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Sociologia Prática

Como Alguns Sociólogos Pensam

Por Elísio Macamo

Imprensa Universitária – UEM, 2016


Maputo - Moçambique
Ficha Técnica

Titulo: Sociologia Pratica: Como Alguns Sociólogos Pensam


Autor: Elísio Macamo
© 2016: Imprensa Universitária
Maquetização e Impressão: Imprensa Universitária
Capa: Sérgio Tique
N˚ de Registo: 8720/RLINLD/2016
ISBN:
Tiragem:
Maputo - Moçambique

ii
Indices

Agradecimentos ............................................................................................ vii

Dedicatória ................................................................................................... viii

Prefácio .......................................................................................................... ix

Introdução ....................................................................................................... 1

Primeiro Capítulo ......................................................................................... 7

Pensar sociologicamente ............................................................................... 7

Erros de observação ...................................................................................... 11

Erros analíticos.............................................................................................. 18

Conclusão...................................................................................................... 24

Segundo Capítulo ........................................................................................ 25

Problemas .................................................................................................... 25

O problema.................................................................................................... 27

O problema e os conceitos que o tornam visível .......................................... 31

O problema do quadro teórico ...................................................................... 36

O problema das soluções .............................................................................. 41

O problema da justificação ........................................................................... 44

Conclusão...................................................................................................... 49

Terceiro Capítulo ........................................................................................ 57

Aplicação Prática ........................................................................................ 57

Introdução ..................................................................................................... 59

iii
Fazer uma consultoria ................................................................................... 64

Dos tipos de consultorias .............................................................................. 68

Da avaliação .................................................................................................. 71

Termos de referência..................................................................................... 74

O relatório final ........................................................................................... 78

Conclusão...................................................................................................... 81

Quarto Capítulo .......................................................................................... 84

Quando as Coisas Correm Mal .................................................................. 84

Perguntas ....................................................................................................... 86

Informação precisa ........................................................................................ 88

Estatísticas..................................................................................................... 92

Mundos possíveis .......................................................................................... 96

Circuncisão masculina debatida em Harare .................................................. 97

Incoerência .................................................................................................... 98

Policiamento comunitário : Materialização do objectivo longe de ser


consolidado - segundo pesquisa da ACIPOL, divulgada recentemente em
Maputo .......................................................................................................... 99

Estamos a falar da mesma coisa? ................................................................ 102

Conclusão.................................................................................................... 105

Quinto Capítulo......................................................................................... 110

Exemplo da Concepção Dum Estudo ...................................................... 110

Pontapé de saída .......................................................................................... 111

Nossas perguntas, respostas deles ............................................................... 113

iv
Qual é, então, o problema? ......................................................................... 118

E depois? ..................................................................................................... 119

O problema dos roubos ............................................................................... 122

Conclusão ................................................................................................... 124

A sociologia é Nossa Amiga ...................................................................... 124

O que as ciências sociais não sabem ........................................................... 126

Estórias-porquê ........................................................................................... 127

Porquê, porquê, porquê, porquê? ................................................................ 129

dedutivo ....................................................................................................... 130

funcionalista................................................................................................ 131

genético ....................................................................................................... 132

indutivo ....................................................................................................... 132

Conclusão.................................................................................................... 134

Bibliografia e Algumas Referências ........................................................ 137

v
vi
Agradecimentos

Escrever um livro é como um acto de má educação. A gente afasta-se


duma conversa animada para colocar por escrito tudo o que a gente aprendeu
dessa conversa. Este livro, na verdade, um apanhado de várias conversas
aqui e ali é uma espécie de auto-plágio. Nele plagio as minhas próprias
ideias, mas também o que andei a ouvir em várias conversas. Por essa razão,
a agradecer a alguém tinha que ser a todas as pessoas que têm conversado
comigo ao longo dos anos. O maior destaque vai, naturalmente, para os
vários amigos com quem tive (e continuo a ter) discussões calorosas no
blogue “Ideias Críticas” e no Facebook. Conheci muita gente nesses fóruns
ou aprofundei a amizade com muitos que já conhecia de outras andanças.
Vou tentar fazer uma lista na esperança de que aqueles que eu tiver
esquecido não se zanguem comigo. Restrinjo a lista aos companheiros do
blogosfera: Amosse Macamo, André José, Basílio Muhate, Bayano Valy,
Carlos Serra Sr., Chacate Joaquim, Custódio Duma, Egídio Vaz Raposo,
Eugénio Chimbutane, Francisco Carvalho, Gabriel Mutisse, Eugénio
Gujamo, Ilídio Macie, Iolanda Trovoada, Ivone Soares, Jorge Matine, José
Teixeira, Josué Muchanga, Machado da Graça, Manuel de Araújo, Mendes
Mutenda, Nando Menete, Nelson Livingstone (falecido), Noa Inácio, Patrício
Langa, Rildo Rafael, Stayler Marroquim, Júlio Mutisse, Sueli Borges,
Thomas Selemane, Yndongah, Jonas e muitos outros. Concordámos,
discordámos, zangámo-nos, batemo-nos palmadinhas nas costas, etc. E eu
aprendi. Parte desse aprendizado está aqui neste livro. Obrigado!
O meu obrigado vai também a minha família próxima e alargada, mas
sobretudo aos meus dois netinhos Diogo Nataniel e Nathan Elísio, aos meus
grandes amigos Saíde, Emanuel, António e Feliciano, uns pelo amor e
carinho que me dão, outros pela alegria, outros ainda pela amizade e
compreensão.
Agradeço especialmente ao Patrício Langa pelo belo prefácio cheio de
encómios que me fazem tanto inchar o peito que até já nem preciso de
ginásio, mas também pela amizade e cumplicidade na promoção da
sociologia.

vii
Dedicatória

Dedico o livro à memória dum amigo que morreu sem que tivéssemos
tido a oportunidade de fazer as pazes após uma discussão no Facebook. Bom
descanso, Manuel Sumbana!

viii
Prefácio

Poço sem fundo

Elísio Macamo assevera que a sociedade se constitui no debate (Macamo,


2004)1. Para Macamo, as pessoas produzem a sociedade no momento em que
discutem ideias sobre como as coisas são ou significam. O significado das
coisas não é dado, mas estabelecido por via argumentativa. Quando se trata
de coisas da vida social quase tudo já tem uma interpretação prévia. O
trabalho sociológico, muitas vezes, consiste num segundo nível de
interpretação assistida com os subsídios dos instrumentos analíticos e
metodológicos que permitem emprestar maior rigor à interpretação mundana
dos fenómenos. A sociologia consiste, portanto, na resignificação
interpretativa do mundo social dentro de esquemas teóricos próprios da
disciplina. Esse exercício é também constitutivo da sociedade e ocorre em
simultâneo com os demais actores sociais ao (re)criarem quadros de
significação. O sociólogo Britânico, Anthony Giddens (1984),2 chama a este
processo de dupla hermenêutica.
É comum no quotidiano aceitarmos as explicações e interpretações sobre
as coisas sem nos questionarmos sobre a sua plausibilidade. A sociologia
pode ensinar-nos a questionar a leitura quotidiana dos fenómenos sociais
com rigor analítico. Todavia a capacidade de apreender o mundo, e
reinterpretá-lo de forma analiticamente rigorosa, não é apanágio exclusivo
dos sociólogos. O debate de ideias é uma maneira de viver em sociedade, na
medida em que todos somos, em princípio, capazes de nos interpelarmos uns
aos outros sobre o sentido das coisas. A qualidade desse debate depende
muito da nossa competência argumentativa. Por seu turno, a competência
argumentativa forja o tipo de cidadão em que nos tornamos. Saber apreciar a

1
Macamo, Elísio (2004). A Leitura Sociológica: Um Manual Introdutório. Maputo:
Imprensa Universitária
2
Giddens, Anthony (1984). The Constitution of Society: Outline of the Theory of
Structuration. Berkeley and Los Angeles: University of California Press

ix
qualidade de um argumento requer um senso crítico sobre o que nos é
apresentado como descrição da realidade social.
A sociologia é, para mim, uma espécie de ginásio (gym) que tonifica a
musculatura do pensamento crítico e aguça a nossa competência
argumentativa e crítica. Ser bom sociólogo, portanto, e por conseguinte bom
cidadão, requer adestramento. Neste livro, Macamo, oferece-nos o gym para
a aptidão (fitness) da nossa competência argumentativa. A sociologia é a
modalidade e Macamo o ‘personal trainer’ (instrutor). Contudo tal como no
gym, não há musculatura que se desenvolva sem o treino individual, pois
esse exercício não é passível de ser delegado a terceiros. A competência
argumentativa e crítica também resulta do esforço intelectual individual. Por
isso pensar dói, como costuma dizer o próprio Macamo!
O livro que tendes em mãos é um verdadeiro tesouro. Seu autor é uma
relíquia do pensamento sociológico e crítico contemporâneo. Para quem
julga que ainda vale a pena ser um cidadão, com ciência e consciência, o
livro Sociologia Prática: Como alguns sociólogos pensam é um texto
indispensável. É daqueles presentes que se utilizam para o resto da vida e
ainda se pode deixar como herança para os filhos, netos e muito mais. Elísio
Macamo, este filho de Xai-Xai, aspirante à Governador de Gaza, emprestado
ao mundo, prova uma vez mais o seu comprometimento com o rigor da
análise social. O rigor da análise social matizado com categorias do
pensamento sociológico.
Macamo oferece-nos ferramentas contra o pensar ‘mal’. O pensar ‘mal’
aqui é entendido como todas as formas de falácias argumentativas que
minam a qualidade do debate de ideias, e desta forma da sociedade. Lembrai-
vos que a sociedade se constitui no debate de ideias. Não vou arrolar as
falácias aqui pois o livro está repleto de exemplos. Desde a dificuldade de
debatermos o mérito das questões até aos ataques pessoais (falácia ad
hominem), todas essas armadilhas ao pensamento crítico são escrutinadas
pelo autor.
Macamo tem partilhado parte das ferramentas do pensamento sociológico
com o público ao longo de anos no espaço cibernético da Internet através do
x
blog “Ideias críticas3” (agora descontinuado), do Facebook, mas também
através das suas intervenções regulares na imprensa escrita, particularmente
no matutino Jornal Notícias. Com recurso a etiquetas diversas como, por
exemplo, “A caixa de Ferramenta do sociólogo” e “Direito à razão”,
Macamo foi constituindo uma escola pública (global) de sociologia. Este
exercício representa uma faceta cidadã, mais metodológica do que
ideológica, de como o sociólogo pode contribuir para a uma sociedade
competente no debate de ideias. Melhorar a qualidade do debate na esfera
pública, e desta forma da própria sociedade, é um dos maiores desideratos de
Macamo, e a sociologia a sua ferramenta. Esse exercício não implica apenas
labor, mas lazer.
O pensamento não é a ideia vã que nos ocorre natural, espontânea e
aleatoriamente. O pensamento, quando organizado, dá lugar ao raciocínio
lógico. Raciocinar consiste, portanto, numa operação lógica discursiva e
intelectual. Neste exercício, recorremos a proposições para tirar conclusões,
através de procedimentos como comparações e abstracções, e com dados que
nos levam a formular respostas verosímeis, falsas ou prováveis sobre os
fenómenos.
O raciocínio precisa de instrumentos que o torne coerente. A sociologia é
um desses instrumentos para educar o pensamento, tornando-o crítico,
rigoroso e vigilante das imprecisões das leituras aligeiradas da realidade
social. A sociologia é a ciência do pensamento desconfiado. Como diz
Macamo, algures no livro: “O sociólogo nunca sabe, é curioso, informa-se,
certifica-se, desconfia.” A matéria-prima com que a sociologia trabalha é um
mundo social interpretado. Quase tudo que sabemos, ou julgamos saber
sobre a realidade social, chega-nos com alguma interpretação prévia. Mesmo
o que observamos com os nossos próprios olhos de ver tem o intermédio da
cultura e da linguagem que usamos para dar conta do que observamos. A
desconfiança, portanto, não é somente em relação ao que os outros nos
dizem, mas também em relação às nossas próprias convicções. Um bom
sociólogo suspeita sempre da primeira interpretação que lhe é oferecida das
3
http://ideiascriticas.blogspot.com/
xi
coisas. O sociólogo sabe que não sabe, como diria o decano da ‘sociologia
moçambicana’, duvida e indaga4!
Neste livro, Elísio Macamo ensina-nos a desconfiar das interpretações e
explicações apressadas da realidade social. Prepara a nossa mente para
conviver com a dúvida enquanto nos damos ao trabalho de buscar a
explicação mais plausível, sustentada com evidência empírica e rigor
analítico. O texto namora com o contexto, e, nesse sentido, as ilustrações
trazidas nas caixinhas tornam as questões bastante familiares para o leitor
Moçambicano que acompanha os debates na esfera pública através da TV,
Rádio, Imprensa escrita e principalmente nas redes sociais. Estas últimas, as
redes sociais, têm sido lugar privilegiado do pensamento acrítico, pronto a
servir, que só exige um click ou Like facebookiano! É lá onde muitas vezes,
com um ‘like’ ou um simples encaminhar (forward), reproduzimos lugares
comuns acriticamente.
A escrita de Macamo é clarividente e didáctica. Os conceitos mais
esmerados do jargão sociológico são precedidos ou sucedidos de uma
descrição minuciosa, com recurso a exemplos do quotidiano, de modo que
mesmo um leigo, desde que possa fazer uma leitura cuidada, consiga ter
ideia do que se trata. A sociologia não é uma ciência de gongorismos. Muitas
vezes, aqueles que tendem a escrever coisas que desafiam o entendimento
das pessoas comuns, elas próprias ainda não entenderam o que querem dizer
aos outros.
Conheço poucos sociólogos que dominam a arte de escrever bem como
Macamo. A sociologia, mas não somente, comunica-se fundamentalmente
através da escrita. Escrever bem, portanto, é uma competência indispensável
ao sociólogo. Assim como pensar dói, escrever bem precisa ser exercitado5
para trazer prazer ao leitor. Como diria Montaigne, um Filosofo Francês do
século XVI, “Ao encontrar um trecho difícil, deixo o livro de lado”. Por quê?

4
Serra, Carlos (1997). Combates pela Mentalidade Sociológica. Maputo: Imprensa
Universitária
5
Estrela, Edite; Soares, A. Maria e Leitão, J. Maria (2003) Saber Escrever, Saber Falar:
Um Guião Completo para Usar Correctamente a Língua Portuguesa. Lisboa: Dom Quixote
xii
Respondeu: “A leitura é forma de felicidade6”. É também de Montaigne o
provérbio: “A escrita deve ter três virtudes: clareza, clareza, clareza 7”. A
clareza reside no livro que tendes em mão. Clareza do pensamento
sociológico, clareza literária. Mas, podem crer, essa clareza tem como preço
o trabalho árduo de pensar organizado. Macamo coloca cada palavra no lugar
certo. Como dizia Voltaire, filósofo iluminista do século XVIII e escritor
prolífico, “uma palavra fora do lugar estraga o pensamento mais bonito”8.
Quem deveria ler este livro? Todos, claro! Bom, primeiro, o leitor que já
chegou a esta linha do prefácio. Segundo, todos que ainda não chegaram.
Quero destacar mais dois tipos de leitores ou destinatários. Os estudantes (no
geral), mas em particular os das Ciências Sociais e Humanas e muito
particularmente os de sociologia. Para estes, o livro quase que deveria ser de
bolso. Penso também naqueles que já ostentam o título de sociólogo, mesmo
que possam não honrar a profissão. Podem reconciliar-se com o pensamento
sociológico neste livro. Não digo uma espécie de reciclagem reminiscente
dos textos lidos na faculdade, mas a abertura do espírito e da mente para
aprender de novo.
O livro tem um formato interessante para os estudantes de Ciências
Sociais e Humanas, mas eu diria para todos aqueles que, por alguma razão,
se interessam pela pesquisa social. Os consultores e assessores ver-se-ão
tocados nas achegas, mas também nas lições sobre como melhor usar as
ferramentas da sociologia na prática profissional. As componentes de um
trabalho de pesquisa social, particularmente, para fins de culminação de
estudos através de monografia, tese, dissertação, não importa para que grau,
são abordadas no livro. Desde as dificuldades de formulação dos problemas
de investigação, passando pelas questões do desenho da pesquisa, as
implicações metodológicas, até a apresentação do relatório final, está coberto
no livro.

6
Squarisi, Dad e Salvador, Arlete (2013) A arte de escrever bem: Um Guia para Jornalistas e
Profissionais do Texto. São Paulo: Editora Contexto.
7
Idem
8
Idem

xiii
O livro é de leitura fácil e agradável, pois foi escrito com o espírito de
Voltaire, com clareza e objectividade. Todavia, como é característico de
Macamo, quando oportuno, não falta uma dose de humor. O texto está
organizado de modo a que o leitor, particularmente aquele capaz de ler e
entender o jornal se possa deleitar. Aliás, quem consegue ler os textos de
Macamo no jornal aqui sentir-se-á como peixe na água. Não vou discorrer
sobre o conteúdo do livro aqui no prefácio. Termino com esta citação do
livro: “Quando oiço alguns jovens formados em sociologia a reclamarem das
condições de trabalho, da falta de ocupação ou mesmo da ocupação em
“coisas que não têm nada a ver com a sociologia”, só me dá vontade de virar
a cabeça e chorar amarga e copiosamente. Tanta água e tanta sede!”! O livro
pode ser uma fonte inesgotável do pensamento sociológico. Uma fonte, sem
fim, que pode fomentar a “imaginação sociológica” à nossa maneira. Asvifeni
Mpoyomboooo, Makhamu!9

Patrício Langa

(Sociólogo, Professor Associado de Estudos do Ensino Superior na


Universidade Eduardo Mondlane,
Universidade do Cabo Ocidental e na Universidade de Danube Krems)
Presidente da Associação Moçambicana de Sociologia (A.M.S)

Maputo, 05 de Maio de 2016

9
Expressão de louvor em Xangan que significa bem-haja os Macamo da grande família dos
Mpoyombo.

xiv
Introdução

Há muitos livros e manuais de pesquisa em sociologia por aí. Qualquer


novo acréscimo, portanto, precisa de encontrar uma razão forte. Eu procurei
por uma razão forte e não a encontrei. Ou melhor, encontrei uma que não é
forte, mas pode servir para justificar a publicação deste livro. Essa única
razão resume-se a uma constatação trivial: sempre quis escrever um livro que
abordasse questões de metodologia. Só isso. Sempre quis fazer isso, mas
nunca consegui tempo, nem grande motivação para o fazer. Sempre quis
fazer isso porque a metodologia interessa-me muito. Há vários anos que
ensino metodologia e confirmo, de cada vez que o faço, que o centro
nevrálgico da actividade científica está aí mesmo.
Ciência não é falar complicado, não é apenas teoria, não é a mistificação
do mundo com conceitos pesados e impenetráveis. Ciência é a atenção que
dispensamos à forma como ficamos a saber uma coisa. Ciência é um
exercício crítico de auto interpelação. Através dela documentamos a maneira
como chegamos a um determinado conhecimento. Infelizmente, ainda não
consegui convencer muita gente da utilidade deste tipo de atitude em relação
à ciência. Vejo muita gente amarrada a uma ideia de ciência que a torna
reféns das conclusões que tira. Essa gente pensa que produzir conhecimento
é defender o que pensa ou o que concluiu. Não se dá conta do efeito
libertador que a outra perspectiva que acabei de apresentar tem. Há gente que
pode dar a sua vida em defesa, digamos, da ideia de que políticos são um
bando de gatunos. Quando aparece alguém a dizer que isso não é verdade,
essa gente responde dizendo que é. Não faz o mais fácil que é dizer como
chegou a essa conclusão. Não tem consciência de que fazer ciência reside
justamente aí, não na defesa da conclusão.
A ideia de partilhar com os leitores esta perspectiva sobre a ciência é que
me motivou a reunir textos dispersos neste livro. Publiquei os textos em
várias plataformas, sobretudo online: Blogues e Facebook, mas também em
forma de palestras públicas. Todos eles têm um fundo comum,
nomeadamente a metodologia. Na verdade, o livro é um convite a uma outra

1
abordagem da metodologia. O que proponho aqui é uma reflexão sobre a
ciência como modo de fazer. Uso para o efeito a minha disciplina, isto é a
sociologia. Tento mostrar que o modo de fazer que a sociologia é consiste
numa forma sistemática e disciplinada de pensar. A sociologia, para dizer as
coisas de forma directa, é uma maneira de pensar. É um pensar que se
documenta a si próprio. Não me farto de dizer que quem vai procurar na
sociologia soluções para os problemas do mundo, do seu país ou da sua vida
estará a procurar em lugar errado. A sociologia não tem soluções. Nesse
sentido até nem tenho vergonha de dizer que a sociologia é uma actividade
inútil. Nesse sentido, digo bem.
Se a gente reflectir um bocado só sobre o que é a sociologia pode ser fácil
perceber porque ela não pode ser reduzida à procura de soluções. Já que ela
consiste no estudo da sociedade – uma tarefa gigantesca, diga-se de
passagem – quem tivesse como profissão fazer isso seria detentor dum
conhecimento bastante poderoso. Se fizesse bem esse trabalho – e muitos
sociólogos fazem bem o seu trabalho – então o mundo seria controlado pelos
sociólogos. É? Não. Porque os sociólogos fazem mal o seu trabalho? Não. É
porque o conhecimento sociológico não tem nada a ver com isso. Mais
adiante, no primeiro capítulo, tento explicar ainda melhor a vocação da
sociologia. Portanto, não é por burrice que os sociólogos não controlam o
mundo, ainda que a esperteza ajude algumas outras disciplinas a fazerem
isso. É porque a sociologia é acima de tudo um modo de pensar. Como tal,
ela é mais introspectiva do que extrovertida. Ela é sobre quem a pratica.
Ajuda essa pessoa a pensar melhor sobre as coisas. Neste sentido, e como
tenho dito a quem me quer ouvir, a sociologia é mais especialista de
problemas do que de soluções. Ela procura formular melhor os problemas
para os quais o mundo tem muitas soluções (Vide sobre este assunto um
outro livro da minha autoria, Macamo 2006). Só isso. Mas é muito.
A formulação de problemas radica no acto de pesquisa. Pesquisar, seja-
-me permitida a presunção, é pensar sociologicamente. Com isso o que quero
dizer é que a sociologia é muito mais do que uma única disciplina que se
constitui, e legitima, através da definição dum objecto e da invenção duma
2
linguagem própria para recuperar discursivamente esse objecto. A
sociologia, no sentido em que a entendo aqui, é uma maneira de interpelar
criticamente aquilo a que nos referimos quando falamos da vida em
sociedade.
Existe uma expressão, “discutir o sexo dos anjos enquanto a cidade está a
arder” sobre a qual gostaria de reflectir em jeito de introdução ao que é
tratado neste livro. A língua portuguesa utiliza essa expressão para
caracterizar uma discussão irrelevante ou supérflua no lugar de questões
prementes. Durante muito tempo utilizei também esta expressão sem grande
interesse em conhecer a sua origem. Tudo quanto sabia era que se tratava de
uma referência a um debate que envolveu intelectuais em tempos lá idos que
tanto os tomou que eles não se deram conta de que a sua cidade estava a ser
invadida por forças inimigas.
Procurei informar-me melhor e descobri que o meu conhecimento sobre o
assunto era de facto bastante fragmentado. Na verdade, há várias coisas que a
nossa imaginação mistura e concentra nessa expressão. A discussão sobre o
sexo dos anjos é de longa data e envolve várias questões, todas elas de
grande interesse para uma atitude crítica na sociedade. Existe o debate de
contestação do Cristianismo que se baseia na exigência de estabelecer o sexo
dos anjos para demonstrar a racionalidade (ou não) da fé. Os que defendem
esta linha de argumentação dizem que se Deus enviou os anjos à terra e lhes
deu aparência humana eles tinham, forçosamente, que ter um dos dois sexos:
masculino ou feminino. Como podemos ver, não é uma pergunta supérflua,
pois trata-se de estabelecer a facticidade de alguma coisa. Outros até
articularam essa preocupação com o sexo para saberem de que maneira se
reproduzem os anjos. Como os humanos? Aqui também vemos que a questão
não é supérflua. Suponho que a nossa rapidez em concluirmos que as pessoas
que discutiram essa questão fossem idiotas prende-se ao facto de, gozando da
vantagem que nos é conferida por séculos de racionalismo científico,
sabermos que anjos não existem. Ora, as pessoas envolvidas nesse debate
nesses tempos não tinham essa certeza, ou melhor, tinham a “certeza” de que
anjos existiam. Através da reflexão que fizeram foram descobrindo que a sua
3
convicção em relação à existência de anjos era problemática. Portanto, a sua
reflexão não foi de todo supérflua.
Isto torna-se ainda mais evidente em relação ao prolongamento desse
debate através da inclusão de Aristóteles, o grande filósofo grego.
Contrariamente ao que veio a ser a posição oficial da Igreja Católica,
Aristóteles mantinha a ideia de que os Homens têm a capacidade inata de
apreender o mundo pela razão. A Igreja, recorde-se, partia do princípio de
que símbolos eram mais importantes do que o que eles representavam
justamente porque supunha que as pessoas não fossem capazes de
compreender a verdade na base das coisas. A Igreja insistia na necessidade
de as pessoas simplesmente aceitarem a Verdade. A discussão bizantina
sobre a iconoclastia – a destruição de ícones – tinha esta base
epistemológica. Opunha os que queriam que se aceitassem verdades sem
nenhum investimento racional pessoal e os que diziam, na linha de
Aristóteles, que é preciso fazer esse investimento. Era uma discussão
eminentemente política, mas também epistemológica, e, sobretudo, uma
discussão relevante para as coisas da vida. O facto de Constantinópolis ter
sido tomada pelo exército Otomano enquanto senadores, teólogos e filósofos
discutiam o sexo dos anjos não torna essa discussão irrelevante, sobretudo se
tomarmos em linha de conta que a definição do inimigo e do perigo que é
eminente é do pelouro da razão e não da emoção. Em Moçambique
justificou-se o famoso Acordo Nkomati de 1984, um pacto de não-agressão
entre a África do Sul do Apartheid e o governo da República Popular de
Moçambique, com base na ideia do “cerco” do Apartheid. Se tivesse havido
debate aberto e sério sobre o país naquela altura é bem possível que Nkomati
talvez não tivesse sido necessário ou, a ser necessário, que tivesse assumido
outro tipo de contornos. O relato que Jacinto Veloso faz no seu livro de
memórias (Veloso 2014) revela, em minha opinião, a falta que fez a
discussão do sexo dos anjos para uma melhor tomada de decisão. A Frelimo
agiu, ao invés de discutir o sexo dos anjos, e mesmo assim o país ardeu!
No debate de ideias sobre o desenvolvimento de Moçambique aparece
esta acusação de vez em quando para questionar a legitimidade de reflexões
4
diferentes das daqueles que acham já terem definido os problemas do país
exaustivamente. Tudo o que não encaixa nas acusações de corrupção, na
perfídia dos governantes e no saque das nossas florestas é considerado
discussão do sexo dos anjos. Dado que a discussão bizantina sobre o sexo
dos anjos tinha como pano de fundo o papel da nossa razão na nossa
capacidade – e possibilidade – de apreender o mundo, não consigo perceber
a utilidade que esta acusação tem para a nossa esfera pública. Justamente
porque os problemas do nosso país são tão complexos e prementes
precisamos, creio, de mais gente disposta a abalar os nossos pressupostos.
Quem sabe quais são os verdadeiros problemas do nosso país? Quem pode
impedir outros de procurarem definir para si esses problemas ou, pelo
menos, certificarem-se de que a definição que outros oferecem é mesmo
plausível? Quem pode determinar o ponto onde a reflexão intelectual deve
parar para dar lugar à acção? Porque não deixar a acção para os políticos e
defender o direito dos intelectuais de discutir o sexo dos anjos?
Discutir o sexo dos anjos como forma de estar na sociedade é a proposta
que este livro faz. O leitor não precisa de nenhuma formação em ciências
sociais, muito menos em sociologia. Só precisa de abertura de espírito. Não é
exactamente um manual de pesquisa ou de metodologia, embora procure
cobrir vários aspectos tratados tradicionalmente por essas rubricas. É uma
introdução à lógica de pensamento por detrás do trabalho de reflexão que um
sociólogo faz com algumas dicas pontuais que estabelecem a ponte com
aspectos da pesquisa e da metodologia.
O livro é composto por cinco capítulos. O primeiro capítulo faz uma
introdução geral à sociologia numa perspectiva metodológica. Procura
mostrar da forma mais simples possível como um sociólogo pensa, para que
coisas presta atenção e como estrutura a sua abordagem dos fenómenos que o
interessam. O segundo capítulo aprofunda a introdução com um olhar sobre a
noção de problema e como ela é entendida na sociologia numa perspectiva
prática. O capítulo parte duma proposta concreta de estudo para reflectir todo
o processo de concepção e elaboração duma problemática em pesquisa. O
terceiro capítulo apresenta uma reflexão prolongada duma actividade
5
específica, nomeadamente as chamadas consultorias. O que são, como são
feitas e que tipo de conhecimento sociológico é necessário para a sua
realização com sucesso. O quarto capítulo dedica-se à reflexão sobre vários
momentos em que os instrumentos da pesquisa e do pensar sociológico
podem ser requeridos no quotidiano. É uma tentativa de demonstrar de forma
ainda mais prática a utilidade imediata desse tipo de pensamento no
quotidiano. Finalmente, no quinto capítulo, apresento a formulação dum
projecto de pesquisa numa perspectiva que enfatiza a identificação da
pergunta que precisa de ser feita e como ela se articula com modos de
explicação. A conclusão não resume o livro. Ela reflecte mais um problema
concreto, desta feita manifestações violentas que ocorreram no país em 2008,
e termina com uma declaração de amor à sociologia.
Este não é um livro para ser lido duma ponta a outra. O leitor pode
começar onde quiser. E não é para ser lido uma única vez. É para ser lido e
relido. O importante é abertura de espírito e vontade de apurar o sentido
crítico. Pode, naturalmente, servir de orientação para quem quer escrever
uma tese, está a escrever uma tese ou tenta perceber os dados que recolheu. É
útil também para gente da área da comunicação, mas também para a política
e para o aparelho de Estado. É um livro para toda a gente, tal e qual a
sociologia que o inspirou. Também é para todos.

6
Primeiro Capítulo
Pensar sociologicamente

7
8
Tradicionalmente, nós partimos do princípio segundo o qual a ciência
produz conhecimento. Isso é verdade até um certo ponto. Algo anterior à
produção de conhecimento, e que define a actividade científica, é uma
maneira muito específica de pensar. Essa maneira muito específica de pensar
é que é responsável pelo tipo de conhecimento que a ciência produz (vide
Macamo 2016). A sociologia serve-se dessa forma específica de pensar para
produzir uma relação crítica com a sociedade. O segundo aspecto relaciona-
se com o “sociológico”. Com efeito, pensar sociologicamente não se esgota
na nossa capacidade de citarmos Max Weber, Émile Durkheim ou Georg
Simmel, todos eles nomes sonantes da sociologia dos finais do século XIX e
princípios do século XX. O pensamento sociológico ganha importância
quando ele é capaz de responder à seguinte pergunta: qual é a relevância das
cadeiras que faço na universidade, por exemplo “Teorias sociológicas I e II”
para as coisas imediatas da vida? Dito doutro modo, qual é a pertinência do
que eu estudo na faculdade para o que faço no meu quotidiano?
O presente livro trata destas questões. É de interesse para quem se inicia
em sociologia ou para aqueles que gostariam de entender melhor o que os
sociólogos fazem. Quando estudava a sociologia como principiante também
tive que lidar com a agonia de explicar às pessoas o que um sociólogo faz.
Dizer que sociólogo estuda a sociedade não só é circular como também
completamente impenetrável. É circular porque estudar a sociedade é
exactamente o que a palavra sociologia quer dizer. É a ciência do social.
Igualmente, é impenetrável porque mesmo a própria ideia do “social” não é
tão clara como parece. Só sociólogos é que pensam saber o que isso
significa. Portanto, o mais importante é explicar o que significa estudar a
sociedade.
Também não ajuda muito dizer que a sociologia estuda relações sociais ou
a acção social, algo que os estudantes de sociologia aprendem logo no
primeiro semestre para logo depois impressionarem os amigos e a família em
casa. “Relação social” é uma maneira muito sofisticada de falar de amizade,
do vínculo entre mãe e filho, tio e sobrinho, etc. Igualmente, “acção social” é
um termo que mistifica algo tão simples como saber interpretar uma situação
9
em que polícia de trânsito está a exigir suborno. Tudo isso é metalinguagem
para quem não está familiarizado com a nossa disciplina. Daí que seja
importante procurar outras maneiras de explicar a nossa actividade a partir
da sua pertinência para as coisas da vida.
Acho que podemos abordar estas questões partindo de dois tipos de erros
que cometemos quando trabalhamos sociologicamente. Falar desses erros
permite-me evitar usar linguagem muito técnica que, para os propósitos deste
livro, não seria prudente. Esses erros ocorrem em dois momentos cruciais do
trabalho dum sociólogo, nomeadamente aquando da observação e aquando
da análise.
Caixa 1.1: Observação e análise
Estes dois termos são muito importantes na pesquisa em ciências sociais. Vale à pena perder
alguns minutos a explicar o seu sentido. Observação é o termo geral que se usa na pesquisa empírica
social para descrever a actividade de recolha de informação. Por exemplo, se eu quero saber se a
afluência às urnas no dia das eleições é grande vou precisar de informação. Uma maneira de obter
essa informação é ir a uma urna que eu considere típica e ver se há muita gente, ou não. Só que aqui
surge já um problema. Quando é que a afluência é grande? Dizer que é grande quando vai lá muita
gente votar não ajuda em nada, pois “grande” precisa de ser tornado mais claro. Eu podia dizer que
afluência “grande” é quando mais de 80% dos eleitores desse círculo eleitoral vão votar. Ao fazer
isso estarei a estabelecer um critério objectivo que me vai permitir observar, isto é ver se aquilo que
tenho na cabeça acontece ou existe no terreno. Em certa medida, portanto, observar é medir. O que
eu meço é a correspondência entre o meu conceito (afluência grande) e a realidade (votação num
círculo eleitoral). Faço isso contando o número de pessoas que votam. Podia também simplesmente
pegar nas listas e ver quantas pessoas votaram. Um aspecto muito importante a reter aqui é que a
observação é algo que é feito segundo critérios. Sem critérios não é possível observar seja o que for.
Se eu quero ir ver quantas pessoas votam tenho que saber o que é um leitor, em que consiste o acto
de votar, onde se observa isso, etc. Dito doutro modo, observar não é apenas ver. Observar é também
todo o trabalho de recuperar o mundo através de conceitos – na pesquisa empírica social dá-se a isso
o nome de “conceitualização”.
Analisar é outro termo importante. Acompanha a observação. É o que acontece depois da
observação. Vou às urnas, conto o número de pessoas que votam e registo isso em algum lugar (por
exemplo, num papelinho que preparei para o efeito). O acto de contar o número de pessoas que votou
e ver se está acima ou abaixo do valor que indiquei como sendo mínimo para eu considerar a
afluência “grande” constitui o que a pesquisa empírica social chama de análise. Na observação meço
a afluência eleitoral. Na análise decomponho “afluência eleitoral” para identificar as suas partes
constituintes. Afluência eleitoral consiste do número de pessoas que se envolvem numa actividade
bem específica (votar) num determinado lugar. Faço essa decomposição para estabelecer relações
entre as partes que me permitam tirar conclusões. Por exemplo, se eu constato que o número de
pessoas que votaram é em 80% superior ao número de eleitores registados nesse círculo eleitoral
posso concluir que a afluência foi grande. Há mais coisas, evidentemente, que posso fazer na análise.
Posso procurar saber qual foi a percentagem de eleitores do sexo masculino ou feminino, de idades,
de nível de escolaridade, de proveniência regional, de confissão religiosa, etc. Aí também estaria a
decompor para poder depois estabelecer relações. Se notasse, por exemplo, que um certo partido
atraiu um bom número de eleitores jovens poderia concluir que há qualquer coisa no programa desse
partido que atrai os jovens. Repito: na análise decompomos a informação para depois estabelecermos
relações que nos permitam tirar conclusões sobre o que observamos.

