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José P.

Castiano
Severino E. Ngoenha

A LONGA,..,MARCHA DUMA
"EDUCAÇAO PARA TODOS"
EM MOÇAMBIQUE
3. a edição
,
Este livro é o resultado de uma investigação financiada pelo Fundo Nacional
Suíço para a Investigação Científica (FNRS)
Indice

Abreviaturas ..... ......... .......... ......... .......... ....... ...... ........ ......... ....... ............. ....... ... ..... 5
Lista de Tabelas, Figuras e QJadros ....................................................................... 7
Introdução.. ...... ......... .......... .......... ......... ......... ...... ....... ....... ......... ......... .... ...... ... ..... 11

Capítulo I:
As Políticas de Educação e a sua Implementação em Moçambique (1498-2002).. 21
1. Política e Administração Imperial e Educação (1498-1926) .............................. 21
FICHA NICA 2. Política e Administração Colonial e Educação (1926-1961) .............................. 27
Titulo A Longa Marcha duma «Educação para Todos» em Moçambique (3.' edição)
3. A Relativa Expansão na Educação (1961-1975) ................................................. 37
!\utm, José P. Castiano, Severino E. Ngoenha
4. Em Busca de Alternativa após a Independência (1975-1977) ............................ 46
E:Ciiçso Publifix, Lda.
5. Administração Centralizada da Educação (1977-1982) ..................................... 61
'I "ecliçso: UEM 2005;
6. Concepção e Implementação do «Novo» Sistema de Educação (1983-1987) .... 80
7. Período Liberal e a Educação (1987 -1992) ........................................................ 96
2" UEM 2006;
8. Combatendo a Exclusão e Renovando a Escola? (1992-2002) ........................... 124
Capa Publifix, Lda.

;\r'rêmío grÉlfico P8f:JiIlEl(;:{\o: Publifjx, Lda.

Fotoqrafid (Ja capa Félix Mulhanga


Capítulo li:
Aporias da Educação em Moçambique ................................................................... 153
ImpressElo: Publifix
1. Entre Identidade Nacional e Culturas Particulares ............................................ 154
500 exemplares
2. Entre «Educação para Todos» e «Qyalidade para Poucos» ................................ 168
Reçpsto 7641/RLlNLD/2013
3. Entre a Autonomia e a Dependência ................................................................. 184
CoPVriçJI"t © Reservados todos os direitos.
4. Entre a Educação Geral e a Formação para o Trabalho .................................... 198
É ex.pressarnente prdt:;ic!a a reprociuç,30 total ou parciéll desta obra por" qualQuer
1I"18ío ,incluinclo a fotocópia e o tn:ltarnento inforrnÉltico, seni a i:1utorizaç~10 expressa
dos tltuiares cios clil'eitos.
Capítulo UI:
PubliFix, Lda. A Escola em África: Entre a Universalização e a Africanização ............................. 209
Av, ADostinho [\)010 I\J.o lOiCl 'I ,U andé3r
leI/Fac<: +258 21 :3 1c1382 1. James Africanus Beale Horton ........................................................................... 214
Erliail: publifii<@publifix,co,nv:: pul:Jlifíx@gmail.cOfll 2. Eclward Wilmot Blyclen ..................................................................................... 218
I/IJ\;\;w,pubilfix,co.nE
Jélneiro de 20 'i 3 .~ Maputo ~ f'v1()(;;3ITlbique 3. Mwalimu Julius Kamabarage Nyerere ................................................................ 225
4. África do Sul: cio Bantu Education Aet (1953) ao
National Edueation Poliey Aet (1996) .... ......... ..... ........ ........ .......... ............ ........... 236
CAPÍTULO IV: Abreviaturas
Educação Para Todos: Re-Equacionando Contextos, Valores e Estratégias ........ . 259
1. Reequacionando os Contextos ........................................................................... . 261
2. Reequacionando o Estatuto Axiológico ............................................................. . 271
3. Reequacionando as Estratégias .......................................................................... . 287
4. Por um Pacto Educacional ................................................................................ . 304

Bibüografia ............................................................................................................ . 311 ARO American Recovely Organization


BAD Banco Africano de Desenvolvimento
BM Banco Mundial
CFPP Centros/Cursos de Formação de Professores Primários
CIDA Canadian Internacional Deve10pment Agency
CL Currículo Local
CONCERN Organização Irlandesa de Ajuda
COSATU Congress of South African Trade Unions
DAAD Deutscher Akademischer Austauschsdienst
DDE Direcção Distrital de Educação
DEC Direcção de Educação da Cidade
DFID Department for International Deve10pment
DINAME Distribuidora Nacional do Material Escolar
DNA Direcção Nacional de Cultura
DNAEA Direcção Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos
DNE Direcção Nacional de Educação
DNETP Direcção Nacional do Ensino Técnico e Profissional
DNEFD Direcção Nacional de Educação Física e Desportos.
DPE Direcção Provincial de Educação
ESBEC Escue1a Secundaria Básica en e1 Campo
EPl Ensino Primário do primeiro grau
EP2 Ensino Primário do segundo grau
EPC Escola Primária Completa
FINNIDA Organização Finlandesa de Ajuda Externa
FMI Fundo Monetário Internacional
GTZ Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit
INDE Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação
INEFP Instituto Nacional do Emprego e Formação Profissional
ISP Instituto Superior Pedagógico
IIEP International Institute for Educational Planning
MEC Ministério de Educação e Cultura
MESCT Ministério do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia

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MINED Ministério da Educação Lista de Tabelas, Figuras e Qyadros
NEPAD New Partnership for African Development (Nova Parceria para o De-
senvolvimento de África)
NORAD Norwegian Agency for Development
OBE Outcomes-Based Education
ONG Organização Não Governamental
OPAE Organização Política e Administrativa das Escolas
OTAN Organização do Tratado Atlântico Norte Qyadro 1: Plano de Estudos e Carga Horária nas Escolas de
PMA Programa Mundial para a Alimentação Habilitação de Professores para as Escolas Indígenas.................... 32
PIB Produto Interno Bruto Tabela 1: Evolução do número dos alunos do ensino pré-primário
PPI Plano Prospectivo Indicativo
e primário (1951-1975) .................................................................. 43
PCEB Programa de Transformação Curricular para o Ensino Básico
Tabela 2: Evolução do número de alunos no ensino secundário (1959-1975)
RAR Reunião Anual de Revisão
.................................................................................................... 43
RDA República Democrática Alemã
Tabela 3: Financiamento da Educação em relação ao PIE (em %)
SAP Serviço (na DPE)/Secção (na DDE) de Apoio Pedagógico
SIDA Síndroma de Imunidade Adquirida em Moçambique comparado aos outros países............................... 44
SIDA(ASDI) Swedish International Development Authority Tabela 4: Distribuição dos estudantes pela composição étnica (1966/67)...... 45
SNE Sistema Nacional de Educação Figura 1: Estrutura Administrativa do MEC em 1976................................. 56
UNESCO United Nation Educational, Scientiflc and Cultural Tabela 5: Número de escolas, alunos e professores (1974-1976)59
Organization Tabela 6: Evolução do número de escolas, alunos e professores
UNICEF United Nations Children's Fund no EP (1978-1982) ........................................................................ 67
UEM Universidade Eduardo Mondlane Tabela 7: Evolução do número de escolas, dos alunos e dos professores
UP Universidade Pedagógica no ensino secundário (5. a a l1. a classes) de 1977 a 1982................... 70
ZIP Zona de Influência Pedagógica Tabela 8: Evolução do número de estudantes
nas escolas técnicas (1977 -1982) .................................................... 72
Figura 2: Estrutura do MINED (1984) ........................................................ 89
Tabela 9: Evolução das taxas de matrícula no EP1 e EP2 (1983 e 1987) ............ 92
Tabela 10: Evolução dos efectivos do EP1 e EP2 (1989-1992) ....................... 98
Figura 3: Organograma do MINED (2004) ................................................. 140
Tabela 11: Aprovações, Desistências e Reprovações no EP1
e no EP2 (1999-2002) ................................................................... 175
Qyadro 2: Tipologia do Saber Fazer ............................................................... 206

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Em memória de
Mathias Manuel Capece
que moldou a estrutura e os destinos
da educação em Moçambique nos primeiros
dez anos da Independência (1975-1985).

Em memória de
Benedito Cossa
que começou connosco a investigação
e nos deixou antes de terminá-la.
Introdução

Dois eixos temáticos caracterizam a tendência de desenvolvimento, no


sector da educação em Moçambique. O primeiro eixo temático tem como
tendência a busca de melhores estratégias para expandir a instituição escolar a
todas as regiões de Moçambique e a todos os níveis do ensino (desde o básico
ao universitário). Este eL'{O tem como referência uma expansão quantitativa
dos estabelecimentos escolares e baseia-se nas estratégias traçadas no âmbito
do plano de Educação Básica para Todos. Este é um plano desenhado para
concretizar os compromissos assumidos por Moçambique em fora internacio-
nais de educação, particularmente em ]omtien, em Dacar, e na sequência do
Plano do Milénio. Este eixo temático leva a uma certa aceitação implícita da
escola nas suas acepções universal, global e moderna.
O segundo eixo temático tem a tendência de debater e questionar a qua-
lidade da educação que é oferecida nas escolas moçambicanas. Ora, aparente-
mente, o debate sobre a qualidade da educação procura evidenciar argumentos
para se oferecer aquilo que se considera como sendo uma boa qualidade de
educação, cujo indicador de relevo seria ter cada vez uma maior quantidade
de alunos a transitarem de classe e professores qualificados em todos os níveis.
Como factores para a melhoria da qualidade são geralmente indicados a média
do número de alunos por turma e por professor, a disponibilidade do material
escolar, particularmente do livro escolar para cada aluno, etc.
Abandonando a perspectiva de análise estritamente educacional e adap-
tando uma mais filosófica, o debate que ocorre em nome de «qualidade de
educação» equaciona o tipo e a legitimidade dos saberes que estão sendo
transmitidos pela escola moçambicana. Efectivamente, os argumentos nor-
malmente esgrimidos para sustentar a baixa qualidade de educação insistem
na necessidade de os conteúdos de ensino e aprendizagem (currícula) nas es-
colas terem maior «relevância» em relação aos desafios económicos, políticos
e sociais. O debate em torno de qualidade possui uma sub tendência. Esta

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A LDnga Marcha duma «Educação pal-a Todos» em Moçambique

questiona, sobretudo, os fundamentos sobre os quais assenta o sistema de transformação educacional pudemos constatar a existência de três níveis dife-
educação em Moçambique, sem, no entanto, (ainda) ter sido capaz de cons- rentes de propostas: no primeiro nível propõem-se transformações de carácter
truir um discurso alternativo sistemático acerca do que deve ser, de facto, uma organizacional do sistema de educação; no segundo encontramos propostas
escola moçambicana. Até agora mantém-se, ao nível do discurso, uma tradição em termos de opções políticas e o terceiro corresponde ao nível de transfor-
de resistência à escola colonial ou ocidental ficando-se, muitas vezes, por de- mações paradigmáticas, segundo constata Castiano (2005).
monstrar a necessidade de sairmos do paradigma ocidental da educação. O nível organizacional é o das propostas direccionadas para mudanças de
Com efeito, fala-se da escola moçambicana. Ora este termo esconde um carácter operacional. Elas têm como objectivo corrigir a forma como o proces-
velho debate ainda mais amplo que opõe dois modelos de escola: uma escola so de organização do ensino decorre e têm como consequência a permanência
moderna de cariz ocidental e uma escola contextualizada, africanizada, que ou a correcção do desvio que possa ter havido relativamente ao processo edu-
mantém uma certa distância em relação ao modelo considerado como euro- cativo. Atinge organizações concretas como por exemplo ministérios, direc-
peu. O modelo de uma escola africanizada procura entrar em sintonia com as ções e repartições locais de educação até mesmo os estabelecimentos escolares.
comunidades e os ecossistemas de conhecimentos locais. Para corroborar este Assim, por exemplo, quando o Ministério de Educação decidiu, por forma a
aspecto basta uma leitura atenta do texto preliminar da Agenda 2025 (2003) melhorar o acesso ao livro escolar, que os comerciantes retalhistas locais pas-
sobre educação. Nele se vê claramente a tendência de apelar para a moçambi- sassem a ser os responsáveis pela venda do livro (e não as escolas), visava eli-
canização da escola, escondida por trás de expressões tais como «relevância do minar o tráfego ilícito do livro para canais informais e evitar, evidentemente,
currículo», «uma escola que responda às necessidades locais», etc. o seu encarecimento. Neste exemplo de mudança organizacional, o objectivo,
As raízes deste debate situam-se no passado. Qyando Moçambique, em que é a distribuição rápida do livro, permanece. O que muda são os canais de
1975, se torna um país independente, herda um sistema de educação dos mais distribuição. Este exemplo elucida o tipo de propostas de mudanças de carác-
subdesenvolvidos da África. Só o facto de cerca 98% da população adulta mo- ter operacional que visam melhorar a forma de prestar serviços educacionais,
çambicana na altura não saber ler nem escrever, demonstra a situação desolada sem, no entanto, mudar a estrutura ou as instituições e nem o sistema de
da educação. Nos princípios dos anos 80 houve ligeiros avanços na oferta educação em si.
educativa. No entanto, devido ao conflito armado, à política do reajustamento O campo político é o nível onde operam as instituições políticas que es-
estrutural adoptada e ainda às calamidades naturais, houve um declínio eco- tabelecem as leis e os regulamentos para a actividade educativa, assim como
nómico que afectou o sector da educação, reduzindo a rede escolar em 69% as instituições jurídicas que têm a responsabilidade de controlar o respeito e
em 1992 em relação a 1981. Com o retorno ao clima de paz relançou-se o de- o cumprimento das leis e regulamentos. As leis e as normas jurídicas definem
safio educativo. Com a paz ressurge o debate com propostas não só em termos o comportamento e o funcionamento das organizações e estabelecimentos da
de extensão das oportunidades educativas, mas também e, sobretudo, preocu- educação ou ainda dos seus utentes. Desta forma, uma transformação política
padas com a questão da relevância do ensino formal. Esta segunda tendência tem, necessariamente, consequências na forma organizacional e de funciona-
tenta responder à questão «educar para quê?» (Cfr. Castiano, INDE, 2005). mento da educação. Por exemplo, a formação das autarquias municipais em
Ao longo da História de Moçambique existiram propostas diferentes em Moçambique comportou, em termos de gestão da educação, a necessidade
relação aos contornos e rumos que a educação deveria tomar no Moçambique de repensar o enquadramento jurídico das escolas primárias e as responsabi-
independente. Os diferentes posicionamentos foram evidentemente acompa- lidades e competências do governo autárquico em relação às escolas sob a sua
nhados pela adopção de políticas educativas e pelas suas respectivas estratégias jurisdição. As propostas no campo político abrangem, todavia, mais áreas tais
de implementação. No entretanto, ao sistematizar as propostas e ideias para a como os objectivos estratégicos por um período eleitoral, as prioridades do

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A Longa i"lar'cha duma «Educação par-a Todos» em Moçalllbique
José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha

sector educativo, a planificação, etc. Por outras palavras, a característica base Até agora, para o caso de Moçambique, ainda não há concepção e cons-
das propostas políticas educativas é a de apresentar alternativas estratégicas ciência claras do paradigma educacional adaptado às nossas condições. Por
relativamente às mudanças e visam, de uma maneira geral, a adequação do outras palavras, a escola moçambicana ainda carece de um discurso paradig-
sistema educativo a um determinado paradigma implícito ou explícito. Para mático (Castiano 2005) . Provavelmente não haverá nunca um paradigma que
o caso de Moçambique e muitos países africanos, as propostas de políticas servirá de modelo susceptível de ser seguido por todos. No entanto, a cons-
de educação não se confinam aos actores políticos nacionais. Desde a Inde- ciência e o reconhecimento da existência de vários paradigmas resultará do
pendência, houve sempre a participação e intervenção de actores estrangeiros. debate em redor das concepções contraditórias. Qyer dizer que, se tivermos
Aliás, a profundidade com que o fazem tem vindo a acentuar-se nos últimos clareza sobre os vários fundamentos educacionais emergentes no contexto da
anos. Só para arrolar alguns exemplos, no processo da concepção do Sistema resistência à cópia cega do modelo ocidental de escola e conteúdos, também
Nacional de Educação, promulgado em 1983, houve uma forte intervenção seremos capazes de nos apercebermos das diferenças de fundamentos para
dos «cooperantes» da antiga República Democrática Alemã (RDA). Mesmo com os sistemas impostos e, o mais importante, teremos possibilidades de
hoje, as políticas educativas nacionais são cada vez mais adoptadas tomando escolha. Desta forma, para o caso dos países africanos como Moçambique,
em conta as políticas e, consequentemente, as prioridades e capacidades de fi- ainda está por vir uma teoria, conceito e estrutura de uma educação africana
nanciamento estabelecidas pelos organismos internacionais tais como o Banco como, aliás, filósofos africanos, como A. Appiah, defendem.
Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a United Nations Mas a questão da busca do sentido filosófico da educação na História
Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), entre outros. contemporânea não é só uma missão da África. A Europa vive uma crise
As propostas paradigmáticas - o terceiro nível - são mais abrangentes. que, no dizer do filósofo francês Jean-François Raux (1996,11), se caracteriza
Elas possuem um cariz filosófico-pedagógico. Neste nível, para além dos fun- pelo «fim das certezas», pelo «fim das ilusões» sobre o progresso e pelo «fim
damentos e dos pressupostos epistemológicos da educação, estão também dos determinismos». De facto, a Europa vive num universo de possibilidades
em debate os valores fundamentais da sociedade, as generalizações e as con- e contingências e já não na base de certas garantias e certezas metafísicas a
cepções sobre o conhecimento, assim como o conjunto de interesses. Aqui que a modernidade a habituou. Ao mesmo tempo, é o fim da ilusão de que o
procura-se compreender a educação a partir da sua essência e inserção no progresso económico levaria automaticamente ao desenvolvimento social de
processo social mais amplo. Assim, uma proposta ou ideia para uma mudança todas as camadas sociais porque, mesmo nos países da Europa considerados
paradigmática tem em vista uma transformação educativa profunda e parte de como sendo muito ricos, encontramos focos preocupantes de pobreza. Por
reflexões também profundas sobre os alicerces ou sobre o substracto que sus- fim acabam os determinismos no sentido de que chegou ao fim a pretensão
tenta a prática educativa. Essas ideias ou propostas têm o propósito declarado de uma determinada escola de pensamento fornecer explicações causais vá-
de iluminar a prática pedagógica, revolucionar os seus métodos (exige uma lidas para todos os contextos culturais. Esta quebra das garantias metafísicas
pedagogia correspondente), assim como repensar os valores que se encontram que eram os alicerces da modernidade provoca profundas transformações em
no substracto do acto educativo. Geralmente, destas propostas nascem novas termos de valores e normas jurídicas. O que é, todavia, talvez mais notável, é
escolas/teorias pedagógicas. O estudo feito por Ngoenha (2001), no seu livro a ausência de tradições. Como edificar um sistema de ensino (pós-moderno)
intitulado O Estatuto Axiológico da Educação em Moçambique, usando a edu- sem tradições fixas como o fez a modernidade? Eventualmente, uns irão cair
cação feita pela Missão Suíça em Moçambique para exemplificar o estatuto, ou já caíram num irracionalismo total, negando a possibilidade de se organizar
constitui um exemplo inicial de uma análise sobre os paradigmas educacionais um sistema de educação. Na tentativa de negar por completo os determinis-
em Moçambique. mos modernos, caem em paradigmas e teorias educacionais e pedagógicas que

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superpontuam a individualidade e a diversidade. Mas outros pautam por uma visam encontrar paradigmas alternativos aos sistemas educacionais herdados
postura mais cuidadosa semelhante àquela que prefere «não deitar fora a água do colonialismo, permanecem ainda em forma de experiências particulares
suja e o bebé», pois, segundo os mesmos e seguindo o teórico de Frankfurt ou projectos-piloto limitados que tiveram ou não o seu sucesso em diferen-
(Habermas), a racionalidade ainda é o princípio organizacional das sociedades tes regiões/países onde foram implementados. O grande desafio seria o de
contemporâneas. Assim, nega-se o ultra-modernismo, o pós-historicismo, o aproveitar os elementos positivos e, sinteticamente, desenvolvê-los de modo a
pós-social e o anti-estetismo dos pós-modernistas. Ainda buscam o universal constituírem um «sistema» de educação com fundamentos, estruturas e práti-
no acto educativo. O percurso educacional que a Europa está a tomar, parti- cas sólidas que tenham em conta as realidades comuns e diversas.
cularmente no que diz respeito à (re)definição de novos fundamentos episte- Este estudo é uma história da «longa marcha» percorrida por Moçambique
mológicos adequados à pós-modernidade, ainda tem contornos muito ténues. e moçambicanos com o objectivo de oferecer uma educação básica para todos.
Neste sentido, a Europa deixa de ser o modelo fixo que deveremos seguir para De facto, a luta que se trava na educação é a de fàzer com que toda a criança,
repensarmos a educação. jovem ou adulto tenha oportunidade de aprender a ler, escrever e contar para
Mas, possivelmente, a diferença básica na desorientação educativa entre resolver as necessidades mínimas económicas e de participação política. Assim, o
a Europa e a África reside no fàcto de que enquanto a primeira desenvolveu estudo constitui uma tentativa de resgatar o processo de transformação da edu-
naturalmente o seu sistema educativo baseado no projecto iluminista, ao con- cação em lVloçambique com os olhos postos nesta finalidade de «Educação para
tinente africano foi imposto um paradigma educacional do exterior. O pior é Todos». O termo «longa marcha» quer mostrar em primeiro lugar que se trata
que não só foi imposto, mas também, paradoxalmente, desenhado de forma a de uma caminhada dos moçambicanos, isto é, de algo que se faz com energia e
excluir dele a maioria das pessoas. Assim, os sistemas de educação em África vontade; e em segundo lugar que a caminhada é difícil e de longo prazo, isto é,
encontram-se perante uma aporia demasiado estranha: temos que repensar a que vai levar muito tempo e vai exigir muita visão estratégica. Este termo foi es-
educação a partir de fundamentos que nos são historicamente exteriores e, por colhido para transmitir a ide ia de luta para conseguir pôr toda a criança na escola.
O resgate da história da longa marcha é feito analiticamente tendo em
outro lado, a partir de bases epistemológicas locais que nos são desconhecidas
conta os níveis de propostas educacionais acima referidas. Por isso, é feito
devido à educação elitista.
obedecendo a três passos. No primeiro (Capítulo I) reconstrui-se a educa-
Não seria totalmente verídico e nem justo afirmar que não há, na Histó-
ção em Moçambique, concentrando-se nas propostas de políticas de educa-
ria da África pós-independência, tentativas de repensar paradigmaticamente
ção, analisando paralelamente as estratégias e mecanismos adoptados para a
o acto educativo. Efectivamente, foram feitas várias tentativas de reformular e
implementação. Num segundo momento (Capítulo H) há uma reconstrução
reformar os sistemas de educação para superar a educação colonial. B1yden e
sistemática, ou seja, baseando-se na reconstrução das propostas político-ad-
Nyerere contam entre os africanos que tentaram transformar a educação dos
ministrativas são adiantadas reflexões sobre os impasses (aporias) da educação
seus respectivos países a partir dos seus substractos culturais. Mais: embora
no Moçambique contemporâneo; na base destas últimas são re-equacionadas,
muitas delas sejam somente ideias e propostas que se circunscrevem ao cam-
já no último passo (Capítulo IV), os contextos, as estratégias, assim como
po de transformações organizacionais e políticas, podemos ler nestes esforços
os valores da educação em Moçambique. Para o reequacionar dos contextos,
certas marcas paradigmáticas. O exercício analítico que fizemos neste livro
estratégias e valores, são retomadas e tornadas frutíferas as várias tentativas e
permitiu identificar algumas propostas com tendência paradigmática para a experiências de outros países africanos, particularmente a Tanzânia e a África
educação em África. De uma forma resumida podem identificar-se os para- do Sul (Capítulo IH). Também são trazidos, para o debate sobre a educação
digmas de revitalização político-cultural, o da ruralização, o cientifico-moder- nas condições africanas, pensadores como Horton, B1yden e Nyerere em ter-
nista e o societário-comunitário. No entanto, todas estas propostas e ideias que mos de políticas assim como de filosofia da educação.

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José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha A Marcha duma «Educação em i"loçambique

o levantamento dos dados para a pesquisa foi feito a partir de várias fon- que abrangem, fundamentalmente, os anos a seguir à Independência e que se
tes. Em primeiro lugar, estão os estudos luso-católicos realizados pelos portu- debruçam sobre a formação de professores.
gueses como Estado e estudos feitos pela Igreja Católica. Em segundo lugar, Porém, é necessário ter presente que a maior parte dos estudos sobre a
encontramos estudos realizados no âmbito privado, ou seja, realizados pelas estrutura, os problemas e as perspectivas do sistema educativo no seu todo foi
instituições religiosas engajadas no ensino privado, substancialmente domi- publicada no quadro dos estudos recomendados e financiados pelas institui-
nados pelas Igrejas Protestantes como a Missão Suíça, a Missão de Chicuque ções internacionais como o Banco Mundial, o FMI, a UNESCO, a United
(American Board), os Metodistas de Inhambane, etc. Não foi possível esten- Nations Children's Fund (UNICEF) ou ainda por organizações bilaterais que
der, neste âmbito, o estudo de outras Missões que predominaram no norte actuam em Moçambique tais como o SIDA da Suécia, a DANIDA da Di-
de Moçambique. Em terceiro lugar, existem fontes no contexto da Luta de namarca, o DFID da Inglaterra, a NORAD da Noruega, etc. Outras fontes
Libertação, particularmente sobre o impacto da alfàbetização e do ensino pri- adicionais incluem os relatórios anuais de instituições vocacionadas para a
mário então ministrado. Uma quarta ordem de fontes é o conjunto de estudos educação tais como o Instituto de Apoio Pedagógico (IAP) e a Universidade
feitos no contexto do reajustamento estrutural, do liberalismo e do conflito Pedagógica. Por último, podemos destacar as dissertações de pós-graduação
armado. São estudos feitos a partir de 1987 quando Moçambique se submete escritas pelos moçambicanos no estrangeiro, na área da educação maiorita-
às políticas do liberalismo eco nó mico e político, virando-se para o capitalismo riamente escritas nos países como a Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e,
através da IDA (Agência Internacional para o Desenvolvimento), primeira ultimamente, no Brasil. Na sua maioria, porém, têm pouca divulgação inter-
agência do Banco Mundial a assinar acordos com Moçambique. na; além disso, pela sua natureza de trabalhos escritos para culminar cursos
Este estudo também se baseou em várias fontes institucionais. Usou (mestrados, doutoramento) podem ser consideradas ainda como estudos não
como fonte o Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação (INDE), acabados.
que realiza estudos empíricos virados para a análise interna do sistema de edu- Do estudo dos documentos destas fontes concluímos que, no que diz
cação no âmbito dos esforços para a melhoria da qualidade do ensino-apren- respeito ao estado da pesquisa em Moçambique, constatam-se três pontos
dizagem no Ensino Básico. O INDE publica com uma certa periodicidade fracos. O primeiro é que a educação carece de uma análise sistemática das
os Cadernos de Pesquisa com materiais de análise quantitativa e qualitativa da experiências por que passou, particularmente no que diz respeito à acção das
educação. O Ministério da Educação (MINED) edita anualmente dados es- igrejas protestantes na área educativa, particularmente no ensino em línguas
tatísticos respeitantes ao ensino primário, secundário, técnico-profissional, maternas e no ensino profissional. Assim se perdem referências históricas que
formação de professores, ensino privado, assim como sobre o ensino superior, poderiam ajudar a desenhar soluções mais adequadas para os problemas actu-
sem, no entanto, haver uma análise exaustiva em termos de opções políticas. ais do sector da educação. Em segundo lugar, não existe uma sistematização
Deste organismo também foram analisados os respectivos relatórios anuais e (um banco de dados) de todos os estudos e publicações sobre o sector de
de outro tipo nas diferentes direcções nacionais e provinciais. Também assis- educação que permitam aos estudiosos e investigadores terem uma visão da
timos às reuniões dos Conselhos Coordenadores do MINED, organismo que História sectorial da educaçã0 1 . Por último, e em terceiro lugar, não existe em
reúne todos os Directores Provinciais, os Directores Nacionais, assim como, Moçambique a prática da educação comparada sobre os problemas comuns
em muitas ocasiões, representantes dos doadores na área da educação. Na que afectam a educação nos países africanos, em particular os países de língua
nossa análise também entraram estudos realizados pela Universidade Edu-
ardo Mondlane (UEM) no âmbito da Faculdade de Educação. São estudos
I Aqui temos que abrir uma excepção ao livro de Miguel Buendia que se debruça sobre
história do processo de educação em Moçambique até 1983.

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José P. Castiano • Sever-ino E. Ngoenha

portuguesa com um passado histórico comum ao de Moçambique (Angola, Capítulo I:


Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Brasil), assim como com os países vizinhos da As Políticas de Educação e a sua Implementação
África Austral (África do Sul, Zimbabwe, Malawi, Tanzânia, etc.), onde o
em Moçambique (1498-2002)
sistema moçambicano parece estar a procurar uma nova orientação para o seu
desenho estrutural.
Adopta-se, para este estudo, principalmente o método de análise históri-
ca. A reconstrução do passado permitiu ter uma «sensibilidade histórica» so- O1lal foi a relação entre as políticas oficiais na educação e os mecanismos
bre o fenómeno em causa, uma das bases para imaginar o flltUro da educação. adoptados para garantir a implementação destas mesmas? Como podemos
caracterizar a educação em cada fase da transformação política? Como é ca-
racterizada a administração da educação em cada uma das fases e que institui-
ções foram criadas para responder às políticas delineadas? Estas constituem
as principais inquietações a abordar nesta parte do presente estudo. A colo-
cação destas questões visa resgatar a História da Educação em Moçambique,
concentrando-se nestes aspectos.

1. Política e Administração Imperial e


Educação (1498-1926)

A partir de 1505, quando a chamada «África Oriental» estava na depen-


dência do Estado Português, a administração colonial organiza-se em Capita-
nia de Moçambique, Capitanias de Rios de Sena (compreendia as Capitanias
das Terras [i.e. terras formadas pelos os prazos da coroa], de Qyelimane, Sena
e Tete), as Capitanias das Feiras (concessões privilegiadas para o comércio) e
as Capitanias dos Bares (concessões para a exploração mineira). A Capitania
de Moçambique é governada por um Capitão-Governador, por vezes desig-
nado também como Capitão-General, a mais alta autoridade colonial para a
zona oriental. Este é indicado pelo Vice-Rei da Índia, de quem recebe instru-
ções para o governo. Este é um sinal de que a administração de uma parte do
território que hoje é Moçambique depende, nesta fase, do Governo do Vice-
-Rei estabelecido em Goa. No entanto, as primeiras regras de governo (em
sentido restrito, administrativas) só são fixadas pela provisão de 25 de Março
de 1589. Esta provisão só versa sobre assuntos de natureza económico-comer-
cial e assuntos religiosos orientados para a conversão do chamado gentio para
a Igreja Católica.

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Longa Mal-cha duma «Educação pal-a Todos» em Moçambique

Os primeiros sinais para uma «autonomia» na administração de Mo- O que é importante fixar deste movimento liberal é o facto de que ele
çambique são dados por Salter de Mendonça que defende que a única pos- abriu espaço para o debate, por um lado, sobre a questão da assimilação ..Mas,
sibilidade de afastar os perigos e proceder ao seu desenvolvimento é tornar por outro, o debate aberto recai sobre as formas e o sistema de governação
Moçambique independente da Índia, mas colocando-o sob a autoridade di- do império. Este debate centra-se sobre a centralização e descentralização da
recta da metrópole. Esta separação consuma-se pelo Decreto do Rei D. José administração portuguesa. António Enes, nesta sequência, escreve em 1891
(1750-1777) assinado a 19 de Abril de 1752. A justificação é que o Governo que, «é em Moçambique que Moçambique deve ser governado» defendendo
da Metrópole não se encontra satisfeito com o «estado de ruína e abandono» um projecto de descentralização, contrariando a tendência política de centra-
em que Moçambique se encontra. Porém, esta entrega da autonomia tem a lização, predominante no período da Monarquia Constitucional em Portugal.
ver, na verdade, com a reordenação de Moçambique para a função de fornece- Assim, as unidades administrativas de Portugal (Concelhos) deviam, em Mo-
dora de mão-de-obra para o Brasil, estratégia essa que, delineada por Pombal, çambique, ser substituídas por Circunscrições Civis e/ou Comandos Militares
não teria muito sucesso se Moçambique continuasse dependente de Goa. O (para o caso dos territórios «não pacificados»). Dois anos mais tarde, é o mes-
importante a fixar, para o período administrativo até 1820, é que os âmbitos mo António Enes que proclama que «Missionários para África é na África
que a administração abrange são assuntos da administração financeira, defesa, que se educam. Podem ir para lá [África] padres, mas lá é que hão-de apren-
política comercial e política religiosa. Não é ainda neste período que, em ter- der a ser missionários». António Enes advoga, assim, uma formação teórica
mos de administração colonial, podemos falar de questões educativas. e prática do clero dentro do continente africano para que se apercebam dos
Em 1820, na sequência da chamada «Revolução Liberah> em Portugal,
problemas concretos com que este continente se debate. É, portanto, compre-
pelo menos no plano legislativo, o termo «Colónia» foi substituído pelo de
e,nsível a sua preocupação em criar a Congregação das Missões Portuguesas da
«Províncias Ultramarinas», procurando-se com essa mudança sublinhar aquilo
Africa Oriental, uma organização destinada a reunir e habilitar pessoal para
que se considerava a «igualdade» de todos os cidadãos das colónias. O mani-
os serviços eclesiásticos, para difundir a fé religiosa e moral, assim como para
festo saído da Revolução diz que é «extinto para sempre o injurioso apelido de
o professorado primário da Diocese de Moçambique.
colónias, não queremos todos outro nome que o título generoso de cidadãos
Ora, por dois aspectos, este debate, que se apresenta aparentemente con-
da mesma parte». Moçambicanos são, assim, baptizados como «portugueses».
traditório, reflecte a mesma preocupação, ou seja, a preocupação em encontrar
Foi o véu que os liberais conseguiram arranjar para adaptar a colonização áo
melhores mecanismos de dominação colonial: primeiro, e isto a favor da li-
discurso liberal de igualdade de todos os cidadãos, então em voga na Europa.
nha descentralizadora, a preocupação fundamental era de uma «administração
É o que Mouzinho de Albuquerque chamaria de «espírito de simetria liberal»,
efectiva» das colónias, o que quer dizer claramente impor a lei e autoridade
justificando o início de uma política de assimilação. Assim, a Constituição de
1822 não dispõe de nenhumas regalias particulares para as colónias, ou seja, aos «cafres»; segundo, e desta vez a favor da linha centralizadora, o debate
para as Províncias Ultramarinas, sob o pressuposto de que as leis são exten- cingiu-se mais em questões de controle financeiro das colónias.
síveis ao território na sua totalidade, isto é, Portugal e as suas colónias. A No período anterior a 1845, a educação dos filhos dos portugueses é garan-
mesma tendência já não se mantém na Carta Constitucional de 1838, onde o tida por padres, alguns professores particulares, escolas regimentais, etc., já que
capítulo X «Das Províncias Ultramarinas» determina leis especiais para as co- só em Agosto daquele ano é que foi estabelecido o regime das escolas públicas
lónias. Com efeito, os últimos anos da década de 30 são intensos em matéria em Moçambique. Antes do estabelecimento deste regime havia escolas primá-
de legislação, tendo como foco principal a África. Portugal acaba esta década rias na Ilha de Moçambique, fundada em 1799, em Q~lelimane e Ibo, fundadas
com um corpo administrativo que iria superintender assuntos relacionados estas últimas em 1818. A partir de 1845, o ensino formal passa a ser dividido
com as suas colónias. em dois níveis: o primeiro grau ministrado nas «escolas elementares», de que

