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CIÊNCIAS CRIMINAIS:

Estudos sobre o direito penal moçambicano


CIÊNCIAS CRIMINAIS:

Estudos sobre o direito penal moçambicano

Almir Santos Reis Júnior

(organizador)

1ª edição

LiberArs
São Paulo – 2021
Ciências Criminais: estudos sobre o direito penal moçambicano
© 2021, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de edição reservados à


Editora LiberArs Ltda

ISBN 978-65-5953-015-1

Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho

Revisão técnica
Cesar Lima

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

C641 Ciências criminais: estudos sobre o direito penal moçambicano/


organizado por Almir Santos Reis Junior. - São Paulo, SP : Editora
Liber Ars, 2021.
384 p. ; PDF; 2,3 MB.

Inclui bibliografia e índice.


ISBN: 978-65-5953-015-1 (Ebook)

1. Direito. 2. Direito penal. 3. Direito criminal. 4. Direito penal


moçambicano. I. Reis Junior, Almir Santos. II. Título.

CDD 342
CDU 347

Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio,
das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos,
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Foi feito o depósito legal.

Editora LiberArs Ltda


www.liberars.com.br
contato@liberars.com.br
APRESENTAÇÃO

A presente obra é o resultado material das nossas aulas de Direito


Penal no Doutoramento em Direito público ministradas no ano letivo de
2019-2021 na Faculdade de Direito da Universidade Católica de
Moçambique.
Os artigos científicos então produzidos por estudantes de
Doutoramento em Direito Público e organizados pelo regente da disciplina,
o Professor Doutor Almir Santos Reis Júnior, são agora reunidos e levados a
estampa. Neles se tratam de temáticas muito diversas, desde logo: a prisão
preventiva como mecanismo de pré-resposta estatal à criminalidade e sua
afronta à legalidade penal; diferentes abordagens dos crimes militares em
Moçambique: um olhar do novo paradigma com ressurgimento dos conflitos
armados; o furto de uso face ao princípio da insignificância jurídico-penal no
ordenamento jurídico moçambicano; furto e consumo fraudulento de energia
elétrica – uma reflexão e perspectiva jurídica moçambicana; meios
probatórios dos crimes cibernéticos no ordenamento jurídico moçambicano; o
pedido cível no Direito Penal; a tutela jurídico-penal da propriedade nos
crimes contra a propriedade em geral e nos crimes de dano face aos efeitos das
penas a luz do Código penal Moçambicano de 2014; o crime e as tecnologias
de informação e comunicação: crimes informáticos; prisão preventiva como
mecanismo de resposta à criminalidade e sua afronta aos direitos e liberdade
constitucional; garantias jurídicas dos sistemas criminais de moçambique e do
Brasil: uma reflexão em busca das causas das prisões ilegais; falta de
nomeação de interprete em processo penal; justiça restaurativa aplicada à
execução penal; antipatia social das penas alternativas no ordenamento
jurídico moçambicano; a violação do direito de liberdade no ordenamento
jurídico moçambicano por ineficiência da identidade de residência; venda de
terra no ordenamento jurídico moçambicano: uma análise crítica do novo
Código Penal; crimes omissivos impuros: dos fundamentos para a extensão do
dever jurídico de garante previsto no nº 2 do artigo 10 do Código penal
moçambicano; princípio da adequação social no Direito Penal moçambicano:
análise da cultura macua em relação ao nº 2 do artigo 203 do Código Penal,
aprovado pela Lei nº 24/2019 de 24 de dezembro; a prisão preventiva no
Direito moçambicano e limitação dos poderes de detenção; resposta penal à
pedofilia sob a ótica das ciências auxiliares do Direito Penal: psicologia,
sociologia e psiquiatria; prisão preventiva: sua aplicabilidade no
ordenamento jurídico moçambicano e Postulados constitucionais penais das
medidas de segurança no Brasil.
À sua guisa, e com estilos e alcances diferentes, cada trabalho traz
novos contributos para questões atuais do Direito penal.
Ao Professor Doutor Almir Santos Reis Júnior, organizador desta
obra, abrem-se, agora, seguramente, caminhos promissores de novos
sucessos no âmbito da investigação.

Zacarias Filipe Zinocacassa


Director da Faculdade de Direito da
Universidade Católica de Moçambique
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................... 7

PRISÃO PREVENTIVA COMO MECANISMO DE


PRÉ-RESPOSTA ESTATAL Á CRIMINALIDADE E SUA
AFRONTA Á LEGALIDADE PENAL
JERÓNIMO AUGUSTO MUSSIRRICA
JUDITE LIDIA BICUDO ABDUL DA SILVA ...................................................13

DIFERENTES ABORDAGENS DOS CRIMES MILITARES EM


MOÇAMBIQUE: UM OLHAR AO NOVO PARADIGMA COM O
RESSURGIMENTO DOS CONFLITOS ARMADOS.
NOÉ EUGÉNIO PINA GONÇALVES .................................................................25

O FURTO DE USO FACE AO PRINCIPIO DA


INSIGNIFICÂNCIA JURÍDICO – PENAL NO
ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO
SOARES ANDRÉ NICACHAPA
LIEDA DA GRAÇA MSANGA ..............................................................................35

FURTO E CONSUMO FRAUDULENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA


– UMA REFLEXÃO E PERSPECTIVA JURÍDICA MOÇAMBICANA
ABÍLIO PAULINO ..................................................................................................45

MEIOS PROBATÓRIOS DOS CRIMES CIBERNÉTICOS NO


ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO
NHAUZA BOAZINHA BRÁS ...............................................................................59

O PEDIDO CIVIL NO DIREITO PENAL


DINÁRSIO BENTO MONJANE ..........................................................................73
A TUTELA JURÍDICO PENAL DA PROPRIEDADE NOS
CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE EM GERAL E NOS
CRIMES DE DANO FACE AOS EFEITOS DAS PENAS A
LUZ DO CÓDIGO PENAL DE 2014
COUTINHO ABÍLIO SERFIM QUANHIUA
FARCI ANIBAL PEREIRA................................................................................... 81

O CRIME E AS TECNOLÓGIAS DE INFORMAÇÃO E


COMUNICAÇÃO: CRIMES INFORMÁTICOS
GABRIEL DESEJADO
GABRIEL MEPINA ................................................................................................ 91

PRISÃO PREVENTIVA COMO MECANISMO DE RESPOSTA


À CRIMINALIDADE E SUA AFRONTA AOS DIREITOS E
LIBERDADE CONSTITUCIONAL
GIL XAVIER JÚNIOR
BERTA CABRAL .................................................................................................... 109

GARANTIAS JURÍDICAS DOS SISTEMAS CRIMINAIS DE


MOÇAMBIQUE E DO BRASIL: UMA REFLEXÃO EM BUSCA DAS
CAUSAS DAS PRISÕES ILEGAIS.
JOSÉ ADOLFO DOMINGOS BACAR CARIMO ............................................. 123

FALTA DE NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE EM PROCESSO PENAL


HUGO DO ROSÁRIO CONCEIÇÃO ALBINO MAPIPELE ......................... 145

JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À EXECUÇÃO PENAL


JÚLIO ALI MUSSA ................................................................................................. 165

ANTIPATIA SOCIAL DAS PENAS ALTERNATIVAS NO


ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO
MÉRCIA FRANCISCO JOÃO
DEOLINDA LURDES INÁCIO............................................................................ 187
A VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LIBERDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO POR
INEFICIÊNCIA DA IDENTIDADE DE RESIDÊNCIA
ABÚ MÁRIO USSENE
MOISÉS AUGUSTO GUEVE ................................................................................203

VENDA DE TERRA NO ORDENAMENTO JURÍDICO


MOÇAMBICANO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO NOVO CÓDIGO PENAL
AMÉLIA MAGAIA
SILIMA CHITATO ..................................................................................................219

OS CRIMES OMISSIVOS IMPUROS: DOS FUNDAMENTOS


PARA A EXTENSÃO DO DEVER JURÍDICO DE GARANTE PREVISTO
NO N°2 DO ARTIGO 10 DO CÓDIGO PENAL MOÇAMBICANO
SEZINHO MUACHANA
MUSSAAGY HASSANE MUSSAGY ...................................................................231

PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL NO DIREITO PENAL


MOÇAMBICANO. ANÁLISE DA CULTURA MACUA EM RELAÇÃO
AO Nº 2 DO ARTIGO 203 DO CÓDIGO PENAL, APROVADO
PELA LEI Nº 24/19, DE 24 DE DEZEMBRO
ALEXANDRE JOÃO MANHIÇA .........................................................................243

A PRISÃO PREVENTIVA NO DIREITO MOÇAMBICANO E A


LIMITAÇÃO DOS PODERES DE DETENÇÃO
DOMINGOS HERMÍNIO CINTURA
HERMÍNIO TORRES MANUEL .........................................................................263

RESPOSTA PENAL À PEDOFILIA SOB A OPTICA DAS


CIENCIAS AUXILIARES DO DIREITO PENAL: PSICOLOGIA,
SOCIOLOGIA E PSIQUIATRIA
FERNANDO ALEGRE ALCINES LEONARDO ..............................................277

PRISÃO PREVENTIVA: SUA APLICABILIDADE


NO ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO
KATIJA AMIRA RAMOS
VICTOR GOMES DA FONSECA .........................................................................293
POSTULADOS CONSTITUCIONAIS PENAIS
DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL
ALMIR SANTOS REIS JUNIOR ......................................................................... 307

RESPOSTA PENAL AO LOUCO INFRACTOR SOB A


VISÃO HUMANITÁRIA DOS MOVIMENTOS DE LUTA
ANTIMANICOMIAIS E SUA INCIDÊNCIA
DA SOCIEDADE MOÇAMBICANA.
NETO JAIME MALADI......................................................................................... 321

A CULPABILIDADE COMO FUNDAMENTO E LIMITE DA


IMPUTAÇÃO DO FACTO PUNÍVEL: ANÁLISE DA ALÍNEA A)
DO N.º 2 DO ARTIGO 48 DO CÓDIGO PENAL MOÇAMBICANO,
APROVADO PELA LEI N.º 35/2014, DE 31 DE DEZEMBRO.
JOÃO F. MACHAVA............................................................................................... 345

PRISÃO PREVENTIVA COMO MECANISMO DE


PRÉ-RESPOSTA ESTATAL À CRIMINALIDADE E SUA
AFRONTA À LEGALIDADE PENAL EM MOÇAMBIQUE
MPUTU MPIA
ABDUL LATIBO MAMADE MUSSA ................................................................ 367
PRISÃO PREVENTIVA COMO MECANISMO DE
PRÉ-RESPOSTA ESTATAL Á CRIMINALIDADE E
SUA AFRONTA Á LEGALIDADE PENAL

JERÓNIMO AUGUSTO MUSSIRRICA*


JUDITE LIDIA BICUDO ABDUL DA SILVA**

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como tema a PRISÃO PREVENTIVA COMO


MECANISMO DE PRÉ – RESPOSTA ESTATAL Á CRIMINALIDADE E SUA
AFRONTA Á LEGALIDADE PENAL. A pertinência do tema funda se pelo facto
de que apesar da prisão preventiva ser uma excepção e não regra, de acordo
com os padrões internacionais de direitos humanos (Regra 2.3. da
Declaração de Tóquio de 1980) e constitucionalmente consagrados no
ordenamento jurídico Moçambicano (art. 64, da CRM), é colocada na
dinâmica de urgência pelos órgãos de administração da justiça, dando a
ilusória resposta a opinião pública de que está ocorrendo uma espécie de
justiça antecipada e garantia da ordem pública, facto que marca a
ineficiência da administração de justiça e que se repercute na violação em
alguns casos, dos direitos e garantias fundamentais e da dignidade da pessoa
humana.
Com o presente artigo, pretende-se saber se as medidas cautelares
são aplicadas de acordo com os pressupostos legalmente estabelecidos, com
o respeito dos direitos e liberdades fundamentais e da dignidade humana

*
Mestre em Direito Civil pela Universidade Católica de Moçambique – Faculdade de Direito; Advogado;
Email: jmussirica@gmail.com.
**
Mestre em Direito Civil pela Universidade Católica de Moçambique – Faculdade de Direito, Juíza de
Direito “B”, afecta no Tribunal Judicial da Província de Cabo Delgado, 5ª Secção, Email: judyabdul20
@gmail.com.

13
dos detidos em regime preventivo e se são efectivamente respeitados os
prazos de prisão preventiva.
Deste modo, o artigo em apreço, tem como objectivo geral: analisar
a actuação dos órgãos da administração de justiça estadual na aplicação das
medidas de privação de liberdade em regime preventivo e como objectivo
específico, analisar os pressupostos da prisão preventiva e seu impacto na
preservação das garantias dos direitos e liberdades fundamentais e da
dignidade dos detidos.
Com o fim de compreender e atingir os objectivos acima, para a
presente pesquisa, privilegiou-se a metodologia qualitativa, baseada na
pesquisa documental e hermenêutica jurídica e nas vivências do dia-a-dia, e,
a seguir se desenvolve em três capítulos:
O primeiro capítulo é referente a contextualização teórica a luz dos
princípios internacionais dos direitos humanos. O segundo capitula,
proceder-se-á com o estudo do quadro jurídico vigente da prisão preventiva
na República de Moçambique e por último, far-se-á a discussão dos
resultados do estudo, conclusões e recomendações.

Aspectos Metodológicos

Para a concretização do estudo optou-se pelo método qualitativo,


pois, pela natureza do tema, sentiu-se não haver necessidade de medir ou
quantificar os dados colectáveis, porque esta pesquisa não se preocupa com
representatividade numérica, mas sim, com o aprofundamento da
compreensão do tema em estudo no ordenamento jurídico moçambicano.
Como explica Goldenberg (1997:34), a pesquisa qualitativa preocupa-se,
portanto, com aspectos da realidade que não podem ser quantificados,
centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais.
Fez-se a recolha de dados através da legislação, pesquisa
bibliográfica e documental, que permitiram a tomada de conhecimento do
material relevante, tomando por base o que já foi publicado em relação ao
tema, para que se possa delinear uma nova abordagem sobre o mesmo, por
não ter sido possível obter a informação de dados a partir dos centros
prisionais devido as restrições do estado de emergência.

1. PRISÃO PREVENTIVA A LUZ DOS PRINCÍPIOS INTERNACIONAIS DOS


DIREITOS HUMANOS

De acordo com os padrões internacionais de direitos humanos, o uso


de prisão preventiva deve ser excepção e não regra, no sentido de que a

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prisão preventiva deve tomar em conta a natureza e a gravidade da
infracção, a personalidade e os antecedentes do agente e a protecção da
sociedade, devendo para o efeito, a administração da justiça dispor de
medidas alternativas não privativas de liberdade.
Para efeitos do presente artigo, o conceito da prisão preventiva, atende
uma concepção universal do respeito pelos direitos e liberdades
fundamentais da pessoa humana, que se traduz nos seguintes princípios:

1.1. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O Princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e inerente


á pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, e tal, constitui o
princípio máximo do Estado Democrático e de Direito. A concretização deste
princípio, deve partir da associação do conceito nuclear da dignidade
humana e de direitos fundamentais, que possibilite determinar o seu
conteúdo e consequências jurídicas e praticas da liberdade individual.
É relevante referir que o reconhecimento da dignidade se faz inerente a
toda a pessoa humana e de seus direitos iguais e inalienáveis, é o
fundamento da liberdade, da justiça, da paz e do desenvolvimento social.
Com efeito, o principio da dignidade da pessoa humana está patente, nas
convenções internacionais como na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, no Pacto Internacional dos direito Civis e Políticos e ainda na Carta
das Nações Unidas, (Preambulo 1945), onde estabelece “Nós os povos das
nações unidas, decididos … a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais
do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de
direitos dos homens e das mulheres, assim como nas nações, grandes e
pequenas."
Para Marcolino Moco (2010, pág. 53) falar do princípio da dignidade da
pessoa humana é ter em conta que “Cada homem é uma realidade singular e
irrepetível, pelo que deve ser tratado com dignidade, preservando e
respeitando seu direito á vida e á integridade física e mental, bem como a
um tratamento condigno”.
Nesse contexto,

O princípio da dignidade humana atribui uma pretensão jurídico-


constitucional protegida de não terem a sua liberdade individual
negativamente afectada a não ser quando tal seja estrita e
impreterivelmente exigido pela prossecução, por parte dos poderes
públicos, de outros valores igualmente dignos de protecção jurídica.
(NOVAIS, 2013, p. 57).

15
Portanto, enquanto princípio, e atento ao tema em apreço, isto é, a
prisão preventiva, o princípio da dignidade da pessoa humana é uma
garantia contra uma possível arbitrariedade da prisão pelos órgãos da
administração da justiça, tendo em vista a protecção da liberdade pessoal,
apesar de ser um direito de natureza condicionado.

1.2. Princípio da presunção de inocência

Este princípio fundamental, consagrado na Constituição


moçambicana, estipula que “os arguidos gozam de presunção de inocência
até decisão judicial definitiva” (nº 2, art. 59 da CRM). O princípio da
presunção de inocência

É decorrente da orientação de política criminal que se defende no


nosso Estado de Direito, democrático e social, sendo angular da defesa
da dignidade da pessoa humana e dos direitos, liberdades e garantias
do cidadão, frente ao Estado e ao seu poder. Significa, pois, que,
enquanto não houver prova em contrário, se deve dar predominância
ao valor da liberdade em relação ao valor da sua privação, como se
deve dar predominância ao valor da inocência sobre o valor da
culpabilidade (PRATA, et. tal, 2013, p. 391).

Trata-se de uma garantia processual atribuída ao acusado de uma


infracção criminal, evitando a aplicação de sanções antes da sentença
transitada em julgado e garante ao acusado um julgamento justo em respeito
á dignidade da pessoa humana.

CAPÍTULO II QUADRO JURÍDICO LEGAL

O quadro jurídico vigente, assente na Constituição da República de


Moçambique (art. 64, CRM) protege à liberdade, nos termos do qual a prisão
preventiva só é permitida nos termos da lei e garante a presunção de
inocência, o direito a liberdade, o direito de ser assistido por um defensor a
sua escolha, o direito de ser informado sobre as razões da sua detenção e a
existência de meios alternativos á prisão preventiva, tais como a caução e
termo de identidade e residência (TIR).
Dando seguimento ao disposto na CRM a lei processual, fixa quais
são os pressupostos da prisão preventiva (art. 286 CPP) Assim, primeira
circunstancia em que a prisão preventivo deve ser aplicada é segundo o
Código de Processo Penal (CPP), quando se está em flagrante delito, como
sendo facto punível que se esta comendo ou que se acabou de cometer e os

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restantes casos se reporta a prisão preventiva fora de flagrante delito (art.
286 CPP).

2.1. Pressupostos da Prisão Preventiva

A prisão preventiva é uma medida cautelar, de natureza processual,


decretada pela autoridade judiciária competente, consistente na medida
restritiva de liberdade. Ana Prata (2013, p. 397) define prisão preventiva
como “Medida de coação aplicável ao arguido subsidiariamente, ou seja,
quando se considerem todas as outras inadequadas ou insuficientes e
quando houver fortes indícios da prática de crime doloso…”.
No entanto, verifica-se a prisão (art. 286 do CPP), nos seguintes
casos: nos casos de flagrante delito; fora de flagrante delito e por violação
das obrigações inerentes a liberdade provisória.

2.1.1. Prisão Preventiva nos Casos de Flagrante Delito

Considera-se em flagrante delito (art. 288 CPP) quando o agente é


detido cometendo ou praticando a infracção, quem acaba de cometer a
infracção, quem é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou
por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infracção.
Se a infracção corresponder a pena de prisão, é permitida a entrada tanto na
casa ou no lugar onde o facto está-se cometendo, ainda que não seja
acessível ao público, mesmo sem formalidade, (art. 289 do CPP).

2.1.2. Prisão Preventiva nos Casos Fora de Flagrante Delito

A prisão preventiva fora do flagrante delito rege-se pelo disposto no


art.º 291.º do CPP, de acordo com os seguintes pressupostos:

a) Prisão preventiva por pratica de crime doloso a que


corresponda pena maior
Decorre deste pressuposto que a prisão preventiva só é admissível
nos processos de polícia correcional, previstos nos artigos 64 e 65 do CPP,
cujos crimes corresponde a moldura penal de 3 dias a 2 anos de prisão,
prevista no artigo 62 do Código Penal (CP), assim como nos processos de
querela, previstos no artigo 63 do CPP, a que corresponde crimes puníveis
com pena de prisão maior previstas no artigo 61 do CP, cuja moldura penal
mínima é de 2 a 8 anos de prisão. Portanto, trata-se de processos solenes,
que implicam a instrução preparatória, cujos prazos coincidem com os

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prazos de prisão preventiva (art. 308 em conjugação com o artigo 337
ambos do CPP).
Por exclusão de partes, nas situações em que a moldura penal
aplicável é a pena de prisão até um ano, que correm sob forma de processo
sumário, a prisão preventiva só é aplicável quando o arguido for detido em
flagrante delito.

b) Prisão preventiva por fortes indícios da prática do crime pelo


arguido

Este pressuposto implica, em primeiro lugar, que deve existir um


certo grau de certeza sobre a ocorrência do crime, em segundo lugar, exige-
se a verificação de indícios suficientes para imputação do crime cometido a
um determinado sujeito, nos termos do que decorre do § 1º do artigo 291 do
CPP.
Para que haja o indício suficiente da autoria, tem se por base
elementos concretos que indicam que o acusado possa ter praticado a
infracção. O legislador veio esclarecer que existem “fortes indícios da prática
da infracção quando se encontra comprovada a sua existência e se
verifiquem suficientes suspeitas da sua imputação ao arguido, sendo sempre
ilegal a captura destinada a obter esses indícios.” (§ 1º, art. 291 do CPP).
Relativamente a expressão forte indícios,

Não pressupõe uma comprovação categórica dos factos, tal como se


exigiria em sede de julgamento. Do mesmo modo, não corresponde a
ténue presunção ou probabilidade insegura, pelo que necessário é que
existam elementos vertidos nos autos dotados de intensidade que
permitam inferir probabilisticamente da ocorrência de um crime, ou
seja a convicção objectivável de que o arguido virá a ser condenado
pela prática do crime. (CHAMBAL, 2017, p. 55).

A jurisprudência do Tribunal Supremo apreciou e anulou o


despacho de um juiz de instrução criminal que após ter sido presente um
arguido, procedeu com o primeiro interrogatório, não encontrando indícios,
ordenou que se procedesse com algumas diligências e só depois manteve ou
validou a prisão. Um acto gritante de violação do princípio de dignidade da
pessoa humana e da liberdade, e lê-se no acórdão

Importa pois, clarificar o papel do juiz da instrução limita-se, tão-


somente, á realização de funções jurisdicionais que devam ter lugar
no decurso da instrução preparatória dos processos-crime
devidamente enunciados no nº 2 do artigo 1, da Lei nº 2/93, de 24 de

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junho. O exercício de tais funções não se compagina com a validação
ou manutenção da captura a todo o custo sob pena de violação de um
dos direitos fundamentais do arguido que é a liberdade como regra e
a sua privação, excepção. Donde, uma vez apresentados os arguidos
presos ‘a autoridade judicial se este entender que não estão reunidos
os requisitos legais para a sua validação ou manutenção deve ordenar
a sua imediata soltura e não embarcar em diligências destinadas a
recolher elementos que possam fundamentar, a posterior, a
manutenção da captura, o que se traduz no sancionamento da prisão
com objectivo de obter elementos de indiciação que é nestes casos
ilegal, conforme determina o parágrafo 1º, do nº 2º, do artigo 291, do
C.P. Penal. (TRIBUNAL SUPREMO, Acórdão nº 07/07 – A, 2008)

Por força do pressuposto em referência, a detenção de suspeitos e


sua colocação em prisão preventiva fora de flagrante delito, deve ser
precedida de uma investigação do crime e dos seus agentes pelas
autoridades de administração de justiça penal, concretamente o Ministério
Público e os Serviços de Investigação Criminal (SERNIC), responsáveis pela
instrução preparatória, conforme resulta dos artigos 14 e seguintes do
Decreto-Lei nº 35007, de 15 de outubro de 1945.
É perceptível que este pressuposto da prisão preventiva é
incompatível com a natureza cautelar da prisão preventiva que proíbe a sua
utilização com a finalidade de punir antecipadamente o indiciado ou o réu.

c) Prisão preventiva por insuficiência da liberdade provisória


para a realização dos fins que se propõe realizar

Nesses casos a natureza cautelar da prisão preventiva e o seu


carácter excepcional, em vista à protecção do direito à liberdade, nos casos
previstos nas alíneas. a), b), e c) do § 3°, do art. 291.º do CPP, exige que a sua
decretação se funde num comprovado perigo de fuga, de perturbação da
instrução do processo e de continuação da actividade criminosa, inferido a
partir de factos concretos.
Na sequência dos pressupostos elencados acima, após a aplicação de
uma medida de coação em caso de incumprimento das obrigações inerentes
a liberdade provisória, pode ser decretada novamente e os prazos da prisão
preventiva são os correspondentes a infracção cometida (art. 308 CPP).

2.2 Prazos da prisão preventiva

A CRM não prevê nenhum princípio orientador sobre a duração de


prisão preventiva, porém, dada a natureza da prisão preventiva, em que o

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arguido goza da presunção de inocência, a sua duração não deve ir para além
do estritamente estabelecido no CPP e alguma legislação penal avulsa, não
obstante, estes instrumentos legais preverem diferentes prazos de prisão
preventiva (art. 308 do CPP).
Fora dos prazos de prisão preventiva estabelecidos nos
instrumentos legais acima mencionados, se depreende que não existem
normas no ordenamento jurídico moçambicano que fixam os prazos de
prisão preventiva depois da pronúncia. Essa omissão viola o princípio de
presunção de inocência e da dignidade humana princípios esses,
consagrados na CRM, entanto que Estado de Direito Democrático.
Importa porém referir que a lei estabelece 48 horas (nº 33 do art.
21 do DL 35007 de 13 de outubro de 1945), para o arguido ser presente ao
juiz de instrução criminal para efeitos de legalização da prisão e/ou
aplicação de medidas de coação. Porém, a decretação da prisão preventiva,
sendo um poder jurisdicional a sua aplicação, enfrenta desafios tendo em
conta a exiguidade de magistrados judiciais e falta de tribunais em algumas
regiões do País.
A título de exemplo, em Moçambique existem 133 distritos, no
entanto, parte destes distritos não tem tribunal, ou se tem, não tem juiz
efectivo. Nesses casos, para garantir a presença de magistrado judicial deve
deslocar se o juiz da jurisdição mais próxima para proceder com
julgamentos e legalizações, e mais não havendo juízes de turno, atendendo
o prazo de 48 horas, os prazos para que um arguido seja presente ao Juiz são
extrapolados, pondo-se em causa os direitos e liberdades fundamentais do
detido.
Aliado a este facto, é que com o deficiente número de juízes de
instrução criminal, os juízes da causa é que fazem a legalização das prisões,
tendo em conta o preceituado legal, em que “onde não for ainda possível
criar as secções referidas no número anterior, serão as competências dos
juízes de instrução criminal assumidas pelo juiz da causa ou do lugar da
prisão” (nº 2, art. 2, Lei º 2/93 de 24 de junho).
Deste modo, questiona-se a imparcialidade do juiz e a
constitucionalidade da norma. Atendendo o direito comparado, o Tribunal
Constitucional da República de Portugal, considerou inconstitucional a
norma constante do artigo 40 do Código do. Processo penal. Português, na
parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de
inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do
arguido, por violação do nº 5 do art. 32 da Constituição da República
Portuguesa. O peticionário (Ministério Público) alega para o efeito que a
norma em causa viola o preceituado acima, uma vez que o juiz que mantém

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a prisão não procederá um julgamento independente e imparcial. O acórdão
esclarece que

É acima de tudo um dever ético-social. A independência vocacional, ou


seja, a decisão de cada juiz de, ao ‘dizer o direito’, o fazer sempre
esforçando-se por se manter alheio – e acima – de influências
exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nessa
perspectiva, é sobretudo uma responsabilidade que terá a “dimensão”
ou a “densidade” da fortaleza de ânimo, do carácter e da
personalidade moral de cada juiz. (TRIBUNAL CONSTITUCIONAL,
Acórdão nº 135/88, 1988).

O mesmo artigo já tinha sido declarado inconstitucional com o fundamento


de que

Quer isto dizer que a norma do artigo 40º do Código do Processo


Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz
que, na fase de inquérito, se pronunciou sobre a prisão preventiva do
arguido, foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que
o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido
detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já
bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva. Ora,
aplicada nesta dupla dimensão, a norma do artigo 40º do Código do
Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade do
juiz, ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º
da Constituição. A verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da
prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o
inquérito está a chegar ao seu termo e em que já existem no processo
quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do
crime imputando ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer se
que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes
aspectos do processo que, objectivamente fica inexoravelmente
comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do
julgamento. (TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, Acórdão nº 935/96,
1996).

Conclusões e Recomendações

Decorrente do princípio consagrado da Declaração Universal dos


Direitos do Homem, nos termos do qual os homens nascem livres, o direito
à liberdade proíbe detenções ou sujeição à prisão preventiva ilegal, devendo
o Estado não só abster-se de tais práticas, mas proteger o cidadão contra
actos que diminuam a sua liberdade e segurança. Este direito encontra-se
igualmente consagrado na CRM, uma vez que protege o direito à liberdade,
nos termos do qual a prisão preventiva só é permitida nos termos da lei,

21
facto notório no regime processual penal que fixa expressamente os casos e
os pressupostos, quer da detenção quer da prisão preventiva. Porém, os
pressupostos da detenção e prisão preventiva, fixados no regime processual
penal são genéricas o que propicia a restrição dos direitos fundamentais e
abusos contra o direito a liberdade.
Dúvidas não existem de que os princípios da dignidade da pessoa
humana e a presunção de inocência, são garantias constitucionais que
limitam os excessos de recurso a prisão preventiva.
Constata-se que, apesar da lei garantir o respeito pelas normas, e
consagrar a prisão preventiva como uma medida excepcional ou cautelar de
pré - resposta do Estado á criminalidade, na realidade verifica-se o atropelo
dos pressupostos para a prisão preventiva que em alguns casos é vista como
uma punição antecipada aliado á inobservância dos prazos, motivado pelo
deficiente sistema judiciário, isto é, juízes insuficientes, pois juízes que tem
que sair de uma jurisdição para outra, ou juízes que validam e mantém a
prisão é o mesmo que julga; o fiscal da legalidade (O Ministério Público) que
mesmo fazendo as visitas de rotina as esquadras e penitenciárias não impõe
o cumprimento da Lei. É necessário que se capacite o judiciário para que em
cada tribunal haja juízes permanentes para garantir a observância de prazos
de prisão preventiva.
As disposições do CPP que fixam pressupostos da detenção e prisão
preventiva não devem usar conceitos indeterminados, tais como
“imediatamente logo após a prática do crime”, “quando haja perigo de fuga”,
“perigo de perturbação da investigação: É necessário que a lei indique os
factos concretos que integram esses conceitos na base de factos concretos
que o arguido tenha praticado e que revelem de forma concreta esse perigo.
Ao estabelecer que a prisão preventiva é obrigatória nos casos que
o arguido é suspeito de prática de crime de prisão maior, o CPP viola o
princípio da presunção de inocência, a medida em que permite a prisão do
indivíduo na base de critério abstracto de perigosidade criminal.
Para o efeito, recomenda-se a necessidade de criação de capacidade
institucional no judiciário que disponha de magistrados permanentes para
garantir o controlo da legalidade da prisão preventiva.
Por último deve o regime processual fixar o prazo máximo de prisão
preventiva depois da pronúncia até ao julgamento, para que uma vez
extravasado possa o detido aguardar em liberdade o julgamento.
O uso de prisão preventiva deve ser excepção e não regra, no sentido
de que a prisão preventiva deve tomar em conta a natureza e a gravidade da
infracção, a personalidade e os antecedentes do agente e a protecção da
sociedade, devendo para o efeito, a administração da justiça dispor de

22
medidas alternativas não privativas de liberdade, salvaguardando-se assim
o respeito pelos dos direitos, liberdades fundamentais e a dignidade da
pessoa humana em prisão preventiva.

REFERÊNCIAS

CHAMBAL, Hermenegildo. A Arbitrariedade da Prisão Preventiva -A Desconsideração


da Dignidade da Pessoa Humana e da Presunção de Inocência, W. Editora, 2017.
MOÇAMBIQUE, Código Penal. Lei nº 35/2014 de 31 de dezembro, in Boletim da
República, I Série nº 105 de 31 de dezembro.
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que entrou em vigor pela Portaria nº 19271, de 24 de janeiro de 1931.
MOÇAMBIQUE. Constituição (2004). Constituição da República de Moçambique:
promulgada no Boletim da República, I Série nº 20 em 24 de dezembro de 2004.
MOÇAMBIQUE. Decreto – Lei nº 35007 de 13 de outubro 1945.
MOÇAMBIQUE, Lei nº 28/75 de 01 de março, (1975) publicado no Boletim da República,
I Série.
MOÇAMBIQUE, Lei nº 2/93 de 24 de junho, (1993) publicado no Boletim da República, I
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MOCO, Marcolino. Direitos Humanos e seus Mecanismos de Protecção – As
particularidades do Sistema Africano, Almedina, maio de 2010, Coimbra.
NAÇÕES UNIDAS. Resolução 45/110, de 14 de dezembro, Tóquio, 1980.
NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas, São Francisco, 26 de junho de 1945.
NOVAIS, Jorge Reis. A dignidade da Pessoa Humana – Dignidade e Direitos
Fundamentais, volume I, Almedina, setembro de 2015.
NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais Estruturantes da Constituição da
República Portuguesa, Reimpressão, Coimbra Editora, fevereiro de 2013.
PORTUGAL. Acórdão nº 135/88 do Tribunal Constitucional, publicado no diário da
República, 2ª Série, de 8 de setembro de 1988.
PORTUGAL. Acórdão nº 935/96 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da
República, 2ª Série, de 11 de dezembro de 1996.
PRATA, Ana, et al. Dicionário Jurídico – Direito Penal e Direito Processual Penal, 2ª
edição, vol. II, editora Almedina.

23
DIFERENTES ABORDAGENS DOS CRIMES
MILITARES EM MOÇAMBIQUE:
UM OLHAR AO NOVO PARADIGMA COM O
RESSURGIMENTO DOS CONFLITOS ARMADOS.

NOÉ EUGÉNIO PINA GONÇALVES

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar as implicações crescentes dos


crimes militares em Moçambique, onde indaga-se ao novo paradigma da
"impunidade" dos militares das forças de defesa e segurança no exercício
das suas funções envolvidos nos diversos incidentes macabros contra os
civis e, em contra partida a notável ineficácia, fragilidade dos tribunais
judiciais, sua (in)competência para apreciar e julgar os crimes respectivos
praticados contra população civil indefesa, sobretudo em situações de
conflitos armados, considerando que, no cenário actual os tribunais
militares encontram-se desativados desde o dia 16 de março de 1989.
Obviamente, esta instância jurídico-militar pode ser reativada
especificamente no estado de guerra em conformidade com a Constituição
da República (2004). No campo doutrinário, são escassas as fontes literárias
internas que abordam os crimes militares e suas nuances, daí que nos
socorremos da literatura brasileira e portuguesa.
Importa frisar que o tribunal militar (Tribunal Militar
Revolucionário) que vigorou em Moçambique, foi criado em 29 de março de
1979, através do Decreto-Lei nº. 3/79, da Comissão Permanente da
Assembleia Popular, o seu papel não pode ser qualificado como estritamente
judicial, mas sim funcionando como um braço de propaganda do partido
único na época (FRELIMO), julgando "crimes de natureza" politica, que

25
culminou com fuzilamento de muitos compatriotas acusados de desertores,
sabotadores e reacionários.
A Constituição da República, de Moçambique democrático elenca no
artigo 223, as espécies dos tribunais no ordenamento jurídico pátrio, a
destacar: o tribunal supremo, tribunal administrativo e tribunais judiciais,
mormente, sem ignorar a previsão do artigo 224, que prevê a existência dos
tribunais militares a funcionar na vigência do estado de guerra.
Mormente, há de fato a necessidade de analisar estas acções,
atendendo e considerando que o País não se encontra em estado de guerra,
porquanto condição necessária para reativação dos tribunais militares.
Desta feita, estes crimes em alusão deixam a sociedade civil desgastada, ao
ponto de exigir a intervenção de organizações humanitárias, a clamar pela
responsabilização criminal dos militares infractores.
O código penal vigente em Moçambique, à luz do artigo 18, nº. 1
define o que se pode considerar de crimes militares, e partindo deste
respaldo legal pode-se concluir que a "execução" de civis por suspeita de
apoio aos insurgentes ou outro motivo a margem de ataques é um crime
militar, todavia, o silêncio das instituições de direito, constitui uma grande
preocupação para o pesquisador.

1. DOS CRIMES MILITARES E SUAS IMPLICAÇÕES NO SISTEMA


JUDICIAL

Com a crescente onda de ataques militares (terroristas) no norte de


Moçambique, na província de Cabo Delgado, onde são diariamente
reportadas execuções, decapitações às populações civis por um lado com os
insurgentes em ação, e por outro, são reportadas ações dos militares de
forças de defesa e segurança contra população civil suspeita de
cumplicidade com os insurgentes. Por via disso, em Setembro do ano em
curso foi exibido nos canais de noticiários um vídeo que ilustrava um
batalhão das forças de defesa e segurança posicionada na província de Cabo
Delgado a executar uma mulher nua e desarmada, de forma mais cruel que
chocou o mundo inteiro, comovendo assim várias entidades da sociedade
civil nacionais e estrangeiras, até mesmo a amnistia internacional a
descrever aquele ato como um crime de proporção inaceitável e grosseira
dos direitos humanos (NUVUNGA, 2020).
A partir daquele evento vários debates surgiram no seio da
sociedade moçambicana, onde os mais prestigiados juristas da praça
tipificavam aquele crime, apenas nos moldes mais conhecidos, tal é o caso
de homicídio (doloso) e outras denominações gravosas. No entanto, a

26
tipificação daquele acto a ser tipificada em primeiro lugar, como crime
militar, em tese, esta enunciação começou a ganhar espaço e atenção dos
diversos setores da academia.

1.1. Conceito de crime militar:

O número 1 do artigo 18 do código penal vigente, define o Crime


militar, como sendo os factos que violam o dever e ofendam directamente a
disciplina militar e que a lei qualifica e manda punir como tal, quando
cometido por militares ou outras pessoas pertencentes as forças de defesa e
segurança.
Para compreensão deste conceito, torna-se imprescindível partir do
conceito de crime em sentido genérico, isto é, conforme descreve o artigo 1
do mesmo diploma legal, a destacar, o Crime ou delito é o facto voluntário
declarado punível pela lei penal.
Para tanto, deve-se partir do pressuposto de que para se distinguir
os crimes militares dos outros crimes, é necessário incorporar na primeira
modalidade os seguintes elementos:
Ter sido praticado por um militar das forças de defesa e segurança
contra civis.
No âmbito do exercício das suas funções, violando o código da
disciplina militar e outros actos normativos.
Estes dois elementos são extraídos da definição do crime militar ao
abrigo do código penal moçambicano, diferentemente das outras ordens
normativas que este termo é bastante enriquecido.
Portanto, atento a definição trazida pelo código penal moçambicano
(nº 1 do artigo 18 CP), pode-se desde já concluir que é muito vaga este
conceito, o que torna praticamente um tanto quanto difícil para os
aplicadores e pesquisadores tipificar com exatidão de que infrações se trata
de facto. Já a legislação brasileira (código penal militar) vai mais além ao
debruçar todas categorias/elementos para considerar-se um crime militar,
quando cometido:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar


na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar


sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou
reformado, ou assemelhado, ou civil;

27
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão
de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à
administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra


militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o


patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa
militar.

1.1.1. Descrição prática do crime militar: explicação breve e


corrente

A interpretação do artigo 18 do Código Penal moçambicano, como


tem sido a praxe, exige um rigor para sua compreensão do que é realmente
um crime militar, pois se confunde com outros tipos legais de crime. Falar
de crime militar pode gerar confusão nas pessoas que não são do ramo
jurídico, todavia, urge explicar de forma breve, concisa e com uma
linguagem corrente, sobre este fenómeno.
Os crimes só são considerados militares pelo facto do seu autor ser
um sujeito militar, quando comete tal ilicitude contra cidadão civil, sempre
no exercício das suas funções ou no âmbito da atividade de defesa e
segurança, no entanto, apesar de ser considerado crime militar não significa
que terá uma denominação especial diferente as tradicionais infrações
previstas e punidas pelo código penal (Moçambique).
Segundo Rossetto (2015;74) quando afirma que o fato de o crime
ser militar define a competência da Justiça Militar, que não julga o militar e
sim o crime quando militar.
Em relação à tipicidade (conformidade do fato praticado pelo agente
com a moldura abstratamente descrita na lei penal incriminadora), portanto,
como espécie da chamada norma de adequação típica mediata ou indireta, que
demanda critérios para sua identificação: ratione materiae (qualidade militar
do ato analisado), ratione personae (caráter militar do agente), ratione loci
(qualidade do local onde a conduta é desenvolvida), ratione temporis (momento
da realização da conduta) e propter officium (em razão da função).

1.2. Da natureza do crime

É um dado adquirido na ordem jurídica moçambicana que o


Ministério Público, representante do Estado, colaborar na execução da

28
política criminal definida pelos órgãos de soberania, enquanto guardião da
legalidade de um Estado de direito democrático, tem o poder e o dever de
exercer a ação penal (ANA PAULA GUIMARÃES, 2014, p. 856).
É do interesse da comunidade que se reponha a paz jurídica que foi
violada, é em nome da sociedade que o Ministério Público, detentor do
monopólio da ação penal, logo que por qualquer meio tome conhecimento
de uma infração acione os respectivos mecanismos, a investigação e
acusação se recolhidos indícios suficiente da prática de um crime e dos seus
agentes no sentido de realização de justiça penal. É o que se verifica nos
crimes de natureza pública, segundo Jorge Figueiredo Dias (1984,120).
Não admitir a intervenção do Ministério Público a certas e
determinadas infrações é perfeitamente compreensível e desejável num
quadro normativo em que se promovem soluções de compromisso, pois de
um lado, a defesa da sociedade na luta contra o crime, de outro, a
preservação dos direitos dos cidadãos, mormente, daqueles que são
directamente atingidos com o facto criminoso.
Ideia que vai de resto, ao encontro do princípio de intervenção
mínima e subsidiária da ordem normativa penal. É neste prisma que nos
indaga ao ver o silêncio do Ministério Público em atos maquiavélicos dos
crimes militares praticados por elementos de forças de defesa e segurança
que tem causado preocupação na sociedade civil moçambicana em todas as
esferas, dada a sua "inoperância" no cumprimento da sua missão.
Esta inércia ou inoperância do guardião da legalidade vem levantando
questões, sobre a necessidade de criação de uma entidade especifica para
assuntos militares, isto é, de um tribunal militar, mesmo a aprovação de um
código penal militar, que muitos estudiosos moçambicanos vêm como solução
para suprir o deficit de competência técnica ou intervenção do Ministério
Público em assuntos de infração militar contra civis.
Não se justifica que os crimes militares ora registados não tenham
até a data esclarecimentos plausíveis, o que pode pôr em causa a
integridade, a confiança daquele órgão para com os cidadãos, pois
transmite-se a ideia de que os militares são impunes, pelo facto de se
encontrar na linha da frente de combate e defesa da soberania, oque de certo
modo abre espaço para alguns questionamentos que ainda podem ser objeto
de acesa polêmica doutrinária e jurisprudencial.

1.3. Do Princípio da legalidade e da necessidade da pena

Na discussão da problemática dos crimes militares objeto desta


pesquisa, onde de forma consistente se pretende compreender a razão de

29
algumas insinuações sobre a impunidades dos agentes criminosos, gozando
da sua situação estatutária "especial". O princípio de legalidade constitui um
dos fundamentais de direito penal. Como refere Pedro Miguel Silva (2019),
numa frase significa o seguinte: não crime nem pena sem lei.
Se o crime tem de estar previsto na lei, o nosso legislador, para punir
também as omissões, teve de criar uma norma na parte geral a dizer que,
quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o fato
abrange quer a ação, quer a omissão.
Segundo Ana Barbosa Brito (2018/9;12) citado por Pedro Miguel
Silva, advoga que a intervenção penal é necessária para haver coexistência
pacifica entre os indivíduos numa sociedade. O princípio da necessidade da
pena, ou o princípio da subsidiariedade do direito penal onde se alude que
as sanções penais são a mais grave intromissão do Estado na vida das
pessoas.

1.4. Crimes hediondos contra a vida de civis praticados por militar

Há que considerar a prática de crimes dolosos que os militares estão


sujeitos a cometer contra civis em sede da sua atuação, enquanto elemento
de defesa e segurança, onde por razões adversas no terreno, cometem
atrocidades contra a população indefesa. Ora bem, estas infrações no
ordenamento jurídico moçambicano foram retiradas da alçada militar e
transferidos para a esfera da justiça comum.

1.4.1. Da experiência brasileira sobre competência nos casos de


crimes dolosos

Para o caso brasileiro, um sistema amplamente avançado em relação


ao ordenamento jurídico moçambicano, optou o legislador, nas sucessivas
reformas por fazer distinção quanto ao sujeito ativo (militar) e as
condições/situações na qual a conduta (o crime) é realizada.
Segundo Gomes e Mariú (2018), como regra, prevalece a ideia,
praticada desde 1996, que os crimes dolosos praticados contra vida de civil
deverão ser processados e julgados perante o Tribunal do Júri, afastando-se
o conhecimento e intervenção da Justiça Militar. Da mesma forma, quando o
crime doloso contra a vida é praticado por militar da ativa contra militar, ou
seja, entre militares, não há que se falar em competência do Tribunal do Júri,
ficando o tema no âmbito da Justiça Militar.
Como isto queremos dizer que, os tribunais comuns são competentes
para apreciar e julgar todos os crimes militares, para tanto que envolve,

30
militar contra civil, mas apenas no âmbito disciplinar pode ser sancionado
quando o ato suceder entre os militares. Esta é a realidade que se exterioriza
até ao atual momento na ordem jurídica moçambicana.
À primeira vista, e como referido no item anterior, a lógica do sistema,
em relação aos crimes dolosos contra a vida de civil praticado por militar
estadual da ativa, permanece inalterada desde 1996, competindo ao
Tribunal do Júri o seu processo e julgamento.

1.5. Os reflexos processuais dos crimes militares na ordem jurídica


moçambicana:

São várias as denúncias de práticas de violência, violação de direitos


humanos praticados por militares contra civis indefesos, portanto, no campo
de acção e para a consequente responsabilização, avançam alguns
academicos que os profissionais do ramo militar, estaria em melhor
condições de conhecer e julgar tais infrações. Esta corrente não é unanime,
pois outros preferem manter o ritual processual vigente, ou seja, que os
tribunais comuns tenham competências para apreciar e julgar os crimes
civis e militares, aplicando o mesmo código penal, com necessária atenção
ao caso em concreto.

1.5.1. Da necessidade de criação/reativação da justiça militar?

No ordenamento jurídico moçambicano em regra todos os crimes


são tratados em sede da justiça comum, isto é, procuradorias e tribunais
judiciais, independentemente dos seus atores da infração. Nesta senda, com
a crescente onda de denúncias da prática de crimes por militares contra civis
indefesos, aliado ao estágio preocupante do conflito armado que se assiste
no norte e centro do País, começam a surgir movimentos que defendem a
criação e/ou reativação dos tribunais militares.
A Constituição da República ao abrigo do artigo 224, prevê a
reativação desta instância penal militar apenas nos casos de estado de
guerra, facto que ainda subsistem dúvidas se Moçambique está ou não em
guerra.
Para o caso do suposto homicídio (execução) da mulher indefesa
praticados por militares das forças armadas e outros crimes dolosos contra
civis, seriam tratados por um fórum militar que também se encarregaria das
investigações e por conseguinte aplicar o código penal militar. Este
entendimento é também partilhado por Eduardo Luiz Santos Cabete, pois
para este autor, este ritual tem sido observado na ordem jurídica brasileira,

31
que conquistou avanços significativos nesta matéria, visto reunir toda
estrutura para o funcionamento de uma justiça militar, com legislação
especifica (código penal militar) e a respetiva máquina judicial militar,
sendo que de quando em vez julgando em forma de tribunal de júri.

1.6. Da (in) efectividade das entidades de investigação para


esclarecimento de crimes militares

Na ordem jurídica moçambicana, havendo denúncias de


cometimento de um crime militar e para a sua descoberta a investigação e
da competência exclusiva do Ministério Público, enquanto o principal ator
para mover a ação penal. Entretanto, esta competência exclusiva deste
órgão, com apoio do SERNIC (Serviço Nacional de Investigação Criminal),
tem sido ineficaz pois não se vislumbra fácil a cooperação entre as entidades
policiais e militares.
Na ordem jurídica portuguesa, por exemplo, a investigação dos
crimes militares, é dirigida em primeiro lugar pela polícia judiciária militar
que, presume-se ter acesso as fontes e aos comandos, visando assim facilitar
o esclarecimento dos crimes, mas tudo em estrita colaboração com a
Procuradória-geral.
Moçambique seguiu o exemplo de Portugal de extinguir os tribunais
militares, em 1997 com a revisão constitucional. Entretanto, pese embora
tenha se verificado a extinção dos tribunais militares, este país europeu
mantém uma polícia judiciária militar, e em outros casos excecionais de
julgamento dos crimes estritamente ou essencialmente militares, são
julgados com a presença ou inclusão de um militar no coletivo de juízes,
conforme refere Jorge Dias Lage (2002, 48).
De per si, as instituições de investigação, como Procuradória-geral e
SERNIC, enfrentam enormes dificuldades na investigação e esclarecimentos
de crimes militares, pois como é do conhecimento de todos que, o sector de
defesa e segurança são bastante sigilosos e fechados para com outras
entidades.

A responsabilidade do Estado nos crimes militares praticados contra


civis
Obviamente, em tempo de paz, qualquer crime praticado por militar
contra civil deve dar lugar a responsabilidade civil do Estado, para que esta
entidade indenize o cidadão ou seus familiares. A responsabilidade civil que
for acionada nesta situação obedecerá a regra da competência do tribunal
administrativo, mediante a interposição de uma ação.

32
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo foi desenvolvido com objectivo de analisar crimes militares


que têm sido praticados contra civis, nos conflitos armados que assolam
Moçambique, e chocam a população pois se traduzem em impunidades
sobre os infratores. Assim, com o recrudescer dos conflitos armados são
cometidos muitos crimes militares e até então não esclarecidos pela justiça
comum.
O tribunal criminal que vigorou pós a independência, o mais
conhecido como Tribunal Militar Revolucionário (TMR – Moçambique),
esteve inclinada para os atos de sabotagem, execução de sabotadores de
economia e outros reacionários, portanto, o seu papel não deve ser
equiparado a um tribunal militar propriamente dito.
O código penal em vigor define crime militar e prevê no artigo 18,
portanto, a sua penalização é atribuída aos moldes gerais de outros crimes
e, não se destaca de forma especial o seu tratamento.
Neste diapasão entendeu-se que os crimes militares são na primeira
linha, aqueles praticados por militares contra civis desarmados, com dolo e
sempre julgados no fórum judicial e não outro, pelo facto de não existir outra
legislação que cria outra instância.
Desse modo, a Constituição da República prevê a criação dos
tribunais militares em estado de guerra, e porquanto o País se encontrar em
tempo de paz, os crimes cometidos por militares contra civis ou entre
ambos, será sempre relegada ao tribunal judicial, isto é, instância comum.
Por causa da tendência de impunidade dos militares envolvidos nos
crimes estritamente militares tem gerado uma onde de discussões da
necessidade de criação de uma instância militar, capaz de punir
exemplarmente os envolvidos e devolver a segurança e tranquilidade as
pessoas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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República Iª Série nº 22 de 24 de dezembro.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal, aprovado pela Lei n. 35/2014, de 31 de
dezembro in Boletim da República.
GOMES, Décio Alonso & MARIÚ, Pedro Rabello. O conceito de crimes militares e seus
reflexos processuais: do “universo particular” dos crimes militares. 2018.

33
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Tribunais, 2007.
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SILVA, Germano Marques da. Direito Penal Português I – Parte Geral - Introdução e
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ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Tribunal do Júri na Justiça Militar – Impossibilidade
Jurídica. Disponível em http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/3573213
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Lisboa, 2004.
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LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
ROSSETTO, Enio Luiz. Código Penal Militar comentado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 74.

34
O FURTO DE USO FACE AO PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA JURÍDICO – PENAL NO
ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO

SOARES ANDRÉ NICACHAPA*


LIEDA DA GRAÇA MSANGA**

INTRODUÇÃO

Do conjunto dos princípios que informam o Direito Penal, apraz-nos


destacar o da lesividade e o da insignificância. O primeiro, defende que para
que uma conduta seja passível de opressão penal, não basta que ela esteja
estritamente escrita no Código Penal, deve, no entanto, tal conduta lesar a
norma jurídica que a descreve.
O segundo (Insignificância) defende da mesma forma, com um
pouco mais de detalhes: para que a conduta não obstante escrita no Código
Penal seja sancionada, é necessário que viole materialmente o conteúdo da
norma jurídica que a descreve. Não havendo tal violação material da norma,
é chamado a operar nesta situação, o princípio da insignificância cuja
finalidade é afastar a tipicidade do delito, por não ter, no entanto, se
verificada a violação material da norma, correspondente a tipicidade
material.
Em virtude do que supra dissemos, fazemos então referência, ao
furto de uso, conforme reza o artigo 276° do Código Penal que ocorre
quando se subtrai furtivamente coisa alheia para dela fazer o uso
temporário com intenção de depois devolvê-la ao dono. De referir que, a
subtracção furtiva de tal coisa, por acaso corresponde formalmente

*
Licenciado em Direito, Mestre em Direito Administrativo, Advogado, Docente Universitário e
Doutorando em Direito Publico.
**
Licenciada em Direito, Mestre em Direito e Desenvolvimento Sustentável, Advogada, Docente
Universitária e Doutoranda em Direito Publico.

35
(tipicidade formal) a consagração do artigo acima citado. Porém, não
obstante, correspondente literalmente, resta perceber, se tal conduta de
facto viola materialmente (tipicidade material) o conteúdo da mesma
norma.
Ora, dúvidas não restam que se desta subtracção momentânea,
resultarem danos a coisa subtraída, ou então ao proprietário, se chamaria,
no entanto, o princípio da responsabilidade civil, cuja finalidade é repor a
situação anteriormente existente, como se o dano não se tivesse verificado.
Se uma vez subtraído o uso momentâneo do bem, seguidamente
devolvido no mesmo lugar, nas mesmas condições a que o bem se
encontrava, não tendo sido, no entanto, causado dano algum ao proprietário,
tampouco a coisa subtraída, consubstanciando (esta ausência de dano), a
ausência da tipicidade material em tal conduta, questionamos, portanto: não
poderá para efeitos criminais, ser invocado o princípio da insignificância
jurídico-penal ao artigo 276° do Código Penal?
Nesta abordagem usa-se de princípio pesquisa bibliográfica, uma
vez que, com ela se procede investigação e análise de posições doutrinárias,
a partir de artigos científicos, livros, e revistas científicas; com método
sistemático, porque procede uma interpretação que busca correlacionar aos
artigos 270° e 276° ambos do Código Penal referentes ao crime de furto, pois
não se pode interpretar o sistema jurídico-penal em tiras; e a abordagem
qualitativa (enfoque qualitativo), na medida em que procede uma análise
crítica do regime jurídico do crime de furto de uso previsto nos termos do
artigo 276° do Código Penal.
Justifica-se a escolha do presente tema, pelo facto de quando se olha
em lato senso o elemento tipicidade no crime de furto de uso, verifica-se
somente uma vertente do mesmo princípio “a tipicidade formal”, ou seja, a
correspondência que se faz do comportamento a redacção trazida pelo
Código Penal.

1. BREVE HISTORIAL DO CRIME DE FURTO

Muito antiga é a punição contra o patrimônio, cuja existência é


encontrada bem cedo na história dos homens, onde era imposto com muita
crueldade o castigo em certas sociedades. Porém, em algumas legislações, o
furto era encarado como acto lícito e nobre, pois em Sioux, região da África,
o furto atribuía ao homem honradez e o dignificava.1

1
PIZARRO, Teresa Beleza, Direito Penal, Vol. I, 2ª ed., AAFDL Editor, 1984, p. 61.

36
A legislação do Hoandi, data de 35 séculos A.C., é a legislação escrita
mais antiga, em que assegurava o direito de propriedade e punia
severamente o atentado contra o patrimônio individual.2
Penas extremamente severas também foram encontradas na velha
China, para reprimir os atentados contra o património, como o
enforcamento, o enterramento vivo, e outras formas.3
A Lei das XII Tábuas, em Roma, disciplinava a punição do furto. O
Direito Romano distinguia duas formas de furto: o manifesto (furtum
manifestum) e o não manifesto (furtum nec manifestum). Pelo primeiro, o
agente era surpreendido executando a acção e as sanções eram corporais; já
para o segundo, as sanções eram pecuniárias4. O furto manifesto, portanto,
era punido com penas mais severas, por provocar desagravo entre a vítima
e o agente.
Na idade média, distinguia-se o furto de pequeno valor e de grande
valor. No primeiro, aplicava-se a pena nos cabelos e na pele e, no segundo,
era aplicada nas mãos e no pescoço. A pena de morte também era muito
aplicada.5
Passou-se a reprimir o furto de maneira mais humana com o
movimento filosófico do século XVIII, em que se aplicava a pena de morte
apenas ao furto acompanhado de homicídios.6 No Código Imperial, ao furto
era imposta a pena de prisão com trabalho e no Código de 1890 era
cominada de acordo com o valor da coisa furtada, regime vigente até então
no direito positivo.

2. NOÇÕES BÁSICAS E TIPOS DE FURTO

Furto é a subtracção de coisa alheia móvel para si ou para outrem.


Difere-se do roubo por ser praticado sem emprego de violência ou grave
ameaça.
Ressalte-se que a descrição típica do crime de furto exige duplo
elemento subjectivo: o dolo que consiste na vontade livre e consciente de
subtrair a coisa móvel e a finalidade especial contida na expressão “para ou
para si ou para outrem”.
Ao se considerar o estatuto penal, na espécie, este protege dois
objectos jurídicos: a posse, abrangendo a detenção e a propriedade. Todavia,

2
PIZARRO, Teresa Beleza, Direito Penal, Vol. I, 2ª ed., AAFDL Editor, 1984, p. 62.
3
Ibidem, p. 62.
4
Ibidem, p. 63.
5
Ibidem, p. 63.
6
Código Francês de 1810, in PIZARRO, op. cit., p. 61.

37
há de se compreender, também, que a objectividade jurídica imediata do
furto é a tutela da posse; de forma secundária, o estatuto penal protege a
propriedade. Esta é o conjunto dos direitos inerentes ao uso, gozo e
disposição dos bens.7
O Código Penal vigente em Moçambique, prevê três subtipos do
crime de furto: o furto simples8, o qualificado9 e o de uso10. E sobre este
último que nos sugerimos a tratar como objecto da nossa reflexão.

2.1 Furto de Uso

O furto de uso é aquele em que o sujeito activo subtrai a coisa móvel,


não com o fim de apropriar-se, mas de prover, com ela, a uma necessidade,
e depois restituí-la. Ou seja, consiste na “subtracção da coisa apenas para
usufruí-la momentaneamente”.11

"Ocorre o chamado furto de uso quando alguém arbitrariamente


retira coisa alheia infungível. (um cavalo, um automóvel, um terno de
roupa, um livro), para dela servir-se momentânea ou
passageiramente, repondo-a, a seguir, integra, na esfera de actividade
patrimonial do dono".12

3. PRINCÍPIOS GERAIS QUE NORTEIAM DIREITO PENAL

Pese embora não aconselhável, diz-se que em direito, pode-se passar


por cima de uma norma, mas nunca por cima de um princípio. e por encontrar
uma relação entre o instituto de furto de uso e alguns princípios que norteiam
o direito penal torna-se sine qua non traz a lume alguns deles mormente:

3.1 O Princípio da insignificância

Pode conceituar-se o princípio da insignificância como a


interpretação aos tipos penais, com a exclusão da conduta do tipo a partir da
insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais ou
individuas, ou seja, é a exclusão da tipicidade de condutas não lesivas a bens
jurídicos tutelados.

7
PIZARRO, Teresa Beleza, Direito Penal, vol. 1, 2ª ed., AAFDL Editor, 1984.
8
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal, aprovado pela lei nº 35/2014 de 31 de dezembro,
2015, art. 270.
9
Ibidem, art. 274.
10
Ibidem, art. 276.
11
BARREIROS, João, Crimes Contra O Património, Universidade Lusíada, 1996, p. 261.
12
DIAS, Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2012, p. 280.

38
Este embora não explicitamente normatizado ou positivado no
ordenamento jurídico-legal, constitui um instituto cada vês mais aplicado
pelos operadores de direito, visto hoje como uma nova adequação ou
correspondência da aplicação do Direito Penal enquanto ciência
essencialmente social.
Para nós, a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade penal ao
bem jurídico protegido, pois é inconcebível que o legislador tenha imaginado
inserir em um certo tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes
de lesar os interesses protegidos. Ou seja, se a finalidade do tipo penal é tutelar
um bem jurídico, sempre que a conduta for insignificante, ao ponto de se
tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica,
esta conduta será para todos efeitos criminais, atípica.
Para que uma sanção penal seja imputada a um indivíduo pela
prática de uma infracção criminal, deve haver proporcionalidade entre a
ofensividade efectiva da conduta, e a punição a ser imposta.
Quando, analisando-se todo o sistema jurídico-penal, a lesividade for
inexistente ou ínfima, a tipicidade deverá ser afastada, pois o bem jurídico que
ela pretende tutelar não foi atingido. Tornando assim, impossível punir-se
penalmente um indivíduo por ter cometido o furto de uso.13

3.2 Princípio da Adequação Social

Este princípio se volta sobre todo o comportamento que a despeito


de ser considerado criminoso pela lei, não afronta o sentimento social nem
individual de justiça. O tipo penal pressupõe uma actividade selectiva de
comportamentos escolhendo somente aqueles que sejam contrários para
serem erigidos a categoria de infrações penais, por conseguinte, outras não
podem sofrer este tipo de valoração negativa, isto é, serem vistas como
condutas criminosas, apenas formalmente.

3.3 Princípio da Lesividade

O princípio da ofensividade ou lesividade (nullum crimen sine


iniuria) exige que com o facto praticado ocorra uma lesão ou perigo de lesão
ao bem jurídico protegido. Tal princípio da está atrelado à concepção
dualista ou bilateral da norma jurídico-penal. Isto é, a norma delimita o
âmbito do proibido, ou cuida do castigo, do âmbito da sanção penal.

13
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal, aprovado pela lei nº 35/2014 de 31 de dezembro,
art. 276°.

39
A vertente que delimita o proibido, por seu turno, possui dois aspectos:

i. Ela é valorativa, quer dizer, a norma jurídica existe para puder


proteger amplamente um valor;
ii. A mesma norma é também imperativa, quer dizer, impõe uma
determinada pauta ou modelo de conduta.

O aspecto valorativo da norma jurídica, fundamenta o injusto penal,


isto é, só existe crime quando há ofensa concreta a esse bem jurídico
protegido. Daí se pode dizer que o crime sempre exige, o desvalor da acção
já referido anteriormente que corresponde a realização de uma conduta,
assim como desvalor do resultado, correspondente a afectação concreta de
um bem jurídico. Sem ambos os desvalores, não há crime.
Tal como outros princípios, este, não se destina somente ao
legislador no âmbito da consagração ou previsto do mesmo no Código Penal,
mas também ao aplicador da norma incriminadora, que deverá verificar,
aquando da ocorrência de um facto tido como criminoso, se há de facto
efectiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido.
Uma vez reconhecido este princípio, ao nosso ver, torna-se duvidoso
a aplicação da moldura penal, ao artigo 276, que consagra o crime de furto,
visto que o perigo é abstracto ou presumível, por parte do legislador, quer
dizer, de forma absoluta, presume o legislador o perigo para o bem jurídico
protegido, o que não é correcto.

3.4 Aceitação do Princípio da Insignificância

O facto de se não prever expressamente este princípio no corpo de


legislações penais, não caracteriza a sua inexistência, pois embora de
maneira implícita, a previsão existe e é constitucionalmente fundamentado
pelos princípios inerentes ao Estado de direito democrático proposto pelo
texto constitucional pelo princípio da proporcionalidade.14

4. INTENÇÃO DO AGENTE NO CRIME DE FURTO À LUZ DO CÓDIGO


PENAL MOÇAMBICANO

O furto para além de um crime contra o património, é de resultado,


portanto, para a mesma tipologia criminal, o elemento dolo15 é

14
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República, in Boletim da República, I série nº 20
de 24 de dezembro, 2004. Atento as alterações introduzidas pela lei 1/2018 de 12 de junho.
15
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal, aprovado pela lei nº 35/2014 de 31 de dezembro,
art. 3º.

40
indispensável. Ou seja, este elemento caracteriza a intenção e vontade do
agente na prática da infracção.
É furto, a conduta que com intenção de apropriação subtrair
fraudulentamente coisa alheia que lhe não pertence.16 Vejamos aqui o
chamamento da vertente subjectiva (a intenção de se apropriar da coisa), e
o elemento objectivo, (a remoção da coisa da esfera de vigilância do
proprietário).
Atentos aos elementos que o legislador penal moçambicano usa para
configurar o crime de furto em geral, percebemos que ele acaba sendo
discrepante aquando da consagração do furto de uso17, aqui o legislador
inobserva os elementos do facto típico, negando-se de pautar pelo elemento
subjectivo da questão.
Este elemento subjectivo que nos referimos no parágrafo anterior,
conduziria ao alcance da tipicidade material, com o qual tornaria possível
falar-se de facto, da violação do conteúdo da norma que consagra o crime de
furto de uso segundo o legislador. Não se percebe, no entanto, a consciência
do legislador nem a razão da norma contida no artigo 276° do Código Penal,
uma vez que, é impossível sancionar penalmente uma conduta que se
reveste de carácter insignificante.
Como hoje não é possível materializar somente a tipicidade formal,
é necessário que adjacente se consagre como fruto de uma interpretação a
tipicidade material, ou seja, a verdadeira violação do conteúdo daquela
norma, e consequente penalização da conduta. Não o fazendo, intervêm
então o princípio da insignificância de forma inegável, no sentido de retirar
a consequência jurídico-penal, daquela consagração, porque vemos
incompletos os elementos caracterizadores do crime.
Veja-se porventura, após a subtracção de tal coisa alheia móvel sem
intenção de apropriação, conduta a qual o legislador penal, o designa do
crime de furto de uso, que depois de restituída, nota-se um dano na coisa
furtada, o instituto que seria chamado para fazer face a este dano, seria o da
responsabilidade. O princípio da responsabilidade civil não está consagrado
no âmbito penal, mas sim civil, o que nos induz a crer que ao invés de uma
sanção jurídico-penal, seria aplicada uma sanção civil, a de reparação do
dano como se mesmo não fosse verificado.18
Da própria definição do crime ressalta à evidência quão diferente é
esse delito do “Subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel”. Sem

16
Ibidem, art. 270.
17
Ibidem, art. 276.
18
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Civil, aprovado pelo Decreto-lei nº 48 344, de 25 de
novembro, I SERIE, nº 274, 1966

41
dúvida, o furto de uso tem a mesma objectividade jurídica do furto comum
(posse) como também a mesma acção física desse delito, contudo dele se
distingue por características próprias e determinadas, como por exemplo, a
falta de intenção de apropriação.19

A primeira distinção entre os dois delitos encontra-se no dolo, porque,


“o furto de uso exige dolo específico, diferente e exclusivo: o fim, o
escopo que conduz o agente a violar a posse alheia é tão-somente o de
usar a coisa, sem dela se assenhorear ou apropriar”; ao contrário do
furto comum, em que se faz mister o requisito do animus furtandi, ou
seja, do propósito de assenhoramento: o fim do agente, no furto
comum, é “ter a coisa definitivamente para si próprio ou para
terceiro”, Além dessa distinção fundamental, o furto de uso apresenta,
ainda, um elemento objectivo, que é o da restituição imediata da coisa,
uma vez usada momentaneamente.20

Diversificados em compartimentos estanques os dois delitos, torna-


se evidente que para a configuração do "furtum usus" é necessário e
imprescindível:21

"A presença de um elemento subjectivo que está contido no dolo e que


se caracteriza pelo fim exclusivo de fazer o agente uso momentâneo
da coisa subtraída; A presença de um elemento objectivo, que é
concernente à restituição da coisa que, depois de ter sido usada
momentaneamente, deve ser restituída imediatamente".

Estes requisitos fazem tornar objectivamente impossível a punição deste


tipo legal de crime, por não violar materialmente o bem jurídico protegido,
e consequência disso insignificante a conduta se tornaria.22

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente reflexão tratou de analisar o instituto de furto de uso face


ao princípio da insignificância. Como tivemos a oportunidade de ver, o furto
de uso ocorre quando alguém subtrai uma coisa alheia móvel para o uso
momentâneo.
Consagração esta assente nos termos do artigo 276° do Código Penal
de Moçambique. Tem-se, portanto, nos casos da tipificação do furto de uso
como crime um conflito derradeiro entre a intenção do agente que não se

19
DIAS, Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, I, p. 281.
20
MAIA, GONÇALVES, Código Penal Português Anotado, 2ª ed., Almedina, 1984, p. 291.
21
Ibidem, p. 292.
22
Ibidem, p. 192.

42
configura nem com o arrependimento activo, e nem quer com a desistência
voluntária.
A questão do artigo 276°, esta remissa para a sua materialização, ao
preceituado no artigo 270°, ambos do Código Penal, isto é, para efeito de
aplicação de uma pena. Onde se prevê, que o furto de uso será aplicado a
mesma pena correspondente ao valor da coisa furtada quando consumado
o delito, mas de forma atenuada, entretanto, aqui não se deve diminuir a
pena, mas sim deve considerar-se insignificante a conduta.
Pois a conduta de quem pratica um furto de uso segundo a nossa
perspetiva, é insignificante, pois tal comportamento não viola o conteúdo da
norma do artigo supracitado. Outrossim, a descaracterização do delito,
deriva do facto de não se verem preenchidos os elementos formadores do
conceito de crime. Isto é, não há completa verificação do requisito tipicidade.
Outro aspecto não menos importante que fundamenta a posição de
que o furto de uso é sim uma conduta insignificante para efeitos criminais é
a seguinte: admitindo-se que a subtracção para uso momentâneo resultou
prejuízos a coisa ou ao proprietário, olhando a nossa realidade fáctica,
depreende-se que as condutas danosas levadas a cabo são aplicadas sanções
civis, quer dizer, quando eventualmente se causa danos a esfera jurídica de
outrem, o indivíduo que os causou é simplesmente chamado a repor o dano.
Esta reposição do dano, consubstancia uma valoração aos interesses
do proprietário, diferente de aplicação da uma pena de prisão, que visa não
a valoração de tais interesses pessoais do proprietário, mas sim interesses
estaduais. Portanto, vale mais diante de algum dano causado pela
subtracção para uso de coisa alheia, a reposição deste dano, que aplicação
de uma sanção criminal, pois não é sanção criminal que vai ressarcir os
danos que o proprietário sofreu. Portanto, se for analisado o crime de furto
sob aplicação de uma sanção jurídico-penal, não há, na nossa opinião, esta
possibilidade, visto que, como dito, tal conduta esta inserida no campo de
tutela civil.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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43
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GOMES, Mariângela Gama de Magalhães, O Princípio Da Proporcionalidade No Direito
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SOUSA, de Elísio, Direito Penal Moçambicano, Escolar Editora, Maputo, 2012.

44
FURTO E CONSUMO FRAUDULENTO DE
ENERGIA ELÉCTRICA – UMA REFLEXÃO E
PERSPECTIVA JURÍDICA MOÇAMBICANA

ABÍLIO PAULINO*

INTRODUÇÃO

Furto e Consumo Fraudulento de Energia Eléctrica em Moçambique,


constitui preocupação da EDM, por causar prejuízos quer no material
eléctrico destinado à expansão e melhoramento da rede eléctrica que é
desviado para construção de redes clandestinas, quer de recursos
financeiros que a concessionária não factura e nem cobra a energia eléctrica
que é consumida ilegalmente por prevaricadores.
O tema deste artigo é muito relevante por se tratar de um tema
pouco analisado no meio académico, embora muito relevante e discutido
informalmente. Também se trata de um tema sensível e complexo por o
furto e consumo fraudulento de energia eléctrica constituir um tipo legal de
crime, previsto e punível nos termos da legislação moçambicana, alínea a)
do nº 1 do artigo 270 do Código Penal.
O estudo surge da reflexão sobre os 43 anos da Empresa Pública,
Electricidade de Moçambique ao assinalar-se no dia 27 de agosto de 2016,
pois, esta foi criada em 27 de agosto de 1977, através do Decreto-Lei nº
38/1977, então Empresa Estatal e transformada em Empresa Pública,
através do Decreto nº 28/1995, de 17 de julho, com a reflexão, surgiu a
necessidade de saber que factores condicionam o furto e consumo
fraudulento de Energia Eléctrica de Moçambique desde a sua implantação.
Para melhor entendimento e como complemento, por um lado,
debruçamos sobre as estratégias para redução e ou eliminação de consumo

*
Mestrado em Direito Administrativo pela UCM; Doutorando em Direito Público; Advogado de Profissão.
Universidade Católica de Moçambique, FADIR – Nampula - Curso de Doutoramento em Direito Público.

45
fraudulento de energia eléctrica, com objectivo de contribuirmos com uma
proposta teórica e metodológica sobre a necessidade de uma maior
divulgação da legislação para refutar as práticas de consumo fraudulento de
energia eléctrica. Por outro, o estudo verificou se na EDM não existem
trabalhadores que contribuem no cometimento do crime de consumo
fraudulento de energia eléctrica.
Segundo explica CORREIA1, o crime estabelece por forma geral e
abstracta, quais os factos que devem ser considerados crimes e quais as
penas que lhes correspondem. Saber, porém, se, num dado caso, um certo
agente praticou um facto, e qual a pena que lhe corresponde importa uma
actividade concreta que de nenhum modo pode ser arbitrária, antes exige
garantias que defendem o indivíduo de árbitros e permitam uma verdadeira
realização da justiça criminal. Em outro entendimento, a responsabilização
pelo crime, na posição do autor, dita o conjunto de regras que fixam os
termos e o processo de averiguação de factos previstos na lei criminal e qual
a pena que lhe compete, constituindo deste modo, o processo criminal.
Isto implica, em geral, o estudo das condições e dos termos do
movimento processual destinados a averiguar se um certo agente praticou
um certo facto, pelo qual, a sua reacção correspondente.
Portanto, mediante este cenário, o estudo tem por questão a
reflectir: Quais são os factores que motivam alguns cidadãos ao
cometimento do crime de Furto e Consumo Fraudulento de energia eléctrica
em Moçambique? Através desta questão pretendia-se levantar as possíveis
causas que explicam o cometimento do crime, as circunstâncias que o
favorecem e quais as que o impedem para o efeito, mediante o uso dos
pressupostos metodológicos próprios da ciência jurídica a fim de trazer
respostas legais sobre o problema em estudo.
Para responder à questão acima, o artigo tinha como objectivo
analisar a legislação sobre o Furto e Consumo Fraudulento de Energia
Eléctrica. O foco deste objectivo era de levantar-se os requisitos e
procedimentos legais que conduzem a redução ou mesmo eliminação de
furto e consumo fraudulento de energia eléctrica e apurar se um dos
requisitos têm relação com a exigência de uma política institucional.
Em termos metodológicos, o estudo, baseou-se numa pesquisa
bibliográfica e documental. Conforme CARMO e FERREIRA2, uma pesquisa é
bibliográfica, quando for baseada nos materiais já elaborados constituídos
principalmente de livros e artigos científicos. Este tipo de pesquisa consiste

1
CORREIA Eduardo, Direito Criminal. I, Almedina, Coimbra 2008, p. 194.
2
Carmo, H. & Ferreira, M. M. Metodologia de investigação. Guia para autoaprendizagem. Lisboa:
Universidade Aberta. 2008, 2ª ed., p. 177.

46
na revisão de diversa documentação sobre matéria estudada. Para BARROS,
a pesquisa bibliográfica como toda aquela que tem por objectivo conhecer
as diferentes opiniões teóricas de vários investigadores sobre uma
determinada temática3.
Já para a pesquisa documental segundo SELLTIZ e WRIGHTMAN4, é
desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído, principalmente
de leis, acórdãos, decretos, artigos científicos e, este tipo de pesquisa é muito
importante pelo facto de facilitar o levantamento de informações básicas,
legais sobre o tema.
Em outro contexto, GIL5 refere que, a pesquisa documental, consiste
em desenvolver uma investigação baseando principalmente em fontes como,
cartas, pareceres, fotografias, actas, relatórios, leis, decretos, Acórdãos entre
outros materiais.
Entendemos que que a pesquisa documental, pode ser dado como
sendo uma investigação elaborada através da colecta e análise de
informações contidas em documentos tais como leis, decretos e acórdãos, ou
seja, da literatura e a legislação moçambicana disponíveis em relação ao
furto e consumo fraudulento de energia eléctrica e, na componente de
indemnização à EDM pelos danos resultantes de vandalização de cabos
eléctricos, contadores (credelec), na sequência do cometimento do crime.
Enquanto a pesquisa bibliográfica, é aquela que é elaborada a partir de
livros, artigos, ensaios, materiais que já foram merecidas o tratamento
científico.
Em termos estruturais, o artigo foi organizado em 4 partes
importantes sendo a primeira parte que responde pela introdução, a
segunda pela análise teórica e empírica sobre a matéria, a terceira parte da
pesquisa, faz uma discussão triangulada entre a doutrina, a legislação e o
argumento jurídico do pesquisador, a quarta e última, traz conclusões e
sugestões.

REVISÃO TEÓRICA

Para uma melhor compreensão do presente artigo científico,


apresentam-se algumas percepções e conceitos em torno do tema em
apreço. Assim, numa perspectiva conceptual, no sentido etimológico, a

3
BARROS, A. de Jesus P. Projectos de Pesquisa. Propostas Metodológicas. Rio de Janeiro, Brasil: Vozes
Editora. 2010, p. 34.
4
Selltiz, C.; Wrightsman, L. S. Métodos de pesquisa das relações sociais. São Paulo, Brasil: Herder. 2000,
p. 95.
5
Gil, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. (5ª ed.). São Paulo, Brasil: Atlas. 2002, p. 84.

47
palavra furto é bastante amplo pois se aplica a vários objectos ou coisas. Com
efeito, furtar é subtrair fraudulentamente e, ao nível penal o crime de furto
consiste em subtrair fraudulentamente uma coisa que não lhe pertence
(artigo 270 do Código Penal) 6.
Em outro contexto, COSTA7 a expressão furto de energia eléctrica
refere-se quando há conexões clandestinas, auto-reconexões (ligação
directa) e desvios de energia antes da medição.
Na Legislação Moçambicana, nos dizeres da Lei nº 21/97, de 1 de
outubro, Lei de Electricidade, define na alínea a) do nº 1 do artigo 35, que "o
furto de energia eléctrica é subtrair fraudulentamente a energia eléctrica ou
dolosamente desviar circuitos eléctricos"; b) "empregar qualquer meio
fraudulento que possa influir no funcionamento do contador ou que permita
utilizar energia sem que esta seja devidamente contada".
Assim, são considerados encobridores do crime de furto previsto na
alínea a) do nº 2 deste artigo " os que, por compra, penhora, dadiva ou por
qualquer outro meio adquiram, recebam ou ocultem em proveito próprio ou
alheio, coisa que sabem ser produto do crime, ou auxiliam o criminoso a
aproveitar-se do mesmo produto, ou influam para que terceiros de boa-fé a
adquiram, recebam ou ocultem".
Nos casos referenciados nos nºs 2 e 3 do artigo 35 da mesma Lei de
Electricidade, as penas de prisão aplicadas não poderão ser suspensas na
sua execução, nem substituir por multa. Consumir energia eléctrica de forma
honesta é um exemplo e marco que permite assegurar possibilidades
continuadas tanto para a adaptação quanto ao uso futuro por alguns. Para a
detecção da fraude, torna-se importante a fiscalização ou inspeção,
entendida como a vistoria técnica realizada no padrão de entrada da
unidade consumidora visando detectar a precisão e possíveis defeitos dos
equipamentos de medição, detectar fraudes e/ou desvios de energia
eléctrica e verificar erros de ligação.
Isto mostra que, o comprometimento do resultado e indicadores da
concessionária, o impacto do furto e consumo fraudulento de energia
elétrica, faz com que as perdas de energia eléctrica sejam uma preocupação
da EDM, uma vez que a concessionária terá que deixar de aplicar recursos
na melhoria das actividades para direccioná-los ao combate as perdas.

6
Artigo 155, III do Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.ceut.com.br.expresso
dasilhas.sapo.cv/. Acessado em: 10 jan. 2015.
7
COSTA, J. de F. O uno, o múltiplo e os crimes negligentes. Maputo, Moçambique: Revista de
Electricidade. 2011, p. 88.

48
Entretanto, por consumo ilegal de energia eléctrica entende-se a
situação em que o titular da instalação, tendo reunido os requisitos para
obtenção de energia eléctrica proceda atropelo de procedimentos de
consumir energia de forma honesta, ou quando o consumidor procede a
ligação do tipo by-pass por a energia não ser contabilizada pelo contador.
As consequências do furto e consumo fraudulento de energia
eléctrica na cultura jurídica moçambicana são claras. Isto mostra que, a
nossa ordem jurídica não tolera comportamentos que aumentem o risco,
uma vez que a norma de cuidado exige observância, ainda quando o seu
incumprimento só provavelmente intensifica o risco.
Os encobridores do crime de furto previstos na alínea a) do nº 2 do
presente artigo e do crime descrito no nº 3 do artigo 35 do mesmo diploma
legal, as penas de prisão aplicadas aos prevaricadores não poderão ser
suspensas na sua execução, nem substituídas por multa, o que significa que
o cumprimento da pena é efectiva".
Dos autos, a Lei nº 21/97, de 1 de outubro, considera:

a) Concessão: autorização atribuída pela entidade competente para a


produção, transporte, distribuição e comercialização, incluindo a
importação e exportação de energia eléctrica, bem como a
construção, operação e gestão de instalações eléctricas, conjunta ou
separadamente, por entidades públicas ou privadas.
b) Concessionário: titular de uma concessão atribuída nos termos da
presente Lei. Consumidor: pessoa ou entidade a quem é fornecida
energia eléctrica para uso doméstico, industrial ou comercial.
c) Consumidor: pessoa ou entidade a quem é fornecida energia
eléctrica para uso doméstico, industrial ou comercial.
d) Contrato de concessão: contrato administrativo em que se definem
os termos e condições aplicáveis a realização conjunta ou
separadamente, das actividades de fornecimento de energia
eléctrica.
e) Distribuição de energia eléctrica: transmissão de energia eléctrica
com uma tensão abaixo de 66 KW a partir das subestações
abaixadoras, dos postos de transformação ou dos postos de
seccionamento as instalações que recebem e transmitem a corrente
eléctrica aos consumidores.
f) Fornecimento de energia eléctrica: actividade de abastecimento de
energia eléctrica aos consumidores, compreendendo, conjunta ou
separadamente, produção, transporte, distribuição e

49
comercialização, incluindo a importação e exportação de energia
eléctrica.
g) Instalação eléctrica: equipamento e infraestruturas destinadas ao
fornecimento de energia eléctrica até ao contador do consumidor.

No mesmo diploma legal, através do artigo 37, esclarece que "os


autos levantados pelos agentes da autoridade ou da concessionária que
sejam pessoas de direito público, acerca dos crimes de consumo fraudulento
de energia eléctrica é dispensada a indicação de testemunhas. Estes autos
farão fé em juízo, quer na instrução quer no julgamento, até prova em
contrário seja qual for a forma de processo aplicável".
Ainda no mesmo diploma, o artigo 40 esclarece que " que quando a
concessionária de fornecimento de energia eléctrica verifique ou presuma a
existência de uma fraude, deverá participar as autoridades competentes,
procedendo previamente, os seus agentes, a vistoria da instalação para
comprovação da fraude. Se, em consequência da vistoria, a concessionária
verificar a existência de fraude, do crime contra o património, pode
suspender o fornecimento de energia eléctrica".
Em conformidade com CARVALHO8, " o crime contra o património
consistente em subtrair, para si ou para outrem coisa alheia móvel". Há, pois,
que considerar o crime não apenas como um conjunto de disposições
secundárias, mas como conjunto de normas autónomas que impõem
sanções e ao mesmo tempo proíbem ou impõem condutas, em vistas da
protecção de determinados valores jurídicos: os valores jurídicos- criminais.
Na mesma perspectiva, ANTUNES9 esclarece que, o crime pertence
não só a parte da norma que contém a sanção, mas ainda a parte que contém
o preceito proibitivo ou impositivo. Este autor, defende que, o homem deve
ter faculdades de agir, de decidir pelo bem ou pelo mal. Deste modo, e
porque o que ao legislador interessa, em última análise, é que se não
cometam crimes, a pena tem de actuar psicologicamente sobre os cidadãos.
Ainda nos dizeres de CORREIA10, afirma que o homem comete o
crime em vista de resultados que lhe dão prazer, nisto se traduzindo o poder
apetitivo dos homens, quando este pratica um facto ilícito é porque com ele
visa a satisfação de uma certa necessidade.
No entanto, entendemos que, a prevenção do crime repousa na ideia
de que o crime tem na sua base certas tendências da personalidade do

8
CARVALHO, A. T. (2008). Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: Teoria Geral do Crime,
Coimbra Editora. 2008, p. 393.
9
ANTUNES, M. J. Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra. 2010, p. 160.
10
CORREIA Eduardo, Direito Criminal. I, Almedina, Coimbra 2008, p. 203.

50
delinquente, de tal maneira que em primeira linha interessa é a actuação
directa da execução da sanção da personalidade do criminoso. A pena tem a
função única de defender a sociedade de elementos que perturbam a sua
orgânica e entende-se, materialmente, como meio de segregar ou eliminar
indivíduos socialmente perigosos e incorrigíveis, ou de tratar e corrigir.
Descreve COSTA11 que, o impacto negativo, para com a EDM e os
cidadãos resultante de furto e consumo fraudulento de energia eléctrica,
destacamos os seguintes:

a) Fraca qualidade de energia eléctrica que é recebida nas residências


de clientes.
b) Danificação de electrodomésticos de clientes
c) Queimadura de residência de clientes
d) Cortes constantes de energia eléctrica nos bairros.
e) As ligações clandestinas de energia eléctrica, muitas vezes feitas
com material precário, o que põe em risco a vida dos citadinos,
continuam a preocupar a concessionária EDM, as entidades
governamentais e ao próprio Estado.

Para o caso da EDM, o impacto negativo versa nos seguintes aspectos:

a) Energia eléctrica consumida ilegalmente que não é facturada e


cobrada;
b) Interferência de ligações clandestinas (furto de energia eléctrica) na
rede de distribuição, o que de certa forma pode danificar os
transformadores de energia eléctrica;
c) Cortes constantes na rede de distribuição de energia eléctrica,
privando o fornecimento de energia eléctrica aos clientes o que
pode dita a falta de contagem de energia eléctrica nos respectivos
contadores, dada a ausência de energia eléctrica;
d) Baixa a economia da EDM, por falta de facturação e cobrança;

Portanto, o impacto deste tipo de comportamento no geral, é


negativo, se tomarmos em linhas de conta que a contribuição fiscal da EDM,
na matéria do imposto do valor acrescentado (IVA), tem haver com o volume
de facturação que dita as vendas de energia eléctrica, objecto colectável para
os cofres do Estado. Havendo furto e consumo fraudulento de energia

11
COSTA, J. de F. O uno, o múltiplo e os crimes negligentes. Maputo, Moçambique: Revista de
Electricidade. 2011, p. 204.

51
eléctrica, consequentemente o volume de facturação de energia eléctrica,
porque a energia consumida ilegalmente não passa no sistema de contagem
(contador), obviamente, baixa a facturação e o montante a entregar ao
Estado automaticamente reduz.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Nesta parte, dedicamos a discutir o problema da pesquisa. De acordo


com a legislação moçambicana, o furto e consumo fraudulento de energia
eléctrica constitui um tipo legal de crime previsto e punido nos termos da
alínea a) do nº 1 do artigo 270 do Código Penal e do artigo 35 da Lei nº
21/97, de 1 de outubro- Lei de Electricidade.
Do elevado índice de consumo fraudulento da energia eléctrica,
presumem-se seguintes factores motivadoras: baixo nível de renda da
população, assentamentos desordenados, taxa de desemprego, elevação dos
índices de criminalidade, cultura de impunidade e percepção da população
de que o furto e consumo de energia eléctrica de forma fraudulenta não é
crime.
Para a detecção da fraude, torna-se importante a fiscalização ou
inspeção, entendida como a vistoria técnica realizada no padrão de entrada
da unidade consumidora visando detectar a precisão e possíveis defeitos dos
equipamentos de medição, detectar fraudes e/ou desvios de energia
eléctrica e verificar erros de ligação.
O impacto do furto e consumo fraudulento de energia elétrica, faz
com que as perdas de energia eléctrica sejam uma preocupação da EDM,
uma vez que a concessionária terá que deixar de aplicar recursos na
melhoria das actividades para direccioná-los ao combate as perdas.
Por consumo ilegal de energia eléctrica entende-se a situação em
que o titular da instalação, tendo reunido os requisitos para obtenção de
energia eléctrica proceda atropelo de procedimentos. O artigo 483 e
seguintes do Código Civil, esclarece que "alguém incorre em
responsabilidade civil quando se constitui na obrigação de indemnizar
outrem por danos que lhe cause, quer esses danos decorram da inexecução
de um contrato, quer da violação de um dever geral de diligência
(responsabilidade delitual).
Isto significa que, os fraudadores, após a condenação pelo crime de
furto de energia eléctrica, estes deverão ser igualmente responsabilizados
para indemnizar a EDM, pela energia eléctrica consumida ilegalmente.
Constitui instrumento valioso, para observância das normas relativos
àquela responsabilidade civil, na componente de legalidade em

52
conformidade com a lei. Com este instrumento, facilmente evitar-se-ia o
furto e consumo fraudulento de energia eléctrica. Os crimes de consumo
fraudulento de energia eléctrica é dispensada a indicação de testemunhas.
Estes autos farão fé em juízo, quer na instrução quer no julgamento, até
prova em contrário seja qual for a forma de processo aplicável, atento o
artigo 37 da Lei 21/97, de 1 de outubro.
Com efeito, entendemos que, a fraude de energia eléctrica é
caracterizada pela manipulação dos equipamentos de medição, alterando o
valor correcto da sua precisão para valores inferiores aos reais ou melhor
estabelecer qualquer ligação de energia eléctrica sem passar pelo contador,
viciar o funcionamento dos aparelhos, alterar ou viciar os dispositivos de
segurança, modificar a instalação de energia eléctrica sem prévia
autorização ou modificar os equipamentos eléctricos, vender ou ceder a
terceiros parcela da energia eléctrica recebida, utilizar energia eléctrica não
registada nos contadores, furar ou prejudicar o isolamento da linha de
ligação entre o contador e a rede da concessionária, utilizar a energia
eléctrica para fins não previsto no contrato de fornecimento de energia
eléctrica.
O Departamento Central de Prevenção e Combate ao Vandalismo e
roubo nas infraestruturas eléctricas, na Direcção de Eficiência Energética, da
EDM, traçou algumas estratégias visando a redução de práticas de consumo
ilegal de energia eléctrica tais como: os pedidos de ligação de energia
eléctrica, apresentados pelos cidadãos não podem levar muito tempo sem
que a EDM atenda as solicitações; os agentes da concessionária devem
inspeccionar constantemente e com regularidade as instalações de clientes
e a divulgação da lei de electricidade, sensibilização das comunidades sobre
o perigo da matéria de furto de energia eléctrica.
Nos últimos anos, a EDM vem implementando novas tecnologias de
sistemas de contagem, isto é, contadores do tipo “spilt meterʺ, que consiste
em montar contadores nos postes de energia e a partir deste contador
alimentar a residência do cliente. Na residência do cliente seria montada
apenas uma caixa para controle do contador montado no poste, pois este em
caso de tentativa de furto de energia eléctrica a partir do poste, seria
controlado, pois, pouco se verificariam os casos de furto.
Da análise da situação de furto e consumo fraudulento de energia
eléctrica na EDM, encontramos evidências que a Concessionária elabora
denúncias e submete à Procuradoria para procedimento criminal
terminando com a condenação dos furtadores de energia eléctrica e a sua
responsabilização em matéria indemnizatόria à EDM, como resultado do

53
consumo ilegal da energia eléctrica, o que se conclui houver obediência às
normas plasmadas na legislação moçambicana.
No entanto, a EDM possui leis, decretos normativos para o seu
funcionamento, sua gestão e controlo, mas porém, a sua operacionalização e
cumprimento destes dispositivos, ainda carece da rigorosidade. Pois, uma
das causas que motiva problemas de furto e consumo fraudulento de energia
eléctrica é o envolvimento de agentes da concessionária que exigem valores
aos requerentes de energia eléctrica nas suas residências, alegadamente de
estes flexibilizarem o processo de ligação de energia eléctrica.

CONCLUSÃO E SUGESTÕES

Depois da discussão, o estudo sintetiza que, a energia eléctrica


ilegalmente consumida não é facturada, nem é cobrada por esta energia não
passar no sistema de contagem (contador), o que contribui o baixo índice de
receitas para a sustentabilidade da Electricidade de Moçambique e ao
Estado moçambicano que vê igualmente reduzido o valor a colectar no
contexto dos impostos que a EDM tem contribuído, para os cofres do Estado.
O furto e consumo fraudulento de energia eléctrica, os seus autores
devem ser punidos, por a conduta constituir um tipo legal de crime previsto
no nº 1 do artigo 35, da lei 21/97, de 1 de outubro – Lei de Electricidade e
punível nos termos do artigo 270 CP. Este facto, faz com que as populações
optam pelo furto, procedendo ligações clandestinas de energia eléctrica,
com todos os riscos que daí se advém.
As ligações clandestinas de energia eléctrica, muitas vezes feitas
com material precário, por furtadores, põe em risco a vida dos cidadãos e
consequentemente continuam preocupando a concessionária EDM, as
entidades governamentais e ao próprio Estado moçambicano na sua
qualidade de proprietário da Empresa e a economia nacional em geral.
A Concessionária é esperada a denunciar à Procuradoria da
República os casos de furto e consumo fraudulento de energia eléctrica, para
procedimentos criminais aos seus autores, conforme o previsto no artigo 37
da Lei nº 21/97, de 1 de outubro - Lei de Electricidade e da legislação
moçambicana em vigor embora a sua materialização seja fraca em termos
de divulgação aos cidadãos.
O estudo concluiu que, como forma de colmatar com que os
furtadores de energia eléctrica, após sentenciados cumpram com as suas
obrigações, indemnizando a concessionária pela energia ilegalmente
consumida, torna-se necessário que a EDM nos seus planos de admissão de
técnicos, para o seu quadro de pessoal, contemple também técnicos

54
formados em direito, estes, ocupar-se-iam no seguimento de sentenças
condenatórias aos prevaricadores que junto das autoridades de justiça, fazer
com que os furtadores cumpram com as suas obrigações indemnizatórias.
Entretanto, a alínea a) do artigo 46 do código do processo civil (CPC)
esclarece que" as sentenças condenatórias servem de base para a acção
executiva", em caso de incumprimento por parte do réu. Dadas as condições
socioeconómicas em que se encontram muitas das vezes os furtadores de
energia eléctrica, apenas pagam a conversão da pena por multa em sentença
proferida pelo Tribunal Judicial, para não cumprirem a pena de prisão,
deixando de lado a indemnização para com a EDM, pela energia eléctrica
consumida fraudulentamente.
Após a condenação, segue-se na prática, o princípio indemnizatório,
de responsabilidade civil ao basear-se no princípio geral de
responsabilidade, consagrado no artigo 483 Código Civil, segundo o qual,
aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem
ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica
obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação ou seja
na constituição da situação anterior lesão, isto é, na situação que existiria se
não se tivesse verificado o evento danoso, art. 552 CC.
Trata-se de um processo ideal conforme o previsto no artigo 566 CC,
nos casos em que a reconstituição natural seja possível (caso de perda total),
ou quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos, nos
casos em que a reparação, apesar de possível, não reconstitui exactamente
o estado em que o objecto se encontrava antes do furto ou quando a
reconstituição natural seja excessivamente onerosa para aquele que tem
obrigação de indemnizar, pois ˝ aquele que com dolo ou mera culpa, violar
ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a
proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes da violação˝, art. 483, nº 1 do CC.
Isto significa que, o furto e consumo fraudulento de energia eléctrica
na EDM em algum momento é com o envolvimento de trabalhadores da
EDM, através de atitudes como ligações clandestinas de energia eléctrica, em
troca de valores monetários, fazendo demorar processos de ligação de
energia eléctrica aos cidadãos, como forma de os trabalhadores exigirem aos
cidadãos o pagamento de uma certa quantia para estes flexibilizarem
processos de ligação.
Para além da condenação, uma outra forma de mitigar este
fenómeno, segundo prevê a própria lei, é a divulgação da legislação relativa
ao furto e consumo fraudulento de energia eléctrica às entidades privadas,
aos clientes da EDM e aos cidadãos em geral das regras e procedimentos que

55
devem nortear quando de consumo de energia eléctrica, visando a redução
de furto e consumo fraudulento de energia eléctrica.
Em conformidade com o problema do artigo, que visava saber quais
são os factores que motivam alguns cidadãos ao cometimento do crime de
Furto e Consumo Fraudulento de energia eléctrica em Moçambique, o
estudo concluiu que, o maior factor é a fraca divulgação da legislação sobre
o perigo da matéria de furto e uso fraudulento da corrente eléctrica.
Entretanto, em consequência desta demora na resposta do pedido
de ligação de energia eléctrica ao cidadão, este recorre a indivíduos não
autorizados para ligação de energia eléctrica, com todos os riscos que daí
podem advir sob responsabilidade do titular da instalação, nomeadamente;
falta de contrato de fornecimento de energia eléctrica, ligação clandestina
cuja energia eléctrica não passa pelo contador, não permitindo deste modo
a contagem da energia ali consumida ilegalmente e consequentemente não
cobrada pela EDM, criando enormes prejuízos na economia da
concessionária em particular e ao Estado Moçambicano, em geral.

