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Introdução

Caderno de DIP

O presente “caderno” é foi utilizado para o meu estudo de DIP no quarto ano da
licenciatura de Direito da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa. Não deve, nem é
recomendado, ser utilizado para o estudo da cadeira noutras faculdades uma vez que
acompanha de perto o programa lecionado no ano de 2019 pelo Professor Luís Barreto Xavier.
O caderno tem por isso como fonte os ensinamentos transmitidos por este professor em
sede de aula. O caderno tem ainda como fonte várias obras bibliográficas entre as quais o
Comentário Ao Código Civil da Universidade Católica Portuguesa e o manual Lições de Direito
Internacional Privado de A. Ferrer Correia.
No final do caderno existe um índice.

Bom estudo.

A disciplina de DIP

Esta disciplina é de direito nacional português, mas de DIP, depois vamos ver o que
significa e veremos que este DIP é internacional não apenas pelo objeto, mas também em
grande medida pela fonte, sendo que hoje é uma disciplina que fundamentalmente resulta do
DUE, que está assumida pelas instituições europeias com regulamentação. Isto significa que, do
ponto de vista metodológico, as coisas não se passam como noutras cadeiras, porque há
complexidade que resulta da diversidade de fontes. Continuam a existir fontes de Direito
interno, como alguns artigos do Código Civil, mas cada vez mais fontes de Direito da União
Europeia dominam.
A conjugação de todas as fontes tem a sua complexidade, assim como os seus institutos. É
preciso questionar as soluções, porque até podem surgir soluções melhores do que aquelas que
temos ou do que é defendido pela jurisprudência ou doutrina.

A nossa disciplina tem ainda muita margem para evolução, no sentido de que as soluções
jurídicas não estão codificadas de forma estável, mas ainda comportam espaços para a nossa
criatividade no sentido de encontrar melhores soluções para os problemas que nela se
encontram. Isto significa que pelo caráter formativo que a disciplina tem que ter, vai exigir um
esforço de reflexão e pensamento, que é importante. Mais importante do que dizermos o que
as coisas são, é porque é que as coisas são assim.
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Primeira noção de DIP

O direito internacional privado1, é o ramo da ciência jurídica onde se definem os


princípios, se formulam os critérios, se estabelecem as normas a que deve obedecer a
pesquisa de soluções adequadas para os problemas emergentes das relações privadas de
carácter internacional.2 São essas relações (ou situações) aquelas que – expressão de uma
atividade jurídica que se não comporta nas fronteias de um único Estado – entram em contacto,
através dos seus elementos, com diferentes sistemas de direito. Não pertencem a um só
domínio ou espaço legislativo, mas a vários. São relações plurilocalizadas.

Por todo o lado no mundo o Homem tem as mais variadas relações entre si, que não se
contentam com apenas o pouco território delimitado pelas fronteias de um Estado e extravasam
para todo o planeta, desde relações comerciais a relações familiares. Em todo o lugar há negócios
a acontecer entre empresas de diferentes nacionalidades e casamentos entre sujeitos de países
diferentes. É desta sociedade de indivíduos à escala mundial que nascem os problemas jurídicos
mais diversos do qual tem de tratar o DIP. Vejamos no próximo capítulo.

1 A partir de agora tratado por DIP neste caderno.


2Veremos nas próximas páginas uma definição mais concreta. Mas adiantado: No fundo as “soluções e
critérios” adequadas a resolver os problemas emergentes da relações privadas internacionais serão leis, e
por isso é equivalente dizer que o conceito de DIP: “O DIP é o ramo do direito que procura formular os
princípios e as regras conducentes à determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das
relações privadas internacionais”
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Relevância, Objeto, Âmbito, Valores, Princípios e Fontes do


Direito Internacional Privado

Problemas fundamentais suscitados pelas situações


absolutamente internacionais

Os problemas fundamentais que as situações que são objeto do DIP criam integram-se
em 3 categorias: direito aplicável (conflito de leis), competência jurisdicional internacional e
finalmente reconhecimento de sentenças estrangeiras. Podemos dividir estas 3 categorias em
Direito dos Conflitos e em Direito Processual Internacional Privado.

Se o DIP vai servir para responder a situações jurídicas privadas e plurilocalizadas, isto
é, situações que têm elementos de conexão com mais do que uma Ordem Jurídica, então
ficam de fora do âmbito deste ramo tanto as situações jurídicas puramente internas como as
situações de direito público.

Obviamente nem todas as situações jurídicas conectadas com mais do que uma Ordem
Jurídica vão ser objeto de DIP. Se o hacker Rui Pinto3, que reside na Hungria, tendo
nacionalidade portuguesa invadir contas de e-mail contra ele pode correr um pedido de
extradição das autoridades portuguesas, por ter praticado vários crimes. Esta situação, apesar
de jurídica, não é um problema de DIP, é uma situação jurídica de natureza pública, devendo
ser tratada pelo Direito Público, mais concretamente, pelo Direito Penal. Não está em causa
verdadeiramente uma relação jurídica privada entre o Rui Pinto e outra entidade privada, mas
está em causa saber se o poder punitivo do Estado português pode ser exercido sobre este
cidadão que se encontra no estrangeiro. Esta relação jurídica é entre o cidadão e o Estado,
portanto, é uma situação de Direito Público4, em que o Estado intervém como autoridade

3https://observador.pt/2019/07/24/hacker-rui-pinto-suspeito-de-invadir-o-email-do-juiz-carlos-
alexandre/
4Desde do primeiro ano que aprendemos a necessidade entre distinguir direito privado do direito
público, distinção que permite estudar melhor a ordem jurídica, que é una, mas se divide por secções ou
ramos. Há vários critérios para tentar separar o direito privado do público, mas os três principais são: 1)
Critério do interesse: em que o direito público é todo aquele que visa satisfazer interesse públicos e o
privado satisfazer interesses particulares. Este critério é claro insustentável como defendia Oliveira
Ascensão, não há uma linha radical de fratura entre os interesses públicos e privados, o interesse público
corresponde pelo menos indiretamente aos interesses particulares, por sua vez os interesses particulares
são protegidos porque há um interesse público nesse sentido. 2) Critério da Qualidade dos Sujeitos:
público é o direito que regule situações em que interviesse o Estado, ou em geral, qualquer ente público, e
privado era o direito que regulasse as situações dos particulares. Este critério também falha a partir do
momento em que o Estado pode atuar como um ente particular, por exemplo nas compras e vendas. 3)
Critério da Posição dos Sujeitos: Direito será público se constitui e organiza o Estado e outros entes
públicos, sendo Direito Privado aquele que regula as situações em que os sujeitos estão em posição de
paridade. Este é o critério adotado por Oliveira Ascensão.
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pública, seguindo o Critério da Posição dos Sujeitos. A situação jurídica tem por isso desde logo
ser privada.

Quanto a ser uma situação plurilocalizada quer isto dizer quem tem conexões com mais
que uma ordem jurídica, sejam elas resultantes da nacionalidade, domicílio dos sujeitos
envolvidos, lugar onde devem ser executadas as respetivas obrigações ou ainda do respeito de
fenómenos de comercio jurídico internacional. O DIP trata portanto das situações jurídicas:

1) Privadas
2) Plurilocalizadas ou Internacionais

Não seria boa solução sujeitar esta situações internacionais sempre e sem mais ao
exame do direito local. Por várias razões:

1) Aplicar sempre e sem mais a lex fori materialis a factos que sejam estranhos, que
não tenham uma conexão, violaria ostensivamente um indiscutível princípio do
direito, que é aquele que nos diz que a norma jurídica, é uma norma reguladora do
comportamento humano – visa coibir ou incentivar e em qualquer caso
condiciona – não é por sua natureza aplicável a condutas fora do alcance do seu
preceito.

2) Além de vazar um dos fins do Direito como vimos supra, a solução seria ainda
plenamente injusta. Os sujeitos devem conseguir saber com certa previsibilidade
que legislação é suscetível ser lhe aplicada. Já estudamos isto quando no primeiro
ano referimos o Princípio da Irretroatividade das leis a propósito da aplicação da lei
no tempo. O mesmo vale aqui.

3) A solução de aplicar sem mais a lex fori seria ainda uma ofensa aos direitos
adquiridos, ou quando menos, uma ofensa às expectativas legitimamente
adquiridas.

4) Além disto, aplicar sempre o direito local levaria muitas vezes a soluções
insatisfatórias. Por exemplo: duas pessoas de nacionalidade búlgara residem em
Sófia, pretendem contrair casamento em Portugal. Porém há entre elas uma relação
de parentesco que as impede, segundo o direito búlgaro, de contrair matrimónio. Se
a autoridade portuguesa competente lhes atendesse a sua pretensão, sendo que o
grau de parentesco entre elas cá não é impedimento, o casamento estaria desde
logo votado a uma total ineficácia jurídica no estado a que todas as partes da
situação pertencem. A solução seria inútil.

5) Ademais os Estados formam uma comunidade, e o reconhecimento e o respeito


mutuamente se devem tributar bem poderão abranger as respetivas instituições
civis. Podemos precisar que a sentença proferida nos tribunais portugueses seja
reconhecida e executada noutro país. Reconhecer uma sentença estrangeira ou
reconhecer uma sentença de determinado país em país diferente, e para isso
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os países não podem unilateralmente decidir aplicar a sua lei e esperar que o resto
da comunidade mundial aceite.5

Por estas razões nada nos garante que, se vamos resolver determinado problema
internacional num tribunal português, devamos aplicar necessariamente o Direito
português. Os tribunais portugueses podem aplicar direito estrangeiro e até o devem fazer
quando as regras de conflitos do DIP assim o ditam.
Portanto, quando as situações são privadas plurilocalizadas (internacionais) - põem em
contacto mais do que uma Ordem Jurídica - a priori, não sabemos nem podemos saber, sem
recurso às regras de conflitos de leis, que jurisdição é aplicada para resolver este caso. É disto
que se ocupa o Direito de Conflitos de Leis.6

Situações Absolutamente Internacionais, Relativamente


Internacionais e Puramente Internas

Por fim, para delimitar o objeto do nosso curso este semestre, importa estabelecer uma
distinção entre:

1) Situações puramente internas – situações que se desenrolam na órbita do


Estado do foro onde estão a ser analisadas. Não têm qualquer relevância para
o Direito Internacional Privado. Por exemplo: contrato de empreitada
celebrado entre 2 portugueses, que residem habitualmente em Portugal, a obra
deve ser realizada em Portugal, não há elementos de estraneidade. Esta situação
está fora do âmbito de interesse da nossa disciplina, devendo resolver-se de
acordo com o Direito das Obrigações português.

2) Situação relativamente internacional – situações que apenas são


internacionais por se situarem na órbita de um Estado estrangeiro, não
sendo internacionais por se localizarem em diferentes países. São situações
conectadas com apenas uma ordem jurídica, simplesmente essa ordem
jurídica é uma ordem jurídica diferente da ordem jurídica onde se situa o
observador. Por exemplo: cidadão francês celebra um contrato de empreitada
com um empreiteiro francês para executar uma obra em território francês. O
empreiteiro e o dono da obra são residentes habituais em França. Mas isto não
significa que, de facto, em certas hipóteses, sobretudo num momento posterior,
não possa haver alguma relevância para o Direito Internacional Privado destas

5 Notar no entanto que não é diretamente por atenção ao interesse e à soberania dos Estados que as suas
leis civis devem ser reconhecidas e aplicadas além fronteiras, mas sim, fundamentalmente, por atenção
aos interesses dos indivíduos: que destes sobretudo tratamos no âmbito da cadeira de DIP. O
objeto da cadeira não é a relação de soberania entre os Estados, isso fica para o DIPúblico.
6Direito dos Conflitos de Leis sendo o direito que resolve a questão de que lei aplicar entre duas
potencialmente aplicáveis. Caberia aqui tanto a questão de DIP como a questão da aplicação da lei no
tempo. Seria o direito sobre o direito a aplicar.
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situações, por exemplo, admitindo que o dono da obra coloca o empreiteiro em


tribunal porque ele se recusou a terminar a obra. Se o empreiteiro tiver
património em Portugal, se o dono a obra pretende executar esta sentença em
Portugal. Aqui já pode haver uma relevância para o Direito Internacional
Privado, não para a sua vertente de Direito de Conflitos das Leis, mas sim para
o reconhecimento de sentenças estrangeiras. Ou seja inicialmente não
havia dúvida que a lei a aplicar era a lei francesa, sendo uma situação
interna, mas em momento posterior já importa o DIP pois temos
património noutro país.

3) Situações absolutamente internacionais, ou seja, situações plurilocalizadas


– aquelas situações que estão em contacto com mais do que uma ordem jurídica,
em que os seus elementos constitutivos estão situados em mais do que um país
e estas situações são as situações que por excelência cabem dentro do âmbito do
Direito Internacional Privado. Por exemplo: para analisar a validade do
casamento entre os dois sírios não podemos aplicar a lei de um Estado
Americano. Porquê? Não há qualquer elemento de conexão das ordens
jurídicas e por causa das expetativas das partes. Ou seja, no momento em que se
casaram, eles casaram na Síria, residiam habitualmente na Síria, a lei americana
não tem qualquer contacto com esta situação. Seria violador das expetativas que
as partes depositaram na validade da celebração do casamento; assim como no
caso do acidente de viação, o juiz português não pode dizer que no caso vai
aplicar o direito alemão, justificando essa aplicação pelo facto de ter soluções
mais justas.

Princípio da Não Transitividade

Conhecemos o direito intertemporal, o conjunto de regras que estabelecem os critérios


sobre a aplicação das leis no tempo. Qual a regra fundamental em matéria de aplicação da lei
no tempo? A proibição da retroatividade. É assim porque no momento da prática do facto a
pessoa praticou o facto tendo em consideração a lei que era aplicável quando o praticou, e como
já referimos uma das características centrais do direito é o seu poder condicionante para a
conduta das pessoas. O corolário desta ideia é o princípio da irretroatividade da lei, ou seja, não
aplicação da lei futura a casos passados. Este princípio existe porque fazer aplicação
retroativa da lei significaria estar a impor um critério de decisão, eventualmente prejudicando
pessoas, que não sabiam nem podiam contar com a aplicação dessa lei, tinham uma expetativa
mais que legítima. Não podemos aplicar a um facto passado uma lei que não estava em vigor no
momento em que foi praticado.

As coisas passam-se de maneira semelhante na aplicação da lei no tempo e na


aplicação da lei no espaço. Sendo que o DIP é como já vimos exatamente a área do Direito que
trata do problema de que nos ocupamos em Direito Internacional Privado. Também quando
ponderamos a aplicação no espaço de uma determinada lei, não podemos ir para lá do círculo
dos ordenamentos jurídicos que estão em contacto com a situação. Ou seja, o legislador ao
determinar a lei aplicável vai ter que escolher uma das leis que está em conexão com essa
situação e não pode ir para lá dessas leis. Em consequência no Direito Internacional Privado
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encontramos um princípio que é da mesma lógica do princípio da irretroatividade da lei,


desenvolvido pelo professor Baptista Machado, o chamado princípio da não transitividade
das leis.

Este é um princípio de acordo com o qual não pode ser aplicada a uma dada
situação uma ordem jurídica que não tenha no momento da sua constituição qualquer
contacto com essa situação. Qual a razão de ser deste princípio? A ideia de que as regras
jurídicas têm uma vocação normativa e essa vocação normativa só pode efetivar-se quando as
pessoas têm a possibilidade de conhecer e orientar-se por essas mesmas normas. E só se podem
orientar por essas normas se puderem contar com a aplicação dessas mesmas normas. O
professor Batista Machado descobria neste princípio:

1) Dimensão negativa - de acordo com a qual não podemos aplicar as leis que
estão para lá do círculo de leis conectadas com a situação

2) Dimensão positiva - a ideia de que as leis que estão em contacto com a situação
no momento relevante são à partida potencialmente aplicáveis à situação. Se
uma dada situação internacional tem conexões com duas ordens jurídicas, essas
ordens jurídicas são potencialmente aplicáveis à situação e depois cabe ao DIP,
mais concretamente do Direito de Conflitos de Leis, determinar de entre as leis
potencialmente aplicáveis, qual a que efetivamente vai ser aplicável.

Vejamos, o que estamos aqui a argumentar com base na tese de Baptista Machado.
É inegável que existe um grau de parentesco entre o ramo do DIP e o Direito
Intertemporal. Conhecemos já, desde do primeiro ano da licenciatura, as questões relativas à
aplicação da lei no tempo. A questão tanto num caso como noutro é saber, perante um conflito
entre duas leis virtualmente aplicáveis a uma situação, uma lei antiga e uma mais recente, qual
delas se aplicará. Podemos por isso chamar ao Direito Intertemporal, à questão da aplicação da
lei no tempo, um “direito-sobre-direito” por ter como objeto o conflito de leis.
No DIP acontece o mesmo, pelo menos no que diz respeito à parte que trata o conflito
de leis . No DIP temos um conflito de leis, mas em vez de o termo no tempo encontramos este
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conflito no espaço. Há uma questão no DIP que é saber que lei se irá aplicar numa situação com
conexão a vários ordenamentos onde, virtualmente, se poderiam aplicar várias leis. Temo
também um “direito-sobre-direito”, o problema é exatamente o mesmo, mas a equação muda,
em vez de ter a variável “tempo” tem a variável “espaço”.
Baptista Machado defende então que há aqui uma verdadeira analogia ou comunidade
de princípios fundamentais entre os dois ramos de direito: DIP e Direito Intertemporal. O
que poderá levar a concluir que pode existir uma base para uma teoria unitária de um
“Direito dos Conflitos.”8 Assim, nada parece impedir, que com as devidas adaptações que
tem de ser feitas, as soluções num ramo do direito possam ser transportadas para outro, sendo
que não iguais mas analógicos, e por isso é preciso ter atenção a esta adaptação.
O princípio da não retroatividade das leis é uma dessas analogias possíveis, cujo os
fundamentos vêm do desconhecimento da lei futura (que é impossível de prever ou não deve ser
imputável não prever) que a ser aplicadas levaria a uma clara injustiça. As leis, como sabemos,

7O DIP tem a primeira parte que nos vamos focar sobre o conflito de leis, mas também tem uma parte
processual, onde vamos ver a competência internacional e o reconhecimento de setenças.
8 Direito dos Conflitos de Leis. Seria tanto no espaço como no tempo.
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tem de ser publicitadas. A ideia de que os cidadãos devem conhecer a lei que lhes é aplicada
é transportada para o DIP, sendo que se aplicará um princípio nomeado por Batista
Machado como o Princípio da Não Transactividade, com fundamentos idênticos aos do
Princípio da Não Retroatividade. Um veio comum que percorre e liga o direito interporal ao DIP
é o objetivo comum de garantir a estabilidade e a continuidade das situações jurídicas
interindividuais e assim tutelar a confianças e as expectativas dos interessados. Assim, só
deverão ser aplicadas leis de ordenamentos jurídicos cujo o sujeito, no caso concreto, esteja em
contacto.

Os valores da segurança e da justiça material

O principal valor: segurança jurídica

A questão de saber qual é a solução mais justa para a questão da validade do casamento
ou da indemnização que venha a ter lugar não é colocada em primeiro lugar no DIP. A justiça
material dos casos fica normalmente para segundo lugar no que toca ao DIP. Como diz o
professor Ferrer Correia, a “justiça” no DIP é formal. Afinal é um direito sobre o direito e é o
direito que determina aplicável que depois deverá tratar da questão da justiça.
O que nos ocupará são questões anteriores a essa justiça material, porque a justiça
material vai estar subjacente à Ordem Jurídica chamada para resolver o litígio. A determinação
da lei aplicável, por via de regra, abstrai-se da questão de saber qual é lei mais justa, até
porque saber qual é a lei mais justa é algo com dimensão subjetiva, será impossível determinar.
Cada pessoa terá a sua conceção ético-jurídica, e entenderá de forma diferente a mesma
situação. Também não aplicamos a lógica da “lei mais justa” ao decidir que lei aplicar entre duas
em conflito no tempo9, não procuramos entre duas leis diferidas no tempo qual é a mais justa.

Para nós pode não fazer muito sentido, por exemplo, que se estabeleça uma
indemnização com efeitos punitivos para o lesante.10 Esta ideia prevalece em determinados
Estados Americanos, mas para nós não faz muito sentido. Também há diferentes conceções
sobre a família, no Direito português temos existência de herdeiros legitimários, mas isto já não
é assim em todas as ordens jurídicas, no Direito Inglês a liberdade de testar é quase absoluta,
não há tutela de herdeiros legitimários, não será essa a solução mais justa? Deve um estado
obrigar a que os pais deixem a sua propriedade aos filhos?

Os problemas de DIP nascem não apenas do caráter internacional das situações, mas do
facto das Ordens Jurídicas de diferentes países serem diferentes, quanto às soluções materiais.
Ou seja, apesar dos esforços de unificação e harmonização de direito material que existem

9 E uma vez que vale a analogia como já dissemos apoiados na tese de Baptista Machado. Claro, pode haver
fatores de justiça envolvidos. Por exemplo o caso excecional da retroatividade da lei mais favorável
quando se trata de lei penal, podíamos dizer que tem por base uma certa justiça. No entanto não é a
justiça a primeira pergunta que equacionamos ao resolver um caso de aplicação da lei no tempo, é mais a
segurança jurídica.
10Caso em que o montante da indemnização excede o montante dos danos, para efeitos de dissuasão geral
e punição do infrator, como acontece nos EUA.
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em muitos setores, continua a subsistir a divergência entre Ordens Jurídicas.

A principal motivação do DIP não é de encontrar a melhor solução do ponto de vista


do Direito material, mas sim a de encontrar a solução mais adequada tendo em conta a
maior ou menor conexão existente entre a situação e a Ordem Jurídica. Por conseguinte, os
critérios fundamentais para a determinação da lei aplicável hão de ser critérios formais e não
materiais. Têm que ver com uma conexão espacial e não substancial. Portanto, o que é mais
importante no DIP não é a justiça material, mas o outro valor fundamental do Direito, o valor
da segurança jurídica.

Temos que ter presente é que as situações privadas internacionais nascem com uma
característica genética, a natureza de incerteza quanto à lei aplicável. Porque se elas estão
conectadas com uma única Ordem Jurídica é fácil, é essa que vai dar a solução. Mas se nascem
conectadas com mais do uma, então elas nascem sobre a égide da incerteza, não sabemos, a
priori, a solução aplicável.
As regras de DIP visam, por isso, reduzir, tentar eliminar a incerteza quanto à lei
aplicável, tentar chegar à segurança jurídica que decorrerá do facto das pessoas poderem
saber com o que contam, e qual é a lei aplicável, de forma clara. Esse é o principal objetivo do
DIP, promover a segurança jurídica, reduzindo a incerteza dos sujeitos.

Veremos no entanto que, sendo este o objetivo principal, não significa que ele seja
atingido. Assim como o Direito Penal visa evitar que se cometam crimes, mas eles continuam a
ser cometidos. Veremos que entre o ideal de termos segurança jurídica plenamente conseguida e
a realidade há uma distância que existe porque, em grande medida, as regras de DIP não são
comuns a todos os Estados. Cada país tem o seu DIP, o seu modo de solucionar os conflitos
de leis, mas também problemas de conflitos internacionais e os problemas de execução
de sentenças estrangeiras. O que vamos estudar nesta cadeira é o DIP Português, daí logo no
início do caderno termos dito que o DIP não é “internacional” nesse sentido, mas sim nacional.

A primeira conclusão a tirar é que o valor primordial do Direito Internacional


Privado é o valor da segurança jurídica e esse valor vai inspirar uma série
de soluções, mas isto não significa que os valores de justiça material
sejam alheios à nossa disciplina.

A justiça material

Há um instituto que permite tutelar valores fundamentais de justiça material do


estado do foro - a cláusula de ordem pública internacional do Estado Português - uma
cláusula de salvaguarda que in extremis funciona como que um travão de segurança que permite
afastar a aplicação de lei estrangeira quando essa aplicação fosse envolver uma consequência
inadmissível para valores fundamentais do foro, nomeadamente valores constitucionais.
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Exemplos11: o caso de poligamia, vários estados utilizam esta cláusula para não permitir o
casamento homossexual; o caso da tortura quando constasse de cláusula penal de um contrato.
Num contexto sucessório, foi publicado recentemente um acórdão de um caso de um cidadão
britânico que vivia em Portugal e deixou testamento a favor do cônjuge, sendo casado em
terceiras núpcias com uma cidadã estrangeira, deixando-lhe todos os bens e tendo o testamento
sido celebrado em Londres, ficando as 3 filhas portuguesas sem tutela sucessória, o que é
precisamente um caso em que se pode suscitar a cláusula de ordem pública internacional do
Estado português, o tribunal de primeira instância disse que era de aplicar o direito da
nacionalidade do de cujus, ou seja, o direito inglês, que permite testar sem limites, mas as filhas
recorreram para o Tribunal de Relação, invocando a aplicabilidade da lei portuguesa e, caso esta
não fosse entendida, a cláusula de ordem pública internacional do Estado português e este
tribunal entendeu que a lei aplicável era a inglesa, mas que a solução da mesma, deixando as
filhas desprotegidas, seria incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português,
tendo depois a viúva recorrido para o STJ que acabou por determinar que era a lei portuguesa a
aplicável, mas que, mesmo que não fosse, porque a solução da lei inglesa seria incompatível com
a ordem pública internacional do Estado Português seria de aplicar a cláusula de ordem pública
internacional do Estado português. Que mais exemplos temos? Suponhamos que determinada lei
estrangeira prevê que os filhos ou descendentes do sexo masculino sejam beneficiados em
relação às do sexo feminino. Esta solução, discriminatória, é claramente contrária à nossa ordem
pública. São uma série de hipóteses em que temos critérios de justiça material, não,
obviamente, através da diferença entre a solução de Direito português e da lei estrangeira, mas é
uma solução que serve para afastar soluções cujos efeitos seriam completamente violadores de
valores e princípios básicos da nossa Ordem Jurídica. Temos uma intervenção de critérios de
justiça material no âmbito da nossa disciplina.
Temos assim uma série de hipóteses em que, através de critérios de justiça material, se
afastam soluções da lei estrangeira cujos efeitos seriam, no caso concreto, violadores de
valores e princípios básicos da nossa ordem jurídica. Temos aqui uma via de intervenção de
critérios de justiça material na nossa disciplina.

Outra via de intervenção destes critérios será aquela em que a própria determinação
da lei aplicável tem em conta critérios de ordem material: Por exemplo em soluções que
fazem operar o princípio da proteção da parte mais fraca, relativamente a matéria contratual -
certos tipos de contratos como os contratos individuais de trabalho, de seguro ou com o
consumidor, em que encontramos regras que levam a que a própria escolha da lei
aplicável possa ter em conta critérios de tutela da parte mais fraca, tutela do trabalhador,
do segurado ou do consumidor. Há, nesses casos, critérios de determinação da lei aplicável
que são especiais face aos critérios gerais e que vão precisamente tutelar a justiça material, e
tentar evitar que a desigualdade que se pressupõe entre estas partes possa afetar o equilíbrio
contratual – assim, a tutela da parte mais fraca é uma forma de intervenção da tutela
material no campo do DIP.
Ainda outra forma de intervenção de justiça material é aquela que pode aparecer por
intermédio de um outro princípio que é o princípio do favor negotti, ou seja, há casos em que a
determinação da lei aplicável vai ser afetada por um princípio de favorecimento da validade do
negócio: entre duas leis, uma das quais considera o negócio inválido e outra que considera o

11O caso da pena de morte não se suscita porque esse remete para o direito penal e não para o direito
privado.
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negócio válido, vamos optar pela lei que permite salvar a validade e a eficácia do negócio. Há
uma preferência do legislador conflitual pela lei que salva a validade do negócio12, há uma
tutela do comércio jurídico e uma tutela das expectativas das partes que levam a que se prefira
salvaguardar a expressão da vontade das partes sobre uma eventual invalidade que decorreria
de uma das leis.

Em todos estes casos encontramos expressões da intervenção da justiça material no


campo do Direito Internacional Privado, mas ainda há casos de certo tipo de normas, que são
normas materiais, cuja aplicação não está inteiramente dependente das regras gerais de
conflitos, são normas que impõem a sua aplicação tendo em conta a importância que elas
assumem para tutela de certo tipo de interesses, são normas dotadas de um caráter
internacionalmente imperativo, aplicando-se independentemente das regras gerais de
conflitos porque os interesses que tutelam são de tal modo relevantes que elas se devem aplicar
mesmo que a ordem jurídica a que pertencem não seja a ordem jurídica competente. São
normas de aplicação imediata, assim, nem todas as normas materiais de direito privado
resultam ou se aplicam apenas nos casos em que são pertencentes ao ordenamento jurídico
competente de acordo com as regras gerais de conflitos, podendo ser aplicadas por força do seu
caráter internacionalmente imperativo.

Portanto, os valores fundamentais são, por um lado, a segurança jurídica e, por


outro, a justiça material, sendo que a segunda aparece de forma menos frequente, mas pode,
por vezes, prevalecer sobre os critérios de segurança jurídica.

Podemos assim dizer que o valor primordial do DIP é o da segurança e certeza


jurídica. No entanto, a justiça material não fica completamente posta de parte,
manifestando-se em alguns institutos jurídicos e em algumas soluções consagradas
tais como:

1) Cláusula de Ordem Pública Internacional


2) As próprias normas de conflitos que utilizem critérios de justiça
material
3) Princípio favor negotii
4) Normas de aplicação imediata

12Sendo que este princípio, apesar de autonomizado aqui pelo Professor Luís Barreto Xavier, poderia, no
nosso entender, estar incluído nos critérios que a norma de conflitos usa para escolher a lei a aplicar.
Afinal o princípio é apenas uma das guidelines que o legislador usa de forma geral, mas é um critério que o
legislador escolhe ou não acolher na norma de conflitos.
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A europeização do DIP, combate à incerteza.

Uma das vias pelas quais a redução da incerteza opera é pela unificação do Direito de
Conflitos. Essa unificação tem um campo particular no quadro da UE. Como sabemos no DUE
temos como consequência dinâmica do mercado único a ideia de eliminação de barreiras à livre
circulação das pessoas, bens, serviços e capitais. Os órgãos da UE desenvolveram regras
destinadas a eliminar barreiras jurídicas a essas liberdades. Por exemplo, existiriam diferentes
leis aplicáveis aos contratos, aos divórcios, à competência internacional dos Tribunais, etc…

Portanto, entenderam as instâncias europeias que fazia sentido unificar regras de


competência internacional, regras de determinação de direito aplicável e regras de
reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras, ou seja, estabelecer também uma
liberdade de circulação de sentenças como corolário desta ideia de mercado único e de
eliminação de barreiras jurídicas. Dentro deste espaço da UE os objetivos próprios do DIP de
promover a segurança jurídica são mais facilmente obtidos. Quando assim não é, quer porque a
legislação europeia não cobre todas as matérias, quer porque há muitos litígios não abrangidos
pela unificação europeia – por exemplo, porque estão fora da UE – nesses casos, quando não
existem Convenções Internacionais, vamos ter diferentes leis aplicáveis em diferentes países.
A situação de incerteza é mais alta. Por isso também se desenvolveram certos mecanismos para
reduzir a incerteza, como é o caso do mecanismo do reenvio.

Esta é também a razão pela qual em DIP, além de utilizarmos muito os artigos iniciais do
Código Civil, também iremos utilizar muito os regulamentos europeus. Uma vez que Portugal é
Estado-Membro da União Europeia, hoje o nosso DIP não tem apenas fonte nacional. O DIP dos
Regulamentos Europeus é para todos os efeitos Direito Português.

Âmbito do DIP

Os problemas fundamentais suscitados pelas situações absolutamente internacionais


são no fundo três, e sobre esta perspetiva que vamos analisar o DIP neste caderno.

1) o direito aplicável, direito dos conflitos;


2) a competência jurisdicional internacional;
3) e o reconhecimento de sentenças estrangeiras.

Perante as situações que falamos, a primeira questão que se coloca é a de saber qual é
o ordenamento jurídico aplicável, qual a lei aplicável para solucionar estas questões. Perante
estas situações plurilocalizadas, a priori não sabemos nem podemos saber sem recurso às regras
de conflitos de leis qual a ordem jurídica que vai ser aplicada para resolver o caso. É disto
que se ocupa o chamado Direito de Conflitos de Leis, que é o setor central dentro da nossa
disciplina. Este Direito hoje resulta de uma pluralidade de fontes quer nacionais, quer europeias,
quer internacionais.
A segunda questão, é a competência internacional dos tribunais, que é um dos
pressupostos processuais. Se o problema da situação internacional não for resolvido de forma
espontânea ou por via amigável, se não tiver solução por outra via e surgir litígio, é necessário
saber se este litígio pode ou não ser dirimido através do recurso a um tribunal de um
P á g i n a | 13

determinado país. Ou, de forma mais ampla, saber quais os países cujos tribunais são
internacionalmente competentes para dirimir o litígio.
A terceira questão que temos na nossa cadeira é a questão de saber se uma determinada
sentença que é proferida num determinado país pode ou não ser reconhecida e executada num
país diferente. É a questão do reconhecimento e execução de uma sentença estrangeira.

O âmbito do Direito Internacional Privado pode por isso ser dividido em: Direito da
Competência Internacional; o Direito de Conflitos e o Direito do Reconhecimento de
Sentenças Estrangeiras. Ficam excluídos: o Direito da Nacionalidade e o Direito dos
Estrangeiros.

1º - Direito da Nacionalidade, ou seja, o conjunto de regras através das quais as


pessoas adquirem e perdem a sua nacionalidade. Este setor normativo é candidato à
pertença ao DIP, porque:

a) Por um lado, por razões de direito comparado, há vários ordenamentos nos


quais o Direito da nacionalidade é considerado integrante do Direito
Internacional Privado e é estudado no seu âmbito, por exemplo em França.

b) Por outro lado, porque a nacionalidade é um elemento de conexão muito


relevante para o DIP, ainda é o elemento de conexão mais importante no que
toca a relações de natureza pessoal na ordem jurídica portuguesa.

Faz ou não sentido considerá-lo como integrando o Direito Internacional Privado? Nós
estudamos isto em Fundamentos de Direito público, está correto estudarmos isso no
Direito Público? O vínculo de nacionalidade é um vínculo jurídico-político que traduz
a pertença de uma pessoa a um Estado soberano, pelo que é um vínculo de Direito
Público e não de Direito Privado. É verdade que a nacionalidade tem efeitos, a
pertença a um Estado através da nacionalidade tem efeitos de diferente natureza, tem
efeitos jurídico-públicos, jurídico-internacionais (no sentido do internacional público) e
jurídico-privados, mas serão estes últimos os mais relevantes de todos? Não, os mais
relevantes são os jurídico-públicos. A nacionalidade não é apenas um vínculo jurídico-
político, portanto jurídico-público, como os seus efeitos se produzem
fundamentalmente na esfera pública, na medida em que é este vínculo que
determina quem são os cidadãos portugueses, espanhois etc. O que tem relevância
ao nível de direitos políticos, ao nível da proteção diplomática, do âmbito de aplicação de
tratados internacionais e também ao nível de direitos privados, mas estes são
contingentes, não são essenciais à própria noção de nacionalidade, basta uma pequena
alteração legislativa que determine que a conexão da nacionalidade seja substituída por
uma conexão de residência habitual para que caia esta ligação que ainda existe entre
nacionalidade e DIP, o que significa que esta ligação é perfeitamente contingente – já
não é contingente a relação das pessoas ao Estado soberano de que são nacionais. Podem
discordar e argumentar noutro sentido, mas a conclusão que temos é que a
nacionalidade está fora do âmbito do Direito Internacional Privado.
P á g i n a | 14

2º - Direito dos Estrangeiros – é formado pelo conjunto de normas materiais que


definem a condição jurídica concedida em determinados estados aos cidadãos
estrangeiros. Temos um princípio de equiparação, ou seja, os estrangeiros gozam, em
princípio, dos mesmos direitos que os nacionais, havendo a possibilidade de
restringirmos e reservarmos certos direitos aos cidadãos portugueses. Princípio geral o
da equiparação - não está apenas no artigo 14º CC, mas está sobretudo na CRP – 15º
nº1 CRP. O Direito dos Estrangeiros é o Direito que conjuga este princípio geral com
exceções de direitos que os estrangeiros não podem usar ou que estão reservados aos
cidadãos portugueses. Esse conjunto de regras e princípios devem integrar o DIP? Que
direitos são esses que por vezes são negados ao estrangeiro? São direitos de natureza
pública, de natureza privada, ou ambos? São, em regra, de natureza pública (15º nº2
CRP), mas podem ser de natureza privada. De facto, os mais evidentes são de natureza
pública, o acesso a determinados cargos públicos, a capacidade eleitoral ativa ou passiva,
uma série de atos eleitorais e direitos conexos com estes. Mas também há certos direitos
de natureza privada que são objeto de limitações ou restrições ao exercício por
estrangeiros, por exemplo, relativas aos limites estabelecidos ao capital estrangeiro em
certos setores económicos e aí temos também a limitação de certos direitos aos
nacionais, ou a reserva de certas percentagens de capitais aos nacionais - são regras que,
na evolução que houve desde a Antiguidade até agora, se encaminham no sentido da
progressiva eliminação dessas barreiras. Mas, sejam normas do Direito dos Estrangeiros
relativas a direitos públicos ou relativas a direitos privados, verdadeiramente o que aqui
está em causa é ainda a relação dessas pessoas com o Estado soberano, mesmo
quando vedamos o acesso dos estrangeiros a determinados direitos privados, é por
razões de Direito Público ou de natureza pública, para tutela do próprio Estado,
que o fazemos. Portanto, nunca faria sentido que todo o bloco normativo constituído
pelo Direito dos Estrangeiros integrasse o DIP, porque a maior parte dessas regras são
de natureza de Direito Público, mas também não faz sentido fragmentar as regras
relativas a direitos privados sobretudo porque funcionalmente e em termos de
princípios e valores, essas normas estão na órbita do Direito Público, na medida em que
tutelam interesses públicos.

O DIP é um ramo do Direito que não vive isolado, tem conexões muito importantes com o
Direito Constitucional, porque basta pensar na reforma de ‘77 do Código Civil, consequente à
CRP de ’76, que não veio apenas interferir com o conteúdo das regras materiais do Direito da
Família e das Sucessões onde verdadeiramente se projetou, nas normas relativas à igualdade
entre os cônjuges, normas em que foram afastadas discriminações entre filhos nascidos dentro e
fora do casamento, normas que impunham estatutos desiguais para homem e mulher, etc. Mas
isso projetou-se também no Direito Internacional Privado, os vetores constitucionais são
extremamente importantes no Direito Internacional Privado, assim como valores de Direito
Público, o que não significa que se confundam com eles.

Enquanto noção final de DIP podemos dizer que: “o direito internacional privado é o
ramo do direito que procura formular os princípios e regras conducentes à determinação
da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações privadas internacionais, e bem
assim assegurar o reconhecimento no Estado do foro das situações jurídicas puramente
internas, mas situadas na orbita de um único sistema estrangeiro.”
A função precípua do DIP é criar, para as relações jurídicas plurilocalizadas e sujeitas,
uma disciplina que reduza a instabilidade a um mínimo tolerável, uma disciplina capaz de
P á g i n a | 15

garantir a livre circulação dos direitos através de territórios sujeitos a leis diversas, que
assegure a estabilidade e continuidade nas relações jurídicas.

Agora que percebemos a base do DIP podemos avançar no estudo aprofundado deste
ramo jurídico. Vamos neste caderno seguir o método de ensino do Professor Luís Barreto Xavier
que consiste em começar por uma análise, ao lado da parte geral, de algumas das fontes mais
importantes do direito de conflitos em especial e depois do direito da competência internacional
e do reconhecimento de sentenças estrangeiras. Assim acompanhamos os diplomas legislativos
mais importantes e a medida que estudamos estes vamos estudando o DIP de forma geral e não
ao contrário.

Princípios do DIP

Vamos ver como é que o valor da segurança jurídica se encontra concretizado em


princípios de DIP. Estes princípios não são regras, no sentido que não são “lei”, são apenas
guidelines que o DIP utiliza (depois nas suas regras) para alcançar a certeza e segurança
jurídica.

Princípio da Conexão mais Estreita

Uma das vias pelas quais a ideia de segurança jurídica pode ser tutelada é através da
escolha da lei aplicável. Pensando um bocadinho, se fossemos legisladores e quiséssemos tutelar
a segurança jurídica nas relações jurídicas internacionais privadas que critérios podíamos usar?
Perante uma dada situação13, entre as leis potencialmente aplicáveis temos que ter um critério
para escolher. Iriamos legislar uma norma de modo a que se fosse aplicar a lei que se encontre
mais estreitamente conexionada com a situação, ou seja, a ordem jurídica que mais
fortemente esteja conexionada com a situação. Porque é que será assim? Porque é que vamos
escolher a lei mais fortemente ligada à situação? Iriamos aplicar a lei14 mais ligada porque
essa será a lei com que, em princípio, provavelmente, as partes contam. Essa será a lei na
qual as partes, naturalmente, confiaram ser aplicada a dada situação.
Este é o primeiro princípio fundamental de DIP que temos de saber. Decorre,
evidentemente, da segurança jurídica. A lei aplicável deve ser, tanto quanto possível, a lei
mais estreitamente conexionada com a situação.

Este princípio da conexão mais estreita vai operar em três dimensões ou por três vias:

1) Efeito Designativo - (a via mais comum e tradicional) o princípio inspira o


legislador na escolha dos elementos de conexão nas normas de conflitos, e
assim, por exemplo, se estamos a pensar em matérias de estatuto pessoal,

13Já vimos que numa situação privada internacional as leis potencialmente aplicáveis são aquelas com
as quais a situação está em contacto, e apenas essas, portanto não podemos aplicar outras leis que não
tenham qualquer relação com a situação.
14 Lei com maiúscula neste caso. Queremos referir o ordenamento jurídico.
P á g i n a | 16

matérias da capacidade das pessoas, das relações de família ou de


sucessões, são considerados os elementos da nacionalidade e da
residência habitual como os elementos de conexão mais estreita. Há
países que consideram a nacionalidade como o elemento de conexão mais
estreita e há países que consideram a residência habitual que exprime essa
conexão mais estreita - em Portugal, o nosso CC entende que é a
nacionalidade, mas no direito de conflitos de fonte europeia tem relevado
mais a residência habitual, pelo que a tendência será caminharmos para
aplicar a lei do ordenamento onde o sujeito tem residência habitual.
Independentemente desta discussão da nacionalidade vs. residência habitual,
importa que é o princípio da conexão mais estreita que vai inspirar
qualquer das duas orientações. É uma via designativa direta numa norma de
conflitos em que o próprio legislador se inspira na conexão mais estreita para
determinar a lei aplicável.

2) Efeito designativo autónomo das normas de conflitos - por vezes, é dada


liberdade ao intérprete em certas condições para aplicar a lei com mais
estreita conexão, ou seja, há alguns casos, até já no nosso CC, mas sobretudo
nos regulamentos da UE, onde o aplicador do direito é que vai escolher a lei
aplicável e vai escolher a lei mais estreitamente conexionada à situação,
tendo em conta todas as conexões existentes, mas aplicando a que for mais
estreita. Coloca nas mãos do intérprete, do aplicador do Direito, o encargo de
escolher a lei mais estreitamente conexionada15. Ao contrário do efeito
designativo em que é o legislador que expressamente indica o elemento de
conexão mais estreita.16

3) Efeito Corretivo - casos em que o legislador estabelece um elemento de


conexão, dizendo que é aplicável, por exemplo, a lei da residência habitual,
mas admite que excecionalmente se afaste essa lei para que se aplique
uma outra lei porque afinal é essa que exprime verdadeiramente a
conexão mais estreita17, e não a que o legislador inicialmente achava que era.
Aqui o princípio da conexão mais estreita tem uma função corretiva da
designação da lei aplicável, através de cláusulas de desvio ou exceção. Por
exemplo, a regra diz que a lei aplicável é a da lei do lugar da celebração, mas
diz que excecionalmente pode ser aplicada uma outra lei com a qual a
situação se encontra mais estreitamente conexionada, tendo o princípio da
conexão mais estreita uma função de correção relativamente à designação da
lei aplicável.

O preceito que permita o afastamento de o elemento de


conexão denomina-se cláusula de exceção ou de desvio.
Exemplo disto é o nº3 do artigo 4º do Regulamento Roma I que

15 Exemplo: “a lei aplicável será aquela do pais que as partes tenham a conexão mais estreita”
16Exemplo: artigo 4º nº1 a) “residência habitual” do Reg. Roma I. Outro exemplo: artigo 22º nº1 “lei do
estado de que é nacional” no reg. Sucessório.
17Exemplo: “a lei aplicável é a lei da residência habitual” nº2 “o disposto no número anterior não se
verifica quando as partes tiverem uma conexão maior com outro estado-membro”
P á g i n a | 17

permite afastar as regras do nº1 e nº2 se a conexão for mais


estreita com um pais diferente. Outro exemplo é o artigo 21º nº2
do Regulamento Matéria Sucessória.

Princípio da Harmonia Jurídica

O Princípio da Harmonia Jurídica Internacional visa que as soluções das diferentes leis
que se querem aplicar sejam de certa forma compatíveis entre si, isto é, não sejam contrárias
umas as outras. É uma outra expressão do valor da segurança jurídica.
Exemplo: admitindo que em Portugal a lei aplicável é a lei nacional e no Brasil a lei
aplicável é a lei da residência habitual. Se estamos, por exemplo, a lidar com a matéria do regime
de bens do casamento, imaginando que o direito brasileiro estabelece o regime supletivo de
bens como o regime de separação, enquanto em Portugal o regime supletivo é o da comunhão de
adquiridos, pense-se na situação de um casal de portugueses que reside habitualmente no Brasil,
celebrando lá casamento, qual será o regime de bens relevante para o casal?18

1) A lei aplicável para o DIP português será, em princípio, a lei da nacionalidade,


que neste caso é a portuguesa porque eles são portugueses, de acordo com o
artigo 53º CC. Assim um tribunal português iria resolver o caso aplicando a
lei portuguesa no final do dia.

2) Se a questão for colocada nos tribunais do Brasil, estes tribunais irão aplicar
a lei da residência habitual, entendendo ser esta a lei aplicável, ou seja, a lei
do Brasil.

Temos diferentes soluções em diferentes países, sendo a solução diferente quando a


questão seja colocada em Portugal ou no Brasil. Isto não é positivo e o DIP deve encontrar
mecanismos tendentes a evitar esta divergência de soluções entre os diferentes
ordenamentos jurídicos.
A diferença quanto à lei aplicável é algo negativo porque pode levara um eventual
forum shopping, propondo as partes a questão no tribunal cuja solução conclusa a proteger os
seus próprios interesses com isso prejudicando a outra parte em caso de litígio.
Isto é tudo aquilo que é contrário ao valor da segurança jurídica e é precisamente
aqui que o DIP se socorre de uma série de técnicas, uma das quais o reenvio, para evitar esta
divergência entre ordens jurídicas quanto à lei aplicável. Essas técnicas têm como objetivo
promover uma uniformidade de vistas quanto à lei aplicável, para promover a harmonia
jurídica internacional, é uma outra expressão do valor da segurança jurídica. É o princípio
através do qual o DIP vai tentar obter uma identidade de valoração da situação
independentemente do local onde a situação vai ser apreciada.

18Na realidade…: se a questão for colocada em Portugal, é preciso fazer-se uma pergunta, que é a de se o
casamento foi celebrado antes ou depois de 29 de janeiro de 2019, já que nessa data entrou em vigor
um regulamento europeu sobre a lei aplicável às situações de regime de bens.
P á g i n a | 18

Reenvio
É um mecanismo que pretende combater a divergência entre leis aplicáveis, nas várias
Ordens Jurídicas. Isto é, o facto de as normas de conflitos serem diferentes nos vários
ordenamentos, por um lado mantem a incerteza das partes quanto à lei aplicável, mas por outro
permite ainda um certo forum shopping, isto é, a interposição da ação no local que mais convier à
parte – consoante a regra de conflitos que o foro aplica. O reenvio permite uma uniformização
de soluções quanto à lei aplicável, pois vai remeter a solução para outro ordenamento ou para
as regras de DIP de outro ordenamento.

Este mecanismo é uma expressão do princípio da harmonia do DIP, pois esse é o


princípio segundo a qual o DIP tenta uniformizar as soluções, ou pelo menos, uma identidade
de valoração das situações, independentemente do local.

Princípio da Paridade de Tratamento entre as Leis

Ora, obviamente que estas ideias de harmonia jurídica internacional, por um lado, e
conexão mais estreita, por outro, implicam uma determinada posição, pelo que toca à questão de
saber se a aplicabilidade de um direito estrangeiro deve depender do mesmo critério ou de
critérios diferentes do da aplicabilidade do direito do foro.

1) Nos EUA a doutrina e jurisprudência - há um claro e assumido objetivo de


privilegiar a aplicação do direito do Estado do foro (nesse caso o EUA)

2) UE - não é essa a orientação seguida de uma forma sistemática na Europa e


designadamente na legislação da União Europeia, assim como não era já no
DIP de fonte interna portuguesa onde o princípio de facto é precisamente o
de paridade de tratamento entre o direito do foro e os direitos
estrangeiros.

Portanto, sem prejuízo de eventual intervenção da ordem pública internacional ou das


normas de aplicação imediata, o princípio vigente no DIP português, quer de fonte interna, quer
de fonte europeia, ou seja, quer as normas de conflitos do CC ou normas de conflito de leis
avulsas, quer as que decorrem dos regulamentos da União Europeia, são regras de paridade de
tratamento entre o direito do foro e os direitos estrangeiros, pelo que podemos dizer que
entre a ideia de uma boa administração da justiça, que poderia ser invocada para privilegiar a
aplicação do direito do foro, e uma ideia de paridade de tratamento, o direito português
claramente consagrou o princípio da paridade de tratamento entre o direito do foro e os
direitos estrangeiros. Vamos ver essa demonstração no estudo dos diversos institutos do
nosso código, como por exemplo, em matéria de qualificação e de reenvio.
O princípio também parte da ideia que de que o nosso direito não será sempre aquele
que é o melhor ou com as soluções mais justas. Outras poderão ser igualmente configuráveis.
As regras de DIP não tendem por isso a aplicar a lei portuguesa (lei do foro), já o caso dos EUA é
o contrário, tendem a aplicar mais a sua lei.
P á g i n a | 19

A aplicação prioritária do direito do foro comporta desvantagens, mas também comporta


algumas vantagens: Ideia de que o tribunal português conhece melhor o direito português
portanto os tribunais de cada pais deviam ser chamados a aplicar a lei de cada pais, caso
contrario a aplicação da lei estrangeira seria sempre imperfeita – mais difícil, mais trabalho, a
ideia é a da boa administração da justiça. Isto é uma vantagem, mas uma desvantagem: se se
atribui competência à lei de certo pais, então tem de ser conforme com a ideia da situação
jurídica das pessoas e essa situação não é tutelada quando se adotem soluções que maximizem a
aplicação da lei do foro porque origina uma probabilidade de divergência entre ações propostas
em Portugal e outras em estrangeiro – parte que é autor na ação então vai propor a ação no pais
que mais lhe convier e o reu vai sofrer as consequências desse facto. Maximizar a lei do foro
seria reduzir a situação jurídica porque não contribui para harmonia jurídica
internacional: risco de frustração das expectativas das partes, desarmonia

Princípio da Efetividade das Decisões Judiciais

A ideia é que a lei em princípio aplicável, pode, por vezes, ter de ceder para evitar que
a nossa decisão, a solução definida pelos tribunais portugueses, seja ineficaz no país onde
ela mais carece de ser executada.
Imaginando que estamos a lidar com a aquisição de um imóvel, nomeadamente um
contrato que é celebrado em Portugal relativo a um imóvel situado no estrangeiro, e a questão
que estamos a analisar é, por hipótese, a questão da capacidade contratual e, para essa questão,
o direito português continua a considerar competente a lei nacional e pensemos que a
naturalidade do aquirente é portuguesa e, portanto, a lei aplicável seria a lei portuguesa, mas,
admitindo que o país estrangeiro onde o imóvel se situa considera que a lei aplicável é a lei do
local do imóvel e considera que o adquirente não tem capacidade de exercício para celebrar este
contrato e admitindo que nesse país a sentença portuguesa que considerasse válido este
contrato não poderia ser reconhecida porque, de acordo com o sistema desse país, a sentença só
seria reconhecida se tivesse aplicado a lei do estado da situação.

Isto é uma hipótese prevista no artigo 47º CC. Este artigo vem determinar que vamos
afastar a aplicação da lei pessoal e vamos aplicar a lei da situação do imóvel para que a
sentença portuguesa possa ser reconhecida nesse país.

De nada serviria dizermos que o contrato é válido por aplicação da lei nacional se esta
sentença não pudesse ser tornada efetiva no país em que o imóvel se situa, que é o único pais
em que faz sentido que seja executada a sentença. Os Estados são soberanos na sua
jurisdição, no seu território, e por isso, se o Estado em que se situa o imóvel não reconhecer a
sentença, pouco vale a mesma, não tendo qualquer efeito prático.

Este principio da efetividade das decisões judiciais, expressa a ideia segundo a qual o DIP
se preocupa com a eficácia prática das soluções que estabelece, e é essa eficácia prática que
pode levar a estabelecer desvios sobre a lei que, em princípio, seria a aplicada, a lei mais
estreitamente conexionada com a situação, que vai deixar de ser aplicada para ser aplicada uma
outra lei porque isso permite tornar a sentença efetiva, permite que a sentença tenha efetividade
prática no país onde se pretende que essa efetividade tenha lugar.
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Princípio Favor Negotii

O princípio que permite optar pela lei que salvaguarda a validade de negócio vai ser
relevante numa série de regras quer do Código Civil, quer de regulamentos da União
Europeia. Este princípio vai-se traduzir:

1) Num critério de escolha da lei aplicável, nalguns casos, quando temos de optar entre
a aplicação de duas ou mais leis e vamos optar pela lei que conduz à validade do
negócio. Exemplo – artigo 36º CC; Regulamento Roma I, se a lei aplicável ao fundo
do contrato estabelece uma exigência de forma e se a lei do lugar da celebração
estabelece uma diferente exigência de forma, vamos optar pela exigência de forma
que é menos solene e, portanto, se as partes cumpriram as formalidades exigidas ou
pela lei do lugar da celebração, ou pela lei aplicável à substância do negócio, o
negócio vai ser considerado válido.

2) Noutros casos, vai ter um efeito distinto, permitindo afastar determinado tipo de
soluções que nós teríamos e esse é o caso do artigo 19º CC em matéria do
reenvio, que agora não importa estudar, mas que no fundo o efeito vai ser paralisar o
reenvio salvaguardando a validade do negócio, ou vai ser fundamento para o reenvio
(artigos 36º a 60º) como depois veremos, mas o relevante agora é que este princípio
do favor negotti é também um dos princípios do Direito Internacional Privado que
vamos analisar ao longo do nosso curso.

Este princípio permite optar por uma ou por outra das soluções independentemente de
saber qual é a conexão mais estreita, o critério decisivo para a lei aplicável não vai ser, nesse
caso, o da conexão mais estreita, mas sim a suscetibilidade de darmos efeito ao negócio, ou
seja, de salvarmos o negócio.

Princípio da Autonomia e da Vontade das Partes

O princípio da autonomia da vontade exprime a liberdade de o indivíduo definir,


dentro dos limites legais imperativos, a sua conduta no seu próprio interesse. O campo de
aplicação do princípio da autonomia da vontade é, em geral, fixado em função da chamada
liberdade contratual, abrangendo a liberdade de celebração de contratos e a liberdade de
fixação do respectivo conteúdo (estipulação), e tendo como limites: interesse público; ordem
pública; bons costumes

O princípio da autonomia da vontade em DIP traduz-se na possibilidade que é dada aos


sujeitos de escolher:

a) o tribunal competente - pactos de jurisdição: pactos que se destinam a


determinar ou atribuir competência internacional a um determinado estado.

i. Atributivos com alcance exclusivo – atribui competência a um só


certo tribunal.
P á g i n a | 21

ii. Só atributivos – atribui competência a um tribunal, sem excluir a


competência dos demais.

b) o direito aplicável aos litígios emergentes de uma dada relação ou situação


jurídica: no plano do direito aplicável, a mais importante consagração deste
princípio encontra-se ao nível do direito dos contratos (artigo 3º do Regulamento
Roma I). Neste domínio, as partes podem optar por uma lei que não tenha qualquer
contacto com a situação – nas obrigações contratuais. A solução adotada no artigo
3º do Regulamento não entra em confronto com o princípio da não
transitividade das leis no espaço porque ela visa proteger as expectativas das
partes, as quais, obviamente, não resultam frustradas no caso de serem as partes a
escolher a lei aplicável. As partes não vão ser surpreendidas por uma lei que em
nada se relaciona com a situação, porque foram elas que a escolheram, foram elas
que previram o elemento de conexão, mais, que o criaram para determinada
situação.

Demonstração
Pensemos numa questão de natureza contratual, um contrato de C/V de um imóvel,
imóvel situado em território Português.
O contrato é celebrado entre um vendedor, que é uma pessoa singular de nacionalidade
espanhola J, e uma compradora de nacionalidade brasileira, a B.
Para determinarmos a lei a aplicar a este caso a primeira questão que se coloca quando
estamos em matéria contratual é saber se há ou não acordo das partes sobre a questão, se as
partes acordaram sobre a lei aplicável. Poderiam fazê-lo no contrato por via da autonomia
privada sobre a resolução de litígios. Esse princípio da autonomia da vontade tem uma dimensão
material, sobretudo no Direito Civil e Comercial, que implica uma possibilidade de as partes
escolherem o tipo contratual, modelarem o conteúdo do contrato livremente, sem prejuízo da
existência de limites, a ideia de liberdade é a que predomina na regulamentação dos contratos –
escolhem as cláusulas, o preço, etc. Esta autonomia da vontade privada, que tem o seu campo no
direito substantivo dos contratos, deve ser transportada para o Direito de Conflitos. Não lesamos
a ideia de segurança jurídica, e até a estamos a concretizar.
A maior desvantagem é que o contrato é sobre um imóvel e há razões de ordem pública
que podem apontar no sentido de que não se permita a estipulação. Mas há uma característica
que vem resolver o problema: quando determinada regra de conflitos manda aplicar certa
ordem jurídica, não manda aplicar a ordem jurídica a todos os aspetos que a situação
concreta suscita. Quando as partes escolhem a lei aplicável, essa escolha tem determinado
âmbito de aplicação e o mesmo se diz das regras de conflitos quando determinam certa lei.
Assim na matéria contratual por exemplo, uma coisa é decidir o tribunal que vai resolver o
incumprimento de uma obrigação outra são as regras sobre a capacidade dos sujeitos envolvidos
por exemplo. Fica por isso de fora da escolha das partes matéria sobre o qual o legislador
de conflitos entenda que não deve haver escolha, o legislador consegue seccionar a situação
em partes diferentes. O contrato de compra e venda de imóveis é um exemplo claro disso. Uma
coisa é o contrato, as partes têm liberdade de celebrar ou não, o conteúdo. Não faz sentido que as
partes possam escolher aspetos sobre a capacidade, faz sentido que seja definida pela lei pessoal
P á g i n a | 22

das partes – de cada um dos contraentes. Cada um vai ser tomado como referência para o efeito
de saber se tem ou não capacidade.

Quanto ao outro aspeto do contrato, este contrato tem como objeto a transferência de
um direito real. O contrato de compra e venda, salvo estipulação em contrário, tem como
consequência a transmissão do direito real – o contrato opera a transmissão da propriedade –
em Portugal. Mas isto não é necessariamente assim. Há sistemas jurídicos estrangeiros nos quais
não há, por mero efeito do contrato, transmissão do direito real, do contrato de C/V resulta
apenas a obrigação de transferir o direito real em causa, que só opera pela tradição da coisa. Isto
significa que a questão de saber se o direito real se transmite por efeito do contrato ou não, é
uma questão a resolver. Essa questão pode estar dependente pela lei escolhida pelas
partes? Não, por uma questão de certeza jurídica, mas também porque se os imóveis
estivessem sujeitos a diferentes regulamentações relativamente às suas vicissitudes, isso traria a
maior confusão no território português relativamente aos imóveis.19

Podem as partes escolher apenas uma das leis em contacto com a situação, ou podem
escolher outra qualquer lei do mundo? Outra qualquer lei. Toda a lógica subjacente ao DIP
parte do pressuposto de que há mais justiça no mundo para além daquela que cabe nos quadros
do nosso Direito, e há fungibilidade entre sistemas jurídicos. O nosso não é melhor e aqueles que
estão conectados com a situação não são melhores se as partes puderem escolher. Mas se
existirem disposições imperativas com vocação para se aplicarem universalmente20, então
essas disposições devem poder prevalecer, se não era fácil as partes fugirem

Esta ideia de escolha de lei pelas partes, esta concretização do princípio da autonomia
privada, está presente no artigo 3º do Roma I. As partes podem escolher a lei aplicável ao
contrato, podendo fazê-lo de forma expressa ou tácita. Portanto, está expressamente consagrado
no artigo 3º, que se aplica a obrigações contratuais.
Pelo contrário o artigo 46º do Código Civil, a questão da transferência de
propriedade ou não, resulta não da lei escolhida pelas partes, mas do próprio artigo 46º, do
lugar do bem objeto do contrato, que é aplicável.21
Quanto à capacidade, devemos ver o artigo 25º do Código Civil, que determina que se
aplica a lei pessoal. Como é que concretizamos a lei pessoal? Pelo artigo 31º nº1 – lei da
nacionalidade do indivíduo. A concretização da lei pessoal faz-se pelo intermédio do elemento de
conexão nacionalidade. A lei aplicável à capacidade dos contraentes será a lei nacional de cada
uma das partes.
Há uma última questão a considerar, a forma exigível para o contrato. Para a forma, o

19As preocupações de ordem pública são tuteladas por uma via técnica diferente, não é preciso
recorremos à cláusula de ordem pública internacional, porque as questões ligadas aos direitos reais
sobre imóveis estão submetidas à lei do lugar onde a coisa está situada – artigo 46º do Código Civil.
Portanto, quando as partes escolhem determinada lei como aplicável ao contrato, essa escolha não vai
valer quanto à capacidade das partes ou quanto aos direitos reais na relação contratual em causa.
20 As normas de aplicação imediata que vamos ver a seguir.
21 na medida em que não haja Regulamento europeu ou Convenção que indique em contrário.
P á g i n a | 23

legislador conflitual estabelece uma solução específica, que deve ir no sentido de facilitar a
válida celebração do contrato22. Segundo o artigo 11º do Regulamento Roma I, no caso de
contratos celebrados entre pessoas que se encontram no mesmo país, o contrato é válido se
preencher os requisitos de forma da lei aplicável à substância do negócio ou da lei aplicável no
lugar onde o contrato é celebrado. Se as partes tinham escolhido a lei inglesa para a forma do
contrato, em princípio, a lei aplicável seria a lei portuguesa – lugar da coisa – ou lei inglesa. A lei
a aplicar seria entre as duas a menos exigente do ponto de vista formal, porque o que se
pretende é que o contrato seja considerado válido, desde que seja válido à luz de uma das
leis potencialmente aplicáveis. Isto é em princípio, porque temos uma exceção, no artigo 11º
nº5 sobre bens imóveis. A lei do país onde o imóvel está situado, se tiver uma exigência de
forma mais solene e com vocação universal, essa exigência prevalece mesmo sobre a lei da
substância do contrato ou do lugar da celebração.23

22 Manifestação do Favor Negotii


23É uma manifestação das Normas de Aplicação Imediata que vamos ver adiante e que já referimos a ratio
incidentemente em “Os Valores da Segurança e Justiça Material”.
P á g i n a | 24

Direito dos Conflitos: Diferentes Técnicas de Regulação

Falar do problema do direito aplicável e das vias possíveis para a sua solução, é falar do
prolema do método que o DIP utiliza para resolver o seu problema. O problema que é colocado
ao direito do material é: face uma questão, qual a solução para certo problema de direito? Esta
não é a perspetiva do DIP que deve ser adotada, o DIP coloca-se a montante, a priori desta
controvérsia. A perspetiva do DIP é resolver problemas de conflitos de leis – é este o
problema essencial do DIP. Isto já o dissemos e é importante ter em conta agora que vamos olhar
para as normas de conflitos: função do DIP é pois a de criar ruma disciplina que reduza
essa instabilidade (introduzida pelas relações plurilocalizadas) e um mínimo tolerável: uma
disciplina que promova e assegura amplamente o reconhecimento dessas situações jurídicas
fora das fronteiras do país em que se constituíram.

Dépeçage

A partir do exemplo24 da compra e venda (imóvel em Portugal com comprador


Espanhol) dado e do modo como ela é regulada, vamos extrair alguns ensinamentos.

O primeiro tem que ver com o modo como as regras de conflitos operam. Como
indicámos nas páginas anteriores quando uma norma de conflitos manda aplicar uma certa lei,
essa lei não é aplicável a todos os aspetos que podem estar em causa na situação jurídica,
não resolve todas as questões, pelo contrário, a técnica utilizada pelo legislador de conflitos25– é
a técnica da dépeçage.

A técnica dépeçage consiste em dividir as questões jurídicas em diferentes fatias,


dividindo diferentes perfis da questão a analisar, podendo por isso remeter para diferentes
ordenamentos jurídicos a mesma situação dividindo-a em partes diferentes.
A dépeçage significa uma complexificação das relações privadas internacionais, porque
daí resulta que a relação pode ser objeto de aplicação de diferentes leis, quanto a diferentes
objetos, por exemplo: substância do contrato, forma, eventual transferência do direito real,
capacidade das partes, etc.

Vemos esta estratégia do legislador de conflitos em vários exemplos.


Cada uma das normas tem ou define o seu próprio campo de aplicação ou
circunscreve as matérias às quais vai querer aplicar-se, realizando o dito dépeçage. Por
outras palavras, cada regra de conflitos define as matérias em relação às quais ela vai
estabelecer a lei aplicável:

• Assim, no artigo 3º do Regulamento Roma I, qual será a matéria a que ele se


aplica? Matéria contratual, e dentro dessa, à substância do contrato – todos os

24 Ver “Demonstração” no capítulo anterior.


25Quer o interno, quer convencional (diga-se as partes na sua liberdade de estipulação como vimos no
caso do espanhol a comprar um imóvel em Portugal), quer comunitário.
P á g i n a | 25

aspetos obrigacionais ligados ao contrato, se há ou não contrato, se as partes


estão ou não vinculadas, qual é o preço, etc.

• No artigo 25º do Código Civil, na parte que nós vimos, que era a parte da
capacidade, o que o artigo 25º define é a lei aplicável a este trecho das questões a
analisar – a capacidade das partes. A matéria a que vai aplicar-se é, entre outras,
mas na parte que nos interessa, a capacidade.

• O artigo 46º do CC aplica-se à posse, propriedade e demais direitos reais. No


artigo 11º do Regulamento Roma I, também percebemos que o que está em
causa é a validade formal do contrato. Aí temos um dos elementos estruturais das
normas de conflitos, que é definido através de um conceito.26

As regras de Conflitos

Conceito

Para as questões jurídicas internacionais que se podem levantar e a escolha da lei que a
resolve é feita em cada Estado de acordo com as suas normas de direito. Cada Estado tem o seu
DIP para uso interno, se existisse uma definição que a todos vinculasse, um DIP unificado
mundialmente, muitos problemas de DIP seriam resolvidos e não existiriam as questões do
conflito de sistemas de DIP que vamos tratar depois. Como esse consenso entre os países do
mundo não existe, é pratica cada Estado formular, para a resolução de conflitos de leis, as
normas que tenham por mais convenientes e justas. Essas normas são ditas regras de
conflitos.

As regras de conflitos são normas que se propõe a resolver um


problema de concurso entre preceitos jurídico-materiais
procedentes de diversos sistemas de direito.

Isto evidência a natureza específica do DIP, que já referimos, a norma do DIP não se
propõe a fixar ela mesma o regime das relações da vida social, compor ela mesma os
conflitos interindividuais de interesses. É uma regra de carácter meramente instrumental:
limita-se a indicar a lei que fornecerá o regime da situação, a lei onde hão-de procurar-se as
normas que venham a orientar a decisão do litígio. Contribui claro para a resolução da questão
jurídico-privada, mas não diz por si própria qual ela seja.

Assim as regras de conflitos são regras que em vez de regular direta ou materialmente a
relação, adotam o processo indireto consistente em determinar a lei ou as leis que a hão de

26Que tecnicamente se chama conceito-quadro das normas de conflitos. Importa reter que esse é o
nome técnico dado aos conceitos que vão delimitar a matéria à qual se aplica a regra de conflitos, ou os
conceitos que vão circunscrever o âmbito em que o que as normas consagram vão valer.
P á g i n a | 26

reger. São regras de segundo grau. Destacam ou privilegiam um dos contactos ou conexões da
situação, determinando como aplicável a lei para a qual essa conexão aponte. A regra de
conflitos é uma regra de determinação predominantemente formal – aponta apenas para a
ordem jurídica competente para regular a situação.

As normas de conflitos dirigem-se não só às partes (particulares ou Estado enquanto


particular) mas a todas as autoridades públicas, incluindo Tribunais.
Se se dirigem a todas as categorias de entidades, essas também têm de as aplicar
devidamente. As autoridades públicas, na sua atividade, estão submetidas a estas normas, e as
partes, quando se dirigem às autoridades públicas, vão argumentar a sua pretensão. É o que
acontecerá quando duas pessoas querem casar e têm capacidade matrimonial de acordo com a
sua própria lei, mas não a têm de acordo com a lei portuguesa, o Conservador do Registo Civil
é obrigado a autorizar o casamento com base na lei pessoal dos nubentes, mesmo que tal
contrarie o disposto no Direito substantivo português.27 É claro que se a decisão do notário ou
de outra entidade deste tipo for contrária à lei, isto é, contrariar o Direito de conflitos português,
essa decisão pode ser impugnada perante os tribunais.

Estrutura

Falámos numa “conexão” que estaria incluída na norma de conflitos. Essa conexão não é
mais do que um dos elementos da regra de conflitos.
Vamos agora estudar algo bastante importante. A estrutura da regra ou norma de
conflitos. Entender esta estrutura e os seus três elementos é da maior importância para
entender o DIP. A estrutura é uma estrutura tripartida, vejamos:

1) Conceito quadro: são conceitos que delimitam a matéria à qual se aplica a regra de
conflitos. Por exemplo, o artigo 46º do Código Civil tem como conceito quadro “posse,
propriedade e demais direitos reais.” Isto é a realidade à qual a norma se aplica. É o
elemento da norma que delimita o campo de aplicação da lei escolhida pelo
elemento de conexão.

▪ Porque é que se chama conceito-quadro? Para que percebamos que


cada um dos conceitos que as regras de conflitos utilizam não pode ser
pensado, interpretado ou definido em função de um conceito homólogo
de direito material específico. Por outras palavras, cada conceito não
pode valer o mesmo que vale no Direito Civil português. Por
exemplo, a posse, propriedade e demais direitos reais, não são conceitos
jurídicos necessariamente coincidentes com os conceitos de posse,
propriedade e demais direitos reais que acolhemos no Direito Real
Português. Como a função das normas de conflitos é a determinação da
lei aplicável não apenas nos casos em que esta será a lei portuguesa, isto
é, como as normas de conflitos determinam a aplicabilidade tanto da lei
portuguesa como da estrangeira, então os conceitos têm que ser
maleáveis para que neles caibam institutos jurídicos que são

27 Salvo se o casamento contrariar a Ordem Pública Internacional Portuguesa.


P á g i n a | 27

diferentes em diferentes ordens jurídicas, não podendo restringir-se


apenas aos conceitos de um país. Daí que seja chamado conceito
“quadro”.

▪ Por exemplo, a tipicidade dos direitos reais existe em Portugal, mas não
existe em todo o lado. Isso significa que um direito real não
correspondente a nenhuma realidade jurídica existente em Portugal, não
podia ter correspondência? Não, isso não faria sentido. Os conceitos que
integram as normas de conflitos têm que ser maleáveis para que neles
caibam outros, de outras ordens jurídicas.

▪ Por maioria de razão, terá que ser assim em regras de conflitos


constantes de regulamentos da UE ou de Direito transnacional. O
contrato individual de trabalho, para efeitos do regulamento Roma I, não
pode ser o que a lei portuguesa determina, porque o regulamento da UE
tem que ter uma interpretação autónoma em relação aos restantes
Estados.

2) Elemento de conexão: a realidade escolhida para localizar que ordenamentos se


vão poder aplicar. O legislador, de entre as várias conexões com diferentes Ordens
Jurídicas que a relação tem, escolhe uma. É o elemento da norma que o legislador isola
dentro da situação jurídica para definir a lei aplicável. É este elemento de conexão que
por norma é escolhido de acordo com o princípio da conexão mais estreita, tendo em
conta o tipo de matéria em causa. Elemento que estabelece a ligação entre a
situação a regular e a lei competente.

▪ No artigo 46º do Código Civil, o modo de chegarmos à determinação da


é do lugar onde a coisa se situava. Para a matéria definida pelos
conceitos: posse, propriedade e demais direitos reais, o caminho é o do
lugar onde a coisa se situa.

▪ No caso do artigo 3º do Regulamento Roma I, é a escolha das partes.

▪ No caso do artigo 25º 28 , através da conjunção com o artigo 31º nº1 é


a lei da nacionalidade, indiretamente a nacionalidade.

▪ Ou seja, em todos os casos temos o facto do legislador, de entre várias


alternativas possíveis – as diferentes conexões que a situação revela com
as diferentes Ordens Jurídicas – de entre as conexões, o legislador
escolhe uma, ou mais do que uma, como relevante.

▪ É, no fundo, o elemento, seja de facto ou de direito, que o legislador


extrai, isola ou identifica dentro da situação a regular que vai servir

28De agora adiante, sempre que um artigo não tiver a indicação do diploma legal a que corresponde,
refere-se um preceito do Código Civil.
P á g i n a | 28

para definir a lei aplicável. O legislador poderia escolher de entre uma


panóplia alargada de conexões possíveis, mas, para cada matéria, o
legislador escolhe um elemento de conexão mais adequado em função
da matéria em causa, em obediência a diferentes princípios, como a
conexão mais estreita – o que é a conexão mais estreita em matéria de
estatuto pessoal? Não é certamente a mesma que sucede para a matéria
contratual. A escolha do elemento de conexão vai ter lugar em função do
tipo de matérias em causa. Há uma relação lógica entre a matéria a que
se aplica a regra de conflitos, definida pelo conceito-quadro, e o modo de
determinação da lei aplicável que utiliza o elemento de conexão.

3) Consequência jurídica: é a determinação da lei que será aplicável, tendo em conta o


conceito quadro e o elemento de conexão. É diferente da aplicação da lei ao caso, é um
passo antes dessa aplicação – antes de aplicarmos temos que definir a lei
competente. Esta lei torna aplicável determinado ordenamento a uma determinada
situação.

▪ Os dois elementos anteriores dão-nos algo em potência e a


consequência jurídica faz operar a aplicabilidade da lei
competente. Quer dizer, a consequência jurídica consiste em
atribuir competência ou reconhecer competência à lei indicada
através do elemento de conexão, lei essa que vai valer dentro do
âmbito circunscrito pelo conceito quadro.

▪ A consequência jurídica é uma consequência jurídica, um efeito


jurídico.

▪ A aplicação é o ato de aplicar, pelas partes ou órgãos de aplicação,


mas antes de aplicarem, a regra de conflitos operou uma
consequência jurídica que é tornar aplicável. O reconhecimento de
competência é que é a consequência jurídica e não a solução da
lei reconhecida como competente.

▪ Quando a norma de conflitos é bilateral enuncia a sua consequência


jurídica em termos absolutamente genéricos. Na verdade uma norma
não tem apenas uma consequência, mas tantas quantos
ordenamentos jurídicos existirem. Pode remeter para qualquer uma
das leis que exista.
P á g i n a | 29

Normas bilaterais, unilaterais e imperfeitamente bilaterais

Quanto à consequência jurídica as normas de conflitos podem ser bilaterais, até vimos
que na ordem jurídica portuguesa vigora a paridade de tratamento entre o ordenamento
português e os estrangeiros. Isto significa que estas regras são fundamentalmente regras
bilaterais ou multilaterais – tantas leis como as que existem no Universo. Mas tecnicamente, o
termo que se utiliza é regras de conflitos bilaterais.
Mas as coisas não são sempre assim, não são as únicas normas de conflitos possíveis.
Seria possível, e já aconteceu, termos regras de conflitos unilaterais. São regras de conflitos cuja
função se limita a definir os casos a que é aplicável a lei interna, a lei do foro, no nosso caso,
a lei portuguesa. Ou seja, tipicamente, uma regra de conflitos unilateral é uma regra de conflitos
que nos indica em que situações é que a lei portuguesa é aplicável. Por exemplo, a lei, em matéria
de estatuto pessoal, nós afirmámos que a capacidade dos indivíduos, relações familiares e
sucessão por morte, são regidas pela lei pessoal, que se concretiza pelo elemento de conexão
nacionalidade. Isto significa que a regra é bilateral, porque manda aplicar a cada nacionalidade a
sua lei. Se a regra de conflitos fosse unilateral seria redigida apenas às pessoas de nacionalidade
portuguesa, aplica-se a lei portuguesa.
Ou seja, essa seria uma técnica, e foi uma técnica utilizada no Código Francês, foi
utilizada na lei de introdução do Código Civil alemão, e era uma forma de delimitar a lei de
aplicação da lei do foro, deixando uma lacuna sobre o que aconteceria se a lei do foro não fosse
aplicável. Na Alemanha surgiu a doutrina da bilateralização das regras unilaterais. Então,
por exemplo, se é aplicável a lei alemã aos alemães, deve ser aplicada a lei italiana aos italianos,
etc.

Em Portugal a generalidade das regras de conflitos são bilaterais, assim como o


são as regras de conflitos da UE, o que não significa que não existam resquícios de
unilateralidade, principalmente em duas categorias: por exemplo, artigo 28º nº1, que apenas
indica quando é que o Direito português é aplicável, embora consista numa exceção à regra geral
e por isso não há lacuna, e o nº3 vem bilateralizar o disposto no artigo 28º nº1.

As regras de conflitos não são, por natureza, bilaterais, são bilaterais by choice, por opção
legislativa.

Agora, importa verificar há uma categoria intermédia, as regras de conflitos


bilaterais imperfeitas. Tratam-se de regras bilaterais, na medida em que mandam aplicar
quer o Direito do foro, quer o Direito estrangeiro, mas o alcance das normas não é suficiente
para que as normas se possam aplicar a todas as ilações. Elas só resolvem o conteúdo de leis
relativamente a situações que têm certo contacto com a ordem jurídico do foro. Vamos
pensar no artigo 51º do Código Civil. Este apenas prevê hipóteses em que as situações se
encontram conexionadas com a OJ portuguesa através ou da nacionalidade das partes ou do
lugar da celebração. Se o casamento em causa for celebrado entre estrangeiros, no estrangeiro, o
artigo 51º não se vai aplicar, é uma norma bilateral imperfeita.

Sistematizando, quanto a que leis pode mandar a regra de conflitos serem aplicadas, isto
é, quanto ao elemento da consequência jurídica, as normas de conflitos podem ser:

• Unilaterais: determinam apenas a aplicabilidade da lei do foro. O esquema será “as


questões jurídicas da categoria x serão resolvidas pelo direito local, desde que entre
situação a regular e este ordenamento exista uma condição y” Por exemplo: artigo 28º
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nº129. Estas normas deixam uma lacuna quando a lei portuguesa não seja aplicável.
Exemplo de uma norma unilateral é o artigo 23º nº1 da Lei das Cláusulas Contratuais
Gerais que estatui que “Independentemente da lei escolhida pelas partes para regular o
contrato, as normas desta secção (a lei portuguesa obviamente) aplicam-se sempre
que o mesmo apresente uma conexão estreita com o território português”.

• Bilaterais ou Multilaterais: São a norma paradigmática. Determinam que uma


Ordem Jurídica é aplicável, independentemente de ser a lei do foro ou de um
Estado terceiro. Por exemplo: quanto à capacidade para celebrar casamento, aplica-
se a lei da nacionalidade do cônjuge. Caso do artigo 46º do Código Civil que não nos
diz que lei em concreto. Apenas há uma enunciação em termos genéricos da “lei onde
se encontrem situadas” – pode ser qualquer lei do mundo, isto porque a coisa se
pode situar em qualquer local, não manda aplicar a lei portuguesa. A consequência
jurídica é a determinação da aplicabilidade ou da competência de determinada lei.
Artigo 50º do CC – forma do casamento, tem de ser regulado pela lei do estado da
celebração – em abstrato, pode ser qualquer lei, pelo princípio da não transitividade é
que concluímos qual a lei aplicável.

• Bilaterais imperfeitas: são normas que permitem a aplicação da lei do foro e do


Direito estrangeiro. No entanto, só resolvem situações que tenham certo contacto
com a Ordem Jurídica do foro. Por exemplo, o artigo 51º do Código Civil no que
toca a forma do ato, porque apenas regula o casamento de portugueses ou celebrado
em Portugal. São normas que determinam tanto a aplicação do direito local como a
de leis estrangeiras, mas que, no entanto, não se ocupam senão de certos casos
caracterizados pela existência de determinados elementos que os relacionam
com a vida jurídica do estado do foro. Ou seja: esta norma de conflitos não prevê
todas as situações que, à luz dos princípios, deviam caber nela (prevê casamento
de estrangeiros em Portugal, portugueses no estrangeiro, mas não prevê 2
estrangeiros no estrangeiro) – no fundo, há uma lacuna que deve ser integrada. É
imperfeitamente bilateral porque remete para lei do foro e estrangeira, mas a
sua previsão não prevê tudo o que devia prever. Florbela Almeida Pires entende
aliás que o artigo 51º deve ser aplicado por analogia quanto a casamentos entre
estrangeiros realizado no estrangeiro. 30

29Aquilo que subjaz ao artigo 28.º é, precisamente, uma preocupação de protecção do comércio
jurídico local e da confiança da contraparte. No artigo 28º nº3, dispõe‐se que, se o negócio for
celebrado pelo incapaz em país estrangeiro, o aplicador português deve tomar conhecimento da eventual
consagração de soluções homólogas à do artigo 28.º nº1 no lugar da celebração. Há aqui uma
preocupação de tratar a lei estrangeira da mesma forma que a lei portuguesa é tratada se o
indivíduo for incapaz segundo a sua lei pessoal e capaz segundo a lei do lugar da celebração. O Prof.
Baptista Machado fala numa “remissão condicionada”, no sentido em só será aplicável a lei que
consagre “regras idênticas” às fixadas no artigo 28.º, ou seja, se estiver subjacente a essas regras um
propósito de protecção do comércio jurídico local e da confiança da contraparte.
30 O artigo 51º é um desvio à regra geral do 50º. É uma manifestação do princípio favor negotii.
P á g i n a | 31

De conexão una e normas de conexão múltipla

As normas de conflitos podem ser unas ou de conexão múltipla atendendo à


configuração do elemento de conexão.
Há regra de conflitos que preveem, ou que dão relevância a mais do que um elemento
de conexão, e isto através de diferentes vias técnicas e com diferentes objetivos.
Uma das vias técnicas é a que é utlizada no artigo 11º do regulamento Roma I, o
regulamento não nos diz que a lei aplicável à forma do contrato é a do lugar de celebração, diz-se
que ou é aplicável a lei de substância ou a lei do lugar. Permite que qualquer uma das leis se
aplique. Quem escolhe a lei aplicável é a própria lei, não há uma autonomia da vontade nem
escolha da lei aplicável31, porque há uma diretriz legal, o próprio regulamento vai permitir
que as partes celebrem o contrato por intermédio da forma prevista. Este modo de
estruturar a norma de conflitos, que vai implicar a relevância de dois elementos de conexão, que
aqui é o lugar da celebração ou o elemento de conexão que for tido por relevante para a
determinação da lei aplicável à substância do contrato, ou seja, neste caso, não temos, como no
artigo 46º, uma regra de conflitos com um único elemento de conexão, temos mais do que um
elemento de conexão que é relevante para determinar a lei aplicável, temos uma regra de
conflitos múltipla e não una. Mas neste caso, temos uma regra de conflitos de conexão
múltipla alternativa, porque neste tipo de regras, o legislador estabelece a possibilidade de
aplicação em alternativa de duas ou mais leis, através do fornecimento de um critério que o
próprio legislador estabeleça. Neste caso esse critério é a lei que considere o contrato válido,
que conduza à salvaguarda da validade do contrato. Subjacente à norma temos o princípio
do favor negotii, o que não tem que ser sempre assim podendo haver outros princípios que
justifiquem uma conexão alternativa. Esta norma do artigo 11º é de algum modo semelhante, do
ponto de vista estrutural, a duas outras normas que temos no Código Civil, sendo que uma delas
é uma norma que é fortemente circunscrita na sua aplicabilidade – artigo 36º nº1 do Código
Civil, também aqui temos duas leis alternativamente aplicáveis, a lei do lugar da celebração e a
lei aplicável à substância do negócio jurídico, e a opção entre ambas é feita em função do
critério da validade formal do negócio jurídico. Vai prevalecer a norma menos exigente, a
norma que permita conduzir à validade desse negócio jurídico. E o mesmo vai acontecer, noutro
exemplo, a uma norma especial, o artigo 65º.32 Temos uma regra de conflitos alternativa, que
permite salvar a validade formal das disposições por morte se elas forem celebradas de acordo
com as exigências formais ou da lei da nacionalidade do autor da disposição por morte, quer de
acordo com a lei do lugar da celebração. Temos mais uma vez uma regra de conflitos de conexão
múltipla alternativa, também inspirada no princípio favorável ao negócio jurídico.

Mas nem sempre as regras de conflitos cujo desenho comporta mais do que um elemento
de conexão, são normas de conexão múltipla alternativa.
Temos muitos casos de regras de conflitos desenhadas por forma a evitar, no fundo,
situações em que o elemento de conexão em princípio escolhido pode não funcionar.

31Isto vale para os casos em que é colocada uma ação civil em tribunal. No direito internacional privado,
assim como no Direito Civil em comum, as partes podem sempre chegar a um acordo entre elas e por si
sem a interferência de tribunal.
32Este artigo, relativamente às sucessões abertas depois de Agosto de 2015, esse artigo deixa de se aplicar
porque a partir dessa altura entrou em vigor o Regulamento europeu em matéria sucessória. E como
sabemos os regulamentos europeus prevalecem sobre a lei nacional interna. Mas relativamente a
sucessões por morte abertas antes dessa data, continua a valer o artigo 65º.
P á g i n a | 32

Pensemos no seguinte, nas regras de conflitos que mandam aplicar a lei nacional, e pensemos
também que há pessoas sem nacionalidade. Se a regra de conflitos se limitasse a mandar aplicar
a lei nacional, tínhamos aqui um problema, como é que íamos resolver a lei pessoal dos
apátridas? Os legisladores vão ter que pensar nestas hipóteses e encontrar soluções
tecnicamente subsidiárias. Ou seja, vão usar a técnica da regra de conflitos de conexão
múltipla, subsidiária, para precisamente oferecer soluções sempre que a lei primariamente
competente, aplicável, não pode aplicar-se. Ora, porque é a lei primariamente aplicável não pode
aplicar-se? Primeiro, porque pode não existir. Noutros casos, essa lei pode não ser conhecida ou
suscetível de conhecimento. Vamos admitir, é aplicável de um Estado muito pequeno, que só
existe numa língua que não é conhecida de ninguém. Temos que encontrar uma solução
subsidiária para resolver o problema.

Noutros casos, a lei aplicável é designada por intermédio de conexões que de alguma
maneira são definidas não em função de uma pessoa, mas de duas. Pensemos na lei aplicável às
relações entre cônjuges, artigo 49º, é a lei pessoal de cada um, que é a da nacionalidade nos
termos do artigo 31º nº1. Mas pode acontecer que os cônjuges tenham nacionalidades
diferentes. Se um dos cônjuges tem nacionalidade portuguesa e outro espanhola, qual é a lei
aplicável?33 A cada um deles se aplica a sua lei da nacionalidade. É uma conexão múltipla
distributiva. Ao contrário de certas regras de conflitos que mandam aplicar, no caso de
casamento, a lei da nacionalidade dos cônjuges – uma lei comum -, mas não é assim
relativamente à capacidade matrimonial. A capacidade para celebrar casamento deve ser
aferida, nos termos do artigo 49º, não por uma única lei, mas a capacidade de cada um dos
nubentes é aferida em função da própria lei pessoal. Se cada um tem uma nacionalidade
diferente, é a lei dessa nacionalidade que vai ser aplicável. O artigo 49º vai distribuir
competência pelas leis pessoais dos contraentes em causa. Podemos pensar a dois níveis
de abstração. Neste artigo 49º do Código Civil, o que é que temos, enquanto conceito-quadro,
é a capacidade para contrair o casamento. O elemento de conexão deste artigo 49º tem que ser
lido com o artigo 31º nº1, o elemento de conexão é, em princípio, a nacionalidade. Mas aqui
temos dois níveis de abstração possíveis. O primeiro é dizer que o elemento de conexão é a
nacionalidade, e a um nível de abstração menor podemos dizer que os elementos de conexão não
são um único, mas dois, a nacionalidade de um e de outro nubente. Aí teremos dois elementos de

33 Antes do 25 de Abril a solução era simples, a lei da nacionalidade do marido. Antes ainda dessa, a lei da
residência atual comum dos cônjuges, que é a presente no artigo 52. De facto, nestas matérias do estatuto
pessoal: estado, capacidade, relações de família e sucessões por morte, a generalidade das ordens jurídicas
divide-se entre as que preferem utilizar como elemento de conexão a nacionalidade, e as ordens jurídicas
que preferem aplicar a lei da residência habitual, por entenderem que pode ser uma conexão mais efetiva.
Em Portugal o facto de preferirmos a aplicação da lei nacional, não significa que a lei da residência
habitual não seja também relevante. E uma das formas de relevância dessa lei está precisamente em servir
como conexão subsidiária para todos os casos em que ou não é possível determinar a lei nacional ou não
existe uma lei nacional comum de duas pessoas. E portanto nestes casos aplicamos a lei da residência
habitual comum. Antes da reforma de 77 tínhamos, na falta de residência habitual comum, a lei nacional
do marido. Essa solução veio contrariar os valores estabelecidos após a Revolução, e a reforma de 77 veio
alterar a solução, estabelecendo que na falta de residência habitual comum, vai aplicar-se a lei cuja vida
familiar esteja mais estreitamente conexa. Vai escolher-se não um elemento de conexão, mas um recurso
direto ao princípio subjacente à escolha da generalidade dos elementos de conexão, o princípio da
conexão mais estreita. Aqui o essencial é que, nas normas de conflitos, temos uma norma preferida pelo
legislador, em princípio aplicável, e temos leis subsidiariamente aplicáveis, quando não seja possível
aplicar a norma jurídica competente. A lei em princípio aplicável, nos termos do regulamento Roma I, é a
escolhida pelas partes – artigo 3 – a conexão primariamente relevante é a vontade das partes. Mas na
maioria dos casos as partes não escolhem, e aí temos uma série de conexões subsidiárias, a determinação
da lei aplicável na falta de escolha.
P á g i n a | 33

conexão se pensarmos que eles apontam para leis diferentes, na medida em que se concretizam
em nubentes diferentes. Neste caso, a lei aplicável não é uma lei, mas duas leis, ou seja, a lei de
cada um dos nubentes.

