [in] Jurisprudência Brasileira Criminal,
n. 19, p. 16.
14
LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal, v. 2, p. 349.
15
LYRA, R. Comentários ao Código Penal, v. 2, pp. 349-350.
6

diminuição porque em relação a estas, não há perigo de burla, tendo em vista que o
aumento ou a diminuição já vêm previamente estabelecidos pelo legislador” 16 .

3. Um apanhado jurisprudencial
O problema sobre aplicar ou não as circunstâncias legais para levar a pena
aquém do mínimo existe há muito tempo e a Súmula 231 não pacificou a jurisprudência.
Esta parte deste trabalho pretende um apanhado das discussões no STJ a partir de alguns
acórdãos. Trazendo dois exemplos que representam a postura da maioria do STJ ao
longo da década de 1990, temos os seguintes julgados: REsp 7287 / PR (julgado em
16/04/1991, de relatoria do Ministro William Patterson), REsp 15695 / PR (julgado em
18/12/1991, de relatoria do Ministro Assis Toledo), REsp 46182 / DF (julgado em
04/05/1994, de relatoria do Ministro Jesus Costa Lima). Fundamentalmente o
argumento levantado é trazido no último julgado citado nos seguintes termos:
PENAL. PENA-BASE. MINIMO LEGAL. MENORIDADE E CAUSA DE
AUMENTO. FIXAÇÃO DA PENA. CRITERIOS.
1. O SISTEMA ADOTADO PELO CODIGO PENAL IMPEDE QUE,
ESTABELECIDA A PENA-BASE CONSIDERADAS AS CIRCUNSTANCIAS
JUDICIAIS, EXISTINDO CIRCUNSTANCIA ATENUANTE, O JUIZ DIMINUA A
PENA ABAIXO DO ESTABELECIDO EM LEI. PORTANTO, FIXADA A
PENA-BASE NO MINIMO LEGAL, MESMO LEVANDO EM CONTA A
MENORIDADE DO REU, A PENA NÃO PODE SER REDUZIDA PARA
QUANTIDADE INFERIOR AO MINIMO ABSTRATAMENTE
CONSIDERADO. E QUE AS CIRCUNSTANCIAS LEGAIS INFLUEM SOBRE O
RESULTADO A QUE SE CHEGA NA PRIMEIRA FASE, CUJOS LIMITES,
MINIMO E MAXIMO, NÃO PODEM SER ULTRAPASSADOS. APENAS NA
TERCEIRA FASE, QUANDO INCIDEM AS CAUSAS DE DIMINUIÇÃO E DE
AUMENTO, E QUE AQUELES LIMITES PODEM SER ULTRAPASSADOS.
2. PRECEDENTES.

Caso interessante é o do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, o qual tem alguns


precedentes apontados inclusive como fundamentos da Súmula 231 17 . O Ministro se
posicionava a favor da impossibilidade de se levar a pena aquém do mínimo na segunda
fase da dosimetria da pena. Porém, em 1996, no julgamento do REsp 68120 / MG, o
Ministro sustenta a posição inversa e permite a aplicação das atenuantes para reduzir a
pena abaixo do mínimo legal nos seguintes termos:
RESP - PENAL - PENA - INDIVIDUALIZAÇÃO - ATENUANTE - FIXAÇÃO
ABAIXO DO MINIMO LEGAL - O PRINCIPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA
PENA (CONST., ART. 5., XLVI) MATERIALMENTE, SIGNIFICA QUE A
SANÇÃO DEVE CORRESPONDER AS CARACTERISTICAS DO FATO, DO
AGENTE E DA VITIMA, ENFIM, CONSIDERAR TODAS AS
CIRCUNSTANCIAS DO DELITO. A COMINAÇÃO, ESTABELECENDO GRAU

