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ANTROPOLOGIA E ECONOMIA:

Contribuições à crítica a utopia de mercado e a importância cultural do consumo

Emerson José Sena da Silveira (FACSUM/FJF – FAC. MACHADO


SOBRINHO).

Antropólogo, Mestre e Doutor em Ciência da Religião pela Universidade


Federal de Juiz de Fora (UFJF). Publicou recentemente o livro Por uma
sociologia do turismo. Porto Alegre: Zouck, 2007. Pesquisa na área de
ciências sociais a interface entre a antropologia/sociologia e fenômenos como
o turismo, as religiosidades carismáticas (renovação carismática católica),
saúde (“terapias religiosas”) e outras (administração). Contato: Rua Diogo
Álvares, 34, Benfica, Juiz de Fora, CEP: 36090-320, emsena@terra.com.br
ou emerson.jsena@terra.com.br.

RESUMO
Este artigo traz algumas contribuições da Antropologia, em especial da antropologia econômica e
do consumo para o debate sobre o funcionamento da vida e do pensamento econômico. Há a
permanência de elementos tradicionais e sua mixagem com novos elementos, modificando as
modernas sociedades industriais ou pós-industriais, objeto principal de pesquisas em economia. Daí
a necessidade de se construir uma “etnoeconomia” do consumo como apontamento de novas
alternativas de compreensão no mundo dos bens e de sua circulação. Há uma fecunda interação
entre antropologia e economia que precisa ser melhor explorada.

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Economia. Etnoeconomia. Rituais de Consumo.


ANTROPOLOGIA E ECONOMIA:

Contribuições à crítica a utopia de mercado e a importância cultural do consumo

Com uma breve estória, contada milhares de vezes, com muitas variações, inicio este artigo.
Pretendo traçar algumas contribuições da antropologia na relação com a economia, procurando
estabelecer perspectivas dialógicas em algumas temáticas, entre as quais “etnoeconomia” e
consumo. Ei-la:

Um pescador volta para casa em seu pequeno barco. Encontra um bem sucedido
executivo estrangeiro de férias em seu país. O executivo pergunta por que ele
voltou tão cedo. Este responde que poderia ficar mais tempo no mar, mas já
pescou o suficiente para cuidar da família. O executivo indaga: “E o que faz com
todo tempo que você tem?” O pescador diz: “Brinco com meus filhos. Todos tiram
uma sesta quando o dia fica quente. À noite jantamos juntos. Depois me reúno
com meus amigos e tocamos músicas”. O executivo o interrompe: “Olhe, tenho
pós-doutorado em Gestão e estudo esses assuntos. Quero ajudá-lo. Assim
recomendo que você fique pescando mais tempo todo dia. Você ganha mais e logo
poderá comprar um barco e uma rede maiores. Com mais peixes poderá comprar
um barco maior ainda.” O pescador pergunta: “Para que?”. Diz o executivo “Ora!
Depois de vender peixes para um intermediário, poderá negociá-los diretamente
com a fábrica e até mesmo abrir sua fábrica. Poderá sair de sua aldeia, mudar-se
para a capital ou Nova York e dirigir tudo de lá. Poderá vender as ações de sua
empresa e ganhar milhões!” O pescador pergunta: “Quanto tempo levaria isso
tudo?” O executivo diz: “Uns 15 ou 25 anos”. E o pescador: “E daí?” O executivo
responde: “Daí que você poderá aposentar-se. Deixar a agitação e o barulho da
cidade grande e mudar-se para uma aldeia remota e tranqüila como esta.” O
pescador insiste: “E daí?” O executivo entusiasmado fala: “Aí você poderá ter
tempo para um pouco de pesca, brinca com seus filhos, tira uma sesta quando faz
calor, janta com a família e se reúne com os amigos para ouvir música!”.