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa Mat'cha duma «Educação pat'a Todos» em Moçambique

constam, no seu programa, disciplinas como Leitura, Caligrafia, Aritmética, celhos são regiões administrativas onde vivem os portugueses e se dividem em
Doutrina Cristã e História de Portugal; o segundo grau é destinado às «es- Freguesias. Também havia Distritos Militares, áreas previstas para zonas ainda
colas principais;;. Estas estão circunscritas à capital da Província Ultramarina não totalmente «pacificadas;; e, finalmente as Municipalidades. Esta divisão
de Moçambique (na altura Lourenço Marques) em cujo programa constam administrativa, proposta por Aires d'Ornelas, caiu praticamente em desuso
as disciplinas de Português, Desenho, Geometria, Escrituração, Economia e com a entrada de Augusto Castilho em 1908, que substituiu aquele como Mi-
Física Aplicada. Entretanto, o número das escolas elementares alargou para nistro do Ultramar. Este restaurou o controlo financeiro e orçamental sobre
Inhambane (1856), Mopeia (1895) e Lourenço Marques (1907). Este proces- as colónias.
so culmina com o surgimento, em 1911, em Lourenço Marques, da primeira A educação ressente-se com a proclamação da Primeira República em
escola secundária, a Escola Comercial e Industrial «5 de Outubro;;, mais tarde 1910. Um ano depois decreta-se a separação entre a Igreja e o Estado. Em
(1918) transformada em Liceu. 1913 são criadas as «lVIíssões Civilizadoras;; e vai sendo promulgada uma le-
Contrariamente à tendência liberal que defende a ideía de uma educação gislação que prioriza uma formação literária, mas completada por uma apren-
igualitária e o estabelecimento de sistemas de educação que servissem tanto dizagem profissional, para evitar que a escolaridade transformasse os nativos
aos indígenas como aos «civilizados;;, surgem vozes que defendem a discri- em «desadaptados sociais;;, incapazes de desenvolverem as suas comunidades
minação, ou seja, um sistema que promovesse um ensino separatista. É neste e de satisfazerem as suas exigências imediatas. É também neste período, mais
período que a educação começa a ter um cunho rácico e marginalizante: os precisamente em 1921, que é banido o uso das línguas africanas nas escolas.
chamados «povos primitivos;; deviam ser civilizados sim, mas lentamente e Porém, o efeito mais importante foi a tentativa de organizar a administração
a sua educação devia, sobretudo, estar virada para a formação em trabalhos da educação com a criação de diversas estruturas de coordenação. Em 1917 é
manuais. Além disso, esta educação devia estar em harmonia com os usos e criado o Conselho Inspector da Instrução Pública que, em 1920, é substituído
costumes, assim como com o grau de desenvolvimento intelectual e moral do pela Inspecção Escolar e, mais tarde, em 1921, pela Direcção Geral do En-
povo indígena. E acrescenta-se mais: é que tendo em conta que as condições sino. São as primeiras tentativas de índole administrativa para responder às
climáticas (calor, clima inóspito) impedem que os europeus possam entregar- necessidades de organização do sector educativo.
-se ao trabalho físico, os indígenas, mais habituados ao clima, podem ser edu- Na verdade, é o início da Primeira Guerra Mundial que obriga a um re-
cados só na medida e na exigência do trabalho muscular. O «liberalismo;; e crudescimento do sistema governativo virando-se para o autoritarismo e para
a «igualdade;; só se aplicam como princípios para aos colonos brancos. Os o militarismo. Por esta razão, são criados os postos de Altos Comissários em
negros, esses podiam continuar oprimidos! 1920. Estes têm vastos poderes, o que se manifesta no seu estatuto de minis-
Em 1907, finalmente, pela primeira vez, é concebida uma estrutura siste- tros controlando o exército, tendo a prerrogativa de governar por decretos e
mática para a administração colonial de lVloçambique. Esta apresenta-se divi- autonomia no maneio financeiro e na distribuição do orçamento. Brito Ca-
dida em cinco distritos, a saber: Lourenço Marques, Inhambane, Qyelimane, macho é o primeiro Alto-Comissário em Moçambique.
Tete e Moçambique. A denominação e o tipo de regime administrativo no O golpe decisivo contra as tendências descentralizadoras viria a ser des-
seio dos distritos depende da situação político-económico de cada um. Cir- ferido pelo Ministro das Colónias João Belo quando, em 1926, promulga as
cunscrições são denominadas as regiões onde vive apenas a população indígena «Bases Orgânicas da Administração Colonial e o Estatuto Político, Civil e
chefiada por um administrador; são divididas em postos controlados pelos Criminal dos Indígenas;;. O Estado Novo abole o lugar de Alto-Comissário
Chefes de Posto que trabalham muito juntamente com os Régulos na colecta substituindo-o pelo de Governador-Geral. Este passa a responder directa-
de impostos, no recrutamento de mão-de-obra para as plantações, etc. Con- mente perante o Ministro do Ultramar. Os centralizadores só proclamam a

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José P. Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Mal-cha duma «Educação em Moçambique

sua vitória com a publicação do Acto Colonial (1930), onde a noção de auto- 2. Política e Administração Colonial e Educação
nomia das províncias é retirada. (1926-1961)
O Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas de África e de
Timor de 13 de Outubro de 1926, promulgado pelo mesmo João Belo, consa- Em 1930, a 23 de Abril, é aprovado o Código AdminiJtrati-vo da Colô-
grou um capítulo às questões educativas, concentrando a «missão civilizadora» nia de Moçambique. Este divide o território que hoje é Moçambique em sete
só nas missões católicas portuguesas. Isto cria bases legais para que fossem ce- distritos (Lourenço Marques, Inhambane, Qyelimane, Tete, Moçambique,
didos mais meios financeiros à Igreja Católica e edifícios do Estado português Cabo Delgado e Niassa). Estes subdividem-se em Concelhos e Circunscri-
para a formação de missionários. ções Civis; estes últimos repartem-se em Postos Administrativos. Como au-
Uma conclusão geral que podemos tirar deste relato da administração toridades administrativas são fixados o Governador-Geral para a colónia, o
colonial é que ela está principalmente virada para o controle da terra, da mão- Governador Distrital para os distritos, o Administrador do Concelho para
-de-obra dos «nativos», do comércio e da subordinação financeira de Moçam- os concelhos, o Administrador da Circunscrição para as Circunscrições Civis
bique em relação à metrópole. As autoridades locais africanas são instrumen- e o Fiscal do Prazo para a Circunscrição Fiscal. No Posto Administrativo é
talizadas: deviam, sobretudo, obedecer às autoridades portuguesas nas acções investida a figura do Chefe do Posto.
de policiamento, recenseamento, recrutamento da mão-de-obra, assim como O código tem uma subsecção dedicada às autoridades indígenas cujo lu-
na colecta de receitas monetárias e em produtos. gar é o de subordinado e são instrumentalizadas pelo Estado colonial. Este
Uma questão que deverá aprofundar-se é a de identificar o campo de ma- juízo pode ser exemplificado pelo art. 99. 0 que estipula: «Entende-se por divi-
nobra das autoridades tradicionais africanas que vivem tentando reconciliar são indígena um agrupamento de povoações obedecendo a um chefe indígena,
os dois mundos (entre a autoridade dos chefes do posto portugueses e as suas quando essa relação de obediência seja confirmada pela tradição e à autorida-
populações): como jogaram com esta dupla legitimação? de administrativa [colónia] convenha mantê-la». Muitas vezes os colonialistas
Uma outra questão importante levantada neste período de fixação da não respeitavam a hierarquia de sucessão tradicional, promovendo membros
administração colonial na educação, entretanto debatida no quadro geral do da família que eles achassem que seriam mais servis, provocando, muitas vezes
desenho do Estado Colonial, é a da opção entre um sistema centralizado ou e deliberadamente, guerras de sucessão. São essas situações que, no articulado
descentralizado. Fica anotado que o facto de os portugueses que se encon- acima, se tenta salvaguardar ao se empregar os termos «convenha mantê-la».
tram na colónia naquela altura «lutarem» por uma forma de administração A preocupação pela administração efectiva alcançou também o ensino.
mais descentralizada, não os iliba do pressuposto básico de todo o debate De facto, entre 1929 e 1930, surgem leis e regulamentos que tentam organizar
administrativo: controlar o poder, sobretudo o financeiro. Com outras moti- o ensino indígena, nomeadamente programas para o ensino primário rudi-
vações e circunstâncias, este debate vai ressurgir em todas as fazes da história mentar, para as escolas de artes e ofícios, escolas de habilitação de professores
da educação em Moçambique. Hoje, como veremos, é uma das questões indígenas, entre outras de carácter regulamentar.
centrais no debate sobre a melhor forma de administração dos assuntos edu- A 18 de Janeiro de 1930 é publicado o Regulamento da Escola de Habili-
cacionais, no quadro dos esforços para estender uma «educação para todos» tação de Proftssores Indígenas pela Direcção dos Serviços Administração Civil e
com qualidade. assinado pelo respectivo inspector da Instrução Pública, Mário Teixeira Ma-
lheiros. O referido regulamento tem por fim fornecer um quadro jurídico para
a formação de professores que ministram o ensino primário rudimentar aos
indígenas da Colónia de Moçambique, e que também podiam ser colocados

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José P. Castiano • Severino E, Ngoenha A Longa Mat'cha duma «Educação pat'J Todos» em Moçambique

nas escolas oficiais, nas escolas particulares, assim como nas missões religio- matrícula e de nota dos alunos, o livro de termos de exame, livro de registos
sas. Este regulamento estabelece as disciplinas para a preparação dos profes- de nomeações e licenças do pessoal, livro de frequência para cada turma, livro
sores, .fixa o tempo lectivo, o perfil dos candidatos, regula o tipo de docentes, de actas do Conselho Administrativo, registo de correspondência recebida,
as tarefas do director da escola, os órgãos administrativos, assim como o tipo registo de facturas, livro de entrada e de saídas de géneros, inventário e livro
de livros de registo que a escola deveria ter para efeitos de controle financeiro, de caixas. Estes livros são materiais de inspecção periódica rigorosa.
orçamental e o registo da frequência dos alunos e professores. Em 1917 é promulgada a Lei do Indigenato que, no seu art.1.°, define
As disciplinas .fixadas são em número de doze, nomeadamente (1) Lín- como «indígena» o «.. .indivíduo da raça negra ou dela descendente que pela
gua Portuguesa, (2) Aritmética, Sistema Métrico e Geometria, (3) Geografia sua ilustração e costumes se não distingue do comum daquela raça». Os re-
Geral, principalmente da África, Cosmografia e Corografia de Portugal, (4) quisitos para deixar de ser indígena e passar a ser considerado por lei como
História da Civilização e História de Portugal e História de Moçambique; (5) «assimilado» são .fixados no art. 2.° Segundo este artigo, o «assimilado» é o in-
Educação Cívica; (6) Agricultura e Higiene; (7) Ciências Físico-Qgímicas e dígena que (1) abandonou os usos e costumes pretos, (2) que fala, lê e escreve
Naturais relacionadas com a Higiene e Agricultura; (8) Desenho; (9) Tra- português, (3) é monógamo e (4) com profissão que garanta o seu sustento e
balhos Manuais; (10) Educação Física; (11) Música e (12) Pedagogia. Em dos que dele dependem. Para passar a ser considerado assimilado, o indígena
termos do número de horas, verifica-se um grande peso na disciplina da Lín- deve apresentar documentos comprovativos, tais como um atestado passado
gua Portuguesa que somava um total de 202 tempos lectivos nos dois anos de pelo administrador onde este confirma todos os requisitos formulados ante-
formação, seguida da Aritmética com 184 tempos lectivos também nos dois riormente, uma certidão de instmção primária de primeiro grau, uma certidão
anos de formação. As restantes disciplinas ocupam entre 111 a 175 tempos de casamento civil ou de compromisso futuro para a monogamia. Esta lei
lectivos, também durante os dois anos. A agricultura é praticada uma vez por estabelece que o «mulato» de pai branco é considerado (automaticamente) um
semana (às quintas-feiras). As condições impostas para a candidatura são: «assimilado».
ter uma idade mínima de 16 anos completos, «bom comportamento moral e A preocupação de assimilar rapidamente leva os portugueses a legislar
civil», aprovação no exame de instmção primária elementar da 4. a classe, não o Ensino Indígena (matéria da legislação de 17 de Maio de 1930). O art.1.°
ter moléstia ou defeito físico incompatível com o exercício do magistério e ter define:
sido re-vacinado. «O ensino indígena tem por fim conduzir gradualmente o indígena da
O director da Escola de Habilitação de Professores Indígenas é nomeado vida selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de cida-
pelo Governador-Geral e, no exercício das suas funções, subordina-se ao di- dão português e prepará-lo para a luta da vida, tornando-o mais útil à
rector da Instmção Pública. O corpo directivo é constituído por um Conselho sociedade e a si próprio».
Administrativo composto por três pessoas, nomeadamente o director da escola
mais dois professores de quadro, exercendo cada um destes últimos as funções O ensino indígena é dividido em três tipos: ensino primário rudimentar
de secretário e de tesoureiro. O que é notável neste regulamento, que pode ser destinado a «civilizar e nacionalizar os indígenas da Colónia, difundindo entre
extensível para todo o sistema de ensino, é a centralização da administração eles a língua e os costumes portugueses» (art.7.0). Ele compreende três classes
educativa. Todos os órgãos prestam contas periódicas ao director da Instmção e é dirigido para crianças dos sete aos doze anos de idade. O ensino prifissio-
Pública. Os cadernos de registos e de controle das frequências dos professores na! tinha por fim «preparar os indígenas de um e outro sexo, maiores de 10
e dos alunos submetem-se a este organismo. O regulamento também estipula anos, para adquirirem honestamente os meios de manter a vida civilizada e
os livros de escrituração que a escola deve possuir, nomeadamente, o livro de contribuírem mais eficazmente para o progresso da Colónia» (art.16.0). Era

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José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha A Longa Mar-cha duma «Educação par-a Todos» em i'1oçambique

realizado nas Escolas de Artes e Ofícios para rapazes e nas Escolas Profissio- doces e vender, costurar roupa própria ou para vender, etc.). As condições de
nais para as raparigas «indígenas». Os rapazes aprendiam fundamentalmente ingresso são fixadas para as raparigas en tre os doze e dezasseis anos de idade
os ofícios de serralheiro e ferreiro, de aHàiate, de sapateiro e de carpinteiro e urna vez terminada a 3. a classe; os órfãos gozam de prioridade (denominadas
marceneiro, enquanto que as meninas frequentavam cursos de costura e eco- no texto corno «crianças em perigo mora!»). Urna melhor classificação escolar
nomia doméstica (tratamento de roupa, culinária e copa). O ensino normal tem no nível anterior também constitui urna vantagem para ingressar nestas escolas.
por fim «habilitar professores indígenas para as escolas rudimentares». Para os rapazes indígenas estão as «Escolas de Artes e Ofícios» cujas con-
Três pontos importantes são de fixar nesta lei: os «indígenas» só podem dições de acesso são as de ser «varão indígena», ter entre doze e quinze anos de
frequentar três anos na Escola Rudimentar. Depois vão para urna Escola de idade, ter terminado a 3. a classe do ensino rudimentar, possuir urna «robustez
Artes e Ofícios (no caso dos rapazes) e para urna escola profissional (no caso necessária» para o exercício da profissão. Os órfãos gozam de urna preferência
das raparigas). O segundo ponto diz respeito à formação de professores para absoluta. A formação dura três anos e compreende, tal corno nas raparigas,
estas escolas: fazem-no nas escolas especiais com urna formação dirigida para o ensino primário rudimentar, a aprendizagem de um ofício e um trabalho
um sistema discriminatório para o negro. No terceiro ponto é notória a in- (obrigatório) agrícola na horta da escola. O tipo de ofícios a ser ensinado é
tenção de capacitar os indígenas exclusivamente para as profissões ligadas a ditado pela realidade local.
trabalhos manuais, i.e. viradas para permanecerem no seu meio, e evitar que Em 1933 procura-se regulamentar a formação de professores, que de-
os indígenas fossem educados e formados para as profissões do espírito. corre na chamada Escola de Habilitação de Professores Indígenas, cujo objecti-
O objectivo do Ensino Primário Rudimentar é o de «colocar a criança vo é o de formar professores para as escolas rudimentares. As condições de
indígena em condições de aprender a nossa civilização por meio do conhe- ingresso para estas escolas são fixadas por lei: ter nascido em Moçambique,
cimento da língua portuguesa, educação rudimentar das suas faculdades e ter urna idade compreendida entre os 16 aos 27 anos de idade, ter bom com-
adopção dos costumes civilizados» segundo reza o art.1. ° do Regulamento do portamento, ter concluído a 4. a classe e possuir boa saúde. No entanto, estas
Ensino Primário Rudimentar de 17 de Janeiro de 1934. O ensino rudimen- condições vigoram só no período em que a Escola de Habilitações de Profes-
tar dura três anos e cada escola deve ter urna pequena horta para a prática da sores de Manhiça-Alvor era dirigida por funcionário nomeado pela Direcção
agricultura e da jardinagem. dos Serviços de Administração CiviF. Mas, pela portaria n.O 4469 de 13 de
Este ensino está destinado a "indígenas" dos sete aos doze anos de idade, Agosto de 1941 assinada por José Bettencourt, então Governador-Geral, a
é gratuito e obrigatório para esta faixa escolar. Urna escola é frequentada por
crianças que vivem até três quilómetros longe dela. As crianças devem ter boa 1 A nomeação do director da escola foi feita depois de uma controvérsia grande entre
saúde, não ter defeitos orgânicos. Urna vez completados os doze (raparigas) ou o Inspector Geral e o Governador-Geral, tendo o primeiro preferido um professor
quinze (rapazes) anos de idade deviam abandonar a escola e, caso possível, ser ou administrador da educação e o outro defendido a opinião de que deveria ser um
matriculados no curso nocturno. Cada sala devia ter, no máximo, 40 alunos. missionário. Em nome da «neutralidade religiosa» acabou sendo nomeado como di-
A formação profissional é feita de urna forma separada para os rapazes e rector Ângelo das Neves Gavetão. Depois de ter funcionado sob a direcção directa do
Estado até 1939/40, a Escola passou para a Igreja Católica a partir de 1941. De 1959
para as raparigas. As raparigas frequentam as chamadas «Escolas Profissionais
a 1967 passaria a ser administrada pela congregação dos Irmãos Maristas, devido à
para Indígenas» com cursos que duram dois anos e que compreendem urna
necessidade de se realizar uma «reforma urgente nos métodos de direcção e processo
formação primária e profissional. A formação profissional abrange os cursos de ensino aprendizagem», dados os fenómenos da descolonização, das independências
de Economia Doméstica e de Costura (limpeza e arrumação da copa, trata- em África, do avanço dos movimentos de libertação, da pressão internacional para
mento da roupa, cozinha e copa, roupa para mulher, roupa para homem, fazer humanizar o colonialismo, etc. (Saúte 2004,44-51).

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José P. Castiano • Sevel"ino E. Ngoenha A Longa IVlarcha duma «Educação pai-a Todos» em

Escola passou para as mãos da Arquidiocese de Lourenço Marques, dirigida De fàcto, em 1946 volta-se a um programa que comporta as disciplinas gerais
pela Igreja Católica. A partir de então, o órgão supremo da escola passa a ser (Português, Aritmética, Geografia, História, Ciências Físico-Naturais, De-
a Arquidiocese de Lourenço Marques e a direcção da escola é tomada por senho, Prática Pedagógica), e que também inclui sessões especiais de Moral
missionários católicos. Assim, a selecção dos candidatos a professores passou e Religião Cristã, Higiene, Enfermagem, Prática Agrícola, Educação Física,
a ser feita também pelas missões católicas e aprovada pelo Cardeal Arcebispo. Canto Coral e Trabalhos Manuais. Pela primeira vez, o programa contempla
A própria escola só recebe alunos seleccionados (Saúte 2004,48). a disciplina de Moral e Religião Cristã o que significou o fim do preceito
O leque das disciplinas compreende as disciplinas que o quadro abaixo da neutralidade religiosa do Estado, predominante no período entre 1926 e
mostra: 1940, segundo Saúte (2004,61).
Um aspecto interessante da lei referida é que estabelece, aos professo-
Quadro 1: Plano de Estudos e Carga Horária nas Escolas de Habilitação de Professores para as
Escolas Indígenas res formados que tenham beneficiado de um internamento grátis durante a
formação, a obrigatoriedade de leccionarem cinco anos nos seus distritos. O
Disciplina 1.0 ano 2.° ano 3.° ano
número máximo de alunos por turma está fixado em 30. O diploma de saída
Português 5 5 5
denomina-se oficialmente «diploma de habilitação para o magistério primário
Aritmética e Geomeü"ia 3 3 -

Geografia 3 3 - rudimentar» que o candidato obtém após prestar exames.


Histól-ia 3 2 Os diplomas e regulamentos mencionados acima são os que criam os
Ed. Cívica 2
fundamentos do que pode ser considerado como sendo o sistema do ensino
Ciências 3 2 -

Desenho e Trab. Manuais 2 2 - colonial para os indígenas no período que vai até finais dos anos 50 e início
Ed. Física e Higiene 2 2 I dos anos 60. No entanto, durante a década que vai até 1940 são promulgados
Música 2 I I
alguns regulamentos que precisam ou substituem algumas normas de funcio-
Pedag. E Metodologia 5
Prática Pedagógica - 5 namento, mas não introduzem alterações de base no que diz respeito à essên-
Agricultura 5. a F. cia discriminatória do sistema do ensino colonial. Esses regulamentos são:
Fonte: Boletim Oncial n.o 12 de 25 de Ma'-ço de 1933.
Primeiro: O Regulamento do Ensino Primário Rudimentar (Boletim Qficial
n.O 13) de 27 de Março de 1935 que introduz, entre outras, a norma de que
Em Fevereiro de 1937 há, porém, mudanças nas disciplinas pela portaria cada escola terá uma horta ou granja anexa para a prática agrícola e jardina-
n.O 2:969. Segundo o estudo de Saúte (2004,58), esta reforma visava o reforço gem.
do cumprimento integral da língua portuguesa, o uso dos primeiros elemen- Segundo: O Regulamento das Escolas Distritais de Artes e Ofícios para Indí-
tos de cálculo aritmético e a melhoria do cultivo da terra. Assim «não era genas do sexo masculino (Boletim Oficialn.o 13) de 27 de Março de 1935 cuja
necessário sobrecarregar a formação de professores indígenas com tanta va- particularidade interessante é a de, no seu art. 3.°, adaptar os ofícios a leccio-
riedade de disciplinas e conhecimentos» (idem). As disciplinas passaram a ser nar nestas escolas à «realidade local» onde cada escola distrital se encontra.
Língua Portuguesa, Aritmética e Geometria, Corografia da Colónia e Noções Terceiro: O Regulamento da Caixa Escolar da Escola de Artes e Ofícios
Gerais de Corografia do Império, Desenho e Trabalhos Manuais, assim como que é especial para a Escola António Enes localizada na Moamba (Boletim
Práticas Pedagógicas (foram retiradas as disciplinas de Ciências Naturais e Oficial n.O 33). Este regulamento estipula o tipo de apoio a prestar aos di-
Físico-Qyímicas, Geografia e Cosmografia, Educação Moral e Cívica, Peda- plomados naquela escola (dar ferramentas e subsídio de doença grave e pro-
gogia e Metodologia, e Música). Este programa foi considerado «transitório». longada), apoio este que é dado a «título de empréstimo gratuito» que deverá

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Marcha duma «Educação em Moçambique

ser reembolsado para o caso das ferramentas, e «contra a apresentação de um quência de uma classe por alunos com menos um ano, ou com mais quatro é
atestado médico» no caso de doença grave e prolongada (o mesmo tipo de permitida. Um elemento interessante fixado por este regulamento é o de abrir
regulamento para a Escola Distrital de Artes e Ofícios Freire de Andrade em a possibilidade de se administrar todo o ensino primário também no «lar do-
Inhamízua é publicado a 27 de Maio de 1936, Boletim Oficial n.O 21). méstico» para além das escolas particulares ou das escolas oficiais.
Qtarto: A Remodelação da Escola de Habilitação de Professores Indígenas O ensino liceal é regulado pelo decreto-lei n.O 35.507 de 17 de Setembro
(Boletim Oficial n oo 6) de 10 de Fevereiro de 1937 que justifica a «remode- de 1947 onde, no seu art. 1. 0, estabelece que «(o) ensino liceal revestirá carác-
lação» na formação de professores como forma de «simplificar» o plano de ter simultaneamente humanista, educativo e de preparação para a vida, pela
estudos, para «não sobrecarregar» a formação de professores indígenas com determinação, disposição e conteúdo das disciplinas, pela selecção dos méto-
muitas disciplinas e conhecimentos e também para «harmonizar» a prepara- dos, pela utilização de outros meios adequados». O ensino liceal divide-se em
ção cultural e pedagógica dos professores com os fins do ensino rudimentar três níveis: o primeiro com duração de dois anos; o segundo com um ciclo de
(propagar a língua portuguesa, preparar o uso dos primeiros elementos do três anos e um terceiro comportando também três anos. O seu objectivo geral
cálculo aritmético e melhorar os processos no cultivo das terras). é o de «preparar para a sequência de estudos e ministrar a cultura mais conve-
Qtinto: Os Estatutos da Caixa Escolar da Escola de Habilitação de Professo- niente para a satisfação das necessidades comuns da vida social, a par dos fins
res Indígenasfosé Cabral (Boletim Oficial n oo ll) de 17 de Março de 1937 fixam de revigoramento físico, de aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, de
os fins desta caixa, nomeadamente adquirir utensílios agrícolas, sementes e formação do carácter e de valor profissional e do fortalecimento nas virtudes
adubos da escola para facilitar a aprendizagem agrícola dos alunos, criar uma morais e cívicas». O terceiro nível tem uma duração de dois anos, mantém os
biblioteca na escola, um museu escolar e suportar algumas reparações ou re- mesmos objectivos, mas destina-se especialmente a preparar os alunos para o
modelações ligeiras no edifício. seu ingresso no ensino superior.
Como sublinhámos, estes regulamentos não alteram a essência discrimina- O ensino técnico-profissional é dividido em Escolas Técnicas Elementa-
tória do sistema de educação que estamos a «assistir» a ser montado aos poucos. res (ministram apenas matérias correspondentes ao ciclo preparatório), Esco-
O Ensino Oficial Colonial continua, pois, a ser dedicado aos filhos dos las Industriais (que ministram, para além de matérias preparatórias, todos ou
colonos brancos e aos «assimilados». Este divide-se em Ensino Primário, En- alguns dos cursos de «aperfeiçoamento profissional, industrial de formação,
sino Liceal e Ensino T écnico-Profissional. mestrança e secções preparatórias»), Escolas Comerciais (que ministram o en-
O Regulamento do Ensino Primário Oficial é objecto da Portaria n.O 8.395 sino comercial de formação profissional) e Escolas Industriais e Comerciais.
de 31 de Maio de 1950. Este regulamento define que o Ensino Primário Todos os cursos profissionais são acompanhados por matérias de cultura geral
abrange dois graus de educação: o elementar e o complementar. O art.2.0 do adequadas a uma educação intelectual, moral e cívica.
regulamento estabelece que «(o) ensino elementar é obrigatório para todos Há dois aspectos interessantes na estrutura do ensino «oficial» português.
os portugueses, não indígenas, física e mentalmente sãos, na idade escolar, e O primeiro é que o ensino liceal é quase organizado exclusivamente para pre-
destina-se a habilitá-los a ler, escrever e contar, a compreender os factos mais parar as pessoas para os estudos superiores, daí o seu carácter de cultura geral.
simples da vida ambiente e a exercer as virtudes morais e cívicas, dentro dum Achamos interessante porque nos chama atenção para o facto de se ter passa-
vivo amor a Portugal.» Este ensino está previsto para as crianças dos colonos do muito tempo sem que Moçambique conseguisse superar a tendência para
que tenham completado sete anos. Qtanto à idade respectiva, o regulamento sobrevalorizar este tipo de ensino puramente geral. O segundo aspecto é a
é muito preciso ao afirmar que «... aos sete anos corresponde a 1. a classe, aos preocupação por uma educação ideológica reforçada. Como atesta o decreto-
oito anos a 2. a , aos nove a 3. a e aos 10 a 4. a ... ». Mas acrescenta que a fre- -lei n.O 35.507 que fizemos referência antes, no seu art.13.o, todos os liceus e

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A M,u-cha durna «Educação para Todos» em Moçambique
José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha

estabelecimentos particulares de ensino devem cooperar com as organizações sua nova integração sob administração da Igreja Católica selada pelo Estatuto
da Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina para «o desenvolvi- Missionário. O documento reza que o objectivo do ensino rudimentar é o de
mento da capacidade física, na formação do carácter, na criação do espírito de «civilizar e nacionalizar o indígena por meio da língua portuguesa e gradual
apreensão da doutrina e moral cristã». O elemento novo, «moral cristão», apa-
solidariedade e no fortalecimento do amor pátrio dos alunos». Ou seja: o ensi-
rece aqui explícito como um meio civilizador. Assim, na planificação curri-
no oficial é reforçado pela criação de organizações juvenis de enquadramento
cular há um reforço das horas dedicadas à aprendizagem do português e de
ideológico e educação moral, segundo os interesses coloniais.
actividades religiosas nas escolas indígenas. O canto coral, a aprendizagem .de
Em 1940, a 7 de Maio, é publicada a Concordata, um documento para
canções religiosas, a moral e doutrina cristã, o baptismo (na 2. a classe), o hino
«regular a situação jurídica da Igreja (Católica) em Portugal, garantir a sua
português e outras actividades vêm reforçar e consubstanciar esta tendência
Liberdade e salvaguardar os interesses de Portugal», lê-se no seu preâmbulo.
nacionalizadora e missionária. Reforça, principalmente, o papel da Igreja Ca-
Segundo esta Concordata, a Igreja Católica pode manter escolas particulares
tólica como guardiã ideológica e moral no ensino.
paralelas às estatais, mas aquelas são submetidas à fiscalização do Estado Por-
C2.!:mnto à estratégia dos portugueses em serem ajudados pela Igreja para
tuguês. Ao mesmo tempo, a Concordata estipula que o ensino público deverá melhor poderem colonizar, Eduardo Mondlane comenta assim no seu livro
ser orientado pelos princípios cristãos sendo, por isso, obrigatório o ensino Lutar por Moçambique publicado em Lisboa: «Os portugueses acreditam que
da Religião Católica nas escolas elementares. No que diz respeito à questão há mais probabilidade de um africano (de Moçambique) se tornar português
de línguas, o Acordo Missionário estipula a obrigatoriedade do ensino em completo se ele for católico» (Mondlane 1976,70). Esta aliança também é
Português (também nas escolas missionárias) podendo, no entanto, usar-se a uma forma que o Governo português encontra para ocupar melhor o espaço
«língua indígena» na catequese. geográfico e social que vem sendo conquistado pelas Igrejas Protestantes, con-
O Estatuto Missionário, que viria a ser publicado a 5 de Abril de 1941, sideradas por eles como missões «desnacionalizadof<ls» dos nativos, segundo
especifica mais a missão da Igreja Católica no ensino. No seu art.2.o, por ainda MondIane. Esta forma de ver as missões protestantes, como contrárias
exemplo, diz que «(a)s missões católicas portuguesas são consideradas ins- ao projecto nacionalizador colonial, é, de certa forma, contestada no livro de
tituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador». Já no Severino Ngoenha intitulado O Estatuto e a Axiologia da Educaçâo (2001).
art.66.o passa a responsabilidade da direcção de todo o Ensino Indígena para
as mãos da Igreja Católica. Com este Acordo, o estatuto da Igreja Católica em 3. A Relativa Expansão na Educação
Moçambique passa a ser o de «moralizador do indígena» no processo da sua (1961-1975)
assimilação. Sela-se, assim, o papel da Igreja perante o colonialismo. Aliás,
no art.68.O do Estatuto, esta função está bem patente: o «Ensino Indígena» Em 1961 é abolido o Estatuto do Indígena. Esta abolição está ligada à
- que passava completamente para as mãos da Igreja Católica - serve para a conjuntura política provocada pelas guerras de libertação, uma que já eclode
nacionalização e moralização dos indígenas, compreendendo por «moraliza- em Angola e outra que ameaça eclodir em Moçambique com o surgimen-
ção» o abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais to, neste último, de movimentos de libertação (UNAMI, UDENAMO e
e artífices que produzam o suficiente para as suas necessidades básicas e para MANU) nos países vizinhos. Por outro lado, há a considerar o processo de
suportar os respectivos encargos sociais. descolonização em curso em África.
É neste sentido que se pode compreender a publicação das Normas Re- A abolição formal do estatuto do indigenato leva, no entanto, à reforma
guladoras e Programas do Ensino Indígena (Boletim Oficial n 00 4) já a 16 de do ensino porque, a partir dele altera-se, pelo menos formalmente, o estatuto
Novembro de 1946. Esta portaria justifica-se por adaptar o ensino indígena à jurídico do indígena.