10
Para não ser muito abstracto vou me referir constantemente a um artigo
que extraí dum jornal publicado em Maputo. Tem o título “Prostituição
infantil virou moda no Muxúngué”. É uma grande reportagem que fala do
aumento dos índices de infecção com o HIV/SIDA na província de Sofala
em resultado parcial do aumento da prostituição de menores do sexo
feminino. Segundo o artigo, a província de Sofala tem índices de infecção da
ordem dos 15% e figura em terceiro lugar na classificação nacional. A
província é vulnerável por ser um corredor para o transporte de mercadorias
do porto da Beira para os países do interior (Zimbabwe, Zâmbia e Malawi).
Os camionistas de longo curso é que são os principais utentes da
prostituição. Eles são também preferidos pelas trabalhadoras do sexo uma
vez que pagam melhor: 1500 Meticais por hora (com este tipo de rendimento
neste negócio não entendo porque alguém ainda estuda sociologia...). A
seguir, na lista de preferências das trabalhadoras de sexo, são os mineiros de
regresso à casa. Estes pagam 1000 Meticais por hora. Por fim vêm os
passageiros de autocarros de longo curso que pagam entre 300 e 500 por
hora. O jornalista falou com duas trabalhadoras de sexo a quem teve que
pagar 500 Meticais pela entrevista.

Erros de observação

A ciência baseia-se em grande parte na observação para poder dizer o que


diz. A observação é muito importante para a actividade científica. Na
verdade, ela é importante para todos nós, não só para a ciência. Por exemplo,
o jornalista que escreveu o artigo sobre o aumento da prostituição infantil
teve que ir ao terreno observar essa actividade, mas, claro, não no sentido em
que alguns leitores devem estar a pensar. Foi para os locais onde se pratica a
prostituição e falou com as pessoas envolvidas nessa actividade. Ir falar, ver,
passar tempo naquele ambiente é observar. Cada um de nós diz muito do que
diz com base no que observou. A observação é tão importante que, até, basta
dizer “estive lá!” para meter medo a quem queira disputar uma determinada

11
versão das coisas. Mesmo algo como “falei com alguém que esteve lá!” faz o
mesmo.
Infelizmente, a observação nem sempre está isenta de erros. Estar lá ou ter
falado com alguém que esteve lá não é garantia de que o que se viu tenha
sido o que aconteceu. Há, infelizmente, testemunha ocular e testemunha
ocular. Os tribunais estão cheios de casos complicados em que testemunhas
oculares viram coisas diferentes. Este problema é, na verdade, tão sério que
foi muito investigado por sociólogos. Um dos estudos mais famosos a este
respeito foi da autoria dum sociólogo americano, Melvin Pollner (1987).
Nesse estudo, ele usou o termo “razão ordinária” para mostrar que fazemos
um forte investimento na existência objectiva da realidade e atribuímos a nós
próprios a capacidade de recuperar essa realidade objectiva. É assim, por
exemplo, que nos tribunais discutimos muito versões diferentes duma
ocorrência que consideramos única que não somos capazes de descrever
adequadamente ou de forma consensual. Portanto, a observação é assunto
difícil sobretudo porque ela parte da ideia de que o que vemos é o mesmo.
Há basicamente três tipos de erros que podem ocorrer durante a
observação. As observações podem ser (a) imprecisas, podem se basear (b)
em generalizações e podem ser (c) selectivas. Cada uma destas coisas
constitui o que vou chamar de erro. E esses erros dão muito boa conta do
pensamento sociológico.
a) Observações imprecisas
Suponho que o leitor tenha frequentado uma escola qualquer por aí.
Lembra-se da cor dos sapatos do seu professor de biologia na segunda
semana de aulas? Aposto que não se lembra. Eu também não. Porquê?
Simplesmente porque ninguém vai à aula com a intenção de observar
isso. Pode ser que por qualquer razão alguém tenha um interesse especial
em reter essa informação assim que viu os sapatos, por exemplo, por a
cor dos sapatos não combinar com as calças ou não combinar com a
imagem que se tem desse professor. Isto é, nós não vemos tudo o que
vemos. Há certas coisas que retemos e outras que simplesmente
ignoramos. Seria, na verdade, difícil reter tudo o que os nossos sentidos
12
nos permitem apreender. Temos necessariamente que ser imprecisos na
observação.
Este reparo distingue a observação científica da observação do
quotidiano. No quotidiano há muitas conclusões que tiramos que são
baseadas em observações muito imprecisas. Duas ultrapassagens
perigosas feitas por dois “chapas” diferentes são suficientes para nós
concluirmos que o “chapa”, duma forma geral, conduz mal. É provável
que isso seja assim mesmo, mas se calhar uma observação mais cuidada
havia de revelar que falando na generalidade a má condução do “chapa”
não difere da má condução do automobilista médio da cidade de Maputo.
Destacamos a má condução do “chapa” simplesmente porque se trata
dum grupo muito específico de fácil identificação.
O artigo sobre a prostituição infantil não é exactamente um caso de
observação imprecisa. O jornalista foi ao posto administrativo de
Muxúngué (em Chibabava) para observar. Não obstante, as suas
descrições inspiram pouca confiança. Ele não diz, por exemplo, quantas
meninas estão envolvidas nesta prática, quantas eram no ano passado e
quantas são agora. Ele utiliza adjectivos: “muitas”, “números
alarmantes”, etc. É provável que esta maneira de descrever a situação
satisfaça os critérios de qualidade jornalística. Contudo, para a sociologia
é muito insatisfatória. Sobretudo num contexto como o do negócio do
HIV/SIDA onde vários interesses estão em jogo para empolar ou
minimizar os números uma observação precisa é imperiosa. Destes
reparos retiro a primeira máxima do pensamento sociológico que gostaria
que fosse retida:
Antes de tecermos qualquer tipo de considerações sobre seja o que
for procuremos primeiro saber como foi feita a observação na base das
proposições que alguém faz!

13
Caixa 1.2: Levantamento de dados
Há um termo muito importante na pesquisa empírica social com o nome de “levantamento de
dados”. Refere-se à informação que colhemos durante a observação. Essa informação tem o
nome de dado, isto é algo que existe no mundo. Fazer o levantamento de dados é recolher
informação relevante para responder a uma pergunta que a gente faz. Por exemplo, se eu quero
saber se a afluência às eleições foi grande precisarei de informação sobre o número de pessoas
que foram votar. Podia ir lá ver se as urnas estavam limpas, ou não, mas essa informação não é
relevante para a minha pergunta sobre o número de pessoas que votaram. Agora, é preciso
fazer uma distinção entre “dado” e “prova”. “Dado” é o pedaço de informação. “Prova” é a
razão que me leva a supor que determinado dado seja relevante para o que quero demonstrar.
“Dado” é material, enquanto “prova” consiste num argumento. Há gente que confunde estas
duas coisas, infelizmente. Vou dar um exemplo complicado. As eleições foram marcadas para
ocorrerem entre às 7 horas da manhã e 18 horas da tarde. Se eu constatasse, por exemplo, que
as urnas tiveram que ficar abertas até às 22 horas porque as pessoas ainda estavam a votar,
podia usar isso como critério para concluir que a afluência tinha sido grande. O meu “dado”
nesse caso é o prolongamento das horas de abertura. A minha “prova”, contudo, não é esse
prolongamento, mas sim a suposição segundo a qual isso significaria que a afluência tinha sido
grande. Note-se que posso estar equivocado neste raciocínio, pois a desorganização pode ter
estado por detrás disso. Se calhar as pessoas só começaram a votar às 17.30! Pode até ser que
as pessoas aproveitaram a tolerância de ponto para irem à praia comer frango assado no meio
de música alta. Portanto, levantamento de dados é uma actividade que consiste na recolha de
informação relevante para a pergunta e na justificação dessa relevância.

b) Observações baseadas em generalizações


O segundo erro de observação diz respeito à tendência que temos de
generalizar. Esta é uma tendência normal e, talvez até, legítima no
contexto do quotidiano. Afinal, para funcionarmos no quotidiano não
precisamos de muitas observações. Na sociologia (mal feita) olhamos
para um número reduzido de casos semelhantes e concluímos que eles
são a prova da existência dum padrão geral. E deixamos de observar. No
artigo em discussão isto acontece duma maneira muito específica. O
jornalista opera com um tipo-ideal, nomeadamente a ideia de menina
órfã. Ela corresponde à ideia de alguém que em resultado das difíceis
condições de vida que enfrenta não tem outro remédio senão recorrer à
prostituição para ganhar a vida. O artigo apresenta, neste sentido, dois
casos. O primeiro é o duma menina de 17 anos. Perdeu os pais em 2005 e
tem quatro irmãos. Teve que interromper os estudos quando estava na
nona classe para poder sustentar os seus irmãos. O segundo caso é de
alguém que é casada com um mineiro que não volta há sete anos. Tem
14
quatro filhos. Os dois casos falam por si: dificuldades existenciais
explicam a opção pela prostituição. Perante estes dois casos pode não
interessar mais saber ainda mais sobre a situação. Os dois casos
confirmam um padrão geral, a saber o padrão da opção pela prostituição
por razões existenciais.
Mas esta observação é problemática. Quando analisamos os casos
individualmente vemos que eles são pouco convincentes. Por exemplo, o
caso da menina de 17 anos é curioso. Quando os pais morreram ela tinha
10 anos. Como é que ela sobreviveu até interromper os estudos na nona?
Há qualquer coisa que não bate certo nesta trajectória, mas que passa
despercebida a partir do momento em que a nossa atenção se concentra
no padrão que o caso reproduz. O mesmo acontece com o segundo caso.
A idade dela não é indicada no artigo. Só se escreve que ela é uma
jovem. Mas “jovem” com quatro filhos e casada com alguém que não dá
sinais de vida há sete anos não é decididamente “menor”. Mas mais uma
vez, o padrão reproduzido retira a nossa atenção dos méritos individuais
do caso. Destes reparos retiro a segunda máxima do pensamento
sociológico:

15
Antes de aceitar um relato qualquer sobre uma determinada situação
o sociólogo precisa de se certificar que ele é baseado numa amostra
representativa ou típica segundo critérios qualitativos sistemáticos!

Caixa 1.3: Representatividade


Se tenho a ideia de que as pessoas do sul do país são arrogantes e cruzo com uma pessoa
do sul que se comporta de forma arrogante para comigo posso concluir que esse caso confirma
a minha ideia? No dia-a-dia normal de cada um de nós sim, infelizmente. Mas na pesquisa
empírica social, não. Nem que no espaço de apenas uma hora me cruzasse com 10 pessoas do
sul que se comportassem de forma arrogante teria razão para concluir que as pessoas do sul
são arrogantes. O universo “gente do sul” é infinitamente maior do que as pessoas do sul com
quem me cruzo. Pode ser que se trate de pessoas do mesmo extracto social, do mesmo partido,
da mesma localidade, do mesmo carácter, etc. com quem me cruzo. A generalização só é
legítima quando é feita a partir daquilo que se chama de amostra representativa. Uma amostra
representativa é aquela que resulta de indivíduos selecionados dum universo em que cada um
dos seus membros tem a mesma probabilidade de ser escolhido. As pessoas do sul com quem
me cruzo nas ruas de Maputo constituem uma amostra enviesada porque nem toda a gente do
sul tem a mesma probabilidade de se cruzar comigo nessas ruas.
A noção de representatividade é muito importante mesmo para a abordagem de assuntos
da esfera pública no quotidiano. Eis um exemplo que dependendo do contexto político pode
ser controverso. Dum modo geral, podemos dizer que o aparelho de estado moçambicano tem
uma percentagem elevada de gente do Sul em postos de chefia. Porquê? Porque o país é
dominado pelo Sul? Porque só os do Sul é que reúnem os requisitos necessários? Porque só
eles é que se interessam por esse tipo de trabalho? Para respondermos a estas questões
precisamos de fazer recurso à noção de “representatividade”. Para o efeito, precisamos de
definir o próprio conceito de “gente do Sul”. Podemos fazer isso geograficamente. Pessoa do
Sul é uma pessoa de Maputo, Gaza ou Inhambane. Qual é a distribuição destas pessoas no
aparelho do Estado? É bem provável que haja mais pessoas de Maputo do que de Gaza ou de
Inhambane. O que significa, nestas circunstâncias, dizer que pessoas do Sul dominam o
aparelho de Estado? Se constatarmos que há mais pessoas de Maputo do que das outras
províncias não será provável que isso seja mais determinante, isto mais determinante do que
simplesmente ser do Sul? E mesmo dentro de Maputo, pode ser que a maioria pertença, por
exemplo, à Igreja Presbiteriana e a certas famílias (Tembe, Fumo, Matola, Honwana,
Hunguana). O que significa “Sul” nessas circunstâncias? E se constatássemos ainda que as
pessoas do Norte e do Centro que trabalham no aparelho do Estado são pessoas que se
formaram em Maputo e que o facto de se encontrarem lá facilitou o seu ingresso no aparelho
de Estado? Não será, então, uma questão mais de natureza administrativa que determina que
pessoas perto do centro do poder tenham maiores probabilidades de encontrarem emprego no
aparelho do Estado?
Estas são questões que podemos incluir na nossa reflexão apoiando-nos na noção de
representatividade. Como é que definimos o conceito de base, quem faz parte dele e até que
ponto podemos estar certos de que a amostra que usamos para fazermos as nossas observações
corresponde realmente à população e ao universo sobre o qual falamos?

16
c) Observações selectivas
Observações selectivas são muitas vezes uma consequência de
generalizações. Aqui a tendência é de concentrarmos a nossa atenção em
casos, eventos ou situações que confirmam o padrão que sabemos existir
e para o qual já temos uma explicação. Por exemplo, quando nos
interessamos pela má condução dos “chapas” apontar para mais um caso
de má condução protagonizado por um deles pode não constituir grande
novidade em termos de descrição dum fenómeno. O que seria
interessante seria, por exemplo, trazer à superfície casos de “chapas” que
conduzem bem e explicar porque eles são diferentes dos outros. O
mesmo vale para prostitutas menores. Mais caso, menos caso de
prostituta menor não ajuda a perceber o fenómeno em questão. Cada um
deles só confirma o que pensamos saber, nomeadamente que há meninas
que se prostituem em idade menor por necessidades existenciais.
Do ponto de vista da compreensão sociológica, contudo, seria
interessante procurar por casos desviantes, por exemplo, casos de
meninas órfãs em condição existencial difícil, mas que não entram na
prostituição. Porque não o fazem? O mesmo vale para os camionistas de
longo curso. Aqui também insistimos quase sempre no camionista de
longo curso que usa os serviços disponibilizados pelas trabalhadoras do
sexo. Sabemos muito pouco sobre o camionista de longo curso que não o
faz. Idem para o mineiro e para o passageiro. A insistência no tipo que
conhecemos não traz nada de novo. Na verdade, esta insistência
corresponde a algo que os psicólogos chamam de viés de confirmação.
Este fenómeno consiste em procurar por informação que apenas confirma
aquilo que sabemos. Acontece muito no nosso país. Para o crítico
profissional do governo do dia todo o relatório internacional que diz que
a educação ou a saúde estão mal é a confirmação daquilo que ele sabe,
nomeadamente que está tudo mal no país. Assim, um relatório que diga
que a produção agrícola aumentou não o interessa nem um bocado. Ele
até é capaz de suspeitar que seja mentira, só porque esse relatório não
17
encaixa naquele esquema negativo que ele já formou. Igualmente, para o
inimigo político da Renamo a única informação que conta é aquela que
mostra o lado negativo desse partido como se toda a malta má do nosso
país estivesse lá reunida.
Desta constatação emerge a terceira máxima do pensamento
sociológico:
Confrontado com casos padronizados o sociólogo precisa de
procurar por casos desviantes!

Erros analíticos

Tenho vindo a falar de “erros”, mas se calhar o melhor seria falar de


“dificuldades” ou “desafios”. “Erro” é um pouco pesado tanto mais que isso
pressupõe uma posição privilegiada que eu não detenho. De qualquer

Caixa 1.4: controlo de conclusões


A coisa mais fácil de fazer em qualquer apreciação de seja o que for é tirar conclusões.
Tirar conclusões é a coisa mais natural que as pessoas fazem. Deve ser porque muitos de nós,
senão mesmo a grande maioria, tem dificuldades em viver com incógnitas. Se num dia tenho
um acidente de viação à ida ao serviço, e lá chegado sou chamado pelo chefe para ralhar
comigo porque o trabalho que faço não é do seu agrado e, mais tarde, o meu cônjuge em casa
se zanga comigo por uma ninharia qualquer posso ter dificuldades em aceitar isso tudo como o
que é, nomeadamente algo que pode acontecer. Muitos de nós vão procurar por uma
explicação qualquer, incluindo aquelas que envolvem os espíritos de antepassados ou o diabo.
Não é parva a pessoa que faz isso. É normal. O mundo tem que fazer sentido. O problema,
porém, é que nem todas as conclusões que tiramos fazem sentido. Não é por eu ter uma
explicação para uma determinada coisa que essa coisa fica explicada. A sociologia (mal feita)
está cheia de conclusões fáceis. Se alguém é pobre e rouba, então rouba por causa da pobreza;
se alguém é corrupto e faz parte do governo, então é corrupto porque é membro do governo; se
há linchamentos e a justiça é inoperante, então é porque a inoperância da justiça não dá outras
alternativas às pessoas. A sociologia (bem feita) tempera e controla a tentação da conclusão
fácil. Faz isso encorajando as pessoas a pensar em explicações alternativas ou a olhar para
casos desviantes. Por exemplo, se o aproveitamento escolar num determinado ano é péssimo
(como foi em 2015) podemos facilmente concluir que o problema é da má qualidade do
ensino. Sim, pode ser. Mas enquanto não tivermos percebido porque é que alguns alunos
tiveram um bom aproveitamento não podemos dizer que temos uma explicação satisfatória
para as reprovações. Talento natural? Melhores condições sociais? Suborno de professores?
Melhor cultura de estudo?

maneira, depois de falar dos “erros” da observação gostaria de abordar agora


as dificuldades que resultam dos nossos esforços de conferir sentido ao que

18
observamos. Talvez seja importante neste momento dizer que a palavra
“análise”, etimologicamente, significa decompor um fenómeno e pôr a
descoberto as partes que o constituem. Quando analisamos a água, por
exemplo, identificamos as moléculas (oxigénio e hidrogénio) que a
compõem. Do ponto de vista científico a análise vai mais longe. Não só
identificamos as partes constituintes dum fenómeno como também
procuramos saber que tipo de relação existe entre elas.
Esta questão é particularmente importante nas ciências sociais, pois nós
dependemos muito de conceitos para termos acesso ao nosso objecto. O
cientista natural, por exemplo, coloca animais (ou partes de animais) no seu
microscópio e observa-os. Nós os cientistas sociais dificilmente podemos
fazer isso com a “sociedade”. Para termos acesso ao nosso objecto
precisamos de o definir operacionalmente. Como o leitor pode imaginar, isso
é extremamente difícil. Muitos dos conceitos que usamos, por exemplo, são
rótulos gerais para coisas muito complexas. Peguemos no conceito
“camionista de longo curso” como ilustração. Pois bem, um “camionista de
longo curso” não é apenas alguém que conduz viaturas pesadas para o
transporte de mercadorias em percursos não inferiores a, por exemplo, 500
quilómetros. Ele pode ser homem ou mulher; pode ser desta ou daquela outra
etnia; pode ter esta ou aquela nacionalidade; pode ter um certo nível de
instrução; pode ser fiel duma denominação religiosa, ou não; pode ter certas
preferências políticas; pode ser casado ou solteiro; pode ter esta ou aquela
orientação sexual; enfim, há todo um conjunto de características,
propriedades e atributos que podem entrar na definição dum “camionista de
longo curso”. Todos eles podem fazer uma grande diferença no tipo de
relação que estabelecemos entre fenómenos. Por exemplo, quando dizemos
que “camionistas de longo curso” preferem praticar relações sexuais sem a
devida protecção essa afirmação faz pouco sentido se não prestarmos atenção
ao facto de que a probabilidade disso acontecer está ligada talvez ao facto de
serem camionistas com esta ou aquela orientação religiosa, esta ou aquela
vivência, etc. Os “erros” analíticos estão intrínsicamente ligados à natureza
difícil do trabalho com conceitos que caracteriza as ciências sociais (e não
19
só, diga-se de passagem). Para os meus efeitos neste livro vou apenas
abordar dois tipos de “erros” analíticos, nomeadamente erros ligados ao que
se chama de (a) falácia ecológica e (b) reducionismo.
a) Falácia ecológica
A falácia ecológica é bem típica do discurso do quotidiano e costuma
infectar também a análise científica. Ela ocorre quando partimos do
princípio, segundo o qual o indivíduo seria portador das características
do grupo a que pertence. No caso do fenómeno da prostituição infantil
poderíamos simplesmente partir do princípio segundo o qual toda a
trabalhadora do sexo menor, todo o camionista de longo curso, todo o
mineiro e todo o passageiro é portador das características que nós
atribuímos a cada um desses grupos no nosso relato desse fenómeno.
Assim, a trabalhadora de sexo menor sê-lo-ia por razões ligadas à
necessidade de sobrevivência; o camionista de longo curso, o mineiro e o
passageiro fazem uso dos serviços de prostituição e recusam, por uma
questão de princípio, a utilização de preservativo.
Reparem que a lógica de pensamento é a mesma que está presente no
uso que fazemos de conceitos como “população”, “polícia
moçambicana”, “governo” e até mesmo “docente moçambicano”.
Utilizamos esses conceitos como rótulos gerais que nos dizem muito
pouco sobre as propriedades individuais que orientam a acção dos
sujeitos que fazem parte desses grupos. Quando alguém diz, por
exemplo, que a “população” lincha pessoas em reacção à ausência do
Estado o que isso quer dizer? É claro que “população” é demasiado geral
para ser de utilidade neste caso. Quem são as pessoas que participam nos
linchamentos? Que características as definem? Em que circunstâncias é
que esses linchamentos acontecem? Em que tipo de lugares? Com isto
não estaremos a negar que a “população” linche pelas razões apontadas;
estaremos, isso sim, a ser mais precisos em relação às condições sob as
quais faz sentido dizer que a população lincha em reacção à ausência do
Estado. Só para recuperar um exemplo anterior: na opinião do inimigo da
Renamo pode ser que faça parte da natureza desse partido violar a
20
constituição ou fazer guerra. Só que isso não nos dá o direito de
concluirmos que todo o membro da Renamo viola a constituição ou faz
guerra.
Deste reparo resulta a seguinte máxima sociológica:
O sociólogo deve sempre estar preparado para identificar as
condições exactas dentro das quais uma afirmação faz sentido!

Caixa 1.5: A explicação na sociologia


O termo “explicação” é algo complicado quando aplicado às ciências sociais. Trata-se
dum termo geralmente associado à imputação duma relação causal. Por exemplo, se a gente
quer saber porque a estrada está molhada, dizer que é porque choveu constitui boa
explicação. A relação é de causa-efeito. Choveu, a estrada ficou molhada. Podemos usar o
mesmo esquema para explicar um acidente. O carro derrapou porque a estrada estava
molhada por causa da chuva. Só que neste exemplo já começamos a ver os limites do termo
“explicação”. Não é sempre que a estrada está molhada que as pessoas têm acidentes. Ou
melhor, para que haja acidente onde uma estrada está molhada é preciso que vários outros
factores entrem em jogo. Podem ser a capacidade técnica do motorista, o estado dos pneus,
as circunstâncias de trânsito, o estado de saúde do motorista, etc. Aqui a relação causal fica
algo inútil para nos ajudar a perceber o que realmente aconteceu. Se calhar, mais do que
uma relação de causa e efeito precisamos de saber como algo aconteceu. Esse relato do
processo pode constituir uma explicação no contexto das ciências sociais. O sentido em que
esse relato seria uma “explicação” é o sentido em que ele nos proporciona uma narrativa
coerente e lógica do que teve que acontecer para que esse evento em particular ocorresse. O
essencial da “explicação” em ciências sociais, contudo, reside num reparo muito importante.
Quando explicamos queremos tornar claras as condições exactas em que a nossa conclusão
faz sentido. Quando é que faz sentido dizermos que um acidente ocorreu porque a estrada
estava molhada? Faz sentido quando eliminamos todas as outras alternativas de dar conta do
ocorrido, incluindo o estado de sobriedade do motorista! A pergunta de base é esta mesmo:
quando é que faz sentido fazer uma determinada afirmação (ver também a conclusão deste
livro)?

b) Reducionismo
O reducionismo é quase como o oposto da falácia ecológica. Aqui
reduzimos processos complexos à acção dum indivíduo. Um caso
emblemático é o de Nelson Mandela na África do Sul. Não há dúvidas de
que ele teve um papel muito importante para o tipo de transição que houve
naquele país. Mas a tendência bastante generalizada de reduzir o sucesso
dessa transição à personalidade de Mandela é problemática porque separa o
indivíduo e os fenómenos duma história que os constituiu. É o mesmo em
relação à figura de Samora Machel no nosso próprio país. Ele foi o que foi
em virtude da sua própria individualidade, mas também em virtude dum
21
conjunto de factores acima dele que muito provavelmente fizeram dele
aquilo que ele foi. Para entendermos o seu protagonismo nos fenómenos que
queremos explicar não o podemos separar do contexto que tornou a sua
pessoa possível. Isto não implica negar a grandeza de Mandela ou de
Machel.
No estudo de fenómenos como o HIV existe igualmente a tendência de os
reduzir à sorte dum único indivíduo. Assim, explicamos o fenómeno
particular da prostituição de menores com recurso à personalidade da menina
de 16 anos desligando a pobre rapariga de todo o contexto social, económico,
cultural e político que a constituiu como ela hoje é.
Deste reparo resulta mais uma máxima sociológica, nomeadamente:
O sociólogo não se contenta em reduzir fenómenos complexos à
singularidade dum indivíduo, mas preocupa-se também em recuperar o

Caixa 1.6: O geral e o particular


C. Wright Mills, um grande sociólogo americano das décadas de sessenta e setenta do século
passado, escreveu um pequeno livro com o título “A imaginação sociológica” (Mills 1975) que
imediatamente se tornou num clássico da sociologia. Ele definiu a imaginação sociológica como a
capacidade de articular fenómenos sociais individuais com a estrutura social que os torna
possíveis. Essa definição é ao mesmo tempo um reparo metodológico. Muitos de nós não temos
nenhum problema em considerar que uma pessoa pobre é pobre, por exemplo, porque é
preguiçosa. A preguiça individual é naturalmente importante como critério. Mas há casos de
pessoas pobres fortemente trabalhadoras e que mesmo assim são pobres. Portanto, só a preguiça
individual não explica a pobreza desse indivíduo. Pode ser que o mercado de trabalho não tenha
empregos suficientes para todos; pode ser que o acesso a esses empregos seja condicionado por
quem a gente conhece; pode ser que a pessoa pobre não reúna os requisitos profissionais para
concorrer para certos empregos. Portanto, há muitos factores ligados à própria sociedade, isto é à
estrutura social, que explicam porque os pobres são pobres. A recomendação de C. Wright Mills é
de que o sociólogo tem que tomar isso em consideração. O que ele quer dizer com isso é que em
toda a explicação dum fenómeno social intervêm dois lados, nomeadamente o particular e o geral.
O indivíduo pobre reflecte o lado individual das coisas, logo, o particular. Mas nesse indivíduo
pobre está também reflectida toda a sociedade, pois a sua pobreza é manifestação, por exemplo, da
distribuição de oportunidades nessa sociedade.

contexto que tornou esse indivíduo possível!


Erros analíticos costumam ser uma manifestação dum problema lógico
ligado ao que se chama de falácia da afirmação do consequente. Nesta
falácia apresentamos explicações circulares de fenómenos. Por exemplo, no

22
caso da prostituição de menores se partirmos da tese segundo a qual a
entrada de menores na prostituição agravaria os índices de infecção com o
HIV não podemos considerar o fenómeno explicado se apenas constatarmos
o agravamento do índice de infecções. O raciocínio aí teria simplesmente a
seguinte qualidade:

A. Se menores entram na prostituição os índices de infecção vão se


agravar;

A. Os índices de infecção agravam-se;


B. Logo, é porque entraram menores nesse negócio.
É visto que este raciocínio é extremamente deficiente. Os índices podem
se dever a outros factores. O nosso raciocínio reafirma simplesmente o nosso
palpite. Ora, o que isto exige de nós é a procura incessante de explicações
alternativas para o que queremos descrever e analisar para nos precavermos
contra explicações simplistas de fenómenos sociais.

23
Conclusão

Na verdade, o que tentei fazer neste capítulo foi demonstrar que pensar
sociologicamente é ser bom cidadão. O sociólogo Carlos Serra do Centro de
Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane descreve muito bem
as qualidades e virtudes dum bom sociólogo – e por extensão – dum bom
cidadão no seu “decálogo do sociólogo” reproduzido no seu excelente livro
“Combates pela mentalidade sociológica” (Serra 2003). O bom sociólogo é
aquele que se relaciona criticamente com a sua sociedade. Não diz que está
tudo mal, mas também não precisa de dizer que está tudo bem; interpela
verdades simples e procura saber como os outros chegaram às conclusões a
que chegaram.
Pensar sociologicamente é isso mesmo.

24
Segundo Capítulo
Problemas

25
26
O problema

Na introdução ao livro escrevi que a maior contribuição que a sociologia


pode fazer à sociedade consiste em formular melhor os problemas. Tenho
consciência de que nunca consegui convencer ninguém a este respeito.
Mesmo os estudantes aceitam esta máxima por conveniência académica –
notas! Reconheço, é claro, que esta ideia não é incontroversa. Na verdade,
ela entra em dissonância com uma ideia mais ou menos positivista, segundo
a qual a função da actividade científica devia ser de ajudar na resolução de
problemas. A ideia de uma ciência positiva vem justamente daí: através do

Caixa 2.1: Positivismo


O positivismo foi um movimento intelectual nascido na França do século XIX pela pena dum
dos mais importantes percursores da sociologia francesa, nomeadamente Auguste Comte. Ele
defendeu a ideia duma ciência positiva. Essa ideia continha dois elementos essenciais. Um
elemento consistia na crença segundo a qual o verdadeiro conhecimento é aquele que se baseia em
fenómenos naturais. Pela sua natureza, esse elemento relega tudo o que não assenta em fenómenos
naturais para o segundo plano. O outro elemento consistia na convicção segundo a qual a produção
de conhecimento tinha que ter como objectivo contribuir para um mundo melhor. Um
conhecimento que não pudesse ter aplicação positiva não era digno desse nome. Este movimento
intelectual teve muita influência na forma como se concebeu a metodologia das ciências sociais.
Supôs-se que todas as áreas de conhecimento estivessem sujeitas às regras previstas para as
ciências naturais. Esta suposição suscitou grandes discussões no seio da metodologia das ciências
sociais entre os que queriam tratar fenómenos culturais e sociais como realidades objectivas
sujeitas a leis naturais e aqueles que insistiam na ideia de que os fenómenos abordados pelas
ciências sociais exigiam outro tipo de metodologias assentes no reconhecimento da sua natureza
histórica. Foi neste contexto, por exemplo, que surgiu a ideia da abordagem interpretativa –
conhecida nos meandros da metodologia das ciências sociais pelo seu termo alemão “Verstehen”
(compreensão) – a qual argumentava que o objecto das ciências sociais (espirituais e culturais
foram outras designações usadas) não era passível de explicação, mas sim de compreensão. Só
fenómenos naturais é que podem ser explicados porque a explicação assenta no estabelecimento de
relações causais. Fenómenos históricos exigem interpretação e compreensão.

conhecimento positivo seremos capazes de tornar o mundo num lugar mais


agradável
Podia insistir sobre este ponto para procurar descrever uma linha
genealógica entre o positivismo e o totalitarismo. Não o vou fazer para não
misturar assuntos. Fico apenas pela minha própria convicção. O que
significa, então, dizer que a sociologia formula problemas? Significa que não
damos as coisas por adquirido, somos críticos e exercemos o nosso dever

27
cívico brilhantemente resumido por Carlos Serra como a recusa de aceitar
verdades simples (Serra 2003). Na realidade, um dos nossos maiores
problemas (!) em Moçambique é de procurar sempre por soluções – quase
que como reflexo – para problemas mal definidos, ou que ainda nem foram
formulados: Vamos combater a corrupção! Vamos eliminar a pobreza!
Vamos acabar com a criminalidade! Vamos reduzir os índices de infecção do
HIV! Vamos acabar com a intolerância! Vamos promover a Unidade
Nacional! Poucos se dão à maçada de procurar saber em que sentido a
criminalidade, os índices de infecção, a intolerância política e a desunião
constituem um problema.
E é aqui onde residem, talvez, algumas dificuldades dos sociólogos ainda
em formação ou que se encontram já a trabalhar. De estudantes tenho
recebido pedidos de apoio na formulação da tese; dos que estão a trabalhar
recebo solicitações para ajudar a “abordar o problema sociologicamente”.
Trata-se de duas faces da mesma moeda. Tanto num como no outro caso o
desafio central é de formular um problema. Ou por outra, onde está o
problema? Qual é o problema? Porque o problema é um problema? Que
razões temos nós para supor que estejamos perante um problema? É
problema para quem exactamente? Como é que o problema se articula com
outros problemas ou mesmo soluções?
Vamos ser mais práticos. Uma vez o Ministério do Comércio convocou os
proprietários de bombas de combustível para discutir a questão da venda de
bebidas alcoolicas. Deve ter sido em 2006 por aí. A ideia do Ministério até
era de proibir a venda. Apoiava-se nos elevados índices de acidentes de
viação no país para dizer que a proibição poderia contribuir para a redução
desses acidentes. Suponhamos que o Ministro tivesse pedido ao seu assessor
sociólogo para propor soluções ao problema, o que diria ele? Iria o sociólogo
(ou socióloga, subentenda-se) fazer o mesmo que o Ministro fez e mandar
proibir a venda? Iria ele propor campanhas de sensibilização dos
automobilistas? Iria ele sugerir a compra pela polícia de trânsito de aparelhos
de detecção de álcool? Como é que o nosso sociólogo iria “abordar o

28
problema sociologicamente”? Já agora, de que maneira é que esta questão
poderia ser transformada num trabalho de tese?
O sociólogo iria, em primeiro lugar, desconfiar. Ele iria procurar saber
se entendeu o problema. Qual é o problema? O Ministério do Comércio
pareceu estar a sugerir uma relação entre a venda de bebidas alcoólicas nas
bombas de combustível e o número de acidentes de viação no país. É uma
hipótese clássica: quanto mais álcool for vendido nas bombas de
combustível, maior será o número ou a frequência de acidentes de viação.
Temos duas variáveis em relação causal: venda de álcool e número de
acidentes. Está claro este problema? É evidente que não! Há várias
inferências que são feitas:

(1) As pessoas que compram álcool nas bombas de combustível


consomem-no logo ali, entram no carro e pufff! Acidente!

(2) as pessoas que compram álcool nas bombas de combustível


compram-no em quantidades suficientemente grandes para
ficarem de tal maneira “grossas” que perdem o controlo do
carro;
(3) os acidentes que se verificam em Maputo resultam da condução
em estado de embriagues;
(4) essa embriagues vem de álcool comprado em bombas de
combustível;
(5) todos os acidentes que ocorrem em resultado de condução em
estado de embriagues precisam necessariamente de ser
reduzidos.