Há um tom jocoso e irônico nessa estória. A partir de qual perspectiva, para tomar um
conceito caro ao pensamento econômico clássico, há racionalidade na decisão e nas estratégias
desses dois agentes (o pescador e o executivo)? Embora a instituição mercado estivesse sempre
presente na história humana, até o século XVI seu papel era apenas incidental na vida econômica,
pois “os mercados eram apenas um aspecto acessório de uma estrutura institucional controlada e
regulada, mais que nunca, pela autoridade social.” (POLANY, 1980, p. 59).
Aqui entra o enfoque de uma antropologia e de uma sociologia da religião. A mudança na
forma como a racionalidade vai se tornar acumulação para reinvestimento na produção da atividade
mercantil e industrial, consolida-se, segundo Max Weber (1999), com a secularização da ética
protestante puritana. No conto acima, denota-se a preocupação do executivo com esta ética: tempo é
dinheiro. Mas a pretensa racionalidade do reinvestimento e do agente revela-se, a partir do fino
humor desta estória, em irracionalidade, quando essa racionalidade é vista sob outro prisma.
Por isso, segundo Polany (1980), não se compreende as economias não-ocidentais, e diria
fenômenos de consumo nas próprias economias ocidentais e outros fenômenos marginais, devido a
um equívoco simultaneamente epistemológico e ideológico que é a identificação de toda a
economia humana com a sua forma histórica de mercado.
Aqui a crítica da antropologia econômica a construção epistemológica da economia clássica
é contundente. Essa crítica, endossada por antropólogos como Shalins (1978), concentra-se no falso
e pretenso universalismo do cálculo econômico, que produziu um monopólio semântico do termo
“economia”, encobrindo a existência de outros sentidos do mesmo. Neste particular, referências
sólidas podem ser também encontradas, partindo-se do saber ecológico tradicional (de sociedades
tribais, aborígines, não-letradas ou não-pecuniárias), naquilo que, a partir dos trabalhos do
etnociencista Darrell Posey (2000), vem sendo chamado de etnoeconomia.
Mas, para muitos autores, ainda é Polany (1980) a referência maior para uma releitura da
sustentabilidade, do consumo e das relações entre economia e política. Aclamado dentro da
antropologia econômica, seu trabalho é interdisciplinar, embora seus críticos apontem, por exemplo,
a ausência de análise histórica (BRAUDEL, 1996) ou a controvérsia “formal ou substantivo” na
economia.
A questão é que as teorias da escolha racional tem sido o centro de gravidade
epistemológico da economia, e de outros setores das ciências sociais, afirmando-se que mesmo nas
economias pré-industriais houvesse um grau significativo de diferenciação e a presença de padrões
de escolha racional por parte dos seus atores.
Por outro lado, a revisão desses postulados pode feita. Para isso seria interessante reescrever
a etimologia de conceitos, como economia. Polany (1980), ao reler a filosofia clássica e os relatos
de antropólogos como Malinowski, insiste em retomar Aristóteles, quando este propõe a
diferenciação entre economia (oikonomia), que seria o aprovisionamento material-energético da