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Mal'Cha duma «Educação PiwaTodos» em Moçambique

A portaria n.O 15971, publicada no B.I. n.O 13 de 31 de Março de 1962 de ingresso não passava por um exame de admissão, bastando apenas apre-
(I série), vem redefinir a hl11ção reservada ao Ensino de Adaptação em Moçam- sentar o certificado do exame da 4. a classe do Ensino Primário comum ou
bique. A redefinição é justificada pela «necessidade de normalizar em novas equivalente. A idade mínima dos candidatos é fixada em 15 anos e a máxima
bases o ensino de adaptação». No art.l.° reitera-se que: em 22 anos. Uma regra importante estipulada para a formação de professores
«[o] ensino de adaptação, que se destina a colocar o aluno em condições determina que, para cada escola de formação de professores, deve estar dis-
de se servir suficientemente da língua portuguesa e de adquirir os re- ponível uma escola anexa do ensino de adaptação, onde os finalistas possam
quisitos indispensáveis para frequentar o ensino primário comum, será realizar as práticas pedagógicas.
ministrado tendo em vista os altos interesses da Nação e na ordem das Enquanto que o ensino de adaptação é para os nativos, o Ensino Primá-
mais nobres tradições». rio é, na prática, para os brancos e assimilados. Este é objecto do regulamento
do Diploma Legislativo n.O 2286 do Boletim Oficial n.On 38 (2.° Suplemento)
Aqui notamos que a noção de «adaptação» é aplicada às crianças negras de 25 de Setembro de 1962 (I Série). O Ensino Primário Oficial é também
nativas para se colocarem à altura das crianças assimiladas que falassem o destinado a crianças entre os sete e os doze anos de idade e declarado obriga-
português, precisando aquelas cerca de três anos para estarem em condições tório. Termina com um exame da 4. a classe.
oficiais de ingressarem no ensino primário comum (ou normal). Um elemen- Aqui verifica-se, no geral, que a mudança de nome de «Ensino Rudi-
to interessante é que, na sua única alínea, o art.I. ° autoriza o uso dos «idio- mentar» para «Ensino de Adaptação» foi apenas cosmética. Na prática, o sis-
mas nativos» no ensino de adaptação «como instrumento de ensino de língua tema manteve-se discriminatório para a população nativa de Moçambique.
portuguesa». Ou seja, a política de instrumentalização das línguas naturais de No tipo de edifícios prescritos para ambos os ensinos se pode verificar a re-
Moçambique para melhor aquisição do português como língua de instrução legação do Ensino de Adaptação para um plano secundário. Efectivamente,
tem, pelo menos, o seu início legal nesta fase. As experiências e a política do este poderia funcionar «mesmo nas casas dos professores» enquanto que para
INDE quase que coincidem com este posicionamento hoje em dia. A mesma o ensino oficial, no capítulo V, secção I relativo às «Instalações», no art.83. 0,
portaria, no seu art.2.0, considera o ensino de adaptação como sendo «gratuito se declara que «as escolas de ensino primário serão instaladas em edifícios pró-
e obrigatório» para todas as crianças entre os sete e os doze anos. O ensino de prios, convenientemente mobilados e dotados do material didáctico e utensí-
adaptação é ministrado em três classes, correspondendo cada uma a um ano lios necessários». Estas escolas «devem ser construídas em local central e bem
lectivo «em regime de separação dos sexos», admitindo-se, porém, a coeduca- arejado, de fácil acesso, sem vizinhanças perigosas ou incómodas». As escolas
ção quando a população escolar não for suficiente. de adaptação, para os negros, poderiam funcionar em qualquer local. Vere-
Os professores para este tipo de escolas são os diplomados pelo magisté- mos no capítulo 1,11 que, esta forma de legislar assemelha-se muito ao Bantu
rio primário oficial ou professores diplomados pelo magistério para o ensino Educatíon Act (1953) promulgado pelo regime do apartheid na África do Sul.
de adaptação. No entanto, abre-se a excepção (que, na prática, foi regra) de os Uma segunda «reforma» é objecto do Decreto n.O 45.908 de 1964 que
professores (monitores) serem aqueles que simplesmente tenham terminado «promulga a reforma do ensino primário elementar a ministrar nas províncias
com sucesso o exame final do ensino primário comum ou, ainda, missionários. ultramarinas». A fundamentação apresentada no preâmbulo para esta «refor-
Os professores que até agora leccionavam no chamado ensino rudimentar, ma» resume-se em quatro aspectos. O primeiro provém da necessidade de
passam, sem formalidades adicionais, a ser considerados professores do ensino alargar a ligação com a Igreja Católica no ramo do ensino. O próprio docu-
de adaptação. Os professores para estas escolas continuam a ser formados em mento diz que «reconhece-se a cooperação que as missões católicas portugue-
três anos nas agora chamadas Escolas do Magistério de Adaptação cuja condição sas têm trazido ao Estado», reconhecimento que, segundo o decreto, é visível

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José P Castíano • Sevel-íno E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal'a Todos» em

pela «oficialização» do ensino primário que as igrejas vinham ministrando e preciso ter presente que o Ensino Elementar e Complementar só funciona nas
na sua «participação» na formação de professores. O segundo aspecto deri- cidades. Ou seja: de facto há barreiras geográficas. Mas são barreiras resultantes
va da necessidade de promover uma «rápida cobertura escolar das províncias da forma como o próprio sistema está montado que dijiculta à criança indígena,
através da criação de escolas de habilitação de professores». Havia, portanto, a que vive nas zonas rurais particularmente, a continuação normal dos estudos.
a conjuntura política internacional e interna de Moçambique que obriga o No entanto, é preciso notar que, na linguagem oficial, estas manobras não são
colonialismo não só a mudar de linguagem, mas também a actos políticos visíveis. Por exemplo, o art.l.° do documento que vimos citando reza que:
concretos como tentar expandir o ensino. O terceiro aspecto prende-se com «O ensino primário elementar a ministrar nas províncias ultramarinas é
a necessidade de mudança nos conteúdos de formação, particularmente dos o que se encontra em vigor na Metrópole, adaptando ao condicionalis-
professores. A formação de professores deveria passar não só a ser aquisição de mo local, como se determina nos respectivos programas, e conforme o
«técnicas do seu mister docente» (pedagogias e metodologias), mas também disposto no presente diploma».
devia qualificá-los «para o impulso do desenvolvimento económico e social,
nos aspectos dominantes da saúde e higiene, agricultura e pecuária, trabalhos Esta forma de redigir pretende, por um lado, mostrar claramente que há
rurais, relações e acção cívica». E a quarta justificativa advém da necessidade um esforço por não discriminar as colónias e os seus habitantes no que diz
de admitir as crianças mais cedo na escola (pré-primário) com o intuito de respeito ao tipo de ensino. Mas também, por outro, abre possibilidades para
firmar nelas «o uso oral do português corrente e acelerar o processo de de- que nas colónias se pratiquem «outras» formas de educação condicionadas
senvolvimento psíquico». A assimilação deveria ser apressada para mostrar ao localmente. Este último aspecto justificaria o manter-se a separação de esco-
mundo a «boa vontade» do governo português! las, na prática. De que a mudança só o foi no sentido cosmético pode ler-se
No âmbito deste decreto substitui-se o termo «Ensino de Adaptação» no número 1 do art.5.o que determina que «(A)s actuais escolas de ensino de
pelo «Ensino Pré-Primário». A formação pré-primária visa a «aquisição cor- adaptação passam a denominar-se Postos Escolares». Mas logo adiante se
recta» da língua nacional. O adjectivo 'correcta' é uma clara alusão ao facto determina que os postos escolares nas zonas rurais devem obrigatoriamente
de o Estado Colonial não estar satisfeito com a forma (i.e. com a «didáctica») compreender as três primeiras classes do ensino primário, precedidas da classe
como a Igreja Católica ensinava o português aos nativos. Os resultados são, pré-primária, podendo, no entanto, evoluir para escolas primárias, quando for
na sua óptica, «desanimadores». Por isso, decreta-se um recuo na política lin- tido como conveniente, enquanto que os postos escolares nas zonas urbanas
guística colonial para que o ensino passasse a empregar o «idioma local como «poderão» integrar a 4. a classe do ensino primário sendo passíveis de se trans-
instrumento de ensino da língua portuguesa». Estranhamente, declara como formarem em escolas primárias «logo que a frequência o justifique».
línguas veiculadas em Moçambique somente o xi- Ronga, o xi-Sena e o xi- O1lanto ao reforço do papel da Igreja, no ensino protagonizado por esta
-MaClla. A causa da escolha somente destas línguas fica pouco clara e não lei, basta fazer referência ao art.7.o que, no seu n.O 4, dispõe que «(A)s auto-
conseguimos apurar, no âmbito deste estudo. ridades missionárias terão plena liberdade de acção catequística, em todos os
Uma outra «reforma» introduzida é a substituição do Ensino Rudimen- postos escolares e escolas primárias». No mesmo articulado, o Estado portu-
tar pelo chamado Ensino Elementar dos Indígenas para as zonas rurais. A 4. a guês compromete-se a fàcultar às missões católicas portuguesas o pessoal do-
classe deste ensino corresponde à 3. a classe das Escolas Primárias Oficiais. Isto cente diplomado e monitores escolares (pagos pelo Estado) para trabalharem
significa que o aluno no Ensino Elementar dos Indígenas precisa de frequen- nas escolas geridas pelos missionários. Aos prelados até se dá a liberdade de
tar mais uma classe nestas escolas para poder matricular-se nas escolas subse: «dispensar» os serviços do pessoal docente facultado pelo Estado.
quentes, como sejam as de Artes e Ofícios ou na Formação de Professores. E

40 4/
A Longa Mal'cha duma «Educação pal'a Todos» em Moçambique
José P Castiano • Severino [ Ngoenha

de custo, às demais províncias os exemplares de material didáctico necessário.


No entanto, para este período, o contexto internacional tem maior peso
Qyer dizer que Angola perfilava-se nitidamente como o centro das colónias
para a justificação da «reforma» que acima adjectivamos de «cosmética». Efec-
portuguesas em África, pelo menos no que diz respeito ao ensino. Esta prio-
tivamente, o início das lutas armadas nas co1ónias portuguesas começou a ser
rização de Angola em relação a Moçambique é patente também na diferença
um problema não só militar, mas sobretudo político para o regime colonial,
no financiamento da educação, como veremos na tabela 3 mais adiante.
pois tornara-se difícil justificar internacionalmente a manutenção de co1ónias
Em 1950, o Governo Colonial realiza um recenseamento da população
numa conjuntura em que tanto a Inglaterra como a França tinham 'concedido'
moçambicana, que inclui a situação da educação. Foram registados 5.738.911
independências aos outros países africanos. Mesmo no interior de Portugal
habitantes dos quais 5.615.053 analfabetos. Entre os analfabetos também es-
tornava-se cada vez mais trabalhoso e incómodo justificar as mortes dos sol-
tavam portugueses que vivem em Moçambique na altura. A taxa de analfabe-
dados com o slogan político de «heroísmo pela pátria» e pela causa colonial.
Para impedir o avanço da guerra em Moçambique, Portugal abre o território tismo corresponde, portanto, a 97,84% Gorge 1982,18).
aos investimentos das grandes companhias internacionais, tenta envolver a Entretanto, por causa da situação internacional que se tornava desfavo-
OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte) na guerra, procura fazer rável para os colonizadores portugueses (independência dos países africanos
alianças político-militares com os regimes da África do Sul e da Rodésia entre colonizados por França e Inglaterra, o recrudescimento da situação interna
outras. Ora, as transformações sociais exigem mão-de-obra qualificada desde por greves, fundação de movimentos de libertação, etc.), na década de 60 há
o básico até ao superior. É neste contexto que se pode compreender o aumen- uma relativa expansão da educação. Enquanto que, durante a década de 50,
to considerável dos efectivos escolares entre os anos 60 e 70, resultando em o número de alunos matriculados no ensino pré-primário e primário cresce
parte, na abertura dos liceus e das escolas técnicas aos moçambicanos negros. de 13.000 em 1951 para cerca de 40.000 em 1961, já nos anos 1964/65 este
Um facto curioso, mas não surpreendente, é que na legislação educativa número «dispara» para cerca de 420.000 alunos (Demele 1985,70). Mas nos
deste momento, a província ultramarina de Angola aparece em destaque sobre cinco anos que se seguem até à independência em 1975, o crescimento em
as outras. Uma primeira menção surge no preâmbulo onde se diz: termos dos alunos estagna, como se verifica na tabela seguinte:

« ... reconhece-se
a cooperação que as missões católicas portuguesas têm
trazido ao Estado, reconhecimento expresso na oficialização do ensino Tabela 1: Evolução do número de alunos do Ensino Pré-Primário e Primário (195l,1975)

primário elementar que nelas se ministra, na participação da formação


do professorado e na generalização do que já foi legislado para Angola,
cedendo às escolas dessas missões os agentes docentes dos quadros do
Estado de que necessitem».
A mesma evolução se pôde constatar no ensino secundário geral, segun-
Este parágrafo informa-nos que em Angola já tinha havido uma legisla- do se torna evidente na tabela a seguir:
ção semelhante que agora é aplicada para Moçambique. A outra menção que
completa o quadro de avanço de Angola em relação a Moçambique vem ex- Tabela 2: Evolução do número de alunos no Ensino Secundário (1959-1975)
pressa na Portaria n.O 20380 de 19 de Fevereiro de 1964. Aí vem referenciado
que os livros de didáctica para professores editados e utilizados em Angola,
para o ensino rural, seriam considerados «livros únicos» para o ensino primá-
rio. Além disso, determina-se que o Governo de Angola fornecerá, pelo preço

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José P Castiano • Sever'ino E, Ngoenha
A MarTha duma «Educação em Moçambique

Mas este «aumento» nos números não reflecte, na verdade, uma preo- Tabela 4: Distribuição dos estudantes por composição étnica (1966/67)
cupação genuína dos portugueses em melhorarem a situação da educação nas Brancos Negros Outros
colónias, em particular em Moçambique. Se compararmos com outros países Ensino Pr'imário 13.834 "\39,974 15,171
europeus e africanos como a T anzânia, os meios financeiros que Portugal de- Ensino Secundário 7,839 1,076 1,605
Ensino Técnico 7.094 2.424 3.799
dica para Moçambique são irrisórios. A tabela comparativa abaixo demonstra Semináno Menor 22 544 14
uma relativa desvantagem de ,Moçambique em relação a Angola, Portugal, Seminár'io Maior' 2 LI8
Tanzânia e França baseada na percentagem que é dedicada à educação calcu- For'mação de pmfessor'es 279 793 31
Univer'sidade 485 9 120
lada sobre o PIE. Fonte: Faculdade de Educação s.d, (1982),5,

Tabela 3: Financiamento da Educação em relação ao PIE (em °lc,) em Moçambique comparado aos
É claro que nesta tabela faltam dados sobre o número total de cada gru-
outros países
Moçambique Angola Portugal Tanzânia França
po populacional para fàzer um juízo mais adequado da política educacional
Ano
1960 0,42 0,35 1,81 2,09 2,39 portuguesa quanto aos diferentes grupos étnicos. Mas, com o cruzamento que
1965 0,57 0,65 1,41 3,34 4,22 fizemos entre estes dados e as estatísticas publicadas pelo Governo Americano
1970 0,79 1,75 1,59 4,46 4,68
a três anos precedentes (1963) chegamos à conclusão que para as crianças ne-
1974 0,95 2,29 2,38 5,16 5,09
Fonte Jor'ge 1982,17, gras, a escolarização perfaz 0,35%, para as crianças brancas cerca de 12%, para
as crianças de origem indiana 16% e para as mestiças cerca de 21 % (Herrick et
Esta tabela, embora não indique qual é o volume absoluto do PIE em aI. 1969,95). Três comentários não se devem deixar de lado ao ler estes dados:
o primeiro é que os dados se referem ao ensino oficial, mas na altura há muitas
cada país, revela pelo menos que Moçambique, quanto ao peso relativo do
escolas particulares para as crianças brancas que não entram na estatística. O
investimento no sector de educação em relação ao PIE, está em desvanta-
segundo diz respeito aos níveis escolares, porque, na verdade, quanto maior
gem considerável. A percentagem relativa à educação não chegou sequer a
1% sobre o PIE, enquanto que para Angola, uma outra colónia portuguesa, é a classe, mais drasticamente diminui o número dos negros. Por exemplo,
são 440.000 alunos negros referidos no ensino primário, e somente 1.000 no
se investe mais para a educação, mantendo surpreendentemente números re-
ensino secundário e nove nos estudos universitários (idem). O terceiro co-
lativamente próximos.
Naturalmente que se considerarmos o carácter segregacionista do siste- mentário é quanto à qualidade. Como dissemos atrás, a maioria das crianças
ma de educação colonial em relação aos negros, o «aumento» dos números negras frequenta escolas de adaptação mal apetrechadas e cujos professores
correspondentes a Moçambique, particularmente para o Ensino Secundário, provêm das escolas dos magistérios primários, onde a qualidade de formação
é relativamente baixa.
se torna muito relativo. Os próprios portugueses publicam estatísticas que
reflectem a situação racial no ensino no ano lectivo de 1966/7. A sua inten- O que o primeiro governo saído da Independência recebe como legado
ção, porém, é demonstrar que em Moçambique há uma preocupação para dos colonialistas na área da educação é obsoleto. Tinha que se começar a tra-
balhar praticamente do zero. Tirando uma pequena elite citadina em número
estender a educação para a população negra, o que se tornou praticamente
muito reduzido, não há quadros formados para gerir o sistema. Havia, como
contraditório.
primeira tarefa, que buscar alternativas educacionais em termos quantitativos
e em termos qualitativos.

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A Miwcha duma «Educação em Moçambique
José P. Castiano • Sevel'ino E, Ngoenha

que fosse alternativo ao sistema colonial. Nas regiões em que a FRELIMO


4. Em Busca de Alternativa após a Independência
vai tomando controlo administrativo, ela procura organizar escolas, chamadas
(1975-1977)
«Escolas da FRELIMO». O pensamento dominante na altura é que estas
escolas viessem, depois da Independência, a ser um modelo a seguir para o
o período de dois anos, logo a seguir à proclamação da Independência «novo» sistema a montar. No entanto, podemos adiantar que há poucos ou
de Moçambique, é marcado por muitas transformações em todas as esferas da
quase nenhum estudo sistemático sobre esta função de modelo reservada à
sociedade. Uma das mais afectadas pelas transformações é a administração do
escolas da FRELIMO, após a Independência.
Estado, incluindo a da Educação. Porém, muitas transformações ocorridas no
No início dos anos 60, com a ajuda da Fundarão Ford dos Estados Uni-
sector da educação (tais como as mudanças curriculares, nos procedimentos
dos, é construído, em Dar-Es-Salam, o Instituto Moçambicano. Alguma in-
administrativos nas escolas, etc.) são incompreensíveis se não se retomar, por
tervenção na área da educação é registada por parte da American Committee for
mais que seja de uma forma breve, o processo de transformação da educação
Afica e pela Swedish Internatiollal Development Authority (SIDA). Em 1963
nas zonas libertadas pela FRELIMO (Frente de Libertação de J\!Ioçambi-
há cerca de 50 alunos no Instituto Moçambicano. Nesta altura consta que
que). Interessa aqui, sobretudo, o papel que é reservado às «Escolas da Freli-
o Instituto tem um carácter de ajuda e de base material para o acolhimento
mo» para o contexto de Moçambique libertado.
dos jovens refugiados moçambicanos fugidos da sua pátria. Nesta qualidade
Qgestões relativas à educação são afloradas desde a fundação da FRELI-
concebe-se a si mesma como uma instituição com certa autonomia em rela-
MO, junto às questões respeitantes à preparação da luta armada e à batalha
ção à FRELIMO. No entanto, o Departamento para Educação e Cultura da
diplomática da frente. Mas os objectivos da chamada «frente» da educação
FRELIMO é a estrutura de coordenação entre o movimento e o instituto.
viriam a ser precisados pelo Presidente do movimento, Samora Machel, du-
Em 1964 funda-se a Escola Secundária que funciona junto ao Instituto.
rante alI Coriferência do Departamento para a Educação e Cultura realizada em
Esta constitui a base do trabalho educativo preconizado pela FRELIMO. A
Setembro de 1970. Na altura, Samora Machel defende que:
Escola Secundária permite que os alunos vindos de Moçambique continuem
A aprendizagem deve ser considerada como uma actividade estreita- a estudar a partir ,da 5. a classe. Em 1968 frequentam a Escola Secundária
mente ligada à produção e à luta armada. A principal tarefa da edu- cerca de 120 estudantes, da 5. a à 9. a classes. Na altura, os professores vêm da
cação, do ensino, do material escolar e da planificação das aulas é a de Suécia, dos Estados Unidos, da Checoslováquia, da República Democrática
providenciar a cada um de nós uma ideologia cientificamente avançada, Alemã, para além dos professores moçambicanos. Estes professores não têm
objectiva e colectivista que possibilite o progresso revolucionário (Ma- só a tarefa de ensinar como também a de conceber os programas de ensino
chel1977,1). e de proporcionar materiais e meios de ensino-aprendizagem para o ensino
primário e secundário. As experiências acumuladas servem de base para se es-
A FRELIMO concebe a educação como uma fonte da produção para tender o ensino para novas escolas primárias que então foram sucessivamente
alimentar os soldados e como um meio de libertação na luta contra o colonia- surgindo em Bagamoyo, Rutumba e Tunduru, todas no território tanzaniano.
lismo português. Segundo esta visão, a função da educação pretende ser a de Neste último centro escolar há infra-estruturas pré-escolares para crianças.
fornecer os elementos teóricos e ideológicos para o prosseguimento da Luta A partir de 1965, com a tomada do controlo em algumas regiões de Cabo
Armada assim como para incentivar a produção nas povoações. Delgado e Niassa, são abertas outras infra-estruturas escolares em que se pre-
Na altura em que a luta ainda se concentra no norte do país, não tinha tende albergar primeiro crianças órfãs, mas depois vão recebendo os filhos
sido possível construir um sistema de educação que fosse totalmente novo e dos combatentes. Aqui notamos que estas infra-estruturas possuem funções

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Longa Marcha duma «Educação para Todos» em Moçambique

educativas e sociais. Na prática, é albergada uma parte das crianças com pro- As disciplinas oferecidas nas escolas primárias são Português, Aritmética,
blemas sociais. Paralelamente, surgem os Centros-Piloto onde, muitas vezes, Geografia, História, Trabalhos Manuais, Educação Política, Educação Artís-
se ensina até a 4. a classe. tica e Educação Física, enquanto que nas escolas secundárias, particularmente
Em 1970 já há cerca de 160 escolas primárias nas quais estudam entre em Bagamoyo, são Português, Inglês, Educação Política, História, Geografia,
20.000 e 25.000 crianças. Nesta altura, frequentam o Instituto Moçambicano Matemática, Ciências Naturais, Física, Qtímica, Biologia, Trabalhos Manu-
na Tanzânia cerca de 60 alunos. Por contradições de origem política este é ais, Desenho e Educação Física. Embora estivesse prevista a abertura do en-
fechado em 1968. Entretanto, em Bagamoyo o número de alunos sobe de 52 sino superior, quando houvesse condições, este não chega a flmcionar, senão
em 1970 para 133 em 1973/4; 15 eram alunas. De entre as actividades que no exterior, para onde os estudantes eram enviados (Faculdade de Educação
estas escolas fazem há a alfabetização, que é frequentada por cerca 20.000 I [1983],23-28).
adultos. Em média, há um professor para cerca de 80 a 100 alunos Qohnston Um dos primeiros passos sistemáticos para a introdução de novos con-
1986,34). teúdos nos programas do ensino foi dado durante o I Seminário Nacional de
Com o objectivo de permitir que os alunos da escola primária tivessem Educação realizado de 25 de Janeiro a 2 de Março de 1973. Neste seminário
a oportunidade de seguir os seus estudos é fundada em Bagamoyo, em 1970, foram fixadas o que se considerou serem as «Linhas Gerais» para cada disci-
uma escola secundária que, mais tarde em 1976, é transladada para Ribaue. A plina curricular. Assim, para a disciplina de Português é estabelecido que os
Escola de Bagamoyo tem, durante a luta armada, uma função de exemplo para alunos devem ser capacitados para «pensar e expressar-se» correcta e fluente-
outras e de espelho para o futuro sistema de ensino em Moçambique. Ela mente; nas recomendações metodológicas, os professores são instruídos para
devia incentivar, controlar e coordenar o alargamento de outras escolas. Neste se expressarem numa linguagem que utilize frases completas, evitando o uso
centro são concebidos e avaliados materiais de ensino, planos de estudos assim de palavras isoladas. Além disso, é recomendado usar mais o método de «tra-
como auspiciadas as realizações de seminários de formação e aperfeiçoamento balhos em grupo». Para a disciplina de Matemática, por sua vez, é recomen-
dos professores para outras escolas (Adick et aI. 1985,46). É de notar que nes- dado que se faça o máximo de esforços para que os conteúdos se aproximem
tas escolas não há, em primeira linha, a intenção de uma formação profissio- à realidade moçambicana e se baseie em actividades práticas. As mesmas re-
nal, embora no tempo para o estudo estivesse reservado um curto tempo para comendações são consideradas para a disciplina de Física. Com o termo «ac-
a prática da agricultura e de artes e ofícios. A formação é orientada para os tividades práticas» na Matemática e na Física tem-se, entre outras coisas, em
conteúdos de carácter geral com uma imensa carga política, o que faz de certa vista conteúdos de balística que, pensava-se, seriam úteis para a luta armada.
forma confirmar a tese de que, abertamente ou não, as escolas da FRELIMO No caso da disciplina de História toma-se uma decisão singular: devido ao
constituem uma espécie de «laboratório» para a formação de futuros dirigen- facto de haver pouco conhecimento básico da História Geral de Moçam-
tes do país e quadros para o aparelho do Estado, uma vez independente. bique, é decidido que se inicie um programa de pesquisa no concernente a
As acções de alfabetização são realizadas não só nas escolas, mas também novos conteúdos desta disciplina, particularmente cingindo-se à pesquisa da
em Centros-Piloto, nos campos de treinos e de preparação político-militar, História de Resistência contra a penetração e dominação colonial. O objectivo
nos centros de saúde assim como nas representações do movimento nos países desta disciplina é identificado como o de «ajudar aos alunos e aos participantes
vizinhos (Malawi, Tanzânia e Zâmbia). As actividades de alfabetização são nas campanhas de alfabetização a compreenderem a natureza, importância
fundamentalmente organizadas para os combatentes que, pensava-se, mais e necessidade do desencadeamento da Luta Armada de Libertação Nacio-
tarde podiam ser os multiplicadores ao alfabetizarem a população que vivia nal». A disciplina de Geografia também sofre transformações: recomenda-se
nas zonas libertadas. a ênfase nos rudimentos de Geografia Económica de Moçambique, mostrar

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José P. Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa Mar'cha duma «Educação par'a Todos» em

os produtos mais importantes, revelar a distribuição desigual da terra, entre Para os estudantes adultos acrescentam-se exercícios para-militares tal como
outras. Vemos que aspectos da economia política estão no fundo das preocu- a constmção de trincheiras. Estes últimos são também mobilizados para as
pações dos planificadores curriculares da época. Os objectivos da disciplina campanhas de alfabetização de adultos.
de Educaf'ão Política são detalhados segundo as idades. Assim às crianças nas A formação de professores para as escolas da FRELIlVIO é realizada
escolas primárias deve transmitir-se aquilo que é entendido como sendo «fun- através de Seminários Nacionais e/ou Provinciais com uma duração média de
damentos da política» (causas do desencadeamento da luta armada de liber- três a doze meses. Mas estes cursos são, muitas vezes, complementados por
tação, conceitos de «colonialismo», «neocolonialismo», «imperialismo», etc.). outros de curta duração (a maioria levando não mais de um mês). Os cursos de
Particularmente nesta disciplina deve evitar-se que os professores utilizem curta duração servem para preparar ou actualizar os professores em conteúdos
métodos que levem os alunos a decorarem os conteúdos. Para isso, é forte- específicos numa determinada disciplina. O principal objectivo destes cursos é
mente recomendado aos professores que se baseiem em exemplos tirados da aperfeiçoar permanentemente a formação recebida, clarificar algumas dúvidas
vida prática. Para os alunos que frequentam o ensino secundário deve dar-se surgidas durante as aulas e, ao mesmo tempo, garantir uma certa unicidade e
ênfase e aprofundar conceitos de «política» e de «ideologia», estabelecer-se a nivelamento dos programas escolares.
diferença entre «política reaccionária» e «política progressiva-revolucionária», Não temos à nossa disposição dados acerca da qualidade de formação
assim como aprofundar o conceito de «revolução» e o seu significado quan- dos professores nestes seminários. Porém, os formadores muitas vezes são
do adaptado às condições de Moçambique. Para além disso, o programa do recmtados de entre os alunos mais velhos e que se consideram «mais velhos» e
ensino secundário incluios «fundamentos do materialismo e do idealismo». que, portanto, não possuem uma formação para tal, mas tinham a autoridade
A disciplina Actividades Agrícolas, finalmente, contém uma parte «teórica» e e maturidade requerida. Na Escola Secundária leccionam sete professores,
outra «prática» sobre conhecimentos da agricultura, nomeadamente cultivo da sendo quatro de nacionalidade holandesa, um da RDA e os restantes dois
terra, irrigação, regras elementares de jardinagem, etc. moçambicanos.
Ao confrontarmo-nos com estas recomendações metodológicas notamos, O Departamento para a Educa{ão e Cultura da FRELIMO é responsável
no mínimo, ser surpreendente a sua coincidência com os princípios plasma- pela organização da formação. No início da luta, este departamento respon-
dos no documento que regra e norma a implementação do Currículo Local, sabiliza-se pelo ensino e pelas bolsas de estudo para o estrangeiro. Com o
uma das «inovações» do processo de transformação curricular actualmente em desenvolvimento do movimento e o aparecimento das zonas libertadas, a sua
curso no sistema de educação e dirigida pelo IND E. Esta constatação aponta responsabilidade alarga-se para a abertura de novos cursos e a criação de novas
cada vez mais para a seguinte conclusão: ou o problema principal do sistema escolas para as populações que vivem naquelas zonas.
de educação em Moçambique está na fraca capacidade de implementação das As escolas moçambicanas, no seu funcionamento, dependem em grande
políticas definidas, o que, por sua vez, coloca o problema de coerência entre medida da ajuda externa. No entanto, dados oficiais sobre o tipo e fundos
o plano e a sua supervisão, ou então, os planos concebidos não se adaptam totais da ajuda recebidos tanto dos países do Ocidente como dos países do
simplesmente à realidade escolar. A imagem de se ter feito um bom plano ou Oriente, são imprecisos e difusos. Sob este ponto de vista, a possibilidade de
de se ter traçado uma boa política de educação parece ser mais importante do conotar a educação, nesta altura, com uma tendência ideológica e inferir uma
que a sua adequação à realidade. influência massiva seja capitalista ou socialista, seria sustentada sem funda-
As aulas ocupam cerca de sete horas lectivas por dia, das quais cerca de mentos. Mesmo para o período que se segue imediatamente após a conquista
quatro dedicadas a aulas teóricas, duas a actividades na agricultura e trabalhos da Independência, uma tal tese estaria ainda por verificar. Por isso, deve haver
manuais e uma à prática desportiva (cada hora lectiva comporta 45 minutos). mais trabalhos de pesquisa que clarifiquem o processo da educação nesta fase.

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José P. Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Marcha duma «Educação para Todos» em Moçambique

Existem, no entanto, indícios fortes que autorizam a sustentar que, até ao fim Os princípios referidos no parágrafo anterior, se não coincidem, pelo
dos anos 70, a FRELIMO não só recebia os apoios necessários dos países do menos derivam indubitavelmente da visão de Nyerere sobre a educação. A
Leste, mas também dos do Ocidente (MichaeI1981,105). Conhecidos são os influência do então Homem do Estado tanzaniano torna-se bastante óbvia se
contactos pessoais mantidos pelo primeiro presidente da FRELIMO, Edu- tivermos em conta a presença física da FRELIMO e das suas escolas naquele
ardo Mondlane, com os países do ocidente, particularmente com os Estados território anfitrião. Mas também os princípios são perfeitamente funcionais à
Unidos, onde estudara, e com a Suíça. Aliás, a construção do Instituto Mo- necessidade de auto-sustento e auto-suficiência das escolas e dos internatos ,
çambicano de que fizemos referência atrás, deve-se às doações da organização necessidades essas que Nyerere, como veremos no capítulo IH desta obra,
americana Ford Foundation (Martini 1989,54). Mesmo depois da interrupção eleva para um projecto social denominado Ujamaa, onde a educação é a sua
da ajuda da Ford Foundation para o Instituto Moçambicano em Dar- Es-Sa- pedra angular.
laam, a FRELIMO continua a receber fundos no âmbito de ajuda humanitá- Às escolas da FRELIMO são atribuídas jimções político-ideo16gicas. l\IIuitas
ria de algumas organizações americanas tais como a American Committtee for vezes, as escolas nas aldeias servem como centros de difusão da propaganda
Africa, de algumas congregações religiosas e do SIDA (Martini 1989, 55pp.). política e ideológica da FRELIMO. Os recintos/pátios e as salas das escolas
Não há dúvidas de que a cúpula da FRELIMO vê nas experiências acu- servem, não poucas vezes, de locais de reuniões para os habitantes das aldeias
muladas nas zonas libertadas (não só na educação, mas sobretudo aqui), como ou simplesmente como locais onde o movimento realiza as suas reuniões de
uma fonte e referência para o futuro trabalho educativo após a Independência. trabalho ou propaganda política. Em muitas aldeias, as escolas servem como
A questão que se coloca é: o que aproveitar e como fazê-lo? centros culturais e de disseminação de informações para as populações de uma
Segundo a opinião de alguns, podia aproveitar-se sobretudo as experi- determinada vila. Depois da independência, não poucas vezes, as escolas são
ências no campo dos princípios político-pedagógicos, aplicáveis para o Mo- locais para as campanhas eleitorais monopartidárias para as assembleias po-
çambique independente. Entre estes princípios contam-se as máximas «uma pulares de diversos níveis. Uma outra função política da escola pode notar-se
escola é onde todos aprendemos e ensinamos» e «contar com as próprias for- na decisão de se manter a língua portuguesa como a única língua de ensino
ças». Estes princípios, pensa-se, devem ser aplicados tanto na sala de aulas para todas as classes e todo o tipo de escolas. Esta decisão é tomada ainda no
como no trabalho. Do primeiro princípio deriva a ideia de, durante as aulas, tempo da luta armada e a exclusividade da língua portuguesa perdura até finais
procurar dar prioridade ao trabalho em grupo. Os trabalhos individuais de- dos anos noventa. Tomada durante o H Congresso da FRELIMO em 1968,
vem ser apenas uma alternativa. E, segundo a outra máxima, cada escola deve esta decisão fundamenta-se no facto de a língua portuguesa ser tomada como
estar em condições de se auto sustentar. Assim, perto de cada escola ergue-se a única que poderia manter a «unidade nacional» e ser capaz de «combater»
geralmente um centro de produção escolar que serve, pensa-se, para prover os as possíveis tendências para o tribalismo, racismo e regionalismo no seio dos
alunos que lá trabalhavam, do sustento necessário. A «ligação teoria e prática» moçambicanos. Assim, a língua portuguesa passa a ser a «arma fundamental
é um terceiro princípio pedagógico preconizado pela FRELIMO. Este princí- da Unidade Nacional».
pio significa que, sempre que necessário, os alunos podem ser chamados a in-
terromper os seus estudos para participarem na guerra. Muitos alunos tiveram A Educação nos Primeiros anos da Independência
de, temporariamente, abandonar os estudos para ou irem ao combate, ou alfa-
betizarem as populações. Esta última actividade liga-se, porém, a um último Segundo estatísticas, em 1975, cerca de 98% da população de Moçam-
princípio que era o de «Ligação entre Educação, Trabalho e Comunidade». bique é analfabeta. No mesmo ano, só cerca de 69.000 crianças frequentam a
escola no ensino primário, 23.000 alunos o Ensino Secundário e 3.800 estu-

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal"a Todos» em Moçambique

dantes o Ensino Universitário (Faculdade de Educação IV [1982],15). Não missões. A escola básica e média do ramo de formação profissional concentra-
existem dados concisos acerca da composição étnica dos alunos por níveis. -se em Maputo e na Beira. (SETEP 1990,2)
Os últimos tinham sido publicados há quase uma década, como vimos an- A primeira medida que o Governo de Moçambique toma, no campo
teriormente. O que se sabe é que o nível universitário é frequentado por 40 do ensino, constitui a «nacionalização» (alguns preferem o termo «estatiza-
estudantes de origem africana. O acesso à educação e à formação no campo ção») das escolas e outros estabelecimentos de ensino, na base do decreto
é muito mais difícil do que nas cidades; em alguns casos, as escolas primárias no12/75 de 6 de setembro de 1975. Segundo o discurso do então Presidente
do campo funcionam com uma só classe. Pelo contrário, encontramos nas da República, Samora Machel, a nacionalização abrange as escolas privadas,
cidades escolas modernas, bem apetrechadas, em que frequentavam funda- principalmente as escolas missionárias e católicas. O objectivo adiantado é o
mentalmente os filhos da população branca e dos assimilados. de rapidamente integrar aquelas escolas no sistema nacional do ensino assim
A situação dos professores é dramática. No ano escolar 1974/75 há em como de «adequar o seu funcionamento à linha política da FRELIlVIO» (BR
todo o país somente cerca de 10.300 professores a trabalhar no ensino pri- no32, de 12 de 1975). Neste acto também foi abolida simbolicamente a utili-
mário e também aproximadamente 1.800 professores no ensino secundário zação dos livros coloniais nas escolas.
(Faculdade de Educação IV [1982], 15). De todos os professores, a maioria, Em Fevereiro de 1976 foi, pela primeira vez na História de Nloçambi-
isto é, cerca de 10.000, tem a categoria de simples monitores; estes, como mos- que, formado o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Na composição do
tramos acima, não haviam frequentado mais de três classes. A falta de pro- MEC estavam as seguintes estruturas: Gabinete de Estudos, Departamento
fessores deve-se ao abandono dos professores brancos após a Independência. para Assuntos da UEM, Departamento de Administração e cinco Direcções
Esta fuga afecta muito particularmente as escolas secundárias e as escolas de Nacionais, nomeadamente, a Direcção Nacional de Educação (DNE), Direc-
formação profissional, onde não resta um professor sequer. Em contraste, no ção Nacional para o Ensino Técnico, Direcção Nacional de Alfabetização e
ensino universitário permanecem cerca de 164 docentes portugueses. Educação de Adultos (DNAEA) Direcção Nacional de Cultura (DNA) e a
Os manuais são ultrapassados em termos de conteúdos. Estes reflectem Direcção Nacional de Educação Física e Desportos.
a realidade portuguesa, particularmente os livros respeitantes às disciplinas de
Geografia, História e Português. Assim, uma das grandes dificuldades deste
período é a falta de meios para fàzer face à necessidade de novos livros e carên-
cia em pessoal pedagógico e cientificamente qualificado à altura para conceber
os materiais de ensino.
No que diz respeito ao sistema do ensino profissional a situação é de igual
forma desolada. Não se pode falar da existência de um «sistema» nesta área da
educação. A maioria dos trabalhadores não detém nenhuma qualificação pro-
fissional. A rede dos estabelecimentos do Ensino Profissional é precária, com
a agravante de os laboratórios e as oficinas para as práticas mostrarem-se ob-
soletos. Além disso, as chamadas escolas de artes e ofícios estão irregularmen-
te distribuídas pelo país. Nas regiões rurais predominam escolas profissionais
de carácter elementar: são só onze escolas sendo, em regra, controladas por

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José P Castiano • Sevel"ino E. A Mal"cha duma «Educação

Os desafios que então se colocam como urgentes são a restruturação da


Figma 1: Estrutura Administrativa do MEC em 1976
administração da educação, a construção de estabelecimentos para o Ensino
Técnico-Profissional, a formação e a contratação de novos professores, a ex-
Ministro de Educação tensão das oportunidades educativas para os adultos e trabalhadores que até
e Cultura
I então haviam sido excluídos do sistema, o desenvolvimento de novos pro-
gramas de ensino, assim como de novos materiais educacionais. De todos os
I I Dep. de Administração
UEM I I desafios, a questão da formação e do recrutamento de novos professores pare-
I I
ce ser a mais crucial porque, entende-se, só assim se podia avançar para uma
rápida expansão escolar e cobrir, de certa forma, a brecha provocada pela saída
I
I Gabinete de Estudos massiva dos professores coloniais logo após a Independência. Além disso, a
questão da administração da educação em zonas recônditas era bastante séria.