Vamos ver ainda mais uma modalidade de regras de conflitos de conexão múltipla,
oposta à alternativa, a regra de conflitos de conexão múltipla cumulativa. Vimos que na regra
de conflitos de conexão múltipla alternativa, a celebração de determinado negócio jurídico era
possível com base em qualquer das ordens jurídicas alternativamente aplicáveis.
Nas regras cumulativas acontece o contrário, o efeito jurídico em causa só pode
produzir-se se duas ou mais ordens jurídicas estiverem de acordo com a produção desse
efeito. Em lugar de bastar uma qualquer das ordens jurídicas em causa para se produzir esse
efeito, é necessário que duas ou mais ordens concorram na concordância para a produção do
efeito. Neste tipo de regra de conflitos, que é muito raro, o efeito da utilização desta regra é, em
vez de facilitar a celebração do negócio jurídico, por exemplo, ou a produção do tipo de efeito, é
dificultar a produção de efeito. Isso não acontece porque o legislador veja com maus olhos a
produção desse efeito, mas pode ser por outras razões. Por exemplo, de acordo com o artigo
60º, a filiação adotiva é, em princípio, regida, pela lei pessoal do adotante. Se forem dois os
adotantes, nos termos do nº2, será a lei pessoal comum dos adotantes. Mas depois temos o nº4,
que tem uma exigência adicional. Para que a constituição da filiação adotiva possa ter lugar,
não basta que seja permitida pela lei pessoal do adotante, mas também seja permitida
pela lei que seja tida por competente para regular as relações entre o adotado e a sua
família natural. Se o adotado tem uma família natural, então, a constituição da filiação adotiva
tem que obter a concordância da ordem jurídica que é relevante para regular as relações entre o
adotando e a sua família natural.
De acordo com a doutrina, em particular de acordo com os autores do projeto do Código
Civil, o professor Ferrer Correia e o professor Baptista Machado a ideia subjacente é evitar a
constituição de relações jurídicas coxas ou claudicantes. O mais provável é que o adotando
esteja no país da lei que vai regular a relação entre ele e a sua família natural. Aceitar a lei
pessoal do adotante, sem consentimento da lei pessoal que regula as relações entre adotando e
família natural, podia ter o problema da adoção ser reconhecida no país do adotante e não
do país do adotando. A adoção apenas deve ser conferida quando for sólida.
A doutrina também costuma dizer que não aplicamos duas regras cumulativamente,
mas apenas a mais exigente. Ou seja, no caso de uma autorizar a adoção e outra não, aplica-se
a que não autoriza. Esta conexão múltipla cumulativa é tão poucas vezes utilizada, porque acaba
por traduzir um entrave efetivo à realização de determinados negócios jurídicos, ou atos ou
efeitos, que embora não se tenha por objetivo evitar, na prática vão ser dificultados. s normas de
conexão múltipla distributiva distribuem então competência para resolver a situação jurídica
por diferentes leis. Se as regras de conexão múltipla cumulativa tiverem requisitos contrários,
então não se verifica o efeito. O artigo 60º acaba por exigir uma concordância, que se não se
verificar, não se constitui a adoção, por isso é que o efeito das regras de conexão múltipla
cumulativa é um efeito de dificultar a verificação dos efeitos, ainda que essa não seja a
intenção.

Cumulação de Conexões
As cumulações de conexões não se devem confundir com a conexão distributiva,
uma coisa que é designada como cumulação de conexões. Precisamente, no artigo 52º e
relações entre cônjuges, a lei aplicável é a lei nacional comum. Essa lei tem a característica,
P á g i n a | 34

para que se possa aplicar o artigo 52º, tem a característica de que se exige que se concretize
relativamente a ela, a conexão nacionalidade do marido e a conexão nacionalidade da
mulher. Têm que se cumular as duas conexões. Não é uma regra de conexão múltipla, mas
uma cumulação de conexões.

Relativamente à conexão cumulativa e distinção de cumulação de conexões, é evidente


que como também percebemos, aplicar cumulativamente a Lei I e a Lei II leva, em termos
práticos, a que a lei verdadeiramente aplicada é a lei mais exigente, que dificulta a
viabilização do efeito jurídico em causa.
Pelo contrário, na cumulação de conexões, quantas leis é que temos? Uma única lei,
o que é que cumulamos? As conexões.

A cumulação de conexões = conexão I+ conexão II. O exemplo foi do artigo 52º, mas
há mais, porque há muitos casos que mandam aplicar uma lei, mas para que essa se aplique
exige que para essa lei apontem dois elementos de conexão, ainda que esse elemento seja o
mesmo, mas que se concretize através de diferentes pessoas. O que temos é que a aplicação de
determinada lei exige que para ela apontem duas conexões distintas – a conexão nacionalidade
de ambos os cônjuges ou na sua falta residência habitual de ambos os cônjuges.

Resumindo
Estamos a analisar a regra de conflitos qualificando-a com base num dos três elementos
estruturais que a constituem, a conexão. E quanto a esta podemos ter, com base no número de
elementos da conexão e forma como se combinam:

1) Regra de conexão múltipla alternativa – Ou x ou y. O legislador estabelece a


aplicação alternativa de várias leis. Isto é, as várias conexões podem remeter para
diferentes Ordens Jurídicas, e o aplicador deve escolher qual deve aplicar,
seguindo o critério estabelecido pelo legislador. É exatamente o que sucede com o
artigo 11º do Regulamento Roma I, em que o aplicador pode usar ou a lei que
regula à substância ou a lei do lugar de celebração do negócio jurídico, consoante
aquela que permita a validade formal do negócio jurídico. O mesmo se encontra
no artigo 36º do Código Civil e ainda no artigo 65º.

2) Regra de conexão múltipla subsidiária – x, e se x não der y. o legislador


estabelece uma conexão principal, que deve ser usada primariamente. No
entanto, se essa conexão não existir, o legislador prevê uma conexão subsidiária,
para resolver a situação. Por exemplo, há várias regras de conflitos em que o
elemento de conexão é a nacionalidade do sujeito. Se não existissem conexões
múltiplas subsidiárias aos apátridas aquela regra de conflitos não se poderia
aplicar, nem se resolver a situação. Assim, estabelecendo, por exemplo, a
residência habitual como conexão subsidiária, o legislador resolve o problema. A
conexão subsidiária pode ainda aplicar-se não só a situações em que a conexão
não exista, mas ainda a situações em que seja impossível determiná-la – por
exemplo, é aplicável a Lei de um Estado muito pequeno, que só está escrita numa
língua e que não tem intérpretes oficiais. A técnica de conexão subsidiária é
ainda a que forma o artigo 52º nº2, e também está presente no Regulamento
P á g i n a | 35

Roma I, quando estabelece outras conexões aplicáveis na falta de escolha da Lei


pelas partes, artigo 4º nº2.

3) Regra de conexão múltipla distributiva – x para A e y para B. Há um único


elemento de conexão, mas que tem que se verificar em mais do que uma parte.
Isto é, o mesmo elemento de conexão é distribuído para Ordens Jurídicas distintas,
tendo que se verificar em ambas. Por exemplo, o artigo 49º do Código Civil,
determina que a capacidade matrimonial se afere tendo em conta a lei de
nacionalidade de cada um dos cônjuges. Isto é, afere-se a lei nacional de um
nubente e de outro nubente, verificando-se à luz de cada uma se o respetivo
nacional é capaz de casar ou não. Esta conexão não é confundível com a
cumulação de conexões: isto é, a mesma conexão deve verificar-se quanto a duas
partes, por exemplo, e tem que ser coincidente. x para A e y para b ≠ x para A e B
se A e B z. Por exemplo, o artigo 52º ao referir-se à nacionalidade comum dos
cônjuges. Assim, tem que se cumular a conexão quanto aos dois nubentes, que
devem ter a mesma nacionalidade para que o efeito se produza. Não há uma
distribuição entre duas Ordens Jurídicas, mas uma cumulação, a mesma Ordem
Jurídica tem que se verificar em mais do que um contraente, isto é, a aplicação de
determinada lei exige que para ela apontem duas conexões distintas.

4) Regra de conexão múltipla cumulativa – se lei x e lei y z, então lei z. O efeito


jurídico só pode produzir-se se as Ordens Jurídicas para as quais remetem os
elementos de conexão relevantes concordarem nessa produção. Assim, em
princípio, pelo menos duas Ordens Jurídicas têm que concorrer para a
produção daquele efeito. Em vez de haver um facilitismo da produção do efeito
jurídico, como acontece para as conexões múltiplas alternativas, há uma
dificuldade acrescida. Muitas vezes aparecem porque a relação jurídica em
causa merece particular tutela. Acontece no artigo 60º do Código Civil,
quanto à constituição de filiação adotiva. A filiação adotiva tem que ser
permitida pela lei pessoal do adotante, mas não só, também pela lei competente
para regular as relações entre adotado e a sua família natural. Quanto a esta
conexão múltipla em específico, a doutrina costuma dizer que não se trata de
aplicar as duas conexões cumulativamente, mas apenas a mais exigente. Isto é, a
conexão que for mais exigente vai absorver a menos exigente, pelo que só a
primeira se tem que verificar – naturalmente, se não forem radicalmente
diferentes.
P á g i n a | 36

De conflitos rígidas e flexíveis

Importa ter presente que ao longo dos tempos, a matriz do Direito de Conflitos, que vem
de Savigny34 tem sofrido diferenças. Savigny é que deu origem ao método hoje ainda largamente
usado, a que chamamos da conexão ou método conflitual ou técnica da regra de conflitos,
que consiste em procurar, para cada situação jurídica típica, o laço que mais estreitamente a
prenda a um sistema determinado. No tempo das codificações enunciadas por Savigny, essas
codificações assentavam em regras rígidas e puramente formais, não permeáveis a conceitos
materiais e de justiça material.
Hoje o que se defende é um procedimento pelo qual a conexão35 decisiva haja de
ressaltar dos fins a que o DIP, tomado como um todo, vai preordenando, assim como os
seus principais interesses ou valores que se joguem ou irrompam nos seus diferentes
capítulos.
Por esta razão de então para cá, duas das linhas de evolução do DIP, em particular do
Direito de Conflitos, consistiram numa flexibilização do Direito de Conflitos e por outro lado
numa maior permeabilização de considerações de justiça material.

Antes de mais, pensemos na ideia de flexibilização36 do Direito de Conflitos. Aquilo que


era, de acordo com o DIP clássico, a norma de conflitos, era a norma rígida37. A lei aplicável,
caso existisse, aplicava-se, ainda que houvesse pouca conexão. Se a lei aplicável era a lei do
lugar da prática de um facto, então seria sempre essa a lei aplicável, ainda que lesante e lesado
tivessem a mesma nacionalidade ou residência habitual, por exemplo. O Direito de Conflitos
assentava em regras de conflitos estabelecidas de forma rígida, sem qualquer margem
para que o aplicador do direito pudesse, de alguma maneira, ter um papel de modelação
da determinação da lei aplicável que não passasse por uma aplicação quase mecânica
dessas mesmas normas de conflitos. A conexão já estava pré-determinada pelos critérios da
própria norma e vinculavam o juiz a utilizar sem mais esse elemento de conexão, mesmo que no
caso concreto houvesse muito maior conexão com outro ordenamento.

As normas de conflitos rígidas determinam que, para certos casos, são


aplicáveis apenas determinadas ordens jurídicas.
As regras de conflitos flexíveis abrem mais hipóteses. Numa regra flexível o
legislador limita-se a oferecer ao aplicador do Direito algumas conexões, e depois o
aplicador escolhe qual a mais certa. Não é o mesmo que as conexões múltiplas
alternativas, porque aí só existirá uma aplicável. Aqui, o legislador permite que o
aplicador aplique uma ou outra lei, consoante os critérios estabelecidos na própria
norma.

34Savigny foi o pai da teoria do Direito de Conflitos enquanto Direito que busca encontrar a lei mais
estreitamente conexionada com a situação. O autêntico problema do DIP para Savigny era encontrar para
cada relação jurídica, à luz da sua própria natureza particular, a sua verdadeira sede.
35Como já mostramos na estrutura da norma, a conexão consite num elemento da factualidade
concreta: o ato jurídico fonte de obrigação, os factos do cumprimento/incumprimento, a coisa, móvel ou
imóvel, os sujeitos da relação ou a sua ligação a um pais, etc…
36 E das Open Ended Rules
37 Hard and Fast Rules
P á g i n a | 37

História
Bom, a evolução ocorreu, em particular, por influência de correntes doutrinárias
provenientes dos EUA, onde a orientação clássica do DIP nunca foi completamente aceite sem
discussão, e verdadeiramente nos EUA foram surgindo doutrinas, autores, que preconizaram
vias diferentes de solução. Ao contrário do que aconteceu nos países da Europa continental, em
que o DIP foi sendo codificado, nos EUA isso não aconteceu, e o que é que acontecia? Por outro
lado, os EUA são um Estado federal, com 50 Estados, cada um com o seu ordenamento jurídico.
Por outro, os EUA são um Estado de common law, onde o case law é muito importante. Assim, os
EUA são um país onde os interesses nacionais são tidos como muito relevantes.
Em que é que isso se traduziu? Diferentes correntes. A tendência substancialista é a
corrente onde se preconiza a intervenção no campo do DIP dos princípios e critérios de
justiça material, sendo uma tendência com diferentes cambiantes. A primeira caracteriza-se
pela importância que atribui à pesquisa de soluções materiais “ad hoc”, soluções ajustadas às
circunstâncias particulares das situações concretas. Esta via é claro hoje muito acabada porque
falha, mas revela-se no atual DIP com a adaptação que depois vamos ver que pode acontecer
nas situações de “vácuo ou cúmulo jurídicos”.

Uma delas, defendida por Currie, em que a resolução dos conflitos de leis deveria ser
feita em função dos interesses estaduais das ordens jurídicas em confronto.
Isto era a revelia do que temos dito sobre o atual DIP. A lei aplicável deveria ser
definida em função dos interesses estaduais ou governamentais subjacentes às diferentes leis
que de alguma maneira disputam a sua aplicabilidade a determinados litígios. No fundo, o
conflito de leis seria visto aqui como um conflito entre interesses estaduais, e bem
entendido, se a questão fosse analisada por um Tribunal americano e estivesse em causa uma
situação em que determinado interesse estadual aponta no sentido da aplicabilidade no
confronto com outra lei, qual é que deveria prevalecer? De acordo com esta lógica, a aplicação
da lei do foro teria grande predominância, isto por força da ideia de que o que temos que
fazer é analisar as normas materiais do foro, que seriam aplicáveis ao caso concreto, para saber
se há ou não interesse em aplicá-las. Isto conduz potencialmente ao alargamento do âmbito de
aplicação da Ordem Jurídica do foro.
A posição de Currie caracteriza-se pela negação do sistema da regra de conflitos sendo a
teoria claramente insustentável. Olvida por completo a intenção primordial do DIP que é a de
assegurar proteção às situações jurídicas internacionais privadas, devendo para isso promover o
seu reconhecimento no diversos países.38

Um outro autor americano importante é o Cavers, veio defender a ideia de acordo com a
qual, num conflito de leis, numa situação plurilocalizada, os critérios de decisão devem ser feitos
de modo a que se encontre não a lei mais bem posicionada, mas a melhor lei, a lei mais
justa, é a “better law approach”, mais adequada em função do caso. Ter-se-ia, portanto, que
fazer uma comparação entre as diferentes ordens jurídicas em confronto e escolher a que
conduza a resultado mais justo e correto.
Um dos argumentos contra a primeira doutrina é a de que ela parte da ideia que cada
norma jurídica editada por determinado Estado exprime um juízo sobre a sua aplicação sendo
imparcial sobre si mesma. Uma lei que determina que havendo um incumprimento do contrato o
credor tem determinado tipo de direitos relativamente ao devedor. Essa norma, para autores

38A teoria interessa no entanto para explicar a Normas de Aplicação Imediata que vamos referir dentro de
algumas páginas, onde o interesse do estado é tão preponderante que prevalece nesta lógica de Currie.
P á g i n a | 38

como Currie, permitia extrair consequências para aplicabilidade ou não a uma situação
internacional. Essa é uma crítica, porque na generalidade dos casos não é possível sabermos se
uma determinada lei quer ou não aplicar-se a uma situação internacional. Ela tem essa
virtualidade, mas saber se o Estado tem ou não interesse na sua aplicação, não é possível decidir
olhando apenas à norma em causa. Não é possível encontrar, na maioria dos casos, contributos
para saber se a norma quer ou não quer aplicar-se. Os critérios dependem dos autores. Há
autores que acham que não há critérios abstratos e caberia ao juiz no caso concreto decidir a lei
do caso concreto. Há autores que enunciam doutrinariamente critérios de preferência.
Contudo ainda que fosse possível prever todos os tipos de conflitos e os critérios, esses
critérios ou princípios teriam de ser de aceitação universal, o corpo das nações teria de o aceitar.
Mas é praticamente impossível alcançar isso. Cada nação tem critérios de justiça diferente. Como
definir um critério de solução de conflitos que escolha a lei mais justa na matéria de
admissibilidade e das causas do divórcio face às divergências existentes nos diverso países?
Além disso como diz Kegel, nem sempre será a melhor lei que convém mais às partes e as
expectativas das partes são um dos pontos que os valores do DIP pretendem salvaguardar.

Claro que este argumento da segurança jurídica vale para as duas teses – tanto do
interesse governamental como para as teses da melhor lei aplicável. Qualquer um destes
sistemas coloca nas mãos do aplicador do Direito uma margem grande de apreciação e coloca
nas mãos das partes uma situação de incerteza. Tanto uma corrente como a outra
promove a flexibilidade do DIP, mas à custa da segurança jurídica. Quando falamos em
flexibilidade, essa pode ser orientada em função de diferentes fundamentos. Esses fundamentos
podem residir nos interesses dos Estados, na justiça da solução ou pode residir de uma forma
menos rígida de chegar à conexão mais estreita. Temos é que ponderar que a flexibilidade é
sempre feita à custa de alguma certeza jurídica. Podemos chegar a uma solução mais
adequada na relação com o caso concreto, mas isso pode ter um risco, eventualmente a menor
previsibilidade das decisões.

Atualmente
O que é que encontramos na Europa? Um DIP que assume como principal
caractéristca a de procurar atinger os seus objetivos utilizando diferente meios ou vias
metodológicas. O seu metódo é hoje pluralista e multidimensional, sendo certo que no
fundamental a doutrina clássica (que olha só a segurança jurídica e é mais rígida) se mantém
inalterada e em vigor.

Assim, encontramos, por um lado, a figura das normas de aplicação imediata. Que são
normas precisamente materiais, que em função dos interesses específicos que prosseguem vão
determinar elas próprias o seu campo de aplicação. Esta referência a Currie não foi uma
referência sem interesse, porque há um eco na evolução do DIP na Europa, nomeadamente,
nas normas de aplicação imediata.
Há ainda normas que estão orientadas de acordo com a melhor lei, por exemplo, a
lei que melhor tutela o superior interesse das crianças, a lei que tutela melhor a parte mais
fraca numa situação jurídica, e encontramos exemplos disso no Regulamento Roma I, na relação
com consumidores, contratos individuais de trabalho, etc. Do ponto de vista técnico as coisas
P á g i n a | 39

não são desenhadas para escolher livremente a lei mais justa para tutela das partes, mas
a ideia de better law está subjacente à ideia de soluções estabelecidas.39

O que interessa dizer é que o DIP que hoje vigora em Portugal e na Europa, é um DIP
mais flexível do que aquele que existia anteriormente e é um DIP que comporta uma
relevância ao interesse estadual subjacente a determinado tipo de normas e ainda um
DIP que dá relevância à lei mais justa, entendida aqui como lei que tutela certo tipo de
pessoas, mas que continua a dar prevalência à segurança jurídica.
Portanto, hoje, as normas de conflitos deixaram de ser normas puramente rígidas e
normas puramente formais, no sentido de indiferentes quanto aos resultados a que chegam,
passaram a ser normas permeáveis à justiça material, permeáveis aos interesses estaduais, e
aspeto não menos importante, passaram a deixar de ser regras totalmente rígidas para serem
mas flexíveis.

Essa flexibilidade pode ter lugar para a própria tutela ou defesa no sentido da conexão
mais estreita, o que já vimos com a função designativa e corretiva do princípio da conexão mais
estreita. Isso é verificável, olhando para o artigo 4º do Regulamento Roma I.

Demonstração, artigo 4º Roma I


Vamos pensar que as partes no contrato não escolheram a lei aplicável, qual é a lei
subsidiariamente aplicável? O artigo 4º do Roma I tem vários números. O nº 1 enumera alguns
tipos de contratos mais frequentes, e relativamente a eles estabelece diretamente a lei
subsidiariamente aplicável. Nos termos do artigo 4º nº1 a), no contrato de venda de
mercadorias, aplica-se subsidiariamente a lei do país de residência do vendedor. O contrato de
prestação de serviços pela lei do país de residência do prestador. Na compra e venda de imóvel,
temos a lei onde o imóvel de situa.
Agora, o que é que acontece num contrato de compra e venda de mercadorias, quando o
vendedor tem residência num determinado país e o comprador em país diferente? O lugar de
entrega da mercadoria é o da residência habitual do comprador, foi escrito na língua do lugar da
residência do comprador, a entrega é combinada para o país da residência do comprador, o
contrato é celebrado no país do comprador. Todas as conexões do contrato apontam no sentido
da lei da residência habitual do comprador. Quid iuris? Aplicamos o artigo 4º nº3, que aponta
para uma conexão mais estreita. Nos termos do artigo 4º nº3, se resultar claramente do
conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente
mais estreita do que a indicada, então é aplicável a lei desse outro país.
Esta regra de conflitos do artigo 4º é flexível, no sentido que é permeável a uma
consideração de conexão mais estreita que inspirando a solução que é proferida pelo
legislador na escolha do elemento de conexão, autoriza afastar essa solução a favor de
outra, porque se entende que essa outra exprime uma conexão mais estreita com o caso. A este
tipo de cláusula chamamos cláusula de exceção ou de desvio. Este desvio ou exceção não se
orienta por razões de justiça material, mas apenas com a própria ideia de conexão mais estreita,
a ideia de que o contrato se encontra mais fortemente ligado com um país diferente daquele
inicialmente previsto.
Analisando o que cláusulas de exceção contribuem para a segurança jurídica, é

39 Ver o que dissemos em “Os Valores da Segurança e Justiça Material”


P á g i n a | 40

bom ou mau? Podemos analisar a dois níveis: antes ou depois da regra de conflitos.
Independentemente da norma de conflitos, é provável que as partes tomem como aplicável a lei
mais estreitamente conexionada com a situação, é esse o fundamento do princípio da conexão
mais estreita. A lei não se aplica por razões arbitrárias, mas porque presumimos que as partes se
orientaram por ela. Depois das normas de conflitos, entendendo que apenas as partes não são
apenas partes, mas têm consultoria jurídica, e aí, perante uma regra como a do artigo 4º, as
partes não conhecem apenas a regra, mas também a exceção. Ou seja, também aqui a certeza
jurídica não é totalmente afastada. É claro que há aqui uma margem de indeterminação,
porque vai ser o aplicador do Direito a decidir a norma aplicável, e a sua decisão não é
completamente segura.
Ora bem, vamos pensar que o contrato celebrado não era nenhum dos contratos
tipificados entre as alíneas a) e h) do artigo 4º. Segundo o nº2, que estabelece a regra geral, e a
regra é a de que não sendo o contrato nenhum dos elencados no nº1, então o contrato é regulado
pela lei do país onde o contraente que executa a prestação característica do contrato tem a sua
residência habitual. Qual é o elemento de conexão aqui? A residência habitual daquele que tem
que realizar a prestação característica do contrato. A prestação característica do contrato é a
que diferencia o contrato dos restantes. Nos contratos onerosos, o pagamento do preço não
diferencia esse contrato, a prestação característica é por isso a que se opõe ao preço. Isso
será um critério prático para nós percebermos qual é a prestação característica do contrato.

O conceito do contrato é autónomo, e é sujeita à jurisdição da TJEU. É um conceito


autónomo de DUE e não um conceito mais abrangente ou menos abrangente.

Pensemos na questão de saber se uma empresa portuguesa celebra com uma empresa
italiana um contrato de permuta de imóveis, situados em Espanha. Qual será a lei aplicável ao
caso? Artigo 4º nº1 c), o local onde está sito o imóvel. Agora, pensemos num contrato de
permuta de ações. Esse contrato não está individualizado nas alíneas do nº1, e então o critério
geral é o do nº2, ou seja, a aplicação da lei do país em que o contraente que deve efetuar a
prestação característica do contrato habita. Mas o contrato de permuta não tem uma
prestação característica. Sendo assim, qual é a consequência? A aplicação do nº4, a lei com a
qual apresente conexão mais estreita. O aplicador do Direito vai ter que aplicar, sem rede, a
lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita. Para estes contratos temos uma
solução flexível de determinação de lei aplicável. Essa conexão altamente subjetiva, sendo a
solução, e a lei que o Tribunal determinou como aplicável, possivelmente discutida – também
para isso, para eliminar esta incerteza, têm as partes a faculdade de determinar qual a lei
aplicável ao contrato que celebram.

Voltando ao caso dos imóveis, se num contrato de permuta de imóveis os imóveis se


situarem em países diferentes, então a alínea c) do nº1 do artigo 4º não nos resolve o
problema, o nº 2 também não, pelo que teremos mesmo de recorrer ao nº 4. Para que a
exceção do nº 3 opere, tem o nº 1 ou o nº 2 de ser aplicável, ou porque o contrato é um dos
tipificados nas alíneas a) a h) do nº 1 ou porque podemos identificar a prestação característica
do contrato, tal não sendo possível, é o nº 4 que vem resolver a situação.

No artigo 4º deste regulamento temos uma regra de conflitos flexível e esta


flexibilidade utiliza duas técnicas distintas:

i) a técnica da cláusula da exceção no nº 3


ii) a técnica da atribuição ao aplicador do direito da possibilidade de escolher a lei
aplicável sem rede ou sem qualquer ajuda, presunção ou indicação prioritária
P á g i n a | 41

de caminho no nº 4, sendo que este nº 4 é semelhante quanto ao modo de


determinação da lei aplicável ao nosso artigo 52º nº2 2ª parte CC. Nestes
casos, ao Tribunal vai caber ponderar todas as circunstâncias do caso e optar por
uma determinada lei.

De conexão substancial e normas de conflitos localizadoras

Apesar de as regras de conflitos serem predominantemente “regras localizadoras”, é


possível encontrar, no âmbito do DIP, regras perpassadas por um propósito de justiça material –
mais propriamente designadas regras de conflitos materialmente orientadas ou de
conexão substancial.
Ex: artigo 65º do CC: nele, o legislador consagrou uma discricionariedade vinculada ao
resultado. Nos termos deste preceito, aplicar-se-á a lei que favorecer a validade (formal) da
sucessão. A técnica consagrada é uma técnica de conexão alternativa. O princípio da conexão
mais estreita foi relevante na escolha das leis alternativamente aplicáveis, mas este preceito é
ainda orientado por considerações de justiça material, na medida em que a solução
normativa concretamente aplicável depende dos efeitos jurídicos produzidos, no domínio
das situações jurídicas concretas, por cada uma das leis alternativamente aplicáveis

Assim as normas de conflitos de conexão substancial são as normas de conflitos que


na técnica quanto à determinação da lei aplicável fazem operar fatores ligados à justiça
material. As normas que mandam aplicar determinada lei em função da tutela da parte mais
fraca – consumidor, segurado, etc. – são normas de conflitos que não deixando de ter uma
dimensão de localização espacial da situação, a determinação final da lei não deriva apenas
da conexão mais estreita, mas também de valores jurídico-materiais. Além disso, como já
referimos, DIP atual não determina a lei aplicável por critérios totalmente alheios ao conteúdo
das soluções, pondera o conteúdo para a determinação da lei aplicável.

A maioria das regras de DIP destina-se a situar as relações da vida internacional


e as questões jurídicas delas emergentes na órbita de determinado sistema de
direito, sendo por isso normas localizadoras. No entanto, noutras regras opera
a escolha da lei em função do resultado material a que levaria a aplicação
das diversas leis envolvidas, são as regras de carácter substancial.

Nós vimos que além desta questão o DIP também se dedica à questão de saber se os
tribunais de determinado Estado são competentes para dirimir um litígio.
O problema da competência internacional dos DIP integra a nossa disciplina e tem
relevância prática. Para além deste também sabemos que o direito do reconhecimento e
execução de sentenças estrangeiras também é importante, porque estamos em Portugal, mas as
situações privadas internacionais têm contactos com várias ordens jurídicas. A solução que
obtemos no nosso país, a sentença, importa saber se essa decisão é ou não suscetível de produzir
efeitos noutros ordenamentos. É importante, positivo, que esta decisão judicial produza
efeitos nas outras ordens jurídicas, porque se não produzir, o que nós temos é a
P á g i n a | 42

subsistência de uma situação de incerteza quanto ao Direito aplicável e quanto aos


direitos e deveres específicos das partes. Se não reconhecêssemos as sentenças estrangeiras
tínhamos que litigar de novo perante tantas ordens jurídicas como aquelas em que fosse
necessário fazer valer a decisão. Se o estado civil de divorciado da pessoa não fosse reconhecido
nos diferentes países, sendo necessário que em cada país se interpusesse uma nova ação de
divórcio, haveria um decisões contraditórias. É necessário que se reconheça efeitos a sentenças
provenientes de diferentes países, que se atribua eficácia às decisões jurisdicionais proferidas no
estrangeiro.

Normas de Aplicação Imediata

Vamos ver uma segunda via possível de regular as situações privadas internacionais
além das regras de conflitos que analisámos em termos genéricos. Vimos as normas de conflitos
de leis, que tipos de normas existem, vimos que esse é o modo normal de resolver o problema do
conflito de leis – entre as leis potencialmente aplicáveis – mas, essa não é a única via possível de
regular as situações privadas internacionais.
Pelo contrário, e foi também para isto que explicámos a posição Currie, aquilo a que
assistimos no último meio século, é uma expressão do intervencionismo estadual.
Todos sabemos que por referência ao paradigma individualista liberal predominante no
século XIX, o século XX veio introduzir formas de intervenção estadual nas relações privadas –
quer nas relações patrimoniais, quer nas relações interindividuais, na regulamentação do Direito
das Pessoas. Isto significa que, sobretudo por intervenção do Estado nas relações económicas, ao
lado do princípio da autonomia privada foram sendo introduzidos elementos de tutela
imperativa das situações jurídicas, designadamente das privadas.
Portanto, a evolução foi no sentido de esbatimento entre esses dois mundos que
classicamente eram separados – o do Direito Público e o de Direito Privado – que antes eram
separados e hoje essa distinção não é tão operativa, na medida em que existem, por um lado,
fenómenos de publicização das relações jurídicas privadas, não apenas no Direito do
Trabalho, mas também no Direito das Obrigações. Também existe privatização de relações
jurídicas públicas, através da utilização de formas jurídico-privadas para tutela de interesses
públicos e prossecução de bens públicos, pela privatização de serviços públicos, etc.

Para a nossa disciplina interessa saber e ter presente que, para lá desta escolha da lei
aplicável por intermédio das normas de conflitos gerais, que tendencialmente cai procurar
encontrar a OJ mais estreitamente ligada à situação, vamos encontrar desvios a este modo
prioritário para resolver as relações jurídicas privadas internacionais.

Um desses desvios é subtrair certas normas materiais do jogo normal das regras de
conflitos. Ou seja, entre as normas materiais potencialmente aplicáveis, há normas dotadas de
força particular, de uma intensidade específica, que levam a que essas normas não
estejam inteiramente submetidas à aplicabilidade das regras de conflitos gerais,
passando por cima delas.
Então, por força da intervenção estadual nas relações jurídicas privadas, vai ser exigido
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que a aplicabilidade de certas normas não esteja dependente da lei imperativa competente
indicada pela regra de conflitos. Vamos encontrar as normas de aplicação imediata.

Identidade

As normas de aplicação imediata são normas materiais40. Sendo que normas materiais
aqui significa que não têm como objeto direto a determinação da lei aplicável. As normas de
conflitos visam encontrar a lei competente, as normas materiais indicam um caminho direto
de composição dos interesses em jogo, dão uma resposta substantiva ao problema
jurídico-substantivo subjacente. Quer dizer, se o problema é um problema contratual, dizem-
nos se as partes podem ou não celebrar aquele contrato, dizem-nos se podem utilizar um
determinado meio de pagamento, se podem estipular o prazo de pagamento de determinada
maneira. As normas materiais vão dizer-nos que consequências têm o incumprimento do
contrato, que vias é que o credor dispõe para reagir perante o incumprimento, etc. Todas essas
normas são normas materiais, que dão a resposta direta ao conflito de interesses substantivo,
subjacente às questões que surgem entre pessoas de natureza privada.
Ora bem, então, as normas de aplicação imediata começam por ser normas materiais,
são normas que, tais como as que já vimos, dão uma resposta direta ao conflito de
interesses material subjacente, tal como a generalidade das normas que analisámos nas
outras cadeiras.

Atuação. Relação com as normas de conflitos

Estas normas materiais, no fundo, são aplicáveis mesmo que a OJ a que elas pertencem
não seja considerada competente pelo jogo normal das regras gerais de conflitos.
As normas de aplicação imediata são normas que pelo seu conteúdo, função,
interesses que tutelam e pela relevância que têm na economia da OJ41 a que pertencem, vão
beneficiar de um estatuto particular, que lhes garante uma aplicabilidade independente da
normal determinação da lei aplicável por força das regras de conflitos gerais.

A regra geral, como bem já sabemos, no domínio do Direito Privado é que as normas
materiais são supletivas42. Em princípio, se outra coisa não decorrer da interpretação da norma,
as normas não são imperativas. Se a interpretação das normas implicar que são imperativas,
então não podem ser afastadas pela vontade das partes. No regime do contrato de agência, por
exemplo, temos normas materiais que se destinam a tutelar o agente, sobretudo no momento da

40 Por contraposição a “normas de conflitos”.


41Também como defendia Francescakis: são normas que a sua observação é necessária para a
salvaguardar a organização política, social ou económica do país. Encontramos por isso mesmo
muitas destas normas de aplicação imediata no campo da legislação de carácter económico-financeiro.
42No direito público todo o que não é permitido é proibido. Ao contrário, no direito privado todo o que
não é proibido é permitido.
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cessação do contrato. Essas regras não são apenas regras imperativas no plano interno43.
Não basta que as normas sejam imperativas para que sejam de aplicação imediata.
Uma coisa é a imperatividade no plano interno, e outra coisa é a imperatividade no plano
internacional. No plano internacional apenas há imperatividade quando esta se dirija não apenas
às partes, mas se dirija também à determinação da lei aplicável. Dirige-se aos órgãos de
aplicação do Direito, determinando que as normas devem subsistir não apenas perante e
contra a vontade das partes, mas também perante e contra as regras gerais de conflitos,
potencialmente, em oposição aos critérios gerais de determinação da lei competente.

Assim, as normas de aplicação imediata, são normas materiais, são normas que se
dirigem a encontrar uma solução substantiva para o problema subjacente, mas que paral além
disso têm “maior força”44 relativamente à generalidade das normas substantivas. São
internacionalmente imperativas: exigem e impõem a sua aplicabilidade mesmo em
confronto com as regras gerais de conflitos, mesmo se entrarem em colisão com as regras
gerais de determinação da lei aplicável.

Mas isto, só por si, também não chega para compreendermos completamente o conceito
e modo como operam estas normas, porque o facto de determinada norma material ser de
aplicação imediata não significa que estas normas se apliquem sempre e em todas as
situações. Estas normas não têm a pretensão de regular para todo o mundo as situações
que cabem na sua previsão material. Exigem é aplicar-se quando exista uma determinada
conexão/ligação com a ordem jurídica a que pertencem, ou seja, vamos pensar numa norma
concreta para exemplificar. No regime jurídico do Contrato de Agência45 existe o seu artigo
38º, no qual se lê:

“Artigo 38º Aplicação no espaço

Aos contratos regulados por este diploma que se desenvolvam exclusiva ou


preponderantemente em território nacional só será aplicável legislação diversa da
portuguesa, no que respeita ao regime da cessação, se a mesma se revelar mais vantajosa
para o agente.”

Este preceito reporta-se a certas normas deste diploma do Contrato de Agência sobre a
cessação do contrato, e essas é que são as normas materiais em causa, que estabelecem um
regime favorável ao agente. O artigo 38º vai definir quando é que estas normas sobre a cessação
do contrato de agência devem prevalecer sobre a determinação normal da lei aplicável, e
dizem isto: “aos contratos regulados por este diploma que se desenvolvam exclusiva ou
preponderantemente em território nacional”, estas regras de proteção do agente não se
aplicam a todos os contratos de agência, independentemente do lugar onde os contratos se
desenvolvem. O que este diploma exige é que nos casos em que os contratos se desenvolvem

43Como já sabemos no plano interno as normas imperativas são aquelas que não podem ser derrogadas
por vontade das partes, que se opõem às normas supletivas. As partes podem afastar a aplicabilidade
das normas supletivas, mas se não o tiverem feito, têm que se comportar com o que essas exigem.
Mas podem afastar a aplicabilidade das normas supletivas por acordo. Já as normas imperativas não são
suscetíveis de serem afastadas por vontade das partes.
44 O Professor Luís Barreto Xavier chamou-lhe um “plus”.
45 Decreto Lei 178/86. Falámos dele no semestre passado em Direito Comercial.
P á g i n a | 45

exclusiva ou preponderantemente em Portugal, o regime de proteção do agente é


obrigatoriamente aplicável, ainda que a lei aplicável por força das regras de conflitos ao
contrato de agência em geral seja a lei estrangeira. Pode até haver uma lei escolhida pelas
partes, e essa regulará o contrato de agência em geral, mas no que toca à cessação do contrato,
se o contrato se desenvolver exclusiva ou preponderantemente em território português, será
aplicável a lei portuguesa, a não ser que a lei estrangeira se revele ainda mais favorável ao
agente do que a lei portuguesa.46
A norma de aplicação imediata aqui não é propriamente o artigo 38º, o artigo 38º vai é
transformar as normas do contrato de agência em normas de aplicação imediata, e essas
normas têm como objetivo não propriamente a segurança jurídica nas situações privadas
internacionais, mas a tutela da justiça material tal como entendida no Direito do foro.

Vamos ver outro exemplo, o das cláusulas contratuais gerais. A lei das CCG47
estabelece um conjunto de regras que têm como objetivo a tutela do aderente. Todos nós temos
a experiência de contratar com outras partes – normalmente grandes empresas – que não vão
discutir connosco o conteúdo do contrato, vão apenas apresentar o clausulado, que podemos
apenas aceitar ou não aceitar. Portanto, as CCG, que são um instrumento necessário, são também
um instrumento que comporta riscos para os contraentes individuais, na medida em que esses
são colocados em situações tais que não têm outra hipótese senão aceitar o predisposto pelas
empresas que estabelecem o clausulado, reduzindo a liberdade contratual a celebração ou não
celebração, que ainda se reduz mais quando não exista concorrência. No fundo, o que se
pretende desde logo, é que certo tipo de cláusulas que são tipicamente estabelecidas não sejam
permitidas – as que estabelecem condições manifestamente injustas ou desproporcionadas –
portanto, são absoluta ou relativamente proibidas. Por outro lado, na Lei das CCG encontramos
também deveres de informação para que as partes tenham o efetivo acesso e compreensão
daquilo que estão a assinar – por exemplo, pela contratação eletrónica.
Há neste diploma muitas regras imperativas estabelecidas, que levam a estabelecer
parâmetros para aceitação ou não aceitação de cláusulas, e deveres quanto à genuinidade,
quanto à escolha das partes. Estas disposições são imperativas, internamente, mas além disso,
elas também beneficiam de uma garantia ulterior no plano do DIP, na redação atual da Lei
das CCG, determina o artigo 23:

“Artigo 23º Direito aplicável

1 – Independentemente da lei escolhida pelas partes para regular o contrato, as normas


desta secção aplicam-se sempre que o mesmo apresente uma conexão estreita com o
território português.

2 – No caso de o contrato apresentar uma conexão estreita com o território de outro Estado
membro da Comunidade Europeia aplicam-se as disposições correspondentes desse país na
medida em que este determine a sua aplicação.”

46Em princípio, impõe-se a aplicação da lei portuguesa porque ela tutela o agente, mas se uma lei
estrangeira tutelar ainda mais o agente, permitimos que essa aplicação da lei estrangeira tenha lugar –
princípio da tutela da parte mais fraca.
47 Doravante Cláusulas Contratuais Gerais
P á g i n a | 46

Enquanto no exemplo anterior, do contrato de agência, tínhamos uma definição do


âmbito espacial de aplicação das normas materiais sobre a tutela do agente no momento da
cessação do contrato – o diploma era aplicável quando o contrato se desenvolvesse exclusiva ou
predominantemente em Portugal – no artigo 23º, o que se apresenta como condição necessária
é que exista uma conexão estreita com o território português. Ou seja, qual é a diferença dos
dois casos? No caso anterior determina-se o elemento de conexão relevante, e aqui basta que
exista uma conexão estreita com o território português. É necessário que seja a conexão
mais estreita? Não, basta uma conexão estreita48. É necessário que exista uma proximidade
entre o contrato e o território português, mas isso pode resultar de diferentes indícios, e não é
obrigatório que os indícios apontem esmagadoramente para o Direito português. O que é
comum é que o legislador não estabeleça, de forma direta, um elemento de conexão, apelando
para a ideia genérica de conexão estreita.
O nº2 do artigo 23, que não existia na redação inicial, surge porque houve diretivas
europeias que determinaram o regime a aplicar nestas hipóteses e que tiveram que ser
transpostas para o Direito interno. Isto porque era importante que se pudesse aplicar a lei de
outro estado-membro, se essa lei se quisesse aplicar.
Se o caso apresenta uma conexão estreita com a ordem jurídica portuguesa, aplicamos as
normas de aplicação imediata portuguesas, mesmo que as regras de conflitos indiquem outra lei.
Se não tiver uma conexão estreita com a ordem jurídica portuguesa, ainda assim, vamos ter que
aplicar as normas de aplicação imediata de um outro estado-membro, se houver a conexão
estreita e na medida em que esse estado-membro tenha destinado a sua aplicação – nesse
estado-membro têm que ser normas de aplicação imediata.

Quanto ao direito real de habitação periódica, previsto no DL 275/93, no seu artigo


60º, temos normas de aplicação no espaço:

“Artigo 60º Aplicação no tempo e no espaço

(…)

8 – Se a lei aplicável for a lei de um país terceiro ao da União Europeia, o consumidor não
pode ser privado da proteção conferida pelo disposto neste decreto-lei quando:

a) O bem imóvel se encontre situado no território de um Estado membro;

b) Nos restantes casos, o vendedor exercer a sua atividade de comércio no território de um


Estado membro ou dirigir por qualquer meio essa atividade para o território de um Estado
membro.”

Convém contextualizar: trata-se da possibilidade de fracionar o direito de habitação em


períodos de tempo limitados em cada ano – os adquirentes adquirem um direito de habitação de
determinado imóvel, em geral em empreendimento turístico, e esse direito é compatível com a
existência de outros direitos, de outras pessoas, em habitarem o mesmo imóvel em outros
períodos do ano. Acontece que, no plano prático, sobretudo desde algumas décadas, houve um
grande abuso na comercialização destes direitos. Ou seja, havia empresas que – como as pessoas

48O requisito para utilizar a lei portuguesa é por isso muito menos apertado. Existe maior margem para o
interprete considerar aplicação desta NAI.
P á g i n a | 47

não iam comprar um imóvel, mas apenas o direito a habitar uma fração – faziam com que as
pessoas adquirissem os direitos antes do empreendimento concluído e com características
diferentes das contratadas. Estabeleceram-se então regras limitadoras, que exigiam uma série
de requisitos para que se pudessem comercializar estes direitos, estabeleceu-se uma
possibilidade de resolução dos contratos em determinado prazo – sem fundamento – para
garantir uma liberdade contratual efetiva.
Estas regras de proteção do adquirente não apenas beneficiaram do caráter
imperativo, também beneficiaram do caráter de aplicação imediata.

Há aqui dois casos em que estas normas, que protegem o consumidor, são
imediatamente aplicáveis – são as normas de proteção do consumidor que são normas de
aplicação imediata. É claro que podemos analisar criticamente a redação, que devia estar
alinhada com o modo como está feito o diploma das CCG, porque não faz sentido aplicar a
proteção conferida pelo Direito português a um adquirente de imóvel situado no
estrangeiro, quando o vendedor exerça a sua atividade num estado-membro, mas é isso
que o diploma manda aplicar.49 Ou seja, o que o legislador devia ter feito, era dizer: se o imóvel
está localizado em Portugal aplica-se este diploma quanto às normas de proteção do
consumidor, o mesmo se o vendedor dirige a sua atividade ou a exerce em Portugal, mas se
dirige a atividade para outro estado-membro, devem aplicar-se as regras de tutela do
consumidor desse estado membro, desde que essas tenham natureza de aplicação imediata.
O legislador aqui só dá duas alternativas: aplicar a lei portuguesa – porque como a
tutela é harmonizada no espaço europeu, aplicar a lei portuguesa é praticamente o mesmo que
aplicar a lei de outro estado-membro – ou então entendemos uma interpretação corretiva da
norma e damos relevância à tutela do adquirente prevista na legislação do estado-
membro onde está situado o imóvel ou para o qual dirige a atividade comercial o
vendedor, à semelhança do que acontece nas CCG.

Vamos testar as noções que demos supra com as definições presentes nos Regulamentos
da UE. No Regulamento Roma I, existe um artigo com a epígrafe “normas de aplicação
imediata”

“Artigo 9º

Normas de aplicação imediata

1. As normas de aplicação imediata são disposições cujo respeito é considerado


fundamental por um país para a salvaguarda do interesse público, designadamente a sua
organização política, social ou económica, ao ponto de exigir a sua aplicação em qualquer
situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro
modo seria aplicável ao contrato, por força do presente regulamento.”

O artigo 9º do R.Roma I50 começa por dar o objetivo destas normas: a salvaguarda do
interesse público. Nos exemplos que apresentamos, como do artigo 23º da lei das CCG e o 60º

49Porque repare-se o artigo tem como consequência a aplicação da lei portuguesa “o consumidor não
pode ser privado da proteção conferida pelo disposto neste decreto-lei” mesmo nos casos em que a conexão
esteja toda noutro estado membro que não Portugal. O que é questionável.
50 Para ver uma maior exposição sobre o artigo 9º, em especial do seu nº2 e nº3, ver “Regime” infra.
P á g i n a | 48

do direito a habitação periódica, também está em causa o interesse público, mas não só,
porque o interesse privado do contraente também é protegido.
É impossível distinguirmos normas quanto aos interesses que tutelam, como defendia
Oliveira Ascensão, não há uma linha radical de fratura entre os interesses públicos e
privados, o interesse público corresponde pelo menos indiretamente aos interesses
particulares, por sua vez os interesses particulares são protegidos porque há um
interesse público nesse sentido. As normas de Direito Privado, embora tutelem interesses
privados diretamente, não deixam de tutelar interesses públicos. Portanto, a observação de que
esta norma estar a dizer que as normas de aplicação imediata são disposições cujo respeito é
considerado fundamental para a salvaguarda do interesse público, não é acrescentar muito. A
diferença entre interesse particulares privados pode ser uma diferença de grau, e essa pode ser
quase impossível ou absolutamente impossível de distinguir, porque até certas normas podem
prosseguir interesses políticos, sociais ou económicos relevantes e não terem natureza de norma
de aplicação imediata.

Isto leva-nos a dizer que o importante neste artigo 9º do Regulamento Roma I é a


segunda parte da norma, que tem a ver com a característica conflitual da norma, isto é, a
suscetibilidade de se aplicar independentemente das regras gerais de conflitos.
Portanto, verdadeiramente, o principal critério para o efeito de distinguir uma norma de
aplicação imediata, é saber se essa norma visa ou não aplicar-se independentemente do
direito geral de conflitos.

Ferrer Correia diz que as NAI são providas de uma regra de extensão
(regra de conflitos unilateral) do seu âmbito de aplicação para além
daquele demarcado ao respetivo sistema jurídico pela regras de conflitos
gerais desse sistema.

Técnica Legislativa

O legislador faz uma norma ser de aplicação imediata exigindo que haja um elemento
de conexão com a ordem jurídica da norma de aplicação imediata, e dizendo que, quando
esteja verificado o elemento de conexão, têm que se verificar os efeitos da norma de
aplicação imediata. O legislador vai indicar determinado tipo de conexão com a ordem jurídica
a que pertence e vai entender que, existindo essa ligação, essa norma material vai impor a sua
aplicação, com prevalência sobre o direito geral de conflitos.51
A técnica utilizada está em definir um determinado tipo de ligação – estabelecer um
elemento de conexão ad hoc52, porque não é o elemento de conexão que coincide com a regra
geral de conflitos – mas é um elemento específico para aquela norma de aplicação imediata.
Ou, em alternativa, sendo que esta alternativa aparece com menor frequência, em lugar de
estabelecer um elemento de conexão específico, vai estabelecer a necessidade de existir uma
conexão estreita – não uma qualquer conexão, mas tipicamente uma conexão estreita.

51 Pensamos que era a isto que Ferrer Correia chamava “regra de extensão”.
52 “para um fim específico”
P á g i n a | 49

Assim, em alguns casos é o próprio legislador que diretamente estabelece o elemento de


conexão necessário para que a norma de aplicação imediata se aplique – por exemplo: o país
onde se produzem efeitos de determinada atuação, o lugar de determinado imóvel, etc. Tudo isso
são aspetos da factualidade concreta que vão ser tidos como relevantes para determinar a
aplicabilidade prática. Noutros casos, o legislador limita-se a estabelecer a necessidade de uma
conexão estreita ou significativa. Ou seja, cabe ao intérprete apurar se existe ou não essa
conexão estreita. Não é necessário que se conclua que o ordenamento jurídico a que pertence
essa norma seja o ordenamento jurídico estreitamente conexionado, trata-se apenas de dizer
que quando exista conexão estreita, essa norma material é obrigatoriamente aplicável,
imperativamente aplicável no plano internacional.

Implícitas
Ora bem, vamos admitir que temos uma determinada norma, material, pertencente à
ordem jurídica do foro, e precisamos de averiguar se essa norma é ou não de aplicação imediata.
Para tal temos de verificar se a norma preconiza a sua prevalência mesmo em
situações em que a norma de conflitos não a aplica. Temos que ver se há alguma parte da
norma ou disposição acessória que transforme normas materiais em normas de aplicação
imediata. Apuramos o caráter de norma de aplicação imediata, apurando se existe a norma de
conflitos de conexão ad hoc ou norma de conflitos unilateral. Portanto, esse é o primeiro passo.

A questão que se coloca, mais complicada, é a de saber o que é que pode acontecer
se a norma material não está acompanhada de uma norma de conflitos unilateral ad hoc
explícita.

Se não existe a disposição acessória consagrada na lei, de forma expressa, pode ou não o
interprete partir da ratio legis, do escopo da norma material, e descobrir, por
interpretação da norma, que essa teleologia da norma só pode ser verdadeiramente
prosseguida se for entendida como norma de aplicação imediata? Ou seja, a questão é de
saber se é ou não possível que uma norma de aplicação imediata não tenha a tal regra de
conflitos unilateral ad hoc explícita, no próprio teor da lei, e seja meramente implícita,
deduzida a partir da sua ratio.

Analisando a questão podemos dizer que seria uma posição atentatória da certeza
jurídica, dado que o Direito não se dirige apenas aos juristas mas a todos. Temos contra a
possibilidade de descobrirmos um caráter de aplicação imediata implícito na norma, a ideia de
certeza jurídica, que é comprimida se nós admitirmos esta possibilidade.
Mas o Professor Luís Barreto Xavier entende que certos tipos de considerações de
justiça material podem obrigar a que a norma tenha uma prevalência sobre as regras
gerais de conflitos, mesmo quando comprimindo a segurança jurídica. Exemplo dado por
este professor como paradigmático é o do artigo 875º do Código Civil. A norma, já por nos bem
conhecida de outras andanças no direito, determina que o contrato de C/V de imóveis carece
obrigatoriamente de determinada forma, que pode ser escritura pública ou documento
particular autenticado.
Vejamos, um contrato de C/V sobre um imóvel situado Portugal celebrado no
estrangeiro, por mero documento particular não autenticado, acompanhado de duas
testemunhas, se obedecer à forma prevista no país de celebração do contrato, poderá ser válido
relativamente à forma? Para responder a esta pergunta no fundo temos de saber porque é que se
P á g i n a | 50

exige a escritura pública ou documento particular autenticado, isto é analisar a ratio,


interpretando a norma do 875º. Podemos dizer que a ratio da norma é a seguinte:

1) Primeiramente, pelo registo que é necessário para estabelecer segurança no


comércio local de bens valiosos como os imóveis.

2) Depois há uma questão de ponderação das partes, porque a redução a escrito implica
uma maior ponderação. Há ainda uma garantia, da prova do consenso das partes.

3) A necessidade de documento autenticado previne ainda o risco de falsificação de


uma assinatura, por exemplo. Um documento particular não autenticado pode ser
sujeito à falsificação, e isso estar na base da transmissão de propriedade pela C/V
pode ser negativo.

Agora, atentando as estas três razões subjacentes à exigência de forma, em Portugal,


deveremos aceitar a celebração de um contrato de C/V de imóvel por efeito de um documento
particular não autenticado? Ou devemos entender que embora o artigo 875º nada diga quanto
ao âmbito espacial, ele tem implicitamente uma vocação de aplicação sempre que a situação
tenha como ordem jurídica portuguesa o lugar do imóvel? Percebemos por aqui a posição do
Professor Luís Barreto. De facto, entende que o artigo 875º é uma norma de aplicação
imediata porque as considerações que estão na sua base devem valer de forma
obrigatória para todos os imóveis situados em Portugal, porque atendendo a todo o regime
a que estão sujeitos os imoveis em Portugal este não deve ser facilmente subversível através de
uma forma menos solene que não garanta a certeza jurídica na transação, embora haja um
eventual prejuízo para a certeza jurídica quanto à lei aplicável. Mas aqui o risco é haver incerteza
quanto à efetividade do consenso. Daqui, de alguma maneira, podemos, exemplificar esta ideia
de acordo com o qual, certas normas, pela especial relevância dos interesses que tutelam
mas sobretudo porque a tutela desses interesses supõe um campo obrigatório de
aplicabilidade no espaço, certas normas podem ser normas de aplicação imediata não por
força de uma expressa imposição legislativa, mas por força da sua interpretação
teleológica, ou seja, por força da descoberta da sua ratio e da ideia que da ratio legis decorre um
campo de aplicação espacial obrigatório.
Podemos estar de acordo ou não, e há doutrina nos dois sentidos.

O Professor Luís Barreto Xavier não defende que todas as normas imperativas são
normas de aplicação imediata, porque isso seria ir contra o DIP – o nosso ordenamento não
tem soluções mais justas do que os restantes. Isso só seria possível num contexto de privilégio
desproporcional da aplicação da lei do foro. A determinação da lei aplicável serve para
determinar o direito imperativo aplicável, e por isso, na dúvida, não podemos presumir o
caráter de aplicação imediata. Pelo contrário, para descobrirmos uma norma de aplicação
imediata que decorra implicitamente da interpretação, temos que demonstrar a partir da
razão de ser da norma que a sua ratio só pode ser atingida com a obrigatoriedade da sua
aplicação sempre que se verifique determinado tipo de conexão com a ordem jurídica a
que pertence.
Portanto, nos casos de dúvida, não podemos descobrir normas de aplicação imediata, o
P á g i n a | 51

que nos levava à possibilidade de encontrarmos determinada norma de aplicação imediata não
seja multiplicada, não possa ser disseminada sob pena de subversão do sistema.53

Um outro exemplo de norma que alguns autores consideram ser de norma de aplicação
imediata implícita é a do artigo 1682º-A/2.
No artigo 1682º-A temos uma disposição que se refere a atos que carecem do
consentimento de ambos os cônjuges. Temos o nº1, que é a regra geral, que determina que a
generalidade destes atos relativos a imóveis carece do consentimento de ambos os cônjuges,
salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens. Já o nº2 refere-se ao regime particular
de que beneficia a casa de morada de família. Os atos de disposição da casa de morada de família
só podem ser praticados com consentimento de ambos os cônjuges independentemente do
regime de bens considerado, porque esta beneficia de particular tutela por parte do Direito.
Para alguns autores, na esteira do professor Marques Dos Santos, que foi quem mais
se debruçou sobre as normas de aplicação imediata, esta norma é um exemplo de norma de
aplicação imediata, sendo que na perspetiva dele se aplicaria sempre que a casa de morada
de família estivesse situada em Portugal.
Neste caso, o Professor Luís Barreto Xavier não acompanha a perspetiva do
professor Marques Dos Santos, porque apesar deste artigo ser uma disposição imperativa no
plano interno e não poder ser afastada por vontade das partes, nem pela escolha do regime de
bens, não se vê nenhuma ligação espacial entre a ratio legis e a localização da residência
em Portugal. O professor Marques Dos Santos até ia mais longe, em determinado sentido,
entendendo não apenas que esta norma se aplicava obrigatoriamente quando a casa de morada
de família se situasse em Portugal, mas que não se devia aplicar se a casa de morada de família
se situasse no estrangeiro, ainda que a lei que regulasse o casamento fosse a lei portuguesa.
Começando pelo fim, o Professor Luís Barreto Xavier não vê porque é que a proteção da casa de
morada de família não pode ter lugar se os cônjuges portugueses residem no estrangeiro, desde
que a lei portuguesa reja o casamento, por força das regras gerais de conflitos. Em segundo
lugar, também não entende, que se a casa de morada de família está em Portugal, o Direito
estrangeiro em causa não possa reger a situação, porventura não exigindo esse consentimento.
Porque é que pelo facto de a casa de morada de família estar situada em Portugal se vai obrigar,
neste caso, à aplicabilidade da lei portuguesa, mesmo que a lei que rege a relação entre os
cônjuges seja estrangeira? Não há uma relação entre a ratio legis e a aplicação espacial da
lei portuguesa. Nestas situações não há um certo ou errado, o Direito é uma ciência
argumentativa.54

53O Professor Ferreira Pinto conclui também que fora dos casos em que a norma seja expressa, em
princípio o juiz só deverá concluir tratar-se de NAI naquelas hipóteses em que tal carácter seja
manifesto e, além disso, quando possa deduzir com segurança o elemento de conexão por ela
exigido,
54Barreto Xavier: Em suma, apesar das considerações judiciosas, que levariam a não entender que o
intérprete possa considerar determinada norma material como de aplicação imediata, se a regra de
conflitos unilateral ad hoc não está explicitamente editada pela própria lei, apesar de estas considerações
sobre a certeza jurídica quanto à lei aplicável serem relevantes, outras considerações de justiça material,
que concedem uma tutela que nunca seria conseguida se não passasse por uma definição de um campo de
aplicação espacial obrigatória, devem possibilitar a descoberta de normas de aplicação imediata
implícitas no sistema. Tal não significa que possamos presumir que todas as normas imperativas,
por muito relevantes que sejam os seus interesses, sejam consideradas normas de aplicação
imediata. Pelo contrário, a regra é que só muito excecionalmente é que uma norma material deve ser
considerada de aplicação imediata.
P á g i n a | 52

Bilateralização

Como dissemos supra, o professor Ferrer Correia diz-nos que as NAI têm uma regra de
extensão unilateral. As NAI contêm uma norma de conflitos unilateral ad hoc. Isto talvez faça
levantar duas questões.

A primeira questão é saber se a NAI é mesmo uma norma unilateral, Caquis admitia um
unilateralismo parcial na medida em que, atribuindo embora algum espaço à intervenção de
regras unilaterais, não negava, contudo, legitimidade às regras de conflitos bilaterais, que
continuariam a coexistir com elas. Também a grande maioria da doutrina dá resposta
positiva a esta questão e de facto, definindo-se a regra unilateral como aquela que se
propõe apenas a delimitar o domínio de aplicação das leis materiais do ordenamento
onde vigora, tudo indica que na NAI se contenha, pelo menos implicitamente, uma norma
deste tipo. Por vezes, tal regra de conflitos encontra-se mesmo autonomizada da regra material,
constando de uma disposição anexa como já vimos também nos exemplos supra.
Mesmo que se reconheça algum particularismo a esta categoria de normas, isso não
retira que elas só visem delimitar, pelo menos prima facie, a sua própria esfera de competência e
não também a das correspondentes normas estrangeiras. Donde se conclui tratar-se de regras
de conflitos unilaterais, ainda que eventualmente especiais. O Professor Ferreira Pinto conclui
tratar-se seguramente de uma regra unilateral, ainda que especial.

A segunda questão é saber se a NAI é suscetível de bilaterizar-se. Levantavam-se como


obstáculos: A conexão especifica, nesse tipo de normas, que é estabelecida em função do seu
conteúdo concreto, deduzindo-se as mais das vezes dos objetivos por ela prosseguidos. Além
disso temos uma ausência de uma inteira “comunidade de direito” entre as diferentes ordens
jurídicas, sendo imputada esta ideia à existência desta categoria de normas.

a) Se considerarmos que o efeito pretendido com a bilateralização é o de delimitar o


âmbito de aplicabilidade de uma norma de aplicação imediata estrangeira, então
essa operação deve ser evitada, dado ignorar completamente o conteúdo ou a
finalidade da norma de causa.

b) Se se considerar que a bilateralização pode servir também, pelo menos em certos


domínios, como um critério razoável de determinação da ordem jurídica a
que se poderá ir buscar uma norma de aplicação, caso a do direito do foro
não deseje aplicar-se à hipótese em causa, havendo então que averiguar ainda se
tal norma efectivamente existir nesse ordenamento, se ela, por sua vez, exige ser
aplicada ao caso: Um bom exemplo desta forma de bilateralização consta do
artigo 28º nº3 do nosso C.Civ que admitiu expressamente a intervenção de
regras de aplicação necessária estrangeiras (relativamente à capacidade
negocial), subordinando-a embora à condição de elas mesmas se pretenderem
aplicar, i.e, fazendo uma “remissão condicionada” para o respetivo ordenamento
jurídico;

Vê-se então que este método não é absolutamente alérgico às regras bilaterais. O
Professor Ferreira Pinto aponta que algumas dessas normas denunciam a existência de regras
P á g i n a | 53

deste tipo ainda perfeitamente cristalizadas e que num futuro próximo acabarão por perder a
sua feição “particularista”.

Regime

Vamos passar a analisar o regime da NAI. Para isso vamos começar por pensar nos
casos em que estas normas pertencem à ordem jurídica do foro.

Exemplificando com um contrato de C/V, de um imóvel, mas em que o imóvel está


situado em Espanha. A lei aplicável à substância do contrato é a lei portuguesa, que foi escolhida
pelas partes55, mas o contrato versa sobre imóvel situado em Espanha. A norma do artigo
875º, admitindo que é de aplicação imediata56, vai aplicar-se neste caso? Não, porque ser norma
de aplicação imediata, ter caráter internacionalmente imperativo, não significa que esta
norma se queira aplicar em todas as situações ou que seja desenhada com para uma
aplicação universal. Esta norma será aplicada se se verificar, no caso concreto, a ligação, a
conexão unilateral ad hoc (ou específica) da norma.
Segunda hipótese, suponhamos que este mesmo contrato foi celebrado e foi escolhida a
lei espanhola para regular o contrato, mas o contrato versa sobre imóvel situado em Portugal.
Ou seja, a mesma situação só que agora invertida na lei escolhida/sítio do Imóvel. Tratando-se o
875º de uma NAI, mesmo que as partes tenham escolhido a lei esponhola para regular a C/V,
aplicar-se-á este preceito da lei portuguesa. Portanto, o contrato tem que obedecer à forma
prescrita no 875º. Isto porque está preenchido o elemento de conexão ad hoc da norma: o
imóvel está situado em Portugal. 57

Na realidade, neste segundo caso, o resultado seria este, não por força do 875º, mas por
força do artigo 11º do Regulamento Roma I. Que estabelecendo uma exceção à conexão
alternativa do nº1, vem dizer, no nº5, aqui temos verdadeiramente a ideia de que prevalece a
norma de aplicação imediata do país da situação do imóvel, se ela tiver natureza de aplicação
imediata. Ou seja, prevê expressamente a possibilidade de respeitar normas de aplicação
imediata no país de situação do imóvel.58 Desde que as duas condições cumulativamente estejam
preenchidas, a exigência de forma do país da situação do imóvel vai prevalecer sobre a lei
do lugar do imóvel.
Se a lei aplicável ao contrato é a lei portuguesa, por escolha das partes, o imóvel situar-se
em Espanha e, por hipótese, em Espanha se exigir a escritura pública para a C/V de imóveis
então nesse caso a aplicamos a lei portuguesa, por uma questão de favorecimento do negócio
jurídico, salvo se a norma espanhola for uma norma de aplicação imediata. Isto é, se ela

55 Artigo 3º do Regulamento Roma I. Veremos isto melhor adiante.


56Seguindo a tese do Professor Doutor Luís Barreto Xavier que acabámos de apresentar. Ver supra
“Implícitas”
57Note-se o elemento ad hoc não está escrito na norma. Deduz-se da interpretação feita pela ratio
da norma. Se a norma tutela o comércio jurídico em Portugal e se prende com o registo etc, então só vale
para os imóveis em Portugal. Isto aceitando a interpretação feita pelo Professor Luís Barreto Xavier.
Assim em vez de recorrermos à tese que aceita as normas de aplicação materiais não expressa e dá
58

margem para incerteza aplicamos a lei escrita, como é evidente.


P á g i n a | 54

fizer uma exigência que é apenas aplicável quando o direito espanhol é competente, então
aplica-se o artigo 11º nº1, a regra geral, e assim, de acordo com a regra de conflitos de conexão
múltipla alternativa, para favorecer o negócio jurídico, usar-se-ia a lei portuguesa. De a norma
espanhola não for de aplicação imediata, temos pelo nº1 de aplicar a lei portuguesa, que no 875º
permite que a forma seja documento particular autenticado.59

Daqui retiramos algo, bastante óbvio, o artigo 875º, além de um campo espacial de
aplicação obrigatório, também tem um campo opcional ou eventual de aplicação, em que
podeser aplicável se a lei portuguesa for considerada competente por escolha das partes por
exemplo. Ou seja:

1) De forma obrigatória: se esta norma pertencer ao ordenamento jurídico do foro, ela


é aplicável, como vimos. Se pertencer ao ordenamento jurídico estrangeiro, mas
estando expressamente salvaguardada pelo artigo 11º nº5 do Roma I, ela também
pode prevalecer.

2) De forma dita opcional: se as partes escolherem a lei portuguesa para regular o


contrato, artigo 3º do Roma I, e não se aplicar a exceção do 11º nº5.

3) De forma que vamos chamar60 eventual: Se 875º for menos exigente que a lei
estrangeira, dando lugar à aplicação do nº1 do artigo 11º que concretiza o princípio
favor negotii, e não se verificar o disposto no nº5 do mesmo artigo.

NAI no Roma I
O regulamento Roma I também posiciona a aplicabilidade das NAI fora do caso especial
da forma dos contratos. O artigo 11º, que indicámos supra, é uma norma cujo conceito-quadro
respeita à forma dos contratos, mas existe uma regra mais geral relativamente a normas de
aplicação imediata, que é o artigo 9º que já referimos anteriormente.

O artigo 9º, do qual já analisámos o nº161, vai, nos seguintes seus números, indicar
quando é que estas normas vão ser aplicadas.
O nº2 do artigo 9º do Regulamento Roma I é bastante relevante neste aspeto. Temos
um conjunto de normas destinadas a determinar a lei competente, mas no artigo 9º nº2 temos
uma exceção à lei em princípio competente, que é a ideia de acordo com o qual as normas de
aplicação imediata do foro são salvaguardadas, estão a coberto das normas gerais de
conflitos, estão dentro do campo em que os órgãos de aplicação do Direito do país do foro
aplicam não a norma em princípio competente, mas a norma de aplicação imediata do foro.
Mas isto pressupõe que entre a situação e a ordem jurídica do foro se verifique a conexão

59Documento particular autenticado é uma forma menos solene que escritura pública que é um
documento autêntico. Ver matéria de processo civil.
60Nota: o professor nas aulas englobou “opcional/eventual” na mesma categoria, só neste caderno é que
estamos a separar porque achamos que faz sentido dada a terminologia: opcional – casos em que as partes
escolhem, eventual – casos em que eventualmente o 875º é chamado.
61 Em “Roma I e a sua definição de NAI”
P á g i n a | 55

prevista na norma de aplicação imediata, a conexão ad hoc, de forma explicita ou implícita62,


porque se não se verificar a ligação, a norma não vai prevalecer.

O artigo 9 nº3 respeita não a normas de aplicação imediata do país do foro, mas sim do
país onde as obrigações do contrato tenham/devam ser executadas. O país de execução do
contrato.
Repare-se, neste nº3, estas normas não pertencem ao país do foro. Tratam-se de normas
que pertencem ao país de execução do contrato, e a possibilidade que nos é dada pelo artigo
9º é de dar prevalência a essas normas em determinadas condições:

1) É necessário que, nesse país, no país de execução, a execução do contrato seja ilegal.
Caso contrário, traduzir-se-ia que essa norma material de aplicação imediata levaria,
se aplicável no país de execução, a considerar o contrato inválido ou a considerar a
execução do contrato contrária à lei. Isto vai contra um dos princípios do direito que
apresentámos logo nas páginas iniciais.

2) Enquanto no artigo 9º nº2 o aplicador do Direito é obrigado a aplicar a norma de


aplicação imediata do país do foro, no artigo 9º nº3 temos uma delimitação mais
maleável da aplicabilidade. Além da 1) é preciso que a natureza/objeto/e
consequências da aplicação da norma sejam tidos em conta.

Por esta 2) vemos que é deixada uma margem à apreciação do aplicador do direito. O 1)
é um critério objetivo, a execução da sentença tem de ser ilegal, mas não basta ainda é precisa
a condição 2). Mas a condição 2) é uma apreciação feita com base num juízo do que aconteceria.
Isos vê-se na leitura atenta da norma: “Pode” na parte inicial que diz respeito ao 1) e “Para
decidir” na 2).

Exemplificando: admitamos que existe um contrato de C/V de um quadro de um pintor


famoso. Esse contrato de C/V, celebrado com um museu em Portugal, foi celebrado para ser
executado em Itália – a entrega do quadro foi convencionada em Itália, e está a ser questionada
em tribunais portugueses a validade do contrato. Vamos partir do pressuposto que de acordo
com o direito italiano, este quadro não podia ser exportado. Isto significa que se a execução do
contrato ocorrer, essa execução será ilegal (primeira condição preenchida). Embora as partes
tenham escolhido, por exemplo, a aplicação da lei portuguesa, o juiz pode considerar que a
norma é de aplicação imediata. Se entendêssemos que esta norma de Direito italiano estava
sujeita ao jogo normal da regra de conflitos, podendo ser afastada, a proibição de exportação não
teria efeitos práticos. Essa proibição só tem efeitos práticos se puder prevalecer pela norma
em princípio aplicável ao contrato. Será então possível ao aplicador do Direito em Portugal,
dizer que tem que dar prevalência não à aplicação da lei portuguesa, mas sim à norma italiana
que proíbe a exportação. Isto é, uma norma que pertence ao país da execução do contrato, que
determina que a exportação é ilegal, tendo em conta que o quadro seria exportado de Itália e aí a
sentença não teria sentido útil. As consequências da não aplicação desta norma seriam
relevantes para que nós tenhamos um incentivo para a aplicar (condição número dois
preenchida). Logo, ao abrigo do artigo 9º nº3, o que o aplicador do Direito deve fazer é dar
prevalência a NAI italiana.

62 Concordando com a opinião do Professor Barreto Xavier sobre o assunto.


P á g i n a | 56

Então, por força do artigo 9º, o aplicador de direito português é obrigado a aplicar
uma norma de aplicação imediata do país do foro, desde que essa norma queira aplicar-se ao
caso concreto, isto é, desde que a ordem jurídica a que pertença tenha com a situação a conexão
estabelecida, mas no caso em que a norma é de ordem jurídica estrangeira, a aplicação é mais
estreita. Não basta que pertença a uma ordem jurídica estritamente conexionada com a situação,
tem que pertencer ao Estado da execução do contrato, e não basta que a norma de aplicação
imediata pertença a essa ordem jurídica, o aplicador do Direito tem que fazer um juízo que tem
em conta a natureza e objeto da norma, e as consequências da sua aplicação ou não aplicação.

Em bom latim, chamamos à lei da execução do contrato “lex cause” e à lei do foro63 “lex
fori”. É importante ter presente que em livros e exames ou orais muitas vezes é esta a
termologia usada. Também se costuma referir lei estrangeira, que não seja de execução como “lei
terceira”.

NAI noutras Fontes


Vamos ver agora, relativamente a outras fontes de DIP português, como se apresentam
as NAI.

No regulamento Roma II, que é um regulamento relativo à lei aplicável às obrigações


extra-contratuais temos o artigo 16º.
Neste artigo estão previstas as hipóteses em que as normas de aplicação imediata
pertencem à lex fori. Nada se diz quanto às leis de aplicação imediata da lex causae ou das
terceiras leis. Em relação à lex causae também não é preciso dizer, porque essas são sempre
aplicáveis, segundo as regras normais de conflitos como veremos depois no regulamento64, por
isso não se aplicam por serem de aplicação imediata.
Quanto às terceiras leis, pelo contrário, para se aplicarem normas de aplicação imediata
de uma terceira lei, de um terceiro ordenamento jurídico, já é necessário um título de
atendibilidade dessa norma de aplicação imediata.65 Dentro do Direito de Conflitos temos
que ter um princípio que permita afastar as regras gerais de conflitos para darmos prevalência
às normas de aplicação imediata, no Regulamento Roma II esses títulos não aparecem.

O mais próximo que poderia parecer que temos à primeira vista é apenas aparece o
artigo 17º relativo a regras de segurança e conduta. Parece que as normas respeitantes a
regras de segurança e conduta, do lugar onde há lugar ao facto responsabilizante, são normas
que devem ser tidas em conta como facto para dar origem à responsabilidade.
Por exemplo, pensando num acidente de viação em que a lei aplicável é a lei inglesa. Mas
o acidente ocorreu em Portugal. Será que o lesante pode invocar o seguinte: “estava a conduzir
fora de mão porque a lei aplicável é a lei inglesa e lá conduz-se pelo lado esquerdo. Assim, não
tenho responsabilidade”. Isto não é invocável, porque as normas de conduta, neste caso, do
Código da Estrada, não são normas de aplicação imediata, mas são normas de aplicação
territorial, a sua aplicação não está dependente do jogo normal das regras de conflitos porque o

63A que normalmente se refere como sendo a lei portuguesa porque estamos a estudar DIP português, e é
esse o foro com que lidamos.
64 Artigo 14º nº2 e nº3 do Roma II
65 Título semelhante ao que nos aparece no Regulamento Roma I, artigo 11º nº5 e 9º nº3.
P á g i n a | 57

setor em que se inserem é o de aplicação territorial. Não apenas se aplicam sempre que esteja
em causa a circulação nas estradas portuguesas, como não podem aplicar-se se estiver em
causa a circulação em estradas no estrangeiro. As regras do Código da Estrada só vinculam
os automobilistas que circulam em estradas portuguesas. O mesmo acontece quanto à segurança
na construção. Há construções sujeitas a certo tipo de princípios de segurança, e essas regras são
de aplicação territorial, porque são regras de Direito Público cuja aplicação está
intrinsecamente ligada ao território português. Isto apenas significa que se aplicam sempre
que a situação ocorra em Portugal, e que não se aplicam se a situação não ocorrer em Portugal.
As regras do artigo 17º são tidas em consideração para determinar a
responsabilidade, mas a título de matéria de facto. Ou seja, o aplicador do Direito tem que
tomar em consideração que as pessoas que circulam nas estradas desse país, estão submetidas
a um conjunto de disposição administrativas que são de aplicação territorial e que
obedeciam a essas regras, e isso será tido em conta para apurar a responsabilidade a que essas
pessoas estejam sujeitas, e é isso que nos diz este artigo.
Não são normas de aplicação imediata, porque não são normas do jogo normal das
regras de conflitos, mas podem ser relevantes para apurar a responsabilidade das
pessoas.

Em alguns dos regulamentos da UE existem regras deste tipo, quer regras que
expressamente preveem a salvaguarda das normas de aplicação imediata do foro, quer regras
que permitem tomar em consideração normas aplicáveis a todas as pessoas, mas não são
frequentes as disposições que dão relevância a normas de aplicação imediata de lei de terceiro
Estado. O que nos deixa uma questão, que é de saber, na falta de título expresso de
atendibilidade de normas de aplicação imediata de 3º Estado, se é possível ao intérprete,
apesar de tudo, aplicar normas de aplicação imediata de 3º Estado, no fundo,
contrariando o disposto na Lei em princípio competente.
A resposta para o qual a nossa sensibilidade aponta, sobre se podemos ou não afastar a
norma competente por um princípio geral, é que em princípio não, apesar de existirem
dúvidas. O intérprete tem que dar obediência às normas gerais de conflitos – e há quem
entenda que em certas circunstâncias, por força dos princípios, se pode afastar a regra de
competência.
Por exemplo, admitindo que, em regra de capacidade matrimonial, num Código Civil
estrangeiro determina que a capacidade matrimonial dos cidadãos desse país só se adquire aos
20 anos, e considera que essa norma se aplica a todas as pessoas que residam habitualmente no
país66. Vamos admitir que dois portugueses de 18 anos que residam aí habitualmente, vieram a
Portugal para casar e o conservador é confrontado com a questão de saber se deve aplicar a lei
portuguesa, porque é a lei da nacionalidade, ou a lei do país de residência habitual, tendo em
conta que o casamento não seria reconhecido no outro país. Pode ou não pode celebrar o
casamento? Aqui a questão fica em aberto, o professor Luís Barreto Xavier julga que
provavelmente aceitaria a celebração do casamento por aplicação da lei nacional, mas considera
admissível que se argumente noutro sentido, atendendo à relevância da norma de aplicação
imediata do 3º Estado que exige que as pessoas que residem nesse país tenham 20 anos para
poderem casar, porque senão este casamento seria insuscetível de ser efetivo no país onde eles
residem. Nenhuma das soluções é boa, por um lado temos a ineficácia da celebração do
casamento, por outro, estamos a afastar a regra geral de conflitos e estamos a aplicar uma norma

66Embora na realidade os países em geral consideram, em princípio, aplicável a lei nacional aos caso da
capacidade matrimonial.
P á g i n a | 58

de aplicação imediata sem um título direto ou imediato de atendibilidade dessa norma, o que
nos faz entrar num caminho de incerteza conflitual, além que neste caso eram dois
Portugueses em Portugal a casar, pelo que a questão de o aplicador de direito saber que isto era
uma situação internacional de DIP podia nem levantar-se, ou aliás podemos argumentar que
nem se levante.

Título de Atendibilidade
Assim, nas NAI estrangeiras, isto é, aquelas que não sejam NAI do foro pois essas
aplicam-se, temos, relativamente a esta questão, duas hipóteses:

1) NAI Estrangeiras do país da lex causae, do ordenamento jurídico competente para


regular a situação em análise: Portanto, se a norma material de aplicação imediata
pertence à lex causae e integra o âmbito de aplicação dessa, ela é aplicável no foro
não enquanto norma de aplicação imediata, mas enquanto norma que é
mandada aplicar pelas nossas normas de conflitos em geral.

2) NAI de país terceiro que não é o país do foro nem o país da lex causae: Qual a
relevância dessas normas? Duas hipóteses: Título expresso de atendibilidade de
normas de aplicação imediata desses países: artigo 9º nº3 Roma I Refere-se às NAI
em geral e define essas normas. Determina que as normas do país do foro não são
prejudicadas pelas regras de conflitos do regulamento e explica que as normas de
aplicação imediata do país de execução do contrato podem ser relevantes. O artigo
11º nº5 Roma I dá um título de atendibilidade às normas de aplicação imediata do
país da situação do imóvel em matéria de forma dos contratos relativos a imóveis.
Estas normas são um limite à conexão alternativa que é estabelecida, em geral, para
promover o favor negotii.

Não existe uma norma genérica que atribua relevância a normas de aplicação imediata
de terceiro Estado. No campo das obrigações contratuais o texto que antecedeu o Roma I -
Convenção de Roma de 1980 - previa no seu artigo 7º esta possibilidade em termos genéricos
mas tal é alterado quando se transforma este regulamento no Roma I. O que acontece nos
casos em que se preveem estas normas? O aplicador do Direito deve atender a estas diretrizes,
sejam do legislador transnacional ou nacional. Quando não existam textos que atribuam
relevância a estas normas a questão é saber se o aplicador do Direito tem ou não legitimidade
para tomar em consideração ou mesmo aplicar essas normas.
Para parte da doutrina não há legitimidade para dar relevância a estas normas e a
razão é simples, no fundo, temos que dar obediência às regras gerais de conflitos e, portanto,
não nos podemos afastar das regras gerais de conflitos sem que nos forneça um título de
atendibilidade dessas normas.
Para uma segunda perspetiva, sem prejuízo da imperatividade das regras de conflitos,
estas não são uma expressão acabada e fechada e completa do direito de conflitos, são
instrumentos do Direito de Conflitos, designadamente de determinados princípios de DIP o que
significaria que para a tutela dos princípios que as próprias normas de conflitos servem
poderíamos ser levados a afastar as regras de conflitos para encontrar ou promover a
aplicabilidade de normas de aplicação imitada de terceiros Estados. Exemplo: Embora as
regras de conflitos não reconhecessem a aplicabilidade de certa NAI de país terceiro, a aplicação
dessa norma é condição necessária e suficiente para que a decisão a proferir no país do foro
P á g i n a | 59

fosse exequível no país da NAI. Nesse caso, a hipótese seria que a execução da sentença
portuguesa apenas produziria efeitos se fosse reconhecida no país onde se encontram os
bens sobre os quais ela incide. Aqui temos um argumento forte de dar concretização a um
princípio vigente no DIP efectividade das decisões judiciais - e este será um título implícito de
atendibilidade da NAI de um país terceiro.
Não há solução assente. Admitir em termos muito amplos esta possibilidade tem
riscos muito sérios de incerteza jurídica, de casuísmo, de imprevisibilidade nas decisões,
e mesmo de colocar nas mãos do juiz um poder de decisão que, porventura, extravase o
que decorre de um princípio de separação de poderes. A seu favor temos a proteção de
princípios fundamentais como a harmonia jurídica, efectividade das decisões e a proteção
da parte mais fraca. Barreto Xavier: Só excepcionalmente tal será possível.

Normas Espacialmente Autolimitadas

Vamos agora partir para um novo capítulo na nossa matéria, conceito próximo das
normas de aplicação imediata, mas que é diferente das normas de aplicação imediata.
As normas espacialmente autolimitadas. Uma espécie de sombra das normas de
aplicação imediata. As normas espacialmente autolimitadas afastam a sua aplicação quando
entre elas e a situação a regular não existir uma determinada conexão espacial.

Fazendo um confronto com as normas de aplicação imediata, nas normas de aplicação


imediata, uma determinada conexão espacial entre o ordenamento a que pertencem e a situação
a regular, uma vez verificada, determina a aplicação destas normas. Já nas normas espacialmente
autolimitadas, quando faltar a conexão espacial, essas normas não querem aplicar-se, são
normas cuja aplicação só faz sentido dentro de determinado espaço, definida por uma
conexão espacial e não são para aplicar fora desse espaço.
São normas materiais cuja regulamentação instituída não quadra bem senão a
determinadas situações que estão ligadas ao sistema jurídico a que elas pertencem por
determinada conexão de natureza espacial. Por isso se diz que elas excluem (ou proíbem) a sua
aplicação a todos os casos em que não se verifique a conexão que nelas é exigida.

As normas de aplicação imediata impõem a sua aplicação quando se


verifica a conexão ad hoc, enquanto as normas espacialmente limitadas
repelem a sua aplicação quando faltar essa conexão espacial.

Relação com as NAI

A distinção entre as NAI e as NEA (normas espacialmente autolimitadas) é que enquanto


as primeiras se servem do processo técnico para delimitar o âmbito de competência do sistema
em que se inserem, as segundas utilizam-no apenas com a finalidade de circunscrever o seu
P á g i n a | 60

próprio âmbito de aplicação. Visto isto assim, temos de fazer considerações sobre como se
articular estas categorias entre si. Há duas possibilidades, defendidas por diferentes doutrinas.

Uma possibilidade é dizer-se que as normas de aplicação


imediata são normas dentro de uma categoria mais geral, de normas
espacialmente autolimitadas. Para alguns autores, as normas
espacialmente autolimitadas são uma categoria mais vasta do que as
normas de aplicação imediata.

As normas de aplicação imediata seriam necessariamente autolimitadas, mas além


disso, imporiam a sua aplicação quando se verificar determinada conexão.

Vamos testar a teoria. Se a teoria falhar em algum exemplo então não está correta, e o
esquema de inclusão das NAI nas NEA é errado. Assim, testando a teoria vamos olhar à norma
do artigo 53º da Constituição, que parte maioritária da doutrina tem entendido ser uma norma
de aplicação imediata. 67
Esta a norma proíbe o despedimento sem justa causa. De acordo com essa doutrina, é
aplicável a todos os trabalhadores portugueses ou sempre que o trabalhador
habitualmente preste trabalho em Portugal. A norma proíbe despedimentos sem justa causa
e aplica-se mesmo que a lei aplicável ao CIT seja estrangeira, sempre que o trabalhador
for de nacionalidade portuguesa ou executem o trabalho habitualmente no território
português (conexões com a lei do foro). Para que esta norma fosse uma NEA teríamos de dizer
que nunca se aplicaria caso o trabalhador não fosse português ou a prestação não fosse
habitualmente prestada em Portugal e isso não é corresponde à verdade. A norma também se
aplicará sempre que a lei aplicável ao contrato de trabalho seja a lei portuguesa, o que
pode acontecer por escolha das partes. Assim, há pelo menos uma norma de aplicação
imediata que não é espacialmente autolimitada, logo, a teoria falha, não se adequa à
realidade do direito.
Este exemplo, do artigo 53 da CRP é um exemplo claro de uma norma de aplicação
imediata que não é espacialmente autolimitada, porque não faria sentido que, se as partes
escolhem a lei portuguesa para regular o contrato, amputássemos a norma aplicável de uma das
traves-mestras. As normas e princípios relativos ao CIT, no direito português, estão fundadas na
ideia de que o despedimento tem que ter uma justa causa. Portanto, isto significa que neste caso,
a norma é de aplicação imediata que não é espacialmente autolimitada.

Mas vamos pensar numa norma que possa ser simultaneamente de aplicação imediata e
autolimitada. Pensemos na norma sobre proibição de exportação do quadro italiano que vimos

67 Aquilo que nos foi transmitido em aula teórica foi que na esteira da jurisprudência e parte da doutrina –
a começar pelo professor Rui Moura Ramos –o 53º é uma norma de aplicação imediata, que se aplica
independentemente das regras gerais de conflitos e desde que entre da situação a regular e a ordem
jurídica portuguesa se verifique determinado nexo ou conexão. Neste caso, embora com flutuação, tem-se
entendido que as conexões a ter em conta são a nacionalidade portuguesa do trabalhador ou, em
alternativa, o facto do trabalho ser prestado habitualmente em Portugal. Isto significa que, para que esta
norma se deva aplicar, basta que o trabalhador tenha nacionalidade portuguesa ou que o trabalho seja
prestado habitualmente em Portugal, ainda que por trabalhador estrangeiro. Isto implica que a norma se
aplica, ainda que o Direito aplicado ao contrato seja estrangeiro.
P á g i n a | 61

nas páginas anteriores68. Essa norma era não apenas de aplicação imediata, porque
relativamente à exportação a partir de Itália de obras de arte, aplica-se sobre todas as outras
soluções, mas circunscreve o espaço de aplicação porque só se aplica às obras exportadas
a partir de Itália. Por exemplo, se um português e um espanhol quiserem exportar uma obra
para Espanha, mesmo que escolham as regras do Direito Italiano, a norma que proíbe a
exportação não se aplica. Ou se exportarem um quadro italiano de Espanha para Portugal
também não se aplica. Até podiam ser Italianos, continuaria a não se aplicar a NAI italiana do
exemplo. Neste caso, tínhamos uma norma que estava na zona de sobreposição entre os
dois conceitos.