SUGESTÕES

Ao Governo
▪ Divulgar as leis existentes, incluindo a lei nº 21/97, de 1 de outubro
- Lei de Electricidade, sobre a matéria de furto e consumo
fraudulento de energia eléctrica.
Ao Legislador
▪ Na esperada reforma legal, achamos que a elaboração duma nova lei
deve conformar-se com a realidade sociocultural dos cidadãos,
integrando as boas práticas de consumo de energia eléctrica.
▪ O infractor que seja reincidente a pena de prisão seja efectiva, como
forma de desencorajar a prática de furto e consumo fraudulento de
energia eléctrica no seio das comunidades.
Aos cultores da ciência
▪ Que se realizem mais estudos aprofundados sobre o fenómeno de
furto e consumo de energia eléctrica, em todo o País.
A Concessionária EDM
▪ Que realize inspecções permanentes às instalações eléctricas de
clientes, visando a desencorajar a prática de furto e consumo
fraudulento de energia eléctrica.
▪ Os agentes da concessionária devem distanciar-se das cobranças
ilícitas aos requerentes de energia eléctrica, para flexibilizar o
processo de ligação de energia eléctrica.

56
▪ A EDM deve promover encontros regulares com as comunidades
onde se deve aprimorar a importância de energia eléctrica tem para
o desenvolvimento de uma sociedade e das implicações negativas de
furto de energia eléctrica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Legislação Nacional

Decreto nº 28/1995, de 17 de julho, Cria a Electricidade de Moçambique, em uma


empresa pública.

Decreto-Lei nº 3/2006, de 23 de agosto, que Actualiza o Código Civil.

Decreto-Lei nº 38/1977, de 27 de agosto, Criação da Empresa Nacional de


Electricidade de Moçambique, Empresa Estatal (EE) e os respectivos Estatutos.

Lei nº 15/2003, de 22 de julho e a Lei Geral da Electricidade.

Lei nº 21/1997, de 1 de outubro, que aprova a Lei de Electricidade.

Lei nº 22/2009, de 28 de setembro, Lei do Consumidor.

MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique (CRM), texto aprovado


pela Assembleia da República em 16 de novembro de 2004 e publicado no BR nº 51, I
Série, de 22 de dezembro de 2004, actualizada, incluindo a revisão de 2018.

Doutrina

ANTUNES, M. J. Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra. 2010, p. 160.

BARROS, A. de Jesus P. Projectos de Pesquisa. Propostas Metodológicas. Rio de Janeiro,


Brasil: Vozes Editora. 2010, p. 34.

CARMO, H. & FERREIRA, M. M. Metodologia de investigação. Guia para autoaprendizagem.


(2ª ed.). Lisboa: Universidade Aberta. 2008, p. 177.

CARVALHO, A. T. (2008). Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: Teoria Geral
do Crime, Coimbra Editora. 2008, p. 393.

CORREIA Eduardo, Direito Criminal I, Almedina, Coimbra 2008.

COSTA, J. de F. O uno, o múltiplo e os crimes negligentes. Maputo, Moçambique: Revista de


Electricidade. 2011, p. 88.

EDUARDO, C. Direito Criminal, Vol. I, Almedina. 2001, p. 231.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. (5ª ed.). São Paulo, Brasil: Atlas. 2002, p.
84.

SELLTIZ, C; WRIGHTSMAN, L. S. Métodos de pesquisa das relações sociais. São Paulo,

57
Brasil: Herder. 2000, p. 95.

Legislação Estrangeira

Código penal brasileiro. Disponível em: http://www.ceut.com.br.expressodasilhas. sapo.


cv/. Acessado em: 10 jan. 2015.

58
MEIOS PROBATÓRIOS DOS CRIMES
CIBERNÉTICOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
MOÇAMBICANO

NHAUZA BOAZINHA BRÁS*

INTRODUÇÃO

Com o decorrer do tempo surgem novos avanços tecnológicos no


mundo, assim como para o nosso país, que com ela trouxe consigo enormes
benefícios as pessoas, encurtando assim a distância estabelecida entre as
pessoas em uma sociedade, assim como no mundo inteiro.
Com o surgimento do computador e da internet, de forma restrita, a
globalização gerou proveitos muito significativos na transformação e
desenvolvimento do mundo, com destaque em Moçambique, que influenciou
bastante na vida da sociedade e no desenvolvimento do país, e que quase
nos dias de hoje é impossível viver sem recorrermos as tecnologias de
informações, visto que a sociedade está vulnerável.
Do fenómeno informático, surgem outros problemas, apesar das
inúmeras vantagens trazidas pela internet, computador, os telefones, bancos
e todas as comunicações electrónicas também trazem desvantagens, a cada
desenvolvimento da tecnologia e mais problemas para se estudar, pois,
vários indivíduos de ma fé usam estas tecnologias para praticarem crimes,
com o aprofundamento da tecnologia eles utilizam – na de forma
inadequada, invadindo a privacidade alheia, desviando valores monetários
alheios, difamando outras pessoas, postando vídeos e imagens que ferem a
moral pública entre outros crimes.

*
Licenciada em Direito e Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Ciências Sociais e Políticas,
doutoranda em Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Moçambique, jurista
e docente em Direitos reais, ambiente e agrário na Faculdade de Ciências Sociais e políticas da
Universidade Católica de Moçambique, e-mail: boazynhabras@gmail.com/ njorge@ucm.ac.mz

59
Os sistemas de informação é um instrumento que elevou muito a
vida da humanidade em quase todos os campos do mundo desde a ciência, a
história e a cultura, surgindo assim, a globalização. No seio desta inovação
surgem muitos problemas, onde as pessoas de ma fé entram nos sistemas
alheios e tem acesso a dados onde vazem várias movimentações, e também
usam aplicativos de difícil reconhecimento, criando contas secretas mais
conhecido por secret publicando imagens íntimas de um outro indivíduo,
difamando – o, e sujando a sua imagem, reputação e o infrator nunca é
responsabilizado, isto é, não se sabe o paradeiro do mesmo porque o que se
verifica é a falta de meios suficientes para chegar ate o perpetuador, e muitos
desses casos não são expostos a justiça por causa desse motivo e o
responsável fica ileso e mais motivado para agir novamente. Neste contexto,
levanta – se a seguinte pergunta de pesquisa: Em que medida o ordenamento
jurídico moçambicano apresenta provas eficazes para a punibilidade dos
crimes cibernéticos?
Foram traçados para a presente pesquisa, objectivos como forma
direcionar a pesquisa. Nestes termos, o objectivo geral tem em vista analisar
os elementos de provas nos crimes cibernéticos e sua eficácia. Nos
específicos, pretende se definir os crimes cibernéticos e da conduta
criminosa virtual, identificar os meios de provas usadas para comprovar os
crimes cibernéticos e por fim, descrever os procedimentos usados pelo
Estado para punir este tipo legal de crime.
É pertinente explicitar as razões que presidiram a escolha deste tema,
para o propósito acima indicado. Pesaram para o efeito três razões de interesse
geral, nomeadamente: a actualidade do tema, aliada à necessidade da sua
divulgação junto da comunidade académica e da sociedade civil, bem como o
seu interesse prático, revelado no dia-a-dia pela sua frequente prática.
Adiante, a Metodologia para a elaboração deste artigo, iremos em
primeiro lugar fazer a pesquisa bibliográfica, documental e hermenêutica
jurídica, o que consistirá na recolha de obras relativas ao tema, nomeadamente,
manuais, monografias, revistas jurídicas, dissertações, teses e outros textos
jurídicos que tratam directa ou indirectamente do tema e a interpretação legal.
A pesquisa será qualitativa com enfoque exploratório.
O trabalho tem como estrutura introdução, desenvolvimento,
conclusão e sugestões.

60
CONTEXTUALIZAÇÃO E DISCUSSÃO

1. DO CONCEITO DO CRIME CIBERNÉTICO E DA CONDUTA CRIMINOSA


VIRTUAL

Segundo DAOUN1, crime informático é uma ação típica, ante jurídica e


culpável. E para Ferreira2, e para BELEZA3, crime é uma acção típica, ilícita,
culposa e punível, esta tripartição entre tipicidade, ilicitude e culpa é uma
conquista dogmática da Escola Clássica. Cibernético é a ciência geral dos
sistemas informantes e, em particular, dos sistemas de informação,
CHAVES4.
Crimes cibernéticos são todas as condutas típicas, antijurídicas e
culpáveis praticadas contra ou com a utilização dos sistemas da informática.
E os Crimes informáticos é toda a conduta atente contra o estado natural dos
dados e recursos oferecidos por um sistema de processamento de dados,
seja pela compilação, armazenamento ou transmissão de dados, na sua
forma, compreendidas pelos elementos que compõem um sistema de
tratamento, transmissão ou armazenamento de dados. Para ROSA5, e para
CASTRO6, são aqueles perpetrados através dos computadores, contra o
mesmo ou através dele.
E para ROSSINI7, o conceito de crime informático poderia ser
detalhado como aquela conduta típica e ilícita, constitutiva de crime ou
contravenção, dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, praticada por
pessoa física ou jurídica, com o uso de informática, em ambiente de rede ou
fora dele, e que ofenda directa ou indirectamente, a segurança informática,
que tem por elementos a integridade, a disponibilidade a confidencialidade.
Segundo FELICIANO8, na sua obra “Informática e Criminalidadeˮ,
um conceito mais amplo, que diz que a criminalidade informática é um
fenómeno histórico recente e sociocultural caracterizado pela elevada
incidência de ilícitos penais (Crimes e contravenções), que tem por objeto
material ou meio de execução o objeto tecnológico informático.

1
DAOAUN, Alexandre Jean; LIMA, Gisele Truzzi: crimes informáticos: O direito penal na era da
informação.
2
FERREIRA, Ivette Senise: A criminalidade informática, LUCCA, Newton, SIMÃO, Adalberto: Direito
e internet: aspectos jurídicos relevantes, 2 ed São Paulo, 2005, p. 339.
3
BELEZA, Maria Teresa Pizarro: Direito Penal, 2 vol., Coimbra, 1985
4
CHAVES, António, SILVA, Rita de Cassia: Direito penal e sistemas informáticos, p. 19.
5
ROSA, Fabrizio: Crimes de Informática. Campinas: Bookseller, 2002, p. 53.
6
CASTRO, Carla Rodrigues: Crimes informáticos e seus aspectos processuais, 2ª ed., Lumenjuris, Rio de
Janeiro, 2003, p. 9.
7
ROSSINI, Augusto Eduardo: Informática, telemática e direito penal, Memoria jurídica, São Paulo, 2004.
8
FELICIANO, Guilherme Guimarães: Informática e criminalidade: parte I: Lineamento e definições,
Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel, São Paulo, vol. 13, 2000, p. 42.

61
1.1 - Classificação dos Crimes Cibernéticos
Estes Crimes podem ser classificados emː

a) Crimes puros, são aquelas condutas que ainda não foram tipificadas
juridicamente, carecem de lei que crie tipos penais específicos para
a punibilidade das mesmas. Qualquer conduta ilícita que tenha por
objetivos exclusivo o sistema de computador, seja pelo atentado
físico ou técnico do equipamento e seus componentes inclusive os
dados e sistemas (SILVA9).

b) Crimes Mistos (Impuros), que são todos os tipos incriminadores já


tipificados pela lei penal e que ocorrem no espaço cibernético. São
aqueles em que o uso da internet ou sistema informático é a
condição sine qua non para a efetivação da conduta, embora o bem
jurídico visado seja diverso ao informático (ALBUQUERQUE10).

As principais características, neste tipo legal de crime sãoː


• O crime é cometido num espaço virtual (O que distingue dos
outros tipos criminais);
• Caracteriza-se pela ausência física do agente ativo, razão pela
qual denominam-se de crimes virtuais, em vez de crimes
informáticos;
• Existem inúmeras dificuldades na investigação deste tipo de
crime, o que se verifica no nosso Ordenamento jurídico.

1.2 Os requisitos do conceito de crime informático

O conceito de crime informático, faz-se necessário abordar sobre as


categorias que engloba o conceito de crime informático, começamos por
debruçar em torno da acção/omissão seguida dos demais requisitos que
englobam o conceito de crime informático acima apresentado.

Da Acção/Omissão

É todo o comportamento humano dominado ou dominável pela


vontade (BELEZA11), nos termos do art. 2 e 10 ambos da Lei nº 24/2019 de 24
de dezembro (que aprova o Código Penal Moçambicano), adiante designado

9
SILVA, Rita Cassia: Direito penal e Sistema informático, Revista dos Tribunais: São Paulo, vol. 4, 2003,
p. 60.
10
ALBUQUERQUE, Roberto Chacon: A criminalidade Informática, Editora Suarez de Oliveira, São
Paulo, 2006, p. 264.
11
BELEZA, Maria Teresa Pizarro: Direito Penal, vol. 2, Coimbra, 1985.

62
por CP, o facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou
ou, no caso de omissão, devia ter actuado, independentemente do momento
em que o resultado típico se tenha produzido. Salvo se outra for a intenção
da lei, o crime prevê não só a punição da acção adequada a produzir o
resultado típico, mas também da omissão da acção adequada a evitá-lo.

A Ilicitude
A ilicitude para a clássica é vista numa óptica meramente formal, ou
seja, como contrariedade a ordem jurídica na sua globalidade. Um facto
ilícito é um facto contrário a lei (DIAS12).

A Culpa e a Punibilidade
Para além do facto ter consistido numa ação típica, ilícita e culposa,
é ainda preciso que seja punido (BELEZA13), a responsabilidade jurídico-
legal de alguém, é de se analisar detalhadamente todas estas categorias. Os
tipos legais de crime, a não ser quando a lei expressamente o diga, são
sempre dolosos.

2. MEIOS PROBATÓRIOS PARA OS CRIMES CIBERNÉTICOS

A prova sob ponto de vista da dinâmica do processo e dos


procedimentos, “a prova é um conjunto de atividade de verificação e
demonstração, mediante as quais procura-se chegar a verdade quanto aos
factos relevantes para o julgamento”, de acordo com DIAS14.
Os meios de Prova, são meios legítimos e admissíveis de acordo
com a Código de Processo Penal por via das quais é demonstrada a
ocorrência dos factos que constituem o objeto do processo, de acordo com o
princípio da legalidade (PRATA15).
De referir que, os meios de obtenção de provas, são mecanismos
pelo qual se recolhem as provas (PRATA16). Conforme reza o disposto no art.
341º do Código Civil Moçambicano, dispõe que “as provas têm por função a
demonstração da realidade dos factos”. Assim entende-se que demonstrar a
verdade dos factos implica alcançar um juízo de certeza sobre os mesmos
factos. E não só, nos termos do nº. 1 do art. 155 da lei nº 25/2019 de 26 de

12
DIAS, Jorge Figueiredo: Direito Penal – parte geral, Tomo I – Questões fundamentais: A doutrina geral
do Crime, Coimbra, 2012.
13
BELEZA, op. cit.
14
DIAS, Jean Carlos: o problema dos limites da prova e sua valoração.
15
PRATA, Ana; VIEGA, Catarina e VILALONGA, José: Dicionário Jurídico: Direito Penal e Direito
Processual Penal, Vol. II, 2 ed, Almedina. Coimbra.
16
Ibidem.

63
dezembro, (que aprova o Código do Processo Penal, adiante designado por
CPP), constituem objecto de prova, todos os actos juridicamente relevância
para existência ou inexistência do Crime, a punibilidade ou não punibilidade
do arguido, e a determinação da pena ou das medidas de segurança
aplicáveis.
Segundo PAPADAKIS17 o fim da prova é a demonstração da verdade dos
factos, alicerce da convicção sobre a sua existência, as quais por sua vez, são
o pressuposto da aplicação da lei. Portanto a prova tem por finalidade
convencer o juiz quanto a existência ou inexistência dos factos sobre que
versa a lide, neste sentido temos o que define o seu objeto.

2.1 - Tipos de Provas

• Provas Testemunhais, são provas sobre os factos constantes no


processo que se obtêm mediante a aquisição de testemunhas que
tenham conhecimento direto daqueles (PRATA18). E para
BALDUCI19, a prova testemunhal é a prova obtida por meio de
inquirição de testemunhas a respeito dos factos relevantes para o
julgamento que podem ser orais e de imediaçãoː
• Oral, o testemunho será sempre prestado na forma oral, não sendo
permitido a fazê-lo poe escrito, salvo breve consulta a
apontamentos.
• Imediação, segundo MAZINI20, só será testemunha aquele que
presenciar diretamente os factos.
• Provas documentais, são provas que se faz no processo mediante
a apresentação e junção, Oficiosa ou a requerimento de documentos,
PRATA21.

Importa salientar que, a prova é uma demonstração certeira dos


factos ocorridos em um crime, e meios de prova é tudo aquilo que for
apresentado as autoridades competentes para a dissolução ou
encerramento de um caso, de um processo. Portanto, os meios de provas são

17
PAPADAKIS, Vitalina do Carmo. A prova: fim da prova, prova probabilidade suspeita e espécie de
prova, centro de formação jurídica e judiciária, Maputo, 2007.
18
PRATA, Ana; VIEGA, Catarina; VILALONGA, José. Dicionário Jurídico: Direito Penal e Direito
Processual Penal, Vol. II, 2ª ed, Almedina. Coimbra.
19
BALDUCI, Filipe: disponível: https//andradense.jusbrasil.com.br/artigos/29685003/aprova-
testemunhal-novo-cpc.
20
MAZINI.
21
PRATA, Ana; VIEGA, Catarina; VILALONGA, José. Op. cit.

64
os caminhos, passos, estratégias e mecanismos usados para a comprovação
de um certo ato, tudo o que for necessário para conduzir-nos a uma verdade.
Relativamente aos crimes informáticos, um capítulo foi dedicado e
vários tipos legais de crimes foram tipificados no anterior Código Penal22, no
qual farei a citação do essencial para melhor compreensão, dos quais
destaco: o art. 316, que preconiza a intromissão através da informática, na
medida em que aquele que criar, mantiver ou utilizar ilicitamente ou sem
autorização ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis
e referentes a convicções politicas, religiosas, filosóficas, a filiação partidária
ou sindical, a vida privada ou a origem étnica, será punido com pena de
prisão maior de 2 a 8 anos e multa até um ano.
E não só, conforme aflora o art. 317, quem por meio informático
incitar menor de 12 anos de idade para a prática de actos ilícitos, tipificados
na lei criminal, será punido com pena de prisão. O legislador também
plasmou nos artigos 318, 319 até 323, os furtos informáticos de moedas ou
valores, burla por meios informáticos nas comunicações, violação dos
direitos de autor com recurso a meios informáticos, escutas não autorizadas
de mensagens, a violação do segredo do Estado por meios informáticos e por
fim a instigação pública a um crime com uso de meios informáticos.
O Código Penal, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 31 de dezembro,
trouxe grandes inovações ao introduzir novos tipos legais de crime,
alterações na redacção e nas molduras penais e incorporação de matérias
que constavam de legislação avulsa ou inexistentes. Sobretudo, adoptou um
título especialmente que tratava sobre os crimes informáticos.
Entretanto, razões de fundo, traduzidas na limitação à abordagem
dos seus valores axiológicos e a necessidade de tratamento jurídico
particular, nomeadamente em sede de articulação entre normas
substantivas e processuais específicas, passaram a justificar a afectação
sistemática dos lapsos e omissões por uma vicissitude legal destes crimes no
Código penal23 actual, uma vez que o nosso legislador trouxe nos apenas o
crime sobre a fraude relativa aos instrumentos e canais de pagamento
eletrónico e o crime de abuso de meios de pagamento eletrónico nos seus
artigos 294 e 295, e também, o crime sobre falsidade informática,
interferência de dados, interferência de sistemas e uso abusivo de
dispositivos, conforme afloram os artigos 336, 337, 338 e 339 do CP. Porém,
nota se no actual código novos tipos legais de crimes informáticos diferentes

22
Lei nº 35/2014 de 31 de dezembro (que aprovou o Código penal anteriormente em vigor).
23
Lei nº 24/2019 de 24 de dezembro (que aprova o Código penal actual, doravante designado por CP).

65
do código anterior e ainda assim nenhum meio de prova relativamente a
punibilidade destes tipos legais de crime foi tipificado.
Ademais, foi aprovado a lei nº 3/2017 de 9 de janeiro (adiante
designada por Lei das Transações eletrónicas), que regula as actividades
efectuadas por via das plataformas digitais, com o objectivo de aumentar a
segurança dos provedores de serviços electrónicos no país. Esta lei,
estabelece um quadro legal que define princípios e normas para regular e
disciplinar as transações electrónicas, comércio e governos electrónicos no
país.
Mas, ainda assim muita dificuldade se verifica na criação de meios
probatórios para se punir os crimes cibernéticos. Foram criadas instituições
para a regulamentação das comunicações eletrónicas e ainda não são
notáveis, porque nos últimos tempos acontecem variados crimes desta
natureza e pouco solucionados. De referir que, essas instituições estão mais
para a regulamentação das comunicações eletrónicas e não para produção
de provas de um crime.
Importa frisar que, os perpetuadores muitas das vezes têm
conhecimentos incríveis de informática são chamados de hacker (hacker é
um individuo que domina a informática e é muito inteligente, adora invadir
sites, mas na maioria das vezes não com a finalidade de cometer crimes,
costuma a se desafiar entre si, para ver quem consegue invadir tal sistema
ou página na internet, isto apenas para nos mostrar como estamos
vulneráveis no mundo virtual (NOGUEIRA24).
Os doutrinários assim como os profissionais ligados a informática,
preferem chamar de criminosos de hackers, pois, possuem um
conhecimento vasto de informática, acessam com facilidade qualquer
brecha de segurança nos sistemas, porém não alteram nem danificam nada,
são chamados de hacker de chapéu branco ou whitehat. E os blackhat, os
hackers do mal ou de chapéu preto, esses usam os seus conhecimentos para
roubar senhas, documentos, causar danos ou mesmo realizar espionagem
(ASSUNÇÃO25), esses são verdadeiros mestres do mundo informático,
entram, manipulam os dados alheios com muita facilidade e não são
encontrados com muita facilidade. E fundamentalmente, nos termos do art.
1 da CP, plasma o princípio da legalidade que preconiza que, todos os
procedimentos para a identificação do criminoso devem ser com base na lei.
No entanto os meios usados para a prática desses crimes sãoː

24
NOGUEIRA, Sandro: Crimes de informática. BH editor, São Paulo, 2008, p. 61.
25
ASSUNÇÃO, Marco Flávio: segredos do Hacker Ético, 2º ed, Visual Books, Florianópolis, 2008, p. 13.

66
– O computador (a internet);
– Os telefones (WhatsApp, facebook, mensagens);
– As caixas bancárias, (ATM, transferências de dados por via do
computador). E nota se a falta de um regime e instituto jurídico
próprio, agentes específicos, formados e qualificados e ainda, uma
instituição específica capaz de lhe dar com a prevenção, detenção,
investigação criminal relativamente a estes tipos legais de crime, tal
como sucede em Portugal.

3. PROCEDIMENTOS USADOS PARA A OBTENÇÃO DE PROVAS NESSES


CRIMES

Para PRATA26, os “meios de obtenção de provas” são mecanismos


pelo qual se recolhe as provas. Porém, os meios de provas são diversos, pode
ser usado qualquer tipo de prova para solucionar um caso, não se
especificado concretamente qual a prova que deve ser apresentada, pode ser
apresentada quaisquer provas desde que sejam contundentes. Nos termos
do art.º 24 e 25 ambos da Lei das transações electrónicas, as mensagens de
dados fazem provas em juízo e não podem ser recusadas, as mensagens
eletrónicas gozam de força probatória. Abarca o princípio da livre
apreciação das provas por si só, dá a prerrogativa do juiz apreciar e avaliar
todas as provas apresentada, fazer um estudo coerente para poder ter uma
solução condigna e justa.
Os meios de obtenção de provas são todos os mecanismos ou
materiais usados para selecionar um facto desconhecido. Esses meios
podem ser variados, isso depende de cada caso, mas nesses crimes, é muito
complicado a existência de prova, pois trata – se de crimes cibernéticos ou
informáticos. Estes crimes são perpetuados utilizando os meios
informáticos, como sabemos que por se tratar de uma acção com recurso a
meios informáticos, as provas dadas para se ter acesso a esses dados é muito
difícil. Por exemplo nos crimes que são praticados nas redes sociais
(WhatsApp, Facebook entre outros), indivíduo entra com dados fictícios,
caluniando alguém, expondo a sua vida privada, incitando menores a vídeos
pornográficos e esses criminosos são muito difíceis de serem descobertos,
porque para ter acesso a esses dados fantasmas é muito complicado.

26
PRATA, Ana, VIEGA, Catarina e VILALONGA, José: Dicionário Jurídico: Direito Penal e Direito
Processual Penal, Vol. II, 2 ed, Almedina. Coimbra.

67
3.1. Compartilhamento de uma informação de um acto criminal e
serem considerados cúmplices

À luz do art.º 25 do Código Penal, “cúmplices” são aqueles que atuam


diretamente com o agente do crime para facilitar, ou prepara a execução do
crime em que sem a participação destes o crime não se consumaria.
Cúmplices também são os que ajudam um criminoso na execução de um
crime, os que são essenciais para execução de um certo acto criminoso, que
na falta da sua participação, o crime não seria consumado.
A cumplicidade nesse crime tende se ter em conta a percentagem ou
grau da participação deste no crime, por que há casos que nas redes sociais
publicam coisas que ferem a moral publica e uma pessoa visualiza imagem
e depois compartilha. Nos casos de secret, (aplicativo que é usado para não
identificar o sujeito activo, nele publicam coisas escandalosas, denigrindo a
reputação, imagem, nome de alguém ou mesmo do Estado, violando assim
os direitos fundamentais de outrem, nos termos do art.º 41 da Constituição
da República de Moçambique, atento a revisão de 2018, doravante
designada por CRM.

3.2. Princípios de segurança usados nas instituições para proteger os


seus clientes

Os princípios segurança nas comunicações eletrónicas são os


princípios da confidencialidade, integridade e responsabilidade.

• Confidencialidade - assegura que, a informação é somente


acessível para aquele que é devidamente autorizado. Todas
informações de um individuo devem ser confidenciais, não
disponível a outras pessoas, nos termos do nº 1 do art. 63 da Lei das
transações eletrónicas.
• Integridade - salvaguarda a veracidade e a complementaridade da
informação bem como os seus métodos de processamento.
• Responsabilidade - assegura que quem devidamente autorizado
tenha acesso a informação e bens associados sempre que
necessário, cabe a ele a sua responsabilização, a responsabilidade é
individual, nos termos do art. 65 da Lei das transações eletrónicas.
Ademais, o nº 5 do art. 63 do mesmo diploma legal, preconiza que o
processador de dados deve proteger os dados pessoais contra
riscos, perdas, acesso não autorizado, destruição, utilização,
modificação ou divulgação.

68
No contexto do nosso posicionamento, há que concordar
com o INCM, uma instituição de comunicação e transações
eletrónicas devem obedecer esses 3 princípios para que mantenham
os seus clientes seguros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegado a essa fase de trabalho, importa frisar que os crimes


cibernéticos são crimes bem novos para a nossa sociedade, visto que o
código penal anterior não tipificava tais condutas praticadas pelo meio
eletrónico como crime, o Código Penal de 2014 fez referência dedicando e
tipificando um capítulo específico relativamente aos crimes informáticos,
dos quais se destacaram aː Intromissão através da informática, a incitação
de menores no meio informático, o furto informático de moedas ou valores,
a burla por meios informáticos e nas comunicações, conforme afloram os
artigos 316 e seguintes do Código Penal de 2014.
Mas, por ser novo, esses crimes foram analisados, e reformulados
pelo actual código penal, no qual o nosso legislador trouxe nos apenas o
crime sobre a fraude relativa aos instrumentos e canais de pagamento
eletrónico e o crime de abuso de meios de pagamento eletrónico nos seus
artigos 294 e 295, e também, o crime sobre falsidade informática,
interferência de dados, interferência de sistemas e uso abusivo de
dispositivos, conforme afloram os artigos 336, 337, 338 e 339 do CP. Porém,
nota se no actual código novos tipos legais de crimes informáticos diferentes
do código anterior e ainda assim nenhum meio de prova relativamente a
punibilidade destes tipos legais de crime foi tipificado.
Os pressupostos para a acusação são os mesmos de outros crimes,
não se verifica uma conexão entre o individuo e o crime, isto é, tem que haver
indícios suficientes para acusar um individuo ou autor de um crime, se não
haver existência desses indícios não pode ser acusado, e essa acusação deve
obedecer princípio da legalidade, nos termos do art. 1º do CP, e o processo
instaurado é o processo querela, nos termos do art. 63 do CPP. E os meios de
provas nesses crimes seguem os mesmos procedimentos dos outros crimes
que são provas documentais e provas testemunhais.
Sendo assim, respondendo a um dos objectivos do estudo, importa
frisar que as provas usadas no nosso Ordenamento Jurídico são as
documentais e testemunhais, visto que, os procedimentos para obtenção de
provas não são muito eficazes, porque o instrumento utilizado para a prática
dos crimes cibernéticos são os meios eletrónicos e internet, ou celulares
entre outros.

69
Para isso, importa dizer que existem meios de provas, porém,
ineficazes, pois esses crimes são perpetuados no espaço virtual onde há
ausência da presença física do autor, e os meios para os provar são dados,
dados esses que não se pode ter com facilidade. Moçambique não apresenta
mecanismos suficientes capazes de desvendar esses crimes, não sendo
problema apenas deste país, mas também de vários.

Sugestões

As mudanças técnicas que a Sociedade enfrenta na actualidade, faz


suscitarem um novo paradigma criminal. Assim, estas modificações
precisam de ser estudadas de forma detalhada em função dos crimes e
efeitos. Os riscos se fortalecem pela crescente vulnerabilidade de Sociedade
aos meios informáticos. Os crimes contra a privacidade, incitação de
menores por meio informático, burlas e fraudes são frequentes. Os riscos
desses crimes se traduzem pela dificuldade do esclarecimento dos crimes,
embora a lei penal acautele algumas situações. Porém, julgamos
imprescindível:

• O estabelecimento de uma lei especial para a regulação e utilização


da internet e dos meios eletrónicos, fazendo alusão apenas aos
crimes cibernéticos e os meios probatórios deste crime.
• Criação de uma Unidade nacional de combate ao cibercrime e a
criminalidade tecnológicas, unidade esta que compete a prevenção,
detenção, investigação criminal e coadjuvação das autoridades
judiciais relativamente aos crimes previstos no Código Penal e a
prevenção, detenção, investigação criminal, coadjuvação das
autoridades judiciais, quanto aos crimes contra a liberdade e
autodeterminação sexual, sempre que praticamos por meios ou
através de sistemas informáticos, crime de burla informática e nas
comunicações, tal como sucede em Portugal;
• Uma vez que lei das transações do comércio eletrónico, da mais
primazia aos comércios eletrónicos, esta deveria estar
consubstanciada a um plano estratégico de cooperação a nível
regional e internacional no domínio de segurança informática, visto
que é um problema global e carece de soluções globais.
• E por fim, Estado deveria criar instituições profissionais para
formar um quadro de pessoal capacitado nas investigações de
crimes cibernéticos, tendo assim um conhecimento amplo em
tecnologia avançada.

70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Doutrina

ALBUQUERQUE, Roberto Chacon: A criminalidade Informática, Editora Suarez de


Oliveira, São Paulo, 2006.

ASSUNÇÃO, Marco Flávio: segredos do Hacker Ético, 2ª ed., Visual Books, Florianópolis,
2008.

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aprova-testemunhal-novo-cpc.

BELEZA, Maria Teresa Pizarro: Direito Penal, 2 vol., Coimbra, 1985.

CASTRO, Carla Rodrigues: Crimes informáticos e seus aspectos processuais, 2ª ed.,


Lumenjuris, Rio de Janeiro, 2003.

CHAVES, António, SILVA, Rita de Cassia: Direito penal e sistemas informáticos, p. 19.

DAOAUN, Alexandre Jean; LIMA, Gisele Truzzi: crimes informáticos: O direito penal na
era da informação, Vol. II, São Paulo, 1999.

DIAS, Jean Carlos: o problema dos limites da prova e sua valoração, Vol. II, 2 ed,
Almedina. Coimbra.

DIAS, Jorge Figueiredo: Direito Penal – parte geral, Tomo I – Questões fundamentais: A
doutrina geral do Crime, Coimbra, 2012

FELICIANO, Guilherme Guimarães: Informática e criminalidade: parte I: Lineamento e


definições, Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel, São Paulo, Vol. 13, 2000.

FERREIRA, Ivette Senise: A criminalidade informática, LUCCA, Newton; SIMÃO,


Aldaberto: Direito e internet: aspectos jurídicos relevantes, 2ª ed. São Paulo, 2005, p.
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NOGUEIRA, Sandro: Crimes de informatica.BH editor, São Paulo, 2008.

PAPADAKIS, Vitalina do Carmo: A prova: fim da prova, prova probabilidade suspeita


e espécie de prova, centro de formação jurídica e judiciária, Maputo, 2007.

PRATA, Ana, VIEGA, Catarina e VILALONGA, José: Dicionário Jurídico: Direito Penal e
Direito Processual Penal, Vol. II, 2 ed, Almedina. Coimbra.
ROSA, Fabrizio: Crimes de Informática. Campinas: Bookseller, p. 53, 2002.

ROSSINI, Augusto Eduardo: Informática, telemática e direito penal, Memoria jurídica,


São Paulo, 2004.

SILVA, Rita Cassia: Direito penal e Sistema informático, Revista dos Tribunais: São
Paulo, Vol. 4, 2003.

71
Metodologia

ALVES, Maria da Piedade, Metodologia científica, Editora Escolar 2012, p. 42.

CERVO, Amado; BERVIAN, Pedro A. Metodologia Científica, 5ª ed. Editora Afiliada, São
Paulo, 2002.

FONSECA, Jorge, Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, 2002.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2008.

Normas nacionais

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, escolar


editora, Maputo-Moçambique, 2004, in Boletim da República I série, no 20 de 24 de
dezembro, ver. e act. Pela Lei nº 1/2018, de 12 de junho, 2018, in Boletim da República I
Série nº 115.

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal anterior, Lei no 35/2014 de 31 de


dezembro, in Boletim da República, I Série, no 105.

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal actual, Lei no 24/2019 de 24 de dezembro,


in Boletim da República, I Série, no 248.

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei das transações eletrónicas, Lei no 03/2017 de 09 de


janeiro, in Boletim da República, I Série, no 5.

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código de Processo Penal, Lei no 25/2019 de 26 de


dezembro, in Boletim da República, I Série, no 249.

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Civil, Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro


de 1966.

72
O PEDIDO CIVIL NO DIREITO PENAL

DINÁRSIO BENTO MONJANE1

INTRODUÇÃO

O pedido cível consubstancia uma adesão da acção civil na acção


penal, conforme a génese das perdas e danos decorra de um delito.
Desde logo, não se concebe que fora o pedido cível seja deduzido fora
do âmbito criminal, isto é, sem que seja emergente de actuação criminal do
agente.
Advoga, Manuel Dias da Silva2 que, apesar de estas duas acções (civil
e criminal) se acharem confundidas na sua origem e terem fundamento num
mesmo facto, servem para proteger interesses diversos. Na acção penal
consagra-se o direito da sociedade à repressão dos crimes. Na acção civil, o
direito da vítima à reparação do prejuízo sofrido.
No presente artigo nos propomos a analisar o regime jurídico do
pedido cível em Processo Penal, com especial enfoque para a sentença do
Tribunal Judicial do Distrito da Manhiça registada sob o n.⁰ 96/16.
No plano metodológico, no primeiro plano nos debruçamos sobre a
delimitação terminológica do pedido cível. Em segundo momento nos
focamos na apresentação da tipologia da responsabilidade e em seguida
esmiuçamos a problemática do pedido cível face ao despacho do Tribunal
Judicial do Distrito da Manhiça.

1
Graduado em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane, Mestre pela Universidade São Tomás de
Moçambique, Doutorando em Direito Público pela Universidade Católica de Moçambique, Advogado.
2
SILVA, Manuel Dias da, Estudo sobre a responsabilidade civil conexa com a criminal, Imprensa da
Universidade, Coimbra, 1887, p. 3.

73
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

O artigo 29 do Código de Processo de Moçambique3 estabelece o


princípio de adesão que caracteriza o processo penal.
Conquanto, ressalta-nos a natureza civilística do pedido civil, pelo que
rege –se pelos princípios do Direito Civil, quanto à sua disponibilidade e
aplicando-se os pressupostos da responsabilidade civil (art.º s 483º et seq.
do CC), bem como as regras de determinação dos danos a indemnizar.
De acordo com os ensinamentos de Menezes Cordeiro4
responsabilidade civil é a situação jurídica em que se encontra uma pessoa
que, por força de determinada ocorrência, vê formar-se na sua esfera
jurídica, um dever cominado pelo Direito. A ocorrência em causa é o dano: e
o dever que se forma é um dever de indemnizar.
Ensina Sousa Brito, que “o crime lança perturbação na sociedade civil,
na ordem jurídica e na ordem das relações entre o delinquente e o Estado,
na medida em que ofende os bens que a ordem jurídica protege (…). O crime
é uma causa de dano. Por dano deve entender-se aqui qualquer diminuição
do valor de um bem jurídico.”5

2. RESPONSABILIDADE CIVIL

Para todos os efeitos, o que vem prescrito no art. 483 n.º 1 do C. Civil
é que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de
outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios
fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”,
assim deve se averiguar em cada caso, se estão preenchidos os pressupostos
da responsabilidade civil.
São assim requisitos da responsabilidade civil extracontratual:

a) O facto ilícito
b) A imputação do facto ao agente
c) A culpa
d) O dano
e) Nexo de causalidade entre o facto e o dano.

3
“O pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, por que sejam
responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo que correr a acção penal...”.
4
CORDEIRO, António Menezes, Direito das Obrigações, 1.ª ed., A. A. F. D. L., Lisboa, 1994, 2º vol., p.
258.
5
Brito, José Sousa de – Para fundamentação do Direito Criminal. In ROXIN, Claus [et al.] - Textos de
Apoio de Direito Penal. Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, 1983/84. T. 1, p. 143.

74
Em relação ao facto ilícito:
Na senda da responsabilidade civil subjectiva, deve existir um
comportamento humano dominável pela vontade que configure um juízo de
desvalor atribuído pelo direito.
Em face de responsabilidade civil delitual, cabe ao lesado provar a
ilicitude da acção do lesante, conforme estabelece o art. 487 do C. Civil. Não
qualquer ilicitude que se configure na violação das normas de protecção,
nem dos direitos subjectivos.

Em relação à imputação do facto ao agente


É mister igualmente frisar que não basta que se verifique uma violação
ilícita de um direito ou interesse juridicamente protegido por outrem. É
igualmente necessário que o facto seja imputado ao agente.

Em relação à Culpa
Conforme ensina Menezes Leitão, a culpa é definida como o juízo de
censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo
com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente6.
O juízo de culpa representa um desvalor atribuído pela ordem jurídica
ao facto voluntário do agente, que é visto como axiologicamente reprovável.7

Em relação ao Dano
Em termos gerais, dano é a supressão de uma vantagem de que o sujeito
beneficiava ou ainda deixou de beneficiar.

Em relação ao Nexo de causalidade


Elemento constitutivo da responsabilidade civil em geral é o nexo de
causalidade entre o facto e o dano.
A fórmula usada no artigo 563 do C. Civil deve interpretar-se no sentido
de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou
mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se
possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário
ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem
diz adequada desse efeito.

6
Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações: introdução da constituição das
obrigações, vol. 1, Ed. Almedina, 2.ª ed., Coimbra, 2002, p. 295.
7
Ibidem, p. 296.

75
3. RESPONSABILIDADE PENAL

Os pressupostos da responsabilidade criminal são cinco:


a) a existência de um facto,
b) tipicidade,
c) ilicitude,
d) Culpa,
e) Punibilidade.

3.1 Do facto

Para se assacar a responsabilidade do agente é premente um juízo que


é feito sobre um determinado objecto valorativo, in casu, um facto jurídico.
De modo contrário, também se poderia considerar como acção a
alteração da realidade constituída pela actividade de instrumentos
automáticos. É uma acção que não postula, em relação de necessidade, uma
conduta humana. Naturalmente que “acção” em sentido linguístico tem um
sentido muito mais lato do que o conceito jurídico de acção.
Deste modo, este facto jurídico consiste “num acto, numa acção, ou
seja, num facto positivo (…), que importa a violação de um dever geral de
abstenção, do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito
absoluto. Mas pode traduzir-se também num facto negativo, numa
abstenção ou numa omissão (…)”8

3.2 Da tipicidade
O conceito do tipo abrange os elementos constitutivos do crime, isto é, as
circunstâncias de que depende o resultado final. Desde logo, a averiguação
em face da norma da existência de que depende a aplicação da pena estamos
perante o tipo.

3.3 Ilicitude
No que tange a este pressuposto da responsabilidade criminal, podemos
caracterizá-la como uma actuação contrária ao Direito, em que se ofendem
bens jurídicos protegidos.

3.4 Culpa
A culpa se reporta a atitude interna do agente, entender e querer o crime.

8
VARELA, Antunes. Das Obrigações em Geral, op. cit., p. 527 et seq.

76
Este pressuposto fica preenchido quando a atuação do agente lhe pode ser
pessoalmente censurada, verificando-se a existência de uma “atitude
interna juridicamente desaprovada”.
O princípio da culpa dita que “não há pena sem culpa e a medida da pena não
pode ultrapassar a medida da culpa”.

3.5 Punibilidade
O Estado tem o monopólio da tarefa da punição, e são três dos fins das
penas: a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial9.

4. DO PEDIDO CÍVEL
Os crimes pela sua natureza e consequências acarretam perdas e
danos que merecem a tutela do Direito sob a forma de ressarcimento,
permitindo que se reconstitua a situação que existiria se não tivesse
ocorrido o facto punível.
É nesta senda que dispõe o Código de Processo Penal (CPP) em
vigor , tendo reconhecido e aderido ao princípio de adesão.
10

5. DO ESTUDO DO CASO

5.1 Do Despacho do Tribunal

O có-réu efectuou um pedido de indeminização cível sobre o qual o


Tribunal a que se recorre, que estabeleceu em despacho o seguinte
"Relativamente ao pedido Cível elaborado, desentranhe-se o mesmo dos
presentes autos, em virtude de estarmos diante de danos resultante de
acidente de viação. E, nos termos das disposições conjugadas do nº 1 do
artigo 348⁰ do Código Penal vigente e artigo 156 do Código de Estrada, este
pedido deve ser efectuado em Processo Cível isto é próprio, reservando-se
ao processo penal a apreciação das contravenções cometidas e do crime sob
o qual os có-réus vem acusados"

5.2 Da Discussão do Despacho

Entretanto, no nosso entendimento, o número 1 do artigo 348 do


Código Penal, estabeleceu que " se, fora dos casos de dano consequência de

9
Brito, José Sousa de – Para fundamentação do Direito Criminal. In ROXIN, Claus [et al.],. 111, p. 199.
10
Art. 29⁰ “O pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, por que sejam
responsáveis os seus agentes, deve fazer –se no processo em que correr a acção penal e só poderá ser feito
separadamente em acção intentada nos tribunais civis nos casos previstos neste Código”.

77
acidente de viação", ou seja, se não estivermos diante de danos que sejam
consequência de acidentes de viação, se não estivermos abordando esta
questão, mas sim encontrarmo-nos diante da violação ou falta de
observância das providências policiais e administrativas, contidas nas leis e
regulamentos, e sem intenção maléfica, alguém causar incêndio ou qualquer
dano em propriedade alheia, móvel ou imóvel, será punido com pena de
multa até três meses, sem prejuízo das penas decretadas nas mesmas leis ou
regulamentos, pela contravenção.". É neste mesmo entendimento que o
número 4 do artigo 348 do Código Penal estabelece que na falta de queixa
pela contravenção cometida apenas haverá procedimento judicial pela
contravenção cometida, nestes últimos crimes previstos, aos quais o
legislador estabeleceu o respectivo tratamento.
Dito de outo modo, o legislador neste artigo, apenas estabeleceu o
tratamento para os seguintes casos: "pela de violação ou falta de
observância das providências policiais e administrativas, contidas nas leis e
regulamentos, e sem intenção maléfica, alguém causar incêndio ou qualquer
dano em propriedade alheia, móvel ou imóvel"
Ora, quando o legislador estabelece a questão: " se fora dos casos de
danos consequências de acidentes de viação" é suposto e necessário que de
seguida, o mesmo, estabeleça na mesma lei alguma cláusula que clarifique
qual é o tratamento para os danos resultantes de acidente de viação.
Importa salientar que, o artigo 156º do Código de Estrada já existia e
mesmo com a existência daquele, não era usado para remeter a questão dos
danos resultantes de acidente de viação a um processo Próprio. É claro que
o artigo ora revogado 482º do Código Penal estabelecia procedimentos para
que tal não acontecesse, mas a revisão efectuada em relação a esta matéria
não é explícita, e nenhum dispositivo legal estabelece de forma clara que:
"deixa de existir o crime de dano resultante de acidente de viação", pelo que
não podem as partes envolvidas serem prejudicadas nos autos por questões
desta natureza.
Mais ainda, o artigo 156º do Código de Estrada, estabelece que "As
acções destinadas a exigir a responsabilidade cível, quando não devam ser
exercidas em processo penal…". Ora, no nosso entendimento, o processo
penal não pode ser olhado apenas ao abrigo do número 1 do artigo 348 do
Código Penal, mas sim como um todo pois o Código de Processo Penal ainda
está em vigor e não fora revogado. Ainda, conforme dissera, aquele
dispositivo legal não estabeleceu que os danos resultantes de acidentes de
viação não devem correr em processo penal, limitando-se apenas a clarificar
o tratamento da "violação ou falta de observância das providências policiais
e…", conforme artigo 3º da presente peça processual.

78
É ponto assente que, o número 1 do artigo 156 do Código de Estrada
estabelece que existem acções que não podem ser exercidas em processo
penal, como nos casos em que há um despacho de arquivamento proferido
pelo Ministério Público, não podendo exercer a acção penal.
Conquanto, conforme despacho que refere que o pedido de
indemnização cível deve correr em processo próprio, proferido pelo
Tribunal a que se recorre, existirão dois processos correndo em instâncias
diferentes, de onde notamos que, cada juiz possui um livre-arbítrio, de onde
podem surgir duas decisões diferentes.
Questionamos nós qual seria o tratamento numa situação em que o
recorrente possui duas decisões diferentes, sendo uma favorável e outra não
favorável. Ainda, quem efectuaria o ressarcimento dos danos, se na área civil
houvesse sentença favorável ao recorrente ao ressarcimento de danos
enquanto o processo-crime estivesse ainda em curso, em particular em sede
de recurso.

CONCLUSÃO

Nesta sede, cumpre-nos trazer novamente o estabelecido no artigo


29º do Código de Processo Penal que o pedido de indemnização por perdas
e danos deve fazer-se no processo em que correr a acção penal, daí que,
cumpre nos resgatar o “Princípio da autossuficiência” que vêm também
consagrado no artigo 2.º do Código de Processo Penal, que advoga que o
Processo Penal é o lugar adequado ao conhecimento de todas questões cuja
solução se revele necessária à decisão a tomar.
E, na tramitação do processo penal que há de conduzir a esta decisão
podem surgir questões de diversa natureza, sendo cível ou administrativa, e
é oferecida competência ao Juiz penal para delas conhecer pois o processo
penal é autossuficiente.
Estando dois processos em simultâneo curso e ainda, a probabilidade
de se enveredar pelo processo executivo em período após sentença, pôr-se-
ão em risco as exigências da Concentração Processual ou da Continuidade
do Processo e permitir-se-á colocar obstáculos ao exercício da acção penal.
Desde logo, foi bem o legislador, mesmo no novo Código de Processo
Penal (Lei 25/2019, de 29 de dezembro, ao consagrar o princípio de adesão
no artigo 8011.

11
“O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal
respectivo, só o podendo ser em separado, em acção cível, nos casos previstos na lei”.

79
Conquanto, não se alcança os alicerces do despacho do tribunal, senão
uma flagrante má interpretação da lei.

BIBLIOGRAFIA

BRITO, José Sousa de – Para fundamentação do Direito Criminal. In ROXIN, Claus [et al.] -
Textos de Apoio de Direito Penal. Lisboa: AAFDL Editora, 1983/84. T. 1.
CORDEIRO, António Menezes, Direito das Obrigações, 1ª ed., AAFDL Editora, Lisboa,
1994, 2º vol.
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações: introdução da
constituição das obrigações, vol. 1, Ed. Almedina, 2ª ed., Coimbra, 2002.
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª ed., Edições
Almedina, Coimbra, 2009.
NETO, Abílio, Código Civil Anotado, 16ª ed. Ediforum – Edições Jurídicas, Lisboa, 2009.
SILVA, Manuel Dias da, Estudo sobre a responsabilidade civil conexa com a criminal,
Imprensa da Universidade, Coimbra, 1887.
VARELA, Antunes, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Ed. Almedina, 2ª ed., Coimbra, 2017.

Legislação:
Código Civil de Moçambique;
Código Penal de Moçambique;
Código de Processo Penal de Moçambique;

80
A TUTELA JURÍDICO PENAL DA PROPRIEDADE
NOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE
EM GERAL E NOS CRIMES DE DANO
FACE AOS EFEITOS DAS PENAS A LUZ DO
CÓDIGO PENAL DE 2014

COUTINHO ABÍLIO SERFIM QUANHIUA


FARCI ANIBAL PEREIRA

INTRODUÇÃO

A nossa reflexão em torno da tutela jurídico-penal da propriedade nos


crimes contra a propriedade, Parte do conceito de direito penal, enquanto
conjunto de normas que regulam o poder punitivo do Estado, que de per si
sugere uma análise crítica e actualista dos fins das penas, a luz da doutrina
e no código penal moçambicano vigente.
O código penal moçambicano, foi aprovado pela lei n.º 35/2014 de 31
de dezembro, que revoga o anterior código penal aprovado pelo Decreto de
16 de setembro de 1886, código este vigente por quase três décadas.
Contudo, as alterações introduzidas pelo actual código penal, pese embora
significativas, anda assim manifestam-se controversas e aquém da realidade
moçambicana, sob ponto de vista material e funcional, num contexto em que
o país procura cada vês mais se afirmar como um Estado de direito
democrático assente no pluralismo jurídico.
Atentos ao sistema económico capitalista vigente em Moçambique
desde a década 90 com a entrada em vigor da respectiva constituição em
substituição da Constituição de 75, foi acompanhada por uma revisão
gradual das leis ordinárias, como é o caso da revisão do código penal 24 anos
depois, de forma tardia, código este que na nossa opinião, continua
fortemente ancorado, ao sistema económico vigente em 75 “sistema

81
socialista” caracterizado por uma subordinação do interesse individual ao
interesse geral, característica esta completamente antagónica e
incompatível com o actual modele como fiz menção anteriormente, urge a
necessidade da aprovação de um código penal exequível a protecção do
direito de propriedade dos cidadãos contra os criminosos, o que na minha
opinião vai para além da simples punição e relocalização do criminoso com
efeitos preventivos e retributivos de acordo com as teorias clássicas sobre
os fins das penas, o que suscita a seguinte questão de pesquisa: ate que ponto
o direito penal moçambicano é funcional na protecção do direito de
propriedade em geral atentos ao artigo… da CRM?

1. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL

Para melhor compreensão da abordagem em lide, importa fazer uma


breve abordagem sobre os princípios do direito penal com vista a ilustrar o
âmbito do estudo, tendo em conta que o Direito Penal, no seu vasto campo
de atuação, é orientado por princípios que tendem a enveredar a seu fim
último. Nesta ordem de ideias, destaca-se o princípio da intervenção
mínima, os princípios da necessidade e da eficácia, e do carácter subsidiário
do direito penal1.
Portanto os princípios, correspondem, de forma categórica, as normas
de carácter genérico e abstracto que incorporam os valores que
fundamentam a maioria dos sistemas jurídicos mundiais, orientando a
elaboração, interpretação e aplicação de seus preceitos e podendo ser
aplicadas diretamente às relações sociais.

1.1 Os princípios da necessidade e da eficácia

Este princípio assenta na convicção segundo a qual, o Direito penal só


deve intervir, só deve querer aplicar – se, só deve tomar conta de um certo
tipo de atuações ou de actos quando isso for por um lado eficaz e por outro
necessário2.
Ou por outra, só vale a pena, só tem sentido tornar certos atos como
crime, e portanto ameaçá-los com uma pena que pode ser mais ou menos
grave, quando não forem suficientes um outro tipo de medidas. A título de
exemplo, nas medidas civis, medidas administrativas ou até medidas de

1
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, Vol. I, 2ª ed. Revista e Actualizada, AAFDL Editora, Lisboa,
1991, p. 32.
2
Ibidem.

82
política social (como na maioria dos casos acontece). Por outro lado é
necessário, também, que essa incriminação seja eficaz.3
Ora, da interpretação deste princípio não há dúvidas que não basta a
aplicação das penas mais ou menos grave em resposta a um facto ou ato
criminal, mas é necessário que tal medida seja eficaz, sendo na nossa opinião
um dos requisitos de tal eficácia a responsabilização efetiva e pontual do
criminoso, o que passaria necessariamente pela garantia da satisfação das
vítimas nos crimes contra a propriedade no geral.

1.2 O princípio da intervenção mínima

Princípio da intervenção mínima, exatamente, neste sentido, o direito


penal deverá funcionar, ou seja, só deverá intervir, criminalizar, ou criar
crimes, puni-los, quando isso seja absolutamente essencial à sobrevivência
da comunidade4 o que no nosso entendimento a sobrevivência da
comunidade, implica também a proteção do património das pessoas dos
criminosos, através de um direito penal efectivo nesse sentido, dai que nos
crimes contra a propriedade, o mais importante não é a aplicação das penas
de prisão ou a sua conversão em multa, mas antes porém o ressarcimento
das vítimas de tais crimes pelas percas e danos, resultantes dos actos
delituosos.
Quando forem suficientes medidas de outro tipo, sejam elas medidas
da política social, sejam elas medidas administrativas e assim
sucessivamente, o direito penal deve recuar.

1.3 O carácter subsidiário do direito penal

Na senda de Teresa Beleza, a qual subscrevemos, deve ficar o caracter


subsidiário do direito penal - pressupõe que este só deve intervir quando
não há outro remédio por um lado. E por outro lado ele só deverá intervir
na medida em que for capaz de ser eficaz. Se, portanto, uma incriminação
não obtém os fins que se pretendem, também não faz sentido que o direito
penal intervenha em relação a esse tipo de atos5.
Dai que não faz sentido algum que se tratando de um crime contra o
património individual, o Estado de aproprie das medidas coativas, punindo
com penas de prisão para depois convertê-las em multa, na condição de se

3
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, Vol. I, 2ª Edição Revista e Actualizada, AAFDL Editora, Lisboa,
1991, p. 32.
4
Ibidem, p. 35.
5
Ibidem.

83
pagarem as multas, e havendo um pedido cível de indeminização, colocar-se
em segundo plano o pagamento das mesmas, pois na nossa opinião essa
solução não é eficaz sob ponto de vista da satisfação das vítimas.

2. FINS DAS PENAS

Para a melhor clarificação das nossas posições, iremos analisar o fim


das penas, dai que, a nível do Direito Penal a questão que se coloca é a de
saber para que fim se destinam as sanções penais. Antes de mais, importa
referir que as sanções criminais correspondem a uma necessidade de
afirmar certos valores ou bens jurídicos6. No caso dos crimes contra o
património deve sem dívida, com a aplicação das penas garantir-se de certo
modo o pagamento ou reposição directa dos bens subtraídos da esfera
patrimonial das vítimas e não deixar esta questão para o segundo plano, o
que de certa forma põe em causa os princípios do direito penal.
A doutrina avança dois fins, nomeadamente7:
– Fins mediatos;
– Fins Imediatos.

2.1. Fins Mediatos

O Direito Penal sendo um ramo de direito, produzido pelo Estado, este


servirá em última análise, para prosseguir os fins desse mesmo Estado8.
Desde logo, verifica – se que os fins mediatos são aqueles que em última
análise o Direito Penal visa alcançar. Assim, os fins imediatos são aqueles
que relacionam os fins das penas com os fins do Estado9.

2.2. Fins Imediatos

Os fins imediatos serão aqueles meios que, sendo utilizados,


permitiriam atingir os fins longínquos, que seriam no fundo os fins do
Estado,10 onde faz parte a satisfação das pessoas não só com a garantia da
proteção dos seus bens, mas também com a garantia de que de um e doutra
forma os seus bens ou património será imediatamente devolvido a sua
esfera patrimonial sempre que necessário e possível, atentos ao princípio

6
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, Vol. I, Edições Almedina, Coimbra, 2008, p. 39.
7
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, Vol. I, 2ª Edição Revista e Actualizada, AAFDL Editora, Lisboa,
p. 270.
8
Esses fins do Estado são a Justiça, Segurança e bem-estar comum.
9
BELEZA, Teresa Pizarro, op. cit., p. 271.
10
Idem p. 272.

84
constitucional segundo o qual o Estado reconhece e garante aos cidadãos o
direito de propriedade privada.
Nesta ordem de ideias, a doutrina dominante tem discutido algumas
teorias que efectivamente tendem a procurar respondem os fins imediatos
das penas.
Assim, podem distinguir-se as teorias absolutas e relativas.

2.2.1. Teorias absolutas

Segundo esta teoria a reacção criminal é uma pura exigência de


justiça, correspondente a uma necessidade absoluta de afirmação, existente
em si e por si. Assim, a reacção criminal deriva de uma exigência da própria
violação11.

2.2.2. Teorias relativas

Segundo esta teoria, a reacção criminal tem em vista proteger certos


interesses, conservá-los e defendê-los, tirando a sua razão de ser da
necessidade de evitar que esses interesses venham a ser violados. Assim, a
reacção criminal deriva da necessidade de evitar futuras violações12.

2.2.3. Teorias Mistas

São teorias mistas, aquelas que justamente entendem que o fim ou a


razão de ser da sanção se cumpre ecleticamente, reagindo-se contra o
passado e procurando-se no mesmo tempo evitar futuras violações13. Assim
é possível encontrar as teorias de retribuição e teorias de prevenção.

2.2.4. Teorias de retribuição

A professora Beleza14, refere que a ideia de retribuição significa que


se impõe um mal a alguém que praticou outro mal. Indo na mesma linha, o
autor Eduardo Correia, refere que a teoria da retribuição se traduz na
aplicação de um mal correspondente ao mal praticado, imposta por
imperativos morais, lógicos, dialécticos, religiosos ou sociais. Oque significa

11
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, Vol. I, Edições Almedina, Coimbra, 2008, p. 40.
12
Ibidem.
13
Ibidem.
14
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, Vol. I, 2ª Edição Revista e Actualizada, AAFDL Editora,
Lisboa, 1991, p. 272.

85
que, quem procede mal deve pagar esse mal como é justo, e é justo que sofra
um mal igual ao crime que praticou15.

2.2.5. Teorias da Prevenção

Nas teorias da prevenção, a aplicação da sanção ou a sua ameaça são


simplesmente um modo de prevenir as futuras violações16. A prevenção tem
a ver com a ideia de evitar que as pessoas façam qualquer coisa.
Dentro da prevenção é vulgar distinguir-se a prevenção geral e a
prevenção especial.

– Prevenção Geral: segundo a qual o Direito Penal pretende evitar


que as pessoas em geral cometam crimes17.
– Prevenção Especial: segundo a qual o Direito Penal, ao submeter
um indivíduo a uma sanção por um crime que cometeu, pretende
evitar que esse mesmo indivíduo cometa mais crimes18.

2.3 Posição Adoptada no Ordenamento Jurídico Moçambicano

Fazendo uma análise do artigo 59 do Código Penal, pode-se concluir


que no ordenamento jurídico moçambicano, os fins das penas é tanto a
prevenção geral como a prevenção especial, visto que do preceito que se
encontra disposto no artigo supracitado, a pena visa a repressão, assim
como, protecção dos bens jurídicos, reparação dos danos e a ressocialização
do agente19.

3. PENA DE MULTA

Aponta-se como maior vantagem da pena pecuária, em confronto com


a pena privativa de liberdade, não ser levado o criminoso à prisão por prazo
de curta duração, privando-o do convívio com a família e suas ocupações,
mesmo porque não seria suficiente para a recuperação do sentenciado -
apenas o corromperia e o aviltaria.
Assinala-se, também, que a pena de multa não acarreta despesas ao
Estado e que é útil contra o impulso ao crime nas hipóteses de crime

15
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, Vol. I, Edições Almedina, Coimbra, 2008, p. 41.
16
Ibidem.
17
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito Penal, Vol. I, 2ª Edição Revista e Actualizada, AAFDL, Lisboa, 1991,
p. 272.
18
Ibidem.
19
Cfr. no 1, art. 59 do CP.

86
praticados por cupidez, já que ele atinge o núcleo da motivação do ato
criminoso.
A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da
quantia fixada na sentença e calculada por quantia determinada ou fixada
entre um mínimo e um máximo20.

3.1 Conversão

Não aquinhoado inicialmente com a substituição da pena privativa de


liberdade pela restritiva de direitos, o sentenciado poderá obtê-la durante a
execução por meio da conversão, instituto criado pela lei de Execução Penal.
A conversão somente poderá ser efetuada, porém, quando for aplicada pena
privativa de liberdade não superior a dois anos21.
Procurou-se dinamizar o quadro da execução da pena de tal maneira
que a sanção finalmente cumprida não é, necessariamente, a pena aplicada
na sentença, permitindo-se melhor individualização da sanção penal22.
Prevê-se a possibilidade da conversão nas hipóteses em que, pela
quantidade da pena privativa de liberdade aplicada, não era possível a
substituição quando da sentença. Além de somente poder ser convertida a
pena não superior a dois anos, exige a lei que:

• O condenado a esteja cumprindo em regime aberto;


• Tenha sido cumprido pelo menos um quarto da pena;
• Os antecedentes e a personalidade do condenado indiquem ser a
conversão recomendável

4. DA TUTELA PENAL DA PROPRIEDADE NOS CRIMES CONTRA A


PROPRIEDADE A LUZ DO CÓDIGO PENAL E CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL MOÇAMBICANOS

O código penal vigente prevê os crimes contra a propriedade no geral,


estabelecendo as molduras penais correspondentes a cada tipo de crime que
variam de acordo com o valor do bem jurídico tutelado e da gravidade do
dano.
Segundo CORREIA, a lei penal faz corresponder à realização de cada
crime uma certa pena. A partir dos tipos legais de crime, p. 141

20
Cfr. Artigo 63 et seq. do CP.
21
Cfr. Artigo 72 do CP.
22
MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato, Manual de Direito Penal, volume I, 27ª edição,
Editora Atlas S. A. São Paulo, 2011, p. 272.

87
No nosso entendimento, tal tutela parece mais favorável ao Estado
titular do poder punitivo, bastando que reparemos pela ordem dos
pagamentos, estatuída no artigo 64423 do CPP que passo a citar:
Pelo produto dos bens executados ao devedor os pagamentos são
feitos pela ordem seguinte:

1º As multas
2º Os impostos
3º As custas líquidas a favor do Estado, dos cofres e dos serviços sociais do
Ministério da justiça
4º As restantes custas proporcionalmente e por último, as indeminizações.

Como se pode observar da arrumação da ordem dos pagamentos


supra, não parece justado que o lesado pelo cometimento de um crime
contra o seu património tenha que ser o último a ser pago com a venda dos
bens do executado neste caso o criminoso, oque mostra a necessidade da
revisão do artigo supra citado, de forma a tornar evidente que nos crimes
particulares ou semipúblicos, ou mesmo nos casos de indeminização, deve-
se antes de mais priorizar o pagamento das indeminizações e depois os
demais encargos, pois o não pagamentos destes determina a sua conversão
em prisão efetiva o que não acontece com as indeminizações, ao abrigo do
artigo 640 do CPP, que passo a citar:
Findo o prazo de pagamento da multa ou a sua prorrogação, sem que
o réu efetue o pagamento, proceder-se-á nos seguintes termos:
Número 2 na falta de bens ou condições referidas no número 1, ou
quando se verifique após a execução a insuficiência de bens, será a multa
convertida em prisão (…).
Nas palavras de Luiz Régis Prado, a justificação da pena envolve a
prevenção geral e especial, bem como a reafirmação da ordem jurídica, sem
exclusivismos. Não importa exatamente a ordem de sucessão ou de
importância24.
Ainda nas palavras do autor supracitado, o que deve ficar patente é
que a pena é uma necessidade social - ultima ratio legis, mas também
indispensável para a real proteção de bens jurídicos, missão primordial do
direito penal.
De igual modo, deve ser a pena, sobretudo em um Estado
constitucional e democrático, sempre justa e necessária, inarredavelmente

23
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Decreto no 19271/1931 de 24 de janeiro, (declara em vigor o
Código de Processo Penal) in BR.
24
Prado, Luiz Régis, Teoria dos fins da pena: Breves Reflexões, in revista dos Tribunais online, p. 8.

88
adstrita à culpabilidade (princípio e categoria dogmática) do autor do fato
punível.
Ainda que necessária para justificar a pena, não é bastante a ideia de
prevenção geral para limitá-la no contexto de um direito penal mínimo e
garantista.
O que resta claramente evidenciado numa análise sobre a teoria da
pena é que sua essência não pode ser reduzida a um único ponto de vista,
com exclusão pura e simples dos outros, ou seja, seu fundamento contém
realidade altamente complexa25.
Em jeito de conclusão, concluímos que o direito penal vai para alem
da efetivação dos fins das penas tradicionalmente estatuídos, devendo ser
compreendido de forma mais ampla de modo a garantir os fis imediatos do
Estado, nos casos em que se verifiquem actos que atentem contra o direito
de propriedade devendo se colocar em primeiro plano o ressarcimento das
vitimas de tal conduta, e em segundo plano o pagamento das multas e outros
encargos judiciais que beneficiam unicamente ao estado, não se devendo
preterir com isso o bem estar das pessoas ao aceder a justiça penal, através
da reposição igual ou equiparada dos seus bens perecidos com a ocorrência
do acto criminal.

BIBLIOGRAFIA

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei número 24/2019 de 24 de dezembro – Código Penal


in Boletim da República, I serie número 248 de 24 de dezembro.
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal, Vol. I, Edições Almedina, Coimbra, 2008 BELEZA.
Teresa Pizarro, Direito Penal, Vol. I, 2ª Edição Revista e Actualizada, AAFDL, Lisboa,
1991.
MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato, Manual de Direito Penal, volume I, 27ª
edição, Editora Atlas S. A. São Paulo, 2011.
Prado, Luiz Régis, Teoria dos fins da pena: Breves Reflexões, in revista dos Tribunais
online.

25
Prado, Luiz Régis, Teoria dos fins da pena: Breves Reflexões, in revista dos Tribunais online, p. 8.

89
O CRIME E AS TECNOLÓGIAS DE INFORMAÇÃO
E COMUNICAÇÃO: CRIMES INFORMÁTICOS

GABRIEL DESEJADO
GABRIEL MEPINA*

INTRODUÇÃO

O surgimento das tecnologias de informação trouxe consigo inúmeros


enormes benefícios a humanidade, o que fez com que se encurta a distância
entre as pessoas e, introduzindo uma nova era em todos os campos da vida
quotidiana. Com a génese do computador e da internet foram os grandes
ganhos que a humanidade teve, por que hoje a maior da população senão
quase toda vivemos com recursos as tecnologias de informação e
comunicação.
Todavia, a nova tecnologia trouxe também consigo novos tipos de
condutas que precisam merecer outro tipo de tratamento pelo legislador. Ou
por outra, legislador viu-se na obrigação de incorporar na legislação penal
certos comportamentos que se colocam que em risco as vantagens que as
novas tecnologias de informação e comunicação trouxeram a humanidade.
Apesar do nosso país ainda não estar preparado para fazer face a esses
novos ilícitos, sobretudo por não possuir uma legislação especifica para a
matéria dos crimes cibernéticos, teve o cuidado de integrar no Código Penal
moçambicano, certas condutas como ilícitas e como tal sujeitas a sanção
penal.
Pretendemos analisar em que medida o uso das Novas Tecnologias de
Informação e Comunicação, dão azo há comportamentos ilícitos e de
condutas típicas, antijurídicas e culpáveis contra ou praticadas com a

*
Doutorando em Direito Público e Docente Universitário, Advogados e Consultor.

91
utilização dos sistemas da informática. A partir dai, pretendemos fazer uma
análise para compreender em que medida o ordenamento jurídico-penal
moçambicano regula, de forma a disciplinar condutas antijurídicas,
resultantes do uso das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação. Por
outro lado, a pretensão é também de verificar que instrumentos específicos
o legislador penal moçambicano optou como meios de prevenção e sanção,
nos casos em que haja lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico
determinado. Sabendo que o bem jurídico protegido ou tutelado pelo direito
penal é a inviabilidade das informações armazenadas processadas em
computadores – os dados – de forma a se garantir a privacidade e a
integridades dos dados informáticos.
Para a concretização desta abordagem foi pertinente a base
bibliográfica e no uso dos métodos documentais e jurídicos. Como estrutura
deste artigo, partimos de uma revisão bibliográfica, começando pela
apresentação de conceitos sobre o direito penal, uma vez que objectivo
principal do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da
cominação, aplicação e execução da pena. Dai abordar a questão do crime e
criminalidade; as Novas Tecnologias e Informação e Comunicação e
relacionar aos crimes cibernéticos. Na segunda parte reserva-se a discussão
prática sobre os crimes cibernéticos/informáticos face a ordem jurídico-
penal moçambicana.

1. CRIME E CRIMINALIDADE

a) Crime

O Direito pretende realizar a justiça, que se distingue em justiça


comutativa, distributiva e legal1. Nesta senda de ideia, a justiça comutativa
encontra-se nas esferas das relações entre os homens numa determinada
sociedade mantendo relações uns com os outros. Relativamente a justiça
distributiva tem como a base a obrigação do Estado assegurar o bem comum
de todos e de cada um dos cidadãos. E na justiça legal pressupõe-se que cada
qual está em relação com todo dever de respeitar o bem comum a todos, que
o Direito define. Dai resulta uma tutela ou defesa de interesse,
regulamentado pelo direito penal, este concebido como a teorização das
diferentes categorias ou elementos constitutivos da infração criminal, e das

1
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Lições de Direito Penal. Parte geral. Edições Almedina, AS, Coimbra,
2010.

92
diferentes espécies de consequências jurídicas de um crime2, que se se
circunscrevem fundamentalmente sobre as reacções ou sanções que ao
crime se encontram juridicamente ligadas3.
Segundo os dizeres do CARVALHO4, “a teorização dos elementos
constitutivos da infracção que se traduz numa desconstrução-construção
analítico-conceitual e sistemática do comportamento criminal, deve ser
orientada e dinamizada pelos princípios da política criminal e apoiada nos
resultados empíricos da investigação criminológica. Daqui podemos
concluir que este ensinamento é resultado da correcção da actual
consideração do direito penal ou dogmática penal como “sistema penal
aberto”.
Em consonância com TERESA BELEZA, há que distinguir a definição
formal e material do crime. Por isso, a autora nos ensina que, o crime “é uma
acção típica, ilícita e culposa5. Aqui constatamos que estamos diante a
definição de crime de carácter formal, donde se pode ilidir que para se
definir crime, formalmente, é condição que o agente realiza a conduta
descrita na lei. A definição formal de crime está vinculada ao princípio da
legalidade “nullum crimen nulla poena”. Decerto, o Crime é uma conduta, seja
ela acção ou omissão, desde que seja contrária ao Direito e que a lei atribui
uma pena.
Ainda, na tentativa de trazer a definição substancial do crime, avança
na perspectiva de que “o direito penal funcionará para impedir que as
pessoas façam alguma coisa que é considerada nociva a uma certa
sociedade”6. Partindo desta premissa, por um lado, acentua o crime como
resultado do facto ofensivo a bens jurídicos relevantes dentro de uma
sociedade. Por outro lado, pode-se entender que o crime, na definição
material ou substancial realça seu aspecto danoso e o descreve como lesão
ou perigo de lesão ao bem jurídico. Nesta senda, o crime é uma conduta
resultante de uma lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido pelo
direito.

2
CARVALHO, Américo Taipa de. Direito Penal -Parte Gera. Questões Fundamentais. Teoria geral do
Crime. 2ª ed., reimpressão. Coimbra Editora, Lisboa. 2011, p. 11.
3
DIAS (2011). Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do crime. 3ª
Reimpressão. Coimbra Editora, Lisboa. p. 39.
4
DIAS, Jorge Figueiredo, op. cit., p. 14.
5
BELEZA (1998), Teresa Pizarro. Direito Penal. 1º Volume. 2ª ed. Revista e Actualizada. AAFDL.
Lisboa. p.p. 36-37.
6
BELEZA (1998), Teresa Pizarro, op. cit., p. 37.

93
No entender do CIRINO DOS SANTOS7, o discurso jurídico sobre
crime, construído com base na legislação penal do Estado, tem por objectivo
imputar penas (ou medidas de segurança) aos autores de factos definidos
como crime, conforme princípios de interpretação e de aplicação concreta
da lei penal (legalidade, culpabilidade, proporcionalidade etc.)
Ainda na senda do seu artigo, avança mais na perspectiva de que o
discurso da teoria do crime é representado pela definição analítica (ou
operacional) de facto punível, configurada nas categorias elementares de
tipo de injusto e de culpabilidade. Na primeira categoria, diz que “o tipo de
injusto define o objecto de imputação do discurso jurídico do crime,
demonstrando que imputamos ao autor como crime doloso ou como crime
imprudente, realizado por acção ou por omissão de acção”8. Nesse sentido,
o autor, supra referenciado o, argumenta que o tipo de injusto é formado por
uma acção típica e antijurídica concreta, estruturada pela dimensão
objectiva (causa e imputação do resultado) e pela dimensão subjectiva (dolo
ou imprudência) dos comportamentos humanos típicos, realizados ou
omitidos sem justificação pelo autor; em posição excludente aparecem as
justificações (a legítima defesa, o estado de necessidade etc.), cuja presença
desfaz o tipo de injusto.
Na segunda categoria elementar, na óptica do mesmo autor que temos
vindo a citar, temos a culpabilidade que define o fundamento da imputação
do discurso jurídico, indicando por que imputamos ao autor o tipo de
injusto, demonstrado pelas categorias (a) da imputabilidade (o sujeito é
capaz de saber e de controlar o que faz), excluída ou reduzida em situações
de menoridade ou de doença mental, (b) da consciência do injusto (o sujeito
sabe, realmente, o que faz), excluída ou reduzida em situações de erro de
proibição e (c) da inexigibilidade de comportamento diverso (o sujeito tem
o poder de não fazer o que faz), excluída ou reduzida em situações de
exclusão legais e supralegais9.
Buscando ainda os ensinamentos do CIRINO, aferimos que o crime é
toda conduta típica, antijurídica ou ilícita e culpável, praticada por um ser
humano. A partir do conceito material, podemos sustentar que crime é uma
acção ou omissão que se proíbe e se procura evitar, ameaçando-a com pena,
porque constitui ofensa (dano ou perigo) a um bem jurídico que pode ser
individual ou colectivo.

7
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. OS DISCURSOS SOBRE CRIME E CRIMINALIDADE, p. 2-3.
Disponível em: http://icpc.org.br/wp-content/uploads/2012/05/os_discursos_sobre_crime_e_criminali
dade .pdf. Acessado em: 16 jul. 2017.
8
CIRINO DOS SANTOS, Juarez, op. cit., p. 22.
9
Ibidem, p. 3.

94
Contudo, podemos ilidir que a teoria finalística do crime é a mais
aceitável pela maioria dos doutrinários. Assim sendo, não há dúvidas que a
culpabilidade faz parte do conceito de crime, por ser apenas pressuposto
para aplicação da pena. Isto ocorre pelo de facto de que a culpabilidade não
irá afectar a existência ou não de um crime e sim apenas influir na integração
de uma pena.

b) Criminalidade

De acordo com MUBARAK10, os estudos sobre as causas da


criminalidade têm-se desenvolvidos em duas direcções: naquela das
motivações individuais e na dos processos que levariam as pessoas a se
tornarem criminosas. O autor avança ainda na predisposição de que uma
teoria que explique o comportamento social, em particular as acções
criminosas, deveria levar em conta pelo menos dois aspectos: a) a
compreensão das motivações e do comportamento individual; e b) a
epidemiologia associada, ou como tais comportamentos se distribuem e se
deslocam espacial e temporalmente11
Para CANO e SOARES (2002)12, é possível distinguir as causas de
crime em cinco grupos de teorias:

1º - Teorias que explicam as causas de crime em termos de patologia


individual; segundo esta teoria, haveria disfunções ou desvios de
características de criminoso em relação a de não criminoso na predisposição
de que a criminalidade se constituiria numa espécie de ajustamento de
problemas mentais ou biológicos que o individuo teria conectado aos outros
problemas derivados de relacionamentos sociais.
2º - Teorias centradas no Homo Economicus, isto é, o crime como uma
actividade racional de maximização do lucro.
3º - Teorias que consideram o crime como subproduto de um sistema
social perverso ou deficiente;
4º - Teorias que consideram o crime como consequência de perda de
controlo e da desorganização social na sociedade moderna; e
5º - Correntes que defendem explicações do crime em função de
“factores situacionais ou de oportunidades”13

10
MUBARAK. Rizuane. Direito Penal e Criminalística: Da Teoria Universal ã Realidade Nacional.
Escolar Editora. 2015, pp. 49-50, 416.
11
Ibidem, op. cit., p. 49.
12
Ibidem, op. cit., p. 50.
13
Ibidem, op. cit., p. 50.

95
CIRINO DOS SANTOS, diz que “o discurso da explicação da
criminalidade foi construído pelo método positivista das ciências naturais,
nas variantes biológica (LOMBROSO) e sociológica (FERRI), que pretende
substituir o Direito Penal como discurso oficial de imputação de factos
antissociais. Após o célebre confronto histórico das chamadas Escolas
Penais na virada para o século XX, a Criminologia positivista assume uma
posição subalterna de ciência auxiliar do Direito Penal” – por exemplo, como
propõe14 na Moderna Escola do Direito Penal orientada pelo fim: “intimidar
o autor ocasional, corrigir o corrigível e neutralizar o incorrigível”.
Ainda CIRINO DOS SANTOS avança com alegações de que a sociedade
é sempre mais rica do que supõem os discursos oficiais de controlo social: a
pesquisa histórica mostra a construção paralela de dois discursos
criminológicos antagônicos, com teorias sociais opostas, com objectos de
estudo diferentes e diversos métodos de estudo do objecto, assim definíveis:
a) a Criminologia tradicional, com um discurso etiológico sobre
criminalidade, sempre no papel de ciência auxiliar do Direito Penal; b) a
Criminologia crítica, com um discurso político sobre criminalização, no
papel de ciência crítica do Direito Penal, do Sistema de Justiça Criminal e das
desigualdades sociais da relação capital/trabalho assalariado.

1.3. AS NOVAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

A definição de tecnologias de informação surge enquanto “conjunto


de conhecimentos, reflectidos quer em equipamentos e programas, quer na
sua criação e utilização a nível pessoal e empresarial”15. Neste sentido, um
dos elementos caracterizadores das tecnologias de informação e
comunicação de acordo com o professor SOUSA, consiste no facto de um
único eletrónico aguentar todo o tipo de informação possível de digitar, o
que inclui desde os “tradicionais” documentos de texto, a análises
matemáticas e financeiras, passando por imagens, áudio e vídeo.
Portanto, importa-nos falar das novas Tecnologias de Informação e
Comunicação e não exatamente das TICs. Nisso, porque são chamadas Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC)?
Para responder a esta pergunta, recorremo-nos ao GRISPIM, que
esclarece que as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC),
abrangem, o Hardware (no presente caso aplicado aos Computadores), as
Tecnologias associadas às Redes de Comunicação, as Linguagens de

14
CIRINO DOS SANTOS, Juarez, op. cit., p. 8.
15
SOUSA, Sérgio. Tecnologias de Informação. O que são? Para que servem? 6ª ed. Actualizada. Editora
de Informática, p. 1-2.

96
Programação, as Bases de Dados, as diferentes aplicações (software) e
tecnologias similares. Enquanto o autor avança explanando que
as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) são um conjunto de
recursos tecnológicos integrados entre si, que proporcionam, por meio das
funções tecnológicas, a simplificação da comunicação nos processos de
negócios, da pesquisa científica, de ensino e aprendizagem. Correspondem a
todas as tecnologias que interferem e medeiam os processos informacionais
e comunicativos dos seres. Como tal, estas podem ser ou não baseadas em
computadores ou em tecnologias actuais16.
Desta feita as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação
(NTIC) são “as tecnologias e métodos para comunicar surgidas no contexto
da Revolução Informacional, Revolução Telemática ou Terceira Revolução
Industrial, desenvolvidas gradativamente desde a segunda metade da
década de 1970 e, principalmente, a partir de 1990”17. Em conformidade
com o autor, as NTIC caracterizam-se por agilizar, horizontalizar e tornar
menos palpável (fisicamente manipulável) o conteúdo da comunicação, por
meio da digitalização e da comunicação em redes de telecomunicações e
similares, para a captação, transmissão e distribuição de informação
multimédia (texto, imagem, vídeo e som). Considera-se que o advento destas
novas tecnologias possibilitou a emergência da sociedade da informação18.
Neste contexto, concluímos que as TIC´s existem desde a origem da
humanidade, que foi inventada a escrita e se organizou e espalhou-se a
informação permitindo o contacto entre as diversas civilizações. Assim, as
NTIC são baseadas em computadores e similares, não podendo de bom tom
denominá-las de TIC, pois estas tecnologias são Novas e inovadoras e têm
poucas semelhanças com as anteriores.

1.4. INFORMÁTICOS

Nos dias de hoje há uma tendência de aumento de número cada vez


maior de actividades criminosas, servindo-se dos avanços da tecnologia da
informação e da máquina como instrumento, seja para obter informações de
forma ilegal, como também para atacar redes corporativas, realizar fraudes,
transmitir vírus ou pornografia infantil. Esta modalidade de crime é
chamada de crime cibernético (cyber crime)19. A par disto, computador pode

16
CRISPIM (2013), José JR, Conceitos Fundamentais - TIC vs NTIC – artigos, disponível no http://www.
jose-crispim.pt/artigos/conceitos/conc_art/01_tic_ntic.html.
17
Ibidem.
18
Ibidem.
19
MUBARAK. Rizuane. Direito Penal e Criminalística: Da Teoria Universal à Realidade Nacional.
Escolar Editora. 2015, p. 416.

97
conter evidências de outros crimes além daqueles cometidos no espaço
cibernético20. A partir daqui fica claro que o computador deixou de ser
utilizado como recurso tecnológico que proporcionar, por meio das funções
tecnológicas, a simplificação da comunicação nos processos de negócios, da
pesquisa científica, de ensino e aprendizagem, mas servindo-se dele como
instrumento do referido crime. O computador é utilizado como arma fácil do
crime devido a maior dependência hoje das pessoas com relação às
tecnologias de informação e comunicação.
E neste raciocínio que “no cenário dos avanços tecnológicos na área
da informática, surgiram os denominados crimes cibernéticos, que também
são designados de informática, crimes tecnológicos, crimes virtuais, crimes
informáticos, delitos computacionais, crimes digitais, crimes virtuais, crimes
cometidos por meio eletrónico, entre outros. Os crimes cibernéticos
correspondem a todas as condutas cometidas com o uso de tecnologia”.21
Os autores afirmam ainda que o crime de informática é aquele
praticado contra o sistema de informática ou através deste, compreendendo
os crimes praticados contra o computador e seus acessórios e os
perpetrados através do computador. Inclui-se neste conceito os delitos
praticados através da internet, pois pressuposto para a cessar a rede é a
utilização do computador22.
ROSA, define o crime de informática traz um como senso “a conduta
atente contra o estado natural dos dados e recursos oferecidos por um
sistema de processamento de dados e, seja pela compilação, armazenamento
ou transmissão de dados, na sua forma, compreendida pelos elementos que
compõem um sistema de tratamento, transmissão ou armazenagem de
dados, ou seja, ainda, na forma mais rudimentar”23.Na mesma senda ROSA
(2002), argumenta que nos crimes de informática, a acção típica se realiza
contra ou pela utilização de processamento automático de dados ou a sua
transmissão, ou seja a utilização de um sistema de informática para atentar
contra um bem ou interesse juridicamente protegido, pertença ele à ordem
económica, à integridade corporal, à privacidade, à honra, ao património
público ou privado, à administração pública24, etc.

20
Ibidem.
21
MENDES, Maria Eugenia Gonçalves e VIEIRA, Natália Borges, Os crimes Cibernéticos no
Ordenamento Jurídico Brasileiro e a Necessidade de Legislação Específica, disponível no
http://www.gcpadvogados.com.br/artigos/os-crimes-ciberneticos-no-ordenamento-juridico-brasileiro-e-
a-necessidade-de-legislacao-especifica-2.
22
Ibidem, p. 417.
23
SCHMIDT, Guilherme, Crimes CIBERNÉTICOS, disponível no file https://gschmidtadv.jusbrasil.com
.br/artigos/149726370/crimes-ciberneticos.
24
Ibidem, p. 54.

98
Para o professor ROQUE, os crimes cibernéticos são “toda conduta,
definida em lei como crime, em que o computador tiver sido utilizado como
instrumento de sua perpetração ou consistir em seu objecto material”25. Na
ideia baseada na Convenção sobre o Cibercrime de Budapeste (2001),
CASTRO, Carla Rodrigues ensina que “os crimes de informática são aqueles
perpetrados através dos computadores, contra os mesmos, ou através
dele. A maioria dos crimes são praticados através da internet, e o meio
usualmente utilizado é o computador”26.
Portanto, partindo dos conceitos abordados, podemos concluir que os
crimes cibernéticos são todas as condutas típicas, antijurídicas e culpáveis
contra ou praticadas com a utilização dos sistemas da informática. E para a
prática desses crimes, o computador é o principal meio. Contudo, há uma
necessidade de compreender, tendo em atenção a ocorrência desses ilícitos
no âmbito cibernético, como as evidências de um crime podem ser obtidas
através de um computador.

1.4.1. CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES INFORMÁTICOS/CIBERNÉTICOS

Segundo o SCHMIDT27 as classificações existentes para os crimes


cibernéticos não são eficazes, devido à dinâmica dos computadores e da
Internet. A evolução proporcionada por eles é muito grande, assim como
as novas formas delitivas que vão surgindo. Dessa maneira, as
classificações se tornam obsoletas em pouco tempo, como tenta alude
SCHMIDT. Entretanto, o autor avança que há duas classificações mais
presentes na doutrina. Crimes cibernéticos puros, mistos e comuns e
crimes cibernéticos próprios e impróprios.

1.4.1.1. Crimes Informáticos/Cibernéticos Puros, Mistos e Comuns

Crimes cibernéticos puros podem ser definidos como "toda e


qualquer conduta ilícita que tenha por objectivo exclusivo o sistema de
computador, seja pelo atentado físico ou técnico do equipamento e seus
componentes, inclusive dados e sistemas" 28. O agente objectiva atingir o
computador, o sistema de informática ou os dados e as informações neles
utilizados. É aqui que entram as condutas de praticadas por hackers, que

25
Ibidem, p. 9.
26
SCHMIDT, Guilherme, Crimes CIBERNÉTICOS, disponível no file https://gschmidtadv.jusbrasil.com
.br/artigos/149726370/crimes-ciberneticos.
27
Ibidem, p. 123.
28
Ibidem.

99
são pessoas com amplo conhecimento informático, utilizado para invadir
ou prejudicar servidores e sistemas. Muitas vezes sem nenhuma razão
aparente.
Já os crimes cibernéticos mistos “são aqueles em que o uso da
internet ou sistema informático é condition sine qua non para a efectivação
da conduta, embora o bem jurídico visado seja diverso ao informático” 29.
O agente não visa o sistema de informática e seus componentes, mas a
informática é instrumento indispensável para consumação da acção
criminosa. Ocorre, por exemplo, segundo o autor, nas transferências
ilícitas de valores em uma home banking.
Os crimes cibernéticos comuns, portanto, são aqueles que utilizam
a Internet apenas como instrumento para a realização de um delito já
tipificado pela lei penal. A Rede Mundial de Computadores, acaba por ser
apenas mais um meio para a realização de uma conduta delituosa. Se antes,
por exemplo, a pornografia infantil era instrumentalizada através de
vídeos e fotografias, hodiernamente, se dá através das home-pages.
Mudou-se a forma, mas a essência do crime permanece a mesma.

1.4.1.2. Crimes Informáticos/Cibernéticos Próprios e Impróprio

Nessa classificação os crimes próprios são aqueles que em que o


sistema informático do sujeito passivo é o objecto e o meio do crime. “São
aqueles em que o bem jurídico protegido pela norma penal é a
inviolabilidade das informações automatizadas (dados) 30. O autor indica
que entrariam as condutas praticadas por hackers, tanto de invasão de
sistemas quanto de modificar, alterar, inserir dados falsos, ou seja, que
atinjam diretamente o software ou hardware do computador e só podem
ser concretizados pelo comutador ou contra ele e seus periféricos.
Os crimes cibernéticos impróprios seriam aqueles que atingem um
bem jurídico comum, como o patrimônio, e utilizam dos sistemas
informáticos apenas como animus operandi, ou seja, um novo meio de
execução.
Existe inúmeras dificuldade em se reconhecer os crimes
cibernéticos impróprios praticados contra o património, por não se
reconhecer na informação armazenada um bem material, mas sim

29
PINHEIRO, Reginaldo César. Os cybercrimes na esfera jurídica brasileira. In: Revista Eletrônica Jus
Navigandi. Disponível no Site: http://jus.com.br/revista/texto/1830/os-cybercrimes-na-esfera-juridica
-brasileira.
30
SCHMIDT, Guilherme, Crimes CIBERNÉTICOS, disponível no file https://gschmidtadv.jusbrasil.com
.br/artigos/149726370/crimes-ciberneticos, p. 13-26.

100
imaterial, insuscetível de apreensão como objecto. Entretanto, conforme
explica SILVA:

“a informação neste caso, por se tratar de patrimônio, refere-se a bem


material, apenas grafado por meio de bits, suscetível, portanto, de
subtração. Assim, acções como alteração de dados referentes ao
patrimônio, como a supressão de quantia de uma conta bancária,
pertencem à esfera dos crimes contra o patrimônio”. (2003, p. 97 apud
SCHMIDT).

Neste raciocínio os crimes cibernéticos, produzem um resultado


naturalístico, que ofende o espaço físico, o espaço “real”, atingindo bem
jurídico diverso do sistema informático.

2. OS CRIMES CIBERNÉTICOS/INFORMÁTICOS FACE A ORDEM JURÍDICO


PENAL MOÇAMBICANA

O grande cenário da história humana moderna cinge-se na invenção e


no aperfeiçoamento das novas tecnologias surgidas no período pós-
industrial que impulsionaram o desenvolvimento de instrumentos que
implodiram a realidade humana até então existente. O factor que
desencadeou esta transformação foi o surgimento de uma nova tecnologia:
a tecnologia da informação. (NETO).
Hoje os sistemas eletrónicos, para além de permitir o intercâmbio de
dados e informações que concretizam desde relacionamentos entre as
pessoas até acordos comerciais envolvendo movimentações financeiras
vultosas, criaram novos tipos de delitos, que são os crimes cibernéticos.
Porém, recorrendo na análise conceitual, trazemos aspectos comuns em
relação ao conceito do crime cibernético.
Para discutir esses crimes no ordenamento jurídico-penal, é essencial
ter em conta alguns elementos do próprio crime: autoria e materialização do
próprio acto delituoso.

2.1. Da autoria do crime

Um dos grandes problemas a ser enfrentado nos crimes


cibernéticos é a determinação da autoria. Dificilmente a pessoa que
pretende cometer uma infracção penal utiliza sua identificação pessoal
real. Há casos em que o criminoso, se faz passar por outra pessoa, mediante
o uso indevido de suas senhas pessoais. E nas redes de computadores, não
é possível identificar o usuário visualmente ou através de documentos,

101
mas é possível identificar o endereço da máquina que envia as informações
à rede. Ou seja, o IP da máquina. É Nessa perspectiva que:

“a quebra do sigilo dos dados de conexão de usuário, trata-se


somente da disponibilização por parte das empresas, em um primeiro
momento, de qual teria sido o IP utilizado e o horário (incluindo
informações de fuso horário) de determinada acção criminosa
realizada em um serviço de Internet, como redes sociais, contas de e-
mail, programas de mensagens instantâneas, dentre outros e em um
segundo momento das informações do usuário que efectivamente
utilizou aquele IP de determinado provedor, ou seja, qual teria sido,
supostamente, o endereço físico no “mundo real” em que o
computador ou outro equipamento informático com acesso à Internet
estaria instalado no momento da conduta criminosa” (ZACCARIAS,
2009, p. 25).

Ainda na análise da questão da autoria, o GRECO questiona: “Como


identificar o agente? Para termos uma ideia das dificuldades e da
complexidade que o tema dos controlos assume, por exemplo, na Internet,
basta mencionar que podem existir serviços que poderiam ser denominados
de “serviço de máscara”. Para o autor, a questão tem a ver com o problema
de armazenamento dos logs de acesso. Indo na nossa legislação Penal,
podemos conferir que não existe nenhuma previsão de por quanto tempo os
servidores devem armazenar essas informações31.

2.2. Materialização do crime Informáticos.

De modo geral, pode-se dizer que as evidências dos crimes


cibernéticos são extremamente voláteis. Podem ser apagadas em segundos
ou perdidas facilmente. Além disso, possuem formato complexo e costumam
estar misturadas a uma grande quantidade de dados legítimos, demandando
uma análise apurada pelos técnicos e peritos que participam da persecução
penal. (NETO).
O GRECO avança mais acentuando que muitas vezes, para a devida
comprovação da materialização do delito se faz necessária a interceptação
do fluxo de comunicações realizadas através de um computador. Tais
interceptações, como exposto acima, somente podem ser feitas mediante
autorização judicial.
A maioria dos crimes cibernéticos exige perícia para sua perfeita
prova. Uma vez identificado o endereço real do criminoso, e determinada a

31
ZACCARIAS (2009), Inellas Gabriel Cesar de. Crimes na Internet. 2ª edição, p. 117. Disponível em
https://www.estantevirtual.com.br/gabrielcesar-zaccaria-de-inellas/crimes-na internet/1750000007

102
busca e a preensão de seu computador e quaisquer Mídias que possam
conter indícios da materialização será procedido o exame de corpo de delito,
que é “o conjunto de diligências destinadas à instrução do processo, com a
excepção da instrução contraditória”. (art. 170º do CPP).
De acordo com o professor COSTA, “as evidências dos crimes
cibernéticos, em um computador, podem ser classificadas como evidências
do usuário e evidências do sistema”. O autor esclarece que as evidências do
usuário são aquelas produzidas pelo próprio sujeito activo, em arquivos de
texto, imagem ou qualquer outro tipo. Já as evidências do sistema são as
produzidas pelo sistema operacional, em função da acção do sujeito activo32.
Contudo, podemos aferir que a prática de crimes cibernéticos não é
sinónimo de impunidade, uma vez que os dois elementos que compõem o
crime, a autoria e a materialização, são passíveis de comprovação por meio
de investigação criminal. A questão central será de olhar pela capacidade
que a esfera penal moçambicana, com os impactos dos avanços tecnológicos,
pode fazer face a esses crimes, isto é, a capacidade de investigar esses crimes
que se mostram cada vez mais frequentes, para assim reduzi-los.

3. INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE PREVENÇÃO DOS CRIMES


CIBERNÉTICOS NO ESPAÇO VIRTUAL MOÇAMBICANO

O código penal aprovado pela Lei n° 24/2019 de 24 de dezembro,


abordado os crimes informáticos nos artigos 336 (falsidade Informática),
337 (Interferências de dados), 338 (Interferências de sistemas) 339 (Uso
abusivo de dispositivos) e ss. Portanto não são muitos claros sobre outras
formas de prática destes crimes.
A par do Código Penal supra referenciado, esta a (Lei das Transacções
Electrónicas) que “estabelece princípios, normas gerais e o regime jurídico
das Transacções Electrónicas e geral, do comércio eletrónico em particular,
visando garantir a protecção e utilização das tecnologias de informação e
comunicação” (art. 1º).
A Lei das Transacções Electrónicas estabelece os preceitos que vão
permitir a prática de actos, respeitando as liberdades e direitos de todos os
intervenientes, desde o registo do domínio, provedor de serviços, prática do
comércio electrónico e a protecção do consumidor. Igualmente fala também
sobre o funcionamento do Governo Electrónico, protecção de dados

32
COSTA, Marcelo António Sampaio Lemos. Computação Forense, p. 26, disponível em
www.estantevirtual.com.br/b/marcelo-sampaio-lemos-costa/computação-forense/593469987

103
electrónicos pessoais, fiscalização e estabelece o sistema de certificação
digital e criptografia.
A criptografia é um “conjunto de técnicas que transformam
informação inteligível em algo que um agente externo seja incapaz de
compreender. Funciona como código que impede que um criminoso consiga
interceptar”. (art. 57º da Lei nº 3/2017 de 9 de janeiro – Glossário).
Relativamente a mesma matéria, está prevista a Lei nº 4/2016 de 3 de
junho (Lei das Telecomunicações), que define as bases gerais do sector das
telecomunicações, por forma a manter o mercado liberalizado num
ambiente de concorrência e de convergência de redes e serviços. Ainda
regula matérias relativas ao sigilo, Fraudes, Sistemas de Interceptação Legal
e Gateway.
Um outro Regime Jurídico, no quadro da prevenção às invasões
cibernéticas, é o decreto nº 18/2015, de 28 de agosto (Regulamento de
Registo de Activação dos Módulos de Identificação dos Subscritor de
Telefonia Móvel (cartões SIM).
Portanto, apesar de já existir algumas dessas normas que tratem da
matéria e da aplicação da legislação existente, o ordenamento jurídico
moçambicano ainda não se mostra eficaz para proteger as pessoas que
utilizam os meios tecnológicos, como computadores, internet, etc., por faltar
uma lei específica que regule a matéria. No mesmo raciocínio o Estado não
apresenta meios para punir todas as condutas criminosas que ocorrem no
cenário virtual. Portanto, Moçambique continua sendo um território próprio
para a prática dos mais variados crimes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir o tema abordado, é de referir que é um tema novo e de


grande repercussão nos dias de hoje e, principalmente, no ordenamento
jurídico moçambicano. Nisso os crimes cibernéticos fazem com que haja
insegurança virtual e isso leva a necessidade de uma tutela pelo Estado,
tendo em atenção de que se trata de tipos novos em que o bem jurídico
tutelado é a informática. Por isso, Moçambique tem muitos desafios para
fazer face aos crimes cibernéticos, por não possuir uma legislação específica
para disciplinar esses delitos, visto que o espaço virtual é decorrente de
avanços tecnológicos, do uso da internet e dos meios informáticos no dia-a-
dia, e consequentemente da propagação de crimes relacionados a esse
cenário.
Podemos concluir ainda, que os instrumentos jurídicos de prevenção
dos crimes cibernéticos no nosso ordenamento jurídico moçambicano, não

104
são suficientes, olhando pela natureza dos ilícitos, o que poderá pôr em
causa a impunidade pela prática dos crimes cibernéticos.
Apesar das tomadas algumas medidas, como a criação de normas que
regulam algumas dessas condutas criminosas que ocorrem no meio virtual,
apesar, também, da aplicação do Código Penal para alguns crimes
cibernéticos, é necessária uma legislação específica que englobe com
eficiência todas essas condutas, até porque não temos um procedimento
processual específico, previsto no nosso Código Processo Penal relativo a
este tipo de crimes,
Mais do que uma legislação específica pertinente, é necessário a
adesão em tratados internacionais que disciplinam a matéria, uma vez que
os crimes cibernéticos ocorrem em todo planeta e pelo facto de não
respeitarem fronteiras - são crimes de carácter transfronteiriço.