I I I I 1 I Esta talvez seja a causa que concorrera para o facto de, neste período, não ter

I DNE
II DNAEA
II DNET
I I DNC
II DNED
JI INDE
I havido na administração da educação uma clara divisão entre a planificação,
a implementação e o controle dos processos. Todos estes órgãos estavam de
certa forma juntos, segundo sustenta]ohnston (1986,86).
Entre 1975 e 1976 alguns programas das disciplinas são transformados e
outras novas disciplinas introduzidas nas classes da La à l1. a. Os programas
alterados são de História e Geografia de Portugal, substituídas pelas mes-
Comissões Provinciais de mas disciplinas versando matéria sobre o continente africano. Como novas
Educação e Cultura disciplinas foram introduzidas a Educação Política, Actividades Culturais e
Produção Escolar.
Delegações Distritais de
Educação e Cultura Para garantir uma uniformização na organização e administração das es-
colas é elaborado pelo MINED um documento intitulado Organização Po-
lítica e Administrativa das Escolas (OPAE). Este documento é amplamente
distribuído e discutido em quase todas as escolas. Ele contém, entre outras, as
Legenda:
directrizes para os «métodos colectivos» de trabalho, de direcção e de gestão
DNE Direcção Nacional de Educação
DNAEA Direcção Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos das escolas, assim como as que visavam garantir uma ligação entre a escola e a
DNET Direcção Nacional do Ensino Técnico comunidade. Este é o passo julgado necessário para enfrentar a crise adminis-
DNC- Direcção Nacional de Cultura
DNED- Direcção Nacional de Educação Física e Desportos trativa e directiva que então assola as escolas moçambicanas.
INDE- Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação Um outro passo necessário para enfrentar a crise dos anos após a Inde-
UEM" Universidade Eduardo Mondlane
pendência foi o recrutamento de novos professores e a reciclagem imediata
dos «velhos». No dia 8 de Março de 1977 o Presidente Samora Machel or-
ganiza um encontro com os alunos que então frequentam a 10. a e l1. a classes
com a agenda de estudar como integrá-los imediatamente no Aparelho do

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José P Castiano • Sever'ino E. f'.-Igoenha A Longa Mar'cha duma «Educação par'a Todos» em

Estado, assim como cobrir a falta de professores que se faz sentir. Perante este populações a alfabetizar, assim como observar as actividades das populações.
desafio, o Presidente declara que a maioria deles deve converter-se imediata- N este seminário é também tomada a decisão de que a alfabetização deve ser
mente em professores. Na base desta decisão, são fechadas as 10. a e l1. a clas- feita em língua portuguesa, decisão que perdura durante muito tempo. Não
ses. Nasce, assim, um grupo de intelectuais denominados hoje, muitas vezes, são tomadas decisões claras acerca da forma de finalização e de reconheci-
a «Geração do 8 de Março». São estudantes, na altura, chamados para cobrir mento dos cursos de alfabetização (exame ou diploma de participação). Na
a falta de professores que se faz sentir, mas que hoje estão distribuídos por sequência do seminário são dadas orientações para se formar «grupos de al-
todo o aparelho de Estado, alguns ao nível mais alto. Na sequência do fecho fabetização». Para dar maior substância às actividades destes grupos, são in-
do nível geral pré-universitário, o Presidente Samora Machel ordena que os tegrados na estrutura dos «grupos dinamizadores», estruturas então formadas
alunos que terminassem a 9. a classe do Ensino Geral, deviam ser imediata- em todos os bairros para dinamizarem actividades políticas e exercer o contro-
mente afectados nas escolas de formação profissional, nos chamados «cursos lo administrativo da população.
prioritários», entre os quais estava a formação de professores. É neste âmbito Entre 1975 e 1977 Moçambique enfrenta a primeira «expansão escolar»
que nascem as Escolas de Formação e Educação de Prifessores Prilllários (EFE- que sobrecarrega a rede escolar. Efectivamente, neste período duplica-se o
PP) que, na altura, servem para formar professores para a 6. a e 7. a classes, número das crianças que entram pela primeira vez na escola primária e o nú-
ainda integradas no Ensino Secundário. Também se abre, na Universidade mero dos alunos do ensino secundário cresce na ordem de 64%, no final de
Eduardo lVlondlane, a Faculdade de Educação destinada a formar professores 1977 em relação a 1975, como a tabela abaixo demonstra:
para leccionarem da 7. a à 9. a classes do Ensino Secundário. Até 1977 tinham
Tabela 5: Número de escolas, alunos e professores (1974·1976)
sido criadas dez EFEPPs. A formação dura então cerca de sete meses (para os
1974-1975 1976
iniciantes que vêm das escolas directamente) e quatro meses (particularmente
N° de Escolas Primónas 5.235 5.853
para os que estavam a submeter-se a uma reciclagem por terem sido professo- Alunos 672.000 1.276.500
res já no tempo colonial). (Seno s.d. 1992?,1) Pr-ofessor'es 10.281 15.000
N o de Escolos Secundórios 31 94
Uma parte dos formadores para os Cursos de Capacitação é recrutada
Alunos 23.980 37.255
dos professores que havia frequentado a Escola de Habilitação de Professores Pr'ofessores 1.801 1.853
do Posto. Porém, estes não são só aproveitados para este tipo de formação, Fonte: Johnston 1986,54·83; MINED I 984,6p.

senão também para as EFEPPs.


Enquanto isso, são elaborados novos livros e material didáctico pela en- Uma rápida leitura à tabela 5 mostra-nos que a relação média professor-
tão Comissão de Apoio Pedagógico (CAP), particularmente para as discipli- -aluno aumenta de 1:65 em 1975 para 1:85 em 1976 no ensino primário e de
nas que se consideravam com «forte conotação ideológica»: exactamente os 1:13 em 1975 para 1:20 no ensino secundário. Além disso, pode reparar-se que
manuais de Português, História, Geografia e Educação Política. enquanto o número dos alunos do ensino primário duplica, no ensino secundá-
Em Abril de 1975, cerca de dois meses antes da Independência, realiza- rio não há uma transformação significante.
-se em Ribaue o I Seminário Nacional de Alfabetização no qual são delineadas Já nesta altura (1976), o Governo de Moçambique assina acordos com os
as principais directrizes para as acções de alfabetização no Moçambique pós- países socialistas para que recebam estudantes moçambicanos. Um dos países que
-independência. Neste seminário também se discutem e decidem questões se mostra pronto a receber grandes quantidades de alunos é a República Socia-
de métodos na alfabetização. Efectivamente, recomenda-se, ao ensinar-se o lista de Cuba que põe à disposição, no total, quatro Escuelas Secundarias Basicas
alfabeto e a leitura, integrar questões que reflictam problemas concretos das en el Campo (ESBEC) na Ilha da Juventude para receber crianças moçambicanas.

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José P Castíano • Sever"íno [ Ngoenha A i"lal"cha duma «Educação para Todos» em Moçambíque

Cada uma destas escolas tem a capacidade de internar 700 crianças. O primeiro riências na educação no período da luta armada. O objectivo, segundo Mazula
contingente com cerca de 1.200 crianças parte para Cuba, de barco, a 3 de Outu- (1995,151), é o de «encontrar mecanismos para a implementação nas escolas
bro de 1977 e chega à Ilha da Juventude um mês depois. Estas são consideradas dos princípios da ideologia da FRELIMO e de métodos de organização cor-
bolsas para se formarem os «futuros quadros» para o Aparelho do Estado. As respondentes». Segundo esse seminário, todos os programas de ensino devem
crianças foram com a 5. a , 6. a e algumas com a 7. a classe de frequência, saídas ser re-analisados em função da nova política educacional e ser «retirado tudo
de todas as províncias de Moçambique. Depois de completarem a 9. a classe o que fosse contrário à ideologia da FRELIMO». Nota-se que a educação
seguem diversos «cursos estratégicos» como sejam militares, técnicos agrícolas assumia um momento político, isto é, um instrumento através do qual se ex-
(particularmente para a área do açúcar e têxtil), cursos para-militares, medici- pandia, assegurava e se legitimava o poder político. O grande valor da política
na entre outras. Esta constitui hoje uma página muito importante da História da educação nesta fase só pode ser fundamentado pela função de legitimação
da Educação de Moçambique que precisa de ser aprofundada nos termos do política que a educação assume na perspectiva da elite política da época.
seu enquadramento político-estratégico (moldes dos acordos firmados, cursos
e quantidades em perspectiva, actores intervenientes, etc.), no que diz respeito
5. Administração Centralizada da Educação (1977-1982)
ao seu alcance e impacto até hoje (ocupação dos formados, «ideologia», grau
de solidariedade de grupo latente, capacidade organizativa e de articulação
Na busca da afirmação de um sistema de educação que fosse uma al-
como grupo de actores sociais, etc.).
ternativa ao sistema colonial, entre 1977 até 1982, implementa-se, passo a
A leitura oficial que se faz desta expansão escolar é de que ela constihtÍ,
passo, uma administração extremamente centralizada no sector da educação.
sobretudo, «uma conquista política». Efectivamente, com a estatização do en-
No entanto, neste processo, socorre-se, paradoxalmente, à herança do sistema
sino, ir à escola deixou de ser um privilégio de uma classe social determinada,
colonial: teve que se recorrer aos professores formados, a uma parte do então
da população branca ou de uma região. A educação passou a ser um direito
existente material escolar assim como aos próprios edifícios administrativos
e um dever de todo o cidadão. Na altura, o Governo divulga que se sente
e escolas. Estes últimos, como anotámos anteriormente, com uma distribui-
no dever de tornar a escola acessível para todas as crianças, jovens, adultos,
ção geográfica desfavorável ao acesso da maioria da população vivendo nas
operários e camponeses. Mazula (1995,148) vê na estatização e massificação
zonas rurais e dispersa. A intenção do Governo de Moçambique em montar
da escola (junto à abertura de novos postos de saúde e retomada das terras)
um aparelho centralizado era, no entanto, a de construir, como frisámos, um
acima de tudo como forma de «extensão da sua (elite política de FRELIMO)
sistema «revolucionário» que reflectisse a Independência ora conquistada e
hegemonia política a todo o território ( ... ) que implicava em mudança de
garantisse a Unidade Nacional.
mentalidade e de comportamento ... ». Assim, como a única força política, a
A centralização da planificação no sector da educação tem o seu início
FRELIMO podia determinar ideologicamente os conteúdos dos planos de
formal com a realização do III Congresso da FRELIMO que, nesta altura,
lição assim como da educação política que pretende dar.
transformara a frente em partido de vanguarda da aliança operário-campone-
Dado que a escola é a instituição que se encontra em quase todos os can-
sa. Na sequência desta transformação, em vez de escrever-se «FRELIMO»
tos do país, ela constitui o lugar, por excelência, escolhido para a divulgação
passara a grafar-se «Frelimo» em letra minúscula. Neste Congresso aponta-
e consolidação do trabalho político da FRELIMO. Para este fim serve muito
-se como tarefa do ensino e educação em Moçambique a «formação de uma
a experiência da luta armada. Aliás, em Janeiro de 1975, portanto ainda na
personalidade socialista,>. A escola tem uma posição central no projecto de
fase do Governo de Transição, realiza-se na Beira o I Seminário Nacional de
edificação da sociedade socialista.
Educação que reuniu professores primários e secundários e quadros com expe-

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José P. Castiano • Sever-ino E. Ngoenha A Longa !Vlar-cha duma «Educação em Moçambique

o relatório para o Congresso acentua este papel da educação e aponta a da educação que leve a um sistema totalmente novo e alternativo ao colonial.
formação do Homem Novo como o meio adequado para edificar uma socieda- É a resposta à palavra de ordem, então lançada, de «escangalhar o Aparelho
de socialista em Moçambique. De notar que o Partido Frelimo prima por co- do Estado colonial», desta feita no campo de educação.
locar a formação ideológica do Homem moçambicano na linha da frente sem, No entanto, a tarefa de escangalhar o aparelho educativo colonial e de
no entanto, como veremos, querer descurar a sua formação técnico-científica. edificar um novo aparelho centralizado não se apresenta fácil e nem isento
Mas, em primeiro plano, estava a formação e a identificação política com o de conflitos. Colocam-se questões de fundo como: que lugar reservar aos ele-
socialismo. Com este Congresso, a Frelimo coloca-se como a única força po- mentos tradicionais-culturais de Moçambique no sistema de educação? Qyal
lítica que determina os destinos da educação que deve corresponder aos seus é o papel e lugar das experiências da «educação socialista» iniciada e experi-
interesses políticos e ideológicos. (Faculdade de Educação III 1982,16pp.). mentada durante a luta armada, particularmente nas escolas da FRELIMO?
A seguir ao III Congresso da Frelimo realiza-se, em Abril de 1978 em Q.l1e métodos seriam adequados e, enfim, qual o tipo de administração seria
Maputo, um Seminário Internacional subordinado ao tema «Alternativas adequada ao projecto do socialismo, mas, ao mesmo tempo, às condições de
para os Sistemas de Educação para os países da África Austral». Este seminá- fraco acesso aos estabelecimentos do ensino que havia? Estas e outras pergun-
rio foi patrocinado pela Fundação Dag Harmarsijold (de Upsala) e realizado tas dominavam o dia-a-dia da micro-política no sector da educação que tem à
conjuntamente com o MEC. A então Ministra de Educação, Graça Machel, sua responsabilidade implementar as «grandes» orientações da macro-política
deixa clara a opção de Moçambique por uma via de educação socialista ao e viriam a aflorar na IJI Reunião Nacional do Nacional de Educação e Cultura
afirmar que: que teve lugar em Julho de 1979.
No que diz respeito à questão da planificação e dos métodos, opta-se,
« ... existemduas alternativas [para os sistemas de educação]: ou uma
naquela reunião, pela adopção do princípio do «centralismo democrático»,
concepção capitalista ou socialista. Isto porque a educação tem um ca-
princípio, aliás, adoptado a nível mais geral no III Congresso da Frelimo.
rácter classista. Para nós não se coloca a questão de alternativas. Em
Este princípio, entende-se, visa garantir uma direcção centralizada dos as-
Moçambique, o único caminho através do qual podemos alcançar o
suntos educativos a partir do centro para a base, por um lado, mas ao mesmo
nosso objectivo, é o da concepção socialista da educação».
tempo, queria garantir a participação popular na discussão e nos processos de
decisão através de grupos colectivos de direcção nos diferentes níveis (MEC
N esta óptica, a questão das alternativas ao sistema da educação colonial
1979,44). Esta visão de planificação viria a ser concretizada com a criação de
não se coloca em debate. estruturas educativas a nível central-nacional, provincial e distrital.
Para a implementação do sistema de educação de cariz socialista são de-
A todos os níveis, começa a substituir-se o estilo elitista - que se pensa
lineados desafios. Entre eles, aparece como prioridade a montagem de um
ser característica do Estado Colonial - por um estilo colectivo de direcção do
aparelho de administração, planificação e controle centralizado. Este aparato
MEC. Por exemplo, as Direcções Nacionais para Alfabetização e Educação
deve montar-se a nível nacional, mas deve estender-se até as localidades. Ele
de Adultos assim como de Educação e Desportos foram dirigidas, entre 1977
deve, em primeira linha, garantir o acesso das crianças em idade escolar e dos
e 1978, por um corpo directivo, embora mais tarde substituídas pelos respec-
trabalhadores à escola. Além disso, o sistema de educação deve harmonizar
tivos Directores Nacionais (MEC 1979, 45). A mesma tendência pode ser
aquilo que são os objectivos da educação com o programa político da cons-
notada a nível das províncias e de distritos que eram dirigidos por Comissões
trução do socialismo e o programa económico correspondente. O sistema de
Provinciais para a Educação e Cultura e Comissões Distritais para a Educação
educação deve responder ao problema da falta de «quadros» e de «operários»
e Cultura respectivamente. Estes também são, mais tarde, substituídos por
qualificados. Assim, espera-se que se inicie um processo de reforma no sector

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José P Castiano • Sever'ino E. Ngoenha A L,onga i"Jar'cha duma «Educação par-a Todos» em Moçambique

Directores. Mas, mesmo na sequência da nomeação de directores, o elemento reciam ao mesmo tempo inspectores educativos da província e vindos do mi-
«colectivo» é mantido na medida em que, a cada nível, cria-se um Secretariado nistério com o mesmo mandato. O mesmo se verifica com os regulamentos,
Geral, um órgão colectivo não só para a implementação, mas que também ordens de serviço, instruções, formulários de diversa ordem, etc. Nestas con-
participa e influencia pesadamente na tomada de decisões. A competência dições, pareceu aos planificadores da educação que a centralização das com-
deste órgão é de ajudar os directores na planificação e no controle das activi- petências, tarefas de controle e de inspecção a nível central-ministerial seria
dades educativas no nível correspondente. Para o controle dos recursos huma- a saída mais viável para a situação. A unificação dos métodos de trabalho e
nos (professores e técnicos de educação) criam-se Departamentos de Qyadros o nivelamento das orientações topo-base foram a consequência óbvia desta
e Departamentos para a Administração e Finanças, respectivamente (MEC decisão.
1979,63). Neste passo, não podemos deixar de notar uma certa oscilaçâo entre Um outro factor evocado para a centralização prende-se com a exigui-
os estilos colectivos que oficialmente se pretende imprimir e que funcionavam dade dos recursos para a educação, que levou à necessidade de centralizar
principalmente na dimensão de planificação, e a manutenção de elementos e concentrar a sua gestão a nível ministerial (MEC 1979,71p.). Em nossa
individuais de direcção, particularmente na dimensão de decisão e controlo opinião, este último facto r pode ser considerado, realmente, o mais adequado
do pessoal. para explicar a tendência centralista que se tomou, não só na educação, mas
Uma discussão que até hoje se tem mantido é sobre os factores que estão no aparelho do Estado em geral. Os meios que são alocados para as escolas
na origem do centralismo na administração da «coisa pública» em geral, e da são escassos e, além disso, multiplicam-se casos de corrupção, particularmente
educação, no caso vertente. Independentemente das posições teóricas acerca dos administrativos que fàlsificavam as folhas de salários. Numa situação em
do assunto, a realidade é que, segundo mostra o documento elaborado pelo que não se sabe ao todo o que sucede nos distritos e nem o número exacto de
MEC (1979,46), ao nível das províncias e dos distritos não há clareza sobre trabalhadores e, numa situação em que as folhas de salários vêm directamente
as respectivas competências. Por um lado, porque não dispunham de quadros do Ministério, é tentador falsificar-se os dados salariais e do orçamento de
profissionais para implementar as orientações emanadas a partir do «centro». investimento. Portanto, a exiguidade dos meios disponíveis e o aumento de
Mas, por outro, o próprio centro chegava a, num mesmo ano, enviar às pro- casos de desvios de fundos foram os factores principais para a fortificação
víncias quatro planos sectoriais (um do Ministro, três de cada uma das Direc- do controle administrativo e, assim, para a centralização da administração da
ções Nacionais, isto é, para o Ensino Geral, para a Alfabetização e Educação educação ao nível do Ministério.
de Adultos assim como para o Ensino Técnico-Profissional) que colidiam en- Há outras interpretações que indicam a tradição de respeito aos mais ve-
tre si ou cuja prioridade de implementação não se apresentava clara. Isso tra- lhos e esta tendência acrítica na forma de ser e estar dos moçambicanos, como
zia problemas de interpretação, controle e implementação. Segundo o mesmo um dos possíveis factores que tenham influenciado ou pelo menos facilitado
documento, esta situação repete-se, por sua vez, do nível provincial para o a implantação do centralismo, ou ainda para que este não fosse abertamente
distrital. Ora, isto levou a que o centro, aos poucos, ganhasse a ideia de que, contestado.
sem o seu controlo central, ou nada se fazia, ou, mesmo que se fizesse alguma Um outro princípio aplicado para a educação foi o Prindpio de Dupla
coisa, era quase tudo sem a qualidade e zelo requeridos. O padrão de qualida- Subordinaçâo. Segundo este princípio, por exemplo, o Director Provincial da
de está claramente no centro da administração da educação. Daí a necessidade Educação, subordina-se simultaneamente ao Ministro da Educação e ao Go-
de uma planificação, mas sobretudo de um controle muito centralizado. vernador da respectiva província. Na prática, a observação deste princípio põe
Para além deste aspecto, há um outro que teria levado ao centralismo: o Director Provincial numa situação de um canal de informação de duas vias:
relatórios desta época testemunham que, não poucas vezes, numa escola, apa- entre os distritos e o ministério e entre os distritos e o Governador Provincial.

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José P Castiano • Sever"ino E, A Mar"cha duma «Educação par"a Todos» em

Os espaços para uma iniciativa e tomada de decisões autónomas são reduzidos à 4. a classe. No pré-primário procura-se, através de (~iogos criativos», ensinar
(MEC 1979,53). as crianças a articular-se em português, ou seja, em trazer os rudimentos da
A estrutura da administração educativa começa a ser paulatinamente língua oficial. A frequência do pré-primário é a única condição para a en-
modificada entre 1977 e 1981, acabando por se constituir o Ministério de trada para aLa classe. O segundo nível está previsto para crianças de idade
Educação (MINED). O até então MEC dissolve-se em MINED e Ministé- compreendida entre seis e catorze anos de idade. Estas têm as disciplinas de
rio da Cultura. O MINED ficou com competências de dirigir o processo no Português, Aritmética, Desenho, Trabalhos Manuais, Educação Física, Acti-
sector da educação. vidades Culturais e Actividades Produtivas. Na 3. a e 4. a classes acrescentam-
A partir de 1977, a Direcção Nacional para o Ensino Técnico (DNET) -se as disciplinas de História, Geografia e Ciências Naturais. Os exames são
é transformada numa Secretaria do Estado para o Ensino Técnico e Profis- realizados no fim de cada ano e a classificação alcançada neles serve de base
sional (SETEP). Por sua vez, a Direcção Nacional para a Educação Física e para a decisão de passagem ou não do ano lectivo da criança. Até 1983 o
Desportos (DNEFD) passa para Secretaria do Estado para a Educação Física ano lectivo está dividido em trimestres (depois passa para regime semestral
e Desportos (SEEFD). Os respectivos Secretários do Estado são nomeados e, presentemente, voltou a funcionar em regime trimestral). Devido à explo-
pelo Presidente da República e não pelo Ministro da Educação, como sucedia são escolar, na maioria destas escolas lecciona-se em dois turnos, o turno da
para o caso dos directores nacionais. Embora, em termos de instalações, estes manhã funciona das 7:00 até às 11:30 horas e o da tarde das 13:00 às 17:00
organismos funcionassem dentro do MINED, eles mantêm, formalmente, horas. No contexto do sistema de cinco dias de aulas (da 2. a feira à 6. a feira)
o estatuto de autonomia administrativa e de formulação de políticas do seu por semana, este horário perfaz um total de 25 horas lectivas por semana para
sector. A nível provincial e distrital, as Comissões de Direcção para a Edu- cada criança. Mas, em algumas escolas, utilizam-se os sábados para as aulas de
cação e Cultura são definitivamente substituídas por Directores Provinciais e recuperação ou, na maioria dos casos, para as actividades consideradas extra-
Distritais de Educação. As decisões políticas no sector da educação passam a -escolares, como sejam limpezas das salas de aulas, trabalhos na machamba
ser cada vez mais centralizadas e concentradas ao nível do MINED e, aqui, escolar, entre outras.
nas mãos do Ministro da Educação Qohnston 1989,140). Olhando para o desenvolvimento em termos numéricos pode constatar-
De forma mais precisa, o sistema da educação é estruturado em níveis -se o seguinte, como a tabela 6 ilustra:
pré-escolar, primário, secundário, que inclui a formação profissional e forma-
ção de professores, e, por último, o nível universitário. Tabela 6: Evolução do número de escolas, alunos e professores no EP ([978-1982)
O nível pré-escolar tem como objectivo «preparar as crianças para a sua
entrada na escola e capacitá-las a usar a língua portuguesa» nas creches. A fre-
quência deste nível não é obrigatória. Talvez seja esta a razão que está na ori-
gem da diminuição constante do número de estabelecimentos que atendiam o
Fonte: Johnston 1986. 54-83; DNE 1994.177,
pré-escolar. De facto, o número dos estabelecimentos de ensino que incluem
o ensino pré-escolar desceu de 188.700 em 1979 para somente 86.000 em
1982 (MINED 1984,5).
Com cinco anos completos, as crianças são consideradas aptas para en- No que diz respeito à formação de professores a situação não é risonha.
trarem para o Ensino Primário. Este abrange dois níveis: o pré-primário cuja Em 1980 só cerca de 30% dos professores têm uma formação profissional
frequência era de um só ano (transformado em l.a classe após 1983) e da La adequada para leccionarem este nível, embora a percentagem de professores

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José P Castiano • Sevel'illo E. ~Igoenha
A Longa Mal'cha duma «Educação para Todos» em Moçambique

com formação tenha subido, já em 1982, para 45% dos professores em exercí- As crianças que terminam o Ensino Primário têm, na altura, três possi-
cio (MINED 1984,12p.). Assim, ainda há mais de metade de professores sem bilidades de continuar: a primeira é a de continuarem no Ensino Secundário;
formação. Se tivermos em conta que até à 3. a classe cada professor tem uma a segunda é de seguirem uma formação profissional numa das escolas elemen-
turma, então pode inferir-se que metade das crianças recebe aulas de profes- tares do Ensino Técnico-Profissional ou então numa EFEP para se tornarem
sores sem formação inicial. Na 4. a classe cada disciplina tem o seu professor. professores; o terceiro caminho de saída é directamente para o mercado de
Um outro dado importante a reparar na tabela acima é que, não obstante trabalho. Dos cerca de 511.000 alunos que terminaram a 4. a classe até 1982,
o aumento do número de alunos, reduz o número de escolas no período em a maioria não consegue prosseguir com os estudos.
causa. Se tivermos em mente que em 1980 somente em 36% de todas as esco- O Ensino Secundário engloba, no período em estudo, três níveis: o pri-
las primárias funcionam todas as classes da La à 4. a classe (são, portanto, aqui- meiro, o Ciclo Preparatório, abrangendo a 5. a e a 6.a classes; o segundo ní-
lo que se considera «escolas completas») e que em 15% das escolas ftlllCiona vel, o Ensino Secundário Geral, que compreende as 7.a, 8. a e a 9. a classes e,
só a La classe, então teremos uma ideia de como os números no quadro acima finalmente, o terceiro nível, o Pré-Universitário, compreendendo as 10. a e
dão uma imagem incompleta da situação precária a este nível. A diminuição 11. a classes. A condição de entrada para o Ciclo Preparatório é a exibição do
do número das escolas em cerca de 20% nas estatísticas explica-se, porque, a diploma da 4. a classe. Na prática, no entanto, este critério básico e formal-
partir de 1980, as escolas primárias nas quais funciona até somente a 3. a classe, mente único, mostra-se insuficiente e inoperante devido ao reduzido número
são anexadas às escolas completas Qohnston 1986,41). de vagas nas Escolas Preparatórias. Juntando as vagas abertas naquelas escolas
A administração das escolas primárias, a nível central, encontra-se a car- (inclusivamente no ensino nocturno) e nas de formação profissional do ensino
go de um sector denominado Serviço do Ensino Primário, dentro da Direcção técnico e dos professores, a capacidade total de absorção perfaz, em 1981,
Nacional para o Ensino Geral, enquanto que a nível provincial e distrital são somente 10% do total dos graduados daquele ano Qohnston 1986,79). Assim,
os respectivos directores para a educação. No entanto, é o Director da Escola as entradas e matrículas para o nível secundário submetem-se a critérios que
que é o responsável directo pela implementação das orientações superiores. estão para além de possuir simplesmente um diploma. As escolhas para a
Para uma maior eficiência na administração e na fiscalização das escolas, mas prossecução dos estudos recaem fundamentalmente sobre os mais novos. Po-
sobretudo para garantir uma maior troca de experiências pedagógicas entre os rém, paralelamente, estabelece-se critérios de ordem política: «crianças pro-
professores e também do material de ensino, as escolas primárias que estives- venientes de famílias pobres e operárias, têm prioridades em relação àquelas
sem num raio de cerca de 15 Km, são fundidas em Zonas de Irifluência Peda- provenientes das famílias burguesas».
gógica (ZIP). As ZIP ocupam-se, principalmente, de questões administrati- O leque das disciplinas nas escolas secundárias engloba Português, Ma-
vas locais como sendo os salários, a distribuição de materiais educacionais, a temática, Biologia, História, Geografia, Educação Política, Educação Física,
coordenação da realização dos exames nacionais, o levantamento estatístico, Actividades Culturais, Desenho e Trabalhos Manuais. A partir da 7. a classe
etc. No entanto, aos poucos, foram assumindo funções pedagógicas, tais como até à l1. a acrescenta-se o Inglês (o ensino de Francês foi abolido em 1975),
organizar sessões de aperfeiçoamento dos professores, seminários pedagógi- Física e Qyímica. O regime de aulas é trimestral, começando a 16 de Feverei-
cos nos fins-de-semana para os professores do mesmo grupo de disciplina, ro até 15 de Novembro de cada ano. Assim, como no Ensino Primário, entre
coordenar planos de estudos, entre outras funções mais pontuais. 1977 e 1982, há um aumento tanto do número de alunos, dos professores e
das escolas deste nível, como a tabela 7, a seguir, indica.

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José P. Castiano • Sevel-ino E. ~Jgoenha A LDnga rvlal-cha duma «Educação para Todos» em Moçarnbique

Tabela 7: Evoluçào do número de escolas, dos alunos e dos professores no ensino secundário (5." a Em muitos casos, por falta de professores, não se lecciona uma ou duas disci-
1l." classes) de 1977 a 1982
plinas em todo o ano, recorrendo-se às chamadas <<t1otas administrativas» para
que os alunos não ficassem prejudicados no fim do ano. Regra geral, porém, os
edifícios das escolas pré-universitárias encontram-se em condições razoáveis
de conservação.
<'Nllmem cOITespondente aos p,-ofessor-es leccionanclo a 5." e a 6." classes O controle e a supervisão das escolas secundárias está sob a responsa-
Fonte johnston 1986, 5"\-93; D~JE 1994,177.
bilidade do sector denominado Serviço Nacional para o Ensino Secundário,
um sector dentro da Direcção Nacional do Ensino Secundário Geral. Ao ní-
Como se pode concluir, neste período aumenta o número de escolas na vel das províncias e distritos há um sector correspondente na DPE e DDE,
ordem de 68%. O número de alunos, comparado ao ano da Independência, respectivamente. Um aspecto particular é que, entre 1976 e 1979, as escolas
triplica, mas, em termos globais, o número de alunos no nível médio, incluin- pré-universitárias subordinam-se directamente ao Director Nacional para o
do as escolas profissionais, só perfaz 6,8% do grupo etário de 10 a 20 anos. Ensino Geral. No entanto, a partir de 1980 passam para a tutoria das DPEs.
Em 1980 reabre-se o Ensino Pré-Universitário em Maputo e dois anos depois O Ensino Técnico-Profissional funciona nas escolas técnicas e nas em-
estende-se para Beira e Nampula, tendo sido, neste ano, matriculados 413 presas. As escolas técnicas dividem-se em três níveis: nível elementar, cujo
alunos. Dois anos depois (1984), o número total sobe para 1.187 de alunos! modelo é de 4. a classe mais três anos (escolas de artes e ofícios), nível básico,
A maior parte dos professores da 6. a e 7. a classes são moçambicanos, en- cujo modelo de formação é o de 6. a classe mais três anos (escolas básicas
quanto que nas classes superiores são estrangeiros, provenientes na sua maio- agrárias, comerciais e industriais) e nível médio com o modelo de formação
ria de países do Leste europeu e de Cuba. A relação média professor-aluno de 9. a classe mais três anos de instrução (institutos comerciais, industriais e
é de 1:40 para o nível do ensino secundário e de 1:13 no pré-universitário. agrários). Para a entrada em todos os níveis exige-se uma idade mínima de 15
Também se retiram todos os livros da era colonial, passando o MINED a anos e um certificado de conclusão dos níveis anteriores, respectivamente de
conceber os planos de estudos e a fornecer os respectivos manuais para os 4. a classe para o elementar, da 6. a classe para o básico e da 9. a classe para as
alunos enquanto que o material para os professores é fornecido durante a escolas do nível médio. Um aspecto geral é o sistema de equivalência: os que
formação. Particular prioridade é dada à disciplinas de História, Português, terminam o nível elementar têm uma equivalência de 6. a classe se quisessem
mas também uma parte para Qtímica, Matemática e Física. O fornecimento continuar a estudar no ensino geral, da mesma forma que os que terminam
do material foi regular até ao ano lectivo de 1980/81, passando a reduzir-se o nível básico têm uma equivalência de 9. a classe e os diplomados do nível
drasticamente a partir de 1984. médio correspondem ao término da l1. a classe do ensino geral, podendo,
Um aspecto particular a este nível é o facto de as escolas funcionarem em portanto, estes últimos, ingressar no ensino universitário. Todos estes níveis
três turnos: de manhã, à tarde e à noite. Em muitos casos, os professores são são leccionados também no curso nocturno.
os mesmos. A maioria das escolas secundárias estão localizadas nas capitais A tabela 8, a seguir, retrata como o número dos estudantes do Ensino
provinciais. Na maioria das escolas secundárias falta todo o tipo de condições Técnico evolui entre 1977 e 1982. Deste quadro fica claro que os esforços de
de estudo e de higiene; também não existem laboratórios de 011ímica e Física expansão do ETP estiveram mais concentrados para o Ensino Básico. E En-
ou ginásio e bolas para a educação física. Em algumas, onde funciona o curso sino Elementar teve mais problemas de crescimento.
nocturno, chega a ficar-se semanas sem energia eléctrica, portanto, sem aulas.