Mas podemos ter normas que são simplesmente normas autolimitadas, que não impõe a
sua aplicação sobre fontes do Direito geral de conflitos, mas que se excluem quando fora de
determinado espaço. Por exemplo, vamos admitir que temos certas regras relativas à
contratação em espaços abertos em Portugal. Há certas regras que o legislador português
estabelece, que se aplicam a mercados portugueses, mas mesmo que a lei portuguesa seja
aplicável, não faz sentido aplicar, porque essas normas estão ligadas ao tráfego jurídico local, e
não faz sentido a aplicação quando o contrato em causa é celebrado em contexto distante da
ratio legis. Quer dizer que há normas materiais, que quer pela sua
ratio, quer por forma explícita, excluem a sua aplicação se falhar a
ligação que pressupõem.
Assim podemos ter: NAI que também são NAE69 e NAI que não
são NAE. O esquema que melhor explica a relação entre os dois tipos
de normas é então o esquema de intersecção.

O professor Marques Fernandes tinha outra ideia. Na sua


tese, autonomizava as normas de aplicação imediata – portanto, não eram parte integrante das
normas espacialmente autolimitadas -, e no caso das normas espacialmente autolimitadas, ele
entendia que as normas de aplicação imediata não podiam deixar de o ser porque podiam ser
aplicadas contra as normas gerais de conflitos. Para professor Barreto Xavier a ideia é
desmentida pelos factos e pela realidade e se a teoria não se adapta à realidade não é correta. O
caráter autolimitado de certas normas quer apenas dizer que essas normas limitam a sua
aplicabilidade no espaço, delimitam negativamente a sua aplicabilidade no espaço em
função de determinada conexão. O que elas estão a dizer, na parte em que são autolimitadas, é
que não querem aplicar-se, não o contrário – isto é, que quando são aplicáveis se aplicam acima
das regras de conflitos. O interesse de saber se uma norma é autolimitada ou não é saber se
devemos aplicar quanto a determinada ordem jurídica. A relevância é que certo tipo de normas
são normas com determinada previsão material, mas cuja razão de ser exclui a sua aplicação em
certos casos e temos que atender a essa circunstância para a aplicação.

68Que demos a propósito do artigo 9º nº3 em “NAI no Roma I”. Basicamente o direito italiano proíbe
exportação de certo tipo de quadros.
69Uma NAI que é uma NAE é por exemplo o artigo 2223º do Código Civil Português. Outro exemplo
ainda é 36º do DL n.º 246/86, de 25‐08, que cria e regulamenta o EIRL (ver matéria de Direito
Comercial), determina que “Este diploma (...) aplica-se aos estabelecimentos individuais de responsabilidade
limitada que se constituam e tenham a sua sede principal e efectiva em Portugal” (artigo 36º). Do confronto
desta disposição com o artigo 33.º do CC resulta que as disposições do DL só devem ser aplicadas quando
se verifique, entre a situação a regular e o ordenamento jurídico português, a conexão que é exigida pela
norma: a localização, em Portugal, da sede principal e efectiva do EIRL. Estas disposições são normas
espacialmente autolimitadas, não se podem aplicar fora de Portugal.
P á g i n a | 62

Normas Materiais de DIP

As normas materiais de DIP têm de particular o facto de conterem necessariamente na


sua previsão um elemento de internacionalidade. Por outras palavras, as normas materiais
de DIP são normas de DIP, mas apenas se aplicam se a situação for internacional.
Na sua previsão normativa, estas normas têm este elemento de internacionalidade das
situações a que respeitam. Pensemos no artigo 2223º do Código Civil. É uma norma material,
que tem uma previsão e uma estatuição. É uma norma material porque impõe diretamente
uma solução para o problema jurídico em causa. Se no país do lugar em que o testamento foi
celebrado, se admite um testamento verbal, na presença de uma testemunha não qualificada,
então esse testamento não tem uma forma solene em Portugal. Portanto, mesmo que a lei do
lugar da celebração do testamento admita a sua validade, o artigo 2223º vai considerar esse
testamento como ineficaz, não produz efeitos em Portugal. A regra do 2223º é material
porque dá a solução para o problema jurídico e não dá uma solução formal como é o caso das
regras de conflitos que apenas nos indicam a lei que depois resolve o problema jurídico
material.70

Se mesmo que a lei em princípio competente pelo jogo das regras de conflitos fosse a lei
do lugar da celebração, a exigência de forma solene vai impor-se a todos os testadores de
nacionalidade portuguesa e já sabemos que isto quer dizer que estamos perante uma norma
de aplicação imediata.
Mas para além disso, ao contrário de outras NAI como a do 875º, este 2223º é
simultaneamente é uma norma material de DIP. Isto porque a norma apenas se aplica
quando a situação a regular tem contacto com mais do que uma ordem jurídica, a situações
internacionais. Vemos isto através da previsão71 – testamentos realizados no estrangeiro. Isto
significa que essas situações, a que a norma se aplica, são necessariamente situações com
conexões a duas ordens jurídicas – a ordem jurídica portuguesa a título de nacionalidade do
testador e a ordem jurídica estrangeira pelo país em que o testamento foi celebrado. Ou seja, é
uma norma material de DIP, porque são normas materiais, mas que têm de particular a
circunstância de, na sua previsão, constarem situações internacionais e por isso só tem lugar a
sua aplicação nos casos de DIP.

Claro é que existem NAIs que não são normas materiais de DIP72. A norma do regime do
direito de habitação periódica que estabelece determinados direitos do adquirente, por força do
artigo 60º desse regime, é uma NAI, mas não é uma norma material de DIP, porque a sua
previsão material não implica a existência de uma situação absolutamente internacional,
também se aplica a situações puramente internas. Mas também há normas materiais de DIP que
não são NAIs, são normas que só se aplicam a situações internacionais, mas não há uma
definição ad hoc do âmbito espacial da sua aplicação.

70 Como já vimos logo no início deste caderno, em especial na “Regra de Conflitos”.


71 Estrutura da norma material é como já sabemos bipartida em previsão e estatuição.
72Mas as NAIs são sempre normas materiais como vimos. Se são de materiais de DIP ou não é outra
questão.
P á g i n a | 63

Distinguindo normas de aplicação imediata de normas materiais de DIP temos de


verificar quais são os elementos comuns. Em primeiro lugar ambas são normas materiais.73
Mas depois há uma distinção, e essa não significa que aqui possamos classificar as normas
materiais em duas espécies, mas apenas que podemos classificar certas normas materiais em
função de certo critério que pode estar presente ou não. As normas materiais de DIP
caracterizam-se pelo seu objeto – ou seja, situações privadas plurilocalizadas. As normas
materiais de DIP caracterizam-se pelo seu objeto, enquanto as NAI se caracterizam pelo facto
de a sua aplicabilidade não depende das regras gerais de conflitos, mas de regras de
conflitos unilaterais, quando se verifique a ligação especial entre a ordem jurídica a que
pertencem e a situação a regular.

Outros fenómenos de DIP material, em especial Lex Mercatoria

Tradicionalmente existiram em alguns países, designadamente na República


Democrática Alemã, que tinha um Código de Comércio Internacional, em que se regia as relações
económicas entre agentes económicos e de outros países. Este era um código repleto de normas
materiais de DIP.
Ao lado da relação genérica das relações comerciais comuns, havia uma regulação para
as situações de DIP comercial. Por exemplo, a Convenção de Viena, sobre a transação de
mercadorias, contém regras materiais sobre o contrato de C/V de mercadorias, mas só se
aplicam quando esse contrato é internacional. Essas normas são normas materiais que têm na
sua previsão um caráter internacional das situações a que vão aplicar-se.

Um conceito que hoje tem também relevância, e é discutível se cabe aqui, é o da lex
mercatória. Discutível porque não se considerarem verdadeiras normas pertencentes a
uma ordem jurídica. Mas são regras materiais de DIP sem dúvida. Vejamos.

Vivemos hoje numa época em que a par dos Estados, há uma série de outros atores na
vida jurídica internacional, temos uma série de outros atores. A construção normativa é feita não
só pelos Estados, mas também por entidades supraestaduais – como a UE – ou entidades
infraestaduais – por exemplo, Regiões Autónomas, entidades que não estão diretamente
integradas nas ordens estaduais e que produzem normas de conduta e comportamento social
que são observadas – e ainda temos as entidades paraestaduais – por exemplo, na área do
Desporto, temos a FIFA ou a EUFA que imitem Regulamentos. São regras cuja legitimidade não
está dependente da justiça de cada um dos Estados.

Por outro lado, encontramos uma vida jurídica que se vai desenvolvendo à margem dos
Estados, em especial nas áreas do comércio internacional e das transações financeiras
internacionais, a par de regulamentação transnacional que nos aparece no âmbito da UE, temos
uma série de regras de conduta cuja fonte é não estadual nem verdadeiramente
supraestadual.
Primeiro, temos regras consuetudinárias, regras costumeiras, provenientes de
prática reiterada dos agentes económicos, acompanhada da convicção da sua

73Ou seja, ambas são normas cuja estatuição é substancial ou material, são normas que dispõem de forma
direta sobre o conflito de interesses subjacente de natureza substantiva, não se limitam a apontar um
caminho para uma dada ordem jurídica para a resolução do problema.
P á g i n a | 64

obrigatoriedade. Ao lado dessas, encontramos regras de conduta desenhadas por organizações


internacionais de natureza privada, que reúnem os operadores económicos de determinado
ramo. Essas associações editam regras de conduta que não são leis, não são aprovadas e
promulgadas com a força de lei, ou não são resultantes de qualquer ordem supranacional. No
entanto essas são regras de conduta efetivamente observadas pelas partes na área
comercial/económica/financeira e que se impõe perante os agentes económicos que
trabalham nessa área. Essas relações privadas internacionais e patrimoniais, se não tiverem
um certo tipo de harmonização, não funcionam de forma adequada. Quando os Estados não
chegam a acordo para encontrar soluções comuns, são os próprios membros da comunidade
económica em causa que se reúnem e encontram essas soluções, ou, de alguma maneira,
codificam, em sentido impróprio, os procedimentos observados. Isto é a lex mercatória ou
seja, a lei dos mercadores, que agora teve um renascimento, a partir da segunda metade do
século XX, para o desenvolvimento das relações económicas internacionais, entre operadores de
diferentes países, que se desenvolveu a margem das entidades estaduais.

Estas regras, que não são leis, não são convenções internacionais e não são
regulamentos, impõe-se com a pedra de toque típica desta regulamentação que está num modo
de resolução de litígios que também se coloca à margem dos órgãos estaduais, que é a
arbitragem. Essas regras vêm o lugar da sua aplicação por excelência na arbitragem, na
submissão dos eventuais litígios que decorram da aplicação ou não destas regras, a sua
submissão a arbitragem é fundamental para a sua eficácia.

A lex mercatória caracteriza-se assim por um conjunto de regras materiais,


multiformes, mas que servem para orientar a vida de operadores económicos no setor de
atividade e resultam de fontes não formais. Por um lado, as regras consuetudinárias, por
outro lado, regras provenientes de organizações internacionais de caráter privado que
compilam regras geralmente observadas, e depois temos os princípios e regras que foram
desenvolvidas jurisprudencialmente através da arbitragem.

Aqui, sobre esta realidade, sobre a lex mercatória, podíamos discutir a natureza –
saber se é uma ordem jurídica ou não, sendo que a maioria doutrina entende que não, mas
isso não exclui o caráter jurídico das normas, são normas jurídicas não integradas em
qualquer ordenamento jurídico, porque o ordenamento pressupõe a existência de coerência,
autonomia, e princípios comuns que não se observam nestas regras – mas elas existem, e são
efetivamente aplicadas. Elas têm relevância fundamentalmente perante tribunais arbitrais, e não
deixam de ser relevantes também nos tribunais arbitrais.

Tratam-se de um conjunto de regras de DIP material, ou seja, de normas materiais


de DIP, porque se destinam a regular as relações privadas internacionais, ou seja,
situações conectadas com várias ordens jurídicas, porque pela sua definição pertencem ao
comércio jurídico internacional.

Professor Paulo Olavo Cunha: a lex mercatória é o conjunto de princípios e regras


específicos aplicáveis ao comercio internacional e que promanam da autorregulação,
sendo permanentemente criadas pelos próprios destinatários. Temos aqui: 1) práticas e usos
profissionais vigentes numa dada atividade económica; 2) códigos deontológicos; 3) regras
relativas a transações comerciais e 4) cláusulas contratuais e modelos contratuais
publicados pela CCI e outras organizações com índole corporativa.
P á g i n a | 65

Processo em DIP

Há uma distinção subjacente ao modo como olhamos aos problemas do DIP, que é uma
distinção entre mérito da causa e os aspetos processuais – entre substância e processo. Esta
distinção é estruturante, porque por via de regra os aspetos substantivos são submetidos à
lei designada por intermédio das normas de conflitos, enquanto os aspetos processuais
são, por via de regra, regidos pela lei do foro.
Quer isto dizer que se é proposta uma ação em Portugal não se coloca a questão de saber
se aplicamos o Código de Processo Civil português ou o Código de Processo Civil dos outros
Estados. As regras de processo aplicadas em Portugal são as regras portuguesas. Já o
direito substantivo aplicado é o escolhido pelas regras conflitos, o que quer dizer que os
tribunais portugueses vão poder aplicar lei estrangeira. No entanto isto coloca-nos um
problema.

O problema é que há certos aspetos na regulamentação do direito dos conflitos que se


encontram na fronteira entre o direito processual e o direito substancial/aplicável. O
processo serve para tutelar direitos, logo no início de processo, civil aprendemos que a cada
direito corresponde uma ação destinada a torná-lo efetivo. Isto porque a justiça não deve
ser feita pelas próprias mãos o Estado tem o dever de dar meios aos cidadãos de efetivar os seus
direitos, e é através das ações que o fazem.
O problema surge quando há um direito ou uma posição subjetiva ativa de afetação de
um bem a uma determinada pessoa e esse direito não exista na nossa ordem jurídica nem tenha
correspondência alguma. Isto é um problema, pois os tribunais ao usarem o direito substantivo
do estrangeiro não podem usar o seu direito processual, e por essa razão os instrumentos
processuais disponíveis podem não ser adequados para tutelar certo direito que aparece
por força da lei aplicável. É este o problema que temos. Não há forma de tutela jurídica pois
apesar de o tribunal reconhecer o direito pode não ter uma forma processual de o tutelar.

Esta ideia que temos, encontramos noutros institutos.


Como exemplo, de diplomas que estudaremos em específico adiante, no Regulamento
Roma I, sobre as obrigações contratuais, do cumprimento defeituoso do artigo 12º do
Regulamento Roma I no seu nº1 c) remete para a “respectiva lei do processo” e ainda o artigo
18º relativo ao ónus da prova. Há neste regulamento ainda que averiguar o debate sobre os
juros de mora e a sua natureza cuja determinação da lei não é pacífica na doutrina.
Outra demonstração é a do artigo 27º do nosso código civil que estatui, no nº2, que não
há tutela de qualquer forma jurídica não reconhecida na lei portuguesa relativamente aos
direitos de personalidade.

Veremos estes exemplos com maior profundidade adiante neste caderno, em especial
quando falarmos dos Regulamentos de Roma I e aí indicaremos que se trata desta questão
processual à qual se aplica sempre a lei do foro.
P á g i n a | 66

Direito dos Conflitos: Estatuto Pessoal

Vamos avançar para o Direito de Conflitos em matéria de estatuto pessoal, isto é, o


direito dos conflitos no que toca às matérias da capacidade das pessoas singulares, o seu
estado, relações familiares e sucessão por morte.

Nota-se que poderíamos continuar no fundo a nossa abordagem à matéria de DIP pela
parte geral em abstrato74, e depois íamos às regras de conflitos em particular. Mas o Professor
Luís Barreto Xavier decidiu subverter o ensino no programa que desenhou, para que, quando
retomarmos alguns institutos gerais do Direito de Conflitos, termos normas com que
exemplificar. Adotámos esse desenho neste caderno uma vez que acompanhamos de perto as
lições deste professor.

Nacionalidade ou Residência Habitual

Entrando na matéria do estatuto pessoal: já vimos que estamos a pensar num conjunto
de matérias que se caracteriza pela especial ligação aos indivíduos. Engloba matérias que dizem
respeito ao estado pessoal dos indivíduos e às relações que estabelecem, deixando de parte os
aspetos patrimoniais. Quando referimos o “estatuto pessoa” estamos apenas nas relações não
patrimoniais ou ditas pessoais.
Relativamente a estas matérias, os elementos de conexão que melhor exprimem a
ligação de um indivíduo com determinado Estado são a residência habitual e nacionalidade.
Tanto uma como a outra tem vantagens e desvantagens, mas entende-se que se a matéria é
estatuto pessoal então tem deve ser aplicada a lei mais intimamente ligada à pessoa.
Por um lado, a nacionalidade é a ligação primária entre um indivíduo e um Estado, e
ainda mais, consegue promover prova facilitada. Já quanto à residência habitual, pode ser um
melhor elemento de conexão porque pode introduzir uma questão de justiça material e
proximidade do estado factual. Pode haver uma ligação mais forte com o local de residência de
alguém que nunca residiu no país da nacionalidade, por exemplo. Uma pessoa pode ser nacional
de um Estado onde nunca residiu ou de um Estado de onde se desligou afetivamente ou
culturalmente. Ou também pode acontecer o contrário, e a pessoa residir num Estado com a qual
nunca se ligou efetivamente. Hoje em dia no mundo há uma mobilidade muito grande, que é
mais relevante. Encontramos ainda, por um lado, do ponto de vista sociológico, comunidades
migrantes que mantêm a sua cultura de origem - língua enquanto encontramos outro tipo de
pessoas que privilegiam a sua integração no Estado de acolhimento, a sua assimilação pelo
Estado de acolhimento e, portanto, cultural e linguisticamente passaram sentir-se membros de
pleno direito dessa nova comunidade. Podemos ter um exemplo de uma pessoa que, sendo
nacional do Estado de origem, reside há muitos anos noutro Estado, continuando ligada ao
Estado de origem, e outras que mantendo a nacionalidade, estão desligadas desse Estado.
Assim sendo a concretização do elemento de conexão nacionalidade pode ter efeitos

74Como faz o Professor Ferrer Correia no livro. Nota: o livro do professor ferrer correia está desatualizado
no que toca à parte das normas. Os regulamentos europeus, principal fonte do nosso DIP, não existiam
quando escreveu o seu livro.
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positivos ou negativos, e o mesmo acontece com a conexão residência habitual, porque se o


migrante reside num Estado em que nunca se integrou em termos culturais, continua a contar
com a lei do seu estado de origem. Nenhum destes elementos de conexão é perfeito.

Os legisladores posicionaram-se na escolha do elemento de conexão tendo em conta


estes fatores. Por um lado, existem Estados que preferem a conexão nacionalidade e Estados que
preferem a conexão residência habitual.
Normalmente, os Estados onde tradicionalmente há muita imigração, tendem a
privilegiar a conexão residência habitual, para sujeitar esses imigrantes à lei do país onde
vivem – um dos motivos é dizer que isso facilita a integração e igualdade entre nacionais e
estrangeiros, por outro lado, para ampliar os casos de aplicação da lei do foro e evitar a aplicação
da lei estrangeira, nomeadamente, para facilitar a aplicação da lei.
De alguma maneira temos razões simétricas para os Estados que são
tradicionalmente de emigração – como Portugal, quando o Código Civil foi aprovado. A
escolha da conexão nacionalidade como conexão prevalecente poderia ter subjacente a
ideia do interesse do Direito português, mantendo a sua aplicação, para manter o vínculo
entre emigrantes e Estado português. Também do ponto de vista prático se aplica a mesma
razão – facilitar a ação da justiça.

1 - Nacionalidade - porque é a ligação primária entre um indivíduo e um Estado


e mais, consegue prover a prova facilitada. Mesmo que uma pessoa resida noutro
país, pode manter a uma conexão mais próxima com o país de origem,
nomeadamente, por não se integrar no país de residência.

2- Residência habitual - pode ser um melhor elemento de conexão porque


permite introduzir justiça material. Sendo matérias quanto à pessoa do
indivíduo, o que interessa é qual é a fonte que lhe concede conexão mais estreita.
O sujeito pode desenvolver uma conexão mais próxima com o país de
residência em lugar do país de origem.

Hoje em dia esta dicotomia na escolha que os Estados fazem está resolvida porque temos
entidades supraestaduais que resolvem uniformemente a questão. De alguma maneira a
existência de entidades supranacionais veio relativizar a relevância da nacionalidade. A
nacionalidade perdeu relevância, porque as pessoas, pela maior mobilidade gerada pela
facilidade, não apenas fática de viajar, mas tornou-se juridicamente fácil essa possibilidade. Há
um outro fator, é que hoje é difícil podermos dizer que determinado país é de emigração
ou de imigração., em muitos países não podemos dizer que se caracterizam por um único
sentido de fluxos migratórios.
Mas depois há um terceiro fator, de evolução do DIP, que vai ao encontro desta
dificuldade de escolha entre as duas conexões, que é o fator – causa e consequência – o
alargamento da autonomia da vontade no DIP, ou seja, como a forma mais adequada de superar
este dilema – entre a lei nacional e a lei de residência habitual – é permitir que as pessoas
escolham, ou seja, as pessoas vão poder escolher se preferem a aplicação da lei nacional
ou da residência – flexibilização do DIP75. É esta tendência que prevalece nos textos da UE – por
exemplo, no Regulamento Roma III sobre o divórcio, sobre os regimes de bens, sucessão por

75 Ver supra “De conflitos rígidas e flexíveis” que falámos no que toca à evolução histórica do DIP.
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morte, etc. Em todos os diplomas temos a introdução, embora circunscrita, de autonomia da


vontade em DIP.
Além da possibilidade da autonomia da vontade, está a possibilidade de o julgador, do
aplicador, escolher a conexão mais estreita em função do caso concreto, também cada vez
mais vezes prevista nas normas de DIP.

Nos casos em que não há escolha, e o legislador não queira colocar inteiramente na mão
do juiz, no espaço europeu, a conexão preferida do legislador é a da residência habitual.
Portanto é isto que encontramos nos Regulamentos da EU, normas que permitem76:

1) As partes poderem escolher entre residência ou nacionalidade


2) O julgador poder escolher, escolhendo o que melhor se adequa
3) Nos casos em que não há escolha então aplica-se a residência habitual (regra geral)

Temos regras gerais que encontramos no CC - artigo 25º a 35º, 52º a 65º e que são
aplicadas quando não existirem ou não forem aplicáveis as normas especiais que
prevalecem sobre elas e, em particular, as normas especiais dos regulamentos da U.E.77
Nos artigos 25º e seguintes temos todas as matérias que tem que ver com o estado
e capacidade das pessoas – o artigo 25 dá-nos um conceito de lei pessoal, a lei pessoal não é
caracterizada por um elemento de conexão, mas sim pela delimitação de um conjunto de
matérias ligadas à vida individual das pessoas, ou seja, ao Estado e capacidade das pessoas,
relações familiares e sucessões por morte. Além dessas, há outras que nos aparecem indicadas
nas disposições a seguir ao artigo 25º. Por exemplo, o início e termo da personalidade jurídica,
que não está indicada expressamente, ainda assim, existe uma norma de conflitos sobre a
matéria - início e termo da personalidade jurídica - e manda aplicar a lei pessoal do indivíduo. O
mesmo acontece com normas relativas aos direitos de personalidade. Isto significa que a lei
pessoal é a lei que regula este conjunto de matérias, é isso que é a lei pessoal dos indivíduos.
Coisa distinta é saber como é que se concretiza a lei pessoal, ou como é que se
determina a lei pessoal, aqui estamos a lidar com elementos de conexão que vamos utilizar para,
em concreto, definir a lei aplicável, e aqui também já sabemos, no direito português em
princípio a lei pessoal é definida pela nacionalidade, como resulta do artigo 31º nº1. Mas
também já sabemos que o modo como a determinação da lei aplicável nestas matérias está
definida no nosso Código Civil, há diversos casos em que não vamos aplicar a lei nacional, mas
sim uma outra lei, sobretudo a lei da residência habitual, basta pensarmos nos casos em que
para acorar a lei aplicável às relações entre cônjuges, aplicamos a lei nacional comum, mas se
têm nacionalidade distinta, então aplica- se a lei da residência78 – segundo o artigo 52º.
O mesmo se passa para os apátridas, que não podem ter como lei pessoal a lei da
nacionalidade por simplesmente não terem nacionalidade, e por isso, nos termos do artigo 32º
aplicamos a lei da residência habitual.
Por outro lado, como veremos, há casos em que vamos afastar a aplicação da lei

76Isto é o desenho geral das normas do regulamentos. Vamos concretizar a seguir. É preciso que a norma
permita e portanto é ver caso a caso.
77 Ver matéria de IED. O direito europeu prevalece sobre os atos legislativos.
78 Conexão subsidiária.
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pessoal por outras razões – como acontece para o artigo 32º nº2, artigo 47º ou artigo 28º,
em que deixamos de aplicar a lei nacional e vamos aplicar outra lei por diferentes razões.

A Aplicação Universal dos Regulamentos Europeus

Há uma característica importante, há uma norma que se repete em todos os


regulamentos em matéria de conflitos de leis, que é a aplicação universal dessas regras. Esta
norma significa que quando determinado litígio ou questão jurídica é submetida à apreciação de
um órgão de aplicação do Direito de um Estado-membro, então esse órgão de aplicação do
Direito vai poder aplicar as regras de conflitos da UE, independentemente das relações
que existam entre a situação a regular e os estados-membros da UE.
Isto significa que, em matéria de Direito de Conflitos, as normas de conflitos dos
regulamentos têm uma aplicação universal, valem mesmo quando essas regras apontam
para a ordem jurídica de um Estado terceiro e valem mesmo para regular situações que
no momento da sua constituição não tinham relação com os estados-membros, o que é
uma vantagem para nós, porque não temos que aplicar dois direitos de conflitos em função das
relações que existem entre as situações a regular e os diferentes estados-membros.
O considerando nº12 do Roma III explica este conceito de forma clara: “o presente
regulamento deverá ter carácter universal, ou seja, deverá ser possível que as suas normas
de conflitos de leis uniformes designem a lei de um Estado-Membro participante, a lei de um
estado-Membro não participante ou a ei de um Estado que não é membro da União
Europeia”.

Não se confunda, a aplicação universal não implica que o Regulamento seja usado
quando a questão se suscite fora dos Estados participantes, ainda que a situação esteja
conexionada com estes, porque esses tribunais não vão estar vinculados pelo mesmo
Regulamento. A aplicação universal não significa que todos os países apliquem o Regulamento,
mas sim que os Estados-Membros participantes apliquem, independentemente das
conexões que a situação tenha com esse Estado-Membro e independentemente das suas
regras de conflitos apontarem para a Lei desse Estado-Membro ou para Estado terceiro.
Esta aplicação universal não é por isso violadora do princípio da não transitividade, porque,
evidentemente, as normas do Regulamento são normas formais e não materiais.

Há um aspeto importante a transmitir, que é que o artigo 4º do Roma III que vamos ver
de seguida é semelhante a disposições correspondentes em todos os Regulamentos da União
Europeia relativos ao Direito de Conflitos. Em todos os Regulamentos que contêm regras de
conflitos existem normas semelhantes a esta. O Direito de Conflitos unificado ou
parcialmente unificado tem sempre esta vocação de aplicação universal. Aplicação
universal significa que se formos colocar a questão perante os tribunais de um Estado terceiro,
vai aplicar o Regulamento? Não, porquê? Por exemplo, o Reino Unido é um estado-membro não
participante. Se a questão for colocada perante os tribunais ingleses, o que é que fará o Tribunal
inglês? Aplicará o Regulamento? Vai aplicar o seu Direito de conflitos vigente. Não vai aplicar o
Regulamento, porque não está vinculado por ele. A aplicação universal não significa que todos os
países apliquem o regulamento, mas sim que os estados-membros participantes apliquem,
independentemente das conexões que a situação tenha com esse estado-membro, e
independentemente das suas regras de conflitos apontarem para a lei desse estado-membro ou
P á g i n a | 70

para Estado terceiro. O Regulamento não vai ser aplicado em países que não estejam vinculados
pelo Regulamento.

Código Civil

A lista regras é que ainda não são objeto de unificação pela EU e nas quais, portanto,
usamos ainda usamos Código Civil para resolver conflitos são:

• Capacidade pessoal em geral – artigo 25 + artigo 31º nº1 – lei da


nacionalidade. Esta é a regra geral para aferir a capacidade jurídica no DIP,
podendo ser considerada subsidiária uma vez que só se aplica se não houver
desvios e há alguns. Por exemplo, quanto à capacidade em especial para alguns
atos jurídicos em particular, a que está no artigo 47º ou no artigo 49º79.

o O artigo 47º do Código Civil na primeira parte é a exceção e a regra


está na última parte. A regra é aquela que decorre do artigo 25 do
Código Civil, isto é, na matéria da capacidade para constituir ou dispor
de direitos reais sobre imóveis, não se aplica a regra geral de aplicação
da lei da nacionalidade, mas sim a lei do país da localização do objeto
do direito. Então, porque é que vamos aplicar e quando é que vamos
aplicar a lei do lugar do imóvel em lugar da lei geral da nacionalidade? A
aplicabilidade da lei do sítio do imóvel depende de o país considerar
aplicáveis as normas materiais sobre capacidade da própria lei. Porquê?
O que é que poderia acontecer se não aplicássemos a lei da situação do
imóvel era que o órgão de aplicação do Direito permite que a transação
ocorra, mas a decisão que permitiu essa transação pode não ser
reconhecida no país da situação do imóvel, a sentença proferida em
Portugal não sendo reconhecida no país de situação do imóvel, não
vale nada porque o imóvel está lá.

o Vejamos o segundo caso, o artigo 49º. Esse artigo significa que não se
vai excetuar a aplicação da lei pessoal, mas concretizar o modo de
aplicação da lei pessoal. Vai utilizar a técnica da conexão múltipla
distributiva, para distribuir competência por diferentes leis se forem
diferentes as leis pessoais dos nubentes. Depois temos uma regra
especifica sobre capacidade em matéria sucessória, mas essa regra está
afastada por intervenção do Regulamento em matéria sucessória.

o Quanto ao artigo 31º pode acontecer que uma pessoa tenha mais que
uma nacionalidade. Nestes casos temos de recorrer à Lei da

79Vai utilizar a técnica da conexão múltipla distributiva, para distribuir competência por diferentes leis se
forem diferentes as leis pessoais dos nubentes
P á g i n a | 71

Nacionalidade80. O artigo 27º e 28º da Lei da Nacionalidade tratam


disto. No caso da dupla nacionalidade se uma for portuguesa só essa
será considerada para os efeitos do DIP interno81. No caso da dupla
nacionalidade ser constituída por duas nacionalidades estrangeiras
considera-se aquela em que a pessoa tenha residência ou na falta
desta aquela com a qual mantenha uma vinculação mais estreita.

o 31º nº2 CC – desvio ao princípio da nacionalidade face a NJ. Os nj são


reconhecidos em Portugal se preenchidos os 4 pressupostos de aplicação
desta norma: a) NJ invalido segundo a lei pessoal b) NJ celebrado no pais
estrangeiro da RH do declarante c) NJ seja valido perante a lei da RH d)
Lei da RH se considere competente. Isabel Collaço diz que esta norma
existe por causa do respeito da competência reclamada pela lei da RH +
favor negotti.

• Capacidade atribuída em razão do favor negotii – isto é, para proteção da


contraparte, se alguém não se considera capaz à luz da sua lei nacional, mas é
capaz à luz da lei portuguesa, então considerar-se-á capaz. Esta ideia está
presente no artigo 28º. As exclusões presentes no artigo 28º nº2 mostram
depois que o que está em causa é a tutela da confiança na contraparte em
negócios jurídicos que estão ligados ao tráfico jurídico local. Isto é, num
negócio jurídico do tráfico jurídico local, a contraparte estava a contar,
legitimamente, com a aplicação das regras do país em que está a celebrar.
Se A está em Portugal, adquire um bem móvel, quem vendeu tem capacidade
jurídica em razão da idade, mas é nacional de um país onde a maioridade só se
atinge aos 21 anos e por isso ele é incapaz. Mas a contraparte não deve ser
obrigada a saber, não deve ser obrigada a suportar as consequências de uma
incapacidade que não era obrigada a conhecer.

o Do ponto de vista dos conceitos que estudámos antes, o 28º nº1 é uma
norma de conflitos unilateral, porque determina a aplicação da lei
portuguesa. O nº3 vem no entanto bilateralizar a norma do nº1. Temos
uma bilateralização da regra de conflitos unilateral, que é condicionada a
que no país estrangeiro em que ocorre o negócio se preveja essa mesma
tutela do tráfico jurídico local. Não basta que essa pessoa seja
considerada capaz nesse país, é necessário que nesse país as regras
locais devam prevalecer sobre as regras gerais em matéria de
capacidade. Têm que haver regras semelhantes. A pessoa deve ser capaz
segundo o direito material da lex loci (por oposição à solução que resulta
da sua lei pessoal) e a lei do lugar da celebração dever conter uma regra
favor negotii dispondo sobre a sua própria aplicação em detrimento da

80 Referimos o diploma legal e não a lei da nacionalidade (aplicável)


81Esta solução pode ser muito criticada uma vez que pode não ser a nacionalidade com que o individuo
tenha conexão mais estrita. Além disso a solução do artigo 27º da LN ainda se opõe ao principio da
paridade de tratamento entre a lei do foro e a lei estrangeira e da harmonia jurídica internacional. Não
obstante, Florbela Almeida Pires defende a sua aplicação uma vez que é a solução que trás segurança
jurídica por ser a positivada.
P á g i n a | 72

lei pessoal. Adicionalmente as restrições do nº2 do artigo 28º são


aplicáveis mesmo que concretamente não constem do direito de
conflitos da lex loci, pois os seus fundamentos sobrepõe-se ou limitam o
âmbito que pretende dar-se ao favor negotii.

o O âmbito de aplicação do 28º está muito restringindo hoje pelo 13º do


Regulamento Roma I. Tal como 28º o 13º do Roma I pretende protger
o comercio jurídico do local da celebração do contrato, impedindo que a
incapacidade possa originar a invalidade do mesmo desde que se
verifiquem certo requisitos. Em ambos os casos temos regras de confitos
que introduzem um desvio à lei normalmente competente para regular a
capacidade, motivado pelo princípio favor negotii.

o O Roma I não pretende uniformizar o DIP dos conflitos na UE em matéria


de lei pessoal ou de lei aplicável à capacidade. A sua intervenção é
circunscrita a impedir a invocação da incapacidade. Questiona-se se
poderia aplicar-se também, ou ainda, o artigo 28º quando o 13º não
conduzisse à validade do negócio, mas o 28º conduzisse (casos em que a
contraparte desconhece a incapacidade por negligência, aspeto que não
releva para o 28º). Porem a atendendo ao objetivo da harmonia jurídica
internacional, parece preferível considerar que, quando estejamos no
âmbito de aplicação do 13º só este deve ser aplicado e não outras
disposições internas favor negotii.

o Fora do âmbito do Roma I poderá então intervir o artigo 28º do CC para


impedir a incapacidade resultante da lei pessoal seja invocado para
invalidar o negócio jurídico celebrado pelo incapaz.

• Incapacidades – artigo 30º – a questão é resolvida pela lei pessoal; mesmo com
a nova lei do maior acompanhado, pois a norma tem uma referência a institutos
análogos à tutela relativamente à proteção dos incapazes. Quer isto dizer que
independentemente do desenho jurídico estabelecido em cada país para tutela
dos incapazes, esta questão é resolvida por intermédio da respetiva lei pessoal.

• Estatuto pessoal do apátrida – artigo 32º – regulado pela lei do Estado de


residência habitual. O artigo 32º deve ler-se no sentido de que o domicilio legal
só releva, quando o apátrida for menor segundo a lei da residência habitual e
houver um Estado que o considere simultaneamente menor e legalmente
domiciliado. Em Portugal a norma é o 85º.

• Regulação das responsabilidades parentais – artigo 57º – estabelece uma


conexão múltipla subsidiária. Primeiramente é aplicável a lei nacional comum
P á g i n a | 73

dos pais, e se essa não existir, aplica-se ou a lei da residência habitual comum ou
ainda a lei nacional do filho; 82

• Constituição da filiação adotiva – artigo 56º;

Quanto às pessoas coletivas, de acordo com o artigo 33º do Código Civil e o artigo 3º
do Código das Sociedades Comerciais. Por princípio, a lei pessoal das sociedades é
determinada pela sede efetiva da administração83. A sede estatutária pode ser indiciária da
sede efetiva, mas pode haver dissociação. Como é que concretizamos a sede efetiva? É o local
onde a administração da sociedade reúne e delibera, independentemente do local onde os
efeitos das deliberações ocorrem. O que é relevante é o local onde se encontra o poder efetivo da
sociedade. Esta solução é boa para todos os casos? Não. Mas isso impede que seja uma solução?
Não, há sempre casos extremos em que as soluções podem não ser as melhores. No entanto, o
que é que o intérprete pode fazer? Arranjar uma forma teleológica de interpretar o
elemento de conexão ou entender uma cláusula de desvio implícita. Pode ainda considerar
a existência de uma lacuna, a integrar segundo o princípio da conexão mais estreita.

Está dado o mapa das regras gerais, depois temos regras especiais previstas nos
Regulamentos, e essas prevalecem sobre as regras do Código Civil, estando derrogadas.

Resolução de Casos de Conflitos, em Geral

Um brasileiro e uma francesa, casados, e habitualmente residentes em Portugal vão


divorciar-se. Qual é a lei que deve reger os fundamentos e efeitos deste divórcio.
Para responder a esta pergunta, e a todas as perguntas de conflitos de leis, o
primeiro passo é verificar quais é que são os ordenamentos jurídicos potencialmente
aplicáveis. Neste caso temos o Brasileiro, francês e português. Partimos do pressuposto que
este problema suscita a questão de saber qual é o ordenamento aplicável, por ser uma situação
absolutamente internacional. As ordens jurídicas em contacto com a situação são
potencialmente aplicáveis, e não podemos aplicar outra que não essas, em respeito do princípio
da não transitividade. Para determinar de entre as leis potencialmente aplicáveis a que
efetivamente vai ser considerada competente, em última análise, temos de saber qual é a
conexão mais estreita, mas não é uma procura sem rede que nos vai diretamente ajudar, o
que nos vai ajudar vai ser o Direitos de Conflitos, e dentro dele da norma de conflitos.

82Exemplo: Por ocasião do divórcio, quem é que tem a responsabilidade sobre a guarda dos filhos, em
que termos, como é que as coisas funcionam, etc. Nestas matérias, valerá o regulamento em matéria de
divórcio? Não, está excluída pelo artigo 1/2/f). Mas se virmos no Regulamento Bruxelas II BIS, a matéria
está incluída, mas apenas na competência internacional e o reconhecimento de sentenças estrangeiras,
mas não está definida a lei aplicável. A lei aplicável vai ser definida pelo Código Civil, e essas regras são as
que nos aparecem – artigo 57º. Aqui temos a típica regra de conflitos do nosso Código Civil, uma regra de
conflitos de conexão múltipla subsidiária – porque temos uma lei primariamente aplicável, a lei nacional
comum dos pais – e duas subsidiariamente aplicáveis – a lei da residência habitual comum e a lei pessoal
do filho. As leis primariamente competentes são leis que apontam para uma lei nacional comum, ou seja,
através da técnica da cumulação de conexões. A lei nacional comum só é aplicável se para ela apontarem a
nacionalidade de ambos os pais e é necessária, para que a lei se aplique, a cumulação de conexões.
83 Não sendo oponível a terceiros a sede efetiva, se diferente da sede estatutária
P á g i n a | 74

Mas que regra de conflitos vamos aplicar? Para isso temos que apurar a que fonte vamos
recorrer, isto porque sabemos que o DIP atual não resulta unicamente de fontes internas, mas
porque temos que ver outras.
Devemos sempre começar por perceber se há ou não fontes que devam prevalecer sobre
essas fontes internas, neste caso existe o Regulamento Roma III. Quanto à questão do Direito
aplicável temos que recorrer ao Regulamento Roma III, ou seja, o regulamento aprovado ao
abrigo do mecanismo de cooperação reforçada não por todos os estados-membros, mas por
sensivelmente metade, incluindo Portugal. Nos estados-membros participantes, as regras de
conflitos relativas ao divórcio e separação judicial que vão ser aplicadas são as do Roma III.

Esta secção foi um pouco parênteses daquilo que estamos a tratar, mas é importante e
vale para todos os casos de conflitos de normas. Vamos então aproveitar a deixa par analisar
este regulamento.

Regulamento Roma III

O Regulamento Roma III regula os divórcios e separações judiciais, mas apenas


quanto à vertente pessoal, não regulando as questões patrimoniais que resultam do
divórcio nem as responsabilidades parentais. Este Regulamento, que é o 1259/2010 do
Conselho, como todos os outros têm um determinado âmbito de aplicação, que só depois de
verificado é que vai dar permissão ao Regulamento de resolver a questão.

Âmbito de Aplicação

O âmbito de aplicação dos Regulamentos, está dividido em três aspetos distintos:


material, temporal e territorial. O âmbito de aplicação material, que é o primeiro, logicamente,
respeita à matéria à qual o Regulamento se vai aplicar, o tipo de questões que resolve.
Essas questões estão indicadas no título do regulamento e no seu articulado, começando
pelo artigo 1º que tem mesmo a epigrafe “âmbito de aplicação” trata do âmbito material de
aplicação do regulamento.
Temos uma delimitação da aplicação material, no nº1, pela positiva: divórcio e
separação judicial, nas situações que envolvem um conflito de leis. Trazendo este Regulamento
um conjunto de normas de conflitos não se podem aplicar a situações puramente internas, que
não envolvam um conflito de leis. Mas aplica-se ao divórcio e separação judicial.
O nº1 tem que ser completado com o nº2, que faz a delimitação negativa de questões
jurídicas que são consideradas exteriores ao âmbito de aplicação do Regulamento. Parte
destas questões excluídas são resolvidas por outros Regulamentos, por exemplo, sobre os
regimes de bens ou responsabilidade parental – não tem um Regulamento sobre a lei aplicável,
embora haja aplicação do Regulamento de Bruxelas II bis. Mas, são questões que estão fora
do âmbito de aplicação do Regulamento Roma III, o que é importante. Quando estamos a
apreciar a questão de saber se pode ou não ser realizado o divórcio e quais são as consequências,
há aspetos que ficam de fora, por exemplo, as consequências ligadas às questões patrimoniais do
casamento.
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Portanto, a harmonização, ou melhor, a uniformização destas regras de


conflitos na União Europeia está limitada aos países participantes e
está ainda limitada pela matéria a que respeita, porque apenas
respeita propriamente ao divórcio e separação judicial no caso deste
regulamento.

Quanto ao âmbito temporal de aplicação, a que questões é que este Regulamento se


aplica. Sobre isto estatui o artigo 18º, deste resulta o âmbito temporal de aplicação, se a
questão se colocar hoje o problema está resolvido, todas as questões antes de 21/6/2012
estão excluídas e aplicaríamos a lei portuguesa.

Mas ainda temos a terceira parte do âmbito de aplicação que é a que respeita ao âmbito
espacial de aplicação. O artigo 4º determina a aplicação universal, e é aí que está determinado
o âmbito espacial. Vamos aplicar este Regulamento mesmo que a lei designada pelas suas regras
de conflitos aponte para outro estado-membro, que não tenha participado na aprovação deste
Regulamento. Mas também que se vai aplicar a lei designada por estas regras de conflitos, ainda
que não seja a lei de um estado-membro. Ou seja, se o elemento de conexão da regra de conflitos
apontar para uma lei de um Estado terceiro, é essa a lei que vai ser aplicada, independentemente
de saber se é de um estado-membro ou não.
Algo que não está diretamente afirmado, mas que resulta implicitamente do artigo 4º,
que é uma consequência unanimemente reconhecida, não apenas a lei aplicável é designada
mesmo que seja a lei de um estado-membro não participante, mas, para que se aplique este
regulamento, não é necessário que exista no momento relevante uma qualquer conexão com os
estados-membros ou com os estados-membros participantes. Ou seja, não se exige nenhum tipo
de conexão com a ordem jurídica do foro ou com outras ordens jurídicas de estados-membros
para que o regulamento se aplique.84 A aplicação universal também tem este alcance e é uma
consequência aceite consensualmente na doutrina e na jurisprudência do TJUE – assim, o
Regulamento é aplicável desde que exista competência do tribunal de um estado-membro
participante, pelo Regulamento de Bruxelas II bis.

Divórcio não judicial

Temos ainda uma questão. Em Portugal, algo que acontece noutros Estados também,
para se obter um divórcio, não é obrigatório o recurso aos Tribunais.

Nos casos dos divórcios que são obtidos por via não judicial85, vai aplicar-se o
Regulamento Roma III na mesma, a hipótese está prevista no artigo 3º nº2, considera todas as
autoridades dos estados-membros participantes com competência abrangida pelo âmbito de

84 Isto entende-se porque o regulamento tem soluções formais e não substanciais. Não viola o princípio da
não transatividade. Este é o DIP que os Estados Membros usam caso uma ação seja posta nos seus
tribunais. Depois a competência dos tribunais é outra história que veremos.
85 Comum acordo na Conservatória
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aplicação. Para estes efeitos, para os efeitos do Regulamento em matéria de divórcio, outras
autoridades86 que existam em cada país e tenham competência nestas matérias, são abrangidas.

É preciso, no entanto, ter atenção e não permitir que a interpretação do nº2 do artigo
3º permita certas situações. Nos casos de uma decisão de divórcio proferida por uma
autoridade religiosa, a favor de um dos cônjuges contra outro, é ou não válida a dissolução?
Segundo a jurisprudência do TJUE, estas regras não podem aplicar-se a dois tipos de
hipóteses:

1) Dissolução de casamento obtida por mera declaração unilateral de uma das partes87

2) Divórcios que sejam decretados por entidades privadas, incluindo autoridades


religiosas que não sejam autoridades administrativas do próprio Estado.

Isto não quer dizer que não possa haver solução para estas questões, mas isso decorre do
Direito de Conflitos aplicável de cada Estado e não do Roma III.

Regime

Com escolha
Para os casos de divórcio e separação judicial, o Regulamento Roma III diz-nos que lei
primariamente competente é a lei escolhida pelas partes – artigo 5º.88
O acordo pode ser feito a qualquer momento. Por exemplo, há casamentos que envolvem
questões patrimoniais relevantes, nos quais convém deixar tudo estabelecido desde o princípio.
Se o Estado do foro admitir uma escolha posterior à propositura da ação, essa escolha também
será possível.
Agora, ao contrário de outros textos conflituais, como é o caso do Regulamento Roma I -
que consagra o princípio da autonomia da vontade em termos amplos e não exige que a lei
escolhida tenha qualquer conexão com a situação a regular - aqui as coisas não se passam da
mesma maneira. Temos uma lista fechada de ordens jurídicas que as partes podem
escolher, e esta lista fechada aparece no artigo 5º:

a) A lei do Estado da residê ncia habitual dos cô njuges no momento da celebração do
acordo de escolha de lei; ou

b) A lei do Estado da ú ltima residê ncia habitual dos cô njuges, desde que um deles ainda
aí resida no momento da celebração do acordo; ou

86 Como a conservatória.
87Por exemplo, o instituto através do qual, de acordo com o Direito islâmico, se o marido pronunciar três
vezes a palavra talaq, o casamento se considera dissolvido. Esta forma de dissolução unilateral do
casamento é considerada como um divórcio privado, mas entende-se que este está afastado do âmbito
material de aplicação do Regulamento.
88É um exemplo da flexibilização do DIP. Esta é uma diferença importante relativamente ao Direito de
Conflitos anterior, em que não havia espaço para as leis escolherem a lei aplicável.
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c) A lei do Estado da nacionalidade de um dos cô njuges à data da celebração do acordo;


ou

d) A lei do foro.

O legislador deveria sempre em princípio permitir ser escolhidas a lei da nacionalidade


ou a lei da residência habituar, por se tratar de estatuto pessoal como começámos por referir. No
entanto, as partes podem ainda escolher a lei do foro, nos casos em que esses tribunais
sejam competentes. Aí, a escolha será entre a lei da nacionalidade de uma das partes, da
residência habitual de uma das partes no momento referido, ou a lei do foro.

Validade Substancial
Mas o Regulamento tem ainda regras quanto à validade substancial e formal da
escolha da lei. Vemos isto no artigo 6º do Roma III. Na validade substancial também temos
uma regra normalmente utilizada nos diferentes Regulamentos da União Europeia. Este é um
exemplo de uma regra que vai ser constante nos diferentes Regulamentos, a lei escolhida
pelas partes. Se as partes escolheram a lei da nacionalidade, será essa lei que vai servir para
apreciar se os cônjuges livremente escolheram bem a lei aplicável ou não.
Mas atenção como salvaguarda, como medida para limitar os efeitos negativos que
pudessem resultar de uma escolha não verdadeiramente livre de ambas as partes, o nº2
deste artigo 6º vem trazer uma exceção dizendo que: se concluíssemos que por força da lei
aplicável pelo artigo 6º nº1 que a parte tinha dado o consentimento, mas por força da lei de
residência habitual dessa parte o consentimento não tinha sido dado, a lei da residência
habitual prevalece. A parte que, em Tribunal, vai defender que não deu o seu cometimento,
pode basear-se na aplicação da lei da residência habitual.

Validade Formal
Depois, quanto às regras sobre validade formal, estão no artigo 7º.
No Regulamento Roma I há a ideia de favorecimento da celebração do negócio jurídico a
fazer prevalecer a lei, de entre as alternativamente aplicáveis, para dar fundo à expressão da
vontade das partes.
Aqui é um bocadinho diferente. O artigo 7º nº1 indica uma regra sobre a validade
formal. Este prevê que o acordo tem que ser reduzido a escrito, datado e assinado por ambos
os cônjuges. Estamos perante uma norma material de DIP. Porque o artigo 7º nº1 não é uma
norma de conflitos, porque não remete para nenhuma ordem jurídica, não tem nenhum
elemento de conexão, não é uma regra que se destina a determinar uma lei competente, pelo
contrário, ela indica-nos uma solução material, de forma direta, para o problema jurídico em
análise. Como por definição este Regulamento só se aplica a situações plurilocalizadas, esta é
uma norma material de DIP.
Só que esta norma pode vir a ser excetuada com referência aos números seguintes. O
nº2, por exemplo, significa que se a lei de um Estado-Membro participante entende que não
basta um acordo meramente escrito, datado e assinado, ou por via eletrónica, e exige que
a escolha da lei seja feita por forma mais solene – por exemplo, documento particular
autenticado – então, essas regras têm que ser observadas. Note-se que o que o artigo 7º
estabelece que isto será assim por obediência a uma lei de Estado-Membro participante, mas
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se o Estado de residência habitual dos cônjuges for um estado terceiro ou não participante, o que
é que vai acontecer é que apenas se aplica o nº1.
O artigo 7º nº3 estabelece uma conexão múltipla alternativa: isto é, se os cônjuges
residirem em Estados-Membros diferentes à data do acordo, não têm que seguir os requisitos
das leis de ambos89, podem seguir os requisitos formais de apenas um deles.
O nº2 e nº3 aplicam-se a casos diferentes. Um é para a residência habitual quando esta é
igual para ambos os cônjuges e a outra para quando é diferente. Num dos casos temos uma
cumulação de elementos de conexão e noutra uma conexão múltipla alternativa.

Sem Escolha
Nos casos em que as partes não escolheram a lei que iria regular a situação90 temos de
aplicar o artigo 8º. O preceito em questão é um exemplo de norma de conflitos de conexão
subsidiária. A lei aplicável é a da residência dos cônjuges, à data da instauração do processo, se
os cônjuges não tiverem residência comum? Em última ratio, de acordo com o artigo 8º d),
aplica-se a lei do lugar do julgamento. Porque é que aqui se opta pela lei do foro e não pela lei
mais estreitamente conexionada? Diz-se que se o foro é internacional e processualmente
competente, então alguma ligação tem de haver com essa Ordem Jurídica. Se a questão está
a ser analisada em Portugal, é porque esse país é internacionalmente competente para o fazer, e
por isso há alguma ligação relevante com a ordem jurídica desse Estado, ou seja, a aplicação da
lei do foro não violará o princípio da não transatividade das leis, até porque só será este o
caso se nenhuma das outras conexões funcionar.

Não previsão legal de divórcio


Se a lei aplicável por força do regulamento for uma lei que não prevê o divorcio
aplicamos o artigo 10º. Este não é um problema que se levante na Europa, mas o regulamento
por força do artigo 4º, pode remeter para qualquer país do mundo.
O artigo 10º prevê que nesses casos, e nos casos em que há desigualdade de acesso
ao divorcio entre os cônjuges se aplica a lei do foro.
O Regulamento podia nada dizer e deixar a cláusula de ordem pública internacional
desempenhar o seu papel, mas o Regulamento entendeu que era melhor prevenir, ou seja, em
vez de deixar a questão para ser decidida caso a caso pelos Tribunais do Estado do foro,
estabeleceu logo uma delimitação negativa da aplicabilidade da lei em princípio competente,
indicando que nesses casos, em que a lei aplicável por força dos artigo 5º a 8º não conceda a um
dos cônjuges igualdade em razão do sexo, se torna aplicável a lei do foro.

89 Que era o que aconteceria se o legislador europeu tivesse aqui optado por uma conexão cumulativa.
90Como já indicámos a preferência no Direito da União Europeia nas matérias do estatuto pessoal é o da
residência habitual, não deixando de dar alguma relevância à conexão nacionalidade, mas a preferência é
dada ao Direito da residência habitual.
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Diferenças na Lei Nacional


O artigo 13º do Roma III vem dizer que, quando o estado-membro participante em
que a questão está a ser discutida não admita o divórcio91, este Estado não se obriga a
pronunciar o divórcio, em aplicação do Regulamento.

Reenvio
Quanto ao reenvio92, o problema nasce da diferença entre regras de conflitos nos
diferentes países. Ou seja, obviamente que os Regulamentos uniformizam regras de conflitos e
por isso nas matérias regulamentadas pela União deixa de haver reenvio entre estados-membros
porque já não é preciso, mas relativamente a Estados terceiros, não se uniformiza a lei
aplicável. Isto quer dizer que nós podemos considerar aplicável a lei brasileira, mas esta
considerar aplicável a lei portuguesa93. A questão do reenvio é saber se damos relevância a este
facto ou não, é saber se vamos reenviar a competência de novo para a ordem jurídica do
foro ou se podemos reenviar para uma outra ordem jurídica. 94
Como estamos a resolver o problema do âmbito de aplicação do Regulamento da União
Europeia, temos que ver quais são as regras que esse Regulamento estabelece sobre o reenvio.
Este Regulamento Roma III estabelece a regra do artigo 11º: quando o presente regulamento
prevê a aplicação da lei de um Estado, refere-se às normas jurídicas em vigor nesse Estado,
com exclusão das suas normas de direito internacional privado, vem dizer quando remete
para uma Ordem Jurídica, só inclui o direito material e não o DIP95. O artigo 11º vem afastar
o reenvio, facilitando a vida ao aplicador do Direito.

Regulamento em Matéria Sucessória

Se um cidadão brasileiro falecer em Portugal deixando património imobiliário em


Portugal e no Brasil, qual é a lei reguladora da sua sucessão? Através do Regulamento de matéria
sucessória da União. Regulamento 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho.

O Regulamento Sucessório vem determinar não apenas a lei aplicável a situações


internacionais de sucessão, mas também os tribunais competentes e as normas de

91 Isto foi previsto no regulamento uma vez que na altura Malta não admitia o divórcio.
92 Instituto importante que vamos ver depois.
93O que nunca aconteceria entre estados membros a usar o mesmo regulamento, uma vez que são as
mesmas regras e logo mandariam aplicar a mesma lei. Daí termos acabado de dizer que não era preciso o
reenvio.
94Se a questão estivesse a ser resolvida com base no Código Civil português, iríamos recorrer aos artigos
16 e seguintes do Código Civil
95Logo no caso da lei brasileira o regulamento ignora que esta diga que é a lei portuguesa aplicável,
pois ignora o seu DIP e a lei brasileira que diz competente a portuguesa é uma norma de conflitos, não é
material.
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execução de sentenças. O Regulamento vem ainda criar o certificado sucessório europeu


que exprime de forma válida, em todo o espaço europeu, a condição de herdeiro.
Como se pode concluir, este Regulamento dispõe sobre muito mais matérias do que o
Regulamento Roma III. No Regulamento Sucessório temos respostas não só para o Direito
aplicável (isto é conflitos de leis), mas também para a competência internacional dos tribunais
e ainda ao reconhecimento e execução de decisões, além da aceitação e execução dos atos
autênticos em matéria sucessória. Isto significa que temos uma abordagem integrada de
toda a matéria das sucessões.

Âmbito de Aplicação96

O âmbito material de aplicação do Regulamento, o âmbito temporal e ainda o âmbito


espacial. Todos estes instrumentos jurídicos – quer dos Regulamentos quer das Convenções
internacionais – para prevalecerem sobre o Direito comum de Conflitos têm que reunir os
pressupostos para a sua aplicação que passam por esta análise tridimensional.

No âmbito material de aplicação, o Regulamento aplica-se a matérias expressas logo no


artigo 1º – como é normal nos Regulamentos da UE – faz uma delimitação positiva, no nº1, e
negativa, no nº2.
É aplicável às sucessões por morte, sendo excluídas matérias fiscais, aduaneiras e
administrativas. Também matérias que apesar de estarem fortemente ligadas às sucessões, são
excluídas do âmbito de aplicação do Regulamento, por exemplo, a validade formal das
disposições por morte feitas oralmente, matéria que estaria integrada no âmbito de aplicação
do Regulamento se o nº2 não a viesse excluir do seu âmbito de aplicação material. Nos outros
casos são matérias de fronteira que são relevantes para as questões sucessórias, mas em si
mesmas não são resolvidas através da regra de conflitos sucessória, tal como a capacidade das
pessoas ou as relações familiares que podem ser pressuposto do fenómeno sucessório,
mas que não são em si mesmas sucessórias e, por isso, não são resolvidas pela regra de
conflitos sucessória europeia.

O âmbito temporal, de acordo com o artigo 84º, diz que o Regulamento só é aplicável a
partir de 17/5/2015. De acordo com a disposição do artigo 84º, que deve ser conjugada com
o artigo 83º.
Quer isto dizer que relativamente às pessoas que morreram antes de 17/5/2015 a regra
de conflitos relevante é a do artigo 62º do Código Civil. A lei aplicável por via de regra nestes
casos é a lei pessoal, que seria a lei da nacionalidade, nos termos do artigo 31º nº1 do código
civil.

Temos ainda de analisar o âmbito espacial do Regulamento – artigo 20º. O


Regulamento aplica-se nos Estados-Membros participantes, mas nestes Estados é aplicável a
todas as pessoas independentemente da sua nacionalidade, residência habitual e outras
conexões que tenha estabelecido. Esta é uma regra que é semelhante à que nos aparecia no

96Como vimos nos casos práticos que envolvam regulamentos temos sempre de referir se o caso está
dentro do âmbito de aplicação de certo regulamento.
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Regulamento Roma III de aplicação universal, e é semelhante à que nos aparece nos outros
Regulamentos que contêm regras de conflitos. Assim basta que a questão seja suscitada perante
órgãos de aplicação do Direito dos Estados-Membros para que o Regulamento seja aplicável.

Regime

Solução central
A regra geral consta do artigo 21º e indica a lei da residência habitual no momento
do óbito. De um ponto de vista lógico a aplicar este regulamento devemos no entanto começar
pelo artigo 22º que indica a lei escolhida pelas partes.
O artigo 22º permite a escolha da lei nacional. O regulamento gira em torno do artigo
21º e 22º, sendo que o artigo 21º exprime uma preferência pela lei da residência habitual, mas
o 22º permite que o de cujus escolha, tenha preferência pela aplicação da sua lei nacional. Esta
consagração do princípio da autonomia da vontade não é muito ampla, não tem aqui o testador
a possibilidade de escolher uma qualquer lei como acontece com o Regulamento Roma I. O
que pode fazer é:

1) ou não escolhe e aplica-se a lei da sua residência habitual;


2) ou escolhe e vai aplicar-se a lei da nacionalidade.

Para os casos em que a pessoa tenha mudado a nacionalidade, em que no momento


da morte tinha uma nacionalidade diferente da que tinha no momento em que escolheu a lei, por
exemplo, um brasileiro não era brasileiro 10 anos antes de morrer. Se o brasileiro três anos
antes de morrer tiver dito que escolhe como aplicável a lei da nacionalidade, e, entretanto,
adquiriu a nacionalidade brasileira, a lei aplicável é a nacionalidade brasileira. Mas se ele tinha a
nacionalidade portuguesa, e indica expressamente que escolhe a lei portuguesa, ainda que ele,
entretanto, tenha mudado de nacionalidade, é válida a escolha da lei portuguesa, é isso que
resulta do artigo 22º nº1.
E se o testador não for claro na escolha, isto é, não indicar expressamente que escolhe a
nacionalidade corrente à data da declaração nem indicar que é a lei da nacionalidade no
momento do óbito?97 É uma questão de interpretação, e, por isso, tem de se recorrer às
próprias regras de interpretação da escolha e a partir dessas regras ver qual deve ser a
lei escolhida. Na maior parte dos casos não haverá grandes dúvidas sobre o sentido da escolha,
mas isso decorrerá sempre dos critérios normais de interpretação da vontade do de cujus.
Temos de analisar todos os fatores e ver caso a caso qual o sentido da sua escolha, mas, em caso
de dúvida, deve entender-se que é a lei da nacionalidade no momento do óbito. As regras
de interpretação não são as regras do Código Civil, são regras que vão, antes de mais,
depender da própria economia do Regulamento, não poderiam ser regras do Código porque o
Regulamento é um texto transnacional e, portanto, as regras interpretativas hão de depender
de um critério que decorra do próprio Regulamento, sendo que noutros textos há uma
norma explícita e aqui no artigo 22º indica-se uma regra sobre a validade material do ato que é
determinada. Olhando à lei escolhida e o professor Luis Barreto Xavier indica que a
interpretação deve seguir a mesma regra só que, neste caso, não sabemos qual é a lei escolhida e,

97Isto é, indicar apenas “lei da nacionalidade” e não referir qual delas. Se não disser absolutamente nada
sobre a escolha então aplica-se o 21º, mas não é disso que estamos a questionar-nos.
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portanto, é preciso que nos socorramos de todos os elementos de facto da declaração para saber
qual é o seu sentido. Em última análise temos de ter um critério residual de preferência e,
sendo que o momento relevante para efeitos deste Regulamento é, por defeito, o momento da
morte, é de admitir que em caso de dúvida deva prevalecer a nacionalidade à data da
morte e não da escolha. Além disso parece-nos que se um testador indicar que escolhe “a lei da
sua nacionalidade” se deve aplicar a lei da nacionalidade que tinha no momento da feitura do
testamento. A cláusula de escolha pode integrar o testamento, mas também pode haver uma
cláusula de escolha de lei sem testamento, o de cujus pode escolher a lei aplicável sem
determinar o destino a dar aos bens.

Dupla Nacionalidade
Mas pode acontecer que o de cuius seja nacional de mais do que um Estado. O artigo 22º
nº1 estabelece que a pessoa pode escolher a lei de qualquer dos Estados de que é
nacional. Se tiver duas ou três nacionalidades pode escolher a lei da nacionalidade que prefere
ver ser aplicada à sua sucessão. Se não tiver havido escolha já sabemos que aplicamos a lei da
residência habitual, mas isso, em princípio, como regra geral do artigo 21º nº1.

Cláusula de Exceção do 21º nº2


O artigo 21º nº2 consagra uma cláusula de desvio ou de exceção.98 De acordo com
estas cláusulas, por força do princípio da conexão mais estreita, temos uma função de correção
da designação da lei aplicável.
O artigo 21º nº1 exprime o princípio da conexão mais estreita como forma de designar a
lei aplicável, porque se presume que a lei da residência habitual exprime essa consequência, mas
o nº2 permite corrigir essa aplicação nos casos em que, excecionalmente, se possa
concluir que a lei mais estritamente conexionada é a lei não da residência habitual mas
da nacionalidade – ou outra lei, o nº2 nem sequer distingue. Isto poderá acontecer em que
casos que nomeadamente todos os bens estão noutro país, ou o testador apenas recentemente
teria mudado de residência habitual.

O Professor Luis Barreto Xavier entende que há uma forma de o cujus afastar este nº2.
Expressamente dizer que se escolhe a lei da residência habitual no seu testamento.
Não está prevista no regulamento a hipótese do testador dizer “escolha a lei da minha
residência habitual” porque esse regime é o supletivo, regra geral do 21º nº1, logo se nada
disser aplica-se esse regime. Essa é a solução por defeito. Mas essa escolha podia ter um alcance
útil, de evitar a intervenção de cláusula de exceção.
De acordo com o espírito do sistema, isto será possível? O autor da sucessão escolheu a
lei da residência habitual para regular a sucessão, numa situação em que manifestamente era
mais estreita a lei da nacionalidade de modo a afasta-la. Vejamos, nos termos do artigo 22º, o
que justifica a escolha da lei nacional é a autonomia privada, mas com um pressuposto, que é
que também existe uma conexão estreita. Não sendo permitida a escolha de qualquer lei,
somente a escolha da lei nacional ao invés da lei da residência, que se presume que também

98Como vimos no início da nossa matéria, a cláusula de exceção é a forma que o princípio da conexão mais
estreita tem de atuar o seu efeito corretivo.
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represente uma conexão estreita. O Estado da residência habitual pode não ser o Estado mais
fortemente conexionado com a situação, mas, por definição, se é o Estado da residência habitual
vai ter uma certa conexão estreita, tal como o Estado da nacionalidade pode não ser o Estado
mais fortemente conexionado à situação, mas a própria existência do vínculo da nacionalidade já
é uma conexão suficientemente estreita para o legislador.
Para os casos em que há a criação artificial de determinada conexão com o exclusivo
objetivo de provocar a aplicabilidade de determinada lei, há um mecanismo do DIP que se traduz
em fraude à lei, que tem como consequência a irrelevância de facto ou de Direito criada com esse
objetivo, como está expresso no artigo 21º do Código Civil. Se existiu uma conexão criada com
o objetivo de criar a aplicabilidade de uma lei que não seria aplicável – por exemplo, foi criada a
residência habitual, mas que desapareceu quando o efeito pretendido foi atingido – podemos
concluir que o efeito residência habitual nunca se realizou. Da mesma maneira que o legislador
permite a escolha da lei nacional, mesmo que essa lei não seja a lei estreitamente conexionada
com a situação apenas porque por definição do vínculo nacionalidade já é estreito o suficiente, o
mesmo deve ser entendido para a conexão residência habitual. Mesmo que a residência habitual
não seja a conexão mais estreita, o autor da sucessão deve poder escolhê-la, porque exprime por
si uma conexão suficientemente estreita. Não estamos num caso de fraude a lei por esta
interpretação.
Assim o autor da sucessão deve poder afastar a aplicação do artigo 21º nº2, porque,
apesar de tudo, a lei da residência habitual - sendo efetivamente a residência habitual e não
uma das hipóteses de fraude à lei - exprime só por si uma conexão suficientemente estreita para
que possa ser escolhida.
Isto é a conclusão do professor Luís Barreto Xavier, mas não é assente, há alguma
discussão, e não quer dizer que o TJUE99, se chamado a tratar esta questão, se vá orientar
neste sentido, embora o professor suspeite que sim, porque lhe parece que é aquilo que
decorre do espírito e da economia do Regulamento.

Validade Formal
O artigo 27º do Regulamento das Sucessões, uma regra de conflitos de conexão
múltipla alternativa trata da validade formal dos testamentos.
Para resolvermos um conflito neste caso vamos por isso ter várias leis

99 Como já sabemos de DUE: O papel do Tribunal de Justiça da União Europeia, na fixação do sentido dos
textos da União Europeia é fundamental, ou seja, ao contrário do que acontece num sistema continental
típico (português, espanhol ou alemão, por exemplo), onde os tribunais têm uma importância muito
grande, mas essa não é tão relevante como acontece nos sistemas anglo-saxónicos, de common law e o
Direito da União Europeia tem um plano prático, tem uma dimensão de case law muito importante. O TJUE
é importante não só na interpretação dos textos legais existentes - Tratados, Diretivas, Regulamentos -,
mas também quando vai mais longe do que os textos e ele próprio cria Direito da União Europeia que não
existe nos textos – na prática, foi isso que aconteceu ao longo das décadas, a atribuição ao TJUE de um
papel de criação de Direito que muitas vezes veio depois a ser reconhecido pelo legislador europeu
quando se reviam os textos legislativos. Ou seja, muitas alterações legislativas, mesmo na nossa área, por
exemplo o Regulamento Bruxelas I em relação à Convenção de Bruxelas ou o Regulamento Roma I em
relação à Convenção de Roma, que concorreram para confirmar ou tornar a letra da lei aquilo que já
resultava da interpretação criativa do TJUE.
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alternativamente aplicáveis e vamos optar pela que permita a validade do testamento – a


lei que permite salvaguardar a validade e eficácia do testamento.100

Note-se que a aplicação da lei do Estado neste caso é uma aplicação do Direito material
do Estado, uma vez que é excluído o reenvio quanto à validade formal pelo nº2 do 34º Quando
as regras do Regulamento têm como consequência a aplicação de lei estrangeira, temos uma
regra especial, que é a do artigo 34º, e é diferente das regras comuns em matéria de
Direito de Conflitos nos outros Regulamentos. Não vamos agora ver o conteúdo desta regra,
só quando analisarmos o instituto do reenvio é que voltaremos ao artigo 34º. Mas podemos
ficar já com a ideia que, enquanto na maior parte dos casos em que por força das regras dos
Regulamentos é aplicável a lei de um Estado terceiro que, porventura, não se considere
competente, nós aplicamos essa lei, mesmo que ela não se considere competente, ou seja,
remetemos unicamente para o Direito material dessa lei101, já não é assim no Regulamento em
matéria sucessória, neste, se mandamos aplicar a lei de Estado estrangeiro, temos que analisar o
que é que esse Estado vai dizer sobre a lei aplicável, porque em certos casos temos que ponderar
a hipótese de aplicar o instituto do reenvio. Exemplo: Vamos pensar que nos termos do artigo
21º nº1, a lei aplicável é a lei da residência habitual. Esta, por hipótese, é a lei do Québec, mas
por sua vez, essa lei manda aplicar a lei espanhola. Nesse caso, nos termos do artigo 34º, a lei
aplicável não é a do Québec, mas a espanhola – apenas se essas regras de conflitos apontarem
para a lei de um Estado-Membro, ou se apontando para uma lei de estado terceiro, esse estado
terceiro aceite a aplicação da sua lei – tinha que haver um acordo entre a lei da residência
habitual e a lei do estado terceiro. Este é um problema de reenvio a que voltaremos.

Regulamentos de Regimes Matrimoniais e de Parcerias


Registadas

No domínio do estatuto pessoal há ainda outras fontes, desde logo há duas que entraram
em vigor em janeiro de 2019: Regulamento relativo à lei aplicável aos regimes de bens no
casamento e um outro Regulamento quanto aos efeitos patrimoniais das parcerias
registadas. Vamos ver por partes.

Regime de Bens por Casamento

No que toca aos regimes de bens por casamento, tínhamos no Código Civil o artigo 53º
que era uma regra de conflitos para esse efeito. “Tínhamos” pois o direito vigente agora é o do
regulamento e os artigos 52º e 53º só se aplicam na falta de aplicação do regulamento.

100 Manifestação do Princípio Favor Negotii


101Como acontece no Regulamento Roma III. Ver “Regime” em “Regulamento Roma III” nas páginas
anteriores.
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Código Civil
De acordo com o artigo 53º estabelecia-se a lei aplicável ao regime de bens enquanto
disposição especial relativamente à disposição geral do artigo 52º – relação entre cônjuges.
À relação entre cônjuges em geral a lei aplicável é do artigo 52º, mas em relação a todas
as questões que implicam a determinação do regime de bens aplicava-se o artigo 53º.
Portanto, não é correto dizer que o artigo 52º respeita apenas às relações pessoais e o
artigo 53º respeita às relações patrimoniais entre os cônjuges102, pois há dimensões
patrimoniais nas relações entre os cônjuges que não estão dependentes do regime de
bens que foi estabelecido, e, para essas hipóteses, vale o artigo 52º. O artigo 53º vai valer
apenas para os casos em que será da própria escolha do regime de bens ou de aspetos da relação
entre os cônjuges que dependem do tipo de regime de bens que é adotado.

Regulamento Matéria Matrimonial


O Regulamento é aplicável às ações instauradas a partir de 29/1/2019. Logo o Código
Civil está derrogado em muitos aspetos nas ações instauradas depois dessa data.

No Regulamento temos que as regras aplicáveis vão deixar de ser a lei nacional comum,
por via de regra, vai ser a lei da residência habitual comum a não ser que haja uma lei de
escolha das partes – sendo que essa escolha também é limitada. Assim, já temos regras que
valem para o futuro e que trazem uma europeização dos regimes de bens, dando mais
relevância, como sempre, à residência habitual.

A lei aplicável apenas se encontra nos artigos 20º e seguintes. Este mesmo artigo
determina a aplicação universal do Regulamento.
Nos termos do artigo 22º os cônjuges podem escolher a lei aplicável, mas essa
escolha está limitada. A escolha tem que obedecer aos requisitos formais do artigo 23º, com
as exigências especiais que constam do nº2, nº3 e 4.

A validade substancial do acordo é regulada pelo artigo 24º, que estabelece a solução
comum no âmbito dos Regulamentos: a lei que determina a validade do acordo é a lei que
resulta da escolha das partes, sendo que um cônjuge pode usar a lei da sua residência
habitual para provar que não consentiu, à semelhança daquilo que vimos no Roma III.

O artigo 25º regula as convenções antenupciais.

Na ausência de escolha das partes, nos termos do artigo 26º determina que:

1) É aplicável a lei da primeira residência habitual comum dos cônjuges depois do


casamento; na falta desta,

2) É aplicável a lei da nacionalidade comum; na falta desta.

102Assim o 52º também é relevante para questões patrimoniais. É incorreto dizer que um artigo é para
pessoais e outro para patrimoniais.
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3) É aplicável a lei com a qual os cônjuges tenham a conexão mais estreita, à data do
casamento

Quanto ao âmbito de aplicação, o Regulamento é aplicável às ações instauradas a


partir de 29/1/2019, artigo 70º. Tem como já dissemos aplicação universal e o seu âmbito
material pode ser consultado no artigo 1º nº1 e nº2.

O reenvio é excluído pelo artigo 32º, não importando as normas de direito


internacional do Estado da lei aplicável.

Regulamento das Parcerias Registadas

Há um outro Regulamento que entrou em vigor no mesmo dia, que é relativo à lei
aplicável aos efeitos patrimoniais das parcerias registadas.

Conceito de Parceria Registada


Em Portugal temos o instituto do casamento e temos algo que é a união de facto, uniões
que não são formalizadas pelo casamento nem por outro ato destinado a dar eficácia jurídica às
uniões, mas que o Direito reconhece para certos efeitos e atribui certos efeitos. Ou seja, os
unidos de facto são tutelados através de certos efeitos jurídicos, quer no plano do Direito do
Trabalho, Segurança Social, Família, etc. Mas estas situações são isso mesmo, uniões de facto, e
desses factos geram-se efeitos jurídicos.
O que acontece em alguns países de Direito Comparado é que ao lado do casamento
existe uma segunda via possível de atribuir relevância a uniões que não são casamentos,
mas não são meras uniões de facto porque são uniões formalizadas.
O exemplo paradigmático é o que está previsto em França, com o pacto civil de
solidariedade. Hoje em dia já existem quase tantas novas uniões formalizadas através do PaCS
como casamentos. O regime é diferente em alguns pontos, por exemplo, há certos deveres de
fidelidade e coabitação que não existem na união.

Em Portugal o regime não existe, mas em França existe este regime, e noutros países há
regimes similares ou comparáveis. Mas isto não tem qualquer semelhança com o direito
português, em que as pessoas ou casam ou são unidas de facto.
Antes do Regulamento entrar em vigor tínhamos uma lacuna, em Portugal, no plano
do DIP, porque não tínhamos uma regra específica para lidar com isto. Em termos
rigorosos não tínhamos uma lacuna, porque temos uma regra geral de conflitos, do artigo 25º,
que fala de relações de família. O que teríamos era apenas um problema de qualificação, de
saber se as uniões formalizadas ou registadas podem qualificar-se como sendo de família,
para os efeitos do artigo 25º.
Mas, a 29/1/2019 tudo mudou, temos um regime europeu que diretamente vai trazer
regras de conflitos, não pelo que toca ao reconhecimento da existência dessas uniões, porque
aqui continua a valer o direito de conflitos de fonte interna e o artigo 25º, mas sim pelo que
toca aos efeitos patrimoniais destas uniões.
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Mais uma vez temos aqui o tipo de soluções que são comuns nestes textos de DUE, ou
seja, a possibilidade de escolha pelas partes, a relevância da lei da residência habitual, e ainda a
relevância do Direito com base no qual o pacto foi celebrado. E temos aqui a possibilidade de
aplicar estes regimes, sempre com uma cláusula de salvaguarda, que é a da Ordem Pública
Internacional. Se a aplicação concreta da lei competente conduzir a um resultado incompatível
com a Ordem Jurídica portuguesa, podemos afastar com base na ordem pública internacional.

A definição da lei aplicável começa no artigo 20º, com o estabelecimento do princípio de


aplicação universal do Regulamento. Há relevância da escolha das partes, mas apenas se a lei
que escolherem atribuir efeitos patrimoniais às parcerias registadas. Dentro destas leis,
apenas podem escolher uma das elencadas.
A regularidade formal é aferida nos termos do artigo 23º e a substancial nos termos
do artigo 24º, prevendo-se em ambos soluções semelhantes às que já existem noutros
Regulamentos. O artigo 25º vem regular a própria validade formal da convenção de
parceria. Na ausência de escolha de leis pelas partes, a lei primariamente aplicável é a lei do
Estado onde a parceria foi registada e estabelecida.
As normas de aplicação imediata da Ordem Jurídica do foro valem nos termos do
artigo 30º.
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Direito dos Conflitos: Obrigações Contratuais e


Extracontratuais

Regulamento Roma I

Vamos avançar já para um novo domínio que respeita às obrigações contratuais. Aqui
olharemos para um texto que é possivelmente o mais relevante dos Regulamentos da UE em
matéria de Direito de Conflitos, que é o Regulamento Roma I, e é o mais relevante porque
tem um âmbito material de aplicação mais significativo, porque se aplica às obrigações
contratuais nas situações que implicam um conflito de leis – obrigações provenientes de
contratos.

É evidente que não abrange todos os contratos – como espelha o artigo 1º do


Regulamento – estão excluídos todos os contratos que se integram no domínio do estatuto
pessoal, também são excluídas outras matérias, como a da arbitragem, contratos ainda ligados a
outros domínios, e há uma exclusão de outras matérias, como matérias fiscais e administrativas.

De resto toda a panóplia de contratos de natureza obrigacional que podemos


pensar, temos a possibilidade de aplicar este Regulamento. Basta pensar em domínios tão
vastos como o Direito do Trabalho – os CIT estão abrangidos. A lei aplicável aos CIT tem aqui a
sua sede, e mais uma vez com base na ideia de aplicação universal do Regulamento isto significa
que ele se vai aplicar sempre que a questão se suscita perante um órgão de aplicação do Direito
dos Estados-Membros.
Mas também estão incluídos os contratos celebrados com consumidores, os
contratos de seguro, e estou a falar apenas de tipos contratuais onde se faz sentir uma tutela da
parte mais fraca.

Mas há também outros contratos – típicos ou atípicos – que podemos trazer para o
domínio do Regulamento Roma I, como os contratos relativos a imóveis, prestação de
serviços, empreitadas, transporte, etc. Aqui, a panóplia de tipos contratuais é enorme.

Há divergência doutrinária quanto à inclusão ou não das obrigações que resultem de


negócios jurídicos unilaterais, no entanto, a maioria da doutrina inclui.

História

Este Regulamento foi a matriz com base no qual os outros foram feitos. Os outros
foram construídos a partir de imagens que depois vão sendo editadas e adaptadas em função das
matérias, e por isso é que os outros Regulamentos são designados como Roma II e Roma III.
Isto porque o protótipo estava, antes do próprio Regulamento, numa Convenção
Internacional celebrada entre os Estados-Membros que na altura existiam, que era a Convenção
de Roma 1980, tendo sido celebrada inicialmente pelos 9 países que compunham a então CEE –
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quando Portugal aderiu à CEE, aderiu à Convenção de Roma - nesta altura passaram a ser 12
países.

Entretanto, outros países vieram a aceder à UE e consequentemente vieram a aderir a


esta Convenção. O mais importante é que a partir do Tratado de Amsterdão, a UE passou a
ter competência para legislar diretamente em certas matérias consideradas
indispensáveis à realização do mercado interno. Portanto, passou a ser possível utilizar o
instrumento do Regulamento da UE em lugar de uma Convenção Internacional, que era de
Direito Internacional Público, mas que era funcionalmente ligada ao DUE pela atribuição ao
Tribunal de Justiça do poder de interpretação das normas desta Convenção. Isto aconteceu
relativamente à lei aplicável às obrigações contratuais com a Convenção de Roma de 1980, mas
aconteceu ainda antes disso relativamente à competência internacional dos tribunais e ao
reconhecimento de sentenças estrangeiras com uma Convenção Internacional ainda anterior a
essa, que é a Convenção de Bruxelas de 1968.

Daqui temos dois protótipos – a Convenção de Roma pelo que toca ao Direito de
Conflitos por um lado e, por outro lado, a Convenção de Bruxelas pelo que toca ao Direito
da competência internacional e reconhecimento de sentenças estrangeiras. À imagem
destes dois textos foram então depois sendo construído o “edifício” de Regulamentos da UE.
A partir da entrada em vigor do Tratado de Lisboa esses Regulamentos passaram a
poder ser realizados através do mecanismo da cooperação internacional, temos aqui a chamada
Europa a duas velocidades, portanto com Estados que optam por entrar no clube e outros optam
por ficar de fora, como vimos quando estudámos Direito da União Europeia no segundo ano.

Âmbito de Aplicação

Quando resolvemos casos práticos em que exista uma situação plurilocalizada, antes de
aplicarmos as regras de conflitos do código civil para determinar a lei a aplicar já sabemos que
temos de ver se não prevalece nenhum regulamento europeu. Assim, na matéria contratual
temos de ver mais uma vez o âmbito de aplicação dos regulamentos.

O Regulamento Roma I triparte o seu âmbito de aplicação mais uma vez nas três
vertentes que já conhecemos do que vimos nos anteriores regulamentos:

1) Âmbito Material: o regulamento aplica-se a matérias civis e comerciais,


nomeadamente obrigações contratuais. O conceito-quadro que aparece no
Regulamento Roma I, de obrigações contratuais é o conceito de DUE que
representam. Estes conceitos não podem ser conceitos vazios a serem integrados
com recurso aos Direitos nacionais, eles são conceitos europeus, no sentido de
conceitos que têm que ser interpretados à luz do DUE. Mas é evidente que o DUE
contém inúmeras dimensões, pelo que o conceito de obrigações contratuais tem que
ser interpretado à luz do Regulamento em si. Portanto, a obrigação contratual pode
ser mais ou menos do que é em Portugal. A análise dos Direitos dos Estados-
Membros pode auxiliar a perceber, mas a pedra de toque quanto à interpretação
destes conceitos está no DUE. A última palavra quanto a estes conceitos compete ao
TJEU. Mas o artigo 1º, que fala sobre o âmbito material do Regulamento Roma I
não se limita a dizer a que é que o Regulamento se aplica, mas estabelece uma
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delimitação negativa do âmbito de aplicação. Essa delimitação abrange matérias que


já estariam fora da órbita do regulamento por não serem contratuais como as
matérias fiscais, aduaneiras e administrativas; mas depois há outras que são
matérias abrangidas dentro dos ramos de Direito Civil e Comercial, mas que são
excluídas pelo artigo 1º nº2. São matérias que eventualmente podiam estar
abrangidas, mas não estão. Em parte, porque essas matérias cabem ao estatuto
pessoal – e aí são adequadas outras regras e princípios – ou porque já estão
abrangidas pela unificação conflitual – pelo DUE ou por convenções internacionais.

2) Âmbito temporal: de acordo com o artigo 28º, o Regulamento aplica-se a contratos


celebrados posteriormente à sua entrada em vigor, o que sucedeu a 17/12/2009.
Mesmo para contratos celebrados antes do Regulamento, pode haver soluções
semelhantes, uma vez que o mecanismo (Convenção de Roma) que antes vinculava
os Estados-Membros tinha soluções muito parecidas.

3) Âmbito territorial: a aplicação é universal, artigo 2ºOs


regulamentos da UE em matéria de Direito de Conflitos têm
vocação para se aplicarem independentemente da
nacionalidade das partes, residência habitual, lugar da
celebração, etc.., ou seja, independentemente da existência de
qualquer contrato entre a obrigação a regular e os Estados-
Membros. O que é necessário é que o contrato esteja a ser
analisado por um órgão de aplicação do Direito num dos
Estados-Membros. O Regulamento é aplicado nos estados-
membros em geral com exceção da Dinamarca que decidiu não
adotar este regulamento.

Negócios Jurídicos Unilaterais


Existe a questão de saber se os conflitos de leis em matéria de negócio jurídico
unilateral103 são abrangidos pelo Roma I. Se consideramos que não é aplicável o Roma I o que
se aplica é a lei interna, seriam aplicadas as regras de conflitos portuguesas em matéria de
negócios jurídicos unilaterais, código civil artigo 41º.

Há doutrina que acha que é aplicável, e é a maioria da doutrina. Os argumentos


começam com entendimento da doutrina de que este conceito de “obrigação contratual” tem
uma forma ampla. Deste modo abrange todas as obrigações voluntárias incluindo assim o
negócio jurídico unilateral. Para este efeito invoca um argumento sistemático, o legislador
europeu ao unificar as regras de conflitos em matéria de obrigações quis o Roma II a regular
obrigações extracontratuais ou involuntárias e o Roma I pretende regular obrigações

103Testamento, na instituição de fundação, na renúncia de direitos, na procuração, nos títulos de credito,


na confissão de dívida, na renúncia à herança, na promessa de recompensa são alguns exemplos de
negócios jurídicos unilaterais. No entanto, não são todos geradores de obrigações. Segundo o professor
Henrique Sousa Antunes, apenas a promessa pública, o acto entre vivos de instituição de fundação, o
concurso público e a doação pura feita a incapaz é que são suscetíveis de ser fonte de obrigações.
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contratuais ou voluntárias, ou seja, todo o conjunto de obrigações, incluindo as que possam


nascer de negócios jurídicos unilaterais.

Quem defende a tese contrária, usa que o Regulamento Roma I fala em obrigações
contratuais e não estando em causa um contrato não se aplica o Roma I, também não se
aplicaria o Roma II porque não está em causa uma obrigação extracontratual.

A questão aqui prende-se muito com o conceito-quadro “obrigações contratuais”.


Nota-se que não nos lembramos de ter estudado este conceito em qualquer cadeira do curso. O
que estudámos foi sim a responsabilidade civil contratual e extracontratual. Pela terminologia e
interpretação sistemática parece-nos que “obrigações contratuais” se refere é à fonte própria da
obrigação, o contrato. Concordando connosco diz a Professora Ana Taveira da Fonseca “O
Regulamento Roma I visa regular a fonte das próprias obrigações, ou seja os contratos civis e
comerciais, das quais estas ultimas brotam.” Isto deve-se ao facto de o conceito obrigação
extracontrual e contratual serem conceitos-quadros com correspondência noutros países mas
não em Portugal.
Daí que exista esta discussão relativamente aos negócios jurídicos unilaterais, apesar de
serem fonte de obrigações não são contratos. Logo utilizando esta terminologia dos
Regulamentos de Roma que se divide na dictomia “obrigações contratuais” e “obrigações
extracontratuais” teríamos de perguntar onde se enquadram as obrigações que brotam dos
negócios unilaterais. A verdade é que não nasce do contrato, mas Lima Pinheiro olhando ao
espírito dos regulamentos defende que não caberá no Roma II, que regerá todas as
obrigações involuntárias, sendo que o Roma I fica para aquelas que são voluntárias (que são as
que nascem de qualquer negócio jurídico, seja ele bilateral ou unilateral, há sempre uma
vontade104).