BIBLIOGRAFIA

LEGISLAÇÃO

Código Penal, aprovado pela Lei nº 35/2014, de 31 de dezembro (Lei de Revisão do Código
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declarado em vigor pelo Decreto 19271, de 24 de janeiro de 1931.

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sector das telecomunicações.

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107
PRISÃO PREVENTIVA COMO MECANISMO DE
RESPOSTA À CRIMINALIDADE E SUA
AFRONTA AOS DIREITOS E LIBERDADE
CONSTITUCIONAL

GIL XAVIER JÚNIOR


BERTA CABRAL

INTRODUÇÃO

Umas das medidas cautelares que a lei prevê a benefício do poder


público detentor da acção penal é sem dúvida a prisão preventiva. Ela surge
como mecanismo necessário para assegurar a aplicação da lei penal,
garantir a ordem pública, assegurar o decurso normal do processo penal.
Aplicabilidade dos pressupostos objectivos que a lei penal prevê, está
condicionada a factos subjetivos que são por natureza complexos e mercê
de análise sucinta. Aliás, é importante compreender que direito na sua
concepção tridimensional, comporta o elemento factual, axiológico e
normativo. Na relação entre o dever da acção penal e garantias de resposta
à criminalidade se coloca em causa a garantia de liberdade da pessoa
humana, que a luz da Constituição da República de Moçambique tem a
dignidade dos direitos fundamentais. Ora, desde logo é mister concluir que
toda e qualquer medida que vise suspender liberdades e garantias
fundamentais devem encontrar respectivo limite temporal e circunstancial
na ordem constitucional. Nesse contexto, os nos 1 do artigo 59 da
Constituição da República de Moçambique preconiza o respeito ao direito de
segurança e proíbe que as pessoas sejam submetidas a prisão ou
julgamentos ilegais. Ademais, ao abrigo do nº 2 do mesmo artigo da lei
fundamental, os arguidos gozam da presunção de inocência até a decisão
judicial definitiva. A lei penal estabelece prazos de prisão preventiva que

109
variam de 3 a 6 meses prorrogáveis desde que não excedam 7 meses. Porém,
estudos feitos indicam que em Moçambique arguidos podem estar nos
estabelecimentos prisionais em regime de prisão preventiva acima dos
prazos preconizados por lei. Tal facto conflitua em larga medida com os
valores da dignidade humana. Ademais, sujeita ao arguido a situações de
carácter social e de saúde pública inadmissíveis. Basta lembrar que a
superlotação dos estabelecimentos penitenciários e falta de rastreio regular
de doenças infecciosas representam um perigo para o arguido, sem descurar
da estigmatização social e dos efeitos que possam representar na relação
laboral, tendo em conta o período da ausência e preconceitos de ordem
profissional. Por isso, tendo em conta aos padrões internacionais dos
direitos humanos o uso de prisão preventiva quer em termos objectivos
quer termos de prática jurisdicional obedece ao critério de ultima ratio,
devendo o seu uso ser uma excepção e não regra.
Objectivo geral do presente artigo tem em vista analisar os contornos
legais e subjetivos da prisão preventiva tendo em conta o dever de Estadual
de tutela aos direitos de liberdades individuais. Objectivo específico, ilustrar
os preceitos constitucionais que norteiam a prisão preventiva, correlacionar
os pressupostos da legitimidade estadual que determinam a prisão
preventiva e o dever estadual de tutela aos direitos de liberdades
individuais, discutir a constitucionalidade dos actos normativos processuais
penais.
Os pressupostos da prisão preventiva constam ab initio do nº 1 do
artigo 64 da constituição da República de Moçambique, ao estabelecer que a
prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei que fixa os
respectivos prazos. Ainda a luz do nº 2 do mesmo dispositivo o cidadão deve
ser apresentado nos prazos fixados na lei a autoridade judicial para
validação e a manutenção da prisão. Como se pode mensurar esta norma
constitucional outorga o poder legislativo ordinário a estabelecer prazos da
prisão preventiva e ao poder judicial, poderes exclusivos para decisão sobre
a validação e manutenção da prisão preventiva. Ademais é mister concluir
que o legislador constituinte se escusa de definir o prazo da prisão
preventiva, confiando por conseguinte ao poder ordinário a faculdade de o
fazer. Neste termos o legislador ordinário estabelece a luz do art. 308 do
código processo penal que os prazos da prisão preventiva sem culpa
formada vão até vinte dias tratando-se de crimes dolosos que caibam pena
correcional de prisão superior a um ano, quarenta dias a que caiba a pena de
prisão maior e noventa dias para crimes cuja instrução preparatória seja da
competência da serviço nacional de investigação criminal ou a ela deferida,
contados desde a captura até a notificação do arguido da acusação ou do

110
pedido da instrução contraditória pelo ministério público. Por outro lado,
apraz analisar a inovação que lei de revisão processual penal nº 25/2019 de
26 de dezembro faz nos seus artigos 233 nº 2 e ao preconizar que nenhuma
medida de coacção ou de garantia patrimonial possa ser aplicada quando
houver fundado motivo para crer na existência de causa de isenção de
responsabilidade ou de extinção de procedimento criminal. O outro aspecto
positivo que o código processo penal faz de positivo é reconhecimento do
princípio de adequação e proporcionalidade de forma expressa no artigo
234. Propomo-nos analisar necessariamente estes aspectos de âmbito
constitucional e legal que conflituam com os direitos humanos tais como a
honra e especificamente as liberdades individuais. A carta dos direitos
humanos, a carta africana dos direitos humanos e dos povos, e o pacto
internacional dos direitos civis e políticos preceituam o respeito ao dever de
decisão justa e célere e não submissão a penas desumanas. A constituição é
consentânea aos pressupostos das normas supra aludidas, porém, o regime
ordinário penal é que é desajustado aos desígnios da carta dos direitos
humanos e do direito constitucional moderno especificamente no que
concerne aos largos prazos da prisão preventiva. Face a esses fenómenos
colocamo-nos a seguinte questão de pesquisa: Em que medida a aplicação
da prisão preventiva coloca em causa o direito a liberdades individuais e aos
desígnios do poder constituinte?

1. ACEPÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA

Prisão preventiva é uma medida de caução que serve de meio


processual de limitação de liberdade pessoal dos arguidos ou outros
eventuais responsáveis e tem a finalidade acautelar a eficácia do
procedimento penal principalmente no que concerne a execução das
decisões condenatórias.
A aplicação da medida coação é necessário que tenha sido instaurado
um processo-crime contra o aquele que recaia fortes indícios de
cometimento do crime, ou seja, tenha em sede do processo penal sido
constituído arguido1.
Prisão preventiva não pode ser confundida com detenção pois a
detenção ocorre no momento anterior a prisão preventiva que vai desde a
captura até ao momento que apresentado a autoridade judicial. Prisão
preventiva é medida de coação pós detenção legalizada e anterior ao
julgamento. Prazo de detenção não deve passar 48 horas, à luz do nº 3 do

1
UACHE, 2011, p. 70.

111
artigo 22 do decreto nº 35007 conjugado ao artigo 290 e 311, ambos do
código processo penal ora vigente na República de Moçambique.
Os períodos máximos definidos pelo código do processo penal para
efeitos de prisão preventiva variam em função do tipo de processo, assim,
para os crimes que seguem o processo de polícia correcional que são aqueles
cujos crimes são puníveis com a pena de prisão mais de um ano até dois
anos, a prisão preventiva não pode exceder 20,40 dias. Aos processos de
querela cuja moldura penal caibam a pena de prisão com mais de 2 anos, o
prazo de prisão preventiva vai até 90 dias podendo ser prorrogado até 7
meses2.
Compreende-se assim, que a medida de prisão antes de julgamento só
é legitimada em primeira instância quando se destina a pessoa física que por
razões circunstâncias do crime, seja indiciada de cometimento de um tipo
legal de crime. Assim, dado o receio devidamente comprovado de que o
arguido se furte da justiça ou perturbe o decurso processual ou ainda
continue a cometer crime, justifica-se que seja aplicada a prisão preventiva.
Na aplicação da medida de coação, o juiz deve ponderar a existência
dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos alicerçando a sua
decisão em três princípios fundamentais a saber: o princípio da presunção
de inocência, o princípio da legalidade, o princípio da adequação ou
proporcionalidade3.
De facto, reza o artigo 59 da Constituição da República de
Moçambique que “os arguidos gozam da presunção de inocência, até decisão
final definitiva’’. É sobre essa Máxima constitucional que o processo penal
deve orientar-se, e não no sentido inverso, que propugna pela presunção da
culpa. O código processo penal então vigente em larga medida enferma de
vícios de inconstitucionalidade, a prova disso, são as sucessivas declarações
de inconstitucionalidade proferidas pelo Concelho Constitucional
moçambicano.
Um exemplo infeliz é o corpus do artigo 169 do código processo penal
pelo facto de estabelecer que os autos de notícia fazem fé em juízo, quer na
instrução quer no julgamento até prova em contrário. Ora, aqui estamos
flagrantemente duma norma processual penal que preconiza o princípio da
presunção da culpa, contrariando obviamente o Princípio da presunção de
inocência.
Ainda a luz da al. b do nº 1 do artigo 7 da Carta Africana dos direitos
humanos e dos povos é reconhecido o direito de presunção de inocência, até

2
UACHE, 2011, p. 76-80.
3
Ibidem.

112
que sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente. Como
se pode ilidir, a norma constitucional assim como a norma do direito
internacional público postula o dever do respeito as liberdades
fundamentais do indivíduo.
O princípio da legalidade preconiza que a limitação dos direitos e
liberdades fundamentais só devem decorrer nos casos expressamente
previstos não lei, artigo Constituição da república de Moçambique. Ademais,
a restrição decorrente das necessidades decorrente do processo penal só é
legitimada quando decorre da lei, artigo da Constituição da república de
Moçambique. Neste, contexto encontra-se na luz da lei processual penal,
especificamente nos artigos 269, 270, 271 e 286, os ditames de aplicação das
medidas de coação.
Ora além dos pressupostos objectivos, aqueles que decorrem
explicitamente da lei, é importante ter em conta o elemento subjetivo de
caracter empírico que chama a necessidade de ponderação da aplicação das
medidas cautelares. O princípio da adequação significa que a medida a
aplicar ao arguido deve ser idónea, ponderada as circunstâncias subjetivas
e a sua finalidade4.
Em bom rigor a aplicação de medida de cautelar ou em particular a de
coação deve resultar da ponderação entre o meio e o fim que se pretende,
garantindo compatibilidade entre as razoes factuais e a necessidade
processual em homenagem a salvaguarda dos direitos fundamentais que
muitas vezes quando por agentes do Estado em exercício do poder
jurisdicional violados dificilmente o Estado responsabiliza-se.

2. PRISÃO PREVENTIVA EM FLAGRANTE DELITO

De acordo com a lei do processo penal no seu artigo 278, a prisão


preventiva deve ser aplicada quando se está em flagrante delito, podendo
ser flagrante delito no sentido restrito como nas situações idênticas
designadas, em todo o caso, no artigo 288 do Código de Processo Penal
(CPP). Nos casos de flagrante delito, a medida de prisão preventiva em regra
se aplica nos casos em o crime caiba a pena de prisão. Nesse diapasão, em
flagrante delito, se o crime cometimento não couber a pena de prisão mas
sim de multa, o suspeito não deve ser detido, excepto quando não se
reconheça o seu nome, sua residência e não possa ser imediatamente
determinada ou quando se trata de arguidos ou condenados que violem
postuladas a luz do artigo 287 do CPP.

4
UACHE, 2011, p. 70-80.

113
A medida da liberdade provisória passa a considera insuficiente,
quando haja receio comprovado de fuga, quando haja comprovado perigo de
perturbação da instrução do processo mantendo-se o arguido em liberdade,
quando em razão da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade
do delinquente, haja receio fundado de perturbação da ordem pública ou da
continuação da actividade criminosa nº 3 do artigo 291 do CPP.
É mister concluir que aplicação da prisão preventiva passa
necessariamente pela ponderação desses aspectos legais mais também
circunstanciais. Para se determinar que haverá receio de fuga, perturbação
do processo, ou contínua prática do crime revelam todos aspectos materiais
em análise processual. Assim, na aplicação da providência não basta que se
invoque a norma processual em causa, convém fundamentar com razoes de
facto, desencorajando-se decisões fundadas em presunções5

3. PRISÃO PREVENTIVA FORA DE FLAGRANTE DELITO

A prisão pode ser decretada fora de flagrante delito verificando-se


cumulativamente os pressupostos seguintes: a perpetração de crime doloso
punível com a pena de prisão de um ano, forte suspeita da prática do crime
pelo arguido, inadmissibilidade da liberdade provisória, ou insuficiência
desta para realização dos seus fins, art. 291 do CPP.
Ainda ao abrigo do mesmo dispositivo pode-se aplicar a medida da
prisão preventiva quando o arguido, em liberdade provisória ou que tenha
sido aplicado uma outra medida de caução legalmente prevista, não cumpre
as obrigações a que ela devia ficar subordinada.
Em bom rigor atento as disposições acima mencionadas pode-se
concluir que aos crimes caibam penas correcionais que correspondem aos
processos sumários, processos que julgam infracções cuja pena vai de 3 dias
à um ano, ao abrigo do postulado no artigo do decreto-lei no 28/75 de 1 de
marco, só será aplicada a pena de prisão preventiva quando o presumível
infractor for encontrado em flagrante delito, sendo por conseguinte a sua
aplicação inaceitável em todos outros casos que não seja em flagrante delito.
Um dos vícios da inconstitucionalidade das normas do processo penal
consta do parágrafo segundo do artigo 291 do CPP segundo o qual
preconiza-se a inadmissibilidade de liberdade provisória. Ora, felizmente
esta norma foi, considerado inconstitucional pelo Conselho Constitucional
através do acórdão 04/CC/2013 17 de setembro, por atropelar desígnios
constitucionais do Estado Moçambicano, que é sem dúvida um Estado que
se orienta pelo direito, artigo 3 da Constituição da República de
Moçambique.

5
UACHE, 2011, p. 70-80.

114
4. CONTEXTUALIZAÇÃO DA PRÁTICA MOÇAMBICANA

Propusemo-nos a analisar a presente temática dado o sentimento de


repúdio as aberrações e excessos cometidos pelas autoridades da
administração da justiça que pautam pela aplicação da prisão preventiva
como regra e a liberdade como excepção, quando deveria ser o contrário por
conta da máxima constitucional que propugna a defesa das liberdades
individuais.

Na prática judiciária moçambicana é frequente que só pela simples


suspeita do cometimento duma infracção penal deter-se o individuo e
sujeitá-lo à prisão preventiva, vindo a ser absolvido em julgamento, o
que é agravado pela falta de consciência jurídica dos que sofrem tais
situações, pois o Estado, nessas situações podia ser chamado a
responder civilmente pelos danos causados ao infeliz suspeito
(UACHE, 2011, p. 77).

De facto este mal pode estar associado ao facto de a constituição


moçambicana assim como a lei processualmente serem omissas em relação
a um princípio basilar do processo penal, designadamente o princípio de
julgamento em prazo útil ou razoável6, o que em sede do processo civil
chama-se de princípio da celeridade processual.
Com efeito nota-se que em processo querela, o processo penal não fixa
prazo para realização de julgamento apos a pronuncia, o que pode fazer com
que o réu preso possa permanecer preso preventivamente por tempo
ilimitado, o que por sua vez tal norma processual penal mais uma vez viola
o princípio de acesso a justiça, facto que também mereceu a apreciação do
concelho constitucional através do acórdão 4/CC/2013 de 17 de setembro.
Estudos revelam que a situação dos estabelecimentos prisionais em
Moçambique é alarmante, desde qualidade de alimentação, capacidade física
dos estabelecimentos, garantias de defesa dos arguidos sem recursos
financeiros, de acordo com o género, situação jurídico-processual, higiene,
segurança de saúde e saneamento e tratamento de deficientes.7
Em homenagem ao artigo 61 da constituição, as penas devem revestir
a finalidade de prevenção e ressocialização do delinquente, garantido por
disto a humanização das penas. Neste diapasão o Estado deve garantir que
os estabelecimentos prisionais reúnam condições necessárias para que a
população reclusa cumpra as respectivas penas em circunstâncias dignas da

6
O princípio de julgamento em prazo razoável foi consagrado na carta africana dos direitos do homem e
dos povos no seu artigo 7.
7
NAHE et al, 2014.

115
pessoa humana. O preso antes do julgamento é um presumível inocente e
por isso não deve estar sujeito a factos desumanos. Infelizmente a prática
revela o contrário.
Relativamente ao tratamento dos deficientes, os estabelecimentos de
reclusão não estão dotados de estruturas decentes para acolher os
deficientes. Aponta-se por exemplo a falta de rampas e celas preparadas
para reclusos deficientes. Quanto a garantia de saúde, higiene saneamento
dados indicam estarem aquém de responder as demandas da população do
estabelecimento prisional, principalmente no que concerne ao número de
técnicos e médicos afectos para responder as necessidades destes.
Os estabelecimentos prisionais são superlotados e da leitura que se
faz tendo em conta os anos 2012 a 2014 a população prisional chega ao
dobro da capacidade normal e dentre os quais 35% encontra-se em regime
de prisão preventiva. Tendo em conta a situação jurídico-processual a
população em reclusão chega a fasquia dos trinta e cinco por cento contra
65% dos condenados, graças a intervenção de técnicos jurídicos e
defensores públicos afectos no instituto de patrocínio e assistência jurídico
os carenciados gozam de acompanhamento.
Um outro estudo feito em 2016 revela que a fasquia media de
ocupação foi de 206,3%,. A situação vária de estabelecimento prisionais
sendo apontados alguns mais críticos como o estabelecimento penitenciário
de Gaza na cidade de Xai-Xai onde se constatou 406 numa cela preparada
para receber 50 pessoas8.
Um dos males mais gritantes desta população tem a ver com o
orçamento canalisado para fazer face as despesas correntes. Dados indicam
que o Estado gasta pelo menos 5.500.000,00 SD para alimentação diária só
para população em regime de prisão preventiva. É garantida três refeições
por dia mas essencialmente pobre em proteína quer animal assim como
vegetal o que demonstra qualidade alimentar baixa. Em alguns
estabelecimentos prisionais por forma a garantir a segurança alimentar
desenvolvem actividades agropecuária de baixo custo, e obviamente face
aos constrangimentos climatéricos do país, a produção fica ameaçada9.

5. PRAZOS DE PRISÃO PREVENTIVA E O RESPECTIVO CONTROLO

Estudos feitos em 2014 indicam de que um número estimado em


5,106 reclusos em prisão preventiva no primeiro trimestre daquele ano

8
REFORMAR-RESEARCH for Mozambique, 2018, p. 22.
9
NAHE et al, 2014, p. 22.

116
cerca de 4.286 o equivalente a 78% estavam em dentro prazo, portanto a
fasquia de presos aguardando julgamento não deixa de ser preocupante10.
Dados estatísticos comprovam que os casos de prisão preventiva
seguida de absolvição por insuficiência de provas continuam altos, isto por
sua vez denuncia que de facto a medida prisão preventiva não é não deve ser
regra mas também revela falhas comprometedoras na administração dessa
medida. Um outro dado relevante por analisar, o qual muitas vezes é usado
para justificar a morosidade processual e por conseguinte a frequente
extrapolação dos prazos diz respeito a insuficiência dos magistrados
judiciais e do ministério publico para responder as demandas processuais.
Os padrões internacionais recomendam 20 magistrados por cada
100.000 habitantes no entanto Moçambique dispõe cerca de 300
magistrados para cerca de 30 milhos de habitantes. Associado ao défice dos
magistrados também se aponta insuficiente de meio de técnicos usados em
pesquisa forense, fraco nível de compliance entre órgão da administração da
justiça e as empresas de telefonia móvel com vista a produção de provas.
Enfim, o que sucede é que os órgãos da administração judiciária prendem
para investigar e não investigam, deixando os arguidos a critério da sorte
até que em sede do julgamento o arguido por si só prove a sua inocência.
Está mais do que claro que a medida de prisão preventiva traz mais
problemas que soluções. Pior, sucede quando a prisão preventiva é
prolongada, na medida em que tem impactos socioeconómicos. Estima-se
que um dos impactos sociais com a família do arguido e principalmente o do
sexo feminino tem implicações nefastas para os filhos11.

6. MEIOS PROCESSUAIS DE REAÇÃO A PRISÃO ILEGAL

Tanto a detenção ilegal assim como a prisão ilegal deve ser


repreendida. Assim, sempre que alguém for detido por alguém que não
tenha sido detido por alguém que competência para o efeito por socorrer-se
de habeas corpus, um meio constitucional previsto no artigo 66 da
Constituição da República de Moçambique.
Ademais o artigo 58 da constituição da República de Moçambique
consagra a possibilidade de o arguido lesado nos seus direitos, pode exigir
do Estado a devida indeminização por actos ilegais dos agentes público.

A todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei,


indeminização pelos prejuízos que forem causados pelos seus direitos

10
NAHE et al, 2014, p. 22.
11
REFORMAR-RESEARCH for Mozambique, 2018.

117
fundamentais, nº 1 do artigo 58 da Constituição da República de
Moçambique.

O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos


seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de
regresso nos termos da lei, nº 2 do artigo 58 da constituição da
República de Moçambique.

A nível do código processo penal consta dos artigos 312 e 315 duas
modalidades de habeas corpus e a doutrina classifica-se em habeas corpus
ordinária e habeas corpus extraordinária. O habeas corpus ordinário rege-
se pelo artigo 312 e consiste em se atribuir a faculdade detidos à ordem de
autoridade cuja competência não exceda a área do tribunal distrital,
poderem recorrer ao juiz presidente do tribunal onde se encontrem, que
ordene apresentação ao juiz sob o fundamento de estar excedido o prazo
para entrega ao poder judicial.
A providência extraordinária do habeas corpus, está patente no artigo
315 do código processo penal e este atribui a faculdade de os indivíduos
detidos ilegalmente e aos quais não seja aplicável os pressupostos do artigo
312 do Código processo penal por não ser da competência dos tribunais
judiciais distritais e provinciais, ou haver sido ordenada por autoridade
judicial não suscetível de recursos, poderem reagir contra essa detenção.
Este pedido deve ser dirigido ao juiz presidente do tribunal supremo e pode
ter como fundamento incumprimento dos prazos da prisão preventiva.
As medidas de reação a detenções ilegais são claras, todavia, a prática
revê-la falta de celeridade processual relativamente a decisão sobre os
pedidos de habeas corpus extraordinários tal como para os ordinários.
Recomenda-se por isso, a instituição da figura do juiz da paz, a quem caberia
estar de prontidão para tender as demandas processuais. O outro meio
processual mais simples e que se recomenda que se a primeira reação face a
prisão ilegal é necessariamente a faculdade de comunicar ao ministério
público, cabendo a este como garante da legalidade, reparar o direito violado.

7. METODOLOGIA

A presente pesquisa é essencialmente bibliográfica. A metodologia


usada para colecta dados é fundamentalmente análise documental das
legislações aplicáveis e aos relatórios de pesquisas que versam sobre a
temática. O outro método de colecta de dado usado é observação, dado ao
facto de os autores serem profissionais na arena criminal. A temática é muito
vaga e suscetível de várias abordagens, por isso foi pertinente escolher uma

118
amostragem significativa e buscar uns focos elucidativos do problema. O
método de abordagem usado foi a hermenêutica. A presente pesquisa
essencialmente alicerça-se no decreto no 19271, de 24 de janeiro 1931, que
aprova Código Processo Penal e não na lei nº 25/2019 de 26 de dezembro,
por conta daquela ainda se encontrar em vigor no ordenamento jurídico
moçambicano.

8. CONCLUSÃO

A prisão preventiva é de facto um mecanismo estadual de resposta a


criminalidade mas não é o único. A lei processual Moçambique preconiza
outros meios processuais de coação que também garantem o efeito útil da
acção penal, refira-se a liberdade provisória mediante termo de identidade
e residência e liberdade provisória mediante caução. A aplicação da prisão
preventiva resulta da autorização constitucional que confere as leis
ordinárias do âmbito penal o poder de estabelecer limites de ordem
temporal e circunstancial.
Do estudo feito constatou-se que a aplicação da prisão preventiva no
contexto moçambicano tem corolário mais desastrosos que positivos.
Percebe-se, os prazos preconizados na lei processual são escrupulosamente
violados, pondo em causa direitos do arguido. A aplicação deste meio de
coação em larga medida não obedece o princípio da ponderação e da
adequação, sendo por isso aplicadas muitas vezes desnecessariamente. Ora,
ficou claro que não basta invocar o fundamento legal para aplicar a medida,
convém arrolar fundamentos de factos que justifiquem a sua aplicabilidade.
Dados revelaram que em termos práticos há tendências em torna
aplicação de prisão preventiva como regra e a liberdade provisória como
excepção. Esta tendência é fruto do então sistema legislativo processual
penal ora em via de cessão de vigência, que em muito se manifestava
desajustado aos princípios norteadores da constituição moçambicana. A
constituição moçambicana identifica-se como constituição liberal de
direitos civis, políticos e democráticos. A ser assim as liberdades
fundamentais são garantidas pelo Estado e devem ser exercidos no quadro
da constituição e das leis. A própria constitucional estabelece as
circunstâncias que justifique a limitação ao exercício dos direitos e
liberdades, e dessas circunstâncias é nos termos da prisão preventiva
estatuída ao abrigo do artigo 64 da Constituição da República de
Moçambique.
Os artigos 169 e 291 ambos do código processo penal pode-se se citar
a título exemplificativo, como normas que conflituam com o princípio

119
constitucional da presunção da inocência postulado no nº 2 do artigo 59 da
Constituição da República de Moçambique. O artigo 169 orienta a actividade
processual para descalabro da presunção da culpa uma vez que determina
que os autos de notícias fazem fé juízo até a prova em contrário isto dito por
outras palavras, ou seja face aos autos os arguidos são considerados
culpados até que se prove o contrário. É obviamente por essa forma de
pensar que custa muito aos magistrados judiciais a administrar medidas de
liberdade provisoria mesmo em situações claras que orientam para efeito.
Por outro lado, o artigo 291 do código processo penal estabelece a
inadmissibilidade da aplicação da liberdade provisória, ora, face a isso o
acórdão do concelho constitucional nº 4/CC/2013 de 17 de setembro
considerou-o manifestamente inconstitucional.
Relativamente aos prazos, constatou-se que o aumento considerável
tendo em conta aos relatórios dos anos 2013/2014 realizado pelo centro
dos direitos humanos e o relatório de 2016 realizados pela research for
Mozambique. E este aspecto processual tem consequência nefasta para o
arguido e para a credibilidade da justiça. Com relação ao arguido dado aos
constrangimentos sociais posteriores a prisão preventiva e aponta-se a
estigmatização social, perca de emprego e difícil integração no mercado
laboral, etc. Outrossim, os relatórios revelam altos índice de absolvição de
indivíduos que passam longo prazo em prisão preventiva e chegado ao
julgamento constate-se que inocência ou insuficiência de provas. Isto revela
que as autoridades prendem para investigar contudo nada fazem. Neste
aspecto é evidente o descrédito.
Pode-se notar alguma melhoria com relação a patrocínio e assistência
jurídica aos carenciados que esteja em regime de prisão preventiva. Esta
melhoria deveu-se ao trabalho aturado dos técnicos e defensores públicos
do instituto de patrocínio e assistência jurídica. Todavia, há necessidade de
abranger alguns distritos por forma a concretizar o primado no artigo 62 da
Constituição da República de Moçambique.
No cômputo geral, é conclusivo que a prisão preventiva deve ser
aplicada em ultima ratio, nas situações comprovadas de real perigosidade
do suspeito, em crimes que caibam penas de prisão, e comprovada influência
processual do infractor nos trâmites processuais. Pelo contrário enveredar-
se-ia pela dignação da justiça que conflitua com o dever de celeridade
processual e justa decisão.

120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MOÇAMBIQUE, Constituição (2004). Constituição da República de Moçambique, revista


pela lei nº 1 /2018 de 12 de junho, boletim da República de Moçambique.
MOÇAMBIQUE, decreto no 19271, de 24 de janeiro 1931, que aprova Código Processo
Penal vigente, boletim da República de Moçambique.
MOÇAMBIQUE, lei nº 25/2019 de 26 de dezembro, lei de revisão do Código Processo
Penal, boletim da República.
NAHE, B. L. et al. Privação da liberdade antes do julgamento no ordenamento jurídico
moçambicano, avaliação do regime legal e das práticas por referência aos padrões
internacionais, 2014.
REFORMAR-RESEARCH FOR MOZAMBIQUE, Moçambique relatório temático sobre
justiça criminal no âmbito da revisão do pacto internacional sobre os direitos civis e
políticos, 2018.
UACHE, F. H. Manual prático de processo penal, 2011.

121
GARANTIAS JURÍDICAS DOS SISTEMAS
CRIMINAIS DE MOÇAMBIQUE E DO BRASIL:
UMA REFLEXÃO EM BUSCA DAS CAUSAS DAS
PRISÕES ILEGAIS.

JOSÉ ADOLFO DOMINGOS BACAR CARIMO*

INTRODUÇÃO

Em todos os Estados de Direito Democrático, a dignidade da pessoa


humana aparece como um fim de toda a actividade jurídico administrativa a
ser exercida. O desempenho de qualquer atividade terá que ter em atenção
o respeito pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos
(ANTUNES, 1998, p. 263). Segundo Anjos e Rodrigues (2006, p. 9), num
Estado de Direito Democrático, o exercício de qualquer atividade deve ser
guiado pelos princípios de Estado de Direito que impõem, não só condutas
omissivas, no sentido de praticar atos que violem os valores da cidadania, da
dignidade da pessoa humana, do trabalho e da livre iniciativa e, do
pluralismo político; é aí onde reside a novidade do constitucionalismo
moderno – comportamentos positivos para efectivamente os promover e
concretizar. Num Estado do direito à prisão é tida como uma excepção à
liberdade de pessoas, e em regra geral, ela consiste na remoção da liberdade
do indivíduo.
A República de Moçambique é um Estado de Direito Democrático. Tal
princípio está consagrado no art. 3 da Constituição da República de
Moçambique – CRM de 2004, Segundo o qual, “A República de Moçambique

*
Doutorando em Direito Público, pela Universidade Católica de Moçambique, Mestre em Direito e
Negócios Internacionais, pela Uneatlântico – Universidade Europeia de Atlântico – Espanha, Mestre em
Administração e Gestão de Empresas – MBA - pelo ISCTAC – Instituto Superior de Ciências e Tecnologia
Alberto Chipande, Jurista e docente universitário.

123
é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização
política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades
fundamentais do homem”. Conforme o art. 11 da CRM, o Estado
moçambicano tem como objectivos fundamentais: a defesa e a promoção
dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei. Brasil,
também é um Estado de Direito Democrático. Este princípio se encontra
consagrado ou plasmado no art. 1 da Constituição Federativa do Brasil
(CF/88), ao dispor que, “A República Federativa do Brasil é um Estado de
Direito Democrático e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a
cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V – O pluralismo político”. De acordo com
Canotilho e Moreira (2007, p. 478), o direito a liberdade significa “direito a
liberdade física, a liberdade de movimento, ou seja, direito de não ser detido,
aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado à um determinado
espaço, ou impedido de se movimentar”. Contudo, Bizatte (2005, p. 15),
defende que, embora o direito à liberdade seja uma garantia
constitucionalmente assegurada para todo o cidadão, excepcionalmente ela
pode ser restringida, no âmbito da aplicação do instituto da “Prisão
Preventiva”, ou no cumprimento da pena efectiva. Em Moçambique, tal
restrição está consagrada no art. 56, n 2 da CRM, no qual “o exercício dos
direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda de outros
direitos ou interesses protegidos pela Constituição”. No entanto, só a lei
pode limitar os direitos, as liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituição (art. 56, n° 3 da CRM). As restrições legais destes
direitos e liberdades devem revestir carácter geral e abstrato e não podem
ter efeito retroactivo (art. 56, n° 4 da CRM). No caso de Brasil, a restrição à
liberdade está prevista no art. 5 da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (CF/88), ao dispor no inciso XLVI que a lei regula a
individualização da pena e adopta, entre outras medidas, a privação ou
restrição da liberdade.
Neste aspecto, Lopes Júnior (2011, p. 59), entende que: “qualquer que
seja o fundamento da prisão, é imprescindível a existência de prova razoável
do alegado periculum libertais, ou seja, não bastam presunções ou ilações
para a decretação da prisão preventiva”. A CF/88, no inciso LVII, prevê que,
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória”. A CRM, também estabelece o mesmo entendimento, ao
dispor no art. 59 que: “Na República de Moçambique, todos têm direito à
segurança, e ninguém pode ser preso e ser submetido a julgamento a
margem da lei, isto é, só pode ser preso e submetido a julgamento nos
termos legais (n° 1 do art. 59). Os arguidos gozam da presunção de inocência

124
até decisão judicial definitiva (n° 2 do ar. 59)”. Estes princípios devem ser
respeitados no âmbito da decretação de qualquer medida restritiva à
liberdade. Segundo o Relatório da Liga dos Direitos Humanos de (2011, p. 2)
e da Amnistia Internacional (2012, p. 16 e seguintes), em Moçambique nos
últimos anos tem se registado níveis altos de pessoas privadas à liberdade,
uns em prisão preventiva e outros cumprindo penas de prisão efectiva, de
que tem como consequência a superlotação das cadeias moçambicanas. A
Presidente da Liga dos Direitos Humanos, Alice Mabota, falando numa
entrevista concedida ao Canalmoz, no dia 04 de abril de 2013, em Maputo,
afirmou que a maior parte dos detidos nas cadeias moçambicanas são
indivíduos que cometeram infracções de menor gravidade, colocando em
causa o princípio da insignificância, cuja sanção dos mesmos não pode
chegar até a 1 (um) ano de prisão. Mas a maioria está em prisão preventiva
há mais de 2 (dois) anos aguardando pelo julgamento. Isso demonstra que
as pessoas, primeiro são detidas e, depois são investigadas e julgadas, ao
invés de proceder se o contrário.
Conforme Mabota, há dois exemplos que podem elucidar este
problema: na cidade de Maputo, um cidadão já ficou preso três anos por ter
roubado um saquinho de cebola. Um outro jovem na cidade da Matola,
concretamente no bairro suburbano da Machava, ficou detido durante cinco
anos por ter roubado três galinhas num aviário onde trabalhava. Estas
práticas, constituem clara violação dos direitos humanos (prisão arbitrária
ou ilegal). Em todos os Estados de direito e democráticos, “habeas corpus” é
remédio judicial que tem por finalidade evitar ou fazer cessar a violência ou
coação à liberdade de locomoção, decorrente de ilegalidade ou abuso de
poder.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DE HABEAS CORPUS

O instituto do habeas corpus tem sua origem remota no Direito


Romano, pelo qual todo cidadão podia reclamar a exibição do homem livre
detido ilegalmente. A origem mais apontada por diversos autores é a Magna
Carta, que por opressão dos barões, foi outorgada pelo Rei João Sem Terra
em 19 de junho de 1215, nos campos de Runnymed, na Inglaterra. Como
aponta Ferreira (1982), “O habeas corpus nasceu historicamente como uma
necessidade de contenção do poder e do arbítrio. Os países civilizados
adoptam-no como regra, pois a ordem do habeas corpus significa, em
essência uma limitação às diversas formas de autoritarismo”. No Brasil, foi
introduzido após a partida de D. João VI para Portugal, quando expedido o
Decreto de 23 de maio de 1821, referendado pelo Conde dos Arcos.

125
Estabelecia aquele Decreto que, a partir de então, nenhuma pessoa livre no
Brasil poderia ser presa sem escrita do Juiz do território a não ser em caso
de flagrante delito, quando qualquer do povo poderia prender o
delinquente; e que nenhum Juiz poderia expedir ordem de prisão sem que
houvesse culpa formada, por inquirição de três testemunhas e sem que o
facto fosse declarado em lei como delito.
O decreto foi implícito na Constituição de 1824, a qual proibia as
prisões arbitrárias e mais tarde, foi regulamentado pelo Código de Processo
Criminal – CPP – de 24 de novembro de 1832, nos artigos 340 a 355 e
estabelecia que, qualquer Juiz poderia passar uma ordem de habeas corpus
de ofício, sempre que no curso do processo chegasse ao seu conhecimento
que alguém estivesse detido ou preso. Com o advento da República, o
Decreto de 11 de outubro de 1890 determinava que todo cidadão nacional
ou estrangeiro poderia solicitar ordem de habeas corpus, sempre que
ocorresse ou estivesse em vias de se consumar um constrangimento ilegal.
Era o aparecimento, entre nós, do habeas corpus preventivo. A Constituição
Federal de 1988 prevê em seu art. 5º, inciso LXVIII que conceder-se-á habeas
corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência
ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de
poder. O sentido da palavra alguém no habeas corpus refere-se tão somente
a pessoa física. Ressalte-se que a Constituição Federal, expressamente, prevê
a liberdade de locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa nos termos da lei, nele entrar permanecer ou dele sair com
seus bens (CF, art. 5º, XV). O habeas corpus não poderá ser utilizado para a
correcção inidônea que não implique coacção a liberdade de ir, permanecer
e vir. Na defesa da liberdade de locomoção, cabe ao Poder Judiciário
considerar acto de constrangimento que não tenha sido apontado em
petição inicial. Da mesma forma, pode actuar no tocante à extensão da
ordem, deferindo-a aquém ou além do que pleiteado.
Em Moçambique, existe a figura de “Habeas Corpus”. Esta e uma
garantia constitucional, que vem consagrada no art. 66 da CRM, e nos arts.
que vão de 312 a 325 do CPP/Moçambicano (CPP/Mz), a qual e interposta
perante Tribunais Judiciais, numa situação ilegal de privação da liberdade. E
assim, há providencia inominada (anônima) de “Habeas Corpus” (art. 312
do CPP/Mz) e a providencia de “Habeas Corpus” propriamente dita ou
extraordinária (art. 315 do CPP/Mz). O requerimento para a providencia
inominada prevista no art. 312 do CPP/moçambicano, e dirigido ao Tribunal
Judicial da Província e tem lugar, quando alguém detido por qualquer
autoridade, requeira a sua imediata apresentação judicial, com algum dos
seguintes fundamentos: estar excedido o prazo para a entrega ao poder

126
judicial; manter se o detido fora dos locais legalmente permitidos; e ter sido
detido por autoridade incompetente ou por factos que a lei não permite.
A providência de “Habeas Corpus” , propriamente dita ou
extraordinária, prevista no art. 315 do CPP/Mz, surge quando se trata de
uma prisão efetiva atual, ferida de ilegalidades, pelos motivos como: não ser
da competência dos Tribunais Judiciais da Província, conhecer os motivos
da detenção; ter sido a detenção ordenada autoridade cuja competência
excede a área da província; ser a detenção efetuada ou mantida por ordem
de autoridade judicial insusceptível de recurso; a detenção ter sido efetuada
e ordenada por quem para tanto, não tenha competência legal; ser movida
por um facto em que a lei não autoriza a prisão; manter se o detido além dos
prazos legais para a apresentação em juízo ou para a formação da culpa; e se
a detenção prolongar se para além do tempo fixado judicialmente, param a
duração da pena, medida de segurança ou da sua prorrogação. Esta
providencia só tem lugar quando não haja lugar a providência inominada do
“Habeas Corpus”, e o seu requerimento é dirigido ao Tribunal Supremo.

3. NATUREZA JURÍDICA DA PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE HABEAS


CORPUS

O habeas corpus é uma acção constitucional de caráter penal e de


procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência
ou ameaça na liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder.
Não se trata, portanto de uma espécie de recurso, apesar de regulamentado
no capítulo a eles destinado no Código de Processo Penal. Convém lembrar
que, não obstante o esforço teórico desprendido por alguns autores e o facto
de o habeas corpus servir às vezes, como sucedâneo de recurso, para atacar
pronunciamento judicial, está hoje fora de qualquer dúvida a sua natureza
jurídica de acção, ou seja, “actuação do interessado, ou alguém por ele,
consistente no pedido de determinada providência, a órgão jurisdicional,
contra ou em face de quem viola ou ameaça violar a sua liberdade de
locomoção”.
O Habeas Corpus é uma autêntica garantia constitucional, um
instituto que limita a actuação injusta e ilegal do poder dominante,
proibindo, contudo, a atuação a margem da lei por parte da autoridade. Há
que lembrar também, que existe uma particularidade no que diz respeito aos
tipos de habeas corpus. Estaremos perante um habeas corpus preventivo -
quando alguém se achar ameaçado de sofrer violência ou coacção em sua
liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. Assim, bastará,
pois a ameaça de coacção à liberdade de locomoção, para a obtenção de um

127
salvo conduto ao paciente, concedendo-lhe livre-trânsito, de forma a
impedir sua prisão ou detenção pelo mesmo motivo que ensejou o habeas
corpus. Outrossim, temos o habeas corpus repressivo - quando alguém
estiver sofrendo violência ou coacção em sua liberdade de locomoção por
ilegalidade ou abuso de poder. Pretende fazer cessar o desrespeito à
liberdade de locomoção. Portanto, em ambas espécies haverá possibilidade
de concessão de medida de liminar, para se evitar possível constrangimento
à liberdade de locomoção irreparável. Segundo Mirabete (1996), “embora
desconhecida na legislação referente ao habeas corpus, foi introduzida
nesse remédio jurídico, pela Jurisprudência, a figura da ‘liminar’, que visa
atender casos em que a cassação da coacção ilegal exige pronta intervenção
do judiciário”. Concluindo que, “como medida cautelar excepcional, a liminar
em habeas corpus, exige requisitos: o periculum in mora ou perigo na
demora, quando há probabilidade de dano irreparável e o fumus boni iuris
ou fumaça do bom direito, quando os elementos da impetração, indiquem a
existência de ilegalidade”.

3.1. Cabimento de Habeas Corpus

Dado o intuito pragmático do presente artigo, serão elencadas as


ocorrências que autorizam a concessão da ordem:

– Ameaça, sem justa causa, à liberdade de locomoção;


– Prisão por tempo superior estabelecido em lei ou sentença;
– Cárcere privado;
– Prisão em flagrante sem a apresentação da nota de culpa;
– Prisão sem ordem escrita de autoridade competente;
– Prisão preventiva sem suporte legal;
– Coação determinada por autoridade incompetente;
– Negativa de fiança em crime afiançável;
– Cessação do motivo determinante da coação;
– Nulidade absoluta do processo;
– Falta de comunicação da prisão em flagrante do Juiz competente
para relaxá-la.

4. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL EM MOÇAMBIQUE

Antes, importa referir que o sector de justiça em Moçambique é


composto por seguintes instituições: Ministério da Justiça, os Tribunais
(Tribunal Supremo – art. 225 da CRM, os Tribunais Judiciais – art. 223 da

128
CRM e o Tribunal Administrativo – art. 228 da CRM), a Procuradoria Geral
da República (PGR) ou Ministério Público – M.P – art. 234 da CRM, o
Ministério do Interior (MINT), o Conselho Constitucional – C.C (art. 241 da
CRM), os Tribunais Comunitários e a Ordem dos Advogados de Moçambique
(OAM). E quanto a investigação criminal, Vidal (2004, p. 47 e seguintes), a
investigação criminal é uma actividade essencialmente técnica atribuída ou
servida por meios técnicos e científicos diversificados. O mesmo autor,
acrescenta ainda que, para alguns, os mais dotados e talentosos, poderá
constituir uma arte feita de instinto, conhecimentos científicos e
experiência.
De acordo com Abreu (2006, p. 151 – 152), a investigação criminal
compreende ao conjunto de diligências, legalmente admissíveis que visam:
averiguar a existência de um crime, determinar quem foram os autores do
mesmo, qual o grau de responsabilidade de cada um e descobrir as provas
no âmbito do processo. No entanto, a investigação criminal é uma espécie de
garantia constitucional dos direitos fundamentais dos indivíduos com vista
a evitar prisões ilegais ou arbitrárias. Nestes termos, em Moçambique, a
investigação criminal dá lugar ao processo-crime, que inicia com o
procedimento criminal pelo M.P. Ao abrigo dos arts. 5 e 165, ambos do CPP
de Moçambique e o art. 6 do DL n° 35007, a acção penal é pública,
competindo o M.P o seu exercício, salvo as seguintes restrições: as
autoridades administrativas, quanto a transgressões de postura,
regulamentos e editais; a PRM e a Polícia Municipal quanto as infracções que
devem ser julgadas em processo sumário e a todas as contravenções; os
organismos do Estado com competência para a fiscalização de certas
actividades ou de execução de regulamentos especiais, quanto as
contravenções verificadas no exercício destas actividades ou contra estes
regulamentos. O exercício da acção penal depende da denúncia ao M.P, nos
casos em que a lei exige queixa, denúncia ou participação do ofendido ou de
outras pessoas; de acusação particular quando a lei exige a forma de
processo querela, acusação ou requerimento do ofendido ou de outras
pessoas. O M.P só pode acusar pelos factos de que tenha havido acusação
particular quando desta dependa o exercício da acção penal. Nestes casos, a
intervenção do M.P cessa com perdão ou desistência do assistente acusador
particular (art. 3 do DL n° 35007).
Para praticar o acto, ou seja, para o M.P dar o impulso processual
necessita de ter informação de que foi ou está para ser cometido um crime.
Contudo, basta a ocorrência do crime e o conhecimento pelo M.P para que
haja início da investigação criminal ou dar início á um processo–crime. A
notícia do criem pode chegar ao M.P, nos termos dos arts. seguintes: 160,

129
164, 163, 166, 167 todos do CPP/Mz, conjugado com o art. 9 do DL nº 35.007.
A denúncia feita às entidades diversas do M.P é transmitida a este art. 163
CPP/Mz e art. 8 do DL n° 35.007. Assim que os órgãos da PIC, actualmente
SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal forem detentores da
notícia do crime transmitem – na, ao M.P no prazo máximo de cinco dias, nos
termos do art. 167 CPP/Mz. A denúncia ao M.P é obrigatória para as
autoridades policiais, em relação a todas as infracções de que tenham tido
conhecimento e para os funcionários públicos em relação as infracções de
que tomem conhecimento no exercício ou por causa do exercício das suas
funções.
A notícia do crime sempre dá lugar a abertura do processo-crime e
consequentemente à investigação criminal, salvo quando os autos de notícia
levantados façam fé em juízo (art. 19 do DL nº 35.007). A investigação é
dirigida pelo M.P e coadjuvado pelos agentes do SERNIC, os quais actuam
sob orientação directa e na dependência funcional daquele órgão. Cabe ao
M.P, o domínio exclusivo da acção penal, pois o direito de punir, é um direito
exclusivo do Estado e, por isso, os particulares podem, nos que a lei
determina colaborar no exercício da acção penal pelo M.P, mas não o exercer
como direito privado (Corpo do DL n° 35 007). O processo penal
moçambicano divide se em duas fases de actividades de natureza distintas:
a fase de acusação, também chamada de fase da instrução (art. 10 do DL
35 007) e a fase de julgamento. A fase da instrução compreende a instrução
preparatória e instrução contraditória, em que a instrução preparatória
abrange todo o conjunto de provas que formam o corpo de delito e, tem por
fim reunir elementos de indiciamento necessários para fundamentar a
acusação (art. 10 do DL nº 35.007). A direcção da instrução preparatória
cabe ao M.P, a quem será prestado pelas autoridades e agentes da
autoridade todo o auxílio que para este fim necessitar (art. 14 do DL nº
35.007). A instrução contraditória constitui uma garantia constitucional e é
uma das fases do processo penal, na qual a decisão de acusar e não acusar é
feita na presença do Juíz (art. 37 do DL n º 35.007), devido a complexidade
da causa, exija uma investigação mais completa ou esclarecimento mais
amplo. A instrução contraditória é obrigatória nos processos de querela, e
facultativa (art. 327 CPP/Mz) nas restantes formas de processo em que é
admitida (processo de polícia correcional e processo sumário).
Portanto, em todas as formas de processo, com excepção dos
processos sumário e de transgressão, à requerimento do arguido, para a
realização de diligências por ele requeridas e destinadas a elidir ou
enfraquecer aquela prova e preparar ou corroborar a defesa, e a pedido do
assistente da decisão do M.P de abster se da acusação ou arquivamento, o

130
que é realizado através do despacho de pronúncia do Juíz de instrução. A
instrução contraditória é sempre presidida pelo Juíz (art. 330 CPP/Mz). As
diligências de instrução contraditória, havendo arguidos presos, são
realizadas dentro de três meses, se a infracção couber pena a que
corresponda processo de querela; e um mês se for pena a que corresponder
processo de polícia correcional.

5. DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS INDIVIDUAIS EM MOÇAMBIQUE

Nos termos do art. 11 da CRM, na sua alínea e), “a defesa e a promoção


dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”, constitui
um dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano. O art. 3 da CRM,
refere ainda que, “a República de Moçambique é um Estado de direito,
baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática,
no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do homem”.
Para Comparato (2003, p. 176), os direitos fundamentais são os que estão
consagrados na Constituição e representam as bases éticas do sistema
jurídico nacional, ainda que não possam ser reconhecidos como exigências
indispensáveis de preservação da dignidade humana. Ao passo que, Sarlet
(2009, p. 63), diz que, o conceito “Direitos Fundamentais”, aplica se para
aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do
direito constitucional positivo de determinado Estado, cuja proteção e
imprescindível para os Estados. No entanto, os direitos fundamentais que
vigoram em Moçambique, não se limitam apenas a constituição. Também
resulta da interpretação do art. 42 da CRM, segundo o qual: “Os Direitos
Fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros
constantes das leis”. Isto, significa que na República de Moçambique
reconhece se e respeita se os direitos estatuídos em normas internacionais,
como por exemplo, nas Cartas e Pactos das Nações Unidas sobre os direitos
humanos. Além disso, o art. 43 da CRM, ao determinar “os preceitos
constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e
integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem
e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos”, precede a recepção
formal destes instrumentos.
No mesmo sentido, os tratados e acordos internacionais, quando
validamente aprovados e ratificados e, após a respectiva publicação no
Boletim da República, vigoram na ordem jurídica moçambicana e tem valor
equiparado as demais leis ordinárias emanadas da Assembleia da República
(A.R) e do governo (art. 18 da CRM). Por isso, a protecção destes direitos em
Moçambique, não provem somente das leis internas, mas também

131
internacionais. Neste artigo, dentre os direitos, liberdades e garantias
consagrados na CRM, foi dedicada a atenção especial ao direito à liberdade
e a segurança consagrados no art. 59 nºs 1 e 2, onde se lê: “Na República de
Moçambique, todo tem direito a segurança, e ninguém pode ser preso e
submetido a julgamento se não nos termos da lei. Os arguidos gozam da
presunção de inocência até decisão judicial definitiva”. Assim a CRM, remete
para as leis ordinárias a determinação dos casos em que pode ocorrer a
prisão, seus prazos e as condições em que a mesma terá lugar. No entanto,
sendo a liberdade a regra e a privação da liberdade a exceção. Observa se a
seguir, o regime em que pode ter lugar a privação da liberdade do cidadão
em Moçambique.

5.1. A prisão preventiva em Moçambique

Segundo Foucault (2002, p. 166), a privação da liberdade dos


cidadãos servia no passado a guarda dos delinquentes de modo a assegurar
o cumprimento de outras penas, que puniam o culpado pelo castigo corporal
– morte, mutilação, espetáculos públicos e outras formas de humilhação.
Assim, representou o coroamento de concepções ético-políticas de maior
respeito pela dignidade da pessoa humana. Neste contexto, a privação da
liberdade dos cidadãos seria o centro de uma estratégia de dissociação
política da criminalidade marcada pela repressão da criminalidade das
classes inferiores. A privação da liberdade e na óptica de Foucault (2002, p.
168), a forma de aparelho disciplinar construído para exercer o poder de
punir mediante supressão do tempo livre. O mesmo autor, acrescenta que a
privação da liberdade é um aparelho jurídico – económico que cobra a dívida
do crime em tempo da liberdade suprida, mas, é sobretudo um aparelho
técnico – disciplinar construído para produzir docilidade e utilidade
mediante o exercício de coação educativa total sobre o condenado.
Destaque se que a privação da liberdade entende se como a reclusão
de um indivíduo num local ou estabelecimento inadequado a sua vida
privada, com obrigatoriedade ou não de se apresentar periodicamente as
autoridades, por vezes com vigilância e proibição de se ausentar do país.
Observe também, que os instrumentos internacionais que regem esta
matéria nem sempre utilizam a mesma terminologia para designar
“privação da liberdade”, podendo referir se, por exemplo, a captura,
detenção, interpelação, encarceramento, prisão, reclusão, custodia policial
ou prisão preventiva. A matéria de privação da liberdade no ordenamento
jurídico moçambicano, consta dos instrumentos legais em forma de prisão.
O individuo pode ser preso antes ou depois do julgamento, ou seja, a prisão

132
pode distinguir se, em prisão para a execução da sentença ou cumprimento
da pena e prisão preventiva. A prisão antes de julgamento chama se prisão
preventiva e é esta que interessa para efeitos deste artigo, para se
compreender até que ponto se respeita os direitos fundamentais dos
indivíduos. A prisão preventiva de um presumível infrator tem um fim de
natureza processual (parágrafo 3º do art. 291 do CPP/Mz), que é a garantia
de uma eficiente elaboração do processo e da execução da decisão final, a
saber: assegurar a prova (instrução do processo), prevenir a continuidade e
extensão da atividade criminal e garantir a exequibilidade da sentença. De
acordo com o preambulo do DL n° 185/72, de 31 de maio, “a prisão
preventiva é uma medida cautelar que se destina a assegurar o
cumprimento das obrigações a que o arguido, como tal, se encontra sujeito.
A CRM consagra princípios filosóficos e normativos que informam
expressamente que, o objetivo do Estado moçambicano, é a defesa e
proteção dos direitos e liberdades das pessoas. A CRM, CPP/Mz e as demais
legislações, proporcionam aos indivíduos os meios jurídicos necessários
para a proteção dos seus direitos. Vide artigos, 59, 60, 64 e 66, todos da CRM
e 312 e seguintes do CPP/Mz. De salientar que o art. 66 da CRM e 312 e
seguintes do CPP, retratam do Habeas Corpus. A matéria sobre prisão
preventiva esta consagrada também no capítulo III, entre os arts. 286 e 291
do CPP/Mz, e só pode ser autorizada nos termos de prisão em flagrante
delito e prisão fora de flagrante delito, nos termos arts. 287, 288 e 290, todos
do CPP/Mz.

5.2. Os direitos do arguido e o Habeas Corpus

O direito da pessoa capturada ou do arguido é mais uma garantia


processual penal, ou simplesmente uma proteção dos indivíduos privados
da sua liberdade. Sempre que, uma pessoa for capturada, a razão deve ser
pela suspeita da prática de um crime, ou por ação de uma autoridade. A
pessoa capturada deve ser levada sob custodia, devendo ser conduzida
perante um juiz ou outra autoridade habilitada por lei a exercer o poder
judicial, que decidirá sobre a legalidade e a necessidade da captura (art. 9º
do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos – PIDCP). Toda a pessoa
capturada, deve ser informada no momento da sua captura, as razoes da
captura, “devendo ser prontamente informada de qualquer acusação contra
ela (art. 9º do PIDCP).
Em Moçambique, para além da pessoa dever ser informada sobre as
razoes da captura, também deve ser entregue uma cópia do mandado de
captura com indicação do tipo legal do crime de que é acusado. O período

133
máximo permitido antes que a pessoa capturada seja entregue a um Juiz ou
entidade similar é limitado a 48 horas e este período é chamado de custodia
policial. E o período subsequente é chamado de prisão preventiva. Nesta
fase, a pessoa goza de presunção de inocência, até a sentença final. Ela aplica
se a todas as pessoas detidas e as que se encontram a aguardar os tramites
em liberdade, e deve também refletir se no tratamento delas. A pessoa
privada da sua liberdade, deve também ter oportunidade de ser ouvida por
uma autoridade judicial ou uma outra autoridade; receber comunicação
pronta e completa de qualquer ordem de detenção, juntamente com as
razoes para tal. Deve ainda permitir se que a pessoa detida, comunicar com
os seus representantes litigiosos e, ter tempo e condições para consulta em
sigilo absoluto, sem censura e sem demora. Tais comunicações serão
inadmissíveis como prova contra a pessoa detida, a menos que estejam
conectadas com um crime em andamento ou em planeamento.
Após a captura e a constituição do capturado em arguido, ele passa a
gozar dos seguintes direitos: o direito de presença nos actos processuais que
lhe digam respeito; ser ouvido previamente pelo Juiz de Instrução Criminal,
da causa ou do lugar da prisão, no caso de arguido preso – alínea a) do n° 2
do art. 1º e art. 2º da Lei n° 2/93, de 24 de junho. Também tem o direito de
escolher defensor ou pedir ao Tribunal que lhe nomeie, ou de constituir
advogado em qualquer fase do processo, a ser assistido por ele em todos os
actos e a comunicar mesmo em privado (art. 62 n° 2, da CRM). Porém,
enquanto o arguido pode constituir defensor em qualquer fase do processo,
o Juiz é obrigado a nomeá-lo nos casos em que a lei determina a
obrigatoriedade de assistência do defensor (art. 49 do DL n° 35 007). O
arguido ainda tem o direito de intervir na instrução oferecendo provas e
requerendo diligencias (instrução contraditória, parágrafo 1º, art. 352
CPP/Mz); o direito de ser informado dos direitos que lhe assistem (Exemplo:
n° 3, art. 253 e 255, ambos do CPP/Mz); o direito de não responder as
perguntas feitas relativamente a factos que lhe são imputados (art. 255 do
CPP/Mz); e o direito de recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis
(art. 647 n° 2, do CPP/Mz). Assim, para a efetivação destes direitos que ao
arguido está vinculado, a luz do processo penal moçambicano, adiciona se o
direito de um defensor ou advogado. A função do defensor ou advogado, é
conjuntamente com o Tribunal ou M.P, trazer provar que possam afastar a
imputabilidade, ou minorar a pena a aplicar se ao arguido, como também
dar realce a estas situações. O defensor, seja ou não advogado, é um órgão
autônomo da administração da justiça moçambicana, cabendo lhe colaborar
com o Tribunal e o M.P para a descoberta da verdade material e a realização
de direitos.

134
Para além dos mecanismos e garantias arroladas neste trabalho, em
Moçambique, existe a figura de “Habeas Corpus”. Esta e uma garantia
constitucional, que vem consagrada no art. 66 da CRM, e nos arts. que vão de
312 a 325 do CPP/Mz, a qual e interposta perante Tribunais Judiciais, numa
situação ilegal de privação da liberdade. E assim, há providencia inominada
(anônima) de “Habeas Corpus” (art. 312 do CPP/ Mz) e a providencia de
“Habeas Corpus” propriamente dita ou extraordinária (art. 315 do CPP/Mz).
O requerimento para a providencia inominada prevista no art. 312 do
CPP/Mz, e dirigido ao Tribunal Judicial da Província e tem lugar, quando
alguém detido por qualquer autoridade, requeira a sua imediata
apresentação judicial, com algum dos seguintes fundamentos: estar
excedido o prazo para a entrega ao poder judicial; manter se o detido fora
dos locais legalmente permitidos; e ter sido detido por autoridade
incompetente ou por factos que a lei não permite. A providencia de “Habeas
Corpus” , propriamente dita ou extraordinária, prevista no art. 315 do
CPP/Mz, surge quando se trata de uma prisão efetiva atual, ferida de
ilegalidades, pelos motivos como: não ser da competência dos Tribunais
Judiciais da Província, conhecer os motivos da detenção; ter sido a detenção
ordenada autoridade cuja competência excede a área da província; ser a
detenção efetuada ou mantida por ordem de autoridade judicial
insusceptível de recurso; a detenção ter sido efetuada e ordenada por quem
para tanto, não tenha competência legal; ser movida por um facto em que a
lei não autoriza a prisão; manter se o detido além dos prazos legais para a
apresentação em juízo ou para a formação da culpa; e se a detenção
prolongar se para além do tempo fixado judicialmente, param a duração da
pena, medida de segurança ou da sua prorrogação. Esta providencia só tem
lugar quando não haja lugar a providencia inominada do “Habeas Corpus”, e
o seu requerimento e dirigido ao Tribunal Supremo.
Estas providências permitem que, os trâmites processuais e o
mecanismo normal de funcionamento da administração da justiça sejam
salvaguardados suficientemente, para evitar a contingência de prisões
ilegais. Sendo que, a providencia do “Habeas Corpus” é interposta perante
Tribunal, cabendo a si mesmo, a tomada de decisão final, se a polícia for
avisada sobre o pedido destas providencias, terá de esperar pela decisão do
Tribunal. Nestes termos, o “Habeas Corpus”, aparece neste âmbito como
uma figura jurídica muito importante para a diminuição e combate as
prisões arbitrarias em Moçambique, partindo do pressuposto de que bem
conhecido e executado, apenas poucas pessoas estariam privadas das suas
liberdades individuais, tendo em conta os crimes praticados.

135
6. A PRISÃO PREVENTIVA NO BRASIL

Trata se duma prisão cautelar e só é decretada quando não for cabível


outra medida cautelar. No Brasil encontra se no art. 282, parágrafo 6º do
CPP/Brasileiro (CPP/Br), que foi objeto de reforma em 2011, que
atualmente estabelece o seguinte: “a prisão preventiva será determinada
quando não for cabível a sua substituição por qualquer outra medida
cautelar (art. 319 do CPP/Br)”. Conforme Capez (2011), a prisão preventiva
encontra se dividida em quatro (4) espécies, nomeadamente: a prisão
preventiva por convenção, substitutiva, autônoma e por averiguação. A
prisão preventiva convertida ou por conversão e aquela derivada do Auto de
Prisão em Flagrante Delito Homologado, prevista no art. 310, inciso II do
CPP/Br, ao dispor que, “converter a prisão em flagrante em preventiva,
quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se
revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da
prisão”. Ocorre quando todos os aspectos estão corretos e devidamente
cumpridos e fundamentados.
A prisão preventiva substitutiva ou subsidiaria e aquela decretada em
substituição de uma outra medida cautelar aplicada (CAPEZ, 2011, p. 1); e
esta e usada quando o Juiz decide pelo afastamento do réu da vítima, mas
aquele não cumpre a decisão, então o Juiz substitui a medida pela prisão
preventiva. Funciona tanto na fase de investigação, quanto na fase
processual. E solicitada tanto pelo M.P e tanto pelo delegado da Polícia. A
previsão legal da prisão preventiva substitutiva está prevista no art. 282,
parágrafo 4º e no art. 312, parágrafo único, ambos do CPP/Br. A prisão
preventiva autônoma ou independente tem a sua previsão legal no art. 311
do CPP/Br, segundo o qual, “em qualquer fase da investigação policial ou do
processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo Juiz, de ofício, se
no curso da ação penal, ou a requerimento Ministério Público, do querelante
ou do assistente ou por representante da autoridade policial”. A prisão
preventiva para averiguação tem na sua previsão no art. 313, parágrafo
único, que dispõe que, “também será admitida a prisão preventiva quando
houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não
fornecer elementos suficientes para esclarece–la, devendo o preso ser
colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra
hipótese recomendar a manutenção da medida”. Esta modalidade de prisão,
se justifica dentre outros factos, pela ocultação dos dados pelos quais alguns
sujeitos que já cometeram crimes e tentam atrapalhar a polícia para
continuar em liberdade. Na opinião de Capez (2011), “diante deste quadro,
a autoridade da polícia judiciaria não pode estar à mercê deste expediente

136
enganoso, correndo o risco de liberar um criminoso procurado pela prática
de diversos crimes”. Perante esta situação aparece a necessidade de sempre
que não for possível a identificação civil de uma pessoa ou ela não fornecer
elementos suficientes para o seu esclarecimento, o M.P ou autoridade
policial requerer ao Juiz a decretação da prisão preventiva para assegurar a
aplicação da lei penal ou conveniência da instrução criminal, nos termos dos
arts. 311, 312, 313 e 315, todos do CPP/Br.
Nos termos do art. 313 do mesmo código, apenas é admissível a prisão
preventiva, nos crimes dolosos punidos com a pena privativa de liberdade
máxima superior a quatro (4) anos; se tiver sido condenado por outro crime
doloso, em sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência
doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo
ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas
de urgência. Contudo, a prisão preventiva não cabe para transgressões ou
contravenções e para os crimes culposos (art. 313 do CPP/Br). Também é
inadmissível a prisão preventiva nos crimes com pena igual ou inferior a
quatro (4) anos, exceto nos crimes de ameaça. Igualmente, não se permite a
prisão preventiva nas situações em, que o sujeito, tenha praticado a infração
penal ao abrigo da legitima defesa ou do estado de necessidade.

7. ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O SISTEMA PENAL DE MOÇAMBIQUE


E O DO BRASIL

Tendo em vista a estrutura da Carta constitucional de cada um dos


Estados e do respectivo Código do Processo Penal, assim como as demais
leis, os órgãos de administração de justiça, tanto em Moçambique, assim
como no Brasil, tem uma composição diferente, adoptam nomenclaturas
variadas e tem âmbito de actuação e funcionamento distintos.

7.1. Independência e autonomia da polícia criminal

Uma das diferenças fundamentais entre o sistema penal de


Moçambique e do Brasil reside na organização e a função da polícia. Como
se referiu anteriormente, em Moçambique há uma única instituição policial
com funções de prevenção e de investigação de crimes, com mesma carreira,
mesmo comando, mesmos procedimentos, em todo o país (Províncias,
Distritos, Postos Administrativos e Localidade).
Enquanto no Brasil há três instituições que exercem estas funções,
com carreiras e comandos diferenciados, nomeadamente, a Polícia Militar,
Polícia Civil e a Polícia Federal. Neste contexto e sob esta perspectiva, a

137
polícia do Brasil mostra se ter maior autonomia e independência em termos
de prevenção e investigação de crimes, admitindo a hipótese de possível
existência de certa incompatibilidade funcional entre as duas principais
funções (Administrativa e Judiciaria) estarem concentradas numa única
instituição policial. Se nota ainda que, no Brasil há uma clara separação de
funções policiais (Preventiva e Investigativa), sem hipótese nenhuma de
interferência na investigação, e nem de incompatibilidades de funções.
Todavia, o sistema brasileiro apresenta algumas particularidades, como por
exemplo, a existência duma carreira diversificada na mesma instituição e na
existência de duas policias (Federal e Civil) com quase mesmas atribuições
– Investigação de Crimes. Portanto, o sistema de carreira única na Polícia
Federal e muito prejudicial porque não permite a evolução dos agentes com
cargos inferiores.
Assim sendo, a partir duma análise crítica, defende se que no Brasil
deveria se unificar as carreiras no seio das instituições de segurança pública,
com vista a proporcionar mesmas oportunidades para os agentes internos,
garantindo deste modo uma motivação dos funcionários. Neste ponto de
vista, Chiavenato (1999, p. 54), explica que, uma instituição que valoriza o
recrutamento interno, para preencher uma vaga, aproveita o potencial
humano existente na própria instituição ou organização. A razão deste
aproveitamento prende se, amiúde, com promoções, programas de
desenvolvimento pessoal, planos de carreiras e transferência. Mas o atual
modelo de carreiras adoptado na Polícia Civil e Federal não permite a
evolução aos agentes internos, ao contrário, valoriza o pessoal externo –
recrutamento externo para os cargos de chefia, isto torna se desgastante e
cria um ambiente de descontentamento no seio dos funcionários de
segurança pública. Em Moçambique, a polícia segue uma carreira única, em
que os trabalhos ostensivos, preventivos e investigativos são desenvolvidos
conforme a experiência, perfil, competência e força de vontade de cada
agente de polícia, que consoante as características arroladas, são afetos,
promovidos e transferidos para cada área especifica, que pode ser uma
Direção, um ramo ou Departamento da PRM. Este modelo permite o
desenvolvimento do pessoal interno, pois para além de qualquer agente da
polícia poder alcançar as chefias que nela existe, dependendo de bom
desempenho e boas condições de promoção do policial, como também pelo
aumento do salário de que o policial vai adquirindo com a mudança de
carreira. O que não se verifica na Polícia Civil e Federal brasileiras. Quanto a
estrutura da Polícia da República de Moçambique (PRM), ela deveria ser
ramificada em duas policias. Polícia Administrativa (Preventiva e
Admirativa) e Polícia Judiciaria, tal como está organizada no Brasil, a fim de

138
garantir a melhor prossecução do interesse público (a segurança pública) e
das garantias da opinião pública, consolidando assim um Estado de
Democrático. O modelo atual moçambicano mostra se ineficiente, há vezes
que próprios agentes da investigação criminal tem sido pôr a farda e alinhar
com agentes da polícia ostensiva, principalmente nas quadras festivas e nos
eventos de grande consideração, abandonando desta forma a função
investigativa por um certo período, o que condiciona certa morosidade de
elucidação dos processos-crimes e consequentes prisões preventivas fora
do prazo. Este facto leva-nos a crer que o modelo brasileiro é melhor que o
de Moçambique, principalmente neste aspecto de separação da polícia
ostensiva da investigativa.

7.2. A formação dos agentes da polícia criminal

Outra diferença reside entre os dois sistemas, tem a ver com a


formação dos agentes de investigação criminal. Em Moçambique, por
exemplo, os agentes do SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal,
são meros agentes da polícia preventiva, selecionados aleatoriamente. São
agentes sem formação superior (Direito, etc.), como requisito formal, mas
que executam atividades ligadas à investigação, prisão em flagrante delito,
estando subordinados, ou susceptíveis a subordinação de natureza dupla:
por um lado, uma subordinação funcional ao Ministério Público (M.P) e, por
outro, uma subordinação hierárquica aos oficiais e generais da polícia. No
Brasil, concretamente no rio Grande do Sul, o recrutamento de agentes da
polícia para o exercício das funções de investigação de crimes (Delegado de
Polícia, Inspetor e Escrivão de Polícia), e feito mediante um concurso público
e, exige se a conclusão de um nível superior em qualquer área, exceto para o
cargo de Delegado de Polícia, em que se exige um nível académico de
bacharelato em Direito. Este modelo se afigura, e mais eficiente que o
modelo moçambicano, na medida em que no Brasil, os agentes concorrem
para uma área já especifica e são formados exclusivamente para aquela área.
Contrariamente ao que sucede em Moçambique, onde se recrutam agentes
formados na área ofensiva (ostensiva e preventiva) para uma área
investigativa. Assim sendo, há necessidades de uma reforma no seio da PRM,
visto que os requisitos exigidos para fazer parte da fileira são insuficientes
e prejudica de certo modo o profissionalismo, sobretudo a falta de
conhecimentos em matéria policial (desconhecimento do direito). Ainda
mais, para além das condições materiais e tecnológicas, três aspectos
fundamentais devem ser incluídos na futura reforma da corporação em
Moçambique:

139
– Grau académico de pelo menos 12ª Classe para ingressar na
corporação da PRM;
– Dilatar a duração de cursos dos atuais seis (6) meses para um
mínimo de dez (10) meses, podendo alargar se até um (1) ano;
– Revisão dos currículos de formação, de forma a introduzir no
programa de formação, matérias relacionadas com direitos
humanos, Direito, Sociologia, Sistema Jurídico, Assembleia da
República, Procuradoria da República, Presidente da República,
Poder executivo e respectivas competências de cada um destes
órgãos de poder.

7.3. Conhecimento a lei aplicável a prisão preventiva pelos agentes da


polícia

Quanto ao grau de conhecimento das normas aplicáveis as situações


de prisão preventiva ou de flagrante delito pelos agentes policiais, notam se
diferenças significativas. Obviamente, tem a ver fundamentalmente com
formação e os requisitos exigidos no ingresso da carreira policial. No Brasil,
concretamente no Rio Grande do Sul, em regra geral, a competência para
ordenar lavratura do Auto de Prisão em Flagrante (APF), é do Delegado de
Polícia que, por lei, tem de ter obrigatoriamente uma formação em Direito.
Porém, o Juiz pode também lavrá-lo excepcionalmente. Em Moçambique, a
lavratura do Auto de Notícia (art. 166 do CPP), compete ao agente da polícia
que presenciar a prática do crime, ou ao oficial de Permanência que estiver
de plantão na subunidade de polícia (art. 166 do CPP/Mz). E estes agentes
possuem nível académico de 10ª e 12ª Classes, mais a formação policial de
seis meses.
Pelos factos arrolados acima, fica claro que o desconhecimento do
Direito pode influenciar na inobservância dos procedimentos legais para
efetivação das medidas cautelares (Prisão Preventiva). Portanto, o
desconhecimento das leis por parte de alguns agentes da polícia, acima
referido, diverge com o pensamento do Leitão (1998, p. 12), quando diz que
uma das funções da polícia é de garantir que as normas emanadas pelo
poder legislativo sejam efetivamente respeitadas. Pese embora, o facto de
que as leis moçambicanas não são tão flexíveis como as do Brasil, pelo facto
destas permitirem medidas alternativas a prisão, como por exemplo: a
caução ou fiança, esta prática evitaria encarceramentos desnecessários
protagonizados no seio policial.

140
7.4. Factores que influenciam a ocorrência das prisões ilegais
(arbitrárias)

De acordo com Papadakis e Gemo (2008, p. 10 – 11), entende se por


prisão ilegal, àquela que é efetuada fora dos casos previstos na lei. Ela
diferencia se da prisão irregular, porque esta consiste na violação dos
requisitos formais da captura e de apresentação do arguido a autoridade
competente. De acordo com os mesmos autores, afirmam que, “será ilegal a
prisão ordenada por quem não tenha competências para tal. Por exemplo,
quando seja efetuada durante a noite com entrada em casa habitada sem
permissão dos moradores, etc.”, e é exemplo da prisão irregular, “a prisão
ordenada sem mandado de captura, ou quando o arguido não seja
apresentado ao Juiz dentro dos prazos fixados na lei (mínimo 48 horas e
máximo de 5 dias”).
As duas situações descritas constituem prisões arbitrárias, porque são
efetuadas ou mantidas fora dos padrões legais estatuídas pelas leis nacionais
e internacionais. Ademais, deve se entender também por prisão arbitraria
neste artigo, a prisão preventiva com prazo previsto na lei esgotado ou extinto.
O CPP/Mz, consagra prazos ou limites distintos de duração da prisão
preventiva com ou sem culpa formada. Os prazos sem culpa formada estão
previstos no art. 308 do CPP/Mz, que dispõe: “nenhum arguido pode estar
preso sem culpa formada além dos prazos estabelecidos na lei”, nos termos do
artigo supracitado. Os tais prazos são:

a) Desde a captura até a notificação ao arguido da acusação, ou do


pedido de instrução contraditória pelo M.P (parágrafo primeiro
do art. 308 do CPP/Mz), os prazos da prisão preventiva não
podem exceder: 20 dias, por crimes dolosos, a que caibam pena
correcional de prisão superior a um (1) ano; 40 dias, por crimes
a que caibam penas de prisão maior; 90 dias, por crimes cuja
instrução preparatória seja da competência exclusiva do
SERNIC ou a ele deferida. Estes prazos contam se a partir da data
de captura do indivíduo.
b) Desde a notificação ao arguido da causação ou do pedido da
instrução contraditória pelo M.P até ao despacho de pronuncia
em primeira instancia (parágrafo 1º do art. 308 do CPP/Mz), os
prazos da prisão preventiva não podem exceder: 3 meses, se a
infração corresponder pena que corresponda o processo de
polícia correcional; 4 meses, se ao crime couber a pena a que
corresponda processo querela; estes prazos contam se a partir

141
da notificação ao arguido da acusação que sobre si impende ou
do pedido da instrução contraditória.

Sobre estas situações de prisões ilegais, em algum momento pela


ignorância da lei, em Moçambique, as prisões arbitrarias são frequentes. O
exemplo dessas realidades, tem se o caso que se deu com o falecido Paulo
Estevão Daniel, mais conhecido por “Danger-Man”, julgado em 2008 pelo
Juiz Dimas Marroa, sob acusação da tentativa de assassinato do Advogado
Albano Silva. O julgamento e a sua soltura aconteceram oito anos depois que
ele foi recolhido para a Cadeia de Máxima Segurança da Machava, vulgo B.O,
em 2000. Uma vez não encontradas provas sobre o seu envolvimento no
crime acusado, saiu em liberdade. Esta e uma das situações de prisões ilegais
em que se consubstancia a uma autêntica violação dos direitos humanos, o
que também contribui para a superlotação das cadeias em Moçambique. O
problema surge da inobservância dos prazos de julgamento, a aplicação de
penas da prisão efetiva com curta duração em detrimento das medidas
alternativas a prisão, e a morosidade na instrução preparatória e na
apreciação e decisão dos recursos interpostos das sentenças condenatórias.
Portanto, uma inversão do processo penal “prender para investigar, quando
a regra devia investigar para prender” (MABOTE, 2014).
Em suma, pode se dizer que, as consequências destes todos problemas
arrolados neste artigo, não tem repercussões só em Moçambique, mas
também no Brasil e em outras partes do planeta, ou seja, em outros países.
Por exemplo, segundo Matope (2014), o Relatório do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD) de 2012, classificou
Moçambique entre os seis piores países da África Austral. Na categoria de
segurança e Estado de Direito, o país estava na 17ª posição e na participação
e direitos humanos, em 25º lugar. Estes dados demonstram que o país não
só tem baixa consideração pelos direitos humanos, mas também numa
continua falta de respeito e consideração pelos direitos à liberdade.

8. CONCLUSÃO

Analisada e numa perspectiva de comparação do sistema penal dos


dois países, Moçambique e Brasil, a estrutura e o funcionamento do sector
de administração da justiça, o estudo do habeas corpus e prisões preventivas
a fim de aferir os factores que concorrem para as prisões arbitrárias no
âmbito da prevenção e combate ao crime, e analisa também as políticas de
reclusão. Neste artigo, constatou se que várias são as diferenças entre o
sistema criminal moçambicano e brasileiro, ou seja, entre os dois

142
ordenamentos jurídicos; contudo, os procedimentos são semelhantes no
que se refere a investigação criminal. Compreende se que as instituições
responsáveis pela investigação criminal têm estruturas aparentemente
equivalentes, o que muda são apenas os nomes. Exemplo, Moçambique
existe SERNIC – Serviço Nacional de Investigação Criminal, enquanto no
Brasil tem se a Polícia Civil.
As dessemelhanças negativas e positivas são evidentemente maiores
nos dois sistemas criminais. Neste contexto, pode se dizer que nos dois
sistemas criminais moçambicano e brasileiro tem uma estrutura obsoleta, e
carecem de algumas reformas ao nível institucional e penal. Estas reformas
devem ser feitas no regime jurídico da prisão processual, na liberdade
provisória, na defensória pública, no modelo de carreira dos agentes e ainda
nas medidas cautelares diversas à prisão, com vista a salvaguardar os
direitos fundamentais das pessoas. Relativamente aos fatores que
concorrem para as prisões ilegais, no âmbito da investigação dos crimes e
na aplicação das medidas cautelares, verificou se que várias são as
incongruências existentes no sistema criminal moçambicano e brasileiro.
Por exemplo, o SERNIC, carece de uma reforma profunda, partindo da sua
estrutura funcional, passando pela reformulação dos programas de
formação dos agentes até a sua organização. O modelo de carreira policial
no Brasil não é dos melhores, o que provoca a falta de motivação por parte
da corporação, mas concretamente da área de investigação e consequente
baixo nível de elucidação dos processos-crimes instaurados, factos que
propiciam a existência de muitas prisões provisórias fora do prazo.
Outrossim, em Moçambique, o que ainda contribui para a existência de
muitas prisões ilegais e pelo desconhecimento da lei penal em matéria das
prisões provisórias ou ainda, desconhecimento em matéria dos prazos das
prisões preventivas e a sua aplicabilidade, associado ao desconhecimento da
função do instituto de habeas corpus.
Portanto, para que não haja prisões ilegais em Moçambique e no
Brasil, primeiro deve haver uma reforma profunda nos dois sistemas,
começando pelo Moçambique. Neste pais, precisa se duma reforma no
tocante ao nível académico dos agentes da polícia, campanha de
sensibilização em matéria penal de forma contínua para os agentes da lei e
ordem, dilatar a duração de cursos dos actuais seis (6) meses para um
mínimo de dez (10) meses, podendo alargar se até um (1) ano e revisão dos
currículos de formação, de forma a introduzir no programa de formação,
matérias relacionadas com prazos das prisões preventivas, direitos
humanos, Direito, Sociologia, Sistema Jurídico, Assembleia da República,
Procuradoria da República, Presidente da República, Poder executivo e
respectivas competências de cada um destes órgãos de poder; e quanto ao
Brasil, necessita se duma reforma profunda sobre a política de carreiras dos
agentes da polícia e deve também o respeito pela lei penal e constitucional,

143
no que diz respeito aos prazos de prisões provisórias, visto que o
incumprimento do procedimento penal fere com aquilo que são os direitos
fundamentais dos cidadãos (direito à liberdade).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBARELLO, Luc et al. Práticas e Métodos de Investigação em Ciências Sociais –


Trajetos. Lisboa: Gradiva, 1997.
Constituição da República de Moçambique de 2004.
Constituição da República do Brasil (1988).
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CHIMUCO. Armindo Moisés. Morosidade no Processo Penal. 1ª Ed. 2014. Escolar
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TUCCI, Rogério Lauria. Habeas corpus e mandado de segurança: diversificações
conceptuais. In Ciência Penal.

144
FALTA DE NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE EM
PROCESSO PENAL

HUGO DO ROSÁRIO CONCEIÇÃO ALBINO MAPIPELE*

INTRODUÇÃO

Aos órgãos que compõem o poder judiciários, é-lhes dada a nobre


missão de aplicar justiça aos casos concretos submetidos ao seu crivo, nos
termos do artigo 1 da Lei n.º 24/2007, de 20 de agosto. Não é de menor
importância frisar desde já que a justiça é um dos maiores anseios da
humanidade e a sua atribuição específica a órgão público para gerir em
nome e no interesse do povo demonstra claramente que se trata de um bem
público essencial e para sua implementação efectiva é consignado em lei
ritual próprio em que se garante a igualdade de armas entre todos os
intervenientes da relação material controvertida.
É de todo inquietante que o legislador consagre a validade de uma
decisão judicial que não respeitou um direito fundamental do cidadão,
quando se sabe que os direitos básicos do cidadão vinculam todas as
entidades públicas bem como as privadas por força do preconizado no n.º 1
do artigo 56 do texto ápice. De acordo com o previsto no artigo 10 da
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 7 da Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos, todo o indivíduo tem direito a um
julgamento justo, isto é, aquele em que lhe é possibilitado o direito de expor
a sua versão dos factos, de refutar especificadamente cada artigo deduzido
na acusação, imparcialidade do juiz e decisão com força de caso julgado
dentro de um prazo razoável.

*
Hugo do Rosário Conceição Albino Mapilele, Juiz de Direito “A” do Tribunal Administrativo Provincial
de Niassa, Mestre em Direito Administrativo pela UCM – FAGREEF, Docente Universitário desde o ano
de 2013, nas disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Administrativo I e II e Contencioso
Administrativo. E-mail: hugomapilele@gmail.com. Contacto: +258 87 82 32 889.

145
Hoje em dia, vivemos na era da globalização em que a interacção entre
países de diversas partes do globo se intensificou, devendo-se,
especialmente este fenómeno as relações comerciais que buscam novos
mercados para colocação e venda de produtos pelos países fabricantes de
bens enquanto os países adquirentes possuem matéria-prima de interesse
para aqueles países. É digno de nota frisar que o ideal dessas relações
travadas na seara económica, era que ocorressem nas mais perfeitas
condições, mas a vida em sociedade não se resume ao comércio, há vários
aspectos da conduta homem inserido no meio social que lesam bens
jurídicos fundamentais, os quais requerem intervenção do Direito Penal e
Processo Penal. Em tais casos, o estrangeiro que é imputado a
responsabilidade pelo cometimento de um ilícito criminal e não tenha
conhecimentos bastantes para se pronunciar devidamente em torno das
acusações que sobre si impendem, prevê a norma contida na alínea “c” do
n.º 2 do artigo 136 do Código de Processo Penal, aprovado pela Lei n.º
25/2019, de 25 de dezembro, que a decisão judicial final recaída sobre o
processo penal é válida, porém, é notório o prejuízo resultante da falta de
intérprete para exercício cabal da defesa.

2. OBJECTIVO

A principal finalidade inerente a elaboração do presente trabalho, é dar


a conhecer as implicações jurídico-legais da falta de nomeação de intérprete
em processo penal, porquanto, em nosso entendimento, tratando-se de
nulidade tal e qual preconiza o legislador, não depende de arguição por
qualquer das partes intervenientes no processo, o Tribunal tem o dever de
conhecer a título oficioso ex vi do preceituado no artigo 286 do Código Civil,
e do artigo 130 da Lei n.º 14/2011, de 10 de agosto. É o que iremos
demonstrar no presente estudo. Para além da tese de desnecessidade de
invocação pelo interessado da nulidade respeitante a ausência de intérprete
quando se repute necessário e pertinente para justa composição do
processo-crime, igualmente merece relevo, trazer à colação a nossa
compreensão com respaldo no quadro jurídico vigente de que a falta de
intérprete viola o conteúdo essencial do direito de defesa, e em virtude de
tal facto, a decisão judicial eivada em sua estrutura de defeito respeitante a
inobservância do conteúdo essencial de um direito básico do cidadão, é nula
de pleno direito.

146
3. METODOLOGIA

Ocorre indagar, antes de adentrarmos na análise propriamente dita da


temática a que nos propomos debater, o que se deva entender por
metodologia. A este propósito, sempre pertinentes são as palavras de
Maxwell Ferreira de Oliveira1:

“Metodologia literalmente refere-se ao estudo sistemático e lógico dos


métodos empregados nas ciências, seus fundamentos, sua validade e
sua relação com as teorias científicas. Embora procedimentos variem
de uma área da ciência para outra, por exemplo, da área de exactas
para a área de humanas – diferenciadas por seus distintos objectos de
estudo, consegue-se determinar alguns elementos que diferenciam o
método científico de outros métodos (filosófico e algoritmo –
matemático etc.). Ao relatar os seus resultados, o cientista deve
também contar como chegou a eles, qual caminho seguiu para
alcançá-los. Trata-se, pois, da apresentação do que se chama de
método científico.”

Uma vez assente a significação peculiar de metodologia, cabe frisar que


o estudo adoptou como forma sequente e sistemática de elaboração
(método) a consulta bibliográfica em primeira instância e ulteriormente o
devido enquadramento legal, assim entendemos realizar a pesquisa, por
virtude de ser mais profícuo para o fim que se pretende obter com o
presente estudo. Paulo Nader2, põe alguma luz sobre o papel fulcral da
doutrina, ao dizer que:

“A actividade doutrinária de sistematização e interpretação das


normas jurídicas beneficia o trabalho dos advogados e juízes. Tanto a
arte de postular em juízo quanto a de julgar requerem o conhecimento
do Direito. A lição dos juristas, apresentada em seus tratados e
monografias, é uma fonte valiosa de orientação, capaz de propiciar
embasamento científico ao raciocínio jurídico. A influência da obra
dos juristas se torna mais palpável e decisiva no tocante ao ensino do
Direito nas universidades. O instrumental básico do estudante são os
livros e os códigos. Enquanto as ciências da natureza possibilitam a
investigação em laboratórios, a compreensão do fenómeno jurídico se
alcança pelo estudo e reflexão das teorias expostas em livros. Se a
prática forense é necessária à formação do bacharel, a verdadeira
cultura tem por fundamento o sólido conhecimento doutrinário.”

1
OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de, Metodologia científica: um manual para a realização de pesquisas em
Administração / Maxwell Ferreira de Oliveira. Catalão: UFG, 2011, p. 8.
2
NADER, Paulo, Introdução ao Estudo do Direito, www.processtext.com/abclit.html, p. 129.

147
Feitas as considerações pertinentes, cumpre notar que a nossa pesquisa
consubstancia uma abordagem qualitativa da temática em análise, na exacta
medida em que procura compreender de forma profunda as razões
subjacentes ao regime de nulidade dependente da arguição quando à luz da
legislação nacional e da doutrina maioritária é consentâneo o entendimento
de que não carece o acto nulo de arguição, é conhecida a nulidade
oficiosamente pelo Tribunal em qualquer fase do processo, por conseguinte,
o que se pretende demonstrar com a indagação jurídico-legal das demais
normas existentes em nosso ordenamento e da pesquisa doutrinária, é a
nossa tese de que o regime de nulidade tem um regime jurídico próprio que
o legislador processual penal dele não pode afastar-se sob pena de
desvirtuar os mandamentos nucleares do sistema vigente.

4. REFERENCIAL TEÓRICO

Para compreender melhor a tese expendida no presente trabalho,


importa efectuar um breve excurso pela doutrina com a finalidade de trazer
a significação jurídica específica das palavras-chave empregues, para que
assim se torne de fácil percepção a ideia central defendida por nós, qual seja,
o desvalor jurídico de nulidade da sentença decorrente da postergação do
dever de indicação de um intérprete para veicular de forma clara, precisa e
suficiente os argumentos do acusado no processo-crime.
De acordo com o que ensina o insigne professor Jorge Miranda3,
entende-se por direitos fundamentais:

“Os direitos ou as posições jurídicas activas das pessoas enquanto tais,


individual ou institucionalmente consideradas, assentes na
Constituição, seja na Constituição formal, seja na Constituição
material – donde direitos fundamentais em sentido formal e direitos
fundamentais em sentido material….não há verdadeiros direitos
fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o
poder, beneficiando de um estatuto comum e não separadas em razão
dos grupos ou das instituições a que pertençam; não há direitos
fundamentais sem Estado ou, pelo menos, sem comunidade política
integrada (…) não há direitos fundamentais sem reconhecimento de
uma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao
poder político; não há direitos fundamentais em Estado totalitário ou,
pelo menos, em totalitarismo integral.”

3
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Direitos Fundamentais, Tomo IV. Coimbra:
Coimbra Editora, 2012, p. 9-10.

148
Conforme o magistério de António Enrique Pérez Luno apud
Lourivaldo da Conceição4, os direitos fundamentais são definidos como:

“Um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento


histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da
igualdade humanas, que devem ser reconhecidas positivamente pelos
ordenamentos jurídicos a nível nacional e internacional. E explica:
muito embora essa definição possa parecer tautológica e teleológica,
na realidade foge desses dois defeitos, bem como das criticadas
equivocidade e imprecisão, ao explicitar o objecto e fundamento de
toda teoria dos direitos humanos (valores da dignidade, da liberdade
e da igualdade humanas), bem como o carácter histórico das faculda-
des e instituições que os concretizam - muitos dos direitos humanos
considerados fundamentais no mundo de hoje – os direitos sociais,
por exemplo – não constavam das declarações do séc. XVIII.”

À sombra dos ensinamentos ministrados pelos citados autores, pode-


se, com segurança, estabelecer que direitos fundamentais são posições
jurídicas activas dos cidadãos merecedoras da mais elevada protecção
estadual em razão da sua preponderância para existência condigna do
indivíduo na comunidade politicamente organizada e funcionam como
limitadores do poder de intervenção pública na esfera jurídica dos
particulares. Esta ideia se encontra intimamente adstrita ao preconizado
nos artigos 3, 82 e 248, todos da lei fundamental de Moçambique, sem
prejuízo de outros actos normativos que consagram direitos básicos dos
cidadãos.
Quanto ao desvalor jurídico do acto, importa ter-se presente que se
reveste a invalidade do acto de quatro espécies fundamentais: a) acto nulo,
b) acto inexistente, c) acto anulável ou d) acto ineficaz. Sublinhe-se que em
razão de não fazer parte de nosso estudo, limitaremos a apreciação da
invalidade somente ao acto nulo com menção sucinta de que o acto é
inexistente quando nem sequer se amolda ao regime legal previsto para
determinado acto, v.g., acusação criminal expedida em dado processo-crime
por cidadão que não possui vínculo jurídico-laboral específico com o Estado
por virtude de não ter o grau de licenciatura em direito nem ter frequentado
o centro de formação específica para desempenhar a função de procurador,
o acto será anulável quando padecer em sua estrutura de vício leve que não
prejudica o escopo pretendido com a produção do mesmo, v.g., o pedido de
cabimento de verba dirigido ao Ministro das Finanças por meio de Nota e
não Ofício, como impõe o n.º 2 do artigo 69 das Normas de Funcionamento

4
CONCEIÇÃO, Lourivaldo da, Curso de Direitos Fundamentais, Eduepb, Campina Grande – PB, 2016,
p. 27-28.

149
dos Serviços de Administração Pública, aprovadas pelo Decreto n.º 30/2001,
de 15 de Outubro, e o acto torna-se ineficaz quando não é dado ciência ao
destinatário, nos termos do n.º 2 do artigo 127 da Lei n.º 14/2011, de 10 de
Agosto. Analisemos agora o acto nulo.
Segundo o escólio de Aurora Tomazini de Carvalho5:

“São considerados actos nulos aqueles que, por não terem sido
produzidos de acordo com preceitos legais, possuem vício insanável.
Os vícios que geram a nulidade são: a) agente absolutamente incapaz;
b) objecto ilícito; c) desrespeito a forma prescrita em lei; d) quando a
lei taxativamente o proíbe. Os actos nulos não produzem qualquer
efeito porque quando nulo algo, impossível de se produzir efeitos, ao
contrário do acto anulável que produz efeitos até ser anulado (…) a
nulidade pode ser arguida não só pelo interessado, como também pelo
Ministério Público, ou decretada pelo juiz de ofício. Os actos nulos são
imprescritíveis.”

Insere-se nesta linha de pensamento, a doutrina expendida por César


Fiúza6:

“É nulo o acto jurídico, quando em razão de defeito grave que o atinge,


não produz os efeitos que deveria produzir. Pode até produzir efeitos,
mas não aqueles efeitos desejados pelas partes interessadas, aqueles
efeitos que era para produzir. Por exemplo, se uma pessoa casada
vende bem imóvel seu, sem autorização de seu cônjuge, o negócio será
nulo, não produzindo seu principal efeito, qual seja, o de transmitir a
propriedade do imóvel ao comprador. O único efeito que tal acto
poderá produzir é o reembolso a que o comprador faz jus, se já tiver
pago o preço do imóvel ao vendedor. Este deverá restituir-lhe o
dinheiro. Mas esse não é efeito normal da compra e venda. A Lei
considera nulo o acto jurídico, quando praticado por pessoa
absolutamente incapaz, quando seu objecto for impossível, ou quando
não revestir forma adequada. Em outras palavras, sempre que o acto
não observar as condições de validade dos actos jurídicos supra
estudadas. Mas não só nestes casos os actos jurídicos serão nulos.
Além destes casos genéricos, serão nulos os actos jurídicos, sempre
que a Lei assim o determinar, de maneira difusa.”

Torna-se imperioso, ainda no âmbito do referencial teórico, falar de


tradução jurídica. No que concerne a este instituto, vem a propósito

5
CARVALHO, Aurora Tomazini de, Teoria Geral do Direito, o Construtivismo Lógico-Semântico,
PUC/SP, 2009, p. 516.
6
FIÚZA, César, Direito Civil, Curso Completo, 2ª Edição, Revista, Actualizada e Ampliada, Belo
Horizonte - 1999, p. 70.

150
reproduzir esta bela passagem da lavra de Beatriz de Freitas de Sousa
Campos7:

“A tradução jurídica é um termo relativamente abrangente, que se


refere não apenas à tradução da lei propriamente dita, como também
à tradução de textos que lhe são afins, seja porque versam sobre temas
de domínio do Direito, seja porque são produzidos em contextos ou
situações comunicativas jurídicas. A tradução justifica-se pela
necessidade de dar a conhecer o conteúdo de um texto jurídico, por
exemplo, a um profissional da área jurídica que não domine a língua
original do documento.”

Merece referência, também, a formulação proposta por Maria do


Rosário Frade Durão8, ao dizer que:

“Nesta tese, a tradução será entendida como uma actividade humana


que, por essa razão, se encontra em constante transformação – como
uma actividade de natureza, essencialmente, prática, um fenómeno,
uno e indecomponível, de comunicação, que compreende a
reformulação intralinguística, a conversão interlinguística e a
transmutação intersemiótica de informação ou conteúdos
(geralmente apresentados sob a forma de documentos) de qualquer
natureza, relacionados com um determinado contexto, para um
contexto diferente e com uma ou mais finalidades específicas, por
intermédio de um ou mais tradutores. O desempenho desta acção
requer conhecimentos e competências especiais.”

Como se pode notar, a tradução jurídica revela-se de extrema utilidade


para determinar o exacto sentido dos textos normativos para o interessado.
Neste sentido, a tradução jurídica para que cumpra as finalidades desejadas,
deverá preencher alguns requisitos, de entre eles, a) deve o intérprete
exercer a actividade a título profissional, quer isto dizer, ser proficiente na
língua que é comummente usada entre nós nos meandros jurídicos e no
idioma para o qual é transformada a informação; b) estar devidamente
ajuramentado para conferir a necessária credibilidade a função que exerce
e acima de tudo, prestar um trabalho de qualidade, isto é, que atenda as
exigências do processo bem como as necessidades do interessado; c)
respeitar o rigor terminológico peculiar de assuntos jurídicos. Por aqui se

7
CAMPS, Beatriz de Freitas de Sousa, Relatório de estágio em tradução: reflexão sobre tradução jurídica
e questões práticas de tradução, elaborado para obtenção do grau de Mestre em Tradução, Universidade
de Lisboa, Faculdade de Letras, 2019, p. 20-22.
8
DURÃO, Maria do Rosário Frade, Tradução Científica e Técnica: Proposta para Formação de Tradutores
Pluricompetentes Especializados na Produção de Documentação Científica e Técnica do Inglês para
Português, Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses, Volume I, Universidade Aberta, 2007, p. 57-
58.

151
vê, que a tradução jurídica fidedigna exerce um papel de capital importância
para quem não domine a língua oficial e esteja envolvido em processo penal.