Deixo como trabalho de casa à imaginação de cada um de nós prosseguir


com as inferências. São muitas, o leitor vai até ficar espantado.
O sociólogo iria, em segundo lugar, interrogar esta formulação do
problema. Existem provas que fundamentam esta hipótese? Aproveito este
ponto da discussão para chamar atenção para um aspecto muitíssimo
importante, frequentemente descurado por muitos de nós: a formulação de
um problema (no Ministério ou na faculdade) não é coisa que se faça à
29
sombra de uma acácia na base de cogitação. Não se faz na praia, no
cabeleireiro ou na barraca. Muito menos se faz perguntado simplesmente ao
supervisor. É um trabalho de investigação! É preciso informar-se, obter
Caixa 2.2: Problematização
A problematização é um aspecto muito importante do trabalho de pesquisa. Para eu pesquisar
seja o que for tenho que ter uma noção bem clara do problema que tenho em mãos. Problematizar
significa reunir toda a informação possível para descrever o que eu quero abordar e explicar. Alguns
estudantes, por exemplo, quando estão perante o desafio de elaborar um trabalho de tese não prestam
muita atenção à necessidade de ter uma ideia clara do problema que querem abordar. Vamos supor
que queiram fazer um trabalho sobre as crianças de rua. É evidente que não é possível abordar esse
assunto sem primeiro se informar sobre ele. Informar-se sobre o problema significa ler livros e
relatórios sobre o assunto. Saber como o problema é visto por outros estudiosos e que conceitos e
teorias são empregues para o abordar. Só com esse conhecimento é que podemos ganhar uma ideia
do tipo de questões que ainda não foram consideradas e que nós gostaríamos de considerar. Mesmo
que todas as questões pertinentes tenham sido consideradas, podemos querer verificar se isso foi
feito da melhor maneira. Este trabalho preliminar é essencial para o sucesso de qualquer estudo. Só
quem sabe do que fala é que pode realmente contribuir para o tema.
A problematização consiste em tornar claro o problema que a nossa pesquisa pretende abordar e
articular isso com lacunas no nosso conhecimento. Assim, no caso das crianças de rua podemos fazer
isso estabelecendo, por um lado, que a existência de crianças na rua numa sociedade que se define
pela solidariedade e pela importância da família constitui um problema que precisa de ser abordado
e, por outro lado, que a ausência de conhecimento sólido sobre a matéria é estranha tendo em conta a
importância que a nossa sociedade atribui à família.

dados, ler relatórios sobre problemáticas idênticas, entrevistar pessoas,


observar o comportamento das pessoas, etc. O que dizem as estatísticas dos
serviços de viação do Ministério do Interior? Quais são as quantidades de
álcool vendidas pelas bombas de combustível? Chegam mesmo para
justificar a inferência? Quando é que se compra mais álcool nas bombas? Os
acidentes verificam-se nesses dias? Quem compra álcool? Homens?
Mulheres? Jovens do sexo masculino? Feminino? Nacionais? Estrangeiros?
Gente de Maputo? De fora? Onde se verificam os acidentes? Perto das
bombas? Em que tipo de estradas? A que horas do dia ou da noite? Que tipo
de viaturas estão envolvidas? Que tipo de acidentes são? Atropelamentos?
Choques? Derrapagens? Aqui também deixo como trabalho de casa à
imaginação de cada um de nós formular mais perguntas necessárias à
compreensão da dimensão do problema. Há mais, não duvide!
O sociólogo iria, em terceiro lugar, partir da resposta a estas
perguntas todas para as soluções. É bem provável que a proibição se
30
afigure, realmente, como a melhor solução para o problema – se, de facto, o
problema se apresentar dessa maneira. Mas é também possível chegar à
conclusão de que o problema não é do álcool vendido nas bombas de
combustível, mas sim do tipo de pessoas que vão lá comprar o álcool. Se não
for nas bombas de combustível vai ser noutro sítio. O Ministro vai também
proibir? A solução, nesse caso, seria, talvez, de fazer uma daquelas famosas
campanhas de sensibilização dos automobilistas, tipo cartazes publicitários
com dizeres “conduzir sóbrio é maningue naice” ou “conduzir sóbrio é que
está a dar” ou ainda “pode ser a nossa cerveja, à nossa maneira, mas a morte
é a mesma”. Isto é que é fazer sociologia. FORMULAR PROBLEMAS!
Mais uma vez, quem dá largas à imaginação verá que há várias formulações
possíveis do problema. Não é o álcool, mas sim as estradas, os sinais de
trânsito, o estado mecânico das viaturas, etc.
A seguir vou tentar dar alguns subsídios sobre como lidar com esta
problemática como trabalho de tese: Como formular questão de partida?
Hipóteses? Operacionalização? Trabalho de campo? Tese? Interpretação?
Teoria, ah, a teoria! Qual é o quadro teórico que posso usar para este
problema, stôr?

O problema e os conceitos que o tornam visível

Quando escrevia, mais acima, que a identificação de uma “abordagem


sociológica” de um problema e a elaboração de uma tese são duas faces da
mesma moeda, queria dizer que, na essência, o desafio é o mesmo. Formular
um problema significa estabelecer uma relação entre duas variáveis ou, para
ser mais geral e menos técnico, entre dois conceitos. Vimos o problema da
venda de bebidas alcoólicas nas bombas de combustível e o número de
acidentes de viação. Há vários outros problemas que poderíamos imaginar.
Numa iniciativa presidencial sobre o HIV há alguns anos houve grupos
cívicos que formularam o problema da indumentária feminina e o aumento
dos índices de infecção; o Conselho Superior da Comunicação Superior, a
propósito da publicação das caricaturas de Maomé pelo jornal Savana,

31
formulou o problema da violação da lei de imprensa e da inviabilização do
projecto de unidade nacional. Como se pode ver, é sempre conceito em
relação a outro conceito.
Isto não quer dizer que a relação seja sempre causal. Podemos também
estabelecer relações em que os dois conceitos se influenciam mutuamente ou
relações em que os conceitos juntam forças para ir influenciar outros
conceitos. Mais detalhes sobre este assunto podem ser lidos no livro “A
leitura sociológica” (Macamo, 2004; 2016). Mais acima concentrei a minha
atenção sobretudo na forma como um investigador – fora da universidade –
deve encarar as tarefas que lhe são colocadas. Ele tem que formular o
problema por si próprio e não se dar por satisfeito pela formulação que
outros fizeram. No fundo, esta atitude não é diferente daquela que um
estudante deve assumir ao formular o seu projecto de tese. A pergunta é a
mesma: qual é o problema?

Caixa 2.3: ciência e superstição


Há gente que fica louca quando se confirma um palpite qualquer que teve noutro dia. “Eu disse,
não disse?”. Essas são pessoas que confundem as ciências sociais com superstição. Pensam que fazer
ciências sociais é ter explicação para tudo e ter explicação para tudo é ser capaz de antecipar coisas.
Não é. A diferença entre o trabalho científico e a superstição consiste no facto de que o trabalho
científico é uma reflexão sobre como se chega às conclusões. A superstição explica apenas, mesmo
que não tenha ideia de como lá chegou, ou como outros podem lá chegar. A esfera pública
moçambicana tem tido alguns casos de confusão entre ciência e superstição. Nos jornais, algumas
das pessoas que fazem comentário político ou económico, orgulham-se de poder prever coisas, mas
sabem pouco sobre como chegaram a essas previsões. Um exemplo: O líder da oposição não vai
aceitar a nova proposta do governo, dizem esses especialistas. E, dito e feito: O líder da oposição não
aceita a proposta. Os especialistas: Não disse, não disse, não disse? Sim, disse. Mas qualquer pessoa
pode dizer isso. O mais importante não é que esse vaticínio se tenha confirmado. O mais importante
é saber que critérios usou para determinar que o líder da oposição não iria aceitar? São critérios que
possam ser replicados noutras situações? Para perceber o alcance deste reparo o leitor só precisa de
imaginar as várias ocasiões em que vaticinou coisas, e não aconteceram. Se calhar tem uma tia (ou
um tio) que lá na família tem fama, por exemplo, de sonhar coisas que depois realmente acontecem.
Não é diferente desses nossos “especialistas”. Para além de a gente não conhecer os critérios,
ninguém confronta esse familiar com os milhares de outros sonhos que teve, e que não se
confirmaram. A gente concentra-se apenas naquilo que se confirmou… e fica com a impressão de
estar perante uma pessoa com faculdades mágicas.

O trabalho académico difere do desafio profissional porque o académico


tem que tornar mais explícitos os seus pressupostos teóricos. Ou por outra, o
que mais interessa num trabalho de tese – pelo menos para mim como

32
supervisor – não são os resultados, mas sim a demonstração, pelo estudante,
da sua capacidade de observar procedimentos sistemáticos na sua elaboração.
Alguém me pode dizer, por exemplo, como conclusão do seu trabalho de
tese, que a corrupção está a comprometer o desenvolvimento de
Moçambique. Contudo, se eu não puder ver como é que esse estudante
chegou a essa conclusão, não posso aceitá-la. Eis aqui, por acaso, uma
diferença entre a ciência e a superstição: os procedimentos da ciência
reclamam transparência!
É verdade que alguns de nós teimamos em fazer ciência como se
estivéssemos a fazer superstição, mas isso não significa que as coisas sejam,
na sua essência, assim mesmo. Há anos, pessoas no Xai-Xai disseram-me
que havia pessoas que voavam. Deram como exemplo o caso de uma senhora
encontrada nua e estatelada numa árvore, de madrugada. Escusado será dizer
que nenhuma dessas pessoas que me contou a ocorrência vira a tal senhora:
ouviu de “fonte digna de confiança” que viu com os próprios olhos. Isso até
nem interessa. Porquê a suposição de que essa senhora teria “voado”? A
resposta é de que as bruxas voam, que essa senhora esgotou a poção mágica
que lhe permitia voar por razões ainda desconhecidas, e que normalmente
voam nuas. Portanto, o que faz algumas pessoas voarem não é o facto
mesmo de voarem. É o facto de alguém acreditar nessa possibilidade. Sendo
assim, basta reunir indícios que sustentam essa crença para se ficar com a
certeza de que alguém voou.
Na ciência, contudo, precisamos de muito mais do que a simples vontade
de “querermos” acreditar. É aqui onde os conceitos desempenham um papel
extremamente importante na elaboração de um trabalho académico. Já vimos
que opomos dois conceitos. O que significam, porém, esses conceitos?
Voltemos ao exemplo do álcool e acidentes: o que significa “venda de
bebidas alcoólicas nas bombas de combustível”? e “acidentes de viação”?
Basta olhar para a quantidade global de bebidas alcoólicas vendidas pelas
bombas ou tenho ainda que ver quem compra, quando, que tipo de bebida e
com que fim? Igualmente, basta olhar apenas para os acidentes que se
registam em Maputo ou então tenho também que ver se esses acidentes
envolvem pessoas embriagadas, pessoas que compraram a bebida nas

33
bombas, tipo de acidente, etc.? Quando é que estou a falar de “venda de
bebidas alcoólicas nas bombas de combustível” ou de “acidentes de viação”
quando estou a falar de “venda de bebidas alcoólicas nas bombas de
combustível” ou de “acidentes de viação”? É aqui onde o trabalho
académico se torna interessante. Não é aconselhável formular problemas na
base de conceitos vagos. É preciso defini-los, condição essencial da sua
operacionalização, mesmo para aqueles que tendem para o trabalho
qualitativo.

Caixa 2.4: Operacionalização de conceitos


As ciências sociais têm uma particularidade. Aliás, não são só elas. É toda a ciência, mas essa
particularidade é mais vincada nas ciências sociais. Elas recuperam o seu objecto através de
conceitos. O leitor pode fazer uma pequena experiência. Pegue num seu sobrinho de 8 ou 10 anos
e peça a ele para ir ver se há pedras lá fora. O petiz vai saber do que está a falar e vai poder dizer
se há ou não pedras lá fora. Agora peça a ele para ir ver se há relações sociais lá fora. Ele só vai o
olhar. Porquê? Porque relações sociais não existem? Porque ele é novo demais para perceber essas
coisas? Não. Ele vai ficar perplexo porque não tem nenhum critério útil que lhe permita identificar
essa coisa que o leitor lhe pediu para ir verificar. Suponhamos, porém, que o leitor dá a seguinte
instrução a ele: Rafaelito, vai lá para fora ver se as pessoas se tratam como irmãos, profissionais,
estranhos, amigos, etc. Parece muito melhor assim. O Rafaelito vai poder observar isso e voltar
com um relatório mais ou menos claro. Porquê? Porque o conceito “relações sociais” foi definido.
Como? Através da indicação dos elementos que o compõem e por intermédio dos quais podemos
estabelecer uma relação entre o conceito e a realidade. A operacionalização de conceitos consiste
na sua definição com vista a permitir ao pesquisador observar o fenómeno que ele descreve na
realidade. A operacionalização é uma parte importante da pesquisa, mas também do trabalho que é
feito em ciências sociais. Não é livre de controvérsia. Em princípio, a possibilidade de
operacionalização cria a impressão de que as coisas do mundo real são tal e qual elas são definidas,
e pior ainda, elas existem pelo facto de serem susceptíveis de definição. Um dos exemplos usados
para ilustrar este problema é o da medição do quociente de inteligência. A base destas medições é
uma definição operacional do conceito de “inteligência”. Isto é, pega-se em certas habilidades
cognitivas e intelectuais, juntam-se num teste que é aplicado às pessoas e conclui-se que quem
obtém melhores resultados é mais inteligente do que quem obtém resultados baixos. Mas até que
ponto é que essa conclusão faz sentido? Sabe-se, por exemplo, que muitos testes de inteligência
têm uma componente cultural muito forte de tal modo que quando são aplicados a gente de
culturas diferentes eles estão essencialmente a procurar saber se essas outras pessoas se enquadram
no modelo cultural na base desses testes. Na verdade, nessas circunstâncias não seria correcto falar
de “inteligência”, mas sim de “inteligência segundo os critérios definidos por esse teste”. É por
isso que alguns metodólogos falam de “operacionalismo” como forma de criticar alguns dos
excessos que são cometidos com este recurso. De qualquer maneira, toda a pesquisa, porque as
ciências sociais recuperam a realidade a partir de conceitos, precisa de definições operacionais de
conceitos. Se quero saber sobre o comportamento eleitoral dos habitantes do Bairro de Xipamanine
em Maputo preciso duma definição operacional de “comportamento eleitoral”. Esta definição vai
de certeza incluir coisas como “votar/não votar”, “motivações para o voto”, “importância que se
atribui ao voto”, etc. Cada uma destas coisas, por sua vez, vai exigir que o pesquisador indique
como vai obter a informação. Isso pode ser por via de perguntas aos eleitores, observação, consulta
de outros estudos, etc.

34
É na reflexão sobre o sentido dos conceitos onde encontramos subsídios
para a interrogação do que nos é sugerido como problema, como também
elementos para a clarificação da nossa questão de partida. Se no meu
trabalho preliminar de clarificação de conceitos chego à conclusão de que há
bombas de combustível que vendem mais álcool do que as outras, e que nem
por isso há um grande envolvimento em acidentes de viação das pessoas que
compraram das líderes do mercado, posso, com toda a propriedade, colocar
uma questão de partida: será que o tipo de clientes que uma determinada
bomba de combustível tem explica a relação entre venda de bebidas
alcoólicas e acidentes de viação? Afinal, é bem possível que não seja só o
consumo de álcool que conduz aos acidentes, mas sim o tipo de pessoas que
consome álcool. Alguns engraçadinhos vão, de certeza, perguntar que
diferença isso faz? Em minha opinião, muita. Se calhar a solução não é de
proibir a venda, mas sim de trabalhar com o tipo de pessoas vulneráveis ao
consumo descontrolado do álcool. Quem sabe, se calhar trata-se de maridos
ou esposas abandonados que vão afogar as suas mágoas no álcool, de
preferência à noite, longe dos olhares dos demais familiares e em sítios onde
são anónimos. Quem sabe? O sociólogo nunca sabe, é curioso, informa-se,
certifica-se, desconfia.
Portanto, não basta estabelecer uma relação entre dois conceitos – isto é,
formular uma hipótese – é preciso também formular uma questão. Na
verdade, é a partir dessa questão que podemos formular hipóteses claras e
exequíveis. No fundo elaborar uma tese consiste em formular uma questão
de pesquisa que nos permite formular hipóteses. Essas hipóteses são uma
espécie de trabalho de casa. Elas orientam-nos para o tipo de informação que
precisamos de recolher para podermos responder à nossa pergunta. Este
reparo dá-me a oportunidade de chamar a atenção de alguns de nós para algo
que tenho visto com certa frequência. Algumas pessoas usam o princípio do
operário que só tem uma ferramenta: o martelo. Para ele todos os problemas
são um prego. Isso não é correcto. Depois de elaborar as hipóteses não
coloco a pergunta que toda a gente instintivamente coloca de saber,
nomeadamente, como elaborar o guião de entrevistas.
35
Tenho primeiro que olhar para as minhas hipóteses: Que tipo de
informação é que elas exigem? Onde e como posso obter essa informação?
Lendo relatórios oficiais? “Abancando” numa bomba e ficando a “piar” o
movimento? Falando com pessoas? Que pessoas? Falando o quê? A
entrevista não é o único método à nossa disposição para a recolha de dados.
Há trabalhos que não precisam de entrevistas. Mesmo os que precisam, não
precisam de 30, 50, 70 ou 100. Podem só precisar de 10. Tudo depende das
hipóteses e da questão que se pretende responder! Aqueles que fazem
sociologia automaticamente é que nos dão mau nome por aí. É preciso
reflectir, sempre, sem parar, a cada passo.
O tema não está esgotado, evidentemente. Ainda falta falar sobre a
famosa “perspectiva teórica”, algo que vou fazer logo de seguida. O leitor
pode, antes de passar para a secção seguinte, praticar algumas destas coisas.
É simples. É só pegar nestes pequenos subsídios e interpelar o crime no
nosso país. O que significa “polícia” no nosso contexto? O que significam
afirmações como “o crime está a aumentar no país?”, “a polícia é
ineficiente”, “o ministério do interior não aguenta com isto”, etc? Que
relações estão a ser estabelecidas e que sustento empírico é que podem ter?

O problema do quadro teórico

Que quadro teórico? Esta é a grande pergunta de qualquer estudante de


sociologia ou ciências sociais empenhado na elaboração da sua tese. Posso
utilizar a teoria de Goffman para analisar esta problemática? Ou a teoria
da exclusão social? O meu problema é não ter ainda quadro teórico, dizem
alguns. A minha caixa de correio está cheia de emails com estas inquietações
todas. Onde está o problema? Ah, o problema de novo! Na verdade, o quadro
teórico é um problema falso. Ninguém precisa dele, ou melhor, só precisa
dele – e desespera – quem não reflectiu o seu problema devidamente. Dito de
outro modo, um problema bem elaborado sugere ele próprio o tal quadro
teórico.

36
O que é um quadro teórico? Ou melhor ainda, o que é uma teoria? Uma
teoria é uma maneira de ver a realidade. É uma espécie de lentes que usamos
para apreender o mundo. A teoria permite-nos ver certas coisas ao mesmo
tempo que nos obriga a ignorar outras. A teoria sugere-nos problemas,
questões, inquietações. No nosso dia-a-dia, usamos teorias sem nos darmos
conta. Apreendemos a realidade de uma determinada maneira. Por exemplo,
muitos de nós temos a convicção de que a polícia moçambicana é corrupta.
Quando temos que lidar com ela prestamos muita atenção a tudo quanto
relacionamos com esse comportamento. Se a polícia de trânsito nos manda
parar e constata que o nosso pisca-pisca não funciona, interessamo-nos por
tudo quanto nos possa indicar se é seguro propor um pagamento ilícito ou
não. Por exemplo, se o polícia disser, em resposta a nossa surpresa ao
constatarmos que o nosso pisca-pisca de facto desapareceu – alguém tirou-o
enquanto jantávamos no “Mundo’s” – “estamos mal, chefe! Que fazemos?”,
alguns de nós podem ver nisso uma proposta discreta para “falarmos como
homens”. Começamos a olhar para os olhos do polícia, percrustramos a sua
expressão, vemos se tem barriga grande ou não – normalmente, os de barriga
grande são corruptos, suponho… – reflectimos sobre a melhor maneira de
continuar a conversa cuidadosamente para sabermos se é de facto isso que o
polícia quer.

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Tudo o que fazemos nessa interacção não é mais nada senão o uso de um
quadro teórico para entender uma situação. Devemos, portanto, desmistificar
um bocado a noção de “quadro teórico”. Temos que a abordar como a coisa

Caixa 2.5: Teoria


“Teoria” é um conceito muito bicudo nas ciências sociais. Nas ciências sociais é usado para
descrever um conjunto de proposições que não só oferecem uma explicação plausível sobre a
origem, comportamento e impacto dum certo fenómeno natural. Um bom exemplo aqui é a teoria da
evolução de Charles Darwin. Uma boa teoria ajuda-nos a estruturar a nossa observação do mundo e
propor hipóteses que nos ajudem a interpretar o que encontramos. Nas ciências sociais é muito
complicado falar de teoria neste sentido. Embora existam, de facto, algumas tentativas de formular
teorias – por exemplo, o funcionalismo e a sua ideia de que a sociedade funciona como um todo
orgânico assente na existência de partes cujo funcionamento contribui para a reprodução desse todo.
O mais sensato, e viável, é pensar a teoria nas ciências sociais mais como uma narrativa coerente
sobre a natureza das relações que as várias componentes dum fenómeno entretêm entre si. Quando
falamos de teoria, portanto, queremos apenas nos referir a esse processo de dar coerência aos relatos
que fazemos das coisas que observamos. É por essa razão que até usamos a noção de “construção de
teoria” para nos referirmos ao processo de interpretação de dados. Teoria neste sentido é a forma
como fazemos falar os dados. Se, por exemplo, recolhemos dados sobre os protestos violentos de
Setembro de 2010 em Maputo (fiz isso e os resultados podem ser lidos aqui Macamo 2015) que nos
dão conta de grupos de jovens de diferentes bairros da periferia de Maputo que “controlam” os
bairros e, ocasionalmente, se envolvem em batalhas campais e aferimos que os protestos foram
principalmente protagonizados por estes grupos podemos concluir, como eu o fiz, o seguinte: A
violência que caracterizou os protestos resultou essencialmente da presença de bandos juvenis com
uma agenda própria. Essa agenda, que foi espontânea, mas fácil de implementar em virtude da
existência duma estrutura informal, consistiu em pilhar, o que por sua vez exacerbou a violência. Isto
pode ser entendido como uma teoria no sentido em que nos permite fazer esses dados falarem de
forma coerente. O que eles nos dizem é que a violência de manifestações tem uma forte relação com
estruturas informais semi-criminosas que podem usar as circunstâncias para promover os seus
próprios objectivos. Isto pode ser importante na reflexão sobre como prevenir a violência de
manifestações, pois a atenção pode ser focalizada na neutralização destes bandos.

mais natural deste mundo. Algumas pessoas mais espertas do que nós, ou
que nos antecederam na reflexão de certos problemas, propõem-nos certas
formas de abordar um problema. Não é, contudo, obrigatório ter um “quadro
teórico” sancionado pelos manuais de sociologia. Pelo que me toca, um
trabalho académico que não tenha referência directa a alguma teoria
sociológica é perfeitamente legítimo, desde o momento que formule o
problema devidamente. O quadro teórico ajuda aos que ainda não dominam
as ferramentas da sociologia a encontrar a terminologia, as questões e
possíveis respostas para descrever e resolver um problema. É mais fácil usar

38
a perspectiva que outros elaboraram do que andar eu próprio à procura da
linguagem mais apropriada. Porque reinventar a pólvora?
Voltemos ao nosso exemplo da venda de bebidas alcoólicas nas bombas
de combustível. Este caso pode ser abordado de várias maneiras. Posso olhar
para o caso na perspectiva do desvio. Esta perspectiva parte do pressuposto
segundo o qual certas pessoas se comportam de uma maneira diferente da
norma. Conduzem bêbados e provocam acidentes. Sendo assim, posso
colocar várias questões: Existe uma norma sobre o perfil de um bom
condutor no nosso país? Que eu saiba, predomina, entre nós, a ideia de que
conduzir bêbado é sinal de masculinidade. Há muitos homens que juram de
pés juntos que conduzem melhor depois de beberem. Parece também normal
pensar que o mau comportamento na estrada faz parte da condução, pois é
dessa maneira que se vinca a importância individual. Deve ser por isso, por
exemplo, que alguns motoristas se regozijam quando chove em Maputo, pois
assim vão “mijar”10 água sobre os peões! Se existe uma norma, quem a
estabelece? Instituições? Pessoas? Como fazem isso? Quem são os que agem
conforme a norma? Porque o fazem? Na mesma linha de pensamento podia
adoptar uma perspectiva oposta, nomeadamente a da rotulagem. Diria,
seguindo os preceitos dessa perspectiva, que o mais importante não é de
facto o comportamento de desvio, mas sim o processo através do qual se
define um determinado comportamento como sendo “anormal”. Podia
também adoptar uma perspectiva funcionalista. Podia dizer que o
comportamento de desvio é funcional à sociedade. É dessa maneira que
aprendemos a valorizar o comportamento correcto.
Podia, por oposição, usar perspectivas mais agressivas, estilo conflito.
Podia referir-me a algumas abordagens marxistas para dizer várias coisas:

(1) a proibição obedece a uma certa economia política. Quem sabe,


se calhar os donos de supermercados ou de “bottle-stores” são

10
Passe a expressão…

39
grandes financiadores do partido no poder e acham que as
bombas de combustível estão a tirar-lhes o negócio;

(2) a proibição tem como função desviar a atenção das pessoas dos
verdadeiros problemas como, por exemplo, más estradas, má
sinalização e falta de condições de manutenção de viaturas –
porque alguém deixou entrar muitos carros do Dubai; na
verdade, o problema da relação entre álcool e acidentes não é
pacífico. Muitas vezes, quando a polícia chega ao local do
acidente a primeira coisa que faz é ver se os condutores estavam
bêbados; mas se calhar o acidente se deveu ao mau estado da
estrada e não tanto à condução corajosa que resultou da
bebedeira;
(3) a proibição é uma forma de disciplinar a classe média
moçambicana que não tem outra maneira de manifestar o seu
bem-estar senão pelo consumo conspícuo de álcool em público.

O importante neste exercício todo é reter a ideia de que o “quadro teórico”


limita a nossa visão ao mesmo tempo que nos permite ver certas coisas com
maior clareza. As teorias não abrem as nossas cabeças. Fecham-nas. Já
cruzei com pessoas que estão preparadas a morrer em defesa de uma teoria.
Deixam-se envolver por ela, esquecem completamente que ela é apenas um
instrumento de trabalho. As teorias não podem ser usadas de forma doentia.
Elas são mesmo um instrumento de trabalho. Se não nos permitem ver bem
as coisas, temos que ter a coragem de as abandonar. O mundo que
apreendemos por intermédio de uma teoria é um mundo necessariamente
incompleto. É o mundo de uma única perspectiva. A realidade é uma ilusão,
disse uma vez Einstein. E acrescentou: Muito embora seja persistente.
A prática da sociologia é isto. O mundo está na nossa cabeça. Se
queremos ver o mundo bonito, limpo e coerente temos que enfeitar, limpar e
organizar as ideias na nossa cabeça. O problema da onda de crime em
Maputo presta-se ao exercício de formulação de perguntas. Que perguntas
podemos colocar? O que sabemos mesmo? O que pensamos apenas que

40
sabemos? Que ligações é que podemos estabelecer entre as manifestações do
crime e outros aspectos da nossa sociedade e política?

O problema das soluções

O problema tem problemas. Fica bem dizer, como eu o faço, que a melhor
contribuição que podemos fazer consiste na formulação de problemas? Esta
afirmação faz mais sentido num contexto como o nosso, onde me parece
haver uma maior preocupação com a elaboração de soluções para problemas
ainda não definidos. Alguns podem, todavia, contrapor um outro argumento;
podem, efectivamente, perguntar-me o que sobra para a sociologia num
contexto em que o problema já está formulado. No caso da venda de bebidas
alcoólicas, por exemplo, qual é o papel do sociólogo uma vez apurado que a
questão é das bombas de combustível ao longo das avenidas com muitas
discotecas e que os acidentes ocorrem às sextas e sábados?
A resposta simples a esta pergunta é: venha daí a solução! Sim, dirão
alguns. Mas, e depois? O que acontece à ideia de que devemos formular
problemas? Já podemos abandoná-la? Já podemos voltar ao conforto de
“implementar” soluções? A pergunta é boa e a resposta vai ser, para alguns,
um banho de água fria. Na verdade, o sociólogo deve, em minha opinião, ver
a solução como um problema! Os problemas, lamento ter de dizer, não
acabam. É só pensar um bocado em todas as “soluções” que cada um de nós
conhece: quantos problemas não criaram? Puderam ser aplicadas da forma
imaginada? Até que ponto alteraram a estrutura social do meio em que
agiram? Que novos comportamentos suscitaram? Soluções são intervenções
em meios sociais vivos e, por conseguinte, produzem efeitos difíceis de
prever.
A independência foi a solução ao problema da opressão colonial. Vejam
no que isso deu? Alguém teria imaginado o que depois aconteceu? As
vacinas contra várias doenças foram também uma solução; alguém teria
imaginado o desafio que a explosão demográfica, o aumento de população
com necessidade de emprego, saúde, alimentação, etc. viriam a constituir? A

41
melhoria da estrada que liga Maputo a Xai-Xai foi uma boa solução; alguém
teria imaginado que o aumento do tráfego iria produzir mais acidentes? Que
mais populações do interior iriam afluir às cidades bem como à berma da
estrada para vender castanha? Que donas de casa haviam de “abandonar” as
lides caseiras para ir comprar – “guevar11”, como dizem – fruta no mercado
da Macia para vender à berma da estrada?
É evidente que não quero sugerir, com estas perguntas todas, que
devemos evitar as soluções a todo o custo. Não. Quero apenas dizer que há
muita utilidade em considerar as soluções como problemas, pois é a partir
dessa postura que teremos maiores probabalidades de fazer valer a nossa
formação. A solução, repito, é uma intervenção num meio social vivo. O que
é que isso significa para esse meio, para as pessoas que vivem nesse meio e
para todos quantos estão de uma ou de outra maneira ligados a esse meio?
Esta é que é a famosa “dimensão social” de não-sei-quantos de que tanta
gente fala quando tem na mente práticas culturais, mulheres, crianças e os
pobres.
Então, o Ministro do Comércio pediu ao seu sociólogo soluções. O
sociólogo formulou o problema e identificou várias soluções. Delineou
alguns cenários prováveis em resultado da opção por uma solução e pediu ao
Ministro, diplomaticamente, para escolher a solução que ele acha
politicamente responsável. A partir daí a tarefa do sociólogo começa a ser de
elaborar os critérios de avaliação da aplicação da solução. Para esse efeito,
ele precisa de ter uma ideia dos actores envolvidos, dos interesses em jogo,
das articulações com outros factores e, sobretudo, da grande possibilidade de
emergência de uma situação social nova que anula completamente a solução
inicial.
A nossa experiência está cheia deste tipo de situações. É só olhar para a
liberalização económica. A ideia era de que com ela seríamos capazes de
estimular a iniciativa privada. Isso aconteceu. Mas também a fraqueza do

11
Guevar“ é uma corrupção aportuguesada do termo xangan “ku gueva” (literalmente:
compra a grosso para revenda).

42
Estado daí resultante criou um novo tipo de funcionário público, um novo
tipo de empresário, um novo quadro de trocas económicas que começou a
fazer da solução um grande problema. A solução não é de anular a solução,
mas sim de estar atento à sua implementação. A prevenção ao HIV: vamos
distribuir preservativos. Muito bem, mas também, provavelmente, isso
aumentou a promiscuidade, banalizou as relações sexuais, atentou contra a
moral tradicional, criou novas formas de estar no mundo. Por mim podem
continuar a distribuir os preservativos – sobretudo àquele preço! – mas nós
os sociólogos devemos estar atentos às novas situações que isso cria.
Um aspecto que me parece de importância crucial, mas muitas vezes os
nossos decisores políticos e nós mesmos descuramos, é o aspecto da
avaliação do que é feito. Uma vez adoptada uma solução, como é que
sabemos que ela surtiu os efeitos desejados? Como é que sabemos que foi

Caixa 2.6: A avaliação


Normalmente, cursos de metodologia reservam pouco espaço, ou nenhum mesmo, à avaliação. Isto
tem as suas razões. A pesquisa propriamente dita está mais interessada em formular um problema
através da sua descrição objectiva e problematização da forma como ele se articula com a sociedade. A
avaliação, por sua vez e em linhas gerais, está mais interessada em saber se determinada coisa surtiu o
efeito desejado. Só que para fazer isso a avaliação usa também métodos da pesquisa social empírica. Ela
constitui um elemento importante de toda a cultura de abordagem dum país com base no conhecimento
sistemático. Por essa razão, ela devia figurar em todos os cursos de metodologia. A principal
característica da avaliação é a análise do antes e depois duma determinada situação. Vamos supor a
título de exemplo que a entidade responsável pelo ensino secundário constata que se registam altos
índices de violação sexual de estudantes do sexo feminino pelo corpo docente masculino. Vamos supor
ainda que como forma de diminuir esses índices, a entidade decide impor um novo código de
indumentária que proíbe as alunas do sexo feminino de usarem roupa que ponha as suas coxas a
descoberto. Passado um ano essa entidade pode querer saber se essa decisão surtiu o efeito desejado, ou
não. Para o efeito, pode encomendar um estudo. Esse estudo, que seria na verdade uma avaliação, pode
simplesmente comparar os índices de violação sexual antes da decisão e depois. Se os índices depois da
decisão forem inferiores essa avaliação pode concluir que a decisão surtiu o efeito desejado. Para que
essa avaliação, porém, seja sólida será necessário mais do que isso. Afinal, a diminuição dos índices
pode estar relacionada com o facto de que na sequência da decisão da entidade houve uma discussão
pública que tornou mais difícil aos professores de abusarem da sua posição. Uma avaliação digna desse
nome teria de investigar todos estes aspectos de modo a documentar com propriedade o que aconteceu
antes e depois da decisão.

bem aplicada? Como é que sabemos que pode ser alargada a outros
problemas? Isto também faz parte da contribuição que um sociólogo pode
dar. Que lições aprendemos da aplicação de uma solução? Será que a

43
estrutura do Ministério ou da Organização em que trabalhamos é a mais
adequada para responder a este tipo de situações? Será que existe pessoal
suficiente? Será que existe necessidade de maior articulação com outras
instituições?
Quando oiço alguns jovens formados em sociologia a reclamarem das
condições de trabalho, da falta de ocupação ou mesmo da ocupação em
“coisas que não têm nada a ver com a sociologia”, só me dá vontade de virar
a cabeça e chorar amarga e copiosamente. Tanta água e tanta sede! Há tanto
que podemos fazer. Não é o Ministro do Comércio que nos vai dizer o que
fazer, somos nós que devemos dizer a ele o que podemos fazer. Não há nada
neste mundo que não seja de interesse sociológico, nada onde o sociólogo
não possa meter a sua colherinha. É verdade que a generalidade pode ser um
problema, mas nos dias de hoje, em que muita coisa técnica é feita por
máquinas e computadores, leva vantagem quem tem a visão geral, quem
pode estabelecer relações entre as coisas e, sobretudo, quem – vamos todos
respirar fundo... – formula problemas!