16
FERREIRA, G. Aplicação da Pena, pp. 103-104.
17
São os votos do REsp 15691 / PR e REsp 32344 / PR.
7

MINIMO E GRAU MAXIMO, VISA A ESSE FIM, CONFERINDO AO JUIZ,


CONFORME O CRITERIO DO ART. 68, CP, FIXAR A PENA IN CONCRETO. A
LEI TRABALHA COM O GENERO. DA ESPECIE, CUIDA O MAGISTRADO. SO
ASSIM, TER-SE-A DIREITO DINAMICO E SENSIVEL A REALIDADE,
IMPOSSIVEL DE, FORMALMENTE, SER DESCRITA EM TODOS OS
PORMENORES. IMPOSIÇÃO AINDA DA JUSTIÇA DO CASO CONCRETO,
BUSCANDO REALIZAR O DIREITO JUSTO. NA ESPECIE SUB JUDICE, A
PENA-BASE FOI FIXADA NA MINIMO LEGAL. RECONHECIDA, AINDA, A
ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTANEA (CP, ART. 65, III, D). TODAVIA,
DESCONSIDERADA PORQUE NÃO PODERA SER REDUZIDA. ESSA
CONCLUSÃO SIGNIFICARIA DESPREZAR A CIRCUNSTANCIA. EM OUTROS
TERMOS, NÃO REPERCUTIR NA SANÇÃO APLICADA. OFENSA AO
PRINCIPIO E AO DISPOSTO NO ART. 59, CP, QUE DETERMINA PONDERAR
TODAS AS CIRCUNSTANCIAS DO CRIME.

Deste julgamento participaram os Ministros Vicente Leal, Fernando Gonçalves e


Anselmo Santiago. A partir de então, as decisões no órgão superior ficam heterogêneas.
No REsp 151837 / MG (julgado em 28/05/1998) os Ministros Fernando Gonçalves e
Anselmo Santiago (os mesmos que acompanharam o Ministro Cernicchiaro em 1996)
votaram pela não redução da pena abaixo do mínimo legal. O Ministro Cernicchiaro
pediu vistas e em seu voto, diverge do relator e reconhece (citando inclusive o julgado
de 1996) a possibilidade de pena aquém do mínimo na segunda fase, sendo que o
Ministro Vicente Leal o acompanha na decisão.
Após muitas discussões e decisões reiteradas nesse ponto pelo STJ, este órgão,
em 22/09/1999 (publicado no DJ 15.10.1999, p. 76), editou a Súmula 231, a qual dispõe:
“a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do
mínimo legal”. Após a edição da citada Súmula, as decisões no STJ se tornaram
homogêneas novamente nesta matéria. No final de 1999, no HC 10241 / SP, o Ministro
Vicente Leal já decide em conformidade com a Súmula. Até hoje a posição não é
pacífica na jurisprudência nem na doutrina, já que reiteradamente os ministros do órgão
superior são obrigados a invocar a citada Súmula para fundamentar e facilitar seus
julgados.
Com a matéria sumulada, o juiz ficaria adstrito aos limites máximos e mínimos
cominados à conduta típica, não podendo aplicar as atenuantes (ou seja, não envolvendo
a terceira fase de aplicação da pena) existentes levando a pena provisória abaixo do
mínimo legal.
Na jurisprudência há quem batalhe constantemente por uma aplicação do Direito
Penal menos autoritária, enxergando a pessoa por trás da máscara estigmatizada do réu.
No Paraná temos, dentre outros, o exemplo de Rosana Andriguetto de Carvalho. A
magistrada, que defende a possibilidade de utilização das circunstâncias atenuantes para
8

fixar a pena provisória abaixo do mínimo, afirma: “a tarefa do juiz, na sentença, é a de


individualizar a pena. Mas se a pena mínima não puder ser ultrapassada (em virtude de
um posicionamento doutrinário e jurisprudencial equivocado, claramente presunçoso e
inconstitucional), colocar-se-á numa vala comum incontáveis condenados que contam
com situações diferentes. Isso implica séria violação ao princípio da igualdade (assim
como profundo desrespeito ao valor justiça, que é o valor meta do Estado Constitucional
e Democrático de Direito)” 18 .