5. FALTA DE NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE EM PROCESSO PENAL

Todo indivíduo que se encontra em determinado país, se acha sujeito


ao ius puniendi desse Estado, é o que sucede em Moçambique como um
Estado de direito democrático. A aplicação de uma sanção criminal ao
cidadão ocorre mediante instauração do devido processo legal conforme
preconiza o n.º 1 do artigo 65 da lei fundamental. E não se afigura de menor
relevância o facto de que visa o processo, por um lado, garantir a
observância da lei pelos órgãos públicos, por outro, assegurar que o acusado
de ter cometido um ilícito criminal exerça plenamente o seu direito
fundamental de defesa.
Posto isto, centremos agora a nossa atenção para a discussão
propriamente dita do tema em análise. A este propósito, convém recordar
que o legislador previu na alínea c), do n.º 2 do artigo 136 do Código de
Processo Penal, aprovado pela Lei n.º 25/2019, de 25 de dezembro, que é
uma situação determinante de nulidade dependente de arguição, a falta de
nomeação de intérprete no procedimento. Imagine-se, por hipótese, que um
cidadão do Malawi que exerce a actividade de transportador de mercadorias
para o exterior de seu país. Em virtude do seu país não ter ligação directa
com o mar para escoamento de seus produtos, terá necessariamente de
passar pelo nosso país. Se durante o percurso, tiver um acidente de viação
que resulta em morte de um transeunte, em tal circunstância, tratou-se de
homicídio premeditado? É óbvio que não. Sabe-se que naquele país, usa-se
o inglês como língua oficial e entre nós, o vernáculo oficial é o idioma luso.
Diante de tal situação, havendo julgamento que define a situação do cidadão
perante a justiça nacional e tomando em consideração, o facto de que não
teve direito à intérprete para se inteirar de forma condigna de seus direitos
e correlatos deveres, poder-se-á afirmar vivamente que a ausência de
intérprete para traduzir o teor dos textos legais não afectou o exercício do
direito de defesa? Será que a preterição desta formalidade contribuiu para
justiça efectiva do processo? Deverá interpretar-se este preceito como uma
estatuição que consagra um defeito processual que envolve um leve juízo de
censura que não prejudica substancialmente a validade da sentença? Isso
obriga a fazer uma análise detidamente, dando especial enfoque ao regime
jurídico de nulidade plasmado no artigo 136 do Código de Processo Penal,
aprovado pela Lei n.º 25/2019, de 25 de dezembro.

152
Desde logo, importa ter-se presente o plasmado no artigo 286 do
Código Civil, que é o mandamento básico nesta matéria. Por este preceito,
ressalta claramente a vista que nos casos em que determinado acto jurídico
se encontra eivado em sua estrutura de defeito determinante de nulidade,
não é necessário que os intervenientes no processo judicial invoquem a
nulidade do acto, cabe ao Tribunal no exercício da função que lhe é cometida,
decretar a nulidade ex officio, quer isto dizer que nas circunstâncias em que
seja possível descortinar a nulidade por virtude de se demonstrar evidente
perante os elementos carreados aos autos, é tarefa do órgão jurisdicional
decretar esta forma de invalidade. Para além do preceito citado, é possível
verificar que existe na legislação pátria uma marcada tendência do
legislador em assim consagrar o regime jurídico da nulidade, isto mesmo é
abundantemente confirmado por vários preceitos, quais sejam, o artigo 130
da Lei n.º 14/2011, de 10 de agosto, o artigo 135 Código de Processo Penal,
aprovado pela Lei n.º 25/2019, de 25 de dezembro, o n.º 4 do artigo 125 da
Lei n.º 2/2006, de 22 de março, o n.º 3 do artigo 134 do Estatuto Geral dos
Funcionários e Agentes do Estado, aprovado pela Lei n.º 10/2017, de 1º de
agosto.
Analisando o regime jurídico da nulidade em sua globalidade, fácil é
depreender que das mais das vezes, quando o legislador emprega a palavra
nulidade, tal facto significa que se trata de vício patente no acto que não
carece de arguição, é em bom rigor, de conhecimento oficioso do Tribunal.
Em vista dessa compreensão, e levando em conta que as palavras empregues
na lei se encontram em acepção técnico-jurídica, inclinamo-nos em crer que
o regime jurídico previsto para a nulidade decorrente da falta de intérprete
em processo-penal não carece de invocação de qualquer das partes
intervenientes no processo em concreto, cabe ao juiz no seu prudente
critério proceder a aferição da nulidade.
Quando se estabelece que constitui nulidade cuja arguição se acha na
disponibilidade da parte, tal consagração não se compadece com os valores
encarecidos pela lei ao determinar que em certos casos, deve prever-se a
nulidade como desvalor jurídico para certos actos. Na verdade, torna-se
imperioso esclarecer que nas circunstâncias em lei estabelecidas para se
decretar a nulidade como traço marcante pela invalidade do acto, o que se
pretende é salvaguardar o interesse público por detrás da prática do acto,
por isso não é ousado afirmar que no caso em tela, houve lapso quando se
afirma “nulidade dependente de arguição”. Olhando mais de perto, as
distinções dos vícios do acto jurídico, é manifesto que os defeitos patentes
nos actos anuláveis é que carecem de arguição para que seja decretada a sua
anulação, dentro de um determinado lapso de tempo, findo o qual sem que

153
seja suscitada a anulação do acto, o mesmo torna-se plenamente válido à luz
do direito positivo nacional, por causa disso, quando esteja em causa vício
conducente a nulidade, não se aplica o mesmo raciocínio, para este
entendimento, encontramos arrimo, no artigo 287 do Código Civil, no n.º 1
do artigo 85 da Lei n.º 16/2012, de 14 de Agosto, no n.º 2 do artigo 164 da
Lei n.º 14/2011, de 10 de Agosto, e no n.º 2 do artigo 37 da Lei n.º 7/2014,
de 28 de fevereiro.
Sublinhe-se ainda que as palavras usadas em lei em virtude da sua
significação jurídica e corrente possuem várias acepções, porém, quando a
palavra tenha um sentido jurídico específico largamente arraigado na
consciência jurídica resultante de aprofundado estudo e tenha respaldo
legal, dúvidas não se nos colocam que outro entendimento não se pode
extrair, para além daquele sentido comum e unívoco decorrente dos textos
normativos. Dessa forma, podemos afirmar, sem receio de errar, que a
nulidade assente na falta de intérprete não carece de arguição, trata-se, em
boa lógica jurídica, de uma obrigação legal dos órgãos jurisdicionais
conforme expendemos. Em coerência com o que escrevemos, sobre
significação jurídica específica de determinados termos, se encontra o
professor Galvão Telles9, ao dizer que:

“A interpretação serve-se de vários elementos ou meios. Em primeiro


lugar, procurar-se-á atender às palavras em que a lei está expressa e,
através dessas palavras na sua recíproca ligação e segundo as regras
gramaticais aplicáveis, surpreender um significado. O sentido literal é
um possível sentido da lei, mas não dá garantias, sem mais, de
constituir a significação decisiva e definitiva. Há que submetê-lo a
crítica e para isso se passa à chamada interpretação lógica. Isto não
exclui que o elemento linguístico possa por si só, embora não muito
frequentemente, revelar o conteúdo espiritual da lei. Assim acontece
naqueles casos em que as palavras da lei são tão explícitas e
categóricas que apenas comportam determinado sentido. O
intérprete tem então de aceitar esse sentido, não lhe competindo
entrar no exame doutros elementos hermenêuticos.” (Grifos
nossos)

Ilustre adepto dessa visão do sentido unívoco do termo, é o professor


Baptista Machado10, ao postular que:

9
TELLES, Inocêncio Galvão, Introdução ao Estudo do Direito, Volume I, 11.ª Reimpressão, Editor:
Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, 2010, p. 245.
10
MACHADO, João Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 19ª Reimpressão,
Almedina, 2011, p. 182.

154
“O texto é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe
desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que
não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer
correspondência ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe
igualmente uma função positiva, nos seguintes termos. Primeiro, se o
texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a
ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a
redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador. Ora, na falta
de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos
imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele
sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado
natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu
significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que
o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento.”

Revemo-nos no posicionamento dos citados autores, aliás, seja dito, de


passagem, que é de todo coerente com o ordenamento jurídico pátrio, no
que tange a significação jurídica específica do instituto da nulidade, por
conseguinte, o modo mais assisado de redigir o artigo 136 do Código de
Processo Penal, aprovado pela Lei n.º 25/2019, de 25 de Dezembro, caso a
pretensão seja consagrar o regime de actos anuláveis, seria “vícios
dependentes de arguição conducentes a anulação” ou tratando-se de
intenção de nulidade, retirar a expressão dependente de arguição, mas, é
preciso nunca esquecer este facto essencial: tal e qual se apresenta o
conteúdo linguístico, não se compagina com o regime típico da nulidade. E
não é demais notar: outro facto que aponta para não se poder considerar
que o regime jurídico da nulidade consagrada para falta de intérprete é
dependente de arguição, é o princípio da coerência do direito. Por este
princípio, cabe ao legislador expurgar as divergências normativas sobre o
mesmo instituto jurídico existentes na ordem jurídica. Para confirmação
disso, bastar-nos-á ter presente os ensinamentos ministrados pelo
professor Alexandre Mazza11:

“Princípio da coerência: impõe ao poder central o dever de


harmonizar divergências entre órgãos de uma mesma pessoa
administrativa quanto ao modo de interpretar ou aplicar disposições
normativas a casos similares.”

11
MAZZA, Alexandre, Manual de Direito Administrativo, 2ª Edição, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 125.

155
Examinando detidamente este princípio, constata-se que o mesmo
propugna a ideia de que não é de todo possível que um determinado
instituto jurídico esteja desligado das normas jurídicas vigentes que lhe
sejam directamente aplicáveis. Dessa forma, se as demais normas existentes
num dado ordenamento jurídico, como o nosso, determinam que a nulidade
é de conhecimento oficioso e não carece de invocação, cabendo ao juiz
descortinar o defeito patente no acto jurídico que conduz a nulidade do acto
final, não se pode considerar como válida a disposição que coloque em
choque os valores unitários do sistema jurídico em sua globalidade, é o que
resulta do dever de interpretar as leis atendendo a unidade do sistema
plasmado no n.º 1 do artigo 9 do Código Civil e em vista dessa compreensão,
resta claro que o termo nulidade empregue pelo legislador se encontra
estabelecido em acepção técnica-jurídica sendo certo que em decorrência
disso, não é necessário a arguição pelos intervenientes processuais, cabe ao
magistrado judicial apurar o vício constante no acto que leva à nulidade.
Uma vez considerado o regime jurídico da nulidade em nossa ordem
jurídica, cabe agora entrar na apreciação da ausência de intérprete na
perspectiva de direito fundamental. Conforme ficou saliente no referencial
teórico, os direitos e liberdades fundamentais vinculam todos entes públicos
e privados por determinação do n.º 1 do artigo 56 da lei suprema e quando
se refere aos entes públicos, queremos, sobretudo, destacar os três poderes
integrantes da estrutura superior do Estado, quais sejam, o legislativo, o
executivo e o judiciário. Todo o direito é constituído por causa do homem,
por isso não é ousado afirmar que os direitos básicos do homem constituem
o limite, o fundamento e o critério para o exercício da actividade
constitucionalmente atribuída aos órgãos supremos do Estado.
O Direito em sua qualidade de norma regente da vida em sociedade se
encontra expresso, entre nós, no idioma luso, facto que pressupõe o
conhecimento prévio dessa língua por aqueles que travem relações jurídicas
em Moçambique e em decorrência de tal facto, estejam sujeitas ao ius
puniendi do Estado. A língua portuguesa como o veículo que transmite a
informação para o estabelecimento de comunicação entre os diversos
actores do processo penal é de capital importância. Como observa Vilson
Santos12:

“A necessidade de comunicação faz parte do desenvolvimento


humano. Sem ela, seria impossível a compreensão entre as pessoas.
Quando nos comunicamos, revelamos nossa inteligência e

12
SANTOS, Vilson. Marketing Pessoal: falando em público. Vilson Santos. – Imperatriz, MA: Ética, 2008,
p. 13-14.

156
perspicácia, ampliamos nossos conhecimentos, habilidades e atitudes.
Se observarmos bem, a maioria dos erros, sejam eles pessoais ou
profissionais, têm suas origens nas falhas de comunicação. Estas
falhas estão directamente relacionadas com a falta de sintonia e má
interpretação das mensagens emitidas e recebidas. Afinal, a
comunicação foi e ainda é fundamental para a socialização
humana. Cada momento, evento ou contexto requerem formas
diferenciadas de mensagem.” (Grifos nossos)

Pese embora o citado autor esteja discorrendo numa perspectiva de


marketing, depreende-se da linha de abordagem empregue, o papel fulcral
de uma comunicação eficiente voltada para exacta compreensão do assunto.
O que se quer aqui sublinhar, é que o direito básico de defesa em sua
essência pressupõe que o cidadão sobre o qual impende uma determinada
acusação tenha conhecimento completo e preciso dos ilícitos criminais cuja
responsabilidade lhe são imputados, e essa plena ciência somente poderá
obter mediante recurso a tradução do despacho de acusação em idioma que
seja de seu domínio comum. Se é verdade que a linguagem técnica-jurídica
é de difícil compreensão para um indivíduo de normal diligência, não é
menos certo que dificuldades de grande envergadura terá aquele não
domina o vernáculo próprio de um país que não é o seu.
Cumpre notar que o direito de defesa por virtude da sua consagração
no texto ápice no Capítulo respeitante aos direitos e liberdades
fundamentais, mais precisamente, no artigo 69 da lei suprema,
consubstancia um direito básico do cidadão, trata-se, em bom rigor, de uma
prerrogativa essencial inerente a pessoa que o moderno Estado de Direito
Democrático não pode de modo algum denegar aos seus cidadãos, por esse
motivo, é que o legislador fulmina com a sanção de nulidade os actos
jurídicos que atentam directamente contra o direito fundamental de defesa,
isto mesmo é abundantemente confirmado por diversos preceitos de nossa
ordem jurídica, nomeadamente, mas não exclusivamente: o n.º 1 do artigo
201 do Código de Processo Civil, a alínea b), do n.º 1 do artigo 117 do
Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado, aprovado pela Lei n.º
10/2017, de 1 de Agosto, a alínea b), do n.º 2 do artigo 125 da Lei n.º 2
2/2006, de 22 de março. Apraz-nos frisar, neste momento, que o direito de
defesa é um direito sacrossanto, pois Deus somente castigou Adão e Eva
depois de lhes dar oportunidade de se explicarem, ao proceder nesses
moldes, podemos afirmar, com justa razão que instituiu o Criador, o direito
de fundamental de defesa, prova disso, é a célebre passagem constante do

157
Gênesis13: “E Deus disse: Quem te disse que estavas nu? Comeste tu da
árvore de que te ordenei que não comesses?” Levando em conta que o
arguido não teve oportunidade de se defender de forma condigna, plena e
eficaz por virtude da falta de intérprete para lhe explicar claramente o teor
dos ilícitos que lhe são imputados, inclinamo-nos em crer que foi cerceado o
direito de defesa e por virtude de tal circunstância, não se pode ter como
plenamente válida uma decisão judicial que postergou um direito
fundamental do cidadão, haja vista que os direitos fundamentais conforme
clássica e precisa lição de Gomes Canotilho14:

“Exercem a função de defesa do cidadão sob dupla perspectiva: a) no


plano jurídico-político, funcionam como normas de competência
negativa para os Poderes Públicos, proibindo-os de atentarem contra
a esfera individual da pessoa; b) no plano jurídico-subjectivo,
implicam o poder de exercer positivamente os direitos fundamentais
(liberdade positiva), e de exigir omissões dos poderes públicos.”

Merece comentário, por oportuno, a questão adstrita à norma de


competência negativa. Ao nosso ver, a norma de competência negativa
traduz, por um lado, o exercício da função legislativa tendo em vista os fins
traçados pelo legislador para uma dada situação social digna de protecção
legal, por outro, não se deve perder de vista que a regulação das
circunstâncias juridicamente relevantes tem que ser acompanhada da
necessária tutela dos direitos fundamentais do cidadão, essa é a essência do
Estado de direito democrático: atendimento do que se tem por interesse
geral em estrito respeito pelos direitos básicos dos cidadãos. Por isso, é
evidente que nos moldes em que se encontra redigido o preceito em análise,
não atende ao conteúdo essencial do direito de defesa, e aqui torna-se
necessário salientar que o direito de defesa é de tal sorte preponderante que
o legislador previu que o judiciário não pode decidir sem que uma das
partes impulsione e outra seja devidamente chamada para deduzir oposição,
reservando para apertadas situações o direito de decidir sem que se tenha
dado o direito de defesa, mas mesmo aí há lugar ao contraditório deferido –
vide artigos 3 e 381/B, ambos do Código de Processo Civil. O que se pretende
aqui, é deixar bem em relevo que a norma que determina a validade da
sentença nos casos de falta de intérprete, viola frontalmente o que se acha

13
BÍBLIA SAGRADA, Genesis, Capítulo 3, versículo 11, Publicada por: A Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos Últimos Dias, Salt Lake City, Utah, EUA, 2015, p. 13.
14
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, 6.ª Edição revista, Livraria Almedina
Coimbra, 1993, p. 566.

158
estabelecido no n.º 1 do artigo 56 da Constituição. Sobre o tema, cabe trazer
a lição de Sven Peterke15 et al:

“Inicialmente, os direitos humanos foram criados para proteger


indivíduos contra a arbitrariedade do Estado, contra o abuso do seu
monopólio de poder. Por isso, sob uma perspectiva histórica, eles
representam os chamados “direitos de defesa”, que conferem aos seus
titulares uma pretensão omissiva. Significa que o Estado é obrigado a
respeitar a esfera legalmente protegida por um direito humano; ele
tem de se abster de ingerências ilegais nela – razão pela qual se fala,
em inglês, de uma duty/obligation to respect. Esse dever é também
chamado “negativo” ou de “não fazer”, porque exige do Estado
passividade, no sentido de não tomar medidas (legislativas,
administrativas, etc.) incompatíveis com os direitos humanos – daí se
tratar de uma obrigação com eficácia imediata.”

Como facilmente se pode notar, o legislador no exercício da sua função


precípua não lhe cabe limitar ou restringir direitos fundamentais, antes o
inverso, compete propiciar condições que garantam o máximo gozo pelos
cidadãos, podendo apenas, limitar ou restringir quando a situação em
concreto tiver uma relação de pertinência lógica com as opções políticas
adoptadas em certa ocasião. Todavia, é importante lembrar que os direitos
fundamentais são cláusulas pétreas de um sistema jurídico tal e qual o nosso,
por esse motivo, o legislador ordinário tem de produzir actos normativos
cujo fim último e essencial é preservar, melhorar e proteger as prerrogativas
outorgadas pelo constituinte, o que não se verifica na norma em apreço que
atenta directamente contra o conteúdo essencial do direito fundamental de
defesa. Daqui resulta que este preceito quando apreciado à luz dos valores
encarecidos pelo legislador quando consagra o direito fundamental de
defesa, não pode de modo algum, produzir os efeitos planeados pela
autoridade legiferante, de onde se segue o dizer que a postergação da
constituição de intérprete para garantir uma adequada assistência jurídica
de quem não domine a língua portuguesa, constitui uma situação abrangida
pelo regime de nulidade prescrito no n.º 1 do artigo 201 do Código de
Processo Civil, por virtude de ser este preceito compatível com a dignidade
conferida pela lei suprema ao direito de defesa. Há ainda uma precisão
quanto ao que aqui defendemos: o Código de Processo Civil estabelece as
regras de carácter geral aplicáveis subsidiariamente a todos ramos especiais
do Direito Processual, isto significa que se trata de uma lei geral e do
confronto com legislação especial, cede, porém, nas situações em que o

15
PETERKE, Sven, et al, Manual Prático de Direitos Humanos Internacionais, Brasília: Escola Superior
do Ministério Público da União, 2009, p. 155-156.

159
regime de protecção de direitos nele contido for mais favorável ao cidadão,
é de directa aplicação por força do disposto na parte final do n. º 3 do artigo
7 do Código Civil. Não falta quem pense de igual modo16:

“O reconhecimento e a protecção dos direitos do homem são a base


das constituições democráticas, e, ao mesmo tempo, a paz é o
pressuposto necessário para a protecção efectiva dos direitos do
homem em cada Estado e no sistema internacional…… mas o governo
que ao mesmo tempo é dos homens e das leis, dos homens que fazem
as leis, e das leis que encontram um limite em direitos
preexistentes dos indivíduos que as próprias leis não podem
ultrapassar, em uma palavra, o Estado liberal moderno que se
desdobra sem solução de continuidade, e por desenvolvimento
interno, no Estado democrático.” (Grifos nossos)

CONCLUSÃO

É muito difícil sustentar-se a tese de validade da decisão judicial que


posterga o conteúdo essencial de um direito fundamental e isso tendo em
conta que o jus puniendi do Estado afecta directamente o direito mais
querido pelo homem: a liberdade. Quando o n.º 1 do artigo 56 da lei suprema
prevê que os direitos e liberdades fundamentais vinculam todas as
entidades públicas e privadas, esta consagração constitucional visa
sobretudo, salvaguardar direitos básicos dos cidadãos preexistentes à
criação do acto normativo, por causa disso, não podem os direitos e
liberdades tidos por indispensáveis para uma existência condigna em
sociedade serem colocados em segundo plano. De notar ainda que o direito
à intérprete tem o seu exórdio a partir do momento em que o indivíduo é
apresentado as autoridades em lei elencadas para dar início ao
procedimento criminal, quais sejam, as esquadras, o Serviço Nacional de
Investigação Criminal, o Ministério Público, e ganha especial relevância o
direito em análise na fase de intervenção do poder judiciário, porquanto, é
perante a autoridade judicial que a sua situação será definida em termos
peremptórios. Torna-se, entretanto, demasiado claro que a lei fundamental
consagrou o princípio da vinculação directa dos direitos e liberdades básicas
dos cidadãos, isto tem como consequência para o legislador, o dever especial
de definir medidas legislativas que tornem possível o gozo pleno pelos
cidadãos. Dessa forma, se a norma densificadora do direito assim como da
liberdade essencial não fixar um regime de actuação do órgão público que

16
BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 7ª Reimpressão, Nova
Ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 92.

160
respeite a posição jurídica activa do cidadão, tal e qual sucede no caso de
falta de intérprete para exercer de modo razoável o direito de defesa,
depreende-se facilmente que há violação frontal do conteúdo essencial de
um direito fundamental cuja cominação legal deve, impreterivelmente, ser a
nulidade da decisão judicial nesses moldes expedida. O exemplo extraído da
obra de Júlio Barbosa e Silva17, reforça a nossa convicção:

“O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-03-2017 teve


ocasião de se pronunciar sobre uma autorização de busca não
traduzida por parte de arguido desconhecedor da língua portuguesa,
aí se decidindo que “É nula a busca domiciliária, realizada em casa
habitada por estrangeiro que não conhece nem domina a língua
portuguesa, não lhe tendo sido nomeado intérprete, nem a autorização
assinada se mostra traduzida para a sua língua natal”.

Cremos não ser difícil compreender a técnica que propomos: para que
o processo seja tido por equitativo, justo e corra seus termos normalmente
até a decisão final do órgão jurisdicional, com respeito pelos direitos
fundamentais do cidadão, é necessário que este tenha sido outorgado a
possibilidade de se defender condignamente mediante compreensão
razoável dos actos e das formalidades concernentes ao processo penal e se
resultar cristalino da análise integral que não foi dada ao cidadão a
oportunidade de evidenciar a sua versão dos factos por virtude da falta de
conhecimento da língua usada na tramitação processual, resta claro que
houve cerceamento do direito fundamental à defesa e em consequência da
falta de intérprete, a decisão final é nula de pleno direito, na exacta medida
em que foi denegado ao indivíduo a faculdade de ter uma intervenção activa
no processo e contribuir decisivamente para o convencimento do juiz, por
isso não repugna extrair a ilação de que a ausência de intérprete conduz a
expedição de uma decisão judicial prematura, porquanto, não se
desenvolveu o processo com participação activa do acusado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA SAGRADA. Genesis, Capítulo 3, versículo 11, Publicada por: A Igreja de Jesus
Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Salt Lake City, Utah, EUA, 2015.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 7ª
Reimpressão, Nova Ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

17
SILVA, Júlio Barbosa e, A Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de
outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, Julgar Online, março de
2018, p. 29.

161
CAMPS, Beatriz de Freitas de Sousa. Relatório de estágio em tradução: reflexão sobre
tradução jurídica e questões práticas de tradução, elaborado para obtenção do grau de
Mestre em Tradução, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2019.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ª Edição revista, Livraria
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CONCEIÇÃO, Lourivaldo da. Curso de Direitos Fundamentais. Eduepb, Campina Grande
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DURÃO, Maria do Rosário Frade. Tradução Científica e Técnica: Proposta para
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FIÚZA, César. Direito Civil, Curso Completo. 2ª Edição, Revista, Actualizada e Ampliada,
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MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. 19ª
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MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. 2ª Edição, São Paulo, Saraiva,
2012.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Direitos Fundamentais. Tomo IV,
Coimbra Editora, fevereiro de 2012.
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OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de. Metodologia científica: um manual para a realização de
pesquisas em Administração. Catalão: UFG, 2011.
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SILVA, Júlio Barbosa e. A Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 20 de outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em
processo penal, Julgar Online, março de 2018.
TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao Estudo do Direito. Vol. I, 11.ª Reimpressão,
editor Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, abril de 2010.

Legislação:
Moçambique, Lei n.º 1/2018, de 12 de junho; BR n.º 115, 1ª Série, Lei de Revisão
Pontual da Constituição da República de Moçambique.
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Moçambique, Lei n.º 25/2019, de 26 de dezembro, BR n.º 249, 1ª Série, aprova a Lei
de revisão do Código de Processo Penal.

162
Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, Diário do Governo, n.º 274, 1ª
Série, aprova o Código Civil e regula a sua aplicação – Revoga, a partir da data da entrada
em vigor do novo Código Civil, toda a legislação civil relativa as matérias que o mesmo
abrange.
Moçambique, Lei n.º 24/2007, de 20 de agosto, BR n.º 33, 1ª Série, aprova a Lei de
Organização Judiciária, e revoga a Lei n.º 10/92, de 6 de maio.
Moçambique, Decreto n.º 30/2001, de 15 de outubro, BR n.º 41, 1ª Série, aprova as
Normas de Funcionamento dos Serviços da Administração Pública e revoga o Decreto n.º
36/89, de 27 de novembro.
Moçambique, Lei n.º 14/2011, de 10 de agosto, BR n.º 32, 1ª Série, Regula a formação
da vontade da Administração Pública, estabelece as normas de defesa dos direitos e
interesses dos particulares, e revoga a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU) e o
Decreto-Lei n.º 23229, de 15 de novembro de 1933.
Moçambique, Lei n.º 10/2017, de 1 de agosto, BR n.º 119, 1ª Série, aprova o Estatuto
Geral dos Funcionários e Agentes do Estado, abreviadamente designado por EGFAE.
Moçambique, Lei n.º 2/2006, de 22 de março, BR n.º 12, 1ª Série, estabelece os
princípios e normas gerais do ordenamento jurídico tributário moçambicano e aplica-se
a todos os tributos nacionais e autárquicos.
Moçambique, Lei n.º 7/2014, de 28 de fevereiro, BR n.º 18, 1ª Série, regula os
procedimentos atinentes ao processo administrativo contencioso, revoga a Lei n.º
9/2001, de 7 de julho, e os artigos 106 e 107 da Lei n.º 2/97, de 18 de fevereiro.
Moçambique, Lei n.º 16/2012, de 14 de agosto, BR n.º 32, 1ª Série, aprova a Lei da
Probidade Pública;
Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de dezembro de
1961, tornado extensivo ao Ultramar pela Portaria n.º 19305, de 30 de julho de 1962, e
alterado pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11 de maio de 1967, Decreto-Lei n.º 323/70, de
11 de julho, Decreto-Lei n.º 1/2005, de 27 de dezembro, e Decreto-Lei n.º 1/2009, de 24
de abril.

163
JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À
EXECUÇÃO PENAL

JÚLIO ALI MUSSA1

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa analisar e aprofundar Justiça Restaurativa


Aplicada à Execução Penal. A justiça restaurativa aplicada à execução penal,
pode ser a forma mais saudável e auxiliar na redução da criminalidade e no
descongestionamento das penitenciárias bem como a redução de despesas
e custos pelo próprio Estado.
O ponto central do tema do Artigo, gira em torno da ressocialização
do condenado, que acreditasse ser alcançada mais facilmente quando o
sujeito cumpre uma pena que além de punir possui um caracter pedagógico,
capaz de levar a repensar suas atitudes e buscar uma vida que adeque as
normas de convivência em comum. Acredita-se que, o índice da reincidência
seja gerado pelo ambiente degenerativo a que são expostos os condenados
nas penitenciárias, pois as penitenciarias têm servido apenas como depósito
de delinquentes que não oferecem mínimas condições de reabilitar qualquer
condenado.
Inúmeras são as dificuldades encontradas nas penitenciarias, que vão
desde problemas estruturais, até problemas de convivência com maior
potencial criminalista, que geram uma situação de caos, ou seja, as pessoas
depositadas dentro das penitenciarias tendem perder a condição de
reeducados tornando-se pessoas muito piores do que eram antes da
condenação. O Artigo não vem defender ou indicar a extinção das penas

1
Júlio Ali Mussa, Mestrado em Direito Civil-UCM-Pemba-Cabo Delgado; Funcionário do Ministério da
Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos- Defensor Publico do Instituto do Patrocínio e Assistência
Jurídica (IPAJ) - Pemba-Cabo Delgado.alimussa64@yahoo.com.br; Telefones +258 826894680 /
844700086 e 861765453.

165
privativas de liberdades, bem como das penitenciárias. O que espera é a
constatação de que tais penas e formas de punição sejam reservadas aqueles
criminosos, para as quais não vislumbra outra forma de impedir que tragam
mais prejuízos a sociedade.
Para o entendimento exaustivo sobre o tema do Artigo, promove um
estudo mais detalhado sobre a pena e suas espécies, com o propósito
alavancar a justiça restaurativa aplicada à execução penal, olhando um
breve histórico sobre a pena na história da humanidade, a fim de esclarecer
como se deu o desenvolvimento deste instituto do direito penal, bem como
demonstrar a função das penas, e o objetivo a que elas as destinam. A
intenção de demonstrar os motivos a que se leva punir alguém, uma vez que
se não existissem objetivo por trás de tal ato, este não etária a menor razão
de existir, sempre em atenção aos objetivos fundamentais da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, proclamados pelas Nações Unidas que
serviu de veículo para Africa moldar as garantias e os direitos assegurados
pelo ordenamento jurídico universal de proteção e salvaguarda dos direitos
humanos estabelecidos pelas Nações Unidas, não só mas também a
finalidade ao respeitos pelos direitos fundamentais do cidadão, traduzidos
no âmbito da justiça restaurativa aplicada à execução penal digna,
modalidade da alternativa penal respeitante ao princípio da dignidade da
pessoa humana em vários aspetos. Alias, antes analisa o fracasso da pena de
prisão e medidas restaurativas, notoriamente a transação penal; a
suspensão provisoria do processo; a prestação de serviço socialmente útil; a
prestação pecuniária ou em espécie; perda de bens ou valores, a multa, a
interdição temporária de direitos.
A justiça restaurativa, vem sendo aplicada no âmbito da execução
penal. A justiça restaurativa enquanto paradigma de justiça se caracteriza
por ser um processo voluntario em que as partes se reúnem para resolução
de um conflito.

1. BREVE HISTÓRICO DAS PENAS NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE

As penas fazem parte da história da humanidade, e surgiram antes


mesmo do início da sociedade organizada. Em todos os tempos, em todas as
raças e povos encontra-se uma pena como sendo uma invasão na esfera de
poder e da vontade do individuo que ofendeu as esferas de poder e da
vontade de outrem.
A pena (do grego Poiné, pelo latim poena) que significa vingança ou
odio. É o modo de repressão, pelo Poder publico, à violação da ordem social.
Consiste numa punição imposta pelo Estado ao delinquente ou

166
contraventor, em processo judicial por pratica de um crime ou
contravenção, com o fim de dar exemplos e evitar a prática de novas
infrações. A pena tem dupla função: de punir os criminosos e de prevenir a
prática de crime pela reeducação e pela intimidação coletiva (Faria, 2006).
Há, várias correntes doutrinarias que definem a Pena como sendo:
segundo (Faria, 2006) a pena deve ser definida como sanção imposta pelo
Estado, valendo-se do devido processo legal, ao autor da infração penal,
como retribuição ao delito perpetrado e prevenção de novos crimes.
Enquanto, (Lincon, 2012), afirma a Pena como resposta estadal, utilizando-
se do devido processo legal, contra o autor de determinada infração penal,
como forma de retribuir a este o delito praticado, e ainda, de prevenir que
este venha cometer novos delitos. Conforme se pode observar, nem sempre
foi função do Estado punir, sendo que algumas vezes a lei estava do lado
mais forte que não tinha limites em sua aplicação. Matava, escravizava,
bania o infrator e também levava as consequências às famílias do
condenado, ou mesmo a todo um povo.
Também observar-se que as vezes também estava o poder de punir
naquele que tinha ou detinha a divindade e em nome dos deuses
sacrificavam pessoas.2 Na idade Media, no decorrer de todo um histórico
criminal, foram utilizados os mais estranhos e os mais sofisticados
instrumentos de suplicio e tortura, alem de variados aparatos, até cómicos
para execução de penas contra o corpo e contra a vida. Demonstrando uma
natureza aflitiva, onde o corpo pagava através da dor pelo mal por ele
praticado3. Mascaras inflamáveis, cadeiras com pregos, armaduras de
medida que possuíam pregos e que eram fechadas com o condenado dentro.
Eram sociedades onde prevalecera o trabalho, a servidão, a divisão em
castas e vários outros tipos de diferenças, estas que faziam sobrepor os
direitos de alguns sobre o direito de outros sem nenhuma ideia de igualdade
perante a lei4. O poder de punir, estava centrado na mão do Estado, que
possuía outra alternativa a fim de buscar a pacificação de toda a sociedade.
Todo esforço em encontrar um bem comum só encontraria uma forma
de vingar, através de uma estrutura jurídico-administrativa que fosse capaz
de controlar os atos que afrontavam avida em comum. O pensamento de
Carvalho, afirma que a passagem do estado da natureza para estado civil
representaria a transferência do poder privado ao poder publico, designado

2
Gonçalves, M. L. M. Anotações do Código Penal Português, 2ª edição, Livraria Almedina. Coimbra,
1972.
3
Wolfgramm; K. T. S. A Eficácia a Prestação de Serviço à Comunidade ou Entidade Publica como Pena
ou Medida Alternativa na Comarca de São Gabriel da Palha, 2009.
4
Boshi, J. A. P. Das Penas e seus critérios de Aplicação, Porto Alegre, 2000.

167
a saída da barbárie e a opção pela civilidade. Do Direito natural passou-se a
um processo de positivação, que impondo regras e sanções abria caminho
para uma nova forma de vida coletiva, com sujeitos limitados, o racionalismo
e o contracto social, o direito acaba por se separar da moral, da mesma forma
que a igreja e o estado também se afastariam, separando-se espaços públicos
dos particulares e a fé da razão.
A pena surgiu na antiguidade, assim como a pena de morte e outras
penas corporais. As penas possuíam caracter de vingança, castigos, contra o
criminoso. Com passar de tempo, novos pensamentos foram surgindo e
estes tipos de pena foram sofrendo mudanças. a pena de prisão, chamada
também por pena privativa de liberdade veio a ser um meio de aplicar
sanções mais humanas, com a intenção de punir o criminoso e reeducá-lo
através do seu encarceramento.
Mas com o tempo, restou comprovado que a pena privativa de
liberdade não vinha atingindo a finalidade de ressocializar o criminoso para
seu ingresso na sociedade.
Na história das leis e suas penalidades, apareceu um marco
importante, o Código de Hamurabi, trouxe a lei de Talião, onde detenha a
penalidade de ser “olho por olho e dente por dente”. Se um prisioneiro morrer
na prisão por mau tratamento, o chefe da prisão deverá condenar o
marcador frente ao juiz5.
O surgindo e aplicação da Lei das XII tabuas, onde na Tabua segunda,
número 1, estabelece que “se alguém cometer furto à noite e for morto em
flagrante, o que matou não será punido”6.

1.1 Declaração universal dos direitos humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, com nítida referência


aos ideais dos revolucionários franceses, com as consequências trágicas das
duas grandes guerras mundiais sensibilizou a humanidade para a
elaboração de um documento para proteger os direitos humanos contra a
tirania e a opressão e para evitar a barbárie que ultrajou a consciência da
humanidade.
A essência da declaração vem sintetizada no primeiro Artigo, onde
estão contidos os pilares da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e
Fraternidade) para a construção da dignidade da pessoa humana7. A ideia

5
Oliveira, B & Almeida, M. E. Sebenta de Apoio à Disciplina de Direitos Humanos, 2006, p. 24-25.
6
Ibidem, pág. 39.
7
DUDH. Artigo 1º “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão
e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

168
de respeitar e valorizar dos Direitos Humanos se consubstancia com o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família
humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis que constitui fundamento
da liberdade, da justiça e da Paz no mundo.
Considerando que é essencial a proteção dos direitos do homem
através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em
supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão8. Na República de
Moçambique, revela no artigo 43º da sua Constituição da República, o
respeito aos Direitos fundamentais que foram interpretados e integrados
em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Carta
Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, que são um exemplo
incontestável à luz da humanização, regeneração e reinserção social de
reclusos a quanto o cumprimento das suas penas.
Este sentido humanitário foi bem acolhido na lei ordinária inerente à
finalidade das penas, que consiste na (reabilitação, e reinserção social do
condenado e a reparação dos prejuízos causados com a conduta que
fundamentou a condenação e a defesa da sociedade, nos termos
estabelecidos pelo Artigo 2º da Lei n ͦ 26/2019, de 27 de dezembro, Lei que
aprova o Código de Execução das Penas. Tanto mais que, o atual Código de
Execução das Penas, a sua interpretação se inspira de acordo com e em
harmonia Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Carta Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos e dos instrumentos de direito
internacional relativos à execução das penas e medidas de segurança.9.
E o respeito ao princípio da dignidade humana confrontado à
responsabilização do recluso ou condenado a pena alternativa à pena de
prisão, o dever de responsabilidade no sentido de participar no processo de
reabilitação e reinserção social para atingir os objetivos traçados10

2. AS REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DE PRISIONEIROS

Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do


Crime e Tratamento de Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955, foram
um conjunto de princípios e orientações para uma penitenciaria e um
tratamento de prisioneiros pautados na observância dos direitos humanos,
dentre, eles: a separação de presos em razão da perigosidade, do sexo e da
idade, e da condição de preso preventivo ou definitivo; a higiene individual,
alimentação de qualidade, atividades físicas, assistência medica e religiosa,

8
Boshi, J. A. P. Das Penas e seus Critérios de Aplicação. Porto Alegre, 2000.
9
Artigos 2º e 3º do Código de Execução das Penas, aprovado pela Lei nº. 26/2019, de 27 de dezembro.
10
Artigo 5º do Código de Execução das Penas.

169
qualificação e capacitação do pessoal penitenciário. Com base na Declaração
Universal dos Direitos do Homem, os Estados africanos membros da
Organização da Unidade Africana, inspirados nos princípios e direitos
consagrados na Declaração da ONU, foi aprovado pela Conferencia
Ministerial da Organização da Unidade Africana (OUA) atualmente, União
Africana (UA), em Banjul, Gambia, em Janeiro de 1981, e adotada pela XVIII
Assembleia dos Chefes de Estados e Governo em Nairobi, Quénia, em 27 de
Julho de 1981, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos.
Este instrumento jurídico-legal, estatui no seu artigo 1º 11, sendo que
no artigo 2º da Carta, estabelece que, toda a pessoa tem direito ao gozo dos
direitos e liberdades reconhecidas e garantidos na presente Carta, sem
nenhuma distinção, de raça, de etnia, de cor, de sexo, de língua, de religião,
de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou
social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Artigo 4º da
Carta, a pessoa humana é inviolável. Todo ser humano tem direito ao
respeito da sua vida e à integridade física e moral da sua pessoa. Ninguém
pode ser arbitrariamente privado desse direito.
Portanto, foi só para elucidar alguns artigos da Carta Africana dos
Direitos do Homem e dos Povos que podem concorrer na reforma do sistema
penitenciário, no concernente a concessão do condenado a pena de
restaurativa como uma das formas para a reinserção social do condenado.
Esta teoria parte do fundamento do carácter retributivo, onde se pune
o agente porque cometeu crime. Consiste na retribuição jurídica, pois o mal
do crime impõe-se o mal da pena, do que resulta a igualdade e soe st
igualdade traz justiça. Portanto, o castigo compensa o mal da reparação e a
moral e ainda seria demonstrada através de vários fundamentos, onde havia
um caracter divino, moral e jurídico.
Entretanto, para essa teoria, a pena era tida como puramente
retributiva, não havendo qualquer preocupação com o individuo condenado,
mas sim uma forma de retribuir a altura, na medida, o mal que ele causou
com a infração penal. Essa tende de satisfazer a sociedade, dando uma
resposta, ou ainda pagamento, do contrário se a pena não for forma de o
condenado prestar suas contas, geraria um certo descontentamento, a pena
é um mecanismo atribuído ao Estado, o qual detém o poder de sua aplicação
aos indivíduos que infligem norma, ou seja, um facto típico, ilícito e culpável.

11
Os Estados membros da Organização da Unidade Africana, Partes na presente Carta, reconhecem os
direitos, deveres e liberdades enunciados nesta Carta e comprometem-se a adotar medidas legislativas ou
outras para os aplicar.

170
O Estado de direito Democrático, artigo 3º da Constituição da
República de Moçambique12 que garante o respeito dos direitos e liberdades
fundamentais do Homem, razão pela qual, tem órgãos que exercem a função
jurisdicional, que devem fazer valer seu “jus puniendi” , o Direito de punir,
carrega consigo toda tutela punitiva de aplicação das sanções que por si
trazem o papel de reprovação da conduta praticada pelo individuo, ainda o
caracter preventivo que demonstra a necessidade de que com a aplicação da
pena possa alem de reprovar também prevenir de praticas futuras, criando
a consciência no individuo condenado de que não será preciso infringir
novamente a lei, artigo 211º, n ͦ.1 e 2 da Constituição da Republica de
Moçambique13.
O artigo 60º, n ͦ.1 da CRM, diz que ninguém pode ser condenado por
ato não qualificado como crime no momento da sua prática “nullum crimem
sine lege” (não há crime sem lei). A definição material da pena consiste nas
penas descritas no artigo 61º do Código Penal, aprovado pela Lei n .ͦ
24/2019, de 24 de dezembro. Desta forma vale trazer três aspetos os quais
devem a pena a ser encarada: substancialmente, quando consiste na perda
ou preservação do exercício do direito relativo a um objeto jurídico;
formalmente quando está vinculada ao princípio da Reserva Legal, ou seja,
sendo somente aplicada pelo Poder Judiciário, respeitando o contraditório;
e o teleológico quando se mostra concomitante, castigo e defesa social.
Pode-se ainda, que alem do Poder de aplicar as penas está a
responsabilidade cada vez maior de aplicar a pena de forma correta. Desta
forma alguns princípios que regem a legislação penal devem ser levados a
superfície ou qualquer aplicação de pena, visando assim obedecer aos
princípios expressos ou implícitos consagrados na Constituição
moçambicana. Ela trouxe expressamente diretrizes para aplicação das
penas no país, bem como, veda as penas perpetuas, duração ilimitada ou
indefinida e de morte-artigo 61º, n .ͦ 1 da Constituição de Moçambique,
conjugado ao artigo 60º do Código Penal, aprovado pela Lei n ͦ.24/2019, de
24 de dezembro.
Conforme acima demonstrado, Moçambique está inserido em todo
um panorama legal, constitucional, com limites ao direito de punir existindo
assim uma preocupação com as garantias de preservar a dignidade da
pessoa humana. Deve-se vislumbrar também as características que devem

12
1. A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na
organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do Homem.
13
Os tribunais têm como objetivo garantir e reforçar a legalidade como fator da estabilidade jurídica,
garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses
jurídicos dos diferentes órgãos e entidades com existência legal. 2. Os tribunais penalizam as violações da
legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei.

171
existir na aplicabilidade ou mesmo na própria pena conforme os princípios
direcionados no Código Penal, que se destacam nos seguintes:

• Legalidade - não haverá pena sem uma lei previa-artigo 60º, n ͦ 1 da


CRM, e artigo 1 do Código Penal;
• Personalidade -que consiste da impossibilidade de estender-se a
terceiros a imposição da pena-artigo 61º, n ͦ.2 CRM e artigos 29º e
148º, ambos do Código Penal;
• Proporcionalidade - tem haver entre o crime e a pena, objetivando
ser proporcional ao mal causado pela prática da conduta criminosa.
Estabelece a última parte do n ͦ. 3 do artigo 59º CRM, e regula a sua
individualização no artigo 61º, n ͦ .2 da lei mãe. O Código Penal nos
artigos 42º, 59º e 148º, também trata de institutos como a
reincidência, a conduta social, a personalidade do agente,
respetivamente.

2.1 O problema da prisão

É a medida imposta em virtude da sentença condenatória, transitada


em julgado, ou seja, privação de liberdade determinada com a finalidade de
executar decisão judicial, apos o processo penal na qual se determina o
cumprimento da pena privativa de liberdade. Segundo Mougenot, prisão é a
que decorre de sentença condenatória transitada em julgado, que aplica a
pena privativa de liberdade. A prisão somente existe no âmbito do direito
penal. Trata-se de medida penal destinada à satisfação da pretensão
executória do Estado.
Há que detalhar a prisão sem pena ou prisão processual, sendo aquela
que não decorre de sentença condenatória transitada em julgado, não
constitui pena no sentido técnico jurídico. Trata-se de prisão de natureza
puramente processual, imposta com finalidade preventiva, destinada a
assegurar o bom desempenho da investigação criminal do processo penal ou
de impedir que, solto, o sujeito continente praticando novos delitos.
Exemplo de prisão em flagrante delito, artigo 298º do Código do Processo
Penal.
Como se pode perceber, “o muro de carcere representa uma violenta
barreira que separa a sociedade de uma parte de seus próprios problemas e
conflitos.14 O Estado cria lei mas não cria condições para sua atenção para
tornar real o desespero de uma vida inútil e a ajuda pessoal não existe

14
BOSHI, J. A. P. Das Penas e seus critérios de Aplicação, 2000, op. cit.

172
porque o ser humano, que poderia ter aprendido valores morais, espirituais,
mais valiosos à sua sobrevivência entre seus semelhantes, não teve a
oportunidade de aprendê-los, melhorá-los ampliá-los ou mudá-los.
A ressocialização do condenado deve ser a sua reintegração social,
sobretudo por parte da sociedade, que muitas vezes, ou quase sempre, não
aceita essa reintegração, continuando a excluir aqueles que já foram
condenados e pagaram sua divida, e o priva de direitos, impondo a ele uma
segunda punição. Nessa reintegração social, a sociedade deveria recluir
aqueles que ela excluiu, por estratégias nas quais esses excluídos tenham
participação ativa como seres humanos, e não como meros objetos de
assistência.

2.2 Aspectos psicológicos do problema da prisão

Como já foi anteriormente referido, a imposição de sanção penal


através da pena privativa de liberdade, alem das suas finalidades e demais
aspetos, essa imposição também possui reflexos no que diz respeito ao
aspeto psicológico. Como aspeto se tem tudo que influi no comportamento
do individuo desde o seu nascimento, que já é um sujeito árduo para os
parentes, passando pela sua coexistência familiar, também enfermadas de
dificuldades, o que faz se relacionar com o meio ate mesmo mãos do que com
sua própria família e com a agravante desse contacto se dar apenas com os
fatores negativos do meio, como a bebida, drogas, demência, etc. A verdade
é que um Estado Democrático de Direito, teria como principal meta, garantir
o respeito à dignidade da pessoa humana, porem, ao analisar a questão
penitenciaria, conclui-se que as unidades de reclusão não respeitam o ser
humano, enquanto sujeito dotado de direitos. As condições que possam no
mínimo impedir a degradação do sujeito e sua personalidade.
A realidade atual é de penitenciarias superlotadas, sendo que em
média existem cinco a dez presos a mais do que a capacidade por cela, todos
expostos a condições deploráveis, sem atendimento medido apropriado, ou
qualquer atividade produtiva.

2.3 Sistema prisional pré-independência e pós-independência

O Sistema prisional herdado do período colonial tinha a sua base legal


no Decreto-Lei 26.643, de 28 de maio de 1936, tornado extensivo a
Moçambique com algumas modificações a 29 de dezembro de 1954, pelo
Decreto-Lei 39.997, de 29 de dezembro, introduziu algumas alterações à
reforma de 1936, consagrado nomeadamente a existência de três tipos de

173
estabelecimentos penitenciários privativos dos indígenas. Estabelecimentos
de detenção destinados ao cumprimento de penas nomeadamente: 1 -
Colonias Penais; 2 - Colonias Correcionais; 3 - Granjas Correcionais e 4 -
Estabelecimentos especiais.
No entanto, embora estalecido juridicamente, este Sistema Prisional
para as indígenas não chegou a funcionar nas colônias como fora definido.
Continuou a prática de deportação de Moçambique para as plantações de
cacau em São Tome e Príncipe para os condenados a penas mais longas e de
trabalho correcionais em plantações de algodão ou sisal para a restante
categoria de reclusos. No início dos anos 60, com o advento das Lutas de
Libertação Nacional nas colônias portuguesas e a consequente revogação do
Estatuto de Indigenato, o cidadão moçambicano passou a ser encarcerado
nos estabelecimentos prisionais reservados a não indígenas, ao mesmo
tempo que crescia o número de presos políticos15. O Decreto-Lei 26.643, de
28 de maio de 1936, classificava os estabelecimentos prisionais em espécies,
sendo Estabelecimentos de detenção; Estabelecimentos destinados ao
cumprimento de penas (Cadeias comarcas e centrais); Penitenciarias e
colónias penitenciarias e prisões especiais.
Com a independência, registou-se a saída do País todo o corpo da
guarda prisional que então existia. Ao mesmo tempo, Moçambique dispunha
nessa altura de escassos quadros com formação académica superior,
nomeadamente juristas. Nesta altura a Constituição da República Popular de
Moçambique de 1975, no seu artigo 36º, no segundo período previa uma
punição severa. Posteriormente, foi extinta a Polícia Judiciaria e criada a
Polícia de Investigação Criminal, colocada sob autoridade do Ministério
Interior. Com esta medida legislativa e por arrastamento, os
estabelecimentos de detenção passaram também a subordinar-se ao
Ministério do Interior..., permanecendo os restantes na dependência do
Ministério da Justiça pela via da Inspeção Prisional. Foi com estas
transformações que se dividiu a administração do Sistema Prisional do País,
até então unificado, e se consagrou o dualismo que permaneceu até hoje.

2.4 Tipos de estabelecimentos penitenciários

Houve necessidade de instituir-se uma administração integrada dos


serviços Prisionais, no âmbito de implementação da política prisional, foi
definida pelo Conselho de Ministros, a criação do Serviço Nacional das

15
Amaral, A. O Sistema Prisional em Moçambique. Programa de Apoio ao Sector da Justiça, Maputo,
2000, p. 13.

174
Prisões16, órgão auxiliar da administração da justiça, com algumas das
atribuições nomeadamente: A reeducação dos reclusos; a promoção e gestão
de contractos de trabalho dos reclusos; a elaboração e implementação de
projetos de politicas e estratégias de reintegração social do delinquentes.
Decorridos seis anos, o país estando em vias de desenvolvimento, houve
necessidade de adequar a atuação dos serviços penitenciários à necessidade
de modernização estrutural e da segurança interna, o legislador
moçambicano, criou o Serviço Nacional Penitenciário, previamente
designado SERNAP17, tendo algumas das suas atribuições: garantir e velar
pelo respeito dos Direitos Humanos no tratamento da população
penitenciário e dos que cumprem a pena em regime de liberdade;
implementar e coordenar um sistema nacional de execução das penas
alternativas, em articulação com as autoridades judiciarias que as tenham
aplicado e com os parceiros da rede social; Incentivar a colaboração da
sociedade civil em matérias especificas da atividade penitenciaria, em
especial no âmbito da reabilitação e reinserção social.
Atualmente, em termos da lei de execução das penas, os
estabelecimentos penitenciários classificam-se em comuns e especiais,
conforme a área geográfica, sendo penitenciários regionais, provinciais,
distritais e penitenciários especiais.
Os estabelecimentos penitenciários especiais são de máxima
segurança, estabelecimentos para mulheres, estabelecimentos para jovens,
para reclusos preventivos, estabelecimentos de ensino, centros abertos,
hospitais penitenciários, hospitais psiquiátricos penitenciários, e
estabelecimentos que carecem protecção especial.18

2.5 População prisional

A população prisional consiste em dois tipos, sendo classificado por


detidos e outro grupo os condenados. A analise da população prisional
moçambicana revela uma serie de características cuja importância é central
na reflexão sobre as reformas a promover uma racionalização e tornar mais
eficiente o Sistema Prisional. Por um lado, deve-se salientar que, apesar das
penitenciarias se encontrarem na sua maioria superlotadas, a população
prisional é muito reduzida em relação à população geral. Por outro lado, a
sua dispersão no território coloca problemas de escala na conceção e

16
SNAPRI (Serviços Nacional das Prisões -Aprovado pelo Decreto n .ͦ 7/2006, de 17 de maio.
17
SERNAP (Serviço Nacional Penitenciário) - Aprovado pela Lei n .ͦ 3/2013, de 16 de janeiro e do
respetivo Estatuto Orgânico do Serviço Nacional Penitenciário, por Decreto n ͦ.63/2013, de 6 de dezembro.
18
Artigo 21º da Lei n .ͦ 26/2019, de 27 de dezembro - Lei de execução das penas.

175
organização física adequada das penitenciarias, pois estes devem obedecer
a critérios que permitam nomeadamente a separação entre detidos e
condenados, entre homens e mulheres e a separação entre diferentes tipos
de condenados, em função do tipo de crime cometido, da perigosidade, etc.
Este é um problema evidente em relação às mulheres, que constituem
uma pequena minoria no sistema19. Finalmente, dado que a população
reclusaria é muito jovem, de idade que varia entre 16 aos 25 anos, e formada
maioritariamente por indivíduos ligados ao sector informal da economia, ou
em situação declarada de desemprego, é urgente o desenvolvimento de um
verdadeiro sistema de acesso dos condenados à educação, mas
particularmente à formação profissional, durante o período de reclusão,
como forma de contribuir para a sua reintegração social. Na maior parte das
penitenciarias não existe separação efetiva entre detidos e condenados. Na
maior parte desses casos, as separações que possam existir em termos de
celas não impedem o contacto quotidiano entre as diversas categorias de
reclusos.

3. AS PENAS E SUAS FINALIDADES


3.1 A Teoria da lei penal

Desde a origem até hoje a pena sempre teve o caracter predominante


de retribuição de castigo, somando-se a ela uma finalidade de prevenção e
ressocialização do criminoso. Assim, pode-se ver a seguir as correntes
doutrinarias, segundo as quais existem a teoria absoluta, a teoria relativa e
a teoria mista, caracterizadas em:
1. Teoria Absoluta ou Retributiva - esta teoria fundamenta o caracter
retributivo, onde se pune o agente porque cometeu crime. Consiste na
retribuição jurídica, pois o mal do crime impõe-se o mal da pena, do que
resulta a igualdade e só esta igualdade traz justiça. Esta teoria, o castigo
compensa o mal da reparação e a moral. Para essa teoria, a pena era tida
como puramente retributiva, não havendo qualquer preocupação com o
individuo condenado e sim uma forma de retribuir a altura, na medida, o mal
que ele causou com a infração penal.
2. Teoria Relativa - tratava a pena como forma pratica de prevenção.
Aqui o crime não seria causa da pena, mas a ocasião para ser aplicada a
sanção pré-existente, tendo ainda o fim de readaptar o criminoso meio
social. Esta doutrina traz a prevenção geral negativa; nota-se uma
preocupação de intimidar, pois, a pena aplicada ao individuo condenado

19
Amaral, A. O Sistema Prisional em Moçambique, 2000, p. 36.

176
tende a refletir na sociedade como forma de intimidação para que as demais
pessoas reflitam antes de cometer algum crime.
3. Teoria Mista - essa teoria denota a pena conjugando a necessidade
de reprovar com a necessidade de prevenir as práticas de crimes. Portanto,
entende-se aqui que a pena por natureza é considerada retributiva, tem
aspeto moral, mas sua finalidade e não só a prevenção, mas também um
misto de educação e correção, pois alem de corrigir é necessário educar.
Desta forma, o artigo 59º do Código Penal adota essa teoria, quando em sua
redação conjuga a necessidade de reprovar e prevenir.
A CRM, regula no seu artigo 61º as penas permitidas em território
moçambicano, as quais são tipificadas na lei penal, nos artigos 61º, 62º, 63º
,67º e outros instrumentos jurídicos. Essas penas segundo o código
moçambicano, se dividem em penas maiores, penas correcionais e penas
para empregados públicos. As penas maiores são reguladas no artigo 61º, os
correcionais no artigo 62º e as especiais reguladas no artigo 82º do código
penal e as penas especiais reguladas no artigo 71º do mesmo diploma legal.
As penas maiores, são penas privativas de liberdades, e estão enunciadas no
artigo 69º do Código Penal.
O programa dos princípios orientadores para a execução das penas e
medidas privativas da liberdade integra a frequência de programas
específicos que permitam a aquisição ou o reforço de competências pessoais
e sociais, de modo a promover a convivência ordenada no estabelecimento
penitenciário e a favorecer a adopção de comportamentos socialmente
responsáveis, nela se incorpora o programa de justiça restaurativa, nos
termos do n ͦ.4 do artigo 60º do Código de Execução das Penas. Significa
haver no ordenamento jurídico moçambicano preocupação e interesse para
implementação da justiça restaurativa. Enquanto se projecta a
implementação da justiça restaurativa em Moçambique, por momento
vigora o respeito ao principio da dignidade humana, artigo 5º do Código de
Execução das Penas, da finalidade das execução das penas artigo 2º do
diploma atras referido, que consiste na execução das penas e das medidas
criminais visa a reabilitação e reinserção social do condenado, preparando-
o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, bem como a
protecção de bens jurídicos e a reparação dos prejuízos causados com a
conduta que fundamentou a condenação e a defesa da sociedade bem como
o principio da responsabilização do recluso ou condenado, artigo 6º do
diploma supracitado.
Ademais, vigora na ordem jurídica penal moçambicana, aplicação e
limites das penas conforme dispõem os artigos 135º a 146º, todos do Código
de Execução das Penas. Ainda na ordem jurídica interna, existe execução
das penas acessórias previstas pelos artigos 181º e 182º respectivamente,
como também a execução da pena relativamente indeterminada, artigo 183º
do diploma atras referido.

177
3.2 Da Execução da sentença

Não importa o que quer que seja, absolvição ou condenação, o


processo termina quando o juiz disser a última palavra. Mesmo assim e
ainda que, prescindindo desta reabertura, a condenação não significa,
absolutamente, o final do processo: quer dizer, ao contrário e
diferentemente da absolvição, o processo continua. Somente a sua sede se
transfere do tribunal para a penitenciaria. O que se deve entender é que
também a penitenciaria está compreendida, em conjunto com o tribunal, no
palácio da justiça. É uma ideia que nada tem de claro, ainda que na mente
dos juristas, mas deve ser aclarada no interesse da sociedade. Alias, aqui
apresenta-se o nó do problema no terreno da sociedade.
As pessoas concebem, incluindo também os juristas, em relação à
condenação algo de análogo ao que ocorre quando um homem morre: a
decisão condenatória, com o aparato que todos conhecem mais ou menos, é
uma espécie de funeral. Terminada a cerimónia depois do acusado sair da
prisão provisoria e ser transferido para a custodia penitenciaria, retoma-se
para cada um de nós, a vida quotidiana e pouco a pouco não se pensa mais
no falecido. Sob certo aspeto, pode assemelhar-se a penitenciaria a um
cemitério, mas esquecem de que o condenado é um sepultado vivo.
A penitenciaria é, verdadeiramente, um hospital cheio de doentes de
espírito e não de doentes de corpo e por vezes também de doentes de corpo.
Mas que singular hospital! No hospital, antes de mais, o medico quando se
dá conta de que o diagnostico está errado, corrige-o e retifica o tratamento.
Na penitenciaria, ao contrário, é um hospital onde não existem medico e
enfermeiros20. No ordenamento jurídico moçambicano as penas
restaurativas estão traduzidas em variações de medidas substitutivas de
pena não privativa de liberdade que melhor assegura as finalidades de
condenação21: A Multa, a prestação de trabalho socialmente útil, etc.

4. A TEORIA DA LEI PENAL

A primeira manifestação de direito organizado na Península Ibérica-


período visigótico-relativo ao Direito Penal, foi o Código Visigótico, que
tentava restringir o poder do imperador e o máximo de obediência à lei,
referencia à incriminação de caracter doloso. Influencia árabe, período de
reconquista, não há uma lei concreta.

20
Carnelutti, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Escolar Editora. p. 68.
21
Artigos 71,72, 73, 75, 78, 79 e 80 do Código Penal revisto pela Lei n ͦ. 24/2019, de 24 de dezembro.

178
No seculo XII e XIII, formas de Organização do Estado- período
afonsino. Concentra-se nos reis os poderes, tendo o mesmo monopólio do
poder de punir. Há tentativas de organizar o poder- centralização do poder
real, limitar as questões de justiça privada. Atribuir exclusividade de
repressão publica. As penas eram marcadas por grande crueldade. Nos
livros das ordenações há uma lista idêntica na matéria de punição, estas
ordenações mantiveram-se até o seculo XIX (1852). As características das
ordenações: Casuísmo - direito casuísta evolui na aplicação concreta de
casos a caso; Arbitrariedade - o juiz tinha uma longa margem de
discricionariedade de fazer funcionar as penas daquele que estava perante
si, as penas eram transmissíveis; Desigualdade - as penas eram aplicadas em
conformidade com a posição social do acusado. Este período dura até ao
constitucionalismo liberal. Há uma tentativa de criação de um Código Penal
em 1779, inspirado pelos movimentos europeus de Direito Penal. No seculo
XIX – 1892 - com a constituição liberal, vem reorganizar o Estado português
-corte com o regime das ordenações contendo princípios de Direito Penal.

✓ Com o princípio da humanização das penas passou-se a proibir


certas penas cruéis; Combater a desigualdade das penas;
Necessidade das penas; Princípio da proporcionalidade das penas;
Acabar com a transmissibilidade da responsabilidade criminal.

Em 1852 é feito o primeiro Código Penal Português que transpõe para


o Direito penal os princípios penais consagrados. Em 1886 é feito um novo
Código Penal, não mais do que Código Penal de 1852 com algumas
alterações.

4.1 Princípio da Adequação Social à luz da Justiça Restaurativa à


Execução Penal

O principio da adequação social da conduta é conceituado e


introduzido no direito penal com a interpretação das penas acessórias e
efeitos das penas sobre a qual nenhuma pena envolve como efeito
necessário a perda de direitos civis, profissionais ou públicos, nem priva o
condenado dos seus direitos fundamentais, salvo as limitações impostas por
lei inerentes ao sentido da condenação e as exigências especificas da
respetiva execução22, os aspetos da pessoa humana não podem ser
negligenciados pelo direito, e em especial pelo direito penal, sobretudo em

22
Artigo 79º do Código Penal atualizado pela Lei n ͦ.2/2019, de 24 de dezembro.

179
sua atividade de aplicação e execução, que geram consequências restritivas
de direitos23.
O princípio da dignidade da pessoa humana tem valor imaterial e
inerente a todo ser humano, sendo irrenunciável e criador de outros
princípios, sendo os princípios indivisíveis, integradores e formadores de
um democrático de direito, assumindo no constitucionalismo jurídico
moçambicano24, assente no respeito e garantia dos direitos e liberdades
fundamentais do homem.
A dignidade humana é pressuposta da determinação do direito, como
é também o seu limite, visto que introduz no ordenamento jurídico o
respeito recíproco, que restringe a esfera de ação de cada individuo.
Portanto, o direito somente irá intervir na ação do individuo na medida da
sua necessidade, para que seja, pois legitimamente restringida.
O Direito Penal, a proteção da dignidade serve de parâmetro ao
legislador na configuração dos tipos e aos operadores do direito na
interpretação dos mesmos. Dai é que em decorrência do princípio da
dignidade da pessoa humana surgem outros princípios, inclusive
especificamente penais, como é o caso do princípio da adequação social da
conduta. É importante perceber que existe uma diferença entre o princípio
da adequação social e o da insignificância é controversa, permite excluir logo
de plano de lesões, por representar algo diminuto ou desprezível, bem como
algo de nenhum valor a culpabilidade ou então a aplicação da pena
restaurativa à execução penal. O reconhecimento da inexistência da infração
penal, quando detetada a insignificância da ofensa ao bem jurídico tutelado
que poderá nos tribunais moçambicano. Apesar de ser um princípio
constitucional que assenta no respeito pelos direitos humanos, o valor da
dignidade da pessoa humana, a falta de previsão legal explicita não tem
impedindo aplicação do princípio de insignificância em Moçambique. Por
isso, não é ainda aplicável no ordenamento jurídico moçambicano.
O princípio da insignificância, assim como o princípio da adequação
social, também exclui a tipicidade material, porem “a teoria da adequação
social está prevalente regulada sobre o desvalor da ação, e o princípio da
insignificância sobre o desvalor do resultado. O princípio da adequação
social tem como foco a analise, já o princípio da insignificância analisa o
resultado da conduta, sua lesão e o bem jurídico protegido, se este foi ou não
gravemente afetado.

23
Eliane de Andrade Rodrigues, Princípio da Adequação Social, p. 42.
24
Artigo 3 da Constituição da República de Moçambique, 2004, actualizada.

180
Para facilitar a compreensão, pode-se dar como exemplo, o furto de
um pacote de fosforo em um supermercado não é uma conduta socialmente
aceite ou tolerada, no entanto, diante da pouca gravidade lesiva e não
afetação do bem jurídico protegido, será considerada insignificante. O
princípio da adequação social, mas, conforme alguns pontos divergentes.

4.2 A Justiça Restaurativa à Execução Penal

A teoria da justiça restaurativa à execução penal, nasce como oposição


ao conceito tradicional da justiça criminal “a justiça punitiva-retributiva “. A
ideia da justiça restaurativa propõe nova abordagem na definição do crime
em relação os objetivos da justiça, na perspetiva do crime como violação à
pessoa e as relações interpessoais, sendo que o papel da justiça deve ser o
de restauração dessas violações, ou seja, a reparação dos danos causados
não somente à vítima, como também a sociedade. Ao passo que para justiça
punitiva ou retributiva considera o crime como um ato meramente violador
da norma estatal, sendo a contrapartida dessa violação à pena. A justiça
punitiva-retributiva à centralidade do Estado é da pena e da atribuição da
culpa como forma de compensar as consequências do delito25.
A ideia da justiça restaurativa aponta o cenário de aproximação, uma
relação direta ou indireta, consensual e voluntaria entre a vítima, o infrator
e a comunidade. proporciona a identificação das necessidades de cada uma
das partes e posteriormente para entender essas necessidades, como
modelo moçambicano, que se inspira no regime jurídico germânico, que
possui a estrutura menos flexível à receção da justiça restaurativa. Resiste à
restauração a indisponibilidade da ação penal, o que dificulta a possibilidade
de conciliação, ou seja, mediação, reuniões coletivas na esfera jurídico penal.
Esse meio alternativo de justiça criminal, busca pela ressocialização
do infrator, a reconhecer o seu erro e assumir a responsabilidade pelas
consequências do seu ato, conduta, enquanto a justiça restaurativa se
inspira na cura das consequências do delito.
A justiça restaurativa é um modelo de solução de conflitos
desenvolvido na década 1970 em países do sistema jurídico “Common law”
e mais tarde ao sistema romano germânico como é o caso do Brasil,
enquanto para Moçambique é uma inspiração por concretizar.
A justiça restaurativa propõe a avaliação do fenómeno criminológico
desde as suas causas, passando pela aplicação da justiça até suas
consequências futuras. A justiça restaurativa visa modificar a perceção da

25
Artigos 59º e 62º ambos do Código Penal Moçambicano-atualizado em 2019.

181
sociedade sobre o delito, ou seja, a sociedade não se pode limitar em sugerir
melhores tecnologias, mas sim buscar as causas e o significado da
transgressão para a sociedade. A sociedade passar a entender que o crime é
um dano decorrente da violação das relações interpessoais e, a partir dai,
procurar soluções para corrigir a causalidade sofrida.
Para tal, o objetivo da justiça restaurativa é recuperar a vítima,
restabelecendo o seu estado anterior à agressão, bem como transformar e
curar o agressor de modo que este mude seu comportamento, e
consequentemente se reconcilie, repare o dano bem como a restauração do
senso de segurança, tanto para quem sofreu a lesão como para a sociedade.
A ideia da justiça restaurativa não é de punir, mas, sim corrigir o mal
cometido, cabendo atuação terapêutica do Estado, que deve prover todos os
meios para criação de um ambiente saudável, ainda que não seja possível a
restauração plena do estado anterior à violação.
Buscar a relação vitima-infrator e o arrependimento do autor do
delito, sem coação das partes pelo Estado, visto que tanto o perdão como
arrependimento são processos emocionais e inatingíveis conforme a
materialidade dos fatos e a gravidade da ofensa. Ao Estado cabe fornecer
oportunidades tanto para a vítima como ao infrator uma situação de
irmandade.
Ao infrator deve ter o reconhecimento do seu erro, o arrependimento
e a busca para consertar o mal feito. A justiça restaurativa condensa sua
atenção em reparação das violações decorrentes do crime, contrariamente
da justiça retributiva, a qual se volta, principalmente, para a culpa e a
imputação da pena.
O operador da justiça não significa que devem fazer um trabalho
voluntario, a iniciativa pode partir das partes, podendo ser chamados
mediadores vulgo facilitadores para marcar a viabilidade do processo
restaurativo.

4.3 Sustentabilidade Jurídica Restaurativa como Política Criminal.

O crescimento do debate a cerca da justiça restaurativa apresenta


sintomas no ordenamento jurídico moçambicano sobretudo na valoração da
dignidade da pessoa humana, poderá servir a justiça restaurativa como
necessidade para implementação em Moçambique.
De facto, a justiça restaurativa surge com fundamento na
reconstrução do sistema de regulação social e sob a perspectiva dupla
acompanhar as transformações contemporâneas mais recentes no direito

182
em geral e conter a expansão do direito penal na sua vertente repressiva.
Basta resgatar o histórico de ideias como as penas alternativas reformistas.
A justiça restaurativa não se deve entender como uma crise do
sistema de justiça, um como mero instrumento de alívio aos tribunais, de
extensão burocrática judiciaria, mas sim deve ser implementada a partir de
um debate profundo, que considere as particularidades do sistema jurídico
moçambicano.
Identifique os pontos em que o novo modelo pode ser testado e
principalmente reconheça os obstáculos existentes, construindo, a partir
desse reconhecimento, um discurso legitimador de justiça restaurativa
consoante a realidade político institucional do país? O paradigma da justiça
restaurativa desafia resistências, concretamente aos operadores da
administração da justiça que consideram afronta das garantias
constitucionais e produz lesão no Direito Penal codificado.
A justiça restaurativa prioriza o papel da vítima e do infractor no
encontro, sendo que o acordo restaurativo só terá validade e eficácia quando
homologado judicialmente, com anuência do Ministério Publico na
qualidade de titular da acção penal, mas não impede que a vítima e o
infractor tenham acesso a advogados para efeitos de consulta.
O processo restaurativo é constitucional e legalmente sustentável,
embora no ordenamento jurídico moçambicano ainda não esteja em prática,
mas não é uma alternativa extralegal, por ela corresponde à um
procedimento de mediação, conciliação e transação, que deverá estar
prevista na legislação com uma metodologia restaurativa, admitindo a
participação de vítima e do infractor no processo decisório, quando possível
e for essa a vontade das partes.
Há correntes críticas em relação a eficácia da justiça restaurativa, que
a justiça restaurativa seria como estar a servir, beneficiar e promover
impunidade do infractor. É possível perceber que essa é uma das principais
críticas a justiça restaurativa, ainda mais do clamor social contra a
impunidade e a benevolência do sistema formal vigente. Por outro lado, a
prisão, por sua impropriedade e ineficácia, alem dos seus melíficos só é
reservada para crimes graves.
A justiça restaurativa não tem o condão de restaurar a ordem jurídica
lesada pelo crime é nem mesmo pode reparar a vítima. No entanto, como um
procedimento complementar do sistema, a justiça restaurativa estará
também recompondo a ordem jurídica, na medida em que estará
trabalhando o crime, com outra metodologia, mas que leva a resultados
melhores para a vitima, que recupera segurança, autoestima, dignidade e
controle da situação, e também para o infractor na medida que ao mesmo

183
tempo em que o convoca na sua responsabilidade pelo mal causado lhe
oportuna meios para refazer-se, inclusive participando de programas da
rede social de assistências.
De facto, a reparação emocional não acontece em todos os casos,
contudo, ocorre mais frequentemente na justiça restaurativa do que em
processos da justiça criminal tradicional. Quanto aos infractores já havia se
estabelecido que restaurar corresponde a uma efetiva responsabilização
efectiva dos infractores e a reparação, por parte deles, das vítimas. Mas é
razoável argumentar que, se um determinado processo utiliza os
mecanismos restaurativos e alcança seus objectivos, então é possível obter
redução da reincidência consequentemente.
Há críticas diante da justiça restaurativa não produzir reais
mudanças. No entanto, o objectivo da restaurativa não seria de facto a
redução da reincidência, mas sim a responsabilização efectiva dos
infractores e a reparação, por parte deles, das vítimas. Mas é razoável
argumentar que, se um determinado processo utiliza os mecanismos
restaurativos e alcança seus objectivos, então é possível obter uma redução
da reincidência consequentemente.
Percebe-se que esse hábito corresponde à necessidade político
institucional, que anteriormente estava ligada ao processo de apropriação
da justiça e que agora está na instrumentalização do direito penal para
manter o distanciamento e o isolamento de determinadas pessoas,
rotulando-os “inimigos” da sociedade. A justiça restaurativa pretende abater
sentimento punitivo, ao reconhecer esse meio de solução de conflitos como
uma etapa fundamental para a evolução da vida comunitária, cuja harmonia
é mais ameaçada queque preservada nas tendências irracionais calcadas na
punição. A mediação, por no estar vincula pelos rigores das normas
processuais e substanciais, acaba por consentir aos indivíduos a
reapropriação concreta de seus conflitos, tornando-os os sujeitos principais.
A mediação não representa em espaço privado da lei, nem privatizado em
relação àquela, uma vez que a mediação revela sua total compatibilidade
com o direito penal. No tocante às garantias do devido processo penal, como
o contraditório e a ampla defesa, de nada adianta a observância formal
desses princípios, se só contribuírem para levar o acusado certo e seguro da
punição severa.

CONCLUSÃO

Este estudo do Artigo Científico com o tema Justiça Restaurativa à


Execução Penal do Modulo de Direito Penal, permitiu identificar a falência

184
da aplicação da pena privativa de liberdade em que Moçambique é menos
aplicável senão mesmo inexistente. Para tal, esse processo assume o
caracter ainda mais desumano em virtude de o passado da sociedade
moçambicana ser colonizada e escravizada. Pois a pena privativa de
liberdade fracassou quando os fins propostos de evitar a reincidência e
ressocialização do infrator. A função retributiva em algum momento poderá
fracassar, se por um lado deixa de punir em virtude, dentre outros fatores,
das inúmeras fugas, por outro lado, quando o faz, pune mal, posto que o
castigo ultrapassa a privação de liberdade e atinge outros direitos
fundamentais que não foram suspensos pela imposição da pena, tais como o
direito e da mente, à integridade física. Enfim, viola, demasiadamente, o
princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo o direito à vida.
O processo de colonização em Moçambique forjou uma sociedade
marcadamente desigual, construindo uma pobreza marginal estigmatizada
e criminalizada. Em face do fracasso da pena privativa de liberdade, passou-
se a mitigar a sua aplicação, abrindo espaço jurídico para a adoção de um
novo tipo de sistema sancionatório, que permite o cumprimento da pena em
meio livre, como a pena da prestação de serviços à comunidade. Assim, o
sistema punitivo em Moçambique não realiza adequadamente nenhuma das
funções próprias de pena criminal: não previne, não ressocializa nem prevê
a retribuição na medida certa. Portanto, é um modelo adequado com a
sociedade excludente. A legislação moçambicana está marchando para
alcançar a aplicabilidade das penas alternativas à pena propriamente dita na
legislação do Serviço Penitenciário em vigor, a Lei n ͦ.3/2013 de 16 de
janeiro, que vai desaguar na Lei n .ͦ 26/2019 de 27 de dezembro que aprova
o Código de Execução das Penas e da Lei n ͦ. 25/2019 de 26 de dezembro, Lei
de revisão do Código do Processo Penal, respetivamente.
A superlotação não é o único problema enfrentado pelas pessoas
privadas de liberdade. No entanto, a solução para este problema não resume
a construção de mais penitenciarias. A aposta deve ser para o modelo de
justiça restaurativa como uma necessidade permanente, pois não é possível
continuar apostando em um modelo punitivo incompatível com o Estado de
Direito Democrático plasmado no artigo 3º da Constituição da República de
Moçambique.
Constata-se que a justiça restaurativa à execução penal em geral é
bem aceite pela sociedade. A penitenciaria por sua utilização baseia-se em
suas inúmeras vantagens, dentre eles, a participação efetiva do infrator com
a sociedade para reintegração na sociedade.
A grande questão a ser enfrentada pela justiça restaurativa em
Moçambique está no facto de sociedade acreditar que a imposição do castigo

185
e de dar representam o conceito da justiça e que o diálogo e compreensão
não podem fazer parte deste. Por isso, que para compreensão do presente
Artigo, é necessário que se exerça a mudança na forma de se perceber o
crime e a justiça. Dai que, a Justiça Restaurativa propõe exatamente isso,
uma verdadeira troca de visão, substituindo a retribuição pela construção
duma resposta para cada caso, para cada envolvido. Não existem limites
padronizados e imediatas, estas são resultado da participação consensual da
vítima e do infrator com vista à criação de novas soluções mais humanas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Amaral, A. (2000). O Sistema Prisional em Moçambique. Programa de Apoio ao Sector


da Justiça-Maputo.

Carnelutti, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Escolar Editora.

Constituição da República Popular de Moçambique, 1975.

Constituição da República de Moçambique, 2004.

Decreto-Lei 26.643, de 28 de maio de 1936, herdado do período colonial, tornado


extensivo a Moçambique com algumas modificações a 29 de dezembro de 1954, pelo
Decreto-Lei 39.997, de 29 de dezembro, introduziu algumas alterações à reforma de
1936.

Decreto n .ͦ 7/2006, de 17 de maio, que cria Serviços Nacionais das Prisões.

Decreto n ͦ.63/2013, de 6 de dezembro, que aprova o Estatuto Orgânico do Serviço


Nacional Penitenciário.

Lei n ͦ.3/2013, de 16 de janeiro, que cria o Serviço Nacional Penitenciário.

Lei n ͦ.24/2019, de 24 de dezembro, Lei da Revisão do Código Penal e revoga o Código


Penal aprovado pela Lei n ͦ. 35/2014 de 31 de dezembro.

Lei n ͦ. 25/2019, de 26 de dezembro, Lei da Revisão do Código do Processo Penal.

Lei n ͦ. 26/2019 de 27 de dezembro, Lei que aprova o Código de Execução das Penas.

Oliveira, B & Almeida, M. E. (2006). Sebenta de Apoio à Disciplina de Direitos


Humanos. ACIPOL, WLSA, Moçambique. Maputo.

Penal International Reform, 1999.

186
ANTIPATIA SOCIAL DAS PENAS
ALTERNATIVAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
MOÇAMBICANO

MÉRCIA FRANCISCO JOÃO*


DEOLINDA LURDES INÁCIO**

INTRODUÇÃO

Este artigo gira em torno de uma pesquisa prévia, fundamentador do


estudo “Antipatia social das penas alternativas no ordenamento jurídico
moçambicano”. Para tal, manifestar juízos em torno de alguns aspectos
essenciais para a discussão da matéria.
Entrou em vigor em 2014 o código penal publicado pela Lei 35/2014,
de 31 de dezembro, no Boletim da República I serie n.º 105, que pela
primeira vez trouxe a modalidade das penas alternativas. Essa introdução
da modalidade, trouxe uma ideia futura de “falência” das penas
convencionais (as de prisão), um pensamento de que, estas penas
alternativas iriam revitalizar as penitenciárias e atingir a finalidade de
prevenção, reeducação, ressocialização e reintegração do criminoso na
sociedade (art. 58º do Código Penal).
E inquestionável a importância das penas alternativas. Como
sublinhado anteriormente, as penas alternativas podem revitalizar,
principalmente o sistema penitenciário, reduzindo o congestionamento
interno penitenciário. O problema mesmo é a aceitação e o pensamento
social na aplicabilidade dessas penas.

*
Docente da Universidade Católica de Moçambique Extensão de Gurué, Cargo: Directora Adjunta
Pedagógico da UCM-Extensão de Gurué merciafranciscojoaoa@gmail.com
**
Docente da Universidade Católica de Moçambique – Faculdade de Mineralogia-
deolindalurdesinacio@yahoo.com.br

187
O pensamento social, a acção social e o próprio funcionamento do
sistema de aquisição de conhecimento, a sociedade pode ser considerada um
sistema económico, um sistema político, religioso e legislativo, também
pode ser considerada um sistema pensante. Quer dizer, um espaço de
interacção social onde as pessoas se interrogam e procuram encontrar
respostas para questões que, em conjunto com outras, se colocam. Uma
situação que gira em torno da questão do conhecimento social sobre o crime,
o criminoso e a modalidade de crime. Então, qual seria o ideal da
aceitabilidade social das penas alternativas no ordenamento jurídico
moçambicano?
Este é um estudo que irá impulsionar o entendimento da importância
das penas alternativas no ordenamento jurídico moçambicano na face social,
alternar cuidados aos magistrados e juristas na aplicabilidade das penas
alternativas, de forma a aperceber no estado real da sociedade, a ignorância
social sobre as penas/medidas alternativas ora vigentes.
Como objectivo geral, A pesquisa proposta busca identificar e analisar
a aceitabilidade social das penas alternativas no ordenamento jurídico
moçambicano, que tangem a sim da sociedade em torno das alternativas
penais e pela sua eficácia educativa e socializadora, fazendo uma análise da
questão do ponto de vista da sociedade, dos condenados e dos aplicadores
de direito, os juízes, procurados e juristas.
Como objectivos específico temos: a) abordar em torno da face
jurídica das penas alternativas no ordenamento jurídico moçambicano; b)
Avaliar a aceitabilidade das penas alternativas. c) Estudar qual a
participação da sociedade no processo da consolidação das penas
alternativas.

1. PENAS ALTERNATIVAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO

Existem várias acepções em torno da noção de pena: jurídica,


histórica, sociológica e filosófica. Mas nos convêm realçar de forma
contundente a visão jurídica e social.

Visão Jurídica

Na visão jurídica, segundo Teixeira Mendes (2014), a pena é a sanção


legal que corresponde ao crime de alguém que foi condenado de forma
definitiva. A pena exige, nesse sentido, uma sentença condenatória
transitada em julgado num processo judicial com respeito ao contraditório

188
e a ampla defesa. A principal sanção, bem assim o paradigma de aplicação de
pena é a pena privativa de liberdade.
No âmbito processual criminal, a criminalização, a pena passa por três
fases de individualização: decreto, aplicação e execução. O legislador decreta
(prevê a moldura penal), o juiz aplica (dentro dessa escala e segundo os
critérios de dosimetria) e a administração penitenciária, sob o controle do
judiciário, executa a decisão do tribunal.
Seria esgotante envolvermos na história penal moçambicana o
sistema colonial, que já era positivado. Mesmo a partir dos anos de 1500, o
colonizador não via a sociedade a colonizar como sujeito de direitos.
Mas de ponto histórico, prevalece na sociedade moçambicana, um
direito penal típico moçambicano e original. Permanecem algumas
comunidades moçambicanas a ideia de que a pena deve ser moral, a simples
censura moral.
Em sentido histórico se analisa o que as diversas sociedades ao longo
do tempo entenderam como pena, os meios de sua aplicação e como
serviram à legitimação do poder do Estado e às formas de dominação social.
A origem da pena pública é marcada pela formação dos Estados nacionais e
pelo confisco do conflito, ou seja, da intervenção estatal nos conflitos entre
indivíduos sob sua jurisdição. A passagem à contemporaneidade
(revoluções do século XVIII) é marcada pela substituição das penas
corporais pela pena de prisão, consolidada no século XIX com a revolução
industrial.
No Moçambique independente conjugou-se liberalismo e escravidão,
as penas corporais (açoites) para os escravos conviveram com as penas de
prisão para as pessoas durante o século XX (Código Criminal de 1886).
A centralização e publicitação definitiva do poder punitivo ocorreram
somente no século XX, primeiro com o Código Penal de 1886 e,
posteriormente, consolidada pelo Código Penal de 2004.
De salientar que a visão social tem um pacto com os direitos humanos,
pois considera pena todas as medidas que de uma ou outra fere os direitos
da pessoa humana.
No sentido social, a pena ‘bastante abrangente, pois engloba até as
penas não formais. A pena juridicamente definida é a punição estatal. Mas
no âmbito social, outras formas de punição por parte do Estado também
podem ser consideradas penas, ainda que não o sejam tipificadas na lei penal
ou não sejam legais. Elas podem ser: a) legais, mas sem as garantias próprias
do direito penal (ex. medida de segurança de restrição de doentes mentais;
medida socioeducativa de restrição de menores infractores); b) ilegais, na

189
actuação concreta das agências do sistema penal (ex. morte pela causada
pela polícia; maus-tratos e tortura aos prisioneiros).
ZAFFARONI entende que essas situações devem ser abrangidas pelo
direito penal como forma de garantir o respeito aos direitos humanos no
marco do Estado democrático de direito, ou seja, a abrangência da definição
de pena deve abarcar essas situações como forma de controlo da tendência
autoritária das práticas punitivas estatais.
Segundo TEIXEIRA MENDES, no sentido filosófico, a pena é um
fundamento e uma função atribuída à sanção criminal, o próprio significado
de sua existência como forma de coerção social. Dissuasão, retribuição,
neutralização, reeducação, são normalmente os sentidos atribuídos à pena.
Elas são dívidas em absolutas (retribuição), que possuem um valor em si, ou
relativas (preventivas), que buscam uma determinada funcionalidade,
utilidade social.

2. SISTEMA E ESPÉCIES DE PENAS

O sistema de penas é a forma de responsabilização do indivíduo pelo


fato punível. O Código Penal prevê duas formas de responsabilização de
acordo com a imputabilidade do agente maior de 18 anos: a pena para o
agente capaz e a medida de segurança para o agente com doença mental. O
modelo adoptado pena Reforma de 2004 é o dualista alternativo em
substituição ao modelo dualista cumulativo do Código Penal de 1886, ou
seja, ou se aplica a pena, segundo a culpabilidade, ou a medida de segurança,
segundo a periculosidade.
As penas predominantes no nosso ordenamento jurídico, são as
seguintes (art. 57 et seq., CP):

a) Privativa de liberdade;
b) Medidas alternativas;
c) Medidas de segurança.

A pena privativa de liberdade é a principal forma de punição e centro


do sistema de penas.

2.1 Penas alternativas / medidas alternativas

Uma ideia contemporânea sugeriu que as penas privativas de


liberdade, não são eficazes e fracassaram no âmbito dos seus objectivos.
Olhando para o direito comparado, por exemplo o Brasil, implementou as

190
medidas alternativas com a Lei n.º 7.210/84, que surgiu pela falha no
ressocializar do elemento prisioneiro.
As Medidas alternativas são formas alternativas de sanção criminal,
que substituem a pena privativa de liberdade e são previstas de forma
autónoma, independente de cominação na parte especial. O seu
cumprimento extingue a pena privativa substituída e em caso de
incumprimento pode admitir, como garantia de eficácia da restrição
imposta, a reconversão em privação de liberdade.
Vários debates aconteceram em Moçambique com o intuito de
justificar a ineficácia das penas privativas de liberdade. Mas uma questão
curiosa, a implementação desses espécimes de pena no nosso ordenamento
jurídico, não foi pela necessidade de melhor forma ressocializadora, mas
pelo facto de o Sistema Penitenciário moçambicano não ter condições de
responder com a demanda que é maior, nas suas instalações. Elas foram
incluídas na reforma da Parte Geral de 2014.
O surgimento desses espécimes penais, a nível mundial (menos
Moçambique), abriu a falência da pena privativa de liberdade ou seja a pena
prisional, uma falência que justificada por Fragoso (apud LUZ, p. 72):

“A prisão constitui realidade violenta, expressão de um sistema de


justiça desigual e opressivo, de que funciona como realimentador.
Serve apenas para reforçar valores negativos, proporcionando
protecção ilusória. Quanto mais graves são as penas impostas aos
delinquentes, maior é a probabilidade de reincidência. O Sistema será,
portanto, mais eficiente, se evitar, tanto quanto possível, mandar as
pessoas para a prisão, nos crimes pouco graves, e se, nos crimes
graves, evitar o encarceramento demasiadamente longo. A
consequência natural da falência da prisão é o entendimento de que
ela deve ser usada o menos possível, como último recurso, no caso de
delinquentes perigosos, para os quais não haja outra solução.”

Bitencourt (1997), aponta um levantamento do tratamento do tema


em diversos sistemas jurídicos pelo mundo afora. Para esse autor, a luta de
Von Liszt contra as penas privativas de liberdade de curta duração foi um
marco no caminho a ser percorrido pelo Direito Penal.
Aponta como uma das primeiras penas alternativas a "prestação de
serviços à comunidade", no Código Penal soviético, em 1926.
Posteriormente, na mesma Rússia, foi criada a pena de trabalhos
correccionais (1960), sem privação de liberdade. que deveriam ser
cumpridos no distrito do domicílio do condenado, sob a vigilância do órgão
encarregado pela execução da pena.

191
Diversos países como Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Itália, Suécia,
entre outros, adoptaram uma série de Medidas alternativas. O trabalho
comunitário, adoptado na Inglaterra desde 1972, é tido como o exemplo
mais bem-sucedido nesta modalidade. Neste sistema, o condenado dedica
parte de seu tempo de descanso a um trabalho não remunerado em favor de
urna causa de interesse comum. Com seu sucesso, foi adoptado em diversos
outros países: Austrália (1972), Luxemburgo (1976), Canadá (1977),
Dinamarca e Portugal (1982), França (1983), entre outros.
Jesus (1998), relata o crescente interesse nacional e estrangeiro sobre
as modernas tendências de resposta estatal no sentido da imposição das
chamadas Medidas e penas alternativas em relação aos delitos de menor
potencial ofensivo.
Realmente, a evolução do pensamento penal, desde o Iluminismo,
conduz à observância do Princípio da Humanidade, isto é, à obediência à
regra da proibição de penas desnecessárias, desumanas, cruéis, ou
degradantes. A pena de prisão, hoje francamente desacreditada em sua
função de ressocialização do delinquente, deve guardar a natureza de
"ultima ratio", limitando-se aos crimes de maior gravidade objectiva
cometidos por delinquentes perigosos. A função preventiva e
ressocializadora da resposta penal pode ser alcançada, com extraordinárias
vantagens, como vêm demonstrando incontáveis experiências estrangeiras,
por vias alternativas menos custosas e mais racionais, como é o caso da
sanção restritiva de direitos na modalidade de prestação de serviços à
comunidade. (JESUS, 1998, p. 131)
Em consonância com os objectivos de humanização das penas e a
necessidade de se reavaliar a eficácia das penas privativas de liberdade é
que surgem em 1990 as Regras Mínimas das Nações Unidas (Regras de
Tóquio), lançadas pela ONU, que, segundo Jesus (1998, p. 133), "constituem
fonte inesgotável de recomendações, sugestões e orientação sobre a
aplicação e execução das alternativas penais, especialmente as penas
alternativas".

Condições
Os requisitos para aplicação das penas alternativas de direitos são:

a) Crime dolosos sem violência ou grave ameaça com pena igual ou


inferior a 2 (quatro) anos (art. 88 conjugado com o art. 102 do CP);
b) Crimes culposos, qualquer que seja a pena aplicada (art. 88 CP);

192
c) Crimes dolosos com violência ou grave ameaça cuja pena seja
inferiora 1 (um) ano (art. 88 e 89 conjugado com a art. 102 ambos
do CP).

Caso a condenação seja igual ou inferior a 2 (dois) ano, a substituição


pode ser feita por uma pena restritiva de direito ou multa. Sendo maior,
serão aplicadas duas penas restritivas de direitos, ou uma pena restritiva de
direito cumulado com multa (art. 72 do CP).

Espécies das Penas Alternativas


As penas restritivas de direitos/medidas alternativas/ penas alternativas
são (art. 43 CP):

Prestação pecuniária
É uma quantia fixada pelo juiz, a ser paga em dinheiro à vítima, seus
dependentes, entidades públicas ou privadas de destinação social. Havendo
aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode ser de outra natureza
(art. 98 et seq. do CP);

Perda de bens e valores


É a perda em favor do Estado dos bens e valores pertencentes ao
condenado em razão da prática do crime, nela sendo incluída a maior
quantia entre o prejuízo ou o provento obtido pelo agente ou por terceiro
(art. 99 CP);

Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas


Consiste no cumprimento de tarefas gratuitas de acordo com a
aptidão do condenado na razão de 4 hora de trabalho por 1 dia de
condenação em entidades comunitárias ou estatais, como escolas, hospitais
e orfanatos.
O tempo mínimo de condenação para substituição por prestação de
serviços à comunidade é de 1 mês e 5 dias a 3 anos, podendo a condenação
superior a 1 ano ser cumprida em tempo inferior ao previsto na sentença,
desde que não menor que a metade da pena privativa de liberdade aplicada.

Interdição temporária de direitos


Consiste em proibições específicas que se relacionam com a natureza
do crime que o agente foi condenado, como (n.º 3 do art. 101 CP): a —
proibição do exercício de cargo, função ou actividade pública, bem como do
mandato electivo; b — proibição do exercício de profissão, actividade ou

193
ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do
poder público; c — suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir
veículo; d— proibição de frequentar determinados lugares;

Pena de Multa
A multa como pena é o pagamento feito pelo condenado ao Estado
(art. 72º do CP), num mínimo de 3 dias a 2 anos. Vem expressamente
prevista no tipo penal de forma alternativa. Exemplos: Dano. Art. 338.
Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia; Exemplo: Apropriação
indébita. Art. 270º, 271º e 271º ambos do CP. Apropriar-se de coisa alheia
móvel de que tenha a posse ou a detenção: Pena reclusão, de 1 (um) a 12
(doze) anos, e multa).
Essas são as medidas alternativas que, depois de investidas tentativas
de “esvaziar” os “calabouços” o legislador moçambicano implementou no
seu sistema penal. O que traz, um profundo debate é, “que estudo foi feito
para ou que medidas formaram tomados para a aceitabilidade dessas
modalidades penais pela sociedade?”. Esta em uma questão que, em
resultado de um estudo profundo em torno do tema em questão (Antipatia
sócia das penas alternativas no ordenamento jurídico moçambicano) se
responderá.

3. ANTIPATIA SOCIAL DAS PENAS ALTERNATIVAS NO ORDENAMENTO


JURÍDICO: ACEITABILIDADE SOCIAL DAS PENAS ALTERNATIVAS

O problema da criminalidade é um facto social. A prisão é uma medida


de excepção. O discurso do encarceramento já se mostrou ineficaz. Hoje,
Moçambique é um dos Estados da África com maior número de presos
provisórios. Há diversas medidas cautelares que são menos invasivas e elas
precisam ser utilizadas, as penas ou medidas alternativas.
Quando foi aprovado o código penal de 2014, e porque na nossa
opinião não feita uma pesquisa relativa a aceitabilidade das penas ou
medidas alternativas, o Sistema Penitenciária Moçambicano. Só para citar, o
Jornal Notícias do dia 05 de julho de 2015 é testemunho (https://www.
jornalnoticias.co.mz/index.php/politica/39254-penas-alternativas-a-
penas-de-prisao-desafio-e-convencer-a-sociedade-do-modelo.html):

“EXPLICAR e convencer a sociedade que nem todos os que prevaricam


devem ficar na cadeia mas sim em liberdade, cumprindo medidas
alternativas a penas de prisão constitui um dos grandes desafios que
o Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP) tem pela frente.”

194
“Enquanto a medida não é implementada, uma vez estar dependente
da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, Eduardo
Mussanhane, director-geral do SERNAP, diz estar em curso o processo
de capacitação institucional, da elaboração de regulamentos, como o
código de execução das penas preventivas e a realização de palestras
envolvendo diferentes segmentos da sociedade, tudo com vista à
socialização desses instrumentos no sentido de se esclarecer o papel
de cada um na sua implementação.”

“De acordo com Mussanhane, no decurso do III Conselho Coordenar


do Serviço Nacional Penitenciário que quinta-feira terminou no
Bilene, província de Gaza, os infractores cumprirão as penas em
liberdade prestando serviços comunitários e, simultaneamente,
desenvolvendo a sua vida normalmente. E, isso, segundo ele, significa
o envolvimento da própria sociedade, que precisa colaborar na
implementação das medidas alternativas à prisão.”

Um factor tanto visível é, pela falta de eficácia da Polícia da República,


pós mostra ser corruptível. A sociedade moçambicana transporta essa
desconfiança até aos órgãos da justiça, que também (em alguns casos)
mostra ser corruptível. São estas as questões que levam a sociedade a não
aceitar as penas/medidas de segurança, pois no seu entender a justiça foi
corruptível e por serem medidas feitas fora das penitenciárias aumentam a
desconfiança da pirataria judicial e penitenciária.
Está na mente de cada membro da sociedade moçambicana que
qualquer infracção, seja de leve ou máxima gravidade que o seu autor, seu
lugar é a prisão em regime fechado. Estas são situações que se arrastam até
nos pagamentos de caução, pois a sociedade acha que aquele valor da caução
foi um suborno ou corrupção do/a próprio/a actor e judiciário.
As consequências dessa inaceitabilidade das penas ou medidas
alternativas são devastadoras, dando a origem ao linchamento.
Iremos contar um episódio que se deu na cidade de Cuamba,
vivenciada por uma das autoras:

“Era pelas 3 horas e 43 minutos do dia 08 de setembro de 2016,


quando se ouviu gritos de socorro na casa vizinha, no bairro de
Mutxora, na cidade de Cuamba. Nós, os vizinhos, fomos a casa e
agarramos um suposto ladrão que queria subtrair roupas usadas.
Porem, no meio daquela confusão surgiram indivíduos, que batendo o
ladrão, amarram-no com cordas de pneus e posteriormente lançaram-
no num riacho chamado “Querme”, porem, o indiciado sem fôlegos,
valeu a intervenção de alguns representantes do bairro, que acalmou
os ânimos. Mas a comunidade salientou que se levassem o ladrão a

195
esquadra, apenas ficaria 2 dias nas celas e o veríamos a deambular nas
ruas”.

Esta é uma prova irrefutável que a sociedade não confia na actuação


do serviço policial e na própria máquina judicial.
Isto justifica-se sim, de acordo com Martins (1999) e Rosa (1995), a
punição por um crime passou por distintos períodos: período da vingança
privada, vingança divina, vingança pública e período humanitário. A
transição destes períodos aconteceu de diferentes formas, variando em
todos os países, ora mais nítidos aqui, menos acolá, contudo a marcha não
parava em direção à evolução científica do Direito Penal.
"Nos primórdios a punição por um crime restringia-se à vingança
privada. Vigia a lei do mais forte, do que detinha maior poder" (MARTINS,
1999, p. 21). Não existiam I imites para a execução da reprimenda,
entendendo-se aí a morte, a escravização ou banimento, quando não atingia
a família do infractor.
O instinto e o sentimento de vingança predominavam em todas as
sociedades e considerava-se "legítimo o direito de pagar na mesma moeda,
retribuir o mal com o mal, devolvendo os agravos e as ofensas talliset iam/lis,
ou seja, tal e tal (daí a palavra talião) " (ROSA, 1995, p. 35). E este sentimento
prevalece na sociedade moçambicana, mas deve-se maioritariamente com a
falta de eficácia dos serviços policiais e até mesmo pela ineficácia da justiça.
Pois quase todos os condenados que saem das penitenciarias
moçambicanas, não tem um nível de ressocialização satisfatório.