No caso de dúvida, consideramos que seja de aplicar o código civil português, artigos
41º e 42º, para esta obrigações. Esta será a solução que menos incerteza gera, e é esse o
objetivo do DIP. Não podendo classificar de forma completamente segura e correta a obrigação
emergente de negócio jurídico unilateral, devemos jogar pelo seguro, sendo que o 41º
português prevê no seu conceito-quadro essas obrigações, “as obrigações provenientes de
negócio jurídico” não distinguindo se esse negócio é bilateral (contrato) ou unilteral.

Regras de Conflitos: o grande espaço para a autonomia privada

A lei primeiramente aplicável é a lei que as partes escolherem, como dispõe o artigo 3º
do Regulamento Roma I. É de se notar que nesta escolha há um contraste com a liberdade de
escolha de lei dos regulamentos que vimos até agora: pode ser escolhida qualquer lei105.
No entanto facto de o artigo 3º não limitar expressamente a escolha às leis em
contacto com a situação não significa que o princípio da não transatividade não existe.
Relembre-se o que explicámos a propósito deste princípio: se o objetivo do princípio é a

104 Ver matéria de TGN.


Ao contrário dos regulamento sobre o estatuto pessoal em que era dado um leque de leis que as partes
105

podiam escolher, todas elas conexionadas com a situação.


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segurança jurídica, então pela escolha feita pelas partes essa segurança é acautelada, pelo que
não faz sentido a intervenção do princípio. As partes não vão ser surpreendidas pela lei aplicável
uma vez que foram elas próprias que as escolheram, este princípio não existe por si, mas
enquanto instrumento de um valor de segurança jurídica. A aplicação da lei escolhida pelas
partes não irá violar a segurança jurídica. A segurança jurídica será tutelada se aceitarmos que a
lei que as partes por mútuo acordo escolheram seja a usada. Isto significa que o princípio da não
transatividade, na sua lógica, não é posto em causa por uma lei escolhida, porque se pode
dizer que o contacto com o contrato resulta da escolha. A escolha reflete a criação de um laço
com a Ordem Jurídica escolhida e a situação em litígio. Em bom rigor, não há uma exceção ao
princípio da não transatividade, mas trata-se de concretizar o valor ao qual o princípio se
orienta. É dar aplicação aos próprios valores que fundamentam esses valores, porque esses
apenas se opõem a aplicar uma lei que seja imprevisível.

Quanto ao artigo 3º do Roma I, importa referir que a escolha de lei pode não ser
expressa, mas tácita. O próprio artigo reconhece-se essa forma de escolha no seu nº1.
Quanto a este aspeto algumas notas: a referência a alguns artigos de determinado
ordenamento jurídico pois as partes remeteram para essas normas, à partida podem ter a
intenção de que aquele ordenamento jurídico se aplique à situação. Mas este indício não é
100% infalível. O professor Lima Pinheiro avisa que por vezes as partes podem remeter para
determinado ordenamento jurídico, por normas jurídicas, ao abrigo do regime geral da
liberdade contratual, ao remeter para determinado ordenamento jurídico as partes fazem-no
porque podem, não porque querem atribuir competência no geral àquele ordenamento, apenas
pretendem copiar determinado ordenamento de normas para o contrato. Por isso é que podem
haver casos em que as partes não querem considerar a lei X competente, mas apenas
estabelecer o regime material.
O que mais vale analisar para a escolha tácita é como é que é feita a remissão – porque
pode ser feita quanto a partes do contrato, ou quanto ao contrato por inteiro. A própria
disciplina contratual pode ser um fator, porque estão a pressupor a aplicação de determinado
ordenamento jurídico ao contrato. Mas pode haver um outro fator, a escolha de jurisdição
competente pode significar que as partes querem que o Direito daquele foro material se
aplique. Remetendo para certo Tribunal podemos intuir que queiram que determinado
Direito material se aplique.

Validade Substancial

Uma coisa é o regime da lei escolhida para regular o contrato, outra é a vinculação das
partes ao contrato. Em princípio, sabemos se a cláusula de escolha da lei é válida segundo o
artigo 3º nº5 e 10º nº1. Temos ainda de reparar no artigo 10º nº2, que permite que uma das
partes use a sua lei de residência habitual para arguir contra a lei escolhida: o contraente
pode sempre refugiar-se na sua lei de residência habitual, para provar que não deu o seu
consentimento.
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Validade Formal

Quanto à validade formal da escolha, resulta do artigo 11º, que estabelece uma conexão
alternativa em função do princípio favor negotii.
Apesar disto, o artigo 11º nº5 vem criar uma exceção, considerando que quanto aos
bens imóveis, a forma tenha que ser regulada pela lei do Estado onde o imóvel existe. O artigo
vem dar relevância às normas imperativas e de aplicação imediata que existam no Estado
onde o imóvel se encontra – logo, vem dar um título de atendibilidade às normas de aplicação
imediata de Estado terceiro.

Contratos Celebrados com Consumidores

O Regulamento Roma I trata de alguns contratos em especial, pela natureza dos mesmo,
onde aplica regras conflitos diferentes daquelas que se aplicam aos contratos em geral em sede
de Regulamento Roma I.

O artigo 6º nº1 trata dos Contratos celebrados com Consumidores, assim nos casos
dos contratos celebrados com os consumidores devemos atender a este artigo e às suas normas
de conflitos.
O artigo 6º começa por definir o que são contratos celebrados por consumidores –
contratos celebrados por uma pessoa singular para uma finalidade estranha à sua
atividade comercial ou profissional, com outra pessoa que aja no quadro das suas
atividades comerciais ou profissionais.
Segundo este número, estes contratos são regidos pela lei do país de residência habitual
do consumidor, mas para que esta estatuição tenha efeito, é necessário que se verifique uma das
duas condições que estão previstas. Ou seja: é necessário que o profissional exerça as suas
atividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tenha a sua residência
habitual, ou que por qualquer meio dirija a sua atividade profissional para esse país.

Como é que sabemos se certa atividade é dirigida para Portugal? Há casos de dúvida em
especial com as novas tecnologias. Há discussão em saber se basta ou não que um site permita o
envio para Portugal, isto é, que um site (por norma publico e internacional acessível em
qualquer parte do mundo pela internet) se possa considerar como “dirijir essas atividades” para
um certo país, uma vez que os sites podem permitir encomendas e compras online.
O site existir e poder ser acedido de qualquer país do mundo não é suficiente. A
exigência do artigo 6º nº1 b) existe para haver previsibilidade para o profissional. Não é
suficiente para isso que exista uma oferta indefinida, porque aí a posição de vantagem do
profissional não se verifica de forma tão intensa. A conclusão é então que tudo depende do
modo como o site está organizado. Mas vamos supor que um site prevê a localização do
consumidor em Portugal. Assim, o artigo 6º nº1 parece ser mais aplicável.
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O TJEU já se pronunciou, no Acórdão de 7/12/2010, sobre esta questão.


Determinou que era preciso uma vontade do comerciante em dirigir a
atividade. Essa vontade é nomeadamente manifestada na direção de
publicidade (paga) para esses Estado-Membro. Não há esta vontade apenas
quando o site existe. Quais são os indícios da vontade? Natureza
internacional, itinerários que partam de um Estado-Membro para outro,
língua e moeda que possam ser atribuídas a um único Estado, menção de
números de telefone, a menção expressa a clientes internacionais, a
existência de um nome de domínio desse Estado.

Quanto ao artigo 6º nº2, é nos dito que este artigo não afasta a lei escolhida pelas
partes, porque o nº2 permite a escolha de lei, salvo se essa escolha privar o consumidor da
proteção das regras inderrogáveis da lei da residência habitual.
A escolha de lei é permitida, mas tem um alcance limitado, ao contrário do que
acontece no artigo 3º. Esta limitação existe pela tutela do consumidor, pela presunção de que
o consumidor é uma parte mais fraca numa relação desequilibrada. O alcance da lei escolhida é
limitado pelas normas de proteção do consumidor inderrogáveis, do país de residência habitual
do consumidor. A lógica é que a lei de referência na proteção do consumidor é a da residência
habitual. Isto significa que o consumidor não terá nunca/verá a aplicação de uma lei cujo
conteúdo seja mais desfavorável do que aquele que resulta das disposições imperativas
do país da sua residência habitual. Ou seja, a lei da sua residência habitual contém regras
imperativas/inderrogáveis por acordo de proteção do consumidor e essas regras não podem ser
afastadas pela escolha de lei106. Portanto, a escolha de lei é permitida, mas não pode afastar a
escolha do consumidor. Se a lei escolhida afetar a proteção do consumidor essa escolha não é
inválida, mas ineficaz quanto àquela disposição. A lei escolhida só não será aplicável na parte
em que priva o consumidor da tutela imperativa.

Caso as partes tenham convencionado outra lei então aplica-se o artigo 6º nº3, e o
consumidor fica sempre protegido pelas normas imperativas de proteção da Ordem
Jurídica da sua residência.

O artigo 6º nº4 exclui alguns contratos da aplicação desta disposição.

Acordão TJEU 7/12/2010


Dois casos juntos pelo Tribunal. Num deles tínhamos uma pessoa residente na Áustria
que contratou com uma empresa sediada na Alemanha para embarcar no cruzeiro com base em
informações dispostas num site. Ficando extremamente desiludida com as condições, intentou
uma ação contra a sociedade pedindo a devolução de parte do preço.

106Normas imperativas internas da lei da residência habitual – o Regulamento quando quer falar de
normas de aplicação imediata refere-as expressamente. Trata-se apenas de reforçar a força imperativa das
disposições não derrogáveis por acordo do país do consumidor.
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No outro caso temos um hotel com sede na Áustria e uma pessoa residente na Alemanha
que aluga aquele quarto no hotel, ficando insatisfeito quer ser ressarcido.
Era suscitado ainda um problema de competência, na redação original (revogada) do
Regulamento de Bruxelas – ainda aplicável na altura do caso -, o artigo 15º remetia para o
conceito de viagem organizada, sem o definir, assim tinha que se verificar para que não caia
no âmbito de transportes, mas de um contrato de viagem – uma prestação com alojamento
ou que exceda 24 h ou inclua dormida. Este problema importa no também ao Regulamento
Roma I pela diferença entre o artigo 5º e o artigo 6º.
O Tribunal diz que mesmo que seja omisso vamos fazer uma interpretação sistemática, o
Regulamento remete para a deriva portanto de acordo com uma interpretação harmoniosa dos
dois instrumentos entende-se que o regulamento naquele parte especifica fará referencia a isso.
O Tribunal diz que se pode entender a referencia feita pelo Regulamento de Bruxelas como uma
referência à viagem organizada. As regras de determinação de competência, tanto a titulo de lei
como de jurisdição, prosseguem esse objetivo de proteção de consumidor. Olhado ao regime
vemos que as regras neste regime são muito mais convenientes ao consumidor. Daí que seja
relevante saber quanto é que uma empresa dirige a sua atividade para um Estado Membro

A questão do conceito de atividade dirigida é-nos relevante não só em matéria de


competência como em matéria de lei competente. A atividade dirigida determina a aplicação de
regras de competência a contratos de consumo ou não. O artigo do Roma I aqui em questão é o
artigo 6º nº1 b).
Se não forem aplicadas as regras de contratos de consumo aplicam-se as regras gerais
do artigo 3º e 4º Roma I.

O Tribunal começa por falar do conceito de dirigir para colocar a seguinte questão: Se
esta atividade dirigida implica uma vontade expressa - por exemplo sociedade Alemanha tem a
intenção expressa de alcançar consumidores na Irlanda ou Bélgica - dirigida essa vontade ao
Estado Membro, ou basta que a natureza da sua atividade seja acessível de facto aos
consumidores. O que é que o Tribunal diz sobre isto? Sobre a publicidade? Pega no conceito
de publicidade para fazer uma grande distinção nesta matéria: Parágrafo 66 Acórdão107 -
Quando falamos de publicidade o que acontece é que na publicidade elencada no acórdão há

107“Quanto aos conceitos de «anúncio publicitário» e de «proposta que lhe foi especialmente dirigida», na
acepção do artigo 13.° da Convenção de Bruxelas, o Tribunal de Justiça declarou que eles cobrem todas as
formas de publicidade feita num Estado contratante em que o consumidor tem o seu domicílio, quer essa
publicidade seja divulgada de um modo geral, através da imprensa, da rádio, da televisão, do cinema ou por
qualquer outra forma, quer seja directamente dirigida, por exemplo, através de catálogos especialmente
enviados para esse Estado, mas também as propostas de negócios dirigidas individualmente ao consumidor,
designadamente através de um agente ou de um vendedor ambulante (acórdão Gabriel, já referido, n.° 44).
As formas de publicidade clássica expressamente designadas no número anterior implicam a realização de
despesas por vezes avultadas por parte do comerciante para se dar a conhecer noutros Estados‑Membros e
demonstram, por esse mesmo facto, a existência da vontade do comerciante de dirigir para eles a sua
actividade.
Pelo contrário, essa vontade nem sempre está presente no caso da publicidade pela Internet. Tendo esta
forma de comunicação, por natureza, um âmbito mundial, a publicidade feita num sítio na Internet por um
comerciante é, em princípio, acessível em todos os Estados e, por conseguinte, em toda a União Europeia, não
sendo necessário realizar despesas suplementares, independentemente da vontade do comerciante visar ou
não consumidores para além dos do Estado‑Membro em que está estabelecido.
Daqui não resulta, no entanto, que haja que interpretar a expressão «dirige essa actividade a» como visando
a simples acessibilidade de um sítio na Internet nos Estados‑Membros diferentes daquele em que o
comerciante está estabelecido.”
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uma clara intenção de chegar a certo tipo de consumidores, são ativerdes que por regra
implicam custos e esforços à partida. Daí que haverá necessariamente uma intenção de se
atingir e alcançar certo tipo de consumidores o que por sua vez não acontece com a mera
utilização da internet, não é o caso quando estamos no site. Uma empresa quando tem um site
tem as informações disponíveis e qualquer pessoa no mundo com ligação à internet pode aceder
ao site. A mera acessibilidade por si só não chega para considerar que usamos perante
uma Atividade dirigida a certos consumidores. Por si só, atenção. O Tribunal relva esta ideia
dizendo que se o legislador assim quisesse que fosse então tê-lo-ia dito, presunção de que o
legislador se pronunciou em sentido correto e expressamente. O legislador Europeu não tinha
essa intenção de considerar atividade dirigida como a mera acessibilidade.
Se a mera acessibilidade não basta para estarmos perante uma Atividade dirigida, o que
é que é necessário? É ainda necessário que a empresa tenha essa intenção ou vontade de
alcançar determinado grupo de consumidores. Não basta que seja acessível só por si. Como
se afere esta intenção? Antes do contrato teria já de haver alguns sinais, indícios que
permitissem concluir que em abstrato aquela empresa que captar consumidores desse estado
membro, á priori, antes da celebração do contrato porque depois é óbvio que a relação já foi
estabelecida. Como se afere destes indícios? Por um lado, as sedosas gastas pela empresa em
promover o seu negócio junto de determinado tipo de consumidores.
Que despesas são estas? Fora a publicidade que já vimos o Tribunal refere uma muito
importante no contexto da internet, que custos no âmbito da inerente pode a empresa ter que
acarretar? Por exemplo custos feitos junto de motores de busca, é possível pagar-lhes para
que tenha um algoritmo para que as empresas apareçam primeiro na lista da busca. Isto é
uma intenção clara, dizer que junto dos consumidores do país x queremos que a nossa
marca apareça lá em cima. Então e mais? A língua ou a moeda usada no site, são decisivas?
Não necessariamente. Isto tem que ser entendido com algumas reservas precisamente porque
sendo o inglês a língua franca, hoje em dia é questionável que se um site esteja em inglês se
dirija a um pais anglo fónico. Mas a língua é sempre irrelevante? Quando há a opção de escolher
o idioma do site aí poderá já ser relevante, se temos opção de mudar para italiano ou alemão
que não são comuns como língua materna poder-se-á retirar daí um indicio e intenção de dirigir
o negocio àquele mercado - italiano e alemão.
Quanto ao endereço físico colocado o website onde oferece os serviços, pode se
relevante? Empresa que diz no site que tem a sede na rua x numero x, código postal x, isto deve
se relevante? Uma empresa mete o endereço físico no site, é informação relevante tanto para
consumidores do Estado como fora do Estado, é relevante para todas as pessoas, por isso não se
considera como indício de vontade dirigida. Além disso muitas vezes é obrigatória a indicação.
O indicativo internacional do numero de telefone é um sinal claro de que a sua
atividade se dirige para outros fora do Estado Membro, se fosse um mero numero de
telefone sem indicativo então seria indicativo de que apenas se redigida àquele Estado, tem
o indicativo indicia claramente que dirige a sua atividade a nível internacional. No site temos um
formulário onde pomos contacto e depois contactamos, isto é relevante? Se tiver um indicativo
internacional sim. Isto não é decisivo porque pode ser preenchido por consumidores daquele
estado e de Estados estrangeiros.

Que indícios combinados podem ser relevantes? Número de telefone com indicativo,
moeda e língua depende, o nome domínio (.fr; .br; .pt). Ainda existem pelo menos mais duas
que devemos realçar: Natureza internacional da atividade na medida em que é obvio que se tem
natureza internacional estar mais apta a contratar com consumidores fora daquele Estado; sem
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segundo lugar a referência feita a clientes estrangeiros bem como a descrição estar direcionada
a determinados Estados.

Contratos de Seguro

No contrato de seguro o Regulamento Roma I trata de limitar as leis que podem ser
seguidas – as partes só podem escolher uma de entre as leis indicadas de entre as regras
de conflitos, há uma limitação objetiva da escolha.

Artigo 7º do Regulamento. Aplica-se quer o risco se situe ou não num Estado-Membro,


mas não se aplica a contratos de resseguro.
As partes podem escolher a lei aplicável, caso o contrato seja de grande risco, nos termos
do artigo 7º nº2, e se não o tiverem feito o contrato é regulado pela lei onde o segurador
tem a sua residência habitual.
No entanto, o artigo 7º nº2 parte 2 estabelece uma cláusula de desvio, em razão do
princípio da conexão mais estreita na sua função corretiva. Caso o contrato não seja de grande
risco, as partes estão limitadas na sua escolha, a não ser que a Lei reguladora lhes permita
uma maior liberdade de escolha de lei. Neste cenário, caso as partes não tenham escolhido a
lei aplicável, aplica-se onde se situa o risco. O nº4 impõe algumas regras quanto aos contratos
de seguro obrigatórios.

Contratos de Trabalho

Artigo 8º do Regulamento. O artigo 8º nº1 parte 1ª permite a escolha da lei aplicável,


No entanto, quanto a esta escolha, o artigo tem na sua segunda parte ainda tem uma
salvaguarda – a escolha de lei não subtrai as normas imperativas dos ordenamentos que
seriam aplicáveis na falta de escolha, nos termos do nº2, 3 e 4.
Pelo nº2 aplicam-se as regras do local onde o trabalhador normalmente preste
trabalho ou a partir do qual preste trabalho.
Nos termos do nº3, em alternativa, regula-se de acordo com a lei do local onde se
situa o estabelecimento que contratou o trabalhador.
Por fim, o nº4 introduz uma cláusula de desvio, em razão do princípio da conexão mais
estreita com a sua função corretiva, dizendo que se o contrato apresentar uma conexão mais
estreita com outro país, é esse que deve ser aplicável.

Quanto aos contratos de trabalho há uma interpretação doutrinal importante do artigo


53º da Constituição. Há doutrina que entende que o artigo 53º é uma norma de aplicação
imediata, desde que se verifique uma de duas conexões ad hoc: ou o trabalhador é um nacional
português ou o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho em Portugal.

Ainda quanto ao artigo 8º nº1 permite a aplicação da lei escolhida pelas partes, mas
apenas quando essa não contrarie disposições não derrogáveis ao abrigo da lei que seria
aplicável caso as partes não tivessem escolhido. Essa lei que seria aplicável era a lei onde o
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trabalhador presta habitualmente trabalho. É neste aspeto que se pode levantar o problema
do local onde o trabalhador presta habitualmente trabalho. Imagine-se por exemplo um
português contratado por uma companhia aérea espanhola cujo o CIT escolheu a lei brasileira
para regular. Deste caso vemos logo a dificuldade: sendo uma companhia aérea não se consegue
determinar o local onde este português presta habitualmente trabalho, é o mundo inteiro.

Nestes casos o artigo 8º contém uma regra que prevê a hipótese de ser impossível
determinar o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho. Portanto, se ele
não tiver esse país, há duas hipóteses:

1) uma é o contrato ser regulado onde o trabalhador presta o trabalho em execução do


contrato – não existindo;

2) na sua falta é o país a partir do qual o trabalhador presta habitualmente o trabalho – se


pudermos determinar que ele parte sempre do mesmo país, podemos aplicar a lei desse
país;

3) Se nenhuma das hipóteses funcionar aplica-se o nº3 do artigo 8º

Contratos de Transporte

O artigo 5º trata dos contratos de transporte. Este preceito divide o transporte de


passageiros, ao qual se aplica o nº2, do transporte de mercadorias, ao qual se aplica o nº1.

Quanto ao regime de transporte de mercadorias, como se vê pelo nº1, as partes têm


maior liberdade de estipulação do no transporte de passageiros. A ideia aqui é que a parte mais
fraca é a do passageiro e que por isso terá maior tutela. Assim, no transporte de mercadorias as
partes podem escolher a lei livremente nos termos do artigo 3º. Nos casos em que não tiver
sido escolhida uma lei para reger o contrato de transporte é que o artigo 5º nº1 vai trazer
novidade. Nestes casos o nº1 aponta como aplicável a lei do país em que o transportador
tem a sua residência habitual, desde que o local da receção ou da entrega ou a residência
habitual do expedidor se situem igualmente nesse país. Caso não se encontrem no mesmo país
então a lei a aplicar é a do local em que as partes acordaram que a entrega fosse feita.

Quanto ao transporte de passageiros, as partes podem escolher a lei aplicável nos


termos do artigo 3º, no entanto estão limitadas as leis consagradas nas alíneas deste nº2 do
artigo 5º. Caso as partes não tenham selecionado uma lei aplicável, é aplicada a lei do país de
residência habitual do transportador.
Só assim não será, nos casos em que sem lei escolhida, o passageiro tiver a sua
residência habitual no mesmo local de partida e destino, caso em que se aplica a lei deste
país.

O nº3 tem a típica cláusula de desvio, consagrando o efeito corretivo do Princípio da


Conexão mais estreita.
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Limites da Autonomia da Vontade

Além dos limites específicos a cada tipo de contratos que acabámos de ver, a autonomia
privada ainda tem outros limites no Roma I.

Normas não Estatais


Questionaremos agora qual é o objeto da autonomia da vontade. Já dissemos que o
Regulamento dá permissão a que as partes possam escolher uma qualquer lei de diferentes
ordenamentos jurídicos independentemente da conexão com o contrato.
Mas será que poderão escolher regras jurídicas não estaduais? Podem escolher
regras que não pertençam ao Direito de nenhum Estado? Aqui a questão coloca-se quanto ao
contrato sem lei, saber se é possível um contrato sem ordenamento jurídico estadual - discute-se
muito a propósito da lex mercatoria e a propósito do Direito Internacional Público, e de
outros setores normativos não estaduais.
O professor Barreto Xavier entende que esta ideia devia ser admitida, mas o legislador
europeu, do Regulamento Roma I, não deu esse passo. Claramente os trabalhos preparatórios,
tal como a redação do Regulamento afastaram a possibilidade de as partes poderem
escolher regras não estaduais com exclusão de determinado ordenamento jurídico
estadual. O legislador europeu ponderou a questão e afastou a possibilidade de as partes
regerem o contrato por regras jurídicas não estaduais com exclusão das regras estaduais
imperativas de uma qualquer ordem jurídica.
Mas isto não significa que as partes com os poderes da sua autonomia privada não
possam fazer contratos em que remetam para o Direito Internacional Público, lex mercatoria, ou
regras de organizações privadas; o que vai acontecer é que o alcance da escolha é meramente
material e não conflitual. O que as partes estão a fazer é incorporar no contrato esse tipo de
regras, transformando-as em cláusulas do contrato, não estão a escolhê-las como o Direito
aplicável ao contrato. Isto significa que essas regras serão válidas e eficazes se não
contrariarem disposições imperativas do Direito aplicável108 ao contrato.
Isto não permite que o contrato possa viver sem lei, no sentido de sem ordem jurídica de
referência. Portanto, de acordo com o regime do Regulamento Roma I, que é conservador, o que
temos é que ou as partes escolhem uma ordem jurídica estadual ou, se não escolhem,
haverá sempre uma ordem jurídica estadual aplicável, que é a que é definida pelas regras
de conflitos subsidiárias (isto é artigo 4º)

Alterações da Lei Escolhida


As partes podem alterar a lei escolhida aplicável ao contrato desde que se mantenham
os efeitos produzidos e que não sejam prejudicados terceiros – artigo 3º nº3. Por outro
lado, as partes podem escolher a lei aplicável ou a todo o contrato ou apenas a parte do contrato,
mas, para que isso possa funcionar, a parte do contrato tem que ser suscetível de ser separada
do resto. Se todo o contrato for indissociável, então não podemos aplicar a uma parte, porque
isso afeta a coerência interna do contrato.

108 Sendo o “direito aplicável” aquele que o Regulamento Roma I determinar claro.
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É também impossível que as partes escolham aplicar a lei portuguesa ao contraente A e a


lei espanhola ao contraente B. Só há uma relação jurídica. Se considerássemos isto como válido,
o que tínhamos é que as coisas não funcionariam, porque o direito de A tem que ter
correspondência no dever de B, e se estabelecemos dois Direitos diferentes então não
pode funcionar a escolha da lei. Aqui, a aplicação de diferentes leis ao contrato tem que ser de
aspetos objetivos do contrato e não a diferentes partes.

Normas Imperativas Internas


Temos duas disposições, artigo 3º nº3 e nº4 que explicam o que acontece à relação
entre a lei escolhida pelas partes e normas imperativas internas, que não sejam NAI obviamente.

O nº3 do artigo 3º Regulamento Roma I dita que caso todos os outros elementos
relevantes da situação jurídica109 se situem, no momento da escolha, num país que não seja o
país da lei escolhida, a escolha das partes não prejudica a aplicação das disposições da lei
desse outro país não derrogáveis por acordo. Refere-se este número terceiro a situações
puramente internas e relativamente internacionais. Estas situações estão conectadas apenas
com uma ordem jurídica.
Nestas hipóteses não existe um verdadeiro conflito de leis. Então no Regulamento
surge o nº3 para explicitar que se a situação é puramente interna ou relativamente
internacional, se as partes escolhem uma lei diferente, a escolha não prejudica a aplicação das
disposições imperativas desse país. O alcance da escolha é material e não conflitual,
porque não há conflito para resolver. A lei aplicável será sempre a que seria aplicável à
situação jurídica. Mas no âmbito material, com caráter obrigacional, as regras da ordem
jurídica escolhida valem – desde que não contrárias a disposições imperativas. Nos
espaços deixados livres por essa lei – espaços em que a lei admite a intervenção da autonomia da
vontade em direito material – as partes podem chamar a ordem jurídica escolhida para poder
preencher o contrato.

Depois temos o artigo 3º nº4 – caso todos os outros elementos relevantes da


situação se situem, no momento da escolha, num ou em vários Estados-Membros, a escolha
pelas partes de uma lei aplicável que não seja a de um Estado-Membro não prejudica a
aplicação, se for caso disso, das disposições de direito comunitário não derrogáveis por
acordo, tal como aplicadas pelo Estado-Membro do foro.
Que tipo de situações são estas? Depende. Quando diz “num Estado-Membro” será uma
situação puramente interna ou uma situação relativamente internacional, já quando diz “em
vários Estados-Membros” será uma situação absolutamente internacional. Mas em qualquer
destas hipóteses, elas têm de comum que a situação tem contacto apenas com ordens
jurídicas dos Estados-Membros. Ou seja, não há contactos com ordens jurídicas exteriores
ou de Estados terceiros. Não havendo nenhum contacto com ordens jurídicas de Estados
terceiros, a estatuição que nos aparece no artigo 3º nº4 é de que a escolha da lei aplicável,
que seja de Estado terceiro, não prejudica a aplicação das disposições de Direito
comunitário não derrogáveis por acordo, tal como aplicadas pelo Estado-Membro do foro.
Temos vários aspetos: há uma situação intra-europeia, no sentido em que todos os elementos da
situação estão situados num Estado-Membro, as partes escolhem uma lei exterior aos Estados-

109 Todos os outros isto é, aqueles que não sejam a escolha.


P á g i n a | 101

Membros, e a questão é saber se por aí afastam as regras de DUE que seriam aplicáveis. Nas
regras de DUE também temos regras imperativas e não imperativas, e aqui só estão em causa as
imperativas. Não é possível afastar as regras imperativas do DUE, mas o modo como a tutela vai
ter lugar é através do filtro do Estado-Membro do foro. Quer dizer que, como sabemos, o DUE
pode ser atuado em cada Estado-Membro de maneira diferente. Isso resulta de que o DUE não é
constituído apenas por Tratados ou Regulamentos diretamente aplicáveis, e mesmo quando o é,
pode haver margem para o desenvolvimento e concretização das regras por legislação interna.
Mas, por outro lado, há grande parte da tutela imperativa do DUE realizada através de Diretivas,
que pressupõem a transposição através de legislação interna de cada um dos Estados. Mas
mesmo quanto a Regulamentos de DUE – por exemplo, o RGPD – supõe uma concretização por
legislação nacional no qual se define em concreto os poderes da CNPD entre outras coisas. As
disposições de DUE de natureza imperativa pressupõem muitas vezes uma mediação parcial da
legislação dos Estados-Membros. Esta regra do artigo 3º nº4 destina-se a tutelar as
disposições imperativas de DUE, mediante o modo como essas disposições são aplicadas
no Estado-Membro do foro. Se a questão se colocar em Portugal e a situação for intraeuropeia,
então as disposições imperativas de DUE têm que ser respeitadas, e o modo como o respeito se
obtém é o modo como as disposições valem em Portugal. Se a questão for suscitada num outro
Estado-Membro então vai valer o modo como essas disposições imperativas são executadas
nesse Estado-Membro. Esta norma é diferente do nº3 na medida em que esse só se aplica a
situações não puramente internacionais.

Falta da Escolha de Lei

O principal princípio deste regulamento é o da vontade da autonomia privada.

Um segundo princípio fundamental deste Regulamento é o princípio da conexão mais


estreita. Este princípio concretiza-se através quer da sua função designativa, quer através da sua
função corretiva ou de correção. Pelo que toca à função designativa do elemento de conexão, ela
é traduzida quer na escolha do elemento de conexão nas normas de conflitos, quer na
intervenção autónoma do próprio princípio da conexão mais estreita, como acontece com o
artigo 4º nº4.

Ou seja, nas hipóteses em que, não tendo havido escolha, o contrato não é um dos
especificamente indicados no artigo 4º e a regra geral prevista no nº2 não é aplicada,
nesses casos recorre-se ao princípio da conexão mais estreita de forma direta.
Em qualquer caso, nos termos do nº3, é possível corrigir a aplicação da norma de
conflitos, quando haja uma conexão mais estreita com uma lei diferente da designada – o
princípio da conexão mais estreita promove uma correção da lei aplicável por uma cláusula de
desvio.

Claro que a falta de escolha terá efeitos diferentes nos casos dos contratos de trabalho,
transporte, seguro e com consumidores, onde já vimos os efeitos da falta de escolha.
P á g i n a | 102

Especialização
Por ultimo, uma trave mestra do sistema do Regulamento, que é a ideia de
especialização, de encontrar regras específicas em função dos tipos contratuais existentes,
quer por via da especificidade de certos contratos celebrados com a parte mais fraca – mas
mesmo nesses casos, as regras de conflitos não são inteiramente semelhantes110, ou seja, há uma
preocupação do legislador europeu de encontrar soluções adequadas para cada tipo de situação
contratual.

Isto é assim para estes casos, mas também para os casos em que, não havendo escolha,
é preciso encontrar uma lei aplicável subsidiariamente, como vemos no artigo 4º. O que
encontramos no artigo 4º, não tendo havido escolha, o legislador europeu define
elementos de conexão específicos para cada um dos tipos contratuais discriminados. Há
um elemento de conexão adequado para cada tipo contratual, e é diretamente estabelecida a
competência.111

Esta lista não é exaustiva, mesmo dentro dos tipos contratuais que podem existir,
portanto temos que ter uma solução subsidiária, que é a dada no artigo 4º nº2. É a solução geral
que vai em linha com as alíneas a) e b) do artigo 4º nº1 – a alínea a) manda aplicar a lei da
residência habitual do vendedor e a alínea b) manda aplicar a residência habitual do prestador
de serviços. Ora, na regra residual a lei aplicável é a lei do país onde o contraente que deva
efetuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual. Aqui o
regulamento faz apelo à prestação característica do contrato, isto é a prestação que faz
diferenciar certo contrato dos restantes contratos onerosos.
Ora, se assim é, nós temos que tirar a conclusão que em todos os contratos onerosos,
pelo menos nos contratos onerosos em que existe contraprestação pecuniária, a
contraprestação que se opõe a essa é que será a prestação característica do contrato. E é
isso que vai distinguir aquele contrato de outros tipos contratuais. Portanto, para
determinarmos a lei aplicável ao contrato, temos que perceber qual é essa lei, e em regra
encontramos a prestação característica do contrato olhando à prestação que não é a
pecuniária, no caso de estarmos a lidar com um contrato oneroso.
Se não se poder aplicar a ideia de prestação característica – como acontece no
contrato de permuta112 – então aplicamos a ideia de conexão mais estreita, segundo o
Regulamento. Notem ainda que, no que toca ao nº2, a lei aplicável não é a lei do país onde a
prestação característica deve efetuar-se, mas sim da lei de residência da parte que deve
efetuar a prestação característica.

110 Como se vê entre as regras diferentes para contrato com consumidor, CITs e contrato de seguro.
111 Só se aplica a d) em derrogação da c) quando as conexões se cumulem;
112Exemplo: contrato em que se troquem carros ou imoveis ou ações. Não é possível identificar uma
prestação “característica”, ambas são iguais.
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Residência Habitual

Não existe uma noção genérica de residência habitual no Regulamento Roma I mas
existem regras sobre a residência habitual das pessoas coletivas e das pessoas singulares no
exercício da respetiva atividade profissional.

Relativamente às pessoas coletivas e sociedades a solução do artigo 19º nº1 é a


consideração como residência habitual do local onde se situa a administração central da
pessoa coletiva ou sociedade. Para estes efeitos, uma pessoa coletiva entende-se que tem a sua
residência habitual no país onde tem a sua administração central.

Quanto às pessoas singulares em geral não há noção de residência habitual, e ela decorre
do conceito comum a todos os Estados-Membros, que corresponde à ideia de centro de
interesses permanente da pessoa e onde a pessoa vive, o país onde ela desenvolve a sua
vida em termos comuns. A residência habitual não tem que ser a legal porque o efeito
pretendido é o efeito de determinação da lei aplicável com base nos princípios próprios de
DIP, designadamente a conexão mais estreita, e a residência habitual é instrumental em
relação a isso, pelo que o migrante ilegal não deve ser prejudicado nestes efeitos.

Relativamente às pessoas singulares que exerçam a sua atividade profissional – artigo


19º nº1 II - a sua residência habitual é a do local onde se situa o seu estabelecimento
principal. Ou seja, se estivermos a pensar num empresário em nome individual ou
comerciante, o que releva não é a residência habitual da pessoa em geral considerada,
mas será o estabelecimento principal do profissional.

Existe uma regra especial, que aparece no nº2, que leva a estabelecer um desvio.
Pode acontecer que o contrato seja celebrado no âmbito de uma agência ou sucursal ou de outro
estabelecimento da pessoa singular ou coletiva em causa, pode acontecer que não apenas o
contrato seja celebrado no âmbito da sucursal, agência ou outro estabelecimento, mas que o
cumprimento das obrigações do contrato caiba à sucursal, agência ou outro estabelecimento.
Nesse caso, a residência habitual é o da sucursal, agência ou outro
estabelecimento. Afasta-se o número um, sendo que o momento relevante é o momento
da celebração do contrato – nº3 – para se evitar a incerteza quanto à lei aplicável.

Processual

Como referimos em momento próprio neste caderno, o Direito Internacional Privado não
tem tanta influencia nas normas processuais. As normas processuais a aplicar são, normalmente,
as da lei do foro.

Ónus da Prova
O artigo 18º, quanto ao ónus da prova, que diz que a lei que regula a obrigação
contratual, por força do presente Regulamento - ou seja, a lei aplicável ao contrato - vai aplicar-
se na medida em que, em matéria de obrigações contratuais, contenha regras que
estabeleçam presunções legais ou repartam o ónus da prova.
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Isto significa que esta questão do ónus da prova não vai ser decidida com base na
lei do foro, não é aqui tomada como lei processual, mas sim é decidida de acordo com a lei
aplicável ao contrato, por causa dos efeitos substantivos que a definição do ónus da prova
acarreta.

Repare-se, já o nº2, ao estabelecer que: os contratos e outros atos jurídicos podem


ser provados por qualquer meio de prova admitido quer pela lei do foro, quer pelas leis a
que se refere o artigo 11º ao abrigo do qual o ato seja formalmente válido, desde que esse
meio de prova possa ser produzido no Tribunal do foro, temos uma norma sobre meios de
prova, que seria estritamente processual, sobre a qual deveria valer exclusivamente o
Direito do foro, mas não, há um desvio a essa aplicabilidade única da lei do foro, porque se
permite que a prova dos contratos e outros atos jurídicos possa ser feita ao abrigo da lei
referida no artigo 11º, ao abrigo do qual o ato seja formalmente válido.
Assim este nº2 complementa o nº1 usando a técnica depeçage para dizer que para além
das normas processuais admitidas pelo lei aplicável ainda valem todas aquelas admitidas por
qualquer lei aplicável à forma. Isto claro, só vale no que toca a contratos e atos jurídicos que
sigam essa forma, caso contrário o artigo 11º seria completamente ineficaz.

A questão do ónus da prova relaciona-se tanto com a parte substantiva – porque pode
definir a matéria de fundo – mas é processual – porque só se suscita no processo e altera o jogo
das partes no processo. Temos uma zona de confluência em que é necessário que as regras
de conflitos intervenham. Na perspetiva do professor Barreto Xavier não implica a aplicação
da lei portuguesa, mas sim que pode haver um limite técnico à aplicabilidade da lei
processual.

Juros de Mora
Há outra questão que é apontada pela doutrina para a determinação da lei
competente sobre juros de mora.

A doutrina da Europa Continental entende que os juros de mora estão no âmbito do


contrato, do incumprimento, e sendo assim são regidos pela lei aplicável ao contrato.
Mas no contexto de sistemas de common law entende-se que a determinação de juros de
mora é uma matéria processual e não substantiva. Assim, aplicando-se a ideia de que a lei do
processo é a lei do foro, já não é a lei aplicável ao contrato.

O professor Menezes Cordeiro tem uma doutrina muito específica quanto a isto,
dizendo que a lei aplicável aos juros de mora é a lei da moeda, porque os juros de mora
não servem só como fator de indemnização, mas também para combater a inflação.
À luz do texto do Roma I, pelo artigo 12º nº1 c), parece que se aplica aos juros de
mora a lei aplicável ao contrato – cálculo do dano. O professor Lima Pinheiro diz que quanto
à taxa específica pode vigorar a lei da moeda, em casos específicos.
P á g i n a | 105

Arbitragem

Há aqui uma questão que se relaciona de uma maneira muito significativa com os
problemas da arbitragem, que tem a ver com os princípios da autonomia da vontade e as
modalidades através dos quais este princípio da autonomia da vontade se pode exercer.
Em especial no comércio internacional, muitas vezes, as partes decidem não atribuir
competência internacional aos tribunais de qualquer Estado, subtraindo eventuais litígios
para decisão por árbitros. Sobretudo no comércio internacional, relativamente a operações
internacionais grandes, é muito frequente a celebração de convenções de arbitragem.

Em Portugal temos a Lei de Arbitragem Voluntária, que diz que em casos de direitos
disponíveis podemos recorrer à arbitragem. Se as pessoas recorrem à arbitragem não apenas
recorrem a uma instituição distinta dos tribunais estaduais, também podem definir de
maneira diferente o direito aplicável às situações jurídicas em causa.

O Regulamento Roma I não é aplicável em matéria de arbitragem, não vincula os


árbitros quanto à determinação da lei aplicável, assim como os restantes Regulamentos da UE. É
o próprio que exclui a arbitragem do seu âmbito material no artigo 1º nº2 e).
Por outro lado, o que existe em cada ordem jurídica é uma Regulamentação estadual da
arbitragem. Cada país tem as suas regras em matéria de arbitragem, quer no que toca à
arbitragem internacional quer arbitragem não internacional. A arbitragem pode ter lugar
relativamente a litígios puramente internos claro, mas não é isso que nos interessa nesta
cadeira. O que nos interessa é acima de tudo a arbitragem em litígios como os de comercio
internacional. Temos regras na LAV que são regras comuns e depois temos regras específicas
pelo que toca à arbitragem internacional, designadamente temos regras próprias quanto à
lei aplicável pelos árbitros ao fundo da causa.

Vantagens

Há várias vantagens em recorrer à arbitragem. As razões para se admitir a arbitragem, e


e que no comércio internacional devem ser invocadas para preferir a arbitragem internacional
relativamente à competência estadual são em primeiro lugar a celeridade da arbitragem. Esta
celeridade é um grande motivo, mas em termos genéricos não é assim tão completa porque não
se verifica em todas as áreas ou tipos de causas. Em determinadas alturas, quando os tribunais
judiciais estão sobrelotados, a arbitragem pode ser uma solução, mas a arbitragem também
pode ser demorada.
É ainda uma vantagem a escolha de árbitros especializados. Os juízes dos tribunais
estaduais são juízes formados em termos genéricos do Direito, mesmo quando há uma certa
especialização dentro do poder judicial, é uma especialização relativa e ampla. A especialização
no poder judicial é limitada, e a arbitragem permite a escolha de árbitros que têm uma
competência técnica muito densa em tipos contratuais específicos ou matérias muito
específicas.

A ideia de que a arbitragem, por via de regra, é irrecorrível, e a morosidade da resolução


das questões atenua-se. A solução por defeito é da irrecorribilidade, e isso não pode ser
convencionado pelas partes num litígio submetido aos tribunais estaduais.
P á g i n a | 106

A questão de imparcialidade pode ser relevante sobretudo no comércio internacional,


porque os tribunais do Estado podem favorecer as entidades do seu Estado. Ou seja, a
arbitragem permite o recurso a árbitros de países terceiros, que não têm ligação nem aos
interesses em litígio nem aos Estados aos quais as partes estão ligadas.

Autonomia

O segundo aspeto, que também é uma vantagem, tem que ver com as partes regularem
o próprio processo, podendo definir se querem regras muito simplificadas de processo ou
definir regras mais complexas, há uma grande flexibilidade no modo como a arbitragem
vai ter lugar. Há um elemento adicional, é que na arbitragem internacional as partes podem ir
mais longe do que nos litígios a serem decididos nos tribunais estaduais, quanto ao Direito
aplicável ao fundo da causa.

Vimos que o Regulamento Roma I adotou uma perspetiva conservadora no que toca à
possibilidade de escolha de regras jurídicas não estaduais. É isso que não se verifica em sede
de arbitragem. Em sede de arbitragem, estando em causa uma matéria contratual, as partes
podem escolher mais que apenas a lei de determinado Estado, podendo escolher outras regras
jurídicas. Aqui, o artigo 52º da LAV113 determina que as partes podem designar as regras
de Direito a aplicar pelos árbitros se não os tiverem autorizado a decidir segundo a equidade.
De acordo com o consenso da doutrina, a redação do artigo 52º nº1 da LAV abre uma
clara clivagem entre a solução que circunscreve a escolha da lei pelas partes aos ordenamentos
estaduais. Abre a possibilidade de as partes escolherem outras regras além dos
ordenamentos estaduais. A lei de arbitragem é clara e há uma porta através do qual é
possível deixar entrar a lex mercatória por exemplo, a entrada de regras jurídicas não
fundadas em determinado ordenamento estadual. Aqui temos mais uma razão na opção pela
arbitragem, que é a maior flexibilidade que é dada às partes para escolherem as regras
jurídicas aplicáveis.

Nestes casos, na falta de escolha da lei pelas partes, as regras subsidiariamente


aplicáveis vão ser definidas pelo tribunal arbitral com base no princípio da conexão mais
estreita. Nos termos do nº 2 do artigo 52, na falta de convenção pelas partes, o tribunal
arbitral aplica o Direito do Estado com o qual o litígio apresente uma conexão mais
estreita. Ou seja, temos aqui o princípio da conexão mais estreita a ser usado com a sua função
de designação direta da lei aplicável, sem regras que de alguma maneira intermedeiem a
aplicação deste princípio. Não há regras que concretizam o princípio, mas um recurso direto
ao princípio da conexão mais estreita pelo Tribunal.

Lê-se depois no nº3: o tribunal arbitral deve tomar em consideração as estipulações


contratuais das partes e os usos comerciais relevantes.
Aqui há um reforço da autonomia da vontade, ou seja, mesmo quando as partes não
escolheram a lei aplicável, o tribunal deve tomar em atenção as estipulações contratuais
para escolher a lei mais estritamente aplicável.
Por outro lado, o tribunal arbitral deve tomar em consideração os usos comerciais

113 Lei da Arbitragem Voluntária


P á g i n a | 107

relevantes, ou seja, há abertura para a relevância da lex mercatória, mesmo quando não foi
escolhida pelas partes.

Isto leva a uma conclusão: as regras de determinação da lei aplicável são mais
simples do que as regras que constam das fontes europeias ou internas portuguesas,
porque nessas fontes o que temos é uma tendência de especialização, onde as regras
aplicáveis dependem do tipo contratual em causa ou da matéria jurídica. Aqui temos maior
simplicidade porque esta regra se vai aplicar a todas as matérias que possam ser objeto de
arbitragem internacional

A atual lei de arbitragem portuguesa, curiosamente, adotou uma postura mais


conservadora do que a anterior lei de arbitragem. A anterior, quando não houvesse escolha
da lei pelas partes, permitia uma via direta de designação das regras jurídicas aplicáveis, ou seja,
uma via que não passava por considerações de natureza conflitual. Os árbitros escolheriam as
regras de Direito mais apropriadas ao litígio, sem estarem submetidas ao critério da
conexão mais estreita. Isto faria sentido nas hipóteses em que a aplicação de determinado
Direito fosse tecnicamente mais apto a resolver o problema. Tipicamente há certas ordens
jurídicas que têm regulamentação técnica, detalhada e profunda sobre certas matérias e podem
ser as mais aplicáveis ao litígio, ainda que não as mais estreitamente conexionadas. Perante a
redação anterior da Lei, havia quem entendesse que os árbitros tinham a liberdade de
escolher outra lei que não a mais estreitamente conexionada, se entendessem que o
conteúdo era mais adequado. A questão foi ultrapassada.

Quanto às NAIs, como dissemos, apenas o que está na lei de arbitragem é que é
fundamento para a impugnação. Normalmente esta impugnação incide em questões como a
existência de falta de consentimento das partes, parcialidade manifesta dos árbitros, etc.
Coisa diferente é a suscetibilidade de execução da sentença. Hoje em dia, o
reconhecimento e execução das sentenças arbitrais é facilitado pela convenção
internacional que reúne dezenas de Estados, que é a Convenção de Nova Iorque das
Nações Unidas.
Essa convenção limita muito a possibilidade de recusa da execução de sentenças
arbitrais, nomeadamente, não permitindo a recusa com base na violação das regras de
conflitos. Assim, a violação de NAIS no país de execução da sentença só é relevante se
puserem em causa a ordem pública internacional. Os árbitros aqui têm que jogar com isso.

Fundamento

O que é que justifica que o mesmo contrato internacional relativamente ao qual as partes
não escolheram recorrer a arbitragem esteja submetido a regras de conflitos do Roma I, mas o
mesmo contrato quando submetido à arbitragem possa ter regras diferentes? O professor
Dário Moura Vicente diz que não há nada. Se um contrato é o mesmo, se as partes podem
escolher que se apliquem regras diferentes então do ponto de vista de fundamentação da
arbitragem só pode haver duas teses:

1) A arbitragem assenta na vontade das partes;


2) A arbitragem assenta no facto dos Estados tolerarem a vontade das partes;
P á g i n a | 108

No primeiro ponto temos uma fundamentação que assenta na vontade e no outro caso
temos uma fundamentação que assenta na lei.

O fundamento pode assentar nas duas, dando um salto entre o dever ser, para o que é,
encontramos a arbitragem institucionalizada e arbitragem ad hoc.
A arbitragem institucionalizada vive à margem dos Estados. A lei aplicável num caso
submetido à Câmara de Comércio Internacional de Paris segue regras da própria CCI. Os árbitros
da CCI não analisam o que diz a lei francesa ou a lei portuguesa.

Aqui a questão que se coloca é, no fundo, saber se a arbitragem não vive à margem dos
Direitos Estaduais, em concorrência com os Direitos Estaduais e podendo apenas precisar do
apoio dos Direitos Estaduais em determinados casos, nomeadamente em dois:

1) quando é necessário uma tutela provisória e cautelar


2) quando é necessário executar as decisões através dos Tribunais Estaduais.

Assim, as decisões arbitrais dependem dos Estados para ser efetivadas. Parece que
caímos mais dentro do segundo ponto de fundamentação, é o Estado que tolera a arbitragem,
pois sem o Estado muitas decisões de arbitragem seriam apenas ineficazes.

Contudo o Estado114 não tem muito controlo: a generalidade dos sistemas, as decisões
arbitrais não podem ser atacadas com base em mera violação de lei. Uma decisão arbitral
não pode ser atacada, nem por via de impugnação, nem por via de recusa da sua execução, em
regra, apenas porque não cumpriram.
Isto também se aplica às Leis que contêm s regras de conflitos que seriam aplicáveis no
país da arbitragem. Se forem violadas não quer dizer necessariamente que os Tribunais possam
fazer alguma coisa contra essa decisão. Se examinarmos a LAV os fundamentos para a
impugnação das decisões arbitrais não vemos a não observância das regras da lei aplicável,
ou seja, a não observância das regras de conflitos do próprio diploma, não é fundamento
para a impugnação da decisão arbitral.

Concluindo, vivemos numa concorrência entre o Direito Estadual e os árbitros.


Existe uma concorrência em que há uma pretensão de autonomia por parte da arbitragem e
uma pretensão de regulação por parte dos direitos estaduais. No entanto, nem os direitos
estaduais conseguem impor as suas regras com o alcance com que gostariam, nem as
instituições arbitrais conseguem ser tão autónomas como gostariam. O que existe é o resultado
da tensão entre os dois.
Uma coisa é certa, a arbitragem tem regras que em parte são aplicadas, mas outra
parte são proclamações poéticas não acompanhadas de mecanismos de coercibilidade
que levassem a torná-las efetivas.
Isto é importante para termos presente o confronto do Regulamento Roma I enquanto
autonomia de vontade, concluímos que sempre que submetemos os litígios à arbitragem
ampliamos de forma significativa a esfera de autonomia da vontade que nos cabe, e aqui, se o
instituto da arbitragem é admitido pelos Direitos estaduais, também é admitida a sua
suscetibilidade de reconduzir a soluções diferentes das que resultariam da aplicação do Direito

114 O Estados diga-se os tribunais.


P á g i n a | 109

de conflitos supraestadual. Ou seja, são os Estados, ao admitiram a arbitragem, que dão


abertura ou espaço para se retrair a aplicabilidade das regras de conflitos.

Por outro lado, no plano da arbitragem, os árbitros são tendencialmente práticos,


decidem as questões no plano prático, mas existe doutrina a defender a autonomia da
arbitragem nestes termos: a autonomia da vontade por um lado, a lex mercatória e a arbitragem
fazem um triunvirato que não depende de nenhum ato dos Estados para reconhecer esta
Ordem transnacional. Há quem defenda que existe um direito transnacional do comércio
internacional, cujos órgãos de aplicação são os tribunais arbitrais e se funda na autonomia da
vontade, e verdadeiramente os árbitros quando confrontados com a necessidade de decidirem
um litígio deviam ter preocupação não de olhar à ordem jurídica do foro, mas sim para as
ordens jurídicas dos Estados onde a decisão arbitral deve ser executada.

Portanto, a preocupação deve ser garantir que a decisão tenha eficácia e não
obedecer às regras em vigor no Estado onde a decisão é proferida.
Aqui só temos que observar as regras cuja violação pode dar origem à impugnação da
decisão arbitral, quando essas regras não tenham sanção deste tipo, podem ser naturalmente
desconsideradas porque são regras sem sanção, na perspetiva de alguns autores não chegam
a ser regras jurídicas, são regras imperfeitas. Os árbitros apenas têm que garantir que a
decisão produz os seus efeitos nos Estados em que deva ser executada.

Regulamento Roma II

O Regulamento Roma II é o Regulamento aplicável às obrigações extracontratuais.

Quando resolvemos casos práticos em que exista uma situação plurilocalizada, antes de
aplicarmos as regras de conflitos do código civil para determinar a lei a aplicar já sabemos
que temos de ver se não prevalece nenhum regulamento europeu. Assim, na matéria relacionada
com obrigações extra obrigacionais temos de ver mais uma vez o âmbito de aplicação dos
regulamentos.

Âmbito de Aplicação

O artigo 1º dá o âmbito de aplicação material: situações que envolvem conflitos de


leis e matérias extracontratuais civis e comerciais. O artigo 1º faz uma explicação paralela à que
aparecia no Regulamento Roma I. Enquanto o Regulamento Roma I se aplica às obrigações
contratuais, o Regulamento Roma II aplica-se as obrigações extracontratuais. Ou seja, aplica-se
às chamadas obrigações não voluntárias.
A violação de um direito subjetivo será a fonte da obrigação, mas em si, o Regulamento
aplica-se às obrigações, podendo ter regras específicas de conflitos. Em causa estão obrigações
de indemnização, enriquecimento sem causa e gestão de negócios, sendo que o
P á g i n a | 110

Regulamento também considera a culpa in contrahendo.


No âmbito da responsabilidade civil o Regulamento Roma II prevê regras especiais para
certos casos.

O artigo 1º nº2 contém, tal como os outros Regulamentos, uma delimitação negativa
do âmbito de aplicação do Regulamento. As regras de conflitos deste Regulamento não vão
aplicar-se a um conjunto de matérias que estão delimitadas no artigo 1º nº2. Nessas matérias,
mesmo que estejam em causa obrigações extracontratuais, elas não vão ser resolvidas por
intermédio da lei designada pelo Regulamento Roma II.
O nº2 deve ser lido atentamente, mas de forma geral ficam excluídas as matérias que
tenham que ver com o estatuto pessoal – relações de família, relações com efeitos
equiparados, as obrigações que decorrem do regime de bens do casamento ou de outras uniões
que não casamento, as matérias sucessórias, etc. 115

O Regulamento é aplicável a factos danosos que ocorram depois de 11/1/2009


como se vê pelo seu artigo 32º. Tem ainda um âmbito de aplicação temporal execional no que
ao artigo 29º diz respeito, este, é aplicável aos factos danosos que ocorram a partir de
11/7/2008, sendo que este não estatui a respeito de particulares mas aos Estados, pelo que não
terá tanto interesse para a nossa cadeira de Direito Internacional Privado.

Quanto ao âmbito de aplicação espacial escusado será dizer, depois de termos visto
todos os outros regulamentos da União, que o Regulamento Roma II, como todos os outros até
aqui visto, tem um âmbito de aplicação universal, de acordo com o artigo 3º.

Se uma situação não qualquer conexão com os Estados-Membros, a competência dos


tribunais portugueses só pode acontecer por uma de duas razões,

1) ou porque as partes convencionaram por pacto de jurisdição a competência


dos tribunais portugueses – caso em que é admitido de acordo com o Regulamento
Bruxelas I

2) ou porque não havendo contacto com os Estados-Membros no momento do dano, o


lesado, por exemplo, mudou a sua residência para um Estado-Membro. A situação
não deixa de ser não conectada com a ordem jurídica desse Estado, porque no
momento da situação não havia ligação, mas passou a ser relevante por ser o
domicílio do autor.

Podemos aplicar o Regulamento a situações que não têm conexão com os Estados-
Membros porque como já dissemos sobre a aplicação universal a mesma não influi no princípio
da não transatividade. Isto deve-se ao facto de as normas de conflitos serem formais e não
materiais. As regras de conflitos, em primeira linha, não são regras de conduta. Não quer dizer
que não possam orientar as partes, mas em primeira linha apenas se destinam a dirimir um
conflito que está em contacto direto com as partes, e por isso o princípio da não transatividade
não se aplica a normas de conflitos.

O Regulamento Roma II, tal como o Roma I, tem uma exceção quanto à Dinamarca.
Os órgãos de aplicação do Direito Dinamarqueses não aplicam nenhum dos Regulamentos, mas

115 Relacionaremos isto com o que se passa no nosso Código Civil nas próximas páginas.
P á g i n a | 111

sim o Direito de Conflitos interno. Isto porque não adotaram o mesmo, algo que é permitido pela
“Europa a duas velocidades”,

Código Civil

Como sabemos o Código Civil no que diz respeito às suas regras de conflitos encontra-se
bastante restringindo por força dos regulamentos europeus que derrogam muitas das normas de
conflitos. Contudo, decidimos acrescentar neste caderno um ponto sobre alguns aspetos que
normalmente geram confusão quanto ao âmbito de aplicação do Regulamento Roma II.
Daí esta inclusão desta seccção “Código Civil” que podia parecer confusa ao ler o índice
deste caderno uma vez que se encontra dentro do capítulo “Regulamento Roma II” e evidente é
que o Código Civil não faz parte deste.

Direitos de Personalidade
Os direitos de personalidade estão intimamente ligados à personalidade da pessoa e
talvez por isso seja excluídos pela g) do nº2 do artigo 1º do Regulamento Roma II. O
conceito-quadro escolhido pelo nº1 caso não existisse esta exclusão do nº2 iria incluir os
direitos de personalidade.
Estando excluídas as obrigações extracontratuais que decorram da violação da vida
privada e dos direitos de personalidade, uma situação internacional de direito privado é então
resolvida, nesta matéria, pelo nosso Código Civil.

Desde logo temos que contar com o artigo 27º do Código Civil, mas não apenas esse
serve para resolver uma situação de violação de Direitos de Personalidade. O artigo 45º, que
respeita à responsabilidade civil extracontratual, será também de necessária aplicação. O
jogo de normas a fazer é do artigo 27º pelo que toca à titularidade e conteúdo do direito de
personalidade e o artigo 45º pelo que toca à responsabilidade civil resultante da violação desse
direito de personalidade.

O artigo 27º serve para saber se a pessoa tem ou não tem o direito de personalidade.
Cada ordenamento jurídico contém uma delimitação do que entende por direitos de
personalidade, tem um catálogo, o alcance, os limites, quando é que podem ceder perante
outros, etc. A mesma relação existe entre o artigo 46º – alcance de direitos reais – e o artigo 45º
– se o lesante pode ser obrigado a indemnizar.
No artigo 27º estão em causa direitos como a vida, a integridade física, a identidade,
o desenvolvimento da personalidade, o bom nome, a reputação, a imagem, a palavra, a
liberdade de expressão entre muitos outros e relativamente a alguns dos quais podem existir
diferenças significativas nas diferentes ordens jurídicas.

Apesar desta g) do artigo 1º nº2 do Roma II, Florbela Almeida Pires diz-nos que o
Regulamento se aplica às obrigações extracontratuais resultantes de acidentes de viação,
podendo estar aí em causa a responsabilidade resultante de danos pessoais por lesões a direitos
de personalidade (como a vida e a integridade física). Adicionalmente, disposições que veremos
a seguir como a relativa a produtos defeituosos ou danos ambientais acabam por incluir lesões a
P á g i n a | 112

direitos de personalidade. Assim não se pode afirmar com toda a plenitude que a
responsabilidade por violação dos direitos de personalidade esteja, toda ela, excluída do âmbito
de aplicação do Regulamento Roma II. Apenas no caso concreto, e dependendo do direito de
personalidade em causa, poderá ser ou não aplicável ao caso o Regulamento Roma II.

Responsabilidade Civil
No artigo 45º nº2 encontramos uma regra de conflitos que considera duas leis, em
função do resultado, e é aquela que considere responsável o lesante. Ou seja, esta norma é
alternativa, como a que vimos a propósito da forma do contrato no Regulamento Roma I.
Agora, o artigo 45º nº3 estabelece uma exceção, se lesante e lesado tivessem a mesma
nacionalidade ou a mesma residência habitual comum, a lei aplicável é a lei desse país. O
artigo 45º nº3 estabelece um juízo de conexão mais estreita com a lei com a qual está a situação
ligada pelo vínculo da nacionalidade comum ou residência habitual comum.
Recapitulando, se quiséssemos colocar por ordem lógica as conexões relevantes de
acordo com o artigo 45º teríamos primeiro de aplicar o nº3 e só na sua falta o nº2, o que se
traduz no seguinte esquema:

1) Aplicação da lei da nacionalidade ou da residência habitual caso o agente e o lesado


tenham identidade nas mesmas, na falta da mesma nacionalidade ou residência;

2) Aplica-se a lei do país onde a atividade ocorre, caso esta não considere o agente
responsável;

3) Aplica-se em alternativa, a lei do país onde se produz o dano, mas só no caso de esta
considerar o agente responsável e o agente devesse prever a produção de um dano
naquele país através da sua conduta ou omissão.

É de notar que o legislador português escolheu como elemento de conexão o local “onde
ocorreu a principal atividade causadora do prejuízo” em vez de considerar “onde ocorre o dano”
artigo 4º nº1 do Regulamento Roma II. Isto trará diferenças como é evidente.

Apesar de muitas vezes afastarmos o artigo 45º por aplicação do Regulamento


Roma II, isso não acontece sempre, portanto, em hipóteses como as dos Direitos de
Personalidade, não pelo que toca à definição da existência do direito ou do seu conteúdo, mas
pelo que toca às consequências da sua violação, designadamente relativas à responsabilidade
extracontratual, essas são regidas pelo artigo 45º.

Outro importante ponto está relacionado com as normas de aplicação territorial.


O artigo 45º nº3 na segunda parte faz a ressalva das normas de aplicação
territorial, que tem uma expressão também no Regulamento Roma II. Se por exemplo, um
lesante e um lesado com a mesma nacionalidade – ucraniana -, mas o facto causador do prejuízo
e o dano ocorreram num país diferente do da nacionalidade – Portugal, tratando-se de um
acidente de trabalho ocorrido no estaleiro de determinada obra, em que o trabalhador e lesante
tinham a mesma nacionalidade. Neste exemplo a questão da aplicabilidade da lei ucraniana a
uma questão destas, imaginando por hipótese que estava excluída a aplicação do Roma II, pode-
P á g i n a | 113

se aplicar a ucraniana à responsabilidade civil, mas quanto à violação de regras de segurança,


por exemplo, o dono da obra estava vinculado à lei portuguesa e não à lei ucraniana. A lei
aplicável à responsabilidade civil era a lei ucraniana, mas isso não prejudicava a aplicação das
disposições do país em que é causado o prejuízo, que se aplicam indistintamente a todas as
pessoas.
Tecnicamente não são NAIs, porque não são normas que se sobreponham às
restantes normas de conflitos, porque são regras que, a priori, se aplicam pelo espaço,
apenas pela territorialidade, portanto, são salvaguardadas.
A mesma ressalva é feita pelo artigo 17º do Regulamento Roma II, em que se
distinguem essas regras – regras de segurança e de conduta – das NAIs – previstas no
artigo 16º.

Regra Geral de Conflitos

Feito o parênteses relativo à aplicação das normas de conflitos dos Código Civil vamos
voltar ao Regulamento propriamente dito e analisar as soluções apresentadas pelo mesmo.

Sendo o regulamento é aplicável, a regra geral de conflitos que aponta para uma lei a
aplicar é, de acordo com Roma II, aquela que nos indicam os termos do artigo 4º.
Nos termos do artigo 4º nº2, a lei aplicável é a da residência habitual comum, se
lesante e lesado tiverem a mesma residência.
Na falta de residência habitual comum, segundo o artigo 4º nº1, aplica-se a lei do
local onde ocorre o dano, exceto se a responsabilidade estiver mais estritamente
conexionada com um país diferente daquele que resulta destes primeiros números, como nos
diz a cláusula de desvio do artigo 4º nº3. É o efeito corretivo do princípio da conexão mais
estreita a atuar. Se do conjunto das circunstâncias resulta que a responsabilidade tem uma
conexão manifestamente mais estreita com outra Ordem Jurídica do que a que seria aplicável
pelos nº 1 e 2, essa é a lei aplicável. Prevalece a lei mais estreitamente conexionada com a
situação sobre a lei primariamente aplicável. A segunda frase do nº3 vem exemplificar os
indícios de onde pode decorrer uma conexão mais estreita: um contrato entre as partes que
tenha uma ligação com um outro país, e que tenha uma conexão estreita com a responsabilidade.

O artigo 45º nº2 do Código Civil e o artigo 4º nº2 do Regulamento são


parcialmente semelhantes, neste último não consta, no entanto, a ideia de nacionalidade
comum, apenas relevando a residência habitual comum.

Maiores há diferenças no artigo 4º nº1 em contraste com o nosso artigo 45º. Porque
enquanto no artigo 45º apontámos para a lei do Estando onde se deu atividade ou omissão,
no artigo 4º nº1 é relevante a lei do país onde ocorreu o dano.
Mas há aqui um aspeto adicional, é o de que se exclui a relevância do país ou países
onde ocorram consequências indiretas do facto. Temos o país onde ocorreu a atividade
causadora do prejuízo, que não releva de acordo com o artigo 4º, o país onde ocorre o dano, que
releva, e o país onde ocorrem consequências indiretas, que também não são relevantes.
Até podemos ter uma situação em que o dano ocorre em mais do que um país. A mesma ação
leva à produção de danos em diferentes países, no entanto, este artigo diz-nos que os lesados
vão ver a sua situação regulada pelo local onde ocorreram os danos. Uma vez que tiveram
vários danos em vários países, entendeu o legislador europeu que esta era a solução mais
P á g i n a | 114

justa, para tutela do lesado, ainda que seja mais difícil na prática. Assim, a cada dano que
ocorre em país diferente tem que ser apreciado segundo a lei desse país.

Concluindo, em esquema de resumo, o que a regra geral do Roma II nos diz é que será
aplicável uma de três soluções, a cada dano, por ordem lógica de aplicação:

1) A lei primariamente aplicável é a lei prevista no nº2


2) Subsidiariamente aplicável é a do nº1
3) Corretivamente aplicável é a lei do nº3

Escolha de Lei
Antes de aplicarmos a ordem lógica que acabámos de mencionar da regra geral, há ainda
um ponto antecedente que se deve aplicar logicamente. No Regulamento Roma II também
temos a consagração do princípio da escolha da lei pelas partes em DIP. Essa possibilidade é
encontrada no artigo 14º do Regulamento de Roma II.
Mas ao contrário do Roma I em que esta possibilidade aparece imediatamente, no
Regulamento Roma II a consagração do princípio da liberdade de escolha aparece apenas em
momento posterior. Do ponto de vista sistemático acontece esta estrutura pois esta consagração
é limitada. Ao contrário de outros casos que vimos em que a limitação da escolha respeitava ao
tipo de lei que podia ser escolhida, aqui não temos uma indicação do tipo de leis que podem
ser escolhidas em função da conexão existente entre elas e a situação a regular. Há outro
tipo de limites, só pode haver escolha quando:

1) O facto que dê origem ao dano já ocorreu e a escolha é posterior, e as partes nesse


momento podem escolher a lei aplicável;

2) Em momento anterior apenas no caso em que todas as partes desenvolvam


atividades económicas, desde que as partes escolham a lei aplicável mediante
convenção livremente negociável, anterior ao facto que dê origem ao dano. Isto
quer dizer desde logo que pelo menos nos casos em que existem CCG não podem
existir essa convenção, uma vez que não há negociação livre ou específica, mas uma
mera aceitação.116

Acrescenta-se ainda que qualquer que seja a lei escolhida pelas partes, as NAI do país em
que ocorreram os factos principais vão continuar a aplicar-se. Isto consta do nº2 e nº3 do artigo
14º.

A conclusão do ponto de vista lógico do aplicador do direito é de que a lei


primariamente aplicável, antes de se aplicar as que o artigo 4º indica, é nos casos em que é
possível, a lei escolhida pelas partes.

116Pode questionar-se porque fizemos esta referência uma vez que os casos de CCG deveria, em principio,
gerar apenas responsabilidade contratual. No entanto a verdade é que a existência de uma relação
contratual entre as partes não exclui a possibilidade de em certas hipóteses vir a surgir responsabilidade
extracontratual.
P á g i n a | 115

Não podemos afastar a escolha da lei com base na cláusula de desvio do nº3 do
artigo 4º e o próprio modo como está redigida a cláusula é claro, porque só permite afastar os
nº 1 e 2 do artigo 4º, sem referência à lei escolhida nos termos do artigo 14º.117

Artigo 16º e 17º

Sobre o que agora vamos tratar já falámos quando apresentámos as NAIs neste caderno
em Normas de Aplicação Imediata, “NAI noutras Fontes” em “Regime”. Remetemos para o que foi
dito lá. Contudo faremos uma breve revisão por outras palavras.
A exposição refere-se à questão do título de atendibilidade das NAI no âmbito do Roma II
bem como a uma figura que, com menos atenção, se poderia considerar NAI mas não o é.
Referimo-nos aos artigos 16º e 17º.

O artigo 17º consagra uma regra para avaliar o comportamento da pessoa cuja a
responsabilidade é invocada. Já tínhamos mencionado esta ressalva.
No fundo este artigo não contém uma NAI, diz-nos apenas que as regras de segurança e
conduta a utilizar no apuramento da responsabilidade são as em vigor no lugar onde ocorre a
responsabilidade. Assim um condutor francês que se tente desresponsabilizar de um acidente
em Inglaterra não pode invocar o Código da Estrada Francês para o fazer, o Código a usar como
pressuposto de responsabilidade nesse caso é o Código da Estrada de Inglaterra ou equivalente.

Ainda aqui há algo a dizer de diferente em relação aos outros regulamentos. É o que diz
respeito às NAIs, e aqui podemos observar o 16º do Roma II.
Vamos admitir que o B, lesado, vem dizer que de acordo com a lei espanhola existe uma
norma que se pretende aplicar a todos os acidentes ocorridos em Espanha e que estabelece um
montante fixo de indemnização muito elevado para os casos de ferimentos graves ocorridos nas
estradas espanholas. É uma norma material espanhola que com o objetivo de reduzir a
sinistralidade nas estradas espanholas estabelece uma responsabilidade punitiva para obrigar
os condutores a terem mais cuidado na condução. Quid iuris? É uma norma de aplicação
imediata de Estado terceiro, pelo que não se aplica a norma do artigo 16º do Regulamento.
O artigo 16º apenas legitima o Tribunal do foro a respeitar e salvaguardar as NAI
do país do foro, e se a questão é suscitada perante tribunais portugueses o Tribunal português
não é afetado pelas NAIs do país do foro. A NAI espanhola não é uma NAI do país do foro nem
uma NAI lex causae, portanto, da lei aplicável à causa.
A aplicação de NAIs de Estado terceiro acarreta uma ampla insegurança jurídica: por ser
difícil o conhecimento das NAI de várias ordens jurídicas, pode ser difícil o reconhecimento
enquanto NAI, etc. Por isso, não havendo título de atendibilidade das NAI de Estado
terceiro, não temos que tomar em consideração essas normas.
Se o Regulamento a aplicar não fosse o Roma II, mas o Roma I, a resposta não seria a
mesma uma vez que o artigo 9º não se refere apenas às NAIs do país do foro, mas ainda as
NAIs do país onde as obrigações do contrato devam ser executadas, desde que a execução

117Esta observação também vale para o Regulamento Roma I, o princípio da autonomia da vontade
prevalece sobre o princípio da conexão mais estreita. O que fundamenta a escolha da lei pelas partes não é
a existência de uma conexão mais estreita, mas por um lado a certeza jurídica e por outro a
autonomia da vontade que as partes têm para estabelecer os seus interesses em domínios em que
prevaleçam interesses privados e não públicos.
P á g i n a | 116

do contrato nesse país seja considerada ilegal. No Regulamento Roma II não há nada sobre a
aplicação de NAIs de Estado terceiro.

Regras Específicas de Conflitos

Produtos defeituosos
▪ Lesante e lesado têm a mesma residência habitual – aplica-se a lei da residência
habitual comum;

▪ Se o produto foi comercializado no país de residência do lesado – aplica-se a lei da


residência habitual do lesado;

▪ Se o produto foi comercializado e adquirido no mesmo país – aplica-se a lei desse


país;

▪ Se o dano ocorreu no mesmo país onde o produto foi comercializado – aplica-se a lei
desse país.

▪ Se o produtor não podia prever que o produto fosse comercializado nos países
mencionados anteriormente – então aplica-se a lei da residência habitual do
produtor;

▪ Se alguma conexão for mais estreita, então o nº2 prevê uma cláusula de desvio.

▪ Conclui-se que a ideia geral do regime é obrigar a que os produtores cumpra as


normas de segurança/qualidade na produção de bens que comercializem em
determinado país. Caso não possam prever essa comercialização terão sempre no
mínimo de respeitar os standards de produção/normas de segurança do seu
próprio país (residência habitual).

Enriquecimento sem causa e Gestão de negócios


▪ Se houver uma relação jurídica que funda o enriquecimento, é aplicável a lei que rege
essa relação;

▪ Se não houver a relação jurídica, então, quando as partes tenham residência habitual
no mesmo país, rege a lei desse país;

▪ Se nenhuma das anteriores for possível, então aplica-se a lei do Estado onde tenha
ocorrido o enriquecimento sem causa ou onde tenha sido praticado o ato de
gestão de negócios.

▪ Se alguma conexão for mais estreita, o nº4 prevê uma cláusula de desvio.
P á g i n a | 117

Culpa in Contrahendo
▪ Aplica-se a lei que teria sido aplicável ao contrato, caso este tivesse sido celebrado;

▪ Se não for possível determinar esta, aplica-se a lei do local onde tenha ocorrido o
dano; ou em alternativa: a residência habitual comum;

▪ Se alguma conexão for mais estreita, o artigoº 12º nº2 c) prevê uma cláusula de
desvio.
P á g i n a | 118

Problemas de Aplicação das Normas de Conflitos

Até aqui analisámos os princípios gerais do DIP bem como a estrutura, relevância e
funcionamento geral deste ramo do Direito. Introduzimos várias técnicas e conceitos utilizados
pelo legislador do Direito dos Conflitos e observámos como funciona a norma de conflitos. Para
completar estudámos os diplomas utilizados onde podemos encontrar estas normas. Agora
vamos entrar na parte mais importante da matéria que se prende com os complexos
problemas que surgem ao aplicar tudo o que estudámos até aqui.

Qualificação

Quanto à matéria da qualificação. Em linguagem comum qualificar significa perante


determinada realidade atribuir determinadas características a essa realidade. Na linguagem
comum, quando qualificamos uma coisa, estamos a dar-lhe um nome ou atribuir alguma
característica ou verificar que ela corresponde a um determinado arquétipo que temos na
nossa mente. Em Direito, qualificar determinada realidade é algo que tem a sua especificidade.
A operação de qualificação em Direito intervém no processo de aplicação das normas
jurídicas e pressupõe que se tenha em consideração que as normas jurídicas têm uma estrutura
genericamente bipartida como já sabemos desde do primeiro ano: previsão e estatuição. A
qualificação em Direito no geral significa a operação através da qual se verifica que determinada
realidade tem as características descritas na previsão normativa. Por outras palavras,
qualificar em Direito significa realizar um juízo de conformidade entre determinado facto
e uma determinada previsão normativa, que, como consequência, origina a verificação da
estatuição. Portanto, no fundo, nós já temos estudado o instituto da qualificação ao longo do
curso, não o pensando enquanto instituto autónomo, mas como raciocínio inerente à
qualificação usámos desde o primeiro ano. Isto porque perante determinada realidade fáctica
pudemos, munidos dos conhecimentos de Direito Civil, por exemplo, qualificar determinado ato
como negócio jurídico, ou como ato unilateral ou ato jurídico simples, ou qualificar determinado
ato como contrato ou determinado contrato como sendo de C/V, ou qualificar determinado
contrato como contrato de C/V com condição resolutiva ou com cláusula de reserva de
propriedade. Ou seja, perante determinado facto, o aplicador do Direito vai analisar as
respetivas características para saber se nesse facto estão reunidos os elementos essenciais para
que determinada norma jurídica possa aplicar-se, ou, pelo contrário, se na falta desses
elementos, esse facto não deverá ser subsumido ou reconduzido a outra previsão normativa. Foi
com base nesta ideia e nesta operação, tomámos em consideração determinado tipo de contratos
para o efeito de saber se eram contratos de trabalho ou de prestação de serviços, porque dessa
qualificação decorre um conjunto de estatuições de grande relevância, porque os regimes
aplicáveis aos dois contratos são muito diferentes. Por exemplo, no Direito Penal, acontece a
mesma coisa. Perante determinado facto, esse facto pode ser qualificado como típico ou não
típico. Relativamente a um facto típico, verificamos se é ilícito, culposo e punível. Ou seja, há uma
operação de verificação perante os elementos de facto de que dispomos, e uma verificação que
consiste em saber se aquelas características da situação a analisar cabem nas previsões das
diferentes normas ou não cabem em norma nenhuma.
P á g i n a | 119

Pode não caber em norma nenhuma por uma de duas razões: porque existe uma lacuna
ou porque os factos não têm relevância para o Direito. Estes exemplos podem multiplicar-se
por vários ramos do Direito, podíamos ainda pensar na distinção entre imposto e taxa de Direito
Fiscal, um determinado tributo que foi introduzido legislativamente é importante saber se pode
ser qualificado como taxa ou como imposto, porque não é possível criar impostos sem Lei da
Assembleia da República ou DL autorizado pela Assembleia da República, diferentemente do que
acontece com a taxa, e por isso é que a distinção é tão importante e a jurisprudência do Tribunal
Constitucional é tão abundante nesta matéria.

Verdadeiramente, aplicar uma norma jurídica pressupõe sempre uma operação de


qualificação de determinada realidade porque dessa qualificação vai depender a
verificação da previsão.

No entanto no DIP as coisas não funcionam da mesma maneira. Ou melhor, o


funcionamento é o mesmo, mas o objeto que qualificamos por ser tão diferente torna a
qualificação diferente no DIP. No Direito dos Conflitos há uma versão própria da
qualificação. Há um instituto da qualificação que é o da Teoria Geral do Direito, mas que aqui
tem características específicas, pela especificidade das normas de conflitos.

A especificidade do problema no quadro do Direito de Conflitos

O que faz a diferença fundamental são as normas de conflitos em contraste com as


normas materiais118. O que a norma de conflitos tem como função é tomar em consideração que
existem diferentes soluções para o mesmo problema de facto, diferentes soluções provenientes
de diferentes ordenamentos jurídicos, e depois a norma escolhe uma dessas soluções para
tornar aplicável o ordenamento jurídico em causa, com base em critérios que já falámos. Se as
normas de conflitos têm uma estrutura diferente da estrutura das normas materiais119, então a
qualificação terá que ser diferente.
As normas de conflitos vão utilizar conceitos quadro que não são necessariamente
idênticos aos conceitos homólogos do Direito material, embora possam ser, em abstrato.
Como já vimos estes conceitos técnico-jurídicos definem e delimitam o respetivo campo de
aplicação da norma – o espaço ou a área jurídica em que o elemento de conexão da norma
é chamado a operar. Também dissemos: estes conceitos quadros têm de ser aptos a incorporar

118Já nos alongámos o suficiente sobre isto, mas é sempre bom recordar:As normas materiais destinam-se
a resolver a factualidade da vida, resolvem de forma direta os problemas existentes, ou seja, os conflitos
de interesses que a vida em sociedade revela, mas, pelo contrário, as normas de conflitos de leis são uma
via primordial de resolução dos conflitos entre ordenamentos jurídicos, e essas normas de conflitos de leis
destinam-se não a resolver diretamente esses mesmos conflitos de interesses, mas sim a apontar
um caminho para chegarmos à solução desses conflitos de interesses
Nas normas materiais temos uma previsão e estatuição enquanto nas normas de conflitos temos
119

uma estrutura tripartida: conceito quadro, elemento de conexão e consequência jurídica – sendo
que a consequência jurídica pode corresponder de alguma maneira à estatuição.
P á g i n a | 120

uma multiplicidade de conteúdos jurídicos, daí que se chamem conceitos “quadro”. De resto a
sua extensão é muito variável:

1) Alguns são grandes divisões clássicas do sistema de direito privado como


“obrigações” “direitos reais” “sucessões por morte”
2) Outros são mais limitados e referem-se apenas a negócios jurídicos em geral, ou a
certa categoria de negócios jurídicos ou mesmo um aspeto isolado da sua
regulamentação (forma externa, validade, etc…)
3) Outros ainda referem institutos, como a filiaação, o divórcio, a gestão de negócios, a
responsabilidade extracontratual.

Nas palavras do professor Ferrer Correia: “uma qualquer situação da vida poderia
logicamente ser regulada pela lei de qualquer país, na medida que nessa lei se contêm
normas que se referem, de um modo ou de outro modo, à respetiva factualidade. Todavia, do
conjunto das leis estaduais logicamente aplicáveis, destacam-se logo um ou várias leis como
única ‘interessada’: aquela ou aquelas com as quais a situação da vida, o ´caso´ tenha alguma
das conexões que o direito de conflitos refere como relevantes”. A regra de conflitos
reconhece competência às leis logicamente aplicáveis pelo elemento de conexão,
distribuindo depois essa competência através do conceito-quadro, isto é, o conceito-
quadro vai delimitar o campo de aplicação da lei interessada.

Assim, quando queremos aplicar uma norma de conflitos a operação que vamos realizar
é diferente daquela que fazemos nas regras materiais, dividindo-se em dois momentos:
primeiro o reconhecimento da competência da lei através do elemento de conexão das
respetivas regras de conflitos e num segundo momento será delimitado o campo de
aplicabilidade dessa lei através dos conceito-quadro, isto é, serão identificadas as questões
jurídicas às quais serão aplicadas as referidas leis.
É neste segundo momento que há a diferença que temos andado a mencionar, pois
enquanto a aplicação do elemento de conexão é bastante straight foward, a do conceito-quadro
já não, e o seu objeto (normas materiais dos ordenamentos jurídicos chamados pelo elemento
de conexão) torna a operação específica face à qualificação que usamos nas normas materiais. A
esta operação de subsunção das normas materiais do ordenamento designado como
competente ao conceito-quadro da regra de conflitos. É a esta operação que chamamos de
qualificação. Como o objeto da qualificação vão ser outros ordenamentos jurídicos nascem
especificidades:

1) Em primeiro lugar a interpretação do conceito-quadro120 da regra de conflitos.


2) Em segundo a sua aplicação, isto é, a integração das normas materiais no instituto
jurídico visado por esse mesmo conceito-quadro.

120Pois como acabámos de dizer na página anterior as normas de conflitos vão utilizar conceitos quadro
que não são necessariamente idênticos aos conceitos homólogos do Direito material, embora
possam ser, em abstrato. Isto levanta questões sobre como interpretar o conceito, será que se usa
apenas a lei do foro? Será que se usa uma soma dos conceitos que vários Estados-Membros têm? Será que
é um conceito autónomo? Se sim de onde partimos?
P á g i n a | 121

Interpretação dos Conceitos-Quadro

Finalizámos a noção da qualificação em DIP explicando referindo a importância da


interpretação do conceito-quadro. Vamos agora fazer uma exposição sobre como deve o
aplicador do direito interpretar o conceito-quadro, partindo já do pressuposto que a noção de
conceito quadro está percebida.
Vamos ver como é que interpretar o conceito de posse, propriedade e demais direitos
reais do artigo 46º do Código Civil. Como é que interpretamos o conceito obrigações
contratuais do artigo 1º do Regulamento Roma I? Qual é o alcance da expressão divórcio e
separação judicial do Regulamento Roma III? Qual é o alcance do conceito enriquecimento sem
causa do Regulamento Roma II?

Para sabermos isto temos que saber a que critérios recorremos para fazer a
interpretação, a fim de perceber o alcance de cada conceito-quadro. Há várias hipóteses
possíveis:

1) A interpretação destes conceitos deve ser feita com base no direito material do
foro: ou seja, do país onde a questão está a ser suscitada. Assim, se um juiz português
é confrontado com a questão de saber se determinada realidade é ou não um direito
real então deveria pura e simplesmente olhar ao Direito material do foro e verificar
se está no catálogo dos direito reais121, se a essa realidade corresponde ou não
corresponde a algum dos direitos incluídos na lista taxativa que o nosso Direito
estabelece. Portanto, direito real seria o que está dentro da lista fechada e tudo o que
está fora da lista não tem as características de direitos reais para os efeitos do artigo
46º do Código Civil por exemplo. Assim, esta primeira alternativa possível para a
interpretação dos conceitos quadro implica recorrer aos conceitos homólogos do
direito material do foro. A favor desta ideia podemos encontrar um argumento de
coerência da Ordem Jurídica, um argumento de consistência, de não contradição
dentro da Ordem Jurídica, um princípio de unidade do sistema jurídica. Poder-se-á
argumentar que não faria sentido que o mesmo conceito significasse coisas diferentes
dentro do mesmo sistema jurídico.

No entanto há vários argumentos contra esta tese. Esta solução seria contrária ao
princípio da paridade de tratamento entre o Direito do foro e Direitos
estrangeiros. Pode também pôr em causa a segurança jurídica, porque se o
conceito está sempre a alterar falta a linha condutora. Se cada Estado adotar a uma
ideia de interpretação de conceitos quadro de acordo com o seu próprio Direito
material, isso vai potenciar a divergência entre normas de conflitos dos diferentes
Estados.

Quanto ao argumento da unidade do sistema jurídico, se pensarmos num conceito


quadro do nosso Código Civil, como é que podemos admitir que na mesma lei, no
mesmo instrumento jurídico, haja significados diferentes para os mesmos conceitos?
O princípio da unidade do sistema jurídico ou a ideia de consistência dentro do mesmo
ordenamento, não obriga a que os conceitos jurídicos tenham o mesmo sentido
independentemente do contexto normativo em que se inserem. Os conceitos

121 Uma vez que há um princípio de tipicidade dos direitos reais no direito português. Uma lista taxativa.
P á g i n a | 122

normativos são e devem ser funcionalmente interpretados e concebidos. Aquilo


que o princípio da unidade do sistema jurídico postula é que não haja contradições
valorativas no interior do mesmo ordenamento. Ou seja, o que o princípio da unidade
do sistema jurídico determina é que, por exemplo, determinado comportamento
não possa ser simultaneamente proibido por uma norma e permitido por outra,
isto seria inconsistente e seria inadmissível que o mesmo comportamento fosse objeto
de duas valorações contraditórias dentro do mesmo ordenamento. As contradições
valorativas estão afastadas. Mas a utilização do mesmo conceito com sentido
diferente em função do contexto normativo em que é usado é frequente no nosso
ordenamento jurídico. Basta pensar, por exemplo, no que acontece em matéria fiscal.
122 É por isto que se explica que, se olharmos aos Diários da República, encontramos

em muitos diplomas legislativos um pequeno glossário, ou seja, a enunciação do


sentido com que determinados conceitos valem naquele diploma normativo. Entende-
se que responsabilidade civil para estes feitos significa x, que Tribunal significa y, e
por aí adiante. O princípio da unidade do sistema jurídico não impõe que o
mesmo conceito tenha o mesmo sentido em qualquer ramo do Direito, mas
apenas que as soluções que decorrem dos diferentes ramos do Direito não
sejam, em si mesmas, valorativamente contraditórias.

Há ainda mais um argumento a favor. Se nós não estivermos a criar um significado


distinto para o conceito quadro, considerando que o conceito quadro apenas reproduz
as características do conceito que existe no Direito material do foro, facilitamos a
vida ao intérprete aplicador do Direito, porque já tem o trabalho feito, por conhecer
o Direito material do foro. No entanto, mesmo essa ideia prática, que valeria pouco,
dificulta a vida ao intérprete sempre que não exista no Direito do foro uma
realidade jurídica equivalente no direito estrangeiro em causa. Sempre que
estiver em causa, no ordenamento jurídico em contacto com a situação, um instituto
desconhecido no ordenamento do foro123, isso vai dificultar a vida ao intérprete do
Direito.

2) Construir ou interpretar o conceito quadro com base numa comparação de


Direitos: uma comparação entre os Direitos em contacto com a situação, com vista a
encontrar uma espécie de mínimo denominador comum entre as ordens jurídicas.

A favor desta tese temos o facto de que não estamos a depender exclusivamente
do Direito do foro, nem a ser suscetíveis de ter as críticas que tinha a tese anterior.
Por outro lado, a ideia de comparação de Direitos parece fazer sentido no campo de

122Em matéria fiscal o legislador pode apropriar-se de determinados conceitos e defini-los tendo em conta
os fins do Direito Fiscal. Pode entender que quer tributar determinada transação ainda que a titularidade
do direito real, do ponto de vista jurídico-civil, não tenha sido transmitida. Transmissão para os efeitos do
Direito Fiscal é uma coisa diferente do que é para o Direito Civil. Isto nada tem de contraditório,
valorativamente, porque os efeitos fiscais são distintos dos efeitos civis. Não estamos a considerar
determinado comportamento como algo e o seu contrário, mas apenas a dar efeitos distintos,
provenientes de Ordens normativas distintas, à mesma realidade. Ou a dar efeitos jurídicos semelhantes a
realidades que podem ser, perante determinadas Ordens normativas, diferentes.
123 Como é por exemplo o caso das parcerias registadas.
P á g i n a | 123

aplicação do Direito de Conflitos. Faz sentido que o aplicador tenha em atenção as


várias soluções que existem para o mesmo problema e que possa construir o conceito
quadro com base nesta ideia de comparação de Direitos.

