Você está na página 1de 40

JOSÉ DE SOUSA E BRITO

A LEI PENAL NA CONSTITUIÇÃO


[Artigos 29º nºs. 1, 2, 3, 4; 167º, alínea e) ]

1. A Constituição e o direito penal

1. O direito penal funda-se na Constituição no sentido de que as normas que o


constituem, ou são elas próprias normas formalmente constitucionais, ou são autorizadas ou
delegadas por outras normas constitucionais. A Constituição não contém normas penais
completas. isto é, normas que para acções ou omissões nelas previstas estatuem penas medidas
de segurança ou outras medidas jurídico penais. Mas contém disposições de direito penal, que
determinam em parte o conteúdo de normas penais. São disposições desta espécie as que
proíbem certas penas e medidas de segurança (pena de morte: art. 24º; nº 2; penas cruéis,
degradantes ou desumanas: art. 25º, nº 2; penas ou medidas de segurança com carácter perpétuo
ou de duração ilimitada ou indefinida: art. 30º, nºs 1 e 2; expulsão de cidadãos portugueses de
território nacional : art. 23º, nº 1; privação, por motivos políticos, da cidadania portuguesa, da
capacidade civil ou do nome: art. 30º, nº 4) , que proíbem a transmissibilidade das penas (art.
30º, nº 3) , delimitam o sentido, o âmbito de aplicação no tempo ou adaptam outras normas
penais não constitucionais (art. 29º, nºs 1 a 4) , ou recebem na Constituição normas penais
anteriores (art. 294º, que mantém em vigor a Lei Constitucional nº 8/75 de 25 de Julho, que
pune os agentes e responsáveis da PIDE/DGS) . As restantes fontes de direito penal são
especialmente reguladas na Constituição: a lei no art. 164º, alínea e) e no art. 29º ; os princípios
gerais de direito internacional no nº 2 do art. 29º. Salvas as especialidades destes artigos, as
normas de direito penal são criadas segundo os processos de produção e revelação do direito
previstos ou autorizados, pelo menos indirectamente, pela Constituição para todos os ramos do
direito.

2. Em um outro sentido se baseia o direito penal na Constituição. As opções axiológicas


constitucionais, a começar naturalmente pelas expressas na Constituição de 1976, devem ser
respeitadas pelas normas penais e orientar a sua interpretação. Mais: são elas que definem os
valores fundamentais da vida em sociedade que o direito penal visa proteger.
2

Esta subordinação do direito penal à Constituição não se limita apenas aos princípios
constitucionais em matéria penal ou princípios da política criminal com valor constitucional.
Na medida em que as sanções penais pressupõem a ilicitude, e tanto o juízo de ilicitude como
a graduação da ilicitude material se fazem em função da totalidade das normas da ordem
jurídica, todas as valorações constitucionais que contribuem para a definição de bens jurídicos,
de direitos subjectivos e de regras de comportamento se reflectem no direito penal 1.

Não se trata apenas da compatibilização legislativa, por adaptação e reforma do direito


anterior, das definições de bens jurídicos e valores que resultam das normas penais com as que
resultam da Constituição. Há ainda o trabalho de harmonização axiológica da doutrina e da
jurisprudência, que se reflecte no próprio conteúdo das normas penais, que não devem ser
aplicadas na medida da sua inconstitucionalidade (arts. 280º a 282º), e que no mais se devem
interpretar em harmonia com a Constituição. Há aqui um enorme espaço a percorrer, em
particular pelo juiz através da medida judicial da pena, sempre dentro dos limites impostos pelo
princípio da legalidade, visto que há grande disparidade entre a visão do mundo do Código de
1852, que no essencial ainda nos rege, e a do legislador constituinte.
Mais do que isso, a Constituição estabelece, nomeadamente através da definição dos direitos,
liberdades e garantias, o quadro dos valores fundamentais da ordem jurídica portuguesa. Esses
valores fundamentais são a base dos princípios de política criminal, que inspirarão não só a
actividade do juiz e do intérprete, mas sobretudo a do próprio legislador penal. Esses princípios,
mesmo quando não estão expressos, integram a constituição em sentido material, que inclui
todos os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa, a que subordina o legislador
ordinário, estejam expressos ou apenas implícitos no texto constitucional, constem de outras
leis e das regras aplicáveis de direito internacional (art. 16º) . Assim, são princípios
constitucionais de política criminal o principio da culpa, o princípio da necessidade da pena e
das medidas de segurança, os princípios da legalidade e da jurisdicionalidade da aplicação do
direito penal, o princípio da humanidade e o principio da igualdade.
O princípio da culpa deduz-se da dignidade da pessoa humana art.1º) 2 e do direito à
liberdade (art. 27º, nº1) . Significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou

1
Nuvolone, Norme penali e principi constituzionali, 1957, pp. 5 e segs., distingue, por consequência, entre
«princípios constitucionais penais» e «normas constitucionais com reflexos penais».
2 Assim, a exposição de motivos da Proposta de Revisão do Código Penal (parte geral) : Diário da Assembl,eia

da República de 28.8.1977, p.4926. - (3) é a doutrina dominante na Alemanha: por todos, Maunz, Durig, Herzog,
Kommentar zum Grundgesetz, 3ª ed., 1971, Art. 1 Anm. 32; Sax, «Grundsätze der Strafrechtspflege», Die

2
3

omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com
o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. A culpa
pressupõe a consciência ética e a liberdade do agente, sem admissão das quais não se respeita
a pessoa nem se entende o seu direito à liberdade. Implica que não há pena sem culpa,
excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa.
Mas já não significa que toda a culpa seja punida.
Uma vez que a pena se traduz em restrições ou sacrifícios importantes dos direitos
fundamentais do criminoso, cujo respeito é uma finalidade essencial do Estado (art. 2º), é indis-
pensável que esse sacrifício seja necessário à paz e conservação sociais, isto é, à própria defesa
dos direitos e liberdades e garantias em geral que são a base do Estado. É este o princípio da
necessidade ou da máxima restrição da pena e das medidas de segurança (art. 18º, nºs 2 e 3)
, que está ligado ao princípio da legalidade (art. 29º) , porque as penas ilegais não são ne-
cessárias, e ao princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, como garantia da
máxima objectividade e do mínimo abuso (arts. 27º, nº 2; 23º, nº 4; 30º, nº 2).
Temos ainda o princípio da humanidade no tratamento do criminoso e na definição e
aplicação das penas e das outras sanções criminais, como se revela na proibição da pena de
morte (art. 25º, nº 1) , da tortura e de tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos (art.
26º, nº 2), da expulsão de cidadãos portugueses do território nacional (art. 33º, nº 1) , e que
preside ao regime jurídico da execução da pena e da recuperação do criminoso e sua
reintegração na sociedade.
"Finalmente, o princípio da igualdade (art. 13º) implica a não discriminação das pessoas
sujeitas ao direito penal, a irrelevância penal, em princípio, de circunstâncias como a ascen-
dência, o sexo, a raça, a língua, o território de origem, a religião, as convicções políticas ou
ideológicas (art. 30º, nº 4) , a situação económica ou a condição social.

3. Por sua vez, este conjunto de princípios contribui de modo decisivo para o conceito
constitucional de Estado. Todos eles se reconduzem ao princípio do Estado de direito , que
caracteriza essencialmente o conceito de Estado segundo a Constituição, e de que a própria
noção de Estado constitucional não é mais do que uma aplicação. Com efeito, a relação entre o

Grundrechte, m/2, 1959, p. 237, Cfr. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts. Allgemeiner Teil, 3ª ed., 1978, pp. 17 e
segs., sobre toda esta matéria.

3
4

Estado e o direito3 que a Constituição consagra, não se reduz à exigência de constitucionalidade


do Estado (arts. 3º, nºs 1 e 4, 111º e 115º), embora a inclua. Mas é claro que um conceito
material da constituição pode fazer coincidir, pelo menos tendencialmente, os conceitos de
Estado de direito e de Estado constitucional. É o caso do art. 16º da Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789: «toute société dans laquelle la garantie des droits n'est pas
assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n'a point de constitution» 4.
O Estado de direito implica, como veremos, uma certa interpretação jurídica das
relações entre o Estado e os indivíduos. No desenvolvimento histórico e no fundamento
filosófico dessa interpretação teve papel importante uma certa teoria da lei penal que lhe atribui
uma função de garantia dos direitos individuais". A função de garantia da lei penal exprime-se
através da particular configuração do princípio da legalidade em direito penal, que é inseparável
do princípio da necessidade das penas e das medidas jurídico-penais e do princípio da juris-
dicionalidade da aplicação do direito penal. Essa configuração implica os seguintes desvios
entre a teoria geral das fontes de direito - que tem fundamento constitucional- e a teoria da lei
penal: o princípio nullum crimen sine lege; a proibição da interpretação extensiva; a
retroactividade da lei penal mais favorável. A exposição seguinte limita-se precisamente à lei
penal como garantia constitucional dos direitos.
Ficam, portanto, de fora os aspectos judiciais e processuais da garantia, que pertencem
ao direito processual penal e ao direito judiciário, e que explicitam o princípio da jurisdicio-
nalidade. Também ficarão por tratar os restantes princípios que determinam as demais
incidências do princípio do Estado de direito no direito penal. Correlativamente, não só ficam
na sombra os aspectos do Estado de direito relacionados com os outros princípios
constitucionais em matéria penal, como toda a restante problemática do Estado de direito,
nomeadamente a que justifica o qualificativo de «democrático» do preâmbulo da Constituição.

2. História do princípio da legalidade do direito penal

3 Divergimos aqui de Jescheck, lug. cit., que não reconduz os princípios da culpa e da humanidade ao do Estado
de direito, por falta de esclarecimento suficiente, julgamos, da relação entre o Estado de direito e a dignidade da
pessoa humana.
4
É também o conceito de constituição que permitia a Benjamin Constant defender a existência de uma constituição
em Inglaterra: «1'Angleterre a une Constitution, car elle a l' Habeas Corpus, le Bill of Rights, la grande charte
même, bien qu' inapplicable dans ses formes, la Représentation nationale, le jugement par jurés. Que ces choses
ne soient pas réunies et rédigées en articles qui se suivent peut importe : ce sont les lois fondamentales que nul ne
peut violer» ( Cours de politique constitutionelle, 3ª ed., 1837, pp. 54 e segs. ) .

4
5

4. «0 direito penal começa», escreveu Mommsen 5, «quando se põem limites ao arbítrio


do poder punitivo, do juiz penal, através da lei do Estado ou de tradição com igual valor. . . O
direito penal público romano começa com a lei Valeria, que submeteu a sentença de morte do
cidadão romano à confirmação pela cidade... A partir de então não há em Roma delito sem lei
criminal, processo penal sem lei de processo, pena sem lei penal» 6. A íntima ligação entre o
direito penal e o princípio da legalidade é tão evidente para um espírito moderno, que Mommsen
faz começar o direito penal romano, na frase de Lange, com «o Feuerbach romano» 7. 0 texto é
um bom exemplo da dificuldade, típica do historiador, de compreender com conceitos seus
ordens sociais estruturalmente diferentes da sua própria. A continuação revela que Mommsen
afinal não quer dizer mais do que a tautologia de que em Roma não há pena sem lei penal no
âmbito de aplicação dessa lei penal... : «O arbítrio do magistrado não foi de modo algum
afastado; ainda agora o magistrado pode castigar arbitrariamente sem processo determinado,
sem medida determinada da pena, quer dentro dos limites do direito de guerra, quer dentro dos
limites da coercitio; mas a par desta coercitio não vinculada do magistrado existe a judicação
vinculada do magistrado.»
0 princípio da legalidade em matéria penal não nasce com o direito penal mas com o
constitucionalismo. A sua história acompanha a par e passo a do princípio da rule of law no
mundo jurídico anglo-americano e a do princípio da constitucionalidade do Estado no
continente europeu. Isto não é negar a herança clássica e cristã, e sobretudo as doutrinas
medievais da primazia do direito e sua continuação na filosofia e teologia católica e protestante.
É assim que já na Magna Charta Libertatis, de 15 de Junho de 1215, o princípio é
claramente entendido como restrição do direito de punir e, portanto, como garantia dos direitos
individuais perante as sanções penais, e não, em primeira linha, como garantia da liberdade de
agir. Isto resulta da redacção da célebre cláusula 29: «Nullus liber homo capiatur vel
imprisonetur aut dissaissiatur aut utlagetur aut exuletur aut aliquo modo destruatur, nec super
eum ibimus nec super eum mittemus, nisi per legale judicium suorum vel per legem terrae» 8.
Tem-se discutido o carácter exclusivamente processual ou também material desta cláusula 9,

5
Römisches Strafrecht, 1899 (reimp. 1955), p. 56.
6
Paulus Dig. 50, 16, 131, 1: poena non irrogatur, nisi quae lege vel quo alio iure specialiter huic delicto imposita
est.
7
Der Rechtsstaat als Zentralbegriff der neuesten Strafrechtsentwicklung, 1952, p. 62.
8 Perry, Cooper, Sources of our Liberties, 1972, p. 17, n. 75.
9 Vejam-se as referências de Hall, General Principles of CriminaJ Law, 2ª ed., 1960, p. 31 e de Jescheck, ob. cit., p. 103, nº 6

e 7. Hall e Vassali, «Nullum crimen sine lege» , N ovissimo Digesto Italiano, XI, 1965, pp. 495 e segs. fazem a história do
princípio desde os direitos grego e romano.

5
6

mas parece que só uma interpretação do princípio da legalidade que o restringe à lei em sentido
formal negará a sua aplicabilidade à common law. A vinculação ao precedente permite uma
determinação tanto ou mais rigorosa das regras existentes de direito penal do que, muitas vezes,
a interpretação da lei escrita 10.
Este entendimento do princípio é confirmado pela tradição anglo-americana de petições
11
e cartas de direitos 12, que culmina numa clara formulação do princípio da irretroactividade
da lei penal nas declarações de direitos de Delaware (11.9.1776), Maryland (3.11.1776) e North
13
Carolina (14.12.1776) . A declaração de Maryland é aqui a mais completa e o seu texto,
anteriormente preparado, influenciou as outras duas: «That retrospective laws, punishing acts
commited before the existence of such laws(, and by them only declared criminal, are
oppressive, injust, and incompatible with liberty; wherefore no ex post facto law ought to be
made» (art. 15º). E um caso particular e significativo de lei penal retroactiva, o bill of atteinder,
que era uma lei ad hoc cominatória de morte e confisco para pessoas determinadas (nomeada
mente em casos de crime político), é expressamente proibido no art. 16º. Além disso, as
constituições dos estados americanos} a começar pela de Virginia (12.6.1776), contêm uma
regulamentação precisa do princípio da jurisdicionalidade da aplicação de lei penal e várias
afirmações dos princípios da necessidade e da humanidade da pena (secção 9 da Constituição
de Virginia). A proibição da ex post facto law e do bill of atteinder é recolhida no § 9.0 da
Constituição Federal de 1787 e os princípios da necessidade e da humanidade da pena no 8.0
Amendment a esta Constituição (15.12.1791) 14. 0 Supremo Tribunal dos E. U. A. esclareceu
definitivamente em 1798 que uma lei ex post facto é uma lei que torna criminosos actos que
eram inocentes quando praticados, que agrava um crime ou a punição dele depois do acto, ou
que altera as regras de prova em desfavor do réu depois do acto pelo qual é julgado 15.