O problema da justificação

Vou encerrar este capítulo sobre o problema com uma pequena mãozinha
aos que estão a escrever uma tese. Justificação do tema: é porque gosto
muito de crianças; é porque os doentes de HIV me metem pena; quero
contribuir com mais um estudo para a compreensão da exclusão social no
nosso país... Estas são algumas das justificações que tenho lido em projectos
de tese. Nenhuma delas me parece útil do ponto de vista académico. Têm um
pouco o carácter de um pequeno projecto de desenvolvimento. A coisa piora
quando vejo, na proposta, coisas como “objectivos gerais” e “objectivos
específicos”. De hipóteses nem rasto. Um projecto de tese ou trabalho
académico não é projecto de desenvolvimento. A sua utilidade não se mede
pelo impacto que vai ter na sociedade. A sua utilidade mede-se pela
contribuição que vai fazer à ciência: redefinição de conceitos;

44
redimensionamento de uma teoria; melhoria de métodos; promoção do
interesse numa determinada abordagem ou tema.
Infelizmente, a dificuldade em justificar o tema resulta de vários mal-
entendidos. Vou apontar apenas três. O primeiro é simples. Muita gente
pensa que precisa de produzir resultados e entende esses resultados como
soluções a problemas práticos. Discordo. O trabalho de tese não precisa de
produzir nenhuma solução prática. O trabalho de tese é uma oportunidade
que o estudante tem para demonstrar que sabe trabalhar sociologicamente e
de forma autónoma. Isso significa que ele deve formular uma problemática,
ler literatura relevante, avaliá-la, seleccionar métodos, aplicá-los e submeter
isso por escrito à apreciação crítica dos seus pares. É só isso: o resto é
conversa de gente que confunde ciência com política.
O segundo mal-entendido já é um pouco complicado. Muitos pensam que
um trabalho académico só é bom quando confirma a hipótese formulada. Isto
é grave. Se essa fosse a função da pesquisa a ciência, que depende do debate
de ideias, não avançava. Estava todo o mundo a falsificar resultados! Um
trabalho académico pode confirmar assim como infirmar uma hipótese. Se eu
parto, por exemplo, da ideia de que a proibição de venda de bebidas
alcoólicas nas bombas de combustível manifesta certas relações estruturais
entre o poder e certos sectores económicos o meu trabalho não está apenas
bem quando, de facto, comprova isso. Mesmo se chegasse à conclusão de
que estava enganado, o trabalho continuaria bom. Para isso, contudo, é
necessário que o estudante demonstre ter obedecido a todos os
procedimentos que fazem parte do trabalho científico. Só isso conta, o resto,
mais uma vez, é conversa fiada.
O terceiro é mesmo complicadíssimo. Muitos pensam que podem
formular um projecto de pesquisa sentados num “chapa” com os olhos postos
na carteira ou no bolso onde arrumaram o “celular”. Alguns podem, mas isso
é muito complicado. Formular um projecto de pesquisa é muito trabalho. É,
provavelmente, a parte mais trabalhosa de todo o empreendimento. É
preciso ler estudos sobre a temática que nos interessa, livros e artigos
sobre os conceitos que nos atraem, conversar com pessoas abalizadas,
45
formular e reformular perguntas e hipóteses. Não é raro ser abordado por
pessoas com uma única frase “doutor, gostava de escrever sobre a exclusão
social das crianças do bairro de Hulene”, seguida das inevitáveis perguntas
“qual é o quadro teórico que posso usar?”, “onde posso encontrar
literatura?” e “quais são os conceitos que devo utilizar?”. Escrever uma tese
é complicado, muito mesmo, sobretudo para quem o quer fazer de ânimo
leve. Escrever uma tese significa saber em primeiríssimo lugar o que a

Caixa 2.7: Revisão da literatura


Existe um ditado segundo o qual a originalidade seria prerrogativa das pessoas que leram pouco.
Faz muito sentido. Há poucas coisas na vida que não foram abordadas por pesquisadores. Isto é
particularmente válido para muitos assuntos que estão no centro da atenção pública num país como o
nosso: corrupção, HIV-SIDA, crianças da rua, desenvolvimento, pobreza, etc. Tentar formular um
projecto de pesquisa sem ler o que outros já escreveram sobre o assunto não é sinal de erudição. É
sinal de falta de profissionalismo e de seriedade. Pesquisa, na verdade, é uma conversa que
entabulamos com outros colegas. Para esse efeito, precisamos de saber o que eles sabem sobre o
assunto, o que já apuraram, quais são as dúvidas que têm para podermos, por nossa vez, definir
exactamente a nossa contribuição para o debate intelectual. É por isso que é importante fazer a
revisão da literatura. Sou muitas vezes abordado por várias pessoas que me dizem que gostariam de
trabalhar sobre um determinado tema, mas não fazem ideia de como formular a questão. Esse
problema surge, na maioria dos casos, da falta de leitura. Quem leu o suficiente sobre um assunto
sempre vai encontrar uma maneira de formular a questão. Quem não leu vai passar a vida a
incomodar outras pessoas. O trabalho de pesquisa não começa no momento de aplicação dos
instrumentos de levantamento de dados. Começa muito antes com a procura de informação, com o
seu depuramento para se aferir o que é importante ou não, o que vale à pena aprofundar, ou não, etc.
Essa é a função da revisão da literatura. Houve uma altura que era muito difícil fazer isto por causa
do fraco acesso à bibliografia. Esse problema agora diminuiu, pois com a internet é possível ter
acesso a muita literatura. O importante, naturalmente, é ter um procedimento sistemático de procura
de literatura. Por exemplo, se estou interessado em fazer um trabalho sobre as crianças da rua em
Moçambique começo por procurar bibliografia sobre esse problema em Moçambique; depois
procuro bibliografia sobre o mesmo problema noutros países semelhantes; depois noutros países
duma forma geral; depois disso procuro ver onde o tema se enquadra na minha área específica, isto é
sociologia. É a sociologia da infância? É a sociologia da delinquência? É a sociologia dos problemas
sociais? Não limito a minha procura aos textos académicos. Relatórios de organismos institucionais
podem ser úteis também, sobretudo porque muitos deles foram feitos por outros académicos. Só este
trabalho aturado de levantamento de informação sobre o que outros escreveram sobre o assunto é que
me vai proporcionar uma base segura para começar a formular as questões de interesse para o meu
estudo.

comunidade científica já disse sobre o assunto. Só nessa base é que podemos


formular um projecto de pesquisa.
E é daí onde virá a relevância do trabalho. O que diz a sociologia em
relação à exclusão social de crianças? Quais são as abordagens mais usadas?

46
Porquê? Que resultados já produziram? Existe alguma coisa feita em
Moçambique sobre esse assunto? O que foi apurado? Se não existem, porque
não existem? Alguma razão científica? Que metodologias são empregues
para analisar esse assunto? São as mais adequadas? Podem ser replicadas?
Normalmente, estas perguntas todas vão desembocar em três lugares. O
primeiro lugar pode ser lá onde o estudante acha que existe um silêncio total
da sociologia sobre o assunto. Ele vê-se na obrigação de abordar o assunto
pela primeira vez. Duvido que isto seja possível. Como se costuma dizer, a
originalidade revela apenas pouca leitura. Muitos, por regra, escondem-se
por detrás da ideia de que não há nada publicado em Moçambique. O
segundo lugar pode ser lá onde o estudante acha que já se fez alguma coisa.
Face a isso ele considera necessário verificar se as metodologias e
abordagens empregues cumprem o que prometem. É aí onde alguém, por
exemplo, poderia pegar num estudo feito por João Colaço, Carlos Serra,
Teresa Cruz e Silva ou Conceição Osório, entre outros, e ver se replicando-o
ele produz os mesmos resultados. A ideia não é de chegar à conclusão de que
eles nos enganaram, mas sim confirmar as suas observações, melhorar os
instrumentos, descobrir novos caminhos e aprofundar a discussão (ver a este
propósito Macamo 2004). Finalmente, o terceiro lugar pode ser lá onde o
estudante considera que existem aspectos que a sociologia ainda não
considerou na abordagem de um certo assunto. Por exemplo, os excelentes
trabalhos sobre a exclusão social orientados por Carlos Serra (2014)
privilegiam uma abordagem fenomenológica. Que resultados obteríamos se
optássemos por uma outra abordagem teórica? Os mesmos? E se fossem
diferentes, o que ganhávamos nós? O que ganhava a sociologia? O que
ganhavam aqueles que utilizaram a abordagem fenomenológica?
Espero que isto já esteja claro. A próxima vez que ler uma tese e ver uma
frase como esta “com este estudo espero contribuir com mais um trabalho
para a melhoria das condições das mulheres vendedoras de mercado em
Maputo...” desconfie da sua utilidade científica. Foi de certeza elaborada por
alguém que se não preparou devidamente. Não leu literatura relevante, não
abriu os seus horizontes metodológicos e está refém da razão sofista que
47
domina a nossa esfera intelectual: conhecimento é para se vender. Se
queremos realmente avançar com a nossa ciência temos que intervir ao nível
de conceitos, metodologias e teorias, e não ao nível de resultados práticos.
De resto, práticos para quem?
O pior, contudo, é o que costuma vir na conclusão: Recomendações.
Recomendações? Dirigidas a quem? Ao Ministro da Educação? Ele é que vai
avaliar a tese? Se a conclusão tem alguma utilidade para além de resumir o
que foi dito, essa utilidade consiste em dizer o que a sociologia ganha com
este trabalho. Um trabalho que não é capaz de se pronunciar sobre isto é um
trabalho problemático do ponto de vista académico. Revela que a pessoa que
o elaborou devia ainda continuar nos bancos da faculdade até perceber o que
é fazer sociologia. Ou abandonar a coisa e deixar-nos a sós.

48
Conclusão

É preciso fazer uma distinção clara entre problemas práticos e problemas


conceituais12. O trabalho científico, do qual faz parte a construção dos
objectos, pertence claramente ao campo daquilo que poderíamos chamar de
construção de problemas conceituais. Problemas práticos por sua vez são do
pelouro da acção. Dito doutro modo, os problemas práticos são, do ponto de
vista temporal, posteriores à solução de problemas conceituais.
Problemas práticos tornam a vida simples. A vida é simples quando estão
reunidas duas condições: conhecer o problema e ter imaginação suficiente
para atinar com a solução. Ela é ainda mais simples quando imaginamos que
conhecemos todos os problemas. É a partir dessa convicção, por exemplo,
que temos ouvido, em discussões de todo o tipo na esfera pública, políticos,
jornalistas e colegas que não gostam de nós, a dizer coisas como “basta de
papo, queremos soluções!”. Tem-me acontecido isto quando me envolvo em
discussões na nossa esfera pública. A minha reacção tem sido de dizer que
tenho alergia às soluções, que eu, como cientista social, seria mais útil à
sociedade se me ocupasse apenas de procurar os problemas para os quais há
tanta solução por aí. Não há nenhuma originalidade nisso. Antes de mim, um
homem de muito maior peso, Hans Georg Gadamer, filósofo de veia
fenomenológica, já havia definido a filosofia como a actividade que consiste
em procurar pelas perguntas para as quais o mundo está cheio de respostas.
A sociologia não é filosofia, mas neste assunto está muito próxima dela.
A vida deixa de ser simples quando mesmo conhecendo a solução – que é
muitas vezes o caso – não conhecemos o problema. É daí que importa fazer a
distinção sugerida aqui. Portanto, mais uma vez, há basicamente dois tipos
de problemas que a vida nos coloca, um dos quais é o verdadeiro terreno da
actividade científica. Há problemas práticos e há problemas conceituais. Os

12
Uma boa parte do que escrevo a seguir faz parte duma palestra proferida no CEsA
(Centro de Estudos sobre a África e do Desenvolvimento), Lisboa. Foi publicado em Évora, I.
e Frias, S. (coordenação), 2016.

49
problemas práticos descrevem uma situação que cria desconforto, sofrimento
ou mal-estar se não for eliminada. Os engarrafamentos de trânsito, só para
avançar um exemplo, são um problema prático porque dificultam o trânsito,
provocam atrasos, contribuem para a poluição do meio ambiente, etc. Pela
sua natureza, os problemas práticos exigem como resposta, isto é como
solução, uma acção. Esse é o problema que o problema prático nos coloca. O
que devemos fazer?
Este problema tem uma longa tradição. Para quem ainda se lembra do
socialismo científico praticado em mais ou menor grau na nossa Pérola do
Índico a frase que celebrizou o problema prático foi de Lenine quando ele
perguntou: Que fazer?13 Na verdade, essa pergunta tem origem teológica e
foi formulada pela primeira vez por São Tomás de Aquino que, pouco
surpreendentemente, partia do princípio de que todas as questões básicas da
vida já tinham sido colocadas e que o único que se devia fazer era
simplesmente ler o livro da natureza para descobrir os caminhos que nos
levariam de volta ao Senhor. “Que fazer?” foi sempre uma pergunta retórica,
pois o que devia ser feito estava claro: a revolução, no caso de Lenine, ou
tudo quanto estivesse em sintonia com a revolução.
Antes de prosseguir com uma elucidação do que é um problema
conceitual, seria bom fazer um compasso de espera nesta questão de Lenine
para recordar que ele, no fundo, estava a ser porta-voz duma visão do mundo
que tinha a sua origem no Iluminismo e sua atitude teleológica em relação à
História. Na verdade, o problema do Marxismo não foi a provável natureza
utópica do projecto político que ele representou. Nem foi necessariamente o
seu totalitarismo. O problema do Marxismo foi o problema de ter sido um
dos filhos queridos do Iluminismo. Foi o problema da arrogância da razão
que levou intelectuais sérios a defenderem posições extremamente
problemáticas. Refiro-me a Kant que acreditava de forma apaixonada na
ideia de que existem diferenças natas entre “raças” e que os brancos

13
Ler o texto completo aqui:
http://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/cap03.htm

50
dispunham de todos os atributos necessários ao progresso (e achava que os
africanos tinham uma inclinação natural para a escravidão “os negros de
África pela sua natureza não têm sentimentos que vão para além do
superficial...”, escreveu ele, por exemplo); a John Locke, o pai da tolerância,
que defendeu a escravatura de negros na base do argumento segundo o qual
estes não teriam a relação com o trabalho que lhes permitiria merecer a
liberdade; refiro-me a Voltaire que é quase sempre festejado como um dos
grandes pensadores do Iluminismo, mas na verdade defendia uma versão
despótica desse projecto e que consistia em emular apenas o que promovesse
o progresso e hostilizar o que não fizesse isso, enfim, a uma série de gente
filha do seu próprio tempo, um tempo completamente obcecado com a ideia
de deter a verdade sobre a verdadeira natureza da História14.
Não nos esqueçamos que uma boa parte do programa de pesquisa das
ciências sociais consistia em identificar os passos que deviam ser dados para
alcançarmos o mais rápido possível o fim da História. A ciência positiva de
Saint Simon e Auguste Comte (que deveria culminar na veneração da
religião da humanidade, consubstanciada em parte no emblema fisiocrata
brasileiro “Ordem e Progresso”, tinha na mira uma evolução política que
tornasse o estado desnecessário e produzisse uma sociedade que, ainda que
não fosse socialista, reuniria todas as características descritas no famoso
Manifesto Comunista. Foi esta visão que foi responsável pelos contornos
racistas e desumanos assumidos pelo projecto colonial que se viu como
veículo dessa razão histórica e sua vontade de poder.
Esta é a característica do problema prático. Ela consiste nesta pergunta: O
que fazer uma vez diagnosticado o problema?
O problema conceitual é diferente. Ele parte do princípio de que nos falta
alguma coisa para percebermos um problema, ou um fenómeno qualquer. Ou
por outra, o desafio que o problema conceitual coloca não é de saber o que
fazer para realizar a solução, mas sim o que perguntar para entender um
problema. Dito doutro modo, o desafio colocado por um problema conceitual
14
Os exemplos sobre Voltaire, Kant e Locke foram extraídos da obra de Grey (2007).

51
é um problema de compreensão. Ele consiste numa pergunta anterior à acção
prática: o que é preciso entender em relação a um assunto para descrever o
problema que precisa de ser abordado? Peguemos, como ilustração, na
questão da fome. Se nos interessa estudar a fome em África podemos
formular a questão de pesquisa como a de saber como eliminar a fome. Ao
fazer isso, vamos necessariamente partir do princípio de que esse problema
está claro, não precisa de maior elaboração. Falaremos do problema dos
solos, do problema da falta de educação dos camponeses, do problema dos
maridos bêbados que arrancam as poupanças das suas mulheres – o
argumento que costuma justificar os programas de micro-crédito – dos
homens preguiçosos, da corrupção, etc. Isto é, tratando esse problema como
um problema prático teremos a tendência de reduzir a nossa pesquisa à
identificação das acções que devemos tomar para resolver um problema que
alguém formulou. Mas toda a gente que se interessa pelo problema da fome
sabe que as coisas são mais complexas.
Ha-Joon Chang (2009), um economista sul coreano que trabalha na
universidade de Cambridge, descreve num excelente artigo a evolução da
agricultura num conjunto de países e mostra como aquilo que ele chama de
conhecimento convencional do consenso de Washington impede os países
africanos de fazerem justamente as coisas que os actuais países ricos fizeram
para resolverem os seus problemas de agricultura. Com este exemplo estou a
levantar um problema conceitual de grande importância. Dada a estrutura
actual da economia mundial e dos sistemas de agricultura que sentido faz
para um país como Cabo Verde, por exemplo, apostar na ideia de que a
solução dos seus problemas alimentares passaria pela formação dos
camponeses, reforma da terra, combate à desertificação, etc? Nenhum,
provavelmente. É provável que ao fazer isso Cabo Verde esteja a contribuir
para vincar ainda mais a sua natureza problemática ao mesmo tempo que
contribui com esses esforços de garantia de soberania alimentar a manter em
vida um sistema agrícola mundial frágil que poderia, na verdade, ser a razão
dos seus problemas.

52
O problema conceitual não se arroga o direito de conhecer já o mundo e,
por conseguinte, preparar-se apenas para arregaçar as mangas de modo a
rectificar o que está mal. O problema conceitual é a essência da pesquisa na
medida em que faz justamente isso: pesquisa. Na verdade, pesquisa só faz
sentido se o objectivo é de saber algo que não sabíamos antes. Essa é a
natureza do trabalho intelectual. O artesão não enfrenta problemas
conceituais no seu trabalho, mas sim problemas práticos. Isto não quer dizer
que problemas conceituais não se coloquem ao artesão. Por exemplo, antes
de se saber as condições em que o metal dilata, portanto todo um conjunto de
teorias relacionadas com a termodinâmica e expansão de metais, por
exemplo, é difícil perceber os perigos e potencial do uso de certos metais
para a construção. Preenchida essa lacuna no conhecimento, o artesão já
pode decidir que instrumento utilizar para que tipo de problema.
As condições de formação conceitual de África produziram uma
abordagem prescritiva e normativa que, consequentemente, favoreceu os
problemas práticos em detrimento dos problemas conceituais. Essa
abordagem partiu do princípio de que já conhecia os problemas africanos e
que o único que restava era apenas que se passasse à acção. Aqui surgem
dois problemas sérios. O primeiro tem a ver com a suposição segundo a qual
a ciência deve produzir conhecimento positivo, isto é um conhecimento que
ajude a melhorar o mundo. Como Karl Popper (1980)15 já havia denunciado,
há algo de totalitário nesta pretensão. Para mudar o mundo para o melhor é
necessário que um grupo de pessoas parta do princípio de que sabe o que é
um mundo melhor e sabe como lá chegar. É preciso também que esse grupo
de pessoas esteja convencido de estar no direito – e obrigação – de obrigar os
outros a segui-los.
O segundo problema é mais de boas maneiras. A procura de soluções
pressupõe um pouco a ideia de que é preciso mudar a vida das pessoas. Aqui
vale à pena perguntar quem deu aos investigadores o mandato de mudar a
vida dos africanos. Os africanos de certeza que não. De cada vez que se lêem
15
E corroborado por Scott 1998 entre outros (Easterley 2006; Macamo 2013)

53
trabalhos baseados na premissa segundo a qual os africanos deviam mudar –
por exemplo, que os homens deviam deixar de bater nas suas mulheres,
deviam beber menos, deviam roubar menos do erário público, etc. – dá para
nos indagarmos seriamente se estes trabalhos ainda podem reclamar o
estatuto de ciência. Recorde-se o filósofo escocês, David Hume, que num
famoso adágio “no ought from an is”16 (Hume 1965) já havia chamado a
atenção para a incompatibilidade básica entre descrição e normatividade.
Muito tempo depois, Max Weber viria falar do mesmo este assunto quando,
por exemplo, disse que a ciência não podia justificar nenhuma posição ética
(Weber 2004). A questão não é a melhoria da vida não seja uma boa coisa
para cada um de nós. A questão é se a ciência ocupa um lugar privilegiado
no contexto moral e ético das coisas para determinar o que é a boa vida.
É claro porque é que estes problemas surgem. Eles surgem por causa da
própria economia política do conhecimento sobre a África. Essa economia
política consiste no esforço de ler a África a partir duma grelha analítica
fundada numa ideia romantizada da própria história europeia. Imagina-se a
Europa como o resultado dum grande projecto de desenvolvimento, cujo
processo de implementação sugere acções que outras regiões recentemente
chegadas à história, podem seguir. Nessa visão das coisas, a África é
desligada de toda a história que a constituiu para passar a ser uma cópia mal
feita do modelo idealizado de desenvolvimento europeu. Aí não espanta que
muita da nossa pesquisa seja pesquisa sobre o que faz falta em África, sobre
o que os africanos estão a fazer mal, sobre a perversão da história, etc.
No fundo, o que pretendo fazer é criticar uma concepção de África (e de
Moçambique) que não só torna o continente inteligível na perspectiva duma
grelha analítica bem específica – a grelha duma história idealizada da Europa
– como também produz um conhecimento regulação (no sentido de Sousa
Santos 1999¸vide também Macamo 2005 e Abrahamsen 2000), isto é um

16
Literalmente traduzido quer dizer: não se pode extrair o que deve ser a partir do que é. Isto
é, a partir da descrição objectiva duma determinada situação não se pode concluir o que é
eticamente aconselhável.

54
conhecimento que reproduz a África como espaço de intervenção. Esta
concepção da pesquisa sobre a África está relacionada com o facto de se
concentrar muita atenção na abordagem de problemas práticos, e não
conceituais. Um dos principais factores que concorrem para isto tem a ver
com algo já deplorado por Habermas (1984; 1987) há muitos anos e que
consiste no grande relevo que a razão instrumental ganhou sobre a razão
comunicativa. Esse relevo manifesta-se sobretudo na expectativa de que a
produção científica seja avaliada de acordo com critérios comerciais.
Ultimamente, Martha Nussbaum (1997; 2010), uma filósofa americana, tem
desferido golpes muito contundentes contra este entendimento da ciência e
apelado para um outro tipo de apreciação do valor das ciências sociais e das
humanidades17. No contexto africano e da pesquisa sobre o continente, este
tipo de pensamento encontra espaço no contexto da indústria do
desenvolvimento que cada vez mais ganhou espaço como uma espécie de
árbitro do que é válido como conhecimento (Marglin 1990; 1996). Há um
número cada vez maior de instituições de financiamento de pesquisa que
incentiva mais o tipo de pesquisa que é tida como sendo mais susceptível de
produzir conhecimento útil, isto é conhecimento aplicado aos problemas do
desenvolvimento.
O que acontece na realidade é bem diferente. Com efeito, ao se focalizar a
atenção em problemas práticos, em detrimento de problemas conceituais,
coloca-se a ciência ao serviço de interesses normativos e, pior ainda, reduz-
se a pesquisa em África justamente ao que os africanos há muito se têm
batido para abandonar, nomeadamente a sua trivialização como colectores de
dados para serem tratados por outros fora do continente (Hountondji 1977).
Esta é uma evolução grave uma vez que ela pode atrasar o desenvolvimento
da ciência no continente africano ao privando-a do tipo de trabalho e reflexão
que realmente distingue a ciência, a saber a reflexão conceitual. A África não

17
Que ela considera como residindo essencialmente na formação do indivíduo como garante
da democracia (Nussbaum 2010)

55
precisa de ciência para o desenvolvimento. A África precisa de ciência para
formular os problemas que a História produzida pelos indivíduos produz.

56
Terceiro Capítulo
Aplicação Prática

57
58
Introdução

No capítulo anterior abordei a questão dos problemas e os contornos que


ela assume na elaboração duma tese. Neste capítulo quero reflectir sobre uma
forma prática que o trabalho de pesquisa pode assumir. Refiro-me às famosas
consultorias. Não é assunto fácil para quem tem uma opinião forte em
relação à importância da pesquisa. Na verdade, o assunto tem dividido a
comunidade científica por várias razões. Uma razão prende-se ao facto de as
consultorias promoverem uma cultura académica superficial (Mamdani
2007). Essa cultura académica não se concentra na discussão de conceitos,
sua utilidade e pertinência, condição essencial para a evolução do trabalho
científico. A outra razão tem a ver com a predominância da indústria do
desenvolvimento na determinação da agenda intelectual africana. Assim, o
que conta são os fenómenos definidos como problemas por essa indústria, e
não tanto o que o debate intelectual interno produz como inquietação. Vezes
sem conta, as consultorias aparecem apenas como encomendas para a
recolha de dados. Todo o trabalho de concepção da pesquisa assim como de
análise e interpretação dos dados fica por conta de entidades ou indivíduos
instalados fora dos nossos países.
Suponho que no nosso país o cúmulo da realização profissional para um
sociólogo seja o convite para ser assessor de um decisor político. Refiro-me,
como é óbvio, aos sociólogos que preferiram enveredar pelo caminho
profissional não-académico. Pessoalmente, sempre me fascinou a ideia de
estar em posição de contribuir com o meu conhecimento para uma melhor
tomada de decisões por parte daqueles que têm a responsabilidade política
para esse efeito. Não sei quantos sociólogos se encontram nesta situação
neste momento.

59
Não tenho a certeza se existe algum manual do assessor, quer seja para o
sociólogo, quer seja mesmo para qualquer outro incumbido com essa tarefa.
O que faz um assessor? Ou melhor, o que, idealmente, pode fazer um
assessor com formação em sociologia? O primeiro aspecto a ter em conta ao
responder a esta pergunta é que o sociólogo, ao contrário do economista e do
jurista – as duas opções óbvias para este cargo – não tem necessariamente
um conhecimento técnico susceptível de ser aproveitado directamente por
quem de direito. Isto, repito, não é nenhuma desvantagem. Antes pelo
contrário. Vivemos num mundo em que o conhecimento técnico especializado
só é necessário em situações também especializadas. A maior parte do
conhecimento que o mundo precisa para continuar a andar é do domínio
público. Qualquer pessoa inteligente com formação superior é capaz de
aprender o conhecimento básico que economistas ou juristas usam para fazer
Caixa 3.2: A ciência como vocação e a política como vocação
Um dos maiores percursores da sociologia, o alemão Max Weber, proferiu duas palestras muito
importantes perante uma audiência composta por estudantes universitários em Munique quando
terminava a primeira guerra europeia em 1917. Uma ficou com o título “A política como vocação” e a
outra “A ciência como vocação”. Foram intervenções seminais que continuam a excitar os ânimos no
contexto da discussão sobre o papel e lugar da ciência no mundo. A palavra-chave nesses títulos é a
palavra “vocação”. Ela integra dois sentidos. Um sentido é o da profissão que evoca simplesmente a
habilidade técnica e descreve o modo de fazer. O outro sentido é o do chamamento numa perspectiva
quase religiosa. O que Weber faz nestas duas conferências é tentar delimitar os campos da política e da
ciência mostrando o que têm de comum, mas também o que os distingue um do outro. Têm de comum a
paixão pelo seu objecto que os pode levar ao ponto de se tornarem especialistas idiotas. O que têm de
diferente é que enquanto o político vive da atenção das massas e cultiva o seguidismo, o cientista é
guiado pela produção de conhecimento que pode até comprometer a sua popularidade. Mais importante
ainda é que o conhecimento produzido pelo cientista não permite dizer qual é a melhor solução para um
problema, pois isso é do âmbito dos valores e esses não têm muito lugar na validade do conhecimento.
Só decisores políticos é que sabem dizer qual é a melhor solução para um problema. O dever do
cientista é de mostrar as várias maneiras de abordar um assunto, as possíveis consequências de cada
uma dessas maneiras (bem como da inação!) e cabe ao decisor político escolher o curso de acção que
considerar mais adequado para os objectivos políticos que defende. É neste contexto que Weber fala do
que ele chama de ética da responsabilidade e de ética da convicção. A ética da responsabilidade refere-
se à preocupação com os meios na prossecução de certos fins, enquanto a ética da convicção se refere à
supremacia dos fins em relação aos meios. Embora a ética da convicção esteja muito vincada na acção
política, a ética da responsabilidade também está presente e é a ela que o cientista faz apelo no seu
trabalho.

valer a sua formação. Não me refiro aqui, é claro, às situações mais

60
especializadas de parecer técnico sobre matéria económica ou jurídica que
precisa de outros recursos científicos. Insisto, contudo, que esses pareceres
são raros.
O sociólogo, portanto, traz consigo ao mundo profissional uma formação
que, em princípio, lhe dá uma visão global das coisas e a capacidade de
estabelecer relações estratégicas entre os assuntos. No fundo, o sociólogo é
aquilo que toda a gente com formação superior devia ser. Perspicaz,
estratégico, racional, crítico e consequente na sua abordagem do mundo.
Neste sentido, um sociólogo pode, em minha opinião, trabalhar em qualquer
sector. Pode assessorar o ministro da educação, do comércio, da saúde, da
energia, das obras públicas, etc. Se eles quiserem ser assessorados, é claro.
Em que consistiria uma assessoria da parte de um sociólogo?
Basicamente, o ponto de partida do sociólogo deve ser a formulação de
problemas. Repito: em Moçambique há mais soluções do que problemas!
Ao formular os problemas, o sociólogo está a proporcionar ao decisor
político uma base sólida para ele escolher uma solução. Escrevi
propositadamente “escolher”, pois o sociólogo-assessor nunca deve apenas
dar uma proposta de solução. Depois de formulado um problema, o
sociólogo-assessor deve indicar várias soluções possíveis com os argumentos
a favor e contra cada uma delas. Compete ao decisor político fazer a sua
opção com conhecimento de causa. É sobre isto que fala Max Weber (2004)
na sua palestra sobre a ciência como vocação. Num debate televisivo em que
uma vez participei expliquei este procedimento. Um dos políticos que
debatia comigo achou esta postura injusta e lamentou que o académico só
sugerisse as soluções, mas não assumisse responsabilidade. Só que a questão
é mesmo essa. Ser político é justamente isso: assumir responsabilidade. E ser
académico é resistir à tentação de reduzir o mundo a fórmulas simples. O
académico, no nosso caso o sociólogo, apresenta o problema em toda a sua
profusão e diversidade.
O mais importante para mim, porém, é a organização do trabalho do
assessor-sociólogo. O nosso trunfo é a nossa capacidade de lidar com o
conhecimento. Devemos usar este trunfo com ousadia. Suponhamos que a
61
Ministra do Trabalho me nomeasse sua assessora. De certeza que ela
indicaria uma área específica sobre a qual ela gostaria de obter subsídios da
minha parte. Ela podia indicar a “segurança social”, por exemplo. Se quero
realmente fazer bem o trabalho, a primeira coisa que iria fazer era formar
uma equipa de trabalho. Não acredito na seriedade do trabalho de um
assessor-sociólogo que trabalhe sozinho. É verdade que as condições do país
não permitem muito, mas é preciso reconhecer aí uma grande limitação. A
equipa podia ser de duas pessoas: eu próprio e um pesquisador, também
sociólogo (ou antropólogo). A segunda coisa que iria fazer seria dar ao
pesquisador a tarefa de reunir toda a informação (leis, relatórios, estudos,
livros) que existe sobre a segurança social moçambicana. Isto é o que
chamamos de revisão da literatura. Essa revisão iria permitir identificar
lacunas no nosso conhecimento sobre os actores, instituições, interesses e
estruturas envolvidos na produção e reprodução da segurança social. A
terceira coisa que faria seria reflectir sobre como suprir essas lacunas. Podia,
por exemplo, entrar em parceria com universidades (economia, sociologia,
direito) para encorajar a realização de trabalhos de fim de curso sobre essas
temáticas ainda pouco conhecidas. É a forma mais barata de obter
conhecimento. Não vou entrar aqui nas modalidades de financiamento que
são coisas que pouco percebo. O importante é vincar a ideia de que o
assessor-sociólogo não é uma biblioteca móvel, mas sim um arquivista. Ele
gere o conhecimento. A quarta coisa que iria fazer seria identificar políticas
em curso e elaborar critérios para a sua avaliação. Será que a nossa política
de aposentação está a corresponder aos objectivos traçados? Será que o
Instituto Nacional de Segurança Social é a melhor forma institucional de
organizar esse assunto? Aqui também não vou ser eu a fazer esse trabalho;
vou encomendar estudos a empresas de consultoria, a estudantes
(licenciatura, mestrado e doutoramento).

62
É com base neste fundo de conhecimento que serei capaz de reagir às
solicitações da minha patroa em termos de subsídios técnicos. Ela tem que ir
ao parlamento falar sobre a segurança social? Não há problema! O que

Caixa 3.1: Da utilidade do ensino superior


Há uma pergunta que de vez em quando excita os ânimos entre nós. É a pergunta sobre a
utilidade das ciências sociais. Essa pergunta ganhou muita premência num contexto político dentro
do qual se procurava dar primazia à abordagem técnica dos problemas do país. Partia-se duma
perspectiva quase que positivista que punha em causa todo o conhecimento que não tivesse uma
aplicação prática. Assim, perguntava-se se o país precisava de assim tantos cientistas sociais. Não
seria melhor investir mais nas áreas técnicas formando mais gente em engenharia, medicina,
agronomia, etc.? Esta pergunta ganhava mais força ainda no contexto da descoberta de recursos
naturais que levantava a questão de saber se haveria mão-de-obra suficiente para responder aos
desafios que essa situação nos colocaria.
A pergunta que menos se fez no auge dessas discussões foi uma mais geral sobre a própria
utilidade do ensino superior. Até que ponto faz sentido num país como Moçambique com uma
economia relativamente pequena, e com um mercado de trabalho limitado, investir no ensino
superior dum modo geral? Não faria mais sentido investir no ensino básico e no vocacional?
Quantos engenheiros moçambicanos serão absorvidos pela indústria do gás? Quantos mecânicos,
pedreiros, sapateiros, assistentes sociais, etc. poderiam ter saída numa economia que beneficiasse do
“boom” de recursos?
Uma outra pergunta ligada a esta refere-se ao tipo de habilidades que um indivíduo com
formação superior precisa de ter para ser útil à sociedade. Esse indivíduo precisa apenas de
conhecimento técnico ou de algo mais? Refiro-me à capacidade de reflectir problemas de forma
complexa, articulá-los com aspectos normativos, culturais, económicos, etc. Quantos graduados do
ensino superior em Moçambique regressam à sociedade com este tipo de habilidades? Esta é a
talvez a pergunta que mais devia ser trazida ao debate das questões que o ensino superior levanta
num país como o nosso. É também o critério que todo o indivíduo que se considera formado ao
nível superior deveria procurar responder para si próprio.

precisa de saber sobre o assunto? Que informação tenho? Quais são as várias
maneiras de ver o assunto? Quais são as implicações de cada uma? Que
opções de acção se apresentam? Ela tem que ir ao Conselho de Ministros?
Não há problemas. Idem mesma coisa, como se diz entre nós. O assessor-
-sociólogo fornece argumentos. Tudo isto tem que ser feito, escusado será
dizer, de forma concisa e clara. Ministros, por mais inteligentes que sejam,
têm limitações de espaço no seu disco duro. O que não pode ser dito no
espaço de uma página não interessa.
É assim que vejo o trabalho de um assessor-sociólogo: fazer o ponto de
situação sobre um assunto; recolher a informação existente; identificar
lacunas em termos de informação e de pesquisa; encomendar estudos; avaliar
políticas. Não falei da perspectivação do futuro para não entrar muito nos
63
3.3 Tipos de argumentos
Há três maneiras de comunicar o que sabemos. Todas elas respeitam as regras básicas da
argumentação. A primeira é factual e refere-se à descrição objectiva de alguma coisa. No caso da
segurança social, por exemplo, a descrição consiste em descrever a sua estrutura, o seu
funcionamento, os problemas que enfrenta, os êxitos que tem alcançado, etc. Pode ser que a
descrição se refira a um aspecto particular da segurança social, por exemplo, a situação das viúvas.
Aqui também respeita-se o procedimento descritivo objectivo. Não há espaço nesta descrição para a
opinião pessoal, pois em princípio só factos é que interessam e factos não dependem do que nós
pensamos, mas sim do que eles próprios são e dizem. A situação ideal é sermos capazes de fazer
recurso ao ditado popular que diz “contra factos não há argumentos”.
A segunda maneira de comunicar o que sabemos refere-se à sensibilização em relação a algum
problema. Aqui não basta uma descrição objectiva, embora ela seja absolutamente imprescindível.
A forma mais eficaz de sensibilização consiste na identificação de algum valor ou conjunto de
valores defendidos pelo receptor da mensagem. Se, por exemplo, a Ministra do Trabalho é dum
partido que diz respeitar a dignidade humana ao ponto de içar esse princípio bem alto no seu
manifesto eleitoral, então sensibilizar consistiria em procurar mostrar como a situação em que os
aposentados (por exemplo) se encontram e como essa situação entra em choque com os valores
defendidos por esse partido. Só com este tipo de argumentação é que vai ser possível encorajar a
Ministra a ver a urgência do problema sob pena de ela se encontrar numa situação em que ela
própria viola os seus princípios. Os factos, escusado será dizer, devem naturalmente estar correctos.
Finalmente, a terceira maneira de comunicar assenta no objectivo de alterar o estado actual das
coisas. Aqui o peso da argumentação recai sobre a demonstração do estado actual, porque as coisas
devem mudar e que vantagens advirão duma possível mudança. Vamos supor que queiramos
introduzir um sistema electrónico de identificação dos beneficiários dos pagamentos do Serviço
Nacional de Segurança Social. Para comunicarmos essa sugestão com eficácia devemos começar
por mostrar que o actual sistema manual é moroso, cheio de falhas e pouco eficiente. Em seguida
temos que mostrar como as mudanças que propomos podem resolver cada um desses problemas.

detalhes daquilo que compete ao próprio decisor político. Acima de tudo, o


assessor-sociólogo deve ter a coragem de dizer ao seu chefe a verdade, isto é
aquilo que os seus instrumentos de trabalho lhe revelaram como sendo
conhecimento válido.