Contudo, se o alcance do conceito quadro vai depender de uma comparação entre os


Direitos em contacto com a situação, isso significa que a cada novo caso, aquele
conceito quadro vai ter um novo sentido, novos contornos. O significado do
conceito quadro vai variar de caso para caso, criando insegurança e levando a uma
quase discricionariedade do intérprete, porque vai ter uma margem muito grande
de apreciação. No entanto, a ideia de comparação de Direitos foi defendida por
alguma doutrina. Não necessariamente na comparação de Direitos em contacto com
a situação, mas numa perspetiva mais alargada, a ideia de construir um conceito
quadro com base no Direito Comparado em geral, criando um alcance que
pudesse ser um mínimo denominador comum entre várias Ordens Jurídicas. Do
ponto de vista prático esta tarefa seria no entanto impossível. Se fosse possível seria
extremamente difícil. Pode haver divergências tão profundas entre os sistemas que
não se encontre algo de comum. Segundo aspeto, mesmo que se chegasse a um
mínimo denominador comum, esse podia ser tão mínimo que não serviria para
resolver o problema. Teríamos um conceito seria interpretado de forma ultra
estreita, no qual não caberiam a maioria dos institutos existentes nos diferentes
ordenamentos. A não ser que invertêssemos o sentido da comparação de Direitos, e
em vez de encontrarmos um mínimo denominador comum encontrássemos um
máximo múltiplo comum. Aí a ideia era não ficar com o que era comum a todos,
mas sim ficar com todos os sentidos possíveis do mesmo conceito. Aí, por
exemplo, no conceito de casamento caberia: o casamento heterossexual, homossexual,
poligâmico, e se calhar até o casamento com coisas ou animais. Se pensarmos, por
exemplo, no contrato de trabalho. Se este conceito for assim tão amplo então o
contrato de prestação de serviços ficaria quase sem espaço. Mas se pensarmos num
contrato de prestação de serviços muito amplo, vai haver sobreposição entre
conceitos quadro. Pelas divergências entre sistemas criamos uma sobreposição.
Em suma, a comparação de Direitos, em si mesma, é uma ideia boa para resolver o
problema, mas não é, do ponto de vista prático, realizável em termos operativos
ou adequados, ou porque leva a uma total discricionariedade, ou porque leva a total
insegurança, ou, sobretudo, porque do ponto de vista prático leva a uma
impossibilidade de chegar a conclusões que sejam operativas e eficazes.

3) Interpretação de conceito quadro com base no fim da norma de conflitos: Há


um outro argumento contra esta tese, assim como contra a tese anterior. A crítica
que podemos fazer às duas últimas alternativas leva à solução que tem sido
considerada mais correta para a doutrina portuguesa. Tanto uma tese como a outra
deixam um dos critérios básicos da interpretação na sombra. Como sabemos a
interpretação tem quatro elementos: letra da lei, interpretação sistemática, elemento
histórico e a teleologia. Entre todos estes elementos, qual é o mais preponderante?
Na perspetiva do professor Barreto Xavier é a teleologia. Ora, precisamente, é esse
aspeto que as duas teses que acabámos de referir – interpretação de acordo com o
Direito material do foro e interpretação de acordo com o Direito Comparado –
esquecem. As duas teses esquecem que a interpretação deve ser feita de acordo
P á g i n a | 124

com o fim da norma. Neste caso, da norma de conflitos. Ou seja, sendo o conceito
quadro um conceito que integra a norma de conflitos, a interpretação deste mesmo
conceito quadro deve ter como critério decisivo o fim da norma de conflitos.

Para sabermos qual é o fim da norma de conflitos antes de mais, há um fim comum a
todas as normas de conflitos, que é de dirimir o conflito de leis. Depois, cada norma
de conflitos tem um fim próprio. Por exemplo, o já conhecido artigo 46º, norma de
conflitos sobre direitos reais – posse, propriedade e demais direitos reais - visa dirimir
conflitos nestas matérias. Temos que recorrer à norma de conflitos no seu todo. Temos
que ter em consideração que a norma de conflitos, embora seja suscetível de ser
decomposta em diferentes elementos estruturais, é uma unidade de sentido que é
impregnada por um conceito quadro, mas também por um elemento de conexão.
Assim, quando tentamos descobrir a ratio da norma de conflitos em matéria de
direitos reais do artigo 46º, temos que tomar em consideração que ela estabelece
que, para estas matérias, vale a lei da situação da coisa. Portanto, o que temos
sempre, ou em geral, é perguntar porque é que o legislador escolheu aquele
elemento de conexão para aquela matéria. O conceito de posse, propriedade e
demais direitos reais, vai encontrar o seu sentido na adequação daquele elemento de
conexão para dirimir um conflito de leis sobre aquela matéria.
Isto pressupõe perceber porque é que o legislador escolheu o elemento de conexão.
No caso dos direitos reais pode haver várias razões, em parte, por razões de
efetividade de decisões – porque é naquele lugar que é mais premente regular a
situação. As situações jurídicas que envolvem posse, propriedade ou demais direitos
reais são situações nas quais é mais importante o objeto sobre a qual incide o
direito do que a identidade do titular do direito, ou seja, nessas matérias os direitos
em causa são direitos que não estão intrinsecamente ligados a uma pessoa – não são
direitos pessoais – mas são direitos cuja configuração é mais próxima da coisa do que
do seu titular. Por outro lado, não faria sentido que o elemento de conexão pudesse
ser altamente variável em função do lugar onde determinado ato é celebrado. Por
exemplo, o contrato de C/V de bem imóvel, ser celebrado no país A, B ou C é irrelevante
se considerarmos que o bem está situado noutro país. Por outro lado, estes direitos
são direitos que podem, de alguma maneira, ser exercidos com independência de
outras pessoas, ou seja, são direitos com características próprias dos direitos reais,
nomeadamente a inerência e a prevalência, e essas características apontam no sentido
de que é preferível uma conexão objetiva sobre uma conexão subjetiva – ligada à
pessoa do respetivo titular. Mas isto é apenas um exemplo.

O que é essencial é que a interpretação dos conceitos quadro é uma


interpretação teleológica, é fundada na ratio legis e a ratio de uma norma de
conflitos varia de norma para norma. Portanto, tudo isto significa que o conceito de
posse, propriedade e demais direitos reais, por exemplo, deve ser interpretado em
termos tais que nele possam caber todas as realidades jurídicas às quais faça
sentido aplicar o elemento de conexão escolhido. Às quais, de acordo com a ratio
legis, seja adequado aplicar aquela solução conflitual.
P á g i n a | 125

Sintetizando, um conceito quadro não pode ser interpretado de acordo, meramente,


com o Direito material do foro porque isso seria redutor, poderia pôr em causa o
princípio da paridade de tratamento, e sobretudo isso esqueceria a própria
teleologia da norma de conflitos. O mesmo acontece com a ideia de recorrer ao Direito
Comparado. Este recurso ao Direito Comparado, além de, no ponto de vista prático, ser
quase impossível, sempre teria como consequência o esquecimento da pedra de toque
da interpretação de qualquer norma que é a sua teleologia. Assim, só a última hipótese
está correta. O conceito quadro da norma de conflitos deve ser interpretado de
acordo com a teleologia própria da norma de conflitos.

Quanto aos conceitos-quadro dos Regulamentos, já referimos incidentalmente no nosso


estudo que são conceitos autónomos a serem interpretados, em última análise, pelo TJEU.
A doutrina portuguesa, ancorada no artigo 15º do Código Civil, tem entendido,
embora com variações, que é deste modo que devemos interpretar os conceitos quadro
das normas de conflitos, mesmo a dos Regulamentos. Mas esta ideia, de autonomia dos
conceitos-quadro, não era uma ideia muito difundida na doutrina comparada. Em muitos países
seguia-se a ideia de interpretação destes conceitos de acordo com o Direito material do
foro – verdadeiramente, esses conceitos não seriam conceitos-quadro, seria apenas a utilização,
nas regras de conflitos, dos conceitos pré-existentes no Direito material do foro.
No caso dos Regulamentos – do DUE em geral - temos jurisprudência do TJEU que nos
indica o caminho, concordando com a doutrina portuguesa e o artigo 15º: o caminho de
interpretação dos conceitos-quadros dos regulamentos é atender ao fim da norma e ao fim
do Regulamento em causa. 124.
A interpretação das normas de conflitos de fonte europeia vem confirmar a mesma
ideia de interpretação teleológica das normas de conflitos, apenas com uma nota adicional,
porque ainda não tínhamos visto, que é o recurso ao próprio contexto normativo em que se
insere a norma de conflitos em causa. Ou seja, quando se interpreta uma norma de conflitos
do Regulamento X, não nos podemos apenas debruçar sobre a norma de conflitos, mas sobre o
Regulamento em geral e perceber qual é o sentido desse Regulamento no contexto em
que se insere – se visa eliminar barreiras jurídicas no contexto do mercado interno, ou a
ideia que certo tipo de pessoas são presumivelmente a parte mais fraca numa relação jurídica e
carecem de especial tutela, por exemplo. Isso não resulta apenas daquela norma jurídica, mas de
princípios que são mais vastos, no contexto normativo onde as disposições se inserem.
Isto não vale apenas para o DUE, mas também para as normas de fonte interna. A teleologia

124Há um aspeto que não vimos ainda quanto à interpretação das normas de conflitos do foro, mas que
esta dúvida leva a suscitar. As normas de conflitos, sejam elas do foro ou de texto de Direito transnacional,
não vivem sozinhas, não estão isoladas do sistema em que se integram. Portanto, cada uma das
normas de conflitos tem que ser interpretada de acordo com a sua teleologia própria, mas essa
teleologia própria da norma de conflitos é parte de um sistema. Se analisarmos uma regra de
conflitos do Regulamento Roma I temos que ter em vista não apenas o fim da norma de conflitos
específica, por exemplo de contratos com consumidores para efeitos de interpretarmos o que é um
contrato com um consumidor, mas temos que ter em vista todo o contexto do Regulamento Roma I, mais
genericamente todo o contexto do DUE e de porque é que os órgãos próprios da UE intervêm em sede de
conflitos de leis.
P á g i n a | 126

vale dentro de um contexto mais genérico dentro dos fins do próprio DIP ou do contexto
normativo onde a norma de conflitos se insere.

Concluindo, a pergunta a que queríamos responder era: como é que interpretamos os


conceitos quadro das normas de conflitos?

a) Conceitos do direito do foro – não;

b) Direito Comparado – não, apesar de o Direito Comparado ser relevante, não é


decisivo;

c) De acordo com o Direito de Conflitos do foro – de acordo com os fins próprios quer
daquela norma de conflitos quer do próprio Direito de Conflitos, dentro do contexto
em que ele se insere. Esta é a resposta certa. Significando que os conceitos podem
incluir institutos desconhecidos do ordenamento do foro, mas que visam
responder ao problema jurídico individualizado no conceito-quadro, sem
prejuízo do ordenamento do foro lançar mão do mecanismo da Ordem Pública
Internacional. Nesta tese o direito comparado terá relevância mas apenas para
determinar se os institutos estrangeiros visam realizar a mesma função social que
o legislador do foro teve em vista ou uma função análoga.

Delimitação e Caracterização do Objeto da Qualificação

Sendo que a verdade é que já respondemos à questão na abertura deste capítulo vamos
agora ver qual é objeto da qualificação e objeto do conceito quadro – a que é que se reporta o
conceito-quadro. Aqui também podemos ter várias opções:

1) O conceito-quadro refere-se a situações da vida - ou seja, a norma de conflitos,


quando se refere à posse, propriedade ou demais direitos reais, ou sucessões por
morte, divórcio, etc., reporta-se a situações da vida. São situações de facto
independentemente da sua valoração jurídica. É fácil perceber que não é esta a
resposta correta, porque há factos que não têm relevância jurídica, e não subsumimos
esses a um conceito quadro, quando é suposto que essa situação não seja submetida a
nenhum regime. A situação em si pode não ter consequências jurídicas e não ser
sequer suscetível de carecer de regulamentação, portanto, não faria sentido submetê-
la ao conceito quadro. Isto só vale para as situações irrelevantes do ponto de vista
jurídico. Mas mais do que isso, a mesma situação da vida pode convocar a
aplicação de complexos jurídicos distintos. Uma pessoa morre. Por si, esta situação,
este facto da vida pode desencadear efeitos jurídicos distintos – extinção da
personalidade jurídica, abertura da sucessão, nasce o direito ao seguro por parte dos
beneficiários do seguro, extingue-se a responsabilidade penal, pode extinguir-se a
responsabilidade civil, extingue-se o contrato de trabalho, pode nascer
responsabilidade penal para outra pessoa, pode surgir uma responsabilidade civil a
favor dos herdeiros dessa pessoa, etc. Ou seja, o mesmo facto, a morte, pode originar
o surgimento de efeitos jurídicos de natureza diversa, e esses efeitos jurídicos,
P á g i n a | 127

numa situação plurilocalizada podem suscitar a aplicação de regras de conflitos


distintas.

Se isto é assim relativamente a efeitos jurídicos que provêm de normas materiais


dentro do mesmo ordenamento, deve ser a mesma coisa para efeitos jurídicos
distintos em países diferentes. Por exemplo, na ordem jurídica portuguesa, a morte de
um cônjuge casado em comunhão de adquiridos leva à partilha dos bens do casal, a
divisão dos bens do casal para efeito de atribuir uma meação desses bens ao cônjuge
sobrevivo a título de bens da sua parte da comunhão conjugal, e a outra meação vai
integrar o património hereditário objeto da sucessão por morte. Isto desencadeia a
intervenção de regras de conflitos relativas ao regime de bens e sucessão por morte.
Mas num outro ordenamento, nas mesmas condições de facto, a morte do cônjuge
pode ocasionar efeitos meramente sucessórios ou quanto apenas ao regime de bens.
A mesma situação da vida pode originar efeitos distintos, ou seja, pode
desencadear efeitos materiais diferentes, e ao desencadear efeitos diferentes
pode desencadear efeitos conflituais diferentes. Olhando apenas à situação de
facto, que morreu uma pessoa, não conseguimos identificar qual é a norma de conflitos
aplicável, porque os diferentes conceitos quadro têm que se reportar necessariamente
não a situações da vida, desprovidas de valoração jurídica, mas realidades
normativas. Os conceitos quadro têm necessariamente que se reportar a
realidades normativas.

2) O conceito-quadro reporta-se a realidades normativas: Ou seja, quando a regra de


conflitos do Regulamento Roma I estabelece determinadas regras quanto à lei
aplicável ao contrato celebrado com consumidores, esse conceito-quadro contrato de
consumo tem que ser reportado a normas materiais que deem resposta a essa ideia
de contratos de consumo e não a outras normas materiais que regulam os contratos
em geral quando existem normas específicas para os contratos de consumo. Isto
significa que os conceitos-quadros não têm como objeto puras situações da vida
ou realidades de facto, ao contrário do que acontece com as normas materiais.

As normas materiais, em geral, essas sim reportam-se às situações da vida. As normas


do Código de Trabalho aplicam-se às situações da vida que elas qualificam como
contrato de trabalho. As normas do Código Civil sobre responsabilidade civil, aplicam-
se às situações da vida atinentes a responsabilidade civil, mediante a subsunção dessas
realidades da vida ao conceito de responsabilidade civil previsto no Código Civil. Mas
isso que acontece no Direito material, a recondução dos factos a uma previsão
normativa, não se reproduz sem mais para o campo do direito de conflitos. No
campo do Direito de Conflitos o que desencadeia a intervenção da norma de conflitos
não é um puro facto da vida, mas sim a circunstância de que perante uma situação
plurilocalizada existem diferentes respostas normativas existentes nos diferentes
ordenamentos, e são essas respostas normativas que vão ser reconduzidas ao
conceito quadro da norma de conflitos. São normas materiais que num dado
ordenamento jurídico em contacto com a situação dão resposta a essa situação, que
vão ser reconduzidas ao conceito quadro da norma de conflitos.
P á g i n a | 128

São essas normas materiais que vão ser objeto do conceito quadro da norma de
conflitos. Isso está em linha com a ideia de acordo com o qual a norma de conflitos se
destina a dirimir um conflito entre leis, entre ordenamentos jurídicos, entre as ordens
potencialmente aplicáveis.

Em síntese, por isso, a resposta certa é dizer que o objeto dos conceitos-quadros e da
qualificação é uma realidade normativa, que consiste na norma material ou normas que, em
determinada situação da vida, dariam resposta a essa mesma situação no contexto do
ordenamento jurídico em que essas mesmas normas se inserem.

1) Situação da vida – subsumir às normas materiais do ordenamento jurídico


potencialmente aplicável

2) Subsumir essa norma de conflitos a um conceito quadro

3) Para tal é preciso interpretar o conceito material recorrendo à teleologia da norma


de conflitos

4) Concluir se a norma material cabe no conceito quadro

5) Aplicar a lei que o elemento de conexão seleciona como competente, mas apenas no
que diz respeito ao que o conceito-quadro recortou dessa competência.

Demonstração
Por exemplo, pensando no contrato de C/V celebrado pelo marido relativamente à casa
de morada de família, sem autorização da mulher, sendo que a casa de morada de família é um
bem próprio do marido. Vamos admitir que, na situação a regular, a casa de morada de família se
situa em Espanha e o casal tem nacionalidade portuguesa. E vamos ainda admitir que o marido
vai tentar impugnar a C/V com base no artigo 1682-A/2 do Código Civil. Quid iuris?
O marido considera que o direito português é aplicável, e com base em que norma de
conflitos? Aqui em teoria há três candidatos a ser norma de conflitos relevante neste caso:
artigo 46º, 52º e o Regulamento sobre regime de bens aplicável. Qual das três seria
aplicável? Vamos reler o artigo 1682-A/2: a alienação, oneração, arrendamento ou constituição
de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece sempre do
consentimento de ambos os cônjuges. Esta norma material portuguesa em princípio seria
aplicável a este caso, se o Direito português for competente, ou não? A situação da vida em
causa cabe na previsão material da norma do artigo 1682-A/2? Sim, ou seja, se o Direito
português for o Direito competente então esta norma é aplicável e é necessário o consentimento
de ambos os cônjuges sob pena de anulabilidade do contrato de C/V.

Então vamos ver se aplicamos ou não o Direito português, e para isso teremos que saber
de que regra de conflitos depende a aplicabilidade do artigo, e isso significa qualificarmos a
norma material. O que estamos a ver é a qualificação da norma, subsunção da norma
material nos conceitos-quadros.

Entre os três candidatos que tínhamos a norma do artigo 1682º-A/2, aplicável se o


direito português for competente, a sua aplicação vai depender de que regra de conflitos? Ou
P á g i n a | 129

seja, ela vai qualificar-se como uma regra atinente ao regime de bens, atinente à relação dos
cônjuges ou atinente aos direitos reais? O regime que está estabelecido no artigo 1682-A/2 –
alienação da casa de morada de família – carece sempre do consentimento de ambos os
cônjuges, portanto é um regime que não depende do tipo de regime de bens adotado entre
o casal, não está funcionalmente ligada ao regime de bens, mas é uma norma aplicável a
todos os casos de relações entre cônjuges. Portanto, esta norma não pode ser qualificada na
regra de conflitos relativa ao regime de bens, mas sim na norma de conflitos relativa aos
cônjuges. Porque é que não aplicamos as normas de direitos reais? Porque não está em causa o
direito real em si, mas o consentimento ou não de um dos cônjuges para o outro alienar. Não
está em causa o conjunto de matérias à qual se dirige o artigo 46º – conteúdo de direitos reais,
faculdades que cabem a cada um dos titulares dos direitos reais, nem sequer as vias técnicas
pelas quais os direitos reais se podem transmitir - está sim em causa um aspeto iminentemente
pessoal deste contrato, uma dimensão que tem que ver com o consentimento de determinada
pessoa para a prática de um ato, consentimento esse que funcionalmente está ligado à
circunstância de que essas pessoas estão unidas através do contrato de casamento.
Logo, esta norma material do artigo 1682-A/2 deve ser qualificada como uma
norma relativa às relações entre cônjuges, deve ser qualificada no conceito quadro do
artigo 52º.

Um outro exemplo, vamos pensar que não estamos a tomar em consideração a casa de
morada de família, mas um outro imóvel, portanto, uma situação que em Portugal se resolvia por
aplicação do artigo 1882-A/1. Um cônjuge, aliena sem autorização, um outro imóvel que não a
casa de morada de família. Qual é o regime estabelecido no artigo 1682º-A/1 para estas
situações? Depende do regime de bens. Se o regime for de separação não é necessário o
consentimento, e se for um regime de comunhão já é necessário. Assim, neste caso esta norma
está funcionalmente ligada ao regime de bens. A aplicabilidade daquela norma depende de
ela integrar o Direito competente, não de acordo com o artigo 52º do Código Civil, mas sim de
acordo com o Regulamento relativo aos regimes de bens, em vigor desde 29 de Janeiro de
2019, caso se verifique o seu âmbito de aplicação à situação.

Conflitos de Qualificação

Seguindo o feixe de exemplos que estávamos a dar na demonstração de como qualificar


uma norma material, vamos aproveitar para falar de um problema que o processo de
qualificação supra descrito pode levantar.
Este problema é o conflito de qualificações, e constitui um resultado embaraçoso nas
palavras do Professor Ferrer Correia. Ao qualificar as normas materiais pode ocorrer que um
sistema jurídico S1, designado pela regra de conflitos m, a norma que caberia resolver a questão
controvertida pertence justamente à categoria normativa visada na regra de conflitos, mas o
mesmo acontece noutro sistema jurídico S1, a que se refere a regra de conflitos n, temos o que
chamamos de cúmulo jurídico. Duas normas de conflitos diferentes querem resolver a mesma
situação de facto. O reverso pode acontecer como logo se intui, a ausência de normas de conflitos
aplicáveis, vácuo jurídico.
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Vejamos na linha do exemplo: Um português faleceu, deixando bens imóveis em Londres.


Não deixou testamento, não tem familiar sucessível, assim segundo o Direito material Português
o Estado é seu herdeiro. Neste caso temos duas ordens jurídicas potencialmente aplicáveis125, a
inglesa e a portuguesa. Para saber como vamos resolver o caso precisamos de verificar se é
possível subsumir uma norma material que regule esta situação de facto a alguma regra de
conflitos.126
De acordo com o Direito material português, se alguém morre sem deixar cônjuge,
testamento ou outros herdeiros sucessíveis, o Estado é chamado à sucessão a título de herdeiro
legítimo. Já de acordo com o Direito material inglês, nesta situação, considera-se que aquele
património passou a ser património sem titular ou proprietário, e pode ser ocupado pela coroa
através de um direito da coroa britânica, de apropriação sobre os bens deixados no seu
território, um direito que corresponde à concretização da teoria do domínio iminente do
príncipe. Os bens deixados sem proprietário são objeto de um direito de apropriação pela coroa.
O que importa perceber é que a mesma situação da vida vai desencadear efeitos jurídicos
distintos, embora com alguma semelhança, mas através de mecanismos jurídicos diferentes, e
por isso mesmo essas normas materiais vão ser aplicadas em função de regras de conflitos
diferentes, e isto explica que as normas materiais britânicas sejam qualificadas como normas
relativas aos direitos reais e as normas materiais portuguesas sejam qualificadas como normas
relativas à sucessão por morte.
De que regra de conflitos depende a pretensão do Estado português e de que regra de
conflitos depende a pretensão da coroa britânica? Quanto à norma material do Estado
português, seria o artigo 62º do Código Civil ou o Regulamento em matéria sucessória.127 A
norma portuguesa que atribui um direito sucessório ao Estado é uma norma material que se
subsume como uma norma sucessória para os efeitos do Regulamento em matéria sucessória.
Para aplicarmos a norma do Código Civil português que atribui ao Estado um direito sucessório,
precisamos de saber, em situação plurilocalizada, de que regra de conflitos depende a aplicação
da lei portuguesa. Quanto à norma britânica, atribui um direito à coroa britânica de apropriação
dos bens sem dono, deixados no território britânico. Esta regra não é sucessória porque esta
norma existe para todos os bens abandonados em território britânico. Assim, a norma não está
funcionalizada a uma sucessão, não podemos subsumir a norma material inglesa ao
conceito quadro sucessório, mas pela regra do artigo 46º, porque se estamos a falar da
propriedade de um imóvel, mesmo que não haja regra idêntica no ordenamento português, o
direito de apropriação dos bens pela coroa tem características que o aproximam dos direitos

125Quando temos uma situação internacional, plurilocalizada, situação essa que implica um conflito de leis
que tem que ser resolvido, temos de tomar em consideração que os ordenamentos em contacto com a
situação são potencialmente aplicáveis, e temos que caminhar por tentativas. Temos de, com base
no princípio da não transatividade – dimensão positiva – mas também com base no princípio da
paridade de tratamento, saber de que regra de conflitos vai depender a aplicabilidade das normas
materiais de cada um dos ordenamentos potencialmente aplicáveis. Depois, para cada uma das
hipóteses, temos que perceber para onde aponta a lei de conflitos.
Se temos os ordenamentos jurídicos 1, 2 e 3, temos que qualificar as normas materiais que em cada um
dos ordenamentos dão resposta à situação a resolver.
126Norma de conflitos do DIP português claro, já o dissemos, mas as únicas regras de conflitos que
seguimos são por via de regra as portuguesas, que incluem os regulamentos europeus claro.
127E vamos admitir que o autor da sucessão tinha escolhido, seguindo o Regulamento em Matéria
Sucessória a lei portuguesa, ou, em alternativa, que residia habitualmente em Portugal, caso em que a lei
supletivamente aplicável era a portuguesa, como lei da última residência habitual do de cuius.
P á g i n a | 131

reais, e portanto a aplicabilidade da lei britânica deve estar dependente da competência da lei
britânica. A consequência da norma de conflitos do artigo 46º é a aplicação da lei da situação
imóvel, logo, a lei britânica. Temos um problema. A norma de conflitos do Regulamento aponta
para o direito português, enquanto o artigo 46º aponta para a lei britânica. São dois
ordenamentos conflituantemente128 aplicáveis.
Estamos perante um conflito positivo de qualificações, também chamado de
cúmulo jurídico. Ou seja, por intermédio da atuação de duas normas de conflitos convocadas a
partir da qualificação de duas normas materiais provenientes de ordenamentos distintos, temos
a consequência de ter dois ordenamentos aparentemente aplicáveis, um a título sucessório e
outro a título jurídico-real.

Normalmente, não temos estas diferentes qualificações, isto é, em termos


estatísticos, na maior parte dos casos, as normas dos diferentes ordenamentos jurídicos são
qualificáveis na mesma regra de conflitos do foro, ou seja, a sua aplicabilidade depende do
mesmo conceito quadro, mas, por vezes, isto não acontece, a situação pode ser mais complexa.
Existem diferentes famílias jurídicas e diferentes tradições jurídico-culturais e, por isso, temos
também diferentes configurações pelos diferentes institutos que dão tutela a certos interesses.
Assim temos, por exemplo, uma clivagem muito grande entre os sistemas da família germânica,
por um lado, e os sistemas de common law, por outro lado; temos também clivagens entre os
Direitos dos países da União Europeia que sofrem de uma forte influência da UE através de
diretivas e de regulamentos por referência por exemplo ao Direito dos Estados Unidos da
América; temos ordenamentos jurídicos inspirados em ordenamentos diferentes e isso tudo
conduz não apenas a diferentes soluções para os problemas jurídicos, mas também a diferentes
modos de colocar as questões. Reparem, se pensarem no exemplo da sucessão que há pouco
vimos, a solução propriamente dita, prática, dada pelo Direito Britânico e pelo Direito Português
não é muito diferente, ou seja, a consequência da aplicação do Direito Britânico é a apropriação
pela Coroa Britânica, ou seja, pelo Estado, e a consequência da aplicação do Direito Português é a
aquisição pelo Estado Português – a solução em termos práticos acaba por não ser muito
diferente, mas o modo de colocar o problema é diferente – num caso, ele é colocado através do
instituto sucessório, e noutro caso, é colocado a partir do instituto do direito de apropriação pela
Coroa. Mesmo que o Reino Unido estivesse vinculado pelo Regulamento, o problema
mantinha-se, porque este pressupõe normas sucessórias e a norma inglesa
potencialmente aplicável não era de matéria sucessória, como vimos. O Direito material
Britânico não entende que este problema seja sucessório, e por isso o nosso DIP vai subsumir
essa norma ao 46º. No Direito material Português se morre uma pessoa e deixa património, esta
é uma questão necessariamente sucessória porque ou há beneficiários de uma sucessão
voluntária através de testamento ou pacto sucessório, ou há herdeiros legítimos do de cuiús, ou,
em última análise, o Estado é sucessor. Mas isto não é assim necessariamente, o Estado tem toda
a legitimidade para entender que se não existem determinadas pessoas, o destinatário daquele
património é uma determinada entidade, pode ser o próprio Estado, não como sucessora, ou
como herdeiro, mas sim a outro título. Na nossa cabeça, isto é uma questão sucessória, razão
pela qual o Regulamento teria de ser aplicável, mas não é necessariamente uma questão
sucessória, é-o se o Direito Português for aplicável, mas não o é se for o Direito Britânico.

E aqui note-se: são os dois ordenamentos conflitualmente aplicáveis pela regras de conflitos do
128

DIP português. São essas que usámos no percurso que fizemos até agora.
P á g i n a | 132

O aspeto fundamental da qualificação é a intermediação obrigatória das normas


materiais entre a situação em causa e as regras de conflitos – isto releva quando olhamos ao
âmbito material de aplicação dos Regulamentos, por exemplo, quando, no Roma I, lemos
obrigações que decorrem de relações de família, uma obrigação contratual define-se em função
de uma determinada estrutura, ou seja, temos uma relação jurídica fundada num contrato do
qual nascem obrigações, mas esta estrutura caberia como uma luva, por exemplo, às relações
entre os cônjuges, do casamento, que é um contrato, decorrem obrigações que nascem do
contrato, são obrigações contratuais, todavia, o Regulamento exclui do seu âmbito de aplicação
as obrigações resultantes de relações de família porque essas estão funcionalmente ligadas a
essa instituição familiar. O mesmo acontece aqui, ou seja, o Regulamento em matéria sucessória
aplica-se não a todos os casos em que por morte de uma pessoa, outra pessoa adquire o direito a
esses bens, mas apenas àqueles em que em o direito que pertencia à pessoa falecida se transmite
por via hereditária à outra pessoa - aqueles regimes que funcionalmente não estão ligados à
instituição sucessória, estão excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento em matéria
sucessória e esse regime que atribui um direito de apropriação da propriedade pela Coroa não é
um regime sucessório porque se aplica independentemente de ter havido a morte de uma coisa,
além de estar em causa uma aquisição originária, e não uma aquisição derivada, como ocorreria
por força do direito sucessório. Se se tratasse de uma sucessão, aspetos ligados ao conteúdo
desse direito, se houvesse ónus reais, por exemplo, transmitir-se-iam para o sucessível, o que
não acontece.

Chamar a atenção para algo muito importante: a diferença de qualificação não


implica sempre um conflito. Exemplo: A promessa de casamento é um contrato pelo qual os
esposados prometem casar um com o outro. Vamos admitir que dois portugueses residentes
habitualmente em França, fizeram essa promessa, e um deles quebra, sendo que o outro vem
propor em Portugal uma ação destinada à indemnização pelos danos sofridos, sendo que
entende que esses danos incluem as despesas feitas com vista à cerimónia do casamento, e não
apenas isso, mas também uma indemnização pelos danos não patrimoniais. O noivo, A, é a
pessoa abandonada.
O Direito francês não regula especificamente a promessa de casamento. Pelo contrário, o
Direito português regula a promessa de casamento, e regula-a. Se relermos os artigos
portugueses referentes à promessa de casamento, há uma obrigação por despesas efetuadas em
razão do casamento, mas não há possibilidade de pedir uma indemnização por danos não
patrimoniais. Há uma preocupação do legislador em limitar a responsabilidade para tutelar a
liberdade em casar. A promessa de casamento tem efeitos limitados, para tutela da liberdade de
casar. Assim, as normas portuguesas devem ser aplicadas em função de que regra de conflitos?
Temos várias hipóteses: regra de conflitos quanto às obrigações contratuais, ou relações
familiares ou responsabilidade civil extracontratual. Onde encaixamos? Se forem relações
familiares? Pode ser, porque é um ato estritamente pessoal que o legislador não quer deixar
limitado em razão da responsabilidade. É uma responsabilidade diferente. Mas a relação destes
prometidos não é uma relação familiar, há um problema? Não, porque o conceito quadro tem
que se interpretar à luz da sua ratio, e não do direito material do foro. Este contrato de promessa
só é regulado assim para tutelar as relações familiares, e o regime não se subsume a nenhuma
das responsabilidades pela natureza muito pessoal do ato de casar. É em função de razões
jurídico-familiares que o regime é traçado daquela maneira. A promessa de casamento, por
muito que não seja expressamente fonte de relações jurídico-familiares, não pode deixar de ser
qualificada como tal, perante a regra de conflitos do artigo 25º. Se assim for, a lei
P á g i n a | 133

portuguesa é aplicável ou não? Sim, por se tratar da lei pessoal dos contraentes – lei da
nacionalidade.
Mas temos agora que olhar ao ordenamento francês. Aqui não há norma equivalente às
normas portuguesas. Para o direito francês pode haver aqui um direito de indemnização nos
termos gerais da responsabilidade civil extra-contratual. O direito francês permite uma
indemnização nos termos gerais, por violação do direito alheio. Aí, não estaríamos a tutelar a
família. A norma de conflitos a aplicar seria a norma extracontratual do Regulamento Roma
II. Esta diz nos que a consequência é a aplicação da lei do local da prática do principal facto
lesivo ou a lei da residência comum entre o lesante e o lesado.
Assim: a regra de conflitos interpretando a norma material portuguesa diz nos que
se aplica a lei portuguesa, já as normas materiais francesas subsumem-se a uma norma de
conflitos que diz que a lei francesa não é aplicável. Apesar das diferentes qualificações não
há conflito, aplica-se ao caso a lei portuguesa.

A diferente natureza das normas materiais potencialmente aplicáveis é condição


necessária, mas não suficiente de um conflito de qualificações

Conclui-se que as situações de conflitos são excecionais. Não basta existirem


diferentes qualificações para existirem conflitos de qualificações – pode haver uma única
ordem jurídica competente em função de duas regras diferentes, ou pode haver duas
qualificações, mas uma delas remete para terceiro ordenamento que não é aplicável em
razão da transatividade.129
Assim, pode não haver conflito por várias razões podemos ter normas de conflitos a
remeter para o mesmo ordenamento jurídico, ou mesmo que não remetam para o mesmo
ordenamento jurídico pode ser apenas um deles mandado aplicar pelas normas de conflitos
pertinentes, isto é, há duas qualificações mas uma única lei aplicável - não por força do
facto de ambas as normas de conflitos remeterem para ela - mas pelo facto de a norma de
conflitos poder remeter para um terceiro ordenamento jurídico130

129 Se não tiverem entendido este aspeto fundamental: que só há conflito quando pela qualificação é
mandada aplicar dois ordenamentos jurídicos diferentes e que tenham conexão com o caso,
recomendamos vivamente a ver a secção dos casos práticos deste caderno onde está a correção do teste
feito no nosso ano letivo que é sobre um caso prático de qualificação. A resolução é feita pelo
professor Barreto Xavier.
130 Assim se por exemplo neste caso de promessa de casamento a lei francesa remete-se para a lei italiana,
também esta não seria aplicável, por força do Princípio da Transitividade. Admitamos a existência de um
terceiro ordenamento jurídico que considerava que a abertura dos esponsais era fonte de
responsabilidade contratual. Os sujeitos em causa são portugueses, romperam-se esponsais em Itália onde
se considera haver responsabilidade contratual, e um reside habitualmente em França e outro reside
habitualmente em Itália. A ruptura deu-se em Itália. Por hipótese, escolheram como aplicável ao contrato a
lei francesa. A lei portuguesa seria aplicável pelo artigo 25º + 31º C.C. A lei francesa qualifica-se como
norma relativa à responsabilidade civil extracontratual mas não é chamada a aplicar-se pela regra de
conflitos em matéria de responsabilidade civil extracontratual. A lei civil italiana refere-se à
responsabilidade civil contratual não é aplicável porque nessa matéria se aplica a lei francesa. Aqui temos
que apenas se aplica a lei portuguesa, não temos conflito de qualificações, apesar de termos diferentes
qualificações das normas portuguesas, italianas e francesas. Porque é que não se aplica a lei francesa?
P á g i n a | 134

Cúmulo Jurídico
Entendido que está o conceito de conflito, vamos agora analisar a resolução para a sua
vertente positiva, isto é, o cúmulo jurídico e o seu problema temos de encontrar soluções para
resolver o mesmo. A solução tanto para o cúmulo como para o vácuo tem deve buscar-se no
plano próprio do DIP.
Ferrer Correia entende que as situações de cúmulo devem ser resolvidas estabelecendo
uma hierarquia entre qualificações conflituantes. Assim, apesar de sacrificarmos de uma
regra de conflitos e consequência por ela indicada, mas faremos prevalecer o interesse das
partes que é o que mais conta para o DIP, e assim salvaguardamos o espírito do sistema. Uma
nota indicativa é que os critérios não estão escritos na lei, há como que uma lacuna no que
toca ao modo de resolução da questão, e esta resolução há de obter-se por intermédio do
próprio espírito do Direito Internacional Privado, por intermédio dos seus princípios
fundamentais.

Assim, no exemplo concreto que demos da morte do cidadão com bens em Inglaterra,
prevalência tem que ser dada à qualificação real em sacrifício da sucessória, de acordo com o
Professor Barreto Xavier, pela efetividade das decisões judiciais. Dificilmente a coroa
britânica aceitaria a pretensão do Estado português em assumir a posição de herdeiro do
cidadão português que deixa o seu património no Reino Unido. Neste caso, o foi o princípio da
efetividade das decisões judiciais a conduzir à aplicação do Direito Britânico ignorando a
regra de conflitos sucessória e escolhendo a regra conflitual sobre os direito real português.

Entre a aplicação da regra de conflitos validade substancial e a validade formal,


deve prevalecer a da validade substancial, porque há um princípio que vem do DIP que é a
prevalência da substância quanto à forma. Os interesses tutelados pela norma relativa à
forma não são tão relevantes como a regra de conflitos em matéria de substância. Claro que
depois podíamos suscitar a questão da ordem pública internacional: duas pessoas mesmo que
nacionais de um país que não reconhece a validade do casamento, se se casaram legalmente,
podem considerar-se casadas à luz do Direito português. Mas este problema é posterior ao
problema da qualificação.

Quando tivermos um conflito entre a lei aplicável a título de responsabilidade familiar e


outra a título da responsabilidade civil, deve prevalecer a familiar, porque regula
especificamente a promessa.

Há ainda uma expressão de uma ideia de especialidade. Quando duas normas


concorrem para a mesma situação, prevalece a norma especial sobre a geral. Ou seja, a norma
que, através das características da previsão, descreve de forma mais adequada e pormenorizada
relativamente à norma geral. Essa é uma diretriz importante no concurso de normas e no
conflito de qualificações. Essa pode ser vista ao nível micro entre duas normas – regime de bens

Porque as normas materiais francesas qualificam-se como normas relativas à responsabilidade civil
extracontratual mas nessa matéria, não havendo a mesma residência habitual, aplica-se a lei do país onde
tem lugar a prática lesiva - Itália. Admitindo que a lei italiana se qualifica como norma atinente à
responsabilidade contratual mas quando celebraram promessa de casamento, até por escrito, escolhem a
lei francesa como aplicável à problemática da responsabilidade emergente do contrato de promessa de
casamento. Portanto, a lei italiana não pode ser aplicável a título de lei aplicável ao contrato, porque eles
escolheram a lei francesa. A lei italiana qualifica-se numa regra de conflitos que não remete para a lei
italiana, remete para a lei francesa. A lei francesa não se aplica porque se radica numa regra de conflitos
que não remete para o direito francês. A lei portuguesa pode ser aplicada porque as normas em que se
qualifica artigo 25º e 31º C.C. - apontam para a sua aplicabilidade.
P á g i n a | 135

vs relações entre cônjuges – mas também vista na relação entre ramos do Direito – entre Direito
das Obrigações vs Direito da Família.

Devemos ainda ter como prevalência o direito institucional (Sucessões e Família)


sobre direito comum (Obrigações e Reais), sendo que no caso dos Reais podemos ter o
problema de ter que equacionar a eficácia das soluções.

Entre a qualificação real e obrigacional deve prevalecer a qualificação real, porque


aqui temos que entrar em linha de conta com a ideia que há uma ligação mais estreita entre a
coisa e o seu território do que as que fundamentam a aplicabilidade da lei em matéria de
obrigações, e isso tem a consequência da ideia da efetividade das decisões, e portanto, entre as
duas qualificações, deve prevalecer a real. Em geral, no confronto entre qualificação sucessória e
real, temos duas forças em sentido oposto, porque por um lado a qualificação institucional131
prevaleceria, mas, em muitos casos, fazer isso pode fazer perigar a eficácia da decisão. Se
fizéssemos prevalecer a qualificação sucessória, corríamos o risco de a sentença não ser
reconhecida no país onde o imóvel se coloca. Assim, entre uma qualificação institucional e
uma comum, deveríamos fazer prevalecer a institucional, mas há casos excecionais,
nomeadamente por força do princípio da efetividade das decisões, que podem fazer
prevalecer a qualificação comum.

Assim, a hierarquia deverá ser:

• Normas e Direitos especiais prevalecem sobre normas gerais;


• Eficácia das decisões proferidas;
• Sobreposição do Direito institucional sobre o Direito comum – Sucessões +
Família versus Obrigações + Reais;
• Prevalência das normas sobre substância, em vez das normas sobre forma

Vácuo Jurídico
O outro problema que pode surgir da diferente qualificação é um conflito negativo de
qualificações, em que, qualificando, nenhuma norma material do OJs aplicáveis se subsume ao
conceito quadro.

Como é que uma situação destas pode ocorrer? Vejamos um exemplo: por hipótese
temos um cidadão do Reino Unido, residente habitualmente em Londres e que morreu deixando
património em Portugal, intestado e sem filhos, irmãos ou outros herdeiros. As normas materiais
Portuguesas seriam as normas que atribuem ao Estado um Direito hereditário, estamos por isso
em relação/matéria sucessória e temos de subsumir ao conceito-quadro das normas de conflitos
do DIP português. Esta norma material vai ser subsumida ou ao artigo 62º do Código Civil, caso

131A qualificação real atende à natureza do direito em causa – o direito real em geral é um direito sobre
determinada coisa, e esse direito tem determinadas características que, em geral, são reconhecidas aos
direitos reais: inerência, sequela, publicidade, etc. Tudo isto são características estruturais. Pelo contrário,
o Direito das Sucessões, independentemente da natureza dos direitos que são objeto da sucessão, este
complexo de normas gira todo em torno da instituição sucessória, ou seja, da transmissão patrimonial que
se estabelece por intermédio do falecimento de determinada pessoa. Assim, há uma instituição, como no
Direito da Família, ao contrário das qualificações estruturais.
P á g i n a | 136

a morte tenha sido antes de 2015132 ou então as normas do Regulamento em matéria


sucessória. No primeiro caso o 62º tem como consequência a lei da nacionalidade do autor
da sucessão — será a lei britânica a solucionar a questão. No caso do Regulamento será a lei da
última residência habitual, no caso de não ter havido escolha de lei aplicável — também será a
lei britânica. Ou seja, as duas normas de conflitos a que possivelmente podíamos subsumir a
norma material portuguesa remetem para a lei britânica.
Ora a norma material inglesa qualifica-se como norma relativa aos direitos reais, logo
subsume-se à regra de conflitos do artigo 46º do Código Civil133. No entanto esta é também
uma norma espacialmente autolimitada, apenas quer aplicar-se aos imóveis abandonados em
território inglês como se trata de um imóvel situado fora do Reino Unido, esta norma
recusa a sua própria aplicação – não faz muito sentido que a Coroa se arrogue de um direito de
se apropriar de bens situados fora do seu território134. Não existia nenhuma norma inglesa
para resolver a situação.
Não sendo aplicável a norma inglesa não teríamos qualquer espécie de solução
material porque não há tutela sucessória nesses casos. A lei do Reino Unido não seria
aplicável, nem porque não é a lei competente em matéria de direitos reais e também porque a
norma material não queria ser aplicada por ser espacialmente autolimitada. Por seu turno, a
norma portuguesa também não é mandada aplicar pelas normas de conflitos, que mandam
aplicar a lei inglesa.
Assim, temos um conflito negativo de qualificações, também designado por vácuo
jurídico, se não arranjarmos solução a situação ficaria por resolver.

Aqui não temos nenhuma norma a aplicar, logo não conseguimos usar o método da
hierarquia – não há nada para hierarquizar!135
A solução passa pelo mecanismo da adaptação, que é um instituto que o DIP adotou e
que significa que em casos deste tipo, em que não há uma solução, o intérprete e aplicador do
Direito tem que criar uma solução, e essa solução pode ser, a de considerar que o Estado
português tem um direito de apropriação sobre os bens deixados no seu território, ou, pode ser
que o Estado português tem um direito de adquirir por via sucessória os bens deixados no seu
território sem dono, ainda que o direito português não seja o direito competente em geral em
matéria sucessória.
O objetivo é tomar em consideração que há uma lacuna e temos que a integrar por
uma solução que não seja repelida pelas duas ordens jurídicas, nas suas normas de
conflitos, em presença. Esta solução não é segura, mas é este o melhor caminho.

132 Âmbito temporal do Regulamento em Matéria Sucessória que veio derrogar o 62º.
133Decorre da norma inglesa que existe um direito de apropriação pela Coroa Britânica dos bens deixados
ao abandono no seu território, sejam porque razão for. Logo não é uma questão de direito sucessório, mas
sim de direito real.
134Quando olhamos ao conteúdo da norma inglesa vemos que o que decorre dessa norma é um direito de
apropriação da coroa aos bens deixados no seu território, uma vez que a norma está relacionada com a
ideia de que o reino é o “domínio do rei”.
135 Neste caso há ainda outra coisa a dizer: se o problema está a ser suscitado perante tribunais
portugueses e os imóveis estão em Portugal, o problema da nossa decisão não se coloca. A decisão que os
tribunais portugueses tomarem vai sempre ser aceite em termos de efetividade dos tribunais. Pode é ser
mais ou menos injusta olhando depois aos princípios e à justiça própria do DIP. Mas há uma conexão mais
estreita com o nosso Estado e não com o Estado inglês.
P á g i n a | 137

Vejamos outro exemplo: Um contrato de C/V, sobre um bem imóvel situado na


Alemanha. O contrato de C/V entre um comprador alemão (A), e um vendedor português (P). A
lei escolhida para regular o contrato é a lei portuguesa. O contrato foi celebrado, mas o vendedor
recusa-se a entregar o imóvel, porque entende que não existe, por força da lei alemã, uma
obrigação de entregar o imóvel, porque para a Lei alemã o direito real não se transmite por
mero efeito do contrato. De acordo com o Direito português o direito real transmite-se por
mero efeito do contrato salvo se outra coisa for estipulada pelas partes. Pelo contrário, na
Alemanha, o direito real não se transfere por mero efeito do contrato, nasce apenas uma
obrigação de transmitir a propriedade da coisa, ou seja, do contrato de C/V o adquirente tem um
mero direito a adquirir a propriedade e não tem a propriedade. Neste contrato, o direito real
transmitiu-se ou não? Como o imóvel está situado em Portugal, qual é a lei aplicável? A norma do
Código Civil alemão que determina que o direito real não se transmite por mero efeito do
contrato, é uma norma qualificável como relativa a direitos reais, no artigo 46º. O artigo 46º
remete para o ordenamento alemão uma vez que é la que o imóvel se situa.
A resposta é o direito real não se transmitiu. Agora, e o comprador, tem uma obrigação
de transmitir a propriedade da coisa? A lei aplicável às obrigações é a lei portuguesa, foi a lei
escolhida, Roma I, mas não manda transmitir a propriedade da coisa, porque as normas
portuguesas que regulam o contrato de compra e venda pressupõem que a propriedade já
se transmitiu por mero efeito do contrato – não contêm nenhuma obrigação de transmitir
a propriedade porque presumem que esta já se transmitiu por mero efeito do contrato136.
Qual é a situação que temos? O comprador comprou, pagou, mas nem adquiriu o direito real nem
tem o direito a adquirir o direito real. Não faz sentido. Temos um conflito negativo de
qualificações, ou seja, temos que, perante a mesma situação da vida, nós não temos
nenhuma norma aplicável que permita que o adquirente venha a adquirir o direito de
propriedade: nem por força do contrato nem por força obrigacional.
Porque é que fomos ver a lei alemã? Porque o direito português foi escolhido, mas isso
pressupõe uma qualificação obrigacional. A base do DIP é de especialização. Quando a regra de
conflitos remete para determinado Direito, não remete para resolver todas as situações que
resultam da situação em análise, mas apenas para as normas que são subsumíveis do conceito
quadro da regra de conflitos de que partimos. Ou seja, a lei aplicável em matéria de
obrigações contratuais é a escolhida pelas partes, mas essa não rege obrigatoriamente os
efeitos reais, que são regidos pelo artigo 46º, no artigo 1º o Regulamento Roma I
estabelece que se aplica às obrigações contratuais, mas não aos direitos reais que resultam
em geral.

Há duas soluções alternativas para resolver este conflito negativo: ou se entende que o
direito real já se transmitiu, ou que há uma obrigação de transmissão da parte do vendedor.
Aqui, a adaptação que deve haver é aquela que no fundo tenha menos resistências aos
dois sistemas. Considerar que o direito real já se transmitiu é uma solução repelida claramente
pelo direito alemão, mas considerar que há uma obrigação de transmissão não é repelida,
apenas não estava consagrada porque o direito português assumiu que o contrato de C/V tinha
tido por efeito a transmissão automática da propriedade. Assim, faz-se surgir na esfera de P
uma obrigação de transmitir a propriedade da coisa, e desta maneira temos uma solução
material que é harmónica com o espírito de ambos os sistemas.

136 A transmissão de propriedade não cabe no conceito “obrigações contratuais” do Roma I.


P á g i n a | 138

O raciocínio é sempre o mesmo: quais são os ordenamentos potencialmente aplicáveis,


ver as normas materiais que nos ordenamentos dão resposta à situação e a partir daí ver o que é
aplicável. Começando pela norma portuguesa, essa diz que o A é proprietário. Mas essa norma
não pode ser aplicada, qualifica-se como norma relativa a direitos reais, portanto, o artigo 46º
não remete para o direito português, mas para o alemão. A lei portuguesa não é aplicável porque
a regra de conflitos em matéria de direitos reais é a lei alemã. Vemos então no direito alemão
quais são as normas aplicáveis. Ou seja, nas normas que dão resposta a situação no direito
alemão são normas obrigacionais, têm o seu título no Roma I; que não permite a aplicação da
norma alemã, mas sim para a lei portuguesa. Temos duas leis potencialmente aplicáveis e
nenhuma lei efetivamente competente, aqui temos a definição de conflito negativo de
qualificações. Como não temos nenhuma lei competente, temos que escolher. Aqui, do ponto de
vista técnico, podíamos dizer que não havia solução a apresentar, mas é impossível deixar o
adquirente sem tutela. Por isso, considerar que o direito real se transmitiu era uma violação
para o direito alemão, ao passo que fazer surgir a obrigação no direito português não é
incomportável para o nosso Direito, e por isso temos que fazer surgir essa obrigação.
Assim se aplica o instituto da adaptação. Aquilo que se adapta é uma das normas
materiais, aquela que oferecer menos resistência aos ordenamentos em questão.

Atenção: Nalguns casos a não aplicação de qualquer dos sistemas pode resolver o
problema, o problema pode solucionar-se sem norma. Em alguns casos, de uma aparente não
aplicação de ambos os ordenamentos, pode resultar uma solução da questão. Por exemplo, se a
Lei A proíbe determinado ato, mas é qualificável na regra de conflitos X, e a lei B permite
determinado ato, mas é qualificável na regra de conflitos Y e nenhuma das leis é mandada
aplicar. O que é que resulta? Se não aplicarmos nenhuma lei, é permitido. Se o intérprete
nada fizer o problema está resolvido, a solução é a permissão, sendo que não há
verdadeiro vácuo jurídico.
Mas noutros casos isto não é possível, porque a situação precisa de tutela jurídica ou
porque não é apenas entre escolher proibir ou permitir. Nesses, (como nos exemplos que
demos) é necessário encontrar uma solução, que pode ter que ser criada com mais ou menos
imaginação pelo intérprete para tutelar os interesses de forma que cause um mínimo dano às
duas leis em presença. A base está no instituto da adaptação, que muitas vezes pode ter o seu
papel.

Só se levanta um problema quando exista uma autêntica lacuna de


regulamentação segundo o ponto de vista da lex fori, isto é, quando a
não aplicação das duas leis em princípio aplicáveis produza um resultado
claramente insatisfatório.

Em síntese, são vairas as dificuldades associadas ao mecanismos da


dépaçage. Ao permitir que apenas a aplicação das normas materiais do
ordenamento jurídico designado como competente que integrem o
conceito quadro da regra de conflitos, a solução portuguesa acaba por
conduzir, em certas circunstâncias, aos conflitos de qualificação positivo
e negativo.
P á g i n a | 139

Ordenamentos Plurilegislativos

Ordenamentos Plurilegistlativos são ordenamentos em que subsiste mais do que um


ordenamento. Isto é, quando remetemos para o ordenamento português, o Direito é um único.
Mas quando remetemos para o ordenamento britânico, esse não é único, Há ordenamento inglês
e do País de Gales, um ordenamento escocês, um ordenamento da Irlanda do Norte e ainda um
outro das Ilhas do Canal. Entre estes micro-ordenamentos ou subsistemas temos diferenças
materiais profundas, pelo que não é o mesmo remeter para o ordenamento inglês ou para o
escocês. Nos ordenamentos plurilegislativos coexistem várias Ordens Jurídicas locais.

Isto significa que há diferenças substanciais e importantes do ponto de vista do


Direito Privado entre as várias unidades territoriais. O ordenamento jurídico do Reino
Unido não é unitário, mas plurilegislativo, porque no seu interior coexistem várias Ordens
Jurídicas locais. Enquanto o Direito inglês é por excelência um direito de common law, o direito
escocês tem uma forte influência de civil law, por isso tem uma série de soluções diferentes. Isto
é assim num país como o Reino Unido que do ponto de vista constitucional não é um Estado
Federal, no Reino Unido não há vários Estados federados. São unidades territoriais, têm a sua
autonomia, mas não são Estados.

Há outros países – Estados Soberanos – que estão organizados jurídico-


constitucionalmente pela forma de Estados federais, tendo vários Estados federados. Entre esses
Estados há Estados que integram vários ordenamentos jurídicos locais diferentes em função de
cada um dos Estados, enquanto outros têm uma legislação unitária.
Na Alemanha há um Estado federal, mas os diferentes Estados não têm legislação
em matéria de Direito Privado relevante diferenciada.
Ao contrário do que acontece nos EUA. Nos EUA a cada um dos 50 Estados
corresponde um ordenamento jurídico próprio. Nós temos então que saber o que acontece
quando as nossas normas de conflitos consideram aplicáveis leis de ordenamentos jurídicos
complexos. Temos de saber quando a regra de conflitos remete para a lei da nacionalidade, e
esta é a do UK ou dos USA, qual é o Direito para a qual remetemos.137

Solução do Código Civil

A solução genérica que é dada é esta: primeira solução, é a seguinte e é a que decorre
do artigo 20º do Código Civil. Quando remetemos para um ordenamento jurídico
plurilegislativo temos que perguntar a esse ordenamento como é que resolve esses conflitos
interlocais. Temos que saber como é que os conflitos são resolvidos no interior desse sistema. Se
o Direito do Reino Unido contiver normas que deem resposta a estes conflitos dentro dos
Direitos locais – normas de Direito interlocal, que são normas de conflitos que resolvem
conflitos entre ordens jurídicas do mesmo Estado soberano – são essas que aplicamos
primariamente. O problema é que, em vários destes Estados, esses ordenamentos locais são de
tal modo desenvolvidos ou estanques que não há, ao nível do Estado unitário, uma solução
única. Ou seja, se perguntarmos no Reino Unido como é que se resolvem os conflitos de Direito

137Muitas vezes as pessoas confundem erradamente a Inglaterra com o Reino Unido, o que não pode
acontecer.
P á g i n a | 140

interno local, nós teremos tantas soluções como o número de ordenamentos locais. O problema é
resolvido de uma maneira na Irlanda do Norte, de outra maneira em Inglaterra, etc. Não há um
Direito interlocal unificado, que valha em toda a escala do Reino Unido. Passamos a pergunta ao
Reino Unido, mas o Reino Unido não tem solução.
O artigo 20º tem ainda uma outra solução, que é recorrer ao DIP do Estado soberano em
causa, ao DIP do Reino Unido, porque esse DIP vai poder ser aplicado, por analogia, aos
conflitos de leis interlocais. O problema deste nº2 do artigo 20º é que as normas de DIP podem
ser distintas dentro das mesmas unidades. Isso acontece no Reino Unido. Não só não existem
soluções uniformes para a resolução dos conflitos interlocais, como não há soluções
unificadas pelo que toca ao DIP, o DIP também não é unificado. Num problema de conflitos
de leis numa situação internacional, entre tribunais ingleses e escoceses, a solução pode ser
diferente. Se não há DIP unificado esse também não resolve os conflitos interlocais.
Para estes casos, o legislador português só tem mais uma solução, no artigo 20º nº2 –
residência habitual.

Assim: tentámos aplicar a lei nacional, mas não encontrámos normas de direito
interlocal unificadas; tentámos recorrer ao DIP unificado, mas também não existe, desistimos de
aplicar a lei nacional e passamos a usar a residência habitual.

Divergência Doutrinal
Na doutrina portuguesa temos aqui uma divergência de fundo:

1) Para o professor Ferrer Correia e Baptista Machado, que foram os autores do


anteprojeto que esteve na base das normas de conflitos do Código Civil, a referência
do artigo 20º nº2 é uma norma de conflitos subsidiária, ou seja, a residência
habitual aparece como conexão subsidiária porque não foi possível determinar
a lei nacional a aplicar. Para estes autores, no fundo, isto não é uma solução em si
negativa. Primeiro porque substancialmente a lei de residência habitual exprime uma
conexão estreita entre a pessoa e o Estado, quanto às matérias de estatuto pessoal;
segundo, no próprio Código Civil encontramos várias disposições nas quais a lei da
residência habitual é relevante. Ou seja, todo o capítulo relativo aos conflitos de leis
está desenhado com base na ideia de que, em matéria de estatuto pessoal, há duas leis
legítimas para reger as situações, porque exprimem conexão estreita: nacionalidade e
residência habitual. Há uma preferência pela nacionalidade, mas a lei de residência
habitual também é legítima. Por trás desta defesa está ainda um argumento de ordem
histórica/autoridade: o atual artigo 20º tem na sua base um anteprojeto da autoria
dos professores mencionados. Não têm direito de interpretação autêntica, mas ainda
antes deste anteprojeto havia um anteprojeto anterior, do professor Ferrer Correia,
em que a solução prevista era diferente: na falta dos dois critérios, usava-se a lei da
residência habitual do mesmo Estado, e na sua falta à lei da capital do mesmo Estado
– caso não residisse habitualmente nesse Estado – para evitar deixar de aplicar a lei
nacional. No segundo anteprojeto essa solução foi afastada, e aceitou-se a aplicação
subsidiária da lei de residência. Estes são os argumentos para que se aceite aplicar a
lei de residência habitual subsidiariamente. Esta é uma interpretação declarativa do
artigo 20º nº2.
P á g i n a | 141

2) Mas essa não era a única perspetiva possível, a interpretação declarativa do artigo 20º
nº2 não é a única possível. O professor Lima Pinheiro e a professora Magalhães
Colaço fazem uma interpretação restritiva do artigo 20º, entendendo que a
referência que é feita à lei da residência habitual deve ser entendida não com a
determinação de aplicar uma regra de conflitos de conexão múltipla subsidiária, mas
sim com um efeito meramente instrumental no quadro da determinação da lei
nacional aplicável. Por outras palavras, a residência habitual serviria para encontrar
o Direito local aplicável, no interior do Estado de que o individuo é nacional. Assim,
teríamos que distinguir entre dois tipos de situações:

i. O indivíduo em causa, nacional do Reino Unido, reside habitualmente em


Glasgow. Aí, de acordo com o artigo 20º nº2, a lei aplicável é a lei escocesa.
Para a professora Magalhães Colaço e para o professor Lima Pinheiro, a
aplicação da lei escocesa não é a aplicação da lei de residência, mas ainda
a aplicação da lei nacional do Reino Unido em que a residência
habitual tem um papel instrumental para determinar o ordenamento
local que deve ser aplicável.

ii. E se o indivíduo não reside habitualmente no Estado de que é


nacional? Aqui, Ferrer Correia e Baptista Machado entendem que se aplica
a lei da residência habitual, mas os outros professores não, porque aplicar
a lei da residência era desconsiderar a nacionalidade, tratar alguém que
é nacional de um país como se fosse um apátrida. Isso seria ignorar o
papel primordial que tem a nacionalidade no ordenamento português.
Qual é a consequência disso? O artigo 20º nº2 tem que ser interpretado
restritivamente e só vale para as primeiras hipóteses, só vale quando
o indivíduo reside habitualmente no Estado de onde é nacional, e se
residir fora o critério não serve.

Então qual é o critério que se aplica no caso em que o individuo tem residência habitual
fora do Estado de que é nacional? A resposta que é dada pelos professores é em dois
passos sequentes. O primeiro passo é dizer que da interpretação restritiva do artigo
20º nº2 resulta uma lacuna, porque o sistema não dá resposta direta ao problema. O
segundo é integrar a lacuna: o que temos que fazer é encontrar no interior do Estado
da nacionalidade do individuo o ordenamento jurídico local com a qual ele esteja
mais estritamente conexionado, ou seja, é aplicar a Ordem Jurídica local mais
estritamente conexionada com o interessado.

Vamos concretizar estas teses voltando ao caso do cidadão britânico que demos,
considerando que era residente em Glasgow. O individuo é britânico, morreu e deixou
património em Portugal.
Primeira hipótese, ele morreu tendo como última residência habitual Glasgow. Qual é a
solução para todos os professores mencionados? A aplicação da lei escocesa, mas:

1) para Ferrer Correia e Baptista Machado a aplicação da lei escocesa faz-se pela
aplicação do artigo 20º nº2 em que o elemento de conexão é a residência
habitual diretamente.
P á g i n a | 142

2) Para os outros professores aplica-se o direito escocês porque a residência


habitual concretiza/complementa a lei nacional aplicável.

A solução é igual, mas o pensamento é diferente. Mas vamos dar uma hipótese para
vermos então as diferenças práticas que podem surgir: se o individuo que morreu reside
habitualmente em Portugal então:

1) Ferrer Correia e Baptista Machado: segundo o artigo 20º nº2 aplicado


literalmente, ou seja, da interpretação declarativa, vamos aplicar a lei
portuguesa, porque é a lei da residência habitual.

2) Magalhães Colaço e Lima Pinheiro: isto não pode ser feito, porque isso
significa desistir de aplicar a lei da nacionalidade quando ele tem uma
nacionalidade, tratando-o como se fosse um apátrida – por alusão ao artigo
32º do Código Civil. Assim vamos aplicar a lei Escocesa por força da
integração de lacuna, caso esta seja a mais conexionada com a situação.
Também podia ser considerada a lei portuguesa se os bens fossem imóveis,
caso em que como já estudámos a conexão é maior com o local onde esse
imóveis.

Não há apenas uma divisão na doutrina, a própria jurisprudência dos Tribunais


está também dividida, havendo decisões em ambos os sentidos, embora a orientação
maioritária seja no sentido de aderir à tese do professor Ferrer Correia.

Faremos agora uma exposição mais profunda sobre o debate entre as duas teses.
Os problemas da tese do professor Ferrer Correia e Bapista Machado é que para além de
se despojar do princípio da nacionalidade ainda viola o princípio da igualdade, porque
distingue entre nacionais de um Estado complexo e um Estado não complexo. Quanto ao
primeiro argumento falámos já porque não é tão forte e remetemos para nota de rodapé138.
Quanto segundo argumento da igualdade, também não será muito forte, porque a
desigualdade é potenciada pelo próprio Estado, não é a nossa solução a última culpada, o
Estado é plurilegislativo, pelas suas razões, e aí também trata os cidadãos com leis diferentes.139
Terceiro argumento serão os casos extremos: Um cidadão do Reino Unido, toda a vida

138Apesar do Código Civil preferir sistematicamente este elemento, também utiliza o elemento da
residência e hoje em dia os Regulamentos contam como DIP Português e estes preferem a residência
habitual. Assim o DIP português lida bem com a aceitação do elemento de conexão pela residência ou pelo
menos não há uma incompatibilidade com este, apenas há uma preferência pela nacionalidade.
139Como é que se destrói o problema do princípio da igualdade? Na medida em que remetemos para
diferentes leis nacionais, nessa medida, resultam soluções diferentes. Se é assim do ponto de vista do
Direito material, pode ser assim para o Direito de conflitos. Ou entendemos que a nacionalidade é em si
um critério incompatível com o princípio da igualdade – porque estabelece uma discriminação
fundada na nacionalidade – mas isto é absurdo, porque uma regra de conflitos que usa a nacionalidade
discrimina ou toma em consideração que há diferentes nacionalidades e que essas criam conexão estreita?
A resposta é obvia. Mas se podemos tratar diferentemente, no plano do Direito material, por força das
regras de conflitos, podemos tratar diferentemente nacionais de outros países por força das suas
leis interlocais ou pela sua falta. Por outro lado, defender esse argumento era ignorar que há inúmeras
situações de pessoas com nacionalidade que são regidas pela lei da residência habitual.
P á g i n a | 143

residiu em Londres, aí trabalhou e decidiu reformar-se em Portugal e ir viver para o Algarve


aproveitar a sua reforma e velhice. Morre em terra lusitana. Este senhor não tem nenhuma
ligação forte com o ordenamento português, será que faz sentido aplicar a lei portuguesa à
sucessão? Claro que não, mas as soluções não têm que ser boas para todos os casos. Além
disso podemos fazer a hipótese simétrica: se cidadão britânico tivesse nascido em Portugal,
vivendo cá toda a sua vida, mantendo a sua nacionalidade britânica. Nessa hipótese temos a
hipótese simétrica da anterior. Se aqui adotássemos a doutrina dos professores Lima Pinheiro e
Magalhães Colaço, fazendo uma interpretação restritiva, teríamos de tentar encontrar a
ordem jurídica local no Reino Unido com a qual o indivíduo mantivesse uma conexão
mais estreita, não só teríamos dificuldade em encontrar essa ordem jurídica, como seria
manifestamente desajustado deixar de aplicar neste caso a residência habitual. Era uma
conexão completamente artificial neste caso.
Assim, os argumentos baseados em caso limite, só por si, não são um argumento a
favor ou contra, já que casos limite encontramos em qualquer das hipóteses, a questão que se
coloca é saber se a solução que resulta da interpretação declarativa do artigo 20º nº2 é
uma solução em si mesma desconforme com o espírito do sistema.

Além disso, temos de atender ao artigo 9º do Código Civil, este diz que o intérprete do
direito deverá considerar que o legislador consagrou as soluções mais acertadas. Podemos claro
considerar que uma solução, resulta de um lapso do legislador, ou de falta de clarividência do
mesmo. No entanto neste preceito do artigo 20º em concreto sabemos de facto que lapso do
legislador não foi porque está muito bem explicado quer no anteprojeto, quer depois pela
própria doutrina. Aliás afastar a teses como a de Lima Pinheiro e Magalhães Colaço foi uma
opção deliberada.
Parece-nos assim que a questão que se coloca é verdadeiramente a de saber se o recurso
à lei da residência habitual no DIP português é um recurso excepcional ou normal – se a conexão
residência habitual é em geral considerada uma solução boa ou se é uma solução de ultima ratio,
apenas para evitar a negação de justiça. O que vemos no nosso Código Civil, analisando uma
série de disposições, é algo que corresponde à doutrina dos professores Ferrer Correia e
Baptista Machado, a ideia de acordo com a qual nacionalidade e residência habitual têm, à
partida, legitimidade semelhante. Havia que optar entre as duas e entendeu-se que a
nacionalidade traduzia uma solução preferível no confronto direto, mas isso não significa
que a residência habitual não tenha um título legítimo para ser aplicável, e isso resulta de
disposições como o artigo 31º nº2.

A outra solução também é aceitável, obviamente, até porque são fundadas em bons e
respeitáveis professores. Assim, ficamos com duas soluções, uma totalmente compatível com
a letra da lei e outra restritiva quase corretiva dessa letra.
Para o Professor Luís Barreto Xavier é a tese do professor Ferrer Correia que mais
vale, dizendo que a outra solução também é aceitável,

Uma nota final quanto à doutrina da professora Magalhães Colaço e Lima Pinheiro.
As lacunas integram-se por analogia em primeiro lugar, e estes autores encontram uma
analogia no artigo 28º da Lei da Nacionalidade. Em caso de concurso de nacionalidades, a
nossa lei da nacionalidade distingue duas hipóteses:

1) Há duas nacionalidades, mas uma é portuguesa: aí, só releva em Portugal a


nacionalidade portuguesa para efeitos do nosso Direito;
P á g i n a | 144

2) Se há duas nacionalidades estrangeiras: a nacionalidade do Estado da residência


habitual, ou, se não residir nos Estados de que é nacional, considera que a
nacionalidade relevante é aquele com a qual tem vinculação mais estreita.

Assim, usam esta última norma, por analogia, para integrar a lacuna gerada pelo artigo
20º nº2 parte II.

Outros Elementos de Conexão diferentes da Nacionalidade


Há diferentes aspetos não diretamente resolvidos pelo artigo 20º.
Primeiro, quando a lei portuguesa remete para Estado estrangeiro plurilegislativo
por um elemento de conexão diferente da nacionalidade, por exemplo, residência
habitual ou lugar da situação da coisa. Há duas perspetivas:

i. Lima Pinheiro e Magalhães Colaço: O artigo 20º só vale para os


casos contidos na sua letra. O início do artigo diz logo: “quando em
razão da nacionalidade”, o que quer dizer que se aplica quando
remetemos para ordenamento estrangeiro a título de nacionalidade.
Assim, nos restantes casos, quando remetemos a outro título que não
nacionalidade, o que é que acontece é que temos uma lacuna, o Código
Civil não resolve, e temos que integrar a lacuna por aplicação
analógica do artigo 20º. Ou seja, vamos remeter para o próprio
sistema em causa e é o sistema que, se tiver normas de Direito interlocal
unificadas, que determina a lei aplicável, e, se não tiver, aplicamos as
normas de DIP unificadas. Só se não tiver é que aplicamos a lei da regra
de conflitos que designa um lugar no espaço. Isto vem em primeiro
lugar porque remeter para determinado Estado soberano implica ter
esse Estado como competente para fornecer a resposta quanto aos
conflitos interlocais. Só se o direito interlocal ou DIP unificado não
derem resposta é que por isso vamos para lei da regra de conflitos que
designa um lugar no espaço, para dar hipótese ao Estado de “decidir”
primeiro como recebe a norma. Mas os restantes elementos de conexão
permitem entender a remissão para determinado lugar no espaço,
todas as conexões, que não a nacionalidade, se prendem com uma
localização espacial, que nos permite, por si, encontrar o
subsistema dentro do Ordenamento. Por exemplo, lugar do imóvel,
residência habitual, lugar da celebração, lugar do facto danoso, lugar do
cumprimento do contrato, etc. Quando falamos na residência habitual,
nós podemos entender que a referência que é feita pela norma de
conflitos à residência habitual não é feita para o Estado soberano em
causa, mas para o local onde o indivíduo reside habitualmente

ii. Ferrer Correia e Baptista Machado: Se o legislador apenas se referiu


aos casos em que a referência é feita a título de nacionalidade, então,
nos outros casos, a referência à lei estrangeira é feita diretamente pelo
elemento de conexão da regra de conflitos, ou seja, a lei local. Por
exemplo, o artigo 50º, manda aplicar a lei do lugar da celebração do
casamento. A e B casaram em Las Vegas. De acordo com o artigo 50º,
P á g i n a | 145

não perguntamos aos EUA a regra de conflitos aplicável para


resolver os conflitos interlocais em matéria de forma de
casamento, ou se os EUA têm uma norma unificada de DIP para
resolver; aplicamos diretamente a lei do Estado do Nevada, por ser a
lei para onde remete diretamente a norma de conflitos.

Já de acordo com a primeira perspetiva, a solução seria exatamente a


mesma porque os Estados Unidos da América não têm normas de
Direito interlocal ou normas de Direito Internacional Privado
unificadas, mas, se tivesse, a solução seria distinta. Aqui, o modo como
o ordenamento jurídico reagiria sobre isso só seria relevante em sede
de reenvio, não nesta sede.

Regulamentos

Até aqui estivemos apenas a ver as soluções que o DIP português apresente no seu
Código Civil. No entanto não esquecer o DIP português engloba ainda os Regulamentos
comunitários.

Sendo assim, a hierarquia de fontes tem de ser sempre considerada: O artigo 20º não
se aplica sempre que a remissão para lei estrangeira se obtém não por intermédio das regras de
conflitos do CC, mas sim por intermédio das regras de conflitos dos regulamentos da União
Europeia.?

Roma I e II
Os que contêm regras sobre esta matéria são o Roma I e Roma II porque eles não
preveem o elemento de conexão nacionalidade entre os elementos de conexão disponíveis, a
nacionalidade não é um elemento de conexão relevante nestes regulamentos.
Para o Roma I e Roma II, nos artigos 22º e 25º, respetivamente, remete-se
diretamente para lei da Ordem Jurídica do local para onde o elemento de conexão remeta,
independentemente do elemento de conexão em causa.

Regulamento Matéria Sucessória


Já quanto ao regulamento em matéria sucessória temos o artigo 36º: Neste
Regulamento, no qual a nacionalidade, não sendo o elemento de conexão primariamente
relevante, mas sendo um dos dois elementos relevantes, tendo o seu papel importante, o artigo
36º remete em primeira linha para as normas internas de conflitos de leis desse Estado –
a correta interpretação do artigo deve abranger quer as normas de direito interlocal,
quer as normas de DIP, se nesse Estado forem utilizadas para resolver conflitos
interlocais.
Na ausência de tais regras internas de conflitos de leis há diferentes soluções, consoante
o tipo de referência que é feita, como se pode ver no número 2 do mesmo artigo, se for:
P á g i n a | 146

1) Residência habitual: Lei da unidade territorial em que o falecido tinha a sua


residência habitual no momento do óbito;

2) Nacionalidade: Lei da unidade territorial com a qual o falecido tinha uma


ligação mais estreita;

3) Outros fatores que não sejam fatores de conexão à lei da unidade territorial em
que se encontra o elemento pertinente.

A solução que temos neste regulamento é mais próxima da posição da professora


Magalhães Colaço porque faz referência à ligação mais estreita dentro do Estado de
nacionalidade.

Se houver uma conexão muito mais estreita com a lei de residência habitual?
Temos a norma do artigo 21º que estabelece uma cláusula de exceção, mas essa norma não
faz sentido aplicar porque só se usa a conexão nacionalidade no quadro da matéria sucessória
porque o testador escolheu já que a solução na falta de escolha é a lei da residência habitual, não
fazendo sentido afastar a lei nacional se foi a escolhida pelo testador.
No artigo 36º, quando é dada a solução da lei da unidade territorial com a qual o
falecido tinha a ligação mais estreita, não opera a cláusula de exceção do artigo 21º porque a
lei da nacionalidade só é aplicável de acordo com o Regulamento da matéria sucessória se
for a lei escolhida pelo de cujus e, no caso de escolha, faz sentido que se aplique a lei
escolhida mesmo que possa ser difícil encontrar essa lei, mesmo que houvesse outras
alternativas, ou mesmo que houvesse outra lei com a qual partilhasse uma conexão mais estreita
em abstrato – quando há escolha de lei, o critério decisivo deixa de ser a conexão mais estreita e
passa a ser a vontade das partes.

Roma III
Quanto ao Regulamento Roma III, nos termos do artigo 14º, temos uma solução
semelhante. Se a referência é feita a outro título, considera-se feita diretamente para a lei em
vigor na unidade territorial pertinente, se for uma referência a título da nacionalidade nos
termos da alínea c), aplica-se a lei da unidade territorial escolhida pelas partes, ou, na falta
de escolha, a unidade territorial com a qual o cônjuge ou cônjuges tenham uma ligação
mais estreita.

Ordenamentos Plurilegislativos com Base Pessoal

Ordenamentos jurídicos plurilegislativos de base pessoal e não de base territorial, isto é


há certos ordenamentos jurídicos que são complexos não porque contenham uma diferente
regulamentação em função do território, mas sim porque contêm uma diferente
regulamentação em função das pessoas. Aplicam normas diferentes a categorias diferentes de
pessoas. Por exemplo, o ordenamento jurídico do Estado de Israel, ou, em certos ordenamentos
jurídicos que estabelecem no fundo uma diferente regulamentação em função da religião ou
da pertença a determinada comunidade cultural ou religiosa. Em Israel, é preciso ver se a
P á g i n a | 147

pessoa em causa pertence à comunidade judaica ou à comunidade muçulmana ou a uma outra


comunidade para se aplicar certo tipo de regras. Na Índia acontece a mesma coisa com as castas.

São ordenamentos jurídicos em que há diferente regulamentação que não é


necessariamente uma regulamentação para discriminar – no mau sentido – para retirar direitos
a determinada comunidade e atribuir a outras, o que também não significa que não possa essa
discriminação no sentido negativo do termo. Mas, em termos técnicos, pode ser
simplesmente uma forma de tratar determinadas comunidades culturais e religiosas de
forma adequada às suas tradições.

Código Civil
O que é que acontece, quando remetemos para um ordenamento jurídico deste tipo em
razão da nacionalidade, temos o artigo 20º nº3: Recorrem-se às normas de conflitos
interpessoais do Estado em questão. E se não conseguimos encontrar a lei aplicável com base no
Direito interpessoal aplicável? Se não conseguirmos encontrar uma norma de conflitos
interpessoal que nos dê uma resposta satisfatória? Há duas alternativas:

1) Aplicar o artigo 23º do Código Civil: A conexão subsidiária e aplicarmos a lei da


residência habitual;

2) Dizer que há uma lacuna, não está previsto, e havendo lacuna, aplicar a lei com a
qual o indivíduo se encontra mais estreitamente conexionado, sendo que esta lei
não tem de ser a lei do Estado nacional, aqui não estamos vinculados a isso.

Regulamentos
Os Regulamentos Roma I e II não dizem nada – obviamente, porque não remetem
para a nacionalidade.
O Regulamento em matéria sucessória já diz, no artigo 37º, determina a mesma
solução – recurso ao direito interpessoal – e na sua ausência aplica-se a Ordem com a qual o
falecido tinha uma relação mais estreita.
A mesma solução é plasmada no Regulamento Roma III.

Conflito de Sistemas de DIP

Os conflitos de sistemas surgem quando duas Ordens Jurídicas se consideram como


competentes para regular determinada situação jurídica privada plurilocalizada. Quando essa
situação está resolvida, podemos concluir que a ordem portuguesa é aplicável, ou que uma
ordem estrangeira é aplicável.
Qual é o problema? Temos que perceber se aquela ordem se considera aplicável, e se tal
não acontecer, podemos ter um conflito de sistemas conflituais. Neste caso temo aquilo que
P á g i n a | 148

chamamos um conflito positivo de sistemas.


Por outro lado, o facto de através da escolha de um determinado elemento de conexão, o
legislador procurar que as situações absolutamente internacionais sejam reguladas pela ordem
jurídica que apresenta uma maior proximidade com estas, não significa que o direito assim
identificado se considere ele próprio competente. Neste cenário, se nenhum dos sistemas
jurídicos se considera competente, temos um conflito negativo de sistemas.

Vamos recuar. Por passos. Começar por fazer o ponto da nossa situação no estudo do
DIP: No direito deparamo-nos nas relações privadas internacionais diferentes normas
materiais, diferente regulamentação das situações privadas internacionais através de direito
substantivo que existe em cada Estado. Destas situações, a que chamámos logo no início do
caderno de situações plurilocalizadas/internacionais, surgem os conflitos de leis, nessas
situações contamos com duas ou mais OJ potencialmente aplicáveis. Aqui temos um conflito de
Leis140. Nesta altura do campeonato isto já para nós conhecido de trás para a frente.
Também já sabemos que há grandes esforços de unificação do direito material, esses
esforços ainda não atingiram a eliminação dos conflitos de lei, pelo contrário, há aproximação
designadamente no OJ europeu mas ainda não há uma eliminação das diferenças entre OJ. Por
força do estudo da qualificação, concluímos que da determinação da lei aplicável, através do
sistema que temos, pode verificar-se a ocorrência de, um conflito positivo de qualificações.
Isto é, normas materiais de diversos OJ mandadas aplicar por regras de conflitos do nosso DIP
(do nosso “sistema”) à mesma situação de facto ou então o nosso sistema não aponta designa
nenhuma norma material perante uma situação privada plurilocalizada. A estes conflitos de
qualificações dedicámos um capítulo “Qualficação” onde falámos de onde surgem este
problemas e como resolver os mesmos.

Agora há um problema completamente diferente que pressupõe que as questões


anteriores já estão resolvidas. Por força do nosso direito de conflitos dirimimos o conflito de
leis, eventualmente dirimimos o conflito de qualificações e determinámos a lei competente.
Eventualmente, neste percurso, podemos ter de decidir também se há um problema de
ordenamento plurilegislativos, ou seja, questão de saber se remetemos para certa lei estrangeira
a título de lei da nacionalidade, se é ao direito material dessa lei que nos reportamos, quais os
critérios para chegar à determinação da lei aplicável. Já percorremos este caminho todo e
chegamos a uma de duas conclusões: A lei aplicável é a lei portuguesa; a lei aplicável é uma
lei estrangeira141.
Agora vamos apresentar uma novidade: se a lei aplicável é uma lei estrangeira o
problema não está necessariamente resolvido. Porquê? O sistema que consideramos
aplicável, por força da nossa regra de conflitos, pode não se considerar competente.
Um exemplo rápido fará logo entender ao que nos referimos: A, brasileiro e residente
habitualmente em Portugal, quer casar no Brasil. Se a questão for colocada em Portugal versa
sobre capacidade para contrair casamento, ou capacidade para celebrar um outro contrato.
Nestas matérias, que estão ainda excluídas do âmbito de aplicação dos Regulamentos da UE.
aplicamos a regra de conflitos de fonte interna portuguesa que manda aplicar a lei pessoal,

140Sendo que “Lei” aqui significa ordenamento jurídico/direito e não lei enquanto fonte de direito/ato
legislativo. Lei com letra maiúscula.
141 Aqui mais uma vez lembramos o que dissemos na nota de rodapé anterior.
P á g i n a | 149

sendo que na perspetiva do C.C. português, este se concretiza através do elemento de


conexão nacionalidade. Logo, um cidadão português que quer casar no Brasil, do ponto de
vista do nosso DIP, a lei competente para aferir da capacidade para casar ou celebrar outro
qualquer contrato é a lei nacional, ou seja lei portuguesa. Mas tratando-se de cidadão
brasileiro que quer celebrar contrato, consideramos aplicável a lei da nacionalidade, ou
seja a lei brasileira. Até aqui aplicámos o que já sabemos.
A questão coloca-se no momento seguinte: a aplicação do direito do Brasil. No entanto o
DIP Brasileiro considera aplicável nesta matéria a lei da residência habitual e não a lei da
nacionalidade, o brasileiro vai ver a sua capacidade apreciada pela lei onde tem a sua
residência habitual, se reside habitualmente em Portugal a lei aplicável, do ponto de vista do
DIP brasileiro, seria a lei portuguesa.
Assim, temos uma divergência entre normas de direito de conflitos, a norma de conflitos
portuguesa prefere adotar o elemento de conexão nacionalidade, a lei brasileira prefere mandar
aplicar a lei da residência habitual. Neste caso concreto, para além de termos um conflito de leis
entre o direito material português e brasileiro - podem dizer coisas diversas no tocante à
capacidade do indivíduo, portanto, uma considera o indivíduo incapaz e outro capaz temos
também um conflito de sistemas, sistemas conflituais. O sistema conflitual português remete
para o direito brasileiro, e o sistema conflitual brasileiro remete para o sistema
português. Nenhum sistema se considera aplicável à situação.
Cabe ainda analisar a ideia “inversa”: por exemplo, A, residente habitualmente no Brasil,
mas nacional português, pretende casar no Brasil. Segundo a norma de conflitos portuguesa, a lei
que regula a sua capacidade matrimonial é a portuguesa. Já segundo a norma de conflitos
brasileira, a lei que regula a sua capacidade matrimonial é a brasileira.
Nos dois casos temos um conflito de sistemas conflituais.

1) No primeiro caso em que o direito português


remete para o direito brasileiro e o direito
brasileiro remete para o direito português temos um conflito negativo
sistemas conflituais.

2) No segundo caso em que ambos os Direitos se consideram competentes


temos um conflito positivo de sistemas.

O grande mérito dos regulamentos da UE em matéria de conflitos está em eliminar o


conflito de sistemas no interior do espaço europeu. Na medida em que estes regulamentos se
aplicam aos Estados Membros, dentro desses, independentemente do Estado Membro onde a
questão é suscitada, a solução é sempre a mesma, porque a regra de conflitos, o DIP é
unificado e sendo um sistema único, a regra de conflitos é sempre a mesma, aqui não é
possível haver conflitos de sistemas. Haverá apenas conflitos de sistemas se através de um
Regulamento da UE se manda aplicar uma lei de Estado terceiro ou, nos casos em que é
suscitável, a lei de Estado Membro não participante, e nesse a regra de conflitos é distinta e
manda aplicar a lei de outro sistema.
Assim o conflito de sistemas existe sempre que perante a mesma situação da vida, dois
sistemas que são interessados, na medida em que o seu direito material é potencialmente
aplicável, consideram competente um diferente sistema jurídico. Nalguns casos, esse conflito é
um conflito positivo de sistemas porque ambos os sistemas jurídicos se consideram
competentes. Noutros casos, é negativo porque nenhum desses sistemas se considera
competente.
P á g i n a | 150

A solução mais simples passa por fazer prevalecer o sistema do foro. É ignorar as
regras de conflitos do outro sistema, considerá-las irrelevantes. Há ainda que considere que
devêssemos resolver o conflito de sistemas considerando todos em paridade.
Quanto ao segundo modo de solução, há quem defenda que a paridade é um princípio
fundamental do DIP, e por isso deveria ser a solução. No entanto, por aí não atingiríamos uma
solução, porque colocando as normas jurídicas estrangeiras e as portuguesas no mesmo plano,
não conseguimos escolher quais devem prevalecer. Alguns autores defendem a criação de
um segundo sistema de DIP, um DIP para resolver conflitos entre normas de conflitos; mas
isso implicava a criação de um DIP de segundo grau ou uma comparação entre DIPs, o que
também não é possível ou é impraticável.
O que nos sobra fazer é prevalecer o sistema do foro, o que em princípio não é um
prejuízo total para a paridade, uma vez que as normas de conflitos são inspiradas
exatamente nessa paridade. O princípio da paridade aplica-se aos direitos materiais, mas não
tem o alcance de se aplicar às normas de conflitos. Não é negativo que assim seja, na medida
em que as normas de conflitos já são construídas com base em princípios e valores que
colocam em termos de igualdade e paridade os diferentes OJ, então não há inconveniente
em que à partida prevaleça a norma de conflitos do foro sobre a norma de conflitos estrangeira.
Aqui já estamos a contra-argumentar: devíamos era ignorar o direito de conflitos
estrangeiro. Ignorar o conflito de sistemas pode ter o inconveniente de que continuará a haver
uma divergência quanto à lei aplicável nos países em contacto com a situação. Se continuar a
existir essa divergência, o autor da ação vai ter a possibilidade de escolher onde vai propor essa
mesma ação, vai escolher o fórum em função dos seus interesses, e a outra parte vai ter que
se sujeitar à aplicação do direito de conflitos que foi escolhido pelo autor. Daqui emerge uma
situação de incerteza jurídica porque o réu, numa potencial ação, nunca sabe com o que é que
conta. Está aqui o inconveniente que é ignorar sistematicamente o conflito de sistemas.
Não é por uma ideia de paridade de tratamento entre o sistema de conflitos português e os
estrangeiros, mas por uma ideia de que o DIP se orienta no sentido de diminuir a incerteza
jurídica. Incerteza essa que seria potenciada sempre que as soluções que decorrem da aplicação
do direito num determinado sistema jurídico sejam distintas das que decorrem de órgãos de
aplicação do direito de um país diferente também interessado.

Mas porque é que o conflito de sistemas tem de ser resolvido? Uma pessoa vai a um tribunal, o foro
decide e acabou a questão ou não? Qual é que pode ser o problema de ignorar as normas de
conflitos estrangeiras? Potenciar o forum shopping. Isto é, porque os sistemas vão ter soluções
diferentes, o autor vai selecionar o foro mais favorável à sua pretensão, o que coloca o réu
numa posição de incerteza.