5. No continente europeu, o princípio da legalidade emerge com a experiência precoce


16
do constitucionalismo republicano das cidades italianas do final da Idade Média , para sub-

10
Cfr., para o direito inglês, CROSS and JONES, Introduction to Criminal Law, 6ª ed., 1968, pp. 16 e segs.
Grünhut, «Das englische Strafrecht», Das ausländische Strafrecht der Gegenwart, III, 1959, pp. 177 e segs.; para
o direito dos E. U. A., HALL, ob. cit., pp. 27 e segs.
11 Veja-se A Petition of Right de 1627 em Franz, Staatsverfassungen, 3ª ed., 1975, pp. 502 e segs.
12
Cfr. Perry Cooper, ob. cit., pp.333 e segs. e especialmente o Body of Libertiers de Massachussets de 1641,
ibidem, p. 148.
13
Perry, Cooper, ob. cit., pp. 339, 347, 356.
14 Ob. cit., pp. 312, 342 e segs., 410, 432.
15 Calder v. Bull, 3 Dall. 386 (1798) apud Perry, Cooper, ob. cit., p. 337
16 Cfr. Vassalli, lug. cit., p. 497 e literatura que cita.

6
7

mergir rapidamente a partir do séc. XIV . Só no séc. XVIII ressurge como uma exigência
política do Iluminismo. É a Beccaria (1764) que se deve a defesa epocal dos princípios da
legalidade e da necessidade da pena, preparada pelas doutrinas do contrato social e da divisão
dos poderes de Locke e Montesquieu. A primeira consagração legal do princípio é a Josephina,
o código criminal de José II da Áustria de 1787, mas é desvirtuada do seu espírito, pois não se
liga aos princípios da necessidade e da humanidade da pena. É antes um meio de garantir a
aplicação das penas excessivas e desumanas que prevê 17.
A fórmula fundamental, que influenciou toda a evolução posterior, é aqui a do artigo 8º
da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: «La loi ne doit établir
que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu'en vertu d'une
loi établie et promulguée antérieurement au délit et légalement appliquée.» 0 Código Penal
francês de 1791 contém nas suas disposições finais a primeira consagração legal da
retroactividade e da ultra-actividade da lei penal mais favorável, embora restritas à questão da
punibilidade, não às da espécie e medida das penas : «Pour tout fait antérieur à la publication
du présent Code, si le fait est qualifié crime par les lois actuellement existantes, et qu'il ne le
soit pas par le présent décret; ou si le fait est qualifié crime par le présent Code, et qu 'il ne le
soit pas par les lois anciennes, l'accusé sera acquitté, sauf à être correctionnellement puni, s'il y
échoit. Si le fait est qualifié crime par les lois anciennes et par le présent décret, l'accusé qui
aura été déclaré coupable sera condamné aux peines portées par le présent Code.» 18 Esta última
restrição explica-se, aliás, pela substituição radical do sistema de penas, pela indeterminação
das penas no sistema anterior e pela maior suavidade do novo sistema.
É interessante acompanhar a história do princípio da legalidade das penas durante a
revolução, pois ilustra a sua dependência do regime político, e esclarece assim a relação entre
aquele e outros princípios do Estado de direito. Assim, a Constituição francesa de 24 de Junho
de 1793 acentuará no art. 14º, de uma forma patética, o carácter suprapositivo ou supralegal dos
princípios da legalidade e da jurisdicionalidade em direito penal : «Nul ne doit être jugé et puni,
qu'après avoir été entendu ou légalement appelé et qu'en vertu d'une loi promulguée anté-
rieurement au délit. La loi, qui punirait des délits commis avant qu'elle exista, serait une
19
tyrannie; l'effet rétroactif donné à loi serait un crime.» Este «crime» tinha sido cometido

17
Como nota Jescheck, ob. cit., p. 104.
18 ) Code criminel et correctionnel, ou recueil chronologique..., Paris, 1805, I, P. 76.
19
Parecem ecoar aqui as palavras de Mirabeau na sessão de 21.11.1790: «Nulle puissance humaine ni surhumaine ne peut
légitimer un effet rétroactif. J'ai demandé Ia parole pour faire cette profession de foi» (cit. por Binding, Handbuch des
Strafrechts, 1,1885, p. 26, n. 22).

7
8

poucos meses atrás pelas leis de CAPut!' de Março e de 10 de Maio de 1793 que declaravam
«fora da lei» «os que estão ou serão acusados de participar» em movimentos revolucionários
«pelo que não podem beneficiar das disposições das leis relativas ao processo criminal e à
instituição do júri». A lei de CAPut!' de Março punia uns de morte (art. 6º) em função de certas
qualidades pessoais («os padres, os ex-nobres, os ex-senhores, os emigrados, os agentes e
domésticos de todas estas pessoas; os funcionários públicos», etc.) e reservava a determinação
da pena dos outros a futura lei penal retroactiva. A 10 de Maio restringia a pena de morte aos
chefes e instigadores dos revoltados. Contudo, onze dias depois de promulgada a Constituição
de 1793 e em plena vigência, a lei de 5 de Julho de 1793 considera chefes e instiga dores da
revolta aquelas ditas pessoas e mais algumas (como «os juízes, os homens de lei que
participaram nas ditas revoltas») pelo que «como os próprios chefes» são punidos com a morte
20
.
Aqui se viu, pela primeira vez, que o governo convencional ou de assembleia, que tende
para, debaixo da face arquidemocrática da concentração de poderes na assembleia legislativa ,
entregar o governo de facto a um ditador, comité, junta ou partido autocráticos, com capacidade
21
executiva e controlo da assembleia , igualmente tende para não garantir a efectividade dos
princípios do Estado de direito em matéria penal, mesmo quando os consagra formalmente. 0
exemplo repetir-se-á, como veremos ainda, no principal modelo contemporâneo de governo
convencional, a União Soviética, pouco depois da restauração do principio da legalidade no
Código Penal russo de 1960. Também em Portugal numa certa fase da revolução, quando, sem
alteração da legalidade, se criou uma estrutura constitucional em que a Assembleia do MFA
legitimava o poder de facto autocrático do Conselho da Revolução, se verificou que não
estavam garantidos os princípios da legalidade, da jurisdicionalidade22 e da culpa 23
, não
obstante continuassem formalmente consagrados.
De um modo geral, como estes exemplos sugerem, a história do princípio da legalidade
depois da Declaração de 1789 confirmará a sua estreita relação com aquela outra componente
do Estado de direito que a Declaração de 1789 também consagrou: o princípio democrático.

20 Code cit., I, pp. 101 e segs., 113 e seg. Outros exemplos de leis não só retroactivas mas ad hoc, são os Decretos
de 7.4.1793 (abreviação dos julgamentos em curso ), 13.4.1793 (mutilação das estátuas das Tulherias) (ibidem, pp.
105, 107), etc. Sobre o contexto desta legislação do terror jacobino: TAINE, Les origines de la France
contemporaine, 29ª ed., 1928, VI, pp. 212 e segs., cfr. VII, p. 260 n. 1 (sobre a intervenção de Robespierre).
21
Cfr. Lõwenstein, Political Power ana the Governmental Process, 2ª ed., 1965, pp. 79 e segs.
22
Veja-se o Relat6rio da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares, Lisboa,
1976.
23
Segundo o art. 6º da Lei nº 8/75 de 25 de Julho, do Conselho da Revolução, das actividades desenvolvidas pelo
arguido depende a graduação mas não a existência da pena.

8
9

Assim, as ditaduras soviética, de 1922 a 1958, e nacional-socialista, de 1935 a 1945,


24
representam as violações frontais, historicamente mais significativas , das proibições de
analogia e de retroactividade, que dão conteúdo à legalidade das Penas. O art. 10º do Código
Penal russo de 1922 estabelecia que «nos casos em que o Código Renal não prevê
expressamente um determinado crime, a pena ou as medidas de defesa social são aplicadas em
conformidade com os artigos do Código Penal que prevêm crimes análogos em gravidade e em
espécie», e disposições semelhantes foram repetidas nos «Princípios Fundamentais do Direito
Penal Soviético» de 1925 (art. 3º) e no Código Penal de 1926 (art. 16º). Como exemplo do uso
de analogia por tribunais populares cita-se, entre outros, o da sentença do Tribunal da
Circunscrição de Gavrilovsk de 21 de Maio de 1937, em que se condena um cidadão, que
circuncidara outro, por aborto analógico25! Quanto à irretroactividade da lei penal, embora
afirmada no Código de processo penal no caso de a nova norma ser mais severa que a precedente
(art. 27º), foi várias vezes derrogada como, por exemplo, pela lei de 1 de Dezembro de 1934,
aplicada retroactivamente no processo do assassínio de Kirov - e ainda, pelos sucessores de
Estaline, na condenação de Berija em 1953 -, que autorizava nos crimes de terrorismo a
audiência sem intervenção das partes - acusado, assistente ou testemunhas-, e retirava ao
acusado os direitos de impugnar a sentença e de pedir indulto 26.
0 nacional-socialismo alemão começou por autorizar o governo a desviar-se da
Constituição (Lei de Alívio da Indigência do Povo e do Império, de 24.3.1933) . Ainda assim,
aproveitou-se de uma corrente doutrinária que negava valor constitucional à proibição de
agravar retroactivamente as penas para, pela «lex van der Lubbe», impor retroactivamente a
pena de morte ao crime de fogo posto (incêndio do Reichstag) . Seguir-se-ia numerosa
legislação penal retroactiva. Em 28.6.1935 foi alterado o § 2º do Código Penal alemão, que
passou a ter a seguinte redacção: «Aquele que pratica um facto que a lei declara punível, ou
que, segundo o pensamento fundamental de uma lei penal ou segundo o são sentimento do povo

24 Significativas do ponto de vista da relação entre o princípio da legalidade e o sistema político e pela influência histórica que
tiveram. A legislação das outras democracias populares tem aqui alinhado, com poucos desvios, pela da U. R. S. S.
Não é significativo o caso da Dinamarca, cujo Código Penal ( § 1.0, 1) admite a punibilídade de uma acção «inteiramente
análoga» à declaradamente prevista, já que o uso jurisprudencial do preceito ( cfr. Marcus, «Das Strafrecht Dänemarks», Das
ausländische Strafrecht der Gegenwart, I, 1955, pp. 85 e segs. ) não impediu este país de aceitar desde 1953 a jurisdição do
Tribunal Europeu relativamente ao respeito do art. 7.0 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: Council o! Europe,
Collected Texts, 1977, pp. 601, 603.
Também não é significativo o direito canónico, que admite o princípio nullum crimen sine lege, mas não o princípio nulla.
poena sine lege (can. 2222, § 1.0 do Codex: cfr. VASSALI, lug. cit., p. 499).
25
Apud Napolitano, Il nuovo codice penale sovietico, 1963, p.79.
26
Ibidem, pp. 87 e seg.

9
10

é merecedor de pena, será punido. Se nenhuma lei penal é imediatamente aplicável ao facto,
será este punido pela lei cujo pensamento fundamental melhor corresponde ao facto.»
Esta legislação nacional-socialista foi revoga da pelas potências aliadas e os princípios
da legalidade e da jurisdicionalidade com todas as suas consequências têm hoje dignidade
constitucional nos dois estados alemães (Lei Fundamental da R. F. A., art. 103º, II; Constituição
da R.D.A., art. 135º 27 .
Na União Soviética o superamento da fase da ditadura do proletariado ou do
«socialismo», pela progressiva passagem ao comunismo, na interpretação oficial do XXI
Congresso (1961 : Kruhchev), trouxe consigo a reafirmação do princípio da legalidade, com
todas as suas tradicionais a.plicações, nos Princípios Fundamentais da Legislação Penal da U.
R. S. S. e das RepúbIicas Federadas (arts. 3º e 6º) e nos consequentes Códigos Penais destas
últimas. Por último, os princípios da legalidade e da jurisdicionalidade em matéria penal
alcançaram valor constitucional na Constituição de 1977 (art. 160º) . Mas visto que se mantém
a anterior estrutura constitucional do regime político, cumpre duvidar da real eficácia destas
garantias dos direitos individuais. Casos como o da sentença do Supremo Tribunal da república
28
russa de CAPut!' de Julho de 1961 , a que voltaremos adiante, e o conhecido internamento
psiquiátrico dos opositores ao regime, confirmam essa dúvida.

6. Em comparação com estes desenvolvimentos devidos à evolução política e ideológica


dos Estados, a importância da doutrina penal na história do princípio da legalidade foi menor.
Mas a ela se deve a clara consciencialização das suas implicações e alcance.
É a Feuerbach que se atribui a fórmula latina nulla poena sine lege e o principal esforço
de a articular com a teoria dos fins das penas e com a dogmática do direito penal 29 .O princípio
deduzir-se-ia do fim de prevenção em geral, que Feuerbach entendia como coacção psicológica:
para que a ameaça do mal da pena pudesse motivar eficazmente o cidadão a deixar de praticar
o crime, seria necessária a prévia determinação da pena pela lei. E embora Feuerbach tivesse
afirmado que do princípio «não se deduz que não possa haver leis penais indeterminadas»,
porque nestas também se faz a ameaça de uma pena, mesmo se não especificamente
determinada»30 , ao seu influentíssimo Código penal da Baviera de 1813 se deve muito da

27 Cfr. sobre a evolução alemã, Jescheck, ob. cit., p. 104 e Vassalli, lug. cit., p. 501 .
28
Napolitano, ob. cit., p. 237, n. 14; Cfr. infra, n. 47.
29 Revision der Grundsätze und Grundbegriffe des positiven peinlichm Rechts, 1799 (reimp. 1966), I, pp. 56 e

segs.; Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts, 1801, § 20.
30 Revision..., p. 59.

10
11

prática relevância do princípio. É que a indeterminação dos preceitos penais pode desvirtuar
todo o conteúdo do princípio que está assim estreitamente dependente da técnica legislativa.
Este último ponto foi bem estabelecido pela doutrina mais recente 31 e funda outra consequência
do princípio da legalidade: a proibição de leis penais indeterminadas.
A escola positiva italiana, em nome de outra teoria dos fins das sanções criminais, que
deveriam evitar a prática de futuros crimes do próprio delinquente (prevenção especial) ,
criticou os desvios que o princípio da legalidade impunha à teoria geral da lei. Mas a sacudidela
do nacional-socialismo juntou os partidários da «defesa social» aos defensores das teorias
retributivas em firmes declarações do princípio 32.