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José P. Castiano • Sevet'ino E. Ngoenha A Mal'cha duma «Educação em Moçambique

Tabela 8: Evolução do número de estudantes nas escolas técnicas (l977 ,l982) é visto como um instrumento de libertação e como condição para o desenvol-
Níveis 1977 1979 1982 vimento da sociedade socialista.
Elementor A idade mínima exigida para ingressar nos grupos de alfàbetização é de
Agl'icultura 1070 805
Indústria 2.060 2.462 2.062 15 anos. Os primeiros alfabetizados são escolhidos entre os membros do par-
Bósico tido Frelimo, das assembleias do povo, das organizações de massas (OJM,
Agl'icultura 218 1.039 2.129 OMM), do exército, assim como entre trabalhadores "de vanguarda" e fun-
ComélTio 3.474 3.334 3.050
IndúSll'ia 2.782 <1748 4.892 cionários do Estado. Também fàzem parte dos grupos escolhidos como prio-
Médio ritários para serem alfabetizados os membros das cooperativas de consumo e
Agl'icultura 56 240 330 de produção assim como os habitantes das aldeias comunais.
Comél'cio 200 225 562
IndLlsü'ia 69 289 556 Na primeira campanha (1978), segundo dados oficiais, tomam parte em
Fonte: Compilado de SETEP Fev. 1990,23 (Anexo 3). todo país 200.000 alfabetizandos, dos quais chegam ao fim cerca de 140.000.
Na segunda campanha (1980), o número sobe para cerca de 321.000 partici-
Para ser professor primário e leccionar da La à 4. a classe é necessário ter pantes, dos quais 36,5% são mulheres; destes, chegam ao fim cerca de 120.000.
terminado a 6. a classe. Até 1982 a formação do professor leva um ano. A for- Uma campanha de alfabetização tem a duração de nove meses, no fim dos
mação para este nível é realizada nos Centros de Formação de Professores Primá- quais os participantes, após uma avaliação, recebem um diploma. A maioria
rios (CFPP) e é dirigida para a leccionação de todas as disciplinas deste nível. dos alfabetizadores ou monitores haviam terminado entre a 4. a e a 6. a classes.
Os professores para o nível secundário da 5. a e da 6. a classes são formados nos Até 1980 formaram-se cerca de 5.000 alfàbetizadores. Para a formação de
Institutos Médios Pedagógicos (IMP) e a formação dura dois anos após o can- alfabetizadores, os Núcleos Pedagógicos de Base jogam um papel importante.
didato ter completado a 9. a classe do ensino geral ou correspondente. Para as Uma experiência que joga um papel importante para o exercício da lei-
7. a , 8. a e 9. a classes os professores são formados, nesta fase, na Faculdade de tura e da escrita é a elaboração dos «Jornais do Povo». Organizados pelo De-
Educação da Universidade Eduardo Mondlane para a qual os candidatos en- partamento para Informação e Propaganda do partido Frelimo, os jornais do
tram com a 9. a classe completa, durando a formação dois anos. Os professores povo são elaborados pelos participantes nas campanhas da alfàbetização. O
para as 10. a e 11. a classes também são formados na Faculdade de Educação, seu conteúdo é escrito de uma forma simples e informativa sobre assuntos ac-
mas para a sua candidatura exige-se a conclusão da l1. a classe. A sua forma- tuais da arena nacional e internacional. Paralelamente aos jornais do povo há
ção também é de dois anos e corresponde ao nível de bacharelato. Entre 1979 programas na rádio que visam apoiar os programas seguidos nas campanhas.
e 1982 a Faculdade de Educação formara cerca de 1.000 professores para o Os programas radiofónicos são divulgados pelo MINED e radiodifundidos
Ensino Secundário (MINED 1984,12p.). na Rádio Moçambique de uma forma regular.
Depois da Independência, declara-se a Alfabetização e a Educação de Para os adultos são abertos cursos nocturnos que, na prática, funcionam
Adultos como sendo sectores prioritários para o rápido desenvolvimento do em quase todas as escolas e com os mesmos níveis que os diurnos. Os pro-
país. Assim, justificam-se os lemas que lideram as campanhas de alfabetiza- gramas de ensino e os professores são maioritariamente os mesmos que os
ção: «Aprender para aumentar e melhorar a produção» e «Aprender, Produzir diurnos no ensino geral e no técnico-profissional. Em relação a esta última
e Lutar». Acredita-se que, maIos trabalhadores saibam escrever e ler, estariam vertente a diferença está na duração: os cursos nocturnos levam, em média,
em condições de aumentar, quase que automaticamente, a sua produção e mais um ano de formação.
tornar-se-iam mais abertos à causa da revolução. O saber científico e técnico

n 73
José P Castiano • Severino E. Ngoenha A Mar'cha duma «Educação par-a Todos» em rvloçambique

Entre 1978 e 1982 mais de 79.000 adultos frequentam o curso nocturno, Importa, depois desta breve descrição da educação no período logo após
da 1. a à 4. a classes. Para os considerados «trabalhadores de vanguarda» e «res- a Independência, fazer uma breve análise das «conquistas» e dos «problemas»
ponsáveis» abre-se a possibilidade de frequentarem cursos especiais intensivos enfrentados.
organizados só para eles em turmas designadas de «especiais» que, pratica- Sem dúvida que uma das conquistas do sistema de educação no perío-
mente, funcionavam nas sedes de cada distrito. Para o nível básico, estes de- do descrito (1975-1982) é a massificação do acesso à escola, facto que muitos
nominam-se «cursos intensivos de elevação do nível básico» e, em média, têm países africanos após a sua Independência não tinham conseguido na mesma
a duração de nove meses, atingindo, os seus participantes no fim deste tempo, medida em que Moçambique o fez. Pela primeira vez, na História de Mo-
o equivalente ao nível básico de 4. a classe ou 6. a classe, dependendo dos casos. çambique, a escola estava aberta não só para as crianças em idade escolar,
Qmdros do partido Frelimo beneficiam destes cursos para «recuperar» o tem- mas também para os adultos e a população analfabeta. A expansão relativa da
po em que estiveram na luta sem poder estudar. Uma parte dos dirigentes que rede escolar tinha aumentado a oportunidade para uma maior participação
estão hoje formados, particularmente nas províncias, fizeram bom uso dessas das crianças vivendo nas zonas rurais e nas cidades, independentemente da
oportunidades que se lhes oferecia. Nos distritos e nas províncias, não é raro camada social da qual provinham. Ao mesmo tempo, a expansão das escolas
encontrar administradores e governadores frequentando as turmas especiais. técnico-profissionais, embora relativamente tímida, mas sobretudo a sua liga-
Procura-se seleccionar os melhores professores e os considerados «mais enga- ção com a formação geral, permite a muitos moçambicanos e obterem uma
jados» para leccionar estas turmas. Ser professor de uma turma especial está, qualificação profissional e ao mesmo tempo prosseguir com os seus estudos
muitas vezes, aliado a tratamentos «especiais» por parte dos alunos também em níveis mais avançados. As matrículas no ensino primário duplicam-se e no
«especiais», particularmente ao nível dos distritos. ensino secundário quadruplicam-se. Para além disso, pela primeira vez, em-
A única universidade, a Eduardo Mondlane, divide-se, na altura consi- bora de forma elitista, alguns moçambicanos negros ganham a oportunidade
derada, em 8 faculdades: de Educação, das Engenharias, de Letras, de Artes, de frequentar cursos universitários.
de Direito, de Economia, de Medicina e de Marxismo-Leninismo. O mime- A abertura de mais oportunidades educativas apontadas no parágra-
ro de estudantes frequentando a UEM sobe de 777 no ano de 1977 a 1.112 fo anterior foi acompanhada por mudanças qualitativas que visavam para a
estudantes em 1982 Qohnston 1984,96; DNE 1994,116). Um pouco acima superação do sistema de educação colonial. A nacionalização das escolas, a
de metade dos estudantes frequenta, no entanto, o curso do professorado para renovação dos programas de ensino, em particular das disciplinas com forte
as 7. a , 8. a e 9. a classes na Faculdade de Educação para o qual, como acima conotação político-ideológica, a introdução de novas disciplinas, a concepção
referimos, entra uma vez terminada a 9. a classe. Em 1982, a UEM tem 308 de uma nova política de formação de professores e, de certa forma, a reestru-
docentes, dos quais aproximadamente 75% são estrangeiros (gozando de um turação do sistema administrativo assim como a mudança nos métodos de
contrato de trabalho inicial de dois anos prorrogáveis). A relação docente- planificação escolar são alguns dos passos que completam as «conquistas» de
-estudante é de 1:4 (DNE 1994,116; Johnston 1984,95). É difícil tirar algu- ordem quantitativa ou, por outra, que as possibilitam. De particular destaque
mas conclusões sobre o grau de autonomia universitária em relação ao Estado é o avanço relativo na formação de professores que, em pouco tempo, dos 13%
nesta altura. O certo, porém, é que em termos financeiros e administrativos de professores formados que há em 1981 (das 5. a à 11. a classes) passa-se,já em
esta goza de uma certa autonomia de decisão. Qyanto à capacidade de abrir 1983, para 30% de professores formados (MINED 1984,12). Tendo em con-
novos cursos e de liberdade pedagógica não existem dados, nesta altura, para ta o aumento do número absoluto dos alunos, esta foi uma verdadeira proeza.
fazer juízos com uma sustentação suficiente. Mas nem tudo, neste período, foram conquistas. Embora tenha havido
um aumento considerável do número de ingressos, a pretensão de universalizar

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José P Castiano • Sever'ino E, Ngoenha A l.onga Mdr'cha duma «Educação em Moçambique

a escola, pelo menos a nível básico, ainda estava longe de se realizar. Para isso Além do exposto, constata-se que as taxas de repetência e de desistência
não bastava só aumentar o número de escolas e nem formar mais professores. são muito altas. No Ensino Primário a eficiência é muito baixa. Por exemplo,
O facto é que a maioria das crianças em Moçambique vive dispersa nas zonas dos cerca de 1.400.000 alunos que se inscrevem na La classe em 1980, só
rurais, situação que torna deveras muito difícil toda e qualquer planificação no 65.200 chegam a terminar a 6. a classe (DNE 1994,117p.). O Ensino Secun-
sentido de aumentar a rede escolar e de matricular todas as crianças em idade dário foi mais afectado, devido à fuga massiva dos professores que se seguiu à
escolar. Medidas sociais devem acompanhar o caminho da universalização Independência. A acrescentar a este facto, há o problema que resulta do facto
do ensino básico. Em 1Vloçambique tenta-se esta estratégia global através das de a maioria das escolas deste nível estar localizada nas cidades-capitais das
aldeias comunais, onde, pensava-se na altura, haveria condições de alargar os Províncias, prejudicando particularmente os alunos provenientes das zonas
serviços sociais, entre os quais a escola, às populações vivendo no campo. rurais, que dispõem de pouca ou quase nenhuma possibilidade de obter acesso
No que diz respeito à introdução de novos programas e disciplinas, é ao alojamento (internatos) nas zonas urbanas. Isto leva a que muitos deles
notório que o programa emperra exactamente na condição básica para o seu desistem da ideia de estudar. Da mesma forma, o acesso às escolas de for-
sucesso, que seria conseguir fornecer material de ensino básico e manuais mação profissionais é muito limitado devido à escassez dos estabelecimentos
aos alunos e professores. Um outro elemento que leva ao relativo fracasso de ensino desta natureza, comprometendo o objectivo de, na fase de 1975 a
do programa da transformação curricular, no seu global, está no esquema da 1982, formar pessoas em qualidade e em quantidade para ocuparem os postos
formação de professores. Para além de haver, no período em causa, cerca de de trabalho vazios na economia.
10.000 professores do ensino primário sem a qualificação necessária, mesmo Assim, já nesta altura, são notáveis os elementos críticos em relação ao
os que beneficiam desta formação não estão familiarizados com os programas sistema do ensino, muito em particular relativo ao sistema do ensino técnico-
que devem leccionar. A transformação dos conteúdos, muitas vezes não se -profissional. O mais criticado é o facto de o sistema permitir, muito cedo,
reflecte directamente na formação dos professores. Também o nível inicial de a passagem do ensino geral para o profissional. Como nos referimos acima,
entrada de 4. a classe parece ser muito baixo para a aprendizagem de aspectos uma vez completada a 4. a classe, dá-se a possibilidade de o aluno seguir uma
complexos da psicologia e da pedagogia o que, na prática, veio a reflectir-se formação profissional seja ela numa escola técnica ou num estabelecimento de
na qualidade de ensino destes professores. A acrescentar a este facto, vem a formação de professores. As crianças nesta idade ainda não possuem as condi-
imensa dificuldade em organizar sessões de actualização dos professores em ções de maturidade para se tornarem autónomas. Uma outra crítica é dirigida
conteúdos e, sobretudo, em métodos de ensino. Para explicar o relativo fra- para a composição dos cursos, questionando-se até que ponto um país agrário
casso da universalização do ensino básico até 1982 deve também olhar-se para estaria no caminho certo, no optar por investir mais na formação industrial.
o tipo de construções designadas por «escola»: muitas vezes trata-se de cons- Isto, pelo facto sobretudo de existirem mais cursos de cariz industrial que os
truções precárias, sem o mínimo necessário para a aprendizagem, como sejam agro-pecuários. Por último, pergunta-se se a opção tomada em priorizar a
quadros, carteiras, livros e outras. quantidade em relação à qualidade do ensino seria a mais correcta para aquela
As condições sob as quais os alunos vivem são um factor extra-escolar fase em que o maior desafio era criar condições para o arranque da economia.
adicional para o sucesso dos programas de renovação dos conteúdos e da es- Embora a ideia de se conceber um (novo) Sistema de Formação de Pro-
trutura do ensino. Muitos dos alunos vão à escola com fome, depois de terem fessores coordenado estivesse adjacente, até 1982 não há um sistema acabado
percorrido longas distâncias. Chegam à escola cansados e, realmente, sem os nesta área. Todo o sistema está perante um dilema que permanece não resol-
pressupostos básicos para prestar atenção às aulas e ter um aproveitamento vido por longo tempo. A opção de organizar cursos de curta duração para for-
razoável. mar professores tem a desvantagem de ser relativamente de baLxa qualidade.

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José P Castiano • Severeino E. Ngoenha A Longa ~/lar'cha duma «Educação parea Todos» em Moçambique

Se, por outro lado, se abrem cursos de longa duração, como se fez mais tarde, noite são os mesmos que leccionam nos turnos de dia e, assim, eventualmen-
a consequência é de não conseguir andar ao mesmo passo que a expansão te por razões de comodidade, leccionam na prática os mesmos conteúdos,
quantitativa. Testemunhos de hoje contam que uma das questões que «cor- usando também os mesmos métodos. Também não têm uma formação es-
reu mal» nos centros de formação, no que diz respeito aos formadores, é a pecífica em Andragogia. Os professores, na prática, não têm tempo especial
maneira como os professores são «seleccionados;;, particularmente os do sexo para preparar-se especificamente para dar aulas aos adultos. As aulas do curso
feminino. Estas são submetidas a um regime de internamento controlado o nocturno também são muitas vezes prejudicadas devido a constantes cortes
que teria levado a um certo alheamento, ou melhor, a uma dose de compulsi- de energia. No caso das turmas especiais, o maior motivo para o seu fraco
vidade na sua afectação à carreira de professorado. A compulsividade para «ir rendimento é, sem dívida, as faltas constantes que os alunos "especiais" destas
ao professorado;; feriria bastante o pressuposto básico de «amo!';; à profissão e turmas (administradores, membros do partido Frelimo, etc.) cometem.
à carreira. Daí que uma boa parte de professores enfrenta a primeira fase do O problema ligado à administração do sistema educativo e ao controlo
seu exercício profissional não como um sector onde fariam carreira, mas sim dos recursos humanos e materiais faz-se notar com muita nitidez. A falta de
como algo «de passagem;; até que conseguissem um emprego melhor. pessoal faz-se sentir principalmente ao nível das províncias e dos distritos,
Um outro problema, deveras discutido, hoje é a razão da deterioração porque as pessoas mais qualificadas e capazes tendiam a ser afectadas para
progressiva da imagem e do prestígio do professor e, fundamentalmente, do trabalharem a nível central. Devido à adopção do centralismo como princípio
nível primário no seio da sociedade moçambicana. de organização burocrática predomina a concepção de que os melhores tra-
C211anto à alfabetização, um dos problemas de grande peso é a falta de balhadores devem primeiro preencher o nível ministerial. Uma outra razão
programas pós-alfabetização na base dos quais os adultos poderiam aplicar para a concentração das pessoas bem qualificadas ao nível central está ligada
os conhecimentos apreendidos através da leitura. À maioria das aldeias rurais à tabela de remuneração e aos privilégios (muitas vezes informais) que o nível
não chegam os jornais e não há bibliotecas que pudessem estimular a prática ministerial oferecia. O resultado deste sistema é o de haver directores de es-
da leitura. Mesmo os programas da rádio que visam estender o campo do colas e outros executores locais com um nível de escolarização baixo, dificul-
exercício na percepção da língua portuguesa são, regra geral, mal sintonizáveis tando o exercício adequado e o fitem destro da burocracia rotineira. Aliás, este
em regiões do interior e longe das cidades. Assim, a maioria dos alfabetizados problema pode estar na origem das dificuldades sentidas nos levantamentos
volta a cair no analfabetismo de facto. Para além disso, consta que, em muitas estatísticos anuais que cada escola devia fazer a 3 de Março, muitas vezes com
ocasiões, é difícil conseguir recrutar aHàbetizadores capazes, justamente por dados e mapas mal preenchidos. Fica, assim, à partida, longe a possibilidade
causa dos fracos incentivos salariais. Da mesma forma, as formações organi- de conhecer o sistema e, na base deste conhecimento-diagnóstico, olhar para
zadas para os adultos, que na sua maioria decorrem no curso nocturno, é de soluções realistas.
muito baixa qualidade. Os factores principais relacionam-se com o tempo Uma das questões que mais perduram no debate sobre a educação em
(pós-laboral) que os adultos têm à sua disposição, regra geral muito pouco Moçambique é a alta percentagem de desistências e de reprovações. No pe-
para que se conseguisse cumprir com todos os programas curriculares. De ríodo que estamos a tratar, encontramos, em resumo, o seguinte quadro: De
igual modo, particularmente os operários, que exercem profissões pesadas, 1979 para 1982 as taxa média de desistência escolar manteve-se numa média
vêem fatigados à escola. Mesmo o facto de se tentar desenhar um currículo de 28% no nível primário (l.a à 4. a classe) por ano, enquanto que, no mes-
adequado para o curso nocturno (para o caso das escolas técnicas, alargando mo período, a taxa de repetência (ou reprovação) nas mesmas classes varia
por mais um ano a formação, e, para o ensino geral, reduzindo os conteúdos) entre 17% em 1979 e 21% em 1982, segundo fontes estatísticas do MINED
não parece ser a solução. Efectivamente, muitos professores que leccionam à (1984,7). É de notar que o alto nível de desistências se deveu principalmente

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José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha A Mar-cha duma «Educação para Todos» em Moçambique

à seca, aos ciclones, mas sobretudo à guerra que já se alastrava por muitas regi- um papel importante, senão mesmo central, porque é vista como o eixo da
ões de Moçambique. De facto, a guerra havia se alastrado nas províncias mais formação humana. Na altura, para o desenvolvimento acelerado, opta-se por
populosas de 1\I10çambique, nomeadamente Nampula e Zambézia. A guerra é uma planificação centralizada e por grandes investimentos. Na agricultura,
a causa principal para as desistências, se tivermos em conta que, até finais de isso significa a priorização de «machambas» estatais em detrimento da agri-
1982, por causa dela, tinham sido encerradas ou destruídas cerca de 840 es- cultura familiar e privada. Na indústria significa o direccionamento dos inves-
colas. O número de alunos prejudicados entra na estatística como desistentes. timentos (via Estado) para as grandes fábricas, como por exemplo, a Têxtil de
Os altos índices de reprovação devem-se, segundo o MINED (1984,9), Mocuba, Cometal-Mometal, etc. Os grandes desafios declarados pelo Gover-
a factores tais como a fraca formação dos professores, problemas adjacentes à no no PPI precisavam de uma resposta rápida e clara por parte do sistema de
adopção da língua portuguesa como única língua de ensino, falta de adequa- educação formal, particularmente no que diz respeito à formação de técnicos
ção dos conteúdos de ensino à realidade social dos alunos, à baixa qualidade, e profissionais com «alta capacidade científica».
falta dos materiais de ensino (como sejam livros e manuais para alunos e pro-
fessores) assim como utilização excessiva de aulas centradas no professor. 1\I1as como é que, ao ínves desse «salto» para o Socialismo, se chegou a
Da mesma forma, apresenta-se como problema o facto de só 20% dos uma «viragem» para o Ocidente?
utentes do sistema escolar, no período em causa, serem do sexo feminino.
O número de raparigas vai decrescendo à medida que o nível aumenta. Mas Numa entrevista ao Jornal O País publicada a 3 de Abril de 2004, Prakash
o problema das desigualdades de acesso não se coloca só entre rapazes e ra- Ratilal, um dos protagonistas próximos ao presidente Samora Machel e então
parigas. Se compararmos entre as crianças de proveniência urbana e rural, Governador do Banco de Moçambique, explica que Samora 1\I1achel começou
veremos que aqui também existem extremas desigualdades de oportunidades, por denominar a operação de viragem para o Ocidente por «Romper o Cerco».
favorecendo as citadinas. Estas desigualdades colocam-se também em relação Ratilal conta que, em meados de 1982, o Presidente Samora Machel chamara
à língua do ensino, colocando as crianças do meio urbano em vantagem de ao seu gabinete de trabalho alguns dos seus conselheiros, entre os quais ele,
passagem nas diferentes classes porque muitas delas têm o português como para lhes explicar a sua decisão de estabelecer contactos com os países ociden-
língua franca. tais e, concomitantemente, com as instituições da Bretton Woods, enquanto
Nos finais de 1982, a consciência destes problemas, alimenta, sem dúvi- que internamente se dinamizava uma política de desenvolvimento nacional.
da, a emergência das reformas educacionais, cujo apogeu é 1983. Segundo Ratilal, Moçambique aderiu a estas organizações já em Setembro de
1984 e esta adesão deve ser olhada no contexto histórico dos finais dos anos
6. Concepção e Implementação do «Novo» Sistema de Edu- 70 e princípios dos 80. Logo a seguir à Independência, Moçambique aderiu
cação (1983-1987) e aplicou exemplarmente as sanções contra a Rodésia decretadas pelas Na-
ções Unidas. Desta decisão, segundo Ratilal, resultaram muitas dificuldades
O Sistema Nacional de Educação (SNE) de Moçambique é concebido económicas, particularmente para a zona centro do país, uma vez que o porto
no quadro do Plano Prospectivo Indicativo (PPI) elaborado pelo Governo de da Beira não se podia desenvolver por já não prestar serviços de importação
Moçambique em 1980. O PPI tem como objectivo fundamental «eliminar o e exportação ao Zimbabwe. Ele continua revelando que há documentos das
subdesenvolvimento» na década (1980-1990). A eliminação do subdesenvol- Nações Unidas que referem que, desde 1976, os prejuízos directos e indirectos
vimento significa, na óptica do Governo, um «grande salto» em direcção ao acumulados por Moçambique até 1984 foram superiores a US$ 15 biliões, o
Socialismo. No contexto desta utopia social, à educação (formal) cabe jogar que gerou um aumento da dívida externa de Moçambique até ao ponto de ser

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Mdl-cha duma «Educação pai-a Todos» em

impagável. Ao mesmo tempo aumentaram as agressões externas directas da de trabalhadores para áreas em estreita coordenação com as perspectivas dos
África do Sul ao nosso país, mesmo depois da queda do regime de Ian Smith grandes projectos económicos. Por isso, a médio prazo, a universalização da
na Rodésia. A mesma África do Sul reduzira as suas exportações a partir do educação básica para todos é declarado como a meta principal. Esta deve ser
porto de Maputo, que viu reduzido o movimento de 13 milhões de toneladas alcançada através do alargamento da rede escolar. A opção da política educa-
por ano para apenas 1.4 milhão. Um terceiro fàctor foi a crise eco nó mica tiva é aqui, nitidamente, em relação ao crescimento quantitativo. No entanto,
mundial provocada pelo aumento do preço do petróleo que se mantinha a o caminho para uma verdadeira reforma devia passar também pela renovação
níveis superiores a US$ 25.0 por barril. Isto provocou uma situação financeira mais profunda e séria dos conteúdos do ensino e por uma sólida mobilização
desesperada, com efeitos nefastos na balança de pagamentos de Moçambique. político-ideológica no contexto do projecto de construção de uma sociedade
Perante esta situação, conta Ratilal, Samora Machel conduziu, nos iní- socialista. Os planos de lição deviam expressar, assim, a opção «classista» da
cios dos anos 80, sucessivas reuniões internas com a participação de mui- mudança social, ou seja, favorecer os filhos dos operários e camponeses, para
tos quadros, que visavam definir estratégias para contrariar a acção global fazer deles operários e camponeses qualificados para os grandes desafios eco-
do apartheid, para assegurar o desenvolvimento eco nó mico e social de Mo- nó micos (SNE 1985).
çambique. Era preciso «romper o cerco». A cúpula da Frelimo define, então, Em 1981, o MINED apresenta, na 9. a Sessão da Assembleia Popular,
acções no plano militar, no plano da economia interna e também no plano um documento contendo as Linhas Gerais do Sistema Nacional de Educação.
diplomático. Foram assim enviados «ministros-residentes» para as províncias Este documento viria a ser a base para um debate mais amplo durante 1982 e
estratégicas; foi ainda iniciada uma «ofensiva política e organizacional» a nível inícios de 1983. Uma das linhas de pesquisa no que diz respeito a esta fase será
interno dirigida aos sectores da produção, visando o aumento da produtivida- de saber até que ponto o sistema de educação, tal como é concebido e aprova-
de, e lançado o Plano Prospectivo Indicativo (PPI) para relançar a economia do em 1983, tem paralelos com o sistema de educação de 1963, até então vi-
de Moçambique adoptando, entre outras, a estratégia de megaprojectos como gente na RDA, uma vez que, no processo da elaboração da lei moçambicana,
a Têxtil de Mocuba, o projecto de algodão em Cabo Delgado e Niassa, a ex- assim como na sua discussão, participaram como conselheiros do MINED,
tensão da linha que leva a energia eléctrica para todas as capitais provinciais e cooperantes daquele país socialista. Também importaria recuperar o «espíri-
para algumas sedes de distritos, etc.; e, por último, no plano diplomático, ini- to» do debate nas diferentes províncias e a diferentes níveis. O que seria mais
ciou uma série de contactos com países como Portugal, França, Grã-Bretanha interessante para a Filosofia da Educação em Moçambique, é procurar ler se,
culminando com a visita de Samora Machel aos Estados Unidos em 1985. nos debates organizados sobre a reforma educacional, teriam emergido deter-
Alguns empresários internacionais, incluindo David Rockfel1er, visitam Mo- minadas posições alternativas ao sistema que depois se viria a implementar,
çambique. Começam as conversações com as instituições da Bretton Woods para reviver o debate havido particularmente em relação ao papel das tradições
e com a Overseas Privat Investment Corporation, esta última para patrocinar os e ao papel das línguas nacionais.
investimentos em Moçambique. A Lei sobre as Linhas Gerais do Sistema Nacional de Educação (Lei n.O 4/83)
É no contexto do PPI que o Partido Frelimo «orienta» o MINED para é aprovada a 23 de Março de 1983 pela Assembleia Popular em Maputo. Na
conceber um sistema de educação à altura destes desafios. O novo sistema descrição da lei que se segue procura-se expor, resumidamente, os objectivos
deveria eliminar os problemas enfrentados até então (ver o capítulo anterior), políticos e pedagógicos, os princípios e a estrutura do sistema de educação tal
permitir a continuidade entre os diferentes níveis e cursos, mas, sobretudo, e qual é então delineado.
uma planificação da formação profissional que projectasse números concretos

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A MMcha duma «Educação em 1'-1oçambique
José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha

gratuita de todas as crianças que completam sete anos de idade. A educação é


No seu artA.o, a lei determina que:
declarada «um dever e obrigação» de todos os cidadãos, uma «obrigação» que
«(o) Sistema Nacional de Educação tem como objectivo central a for- o Estado ainda se propõe a cumprir. E um «dever» que, infelizmente até hoje,
mação do Homem Novo, um homem livre do obscurantismo, da su- nem toda a criança moçambicana está a gozar.
perstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume A formação do «Homem Novo» é concebida no sentido de este homem
os valores da sociedade socialista ... ». receber do Estado uma formação profissional no quadro do ideal económico
pré-estabelecido. Para além disso, seria necessário tornar a escola «uma base
o objectivo político fundamental é, portanto, a formação do «Homem para o povo tomar o poder», o que significa pôr a ciência e a técnica ao serviço
Novo» que seja capaz de «construir uma sociedade socialista». Para além deste do povo. Um outro ponto que se declara ser muito importante é a «mudan-
objectivo político mais amplo, determinam-se os objectivos para a área da ça da mentalidade», referindo-se particularmente aos quadros moçambicanos
educação, que são a eliminação do analfabetismo, a introdução de uma esco- formados no tempo colonial. Para este pessoal, é necessário mudar a sua ati-
larização universal e obrigatória, e a intensificação de uma formação técnica tude, por se tratar de homens habituados a servir um sistema elitista colonial,
de quadros para o aparelho do Estado e para as fábricas e os grandes projectos para passarem a servir um sistema «popular» e «centralizado» no exercício
económicos. administrativo e pedagógico da educação. O espírito da lei dá muita impor-
No que diz respeito aos princípios do sistema de educação, são determi- tância à inserção da escola na comunidade, uma ligação que deve ser garantida
nados três: o «princípio da unicidade do sistema» que preconiza a necessidade através da implementação, tanto na escola como nas comunidades, da «linha
de se conceber um sistema continuado e progressivo para cada utente em ter- política do partido Frelimo», este concebido como o único «guia da classe
mos estruturais e de conteúdos de aprendizagem; o «princípio da correspon- operário-camponesa na Revolução Socialista».
dência entre os objectivos, conteúdos e estrutura da educação e transformação A questão da «Unidade Nacional» também é claramente tratada pelo
da sociedade» que pretende ligar o sistema da educação aos objectivos sociais, legislador da lei do sistema de educação. Assim, para além de sublinhar a ne-
económicos e políticos formulados; e finalmente, o «princípio da articulação cessidade de se conceber um sistema unificado para todo o território nacional
do sistema» que reflecte a necessidade de haver correspondência horizontal e - o que significa, como vimos, a eliminação de todo o tipo de diversificação
vertical entre os elementos do sistema de modo a permitir que cada utente do e a centralização do poder de decisão para os órgãos do centro do sistema -
sistema de educação tenha possibilidades de formação e de capacitação. Na também se sublinha que a língua do ensino seria exclusivamente a portuguesa
base destes princípios, o sistema de educação deveria permitir uma saída dos «como símbolo da unidade nacional». As línguas nacionais são reservadas para
utentes para o mercado do trabalho a quatro níveis, nomeadamente elemen- a função de «desenvolvimento da cultura, da História e da arte» moçambica-
tar, básico, médio e universitário. É evidente que o princípio da unicidade eli- na, segundo os art. 3.°, 4.° e 5.° da lei que vimos analisando.
mina a possibilidade da existência de «escolas diferenciadas» dentro do siste- No que diz respeito aos objectivos de índole pedagógico, destaca-se a
ma. Assim, também o princípio da correspondência elimina a possibilidade de necessidade de formação de uma personalidade que fosse capaz de conjugar
o sistema próprio criar elementos com um papel crítico dentro de si mesmo. os elementos intelectuais, morais e políticos. Para além disso, o Homem a
A garantia na realização das «tarefas» confiadas ao sistema de e~uca­ formar deve harmonizar o desenvolvimento da sua personalidade com a com-
ção só será possível através da responsabilização total do Estado, ou sejêl, do binação que existe entre a formação científica, prática e política. Um outro
monopólio total do Estado sobre a educação. Assim, através do ~rt.6,.0. da objectivo de índole pedagógica é a necessidade de ligação entre a teoria e a
lei o Estado moçambicano obriga-se a garantir a escolaridade obngatona e prática ligação essa que, em termos práticos, se consubstancia na alternância

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José P Castiallo • Severillo E. Ngoellha

entre a aprendizagem teórica e a actividade produtiva material. A escola deve divide-se em três níveis (art.26.o a art.31.°), cuja diferenciação entre os utentes
tornar-se um «centro da dinamização social, cultural e política das comuni- tem como ponto de referência o subsistema de formação geral. O primeiro nível
dades» em que estivesse inserida. No ±lmdo, vemos aqui consubstanciada a é o do Ensino Elementar Técnico-Profissional (duração entre dois a três anos)
ideia da unicidade entre o ensino (formalizado) e a educação (Bildung). Isto que admite jovens que tenham terminado a 5. a classe do ensino geral e à saída
significa que os objectivos e conteúdos cognitivos da sala de aulas devem estar obtêm um nível correspondente à 7. a classe também do ensino geral. O segundo
ligados aos objectivos e conteúdos normativos e comportamentais que se pre- é o Ensino Básico Técnico-Profissional (três anos de formação) que está previsto
tendem alcançar. A escola moçambicana é, assim, uma instituição não só para para os que tenham terminado a 7. a classe ou equivalente. Uma vez terminado o
a aquisição de conhecimentos científicos e habilidades técnicas, mas também, curso, obtêm o nível equivalente à 1O.a classe. O terceiro nível, o Ensino Médio
e sobretudo, uma frente de batalha política de vanguarda para a mudança da Técnico-Profissional, é para os que tenham a 1O.a classe ou o equivalente. O nível
mentalidade e comportamento ideológicos que se consideravam contrários à de saída corresponde ao da 12. a classe. Estes podem ingressar na Universidade
causa socialista. O carácter selectivo da escola não obedece só, desta forma, a Eduardo Mondlane para os cursos em que tenham uma formação média. Para
critérios de índole científica, mas também política. além de jovens, este subsistema serve também aos trabalhadores em exercício as-
Segundo a lei em análise, o sistema de educação, fica dividido não só em sim como abre oportunidades de formação para os adultos sem nenhuma forma-
níveis (como até agora) mas também em subsistemas. Enquanto que para os ção profissional. Estes, porém, na sua maioria, frequentam o curso nocturno.
níveis continuamos a ter o pré-escolar, o primário, o secundário e o universi- O SSFP destina-se a formar professores que pudessem garantir, por sua
tário, para os subsistemas temos o Subsistema do Ensino Geral (SSEG), o do vez, a preconizada formação «científica e ideológica» nas escolas. Por isso, na
Ensino Técnico-Profissional (SSETP), o Subsistema de Formação de Pro- formação de professores tem-se o cuidado de garantir que os seleccionados se-
fessores (SSFP) o de Educação de Adultos (SSEA) e o do Ensino Superior jam política e ideologicamente maduros. Caso não o sejam, então na formação
(SSES). A ligação entre estes subsistemas é organizada segundo o princípio devem ter uma carga horária acrescida de cadeiras que garantam o seu enga-
da continuidade e correspondência entre os diferentes níveis de ensino e os jamento político. A formação inicial comporta dois níveis. Para ser professor
subsistemas. primário do primeiro nível (EP1) a formação decorre nos Centros de Formação
O SSEG é concebido para a faixa etária que vai dos sete aos dezanove de Professores Primários (CFPP) que dura três anos. O nível de entrada de cor-
anos cujo objectivo é oferecer uma formação geral capaz de desenvolver capa- responde à 7. a classe. Para os professores do segundo nível do ensino primário
cidades mentais, corporais e manuais dos alunos. O Ensino Primário subdivi- (EP2) a formação é oferecida nos Institutos Médios Pedagógicos (IMP) e diri-
de-se em EP1 (da 1. a à 5. a classe para a faixa etária dos sete aos catorze anos) gida aos que tivessem terminado o nível geral da 9. a classe ou correspondente.
e o EP2 (que inclui a 6. a e a 7. a classes). O Ensino Secundário Geral comporta A formação também dura três anos. Numa primeira fase, os professores para o
dois níveis: o primeiro que inclui a 8.a, 9. a e 10. a classes, e o segundo que in- primeiro nível do Ensino Secundário da 7. a à 9. a classes no antigo sistema são
clui a l1. a e a 12. a classes. Este último é designado Ensino Pré-Universitário, formados na Faculdade de Educação, como fizemos referência. No entanto, em
denominação essa que sugere com clareza o seu carácter não terminal, mas 1986 decide-se a criação do Instituto Superior Pedagógico (ISP), na sequência
simplesmente preparatório para a universidade. É de destacar que o SSEG da dissolução da Faculdade da Educação na UEM, que se responsabiliza pela
tem uma posição de referência axial em relação aos outros subsistemas, dado formação de professores para este nível. A partir daí, aos professores para os dois
que é com base neste que se «equivalem» os outros subsistemas. níveis do Ensino Secundário exige-se grau de licenciatura que se obtém depois
O SSETP destina-se, em primeira linha, a formar jovens para a vida pro- de cumprir um plano curricular de cinco anos no ISP. Entretanto, note-se que
fissional e para entrarem na «classe operária» (SNE 1985,70p.). Este subsistema as acções de formação em exercício e de aperfeiçoamento dos professores são

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José P. Castiano • Sevel>ino E. Ngoenha A Marcha duma «Educação para Todos» em 1'1oçambique

coordenadas pelo Instituto de Apoio Pedagógico (IAP) fundado mais tarde, Figura 2: Estrutura do MINED (1984)

em 1988.
O SSEA está previsto para as pessoas que tenham completado quinze Ministro I
anos de idade. A sua divisão corresponde à do Ensino Geral e, em geral, fun-
ciona à noite, sendo, por isso, destinado aos trabalhadores. Este subsistema Vice-Ministro Vice-Ministro
(Pedagógico) (Administrativo)
está institucional e pessoalmente ligado ao ensino geral, quer dizer que, nas
escolas onde ele funciona, o pessoal administrativo e os professores tendem a
ser, na prática, os mesmos que os do ensino diurno, portanto sem formação I I I
específica para leccionar e gerir respectivamente o ensino de adultos. Inspecção
Planificação I Relaç~es ./l Administração ./
Qganto ao ensino universitário, a lei de 1983 não introduz inovações I 1I
Estatística
1 InternaCionais Geral

notáveis. O seu objectivo continua a ser o de fornecer à economia quadros al-


tamente qualificados tanto sob o ponto de vista científico como político (SNE I I
Secretaria do Secretaria do Secretaria do Estado
I I I l
1985,101p.). A formação é parcialmente dividida em duas fases: a do bacha-
relato (2-3 anos) e licenciatura (média de cinco anos).
Estado para
a Cultura
Estado para a
Educação Física
para
Formação
I UEM
I INDE
/
INED
/

Com a introdução do SNE surge a necessidade de reestruturar o MI- e Desportos Técnico-Profissional

NED. Esta necessidade é óbvia porque, para um sistema complexo e pesado


que emerge, também a estrutura de administração deveria corresponder a es- I I I
tas transformações. A figura 2 mostra como é que este é alargado para corres- I DNEG lI DNFP I DNEA I
ponder aos desafios que se lhe colocavam pelo poder político:

[ DPE I

I DDE I
Legenda:
UEM - Universidade Eduardo Mondlane
INDE - Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação
INED - Instituto Nacional de Educação Física e Desportos
DNEG - Direcção Nacional do Ensino Geral
DNFP - Direcção Nacional de Formação Profissional
DNEA - Direcção Nacional de Educação de Adultos
DPEC - Direcção Provincial de Educação
DDEC Direcção Distrital de Educação

88 89
José P. Castiano • Sevel-ino E. f'lgoenha A Longa Mar-cha duma «Educação em Moçambique

A figura 7, que ilustra a estrutura do lVIlNED, mostra o carácter centra- não havendo, porém, a este nível órgão autónomo correspondente ao SETEP.
lizado com que é administrada a educação. O Ministro é o responsável últi- O nível mais inferior da administração da educação é formado pela Direcção
mo pela direcção de todo o sistema; os restantes funcionários são, na prática, Distrital de Educação (DDE) com mandatos de supervisar e garantir a im-
seus colaboradores. Para isso, ele tem dois vice-ministros, sendo um para a plementação das orientações centrais ao nível das escolas sob a sua respectiva
área pedagógica e o outro para a área administrativa. A seguir ao ministro jurisdição.
e aos vice-ministros estão as "direcções centrais» do MINED responsáveis O organograma mostra que a investigação, o ensino à distância, a forma-
pela inspecção, pela planificação e estatística, pelas relações internacionais e ção de professores e o ensino superior estão directamente controlados e ad-
pela administração geral. Enquanto que as duas primeiras direcções centrais ministrados pelo MINED, na pessoa do ministro, situação que hoje é muito
se submetem ao vice-ministro para a área pedagógica, as duas subsequentes diferente.
estão sob a responsabilidade directa do outro vice-ministro. O sistema centralizado não se reduz só à forma como a estrutura admi-
Pela natureza do seu trabalho são montadas três Secretarias do Estado, nistrativa estava organizada, embora esta seja a sua parte mais visível. Para
nomeadamente a Secretaria do Estado para a Cultura, a Secretaria do Estado além da administração no seu sentido restrito, pode considerar-se que a cen-
para a Educação Física e Desportos e a Secretaria do Estado para o Ensino tralização se demonstra ao nível pedagógico, tanto na elaboração dos conteú-
T écnico-Profissional. Estas são áreas que, entendia -se, não só tocavam a da dos, assim como no seu controlo consubstanciado no sistema de exames na-
educação no sentido restrito, mas respondiam a movimentos sociais mais am- cionais. Os planos de lição, manuais e outro material didáctico são elaborados
plos, como a criação e a coordenação da cultura (danças, produção literária, por funcionários directos ou contratados pelo MINED. O sistema de exames,
música, etc.) e do desporto (competições, campeonatos, etc.), e profissionais que abrange a 4.a, a 7.a, a 10. a e a 12. a classes, está concentrado no MINED
no sentido da formação nas empresas, e equivalências. Para o caso da SETEP, que os elabora e os distribui por todas as escolas no fim de cada ano escolar
ela é fruto da fusão entre a anterior direcção para o ensino técnico-profissional com os respectivas guiões de correcção. Os planos de lição determinados nos
que funcionava no MINED e o Serviço Nacional de Formação, um orga- programas que se distribuem por todas as escolas contemplam os conteúdos e
nismo que funcionava dentro do Ministério do Trabalho. Os Secretários de a sua respectiva distribuição por horas lectivas, para além de estarem indicados
Estado são nomeados directamente pelo Presidente da República, tal como o os objectivos, métodos e orientações para se proceder à avaliação.
ministro (esta estrutura é, mais tarde, abolida ou modificada). Daí que, sob o Um outro aspecto da centralização, que por ocasiões passa despercebido,
ponto de vista estritamente administrativo, os Secretários do Estado tenham é o que diz respeito ao calendário escolar. Todas as escolas do país, estejam
uma certa autonomia em relação ao ministro da educação na planificação e na elas no meio urbano ou rural, estão submetidas ao mesmo calendário escolar
execução das suas obrigações. Para além disso, mostra-se que no período em (início das aulas, período das férias, datas de avaliação nacional, etc.) inde-
causa o Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação (INDE), o pendentemente do ciclo produtivo predominante em cada região ou ainda de
Instituto Nacional para o Ensino à Distância (INED), mais tarde transforma- outras variações sejam elas de carácter geográfico ou de carácter cultural.
do em IAP, e a Coordenação do Ensino Superior, primeiramente só a UElVI, Entre 1983 e 1987 é introduzido o «novo» sistema em todo o país de
fazem parte ainda da estrutura central do MINED. As Direcções Nacionais, uma forma gradual (anualmente uma classe). Em seguida analisamos como
dirigidas por um director, estão mais ligadas à administração directa dos tra- a visão de um desenvolvimento harmónico se contrapõe à realidade cheia de
balhos nas províncias e nas escolas. contradições próprias da implementação do sistema. Chamamos a atenção
No nível médio da administração estão as Direcções Provinciais de Edu- para o facto de que a análise que se segue deste período diz respeito somente
cação (DPE) que, na sua estrutura, são basicamente uma réplica do MINED, às classes em que o «novo» sistema foi introduzido, isto é, da 1. a à 6. a classes.