Temos a ideia de que cada Estado tem liberdade de definir se vai ou não ignorar o
conflito de sistemas, mas se ignorar isso pode ter consequências negativas pelo que toca
aos valores fundamentais que o DIP tutela: segurança jurídica. Ou pode ter consequências
negativas a partir de princípios que concretizam esses valores, como o da efectividade
das decisões ou o da harmonia jurídica internacional.
Entre estas duas considerações: por um lado, a margem grande de liberdade dos Estados
para definirem como resolver o conflito de sistemas, por outro lado, uma redução da incerteza
através da tomada em consideração do conflito de sistemas, é que vamos encontrar soluções.
P á g i n a | 151

Conflito Positivo

No DIP português, o conflito positivo de sistemas tem uma solução regra, e depois tem
soluções especiais.

1) Solução regra: Prevalece o sistema português. Se não houver nenhuma solução


especial, o direito português considera-se competente através das suas normas
de conflitos, e se outro OJ estrangeiro também se considera competente através das
suas normas de conflitos, nós vamos fazer prevalecer a norma de conflitos
portuguesa que é o juízo conflitual definido pela nossa norma de conflitos e que, com
respeito ao à paridade de tratamento, considerou aplicável a lei portuguesa.

2) Soluções Especiais:

a) O princípio da maior proximidade: presente no artigo 47º do Código


Civil. Manda aplicar a lei da situação da coisa, ao invés da lei pessoal,
quando a norma de conflitos desse sistema se considere competente.
Assim, a lei pessoal pode considerar-se competente, mas se a lei da
situação do imóvel também se considerar competente, optamos pela
segunda – para favorecer a efetividade da sentença142. Porque é que
esta norma pode não fazer sentido? Porque se a ordem jurídica do lugar
do imóvel reconhecer a sentença, isso é suficiente para que a decisão seja
efetiva, não é necessário alterar a lei competente.

Coloca-se ainda outra questão, porque a solução consagrada pode não ser
suficiente para a eficácia da decisão. Porque se os tribunais do lugar do
imóvel considerarem deter uma competência exclusiva para regular a
situação, a sentença portuguesa não vai ser reconhecida – apesar do
esforço.

A redação inicial do professor Ferrer Correia e do professor Baptista


Machado era mais eficiente, porque acautelava que a alteração do
elemento de conexão só se justificava quando se preservasse a
utilidade da sentença. No entanto, essa parte da norma foi afastada e a
disposição faz hoje menos sentido.

b) Favor negotii: artigo 31º nº2. O nº1 indica-nos - não define - o que é a
lei pessoal. O que define o que é a lei pessoal é o artigo 25º C.C. define-se
em função da matéria que abrange. O artigo 31º nº 1 determina o modo de
concretização da lei pessoal que, em regra, se concretiza através do
elemento de conexão nacionalidade. O artigo 31º nº 2 C.C. estabelece
uma excepção.

142Sendo esta capacidade “especial” em relação à norma geral do artigo 25º C.C. Na última parte o
artigo 47º não faz senão reiterar essa regra geral.
P á g i n a | 152

Os pressupostos para a aplicação do nº2 é estarmos perante uma situação


negocial, um negócio jurídico do estatuto pessoal e ainda que o negócio
jurídico à luz da lei da nacionalidade fosse inválido, e à luz da lei da
residência habitual é válido. O que é que se faz? Altera-se o elemento de
conexão – deixa de ser a nacionalidade e passa a ser a residência habitual
– para preservar a validade do negócio jurídico, para tutelar as
expectativas das partes. Esta exceção, nas palavras do professor Baptista
Machado, consagra o princípio dos direitos adquiridos. Os contraentes
adquiriram certos direitos com base numa lei que se considera
competente, e ao abrigo dessa lei o contrato produziu efeitos nesse país. A
exceção faz sentido, na medida em que permite preservar a validade do
negócio jurídico e os efeitos produzidos, validamente, no lugar de
celebração. Por isso, o relevante é o local da produção dos efeitos, e
não o lugar da celebração em si – o local de produção dos efeitos tem
que ser o da residência habitual, atendendo à ratio da norma.

Para o professor Ferrer Correia, não tem que ser a lei da residência
habitual a considerar-se competente – faz uma interpretação extensiva
-, basta que o negócio jurídico seja celebrado nos termos em que prevê a
lei que é considerada competente pela lei da residência habitual.

Negócio jurídico de estatuto pessoal, pensamos em casamentos,


convenções antenupciais, perfilhações, adopções, … O exemplo mais
óbvio é o do casamento: Um casal de portugueses está emigrado no Brasil
e no Brasil celebrou um casamento. Este casamento, por qualquer razão,
não é considerado válido em Portugal. Ou celebrou convenção antenupcial
em condições que não seria possível celebrar em Portugal. Celebrou
casamento no Brasil, esse produz os seus efeitos normais ao longo do
tempo, as partes estão tranquilas e satisfeitas por aplicação dessa lei. Fará
sentido ao Estado do foro, Estado português, dizer que apesar de aí
residirem habitualmente e ter produzido nesse país os seus efeitos, em
Portugal não é válido? Não. A ideia é que se estes contraentes adquiriram
certos direitos com base numa lei, que não consideramos competente,
mas ela considera-se competente e, ao abrigo dessa lei, este contrato
produziu efectivamente os seus efeitos nesse país. Portanto, há que tutelar
as expectativas que os contraentes depositaram na situação, não apenas
com base no direito da sua residência habitual, mas com base no DIP desse
país, porque se este casal português consultar um advogado brasileiro
nesse país e perguntar se está ou não casado ele dirá que obviamente que
está. Este casamento é válido em face do OJ brasileira, portanto faz sentido
que façamos ceder a norma de conflitos do foro, que faria prevalecer a lei
nacional, para tomar em consideração a norma de conflitos estrangeira
que permite salvaguardar a celebração do negócio e a produção efetiva de
efeitos que este negócio realizou.

De acordo com a ratio legis, o lugar da celebração não é o elemento


decisivo ou fundamental, o que é fundamental é este negócio ter
P á g i n a | 153

produzido os seus efeitos normais no país da residência habitual. E


pode ter produzido os seus efeitos normais nesse país porque:
• O casamento foi nesse país celebrado de acordo com o seu
direito material, ou
• O casamento foi celebrado noutro país mas de acordo com
o direito material da sua residência habitual, ou
• O casamento foi celebrado noutro país de acordo com o
direito material desse outro país mas considerado
competente pela lei da residência habitual, portanto,
também produzindo os seus efeitos no país da residência
habitual.

Assim, verdadeiramente essencial é que a situação se tenha


consolidado no país da residência habitual, é esse o fator decisivo.

A aplicação desta norma a hipóteses que não caibam directamente na sua


letra, podemos interpretar extensivamente porque a ratio legis aponta
para isso. Não se trata verdadeiramente de uma analogia a uma situação
semelhante, é ainda a situação visada pela própria norma. Isto pode ser
discutido, saber se é aplicação analógica ou interpretação extensiva, mas
o essencial é perceber que é o mesmo tipo de tutela que está em causa,
segundo Barreto Xavier é interpretação extensiva porque decorre da
ratio da própria norma, não se aplica o mesmo juízo para uma
situação completamente diferente.

Fora destas hipóteses fazemos prevalecer a regra de conflitos do foro. Ou seja, o


conflito de sistemas, quando não existam soluções especificas desta natureza, é
resolvido através da regra de conflitos do foro. Ainda que haja um sistema jurídico
estrangeiro reivindicando a aplicabilidade do seu direito material isso não é decisivo
ou relevante, aplicar-se-á a norma de conflitos do foro. É preciso um título de
atendibilidade.

Barreto Xavier defende que o título de atendibilidade para considerarmos sistema


jurídicos estrangeiro como competente não tem que ser necessariamente expresso
mas apenas excepcionalmente nos poderá surgir uma situação deste tipo. Agora, se
surge uma situação em que todas as OJ interessadas apontam para a aplicabilidade de
uma ordem jurídica estrangeira que se considera competente, e o direito português se
considera também competente, se há também argumentos ligados à efectividade das
decisões, se há argumentos ligados à tutela do favor negotii fora do artigo 31º nº 2 C.C.,
segundo Barreto Xavier é defensável que se propugne a prevalência da
aplicação do direito estrangeiro mas tem que ser muitíssimo bem argumentado
tendo em conta o sistema de valores e princípios do DIP do foro, porque neste
conflito de sistemas, verdadeiramente, o que há é um conflito de normas de
conflitos. Quando estamos a resolver o conflito de sistemas dando prevalência à
norma de conflitos estrangeira, ainda estamos a fazer aplicação do nosso próprio
sistema de conflitos entendido no seu sentido amplo. Portanto, o artigo 31º nº 2 C.C.
não quer dizer que abdicamos do nosso DIP para abraçar um DIP estrangeiro, é
o próprio DIP português que leva a que abdiquemos da nossa norma de conflitos e não
P á g i n a | 154

do nosso DIP no seu todo, é o DIP que dá prevalência à norma de conflitos estrangeira.
Fora estes casos, aplicamos a norma de conflitos portuguesa, assim resolvendo
o conflito de sistemas.

Há ainda uma hipótese próxima deste conflito de sistemas que tem que ver com as
normas de aplicação imediata estrangeiras. Se tivermos uma NAI de país que não é o da lex
causae ou o da lex fori e que se quer aplicar também, temos um conflito entre o sistema
conflitual a que pertence a NAI desse terceiro país e o nosso sistema conflitual. Naqueles
casos em que damos prevalência à NAI desse terceiro Estado estamos a dizer que essa norma de
conflitos unilateral ad hoc que manda aplicar a NAI prevalece sobre a norma de conflitos geral
vigente no foro. É uma expressão de uma solução especial para um conflito de sistemas
ainda que seja sui generis já que opõe uma norma de conflitos bilateral do foro, a uma
norma de conflitos unilateral ad hoc do país estrangeiro.

Conflito Negativo

Este conflito de sistemas acontece quando nenhum dos ordenamentos considera a sua lei
material aplicável. Analisando as normas e conflitos dos sistemas interessados encontramos
uma divergência nessas normas e dessa divergência resulta o facto de que nem a ordem
jurídica A nem a B se reputa como competente. As normas de conflitos das duas ordens
jurídicas mandam aplicar uma ordem jurídica que não aquela a que pertencem

Evidentemente que nos interessa resolver o conflito de sistemas que se suscitem perante
órgãos de aplicação do Direito em Portugal, e por isso temos que saber como é que tribunais
portugueses – e outros órgãos de aplicação do Direito – resolvem a questão.
Como é que a questão se coloca da perspetiva da aplicação do Direito em Portugal?
Resolvemos o problema da qualificação, da determinação da lei aplicável, uma vez
qualificadas as normas materiais potencialmente aplicáveis, e concluímos que a lei
aplicável é um direito material estrangeiro. A nossa norma de conflitos (norma da Lei I)
remete para lei estrangeira. Mas essa lei estrangeira (Lei II) não se reputa como aplicável, ou
seja, não se considera competente, reputando aplicável a Lei I ou uma Lei III. Lei I remete para a
Lei II que remete para a Lei I. A isto chamamos retorno ou reenvio. No caso em que Lei I
remete para a Lei II que remete para a Lei III temos o que apelidamos de reenvio de 2º grau ou
transmissão de competência.

O que é que deve fazer o aplicador do Direito em Portugal? Há duas atitudes possíveis:
aceitamos o reenvio nos dois casos ou não aceitamos o reenvio, considerando que não nos
interessa o que a Lei II em termos do seu DIP diz, porque achamos que a lei mais adequada para
reger a matéria é a Lei II – porque tivemos cuidado em escolher o elemento de conexão para a
P á g i n a | 155

matéria e concluímos que aquela seria a solução mais acertada – e aí, o que a Lei II diz sobre se
quer que a sua lei seja aplicada ou não, não nos diz respeito, e aplicamos a Lei II.

Teses
Tese anti-reenvio ou anti-devolucionista: Teoria de acordo com a qual quando um
ordenamento jurídico remete para lei estrangeira está a remeter, nessa lei estrangeira, não para
todo o ordenamento jurídico – não remete para o DIP estrangeiro, designadamente – mas
apenas para o Direito material estrangeiro, para as normas materiais estrangeiras. Esta ideia
de não aceitação do reenvio, de se considerar irrelevante as normas de conflitos da Lei II pode
assentar num pressuposto de que a função da norma de conflitos é apenas a de remeter para o
Direito material da lei designada através do elemento de conexão das regras de conflitos do foro.
Esta tese vai sustenta-se com uma forma teórica de resolver o problema e uma forma
pragmática de o resolver. A forma teórica do resolver liga a resolução do problema do
reenvio à natureza das normas de conflitos. De acordo com a teoria, a explicação basea-se na
natureza jurídica da norma de conflitos, a norma de conflitos teria como natureza,
exclusivamente, remeter para o Direito material ou substantivo da lei designada. Se a lei
portuguesa remete para a lei nacional, pela natureza das coisas, é apenas para o Direito material
do país da nacionalidade que está a remeter, e não para as normas de conflitos dessa lei. Isso
significa que para esta tese o problema do reenvio é um falso problema, que não existe.

Mas ainda no plano teórico podemos raciocinar ao contrário. Quando remetemos para
uma lei estrangeira, não estamos meramente a remeter para o Direito material, mas
necessariamente temos que tomar em consideração que o Direito material estrangeiro
tem uma ligação incindível com o respetivo DIP. Estarmos a aplicar a norma material
estrangeira contra a vontade do Direito Estrangeiro era estarmos a desnaturar a lei
estrangeira, era violentarmos a lei estrangeira em vez de a aplicarmos.
Assim, tendo em conta a ligação incindível entre o direito material e o DIP, temos que
respeitar o DIP estrangeiro e tomar em consideração o que ele diz, para consagrarmos o
instituto do reenvio. De acordo com esta tese, caracterizada no plano teórico, temos uma
referência global à lei estrangeira e não uma mera referência material. Assim, de acordo com
esta tese oposta à primeira, não remetemos para o Direito material, mas para o Direito
estrangeiro no seu todo.

Podemos resolver o problema com base na natureza jurídica das normas de conflitos?
Aqui, como sempre, a resposta é negativa. Os problemas jurídicos não se devem resolver de
forma conceptualista, apenas com referência à natureza jurídica de certo facto. O recurso à
natureza jurídica pode ajudar, mas não deve ser o elemento decisivo para resolver um
problema prático, isto vale em geral para toda a ciência do Direito. A discussão teórica sobre
saber se a norma de conflitos, pela sua natureza, remete para o Direito material estrangeiro ou
para a totalidade do Direito estrangeiro, no plano teórico não tem solução, porque nenhuma
das teses tem a seu favor argumentos totalmente procedentes, tudo depende daquilo que o
sistema de DIP do país que consideremos estabelecer. A solução não se obtém deduzindo uma
solução a partir de um conceito, mas a solução obtém-se deduzindo conclusões a partir dos
dados normativos e dos princípios em que os dados normativos se apoiam. Temos que ver
o que é que o sistema responde.
P á g i n a | 156

Antes do CC de 1966, o problema do reenvio era omisso, e os tribunais tiveram que


resolver problemas que pressupunham o conflito negativo de sistemas e encontrar a solução, é
verdade, mas essa solução – que consistiu numa integração de lacunas – teve que ser feita ao
abrigo do sistema geral de integração. A solução pode ser correta ou incorreta, mas não é
deduzida da natureza jurídica das normas de conflitos.
De qualquer modo, o problema surge precisamente por via jurisprudencial. Surgiu em
França com o um caso, que era um problema sucessório e os tribunais franceses depararam-se
com a questão de saber, num caso de retorno, o que é que fariam. A lei francesa remetia para a
lei estrangeira e a estrangeira para a lei francesa, e o que é que os tribunais franceses fizeram?
Aplicaram a lei francesa, aceitando o retorno, e no seguimento dessa orientação jurisprudencial,
a partir daí consagrou-se uma doutrina de reenvio.
Em Portugal, antes do atual CC, também foi suscitada uma questão semelhante, em que
se seguiu a mesma orientação e aplicou-se a lei portuguesa em lugar de se aplicar a lei que
se mandava aplicar pela regra de conflitos portuguesa.
Vamos admitir que a tese da referência global está correta: O que é que significa? Que
quando a Lei I remete para a Lei II, remete para todo o Direito, incluindo o Direito de Conflitos, o
que significa que a Lei I vai considerar aplicável que lei? A própria – no caso de retorno. Mas se a
norma de conflitos da Lei I tem caráter global, então a Lei II também o terá. A própria referência
da Lei II à Lei I tem que ser entendida como uma referência global, o
cria um círculo vicioso. A Lei I passa para a Lei II, e a Lei II para a
Lei I, infinitamente – sendo que os autores depois usam figuras
diferentes para mostrar, como o jogo de ping-pong ou o jogo de
espelhos. O sistema da remissão global, como tese explicativa da
natureza jurídica das normas de conflitos é falso, porque prova
mais do que aquilo que deveria provar. Se levássemos a tese às
últimas consequências, não teríamos saída possível de um caso
de retorno, porque andaríamos sempre à espera de encontrar uma
lei aplicável, mas nunca encontramos.

Contudo, a tese contrária, do ponto de vista teórico, de acordo com a qual quando
remetemos para lei estrangeira apenas se reporta ao Direito material estrangeiro, essa
tese, enquanto teoria explicativa da natureza da norma de conflitos, também não é satisfatória,
porque pode bem haver razões que levem a que, tal como acontecia no caso dos conflitos
positivos de sistemas, seja conveniente tomar em consideração uma norma de conflitos
estrangeira. Pode haver hipóteses em que, por força de princípios fundamentais143 do DIP do
foro, tenhamos que tomar em consideração a norma de conflitos estrangeira.
Temos de abandonar a perspetiva teórica que respeita à natureza jurídica das
normas de conflitos e a natureza jurídica da remissão para lei estrangeira – abandonar a
querela teórica que não leva a lado nenhum – para adotarmos a perspetiva pragmática, onde
a questão que se coloca é saber qual é a melhor solução do ponto de vista dos valores e
princípios próprios do DIP. Essa melhor solução não é necessariamente monista ou
maximalista, que rejeite sempre ou aceite sistematicamente o reenvio.
A solução pragmática, orientada pelos valores do DIP, pode ser uma solução que
combina algo das duas perspetivas e que se sirva do reenvio não como princípio geral, ou

143 Tal como a efetividade das setenças.


P á g i n a | 157

como teoria explicativa, mas como instrumento técnico para tutelar os valores e princípios
do DIP.

O DIP Português, fonte interna, a solução pragmática


É neste plano pragmático que se situa o Direito português de fonte interna144. É no
plano pragmático e no plano da obediência aos valores e princípios próprios de DIP, que se situa
o Direito português de fonte interna, cuja sede está-nos artigos 16º a 19º CC e depois em
outras disposições como os artigos 36º nº2, 65º nº1 e 31º nº2, interpretado extensivamente e
aplicado analogicamente.

Ou seja, não vamos consagrar nem a tese da referência material, nem vamos
aceitar o reenvio como expressão da natureza jurídica da norma de conflitos.
O que vamos fazer é ter uma solução geral e termos depois soluções especiais que
sejam adotados sempre que tal se justifique.

A primeira ideia que extraímos do CC Português é de que o reenvio não tem uma solução
única. Usamos o reenvio como meio técnico para atingir certos resultados que estão de
acordo com a nossa visão do DIP e dos seus princípios. Isto significa que, de acordo com a
lógica deste pensamento, temos sempre uma solução geral quando não existam caminhos
especiais.

Qual é a solução? A que apresenta o artigo 16º CC145. Qual é a regra geral? Não
aceitação do reenvio. Na falta de preceito em contrário, quando remetemos para lei
estrangeira, reportamo-nos apenas às normas materiais estrangeiras. Na falta de preceito em
contrário, o que decorre da referência à lei estrangeira é a aplicação do Direito substantivo desse
ordenamento.
A doutrina portuguesa tem entendido que mais rigoroso do que princípio geral é a
ideia de regra geral, porque não temos um princípio fundamental de afastamento do
reenvio e algumas exceções através de normas excecionais que venham estabelecer em certos
casos a possibilidade de aceitação. O que temos, como diz Isabel Magalhães Colaço, são vários
subsistemas de solução dos conflitos de sistemas, e a regra do artigo 16º tem um alcance
residual e que vai intervir sempre que não existam regras que não são excecionais, mas
especiais relativamente ao artigo 16º. Isto porque essas regras não contrariam nenhum
princípio de fundo do Direito português, o que acontece é que o artigo 16º tem que ser
combinado com os outros artigos.

144 Ou seja o CC.


145Importa referir, no entanto, que esta solução do Código Civil só é utilizada quando não haja
disposição de Direito da União Europeia aplicável. Sempre que o âmbito de aplicação esteja num
Regulamento, temos que entender qual é a solução que o mesmo consagra quanto ao reenvio. Na maioria
dos Regulamentos afastou-se o reenvio, o que se entende em parte dos casos, uma vez que a unificação das
regras de conflitos acaba com os conflitos de sistemas de conflitos intraeuropeus. No entanto, quando o
Regulamento remeta para terceiro Estado, o que é que fundamenta a exclusão do reenvio, podemos ter
conflitos que não sejam intraeuropeus, pela aplicação universal dos Regulamentos, o que é que
exclui o reenvio nesses casos? Fica a questão em aberto.
P á g i n a | 158

Vista a solução geral, quando é que se justifica aceitar o reenvio? O problema deixou
de ser o da natureza da norma dos conflitos, passou a ser quando é que o reenvio deve ser
utilizado. Um fundamento possível para a aceitação do reenvio é a ideia de efetividade das
decisões. Num caso em que a efetividade da decisão dependa da aplicação de Direito de
Conflitos da Lei II, esse pode ser um argumento a favor da aceitação do reenvio.
Com o reenvio de 1º grau, deixamos de aplicar a lei estrangeira e passamos a aplicar a lei
portuguesa. Temos de ver para estes casos qual será o argumento, porque aí a efetividade da
decisão só depende de Portugal e por isso não é argumento. Um argumento poderia ser que a
aplicação da Lei material do foro é mais confortável para os juízes portugueses, no entanto o
argumento do conforto não pode ser procedente.146
O favor negotii, pode em certos casos fundamentar o reenvio, sendo que através do
reenvio pode vir a ser favorecida a validade do negócio jurídico.
A Harmonia jurídica internacional: Se através do reenvio conseguirmos chegar a uma
solução que seja aceite pelos principais sistemas interessados, os sistemas em contacto com
a situação, estamos a reduzir a incerteza jurídica inerente às situações privadas
internacionais.147 Assim, se a solução é igual, então o reenvio pode ser usado para promover a
aplicação dessa lei. Isto não serve para os casos de retorno se ambos os ordenamentos
permitirem o reenvio. Mas, na hipótese em que o ordenamento da Lei II é contrário ao reenvio, e
em que o juiz da Lei II, quando se deparar com o problema, aplica a Lei I. Nesse caso, mais vale
aplicar a Lei I, e estamos de acordo com a Lei II faria se fosse chamada a pronunciar-se
sobre o caso. Se a Lei II aplicar a Lei I, considerar competente o Direito material de Lei I, mais
vale entendermos que aplicamos a Lei I.
Exemplo: Lei portuguesa reenvia para Lei espanhola, mas o DIP espanhola devolve a
Portugal. Neste caso para conseguir harmonia jurídica e reduzir a incerteza mais vale a pena o
sistema português não voltar a enviar para o espanhol e aplicar o direito do foro. Se esta solução
estiver consagrada, tanto a Lei portuguesa como a Lei espanhola considera o direito material
português a solução para o caso. Há harmonia. Esta solução é de facto consagrada num artigo do
CC Português, o artigo 18º nº1.

Artigo 18º nº1: se a norma designada pelo Direito de conflitos apontar para o Direito
interno português é esse que se aplica. O artigo 18º nº1 prevê que Lei II remeta para o
Direito interno, com sentido de Direito material. E quando é que a Lei II remete para o
Direito interno português? Quando, ao remeter para o Direito português, o faz com
rejeição do reenvio, porque de outra forma A Lei 2 aplicaria a Lei 2 – na medida em que
aceitaria o reenvio que a Lei portuguesa faz para ela. Se Lei II remeter não apenas para o
Direito interno português, mas também para a sua norma de conflitos, não remete
meramente para o Direito interno português, a Lei II diria que se aplicava a Lei II e não
havia harmonia nesse caso se aplicássemos o 17º. O reenvio aqui é um instrumento
necessário para atingir a harmonia jurídica internacional. Nas hipóteses de retorno
em que a Lei II remete para a lei portuguesa, se o fizer pela referência material ao Direito

146Não pode ser procedente porque o argumento, por si, é contrário à ideia de paridade entre
ordenamentos. Este argumento, possível, não é válido no sistema português, porque este não assenta
na ideia de favorecimento de aplicação do foro, mas sim numa ideia de paridade de tratamento,
porque só essa é que é compatível com o resto do DIP. Mas isto não significa que no Direito Comparado
não existam países onde o retorno é aceite de forma direta e camuflada com o objetivo de
maximizar a aplicação da lei do foro, como o Direito francês.
147Poisa solução da relação controvertida será uma solução que não é diferente em função do país onde
a questão é suscitada.
P á g i n a | 159

Português – e portanto não apenas uma remissão para o nosso Direito mas uma remissão
para o nosso Direito material – então a solução mais correta do ponto de vista prático é
aceitar o reenvio da Lei 2 para a lei portuguesa, porque assim chegamos a uma solução
que não sendo a aplicação da lei que em primeira linha consideraríamos mais adequada,
é em todo o caso preferível por força de se conseguir, através dela, a harmonia
jurídica internacional.

Se A Lei 2 remete para a Lei Portuguesa, mas permite um reenvio – portanto, aplica a Lei
2. Não se aplica o 18º nº1, porque a Lei 2 não remete apenas para o direito material
português. O que é que fazemos? Aplicamos o artigo 16º, e mandamos aplicar a Lei 2,
porque é para essa lei que remetemos. Há harmonia jurídica na mesma148

Isto só serve para os casos de reenvio de primeiro grau também chamados de retorno.

O que é que acontece no caso de transmissão de competência? Admitindo que a lei


portuguesa remete para Lei II, e a Lei II remete para a Lei III. Quando é que devemos aceitar o
reenvio? Quando a Lei III se considere competente e a Lei II deve considerar a Lei III como
competente. O que é que é necessário? Primeiro que a Lei II remeta para a Lei III, e que a Lei III
se considere competente. Isto corresponde ao que dispõe a lei? artigo 17º nº1

Artigo 17º nº1: dois pressupostos básicos do reenvio na modalidade de transmissão de


competência ou reenvio de 2º grau – que Lei II remeta para Lei III e que a Lei III se
considere competente.

Qual é o fundamento das soluções dos artigos 17º nº1 e 18º nº1? Princípio da
harmonia jurídica internacional, que se sobrepõe à ideia que esteve na base da escolha do
elemento de conexão pelo ordenamento português. Estas normas são as mais importantes em
sede de reenvio: artigos 16º, 17º nº1 e 18º nº1. Mas há outras que tornam as soluções mais
complexas, introduzindo outros princípios – como o favor negotii e o da maior proximidade –
mas a base é esta.

Embora consideremos que o ideal seja aplicar a Lei II, se a Lei


II considera que é competente a lei portuguesa – retorno – ou a
Lei III, se por aplicação dessa lei não conseguimos unificar os
julgados, então vamos permitir que se afaste a norma de
conflitos portuguesa.

148A lei 2 considera-se competente porque remete para o Direito português e este devolve-lhe a questão, e
a Lei portuguesa considera a Lei 2 competente por aplicação do artigo 16º (ignora o seu DIP). Ambos os
sistemas concordam em aplicar a Lei 2. Há harmonia.
P á g i n a | 160

Direito Comparado. Importante tipologia


Para solucionarmos cada caso temos que perceber a solução em Direito comparado ao
problema do reenvio, porque a solução portuguesa depende da solução estrangeira. Temos que
determinar a tipologia de sistemas de reenvio que existem.

O reenvio, em termos genéricos, consiste em, perante um conflito negativo de sistemas,


deixar de se aplicar a norma material da ordem jurídica para o qual a norma de conflitos
portuguesa remete, para aplicar uma outra lei, tomando em consideração, pelo menos, a norma
de conflitos estrangeira para a qual remetemos. O reenvio é sempre o deixar de se aplicar a
norma para o qual remete a nossa norma de conflitos, passando a aplicar uma outra lei para o
qual a outra ordem jurídica remeta.

→ Referência material
 Devolução simples
=> Dupla devolução
-> Remissão Portuguesa

Legenda

No Direito Comparado podemos dizer que existem diferentes atitudes perante o


reenvio, e essas atitudes podem reconduzir-se a três grandes classificações ou grupos de
soluções.

1) Sistemas de referência material: A primeira atitude possível perante o reenvio,


que pode assentar em razões teóricas ou pragmáticas, é a ideia de que não se aceita
o reenvio. Esta atitude tem consagração efetiva em vários ordenamentos jurídicos
que são contrários ao reenvio, de forma explícita ou por força da jurisprudência, não
aceitam o reenvio, ou seja, seguem uma ideia de referência exclusivamente
material à lei estrangeira. São um conjunto de países que entende que o reenvio
não tem um papel a desempenhar no DIP e, portanto, a lei que consideram aplicável é
sempre a lei designada pelas normas de conflitos do seu sistema,
independentemente de qualquer conflito negativo de sistemas que exista, sendo para
eles indiferente. Esta atitude pode aceitar-se por razões teóricas ou práticas, e há
uma razão prática que aconselha esta atitude: facilidade. É mais fácil para o
aplicador de Direito um sistema que rejeite o reenvio, sendo essa menos uma
complicação para ele considerar.

2) Referência global à lei estrangeira: Atitude radicalmente oposta, de aceitação


sistemática do reenvio, a ideia de acordo com a qual o reenvio é uma solução para
todos os problemas de conflitos negativos de sistemas. Quando a norma de conflitos
remete para lei estrangeira remete não apenas para o direito material
estrangeiro, mas também para o seu DIP, e, por essa via, aceita sistematicamente
o reenvio. Dentro desta segunda atitude possível temos dois sistemas aceites por
alguns países:

a) Devolução simples: Tem o seu berço na jurisprudência francesa, surgiu


em casos de retorno e surgiu com base na seguinte ideia: perante um
P á g i n a | 161

problema de conflito negativo de sistemas, vamos aceitar


sistematicamente um, e apenas um reenvio.

L1 L2

L1 remete para L2 através do sistema de devolução simples e L2 remete


para L1 por referência material. Assim, se o sistema de devolução
simples for adotado pelo sistema (L1), que lei vai ser aplicada no país
de L1? L1, porque L1 faz uma referência global para L2 e aceita um
reenvio, o que significa que aceita o reenvio para L1 e vai aplicar L1. E
qual é a lei que vai ser aplicada em L2? Também L1 porque L2
remete para ela por referência material. Neste caso, conseguimos
atingir a harmonia jurídica internacional.

L1L2

L1 remete para L2 através da devolução simples e L2 para L1 através da


devolução simples: Tanto L1, como L2, aceitam a devolução simples (um
reenvio). Qual será a lei considerada competente no país de L1? No
sistema da devolução simples aceita-se sistematicamente um reenvio,
mas apenas um reenvio. Desta forma, L1 vai remeter para L2 e aceita um
só reenvio, o reenvio para L1, portanto, para L1 a lei aplicável será L1.
L1 ao praticar o sistema da referência global na sua modalidade de
devolução simples remete para L2 e aceita um reenvio para L1. Mas em
L2, que pratica exatamente o mesmo sistema de devolução simples,
remete para L1 e aceita também um reenvio, ou seja, aceita o reenvio
para L2, pelo que em L2 a lei aplicável vai ser L2. Neste caso, os
resultados de aceitação deste sistema são positivos? Não, não se atinge
a harmonia jurídica internacional, pelo contrário, aqui há apenas uma
alteração da lei designada pela norma de conflitos e passa-se a aplicar a
lei do foro, pelo que, neste caso, o sistema de devolução simples não
conduz a bons resultados.

L1 L2 → L3

L1 remete para L2 a título de devolução simples e L2 remete para L3, e


L3 considera-se competente: Estamos numa hipótese de transmissão de
competência em que L1 remete para L2 e L2 remete para L3, que se
considera competente. Nesta hipótese, que lei será aplicável em L1? L3
porque L1 quando remete para L2 aceita um reenvio e, por isso, acaba
por aplicar L3. É irrelevante o sistema de referência ou reenvio de L3
porque esta se considera a si própria competente. O modo como
resolvemos estes casos permite entender a distinção entre dois termos
que refletem dois conceitos distintos: remissão e aplicação. Quando uma
norma de conflitos manda aplicar a lei da nacionalidade ou da residência
habitual ou do lugar da prática do ato, está a remeter para esse
ordenamento jurídico; Quando nós, depois de resolvido o problema do
reenvio, consideramos competente um determinado ordenamento
P á g i n a | 162

jurídico, isso significa que consideramos aplicável esse ordenamento


jurídico. Neste caso, L1 remete através das suas normas de conflitos para
L2, mas vai aplicar L3. Neste caso, como L3 se considera competente, L2
ao remeter para a norma de conflitos de L3 considera também
competente L3 e, por isso, aplica também L3. Assim, neste caso,
atingimos a harmonia jurídica internacional, todas usam a L3.

L1 L2  L3

L1 remete para L2 por devolução simples e L2 remete para L3 da mesma


forma, mas L3 faz referência material para L2. Que lei vai ser aplicada em
L1? L3 porque L1 remete para L2, mas como aceita o sistema de devolução
simples, aceita sempre um reenvio e L2 remete para L3, pelo que em L1
vai aplicar L3. Será que atingimos a harmonia jurídica internacional
neste caso? Não. Porquê? Em primeiro lugar, porque L3, ao praticar
referência material, não aceita o reenvio, pelo que vai considerar
competente L2. L3 considera competente a L2. E a L2? Que lei vai
considerar competente? Também considera competente L2 porque L2
remete para a regra de conflitos de L3, mas esta regra remete para L2 e,
portanto, L2 considera-se competente a si própria aceitando um
reenvio para o seu direito material. Assim, temos que L1, ao praticar a
devolução simples, em vez de aplicar L2, que seria a lei considerada
competente por L2 e por L3, e que asseguraria harmonia jurídica
internacional vai acabar por aplicar L3 que é uma lei que ninguém
considera aplicável. Ou seja, o sistema de devolução simples, neste
caso, não só é inútil, como é prejudicial porque afasta uma harmonia
jurídica internacional que, à partida, podia existir.

Qual é a conclusão a que chegamos em relação a este sistema de devolução


simples? Primeiro, é um sistema que é fácil de aplicar porque é um sistema
simples, avançamos sempre duas “casas”(pode ser para a direita ou
esquerda): a primeira é uma remissão (para a norma de conflitos
estrangeira) e a segunda é um reenvio (para a lei que esta manda aplicar).
O reenvio é aceite pela L1 tomando por referência a regra de conflitos de
L2. De L1 para L2 há uma remissão ou uma referência a lei estrangeira,
mas, com o sistema de devolução simples, é uma remissão dirigida não
apenas ao direito material de L2, mas também à norma de conflitos de L2,
e, portanto, como a norma de conflitos da L2, através do seu elemento de
conexão, remete para a L3, L1 vai aplicar L3 aceitando o reenvio de L2
para L3. No sistema da devolução simples, temos uma aceitação
sistemática do reenvio, pelo que se L2 remete para outra legislação, sendo
essa remissão para o direito do foro ou outra legislação, L1 vai sempre
aceitar esse reenvio. No sistema de devolução simples o que estamos a
fazer é aceitar a aplicação da norma de conflitos da L2, independente de
esta remeter para L3 a título de referência material ou de devolução
simples. Noutras palavras, no sistema da devolução simples, a
referência feita à lei estrangeira é uma referência global porque
aceita uma a referência à norma de conflitos estrangeira, mas não é
P á g i n a | 163

uma referência global levada às últimas consequências porque é uma


referência apenas à norma de conflitos estrangeira e não ao DIP
estrangeiro no seu todo, portanto é uma referência que não atinge a
atitude desse direito estrangeiro perante o reenvio - o sistema de reenvio
estrangeiro é tido como irrelevante para o sistema de devolução simples.
É um sistema de referência global que fica a meio, não é levado às
últimas consequências – porque se fosse, ao considerar a L2 aplicável ia
considerar aplicável a mesma lei que a L2 considera aplicável, logo, L2, e
não a L3. Este sistema é praticável, mas chega a resultados aleatórios, uns
deles positivos, outros negativos, é uma soma de resultados neutros. Este
sistema tem sido adotado e há vários países que o aceitam sobretudo em
sede de retorno e não em sede de transmissão de competências, porque
utilizam o reenvio como expediente para maximizar a aplicação da lei do
foro, ou seja, para facilitar a vida ao aplicador do Direito, por vezes com
prejuízo para princípios fundamentais de DIP. Mas este sistema não é o
único que concretiza a referência global para lei estrangeira, nem é um
sistema que leve a referência global às suas últimas consequências porque
se esta fosse levada às últimas consequências teria de ter em conta não
apenas a norma de conflitos estrangeira, mas também a norma
estrangeira em matéria de reenvio, teria de ter em conta a atitude da L2
sobre o próprio reenvio, o que é justamente o que faz o segundo sistema
de referência global.

b) Sistema da dupla devolução: Este sistema nasceu em Inglaterra e esta


tese assenta na teoria da devolução integral ou na teoria do foreign court
theory (teoria do tribunal estrangeiro). O ponto de partida desta tese é a
ideia de que mais do que ter em conta a norma de conflitos
estrangeira, se deve ter em conta todo o DIP estrangeiro, sendo esta
tese verdadeiramente uma tese de referência global à lei estrangeira.

No plano prático, como é que se concretiza? O aplicador do Direito que vai


decidir o caso tem de se colocar na posição do aplicador do Direito do país
para cujo ordenamento jurídico a sua norma de conflitos remete. O juiz
que está a decidir em Londres, vai decidir como decidiria o juiz francês se
a lei inglesa remetesse para a lei francesa. Vai ter uma atitude mimética,
perguntando ao ordenamento jurídico estrangeiro como é que resolveria
o caso, resolvendo-o de acordo com as diretrizes de DIP do ordenamento
para o qual a sua norma de conflitos remete. Isto significa que se tem em
consideração não apenas a norma de conflitos estrangeira, mas também a
atitude da lei estrangeira perante o reenvio. Concretizando:

L1 => L2  L3

A L1 remete para a L2 através de um sistema de dupla devolução, a L2


remete para a L3 por devolução simples e a L3 faz uma referência material
para a L2. O que é que vai acontecer? L1, ao praticar dupla devolução, está
P á g i n a | 164

a colocar-se nos sapatos de L2, ou seja, vai julgar como julgaria o juiz que
está situado em L2. Ora, o juiz em L2 pratica devolução simples, razão pela
qual remete para L3 e aceita um reenvio, ou seja, a L2 considera-se a si
própria competente. Se L2 faz isto, L1 vai fazer exatamente a mesma
coisa. Neste caso, atingimos a harmonia jurídica internacional, porque L3
também aplica a L2 a título de referência material. Todos sistemas
concordam em aplicar a solução material de L2.

L1 => L2   L3

L1 remete para L2 a título de dupla devolução, L2 remete a título de


devolução simples para L3 e L3 remete para L2 a título de devolução
simples: Que lei seria aplicável em L1 que tem um sistema de dupla
devolução? Este caso será diferente do anterior? Para L1 é igual porque
L1 fará o que L2 fizer e L2 aceita um só reenvio pelo que vai aplicar L2. É
isso que importa ao sistema de dupla devolução, o que faz L2, L1 fará nada
mais nada menos que L2. E L2 aplica L2 porque remete para L3 e
pratica devolução simples, aceitando um reenvio e sendo irrelevante se
L3 faz referência material ou se tem um sistema de devolução simples,
aplicando-se L2 sempre a si própria e, se é assim, também L1 a
considera competente. Logo: Em L1 vai ser aplicável L2, em L2 vai ser
aplicável L2 (sendo por isso que é aplicável em L1) e em L3 vai ser
aplicável L3 porque pratica devolução simples e remete para a regra de
conflitos de L2, ou seja, aceita o reenvio de L2 para L3, o que é irrelevante
para L1 porque a L1 só interessa o que faz L2. Não há harmonia jurídica.

L1 => L2 → L3

L1 pratica dupla devolução para L2, L2 pratica referência material para


L3 e L3 pratica referência material para L2: L1 aplica L3, L2 aplica L3 e
L3 aplica L2. Não há harmonia.

O que podemos concluir quanto a este sistema? Que ele promove a


harmonia jurídica internacional entre L1 e L2. O sistema da dupla
devolução preocupa-se apenas em atingir uma harmonia jurídica
internacional entre a lei do foro (L1) e a lei para a qual a lei do foro
remete (L2). E harmonia jurídica internacional com outras leis que
existam na cadeia? Pode existir, ou pode não existir, mas tal não
resulta do sistema da dupla devolução. Este sistema aplica-se quer
num caso de transmissão de competência, quer num caso de retorno:

L1=>L2

L1 pratica dupla devolução para L2 que pratica devolução simples para


L1. L2 considera aplicável L2 porque remete para a norma de conflitos
P á g i n a | 165

de L1 e esta remete para o ordenamento de L2, pelo que aplica L2. L1


considera aplicável L2 porque faz o que L2 fizer. Há harmonia.

L1=>L2

L1 pratica dupla devolução para L2 que pratica referência material para


L1: L1 vai aplicar L1 na medida em que vai fazer o que L2 faria e L2
aplicaria o direito material de L1. Há harmonia.

L1=> <=L2

L1 pratica dupla devolução para L2 e L2 pratica dupla devolução para


L1: Se L1 e L2 aplicarem ambas o sistema de dupla devolução, não há
solução. L1 aplicaria a lei que L2 aplicaria e L2 a lei que L1 aplicaria e
assim sucessivamente, não tínhamos soluções, mas porque é que isto não
é um problema no mundo real prático? Porque este sistema está
circunscrito tacitamente ao sistema britânico, não se tendo
generalizado, já que se se tivesse generalizado teríamos um ciclo
vicioso que não dava solução.

3) A terceira atitude possível situa-se no plano estritamente pragmático: nem


assenta na ideia de rejeição radical do reenvio, nem parte de uma aceitação do
reenvio como princípio geral, mas utiliza o reenvio como instrumento tutelar certo
tipo de princípios. O Direito Português de fonte interna situa-se neste grupo,
sendo que neste grupo de sistemas, foi pioneiro o legislador de 66 já que no
momento em que o Código Civil foi aprovado e entrou em vigor era o sistema mais
completo e mais pragmático dos sistemas de conflitos em matéria de reenvio, tendo
vindo a influenciar várias soluções de outros Códigos.

Lpt -> L2

A lei portuguesa remete para a L2 e a L2 faz referência material a LPT: O que vai
acontecer? Artigo 18º nº1. A L2 ao remeter para a LPT fá-lo através de referência
material, remetendo para o direito interno, ou material, da LPT. Ao aceitarmos, neste
caso, o reenvio da L2 (contrário à regra geral de recusar), vamos atingir a
harmonia jurídica internacional na medida em que quer a LPT, quer a L2 vão
aplicar a mesma lei, ou seja, ambas as leis vão considerar competente a LPT.

Lpt -> L2

A lei portuguesa remete para a L2 que pratica devolução simples para a lei
portuguesa: LPT remete, através de uma norma de conflitos qualquer, para uma lei
estrangeira, L2, que remete para a LPT através do sistema da devolução simples, pelo
que remete para a norma de conflitos da LPT, aceitando o reenvio da LPT para a L2
e considerando competente a L2. Assim, L2 aceita o reenvio para a sua própria lei,
L2. O que vai fazer a LPT? Não vai usar o artigo 18º nº1 porque a L2 não remete
para o direito interno português, mas para a norma de conflitos. Assim, não
podendo aplicar o artigo 18º, aplicamos a regra geral, do artigo 16º, ou seja,
P á g i n a | 166

aplicamos L2, a lei designada pela nossa norma de conflitos, porque entendemos que
não há razão para afastar a nossa norma de conflitos.

Lpt -> L2 → L3

Lei Portuguesa remete para a L2 que pratica referência material para a L3, que se
considera competente: Que lei vai aplicar L1? O artigo 17º/1 é aplicável, porque L1
remete para L2 e L2 remete para L3, que se considera competente para resolver o
caso, sendo irrelevante saber qual o sistema de conflitos dessa lei porque para essa
lei não há um conflito negativo de sistemas. Assim, é aplicável L3 porque L2 aplica L3
e L3 aplica L3, pelo que, por força do princípio da harmonia jurídica
internacional consagrado no artigo 17º nº1, vamos aplicar L3.

Lpt -> L2 →L3

Lei portuguesa remete para a L2, L2 pratica referência material para L3 que pratica
devolução simples para L2. Assim: L2 remete para L3 e considera aplicável L3, L3
remete para L2 e considera aplicável L3, pelo que, nesse caso, devemos aplicar o
artigo 17º nº1 — é irrelevante que L3 se considera competente de forma indireta,
só releva que ela se considere competente. De acordo com a ratio legis de obter a
harmonia jurídica internacional, devemos aceitar a aplicação do 17º nº1 e,
consequentemente, o reenvio. Para L2 é indiferente o que faz L3, mas nós não
somos L2, para nós releva o que faz L3 porque o artigo 17º nº1 só se vai aplicar se
L3 se considerar competente.

Lpt -> L2 → L3

Lei portuguesa remete para L2 que pratica referência material para L3 que pratica
referência material para L2: L2 remete para L3 e L3 não se considera competente
porque remete para L2 por referência material, pelo que L3 não se considera a si
própria competente, mas considera L2 competente. Falhando este pressuposto, não
podemos aplicar o reenvio nos termos do artigo 17º/1, pelo que temos de
aplicar a regra geral do artigo 16º, e, consequentemente, vamos aplicar L2.

Lpt -> L2   L3

Lei Portuguesa remete para L2 que pratica devolução simples para L3 que pratica
devolução simples para L2. L2 remete para L3 e aplica L2, L3 remete para L2 e
aplica L3, o que é que vai acontecer? Aceitamos ou não o reenvio? Aqui temos um
problema, ou aceitamos uma leitura literal do artigo 17º nº1 e, se assim for,
aceitamos o reenvio para L3, já que esta se considera competente e L2 remete
para ela. Mas há dois argumentos para que não possamos aceitar o reenvio
apesar de parecer que o artigo 17º nº1 o manda aceitar:

• Teleologia: Este artigo não pode deixar de estar ao serviço do princípio


da harmonia jurídica internacional e, neste caso, o reenvio não a atinge,
pelo que, de um ponto de vista teleológico, “remeter” não pode deixar de se
entender como “aplicar”, ou seja, onde se lê “remete para outra legislação”
tem de se entender como “considerar competente”
P á g i n a | 167

• Literal: É o próprio artigo 17º nº1 que faz referência não apenas à norma de
conflitos de L2, mas também ao DIP de L2. O próprio artigo 17º nº1 faz
apelo ao sistema de reenvio da L2, ao utilizar a expressão “Direito
Internacional Privado” e não apenas a norma de conflitos de L2.

Assim, o artigo 17º só se aplica quando L2 considera competente L3, ou aplique


L3, e L3 se considere a si própria aplicável. Não é o que acontece no nosso caso,
pelo que se aplica o artigo 16º, a regra geral, que manda aplicar a L2.

Lpt -> L2 =>  L3

Lei Portuguesa remete para L2 que pratica dupla devolução para L3 que pratica
devolução simples para L2: L2 vai aplicar a lei que seria aplicável em L3, L3 vai
aplicar L3, logo, L2 vai aplicar L3. Portanto, de acordo com o artigo 17º nº1, o DIP
de L2 vai considerar competente L3, L3 considera-se a si própria competente,
logo, nós aceitamos a aplicação também de L3 para atingirmos a harmonia
jurídica internacional.

Lpt -> <=L2

Lei portuguesa remete para lei estrangeira e essa lei estrangeira pratica dupla
devolução. O que vamos fazer? Uma resposta possível é dizer que não há solução, mas
o nosso direito não permite que os órgãos de aplicação de direito se recusem a
decidir com falta de disposição da lei. Na verdade, há solução, a L2 faz o que a Lpt
fizer sistematicamente, mas a Lpt manda aplicar a L2. É um jogo de ping-pong. Qual
será a solução? O sistema da dupla devolução adoptado por L2 significa que o juiz ou
órgão de aplicação de direito da L2 vai aplicar a lei que seria aplicável em Portugal,
neste caso. Ou seja, vai aplicar, vai considerar competente a lei que em Portugal seria
considerada competente. Este caso oferece à partida dúvidas, não tem uma solução
óbvia. Então como fazemos? A lei portuguesa adopta o sistema português e a L2 dupla
devolução, a lei portuguesa remete através da nossa norma de conflitos para L2, a L2
através do sistema de dupla devolução remete ara a lei portuguesa. Este problema
deve ser analisado de acordo com que disposições? artigo 16º C.C. e 18º C.C. - O 17º
C.C. não está em causa porque não há uma transmissão de competência, não há
referência para uma terceira legislação no caso, temos apenas a L2 e a Lpt. É à luz do
artigo 18º que temos que ver se há reenvio, se não houver aplicar-se-á a regra
geral do artigo 16º C.C. Qual o fundamento das exeções que vimo até aqui (17º e 18º)
em relação ao 16º? A harmonia jurídica internacional. Não aceitamos o reenvio de
forma sistemática, mas apenas quando conduz e é condição para atingir a
harmonia jurídica internacional. Neste caso o que vai acontecer? Quer aceitemos
o reenvio ou não o aceitemos, o aplicador do direito da L2 vai fazer a mesma
coisa, se nós aceitarmos o reenvio o que é que se fará no país de L2? Vamos admitir
que se trata da lei inglesa. Se aplicarmos a lei portuguesa o que o juiz inglês faz é aplicar
a lei portuguesa, se aplicarmos a lei inglesa o juiz inglês aplica a lei inglesa. Desse ponto
de vista é indiferente. E do ponto de vista da harmonia jurídica internacional? Se nós
aceitarmos o reenvio, os órgãos de aplicação do direito ingleses também o vão aceitar
e se não aceitarmos também não o aceitam. Eles vão fazer o que fizermos. A atitude
P á g i n a | 168

adoptada nos tribunais português adopta-se nos tribunais ingleses sendo por isso
indiferente do ponto de vista da harmonia jurídica internacional aplicar a lei
inglesa ou portuguesa. Sendo indiferente há duas posições possíveis. Se ambas as
soluções salvaguardam a harmonia jurídica internacional, mais vale aplicar a lei
portuguesa porque é a lei do foro. É aquela que o juiz melhor conhece portanto,
de acordo com o principio da boa administração da justiça deve ser esta a lei
aplicável. Se ambas as soluções garantem a harmonia jurídica internacional, então o
reenvio não é instrumento necessário para atingir essa harmonia, portanto devemos
aceitar a regra geral do artigo 16º C.C. Esta questão é discutida na doutrina e
existe uma posição maioritária onde se insere Barreto Xavier e uma posição
minoritária. Baptista Machado entendia que, precisamente, sendo indiferente do
ponto de vista da harmonia jurídica internacional aceitar ou não o reenvio, devíamos
aceitá-lo, neste caso, para tutela do princípio a boa administração da justiça.
Portanto, a ideia de acordo com a qual o juiz português aplicará uma justiça de maior
qualidade se aplicar o direito português. A restante doutrina e jurisprudência não
concordam com esta tese minoritária de Batista Machado porque:

• Argumentos de Ordem Substancial, Valorativa e Sistemática: No


sistema português entre um princípio da boa administração da justiça
que favorecesse a aplicação da lei do foro e um principio de paridade
de tratamento entre direito do foro e direito estrangeiro, o legislador
deu prevalência a este segundo principio. Se formos ver todos os
institutos de DIP onde a questão se pudesse colocar, o legislador teve
a preocupação de privilegiar a paridade de tratamento entre OJ
porque entende ser essa a única conforme às restantes ideias mais
gerais de harmonia jurídica internacional, de conexão mais estreita,
que são também, por seu turno, instrumentais em relação ao valor
de segurança e certeza jurídica. No plano valorativo e no plano do
Direito vigente em Portugal não há fundamento para privilegiar o
direito português sobre o direito estrangeiro à luz do princípio
da paridade.

• A verdade é que foi o próprio legislador português que para aquela


matéria entendeu ser preferível escolher aquele elemento e
conexão apontando para uma lei estrangeira. Portanto, afastar
esse elemento de conexão teria que ter uma razão suficientemente
sólida, como não é esta razão de privilegiar a aplicabilidade da lei
portuguesa então não há razão. Assim, não há fundamento para
fazer prevalecer nem o Direito português, nem o reenvio, quando
ele não seja necessário. Para além disso, usar aqui o reenvio é afastar
o elemento de conexão escolhido pela Ordem Jurídica portuguesa, o
que só acontece quando exista título de atendibilidade, que, no caso,
não existe. Esta é a posição da jurisprudência.

• Argumentos de Ordem Formal e/ou Literal: Na letra do artigo 18º


C.C. lemos que aceitamos o reenvio quando a lei designada pela nossa
norma de conflitos, ou DIP dessa lei devolve para o direito interno
português. Ora se a lei inglesa pratica dupla devolução podemos
P á g i n a | 169

concluir que devolve para o direito interno português? Não,


porque: Este sistema é de referência global e não material; Para o
fazermos teríamos que tomar a dianteira, partir do pressuposto que
aplicamos o direito português porque só então é que a L2 aplicaria a
lei portuguesa. Haveria uma repetição de princípio de tomássemos
por demonstrado o que estamos a procurar demonstrar, havia aqui
um vício lógico da aceitação do reenvio.

• Os argumentos formais, que têm menos peso: O argumento


fundamental é que o reenvio previsto no artigo 18º nº1 C.C. visa
atingir a harmonia jurídica internacional e, neste caso, a harmonia
jurídica internacional já estava consagrada mesmo sem reenvio.
Por isso não se justifica afastarmos da lei a nossa regra de conflitos
considera ser a mais adequada aplicar neste caso. A nossa
jurisprudência também se pronunciou em moldes deste tipo não
aceitando o reenvio nestas hipóteses.

Lpt -> L2  L3 → Lpt

A LPT remete para a L2 que pratica devolução simples remetendo para a L3 e a L3


remete para a LPT através de um sistema de referência material: L3 aplica a LPT e
L2 aceita um reenvio, pelo que aplica também a LPT. E em Portugal? Em Portugal
aplicar-se-ia o artigo 18º e aceitar-se-ia o reenvio já que há harmonia. Não podemos
começar por ver o que aplica a LPT, essa é a conclusão, não a premissa, temos sempre
de primeiro analisar a perspetiva dos outros ordenamentos jurídicos da cadeia para
saber se podemos aceitar ou não o reenvio. Neste caso, poderíamos ter a dúvida de
saber se é um problema de transmissão de competência ou de retorno, ou seja, se
isto é uma questão que determina ou permite um reenvio de 2º grau (para um 3º
ordenamento jurídico) ou de novo para o Direito português. O DIP de L2 remete
para a L3 através de um sistema de devolução simples e, portanto, aceita um reenvio,
e isso faz com que se aplique a LPT. Porque é que neste caso aceitamos o reenvio?
Porque quer a L2, quer a L3 mandam aplicar o direito material da LPT. Aceitarmos o
reenvio neste caso permite atingir a harmonia jurídica internacional que não
existiria sem reenvio. É certo que o artigo 18º/1 não parece estar desenhado de
forma expressa para pensar em hipóteses de reenvio indireto ou retorno
indireto, mas o espírito da norma claramente está atingido na medida em que
se verdadeiramente a L2 e L3 aplicam a LPT, então a todos os títulos se impõe
aceitar o reenvio e obter com isso a harmonia jurídica internacional. Apesar de L2
praticar devolução simples, ela vai aplicar o direito material da LPT, o essencial
não é o sistema de conflitos de L2, o essencial é que L2 considere competente o
Direito material português. Neste caso, isso acontece porque de acordo com seu o
sistema de conflitos aceita o reenvio e, portanto, vai considerar competente a LPT.

Lpt -> L2  L3  Lpt

A LPT remete para a L2 que pratica devolução simples remetendo para a L3 e a L3


pratica devolução simples remetendo para LPT: As coisas seriam diferentes se L3
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praticasse também a devolução simples. Porque aí a L2 consideraria aplicável LPT,


mas a L3 consideraria aplicável L2, pelo que aqui não seria atingida a harmonia
jurídica internacional. De um ponto de vista estritamente literal poderíamos dizer
que o artigo 18º permitiria o reenvio neste caso porque L2 considera aplicável a
LPT, só que L3 ao praticar devolução simples está a considerar competente L2 e não
LPT, ou seja, neste caso, não atingiríamos a harmonia jurídica internacional se
aceitássemos o reenvio, logo, não aceitamos o reenvio e vamos, por isso, aplicar o
artigo 16º, ou seja, vamos aplicar a L2. Não vamos aplicar L2 porque L3 a considera
aplicável, vamos aplicar L2 porque se aceitássemos o reenvio não seria atingida a
harmonia jurídica internacional, pelo que não aplicamos o artigo 18º, mas sim o
artigo 16º que manda aplicar a L2.

Lpt -> L2  L3 => Lpt

E se agora L3 praticar dupla devolução? L2 vai continuar a aplicar a LPT porque


pratica devolução simples e só aceita um reenvio. L3 vai aplicar o que for aplicável
segundo a LPT porque pratica dupla devolução, logo, se LPT aplicar LPT, L3 também
irá aplicar LPT, sendo assim, mais vale aceitar aqui o reenvio já que se garante a
harmonia jurídica internacional, do que não aceitar o reenvio, aplicando L2, caso
em que não teríamos harmonia jurídica com L2 porque L2 vai continuar a aplicar LPT
enquanto nós iríamos aplicar L2. LPT aplicar qualquer outra lei que não LPT não
seria promover a harmonia jurídica internacional, pelo contrário. Estamos na
letra e no espírito do artigo 18º, já que L2 manda aplicar LPT e aceitar o reenvio
permite atingir a harmonia jurídica internacional, não estamos a testar os limites
do artigo. Isto é semelhante ao caso que vimos anteriormente do retorno direto da lei
que pratica dupla devolução, por exemplo, a lei inglesa? Não, porque enquanto nesse
caso era indiferente aceitar ou não o reenvio já que se atingiria a harmonia
jurídica internacional de qualquer das formas, não sendo, então, o reenvio um
instrumento necessário para atingir essa mesma harmonia, neste caso as coisas
passam-se de maneira diferente porque só com o reenvio é que nós conseguimos
atingir a harmonia jurídica internacional. Se com o reenvio atingimos a harmonia
jurídica internacional, então vamos aceitar o reenvio.

Outros fundamentos para o reenvio no Sistema Português


Outras disposições que consagram o reenvio no nosso sistema com fundamento em
outros princípios para além do princípio da harmonia jurídica internacional: artigo 36º C.C. nº2
- artigo 65º C.C.

Artigo 36º C.C: Tem um campo de aplicação, hoje, restringido por força do
Regulamento Roma I. O artigo 36º C.C. aplica-se aos negócios jurídicos que não sejam
regulados no âmbito do Roma I porque esse tem disposições relativas a todas as matérias. O que
nos diz o artigo 36º C.C.? Vale não só para negócios de natureza obrigacional, mas também
vale como regra geral em negócios de matéria familiar. O artigo 36º C.C. estabelece uma
regra de conflitos de conexão múltipla alternativa o que significa que o negócio vai ser tido
por válido desde que obedeça à forma estabelecida em um dos OJ alternativamente
aplicáveis. Portanto, esta disposição é uma regra de conflitos que se orienta em função do
resultado. Qual é esse resultado? A validade formal da declaração negocial, e portanto,
P á g i n a | 171

consagra o princípio do favor negotii. Quais as leis alternativamente aplicáveis por força do
artigo 36º C.C.? Lei aplicável à substância do negócio que é determinada por força da regra
de conflitos correspondente à substância do negócio em causa. Se o negócio é uma
convenção antenupcial será a regra de conflitos correspondente a determinar-se, se for uma
perfilhação a mesma coisa, se for uma adopção a mesma coisa. Ou seja, se a lei aplicável à
substância do negócio tiver regras em matéria de forma que considera o negócio valido, então
ele é válido.

Se essa lei considerar que o negócio é quanto à forma é inválido ainda assim pode o
negócio ser considerado formalmente válido se obedecer à forma prescrita pela lei do local da
celebração. Se a lei do local onde o negócio for celebrado o considerar válido formalmente, então
ela prevalece já que prevalece a lei que permite salvar a validade do negócio.

A segunda parte do artigo 36º C.C. estabelece um limite. Este limite respeita a que
tipo de normas? A conexão alternativa e o favor negotii não vai prevalecer nos casos em que a
lei aplicável à substância do negócio contenha exigências de forma com carácter de
aplicação imediata. Isto é, há um limite a esta conexão alternativa, limite ao próprio favor
negotii, que nos é dado em função da existência de NAI do país da lei aplicável à substância do
negócio. Este limite é paralelo a uma norma que já estudámos no Roma I a propósito dos
contratos que têm por objecto direitos reais sobre imóveis.
Mas o artigo 36º tem um número 2 que vem dizer mais alguma coisa. Admitindo que
as partes celebraram determinado negócio mas este foi celebrado não à luz do direito material
da lei do lugar da celebração, mas antes à luz da lei mandada aplicar pela lei do lugar da
celebração, portanto, pela lei considerada competente nesta matéria pela lei do lugar da
celebração. Exemplo: As partes consultaram um advogado, ou dirigiram-se a oficial público -
conservador do registo ou notário - que disse que a lei aplicável em matéria de forma era
outra lei que não a lei local, e por isso as partes obedeceram à forma prescrita por essa
outra lei. “Você não precisa de obedecer à exigência de escritura pública necessária de acordo
com o direito português mas pode celebrar por mero escrito particular porque essa é a lei
considerada competente no país da celebração.” Nesse caso o que estabelece o artigo 36º/2? Por
um lado, que a lei mandada aplicar pela lei do lugar da celebração é mais uma lei
alternativamente aplicável. Ou seja, esta regra de conflitos de conexão múltipla alternativa
introduz uma terceira alternativa para salvar a validade formal do negócio.

Se a lei portuguesa remete para o lugar da celebração e a lei do lugar da


celebração remete para uma terceira lei, então falamos de quê? Reenvio. - O que consagra
o artigo 36º/2 C.C. é uma forma especial de reenvio que não passa pelos requisitos gerais do
artigo 17º ou do artigo 18º mas é ainda um reenvio, porque tomamos em consideração a
norma de conflitos da lei do lugar de celebração, que é uma das leis considerada potencialmente
competentes, e aplicamos outra lei - a lei para a qual ela remete. Portanto,
independentemente dos requisitos do artigo 17º C.C., por exemplo, não é necessário que
essa outra lei se considere competente. Porque é que não é necessário que se considere
competente? Porque o que fundamenta este reenvio é o favor negotii e não a harmonia
jurídica internacional. Não se procura, com este reenvio, pôr de acordo a lei do lugar da
celebração e essa terceira legislação mas salvar a validade do negócio sendo irrelevante que essa
terceira legislação se considerar competente.

De acordo com o artigo 36º/2 C.C. aceitamos o reenvio por força da remissão da lei
do lugar da celebração para uma outra legislação, independentemente de essa se
P á g i n a | 172

considerar competente ou não, porque o que fundamenta este reenvio é que o negócio
seja válido no lugar da celebração e não a harmonia jurídica internacional.

Precisamente o mesmo esquema aparece no artigo 65º C.C. embora aqui, mais ainda
do que no artigo 36º C.C., este artigo tenha um efeito prático desprezível devido à entrada
em vigor do Regulamento em matéria sucessória. Apesar de tudo continua a aplicar-se ainda
às sucessões abertas antes da entrada em vigor do mesmo.

Princípio dos direitos adquiridos: Pode resolver problemas de conflitos positivos de


sistemas, mas também pode ter um papel, em certa medida, no contexto dos conflitos
negativos de sistemas. Em que sentido? Em matéria de estatuto pessoal, o direito português
de fonte interna tem uma preferência pelo elemento de conexão nacionalidade que se expressa
desde logo no artigo 31º/1 e se traduz também noutras disposições do nosso Código - artigo
52º 53º etc.

O artigo 31º/2 é, porventura, a disposição que mais longe leva a relevância da lei
da residência habitual enquanto conexão importante em matéria de estatuto pessoal. Porquê?
São reconhecidos, em Portugal, os negócios jurídicos, subentenda-se do estatuto pessoal
porque o artigo 32º/2 C.C. é precisamente isso, é uma excepção, é uma norma que vem no
contexto do número 1, portanto, que se aplica no âmbito do estatuto pessoal. Se se tiver
celebrado um negócio de acordo literalmente com o 31º/2 é um negócio celebrado no país da
residência habitual de acordo com a lei desse país e desde que essa lei se considere
competente.
A própria ratio legis, a razão de ser do artigo 31º/2 C.C. aponta no sentido de que os
requisitos que aqui se estabelecem no artigo 31º/2 C.C. estão estabelecidos porque esses são os
casos mais frequentes, é o exemplo clássico de portugueses residentes habitualmente no
estrangeiro, por exemplo no Brasil, em país onde a lei da residência habitual se considera
competente nessas matérias e celebram certo negócio que, à partida, não seria válido de acordo
com a nacional, de acordo com a lei portuguesa. Ora nesses casos, se acordo com o artigo 32º/1
C.C. se esse negócio foi celebrado de acordo com a lei desse país, que se considera
competente, portanto, reconhece os efeitos desse negócio, esse negócio consolida-se na OJ da
lei da residência habitual, então a lei portuguesa reconhece a validade desse negócio,
ainda que este seja contrário ao direito material da nacionalidade dessas pessoas. O
verdadeiramente essencial não é o lugar da celebração, os portugueses que residem no
Brasil poder-se-iam ter deslocado a outro país estrangeiro para formalizar o negócio,
designadamente o casamento. O facto de terem formalizado o casamento ou aí terem feito
a festa, não afasta a circunstância de que o que é relevante é que esse negócio produza os
seus efeitos normais no país da residência habitual, consolide aí os seus efeitos. O negócio
jurídico em causa pode produzir os seus efeitos normais no país da residência habitual por duas
razões: 1)ou porque esse negócio obedeceu aos requisitos estabelecidos pelo próprio direito
material da residência habitual;2)Ou porque esse negócio foi celebrado ao abrigo da lei
considerada competente pela lei da residência habitual. Mesmo que este negócio tenha sido
celebrado não à luz do direito material da residencial habitual mas à luz da lei considerada
competente, mandada aplicar pela lei da residência habitual, se este negócio produz os
seus efeitos normais nesse país, então ele também tem que ser reconhecido em Portugal.
O que temos nesse caso? Se o negócio foi celebrado num terceiro país, à luz das normas, do
direito substantivo desse país, mas que é considerado competente pela lei da residência habitual
P á g i n a | 173

sendo reconhecido no país da residência habitual, aí produziu os seus efeitos, aí se consolidou,


então em Portugal também é reconhecido ao abrigo do artigo 31º/2 C.C. interpretado
extensivamente porque na lei só estão previstos os casos em que o negócio foi celebrado no
próprio país da residência habitual de acordo com a lei desse país. Mas aqui as razões são
exatamente as mesmas, a ratio legis é a mesma. Nesse caso já temos um caso de reenvio da lei
da residência habitual para uma terceira legislação fundado num terceiro princípio que
não é a harmonia jurídica internacional, não é estritamente o favor negotii, é uma forma
qualificada ou mais exigente do favor negotii - É o principio de reconhecimento dos direitos
adquiridos. A lei do terceiro país tem que se considerar competente? Não, porque, tal como na
hipótese anterior, o reenvio não é fundado na harmonia jurídica internacional mas no
princípio dos direitos adquiridos, na ideia de que se deve salvaguardar a existência de direitos
que foram adquiridos à luz de uma lei que, em princípio, não seria a lei competente mas que é a
lei da residência habitual e é celebrado à luz da lei da residência habitual quer essa lei seja
directamente aplicável, quer seja a lei mandada aplicar pela lei da residência habitual.

O Artigo 17º nº2 e nº3


Lpt -> L2n  L3rh

A LPT remete para a Lei da nacionalidade (L2) que pratica devolução simples remetendo
para a Lei da residência habitual (L3) e a L3 considera-se competente: Nesta hipótese, estamos a
operar dentro do domínio do estatuto pessoal, do âmbito de aplicação da lei pessoal, e, nesta
matéria, a lei portuguesa, no artigo 25º complementado por outras disposições, remete para
a lei da nacionalidade. Todavia, vamos admitir que a lei nacional (L2n) não se considera
competente e manda aplicar a lei do lugar da celebração de determinado ato ou NJ de
estatuto pessoal (L3) e essa L3 considera-se competente. Em princípio, devíamos aceitar o
reenvio devido à harmonia jurídica que conseguimos entre a L2 e L3. Mas o artigo 17º vem
estabelecer um desvio que aparece no nº2.

Em duas hipóteses do artigo 17º nº2 o reenvio cessa, o que é que elas têm de comum?
A questão da residência habitual. O que há de comum é o facto de que tanto num, como noutro
caso, as regras de conflitos correspondentes apontam para a lei nacional, quer nos casos
em que o interessado reside habitualmente em Portugal e já sabemos que as normas de
conflitos de fonte interna em Portugal têm uma preferência pela lei nacional, quer nos casos em
que o interessado reside habitualmente num outro país que considere aplicável a lei da
nacionalidade.
O que o número 2 diz é que estes dois casos fazem cessar o reenvio, ou seja, vai-se
aplicar a lei definida pela nossa norma de conflitos que, neste caso, é a lei da
nacionalidade. O nº2 está a dizer é que dentro do estatuto pessoal, há fundamentalmente
duas leis interessadas, duas leis com legitimidade para serem trazidas à colação para poderem
reger a matéria – a lei da residência habitual e a lei da nacionalidade – em Portugal, damos
prevalência à lei da nacionalidade, mas também consideramos que a lei da residência habitual
tem um papel significativo a desempenhar.
O artigo 17º nº2 tem, no fundo, estas duas ideias:

1) primeiro, a de que devemos evitar afastarmo-nos da aplicação da lei nacional


ou da lei da residência habitual;
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2) segundo, devemos ouvir, ter em consideração, o que diz a lei da residência


habitual.

Com base nestas duas ideias, o regime que aqui se estabelece, embora não atinja uma
harmonia jurídica internacional entre a lei da nacionalidade e a lei da residência habitual,
o que seria o ideal, consegue uma solução que é um mal menor porque aplica, por um lado,
uma destas leis mais estreitamente conexionadas – a lei nacional – e essa lei é mandada
aplicar pela outra, pela lei da residência habitual. A alternativa seria aceitarmos o reenvio para
uma terceira lei, neste caso, a lei do lugar da celebração, mas essa não é a lei da residência
habitual nem a da nacionalidade, e não estaria verdadeiramente conseguida a harmonia
jurídica internacional que releva na matéria do estatuto pessoal, porque a harmonia que
interessa nesta matéria é a harmonia entre a lei da nacionalidade e a lei da residência
habitual.

Assim, por força das especificidades do estatuto pessoal, em que a lei da


nacionalidade e a lei da residência habitual têm um papel preponderante, aqui não devemos
aceitar o reenvio para a terceira legislação nestas hipóteses em que a lei da residência
habitual aponta para a lei nacional como lei aplicável, quer o interessado esteja a residir em
Portugal, quer esteja a residir num outro país.

Os pressupostos de aplicação do artigo 17 nº2 para que o reenvio cesse são:

1) É preciso que o 17º nº1 esteja preenchido, sendo o número uma exceção ao nº1:
Em alternativa: O interessado resida habitualmente em território português;

2) Em alternativa:

a. O interessado resida habitualmente em território português;

b. O interessado reside noutro país que considera competente o direito


interno da nacionalidade – o país em causa não tem que ter a
nacionalidade como elemento de conexão, a lei nacional pode ser aplicável
por este aceitar o reenvio, por exemplo, o que importa é que considere
aplicável o a lei da nacionalidade.

Como estamos em matéria de estatuto pessoal pressupomos que se aplica, por causa
disso, a lei da nacionalidade. Isto dizendo que não estamos numa das exceções que não aponta
para a lei nacional.

Lpt(rh) -> L2(n)  L3(l)

A LPT (Lei da residência habitual) remete para a Lei da nacionalidade (L2) que pratica
devolução simples remetendo para a Lei da localização de determinado imóvel (L3) e a L3
considera-se competente.
Vamos admitir que por força do regime português de incapacidade negocial dos
menores existe um ato relativo a um imóvel, uma questão relativa a um imóvel, ou, de acordo
com o novo regime do maior acompanhado, o que importa é que há uma questão jurídica suscitada
em Portugal, sendo que a LPT remete para a lei da nacionalidade do incapaz (L2 ou LN)
P á g i n a | 175

relativamente a um ato no qual é relevante património imobiliário e LN considera aplicável


a lei do lugar do imóvel (L3) e esta considera-se a si própria competente. Nesta hipótese, qual é
a lei aplicável? L3, porque por força do artigo 17 nº3º só se aplica o número 1.

O número 2 é uma exceção ao número 1 e o número 3 é uma exceção à exceção, ou


seja, um regressar à regra do número 1.

O que é que está subjacente ao artigo 17º nº3? É verdade que nestas matérias a lei
nacional e a lei da residência habitual são as únicas duas leis interessadas, mas há uma exceção a
esta ideia, e esta exceção diz respeito às hipóteses de estatuto pessoal nas quais um elemento
patrimonial tenha uma relevância grande. Pode ter relevância para efeitos de se obter
exequibilidade da nossa decisão, ou seja, para que a nossa decisão seja eficaz no país no local
onde se encontra o património imobiliário que está em causa nessas matérias.
É claro que nas matérias indicadas no artigo 17º nº3, parte delas são regidas hoje
por regulamentos europeus, ou seja, a matéria da sucessão por morte não está sujeita ao
artigo 17º/3, salvo se a sucessão tiver sido aberta antes do início da vigência do
regulamento, e o mesmo acontece quanto aos regimes de bens na medida em que entrou
em vigor em Janeiro deste ano – o campo de aplicação do artigo 17º/3 está limitado, mas
quando ele se aplica, ele aplica a lei da situação dos imóveis porque essa mesma lei se
considera competente, para que se obtenha mais facilmente a exequibilidade, a eficácia, o
reconhecimento da decisão, emanada pelo aplicador do Direito em Portugal.

Requisitos de aplicação do 17º/3:

1) Lei da situação do imóvel considera-se competente;


2) Lei da nacionalidade considera competente a lei da situação do imóvel

Neste caso, a solução significa uma consagração indireta do princípio da maior


proximidade. Porque é que não é direta? Porque pressupõe que a lei nacional tenha como
competente a lei da situação dos imóveis. São precisos estes dois pressupostos, ao contrário
do que acontece com o artigo 47º em que basta que a lei da situação dos imóveis se
considere competente para que se afaste a aplicação da lei pessoal. Neste caso é preciso que
a lei pessoal mande aplicar a lei da situação dos imóveis (só assim é um reenvio).
Assim, por força do artigo 17º/3, temos dois princípios que justificam esta solução: o
princípio da harmonia jurídica internacional (entre a lei nacional e a lei do lugar do
imóvel) e o princípio da efetividade das decisões através do princípio da maior
proximidade que leva a afastar a lei em princípio competente, que seria a lei da
nacionalidade, para aplicar a lei do lugar do imóvel para promover essa mesma exequibilidade
da decisão.

Artigo 18º nº2


LPT->L2(n)->LPT

Estamos ainda dentro das matérias do estatuto pessoal, a lei portuguesa remete para a
lei da nacionalidade (L2 ou LN) que remete para a lei portuguesa, que é a lei da residência
habitual (LPT que é LRH).

Nos termos do artigo 18º nº2, temos que testar para saber se podemos ou não aceitar o
reenvio ou não. Quer por força do artigo 17º, quer por força do artigo 18º, temos que verificar se
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as regras especiais estabelecidas para o reenvio em matéria de estatuto pessoal o permitem ou


não. Neste caso, o artigo 18 nº2, ao contrário do artigo 17 nº2 que estabelece uma exceção em
relação ao nº1, não estabelece formalmente uma exceção, ao invés disso, determina
requisitos adicionais para se poder aceitar reenvio, mas é claro que quando faltarem esses
requisitos não há reenvio, o que determina, na prática, uma exceção.
Quais são os requisitos adicionais? Há dois requisitos em alternativa, ambos ligados à
residência habitual:

1) O indivíduo reside habitualmente em Portugal;


2) A lei da residência habitual não é a portuguesa, mas é outra lei, uma L3, que
considera competente o direito material português.

Neste caso, atingimos a harmonia jurídica internacional entre LN e LRH, temos um


acordo entre a lei da nacionalidade e a lei da residência habitual, é certo que a lei que vai ser
aplicada não é nenhuma delas, mas ambas estão de acordo no sentido em que se aplique a
LPT, pelo que aceitamos o reenvio. Se a lei da residência habitual remeter por devolução simples
para L2, que considera competente a LPT, o que a LRH está a fazer é considerar aplicável o
direito material português, logo, estão cumpridos os requisitos do artigo 18º e é atingida
uma harmonia entre LN e LRH.

Fora destes casos, não aceitamos o reenvio em matéria de estatuto pessoal. Por
exemplo, se a lei da residência habitual se considerar competente ou considerar uma outra lei
competente, nós vamos aplicar o artigo 16º e não o artigo 18º, pelo que aplicamos a lei
nacional e não a lei portuguesa.

Artigo 19º
LPT -> L2 (que é LN) -> LPT (que é LRH)

Voltamos à hipótese em que o artigo 18º nº1 e 2 estão preenchidos, mas vai acontecer
que, por força da aceitação do reenvio para a LPT, um determinado NJ que era válido à luz da
lei nacional deixa de ser considerado válido, e é considerado inválido, ou um determinado
NJ que era eficaz à luz da LN, mas não terá eficácia se for aplicada LPT, ou um
determinado estado pessoal que foi constituído e é considerado legítimo de acordo com
LN, deixa de ser considerado como constituído ou legítimo perante a aplicação da lei da
residência habitual que é a lei portuguesa. Quid iuris?

O artigo 19º nº1 responde, consagrando o princípio do favor negotii, não como
fundamento para o reenvio, mas como limite ou restrição ao reenvio.
Ou seja, o que é que o legislador estabelece aqui? Uma prevalência do princípio do
favor negotii sobre o princípio da harmonia jurídica internacional, naqueles casos
específicos que aqui estão referidos o reenvio cessa para garantir a salvaguarda da validade
e eficácia de determinado negócio jurídico ou estado pessoal.

Quanto ao alcance deste artigo é que há algumas divergências na doutrina, há


divergência sobre a que tipo de hipóteses este artigo se aplica.
Este artigo deve aplicar-se apenas a negócios jurídicos já celebrados, situações já
constituídas, ou também deve aplicar-se a situações a constituir, NJ ainda não celebrados
relativamente aos quais o princípio do favor negotii permitiria a sua celebração?
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Aqui temos doutrina nos dois sentidos, há quem entenda que esta disposição se aplica
apenas a situações já constituídas, e há quem entenda que se aplica também a situações por
constituir.

1) Argumento Formal que se apoia na letra da própria lei - Da própria letra do


artigo e seguramente do seu espírito, resulta o seguinte: o que o artigo 19º refere é
a invalidade de um negócio jurídico ou a ineficácia de um negócio jurídico ou
ilegitimidade de um estado, são factos que apenas ocorrem quando o negócio
jurídico já foi celebrado, ou quando a situação já foi constituída porque se a
situação não fosse constituída não ocorreria qualquer ilegitimidade de um estado ou
invalidade do NJ, o que aconteceria era que o negócio jurídico não poderia ser
celebrado, haveria uma não autorização para a celebração do negócio jurídico.

2) Ratio legis: O que se pretende é tutelar as expectativas que as partes


depositaram na válida celebração de um NJ à luz da lei designada pela nossa
norma de conflitos, e essas expectativas só são dignas de tutela jurídica quando o
NJ já foi celebrado, se ainda não foi celebrado, ainda estamos a tempo de o evitar,
portanto, as expectativas não se colocam nos mesmos termos e não são dignas da
mesma tutela

A perspetiva preferível é, no entendimento do professor Luís Barreto Xavier, aquela


que é defendida pelos professores Ferrer Correia e Baptista Machado, de acordo com os quais
este artigo só visa fazer prevalecer o favor negotii sobre a harmonia jurídica internacional
para situações já constituídas e NJ já celebrados.

Pelo contrário, o professor Lima Pinheiro não estabelece esta distinção e, portanto,
entende que se aplica o artigo 19º mesmo que o negócio jurídico ainda não tenha sido
celebrado.

Estamos sempre a optar entre dar prevalência a um princípio de harmonia jurídica


internacional ou favor negotii, nestas hipóteses, por definição, ou tutelamos um ou tutelamos
outro, e é uma questão de ver o que deve ter mais peso. Ora, quando o negócio jurídico já foi
celebrado é defensável que o favor negotii afaste a harmonia jurídica internacional, ao
contrário do que acontece quando o negócio jurídico ainda não foi celebrado, não se
impondo essa tutela de expectativas das partes porque essas expectativas não se
consolidaram na celebração efetiva do NJ já que as partes ainda estão a ver se vão ou não
conseguir celebrá-lo.

Vamos admitir que está em causa um NJ no qual tem de intervir necessariamente um


determinado oficial público, a questão em causa é saber se o oficial público, conservador do
registo civil, etc. está vinculado diretamente pelo artigo 19º que o obriga, ao abrigo do favor
negotii, a permitir a celebração do NJ, e a perspetiva do prof. Baptista Machado, Ferrer
Correia e LBarreto Xavier é que não, nesses casos, é o próprio oficial público que chamará a
atenção das partes e dirá que a lei aplicável é a lei aplicável por força do reenvio e, portanto,
não vamos poder permitir a celebração do NJ.
E se por incompetência do oficial público tal não acontecer? O professor Ferrer Correia
entende que nesses casos não é de operar o princípio do favor negotii, isto é, perante NJ já
celebrados perante oficial público português, o artigo 19º seria de aplicável a NJ celebrados
sem ser na presença de oficial público português.
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O prof. Ferrer Correia ainda vai mais longe dizendo que as expectativas só são dignas
de tutela jurídica pelo artigo 19º nº1 se havia, no momento da celebração, um elemento
de ligação com a OJ portuguesa. Assim, o prof. defende uma interpretação restritiva do
artigo 19º nº1, defendendo que o mesmo pressupõe que no momento da constituição da
situação ou da celebração do negócio jurídico, a situação em causa tivesse contacto com a OJ
portuguesa, a lei portuguesa fosse uma das interessadas, porquê? Porque na perspetiva de
Ferrer Correia, só desse modo seria digna de tutela jurídica a expectativa que as partes
tinham na aplicação da lei designada pela nossa norma de conflitos, ou seja, da L2. Se o
efeito do artigo 19º nº1 é fazer cessar o reenvio e fazer operar o favor negotii, aplicando a L2
designada pela nossa norma de conflitos, para o professor, isso só se justifica se as partes
podiam legitimamente contar com a aplicação da nossa norma de conflitos, e só podiam
fazê-lo se tinham acesso à norma de conflitos através de uma conexão qualquer da
situação a regular com a OJ portuguesa.

Porque é que o professor Luís Barreto Xavier não concorda com isto? Porque as
partes podem confiar na aplicação da L2, mesmo sem saberem que a regra de conflitos
portuguesa remete para a L2? E porquê? Porque é que nós remetemos para a L2? Porque
consideramos que é a OJ com que as partes podem mais facilmente contar com a sua
aplicação, nós remetemos para a L2 porque escolhemos um elemento de conexão cuja
concretização aponta para essa lei. E porque é que escolhemos esse elemento de conexão?
Porque entendemos que esse elemento exprime uma conexão mais estreita, e, portanto,
entendemos que as partes se orientaram e tinham a expectativa que essa lei fosse aplicável. Mas
as partes contam com regras de conflitos, na sua generalidade? Não, as partes podem
contar com a aplicação de certa lei sem saberem que a LPT remete para ela, podem contar com a
sua aplicação porque essa lei é a lei mais estreitamente conexionada com a situação. O prof.
Ferrer Correia defende que no momento da constituição da situação tem de haver uma ligação à
OJ portuguesa porque parte do pressuposto que as partes só teriam expectativas dignas de
tutela jurídica, só poderiam confiar na aplicação de L2 por referência da nossa norma de
conflitos, só que isso não é o que pode acontecer, pode acontecer que as partes se orientem
segundo a sua lei da nacionalidade ou a lei da situação do imóvel ignorando totalmente
que a nossa norma de conflitos remete para essa lei, o que as partes sabem é que as leis que
estão conectadas com a situação são potencialmente aplicáveis (princípio da não transatividade)
não por força de uma qualquer norma de conflitos, mas por força de essa lei ser uma das leis,
senão a lei, mais estreitamente conexionada com a situação.

O prof. Ferrer Correia defende que o artigo 19º nº1 não se pode
aplicar às situações que não tivessem essa ligação com a OJ
portuguesa, aceitando o reenvio. Já o prof. LBarreto Xavier
discorda, defendendo que as partes podiam contar com a
aplicação daquela lei e, consequentemente, ter expectativas
dignas de tutela jurídica por essa lei ser estreitamente
conexionada com a situação, pelo que é de aplicar o artigo
19º/1.

Artigo 19º nº2: Se tiver havido escolha das partes, não há reenvio, ou seja, segue-se
o disposto nos artigos 17º e 18º, o que significa que mesmo que a lei escolhida pelas partes
não se considere competente e remeta para uma outra legislação, vamos desconsiderar essa
referência feita pela lei escolhida porque entendemos que o princípio da autonomia da
P á g i n a | 179

vontade tem mais peso pelo que toca à tutela das expectativas das partes por força do
princípio da segurança jurídica. Porque o princípio da harmonia jurídica internacional é muito
importante, mas é instrumental relativamente à ideia de segurança ou certeza jurídica. Se
as partes escolheram a lei a observar, então obtém-se segurança jurídica ainda mais sólida e
direta que é a própria vontade das partes.
E se as partes tivessem remetido para determinada lei, mas querendo aplicar não o
Direito material dessa lei, mas sim o direito material da lei considerada competente por essa
legislação? Em teoria, isto é possível? É dizer que a escolha das partes era feita não por
referência material, mas por devolução simples ou dupla devolução, isto pode acontecer?
Se as partes tiverem expressamente dito que remetem não para o direito material do
país, mas para o direito material que a lei do país considera competente, sim.
E se for implicitamente? O que o artigo 19º determina é a cessação das regras dos
artigos 17º e 18º sendo esse o regime que é afastado, mas a questão que se coloca
verdadeiramente é se as partes quando escolhem a lei aplicável têm de fazer uma escolha direta
de um direito material de um ordenamento jurídico ou se podem escolher de forma indireta,
designando a lei aplicável tendo em consideração normas de conflitos e, eventualmente normas
sobre o reenvio estrangeiras.
Barreto Xavier defende que essa liberdade não está restringida pelo artigo 19º/2. O
artigo apenas exclui a aplicação dos artigos 17º e 18º, não exclui que as partes possam escolher
a lei de forma indireta – as partes podem escolher diretamente um direito material, ou podem
escolher indiretamente um determinado direito tomando como referência o direito de conflitos
de um outro sistema. Está em causa um mero problema de interpretação da cláusula de
escolha de lei ou da chamada electio iuris, e isto não choca com o artigo 19º/2 porque ele
não exclui o reenvio no geral, só o reenvio nos termos dos artigos 17º e 18º.

As partes poderiam convencionar na sua cláusula a aplicação dos artigos 17º e 18º
dizendo que escolhem o ordenamento jurídico X, mas se o mesmo não se considerar competente
é de aplicar a lei que seria designada se nesse ordenamento jurídico vigorasse o artigo
17º ou o artigo 18º do CC. Isto não violaria o artigo 19º/2 pelo simples motivo de que são
as próprias partes que designam de forma indireta a lei competente. O fundamentou ou
causa da designação da lei aplicável não é o regime legal dos artigos 17º e 18º. Eles
funcionam como cláusulas legais acessórias da escolha da lei, são como que materialmente
assumidas no contrato ou na cláusula de escolha de lei.

O artigo 19º nº2 também só vale para as hipóteses em que estamos a operar no interior
do sistema de fonte interna do foro, porque se estivermos a operar no âmbito do Regulamento
Roma I ou demais regulamentos em que a escolha da lei é admitida, temos de olhar às
soluções que os mesmos apresentam e não ao artigo 19º nº2.

Regulamentos

Poderíamos ser levados a pensar que, na medida em que estes Regulamentos operam
uma harmonização das normas de conflitos à escala da UE, os conflitos de sistemas estariam
eliminados dentro desse espaço e, portanto, o reenvio deixaria de ser necessário. Não será
assim, desde logo por causa do âmbito universal de aplicação espacial dos Regulamentos, já
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que estes se aplicam mesmo que a lei designada por força das regras de conflitos seja uma lei de
um Estado terceiro, ou seja, ou de um Estado que não é um Estado-Membro, ou de um Estado-
Membro não participante nos casos em que o Regulamento resulta de cooperação reforçada. E
nesses casos, que cabem no âmbito de aplicação espacial do Regulamento, podemos aplicar a lei
desse Estado, mas essa ordem jurídica não está harmonizada com os Estados Europeus, pode
não ter uma regra de conflitos semelhante à nossa e, nesse caso, o problema do reenvio pode
continuar a subsistir.