Fazer uma consultoria

Se ser assessor é o cúmulo da realização profissional, ser consultor, ou


melhor, fazer uma consultoria é o paraíso de um sociólogo. Tem classe dizer
“fiz aí uma consultoria” ou ainda com ar cansado “para a semana tenho aí
uma consultoria por fazer”. Consultoria é o que está a dar, é o sonho secreto
de muitos estudantes de ciências sociais que vislumbram mundos e fundos
cuja condição de possibilidade é a nossa miséria. Pessoalmente, não gosto da
influência negativa que as consultorias estão a ter sobre o desenvolvimento
64
das ciências sociais no país. Já falei, inclusivamente, da morte anunciada que
elas representavam para a nossa actividade18.
As minhas reticências, contudo, são de ordem estritamente epistemológica
e estratégica. Não dizem respeito às consultorias como tal. Moçambique
precisa delas, os sociólogos precisam delas, enfim, elas são provavelmente a
única maneira segura de produzir conhecimento sólido para a tomada de
decisões. Já houve colegas que entenderam as minhas reservas como uma
rejeição total das consultorias. Acho isso infeliz, pois eu próprio já fiz
consultorias e se me aparecessem pela frente não hesitaria, desde o momento
que dispusesse de tempo e o tema me interessasse. Portanto, devemos
diferenciar entre o que as consultorias fazem às ciências sociais e o que elas
representam para cada um de nós como profissionais do conhecimento.
O que se segue é uma série de reflexões sobre esta actividade para ajudar
o sociólogo em formação, mas também aquele que já se encontra a trabalhar,
a saber identificar oportunidades de consultorias, negociá-las, planificá-las,
executá-las e ganhar dinheiro com elas. Já que normalmente quem ganha
dinheiro com manuais sobre como ganhar dinheiro é o próprio autor espero
também ganhar muito dinheiro com este livro. A minha intenção é de
reflectir sobre esta actividade. Portanto, não vão necessariamente encontrar
fórmulas do estilo “como fazer...”. Espero, todavia, considerar na reflexão
elementos que permitam ao leitor fazer uso do seu conhecimento sociológico
para participar na indústria das consultorias. O negócio não é mau, ainda que
superlotado.
O que é uma consultoria? No nosso país é quase tudo que não seja feito
no âmbito de uma instituição empregadora. É a recolha, análise e exposição
de informação sobre um determinado assunto, problema, estratégia,
iniciativa que uma determinada instituição não está em condições de realizar
com os seus próprios meios, mas de cujos resultados necessita para tomar
determinadas decisões. É um campo muito vasto. As instituições – empresas,
ministérios, organizações – não dispõem de todo o pessoal de que necessitam
18
Numa palestra no ISCTEM em 2004.

65
para recolher e analisar certas informações que precisam para o seu trabalho.
Muitas vezes sai-lhes mais barato encomendar esse trabalho a instituições
que têm essa vocação ou a indivíduos que têm a formação técnica que lhes
permita fazer o trabalho. Para esse efeito, lança-se um concurso público –
pelo menos as instituições públicas têm essa obrigação – aberto a todos. As
possibilidades de um Zé-Ninguém vir a ganhar um concurso são, para
sermos realísticos, mínimas, mas nunca se sabe. Nem sempre os esquemas
funcionam e, no fundo, a qualidade vence, nem que leve muito tempo.
Um aspecto importante a ter em conta aqui é que as instituições
encomendam consultorias; esta é a prática normal. Partimos, nesse contexto,
do pressuposto segundo o qual as instituições têm a capacidade de identificar
as suas necessidades em termos de assessoria. É um pressuposto arriscado e
que custa oportunidades aos sociólogos. Nem todas as instituições sabem o
que necessitam. Um sociólogo esperto – e inteligente – tem que ser capaz de
ajudar as instituições a identificar as suas necessidades nesse contexto. É
verdade que a ignorância das instituições está ligada ao facto de muitas delas
dependerem de auxílios externos para encomendar um trabalho. Sem esse
auxílio, nada feito. Mas um olhar de realce pelas nossas instituições
mostraria verdadeiras minas de ouro para sociólogos com imaginação,
iniciativa e espírito empreendedor. Peguemos, a título de exemplo, na área da
saúde. Que impacto têm as diferentes políticas de saúde seguidas? Quem usa
os serviços de saúde em diferentes contextos? Como é que esses serviços são
usados? Em combinação com outros recursos? Que importância tem o posto
de saúde para os residentes de não-sei-aonde? Porque é difícil observar
regras de higiene em certos hospitais? Haverá factores culturais envolvidos?
Ah, os factores culturais! Que impacto teria a introdução de taxas disto e
mais aquilo na disponibilização de certos serviços? Que providências
individuais são feitas pelas pessoas para a eventualidade de doença? Como
articular com a polícia de trânsito para diminuir a incidência de certo tipo de
acidentes? Como articular com o Ministério do Trabalho e Sindicatos para
controlar certos riscos laborais? E por aí fora. As questões são intermináveis.

66
Não é por falta de temas que não há mais consultorias. É por falta de
dinheiro – lá está – mas também é por incapacidade dos sociólogos de
formular um problema. Mais uma vez a formulação de problemas! Uma vez
identificada uma questão, um sociólogo com imaginação poderia tentar
formular o problema. Quando as pessoas reconhecem um problema,
normalmente querem agir sobre ele. O desafio que se coloca ao sociólogo
muitas vezes é de trazer à atenção de quem de direito um problema que
precisa de acção urgente. Para esse efeito, não precisa de revelar muito, pois
a ideia é de ser encarregue de realizar o tal estudo que vai identificar o
problema! Suponhamos que identifico o problema do uso exagerado dos
postos de saúde. As pessoas vão aos postos de saúde mesmo quando não há
nenhuma necessidade para tal; dessa maneira, sobrecarregam o sistema
nacional de saúde desnecessariamente. Posso levar este assunto à atenção da
Ministra da Saúde. Vou propor a realização de um estudo que vai identificar
as razões que conduzem a essa situação bem como formas de a sanar. A
promessa que vou fazer ao Ministério é de o ajudar a reduzir despesas e usar
as suas infraestruturas de forma mais eficiente. Quem resistirá a isso?
Há temas à nossa espera. Devemos identificá-los, trabalhá-los e vendê-los
aos que têm dinheiro para os comprar. Não é sofismo. Um problema
formulado sociologicamente não é um falso problema. É um problema.
Alguém mais inteligente do que eu já disse que o problema não é haver
problemas; o problema é esperar que não haja problemas e pensar que ter
problemas é um problema. Einstein rematou assim: os problemas que o
mundo tem hoje não podem ser resolvidos com o nível de reflexão que os
criou. Uma vez já escrevi sobre a importância de cada um de nós se
especializar numa área. Para ser bom consultor, é necessário que a pessoa
domine um assunto, seja saúde, educação, energia, comércio, etc. Sem esse
domínio do tema, nada feito.

67
Dos tipos de consultorias

Consultoria não é igual a consultoria. Há consultorias e consultorias.


Não se deixem irritar com estas platitudes. Aprendi de livros que prometem
riqueza às pessoas que é preciso repetir lugares-comuns do estilo “acredita
nas tuas próprias capacidades e verás que vences”, “Deus não quer que
desanimes”. Não sei porquê, mas essas coisas caiem sempre muito bem.
Devia, se calhar, empacotar isso tudo em power-point e mandar para toda a
gente registada no meu email e dizer para enviarem para mais cinco
pessoas…
Os tipos correspondem mais ao menos ao que nós sabemos fazer em
sociologia. O mais comum é o que quer auscultar as atitudes, crenças e
comportamentos das pessoas. Existe, inclusivamente, uma metodologia que
vem já desde os anos sessenta que se chama “estudos de comportamento,
atitudes e conhecimentos”. O que sabem as pessoas sobre as formas de
infecção do HIV? O que pensam as pessoas sobre a prevenção? Como é a
sua vida sexual? As perguntas que fazemos em qualquer questionário de
pesquisa referem-se sempre a uma destas três dimensões: atitudes, crenças
ou acção. As nossas lacunas em termos de conhecimento nos vários
domínios da nossa vida em Moçambique fazem a cabeça girar com vertigens
só de pensar na quantidade de oportunidades para consultoria. Quantas
empresas não gostariam de saber o que pensam as pessoas sobre
determinadas coisas? Quantas empresas não gostariam de saber a atitude das
pessoas em relação a certas cores, produtos, preços, etc.? Quantas empresas
não gostariam de saber como as pessoas se comportam em certos domínios?
O segundo tipo é aquele que faz o levantamento sobre uma determinada
problemática. Corresponde mais nitidamente aquilo que chamo de
formulação de problema. Por exemplo, uma vez o governo da província do
Niassa lançou um concurso para um estudo de base sobre o desenvolvimento
da província. O que o governo queria saber era o que o desenvolvimento
podia ser, que opções estariam abertas à província e o que a província
poderia vir a ser no futuro. Tratava-se mesmo dum levantamento. Este tipo

68
de estudo não precisa de ser à escala de uma província. Uma organização
não-governamental que queira intervir na promoção de poupanças no bairro
de Macuti na Beira pode, por exemplo, encomendar um levantamento de
base. O consultor pode recolher informação sobre as receitas dos moradores,
fontes, estabilidade, despesas, oportunidades de rendimento, padrões de
consumo, etc. Com base nessa informação, a ONG pode perspectivar melhor
a sua intervenção. Nesta área também há milhares de oportunidades,
sobretudo nas províncias, onde o conhecimento ainda é bastante escasso.
Sabe-se muito pouco sobre quase tudo quanto é necessário saber para se
poderem tomar decisões sólidas com conhecimento de causa.
O terceiro tipo de consultoria é a avaliação. Insisto na ideia de que no
nosso país fazemos ainda muito pouco nesta área. Normalmente, até, quem o
faz são estrangeiros, muitas vezes com pouco conhecimento da realidade do
nosso país. Veem por uma semana ou duas, conversam com algumas
pessoas, analisam relatórios, consultam publicações e redigem o seu
relatório. Desde que ficamos independentes fizemos tanta coisa. Houve
programas disto mais aquilo, projecto daquele outro, iniciativa para isto, etc.
Cada ministério, governo provincial, direcção estatal e todas as outras
instituições que podemos imaginar já fez qualquer coisa. Como é que correu?
Foi bem feito? Os recursos foram suficientes?

69
A falta do hábito da avaliação é um dos problemas mais graves ao nível
da acção governativa. A título de exemplo: Em tempos tivemos uma unidade
anti-corrupção que foi dirigida por uma jurista de nome Isabel Rupia. Essa

3.4 Factos e opinião


O debate na esfera pública faz alguma confusão entre estes dois conceitos. Factos são informações
cuja veracidade não depende do estado de espírito de quem os enuncia ou de quem os ouve. São
informações aceites como sendo verídicas em virtude de assentarem em pressupostos que todos aceitam.
Se nuvens escuras despejam água para a terra e eu disser que está a chover isso será um facto,
independentemente de eu ser simpatizante da Renamo ou ser Mazione. A chuva que cai é um facto. Mas
se eu disser que a chuva não é boa coisa, aí estou a emitir uma opinião. Essa opinião pode assentar em
critérios factuais fortes. Por exemplo, como agricultor posso dizer que a chuva que cai nesta época do
ano não é boa pelo facto de ela poder comprometer o crescimento do que foi semeado. O importante é
saber que num primeiro momento uma opinião é apenas a manifestação duma preferência, dum
interesse, dum valor pessoal. A opinião fica tanto mais sólida quanto ela assentar em pressupostos
factualmente verificáveis.
Noto uma grande dificuldade, na esfera pública, em separar factos e opiniões. Há muito comentário
sério que não consegue ser mais do que manifestação de opinião, mas procura legitimar-se conferindo-
se ares de factualidade. A este propósito pode ser instrutivo citar John Stuart Mill, um filósofo inglês,
que num livro publicado em 1859 escreveu o seguinte: “O povo está acostumado a crer - e foi
encorajado nessa crença por alguns aspirantes à qualidade de filósofos que seus sentimentos em
assuntos dessa natureza, valem mais que razões, e que é dispensável dar razões… O princípio prático
que os conduz às opiniões sobre a regulamentação da conduta humana é o sentimento existente na alma
de cada pessoa, de que todos seriam solicitados a agir como ela, e de que aqueles com quem ela
simpatiza, prefeririam, ao agirem, tais opiniões. Ninguém, na verdade, reconhece no íntimo que o seu
critério de julgamento é a sua preferência. Entretanto, uma opinião em matéria de conduta que não se
alicerça em razões, só pode ser tida como uma preferência pessoal. E se as razões, porventura dadas,
constituem um mero apelo a preferência análoga sentida por outras pessoas, trata-se ainda tão somente
de preferência de muitos ao envés de preferência de um só. Para um homem comum, todavia, sua
própria preferência, assim fundamentada, é não apenas uma razão cabalmente satisfatória, mas ainda a
única que, em regra, ele admite para quaisquer de suas noções de moralidade, gosto e decoro, que não
estejam expressamente consignadas no seu credo religioso.”
Uma maneira útil de contribuir com o conhecimento das ciências sociais para uma melhor cultura
de debate consiste em cultivar esta distinção entre facto e opinião. É importante saber que a emissão
duma opinião nos compromete com a necessidade de procurar sustentá-la factualmente para que
possamos entender melhor as coisas.

unidade foi abolida com base no argumento segundo o qual teria sido
inconstitucional. Muito bem. Entretanto, essa unidade funcionou durante
vários anos. Nos meios de comunicação de massas existe a percepção de que
a decisão de abolição foi mais política do que jurídica. Não importa. O mais
importante seria avaliar o trabalho que essa unidade, apesar de tudo, fez. Fez
o que devia ter feito? Como? E se não o fez, porque não? Faltaram meios?
Faltou vontade política? Não há corrupção? O único que me parece insensato
é deixar pairar no ar a sensação de que os políticos não deixaram a unidade

70
funcionar. Isso não basta. E para isso, estudos que avaliem o desempenho
podem ser úteis.
Devo dizer uma palavrinha sobre o papel do sociólogo nisto tudo. Até
aqui tenho vindo a falar como se o sociólogo só pudesse estar envolvido
numa consultoria como líder. Não é necessariamente assim. Na verdade, o
sociólogo é o indivíduo que conhece os métodos de recolha de informação.
Ele pode, portanto, ficar encarregue de executar determinadas tarefas:
organizar, elaborar e aplicar inquéritos, conduzir entrevistas, fazer revisão de
literatura, formar os entrevistadores e analisar os resultados. O sociólogo
deve saber identificar o método de recolha de informação mais apropriado
para o trabalho em mãos. Cada tipo de consultoria tem as suas
especificidades e o sociólogo distingue-se pela sensibilidade em relação a
elas.

Caixa 3.5: Estudo de caso


Na pesquisa empírica social existe um instrumento que tem o nome de „estudo de caso“. Trata-
se dum tipo de estudo que analisa um tema em particular com o fim de extrair lições do caso
estudado. É um excelente instrumento e adequa-se particularmente às consultorias. A ideia básica
por detrás do estudo de caso é de identificar um aspecto específico de alguma coisa que faça parte
dum sistema mais geral e na base duma recolha sistemática e exaustiva de dados procurar saber o
papel que esse aspecto desempenha no todo, conhecer as suas particularidades, isto é o que o
distingue do sistema, e entender como mudanças na sua estrutura ou morfologia podem afectar o
todo.
Algumas pessoas têm a ideia de que estudo de caso é tudo o que se refere a algo singular. Não é.
Um estudo de caso tem que estar integrado na preocupação de entender um sistema ou algo mais
complexo. Por exemplo, eu posso querer entender melhor o funcionamento do mercado informal de
Xiquelene em Maputo. Ao invés de estudar todo o mercado, posso pegar apenas numa banca de
alguém que vende artigos electrónicos e procurar perceber como funciona a sua logística, que
fraquezas e potencialidades do mercado todo ele aproveita para fazer andar o seu negócio (ou que
aspectos do mercado afectam negativamente o seu negócio) e o que marca a especificidade da venda
de artigos nesse mercado. O estudo de caso só está completo quando tudo o que foi apurado puder
ser investido na compreensão do todo. O estudo de caso ajusta-se muito bem às exigências de
trabalhos de consultoria.

Da avaliação

Nesta secção vou ser mais técnico, sem, contudo, ser profundo. Um
conselho que sempre me esqueço de dar: nada do que está escrito aqui deve
substituir a leitura de livros mais abalizados sobre as temáticas que eu

71
abordo aqui. Quem pensar que vai ser bom sociólogo ou consultor a partir
do que está escrito aqui, engana-se redondamente. Nada substitui a leitura, o
estudo e o trabalho árduo. Não há “sociologia em 30 dias”. Os 30 dias e
muitos mais é que cabem dentro da sociologia. Ler, estudar, ler e estudar,
estas são as palavras de ordem. Como exorta Carlos Serra: Duvidai e
investigai. Comecem aqui mesmo, hoje, não amanhã porque como reza o
velho ditado “não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”. Esta vai,
sobretudo, para aqueles que ficam meses e meses a tentar escrever um
trabalho de tese de apenas 30-40 páginas! E querem ser sociólogos...
A avaliação é muito traiçoeira. É uma actividade técnica que está sujeita a
vários constrangimentos de ordem política. Os que encomendam um estudo
de avaliação de um projecto, por exemplo, não o fazem apenas no intuito de
saber o que melhorar. Muitas vezes fazem-no porque querem argumentos
“técnicos” para deixarem de financiar a coisa. O consultor que for produzir
um documento a emular as virtudes desse projecto pode, nesse sentido,
prestar um “mau” serviço aos seus patrões. Quem quer ser honesto, como
cantam os jovens da G Profam, arrisca-se a ficar pobre. Atenção: não estou a
encorajar ninguém a “produzir” resultados; estou apenas a alertar para os
perigos à espreita quando recebemos a tarefa de fazer uma avaliação.

A avaliação pode ser feita:

 no início de um projecto;
 no meio de um projecto; e
 no fim de um projecto.

Os termos de referência são, como é óbvio, diferentes. Uma avaliação que


se faz no início de um projecto é aquilo que muitos chamam de “estudo de
viabilidade”. É, na realidade, a apreciação das probabilidades de sucesso de
uma determinada medida. Não é, tecnicamente falando, uma avaliação, pois
esta tem muito a ver com a apreciação do grau de satisfação de certos
critérios de desempenho. De qualquer maneira, é importante reter a ideia de
que a avaliação das probabilidades de sucesso é um exercício perfeitamente
legítimo. O problema foi bem formulado? O que é necessário para que a
72
solução seja implementada? Os meios materiais e financeiros foram
disponibilizados? (atenção: nesses meios diz-se alocados!); e as pessoas que
vão fazer? Estes dados todos são necessários para que o consultor possa
desenhar cenários de evolução da implementação do projecto e possa, com
base neles, sugerir respostas. O estudo de viabilidade é uma coisa muito
arriscada. É um pouco como o boletim meteorológico ou, para ser mais
maldoso, é como uma dessas previsões que os economistas gostam de fazer.
É mais certeira na explicação das razões que fizeram com que os seus
prognósticos não se materializassem do que de facto em prever o futuro.
A avaliação que se faz no meio já é diferente. É um exercício técnico.
Precisa de critérios claros de desempenho – aquilo que a indústria do
desenvolvimento chama, curiosamente, de indicadores. Se o projecto não
tem estes critérios, então trata-se de um projecto mau. Suponhamos que o
Ministro do Comércio nos pede para avaliarmos a sua iniciativa de redução
da incidência de acidentes de viação resultantes do consumo de bebidas
alcoólicas compradas em bombas de combustível. A avaliação que se faz no
meio não vai consistir em saber se já há menos acidentes; a avaliação vai
consistir em saber se os passos considerados essenciais à prossecução desse
objectivo foram todos dados ou não. Por exemplo, se calhar era necessário
montar um esquema de controlo das vendas nas bombas de combustível; se
calhar era necessário formar pessoas para fazer esse controlo; se calhar era
necessário iniciar uma campanha de sensibilização dos proprietários das
bombas de combustível; etc. Avaliar no meio significa verificar se essas
coisas foram feitas; se não foram feitas, porquê, e que alternativas se podem
sugerir. Ultimamente, as organizações tornaram-se flexíveis na elaboração
dos seus projectos. Já não têm planos fixos. Elas têm uma estrutura flexível
que lhes permite reajustar as metas de acordo com a evolução do projecto.
Chamam a isso de “gestão do ciclo do projecto”. O consultor tem que ser
capaz de dizer qualquer coisa sobre as metas.
Finalmente, a avaliação que se faz no fim corresponde à ideia clássica de
avaliação. Este exercício pretende saber se o projecto teve sucesso ou não. E
o sucesso do projecto não é algo que está na cabeça do consultor. Não é nada
73
subjectivo. O sucesso é o alcance das metas inicialmente traçadas. Se, por
exemplo, as metas da cruzada anti-álcool do Ministro do Comércio
consistiam em reduzir o número de acidentes causados pelo consumo de
álcool comprado em bombas de combustível em 24 por cento, então o
critério de avaliação é esse: 24 por cento. Não importa se o projecto poderia
ter alcançado mais. Tem sucesso quando alcança essa meta. Se a meta era
apenas acabar com a venda de bebidas alcoólicas nas bombas de
combustível, prontos, a meta é essa. A avaliação quer, naturalmente, também
tirar lições. O que se pode aprender para o futuro? Para programas idênticos?
Para a capacidade organizacional do Ministério? Que fazer agora?
Mas conforme avisei, a avaliação é um assunto político. Os que
trabalham dentro de um projecto vão exagerar as dificuldades para obterem
mais recursos, vão pintar de cor de rosa o projecto para evitar que seja
cancelado se tiverem razões fortes para supor que essa seja a intenção dos
decisores. É aqui onde as competências de um sociólogo se revelam. Na
verdade, ele tem que ser capaz de apreciar a economia política de um
projecto que está a ser avaliado. É só olhar para a indústria do
desenvolvimento. Alguém pensa mesmo que a imagem que ela dá do nosso
país corresponde verdadeiramente à nossa realidade? Ou é ela função das
necessidades de reprodução dessa indústria? Há anos algumas pessoas com
certa influência no Fundo Monetário Internacional andaram com ideias de
acabar com o Banco Mundial com base no argumento segundo o qual as
forças de mercado iriam tomar conta de tudo. Acham que o Banco Mundial
disse “sim senhor, vamos acabar com isto”? Nada disso! Começou a insistir
na dimensão social do ajustamento estrutural como forma de se tornar
imprescindível!

Termos de referência

Não há negócio que se faça sem uma definição clara dos deveres e
obrigações de cada parte. Com as consultorias é a mesma coisa. Como a
própria expressão diz, os “termos de referência” são as linhas de orientação

74
que cada parte usa para se situar em relação ao trabalho que deve ser feito.
São muito importantes. Do ponto de vista jurídico, os termos de referência
servem de base para o esclarecimento de eventuais conflitos. É com
referência ao que eles trazem disposto que quem encomenda e quem recebe
uma consultoria podem discutir o cumprimento ou não do que foi acordado.
Nesta reflexão, contudo, interessa-me um outro aspecto, nomeadamente a
oportunidade que os termos de referência oferecem ao sociólogo para definir
aquilo que ele é capaz de fazer bem.
Por mais importante e desejável que seja, uma consultoria não pode fazer
tudo. Se, por exemplo, o Ministério da Agricultura gostaria de encomendar
um estudo para analisar os factores sociais e culturais que, por ventura,
condicionam a atitude dos moçambicanos em relação à abolição de barreiras
proteccionistas no mundo, não seria sensato partir do princípio de que a
consultoria fosse capaz de esgotar este tema. Ao aceitar uma consultoria, o
sociólogo deve estar ciente do que é capaz de fazer, dos meios que estarão
ao seu dispor, das condições de trabalho e do estádio de conhecimento
actual sobre a temática. Quem promete coisas que não é capaz de cumprir,
compromete as suas próprias possibilidades de voltar a ser convidado a fazer
uma consultoria como também mancha o nome de todos quantos trazem a
mesma designação profissional. O sociólogo tem que ser comedido e pensar
nos seus colegas.
A negociação dos termos de referência é o momento durante o qual o
sociólogo tem a oportunidade de vincar o seu próprio perfil académico ao
partir de uma problemática clara e bem formulada. Já vi por aí consultorias
tão vastas e gerais, cuja seriedade me suscita imensas dúvidas. Normalmente,
o concurso para uma consultoria tem a tendência de ser vasto e geral.
Compete ao sociólogo que concorre circunscrever o tema com base nas
considerações acima indicadas. Por exemplo, ao concorrer para um concurso
como o sugerido mais acima sobre os factores sociais e culturais que
condicionam a atitude dos moçambicanos em relação à abolição de barreiras
proteccionistas o sociólogo tem que encetar vários passos. O primeiro passo
consiste em formular o problema. Qual é a atitude geral dos moçambicanos

75
face às barreiras proteccionistas? Negativa ou positiva? Será que essa atitude
é influenciada por ideias que as pessoas têm do papel do Estado na
economia? Donde vêm essas ideias? Vêm dum sentido profundo de
legitimidade do poder político? Será que os factores sociais e culturais de
que se está a falar estão de alguma forma ligados a noções de legitimidade?
O segundo passo consiste em definir uma unidade de análise e justificá-
la. Faz sentido fazer o estudo à escala nacional? Será que uma região
circunscrita como a Zambézia se adequa ao estudo uma vez que a agricultura
é muito importante e o problema da legitimidade do Estado se coloca com
muita premência lá? Em que condições é que os resultados que se obtiverem
deste estudo serão aplicáveis ao resto do país e vão permitir ao Ministério da
Agricultura encontrar respostas à sua inquietação? Será necessário fazer um
estudo de controlo num outro sítio?
O terceiro passo é mais mecânico. Que instrumentos de pesquisa vão ser
utilizados? Como será feita a análise? Quanto tempo é necessário? Quais são
os meios materiais e humanos necessários à realização deste trabalho? Que

Caixa 3.6: Campo de estudo e unidade de análise


Esta é uma distinção óbvia à qual o investigador iniciante costuma prestar pouca atenção. Dum
modo geral, o campo de estudo designa não só a área temática dentro da qual o estudo se insere como
também o contexto físico considerado relevante para o estudo. Um estudo sobre casamentos
prematuros, por exemplo, pode ser definido na perspectiva da noção de campo de estudo tanto pelo
tema (por exemplo, saúde pública, gênero, políticas infantis, etc.) quanto pelo espaço onde será feito
(por exemplo, em comunidades rurais do sul de Moçambique). A unidade de análise, por sua vez,
refere-se ao que é portador da informação que pretendemos obter. Aqui gozamos de muita liberdade
que nos é conferida pelo tema. Supondo que queiramos recolher as experiências de crianças vítimas
dos casamentos prematuros poderíamos identificar crianças que passaram por esse tipo de experiência
como nossas unidades de análise. Se quiséssemos, em contrapartida, conhecer as condições sociais
que determinam essa prática a nossa unidade de análise podia ser a família ou mesmo as comunidades
onde essa prática se verifica.
A clareza sobre estas coisas é importante para uma melhor estruturação do trabalho. Vezes sem
conta, trabalhos saem mal porque o investigador não foi capaz de ajustar a sua unidade de análise às
perguntas que quer responder no seu estudo. Um contexto típico em que isto acontece é o contexto de
trabalhos à escala nacional. Alguém quer estudar a corrupção em Moçambique e escolhe as cidades de
Maputo, Beira e Nampula para o efeito. O argumento muitas vezes é de que todas as regiões do país
estariam desse modo incluídas. Isto não é bom. Porque é que essas três cidades são uma boa unidade
de análise para obter informação sobre o país? A coisa funcionaria se pudéssemos mostrar que essas
cidades são portadoras de informação fiel. Só que esse é dificilmente o caso. Mais útil seria pegar em
instituições públicas talvez até escolhidas aleatoriamente pelo país fora e identificar os seus
funcionários como unidade de análise.

76
imprevistos é possível imaginar e que ideias podem ser propostas para os
contornar?
Espero que o leitor esteja a notar aqui um aspecto de extrema
importância: um concurso público para consultoria é uma espécie de trabalho
de casa que uma instituição está a marcar. Os termos de referência são, de
uma forma geral, a nossa resposta a esse trabalho de casa. É como quando se
diz na faculdade que os estudantes devem começar a preparar os seus
trabalhos de fim do curso. Já uma vez propus temas que me interessavam
pessoalmente e que teria gosto em supervisar. Alguns estudantes
responderam positivamente a isso indo ler sobre o assunto e formulando
projectos de fim de curso fortemente influenciados por essas leituras. É
assim que deve ser. É a mesmíssima coisa com as consultorias. Vou dar um
exemplo extremo para ilustrar a questão. Se o PNUD anunciasse um
concurso público para a elaboração de um relatório sobre a situação de
pobreza em Moçambique, seria perfeitamente legítimo fazer uma proposta de
estudo sobre a pobreza na província de Gaza. Podíamos dizer que nos
últimos doze meses esta província se tornou na quarta mais pobre e que,
portanto, o estudo dessa dinâmica pode proporcionar elementos muito
importantes para a compreensão da situação de pobreza em Moçambique.
Atenção, isto é apenas um exemplo. Não creio que alguém fosse aceitar isso,
mas o importante é apenas reter a ideia de que ao respondermos a um
concurso público estamos, efectivamente, a circunscrever o tema e a dizer o
que consideramos sensato como forma de satisfazer as preocupações dos que
o lançaram.
Falta um elemento sobre o qual se tem insistido pouco, infelizmente, e
que podia servir para corrigir o efeito nocivo das consultorias sobre as
ciências sociais. A questão coloca-se em termos de saber quem é o dono do
conhecimento produzido e o que deve acontecer a esse conhecimento. Por
razões de confidencialidade – dependendo do assunto, é evidente – impõem-
se cláusulas que impedem a publicação dos resultados mesmo em contextos
académicos. Por uma questão de princípio e em defesa das ciências sociais,
os sociólogos incumbidos de fazer uma consultoria deviam sempre procurar
se livrar dessa cláusula para terem a oportunidade de discutir as suas

77
experiências com os seus pares. Não vai ser sempre possível, mas é
importante não só para a própria ciência como também para a qualidade das
propostas de consultorias que hão-de vir de dentro do país. A consultoria é
tanto melhor quanto mais vigoroso for o debate académico.
O relatório final

Muitos de nós, infelizmente, escrevemos mal. Muito mal. Não tenho


nenhuma vergonha em dizer isto porque é um problema real. Tenho usado
todas as oportunidades que tenho para chamar a atenção de todos os
Caixa 3.4: Revisão de pares
Esta noção é cada vez mais usada nos meios académicos para garantir a qualidade do trabalho
académico. Aplica-se principalmente ao processo de avaliação de artigos ou livros submetidos para
publicação. A ideia é de deixar que artigos submetidos para publicação na revista “Estudos
Moçambicanos”, por exemplo, sejam avaliados anonimamente por uma pessoa abalizada na matéria
tratada. Isso promove a qualidade através do debate que resulta do comentário crítico e da reacção a
esse comentário.
A revisão de pares é algo que define o trabalho científico. Este trabalho radica no debate e o
debate, por sua vez, assenta na razão. No seu melhor, a ciência desenvolve-se através da interpelação
crítica livre de preconceitos e subjectivismos. Quanto maior for a abertura para a crítica, mais franco
será o desenvolvimento da ciência. Há, infelizmente, grandes impedimentos a este desiderato. Nisso o
nosso país não é excepção. Há algumas pessoas bastante e hostis à crítica. Olham para a crítica como
afronta pessoal ou procuram a todo o custo a defender as suas crenças ao invés de verem no debate
uma possibilidade de melhorarem os seus argumentos e, em consequência, a qualidade do seu próprio
pensamento. Em Moçambique um dos maiores entraves ao debate é a polarização política que faz com
que só tenha mérito o argumento que defende ou promove o ponto de vista que melhor reflecte as
preferências políticas dos interlocutores. Os méritos das questões costumam perder relevo nestas
circunstâncias.
Outro entrave consiste no recurso algo abusivo a uma falácia lógica que tem o nome de “ataque à
pessoa”. Esta falácia consubstancia-se na rejeição dum argumento com base em algum defeito da
pessoa. Por exemplo, certa vez numa discussão no Facebook critiquei alguém por ter escrito um texto
em que, na minha opinião, ele fazia um ataque à pessoa, e não discutia os argumentos dessa pessoa.
Fui interpelado por uma pessoa que me recordou um texto da minha autoria em que (na opinião dessa
pessoa) eu também fazia um ataque pessoal a alguém. Concluiu a partir daí que a minha crítica não
tinha razão de ser porque eu próprio teria violado o mesmo princípio. Este tipo de argumentação não
dá. Dois males não perfazem um bem. Mesmo supondo que eu tivesse violado esse princípio a crítica
que eu fazia na base desse princípio não ficava inválida. Eu podia ter perdido autoridade moral para
fazer essa crítica, mas a crítica em si continuava incólume. E isso é o mais importante no debate de
ideias.
A vantagem dessa postura é de que transforma a esfera pública num espaço normativo consensual.
Mais um exemplo, desta feita político. Na crise política vivida pelo país um dos argumentos usados
pelos simpatizantes da Renamo para justificar o seu recurso à violência contra órgãos do Estado é de
que o governo também viola a constituição. É muito difícil convencer algumas pessoas da natureza
contraproducente deste tipo de postura. Dois males não perfazem um bem. Isto é, o facto de o governo
também violar a constituição não dá direito à violação pelo outro. Reforça, isso sim, a necessidade de
todos nós procurarmos abrigo nos princípios defendidos pela constituição de modo a conferirmos
78 da violação pelos outros.
maior legitimidade e autoridade moral à nossa denúncia
estudantes de sociologia que cruzam comigo para este problema. Há
trabalhos escritos por estudantes de sociologia cuja qualidade linguística é
arrepiante. Agora, é verdade que em Moçambique há muitos problemas; o
ensino primário e secundário é deficiente. Os professores não são sempre os
melhores; não há materiais; não há livros para as pessoas se acostumarem à
palavra escrita; enfim, vivemos num contexto multilingue que nem sempre
constitui uma vantagem. Toda a gente sabe isso e compreende também as
dificuldades. Só que trabalho de qualidade é trabalho de qualidade. Quem
quer realmente fazer trabalho de qualidade tem que se preocupar em superar
as suas próprias lacunas. Desculpas não nos levam longe.
Por muito bem feita que for uma consultoria, se a pessoa que a fez não é
capaz de produzir um relatório final legível, estamos mal. Corre o risco de
deitar por água abaixo todos os ganhos feitos. O relatório final é a cereja no
bolo e ao mesmo tempo uma espécie de recomendação. É a cereja porque é o
lugar onde o consultor mostra tudo quanto fez. É a coroação, por assim dizer.
É também uma recomendação porque é com base na plausibilidade e
legibilidade do relatório que os que encomendam consultorias se sentem
encorajados a voltar a depositar confiança no consultor. O relatório final é,
talvez, o elemento mais crucial de toda uma consultoria.
Escusado é dizer que a pontualidade na redacção e entrega deste
documento constitui trunfo. Os maus hábitos da faculdade não servem: os
computadores estavam ocupados; tive malária; faleceu o tio mais novo da
irmã mais velha do padrinho de casamento do meu colega de serviço, etc.
Isso não vai impressionar ninguém. Antes pelo contrário, só vai predispor
negativamente em relação à toda a profissão de sociólogos. Isto não quer
dizer que imprevistos não surjam. Infelizmente, a vida contém dessas coisas.
Mas quando é assim, a obrigação do consultor é de entrar em contacto com
os seus patrões e explicar a nova situação e propor novas datas realísticas.
Ficar silencioso como muitos fazem com os seus trabalhos de fim de curso
não ajuda, com a agravante de que se corre o risco de se não ser pago por
violação do disposto no contracto.