4. PAPEL DA SOCIEDADE OU COMUNIDADE NA APLICAÇÃO DAS PENAS


OU MEDIDAS ALTERNATIVAS

A sociedade/comunidade é um actor importante na eficácia aplicativa


e executória das penas ou medidas alternativas em benefício da comunidade
em diversos matizes. Por um lado, (NUNES APOLINÁRIO 2009), a
comunidade é considerada beneficiária das actividades desempenhadas
pelos próprios apenados e, por outro, desempenha um papel decisivo na
execução da pena, que não exclusivamente tem lugar na comunidade, senão
que exige desta sua participação directa no cumprimento, facilitando as
tarefas a serem prestadas, não só com o intuito de se buscar um
aprendizado, mas, sobretudo de alcançar um dos fins que toda sanção penal
deve atingir, a reabilitação.

196
Nesse pequeno texto se analisará dois contextos relacionados com o
papel imposto à comunidade para que a pena obtenha sucesso na sua
execução e alcance o fim proposto pela teoria da prevenção especial positiva.
A comunidade como elemento de vantagem e receptora do trabalho
apenado
Em primeiro lugar, os discursos e planeamentos em torno das
medidas alternativas em benefício da comunidade, apresentam a
colectividade como beneficiária dos serviços prestados pelos condenados.
Em algumas ocasiões se mencionou que mediante o trabalho dos
condenados se está reparando simbolicamente o dano causado pelo delito à
sociedade.
Em Moçambique, o Estado e a sociedade/comunidade, na própria
definição da pena, beneficiária do trabalho a ser prestado pelos condenados
(art. 90º do Código penal espanhol). O mesmo sucedeu em Inglaterra e Gales
com a denominação inicial da pena community service orders. O termo
sociedade reflecte aqui uma questão (utópica) que transcende às próprias
aspirações sociais, económicas e penais. Dessa forma, se legitima a proposta
introdutória do community service orders formulada a priori pelo Informe
Wooton, que destinou a pena a um sistema penal com ênfase na reparação à
comunidade, aproximando, sobretudo, o delinquente daqueles cidadãos que
necessitam de maior apoio. Nunes Apolinário (2009).
A comunidade figura como ambiente em que tem lugar a execução da
pena: de facto as alternativas penais como instrumentos substitutos da
prisão em geral, são definidas como consequências jurídicas cuja execução
se dá na comunidade em contraposição a uma execução em instituição
fechada.
As penas socialmente úteis, como aquelas que comportam a
permanência do delinquente na comunidade e implicam alguma restrição a
sua liberdade mediante a imposição de obrigações, e cujo cumprimento é
supervisionado por responsáveis designados pela Lei penal para tal efeito.
Esta definição, portanto, corrobora com a ideia de que está destinado à
comunidade o papel de recepcionar o delinquente para que ele preste os
serviços no seu espaço e repare a sociedade pelo delito causado.
Assim, como salienta (NUNES APOLINÁRIO; 2009), a comunidade
passa a ter uma clara importância para além da esfera de compreensão da
justiça formal até a realização da justiça material. O indivíduo
reconhecendo-se como parte integrante do corpo social realiza o controlo
externo do Estado exercido pela sociedade civil. Assim, os diversos grupos
sociais são chamados a participar de forma actuante, buscando contrariar a

197
passividade diante da responsabilidade pelo crime presente na cultura
repressiva clássica.
O trabalho em benefício da sociedade nessa configuração rompe,
justamente, com a perspectiva simplista de responsabilidade do individuo
para com a colectividade, pois impõe a contrapartida, vale dizer, chama a
sociedade civil a participar na execução da pena, atendendo, dessa forma, a
ética da solidariedade, levando a sociedade a entender a sua
responsabilidade, procurando dar respostas inclusivas ao homem que
delinquiu. Papel importante da sociedade no fim ressocializador
Segundo NUNES APOLINÁRIO (2009), O conjunto de actuações,
medidas e atitudes que objectivam a ressocialização do condenado,
conforme o moderno Direito penal, não deve ser tarefa exclusiva do Estado,
constituindo a participação da comunidade, uma das pedras angulares do
sistema punitivo. O moderno Estado democrático deve reconhecer a
existência das forças sociais organizadas que expressam com legitimidade,
o pensamento e a vontade popular, opondo-se a um centralismo político,
monolítico e opressor.
Se for necessária a ressocialização do apenado para a reintegração ao
convívio social, também se faz necessária a educação da sociedade para
recebê-lo. A tarefa nesse sentido passa a ser dupla: recuperar o prestador
dos serviços e preparar o ambiente social para seu convívio, especialmente
o familiar, que sofre durante e depois da execução da pena os mesmos
ressentimentos insuperáveis daquele que recebeu a punição.
A este respeito, menciona BENEDICTO DE SOUZA que:

“É preciso, pois, que toda a comunidade, e não apenas uns ou outros


de seus representantes, se consciencialize da elevada missão que lhe
cabe na tarefa de redenção do homem que transgrediu a Lei penal.
Para isso, deve ser despertada e convenientemente preparada, a fim
de que sua participação corresponda a um efectivo programa
assistencial, e não apenas caritativo, e, portanto, capaz de propiciar ao
Estado a desejável colaboração na solução de tão magno problema. É
o reconhecimento da validade da sociedade civil e seus reflexos na
ordem política.”

Este papel, nas palavras de SZNICK (2000) convergem-se na política


universal, em que os participantes possuem amplas e importantes
responsabilidades, salientando ainda que:

“A sociedade foi instituída visualizando o homem e, desse modo, tem


obrigações com ele, sendo uma delas, a de fomentar elementos para
sua realização, oferecendo-lhe facilidades para isso, dentro do

198
princípio da responsabilidade, como um dos valores fundamentais, a
chamada solidariedade social.”

Enfim, cada vez mais é a necessidade de que a sociedade se sensibilize


e participe activamente de questões do âmbito político criminal, cuidando
de não abandonar o delinquente (mesmo que de menor potencial ofensivo)
e usando de sua vontade para incrementar a sua função social. Cabe dizer
também, que não deve ser exigida só a participação de indivíduos nestes
objectivos. A participação de organismos de carácter social é fundamental
na reinserção social do penado. Assim, a actividade em benefício da
sociedade, “com o objectivo do bem comum, é a contrapartida que oferece
ao condenado a sociedade, com a função do trabalho ético-social, permitindo
a ele seu crescimento e o enriquecimento moral de sua personalidade”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pena privativa de liberdade (prisão), apesar de representar


significativo avanço comparado ao que se praticava no passado como sanção
criminal, não contempla os objectivos que proclama. A prisão não
ressocializa e tampouco reeduca. Não evita a reincidência, ao contrário, a
estimula.
Concluímos que não há aceitabilidade das penas alternativas por um
factor muito simples, a ineficácia da justiça, da polícia e a falta de eficácia dos
serviços penitenciários do nosso país.
Concluímos que o cumprimento das medidas alternativas,
principalmente aos serviços à comunidade ou a entidades públicas é
permeado de singularidades, visto a possibilidade de criar laços, em razão
da reciprocidade que, por vezes, está embutida nesta medida. Também,
aumenta a eficácia e aumento da potencial monetária, ajuda, conforto e
descongestionamento dos serviços penitenciários
Tanto o prestador de serviços contribui com seu trabalho
gratuitamente, quanto a instituição e seus beneficiários o acolhem e o
aceitam. O prestador de serviços, muitas vezes, sente-se útil em realizar uma
actividade comunitária, pois percebe que está colaborando e sendo
reconhecido pela instituição que o acolheu. Estes são valores positivos e que
contribuem para a reflexão de seus actos e formação de urna consciência
social, ou seja, são factores essenciais para o aperfeiçoamento do ser
humano. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas,
portanto, revela ter maiores vantagens do que a pena privativa de liberdade,
pois é urna medida que possibilita que o cidadão continue junto a sua

199
família, não tenha que abdicar de seu trabalho e preserve os vínculos do
convívio comunitário.
Além da possibilidade de obtenção de tais benefícios, a prestação de
serviços à comunidade ou às entidades públicas tem custo zero para o
estado, porém, sabemos que o êxito destas alternativas depende muito do
apoio da sociedade civil para o alcance de efeitos positivos ao cidadão, o que,
consequentemente, se reflectirá na sociedade.
O serviço social tem contribuído com um pequeno e importante passo
para o alcance dos ideais humanitários da pena e a busca do exercício pleno
da cidadania.

RECOMENDAÇÕES

Aos magistrados
Que sejam eficazes no âmbito da aplicação das normas penais, não só
no âmbito das sanções alternativas, mas sim em todos casos de moldura
penal, de modo a mostrar a sociedade que a justiça é confiável e viável.

Aos serviços penitenciários


Que adoptem medidas ressocializadoras, alias se demonstre como
uma entidade que abriga indivíduos que querem novamente viver em
sociedade e não um santuário de massacre realimentadora de
comportamento criminoso. Nota-se porém que, as penitenciárias em vês de
serem ressocializadoras, são santuários que geram ainda mais criminosos.

Sociedade
Que aceite as medidas de alternativas, pois dum jeito prático, essa
moldura penal é eficaz no âmbito ressocializador. Que realizem actividades
no sector de serviço social, como forma também de tornar evidente que a
categoria profissional do delinquente, através dos seus conhecimentos
teórico-metodológicos, possui todos os recursos necessários para atender
também a esta nova demanda.

REFERÊNCIAS

BENEDICTO DE SOUZA, Moacyr, “A participação da comunidade no tratamento do


delinquente” em: RT, 583.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados especiais criminais e alternativas à pena de
prisão. 3. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

200
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 4. ed. rev., ampl. E
atual. pelas Leis 9.099/95, Ediar, 2002.
JESUS, Damásio E. de. Temas de direito criminal, I A série. São Paulo: Saraiva, 1998.
LUZ, Orandyr Teixeira. Aplicação de penas alternativas. Goiânia: AB, 2000.
MARTINS, Jorge Henrique Schaefer. Penas Alternativas. Curitiba: Juruá, 1999.
Nunes Apolinário, M.: O papel da comunidade na execução das penas de trabalhos
em benefício da comunidade, en Contribuciones a las Ciencias Sociales, Noviembre
2009, www.eumed.net/rev/cccss/06/mna.htm
ROSA, Antônio José Miguel Feu. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
SZNICK, Valdir, Penas Alternativas: Perda De Bens, Prestação De Serviços À
Comunidade, Fim De Semana, Interdição De Direitos. Leud. São Paulo, 2000.
TEIXEIRA MENDES, ANDRÉ P.: Penas e Medidas Alternativas. Fundação Getulio Vargas.
2014.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho Penal: Parte General. Buenos Aires.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Código Penal. Boletim da República. I SERIE NÚMERO 53.

201
A VIOLAÇÃO DO DIREITO DE LIBERDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO
POR INEFICIÊNCIA DA IDENTIDADE DE
RESIDÊNCIA

ABÚ MÁRIO USSENE*


MOISÉS AUGUSTO GUEVE**

INTRODUÇÃO

O trabalho é do módulo de Direito Penal do curso de Doutoramento


em Direito Púbico na Universidade católica de Moçambique, com o tema: A
violação do direito de liberdade no ordenamento jurídico moçambicano por
ineficiência da identidade de residência. Em termos dos objectivos do
estudo: objectivo geral que é de analisar a violação da liberdade, e em termos
dos objectivos específicos: Aferir o critério usado para a determinação do
uso de identidade de residência; descrever as teorias das penas e criticar a
aplicação do termo de identidade de residência no ordenamento jurídico
moçambicano. O Direito penal é conhecido tradicionalmente como o Direito

*
Licenciado em Direito na Universidade Mussa Bin Bique, Mestrado em Direito Civil pela Universidade
Católica de Moçambique e actualmente Doutorando em Direito Público, docente de Deontologia e Ética
Profissional no INSPOM e Colégio Politécnico de Moçambique em Nampula, autor de alguns artigos
científicos publicados na Revista Jus do Brasil, docente de História e Filosofia no CCIAM, Gestor de
Recursos Humanos no COPMOZ e INSPOM, Gestor de Monitoria e avaliação na Organização para a
promoção da paz e ajuda humanitária. Formador em matérias de eleições e paz. Correio electrónico
abumarioussene@gmail.com
**
Licenciado em ciências policiais e segurança interna no Instituto Superior de ciências policiais e
Segurança interna de Lisboa, Mestrado em Direito e Segurança pela Universidade Nova de Lisboa e
actualmente Doutorando em Direito Público pela Universidade Católica de Moçambique, desempenhou
várias funções como chefe do Gabinete do Comandante Geral da Republica de Moçambique, Comandante
Provincial da PRM e actualmente é Director da Inspecção do Comando Geral da República de
Moçambique, leccionou a cadeira de Ética e Deontologia policial na academia de ciências policiais
(ACIPOL –MAPUTO), autor da obra didáctica intitulada Delinquência e menoridade em Moçambique.
Correio electrónico kaguevanhane@gmail.com

203
de punir, mas não significa que seja o belo prazer desta prática. Este tem a
sua missão educativa, nesta ordem, propomos em levantar debate sobre a
aplicação das medidas de coacção, muito particularmente do “Termo de
Identidade e Residência” em Moçambique tendo em consideração que
muitas residências das cidades moçambicanas não estão numeradas, as ruas
não estão nominadas e muitas vias de acesso nem sequer estão em
condições de garantir uma transitabilidade condigna, os bairros são
compostos por casas de construção precária ou guetos, facto que, de alguma
forma, entorpece a decisão judiciária quando a ideia é optar-se pela
aplicação do “Termo de Identidade e Residência”.
Esta realidade pode levar à entidade da Administração da Justiça
optar por uma medida que não é a mais adequada para uma situação
concreta que envolve o arguido, por exemplo, a aplicação de outra medida
de coacção, como a caução ou mesmo privação da liberdade, mas aqui surge
um outro problema, o da falta de recursos por parte do arguido para o
pagamento da tal caução, restando como medida a aplicar a da privação da
liberdade ao cidadão, levando a que o nosso sistema de justiça seja
empurrado para uma realidade não condizente com a decisão que seria
tomada se as condições de identificação da residência fossem as mais
apuradas.
É claro que estamos cientes com a disposição do Código de Processo
Penal quando diz:

“Provada a sua identidade, o arguido deve declarar a sua residência,


que se obriga a comparecer em juízo, sempre que para tal for
notificado, e a não mudar de residência nem se ausentar dela por mais
de cinco dias sem comunicar em juízo a nova residência ou o lugar
onde pode ser encontrado1”.

Para que o juiz tenha uma margem de manobra suficientemente cabal


e segura para a confirmação da veracidade sobre a exacta localização da
residência do arguido ao qual decreta o Termo de Identidade e Residência
(TIR), torna-se fundamental que disponha facilmente de entre vários meios
o mapa cartográfico ilustrativo do ponto onde se localiza a casa de quem
passa a ter a obrigação de cumprir com o TIR, de forma clara, sem quaisquer
sombras de dúvidas, com referências ilustrativas que alimentam justamente
a confiança no juiz de que a medida que toma é a mais acertada sobre aquele
caso em concreto e nada vai concorrer para ilidir a execução da sua decisão.
Perante essas situações, surge uma questão de partida: Até que ponto os

1
Vide Segundo parágrafo, do nº 5 do artigo 269 do CPP.

204
critérios usados para a materialização do Termo de Identidade de
Residência se adequam à realidade moçambicana?

1. CONTEXTUALIZAÇÃO E CONCEITUALIZAÇÕES

1.1 Noção do estado

Como é sabido que não pode falar do Direito penal dissociado do


Estado, esta percepção conduz-nos a termos o entendimento de que o
Direito Penal para a sua aplicabilidade deve estar intimamente ligado ao
Estado. Assim, podemos dizer que os Estados são os sujeitos mais antigos do
Direito Internacional, mas também por isso mesmo adquirindo um estatuto
mais estudado, sendo considerados, em certo sentido, como sujeitos
internacionais por antonomásia.
Paralelamente, essa circunstância não pode fazer esquecer que se está
já muito longe de se considerar a sociedade internacional como sendo
apenas constituída por Estados, em face da quantidade de outras entidades
que agora dela fazem parte.
Tal posição foi desde sempre aceite pelo Direito Internacional, tendo
sido expressamente consagrada no parecer do Tribunal Internacional de
Justiça sobre a questão da reparação dos prejuízos sofridos ao serviço da
Organização das Nações Unidas, a esta se atribuindo uma personalidade
jurídico-internacional própria.2
Para o efeito que nos interessa, que é a sua posição internacional, os
Estados não assumem sempre a mesma configuração e importa recortá-los
em três modalidades, sob a óptica da Ordem Jurídico-Internacional:

- Os Estados soberanos3;
- Os Estados semi-soberanos; e
- Os Estados não soberanos.

1.2.3 Direito Penal

Em relação ao Direito Penal, o Professor João Castro Mendes no seu


manual de introdução ao Direito esclarece o seguinte: Noutro plano situa-se
o Direito Penal. Este ramo de Direito Público assenta na ideia de que certos
actos são de tal forma nocivos que o Estado impõe às pessoas um especial

2
GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Internacional Público, 4ª Edição, Editora Almedina,
Coimbra, 2013, p. 483.
3
Ibidem, p. 484.

205
dever de os não praticar, dever esse em face dele Estado, dotado de
autoridade e, portanto, dever4 de carácter público (não privado). O Estado
sanciona esses actos com uma pena criminal.
Esses actos chamam-se crimes, no sentido lato deste termo. Uma
definição formal de crime, assente fundamentalmente na última
característica atrás expressa, resulta do artigo 1 do Código Penal, que
considera crime “o facto descrito e declarado passível de pena por lei
anterior ao momento da sua prática5. A prática do crime sujeita o autor a
responsabilidade penal-responsabilidade de ser imposta uma pena.

1.2 Conceito legal do Crime

Nenhum facto, consta em acção ou omissão, pode julgar-se crime sem


que uma lei no momento da sua prática o qualifique como tal6.
O Direito Penal apresenta-se, por um lado, como um conjunto de
normas jurídicas que tem por objecto a determinação de infracções de
natureza penal e suas sanções correspondentes — penas e medidas de
segurança. Por outro lado, apresenta-se como um conjunto de valorações e
princípios que orientam a própria aplicação e interpretação das normas
penais. Esse conjunto de normas, valorações e princípios, devidamente
sistematizados, tem a finalidade de tornar possível a convivência humana,
ganhando aplicação prática nos casos ocorrentes, observando rigorosos
princípios de justiça. Com esse sentido, recebe também a denominação de
Ciência Penal, desempenhando igualmente uma função criadora, liberando-
se das amarras do texto legal ou da dita vontade estática do legislador,
assumindo seu verdadeiro papel, reconhecidamente valorativo e
essencialmente crítico, no contexto da modernidade jurídica7.
Em relação a estes conceitos sobre o Direito Penal, o Zaffaroni, citado
pelo Bitencourt esclarece que as expressões “Direito Penal” designam-se —
conjunta ou separadamente — duas coisas distintas:

1) O conjunto de leis penais, isto é, a legislação penal e


2) O sistema de interpretação dessa legislação, ou seja, o saber do Direito
Penal.

4
MENDES, João Castro, Introdução ao estudo do Direito, 3ª Edição, Editora Pedro Ferreira, Lisboa, 2010,
p. 239.
5
Ibidem, p. 240.
6
Vide artigo 1 do CP.
7
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal parte geral, 17ª Edição, Revista ampliada e
actualizada, Editora Saraiva, Brasil, 2012, p. 21.

206
Direito Penal — como ensinava WELZEL citado pelo BITENCOURT —
“é aquela parte do ordenamento jurídico que fixa as características da acção
criminosa, vinculando-lhe penas ou medidas de segurança.
O Cuello Calón, também citado pelo BITENCOURT diz que o “Direito
Penal é o conjunto de normas estabelecidas pelo Estado que definem os
delitos, as penas e as medidas de correcção e de segurança com as quais são
sancionados”. Direito Penal, é indispensável que nele se compreendam todas
as relações jurídicas que as normas penais disciplinam, inclusive as que
derivam dessa sistematização ordenadora do delito e da pena8.

1.3 O Termo de Identidade e Residência

No que tange a esta figura jurídica pretendemos aferir a sua


articulação ao nível do Direito penal moçambicano apesar de ser efectivada
pelo Código do processo penal, nestes termos podemos acompanhar de
forma didáctica e pedagógica o conceito abaixo.

a) O Termo de Identidade e Residência é uma medida de coacção,


através da qual se estipulam deveres para o arguido que limitam a
sua liberdade9.
b) Medida de coacção, para o conceituado FORTES disse que são
figuras que limitam os direitos dos arguidos, através de actos de
natureza cautelar, tendo sempre em vista o cumprimento dos fins
do Direito Processual Penal.10

1.4 Direito Penal no Estado Democrático de Direito

Moçambique por ser um Estado de Direito Democrático nos termos


da lei fundamental, que apregoa o seguinte: a República de Moçambique é
um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização
democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais
do Homem11, não pode deixar essa realidade da operacionalidade do Direito
Penal. Assim, na vertente do BITENCOURT, o Direito Penal pode ser
concebido sob diferentes perspectivas, dependendo do sistema político por
meio do qual um Estado soberano organiza as relações entre os indivíduos

8
BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de Direito Penal parte geral, 17ª Edição, Revista ampliada e
actualizada, Editora Saraiva, Brasil, 2012.
9
Vide o artigo 269 do CPP.
10
FORTES, Henrique Eiras; Guilhermina, Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 2010, p. 484.
11
Vide artigo 3 da CRM.

207
pertencentes a uma determinada sociedade, e da forma como exerce o seu
poder sobre eles.
Nesse sentido, o Direito Penal pode ser estruturado a partir de uma
concepção autoritária ou totalitária de Estado, como instrumento de
persecução aos inimigos do sistema jurídico imposto, ou a partir de uma
concepção Democrática de Estado, como instrumento de controlo social
limitado e legitimado por meio do consenso alcançado entre os cidadãos de
uma determinada sociedade. Esse tipo de proposta apoia-se na
compreensão do delito como infracção do dever, desobediência ou rebeldia
da vontade individual contra a vontade colectiva personificada na vontade
do Estado12. Desta feita, a razão que leva o Direito penal na ordem jurídica
moçambicana é de forma inequívoca a sua comunicação com Estado
democrático de Direito pela existência de uma previsão constitucional de
garantia de direito a liberdade e segurança constantes nos artigos 59 e
seguintes da Constituição da República de Moçambique13.

1.5 O condão das leis em Democracia

Falar do condão das leis em democracia é uma das melhores formas


de prestigiar os preceitos da própria democracia e uma das maneiras de
estimular os governantes, os responsáveis pela aplicação da lei e a
sociedade, em geral, a olharem para os benefícios e malefícios que o
exercício do poder neste sistema emana, de tal maneira que todos, de mãos
dadas, procuremos encontrar pontos de equilíbrio e de eliminação dos
aspectos negativos que ponham em causa as liberdades individuais, para
permitir que o escopo da escolha pelo regime democrático se materialize, na
efectiva defesa dos interesses do cidadão.
Como apregoa LOPES com quem corroboramos, a essência de um
Estado de Direito assenta entre outros pilares num complexo sistema de
limites e vínculos legais entre todos os poderes constitucionalmente
estabelecidos que permitem o seu exercício, pelos titulares respectivos, de
uma forma mutuamente controlada14. Por esta via, a pessoa ofendida
perante a suspeita de ter praticado um determinado ilícito dispõe da
possibilidade legal de construção da respectiva prossecução processual,
com as duas partes investidas de uma relação jurídica material, ao que
caberá ao tribunal apurar a veracidade do que efectivamente aconteceu, de

12
Ibidem, p. 24.
13
Vide artigo 59 et seq. da CRM.
14
LOPES, José Mouraz, Garantia Judiciária no Processo Penal – do juiz de instrução, Coimbra editora,
2000, p. 21.

208
modo a constituir livremente as bases da decisão que as entender mais
justas perante os factos, de modo a não sancionar indevidamente aos
cidadãos, invertendo o objectivo da aplicação da sanção que é (re)educar o
infractor, para adesão voluntária às regras de convivência social.
Numa perspectiva inserida na busca da verdade material sobre o que
realmente aconteceu, o Juiz de instrução, no âmbito do processo penal,
assume-se como autoridade judiciária competente para desencadear actos
instrutórios por forma a decidir quanto à pronúncia e exercer as funções
jurisdicionais relativas ao inquérito. Devemos estar cientes que todo o
quadro normativo que se exerce, em democracia, pretende salvaguardar a
liberdade do homem, pois, segundo CRUZ15. O Homem é, simultaneamente,
um Ser livre é um ser sociável. Livre, pela sua própria natureza; sociável, por
uma inata necessidade de conviver.
Pois, a inobservância da conduta que traduz na natureza sociável do
homem implica o accionamento das normas jurídicas em busca do ponto de
equilíbrio entre o comportamento lesivo e a reposição do bem jurídico
lesado, para restaurar a harmonia social entre os homens. Citando Cruz,
adverte que:

“As normas jurídicas distinguem-se de todas as outras normas sociais,


sobretudo pelo seu carácter coercivo, pela sua força imperativa.
Impõe-se-nos coactivamente16.”

Na aplicação das leis, todo o cidadão deve estar ciente do alcance do


quadro jurídico. Tanto o Juiz, o ofendido assim como o arguido, todos devem
estar focados na respeitabilidade da condução dos seus impulsos em busca
de harmonia e sociabilidade do homem na sua relação com o seu
semelhante, conscientes de que a aplicação da lei tem por finalidade
proteger o que pertence a cada um, assumindo-se como elemento
pacificador e de equilíbrio emocional entre as pessoas.
É necessário haver uma compreensão por parte de todo o indivíduo
para perceber que a juridicidade se enquadra na dimensão existencial do
homem, sem a qual o mundo viveria em caos e dificilmente a sociabilidade
do homem far-se-ia sentir como se exerce hoje em dia.
O conceito de respeito das normas deve ser encarado por todos como
privilégio de bem-fazer, pois, o Juiz ao aplicar a lei tem de traduzir a
confiança de que respeitou todos os preceitos que lhe conduziram a tomar a
decisão mais correcta e justa, mesmo no olhar do próprio arguido, de modo

15
CRUZ, Sebastião, Direito Romano, 4ª. Edição, Coimbra, 1984, p. 8.
16
Ibidem, p. 11.

209
a incutir a ideia de que não se pode abusar dos direitos e liberdades de
outrem, o uso dum direito próprio tem de coexistir com os direitos dos
outros, porque quando ofende alguém, automaticamente fere a lei e esta vai
reagir para combater o erro cometido.
O Juiz deve traduzir a ideia de que aplicou a lei no sentido de garantir
que se proteja o que pertence a cada um e as suas decisões devem
repercutir-se para a convivência pacífica, para se atribuir o valor real da lei
que é de permitir que não haja coisas a clamar pelo seu dono, nem das
pessoas a reclamar pelas suas coisas, gerando assim a tranquilidade e ordem
social no seio dos homens.

1.6 A incerteza da aplicação da justiça do termo de identidade e


residência em Moçambique por desordenamento territorial

No quadro normativo em que o Juiz deve julgar e tomar decisão de


acordo com as suas próprias convicções, mas que tais convicções não se
devem bifurcar da lógica na própria medida que vier a tomar, em função da
lei vigente e na base dos princípios da legalidade e da justiça exige-se do juiz
o aprofundamento da busca de elementos que sustentem o veredicto.
Pois, quando não houver condições estruturais que possam
clarividentemente sustentar a decisão do juiz pode entender-se que o
mesmo não observou regras democraticamente aceites, este facto pode
levar a pensar-se que o Juiz se sujeitou a um performatismo puro que deixou
de irradiar para a justiça e considerar-se que agiu com base em princípios
redutores aos fundamentos da democracia. Embora se saiba que o Juiz tem
todo o direito legítimo de usar da coercibilidade para fazer cumprir as suas
decisões no âmbito da aplicação da lei, é mister observar escrupulosamente
as regras que demarcam a sua actuação, para não se apartar do pensamento
de RAMIÃO com quem concordamos plenamente quando diz:

“O Direito se exerce pela força, mas a força é legitimada pelo Direito.


O Direito é assim o fundamento de validade da força e o seu
mecanismo de regulação. A força sem Direito é violência. É ao Direito
que cabe balizar a força, limitá-la, quer dizer, permitir a sua
existência17.”

Nesta lógica, se as autarquias, os Governos locais, ou seja, se a


Administração territorial, embora reconhecendo os esforços colossais que

17
RAMIÃO, Ruben Miguel Pereira, Justiça, Constituição & Direito, Quidi Juris, Sociedade editora,
Lisboa, 2013, pg. 45.

210
os governantes exercem para organizar os munícipes, se ainda não puderem
garantir o ordenamento dos espaços habitacionais dificilmente o Juiz sentir-
se-á livre de tomar as suas decisões conforme o desejável, de acordo com a
lei, de modo a salvaguardá-la.
Para uma justiça serena, a aplicação da liberdade provisória prevista
no artigo 305 do Código de Processo Penal moçambicano deve ser de
execução natural e não forçada por qualquer tipo de circunstancialismo
relacionado ao não ordenamento da zona onde mora o sujeito processual, o
arguido.
Pois, como podemos todos verificar, o Juiz, avaliando todas as outras
condições do arguido pode decretar a liberdade provisória bastando para
tal:

“Provar a sua identidade; Declarar a sua residência; Comparecer em


juízo, quando a lei o exija ou quando seja devidamente notificado por
ordem do magistrado competente; Não perturbar a instrução do
processo, procurando ilicitamente impedir a averiguação da verdade;
Não cometer novas infracções18”.

Ainda atentos ao Código de Processo Penal o mesmo defende que:

“Provada a sua identidade, o arguido deve declarar a sua residência,


que se obriga a comparecer em juízo, sempre que para tal for
notificado, e a não mudar de residência nem ausentar-se dela por mais
de cinco dias sem comunicar em juízo a nova residência ou o lugar
onde pode ser encontrado”.

Aqui é onde reside o âmago do problema quando notamos a não


indicação clara, nas zonas suburbanas, per-urbanas e rurais, dos nomes das
ruas, da identificação dos números das residências das habitações, da
facilitação da localização de cada uma das residências, através do mapa
cartográfico e de todos os outros elementos que possam assegurar ao Juiz
que a liberdade provisória do arguido nunca colocará em causa o desfecho
do caso e nada periga a observância de todas as formalidades exigidas por
lei.
Em Moçambique, figura uma estrutura do bairro, designadamente, o
Chefe de Dez Casas, Chefe de Quarteirão, Secretário do Bairro, Líder
Comunitário, para uma organização dos residentes e servirem de elo entre
o Governo e a população, na interacção entre as duas partes.

18
Vide o artigo 305 do CPP.

211
Mesmo sabendo da existência da estrutura do bairro, os dirigentes
dos bairros ainda não possuem uma base de dados que lhes possa assegurar
o controlo efectivo dos elementos que residem na sua área de jurisdição,
pois, o controlo do pessoal não é ainda institucionalizado, cada um faz a
gestão de cada residente do seu bairro sem critério claro que lhe ajude a ter
conhecimento efectivo dos nomes, características físicas, local de trabalho e
o apuramento da idoneidade de cada residente, dificultando o conhecimento
real e factual de cada residente do seu bairro.
Esta falta de domínio factual das pessoas da sua área residencial por
parte dos elementos que compõem a estrutura de base fica a dever-se no
facto de a maior parte dos dirigentes locais dos bairros residenciais serem
trabalhadores, exigindo-lhes que ao amanhecer se preocupem com o seu
ganha-pão, relegando ao plano secundário a organização e estruturação dos
seus bairros. O outro factor não menos importante é de muitos residentes
serem também trabalhadores, o que dificulta a sua disponibilidade
permanente para certos encontros que, porventura, forem programados
pelos chefes dos bairros, chegando ao ponto de mesmo o chefe de dez casas,
que tem um número bastante reduzido de pessoas sob seu controlo, não
conhecer todos os residentes do bairro e vice-versa.
Infelizmente, esta situação acaba enquadrando-se no pensamento de
ZALFFARONI quando analisa o comportamento do mundo europeu perante
as adversidades decorrentes da adopção de certas leis, em determinados
países, com uma aplicação prática deficitária, por não se fazer a avaliação
das condições locais da realidade do país para onde migram tais leis. Assim,
ZALFFARONI defende que:

“No es raro que, debito a presiones internacionales, se adopten tipos


penales con redacción extraña a la tradición continental europea, pro-
pia de países que no tienen claras las reglas de la participación y, por
nende, contengan una increíble multiplicidad de verbos19”.

Tendo em atenção ao tema do nosso trabalho, a nossa realidade não


foge do acima exposto. Pois, a aplicação do TIR coloca o Juiz numa situação
bastante dilemática porque entende que deve aplicar o Termo de Identidade
e Residência ao arguido, mas ao mesmo tempo tem receio de o não encontrar
jamais quando o deixar solto, a espera do veredicto final em liberdade,
acabando por criar uma fatalidade no sistema da justiça e assumir a
chamada inflação penal.

19
ZAFFARONI, Eugénio Raúl, in Novos Rumos do Direito Penal Contemporâneo – Livro em
Homenagem ao Prof. Dr. Cezar Roberto Bittencourt, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 49.

212
Para uma aplicação do Direito puro, sem interferências de quaisquer
aspectos, seja de que natureza, exige-se um rigor na implantação das
condições infraestruturais e normativas que assegurem a materialização
dos preceitos legais, de forma natural, sem forçar nenhuma decisão por falta
de uma coisa ou de outra no sistema judicial.
Portanto, basta aceitar-se o uso do poder discricionário condicionado
por falta de um rigor legal para a tomada de uma decisão puramente fundada
na lei, isto é, basta condescender-se a falta de firmeza e a maleabilidade para
cobrir um vazio normativo, o Juiz resvalar para comportamentos
semelhantes aos que levam algumas sociedades a recorrerem à aplicação do
Direito Penal do Inimigo, o que em democracia não é desejável. Pois, assim
defende JAKOBS ao retractar barbaridades que se cometem no Mundo em
nome da aplicação da Lei nos seguintes termos:

“En estos últimos cinco años y sobre todo desde los atentados terro-
ristas del 11 de septiembre del 2001 en Nueva York y Washington, se
observa, no sólo en los Estados Unidos de Norte américa, sino también
en otros muchos países, una tendencia creciente hacia lo que el pena-
lista alemán Gunther Jakobs denomina un Derecho penal del enemigo.
Con él, dice el citado penalista, el legislador no dialoga con sus ciuda-
danos, sino que amenaza a sus enemigos, conminando sus delitos con
penas draconianas más allá de la idea de proporcionalidad, recor-
tando las garantías procesales, y ampliando las posibilidades de san-
cionar conductas muy alejadas de la lesión de un bien jurídico. Un pa-
norama sin duda duro y desolador, pero, según dice el citado autor,
contradice la equivalencia entre racionalidad y personalidad 20”.

No prosseguimento do seu raciocínio acrescenta que:

“Desde luego, ejemplos de este Derecho penal excepcional ha habido


siempre, por lo menos, para no citar otros precedentes históricos más
remotos, desde los orígenes de la Codificación penal em siglo XIX,
cuando desde el primer momento se tuvo que recurrir a leyes penales
excepcionales, contrarias al espíritu liberal y constitucional que inspi-
raron los primeros Códigos penales”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para nós, é deveras desafiador para todos os membros da sociedade


encontrar uma saída airosa, de tal forma que a aplicação da lei seja uma

20
JAKOBS, Gunther citado por CONDE, Francisco Munoz, De Nuevo sobre el Derecho Penal del
Enemigo, in Novos Rumos do Direito Penal Contemporâneo, Livro em Homenagem ao Prof. Dr. Cezar
Roberto Bittencourt, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006, p. 61.

213
realidade pura dentro do respeito dos princípios que norteiam a condução
da democracia.
Aqui queremos referir-nos muito particularmente da necessidade da
observância da liberdade individual como vector da condução dos princípios
democráticos, mas sem com isso apartamos que o cidadão seja sujeito à
aplicação da lei que a tiver violado, se for o caso.
Assim, com a observância da lei e dos princípios enformadores das
regras democráticas, tanto o Polícia, o magistrado do Ministério Público e o
Juiz, todos os responsáveis pela aplicação da lei deixarão de ser reféns de
condutas que lhes possam colocar em risco de serem mal vistos na
sociedade, pelos cidadãos que juraram servir, por falta de clareza na tomada
das suas decisões.
Perante a defesa da lei baseada em princípios claros, todos os
intervenientes processuais sentir-se-ão representados no quadro das
garantias normativas, pois, apesar do conhecimento comum de que as leis
se destinam à limitação do poder punitivo em defesa das liberdades
individuais, quando forem aplicadas respeitando a legalidade de forma clara
e transparente, mesmo quando for para aplicar uma sanção restritiva da
liberdade o arguido rever-se-á na decisão do julgador, por considerar ter
respeitado o conjunto de princípios absolutamente indiscutíveis.
De acordo com GILISSEN, quando define a lei, defende o seguinte:

“A lei é uma norma ou um conjunto de normas de direito,


relativamente gerais e permanentes, na maior parte dos casos
escritas, impostas por aquele ou aqueles que exercem o poder num
grupo sociopolítico mais ou menos autónomo”.

Embora respeitando o sentido da compulsoriedade na aplicação da


lei, ela deve servir de elemento dissuasor para evitar o cometimento de
casos criminais, muitas das vezes, não podendo ser aplicada porque o
cidadão evitou a prática de uma anti juridicidade que levasse aos órgãos de
administração da justiça a recorrer na mesma, para repor a ordem posta em
causa.
Portanto, este é o que deve ser o sentido e o alcance da emanação das
leis para que as mesmas não pareçam estar investidas de um ar ardiloso e
pernicioso, de modo a evitar-se que o Juiz seja considerado masoquista e
acabar por ser tido como bode expiatório perante as suas decisões.
O facto de não haver ordenamento territorial que permita a
identificação das residências de todos os cidadãos nos bairros onde residem,
acaba por interferir na decisão do Juiz e se vê numa encruzilhada de ter que,
por um lado decidir, em última instância, com o cidadão em liberdade, tendo

214
em conta que a liberdade é regra e a prisão é excepção, mas por outro lado,
por não ser possível uma identificação clara da residência do arguido acaba
sendo compelido a tomar uma medida cautelar que vai contra a moral e
contra senso e contrária à liberdade individual do sujeito, por ser compelido
por uma realidade não propriamente de natureza processual ou dogmática
jurídica, mas do âmbito estruturalmente social.
Atentos à natureza conceptual de Estado, conforme RAMIÃO:

“Estado reduz-se, assim, conceptualmente, a um complexo de normas


jurídicas. Essas normas jurídicas, ao longo do tempo, tiveram variados
conteúdos que, irremediavelmente, caracterizaram o Estado que
delas brotava21”.

Acrescenta ainda o RAMIÃO que:


“(...) O Estado, enquanto realidade jurídica, está dependente das
convicções e ideologias dominantes num dado tempo histórico”.
Atentos ao pensamento do autor acima aludido, ele chama-nos
atenção para percepcionamos o presente e tudo fazermos para salvaguardar
o que de primacial defendemos, em cada instante. Olhando para o actual
momento em que defendemos a democracia e a liberdade individual, o
mesmo nos alerta para uma atenção especial a todo o tipo de acção que a
sociedade possa desenvolver, para evitar que perigue o que se defende, o
que significa que os membros activos da sociedade devem fazer esforço que
garanta coerência entre aquilo que o Estado defende e o que efectivamente
faz, de modo a existir uma concordância realisticamente harmónica entre o
binómio falar versus fazer.
Com este trabalho concluímos que a vida em bairros não parcelados
obedecendo um plano urbanístico interfere significativamente na aplicação
do Termo de Identidade e Residência, por parte do Juiz, como medida
cautelar mais branda, facto que o leva a optar por uma medida mais gravosa,
para garantir que no dia do julgamento, tanto o ofendido assim como o
arguido, todos estejam presentes para o veredicto final.
Com este trabalho apercebemo-nos que há um esforço da parte do
Governo na administração e gestão dos bairros residenciais pela concepção
de uma estrutura local, mas o facto de ter sido montada a mesma estrutura
não significa haver trabalho que justifique a sua implantação, pois, os líderes
locais não têm domínio do número, das características de cada residente e

21
RAMIÃO, Ruben Miguel Pereira, Justiça, Constituição & Direito, Quidi Juris, Sociedade editora,
Lisboa, 2013, pg. 53.

215
do seu perfil, elementos que o ajudariam a ter conhecimento real e domínio
sobre o comportamento de residentes no seu bairro.
Ainda este trabalho levou-nos a percepcionarmos a complexa tarefa
que o Juiz tem na aplicação da justiça numa lógica em que há falta de algumas
ferramentas de natureza estrutural, pela deficiente interoperabilidade entre
as várias áreas e sectores de organização social.

BIBLIOGRAFIA

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REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Assembleia da República, Constituição da República de
Moçambique, (alterada pela Lei nº 1/2018 de 12 junho) in Boletim da República, I Série
Número 115, de 12 de junho.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Assembleia da República, Lei 24/2019, (a Lei que aprova
o Código penal) in Boletim da República, I Série Número 248, de 24 de dezembro, 2019.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Assembleia da República, Lei 25/2019, (a Lei que aprova
o Código do processo penal) in Boletim da República, I Série Número 249, de 26 de
dezembro, 2019.

2. Doutrina
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal parte geral. 17ª Edição, Revista
ampliada e actualizada, Editora Saraiva, Brasil, 2012.
CRUZ, Sebastião. Direito Romano. 4ª edição, 1984, Revista e Actualidade, Coimbra.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Clássicos Jurídicos – Direito Processual Penal. 17.ᵃ edição,
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ESPADA, João Carlos. Direitos Sociais de Cidadania - Uma Crítica a F. A. Hayek e
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GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. 4ª edição, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1979.
GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de Direito Internacional Público. 4ª Edição, Editora
Almedina, Coimbra, 2013.
HENRIQUES, Manuel de Oliveira Leal; SANTOS, Manuel José Carrilho de Simas. Código
Penal Anotado. 3ª edição, 1º Volume, editora Rei dos Livros, 2002.
LOPES, Mouraz Lopes. Garantia Jurídica no Processo Penal. Coimbra Editora, 2000.
MARTÍNEZ, Soares. Filosofia do Direito. 2ᵃ edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1995.
MELO, Humberto José. Trâmites e Fórmulas Processuais (anotados). Almedina, 5.ᵃ
reformulada e actualizada, Portugal, 2003.
MENDES, João Castro. Introdução ao estudo do Direito. 3ª Edição, Editora Pedro
Ferreira- Artes Gráficas, Lisboa, 2010.

216
MUBARAK, Rizuane. Direito Penal e Criminalística, da teoria universal à realidade
nacional. Escolar editora, Moçambique, 2016.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, 6ª, edição, 1997, editor sucessor, Coimbra.
RAMIÃO, Rúben Miguel Pereira. Justiça, Constituição & Direito. Quid Juris Sociedade
Editora, 2013.
SANTOS, M. Simas; HENRIQUES, M. Leal. Noções Elementares de Direito Penal. 2ᵃ
edição, editores Rui dos Livros, 2003.
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Novos rumos do Direito Penal Contemporâneo, livro em
Homenagem ao Prof. Dr. Cezar Roberto Bitencourt. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro,
2006.

217
VENDA DE TERRA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO MOÇAMBICANO: UMA ANÁLISE
CRÍTICA DO NOVO CÓDIGO PENAL

AMÉLIA MAGAIA1
SILIMA CHITATO2

INTRODUÇÃO

No ordenamento jurídico moçambicano a venda de terra começou a


ser punida criminalmente nos termos do artigo 269 do Código Penal (CP)
aprovado pela Lei nº 35/2014, de 31 de dezembro. Entretanto,
recentemente, com a revisão do CP, o legislador operou uma mudança tendo
sido afectada a tipificação do crime acima referido. Com efeito, o novo CP
aprovado pela Lei nº 24/2019, de 24 de dezembro, não prevê a venda de
terra como crime, mas insere a questão como uma circunstância agravante
do crime de Burla nos termos da alínea e) do artigo 288 do CP.
A mudança referida acima, desde logo, remete a se questionar se terá
havido algum desvalor do bem jurídico protegido na medida em que a terra
em Moçambique é propriedade do Estado, sendo constitucionalmente assim
predisposto nos termos do número 1 do artigo 109 da Constituição da
República aprovada pela Lei nº 1/2018, de 12 de junho.
Por uma questão de se elucidar o conteúdo do crime em causa a seguir
se transcreve a redacção do artigo 269 do CP anterior (revogado) e a actual
posição do Legislador no tratamento da questão:

1
Docente na Faculdade de Ciências Socias e Políticas de Universidade Católica de Moçambique,
Doutoranda em direito público pela Universidade Católica de Moçambique.
2
Funcionário Publico, Doutorando em direito público pela Universidade Católica de Moçambique.

219
Artigo 269

(Venda da terra)

Aquele que, arrogando-se de proprietário ou titular, vender, ou por


qualquer outra forma alienar, hipotecar ou penhorar a terra, será
punido com a pena de prisão maior de dois a oito anos, se pena mais
grave não couber.

A descrição típica referida no número anterior não inclui a prédios


rústicos, urbanos e servidões de interesse público, nos termos da Lei.

Já em sede do actual CP o legislador dispõe:

Artigo 288

Agravação

A burla é punida com as penas de 1 a 3 anos de prisão quando se


verifique o concurso de alguma ou algumas das circunstâncias
seguintes:

a) …

e) praticar a agente venda ou por qualquer forma alienar, hipotecar


ou penhorar a terra.

Ora, diante do acima exposto, nota-se que a abordagem do legislador


retirou o crime de venda da terra e, diga-se punido, com pena de prisão
maior para uma abordagem actual que apesar de também com prisão maior,
no novo crime (neste caso o crime de Burla), não é severa (na medida em
que a moldura penal evoluiu de 2 a 8 anos para 1 a 3 anos de prisão maior).
Refira-se que a venda de terra é um fenómeno que tem ocorrido em
Moçambique, muito em particular nas zonas urbanas, onde cidadãos,
mesmo sob olhar das autoridades do Estado como os Municípios e o próprio
Ministério Público como detentor da acção penal, parece estarem a perder
na melhor protecção do bem.
Nisto pergunta-se: no CP aprovado pela Lei nº 24/2019, de 24 de
dezembro, a venda de terra deveria ser mantida como crime ou a protecção
do bem jurídico “terra como propriedade do Estado” é melhor assegurada
como circunstância agravante do crime de burla?
Em termos de objectivos, o presente estudo tem como objectivo geral
estudar a razão do legislador moçambicano retirar a venda da terra dos

220
tipos legais de crime. Quanto aos objectivos específicos, o estudo procurou
identificar o regime jurídico referente à proibição da venda de terra no
ordenamento jurídico moçambicano; comparar a abordagem do legislador
no concernente à tutela penal sobre a terra.
A relevância do estudo reside no facto de abordar um tema sempre
actual e sujeito a opiniões contraditórias em Moçambique, desde logo por se
observar que nas relações do dia-a-dia das pessoas, estas comercializam a
terra mesmo diante da proibição imposta pelo Estado. Portanto, trata-se de
um estudo com impacto directo na vida dos cidadãos, muito em particular
no que se pretende como procedimento a adoptarem perante as instituições
que representam o Estado. Do ponto de vista jurídico-penal, o estudo revela-
se importante pelo facto de trazer uma discussão sobre a tutela de um bem
jurídico que encarna um direito fundamental, posto que o direito de acesso
à terra para prossecução de diferentes fins inerentes a vida das pessoas foi
consagrada na Constituição da República de Moçambique (CRM) – neste
caso o direito de uso e aproveitamento de terra – o chamado DUAT. Assim,
estudar a questão da criminalização ou não da venda de terra cruza-se com
outros campos da ciência do Direito, quer público quer o ramo privado, pelos
efeitos directos decorrentes das relações jurídicas entre os sujeitos
(singulares) envolvidos bem como o próprio Estado (como pessoa
colectiva).
Relativamente às hipóteses levantadas como possíveis respostas ao
problema, foram suscitadas as seguintes:

Hipótese 1: não faz sentido punir a venda de terra como crime, pois o
Estado não tem um controlo efectivo da questão, sendo que os cidadãos
vendem a terra como uma prática social, mesmo com a criminalização;

Hipótese 2: a venda de terra deveria ser mantida como crime no novo


CP, invés de considerá-la circunstância agravante do crime de Burla.

Quanto aos aspectos metodológicos, o trabalho foi realizado através


e pesquisa bibliográfica, fundamentalmente em sites da internet e obras do
Direito Penal. Com um enfoque ou abordagem predominantemente
qualitativo, optou-se pelo tipo de pesquisa explicativa como forma de
procurar esclarecer a melhor opção legislativa na tutela penal da matéria em
estudo. No decurso do texto foi feita a interpretação de dados através do
cruzamento de opiniões dos autores com a própria interpretação – tendo
como base o método hermenêutico (através da Hermenêutica jurídica). Com

221
efeito, sabe-se que a técnica da interpretação é a hermenêutica3. Para o
efeito, optou-se pelo recurso aos elementos de interpretação da Lei.
“Os elementos de interpretação auxiliam o intérprete, pois
estabelecem quais as prioridades que devem ser observadas quando for
desenvolver uma actividade de interpretação. São eles: elemento gramatical,
lógico, sistemático, histórico, teleológico4”.
O elemento gramatical também é designado por outros autores, neste
caso o Professor João Castro Mendes como elemento literal.
Fazendo o esclarecimento dos elementos, o referido Professor coloca:

O elemento literal – é a letra da lei, o sentido das palavras5


O elemento lógico – “deve-se recorrer a todas as
potencialidades de transmissão de pensamento que a frase legal
encerra, potencialidades que são postas em destaque pela análise
jurídica. Nisto se cifra o elemento lógico ou racional6”
Elemento sistemático – “as leis se interpretam umas pelas
outras; a ordem jurídica forma um sistema7”
Elemento histórico – “outro factor de determinação do sentido
da lei é a evolução que lhe deu origem – a sua história8”.

Há ainda referências sobre elementos complementares, onde se


refere a o entendimento da lei no contexto do Direito comparado, por
exemplo.
Finalmente, frisar que a interpretação terá como cerne o texto
legislativo Constitucional sobre o regime da terra como propriedade do
Estado. Sobre a interpretação constitucional, interessa trazer o
posicionamento doutrinário abaixo:

“...toda e qualquer norma jurídica – não só as leis, mas a sua


concretização, a jurisprudência – deve condicionar-se à sobre
interpretação dos princípios jus fundamentais. Essa é a característica
mais importante do processo de constitucionalização do direito, em
suma, a “teoria da interpretação a partir da Constituição parece que já
não pode ser a mesma que a teoria da interpretação a partir da lei: as

3
MENDES, João Castro, Introdução ao estudo do Direito, 2004, p. 217.
4
https://www.jurisway.org.br/v2/pergunta.asp?idmodelo=6394 Acesso em: 18 nov. 2020.
5
MENDES, João Castro, Introdução ao estudo do Direito, 2004, p. 222.
6
Ibidem, p. 224-225.
7
Ibidem, p. 228.
8
Ibidem, p. 229.

222
normas constitucionais estimulam outro género de raciocínio
jurídico9”.

A interpretação foi reforçada pelo uso de imagens fotográficas,


exemplificativas, sobre anúncios publicitários de venda de terrenos na
cidade de Quelimane – local de domicílio dos pesquisadores.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Conceito de venda de terra

Das pesquisas efectuadas, não encontramos um conceito legal ou


mesmo doutrinário sobre a venda de terra. Entretanto, é possível ter uma
noção ou se formular uma posição sobre o que se trata ou a que situação
queremos nos referir ao falarmos da questão, se considerarmos que a terra
é uma coisa e, portanto, objecto de relações jurídicas. Neste sentido, iremos
nos apoiar do Direito civil, muito em particular ao contracto de compra e
venda cujo objecto seria, neste caso, a terra.
Nisto, a venda de terra seria um negócio jurídico. Interessante são os
efeitos do referido negócio, decorrente do que a Lei refere e que não
aprofundaremos neste ponto, mas há que reter seria um negócio nulo10.
O Regulamento da Lei de terras11 tem uma redacção que ao ser
interpretada denota que não é a terra que é objecto de negócio jurídico – neste
caso o negócio de compra e venda, mas os edifícios plantas ou benfeitorias12 que
se encontrem sobre a terra. Entretanto, na prática tal não é entendido dessa
forma pelos usuários da terra, pois assumem e praticam actos atinentes a venda
de terra, ou como escrevem nos respectivos anúncios em forma de publicidade
das suas intenções comerciais – “vende-se terreno”.
Estamos, pois, diante de uma realidade que contrasta a posição do
Legislador e o entendimento ou prática social dos cidadãos no seu dia-a-dia.

Conceito de bem jurídico

Bem jurídico é sinónimo do valor objectivado que o tipo traz


consigo13...

9
MOREIRA, Eduardo Ribeiro, Neoconstitucionalismo e teoria da interpretação, 2008, p. 255.
10
Por efeito do artigo 294 do CC conjugado com o artigo 3 da LT e 109 da CRM.
11
Aprovado pelo Decreto n⁰ 66/98, de 8 de dezembro.
12
Conferir (Cfr) nº 2 do artigo 15 do Decreto n⁰ 66/98, de 8 de dezembro.
13
DIAS, Figueiredo citado por BRAVO, Jorge Reis, Manual sobre corrupção, criminalidade organizada e
económico-financeira, 2010, p. 37.

223
Não há crime sem bem jurídico... Para o estudo de qualquer tipo de
crime, é essencial a identificação do bem jurídico que este visa tutelar14.

Compreende-se que bem jurídico encarna situações ou coisas tidas


como fundamentais para as pessoas, resultando que a lesão ou perigo
de lesão dos mesmos, justifica a protecção sob ponto de vista do
Direito penal, de modo que se evite colocar em causa a convivência na
Sociedade, por outra, os bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito
Penal devem ser somente aqueles considerados fundamentais à
convivência social pacífica, uma vez que devem estar integrados como
valores essenciais de determinada sociedade e, como tais, carecedores
de protecção jurídico-penal15.

Conceito de crime

O crime pode ser definido em diferentes perspectivas. Existe a


posição do Legislador (conceito que é trazido na Lei Penal – muito em
particular através do Código Penal) como também as diferentes posições
doutrinárias. Indo pelo conceito adoptado no Código Penal moçambicano
(revogado) temos que “crime ou delito é o facto voluntário declarado
punível pela lei penal16”.
A definição constante do Código penal é uma definição puramente
formal17.
Usando de alguns conceitos doutrinários, temos que...
Crime é uma acção típica, ilícita, culposa e punível18.
De igual modo, mas sem colocar o elemento “punível” conceitua Elísio
de Sousa19 e referindo-a como uma definição dogmática.

Circunstâncias agravantes

O legislador elenca as circunstâncias agravantes nos termos do artigo


37 do CP, actualmente artigo 40 do novo CP.
As circunstâncias só são um conceito jurídico desde que tenham
relevância jurídica. A relevância jurídica das circunstâncias não é autónoma,
mas dependente da valoração do próprio facto criminoso20.

14
BRAVO, Jorge Reis, op. cit., p. 37.
15
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 17.
16
Cfr artigo 1 da Lei nº 35/2014, de 31 de dezembro (Código Penal revogado).
17
BELEZA, Teresa Pizarro, Direito penal, p. 12.
18
BELEZA, Teresa Pizarro, op. cit., p. 15.
19
In SOUSA, Elísio de, Direito penal moçambicano, 2012, p. 26.
20
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, Lições de Direito penal, 2010, p. 108.

224
Sendo as circunstâncias elementos acidentais do crime, distinguem-
se, como regra, em função dos seus efeitos na graduação da pena; e esses
efeitos ou são agravação da responsabilidade penal, ou a atenuação da
responsabilidade penal21.

Regime jurídico sobre a proibição da venda de terra em Moçambique

Constituição da República

“A terra não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada,
nem hipotecada ou penhorada”22.
O preceito legal acima transcrito claramente denota a proibição da
venda da terra em Moçambique. Sabe-se que que a Constituição da
República está no topo da hierarquia das leis. Nisto, as normas
infraconstitucionais devem ser entendidas no espírito da Constituição.
Assim entende-se da própria Constituição da República23

Lei de terras

“A terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida ou, por


qualquer forma alienada, hipotecada ou penhorada24”

Código penal (revogado)

Nos termos acima colocados na Introdução, após o terceiro parágrafo,


dispensando-se a repetição.

Discussão

Da lógica de proibição da venda de terra

O elemento lógico na matéria sobre a hermenêutica jurídica ensina


que a Lei deve ser interpretada por um processo de lógica, ou seja, coerência,
nexo entre a norma e a situação em causa. Nisto, entende-se que ao
preceituar o crime de venda de terra no Código penal (revogado), o
legislador estaria a se harmonizar com o espírito legislativo em sede da

21
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de, op. cit., p. 112.
22
Número 2 do artigo 109 da Lei n⁰ 1/2018, de 12 de junho (Constituição da República de Moçambique).
23
Cfr número 4 do artigo 2 da Constituição da República de Moçambique.
24
Artigo 3 da Lei n⁰ 19/97, de 01 de outubro (Lei de Terras).

225
Constituição da República. Tal situação, seria uma forma de prevenir as
várias intenções de prosseguir com a venda de terrenos, tal como se elucida,
à título de exemplo no anúncio abaixo:

Entretanto, um posicionamento do Advogado Dioclécio Ricardo David


partilhado na internet em sede de uma edição do Jornal Notícias, tendo como
objectivo geral “demonstrar que a “venda de terra” não devia ter sido
elevada à categoria de crime25”, fundamentava nos seguintes termos:

Fonte: fotografia tirada pela pesquisadora num espaço público em Quelimane

i. A inexistência do negócio jurídico de venda de terra, posto que o


negócio referido nos termos do Código Civil em vigor em Moçambique é a
compra e venda26 (não apenas “venda”).
ii. A existência de um único sujeito no crime de venda de terra – neste
caso o vendedor, ou seja, o crime, literalmente, não abrange o comprador.

2. O facto de que “os princípios do Direito Penal, constitucionalmente


implícitos, mormente o da intervenção mínima, da subsidiariedade,
fragmentariedade e ofensividade foram olvidados pelo legislador
penal ao criminalizar a “venda da terra”. Diga-se, sumariamente, que
os princípios retro mencionados têm em comum o facto de imporem
ao legislador penal a não criminalização de condutas que possam ser
contidas satisfatoriamente por outros meios de controlo, formais ou
informais, menos onerosos ao indivíduo27”.

Em referência à Política Nacional de Terras, aquando das


comemorações dos 10 anos da lei de terras em Moçambique, o autor
moçambicano Eduardo Chiziane referia “a manutenção da terra como

25
DAVID, Deoclécio Ricardo, Venda de terra: problemática da sua elevação à categoria de crime, in
https://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/opiniao-analise/55330-venda-de-terra-problematica-da-sua-
elevacao-a-categoria-de-crime-1, Publicado em: 30 mai. 2016. Acesso em: 10 nov. 2020.
26
Cfr artigo 874 do CC.
27
DAVID, Deoclécio Ricardo, op. cit.

226
propriedade do Estado, princípio consagrado na Constituição da
República28” como uma das directrizes que norteava o Estado moçambicano
em relação ao titular do direito de propriedade da terra.
Visão sobre a venda de terra à luz do sistema de leis em Moçambique –
alusão ao elemento sistemático na interpretação da Lei em conjugação
com o elemento histórico

Moçambique, como república, após a independência nacional da


dominação colonial portuguesa teve a sua primeira Constituição da
República em 1975. Com base nesta Constituição foi estabelecido, desde
logo, que a terra era propriedade do Estado, tal como se denota a seguir:

“A terra e os recursos naturais situados no solo e no subsolo, nas águas


territoriais e na plataforma continental de Moçambique são
propriedade do Estado. O Estado determina as condições do seu
aproveitamento e do seu uso29”

Assim, a interpretação do actual texto constitucional referente a


proibição da venda da terra não é algo que se diga recente. Desde logo, houve
intenção clara do legislador proteger a terra como propriedade do Estado,
atribuindo aos cidadãos o direito de uso e aproveitamento.
Do ponto de vista sistemático a questão da venda de terra é abordada,
como se ilustrou, em diferentes instrumentos legislativos em Moçambique,
onde sempre se procurou conformar as Leis ao espírito do legislador em
sede da Constituição. Portanto, arguir inconstitucionalidade do artigo sobre
a venda da terra no Código Penal de 2014 não nos parece ser algo com muita
substância, apesar de em parte concordarmos que o legislador penal não
olhou muito para o negócio de compra e venda como tal, nos termos em que
deixa a transparecer o Código Civil.

Da discussão se a venda de terra melhor se enquadra como crime


independente ou como circunstância agravante do crime de burla

Sobre este aspecto o nosso posicionamento irá se basear na


necessidade de protecção dos bens jurídicos, pressuposto básico para a
criminalização das condutas humanas. Se considerarmos que no crime de
venda de terra existe um bem jurídico fundamental – neste caso a
propriedade sobre a terra que é titulada pelo Estado e tal bem jurídico tem

28
CHIZIANE, Eduardo, Implicações jurídicas do debate sobre a implementação da legislação de terras,
2007, p. 12.
29
Artigo 8⁰ da Constituição da República Popular de Moçambique.

227
estado a ser lesado ou colocado em perigo de lesão no sentido em que o
titular vê o que lhe pertence a ser atacado, então consideramos que existe
matéria suficiente para se criminalizar a venda da terra e faz sentido o titular
se proteja.
Ora, o Estado é uma pessoa colectiva e por si só, em termos físicos,
não tem essa capacidade de ver. Deve haver alguém que o representa, sendo
neste caso o Ministério Público, como se denota do artigo que se segue:

Ao Ministério Público compete representar o Estado junto dos


tribunais e defender os interesses que a lei determina, controlar a
legalidade, os prazos das detenções, dirigir a instrução preparatória
dos processos-crime, exercer a acção penal e assegurar a defesa
jurídica dos menores, ausentes e incapazes30.

Assim, havendo situações de venda de terra, violando-se, por


conseguinte, a Lei, cabe ao Estado, através do Ministério Público, “...defender
os interesses que a lei determina, controlar a legalidade...”, cumprindo-se a
norma Constitucional.
Neste prisma o crime de venda de terra não nos parece ser o
problema enquanto houver um bem jurídico e diga-se bem jurídico
fundamental que esteja a ser colocado em causa. Surgindo como
circunstância agravante do crime de Burla não nos parece que tenha maior
amplitude de protecção do que como um tipo legal de crime.

CONCLUSÃO

A criminalização da venda de terra em Moçambique não teve


consensos no meio jurídico, posto que alguns Juristas contestaram a opção
do Legislador penal ao abrigo do CP aprovado no ano 2014. Tal contestação,
pode-se afirmar que veio a ganhar eco ou efeitos concretos na elaboração do
novo CP – aprovado no ano 2019, dado que se retirou o crime de venda de
terra, passado a configurar uma circunstância agravante do crime de Burla.
Fazendo uma radiografia da não criminalização da venda de terra,
vimos que feri o princípio da intervenção mínima do direito penal, pois, a
terra é um bem importante e necessários à vida e na sociedade
moçambicana, torná-la como circunstância agravante do crime de burla não
foi uma opção acertada por parte do legislador penal. Como ilustramos no
trabalho, há sim práticas de venda de terra por toda a parte de Moçambique
em particular cidade de quelimane.

30
Artigo 235 da Constituição da República de Moçambique.

228
Existe lógica e fundamento da criminalização da venda de terra e,
apesar da não congruência taxativa com o negócio jurídico da compra e
venda, logicamente que na venda de terra existe um sujeito comprador.
Dizer ou chamar o argumento de que a conduta em si deveria ser igual ou
literalmente estar escrita algo referente a figura do “comprador” é um
argumento que apesar de formalmente aceite, não é materialmente
aceitável, enquanto na prática estiver a ser observado a lesão do bem em
discussão e o Estado sofrer prejuízo da referida lesão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Legislação
Lei nº 1/2018, de 12 de junho – Constituição da República de Moçambique
Lei nº 19/97, de 01 de outubro – Lei de terras
Lei nº 35/2014, de 31 de dezembro – Código penal moçambicano (revogado)
Lei nº 24/2019, de 24 de dezembro – Código penal moçambicano (actual)
Decreto nº 66/98, de 8 de dezembro – Regulamento da lei de terras

Doutrina
BRAVO, Jorge dos Reis. Manual sobre corrupção, criminalidade organizada e
económico-financeira. Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2010.
MENDES, João Castro. Introdução ao estudo do Direito. PF, Lisboa, 2004.
CHIZIANE, Eduardo. Implicações jurídicas do debate sobre a implementação da
legislação de terras. 2007, p. 12.
DAVID, Deoclécio Ricardo. Venda de terra: problemática da sua elevação à categoria
de crime. in https://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/opiniao-analise/55330-
venda-de-terra-problematica-da-sua-elevacao-a-categoria-de-crime-1, Publicado a 30
de maio de 2016, Acesso em: 10 nov. 2020.
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Lições de Direito penal. Edições Almedina, Coimbra,
2010.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1996.

229
OS CRIMES OMISSIVOS IMPUROS: DOS
FUNDAMENTOS PARA A EXTENSÃO DO DEVER
JURÍDICO DE GARANTE PREVISTO NO Nº 2 DO
ARTIGO 10 DO CÓDIGO PENAL
MOÇAMBICANO

SEZINHO MUACHANA*
MUSSAAGY HASSANE MUSSAGY**

INTRODUÇÃO

Este estudo visa analisar os fundamentos para a extensão do dever


jurídico de garante previsto no nº 2 do artigo 10 do Código Penal
Moçambicano. De forma específica, pretende-se discutir a necessidade
jurídico-prática da ampliação do dever de garante para qualquer cidadão;
debater como se podem relacionar as situações da legítima defesa, da
cumplicidade e o dever de garante na ordem jurídica moçambicana; discutir
a (in)compatibilidade do dever de garante com as finalidades das penas. Em
bom rigor e tradicionalmente, a posição de garante para efeitos de
incriminação nas omissões impuras, vai ter como fonte a lei, o contrato e a
ingerência. Por isso, todos os cidadãos não tidos como garantes e que
possam evitar que um determinado resultado aconteça, não serão por esse
motivo responsabilizados criminalmente. Desta forma se questiona: o dever
jurídico de garante previsto no n° 2 do artigo 10 do Código Penal
Moçambicano não deveria se estender para qualquer cidadão que na
situação em concreto possa impedir que determinado resultado aconteça? A

*
Advogado Profissional e Docente Universitário - Faculdade de Direito da Universidade Católica de
Moçambique.
**
Consultor Jurídico e Docente universitário- Faculdade de Direito da Universidade Católica de
Moçambique.

231
pesquisa foca-se no método hermenêutico e sistemático, e como técnica de
recolha de dados, privilegiamos a observação indirecta.
Como estrutura do presente artigo nos propusemos a discutir no
primeiro momento, alguns aspectos gerais e relevantes ligados aos crimes
por omissão, a posição de garante, a legítima defesa bem como da
cumplicidade; no segundo momento fazemos menção de forma profunda a
respeito dos fundamentos para a extensão do dever jurídico de garante
previsto no nº 2 do artigo 10 do Código Penal e, por fim, tecemos algumas
considerações finais do Estudo.

1. DOS CRIMES POR ACÇÃO E OMISSÃO

A tipicidade pode ser realizada através de uma acção proibida, como


através de uma omissão de um comportamento juridicamente exigido. A
omissão é, ao lado da acção, uma das formas específicas de realização típica
que pode ser levado a cabo de forma dolosa assim como negligente1.
Segundo TERESA BELEZA2, a distinção entre crimes por acção e
omissão, não tem nada a ver com o agente do crime, mas sim, com a
estrutura do comportamento. Por isso, vão ser crimes por acção, os que são
levados a cabo através de uma actuação positiva e crimes por omissão
aqueles que consistem em não ter um comportamento que a ordem jurídica
impõe que se tenha num certo caso concreto: correspondem a violação de
uma proibição e comandos respectivamente.

1.1 Omissões puras e impuras

A primeira separação que é vulgar fazer dentro dos crimes omissivos


é entre as omissões puras ou propriamente ditas e omissões impuras ou
impropriamente ditas. Esta separação entre omissões puras e impuras
corresponde no fundo a uma divisão entre crimes materiais e formais, ou
seja, as omissões impuras serão os crimes materiais e as omissões puras,
crimes formais3.
Segundo FIGUEIREDO DIAS, o crime de omissão reside na violação de
uma imposição legal de actuar, por isso, em qualquer caso, só pode ser
cometido por pessoa sobre a qual recai um dever jurídico de levar a cabo a

1
DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral. Questões fundamentais a doutrina geral do crime.
TOMO I, 2ª ed., Coimbra Editora. Coimbra, 2012, p. 905.
2
BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. II° Volume. Lisboa, 1985, p. 115.
3
Ibidem, p. 452.
3
DIAS, Jorge Figueiredo. Op. cit., p. 913.

232
acção imposta e esperada4. Assim, se torna de extrema importância
determinar o círculo dos autores possíveis de um crime de omissão5.
Acresce ainda o mesmo autor que serão crimes omissivos puros ou próprios
aqueles em que a parte especial do código penal referencia expressamente
a omissão como forma de integração típica, descrevendo os pressupostos
fácticos donde deriva o dever jurídico de actuar ou, em todo o caso, referindo
aquele dever e tornando o agente garante do seu cumprimento6.
Os crimes por omissão impura ou imprópria de omissão, seriam os
não especificamente descritos na lei como tais, mas que a tipicidade
resultaria de uma cláusula geral de equiparação da omissão à acção, como
tal, legalmente prevista e punível na parte geral do Código Penal7.

1.2 A posição de garante nos crimes omissivos impuros

Segundo ANDREIA CORREA, alguns crimes legalmente descritos por


acção, podem também ser praticados por omissão por todo aquele sobre o
qual recai um dever jurídico de obstar a produção do resultado8. A ideia de
uma equiparação mais ou menos extensa dos crimes comissivos por acção e
de omissão conduziu a doutrina a procurar o fundamento de uma tal
equiparação. Mas tal equiparação, não pode deixar de ter na sua base uma
proposição político-criminal fundamental, através da qual se liga às
concepções do papel do Estado e à posição dos indivíduos perante ele9.
Nas omissões impuras, a imputação objectiva do resultado, a conduta
só pode ser feita aos indivíduos que se encontrem na posição de garante, ou
seja, aos indivíduos que sobre eles recai um dever jurídico que pessoalmente
o obrigue a evitar esse resultado10. Como ilustra FIGUEIREDO DIAS, a
questão básica é a de determinar o modo em que se podem delimitar os
deveres de garantia jurídico-penalmente relevantes com a clareza e a
determinabilidade suficientes para responder as exigências jurídico-
constitucionais do nullum crimen sine lege11. A posição de garante pode
resultar da Lei, contrato e ingerência.

4
CORREIA, Andreia Gomes. Omissão. Seminário de investigação em Direito Penal. Lisboa, 2016, p. 16.
5
DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral. Questões fundamentais da doutrina geral do crime.
TOMO I. Coimbra: Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 913-914.
6
CORREIA, Andreia Gomes. Op. cit., p. 7.
7
DIAS, Jorge Figueiredo. Op. cit., p. 914.
8
CORREA, Andreia Gomes. Op. cit., p. 10.
9
DIAS, Jorge Figueiredo. Op. cit., p. 918.
10
Cfr nº 2 artigo 10 CP.
11
DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral. Questões fundamentais a doutrina geral do crime.
TOMO I. Coimbra: Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 933.

233
2. BREVE REFERÊNCIA A LEGÍTIMA DEFESA E DA CUMPLICIDADE
2.1 Da Legítima defesa

Pode suceder que uma acção, apesar de ser típica, não seja criminosa,
na medida em que, em certas condições, pode ser permitido ofender
corporalmente ou matar alguém. A ilicitude é uma qualidade de um
comportamento que tem de ser vista face ao conjunto da ordem jurídica e
não apenas em relação a lei penal. Por isso, vão existir tantas causas de
exclusão de ilicitude na lei penal assim como em outras leis que tem
relevância em direito penal. Por isso, a esse respeito, fala-se do princípio da
unidade do direito penal12.
Das várias causas de exclusão de ilicitude que podemos encontrar
descritas no artigo 51 e seguintes do CP, assim como em outras leis
extravagantes, a que nos interessa desde já é a legítima defesa. Constitui
legitima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a
agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou
de terceiro13. O fundamento justificador desta situação foi durante muito
tempo pacificamente encontrado e formulado por BERNER na esteira da
posição de HEGEL na afirmação de que o direito não deve nunca ceder
perante o ilícito14.
O fundamento da legítima defesa no momento actual é visto com a
função exclusiva, na defesa necessária, e consequentemente preservação do
bem jurídico agredido, deste modo se considerando esta causa justificativa
um instrumento socialmente imprescindível de prevenção15 e
consequentemente de defesa da ordem jurídica16.

2.2 Da Cumplicidade

Indo ao código penal, cúmplices vão ser os indivíduos que vão dar um
apoio não decisivo ao agente do crime antes do cometimento da infracção
criminal. Esse apoio pode ser moral ou poder ser material nascendo desta
feita a cumplicidade moral e material respectivamente conforme se pode
retirar do artigo 25 do Código Penal Moçambicano.

12
BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. II° Volume. Lisboa, 1985, p. 231.
13
Cfr. b n° 1 artigo 51 e artigo 53 ambos CP.
14
BERNER apud DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral. Questões fundamentais a doutrina
geral do crime. TOMO I, 2ª ed., Coimbra Editora. Coimbra, 2012, p. 404.
15
ROXIN, apud DIAS, Jorge Figueiredo. Ibidem, p. 405.
16
LUZON, apud DIAS, Jorge Figueiredo. Ibidem, p. 405.

234
3. DOS FUNDAMENTOS PARA A EXTENSÃO DO DEVER JURÍDICO DE
GARANTE PREVISTO NO Nº 2 DO ARTIGO 10 DO CÓDIGO PENAL
MOÇAMBICANO

Nesta parte discutimos logo a prior o conceito de crimes por omissão


impura. Como nos referimos anteriormente, trata-se de todos aqueles
crimes que não se encontram especificamente descritos na lei como tais,
mas que a tipicidade resulta de uma cláusula equiparativa da omissão à
acção. Tal equiparação da acção a omissão não recai para qualquer indivíduo
e vai ter fundamentos em fontes que vão dar origem a posição de garante.
A limitação da posição de garante da não verificação de um
determinado resultado, na verdade resulta da norma constante do nº 2 do
artigo 10 do código penal moçambicano. Lê-se neste dispositivo que “… A
omissão só é punível quando recair sobre o omitente um dever jurídico legal
ou contratual que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.…”. Ora,
sublinhe-se na referida locução a palavra “pessoalmente”, pois, a partir dela,
é possível se extrair que, os crimes por omissão impura na verdade são
crimes específicos na medida em que, não vão ser todos os indivíduos os
agentes desse tipo legal crime. Vão ser simplesmente aqueles que se
encontram na obrigação pessoal de não deixarem que determinado
resultado se verifique.
Tomando em consideração ao nº 2 do artigo 10 do Código Penal, o
dever de garante pode resultar de duas fontes possíveis, a saber: a lei, o
contrato e a ingerência esta última acrescida pela doutrina. Faz na verdade
todo sentido que a fonte do dever de garante seja a lei, o contrato e a
ingerência, isto porque, nas três situações em causa, os agentes se
encontram cristalinamente numa situação tal que, pessoalmente, devem
evitar que determinado resultado se verifique.
Repare-se que, expusemos anteriormente, que a posição de garante
pode resultar da lei, tais são os casos em concreto das relações familiares.
Lê-se no artigo 97/1 da lei da família que “… os cônjuges estão
reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, confiança,
solidariedade, assistência, coabitação e fidelidade”. Acresce o artigo 99 da lei
de família que, “o dever de solidariedade comporta para os cônjuges a
obrigação recíproca de entre ajuda, apoio e cooperação”.
Além das relações ou efeitos do casamento, a questão do dever de
garante resultante da lei pode ser retirada também nos efeitos relativos aos
da filiação nascendo desse modo a obrigação de entre ajuda e cooperação
Cfr. artigo 289, artigo 290 ambos da Lei da Família.

235
A posição de garante pode resultar também de um contrato seja qual
for o tipo de contrato seja ele válido ou inválido. O que oferece fundamento
ao dever e a posição de garante não é a existência de uma relação contratual
válida, mas sim a assunção fáctica de uma função de protecção
materialmente baseada numa relação de confiança17.
A posição de garante pode resultar também de ingerência que vai
abranger qualquer situação em que uma pessoa criou uma situação de
perigo e por isso mesmo tem depois a obrigação de evitar que esse perigo se
transforme numa verdadeira lesão de direitos.
Não nos importa discutir a legitimidade de tais fontes, o que está em
causa é o facto de, nas situações de relações familiares que nos referimos
acima, haver clara intenção da lei, no sentido de se impor a determinados
indivíduos que se encontrem nas situações de casado ou então de
parentesco, de não deixarem que determinado resultado aconteça e, como
tal vão se encontrar na posição de garante.
Faz sentido que os indivíduos que se encontrem nessas situações
sejam também tidos como garante porque os mesmos vão se submeter, ou
então criar situações jurídicas que, automaticamente, vão se encontrar
numa situação forçosa de evitar que determinado resultado aconteça. Pelo
que, somos do entendimento segundo o qual, a ideia de se buscar a posição
de garante de não verificação de um determinado resultado tem de ser vista
face ao conjunto da ordem jurídica e não apenas em relação a lei penal.
Não menos importante, são os aspectos ligados aos fundamentos ou
razões de punição dos crimes por omissão impura. Como no capítulo acima
nos referimos, EDUARDO CORREIA tenta buscar o fundamento de uma tal
equiparação na ideia segundo a qual, quando um tipo de crime proíbe a
produção de um resultado tanto lhe interessam as acções que o produzem,
como as omissões que o deixam ter lugar, ou seja, da norma que pretende
evitar um resultado nasce para todos não só a proibição de actividades que
o produzam, como também o comando de levar a cabo todas as actividades
que obstem a sua produção18.
Importa deixar ficar que, este fundamento do EDUARDO CORREIA,
analisado a partir do artigo 10 do Código Penal Moçambicano, pode nos
levar a uma impossibilidade de o colocar em prática na medida em que, o
referido dispositivo faz uma limitação dos indivíduos que se encontram
cobertos ou que podem se encontrar na posição de garante. Por isso mesmo,
FIGUEIREDO DIAS diz que, a questão básica é, pois, a de determinar o modo

17
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral. Questões fundamentais a doutrina geral do
crime. TOMO I. Coimbra: Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 941-942.
18
CORREIA, Eduardo. Direito Criminal I. Coimbra: Livraria Almedina, 1971, p. 271.

236
de se delimitar os deveres de garantia jurídico-penalmente relevantes com
a clareza e determinabilidade suficientes para responder as exigências
jurídico-constitucionais do nullum crimen sine lege19.
Tendo-se em atenção o Código Penal Moçambicano e, em concreto, a
limitação das pessoas face a posição de garante previsto no ° 2 do artigo 10
do código penal, o posicionamento do FIGUEIREDO DIAS tem toda razão de
ser face ao princípio da legalidade nullum crimen sine lege20. Mas, somos da
opinião que, há uma necessidade de se ampliar a posição de garante para
qualquer indivíduo que possa, nas situações em concreto, evitar que
determinado resultado se verifique. Sendo assim, entendemos que há uma
razoabilidade na posição de EDUARDO CORREIA ao defender que quando
um tipo de crime proíbe a produção de um resultado tanto lhe interessam
as acções que o produzem, como as omissões que o deixam ter lugar, ou seja,
da norma que pretende evitar um resultado nasce para todos não só a
proibição de actividades que o produzam, como também o comando de levar
a cabo todas as actividades que obstem a sua produção.
Ora vejamos: escolhemos de princípio fundamentar a nossa posição a
partir da figura da legítima defesa alheia cfr. b) n° 1 artigos 51 e artigo 53,
ambos do CP. Constitui legítima defesa o facto praticado como meio
necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro21. O primeiro fundamento norteador da
legítima defesa, como nos referimos acima, gira em torno da afirmação de
que o direito não deve nunca ceder perante o ilícito22.
O fundamento da legítima defesa actualmente é visto com a função
exclusiva, da defesa necessária e, consequentemente, da preservação do bem
jurídico agredido, considerando-se, esta causa justificativa, um instrumento
socialmente imprescindível de prevenção23 e consequentemente de defesa da
ordem jurídica24.
Além dos fundamentos da legítima defesa, importa chamar a colação,
alguns aspectos ligados aos requisitos da legítima defesa. O primeiro
requisito é, na verdade, a existência de uma agressão. Essa agressão pode
ser a bens pessoais ou a bens patrimoniais. Ainda pode ser feita no próprio
sujeito que se defende ou num terceiro. Às vezes, a legítima defesa alheia
aparece sob o nome de auxílio necessário. Ou seja, pode se excluir a ilicitude
de uma determinada conduta criminosa, aquele que der auxílio a outrem, e

19
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral. Questões fundamentais da doutrina geral do
crime. TOMO I. Coimbra Editora. Coimbra, 2ª ed., 2012, p. 933.
20
Cfr artigo 59/3 CRM, Artigo 1 CP.
21
Cfr b nº 1 artigo 51 e artigo 53 ambos CP.
22
BERNER apud DIAS, Jorge Figueiredo. Op. cit., p. 404.
23
ROXIN, apud DIAS, Jorge Figueiredo. Ibidem, p. 405.
24
LUZON, apud DIAS, Jorge Figueiredo. Ibidem, p. 405.

237
em função desse auxílio viole um bem jurídico-penal desde que essa violação
seja feita de acordo com os requisitos constantes do artigo 53 do CP.
Tendo o próprio Direito Penal consagrado a legítima defesa alheia,
sendo que, em relação a esta não há uma limitação do circuito de
determinadas pessoas que se encontrem em posição de garante,
defendemos que, na situação em apreço, o Direito não está a ceder perante
o ilícito, permitindo que qualquer indivíduo nas situações em concreto possa
violar um bem jurídico penalmente protegido, mas que tal conduta possa ser
justificada.
Ademais, permitindo-se a legítima defesa alheia, somos também
claramente do entendimento que, a mesma, deve ser vista com a função
exclusiva, na defesa necessária, e consequentemente preservação do bem
jurídico agredido. Deste modo, se considerando, esta causa justificativa, um
instrumento socialmente imprescindível de prevenção, e consequentemente
de defesa da ordem jurídica, mas também, se chamando à colação a questão
ligada a finalidade do Direito penal ou então da finalidade das penas, a qui nos
referimos a da prevenção geral onde o denominador comum dessas teorias
radica na concepção da pena como instrumento político-criminal destinado a
actuar sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da
prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei.
Na prevenção especial nos referimos acima que a pena se dirigi de
forma individual ao agente com a finalidade de actuar sobre o condenado de
forma intimidatório, no grau suficiente para o afastar da prática de novas
infracções, quer pela correcção ou emenda se o delinquente se mostrar
carecido de ressocialização ou readaptação social, quer pela eliminação, se
o mesmo se mostrar ineficaz todo o esforço de readaptação social. Nos
referimos também às teorias absolutas. Estas teorias concebem a pena como
fim em sim mesmo, como castigo, compensação, reparação ou retribuição do
mal do crime, justificada pelo seu valor axiológico intrínseco,
independentemente da utilidade que pode resultar da punição.
Não se querendo discutir em profundo se podemos falar de uma
finalidade das penas ou então do Direito Penal, importa desde já apontar
que, mesmo se nos referirmos a finalidade do Direito Penal, essa finalidade
no fundo e, em termos mediatos, vai se reconduzir às finalidades do Direito
no Geral, que são a segurança justiça e algo mais. Se as finalidades do Direito
Penal, ainda que seja a título mediato, é a da segurança, justiça e algo mais,
então, estas finalidades normalmente devem ser alcançadas com um
conjunto de normas que de princípio não devam ser contraditórias, na
medida em que as mesmas devam compadecer-se uma com a outra no
sentido de se complementarem entre si e não cederem perante qualquer

238
ilícito. Acreditamos que, perante uma consagração da legítima defesa alheia
com os fundamentos da defesa da ordem jurídica, esses fundamentos devem ser
também aplicáveis aos casos de omissões impuras, no sentido de alargar o
âmbito da obrigatoriedade de evitar que um determinado resultado se verifique
para qualquer indivíduo independentemente de qualquer fonte de criação da
posição de garante porque se assim for, somos do entendimento que também
estaremos a criar condições e mecanismos da defesa da ordem jurídica e como
tal prosseguindo o fim de segurança que o direito visa atingir, até porque o
Direito vai atingir os seus fins por via ou meio dos cidadãos.
Se tentarmos chamar a colação a questão dos fins imediatos das penas
ou então do Direito Penal, conseguimos reter algumas teorias em torno de
tal discussão. Na verdade, não iremos discorrer no sentido de perceber em
concreto qual seja a finalidade das penas no Direito Penal Moçambicano,
mas desde já importa deixar ficar que, a questão das finalidades das penas
pelo menos no ordenamento jurídico moçambicano não vai se reconduzir a
uma teoria isolada, mas sim numa unificação das várias teorias. Se formos à
teoria da prevenção geral positiva, mesmo admitindo que ela só funcione na
fase da ameaça penal e não propriamente na finalidade da pena, somos do
entendimento de que as figuras da legítima defesa alheia assim como da
punição das omissões impuras vão ter, sem dúvida, a finalidade de ameaçar
e, consequentemente, prevenir que todos os indivíduos cometam crimes. Há
uma razão de ser. Não se justifica que a posição de garante se limite, de
forma específica, a determinadas pessoas que se encontrem na tal situação
de garante enquanto na situação em concreto poderiam ter feito alguma
coisa e evitassem que se verificasse determinado resultado. Ademais, o
Direito no geral e o Direito Penal em concreto, não deve esperar que os
indivíduos cometam crimes e só depois lance mão das normas para
salvaguardar o bem jurídico violado. Na verdade, o Direito deve ao máximo
encontrar estatuições e previsões no sentido dos indivíduos face a tais
situações não pensem em cometer infracções e em última instância, e de
forma subsidiária, ou seja, em último ratio punir os indivíduos em caso de
violação das mesmas.
Entretanto, se admitirmos que a finalidade da pena no momento da
sua execução seja a de retribuição ou então a ressocialização, podemos não
encontrar fundamento da não extensão da posição de garante a todos
indivíduos. Esta situação decorre do facto de a prevenção especial positiva,
por exemplo, poder vir a ter uma finalidade principal de ressocialização do
indivíduo por o considerar incapaz de viver em sociedade. Se um indivíduo
assiste o outro a ser agredido, e nada faz para evitar que um determinado
resultado aconteça, então, tanto o indivíduo que agride, assim como o

239
omitente que assiste o ilícito a ser praticado, são ambos incapazes de viver
em sociedade, por isso há uma clara necessidade de ressocialização dos dois
indivíduos.
Ora, mesmo se baseando nas teorias retributivas em que se
fundamentam na retribuição do mal pelo mal, podemos não encontrar
fundamento de uma não extensão de punição nos crimes por omissão
impura a qualquer indivíduo. Se um indivíduo deixa que outro seja agredido
enquanto poderia fazer algo para evitar tal resultado, mesmo não estando
na posição de garante, este indivíduo está a deixar que um determinado mal
aconteça, se deixa que um determinado mal aconteça, deve ser castigado por
isso ainda que seja de forma moderada em detrimento do castigo que vai ser
aplicado ao autor imediato da infracção.
A questão da necessidade de se ampliar a posição de garante pode
também ser justificada tendo em atenção a figura da cumplicidade. A
cumplicidade na verdade em termos gerais, verifica-se quando um
determinado indivíduo dá um apoio tanto moral assim como material, apoio
este não decisivo na medida em que, mesmo sem esse apoio o crime teria
sido verificado.
No entanto, se podemos incriminar um determinado indivíduo,
independentemente da qualidade do mesmo, na cumplicidade, que
contribuiu de uma forma não decisiva no cometimento de um crime,
acreditamos que não se encontram razões para não se lançar mão a
criminalização de um indivíduo que deixou de forma dolosa que um
determinado resultado acontecesse quando podia na situação em apreço
fazer qualquer coisa para evitar o mesmo. Quer dizer, não seria de todo
estranho a responsabilização criminal desses indivíduos que mesmo que
não tenham participado de forma directa na execução na medida em que o
próprio código penal, com a intenção de prevenir o cometimento de crimes,
pune também os cúmplices que não tenham participado de forma directa e
muito menos decisiva no cometimento da infracção.
Segundo CARVALHO, a lei simplesmente diz “quando existe um dever,
mas o preenchimento dele, a adequação típica genérica, fica
inexoravelmente a cargo do juiz. Ele é quem define, diante do caso em
concreto, se o tipo A ou B podem ter suas tipicidades preenchidas mediante
uma conduta omissiva”25
Tendo em atenção a ideia acima exposta, considerando que a omissão
só é punível quando recair sobre o omitente um dever jurídico que

25
CARVALHO, Edward Rocha de. Estudo Sistemático dos Crimes Omissivos: Dissertação do Mestrado
apresentada ao programa de pós-graduação em Direito, da Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2007.
P. 21. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp037603.pdf

240
pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado, acreditamos que a locução
“…o dever jurídico que pessoalmente…”, deveria ser entendido não no
sentido de se buscar na lei, no contrato ou também numa situação de
ingerência, o dever jurídico que pessoalmente obrigue o omitente. Deveria, no
entanto, aferir-se na situação em que um determinado agente se encontra,
poder ter uma acção e, em função da tal acção, poder evitar um determinado
resultado independentemente de qualquer fonte. Ou seja, se numa situação em
concreto, um determinado indivíduo, tem capacidade de agir no sentido de
evitar que um determinado resultado aconteça, então esse indivíduo se
encontra pessoalmente obrigado a fazer qualquer coisa para que o resultado
não aconteça independentemente da lei, contrato ou ingerência. Esse indivíduo
é garante da não verificação de qualquer resultado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Face a legítima defesa alheia, assim como a punição da cumplicidade,


há uma clara necessidade de extensão da posição de garante nos crimes por
omissão impura para qualquer indivíduo mesmo que o mesmo não se
encontre na posição de garante resultante das tradicionais fontes: lei, contrato
e ingerência;
Tendo em atenção as finalidades das penas, sejam essas finalidades
retiradas em teorias de prevenção especial, ou então de prevenção geral, assim
como de retribuição, não se consegue encontrar fundamento da não ampliação
ou extensão do dever de garante para qualquer indivíduo que se encontre numa
situação tal que, se fizer qualquer coisa, poder evitar que um determinado
resultado aconteça mesmo que o referido indivíduo não se encontre na posição
de garante resultante de lei, contrato ou ingerência, pelo que, há uma
incompatibilidade com o regime dos fins das penas ou do direito Penal.
Ao legislador que dissesse de forma expressa no artigo 10 do Código
Penal Moçambicano, que o dever de garante deva ser extensivo a qualquer
indivíduo que possa impedir que determinado resultado aconteça, e se o
mesmo não agir conforme o comando da lei, vai levar a cabo por omissão uma
conduta prevista em termos de acção e como tal lhe será aplicada uma pena
ainda que menos severa em detrimento da pena aplicável ao autor imediato da
infracção, conforme alias nos dá a entender o nº 3 do artigo 10 do Código Penal.
Que se interprete a norma do n° 2 do artigo 10 no sentido do dever
jurídico que pessoalmente obrigue o omitente, se aufira na situação em que um
determinado agente se encontra poder ter uma acção e em função da tal acção
poder evitar um determinado resultado independentemente de qualquer fonte.
Ou seja, se numa situação em concreto, um determinado indivíduo, tem

241
capacidade de agir no sentido de evitar que um determinado resultado
aconteça, então, esse indivíduo se encontra pessoalmente obrigado a fazer
qualquer coisa para que o resultado não aconteça independentemente da lei,
contrato ou ingerência, esse indivíduo é garante da não verificação de
qualquer resultado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n.º 24/2019 de 24 de dezembro, que aprova o Código


Penal Moçambicano, in Boletim da República, I Série nº 248 de 24 de dezembro.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n.º 22/2019 de 11 de dezembro, que aprova a Lei da
Família Moçambicana, in Boletim da República, I Série nº 238 de 11 de dezembro.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, Boletim da
República, I SÉRIE Número 51, de 22 de dezembro de 2004 Actualizada pela Lei 1/2018
de 12 de junho.
ALMEIDA, Joana Ramos de. Os Crimes por Omissão: em especial a ingerência enquanto
plano do dever de garante. Dissertação do Mestrado apresentada à faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra. Coimbra. 2015. Disponível em: https://estudogeral. sib.
uc.pt/bitstream/10316/28699/1/Os%20crimes %20por%20omissao.pdf
BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. II° Volume. Lisboa, 1985.
CARVALHO, Edward Rocha de. Estudo Sistemático dos Crimes Omissivos: Dissertação
do Mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Direito, da Universidade
Federal do Paraná. Curitiba. 2007. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp037603.pdf
CORREIA, Eduardo. Direito Criminal I. Livraria Almedina. Coimbra, 1963.
CORREIA, Eduardo (Com colaboração de Figueiredo Dias). Direito Criminal II. Livraria
Almedina. Coimbra, 1971.
BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. I° Volume, 2ª ed. Ed. A. A. F. D. L. Lisboa, 1985.
BELEZA, Teresa Pizarro. Direito Penal. II° Volume. Lisboa, 1985.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte geral, Tomo I - Questões fundamentais a
doutrina geral do crime. 2. Ed. Coimbra Editora. Coimbra, 2012.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português: As Consequências Jurídicas do
Crime. Ed. Coimbra. Coimbra, 2005.
SANTOS; Manuel Simas; LEAL-HENRIQUES, Manuel. Noções Elementares de Direito
Penal. Ed. Reis dos livros, 2ª ed. Ed. Lisboa, 2003.
SILVA, Germano Marques da. Direito Penal Português. Parte Geral I. Introdução e
Teoria da Lei Penal. Editorial VERBO, 2ª ed. Revista. Lisboa, 2001.
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Direito Penal Português. Parte Geral II. Editorial
Verbo. Lisboa, 1982.

242
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL NO
DIREITO PENAL MOÇAMBICANO. ANÁLISE DA
CULTURA MACUA EM RELAÇÃO AO Nº 2 DO
ARTIGO 203 DO CÓDIGO PENAL, APROVADO
PELA LEI Nº 24/19, DE 24 DE DEZEMBRO

ALEXANDRE JOÃO MANHIÇA*

INTRODUÇÃO

O Princípio da Adequação Social No Direito Penal Moçambicano.


Análise da Cultura Macua Em Relação Ao Nº 2 do Artigo 203 do Código
Penal, Aprovado Pela Lei nº 24/19, de 24 de dezembro, que entrará em
vigor, ‘é o tema que se propõe abordar.
A questão de partida é saber até que ponto o tipo legal de crime
previsto na disposição legal retro citada é injusto e desajustado com a
realidade moçambicana tendo em conta que a conduta em causa é
considerada adequada e legitimada na maioria das comunidades, isto por
um lado. Por outro lado, considerando que há razões para criminalizar a
conduta, se a pena determinada não é excessiva?
Com este estudo pretende-se trazer à discussão a possibilidade de
revisão do tipo legal de crime ou da pena, despertando, para além do
legislador que se considera que pode fazer uso deste princípio para análise
das condutas a criminalizar, também julgador.

*
Doutorando em Direito Público, 3 edição, pela Universidade Católica de Moçambique; Licenciado em
Direito pela Universidade Eduardo Mondlane em 2006; Pós graduação em Direito de Transportes em 2012
pela Universidade Zambeze; Pós graduação em Ciências Políticas, Governação e Relações Internacionais
em 2013 pela Universidade Católica de Moçambique; Pós graduação em Direito Administrativo em 2014
pela Universidade Católica de Moçambique; Mestre em Direito Administrativo pela Universidade Católica
em 2016.

243
Para o estudo, escolher-se-á a cultura do povo macua por ser a maior
do país, pois ocupa quase parte da região centro e quase toda da região norte
e possui uma cultura mais notável e conhecida pelos seus ritos de iniciação.

Estrutura

O estudo contempla quatro capítulos.


O primeiro vai oferecer o conhecimento geral do princípio da
adequação social, pois o leitor, para entender o estudo, deve obter noções
básicas sobre o princípio. Avaliar-se-á a utilidade do princípio, e a sua
aplicabilidade no Direito Penal.
O Segundo capítulo reservar-se-á na abordagem sobre a cultura
macua que foi a escolhida para o estudo. Porque não se pode falar de cultura
macua sem antes entender-se o conceito de cultura, vai-se oferecer a sua
noção. Também, falar-se-á dos ritos de iniciação dos menores para que se
obtenha um conhecimento básico para melhor perceber-se a relação com o
princípio.
O terceiro capítulo refere sobre o crime e as penas. É importante
trazer um pouco do conceito do que é crime e seus elementos para que o
leitor compreenda o tipo legal de crime que se propõe analisar.
O quarto capítulo e último é o centro do estudo onde se vai analisar
se o tipo legal de crime em causa choca ou não com as culturas e como
compreender a aplicabilidade do princípio na óptica do julgador e do
legislador.
No fim teremos a conclusão e recomendações.

Metodologia

O trabalho será elaborado com base na análise das obras escritas,


artigos publicados em internet e consulta à legislação.

1. PRINCÍPIO DE ADEQUAÇÃO SOCIAL


1.1 Compreensão do princípio

Tal como se extrai da própria letra do instituto, trata-se de um


princípio que constitui um ditame que orienta para a tomada de relevância
dos factos sociais considerados aceites ou ponderados por uma determinada
sociedade. Condutas que a sociedade os reputa como adequados.

244
Do ponto de vista da ordem jurídico-penal, são adequadas aquelas
condutas que uma determinada sociedade as tolera, mas consideradas
intoleráveis e sancionáveis pela lei penal.
Essas condutas constituem um modo de vida da sociedade e
enquadram-se nos seus costumes.
Obviamente, considerando a dinâmica de qualquer sociedade que
provoca a modificação dos seus costumes, essas condutas devem ser
encaradas num determinado tempo e espaço. Isto é, as mesmas podem ser
aceitas num certo momento e local e nos outros não aceitas.
O termo adequação deve ser interpretado numa perspectiva
comparativa, na medida em que a mesma conduta é vista na ordem social
como normal e aceite, mas na ordem jurídica como maliciosa.
Significa que os membros da sociedade praticam a conduta
convencidos e conscientes de estarem a agir dentro da normalidade na vida
social e dos seus costumes, sem, no entanto, temerem as possíveis
consequências da mesma conduta na ordem jurídico-penal ou até ignorá-las.