casa e da polis, e crematística, a forma mercantil de adquirir os bens. Segundo Polany (1980),
Aristóteles não definiu a economia como escassez, mas como “o conjunto das coisas passíveis de
acumulação necessárias à vida e úteis à comunidade composta pela família ou pela cidade”
(ARISTÓTELES, 1985, p. 24) e que deveriam estar a serviço da auto-suficiência comunitária. A
crematística, segundo Aritóteles (1985) inaugura um outro gênero da arte de aquisição: o mercantil,
que surgiu com a instituição do dinheiro e a expansão do comércio.
Polany (1980) é um pensador interessante que traça fronteiras entre os saberes, mas ao
mesmo tempo apaga determinadas cisões artificiais. Ao embeber-se da antropologia econômica,
nega que o sustento da humanidade suponha o problema de escassez, diferenciando dois sentidos de
“economia”: o formal e o “substantivo”. Aqui a antropologia econômica, ao estudar a forma como
as sociedades não-ocidentais produzem a vida sócio-econômica, desfaz a crença na teoria da
escassez. Enquanto que na sociedade de mercado o objetivo é o acúmulo de ganhos monetários, em
outras economias o que se busca é a reprodução material da própria vida (POLANY, 1980).
As sociedades tradicionais garantiam os meios materiais para a satisfação das necessidades
por meio de duas formas econômicas básicas: reciprocidade e redistribuição. O antropólogo Marcel
Mauss (2004) propôs que cada uma delas supõe, uma organização social com base na simetria
social (sociedades igualitárias) ou centricidade (sociedades de Estado despótico ou burocrático).
Ainda em relação à discussão da pretensa simplicidade das sociedades primitivas, Mauss
(2004) afirma a imensa complexidade de tais sistemas, lembrando as análises de Maliniwski (1989)
sobre o circuito do Kula (sistema de troca e reciprocidade), na Melanésia Ocidental, uma das mais
complexas transações comerciais conhecidas no mundo. Dentro desse arcabouço o que prevaleceria
não é a propensão do indivíduo ao comércio, mas a reciprocidade no comportamento social, uma
constatação que levou Mauss (2004) a dizer que o “homem econômico” é uma criação da sociedade
ocidental.
a etnografia permite observar, como argumenta Mauss (2004), que no tipo primitivo de lei e
economia, o traço mais importante é a obrigação da reciprocidade com respeito ao presente que se
recebe. Não é preciso que exista aqui um mercado que se auto-regule. Basta haver normas legais e
do costume, com as idéias mágicas e mitológicas desempenhando o papel de introduzir princípio no
esforço econômico e de organizá-lo sobre uma base social. O fenômeno do valor, dessa forma,
torna-se parte do fenômeno mais abrangente da cultura e só pode ser entendido como um
componente deste (SHALINS, 1978, 1992).
No entanto, e economia de mercado, como estrutura institucional e sistema de auto-
regulação, reestruturou toda sociedade ocidental e se globaliza de tal forma ponto de se perguntar se
o que ocorre hoje não seria a ocidentalização do mundo. As outras culturas são “tragadas” para
dentro desse sistema.
1. Possibilidades de leitura semântica: riqueza, valor e preço.