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José P Castiano • Sevenno E. Ngoenha A i"lal'cha duma «Educação em Moçambique

Segundo um relatório publicado pelo MINED em 1991, o sistema só Segundo cálculos feitos por Daun (1992,14), as ta,'{as médias de matrícu-
funcionou adequadamente em 1/3 das escolas. Na maioria das províncias, la para ambos os níveis do ensino primário calculadas sobre o número total das
a introdução foi simplesmente interrompida ou, ainda, as medidas foram crianças dos sete aos doze anos de facto descem de 51%, em 1983, para cerca
parcialmente implementadas. Isto demonstra, em parte, a inércia do sistema de 35,5% em 1987. São cálculos que se apresentam um pouco mais abaixo da
administrativo montado. A única unidade administrativa que conseguiu im- versão oficial. Mas o período mais crítico foi de 1986 para 1987 onde a des-
plementar o sistema na sua plenitude foi a cidade do Maputo. O EP2 só foi cida foi drástica em cerca de 10% (de 48% para 38%). No geral, isto significa
implementado em cerca de 30% nas províncias de Tete e de Niassa, enquanto que de três crianças em idade escolar, somente uma pôde entrar na escola.
que na Zambézia e em Sofala o grau de implementação variou de 30% a 60%, Dois terços de uma geração fica fora do sistema sem as oportunidades de
as províncias de Manica, Cabo Delgado e Gaza entre 60% a 80% e, finalmen- desenvolvimento que este oferece! São pessoas que hoje (2004) estão na idade
te, Nampula e Inhambane com um grau de implementação médio de 85% compreendida entre 25 a 30 anos. Repisamos: dois terços (2/3) das pessoas,
(MINED 1991,29p.). que então eram crianças, não foram à escola.
Um segundo aspecto a considerar é que os princípios políticos e peda- Depois de ver a quantidade dos que entram ou se matriculam na escola,
gógicos estabelecidos pela lei descrita só são implementados por uma parte lancemos agora um olhar ao que se passa, uma vez as crianças matriculadas.
reduzida da população abrangida pelo sistema de educação, dado que uma 011'<11 é o rendimento destas crianças expressas em números? Na verdade, as
grande parte dela não passou por ele. Assim, pode-se inferir, desde já, que o taxas médias tanto de desistências como de reprovação permanecem, neste
ideal de formar o Homem Novo estava, à partida, comprometido. Dito em período em que se introduz o «novo» sistema, ainda muito aquém dos dese-
outras palavras: a ideia de fazer passar pelo sistema toda uma geração que jáveis. A forma mais comum de avaliar a eficiência do sistema é o cálculo e
no fim comungasse uma ideologia está ameaçada pelo simples facto de que a análise dos índices de desistência e de repetição dos alunos matriculados.
metade das crianças não podia ir à escola. E se tivermos em conta o número Entretanto, há duas formas de o fazer. Por um lado, pode calcular-se, por
reduzido de escolas que realmente foram atingidas pelo novo sistema, então exemplo, as taxas de repetição em relação ao número de alunos que chegam
teremos uma quantidade muito reduzida de pessoas que, de facto, passou pelo ao fim do ano; por outro, tomando em conta o número das crianças matri-
sistema. Depois de os números em termos percentuais de crianças que entram culadas no início de cada ano. No segundo caso, os desistentes também são
na escola pela primeira vez (no EP1) ter aumentado de 1975 a 1981 em cerca considerados repetentes. Assim, segundo estas formas diferenciadas de cálcu-
de 16% por ano, entre 1983 e 1987 o crescimento anual dos mesmos estagna, lo, teremos números diferentes para Moçambique. Para a primeira forma de
segundo dados do MINED (1990,3). Assistimos entre 1983 e 1987 a uma es- cálculo, teremos uma taxa média de repetência de 29% no ano de 1983 e de
tabilização nas taxas médias de matrícula por ano, mas que, no geral, se traduz 25% em 1987 (MINED 1991,36; ASDI 1991,113). Se tomarmos a segunda
em baixas de taxas médias, se tivermos em conta o crescimento da população forma de cálculo, as taxas de repetência sobem, no mesmo período, para uma
em idade escolar. A tabela abaixo testemunha esta evolução negativa: média de mais de 50% (Palme 1992,7). Os números são mais alarmantes se
calcularmos as taxas tomando em conta os quatro anos de escolaridade. As-
matrícula no EP 1 e EP2 (1983 e 1987) sim, segundo o MINED (1991,37), de 1000 crianças matriculadas em 1983
(ano da introdução do novo sistema) na 1. a classe só uma média de 30 teriam
passado a 5. a classe. Sob este ponto de vista, o desperdício é muito maior do
que podemos imaginar.
Fonte: Di'-IE 1994,1 16: Daun 1992,13.

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José P Castiano • Severino E. A Longa fYléll-cha duma pai-a Todos» em Moçambique

Um dos momentos mais notáveis de desperdício no sistema de ensino de compra dos pais (Daun calcula que só 15% dos pais podiam adquirir o
sempre foi na fase da passagem do EP1 para o EP2. Como se pode depreen- material necessário) fazem com que a maioria das crianças não tenha material
der da tabela 9, no ano de 1987, de cerca de 1.300.000 crianças somente cerca escolar necessário para frequentar a escola com condições mínimas requeridas
de 76.000 lugares estão disponíveis para o nível seguinte do EP2. Para onde para o sucesso escolar.
vão as cerca de 1.100.000 crianças restantes, sabendo que muito poucas teriam Os esforços da educação são no contexto da guerra. Não se pode des-
sido absorvidas nos outros subsistemas? Estas tiveram que interromper a sua curar, assim, que entre 1982 e 1987 são fechadas cerca de 2.200 escolas do
carreira escolar, anulando todos os esforços de escolarização e de alfabetização EP1. Em 1989 há somente 3.618 escolas do EP1 a funcionar, das quais cerca
realizados. Estas crianças só podem ser os analfabetos de hoje! de 25% são incompletas, ou seja, sem todas as classes previstas a funcionar.
O outro ponto fraco do balanço da introdução do sistema é o facto de O MINED tenta aumentar os lugares nas escolas introduzindo três turnos
não ter superado totalmente a fraca representação da Inenina na escola, embora por dia nas cidades e vilas onde há uma relativa segurança e para onde afluem
reconhecendo o grande esforço feito neste sentido. Mas Moçambique está populações fugidas da guerra. Esta medida aumenta a carga dos professores,
numa posição extremamente vantajosa em relação aos outros países africanos. sobrecarrega a utilização das instalações e materiais escolares e deteriora as
Efectivamente, a percentagem das meninas na escola, que é de 34% em 1975, condições de ensino-aprendizagem em geral.
passou para 43% em 1983, e para 44% em 1987 ao nível do EP1. Ao nível Em termos de disciplinas, o balanço feito pelo MINED (1991,43) mos-
do EP2, ela sobe de 33% em 1983 para 38% em 1987, segundo dados oficiais tra que as crianças apresentam muitas dificuldades nas disciplinas de Portu-
do MINED (1991,26). Porém, as percentagens médias são falaciosas porque guês e Matemática. As crianças que terminam a 5. a classe ainda não estão em
pode observar-se muita diferença entre as escolas rurais e urbanas; estas, por condições de construir logicamente frases simples e sem erros. O nível e a
sua vez, diferenciam-se das escolas suburbanas. As mesmas diferenças podem qualidade de expressão, leitura e interpretação são muito baixos. Também se
ser notadas ao longo dos níveis. Por exemplo, os estudos de Palme (1992,89) notam as mesmas dificuldades no seio dos professores. No caso da Matemá-
demonstram que, enquanto na primeira classe há uma média de 46% de me- tica, notam-se dificuldades de aritmética na 2. a classe. As crianças não conse-
ninas, na 5. a classe já desce para 39%. As diferenças regionais também são guem fazer cálculos dos mais simples sem o auxílio da tabuada. Alunos da 4. a
notórias, segundo ainda o estudo mencionado. Assim, enquanto em Maputo classe não conseguem resolver problemas por não serem capazes de interpre-
temos uma média de 48% de meninas na 1. a classe, na província de Nampula tar o texto dado. Também há problemas com a disciplina de História: muito
temos 43% na mesma classe. Mas a mesma proximidade já não se verifica na poucas crianças estão em condições de estabelecer conexões entre factos ou
5. a classe: Maputo regista 54% e Nampula desce para 21 % de meninas na 5. a de explicar relações de causalidade com certa sequência lógica. Algumas dis-
classe. C2.11er dizer que, nas cidades, as meninas têm melhores condições de ciplinas tais como Educação Física, Trabalhos Manuais e Educação Política
permanência na escola, pelo menos a nível primário. Uma conclusão primária, passam, muitas vezes, para o segundo plano e não poucas vezes são totalmente
porém, mostra-nos que as oportunidades entre rapazes e raparigas não são abandonadas, quer por falta de professores, quer por haver dificuldades em
iguais nem à entrada na escola, nem durante todo o período de frequência. termos de ajustá-las ao horário normal, já em si preenchido. Estas três foram,
A introdução do sistema de 1983 teve, à partida, um outro constrangi- na maioria dos casos, as disciplinas «sacrificadas» em muitas escolas. É quase
mento: entre 1983 e 1988, segundo um relatório do MINED (1991,34) só 1/5 seguro que Moçambique esteja a pagar estas omissões, se tivermos em conta
do material necessário foi distribuído pelas escolas do EP1. As dificuldades de o estado em que está tanto o desporto como a moral política daqueles que
distribuição provocadas pela guerra, a falta de vontade dos comerciantes em hoje constituem o grosso dos adultos. Também se deve buscar neste perío-
distribuir material gratuito (acabando por os vender) e a falta de capacidade do as dificuldades que os estudantes sentem nas universidades, precisamente

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal'iI Todos» em Moçarnbique

por lhes faltarem algumas referências teóricas e habilidades que deveriam ter dívida constitui um sério entrave para o desenvolvimento social dado que,
aprendido na altura devida nas diversas disciplinas. anualmente, 13% das despesas estatais destinam-se ao serviço da dívida. O
ponto mais alto foi o ano de 1977 no qual o Estado chega a aplicar 33% das
suas despesas para o serviço da dívida (Diogo 1996,2-4). Nestas condições,
7. Período Liberal e a Educação (1987-1992)
o Estado moçambicano vê-se obrigado a encurtar cada vez mais as despesas
para os sectores sociais de saúde e educação e, ao mesmo tempo, a encarecer
o período que vai de 1987 a 1992 foi caracterizado por uma profunda os preços dos produtos básicos.
crise económica e social que conduziria a um colapso verificado na esfera polí-
Simultaneamente, neste período, como uma reacção à crise, começa uma
tica. A crise pode ser considerada o resultado da implementação das medidas
série de reformas políticas que iriam culminar com as primeiras eleições gerais
da reestruturação económica e da guerra. Em 1990, o Banco Mundial classi-
de 1992. Em 1990 foi aprovado um novo texto constitucional. Este continha,
fica Moçambique como sendo «o país mais pobre do mundo» com um ren-
entre outras <<novidades», a liberdade de imprensa, a permissão de fundação
dimento médio per capita anual de 80 dólares americanos (Plank 1993,7). Na
de partidos políticos e o direito à greve. Estão dados, assim, os primeiros pas-
sua estratégia económica, Moçambique «despede-se» da orientação marxista,
sos para a democratização efectiva de lVloçambique.
começando a caminhar com passos largos para uma economia de mercado li-
O período de 1987 a 1992 pode ser considerado de uma «crise geral» do
vre. Sob o ponto de vista social, a rede de assistência social (educação e saúde)
sistema de educação em Moçambique. Esta crise generalizada tem repercus-
entra num colapso quase total. O aumento impressionante do custo de vida
sões muito sérias na política educativa. Adoptamos o termo de crise geral para
provoca uma pauperização sem precedentes da maioria das pessoas e torna-se
classificar a incapacidade do Estado de assegurar o acesso de todas as crianças
cada vez mais notável a diferença entre uma minoria rica e uma maioria po-
à educação básica e um mínimo de qualidade àquelas crianças que estão na
bre. A capacidade de manobra do Governo moçambicano tornava-se cada vez
escola. Efectivamente, entre 1987 e 1992, cresce o número das crianças sem
mais estreita devido à guerra e à entrada massiva de ONGs internacionais que
possibilidade de ir à escola e também aumentam as desistências e reprovações.
começam a «ocupar» vários campos sociais. Os investigadores Abrahamsson
A qualidade de ensino torna-se péssima. A compra de material didáctico bá-
e Nilsson (1994,249-277) falam já de uma «crise da legitimação» do Esta-
sico, particularmente os livros escolares, torna-se difícil para as camadas mais
do moçambicano, querendo referir-se à perca sucessiva da autoridade estatal,
pobres. Tornara-se cada vez mais difícil manter uma administração coerente
particularmente nas zonas rurais.
de todas as escolas por uma via totalmente centralizada. O mais importante
Um factor importante que vai favorecer a abertura de Moçambique para
desta fase foi o facto de a diferenciação social ter atingido o sistema de edu-
as medidas do Banco Mundial e do FMI é a dívida externa. Em 1993 esta per-
cação: o surgimento das escolas privadas começa a legitimar escolas para os
faz US$ 5,3 biliões, sem contar com a dívida militar para com a União Sovié-
filhos das elites. As elites económicas e políticas começam a buscar os seus
tica e nem com a dívida contraída pelo sector privado. Cerca de 30% da dívida
próprios espaços educacionais onde garantir a continuidade do poder pelos
fora contraída junto às organizações internacionais como o Banco Mundial,
seus filhos e parentes. Os mecanismos usados para a formação destes nichos
o FMI, o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) e a Organização dos
de educação, sob a capa de «garantir a qualidade», serão discutidos no capíhIlo
Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Outros 70% da soma acima men-
IV na aporia entre a quantidade «para todos» e qualidade «para poucos».
cionada era bilateral, maioritariamente com a Rússia, França, Itália, Brasil,
Para a crise da educação concorreram factores quantitativos e qualita-
Portugal, Alemanha e Argélia. O volume total da dívida perfaz quatro vezes
tivos. Sob o ponto de vista quantitativo, as formas de aparição desta crise
mais, comparado ao volume do Produto Interno Bruto em Moçambique. Esta
foram a estagnação das taxas de escolarização e diminuição da efectividade

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José P Castlano • Sevel'ino E. Ngoenha A Mal'cha duma «Educação em [Vloçambique

de formação. Devido à guerra, em muitas regiões não é possível fazer levan- cialmente, uma deterioração progressiva da qualidade de ensino. Em termos
tamentos estatísticos. Esta situação faz com que quaisquer estudos sobre o claros: a manutenção relativa do número de ingressos foi à custa da qualidade
período em causa sejam muito limitados. Por isso, os dados que se apresentam de ensino, em si já muito precária. A outra explicação para a manutenção dos
em seguida devem ser tomados com muita cautela, ou seja, de uma forma ingressos foi o ['tcto de se ter estendido, principalmente nas cidades, o número
relativa. Os dados referem-se, em parte, só às regiões cobertas pelo controlo de escolas a funcionarem em três turnos. Sem esta medida, o número de in-
do Governo e, mesmo assim, os critérios de levantamento variam entre o MI- gressos teria decaído drasticamente mesmo com o aumento de alunos por tur-
NED e as organizações internacionais como UNICEF, UNESCO, etc. Por ma. Também esta medida foi em detrimento da qualidade dado que, de facto,
exemplo, dados publicados conjuntamente entre o governo moçambicano e o diminuíram as horas de permanência de cada aluno na escola em contacto
UNICEF (1993,1) indicam que, em 1987, 87% das crianças na idade entre os com o professor. Por outro lado, os professores foram destacados para mais
seis e onze anos encontravam-se a frequentar a escola. Em contrapartida, fon- de um turno o que, já em si, significara um aumento da carga horária. Nestas
tes norueguesas consideravam que só 47% desta faixa etária é que ia à escola condições de ensino-aprendizagem o fracasso escolar é óbvio: por exemplo,
(Brochmann/Ofstad 1990,37). Para o ano de 1990 a UNESCO calcula que segundo cálculos da ASDI, em 1992, só 15% do total das crianças matricu-
cerca de um milhão de crianças conseguira matricular-se nas escolas primárias ladas na La classe teriam terminado com sucesso o EP1 (Linde 1992,1). Só
do primeiro grau (UNESCO 1993,124). Considerando os dados levantados este dado, embora tenha de se ler com alguma relatividade, mostra como os
pelo MINED, de um total de 2.600.000 crianças consideradas em idade es- imensos investimentos no sector da educação foram em vão. Se formos a olhar
colar em Moçambique, em 1992, somente 1.200.000 crianças tinham-se ma- para as taxas de alfabetização não encontramos melhorias para este período:
triculado. Como dissemos acima, estes dados referem-se fundamentalmente 67% da população adulta é dada como não sabendo ler e nem escrever, segun-
às zonas controladas pelo governo. Se acrescidos às zonas controladas pela do a UNESCO (1993).
RENAMO, então a situação é pior. Segundo a Direcção Nacional de Esta- Em termos qualitativos há a assinalar vários factores que contribuíram
tística, os efectivos matriculados entre 1989 e 1992 tanto no EP1 como no para o colapso do sistema de educação. Destacamos aqui a situação precária
EP2 são os seguintes: do professor, o desenvolvimento da corrupção nas escolas e a quase inope-
rância dos órgãos da administração e do controlo escolar. Estritamente sob o
Tabela 10: Evolução dos efectivos do EPl e EP2 (l989-1992)
ponto de vista financeiro (i.e. em termos de salários) a carreira de professor
Ano EPI EP2
1989 1.210.671 96,907 apresenta-se como a menos atractiva. Os salários dos professores são extrema-
1990 1.160,218 I 16.718 mente baixos com a agravante de não serem pagos regular e atempadamente.
1991 1.217.364 118.775
Em várias escolas o salário dos professores chega com três a quatro meses
1992 1.119.847 I 14.504
Fonte: DNE 1996.1 16. de atraso. Embora o salário do professor, em Outubro de 1989, tenha sido
aumentado em 60%, este aumento foi praticamente ensombrado pelo fàcto
A tabela 10 mostra uma tendência de estagnação dos efectivos escolares de, logo a seguir, os preços dos produtos alimentares básicos, as tarifàs dos
matriculados neste período. Nota-se também uma ligeira descida dos efecti- transportes e da energia eléctrica terem-se agravado na ordem de 100%. Fora
vos do EP1 de 1989 a 1990 assim como de 1991 para 1992. Mas consideran- disso, o Estado deixa de subvencionar e de controlar os preços da farinha, ar-
do que o número de escolas diminuíra devido à guerra, como seria possível roz, carne, peixe, etc. Considerando que havia muita escassez destes produtos,
manter o número de ingressos durante estes anos? Uma das explicações é que o resultado foi um aumento extremamente rápido dos preços nos mercados.
foi sendo aumentado o número de alunos por turma, o que significara, essen- Em 1990 agravam-se de novo os preços, desta vez sem o respectivo aumento

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salarial. Em 1989, o salário mínimo do professor chegou a perfazer 40.000 dos professores primários eram simultaneamente considerados «explicadores»
MT (Marsha111992,34), quantia que pouco chegava para comprar produtos (Marischen 1992,35). Os alunos, cujos pais não podem pagar aos «explicado-
alimentares para o professor e a sua família para uma semana. Muitos pro- res», têm poucas chances de passar de ano. Não são poucas vezes que um aluno
fessores são obrigados a procurar um ou vários empregos em regime de part tinha o mesmo professor na explicação e na turma normal oficial na escola.
time noutras escolas ou, simplesmente, a abandonar a profissão indo à procura Assim, o desempenho destes «explicadores» nas horas lectivas oficiais decai
de salários mais atractivos no sector privado. Várias famílias de professores na perspectiva de o recuperar nas aulas auxiliares. Os pais, para assegurarem o
vivem em lares apinhados em quartos pequenos, inicialmente previstos para sucesso escolar dos seus filhos, vêm-se obrigados a pagarem «explicações» para
estudantes, advindo daí problemas de acesso limitado à agua, de saneamento os seus filhos como forma de garantir a sua passagem de classe no fim do ano
assim como condições de saúde relativamente precárias. Um número consi- lectivo. Outros, sem condições para tal, optam pela «compra» de enunciados
derável de professores vive em zonas e casas onde não existe energia eléctrica dos exames ou das provas. Paralelamente a isto, nas escolas secundárias au-
o que equivale a dizer que este é impossibilitado de planificar as suas aula: mentam casos de assédio sexual às alunas por parte dos professores. Devido à
à noite ou de cultivar hábitos de leitura, para não mencionar de pesquisa. E escassez de lugares suficientes nas escolas, as matrículas já não dependem só do
nestas condições que o prestígio e estatuto social do professor decai drastica- facto de ter passado de classe, mas sim da capacidade de pagamento a alguns
mente. Este facto, ligado à decadência das condições de trabalho nas escolas funcionários da secretaria ou professores (Marischen 1992; Palme 1992).
(falta de carteiras individuais para cada professor, falta de material de traba- A crise da educação também se tornou evidente na administração do sis-
lho, etc.), concorre para a queda da própria qualidade do trabalho oferecido tema a nível ministerial, provincial e distrital. Neste período, muitos funcio-
pelo professor. nários ministeriais com alguma formação largaram os seus empregos optando
Neste período aumentam os níveis de corrupção nas escolas: professores pelo sector privado onde, na maioria dos casos, poderiam ser bem pagos. Um
e trabalhadores das administrações ficam cada vez mais propensos ao subor- exemplo emblemático foi o facto de, ao longo de um só ano (1992), cerca de
no. Com a permissão oficial de «aulas de recuperação«, concedida na base do 13 funcionários médios e seniores terem abandonado o MINED. Uma boa
Decreto n. o 11/90 de Junho de 1990, a prática de aulas particulares aumentou parte dos trabalhadores do MINED tem um segundo emprego fora dele o
os níveis de corrupção, dado que só os alunos que «pagam» estavam em con- que, de facto, reduz o tempo de trabalho real e dispersa os esforços. Não pou-
dições de transitar de classe. As autoridades administrativas escolares tanto cas vezes funcionários usam o local de trabalho oficial para realizar trabalhos
do MINED assim como a nível provincial e distrital, mostram-se incapazes relacionados com um segundo ou terceiro emprego. Estes factos são relatados
de combater este fenómeno. Aliás, mesmo os funcionários destas instituições em jornais e revistas, como por exemplo, o Notícias de 13 de Outubro de 1992
vêm-se obrigados a aceitar uma segunda ocupação (muitos deles leccionam no (p.2). Nesta altura também se deram escândalos de funcionários ministeriais
curso nocturno em escolas que de dia, na qualidade de funcionários, deviam envolvidos na «venda» de enunciados das provas e exames.
inspeccionar) fora do Ministério da Educação ou das direcções provinciais. De facto, o sistema de administração centralizado entra cada vez mais
Aparecia, assim, de fàcto, uma situação de dependência mútua entre os fun- em contradição com o processo ascendente de liberalização económica. Pode-
cionários das repartições de controlo e inspecção escolar e os funcionários e -se demonstrar esta acepção pegando em três exemplos, nomeadamente no
professores nas escolas, o que tornara difícil abordar de uma forma clara o preço do livro escolar, no sistema montado para a distribuição do livro e no
fenómeno de corrupção nas escolas. Parece ter sido constituída uma cadeia sistema de elaboração de exames. Não obstante o facto de o preço do livro
difícil de se quebrar. Neste período, o aumento do número de «explicadores» escolar ter sido fixado centralmente e a sua distribuição ter estado a cargo
foi sintomático: na cidade de Maputo - onde há dados fiáveis - cerca de 90% da Distribuidora Nacional do Material Escolar (DINAME), estes mesmos

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caso, não contribui para uma boa fluência de informações e materiais tanto no
livros são vendidos maioritariamente no mercado paralelo a preços especu-
sentido descendente como no ascendente. A função da direcção central estava
lativos. Segundo um estudo realizado por Aekesson (1992,76), um livro de
efectivamente em causa.
matemática ou de português devia custar oficialmente 815,00 MT, preço a
A crise do sistema educacional descrita acima deve-se, sobretudo, a três hte-
que ninguém consegue encontrar à venda no mercado formal porque, na re-
tores: a falta de meios financeiros suficientes para sustentar o sistema concebido, a
alidade, custa três vezes mais no mercado paralelo. Por seu turno, os exames
guerra e as medidas estmturais incitadas pelas instituições da Bretton Wood.
para as classes terminais do sistema (5. a , 7.a, 10. a e 12. a classes) são con-
As despesas do Estado para o sector educativo dividem-se em despesas
cebidos, elaborados, multiplicados e distribuídos pelo MINED para todo o
correntes e despesas de investimentos. Entre 1980 e 1986 o Estado Moçam-
país (Diploma Ministerial n.o92/90, art.11.°, 1990). No entanto, este sistema
bicano disponibiliza entre 17% a 19% de todo o bolo orçamental para custos
mostrava fraquezas desde os inícios dos anos oitenta. Segundo as regras, um
correntes para o sector de educação. Em termos relativos, esta é uma das
exame deveria ser aplicado em todo o país no mesmo dia e à mesma hora.
mais altas ta.,xas africanas que um país dedica à educação. A taxa mais alta é
Mas, na prática, devido a dificuldades de transporte e comunicação, os enun-
atingida no ano de 1982 com 19% de todo o orçamento estatal a ser posto no
ciados quase nunca chegam atempadamente às escolas mais recônditas. Mes-
sector educativo. ]\lIas, no ano seguinte, esta taxa baixa drasticamente para
mo quando chegassem, não são raras as vezes que o número de enunci~dos
9%. No mesmo ano só 0,3% é que foi dedicado aos investimentos na educação
não é suficiente em relação aos alunos que devem prestar os exames, ou amda
(MINED 1991,16). Por seu turno, a quantia total dada à educação foi dis-
os envelopes selados que contêm os enunciados chegam violados. Aind~ em
tribuída, em 1984, da seguinte forma: 39,3% para o ensino primário, 14,2%
alguns casos verifica-se uma falta de clareza nos guiões de correcção ou amda
para o ensino secundário, 7,1% para o ensino técnico e profissional, 3,4% para
há muitas perguntas formuladas nos questionários que não tinham sido trata-
a formação de professores, 2,1% para a educação de adultos e alfabetização,
das nas escolas (maioritariamente do campo). Isto leva frequentemente à to-
9,7% para a administração e 3,9% para os internatos, sem contar com o ensino
mada de decisões administrativas para permitir ao aluno passar de classe sem
superior. 100% correspondem a 3,9 biliões de meticais (ASDI 199112,115;
lesar os seus direitos. Para as escolas nas províncias torna-se difícil consultar
Karlsson et aI. 1987,13).
os técnicos do MINED, para esclarecimento, por causa de deficientes meios
A partir de 1987/88 o investimento externo vai tomando maior peso no
de comunicação. Desta forma, as provas nacionais, em vez de atingirem o seu
sector da educação. O financiamento externo é feito na sua forma bilateral e
objectivo pedagógico, que é o de oferecer oportunidades de passagem iguais e
multilateral. No âmbito da ajuda bilateral, os países mais activos são os nórdi-
justas para todos, independentemente da sua origem ou região, produzem um
cos, nomeadamente a Finlândia, a Dinamarca, a Nomega e a Suécia. Os paí-
efeito contraproducente ao transformarem-se elas mesmas em factores para
ses socialistas (RDA, Cuba e a União Soviética) são mais activos nos domínios
aumentar a desigualdade de oportunidade. Este sistema só é favorável para
de assessoria de direcção e no envio de professores, para o caso particular de
uma pequena camada urbana. Cuba. No que diz respeito à ajuda externa multilateral os mais activos são a
O modelo centralista com que o sistema de educação foi montado em
UNESCO, o UNICEF e, a partir de 1987, o BM e o FMI. Em 1989, mais
Moçambique só seria viável nas condições de uma óptima rede de comunica-
de 90% de toda a ajuda externa (US$ 20 milhões) foram aplicados na recupe-
ção e de transportes que pudesse garantir o acesso à todas as regiões. Ora esta
ração da capacidade de funcionamento do MINED e das escolas (MINED
não era a realidade em Moçambique, o que provocava uma situação de imensa
1991,18). As áreas mais apoiadas são a aquisição de alimentação para os in-
incapacidade da administração da educação em cumprir com as suas próprias
ternatos (37,2%), a da constmção de escolas (30,4%) e a de fornecimento de
metas e prazos. Ela própria se transformara numa espécie de «camisa de fer-
materiais de ensino (11,1%). Para programas de melhoramento do funciona-
ro» que não permite uma boa circulação do sangue do próprio corpo. Neste

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mento do sistema como um todo, em particular para a planificação, adminis- denarem e a dirigirem. Esta realidade, como dissemos, é nova, requerendo
tração e pesquisa são alocados cerca de 5,5% da soma total da ajuda externa. novos desafios. Um exemplo é o facto de os moçambicanos a trabalharem no
O aumento da ajuda externa para o sector da educação foi espectacular MINED e que estivessem ligados directamente a algum projecto, auferirem
no ano de 1988. A Noruega (através da NORAD) e a Finlândia (através subsídios que os restantes não têm, provocando esta situação - como é óbvio
do FINNIDA) fornecem 100% do papel utilizado para a produção do livro - campos férteis para desentendimentos. Para além disso, a entrada massiva
escolar e de cadernos. A Itália, através da CROCEVIA, monta laboratórios de actores estrangeiros exigiu maior flexibilidade na tomada de decisões, o
de química e física e fornece o respectivo material, assim como dirige as prá- que exigia um pessoal altamente qualificado, exactamente o que o MINED,
ticas laboratoriais nas escolas secundárias do segundo grau. O Japão, por sua devido à fuga de quadros, não tinha.
vez, fornece materiais para a educação física e também laboratoriais (SIDA A forma mais visível dos efeitos da guerra na educação é a destruição de
1991/2,16); a Suécia engajou-se, através da ASDI, em diferentes sectores de escolas e de internatos. Fora disso, há uma série de consequências sociais e
educação, sendo os principais o ensino básico, a produção de livros e de ma- psicológicas resultantes do trauma da guerra. De 1983 até ao início de 1990
teriais escolares, o ensino técnico-profissional, a planificação e administração foram destruídas cerca de 53% das escolas do EP1. O grau da destruição va-
ministerial e também o sector de educação de adultos (ASDI 1992,16). Ou- riou de província para a província. Em termos absolutos, as províncias mais
tras organizações e países tais como a Commonwealth, a União Soviética, o atingidas foram Zambézia e Nampula onde se destruíram completa ou par-
Canadá, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, etc., também se vinculam a cialmente 1.130 e 1.116 escolas primárias, respectivamente. Pelo contrário,
vários projectos de uma forma bilateral ou multilateral. Entre as organizações em termos relativos a província de Tete sofrera mais, com cerca 89% da sua
multilaterais há a destacar o engajamento do UNICEF que apoia particular- rede escolar destruída, seguindo-se a Zambézia com 81% e Niassa que ficou
mente com projectos nos sectores de formação de professores e de educação privada de 63% da sua rede escolar do EPl (DNE 1994,115; UNOMOZ
especial. O Banco Mundial e o FMI intervêm financiando um amplo progra- 1993,19). No que diz respeito às escolas do EP2 o grau de destruição foi na
ma de Capacitação Institucional para melhorar a qualidade dos serviços edu- ordem de 18% de todas as escolas do nível, ou seja, das 176 escolas do EP2
cacionais e fortificar a capacidade das instituições e repartições educacionais existentes em 1983, no fim da guerra só estão em funcionamento 32 escolas.
nas suas respostas aos problemas do sector. Para além disso, um outro amplo Mais de 40 internatos foram queimados ou simplesmente abandonadas de-
programa foi desenhado para a reabilitação de escolas de todos os níveis des- vido às acções militares constantes. A maior parte dos internatos destruídos
truídas pela guerra. Uma outra organização internacional que tem neste ano encontra-se na Zambézia (12), Nampula (11) e Niassa (9), segundo dados da
grande presença no sector da educação é o Programa Mundial de Alimenta- Direcção Nacional de Estatísticas (1994,115). Na realidade, o grau de des-
ção (PMA). Este é, durante muito tempo, o único fornecedor de alimentação truição foi maior nas zonas rurais que nas urbanas. Mas mesmo as urbanas
e de roupas para os internatos. Fora disso, também foi activo na concessão de foram directamente afectadas pela guerra devido à constante falta de energia
estipêndios para os mais necessitados. que leva a interrupções constantes de aulas, especialmente no curso nocturno
Sem este apoio do exterior para o sector da educação, os anos 1987 a 1989 ou, por outra, impossibilita a realização de certas práticas laboratoriais que
seriam fatais para a educação. Por outras palavras, o colapso do sistema seria exigiam energia eléctrica. Também a constante falta de água contribui para a
total. Ao mesmo tempo, esta entrada massiva de actores externos na educação deterioração das condições de higiene e para uma constante, quase que irre-
trouxe consigo novos problemas: o desenho administrativo da educação tinha parável, destruição dos edifícios escolares.
que se adaptar a esta nova realidade porque pura e simplesmente os diferentes Segundo estatísticas pós-guerra divulgadas pela UNOMOZ (1993,1),
programas e projectos tinham, à sua frente, cooperantes estrangeiros a coor- cerca de 808.000 alunas e alunos e 12.500 professores do EPl foram afectados