Considerações finais

A discussão travada pelos juristas em torno de um sistema bifásico ou trifásico


de aplicação da pena tem conseqüências sensíveis nas opções tomadas. O sistema
bifásico tende a ter como ponto de partida a média das penas mínima e máxima
cominadas, em função da rigidez que recebe o ponto de partida na dosimetria, o que
repercute de forma a aumentar a quantidade de pena aplicada. A principal conseqüência
do acréscimo de uma terceira fase ao se trabalhar com a pena é permitir que a pena-base
seja trabalhada a partir do mínimo com uma flexibilidade maior, o que parece ter uma
aceitação maior no imaginário jurídico.
Uma outra vantagem do modelo trifásico é aquela que permite trabalhar com a
quantidade mínima de pena cominada como um referencial e não como um limite.
Assim, os limites da cominação devem ser vistos com finalidades diferentes em cada
um dos extremos. O máximo de pena estipulado para uma conduta deve ser interpretado
como uma garantia do indivíduo, no sentido de que ele não terá uma pena cominada
acima daquele valor. Seria uma vedação aplicável para todas as fases de aplicação da
pena. Já no outro ponto, o limite mínimo, deve ser interpretado não como uma barreira,
mas como um referencial. Este é o ponto a partir do qual o juiz começa a trabalhar,
fixando, com base nos critérios do art. 59 do CP, a pena-base.
A aplicação da Súmula 231 retorna a elementos de um sistema bifásico,
forçando o nosso modelo a um hibridismo altamente prejudicial. É necessário ter uma
visão mais ampla dos problemas gerados por sua aplicação. O mais visível deles é o
descarte de circunstâncias atenuantes. Ao impedir que as circunstâncias legais sejam
capazes de fazer a pena descer aquém do mínimo, possibilitam-se situações absurdas

18
Voto vencido da Apelação Criminal n. 275492-5, julgado pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná em 16 de junho de 2005.
9

que violariam o princípio da isonomia e a individualização. Imaginemos as situações:


dois furtos, cometidos por duas pessoas diferentes. Para uma delas não há qualquer
circunstância agravante ou atenuante. Já a outra é menor de 21 anos, furtou para vender
o bem para comprar remédio para sua mãe doente (relevante valor social ou moral),
confessou o crime à autoridade espontaneamente e o que sobrou do dinheiro usado para
comprar o remédio, devolveu à vítima (procurou minorar as conseqüências do crime).
Ambos terão a pena-base fixada no mínimo legal (atual prática da magistratura, que é
ver o mínimo legal como ponto de partida para a dosimetria da pena, ou seja, como
referência) e, se não for permitida a diminuição para o segundo, ambos também
passarão a segunda fase da pena (circunstâncias legais) com a mesma quantia fixada.
Assim, duas pessoas diferentes em situações diferentes terão tratamentos iguais
(violação da noção mais atual do princípio da isonomia) e a pena não será aplicada no
grau da “culpabilidade” de cada um (violação do princípio da individualização da pena).
Juarez Cirino ainda ressalta que “a proibição de reduzir a pena abaixo do limite
mínimo cominado, na hipótese de circunstâncias atenuantes obrigatórias, constitui
analogia in malam partem, fundada na proibição de circunstâncias agravantes
excederem o limite máximo da pena cominada – precisamente aquele processo de
integração do Direito Penal proibido pelo princípio da legalidade” 19 .
Outro questionamento feito por Tubenchlak: será válido permitir que alguém
que tenha a pena aumentada diversas vezes possa se beneficiar da atenuante, enquanto
quem apenas tem circunstâncias favoráveis a seu favor tenha-as ignoradas 20 ? É uma
incoerência gravíssima (mas que ocorre em função da aplicação da Súmula 231 do STJ)
pensar que muitos apenas podem se beneficiar das circunstâncias atenuantes se também
estiver presente alguma agravante.
A posição de que é possível aplicar as circunstâncias atenuantes para levar a
pena aquém do mínimo legal não é recente e nem sequer isolada a uma voz apenas. Na
doutrina há, por exemplo, Juarez Cirino dos Santos 21 , Cezar Bitencourt 22 , James
Tubenchlak 23 , Agapito Machado 24 .