A antropologia econômica, empreendida por antropólogos como Shalins (1978, 1992) e o


marxista Godelier (1969), critica a lei do valor, tal como colocada pela economia tradicional,
permitindo compreender as economias não mercantis, bem como os mercados inseridos no interior
das mesmas, a partir de lógica simbólica.
Pode-se constatar que até finais dos anos 1960 havia quase uma unanimidade em aceitar a
tese da existência de princípios universais da racionalidade econômica: todas as sociedades seriam
progressivamente transformadas à imagem e semelhança das ocidentais (ALVATER, 1995;
CORDEIRO, 1995).
Esse é um mito, o mito do desenvolvimento, em que se acredita que apenas em uma
sociedade altamente industrializada há a plena consecução das potencialidades humanas. O retorno
crescente da problemática relação entre economia e cultura, particularmente em sociedades híbridas
como as latino-americanas, no dizer do antropólogo mexicano Néstor Canclini (2000), tem
contribuído decisivamente para outras leituras e perspectivas mais produtivas de análise, entre elas a
questão do consumo.
No pensamento econômico, segundo Polany (1980), a noção de riqueza foi
progressivamente abandonada e substituída pelas noções de valor e preço. De modo geral essa
substituição é tida como “conquista da cientificidade”. Na economia mercantil é a “realidade” do
valor o princípio de comanda da reprodução de riquezas, criando-se, assim, uma sociedade voltada
para a acumulação dos valores de troca. Mas, lembrando Aristóteles (1985), o fenômeno do valor é
nomológico.
Há aqui uma confusão entre riqueza e valor baseada na ambigüidade entre moeda (signo da
riqueza) e riqueza (CORDEIRO, 1995). O problema é que existe um descolamento entre a lógica
financeira (regida por leis matemáticas dos juros) e a lógica da riqueza (ligada a princípios relativos
de organização do social, da capacidade técnico-energética de transformação da natureza),
originando um fenômeno de transferência de riqueza de quem a produz para quem tem títulos de
dívidas.
Assim, para Cavalcanti (1992), a riqueza cresce em função de condicionamentos
termodinâmicos e sociais, porém os títulos de crédito seguiriam uma lógica matemática. Para se
compreender bem essas lógicas, segundo Polany (1980), é necessário retomar a crítica aristotélica à
moeda.
Cordeiro (1985) afirma que se o valor é expressão da riqueza, toda ação econômica que
acrescenta valor às coisas é, por definição, criadora de riqueza. Mas, se existe produção de valores
que resultam em riquezas, elas sempre exigem algum grau de destruição de riquezas (MAUSS,
2004), uma forma trágica de efetivação do equilíbrio. O filósofo francês Bataille expressou bem
essa questão ao citar a destruição sistemática de riqueza empreendida pela sociedade maia e por
sociedades indígenas norte-americanas que praticam o festival do Potlach, uma espécie de festival
de destruição agonística da acumulação de riquezas.
Mas, numa sociedade capitalista de mercado, o valor será determinado pela escassez
(CORDEIRO, 1995). Por isso, a sociedade capitalista precisa da escassez para manter o valor
elevado. Nas análises de antropólogos marxistas como Godelier (1969, 2002), o capitalismo é um
sistema de criação de desejos e produção de necessidades, fundado-se no consumo e no desperdício,
bem como em processos de destruição planejada.
Em outras palavras, as mercadorias são produzidas para serem substituídas e repostas
quando apresentarem defeitos. Esta destruição sistemática de riquezas é intrínseca à racionalidade
econômica moderna e foi apontada por sociólogos como Veblen na teoria do consumo conspícuo.
Basta lembrar que a crise 1929, cujo estopim foi à bolsa de Nova York, foi uma crise da
abundância, e não da escassez. Esta confusão também embasa absurdos lógicos, pois leva a afirmar
que a riqueza existe tanto mais quanto se torna rara. Assim, tudo que é abundante e gratuito deixou
de ser considerado riqueza, pois riqueza é só aquilo que tem valor. Um exemplo interessante,
colocado por Cordeiro (1995) esclarece muito essa questão: o ar, apesar de útil, não possui valor
porque não é escasso, mas, a pérola, objeto escasso, quando inacessível no fundo do mar, é pura
riqueza, apesar de não ter valor. Para Cordeiro (1995), valor é uma relação composta de duas outras
relações: utilidade e escassez, consistindo o erro em tomá-lo como índice de riqueza.
Mas antropologia econômica (GUDEMAN, 2001) desmontou o dogma da escassez, axioma
central da análise econômica. A escassez é o postulado da insuficiência das coisas materiais. Os
antropólogos, analisando práticas sociais amplas (o Potlach, o Kula, entre outros) ou locais
demonstraram a não existência, por exemplo, da escassez nas sociedades ditas primitivas e
nômades. No estudo destes povos descobre-se que a escassez é definida pela relação entre meios e
fins, não sendo propriedade absoluta dos meios disponíveis.
A singularidade do sistema econômico que surgiu na Europa no século XIX (o que levou
Weber a sua famosa hipótese da relação cultural entre capitalismo e protestantismo puritano) foi
que ele se separou institucionalmente do resto da sociedade. Segundo Polanyi (1980, p. 72), na
sociedade ocidental, “ao invés da economia estar embutida nas relações sociais, são as relações
sociais que estão embutidas no sistema econômico”. O mercado era, historicamente, o lugar onde
se comprava, em pequenas quantidades, e a preços estabelecidos, os artigos de sobrevivência
(POLANY, 1980).
A transformação dos mercados locais ou mercados de vizinhança numa economia de
mercado auto-regulável (ou seja, o paraíso do credo liberal o mercado moderno, mecanismo de
oferta-demanda regulado por preços flutuantes) foi o resultado, paradoxal, da intervenção do Estado
e da expansão do comércio exterior, o qual progressivamente penetrou nos mercados locais e não da
evolução progressiva destes para os âmbitos nacional e internacional (POLANY, 1980).