79
Posto isto, passemos agora para o menos importante. O que deve conter
um relatório final? O relatório final deve conter uma exposição clara e
concisa do trabalho que foi feito bem como a resposta à pergunta
colocada nos termos de referência. O consultor deve indicar que
informação achou necessário recolher, porquê e como o fez. Inevitavelmente,
terá havido dificuldades e imprevistos na realização desse trabalho. Isso tem
que ser integrado no relatório. Aqui também é preciso ter a coragem de
abandonar os maus hábitos da faculdade. Não é aconselhável dizer apenas
que não foi possível falar com toda a gente com a qual teria sido necessário
falar; não é bom dizer apenas que algumas bibliotecas estavam fechadas; não
é útil dizer que não foi possível ir ao distrito de Mopeia porque as chuvas
bloquearam os acessos. Isso na faculdade ainda funciona, mas num relatório
final é a receita certa para nunca mais ser convidado a fazer seja o que for. É
preciso apresentar dificuldades de forma inteligente. Como é que foi
contornado o problema? Como se fez para se compensar a falta da
informação que devia ter sido obtida pela via falhada? Qual é o grau de
fiabilidade da informação obtida por outros meios? Se o consultor tem a
consciência de que as alternativas não foram tão boas, tem que o dizer. O
importante quando produzimos conhecimento não é sempre reproduzir a
“verdade”, mas sim a transparência do processo de obtenção da informação.
É sempre mais aconselhável dizer às pessoas honestamente o que vale a
informação que lhes está a ser facultada, do que ficar silencioso à espera de
que ninguém note. Isso é desonesto. E faz mal à sociologia.
O consultor deve reflectir sobre o processo de recolha de material e
apresentar isso aos que encomendaram o trabalho como uma lição aprendida.
As instituições querem sempre aprender. Quando encomendam consultorias
estão, no fundo, a participar, ainda que indirectamente, no processo de
criação de um espaço público de discussão e debate de ideias. Reflectir sobre
a produção do conhecimento é uma contribuição muito importante nesse
sentido. Sociologia não é superstição nem magia.
O relatório final deve conter também as conclusões a que o estudo
chegou. É aqui onde o consultor responde à pergunta colocada nos termos de
80
referência. O estudo foi encomendado pela Renamo e queria conhecer o
impacto da iniciativa presidencial sobre o HIV no seio da camada juvenil?
Muito bem, qual foi o impacto? Positivo, negativo ou nem uma nem outra
coisa? A consultoria difere, neste aspecto, fundamentalmente de um mero
trabalho académico. Enquanto o trabalho académico continua perfeitamente
legítimo, mesmo se conclui que a sua suposição inicial não se confirma, a
consultoria produz resultados positivos. Positivos, isto é, no sentido de
responder afirmativamente à questão central do estudo. A consultoria não é
um tactear no escuro. É trabalho de alguém abalizado que sabe que pergunta
colocar para poder ter a resposta certa.
Depois vêm as famosas recomendações. É aqui onde elas têm lugar,
nunca num trabalho de tese como muitos ainda insistem em fazê-lo. Com
base no constatado que cursos de acção é que o consultor aconselha? O que o
patrão deve fazer? Aqui como em tudo o resto que o sociólogo faz, é preciso
ter abertura de espírito suficiente para reconhecer várias saídas para um
problema. O desafio consiste, depois, em indicar os argumentos a favor e
contra cada um dos cursos de acção. Para que é que a Renamo queria saber
isso? Para reagir? Muito bem, o que o nosso consultor sugere? O impacto foi
positivo? Pois bem, o que a Renamo deve fazer? Pagar jornalistas para
comentarem negativamente a iniciativa? Realizar uma iniciativa idêntica por
parte do líder da Renamo? Apresentar uma política própria de combate ao
HIV-SIDA? Que fazer?
Não resisto à tentação de deixar uma “dica” extremamente importante: o
consultor deve procurar, na medida do possível, “empacotar” as
recomendações de maneira a deixar em aberto a continuação do seu trabalho.
Cada qual tem que ganhar o seu pão...

Conclusão

Eu sou muito crítico em relação às consultorias. Elas fazem parte dum


contexto de produção de conhecimento em relação ao qual tenho reticências.
81
Esse contexto é a indústria do desenvolvimento. Tenho reticências em
relação a ela porque não concordo com os pressupostos sobre os quais se
baseia o seu conhecimento, nem tenho a certeza sobre a sua utilidade. Os
pressupostos do conhecimento da indústria do desenvolvimento apontam
para dois argumentos falaciosos. O primeiro argumento falacioso é o recurso
constante à autoridade. Este recurso consiste na ideia de que existem pessoas
especialmente qualificadas para dissertarem sobre o que é necessário fazer
para que um país se desenvolva. Muitas destas pessoas agem ao abrigo de
todo um aparato institucional que se reproduz na base da sua convicção de
que tem todas as soluções para o desenvolvimento. O principal problema
com este argumento é que transmite a impressão de que o desenvolvimento é
algo meramente técnico que falha ou vinga com base no grau de obediência
às instruções dadas. A verdade, porém, é que o desenvolvimento, como
fenómeno social, está sujeito à arbitrariedade e aleatoriedade dos impulsos
sociais pelo que todo aquele que reclama para si a capacidade de dizer o que
deve ser feito para que um país se desenvolva se expõe ao ridículo.
O segundo argumento falacioso é o recurso à circularidade. Ela assenta na
ideia de que uma vez que os países desenvolvidos são democráticos,
estáveis, prósperos, etc. eles não só fizeram o que era necessário para que
fossem assim como também o que eles fizeram tem que ser feito por outros
para que sejam como eles. Mais uma vez, o fenómeno do desenvolvimento é
um assunto muito complexo. Sem nenhuma intenção de espalhar um
sentimento de fatalismo devo dizer que o contexto dentro do qual os países
hoje desenvolvidos se desenvolveram é completamente diferente do contexto
em que hoje se envidam esforços nesse sentido. Os países em
desenvolvimento não têm recurso a colónias, não podem exportar com
facilidade mão-de-obra excedente ou mesmo os seus pobres. Ademais, eles
não estão em condições de construir um mundo bem específico dentro do
qual os outros devem se arranjar. Pretender que a mera reprodução do que os
outros fizeram possa ser a chave para o desenvolvimento parece uma atitude
ingénua e intelectualmente pouco idónea.

82
A consultoria como forma de produção de conhecimento tem o seu lar
espiritual nestas e muitas outras falácias. Mais do que produção séria de
conhecimento a consultoria é, na verdade, a reprodução duma visão do
mundo. Como tal, ela não me parece realmente suficientemente equipada
para contribuir seriamente para o fomento intelectual. Isso não impede,
contudo, que ela seja uma realidade incontornável. Mais do que a criticar e
evitar impõe-se que todo aquele que está seriamente comprometido com o
conhecimento verdadeiramente científico se preocupe em encontrar a melhor
maneira de fazer o melhor possível. Feliz ou infelizmente, as consultorias
são o principal veículo de financiamento da produção de conhecimento. Essa
é mais uma razão para adoptarmos uma postura pragmática Quem sabe, com
as dicas aqui dadas pode ser talvez possível promover uma atitude mais
crítica na aplicação do instrumento da consultoria. A minha esperança é que
com essa atitude mais crítica seja possível desenvolver um uso mais
académico da consultoria, subvertendo, portanto, o sentido que ela foi
ganhando no contexto da indústria do desenvolvimento.

83
Quarto Capítulo
Quando as Coisas Correm Mal

84
85
Neste capítulo abordo uma miscelânea de problemas na esfera pública que
podem ser abordados como desafios à própria pesquisa. Uns têm a ver com a
qualidade das perguntas que colocamos e outros com o nosso entendimento
de políticas públicas. Outros ainda têm a ver com a forma como lidamos com
números, como focalizamos as nossas perguntas e, acima de tudo, como
argumentamos. Reúno aqui textos que publiquei online e sistematizo-os aqui
através da identificação dos desafios que os problemas neles abordados
colocam à pesquisa.

Perguntas

Alguns jornais, rádios ou canais de televisão têm o hábito salutar, diga-se


de passagem, de auscultar a opinião dos seus leitores e ouvintes. Fazem isto
por via de sondagens online em que convidam as pessoas a responderem,
geralmente por meio de um tipo de perguntas que tem o nome técnico de
perguntas fechadas. Isto quer dizer que a resposta é definida por quem
produz o inquérito. Normalmente dão-se três opções: sim, não, não sei (ou:
concordo, não concordo, não sei) conforme o caso. O problema das respostas
que obtivemos nestas circunstâncias é que elas são demasiado lacónicas para
serem de alguma utilidade. Isto é, precisamos de saber um pouco mais sobre
o contexto para sermos capazes de situar melhor as respostas. Quem disse
“sim”, que tipo de perfil social tem, que tipo de motivações políticas tem,
que tipo de convicções religiosas, etc.? Respostas exactas podem ser muito
imprecisas. Vejam este inquérito que extraí duma publicação moçambicana:

Concorda com o acórdão do Tribunal Administrativo no caso


Wackenhut?

Sim: 44%
Não: 56%

O caso de 2006/07. A então ministra do trabalho emitiu uma ordem de


expulsão contra um estrangeiro que trabalhava para essa empresa de
segurança alegando racismo e falta de respeito. Os advogados desse

86
estrangeiro recorreram contra a decisão junto do Tribunal Administrativo
que depois de apreciar o caso suspendeu a ordem de expulsão e devolveu o
assunto aos tribunais laborais. A questão aqui é muito séria e envolve o
nosso sentido de legalidade. O nosso sistema de justiça confere aos ministros
o poder de tomar uma decisão administrativa de expulsar estrangeiros por
violação dos bons costumes nacionais. Essa decisão é tomada com base nas
informações que o próprio ministério recolhe e não prevê nenhuma espécie
de julgamento do visado. É uma prerrogativa que abre espaço para a
arbitrariedade, pelo menos em minha opinião, uma razão mais forte para que
decisões desta natureza sejam riscadas do nosso sistema jurídico e
substituídas por procedimentos próprios em tribunais. O inquérito do jornal
tinha como objectivo auscultar a opinião dos leitores sobre a decisão do
Tribunal Administrativo.
As respostas podem ser interpretadas de várias maneiras. Uma, que é a
minha, é de supor que o sentido de legalidade no país seja muito fraco. A
falta de respeito pela legalidade é que nos vai conduzir à força. Este inquérito
do jornal O País Online é interessante nos seus resultados. 56% das pessoas
que votaram – espero que não tenha sido a mesma pessoa num gabinete
climatizado qualquer do Ministério do Trabalho – não concordam com a
observação da legalidade nos nossos procedimentos administrativos. Só 44%
é que acham que o Estado deve observar a legalidade. Se isto não é
preocupante... Suponho que os 56% sejam os do combate contra a pobreza
absoluta e os 44% os do combate contra a corrupção. Estes são os assuntos
que dividem a nossa sociedade, isto é, os assuntos que não nos permitem
olhar as coisas com profundidade.
Esses resultados podem também significar que há muita gente que não
está bem informada sobre estas matérias. A ideia aqui seria de que quem
estivesse devidamente informado fosse capaz de apreciar o alcance jurídico
da decisão da ministra. Um problema fundamental com este inquérito é que
ele não deu a opção “não sei”/”não me interessa”/”estou indeciso”. Obrigou
os leitores a decidirem entre duas alternativas. Curiosamente, o que isto
significa é que só ficamos a conhecer a opinião daqueles leitores que têm
87
sentimentos muito fortes em relação ao assunto. Se calhar com a opção “não
sei” a relação percentual fosse outra, quem sabe? 80% não sei; 7% não; 3%
sim.
Como podem ver, temos aí números exactos, mas o que eles realmente
nos dizem não está claro. Ainda se soubéssemos quem foram as pessoas que
4.1 perguntas
Em ciências sociais há três tipos de perguntas que nos interessam. Queremos saber o que as pessoas
fazem (comportamento, acção), suas atitudes e crenças. Comportamento e acção são coisas que
podemos saber através da observação (até um certo ponto, claro). Já as atitudes e crenças são mais
difíceis de conhecer só pela observação. Aqui as perguntas afiguram-se melhores como instrumento de
recolha de dados. Porque é que nos interessam estas questões? É porque elas resumem muito bem um
conceito central das ciências sociais, nomeadamente a acção social. A sociedade, ou a realidade social,
é o produto do que nós fazemos. E o que nós fazemos é influenciado e enformado por valores e crenças.
Isto não significa que as pessoas só façam coisas na base de valores e crenças. Há muita gente que age
contra valores ou crenças que considera importantes para si própria. O essencial que procuro transmitir
aqui, porém, é que a acção só é social na medida em que ela possa ser entendida no contexto de valores
e crenças.
Todo o inquérito tem como base estas três questões. Para a contextualização das respostas
precisamos naturalmente de mais informação. Essa informação refere-se ao que podemos chamar de
propriedades dos nossos informantes: gênero, idade, profissão, origem, religião, etc. Por exemplo, se
alguém fizesse um inquérito para auscultar a opinião dos moçambicanos sobre a desigualdade regional
e obtivesse um resultado que indicasse que uma esmagadora maioria tem a convicção de que existe um
desequilíbrio regional gritante, não ficaríamos a saber muita coisa sem mais informações. Suponhamos
que esse inquérito tenha sido feito em Nampula. Um resultado desses não seria possível em Gaza…
Fazer perguntas é equacionar todos estes factores.

votaram num ou noutro sentido pudéssemos contextualizar melhor as


respostas. O engraçado é que na esfera pública muitas vezes este tipo de
informação não é vista como sendo incompleta. Há pessoas que se podem
envolver em discussões acesas na base de informação incompleta.

Informação precisa

Não são só perguntas que nos criam problemas. Há também o próprio


problema da qualidade da informação ao nosso dispor ou que veiculamos.
Muitas vezes, as nossas boas intenções não têm seguimento porque se
baseiam em informação imprecisa. Chamo a isso de fala sem consequências,
isto é compromissos que nunca são realizados apesar de serem apresentados
com muito floreado discursivo.

88
A fala sem consequências é também resultado de perplexidade perante os
desafios da governação. A nossa máquina estatal não é eficiente, sobre isto
até há consenso geral. Desde há uns bons anos, sobretudo com a reforma do
sector público, que se tem dado muita importância a este problema. Não
concordo, porém, com os que atribuem a falta de eficiência à maldade
natural dos “corruptos”, embora esteja ciente do facto de que a própria
estrutura da máquina administrativa possa, em certas condições, encorajar
tipos de comportamento susceptíveis a esse tipo de acusações. Penso que a
impressão de “corrupção” e desleixo propositado é, de facto, criada pela falta
de imaginação na gestão do aparelho estatal.
A notícia que reproduzo do Jornal O País Online, sobretudo o parágrafo
que destaco, dão-nos algumas indicações de onde reside o problema. Leiam a
notícia primeiro e encontramo-nos mais abaixo:

Regulamento para polícia comunitária atravessa fase final

29/04/2007
Está na fase final a elaboração do Regulamento do Policiamento
Comunitário que pretende especificar o ofício entre esta força e a
Polícia da República de Moçambique - PRM, uma vez que se
constatou a existência de choques entre ambos. A informação foi
tornada pública, sábado, pelo comandante da PRM a nível da cidade
de Maputo, Luís Mangueza, que garantiu que até finais do presente
semestre o documento deverá entrar em vigor.
Presentemente, as autoridades da Ordem e Segurança estão a
realizar seminários, em todo país, junto das populações, através
dos quais recolhem informações para a produção do documento.
Concretamente a este processo de auscultação os resultados serão
conhecidos após a realização da conferência do policiamento
comunitário previsto para Junho (ênfase por minha conta)
A polícia comunitária foi instituída há quase uma década com
objectivo de apoiar a polícia nacional no combate ao crime. Os

89
agentes que integram esta autoridade não auferem salários e o seu
treino é bastante precário.
Refira-se que um documento divulgado ano passado pela Amnistia
Internacional concluía que em alguns casos a polícia comunitária tem
ajudado a reduzir a criminalidade, mas, noutras instâncias, limitou-se
a espancamentos, à extorsão de luvas e a roubar.
Na verdade, temos vários problemas aqui. Temos o problema da
manifestação clara de fala sem consequências na medida em que o
comandante da PRM a nível da cidade de Maputo proporciona informação
que não lhe compromete com nada respeitante ao seu próprio trabalho. A
ideia de elaboração de um regulamento do policiamento comunitário parece-
me excelente, sobretudo se ela tem como objectivo dar uma base jurídica a
essa polícia e, acima de tudo, ajudar a eliminar choques com a PRM. Só que
este exercício não começa onde o comandante pensa que começa, isto é na
ideia de elaboração de um regulamento. O exercício começa muito antes, isto
é no que as pessoas que, há dez anos, instituíram este corpo policial estavam
a pensar quando o fizeram. Não previram os choques? O que lhes fez supor
que não haveria choques? Que problema é que esse corpo policial ia resolver
na altura e que tipo de critérios de desempenho foram estabelecidos? Dez
anos é muito tempo e, por isso, é no mínimo curioso que volvido esse tempo
a única razão de elaboração de um regulamento sejam os choques. O resto
está tudo bem?
O principal problema, contudo, está no parágrafo assinalado. É
tipicamente moçambicano. As nossas instituições abordam os problemas
sempre da mesma maneira: organizam um seminário (ou vários),
“auscultam” as populações, produzem um documento contendo as
“sensibilidades” auscultadas e, finalmente, fazem uma conferência em que o
documento é aprovado (inalterado). O problema aqui não é apenas de que se
trata de um processo extremamente dispendioso. O problema é duplo.
Primeiro, porque a procura de soluções para um problema institucional passa
a ser o verdadeiro trabalho das nossas instituições. Explico-me: procurar
soluções no nosso contexto não é procurar soluções, isto é identificar as
90
acções que nos vão permitir resolver um problema. Procurar soluções
significa fazer de contas que estamos a procurar soluções: organizando
workshops, auscultando, colhendo sensibilidades, fazendo conferências,
aprovando documentos. É um ritual. E parece-me racional. Os envolvidos
vão viajar, andar a incomodar a população, fazer conferências e tudo isto
com per diem e tudo. Não admira que passem a vida a fazer isso e se lixem
depois para as próprias soluções que propõem.
O segundo problema é de gestão. Vejo neste método restos daquela
convicção da Frelimo revolucionária de que o povo sabe (o discurso
participativo da indústria do desenvolvimento tem também elementos desta
convicção). Na verdade, a própria Frelimo nunca acreditou que o povo
soubesse seja o que fosse, pois mesmo naquela altura tratou de “enquadrar” e
“encaminhar” ideologicamente as preocupações do povo. Esta crença
continua com a ideia de que para se fazer qualquer coisa é preciso
“auscultar” as populações, independentemente do grau de complexidade do
assunto e da própria perplexidade das instituições. É daí, e isto é para
encurtar a história, que o mais simples consiste simplesmente em observar o
ritual da “procura de soluções” sem nenhuma intenção aparente de as aplicar
com seriedade. E uma vez que o conteúdo perde importância, tornam-se
importantes coisas supérfluas como as vantagens pessoais e materiais que se
podem obter do exercício.
O povo sabe, mas nem sempre. Há assuntos que precisam de ser tratados
por técnicos. Um ou dois técnicos que se debruçam seriamente sobre um
assunto, submetem os seus resultados à apreciação de pares e ao debate na
esfera pública. É mais económico, eficiente e racional. O ritual da “procura
de soluções” é sinal mais do que certo de que quem por ele envereda não
sabe o que está a fazer, nem tem nenhuma intenção de querer saber. Ouve-se
dizer que os sul africanos, por exemplo, têm um bom sistema de pensões de
aposentação e toca daí a mandar delegações para lá para irem “colher
experiências”, quando o mais fácil, racional e barato seria pôr um técnico a
estudar o assunto com base no seu conhecimento técnico, na leitura e na
correspondência com pessoas abalizadas.

91
Estatísticas

4.2: Políticas
Há uma área das ciências sociais que se chama de estudos de políticas. Consiste na análise de políticas
públicas e ao fazer isso procura saber como elas funcionam, que resultados produzem e que alternativas
existem que possam ser melhores. Há, naturalmente, disciplinas específicas que se ocupam disso. A
administração pública é uma delas. A lógica por detrás dos estudos de política, porém, está ao alcance de
qualquer indivíduo familiarizado não só com as técnicas de pesquisa social como também com o pensamento
crítico. Há, infelizmente, ainda muita política pública que é feita com recurso a exercícios fúteis como acima
indicado e que seria muito melhor se fosse feita por gente abalizada.
Por todo o lado por onde a gente passa há projectos interessantes que podiam ser confiados a cientistas
sociais. Um passeio em Maputo é uma espécie de viagem explorativa. Novos contentores de lixo na
marginal. A iniciativa é do Conselho Municipal. Como estão a ser usados? Qual é o impacto? Quais são os
problemas? Nova postura municipal em relação ao consumo de bebidas alcoólicas em público. Idem. Estrada
circular. Resolve o problema da congestão? Criou novas necessidades? Etc. O privilégio que se dá às
auscultações públicas é quase sempre uma forma segura de não aprender nada. E não tenho nada contra a
participação popular.

Não são muitos os estudantes de sociologia ou antropologia que gostam


da estatística. Alguns até exageram o seu interesse por métodos qualitativos
só para se furtarem à estatística. Esta relação difícil com a estatística está
ligada à fobia pela matemática que constitui a base da estatística. No quadro
4.3 vou dar algumas dicas sobre a lógica quantitativa como forma de ajudar
alguns pesquisadores a fazerem as pazes com a estatística. O mundo em que
vivemos é um mundo que cada vez mais se define pelo uso de números. Há
já quem fale de “inumerância” como um problema mais importante do que o
analfabetismo. “Inumerância” é um neologismo anglo-saxónico que define a
incapacidade de lidar com números. Quem sabe esgrimir números tem
maiores hipóteses de ganhar discussões, pois os números têm aquela aura de
facticidade que simples palavras não têm. No debate público de ideias,
porém, o recurso a números assume por vezes contornos supersticiosos
quando as pessoas se acomodam naquela ideia de que contra números não há
argumentos. Mistifica-se a realidade esgrimindo-se números com habilidade.
Li uma notícia muito interessante no País Online que me pode ajudar a
ilustrar este problema, entre outros. Acho-a extremamente interessante.
Sublinho as partes que me interessam e comento-as mais abaixo. Leiam, por
favor:

92
Sete milhões de dólares para travar devastação florestal

15/05/2007.
A representante do Fundo das Nações Unidas para a Agricultura
(FAO), Maria Zimmermann, revelou que aquele organismo está neste
momento a idealizar um projecto avaliado em sete milhões de dólares
americanos para fazer face ao desmatamento ilegal de florestas no
país, especialmente nas províncias do centro e norte, onde esta prática
se tem verificado com maior regularidade.
Zimmermann falava à margem do encontro de formalização do
Comité Nacional da Comissão do Código Alimentar – CÓDEX,
realizado há dias na capital moçambicana, Maputo.
O referido projecto visa fundamentalmente potenciar o sistema de
fiscalização e sensibilização de comunidades de modo a tornarem-se
interventivas em casos de as suas florestas serem postas em causa,
bem como apoiar o Estado nas suas políticas de protecção de
florestas.
Estatísticas recentes avançam que caso o país não busque soluções a
curto prazo para travar a exploração irracional da madeira, algumas
províncias do centro, caso por exemplo da Zambézia, poderão, dentro
de dez anos, não ter florestas.
Maria Zimmermann referiu ainda que Moçambique não tem
instrumentos capazes de avaliar em que situação as suas florestas se
encontram, pelo que a realidade no terreno pode ser mais assustadora
em relação às estatísticas, sendo necessário a implementação de
medidas imediatas para contornar a situação.
A fonte concluiu que os fundos para o projecto, que se prevê dure
cerca de cinco anos, ainda não existem na totalidade, estando a FAO
a mobilizar os valores junto dos seus parceiros.
De salientar que esta organização coopera com Moçambique
principalmente nos domínios social e económico.

93
As ciências sociais precisam de um longo fôlego. Está-se a “idealizar” um
projecto que até já tem orçamento avaliado: 7 milhões de dólares. Fico
curioso: fixaram primeiro o valor e depois começaram a “idealizar” o que é
preciso fazer? Ainda pode haver confiança que as medidas resultantes dessa
“idealização” sejam as mais adequadas? Nem me atrevo a colocar a pergunta
que me parece primordial: qual é exactamente o problema lá com as nossas
florestas? Se o governo tem dado a entender que o problema não é assim tão
grave como se diz, que “idealização” é esta que está a ser feita?
Chavões. O “... projecto visa fundamentalmente potenciar o sistema de
fiscalização e sensibilização de comunidades de modo a tornarem-se
interventivas...”. “Potenciar”, “sensibilizar” e tornar-se “interventivo”. Este é
o tipo de linguagem que me leva logo a concluir que ninguém quer fazer
nada. Não deixa, contudo, de ser curioso notar que, afinal, o problema está
definido: a fiscalização e a baixa consciência ou falta de poder das
comunidades. É isso mesmo? E quem põe o guizo ao gato?
Superstição. “Estatísticas recentes” dizem que algumas províncias correm
o risco de ficar sem florestas dentro de dez anos. Grave, mas provavelmente
correcto. Só que quando a senhora que nos quer ajudar acrescenta,
aparentemente sem nenhum piscar de olhos, que não temos instrumentos
para avaliar a situação devidamente (portanto, as estatísticas recentes não
constituem esse instrumento) e conclui que “... a realidade no terreno pode
ser mais assustadora que as estatísticas” (e eu digo: se dez anos não é
assustador, não sei que mais pode ser), deixo de ficar assustado e começo a
interrogar-me se o assunto das florestas está a ser abordado por pessoas
sérias. Porque não concluir que “... a realidade no terreno pode ser menos
assustadora que as estatísticas”? Porque não pode ser? Porque a situação é
mesmo grave? Porque é preciso agir? Nos anos oitenta li um interessante
livro da autoria de J. B. Peyres, um historiador sul africano, que descrevia o
famoso suicídio colectivo de Xlhosas nos meados do século IX na África do
Sul em resposta a uma profecia de uma menina de 12 anos que dizia ter
falado com os antepassados e recebido ordens para que as pessoas deixassem
de cultivar os campos e se preparassem para receber os defuntos que iam
94
ressuscitar (Peires 1989). Em antropologia chama-se a isto de “cultos do
cargo”. Centenas de Xlhosa morreram de fome assim mesmo. E de cada vez
que a profecia não se concretizasse, as pessoas ficavam mais enraivecidas
com os que continuavam a cultivar os seus campos e obrigavam-nos a deixar
de trabalhar. Os britânicos tiveram que intervir, ainda que de forma brutal
como sempre.
4.3 A lógica estatística
A estatística é um instrumento muito poderoso na descrição, análise e interpretação da realidade social.
Ela é sobretudo poderosa em três vertentes: explicação, variação e aleatoriedade. A verdade da explicação é a
mais básica. Na sua forma mais comum a explicação consiste numa relação causal, isto é numa relação de
causa e efeito. Com isso queremos dizer que um determinado factor é responsável por um outro no sentido de
o determinar, causar, ser a razão de, etc. Tecnicamente, falamos de variáveis independentes e variáveis
dependentes. O que queremos dizer com isso é que existem factores no mundo (ou no nosso estudo) que têm
uma relação assimétrica com outros. Esses factores causam ou influenciam os outros (e não o contrário). Por
exemplo, podemos procurar saber de que maneira o facto de ser pobre faz com que alguém recorra ao crime
(para sobreviver). Isto é, partimos do pressuposto segundo o qual ser pobre seria uma variável independente e
ser criminoso uma variável dependente. A estatística ajuda-nos a organizar a informação de modo a
investigarmos esta relação.
A vertente da variação é mais interessante. Ela diz-nos que as coisas são diferentes, o que é óbvio. Por
exemplo, nem toda a gente pobre rouba. E nem toda a gente que rouba é pobre. Nem todo o governante é
corrupto. Nem toda a gente que vem de Inhambane é avarenta como reza o preconceito em Gaza e Maputo.
Na pesquisa a gente procura explicar a variação da variável dependente a partir duma variável independente.
Por exemplo, procuramos saber de que maneira a corrupção (de funcionários públicos) se explica pelos
baixos salários que eles auferem. Ao fazermos isso muitas vezes constatamos que existem funcionários
públicos bem pagos que são corruptos e funcionários mal pagos que não são. Como explicar isso? Aí
podemos considerar outros factores susceptíveis de explicar o comportamento dos funcionários. Pode ser, por
exemplo, que o funcionário público que aufere bem e é corrupto porque tem problemas financeiros
resultantes dum estilo de vida não comportável. Pode ser que o funcionário público que aufere mal e não é
corrupto tenha um sentido muito apurado do que é bem público. A estatística dispõe de instrumentos que nos
permitem destrinçar estas coisas. Um desses instrumentos (de natureza lógica) é a regra do ceteris paribus
(esta é uma expressão em Latim que quer literalmente dizer “considerando tudo o resto igual”. A ideia é a
seguinte: tentamos explicar a relação entre duas variáveis procurando eliminar toda a possível influência de
outros factores para podermos apreciar devidamente as condições em que realmente existe uma relação. Esse
exercício permite-nos dizer, por exemplo, que o baixo salário só é determinante no comportamento corrupto
quando o funcionário leva um estilo de vida acima dos seus rendimentos, ou quando os procedimentos de
controlo dentro duma instituição são fracos, etc. Muitas vezes fico com a impressão de que entre nós temos
muitas dificuldades em considerar esta maneira de reflectir as coisas. Tudo o que constatamos é duma clareza
e linearidade impressionantes.
A terceira vertente é a da aleatoriedade. Há coisas que aconteçam por acidente ou por razões que
desconhecemos. Ainda não estamos em condições de explicar tudo. É como a forma como as moedas caem
quando estamos a fazer aquele jogo de batota. Sabemos que será caras ou flor, mas qual exactamente
ninguém sabe. É aleatório. Aqui também a estatística ajuda com instrumentos que nos permitem verificar até
que ponto uma relação é aleatória ou não. Uma boa parte dos testes que fazem parte da regressão tem este
objectivo. A aleatoriedade é, talvez, um dos aspectos mais difíceis de se lidar. Muitas vezes, os debates
públicos precisam de certezas que os factos não são capazes de produzir. Um governo pode tomar a decisão
de investir em alguma coisa qualquer e anos mais tarde constatar que essa decisão foi má porque os
resultados são maus. Porque são maus os resultados? Porque a decisão foi má ou porque intervieram factores
aleatórios? Muito difícil decidir.

95
Não tenho dúvidas que as florestas moçambicanas estão mal. Também
não duvido que é preciso fazer alguma coisa. Mas os contornos
supersticiosos que a coisa assume obrigam-me a insistir na necessidade de os
académicos serem mais comedidos. Este problema ainda vai precisar de nós
e seria bom que nos restasse credibilidade para o abordar quando os
activistas estiverem com a língua de fora.

Mundos possíveis

Há uma tendência na pesquisa de supor que o mundo se esgota na forma


como o pesquisador o vê. Fora das opções do pesquisador não existe mais
nada. Este é um problema sério contra o qual o pesquisador precisa de se
prevenir. Li o inquérito que reproduzo a seguir na página da Rádio
Moçambique. Achei-o curioso pelas opções que coloca. Leiam-nas e vemo-
nos a seguir:

Porque é que a criminalidade em Moçambique está a crescer?

Não existe uma política eficaz contra o crime.


Os criminosos estão mais sofisticados.
A população apoia os criminosos.

Em princípio, uma sondagem à opinião pública é simplesmente isso: uma


sondagem. É uma recolha de “sensibilidades”. Contudo, devemos prestar
atenção a uma função latente de sondagens que é de reduzir a complexidade
do mundo. Esta sondagem diz, efectivamente, duas coisas. Uma é que o
crime está a crescer e a outra é que há três maneiras de explicar esse
crescimento. Tudo indica que, de facto, o crime está a crescer. Pelo menos
tem havido muita reportagem sobre isso. O que vai responder o inquirido que
acha que o crime não está a crescer? A ausência de uma quarta opção de
resposta – por exemplo, “outras razões” – torna as três razões dadas as únicas
possíveis. Não é possível que exista uma política eficaz e que não esteja a ser
implementada; não é possível que a polícia seja simplesmente ineficiente (e

96
os criminosos não necessariamente mais sofisticados); não é de supor que os
criminosos não gozem do apoio da população, mas aterrorizem-na.
O mesmo problema verifica-se na notícia que a seguir reproduzo. Extraí-a
do jornal Notícias e é sobre o HIV-SIDA. Leiam-na e vemo-nos logo a
seguir:

Circuncisão masculina debatida em Harare


Representantes de Moçambique e de 11 países da África Austral e
Oriental terminaram sexta-feira em Harare, no Zimbabwe, um
“workshop” que tinha como tema central a circuncisão masculina e a
sua relação na redução dos índices de infecção pelo vírus de
HIV/Sida.

Maputo, Segunda-Feira, 1 de Outubro de 2007: Notícias

Os participantes ao evento trocaram experiências sobre diversos


aspectos e aprendizagem mútua sobre a forma como se pode conciliar
a prática da circuncisão masculina através dos métodos tradicionais
utilizados pelas comunidades, como ritos de iniciação com o
envolvimento dos serviços públicos de saúde. O “workshop”, que
reuniu médicos, técnicos de medicina e consultores desta área, vincou
a necessidade da prática de circuncisão masculina ser inclusa na
estratégia nacional dos países participantes no tocante ao combate ao
HIV/sida. O evento, que durou três dias, foi organizado pela
Organização Mundial da Saúde através do seu programa regional de
combate ao HIV/Sida e reuniu representantes de Moçambique,
Zimbabwe, Botsuana, Quénia, Lesotho, Malawi, Namíbia, África do
Sul, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Uganda, países tidos pela OMS
como tendo altas taxas de seroprevalência do HIV/Sida a nível das
zonas austral e oriental de África.

A questão da circuncisão masculina tem sofrido muitas metamorfoses no


negócio do HIV. Estas metamorfoses têm revelado algumas falhas no
cuidado analítico. Por exemplo, inicialmente constatou-se que os países
97
africanos de religião maioritariamente muçulmana registavam índices muito
baixos. O Senegal, por exemplo, é um exemplo muito bom disso. Alguns
associaram isso à força da norma religiosa – factor que não pode ser
descurado – mas outros sugeriram que a prática da circuncisão estaria
também por detrás disso. O pénis circundado é menos susceptível a feridas
que podem permitir a entrada de fluidos contaminados durante o acto sexual.
Houve, então, até quem passasse a recomendar a circuncisão como forma de
prevenção. Mais tarde algum engraçadinho descobriu, porém, que o uso de
instrumentos contaminados para fazer a circuncisão pode contribuir para
aumentar o índice de infecção. Toca daí a tocar tambores de alarme contra a
circuncisão e a produção de “estatísticas” que mostram que este é, de facto, o
caso em muitos países.
Moral da história: as coisas precisam de ser investigadas. Por exemplo, no
caso concreto deste “workshop” sobre o qual o Notícias escreve seria
interessante saber se conhecemos a dimensão do problema em Moçambique.
Conhecemos? Existem estudos que dão conta de como a circuncisão
masculina está a contribuir para o aumento dos índices de infecção? Quais
são os grupos mais vulneráveis? Em que parte do país? Porque fazem isso?
Que alternativas lhes oferecemos? Não estou, como deve estar claro, a dizer
que se não devia participar em nenhum “workshop” sem esta informação.
Estou simplesmente a dizer que o HIV-SIDA tem um potencial narciso
enorme. Adora a sua própria contemplação ajudado, é claro, por um exército
de “combatentes” que conduz as suas batalhas em seminários de capacitação
em lugares pitorescos.

Incoerência

Fui vasculhando a imprensa nacional e deparei com esta notícia, do jornal


Notícias, cujos excertos mais importantes reproduzo aqui para reflectirem
comigo:

98
Policiamento comunitário : Materialização do objectivo longe
de ser consolidado - segundo pesquisa da ACIPOL, divulgada
recentemente em Maputo
O PROCESSO de implementação da filosofia dos Conselhos de
Policiamento Comunitário (CPC) no país ainda não está consolidado,
facto que faz com que a estratégia de ligação entre a PRM e a
sociedade não se encontre devidamente materializada, revela uma
pesquisa sobre a “Avaliação da Implementação do Policiamento
Comunitário”, há dias divulgada em Maputo pela Direcção de
Investigação e Extensão da Academia de Ciências Policiais (ACIPOL).
O estudo foi realizado nas províncias de Maputo, Sofala e Nampula,
onde, por conveniência, foram inquiridas 984 indivíduos, dos quais 128
são agentes do policiamento comunitário e os restantes membros de
diferentes estratos da sociedade.