1.2 Sua utilidade

Deste princípio de adequação social trazido pelo WELZEL, Hans,


referenciado pela DOS SANTOS, Juliana Zanuzzo, que ganhou muito
destaque e força no Direito Penal, brota a ideia de que se torna irrelevante
para efeitos de penalização uma conduta que se enraizou numa certa
comunidade como eticamente aceite e praticada.1
Daqui pode-se inferir que este princípio se revela útil para o direito
penal na medida em que pode servir como critério e limites para a avaliação
no âmbito da necessidade de tipificação de determinadas condutas sociais
como crime, bem como no âmbito da apreciação o juiz pode ter em conta o
princípio.
DEYGLISSON, Jimmy apud ROXIN, Claus traduzindo a ideia de
WELZEL, Hans diz que ainda que alguma conduta seja formalmente descrita
como tipo legal de crime, careceria, certamente, de tipicidade material, na
medida em que estaria desprovida de desvaloração material necessária para
que se molde como delito. Neste caso, a tipificação da conduta seria

1
DOS SANTOS, Juliana Zanuzzo, O Que se Entende Por Princípio de Adequação Social, artigo
disponível em https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121928188/o-que-se-entende-por-principio-
da-adequacao-social. Acessado em: 21 nov. 2020.

245
contraditória, uma vez que o Direito Penal fará a censura de uma conduta
que a sociedade pondera e incentiva, porque é adequada.2
Tal como qualquer princípio, que é o espírito de qualquer ordem
jurídica e situa-se no plano supra ordenacional, diga-se acima da ordem
jurídico-constitucional, serve de orientação, tanto para o legislador, como
para o aplicador da norma no exercício da sua interpretação.
Como diz DEIGLYSSON, Jimmy citando Greco, a primeira utilidade do
princípio seria a de reduzir o campo de abrangência do tipo legal de crime,
limitando a hermenêutica, e daqui suprimir as condutas toleradas pela
comunidade. A segunda, orientada para o criador das leis, que o conduz a
seleccionar as condutas que pretende impedir a sua prática, tendo em conta
a protecção dos bens jurídicos qualificados como importantes. Certamente,
resulta que a conduta que for determinada como adequada na sociedade, o
legislador não deve valer-se do Direito Penal para a proibir.3
Conforme foi dito acima, considerando que a sociedade não é estática,
tal como os valores de qualquer sociedade transmutam no tempo e no
espaço, o princípio em análise, a cada momento, ilumina o direito penal,
obrigando-o que reveja as condutas da sociedade em função da adequação
social. Isto é, verificar se as condutas subsumidas como tipos legais de crime
ainda são intoleradas ou que aquelas que ainda não são consideradas crime
se ainda gozam de aceitação na sociedade.
Temos vários exemplos, como é o caso da poligamia que actualmente
discute-se bastante se é ou não tolerada pela sociedade, podendo ser
criminalizada ou não, considerando que em muitas culturas moçambicanas
é uma prática normal e aceite.
Mais adiante, e como um dos exemplos, será objecto de análise no
presente trabalho, a questão do coito com menores de 16 (dezasseis) anos,
tendo como base a cultura macua, escolhida para o estudo por ser a maior
tribo a nível nacional. Mas, na verdade, é uma prática generalizada em quase
todas comunidades do país.
Temos também o exemplo da pena de morte que é tolerada em
algumas sociedades, mas intolerada em outras.
No espírito deste princípio, como se diz na gíria popular do mundo
jurídico-penal, trazido por DOS SANTOS, Zanuzzo Juliana apud PUIG,

2
DEYGLISSON, Jimmy, Considerações Sobre Teoria da Adequação Social. Artigo disponível no
http://www.jimmyadvocacia.com.br/considerações-sobre-a-teoria-da-adequação-social/. Acessado em:
21 nov. 2020.
3
DEYGLISSON, Jimmy, Considerações Sobre Teoria da Adequação Social. Artigo disponível em:
http://www.jimmyadvocacia.com.br/considerações-sobre-a-teoria-da-adequação-social/. Acessado em: 21
nov. 2020.

246
Santiago Mir, que “não se pode castigar aquilo que a sociedade considera
correcto”.4
Como CABETTE, Eduardo Luíz Santos apud WELZEL, Hans, o pai do
princípio da adequação social, diz que este princípio é de certo modo uma
espécie de pauta para os tipos legais de crime. Por isso, ficam excluídas dos
tipos legais de crime as acções socialmente adequadas.5
É certo reconhecer que o princípio não é de todo absoluto, pois
apresenta suas limitações e imprecisões na aplicação prática, requerendo,
obviamente, outras teorias que o possam auxiliar.
Alguns doutrinários, discutem se o princípio é útil na esteira da
ilicitude ou tipicidade ou interpretação.
A maioria entende que direcciona-se mais no campo da
hermenêutica.
No entanto, há que ampliar o horizonte da aplicabilidade do princípio,
de modo a não ser visto, apenas, no momento da interpretação de alguma
norma já vigente, mas também no momento da análise das condutas alvos
de criminalização.
Como exemplo, na fase dos trabalhos preparatórios, o princípio deve
ser chamado como condutor para avaliar se uma certa conduta é reprovável
ou se perdeu a sua aprovação na sociedade. Ou seja, se na ordem social é
considerada ilícita ou não. Obtido o resultado da avaliação, alcança-se a
conclusão se, de facto, a conduta em avaliação deve ser tipificada como crime
ou não.
Entretanto, a discussão sobre esta matéria, reserva-se para um
trabalho específico.

1.3 Sua Aplicabilidade Efectiva no Direito Penal

O artigo 1 do Código Penal (C.P.), aprovado pela Lei nº 24/2019, de


24 de julho, consagra o princípio da legalidade. Nos termos do qual,
“nenhum facto, consista em acção ou omissão, pode julgar-se crime sem que
uma lei, no momento da sua prática, o qualifique como tal.”
O nº 2 do mesmo artigo preconiza que “não podem ser aplicadas
medidas ou penas criminais que não estejam previstas na lei.”

4
DOS SANTOS, Juliana Zanuzzo, O Que se Entende Por Princípio de Adequação Social, artigo
disponível em: https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121928188/o-que-se-entende-por-principio-
da-adequacao-social. Acessado em: 21 nov. 2020.
5
CABETTE, Eduardo Luiz Santos, Imputação Objectiva e Teoria da Adequação Social. Artigo disponível
em: https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/121938010/imputacao-objetiva-e-teoria-da-adequaca
o-social. Acessado em: 22 nov. 2020.

247
Na verdade, este princípio deriva e está em consonância com várias
disposições constitucionais.
O nº 3 do artigo 2 da Constituição da República de Moçambique
(CRM) dispõe que o Estado se subordina à Constituição e funda-se na
legalidade.
Considerando que o poder e a justiça penal residem no Estado, impõe-
se a este que exerça o poder tendo como fundamento, critério e limite a lei.
É crucial recordar e trazer em destaque que a justiça penal está ligada
aos direitos essenciais intimamente ligados a pessoa humana de alto valor.
Deste modo, não se pode deixar a bel-prazer do Estado o exercício da justiça
penal.
Nesta esteira, em harmonia, o artigo 3 da mesma CRM reforça a ideia
das garantias, imperando que “a República de Moçambique é um Estado de
Direito, (…) baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades
fundamentais do Homem.”
As disposições do capítulo III da CRM, em geral e na sua maioria,
versam sobre matéria reguladora da área penal.
Mas, em particular, o nº 3 do artigo 59 da mesma constituição, obriga
que nenhum cidadão deva ser punido com pena não prevista na lei.
O nº 1 do artigo 60 também do mesmo instrumento legal fundamental
veda que alguém seja condenado por conduta não qualificada como crime
no momento da sua prática.
Portanto, como se pode concluir, o preceito legal que consagra o
princípio da legalidade encontra cobertura na CRM.
Não só, fora do ordenamento jurídico nacional, tal como nas
convenções internacionais, encontra-se amparo do princípio da legalidade
patente na lei penal, criados para orientar e impor aos poderes públicos o
respeito pela dignidade humana e pelos direitos, liberdades e garantias
fundamentais.
Aliás, também o respeitado brocardo jurídico, até considerado um
princípio supraconstitucional, nullum crimen nulla poena sine lege, constitui
um capote do artigo 1 do C.P.
Portanto o princípio da legalidade previsto na lei penal encontra
suporte em vários cantos.
Ora, do exercício hermenêutico do artigo 1, resulta que neste
princípio da legalidade subjaz outro essencial que é o princípio da tipicidade.
Ora de forma simples e prático, entenda-se que é incumbido ao Estado
o poder de administrar a justiça penal, fazendo leis onde prevê toda a sua
actuação, incluindo definir quais são as condutas que as considera
reprovadas socialmente para que as enquadre como crimes através da

248
tipificação. Depois da tipificação, define a pena a aplicar a quem cometer
uma conduta que se enquadra no tipo legal de crime.
Definido o quadro legal, por observância do princípio da legalidade, é
cumprido escrupulosamente por todos, principalmente pelo aplicador da lei,
no caso o julgador.
Em face deste entendimento e da rigorosidade do princípio da
legalidade a qual assenta o Direito penal, a questão que se levanta é a de
saber se o princípio da adequação social encontra espaço de manobra para
a sua aplicação efectiva neste direito?
Impõe-se, certamente, a adopção de uma posição fundando-se no
facto de que, como se disse antes, o princípio da adequação social não pode
ser visto apenas no prisma da interpretação, mas deve ser chamado também
na fase da construção ou da reforma de uma norma ou da lei no seu todo.
Nesta fase, possibilita ao legislador estudar as condutas praticadas na
sociedade, verificando e avaliando o grau do valor ou o desvalor das
mesmas. Com este exercício, sem dúvida, o legislador encontra fundamentos
para seleccionar as condutas que entende serem nocivas à sociedade. Sendo
nocivas e reprovadas, há lugar a criminalização. Assim, não corre o risco de
estabelecer castigos às condutas valoradas e fomentadas pela sociedade.
Com este exercício alimenta fundamentos para justificar a tipicidade das
condutas.
A dificuldade surge na aplicação de uma norma em sede de
julgamento, onde o julgador, fazendo a subsunção de uma conduta à um tipo
legal de crime, concluindo que preenche, em observância ao princípio da
legalidade, é lhe imposto a condenar.
No entanto, o julgador pode se deparar com um conflito, na medida
em que a conduta desvalorada pelo Direito Penal é valorada e fomentada
pela sociedade, facto que deixaria a sociedade confusa quanto a condenação
do autor. Neste caso, o único espaço que se pode encontrar é na avaliação da
pena, podendo relaxar em função do poder discricionário que o julgador tem
dentro da moldura penal.
O certo é que o julgador é obrigado a cumprir rigorosamente a lei,
resultando daí que o princípio da adequação social não tenha espaço para a
sua aplicabilidade efectiva.
Uma certa conduta pode ser ilícita na ordem jurídica-penal e ser lícita
na ordem social. Por isso, é tipificada como delito na ordem jurídica-penal,
mas não tipificada como desvio na sociedade.
Daqui, pode-se concluir que a aplicação do princípio da adequação
social encontra realmente obstáculo diante da aplicação do princípio da
legalidade.

249
2. CULTURA MACUA
2.1 Definição de Cultura

Tendo em conta que o presente trabalho tem em vista analisar o


princípio da adequação social olhando, em particular, a cultura macua, há
necessidade de trazer algumas noções de cultura para o enquadramento do
leitor.
Vários tratadistas da antropologia, sociologia e filosofia definem a
cultura de diversas formas. No entanto, DIAS, Reinaldo citando a definição
clássica de TYLOR, Eduardo (1871) consagra que “a cultura é todo complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, direito, costume, e outras
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da
sociedade.”6 Esta definição mostra-se a mais aceite e todas desaguam nela.
Dentro desta definição encontramos uma componente essencial para
o nosso estudo que é o costume de uma sociedade.
Entende-se por costume de uma sociedade o conjunto de ditames que
emanam de uma certa prática ou modo de vida reiterada considerada aceite
de forma geral numa comunidade e sobrevivem um longo período de tempo,
transmitindo-se de geração em geração, cuja sua observância pode ser de
carácter obrigatória ou com convicção de ser.
Portanto, as práticas costumeiras definem um código de conduta ou
uma ordem social observada e aceite por todos. As condutas praticadas
numa sociedade que se compadecem com os costumes são consideradas
normais e fazem parte da ética.
A cultura molda o homem, criando uma identidade.

2.2 Tribo Macua

De acordo com MARTINES, Francisco Lerma (2009), a tribo macua


ocupa uma área enorme do território moçambicano, que abrange todas
províncias do norte e parte do centro do país, concretamente a província da
Zambézia, sem contar que parte dela encontra-se em maioria no sul da
Tanzania, em Madagascar, Ilhas Seychelles e nas Maurícias.
Em 1980, a população macua estimava-se em 3.500.000 (três milhões
e quinhentos mil) habitantes, correspondentes a 35.6% da população de
Moçambique. Actualmente, em 2020, estima-se em 12.000.000 (doze

6
DIAS, Reinaldo, Introdução a Sociologia, 2 edição, Pearson, São Paulo, 2010, pg. 66. Apud TYLOR,
Eduard (1871).

250
milhões) de habitantes, correspondentes a mais ou menos 40% da
população do país que se estima em 30.000.000 (trinta milhões) de
habitantes.
A tribo macua divide-se em três grupos: Grupo macua do interior
(Emakhuwa) predominantes da Província de Nampula e parte da Província
do Niassa e constituem a maioria; grupo macua emeetto que predomina na
Província de Cabo Delgado; e grupo macua-lomwe (Elomwe), predominante
na Província de Zambézia.
Trata-se de uma tribo com uma cultura bastante influente em
Moçambique.

2.3 Dos Ritos de Iniciação

Para melhor coerência na compreensão do presente artigo, é mister


trazer o conceito do que é rito antes de nos referirmos aos ritos de iniciação
na cultura macua.
Várias definições podem ser encontradas, mas do conhecimento geral
que se tem, pode-se entender que rito se traduz num conjunto de actos
padronizados e sequenciados praticados de forma habitual e reiterada
corporizando um evento.
Deste conceito podemos identificar vários tipos de ritos como um
julgamento, uma missa religiosa, uma tomada de posse, etc.
Para o trabalho em apreço, referimo-nos aos ritos culturais que se
traduzem num conjunto de actos tradicionais como danças, rezas,
ensinamentos, etc., e formam uma cerimónia tradicional ou espiritual que
até pode ser entendido como um mito.
Sobre rito de iniciação, como o próprio nome revela, trata-se de uma
cerimónia que tem em vista principiar alguma coisa. No caso concreto, é
conferir início da fase da vida de um membro da comunidade ou sociedade.
Como refere MARTINEZ, Francisco Lerma:

com o nascimento e os correspondentes, a criança macua não fica


completamente integrada na sociedade. O seu verdadeiro nascimento
social ocorrerá com a participação nos ritos de iniciação, que, na
linguagem macua, recebem o nome genérico de WINELIWA.

A sociedade macua ritualiza a passagem da adolescência para o estado


adulto para ambos os sexos, havendo ritos próprios para os rapazes, chamados
MASOMA e ritos de iniciação para as raparigas, chamadas EMWALI.
Pela iniciação, o indivíduo passa da infância à idade adulta,
participando nos ritos de iniciação, o jovem adquire a maioridade e toma

251
consciência da própria identidade e o lugar que lhe compete na comunidade.
Depois da iniciação, o jovem pode tomar parte de plenos direitos em todas as
actividades da sociedade: pode casar-se, participar nos sacrifícios tradicionais,
sentar-se no meio dos adultos, falar publicamente nas reuniões, tomar parte
activa nas festas e ir aos funerais. Todas estas actividades pertencem só aos
iniciados, só eles as fazem, pois somente eles nasceram para o povo.7
Como se pode ver, trata-se, efectivamente, de um nascimento social.
Nestas cerimónias, os jovens iniciados recebem dos mestres todo tipo
de instruções ou ensinamentos através de expressões linguísticas, gestos e
todo tipo de sinais capazes de transmitirem e provocarem reacções ao
corpo, inteligência e ao coração da pessoa, atraindo também os mestres de
iniciação nos seus mais variados aspectos, desde a parte íntima até o mais
superficial. Nestas cerimónias, tudo o que é considerado de ser humano não
fica de fora no tratamento. A pessoa do iniciado é submetida a todas
situações que constituam uma preparação para a vida, incluindo a vida
sexual e casamento na sua plenitude e sem tabus.8
Portanto, o iniciado sai da cerimónia certificado pela sociedade como
adulto. E, por esta via, recebe a licença para a prática de condutas que, de um
modo geral, podem ser condenáveis, mas que na sociedade onde está
inserido são plenamente aceites e exigíveis.
A questão que se coloca ligada ao presente estudo está relacionada
com a idade que o iniciado passa a ser considerado pela sociedade como
adulto?

2.3.1 Da iniciação dos rapazes

Na verdade, não existe uma idade certa para a iniciação. No caso dos
rapazes, como diz MARTINEZ, Francisco Lerma,

quando numa povoação há rapazes com idade para serem iniciados,


entre os 8 e os 12 anos, os responsáveis das respectivas famílias
discutem o problema entre si, a apresentam a questão ao chefe da
aldeia (MWENE), para que comunique ao chefe do chefado ou chefe
mais importante do conjunto das aldeias (MWENE MUTOKWENE), e
este anuncia oficialmente a celebração dos ritos de iniciação dos
rapazes, que, em macua, se chama MASOMA.9

7
MARTINEZ, Francisco Lerma, O povo Macua e sua Cultura, 3ª ed., Ed. Paulinas, Maputo, 2009, p. 93.
8
Ibidem, p. 94.
9
Ibidem, p. 96.

252
Portanto, deste enunciado textual fica claro e evidente que após o
tempo da cerimónia, o rapaz sai com o título de adulto. Tanto é que, um dos
momentos da cerimónia é a realização da circuncisão deles e outros
ensinamentos que os prepara para a vida sexual activa.
Resulta daqui que a idade adulta considerada na sociedade macua,
para o caso dos rapazes, é de mais ou menos a partir dos 12 anos. De todo
modo, como se disse, para esta cultura macua e muitas outras, não é
concretamente a idade que determina a puberdade social, mas a partir dos
ritos de iniciação.

2.3.2 Da iniciação das raparigas

Como refere o mesmo autor, MARTINES, Francisco Lerma, a iniciação


das raparigas (EMWEALI), deve ser a partir da aparição da menstruação, mas o
ponto máximo do processo acontece com a chegada da menstruação.
Portanto, biologicamente, se consideramos que a menstruação aparece
no período do fim da infância ao início da adolescência, que é na faixa etária mais
ou menos dos 11 a 12 anos, então admite-se que seja dos 8 a 16 anos.
Isto significa que a rapariga, após a submissão aos ritos de iniciação,
torna-se adulta e, desta maneira, preparada para comportar-se como tal.
O certo é que na sociedade macua a fase adulta começa muito mais cedo,
antes dos 16 anos de idade.
É mais ou menos nas idades antes dos 16 anos que acontecem os
referidos casamentos prematuros.
Dentro dos vários ritos de iniciação, existe um específico, pela qual a
jovem é iniciada à vida sexual, doptando-a de vários ensinamentos
relaccionados com o sexo. Esta instrução é progressiva e é completada com o
casamento.10
Esta também é a razão pela qual Moçambique é um dos países com alto
índice de casamentos considerados prematuros, mormente de costumes de
várias sociedades. Na verdade, depois da iniciação, olha-se com muita
preocupação nas comunidades quando um jovem ou uma jovem não se casa e
não procria. Quando há este desvio, constitui uma vergonha na comunidade e o
casal é convocado à uma reunião para a devida investigação e apurar-se as
causas. Este tipo de sentimento pressiona-os para viverem uma vida adulta.
Portanto, de certa maneira, após a iniciação, a vida sexual, o casamento e
a procriação são questões de honra na comunidade.

10
MARTINEZ, Francisco Lerma, O povo Macua e sua Cultura, 3ª ed., Ed. Paulinas, Maputo, 2009, p. 123.

253
3. DO CRIME E DAS PENAS EM GERAL
3.1 Definição de crime

Ainda que não seja objecto deste estudo falar do crime em geral ou de
aspectos genéricos de Direito Penal, mas porque pretende-se analisar a
adequação de uma conduta que é considerada crime, há necessidade de fazer
compreender de que figura legal se trata, do mesmo modo que se teve que
trazer a noção do que é cultura só para enquadrar o leitor.
Tal como qualquer outra definição, é filosoficamente questionável, mas
porque aproxima-se à realidade, há que optar pela definição do BELEZA, Teresa
que entende que “o crime é uma conduta ilícita, típica e culposa”11.
Para MUBARAK, Rizuane, embora faz, apenas, um acréscimo, o crime
equivale “a um comportamento humano que consiste numa acção penalmente
relevante, acção essa que é típica, ilícita, culposa e punível.”12
Considera-se ilícita quando a conduta é reprovada pela lei, ou seja
quando a lei penal não admite a sua prática.
É típica quando a lei faz a descrição da conduta e determina como ilegal.
É culposo quando a conduta é praticada movida por um sentimento
intencional (dolo) ou por falta do devido zelo (negligência).
Significa que o Estado, para a protecção de determinados bens jurídicos
e considerando que outras áreas não são suficientes para prevenir e repreender
a prática, como Direito Administrativo ou civil, dentro do Direito Penal, define-
as como crime.
Para melhor compreensão do que o Direito Penal pretende proteger,
MUBARAK, Rizuane numera como bens jurídicos “a vida, integridade física,
honra, liberdade, propriedade, património em geral, liberdade de
movimentação, liberdade de decisão, etc.” 13
No entanto, a prática de determinada conduta descrita como crime é
passível de alguma sanção, como a privação de liberdade do agente infractor,
decisão exclusiva do Direito Penal, ou outras medidas acessórias, como multa
que são praticadas em outras áreas.
Essas sanções são penas.

11
BELEZA, Teresa, Direito Penal, 2ª Edição, Revista Ampliada e Actualizada, Lisboa, 1984, p. 22.
12
MUBARAK, Rizuane, Direito Penal e Criminalística, da teoria universal à realidade nacional, Escolar
Editora, 2016, p. 62.
13
MUBARAK, Rizuane, Direito Penal e Criminalística, da teoria universal à realidade nacional, Escolar
Editora, 2016, p. 40.

254
3.2 Elementos do crime

Da definição dada acima, segunda a qual o crime é uma conduta típica,


ilícita e culposa, pode-se extrair os seguintes elementos:
Conduta, como uma acção ou omissão. Para a relevância penal, deve ser
praticada por um Homem, não valendo como crime a que é praticada por um
animal;
Típica, na medida em que a conduta deve ser descrita abstratamente na
lei penal como proibida e punida;
Ilicitude, a conduta deve ser contrária aos ditames da lei, ou seja
considerada antijurídica;
Culpa, que corresponde ao juízo de censura contra o infractor, pode ser
dolo ou mera culpa.
Como se viu na definição de MUBARAK, Rizuane, acrescenta o elemento
punível, para referir que toda acção tipificada como crime é passível de punição.
Este elemento é bastante discutível, pois entende-se que é irrelevante
tendo em conta a própria natureza do Direito Penal.

4. DO CRIME ESPECIAL DE OUTROS ACTOS SEXUAIS COM MENORES DE


16 ANOS FACE A CULTURA MACUA

4.1 Da hermenêutica do tipo legal do crime

Consagra o nº 1 do artigo 203 do Código Penal que “quem, mediante


violência ou ameaça grave, praticar acto sexual com menor de dezasseis
anos ou levar a que ele seja por este praticado com outrem é condenado a
pena de 8 a 12 anos de prisão.”14
O nº 2 estabelece que “não se provando a violência, a pena é de prisão
de 2 á 8 anos e multa até 1 ano.”15
Do exercício de interpretação do artigo, conclui-se que o nº 1 é
bastante pacífico, pois refere-se ao uso de violência ou ameaça.
O objecto deste estudo centra-se, exactamente, no entendimento que
se alcança do nº 2, pois do exercício hermenêutico fica claro que preenche o
tipo legal de crime aquele que pratica acto sexual com uma menor de
dezasseis anos, independentemente de ausência de violência física ou
psicológica dirigida à vítima. Ou seja, aquele que pratica relações sexuais
com consentimento da menor.

14
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal, aprovado pela Lei nº 24/2019, in Boletim da
República, Iª Série, nº 248, de 24 de dezembro.
15
Ibidem.

255
O consentimento manifesta-se pela livre acção, voluntariedade,
aceitação ou querer da suposta vítima.
Ora, o consentimento da menor é onde reside a razão do presente
estudo.

4.2 Compreender o Tipo Legal de Crime dentro da ordem


social Macua

De acordo com a descrição do tipo legal do crime, é legalmente


reprovável a prática de acto sexual com menor de dezasseis anos, ainda que
seja com o seu consentimento.
Como vimos, na esteira da sociedade macua, tal como em várias
sociedades do país, pois é costume quase generalizado em Moçambique,
com a iniciação, as jovens tornam-se adultas, donas de si mesma, recebem
da sociedade a autorização e legitimação para casar e praticar todas as
condutas admitidas aos adultos.
Em muitas sociedades tradicionais moçambicanas é
considerado uma prática normal e aceite que os jovens menores,
considerando-se adultos no contexto local, conheçam-se e se juntem.
Como refere o autor MARTINEZ, Francisco Lerma, “na sociedade
macua, como em qualquer sociedade humana, a idade adulta é caracterizada,
sobretudo, pela formação de uma família através do casamento.16 Todo
processo matrimonial macua começa com a negociação entre as famílias (…).
O Acordo entre as famílias é o primeiro acto (…)”.17
Com os enunciados acima, torna-se claro que o casamento consentido
dos jovens é também junção das famílias e legitimação da sociedade em
geral como uma práctica normal e tradicional.
Analisando os elementos do tipo legal do crime, constata-se o
seguinte:
Quanto a conduta, refere-se a prática sexual que envolve um homem
e uma menor de dezasseis anos.
Relativamente a ilicitude, é certo que, nos termos da lei penal, a
prática sexual com uma menor de dezasseis é definida como uma conduta
proibida. Mas, nas sociedades tradicionais como a macua, é normal, aceite e
legitimada, o que significa que para estas sociedades, esta proibição torna-
se algo estranho e confusa.

16
MARTINEZ, Francisco Lerma, O povo Macua e sua Cultura, 3ª ed., Editora Paulinas, Maputo, 2009, p.
131.
17
Ibidem, p. 136.

256
No que concerne a tipificação, conforme o artigo 203 do Código Penal,
adoptou-se a conduta como crime. Mas, no código de conduta (não escrita)
da sociedade macua e outras de Moçambique, a conduta não está tipificada
como infracção ou desvio.
Quanto a culpa, considerado como juízo de censura, para a lei penal,
age com dolo, entendido como uma acção intencional e com consciência de
provocar dano, aquele que pratica o acto sexual com menor de dezasseis
anos, tendo conhecimento pleno da sua idade biológica.
No entanto, no campo da vida social comunitária macua, como se
disse, a idade biológica não é tida em conta, mas sim a idade social, atingida
pela maturidade determinada pela passagem dos ritos de iniciação.
Nesta óptica, basta o homem perceber que a mulher já foi iniciada,
considera-a adulta, o que condiciona para que a procure e aborde-a.
Havendo consentimento, está aberto o trilho para um relaccionamento
legítimo. Nesta perspectiva, pelo facto de o indivíduo ter a consciência de
estar a agir dentro da normalidade social, não há juízo de censura a ser
levantado.
Na verdade, o indivíduo age dentro de uma certa realidade, distinta
da realidade jurídico-penal e na sua consciência tudo quanto faz
corresponde a sua vida normal na sociedade. Razão pela qual, quando os
indivíduos são abordados para responderem à um processo-crime,
naturalmente, cria uma enorme confusão.
O artigo 11 do Código Penal, referente a imputação subjectiva,
estabelece que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos
especialmente previsto na lei, com negligência.”18
O artigo 12 do mesmo código, preconiza que “age com dolo quem,
representando um facto que preenche um tipo legal de crime, actuar com
intenção de o realizar.”19
De facto, o dolo manifesta-se pela intenção que o agente tem de
realizar ou praticar uma conduta que preenche o tipo legal de crime.
No caso em estudo, há que questionar se, efectivamente, há dolo no
caso do coito praticado na sociedade macua com uma menor de dezasseis
anos, considerada socialmente adulta.
Esta dúvida surge porque, no fundo, o agente relacciona-se com uma
menor convencido de estar a observar as normas tanto legais como
costumeiras, pois na realidade em que se encontra, tanto ele como toda
sociedade, veem a conduta (o casamento tradicional com a menor) como

18
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Código Penal, aprovado pela Lei nº 24/2019, in Boletim da
República, Iª Série, nº 248, de 24 de dezembro.
19
Idem.

257
normal e necessária, até constitui uma alegria e um facto já esperado e
preparado pela própria sociedade.
Portanto, submeter esse agente e colocá-lo diante de um juiz e julgá-
lo por ter mantido relações sexuais com uma menor de dezasseis anos, que
até pode ser sua esposa, certamente, isso constituirá um espanto para ele e
não alcançará a razão do julgamento. Significa que o indivíduo não terá a
capacidade de entender e consciencializar-se de que cometeu um crime, pois
na sua óptica a conduta praticada faz parte da vida da sociedade e fá-lo na
convicção plena de que está de acordo com a ética do seu meio social e a
suposta vítima é sua esposa obtida em cumprimento de todo ritual
necessário para o efeito.
De facto, se entendermos que o dolo consiste na prática de uma
conduta voluntária, movida pelo querer fazer ou deixar de fazer, podemos
concluir que há dolo. Mas, se aliarmos ao factor intenção consciente de criar
o dano ou prejuízo, certamente que não teremos o mesmo resultado.
Ora, o suposto agente age com a intenção e consciência de casar ou
até de praticar cópula com a menor, mas não tem a intenção e consciência
de fazer mal ou provocar dano. Pelo contrário, age com consciência de que
está de boa-fé, a fazer o bem, a cumprir os desígnios de qualquer ser humano
que quer constituir família.
Se se entender que há crime, então preenchem também o tipo legal de
crime como cúmplices as respectivas famílias, nos termos do nº 1 e podendo
serem punidos, ao abrigo do nº 2, ambos números do artigo 12 do mesmo
código.
É verdade que o princípio de que o desconhecimento da lei não exime
o agente da responsabilidade penal é extensivo a todos. Mas, no caso, não é
só o facto do desconhecimento da lei que está em causa, também o facto de
o agente estar consciente de que está em observância de uma ética da sua
sociedade.
Portanto, olhando para o tipo legal de crime nota-se claramente que
está desajustado com o costume em causa.

4.3 Da análise na óptica do julgador

Sem dúvida, com a obediência ao princípio da legalidade, que exige o


devido rigor na observância dos ditames legais, não se deve exigir ao
julgador que adopte outros critérios para apreciar e decidir perante um caso
do mesmo género.
Também não há dúvidas que o julgador, em sede de sua consciência,
encontra dificuldades de decidir casos de género, pois embora as regras

258
costumeiras não sejam fontes e não tenham a potência necessária para
derrogar as normas do Direito Penal, nos casos de crimes como estes em
alusão, que se adequam a sociedade, coloca-o, certamente, em conflito
permanente.
O juiz só deve basear-se numa lei jurídica escrita para proceder o
julgamento em sede de um processo-crime, o que lhe retira a mínima
possibilidade de julgar, tendo em conta a aceitação, convicção e adequação
social generalizado de um comportamento ou facto.
Alguns tratadistas do Direito Penal entendem que o Juiz pode usar o
seu próprio critério na ausência de norma própria para julgar, podendo daí
buscar alguma regra costumeira para julgar. No entanto, é uma matéria cuja
profundidade do estudo e discussão pode ser feito em outra oportunidade.
Resulta daqui que o princípio da adequação social não encontra
espaço para a sua aplicação pelo julgador, exactamente pelo facto de o juiz
estar agarrado a lei e não poder invocar o facto de a conduta criminosa ser
adequada.

4.4 – Da análise na óptica do legislador

Para a análise deste ponto, pode-se inicia pela seguinte citação:


O Direito penal funciona para impedir que as pessoas façam
alguma coisa que é considerada nociva a uma certa sociedade (o
destaque foi feito). Simplesmente, dada a especial gravidade da ameaça e a
especial gravidade da sanção do Direito penal, máxime dada a gravidade da
pena de prisão, na medida em que restringe a liberdade das pessoas, por um
lado, e tem os efeitos conhecidos sobre a saúde física e psíquica das pessoas na
medida em que inclusive, frequentemente, faz piorar a carreira criminal das
pessoas por outro, valeria a pena pagar este custo nas situações em que não
seja possível arranjar outro remédio.20
Ora, o extracto acima e em particular o destacado desperta sobre um
problema que tem que ver com o princípio da adequação social. É que, se
uma conduta é aceite numa sociedade, porquê criminalizar?
De facto, o Direito Penal deve encarregar-se de impedir, apenas, que
as pessoas não façam aquilo que é nocivo a sociedade. No caso do tipo legal
de crime em análise não é nocivo a sociedade, daí que a criminalização da
conduta contradiz a função atribuída ao Direito Penal.

20
MUBARAK, Rizuane, Direito Penal e Criminalística, da teoria universal à realidade nacional, Escolar,
p. 41.

259
Desta forma, resulta que o papel do legislador deve ser cauteloso na
análise das condutas sociais no âmbito da qualificação quanto a inadequação
social.
Por isso, nos trabalhos preparatórios para a tipificação de condutas
como crime, o legislador pode usar do princípio da adequação social para a
avaliação.

CONCLUSÃO

Trata-se de um tema que requere muita profundida no seu estudo,


pois há questões que não se esgotam aqui por necessitarem de mais
subsídios trazidos em temas apropriados.
No entanto, depara-se com a falta de obras escritas sobre a matéria, o
que coloca um desafio.
Como se pode notar, o princípio de adequação social, embora à
primeira vista pode se concluir que não se encontra espaço para a sua
aplicação sombreado pelo princípio da legalidade, há entendimento de que
ainda há que questionar esta conclusão. Para o efeito, como se disse, merece
um estudo em sede própria.
Contudo, fica claro que considerando que a conduta em causa,
definida como crime, constitui um modo de vida da sociedade macua, em
particular, e em quase todo país, não se encontram fundamentos para que a
lei criminalize pesadamente, isto é em moldura penal de 2 a 8 anos.
Arisca-se dizendo-se que o estudo preparatório feito chegou a
conclusões fora da realidade local.
Na verdade tem-se falado bastante de mitigação aos casamentos
prematuros. Se este for a razão, então a forma de mitigação, através do
mecanismo de criminalização da conduta adequada socialmente, é
excessiva.
Como se diz, o Direito Penal deve agir quando outras áreas não sejam
potencialmente suficientes para impor um comportamento.
Não se pretende dizer que os casamentos com menores sejam
correctos ou errados, mas está-se a olhar para uma prática tradicional e
adequada em certas sociedades encontradas na maior parte do país.
Também, há que considerar que este princípio é de extrema
relevância para o legislador, pode servir de instrumento para a análise das
condutas.

260
RECOMENDAÇÃO

O princípio da adequação social deve ser tomado como instrumento


para melhor analisar as condutas consideradas necessárias a criminalização.
Deve ser revisto o tipo legal de crime, pois a sua qualificação mostra-
se bastante excessiva.
Deve-se encontrar soluções em outras áreas, fora do Direito Penal,
para a busca do desígnio que se pretende alcançar.

BIBLIOGRAFIA

BELEZA, Teresa. Direito Penal. 2ª Edição, Revista Ampliada e Actualizada, Lisboa, 1984.
MUBARAK, Rizuane. Direito Penal e Criminalística, da teoria universal à realidade
nacional. Escolar Editora, 2016.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Imputação Objectiva e Teoria da Adequação Social.
Disponível em:
https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/121938010/imputacao-objetiva-e-
teoria-da-adequacao-social. Acessado em: 22 nov. 2020.
DIAS, Reinaldo. Introdução a Sociologia. 2ª edição, Pearson, São Paulo, 2010, pg. 66.
Citando Edward Tylor.
DEYGLISSON, Jimmy. Considerações Sobre Teoria da Adequação Social. Artigo
disponível em: http://www.jimmyadvocacia.com.br/considerações-sobre-a-teoria-da-
adequação-social/. Acessado em: 21 nov. 2020.
DOS SANTOS, Juliana Zanuzzo. O Que se Entende Por Princípio de Adequação Social.
artigo disponível em https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121928188/o-que-
se-entende-por-principio-da-adequacao-social. Acessado em: 21 nov. 2020.
MARTINEZ, Francisco Lerma. O povo Macua e sua Cultura. 3ª Edição, Editora Paulinas,
Maputo, 2009.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Constituição da República de Moçambique. (2004) in
Boletim da República, Iª Série, nº 20, de 24 de dezembro.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Código Penal, aprovado pela Lei nº 24/2019, in Boletim
da República, 1ª Série, nº 248, de 24 de dezembro.

261
A PRISÃO PREVENTIVA NO DIREITO
MOÇAMBICANO E A LIMITAÇÃO DOS
PODERES DE DETENÇÃO

DOMINGOS HERMÍNIO CINTURA*


HERMÍNIO TORRES MANUEL**

INTRODUÇÃO

O presente artigo como tema “A Prisão Preventiva no Direito


Moçambicano e a Limitação dos Poderes de Detenção”, o qual se insere
na área de Direito Penal, cadeira dada no Curso de Doutoramento em
Direito Público, na Faculdade de Direito da Universidade Católica de
Moçambique.
O estudo visa essencialmente reflectir sobre as reformas
legislativas em curso no ordenamento jurídico moçambicano e em
particular no Direito Penal. O escopo é apresentar os requisitos gerais
da prisão preventiva na Lei Penal vigente e discutir o porquê da
limitação dos poderes de detenção.
Na verdade, para além do código penal aprovado pelo Decreto de
16 de Setembro de 1886, que não funciona por força dos novos
princípios estruturantes, foram conduzidas alterações para o Código

*
**
É doutorando em Direito Público pela Faculdade de Direito da UCM, Mestrado em Direito
Administrativo e Licenciado em Direito (2002). Com sucesso fez especialização em Desenvolvimento
Económico Local, pelo Centro da OIT, em Turim, enquanto ocupava (2004-2007) a posição de Director
da Agência de Desenvolvimento Económico Local de Nampula - ADELNA; Tem mais de dez anos de
experiencia como advogado e consultor institucional, tendo ocupado a primeira posição de Presidente do
Conselho Provincial de Nampula da Ordem dos Advogados de Moçambique (2014-2020); deu aulas de
direito na Faculdade de Direito da UCM, Academia Militar Marechal Samora Machel e na UniRovuma,
onde exerce a posição de Chefe de Departamento Académico no Curso de Direito, da Faculdade de Direito
da Universidade Rovuma.

263
Penal aprovado pela Lei nº 35/2014, de 31 de Dezembro, trazendo
novos tipos legais de crime, definindo nova redacção e introduzindo
novas molduras penais, e ainda, incorporou matérias que estavam em
legislação avulsa, adoptando o movimento de descriminalização com à
preferência por penas não privativas de liberdade a pena de prisão.
O referido Código sobreviveu um lapso de tempo muito curto, de
6 anos apenas, pois mais recentemente, em 2019, foi revisto pela Lei nº
24/2019, de 24 de dezembro. Esta nova revisão do Código Penal trouxe
um novo leque de valores axiológicos e a necessidade de tratamento
jurídico particular, conformando-o ao núcleo primário de direitos,
liberdades e garantias fundamentais como verdadeiros bens jurídicos a
serem tutelados.
Por outro, o Código Processual Penal em vigor, que foi aprovado
pelo Decreto n. 16489, de 15 de fevereiro de 1929 e mandado vigorar
em Moçambique, enquanto então colónia de Portugal, pela Portaria nº
19.271, de 24 de janeiro de 1931, no entanto, tem algumas operações
cósmicas de que foi sofrendo ao longo do tempo e, porém, manteve no
essencial o seu traçado e espírito que o caracteriza pela prevalência de
princípios estruturantes do tipo inquisitório1, facto que o coloca em
confronto com os princípios jurídico-filosóficos e valores adoptados
pela sociedade moçambicana após a independência nacional – em 25 de
junho de 1975.
Os tais princípios jurídico-filosóficos assentam no Estado de
Direito Democrático e no respeito pelos direitos de cidadania na
sociedade democrática e plural que Moçambique está seguindo e
consolidando, tanto no que concerne a direitos fundamentais
individuais como nos deveres do cidadão para com a comunidade,
devendo constituir a bússola de orientação pretendida para o novo
Código Processual Penal.
Nesse sentido, justificou-se pois a necessidade de reforço neste
Código Processual Penal na medida em que se pretendeu garantir a
efectivação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos
cidadãos como verdadeiros valores de bem jurídico, por um lado, e, por
outro, dar conformação com as concepções da dogmática penal da
actualidade.
É importar aqui trazer à colação o impacto produzido pela
jurisprudência do Acórdão nº 4/CC/ 2013, de 17 de setembro2, em que

1
Cfr. O preâmbulo da Lei nº 25/2019, de 26 de dezembro, publicada no Boletim da República, I Série, nº
249, de 26 de dezembro de 2019 e que aprova a revisão do Código Processual Penal Moçambicano.
2
O Acórdão nº 4/CC/2013, de 17 de setembro, publicado no BR n. I Série, Suplemento.

264
o Conselho Constitucional restringe o poder de ordenar a prisão
preventiva fora do flagrante delito apenas aos juízes. Antes dessa
decisão, a prisão preventiva podia ser decretada por juízes,
procuradores, oficiais do serviço de investigação criminal, como sejam,
policiais, directores, inspectores, subinspectores e até administradores
de distritos se necessário.
Em termos metodológicos, a pesquisa é descritiva do tipo
documental tendo como suporte os instrumentos normativos e
bibliográficos disponíveis sobre o tema, que se alcança em especial a
partir das disposições normativas da Constituição da República e do
Código Penal, incluindo alguma jurisprudência constitucional relativas
ao direito à liberdade do cidadão enquanto garantia fundamental,
enquadrando-o nos conceitos de Estado de Direito Democrático.
Daqui em diante, far-se-á referência da prisão preventiva e a
razão de limitação dos poderes de detenção de acordo com a previsão
do Código Penal.

1. O BEM JURÍDICO-PENAL COMO JUSTIFICATIVO PARA


CRIMINALIZAÇÃO

As normas jurídicas, quer de direito penal como de direito


administrativo sancionatório, são estabelecidas conformando-se com o
quadro do Estado de Direito Democrático, como o moçambicano. O Direito
Penal é um ramo do Direito Público que tutela valores fundamentais e
garante a convivência sadia da sociedade, traduzidos e integrados em bens
jurídicos, punindo-se aqueles que atropelam as regras estabelecidas.
De acordo com Ivan Luiz da Silva, citando LEBERATI, diz que “o bem
jurídico é dotado de relevância e significado suficientes para ser objecto de
protecção da norma penal, por meio da pena criminal”3.
Na verdade, o princípio do Estado de Direito Democrático respeita a
dignidade da pessoa humana e constitui o fim último da actuação dos órgãos
do Estado nas suas actividades, nas quais os meios humanos e materiais
devem ser utilizados e equacionados correctamente para garantir o
cumprimento dos fins próprios do Estado.
Entre nós, a natureza de Estado de Direito Democrático está
consagrada na Constituição da República, no seu artigo 3, o qual estatui que
“a República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo

3
SILVA, Ivan Luiz da. O bem jurídico-penal como limite material à intervenção criminal in Revista de
informação legislativa, Brasil, s/d; p. 66.

265
de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia
dos direitos e liberdades fundamentais do Homem”.
Os direitos e liberdades fundamentais do Homem, consagrados no
artigo 3 da Constituição moçambicana, são traduzidos em bens jurídicos
como valores da sociedade, que são dotados de relevância e significado
suficientes para ser objecto de protecção pelo direito penal, criminalizando-
se aqueles que desrespeitam e violam.
Neste sentido, avança da Silva, no seu escrito sobre o bem jurídico-
material como limite material à intervenção criminal, que:

“A necessidade de protecção dos bens jurídicos decorre das funções


essenciais do Estado Democrático de Direito, constituindo essa
determinação política num indício de que o Estado está preocupado
em proteger os bens jurídicos que a própria sociedade consagrou
como valores fundamentais”4.

De facto, o bem jurídico insere-se e se traduz num conjunto de


valores, os constituídos em direitos subjectivos, os direitos e liberdades
fundamentais, com relevância penal e que, por força da relação contratual
da sociedade com o Estado, o contrato-social defendido por Rousseau. E o
Estado se obriga a tutelar em defesa do cidadão, valendo como o fim
reconhecido pelo legislador nas prescrições penais, em primeira mão, pela
Constituição do Estado e mais no Código Penal sob a forma específica.
Na mesma linha de pensamento, Henriques Manuel afirma que “a
génese do Estado de Direito é baseada na Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão e provem da filosofia individual do Estado Liberal,
numa ordem jurídica assente na garantia dos direitos naturais”5.
Na verdade, como avança Mónica Ferrão, “a política como arte, como
gestão do possível pressupõe a existência de juízos de valores, de opções
entre o desejável e o evitável, de um sistema de costumes e modos de ser e
do racional para a acção política”6.
Aliás, neste sentido, Henriques Manuel refere que no âmbito das
mudanças e das reformas que o Estado vem realizando e vários sectores, em
geral, e de forma especial, no sistema judiciário moçambicano, visa o
respeito dos direitos humanos e, por outro lado, procura-se conciliar o

4
SILVA, Ivan Luiz da. O bem jurídico-penal como limite material à intervenção criminal in Revista de
informação legislativa, Brasil, s/d; p. 66.
5
MANUEL, Henriques – A investigação Criminal no Estado de Direito Democrático: autonomia e
dependência da Polícia de Investigação Criminal em Moçambique. In Dissertação Final de Mestrado
Integrado em Ciências Policiais, XXVII Curso de Formação de Oficiais de Polícia, p. 13.
6
FERRO, Mónica, A Ética parlamentar – Contributo para um debate sobre um melhor Estado. In Eduardo
Pereira Correia, (Coord.) liberdades e Segurança, Lisboa, ISCPSI-ICPOL, 2015, p. 45-53.

266
Estado protector com a maior exigência de autonomia individual com a
polícia a oferecer a máxima liberdade aos concidadãos7. Em termos
concretos, em Moçambique, assim como noutras partes do mundo, existe a
Polícia da República a qual foi lhe atribuída a missão de garantir a lei, ordem,
a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o
respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos
direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
Em geral a polícia no exercício das suas funções, deve obedecer a lei e
servir com isenção e imparcialidade os cidadãos e as instituições públicas e
privadas8. Como tal, a polícia é símbolo dos mais visíveis do poder do Estado
e, por isso, é essencial que o povo tenha confiança na sua integridade, sendo
esta confiança que, em grande parte, mantém a ordem e estabilidade social
e constituição condição da legitimação sociológica da polícia9.
Assim, a privação da liberdade deve ser aplicada como medida da
última ratio, como última alternativa a se recorrer quando as demais não se
mostrem adequadas e suficientes para acautelar ou reprimir determinada
conduta. Portanto, a privação da liberdade é uma intervenção séria na vida
das pessoas e a autoridade competente não deve usar inadequadamente,
seja para assustar, intimidar ou punir.
Aliás, Cláudio Brandão, em sua obra sobre a Tipicidade Penal, defende
que:

“O Direito Penal, ao possibilitar a aplicação da pena, possibilita a


aplicação da violência, institucionalizada através do Direito. Diante
disto, a própria coercibilidade jurídica e uma decorrência do direito
penal, sendo ele uma condição ara a vigência do próprio direito.
Porem, em um Estado Democrático de Direito, e necessária uma
limitação a violência da pena”10.

A violência em Direito Penal se distingue da violência acometida pelas


outras instituições de controlo social justamente pela formalização do
controle. E como refere Suxberger11, o modo pelo qual a intervenção penal

7
MANUEL, Henriques – A investigação Criminal no Estado de Direito Democrático: autonomia e
dependência da Polícia de Investigação Criminal em Moçambique. In Dissertação Final de Mestrado
Integrado em Ciências Policiais, XXVII Curso de Formação de Oficiais de Polícia, p. 5-6.
8
Cfr.: Art. 253º da Constituição da República de Moçambique e a lei nº 16/2013, de 12 de agosto – Lei da
Polícia da República de Moçambique, publicada no BR, 7º Suplemento, Imprensa Nacional de
Moçambique, I-Série, nº 64.
9
MANUEL, Henriques, Op. cit.
10
BRANDÃO, Cláudio – Tipicidade penal, dos elementos da dogmática ao giro conceitual do método
entimemático. Edições Almedina, S.A. Coimbra, julho, 2012, p. 230.
11
SUXBERGER, António Henrique Graciano – A intervenção penal como reflexo do modelo de Estado:
a busca por uma intervenção penal legitima no Estado Democrático de Direito. Brasília, 2005, p. 11.

267
se legitima é informado por valores extraídos de um programa de política
criminal, que segue orientado, por sua vez, pelas finalidades a serem
buscadas pelo direito penal. As finalidades de intervenção penal reflectem
justamente a opção estatal pela realização da formalização dessa instância
de controlo social.

2. DA DETENÇÃO E PRISÃO PREVENTIVA EM MOÇAMBIQUE

A liberdade das pessoas12 é um princípio da legalidade, podendo só


ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais
penais de natureza cautelar, medidas de coacção e de garantia patrimonial
determinadas por lei e que para sua aplicação depende da prévia
constituição como arguido da pessoa que dela for objecto.
Há distinção entre pessoa suspeita e arguida. Considerando-se
suspeito aquele relativamente ao qual exista indício de que cometeu ou se
prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para
participar. Enquanto o arguido é aquele contra quem for deduzida acusação
ou requerida audiência preliminar num processo penal e a qualidade de
arguido conserva-se durante todo o decurso do processo.
A constituição de arguido, inicia com uma comunicação, oral ou
escrita, ao visado, e será obrigatória nas quatro seguintes situações:
primeira, a constituição de arguido será logo que correndo instrução contra
pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade
judiciária ou órgão de polícia criminal; a segunda, será obrigatória a
constituição de arguido logo que tenha de ser aplicada a qualquer pessoa
medida de coacção ou de garantia patrimonial; terceira, será constituído
arguido a um suspeito detido e, a quarta, é quando for levantado auto de
notícia que de uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for
comunicado13.
A detenção sempre traduz uma situação de privação da liberdade de
deslocação e pode transitar para prisão preventiva com a finalidade de
apresentar-se o detido ao juiz de instrução criminal ou submetê-lo ao
julgamento caso tenha cometido um crime passível de um Processo Sumário.
Portanto, detenção é o acto de prender alguém e levá-lo em custódia.
Geralmente, quer a detenção, quer a prisão preventiva, são vistas
publicamente como instrumentos que colocam as pessoas presas em risco
de violação dos seus direitos fundamentais, daí a necessidade do seu

12
Vide o art. 232º do CPP.
13
Cfr.: as disposições legais constantes dos art. 65º e 66º do CPC.

268
controlo rigoroso sobre a sua legalidade, legitimidade e necessidade ou
adequação.
Processualmente, a detenção de acordo com o 297º do CPP, uma vez
efectuada, tem a finalidade de apresentação, no prazo máximo de 48 horas,
o detido ao julgamento sob a forma sumária ou ser presente ao juiz da
instrução criminal para o primeiro interrogatório judicial ou ainda para
aplicação ou execução de uma medida de coacção ou então para o detido ser
apresentado, num prazo não superior a 24 horas, perante a autoridade
judiciária em acto processual.
Quanto a classificação da detenção esta pode ser detenção em
flagrante delito14 ou detenção fora do flagrante delito15.
- Detenção em Flagrante delito, como estatui o art. 298º do CPP, só
pode ocorrer algum crime punível com pena de prisão, neste caso podendo
qualquer autoridade judiciária ou entidade policial levará a sua efectivação
ou, ainda, pode qualquer pessoa proceder a detenção quando não estiver
presente e não haja possibilidade de chamar a autoridade judiciária ou
entidade policial.
É importante referir que, a pessoa que tiver procedido a detenção,
entregará de imediato o detido a autoridade judiciária ou entidade policial
sendo estas obrigadas a levantar um auto sumário da entrega e comunicará
ou ao juiz para passar um mandato de detenção, se se enquadrar para a
finalidade de assegurar a presença imediata do detido perante a autoridade
judiciaria em acto processual ou então apresentará ao Ministério Público
para efeitos de apresentação ao primeiro interrogatório judicial.
O conceito legal de flagrante delito vem consagrado no art. 299º do
CPP e estabelecem-se em três dimensões ou hipóteses para a sua verificação:
na primeira, será flagrante delito a todo crime que está se cometendo ou se
acabou de cometer; na segunda, tem-se também por flagrante delito o caso
em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou
encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de
cometer ou ele ter participado no crime; E por fim, a terceira, ocorre nas
situações de crime permanente, e aqui o estado de flagrante delito só
persiste enquanto se mantiverem sinais que mostrem claramente que o
crime está a ser cometido e o agente está a perpetrar.
- A detenção fora do flagrante delito só pode ocorrer com base em um
mandado de juiz, o juiz da instrução criminal, se se tratar de caso em que é
admissível a prisão preventiva e existindo elementos que tornem fundado o
receio de fuga.

14
A detenção em flagrante delito está prevista no art. 298º do CPP, aprovado pela Lei nº 25/2019, de 26
de dezembro.
15
A detenção fora do flagrante delito está prevista no art. 300º do CPP, aprovado pela Lei nº 25/2019, de
26 de dezembro.

269
Portanto, a detenção fora do flagrante delito trata-se de uma medida
cautelar processual de privar a liberdade do agente do crime, mediante auto
de noticia onde constem os factos que constituem o crime, o dia, a hora, o
local e as circunstâncias em que o crime foi cometido, e, ainda, tudo o que
poderem averiguar acerca da identificação do infractor e do ofendido, bem
como os meios de prova conhecidos, podendo ser testemunha que poderem
depor sobre os factos, estando prevista no art. 300º do CPP.
Com efeito, o mandado de detenção deverá ser passado em triplicado
e conter, sob pena de nulidade, a) da assinatura do juiz, b) da identificação
da pessoa a deter e c) a indicação do facto que motivou a detenção e das
circunstâncias que legalmente fundamentam.
Aliás, é possível haver urgência e perigo na demora de efectuar-se a
detenção, neste caso admite-se, nos termos do n.ͦ 2 do art. 301º do CPP, que
se faça a detenção fora do flagrante delito, sem mandato, mas devendo, uma
vez feita detenção, fazer-se a confirmação pelo respectivo mandato e ao
detido, que é lhe entregue uma das cópias para assinar.
Existindo inadequação ou insuficiência das medidas de coacção,
existe uma base da Constituição que determina que:

“A prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei, que fixa


os respectivos prazos. O cidadão sob prisão preventiva deve ser
apresentado no prazo fixado na lei à decisão de autoridade judicial,
que é a única competente para decidir sobre a validação e a
manutenção da prisão”16.

Desse modo, tem-se a prisão preventiva como uma medida de


natureza cautelar que é decretada pela autoridade judiciária competente,
neste caso o juiz da instrução criminal, e não se confundindo com uma acção
penal definida com sentença condenatória.
Na perspectiva hodierna, a prisão preventiva está ligada à privação de
liberdade de um suspeito ou indiciado de cometimento de um crime antes
do julgamento e não pode se confundir com o cumprimento provisório da
pena, apesar do respectivo tempo que leva dever ser contabilizado para
efeitos de contagem do tempo de pena, visto que neste caso, há uma decisão
de mérito sobre a acusação formulada pelo Ministério Público.
A figura de prisão preventiva viola a garantia constitucional do
princípio da presunção de inocência do arguido, constante no nº 2 do art. 59

16
Cfr. Art. 64º da Constituição da República de Moçambique.

270
da CRM, ressalvando-se a prisão preventiva ilegal, situação que o próprio
Estado responde pelo acto praticado pelos seus agentes17.
A prisão preventiva pode ser constituída de duas modalidades: a
primeira, denominada por prisão preventiva sem culpa formada que
antecede a pronúncia do arguido; a segunda, denominada por prisão
preventiva com culpa formada que se segue à pronúncia do arguido. Para o
presente estudo aborda sobre a prisão preventiva sem culpa formada.

3. DAS RAZÕES PARA A PRISÃO PREVENTIVA

A prisão preventiva carece de prova material indiciária ao crime


cometido, requerendo, para tal, a existência de indícios suficientes de
autoria – como os latinos diziam: “fumus commissi delicti”, que é a violação
de um bem jurídico tutelado pelo direito penal. E dai nascem os motivos, ou
seja, as razões e fundamentos para decretação da prisão preventiva –
periculum lebertatis – que se centra essencialmente na:

• Existência de fortes indícios da prática do crime doloso punível com


pena de prisão superior a 2 anos ou;
• Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça
irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em
curso processo de extradição ou de expulsão.
Essa possibilidade é disposta no art. 243º do CPP.

4. A LIMITAÇÃO DE PODERES DE DETENÇÃO À LUZ DO ACÓRDÃO


4/CC/2013 DE 17 DE SETEMBRO18

O Acórdão n. 4/CC/2013, do Conselho Constitucional restringe aos


juízes o poder de ordenar a prisão preventiva para casos fora de flagrante
delito que antes eram exercidos por juízes em concorrência com outras
autoridades, tais como procuradores, oficiais da polícia de investigação
criminal, Administradores Distritais, Chefes de Postos Administrativos e
outros.
Refere-se no Acórdão citado que a primeira tentativa de limitação dos
poderes dessas autoridades foi feita através da Lei n. 2/93, de 24 de junho,
a qual determinava que todas as actividades que ocorrem durante a fase de
instrução criminal serão exercidas por juízes de instrução criminal, ou seja,
são da competência exclusiva dos tribunais (artigo 211, nº 1 e 2 da

17
Determina o nº 2 do art. 58º da Constituição da República de Moçambique que o Estado é responsável
pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do
direito de regresso nos termos da lei.
18
Acórdão n. 4/CC/2013, de 17 de setembro, publicado no BR, I Série n. 82, de 11 de outubro.

271
Constituição da República). Porém, está manteve a disposição que concedia
poderes para ordenar a prisão preventiva a outras autoridades para além
dos tribunais.
Portanto, a decisão do Conselho Constitucional concretizou e fincou a
ideia do legislador ordinário consagrado na Lei citada ao determinar que a
detenção e prisão preventiva fora do flagrante delito só podem ser
executadas mediante mandado assinado por um juiz.
E mais, no referido Acórdão, o Conselho Constitucional cuidou de
declarar inconstitucional a norma do Código de Processo Penal, que atribuía
poderes as outras autoridades para ordenar a prisão preventiva fora do
flagrante delito com fundamento em violação do princípio de separação de
poderes consagrado no artigo 134 da Lei Fundamental, um princípio
estruturante num Estado de Direito Democrático (artigo 3 da Constituição).
É crucial ter em conta que fora ao Ministério Público, todas as outras
autoridades elencadas na norma fulminada por inconstitucionalidade
pertenciam ao foro administrativo, o que colidiam frontalmente com o
judiciário e, por maioria de razão, com o princípio de separação de poderes.
Em relação ao Ministério Público, a Constituição configura este órgão
como dos pilares da administração da justiça, atribuindo-lhe o poder de
representar o Estado junto dos tribunais e de defender os interesses que a
lei determinar (artigo 235 da Constituição).
No entanto, considerou o Conselho Constitucional no seu Acórdão,
que não se pode deduzir da disposição constitucional citada a permissão do
exercício de competência própria dos tribunais pelo Ministério, no caso, a de
ordenar a prisão preventiva fora do flagrante delito.
O poder de ordenar a prisão preventiva fora dos casos de flagrante
delito é uma faculdade própria da função judicial, reservada aos tribunais
pela Constituição. De modo que a lei ordinária ao querer atribuir ao
Ministério Público competência para ordenar a prisão preventiva, fora dos
casos de flagrante delito, estaria a violar a Constituição, o que a princípio não
pode ser permitido.

5. QUE IMPACTO TEVE O ACÓRDÃO N. 4/CC/2013?


5.1 Ao nível da polícia

A Constituição estabelece que (...), “a função da polícia é garantir a lei


e a ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade
pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância
estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos19”.

19
Artigo 253, n. 1 da CRM.

272
Era inevitável que a polícia acatasse a decisão do Conselho
Constitucional, uma vez que, as decisões daquele órgão são de cumprimento
obrigatório para todas as instituições públicas e privadas.
Contudo, persistem alguns agentes da polícia que resistem ou tentam
ignorar a nova estrutura legal, fazendo detenções e prisões ilegais de casos
fora de flagrante delito, incluindo detenções sem mandado, alegadamente
para proteger o cidadão perante a falta de celeridade processual, ou mesmo
ausência de juízes.

5.2 Ao nível do Ministério Público

Apesar da decisão do Conselho Constitucional limitar ou pôr fim as


violações dos direitos fundamentais do cidadão, a percepção inicial do
Ministério Público era de impunidade total aos prevaricadores da lei, ou
seja, não havendo um número suficiente de juízes estava posto em crise o
sistema de justiça criminal em Moçambique.
Mas muito cedo a realidade veio demonstrar que a tal percepção era
infundada porque o próprio sistema se encarregou de se alinhar com a
decisão do Constitucional, quer admitindo novos Magistrados do Ministério
e do Judicial, quer redistribuindo e redimensionando-os territorialmente.

5.3 Ao nível dos Juízes

A decisão do Conselho Constitucional colocava duas questões para o


judiciário, principalmente para os distritos com um e único juiz ou naqueles
em que se faz por acumulação com outro distrito:
A primeira, o juiz da instrução também pode desempenhar a função
de juiz da causa, pondo em causa o princípio da imparcialidade do juiz. A
segunda, a lei exigia que o juiz da instrução criminal fosse um juiz
especializado.
Como aconteceu com os Magistrados do Ministério Público, os Juízes
tiveram a mesma percepção de entendimento inicial. Mas
independentemente dos desafios colocados, a evidência indica que a maior
parte dos juízes recebeu com satisfação a decisão.

5.4 Ao nível da comunidade jurídica e da sociedade civil

A decisão foi recebida satisfatoriamente, porque a situação das


detenções e prisões preventivas há muito que era encarada como um
problema crónico de violação de direitos fundamentais dos cidadãos.

273
Actualmente há percepção generalizada de que os procedimentos e
condições relacionadas com as detenções e prisões preventivas melhoraram
e as violações dos direitos humanos diminuíram.

5.5 O que se espera na actuação da polícia

A Polícia num Estado de Direito Democrático é entendida como


autoridade legítima, por isso, requer que o cidadão acredite que ela actua na
protecção do interesse público. O interesse público serve como critério
fundamental para estabelecer a legitimação do poder. Esta função
legitimadora depende da confiança que o público tem do poder
constitucional e legalmente instituído, sob a forma de polícia.
Actualmente tem pretende-se abandonar a polícia que age no quadro
dum Estado Regime para passar a agir no quadro dum Estado de Direito
Democrático com respeito aos valores fundamentais traduzidos em bens
jurídicos, no quadro das prerrogativas constitucionais e legais dos cidadãos.

– A Polícia no Estado Regime, age:

• Servindo e protegendo o governo e a elite afiliada em vez do


público em geral;
• Respondendo predominantemente ao regime no poder e
não ao povo;
• Controlando em vez de proteger as comunidades;
• Assegurando os interesses de um grupo dominante e,
• Ficando de fora, em vez de identificar-se e integrar-se com
as comunidades.

– A Polícia no Estado de Direito Democrático:

• A polícia é responsável e adere ao Estado de Direito e age de


forma processual justa e objectiva;
• Trata todas as pessoas de maneira justa e respeitosa, ou
seja, a conduta da polícia é objectiva, não favorece
indivíduos ou grupos;
• A polícia é sensível às necessidades do público, às vítimas
dos crimes e emprega práticas centradas na comunidade
guiadas pelo conceito de Estado de Direito;
• A polícia deve ter empatia e confiança com a comunidade,
demonstrando que tem capacidade de comunicação

274
particular e profissional com as vítimas e os perpetradores
dos crimes.

CONCLUSÃO

Foi propósito deste artigo reflectir a questão da Prisão Preventiva


no Direito Moçambicano e a Limitação dos Poderes de Detenção, alinhada
a concepção do Estado de Direito Democrático que consagra e tutela bens
jurídicos penais, valorados pelo Direito Penal. A liberdade das pessoas
constitui um dos valores essenciais registada no ordenamento
constitucional como bem fundamental e que, em princípio, apenas o violador
das regras de tutela dos bens jurídicos pode arriscar-se a ver limitada a sua
liberdade.
Mas essa limitação não será de forma arbitrária e é nessa linha de
pensamento que surge o Acórdão do Conselho Constitucional, Acórdão nº
4/CC/2013, de 17 de setembro, a limitar os poderes de quem tinha para deter
e ou ordenar a prisão preventiva, passando esse poder a ser exercido por um
juiz de instrução criminal. Ditou assim o rompimento da legislação penal
antiga para ver revista e adequar os novos valores, através da revisão de
2014 e, mais recentemente, com a revisão de 2019, esta que estabelece
regras concordantes com o estabelecido na Constituição da República.
Na verdade, uma vez que o nosso Estado tende a afirmar-se e
consolidar-se como de direito, ficou bem aplaudida a jurisprudência do
Conselho Constitucional entre os órgãos da administração da justiça e
sociedade civil. Assim, na avaliação do Estado Moçambicano, com esse modo
de tratar os assuntos de natureza criminal, está tendo cotação positiva por
se elevar na linha de Estado que não agem de forma arbitrária.

REFERÊNCIAS

Legislação
REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República Popular de
Moçambique (1975), in Boletim da República, I Série nº 1 de 25 de junho.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique, (1990)
in Boletim da República, I Série nº 20 de 24 de dezembro.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República de Moçambique (2004),
in Boletim da República, I Série nº 20 de 24 de dezembro.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n. 1/2018, de 12 de junho, in Boletim da
República, I Série, nº 115, 2º Suplemento, de 12 de junho – lei de revisão da
Constituição da República, 2004.

275
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n. 2/93, de 24 de junho, in Boletim da República,
I Série, nº - institucionaliza os juízes da instrução criminal.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n.º 34/2014, de 31 de dezembro. In Boletim da
República, I Série, nº 105, de 31 de dezembro - Lei de revisão do Código Penal.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n.º 24/2019, de 26 de dezembro. In Boletim da
República, I Série, nº 249, de 26 de dezembro - Lei de revisão do Código Penal.
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n.º 25/2019, de 26 de dezembro. In Boletim da
República, I Série, nº 249, de 26 de dezembro - Lei de revisão do Código de Processo
Penal.

Jurisprudência
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE - Conselho Constitucional - Acórdão nº 4/CC/2013, de
17 de setembro, in Boletim da República, I Série, nº 82, de 11 de outubro.

Doutrina
FERRO, Mónica. A Ética parlamentar – Contributo para um debate sobre um
melhor Estado. In Eduardo Pereira Correia, (Coord.) liberdades e Segurança, Lisboa,
ISCPSI-ICPOL, 2015.
BRANDÃO, Cláudio. Tipicidade Penal. Dos elementos da Dogmática ao Giro
Conceitual do Método Entimemático. Edições Almedina, S.A. Coimbra, 2012.
MANUEL, Henriques – A investigação Criminal no Estado de Direito
Democrático: autonomia e dependência da Polícia de Investigação Criminal em
Moçambique. In Dissertação Final de Mestrado Integrado em Ciências Policiais,
XXVII Curso de Formação de Oficiais de Polícia, Portugal, 2014.
SILVA, Ivan Luiz Da. O bem jurídico-penal como limite material à intervenção
criminal. Cópias de apoio para Estudo, S/D.
SUXBERGER, António Henrique Graciano. A intervenção penal como reflexo do
modelo de Estado: a busca por uma intervenção penal legitima no Estado
Democrático de Direito. Brasília, 2005, intervenção penal legitima no Estado
Democrático de Direito. Brasília, 2005.

276
RESPOSTA PENAL À PEDOFILIA SOB A ÓPTICA
DAS CIÊNCIAS AUXILIARES DO DIREITO
PENAL: PSICOLOGIA, SOCIOLOGIA E
PSIQUIATRIA

FERNANDO ALEGRE ALCINES LEONARDO*

INTRODUÇÃO

A Pedofilia é um tema complexo, epistemologicamente transversal e


multidisciplinar, a sua abordagem aconselha-se uma clarificação conceitual.
Pois, só assim será possível dar resposta penal tendo em conta as várias
áreas do saber científico.
Desta feita, merece apontar que a pedofilia não é um fenómeno novo
ou recente pois, ja vem desde a antiguidade no caso em concreto na Grécia
antiga, que a prática sexual envolvendo crianças era socialmente aceite
tendo em conta que era uma prática reiterada em que a própria sociedade
estimulava o envolvimento sexual entre homens adultos e adolescentes. Por
seu antigo, ele passou várias transformações no modo de encarar o mesmo.
No início da apresentação é importante conceituar “pedofilia”
segundo as várias formas de saber. Assim, segundo a psiquiatria, a pedofilia
é um distúrbio sexual incluído no grupo das parafilias. No campo da
psicologia o termo pedofilia é usada para denominar uma parafilia
caracterizada por predilecção de adultos pela prática de acto sexual com

*
Mestre em Direito Civil pela Universidade Católica de Moçambique-Pemba. Docente Universitário da
Universidade Católica de Moçambique na unidade Básica de Pemba (Faculdade de Gestão de Turismo e
Informática), leciona as Cadeiras de Direito das Obrigações I, II e Teoria Geral do Direito Civil I, e II ao
nível das licenciaturas e Direito das Obrigações III no curso de Mestrado em direito Civil. Autor do artigo
da Citação e Notificações electrónicas como resposta ao princípio da celeridade processual no
ordenamento jurídico moçambicano.

277
crianças. Essa parafilia é também chamada pedossexualidade. No campo
jurídico, a pedofilia tem sido utilizada para indicar o abuso sexual cometido
contra criança.
Considerando o tema ser multidisciplinar e cada tem sua percepção,
é imperioso delimitar a resposta penal sob olhar das ciências auxiliares: da
sociologia, Psicologia e Psiquiatria.
Na verdade, pelo facto não haver padronização do limite que
diferencia entre o normal e o patológico e a dificuldade de identificar se o
pedófilo é um agente inimputável ou não dificulta ao direito penal dar
resposta acerca do assunto.
Dai que é necessário que a sociologia, psicologia, Psiquiatria como
direito penal uniformizem o limite diferenciador do agente normal e
patológico como também a fixação de um critério conciso identificador se o
agente pedófilo é inimputável como também a tipificação da pedofilia como
um tipo legal de crime.
Para tanto adotou-se o método dedutivo com revisão da literatura
jurídica que dispõe sobre a matéria.

1. BREVE HISTÓRICO E CONCEITUAL SOBRE PEDOFILIA

E inquestionável que os desvios de âmbito sexual no caso concreto da


pedofilia são tão antigos quanto a humanidade. Pois, há pinturas pré-
históricas, relatos filosóficos e valores culturais que evidenciam a prática da
pedofilia1. Refere-se que ocorreram em sociedades incestuosas, entre 400 e
200 a.C. diversos infanticídios.2 Em Cartago, arqueólogos descobriram um
cemitério denominado Thophet, com mais de 20 mil urnas de crianças
enquanto nos costumes indianos e chineses a masturbação exercida na
criança funcionava para adormecê-la e apaziguar o ardor libidinal do
adulto3.
No que tange a pedofilia, a maioria da doutrina consultada, pouco
sabe com precisão quanto o seu surgimento, porém, aponta-se que ela não é
um fenómeno novo ou recente no caso da Grécia antiga, apesar de o impacto
de reprovação ou repulsa que tinha na antiguidade ser diferente o de

1
SILVEIRA, R. M. J. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São Paulo:
Quartier Latin, 2008, p. 347.
2
HISGAIL, Fani. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. 2010. Disponível em:
http://intermas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/view file/2462/1986. Acesso em: 09 nov.
2020.
3
Ibidem.

278
actualidade4. Pois, na antiguidade embora houvesse a utilização de crianças
como objectos sexuais, a conotação negativa do abuso sexual infantil não
esteve presente.
Sabe-se que foi na Grécia antiga que a prática sexual envolvendo
crianças era socialmente aceite tendo em conta que era uma prática
reiterada em que a própria sociedade estimulava o envolvimento sexual
entre homens adultos e adolescentes.
Na visão dos Gregos naquela época, o envolvimento entre um homem
adulto e adolescente constituía uma escola visto que a criança recebia
ensinamentos do homem mais velho a medida que o contrato se tornasse
mais íntimo. Não só, era uma forma de preparar moralmente e politicamente
na participação da vida política5.
Autores relatam que tanto Petrónio quanto Tibério, possuíam
registos de abuso sexual de crianças que eram vendidas com finalidade de
escravidão sexual, pois essas crianças eram vistas como possuidoras do mal,
por isso apanhavam e eram mantidas emocionalmente distantes dos pais,
abandonadas ou vendidas para escravidão no período do século IV ao XII6.
Com o fim da época de antiguidade clássica e o início da idade média,
regista-se uma nova onda de mudanças no âmbito social de encarar a
pedofilia. Pois, o envolvimento de pessoas mais velhas com crianças
sexualmente já era considerado um acto condenável, reprovável com
conotação socialmente. A primeira demonstração de desaprovação da
pedofilia acontece no século IV a XIII conforme cita Azambuja7:

Uma prática comum durante o período (do século IV ao século XIII)


era vender a criança para monastérios e conventos, em que jovens
garotos ficavam sujeitos abusos sexuais, como sodomia. As crianças
eram também frequentemente surradas com instrumentos, como
chicotes pás etc. As surras em geral provocavam alguma excitação
sexual na pessoa que administrativa. Há também evidências de
gangues de adolescentes que atacavam crianças mais novas para

4
CESTARI, Carolina. Pedofilia: Uma reconstrução sócio-histórica. Rev. A empreendedora nº 2. Curitiba,
2018. Disponível em https://aempreendedora.com.br/pedofilia-uma reconstrucao-socio-historica. Acesso
em 17 out. 2020
5
CESTARI, Carolina. Pedofilia: Uma reconstrução Sócio histórica. Rev. A empreendedora nº 2. Curitiba,
2018. Disponível em https://aempreendedora.com.br/pedofilia-uma reconstruãao-socio-historica. Acesso
em 17 out. 2020.
6
HISGAIL, Fani. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. Disponível em:
http://intermas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/view file/2462/1986. Acesso em: 09 nov.
2020.
7
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Mariante. Violência Sexual contra crianças e
adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 6-7.

279
cometerem estupro- prática que desapareceu no final do século XVIII,
que presenciou a primeira desaprovação da Pedofilia8.

Foi nessa fase ou idade com a apoio da doutrina cristã, que surgiram
leis proibindo o sexo com crianças e tipificando os crimes desta natureza,
visto que se percebeu que os indivíduos com tais atitudes, eram
considerados inaptos a formar juízos correctos em relação a vida sexual9.
Após essa fase de idade média, o tema da pedofilia não teve grande
avanços e impacto na sociedade no geral até o seculo XIX. Só a partir do
século XX com a expansão dos meios de comunicação que o tema reiniciou a
ganhar grande atenção e impacto. Pois, foi nessa fase que se nota por
algumas pesquisas nas várias áreas do saber como a jurídica, medicina,
psiquiatria, psicologia. Merece lembrar que, apesar da frequente exposição
do tema de pedofilia através dos meios de comunicação, carece de um
estudo interdisciplinar aprofundado para responder criminal o fenómeno.

2. PEDOFILIA

2.1 Etimologia

O termo pedofilia etimologicamente vem do grego que é composta


por dois termos: paidós = criança e philia = amor, apego, atracção sendo
definida então atracção sexual por crianças10. Este termo foi utilizado pela
primeira vez no século XIX, mais precisamente em 1986, pelo psiquiatra
vienense Richard Von Kraft-Ebing.
A palavra com o passar do tempo derivou para outros sentidos, e hoje
é empregada para designar características de comportamentos socialmente
inadequados ou mesmos abominável e que no popular designam a conduta
de qualquer pessoa, principalmente homens que praticam sexo ou qualquer
acto libidinoso com crianças de zero a dez anos.
A Pedofilia segundo a visão psiquiátrica, é um distúrbio sexual
incluindo no grupo das parafilias.
Parafilia é o termo utilizado para designar os transtornos da
sexualidade, anteriormente denominados perversões. Caracteriza-se por:

8
Ibidem.
9
CESTARI, Carolina. Pedofilia: Uma reconstrução Sócio histórica. Rev. A empreendedora, nº 2, Curitiba,
2018. Disponível em https://aempreendedora.com.br/pedofilia-uma reconstrucao-socio-historica. Acesso
em 17.10.2020.
10
TRINDADE, Jorge. BREIER, Ricardo. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. 3. Ed. rev. actual.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.16

280
(...) anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e
intensos que envolvem objectos, actividades ou situações incomuns e
causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no
funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes
da vida do individuo11.

A caracterização de uma parafilia, com base com a psiquiatria forense,


deve atender a determinados requisitos quanto ao seu portador tais como:

– Caracter opressor, com perda de liberdade de opções e


alternativas.
– Não conseguir deixar de actuar dessa maneira.
– Caracter rígido, o que implica a excitação sexual só se consegue
em determinadas situações e circunstâncias estabelecidas pelo
padrão da conduta parafílica.
– Caracter impulsivo, que se reflecte na necessidade imperiosa
de repetição da experiência.12

Esses requisitos quando presentes, indicam a existência de um quadro


compulsivo.
Portanto, ao ser diagnosticado o pedófilo será tratado mediante
psicoterapia individual ou em grupo a longo prazo e receberá medicamentos
que inibem o desejo sexual. Os resultados do tratamento variam sendo os
melhores provenientes da participação voluntária. Nesse caso, a pessoa
treinará suas habilidades sociais e também receberá tratamento para outros
problemas, como o abuso de drogas e depressão. Diante de toda repreensão
social, o tratamento é procurado apenas depois da apreensão criminal, o qual
isoladamente se mostra ineficaz. Isso significa que o simples aprisionamento,
ainda que por um longo prazo, não inibe os desejos e fantasias dos pedófilos.
Por outro lado, pedófilos presos que forem submetidos e monitorados ao
tratamento de longo prazo, mediante uso de medicamentos, podem deixar de
praticar a actividade pedofila e ser reinseridos a sociedade13.

11
BALLONGE, G. J Site Psiweb-Psiquiatria Geral GJ Ballone. Disponível em: http://virtuallpsy.locweb.
com .br/dsm-janela.php?cod=143. Acesso em: 10 out. 2020.
12
MEYER, J. Parafilias. In: KAPLAN, H.; SADOCK, B. Tratado de Psiquiatria. Porto Alegre: Artmed,
1999 apud SERAFIM, A. P. Pedofilia: da Fantasia ao comportamento sexual violento.in I Congresso
Brasileiro sobre Ofensas sexuais, São Paulo, 2007. Disponível em: http://www.visumconsultoria.com.br/
docs/antonio_de_padua_serafim.pdf. Acesso em 27 out. 2020.

281
A CID-10 define a pedofilia como “preferência sexual por crianças,
quer se trate de meninos, quer de meninas ou crianças de um ou outro sexo,
geralmente pré-púberes ou início da puberdade”.14O DSM-IV, define uma
pessoa pedofila caso ela cumpra três requisitos a saber:

Experiências pessoais recorrentes, fantasias sexuais e desvios de


comportamento envolvendo actividade sexual com uma criança pré-
púberes (geralmente com idade igual ou inferior a 13 ano) por um
período mínimo de seis meses; Fantasias e comportamentos sexuais
que causam dificuldade ou incapacidade de exercer as funções diárias
em áreas sociais, profissionais, dentre outras; O pedófilo ter, pelo
menos, 16 anos ou ser 5 anos mais velho que a vítima15

No campo da psicologia o termo pedofilia é usada para denominar


uma parafilia caracterizada por predilecção de adultos pela prática de acto
sexual com crianças. Essa parafilia é também chamada pedossexualidade, e
pelo Código Internacional de Doenças da Decima Conferência de Genebra é
um transtorno mental (CID-10, F65.4), o que não significa que o acusado seja
doente mental ou tenha o desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, uma vez que de acordo com esse entendimento16.
A pedofilia, portanto, não e apenas gostar de crianças ou ter afinidade
com elas. Mais do que isso, é ter interesse sexual por elas, sendo que a
exteriorização desse interesse é que configura a prática de crimes ligados a
pedofilia, independentemente do facto do individuo ser ou não portador da
parafilia.
O Pedófilo tem em seu discurso a tese de que a criança consente em
participar das relações sexuais que lhes são propostas, de modo que ambos
vivenciem o verdadeiro amor.17 A criança indefesa tenta reagir até onde
pode, mas uma vez submetida ao gozo do pedófilo, cumpre a fantasia
inconsciente da cena primária, isto é, da participação sexual da criança na
relação dos pais. Sendo assim, o acto pedófilo tenta anular as diferenças
geracionais

14
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças
e Problemas Relacionados à saúde. 10. Rev. 1993.
15
MAGALHÃES, M.L.C.et al. Pedofilia: Informações Médico-Legais para o profissional da Saúde.
Revista Feminina, V. 39, nº 2, fev. 2011. Disponível em: http://files.bvs.br/upload/0100-7254/2011/v39n2/
a2451.pdf. Acesso em: 03 dez. 2020.
16
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças
e Problemas Relacionados à saúde. 10. Rev. 1993. Disponível em: http://cid.datasus.gov.br/. Acesso em:
20 out. 2020.

282
No campo jurídico, a pedofilia tem sido utilizada para indicar o abuso
sexual cometido contra criança. Não há, entretanto, nenhum crime na
legislação moçambicana cujo nomem juris.
Importa salientar que a pedofilia decorre de um contexto histórico e
psíquico individual. Para tal, atribui-se a dificuldade em traçar um perfil
único do pedófilo, dai que é de sumo importância conhecer suas diversas
nuances a fim de buscar o mais adequado tratamento.

2.2 Característica de pedófilo

A pedofilia não apresenta uma característica unívoca que descreva


com segurança ou consiga abranger todos os traços identificatórios de um
individuo pedófilo, pode ser qualquer pessoa: homem, mulher, pai, parente,
vizinho, amigo, estar próximo ou distante da criança, ser conhecido ou
desconhecido, ser culto ou ignorante, pois raramente utiliza a violência
física, sua conduta usual consiste em aliciar, seduzir e ganhar a confiança da
criança com objectos que atraem18. Com isto quer dizer que a pedofilia não
possui classe social, raça ou género.
Por isso ao contrário do que muitos julgam a pedofilia se manifesta
muitas vezes em homens mais velhos de classe social elevada, aparência
cuidada ou livres de qualquer repreensão social. Pois, independentemente
do seu aspecto físico, os pedófilos são considerados camaleões, uma vez que
adaptam facilmente a diversas circunstâncias. Ao tentar conquistar a
confiança da sua vítima, transmite uma imagem de simpatia e amor,
misturando-se na sociedade sem deixar vestígios.
Há também aqueles que se aproveitam da sua função profissional
para aproximar-se dessas menores como é o caso de padres, professores e
técnicos. Nestes casos algumas vezes o pedófilo utiliza nomes falsos para
dificultar a sua identificação.
O sujeito pedofílico tem preferências por crianças que são bem infantis,
isto é, totalmente inocentes. Geralmente a sua aproximação inicial faz muitas
vezes de forma alegre e participativa sempre disposto a realizar as vontades da
criança e utiliza mensagens com duplo sentido, sem que a vítima perceba, a fim
de cativá-la. Em seguida vai a fase gradual de isolamento das crianças com os
seus amigos e familiares e passa mais tempo a sós com o sujeito.
Importa referir que na actualidade existe uma forma comum de actuação
da pedofilia, como é o caso da internet, onde ocorre principalmente a

18
TRINDADE, Jorge. BREIER, Ricardo. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. 3. Ed. Ver. actual.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.45.

283
pornografia infantil. Em relação a esta nova actuação não vamos detalhar. Mas
entendemos que será pertinente quando estivermos a fazer a dissertação.

3. ABUSADOR SEXUAL VERSUS PEDÓFILO

E comum classificar-se erroneamente muitos casos de abuso sexual


de menores em especial pela mídia, como pedofilia. Como também, é
recorrente julgar-se que é pedófilo todo aquele que abusa sexualmente de
crianças, pois é imprescindível destacar que nem todo abusador sexual de
menores é um pedófilo. Nessa vertente, Trindade e Breier afirma que “o
pedófilo é sempre um abusador sexual, mas um abusador sexual pode não
ser pedófilo, pois, estabelecer esta diferenciação é muito importante, no
entanto, sempre que um adulto utiliza um menor para satisfazer seus
desejos sexuais preferencialmente deve ser considerado abusador sexual e
não pedófilo, tendo em vista que o abusador sexual infantil faz vítima
crianças de qualquer idade, enquanto o pedófilo abusa de crianças em idade
pre-puberal19.
A pedofilia é uma desordem psicológica que consiste nítida
preferência sexual por pré-púberes (menores de 12 anos), não requer que a
pessoa se envolva em acto sexual de facto, pois, o pedófilo pode manter suas
fantasias em segredo, sem nunca as dividir com ninguém, sendo que manter-
se perto de crianças a qualquer custo e sua marca registada.20
O abusador de crianças pode ter várias motivações para seus crimes,
diferentemente do pedófilo, seus motivos nem sempre são de origem sexual
ou tem pouco a ver com desejo sexual, eis que o abusador não tem genuína
preferência sexual por crianças e em geral foi vítima de outros tipos de
abuso em sua vida, sendo este comportamento a continuação do processo
pelo qual foi tratado, que causou nele baixa autoestima e baixos padrões
morais.21

4. PEDOFILIA NO ÂMBITO JURÍDICO MOÇAMBICANO

Antes de falarmos das considerações atinente a pedofilia e a


legislação relativa as crianças ou menores no país, é importante salientar
dois pontos a saber. Um tem a ver com a designação dos conceitos de criança
e menor. Sobre este ponto, a legislação nacional não estabelece clara

19
TRINDADE, Jorge. BREIER, Ricardo. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. 3. Ed. ver. actual.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, p. 45.
20
CASOY, Ilana. Serial Killers: Louco ou cruel? Rio de Janeiro Ed. Darkside Books, 2014
21
Idem.

284
distinção. Ela só define a faixa etária sobre quem deve ser considerado
criança ou menor. O outro ponto tem a ver sobre o individuo que deve ser
considerado de criança ou menor em Moçambique22.
De acordo o no. 1 do art. 3 da Lei 7/2008, “considera criança toda a
pessoa menor de dezoito anos de idade”. Outrossim, o nº 2 do artigo 3 da
mesma lei estabelece que “nos casos expressamente previstos, a presente
Lei aplica-se também aos menores com mais de dezoito e menos de vinte e
um anos de idade.
Em relação ao conceito da criança aqui descrita, merece salientar que
a lei acima decidiu acolher a regra estabelecida no Direito Internacional, que
considera criança, todo o menor de 18 anos e estendeu-se aos maiores de 18
e menores de 21 anos, sempre que tal justifique.
Desta feita, aponta-se que foi a partir da década de 90 que
Moçambique efectuou grandes mudanças acerca dos direitos das crianças e
adolescentes, protegendo as especialmente, dos abusos sexuais.23 A título de
exemplo Moçambique fez em 1979, pela Resolução no. 23/79 de 28 de
dezembro, a Declaração dos Direitos da Criança Moçambicana, uma resposta
do governo e das Assembleias Legislativas ao facto de ano de 1979 ter sido
declarado pelas Nações Unidas o ano Internacional da Criança24.
Em 1990 através da Constituição da República de Moçambique do
mesmo ano e que foi a segunda após Moçambique independente,
representou uma viragem no tratamento das questões relativas aos
menores em Moçambique ao estabelecer que a família, a sociedade e o
Estado são responsáveis pela educação, pelo desenvolvimento harmonioso
e pela protecção da criança: e que a criança não pode ser discriminada,
designadamente, em razão do seu nascimento, nem sujeição a maus-tratos25.
Merece ressaltar a primeira constituição não fazia alusão nenhum dos
artigos acerca dos direitos da criança.
Aliado a isso, com advento da Constituição da República de
Moçambique de 2004 consolidam-se os aspectos atinentes a proteção dos
direitos das crianças. Esta constatação confirma-se no seu artigo 47 onde
estatui: “As crianças têm direito a protecção e aos cuidados necessários ao
seu bem-estar. Todos os actos relativos as crianças, quer praticados por

22
FRANCISCO, Tomas Xavier José. História dos Direitos da Criança no mundo e em Moçambique: um
estudo sobre a sua evolução. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 50, nº 1, p. 64-84, jan.-jun.
2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2178-4582.2016v50n1p64. Acesso em: 03 dez. 2020.
23
Ibidem.

285
entidades públicas, quer por instituições privadas, tem principalmente em
conta o interesse superior da criança”.
Cumpre notar que o país alcança a independência em 1975, só no ano
de 2008 é que foram aprovadas uma série de leis, com finalidade a promoção
e protecção dos direitos da criança com conteúdo mais abrangentes.
Destacam-se as Leis:

– Nº 7/2008, de 9 de julho, que pode ser considerada como


Estatuto da criança e menores de Moçambique ou Lei das
Bases de Proteção de Criança e em outras ocasiões como Lei
de promoção e Proteção do Direito da Criança.
– Nº 8/2008, de 15 de julho, designadamente Lei da
Organização Jurisdicional de Menores de 15 de julho.
– Nº 4/2007 de 7 de setembro.
– Nº 6/99, de 2 de fevereiro.

Mostram claramente a preocupação no sentido de proteção dos


direitos das crianças e adolescentes especialmente dos abusos sexuais.26
Não facto desprezível os feriados nacionais decretados nos dias 1º e 16 de
junho, não obstante este último coincidir com o dia da Moeda Nacional.
Em correlação aos instrumentos internacionais que asseguram a
protecção dos direitos da criança, Moçambique ractificou uma boa parte
desses instrumentos, destacando-se a Convenção das Nações Unidas Sobre
os Direitos da Criança, ractificada pela Resolução no. 19/90, de 23 de
outubro; a Carta Africana dos Direitos e Bem-estar da Criança adoptada
pelos Estados Africanos membros da OUA (Organização da Unidade
Africana, agora UA (União Africana, ractificada através da Resolução nº
43/2002 de 28 de maio27.
Estes instrumentos trouxeram para o contexto jurídico moçambicano
a protecção integral ao menor. assegurando-lhes condições dignas de
desenvolvimento sob todos os seus aspectos. A criança passou a ser
reconhecida como um sujeito de direitos, uma vez que vão se tratar do tema
pedofilia, estes instrumentos propagam a obrigatoriedade aos estados em
proteger a criança de todas as formas de violência, sendo ela, física ou

26
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Constituição da República de Moçambique. 1990.
27
FRANCISCO, Tomas Xavier José. História dos Direitos da Criança no mundo e em Moçambique: um
estudo sobre a sua evolução. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 50, nº 1, p. 64-84, jan.-jun.
2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.5007/2178-4582.2016v50n1p64. Acesso em: 03 dez 2020.

286
mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratados ou exploração,
inclusive abuso sexual.28
Importa sublinhar que apesar de todo amparo a criança e ao
adolescente nos instrumentos que acima fizemos menção, nos mostra que
apenas combatem a pornografia infantil, entretanto, o combate a violência
sexual decorrentes de outros actos fica ao Código penal (CP) a
responsabilidade de punir, surgindo assim a primeira falha, uma vez que o
Código Penal mesmo abarcando muitas actuações pedofilas, não possui em
seu conteúdo a realidade do bem jurídico tutelado quando se trata de uma
criança ou adolescente, isto e, não possui o tipo penal pedofilia.
Desta feita o seu enquadramento no Código Penal atento as suas
alterações são feitas com base na analogia dos crimes previsto no capítulo
VII do C. P. e da Lei nº 24/2019 de 24 de dezembro que são os crimes contra
a liberdade sexual nos casos específicos os crimes de estupro e atentado
violento ao pudor previsto nos artigos 219 e 221. O que reafirma mais uma
vez a não existência de previsão especifica legal no ordenamento jurídico
moçambicano a pedofilia.

5. QUE RESPOSTA PENAL DA PEDOFILIA PODE SE DAR SOB A ÓPTICA


DAS CIÊNCIAS AUXILIARES DO DIREITO PENAL?

Nas sessões anteriores, frisamos por mais que os meios de comunicação


repitam a veicular a expressão crime de pedofilia, por força do princípio da
reserva legal, pedofilia por si só hodiernamente, não constitui um crime, uma
vez que são psicopatologias ou é uma parafilia, podendo ser crime ou não,
dependendo do comportamento do portador da perversão. No nosso
ordenamento jurídico não contempla a figura do pedófilo, porquanto esta figura
é tratada pela psiquiatria29.
Isso significa que apenas será enquadrado criminalmente aquele que
exteriorizar os seus desejos sexuais pedofílicos mediante abuso sexual ou
estupro.30 Em contrapartida, se o pedófilo não manifestar nenhum sinal da sua
patologia não será punido. Sendo assim, o tratamento jurídico-penal desses

28
RODRIGUES, Willian Thiago de Souza. A Pedofilia como tipo específico na legislação penal brasileira.
2008. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n-link=revista-artigos-leituras e
artigos-id=5071. Acesso em: 10 out. 2020.
29
RODRIGUES, Willian Thiago de Souza. A Pedofilia como tipo específico na legislação penal brasileira.
2008. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n-link=revista-artigos-leituras e
artigos-id=5071. Acesso em: 10.10.2020

287
casos será determinada mediante um laudo psiquiátrico, o qual confirmará se o
pedófilo será destinado ao tratamento psiquiátrico por tempo indeterminado.
E nesse âmbito que surgem controvérsias quanto a imputabilidade do
pedófilo, uma vez que a linha que separa o normal do patológico grande deve
ser analisada com cautela.
Como base o exposto acima, fica claro que o ordenamento jurídico
moçambicano como Português e Brasileiro adoptam o critério biopsicológico na
definição de inimputabilidade e requer um olhar interdisciplinar, visto que
transcende as categorias fechadas como as tradicionalmente concebidas no
direito31.

5.1 Inimputabilidade do pedófilo

Antes de falarmos de inimputabilidade, merece ter em conta o


conceito de imputabilidade. A respeito disso, a imputabilidade é capacidade
de entender o carácter ilícito do facto e de determinar-se de acordo com esse
entendimento. Portanto. Ela apresenta um aspecto intelectivo, consistente
na capacidade de entendimento e outro volitivo, que é a faculdade de
controlar e comandar a própria vontade32.
A inimputabilidade é o conjunto de qualidades pessoais que
possibilitam a censura pessoal. Ou seja um sujeito inimputável é aquele que
não possui condições suficientes de entender o carácter ilícito do facto.
Embora sejam isentos de responsabilidade criminal, cumprirão medida de
segurança em estabelecimento psiquiátrico destinado a cura, tratamento ou
segurança de que tiver praticado um facto ilícito típico e vier a ser declarado
inimputável em razão de doença mental, vide art. 7733.
Nesse grupo insere-se os menores de 16 anos, os que sofrem de
doença mental sem intervalos lúcidos; os que sofrem de doença mental que
embora tenha intervalos lúcidos, praticarem o facto nesse sentido art. 46 e
4734
Merece chamar atenção que somente a execução do acto relacionado
a doença mental não é suficiente para enquadrar-se na imputabilidade, pois,
é necessário um laudo psiquiátrico que comprove a anomalia mental e sua
decorrente incapacidade de compreender o acto criminoso. Não obstante, a

31
RODRIGUES, Willian Thiago de Souza. A Pedofilia como tipo específico na legislação penal brasileira.
2008. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n-link=revista-artigos-leituras e
artigos-id=5071. Acesso em: 10 out. 2020.
32
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 11. Ed. rev. e actual. São Paulo: Saraiva, 2007.
33
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei nº 35/2014, de 31 de dezembro, Código Penal de Moçambique,
I Série, n˚ 239, Maputo, 2015. Atento as alterações da Lei 24-2019 de 24 de dezembro.
34
CP.

288
pedofilia é uma parafilia reconhecida pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) como doença responsável por desenvolver desejos sexuais por
menores pré-púberes. E que não tem previsão legal no nosso ordenamento
jurídico.

5.1.2. Face o seu aspecto patológico, questiona-se se o pedófilo possui


consciência do acto ilícito praticado?

A essa questão existem duas linhas de resposta a saber: por um lado,


há quem afirma o pedófilo não possui consciência do acto ilícito e outros
consideram que não possui consciência, e deve ser imputável
criminalmente, visto que a pedofilia não afecta a capacidade de
entendimento e vontade do agente, são consideradas doenças de vontade e
personalidade antissociais. Pelo que não exclui a culpabilidade e este deve
responder pelos seus actos e sofrer o juízo punitivo sem usufruir de
benefícios35.
Ademais, ressalta-se que somente a punição carcerária não irá
conferir nenhum resultado eficaz ao pedófilo, mas ela será menos onerosa
que tratamento psiquiátrico por tempo indeterminado.
Dai aconselha se que caso haja dúvida quanto a capacidade de
imputação jurídica de um pedófilo, deve-se analisar de forma cautelosa o
caso concreto, apesar de ser difícil diferenciar os limites entre o normal e o
patológico e identificar se o pedófilo e um agente inimputável ou não. Tal
precisão ainda não foi alcançada pela psiquiatria moderna, restando apenas
o tratamento clínico como medida mais segura e eficaz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo analisou a resposta penal sob a óptica das


ciências auxiliares do direito Penal.
Constatou-se que no ordenamento jurídico moçambicano há muitos
instrumentos legais que amparam as crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual, mas o combate a violência sexual decorrentes de outros actos
e a responsabilidade de punir como e ocaso da pedofilia fica ao Código penal
(CP), surgindo assim a primeira omissão legislativa.
Porque o Código Penal apesar de abarcar muitas actuações
pedófilas, não possui em seu conteúdo específico da realidade do bem

289
jurídico tutelado que, além de causarem discussões sobre a forma de
interpretá-las, poderão acarretar prejuízos aos acusados.
As omissões legislativas são: a) ausência de normas especificas sobre
o bem jurídico tutelado (Pedofilia) dentro do Código Penal; b) a dificuldade
em traçar um perfil único e seguro do pedófilo, dai que é de suma
importância conhecer suas diversas nuances a fim de buscar o mais
adequado tratamento. c) dificuldade de identificar se o pedófilo e um agente
inimputável ou não).
Sobre o assunto, conclui-se que: a) seria legitimo e oportuno o actual
Código Penal atento as suas alterações havidas em 2019, no seu capítulo VII
tipificar pedofilia como um tipo legal de crime no nosso ordenamento
jurídico, para dar resposta ao fenómeno; b) O direito Penal, Sociologia,
Psicologia e Psiquiatria padronizarem os limites normais e patológico do
agente de maneira que se possa seja responsabilizado ou não
criminalmente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Mariante. Violência Sexual contra
crianças e adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.
BALLONGE, G. J. Site Psiweb-Psiquiatria Geral G. J. Ballonge. Disponível em:
http://virtuallpsy.locweb.com.br/dsm-janela.php?cod=143. Acesso em: 10 out. 2020.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 11. Ed. rev. e actual. São Paulo: Saraiva,
2007.
CASOY, Ilana. Serial Killers: Louco ou cruel? Rio de Janeiro Ed. Darkside Books, 2014.
CESTARI, Carolina. Pedofilia: Uma reconstrução Sócio histórica. Rev. A empreendedora
n. 2. Curitiba 2018.
HISGAIL, Fani. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. S/l. 20210.
MAGALHÃES, M.L.C.et al. Pedofilia: Informações Médico-Legais para o profissional da
Saúde. Revista Feminina, V. 39, nº 2, fev. 2011.
MEYER, J. Parafilias. In: KAPLAN, H.; SADOCK, B. Tratado de Psiquiatria. Porto Alegre:
Artmed, 1999 apud SERAFIM, A. P. Pedofilia: da Fantasia ao comportamento sexual
violento in I Congresso Brasileiro sobre Ofensas sexuais, São Paulo, 2007.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10 Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados à saúde. 10. Rev. 1993.
SILVEIRA, R. M. J. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual.
São Paulo: Quartier Latin, 2008.
TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: Aspectos Psicológicos e penais. 3. Ed. Ver.
actual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei n˚ 35/2014, de 31 de dezembro, Código Penal de
Moçambique, I Série, n˚ 239, Maputo, 2015.