2 A racionalidade econômica e o credo liberal

É intrínseca à racionalidade econômica moderna, como uma espécie de monopólio


epistemológico e moral, a desvalorização dos outros modos de vida diferentes do conduzido pela lei
do valor. No entanto, a antropologia econômica demonstrou a existência de outras racionalidades
sócio-econômicas (GUDEMAN, 2001). O que agora se procura investigar é a mixagem ou
hibridação (CANCLINI, 2000) acompanhada de tensão e conflitos, entre a racionalidade econômica
tradicional e outros modos de transações que vivem nas beiradas das sociedades, permeando
grupos, segmentos e minorais étnicas e sócio-culturais.
A doxa, socialmente construída e hegemônica, do homo economicus impede de perceber que
as próprias relações mercantis sempre coexistiram com outras relações sociais de caráter não
utilitário, sem as quais as próprias relações mercantis não poderiam existir.
Por isso, o antropólogo Bruno Latour (1999) afirma que a economia como disciplina não
descreve o mercado auto-regulado, mas antes o prescreve, executa. Isso porque parte de
pressupostos e leituras unívocas sobre as motivações e propensões dos seres humanos. A hegemonia
da definição do homo economicus foi devido àquilo que Polany chama de grande transformação, a
emancipação do econômico das regras culturais e sociais e postula: “a idéia de um mercado que se
regula a si mesmo era uma idéia puramente utópica. Uma instituição como esta não poderia existir
de forma duradoura sem aniquilar a substância humana e a natureza da sociedade, sem destruir ao
homem e sem transformar seu ecossistema em um deserto” (POLANY, 1980, p. 12).
Por outro lado, é preciso lembrar que na teoria marxista, os sistemas econômicos reais são
contingências históricas transitórias. Isso quer dizer que terminologias econômicas, como cálculo
racional e estratégia individual, são datados historicamente, e não são entidades acima do tempo e
do espaço.
Mas, na sociedade de mercado, os modelos mecânicos de desenvolvimento produzem a
ampliação contínua das necessidades (tornando todos carentes de alguma coisa), institucionalizando
a escassez (CORDEIRO, 1995).
Por isso a antropologia econômica fará uma vigorosa crítica à convergência entre Marx e os
liberais. Essa convergência é a crença da economia como infra-estrutura e no trabalho como eixo
único de organização das relações sociais. Foi esse credo, sua expansão e sua catequese, que
permitiu o desenvolvimento do capitalismo (LATOUR, 1999).
Atualmente, o debate sobre a questão das racionalidades econômicas herda o legado de
Polany (1980), mas fragmenta-se entre determinadas “tribos” epistemológicas: ecologia cultural,
etnoeconomia, economia ecológica economia-ecológica, sócio-economia, sociologia econômica,
economia institucional, bio-economia e a antropologia econômica.
Mas há uma nítida percepção de que a superação da pobreza reside no fortalecimento da
autonomia cultural-econômica das comunidades (empowerment) pobres e na melhora do uso
comunal dos comuns recursos naturais, ao contrário da proposta do paradigma econômico vigente
de atrelar a sobrevivência dos pobres ao crescimento da economia industrial (CAVALCANTI,
2002)
Essa seria a proposta da economia solidária, dos atuais Clubes de Troca (redes mutualistas
de intercâmbio e comércio local) bem como o surgimento das redes de comércio justo,
reinventando, assim, o dinheiro (e o próprio mercado) enquanto não mercadoria, de forma que o
mesmo não fique sob o domínio da lei do valor. Nesse sentido é preciso lembrar que a cultura e as
sociedades muçulmanas ainda possuem vastos mecanismos que trazem obstáculos à predominância
da lógica do cálculo e da racionalidade instrumental ao negarem, por exemplo, a legitimidade moral
e social da cobrança e imposição dos juros compostos.
O conjunto destes esforços por não mais submeter a terra, o trabalho e o dinheiro a
hegemonia da lei do valor, supõe o horizonte ontológico da sustentabilidade, visível na progressiva
importância da questão ambiental na sociedade contemporânea, bem como na luta dos movimentos
ecológicos por situar a natureza fora do domínio mercantil.
Dentro da economia-ecológica (MARTINEZ, 1998), uma importante corrente advoga a
incomensurabilidade da natureza e da vida, ou seja, os recursos naturais, por não terem sido
produzidos para o mercado (não se tratam de fluxos) requerem, para sua gestão, que seu status
econômico, com o qual são medidos, seja transformado. Isto significa que, para o economia em
geral, o processo econômico não conteria uma noção biofísica fundamental sobre a medida de
mudança qualitativa: a entropia (PRIGOGINE; STENGERS, 1984).
A natureza é um todo orgânico, enquanto o sistema econômico nas formulações da
economia é apresentado, dentro da moldura da mecânica clássica, como um mecanismo não
suscetível à entropia (PRIGOGINE; STENGERS, 1984). De modo geral, os economistas defendem
uma idéia, equivocada, (CONSTANZA, 2002) de que os princípios mais gerais da economia não
são diferentes em diferentes situações de cultura, da mesma forma como os princípios da
matemática não diferem de país para país. E é aqui, o locus em que as críticas dos antropólogos se
avolumam embasadas no trabalho etnográfico.
A resposta que o sistema econômico dá a questão da crise das relações sócio-econômicas, é
a flexibilização do trabalho, com o retrocesso dos direitos trabalhistas ou a visão de que estes são
obstáculos ao verdadeiro progresso. Nos atuais sistemas produtivos integrados homem-máquina-
organização, as contribuições de cada trabalhador perdem o valor tradicional de mensuração,
subvertem, as lógicas de produção e impulsionam novos mecanismos de consumo.