Qual a solução dada? Na generalidade dos Regulamentos — Roma I, II, III, … —,


temos a opção de rejeição do reenvio, encontramos normas que excluem expressamente o
reenvio, dizendo que se aplica o Direito material do ordenamento jurídico designado
pelas normas de conflitos do Regulamento em causa, com exclusão das normas de
conflitos desse mesmo ordenamento jurídico. Assim, estes Regulamentos partem de uma
referência à lei material estrangeira, à lei de Estados terceiros.

Mas não é isso que acontece no Regulamento em matéria sucessória, porquê?


Porque neste Regulamento encontramos o artigo 34º, que admite o reenvio em duas
hipóteses: Regra de conflitos do Regulamento remete para Lei de um Estado Terceiro 1, que
remete para a Lei de um Estado Terceiro 2, que se considera competente. Que lei é que se vai
aplicar? A Lei do Estado Terceiro 2, de acordo com o artigo 34º nº1 b). O que é que justifica
isto? A harmonia jurídica internacional. Temos, em matéria sucessória, o legislador europeu a
considerar relevante o princípio da harmonia jurídica internacional resolvendo um
conflito negativo de sistemas com base neste princípio.

Havendo dois cenários no 34º nº1 a):

1) O Regulamento remete para lei de Estado terceiro, que remete para a lei de um
Estado-Membro, que é, neste caso, a lei do foro. Está em causa um caso de retorno. A
lei do Estado-Membro, ou seja, a lei do foro aplica-se nos termos do artigo 34º/1
a).

2) Regulamento que remete para lei de um estado terceiro que remete para a lei do
Estado-membro, que não é a lei do foro. Está em causa uma transmissão de
competência e não de retorno, mas continua a estar em causa o artigo 34º/1 a) e
aceitamos o reenvio para esse Estado-Membro terceiro com base nesse artigo.

Esta aceitação do reenvio, segundo o artigo 34º/1 a), pressupõe que a lei do Estado
terceiro remeta para o Direito material de um Estado-Membro ou não? A lei do Estado
terceiro tem de considerar competente a lei do Estado-Membro ou basta que remeta para o
direito do Estado-Membro, independentemente de ser a título de referência material, devolução
simples ou dupla devolução?
Se esta regra estivesse contida no nosso CC, nós saberíamos, fazendo uma interpretação
sistemática, teríamos de exigir que a referência fosse feita para o nosso Direito material,
mas aqui estamos sem rede, como é que devemos interpretar isto?
Temos duas hipóteses de interpretação:

1) O Regulamento prefere que seja aplicável a lei de um Estado-Membro


a que seja aplicável a lei de um Estado terceiro, e, se for assim, basta
que o Estado Terceiro remeta para um Estado-Membro, não
sendo necessário que considere competente a lei desse mesmo
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Estado. Nesta hipótese, admitimos que um dos motores do reenvio é


privilegiar a aplicação da lei do Estado-Membro.

2) Segunda hipótese: Não há uma preferência do Regulamento pela


aplicação da lei do Estado-Membro e que, verdadeiramente, o que
está em causa na alínea a) e não só na alínea b), é a ideia de
harmonia jurídica internacional e, aí, devemos exigir que o
reenvio em causa conduza verdadeiramente à harmonia jurídica
internacional.

Para Barreto Xavier, para efeitos da alínea a), quando se diz Estado-Membro, está em
causa Estado-Membro participante. Isto é relevante porque o Regulamento em matéria
sucessória é de cooperação reforçada.149

Em caso de retorno, é necessário que o Direito estrangeiro remeta para o nosso Direito
material ou basta que remeta para o nosso Direito, independentemente do sistema conflitual
estrangeiro? Interpretando este regulamento, esta interpretação deve ser no sentido de
privilegiar a harmonia jurídica internacional ou no sentido de privilegiar a aplicação da
lei de um Estado-Membro? Qualquer que seja a resposta ela será sempre harmonizada no
interior dos Estados-Membros. Barreto Xavier: Não sabe qual a interpretação que vai
prevalecer e esta será certamente objeto de um reenvio prejudicial e o TJEU vai ter ocasião de se
pronunciar sobre a correta interpretação desse artigo. Barreto Xavier: Parece mais que está de
acordo com o espírito do Regulamento a aceitação da ideia de que se deve privilegiar a
harmonia jurídica internacional. É evidente que professor parte de uma pré-compreensão de
ter sido formado com base nos princípios fundamentais de Direito Internacional Privado
português em que o princípio da igualdade ou da paridade de tratamento tem um valor muito
importante e por isso admite poder estar enviesado. A questão está em aberto e aceita-se por
isso as duas perspectivas. E a perspetiva que o Regulamento privilegia a aplicação da lei de um
Estado-Membro não é absurda.

Nos Regulamentos da UE em matéria de Direito de conflitos temos por vezes soluções


diversas ou até contraditórias para as mesmas questões. Estes Regulamentos não são
necessariamente coerentes entre si – embora versem sobre matérias distintas e portanto não
criam situações de conflitos porque tem um âmbito material de aplicação diferenciado, por vezes
não se percebe muito bem porque é que, por exemplo, se aceita o reenvio em matéria
sucessória e não se aceita em matéria do divórcio. E é por isso que há autores que defendem

149De um ponto de vista da evolução do Direito Europeu, o que acontecia é que numa primeira fase a
Comunidade Económica Europeia não tinha competência para legislar em matéria de competência
internacional, lei aplicável ou reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras e, por isso, o que se
fez em 1968 foi celebrar-se uma convenção internacional entre os Estados que integravam a CEE na altura
(Portugal aderiu à convenção quando aderiu à CEE). Um primeiro passo que se deu, com o Tratado de
Maastricht, foi permitir aos Estados legislar diretamente através de Regulamentos da União Europeia e os
primeiros Regulamentos que foram aprovados eram necessariamente aplicáveis a todos os Estados-
Membros, mas havia 3 Estados que tinham uma posição, um estatuto, particular: Reino Unido, Irlanda e
Dinamarca – e esses Estados garantiram para si a liberdade de ficar de fora destes instrumentos. A partir
do Tratado de Lisboa, aparece a possibilidade de elaboração de Regulamentos que não obtêm a
unanimidade dos Estados-membros, mas que podem avançar como Regulamentos de cooperação
reforçada e, portanto, é necessário um determinado número de Estados que estejam a participar na sua
aprovação, mas não vincula necessariamente todos os Estados-Membros. Este regulamento em matéria
sucessória é ao abrigo da cooperação reforçada.
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que o legislador europeu se deveria preocupar em projetos no sentido de unificação do


Direito material europeu – como um CC Europeu –, mas sim deveria acontecer uma
unificação global do Direito de conflitos a nível europeu, substituindo esta dicotomia que hoje
temos. Deveria aparecer uma codificação coerente e completa do Direito de conflitos a nível
europeu – por isso mesmo, muitos autores defendem que deveria haver um Regulamento
Roma 0, que seria um regulamento a estabelecer uma parte geral do Direito Internacional
Privado aplicável a todos os regulamentos e uma conclusão da elaboração de
regulamentos das matérias ainda não cobertas por este esforço legislativo.

Ordem Pública Internacional

A ordem pública internacional é o mecanismo


que garante a tutela da unidade essencial do
ordenamento jurídico do foro perante a ameaça
que a aplicação de certos conteúdos jurídicos ao
caso concreto poderia vir a provocar.

Tradicionalmente a ordem pública internacional era vista como um conjunto de


normas e princípios internacionalmente imperativos em cada Estado – normas e princípios
que o Estado não poderia prescindir ao tratar de situações plurilocalizadas. Seria uma
espécie de núcleo duro de normas e princípios que constituiriam uma fortaleza inultrapassável
do sistema. Ou seja, o conceito de ordem pública era visto como um conceito-conteúdo. Então, a
propósito de determinada norma poderia discutir-se se essa norma era ou não de ordem pública
internacional ou se um determinado princípio era ou não de ordem pública internacional. Se
fosse então a aplicação da lei estrangeira tinha que ser travada. Se não fosse então a lei
estrangeira poderia ter direito de entrar na sua aplicação em Portugal – poder-se-ia aplicar a lei
estrangeira.

A tentativa da ordem pública internacional como conjunto de normas e princípios


pertencentes ao Direito do foro, dotados de imperatividade, não apenas no plano interno, mas
também no plano internacional, falha: não apenas porque tal conteúdo seria sempre
indeterminável, mas sobretudo indefinível. É esta a perspetiva de Luís Barreto Xavier. Por
força dos dados legislativos relativos à ordem pública internacional o que podemos concluir é
que o conceito de ordem pública internacional não é um conceito-conteúdo, mas sim um
conceito-função – é um conceito funcional. Quer isto dizer que não podemos afirmar que a
ordem pública seria uma zona central, um o conjunto de normas e princípios internacionalmente
imperativos contra os quais a lei estrangeira nunca poderia por em causa – esta é a perspetiva
da ordem pública internacional como conteúdo. Para o professor Luís Barreto Xavier esta
tradicional perspetiva é errada, a Ordem Pública Internacional deve então ser definida pela sua
função e não pelo seu conteúdo. Sendo a sua função “a de proteção do reduto inviolável do
ordenamento jurídico nacional”. Reduto esse que não se deixa reduzir a um conjunto de
princípio ou de normas, mas que apenas se apura no confronto com a aplicação hipotética do
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conteúdo jurídico estrangeiro, sendo que o ordenamento jurídico tem de ser tomado no
seu todo como referente a essa análise, é a sua unidade essencial que está em causa para
apurar uma possível incompatibilidade de aplicação da Lei estrangeira.
Por isto mesmo se diz que a OPI não pode ser uma função-conceito, tem um escopo tão
largo quanto o ordenamento jurídico do foro atendendo às várias soluções estrangeiras
passiveis de serem designadas. A tentativa de definir pelo conceito seria pois um autêntico
fracasso, melhor é definir pela sua função, desta forma todas as situações, mesmo as
imprevisíveis, estarão no âmbito do conceito.

A ordem pública não serve para afastar qualquer solução que seja diferente da que
resultaria da aplicação do nosso ordenamento, mas apenas as soluções que, na prática,
violariam a unidade essencial do ordenamento do foro.

Vendo as coisas de acordo com a pré-compreensão tradicional o casamento poligâmico é


contra a ordem pública internacional portuguesa. Só que na perspetiva de Barreto Xavier
não é o casamento poligâmico em si que é contra a nossa ordem pública, o que pode ser
contrário à nossa ordem pública é a aplicação deste instituo em certas circunstâncias pelos
órgãos de aplicação do Direito em Portugal. O instituto só por si não é insuscetível de ter
aplicação em Portugal. A é casado com B, C e D. São nacionais de um país islâmico que admite a
poligamia. D, a quarta mulher, vem em Portugal pedir alimentos do seu marido invocando como
causa de pedir a existência de um casamento poligâmico. O juiz português não deve recusar a
atribuição de alimentos à quarta mulher do casamento polígamo com fundamento em que o
casamento poligâmico é contrário à ordem pública, pelo menos não necessariamente.
Outro exemplo será o do Repúdio unilateral (instituto do talaq)150: Instituto do
direito islâmico que permite a dissolução unilateral do casamento pelo marido através da
pronúncia por três vezes da palavra talaq – é um instituto que nos choca porque se trata de um
puro e simples repúdio unilateral, mas sobretudo porque só pode ser operado pelo marido e
nunca pela mulher e, portanto, estabelece uma discriminação em razão do sexo absolutamente
inadmissível na nossa maneira de pensar e violadora, por exemplo, do artigo 13º da CRP. É
verdade que este instituto em abstrato até se pode dizer “incompatível” com a unidade do nosso
sistema, masa análise tem de ser feita em concreto e não em geral ao instituto, tendo em
conta as consequências da aplicação da OPI. Por exemplo se um casamento foi dissolvido por
talaq no país de origem do casal e se a mulher repudiada vem a Portugal e quer casar-se, o juiz
português deve recusar a celebração do casamento com fundamento na invalidade da dissolução
do casamento porque não reconhece a validade do talaq porque é contrário à ordem pública?
Pela mesma ordem de ideias do exemplo anterior não.151 Ao aplicar a OPI é preciso ter em conta
a consequências concretas do afastamento ou não afastamento da lei estrangeira
designada pelas regras de conflitos.

150 O repúdio ou talaq é um termo genérico que designa os diversos modos de dissolução do casamento
islâmico. e constitui prática comum no mundo árabe. Com efeito, nestes países, o direito está intimamente
ligado à religião e os princípios do Corão frequentemente inspiram e enformam as normas jurídicas.
151“Concluímos que o tribunal português faz uma aplicação in concreto do conceito de ordem pública
internacional, pois se o repúdio, in abstracto, viola o princípio da igualdade como consagrado na nossa CRP,
no caso concreto isso acaba por não obstar ao reconhecimento da sentença marroquina.” Isto é, os institutos
em si não contrários à OPI. Só em concreto devemos fazer análise.
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A contrariedade à nossa ordem pública não é uma contrariedade entre conteúdos


– entre o conteúdo jurídico estrangeiro e o conteúdo jurídico português – mas sim uma
contrariedade entre a aplicação concreta de um determinado conteúdo estrangeiro e a
nossa unidade essencial do nosso ordenamento jurídico.
Por exemplo, o princípio da igualdade entre sexos, que é para nós um princípio essencial,
fazendo parte da conceção de Estado de Direito democrático em que nos situamos, pode não
operar uma impossibilidade de aplicar uma lei estrangeira que se fosse abstratamente
considerada seria contrária a esse princípio, mas que neste caso não vai esbarrar,
precisamente porque a ordem pública é um conceito funcional e não um conceito conteúdo. Ou
seja, tem a maleabilidade suficiente para permitir que um conteúdo jurídico estrangeiro possa
não ser aplicado ao caso concreto quando os resultados dessa aplicação sejam incompatíveis
com o ordenamento jurídico português, tido e entendido na sua unidade essencial – não como
um conjunto parcial de princípios e de normas que são totalmente inexpugnáveis, mas como
uma unidade valorativa e de sentido que abrange todas as normas, princípios e valores aqui
consagrados.
Este é o entendimento de Barreto Xavier.

Também temos o famoso, de leitura altamente recomendada, acórdão do STJ de 16 de


maio de 2018 em que se disse contrário à ordem pública internacional a aplicação da lei inglesa
que permite deserdar os herdeiros legitimários, por essa consequência ser contrária à ordem
jurídica portuguesa. Note-se não foi o testamento em si considerado inválido, apenas se
conformou com a quota indisponível, dando às três filhas, que eram afastadas pelo testamento
do testador inglês (ao qual se aplica a lei inglesa possivelmente), o seu respetivo direito
sucessório.152 Este acórdão além de tratar da ordem pública explica muita da matéria e teses
doutrinárias que vamos ver e que já vimos.

O artigo 22º do Código Civil consagra a ordem pública internacional como exceção ou
limite à aplicação da lei competente, por isso referindo a doutrina que se trata de uma
ressalva ou reserva que acompanha a designação da lex causae. O momento da sua intervenção
é, consequentemente, posterior à determinação do direito aplicável, apenas tendo lugar
depois de esgotados os mecanismos da sua designação153 e correção154.

152“A legítima hereditária dos herdeiros forçosos (integradora do conceito de ordem pública) está
assente em tradição jurídica que permeia o Direito sucessório português, ininterruptamente, desde
data anterior à da própria nacionalidade, sendo incontornável e inquestionável que o princípio da
tutela dos herdeiros legitimários é um dos princípios fundamentais do nosso direito sucessório, tento
até sido reforçado pela reforma de 1977 do Código Civil. MM. Por outro lado, nada no Direito da
União Europeia, em convenções internacionais de que Portugal seja parte ou em instrumentos
internacionais de direitos humanos contraria a legitimidade desta protecção dos herdeiros
legitimários. NN. Não se pretende concluir que, sempre e em todos os casos, a existência de uma
diferença entre a tutela sucessória prevista na lei portuguesa e numa lei estrangeira acarrete a
violação da ordem pública internacional. Mas há casos em que essa violação é realmente manifesta:
aqueles em que herdeiros legitimários são totalmente privados de uma quota hereditária”

153 Regras de conflitos, regras sobre o reenvio, fraude à lei, entre outras.
154 Adaptação
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Diferença das NAI

Mesmo quem não entenda as coisas neste sentido em termos teóricos, em todo o caso
hoje há uma evolução aceite, mais ou menos, consensualmente, que deixa de identificar
certas normas como de ordem pública internacional propriamente ditas e passa a
entender certas normas que querem ter eficácia internacional como normas de aplicação
imediata. (Alguma doutrina reconduz leis de ordem pública às NAI.)

As NAI e a Ordem Pública Internacional são realidades substancialmente


diferentes. Como tal, normas de aplicação imediata que não são aplicáveis sempre e em todas as
hipóteses, mas apenas nas hipóteses relativamente às quais exista a conexão ad hoc prevista
pela própria norma de aplicação imediata, o nº1 do artigo 22º apenas consagra a reserva de
ordem pública, isto é, a ordem pública na sua conceção aposteriorística ou negativa, o que vem a
ser até reforçado pelo regime do nº2, ao afastar uma simetria entre afastamento da aplicação
da lei estrangeira e aplicação concomitante da lei portuguesa pertinente.
Ou seja, as normas de aplicação imediata não são propriamente normas de ordem
pública internacional, são normas internacionalmente imperativas, mas cuja imperatividade
internacional depende da verificação em concreto da conexão que elas próprias estabelecem –
portanto não vale para todos os casos, mas apenas para os casos em que elas próprias
considerem que devem estar abrangidos na sua própria previsão espacial.

Concretização do Conteúdo-Função

Depois de passarmos pela qualificação, determinação da lei aplicável, eventuais conflitos


de qualificações, podemos ter de resolver um problema de ordenamentos plurilegislativos,
depois ver o problema do conflito de sistemas, etc, chegamos a uma determinada lei aplicável.
Caso esta seja uma lei estrangeira, (único caso em que a ordem pública internacional
intervém155) vamos ponderar quais serão os resultados concretos da aplicação dessa lei
estrangeira. Quais seriam esses resultados? Temos que confrontar esses resultados com a
ordem pública internacional do Estado do foro.

Mas como é que confrontamos se não existir um conjunto de normas ou de princípios


que são de ordem pública, como defendia a visão tradicional?
Não ser um conceito-conteúdo não quer dizer que não haja áreas do ordenamento
jurídico particularmente relevantes para o efeito do apuramento de compatibilidade com a
nossa ordem pública e entre essas zonas sensíveis, entre os aspetos que podem ser trazidos à
colação para argumentar no sentido da violação da ordem pública. Tudo isto pressupõe que o
Direito é uma disciplina argumentativa e prática. Há certos aspetos e fontes dentro do
ordenamento jurídico que têm que ser especialmente considerados. O primeiro desses é a CRP

155Não confundir a OPI com a Ordem Pública (interna) que aparece em artigos como 81º nº1, 280º, 281º
etc…
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– sendo a CRP o alicerce fundamental de todo o ordenamento jurídico, não pode deixar a
CRP de ser o primeiro elemento argumentativo para demonstrar uma eventual
incompatibilidade com a nossa ordem pública. Mas isto não significa que não possa haver
incompatibilidade com a nossa ordem pública mesmo quando a CRP seja completamente omissa
a esse respeito. A nossa CRP nada estabelece pelo que toca à proteção dos herdeiros
legitimários – é completamente omissa, no entanto a nossa jurisprudência têm entendido que
a tutela dos herdeiros legitimários em certas circunstâncias e, portanto, no caso concreto tendo
em conta os efeitos concretos da aplicação da lei estrangeira, pode violar a nossa ordem pública
e se violar, a lei estrangeira em causa não pode ser aplicada. Então que elementos temos que
considerar em primeiro lugar? A CRP, Textos fundamentais que vinculam o Estado português
como a DUDH, CEDH. Textos que formam o ordenamento jurídico português no seu todo. E
temos a própria existência de normas de aplicação imediata, que pode exprimir também a maior
força que se pretende dar a certos princípios ou a certo tipo de tutela. Há ainda instrumentos de
fonte europeia e internacional, que também podem demonstrar a incompatibilidade com a
ordem jurídica portuguesa, podendo esta argumentação basear-se neles uma vez que fazem
parte do nosso ordenamento. Temos por isso um vasto campo argumentativo que se abre
perante o intérprete.

Considerar ainda que ao estabelecer um limite à aplicação da lei em princípio


competente a cláusula de ordem pública vai afastar ainda a prioridade dada aos princípio que
fundamentam o reconhecimento da aplicabilidade de um direito estrangeiro, e que descendem
do valor da segurança jurídica, como o da conexão mais estreita e o da harmonia jurídica
internacional, para fazer prevalecer uma exigência que resulta fundamentalmente da
justiça material. A intervenção desta cláusula deve por isso ocorrer quando a violação da
ordem pública é manifesta ou ostensiva.

Nexo de Proximidade
De acordo com o 22º a ofensa da ordem pública internacional portuguesa advém da
aplicação concreta de preceitos estrangeiros. Deste modo cabe aplicador do Direito tomar em
consideração fatores dirigidos a reduzir a margem de indeterminação na ponderação valorativa
que lhe cabe. Um deles tem que ver com a distância temporal e espacial relativamente à
situação sub judice. A probabilidade da incompatibilidade com a ordem pública internacional
tenderá a ser proporcional à intensidade do nexo de proximidade entre a situação em causa
e a ordem jurídica do foro. Um fator conexo a considerar é a distinção entre hipóteses em que
está em causa a constituição no Estado do foro de dada situação jurídica, casos em que a ordem
pública deverá ser mais exigente, e hipóteses onde se pondera a atribuição de certos efeitos a
situações já constituídas no estrangeiro.

Assim além dos textos jurídicos fundamentais ao foro há outros elementos de


ponderação para o apuramento da ordem pública que já nem tem que ver com o conteúdo de
certos vetores do ordenamento jurídico, sendo um desses fatores a maior ou menor ligação
com a ordem jurídica do foro. Se a situação em causa foi constituída no estrangeiro, já foi
constituída e tem pouco impacto na ordem jurídica portuguesa, é mais provável que a ordem
pública internacional não deva intervir. Se, pelo contrário, se pretende constituir em Portugal
uma determinada situação, o crivo de avaliação tem que ser mais exigente – basta pensar na
ideia do casamento poligâmico. Se perante um conservador do registo civil português um
islâmico quiser casar pela 3ª vez, não tendo sido dissolvidos os casamentos anteriores, o
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conservador do registo civil português vai dizer que não – apesar da lei pessoal o permitir casar,
em Portugal autorizar a celebração deste casamento seria contrário à ordem pública
internacional do Estado português. Aqui a ordem pública intervém de forma mais intensa
porque a conexão com a ordem jurídica portuguesa é mais forte. Pelo contrário, se se trata de
uma situação já constituída no estrangeiro, há uma conexão menos intensa com a ordem jurídica
portuguesa e por isso o crivo da ordem pública será menos exigente.
Aqui se mostra também que a conceção que a ordem pública é um conceito-
conteúdo não explica esta divergência entre as soluções em ambos os casos. Pelo contrário,
a ordem pública como conceito-função já permite esta realidade de soluções.

Método de Atuação
O modo de atuação da OPI não passa por uma análise abstrata do Direito estrangeiro ou
uma qualificação desse como contrário à ordem pública internacional – não olhamos para uma
norma ou princípio estrangeiro e dizemos que é contrário à nossa ordem pública
internacional, o que o aplicador do Direito tem que fazer é verificar quais seriam as
consequências e resultados da aplicação no caso concreto da norma ou princípio
estrangeiro em causa. Só perante os resultados concretos da aplicação é que o aplicador do
Direito pode concluir ou ajuizar a incompatibilidade com a ordem pública internacional.
Para o fazer, naturalmente, tem que ter em conta o peso relativo que tem o vetor do
ordenamento jurídico do foro em causa, o peso que tem no contexto do ordenamento
português, mas também ter em conta outros fatores, como a distância espacial entre a situação
em causa e a ordem jurídica do foro. É evidente que sabemos que é aplicável uma lei estrangeira,
e se é aplicável uma lei estrangeira é porque essa lei tem um contacto estreito com a situação,
mas são os órgãos de aplicação do Direito que têm de se pronunciar sobre a contrariedade à
ordem pública internacional, e por isso, um aspeto essencial para decidir se há ou não
incompatibilidade com a nossa ordem pública é a existência conexões significativas com
essa ordem jurídica. Isto porque se a situação fundamentalmente surgiu na órbita de um
ordenamento jurídico estrangeiro, é menos provável que deva intervir a ordem pública
internacional.

Se, pelo contrário, a situação se projeta sobre pessoas com nacionalidade portuguesa ou
residentes habitualmente em Portugal ou que ponham em atuação mecanismos processuais em
Portugal que impliquem uma alteração da ordem jurídica em Portugal, então nesses casos a
ordem pública internacional vai intervir de forma mais exigente.

Isto que acontece no plano espacial, ou seja, há uma proporcionalidade entre a existência
de conexões com a ordem jurídica portuguesa e o grau de exigência do crivo da ordem pública
internacional, também acontece no plano temporal. Uma coisa é atribuir um efeito jurídico a
uma situação que já se constituiu no passado, que já produziu efeitos anteriormente no passado,
e aí estamos meramente a valorar a possibilidade de continuação ou produção dos efeitos, outra
coisa é que a situação jurídica em causa possa ser constituída em Portugal – caso em que somos
mais exigentes. Portanto, temos também uma proporcionalidade entre a proximidade temporal
e o grau de exigibilidade do crivo.
P á g i n a | 188

Consequências da intervenção da ordem pública internacional

O que é que acontece quando uma norma estrangeira, que seria aplicável por força do
nosso Direito de conflitos, não pode ser aplicada nos termos do artigo 22º? Este artigo diz que
não são aplicadas as normas do direito estrangeiro quando essa aplicação envolva a
violação da ordem pública internacional do Estado português.
Noutros textos, previstos nos Regulamentos, exige-se que a incompatibilidade com a
ordem pública internacional seja manifesta e é essa a orientação que deve ser seguida
pelos órgãos de aplicação do Direito. Isto é, na dúvida não se pode concluir por uma
incompatibilidade com a ordem pública internacional, porque utilizar de forma frequente e
muito estrita esta cláusula significaria pôr em causa o próprio sistema de normas de conflitos.
Todo este sistema assenta numa certa fungibilidade entre soluções normativas ou entre direitos.
O nosso sistema de valores e princípios, a nossa justiça não é a única válida no mundo e,
portanto, só podemos considerar a existência da violação da ordem pública internacional
quando ela seja manifesta. Agora, uma vez que ela apareça, e ela tem que ser decidida por via
argumentativa – porque essa é uma característica essencial do Direito, enquanto ordenação
normativa que assenta não em verdades científicas pré-estabelecidas, mas numa construção de
soluções com base em fontes e argumentando com base nos princípios e valores que essas fontes
concretizam – o que é que vai acontecer no caso dessa incompatibilidade com a ordem pública
internacional?

A primeira consequência é a não aplicação da norma ou princípio cuja aplicação ao


caso concreto seria contrário à ordem pública internacional — Efeito negativo da cláusula
de OPI. Apesar de não surgir necessariamente, pode surgir uma lacuna da não aplicação da
norma em causa. Também pode não surgir, porquê? A norma em causa pode ser excecional
ou especial, cuja não aplicação resolve, por si, o problema, pode não haver lacuna. Se
determinada norma proibitiva que estabelece um limite à autonomia da vontade é contrária à
ordem pública internacional, então não é necessário encontrar uma norma permissiva,
porque o desaparecimento da norma proibitiva contém em si a solução.
Noutros casos, porventura a maioria, é necessário encontrar uma solução, integrando a
lacuna que resulta da não aplicação das normas materiais do ordenamento jurídico que seria
competente. Aqui, tradicionalmente, o que se fazia era aplicar o direito do foro, sem mais. A
norma estrangeira da lex causae contraria a ordem pública e logo aplicamos o Direito português
à situação. Mas não é esse o caminho que nos é dado pelo CC. O CC apresenta-nos, pelo
contrário, uma forma direta – um primeiro passo – e de forma indireta – um segundo
passo.

De forma direta, o artigo 22º nº2 vem estabelecer que o aplicador vai procurar normas
apropriadas na própria lex causae. Vai tentar encontrar a solução no seio da lex causae, tentar
verificar se existem normas que nesse país dão resposta ao problema em causa e que não violem
a nossa ordem pública. Assim, por exemplo, se uma determinada norma excecional é exceção a
outra norma, que é a norma geral, que em todo o caso precisa de se aplicar porque se não
se aplicasse teríamos uma lacuna, então o mais normal será que a norma geral possa aparecer
como solução. Barreto Xavier: A via é possível quando não desnatura completamente o
sentido da norma geral. Se a norma geral manifestamente não for apropriada à situação, então
não podemos estar a falsificar uma aplicação de uma norma porque a norma muitas vezes está
intrinsecamente ligada a uma determinada previsão e pode não fazer sentido fora dessa
previsão. Logo, a questão que se coloca é, naqueles casos em que ou não existem normas
P á g i n a | 189

apropriadas porque elas não existem, ou porque não existem normas ou porque não são
apropriadas, o que é que acontece?

O artigo 22º parece apontar para o recurso ao Direito português.


Barreto Xavier: O artigo 22º comporta outra interpretação, porque ao reportar-se às
normas apropriadas da lei competente, refere-se não apenas à que era em princípio a lex causae,
à lei cujas normas são contrárias à nossa ordem pública internacional, mas pode também
referir-se às normas que possam ser subsidiariamente competentes. Portanto o Direito
competente é o Direito competente a título primário ou subsidiário. Por exemplo, se as
normas de direito da nacionalidade são contrárias à ordem pública internacional e não
encontramos normas apropriadas que possam resolver o caso no seio da lei da nacionalidade,
antes de recorrermos ao direito português recorremos ao direito subsidiariamente
competente, o da residência habitual.
Só na falta desse é que recorremos ao Direito interno português, porque o recurso ao
Direito português é meramente um recurso que tem como finalidade evitar a negação da
justiça. Ao considerarmos a norma estrangeira, na sua aplicação ao caso concreto, incompatível
com a nossa ordem pública internacional, não estamos a dizer que temos que aplicar a solução
portuguesa, mas estamos a dizer que a solução estrangeira não pode, no caso, ser aplicada.
A aplicação do Direito português não é um fim, mas um mero instrumento para evitar a
negação de justiça. Assim primeiro temos de verificar a norma estrangeira
subsidiariamente seria designada pelas regras de conflitos. Só desta forma se evitam
soluções artificiais e imprevisíveis, cumprindo o valor primário do DIP. As normas apropriadas
do Direito estrangeiro competente serão as normas primariamente competentes e as normas da
ordem jurídica subsidiariamente aplicável. Ou seja, por exemplo, em estatuto pessoal, a lei
aplicável é a lei nacional (em princípio segundo o CC). As normas que nesse ordenamento dão
resposta à situação, na sua aplicação concreta, seriam contrárias à nossa ordem pública
internacional, logo, o primeiro passo é encontrar, dentro do ordenamento da nacionalidade,
normas que possam ser apropriadas para resolver o caso e, se elas não existirem, recorremos ao
Direito estrangeiro competente a título subsidiário, porque as normas subsidiariamente
competentes são aplicáveis quando as primeiras não sejam. Só na falta de Direito subsidiário
apropriado (lei da residência que muitas vezes é tida como critério subsidiário) é que
recorremos à lei do foro. Isto pode acontecer ou porque não existe direito subsidiário, ou não
existe conexão subsidiária, ou essa é concretizada pela mesma lei156, ou essas normas no caso
concreto também seria incompatíveis com a nossa ordem pública internacional, só nesses casos
é que recorremos ao Direito português, porque a aplicação do Direito português aqui é
meramente uma solução de recurso para evitar a negação da justiça.

Regulamentos

Encontramos esta cláusula da ordem pública internacional ou reserva de ordem pública


internacional também na generalidade das convenções internacionais relativas ao Direito de
conflitos e encontramos ainda nos Regulamentos da UE que estabelecem soluções conflituais.

156 Casos em que a lei da nacionalidade é a mesma que a lei da residência habitual.
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Esta é uma cláusula que existe em todos os ordenamentos. Nenhum Estado prescinde de uma
última palavra sobre as normas materiais que aplica ao caso concreto.

Esta ordem pública internacional será a mesma numa convenção internacional, num
texto de direito interno ou num Regulamenta da UE? Aqui temos que distinguir duas coisas: Uma
coisa é a função da norma e da cláusula, outra coisa são os contornos da cláusula. A função é
semelhante nos diferentes instrumentos, porque se trata sempre de evitar a aplicação ao
caso concreto de uma norma estrangeira com fundamento na contrariedade
relativamente ao ordenamento jurídico do foro – contrariedade não apenas por divergência,
mas por incompatibilidade com a unidade essencial.

Mas os contornos podem ser diferentes, porque tal como no artigo 22º do nosso CC
se estabelece determinada solução para as consequências da violação da ordem pública
internacional, também no DUE o TJEU se arroga do direito de estabelecer os casos em que o
tribunal do foro pode estar a extravasar da sua competência para indicar a existência de
uma contrariedade à ordem pública internacional.
Assim, por exemplo, em determinadas decisões do TJEU, expressamente se indica que a
função da cláusula de ordem pública internacional sem dúvida é de tutela de interesses ou
valores nacionais, mas também se indica que cabe ao próprio tribunal sindicar e verificar
não se foi bem ou mal aplicada a cláusula, mas se foram ou não excedidos os limites
dentro dos quais a cláusula é estabelecida.

Encontramos a OPI nos regulamentos nas seguintes localizações: artigo 21º do Roma I,
26º do Roma II, 12º do Roma III, 35º do Reg. Sucessório. Ainda no plano de reconhecimento
de sentenças aprece a intervenção travão da OPI no 34º do Bruxelas Bis I. Também a
encontramos no Bruxelas II bis no seu artigo 23º.

Mais aplicações e Conclusões

A cláusula de ordem pública internacional, para além de limite à aplicação do Direito


material estrangeiro, também aparece como limite ao reconhecimento de sentenças
estrangeiras. O Direito Internacional Privado organiza-se em torno de três eixos: Direito de
conflitos, Direito de reconhecimento de sentenças, Direito de competência internacional.

Também quanto ao reconhecimento de sentenças estrangeiras é possível travar a


atribuição de efeitos a uma sentença estrangeira quando a aplicação concreta dessa
sentença, quando o reconhecimento e execução poderiam fazer perigar a unidade
essencial da ordem jurídica do foro. Isso está previsto no CPC e nos Regulamentos que se
ocupam da matéria do reconhecimento de sentenças estrangeiras e convenções internacionais
sobre as mesmas matérias.

Aqui importa ter presente que no Regulamento Bruxelas I BIS, é o próprio legislador
do Regulamento que estabelece que não pode ser afastado o reconhecimento de uma
sentença estrangeira, não pode ser considerado como incompatível com a nossa ordem
pública internacional uma determinada violação de competência internacional, ou seja, é
P á g i n a | 191

o legislador que exclui a liberdade do aplicador do Direito na definição dos contornos da


ordem pública internacional. 157

Portanto, temos aqui esta importante cláusula que é uma cláusula que salvaguarda o
funcionamento do sistema conflitual na medida em que, como dizia um autor, o funcionamento
do Direito de conflitos significa um salto para o desconhecido, e a ordem pública internacional
consiste num paraquedas para que o salto não se traduza num salto para o abismo.

Um despacho do instituto do registo e notariado, despacho esse de 2010 na sequência da


aprovação da lei 9/2010 que institui o casamento entre pessoas do mesmo sexo. De acordo com
este despacho 87/2010 do instituto do registo e do notariado acontece que quando duas
pessoas estrangeiras ou uma pessoa nacional e outra estrangeira do mesmo sexo querem
casar em Portugal, as conservatórias do registo civil são obrigadas a admitir a celebração
deste casamento mesmo que a respetiva lei pessoal não autorize o casamento entre
pessoas do mesmo sexo e o fundamento que aqui aparece é o respeito pelo princípio da
OPI do Estado Portugal - artigo 13º e 15º C.R.P. e artigo 22º C.C.

Quando o nubente estrangeiro não possa apresentar o certificado de capacidade


matrimonial então a sua capacidade deve ser apreciada segundo o artigo 22º C.C. Não
colocamos a questão no plano ideológico ou no plano dos valores ou princípios morais e éticos,
colocamos a questão no estrito plano ético-jurídico do nosso DIP. Sabemos que a intervenção da
cláusula de OPI, muitas vezes, põe em causa a harmonia jurídica internacional. Portanto, esse é
um fator, sem dúvida, a ter em conta mas por si só não consegue dar uma resposta.

A invocação da cláusula da OPI é uma invocação no mínimo discutível porque o


modo como o artigo 22º está redigido, e corresponde ao modo como esta cláusula é
consagrada nos regulamentos da U.E. e em outros diplomas de direito interno e
convencional, o modo como a cláusula esta redigida nesses textos é um modo bem diverso
daquilo que resulta do funcionamento em que aqui é invocada a OP.
Isto porque em todos esses casos está em causa a não aplicação de certa lei
estrangeira tendo em conta os resultados concretos que decorrem da aplicação dessa lei
estrangeira, resultados aferidos através do caso concreto. Temos aqui uma diretriz geral, o
que temos é basicamente uma nova regra, que a OP não intervém como excepção mas como
regra. A solução material da hipótese - possibilidade de celebração do casamento - aparece
como regra e não como exceção.

Questão se de facto o casamento entre pessoas do mesmo sexo é algo que é


imposto pela C.R.P., se é um instituto que a C.R.P. exige, ou, pelo contrário, é algo que está
na disponibilidade do legislador ordinário. Ou seja, se o legislador ordinário pode ou não
avançar com esta solução dentro do poder de conformação que ele tem no plano infra-
constitucional. Há um argumento usado pelo Tribunal Constitucional que surge quando este é
chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da lei que instituiu a possibilidade de

157“Sem prejuízo do disposto no n. o 1, alínea e), não pode proceder-se à revisão da competência do tribunal
de origem. O critério da ordem pública referido no n. o 1, alínea a), não pode ser aplicado às regras de
competência” artigo 45º nº3 do Bruxelas BIS I.
P á g i n a | 192

casamento entre pessoas do mesmo sexo dizendo que a matéria estava no plano de conformação
do legislador ordinário, entende que não há uma obrigação constitucional de aceitar este
casamento, mas antes que esta é uma decisão política que pode ser tomada pelo legislador
ordinário competente. Obviamente que o fundamento da decisão do TC não tem valor
normativo mas não deixa de ter o seu uso na apreciação desta questão.

Há um elemento adicional que não tem a sua fonte no pensamento estritamente


internacional privatístico, mas resulta de outro ou outros ramos do Direito e que deve ser
invocado por respeito ao princípio da unidade do sistema jurídico. Qual será? Este despacho
concretiza o disposto no artigo 22º nº2 CC? No artigo 22º nós estamos a excetuar a aplicação
de uma lei estrangeira em função dos resultados concretos que ela vai introduzir na nossa
OJ mas esse não é o modo de funcionamento deste despacho. Há objetivamente uma
diferença entre o conteúdo ou regime estabelecido por este despacho e aquele instituído
no artigo 22º C.C. isso faz confusão? A Barreto Xavier sim. Porquê? Pelo princípio da paridade
também, mas há um motivo ainda mais óbvio. Aqui prescinde-se de qualquer ligação entre a
situação a regular e o direto do foro, o direito português, basta que dois turistas acidentais
resolvam aterrar em Portugal para celebrar o casamento entre pessoas do mesmo sexo para que
acordo com este despacho tal seja possível. Parece que vamos fazer intervir a nossa OPI
mesmo que apenas dois estrangeiros, residentes habitualmente no estrangeiro, venham
cá celebrar o casamento ainda que nunca cá tenham estado, não saibam nada da nossa
realidade com excepção deste despacho, não tenham intenção de estabelecer residência
em Portugal. Não há abertura à fraude à lei na medida em que este despacho o permite
expressamente independentemente de quaisquer motivos ou intenção e não é fraude à lei do
país de origem porque este país de origem continua a considerar este casamento inválido.
Barreto Xavier quer chegar a isto: O CC foi aprovado por DL e portanto é lei em
sentido material. Ora, isto é um despacho de um funcionário da administração pública, é um
despacho normativo que contraria um DL. Há um problema de hierarquia de normas. É claro
que o despacho invoca diretamente a própria constituição e, portanto, invoca o artigo 13º -
princípio da igualdade - e o artigo 15º - princípio da equiparação de estrangeiros a nacionais.
Todavia, nada nos diz que pelo princípio da igualdade e o princípio da equiparação resulte
necessariamente uma aplicação a todas as pessoas do direito a casar em todas as
circunstâncias.
Se este raciocínio estivesse correto qual a consequência que ocorreria pelo que toca à
regra de conflitos do artigo 25º conjugada com o artigo 31º/1? Se a invocação do artigo 13º e
15º C.R.P. levassem a que tivéssemos que atribuir a todas as pessoas o direito a celebrar
casamento homossexual independentemente das conexões existentes com a OJ
portuguesa, então teríamos que atribuir a todas as pessoas do mundo todos os direitos
que são reconhecidos aos cidadãos portugueses mesmo aqueles não reconhecidos nas
respetivas leis pessoais. Isto significaria que seria inconstitucional a própria existência de
regras de conflitos em matéria de estatuto pessoal e, pelo menos, seria inconstitucional a
utilização do elemento de conexão nacionalidade porque teríamos aqui, afinal de contas,
a regra de conflitos que institui uma descriminação em razão da nacionalidade - os
nacionais portugueses têm certos direitos, os espanhóis têm direitos diferentes, os
francês também.
Há algum contra-argumento? Afinal de contas o nosso sistema de conflitos está todo
inquinado? Olhamos para a C.R.P. e destruímos isto em menos de nada, é isso? Em lugar de
estabelecer uma descriminação o artigo 25º C.C. conjugado com o artigo 31º/1 C.C. faz uma
equiparação, simplesmente é uma equiparação ao nível do próprio direito de conflitos porque o
P á g i n a | 193

elemento de conexão relevante é o mesmo, a sua concretização é que é diferente. E essa


concretização significa concretização para todos os efeitos: para os direitos e para os deveres
(não direitos). Portanto a questão que se coloca é se seria mais justo aplicar a um estrangeiro
que não tem conexão nenhuma com a OJ, aplicar-lhe o complexo de direitos e deveres que
resultam da aplicação da nossa lei, da lei nacional portuguesa? Não, certamente que não, que o
que é mais justo é aplicar uma lei que está mais estreitamente conexionada com a
situação e em casos limite deixar de aplicar essa lei porque é incompatível à OPI.

A consequência, em todo o caso, se este tipo de despachos se difunde pode ser uma de
duas: Despacho fundado e, portanto, o nosso sistema conflitual baseia-se em normas
inconstitucionais. Despacho não está bem fundado e contraria o disposto em regras de
conflitos relativas à capacidade matrimonial e o próprio disposto no artigo 22º C.C.

Fraude à Lei no Direito Internacional Privado

Há outro instituto que importa considerar e que é relevante no momento da


determinação da lei aplicável. A norma de conflitos funciona pelos elementos estruturais
que conhecemos. Sabemos então para que serve o conceito-quadro, a consequência jurídica e o
elemento de conexão. O elemento de conexão, precisamente, é um dos elementos que
exprime uma ligação entre a situação a regular e uma determinada ordem jurídica e o
legislador vai escolher porque entende ser mais apropriado para indicar a lei
competente. O elemento de conexão resulta de uma escolha pelo legislador de entre as várias
conexões possíveis que um caso pode estabelecer relativamente a várias ordens jurídicas.
Se o legislador escolhe um elemento de conexão, o legislador faz a escolha por algumas
razões, orientada por princípios, que por sua vez estão orientados por valores. No sistema
conflitual português, como na generalidade da Europa, os princípios que orientam o legislador
na escolha do elemento de conexão são princípios interligados, mas que assentam na ideia
de conexão mais estreita. Escolhe-se o elemento de conexão porque se presume que exprime
uma conexão mais estreita com determinado Estado. Faz-se isso com articulação da ideia de
paridade de tratamento entre diferentes ordenamentos, e porque se entende que escolhendo a
conexão mais estreita se contribui para a harmonia jurídica internacional. A conexão mais
estreita e a harmonia jurídica internacional não têm valores autónomos, são instrumentais
relativamente à ideia de segurança jurídica, ou seja, a fim de reduzir a margem de aleatoriedade
com que as pessoas se confrontam na vida jurídica internacional.

Agora, o que é que acontece, se, num determinado caso concreto, as pessoas criarem
artificialmente determinadas conexões com o objetivo de afastar a aplicação da lei competente e
provocar a aplicação de uma outra lei que é mais favorável? Intervém o instituto da Fraude à
Lei, previsto no artigo 21º do CC.

O instituto da fraude à lei remonta ao caso da princesa Beuffremont, que casada se


apaixonou por outro homem. Tendo em conta que o direito francês proibia o divórcio,
manipulou o elemento de conexão da nacionalidade, naturalizando-se alemã, para se poder
casar de acordo com o direito alemão que já permitia o divórcio. Alterou a concretização do
elemento de conexão, com o objetivo exclusivo de poder casar com outra pessoa, de fazer algo
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que lhe estava vedado pela lei nacional.

Introdução

Na fraude à lei, em DIP, há violação da norma de conflitos, porque (e apenas


quando) a nova lei aplicável não permite que se realize o fim pretendido pela norma de
conflitos, sendo este, na maior parte dos casos, o da aplicação mais estreitamente conexa com o
caso. A conduta do sujeito cria uma conexão artificial que, por isso, será objeto de correção:
são irrelevantes as situações de facto ou de Direito criadas com o objetivo de afastar a
aplicação da lei que de outra maneira seria competente.
Isto não significa que a aquisição da nacionalidade seja nula, mas apenas que esta
aquisição não serve para determinar a lei aplicável, é irrelevante para os efeitos de
determinação da lei aplicável. A sanção da fraude à lei é a irrelevância da situação de facto ou
Direito criada, a irrelevância da nova conexão artificialmente estabelecida. Pois a princesa
volta para França, nunca teve a verdadeira intenção de se integrar na ordem jurídica do Estado
cuja nacionalidade ela adquiriu. A princesa podia ter mudado a residência para a Alemanha,
integrando-se plenamente nesse ordenamento e passando a viver de acordo com o sistema, mas
não faz, e nessa situação temos fraude.

Caso exista uma verdadeira conexão158 com o ordenamento alemão, então não foi
violado o sentido normativo da regra de conflitos que é dada pela escolha do elemento de
conexão. Neste caso, embora a criação do vínculo de nacionalidade com outro Estado tivesse
sido efetuado com intuito fraudulento, do ponto de vista objetivo, a nova lei nacional passou a
ser a lei mais estreitamente conexionada com a situação e do ponto de vista do Direito de
Conflitos, é isso que importa. O Direito de Conflitos não faz das pessoas santas, não estamos no
domínio do Direito Penal, não temos que sancionar a atuação apesar de ter sido feita com
intenção fraudulenta. Isto porque se verdadeiramente foi criada uma conexão que se tornou a
conexão mais estreita, isto significa que a ratio legis não foi violada.

Foi portanto a ilicitude do fim visado com a manobra da princesa,


e não pura e simplesmente a alteração do elemento de conexão
da regra de conflitos, que provocou o malogro do plano.

158Outro exemplo: Há ainda pessoas que casam apenas para adquirir uma certa nacionalidade, pois
certos países admitem essa via como uma possível para um sujeito se tornar seu nacional. Aqui o
casamento é um meio para atingir a nacionalidade. Este casamento pode ter sido com o objetivo de obter a
nacionalidade, mas ser ou não ser simulado. Pode ser um casamento de fachada. O casamento simulado é
nulo. O problema é que, a simulação é muito difícil de provar, mas provada, o casamento cai. Se se
conseguir provar a simulação, cai a aquisição da nacionalidade também. Se só se descobrir muito depois
ou a aquisição da nacionalidade caiu ou não caiu. Se caiu o direito da nacionalidade deixa de ser o que era.
Portanto, ainda que o direito da antiga nacionalidade seja o mais estritamente conexionado ou há uma
cláusula de exceção ou, não havendo, não é fácil aplicar essa lei mais conexionada. Há quem entenda, na
doutrina portuguesa, que a cláusula de exceção existe sempre – por redução teleológica. Mas esta não é a
solução dos tribunais.
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A conduta aparentemente fraudatória pode tornar-se irrelevante para a fraude nos casos
em que, concretamente, foi criada uma ligação efetiva entre a situação ou o sujeito e a jurisdição
da lei nova. Em termos práticos, a própria nacionalidade é hoje um elemento de conexão
dificilmente manipulável, considerando que os Estados apenas a devem atribuir a sujeitos que
tenham um vínculo relevante e efetivo, por imposição do direito internacional público da
nacionalidade.

Elementos de Conexão Móveis

A alteração do conteúdo concreto do elemento de conexão não consubstancia


necessariamente fraude à lei. Pelo contrário no caso dos elementos de conexão móveis, o
princípio é de que é permitido aos sujeitos determinar o conteúdo de tais elementos, isto é, as
pessoas são livres de mudar de nacionalidade, de fixar a residência ou de celebrar negócios
jurídicos em qualquer jurisdição. A fraude à lei apenas existirá quando tal liberdade é usada
de forma abusiva, portanto, quando existe um aproveitamento da permissão normativa
para atingir um fim proibido.

Também nos casos em que as partes num contrato escolhem uma lei que não tem
nenhuma conexão com a situação e é exclusivamente para afastarem a aplicação das disposições
imperativas das ordens jurídicas aplicáveis, como já vimos que ocorre no Roma I, não temos
nesses casos fraude à lei. Se o próprio legislador colocou nas mãos das partes a possibilidade
de escolherem a lei aplicável, então as partes podem escolher, e não há fraude à lei ainda que a
intenção seja evitar a aplicação de disposições imperativas que lhes sejam desfavoráveis.
Claro que também temos normas que de alguma maneira estão a limitar essa liberdade,
como acontece no Regulamento Roma I para alguns contratos, nomeadamente o artigo 3º nº3 e
nº4.

Elementos de Conexão Não Suscetíveis de Fraude

Há ainda alguns elementos de conexão que as partes por muito que desejem não
conseguem artificializar. São elementos cuja a sua construção ou descrição os torna imunes a
qualquer atividade fraudatória. É o caso por exemplo do elemento da sede principal e
efetiva da administração (artigo 33º do CC e 3º do CSC.), neste exemplo é a própria norma de
conflitos que já corrige por si eventuais tentativas de fixação artificial da sede. Se um grupo de
distribuição nacional muda a sua sede para a Holanda, se a administração de uma sociedade
passou a estar situada num país estrangeiro, isto pode ser fraude à lei? Não, porque a lei
aplicável é a lei da sede principal e efetiva da administração. Então será relevante para efeitos de
fraude à lei? Se o que é relevante não é pura e simplesmente a sede formal – estatutária – mas a
efetiva, então o objetivo do legislador é o de aplicar a lei do país onde a sociedade é administrada
ou a partir de onde o é. Se a sede efetiva está situada na Holanda, então, mesmo que tenha sido
artificialmente transferida para lá a sede, se foi a sede efetiva, não há fraude à lei, mas o exercício
de uma liberdade que é conferida às empresas e sociedades para se fixarem onde entenderem.
Se a alteração for apenas da sede estatutária? Há fraude à lei? Não, porque tinha que ter sido
manipulado o elemento de conexão relevante da norma de conflitos, e no caso a mudança de
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sede estatutária não muda o elemento de conexão relevante. Isso seria o mesmo que uma pessoa
que não pode casar em Portugal, decidir casar em Las Vegas, onde todas as pessoas têm
capacidade para casar. Isto não é fraude à lei, porque se chegam a Portugal para transcrever o
casamento, o conservador não o vai transcrever, porque o casamento é nulo, mas não é
fraudulento.

Pressupostos

Apontam-se tradicionalmente dois pressupostos cumulativos para a ocorrência de uma


situação de fraude à lei:

1) O elemento subjetivo da fraude ou intenção fraudatória


2) O elemento objetivo que consiste na manipulação com êxito do elemento
de conexão relevante, ou seja, a atividade fraudatória ou mudança de lei
competente.
3) Pode ainda dizer-se que há um terceiro elemento: a verificação de um
resultado contrário ao fim da norma de conflitos.

Com efeito a mera intenção não leva à aplicação de fraude, por exemplo, não haverá
fraude sempre que a conduta não tiver efeito, é o caso do português que se dirige a Inglaterra
para se casar pela lei inglesa, como o elemento de conexão para o DIP português é a lei pessoal,
neste caso não há fraude mesmo que haja tentativa, simplesmente há uma conexão falhada.

Fraude à Lei Estrangeira

O artigo 21º não distingue consoante se trate de casos em que a lei afastada é a
portuguesa ou uma lei estrangeira. De acordo com a letra do preceito todas as situações de facto
ou de direito criadas serão irrelevantes.
No entanto, pode dar-se o caso de a ordem jurídica da lei afastada não sancionar a
fraude à lei, Neste caso para Florbela Almeida Pires, a aplicação do artigo 21º seria suscetível de
gerar uma desarmonia de soluções, porquanto se daria ao caso solução distinta da que seria
adotada pelos órgãos de aplicação do direito na jurisdição da lei vítima. Assim, o principio da
harmonia jurídica internacional poderá, então, impor alguma restrição à aplicação do artigo 21º,
quando esteja em causa fraude à lei estrangeira, mas desde que tal restrição não compre«ometa
irremediavelmente o fim prosseguido pela norma de conflitos.

Fraude Vs. Ordem Pública Internacioal

Evidentemente a Ordem Publica Internacional e a Fraude à lei não se confundem. Já


referimos até supra que ambas atuam desde logo em momentos diferentes. A fraude à lei
intervém no momento da determinação da lei aplicável ao caso, por oposição à ordem pública
internacional que consubstancia um limite à solução encontrada na lei estrangeira competente.
Além disto, a fraude visa a proteção da justiça formal por se destinar a proteger a
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norma de conflitos e em especial o seu elemento de conexão. Já a OPI protege uma justiça
material. Adicionalmente a fraude à lei não leva em consideração qualquer aspeto ligado à
solução material constante da lei afastada, enquanto a OPI é sempre, por natureza, um limite da
aplicação de uma lei estrangeira material.
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A Aplicação do Direito Material Estrangeiro

Vistas várias regras de conflitos e os problemas que podem surgir da sua aplicação resta
ver, depois dessa aplicação, a sua consequência. A consequência da aplicação de uma regra de
conflitos, é, como já alertamos imensas vezes, a aplicação de uma Lei Material Estrangeira. Isto
não algo que digamos sem significado, realmente os tribunais Portugueses vão aplicar o direito
de outro país.

O direito aplicável por força da norma de conflitos é o direito que realmente vigora
num determinado país. Isto implica que é aplicamos o direito que vigore seja qual for a
natureza da fonte de onde emanam os respetivos preceitos. Pode tratar-se de direito
religioso, de direito internacional incorporado in foro, de direito consuetudinário, desde que seja
aquele em vigor.

É ainda irrelevante o facto de o Estado ou Governo estrangeiro não ser reconhecido pelo
Estaod do foro. Na verdade, são coisas conceitual e praticamente diferentes: o reconhecimento
do Estado ou do respetivo Governo é um assunto que trata o Direito Internacional Público, e o
reconhecimento do direito (privado) que vigora num Estado é distinto.

O direito estrangeiro é aplicado entre nós como direito. Vejam-se neste sentido, o
artigo 348º nº2 do Código Civil, que nos diz que o tribunal aplica ex officio o direito
estrangeiro declarado competente pelas normas de conflitos portuguesas.

O juiz do foro tem por isso que aplicar o Direito estrangeiro designado como este
estivesse a ser designado no Estado de quem provem. Só assim é que aplicamos
verdadeiramente o Direito estrangeiro. Também só por uma aplicação desta conseguimos
satisfazer o princípio da paridade de tratamento dos ordenamentos jurídicos que é inerente ao
nosso DIP. O que pedimos ao juiz do foro é que conheça as fontes – lei, costume, jurisprudência e
doutrina – e que as aplique, como elas seriam aplicadas no local de onde são. Imaginando que a
norma designada é depois alvo, na doutrina desse país de uma intensa discussão quanto à sua
interpretação. Se uma houver discussão doutrinária, pode o juiz do foro optar pela tese
minoritária? O juiz deve aplicar a Lei da forma mais prudente possível. Isso não implica que não
possa optar pela tese minoritária, mas tem que ter fortes argumentos que sustentem essa tese. O
mesmo acontece quando o juiz queira contrariar jurisprudência constante ou até fixada.

Conhecimento e prova do Direito estrangeiro

O Direito estrangeiro é facto ou Direito? Se for um facto então incumbe sobre a parte
que alega o Direito estrangeiro, nos termos do ónus da prova. Já em matéria de direito, ao
contrário da matéria de facto, a regra é a de que juiz deve aplicar oficiosamente as regras
jurídicas que considere adequadas, independentemente do alegado pelas partes (artigo 5º nº3
do CPC). Este princípio do iura novit curia tem por base o entendimento de que o julgador é, por
excelência, o mais qualificado aplicador do direito.
Este princípio não se estende contudo nos mesmo termos ao direito consuetudinário,
local, ou estrangeiro, por natureza mais difícil de o conhecer. Assim se justifica a consagração do
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artigo 348º bem como a sua localização Código Civil. Este preceito trata de três tipos de
normas diferentes: normas de direito consuetudinário, normas de direito local e normas
de direito estrangeiro. Não se trata apenas de nroams de direito consuetudinário nos seus
subtipos local ou estrangeiro, significado que seria provável caso o legislador não tivesse
colocado a vírgula depois do “local” na epígrafe do artigo.

O artigo 348º que estabelece não um ónus da prova, mas apenas um ónus de alegação.
Incumbe às partes alegar, mas que o Tribunal procura oficiosamente o conhecimento do
Direito estrangeiro. As partes não têm que alegar o Direito para que o juiz possa conhecer
dele. As partes podem fazê-lo, mas o juiz não deixa de ter poder ter conhecimento da matéria de
Direito. Assim, o Direito estrangeiro é matéria de Direito. Idealmente as partes alegam, mas não
o fazendo o juiz tem o dever de procurar oficiosamente como se aplica o Direito estrangeiro ao
caso. Assim estamos perante um ónus atenuado, em que cabe a parte que invoca sustentar essa
invocação, mas o juiz também tem de procurar. Só caso o juiz e a parte não conseguiam lograr o
respetivo conhecimento oficioso.

Isto quanto ao nº1, porque o nº2 trata da situação em que nenhuma das partes invocou a
aplicação de direito consuetudinário, estrangeiro ou local, mas o direito comum remete para
esses mesmos direitos para resolver o caso concreto. É o que acontece nas normas de conflitos.
Neste caso ao contrário do nº1 há uma verdadeira obrigação do juiz que não pode deixar de
julgar de acordo com o direito designado pelo direito comum (onde se encontram as
normas de conflitos.) 159
No nº2 do artigo 348º temos por isso uma solução que é muito debatida noutros países,
mas que em Portugal está resolvida neste número. Trata-se da questão de saber se a aplicação
oficiosa da regra de conflitos. O 348º nº2 resolve-a no sentido afirmativo, referindo-se à
hipótese de que nenhuma das partes o tenham invocado. Com efeito o objetivo da regra de
conflitos é promover a justiça do DIP, designando a lei que se considera mais apropriada, e não
conferir aos indíviduos prerrogativas às quais eles seriam livres de renunciar. Esta atitude seria
de molde a encorajar o fórum shopping.
Àquele que invocar o direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e
conteúdo, mas isto não isenta o tribunal do dever de procurar obter oficiosamente o respetivo
conhecimento. Trata-se, porém, para as parte de uma pura e simples obrigação de meios, pois
que a tarefa se pode revelar impossível ou extremamente difícil.

Se no final da audiência, quando o juiz tem que decidir, não conseguir chegar a uma
conclusão sobre a melhor forma de aplicar o Direito estrangeiro? Artigo 348º nº3 e 23º nº2.
Segundo o artigo 23º nº2, começamos por procurar conexões subsidiárias. Se ainda não for
possível, aplicamos o artigo 348º nº3, que determina a aplicação do Direito português.

159O mesmo se considera quanto à obrigação do juiz existir caso no nº1 as partes tenham reconhecido
mutuamente a existência desse direito local, consuetudinário ou estrangeiro. Também acontece quando
apenas uma das partes o invoca e a contraparte não se opõe.
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Interpretação do Direito Estrangeiro

Dirimido o conflito de leis, e por essa via determinado o direito aplicável impõe-se a
tarefa de o interpretar. O nº1 do artigo 23º. Pelo que dissemos logo inicialmente, para aplicar
verdadeiramente o direito estrangeiro temos que o interpretar segundo as suas regras. Em
Portugal temos o artigo 9º do CC, noutros Estados existem outras, e ao aplicar o seu direito
temos de seguir essas outras. Isto é uma exigência que perfila como elementar derivação da
racionalidade de cada sistema jurídico, enquanto um todo unitário.

O nº1 do artigo 23º, orientado por esta ideia de que o direito estrangeiro é para ser
interpretado e aplicado tal como se oferece no Estado de origem, projeta consequências ao nível
de todo o processo de realização do direito. que não, pois, apenas ao nível circunscrito da
interpretação jurídico enquanto momento dessa realização. Assim o aplicador português deve
atender ao sistema de fontes vigente no quadro da lex causae, considerando já a identidade
dos diferentes modos por que, num tal contexto, ao direito é dado formar-se e revelar-se. Assim
se a lei designada competente considerar o costume como fonte de direito o aplicador português
terá que considerar as regras consuetudinárias estrangeiras.
Evidente é, que também a integração de lacunas deve seguir as regras do sistema
designado.

Em caso de impossibilidade de averiguar o conteúdo da lei estrangeira aplicável, o


nº2 resolve essa questão. Em primeiro lugar recorrer-se-á ao direito que for subsidariamente
competente, igual procedimento devendo adotar-se quando não seja possível determinar os
elementos de facto ou de direito de que dependa a designação da lei aplicável.
Caso por sua vez, também esta solução do nº2 seja impossível determinar o conteúdo, a
sede legal de resolução é nesse caso, entre nós, o artigo 348º já supra falado. A doutrina é nestes
casos que indica que o tribunal tem a obrigação que explicámos supra sobre o nº2 do 348º,
devendo as partes colaborar.

23º e 348º

É ainda uma questão pertinente saber como se conjuga o nº2 do 23º com o nº3 do
348º. De conformidade com o ponto de vista em uníssono feito valer na doutrina e na
jurisprudência pátrias, só há lugar à aplicação do direito material português estatuída pelo
nº3 do 348º na falta de conexão subsidiária (ou, o que a tanto monta, em face da
impossibilidade de determinação do conteúdo do direito estrangeiro designado por conexão
subsidiária).
Tem-se, assim, que a consideração de sentido entre as duas disposições é resolvida por
mor da precedência que à disposição do nº2 do 23º é conferida, faltando esse direito, ou não
sendo igualmente possível determinar o seu conteúdo, tem lugar então o recurso ao direito
material português tal como este recurso é estatuído pelo nº3 do 348º.
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Conteúdo do Direito

Trás no entanto dissenso a dúvida oferecida quanto à fixação do conteúdo do direito


estrangeiro competente. Supõe-se razoável que a dúvida se coloque em relação ao direito
estrangeiro quer primariamente quer subsidiariamente competente, claro.
Ao órgão português de aplicação do direito é dado, em termos legítimos, recorrer a
presunções (recurso às disposições de outro ordenamento que se sabe ser semelhante ao
sistema cujo direito se pretende conhecer ou tê-lo influenciado, em maior ou menor medida).
A despeito da vozes, como Ferrer Correia, que no sentido dessa legitimidade se
pronunciaram, crê-se que um tal expediente se afigura pouco compatível com as exigências de
certeza e de segurança que no domínio do DIP se fazem sentir com acuidade toda particular, e
nesse sentido vai Lima Pinheiro. A crença de poder determinar o conteúdo do direito com bases
nas referidas presunções, como defende Ferrer Correia, tem como objetivo potenciar a
aplicação do direito estrangeiro. No entanto tendemos a concordar mais com Lima Pinheiro
neste aspeto.

Falta de Entidade

A aplicação do direito estrangeiro não será possível quando a mesma exigir a


intervenção de uma autoridade pública inexistente no foro ou a observância de procedimentos
não conciliáveis com o direito processual local. Neste sentido vai Lima Pinheiro.
Contudo é pacífica a aplicação analógica do artigo 23º do Código Civil, bem como do
348º, a órgãos distintos dos tribunais.

Direito estrangeiro e Constituição estrangeira

É ainda a fidelidade à intenção de cumprir o sistema de fontes do ordenamento


estrangeiro que tem vindo a determinar que na doutrina portuguesa venha fazendo caminho o
entendimento segundo o qual, sem embargo de ao órgão português de aplicação do direito não
competir a missão de garantia da Lei Fundamental estrangeira, em dois casos pode/deve o
aplicador local retirar uma consequência útil do que se lhe ofereça como uma
desconformidade entre o direito (ordinário) estrangeiro designado como competente pelo
Direito de Conflitos do foro e a Lei Fundamental correspondente.
Estando em causa tomar o direito estrangeiro tal como o mesmo se oferece no Estado de
origem, o operador local não deve aplicar as normas materiais estrangeiras assim, repete-se,
vem sido entendido na doutrina portuguesa:

i) quando as mesmas hajam sido declaradas, com força obrigatória geral,


inconstitucionais;
ii) quando se afigure ao aplicador português que determinada norma estrangeira
é desconforme à Constituição do Estado de origem e, cumulativamente, aos
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tribunais comuns do Estado estrangeiro seja dado, designadamente por força


de um sistema de fiscalização difusa, o exercício do controlo da
constitucionalidade (pelo que a esta última hipótese respeita, os autores não
deixam de sublinhar a conveniência de que a atuação do órgão português de
aplicação do direito seja pautada pelo parâmetro de uma especial prudência e,
muito em particular, não deixam de assinalar a conveniência de que, porquanto
menos familiarizado com o direito estrangeiro, o mesmo se abstenha de tomadas
de posição que, por inovatórias ou originais, não estejam em linha com a
doutrina e a jurisprudência estrangeiras dominantes). Veiculando os pontos de
vista explicitados.
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Competência Jurisdicional Internacional e o Reconhecimento


de Sentenças Estrangeiras

Onde vão surgir as principias questões que se suscitam no âmbito da competência dos
tribunais e reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras?

1) Regulamento Bruxelas I Bis: Quer em matéria de competência


internacional, quer em matéria de reconhecimento e execução de sentenças
estrangeiras.

2) Normas gerais do C.P.C.

3) Diplomas Especiais

Ora, tal como em matéria de direito de conflitos também na matéria de competência


internacional e reconhecimento de sentenças estrangeiras há um esforço europeu no sentido
da unificação das respetivas regras de Competência dos Tribunais e Reconhecimento e
Execução de sentenças estrangeiras.
A ideia subjacente a este esforço é a proteção do mercado interno, o mercado único,
é a ideia de eliminar barreiras jurídicas à livre circulação de pessoas, de mercadorias, de
prestação de serviços, liberdade de estabelecimento. Tudo isto poderia ser de certa forma
afetado se as sentenças ou decisões proferidas em certos EM não pudessem ser facilmente
reconhecidas nos outros Estados.

A razão de ser destes regulamentos ou dessas normas é a de estabelecer uma livre


circulação das sentenças no espaço Europeu.
A unificação das regras de competência internacional é meramente instrumental
relativamente ao escopo, ao desidrato, ao fim de promover essa mesma circulação livre das
sentenças. A facilidade com que uma decisão deve ser tomada num Estado para poder ser
reconhecida e executada noutros Estados é esse o eixo fundamental que orienta estes
regulamentos. Isto é importante porque vai eliminar, vai evitar barreias artificiais ou
estritamente jurídicas que poderiam existir à mobilidade multifacetada no interior dos EM.

Ora, se assim é, aquilo que verdadeiramente vemos quando olhamos aos regulamentos
da U.E. no âmbito do DIP é que existem fundamentalmente dois tipos ou, talvez, três tipos
de regulamentos: Regulamentos que versam sobre o direito de conflitos apenas, que é o caso
do Roma I, ou Roma II, ou Roma III; Regulamentos que versam sobre competência internacional e
reconhecimento de sentenças estrangeiras, é o caso do Bruxelas I Bis que é uma reformulação do
Bruxelas original, Bruxelas II bis idem aspas, entre outros; e o terceiro tipo, regulamentos que
versam quer sobre a lei aplicável quer sobre competência e reconhecimento e execução de
sentenças estrangeiras. Isto significa que nalguns casos o regulamento em matéria sucessória é
um exemplo paradigmático, ou o regulamento em matéria da insolvência e muitos outros -
nesses casos há uma regulamentação integrada quer em matéria de competência
internacional e reconhecimento de sentenças estrangeiras, quer em matéria determinação
da lei aplicável. Podemos verificaria leitura dos regulamentos, que nenhum regulamento versa
apenas sobre competência internacional ou que verse apenas reconhecimento de sentenças
estrangeiras. Ou seja, sempre que se legisla sobre competência internacional está
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relacionado com o reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras, exatamente


porque é instrumental relativamente a essa liberdade de circulação das sentenças
jurídicas.

Competência Internacional

Competência Internacional é a medida da jurisdição que os Tribunais ou outros


órgãos jurisdicionais de cada Estado têm de confronto com os órgãos jurisdicionais de
outros países.
A competência dos tribunais, estudada em Processo Civil, como pressuposto processual
tem diversas dimensões e uma dessas é a competência internacional, ou seja, a legitimidade
que um Tribunal ou ordem jurisdicional tem para se pronunciar sobre situações com
conexões com mais que uma OJ.

Enquanto a definição da competência internacional dos Tribunais pertencia a cada um


dos Estados unilateralmente pensados, e esta é a ótica com que estão desenhadas as regras no
C.C., essas regras são regras de competência unilaterais. Ou seja, as regras do C.P.C. em matéria
de competência internacional estabelecem a competência internacional dos Tribunais
Portuguesas.
Pelo contrário, as regras da competência internacional dos regulamentos da U.E. ou
regras de convenções internacionais nesta matéria são necessariamente bilaterais porque
operam constante distribuição da competência internacional pelos tribunais dos diversos
estados. Há aqui uma diferença destas regras bilaterais que é muito importante face às regras
de conflitos de leis. É que as regras de conflitos de leis em princípio mandam aplicar uma
determinada OJ, ou seja, para regular um determinado contrato ou um certo aspeto do mesmo é
aplicada a OJ x. Para regular a capacidade é aplicada a regra aplicável à capacidade.
Pelo contrário, nas regras de competência, as regras de competência mais frequentes
são regras de competência que não excluem a competência dos tribunais de outros
Estados - ou seja, são regras de competência concorrente. Apenas em casos limitados as
regras de competência estabelecem competências exclusivas atribuindo essa legitimidade
para um Tribunal se pronunciar em situações internacionais a um determinado Estado ou
aos tribunais desse Estado.

As regras de competência internacional


convivem bem com a atribuição de competência
aos tribunais de diversos Estados, apenas
excecionalmente aparecem as competências
exclusivas.

Outro aspeto a ter em conta respeita aos princípios que orientam os legisladores na
escolha das conexões relevantes, dos fatores de competência internacional dos tribunais.
Estes fatores não coincidem necessariamente com os fatores que devem se
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relevantes para determinar a lei aplicável. Ou seja, o próprio DIP assenta na ideia de que os
tribunais de certo Estado podem ter que aplicar direito estrangeiro portanto os tribunais têm
competência internacional para se pronunciar sobre o litígio mas a lei aplicada vai ser de um
país diverso o que equivale a dizer que os critérios de determinação da lei aplicável não
são coincidentes com os critérios para determinação da competência internacional dos
tribunais.
É evidente que num mundo ideal essa coincidência seria desejável, traria benefícios. Isto
é, que a competência legislativa e jurisdicional pudessem coincidir, isso traria vantagens ao nível
da boa administração da justiça desde que não pusesse em causa uma ideia de paridade de
tratamento seria a solução ideal, teríamos o melhor de dois mundos. Porque é que essa
coincidência não é possível em termos generalizados? Pode haver escolha das leis pelas partes
com uma lei que nada tem que ver com o próprio contrato ou com as partes e é legitimo que o
possam fazer. As partes escolhem a lei japonesa, é uma empresa portuguesa e outra norte
americana a celebrar o contrato, não faz sentido que tenham que ir litigar ao Japão. Por outro
lado, os fatores de atribuição de competência internacional relacionam-se com aspetos que
têm relevância em sede de competência territorial interna e que são aspetos ligados à
obtenção de prova, aspetos ligados à tutela do réu no processo.

A ideia de competência internacional dos tribunais do domicilio do réu assenta num


principio de que cabe ao autor mostrar que tem razão tendo que demonstrar perante o
tribunal os factos de que decorre o seu direito e pelo principio da mediação não é certo
que o consiga fazer, portanto, um certo réu não pode ser submetido a um poder potestativo do
autor de poder propor ação no país de residência do autor por isso tutela-se o réu através
desta ideia de competência do tribunais do domicilio do réu. Isto vale para a competência
territorial, mas também para a competência internacional.
Portanto, há fatores em matéria de competência dos tribunais que não são os mesmos
que devem reger a competência legislativa, daí a existência de regras diversas e a
necessidade de encontrar soluções que possam não levar a esta coincidência entre forma
e ius, ou seja, entre tribunal competente e lei aplicável.

Isto dito, há um fator que importa referir que é: quanto mais tribunais de diferentes
Estados tiverem competência internacional para se pronunciarem sobre certo litígio mais
estará disseminado o fenómeno do fórum shopping. O que é isto do forum shopping? Numa
situação privada internacional, quando existirem diferentes tribunais competentes
internacionalmente para julgar o mesmo litígio estamos a atribuir ao autor uma possibilidade
de escolher nos tribunais de que país vai propor a ação e o que acontece é que se não
houver unificação das regras de conflitos na matéria em causa, o risco é o de que aquela
incerteza que não foi eliminada pela unificação do direito de conflitos vá ter
consequências a nível deste forum shopping, ou seja, o autor vai à prateleira escolher o
foro que lhe é a si mais favorável e o réu vai ter que suportar as consequências
desfavoráveis da escolha pelo autor do foro. Este é o pano de fundo sobre o qual as regras de
competência internacional são construídas e este pano de fundo está na origem do
Regulamento Bruxelas I bis que determina a competência internacional dos tribunais dos EM e
a consequência é permitir o reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras nos
outros EM.

Esta ideia do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras noutros EM surgiu


logo nos anos 60 e levou à aceleração da convenção de Bruxelas de 1968 que é um texto
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semana, fundador do DIP Europeu, numa altura em que na, então, Comunidade Europeia não
havia ainda competência para legislar. Portanto, celebra-se uma convenção internacional à qual
é anexada um protocolo que reconhece competência ao Tribunal de Justiça para interpretação
dessas normas para que essa interpretação fosse uniforme no interior dos EM.
O que é que aconteceu quando os órgãos legislativos da U.E. passam a poder legislar
diretamente estas matérias? Passámos a ter Regulamentos da U.E. sendo o inicial o Bruxelas
I que é uma espécie de reformulação da Convenção de Bruxelas, já tendo em conta as
consequências da aplicação da Convenção por largos anos, que foi um sucesso do ponto de
vista da sua aplicação. Portanto, reformulou-se o conjunto de regras e reformula-se a sua
natureza passando a ser um regulamento Europeu diretamente aplicável deixando de ser
necessária à sua ratificação pelos OJ nacionais, e esse regulamento aplicou-se também
durante um período considerável até aparecer a sua reformulação através do Bruxelas I bis
ou Bruxelas I reformulado.

Regulamento Bruxelas I Bis

Este regulamento Bruxelas I Bis é a pedra de toque de todo o sistema e é à imagem


deste regulamento que se criam os outros.

Âmbito de aplicação
Temos que começar por determinar o âmbito de aplicação do regulamento: Aqui,
olhar para o seu âmbito material de aplicação significa também perceber qual a importância
deste regulamento na medida em que se virmos o disposto no artigo 1º percebemos que é
um regulamento que se aplica num conjunto muitíssimo vasto de matérias. O que nos diz o
artigo 1º?

O artigo 1º160 aqui temos um Regulamento aplicável em matéria civil e comercial,


independentemente da natureza da obrigação. Portanto, tem uma vocação abrangente que
tem que ser lida à luz da delimitação negativa que nos é estabelecida no nº2, sendo que
sobretudo a alínea a) faz logo uma exceção significativa que se prende com o estatuto pessoal.
Ou seja, por força da alínea a) complementada com as alíneas e) e f) que se referem aos
alimentos resultantes das relações familiares e aos testamentos e sucessões, isto significa que
temos fundamentalmente a exclusão das matérias do estatuto pessoal e, por outro lado, fora das
matérias de estatuto pessoal temos exclusão noutras matérias. Mas mesmo olhando a esta
exclusão percebemos que o seu âmbito material de aplicação é extremamente vasto.

160Ao contrário do Roma I, aplicável às obrigações contratuais, ou Roma II aplicável às obrigações


extracontratuais, ao Roma III aplicável ao divórcio e separação judicial, ao Regulamento em matéria
sucessória aplicável à sucessão por morte, ao Regulamento em parcerias registadas aplicável às parcerias
registadas
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Aplicação Territorial
Um aspeto significativo tem que ver com o âmbito espacial de aplicação e aqui há uma
diferença fundamental entre este Regulamento - assim como os regulamentos da U.E. em
matéria de competência internacional e reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras -
e os regulamentos sobre o direito aplicável.
Nos regulamentos em matéria de direto aplicável, o âmbito espacial de aplicação é
universal o que significa que essas regras de conflitos vão ser aplicáveis independentemente de
nexos existentes entre o litígio - questões a tutelar - e as OJ dos EM. Isso não acontece nos
regulamentos em matéria de competência internacional e reconhecimento execução de
sentenças estrangeiras. Isto é extremamente importante, é um aspeto básico porque enquanto
as matérias que estão unificadas pelo direito de conflitos europeu nós afastamos o direito de
conflitos de fonte interna sempre que abrangidos pelo âmbito material, territorial e espacial do
regime europeu, isso não acontece aqui.
Aqui estas regras de competência internacional coexistem pacificamente com as
regras do C.P.C. nós é que temos que limitar a fronteira, quando é que umas se aplicam e
outras não.

O regime regra é o do C.P.C. portanto temos que saber quando é que cabem no
âmbito espacial de aplicação do Regulamento Bruxelas I bis.

Há aqui uma diretriz fundamental que é a seguinte: Há uma regra básica deste
regulamento que tem um alcance duplo, essa regra é a regra do domicílio do réu.
A regra é a de que, em princípio, são competentes internacionalmente os tribunais
do domicilio do réu. Todavia esta regra tem um alcance duplo porque ela é, ao mesmo tempo,
uma regra de competência dos tribunais e também é uma regra decisiva para o efeito de se
determinar se o regulamento é aplicável no espaço ou não.

Ou seja, o princípio do domicílio do réu tem uma


função de regra de competência e uma função de
delimitação positiva do âmbito espacial de
aplicação do regulamento. Portanto, fica implícito
que sempre que o réu está domiciliado num EM,
este regulamento é aplicável

Esta regra conhece também uma dimensão negativa: Se o réu não estiver domiciliado
num EM, em princípio, este regulamento não é aplicável.
“Em princípio” porque existem regras complementares, outras regras, outros fatores
de competência que são também regras de determinação do âmbito espacial do regulamento
que permitem exigir que o regulamento se aplica mesmo que o réu não esteja domiciliado
num EM. Que casos são esses? As disposições fundamentais a este respeito são o artigo 4º e
seguintes.

O artigo 6º nº1 complementa os anteriores, esta norma é decisiva.


Primeiro diz qual a regra: se o réu não estiver domiciliado num EM, a competência
rege-se pelo direito interno de cada EM, se uma ação se quer propor em Portugal e o réu não
está domiciliado num EM, então, em principio a competência dos tribunas portugueses afere-se
em função do C.P.C. e não através do Bruxelas I bis.
Mas depois estão salvaguardadas certas regras que são regras que o próprio
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regulamento entende terem carácter imperativo, ou têm um certo grau de imperatividade,


são regras em matéria de:

1) contratos de consumo;
2) contratos individuais de trabalho;
3) regras em matérias de competência exclusivas;
4) e ainda regras em matéria de extensão de competência a factos sujeitos a
jurisdição.

Temos no fundo três hipóteses:

1) Réu está domiciliado num EM - Então se o caso estiver abrangido pelo âmbito
material e territorial de aplicação, o regulamento aplica-se;

2) Réu não está domiciliado num EM - A regra geral é que o regulamento não se
aplica e a competência de cada Estado afere-se pelas regras internas de cada
Estado.

3) Réu não está domiciliado num EM mas o regulamento aplica-se ainda


assim porque há fatores de conexão que o regulamento entende aplicar-se
mesmo sem o réu estar domiciliado num EM. O caso mais evidente é o caso
da competência exclusiva. Exemplos: Ação relativa a direitos reais sobre
imóveis que é matéria exclusiva dos tribunais do país onde o imóvel está
situado, evidentemente esta competência exclusiva dos tribunais do Estado da
situação da coisa tem lugar mesmo que o réu não esteja domiciliado num EM.
Portanto, estas competências exclusivas tomam em consideração nexos
existentes entre os EM e o litígio para efeitos de considerar exclusivamente
competentes os tribunais correspondentes.

Também isso acontece por força do artigo 18º nº1, isto é, em matéria
de contratos de consumo porque o consumidor nos termos dessa
norma. Não é necessário que o réu (se for o produtor) num contrato de
consumo esteja domiciliado num EM basta que o consumidor, se for
autor da ação, esteja domiciliado num EM. Portanto, domicílio do
autor é também um elemento de determinação do âmbito de aplicação
do regulamento no espaço relativamente aos contratos de consumo.

Algo de paralelo acontece nos casos de contratos individuais de


trabalho porque o trabalhador pode demandar a entidade patronal não
apenas nos tribunais do EM onde tiver domicílio essa entidade patronal
mas também nos Estados referidos no artigo 21º nº1 b) Temos um
alargamento do campo do âmbito espacial de aplicação do regulamento
por referencia ao domicilio do réu.

artigo 25º - Pactos de jurisdição: Não é necessário que o réu tenha


domicílio num EM. O que é que é necessário? Resulta logo da primeira
parte do artigo 25º. Se as partes independentemente do seu domicilio,
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tiverem celebrado um pacto de jurisdição atribuindo competia a um


Tribunal de um Estado Membro, esses Tribunais serão competentes
internacionalmente. Se houver atribuição de competência a tribunal de
um EM, se obedecer às condições ali previstas, então aplica-se este
regulamento para apreciar se o pacto de jurisdição deve produzir algum
efeito e em que termos.

Isto significa que ao contrário do que acontece nos regulamentos em matéria de lei
aplicável onde esta questão se encontra facilitada - há em matéria de obrigações contratuais
e o contrato foi celebrado após a entrada em vigor do Roma I então aplica-se o Regulamento
Roma I independentemente do domicílio das partes, nacionalidade, do lugar da celebração do
negocio, etc - Aqui não temos essa facilidade, temos que passar por esta averiguação, aqui e
nos outros regulamentos referentes à competência internacional dos tribunais. Nesses outros
casos os fatores de delimitação no espaço do âmbito de aplicação desses regulamentos é
diferente desta mas está estabelecido em cada um dos regulamentos quando é que eles são
aplicáveis por força da sua aplicação no espaço.

Aplicação temporal
A aplicação do regulamento tem ainda de pressupor que o litígio se encontra dentro
do âmbito temporal de aplicação do regulamento e para isso o artigo 81º estabelece que se
aplica a partir de 10 de Janeiro de 2015. Portanto, se o litígio respeitar a uma ação proposta a
partir de 10 de janeiro de 2015 aplica-se este regulamento, se a ação tiver sido proposta em
momento anterior aplica-se o Regulamento Bruxelas I anterior a esta reformulação, e se o
litigo for extremamente antigo aplica-se ainda a Convenção de Bruxelas.

Âmbito de Reconhecimento de Sentenças


Estas regras respeitam ao âmbito de aplicação do Regulamento em matéria de
competência internacional, mas as coisas não são idênticas no âmbito de aplicação do
Regulamento em matéria de reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras, aí a
regra é distinta e bastante mais simples.

No âmbito de aplicação material a regra é a mesma e é a mesma também pelo que


toca ao âmbito temporal de aplicação.

Mas no que toca ao âmbito espacial de aplicação a regra é diversa. É necessário que o
réu esteja domiciliado num EM? Tendo em conta a razão de ser da elaboração das regras de
competência, facilmente se extrai a solução pelo que toca ao âmbito espacial de aplicação. Se
realmente as regras de competência foram estabelecidas de maneira uniforme para garantir o
reconhecimento das sentenças nos outros EM, então o âmbito espacial de aplicação do
regulamento em matéria de reconhecimento de sentias estrangeiras há de resultar de
duas coisas: Se uma sentença que foi preferia num EM e pretende-se o seu reconhecimento
noutro EM, é o que decorre do artigo 36º nº1: “ As decisões proferidas num Estado-Membro são
reconhecidas nos outros Estados-Membros sem quaisquer formalidades.”
Esta norma indica simultaneamente uma regra de regime de reconhecimento, por um
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lado, e por outro, limita o âmbito espacial de aplicação do regulamento. Ou seja, por muito
que o reconhecimento esteja a ser pedido em Portugal, este regulamento não se aplica
necessariamente, este regulamento apenas se aplica em Portugal - uma vez verificado o âmbito
temporal e material de aplicação - se a sentença que se pretende reconhecer em Portugal
provier de outro EM.

Se provier de um Estado terceiro não podemos aplicar essas regras porque a


sentença provém de um Estado não sujeito às regras unificadas.

Daqui decorre esta unidade funcional, ligação funcional entre regras de competência e
regras de reconhecimento e execução de sentenças. Ou seja, uma sentença proveniente da China,
de um país não pertencente à U.E., país Africano ou Americano não pode ser reconhecida por
intermédio do Regulamento Bruxelas I bis, temos que recorrer às regras gerais do C.P.C.

Artigo 36º é a Regra básica do regulamento em matéria de


reconhecimento de sentenças estrangeiras. Enquanto em matéria de
competência internacional a regra básica é o domicilio do réu, a regra
básica do reconhecimento de sentenças estrangeiras é a do
reconhecimento das sentenças proferidas nos outros EM sem
quaisquer formalidades. Isto significa o seguinte: No direito Europeu
caminhou-se para um regime de reconhecimento automático das
sentenças, reconhecimento automático ou de pleno direito.

Ou seja, foi proferida uma sentença em Espanha então ela vale em Portugal sem
necessidade de qualquer procedimento, qualquer processo, qualquer apreciação prévia desta
sentença, ela tem o mesmo valor que tinha em Espanha.

Hoje, com o Regulamento Bruxelas I bis, isto vale não apenas para os efeitos das
sentenças, o efeito vinculativo da sentença, efeito de caso julgado da sentença, o efeito
constitutivo da sentença, mas vale até para aquele efeito mais introsivo que é o efeito
executivo da sentença. Ou seja, uma decisão ou sentença judicial proferida num EM que nesse
EM tenha força executiva pode servir de base directamente ao processo executivo, à ação
executiva em Portugal. É um título executivo em Portugal sem necessidade de qualquer
procedimento.

Por isso é que é possível estabelecer, no espaço Europeu, a liberdade de circulação de


sentenças que é o objetivo primacial do estabelecimento do regime uniforme em matéria
de competência e reconhecimento - a ideia de que as sentenças proferidas num Estado-
Membro podem ter livre acesso às ordens jurisdicionais dos outros Estados Membros, sendo
reconhecidas automaticamente sem necessidade de qualquer controlo prévio.

Domicílio do Réu
O critério do domicílio do réu é simultaneamente um critério de delimitação do âmbito
espacial de aplicação do Regulamento, mas é também, e ao mesmo tempo, um critério de
competência, sendo essa a regra geral em matéria de competência internacional.
P á g i n a | 211

Como é que chegamos à determinação do domicílio do réu? Artigos 62º — para as


pessoas singulares — e 63º — para as pessoas coletivas e sociedades comerciais — do
Regulamento.
O critério é distinto, num caso e noutro:

1) Quanto às pessoas singulares: Cabe ao Direito material do foro a


definição em concreto ou a concretização do conceito de domicílio. Se a
questão é saber se o réu está domiciliado em Portugal, em consequência,
recorremos ao contexto de domicílio que consta do Código Civil, no artigo
82º — está domiciliado em Portugal a pessoa singular que resida
habitualmente em Portugal. Para determinarmos que o réu tem domicílio em
Portugal recorremos ao conceito de domicílio constante do direito material
português, que nos indica que tem domicílio em Portugal a pessoa singular
que tiver residência habitual em Portugal.

a. Nº2 do artigo 62º: Caso a parte não tenha domicílio no Estado-


Membro a cujos tribunais foi submetida a questão, o juiz, para
determinar se a parte tem domicílio noutro Estado-Membro, aplica
a lei desse Estado-Membro. Isto significa que se, por hipótese, é
proposta uma ação em PT contra determinado réu que não se
encontra domiciliado em PT porque, nos termos do artigo 82º, ele
não tem em Portugal a sua residência habitual, é necessário que se
verifique se ele tem domicílio noutro Estado- Membro e, para isso,
temos de ir olhar para os Direitos dos Estados-Membros com os quais
o réu esteja conexionado para saber se algum desses Estados
considere o indivíduo aí domiciliado. Para saber se ele tem
domicílio em Espanha, temos de recorrer ao Direito Espanhol, para
saber se ele tem domicílio em Itália, temos de recorrer ao Direito
italiano, etc.

b. O que é que acontece se ele não for domiciliado nem em Portugal,


nem em qualquer Estado-Membro? Se ele não tiver domicílio em
nenhum Estado-Membro, por força do artigo 62º, se não existir um
fator de competência exclusiva dos Tribunais de um Estado-Membro,
e se não existir pacto de jurisdição que dote os Tribunais de um
Estado-Membro de competência internacional, nem existir
competência em matéria de CITs ou contratos de consumo, a
conclusão é que este Regulamento não é aplicável, não pode ser a
fonte que usamos para determinar a competência internacional
porque, neste caso, o litígio não se encontra dentro do âmbito
espacial de aplicação do Regulamento, e aqui recorremos às regras
gerais do Código de Processo Civil em matéria de competência
internacional e aí apuraremos se há ou não competência dos
Tribunais portugueses.

