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RESUMO
Este artigo traz algumas contribuições da Antropologia, em especial da antropologia econômica e
do consumo para o debate sobre o funcionamento da vida e do pensamento econômico. Há a
permanência de elementos tradicionais e sua mixagem com novos elementos, modificando as
modernas sociedades industriais ou pós-industriais, objeto principal de pesquisas em economia. Daí
a necessidade de se construir uma “etnoeconomia” do consumo como apontamento de novas
alternativas de compreensão no mundo dos bens e de sua circulação. Há uma fecunda interação
entre antropologia e economia que precisa ser melhor explorada.
Com uma breve estória, contada milhares de vezes, com muitas variações, inicio este artigo.
Pretendo traçar algumas contribuições da antropologia na relação com a economia, procurando
estabelecer perspectivas dialógicas em algumas temáticas, entre as quais “etnoeconomia” e
consumo. Ei-la:
Um pescador volta para casa em seu pequeno barco. Encontra um bem sucedido
executivo estrangeiro de férias em seu país. O executivo pergunta por que ele
voltou tão cedo. Este responde que poderia ficar mais tempo no mar, mas já
pescou o suficiente para cuidar da família. O executivo indaga: “E o que faz com
todo tempo que você tem?” O pescador diz: “Brinco com meus filhos. Todos tiram
uma sesta quando o dia fica quente. À noite jantamos juntos. Depois me reúno
com meus amigos e tocamos músicas”. O executivo o interrompe: “Olhe, tenho
pós-doutorado em Gestão e estudo esses assuntos. Quero ajudá-lo. Assim
recomendo que você fique pescando mais tempo todo dia. Você ganha mais e logo
poderá comprar um barco e uma rede maiores. Com mais peixes poderá comprar
um barco maior ainda.” O pescador pergunta: “Para que?”. Diz o executivo “Ora!
Depois de vender peixes para um intermediário, poderá negociá-los diretamente
com a fábrica e até mesmo abrir sua fábrica. Poderá sair de sua aldeia, mudar-se
para a capital ou Nova York e dirigir tudo de lá. Poderá vender as ações de sua
empresa e ganhar milhões!” O pescador pergunta: “Quanto tempo levaria isso
tudo?” O executivo diz: “Uns 15 ou 25 anos”. E o pescador: “E daí?” O executivo
responde: “Daí que você poderá aposentar-se. Deixar a agitação e o barulho da
cidade grande e mudar-se para uma aldeia remota e tranqüila como esta.” O
pescador insiste: “E daí?” O executivo entusiasmado fala: “Aí você poderá ter
tempo para um pouco de pesca, brinca com seus filhos, tira uma sesta quando faz
calor, janta com a família e se reúne com os amigos para ouvir música!”.
Há um tom jocoso e irônico nessa estória. A partir de qual perspectiva, para tomar um
conceito caro ao pensamento econômico clássico, há racionalidade na decisão e nas estratégias
desses dois agentes (o pescador e o executivo)? Embora a instituição mercado estivesse sempre
presente na história humana, até o século XVI seu papel era apenas incidental na vida econômica,
pois “os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma estrutura institucional controlada e
regulada, mais que nunca, pela autoridade social.” (POLANY, 1980, p. 59).
Aqui entra o enfoque de uma antropologia e de uma sociologia da religião. A mudança na
forma como a racionalidade vai se tornar acumulação para reinvestimento na produção da atividade
mercantil e industrial, consolida-se, segundo Max Weber (1999), com a secularização da ética
protestante puritana. No conto acima, denota-se a preocupação do executivo com esta ética: tempo é
dinheiro. Mas a pretensa racionalidade do reinvestimento e do agente revela-se, a partir do fino
humor desta estória, em irracionalidade, quando essa racionalidade é vista sob outro prisma.
Por isso, segundo Polany (1980), não se compreende as economias não-ocidentais, e diria
fenômenos de consumo nas próprias economias ocidentais e outros fenômenos marginais, devido a
um equívoco simultaneamente epistemológico e ideológico que é a identificação de toda a
economia humana com a sua forma histórica de mercado.
Aqui a crítica da antropologia econômica a construção epistemológica da economia clássica
é contundente. Essa crítica, endossada por antropólogos como Shalins (1978), concentra-se no falso
e pretenso universalismo do cálculo econômico, que produziu um monopólio semântico do termo
“economia”, encobrindo a existência de outros sentidos do mesmo. Neste particular, referências
sólidas podem ser também encontradas, partindo-se do saber ecológico tradicional (de sociedades
tribais, aborígines, não-letradas ou não-pecuniárias), naquilo que, a partir dos trabalhos do
etnociencista Darrell Posey (2000), vem sendo chamado de etnoeconomia.