290
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Lei no. 24-2019 de 24 de dezembro
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Constituição da República, (2018) in Boletim da
República, de 12 de junho.
RODRIGUES, Willian Thiago de Souza. A Pedofilia como tipo específico na legislação
penal brasileira. 2008.

291
PRISÃO PREVENTIVA: SUA APLICABILIDADE
NO ORDENAMENTO JURÍDICO MOÇAMBICANO

KATIJA AMIRA RAMOS*


VICTOR GOMES DA FONSECA**

INTRODUÇÃO

O presente artigo surge no âmbito do módulo em Direito Penal


ministrado no curso de Doutoramento em Direito Público pela Universidade
Católica de Moçambique.
Na presente nota introdutória destacamos algumas disposições
internacionais, cuja hermenêutica jurídica apontada no artigo 9˚ do Pacto
Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos e, o artigo 6˚ da Carta
Africana dos Direitos do Homem e dos Povos – proíbem a prisão e detenção
arbitrária declarando que ninguém deve ser privado da liberdade, a não ser
por motivo e em conformidade com o plasmado na lei.
Esta assertiva legal, coaduna com o plasmado no artigo 64˚ da
Constituição moçambicana que, efectivamente, será o alicerce para o
desenvolvimento do presente trabalho.
Por certo, Moçambique é parte destes tratados internacionais e, para
o efeito, tal como os demais Estados partes, relativamente aos efeitos
jurídicos, estes, geram direitos e obrigações para as partes contratantes.

*
Licenciada em Direito pelo Instituto Superior de Comunicação e Imagem de Moçambique, Mestre em
Direito do Trabalho pela Universidade Técnica de Moçambique e Doutoranda em Direito Público pela
Universidade Católica de Moçambique.
**
Licenciado em Direito pelo Instituto Superior de Comunicação e Imagem de Moçambique, Mestre em
Direito do Trabalho pela Universidade Técnica de Moçambique e Doutorando em Direito Público pela
Universidade Católica de Moçambique. vgdafonseca@gmail.com

293
Haja vista que Moçambique têm a obrigação de assegurar que não
ocorram prisões e detenções arbitrárias na sua esfera territorial, ou seja, sob
a sua jurisdição.
Contrariamente, deverá haver responsabilização e compensação às
vítimas. Entretanto, este não é o cerne do nosso trabalho, mas sim, a análise
da aplicabilidade da prisão preventiva no direito moçambicano.
Para tal, por via do destacado método indutivo, sufragamo-nos do
relatório produzido pela Amnistia Internacional, associada à liga
moçambicana dos direitos humanos, bem como a Community Legal Center -
Organizações não governamentais que no ano de 2011 a 2012, realizaram
uma pesquisa nas instituições do sistema de justiça criminal no país.
Através dos casos concretos apresentados por estas organizações,
face aos destaques legais, designadamente, a Constituição, o Código de
Processo Penal e o Acórdão do Conselho Constitucional, foi-nos possível
concluir que a prisão preventiva decorre da lei, a sua prossecução carece de
observância dos requisitos legais. Entretanto, o que peca são algumas
instituições do sistema de justiça criminal – estas que sob certas atribuições
e competências, erroneamente interpretadas, traduzem em abuso de poder,
acabando por ferir alguns direitos do autuado.

1. BREVES NOTAS SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL EM MOÇAMBIQUE

A presente nota de estudo objectiva apresentar o quadro de órgãos e


instituições que compõem o sistema de justiça criminal em Moçambique
desde os envolvidos na investigação, detenção, prisão, defesa e julgamento.
Para tal, importa referir que o sistema de justiça penal em
Moçambique obedece à um quadro institucional de repartição de
atribuições e competências legais que demarcam desde a prevenção do
crime, a repressão do agente do crime, à aplicação e execução de penas.
Inobstante, a repartição de atribuições e competências corresponder
ao poder executivo e poder judiciário tal como estabelece o artigo 134˚ da
Constituição da República de Moçambique (CRM), ainda assim, reserva-se a
decisão final aos tribunais tal como determina o art. 214˚ da mesma
disposição legal. Efectiva-se, translucidamente, que o grande objectivo deste
sistema seja o de assegurar que se faça justiça, o que de modo não distinto,
inclui assegurar que os que não tiverem cometido crimes não sejam
privados da sua liberdade.
Correspondem órgãos do sistema de justiça penal moçambicano os
seguintes:

294
i. O Ministério do Interior através da Polícia da República de
Moçambique (PRM), de acordo com a Lei n˚ 19/92, de 31 de
dezembro, a Polícia da República de Moçambique rege-se, entre
outros, pelo princípio do respeito pela Constituição, leis e demais
normas, do respeito pelas instituições democraticamente
estabelecidas, legalidade, imparcialidade, isenção, objectividade,
igualdade de tratamento e sobre tudo, o respeito pelos direitos
humanos.
ii. O Ministério Público1 - de acordo com o artigo 5˚ do Código de
Processo Penal e do artigo 1˚ do Decreto –Lei n˚ 35.007, de 13 de
outubro de 1945, o Ministério Público é o titular da acção penal,
incumbindo-lhe a atribuição de acusação criminal em nome do
Estado, no âmbito da instrução preparatória, assim como controlar
a legalidade das detenções e a observância dos respectivos prazos.
iii. Os Tribunais – têm a responsabilidade de determinar a culpa ou
inocência dos indivíduos acusados de crimes e presentes a tribunal
para julgamento. (Os tribunais são regulados pela Constituição e
pela Lei da Organização Judiciária – Lei n˚ 24/2007, de 20 de
agosto); O Juiz de instrução criminal - prende-se essencialmente
em realizar as funções judiciais que são necessárias na fase inicial
de um processo. Tais funções incluem determinar se a detenção está
em conformidade com a lei e decidir se deve continuar ou se deve
ser concedida a liberdade provisória (Lei n˚ 2/93, de 24 de junho de
1993).
iv. O Patrocínio Judiciário - O Estado garante o acesso dos cidadãos
aos tribunais e garante aos arguidos o direito de defesa e o direito à
assistência jurídica e patrocínio judiciário (artigo 62˚, n˚ 1 da
Constituição), com a faculdade de o arguido em processo-crime,
escolher livremente o seu defensor para o assistir em todos os actos
do processo e aos arguidos que não puderem dispor de advogado, é-
lhes assegurada a assistência jurídica e patrocínio judicial através
do Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ), através da
Lei n˚ 6/94, de 13 de Setembro. Os Advogados em Moçambique
pertencem à Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM),
instituição regulada pelo Estatuto da Ordem dos Advogados através
da Lei n˚ 28/2009, de 29 de setembro.

1
Sobre este tema, vide Cuna, Ribeiro. O Ministério Público de Moçambique. Editora Escolar, Maputo,
2013.

295
v. O Serviço Nacional da Prisões – tem sob a sua égide normativa as
várias prisões do país, quer as prisões para os reclusos que
aguardam julgamento, quer para os que já tenham sido condenados.
(Regulado pelo Decreto n˚ 7/2006, de 17 de maio), que criou o
Serviço Nacional das Prisões e está inserido no Ministério da Justiça.

É através deste sistema institucional de justiça penal que a prisão


preventiva moçambicana se circunscreve, despoletando inúmeros casos e
situações, algumas regidas pela lei e outras à margem da lei.
Entretanto, importa referir que, o instrumento normativo do direito
penal moçambicano é o Código Penal. Actualmente, está em vigor a Lei n˚
35/2014, de 31 de dezembro, sendo que, o novo Código Penal entrará em
vigor no presente mês.

1.1 Estrutura normativa do sistema de justiça criminal

O entendimento que a seguir se expõe resulta da Pesquisa realizada


conjuntamente com a Community legal Center da Universidade de Western
Cape e a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos e colaboração de vários
seguimentos da sociedade moçambicana (2014).
O Sistema penal moçambicano é constituído por três áreas
fundamentais, designadamente, o direito penal substantivo, o direito
processual penal ou direito penal adjectivo ou instrumental e o direito
penitenciário ou executivo que de seguida se apresenta.

Direito Penal Substantivo


O direito penal moçambicano observa o princípio da legalidade
(artigo 7˚ Código Penal) , que entre outros proíbe a retroactividade da lei
penal (Artigo 8˚ Código Penal), o princípio da subsidiariedade, segundo o
qual o direito penal só é chamado a intervir quando outros ramos do direito
não poderem resolver eficazmente a questão, o princípio da tolerância e
humanidade das penas, que impõe, fundamentalmente a proibição das
penas desumanas e de duração ilimitadas (artigo 59˚ Código Penal), o
princípio da pessoalidade (Artigo 29˚ Código Penal), segundo o qual, a
responsabilidade criminal recai, única e individualmente, no agente do
crime ou de contravenção.

O Direito Processual Penal


O Direito Processual Penal integra as normas jurídicas que regulam a
sequência de actos e formalidades de apreciação e verificação ou não de

296
certo crime, o agente que o cometeu e a pena que lhe cabe. Fixa as garantias
que defendam o indivíduo de árbitros e permitam uma verdadeira
realização da justiça criminal (CORREIA, Eduardo, 2001, p. 13).
Urge salientar, que o Código de Processo Penal vigente em
Moçambique foi aprovado em 1929, período colonial, tendo entrado em
vigor em Moçambique com algumas alterações em 1931, por via do Decreto
n˚ 19.271, de 24 de janeiro de 1931. O Decreto-Lei n˚ 35007, de 13 de
outubro de 1945, introduziu novas alterações ao Código de 1929,
consagrando portanto, o modelo processual acusatório, em que o Ministério
Público passou a dirigir a instrução penal em substituição do modelo
inquisitório até aí em vigor.
Na mesma senda que o novo Código Penal, encontra-se o novo Código
De Processo Penal cuja entrada em vigor vislumbra-se para o presente mês.
Entretanto, é no Código de Processo Penal que se encontram
estabelecidos os pressupostos legais para a decretação de uma detenção ou
aplicação da prisão preventiva.

Direito Penitenciário ou Direito Penal executivo


Segundo a pesquisa realizada pela Community Legal Center2 o direito
penitenciário, também designado de direito de execução das penas, é o
conjunto de normas jurídicas que disciplinam o tratamento a ser dado aos
reclusos no âmbito da execução das penas, ou seja, é o direito das condições
prisionais, quer para detidos, quer para condenados, no Ministério da justiça
e atribuindo à Inspecção Prisional a função de monitoria das prisões.
De acordo com esta fonte de pesquisa, na terminologia jurídico-
criminal do sistema da civil law, esta distingue a detenção e a prisão
preventiva, em que, no primeiro caso o recluso ainda não foi presente ao juiz,
e no segundo, a retenção do recluso em estabelecimento prisional após a
detenção, esta é homologada por juiz da instrução criminal.
É, pois, o direito penitenciário regido pela Lei n˚ 3/2013, de 16 de
janeiro, designadamente o SERNAP (Serviço Nacional Penitenciário). Tal
como a constituição prevê no seu n˚ 3 do artigo 67˚, também o direito
penitenciário, baseia-se na humanidade das penas, assenta na proibição de
penas de duração ilimitada ou indefinida, assim como a proibição da pena
de morte conforme já havíamos nos referido.

2
Pesquisa realizada conjuntamente com a Community Legal Center da universidade de Wester Cape e a
liga moçambicana dos Direitos Humanos (2014), resulta de uma parceria estratégica com a Open Society
initiative for Southern Africa (OSISA).

297
2. PRISÃO PREVENTIVA

O Código Penal de Moçambique tipifica os crimes que podem


conduzir o agente do crime à prisão. Por sua vez, o Código de Processo Penal
determina os procedimentos à nível nacional para as detenções e prisões e
ainda, estabelece quando uma detenção ou prisão pode ser considerada
arbitrária. Esta última, abordaremos no ponto número 2.1.
A prisão preventiva é uma medida cautelar do processo penal. É uma
providência que possui finalidade processual. Representa a privação
provisória da liberdade individual com vista a afastar um risco concreto e
efectivo de comprometimento da investigação ou do processo e, com isso,
garantir o regular desenvolvimento do processo penal e a eficaz aplicação
do poder de punir (FERNANDES, 2000; OLIVEIRA, 2017, citado por REIS
JÚNIOR, 2020).
O objectivo da prisão preventiva é evitar que o réu cometa novos
crimes ou ainda que em liberdade prejudique a colheita de provas ou fuja.
(MUBARAK, Rizuane, 2016, p. 67).
De acordo com o processualista Paulo Rangel citado por Mubarak, “se
o indiciado ou acusado em liberdade continuar a praticar ilícitos penais,
haverá perturbação da ordem pública, e a medida extrema é necessária se
estiverem presentes os demais requisitos legais”.
A finalidade processual da prisão preventiva é distinta da prisão para
execução de pena após sentença condenatória porquanto a prisão
preventiva não constitui uma pena, não tem significado ético-jurídico
(JUSTIÇA CRIMINAL EM MOÇAMBIQUE, 2016).
A prisão preventiva constituindo uma medida de coação, antecede a
ela a detenção e captura, que é um acto inicial de privar alguém da liberdade
por um curto período de tempo que eventualmente antecede o disposto no
artigo 286˚ do Código de Processo Penal.
Conforme o artigo 286˚ do dispositivo retro mencionado, constituem
pressupostos da detenção ou captura o flagrante delito – se ao crime
corresponder pena de prisão, pode ser efectuada por qualquer autoridade
ou qualquer pessoa do povo, (artigo 287˚ Código de Processo Penal). Fora
de flagrante delito – por crime doloso punível com pena de prisão superior
a um ano, existência de forte suspeita da prática do crime e,
inadmissibilidade da liberdade provisória ou insuficiência desta para a
realização dos seus fins, ou incumprimento das condições impostas em
liberdade provisória (artigo 291˚ do Código de Processo Penal).
Relativamente ao consagrado no artigo 291˚ do dispositivo em
comento, importa referir que, por Acórdão do Conselho Constitucional

298
4/2013, de 16 de setembro, o Conselho Constitucional decidiu declarar
inconstitucional a norma constante do parágrafo 2˚ do artigo 291˚ do Código
de Processo Penal, um dos elementos que consubstancia pressuposto para a
prisão preventiva no ordenamento jurídico moçambicano, cerne do
presente trabalho.
A aludida inconstitucionalidade, foi declarada com fundamento na
violação do princípio constitucional da proibição do excesso, inerente ao
Estado de Direito consagrado no artigo 3˚ da Constituição nas suas
dimensões da necessidade e adequação.
Tendo declarado também inconstitucional, as normas constantes do
corpo e parágrafo único, nos n 1˚, 2˚ e 3˚, do artigo 293˚ do Código de
Processo Penal, na parte em que essas disposições se referem a várias
autoridades administrativas como autoridades de polícia de investigação
criminal, atribuindo-lhes a competência para ordenar prisão preventiva fora
dos casos de flagrante delito, por violação da regra da exclusividade da
competência da autoridade judicial plasmadas nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 64º, nºs 2 e 4, e artigo 212º, nºs 1 e 2, ambos da
Constituição, e ainda, por transgressão do princípio da separação de poderes
consagrado no artigo 134º, todos da Constituição.
E, não só, declarou ainda inconstitucional, a norma constante do
corpo e número 1 do parágrafo único do artigo 293˚ do Código de Processo
Penal, na parte em que atribui ao Ministério Público a competência para
ordenar prisão preventiva nos casos fora de flagrante delito, bem como da
alínea f) do número 1 do artigo 43˚ da Lei n˚ 22/2007, de 01 de Agosto, Lei
Orgânica do Ministério Público, com a nova redacção introduzida pela Lei n˚
14/2012, de 08 de fevereiro por violação da regra da exclusividade de
competência da autoridade judicial, consagrados nos termos das
disposições conjugadas dos artigos 64º, nºs 2 e 4, e artigo 212º, nºs 1 e 2,
ambos da Constituição.
Declarou ainda, inconstitucional, a norma constante do parágrafo 3˚
do artigo 308˚ do Código de Processo Penal, por violação do comando
normativo que resulta da interpretação conjugada do disposto no nº 1 do
artigo 64º, in fine, e no nº 1 do artigo 61º, ambos da Constituição, nos termos
do qual a lei não deve fixar prazos de prisão preventiva de duração
indefinida.
Pelo aqui exposto resulta que algumas das situações lesantes e que de
forma abusiva, violavam os direitos do indivíduo, no que se refere a figura
jurídica em comento, o Conselho Constitucional por via do referido Acórdão,
tratou de repor a legalidade jurídica no país.

299
2.1 Prisões Arbitrárias

De acordo com o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre a


Detenção Arbitrária (WGAD) – O Organismo de peritos independentes
estabelecidos pela Comissão dos Direitos do Homem das Nações Unidas3,
identificou três categorias de detenção arbitrária nomeadamente, i) aquela
na qual é claramente impossível invocar qualquer base legal que justifique a
privação da liberdade; ii) aquela na qual a detenção e prisão resultam do
exercício de certos direitos e liberdades garantidos pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos e pelo Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos; e iii) aquela na qual ocorreram graves violações do direito
a um julgamento justo.
O que em outras palavras, significa que as detenções e prisões são
arbitrárias quando os seus motivos e causas, não corresponder ao
estabelecido no seu ordenamento jurídico.
O que em suma, traduz no seguinte, se, um sistema de justiça penal
funcionasse eficazmente, asseguraria que as detenções e prisões arbitrárias
não viessem a acontecer em grande escala tal como está acontecendo,
conforme analisaremos a seguir.

3. ARBITRARIEDADES NO SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL MOÇAMBICANO

A questão das prisões arbitrárias no país desemboca nos inúmeros


casos que a Organização Internacional despoletou durante a sua
investigação no país em 2012.
Para além de ser factual, e, constar de algumas pesquisas realizadas
em Moçambique, como é o caso da Amnistia Internacional e a Liga dos
Direitos Humanos, realizada em Novembro de 2012, a mesma revelou que
os órgãos de justiça do país permitiram a ocorrência de um padrão
persistente de violações dos direitos humanos, nomeadamente as detenções
e prisões arbitrárias, que poderiam ter sido impedidas sendo que, o relatório
da pesquisa apontou como preocupação o facto de, ter constatado que não
está a ser feito o suficiente para melhorar a situação.
Se não vejamos:

3.1 Prisão Preventiva Prolongada

De acordo com o artigo 311˚ do Código de Processo Penal, este


estabelece que os presos sem culpa formada serão apresentados ao juiz da
causa ou do lugar da prisão, dentro de quarenta e oito horas após a detenção.

3
Reportando ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

300
Sucede porém que, a Amnistia Internacional documentou casos em que a
polícia efectuou detenções e prisões nas quais os procedimentos
simplesmente não estavam em conformidade com a legislação nacional e/ou
internacional, porque não informou os que estavam a ser detidos ou presos
dos seus direitos. Neste contexto, observa-se que foi violado o direito do
arguido de consultar um advogado (n˚ 4 do artigo 63˚ da Constituição).
De acordo com o Comité dos Direitos Humanos das Nações unidas, a
mesma declarou que “a prisão preventiva deve constituir uma exceção e ser
o mais breve possível”. Este requisito decore da presunção de inocência e do
direito à liberdade pessoal na medida em que, o direito ao julgamento dentro
de um prazo razoável aplica-se a qualquer pessoa acusada de uma infracção,
quer ou não a pessoa esteja detida.
Do ponto de vista pragmático e lógico, quanto mais tempo o arguido
for mantido em prisão preventiva, mais provável será que o Estado esteja a
violar o seu direito.
Indubitavelmente, qualquer captura, detenção ou mesmo prisão,
independentemente do termo empregue, desde que se esteja a privar a
liberdade de uma pessoa, deve a mesma cingir-se no plasmado na lei.
Estabelece o artigo 251˚ do Código de Processo Penal que, é arguido
aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infracção,
cuja existência esteja suficientemente comprovada.
Explicitamente, uma pessoa não pode ser presa a não ser que exista
uma forte suspeita de que a pessoa cometeu um crime e existam provas
suficientes de que a pessoa cometeu tal crime.
No entanto, realidade diversa tem vindo a acontecer no país.
De acordo com o relatório produzido pela Amnistia Internacional em
2012, Advogados e membros da sociedade civil disseram àquela
organização não governamental que, na prática, a polícia prende
frequentemente indivíduos sem ter provas suficientes, e investiga mais
tarde.
Sobre este aspecto não menos importante mas deveras pertinente,
indaga-se o papel do Ministério Público! Porquanto, nos termos do
consagrado no artigo 235˚ da Constituição, ao Ministério Público compete ...
controlar a legalidade, os prazos das detenções, dirigir a instrução
preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal e assegurar a
defesa jurídica dos menores, ausentes e incapazes.
Portanto, usando da assertiva da Amnistia Internacional, é dever do
Ministério Público assegurar a inexistência de casos de detenção prolongada
que ultrapasse os limites fixados na lei. O Ministério Público é legalmente
obrigado a efectuar inspecções regulares a instalações de detenção e,

301
durante este processo, a verificar que as detenções e/ou prisões, se
enquadram nos requisitos legais.
Ainda no âmbito do papel do Ministério Público, por conta da sua
falta, vários problemas são apontados pela Amnistia Internacional como é o
caso do direito de acesso a um advogado “constitui uma importante
salvaguarda contra a tortura, os maus-tratos, as confissões sob coação e
outros abusos”.
O acesso a um advogado deve ser imediatamente concedido após a
detenção ou prisão porquanto trata-se de um direito constitucionalmente
consagrado (artigo 62˚, 63˚ da Constituição).
Paralelamente a este direito, um detido tem o direito à assistência
jurídica em todas as etapas do processo penal. Contudo, a delegação da
Amnistia Internacional falou com vários detidos que tinham ido à tribunal
sem terem nunca falado com um advogado antes da sua comparência ao
tribunal.
A Ministra da Justiça disse às delegadas da Amnistia Internacional,
durante a reunião que teve lugar em outubro de 2011, que é impossível
alguém ser julgado sem representação legal, pois é proporcionado a todos
os indivíduos um representante legal ad hoc, se aparecer no tribunal sem
advogado.
Contudo, essa não é a questão de fundo, porquanto, por mais que se
indique um representante ad hoc, é necessário que o mesmo, previamente,
tenha consultado o processo bem como, que tenha articulado com o arguido
antes mesmo da audiência de discussão e julgamento.
Contrariamente, não se poderá dizer que o arguido, efectivamente,
teve um patrocínio judiciário tal como deve corresponder o exercício de
defesa do arguido em tribunal. Entende-se que, este direito traz consigo
também, o dever do advogado, oportunamente, escutar, consultar o
processo, se for caso disso, requerer diligências que auxiliem na descoberta
da verdade. Pois, de contrário, teremos uma justiça cega, apenas preocupada
com números do que com a qualidade do trabalho desempenhado pelos
agentes da administração da Justiça.
Associada a questão do patrocínio judiciário, constata-se a fraca
capacitação dos profissionais a quem o tribunal nomeia como defensor
oficioso ou mesmo, que o Estado dispõe como meio de garantia que haja o
direito ao patrocínio judiciário, nomeadamente, os técnicos jurídicos do
Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ).
Durante uma reunião em Maputo (capital do país), no dia 27 de
setembro de 2011, representantes nacionais do IPAJ disseram às delegadas
da Amnistia Internacional que o IPAJ enfrenta diversas dificuldades no que

302
respeita aos seus recursos humanos e financeiros. Eles indicaram que existia
uma necessidade de pessoal mais qualificado, pois nem todos os advogados
que trabalhavam para o IPAJ tinham as devidas qualificações. Os
representantes afirmaram que alguns dos defensores eram estudantes ou
recém-graduados com contratos de formação. Afirmaram ainda que existia
a necessidade de ter advogados qualificados naquelas áreas.
Importa esclarecer que os profissionais que o IPAJ conta, não são
necessariamente “Advogados”, são técnicos ou assistentes jurídicos. Para
ser Advogado como tal, o país conta com a Ordem dos advogados de
Moçambique (OAM). É preciso prestar um exame a nível nacional, para que
então possa ser admitido/aprovado a exercer a profissão.
Outra questão paralela aos direitos constitucionais do arguido detido
ou preso em prisão preventiva, é o direito de acesso a um Advogado.
Conforme nos referimos anteriormente, o direito de acesso a um advogado
“constitui” uma importante salvaguarda contra a tortura, maus-tratos, etc.
Entretanto, os advogados têm por vezes dificuldades em obter acesso aos
seus clientes.
Por exemplo, Advogados da Liga dos Direitos Humanos sentiram
muitas vezes estas dificuldades nas esquadras da Polícia e chegaram mesmo
a ser ameaçados por agentes.
Durante uma missão a Moçambique em julho 2007, delegadas da
Amnistia internacional falaram com um Advogado que tinha sido espancado
e baleado pela Polícia quando visitou o seu cliente na esquadra da Polícia da
Machava (um dos municípios da Matola – Província de Maputo).
Agentes da Polícia em várias esquadras em Maputo ameaçaram várias
vezes, Advogados da Liga dos Direitos Humanos de um destino semelhante.
Os agentes da Polícia da 12ª esquadra de Maputo contaram à
delegação que os Advogados não estão autorizados a falar com os detidos na
esquadra porque não é esse o seu local de trabalho. Os agentes deixaram
bem claro que pensavam que o local de trabalho dos Advogados é nos
tribunais e não na esquadra da Polícia.
Outra questão não menos importante mas digna de apreciação para o
presente trabalho, por efectivamente, considerarmos que também está
sobre a alçada do Ministério Público no que tange ao controle dos prazos das
detenções, ainda na fase da prisão preventiva, é o facto de estarem presos
cidadãos que por causa de insuficiência financeira não conseguem sequer
ter o direito a uma assistência jurídica proporcionada pelo IPAJ. Isso porque,
alguns do seus assistentes e técnicos jurídicos tem cobrado honorários para
a realização da sua defesa em tribunal.

303
O que inequivocamente, contraria com os preceitos daquela
Instituição Estatal, pois, fora criada para assistir cidadãos economicamente
carenciados.
Para além disso, conta o relatório da Amnistia Internacional que
alguns detidos contaram à delegação que os funcionários tentaram fazer
com que assinassem um documento sem os informar do respectivo
conteúdo ou obrigaram-nos a fazê-lo. Esta é uma preocupação especial, pois
a maioria dos detidos são analfabetos ou não compreendem suficientemente
o português ou, por outras razões, não conseguem entender os documentos
oficiais. Sendo que, a norma jurídica moçambicana preconiza no seu n˚ 3
artigo 65˚ da Constituição, que são nulas todas as provas obtidas mediante
coação, tortura ou ameaça de as infringir.
Neste sentido, mais uma vez, se vislumbra a crucial presença do
Advogado durante o interrogatório, constituindo uma salvaguarda chave
para a protecção dos detidos, presos em prisão preventiva.
Porque para todos os efeitos legais, o arguido goza do princípio da
presunção de inocência até decisão judicial transitada em julgado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Presentemente o trabalho teve como escopo analisar a aplicabilidade


da figura proeminente em Direito Penal, que mais mexe com a liberdade da
pessoa humana, designada fundamentalmente por “prisão preventiva” cujo
regime legal, é fixado sobre a mais ampla disposição normativa
Constitucional e, pelo Código de Processo Penal.
Efectivamente, o Código Penal tipifica os crimes que podem conduzir
o agente do crime à prisão. Por sua vez, o Código de Processo Penal,
determina os procedimentos à nível nacional para as detenções, prisões e,
estabelece quando uma detenção ou prisão pode ser considerada arbitrária.
Compulsada a norma do sistema de justiça criminal, face à matriz
Constitucional, vislumbrou-se uma série de irregularidades das quais por
via de Acórdão n˚ 04/2013, de 16 de setembro, o Conselho Constitucional
tratou de declarar sua inconstitucionalidade.
De entre elas, os requisitos da prisão preventiva previstos no artigo
286˚ do Código de Processo Penal, a violação do preceito constitucional no
artigo 3˚, a limitação da competência legal para ordenar a prisão preventiva,
e os respectivos prazos, que na maioria das vezes encontram-se
extrapolados.
Este último, sua abordagem despertou-nos interesse por
efectivamente configurar tema importante quanto ad aeternum, pois, diz

304
respeito a limitação da liberdade humana e, portanto, merecedor de um
melhor tratamento do nosso ordenamento jurídico.
Anima-nos pois, a decisão do Conselho Constitucional, em repor a
legalidade no ordenamento jurídico moçambicano.
Entretanto, e em bom rigor, face ao exposto no presente trabalho,
relativamente aos factos aludidos em sede do relatório da Amnistia
Internacional, dúvidas não restam quanto a necessidade de efectiva
actuação do sistema institucional de justiça criminal, de ser este -
correspondente aos diplomas legais.
Contrariamente, por um lado, conforme relatório da Amnistia
Internacional, um sistema de justiça penal a funcionar adequadamente
asseguraria que as prisões e detenções arbitrárias não acontecessem e, se,
acontecesse fosse imediatamente reposta a legalidade e, desse modo evitar-
se-ia a prisão preventiva à margem da lei.
Por outro lado, tal como ensina-nos o professor Reis Júnior (2020), a
prisão preventiva tem por finalidade assegurar o regular desenvolvimento
da investigação criminal ou do processo penal por meio do afastamento de
um perigo concreto e efectivo decorrente do estado de liberdade do
investigado ou acusado quando as medidas cautelares alternativas à prisão
se revelarem insuficientes para o afastamento do risco e inadequadas à
gravidade do delito, às circunstâncias do facto e às condições pessoais do
autuado.
Por outro lado ainda, urge reter que, a finalidade processual da prisão
preventiva é distinta da prisão para execução de pena após sentença
condenatória, pois, há que ter-se em conta que o arguido preso em prisão
preventiva impende sobre si, o princípio da presunção de inocência, que
aliás, trata-se de uma garantia individual e fundamentalmente consagrada
pela mater legis.
Face ao acima exposto, resulta evidente concluir que, não obstante, a
prisão preventiva ser uma medida cautelar constitucionalmente
consagrada, ainda assim, para sua aplicabilidade, imperioso se torna o
cumprimento dos requisitos legais, sob pena de ferir um outro direito
fundamental consagrado nos termos do nº 2 do artigo 59˚ da Constituição -
que é o direito à liberdade e à segurança, visto que, os arguidos gozam da
presunção de inocência até decisão judicial definitiva.

REFERÊNCIAS:

ACÓRDÃO do Conselho Constitucional 04/2013, DE 16 de Setembro.

305
AMNESTY INTERNATIONAL LTD. Aprisionando os meus direitos, Prisão e Detenção
Arbitrária e Tratamento dos Reclusos em Moçambique. Novembro 2012. LONDON,
REINO UNIDO. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos. UNICEF MOZAMBIQUE 2012.
CONSTITUIÇÃO da República de Moçambique, Lei nº 1/2018, Lei da Revisão Pontual da
Constituição da República de Moçambique, edição 2018, Imprensa Nacional de
Moçambique, E. P. Maputo – 2018.
COMMUNITY LEGAL CENTER da Universidade de Western Cape e LIGA MOÇAMBICANA
DOS DIREITOS HUMANOS. Privação da Liberdade antes do Julgamento no Ordenamento
Jurídico Moçambicano: Avaliação do Regime Legal e das Práticas por Referência aos
Padrões Internacionais. Disponível em: https://acjr.org.za/resource-centre/privacao-
da-liberdade-antes-do-julgamento-no-ordenamento-juridico-mocambicano Acesso em:
05 dez. 2020.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL e LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR DE MOÇAMBIQUE,
decreto n˚ 19.271, de 24 de janeiro de 1931, EDITORA: Minerva, 2013.
CÓDIGO PENAL. Lei n˚ 34/2014, de 31 de dezembro. 2015, 1ª edição, Imprensa Nacional
de Moçambique, Maputo.
CORREIA, Eduardo. Direito Criminal I, Livraria Almedina Coimbra, 2001.
CARTA AFRICANA DOS DIREITOS DO HOMEM E DOS POVOS. Disponível em:
https://www.ophenta.org.mz/wp-content/oploads/2019/02/Carta-Africana-Direitos-
Humanos.pdf Acesso em: 10 dez. 2020.
DECRETO N˚ 7/2006, de 17 de maio – Criou o Serviço Nacional da Prisões.
LEI N˚ 19/92, de 31 de dezembro – Cria o Estatuto Orgânico da Polícia da República de
Moçambique.
LEI N˚ 24/2007, de 20 de agosto – Lei que Aprova d Lei de Organização Judiciária e
Revoga a Lei nº 10/92, de 06 de maio.
LEI N˚ 6/94, de 13 de setembro – criou o Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica
(IPAJ).
LEI N˚ 28/2009, de 29 de setembro – Criou o Estatuto da Ordem dos Advogados de
Moçambique (OAM).
LEI N˚ 3/2013, de 16 de janeiro – Criou o Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP).
LEI N˚ 22/2007, de 01 de agosto – Cria a Lei Orgânica do Ministério Público.
MUBARAK, Rizuane. A criminologia e a Criminalística Contemporâneas. Beira, 2016.
“Desafios do Jurista na Justiça Criminal: TEORIAS UNIVERSAIS E PRÁTICAS
MOÇAMBICANAS. Coeditora ISCTAC.
PACTO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. Disponível em:
https://www.oas.org/dil/port/1966PACTOINTERNACIONALSOBREDIRE
ITOSCIVISEPOLITICOSPDF Acesso em: 10 dez. 2020.
JUSTIÇA CRIMINAL EM MOÇAMBIQUE – Notas essenciais. 2017. EDIÇÃO: Centro de
Estudos Judiciários Formação Inicial.

306
POSTULADOS CONSTITUCIONAIS PENAIS DAS
MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL

ALMIR SANTOS REIS JUNIOR*

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende abordar os princípios constitucionais penais


que são aplicáveis às medidas de segurança. A Constituição Federal, de 1988,
apresenta um rol de princípios explícitos e implícitos aplicáveis às penas,
contudo, negligencia na eleição dos princípios vinculados às medidas de
segurança.
Observar se a omissão legislativa-constitucional deve suprida pela
aplicação extensiva dos princípios às aplicáveis às penas às medidas de
segurança é medida indispensável, afinal ambas, embora tenham funções
distintas, apresentam uma característica em comum: são aplicáveis a fato
típico e antijurídico.
Por tais razões, o presente trabalho concentrar-se-á na análise dos
princípios constitucionais ligados à pena, que são extensivos às medidas de
segurança.

1. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

A temática dos princípios gera grande interesse, pois são a partir


deles que há a construção normativa. Apesar disso, a Carta da República, de

*
Doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professor
adjunto dos cursos de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC/PR). Professor convidado do curso de Doutorado em Direito Público, da
Universidade Católica de Moçambique. Atuou como coordenador dos cursos de especialização em
Ciências Criminais e Perícias Criminais, ofertados pela PUC/PR, campus Maringá. Membro do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais. Membro do Conselho Editorial da Editora Juruá (Brasil e Portugal).
Parecerista do Conselho Internacional de Estudos Contemporâneos em Pós-Graduação (CONSINTER).
Presidente da Comissão de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção de
Maringá. Advogado militante na área de Direito Penal, no Estado do Paraná. (almir.crime@gmail.com)

307
1988, olvidou a matéria quando envolve doente mental em conflito com a lei
penal. Não obstante, sua atenção aos princípios ligados à pena deve ser
aplicada, no que couber, aos inimputáveis em razão da doença mental que
conflitam com a lei penal.
Com acerto afirma Guilherme de Souza Nucci (2013), sobre a
aplicação extensiva dos princípios penais às medidas de segurança, que
“Assim, onde se lê crime, leia-se, igualmente, injusto penal (fato típico e
antijurídico); onde se lê pena leia-se medida de segurança”.
Sebástian Borges de Albuquerque Mello (2007, p. 193), afirma que:

Um princípio não é mera tertúlia acadêmica nem refúgio de


descontentes com a lei. É na verdade, a prima ratio, a primeira
concretização normativa de um valor, é um fundamento as regras,
com força prospectiva, revelando o conteúdo e o limite das demais
normas, como seus alicerces.

Os princípios constitucionais penais têm, portanto, a missão de


legitimar a ação do direito penal. E, por esta razão, a relevância em abordá-
los.

1.1 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio da legalidade, de origem iluminista, está disposto nos


artigos 5º, XXXIX, da Constituição Federal, de 1988 e 1º, do Código Penal,
que dispõem não haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prévia cominação legal. Embora a redação se refira a crime deve-se fazer
interpretação extensiva para abranger as contravenções penais; da mesma
forma em relação à verbete pena, cuja interpretação extensiva deve levar a
inclusão das medidas de segurança.
Está, ainda, inserido no artigo 9º, da Convenção Americana sobre os
Direitos Humanos e no artigo XI, 2, da Declaração Universal dos Direitos do
Homem. Dele decorrem os princípios da taxatividade e anterioridade da lei
penal. Sua função é garantir a segurança jurídica, sujeitando todos aos
ditames da lei.
O princípio da legalidade é a principal garantia que o povo brasileiro
tem face intervenção do poder punitivo estatal. Este princípio esteve
presente em todas as Constituições experimentadas, pelo Brasil, desde o
Império à República. Em seu âmago assenta o princípio de que ninguém é
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
O princípio da legalidade tem duas funções. A primeira é política, de
proteção a todo o povo da brutalidade estatal. A segunda é jurídica, já que

308
com a funcionalidade do sistema jurídico, sua função coadunará com a
prevenção geral das infrações penais (JUNQUEIRA, 2013).
Em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro, alicerça na
submissão às leis, divisão de poderes e declaração de direitos. O princípio da
legalidade tem a função de fazer o Estado alcançar este chão sólido. Não há
Estado sem que todos, inclusive o próprio Estado, estejam ancorados em um
sistema jurídico-normativo (ROBERTI, 2001).
O princípio da legalidade induz o operador do direito a uma imersão
nas fontes do direito. A origem do direito dá-se, materialmente, por força da
vontade do povo, emanada por meio de seus representantes, os legisladores.
O Estado deve, por intermédio do devido processo legislativo externar as
fontes formais diretas, por meio de leis ordinárias. A função da
jurisprudência, dos costumes e dos enunciados dos juristas é,
exclusivamente, para auxiliar o poder punitivo estatal.
O artigo 22, inciso I, da Carta da República, dispõe que a competência
para criação de lei penal é exclusiva da União, por meio do devido processo
legislativo, o que afasta, desde logo, leis estaduais e municipais que possam
tratar de qualquer matéria penal, desde crimes à penas e medidas de
segurança. No mesmo sentido, assegura que medida provisória não possa
dispor sobre lei penal. Estas restrições veem de encontro com o princípio da
legalidade.
Não obstante, Leonardo Luiz de Figueiredo Costa (2007) defende a
possibilidade da elaboração de normas penais por meio de lei
complementar, posto que esta é uma das fontes que a lei pode tomar,
embora a incriminação não seja matéria sujeita à reserva de lei
complementar e, por isso, materialmente ela será ordinária.
Para Luciano Santos Lopes (2006, p. 84),

A legalidade [...] funciona como uma garantia do indivíduo contra o


Estado, na defesa de sua liberdade e, também, demarca o campo de
atuação estatal na punição penal. [...] tal princípio é ponto central a ser
respeitado em um sistema penal que se entende atencioso às
garantias e direitos fundamentais do ser humano. É signo importante
de um Estado Democrático de Direito.

O princípio da legalidade é um importante instrumento de proteção


dos indivíduos na sociedade regida pelo direito positivo. Tem função de
garantir a segurança jurídica da comunidade, por meio do estrito
cumprimento das leis postas, pelo Estado.
Este princípio provoca a vedação de mecanismos de integração da
lei quando foram alocados para prejudicar o réu. Por isso, a analogia,

309
instrumento de integração da lei, disposta no artigo 4º, da Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro só pode ser aplicado, em caso de omissão
legal, se for para favorecer o réu, pois o contrário seria violação ao princípio
da legalidade. Da mesma forma, o costume, como fonte indireta ou mediata
da lei penal, só pode ser aplicado se for in bomam partem.
Isso não quer dizer que o Direito Penal não possa valer de outros
mecanismos para aplicação da lei penal. É perfeitamente coerente ao
princípio da legalidade o uso da interpretação analógica, ainda que venha a
tipificar determinada conduta, assim como, é perfeitamente lícito o uso da
jurisprudência, com muito mais assento no direito positivo codificado, como
o brasileiro, no qual a jurisprudência exerce papel importante na exegese da
norma penal.
Uma reação que surge na abordagem deste princípio e suas relações
com as medidas de segurança é a de que não há previsão legal, expressa, para
aplicação deste postulado às medidas de segurança, pois a lei somente
garante sua aplicação aos casos de crimes e penas, o que provoca uma lacuna
em relação à segurança jurídica das medidas de segurança, embora,
acredita-se que, em submissão a proporcionalidade, o princípio da
legalidade deva ser aplicado, na íntegra, às medidas de segurança.
Na Constituição espanhola, no artigo 25.1, há previsão expressa ao
princípio da legalidade, contudo, com maior extensão que a brasileira, visto
que a proibição legal é para que não seja aplicada pena ou qualquer espécie
de sanção que não esteja previamente prevista em lei.
As medidas de segurança devem submissão à legalidade. Por esta
razão, o artigo 97, parágrafo 1º, do Código Penal, que regula o tempo da
medida de segurança como indeterminado não foi recepcionado pelo artigo
5º, inciso XXXIX, da Carta da República, pois o exercício punitivo penal não
pode ser perene.
Nem mesmo sob o pretexto de realizar tratamento médico. A
legalidade deve ser verificada também, nas medidas de segurança, com
objetivo de determinar o tempo máximo de privação de liberdade do agente
que se ache internado. O internado deve ter o direito de saber qual a medida
de segurança aplicada e qual o tempo de tratamento. Ninguém pode perder
a liberdade por tempo indeterminado; as medidas de segurança por tempo
indeterminado infringem a legalidade (LOPES, 2006). É imprescindível que
seja fixado um tempo de duração da internação ou tratamento ambulatorial.
Para Jorge Severiano Ribeiro (s.d., p. 56),

É assegurado o princípio da legalidade das medidas de segurança;


mas, por isso mesmo que a medida de segurança não se confunde com

310
a pena, não é necessário que esteja prevista em lei anterior ao fato, e
não se distingue entre a lex mitior e a lex gravior, no sentido da
retroatividade: regem-se as medidas de segurança pela lei vigente ao
tempo da sentença.

O princípio da legalidade como lex praevia, veda a aplicação retroativa


da medida de segurança contra agente inimputável; como lex scripta veda a
aplicação de medida de segurança fundada em costumes; como lex certa
veda medida de segurança indeterminada e, por fim, como lex stricta veda
que seja aplicada medida de segurança fundada na analogia (SANTOS,
2012).
A aplicação da medida de segurança deve se dar não apenas na
análise, pelo julgador, da periculosidade do agente, mas, também, na
violação de um tipo penal, previamente descrito em lei. Para Giuseppe
Bettiol1, a periculosidade está ligada à probabilidade e não possibilidade da
pessoa voltar a delinquir. Isto porque, a probabilidade é para alguns e a
possibilidade é para todos.
Em obediência ao princípio da legalidade ninguém poderá ser
submetido a uma medida de segurança que não esteja disposta na lei penal,
em razão da violação de um fato típico e antijurídico.

1.2 PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PESSOAL

O princípio da responsabilidade pessoal limita que a pena passe da


pessoa do autor ou partícipe do crime. A responsabilidade penal é pessoal e
intransferível. É um princípio constitucional penal, disposto no artigo 5º,
inciso XLV, da Carta da República, de 1988.
O Código Penal também aponta, implicitamente, o princípio da
responsabilidade pessoal, ao dispor, no artigo 13, caput, “O resultado, de que
depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa”.
Somente aquele que tenha conjugado o núcleo do tipo penal ou que tenha
induzido, instigado ou auxiliado alguém a conjugar o núcleo do tipo penal
ou, ainda, que tenha o dever de garantidor é que poderá ter contra si, a mão
do forte da justiça penal.
O Ministério Público ou o Ofendido jamais poderão ofertar denúncia
ou queixa-crime, respectivamente, contra familiar ou qualquer outra pessoa
que não tenha praticado a ação ou omissão delitiva. Diferentemente, do

1
BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. V. 2. São
Paulo: RT, 1971, p. 37-38. Para BETTIOL As condições sociais são determinantes para o prognóstico da
periculosidade. Para ele a periculosidade é uma qualidade pessoal do indivíduo enquanto causa provável
de crimes e a providência que se deve aplicar para eliminá-la é a medida de segurança.

311
Direito Civil, no qual a responsabilidade civil pode passar da pessoa do
violador, conforme extrai-se do artigo 1.997, do Código Civil.
Em que pese esta distinção é importante registar o inegável reflexo
que a resposta penal pode causar aos familiares do condenado ou sujeito, a
medida de segurança. Um pai de família preso pode privar sua família de seu
convívio, de seu afeto e de seus recursos, quando arrimo dela. A mãe
gestante que ingressa no sistema carcerário dará luz ao seu filho em um
hospital de custódia e poderá amamentá-lo e criá-lo, em ambiente fechado,
até a idade escolar da criança. Então, a pena e medida de segurança não
passam da pessoa do condenado?
A resposta é negativa. O que passa da pessoa do condenado não é a
pena ou medida de segurança, mas sim, alguns de seus efeitos. A Carta da
República veda, apenas, que a pena passe da pessoa do condenado. Admitir
o oposto seria premiar a impunidade. A prova mais real de que seus efeitos
podem passar a terceiros, é a ação civil ex delicto, que pode ser proposta
contra o representante legal do acusado, nas hipóteses autorizadas pela
legislação civil.
Este princípio deve ser aplicado, também, às hipóteses de tratamento
do doente mental, por meio do internamento, pois o tratamento do agente é
de natureza personalíssima.
A responsabilidade de natureza civil pode passar da pessoa que violou
preceito civil. Por esta razão, a absolvição do doente mental, por força da
inimputabilidade pelo transtorno mental não obsta a propositura de ação de
conhecimento, no juízo cível, contra curador ou tutor do doente. De toda
sorte, se o juiz reconhecer a inimputabilidade e absolver o réu não poderá
ser proposta ação de execução, pois a natureza da sentença penal será
sempre absolutória, conforme será estudado à frente, desta pesquisa.

2.3 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS

O princípio da individualização da pena reside no artigo 5º, inciso


XLVI, da Carta Constitucional, de 1988. A individualização da pena envolve
três momentos: legislativo, judicial e executivo.
A primeira etapa constitui o processo de elaboração da norma penal
incriminadora, pelo legislador. É importante ressaltar que antes da etapa de
elaboração do tipo penal incriminador é imprescindível a verificação, por
meio dos princípios da adequação social e intervenção mínima, se há,
realmente, mister da proteção penal de determinado bem jurídico. Somente
quando houver efetiva valoração do bem jurídico à categoria de bem

312
jurídico-penal é que o legislador deve seguir à fase seguinte, na criação do
tipo penal, individualizando-o.
A segunda etapa é verificada por meio da prestação jurisdicional na
qual a acusação deve, na peça vestibular, individualizar a ação do réu e, ao
final do processo, caberá ao julgador, se entender procedente o pedido do
autor, no processo penal, passar à dosimetria da pena, conforme determina
o artigo 68, do Código Penal.
Esta regra torna-se exceção nos crimes multitudinários, já que por
sua natureza pode não ser possível descrever, claramente, na peça
vestibular do processo penal, a ação praticada por cada um dos agentes
envolvidos. Isso, entretanto, não deve ser motivo de rejeição da inicial, sob
o fundamento de que a petição é inepta, na forma do artigo 395, I, do Código
de Processo Penal, pois, nestes crimes, pode não ser possível descrever a
conduta individualizada, mas sim, a conduta e o resultado coletivos.
A terceira e última etapa é a execução da pena aplicada na sentença
penal condenatória na forma fixada na sentença.
Para Luiz Luise (2003, p. 55),

Esta fase da individualização da pena tem sido chamada


individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de
individualização executória. Esta denominação parece mais
adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade
e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o
exercício de funções marcadamente jurisdicionais.

A medida de segurança não obedece estas mesmas fases, contudo, em


prudência ao princípio da individualização da pena há de ser considerados
três momentos: normativo, aplicativo e executório, que dão lugar ao
exercício de uma atividade e de uma função que é sempre e unicamente
administrativa, embora emanadas pelo legislativo e aplicadas pelo judiciário
(ROCCO, 2003).
Para Hilário Veiga de Carvalho, “Proferida a sentença, já o homem
passa a ser objeto não só do estudo causal-explicativo do delito praticado,
como seu agente, mas também uma pessoa que deve receber um regime
adequado a si mesmo e, assim sendo, um tratamento personalizado”
(CARVALHO, 1973, p. 18).
Deve-se ter especial atenção à individualização da execução da
medida de segurança, permitindo a possibilidade de progressão - nos casos
de internamento - ao tratamento ambulatorial.
Neste sentido, escreve Miguel Reale Júnior (2004, p. 177),

313
Hoje as experiências realizadas, mormente no Rio Grande do Sul e em
São Paulo, em Franco da Rocha, com anuência da Justiça, indicam
serem totalmente recomendáveis as saídas temporárias, bem como a
progressão da internação para o tratamento ambulatorial, sistema
este ora proposto no projeto modificativo da parte geral em curso no
Congresso Nacional.

A medida de segurança assim como a pena deve ser individualizada


não apenas pela lei, mas, também, pelas autoridades competentes nos
âmbitos judicial para aplicação de acordo com a proporcionalidade e
razoabilidade e administrativo para guarda e recuperação dos internos
(GOMES NETO, 1985).
O Estatuto do Deficiente corrobora a tese da necessidade da
individualização do tratamento, ao dispor no artigo 16, inciso I, que “Nos
programas e serviços de habilitação e de reabilitação para a pessoa com
deficiência, são garantidos organização, serviços, métodos, técnicas e
recursos para atender às características de cada pessoa com deficiência”.
Dessa forma, é inadmissível e inaceitável a redação do artigo 97, do
Código Penal, que determina a espécie de medida de segurança
(internamento ou tratamento ambulatorial) que deve ser aplicada ao doente
de acordo com a espécie de cominação de pena (reclusão ou detenção), em
abstrato. A individualização da medida de segurança deve superar esta
barreira e garantir liberdade ao juiz na escolha do tratamento mais
adequado ao doente, apoiado nos escritos médicos.
Constata-se, então, que o artigo 16, inciso I, do Estatuto do Deficiente
revogou o artigo 97, do Código Penal, que condiciona a escolha da espécie de
medida de segurança à gravidade da pena, cominada em abstrato.

2.4 PRINCÍPIO DA HUMANIDADE

O princípio da humanidade proíbe penas que não coadunam com o


Estado Democrático e Social de Direito, como, por exemplo, a pena de morte,
prisão perpétua, trabalhos forcados, banimento e penas cruéis, conforme
dispõe o artigo 5º, inciso XLVII, da Carta da República, de 1988. Estas
proibições estão conexas ao princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento do Estado Democrático de Direito. A simples proibição de penas
cruéis já seria suficiente proteção constitucional, tendo em vista que as
outras espécies de penas, presentes neste dispositivo, são espécies deste
gênero.
A dignidade da pessoa humana, fundamento do ordenamento jurídico,
“não pode ser considerada como mero princípio de otimização, sujeita a

314
restrições, a relativizações e a conflitos com outros interesses em
determinados casos concretos”2.
A preocupação do legislador constituinte em afastar qualquer pena
degradante foi avalizada, ainda, pelo mandado constitucional explícito de
criminalização da tortura, disposto no artigo 5º, inciso XLIII, da Carta
Constitucional.
O projeto de lei, nº 5698/2013, de autoria do deputado Jair
Bolsonaro, propôs que fosse condicionada a concessão do livramento
condicional, aos condenados por crimes de estupro e estupro de vulnerável
o tratamento químico para cessar a libido do condenado.
Este projeto fere, sensivelmente, a Carta da República, de 1988, em
seu artigo 5º, XLI, que assegura aos presos o respeito à integridade física e
moral, bem como o inciso III, do mesmo dispositivo, ajusta que ninguém será
submetido a tratamento degradante. Além disso, iria ferir princípios básicos
da Carta da República, como, por exemplo: da dignidade da pessoa humana
e da proporcionalidade.
Outro projeto de lei sobre esta matéria, de autoria do deputado
Marco Feliciano, que propõe nova redação a pena, do artigo 213, do Código
Penal. A redação proposta seria que a castração química dependeria da
vontade do criminoso. Em que pese a existência de várias discussões sobre
este tema é inegável a evolução do discurso, pois antes cogitava-se a
positivação de lei que determinasse a castração química, independente da
anuência do condenado. Isso seria uma verdadeira violação aos direitos e
garantias individuais. Hoje a discussão é sobre a possibilidade de castração
química quando há anuência do condenado. Entende-se que a autorização
do condenado para ser submetido a castração química, tem o mesmo valor
da anuência do preso que permite a entrada de policiais para fazerem busca
domiciliar, sem mandado judicial, ou seja, NENHUMA.
Neste caso, seria absolutamente inválida a autorização do
condenado para ser submetido à castração química, dada sua posição de
vulnerabilidade no sistema carcerário brasileiro.

2
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. A individualização da pena e a progressividade de regimes
prisionais. In: COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antonio Marques da. Direito Penal Especial,
Processo Penal e Direitos Fundamentais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 366. Para Cláudio José
Langroiva Pereira, “[...] a dignidade da pessoa humana assimila o conteúdo de todos os denominados
direitos fundamentais de ordem pessoal, física e moral, social e, inclusive, econômica, definindo-se por
características de autonomia e especificidade inerentes ao próprio homem em razão de sua simples
pessoalidade. Cf.: PEREIRA, Cláudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e Direitos Fundamentais.
São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 43.

315
A preocupação é que estes projetos sejam transformados em leis e
respinguem nos doentes mentais, não obstante, sejam considerados, pelo
Direito Penal, como inocentes.
O Estado deve adotar outras medidas de res(socialização) do
condenado nos crimes desta natureza, como, por exemplo, a inserção no
ambiente familiar, educação e profissionalização. Por esta razão, pelos
mesmos motivos que não pode ser aplicada à imputáveis é, também,
inadmissível aos inimputáveis, com maior rigor, pois não dispõem de
capacidade de consentimento válido.
É inevitável a aplicação do princípio da humanidade às medidas de
segurança, principalmente, as que impõem o internamento do doente
mental. Tecnicamente, as medidas de segurança não são penas, mas é
inegável, sob o aspecto ontológico, sua semelhança com a pena, haja vista o
constrangimento à liberdade que elas provocam, passível, inclusive do writ,
como remédio constitucional para verificar sua legalidade.
Por esta razão, todos os institutos ligados ao princípio da
humanidade, como, por exemplo, a criminalização da tortura, a vedação de
provas produzidas por meio ilícito, o respeito à integridade física e moral
dos presos, devem ser estendidos, com muito mais acerto aos inimputáveis
sujeitos a medida de segurança.
O artigo 79, parágrafo 2º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
assegura aos sofredores da medida de segurança restritiva de liberdade
todos os direitos assegurados aos imputáveis.
Com acerto, a medida de segurança, em submissão ao princípio da
humanidade, espécie do princípio da dignidade da pessoa humana, que
fundamenta o Estado Democrático e Social de Direito, não pode ser
perpétua. Há que ter um termo inicial e final.
Além disso, este princípio deve ter a função de obrigar o Estado a
garantir condições dignas aos internos do estabelecimento hospitalar, ou
seja, é imprescindível que o ambiente seja dotado de características
hospitalares e não de cárcere, com salubridade e profissionais com boa
formação humanística, ligados ao Sistema Único de Saúde e não agentes
carcerários, cuja formação técnica é voltada a ressocialização de imputáveis
e não ao tratamento de inimputáveis. A ausência de condições mínimas de
higiene e salubridade devem ser obstadas pelo remédio constitucional do
habeas corpus.
Os agentes que atuam com os inimputáveis, em todas as esferas
(Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e órgãos dos
sistemas de segurança e penitenciário) devem ter contínua capacitação,
conforme o comando do artigo 79, parágrafo 1º, do Estatuto do Deficiente.

316
A manutenção dos doentes da mente em ambientes insalubres, com
condições de higiene precárias, sem atendimento médico especializado, sem
sistema de aquecimento de água para banho, sem projeto pedagógico ligado
ao desenvolvimento de habilidades e competências dos doentes, sem a
assistência familiar e de equipe multidisciplinar são empecilhos que
entravam a busca pela humanização.
Para evitar estas ações deletérias, o Ministério Público deve intervir
na fiscalização sobre as condições mínimas do cumprimento da medida de
segurança, e, observando irregularidades não pode, como garantidor,
abster-se de promover ação penal e civil pública contra os gestores do
sistema.

2.5 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

O princípio da culpabilidade registra sua fonte na Escola Clássica.


Antes das conjecturas sobre a inimputabilidade e medidas de segurança,
mas este fato não pode ser empecilho para não o aplicar às medidas de
segurança.
O princípio da culpabilidade diferencia-se da culpabilidade; esta,
juntamente com o fato típico e antijurídico, é parte integrante do delito, no
qual a inimputabilidade a afasta, enquanto aquele é um postulado.
Este princípio está disposto na ordem jurídica constitucional. O artigo
5º, incisos XVII e XLVI, da Carta da República, os expressa. O primeiro
pressupõe a comprovação da culpabilidade para que alguém seja
considerado culpado, enquanto o segundo, que dispõe sobre a
individualização da pena, expressa a necessidade, na aplicação da pena, da
observância da culpabilidade (LUISI, 2003).
O princípio da culpabilidade é fundamentado do juízo de
reprovação, pois nulla poena sine culpa. Para Juarez Cirino dos Santos (2012,
p. 25), o princípio da culpabilidade proíbe:

Punir pessoas inimputáveis, porque são incapazes de compreender a


norma ou de determinar-se conforme a compreensão da norma, mas
não proíbe a aplicação de medidas de segurança fundadas na
periculosidade criminal de autores inimputáveis de fatos puníveis: a
relação culpabilidade/pena possui natureza subjetiva, mas a relação
periculosidade criminal/medida de segurança possui natureza objetiva
de proteção do autor (terapia) e da sociedade (neutralização),
segundo o discurso oficial da teoria jurídica das medidas de
segurança.

317
Não há pena sem que haja exigibilidade e conhecimento da
proibição. Este nível do princípio pressupõe uma pessoa dotada de
capacidade para decidir conforme regras e axiomas, ou seja, um ser
autodeterminável, quiçá, uma pessoa capaz3.
Por ele extrai-se que só é possível aplicar pena a alguém se tiver
agido com dolo ou culpa, em sua conduta comissiva ou omissiva,
distanciando da responsabilidade penal objetiva. Além disso, a sanção penal
não pode passar da pessoa de seu autor ou partícipe (art. 5, inciso XLV,
CF/88), na medida de sua cooperação na prática delituosa, conforme dispõe
o artigo 29, caput, do Código Penal.
A compatibilidade entre a medida de segurança e o princípio da
culpabilidade é o maior desafio enfrentado pelo princípio, já que a medida
de segurança é imposta por meio da análise da periculosidade do autor e não
sua culpabilidade. Por este motivo, a medida de segurança deve ser aplicada
subsidiariamente, quando não for possível a aplicação da pena. Ou seja, é
melhor optar pela pena que trata o homem como ser motivável e conta com
os limites da culpabilidade4.
Mas, o princípio da culpabilidade deve exercer o papel limitador da
intervenção estatal nas medidas de segurança, com objetivo de impedir a
perpetuação da medida de segurança, limitando a imposição da restrição à
liberdade. Neste caso, a medida de segurança não pode ter maior duração do
que a pena, pois aceitar o oposto significa ferir, ainda, o princípio da
razoabilidade.
Conclui-se, destarte, que a função do princípio da culpabilidade em
medidas de segurança é, por meio da razoabilidade e isonomia, garantir que
a medida de segurança não seja mais penosa que a própria pena, impedindo,
assim, a duração ilimitada da medida de segurança.

3
ZAFFARONI, Raúl E. et al. Direito Penal brasileiro: teoria geral do Direito Penal. 2. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2003, 248. Sobre este princípio “O fato de as medidas (diferentemente das penas) serem impostas
mesmo sem culpa, ou seja, além da medida da culpa, necessita de justificação especial. É que nelas o
indivíduo é limitado por causa de um comportamento pelo qual ele não tem que responder ou, pelo menos,
não na medida correspondente à sanção”. In: ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus.
Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual. Coord. Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007,
P. 61.
4
GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1. São Paulo:
RT, 2007, p. 539. Sobre o princípio da culpabilidade, André Estefam leciona que não é possível afirmar
que a medida de segurança deverá observar o princípio da culpabilidade, justamente porque sua imposição,
de regra, prescinde desta categoria sistemática. In: ESTEFAM, André. Direito Penal: parte geral. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 424.

318
CONCLUSÕES

À leitura da Carta da República, de 1988, constata-se evidente


negligência constitucional em olvidar matéria relacionada aos direitos e
garantias aplicáveis especificadamente aos doentes mentais infratores,
notadamente em relação aos princípios constitucionais penais. Fato que é
avesso às constituições modernas do mundo ocidental, como, por exemplo,
a Constituição de Moçambique, que expressamente veda a medida de
segurança perene.
Por tais razões, é imprescindível que os princípios constitucionais
penais, aplicáveis às penas sejam extensivos às medidas de segurança, no
que couber, com escopo de agasalhar essa parte vulnerável da população
carcerária brasileira, outorgando direitos e garantias constitucionais.

REFERÊNCIAS

BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva
Franco. V. 2. São Paulo: RT, 1971.
CARVALHO, Hilário Veiga de. Compêndio de criminologia. São Paulo: José Bushatsky,
1973.
COSTA, Leonardo Luiz de Figueiredo. Limites constitucionais do Direito Penal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007.
ESTEFAM, André. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 424.
GOMES NETO, F. A. Novo Código Penal brasileiro. V. 2. São Paulo: Leia Livros, 1985.
GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Direito Penal: introdução e princípios fundamentais. V. 1.
São Paulo: RT, 2007.
GRECO, Rogério. Direito Penal do equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal.
3. ed. rev. ampl. atual. Niterói: Impetus, 2008.
JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal. São Paulo:
Saraiva, 2013.
LOPES, Luciano Santos. Os elementos do tipo penal e o princípio constitucional da
legalidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2006.
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. rev. aum. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2003.
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. A individualização da pena e a progressividade de
regimes prisionais. In: COSTA, José de Faria; SILVA, Marco Antonio Marques da. Direito
Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais. São Paulo: Quartier Latin,
2006.
MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O princípio da proporcionalidade no Direito
Penal. In: SCHMITT, Ricardo Augusto (Org.). Princípios penais constitucionais: Direito
e processo penal à luz da Constituição Federal. Salvador: Podivm, 2007.

319
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais.
3. ed. rev. ampl. São Paulo: RT, 2013.
PEREIRA, Cláudio José Langroiva. Proteção jurídico-penal e Direitos Fundamentais.
São Paulo: Quartier Latin, 2008.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008
REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal: parte geral. v. II. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004.
RIBEIRO, Jorge Severiano. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. 3. ed. rev. aum.
Rio de Janeiro: Editora A Noite, [s.d.].
ROBERTI, Maura. A intervenção mínima como princípio no Direito Penal brasileiro.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.
ROCCO, Arturo. Cinco Estudios sobre Derecho Penal. Buenos Aires: IBdeF, 2003.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 5. ed. rev. ampl. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2012.
ZAFFARONI, Raúl E. et al. Direito Penal brasileiro: teoria geral do Direito Penal. 2. ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2003, In: ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus.
Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual. Coord. Luiz Moreira. Belo
Horizonte: Del Rey, 2007.

320
RESPOSTA PENAL AO LOUCO INFRACTOR SOB
A VISÃO HUMANITÁRIA DOS MOVIMENTOS
DE LUTA ANTIMANICOMIAIS E SUA
INCIDÊNCIA DA SOCIEDADE MOÇAMBICANA.

NETO JAIME MALADI1

Introdução

Este trabalho pretende trazer a resposta penal ao louco infractor,


sob visão humanitária dos movimentos de luta antimanicomial e a sua
incidência da sociedade moçambicana. A pesquisa histórica que
encontramos sobre o tema do louco infractor no Brasil aponta que, no final
de 1999, inaugurou-se, na agenda pública, um processo de discussão
colectiva, problematizando os tratamentos políticos, jurídico e clínico-social
do louco infractor. A responsabilidade desse pontapé inicial coube à
campanhia de Manicómio Judiciário... o pior do pior...2. seu lançamento
aconteceu na abertura do IV Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, em
Maceio, em Novembro de 1999, onde foram apresentados três eixos
norteadores da problematização sobre a complexidade relativa ao tema.
Os resultados e as reflexões dessa experiência trazem alguns
indicadores para pensar novas directrizes para o tratamento do louco
infractor. Pretende-se aqui demonstrar que as soluções de sociabilidade só
podem ser alcançadas quando o portador de sofrimento mental conta com a
secretaria de “um programa complexo e multifacetado, que não se constrói

1
Licenciado em Direito pela Escola Superior da Economia e Gestão de Pemba, Mestrado em Direito
Administrativo pela Universidade Católica de Moçambique, Faculdade de Gestão Turismo e Informática
de Pemba; Doutorando em Direito Público pela Universidade Católica de Moçambique, Faculdade de
Direito - Nampula FADIR, funcionário da Procuradoria Provincial da República – Cabo Delgado,
Representante de Assistentes dos Oficiais de Justiça no Conselho Superior da Magistratura do Ministério
Público, Docente na Escola Superior de Economia e Gestão ESEG - Pemba
2
JORNAL DO FEDERAL. Manicómio Judiciário... o pior, Brasília, Conselho Federal de Psicologia,
2000, p. 4

321
a poucas mãos, nem em pouco tempo”. É preciso estar aberto às
contribuições conceituais, clínicas, políticas e sociais de diversos sectores e
actores, para que o programa siga, em constante movimento, orientado
quanto à promoção da ampliação dos laços de sociabilidade dos loucos
infractores nos interstícios e nas vias principais do mundo público das suas
relações de convivência.
Este trabalho predente trazer a resposta penal ao louco infractor, de
modo geral e no cenario nacional moçambicano, com especial destaque para
aquela pequena experiência inovadora que se desenvolveu em Moçambique.
Desde o início, deixou-se ao lado do movimento maior feito por muitos,
como parceira na busca de indicadores para o redesenho de uma política de
atenção aos loucos infractores.
Contudo, para acontecer de facto um processo de discussão para
revisão do antigo modelo, não basta apenas a produção de novas referências,
é necessário introduzí-las no debate público acerca deste tema.

Capítulo - I O Tratamento do Louco Infractor em Moçambique; a


violação de seus direitos é Decorrente desse pré-conceito.

As pessoas, de modo geral, costumam qualificar algumas outras


como perigosas em determinadas circunstâncias. Em variadas conversas
sobre a matéria, falar e escutar sobre a loucura do louco infractor, não sendo
preciso explicar o sentido do termo, pois parece que todo mundo entende
do que se trata. Esse termo tem sido habitualmente usado para justificar o
comportamento de alguns indivíduos que cometem actos estranhos à ordem
social, e, considerando que parece evidente a perculosidade deles, o termo
tambem tem sido o principal argumento para justificar o investimento em
práticas e instituições que objectivam a contenção e o tratamento dessas
pessoas perigosas por meio do seu rigoroso isolamento.
Ainda que actualmente a utilização desse termo tenha-se tornado
banal na linguagem cotidiana, em geral, a “periculosidade” atribuida a
alguém acontece e ganha fama principalmente quando o sujeito foi o autor
de algum crime de grande repercussão social. Geralmente, encontram esse
predicativo atribuido a pessoas que tiveram seus crimes transformados
num acontecimento que abalou a sociedade, tornando-se um assunto de
debate público.
A população moçambicana, de modo geral, concorda com a elevada
“periculosidade” desses indivíduos nas ruas das cidades e se recusa a
consentir que eles possam alcançar a liberdade e voltar ao convívio social
algum dia. Sempre quando se aproxima o termino da pena de prisão ou a

322
internação, ou mesmo quando se sabe de que algum dele teve fuga nas
cadeias ou nos hospitais.
O tratamento psiquiátrico é determinado, fiscalizado e
acompanhado pelo juíz de execução. A condição para o encerramento da
sanção penal está legalmente condicionada ao atestado psiquiátrico de
cessação da presumida condição perigosa do indivíduo. Mesmo assim, será
apenas decretada a sua liberdade condicional; a custódia judicial somente
cessará definitivamente se, após esse prazo, não ocorrer nenhum incidente
que possa indicar a permanência da presunção da periculosidade do
indivíduo.
A indeterminação da sanção penal está relacionada à presunção de
periculosidade e a consequência imediata dessa presunção é correlação
entre a doença mental e a probabilidade de cometimento de novos crimes,
motivados pela patologia psíquica. A indeterminação da sanção penal é
sustentada juridicalmente pelo pressuposto de que o “doente mental” é um
sujeito patologicamente incapaz de reconhecer o carácter ilícito de seus
actos e, portanto, um irresponsável, incapaz de determinar-se
racionalmente, o que indica a probabilidade de cometer crimes futuros.
Parece ser esse o sentido do perigo de vir a realizar novos crimes.
Contudo, nos intersticios dessas determinações normativas, subjaz
uma concepção do sujeito incapaz o irresponsável em casos em que o
indivíduo for portador de sofrimento mental. Admite-se o sofrimento
mental como uma condição deficitária do ser humano; está implicito que o
portador de sofrimento mental é “menos”humano que os demais, pois a sua
condição humana, sua capacidade de agir e sua responsabilidade para com
sua acção estão diminuidas em razão do seu estado psíquico. Pode-se
entender também que, muito além do perigo de realizar novos crimes, está
em questão o perigo que a loucura significa para um determinado idea de
ser humano.
O Conceito de “periculosidade”, desde seu surgimento, promoveu e
ainda promove, de modo que parece natural , a construção de práticas
sociais e discursos orientados a partir dele, como se presumir
periculosidade a alguem fosse um facto dado como incontestável. Assim,
actualmente, designar alguém como intrinsecamente perigoso parece algo
banal, tendo em vista a circulacao e a apropriação desse conceito pelas
diversas redes sociais: no entanto as consequências dessa banalização na
atribuição da periculosidade aos loucos infractores são catastroficas para o
destino desses indivíduos. Por causa da presunção de sua periculosidade,
eles são, de modo geral, lançados para fora da orbita da humanidade e, na
maioria das vozes, sem passagem de vida.

323
Essa situação é globalmente apresentada dessa forma: ha inúmeros
casos de pessoas que receberam uma medida de seguranca e encontram-se
encerradas em manicómios judiciários por tempo indeterminado ou
trancafiadas em cadeias e presídios, na ausência de vagas nos
estabelecimentos penitenciários destinados e esse fim.
Verifica-se, de modo geral, nos casos em que se apresentam indícios
de transtorno mental, o direito recorrerá ao laudo de especialista para
atestar as evidências que virão a subsidiar o entendimento penal do autor
do crime. Se o laudo afirmar a doença mental como elemento que deu causa
ao acto, será decretada a não responsabilidade penal e a consequência dessa
condição será o estabelecimento da presunção de periculosidade, que
exigirá medidas de contenção do agente, tendo em vista a protecção social,
seja como for, todo tipo de arbitrariedade é registado nesses casos, e o que
agrava mais o quadro é a dificuldade dos indivíduos, vitímas das mais
variadas injustiças, de terem suas queixas consideradas, registadas e
encaminhadas para o devido esclarecimento e estabelecimento das medidas
cabíveis.
Nada de acessibilidade às soluções instituidas na civilização como
garantias mínimas que edificariam um sentido compartilhado para as
condições pactuadas de humanidade. Aos loucos infractores restou como
manifestação da humanidade, apenas o seu pior... apenas o silêncio, o
isolamento, o massacre cotidiano da sua condição subjectiva e o sequestro
institucional dos direitos fundamentais consagrados na CRM válidos para
qualquer pessoa humana.

1.1. Caminho das Relações da Loucura com o Sistema Jurídico

A partir do século XX, em Novembro de 1999, iniciou-se uma


mobilização política, social e intersectorial no sentido de tornar pública a
violação dos direitos humanos aplicada institucionalmente aos loucos
infractores. Ao mesmo tempo, buscavam-se alternativas e referências para
enfrentar a complexidade em questão, propostas inovadoras para o
redesenho da política de atenção ao louco infractor.
A responsabilidade desse pontapé inicial coube à Campanha do
Conselho Federal de Psicologia (CFP), que levantou a bandeira: Manicomio
Judiciário... o pior do pior... . seu lançamento aconteceu na abertura do IV
Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, em Maceió. O presidente da
comissão de Direitos Humanos do CFP, Marcus Vinicius de Oliveira, ao abrir
os trabalhos da mesa, apresentou um relatório detalhado das inúmeras

324
violações de direitos dos loucos infractores no Estado Brasileiro,
descortinando o cenário político que a campanha teria que enfrentar.
Em seguida, o Professor Virgílio Mattos apresentou as conclusões do
seu livro recem-lançado. Trem de doido, em que discorre sobre a realidade
jurídica e institucional dos loucos infractores, lançando pertinentes
reflexões sobre essa complexa questão. Orientado pelas pesquisas da sua
dissertação de mestrado, dedicada ao estudo das medidas de segurança no
Brasil. Pode visitar os acervos do Manicómio Judiciário Jorge Vaz e a própria
instituição e, a partir do que registou, fez um relato contundente de sua
indignação3.

1.2. A Metodologia de atenção integral de um acompanhamento atento


às soluções do sujeito no tratamento de seu sofrimento e às suas
pequenas invenções de sociabilidade

Sem saber a priori, segue-se certa metodologia no acompanhamento


dos casos e na producao de uma solucao mediadora entre as instituicoes.
Tem-se por habito produzir, semanalmente, uma especie de roda de
conversa, um encontro entre os diversos actores presentes na rede de
atencao aos casos em andamento, para recolher as pistas de sujeitos
deixadas pelos pacientes judiciarios que acompanham. Dessa conversa
entre os varios agentes, segui-se desenhando, desfazendo e reinventando o
mapa em movimento dos acompanhamentos.
Os redesenhos produzidos junto aos vários actores dos
acompanhamentos, durante as rodas de conversas, sao apresentados a
operadores do direito, buscando verificar a validade jurídica daqueles novos
arranjos. Essa prática de cunhagem de um projecto viável oferecia certo
mapa que nos indicava por onde passar com a singularidade clínica e social
do paciente judiciário, dentro do mundo jurídico. O texto jurídico é um
conjunto de normas e que poderia localizar uma possibilidade de encontrar,
entre elas, um lugar para a causa de cada sujeito em particular.
Contudo, como tratar esse sofrimento de modo que em cada sujeito
pudesse surgir uma nova resposta, como construir alguns recursos que
dispensassem o acto homicida e a violência como únicas respostas? A saida
tradicional era presumir ali um sujeito intrinsecamente perigoso e segregá-
lo aos porões parte das vezes, aquilo significava a “impossível”prisão
perpectua que o nº1 do artigo 61º da CRM não consagra.

3
MATTOS, Virgílio, Trem do doido. O Direito Penal e a Psiquiatria de mãos dadas. Belo Horizonte: UNA
Editoria

325
O isolamento desses casos era um dos grandes responsáveis por
reduzir as possibilidades de inventar respostas singulares, institucionais e
políticas, em condições de produzir novos instrumentos para tratar a
perturbação mental insuportaveis e conectar o portador de sofrimento
mental à rede social com a qual precisou romper por não encontrar nela
nenhum modo de sossegar seu sofrimento. De alguma forma, aposta-se que,
para além da solução do isolamento, haveria outras formas mais vivas de
contornar esse traumatismo4.
Uma vez que nao mais acredita-se nas práticas anteriores e ainda em
vigor em muitos lugares, tem diante de uma oportunidade única. A partir da
crise que ali se instalava, a dispensar as soluções anteriores e a busca de
novas saidas. Podia, por aquela brecha aberta, arriscar-se a construir uma
prática inédita em cada caso, a partir do saber do sujeito, acompanhado as
respostas que ele mesmo entregava em diversos momentos do seu
acompanhamento.
Logo de início, confirma-se que nao se avanca no acompanhamento
desses casos, sem um espaco de convivencia orientado. Para sustentar uma
pratica orientada pelo saber do sujeito sobre a resposta que trata seu
sofrimento, nao se pode isolar o paciente judiciario, precisa-se nos colocar
ali, ao seu lado, secretariando-o, recolhendo as pistas de sua solução singular
de tratamento e sociabilidade.
Presume-se que havia um sujeito entre o paciente e o judiciário,
entre o louco e o infractor. Seguir suas pistas nos levaria a algum lugar.
Aposta-se que o singular de cada sujeito nao poderia ser reduzido à
semantica dos vocábulos, paciente judiciário – louco infractor, tao
carregados dos sentidos construidos historicamente.
A experiência que se inventa presume-se que a solução se
apresentaria no espaço da convivência e nao no silêncio do isolamento
consentido pela presunção da periculosidade. A lógica é outra. Precisa-se
recolher da convivência o que ali poderia se apresentar como uma pista
sobre o que provocava o embaraço, o que despertava sua angústia, que
artifícios e soluções o acalmavam... são as respostas de sujeito que serviriam
de guia quanto a uma possível via de construção de um laço social razoável,
no tempo em que era acompanhado por muitos, antes e durante o
cumprimento da sentença.
Através da atenção dispensada ao percurso desses indivíduos,
observou-se a compreensao de que é fundamental atribuir consequência as
suas respostas. Começa-se a se perceber, ainda que de o acto-crime tem

4
BARROS. 1999, p. 9.

326
consequencias sobre cada um daqueles acompanhados pela pesquisa.
Responder pelo crime diante do juíz, demonstrar para sua cidade e sua
familia que tem pagado “direito” pelo que fez sao respostas que comecam a
se apresentar com certa regularidade nas falas e nos comportamentos
daquelas pessoas. Parece, enfim, cada um do seu modo, que está
verdadeiramente envolvidos num trabalho muito particular de construir
algum sentido de seu acto, ensejando encontrar um apoio para o que
emergiu estranho de si mesmo, inscrevendo essa esquisitice no mundo, e
isso significa consentir com solução jurídica que se inscreve no social,
dirigida a todos os que cometem crimes, no contexto sociológico e jurídico
de sua época.
Parece ser muito importante no tratamento de cada arrumar um
modo de alojar, na sua relação com os outros, uma resposta em relação ao
acto que prática, uma resposta reconhecida como socialmente válida,
principalmente.
A periculosidade está perdendo sua cor, apagando-se sem nos
assustar, à medida que foi ganhando cor uma responsabilidade inédita,
diferente, impensável. Em cada um daqueles casos, foi aparecendo aos
poucos, com a extensão do tempo de convivência entre nós, um sujeito novo,
vivo, capaz de, ao seu modo e na sua medida, surpreender com suas
respostas de sociabilidade.
Não tem retorno, agora será daqui em diante, apostando na
construção responsável de uma prática intersectorial, feita por muitos, que
pudesse sustentar, na trama de seu tecido, o que esses sujeitos e tantos
outros na busca de uma solução que fizesse cessar um sofrimento
insuportavel, poderia nos ensinar sobre o modo de tratamento jurídico,
clínico e social que desse suporte e ampliasse os seus recursos para
encontrar no mundo um lugar onde sua diferença tivesse cabimento.

1.3. Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infractor

A medida que corre, junto as instituições de saúde realiza uma


função mediadora, com algum êxito, no encaminhamento e no
acompanhamento desses casos junto a essas instituições de tratamento em
saúde mental de pacientes judiciários. Começa a aparecer as primeiras
indicações para acompanhamento na rede ambulatorial.
Um paciente judiciário, ao saber da sua liberação, diz, eu sou de
altíssima periculosidade! Se o juíz está de acordo com minha liberação, esta

327
deve ser uma liberdade vigiada, uma liberação condicional, para que o juíz
me acompanhe e possa chegar junto em caso de perigo5.
O que indica é que o retorno ao convívio social não é desprovido de
angústia, haja vista a situação dramática dos egressos de todo sistema
penitenciário. O sentido do desalojamento, o sentir-se isolado, excluido, fora
do lugar, um estranho no ninho na volta para casa sao alguns dos inúmeros
de egressos do sistema.
Cada vez mais, aprende-se as experiências da loucura, a considerar
sua palavra, seus avisos, suas respostas, ainda que pudesse parecer um tanto
quanto desprovido de razão. De facto, o que os sujeitos ensinam é que a vida
nem sempre é razoável ou se dirige precisa através de estrategias racionais.
Fernando Pessoa disse: “navegar é preciso, viver não é preciso”, portanto,
deve ser decidido, pelos resultados alcançados no acompanhamento dos
casos, a nos orientar pela bussola que cada paciente trazia em seu bolso.
A experiência da loucura ensina sobre a pluralidade razoável de
soluções de sociabilidade. Essas se alinhava entre os diversos actores
institucionais, que funciona como uma secretaria permanente na atenção ao
louco infractor.
Para realizar a tarefa da secretaria, numa rede intersectorial,
lançou-se mão da metodologia de atenção integral, através das rodas de
conversa, recolhendo, com essa ferramenta, os indicadores para
movimentar o acompanhamento atento e cotidiano do caso, numa prática
que, para se sustentar, necessitava se firmar num terreno francamente
intersectorial. O projecto funciona como um dispositivo conector, agregando
em torno do acompanhamento do paciente judiciário as acções da
autoridade judicial, do Ministério Público e da Rede Mental e Social de cada
caso.
O programa, em resumo, tem por funcao a oferta do
acompanhamento integral ao paciente judiciário portador de sofrimento
mental em todas as fases do processo criminal. Ocorre de modo
intersectorial, através da pareceria do Judiciário com o Executivo e com a
comunidade, de forma geral, promovendo o acesso à Rede Pública de Saúde
e à Rede de Assistência Social, de acordo com as políticas públicas vigentes,
na atenção integral ao portador de sofrimento mental.
O programa busca viabilizar a acessibilidade aos direitos
fundamentais e sociais previstos na Constituição da República, almejando
ampliar as respostas e a produção do laço social dessas pessoas. Auxílio a

5
A partir da solução apresentada por L. V., buscamos encontrar os subsídios para a regulação da sua saída.
Verificamos que o antigo Código de Processo Penal, no título V, que tratava da execução das medidas de
segurança, em seu artigo 767º, determinava que caberia a juiz fixar as normas que deveriam ser observadas
durante a liberdade vigiada, podendo, inclusive, entregar ao indivíduo sujeito a ela uma caderneta, da qual
constariam suas obrigações durante o tempo de cumprimento da medida. (Código Processo Penal, 1999,
p. 129)

328
autoridade judicial na individualização da aplicação e execução das medidas
de segurança, de acordo com o previsto na legislação penal vigente.
No acompanhamento dos casos, segue, orientado pela clínica das
psicoses do ensino de Lacan, privilegiando o acompanhamento cuidadoso de
cada sujeito paciente judiciário, para que a execução da sentença possa se
dar de forma a considerar os pacientes como sujeitos de direitos e capazes
de responder por seus actos.
Os casos sao encaminhados por meio de ofício dos juízes criminais,
determinando que sejam acompanhados pelo programa. Chegam, também,
encaminhados por familiares, estabelecimentos prisionais, instituições de
tratamento em saúde mental e outos parceiros. Se a pessoa encaminhada
nao possuir sentenca de medida de segurança, ou se nao houver o incidente
de sanidade mental instaurado no processo, realiza-se uma avaliação
jurídica, clínica e social do caso e solicita-se ao juíz criminal autorização para
o acompanhamento do caso. Sendo autorizado, este é encaminhado à Rede
Pública de Saúde Mental, se ainda estiver em tratamento. Junto com a rede,
construir-se-á o projecto terapeútico e social para o paciente, o qual sera
constantemente revisto e reconstruido, de acordo com as indicaçães do
próprio sujeito. O acompanhamento ocorre durante o processo criminal até
a finalização da execução penal.
A equipe intersectorial do programa é composta de psicólogos
judiciais, assistentes sociais judiciais, assistentes jurídicos e estagiarios em
psicologia. Os estagiários actuam como acompanhantes. Esse
acompanhamento é autorizado pelo juíz para os pacientes judiciários que
permaneceram durante longos anos internado pelo e perderam o laço social,
bem como a possibilidade de circular na cidade, encontrando dificuldades
em realizar tarefas simples, tais como pegar ônibus, fazer compras, ir ao
banco, lidar com dinheiro. Trata-se do que poderiamos chamar de um
äcompanhante de rua. Esse acompanhamento favorece as possibilidades de
circulacao pela cidade, ampliando os laços sociais como forma de tratar o
sofrimento.

Capítulo II - As Medidas de Segurança na Perspectiva do Código Penal


Moçambicano6

A internação do louco infractor em um Hospital de Custódia e tratamento foi


reconhecida como medida de natureza jurídico penal a ser importa quando
o indivíduo, ao praticar conduta tipificada como crime, revelasse
periculosidade.

6
Artigo 95º do código penal.

329
Nesse primeiro momento, a medida de segurança foi adoptada para os
inimputáveis em razão de doença mental, mas também àqueles que, embora
imputáveis, fossem considerados perigosos. O sistema do duplo binário, que
permitia a aplicação de pena seguida da execução de uma medida de
segurança.
No caso do indivíduo que por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da acção ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o carácter criminoso do facto ou de
determinar se de acordo com esse entendimento.
Entretanto, por influência da Escola Sociologia ou Politico-Criminal e da
Terceira Escola Italiana, a medida de segurança passou a ser adoptada como
reacção ao acto ilícito cometido pelo inimputável em razão de doença
mental7. O que deu ensejo à adopção do denominado sistema vicariante.
Isso implicou a restrição da aplicação da medida de segurança ao
inimputável que, em razão de doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da acção ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o carácter ilícito do facto ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento, o juíz decidisse ser mais
adequada a aplicação da medida de segurança, em substituição à pena8.
Mante-se inalterada a definição de quem pode ser considerado inimputável
em razão de doenca mental, bem como a aplicação compulsória da medida
de segurança. Embora não haja mais referência expressa à presunção de
periculosidade, esta não deixou de existir.

2.1. A Periculosidade Presumidana

A medida de segurança tem como fundamento básico a


periculosidade do agente revelada no cometimento de ilícitos penais. Está
apoiada no ideal de realização de defesa social, traduzindo-se como uma
faceta do jus puniendi, com o fim de afastar pessoas perigosas do convívio
social.
A instituicao da medida de segurança resultou de dois movimentos
que se manifestaram no Direito Penal nas últimas décadas – diante do
aumento criminalidade, para fins práticos de segurança, buscaram-se novos
rumos – “defesa social era um dos termos do problema”, intimidação e
correcção, a solução apresentada.

7
GRACIA, Martin, 2007, p. 42.
8
Alínea b, artigo 48º, Código Penal.

330
A demais, para além da construção formal de crime, proposta pela
Escola Clássica, a criminologia acentuava outros traços, “o homem com sua
carga hereditária e as suas deformações criadas pela vida, esse homem que
se extraviará da norma e em quem possivelmente existiam condições que o
levariam novamente a delinquir. A sua condição, que os tornava inimigos
potênciais da sociedades, foi chamada periculosidade criminal9.
A partir do desenvolvimento da ideia de periculosidade ou
perigosidade, o louco infractor pode também ser alcançado por medidas de
natureza penal, pois, ao praticar um ilícito penal, se revelaria perigoso e,
portanto, merecedor de um tratamento que prevenisse a prática de outros
delitos. A teoria do estado perigoso, portanto, serviu e ainda serve de base
para justificar a aplicação de medidas de segurança.
Entretanto, merece crítica o fundamento da periculosidade, que
legítima a imposição da medida de segurança. De forma resumida, o que se
entende por periculosidade é o risco que o indivíduo representa para a
sociedade, presumido pelo facto de ele não ter condições de entender o
carácter ilícito da conduta ou de se posicionar de acordo com esse
entendimento, uma vez que se encontra afectado por uma doença mental no
momento da acção – o que se comprova por meio de um exame pericial.
Segundo Gracia Martin (2007, pp. 52-53) esclarece que, se o
fundamento das medidas de segurança é exclusivamente a perigosidade
criminal, esta é que deve ser o conteúdo do “suposto de facto” que servirá
para determinar e proporcionar a consequência jurídica (a medida). A partir
dai atenta que o crime praticado pelo indivíduo deve ser considerado apenas
um “sintoma revelador”de sua perigosidade, mas que esta nao pode radicar
no facto prévio em si.
No entanto, destaca o referido autor que a exigência de anterior
cometimento de um facto típico e antijurídico é, como diz Romeo
Casabona10. “uma garantia para a segurança jurídica, ao contribuir para a
diminuição de factores de incerteza no prognóstico da perigosidade (nulla
periculositas sine crimen), e para o próprio indivíduo, que nao se verá
submetido a um processo se não cometeu um delito”.
O que ocorre actualmente é que o conceito de periculosidade nao
está definido no sistema normativo. A lei presume a periculosidade do
infractor acometido por doença mental e ao Poder Judiciário é dado,

9
BRUNO, 1977, p. 257.
10
Apud GRACIA Martin, 2007, p. 53.

331
mediante o exame medido-pericial, o atestado de que o indivíduo é perigoso
para o convívio social – afinal11,
O exame que verifica a integridade mental e, consequentemente, a
periculosidade do infractor se dá por meio de um incidente processual
conhecido como incidente de insanidade; é realizado por psiquiatras, e será
considerado pelo juíz para determinação da inimputabilidade do indivíduo
e consequente imposição da medida de segurança12.
Segundo a adopção do Gracia Martin (2007, p. 57):

O estudo das características típicas da personalidade do sujeito é


muito importante, pois serão um indício de que sua possível
perigosidade radica em componentes mais ou menos permanentes da
personalidade, e não no delito concreto cometido. Certamente haverá
que examinar outros factores, como os biológicos, os ambientais etc.

Portanto, é preciso cuidar para que não se relacione a medida


estritamente ao facto, sem a consideração da pessoa, pois, presumida a
periculosidade com base em critérios objectivos, restariam desrespeitados
o princípio da necessidade e da individualização da medida de segurança.
Atenta-se, porém, que a avaliação da insanidade (que é objecto do
referido exame) não se confunde com análise da perigosidade do sujeito: a
primeira diz respeito à verificação da existência e da manifestação da doença
mental no momento do facto, e se esta afastou a capacidade de
entendimento e de vontade, enquanto a verificação da perigosidade deveria
passar pela avaliação do risco que o indivíduo representa para o grupo social
– o que não ocorre.

2.2. A internação como regra e a Cessação da Periculosidade como seu


Termo Final.

A partir da análise da legislação penal13, considerando as espécies


de medidas de segurança previstas – internação e tratamento ambulatório -
, verifica-se que a primeira é aquela que, em regra, deve ser aplicada pelo
juíz, enquanto o tratamento ambulatorial deve ser excepção14, isto é, o juíz

11
Conforme criticam António Nery Filho e Maria Fernanda Tourinho Peres, 2002, pp. 352-353, a
periculosidade é um risco e, por isso, uma incerteza que se expressará, talvez, num futuro também incerto.
12
Nº 1 e 2 do artigo 50º do Código Penal.
13
Artigo 96º do Código Penal.
14
Artigo 104º do código penal, o infractor que for declarado inimputável em razão de anomalia psíquica
e não existir o perigo fundado de continuar a praticar factos ilícitos típicos da mesma espécie, o tribunal
sujeita-o a tratamento ambulatório pelo período de tempo julgado adequado mas nunca superior a metade
da pena máxima correspondente ao tipo de crime em causa.

332
podera determinar o tratamento extra-hospitalar apenas se o facto previsto
como crime for punível com detenção.
Na prática jurídica, a cultura do encarceramento para aqueles que
sofrem de transtornos mentais. Ao mesmo tempo, reforça a exclusão social
dessas pessoas, porque, assim como a pena privativa de liberdade, a
internação compulsória em instituições totais não favorece mudanças
positivas em relação ao indivíduo nem em relação ao contexto que o rodeia,
mas acarreta um processo de “desculturação” (BARRATTA, 2002, p. 183), de
perda da identidade, de “desadaptação às condições necessárias para a vida
em liberdade” (GOFFMAN, 1974, p. 11), por exemplo.
Percebe-se que o critério determinante para definir o tipo de medida
de segurança nunca foi a necessidade do doente mental, e sim a gravidade
do delito, seguindo a mesma proporcionalidade que deveria reger a previsão
e aplicação da pena. Assim, aproximam-se os dois institutos, ignorando a
necessidade de se verificar, no caso concreto, qual seria o tratamento
adequado para o controle do tratamento mental.
Já no outro extremo – extinção da medida de segurança -, encontra-
se o exame de cessação de periculosidade, que legítima a saída dos pacientes
do Hospital de Custódia, considerado, então, o contraponto ao exame
realizado no incidente de insanidade solicitado na fase de instrução
processual penal.
O exame de cessação, em regra, será realizado depois de
transcorrido o prazo que varia de um a três anos, de acordo com o que foi
fixado pelo juíz na sentença, sob a egide do argumento da periculosidade do
agente. Enquanto a periculosidade do agente nao cessa, mante-se a execução
da medida de segurança, o que pode resultar na permanência de pacientes
por décadas na instituição. Esse caracter restritivo da medida, sem falar na
falta de infraestrutura adequada e de pessoal nessas unidades, resulta na
privação de outros direitos durante longo periodo da vida do paciente.

2.3. Ausência de Previsão Legal da Desinternação Progressiva

A desrespeito de medida de segurança ter duração indeterminada e


da grande possibilidade de institucionalização do seu cumpridor, não há
previsão legal na legislação penal sobre a adopção de um programa de
desinternação progressiva, diversamente do que ocorre com as penas
privativas de liberdade, que são executadas com base em um sistema
progressivo (regime fechado, regime semiaberto e regime aberto de
cumprimento da pena).

333
A instituição que comumente custódia os infractores classificados
como inimputáveis em razão da doença mental é denominada Hospital
Psiquiátrico de Maputo, Beira e de Nampula. É nessa instituição que se
executa a medida de segurança de internação, pela qual são excluidas da
convivência social essas pessoas, sob a presunção de representarem perigo
à sociedade.

2.4. Pacientes Judiciários Institucionalizaçãos e a Dificuldade de


Retorno à Liberdade

Visando a um aprofundamento da análise de como os agentes


envolvidos na execução penal aplicam a legislação penal e as repercurssões
para os cumpridores das medidas de segurança, a pesquisa constituiu um
estudo exploratório da situação em que se encontravam os cumpridores da
medida de segurança, mas com um recorte específico em relação aqueles
que, liberados do cumprimento da medida de internação, ainda estavam
custodiados na unidade prisional.

2.5. Abandono Social

Na perspectiva dos vínculos sociais, esta pesquisa avaliou casos com


problemas sociais graves, ou seja, com os vínculos familiares e sociais muito
frageis ou praticamente inexistentes. A problemática do desamparo social é
uma das razões mais contundentes que justificam a ineficácia das
desinternações judiciais sem o apoio familiar.
O cumpridor da medida de segurança que é desinternado sem o
necessário apoio da família se torna um vulnerável social, afinal, acometido
de enfermidade mental. Sua periculosidade é dada como cessada, mas as
suas necessidade como doente nao cessam, e, se não houver o
acompanhamento necessário, a doença pode voltar a se manifestar. Nesse
caso, se outra conduta ilícita for praticada, poderá voltar ao cumprimento de
medida de segurança.

2.6. Famílias não Localizadas, Pacientes Abandonados

Segundo os relatórios do Instituto Nacional de Acção Social (INAS),


ha muitos casos de abandono de familiares e a viverem nas ruas dos centros
urbanos, uma vez os esforços empenhados pelos profissionais do sector
psicossocial dos hospitais psiquiátricos, nao encontram os vínculos sociais

334
desses pacientes foram infrutiferos. Deles nao se conhece familiares, nem
parentes, nem amigos.
É interessante apontar que, entre os pacientes com vínculos
familiares conhecidos, todos os casos exibem periculosidade que reforçam o
carácter estigmatizante e segregador do instituto da medida de segurança
no ideário social.
A população carcerária nos Hospitais Psiquiátricos é composta
basicamente de pessoas com baixo poder aquisitivo, muitas delas
beneficiárias de programas sociais do governo ou de auxílios
previdenciários.
No entanto, é preciso considerar que a família também necessita de
assistência e acompanhamento para que possa lidar com a situação da
pessoa com transtorno mental. As estruturas hospitalares muitas vezes
dificultam essa aproximação, ao passo que a assistência extra-hospitalar
pode favorecer esse duplo acompanhamento (paciente/família), pois mais
próximo e acessível.
Maria Alice Ornellas Pereira atenta para as dificuldades vividas
pelas famílias, normalmente carentes de informações e recursos financeiros:

O peso do sofrer psíquico, de quem vive e sente a doença mental,


também tem sua extensão na família. Estas, com raras excepções,
recebe pouca atenção do sistema de saúde, não é chamada à
participação, uma vez que a prática psiquiátrica “adopta”ou tutela o
doente, tirando-o do convívio social e familiar. Ao mesmo tempo,
evidência-se o entendimento do importante papel da família no
processo de ressocialização e reabilitação do doente mental. Nesta
perspectiva, à medida que cresce a proposta de uma assistência mais
abrangente, aumenta a necessidade de eficiência do serviço nacional
de saúde no cumprimento de seu papel. Isto significa que o interesse
e a solicitação podem ocorrer concomitantemente ao aumento da
eficácia e competência do sistema. A construção desse modelo de
assistência tem causado profundos efeitos na sociedade actual, pois
implica mudança cultural da instituição, dos usuários, dos
profissionais de saúde, da família e da comunidade. Dessa forma, não
se visa somente tratar de uma doença, mas também à promoção da
saúde mental, à adaptação do sujeito à sua realidade. Neste proposta
descronificam-se os actores envolvidos, uma vez que ela propícia,
gradativamente, a ampliação da rede social e a co-divisão de
responsabilidades inerentes à sociedade, a qual aumenta o encargo da
família que sera despertada para solicitações, reivindicações e aportes
necessários para o convívio e o enfrentamento da doença mental 15.