7. Depois da segunda guerra mundial, assiste-se à rápida internacionalização do


princípio da legalidade, que é consagrado no art. 11º, nº 2 da Declaração Universal dos Direitos
do Homem de 1948 : «Ninguém será condenado penalmente por acções ou omissões que, no
momento da sua prática, não constituíam infracção penal à face do direito interno ou
internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável
no momento em que a infracção penal foi cometida.»
Este texto (com leves retoques de redacção) foi reproduzido no nº 1 do art. 7º da
Convenção europeia dos direitos do homem (Roma, 1950, que acrescentou uma importante
restrição no nº 2: «0 presente artigo não impede o julgamento e a punição de uma pessoa por
acção ou omissão que, no momento em que foi cometida era considerada criminosa segundo os
princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas.» Esta disposição pretendeu
sancionar as leis penais internas que incriminaram retroactivamente factos praticados durante a
segunda guerra mundial, bem como os julgamentos dos Tribunais Militares Internacionais de
Nuremberga ( criado pelo tratado de Londres de 8.8.1945) e Tóquio em 1946 (previsto na
Declaração de Potsdam de 26.7.1945 ) , em que as potências aliadas vencedoras julgaram «os
principais criminosos de guerra» por crimes de guerra, contra a humanidade e de guerra de

31 Sobretudo alemã e italiana: cfr ., por todos, Jescheck, ob. cit., pp. 19 e 100 e segs:; Bricola, La discrezionalità
nel diritto penale, I, 1965.
32
Association internationale de droit pénal, IVe. Congrès internationale de droit pénal, 1939, pp. 40 e segs., 93 e
segs., 441 e seg.; Voeux et résolutions du IIe Congrès Internationale de droit comparé, 1938; «Le programme
mimimum de la société internationale de défense sociale», Revue de Science Criminelle et de Droit Penal
Comparé, 1954, pp. 807 e seg.

11
12

agressão, criando retroactivamente direito internacional penal, embora no caso dos crimes de
guerra apenas determinassem costume internacional já estabelecido 33 .
Finalmente, o art. 7º da Convenção europeia foi reproduzido no art. 15º do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, da O. N. U. Mas inclui um aditamento no
nº 1 que consagra expressamente a retroactividade da lei penal mais favorável ( «se
posteriormente à infracção, uma disposição legal prevê uma pena mais leve, o delinquente deve
beneficiar da sua aplicação»). E em lugar da referência aos «princípios gerais de direito
reconhecidos pelas nações civilizadas», menciona no nº 2 «os princípios gerais de direito
reconhecidos pela comunidade das nações» (no texto francês: «pelo conjunto das nações»).

8. No direito português, a Constituição de 1822 apenas estabeleceu nos arts. 10º e 11º
princípios materiais de direito criminal : da necessidade da pena, da sua proporcionalidade ao
delito e intransmissibilidade, da humanidade das penas ( também o art. 208º: cadeias «para
segurança e não para tormento dos presos» ) , e regulou pormenorizadamente as garantias do
processo penal (arts. 201º e segs.). A legalidade das penas deduzia-se do princípio da separação
de poderes (art. 30º) . A não-retroactividade (e legalidade) da pena vem consagrada pela
primeira vez no § 10º do art. 145º da Carta Constitucional de 1826 ( «Ninguém será sentenciado
senão... por virtude de lei anterior» ), embora já resultasse da proibição geral de retroactividade
da lei do § 2º da mesma Carta. Foi novamente reafirmada pelo art. 18º da Constituição de 1838
( «Ninguém será ... punido senão por lei anterior» ) e pelo nº 21 do art. 3º da Constituição de
1911, que reproduz a disposição da Carta.
A consequência da não-retroactividade da incriminação só é explicitada no art. 5º do
Código Penal de 1852, que também introduziu no art. 18º a proibição de interpretação extensiva.
0 art. 1º da Novíssima Reforma Penal de 1884, que se transformou no art. 6º do Código Penal
de 1886, determinou a retroactividade e ultra-actividade da lei penal mais favorável. A
Constituição de 1933 explicitou apenas a legalidade e a não-retroactividade da incriminação
(art. 8º, nº 9: «Não ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare
puníveis o acto ou omissão» ) , a que acrescentou na revisão de 1971 a não-retroactividade da
agravação da pena e a legalidade e não-retroactividade das medidas de segurança («bem como
não sofrer pena mais grave do que a fixada ao tempo da prática do crime, nem medida de
segurança fora dos casos previstos em lei anterior»).

33Cfr. Dahm, Völkerrecht, III, 1961, pp. 280 e segs.; Lombois, Droit international pénal, 1971, pp. 124 e segs;
Jescheck, ob. cit., pp. 91 e segs., com mais bibliografia.

12
13

Este nº 9 do art. 8º, a legislação penal ordinária e os mencionados textos internacionais


parecem ter sido as principais fontes do actual art. 29º da Constituição.

3. Fundamento do princípio da legalidade: o Estado de direito

9. O princípio da legalidade em direito penal, como garantia dos direitos individuais,


com todas as consequências que historicamente lhe foram sendo atribuídas, e estão expressas
no art. 29º da Constituição, implica desvios importantes da teoria geral das fontes de direito,
pelo que não se pode fundar nela. Também é mais do que uma simples reserva de lei, como a
do art. 167º, alínea e) da Constituição, embora a inclua. Também não deriva de qualquer das
teorias tradicionais dos fins das penas. Estas teorias são, aliás, de origem clássica,
desenvolveram-se com a sofística e aparecem já claramente formuladas em Platão: a teoria
absoluta ou retributiva no Górgias, atribuída a Sócrates (472 e, 478, 480 b-d), as teorias relativas
ou preventivas no Protágoras (324 a b, 325a ) a quem são atribuídas. Não se articulam aí com
a teoria dos fins do Estado, nem com a problemática moderna da divisão dos poderes e do
princípio da legalidade.
Este ponto é fácil de demonstrar quanto à proibição de analogia e ao consequente
carácter «fragmentário» do direito penal. Esta implica que as acções ou omissões não previstas
na lei não sejam punidas, quando precisamente os mesmos fins da pena que justificam a punição
do caso análogo previsto na lei, justificam também a punição dessas acções ou omissões. Para
negar esta conclusão, seria necessário mostrar que a falta de previsão de certa acção na lei penal
é suficiente para negar o fundamento da analogia com as acções previstas. Isso é, seria preciso
que uma acção, por não ser prevista na lei penal, deixasse de ser culposa e, portanto, de merecer
retribuição; ou deixasse de ser causa de perigosidade e, portanto, de justificar prevenção. Ora a
culpa não pressupõe a previsão na lei penal, mas apenas a ilicitude do comportamento. E a
perigosidade nem sequer a ilicitude pressupõe: certas formas de anomalia mental são
perigosíssimas mesmo antes de se revelarem na prática de actos ilícitos.
0 mesmo se verifica quanto à mais antiga aplicação do princípio da legalidade: a
proibição da retroactividade. Alguns autores, seguindo também aqui o exemplo, agora mau, de
Feuerbach, têm pretendido o contrário. A sua discussão permite esclarecer e aprofundar a
argumentação antecedente. Assim, para Sax, a não-retroactividade «é a consequência inevitável
de, no momento da decisão do facto, o critério dela: a lei penal especificadora do facto ilícito,

13
14

ter de existir antecipadamente». A não-retroactividade, tal como a própria legalidade não seria,
portanto, «nada mais do que a especificação do princípio da culpa do direito penal» 34. Nas
palavras de Eduardo Correia, que apresenta também este fundamento, além de outros, do
princípio da não-retroactividade, sem ela a pena «não poderia realizar os seus fins de retribuição
porque, não sendo um facto criminalmente censurável no momento da sua prática, excluído fica
o juízo de censura, que está na base da imputação»35. Em contrário, deve dizer-se que o
princípio constitucional da não-retroactividade não se baseia na culpa, como se deduz de a
Constituição o alargar, bem como todo o restante regime em que se traduz o princípio da
legalidade, às medidas de segurança, que não se baseiam na culpa, mas sim na perigosidade.
Além disso, tal fundamentação do princípio nunca serviria nos casos em que há ilicitude da
conduta sem tipicidade penal da mesma (ilícito civil, administrativo, de direito internacional,
etc.), pois em todos estes casos, havendo culpa, mas não incriminação, deixaria de justificar-se
a não-retroactividade da lei penal36. O ponto já foi claramente visto por Binding: a culpa só
pressupõe uma norma de ilicitude. Esta pode ser criada com a lei penal ou não; não se deduz
apenas do direito penal, mas de todas as fontes do direito. Por isso Binding, defendendo que as
normas não podem ter efeito retroactivo, não hesitou também em defender a retroactividade das
leis penais como «o único princípio justo e equitativo», «sejam assim abolidas, atenuadas,
mudadas ou agravadas as leis penais anteriores» 37. Com a mesma lógica de ferro e a mesma
insensibilidade política considerava Binding a proibição da analogia como «algemas
indecorosas» da ciência 38.
A justificação também não está nos fins preventivos da pena, ligados à intimidação: «a
pena não poderia realizar os seus fins de intimidação no momento de ameaça, porque, não
existindo esta quando se praticou o facto, a pena não actuou nem podia actuar no ânimo do
agente»39. Tal é a justificação já usada por Feuerbach, que referimos atrás. Mas a possibilidade
da motivação pela intimidação em geral, não é pressuposto das medidas de segurança. E tão
pouco é pressuposto da pena a possibilidade de motivação em concreto pela pena determinada
previamente na lei penal, pois tal motivação supõe - conhecimento não só da punibilidade mas
da pena aplicável. Ora elemento essencial do crime, como pressuposto da culpa, é apenas a

34Lug. cit., p. 999.


35
Direito Criminal, I, 1963, pp. 153-4.
36Assim: Grünwald, «Bedeutung und Begründung des Satzes nulla poena sine lege», Zeitschrift für die gesamte

Strafrechtswissenschaft, 75 (1964), p. 12; JESCHECK, ob. cit., p. 109.


37
Ob. cit., p. 240
38
Ob. cit., p. 28.
39
É outro dos fundamentos aduzidos por Eduardo Correia, ob. cit., p. 153.

14
15

possibilidade de conhecimento da ilicitude. Além de que o efeito da prevenção geral não está
dependente do conhecimento da cominação da pena aplicável, mas resulta sobretudo da aptidão
do sistema das sanções no seu conjunto ( e não só ) para promover a vivência e a vigência dos
valores morais e sociais que a lei penal defende. Ora essa aptidão não é específica da pena e
não depende demonstravelmente do respeito pelo princípio da legalidade. Na lógica da
prevenção geral está antes o princípio que o nacional-socialismo contrapôs ao nullum crimen
sine lege: não há crime sem pena».
Que as teorias da prevenção especial não permitem fundar a não-retroactividade da lei
penal, resulta do que se disse acerca da proibição da analogia: a perigosidade futura do
delinquente pode deduzir-se de factos não previstos na lei penal e até de factos lícitos. Vários
defensores da prevenção especial advogaram, aliás, a retroactividade e a analogia na aplicação
do direito penal, com base na própria doutrina dos fins das penas, sendo mesmo essas teses
típicas de certa fase da escola positiva italiana (Florian) e dos seus seguidores em Portugal,
como Caeiro da Mata 40.
Se as teorias tradicionais dos fins das penas não justificam o princípio nullum crimen
nul1a poena sine lege ainda menos explicam a proibição da interpretação extensiva. E não
podem integrar ambos com a retroactividade da lei penal mais favorável em uma teoria unitária,
um regime ou instituto jurídico do princípio da legalidade em direito penal.
0 verdadeiro fundamento do princípio é a segurança jurídica e, especialmente, a
segurança do indivíduo frente ao Estado, que se traduz num Estado de direito, no direito do
indivíduo de não ser afectado nos bens essenciais da sua vida, senão na medida exigida por lei
à realização dos fins do Estado.
0 princípio formal da legalidade funda-se assim no princípio material da necessidade ou
da máxima restrição da pena e das medidas de segurança, como já sugeria o célebre art. 8º da
Declaração de 1789, que ambos inclui.
0 princípio restritivo, por sua vez, implica uma noção material do Estado de direito e
deduz-se como esta da dignidade da pessoa humana.
Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias isto é,
indispensáveis tanto na sua existência como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade
civil. Uma vez que as sanções penais se traduzem numa limitação mais ou menos grave dos

40Direito Criminal Português,II, 1911, p. 42; assim também : Palma Carlos, Os Novos Aspectos do Direito Penal, 1934, pp.
70 e segs.; Mantien ou abandon de la règle «nulla poena sine lege», 1937, passim. Este último, porém, mudou de opinião, pois
«equivale a deixar ao arbítrio judicial a liberdade dos cidadãos» (Medidas de Segurança, 1963, p. 15).

15
16

direitos individuais, o princípio restritivo dirá que essa limitação será a menor que as neces-
sidades da conservação e da paz sociais consentirem. Haverá que adquirir em cada caso a
convicção de que, se a sanção fosse suprimida ou reduzida, a ordem social poderia ser posta em
causa. Senão não seria respeitada a dignidade da pessoa humana, para salvaguarda da qual se
constitui todo o direito (hominum causa omne ius constitutum est), e da qual decorrem os
direitos do homem. Seria melhor que as sanções penais, como quaisquer outras restrições desses
direitos (cfr. art. 18º, nºs 1 e 2 da Constituição), não fossem necessárias, que a justiça penal
ficasse no mundo das ideias, e não viesse ferir com a sua mão os bens da vida. Neste sentido -
e só nele- as sanções penais são detestáveis e, portanto, de restringir (odiosa restringenda).
Acresce serem falíveis os juízes humanos e a necessidade da pena muitas vezes duvidosa no
caso concreto.
Esta maneira de pôr a questão encaminha-nos para os critérios da prevenção geral.
Como realiza o direito penal a prevenção geral de crimes futuros? O que interessa não é tanto
a efectiva e frequente punição de cada facto culposo singular, que em si mesmo só raras vezes
chega a ter qualquer relação imediata com a vida da maioria dos cidadãos. O que é decisivo é o
facto da jurisdição penal no seu conjunto contribuir para se erigirem tábuas de valores
socialmente relevantes, que influenciem o comportamento de cada um de maneira a ser capaz
de resistir aos estímulos criminosos.
A criminologia tem sobejamente comprovado que a maior eficácia da pena vem de se
aliar à sanção social da reprovação do criminoso, que sabe que o crime é causa de desonra e
infâmia. aos olhos dos outros. Para alcançar este desiderato o direito criminal só deve abranger
aqueles factos que a moral social censura fortemente e evitar uma proliferação de castigos de
pequenas faltas que «toda a gente» comete e por isso mesmo não envolvem particular censura.
Por outro lado, uma vez que o efeito de prevenção geral é um efeito global, pode o
direito penal limitar-se a punir os casos mais típicos de actos censuráveis, e pode igualmente
permitir-se uma descrição precisa desses factos, desistindo, portanto, da punição de algum caso
anómalo que não caiba nessa descrição, sem que aquele efeito global seja afectado 41. Uma vez
que o possível delinquente tem a maior parte das vezes um conhecimento mais do que impreciso
dos exactos contornos das várias incriminações, e é movido mais pelo receio duma pena
qualquer do que por certa pena determinada que mal calcula, há também que contar com um
efeito preventivo reflexo em relação aos factos não previstos semelhantes, e uma eficácia

41Assim Hellmuth Mayer, «Die gesetzliche Bestimmtheit der Tatbestände», Materialien zur Strafrechtsreform, I,
1954, p. 260; cfr. do mesmo, Strafrechtsreform für heute und morgen, 1962, pp. 48 e segs. e 59 e segs.