3 Etnoeconomia e consumo: inversão e reconceituação

O estudo de sociedades na periferia do capitalismo, em que sobressaem regimes de troca


fundados em uma lógica simbólica e em outras racionalidades, leva à observação de formas étnicas
e sociais locais de realizar o processo econômico. Esta tem sido uma contribuição da antropologia
econômica, que, usada em muitos casos instrumentos da análise econômica, têm aberto caminho
para a compreensão de modos alternativos de organização da vida econômica em diferentes povos.
Na antropologia econômica (GUDEMAN, 2001), procura-se entender o processo pelo qual
certos meios – que englobam parâmetros universais na experiência humana – permitem a realização
de determinados fins, como quer que estes sejam definidos. Antropólogos norte-americanos, como
Dalton (2001), ressaltam que a maior lição da antropologia econômica é apontar a fusão
indissociável entre a organização econômica e a sócio-cultural nas sociedades primitivas.
O comportamento econômico observado sob esta perspectiva, é compreendido como um
esforço de uso dos recursos tendo em vista a satisfação de certas necessidades dentro das restrições
fixadas social ou culturalmente pelos primeiros. Isso permite a sustentabilidade, em longo prazo,
segundo Cavalcanti (1993, 1992) das sociedades tribais e indígenas estudadas pela antropologia
econômica. É, nesse contexto do desafio da sustentabilidade da sociedade ocidental, que Cavalcanti
(2002) propõe a busca de uma série de referência empíricas e teóricas no domínio de saber
emergente chamado de “etnoeconomia”.
Segundo Cavalcanti (2002), a palavra “etnoeconomia” foi forjada por Darrell Posey (2000),
um etnocientista, num encontro realizado em 1996, na cidade de Recife, ao final de uma
conferência organizada sobre políticas de desenvolvimento sustentável. A suposição de Cavalcanti
(1993, 2002) parte da constatação de que é necessário o desenvolvimento de uma etnoeconomia que
enxergue de que maneira povos locais, tradicionais e indígenas conceituam as diversas relações
econômicas que têm construído, caracterizado e mantido suas sociedades.
Cavalcanti propõe um campo de estudos que procura examinar a idéia de progresso entre
outros povos, analisando as noções de riqueza, justiça e eqüidade e interpretando-se as múltiplas
manifestações de mercados, comércio, dádiva e troca. Há muita informação dispersa sobre as
categorias êmicas (ou “nativas”) utilizadas por sociedades não-ocidentais para descrever as relações
“econômicas” que estabelecem a rede de relações societais.
Para Cavalcanti (2002), a etnoeconomia deve desenvolver conceitos e analises de práticas da
forma como as sociedades se utilizam de parâmetros sócio-culturais para avaliar, calcular,
monitorar e administrar recursos humanos, naturais e imateriais. A proposta de Cavalcanti é de
encontrar uma perspectiva promotora do diálogo entre disciplinas e conduzida pela miríade de
noções e experiências dos povos locais.
Tal passo é complexo, pois o sistema de economia de mercado está englobando todos os
povos e culturas, produzindo complexas interações que ainda não foram analisados em
profundidade. O certo é que quase não existem sociedades não-ocidentais que sem influencia da
economia de mercado.
Para Cavalcanti, o saber ecológico tradicional seria uma ponte entre a economia
convencional e a etnoeconomia ou economia etno-ecológica (POSEY, 2000). Citando as análises de
Tonkinson (1991) sobre os Mardu da Austrália, Cavalcanti (2002) critica o modo como eles têm
sido caracterizados (negativamente) por não possuírem instrumentos de metal, agricultura, animais