15
PEREIRA, 2003, pp. 72-73.

335
Portanto, a importância de investimento na estruturação e
manutenção dos centros de atendimento psicossocial, entre outros
dispositivos de assistência social e saúde mental, é de grande relevância
para assegurar o fortalecimento dos vínculos sociais e familiares da pessoa
com transtorno mental.

2.7. Tratamento Coercitivo

Alem de o tratamento oferecido nos hospitais de custódia e


tratamento psiquiátrico não ser adequado as pessoas submetidas a medida
de segurança, é necessário debruçar-se, também, sobre as espécies de
tratamentos oferecidos, especialmente quando se trata da medida de
internação.
Apesar de o tratamento dispensados ter que condizer com a
dignidade de pessoa human, fundamento da República, pois esta tambem
prevalece para aqueles que têm sua capacidade de entendimento diminuída,
este se mostra como um conjunto de práticas cruéis, que trata o internado
como objecto, e que tenta modificar sua personalidade e interderir em sua
integridade psiquica, enquanto deveria ser apenas a mera prevenção da
reincidência por reforço dos padrões de comportamento, e controle da
periculosidade16.
A internação submete a pessoa a tratamento psiquiátrico obrigado,
com finalidade terapeútica e de protecção da sociedade, tendo em vista que,
uma vez internado, o inimputável tem sua liberdade de locomoção restrita17.
É lhe imposto um tramento, pois não existe um consentimento livre, válido
e informado, e não há liberdade para recusá-lo, pois se o fazer, pode
prolongar o internamento18.
As práticas adoptadas impoe um tratamento mádico forçado, que,
aliado à institucionalização prolongada, provocam deterioração psiquica
irrevesivel19. Ainda, o processo terapeútico consiste em ampliar a
dependência do indivíduo, fazendo-o perder a sua autodeterminação, para,
supostamente, aumentar sua autonomia20.
Até a década de 1950, o tratamento comumente dispensado às
pessoas internadas em manicómios consistia em banhos quentes e frios,
alem dos métodos físicos de tratamentos, tais quais: cadeira giratoria e o
eletrochoque.

16
PANCHERI, 1997, p. 106-107.
17
COSTA, A. 2008, p. 10-15.
18
PANCHERI, op., cit., p. 106-107.
19
MARIA NETO, Cândido Furtado. Aplicação de medidas de segurança aos enfermos mentais. MPD
Dialógico: Revista do Movimento Ministério Público Democrático, São Paulo, v. 8, n. 36, p. 30-31, 2012.
20
JACOBINA, 2008, pp. 95-99.

336
2.8. Reforma Psiquiátrica

Nas últimas décadas do século XX, ganhou espaço no cenário


psiquiátrico brasileiro o movimento antimanicomial, que buscou uma
reforma psiquiátrica que pudesse substituir o modelo existente ate então.
Cobrou, também por políticas públicas mais adequadas e pela afirmação dos
direitos dos doentes mentais, para que nao se permita afastar os direitos
fundamentais e sociais, e a cidadania deles.
Conforme a reforma psiquiátrica, o doente deve manter vinculo com
a família e a comunidade21. Para atender ao princípio da humanidade das
penas, o tratamento oferecido nos hospitais de custódia deveria buscar a
integração social do doente, e ser desprovido de caracter sancionatório22.
Houve o abandono deste tipo de instituição para adopção de
tratamento ambulatorial e extra-hospital. As indicações de internação
devem ser realizadas de maneira ética e responsável, tendo em vista os
preceitos constitucionais, em especial quanto a direitos e garantias do ser
humano e a dignidade da pessoa humana.
A reforma psiquiátrica descartou a abordagem coactiva, manicomial,
unidisciplinar e repressora até então adoptada. A medida de segurança, nessa
nova visão, não pode mais se dar em benefício da sociedade, que, se considera
agredida e ameacada pelo inimputável infractor.
O tratamento oferecido em instituições psiquiátricas deve passar a
ser multidisciplinar, necessitando, a doença mental, de maior atenção da
saúde pública e não do Direito Penal.
Desta forma, toda indicação de internação deve ser feita com
autorização médica e como último recurso, o que vai de encontro ao
ordenamento penal, que impõe a medida de segurança na modalidade de
internação, ainda que não seja apropriada apois a análise das circunstâncias
pessoais do agente. É uma equipe multidisciplinar que deve dizer qual o
tratamento indicado para cada pessoa individualmente considerada,
respeitada sua dignidade cidadania e titularidade de direito23.
Deve ser necessário aferir casuisticamente a periculosidade e a
viabilidade de recuperação do paciente mediante a adopção no internamento
em hospital psiquiátrico, pois o tratamento aplicado ao inimputável deve ser
o adequado, tendo em vista que a busca da reintegração social é uma das
finalidades da existência da de segurança24.

21
É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção
de acções de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da
família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou
unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.
22
COSTA, A, 2008, pp. 15-18.
23
BARROS, 2011, pp. 214-215.
24
ARAÚJO, 2009, pp. 12-15.

337
Capítulo III – Princípio da humanidade das Penas

No âmbito da legislação internacional, surgem textos que se


preocupam com a protecção dos direitos humanos e que fazem expressa
referência à proibição da tortura e da aplicação de tratamentos e penas
cruéis. A partir da ractificação desses textos, os Estados têm a obrigação de
punir estes actos, pois constituem sérios ataques à dgnidade humana25.
A primeira legislação, adoptada antes mesmo da Revolução
Francesa, que se destaca por conter tal preocupação é a Declaração dos
Direitos do Homem da Virginia, EUA, de 1776, onde houve o veto quanto à
aplicação de penas cruéis e desusadas, proibição que também foi prevista na
Constituição dos Estados Unidos, de 1787, em seu artigo 7º, e na Emenda
VIII desta Constituição, de 1791.
Em sequência, após a Revolução Francesa, foi elaborada a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que, ao dispor
sobre os direitos universais, individuais e colectivos, do homem,
estabeleceu, em seu artigo 9, que todo rigor desnecessário na aplicação das
penas deve ser severamente reprimido por lei.
Essa Declaração inaugura a era universalização dos direitos do
homem, com base numa nova concepção do homem no universo, a qual
estabelece que toda pessoa tem direitos inerentes a sua condição humana26.
Surge, então, no Direito Internacional, o primeiro conjunto de
normas, tanto consuetudinárias quanto convencionais, que proibem a
tortura e qualquer penas ou tratamentos desumanos, degradantes ou
cruéis27.

3.1. Conteúdo do Princípio da Humanidade


3.1.1. Dignidade da Pessoa Humana

Após a universalização dos direitos do homem, passou-se a


reconhecer que toda pessoa é portadora de dignidade, qualidade intrinseca
a ela, que nao pode ser dela dissocida. É, também, a dignidade, irrenunciável
e indisponível. Como consequência, a pessoa é reconhecida com valor em si
mesma e possuidora de direitos fundamentais. Esses direitos garantem às
pessoas a autodeterminação de suas vidas, sem indevidas ingerências do
Estado, de modo que, constituindo, as pessoas, a finalidade precípua do

25
STEINER, Sylvia Helena. A prevenção do crime de tortura no cenário do direito internacional. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 99, pp. 305-311. 2012.
26
LIMA, Carolina, 2009, pp. 440-442.
27
STEINER, op. cit., pp. 301.

338
ordenamento jurídico, não podem ser consideradas um mero meio ou
objecto da actividade estatal.
No Brasil, a dignidade humana foi elevada à categoria de
fundamento da República, pelo inciso III, do artigo 1, da Constituição Federal
de 1988.
Por não ser um direito clássico, não apareceu nas constituições mais
antigas adoptadas no século XVIII, como a dos Estados Unidos e a da França.
A França. A primeira vez que foi citada em uma constituição foi em 1919, na
Constituição Alemã, em referência às condições de vida económica. Depois,
se seguiram as Constituições de Portugal (1933) e da Irlanda (1937)28. Após
a Segunda Guerra Mundial a protecção à dignidade humana passou a ser
mais intensa.
Este fundamento norteia o ordenamento jurídico e limita e orienta a
acção estatal29, reconhecendo um núcleo indestrutível de prerrogativas às
pessoas que o estado Democrático nao pode deixar de reconhecer e
respeitar30.
Além de ser um dos fundamentos do Estado brasileiro, a digniadade
da pessoa humana também é um princípio sistematizador, ao qual se
baseiam os demais princípios constitucionais e que serve de parametro a
todo o ordenamento jurídico, garantindo-lhe coerência interna. As leis
devem refletir este princípio, podendo ser consideradas inconstitucionais as
que o viola.
Desta forma, pode-se concluir que a dignidade humana delimita o
poder de actuação do Estado, sendo o respeito a este princípio condição para
a existência de um Estado Democrático e para a legitimidade do exercício do
poder estatal, pois este deve respeitar e garantir a primazia dos direitos
fundamentais, abstendo-se de práticas lesivas a estes.
Tendo em vista este direito, o Estado deve guiar suas acções para
preservar a dignidade de cada pessoa e para criar condições que
possibilitem o pleno desenvolvimento delas, além de tratar a todos
igualitariamente e garantir para cada pessoa um direito individual protetivo
em relação ao próprio Estado e aos demais indivíduos31.

28
VON MUNCH, Ingo. La dignidad del hombre en el derecho constitucional alemán. Foro, Madrid, n. 9,
p. 108-109, 2009.
29
MACHADO PELLONI, Fernando M. Argumentos contra la tortura y los tratos crueles, inhumanos y
degradantes. In: Fayet Jr., Ney; Maya, André Machado (Orgs.). Ciências penais: perspectivas e tendências
da contemporaneidade. Curitiba: Juruá, 2011. P. 15-20.
30
SANTOS, Nivaldo dos; GARCIA, Thais Aurélia. O tratamento Constitucional da tortura e a violação
da dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 32, n. 2, p. 75, jul.
/ dez. 2008.
31
SANTOS; GARCIA, 2008, p. 76-77.

339
Conclusão

O perigo potencialmente a sociedade, mas o facto de so alguns o


perceberem diz respeito ao enlaçamento do sujeito em seu contexto socio-
histórico. À forma como cada um so posiciona diante da lei, da cultura, do
seu semelhante e da morte. O que nos garantirá a protecção contra o perigo,
o que poderá nos proteger da periculosidade de existir?
Como sempre, haverá uma ausência de garantias na resposta à
cessacção do perigo, e deixa-se bem claro que isso não é exclusividade da
locura, pois certa periculosidade circula entre nós. Talvez pudesse esperar
que as políticas públicas de atenção à saúde, à educação e às condições
sociais básicas criasse um contexto menos favorável à criminalidade. Torce-
se para que tal política aconteça, mas, ainda assim, não será possível
extinguir toda a periculosidade da vida em sociedade.
Decorre que o louco de todo género, único a receber a insígnia da
periculosidade, de acordo com a política actual do tratamento nos
manicómios judiciários, provavelmente passará o resto de sua vida contido
em carcere privado por ser o que é, ou seja, portador de sofrimento mental.
Embora o Código preveja a realização do exame a qualquer tempo.
Termos a responsabilidade de declarar o que a experiência nos
informa. É possível tratar certa periculosidade: àquela que é produzida pela
ausência de políticas públicas de atenção a esses portadores do sofrimento
mental. Essa periculosidade é efeito do abandono, é ausência de tratamento
ao sofrimento psíquico, é carência de recursos. É o efeito de uma política que
segrega.
Para encontrar saídas na cidade – saídas de cidadania, precisa-se
sustentar o exercício cotidiano de uma política comprometida com o
enfrentamento clínico de questão, o estabelecimento de políticas criminais,
sociais e de que tenham por bussola as soluções de sujeito em sua particular
amarração com as circunstâncias jurídicas, clínicas e sociais e em
movimento por cada caso.
Quando se acredita na utópia de que é possível saber sobre o perigo
a partir de um diagnostico preestabelecido em categorias presumidas,
interdita-se que a realidade do caso apresente a sua complexa e infindável
forma. Essa é a lógica da segregação alimentada por grandes mestres
fabricantes de pre-conceitos, de estigmas que encerram o continente do
humano num rótulo qualquer.
Deve se apaixonar pela ideia de que se sabe muito pouco e permitir
que essas pessoas contem o que sabem sobre o seu sofrimento e a

340
possibilidade de sair dele a partir de respeito à complexidade que o
constitui. Está aí a chave da saída: a construcao singular de sua medida.
A lei nao éa regra, e que, por esta razão, ela comporta a função
daqueles que a fazem e é o que garante a sua autonomia. Nesse sentido, a lei
implica tanto o seu estabelecimento quanto uma avaliação dos casos
particulares que porventura estejam em posição de transgressão32.
O portador de sofrimento mental nao está enclausurado no espaço
da periculosidade, da deficiência. Ele pode e deve responder pela sua acção
no espaço público. Não existem razões válidas que sustentem a sua
segregação. A política deve reconhecê-lo antes de tudo como um “cidadão
sujeito”e um “sujeito cidadão”, o que exige considerar a tensão que existe
entre os dois, pois, se por um lado é portador de direitos e deveres para
todos, de outro, seu modo de vida se orienta subjectivamente, sem igual; a
tensão se desdobra quando a relação do que é universal esbarra na coisa
singular de cada um, num espaço comum33.
Qual argumentação sustenta essa segregada, impedindo esses
indivíduos de responderem por seus actos como um “cidadão o faz, dentro
das normas jurídicas, e de terem direito ao acompanhamento pelos serviços
de assistência à saúde mental, de acordo com o projecto de saúde mental do
seu município?
A sentença de inimputabilidade decretada a um cidadão e a
consequente presunção de periculosidade é a mais violenta violação dos
direitos humanos em vigor nestes tempos que correm. Esses cidadãos nao
nos deixam esquecer que predicar comportamento e agregar valores
absolutos foi uma prática muito usada para condenar pessoas nos tribunais.
Ao ser convocado pelo tribunal a responder pelo seu acto, assiste-
se, com base na experiência com esses casos, à construção do crime através
da resposta de sujeito suportada pela sua linguagem. Ao refazer o acto, a
palavra produz um sentido necessário la onde estava o sem sentido; localiza-
se o excesso pelo qual o sujeito se responsabiliza. Do seu jeito, cada um
responde pelo que faz. Assim, construindo a medida da sua
responsabilidade, o necessário valor do responder pelo que se fez e, a partir
dai, construir um projecto possível de convivência no social. Cada caso tera
a sua medida, a partir das contingências que atravessam a sua inscrição.
A experiência da loucura ensina ao Direito a vastidão das
possibilidades do ser humano, desde que seja tratado com respeito e

32
MANDIL, R. Discurso Jurídico e discurso analítico. In: CURINGA. A lei e o fora da lei. Belo Horizonte:
Escola Brasileira de Psicanalise, v. 18, 2002.
33
GARCIA, C. A clínica do social. Belo Horizonte: Editora Projecto, 2000, p. 23.

341
dignidade, possibilitando o exercício de seus direitos. Garantindo-lhe acesso
aos serviços básicos de saúde e assinstência social.
Talvez ainda seja tempo de repensar o projecto democrático,
enfrentando os impasses de um projecto edificado sob a égide da razão. Será
que pode trabalhar com a ideia de que a razão é uma forma discursiva, mas
que existem outras lógicas razoáveis de manifestação no laço social? Pode
se considerar que a loucura, ainda que não disponha do discurso racional
como modo exclusivo de sua expressão, pode demonstrar sua disposição
social através de outros modos razoáveis e válidos?
Segundo John Rawls, propõe o pluralismo razoável, adverte que
existem formas que não são racionais, mas que são razoáveis. A religião seria
um grande exemplo de que nem tudo se encerra na racionalidade. A
democracia devera ser o locus de produções razoáveis, de convivência de
todas as pessoas. São todas as pessoas potencialmente razoáveis, e “o
razoável, em contraste com o racional, leva em conta o mundo público dos
outros”34.
Se o Estado permitir a esses indivíduos o exercício de seus direitos
e deveres e a expressão no espaco público da sua singularidade como
cidadãos, alargar-se-a consideravelmente o entendimento de que a loucura
não se resume à expressão do mal e do perigo. Será no espaço aberto por
essa distância que se pode assistir humildemente, enquanto aprendizes, às
infinitas possibilidades da dimensão subjectiva. Estética, úteis ou poéticas
criações, louco ou não, inventando novos sentidos para a expressão da
verdadeira cidadania.

Referências Bibliográficas

Legislação

REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei nº1/2018, de 12 de Junho, que aprova a


Constituição da República de Moçambique;
REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE, Lei nº24/2019, de 24 de Dezembro, que aprova o
Código Penal Moçambicano;
BRASIL, Constituição da República Federal de 1988;
BRASIL, (2001). Código de Processo Penal, Rio de Janeiro. Graal;
BRASIL, (1999). Código Penal, São Paulo. Saraiva. (Colecção Legislação Brasileira).
BRASIL, (2009). Ministério da Justiça. A Conferência Nacional de Segurança Pública;

34
RAWLS, J. O liberalismo político. São Paulo: Ed. Ática, 2000, p. 106.

342
Doutrina

BARROS, F. O. (1999). Relato da experiência da pesquisa com os pacientes


judiciarios. Belo Horizonte: Mimeo;
BARROS, F. O. (2009). Tinha sido apenas um sorisso, e nada mais. In, COUTINHO. J. M.
(Org). Direito e Psicanalise. Rio de Janeiro: Juris;
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JORNAL DO FEDERAL. (2000). Manicómio Judiciário... o pior. Brasilia: Conselho Federal
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MANDIL, R. (2002). Discurso jurídico e discurso analítico. Curinga. Belo Horizonte,
Escola Brasileira de Psicanálise;
MATTOS, V. (1999). Trem de doido – O Direito Penal e a Psiquiatria de maos dadas. Belo
Horizonte: UNA Editora;
RAWLS. J. VITU, A. (2000). O Liberalismo Politico. Sao Paulo: Ed. Ática

343
A CULPABILIDADE COMO FUNDAMENTO E
LIMITE DA IMPUTAÇÃO DO FACTO PUNÍVEL:
ANÁLISE DA ALÍNEA A) DO N.º 2 DO ARTIGO
48 DO CÓDIGO PENAL MOÇAMBICANO,
APROVADO PELA LEI N.º 35/2014, DE 31 DE
DEZEMBRO.

JOÃO F. MACHAVA

Introdução

Tendo em conta que o elemento objecto do presente trabalho, a


culpabilidade e sua eventual justificação e/ou exclusão fruto ou resultado de
algum factor externo que contribua para tal conclusão, integra o conceito de
crime, antes de adentrarmos na matéria que nos propomos analisar,
designadamente a análise da alínea a) do n.º 2 do artigo 48 do Código Penal
Moçambicano, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 31 de Dezembro, julgamos
ser de todo o interesse numa primeira fase elaborar sobre o conceito de
acção, posto que é um elemento reputado como indissociável do fenómeno
culposo e, igualmente, porque dele se extrai ou pode extrair-se, pela sua
análise se determinado indivíduo pode ser responsabilizado por ter agido
como agiu, podendo ter agido de outra forma, ou seja, podendo ter adoptado
outra conduta diversa daquela que lhe coloca numa situação de culpa.
Seguidamente, abordaremos o conceito de crime tendo como base alguma
doutrina relevante e finalmente abordaremos a culpabilidade, cerne da
nossa análise, pois, constitui o elemento basilar a partir do qual, primeiro se
pode responsabilizar o agente prevaricador com base na sua conduta
desconforme com a ordem jurídica estabelecida, e segundo para a graduação
das medidas sancionatórias (medidas de segurança ou de reclusão em

345
função dos elementos que possam ser considerados como justificativos ou
excludentes da culpa) que lhe podem, eventualmente, caber.

O Homem e a Acção

O Direito, enquanto tendencialmente instrumento de distribuição


de justiça, segundo Reale (2002, p. 377) “não se refere ao homem na
totalidade, ou na integralidade de seu agir, mas tão-somente ao homem
enquanto ser, que agindo em sociedade, assume dadas posições perante os
demais homens, susceptíveis de gerar pretensões recíprocas ou pelo menos
correlatas”. Resulta desta asserção que o direito só cuidará do homem
enquanto ser socialmente integrado numa certa e determinada sociedade
onde os seus actos e acções estarão ou serão permanentemente
escrutinados em função dos interesses dessa mesma sociedade.
Assumindo que o homem, com vista ao alcance do que almeja actuar
em função de interesses finalísticos, significa que, aprioristicamente
mentaliza um target, um objectivo que vai conduzi-lo à acção
correspondente ao interesse idealizado, seja esse interesse conforme com a
ordem estabelecida ou não. Este agir ou esta acção, pode ser dirigida de
forma objectiva para algo que a sociedade onde ele pertence aprova por não
contrariar valores integrativos, tais sejam a harmonia e a paz social, bem
como pode objectivar algo que gera uma reacção negativa da mesma
sociedade, por contrariar a ordem estabelecida (pública)1.
Ainda a este propósito

Se a acção humana se subordina a um fim ou a um alvo, há direcção ou


pauta assinalando a via ou a linha de desenvolvimento do ato. A
expressão dessa pauta de comportamento é o que nós chamamos de
norma ou de regra. Não existe possibilidade de “comportamento
social” sem norma ou pauta que não lhe corresponda. (Reale, 2002, p.
384).

E acrescenta, até para que dúvidas não subsistam quanto à relação


de correspondência que existe entre o acto e a norma, que qualquer que seja
a forma que a conduta assuma sempre corresponder-lhe-á uma regra. É, por

1
Ordem pública no sentido de conjunto de princípios fundamentais que interessa à sociedade proteger e
que se encontram reflectidos em dispositivos legais subjacentes ao sistema jurídico que o Estado e a
sociedade estão fundamentalmente interessados em que predominem sobre as liberdades individuais.
Conforme Costa, M. J. de A., (2000). Direito das Obrigações. 3.ª Edição. Editora Almedina. Coimbra. p.
473, “As normas de ordem pública são normas de aplicação imperativa que visam directa e essencialmente
tutelar os interesses primordiais da colectividade”.. Não nos repugna usar este conceito com vista a uma
generalização do conceito de ordem pública que pode servir os interesses associados à protecção de bens
jurídicos fundamentais em sede do Direito Penal.

346
isso, que a compreensão da acção ou conduta encontra-se intimamente
associada à regra de tal sorte que, adoptar uma determinada atitude perante
um certo evento significa conformar-se, ou não, com a ordem estabelecida e
reguladora do grupo a que pertence.
Quando o homem age, diz Reale (2002, p. 386), “desloca-se em
relação a outros homens: toma uma posição nova perante os demais (...) no
plano social (...) e o faz sempre na dependência de suas circunstâncias”.
O princípio que governa o mundo dos indivíduos é o da causalidade,
desde logo, porque todo o acontecimento, ou tudo o que acontece pressupõe
uma causa. Contrariamente, quando se coloca o mesmo indivíduo perante
um certo evento ao qual deve mostrar conformidade, o princípio que deve
ser tido em conta, diz Miguel Reale (2002) é o do dever ser ao qual está
associado uma imputabilidade em virtude da qual se atribui uma
consequência em razão da prática de um acto desconforme.
Conforme atrás mencionado, apreciar a culpabilidade implica,
necessariamente, analisar os elementos através do quais se encontra seu
significado no sentido de fundamento e limite de responsabilização do
agente “culpado”, nomeadamente a imputabilidade, a potencial consciência
da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

Facto Punível ou, simplesmente, crime

Conforme proposto acima, é nossa profunda convicção que devemos


abordar, ainda que de forma não muito exaustiva, o conceito de crime (facto
punível ou criminalmente censurável), com base nas diversas
teorias/concepções que sobre ele elaboram, nomeadamente, a teoria
Clássica positivista-naturalista; a concepção neoclássica ou normativista e a
concepção finalista ou fenomenológica.
Ora o crime como um fenómeno desestruturante e que desencadeia
na sociedade onde ocorre um juízo de censura (criminal, entenda-se),
resulta óbvio que deve merecer daquela sociedade (e de qualquer outra que
se repute de direito) uma total reprovação por atentar contra tudo o que
releva para a construção da paz e harmonia sociais, condições necessárias
para a constituição e manutenção da ordem pública.
Eduardo Correia (2014), embarca, no início da sua abordagem ao
mundo da conduta criminosa, no facto criminoso, pois no seu entender este
constitui o marco de toda a discussão no que ao crime concerne. Vê aquele
como o pressuposto basilar de toda a censurabilidade criminal dos
comportamentos humanos e, consequentemente a razão da sua
punibilidade. Ao assim pensar, propõe que a determinação do conceito de

347
crime assente numa perspectiva extratificativa e estrutural dos elementos
constitutivos de um corpo com vista a descer, na sua interpretação, do
elemento mais complexo para o mais simples, e aí, Correia (2014, p. 198)
afirma que “o crime como preceito de espécie que é, supõe uma série
hierarquizada de conceitos que de degrau a degrau, se vão obtendo pela
sucessiva abstracção dos seus diversos elementos”. Uma vez realizado este
exercício, que de certo modo vai desnudando o que diferencia
especificamente cada um dos vários conceitos hierarquizados, obter-se-á o
sustentáculo de todos eles, designadamente o conceito de crime. Neste
sentido

no conceito de espécie que é o crime pode antes de tudo abstrair-se


das condições que fixam a sua punibilidade. Depois – da sua
imputação subjectiva e ética a um certo agente, ou seja da culpa. A
seguir – da sua ilicitude. E por último – da tipicidade, ou seja, do
preenchimento de um certo tipo legal de crime. (Correia 2014, p. 198-
199).

Propõe, ainda, o estudo das condições que ditam a punibilidade


reconduzindo-as a imputação subjectiva e ética a um sujeito determinado.
Assim, leva-nos, primeiro à concepção naturalista (coincidente com a
concepção clássica) do conceito de crime no sentido de uma modificação do
mundo exterior em razão de um comportamento inadequado e desconforme
com as lei naturais e, por outro lado transporta-nos para o mundo da
concepção neoclássica ou ético (moral)- social onde o comportamento não
já transforma o mundo exterior, mas a sua desconformidade é com padrões
de sociabilidade considerados fundamentais para a coexistência e
consequente paz social de uma dada sociedade.
Numa outra visão Correia (2014, p. 273) indica-nos que “o crime não
é só a negação de valores, mas a negação de certos valores – os valores
jurídico-criminais”. Ora, ao indicar a negação de valores traz à ribalta um
factor que conceitualmente separado do conceito de crime que nos é dado
pelo Código Penal2, designadamente, a ilicitude, pois a negação de valores
não é mais do que a contrariedade do comportamento com a ordem jurídica
criminal e por isso mesmo passível de censura criminal. Leva-nos, ainda, a
uma outra dimensão, esta de carácter estadual visto que os valores cujo

2
Conf. art.º 1.º do Código Penal, nos termos do qual “Crime ou delito é o facto voluntário declarado
punível pela lei penal”. Repara-se a forma confinante como o crime é declarado. É o facto e não um facto.
Isto quer dizer que o crime deve ser algo que seja concretamente definido e que contenha contornos que
permitam a sua delimitação num sentido tal que se evite a sua generalização que pode levar a equívocos
interpretativos e, quiçá, nocivos ao desiderato que se pretende atingir quando se pretenda estreitar e
compreender a essência do que seja crime e sua particular e consequente cominação.

348
comportamento desviante viola, gozam da protecção do Estado e constituem
bens jurídicos3 cuja essencialidade traduz-se no facto de servirem interesses
da comunidade e sobretudo porque o direito penal, como corpo de normas
de carácter criminal cuja essência é o controlo social e a protecção daqueles
bens jurídicos referidos é, apenas chamado quando outros instrumentos de
controlo social falham. É um direito subsidiário, é “suplente”.
Fernando Silva (2008, p. 9)) expende que “crime é tudo o que o
legislador legitimamente considera como tal”. É um princípio positivista ou
normativa. Ora, assim afirmado revela-se algo inócuo, pois não nos clarifica
o que seja, efectivamente, o crime. Tem-se, apenas, que o legislador, na sua
função de criar condições e mecanismos que permitam subsumir certas e
determinadas condutas como criminalmente censuráveis indicará
formalmente o que se deve ter por crime. Não basta por insuficiente e, para
acinzentar mais o “ambiente” acrescenta Fernando Silva (2015, p. 9) que “os
crimes incorporam os comportamentos que, por lesarem ou ameaçarem de
lesão bens jurídicos fundamentais, são considerados ilícitos e sujeitos a uma
sanção penal”. Julgamos ser importante e até pertinente que busquemos o
sentido que se pretendeu dar ao facto de tudo estar na mão do legislador.

A função do legislador penal assume papel central na acção do direito


penal, por ela passa a escolha dos bens jurídicos a proteger e a forma
de estabelecer os critérios de protecção de cada um deles. Podemos
identificar como tarefas essenciais do legislador: a selecção dos bens
jurídicos, a identificação das condutas merecedoras de incriminação,
a escolha da técnica de tipificação mais adequada, a sistematização e
organização dos tipos de crime. (Silva, 2015, p. 9)

Nesta operação,

O legislador é orientado por dois critérios: o mérito do bem jurídico,


o que implica uma constante ponderação de interesses no sentido de
apurar quais os bens jurídicos que assumem relevância social, de
modo a justificar a sua tutela penal, devendo recorrer a diferentes
fontes (Constituição, ordem internacional, relevância social do
interesse) para apurar esse merecimento; o da necessidade de tutela
penal do bem jurídico, por força da sua natureza de última racio
impõem-se responder à questão sobre se se justifica que a protecção

3
Fernando Silva (2014, p. 10) ilustra-nos que bem jurídico constitui um factor limitador da acção do direito
penal, não devendo por isso mesmo, o direito penal, intervir em situações em que não ocorram dissídios
entre o que se pretende ser desconforme com a norma penal e os bens de cariz fundamental, isto é, direitos
fundamentais. Silva (op. cit., p. 23) reitera “que o dever de realizar a segurança dos cidadãos através dos
meios penais opera nas situações em que o direito penal seja instrumento adequado de protecção dos bens
jurídicos essenciais”. Não seria de outra maneira se atendermos que o Direito Penal se caracteriza como
de mínima intervenção e de última rácio, quer dizer, “suplente”.

349
do respectivo bem jurídico seja efectuado em sede do direito penal, o
que implica uma reflexão no sentido de apurar até que ponto os
restantes ramos do direito não apresentam uma eficácia suficiente
para concretizar essa protecção de forma eficaz. Ambos os critérios
têm natureza constitucional. (Silva, 2015, p. 9).

Nos parece que até aqui, a discussão é de cariz filosófica, pois ao não
definir o crime, remete-nos a um questionamento constante e contínuo: o
que é crime? No entanto, para dissipar os equívocos a que se pode prestar
ao apenas afirmar que crime é tudo o que o legislador quer que seja, conduz-
nos para uma bifurcação através da qual identifica o crime numa perspectiva
formal e outra material. Numa primeira abordagem conceitua o crime numa
perspectiva estrutural no sentido deste ser uma acção à qual estão
associados três elementos nomeadamente, uma acção típica, ilícita e culposa
e noutro sentido, portanto material, como comportamento que pela sua
natureza ponha em causa bens jurídicos fundamentais. Assim, tendo em
conta a primeira abordagem, resulta quase cristalino o conceito de crime,
pois permite que, uma vez estruturado pelos seus elementos constitutivos,
nomeadamente o facto de ser uma acção típica, ilícita e culposa possa ser
estudado e percebido como algo cuja essência assenta fundamentalmente
num facto expresso pela sua antijuricidade ou seja a desconformidade com
a ordem jurídica criminal e por consequência ponha em causa bens jurídicos
especialmente protegidos.
Fernando Silva (2008, p. 11) diz que “bem jurídico corresponde ao
bem vital reconhecido socialmente como valioso, como valor ou interesse
jurídico”. Procurando desenvolver mais a noção de bens jurídicos (Silva,
2015, p. 11) considera-os como “circunstâncias ou finalidades que são úteis
para o indivíduo e para o seu livre desenvolvimento no âmbito de um
sistema social global estruturado sobre a base dessa concepção dos fins ou
para o funcionamento do sistema”. Resulta óbvio que desta asserção, o livre
desenvolvimento do indivíduo não deve, sob circunstância alguma,
sobrepor-se ao da colectividade, pois, apesar de a sociedade ser uma
construção do homem, sua sociabilidade natural é que ditou aquela
construção, daí que, mais do que a satisfação individual, deve imperar o que
de mais importante sobressai da conformidade com a ordem jurídica: a paz
e harmonia sociais, instrumentos últimos da ordem pública.
Fernando Silva (2008, p. 11) expende que “bem jurídico expressa
um interesse da pessoa ou comunidade na manutenção ou integridade de
um certo estado, constituindo um objecto ou bem em si mesmo socialmente
relevante e por isso reconhecido como juridicamente valioso”.

350
Numa primeira abordagem levando-nos numa viagem conceitual,
sem definir nem transmitir qualquer ideia do que seja crime, tendo como
ponto de partida as concepções naturalística, legalista ou normativista,
Figueiredo Dias assume, quase nos mesmos termos em que o faz Silva
(2008), o conceito de crime como sendo algo da alçada do legislador. Diz,
Figueiredo Dias (2012, p. 106) que crime será “tudo aquilo que o legislador
considerar como tal”. E, acrescenta que

Seria unicamente a circunstância de o legislador ter ameaçado a


prática de determinado facto com uma pena criminal. Com o que a
conceito material de crime viria a corresponder afinal ao que se disse
ser o seu conceito formal (Dias, 2012, p. 106).

Ele entende que tal formulação justamente por não responder à


pergunta do que seja o crime revela-se de insignificante valor, pois a
pergunta formulada pretende obter uma resposta numa perspectiva que
proporcione uma legitimação material, ou seja, “a questão de saber qual é a
fonte de onde promana a legitimidade para considerar certos
comportamentos humanos como crime e aplicar aos infractores sanções de
espécie particular”. (p....).
Assim, entende que em vista do expendido a questão fica sem
resposta ao identificar a legitimação material com a observância do princípio
da legalidade em sentido amplo e conclui, por enquanto, que

pressuposta a plena capacidade do legislador para dizer o que é e o


que não é crime, nada fica a saber-se sobre as qualidades que o
comportamento deve assumir para que o legislador se encontre
legitimado a submeter a sua realização a sanções criminais. (Dias,
2012, p. 106).

Num segundo plano considera, numa perspectiva positivista-


sociológica que o conceito de crime deve ser procurado na sociologia e nesta
perspectiva, Figueiredo Dias (2012, p. 108) devemos encontrar “atrás da
multiplicidade das manifestações legais de crime aquilo que em termos de
objectividade e universalidade pudesse à luz da realidade social, ser como
tal considerado”.
Figueiredo Dias continua afirmando Dias (2012) afirma que

crime é a agressão tida na perspectiva do legislador como


especialmente danosa para uma dada ordenação social, a interesses
juridicamente protegidos, pelo lado da perigosidade social revelada
em tal agressão por uma personalidade responsável. (Dias, 2012, p....)

351
Com isto, revela que o crime para que assim seja considerado,
provindo de um comportamento do agente ou autor deve ser ou provocar,
no tecido social um dano a um bem jurídico com dignidade bastante para se
constituir como fundamental, quer dizer, um comportamento que
socialmente visto põe em causa a paz social, merecendo por isso mesmo,
uma valoração negativa daí a sua censurabilidade. Nestes termos está em
causa uma determinação material do que seja o crime. Ainda que se tenha
formalmente, ou numa perspectiva legalista positiva o conceito de crime
como algo a ser definido pelo legislador, importa ter em conta que numa
visão algo geral o conceito formal e material de crime complementam-se
porquanto um privilegia um factor objectivo pois dirigido a um facto
criminalmente censurável por ser negativamente valorado, o outro refere-
se a um comportamento, igualmente, censurável por colocar no centro da
discussão o factor humano ao qual se associa uma desconformidade
socialmente reprovável.
Ainda que se tenha de considerar como elementos a partir dos quais
se possa aferir alguma concretização definidora do conceito de crime,
entende Figueiredo Dias (2012, p. 110) que são inexpressivos por revelarem
“uma muito menor capacidade de rendimento na determinação do conceito
material de crime”.
Para justificar o facto da insuficiência das concepções legalista-
positiva e positiva-sociológica, expende que

Mesmo que possa concordar-se que todo o crime se traduz num


comportamento determinante de uma densidade ou ofensivamente
social, a verdade é que nem toda aquela danosidade deve
legitimamente constituir um crime. O apelo à danosidade social é pois
um elemento constitutivo do conceito material do crime mas não pode
sem mais fazer-se valer por aquele conceito. (Dias, 2012, p. 110).

Adianta ainda uma terceira via, nomeadamente a moral social –


moral (ético)-social – e conduz a discussão no sentido de crime do ponto de
vista ético-moral. Nesta perspectiva considera que o crime é visto
essencialmente como violação de deveres ético-sociais elementares ou
fundamentais. Percorrendo o mundo do dever-ser e não se referindo de
forma directa ao que ocorreu nas duas concepções anteriores, busca afirmar
o direito penal como um meio de assegurar a validade dos valores ético-
sociais positivos da acção e ensina Figueiredo Dias (2012, p. 111) que “a
tarefa primária do direito penal (...) consiste na protecção dos valores

352
elementares da consciência de carácter ético-social e só por inclusão na
protecção dos bens jurídicos particulares”.
Ainda que se não considere que da apreciação das três concepções
apresentadas não se encontre mediatamente o conceito de crime, numa
perspectiva aglutinadora pode retirar-se que ficaram as notas essenciais e
que nos guiam para os elementos constitutivos do conceito material de
crime, portanto, daquilo que em si constitui o crime. Porém, não resulta,
apenas, do seu conceito, ainda que material. Mas depende também da
construção social originada daquela realidade em concreto. Deste
entendimento deriva o sentimento compreensível de que o conceito formal
de crime, a par da sua conceptualização material, está uma construção social
oriunda de entes dotados de poder e formalidade para afirmar os contornos
de que o crime se deve revestir.
Na construção da doutrina do crime a que agora Figueiredo Dias
(2012) chega, associa a punição como elemento que surge como
consequência da consideração daquele comportamento como sendo
delinquente e punível por constituir um desvio à convivência social
conforme com a sociedade em que o agente está inserido. Associa a punição
adstrita a um certo comportamento socialmente reprovável e aponta para a
discussão três períodos cuja referência foi determinante para a construção
de uma teoria do crime. O primeiro período seria aquele que constrói a
concepção clássica, também designada positivista-naturalística. Esta
concepção defende que o facto punível deverá estar intimamente ligado a
realidade objectivamente observada e empiricamente comprovada, por
pertencerem ao mundo exterior no sentido objectivo e, igualmente ao
mundo interior numa perspectiva subjectiva. Ora, esta concepção revela-se
no dizer de Figueiredo Dias (2012) incompleta ou inadequada, por restringir
o conceito de crime a um movimento corpóreo visto que modifica o mundo
exterior. O segundo período seria o da concepção normativista ou
neoclássica. Esta, integra o facto punível sendo este, de acordo com
Figueiredo Dias (2012, p. 242) “um comportamento humano causalmente
determinante de uma modificação do mundo exterior ligado à vontade do
agente”. Acrescenta que ao facto punível (ilícito) deve se associar a
danosidade social e a culpa como censuralidade do agente por ter agido
como agiu quando podia ter agido de forma diferente. Tem-se, nesta última
abordagem, a vontade como factor determinante para se aferir a maior ou
menor culpabilidade do agente prevaricador.
A finalizar apresenta o terceiro período ao qual se associa a
concepção finalista que tem na acção o seu alicerce de afirmação. A acção,
segundo Figueiredo Diad (2012, p. 245), é um conceito pré-jurídico que

353
“uma vez aceite pelo legislador, não poderia por ele ser reconformado, antes
teria de ser aceite não só em si mesmo, como em todas as suas implicações”.
Para esta concepção

o homem dirige finalisticamente os processos causais naturais em


direcção a fins mentalmente antecipados, escolhendo para o efeito os
meios correspondentes: toda a acção humana é assim
supradeterminação final de um processo causal. (Dias, 2012, p. 245).

Daqui resulta que a afirmação da concepção neoclássica de que o


tipo pode conter elementos subjectivos ao lado do seu núcleo essencial
constituído por elementos subjectivos não seria bastante para fundamentá-
la, seria preciso que se considerasse

que o tipo é sempre constituído por uma vertente objectiva (os


elementos descritivos do agente, da conduta e do seu
circunstancialismo) e por uma vertente subjectiva: o dolo ou
eventualmente a negligência. Só da conjugação destas duas vertentes
podendo resultar o juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica,
é dizer, o juízo de ilicitude (esta também não causal, mas pessoal).
Desta forma se substitui, às anteriores concepções causais-objectivas
uma concepção pessoal final do ilícito. (Dias, 2012, p. 245).

Culpabilidade e seus elementos caracterizadores

O vocábulo culpa, encerra em si várias significações, podendo ser


entendida no âmbito da religião, da moral, da sociologia da filosofia, etc.
Genericamente, a culpa associa-se à responsabilidade e, como não poderia
deixar de ser, igualmente, associa-se a culpa ao resultado obtido por uma
conduta censurável. Não iremos aqui abordar aquela culpa que deriva do
acaso ou de algum automatismo ou ainda de condutas reflexas, mas sim da
culpa analisada sob ponto de vista do dolo e da negligência, pois são estes os
elementos constitutivos da culpa que relevam e que cuja apreciação
objectiva pode conduzir, ou não, à responsabilização os indivíduos por suas
acções e condutas desconformes com a ordem jurídica posta a vigorar.
Importa, neste momento apontar que culpabilidade (ou qualidade de
culpado) está também ligado a um juízo de valor (na verdade de desvalor)
que conduz à responsabilidade do indivíduo em face de uma acção à qual
estão conectadas as devidas consequências. Não se olvide que o sentido de
culpa encontra respaldo num dos princípios do direito penal, tal seja o da
legalidade e que encontra consagração constitucional4.

4
Cfr. art.º 60 da CRM, nos termos do qual o n.º 1 estatui que “Ninguém pode ser condenado por acto não
qualificado como crime no momento da sua prática”.

354
Apreciar a culpa ou culpabilidade (qualidade da culpa), implica ter
em conta o contexto em que tal apreciação se insere sendo que no caso do
presente trabalho, muito embora se procure algum suporte de cariz
filosófica, insere-se no Direito Penal. Por outro lado, assumindo que a culpa
constitui, no Direito Penal, o elemento a partir do qual, a nosso ver, se
qualifica e quantifica a pena associada a um comportamento ilícito e culposo,
julgamos ser de extrema importância iniciar nossa apresentação com o
conceito de facto punível ou crime, pois, é deste que vai decorrer a
consideração do agente (indivíduo) como culpado, ou não, de certo e
determinado acto considerado desconforme com a ordem estabelecida e,
sendo apurada a culpabilidade e o grau correspondente, determinar-se-á a
qualidade e quantidade da culpa, sendo que duas são as possibilidades que
serão consideradas: a justificação do acto ou acção da qual resulta a
imputação e o consequente juízo de culpa e sua graduação ou, simplesmente,
a sua (culpa) exclusão, no sentido de que o acto praticado deveu-se a algo
fora do controlo ou domínio do agente culpado.
Figueiredo Dias, abordando a questão da culpa em sentido material
começa por nos dizer que

Se a culpa jurídico-penal se encontra inevitavelmente funcionalizada


ao sistema, na medida em que quer cumprir uma função político-
criminal primária de limitação do intervencionismo estatal em nome
da defesa consistente da eminente dignidade da pessoa, justamente
por essa via ela tem de participar, segundo o seu conteúdo, de culpa
ética como violação pela pessoa do dever originário e essencial de
realização e desenvolvimento do ser-livre (do dela e do de todos os
outros). (Dias, 2012, p. 514).

Por outro lado, entende que se se quiser apreender o conteúdo de


culpa em sentido material, revela-se de importância crucial que se esclareça
o sentido que se pretende dar ou obter com o apelo à dignidade da pessoa
como aspecto limitativo do poder estatal na graduação das penas e afirma,
nesse sentido, Figueiredo Dias (2012, p. 514), que uma “explicação costuma
ser feita através das ideias de liberdade, da igualdade e da solidariedade que
assim se tornam em atributos dominantes da disciplina de todas as relações
sociais”. Conclui sua performance elevando a liberdade da pessoa como
fundamento ou pressuposto comum a toda a consideração da culpa nos
tempos actuais e que deve ser perseguida no caminho que ajude e conduza
ao esclarecimento e determinação do que seja culpa em direito penal.
O princípio da culpa, conforme expende Figueiredo Dias (2012, p.
510) “constitui hoje uma máxima fundamental de todo o direito penal”.

355
É aqui que começa ou pelo menos entendemos dever iniciar nossa
análise de culpa: Sua fundamentalidade na aferição do grau de culpabilidade
do agente. Preciso que se procure o sentido material de culpa, pois só assim
se poderá considerar a aplicação de alguma medida sancionatória ao agente
ou autor de um facto criminalmente censurável. Figueiredo Dias (2012, p.
510) afirma que “ela surge como uma censura jurídica dirigida ao agente
pela prática do facto”. Repare-se a formulação de Figueiredo dias: o facto e
não um facto. Pois é, não generaliza, mas remete o conceito para algo restrito
o que significa que a apreciação da culpa deve ser de acordo com o
circunstancialismo específico que rodeia a prática do facto do qual resulta a
culpabilidade do presumível infractor, culpa, diz Figueiredo Dias (2012, p.
510) “é censurabilidade por o agente ter agido como agiu e nisto se traduz a
concepção normativa do conceito de culpa”. Reitere-se que a culpa tem como
elementos a imputabilidade5 ou capacidade de culpa; a consciência do ilícito
e a exigibilidade de comportamento diferente e por outro lado que culpa,
serve como elemento de contrabalanço do poder estatal na aplicação das
penas associadas ao facto punível executado.
Apontando várias teses acerca do conceito de culpa, desde a culpa
da vontade, no sentido de alguém poder agir consoante certa situação e
neste sentido coloca o elemento subjectivo no facto, ou seja, nas sua próprias
palavras Figueiredo Dias (2012, p. 516) que “a submissão do conteúdo
material da culpa jurídico-penal à liberdade do agente parece conduzir por
força àquilo que bem se denominará o dogma da culpa da vontade”. E nesta
perspectiva deve-se entender que o agir do indivíduo deverá estar isento de
quaisquer acções externas que o obriguem a uma determinada acção e
sobretudo porque segundo Figueiredo Dias (2012, p. 516) “culpa só pode
ser censurabilidade da acção, por o culpado ter actuado contra o dever
quando podia ter actuado de acordo com ele”. Tendo em conta o atrás
mencionado, Figueiredo Dias (2012) revela que alguma dificuldade há de
resultar do facto de se apreciar a culpa mediante uma generalidade de
situações sendo que para ele o poder de agir de outra maneira há de ser
comprovável perante uma certa e determinada situação e ter-se-á em conta
a capacidade real de uma pessoa individual, na situação concreta da acção.
Só assim se poderá enxergar com (alguma) clareza acções culposas de
acções não culposas, acções mais culposas de acções menos culposas.

5
Capacidade de entender e de querer, ou seja, maturidade suficiente e bastante associados às condições
psíquicas do agente que permitam ao agente conhecer o carácter ilícito do seu acto e conduzir-se de acordo
com esse conhecimento.

356
A culpa do carácter

Esta, liga o poder de agir referido na culpa da vontade, mas agora ao


facto praticado, ao caráter ou à personalidade do agente. No entanto, deve
ter-se em atenção o facto de que não se busca a substituição da
responsabilidade pelo facto por uma responsabilidade pela personalidade,
mas conforme Figueiredo Dias (2012, p. 521) “tão-só substituir a adstrição
da culpa, sempre na base do facto, não à vontade que a este presidiu, mas ao
carácter ou à personalidade que no facto se exprime.

A culpa da pessoa

Esta tese parte do pressuposto de que o ser, o homem é


naturalmente livre, sendo esta uma característica à qual ele não pode,
livremente renunciar, pois no concreto, segundo Figueiredo Dias (2012, p.
524) “ele, no concreto existir, é sempre ser-livre”. daqui resulta que
qualquer acção motivada em razão de uma situação concreta tem de ser
segundo Figueiredo Dia (2012, p. 524) reconduzida a uma “decisão através
da qual o homem se decide a si mesmo, criando o seu próprio ser ou
afirmando sua própria essência o homem determina a sua acção
através da sua livre decisão sobre si mesmo”. E continua afirmando que

De modo que aquilo que, no plano da acção, parece ser liberdade de


indiferença, livre-arbítrio, é, no plano de existir, a liberdade de decisão
pelo próprio ser e sentido, a opção fundamental pela conformação da
sua vida: a liberdade daquele que tem de agir assim por ser como é”.
(Dias, 2012, p. 524).

Nisto reside a liberdade da pessoa como característica


irrenunciável. É daqui que segundo Figueiredo Dias (2012, p. 524) “Derivará
a legitimidade de uma acepção material de culpa jurídico-penal como
violação pelo homem do dever de conformar a sua existência por forma tal
que, na sua actuação na vida, não lese ou ponha em perigo bens jurídico-
penais”. Figueiredo Dias (2012) extratifica a culpa-jurídico penal assumido
relativamente a realidades, nomeadamente na lesão ou perigo de lesão de
bens jurídicos; na de que a liberdade da pessoa só se realiza na acção
concreta; e ainda na de que a personalidade do agente só releva para a culpa
na parte e na medida em que se exprime num ilícito-típico e o fundamenta.
Em conclusão, assente no poder de decisão do homem sobre si mesmo,
entende-se ser essa a personalidade da qual deriva a dignidade que se
pretende proteger e por via disso Figueiredo Dias (2012, p. 525), afirma que

357
estão criadas todas as condições para se afirmar que “toda a culpa é
materialmente, em direito penal, o ter que responder pelas qualidades
juridicamente desvaliosas da personalidade que fundamentam um
facto ilícito-típico e nele se exprimem”.

❖ Análise da alínea a) do n.º 2 do artigo 48 do Código Penal


Moçambicano, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 31 de
dezembro

A vida em sociedade implica, mas não se limita apenas à vontade dos


indivíduos. Reconduz-se a princípios que se reputam válidos informadores
e enformadores de acções, condutas e comportamentos que se adequem aos
ditames da promoção da paz social. Deste modo, aqueles princípios devem
ser capazes de integrar as vontades diversificadas, entenda-se, dos
indivíduos sem, todavia, propiciar momentos de tensão, ela sempre
presente, nas relações que se estabelecem com vista à realização pessoal em
particular e para a sociedade globalmente considerada. Espera-se que os
indivíduos, se comportem em função, não apenas dos seus apetites, mas
também no respeito pelos apetites dos outros. Tal significa que a liberdade
de uns termina, em princípio, onde a dos outros tem o seu início. Significa,
igualmente, que na sua interacção os indivíduos devem pautar suas acções
pelo respeito às regras postas a vigorar e que tem como finalidade última
regular a sua convivência de forma que a harmonia seja efectiva na
sociedade. Porém, dado que os indivíduos desenvolvem suas aptidões e
comportamentos em ambientes diversificados, uns tendentes a conduzir os
comportamentos de acordo com a ordem estabelecida, outros existirão que
tenderão a movimento contrário, nomeadamente o de, a todo o momento
pautarem seus comportamentos em claro confronto com a lei, donde por
consequência, a sociedade que os integra emitirá juízos de valor que
conduzirão, inevitavelmente, a uma censura criminal. É destes que a lei
criminal trata, pois os seus comportamentos desviantes conflituam com os
princípios que orientam e recomendam o bem geral.
Este comportamento, reprovável, desviante e censurável, de acordo
com o previsto no artigo 48, perante certas e determinadas condições
poderá encontrar alguma justificação e mesmo uma desresponsabilização,
algo com que, pelos motivos que passamos a expor, não podemos emprestar
a nossa (total) concordância.
Comecemos por procurar entender o alcance do artigo na sua
globalidade. Tem como epígrafe “Justificação do facto e exclusão de
culpa”. Nada contra a formulação, pois pela proximidade das situações que

358
relevam para as conclusões que levaram o legislador a enveredar tanto por
uma (justificação da culpa) ou pela outra (exclusão da culpa) justifica-se que
a epígrafe seja nos termos em que foi formulado, porém já assim não será
com a arrumação tando dos motivos que eventualmente justificam a culpa
bem como os que a excluem. Para uma melhor compreensão da nossa
posição, entendemos ser de todo necessário que analisemos de forma
extratificada a alínea a) do n.º 2 do artigo 48 do CP.
Diz o n.º 2 do artigo citado que “Constituem causas de exclusão de
culpa” e no meio de tantas causas, desponta aquela que nos despertou
atenção e que justificou o presente trabalho: a alínea a) daquele n.º 2
estabelece que aqueles que dominados por qualquer força estranha, física e
irresistível não serão penalizados pois sua culpa será considerada
inexistente em virtude daquele domínio da “força estranha” e,
taxativamente, prescreve que “os que praticam o facto violentados por
qualquer força estranha, física e irresistível” beneficiarão da exclusão de
culpa. Nada contra em relação à última parte daquela alínea, mas já assim
não será em relação à primeira no que diz respeito à questão da “força
estranha”.
Ora culpa é

imputação psicológica do acto ao agente, ou seja, atribuição do acto ou


das suas consequências ao agente, imputação é feita pela lei com base
em determinado estado psíquico do agente. Na apreciação da culpa há
elementos de facto – os do caso concreto – culpa em concreto – e um
elemento de direito que consiste na aplicação àqueles elementos de
um critério normativo – o do bom pai de família – imposto pela lei –
culpa em abstracto”. (Carmo, 2015, p. 76).

Podemos aqui fazer referência a uma situação que decorre da culpa


consciente, pois o agente ainda que tenha ou tivesse presente que do seu
acto resultaria algo ilícito, ainda assim permitiu-se agir daquele modo. Quer
dizer que, neste perspectiva sobra ao agente uma possibilidade de escolha
derivada do facto de que entre um mal e outro, ainda assim, ele poderia
optar por uma das acções sendo que a responsabilização e consequente
culpa, tanto numa como noutra situação, estará presente. Não olvidemos
que a determinação do grau da culpa é de importante relevância para efeitos
de cominação penal e por outro lado para se ser suscetível de juízo de
culpabilidade, necessário se torna que o agente seja imputável.
Olhemos, novamente para outro aspecto da alínea a) do n.º 2 do
mencionado artigo 48 e procedamos à sua “divisão” em força:

359
1. Estranha
2. Física e irresistível
Antes, contudo, de apreciarmos as nuances que caracterizam cada
uma das acepções acima mencionadas, entendemos dever elaborar sobre o
conceito de coação e neste sentido Prata (2010, p. 294), expende que é “o
acto exercido por alguém (...) que impede ou vicia a vontade (...)”. E continua
afirmando que a coação pode ser física ou moral. A primeira, sendo absoluta
exclui completamente a vontade e a segunda muito embora também incida
sobre a vontade do agente, sua consideração no facto difere da que pode
caber à primeira.
Comecemos pela segunda. A Força física em referência representa o
que comummente se designa por coação física e pode ser vista sob dois
pontos de vista, designadamente coação física simplesmente considerada e
coação física absoluta, sendo que a indicada no artigo em crise coincide com
esta última, e de acordo com F. Carmo (2015) neste tipo de coação, não é
dado ao agente qualquer possibilidade de actuar de outro modo senão
aquele a que no momento é obrigado, ou seja, o coagido tem a liberdade de
acção totalmente excluída.
É nossa profunda convicção que à primeira (força estranha)
podemos associar, por exclusão da segunda, a coação moral. Esta (coação
moral), conforme já afirmado, concede certa liberdade do agente tomar uma
atitude diferente daquela que lhe é imposta, ou seja, tem possibilidade de
escolha entre uma acção e outra, ou seja, a liberdade do agente ou do coagido
está apenas cerceada o que significa que sempre há de sobrar uma réstia de
vontade psicológica que, aferido em função de uma situação concreta
impelirá o agente coagido a adoptar um comportamento que não excluindo
a culpa poderá, todavia justificar o facto que não deixará de preencher os
requisitos de um crime. Uma coisa é o facto que merece censura criminal
outra é afirmar que, por poder ser integrado na coação moral exclui a culpa
do agente. Repete-se: a coação moral, apenas limita a acção do agente, mas
não em absoluto e sim parcialmente. Se parcial, então, justo se mostra
afirmarmos que agindo no sentido criminal havendo possibilidade de
escolha, o agente deve ser responsabilizado pelo resultado que se obtém da
sua actuação. Sublinhe-se que, nesta situação, de coação moral, não se coloca
a possibilidade de o agente agir com dolo, pois não desejou o resultado e
nem agiu com ânimus interno contrário ou indiferente ao direito. Sabia que,
da sua acção resultaria um ilícito criminal, porém, ainda assim agiu.
Ressalve-se que o agente só poderá ser punido no caso em que o agente,
sobrepôs conscientemente, os seus interesses pessoais ao desvalor do ilícito,
ou seja, conscientemente em contradição com o Direito. Igualmente, não se

360
deve pensar que o facto de alguém ser moralmente coagido à prática de uma
acção que se consubstancia como ilícito lhe retira ou destrói o princípio
pessoal e o ser livre.

Fundamento e âmbito da exclusão da culpa

A concepção normativa da culpa ditou, segundo Figueiredo Dias


(2014, p. 602) que ela fosse tida “como censurabilidade do facto em atenção
à capacidade do agente para se deixar motivar pela norma (por ter agido
ilicitamente, quando podia ter-se comportado de outra maneira)”. Por outro
lado, o mesmo autor ensina que

as circunstâncias exteriores na moldura das quais se desenvolve um


facto, podem configurar-se de tal maneira (...) que arrastem
irresistivelmente o agente para sua prática roubando-lhe toda a
possibilidade de se comportar diferentemente... aceitando a exclusão do
poder de agir de outra maneira tem a possibilidade de por força da
situação exterior. (Dias, 2012, p. 602).

A exigibilidade de conduta diversa ou comportamento diferente da


praticada (conforme se pode aferir do disposto no artigo 48 do CP, quando
analisado deve ter-se em conta que integra tanto situações configurativas de
coação moral bem como de coação física.
Porque as duas figuras implicam, necessariamente, uma
interpretação cujos resultados divergem, julgamos ser importante
encontrar o que diferencia uma da outra e, nestes termos, na coação física o
indivíduo que pratica o facto sequer tem vontade da prática do facto.
Lembre-se que a vontade, em direito penal, é diferente da vontade comum,
pois naquela ela corresponde, sempre, às nossas manifestações. Assim, a
coação física, por excluir a conduta (elemento) do facto típico, exclui a
vontade e desta forma, não permite sequer a configuração de crime. No caso
da coação moral a vontade não é excluída e por via disso, cabe uma análise
no sentido de verificar se a sociedade espera do agente outra atitude ou
conduta donde provirá o juízo de censura ou de reprovação verificando se
há ou não aspectos que nos levem a concluir se há ou não culpa do indivíduo
prevaricador. Assim, pelo exposto, resulta claro que a coação moral não
exclui a culpa, porém espera que o comportamento seja censurado, já que a
análise àquele ditará se a sociedade espera do agente, conduta diversa da
que conduz ao facto ilícito.
No entanto, cabe reflectir se no caso de verificação da coação moral
é sempre que o coagido não será culpado, ou seja, criminalmente

361
responsabilizado e nesse sentido, para se aferir a culpabilidade, ou não, do
agente praticante do facto punível (facto criminoso). Revela-se necessário
avaliar a espécie da coação em concreto e deste modo se o coagido poderia
resistir à coação sofrida (coação moral resistível) concluir-se-á pela
responsabilização pelo facto punível praticado não sendo esperada conduta
diversa e, por consequência a culpa estará presente. Se, por outro lado o
coagido não poderia de qualquer modo resistir à prática da infracção penal,
concluir-se-á que não há espaço, ou não há que se falar em responsabilidade
criminal, já a exigibilidade de conduta diversa será excluída e a sociedade
não esperará outra conduta se não a delituosa.
Daqui pode-se concluir que havendo coação física (irresistível)
exclui-se o juízo de censura e por consequência não há culpa e a coação
moral exclui a reprovação e por consequência há culpabilidade. Há crime,
ressalve-se, mas não há responsabilidade criminal.
Assumindo que o indivíduo pratica o facto criminoso subjugado por
uma coação (física) irresistível, resulta óbvio que dele não se esperará outro
comportamento senão o que conduz ao que lhe é exteriormente induzido e
por consequência à conduta delituosa. No entanto, fazer com que este
momento seja de consideração geral revela-se algo desproporcional com o
fim do direito penal (de entre outros, a protecção de bens jurídicos
fundamentais) e por outro lado colocaria em causa a eficácia de um direito
de culpa e por isso de aplicação insustentável. Por isso, impõe-se que a
exigibilidade tenha de ser aferida face à valoração individual dos motivos
pelo agente e não apenas sob ponto de vista da ordem jurídica. Figueiredo
Dias (2014) a propósito ensina, até como que em modo de censura, que a
visão de uma valoração eminentemente focada na pessoa do agente levaria
a que, sempre que a acusação não conseguisse provar que, no momento da
prática do facto criminoso a concreta pressão do circunstancialismo
exógeno exercida sobre o agente (cuide-se aqui de imaginar um agente sem
as características de um bom pai de família) cuja capacidade de resistência
à coação/pressão é diminuta, este teria ou podia ter-se se comportado de
acordo com a norma e ter-lhe oposto resistência, fosse absolvido do facto
criminoso. Sustente-se que o Crime integra o facto típico, ilícito e culpável.
Sendo o elemento de culpabilidade que no presente trabalho se está a
discutir, ele só estará excluído quando circunstâncias ponderosas se
ponham entre o agente e a efectivação da conduta que conduza ao facto
punível. Não entendemos que seja o caso quando à pessoa apenas é cerceada
(e não absolutamente) podendo o agente adoptar uma conduta que lhe não
faça cometer o crime. Por outro lado, e ainda segundo Dias (2014, p. 603-
504), não se pode esperar que a inexigibilidade constitua substancialmente

362
uma causa de exclusão de culpa, mas simples e “unicamente um motivo do
que chama de renúncia da ordem jurídica a punir uma culpa que subsiste,
mas em grau diminuto”.
Se se assumir que no caso em concreto da

imputabilidade e da consciência da ilicitude estaria confirmado o


poder de o agente se deixar motivar pela norma e por isso de agir de
acordo com o direito, de responder ao apelo afirmativo deste, a
exigibilidade não se ligaria deste modo à fundamentação da censura
da culpa, nem tão-pouco à inexigibilidade à sua exclusão, mas apenas
à sua quantificação em particular, à circunstância de a culpa se
encontrar em certos casos especialmente diminuída”. (Dias, 2014, p.
604).

Reitere-se, a possibilidade de o agente ser culpado pelo facto punível


eventualmente praticado é diminuída e não excluída!
A lei estabelece de forma clara e inequívoca as causas de que a
ordem jurídica posta a vigorar podem ser chamadas a intervir para a
exclusão de culpa, designadamente o estado de necessidade e a legítima
defesa. Tentar invocar outras implica um exercício que forçosamente devera
incluir uma análise da personalidade do indivíduo separada da ordem
jurídica que deve salvaguardar e proteger interesses fundamentais da
sociedade. Portanto, generalizar as situações em que, eventualmente, se
pode assumir e exigir dos agentes conduta diversa leva a considerações de
ordem errônea, pois é se levado a omitir em concreto as condições pessoais
específicas do agente e que devem ser tidas em conta na análise que se
deseja na compreensão do momento em que se deve ou se pode excluir a
culpa.
Figueiredo Dias (2012, p. 609-610) conclui dizendo que “a
correspondência do facto àquele que seria também praticado por um
homem fiel ao direito; e não manifestações naquele de qualidades da
personalidade juridicamente desvaliosas e censuráveis”. merece uma
apreciação e determinação, mediante o circunstancialismo e as condições da
pessoa do agente (se não é onerado por um dever relacionado com o
exercício da sua profissão) a que chama dever especial. Daqui que entende
que a inexigibilidade não deva ser de cunho generalizado, mas só deva ser
tida em conta nos termos em que a própria lei dispõe para o efeito. Ainda,
no mesmo diapasão de uma análise circunstanciada da situação que leva à
exclusão de culpa do agente aponta que

É em definitivo à lei que pertence definir as situações relativamente


às quais reconhece (seja em função do perigo, seja do bem jurídico

363
lesado, seja do círculo de agentes que à desculpa podem remeter-se,
etc.) que a pressão exterior das coisas para o facto ultrapassa a
resistência que ela espera de uma personalidade (fiel ao direito): só
nessas situações deve, em princípio, reconhecer-se a exclusão da
culpa por inexigibilidade. (Dias, 2012, p. 610).

Eduardo Correia afirma que

o juízo de censura em que se estrutura a culpa não se esgota numa


relação subjectiva do facto com o agente sob forma de dolo ou
negligência, mas supõe sempre a possibilidade de se exigir do agente
um outro comportamento, supõe sempre a sua liberdade. (Correia,
2014, p. 443).

Ora mais uma vez fica a percepção, algo correcta, de que, apesar da
possibilidade de imposição de alguma pressão sobre o agente, a este resta
alguma liberdade de agir, para optar pelo criminalmente correcto, ou seja,
conformar-se com a norma pelo facto do presumível conhecimento ou
potencial conhecimento da ilicitude de que o acto a ser executado sob aquela
pressão é desconforme com a ordem jurídica, um facto, portanto, censurável
criminalmente. Se há imputabilidade, então, há culpa
Se é ponto é aceite que o direito pode, além de promover valores morais
se entregar à protecção de outros, assume-se como afirma Eduardo Correia
(2014, p. 449) que “pode pretender educar e transformar as concepções
existentes”. No entanto tal situação pode encontrar alguma dificuldade de
concretização se se admitir a não exigibilidade como fundamento da exclusão
da culpa, sobretudo quando se considera o poder de agir de outra maneira de
um bom pai de família. Disto resulta que quando o legislador coloca certos e
determinados aspectos da personalidade do indivíduo como relevantes para
modelarem sua forma de agir pretende que o agente actue de forma a
conformar-se com o direito tendo como pressuposto, exactamente, o domínio
sobre si mesmo que o indivíduo deve possuir.
Atente-se que os factores ou princípios através dos quais se pode
chegar à conclusão da exclusão da culpa o Código Penal tem-nas como
emanações positivas e tipificadas, designadamente o excesso de legítima defesa,
o estado de necessidade que exclui a culpa, todas previstas de forma expressa
na lei.

Conclusão

Resulta claro que a análise a que se procedeu nos itens antecedentes


conduz-nos a entendimentos cuja apropriação se revela agora, ou seja,

364
conclui-se do estudo efectuado que a questão da exclusão da culpa não deve
ser analisada apenas sob ponto de vista do indivíduo, de forma isolada, deve
também ter em conta o facto que deu origem à conduta reprovável do
agente. Assumir que qualquer “força estranha”, sem a definir concretamente
pode levar a juízos de reprovação, é certo, porém retirando do contexto
próprio os factores que o legislador expressamente indicou como aquelas
que podem excluir a culpa do agente cujo comportamento se imputa,
nomeadamente a inimputabilidade conforme consta dos artigos 46 e 47.
Por outro lado entende-se que a falta de uma caracterização da
alínea a) do n.º 2 do artigo 48, induz a uma percepção que legitime uma
conclusão algo errônea, pois coloca no mesmo patamar, situações, a nosso
ver incompatíveis, tais sejam a justificação do facto e a exclusão de culpa.
Uma coisa é justificar uma acção tida por ilícita em virtude de uma força
estranha fora do seu controlo (caso da coação física), pois coarctada a
liberdade do agente e outra excluir a culpa da mesma acção tida por ilícita
numa perspectiva em que a liberdade do agente é apenas cerceada, deixando
uma margem de actuação do agente no sentido de se determinar em
conformidade com a ordem jurídica. Nesta última situação entendemos que
que a culpa prevalece, pois o agente podia ter-se conduzido no sentido da
lei. No entanto aceitamos que em situações análogas tal “força estranha”
possa justificar o facto e, eventualmente, isentar o agente de
responsabilidade criminal, mas da culpa.
Aliás, refira-se que a Lei Penal6, revogada pela Lei n. 35/2014, de 31
de dezembro, com a epígrafe, (Causas de justificação e de exclusão de culpa)
o artigo 44.º, n.º 1.º indicava como justificando o facto, entre outros,
precisamente, “os que praticam o facto violentados por qualquer força
estranha, física e irresistível”, posição com a qual no presente trabalho
emprestamos a nossa concordância.

Referências

Doutrina

DIAS, J. de F. Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral


do Crime. Tomo I. 2.ª edição. 2.ª Reimpressão. Coimbra. Coimbra Editora. 2012.

CORREIA, E. Direito Criminal. Vol. I Reimpressão (col). Figueiredo Dias. Almedina. 2014.

6
Decreto de 16 de setembro de 1886, que aprovou o Código Penal que vigorou em Moçambique até que
foi revogado pela Lei n.º 35/2014, de 31 de dezembro que aprova o Código Penal actualmente em vigor.

365
CARMO, F. C. L. Dicionário Jurídico. Contratos e obrigações. Volume I. Escolar Editora.
2015.

PRATA, A. Dicionário Jurídico. Direito Civil. Direito Processual Civil. Organização


Judiciária. Vol. I. 5.ª edição. Almedina. 2011.

REALE, M. Filosofia do Direito. 20.ª edição. São Paulo. Saraiva. 2002.

SILVA. F. Direito Penal Especial. Crimes contra as pessoas. Crimes contra a vida.
Crimes contra a vida intra-uterina. Crimes contra a integridade física. 2.ª edição
(revista e actualizada). Quid Juris Sociedade editora. Lisboa. 2008.

Legislação

Constituição da República de Moçambique, aprovada pela Lei n.º 1/2018.


Código Penal de Moçambique, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 31 de dezembro.

366
PRISÃO PREVENTIVA COMO MECANISMO DE
PRÉ-RESPOSTA ESTATAL À CRIMINALIDADE E
SUA AFRONTA À LEGALIDADE PENAL EM
MOÇAMBIQUE

MPUTU MPIA1
ABDUL LATIBO MAMADE MUSSA2

I. INTRODUÇÃO

Em moçambique, a prisão traduz-se na consequência


simultaneamente mais paradigmática e mais extremosa em decorrência de
lesões a bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. O facto da existência
da liberdade da liberdade é, indesmentivelmente, a manifestação mais
sonante do poder punitivo do Estado na sua função de guardião dos valores
axiológicos que nos são aprovisionados pela consciência moral colectiva,
cerceando-se um dos mais nucleares direitos de que são titulares os
cidadãos, o direito de liberdade universalmente concebido como direito
umbilicalmente da vida humana.
Num Estado de Direito Democrático, a pessoa humana e o respeito
pela sua dignidade surgem como fim último de qualquer actividade que aí se
exerce, o que implica a existência de mecanismos de controlo, ordem e
segurança. Neste tipo de Estado, a actividade de investigação criminal tem
de respeitar as normas e princípios de direito democrático, assim como, e de
forma integral, os direitos fundamentais da pessoa humana. Os meios
humanos e materiais devem ser correctamente equacionados, pois também
só assim é possível garantir o cumprimento de todos esses fins e elevar o
nível do profissionalismo dos vários intervenientes que são chamados a

1
Mputu Mpia, (2020); Assistente Universitário da UCM, Licenciado em Direito pela Universidade de
Kinshasa, Mestre em Ciências Política Governação e Relações Internacionais da Universidade Católica
Portuguesa, Doutorando em Direito Público 3ª edição da Faculdade de Direito Nampula da Universidade
Católica de Moçambique;
2
Abdul Latibo Mamade Mussa, (2020); Licenciado em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais e
Políticas pela Universidade Católica de Mozambique, Mestre em Ciências Política Governação e Relações
Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Políticas da UCM, Doutorando em Direito Publico 3ª
edição Faculdade de Direito Nampula da Universidade Católica de Moçambique.

367
desempenhar um papel de relevo no âmbito da investigação criminal,
competência da polícia e outros organismos legitimados.
O regime instituído no novo Código de Processo Penal respeitante
a disciplina das medidas de coacção, a prisão preventiva (atrigo 243)
continua sendo a medida mais gravosa, todavia, ao lado dela, e com feições
similares a ela, surpreende-se, no artigo 242, outra medida de coacção, entre
nas inovatórias: obrigação de permanecer na habitação, também
denominada, na Doutrina, prisão domiciliária.
A prisão preventiva com sua legalidade e fundada nos artigos 311
a 316 do CPP, é uma prisão provisoria decretada pelo juiz em qualquer fase
de inquérito ou da instrução criminal para garantir a ordem jurídica social.
É cabível apos da instrução criminal e possível sua decretação. Ainda
salientar em Moçambique a autoridade competente para decretar a prisão
preventiva é o juiz. Em se tratando da competência originária dos tribunais
através do juiz da instrução. Para que o juiz possa decretar a prisão
preventiva não precisa haja solicitação de quem quer que seja. Por outro
lado, em nome do princípio da legalidade, o Ministério Publico, o querelante
ou assistente e a Autoridade Policial poderá requerer a prisão preventiva.
Por António Paulo Namburete3, Juiz Conselheiro do Tribunal
Supremo em Moçambique, insiste nas medidas coactivas no código em vigor
que que a prisão é autorizada em flagrante delito, por crime a que
corresponde a pena de prisão, cfr. n°. 1 do artigo 286 e artigo 287. Todas
autoridades ou agentes de autoridade devem, e qualquer pessoa do povo,
prender os infractores. Portanto os presos fora de flagrante delito devem ser
apresentados ao juiz da causa ou da instrução criminal dentro do prazo de
quarenta e oito horas, ou de cinco dias quando se mostre absolutamente
necessária maior dilação, nos termos do disposto no artigo 311 do CPP.
Ainda para sustentar, o Acórdão 4/CC/2013 do Conselho
Constitucional restringe aos juízes o poder de ordenar a prisão preventiva
para casos fora do flagrante delito. Essencialmente, isso significa que, nos
casos fora flagrante delito, a polícia deve informar um juiz de instrução
criminal, que tem o poder exclusivo de emitir um mandado de captura do
suspeito.4
Para tanto adoptou-se o método qualitativo com revisão da
literatura jurídica que dispõe sobre a matéria, bem como o princípio da
legalidade utilizado nos instrumentos jurídicos Moçambicanos.

3
Juízes capacitados em matérias de Prisão Preventiva e Habeas Corpus in
http://www.ts.gov.mz/index.php/pt/imprensa/noticias/348-juizes-capacitados-em-materias-de-prisao-
preventiva-e-habeas-corpus. Acessado em: 20 nov. 2020.
4
LORIZZO, Tina; PETROVITCH, Vanja. Poderes de detenção limitados pelo Conselho Constitucional
de Moçambique – O impacto do Acórdão 4/CC/2013, 2019. Disponível em:
https://reformar.co.mz/publicacoes/detencao-o-impacto-do-acordao-de-2013-3.pdf. Acessado em: 20 nov.
2020.

368
II. O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

A ideia de Estado tem sua origem sobretudo “na construção, desde


os primórdios da civilização, da necessidade de disciplinar-se o
comportamento humano em comunidades, objectivando assegurar a
coexistência pacífica dos indivíduos, restringindo a liberdade de acção em
figura de algum comando coordenador da respectiva colectividade. Ou seja,
o Estado é uma “entidade abstracta, criada pelo homem para disciplinar a
vida dos indivíduos no interesse geral”5.
Na opinião do MANOEL FILHO, o Estado é “uma associação humana
(povo), radicada em base territorial (território), que vive sob o comando de
uma autoridade (poder) não sujeita a qualquer outra (soberania)”6.
MARCELO CAETANO, por sua vez, define Estado como sendo “um povo
fixado num território, de que é senhor, e dentro das fronteiras desse
território institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis
necessárias à vida colectiva e imponham a respectiva execução7". Nesta
perspectiva poder-se-á partilhar a tese que defende que o “Estado é apenas
aquela comunidade que, como instância suprema, dispõe de instrumento de
direcção normativa, que tem, portanto a supremacia das competências” 8.
O Estado moderno, enquanto uma colectividade política e
juridicamente organizada em determinada área territorial e dotado de
soberania, é emergente das teorias contratualistas, resultado das
necessidades políticas de pôr fim à luta de todos contra todos, com ideia da
paz social duradoura na sociedade. Há que salientar a existência dos fins
comunitários e dos fins do Estado. Nesta perspectiva “os fins estaduais e
comunitários reconhecidos, bem como as funções e de infraestrutura,
determinam o tipo e a medida das funções estaduais.

III. BREVE HISTÓRICO SOBRE A PRISÃO PREVENTIVA EM


MOÇAMBIQUE

À semelhança do que acontece noutros países de África, o regime


jurídico e a prática da prisão preventiva ainda enfrenta desafios ligados a
normas permissivas ao excessivo recurso à prisão preventiva com uma
duração prolongada, o que tem implicações nos direitos humanos conexos,

5
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2009, 4ª ed.
6
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves (2002) Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva,
2002, 20ª ed.
7
CAETANO, Marcelo. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Tomo I. Coimbra: Almedina.
2009.
8
DIAS, Hélder Valente. Metamorfoses da Polícia: Novos paradigmas. Coimbra: Almedina, 2012.

369
nomeadamente, o direito a dignidade, o direito a julgamento em tempo
razoável.
Neste contexto, o estudo que ora se apresenta tem em vista auditar o
regime jurídico e a prática da prisão preventiva em Moçambique, com o
objectivo de avaliar a sua conformidade com as normas internacionais dos
direitos humanos que fixam os padrões mínimos, aceitáveis, para o
tratamento da pessoa humana em estabelecimentos de detenção, assim
como recolher e analisar os dados referentes à implementação prática do
regime em vigor e o seu impacto na vida das pessoas, na sociedade e nas
famílias.
Alcançado pelo Processo Penal transita pela incerteza de futura
comprovação, descomprovação ou inconclusão acerca da materialidade e
autoria delitivas. Trata-se de percurso da Justiça que culminará com a
absolvição ou condenação do réu, ninguém nesta fase pode oferecer um
prognóstico seguro, exemplifica risco inerente ao Processo Penal.9
O Centro de Direitos Humanos na disponibilização de instrumentos de
análise que permitem uma melhor compreensão do quadro jurídico,
institucional e social da prisão preventiva e resulta de uma parceria
estratégica com a Open Society Initiative for Southern Africa (OSISA);

IV. CONTEXTO DA PRISÃO PREVENTIVA

Na Idade Antiga, a prisão como pena não era conhecida e havia, tão-
somente, o encarceramento provisório. A prisão era, portanto, apenas uma
forma de manter o indivíduo sobre o controle do Estado, mas a sanção penal
consistiria não na privação da liberdade, mas em pena de morte, corporal e
infamante. Até o século XVIII a prisão era vista como meio de preservar a
integridade do acusado e manter seu domínio físico enquanto esperava para
ser julgado e submetido à execução da pena que lhe fosse imposta. Havia,
nesse momento, apenas a prisão sob a forma de custódia.
As penas eram estabelecidas pelo arbítrio dos governantes e o
principal critério para estabelecê-las era o estatuto social a que fazia parte o
investigado:

A amputação dos braços, degolar, a forca, incendiar, a roda e a


guilhotina, proporcionando o espectáculo e a dor, como por exemplo,
a que o condenado era arrastado, seu ventre aberto, as entranhas
arrancadas às pressas para que tivesse tempo de vê-las sendo
lançadas ao fogo. Eram essas penas que constituíam o espectáculo

9
BARROS, Romeu P. (1982); de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense.

370
favorito das multidões deste período histórico, em alguns casos
também se usava como “pena” tornar o “réu” em escravo. (MISCIASCI,
1999)10

Surgem, nesse período histórico, a prisão do Estado e a prisão


Eclesiástica. Naquela, eram enviados ao cárcere os inimigos do Estado cujos
delitos seriam de traição ou compunham a classe adversária que poderiam
ser colocados em dois tipos de prisão: a prisão provisória ou a prisão pena,
que seria temporária ou perpétua.
Já a prisão eclesiástica era aplicada aos membros da Igreja que não
obedecessem às regras que lhes cabiam. Assim, eram colocados em lugares
fechados em mosteiros, privados de sua liberdade, para que buscassem o
arrependimento pelos erros cometidos. O Direito Canónico, por introduzir
no direito uma espécie de prisão mais humana do que a prisão do Estado,
baseada em tortura, influenciou sobremaneira a prisão pena actual, cujos
principais objectivos são ressocializar e privar da liberdade, com respeito ao
direito fundamental da dignidade da pessoa humana.
Foi na Idade Média que a prisão preventiva tomou maiores contornos
na sociedade e foram criados centros penitenciários para manter os presos
provisórios a fim de que, nesses lugares, permanecessem até serem julgados
pela inquisição. Assim, de acordo com Marcelo Iranley Pinto de Luna Rosa
(2008)11:

A prisão cautelar era realizada nos penitenciários que em geral


estavam localizados nos subterrâneos, com celas individuais, escuras
e imundas, porque, segundo os inquisidores, só assim elas seriam
propícias à penitência, à expiação e a purgação. Havia uma
dependência para os suplícios que eram progressivos, desde os mais
brandos até os mais violentos, e desde que o supliciado não se
“arrependesse” e não se “convertesse”, seria lançado vivo à fogueira.

No geral, o estudo constatou que o quadro jurídico vigente garante um


mínimo de direitos fundamentais aos reclusos em prisão preventiva,
assentes na Constituição da República que garante a presunção da inocência,
o direito à liberdade, o direito de ser assistido por um defensor da sua
escolha, o direito de ser informado sobre as razões da sua detenção e a

10
MISCIASCI, Elizabeth. Como e aonde surgiram as prisões? Disponível em:
http://www.eunanet.net/enn/revistaeunanet/sistema-prisional/?4/inicio-das-prisoes. Acesso em: 05 nov.
2020.
11
ROSA, Marcelo Iranley Pinto de Luna. Cautelaridade da prisão preventiva. Disponível em:
http://artigos.netsaber.com.br. Acesso em: 05 nov. 2020.

371
existência de meios alternativos à prisão preventiva, tais como a caução e
termo de identidade e residência (TIR);
O artigo 64 da Constituição da República de Moçambique estabelece12:

1. A prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei, que fixa os


respectivos prazos.
2. O cidadão sob prisão preventiva deve ser apresentado no prazo fixado na
lei à decisão de autoridade judicial, que é a única competente para decidir
sobre a validação e a manutenção da prisão.
3. Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e
de forma compreensível das razões da sua prisão ou de detenção e dos seus
direitos.
4. A decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida de privação da
liberdade deve ser logo comunicada a parente ou pessoa da confiança do
detido, por estes indicados. A decisão do Conselho Constitucional reforça as
disposições constitucionais, reconhecendo a autoridade exclusiva dos juízes.

Todavia, ainda existem desafios por enfrentar no domínio normativo.


É o caso da lei ordinária, mormente o regime do processo penal, que por ser
demasiadamente antiga não é consentâneo com o quadro jurídico-
constitucional sobre a prisão preventiva. Esta posição foi recentemente
reafirmada pelo Conselho Constitucional que declarou inconstitucionais
algumas disposições do Código de Processo Penal.
Contudo, o novo Código Penal a vigorar a partir do próximo ano veio
corrigir esta situação por ter adoptado uma filosofia de penas não privativas
à liberdade (medidas socioeducativas e socialmente úteis), medidas
alternativas a prisão (transacção penal e suspensão condicional de
processo) e as penas alternativas à pena de prisão (prestação de trabalho
socialmente útil, a prestação pecuniária ou em espécie, a perda de bens ou
valores, a multa e interdição temporária de direitos).

V. REQUISITOS DE PRISÃO PREVENTIVA

O artigo 243 novo código de Processo Penal13 ou seja a Lei nº


25/2019 de 25 de dezembro apresenta os requisitos para uma prisão
preventiva:

12
Constituição da República de Moçambique de 2014.
13
Lei n° 25/2019 de 25 de dezembro; Código de Processo Penal.

372
1. Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas
nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva
quando:
a) houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com
pena de prisão superior a 2 anos; ou
b) se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça
irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em
curso processo de extradição ou de expulsão.

2. Mostrando-se que o arguido a sujeitar a prisão preventiva sofre de


anomalia psíquica, o juiz pode impor, ouvido o defensor e, sempre que
possível, um familiar, que, enquanto a anomalia persistir, em vez da prisão
tenha lugar internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro
estabelecimento análogo adequado, adoptando as cautelas necessárias para
prevenir os perigos de fuga e de cometimento de novos crimes.

Medidas Cautelares restritivas de Liberdade

Alcançado pelo Processo Penal transita pela incerteza de futura


comprovação, descomprovação ou inconclusão acerca da materialidade e
autoria delitivas. Trata-se de percurso da Justiça que culminará a
possibilidade da absolvição ou condenação do réu, que longe de oferecer
prognóstico seguro, exemplifica risco inerente ao Processo Penal.14
Falando da cautelaridade algumas vezes pode apresentar
enganador se não se atentar ao cerne desta problemática no Processo Penal:
o objectivo de escapar um perigo verdadeiro que seja apto a inviabilizar a
apuração da realidade e o provimento íntegro. Assim, se desavisadamente
observarmos a problemática da cautelaridade por alguma de seus
resultados práticos e esquecermos seu fundamento, estaremos nos
afastando também da responsabilidade do operador do direito de admitir a
redução da liberdade como medida excepcionalíssima.

Prisão Preventiva e Ordem Pública

Apesar de ter os requisitos que a lei sobre a prisão preventiva a


doutrina também enumera alguns que enumeramos na nossa pesquisa. É

14
BARROS, Romeu P. de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

373
nesta fase olhar sobre a garantia da ordem pública no momento que o reu
esta na fase de detenção, e que a ordem pública não seja perturbada.
A ordem pública, em muitos ordenamentos erigida à categoria de
cânone do processo penal, já em 1789 foi utilizada para reconhecer o direito
de opinião (art. 10 da Declaração de Direitos do Homem).15A partir de então,
por tantas vezes foi reempregada que alcançou status de autêntico
referencial para muitos modelos de Estado.
Se analisamos especificamente a palavra ordem, encontramos uma
constante modulação entre aquilo que vai ser e aquilo que deve ser. Trata-
se de arranjo que segue determinada metodologia; ajuste de uma
circunstância a certas condições previamente estabelecidas sem as quais se
caracteriza a desordem. Daí se afirma que a ordem compreende não apenas
a realidade como ela é, mas também a indicação de como a realidade deve
ser. A ordem está sempre constituída por certa disposição dos elementos,
em que cada qual apresenta lugar no conjunto e para que assim se possa
formar uma unidade.16
A ordem pública, por sua vez, estabelece o status quo de
circunstâncias da vida que exponham a normalidade da coletividade de uma
dada sociedade ou da comunidade, a tranquilidade e paz social que
possibilitem o crescimento das relações sociais e econômicas. Há que se
pensar, pois, na habitualidade de comportamentos e eventos, para se
vislumbrar, por via inversa, as situações aptas à caracterização de
irregularidades ou de situações perturbadoras.
Falando da ordem pública, a tranquilidade na sociedade é um elemento
capital para salvaguardar o bem-estar e o bem jurídico do lugar que foi
cometido o crime. A sociedade quere ver como esta ser punidos todos
elementos ou seja os delinquentes que estão a perturbar a ordem publica da
sociedade.

VI. PRAZOS DE PRISÃO PREVENTIVA

Duração curta da prisão preventiva dada a circunstância de


aplicação da detenção ou prisão preventiva, numa fase em que o arguido
goza da presunção da inocência, a sua duração não deve ir para além do
estritamente necessário para a realização do inquérito ou investigação, a
protecção da sociedade e da vítima

15
"Article 10. Nul ne doit être inquiète pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leur manifestation
ne trouble pas l’ordre établi par la loi."
16
BECHARA, F. R. (2005); Prisão cautelar. São Paulo: Malheiros.

374
O Código de Processo Penal e alguma legislação penal avulsa prevê
em diferentes Prazos de Prisão Preventiva, nomeadamente17:

Prazo da Prisão Preventiva nos Processos Sumários


A prisão preventiva pode ser decretada, apenas, nos casos em que se
verificar a existência de flagrante delito, podendo durar até 15 dias.

Prazo no Processo de Polícia Correccional


Os Prazos da Prisão Preventiva nos Processos de Polícia Correccional
são de 20 dias na fase de instrução preparatória (fase de recolha da prova
dirigida pelo Ministério Público, nos termos do artigo 14 do DL 35007, de 13
de Outubro de 1945) e de três meses na fase da instrução contraditório (fase
de recolha da prova dirigida pelo Juiz da causa, nos termos do disposto no
artigo 330 do CPP, nos termos do disposto no n°. 1, do § 1.° e no n°. 1, do §
2.°, ambos do artigo 308 do CPP, respectivamente.

Prazo no Processo de Querela


Nos Processos de Querela, os prazos de prisão preventiva são de 40 dias
na fase de instrução preparatória e de 4 meses na fase da instrução
contraditória, nos termos do que resulta do disposto no n°. 2, do § 1º e no nº
2, do § 2º, Ambos do artigo 308 do CPP, respectivamente.
a) O Prazos da Prisão Preventiva nos processos cuja realização da Instrução
Preparatória compete à Policia da Investigação Criminal, como é o caso da
instrução preparatória dos crimes de tráfico de estupefacientes, previstos
na Lei n°. 3/97 de 13 de março, onde se prevê no artigo 77 que a instrução
preparatória é da exclusiva competência da PIC, os prazos da preventiva são
de 90 dias na fase de instrução preparatória e de 3 meses ou quatro meses
na fase de instrução contraditória, conforme o crime deva ser julgado da
forma do processo de polícia correccional ou na forma do processo de
querela.
b) Nos processos querela, os Prazos de Prisão Preventiva após a Pronúncia.
O único caso em que se faz a pronúncia do arguido, impõe a manutenção da
culpa formada até a decisão judicial definitiva com consequente manutenção
da prisão preventiva salvo se houver despronúncia ou absolvição, nos
termos do que resultava do disposto na norma constante do § 3º, do artigo
308 do CPP.

17
O Código de Processo Penal.

375
Este horizonte temporal inclui-se no computo da contagem dos
prazos de prisão preventiva sem culpa formada fixados no artigo 308 do
CPP, que são de 20,40 e 90 dias, respectivamente, desde a captura até a
notificação do arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditora
pelo Ministério Publico, por crimes a que caiba pena correccional, pena
maior ou crimes cuja instrução seja da competência exclusiva do SERNIC.

Competência da Polícia Judiciaria

Como todo conceito fundamental dos estudos jurídicos, a noção de


competência busca delimitar, e sistematizar de forma lógica, o vasto
espectro de poderes conferidos pela norma jurídica à autoridade pública.
Por conseguinte, a lição de Lourival Vilanova18 é precisa ao
descrever que as funções do Estado são exercidas através de órgãos, os
quais, nada mais representam senão um feixe de competência. E assim o
sendo, conforme o seu entendimento, cada órgão do Estado “é um plexo de
atribuições, de faculdades, de poderes e de deveres”, podendo, assim, ser
compreendido como uma “porção constitucionalmente delimitada de
competência.
Aliás, a partir da visão clássica da tripartição de funções do Estado,
explicita Carlos Ari Sundfeld que, “o juiz, o legislador, o administrador, não
têm o direito de, respectivamente, julgar, legislar ou administrar, mas, sim,
competência para fazê-lo”.19
Na mesma linha, Lewandowski 20explica que, em que pese o poder
estatal ser uno, indivisível e inalienável, os órgãos governamentais, no
exercício de suas respectivas funções, exerceriam certas competências, as
quais nada mais são do que “faculdades que a lei lhes confere para emitir
decisões sobre determinadas matérias, delimitadas juridicamente”. E em
seguida, elucida o citado autor que o conceito de competência não se
confunde com a definição de atribuição, pois, esta diz respeito, mais
especificamente, a um “círculo de deveres e responsabilidades inerentes ao
cargo ocupado ou à função desempenhada por servidores ou agentes
públicos nos órgãos governamentais”.
Nessa vertente, de acordo com a doutrina entende-se por
competência em geral é o conjunto de atribuições das pessoas jurídicas,

18
VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, 4ª
ed.
19
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 2005, 4ª ed.
20
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. (2004). Globalização, Regionalização e Soberania. São Paulo:
Juarez de Oliveira.

376
órgãos e agentes públicos, fixados pelo direito positivo, representando a
esfera de atuação de cada um deles.
O Decreto-Lei nº 35042, de 20 de outubro, elenca no seu artigo 16 os
crimes cuja instrução e da exclusiva competência da Polícia Judiciaria21:
Crime de falsificação da moeda, notas de banco e títulos da divida pública,
trafico de estupefaciente, de mulheres e publicações obscenas. Podemos
acrescentar o crime de rapto.
Pelo contrário, a Lei do SERNIC- Lei nº 2/2017, de 09 de janeiro,
estabelece como competência específica do SERNIC a investigação dos
crimes descriminalizados no artigo 7, que são na essência a maioria dos
crimes previstos no código Penal, o que induziria a concussão de que o
legislador pretendeu alargar os prazos de prisão preventiva e fixar o de
noventa dias para qualquer que seja o crime ou a sua natureza. Mas cremos
que não foi e nem pode ser este pensamento do legislador.
Por isso, propendemos a crer que há que fazer uma interpretação
correctiva ao preceito. Na verdade é indiscutível que o órgão encarregue da
instrução preparatória dos processos-crimes é o SERNIC, sob direcção funcional
do Ministério Publico, e só em casos contados a instrução compete a outros
órgãos, v.g. infracções fiscais e aduaneiras, infracções económicas, etc.
Assim sendo, parece-nos que o prazo mais dilatado de 90 dias é
estabelecido aos crimes de maior gravidade e complexidade, que exigem a
realização de diligências especializadas e demoradas. Que só o SERNIC,
porque dotado de meios e capacidade para efeito, pode realizar.
De facto, o problema que suscitava e suscita algum clamor sobretudo
no seio dos órgãos ligados a investigação criminal prende-se com a
exiguidade dos actuais prazos de prisão preventiva sem culpa formada para
a realização de diligências instrutórias indispensáveis à decisão do
Ministério Público de acusar ou abster-se de acusar o arguido.
O novo Código de Processo Penal que deve entrar em vigor, o
Parlamento já tomou posição sobre este aspecto no sentido de alargamento
dos prazos de prisão preventiva, certamente pelas razoes acima aduzidas, o
que à partida poderá serenar e tranquilizar os ânimos e deslocar o centro
dos debates somente para a questão de delimitação rigorosa dos crimes cuja
investigação compete exclusivamente ao SERNIC.
Da notificação do arguido da acusação ou pedido de abertura de
instrução contraditória pelo Ministério Público até ao despacho de
pronuncia e primeira instância, o artigo 308 do CPP fixa os prazos de três e

21
Lei do SERNIC- Lei nº 2/2017, de 09 de janeiro.

377
quatro meses, respectivamente, se ao crime couber pena a que corresponde
processo policial correccional ou processo querela.
Estes prazos podem ser prorrogados por mais dias, para decidir
incidentes ou excepções processuais deduzidas pela defesa e para proceder
às diligências de defesa que não pudessem ter sido realizadas antes, quando
a própria defesa são desistir dessas diligências. É o que se estabelece no
artigo 334 do CPP.
A partir desta fase processual (pronuncia) tem-se por formada a
culpa, a qual se manteria nos termos do disposto no §3° até à decisão final,
isto é à proferição da sentença, mas este preceito legal foi julgado
inconstitucional pelo acórdão nº 04/CC/2013, de 13 de dezembro do
Conselho Constitucional, com fundamento de que afronta o direito a
liberdade com assento constitucional, manter o arguido detido por tempo
indeterminado, desde que fosse pronunciando ou tivesse a culpa formada.
Neste contexto, entende-se que os arguidos pronunciados nunca
poderão permanecer sem julgamento para além dos referidos prazos. Os
prazos de instrução preparatória são improrrogáveis nos termos do
preceituado no §1º do artigo 337 do CPP, de sorte que findos esses prazos, a
instrução pode continuar como contraditória, se for de manter a prisão do
arguido. De contrário, decorridos os prazos estabelecidos no artigo 308° do
CPP, impõe-se atender a regra do artigo 309 CPP que estabelece a
obrigatoriedade de colocar o arguido em liberdade provisoria mediante
caução e sujeito as obrigações que lhe forem prescritas nos termos do
disposto no §2° do artigo 270 do CPP.

Prazos de duração máxima da prisão preventiva

É importante sublinhar os prazos e duração máxima da prisão


preventiva, o legislador através do artigo 256 do novo CPP estípula
seguintes22:

1. A prisão preventiva extinguir-se-á quando, desde o seu início, tiverem


decorrido:
a) 4 meses, sem que tenha sido deduzida acusação;
b) 8 meses, sem que, havendo lugar audiência preliminar, tenha sido
proferido despacho de pronúncia;
c) 14 meses, sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

22
Lei nº 25/2019 de 25 de dezembro; Código de Processo Penal.

378
d) 18 meses, sem que tenha havido condenação com trânsito em
julgado.
2. Os prazos referidos no número 1 poderão ser elevados,
respectivamente, até 6, 10, 18 e 24 meses, em caso de terrorismo,
criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por
crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos.
3. Os prazos referidos no número 1 são elevados, respectivamente, para
12, 16, 30 e 36 meses quando o procedimento for pelas infracções descritas
no número 1 e se revelar de excepcional complexidade, nomeadamente no
número de arguidos ou de ofendidos ou pelo carácter altamente organizado
do crime.
4. A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas
pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado,
oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e
o assistente.
5. No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª
instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso
ordinário, o prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da
pena que tiver sido fixada.
6. A existência de vários processos contra o arguido por crimes praticados
antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva não permite exceder os
prazos previstos nos números anteriores.
7. Na contagem dos prazos de duração máxima da prisão preventiva são
incluídos os períodos em que o arguido tiver estado sujeito a obrigação de
permanência na habitação.

VII. CONCLUSÃO

A Constituição da República não prevê nenhum princípio


orientador sobre a duração da prisão preventiva. Porém, o Código de
Processo Penal e alguma legislação penal avulsa, prevê em diferentes Prazos
de Prisão Preventiva.
Quanto aos outros crimes, entendemos que que se mantém os
prazos de 20 a 40 dias, respectivamente, consoante a moldura penal que em
abstracta lhes cabe. Todavia, e face as dúvidas e perplexidades que a
interpretação do artigo 7 da Lei do SERNIC suscita quando confrontado com
nº 3 do §1º, somos de sugerir a intervenção legislativa com vista a clarificar
o sentido e alcance do citado preceito em termos fixar com rigor e precisão
os crimes que pela sua natureza e complexidade reclamam um prazo de
instrução mais alargado.

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Apesar de ter os requisitos que a lei sobre a prisão preventiva a
doutrina também enumera alguns que enumeramos na nossa pesquisa. É
nesta fase olhar sobre a garantia da ordem pública no momento que o reu
esta na fase de detenção, e que a ordem pública não seja perturbada.
O novo Código de Processo Penal que deve entrar em vigor, o
Parlamento já tomou posição sobre este aspecto no sentido de alargamento
dos prazos de prisão preventiva, certamente pelas razoes acima aduzidas, o
que à partida poderá serenar e tranquilizar os ânimos e deslocar o centro
dos debates somente para a questão de delimitação rigorosa dos crimes cuja
investigação compete exclusivamente ao SERNIC.

VIII. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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