16
17

reflexa das penas aplicadas que é compatível com a maior diferenciação e individualização
delas, e com uma especial benignidade nos casos menos graves. Tudo isto justifica o carácter
essencialmente fragmentário e exemplificativo do direito criminal e a proibição de analogia.
Aceite o princípio restritivo, tudo isto justifica também que, sem prejuízo da prevenção
geral, se tenham organizado as outras garantias dos direitos do indivíduo frente às sanções
penais, que se incluem no princípio da legalidade: a reserva de lei, a irrectroactividade da
cominação e da agravação da pena, a proibição da interpretação extensiva. A coexistência de
todas elas não diminui demonstravelmente o efeito da prevenção geral do sistema penal. Ao
apelar para o respeito pela dignidade da pessoa humana e do cidadão, contribui mesmo para
reforçar a vigência social dos valores fundamentais da ordem jurídica e, assim, potenciar aquele
efeito.
Não deixa de ser esclarecedor observar como os autores concordam no princípio da
necessidade da pena, seja qual for a teoria dos fins das penas que adoptam. Beccaria, a quem
principalmente se deve o princípio e a sua vitoriosa carreira, integrou-o com «uma teoria
relativa» dos fins das penas, segundo a qual estas visavam apenas a prevenção geral e especial
dos crimes futuros 42. «A pena», escreve, «deve ser essencialmente... necessária, a mínima das
possíveis nas circunstâncias dadas» 43. «Eis em que se funda o direito do soberano de punir os
delitos: a necessidade de defender o depósito da saúde pública das usurpações particulares; e
tanto mais justas são as penas, quanto mais sagrada e inviolável é a segurança, e maior a
liberdade, que o soberano conserva aos súbditos» 44. Na mesma linha preventiva de Beccaria,
que explicitamente invoca, dirá Liszt no seu famoso «Programa de Marburgo» : «Só a pena
necessária é justa. A pena é um meio para um fim. Ora a ideia de fim exige adequação do meio
ao fim e a máxima - poupança no seu emprego.» «Não se pode conceber mais grave ofensa à
ideia de fim do que o emprego perdulário da pena, do que a aniquilação das condições físicas,
éticas e económicas de um: cidadão, quando ela não for irrecusavelmente exigida pelas
necessidades da ordem jurídica.» 45 Mas, numa orientação perfeitamente antitética quanto aos
fins das penas, um firme partidário das «teorias absolutas», da concepção meramente retributiva
da pena, como é o neo-hegeliano Hellmuth Mayer não dirá afinal outra coisa: «A pena em si
justa só está justificada na realidade, quando é ao mesmo tempo exigida pela necessidade

42 Dei delitti e delle pene, 1764 (reimp. 1964), pp. 6, 31, 46..
43
Ob. cit., p.104.
44Ob. cit., pp. 6 e seg.
45
Franz von Liszt, «Der Zweckgedanke im Strafrecht», 1883, in Erik Wolf (ed.) Quellenbuch zur Geschichte der
deutschen Rechtswissenschaft, 1950, p. 460.

17
18

estadual. A pena não é, de maneira nenhuma, um imperativo categórico, como pensava Kant.
Antes pelo contrário; o homem só tem legitimidade para usar da justiça, quando e na medida
em que o exige a prossecução dos fins necessários do Estado. Nomeadamente o Estado só se
conserva dos limites da sua missão em conformidade com o Direito, quando não emprega
desnecessariamente o direito penal. Só haveria que decidir doutro modo, se a Ideia (Deus) se
dissolvesse completamente na realidade - Hegel não pode, mais, não deve, entender-se assim.
Mas se o Estado é só uma coisa terrena, não pode propor-se o restabelecimento da total
harmonia das coisas por meio da pena.» 46
Ora esta concordância de autores representativos de teorias tão tipicamente opostas
quanto à essência da pena, é precisamente a prova de que o problema que nos ocupa, a não ser
outro, é de âmbito mais vasto. Ultrapassa-se, assim, a discussão escolástica das teorias dos fins
das penas, restituindo-se à pergunta pela justificação da pena a sua verdadeira dimensão. Do
que se trata agora é da posição do indivíduo perante o Estado e o direito, numa palavra, da
problemática do «Estado direito». E sob este ponto de vista, Beccaria, Liszt e Hellmuth Mayer
não se opõem, todos três são liberais convictos e confessos.

10. Passemos à fundamentação do princípio da necessidade ou da máxima restrição das


penas e das medidas de segurança47. Foi a tese do contrato social que, de um ponto de vista
histórico, forneceu as bases filosóficas do que pode chamar-se o direito criminal dos Estados
de direito. É, a este respeito, particularmente instrutivo o seguinte texto de Beccaria : «As leis
são as condições com as quais os homens independentes e isolados se uniram em sociedade;
cansados de viver num contínuo estado de guerra, e de gozar uma liberdade tornada inútil pela
incerteza de conservá-la. Eles sacrificaram uma parte para gozar a restante com segurança e
tranquilidade. A soma de todas as porções de liberdade sacrificadas ao bem de cada um, forma
a soberania. Foi, portanto, a necessidade, que constringe os homens a ceder parte da própria

46
Strafrecht, 1953, p. 33.
47Convém excluir da análise as doutrinas que se baseiam na mera utilidade social ou estadual. Tais doutrinas são
incapazes de fundamentar o princípio restritivo com o conteúdo e as consequências que lhe são atribuídas. Se não
se reconhecer uma razão de princípio que proíba ao Estado a «ofensa» dos direitos individuais, sempre essa ofensa
será possivel quando a utilidade do Estado o exigir , ao menos em casos «excepcionais». Para citar um exemplo:
a subordinação de todo o direito ao fim do triunfo da revolução comunista levará o juiz soviético «em casos
excepcionais», a dar por não escrito para o caso concreto, o que o legislador achou útil dispor para a generalidade
dos casos. Foi assim que a mesma razão de utilidade que ditou o art. 6º do Códígo Penal da república russa de
1960, que proíbe a aplicação retroactiva da lei penal ( nullum crimen sine previa lege), levará o Supremo Tribunal,
em sentença de 19 de Julho de 1961, a aplicar retroactivamente a pena de morte a um caso especialmente grave de
especulação, quando a lei vigente ao tempo do facto previa a pena máxima de 15 anos de prisão (apud Napolitano,
ob. cit., p. 237, nº 14).

18
19

liberdade; por isso é certo que cada um não quer pôr no público depósito senão a mínima porção
possível, só quanto baste para induzir os outros a defendê-lo. O conjunto destas mínimas
porções possíveis forma o direito de punir; tudo o mais é abuso e não justiça ; é facto, não já
direito.» 48
Este texto encerra uma evidente confusão. Ou bem que o direito de punir é constituído
com as porções mínimas de liberdade sacrificadas no controlo social ou bem que é delimitado
pelas leis positivas. Neste último caso nada pode impedir o sacrifício das liberdades individuais
em toda a medida que as leis positivas determinarem, mesmo para lá da medida mínima. Esta
ambiguidade do pensamento de Beccaria compreende-se melhor situando-o no clima espiritual
da sua época. Com efeito, Beccaria está na confluência de duas correntes ideológicas, de cuja
profunda contradição não tinha. - nem tinham os seus contemporâneos- perfeita consciência. À
49
primeira chamou Radbruch «liberal», à segunda «democrática» . A primeira é a de Lock, de
Montesquieu, de Voltaire, dos enciclopedistas, a segunda é a de Rousseau. Perante a divisa
revolucionária, aquela põe o acento na liberdade, esta na igualdade.
Segundo a primeira, o indivíduo cede no contrato social apenas aquela «porção mínima»
(Beccaria) de liberdade, que é indispensável à segurança das liberdades que não cede. Esta
esfera de liberdade natural fora do Estado é um limite para as próprias leis positivas. Os direitos
naturais do indivíduo são anteriores e superiores à soberania que os serve. Há, pois, que afastar
o perigo de o Estado usurpar abusivamente direitos pertencentes àquela esfera reservada de
liberdade e, para isso, se organiza o mecanismo da divisão dos poderes. Na melhor linha deste
pensamento, a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 reconhecerá no seu art. 1º que «todos
os homens... têm certos direitos inerentes, dos quais, quando entram num estado de sociedade,
não podem, por nenhum pacto, privar ou despojar a sua posteridade» 50.
Na ideologia liberal o contrato social legitima uma certa teoria dos fins do Estado: único
fim do Estado é a segurança dos direitos individuais. Ao Estado, dirá Kant, cumpre garantir «a
cada um a sua liberdade, por meio de leis: este fica assim livre de procurar a sua felicidade pela
via que melhor lhe parece, desde que não ofenda aquela geral liberdade conforme à lei, e
51
portanto os direitos dos outros consúbditos» . Pode e deve haver uma concepção comum da

48
Ob.cit., pp.5,7.
49 Elegantiae Juris criminalis, 1938, p. 69.
50 Perry Cooper, ob.cit., p. 311.
51
Über den Gemeinspruch... 1793, A 252; assim também Feuerbach, Anti-Hobbes, 1798, p. 74. De Fichte é a
tirada: «Não, príncipe, não és o nosso Deus. Dele esperamos felicidade; de ti protecção dos nossos direitos. Não
deves ser bondoso connosco; deves ser justo» : Zurückforderung der Denkfreiheit von den Fürsten Europas, die
sie bisher unterdrückten (1793), Werke (ed. Medicus), 1. Ergänzungsband, p. 9.

19
20

segurança de que todos têm igual necessidade, mas cada um tem a sua ideia e vivência da
felicidade individual e querer impor a todos a mesma, seria paternalismo insuportável do
Estado, incompatível com a dignidade da pessoa humana. O Estado teria apenas por funções a
legislação, a jurisdição, a defesa e a polícia, no sentido restrito de protecção geral frente a
perigos internos, que se opõe à identificação entre policia e administração, típica do «estado de
policia». Não se negavam deveres de solidariedade social, mas incumbiriam à sociedade civil
autónoma e não ao Estado52.
Rousseau e a corrente que nele se inspira pensam de modo diferente. No contrato social
opera-se «alienação total de cada associação com todos os seus direitos à comunidade» ( Contr.
Soc. I, c. 6) . O indivíduo troca a sua liberdade natural por uma liberdade cívica, que é a sua
participação e integração no todo, cuja «vontade geral» é a expressão da liberdade alienada e,
«portanto», a «liberdade» de cada um. Correspondentemente, a doutrina de divisão dos poderes
será repudiada por Rousseau, porque a soberania é indivisível e a vontade geral manifesta-se
em toda a sua plenitude em cada acto do Estado, não se pode alienar por partes em favor de
certos órgãos diferenciados. Não há aqui qualquer limitação de princípios aos fins do Estado.
A tradição constitucional francesa, não obstante a indiscutível influência das declarações
americanas, situa-se muito mais nesta linha democrática rousseauniana, e não poderá impedir,
por isto, a tentação sempre possível do totalitarismo democrático: a ditadura dos Jacobinos não
tardou a demonstrá-lo, como vimos.
A estas duas grandes correntes da filosofia política do Iluminismo correspondem modos
diversos de entender a subordinação do Estado ao direito e, assim, temos dois conceitos diversos
de Estado de direito: em sentido formal e em sentido material. Convém, no entanto, lembrar
novamente que a consciência da diversidade e até da contradição profunda entre as duas
referidas correntes políticas é tardia. Sucedeu, por um lado, à denúncia, feita pelo socialismo,
da mentira de um liberalismo apenas legal e sem conteúdo, de direitos individuais para todos
53
no papel, que eram de facto privilégios de alguns . Sucedeu também, por outro lado, às
primeiras amargas experiências de totalitarismo democrático. De modo paralelo, a noção de
Estado de direito em sentido material é quase contemporânea e veio reencontrar o velho
desiderato liberal, aprofundado, por via mais socialista do que liberal.
No Estado de direito em sentido formal o Estado é limitado pelo direito que cria. Na
doutrina publicista alemã, que elaborou o conceito, levando às últimas consequências a doutrina

52 Cfr. Kruger, Allgemeine Staatslehre, 2ª ed., 1966, pp. 777 e segs.


53
Ex. : o direito de propriedade é «direito» de todos, mas de facto é privilégio de pouquissimos proprietários.

20
21

54
do contrato social , esta limitação é essencial ao conceito jurídico do Estado. O Estado é
constituído, não já por um hipotético contrato social, mas pelo direito, na medida em que todas
as suas actividades são reguladas pelo direito, em que todas as relações dos órgãos do Estado
entre si e do Estado com os indivíduos são relações jurídicas. O Estado é assim uma pessoa
jurídica com direitos subjectivos relativamente aos indivíduos, entre eles o direito de punir55,
bem como os indivíduos têm direitos subjectivos relativamente ao Estado. Estes direitos
subjectivos do Estado e dos indivíduos delimitam-se mutuamente segundo o escopo da sua
atribuição e deles deriva uma regulamentação da actividade dos órgãos do Estado e da
actividade pública dos indivíduos. Num contexto de divisão do trabalho e de multiplicidade de
órgãos do Estado, isto implica o carácter processual da actividade estadual, a consequente
existência de relações jurídicas interorgânicas, e a realização dos fins do Estado através da
colaboração entre os vários órgãos e destes com os indivíduos. Da forma como se definem esses
fins e se organiza essa colaboração depende o carácter mais liberal ou mais totalitário do Estado,
e a função mais limitada ou mais promotora da actividade deste desempenhada pelo direito.
Mas, e é um ponto decisivo, a noção de Estado de direito em sentido formal não envolve
qualquer limitação ao conteúdo da lei que não seja estabelecida na lei constitucional, nem
qualquer limitação ao arbítrio administrativo ou judicial que não resulte também da lei. Implica
a legalidade da administração e da jurisdição, quando existam separadamente, mas não implica
qualquer separação de poderes de conteúdo determinado. Portanto, os direitos individuais só
têm existência e protecção na medida em que a lei, ou mais simplesmente a actividade legal do
Estado, lhos reconhece.
No Estado de direito em sentido material a subordinação do Estado ao direito outro
significado mais profundo. Agora o Estado não está apenas limitado pelo direito que cria, está
essencialmente vinculado à ideia de direito ou, noutra fórmula, ao direito natural. A
Constituição fala aqui, simplesmente, no art. 1º, de «dignidade da pessoa humana». O conceito
de Estado de direito em sentido material está, na tradição filosófica, essencialmente ligado à

54Cfr. Kruger, ob. cit., pp. 780 e segs. A frase «Estado de direito» é tradução do alemão «Rechtsstaat», termo que
surge pela primeira vez com um sentido moderno em autores alemães depois da Revolução francesa: J. W. Placidus
(1789), K. Th. Welcker (1813), R. von Mohl (1832), com invocação mais ou menos explicita de Kant e através
dele, dos clâssicos do direito natural e do iluminismo, e da tradição constitucional anglo-saxónica (cfr.Krüger, ob.
cit., p. 776; Scheuner, «Die neuere Entwicklung des Rechtsstaats in Deutschland», Festschrift Deutscher
Juristentag, II, 1960, pp. 235 e segs.). A sua doutrina corresponde às doutrinas da rule of law e do état
constitutinnel. O deputado Vital Moreira não foi, pois, inteiramente exacto, quando disse na sessão de 8 de Agosto
de 1975 da Constituinte: «o conceito "Estado de Direito" é um conceito alemão, é um conceito - direi mesmo -
prussiano» ( Diário... , p. 721).
55 Sobre o direito de punir como direito subjectivo público cfr. Rocco, Opere giuridiche, III, pp. 127 e segs., 351

e segs.