Barreto Xavier diz que é criticável que o Regulamento não tenha


estabelecido um conceito autónomo de domicílio já que isso teria
facilitado a aplicação do Regulamento. Isto porque, deixando a concretização
P á g i n a | 212

de domicílio para cada Estado-Membro, torna-se muito mais difícil


determinar onde é que a pessoa está domiciliada, além de que pode haver
critérios distintos pelo que toca à concretização do domicílio, o que envolve
alguma aleatoriedade nas decisões.

2) Já o mesmo não acontece relativamente às pessoas coletivas porque, por


força do artigo 63º, estão indicadas de forma autónoma (sem necessidade
de recorrer ao Direito material dos Estados) três critérios. A determinação
do domicílio das pessoas coletivas obedece a critérios completamente
distintos das pessoas singulares, e aqui há uma determinação autónoma, que
não necessita de recorrer ao Direito de cada um dos Estados. Quais são os
critérios? A pessoa coletiva entende-se estar domiciliada no país onde se
encontre artigo 63º nº1: Sede estatutária - Sede efetiva - Estabelecimento
principal.

Há aqui um conceito autónomo de domicílio das pessoas coletivas e, segundo,


esse conceito desdobra-se em três possibilidades, o que também tem um
efeito porventura negativo, que é o de que permite que a pessoa coletiva se
encontre domiciliada em mais do que um país: uma pessoa coletiva na
qual se registe uma dissociação entre os três elementos de conexão pode ser
considerada domiciliada em três Estados-Membros diferentes. Barreto
Xavier admite que o legislador europeu tenha considerado legítimo que,
dado que a pessoa coletiva resulta de um esforço de autonomização jurídica a
partir das pessoas singulares que porventura se disponibilizaram para o
efeito e se essas pessoas estabeleceram essa dissociação entre esses três
elementos, no fundo, devem também suportar os custos inerentes a essa
escolha e esses custos passam por esta possibilidade de serem réus em
vários Estados-Membros, e, portanto, o autor que pretenda pôr uma ação
contra elas vai poder escolher o país em que o faz.

Neste caso das pessoas coletivas, é provável a existência de uma pluralidade de


domicílios, uma situação de concurso de domicílios, mas, por força das regras do artigo 62º,
também podem aparecer hipóteses em que determinada pessoa singular que é nacional
de um certo Estado-Membro mas tem residência habitual num outro Estado-Membro não
se considere domiciliada em nenhum dos dois por força da discrepância do conceito de
domicílio. O que é que acontecerá numa hipótese desse tipo?
Por exemplo, uma pessoa que residia habitualmente em Portugal até há 5 anos, mudou-
se para o país X, mas esse país, para considerar domiciliado, entende que tem que haver
residência habitual superior a 5 anos. A pessoa não está domiciliada em Portugal por força do
artigo 62º e não está domiciliada no Estado-Membro X por força da sua concretização do
conceito de domicílio, ou seja, a pessoa não está domiciliada em nenhum Estado-Membro.
Quid iuris? Há dois tipos de solução em abstrato:

1) A pessoa não está domiciliada em nenhum Estado-Membro, logo, se não existir


nenhum outro fator que determine a aplicabilidade deste Regulamento, o próprio
Regulamento não se aplica e, portanto, temos que recorrer às regras internas
do Código de Processo Civil;
P á g i n a | 213

2) Há uma lacuna que tem que ser integrada de acordo com os fatores que façam
sentido dentro da matéria da competência internacional e dentro da economia
do Regulamento, portanto, ou através da ideia da residência ou através da ideia da
conexão mais estreita com aquela pessoa. Barreto Xavier: Inclina-se mais para a
segunda perspetiva já que a razão de ser do Regulamento continua a fazer sentido
na medida em que se a pessoa tem todos os seus laços dentro dos Estados-
Membros, seria absurdo não a considerar domiciliada num Estado-Membro e, por
isso, teria de se integrar a lacuna.

O que o artigo 4º, em conjunto com o artigo 5º, vem revelar é uma dimensão positiva
e negativa deste princípio do domicílio do réu. A dimensão positiva é que, em princípio, esses
tribunais são os tribunais competentes, e a dimensão negativa é que outros tribunais que não os
do domicílio do réu só têm competência internacional nos casos expressamente previstos
no Regulamento. Portanto, só naqueles outros casos que o Regulamento estabeleça ou
competências concorrentes com estas ou competências que de alguma forma se
sobreponham a estas é que esta regra deixa de funcionar nos dois sentidos.

Artigo 6º nº1: Quando o réu não está domiciliado num Estado-Membro, nem funcionam
as regras de competência autónomas que delimitam o âmbito de aplicação espacial do
Regulamento a favor dos Estados-Membros, a competência dos tribunais de um Estado-
Membro é regida pela lei desse Estado-Membro. Deixa de se aplicar o Regulamento,
estamos fora do seu âmbito de aplicação e temos de recorrer às regras internas de cada Estado –
em Portugal, em princípio, recorremos ao CPC salvo se existirem regras especiais em razão
da matéria como acontece no campo do Direito do Trabalho, por exemplo.

Além desta regra do tribunal do domicílio do réu, que regras complementam a ideia
de domicílio do réu?
A disposição mais importante é a do artigo 7º, que estabelece precisamente as regras
de competências especiais concorrentes. Estas são regras que pressupõem que o réu está
domiciliado num Estado-Membro, mas atribuem uma competência que concorre com a
competência dos tribunais do domicílio do réu. Assim, por exemplo, e nos termos do número
1, alínea a): se o réu está domiciliado num Estado-Membro, mas se trata de matéria contratual,
então o autor pode propor a ação que respeita a matéria contratual não só no país do domicilio
do réu, como também no lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão. O
foro do cumprimento da obrigação é um fator de competência internacional, mas que
pressupõe a existência de um réu domiciliado num Estado-Membro. Como é que se
concretiza a ideia de competência do tribunal do cumprimento da obrigação em questão? Se esta
norma não fosse concretizada, diríamos que, num contrato de C/V, se o que o autor pretende é o
pagamento do preço, então essa é a obrigação em questão; se o que se pretende é que o
vendedor entregue a coisa, então a obrigação em questão é a entrega da coisa. Mas o
Regulamento estabelece algo diferente, na alínea b): Para este efeito, o lugar da obrigação em
questão, no caso dos contratos de C/V e no caso dos contratos de prestação de serviços,
não é relevante o lugar do pagamento do preço – tendo ou não sido pago – mas é
relevante, sim, o lugar da entrega da coisa ou da prestação dos serviços, essa é que é a
obrigação em questão para o efeito de determinação da competência concorrente com o
domicílio do réu.
Em todos os outros contratos, a alínea c) estabelece que, se não for aplicável a alínea
b), será aplicável a alínea a), ou seja, não estando em causa um caso que seja uma venda de
P á g i n a | 214

bens ou uma prestação de serviços, é apenas a alínea a) que será relevante, ou seja, será a
obrigação em questão, independentemente de qual seja.

Nos números seguintes estão mais fatores de conexão que não vamos ver em pormenor,
mas que não vamos ver.
O mais importante, é o nº1, tendo uma correlação com as questões que, do ponto de
vista conflitual, são regidas pelo Regulamento Roma I.
O nº2 tem uma correlação com matérias que, do ponto de vista conflitual, são
disciplinadas pelo Regulamento Roma II, matéria extracontratual, e aqui o que estabelece o
nº2 é que perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso,
sendo que se coloca aqui a questão de saber o que se entende por facto danoso. É a ação ou a
omissão ou é o resultado, o dano? A jurisprudência do TJUE tem tido uma interpretação
ampla, que abrange quer o lugar da ação ou omissão, quer o lugar da ocorrência dos
resultados principais que decorrem da ação lesiva, já não de resultados que sejam
ulteriores e eventualmente imprevisíveis a partir da ação.
Depois, no nº3, refere-se o caso das ações de indemnização ou restituição fundadas em
infração penal. Em Portugal, quando em causa algo que foi simultaneamente uma infração civil e
criminal, os tribunais criminais têm competência não apenas para averiguar da responsabilidade
criminal e de aplicar a pena/medida de segurança, mas também têm competência para
estabelecer uma eventual indemnização ou obrigação de restituição para os lesados, ou seja, é o
próprio tribunal criminal que tem competência material para o fazer. E, aqui, o que o
Regulamento nos indica é que quando essas situações são plurilocalizadas, esses tribunais
criminais terão competência internacional para se pronunciarem sobre a questão da
indemnização ou da restituição. O que o Regulamento vem dizer é que remete para as regras
de competência dos tribunais penais, e se o tribunal tem competência para julgar a
ação/omissão, tem também competência para julgar o pedido de indemnização.

Depois temos uma série de outros fatores de competência especial concorrente, - artigo
7º e artigo 8º que se refere a vários pedidos de terceiros; reconvencionais; ações em matéria de
direitos reais - tudo isso são regras que vão estabelecer a competência internacional dos
Estados-Membros, sendo essa concorrente com a competência atribuída pelo domicílio do réu.

Além destas competências, que são competências especiais concorrentes, o


Regulamento estabelece também um conjunto de regras que se inspiram na ideia de proteção
da parte mais fraca. Tal como encontrámos no Regulamento Roma I a tutela da parte mais
fraca através de regras de conflitos que estabeleciam uma proteção da parte mais fraca em
relação à determinação da lei aplicável, aqui também encontramos essa proteção no momento
da determinação da competência internacional dos Tribunais.
Como é que se isso se faz? Por diferentes vias:

1) artigo. 10º e ss. - matéria se seguros


2) 17º e ss. – contratos com consumidores
3) e artigo 20 e ss. – CITs.

Comum a essas regras: destinam-se a proteger a parte mais fraca através de diferentes
vias:
P á g i n a | 215

1) Há uma limitação à possibilidade de celebração de pactos de jurisdição. Os pactos


não são proibidos, mas o seu alcance é restringido. Tal como acontecia no
Regulamento Roma I, em que a escolha da lei aplicável era possível, mas estava
submetida a certos limites, também aqui a celebração de pactos de jurisdição é
possível, mas está submetida a certos limites. Quais são esses limites? Em geral, neste
caso, consistem em duas coisas:

a. Ou os pactos são celebrados após o surgimento do litígio – e este pacto é


admitido;

b. Ou os pactos são anteriores ao surgimento do litígio – o que, em regra,


não restringe a possibilidade de a parte tida por mais fraca propor uma ação
contra a contraparte. Ou seja, se o pacto de jurisdição é anterior ao litígio,
só é admitido se for favorável à parte mais fraca, e não se for desfavorável.

2) A parte mais fraca, em princípio, só pode ser demandada no Estado do seu


domicílio ou no Estado do país em que efetua habitualmente o seu trabalho, por
via de regra. Isto significa que, em vez de existir, como nas ações em geral, uma
competência concorrente entre o lugar do domicílio do réu e um outro foro – que em
matéria contratual é o lugar de cumprimento da obrigação em geral – nestas matérias,
que não deixam de ser contratuais (contrato de seguro, CIT, contrato com
consumidores), uma ação contra a parte mais fraca só pode ser proposta no foro mais
próximo da parte mais fraca, não há competência de concorrência. Possibilidade
que é dada à parte mais fraca de propor uma ação contra a parte mais forte não apenas
no país do domicílio dessa parte, mas ainda num outro Estado-Membro que esteja
ligado à parte mais fraca. Ou seja, e aqui esta é uma nota excecional, por exemplo,
em matéria de contratos de consumo, o consumidor pode propor a ação no tribunal
do seu próprio domicílio, ou seja, o autor vai poder propor a ação no lugar do seu
próprio domicílio, o que á algo anómalo, mas que se justifica para tutela do
consumidor. O trabalhador pode propor a ação no país do lugar onde ele efetivamente
presta o seu trabalho ou onde efetuou mais recentemente o seu trabalho. Isto significa
que aqui há regras para evitar estabelecer sobre a parte mais fraca o ónus de ter que
litigar no país de domicílio da contraparte. No caso dos contratos com consumidores
e nos CITs, esta competência vai ao ponto de que se prescinde de o domicílio do réu
estar num Estado-Membro161 . Por remissão do artigo 6º para o artigo 18º nº1
estabelece que: “O consumidor pode intentar uma ação contra a outra parte no
contrato, quer nos tribunais do Estado-Membro onde estiver domiciliada essa parte, quer
no tribunal do lugar onde o consumidor tiver domicílio, independentemente do domicílio
da outra parte.” O Regulamento vai aplicar-se mesmo quando a contraparte não
estiver domiciliada num Estado-Membro.
O mesmo acontece quanto ao artigo 21º/2: “Uma entidade patronal não domiciliada
num Estado-Membro pode ser demandada nos tribunais de um Estado-Membro nos
termos do nº 1, alínea b)” ou seja, pode ser proposta a ação no tribunal do Estado-
Membro a partir do qual o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho,

Por isso é que constitui uma exceção, como vimos antes, à obrigatoriedade de o réu ser domiciliado
161

num Estado-Membro para que o Regulamento se aplique – artigo 6º/1 com remissão para o artigo 18º/1,
21º/2. Nestes casos, o réu não precisa de estar domiciliado num EstadoMembro.
P á g i n a | 216

mesmo que a entidade patronal não seja domiciliada num Estado-Membro. Quer
isto dizer que temos aqui regras de competência de proteção. São regras
especiais, mas são mais do que regras de competência concorrente, são regras de
proteção. Estas regras depois vão ter reflexo em matéria de reconhecimento de
sentenças estrangeiras.
Há ainda uma nota adicional: Em matéria de contratos celebrados com o consumidor,
nos termos do artigo 17º nº2, nós temos um alargamento do conceito de
domicílio do réu, que vai ainda alargar mais a tutela do consumidor. Leia-se “Caso o
consumidor celebre um contrato com uma contraparte que, não tendo domicílio no
território de um EstadoMembro, possua uma sucursal, agência ou outro estabelecimento
num EstadoMembro, essa contraparte é considerada, quanto aos litígios relativos à
exploração de tal sucursal, agência ou estabelecimento, como tendo domicílio no
território desse Estado-Membro.” Ou seja, já tínhamos visto que, por força do artigo
63º, uma determinada pessoa coletiva se considerava domiciliada num
determinado Estado-Membro se aí tivesse a sua sede estatutária, a sua sede efetiva
ou o seu estabelecimento principal. O que o artigo 17º nº2 vem dizer é que para
efeitos de contratos de consumo, a contraparte também se considera domiciliada
num Estado-Membro se possuir nesse Estado-Membro uma sucursal, agência ou
outro estabelecimento desde que o litígio em causa respeite a essa sucursal,
agência ou estabelecimento. Há aqui um alargamento do conceito de domicílio
para efeitos de tutela do consumidor.

Competencias Exclusivas e Pactos de Jurisdição


Em matéria de competência, resta ainda olhar às competências exclusivas e para os
pactos de jurisdição. No que toca às competências exclusivas, nada de especialmente difícil,
porque aqui não temos naturalmente competências concorrentes, estas competências vão
afastar as competências que são regra – afastam a competência dos tribunais do domicílio do
réu – e vão determinar que são exclusivamente competentes os tribunais do país para onde
aponte a conexão correspondente.

Um exemplo paradigmático é a competência em matéria de direitos reais sobre


imóveis, ou de arrendamento de imóveis, onde são exclusivamente competentes os
tribunais do local onde se situe o imóvel.

Mas como é obvio estas regras só funcionam para os casos em que os fatores de conexão
se concretizam num determinado Estado-Membro, se eles apontassem para um Estado
Terceiro evidentemente que a regra de competência exclusiva deixava de ter aplicação.

Há uma regra específica para o caso de arrendamento de imóveis para uso pessoal
temporário celebrados por um período máximo de 6 meses consecutivos, sendo também
competentes os tribunais do Estado-Membro onde o requerido tiver domicílio desde que o
arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário ou arrendatário seja domiciliado
num Estado-Membro.

As competências exclusivas só se aplicam quando se concretizam ou quando apontam


para um Estado-Membro? Se a ação for proposta na Alemanha e for relativa a imóvel que se situa
no Cazaquistão, os tribunais alemães vão negar a sua competência por considerarem
competentes os tribunais do lugar do imóvel, ou não? Não, em princípio, os tribunais alemães
P á g i n a | 217

vão-se considerar competentes com base no domicílio do réu. O artigo 24º dita que têm
competência exclusiva os tribunais de um Estado-Membro, o Regulamento não poderia
estar a atribuir competência exclusiva a um Tribunal de um Estado Terceiro.
Mas os tribunais do Estado-Membro não poderiam considerar-se a si próprios
incompetente? Essa é uma questão omissa, é possível argumentar que há uma lacuna do
Regulamento na medida em que se o mesmo atribui competência exclusiva aos tribunais dos
Estados-Membros nesta matéria, não pode deixar de reconhecer idêntica competência exclusiva
a Tribunais de Estados Terceiros pelo menos nos casos em que esses tribunais tenham regras
internas de competência exclusiva (se não tiverem, não fará sentido), logo, o tribunal do
domicílio do réu deve declinar a competência. Isto é defensável, mas o professor Barreto
Xavier não tem a certeza que isto fosse aceite sem margem para dúvidas.
E poderíamos excluir a aplicação do Regulamento por esta regra de competência
exclusiva apontar para Estado Terceiro e daí recorrer às nossas regras internas? Não, nunca,
isso não faria sentido. Se a base para declinar a competência do tribunal do domicílio do
réu é a competência exclusiva do Tribunal do Estado Terceiro então não poderíamos
dizer que não aplicávamos o Regulamento, mas aplicávamos as regras internas, isso seria
contraditório.

Temos competências exclusivas quer em matéria de direitos reais (imóveis e


arrendamento de imóveis), quer em matéria de pessoas coletivas (validade da constituição,
dissolução, validade das decisões dos seus órgãos) sendo exclusivamente competentes os
tribunais do Estado-Membro em que a sociedade, associação ou pessoa coletiva tiver a sua sede,
sendo que se determina essa sede através das regras de Direito Internacional Privado desse
Estado-Membro.

Por último, em matéria de competência, uma disposição importante é a do artigo


25º relativo aos pactos de jurisdição.

Aqui temos a expressão do princípio da autonomia da vontade no domínio da


competência internacional. Este princípio existe no Direito material, no Direito de Conflitos
(que se traduz na escolha da lei a aplicar em certas matérias, ou em termos mais gerais, como no
Roma I, ou em termos mais circunscritos), e agora encontramos, no Regulamento Bruxelas I
bis a consagração da autonomia da vontade em matéria de competência internacional dos
tribunais – tal como existe no Código de Processo Civil, que estabelece o regime dos
pactos de jurisdição quando não se aplique o Regulamento.

Diz o artigo 25º/1: “Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem


convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para
decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação
jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos
termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva,
salvo acordo das partes em contrário.”
Notas a reter daqui: Não é necessário que as partes tenham domicílio num Estado-
Membro para que possam celebrar um pacto a favor de um Estado-Membro, e para que esse
pacto seja apreciado no que toca à sua validade e efeitos pelo Regulamento Bruxelas I Bis,
o que está em consonância com o que foi dito anteriormente: para lá dos casos em que o réu está
domiciliado num Estado-Membro, há outros casos em que não é necessário que o réu esteja
domiciliado no Estado-Membro, nem que o autor esteja – podem ambos estar, pode estar
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apenas um ou pode não esta nenhum quando em causa um pacto de jurisdição que
considere competente os tribunais de Estado-Membro.162

Estes pactos podem ser celebrados antes ou depois do surgimento de determinado


litígio, isto é, podem ser celebrados para a eventualidade de surgimento de um litígio ou já
depois de o litígio ter surgido. Estes pactos vão ter eficácia a menos que, nos termos da lei
do Estado-Membro em causa, sejam substantivamente nulos. A lei do Estado-Membro cujos
tribunais seriam competentes se o pacto fosse aceite podem pronunciar-se sobre a validade
substantiva desse mesmo pacto.

Qual é o efeito do pacto de jurisdição? Esse efeito é, por via de regra, o efeito de
atribuição de competência exclusiva aos tribunais desse Estado-Membro, salvo se as
partes tiverem acordado algo diferente. Ou seja, quando as partes atribuem competência aos
tribunais, por exemplo, do Estado Português, presume-se que estão a excluir com isso a
competência internacional que decorra de outras regras do Regulamento, salvo se as
partes estabelecerem expressamente que não querem excluir a competência.

O artigo 25º estabelece regras em matéria de forma do pacto de jurisdição, não


estabelece regras de conflitos para determinação da validade da forma do pacto, como
aconteceria na forma dos contratos e na forma das cláusulas da escolha da lei, aqui, nós temos
diretamente o estabelecimento das regras em matéria de forma. São regras bastante
permissivas, lendo o resto do artigo: “O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado: a)
Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; b) De acordo com os usos que as partes
tenham estabelecido entre si; ou c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes
conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e
regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto
em questão.”
Há três formas possíveis de celebrar pactos de jurisdição, olhando ao artigo 25º/1:

a) Por escrito. Sendo que nos termos do nº2 se prevê que qualquer comunicação
por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale a forma
escrita. Assim, a celebração por e-mail ou equivalente é equiparada à celebração
por escrito; Verbalmente, com confirmação escrita.

b) Celebrada de acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si.
Se falamos de pactos de jurisdição entre duas partes que usualmente
estabeleceram entre si que determinado tribunal seria competente, o modo como
a forma não escrita foi observada ao longo dos tempos também será relevante,
esses usos que as partes estabeleceram entre si vão ser relevantes para a
celebração do pacto.

c) Há uma remissão para os a lex mercatória, uma remissão para os usos do


comércio internacional, com alguns requisitos: os usos têm que ser ou
conhecidos pelas partes ou são usos que em princípio deveriam ser
conhecidos pelas partes, tendo em conta que no ramo comercial em causa são
usos amplamente conhecidos e regularmente observados nos contratos

162Isto não era assim na versão original do Regulamento Bruxelas I onde se exigia que pelo menos uma
das partes tivesse domicílio num Estado-Membro, mas deixou de se exigir este requisito.
P á g i n a | 219

daquele tipo. Aqui não é necessário nem forma escrita, nem que a celebração
esteja de acordo com os usos que as próprias partes tenham reconhecido
entre si; é suficiente que o pacto de jurisdição seja celebrado por uma forma que
esteja de acordo ou reconhecida, por usos comerciais do ramo comercial concreto
e que sejam normalmente conhecidos observados e que as partes conheciam ou
deviam conhecer.

No nº5 estabelece-se que os pactos privativos de jurisdição que façam parte de um


contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato, o que
significa que mesmo que o contrato seja inválido, este pacto de jurisdição é analisado
autonomamente, que mesmo que a cláusula de escolha de lei seja inválida, é analisado
autonomamente o pacto de jurisdição e mesmo que o contrato em si seja válido e a
escolha de lei seja válida, o pacto pode não ser válido porque é autonomamente analisado.
O 2º parágrafo do nº5 vem concretizar isto relativamente à invalidade dos contratos,
não podendo a validade do pacto ser contestada com fundamentos apenas na invalidade do
contrato.

No artigo 25º temos os pactos de jurisdição, mas no artigo 26º temos uma hipótese
concreta a que alguns autores chamam prorrogação tácita de competência.
O que é que significa? Não houve acordo, mas o autor propôs uma ação, em princípio os
tribunais desse Estado não seriam internacionalmente competentes de acordo com o
Regulamento, mas o réu compareceu na ação, e não apenas compareceu, como não
contestou a competência. Ora bem, o que é que o Regulamento estabelece? Se o réu
compareceu e não contestou a competência, ele está, no fundo, a concordar com a
competência do tribunal, está a celebrar tacitamente um pacto de jurisdição e a aceitar
por mútuo acordo que aquele tribunal é internacionalmente competente.
E o que o artigo 26º vem dizer é que o tribunal se torna ipso facto competente,
assume e aceita a competência que lhe é atribuída pela atuação das partes.
Coisa diferente é o réu contestar a competência, quer a título principal, quer a título
incidental, se o requerido contesta a competência, aí a prorrogação tácita não opera.
Também não pode acontecer nos casos em que exista competência exclusiva e não pode também
afastar as normas imperativas de competência de proteção da parte mais fraca.
O que o nº 2 estabelece é que o tribunal, oficiosamente, deve informar o réu do seu
direito de contestar a competência do tribunal e das consequências de comparecer ou não
no juízo. O tribunal vai, paternalisticamente, dizer ao réu o que é que está em causa, e o seu
direito a contestar a competência, coisa que não faria em princípio cabendo a cada parte a sua
defesa, mas que aqui deve fazer.

Medida Provisórias e Cautelares


Verificação da competência: Artigo 35º, em matéria de medidas provisórias e
cautelares.
P á g i n a | 220

Sistemas de Reconhecimento Automático


Reconhecimento e execução de sentenças: Como é que o Regulamento de Bruxelas I Bis
se posiciona relativamente ao reconhecimento de sentenças estrangeiras? Estabelece o
chamado reconhecimento automático das sentenças.

Se pensarmos no plano do Direito Comparado, se olharmos para os diferentes sistemas


relativamente ao reconhecimento de sentenças estrangeiras, podemos encontrar 2 tipos
de sistemas:

1) Sistema tradicional: Sistema de reconhecimento de sentenças estrangeiras mediante


um controlo prévio das sentenças. Ou seja, uma sentença estrangeira é admitida a
produzir os seus efeitos próprios de sentença enquanto ato jurisdicional num
estado diferente mediante um determinado processo destinado a verificar se
essa sentença tem de certas características exigidas para que possa ser
reconhecida. Reconhecer uma sentença significa atribuir a essa sentença os seus
próprios efeitos enquanto ato jurisdicional num país diferente do país em que
foi proferida, ou seja, reconhecer a sua eficácia enquanto ato jurisdicional.
Precisamente o sistema tradicional era o que implicava um controlo prévio das
sentenças – é este sistema que mais encontramos no Direito Comparado e também o
que encontramos no nosso CPC. No CPC, que é o regime regra, encontramos o
regime de acordo com o qual para que se reconheça uma sentença tem de se
propor uma ação através do processo especial de revisão de sentença
estrangeira, que decorre os seus termos no TR e que é destinado a averiguar
determinado tipo de requisitos da sentença – saber se está ou não em condições de
produzir os seus efeitos no nosso Estado.

2) O Direito Europeu veio estabelecer, logo a partir de 1958 com a elaboração da


Convenção de Bruxelas e a sua entrada em vigor em 2001, com o Regulamento
Bruxelas I na sua versão inicial e agora com o Regulamento Bruxelas I Bis, um sistema
de reconhecimento automático das sentenças. De acordo com este sistema as
sentenças estrangeiras provenientes de um outro Estado-Membro são reconhecidas
em todos os Estados-Membros sem necessidade de qualquer procedimento, isto é,
sem necessidade de controlo prévio – por isso se diz que este sistema é o sistema
de reconhecimento de pleno Direito das sentenças estrangeiras. Quais são os
efeitos das sentenças enquanto atos jurisdicionais que são reconhecidos
independentemente de qualquer procedimento?

Efeito vinculativo da sentença: A sentença tem muitas vezes o comando de dirigir


determinada pessoa ou conjunto de pessoas e esse comando torna-se obrigatório para
essas pessoas. É automaticamente reconhecido em todos os Estados-Membros.

Pode ter um efeito constitutivo: pode gerar a constituição, modificação ou extinção


de uma determinada situação ou relação jurídica.

Pode ter um efeito de caso julgado, que não se deve identificar com o efeito
vinculativo da sentença: o efeito de caso julgado pressupõe que a decisão que está
contida na sentença não é objeto de recurso ordinário e por isso tornou-se, em
P á g i n a | 221

princípio, definitiva e que vale nos termos estritos em que esse caso julgado está
definido no país de origem.

Estes 3 são os efeitos mais importantes, aos quais se pode juntar um efeito executivo
ou executório da sentença, que é de enorme importância prática: possibilidade da
sentença servir de título executivo, servir de base à ação executiva. A ação executiva
se pode fundar em títulos extrajudiciais ou judiciais e a sentença é o título judicial por
excelência. Na evolução do Direito Europeu passamos de um momento em que o que
se reconhecia era a generalidade dos efeitos da sentença, que eram reconhecidos
automaticamente, mas o efeito executivo da sentença não era automaticamente
reconhecido. Embora existisse um procedimento que se foi simplificando. Mas com
este Regulamento e com um conjunto de outros textos que têm pressupostos e campos
de aplicação mais específicos, a evolução mais simplificativa que se deu na última
década foi a evolução para um reconhecimento automático do próprio efeito
executório da sentença. Ou seja, uma sentença que no país de origem seja executória,
servindo de título executivo, é automaticamente reconhecida em todos os Estados-
Membros como título executivo, sem necessidade de procedimento destinado a
torna-la executória. A decisão, ainda que ultrassimplificada, destinada a atribuir
efeito executório à sentença foi eliminada. Decisão proferida na Polónia contra um réu
domiciliado em X, tendo efeito executivo, pode servir de título executivo em qualquer
outro Estado-Membro.

Há outros textos, mesmo antes do Regulamento, em que houve alguma antecipação da


eliminação deste procedimento. Mas hoje temos um texto mais geral que veio
estabelecer o reconhecimento automático – Regulamento Bruxelas I Bis.

Reconhecimento Automático não é incondicional


Importa ter em consideração que o reconhecimento automático não significa
reconhecimento incondicionado. O facto de o reconhecimento ser automático não significa
que não esteja dependente da observância de certas condições – essas condições não são
controladas previamente, as condições presumem-se observadas. Mas não deixam de poder
ser relevantes se a contraparte (parte contra quem sentença foi proferida) quiser demonstrar
que não estão observadas. Portanto uma coisa é a questão processual – saber se é preciso o
controlo prévio do reconhecimento das sentenças estrangeiras –, outra coisa é o
reconhecimento ser incondicionado – não é, está sempre dependente da observação de certas
condições.

Quais são essas condições? Aqui temos de abrir dois tipos de sistemas, pelo que toca
às condições exigidas para o reconhecimento das sentenças. Sistemas que estabelecem
condições de mérito ou de fundo das sentenças e sistemas de condições formais. Assim há
duas hipóteses, em geral:

1) Condições de mérito da causa: sentenças que só são reconhecidas se


obedecerem a certos critérios de conteúdo – por exemplo, saber se a prova foi
devidamente valorizada, se a lei foi bem aplicada ou não, etc.
P á g i n a | 222

2) Condições formais: sentenças só não são reconhecidas se forem violadas


certas condições meramente formais – respeito pelo princípio do
contraditório, algumas regras de competência, fundamentação, etc. Não
dizem respeito ao mérito da causa do país de origem, mas sim apenas a
condições formais da própria sentença. Que tipo de condições formais?
Tipicamente não serem violadas questões de competência internacional no
tribunal de origem; regras processuais mínimas, em especial os direitos da
defesa; se não houve violação de um caso julgado anterior ou um caso de
litispendência relevante; autenticidade da própria sentença; etc

O sistema do Direito Europeu é um sistema que estabelece fundamentalmente


condições relativas à forma da sentença e não relativas ao mérito ou fundo da causa.
Aquilo que encontramos no Regulamento Bruxelas I Bis para saber se uma sentença pode ou não
ser reconhecida, e que não é objeto de um controlo prévio dessa sentença, são motivos
relacionados com aspetos formais. O único aspeto que de alguma maneira está a meio
caminho entre as condições de fundo e as condições meramente de forma é uma condição de
que não viole a ordem pública internacional do Estado – tal como acontece com a aplicação
do Direito estrangeiro, também vai acontecer relativamente à sentença estrangeira cujo
reconhecimento não pode envolver uma violação manifesta da ordem pública
internacional do Estado-Membro. Vemos isto no artigo 45º o artigo 45º dá vias para recusar
o reconhecimento:

1) Ordem pública
2) Oportunidade que é dada ao réu para se defender.
3) Ideia do caso julgado.
4) Situação semelhante, mas relativa a uma decisão proferida no Estado terceiro.
5) Reflexo das regras de competência de proteção se o tribunal de origem fundou a sua
competência em violação da proteção da parte mais fraca, o reconhecimento não é aceite.
6) Regras de competência exclusiva dos tribunais

Artigo 45º nº2 e 3: Aqui temos também aspetos muito importante. O interessado não
pode dizer simplesmente que o tribunal de origem violou regras de competência do
Regulamento. Se a sentença foi proferida numa ação em violação do domicílio do réu e até pode
o réu ter contestado a competência, mas o tribunal entendeu que a contestação não era
relevante e considerou-se competente e proferiu a decisão. Ou tribunal esqueceu-se que existia
um Regulamento Bruxelas I Bis e aplicou-se as regras de competência interna. Esta decisão deve
ser reconhecida nos outros Estados-Membros? Esta sentença é reconhecida automaticamente?
É, porque o artigo 45º estabelece um numerus clausus da possibilidade da
invocação da incompetência do tribunal de origem – só pode invocar-se a incompetência do
tribunal de origem nos casos expressamente previstos, isto é, nos casos de violação de
competências exclusivas e no caso de violação de competência de proteção (da parte mais
fraca). Fora desses casos não pode invocar-se essa incompetência.
Porque é que será assim? Pela confiança nos sistemas jurisdicionais dos outros
Estados-Membros e conveniência da livre circulação de sentenças.
Aqui teríamos uma tensão entre a necessidade de ser rigoroso na análise da competência
do tribunal de origem, para não premiar a violação das regras, e entre o facto de ter sido julgado
por um tribunal de um Estado-Membro, assumindo-se que esse tem suficiente qualidade para se
P á g i n a | 223

pronunciar sobre o assunto e não tendo violado as regras de competência exclusivas e de


proteção, que são as mais importantes, não vamos olhar para a violação da competência
internacional, porque esta não é tão importante como a conveniência de atribuirmos efeitos a
esta sentença.

Este regime do reconhecimento automático das sentenças vai aplicar-se até a


sentenças que foram proferidas fora do âmbito de aplicação espacial do Regulamento em
matéria de competência. Decisão proferida contra um réu domiciliado fora de um Estado-
Membro e em que não há nenhum outro fator que alargue a aplicação do Regulamento e
portanto o tribunal de um Estado-Membro em questão age conforme o seu Direito Processual
Civil interno – mas esta sentença proferida num Estado-Membro é automaticamente
reconhecida nos outros Estados-Membros, mesmo quando em matéria de competência
internacional o caso não estava abrangido pelo âmbito espacial de aplicação do Regulamento.

Por força das regras do Regulamento, especificamente o artigo 36º, as decisões


proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros sem
quaisquer formalidades. Quais decisões? Temos que ver se a decisão foi proferida num Estado-
Membro, se estamos a tentar averiguar os seus efeitos num outro Estado-Membro, aqui já temos
verificado o âmbito espacial do Regulamento, e temos de ver se a matéria abrangida pela
sentença era matéria do âmbito de aplicação do Regulamento e se sentença foi proferida dentro
do âmbito de aplicação do Regulamento. Há um reconhecimento automático destas sentenças,
mesmo que a competência do tribunal de origem tenha sido fundada no Direito interno do
Estado e não no Regulamento.

A sentença em si mesma é um título bastante para que a parte que a queira invocar
a possa invocar para defender os seus direitos, sem necessidade de qualquer procedimento –
esta sentença pode fazer de base à execução, artigos. 39º e ss.
Também se estabelece que as partes se podem opor ao reconhecimento e portanto
podem propor ação destinada a opor-se a este reconhecimento, assim como podem opor-se
ao reconhecimento a título incidental, invocando alguns dos casos de violação das condições
para o reconhecimento – mas aqui não é num momento prévio ao reconhecimento, mas sim num
momento posterior ao reconhecimento da sentença.

O reconhecimento e executoriedade de uma sentença é automático, mas não é


incondicionado – a observância das condições é sempre necessária. Estas regras de
reconhecimento automático das decisões e de suscetibilidade das decisões servirem de título
executivo do Regulamento Bruxelas I Bis são depois adaptadas pelos outros Regulamentos que
se referem a essas matérias – Regulamento Bruxelas II Bis e os outros, partindo todos da ideia de
reconhecimento automático.

Código de Processo Civil Português

Importa agora o regime residual do CPC, sempre que não seja aplicável o
Regulamento Bruxelas I Bis, nem qualquer dos outros Regulamentos ou eventualmente
alguma Convenção Internacional ou alguma legislação interna especial (ex: LAV, CT, etc.).
P á g i n a | 224

Regra Geral

É no artigo 62º que o CPC se refere quanto à competência internacional.


O primeiro fator de competência internacional previsto no CPC é o princípio da
coincidência, ou seja, os tribunais portugueses serão internacionalmente competentes se,
aplicando-se as regras de competência territorial, essas regras apontarem para um
tribunal em Portugal – vai-se olhar para as regras de competência territorial como se fossem
uma regra de competência internacional. De acordo com o princípio da coincidência, isto
significa que se um determinado tribunal português – ex: Comarca de Lisboa – é
internacionalmente competente, então os tribunais portugueses são internacionalmente
competentes.
O 62º a) atribui assim uma dupla funcionalidade aos artigos 70 e seguintes do CPC.

Temos também o princípio da causalidade, isto é, a ideia de acordo com a qual a


competência internacional dos tribunais portugueses resulta do facto da causa de pedir na
ação ou uma parte dos factos que a integrem terem sido praticados em Portugal. Esta
solução justifica-se por motivos de prova – atender à proximidade entre os factos e o país em
que o caso vai ser julgado.

O princípio da necessidade, ou seja, cláusula mais aberta que não prevê um estrito
fator de conexão, mas prevê uma cláusula de salvaguarda que permite atribuir competência
internacional aos tribunais portugueses quando a propositura em Portugal seja necessária para
tornar efetivo um direito, que não teria possibilidade de ser atendido ou por inexistência de
outros tribunais internacionalmente competentes ou por uma existência de dificuldade
de exigir ao autor que fosse propor a ação no estrangeiro – necessidade de valoração pelo
aplicador do Direito. A necessidade é uma expressão do princípio constitucional da tutela
da jurisdicional efetiva. Serve por isso para os casos em que seriam impossível ou então,
muito difícil, tornar efetivo certo direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro
Há uma segunda condição, que é a existência de uma ligação significativa entre o litígio
e o estado português, porque de outra maneira seriamos uma espécie de jurisdição de eleição
que serviria para tudo e mais alguma coisa – elemento ponderoso de conexões de ordem pessoal
ou real. Estes são os fatores de atribuição de competência internacional aos tribunais
portugueses, sendo as regras gerais.
A alínea c) é por isso um caso excecional subsidiário.

Mas temos além destes as regras de competência exclusiva, constantes do artigo 63º,
seguem uma regra bem mais próxima do Direito Europeu – muito semelhante ao regime do
artigo 24º Regulamento Bruxelas I Bis.

O princípio da coincidência, previsto no artigo 62º, a), faz referência às disposições de


competência territorial que nos aparecem nos artigos 70º e seguintes. Portanto é em função
dessa referência que encontramos também no CPC a competência dos tribunais em função do
domicílio do réu, mas não como fator autónomo de atribuição de competência no artigo
62º, apenas enquanto o domicílio do réu é um fator de atribuição de competência
territorial e enquanto for esse domicílio do réu será relevante no domínio da competência
internacional dos tribunais portugueses.

Em versões anteriores do CPC, no antigo artigo 65º, hoje artigo 62º, aparecia uma
alínea que estabelecia em termos genéricos a competência internacional dos tribunais do
P á g i n a | 225

domicílio do réu, à semelhança do que acontece hoje no Regulamento Bruxelas I Bis.


Portanto, em versões anteriores do CPC havia uma competência também genérica dos
tribunais do domicílio do réu, sem prejuízo dos outros fatores de competência que já existiam
anteriormente também.

Na atual versão do CPC o domicílio do réu não deixa de ter relevância, mas tem uma
relevância meramente indireta e limitada, porque só é relevante por força do princípio da
coincidência, na medida em que este princípio estabelece que os tribunais portugueses são
internacionalmente competentes se as regras de competência territorial da lei portuguesa
apontarem para um tribunal situado em Portugal.
Ora, se formos essas regras (artigos 70º e seguintes) vemos que existe uma regra
geral no artigo 80º, que é regra do domicílio do réu. Mas existem outras regras especiais
que estabelecem, em matéria de competência territorial, outros critérios de competência que
não o domicílio do réu. Isto significa que nas matérias relativamente às quais a competência
internacional seja fixada por intermédio da regra geral do domicílio do réu, prevista no artigo
80º, os tribunais do domicílio do réu serão internacionalmente competentes.

Mas nos casos em que, ainda que o réu esteja domiciliado em Portugal, a competência
territorial aponte para outro critério de competência, então aí o domicílio do réu não é
relevante para aferir a competência internacional dos tribunais portugueses. Portanto o
domicílio do réu não deixa de ter alguma relevância, mas é uma relevância indireta e delimitada
em função das matérias.

Assim sendo os instrumentos formais de delimitação da competência internacional, (pela


ordem pela qual nos, na prática, fazemos a verificação) são os artigos 59º, 62º e 63º do CPC.
O artigo 59º tem uma enumeração das fontes formais: em primeiro lugar temos de ver
se há regulamentos europeus, em segundo se há convenções internacionais e, se não for
aplicável nenhum deles, vamos buscar as regras de direito interno que estão reguladas nos
artigos 62º e 63º. Em qualquer dos casos, eu tenho competência internacional de origem legal
(no sentido de resultar destes instrumentos) ou de origem convencional, com algumas restrições
como é evidente. É, por vezes, possível às partes determinarem qual é o país cujos tribunais vão
ser competentes para determinar uma determinada causa, são os chamados pactos de
jurisdição.

Pactos de Jurisdição

O artigo 94º CPC contem o regime dos pactos de jurisdição, que é um regime não
inteiramente semelhante ao regime do Regulamento Bruxelas I Bis. Da leitura do artigo 94º
resulta um regime mais exigente dentro das condições nas quais pode ser celebrado um
pacto de jurisdição – fundamentalmente tem dois aspetos:

1) Forma: A exigência de forma não abrange desde logo as possibilidades que o


Regulamento estabelece no que toca aos usos estabelecidos pelas partes e no que
toca aos usos do comércio internacional – lex mercatoria.
P á g i n a | 226

2) Substância: Há aqui uma diferença fundamental, pois o CPC exige que a escolha da
lei pelas partes não envolva um grave inconveniente para uma das partes – é
necessário que se justifique pelo interesse de uma das partes que não seja
contrariado pelo grave inconveniente da outra parte. Isto obsta à celebração do pacto
de jurisdição. A doutrina tem entendido que este requisito tem de ser
interpretado de uma forma relativamente flexível, desde logo no plano do ónus
da prova. Ou seja, quem defender que o pacto não é válido é que tem de provar a
falta de interesse série, porque o contrário seria violador da autonomia da vontade.
Regime porventura excessivamente restritivo no que toca à celebração do pacto de
jurisdição.

Reconhecimento Sentenças

O último aspeto a considerar tem que ver com o reconhecimento de sentenças


estrangeiras no CPC, que nos aparece a propósito dos processos especiais – processo
especial de revisão de sentenças estrangeiras, arts. 978º e ss. Ideia de que o reconhecimento
depende de um controlo prévio das sentenças estrangeiras, sem prejuízo de leis especiais,
convenções internacionais ou Regulamentos Europeus. Ressalvados esses regimes especiais, o
reconhecimento de sentenças estrangeiras depende de um processo para ter controlo prévio
dessas sentenças, ou seja, da sua revisão e confirmação.

Determina-se ainda que os tribunais que são internamente competentes em razão da


hierarquia são os Tribunais da Relação.

Estabelece-se um conjunto de requisitos para o reconhecimento de sentenças


estrangeiras e aqui encontramos algumas semelhanças com o disposto no Regulamento
Bruxelas I Bis. Exige-se que não haja dúvidas sobre a autenticidade da sentença
estrangeira. Fala-se ainda da inteligência da decisão, que quer dizer a legibilidade da decisão,
ou seja, a decisão tem de ser percetível, tem de se perceber o que lá está.

É necessário que não tenha sido desrespeitado a exceção de caso julgado e a


exceção de litispendência, com fundamento em causa afeta a tribunal português.

Também se exige que a competência do tribunal estrangeiro não tenha sido


fundada em fraude à lei e não tenha sido violados as regras de competência exclusivas
dos tribunais portugueses. Aqui temos uma diferença que é precisamente a ideia da fraude à
lei – fraude as próprias regras de competência dos tribunais, portanto prevê-se e sanciona-se a
criação ficcional de um nexo para provocar a competência do tribunal de origem da sentença.

É necessário que tenham sido respeitados certos princípios processuais básicos, que se
referem desde logo à citação do réu, possibilidade de se defender, princípio da igualdade das
partes e do contraditório.

A decisão estrangeira não pode ter violado manifestamente a ordem pública


internacional do Estado português. A propósito desta alínea há uma questão que tem sido
P á g i n a | 227

discutida. Ferrer Correia diz que na apreciação da ordem pública internacional o TR só


poderia apreciar a parte decisória da sentença, ou seja, o TR não estaria autorizado a
fazer uma revisão de fundo da sentença – o que está em causa não é analisar a norma ou
princípio com base no qual a decisão foi tomada, mas sim saber se a decisão em si viola ou
não a ordem pública. A interpretação contrária a esta seria dizer que tem de se averiguar uma
incompatibilidade entre os fundamentos da decisão e a ordem pública.
Na perspetiva de Barreto Xavier a parte decisória da sentença tem de ser analisada
à luz dos fundamentos em que foi tomada, se assim não fosse seria impossível apreciar a
contrariedade à ordem pública de um conjunto grande de decisões.
Exemplo: Decisão que decreta o divórcio – a parte decisória é a que se decreta o
divórcio. Mas se a decisão foi tomada à luz de considerações altamente discriminatórias, que se
fosse tomada contra o homem não teria sido tomada. Mulher opõe-se aos termos em que foi
tomada. Para apreciarmos a contrariedade à nossa ordem pública desta decisão temos de olhar
para a sentença no seu todo e não só para a parte decisória.
Exemplo 2:Decisão que condena ao pagamento de uma quantia demasiado elevada – se
olharmos apenas à parte decisória é impossível percebermos se é compatível ou não com a
nossa ordem pública, porque condenar por si só ao pagamento de uma quantia elevada não é
contrário à ordem pública. Mas se essa quantia, por exemplo, é uma cláusula penal que foi aposta
em condições ofensivas por motivos raciais ou de outra ordem, então se calhar temos de olhar
para os fundamentos da sentença para saber se a decisão é ou não contrária à ordem
pública. É a decisão tomada à luz dos fundamentos que a suportam.

Temos ainda de ter em atenção o artigo 983º/1 e 2. O artigo 983º/1 refere-se a certos
casos em que a pessoa contra quem se pede a revisão de sentença estrangeira se pode opor com
fundamento em certos casos que são fundamento de recurso extraordinário de revisão.
E o artigo 983º/2 estabelece um caso claro de revisão de mérito da sentença
estrangeira – temos 3 pressupostos:

1) Sentença proferida contra português (pessoa singular ou coletiva).

2) Numa situação em que, de acordo com o Direito de Conflitos português, o Direito


português era o aplicável.

3) E por força da não aplicação do Direito que consideramos que seria aplicável
(Direito português) o cidadão português foi prejudicado. Temos portanto uma
proteção do cidadão português. A constitucionalidade desta proteção tem sido
questionada por alguma doutrina, pois o artigo 15º CRP estabelece o princípio da
equiparação, sendo preciso se se justifica esta tutela dos cidadãos portugueses.
P á g i n a | 228

Casos Práticos

Teste

“Giselle, francesa, e Afonso, português, conheceram-se em Itália, onde estudaram durante


um semestre ao abrigo do programa Erasmus +.

Depois de um ano de relacionamento à distância, Giselle muda-se para Lisboa em 2018, e


arrenda, em conjunto com Afonso, um apartamento situado no Parque das Nações.

Durante um jantar formal em casa dos pais de Afonso, Giselle e Afonso oficializam o
noivado, anunciando o casamento para Março de 2019, em Azeitão.

Como Afonso não tem tempo para nada, atendendo às novas responsabilidades
profissionais, Giselle tratou de tudo: organizou a festa, pagou à empresa de catering e ao
proprietário da quinta de Azeitão, e comprou a viagem de lua-de-mel.

Duas semanas antes do grande dia, Giselle e Afonso visitam os pais de Giselle em Lyon, e é aí
que Afonso larga a bomba: apaixonou-se por Carlota, colega do escritório, pelo que não vai
poder casar.

Giselle fica indignada e destroçada, e já não regressa a Portugal senão para propor no
tribunal de Lisboa uma ação na qual pede que Afonso a indemnize por todos os danos
patrimoniais ocorridos, que incluem não apenas as despesas realizadas, mas o tratamento
médico da depressão sofrida e, bem assim, todos os danos não patrimoniais, especialmente
o sofrimento causado, a vergonha de anunciar o cancelamento do casamento e a depressão
subsequente. Giselle fundamenta o pedido na aplicação das regras gerais da
responsabilidade civil extracontratual francesas, que reputa aplicáveis.

Afonso contesta, alegando que, de acordo com a lei portuguesa, apenas deve indemnizar
Giselle pelas despesas feitas em vista do casamento.

Diga quem tem razão, justificando devidamente.

Duração: 1 hora

8-4-2019”

Correção

Situação absolutamente internacional, por estar em contacto com mais duas ordens
jurídicas, que por esse motivo são potencialmente aplicáveis.

A rotura da promessa de casamento ocorrida em França é valorada diferentemente pelo direito


material português e francês.
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As normas materiais portuguesas que dariam resposta jurídica à situação encontram-se


no livro do Direito da Família. Perante o direito português, a rotura dos esponsais é regida por
normas especiais (arts. 1591º e segs.), que afastam o caráter vinculativo da promessa de
casamento e limitam os efeitos da sua quebra injustificada fundamentalmente à devolução de
objetos pessoais (cartas, retratos) e à indemnização por despesas realizadas em função do
casamento. Este regime resulta do caráter pessoal e direito de celebrar casamento e da proteção
da liberdade de casar. Deste modo, tendo em conta o conteúdo e a função deste regime, no
contexto do direito substantivo português, torna-se claro que ele não pode ser reconduzido à
responsabilidade civil extracontratual ou à responsabilidade contratual, pois que,
funcionalmente, ele decorre de uma ligação ao instituto do casamento, que visa proteger. Daí que
tais normas devam ser subsumidas no conceito quadro “relações de família” previsto no artigo
25º do CC, apesar de os esponsais não serem expressamente referidos neste Código como fonte
de relações familiares. Sendo conveniente que seja uma única lei a aplicável, deverá entender-se
que os esponsais são regulados pela lei nacional comum dos esposados ou, na sua falta, pela lei
da sua residência habitual comum, ou, faltando também esta, a lei com a qual a qual o
relacionamento de ambos tenha uma conexão mais estreita (por analogia com o artigo 52º).
Assim, sendo a lei portuguesa qualificada como relativa a relações familiares e remetendo a
regra de conflitos portuguesa em matéria familiar para o direito português, este é aplicável.

De acordo com o princípio da paridade de tratamento, importa ainda verificar se a lei


francesa é aplicável. Tendo em conta que em França são aplicáveis à rotura dos esponsais as
regras gerais relativas à responsabilidade extracontratual, não sendo estabelecidas regras
específicas para este tipo de casos, o direito material francês só pode reconduzir-se a uma regra
de conflitos que tenha por objeto a responsabilidade civil extracontratual. O Regulamento Roma
II exclui do seu âmbito material de aplicação as “obrigações extracontratuais que decorram de
relações de família ou de relações que a lei aplicável às mesmas considere terem efeitos
equiparados, incluindo as obrigações de alimentos” (artigo 1º nº 2 a) e as “obrigações
extracontratuais que decorram de regimes de bens no casamento, de regimes de bens em
relações que a lei aplicável às mesmas considere terem efeitos equiparados ao casamento e as
sucessões” (artigo 1º nº 2/b). Todavia, atendendo ao modo como a situação em causa é regulada
no direito francês, que convoca regras gerais de responsabilidade civil extracontratual, e não
regras decorrentes de relações familiares, tais normas, atendendo ao conteúdo e função que
desempenham, podem subsumir-se ao conceito quadro “responsabilidade fundada em ato lícito,
ilícito ou no risco” do Regulamento Roma II. O caso cabe também no âmbito temporal de
aplicação do Regulamento (artigos 31º e 32º), bem como do seu âmbito espacial (aplicação
universal, artigo 3º). Não tendo havido escolha de lei (artigo 14º), e tendo o lesante e a lesada
residência habitual em Portugal no momento em que ocorre o dano (artigo 4º nº 2), o elemento
de conexão relevante do Regulamento remete para a lei portuguesa (não se verificando o
pressuposto do artigo 4º nº 3 – cláusula de exceção). Deste modo, concluímos que a lei francesa
não é aplicável, pois a sua aplicabilidade estaria dependente de o Regulamento Roma II para ela
remeter.

Não se regista assim qualquer conflito de qualificações, porque apenas a lei


portuguesa é aplicável, por força do artigo 25º do CC, pois foi nesta regra de conflitos que
o direito material português se subsumiu.
P á g i n a | 230

Exame

Carlão, um jovem empreendedor brasileiro residente habitualmente em Cascais,


vende a Dinorah, também brasileira, com residência habitual em São Paulo, uma moradia
situada em Cascais. Responda autonomamente a cada uma das questões:

1. O contrato foi celebrado na República Dominicana, por documento particular.


Admitindo que o direito brasileiro exige a escritura pública e o direito dominicano admite a
celebração por mero escrito particular, aprecie a validade formal do contrato.

-situação jurídica plurilocalizada de direito privado. Em contacto com a situação estão 3 OJs
distintos, o português, residenchia de C e sitio do imóvel, o brasileiro, nacionalidade de B C e
residencia de C e por fim o OJ da Republica dominicana, onde foi celebrado o NJ.

- para resolver a questão temos de recorrer ao DIP mais concretamente às normas de conflitos,
normas formais que indicam para qual dos 3 ordenamentos suctiveis de serem aplicados pelo
Principio da não transatividade.

- assim temos de qualificar cada norma material do sistema e ver se é subsumível ao conceito
quadro de uma regra de conflitos, que depois nos remeterá pelo seu elemento de conexão para a
lei que dá a resposta a situação material.

-quanto a todas as normas em causa, a exigência que cada uma delas se refere enquadra-se no
conceito quadro da validade formal, as 3 normas materiais são qualificadas ao mesmo conceito
quadro pelo que não haverá um conflito de qualificações a resolver

- que normas de conflitos existem que se apliquem a um CV quanto a validade formal. Temos
duas no OJ portugues: a do regulamento roma I, artigo 11º e a do 36º CC. Temos de ver se se
aplica o regulamento pelo seu âmbito, porque caso se aplique derroga o 36º

-ambito material: check, âmbito temporal: se for depois de bla bla, âmbito de aplicação
universal: check.

-11º aplica-se

Exame de Finalistas 2019

Jean Pierre, artista plástico belga residente habitualmente no Algarve, decide comprar um
computador portátil topo de gama, com uma excepcional placa gráfica. Encontra o produto
à venda no site da empresa que o fabrica (a Bit-Bit, com sede em Taiwan), e decide
encomendá-lo, pagando o respectivo preço (7.5000 USD) com cartão de crédito.

Decorridos dois meses após a compra, e não tendo o portátil chegado, Jean Pierre contacta
a BitBit, protestando pela demora, uma vez que o site da empresa indicava o prazo de 15
P á g i n a | 231

dias para a entrega. A Bit-Bit responde, alegando que o computador foi expedido
imediatamente a seguir à encomenda. Jean-Pierre exige a devolução do preço, tendo em
conta que nunca recebeu o portátil, mas a Bit-Bit recusa, insinuando que Jean Pierre está de
má-fé.

Jean Pierre encontrou um computador semelhante num estabelecimento comercial em


Portugal. Não tendo chegado a receber o encomendado, e precisando com dele com
urgência, para concluir um trabalho que lhe foi adjudicado, Jean Pierre consulta um
advogado, com vista a analisar a questão.

Responda autonomamente às seguintes questões:

1) Pode Jean Pierre instaurar em Portugal uma ação contra a Bit-Bit, com o fim de reaver o
valor pago?

Para apurar a competência dos tribunais portugueses, deve começar-se por averiguar da
aplicabilidade do Regulamento Bruxelas I bis. Encontrando-se a questão incluída no seu âmbito
material (art. 1º) e temporal de aplicação (arts. 66º e 81º), a questão importante reside em saber
se o litígio cabe no seu âmbito espacial de aplicação. Tendo em conta que a Bit-Bit não está
domiciliada em nenhum Estado-Membro (art. 63º), a aplicabilidade do Regulamento apenas
poderia fundar-se na verificação dos pressupostos de uma das disposições referidas no art. 6º.
Não havendo competência exclusiva ou pacto de jurisdição, apenas poderia ponderar-se a
questão de saber se existe um contrato de consumo, ao qual pudesse aplicar-se o art. 18º/1.
Sucede que o contrato não foi celebrado para um fim estranho à actividade profissional de Jean
Pierre (art. 17º/1) , pelo que a aplicação dos art.s 17º e segs. fica afastada. Mesmo que assim não
fosse, teria de se demonstrar que a Bit-Bit tinha dirigido a sua atividade para Portugal, ou com
actividade comercial ou profissional no nosso país (art. 17º/1/c). Conclui-se assim que o
Regulamento Bruxelas I bis não é aplicável.

Deste modo, haveria que recorrer às regras do Código de Processo Civil, que, no seu artigo 62º,
rege a competência internacional dos tribunais portugueses. De acordo com o princípio da
coincidência (art. 62º/a), não haveria, em princípio, competência dos tribunais portugueses,
uma vez que a regra de competência territorial em matéria de incumprimento contratual aponta,
em primeira linha, para o foro do domicílio do réu, que não se situa em Portugal (art. 71º).
Todavia, tendo parte dos factos que integram a causa de pedir na acção decorrido em Portugal,
uma vez que aqui foi feita a encomenda e aqui deveria ter tido lugar a entrega, os tribunais
portugueses são internacionalmente competentes, por força do artigo 62º/b) do CPC.

2) Admitindo que a propositura da acção em Portugal é possível, qual deverá ser a lei
aplicável?

Esta questão encontra-se abrangida no âmbito material (art. 1º), temporal (arts. 28º e
29º) e espacial de aplicação (art. 2º - aplicação universal) do Regulamento Roma I. Mais uma vez
se coloca a questão de saber se o contrato em causa é um contrato de consumo (art. 6º). Pelas
razões indicadas na questão 1), tal não acontece. Assim, não havendo escolha de lei pelas partes
nos termos do art. 3º, há que aplicar a lei subsidiariamente competente, nos termos do art. 4º.
Tratando-se de um contato de compra e venda de mercadorias, é aplicável a lei da residência
P á g i n a | 232

habitual do vendedor (art.4º/1/a). Nos termos do art. 19º, o vendedor tem residência habitual
em Taiwan. Assim, a lei aplicável é a lei de Taiwan. Não há elementos que apontem para que
outra seja a lei manifestamente mais conexionada com o contrato, nos termos do art. 4º/3, pelo
que se confirma a solução referida.

Comente as seguintes afirmações:

1) “Em Portugal, a conexão residência habitual tem um papel secundário no campo do


estatuto pessoal, devendo, sempre que possível, aplicar-se a lei nacional dos indivíduos”.

O comentário a realizar deveria abranger o direito de conflitos de fonte interna e o


direito de conflitos de fonte europeia, pois ambos integram o DIP português. No Código Civil
português, a nacionalidade é o elemento de conexão primariamente relevante em matéria de
estatuto pessoal, o que não significa relegar a residência habitual para um papel secundário.
Com efeito, diversas disposições mostram que ambas as conexões são legítimas e que a
preferência pela nacionalidade não afasta a importância da residência habitual na economia do
DIP português de fonte interna. Para além das disposições que estabelecem a residência habitual
como conexão subsidiária, destacam-se o regime do reenvio (arts. 17º2 e 18/2) e o princípio dos
direitos adquiridos (art. 31º/2), que permite, em certos casos, fazer prevalecer a lei da
residência habitual sobre a da nacionalidade. Nos Regulamentos da União Europeia que têm por
objecto regras de conflitos, a preferência em matéria de estatuto pessoal vai para a lei da
residência habitual, como resulta designadamente do Regulamento Roma III ou do Regulamento
em matéria sucessória. Deste modo, não é possível considerar que a conexão residência habitual
tem em Portugal um papel secundário.

2) “A segurança jurídica é o valor essencial do DIP. Por isso, este é cego perante a justiça
material.”

O lugar primacial que a segurança jurídica ocupa no DIP não pode fazer esquecer a
relevância multifacetada da justiça material neste ramo do direito. O comentário poderia, por
isso, incidir especialmente nos seguintes aspectos: valores constitucionais no DIP, regras de
conflitos de carácter substancial, princípio do favor negotii, protecção da parte mais fraca,
ordem pública internacional, normas de aplicação imediata.

Cotações: 5 valores cada questão.

Casos

Estes casos foram sendo reunidos das aulas e de exemplos dados. Não havendo um
questionário disponibilizado no moodle como noutras cadeiras, optamos por fazer assim.
Contém tanto casos dados pelo Professor Barreto Xavier em aula teórica como casos dados pelo
Professor Miguel Mota em álulas práticas.
P á g i n a | 233

Caso 1

Hans, empresário alemão radicado em Portugal, vende a Herdade do Pato Bravo,


situada em Vila Nova da Carregação, a Ursula, sua filha, também de nacionalidade alemã.
Kurt, filho mais novo de Hans, e também alemão, descontente com o que acontecera, propõe
em Portugal uma ação contra ambos, invocando a aplicabilidade do artigo 877º do Código
Civil português. Hans defende-se, alegando que o direito alemão não estabelece nenhuma
limitação comparável ao artigo 877º.Quem terá razão?

Como é que se resolve um caso prático de qualificação?

o Situação plurilocalizada – quais são os ordenamentos jurídicos potencialmente


aplicáveis à situação? Neste caso seria o português e o alemão.

o Identificar as normas materiais de cada ordenamento que se aplicariam ao caso – no


nosso caso é o artigo 877º e para o direito alemão, não havendo limitação, aplica-se o
regime normal da compra e venda (alemão, pressupondo que é igual ao português ou
semelhante)

o Interpretar os artigos – determinar a intenção daquela norma material – qual é o


objetivo último da norma de forma a depois ver se é possível subsumi-la a determinado
conceito quadro. Há três hipóteses para o artigo 877º

1. relações familiares – o artigo visa preservar a harmonia das relações familiares.


Esta é a interpretação de Lima Pinheiro

2. relações sucessórias – porque a ratio é preservar as legítimas dos


descendentes. Esta é a interpretação do professor Barreto Xavier

3. ou ainda a validade substancial do contrato – por se tratar de um contrato.

o Ter presente que o facto de o artigo 877º aparecer no contrato de compra e venda, nos
contratos em especial e no livro das obrigações não é suficiente para que se qualifique
como norma de obrigações.

o artigo 25º C.C. É muito genérico, é a norma geral em matéria de estatuto pessoal e nele
cabem todas as matérias de estado, relações familiares, sucesso por morte (…) mas este
apenas se aplica na falta de disposição especial aplicável.

o artigo 57º C.C. Esta é uma das alternativas, norma de conflitos cujo conceito quadro é
relações entre pais e filhos. Uma parte da doutrina entender que o que aqui está é uma
relação familiar, relação entre pais e filhos sendo esta troam aplicável e que vai
determinar a lei aplicável.
P á g i n a | 234

o A norma do artigo 877º C.C. tem que ser qualificada como norma sucessória e portanto a
sua aplicabilidade depende da norma de conflitos em matéria sucessória que hoje é o
Regulamento em matéria sucessória. Portanto vejamos se é, se a abertura da sessão é
posterior à entrada em vigor do regulamento qual a lei aplicável em matéria sucessória?
A fonte é o regulamento mas qual a solução? Âmbito material, territorial e temporal de
aplicação do Regulamento. No que toca ao âmbito material: artigo 1º do regulamento em
aletria sucessória determina que o regulamento se aplica às sucessões por morte e
determina que se exclui do seu âmbito de aplicação uma serie de matérias nas quais se
encontra o estado das pessoas, relações familiares e as disposições que a lei entende
produzirem efeitos equiparáveis. Esta disposição exclui o artigo 877º? O que significa
excluir as situações familiares? Significa que não se aplica à sucessão por morte fundada
em relações familiares? Não, significa que não é à luz deste regulamento que se vai
determinar se duas pessoas se unem por um laço familiar, ou seja, se uma pessoa é filha
de outra ou não, se é casada ou não, se está unida por laço que produza efeitos
equiparáveis ao casamento. Exclui-se a relação familiar como objecto da norma de
conflitos mas o artigo 877º não define quando é que uma passo se pode considerar
parente, casada com, por aí em diante, antes estabelece uma regra que tem uma
implicação em sede de partilha porque indiretamente o que diz é que aquele ato ao
proibi-lo sem consentimento dos outros herdeiros legitimários, está. Dizer que não
podem ser prejudicados os outros herdeiros, estamos em pleno capo de direito
sucessório e não de relações familiares.

o Se considerarmos que é relação familiar que esta no artigo 877º então não cabe no
âmbito material do Roma I então aplica-se o artigo 57º C.C. sobre relação familiar entre
pais e filhos.

Caso 2

Álvaro Bénitez, espanhol, residente habitualmente na Cidade do Cabo, na África do


Sul, intenta junto de tribunais portugueses, contra Carlos Donas, português, residente
habitualmente em Lisboa, ourives de profissão, uma acção fundada no não pagamento do
preço por este último alegadamente devido em razão de um contrato de compra e venda de
diamantes celebrado, em Maio de 2010, em Luanda (Angola). Nos termos contratuais, a
entrega dos diamantes e o pagamento do preço deveriam acontecer em Lisboa. Admita que
as partes convencionaram a aplicação da lei portuguesa. Suponha, mais, que em Angola
vigora legislação que proíbe, sob pena de nulidade, a venda internacional, entre
particulares, de diamantes originários de Angola. Poderá esta proibição influenciar o
sentido da decisão a proferir por tribunais portugueses internacionalmente competentes? É
ou não internacional?

Sim, tem contacto com várias OJ. Qual o problema em análise? Contrato de compra e
venda de diamantes é válido ou não? O direito português é o direito mandado aplicar pela
escolha da lei pelas partes e é ainda o direito da nacionalidade de Carlos, e é em Portugal que
deveria ocorrer a entrega dos diamantes e o pagamento do preço. De acordo com o direito
P á g i n a | 235

material português este contrato seria válido, nada obsta à validade do mesmo. Pelo contrário,
nada se diz sobre o direito da Africa do Sul ou Espanhol mas diz-se que no país onde se
encontram os diamantes - Angola - esta venda internacional entre particulares de
diamantes é nula e proibida.

Qual a lei aplicável? Quer as normas portuguesas, quer as normas angolanas são
normas que incidem sobre a validade substancial deste contrato, qualificam-se como
normas relativas às obrigações contratuais. Assim, a sua aplicabilidade depende das regras
de conflitos do Roma I desde que este seja aplicável.
Ora, relativamente ao âmbito material de aplicação não há problema porque estão em
causa obrigações contratuais numa situação que implica conflito de leis.No que toca ao âmbito
temporal de aplicação não há problema porque o contrato é celebrado depois da entrada em
vigor do regulamento. Não se coloca qualquer problema acerca do âmbito espacial do
regulamento porque este é universalmente aplicável, é aplicável desde que a questão seja
suscitada perante órgãos de aplicação do direito dos EM. Nalguns casos temos uma restrição do
conceito de EM para este efeito mas não é o caso de Portugal que se abrange por todos os
Regulamentos da U.E. O regulamento é, neste caso, aplicável.
As normas materiais subsumem-se no conceito quadro do regulamento Roma I, não
sendo excluídos do seu âmbito material este tipo de contratos por força do artigo 1º, do seu
âmbito temporal ou espacial de aplicação. Em princípio a lei aplicável neste tipo de contratos
é a lei escolhida pelas partes e, portanto, a lei aplicável seria a lei portuguesa pela qual o contrato
é válido.

Averiguar a validade da escolha de lei. Mas cabe saber se há ou não relevância da


proibição internacional de vender diamante originários de Angola entre particulares. É uma
NAI? É uma norma material porque apresenta uma solução direta para o conflito de interesses
em causa. As normas de conflito dão também uma resposta mas aquando da lei aplicável,
indicam o caminho para chegar à solução substantiva. É uma norma imperativa: Proíbe
comportamentos e comina a nulidade para o não cumprimento da proibição. Isto
demonstra que não se trata de norma supletiva mas antes imperativa. Porque é que ela é NAI?
Estabelece um elemento de conexão ad hoc. Qual é? Localização em Angola dos diamantes
objeto do contrato. O elemento de conexão é o laço, ligação que se estabelece entre a situação a
regular e uma certa ordem jurídica, neste caso, é o local onde os diamantes se encontram antes
de serem exportados. Portanto é uma NAI porque, precisamente, pelo modo como está redigida -
é isto que temos que retirar da interpretação dos diversos elementos (é uma norma material, é
imperativa, estabelece elemento de conexão ad hoc) -, pelo seu conteúdo, a sua natureza implica
afastar a aplicação da lei em principio competente porque esta norma pretende aplicar-se
sempre que exista uma venda internacional de diamantes originários de Angola. Portanto, há
uma NAI no Direito Angolano.

Esta norma é aplicável? Para que fosse aplicável por força do artigo 9º nº 3 Roma I o
que é que era necessário? Tendo em conta o teor da norma e a situação da vida e o disposto no
artigo 9º nº 3 Roma I como podíamos densificar esta hipótese por forma a que caiba no campo
de aplicação do artigo 9º nº 3 Roma I? Duas sub hipóteses: uma em que o artigo 9º nº 3 Roma I
não é aplicável, e uma em que o artigo 9º nº 3 Roma I é aplicável. O lugar de execução do
contrato, para estes efeitos, não é necessariamente o único lugar de execução do contrato. Por
outras palavras, a razão de ser do artigo 9º nº 3 Roma I é evitar que a aplicação da lei
escolhida, ou da lei designada pelas conexões objectivas na falta de escolha, leve
precisamente a uma ineficácia da decisão, ou que desconsidere proibições ou deveres a
P á g i n a | 236

que as partes estavam sujeitas no lugar de execução do contrato. Se os diamantes estiverem


fora de Angola, a NAI angolana não tem eficácia, não tem capacidade. Se os diamantes saíram de
Angola em execução do contrato dir-se-á que há um título de atendibilidade da norma imediata
em causa mas não pela efetividade. Podem ter saído antes, o vendedor pode ter levado consigo
os diamantes e só depois procedeu à venda. Neste caso, Barreto Xavier diria que temos que abrir
as duas sub-hipóteses e entender que se o país de execução do contrato, total ou
parcialmente, é Angola o Tribunal do foro está autorizado a aplicar a NAI Angolana,
embora nos termos do artigo 9º nº 3 Roma I, ele está autorizado a fazê-lo mas não obrigado a
fazê-lo. Ou seja, há uma diferença na previsão e estatuição do número 2 e número 3 do artigo 9º
Roma I. Enquanto relativamente às NAI do país do foro se determina que as normas do
presente regulamento não podem limitar a aplicação dessas, portanto, muito
simplesmente, diz-se que as NAI do foro prevalecem sobre as normas de conflito do
regulamento. No número 3 estabelece-se que pode ser dada prevalência. Teríamos que ver as
circunstâncias do caso e ponderar tendo em conta que, por um lado, há princípios ligados à
autonomia da vontade e aplicação da lei portuguesa que conduzem à validade do contrato. Por
outro, ponderações de relevância da NAI angolana que aponta no sentido de respeitar essas
normas, pelo menos, se esse respeito for crucial para assegurar a eficácia da decisão. Se há
grande probalidade de a decisão do foro ser ineficaz porque não reconhecida no país dos
diamantes, então, é claro que temos que respeitar a aplicação da NAI desse país. Em função das
duas sub-hipóteses teríamos respostas variadas. Se os diamantes não estivessem em Angola mas
na Africa do Sul esta norma teria pretensão de aplicabilidade? Não, esta norma é também
autolimitada. Mas isto não altera a nossa hipótese.

Quando qualificamos estamos a subsumir valorativamente ao conceito quadro, esta


qualificação é algo que pressupõe uma norma em consideração do âmbito material de aplicação
do regulamento. Quando determinarmos o alcance do conceito quadro obrigações contratuais
delimitamos o âmbito material de aplicação do Regulamento. Isto corresponde à resposta à
primeira das questões que é a interpretação do conceito quadro. Em certos casos temos dúvidas
sérias sobre se devemos qualificar as normas materiais num conceito quadro ou noutro. Neste
caso, não há alternativa séria à sua qualificação no Roma I. Há um problema muito simples mas
há que fazer a qualificação. artigo 15º C.C. A redação inicialmente proposta no anteprojecto de
Ferrer Correia e Baptista Machado foi sintetizada nesta disposição. O que podemos confirmar no
artigo 15º C.C. no que toca à qualificação? - Como confirmamos a partir da leitura do artigo 15º
C.C. que os conceitos quadro das normas de conflitos devem ser interpretados teleologicamente?
Quando se refere à função da norma refere-se à função da norma material mas aqui
perguntamos: pelo que toca à interpretação do conceito quadro da norma de conflitos há ou não
alguma pista que o artigo 15º C.C. nos dá no sentido de teleologia? ‘visado’ ou seja, a norma de
conflitos tem um determinado fim, um objectivo, visa determinado tipo de institutos.
O que o artigo 15º C.C. num ponto de vista mais explícito diz é que quando a regra de
conflitos manda aplicar uma dada ordem jurídica não manda aplicar a ordem jurídica no
seu todo. Isso, no fundo, pressupõe que o funcionamento das normas de conflitos implica o
mecanismo da dépeçage - fraccionamento das questões por forma a que cada perfil da
situação possa ser objeto de um conceito quadro distinto e de uma solução conflitual
própria.
P á g i n a | 237

Caso 3

A, portuguesa, e B, nacional alemão, casados em regime de comunhão de adquiridos,


residem habitualmente em Colónia. Encontrando-se em Lisboa, A vende nesta cidade a C,
aqui residente, um prédio de sua propriedade situado em Portugal. Junto dos tribunais
portugueses, B pretende obter a anulação da venda com fundamento no artigo 1682-A do
Código Civil português. Sabendo que a substância do contrato e as obrigações dele
decorrentes estão sujeitas à lei portuguesa por ter sido esta a lei escolhida pelas partes e,
ainda mais, que a lei alemã não contém preceito semelhante ao do artigo 1682-A,
pronuncie-se sobre a pretensão de B.

Situação plurilocalizada, dois ordenamentos jurídicos potencialmente aplicáveis. Direito


Português: Contrato de C/V de um imóvel e esse contrato é regido por um conjunto de normas
relativo à forma do contrato, substância do contrato e, ainda, neste caso, tendo em conta que o
imóvel pertencia a um dos cônjuges que estava casado em regime de comunhão de adquiridos
deveria incidir o artigo 1682º-A/1 que estabelece que a alienação de imóveis carece do
consentimento de ambos os cônjuges salvo se vigorar o regime de separação de bens.

Direito Alemão: Normas que regem a sua forma, substância, efeitos mas não existe
nenhuma proibição de um cônjuge vender um imóvel de que é proprietário sem autorização do
outro.

Qual a questão que se coloca? Saber se o artigo 1682º-A/1 é ou não aplicável. Isto
pressupõe uma qualificação do artigo 1682º-A/1, temos que ver a sua ratio, o conteúdo
dessa norma e a função que desempenha no OJ em que se insere que é o português. Qual o fim
desta norma? O que é que ela tutela? O conteúdo da norma é proibir a venda de um bem próprio
sem consentimento de outro cônjuge. Porquê? Faz sentido? O bem é meu e não do meu cônjuge,
não há comunhão de bens relativamente a este imóvel, e não posso enquanto casado vender sem
autorização do meu cônjuge? Função: O legislador parte da ideia de que no regime da comunhão
de adquiridos há uma maior solidariedade em termos patrimoniais entre os cônjuges que deve
obrigar a que determinados atos de particular importância careçam do consentimento de ambos
os cônjuges. Barreto Xavier diria que aqui o mais relevante é o regime da responsabilidade por
dívidas. O essencial é ter presente que sobre este regime que estamos a analisar de forma
superficial, pelo menos, chegamos a uma conclusão: está funcionalizado ao regime de bens ao
casamento, está funcionalmente ligado ao regime de bens do casamento, está intrinsecamente
ligado a esse regime de bens. Isto é meio caminho andado para a qualificar como norma atinente
ao regime de bens, deve subsumir-se na regra de conflitos que versa sobre o regime de bens.
Qual a regra de conflitos atinente ao regime de bens?

Aqui teríamos de distinguir. Por um lado, teríamos de ver o âmbito material de aplicação
- aqui temos um regulamento transaccional - podemos ter que ver se é possível subsumir esta
norma no Regulamento da U.E. atinente ao regime de bens, se fosse possível aplicar-se-ia se o
seu âmbito espacial e temporal estivesse preenchido. O problema é o âmbito temporal, já que
este regulamento é aplicável a partir de 29 de janeiro de 2019. Se fosse aplicável o
Regulamento, a lei aplicável seria a lei designada por este, seria qual? Lei da Residência
Habitual Comum - Residem habitualmente em Colónia, portanto, não havendo escolha de
lei, aplicar-se-ia a lei Alemã.
P á g i n a | 238

Aplicando-se a lei alemã este contrato poderia ser anulado ou não? Não, porque o artigo
1682º-A/1 C.C. não é aplicável porque a aplicabilidade desta norma só teria lugar se o direito
português fosse competente em matéria de bens. Como no Direito Alemão não há qualquer
proibição, esta venda não seria anulável. Aqui não era relevante a lei escolhida para o contrato.

Para efeitos de saber se esta venda era ou não válida teríamos que recorrer às regras de
conflitos gerais.

A Alemanha, embora seja um Estado Federal, não tem direito diferenciado para cada
uma das sub-unidades, não temos diferentes OJ em matéria de direito internacional privado nas
diversas sub-unidades territoriais. Admitindo que B não é nacional Alemão mas Britânico, ou
nós, neste caso, tínhamos que tomar em consideração se havia uma norma comum a todo o R.U.
ou se tínhamos normas diversas nas várias sub-unidades territoriais. Como a questão, perante o
direito das diversas sub-unidades territoriais do R.U., não conheceria uma norma paralela ao
artigo 1682º-A/1 C.C. não tínhamos que averiguar onde é que ela seria relevante.

Etapas
Quando estamos a qualificar uma norma material estamos a indagar em que conceito
quadro podemos subsumir aquela norma material para os efeitos de determinação da lei
aplicável. Se é assim o que temos que começar por ver é se podemos subsumir essa norma
material no conceito quadro de uma regra de conflitos de direito transnacional porque
essas prevalecem sobre regras de conflitos de direito interno.

O primeiro passo para determinar a subsunção ou qualificação de uma norma material a


uma regra de conflitos de fonte transnacional é determinar se aquele Regulamento é ou não
aplicável no seu âmbito material, territorial e espacial de aplicação. O conceito quadro
relevante é o conceito quadro relevante para delimitar o âmbito material de aplicação do
Regulamento em causa. Noutros casos, esse passo não chega porque pode haver regras especiais
quanto a matérias específicas dentro do âmbito material do regulamento. Por exemplo, quando
temos um contrato especificamente regulado dentro do Roma I há que fazer uma segunda
indagação para saber se as normas materiais que regulam esse contrato podem
subsumir-se no contrato de consumo ou contrato individual de trabalho.

Um contrato celebrado entre uma pessoa e uma sociedade comercial. Este contrato é um
contrato através do qual esta pessoa se obriga a realizar uma certa tarefa todos os dias sem
horário para a organização não nas instalações da empresa mas em casa com algum poder de
autonomia funcional, em termos tais que temos elementos que apontam no sentido do contrato
individual de trabalho e outros que apontam para uma prestação de serviços. Perante o direito
português isto é um contrato de trabalho, perante o direito espanhol isto é um contrato e
prestação de serviços. Vamos qualificar as normas.

Pode surgir um conflito positivo de qualificações, normalmente não surgirá porque,


na maioria dos casos, apenas uma ordem jurídica é convocada a resolver o problema. Se se for
um contrato de trabalho a lei designada é aquela que está prevista na norma especial do
Roma I em matéria de contrato e trabalho. Se for um contrato de prestação de serviços não
temos uma regulamentação específica senão um regra subsidiária do artigo 4º Roma I que
indica qual a lei aplicável, no caso de não ter existido escolha. Pode haver especificação dos
elementos de conexão diversos, que podem apontar para diferentes direções, depende da
concretização, depende dessa concretização resultar da aplicação de ambas as leis ou apenas
P á g i n a | 239

uma. Se houvesse um conflito positivo de qualificações qual devia prevalecer? Contrato de


trabalho que é uma norma especial e que está a tutelar interesses mais relevantes.
P á g i n a | 240

Índice
Introdução .......................................................................................................................................................... 1
Caderno de DIP...............................................................................................................................................................1
A disciplina de DIP ........................................................................................................................................................1
Primeira noção de DIP ................................................................................................................................................2
Relevância, Objeto, Âmbito, Valores, Princípios e Fontes do Direito Internacional Privado
................................................................................................................................................................................ 3
Problemas fundamentais suscitados pelas situações absolutamente internacionais ......................3
Situações Absolutamente Internacionais, Relativamente Internacionais e Puramente Internas5
Princípio da Não Transitividade .............................................................................................................................6
Os valores da segurança e da justiça material...................................................................................................8
O principal valor: segurança jurídica ...............................................................................................................8
A justiça material ......................................................................................................................................................9
A europeização do DIP, combate à incerteza. ............................................................................................ 12
Âmbito do DIP.............................................................................................................................................................. 12
Princípios do DIP ........................................................................................................................................................ 15
Princípio da Conexão mais Estreita ............................................................................................................... 15
Princípio da Harmonia Jurídica ....................................................................................................................... 17
Princípio da Paridade de Tratamento entre as Leis ................................................................................ 18
Princípio da Efetividade das Decisões Judiciais........................................................................................ 19
Princípio Favor Negotii ....................................................................................................................................... 20
Princípio da Autonomia e da Vontade das Partes .................................................................................... 20
Direito dos Conflitos: Diferentes Técnicas de Regulação ............................................................... 24
Dépeçage ........................................................................................................................................................................ 24
As regras de Conflitos ............................................................................................................................................... 25
Conceito ..................................................................................................................................................................... 25
Estrutura ................................................................................................................................................................... 26
Normas bilaterais, unilaterais e imperfeitamente bilaterais .............................................................. 29
De conexão una e normas de conexão múltipla ........................................................................................ 31
De conflitos rígidas e flexíveis .......................................................................................................................... 36
De conexão substancial e normas de conflitos localizadoras ............................................................. 41
Normas de Aplicação Imediata ............................................................................................................................. 42
Identidade ................................................................................................................................................................ 43
Atuação. Relação com as normas de conflitos ........................................................................................... 43
P á g i n a | 241

Técnica Legislativa ................................................................................................................................................ 48


Bilateralização ........................................................................................................................................................ 52
Regime ....................................................................................................................................................................... 53
Normas Espacialmente Autolimitadas .............................................................................................................. 59
Relação com as NAI............................................................................................................................................... 59
Normas Materiais de DIP ........................................................................................................................................ 62
Outros fenómenos de DIP material, em especial Lex Mercatoria ...................................................... 63
Processo em DIP ......................................................................................................................................................... 65
Direito dos Conflitos: Estatuto Pessoal ................................................................................................. 66
Nacionalidade ou Residência Habitual .............................................................................................................. 66
Código Civil ................................................................................................................................................................... 70
A Aplicação Universal dos Regulamentos Europeus ................................................................................... 69
Resolução de Casos de Conflitos, em Geral ...................................................................................................... 70
Regulamento Roma III.............................................................................................................................................. 74
Âmbito de Aplicação............................................................................................................................................. 74
Divórcio não judicial ............................................................................................................................................ 75
Regime ....................................................................................................................................................................... 76
Regulamento em Matéria Sucessória ................................................................................................................. 79
Âmbito de Aplicação............................................................................................................................................. 80
Regime ....................................................................................................................................................................... 81
Regulamentos de Regimes Matrimoniais e de Parcerias Registadas.................................................... 84
Regime de Bens por Casamento ...................................................................................................................... 84
Regulamento das Parcerias Registadas........................................................................................................ 86
Direito dos Conflitos: Obrigações Contratuais e Extracontratuais ............................................. 88
Regulamento Roma I................................................................................................................................................. 88
História ...................................................................................................................................................................... 88
Âmbito de Aplicação............................................................................................................................................. 89
Regras de Conflitos: o grande espaço para a autonomia privada ..................................................... 91
Validade Substancial ............................................................................................................................................ 92
Validade Formal ..................................................................................................................................................... 93
Contratos Celebrados com Consumidores .................................................................................................. 93
Contratos de Seguro ............................................................................................................................................. 97
Contratos de Trabalho......................................................................................................................................... 97
Contratos de Transporte .................................................................................................................................... 98
P á g i n a | 242

Limites da Autonomia da Vontade ................................................................................................................. 99


Falta da Escolha de Lei ..................................................................................................................................... 101
Residência Habitual ........................................................................................................................................... 103
Processual.............................................................................................................................................................. 103
Arbitragem ................................................................................................................................................................. 105
Vantagens .............................................................................................................................................................. 105
Autonomia ............................................................................................................................................................. 106
Fundamento.......................................................................................................................................................... 107
Regulamento Roma II ............................................................................................................................................ 109
Âmbito de Aplicação.......................................................................................................................................... 109
Código Civil ........................................................................................................................................................... 111
Regra Geral de Conflitos .................................................................................................................................. 113
Artigo 16º e 17º................................................................................................................................................... 115
Regras Específicas de Conflitos .................................................................................................................... 116
Problemas de Aplicação das Normas de Conflitos ..........................................................................118
Qualificação ............................................................................................................................................................... 118
A especificidade do problema no quadro do Direito de Conflitos.................................................. 119
Interpretação dos Conceitos-Quadro ......................................................................................................... 121
Delimitação e Caracterização do Objeto da Qualificação ................................................................... 126
Conflitos de Qualificação ................................................................................................................................. 129
Ordenamentos Plurilegislativos ........................................................................................................................ 139
Solução do Código Civil .................................................................................................................................... 139
Regulamentos ...................................................................................................................................................... 145
Ordenamentos Plurilegislativos com Base Pessoal .............................................................................. 146
Conflito de Sistemas de DIP ................................................................................................................................ 147
Conflito Positivo .................................................................................................................................................. 151
Conflito Negativo ................................................................................................................................................ 154
Regulamentos ...................................................................................................................................................... 179
Ordem Pública Internacional ............................................................................................................................. 182
Diferença das NAI ............................................................................................................................................... 185
Concretização do Conteúdo-Função ........................................................................................................... 185
Consequências da intervenção da ordem pública internacional .................................................... 188
Regulamentos ...................................................................................................................................................... 189
Mais aplicações e Conclusões ........................................................................................................................ 190
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Fraude à Lei no Direito Internacional Privado ........................................................................................... 193


Introdução ............................................................................................................................................................. 194
Elementos de Conexão Móveis...................................................................................................................... 195
Elementos de Conexão Não Suscetíveis de Fraude .............................................................................. 195
Pressupostos ........................................................................................................................................................ 196
Fraude à Lei Estrangeira ................................................................................................................................. 196
Fraude Vs. Ordem Pública Internacioal..................................................................................................... 196
A Aplicação do Direito Material Estrangeiro ....................................................................................198
Conhecimento e prova do Direito estrangeiro ............................................................................................ 198
Interpretação do Direito Estrangeiro ............................................................................................................. 200
23º e 348º .............................................................................................................................................................. 200
Conteúdo do Direito .......................................................................................................................................... 201
Falta de Entidade ................................................................................................................................................ 201
Direito estrangeiro e Constituição estrangeira........................................................................................... 201
Competência Jurisdicional Internacional e o Reconhecimento de Sentenças Estrangeiras
...........................................................................................................................................................................203
Competência Internacional ................................................................................................................................. 204
Regulamento Bruxelas I Bis ........................................................................................................................... 206
Código de Processo Civil Português ................................................................................................................ 223
Regra Geral............................................................................................................................................................ 224
Pactos de Jurisdição........................................................................................................................................... 225
Reconhecimento Sentenças............................................................................................................................ 226
Casos Práticos...............................................................................................................................................228
Teste ............................................................................................................................................................................. 228
Correção ................................................................................................................................................................. 228
Exame ........................................................................................................................................................................... 230
Exame de Finalistas 2019 .................................................................................................................................... 230
Casos ............................................................................................................................................................................. 232
Caso 1 ...................................................................................................................................................................... 233
Caso 2 ...................................................................................................................................................................... 234
Caso 3 ...................................................................................................................................................................... 237
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