domesticados, a roda, uma linguagem escrita, vilas, chefes, economia de mercado e outros atributos.
Com base em Tonkinson (1991), e em outros trabalhos, argumenta-se que os povos tribais
fazem à gestão ativa de seus recursos, por meio do direcionamento estratégico da ação ecológico-
econômica (controle social e manobra política) e por meio do poder do símbolo e do ritual, que
permeia a identidade desses povos.
A economia, como um subsistema ligado ao ecossistema, segundo Posey (2000), não pode
ser compreendida separadamente do tecido da vida biológica ou das tramas da cultura, mesmo que
se considere a dimensão do consumo. Nesse contexto, a etnoecologia procura descrever, conforme
afirma Cavalcanti (1992), de que forma o saber ecológico tradicional é usado para criar, administrar
e conservar paisagens culturais.
Há, entretanto, uma grande falta de diálogo entre essas esferas de pensamento e pesquisa,
constata Cavalcanti (2002), mas mesmo assim a etnoeconomia é proposta como um campo de
diálogo e investigação em busca do desenvolvimento sustentável, partindo do saber ecológico
tradicional.
Por isso, as metodologias da antropologia e da economia, para Cavalcanti e outros, devem
dialogar embora o diálogo seja árduo e, por vezes, árido. Os economistas procuram generalizações,
firmadas em cálculos matemáticos, mas cuja crença é embasada nos postulados da existência,
ontológica, de conduta individual completamente racional (ou consciente das alternativas
rejeitadas), chegando dedutivamente a relações entre fins concebidos como possíveis objetivos de
conduta, de um lado, e o ambiente técnico e social, do outro.
Ao contrário do senso-comum ocidental, a antropologia mostra que a procura do lucro não é
a força principal que alimenta as “sociedades não-ocidentais”, embora a instituição do crédito exista
e funcione como fiadora da identidade grupal (SHALINS, 1992).
Os membros dessas sociedades não fazem a troca por causa de lucros ou ganhos esperados.
Para os inúmeros povos aborígenes e indígenas, por exemplo, nota-se que qualquer comércio que
ocorra entre eles tem lugar ou como atividade ritual durante grandes encontros, ou como
intercâmbio de presentes entre clãs amigos quando grupos pequenos se congregam (GUDEMAN,
2001). Por conseguinte, o sistema econômico é função da organização social. Isto é o que, por sua
vez, define custos em termos de oportunidades perdidas.
Para os Mardu, na Austrália, por exemplo, qualquer comércio que ocorre entre eles acontece
sob duas formas: ou é uma atividade ritual durante grandes encontros ou é um intercâmbio de
presentes entre clãs amigos em cerimônias de congregação (TONKINSON, 1991). Malinowski
(1989, p. 12) assinala que, no caso de uma economia tribal, “a função econômica do chefe é criar
objetos de riqueza e acomodar provisões para uso tribal, dessa maneira tornando possível grandes
empresas tribais”. Um tipo distinto da economia surge “onde produção, troca e consumo são
socialmente organizados e regulados pelo costume, e em que um sistema especial de valores
econômicos tradicionais governa suas atividades e as esporeia para que andem” (MALINOWSKI,
1989, p. 15).
Porém, enquanto a troca de bens é um processo de formação de preço (sistema de compra e
venda), a troca de dádivas difere disso e permeia as relações sociais de forma sutil e pouco
estudada, seja nas relações de compadrio e apadrinhamento, seja no “tráfico de influência”, seja nos
padrões e estilos de consumo.
As sociedades, para se reproduzirem, devem produzir consumir, distribuir, trocar. Mas
nenhuma outra sociedade, como na ocidental, o consumo se tornou uma verdadeira trama sócio-