21
22

56
ideia da dignidade da pessoa humana, em que se fundam os direitos do homem . Quer isto
dizer que o Estado está obrigado a servir uma certa tábua material de valores. A validade dos
actos dos órgãos do Estado não é, pois, apenas condicionada pela regularidade formal do seu
processo de produção, mas também pela concordância material do seu conteúdo com uma tábua
de valores que lhe é anterior e superior 57.
Nesta orientação, os direitos individuais não estão apenas garantidos pela lei frente à
administração e aos tribunais, mas mesmo contra a lei, porque se situam num plano jurídico
superior ao da lei: a lei que os não reconhecer é inválida. Sendo esta a posição do Estado frente
aos direitos individuais, não parece defensável que cumpra ao Estado limitar esses direitos -
mesmo para aplicar justiça - noutra medida que não seja a necessidade de defesa e protecção
dos outros direitos individuais. A noção de Estado de direito em sentido material desemboca
assim no princípio da necessidade ou máxima restrição das sanções penais.
Afinal, é o Estado de direito em sentido material que funda o princípio da separação dos
poderes - abstraindo agora de quais os critérios da separação -, porque sem ela não estão seguros
os direitos individuais, como demonstra a história. E funda o próprio Estado de direito em
sentido formal, que se deriva agora do respeito pela dignidade da pessoa humana nas relações
desta com o Estado. Mas não implica a limitação dos fins do Estado à realização e defesa do
direito, como pretendeu o liberalismo. O Estado pode e deve, também, promover a educação, a
cultura, a saúde, a segurança social, a economia, numa palavra, o bem-estar. De resto, nunca
existiu, em forma pura, o «Estado guarda nocturno» do liberalismo, e hoje menos que nunca.
Mas o Estado de bem-estar não tem que se contrapor ao Estado de direito porque, ao prosseguir

56
Para mais desenvolvimento: Maihofer, Rechtsstaat und menschliche Würde, 1968.
57
Põe-se aqui a questão de saber como se determinam os valores materiais, e de como é compatível a existência
de uma tâbua de valores supralegal com o princípio democrâtico, igualmente constitucional. Ao basear a República
«na dignidade da pessoa humana e na vontade popular» (art. 1º; atente-se também na frase do preâmbulo: «Estado
de Direito democrático» ) a Constituição sugere que ambos os principios se condicionam mutuamente. A dignidade
da pessoa humana não apenas implica o respeito pela vontade popular, isto é, pela liberdade e pela consciência
ética de cada um e formas colectivas e organizadas de expressão das mesmas. A sua determinação terá de fazer-se
por via democrática, pela hermenêutica da progressiva concretização histórica dessa dignidade na definição
constitucional, legal e judicial dos direitos do homem e pelo correcto funcionamento do pluralismo de expressão
e organização politica democráticas ( art. 2º) : não há definições transcendentes nem reveladas desses direitos, nem
vias privilegiadas de acesso ao seu conhecimento, por parte de indivíduos (carisma individual) ou de gerações
(tradição). Por outro lado, a vontade popular, em cada caso concreto da sua expres são, só é respeitável na medida
em que se norteia ou é compativel com o conhecimento da dignidade da pessoa humana, nos termos anteriormente
descritos. Cada um dos princípios, o da dignidade humana e o da vontade popular, desenvolve-se ou concretiza-se
não apenas dentro dos limites, mas dentro do horizonte do outro. Cfr. sobre esta problemática, embora com outra
terminologia: KÄGI, «Rechtsstaat und Demokratie». Demokratie und Rechtsstaat. Festgabe für Zaccaria
Giacometti, 1953, pp. 107 e segs..

22
23

esses outros fins, o Estado tem que proceder de forma legal e respeitar os direitos individuais,
acomodar o próprio objectivo do bem-estar com a dignidade da pessoa humana.
Temos assim que só uma concepção material do Estado de direito poderá fundamentar
o princípio restritivo das sanções penais, com todas as consequências que lhe são habitualmente
atribuídas, entre elas o princípio da legalidade com todas as aplicações que historicamente lhe
foram sendo dadas e a Constituição recolheu. No sentido inverso, dir-se-á que a história e a
teoria do princípio da legalidade contribuem para iluminar vários aspectos importantes da teoria
do Estado de direito. É assim que os vários princípios em que se analisa o Estado de direito são,
em certo sentido, independentes de uma certa ideologia do próprio Estado de direito. Já o
verificamos, a propósito das ideologias liberal e democrática. Isto também se revela no facto,
por exemplo, de o art. 4º do actual Código Penal da República Democrática da Alemanha,
consequentemente derivar os princípios da legalidade e da jurisdicionalidade das sanções penais
«do respeito pela dignidade da pessoa humana, que orienta a sociedade socialista mesmo em
58
face do infractor da lei» , não obstante a ideologia do Estado repudie o conceito «burguês»
59
do Estado de direito . Mas as relações entre esses vários princípios também subsistem
independentemente da posição que -relativamente a cada um deles tomam ideologias diversas.
Assim história revela que a consagração formal do princípio da legalidade, mesmo
quando ligado ao seu lógico fundamento na dignidade de pessoa humana, como na revolução
francesa e agora no código da Alemanha socialista, não é eficaz senão for também o princípio
democrático, incluindo a separação de poderes. Embora possa haver variações históricas no
reconhecimento e na eficácia dos vários princípios que integram o Estado de direito, não se

58
Já não é, infelizmente, a dignidade do homem concreto, mesmo infractor da lei, que está na base dos «direitos,
liberdades e deveres fundamentais dos cidadãos» no titulo II : «O Estado e a personalidade» da Constituição
soviética de 1977, segundo a doutrina oficial do capítulo de igual denominação do vol. III (1972; trad. alemã 1975),
da grande obra colectiva soviética Marxistischleninistische allgemeine Theorie des Staates und des Rechts. A
anterioridade de data não parece significativa, em face da notável correspondência doutrinal entre este capitulo e
aquela parte da Constituição. Trata-se aí «do cidadão, não como homem concreto, mas como sujeito social
generalizado» (p. 272), o qual está numa «relação de subordinação» ao Estado socialista (pp. 276 e seg.).
Considere-se o texto: «na medida em que o socialismo declara o homem como o mais a]to dos valores do mundo,
não se orienta por uma personalidade abstracta, pe]o homem como tal, mas pela personalidade socialista com
todas as suas qualidades, que lhe são ensinadas pela sociedade. Isto é, uma personalidade com consciência
objectiva desenvolvida, a consciência da pertença ao povo, aquela grande força social, sobre cujos ombros
repousam missões históricas» (pp. 279 e seg.). Entre o cidadão subordinado ao Estado socialista e a personalidade
socialista missionada historicamente não se vê o lugar do homem criminoso. Não será a dignidade deste homem,
por vezes criminoso, que está em causa no processo de «humanização do Estado» de que falava Marx, e que aquela
obra algo apressadamente refere como consistindo essencialmente «na criação de formas políticas da actividade
social que sejam dignas do homem, do seu papel e vocação sociais» (p. 282)?
59
Perdoe-se a cit. aqui de um autor russo, em nome da ideologia comum: Toumanov, Pensée juridique bourgeoise
contemporaine, 1974, pp. 92 e segs.

23
24

60
trata de um conceito tipicamente graduável - embora o possam ser as violações e a eficácia
daqueles princípios - mas tendencialmente indivisível : os vários princípios que o constituem
estão entre si em relações de dependência lógica ou empírica. O seu estudo pode ser matéria de
ciência e não de ideologia.

11. Por outro caminho se tem também tentado fundamentar o princípio da necessidade
ou máxima restrição das penas: é o que se poderá chamar a via do anarquismo penal. Baseia-se
na maldade da pena e, portanto, no carácter absurdo e irracional da repressão penal. O seu mais
famoso representante foi Tolstoi 61, que não via meio de conciliar as penas com certas passagens
dos Evangelhos, como o mandamento do perdão (Mat 6 12, 14; 1822), o mandamento de
responder ao mal com o bem (Mat. 5 39-45; cfr. Rom.12 14-21; 1 Pedro 39) e a proibição de
julgar o próximo - o Juízo é reservado a Deus (Mat. 7 1; Rom. 12 CAPut!').
Nesta linha se podem situar muitas defesas do princípio restritivo que admitem, no
entanto, a pena como mal necessário, mas cuja maldade não pode ser apagada por considerações
utilitárias. O penalista teria sempre uma «má consciência» (Radbruch) e a sua honorabilidade
moral estaria precisamente em confessá-lo. Vem aqui a propósito referir as opiniões de dois
autores recentes que denunciam a pretensa irracionalidade, o absurdo da pena, com particular
veemência: Cossio e Schmidhäuser.
O jusfilósofo argentino Carlos Cossio parte da constatação da irracionalidade axiológica
da pena. «Nas sanções de cumprimento forçado - escreve - a relação ontológica entre os termos
comparados ( conteúdo da sanção e conteúdo do dever transgredido) é de identidade. N a
indemnização, esta relação é de equivalência. Mas no castigo deparamos com uma relação
ontológica de incomparáveis. Isto significa que a valoração jurídica das duas primeiras espécies
de sanções, é uma variação racional porque gira em torno do igual. Não assim a terceira que
emerge irracionalmente...» «Não há relação racional entre torto e sanção, não tão-pouco nas
penas entre si.» 62. Esta irracionalidade da sanção penal, que Cossio pretende provar com os
argumentos tradicionalmente aduzidos contra a teoria retributiva clássica («ao morto e ao
lesionado nada se lhes restitui com o castigo», «tirar os olhos a quem os tirou a outrem, deixa
como saldo dois cegos em vez de um», «não há critério racional algum para determinar porque
a pena dura tanto para este delito e tanto para aquele»), é que fundamentaria verdadeiramente a

60
Como parece entender Miguel GalvãoTeles, «Estado de Direito» , Verbo - Enciclo pédia..., VII, 1969, p. 1363.
61
Sobretudo nas seguintes obras: Ressurreição, Não posso calar, Correspondência com um jurista.
62
Teoria de la verdad jurídica, 1954, Apêndice, p. 296. Jiménez de Asúa, Tratado de derecho penal, II, 2ª ed.,
1950, pp. 380 e seg. adopta também este «fundamento filosófico».

24
25

máxima nulla poena sine lege. Escreve: «A extensão penal por analogia resulta pouco conforme
à razão, uma vez que já carece de racionalidade a relação entre o dever transgredido e a pena
que teria de tomar-se como ponto de partida. Não é racional estender o irracional e por isso a
razão tem que opor-se a qualquer derrogação do princípio nulla poena sine lege»63. Também
Eberhard Schmidhäuser, depois de uma inquirição sistemática dos sentidos positivos do valor
que a pena pode ter para aqueles que têm algo a ver com ela, conclui sobre esta questão
fundamental do sentido da pena em si mesma: «Não se encontra um só postulado ético que nos
autorize a retribuir o mal com um mal : e nem o facto de o fazermos em intenção de uma
próspera vida social, altera no que quer que seja o desvalor daquele poder vindicativo, com que
tratamos outro homem. O nosso punir é sem sentido.» 64
A crítica desta espécie de «anarquismo» penal deverá acentuar dois pontos. De modo
negativo, por redução ao absurdo, dirá que a única conclusão lógica de tal tomada de posição é
a ilegitimidade de toda e qualquer pena e, portanto, o imperativo da sua abolição, com que o
problema. seria mais suprimido do que resolvido. De um modo positivo, procurará uma justi-
ficação ética e jurídica da pena e dos limites da sua aplicação por parte do Estado. Foi o que
precisamente tentámos atrás, quanto a estes últimos, com a teoria do Estado de direito. Em
qualquer caso, o «anarquismo penal» é incompatível com o sistema de valores constitucionais,
como ressalta do inventário, atrás feito, dos princípios da Constituição em matéria penal.