Mas, para muitos autores, ainda é Polany (1980) a referência maior para uma releitura da
sustentabilidade, do consumo e das relações entre economia e política. Aclamado dentro da
antropologia econômica, seu trabalho é interdisciplinar, embora seus críticos apontem, por exemplo,
a ausência de análise histórica (BRAUDEL, 1996) ou a controvérsia “formal ou substantivo” na
economia.
A questão é que as teorias da escolha racional tem sido o centro de gravidade
epistemológico da economia, e de outros setores das ciências sociais, afirmando-se que mesmo nas
economias pré-industriais houvesse um grau significativo de diferenciação e a presença de padrões
de escolha racional por parte dos seus atores.
Por outro lado, a revisão desses postulados pode feita. Para isso seria interessante reescrever
a etimologia de conceitos, como economia. Polany (1980), ao reler a filosofia clássica e os relatos
de antropólogos como Malinowski, insiste em retomar Aristóteles, quando este propõe a
diferenciação entre economia (oikonomia), que seria o aprovisionamento material-energético da
casa e da polis, e crematística, a forma mercantil de adquirir os bens. Segundo Polany (1980),
Aristóteles não definiu a economia como escassez, mas como “o conjunto das coisas passíveis de
acumulação necessárias à vida e úteis à comunidade composta pela família ou pela cidade”
(ARISTÓTELES, 1985, p. 24) e que deveriam estar a serviço da auto-suficiência comunitária. A
crematística, segundo Aritóteles (1985) inaugura um outro gênero da arte de aquisição: o mercantil,
que surgiu com a instituição do dinheiro e a expansão do comércio.
Polany (1980) é um pensador interessante que traça fronteiras entre os saberes, mas ao
mesmo tempo apaga determinadas cisões artificiais. Ao embeber-se da antropologia econômica,
nega que o sustento da humanidade suponha o problema de escassez, diferenciando dois sentidos de
“economia”: o formal e o “substantivo”. Aqui a antropologia econômica, ao estudar a forma como
as sociedades não-ocidentais produzem a vida sócio-econômica, desfaz a crença na teoria da
escassez. Enquanto que na sociedade de mercado o objetivo é o acúmulo de ganhos monetários, em
outras economias o que se busca é a reprodução material da própria vida (POLANY, 1980).
As sociedades tradicionais garantiam os meios materiais para a satisfação das necessidades
por meio de duas formas econômicas básicas: reciprocidade e redistribuição. O antropólogo Marcel
Mauss (2004) propôs que cada uma delas supõe, uma organização social com base na simetria
social (sociedades igualitárias) ou centricidade (sociedades de Estado despótico ou burocrático).
Ainda em relação à discussão da pretensa simplicidade das sociedades primitivas, Mauss
(2004) afirma a imensa complexidade de tais sistemas, lembrando as análises de Maliniwski (1989)
sobre o circuito do Kula (sistema de troca e reciprocidade), na Melanésia Ocidental, uma das mais
complexas transações comerciais conhecidas no mundo. Dentro desse arcabouço o que prevaleceria
não é a propensão do indivíduo ao comércio, mas a reciprocidade no comportamento social, uma
constatação que levou Mauss (2004) a dizer que o “homem econômico” é uma criação da sociedade
ocidental.
a etnografia permite observar, como argumenta Mauss (2004), que no tipo primitivo de lei e
economia, o traço mais importante é a obrigação da reciprocidade com respeito ao presente que se
recebe. Não é preciso que exista aqui um mercado que se auto-regule. Basta haver normas legais e
do costume, com as idéias mágicas e mitológicas desempenhando o papel de introduzir princípio no
esforço econômico e de organizá-lo sobre uma base social. O fenômeno do valor, dessa forma,
torna-se parte do fenômeno mais abrangente da cultura e só pode ser entendido como um
componente deste (SHALINS, 1978, 1992).
No entanto, e economia de mercado, como estrutura institucional e sistema de auto-
regulação, reestruturou toda sociedade ocidental e se globaliza de tal forma ponto de se perguntar se
o que ocorre hoje não seria a ocidentalização do mundo. As outras culturas são “tragadas” para
dentro desse sistema.
1. Possibilidades de leitura semântica: riqueza, valor e preço.
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