cultural (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004). E talvez seja o consumo, o campo onde a
etnoeconomia possa também avançar o diálogo entre as diversas abordagens antropológicas e
econômicas. Na verdade, se na dimensão das relações sociais de produção a questão da dinâmica
cultural fica subsumida, na dimensão do consumo dos bens (incluindo aí o mundo do marketing, da
mídia e outros) ela se torna proeminente.
O consumo, a partir da análise de estudos etnográficos, revela sua positividade e constância
no cotidiano das pessoas, nele desempenhando um papel central como estruturador de valores que
fabricam identidades, regulam relações sociais e traçam mapas culturais.
Há segundo Douglas e Isherwood (2004), três discursos sociais, abraçados por muitos
autores, mas que se revelam insuficientes paras da conta do fenômeno do consumo: a visão
hedonista (com a frágil equação que faz equivaler consumo a sucesso ou felicidade), a visão
moralista (a condenação, politicamente correta, do consumo) e a visão naturalista (como
necessidade biológica). Para Douglas e Isherwood (2004), a emulação, a inveja e o empenho em
competir não explicam na sua totalidade a existência e amplitude e as complexas tramas culturais
levantadas pelo consumo.
Douglas e Isherwwood (2004) constatam, ao analisar os estudos sobre comunidade e o
consumo de grupos culturais, que consumir é um complexo conjunto de rituais no qual a identidade
é tecida em torno engrenagens simbólicas. Por isso analisar a cadeia do consumo é fundamental,
desde a TV aos hábitos de consumo ou aos rituais de troca e reciprocidade, como podem ser lidos o
Natal e os aniversários, por exemplo.
Assim outro antropólogo norte-americano, Grant McCracken (2003) chega a analisar, no
caso do consunmo, como os rituais de posse, de arrumação, de despojamento, entre outros,
desempenham papéis importantes na economia. E é aqui que uma “etnoeconomia do consumo”
poderia ser proposta, recuperando, por exemplo, postulados clássicos como a teoria trickle-down, do
sociólogo George Simmel (MCCRACKEN, 2003).
No Brasil, infelizmente poucos são os antropólogos que trabalham nessa perspectiva, entre
eles Everado Rocha (2003), ao analisar a publicidade e a propaganda como uma foram de
comunicação simbólica na teia do consumo. A publicidade marca uma linguagem simbólica que
está indissociavelmente atrelada ao consumo, interferindo na forma como as identidades culturais
são construídas.
Outros antropólogos, como Leila Amaral (2003), trabalham dimensão do consumo e da
religião. Amaral (2003), ao abordar o consumo new age ou esotérico, percebe e identifica o que
chama “moderna cultura popular de consumo”, ou seja, como o religioso brota de dentro das
próprias estruturas da modernidade, percorrendo as mais diversas religiosidades no Brasil
(catolicismo carismático, neopentecostalismo, new age).
O que todos estes estudos, alguns com co-participação de economistas (o caso de
Isherwwod) levam a perceber é que o consumo é culturalmente partilhado, mesmo com os novos
meios cibernéticos de relação. Os bens e o consumo põem em circularidade significados,
apropriados e reapropriados pelos grupos sociais e pelas sociedades, tanto ocidentais, quanto não-
ocidentais. É nessa circulação de significados que a “etnoeconomia” do consumo pode instaurar
uma compreensão mais profunda das lógicas sociais e econômicas nas quais homens e objetos estão
enredados. Diria não tanto como entidades separadas, autônomas, sob a égide de um cálculo
racional e matemático, mas como elementos intersubjetivos incrustados nos segmentos, nas etnias e
nas classes sociais.

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