4. O princípio «nullum crimen nulla poena sine lege»

12. Este princípio abrange várias aplicações ou determinações em matéria da definição


das fontes de direito (como a proibição do costume) , da sua aplicação (proibição da analogia)
e da sua eficácia temporal (não-retroactividade). Antes de as descrever em pormenor, pergunta-
se se têm todas um âmbito comum de aplicação, que corresponda à unidade histórica e de
fundamento filosófico e político nos princípios do Estado de direito e da necessidade ou máxima
restrição das sanções penais, e à consequente e comum função de garantia dos direitos
individuais. A resposta cabal a esta pergunta só pode ser dada depois daquela descrição. Mas
pode desde já definir-se o âmbito de aplicação que deriva logicamente do princípio: ele abrange
apenas as normas penais («leis penais» na terminologia de Binding) em sentido restrito, isto é,

63
Ob. cit., p. 297.
64
Vom Sinn der Strafe, 1963, p. 64.

25
26

as normas que para acções ou omissões nelas previstas estatuem penas ou medidas de
segurança65. Isto é, restringe-se ao direito penal como conjunto de normas sancionadoras. Não
abrange as outras normas de ilicitude («normas» na terminologia de Binding) , que proíbem ou
permitem acções ou omissões de acções (além das que se traduzem na aplicação de sanções
penais) em certas circunstâncias. E relativamente às normas penais, o princípio apenas se aplíca
aos modos da sua criação (fontes) e aplicação de que resulta no caso concreto a aplicação de
penas ou de medidas de segurança (ou de mais grave pena ou medida de segurança) 66. É que o
princípio tem a função de garantir os direitos individuais, na medida em que são sacrificados
ou limitados pela aplicação de penas ou medidas - de segurança. Não faria sentido aplicá-lo
com resultado oposto. Em tudo o mais aplicam-se aqui os princípios gerais de direito. O
princípio aplica-se, portanto, em primeira linha, às disposições legais que prevêm crimes ou
contravenções na parte especial do Código Penal e na legislação penal extravagente. Mas não
só. As disposições da parte geral que estabelecem os critérios positivos de punibilidade (lato
sensu) das primeiras, os pressupostos genéricos das medidas de segurança, as causas de
agravação das penas e das medidas de segurança (não apenas as circunstâncias agravantes), e a
extensão da punibilidade a outras formas de infracção (cláusulas de extensão da tipicidade dos
factos previstos) - a tentativa, a participação estão também sujeitas ao princípio. Não têm, pois,
67
razão aqueles autores que pretendem exceptuar toda a parte geral da aplicação do princípio
da legalidade.
A Constituição parece estabelecer uma distinção entre a reserva de lei da alínea e) do
art. 167º e as restantes aplicações do princípio no art. 29º. Enquanto que na alínea e) do art.
167º a reserva de lei formal se limitaria à «definição dos crimes» mas se estenderia à definição
das penas e medidas de segurança, sem excepção, já no art. 29º a reserva de lei material, a
proibição de analogia e a de retroactividade estender-se-iam a todas as infracções e pressupostos
de medidas de segurança, mas limitar-se-iam, quanto a estas, às privativas da liberdade. Esta

65
Abstraímos aqui das outras medidas jurídico-penais, como as medidas de reeducação do direito penal de jovens,
que têm uma problemá.tica específica e não estão previstas na Constituição. O Parecer da Comissão Constitucional
2/77 de 18.1.1977 (Pareceres da Comissão Constitucional, I 1977, pp. 57 e segs.) pronunciou-se no sentido da
aplicação dos arts. 27º, nº 2, 205º e 206º da Constituição (princípio da jurisdicionalidade) às medidas de reeducação
privativas da liberdade
66
Cavaleiro de Ferreira fala aqui, no mesmo sentido, mas com outro critério de individuação de normas, de
«normas positivas de direito penal», isto é, «as normas que incriminam os factos, as que estabelecem as penas e
as que apravam as penalidades»; por oposição, as «que, delimitando negativamente estas, garantem ou favorecem
os direitos dos indivíduos podem denominar-se normas negativas». (Lições de Direito Penal, 2ª ed., 1945, pp. 75,
90 e seg.).
67
Como Maurach, Deutsches Strafrecht, Allgemeiner Teil, 4ª ed., 1971, p.96; Tröndle in Strafgesetzbuch.
Leipziger Kommentar, 9ª ed., 1974, § 2, n. 17, 19.

26
27

distinção é, decerto, injustificada nos termos da sua expressão literal, e tem que ser resolvida
por interpretação, a propósito de cada uma das aplicações do princípio.

13. Não há pena ou medida de segurança que não estejam descritas, assim como os
respectivos pressupostos, em lei em sentido formal, isto é, em lei da Assembleia da República.
:t. o que resulta da alínea e) do art. 167º. A disposição fala apenas de «definição de penas e
medidas de segurança», mas a definição não é apenas de espécies de penas e medidas, é de
penas e medidas aplicáveis, «cominadas» (art. 29º nº 3) , a pressupostos de facto de certa
descrição, como exprime o nº 1 do art. 29º para as medidas de segurança, e vale, sem dúvida,
também para as penas. A «lei anterior que declara punível a acção ou omissão» é também a lei
em virtude da qual alguém «pode ser sentenciado criminalmente», o que implica a cominação
da pena aplicável na lei incriminadora.
É, decerto, concebível uma definição separada, por um lado, dos factos puníveis e
pressupostos das medidas de segurança e, por outro, das sanções aplicáveis à prática desses
factos ou realização desses pressupostos. Tal foi a técnica legislativa dos projectos de Silvestre
Pinheiro Ferreira68 e, recentemente, do Código Penal da Gronelândia de 1954 69. E a Comissão
Constitucional já considerou (Parecer 3/76 de 22.12.1976) que a definição das medidas de
segurança não implica, implicitamente, a fixação dos respectivos pressupostos. A Comissão
fundou-se «no facto de a lei poder fixar o elenco das medidas de segurança, como, aliás, o faz
o art. 70º do Código Penal, sem que simultaneamente se fixem os respectivos pressupostos» e
em que «a própria Constituição distingue claramente entre as duas questões» no nº 1 e no nº 3
do art. 2970.
Ora é claro que os pressupostos de facto se distinguem conceptualmente das sanções
penais e que pode haver disposições legais classificatórias e definitórias só de uns ou doutros.
A parte geral de qualquer código penal contém numerosas disposições deste tipo, como a à o
art. 70º do Código Penal. Mas a lei penal, como norma jurídica, só nasce com o estabelecimento
do nexo entre certa descrição dos pressupostos e certa descrição da sanção penal. O art. 70º do
Código Penal só ganha pleno sentido normativo quando conjugado com o § 5º do mesmo artigo,
o § único do art. 68º, e o art. 71º do mesmo Código (e similar legislação extravagante), que
descrevem os pressupostos das medidas de segurança do art. 70º Na reserva de lei da alínea e)

68
Projecto do Código Político para a Nação Portugueza, 1838, arts. 137º, 179º, 200º e segs; Cours de Droit Public,
III, 1838, pp. 14 e segs., 139 e segs.
69
In Ancel, Marx (ed.), Les codes penaux européens, I, pp. 389 e segs.
70
Pareceres da Comissão Constitucional, I, 1977, p. 36.

27
28

do art. 167º da Constituição e, em geral, no princípio da legalidade, é de normas penais que se


trata. De outra forma, ficariam desprotegidos os direitos individuais que o principio visa
garantir: assim, de pouco valeria a. garantia de fixação do elenco das medidas de segurança
possíveis pela Assembleia da República, se qualquer decreto ou postura pudesse definir os
pressupostos das mesmas. Não há aqui razão para distinguir entre penas e medidas de
segurança. É este o fundamento de «homologia» que o referido Parecer da Comissão
Constitucional reconhece «entre a correspondência crime-pena, por um lado, e a
correspondência pressupostos de perigosidade criminal-medidas de segurança» , para o efeito
de justificar «uma interpretação extensiva do disposto na alínea e) do art. 167º»71 . Deve, pois,
exigir-se não só a legalidade formal da pena (nulla poena sine lege) , como a do crime (nullum
crimen sine lege) , e ainda a da conexão entre ambos ( nulla poena sine crimine; nu num crimen
sine poena legali) , como já reconhecia Feuerbach, a quem se devem também os brocardos
mencionados por último 72. O mesmo vale para as medidas de segurança e respectivos
pressupostos. E deve entender-se que este «princípio da conexão» entre as penas e medidas de
segurança, por um lado, e os respectivos pressupostos, por outro, está consagrado
expressamente no art. 29º da Constituição, natureza das medidas de segurança privativas de
liberdade, pelo que este ponto de divergência entre o âmbito dos dois artigos sempre seria aqui
irrelevante, se não o for em geral 73 .
Pressupostos das medidas de segurança são aqueles factos, circunstâncias e
características pessoais que a lei considera fundamento suficiente da perigosidade que
corresponde a medida de segurança. A Comissão Constitucional fala aqui de «factores ou
sintomas de perigosidade erigidos à categoria de pressupostos» (lug. cit.) . Não é, pois, de
aplaudir a conclusão da Comissão Constitucional no Parecer referido ao considerar
constitucional um decreto-lei do Governo que estabeleça que certas contravenções previstas no
Código de Estrada passem a ser fundamento da inibição temporária ou definitiva de conduzir
(art. 61.0, n.08 1 e 2 do Código de Estrada) , que é uma medida de segurança não privativa da
liberdade. Só não seria assim se o pressuposto da medida fosse certo tipo de perigosidade cor-
respondente a certo tipo de medida (neste caso: «perigosidade quanto à prática de crimes

71
Ibidem, p. 37.
72
Lehrbuch cit., § 20. No mesmo sentido fala Eduardo Correia de um princípio da conexão legal do crime e da
pena (Actas das Sessões da Oomissão Revisora do Código Penal, I, 1965, pp. 49, 51).
73
Não se justifica, pois, a hesitação da Comissão em admitir «a fixaÇão dos pressupostos de aplicação das medidas
de segurança por decreto-lei, com uma eventual ressalva no que respeita aos pressupostos das medidas de
segurança privativas de liberdade» (lug. cit., p. 36).

28
29

cometidos no exercício da condução» ) e não os factos que fundamentam o juízo de


perigosidade. Tal equivaleria a abandonar a exigência de determinação dos pressupostos (que
quando mencionados teriam valor exemplificativo). A particularidade de esses pressupostos
serem contravenções legalmente previstas é irrelevante, porque essas contravenções estavam
legalmente conexas com as respectivas penas e não com a medida de segurança.
A exigência constitucional de conexão formal entre as penas e medidas de segurança e
os respectivos pressupostos permite interpretar extensivamente a alínea e) do art. 167.0 no
sentido de abranger não só os crimes e os pressupostos das medidas de segurança mas também
as contravenções. Assim se deve decidir um ponto em que a doutrina da Comissão Cons-
titucional tem sido contraditória (Parecer n.(J 2/76 de 21.12. 1976 - Pareceres, I, p. 27 -, pela
inclusão das contravenções, «por ser da exclusiva competência da Assembleia da República
toda a definição de penas» ; Parecer nº CAPut!'/77 de 28.7. 1977-Pareceres, II, p. 149, pela
exclusão)74 .
Tudo isto não preclude, porém, a possibilidade de a determinação dos pressupostos das
penas e medidas de segurança que é exigida pela «definição» de umas e outras, em face do
princípio da conexão expresso no art. 29º, não ser necessariamente coincidente com a
«definição» desses pressupostos, nos termos em que a alínea e) do art. 106º, a exige para os
crimes. A palavra «definição» seria assim empregada num sentido forte, que só valeria para os
crimes, para as penas e para as medidas de segurança, mas não para as contravenções e os
pressupostos das medidas de segurança. Estas duas espécies de pressupostos só teriam que ser
determinadas por lei formal na medida em que essa determinação é exigida pela conexão entre
sanções penais e respectivos pressupostos consagrada no art. 29º. O esclarecimento deste ponto
leva-nos a avançar no elenco das fontes do direito penal.
A prática constitucional portuguesa e a doutrina anteriores à Constituição de 1933
sempre entenderam que o princípio da legalidade das penas, expresso no § 10º do art. 145º da
Carta e reproduzido, com idêntico teor, no nº 21 do art. 3º da Constituição de 1911, não era

74
Em face de uma referência semelhante do texto da reserva de lei à «detennlnação dos crimes e delitos bem como
das penas que lhes são aplicáveis» no art. 34.0 da Constituição francesa de 1958, o Conseil d'État (12.2.1960,
Société Eky, J. C. P. 1960, n, 11629, Vedel) considerou que a matéria das contravenções não estava abrangida,
apesar da reafirmação, no Preâmbulo, da definição dos direitos do homem pela declaraçáo de 1789 e, portanto, do
art. 8º desta, que implica - julgamos nós a conexão entre pena e «delito». Mas o Conseil Constitutionnel, depois
de apoiar esta orientação (19.2.1953, J. O. 16.5, p. 4466; D. 1964, 92, L. Hamon), voltou atrás quanto às «penas
que comportam medidas privatIvas de liberdade» (decisão de 28.11.1973, Rev. àr. public, 1974, p. 903) : veja-se
PUECH, Les grands arrêts de la jurisprudence criminelle, I, 1976, pp. 20 e segs. Note-se que a reserva do art. 34º
se limita às penas que são aplicáveis a crimes e delitos e não abrange as penas em geral, como a do art. 106º alinea
e) da nossa Constituição.

29
30

violado pela aplicação de penas a contravenções e crimes determinados em regulamentos


administrativos e posturas municipais, desde que dentro dos limites da lei 75. A Constituição de
1933 nada alterou neste ponto. Os limites da lei eram sempre os da competência dos órgãos
emitentes, devendo negar-se a competência em matérias já reguladas por fonte
hierarquicamente superior; e nas posturas e outros regulamentos autónomos o respeito pela
medida máxima da pena das contravenções, determinada pelo art. 486º do código Penal e pelas
leis administrativas (por último: arts. 52º, 99º, 255º, 408º do Código Administrativo; art. 3º do
Dec.-Lei nº 41074 de 17.4.1957) ; nos regulamentos administrativos complementares eram,
além dos anteriores, ainda os limites assinalados pelas leis ou regulamentos superiores que os
permitir ou impuser 76. O que a Constituição de 1933 introduziu foi a equiparação às leis dos
decretos-leis do Governo art. 109º). Sempre se entendeu, contudo, que os crimes eram matéria
de lei (ou fonte equiparada) , ao passo que as contravenções apenas teriam que ser determinadas
em conformidade com a lei, podendo bastar a simples delegação por lei da competência em
matéria de prevenção geral ou de polícia, e o respeito da relevante medida legal da pena de
contravenção. O princípio da legalidade das penas considerava-se respeitado desde que a lei
material determinadora da contravenção fosse delegada por lei em sentido formal (ou fonte
equiparada), que definisse, no mínimo, a matéria da contravenção e o limite máximo da res-
pectiva pena.
É difícil conceber que o legislador constitucional tenha querido retirar ao Governo e aos
órgãos legislativos e regulamentares das regiões autónomas e das autarquias locais todo o poder
de criar contravenções e de sancionar, assim, penalmente, algumas das disposições genéricas
dos seus órgãos legislativos e regulamentares. A eficácia do executivo, a autonomia regional e
local, que são princípios constitucionais, seriam gravemente afectadas.
Resta então saber em que medida a determinação da contravenção pode ser deixada a
esses órgãos, sem prejuízo da definição da pena, que vimos implicar constitucionalmente a sua
conexão com o facto punível, e uma determinação deste que seja compatível com os princípios
constitucionais em que se baseiam os arts. 146º alínea e) e 29º. Ora esta reserva de lei tem como

75
Henriques da Silva, Elementos de Sociologia Criminal e Direito Penal, 1905, p. 127; Caeiro da Mata, ob. cit.,
II, p. 18.
76
Cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9ª ed., I, 1970, pp. 96 e segs.; Maia Gonçalves, RMJ,
162 (1967), pp. 156 e segs.; Langhans, Estudos de Direito Municipal - As Posturas, 1938, pp. 384 e segs.; sobre a
competência dos corpos adminIstrativos para criar contravenções antes da Constituição de 1933 cfr. Mourisca,
Transgressões, 2.. ed., 1924, pp. 26 e segs.; Luis Osório, Notas ao Código Penal Português, 2.. ed., IV , 1926, pp.
440 e segs. Em face da Constituição de 1933, cfr. Marcello Caetano, Lições de Direito Penal, p. 95 e Cavaleiro de
Ferreira, ob. cit., p. 77.