19
SANTOS, J. C. dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, pp. 140-141.
20
TUBENCHLAK, J. Atenuantes: pena abaixo do mínimo, [in] Jurisprudência Brasileira Criminal, n. 19,
p. 18.
21
BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 617.
22
SANTOS, J. C. dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, pp. 140-141.
23
TUBENCHLAK, J. Atenuantes: pena abaixo do mínimo, [in] Jurisprudência Brasileira Criminal, n. 19,
pp. 16-19.
24
MACHADO, Agapito. As atenuantes podem fazer descer a pena abaixo do mínimo legal, [in] Revista
dos Tribunais, v. 647, pp. 388-389.
10

É preciso, então, rever as questões em torno da Súmula 231 do STJ e concluir


que tal elemento anacrônico em nosso Direito Penal (dentre outros infindáveis exemplos)
não pode continuar a ser aplicado, pois as conseqüências são bastante concretas e
influenciam a vida de muitos de diversas formas. Devemos começar a por em xeque as
noções ultrapassadas do Direito Penal. É necessário voltar os olhos novos para as
antigas falhas desse modelo totalizado e não deixar o discurso mais cômodo, como o de
“lei e ordem”, tomar a frente como solução. A pena, enquanto instrumento de
ressocialização, falhou e tornou-se apenas uma medida estéril e irracional 25 . Pode-se
começar a observar tais elementos criticamente, deixando de negar o diferente,
acabando com o culto ao “igual”, ao “padrão”, ao “mesmo”. “Desta forma, o ‘ser’ do
‘outro’ passa a ser respeitado, negando a reprovação (penal) como forma de imposição
de um ‘ser de si mesmo’ ao ‘ser do outro’” 26 . A magistratura não tem o poder absoluto
nas mãos, mas pode ser grande responsável para a mudança da política criminal: tanto
para um máximo (de inflação do aparato penal, aplicando acriticamente normas
anacrônicas e servindo como instrumento de opressão) ou mínimo (reduzindo
gradativamente a aplicação desta pena vazia, que jamais alcançará os fins a que se
pretende, buscando vias alternativas para minimizar e não agravar os problemas gerados
pelo modelo de sociedade vigente). A sugestão que se pretende deixar aqui é a segunda,
com uma postura tendente a garantir o mínimo penal, principalmente a quem sofre as
falhas do modelo social vigente, deixando de punir com severidade maior exatamente
quem é o destinatário de nossos erros. É a busca que, felizmente, tem ganhado maior
espaço, por um Direito Penal mínimo e um direito social máximo 27 .

25
ZAFFARONI. E. R. Em busca das penas perdidas, pp. 202-203.
26
CARVALHO, A. B. de; CARVALHO, S. de. Aplicação da pena e garantismo, p. 88.
27
CARVALHO, A. B. de; CARVALHO, S. de. Aplicação da pena e garantismo, p. 89.
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Referências

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2005.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 9. ed. v. 1. São Paulo:


Saraiva, 2004.

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e


garantismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense,
1983.

FABRICIUS, Dirk. Culpabilidade e seus fundamentos empíricos. Curitiba: Juruá, 2006.

FERREIRA, Gilberto. Aplicação da pena. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

JESCHECK, Hans-Heinrich. Wandlungen des strafrechtlichen Schuldbegriffs in


Deutschland und Österreich. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología. [s.l.],
n. 05-01vo, pp. 01:1-01:17, 2003. [online] Disponível na Internet via WWW.URL:
<http://criminet.ugr.es/recpc/recpc05-01vo.pdf>.

LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. v. 2. Rio de Janeiro: Edição Revista


Forense, 1942.

MACHADO, Agapito. As atenuantes podem fazer descer a pena abaixo do mínimo


legal. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, n. 647, pp. 388-389, 1989.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial.
Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005.

________. A Criminologia Radical. 2. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Iuris, 2006.


12

TUBENCHLACK, James. Atenuantes abaixo do mínimo. Jurisprudência Criminal.


Curitiba: Juruá, n. 19, pp. 16-19, 1988.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do


sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

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