Maputo, Sábado, 8 de Setembro de 2007: Notícias


Segundo Lourenço Caetano, director de Investigação Criminal,
pretende-se, com esta pesquisa, avaliar a implementação do processo
na prevenção e combate à criminalidade nas províncias abrangidas, no
período compreendido entre 2001 e 2006. O estudo enquadra-se no
contexto das Ciências Policiais, contribuindo para compreensão do
processo, na promoção da ordem, segurança e tranquilidade públicas,
como condições essenciais no quadro do combate à pobreza absoluta.
Como justificação do estudo, a ACIPOL apontou a necessidade de se
apurar a relação entre a Polícia e a comunidade, a segurança e
tranquilidade como factores determinantes para o desenvolvimento
socioeconómico e político de qualquer sociedade, ausência de estudos
iguais sobre o policiamento comunitário no país e a necessidade de
verificar as suas implicações na sociedade.
De acordo com os resultados, a falta de uma legislação aprovada sobre
o CPC, que funcionam há seis anos, tem sido outro dos propósitos que
contribuem para que não haja consolidação. A ausência de instrumento

99
legal que regulamente a actividade fica evidente quando se pretende
compreender a quem é que os agentes prestam contas. Por um lado,
alguns prestam contas ao presidente do conselho e outros à PRM.
“De uma forma geral, a deficiente confiança em algumas acções da
Polícia é apontada como a principal causa para a prática de
linchamentos dos malfeitores. A falta de um conhecimento exaustivo
das leis tem sido outra das causas apontadas para tais práticas,
apontando-se, ainda, outras motivações, como medo de represálias e
impunidade dos gatunos”, aponta o estudo (...)

Reproduzo esta notícia para chamar atenção para a sua incoerência. Não
sei de quem é a culpa, se do jornalista ou se dos que fizeram o estudo.
Parece-me, à partida, um estudo interessante e gostaria de ter acesso a ele
para o ler e analisar com conhecimento de causa. De qualquer maneira,
parece-me baseado em premissas extremamente problemáticas e não tenho
mesmo a certeza se um estudo concebido daquela maneira – se a reportagem
for fiel – pode servir de base para qualquer tipo de deliberações. Considero a
pergunta de partida, nomeadamente até que ponto é que a introdução do
policiamento comunitário contribui para a prevenção e combate à
criminalidade, plausível e útil. Já não está clara para a mim a opção por
Maputo, Sofala e Nampula – que não diz nada sem a indicação dos locais
exactos onde se fez a pesquisa e porquê – muito menos a referência à
pobreza absoluta que aparece logo no primeiro parágrafo.

100
4.4 Três passos para uma boa pergunta
Não é complicado formular uma boa pergunta de pesquisa. Envolve três passos simples, mas
articulados. O primeiro consiste em estabelecer uma relação entre dois conceitos. Esse é o seu tópico.
Você interessa-se, por exemplo, em saber alguma coisa sobre a relação entre fragilidade do sistema de
justiça e linchamentos. Um tópico é isso mesmo. Um tópico que quando transformado em afirmação
não diz absolutamente nada não é tópico. Há gente que diz que o seu tópico são os linchamentos na
cidade de Maputo. Traduzido em afirmação esse tópico daria o seguinte: Há linchamentos na cidade
de Maputo. Sorry lá, isso não é tópico.
O segundo passo é uma pergunta que você coloca ao tópico. Como pode imaginar, há muitas
perguntas que se podem colocar à relação entre fragilidade do sistema de justiça e linchamentos. As
pessoas que são linchadas têm cadastro? Foram soltas pelas autoridades? O que as pessoas que vivem
em comunidades onde se verificam muitos linchamentos pensam sobre o sistema de justiça? E muitas
outras perguntas. O importante na pesquisa é que o pesquisador se concentre numa só pergunta. É
claro que para a responder vai precisar de colocar outras perguntas, mas essas outras estarão
subordinadas a uma pergunta. Por exemplo, se decidirmos que a pergunta vai ser sobre o que as
pessoas pensam sobre o sistema de justiça, podemos depois perguntar sobre o nível de escolaridade,
filiação religiosa, etc.
O terceiro e último passo consiste em procurar conhecer a relevância da resposta que damos à
pergunta específica na compreensão do tópico. Esta parte é muito importante porque ela constitui, na
verdade, o que chamamos de tese. Uma tese é o que nós queremos demonstrar num trabalho de
pesquisa. No caso aqui discutido podíamos dizer que conhecendo o que as pessoas pensam sobre o
sistema de justiça podemos confirmar, ou não, a plausibilidade da nossa suposição segundo a qual
existiria uma relação entre a fragilidade desse sistema e o fenómeno dos linchamentos. Essa é a nossa
tese que devemos procurar esclarecer e documentar no nosso trabalho.
A beleza deste procedimento está no instrumento que ele nos proporciona não só de ganharmos
clareza em relação ao nosso trabalho, mas também a possibilidade que ele nos dá de resumir mos o
trabalho. Assim, podemos dizer que o nosso trabalho se debruça sobre a relação entre a fragilidade do
sistema de justiça e o fenómeno do linchamento procurando saber o que as pessoas em comunidades
onde este fenómeno se verifica com frequência pensam sobre a justiça de modo a perceber até que
ponto um pensamento negativo confirmaria a relação que nós supomos existir.

Leio na justificação do estudo a ideia de que a relação entre polícia e


comunidade é importante, o que interpreto como uma hipótese extremamente
relevante para a pergunta de partida, mas já não percebo o que a
tranquilidade e segurança têm a ver com os objectivos restritos do estudo.
Quando depois leio, na citação, que se fala de linchamentos e que eles são o
resultado da “... deficiente confiança em algumas acções da Polícia...” fico
completamente desnorteado em relação à coerência temática e analítica do
estudo. Alguém me faculta este estudo?

101
Estamos a falar da mesma coisa?

Vou terminar estas reflexões metodológicas com uma breve reflexão


sobre o discurso público. No debate todos usamos palavras. O problema,
porém, é que muitas vezes o sentido que damos às palavras que usamos não
é o mesmo. Estranhamente, quando discutimos não procuramos saber se de
facto os outros participantes usam as palavras com o mesmo sentido que nós
conferimos a elas. Daí resultam atritos desnecessários e o que sofre, no final
de todas as contas, é a própria qualidade do debate.
Outro dia ouvi o relato do jogo Desportivo-Maxaquene do Moçambola
pela RM. Ouvi um dos locutores presentes no local da contenda a criticar
severamente a arbitragem. A dado momento da sua contestação ele rematou
que “bons jogos” precisam de “bons árbitros”.
Acho que se exprimiu mal. Na verdade, o que ele queria dizer é que jogos
que envolvem equipas importantes como é o caso do Desportivo e do
Maxaquene precisam de árbitros consagrados capazes de garantir que a
expectativa suscitada pelo facto de se tratar de duas equipas boas se confirme
através de um bom jogo. Ou por outra, o “bom jogo” não é anterior ao jogo,
mas pode se consumar se o árbitro for “bom”.
Acho este assunto curioso. Não sei como é que os adeptos do futebol
entre nós reagem a afirmações desta natureza. Acenam com a cabeça e
dizem, “sim, senhor!”? Suspeito que sim. E os sociólogos, como reagem?
Acho que este tipo de afirmações proporcionam-nos documentos muito
interessantes da forma como argumentamos no quotidiano. No fundo, o
locutor tem razão, isto é, a sua exigência faz sentido. Mas aí está o problema.
Ele tem razão porque por um grande esforço de abstração e reflexão lá
conseguimos interpretar o que ele quer nos dizer. A letra da sua afirmação
não nos diz o que ele quer realmente dizer. Temos que fazer um grande
esforço de reflexão. As coisas começam mal logo com a própria palavra
“bom” que é, de certeza, diferente nos dois casos. Quais são os critérios de
“bom” em “jogo” e quais são os de “bom” em “árbitro”? Vimos mais acima

102
que o mais provável é que ele quisesse dizer “importante” e “consagrado”,
respectivamente.
Porque insisto nisto? Em parte por ser mesquinho, mas em larga medida
por achar que a nossa esfera pública emperra justamente aqui. Nem tudo o
que dizemos e ouvimos faz sentido. Contudo, todos nós partimos do
princípio de que faz sentido. Não cultivamos o hábito de obrigar as pessoas a
falarem coisa com coisa. Libertamos as pessoas dessa obrigação
completando nós próprios o sentido. Acho mau. Assuntos como o crime
teriam melhor tratamento se prestássemos atenção à forma como deles
falamos. Em suma: precisamos de aprender a formular problemas. É mesmo
uma questão de formular problemas. Qual é o problema da arbitragem em
Moçambique? Bons jogos precisam de bons árbitros? Ou o problema é que
há grandes desníveis na arbitragem e que é preciso nivelar as coisas? Jogos
entre equipas “grandes” devem ser arbitrados pelos melhores profissionais e
os outros vão para as urtigas? Qual é o problema?

103
4.5 Argumentação
Prefiro tratar deste assunto como uma manifestação de problemas relacionados com a
qualidade de argumentação. Há um certo sentido em que a pesquisa é realmente uma forma de
argumentação. A nossa tese é, no fundo, uma conclusão. Sendo assim, ela assenta em razões cuja
validade é fundamental para que a nossa tese tenha pernas para andar. Portanto, há muito numa tese
que é do pelouro da lógica. Pessoalmente, uso a abordagem dum filósofo inglês, Stephen Toulmin,
que desenvolveu uma excelente maneira de exposição dum argumento. Segundo Toulmin, um
argumento tem várias partes. A primeira parte é, obviamente, a conclusão. Por exemplo, a nossa
arbitragem é má. Este é um ponto de vista que pode ser desafiado, por isso precisa de boas razões.
É, portanto, o início duma discussão. A segunda parte é constituída pelos factos que enformam a
conclusão. Na conclusão sugerida podíamos fazer uma lista de casos de má arbitragem em que, por
exemplo, que certas equipas foram desfavorecidas pelos árbitros, jogos ficaram violentos por causa
de decisões pouco claras dos árbitros, etc. A questão, porém, é a seguinte: qual é a ligação entre a
conclusão e esses factos? Esta é a terceira parte do argumento. Ela consiste numa operação lógica
que estabelece a ponte entre as duas primeiras partes. É uma espécie de regra de inferência que nos
permite enunciar uma regra ou um princípio geral ao abrigo do qual fica claro que esses factos
sustentam a conclusão. No nosso exemplo o princípio podia ser o seguinte: sempre que os
resultados de futebol forem determinados pela actuação do árbitro e não pela qualidade das equipas
em campo devemos considerar a arbitragem má. É, portanto, ao abrigo deste princípio que podemos
dizer que prejudicar equipas e deixar que os jogos se tornem violentos justifica que a gente conclua
que a arbitragem é má. Estas três partes constituem o núcleo duro dum argumento. Sem isto, nada
feito. Mas há mais.
Esse princípio geral carece de apoio. A questão é: o que torna o princípio válido? Aí podemos
fazer recurso a várias coisas. Podemos, por exemplo, dizer que segundo as regras da FIFA, ou da
Federação Moçambicana de Futebol, a função do árbitro consiste em garantir que as regras sejam
cumpridas e que ganhe o melhor no estrito cumprimento das regras do jogo. Logo, todo o
protagonismo do árbitro que viole estas regras é passível de ser sancionado segundo o princípio
geral. Com esta quarta parte o argumento fica mais forte ainda. Não basta tirar uma conclusão, nem
mesmo fazer referência a razões plausíveis. É preciso que a ligação entre a conclusão e as razões
seja feita de forma lógica (através do princípio geral) e que esse princípio geral também tenha
sustento objectivo.
A coisa não termina aqui. Há mais duas partes que precisam de ser consideradas. Uma diz
respeito à necessidade de nunca apresentar argumentos de forma categórica. A falibilidade é uma
condição humana perene. É melhor dizer “a avaliação que eu faço das circunstâncias leva-me a
concluir que muito provavelmente a nossa arbitragem seja má”. Não é cobardia. É prudência e
sensatez. Ao formularmos a nossa conclusão dessa maneira estamos também a dizer que ela
depende da validade de todo o exercício argumentativo que fizemos. Por causa disso mesmo, a
quinta parte é também relevante. Ela aconselha-nos a procurar por circunstâncias atenuantes que
limitam o alcance da nossa conclusão. No nosso exemplo, pode ser que os casos de má arbitragem
que avaliamos não sejam representativos. Aí é sempre bom acrescentar “salvo …”. No fundo, a
pesquisa também é isto. É defender uma tese de forma sólida e transparente.

104
Conclusão

Espero ter mostrado duas coisas neste capítulo. Uma é que a participação
responsável no debate de ideias depende muito da interiorização de certos
preceitos. Não é o nível de formação que determina a qualidade da nossa
participação no debate, mas sim o nosso compromisso com esses preceitos.
Quem se preocupa com a precisão terminológica, quem não aborda números
de forma supersticiosa, quem estrutura bem as suas perguntas e se preocupa
em apresentar argumentos sólidos e coerentes estará sempre em vantagem,
independentemente do seu nível de formação. A segunda coisa que quis
mostrar foi que esses preceitos são do pelouro da metodologia das ciências
sociais. Não são exclusivas a esta área, mas aprender metodologia é uma
forma de aprimorar o nosso compromisso com esses preceitos.
O debate de ideias no nosso país beneficiaria muito duma maior
preocupação com estas pequenas coisas. É importante realçar que a questão
não é apenas de nós próprios observarmos esses preceitos. É de nos
defendermos daqueles que usam a má retórica para se imporem.
Infelizmente, há muitos que fazem isso, sobretudo em ambientes
politicamente polarizados como Moçambique tem sido nos últimos anos.
Termino este capítulo com uma reflexão alongada sobre o problema que o
cientista social enfrenta na nossa sociedade. O contributo que ele presta à
sociedade é muito difícil de avaliar. É pelo menos muito mais difícil de
avaliar do que o contributo prestado, por exemplo, por médicos. Os médicos
curam doenças. Os engenheiros constroem infra-estruturas. Os jornalistas
informam. Os animadores e activistas animam e activam. Mas o que fazem
os cientistas sociais? O que fazem os sociólogos? Dizer que estudam a
sociedade parece-me pouco. Dizer que ajudam a perceber a sociedade padece
do mesmo mal. Felizmente, este pouco é que define a contribuição das
ciências sociais de uma maneira muito geral. A nossa contribuição consiste
em ajudarmos os demais a perceberem melhor a sociedade em que vivem.
Mas lá está: o que significa ajudar a perceber melhor a sociedade em que
vivemos? Aqui as coisas ficam muito complicadas. Tão complicadas que

105
corremos o risco de nos tornarmos irrelevantes no preciso instante em que
tentamos esclarecer isso.
Esta dificuldade parece-me patente na forma como alguns colegas
cientistas sociais estão a abordar fenómenos do quotidiano. Refiro-me
concretamente a fenómenos como a crença na ideia de que alguém possa
amarrar a chuva. Esta crença, que foi bastante noticiada em 2008, causou
mortes e tumultos em algumas regiões do país. Alguém da Zambézia
comentou certa vez uma observação feita por uma outra pessoa sobre o
mesmo assunto. Essa pessoa da Zambézia, que é onde o fenómeno de
amarrar chuva se verificou, protestou dizendo que os zambezianos não eram
arcaicos. A outra pessoa tinha escrito que a crença na capacidade mágica de
amarrar a chuva era própria de comunidades amarradas (sic) ao
obscurantismo e à bruxaria. Essa pessoa rematava: é como se essas
comunidades não tivessem evoluído e continuam a pensar de uma forma
arcaica. O texto, da autoria de um tal Maximum Consult, foi publicado na
edição de 17 de Fevereiro do Zambeze Online. Embora legítimo, parece-me
exagerado o protesto feito pelo zambeziano, pois o autor do texto não disse
taxativamente que os zambezianos eram arcaicos. Ele simplesmente colocou
como hipótese que essa crença pudesse ser a manifestação de uma forma
arcaica de pensar.
Esta maneira de colocar as coisas é perfeitamente legítima e coerente.
Suponho que o autor do texto seja alguém que passou pela escola e lá
adoptou a visão científica do mundo que é ensinada a todos nós. A física e a
química, mediadas pela meteorologia e pela lógica, ensinam-nos que não é
possível que alguém amarre a chuva. Em função destes ensinamentos,
entreter outro tipo de ideias em relação ao que provoca a chuva ou impede
que ela caia viola tudo quanto aprendemos na escola e revela, aí está a
coerência de Maximum Consult, formas de pensar que no contexto da
evolução do conhecimento científico são próprias de sociedades que pararam
no tempo. Pode, naturalmente, ser que a capacidade de amarrar a chuva seja
perfeitamente consistente com uma outra maneira de abordar a natureza ou a
vida e, nesse sentido, fazer parte de um sistema de conhecimento diferente
106
ou alternativo. Contudo, essa posição só pode ser defendida apresentando
esse outro sistema de conhecimento e demonstrando empiricamente o que ele
pode fazer. Estou a pensar, por exemplo, na medicina tradicional chinesa que
tem uma outra concepção do corpo humano, em função da qual concebe a
sua terapia e diagnósticos. Mas quem reclama compromisso com a visão
científica aprendida na escola não pode entreter a ideia de que alguém possa
amarrar a chuva sem se tornar incoerente.
E é aqui onde entram em cena as ciências sociais. Ajudar a perceber
melhor a sociedade em que vivemos não significa dar crédito ao que não faz
sentido. E não faz sentido entreter a ideia de que alguém possa amarrar a
chuva. Muito menos quando essa crença pode levar as pessoas a matarem
outras. A confusão que alguns colegas cientistas sociais fazem aqui parece-
me residir na falta de cuidado em distinguir “compreensão” de
“justificação”.
Não é que não seja relevante procurar saber porque existem tais crenças;
nem é mesmo porque as pessoas que têm essas crenças não tenham razões
para as terem. É claro que a nossa própria sociedade cria, provavelmente, as
condições dentro das quais tais crenças podem nascer ou serem mantidas. É
claro que é em referência a essas condições que podemos procurar saber que
motivos levam as pessoas a crerem em certas coisas e a estarem dispostas a
agir de acordo com essas crenças. Mas reconhecer isto tudo não nos obriga a
darmos o benefício da dúvida aos que matam pessoas na crença arcaica de
que essas pessoas amarraram a chuva. Um pouco por todo o lado no nosso
país são mortas pessoas, vítimas destas crenças arcaicas: velhinhas,
sobretudo velhinhas, são queimadas vivas em suas palhotas acusadas de
serem feiticeiras; outras são afogadas acusadas de se transformarem em
crocodilos; crianças são obrigadas a procurarem refúgio na rua acusadas de
serem feiticeiras. As autoridades não podem ficar à espera de cientistas
sociais que só lhes vão dizer que dentro do sistema de valores dessas
comunidades essas crenças são perfeitamente racionais. Nenhum desses
“cientistas sociais” haveria de gostar de saber que a polícia não prendeu
certos membros de uma comunidade rural que assassinaram a sua avó lá na
107
província por achar que eles estariam a agir de acordo com os seus valores
culturais. Seriam os primeiros a gritar que a polícia é indolente.
No fundo, não é preciso ser cientista social para abordar estes fenómenos
com o cuidado que eles exigem. O único requisito é que se seja crítico. Na
verdade, o argumento que está por detrás da ideia de que não seria correcto
apelidar de irracional estes fenómenos é um argumento muito frequente na
esfera pública. Ele consiste num apelo à opinião popular. E o apelo à
opinião popular tem uma estrutura argumentativa muito simples. A premissa
geral é a seguinte: A (um fenómeno, crença, etc.) é geralmente aceite como
sendo verdadeiro. Vamos lá, a ideia de que pessoas possam amarrar a chuva
é aceite como sendo verdade. A segunda premissa consiste numa presunção:
Se A (a crença na ideia de que certas pessoas podem amarrar a chuva) é
geralmente aceite como sendo verdadeira, existem, então, razões a favor de A
(isto é, da crença na ideia de que certas pessoas possam amarrar a chuva).
Notem a circularidade do argumento. A sua conclusão é de que existem
razões a favor de A, isto é a favor da legitimidade da crença. Até aqui não
ganhamos nada a não ser uma certa predisposição para nos interessarmos
pelo que está por detrás da crença.
Neste ponto intervêm duas perguntas fundamentais. A primeira é simples:
que provas existem que sustentam a ideia de que A seja geralmente aceite? A
porca torce o rabo neste ponto, pois as pessoas que gostam de fazer este tipo
de afirmações não gostam de diferenciar. Para eles o povo é povo. Não há
diferenças no terreno. É tudo povo. Nem conseguem ver que dentro desse
povo há os que crêem numa determinada coisa, outros que não crêem e ainda
outros que estão indecisos. Para essas pessoas é tudo mesma coisa. Só lhes
interessa estabelecer que alguém acredita numa determinada coisa e, partindo
daí, inferir que a crença é de toda a comunidade. O texto de Maximum
Consult no Zambézia Online faz distinções muito importantes. Diz que as
vítimas desta crença na capacidade mágica de amarrar a chuva são pessoas
economicamente bem-sucedidas. É de supor que essas vítimas não
entretenham essa crença. Em ciências sociais, compreender não é possível
sem diferenciar. Portanto, é imperioso fazer este exercício de procurar saber
108
até que ponto A é geralmente aceite. Nesse exercício vai ser possível
identificar as linhas de tensão que percorrem uma comunidade e, porque não,
identificar aqueles que dão mau nome à comunidade.
A segunda pergunta é exigente: mesmo se A é geralmente aceite como
verdadeiro existirão razões que nos possam fazer duvidar? Aqui o rabo da
porca fica um nó. A primeiríssima razão é que não são todos que acreditam
nisso; duvido, por exemplo, que as vítimas destas barbaridades acreditem. A
segunda é que não estão todos a participar na matança dos que amarram a
chuva. Enfim, a necessidade de compreender não nos obriga a justificar seja
o que for. Obriga-nos apenas a situar as coisas no seu devido lugar e, se
formos sérios no nosso compromisso com a visão científica do mundo, a não
dar crédito a formas excêntricas de pensar só porque queremos
“compreender”. Sobretudo quando essas formas excêntricas de pensar
reclamam vidas humanas.
Não estou a dizer que as autoridades policiais devam agora ser brutais
para com todos quantos têm este tipo de crenças. As nossas autoridades dum
modo geral têm de ter sensibilidade para o tipo de condições e contextos que
não só tornam possíveis estas crenças como também permitem que elas
assumam carácter violento. Essas condições e esses contextos precisam de
ser estudados, mas a função da polícia não pode ser de suspender a acção por
respeito a crenças locais que têm a sua razão de ser dentro de sistemas de
valores e concepções do mundo que entram em choque com o tipo de
sociedade que queremos construir, mesmo quando elas ferem o que
aprendemos na escola e custam a vida a pessoas inocentes.

109
Quinto Capítulo
Exemplo da Concepção Dum Estudo

110
Este capítulo procura demonstrar a utilidade prática das ciências sociais e
de tudo quanto foi abordado neste livro com a proposta dum estudo. O tema
escolhido é propositadamente difícil para estimular o leitor a apreciar a
beleza do pensamento sistemático que se constitui na dúvida metódica. A
ideia não é de apresentar conclusões, pois essas são impossíveis. A ideia é de
mostrar o que a concepção dum estudo envolve e como algumas das questões
levantadas ao longo deste livro podem ser abordadas de forma sistemática.

Pontapé de saída

Tentei namorar um amigo que trabalha na Electricidade de Moçambique


para me desenrascar uma consultoria. Foi a propósito de uma notícia que li,
segundo a qual o Conselho Coordenador do Ministério da Energia teria
debatido, futilmente, o problema do roubo de cabos eléctricos que está a
custar à empresa perto de 500 mil dólares por ano, se não estou em erro. É
muita mola e isso levou-me a supor que a empresa não se importasse de
gastar mais um bocadinho para saber de um cientista social um pouco mais
sobre o assunto. O meu amigo apenas encolheu os ombros e não voltamos
mais a tocar no assunto.
Contudo, a coisa continuou a interessar-me. Não só porque preciso
mesmo de melhorar a minha vida, como também pelo facto de que o assunto
constitui um desafio muito grande às ciências sociais. Já digo porquê. Antes,
porém, gostaria de chamar a atenção para a notícia que reproduzo a seguir e
que mostra que o problema é bem mais complexo do que o roubo dos cabos
eléctricos sugere. Não se trata, afinal, apenas de fornecer o sector artesanal
informal como um estudo realizado há alguns anos por uma empresa privada
de consultoria constatou. Trata-se de um contexto institucional frágil
generalizado que proporciona, provavelmente, as condições de possibilidade
da coisa. Leiam a notícia, por favor:

EDM desmantela mais de 100 ligacões clandestinas

05/09/2007

111
A Electricidade de Moçambique (EDM) desmantelou, nos
primeiros seis meses do ano em curso, mais de uma centena de
ligações clandestinas de energia eléctrica, na cidade de Xai-Xai,
capital da província de Gaza.
Os dados foram tornados públicos pela direcção da Electricidade
de Moçambique naquela cidade, durante as celebrações dos 30 anos
desta empresa pública.
De acordo com a directora daquela instituição em Xai-Xai, Maria
Quipiço, são, ao todo, 126 casas que recebiam clandestinamente a
corrente eléctrica.
Por outro lado, a EDM alertou a população a tomar maior atenção
aos supostos burladores que fazem ligações do QUADRILEC, um
sistema de fornecimento de energia a baixo custo.
Maria Quipiço disse ainda que no lugar dos 330 meticais legalmente
exigidos para a legalização da documentação para o fornecimento da
energia eléctrica, alguns electricistas de má fé cobram elevadas somas
em dinheiro, alegando ser para facilitar a sua instalação.

O fenómeno das ligações clandestinas é conhecido em quase todos os


países em desenvolvimento. Melhor ainda: este fenómeno é muito frequente
em países com instituições oficiais frágeis, sobretudo aquelas que dizem
respeito à observação da ordem e segurança. Não constitui, porém,
explicação para o fenómeno dizer apenas que este contexto é o culpado de
tudo. Precisamos ainda de saber porque certas pessoas (e que tipo de
pessoas) optam pelo roubo de cabos e pela ligação clandestina. Ou seja,
precisamos de entender o fenómeno em toda a sua complexidade, e isso
inclui o indivíduo como membro da sociedade. Sei que estou a falar como
um especialista moçambicano: precisamos de estudos mais aprofundados
com ar grave, voz séria e sobrolho franzido. Como um douto, portanto... Mas
entender o fenómeno em toda a sua complexidade é mais fácil dito do que
feito. O que significa? E depois de entendido, que subsídios poderemos
esperar dar à sacrificada Electricidade de Moçambique?

112
O meu namoro não resultou, mas mesmo assim quero reflectir sobre este
assunto aqui. Não vou dar nenhuma solução, pois não tenho nenhuma. Nem
sei se há solução para o problema. Todavia, gostava de reflectir sobre o que
estes problemas significam do ponto de vista do meu entendimento da
sociologia ou das ciências sociais. Que desafios nos colocam? Antecipo
desde já a resposta: o roubo de cabos e as ligações clandestinas levantam o
problema das perguntas que colocamos quando estudamos alguma coisa e,
mais importante ainda, o que fazemos com as respostas que obtemos. E
mais: o exercício de reflexão que faço em torno destas questões leva-me a
supor que o problema principal seja a própria EDM e não, como poderíamos
legitimamente supor dadas as circunstâncias do nosso País, o sector informal,
a fragilidade institucional ou mesmo a quebra de valores morais na
sociedade. Vamos, juntos, pensar no assunto. Se alguém depois conseguir
convencer a EDM a financiar uma consultoria, exijo um dízimo.

Nossas perguntas, respostas deles

O que torna o roubo de cabos e as ligações clandestinas difíceis de


abordar é o simples facto de que é difícil formular uma pergunta que nos leve
ao âmago da questão. Aliás, este é o problema de base da pesquisa social
empírica. A investigação criminal é diferente. Ela quer saber quem cometeu
o crime. Nós, pelo contrário, muitas vezes nem sabemos se estamos
interessados em saber quem cometeu o crime, mesmo se houver crime.
Alguns de nós começam por perguntar o que é crime. Isto é, fazem aquilo
que Marx aconselhou num dos seus escritos, nomeadamente responder
rejeitando a pergunta que nos foi colocada. Para podermos perguntar seja o
que for precisamos de saber muito mais do que sabemos. Essa é a grande
dificuldade. Se soubermos mais do que sabemos, não vemos mais
necessidade de perguntar seja o que for. Daí o recurso instintivo de muitos de
nós ao óbvio: fazem ligações clandestinas porque a sociedade está de pernas
para o ar; roubam cabos para fornecer o sector informal em actos de
resistência às desigualidades. E os que na EDM, pelo seu desleixo e

113
incompetência, deixam que coisas destas aconteçam, estão a criar condições
para a acumulação primitiva de capital.
Vamos aos bocadinhos. Se eu perguntar a alguém que rouba cabos
eléctricos porque ele rouba cabos eléctricos, é provável que ele me responda
o seguinte: roubo cabos eléctricos para ir fazer panelas. Reparem numa
coisa muito importante. Sem me aperceber, coloquei duas perguntas e ele
escolheu responder uma delas. Eu perguntei-lhe: porque roubas cabos
eléctricos [ao invés de não roubares]? e ele percebeu: porque roubas cabos
eléctricos [e não celulares, por exemplo]? Enquanto para mim a vida
apresenta duas opções, a saber (a) roubar e (b) não roubar, para ele a vida
apresenta outro tipo de opções, nomeadamente (a) roubar cabos [que podem
ser utilizados para fazer panelas] e (b) roubar celulares [que não servem para
fazer panelas].
Acho que isto é importante. A minha pergunta não está mal feita. A
pessoa que rouba cabos também não é parva. O que está a acontecer aqui é
que as nossas perguntas encerram muito mais do que pensamos. Se não
ficamos atentos a isso e insistimos muito na pequena janela das nossas
perguntas, corremos o risco de perder de vista a complexidade de que o
mundo é feito. E mais: sou de opinião que contribuir para a formação dos
nossos jovens no pensamento científico social consiste em lhes mostrar todo
o trabalho técnico envolvido – que não tem nada de magia ou de iluminação
individual – mas é simplesmente metodológico e acessível a quem se
esforce. Volto à vaca fria: há duas coisas que, do ponto de vista
metodológico, estão a acontecer naquela pergunta e resposta. A primeira é
normativa. Quando se fala da influência de valores na pesquisa social, a
referência – pelo menos num sentido weberiano – é justamente ao mundo
que nós damos por adquirido nas nossas perguntas. Dito de outro modo, as
nossas perguntas partem do pressuposto de que certas coisas não carecem
mais de explicação. Neste caso, por exemplo, a minha pergunta sobre porque
alguém rouba cabos eléctricos [ao invés de não roubar nada], parte do
princípio de que todos nós temos o mesmo investimento normativo na ideia
de “não roubar”. Perdemos de vista que outras pessoas podem dar por
114
adquirido outras coisas, nomeadamente que tirar coisa alheia pode ser uma
opção na luta pela sobrevivência ou por uma vida melhor.
A segunda coisa, ainda do ponto de vista metodológico, é estrutural e tem
gerado muita confusão, sobretudo da parte daqueles cientistas sociais que
acham que uma análise só é boa e útil quando lança culpas ao sistema,
mesmo onde este não existe. O que nós damos por adquirido é muitas vezes
aquilo que sustenta as relações sociais. Por exemplo, a ideia de que não é
bom roubar seja o que for está radicada na força/poder que certas instituições
ou indivíduos têm de ditar as regras morais que devem orientar a conduta de
cada um de nós. Essas regras estruturam a nossa apreensão do mundo e
marcam os limites da nossa compreensão da acção dos outros. Da mesma
maneira, o que rouba cabos eléctricos apreende outros elementos estruturais,
nomeadamente a injustiça na distribuição de oportunidades, e isso leva-o a
identificar os seus espaços de manobra. Então, o que eu quero dizer com isto
é que nem a nossa conclusão de que o roubo de cabos eléctricos é imoral,
nem a conclusão de quem rouba cabos eléctricos segundo a qual o
importante seria contornar as desigualdades estruturais constituem ainda uma
explicação satisfatória do fenómeno. Demos apenas passos no sentido de
começarmos a identificar o problema que queremos ainda formular.
Deixar as coisas ficarem por aqui é enveredar pelo caminho da
irrelevância. Mas continuar também é muito difícil. A nossa pergunta sugere
reacções do tipo punitivo ou moralizante: penas pesadas para ladrões de
cabos eléctricos ou proibição de panelas no sector informal. As suas
respostas sugerem outras reacções: mais justiça social ou oferta voluntária de
cabos eléctricos aos que os roubam. Para chegar a este tipo de conclusões
não é preciso nenhum estudo. Basta deixarmos que os nossos valores falem
por nós. Já agora: o problema não é ter valores. O problema é pensar que os
nossos valores constituem um critério de validade para as nossas conclusões,
quando o desafio é sermos mais transparentes e interpelarmos esses valores.
Em todos os escritos metodológicos de Max Weber a palavra “objectividade”
aparece sempre entre aspas. Persistir na ideia de que o que torna válido o
nosso conhecimento é a sua capacidade demagógica de ajudar os
115
desfavorecidos é, para mim, simplesmente irresponsável e deita por terra
todos os ganhos que a análise social empírica nos oferece. Quando chegamos
às nossas conclusões por via da magia abandonamos voluntariamente o
convívio salutar do debate científico. Eu sou pela ciência, com todas as suas
imperfeições.

116
5.1 Neutralidade
Esta noção é muito complicada. É possível ser neutro? É possível fazer uma pergunta destas? O que significa a
possibilidade de ser neutro? Quando é que estou a ser neutro? E como é que sei que estou a ser neutro? Quando me
recuso a alinhar ideologicamente com alguém estou a ser neutro? Quando não protesto contra a injustiça estou a ser
neutro? Quando fico calado perante os erros públicos dos outros? Quando recuso juntar-me ao coro de vozes daqueles
que acham que é preciso fazer qualquer coisa por alguém, por uma causa ou por seja o que for que estiver a agitar as
paixões?
O que estou a tentar fazer com estas perguntas é alertar-vos para a natureza polissémica da noção de neutralidade.
Em ciência ela tem um significado muito específico, nomeadamente o que a articula com a noção de objectividade. Ser
objectivo significa descrever e analisar os fenómenos sociais – no caso das ciências sociais – com base na realidade
empírica. A questão, contudo, é de saber se isso é possível. Em certa medida, a história da sociologia é também a
história desta controvérsia. Max Weber, por exemplo, sempre empregou a palavra objectividade entre aspas. Com isso
ele queria chamar a nossa atenção para o facto de que sendo nós produtos de contextos sociais e históricos específicos
apreendemos a realidade social a partir dos valores que nos identificam. Quando ele dizia que temos que observar a
neutralidade axiológica ele não estava a dizer que devemos abandonar os nossos valores. Ele dizia apenas que devemos
tornar essa articulação axiológica explícita e clara.
Portanto, do ponto de vista da metodologia das ciências sociais a questão da neutralidade não se coloca em termos
de nunca nos posicionarmos claramente a favor ou contra os “injustiçados” da nossa terra. A questão não se coloca
nesses termos simplesmente porque seja o que for que nós dissermos está sujeito à interpelação crítica pelos outros. Se
for lógico e racional. Dito de outro modo, quando propomos uma descrição e análise de fenómenos sociais em
Moçambique sujeitamo-nos à crítica dos outros, cujos critérios de interpelação são a plausibilidade lógica do que
dizemos. Se rejeitamos a crítica com base no argumento segundo o qual ela compromete os objectivos finais (que são
bons: por exemplo, acabar com a corrupção em Moçambique), então aí despedimo-nos do convívio científico. Passamos
a fazer política. Uma má política porque alicerçada numa ética fanática de convicção.
A noção de “neutralidade” que é proposta como descrição da atitude dos que acham que a academia moçambicana
prestaria melhor serviço ao País se fosse menos impetuosa na prossecução de objectivos normativos é radicalmente
diferente da que é discutida em metodologia das ciências sociais. É um insulto. E uma falácia. É um insulto porque está
a utilizar a noção com o intuito de ridicularizar quem discorda. A interpelação crítica do que os outros falam sobre
Moçambique (por exemplo, quando eu leio criticamente o relatório sobre o uso insustentável dos recursos florestais) é
tida como um acto cínico de recusar reconhecer a verdade. Quem interpela está, por assim dizer, ideologicamente
anestesiado. É uma falácia porque reduz desnecessariamente as nossas opções. Ou o académico é a favor da luta dos
“injustiçados” – nesse caso tem que concordar com tudo que expõe as más intenções dos “opressores” – ou então o
académico é a favor dos “opressores” – e aí, naturalmente, vai insistir na neutralidade.
Eu, pessoalmente, não sou neutro, mas tento ser objectivo no sentido em que não estou psicologicamente equipado
para lançar suspeitas sobre quem me interpela criticamente. Parto do princípio de que quem me interpela o faz no intuito
de me obrigar a ser mais claro no que digo e, no fundo, a reconhecer a implausibilidade do que digo. Mesmo do ponto
de vista normativo tenho as minhas preferências e elas enformam as minhas tentativas de perceber o País. Embora tenha
simpatias pela Frelimo, não são essas simpatias que me motivam a reflectir. O que me motiva a reflectir é o próprio País
que me parece merecer melhor sorte do que tem tido até agora. Não critico o discurso anti-corrupção em defesa de
ninguém. Critico-o por o achar incoerente e nocivo. Igualmente, não critico o combate à pobreza absoluta em oposição
ao Governo. Critico-o por o achar mal pensado e desorientado.
O discurso anti-corrupção e o combate à pobreza absoluta não me impelem a assumir uma atitude neutra. Impelem-
me à reflexão crítica em defesa do que considero bom para Moçambique. Não é contudo a minha ideia do que é bom
para Moçambique que vai determinar se a minha reflexão crítica é plausível ou não. É a solidez analítica do que eu digo.
Se há pessoas que concordam com a minha crítica ao discurso anti-corrupção por acharem que estou a proporcionar
bons argumentos para confortar o Governo, o problema não é meu. É deles. Da mesma maneira, se há pessoas que
concordam com a minha crítica ao combate à pobreza absoluta por acharem que estou a dar bem no Governo, aí também
o problema não é meu. É dessas pessoas. O problema torna-se meu quando deixo de interpelar criticamente por medo de
ser acusado de “neutralidade”.
Já há dois anos durante uma discussão no ISPU defendi, em oposição à exigência formulada por Afonso Dhlakama
para que os académicos fossem neutros, a ideia de que um académico não precisava de ter vergonha de ser membro de
um partido político e defender posições desse partido. Não obstante, disse também que se esse académico fosse mesmo
bom e honesto não haveria de sacrificar a objectividade a objectivos políticos imediatos. Fiz recurso a Weber para
explicar que se impunha maior compromisso com a ética de responsabilidade uma vez que só assim é que o académico
poderia realmente contribuir para o sucesso da política do seu partido. Pessoalmente, apesar de não nutrir nenhuma
simpatia pela Renamo tenho profunda admiração por pessoas como Manuel Araújo, Eduardo Namburete e outros jovens
académicos que se juntaram à Renamo em resposta à sua própria consciência (suponho). Espero que no interior desse
partido eles continuem a respeitar o espírito académico de objectividade, pois só assim é que eles serão úteis ao seu
novo partido e ao país. Esta tem sido a mensagem que também tenho tentado transmitir a jornalistas quando me
convidam a dirigir-lhes a palavra: não vejo mal nenhum que um jornalista seja membro de um partido. Vejo mal quando
um jornalista informa mal em benefício do seu partido.
Como docente ciente do número considerável de jovens que se estão a iniciar na carreira académica e a precisar de
estímulos para o cultivo da sua mente crítica sinto-me obrigado a insistir nisto: não há incompatibilidade essencial entre
ter valores e fazer ciência. Agir, porém, precisa de certezas. Pensem bem antes de agirem! Um cientista com certezas
pode ser perigoso.