30
31

fundamento específico, combinado com o princípio da necessidade da pena, uma aplicação do


próprio princípio democrático: traduzindo-se as sanções penais em sacrifícios graves dos bens
jurídicos correspondentes a direitos do homem, só a Assembleia da República, como
«assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses» tem legitimidade para exigir esse
sacrifício77. Essa exigência, que é feita com a cominação da pena, tem que ser suficientemente
explícita para que a pena final aplicada ainda possa ser imputada pelo cidadão à Assembleia da
República e aos seus representantes nela. Quer isto dizer que a delegação de competência deve
ser inquivoca e descrever o conteúdo, o fim e os limites da delegação de tal forma que os
pressupostos da punibilidade sejam genericamente previsíveis com base no texto legal da
delegação e não apenas com base no texto do acto governamental, regional ou local delegado 78.
A Constituição parece adoptar idêntico regime quanto aos pressupostos das medidas de
segurança, para que também não exige a «definição» acabada que reserva aos crimes e à
«definição» da espécie e limite máximo da pena ou medida de eegurança aplicá veis.
Em conclusão: o poder regulamentar do Governo (art.201º, nº 1, alínea c) ; art. 202º,
alínea c) ) , das regiões autónomas (art. 229º, alínea b) ) e das autarquias locais (art. 242º) pode
exercer-se pela especificação dos elementos de facto de contravenções (ou dos pressupostos de
medidas de segurança) que sejam genericamente previsíveis com base na lei regulamentada.
Decretos-leis, decretos, decretos regionais, re~ulamentos podem nestes termos ser fontes de
direito penal, além das leis, dos decretos-leis ratificados expressamente 79, dos decretos-leis do
Conselho da Revolução sobre direito penal militar (art. 148º) , dos assentos - em função
interpretativa 80: arts. 668º a 670º do Código de Processo Penal e art. 2º do Código Civil - e dos
tratados internacionais (art. 8º, nº 2 da Constituição).

14. O costume está, por consequência, excluido como modo de criação ou delimitação
positiva de normas penais (nulla poena sine lege scripta). Pode apenas revogar total ou

77
Assim, Grünwald, lug. cit., p. 16; Jescheck, ob. cit., p.105.
78
É seme1hante a fórmula do Tribunal Constitucional alemão: BVerfGE 14, pp. 174, 185 e seg.; 14, pp. 254, 257.
É, assim, questionável a constitucionalidade do nº 3 do art. 17º da Lei nº 79/77 de 25 de Outubro, a não ser que se
entendam os limites apontados no texto à autonomia dos regulamentos como compativels com a natureza das
posturas, o que parece defensável.
79
Cfr. Machete, «Ratificação de Decretos-Leis Organicamente Inconstitucionais», Estudos sobre a Constituição,
I, 1977, pp. 281 e segs.
80
Se o assento não interpretar, mas integrar lacunas, ou fizer interpretação extensiva, em matéria de delimitação
positiva da lei penal, é não só ilegal mas inconstitucional Cfr. EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, I, p. 132,
que considera inovador o assento de 6.7.1957 (MBJ , 44, p. 77) que dispõe que «a expressão quaisquer ... títulos,
empregada no art. 451.0 do Código Penal, abrange todos os documentos comprovatlvos de direito de carácter
patrimonial, quer respeitantes a bens móveis, quer a bens imóveis».

31
32

81
parcialmente, delimitar negativamente e interpretar normas penais ; e pode prencher o
conteúdo de conceitos normativos utilizados na lei penal. Exceptua-se apenas o costume
internacional (art. 8º, nº 1 e art. 29º, nº 2 da Constituição), cujas normas, no entanto, só podem
ser aplicadas depois de transformadas em, ou pelo menos, adaptadas por, lei formal interna
(«nos limites da lei interna» : nº 2 do art. 29º). Casos de transformação do direito internacional
penal em direito interno seriam, segundo alguns deputados82 a Lei nº 8/75 de 25 de Julho, a Lei
nº 16/75 de 23 de Dezembro e a Lei nº 18/75 de 26 de Dezembro, que a Constituição recebeu
no art. 309º, bem como as leis regulamentares das primeiras autorizadas pelo nº 2 do mesmo
artigo e posteriormente publicadas (Decreto-Lei nº 349/76 de 13 de Maio e Lei nº 1/77 de 12
de Janeiro). Mas é duvidoso se já há «princípios gerais de direito internacional», ou costume
internacional, que sejam normais penais penais 83. E mesmo que se entenda serem-no todas as
incriminações julgamentos de Nuremberga e de Tóquio (crimes de guerra, crimes contra a
humanidade e crime de guerra de agressão), como o próprio nº 2 do art. 29.0 parece pressupor,
em face da sua óbvia inspiração no nº 1 do art. 7º da Convenção europeia dos direitos do homem
e no nº 2 do art. 15º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (embora não seja
esse o conteúdo normativo de tais preceitos), nem assim se podem considerar abrangidas
pelo nº 2 do art. 29º as leis de incriminação dos agentes, responsáveis e colaboradores da PIDE
DGS. O direito internacional penal não prevê a punição em razão da mera qualidade das
pessoas, da sua pertença a organizações, ou da sua colaboração com organizações,
84
independentemente do dano . O art. 9º do Estatuto do Tribunal Internacional Militar, ao
permitir declarar grupos ou organizações como criminosos, apenas pretendeu preparar a
prossecução penal, por autênticos crimes, dos membros dessas organizações.

81
Não pode contudo deixar de acentuar-se, em ligação com a função lnterpretatlva e integrativa negativa do
costume na aplicação da lei penal, a grande importância dos precedentes jurisprudenciais, mesmo quando não são
obrigatórios, como na common law; a revelâncla dos precedentes funda-se nos princípios da igualdade e da
segurança jurídicas, que têm valor constitucional, o que obriga a fundamentar as mudanças de orientação
jurisprudencial. Cfr. Germann, Kommentar zum Schweizerschen Strafgesetzbuch, I, 1, 1953, pp. 73 e segs.
82
José Luís Nunes, na sessão de 27.8.1975 da Constituinte (Diário ..., p. 1027) e Carlos Candal, na sessão de
31/3/1976 (Diário ..., p. 4310).
83
Jescheck, ob. cit., p. 93 nega-o redondamente. Dahm, ob. cit., III, p. 313 admite-o apenas quanto aos crimes de
guerra. Lombois, ob. cit., pp. 150 e segs. considera que não se manteve, depois da Nuremberga e de Tóquio, a
vontade da sociedade internacional de criar nornas internacionais conformes a esses julgamentos; Oehler,
Internationales Strafrecht, 1975, p. 552, reconhece haver hoje uma frente ampla («weite Front»), reconhecendo as
Incriminações de Nuremberga e de Tóquio como direito internacional comum.
84
Pelo que também não se poderá defender com base na excepção do nº 2 do art. 29º a constitucionalidade do
agravamento da pena in malam partem, operada pela Lei nº 1/77. Já não assim, se se tivesse seguido o exemplo
do direito penal alemão depois da guerra, que criou novas Incriminações retroactivas, correspondentes aos crimes
contra a humanidade de Nuremberga (lei nº 10 do Conselho de contrôlo aliado) ; cfr. hoje os §§ 220 a (genocídio),
234 a (rapto político internacional), 241 a ( denúncia política ) ; 130 ( difamação de partes da população) do Código
Penal alemão, os quais não têm, aliás, efeito retroactivo.

32
33

15. Quais são os critérios de determinação das previsões legais de crimes, que
satisfazem a exigência de «definição» do crime da alínea e) do art. 106º ?
Que alguma determinação terá que haver, resulta já dos princípios da legalidade das
penas e da conexão entre crime se a lei que a impõe não determinasse com suficiente segurança
os pressupostos genéricos a que está ligada. Previsões legais vagas, ou de outro modo
indeterminadas são um modo de desvirtuar a função de garantia da reserva de lei e do princípio
da legalidade por inteiro. Isto vale tanto para os crimes, como para as contravenções, como para
os pressupostos das medidas de segurança.
Por outro lado, uma total determinação é impossível devido à própria natureza da
linguagem. Uma enumeração demasiado casuística multiplica as lacunas e tende a ser
contraproducente, por dificultar a determinação do que é essencial em cada caso. Com efeito, o
caso concreto nunca é um puro facto, mas uma unidade de sentido socialmente relevante mais
ou menos complexa e normalmente integrada por elementos culturais difíceis de definir. Para
o descrever, a previsão legal contém muitas vezes expressões que não se deixam reduzir a
conceitos precisos. Assim será quando a lei se serve de noções de vida social típicas, isto é, de
contornos um tanto vagos mas em que é determinante uma certa imagem ou ideia de conjunto,
como «lugar ermo» (arts. 343º, § 1º, 435º, nº 1 do Código Penal) , «miserável» (art. 399º, nº 3)
, «sedução» (art. 392º) , «corrupção ou devassidão» (arts. 405º, 406º) , «rigor» (art. 293º), etc.
O mesmo acontece com o recurso a valarações vigentes na sociedade e implícitas em conceitos
normativos como «pudor» (art. 390º), «honestidade» (art. 390º), «fim honesto» (arts.395º,
396º), «honra e consideração» (art. 407º) , «imperícia, inconsideração, negligência» (art. 368º)
; bem como com a remissão para todo um sistema de normas: «omissão voluntária de um dever»
(art. 2.0), «ultrage à moral pública» (art. 420º), «legitimamente» (art. 329º), «facto ilícito» (art.
368º, § único), acto «a que a lei o não obrigar» (art. 187º) , «coisa que lhe não pertença» (art.
421º); e até com simples conceitos de graduação, do género de «veemente» (art. 393º) . Uma
forma de combinar a essencialidade da descrição com a sua maior concretização é a técnica
legislativa dos exemplos de regra: a enumeração exemplificativa de hipóteses de menor
generalidade que acompanha a regra mais geral 85 . Mas as dificuldades de princípio mantêm-
se: a indeterminação das previsões legais é o «calcanhar de Aquiles» do princípio da legalidade.

85
Cfr. Maiwald, «Bestimmtheitsgebot, tatbestandliche Typisierung und die Technik der Regelbeispiele»,
Festschrift fiir W. Gallas, 1973, pp. 136 e segs.; Wessels, «Zur Problematik der Regelbeispiele fiir «schwere» und
«besonders schwere» Fälle», Festschrift far R. Maurach, 1972, pp. 295 e segs.

33
34

No entanto, se é difícil sustentar a inconstitucionalidade dos artigos do Código Penal que se


acabaram de mencionar, nenhuma dúvida haverá sobre a inconstitucionalidade da seguinte «lei»
da república dos conselhos de Munique de 1919: «toda a violação dos princípios
86
revolucionários será punida. A espécie da pena fica ao livre critério do juiz» . Trata-se, pois,
de uma questão de grau que transforma numa questão de qualificação: a famosa mudança de
quantidade em qualidade.
Critérios formais 87 não ajudam a decidir convenientemente do mais a do menos. A letra
da Constituição não é, só por si esclarecedora. Já vimos que a alínea e) do art. 167º" implica
uma certa determinação dos pressupostos das penas e das medidas de segurança, compatível no
caso das contravenções e, parece, no das medidas de segurança, com a sua parcial determinação
por regulamentos delegados. Mas a definição dos crimes, como a da medida máxima das penas
e medidas de segurança terá de fazer-se em lei da Assembleia da República (ou fonte
equiparada) . Os nºs 3 e 4 do art. 29º referem-se genericamente às penas e medidas de segurança
privativas da liberdade, implicando uma certa determinação dos pressupostos delas; mas a parte
final do nº 4 também se refere às leis penais, sem distinção. Finalmente o nº 1 do mesmo artigo
refere-se apenas à declaração da acção ou omissão «criminalmente» punível - excluindo as
contravenções- e à fixação dos pressupostos das medidas de segurança privativas de liberdade.
Falamos aqui da referência literal, bem entendido. Se a estas diferenças literais
correspondessem diferenças de níveis de determinação das previsões legais teríamos: primeiro,
os crimes: exige-se definição em lei formal (art. 167º, alínea e» e declaração da acção ou
omissão como punível (art. 29, nº 1) ; segundo, os pressupostos das medidas de segurança

86
Apud JESCHECK, ob. cit., p. 102.
87
Nos autores italianos encontram-se vá.rios destes critérios. Alguns distinguem entre reserva relativa ( ou «da
lei» : só obriga à definição dos princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos) e reserva absoluta (ou «de lei»:
obriga à definição integral). No direito penal haveria reserva absoluta, mas só de «modo de disciplina», não de
«campo de matéria» (ou seja, por grupos de bens jurídicos) (Spasari, Diritto penale e costituzione, 1966, pp. 15 e
segs.; Pagliaro, «Legge penale», Enciclopedia del diritto, XXIII, 1973, p. 1048) . Assim «o legislador reservou-se
de modo absoluto, a conexão entre um certo ilícito e a respectiva sanção penal; mas não fez outro tanto no que
respeita à determinação de todos os aspectos do facto incriminador» (Pagliaro, ibidem) : esta última pode ser feita
por conceitos vagos ou normativos ou por delegação normativa. inclusive por leis penais em branco (mesmo para
os crimes! ), que só indiquem o limite máximo da pena. Petrocelli, «Norma penale e regolamento» (1959), Saggi
di diritto penale, 1965, pp. 159 e segs., chega à mesma conclusão por considerar que as prescrições particulares
(regulamentos) «a que a obrigação de obediência se refere são um pressuposto de facto, não um elemento
normativo integrador do preceito penal». Bricola, ob. cit., pp. 250 e segs., fala de uma «reserva de carácter refor-
çado», i. e., só o legislador primário pode prover, e com limites, neste caso formais: o art. 25º, nº 2 da Constituição
italiana «vincula o legislador ordinário a adoptar uma certa técnica - taxativa - de previsão». No mesmo sentido,
GRASSO. Il princípio «nullum crimen sine lege nella constituzione italiana, 1972, p. 76 crítica a expressão
reserva de lei, que só com um «significado impróprio» se aplicaria ao principio da legalidade. Mas ao exigirem
carácter taxativo para todas as previsões penais, estes dois últimos autores propendem a exigências incompatíveis
com toda a prática constitucional Italiana.