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pela guerra, sofrendo assaltos directos. Alguns foram obrigados a percorrer nal e pelo Banco Mundial. A justificação oficial para a implementação deste
longas distâncias transportando material bélico; outros abandonaram a escola programa foi a de «reajustar» e «estabilizar» a economia moçambicana que
definitivamente. A destruição dos internatos deixou 6.600 alunos ao relento. estava numa «queda livre» (Marshall1992,8-16). Seguem-se, imediatamente,
No fim da guerra e segundo ainda a UNOMOZ, há cerca de 200.000 crianças cortes orçamentais para o sector da educação, como fizemos referência antes.
em idade escolar (entre seis e os doze anos) refugiadas nos países vizinhos sem Não obstante o tàcto de, em termos percentuais, a contribuição do Estado
grandes possibilidades de frequentarem a escola. A mesma fonte adianta que Moçambicano para o sector da educação ter permanecido relativamente cons-
o mais provável é que estes dados sejam inferiores ao número real. tante (em 1992 corresponde a 7,6%), o valor real desta contribuição, devido à
A guerra, devido à insegurança que cria nas estradas e nas colunas, in- desvalorização do Metical face ao Dólar americano, reduz-se anualmente. Em
viabiliza o transporte do material escolar, dos livros e mesmo a deslocação de 1990, o que o Estado disponibiliza só pode cobrir as despesas dos salários dos
professores para seminários de capacitação, por exemplo. Em algumas regi- professores e manter, no mínimo, o funcionamento das escolas. Os cortes or-
ões, esta incomunicabilidade dura quase todo o período da guerra. Na prática, çamentais obrigaram aàs escolas a restringirem os seus gastos na reparação dos
significa a paralisação de toda a actividade de supervisão e controlo escolar, de edifícios escolares e na compra de material básico para as salas de aulas (cartei-
troca de experiências administrativas e pedagógicas entre os professores, ou ras, quadros, armários, etc.). Por exemplo, uma escola primária em Nampula
ainda a falta de circulação de ideias. Este último campo de efeitos da guerra é o tinha para todo o ano uma quantia equivalente a US$ 100.00 para as obras
menos explorado em todos os estudos sobre a educação no período da guerra. de reparação e reabilitação do edifício. O corte orçamental também afectou
Também os traumas psicológicos foram enormes entre as crianças que fi- a produção do livro escolar e obrigou à redução drástica dos recursos que se
caram órfãs de pais e mães por estes terem sido assassinados ou simplesmente utilizam na administração do sistema tanto a nível provincial como nacional.
terem sido separados deles durante a fuga aos ataques às aldeias e internatos. Alguns funcionários, como medida de diminuição do pessoal na administra-
Um estudo publicado pelo UNICEF (1994,1) revela um quadro desolador ção, foram retirados das direcções para as escolas a fim de leccionarem.
para as crianças que se encontram nas zonas controladas pela RENAMO: O próprio governo moçambicano, a partir de 1987, viu-se obrigado a to-
88% das crianças teriam assistido a cenas de maus tratos e torturas; cerca de mar medidas perante a crise económica. É neste sentido que surge o Progra-
77% teriam assistido à morte ou assassinatos; 64% das crianças teriam sido ma de Reabilitação Económica (PRE). Essencialmente, este programa previa
raptadas e obrigadas a permanecerem em regiões controladas; 50% apresen- a privatização das empresas que não davam lucros ao Estado. No sector de
tam sinais de terem sido torturadas e cerca de 16% das meninas teriam sido educação foram privatizadas a produção, a distribuição e a comercialização do
violadas sexualmente. Esta situação é um indicador das feridas profundas livro escolar. Para isso criou-se, em 1988, uma empresa para a produção e dis-
deixadas pela guerra nas almas das pessoas e aponta para o surgimento de tribuição do livro escolar e outros materiais (DINAME). Esta empresa abriu,
um novo desafio do sistema de educação que é a formação de «trabalhadores como primeiro passo, sucursais em Maputo, Beira e Nacala. Os livros passa-
sociais» para o acompanhamento destas crianças órfãs ou abandonadas. O ram a ser comercializados pelos armazenistas privados locais. A DINAME
aumento das chamadas «crianças da rua» nas cidades apresenta-se como um firmou contratos com armazenistas em todos os distritos para procederem à
desafio particular da educação no período pós-guerra. venda do material escolar cuja margem de lucro poderia ir até aos 15% sobre
A desvalorização da moeda nacional e o corte orçamental para o sector o preço do livro fixado pela DINAME. Por seu lado, o retalhista que vendia
de educação foram as consequências que se apresentavam mais visíveis como directamente ao público escolar poderia aumentar até 30% o preço de compra
resultado da adesão de Moçambique, a partir de 1987, ao programa do rea- ao armazenista. Na realidade, porém, o preço de venda estava muito acima
justamento estrutural eco nó mico apoiado pelo Fundo Monetário Internacio- do que a DINAME poderia imaginar. Um estudo (1991) feito em Marrupa,

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Mocímboa da Praia e Manica confirma este dado. Ora, o rendimento men- sistema escolar e as transformações na própria política da educação viriam a
sal de muitas famílias camponesas e mesmo urbanas não conseguia suportar ser as consequências desta crise.
esta subida de preços quase que desprotegida pelo Estado (Marsha111992,33; Nos finais dos anos 80 surgem as primeiras escolas privadas. As escolas
Aekesson 1992,58). privadas são divididas em dois grupos: existem «escolas privadas» no sentido
O sector do ensino técnico profissional sofreu pesadas consequências restrito do termo e as chamadas «escolas comunitárias». Estes dois tipos de
com a implementação das medidas de reajustamento estrutural. Efectivamen- escolas surgem numa época em que a escola pública não oferecia lugares em
te, desde 1989, os finalistas das escolas técnicas e profissionais começam a quantidade suficiente e nem a qualidade era a mais desejável. Numa primeira
enfrentar muitas dificuldades para conseguirem emprego. Maior dificuldade vista, pode defender-se que o surgimento e o aumento do número de esta-
de encontrar um emprego tinham os finalistas das escolas agrícolas e indus- belecimentos de ensino privados foi uma reacção óbvia à crise que se vive na
triais comparativamente aos finalistas das escolas comerciais, segundo um re- educação. Mas, num segundo momento, o surgimento e a proliferação das
latório da Secretaria de Estado para Ensino Técnico e Profissional (SETEP escolas privadas torna-se a avenida encontrada pelas elites moçambicanas para
1990,13). A falta de emprego é agravada pelo facto de não ter havido um garantir uma educação separada para os seus filhos e parentes, como iremos
sector que servisse como uma espécie de centro de circulação de informações discutir no ponto sobre a quantidade e a qualidade da educação no contexto
sobre as oportunidades de emprego para os finalistas. Para além disso, a nova moçambicano.
situação mercantil e liberal exige uma renegociação tripartida entre as escolas As disposições legais para o surgimento e a abertura de escolas privadas
técnico-profissionais, a SETEP e as empresas onde era suposto os estudantes em Moçambique são estabelecidas a 1 de Junho de 1990 através do Decreto
fazerem as suas práticas. Esta relação ainda não atingira um grau óptimo de n.O 11/90 do Conselho de Ministros. Trata-se do Decreto que «autoriza ac-
institucionalização. Há uma falta de clareza na equivalência entre os cursos tividades do ensino privado e explicações». Este Decreto revoga um anterior,
fornecidos pelas instituições estatais e pelas empresas, sobre os currícula e o Decreto n.O 12/75 que «proíbe as actividades do ensino privado» em Mo-
sobre as aulas práticas nas empresas. As consequências desta falta de coorde- çambique. Segundo o art.1.°, a abertura de uma escola ou estabelecimento de
nação são drásticas para o subsistema de formação: desleixo nas práticas peda- ensino privado, carece da autorização do Ministro da Educação. Em contra-
gógicas e no estágio (melhor: quase que inexistentes), os finalistas graduam-se partida, a autorização para a abertura de creches, jardins infantis e de escolas
sem a mínima preparação para a realidade empresarial que iam enfrentar, etc. especiais carece da autorização do Ministro da Saúde. Por seu turno, segundo
Além disso, tornou-se um paradoxo evidente para o sistema o facto de não o decreto, o Ministro da Cultura autoriza a abertura de escolas privadas voca-
formar pessoas para o emprego no sector informal, que efectivamente absorve cionadas para promover crianças que demonstrem aptidões excepcionais (por
a maioria dos finalistas. exemplo na música, desporto, etc.). Por último, o mesmo Decreto determina
que a fundação das universidades privadas, carece de uma apreciação positiva
do Conselho de Ministros.
A Liberalização do Ensino
O Decreto n. ° 11/90 obriga as escolas privadas a seguirem os programas
e o calendário escolar aprovados pelo MINED (art.9.0). Constituem excep-
O colapso do sistema de educação só podia terminar com uma viragem
ção a esta regra as escolas criadas por representações diplomáticas que podem
quase que radical da orientação educacional, se tomarmos como referência a
leccionar seguindo os programas dos seus países, desde que o programa tenha
orientação para o Socialismo nos primeiros anos da Independência. O sur-
sido antes submetido a uma apreciação por parte do Ministro de Educação
gimento de estabelecimentos de ensino privado, a mudança na estrutura do
(art.15.0). O art. 11.° responsabiliza as repartições administrativas e de inspec-

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ção no MINED e nas Direcções Provinciais de Educação a procederem à veri- como condições para a abertura de uma escola por parte de entidades priva-
ficação das condições físicas dos edifícios assim como a verificar a observância das, que cada aluno tenha em média 1,25m2, para cada 20 alunos deve estar
das normas organizacionais específicas para as escolas privadas. Cada escola um lavatório à disposição, uma sanita para 25 alunos e cada aluno deveria
privada tem que estar filiada a uma escola oficial do mesmo nível, esta última ter uma carteira à disposição. Para além disso, cada sala de aulas deveria ter
jogando a função de supervisora pedagógica (acompanhamento da qualidade à disposição um armário para guardar os trabalhos dos alunos e trabalhos de
de ensino-aprendizagem, fiscalização, realização de exames nacionais, etc.). exposições. Adicionalmente, exige-se que cada escola tenha, ao menos, um
Para além disso, a escola oficial encarrega-se das questões de certificação e agente de saúde permanente. Paradoxalmente, estas exigências para as escolas
equivalência dos alunos. não-estatais não são observadas pelas estatais. Mesmo algumas escolas priva-
O art.13.0 do Decreto que vimos abordando autoriza as «explicações» das que surgem não respeitam estas regras. Por imperativos sociais, algumas
particulares como «complemento às actividades lectivas». Os «explicadores» escolas privadas surgem como uma alternativa de ocupação para jovens que,
devem inscrever-se nas Direcções de Educação das Cidades ou de Distritos. por razões financeiras, estão fora do sistema. O mais curioso na história do
A tipologia de escolas consideradas «privadas» é definida pelo art.2.0 do surgimento de escolas privadas em Moçambique é o ElCtO de estas terem sido
Diploma Ministerial n.O 16/94, segundo o qual as escolas privadas dividem-se criadas primeiro por movimentos cooperativos e por congregações religiosas.
em escolas de «carácter oneroso», escolas de «carácter não-oneroso» e esco- As primeiras surgem em Maputo em 1989, seguindo-se algumas na cidade da
las «diplomáticas». As escolas de carácter oneroso parecem referir-se àque- Beira, em 1990.
las fundadas por pessoas ou grupo de pessoas singulares. As de carácter não Como se fez referência, o termo «escola comunitária» designa o tipo de
oneroso, por seu lado, parecem referir-se àquelas fundadas pelas empresas escolas privadas de carácter não-oneroso sob o auspício de congregações re-
- também denominadas «escolas particulares» - e às escolas sob o auspício de ligiosas e algumas ONGs de carácter humanitário. Exemplos de organiza-
congregações religiosas, geralmente adjectivadas por «comunitárias». Desde o ções internacionais que embarcam na abertura de escolas comunitárias são a
seu surgimento, as escolas de carácter oneroso foram as que tiveram melhor Ajuda para o Desenvolvimento do Povo para Povo (ADPP) em Maputo, a
apetrechamento e, desta forma, melhores condições didáctico-pedagógicas. organização Jovens com uma Missão (JOCUM) na Beira, a Kinderd01f In-
As primeiras escolas privadas surgem na cidade de Maputo e são frequenta- ternational (SOS) em Maputo e em Tete, etc. Estas organizações juntam-se,
das por filhos provenientes de fàmílias da «elite» urbana (MINED Comissão em parte, a organizações nacionais. Nesta primeira vaga foram a Associação
Técnica III 1993,3). de Desmobilizados Moçambicanos (ADEMO), a Organização da Mulher
Paralelamente às escolas privadas surgem as chamadas «escolas particula- Moçambicana (OMM), etc. A maioria das escolas foi, no entanto, financiada
res» que são as controladas pelas empresas e cooperativas. O carácter «social» pela contraparte estrangeira. A parceria nacional intervém mais em termos de
deste grupo de escolas mostra, em parte, que o movimento do surgimento implementação e execução dos projectos. No caso das escolas das congrega-
de escolas não-estatais (privadas, particulares e comunitárias) pode ser vis- ções religiosas, estas funcionam geralmente em instalações anexas às igrejas e
to como uma reacção à incapacidade de a rede escolar estatal atingir todas procuram absorver crianças provenientes de famílias com rendimento muito
as pessoas com necessidades educativas. Embora as normas para a fundação fraco. As propinas pagas pelos alunos são vistas como «contribuições» aplica-
de uma escola particular estivessem estipuladas por lei, nem todas as escolas das principalmente em obras de reparação e reabilitação dos edifícios. Devido
particulares que surgem então mostram conformidade com as condições aí a esse seu carácter, Marischen (1992,38) considera-as como sendo o «terceiro
impostas. Efectivamente, o Decreto Ministerial n.O 63/91 de 26 de Junho sector» entre as que são verdadeiramente privadas e as escolas estatais. A ad-
de 1991, o Regulamento Geral das Escolas de Ensino Particular, impõem, ministração das escolas comunitárias é colectiva, no sentido em que há uma

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maior intervenção dos pais (das comunidades) na gestão. Os primeiros pro- lei, nas zonas urbanas. Mesmo nas zonas urbanas, as restrições financeiras em
fessores são voluntários e prioriza-se aqueles que se encontram em situação de algumas empresas não permitem dedicar fundos para a fundação de escolas.
desemprego. Os salários dos professores são pagos a partir das contribuições Esta lei vem legitimar a necessidade que uma elite urbana tinha de se «afastar»
dos pais e, uma boa parte, suportados pelas congregações. A ligação com as da escola pública, onde a qualidade se tinha deteriorado, semeando condições
repartições oficiais educacionais é feita a dois níveis: na coordenação dos con- legais para as suas crianças irem à escola.
teúdos de ensino e na participação dos professores comunitários em acções
de reciclagem pedagógica oferecidas pelo MlNED. Se nas escolas de carácter Mudanças na Política e na Administração da Educação
oneroso estudam crianças provenientes de fàmílias com rendimento alto, nas
escolas comunitárias encontramos uma população escolar muito pobre. As- A privatização e a liberalização parcial do sistema de ensino abriu ca-
sim, estas escolas constituem uma forma de «encaixe» para as crianças pobres. minho a duas novas tendências no sistema educativo. Por um lado, elas vêm
Segundo estimativas dadas a conhecer por uma Comissão Técnica do «institucionalizar» e legalizar o processo de criação de escolas para as elites
MlNED para as questões sobre as privatizações no ensino, criada em 1993 económicas, políticas e intelectuais moçambicanas. Assim, há uma espécie de
com outras comissões de outras áreas, até ao final de 1992 havia mais de 150 separação «oficial» entre escolas para os privilegiados e escolas para a maioria.
escolas não-estatais em todo o Moçambique, das quais só 82 tinham rece- Por outro lado, as igrejas e as ONGs começam a ganhar peso tanto na admi-
bido autorização do MlNED para funcionarem. Cerca de 48% das escolas nistração como na definição de políticas educacionais. No fundo, a liberaliza-
funcionando «ilegalmente» são do EP1 e 34% do EP2. A maioria das escolas ção abre e divide o sistema de educação em duas partes: um sistema em que
ilegais encontra-se na Beira, província de Sofala. Segundo a mesma fonte, alguns aprendem com qualidade muito boa e um sistema onde o que interessa
uma maioria relativa (cerca de 36%) das escolas privadas existentes no ano em é a quantidade e a qualidade é muito baixa.
referência, é de nível secundário. Este facto é um indicativo da pouca oferta Estas tendências, mas sobretudo as profundas mudanças sociais, vão pro-
em termos de escolas que permitam a continuidade de estudos depois do en- vocar a reestruturação do MlNED que procura adaptar-se a elas. O MlNED
sino primário, particularmente para o caso da cidade de Maputo. foi reestruturado duas vezes, só no ano de 1990/91 (comparem-se os Diplo-
Poucos dados existem no ano de 1992 sobre o número exacto de alunos mas Ministeriais n.o92/90 e n.O 25/91). A reestruturação afecta principalmen-
que frequentam as escolas não-estatais. No total, supõe-se que sejam frequen- te o sector de formação de professores e a educação de adultos. A formação
tadas por cerca de 20 mil alunos, o que representa, na altura, 0,5% do mime- de professores é dividida e integrada nas respectivas direcções nacionais, isto
ro total de alunos em Moçambique. O MlNED não controla efectivamente é, do ensino primário e secundário. A educação de adultos e a alfabetização
o funcionamento destas escolas. Por outra, não está em condições de exigir são reduzidas a um sector dentro do ensino primário. É criado um novo sec-
e controlar as condições que estabelece para a abertura de uma escola não- tor dentro do MlNED - a Caixa Escolar - virado para a concessão de bolsas
-estatal. Mesmo que o fosse, o facto de as escolas estatais não estarem em aos alunos pobres (distribuição gratuita de material escolar, de vestuário, da
condições de poderem cumprir, no mínimo, com as exigências previstas para alimentação, etc.). Também é criado um sector de assuntos jurídicos, com
as escolas privadas, enfraquece a capacidade de fiscalização e de «apontar o a missão de assessorar o Ministro na matéria. A UEJ\!I, o lSP, o lNDE e o
dedo» acusador para o sector privado. Além disso, o acompanhamento pe- lAP passam à categoria de «instituições subordinadas» no novo organograma
dagógico das escolas privadas mostrava-se também dificilmente. A lei parece do MlNED. Através do Decreto 25/91 cria-se a Direcção Nacional para o
não atender a uma realidade económica e social do país. Em termos práticos, a Ensino Técnico e Profissional que substitui a Secretaria do Estado do Ensino
abertura de escolas privadas só podia ser possível, se quisesse obedecer à letra a Técnico e Profissional. Com esta mudança, o MlNED queria sinalizar uma

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A fvlalTha duma «Educação em

separação na administração da formação de trabalhadores: a formação técnica organizações não-estatais. Portanto, a privatização do ensino passa a ser re-
é separada da profissional. A Direcção no MINED encarrega-se da forma- gulada por uma lei. Os objectivos fundamentais da educação são formulados
ção «técnica» enquanto a formação «profissional» (estágios) ficaria a cargo de uma maneira mais precisa como sendo a erradicação do analfabetismo,
do Instituto Nacional do Emprego e Formação Profissional (INEFP), uma uma introdução gradual da escolaridade obrigatória, a garantia na formação
de professores, etc. O termo empregue «de maneira mais precisa» refere-se
instituição sob a égide do Ministério de Trabalho. Crê-se que esta separação
às formulações mais cuidadosas que aparecem nesta nova lei, tais como «gra-
tenha como objectivo criar maior espaço na formação profissional dos alunos
dualmente», «segundo as condições» quando se refere à implementação dos
nas empresas. No fundo, o MINED procura formas de partilhar os gastos
objectivos declarados, muito em particular da escolaridade universal. Ou seja,
de formação nas escolas técnicas com as empresas porque, pela sua natureza,
a nova lei toma mais em conta a realidade de crescente diferenciação social e
são avultados. As mudanças na estrutura do MINED vêm colorar o processo
económica.
permanente de «des-socialização» do Estado moçambicano no sector da edu-
Esta lei transforma a estrutura básica do sistema de educação. Em vez de
cação. O sector de alfabetização, anteriormente muito forte, ficou confinado a
cinco subsistemas, a nova lei divide o sistema de educação em três áreas fun-
um departamento sem muita capacidade de realização. As transformações na
damentais (art.6.0 e 8.°), a pré-escolar, a escolar e a extra-escolar. A frequência
estrutura de formação profissional reflectem, no fundo, a tendência cada vez
aos estabelecimentos da área pré-escolar, que é virada para as crianças abaixo
maior de os diversos sectores eco nó micos e interesses empresariais jogarem
dos seis anos, não é obrigatória. A área escolar foi subdividida em ensino
um papel crescente na definição de políticas e de conteúdos para o sector de
geral, ensino técnico-profissional, educação de adultos e ensino universitário.
educação. O que nos parece estar a suceder é que se trata de uma mudança Embora a educação de adultos, em particular da alfabetização, continuasse a
nas políticas de educação que, à primeira vista, parece estar a ser impulsionada fazer parte do articulado da lei, torna-se, porém, notório que o seu peso em
por uma lógica mercantil da economia do tipo liberal, mas rapidamente, a todo o sistema diminui. A área extra-escolar ocupa-se de actividades que são
partir daquela lógica, passa a influir na mudança de valores e normas sociais promovidas à margem do sistema escolar, que incluem a alfabetização, activi-
referentes ao valor da própria educação. dades de aperfeiçoamento científico-técnico, etc. Segundo o art.28.0, as acti-
Em Maio de 1992 o parlamento aprova a lei 6/92 sobre o «sistema de vidades de aperfeiçoamento pedagógico passaram a fazer parte das chamadas
educação em Moçambique». Revogando a lei de 1983, a lei de Maio de 1992 «modalidades especiais» da formação escolar, juntando-se ao ensino especial,
reformula os fundamentos filosóficos e a estrutura do sistema nacional de edu- formação e promoção de talentos e ensino à distância. A formação de profes-
cação. As expressões cristalizadas tais como «educação socialista», «homem sores primários passou a ser administrada pela Direcção Nacional do Ensino
novo», etc. são literalmente retiradas do texto desta nova lei. Os objectivos do Primário e de docentes para o ensino secundário fica encarregue ao então ISP.
sistema deixam de ser formulados segundo uma linguagem ideológica para O art.26.0 condiciona o direito de outorgar graus de doutoramento à criação
serem formulados numa linguagem aparentemente neutra em termos de alfa- de condições concretas em cada estabelecimento do ensino superior (na lei
betização e escolarização universais. A razão para a transformação fornecida anterior este direito não é mencionado).
no preâmbulo da lei é a de que se trata de «adaptar» o sistema de educação a As transformações na estrutura do sistema de educação acima aponta-
novas condições sociais e económicas, uma adaptação que deve ser feita sob o das revelam, no fundo, o prelúdio de mudanças na política e na filosofia da
ponto de vista pedagógico e organizacional. A educação continua a ser con- educação em Moçambique. A incapacidade demonstrada pelo Estado de fi-
siderada como «direito e dever» de todos os moçambicanos. Fazendo alusão nanciar todas as actividades do sector de educação usando só os seus recursos
ao processo de privatização, na nova lei o Estado permite que a actividade e a situação de crise que daí advém, conduzem ao reconhecimento de que o
educativa seja desenvolvida por comunidades, cooperativas, empresas e outras objectivo fundamental do sector, o de garantir o acesso à educação «para to-

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A l_onga Mal-cha duma «Educação em Moçambique

dos», não devia ser tratado como se fosse um objectivo a curto prazo. Cresce a signatários do acordo, devia seguir à letra este plano de acção. É assim que, em
consciência de que ele é de longo prazo. Por outro lado, devia assumir-se que 1992, o governo de Moçambique, com a colaboração estreita do UNICEF,
o sistema de educação deveria virar-se com mais nitidez para proporcionar concebe um plano nacional do ensino básico sob o título Educação Básica:
mais acesso às crianças do que aos adultos. Os programas e planos de desen- Uma estratégia que nasce.
volvimento da educação tinham que reflectir e assumir estas realidades. Daí O plano de acção Educação para Todos foi discutido num seminário or-
que as campanhas de alfabetização não são continuadas com a mesma força ganizado em Maputo onde participam o Ministro de Educação, funcioná-
anterior, também na senda das críticas realizadas ao modo como são condu- rios seniores do MINED, pesquisadores de educação, cooperantes, etc. Os
zidas (Lind 1985; MINED 1992; Marshall1992). As prioridades no finan- debates concentram-se basicamente na estrutura, currícula e métodos para o
ciamento passaram a ser nitidamente para o sector do ensino básico. Como se ensino básico. Nos debates sobre a estrutura conclui-se que a centralização ex-
pode compreender esta mudança? Um factor importante é o facto de, desde cessiva do sistema administrativo na educação poderia emperrar as iniciativas
1987, diversas organizações internacionais que operam no país, terem enco- locais. A burocracia concorre para uma gestão muito deficiente do pessoal em
mendado diversos estudos de avaliação do desempenho do sistema desde a termos de pagamento de salários, na promoção dos professores e funcionários
sua introdução em 1983. A mudança na prioridade do sistema é produto de na carreira profissional, entre outras. Em síntese, conclui-se que a estrutura
críticas que emergem destes estudos. Por outro lado, o factor mais decisivo do sistema, por não ser suficientemente flexível, não estaria em condições de
foi a mensagem muito forte dada na Conferência Mundial de Educação em corresponder às exigências do Plano para o Ensino Básico. Há necessidade de
]omtiem na Tailândia em que a UNESCO (re)lança mundialmente o repto descentralizar o sistema. No entanto, não são abordadas formas concretas so-
de «Educação Básica para Todos». bre como a descentralização tomaria corpo. Qyanto aos programas de ensino
Assim, no início dos anos 90, diferentes organizações internacionais, para o nível primário recomenda-se, pela primeira vez e de uma forma explí-
onde se destacam o PNUD, o UNICEF, a ASDI, o Banco Mundial, etc. cita, a introdução gradual de aulas integradas ao invés de disciplinas isoladas.
começam a exercer uma pressão muito grande sobre o governo moçambicano Esta introdução gradual deveria ser acompanhada por uma correspondente
para que deixasse de priorizar o ensino superior e passasse a concentrar-se formação de professores. Uma outra recomendação importante e de certa for-
no ensino básico que, na sua opinião, estava relegado ao esquecimento. Para ma inovadora diz respeito ao sistema de exames. Os exames de matemática
além disso, havia a ideia de que o sistema de ensino em Moçambique esta- e de português poderiam continuar a ser elaborados nacionalmente no MI-
va cada vez mais a virar-se para uma pequena elite urbana, na sequência do NED, enquanto que os das restantes «áreas curriculares» seriam localmente
processo de surgimento de escolas privadas que parecia não poder ser contro- realizados, embora coordenados por instâncias responsáveis ao nível do MI-
lado (MINED/UNICEF 1992,1993; Linde 1994; MINED Fev. 1994). Os NED. Aos docentes foi recomendado deixarem de usar somente métodos de
argumentos principais apresentados para o sustento desta tese são: a UEM ensino centrados exclusivamente no professor, embora reconhecessem que o
com apenas dois mil estudantes recebe 34% do bolo orçamental total para a uso destes métodos são, em parte, condicionados pela relação aluno-professor
educação, enquanto que o ensino técnico profissional, com 39 mil estudantes, muito elevada, o que dificultava uma atenção mais individualizada no proces-
tem apenas 11% do orçamento. O EP1 e o EP2, com cerca de 1,4 milhões so de ensino-aprendizagem (MINED/UNICEF 1992, 33pp.).
de alunos, obtinha somente 16%. Ora esta situação deveria mudar tanto mais Sem uma resolução muito concreta no que diz a um programa de ac-
que a Conferência de ]omtiem recomendara às organizações doadoras inter- tividades, discutiu-se o problema da língua de ensino. O uso do português
nacionais que apoiassem fundamentalmente países com programas sólidos na como única língua de ensino para todas as crianças, independentemente das
área da educação básica (UNICEF 1991,10). Moçambique, como um dos suas línguas maternas, foi visto como a maior causa do insucesso escolar. Daí

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A L.onga MalTha durna «Educação para Todos» ern Moçarnbique
José P. Castiano • Sevcl'ino E. ~Jgoenha

(UE), O Banco Africano para o Desenvolvimento (BAD), a Organização dos


que o seminário recomendaria um estudo mais minucioso sobre as estratégias
Países Exportadores de Petróleo (OPEP), etc.
apropriadas para a introdução do ensino em línguas maternas.
Segundo a forma como as organizações estrangeiras prestam a ajuda na
educação distingue-se entre assistência financeira e assistência técnica. Na
Gerindo a «Ajuda» na Educação assistência financeira, as organizações disponibilizam os meios financeiros
(divisas) para a compra de artigos necessários para a educação. A assistência
A situação social, económica e financeira em Moçambique tornou inevi- técnica, por seu turno, refere-se ao envio de cooperantes e profissionais da
tável um financiamento externo da educação. A partir desta realidade, a coor- educação para Moçambique. Além disso, diferencia-se entre assistência de
denação e a confrontação com a ajuda externa no sector da educação passa a projectos e assistência aos programas. O primeiro tipo quer referir-se ao tipo
ser inevitavelmente uma parte integrante da política de educação em Moçam- de assistência que se concentra num sector isolado do sistema de educação
bique. Daí que a abordagem de questões ligadas ao impacto da intervenção de como, por exemplo, na construção de escolas ou no fornecimento de material
organizações estrangeiras e internacionais na modelação do sistema educativo escolar; por outro lado, a assistência no quadro de programas é dirigida a um
moçambicano tenha que ser uma parte integrante da pesquisa educacional em conjunto de projectos integrados entre si (por exemplo, a construção de salas
Moçambique. de aulas é conjugada com a formação de professores, a melhoria de métodos
Entende-se por «ajuda externa»2 na educação todas as actividades no de trabalhos, o reforço institucional assim como um projecto de pesquisa apli-
campo de educação que resultam de financiamento ou intervenção de insti- cada). Por sua vez, os programas no sector da educação são, eles mesmos, uma
tuições estrangeiras no âmbito da ajuda para o desenvolvimento. Esses fundos parte integrante de planos mais amplos de desenvolvimento económico, social
doados são destinados para a formação de professores, para a construção e e político do país. Por exemplo, os programas de educação podem ser conce-
apetrechamento de escolas, para a pesquisa no ramo de educação e para o bidos como partes integrantes do programa de alívio à pobreza, de reabilitação
reforço da capacidade de gestão do sistema. eco nó mica ou ainda do processo de democratização.
As instituições estrangeiras que actuam na educação podem ser divididas Desde o fim da guerra várias organizações internacionais e países engajam-
em públicas e privadas, assim como em bilaterais e multilaterais. As institui- -se imediatamente na ajuda ao sector de educação. A sua agenda visa princi-
ções públicas operam no âmbito de acordos de cooperação entre os Estados; palmente a reabilitação das escolas destruídas durante a guerra, a construção de
as instituições privadas compreendem as ONGs, nomeadamente sob o auspí- novas escolas particularmente do nível primário e de formação de professores.
cio de congregações religiosas, fundações e outras associações de beneficência. Mas, para além do programa de construção, estas organizações também con-
Instituições bilaterais são aquelas que se encarregam de realizar a cooperação centraram os seus esforços no financiamento das despesas correntes no sector
no quadro de acordos entre dois países, isto é, entre Moçambique e um go- da educação, ou seja, são canalizados meios para a formação de professores do
verno de um outro país; as instituições bilaterais recebem geralmente os seus ensino primário, para a educação de adultos e para o tratamento das crianças
meios financeiros dos respectivos Estados e são agências oficiais de coopera- traumatizadas pela guerra no ramo da pedagogia especial. Um relatório conjun-
ção. As instituições multilaterais prestam a sua intervenção na educação no to do governo e do UNICEF resume da seguinte forma a ajuda prestada entre
âmbito das Organizações Internacionais tais como a ONU, a União Europeia 1990 e 1993: até 1993 tinham sido formados cerca de 978 professores para o
EP1 e 107 professores para a educação de adultos; cerca de 630 professores
2 Hoje é mais usual o termo «parceiros externos» para designar o mesmo tipo de acções e tinham passado por uma formação complementar para trabalhar com crianças
os l~esmos actores e organizações na educação. Entretanto, como veremos no período
traumatizadas; cinco escolas e 363 salas de aulas tinham sido construídas.
a seguir, muda o quadro de políticas em que a ajuda sectorial é prestada.