117
Qual é, então, o problema?

O problema é o roubo de cabos eléctricos e a ligação clandestina. Mas


porque é que isso é um problema? Esta pergunta obriga-nos a fazer aquilo
que Weber exigia da sociologia quando dizia que temos que primeiro
entender, e não só explicar. A pergunta não é: porque as pessoas roubam
cabos eléctricos e fazem ligações clandestinas? – porque isso sabemos
intuitivamente e a partir dos nossos valores – mas sim, porque isso é um
problema, para quem e como se manifesta. Aí não basta recorrer a Marx e
descrever o capitalismo. Precisamos de dados empíricos. Mas reparem numa
coisa muito curiosa: precisamos desses dados empíricos para podermos
formular a pergunta e, depois, o problema! É louco, mas é isso mesmo.
Todo o cuidado metodológico é pouco, muito embora, conforme já disse,
quem acha que os valores sejam suficientes não considere esta maçada toda
necessária.
Vamos a isso, então. Temos que saber como está estruturada a EDM.
Quem recebe energia? Em que condições? Que tipos de problemas são
enfrentados pela EDM na disponibilização dessa energia? Quem é mais
afectado por esses problemas e em que medida? Que diferenças regionais e
sociais existem na disponibilização da energia? Para que fins é consumida a
energia? Até que ponto a interrupção do seu fornecimento é sentida como
problema e em que circunstâncias? Por quem? Como reagem as pessoas a
problemas no fornecimento? Como é que a EDM faz o controlo dos seus
serviços? Quem o faz? Como reage às preocupações dos seus clientes? Que
serviços disponibiliza? Quais são os níveis de procura dos seus serviços?
É evidente, como terão reparado, que nem todo o estudo empírico precisa
de recolher este tipo de informação. Indico-a aqui para apenas chamar a
atenção do leitor para o facto de que ainda é mínima a nossa tradição de
pesquisa pelo que não dispomos de estudos que nos poderiam proporcionar
muita da informação que precisamos para começarmos a tentar formular os
problemas. Não me parece sensato enfrentar este trabalho sem esta
informação toda como pano de fundo.

118
Do outro lado da equação precisamos também de muita informação. Que
outros tipos de aplicação existem para os produtos e recursos da EDM? Em
que actividades e contextos são utilizados? Por quem? Qual é a distribuição
regional e social desse uso? É possível estabelecer correlações entre níveis
de problemas com a população (roubos de cabos, ligações clandestinas) e
nível de organização da EDM local, eficiência da polícia e autoridades
locais? Quais são as características socioeconómicas dos que são apanhados
(se o forem) a roubar cabos eléctricos e fazer ligações clandestinas? Qual
tem sido a reacção da EDM e das autoridades locais? Em que medida é que o
roubo e a ligação clandestina beneficiam ou prejudicam os demais utentes
dos serviços da EDM? Como é que esses outros utentes sentem isso? Que
mecanismos existem para eles reclamarem os seus direitos de consumidores
junto da EDM?
Aqui também, como podem ver, estou a exigir muito mais do que é
necessário para um estudo. A intenção, contudo, é de continuar a chamar a
vossa atenção para a importância de partir de informação sólida para a
formulação de problemáticas de pesquisa. Esta informação ainda não é o
estudo. Esta informação é a base necessária para formularmos uma pergunta
de pesquisa que nos permita ter uma ideia do problema que queremos ajudar
a resolver. Esta informação vai nos permitir saber o que significa dizer que o
problema da EDM é o roubo de cabos eléctricos e ligações clandestinas.
Problema em que sentido?

E depois?

O problema que quero abordar agora tem a ver com a estabilidade da


explicação que damos de um determinado fenómeno. A ideia central de
explicação na ciência positivista é de que procuramos formular leis. Essas
leis é que nos permitem, então, arrumar as nossas observações
analiticamente. O estudo da Oficina de Sociologia dirigido por Carlos Serra
sobre os linchamentos, por exemplo, ao concluir que este fenómeno
manifesta a privatização da justiça no País, sugere uma lei. A lei sugerida é

119
de que quando o sistema público de justiça não funciona, a justiça é
privatizada. Foi partindo deste entendimento dos resultados dessa pesquisa
que chamei atenção, em artigo no jornal Notícias, para a dificuldade de fazer
uso prático desse resultado. A minha chamada de atenção era, na verdade,
uma crítica à inconclusão do estudo, mas também um convite ao debate
metodológico que é tão necessário ao fomento das ciências sociais no País.
A minha chamada de atenção não quer dizer que os resultados de uma
pesquisa tenham que ser necessariamente úteis do ponto de vista prático. Ou
que o estudo em questão não tenha nenhuma utilidade. Não obstante, a
dificuldade óbvia de tornar resultados da pesquisa úteis para a prática está
muito ligada à própria inconclusão de um estudo. Se estou correcto na minha
interpretação da conclusão desse estudo sobre os linchamentos,
nomeadamente na ideia de que ela deriva de uma lei implícita, a saber que
sempre que o sistema público de justiça não funcionar, as pessoas irão optar
pela sua privatização, então colocaria o problema da estabilidade dessa
explicação. Sabemos que o sistema público de justiça em Moçambique não
funciona a contento. Estamos todos envolvidos em linchamentos em
consequência disso? Existem linchamentos por todo o lado? É claro que não,
nem é isso que os investigadores estão a dizer, tanto mais que chamam
atenção para a vulnerabilidade particular das pessoas afectadas/envolvidas
nisso. O que eles, na verdade, estão a dizer é que uma das reacções à
fragilidade do sistema público de justiça vai ser a privatização da justiça por
meio de linchamentos. Ou seja, a explicação, para ser explicação,
circunscreve o seu próprio âmbito de aplicação. A questão, contudo, é de
saber até onde esse âmbito deve ser circunscrito sem que a própria
explicação se torne instável.
Vou começar de baixo. Mas repito: não há magia em ciências sociais, há
apenas a reflexão metodológica que pode ser aceite ou rejeitada, plausível ou
implausível. Então, será que o rigor da explicação nos obriga a conhecer
cada caso de linchamento? Acho que não, muito embora este trabalho
etnográfico seja crucial para a formulação da pergunta de pesquisa. Parece-
me evidente que este trabalho, no caso do estudo em questão, não foi feito,
120
com a agravante da infeliz, mas justificada, escolha de funcionários da UEM
como informantes19. Do ponto de vista estritamente metodológico não é,
contudo, imperioso saber com todo o detalhe possível quem lincha, quem é
linchado, onde e quando se lincha porque essa informação não vai alterar
nada nas condições estruturais enunciadas pela lei – se a justiça pública não
funcionar, haverá privatização. O que explica a ocorrência do fenómeno é
este factor estrutural, razão pela qual considero o resultado desta pesquisa
legítimo, ainda que inconclusivo. Se o estudo mais etnográfico constata, por
exemplo, que a maioria dos linchamentos ocorre às 14 horas junto de
mercados, isso não vai ajudar o Ministério do Interior significativamente,
pois se aumentar a vigilância nesses locais a essas horas, os linchamentos
vão simplesmente ocorrer noutros lugares, a outras horas, pois eles não
resultam da falta de vigilância, mas sim das condições estruturais enunciadas
pela lei. Começando de baixo, portanto, chegamos à conclusão de que o
detalhe empírico torna a explicação instável pelo que precisamos de um nível
de generalidade mais seguro.
Quando subimos na escala de explicação, porém, constatamos o que já
vimos aqui, nomeadamente que o linchamento não é a única resposta às
condições estruturais por nós enunciadas. Há pessoas que denunciam os
suspeitos de crime, falam com eles ou com suas famílias, etc. Ou seja, a lei
que enunciamos não é ainda a explicação do nosso fenómeno. A lei é muito
mais geral, isto é, ela diz respeito a uma vasta gama de casos entre os quais
se encontram os linchamentos. Entre os linchamentos e a lei enunciada
precisamos ainda de mais informação para podermos formular uma regra de
inferência com potencial prático. Qual é essa informação e que carácter é que
a regra de inferência pode assumir? É este o problema que enfrentamos num
possível estudo sobre o roubo de cabos eléctricos e ligações clandestinas: de
que maneira podemos passar da constatação da imoralidade (nossa

19
O estudo em causa (Serra 2008) baseou-se em depoimentos de funcionários da UEM que
residem em bairros onde se verificam linchamentos.

121
pergunta) ou da injustiça (respostas deles) para a compreensão do
fenómeno roubo de cabos eléctricos ou ligações clandestinas?

O problema dos roubos

Analisar sociologicamente não é desculpar, nem responsabilizar. Analisar


sociologicamente é tornar cada vez mais precisas as afirmações que fazemos
sobre a realidade.

Caixa 5.3: Falseabilidade


O conceito de falseabilidade é do âmbito da filosofia da ciência. Foi introduzido pelo filósofo
austríaco Karl Popper na primeira metade do século passado na discussão sobre a metodologia da
ciência. Segundo Popper, o que caracteriza a actividade científica não é simplesmente a produção do
conhecimento. É, acima de tudo, o acto de colocar as nossas teorias à prova. Se elas sobreviverem, tudo
bem. Se não sobreviverem, tanto melhor, devem ser deitadas fora. Ele chamou a isto de “falseabilidade”.
Isto é, o trabalho científico consiste em procurar mostrar que a teoria que temos é falsa. O exemplo que
ele deu foi do cisne. Durante muito tempo, acreditou-se que os cisnes fossem só brancos. Falsificar esta
teoria significa procurar encontrar um cisne de uma outra cor. Este foi, por exemplo, o caso quando se
descobriram cisnes negros na Austrália.
A ideia da falseabilidade, que não é de todo consensual na filosofia da ciência (mas isso não importa
aqui), chama atenção para uma particularidade muito importante da actividade científica. Ela não existe
para nos ajudar a protegermos as nossas crenças. Ela existe para nos ajudar a formular melhores
pensamentos sobre os fenómenos. Não é defendendo um palpite qualquer que a gente avança. É
sujeitando esse palpite ao teste que podemos avançar. Na nossa esfera pública, por exemplo, nota-se com
muita frequência que pessoas entram no debate não para aprimorar o que pensam ou pensam que sabem,
mas sim para defender. Se alguém diz, por exemplo, que o país não avança por causa da corrupção ao
invés de quem diz se ver na obrigação de submeter esse palpite (é mesmo um palpite) ao teste da
falseabilidade, prefere fazer tudo para mostrar que é verdade, por exemplo, acumulando exemplo atrás de
exemplo do lado negativo da corrupção.
Os psicólogos chamam a isto de viés de confirmação. O que querem dizer é que a pessoa procura
apenas por informação que confirma aquilo que sabe. Por exemplo, alguém pode dizer que as pessoas
conduzem mal em Xai-Xai. Para provar isso ele documenta minuciosamente todos os casos de má
condução que ocorrem nessa cidade. Não olha para os casos de boa condução para os relacionar com os
outros e ver o que resulta no cômputo geral.

O meu palpite em relação aos cabos eléctricos e às ligações clandestinas


coloca a EDM no centro do problema. O que é capaz de explicar a relação
entre a “imoralidade” ou “injustiças”, por um lado, e “roubos/ligações
clandestinas” ou “resistência”, por outro, é a relação entre a EDM como uma
empresa que disponibiliza serviços – e que, portanto, se articula com os seus
clientes por via de direitos, obrigações e deveres – e os seus clientes – que,
portanto, dependendo do seu nível de satisfação reagem ao serviço prestado.

122
Acho que seria interessante, partindo de tudo quanto sabemos sobre as
imperfeições estruturais da nossa sociedade, olhar muito especificamente
para esta relação perguntando pelo caminho o que uma maior identificação
com a empresa pode produzir, o que um melhor serviço pode significar
mesmo para aqueles que não são clientes, enfim, como através de bons níveis
de organização interna a EDM se pode inserir melhor nos meios sociais onde
está presente. São apenas palpites que até podem conduzir a becos sem saída,
quem sabe, mas o importante é entrar por esses becos. Algo me diz que a
EDM está a optar pelo mais fácil que consiste em procurar pelo problema
longe de si.
Não produzir resultados práticos em ciências sociais não é o problema.
Um estudo que vai dar num beco sem saída tem também a sua utilidade
prática se estiver claro porque falhou. O que tento transmitir aqui é
justamente isso: só emulando a transparência na nossa investigação, evitando
conclusões dramáticas, mas de pouca utilidade prática, é que podemos
realmente contribuir para perceber os problemas da nossa sociedade
ajudando na sua melhor formulação. A ciência só pode avançar se estivermos
preparados a nos enganarmos. A noção de falseabilidade defendida por
Popper diz exactamente isso.

123
Conclusão
A sociologia é Nossa Amiga

124
125
O que as ciências sociais não sabem

Este subtítulo é um bocado pomposo, apesar de simples. Na verdade,


refiro-me ao que eu não sei, não ao que as ciências sociais não sabem. Mas é
um título relevante no contexto duma reflexão sobre a relevância das
ciências sociais, sobretudo no que diz respeito à explicação, seu papel e
função nas ciências sociais. A explicação mais simples que podemos ter para
alguma coisa é dizer que ela não faz sentido. Melhor ainda, temos que saber
o que queremos dizer com essa explicação: o que significa dizer que uma
coisa não faz sentido? Aí está a diferença entre as ciências sociais e o
“resto”. Nós vivemos numa sociedade que tem uma necessidade grande de
explicar as coisas. Pensamos que o que existe tem que ter explicação. Pior
ainda, imaginamos que um cientista social tem que ser capaz de explicar
tudo e que fica mal ser convidado à televisão para ir dizer que não temos
explicação para um determinado fenómeno.
Isto parece-me problemático e é por isso que gostaria de me debruçar
sobre o assunto neste derradeiro capítulo, mais para mostrar até que ponto a
sociologia é, no fundo, nossa amiga. Há tanta coisa que gostaríamos de
saber. Eu, por exemplo, gostaria de saber o que aconteceria se toda a gente
com autoclismo no mundo o puxasse no mesmíssimo momento. Acabava a
água? Ouvia-se em todo o mundo? E que factor estaria por detrás desta ideia
ou necessidade simultânea de fazer isso? Gostaria de explicar esse
fenómeno, mas não sei como, por isso até nem me preocupo. A minha vida
não perde qualidade por causa dessa impossibilidade. Pensem na nossa
própria sociedade e na sua tendência de explicar tudo e imaginem o mal que
fazemos a nós próprios. Na tradição cultural que melhor conheço,
nomeadamente a do Sul do país, há um tipo de estórias infantis que procura
satisfazer essa curiosidade. E fá-lo da forma mais pedagógica possível, ainda
que problemática.

126
Estórias-porquê

Por exemplo, existem várias estórias que eu chamo de “estórias-porquê”.


Porque é que há noite e dia? Porque é que as mulheres – bom, a maior parte!
– não têm barba? Porque é que o gato e o rato não se dão? Deixem-me
contar-vos esta última, pois é relevante para os meus propósitos de hoje.
Dizem que em tempos que já lá vão o gato e o rato eram amigos
inseparáveis. Faziam praticamente tudo juntos. Um dia, o rato convidou o
gato a atravessarem o rio para a outra margem porque ele queria visitar uma
amiga. O gato disse que não podia porque tinha medo da água. O rato insistiu
e até chegou a questionar a amizade do gato. Aí o gato decidiu arriscar.
Então, o rato fez uma canoa a partir de mandioca (fez um buraco para se
sentarem) e os dois lançaram-se à água. Antes mesmo de chegarem ao meio
do percurso, o rato disse ao gato que estava com fome e que por isso ia
comer um bocado da própria embarcação. O gato, com medo das
consequências, disse que não era boa ideia, mas o rato insistiu e disse que
não haveria problemas. E assim fez. Já no meio o rato voltou a dizer que
continuava com fome e que ficava mal ir ter com a namorada com o
estômago a fazer barulho. O gato continuou a dizer que não era boa ideia. O
rato não ligou; comeu até furar a embarcação. Começou a entrar água.
Começaram a afundar-se. O rato, que sabe nadar, saltou e nadou para os
braços (!) da sua querida. O gato bebeu uns bons goles, mas por sorte,
pescadores que andavam ali perto salvaram-no. Desde esse dia o gato e o
rato são inimigos. Ou melhor, nesse dia acabou a sua amizade. Quando o
gato apanha o rato, como vocês já devem ter reparado, ataca-o, e põe-se a
brincar com ele durante muito tempo. Na verdade, aquilo não é brincar, nós é
que estamos a ver mal. O gato está a interrogar o rato, a perguntar-lhe porque
fez aquilo...
E desta maneira ficamos com uma explicação coerente da hostilidade
entre gato e rato. Mas é uma boa explicação? É uma explicação? Não é. É
simplesmente a satisfação desta nossa tendência supersticiosa de explicar
tudo porque tudo deve ter explicação confortante. Não sabemos viver com a

127
incerteza ao contrário da ciência que pode fazer isso. A ciência sabe viver
com a incerteza porque sabe distinguir uma má explicação de uma boa
explicação. Lembram-se da célebre frase de Sócrates, o filósofo grego? Eu
só sei que nada sei! Muita gente pensa que esta frase é uma manifestação de
modéstia. Não é. O que Sócrates está a dizer é que “saber que não sei”
significa saber o que tem de saber para poder saber.
Isto é importante. Alguém dizia que uma boa parte de teorias é rejeitada
não porque elas não se tenham confirmado em testes experimentais, mas
porque contêm más explicações. Há diferença entre prever alguma coisa e
explicar essa coisa. Portanto, para voltar ao gato e ao rato, a ideia de que a
amizade traída explica a hostilidade permite-nos dar sentido ao
comportamento empírico que observamos, mas não explica nada. Insisto
nisto porque é muito característico da nossa esfera pública. Temos muitos
analistas que estão constantemente a dizer “eu disse, não disse?” quando as
coisas, por um acaso qualquer, são como eles, numa das suas inúmeras
previsões, disseram que seriam. Aqui só vos digo: felizes são os que só
precisam de acertar uma vez em 50 previsões; infelizes somos nós que nos
enganamos uma vez em 100 e ficamos mal aos olhos do público!
Acho ser um dever de humildade reflectir sobre estas coisas como forma
de contribuirmos para a melhoria da qualidade do debate na esfera pública. O
direito de sermos ouvido não é o mesmo que o direito que os outros nos
tomem a sério. Não é pelo simples facto de sermos cientistas que havemos de
falar a verdade. Não fica mal reconhecermos que não sabemos.
Vou recapitular alguns aspectos tratados neste livro com uma pequena
reflexão sobre os protestos que ocorreram no dia em torno da subida do
preço do pão e do combustível em Maputo. No processo, quero abordar
alguns tipos de explicação que aprendi da metodologia das ciências sociais.
Vou articular esses tipos com a pergunta “porquê” para sugerir o que
devemos saber antes de podermos dizer que temos uma “explicação”. O
sentido de “porquê” varia e coloca-nos, nessa variação, desafios diferentes.
Noto, no caso específico do dia 5 de Fevereiro, que existe pouca

128
sensibilidade para essa variação, o que tem contribuído grandemente para
uma certa perplexidade na abordagem desse fenómeno.
Os tipos de explicação que vou abordar são os seguintes: dedutiva,
teológica ou funcionalista, genética e indutiva.

Porquê, porquê, porquê, porquê?

As explicações que temos ouvido e lido sobre o 5 de Fevereiro de 2008


levantam problemas relacionados com duas coisas muito importantes,
nomeadamente com os conceitos e com a metodologia. O conceito refere-se
à descrição da realidade, isto é, à pergunta de saber o que aconteceu. Com
ele damos visibilidade à realidade. O conceito, na verdade, é o nosso princi-
pal instrumento de trabalho. Quanto mais claro for, melhor apreenderemos a
realidade. Ligada ao conceito está a questão da metodologia, naturalmente.
Aqui a questão é de saber como sabemos que o que aconteceu realmente
aconteceu. Reparem numa coisa muito curiosa: a designação que fazemos de
um fenómeno já pode ser, em si, uma explicação. Que palavras foram usadas
para descrever o 5 de Fevereiro? Manifestações, revolta, sismo, protesto,
desordem, rebentamento da caldeira, ausência de outras formas de partici-
pação, etc. Porque é que digo que a designação em si já pode ser uma expli-
cação? É porque se eu digo que o que aconteceu no dia 5 de Fevereiro foi um
protesto estou, com efeito, a dizer que pessoas estavam a mostrar a sua opo-
sição a alguma coisa de interesse público. Portanto, os conceitos que usamos
não são inocentes e prestar atenção a isso é fundamental para a higiene do
debate. Reparem que digo sempre “5 de Fevereiro” e não “manifestações” ou
coisa parecida. É pelo medo de ser comprometido pelas palavras que uso!
Com estes reparos em mente podemos, então, passar para os tipos já refe-
ridos. Quando explicamos – ou tentamos explicar – estamos basicamente a
fazer um relato (descrição) do mundo. Tenho em mim que o relato não só
descreve como também estrutura o mundo. O nosso relato procura dar coe-
rência ao mundo e fá-lo estruturando-o segundo as nossas próprias catego-
rias. O que vemos é muitas vezes o que podemos ver, não necessariamente o
que é.
129
dedutivo
O primeiro tipo de explicação é o dedutivo. Isto vem da lógica, cujo
exemplo mais simples é o “modus ponens” que todos nós conhecemos.
Temos uma conclusão que se apoia necessariamente nas premissas. As pre-
missas não podem estar certas e a conclusão errada. Assim, só para refrescar
a memória, podíamos dizer que todos os estudantes e docentes da Universi-
dade Fictícia da Pérola do Índico são inteligentes. Isso é uma premissa. A
segunda premissa podia ser que o José é estudante dessa universidade. A
conclusão deve ser, por isso, que o José é inteligente. Nesta ordem de ideias,
há um modo de explicação que assenta neste procedimento e que consiste em
clarificar conceitos e juntar factos que estão em linha com esses conceitos.
Se eu definisse o conceito “manifestação” da seguinte maneira: é um
protesto popular contra alguma coisa, de preferência, contra o governo, o
significado que a pergunta “porque houve manifestações no dia 5 de Feve-
reiro?” não seria de querer saber o que levou as pessoas a se manifestarem. A
pergunta quer saber o que nos leva a dizermos que o que aconteceu nesse
dia foram manifestações. Portanto, ao responder a esta pergunta estou a pro-
porcionar razões que justificam o emprego do conceito “manifestação”.
Quais são as suas propriedades? Que verdades necessárias estão aí encerra-
das e sem as quais não faria sentido utilizar o conceito “manifestação”? E
isso obriga-me a fazer mais coisas. Obriga-me, por exemplo, a ir para além
da constatação segundo a qual pessoas teriam descido à rua e dizer porque
essas pessoas, que pessoas, porque essas pessoas são representativas da von-
tade popular, etc.
Uma pergunta dedutiva só nos proporciona uma explicação quando somos
capazes de dizer porque é legítimo utilizar determinado conceito, porque o
conjunto de fenómenos que associamos a esse conceito revelam a existência
empírica desse fenómeno e, acima de tudo, que condições objectivas devem
existir na nossa sociedade para que esses fenómenos sejam possíveis. Posto
isto, só posso perguntar se vocês se dariam por satisfeitos com algumas das
“explicações” que andam por aí.

130
funcionalista
O tipo de explicação funcionalista já é algo diferente. Aqui não é o con-
ceito em si que interessa, mas sim como nós enquadramos certos fenómenos
numa determinada visão das coisas que temos. Cada um de nós opera com
visões do mundo. É assim que vemos o mundo. Vamos lá, para algumas pes-
soas Moçambique é um país de injustiça social. Quando alguém pergunta
“porque houve manifestações no dia 5 de Fevereiro?” a pergunta é entendida
como um desafio para enquadrar esse acontecimento nessa visão do mundo.
Responder à pergunta significa, portanto, fazer esse enquadramento. Muitos
fizeram isso, na verdade. Disseram que como nós vivemos num país com um
governo indiferente e injusto as manifestações foram um acontecimento que
revelava o fim da paciência do povo, ou coisa parecida.
Essas pessoas não estavam a explicar o 5 de Fevereiro. Estavam a descre-
ver a sua visão do mundo. Independentemente de toda a coerência que o
acontecimento possa ter com a sua visão do mundo, as pessoas podem ter
feito o que fizeram naquele dia movidos por outras razões. Por exemplo,
aproveitar-se da situação; criar confusão; etc. A este propósito, acho interes-
sante o que Mia Couto é citado como tendo dito. Ele disse que as manifesta-
ções só terão falhado se não houver mudanças. Vemos aqui um exemplo
claro de uma abordagem do assunto que tenta conciliar o acontecido com
uma certa visão do mundo. E, por favor, não quero com isto dizer que as
pessoas estariam enganadas ou que não seria legítimo fazer isto. Estou ape-
nas a dizer que temos que estar cientes do que está a acontecer nesse
momento de “explicação”.
Devemos, por exemplo, perguntar a quem nos proporciona este tipo de
explicação que ideia de sociedade ele tem e como é que ele enquadra o que
aconteceu nessa ideia de sociedade. Devemos perguntar o que ele diz sobre
as motivações e razões das pessoas que se manifestaram e, naturalmente, é
imperioso sabermos que ideia é que a pessoa que nos explica tem do objec-
tivo das manifestações. Como podem ver, neste caso também não é fácil
dizermos que temos uma explicação.

131
genético
Faltam ainda dois tipos. Há o tipo genético que me parece um dos mais
simples. A ideia aqui é de mostrar que um determinado acontecimento faz
parte de uma longa cadeia de coisas geneticamente ligadas. Alguns dos nos-
sos analistas avançaram, por exemplo, com a ideia de que estava a rebentar a
caldeira, isto é houve um progressivo deterioramento das condições de vida
que teria conduzido ao 5 de Fevereiro. Mais uma vez enfatizo para o vosso
benefício que o desafio não é de dizer que quem diz isso não está bem de
cabeça. É bem possível que esteja. O desafio, em minha opinião, consiste em
interpelar criticamente essa pessoa chamando a sua atenção, por exemplo, ao
facto de que no dia 5 de Fevereiro houve duas coisas, no mínimo. Houve
manifestação e houve manifestação violenta. O deterioramento das condi-
ções de vida pode explicar a manifestação. Mas o que explica a violência
dessa manifestação? Tenho reparado que ninguém, tanto quanto sei, tem
levantado esse problema.
Portanto, perante uma explicação de tipo genético devemos perguntar
como é que se pensa que se chegou a este ponto, porque a coisa assumiu o
carácter que assumiu, porque a coisa aconteceu onde aconteceu, quando
aconteceu, como aconteceu e nos moldes em que aconteceu. É muita coisa
que é preciso tomar em consideração e vocês vão compreender, tal como eu
compreendo, que alguns dos nossos analistas – na pressa de emitir opinião na
televisão e em blogues na internet – não têm tempo de reflectir.

indutivo
Finalmente, devo ainda abordar o tipo indutivo. Aqui, como o próprio
nome diz, estamos no reino da especulação. Trata-se de especulação infor-
mada, todavia. Não sabemos ao certo, mas achamos que uma coisa se explica
assim. Quando perguntamos “porque houve manifestações no dia 5 de Feve-
reiro?” estamos, na realidade, a perguntar que factores se combinam para
produzir esta situação bastante específica. Isto é, estamos interessados em
regularidades estatísticas que nos mostram que quando certas circunstâncias
se conjugam algo de uma determinada natureza acontece. Ora, da história

132
sabemos que distúrbios populares são coisa normalíssima. Há um grande
historiador britânico, E.P. Thompson (2008), que ficou famoso pelos seus
trabalhos sobre as revoltas do pão na Inglaterra do século XVII. Ele mostrou
que essas revoltas estavam ligadas à negociação dos termos em que o sistema
capitalista devia funcionar. E notou uma coisa muito interessante para a dis-
cussão que fazemos do 5 de Fevereiro no nosso país e que pode deitar por
terra algumas das explicações que andam por aí. Ele mostrou, de facto, que
os que protestam não são os que não têm nada. Os que protestam são sempre
os que têm alguma coisa a perder!
Portanto, quando alguém aparece a dizer que os pobres de Maputo final-
mente se ergueram, pode não estar a perceber as coisas lá muito bem. Como
é que associamos a subida do preço do pão, combustível, chapas, governo
indiferente e precariedade – estas são as circunstâncias que podemos ler por
aí – ao que aconteceu nesse dia? Porque consideramos estas circunstâncias
relevantes para a explicação do 5 de Fevereiro? Só depois de esclarecermos
isto é que podemos ter a certeza de que temos uma explicação indutiva do
fenómeno. É nesta base que devemos interpelar quem tenta nos proporcionar
uma explicação.
Aqui estão, então, os quatro tipos.
Tentei mostrar que não é fácil explicar seja o que for. Por causa disso
mesmo, não fica mal não ter uma explicação. É muito trabalho e quem tem
sensibilidade para isso vai ser mais comedido. O que nos distingue a nós
como académicos e intelectuais é justamente a modéstia nos nossos pronun-
ciamentos públicos. O que motiva o génio, alguém disse isto uma vez, e o
inspira no seu trabalho, não são as novas ideias. É, sim, a sua obsessão com a
ideia de que o que já foi dito ainda não é suficiente.
Gostaria de incutir esta postura aos que se iniciam na ciência, sobretudo
nas ciências sociais. É possível viver com a incerteza; basta ganharmos a
convicção de que um dia teremos explicações muito simples para as coisas
que nos preocupam.
Este não é um livro de teologia, mas pode ser útil recorrer a Tomás de
Aquino. Ele disse que para aquele que tem fé não é necessária nenhuma
133
explicação, enquanto para o que não tem fé não é possível nenhuma explica-
ção. Parece-me uma visão radical das coisas. Precisamos de encontrar um
meio-termo. O meio-termo é a curiosidade, por um lado, mas também, a
aversão e hostilidade, por outro lado, às fórmulas simples, por muito plausí-
veis que nos pareçam.
Se calhar, os nossos avós chegaram à conclusão de que o acidente no rio
estava na origem da inimizade entre o gato e o rato por terem visto o gato a
“brincar” com o rato depois de o ter morto. Se calhar, quem pode saber isso?
Se calhar não era preciso forçar assim tanto a imaginação. Se calhar o gato
gosta da carne do rato porque o rato é o único animal de porte considerável
ao seu alcance. Se calhar o gato “brinca” com o rato não tanto porque quer
saber porque é que o rato roeu a canoa, mas sim porque a temperatura do rato
morto precisa de baixar para não criar problemas digestivos ao gato...

Conclusão

Espero que este livro cumpra com o seu objectivo de estimular reflexões
sobre o país baseadas na distância crítica. É bem possível que a minha insis-
tência numa atitude crítica de princípio na abordagem de seja qual for o tema
leve algumas pessoas ao desespero, ou mesmo à dúvida sobre se com o tipo
de sociologia que privilegio se pode construir qualquer país que seja. Não
tenho respostas para muitas perguntas, mas para essa sobre a utilidade dessa
sociologia tenho: de facto, quem esperar por ela para construir um país vai
esperar, esperar e... esperar. A sociologia não produz o tipo de conhecimento
susceptível de construir um país nos moldes imaginados por aqueles que
acham que o útil é só aquilo que constrói (visivelmente). A sociologia, na
realidade, não serve para muita coisa.
É uma maneira de estar no mundo. É um ponto de vista que se desdobra
em vários, curioso, de olhos abertos, sempre à procura de novas maneiras de
apreender o mundo. É uma maneira de estar no mundo que nos devolve à
infância dando-nos os olhos das crianças para redescobrirmos as coisas, mas
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também equipando-nos com alguns instrumentos que nos permitem interro-
gar o nosso próprio olhar. A sociologia é uma ciência narcisa: está muito
ocupada consigo própria para se meter com as coisas da vida. É um acto de
introspecção sobre as razões que temos para descrevermos o mundo da
forma como o descrevemos. E a pergunta é sempre de saber não só se o
mundo que descrevemos corresponde ao que vemos, mas também como
vemos, de onde vem a certeza que temos de que vemos e de que o mundo
que descrevemos realmente existe. Portanto, a sociologia é teoria de conhe-
cimento, mas também metodologia.
A sociologia é a aventura do conhecimento. Ela permite-nos não só
apreendermos o mundo, mas também saber como o apreendemos e, através
de interpelações críticas feitas pelos outros, revermos a nossa maneira de
apreender, aperfeiçoar posturas, posições, perspectivas e ângulos. A sociolo-
gia é uma longa conversa que só tem início, mas não tem fim. Um assunto
conduz a outro. Cada interpelação, cada opinião, cada ponto de vista repre-
sentam atalhos irresistíveis pelos quais descemos, e caminhamos, sem a cer-
teza de um dia voltarmos à estrada principal. Por vezes levam-nos a outras
estradas principais. A sociologia é um labirinto cheio de musas a assobiarem.
Ela é a perdição.
A sociologia é nossa amiga. Quem se entrega a ela aprende. Aprende com
os que lhe dão palmadinhas nas costas. Aprende com os que divergem.
Aprende com os que dele querem aprender. Aprende com os que consigo se
zangam e lançam impropérios. Aprende muito com todos, sem excepção. A
sociologia ensina que a interpelação crítica é o seu modus operandi. É pre-
ciso usar a interpelação ao país e aos outros como um momento de aprendi-
zagem. O desafio é esse. O desafio não consiste em dizer como o país é,
como a política deve ser, como os outros devem ser, enfim, como o mundo
deve ser. Não. O desafio consiste em sempre perguntar o que nós próprios
podemos aprender a partir da interpelação que fazemos. O sentido crítico
nasce aí mesmo. E uma vez nascido, não o devemos deixar morrer!
Quem assim proceder estará a entregar-se à aventura de pensar como um

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