34
35

privativas de liberdade,: terão de ser fixadas (art. 29º, nº 1) ; terceiro, as contravenções e as


medidas de segurança não privativas de liberdade: terão que ser determinadas na medida
exigida pela «definição» e «cominação» das penas e medidas de segurança (art. 167º, alínea e»,
que inclui a determinação do carácter mais ou menos favorável do seu conteúdo (art. 29º, nº 4
in fine). Mas são os critérios de determinação em cada caso realmente diferentes ? É pergunta
a que só a exegese de cada preceito permite responder .
Pode, contudo, desde já dizer-se que uma diferenciação é, em princípio, justificada, uma
vez que a uma maior ameaça dos direitos individuais deverá corresponder uma maior garantia.
É um princípio da proporcionalidade entre a gravidade da sanção penal e o grau da garantia.
Ora as penas dos crimes, as medidas de segurança privativas da liberdade, as restantes medidas
de segurança e as penas de contravenções representam uma série de gravidade decrescente. Este
princípio implica, nomeadamente, combinado com o já dito :

- que o limite máximo das medidas de segurança restritivas de liberdade é mais


baixo do que o limite máximo das penas ;
- que as penas das contravenções serão menos graves do que as penas
comparáveis de crimes;
- que a determinação de um crime será a máxima exigível, o que deverá julgar-
se consoante o tipo de crime, mas nunca será inferior à que atrás (nº 14) se exigiu
para as contravenções e os pressupostos das medidas de segurança;
- que as medidas de segurança privativas de liberdade têm que ter pressupostos
«fixados» com rigor não inferior ao exigível para as contravenções e para os
pressupostos das restantes medidas de segurança ;
- que não há normas penais em branco, isto é, puramente remissivas, para
nenhum tipo de pressuposto ;
- que os elementos constitutivos do facto típico (tipo de garantia) de um crime
constarão apenas de lei formal; - que o limite máximo da sanção penal aplicá-vel
sempre constará de lei formal 88 .

88
Os decretos e regulamentos podem prever penas (ou medidas de segurança) ou escalas de pena (ou de medidas
de segurança) abaixo desse limite, mas não se pode atribuir a autoridades administrativas o poder de graduar a
aplicação de sanções penais ( nomeadamente para o efeito do pagamento voluntário de multa) : arts. 27º, nº 2 e
213º, nº 3 da Constituição. Assim, já no domínio da Constituição de 1933, Ac. da Rel. de Lisboa de 4.5.1938, Gaz.
da Rel. de Lisb., 52, p. 76.

35
36

Tudo o que se disse - e dirá - acerca das normas que estatuem penas e medidas de
segurança se aplica as normas que estatuem efeitos penais da condenação penal (arts. 75º, nº 1,
76º, 77º e 78º do Código Penal) , que não são mais do que penas 89.

16. Dos arts. 106º alínea e) e 29º, nºs 1, 3 e 4 da Constituição, e dos arts. 5º, 18º, 54º,
85º e 34º do Código penal deduz-se que as fontes permitidas de direito penal regulam ex-
clusivamente a fundamentação positiva de penas e de medidas de segurança. Neste sentido se
diz que o direito penal não tem lacunas, tem carácter fragmentário, é uma ordem jurídica com-
pleta ou fechada. Trata-se, pois, de uma proibição de integração da lei penal, que tem
exactamente o mesmo âmbito que o assinalado atrás ao princípio da legalidade (nº 13) 90 pelos
mesmos fundamentos. Fundamento especial da proibição de integração é, 'além do mesmo
princípio democrático e representativo que fundamenta a reserva de lei, a consideração de
política criminal de que o julgamento a partir e sob a impressão emocional do caso concreto
não garante a distância - e racionalidade que a apreciação abstracta pelo legislador facilita 91.
A proibição da analogia (nulla poena sine lege stricta), como modo de integração de
lacunas, é uma mera consequência. É claro que outros métodos de integração de lacunas, como
o recurso à criação livre do direito «dentro do espírito do sistema» (art. 10º, nº 2 do Código
Civil) , aos princípios gerais de direito ou ao direito natural, são proibidos a fortiori.
Nada disto veda a possibilidade de raciocínios por analogia na aplicação da lei penal.
É um raciocínio por analogia aquele em que, da semelhança entre certo facto a considerar e
outro facto previsto na lei, se deduz que valem para o primeiro as consequências que a lei estatui
para o segundo. Ora nenhum trabalho interpretativo teleológico, que atenda aos fins e ao sentido
do preceito e que admita um progresso no conhecimento, dos casos mais evidentemente
previstos para os mais duvidosos, se pode passar de raciocínios por analogia, baseados na seme-
lhança entre os casos a considerar e outros casos reconhecidamente abrangidos pelo preceito.
Tais raciocínios são apenas um meio de interpretação.

89
Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, II, 1961, p. 181.
90
É a doutrina comum: Beleza dos Santos, Direito Criminal , (ed. Hernâni Marques), 1936, pp. 155 e segs.;
Cavaleiro de Ferreira, Lições cit., p. 93; Eduardo Correia, ob. cit., I, p. 149 (que parece incluir a matéria de
justificação e exclusão da culpa: cfr ., porém, p. 435 e vol .II, 1965, p. 11). Figueiredo Dias, o Problema da
Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 1969, p. 348 limita a proibição de analogia a todos os elementos
constitutivos do tipo-de-garantia, parecendo excluir as circunstâncias agravantes ( cfr., porém, Direito Penal,
1975, p. 92).
91
Assim: Grünwald, lug. cit., pp. 135; Jescheck, ob. cit., p.106.

36
37

O art. 18º que parece implicar o contrário, deve antes interpretar-se do seguinte modo:
a proibição de analogia da primeira parte do artigo só tem lugar quando não se verifica a
hipótese da segunda parte, isto é, quando não «se verifiquem os elementos essencialmente
constitutivos do facto criminoso, que a lei penal expressamente declarar». Por outras palavras:
a «indução» por paridade ou maioria de razão» é proibida para integrar, mas é indispensável
para interpretar.

17. A proibição da retroactividade da lei penal (nulla poena sine previa lege) é uma
aplicação do princípio da legalidade consagrada no art. 29º, nºs 1, 3 e 4 e nos arts. 5º e 6º do
Código Penal. Que a lei penal não se aplica a factos anteriores à sua entrada em vigor, foi a
primeira veste do nosso princípio, o primeiro fito da sua proclamação triunfante pelo
liberalismo revolucionário da segunda metade do séc. XVIII. A sua história e fundamentação
identificam-se com as do princípio da legalidade em geral. Não é também uma consequência
do princípio democrático e representativo, como a reserva de lei e a proibição de integração,
pois representa uma limitação do próprio poder legislativo. Mas a consideração de política
criminal que já vimos relevar na proibição da analogia, torna-se aqui particularmente forte.
Trata-se, em especial, de evitar leis ad hoc - como eram os bills of atteinder -, que podem ser
ditadas por emoções de momento ou objectivos particulares dos detentores do poder político e,
como tais, são facilmente injustas. Como já dizia o nosso Lopes Praça: é preciso que as leis
(penais) «sejam previamente fixadas no meio da reflexão fria e imparcial; criar a competência
e as leis depois do facto é substituir à razão a paixão, à ordem prudencial o arbitrário, à
imparcialidade a suspeita e a vindicta» 92 .
Momento relevante para decidir da retroactividade, além do momento da entrada em
vigor da lei, é o da verificação do facto criminoso, ou tempo da prática do crime. Para tal efeito,
nas palavras do art. 3º da Proposta de lei nº 117/1 da Revisão do Código Penal (Parte Geral) ,
«o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão,
deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha
93
produzido» . Nos crimes continuados e nos crimes duradouros ou permanentes (como a

92
Estudos sobre a Carta Constitucional..., 1878, I, p. 40. Assim, por último: Grünwald, lug. cit., p.17 ;Jescheck,
ob. cit., pp. 108-109.
93 Diário da Assembleia da República, 1977, p. 4926 ( 9).

37
38

rebelião armada - art. 168º do Código Penal; o cárcere privado: art. 330º) é todo o tempo da
acção e/ou omissão 94.
A proibição da retroactividade abrange também a retroactividade da agravação da pena
ou medida de segurança, como deriva dos princípios e expressamente consagra o art. 29º nº 4
da Constituição.
Pode perguntar-se se o artigo 29º, n.ºs 1, 3 e 4 pretende reduzir a garantia constitucional
de não retroactividade das sanções penais, que na Constituição de 1933 se estendia a todas as
medidas de segurança (art 8º, nº 9) , às medidas de segurança restritivas da liberdade. Em favor
desta tese, além da letra, poderia invocar-se o argumento que as medidas de segurança são
dominadas pelo princípio da utilidade ou conveniência da medida, pelo que deveriam aplicar-
se sempre que útil ou conveniente, se necessário retroactivamente. Com este argumento o
Tribunal Federal Alemão (BGHSt 24, p. 106) e parte da doutrina alemã têm considerado
constitucional o § 2º, secção VI do Código Penal alemão, que manda aplicar às medidas de
95
segurança a lei em vigor no momento da sentença . No direito português só não seria assim
quanto ás medidas privativas da liberdade, devido à importância constitucional do direito de
liberdade (art. 27º). Contra, deve lembrar-se que o principio da legalidade se funda no sacrifício
dos direitos, que resulta da aplicação não só das penas como de todas as formas de reacção ao
96
crime de gravidade semelhante . E que as medidas de segurança se fundam também numa
relação de justiça distributiva, que inclui o princípio da necessidade ou máxima restrição da
medida de segurança 97. A inibição temporária ou definitiva de exercer a profissão ou mesmo
de conduzir podem ser muito mais gravosas dos direitos individuais do que qualquer multa ou
mesmo a prisão.

5. A proibição da interpretação extensiva

94 Totalmente irrelevante é o momento da instauração do processo penal, a que se refere o art. 3º da Lei nº 1/77,
que é retroactiva, não por se aplicar aos processos pendentes, mas por punir as actlvtdades da extinta PIDE/DGS.
95 Assim: MAURACH, ob. cit., pp. 139 e seg.; Tröndle, lug. cit., § 2 nº 73.
96 Com este argumento, são pela inconstitucionalidade, apesar de o § 103 II do Grundgesetz só se referir às penas:

Baumann, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 7ª ed., 1975, p. 90; Stratenwerth, Strafrecht, Allgemeiner Teil I, 2ª ed.,
1976, p. 39; Schreiber in Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch, I, 2ª ed., 1977, n. 13 antes do § 3 (que
citam: Diefenbach, Die verfassungsrechtliche Problematik des § 2 IV StGB, diss. Frankfurt, 1966). Jescheck, ob.
cit., p. 110, nº 35 pronuncia-se pela constitucionalidade, embora considerando a solução inconveniente.
97 Neste sentido: Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, II, pp. 190 e segs.

38
39

18. A doutrina e a jurisprudência portuguesas 98 têm retirado uma proibição da


interpretação extensiva da 2ª parte do art. 18º do Código Penal, onde se diz ser «sempre neces-
sário que se verifiquem os elementos essencialmente constitutivos do facto criminoso, que a lei
penal expressamente declarar». Ora a exigência da declaração expressa também consta do nº 3
do art. 29º ( «expressamente cominadas» ) , pelo que pode perguntar-se se a actual Constituição
também consagra a proibição.
Note-se que a doutrina italiana e suíça, perante preceitos semelhantes dos Códigos
penais italiano (art. 1º: «crime... expressamente previsto» ) e suíço ( art. 1º: «facto... a que a lei
expressamente comina uma pena» ) têm considerado permitida a interpretação extensiva99 .
Mas, por outro lado, em países onde só há proibição de analogia, como na Alemanha, a
jurisprudência e a doutrina dominante entre os penalistas estabelece como limite entre inter-
pretação e analogia «o sentido possível das palavras» 100. Ora o sentido possível das palavras é
precisamente o limite até ao qual pode ir, segundo a doutrina portuguesa, a interpretação
declarativa 101 .
Deve entender-se que uma interpretação que vá além do sentido possível das palavras é
incompatível com o fundamento de segurança jurídica do princípio nullum, crimen nulla poena
sine lege, embora não esteja, em rigor, abrangida por ele. Com efeito, entre o sentido possível
das palavras e «o mínimo de correspondência verbal» a que se refere o nº 2 do art. 9º do Código
Civil, há ainda um espaço a ser percorrido pela interpretação. A interpretação que, embora tendo
na lei um mínimo de correspondência verbal, excede o sentido possível das palavras de lei, é
interpretação extensiva e deve considerar-se proibida pelo art. 18º do Código Penal e pelo art.
29º da Constituição.
Sendo, nestes termos, a proibição da interpretação extensiva inteiramente justificada,
não se vê porque limitá-la às «normas incriminadoras»102, isto é, as disposições que indicam os
elementos constitutivos essenciais do crime - ficando de fora as disposições relativas às

98 Beleza dos Santos, «Interpretação e Integração das Lacunas da Lei em Direito e Processo Penal», Boletim da
Faculdade de Direito, XI (1929), p. 108; Marcello Caetano, ob. cit., pp. 121 e segs.; Cavaleiro de Ferreira, Lições
cit., p. 99; Eduardo Correia, ob. cit., I, pp. 142 e segs.; Figueiredo Dias, Direito Penal cit., p, 91.
99 Vejam-se, por ex., os autores Italianos citados por Beleza dos Santos, lug, cit., p, 1l1 n. 1 e Germann, ob. cit.,

pp. 58 e segs.
100 Por todos: Jescheck, ob. cit., p. 126; Engisch, Introdução ao pensamento jurídico ( trad. Baptista Machado ) ,

1965, pp. 106 e segs.


101
Cfr., por ex., Guilherme Moreira, Instituições do Direito Civil, I, 1907, p. 45: «a interpretação é extensiva
quando, exprimindo as palavras da lei menos que o pensamento do legislador, se amplia a sua significação a factos
que nela não estão compreendidos ...»
102 Beleza dos Santos, lug. cit., p.110 n. 1; assim também Cavaleiro de Ferreira, Lições cit., p. 98.

39
40

circunstâncias agravantes ou às penas - ; ou até apenas ao «momento da incriminação» 103, para


o fim do enquadramento numa disposição que estabelece uma pena mais grave.
Nada justifica dar-lhe outro âmbito que o das proibições de analogia e de
retroactividade.

6. A retroactividade da lei penal mais favorável

Tendo a proibição da retroactividade uma função de garantia, de segurança dos direitos


individuais frente às sanções penais, não tem sentido aplicá-la a leis penais mais favoráveis em
concreto para o delinquente: a lei penal mais favorável é retroactiva (art. 29º, nº 4 da
Constituição, art. 6º do Código Penal) .
Por outro lado, da não-retroactividade da agravação da pena se deduz a ultra-actividade
da lei penal anterior mais favorável. Por consequência, sucedendo-se várias leis, aplica-se sem-
pre a mais favorável de todas no caso concreto, mesmo que já tenha sido revogada ( art. 6º, 2ª
excepção do Código Penal). É a única solução lógica, além de que corresponde à doutrina
tradicional portuguesa 104, pelo que deve repudiar-se a sugestão de restringir o nº 4 do art. 29º
às leis penais mais favoráveis em vigor 105, embora essa interpretação seja compatível com a
letra da Constituição.

103 Eduardo Correia, ob. cit., I, p. 144; Figueiredo Dias, ibidem.


104 Veja-se o relatório da Reforma de 1884, que introduziu o art. 6º do Código Penal, em Luis Osório, ob. ctt., vol. I, p. 45.
105 Beleza dos Santos, Direito Criminal cit., pp. 189, 194, considera esta solução a menos absurda.

40

Você também pode gostar