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa I'-'Ial-cha duma «Educação pai-a Todos» em

No mesmo período, ainda segundo este relatório, 15 centros de formação quer dizer que, de facto, o dinheiro não chegou a Moçambique, senão em
de professores tinham sido apetrechados com materiais didácticos diversos forma de pessoas formadas. Assim, os maiores doadores de bolsas de estudo
para além do fornecimento de carteiras, livros, cadernos, quadros, etc. que foram Portugal (US$ 6.840.000), Cuba (US$ 6.480.000), a Grã-Bretanha
serviriam para 1283 alunos no total. O relatório aponta ainda que as direcções (US$ 2.250.000), e a União Europeia (US$ 1.440.000). Do total do volume
distritais e provinciais de educação receberam meios de transportes (carros e para o Ensino Superior, somente 16% teriam sido aplicados directamente em
bicicletas) para reforçar a sua capacidade de supervisão pedagógica. A partir Moçambique no reforço da capacidade das instituições do ensino superior.
de 1992 o UNICEF, em coordenação com o BM e a UNESCO, começa a A UEM é apoiada particularmente pela Suécia através da AS DI que apli-
organizar vários seminários para os quadros das diversas estâncias educacio- cou cerca de US$ 1.554.000, pela SAREC (Societe Africaine de Revetments
nais, orientados fundamentalmente para desenhar «o futuro da educação pós- ti. o Etanchiete, também uma organização sueca), que aplicou cerca de US$
-guerra» em Moçambique (GOM/UNICEF 1993,37pp.). 1.067.000, pela Ford Foundation e pela NORAD da Noruega que aplicaram
Os dados que a seguir se apresentam expressam o volume da ajuda inter- respectivamente US$ 162.000 e US$ 180.000 naquela instituição. No que diz
nacional para o campo da educação até 1993. No entanto, o facto de, na altu- respeito à Universidade Pedagógica, o apoio das organizações estrangeiras
ra, não ter havido uma instituição especializada para o levantamento de dados cingiu-se à oferta de bolsas de estudo, destacando-se nesta área a DAAD da
específicos para o ramo da ajuda dificulta, de certa, maneira a apresentação Alemanha, os governos dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, de Portugal
de dados fiáveis. Uma comissão do MINED formada na altura para atender e da Austrália. Uma parte dos estudantes da UP beneficia de bolsas austra-
assuntos de cooperação internacional visitou cerca de 60 projectos financiados lianas e da Commomuealth, não estando, no entanto, indicados os respectivos
por organizações internacionais, numa tentativa exaustiva de fazer o levanta- volumes.
mento dos meios aplicados em cada projecto para a sua posterior compilação. Não existem dados seguros sobre a utilização do financiamento para o
Segundo se pode ler em Linde (1994) a referida comissão não pôde visitar sector do Ensino Secundário. No entanto, os maiores doadores para este nível
projectos que decorriam nas províncias de Tete, Sofala e Maputo, daí que são o British Council da Grã Bretanha com US$ 500.000, a CROCEVIA da
estas ficaram foram das estatísticas. Isto leva-nos a uma simples conclusão: os Itália com US$ 471.000, aTerre des Hommes com US$ 117.000 e o Banco
números espelhados estão aquém do volume real da intervenção estrangeira Mundial cujo montante para o ano em causa não foi possível obter.
na educação. Os dados a seguir baseiam-se no relatório escrito por Linde em A maior parte dos recursos financeiros doados para o Ensino Básico -
1994. A soma total da ajuda externa para o sector de educação em Moçambi- cerca de US$ 2.940.000 - foi aplicada na construção e reparação de escolas. O
que perfaz cerca de US$ 53.093.000 no ano de 1993. Esta soma foi dividida resto foi dividido para a aquisição do material didáctico, alimentação escolar,
da seguinte forma: US$ 22.776.000 para o Ensino Superior, US$ 1.629.000 apetrechamento de salas de aulas, etc. (US$ 368.000). Para o ramo da for-
para o Ensino Secundário, US$ 11.633.000 para o Ensino Primário, US$ mação de professores, consultorias, administração e compensação orçamental
3.009.000 para a Formação Profissional e somente US$ 650.000 foram apli- foram utilizados US$ 1.788.000. Existe uma margem de dinheiro aplicada-
cados no sector de Formação de Professores. Os restantes US$ 13.400.000 estamos a calcular em cerca de 5 a 6 milhões de US$ - de que não foi possível
teriam sidos aplicados em projectos vários entre os quais o reforço da adminis- apurar a sua utilização. Os principais doadores para o Ensino Básico são o
tração escolar. A utilização dos restantes US$ 3.000.000 não está especificada Banco Mundial com US$ 6 milhões e a OPEC com US$ 1. 7 milhões.
no relatório. O sector de formação de professores para o Ensino Primário e Secun-
É de notar que a maior parte do dinheiro para o Ensino Superior - isto dário é, nesta altura, mais apoiado pelo Banco Africano de Desenvolvimento
é US$ 19.0 milhões - foi aplicado em bolsas de estudos no exterior, o que (BAD) que aplicou, para tal sector, cerca de US$ 650.000. O resto do valor

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A l_onga Mal'cha duma «Educação em

acima mencionado é distribuído pelas instituições de formação mais pequenas. «políticas educativas autónomas» para o caso de Moçambique. De facto, as
O sector do Ensino Técnico e Profissional aplicou os meios doados para agências que operam massivamente em Moçambique determinam, em grande
a construção de escolas, de laboratórios e para a formação específica de pro- medida, a agenda política no campo de educação. Mas esta determinação ex-
fessores para este sector. Os doadores principais são a Dinamarca com US$ terna não pode ser vista como essencialmente má e nociva para Moçambique.
219.000, a American Recovery Organization (ARO) com US$ 50.000 e a Fin- No entanto, ela põe o país perante os dilemas de continuidade e de certa esta-
lândia e a ASDI (sem dados). bilização do sistema, pois os países europeus mudam de políticas, estratégias
Finalmente, existem projectos complementares financiados pelo Progra- e mesmo de estruturas para a assistência aos países como Moçambique com
ma :Mundial para a Alimentação (PMA) com cerca de US$ 6.964.000, pelo uma certa periodicidade. As mudanças operadas na Europa influenciam, so-
BAD com US$ 5.850.000, pela ASDI com US$ 509.000 e pela ARO com bremaneira, o decurso do processo em Moçambique. Um facto notável, por
US$ 83.000. exemplo, foi a mudança de políticas externas operadas na Holanda - um dos
Numa conclusão preliminar podemos verificar que o ensino superior re- países que apoia directamente o sector de educação em Moçambique - que
cebe o maior bolo de ajuda. Só para as bolsas no estrangeiro aplicou-se cerca «decidiu» concentrar o seu apoio na Província de Nampula para que este fosse
de 35% do total da ajuda estrangeira para o sector de educação. Exceptuando mais integrado. Também se pode ver que a GTZ «decidiu» focalizar a sua
as bolsas, nota-se que as prioridades estão para o ensino básico e o técnico ajuda na educação nas províncias de Sofàla, Manica e Inhambane e mesmo
profissional; em terceiro lugar, estaria o ensino superior, sem contar com a assim em sectores determinados como o ensino básico e a gestão e administra-
formação de professores que, de facto, teve menos apoio. ção da educação aos níveis provincial, distrital e da escola. Estas mudanças em
No entanto, para se ter uma visão mais circunstanciada da situação quan- termos de políticas ou estratégias macro-estruturais da educação, embora em
to à situação do financiamento e do seu significado no quadro geral, é preciso algumas ocasiões ocorram no quadro de acordos intergovernamentais, têm,
comparar o volume proveniente da ajuda externa com o volume dos recursos no entanto, efeitos de descontinuidade a nível micro-estrutural, mais exac-
alocados pelo Estado moçambicano. O que o Estado moçambicano aplicou tamente a nível dos distritos e das escolas. Por outro lado, o próprio sistema
para o sector de educação no ano 1993, sem contar com o Ensino Superior e a não se estabiliza, ou seja, não tem um desenvolvimento constante, com fases
Formação Superior, perfaz US$ 18.145.000. Comparado com o total alocado de consolidação de políticas e de sedimentação de tradições de ensino. Assim,
ao sector da educação, este montante do Estado representa 52,7%, contra os também é sacrificado o elemento avaliativo. Os resultados de muitas pesqui-
43% de actividades financiadas pela ajuda externa. sas feitas no campo de educação tendem a estar prontos em momentos em
Os meios que o Estado moçambicano disponibiliza estão divididos em que as políticas estão a mudar, não permitindo, assim, o seu aproveitamento
US$ 12 milhões para o ensino básico, US$ 3 milhões para o Ensino Secundá- ou ainda perdendo o interesse que deveriam ter se o contexto político tivesse
rio e US$ 2.9 milhões para a Formação Técnica Profissional. Em termos per- permanecido estável.
centuais, o Estado financia cerca de 50,9% do Ensino Básico, cerca de 65,8% Mas a ajuda não se resume só à disponibilização de fundos, como nos
do Ensino Secundário e 49% do Ensino Técnico-Profissional. Basicamente, parágrafos anteriores se pode ter sugerido. Por via da chamada assistência
estes meios são todos aplicados para o pagamento dos salários dos professores técnica, as organizações internacionais e bilaterais têm tido um impacto im-
nos respectivos sectores. portante na formulação de políticas e de estratégias de desenvolvimento da
A descrição tanto do volume da ajuda internacional como dos sectores educação em Moçambique. Já dissemos atrás que, durante as nossas pesquisas
da educação que as agências internacionais procuram apoiar tem como objec- no arquivo/biblioteca do MINED, deparamo-nos com o facto de que, uma
tivo demonstrar como, na prática, não podemos falar de «autonomia» ou de das primeiras versões da lei do SNE de 1983, estava manuscrita .. .em alemão!

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A i"lar-cha duma «Educação em Moçambique
José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha

Infelizmente não conservamos este documento para efeitos de estudos poste- No programa do governo de 2000 até 2004 a Educação está integrada no
capítulo sobre «Desenvolvimento Social» que inclui também saúde, emprego,
riores mais aprofundados. Mas a semelhança, não só em termos da estrutura
cultura, desporto, promoção da participação de mulher na vida eco nó mica e
interna e de princípios pedagógicos, mas também e sobretudo em termos do
substracto filosófico entre o SNE e o sistema de educação então em vigor na social, integração dos grupos desfavorecidos e construção de habitações. Em
relação ao sector de educação, o governo declara como sendo o seu objectivo
extinta RDA, é extraordinária. Na altura a assistência técnica é providenciada
geral «(a)largar o acesso da população ao sistema de ensino formal, com par-
por «cooperantes» dos países do Leste. Nos anos 90, porém, aumenta o número
ticular incidência na educação básica, sem descurar o ensino secundário geral,
e o peso das organizações internacionais e bilaterais provenientes do Ocidente
superior, técnico-profissional e outras formas de enquadramento educativo
na ajuda ao sector de educação, o que leva consigo também o aumento da pre-
não-formais». :Mais adiante, o mesmo texto sublinha que uma atenção espe-
sença dos trabalhadores e consultores destas organizações em Moçambique.
É, pois, problemático, falar de um «sistema» de educação no contexto cial seria dada à melhoria da qualidade de ensino para favorecer aquilo que se
considera a «formação integral» do homem moçambicano.
da ajuda que é prestada neste período. No mínimo existem «sistemas» de
Para complementar este objectivo central são alinhados vários pontos que
educação. Daí a dificuldade de o Governo estabelecer «uma política» nacional
poderíamos considerar objectivos específicos para os cinco anos que o programa
de educação ao longo dos períodos que descrevemos até aqui. Esta só viria à
abrange. A seguir passamos a enumerar e a comentar os objectivos do programa.
luz efectivamente ao longo da década de 90 com a mudança do tipo de apoio
baseado em projectos, para uma política de apoio multi-sectorial adoptada pe- O primeiro e o mais importante sublinha de novo - como nos programas
anteriores - a expansão das oportunidades de acesso em que se dá especial
las Organizações Internacionais e apoiada pelos sectores internos nos órgãos
atenção ao aumento do acesso das populações das zonas rurais e da rapariga à
decisores do MINED e do Ministério do Plano e Finanças.
educação e formação; também se dá ênfase ao acesso das famílias socialmente
desfavorecidas.
8. Combatendo a Exclusão e Renovando a Escola? Um segundo ponto a destacar é a participação do sector privado, das
(1992-2002) comunidades, dos grupos religiosos e das ONGs em geral nas actividades
educativas. É evidente neste ponto o reconhecimento de que a educação não
O período que se segue à assinatura do Acordo de Roma (1992) é o pe- poderá ser monopólio do Estado.
ríodo de Paz. Até 1994 o esforço e o saber moçambicanos foram dedicados à O terceiro objectivo inscrito é um pouco mais ousado e deixa sérias dúvi-
consolidação da paz. Um dos momentos cruciais da consolidação da Paz foi das quanto ao que foi realizado. Neste se reafirma a necessidade de «reactivação
a preparação e a realização das primeiras eleições presidenciais e legislativas urgente» do ensino técnico-profissional. Este deveria ser reorganizado e reestru-
multi partidárias em Moçambique. Obviamente que a educação num contex- turado de modo a adequá-lo às necessidades e transformações estruturais que o
to desta natureza tinha que se reencontrar e ocupar o seu espaço dentro das mercado vem sofrendo. Em particular, destaca-se, deve-se priorizar a formação
prioridades de reconstrução, entre as quais o regresso das pessoas que tinham de artífices e de pequenos empresários. Por isso, o currículo a oferecer neste
emigrado para os países vizinhos, o reassentamento dos deslocados internos, subsistema deverá ser diversificado o suficiente para responder ao mercado.
a reestabilização do tecido social (sobretudo famílias e autoridades locais que Aqui notamos um dos mais sérios pontos fracos do sistema de educação em
se tinham deslocado), a acomodação dos desmobilizados assim como a des- l\10çambique: a mudança na política macro-estrutural económica de uma es-
minagem de zonas afectadas pela guerra de modo a permitir a produção e a tratégia de megaprojectos eco nó micos para estratégias de desenvolvimento
circulação de bens e serviços. baseadas na pequena indústria (ou pelo menos combinada) não foi acompa-

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P Castiano • Sevel"ino E. A MalThé\ duma «Educação em

nhada por mudanças estruturais no sistema de formação e qualificação pro- auto-sustentáveis?), ao sistema político (são capacitados para participar no
fissional. De certa forma, a estrutura de formação profissional ainda reflecte sistema democrático? desenvolveram atitudes favoráveis para a democracia?
o ideal de grandes projectos estatais em que era necessário formar «quadros:> estão em condições de explicar os processos políticos, identificam-se com a
para o comércio, para a indústria e para os grandes projectos agrícolas. A moçambicanidade?), ao sistema moral-cultural (equacionam a sua particula-
medida que o Estado deixou de ser o grande empregador e, de certa forma, a ridade cultural na unidade nacional?), assim como ao seu próprio sistema psí-
economia se desenvolveu sem o seu controlo directo, foram surgindo sectores quico (contribuiu a educação para a formação de uma personalidade sólida?).
da economia (por exemplo, o informal, o electrónico, a gestão, etc.) em que o Estas e outras questões adjacentes fazem parte do debate sobre a qualidade
sistema formal de formação profissional não estava preparado para responder de educação. A insistência, ou melhor, a limitação do debate para uma quali-
rapidamente às suas demandas. Para tal, as empresas destes ramos passaram a dade de educação na sua acepção interna pode levar a que se forme um bom
importar mão-de-obra ou então a «despender» uma grande parte do seu orça- matemático ou flsico mas que, uma vez fora da escola, não sabe como se auto-
mento na formação dos recém-empregados. Também não podemos descurar -sustentar com os conhecimentos adquiridos ou use a ciência para fins pouco
o desenvolvimento do parque político em ONGs nacionais e internacionais. morais e politicamente insanos.
Estas passam a empregar uma grande parte dos estudantes universitários pre- O governo declara que também pretende, durante este período de 2000
ferentemente dos cursos relacionados com as ciências sociais ou línguas, uma a 2004, promover a investigação através das escolas do ensino superior e uti-
escolha evidente dada a necessidade de as ONGs «penetrarem» nos ecossiste- lizar estas como instituições de assessoria para as políticas de educação. Este
mas culturais e sociais de Moçambique para justificarem a sua acção. objectivo é interessante por duas razões. A primeira: é a primeira vez que a
O objectivo seguinte emana da convicção, que se tem vindo a cimentar, investigação é expressa com tanta nitidez. A segunda é a inclusão específica
segundo a qual não basta oferecer qualquer tipo de educação. Melhorar a qua- das instituições do ensino superior. Em geral, ela expressa o papel que a in-
lidade é, pois, um objectivo que é acoplado ao programa. Esta melhoria deve- telectualidade deve assumir no aconselhamento de políticas de educação e
ria ser alcançada através de instrumentos escolhidos tais como investindo mais em outras áreas afins, que tem sido ou demasiadamente individualizado, ou
na formação e na competência dos professores, na oferta de mais material di- não sistemático como deveria ser. Mas também expressa a necessidade de
dáctico, no aumento do tempo de permanência dos alunos na escola (extensão institucionalização das relações de trabalho da investigação educacional (in-
do calendário escolar), na reforma curricular que começou no Ensino Básico dependente do INDE) e do MINED com as instituições do ensino superior
e se estendeu para o Ensino Secundário e, por fim, no investimento para me- na área de educação, em particular com a UP - uma instituição de formação
lhor gestão das escolas. É evidente que o termo qualidade aqui é usado na sua de professores para o sistema. Em suma, expressa a urgência de institucio-
acepção de eficácia «interna», ou seja, em relação aos objectivos próprios do nalizar a contribuição que as universidades públicas e privadas podem dar à
sistema de educação que se resumem em reduzir o número das reprovações e educação, começando por apontar a formação de professores, a investigação e
das desistências por ano, isto é, na redução do chamado «desperdício escolar». a assessoria para a área de políticas de educação. Porém, no momento em que
Mas ter-se-á ainda que fazer muito para amadurecer as reflexões e acções estão a ser escritas estas linhas Qaneiro de 2004), ainda não é possível avaliar
em relação à segunda vertente da qualidade, nomeadamente a que considera- com precisão o quanto este objectivo foi tomado a sério. O que se pode dizer
mos ser a «eficácia externa» do sistema de educação. Esta é aquela que relacio- em geral e neste ponto é que o Estado necessita de uma espécie de think tank
na a qualidade dos graduados em relação ao sistema económico (são os gradu- para as sua políticas e estratégias (do género Centro de Estudos Estratégicos
ados imediata e directamente empregáveis, têm a capacidade de começar um do ISRl) em todos os sectores, incluindo o da educação, dado que, por razões
empreendimento próprio? são capacitados para tomar decisões económicas financeiras, não pode fazer isso para todos os sectores.

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A Longa MarTha duma «Educação par-a Todos» em
José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha

Dissemos anteriormente que países vulneráveis como Moçambique es- da capacidade de administração do sistema de educação como um todo e da
tão cada vez mais forçados a seguir os princípios neo-liberais do «Consen- gestão das escolas concretas em particular. No fundo, estes eixos indicavam a
so de Washington». Este, entre outras coisas, obriga os estados em vias de urgente necessidade de dotar a educação em Moçambique de uma visão mais
desenvolvimento a repensarem a natureza e o papel do Estado. Isto é par- futurista e menos propensa às vicissitudes políticas e económicas. Esta preo-
ticularmente válido para Moçambique que teve na sua História um Estado cupação é expressa em parte no documento da Agenda 2025, que dedica um
de natureza socialista nacionalizador e planificado r na economia em que o capítulo inteiro ao desenvolvimento da educação em Moçambique. Por outro
mesmo Estado foi um dos maiores empregadores. A Reforma do Sector Pú- lado, o XXVIII Conselho Coordenador do MINED abre sob o lema de «Por
blico e Estatal não é mais do que o reflexo deste imperativo, embora haja uma Visão Futura e Segura da Educação» querendo expressar este mesmo
esforços por encontrar factores internos para a mudança. Assim, desde 2001 o sentimento. Como, aliás, nos restantes sectores, os dez anos que se seguem à
MINED vem implementando o «plano de modernização» para responder ao conquista da Paz foram marcados por esta ambiguidade entre o imediatismo
plano geral de descentralização da gestão da coisa pública. Naturalmente que da reconstrução do que foi destruído pela guerra e a necessidade de se ter
o maior desafio neste processo não é o de descongestionar o Governo Central uma visão futura sólida e coerente. Pode dizer-se que o «vazio» dei,,<ado pelo
(isto é, o MINED) das tarefas mais ou menos incómodas. O maior desafio abandono da ideologia marxista se faz sentir de novo. Particularmente para a
será o de criar capacidades humanas e técnicas ao nível das províncias e dos educação este vazio representa a falta de um debate sobre os valores que estão
distritos para que possam «encaixar» as tarefas e competências que vão rece- por detrás do sistema que se busca. A Agenda 2025 tenta, de certa forma, pre-
bendo. Porém, um estudo piloto feito em 2003 na província de Manica, que encher este vazio ao declarar uma «visão» para a educação, cujo texto inicial,
pretendia analisar o papel jogado pelas estruturas locais na implementação do resultante dos debates em núcleos temáticos, era:
Currículo Local, mostra nitidamente que as direcções provinciais e distritais «A Educação deve formar um Homem Integral, livre, autónomo, em-
de educação estão «sobrecarregadas». Também mostra que o elo mais fraco na preendedor, moralmente são, fortemente comprometido com a nação
cadeia de estruturas montadas são as ZIPs, estruturas que se espera sejam as e sua História, conhecedor das suas tradições culturais, mas ao mesmo
mais activas na capacitação dos professores, no desenho e disponibilização dos tempo aberto à cultura e saberes universais. A educação deve ajudar a
meios didácticos assim como ser pioneiras nas inovações das metodologias de sociedade moçambicana a ultrapassar as tensões entre o local e o glo-
ensino (Castiano 2003). bal, entre o universal e o particular, entre o moderno e o tradicional,
Os outros objectivos expressos no programa do Governo, nomeadamente entre as soluções imediatas e a longo prazo. A Educação deve preparar
o desenvolvimento de uma estratégia sectorial de prevenção e combate contra o Homem Moçambicano para o Mundo científico e tecnológico e pô-
as DTS/HIV/SIDA, a ligação entre as escolas e as respectivas comunida- -los ao serviço do povo moçambicano» (Agenda 2025,2003).
des, a dignificação do papel do professor, a reorientação das metodologias de
ensino-aprendizagem e o reforço da capacidade institucional, são de carácter Voltaremos, mais tarde, no capítulo final, a este debate sobre o estatuto
complementar. dos valores já que ela representa a busca dos fundamentos da educação.
Se quisermos fazer um exercício analítico do que foi exposto, podemos Voltando aos três eixos. Naturalmente que o aumento do acesso se apre-
inferir que o programa do Governo de revitalização da educação no período sentava como uma necessidade política urgente, pois uma das expectativas,
pós-guerra compreende três eixos: o eixo do aumento do acesso das oportu- tanto das populações que regressam dos países vizinhos como das famílias
nidades educativas rumo à universalização do ensino básico, (de novo) o eixo reassentadas internamente, é de estar perto de uma escola que as suas crianças
da melhoria da qualidade de ensino e, por último, o eixo de melhoramento

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José P Castiano • Sevenno E. Ngoenha A I"lal'cha duma «Educação P,lI"il Todos» em

poderiam frequentar. Aliás, na sua política pós-guerra, o governo via como UNESCO. O INDE é a instituição que orienta o processo de implementa-
uma das condições de reassentamento populacional, a criação de algumas con- ção do referido plano curricular. Só para registo, podemos dizer que esta é a
dições sociais, entre as quais o acesso das crianças à escola. Portanto, o desafio terceira reforma curricular que, de forma sistemática, se realiza em Moçam-
do alargamento das oportunidades educativas volta a colocar-se com grande bique, sendo a de 1975 a que consideramos a primeira e a segunda a de 1983
destaque. Não se tratava somente de estender um direito. Tratava-se, acima na sequência da introdução do «novo» sistema. Esta transformação reformula,
de tudo, de um dos desafios de consolidação da paz. Mas o desafio de estender portanto, o currículo que foi introduzido em 1983 pela lei n.O 4/83, de 23 de
as oportunidades educativas resulta, neste período, de programas internacio- Março, e revisto em 1992 pela lei 6/92, de 6 de Maio.
nais aos quais o Governo deveria aderir. Há, pois, o programa mundialmente A seguir vamos debruçarmo-nos sobre o texto básico da transformação
lançado de «Educação para Todos» até 2015 e que seria consubstanciado em curricular em Moçambique intitulado Plano Curricular do Ensino Básico: Ob-
planos regionais. jectÍ'lJos, Política, Estrutura, Planos de Estudos e Estratégias de Implementação. O
Junto à pressão para o aumento do número de escolas também submerge termo «transformação curricular» é optado pelo próprio INDE, no lugar do
a pressão para uma melhor qualidade do ensino oferecido. A pressão resultava termo «Reforma Curricular». Nesta parte vamos simplesmente expor o que
principalmente de forças sociais desde a Sociedade Civil, as Igrejas, pais e pretende ser «novo» no currículo que é lançado para o ensino básico. Qyestões
encarregados de educação assim como das autoridades tradicionais até ao esta- ligadas aos pressupostos deste currículo serão tratadas posteriormente.
blishment urbano. Como veremos adiante, a pressão de melhorar a qualidade, No âmbito do novo currículo foram introduzidas «inovações», que pre-
escondia um desafio maior perante o qual a educação em Moçambique estava: tendem ser elementos novos em relação ao currículo anterior, nomeadamente
o de adequar os seus conteúdos às exigências não só económicas, mas também (i) os ciclos de aprendizagem, (ii) o ensino básico integrado, (iii) a distribui-
aos diversos ecossistemas sócio-culturais que constituem lVloçambique e, so- ção dos professores, (iv) a promoção semi-automática, (v) a introdução das
bretudo, ao desafio ético resultante da tomada da consciência do pluralismo línguas moçambicanas no ensino, (vi) a introdução da língua inglesa, (vii) a
político e cultural de Moçambique. Mas, para a elite (também como vere- introdução de ofícios, (viii) a introdução da educação musical e cívica e (ix) a
mos), a pressão para a melhoria de qualidade era a justificativa necessária para introdução do currículo local (INDE Agosto 1999,26-36). Pusemos o currí-
a abertura de escolas privadas onde se poderia garantir uma melhor qualidade culo local em último plano (no próprio texto está em terceiro lugar) porque,
para os seus filhos, pagando mensalidades acima do salário médio. A demanda pelo seu potencial reformador em termos de conteúdos, nos queremos deter
pela qualidade viria a reflectir-se na reforma curricular que começa no ensino mais neste aspecto.
básico e paralelamente se foi realizando mais ou menos isoladamente ao nível A reorganização da estrutura do sistema no ensino básico nos chamados
das instituições do ensino superior. Enigmaticamente, o ensino secundário, o «ciclos de aprendizagem» parece ser uma das grandes novidades sob o ponto
ensino técnico e profissional e a formação de professores estão a fazer as suas de vista pedagógico-organizacional. Não é, pois, por acaso que ela é apresen-
«reformas curriculares» como resultado de uma certa pressão do topo (Ensino tada em primeiro lugar como uma das inovações da transformação curricular.
Superior) e da base (Ensino Básico) do sistema educativo. Este facto deixaria, Efectivamente, embora se mantenha um ciclo básico de sete classes divididas
de certa forma, estupefacto qualquer analista de sistemas de educação por, em dois graus (EP1 e EP2) como no sistema anterior, estes (os graus) subdi-
pelo menos aparentemente, não se antecederem as reformas parcelares por videm-se, no novo currículo, em ciclos de aprendizagem. Estes são definidos
uma visão de transformação mais abrangente e sistémica. como «unidades de aprendizagem com o objectivo de desenvolver habilida-
O Ministério de Educação inicia, em 2002, a concepção e a consequente des e competências específicas» (IND E 1999,26). São, na prática, unidades
introdução de um novo currículo para o Ensino Básico, sob os auspícios da de aprendizagem que cruzam a divisão clássica em «classes», também não se

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Mal-cha duma «Educação pai-a Todos» em Moçambique

integram propriamente nos graus e tentam r,espeitar as competência.s que é caso, a integração, lida entre as linhas, parece tentar resolver dois problemas:
suposto os alunos terem segundo as idades. E preciso notar que os cIclos de por um lado, é o da interdisciplinaridade entre as matérias que se oferecem
aprendizagem apresentam-se como uma estrutura nova que deverá ser inte- em diferentes classes e disciplinas para que sejam ensinadas de uma forma
grada na estrutura clássica. Assim, por exemplo, para o planificador pedagó- harmoniosa e sistemática atendendo à idade dos alunos; mas, por outro, no
gico, as estruturas da definição dos objectivos de carácter cognitivo, de habi- que parece o problema mais importante, a ligação (articulação) entre as acti-
lidades e competências terá que obedecer à ordem de precisar os objectivos vidades educativas formais da sala de aulas e as actividades extracurriculares,
gerais para o nível básico, para o grau, para o ciclo e, finalmente, para a class~. entre o currículo formal e o chamado currículo oculto.
A mesma ordem terá que seguir quando se tratar da avaliação. Assim, o pn- Ora, a mexida na estrutura em ciclos e na organização das disciplinas
meiro ciclo de aprendizagem, correspondente à primeira e à segunda classes para o ensino básico afecta a distribuição dos professores. Esta é a terceira
do EPl (idades média de seis a sete anos), pretende desenvolver habilidades e «inovação» que o INDE reclamada ter introduzido. De acordo com esta ino-
competências de leitura e escrita assim como operações básicas de somar, sub- vação, o primeiro e o segundo ciclos (da primeira à quinta classe) continua-
trair, multiplicar e dividir. Também pretende que o aluno seja capaz de esti- riam a ser leccionados por um só professor em cada turma, enquanto que o
mar distâncias e medir comprimentos no fim deste ciclo. Como competências terceiro ciclo (a sexta e a sétima classes) seria leccionada por três ou quatro
éticas destacam-se a higiene pessoal e o desenvolvimento de uma boa relação professores, em que cada professor pode leccionar entre três a quatro discipli-
consigo próprio, com as outras pessoas e com o meio. O segundo ciclo, que nas. Deve notar-se, porém, que o novo currículo comporta, na sua estrutura,
corresponde à terceira, quarta e quinta classes do EPl (cujas idades média é de três (3) áreas curriculares, nomeadamente a área curricular de Comunicação
oito a dez anos), é um ciclo de aprofundamento do primeiro e introduz algu- e Ciências Sociais (com as disciplinas de Língua Portuguesa, Línguas Mo-
ma matéria relativa às ciências sociais e naturais. O aluno é levado, neste ciclo, çambicanas, Língua Inglesa, Educação Musical, Ciências Sociais e Educação
a aprender a calcular superfícies e volumes. O terceiro e último ciclo do ensino Moral e Cívica), a área da Matemática e Ciências Naturais (que comporta as
básico, que corresponde à sexta e sétima classes do EP2 (idades média entre disciplinas de Matemática e Ciências Naturais) e a terceira área curricular é a
onze e doze anos), para além de consolidar os conhecimentos e habilidades das Actividades Práticas e Tecnológicas (que comporta as disciplinas de Ofí-
dos ciclos anteriores, deve «preparar o aluno para a continuação dos estudos cios, Educação Visual e Educação Física). Assim, cada professor do terceiro
elou para a vida», numa clara alusão à possibilidade do carácter terminal do ciclo de aprendizagem poderá leccionar disciplinas que não são da mesma área
ensino básico, atendendo à fraca capacidade de o ensino secundário absorver curricular. O INDE, sobretudo no interesse do MINED, espera que este es-
todos os alunos do ensino primário. quema de distribuição reduza o número de professores necessários para o EP2
A segunda inovação corresponde à concepção de um Ensino Básico Inte- (terceiro ciclo) dos sete professores no sistema anterior para somente três ou
grado. Qger dizer que este nível de ensino passa a ser estruturado como uma quatro por turma. Sendo a preocupação adjacente essencialmente a quantita-
única unidade de sete classes na perspectiva da sua estrutura, objectivos, con- tiva, portanto a redução do número de professores por turmas para fazer face
teúdos, material didáctico, habilidades, conhecimentos, valores e o próprio à expansão do EP2, assim também a capacitação e a formação dos professores
sistema de avaliação. O texto do documento que vimos citando não precisa, será reorganizada não primeiramente segundo as afinidades científicas das di-
porém, quais são as implicações estruturais desta integração que a diferenciem ferentes áreas, mas também considerando a possibilidade que os professores
do currículo anterior e nem explica que tipo de problemas práticos e de apren- têm de cobrir a quantidade de horas lectivas que devem dar. No capítulo de-
dizagem esta «integração» e «articulação» vem inovar ou ao menos resolver em dicado à capacitação dos professores (INDE 1999,56p.) nota-se com clareza
relação a práticas inerentes ao sistema anterior do ensino básico. Em todo o esta opção na divisão em «Blocos» para a capacitação. Assim, por exemplo, o

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José P Castiano • Sevel-ino E. i'lgoenha A i"lal-cha duma «EduGIÇão pat-a Todos» em Moçambique

critério para ligar a disciplina da língua portuguesa com a educação musical estamos a analisar, as zonas sejam homogéneas e heterogéneas sob o ponto de
(bloco 1) é a pouca carga horária que esta tem combinada com as muitas horas vista das línguas que se falam, ou seja, onde a maioria usa o português (como
da primeira. Já no bloco 4, um outro exemplo, se juntam as disciplinas das língua materna) para se comunicar, mas intercalado com línguas nacionais
línguas moçambicanas, ciências sociais, educação moral e cívica assim como diversas. As línguas maternas nacionais moçambicanas são, nesta modalidade,
educação física. ensinadas como uma disciplina curricular para dar «oportunidade aos alunos
A inovação seguinte - a quarta - é a «promoção semi-automática ou pro- de ter acesso às línguas locais como forma de estabelecerem ou manterem o
gressão normal» que está em sintonia com os ciclos de aprendizagem. Esta contacto com a cultura moçambicana» (INDE 1999,34). Naturalmente que,
apoia-se na chamada «avaliação formativa» virada principalmente para provi- sob o ponto de vista sociológico, se questiona se a «cultura urbana» não fará
denciar elementos de recuperação dos alunos que demonstrem problemas na parte também da cultura moçambicana!
aprendizagem dos conteúdos definidos como competências básicas de cada O que justifica a introdução do Inglês como uma (sexta) inovação do sis-
ciclo. A repetência dos ciclos será somente em casos «excepcionais» mas, mes- tema de educação a partir do terceiro ciclo (sexta e sétima classe) em Moçam-
mo assim, depois de alcançado um «consenso» entre o professor, o director bique é, à primeira vista, a ideia de ser uma língua de comunicação internacio-
da escola e os pais e encarregados de educação. No fundo, aqui está uma ino- nal que é cada vez mais usada no comércio ou nas transações e para a ciência
vação: abre-se a possibilidade de o director da escola e os pais «participarem» e o facto de Moçambique estar rodeado por países que têm o inglês como
na discussão sobre a passagem (ou melhor, sobre o aproveitamento) do aluno. língua oficial. Num segundo olhar, porém, é inegável o esforço que as elites
Na quinta inovação temos a introdução das línguas moçambicanas no académicas, económicas e políticas fazem em enviar as suas crianças para os
ensino. Esta é feita obedecendo a três modalidades. A primeira é um progra- países de expressão inglesa, esforço este que começara por ser só para o nível
ma de ensino bilíngue que prevê o ensino em línguas maternas nacionais na universitário, mas hoje cada vez mais abrange os níveis primário e secundário.
primeira classe, enquanto que o português é introduzido como uma discipli- Assim, estaria no seu interesse não submeter os seus filhos às desvantagens
na. Esta relação, entretanto, começa a inverter-se a partir da segunda classe competitivas em relação ao standard internacional na educação.
onde a língua de ensino passa a ser progressivamente o português e a língua As inovações restantes contidas no novo currículo dizem respeito à in-
materna uma disciplina. Esta modalidade parece ter sido mais adoptada ten- trodução da disciplina de Oflcios (para facilitar a formação de habilidades e
do em conta as zonas rurais onde a maioria das crianças tem como sua língua competências que possam concorrer para uma melhor integração do aluno
materna uma das línguas moçambicanas. Na segunda modalidade, chamada na sua comunidade) assim como Educação Moral e Cívica (destinada a fazer
por «programa de ensino monolingue em português», o ensino se realiza em com que os alunos respeitem os valores morais, patrióticos, cívicos, religio-
língua portuguesa, mas os professores podem recorrer às línguas nacionais sos e manifestem atitudes de tolerância e solidariedade para com os outros).
moçambicanas como «auxiliares» do processo de ensino e aprendizagem. Esta Também é importante notar que há «inovações» mais específicas para cada
modalidade é interessante sob o ponto de vista estratégico. Assim, segundo disciplina que se justificam a partir das experiências e problemas no ensino das
a justificação, enquanto não for possível estender os programas de educação respectivas matérias nos programas anteriores.
bilingue como na primeira modalidade, ao menos permite-se ao professor, Em relação à disciplina de Ofícios, durante os dois anos de experimenta-
que não tenha competências comunicativas e de escrita em línguas nacionais, ção do novo currículo do ensino básico, foi notória a diferença entre as escolas
utilizar alguns conceitos em línguas locais para auxiliar a transmissão dos co- nas zonas rurais e as urbanas. A diferença fundamental evidencia-se quanto ao
nhecimentos na sala de aulas. A terceira modalidade foi pensada mais para apetrechamento em condições materiais para esta disciplina. Nas escolas das
atender ao público urbano e suburbano onde, como se justifica no texto que zonas rurais tem havido imensas dificuldades em angariar recursos tais como

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madeira, ferramentas e outros das comunidades para serem usados pelos alu- no na respectiva comunidade. O mesmo documento adianta métodos que de-
nos nas actividades práticas das aulas. Em contrapartida, como prova um es- vem ser seguidos para a compilação dos conteúdos para o CL. Eles devem ser
tudo na província de Manica (Castiano 2003), nas escolas rurais há maior deduzidos sempre «em conformidade com as aspirações das comunidades»
disponibilidade e abertura das pessoas das comunidades em termos de know 0~1 seja, estas devem propor aquilo que consideram ser os conteúdos de apren~
how (recursos humanos locais) para contribuírem do que nas escolas situadas d1Zagem relevantes para que as crianças aprendam na escola. (INDE Agosto
nas zonas urbanas e suburbanas. Uma outra diferença diz respeito ao género 1999,29). No seu capítulo sobre «considerações pedagógicas», adverte-se que
de ofícios que são aprendidos pelas crianças. Nas zonas rurais, os ofícios são a brochura é o instrumento de base onde o professor poderá encontrar os con-
mais ligados à produção agrícola, ao tratamento dos animais e à construção teúdos de interesse local. Ele, no acto da planificação, consulta, para além do
e cobertura de casas, enquanto que nas cidades a tendência é de solicitar ac- programa centralmente definido, o Manual do Professor e a brochura sobre
tividades que têm a ver com electrónica ou aprendizagem de computadores. o CL. Alerta-se, para além disso, que o CL «não é uma disciplina à parte»,
Uma última inovação, deveras importante, deste novo currículo é a intro- senão um conjunto de conteúdos determinados como sendo relevantes para
dução do currículo local. O currículo local é definido como sendo a aprendizagem, aplicáveis nas diferentes disciplinas do Currículo Nacional.
Sobre o terceiro eixo de transformação neste período (administração e
«... uma componente do currículo nacional correspondente a 20% do
gestão do sistema) podemos identificar duas fontes de "pressão». Por um lado,
total do tempo previsto para a leccionação de cada disciplina. Esta com-
a própria essência do Estado estava a mudar: de um Estado com tradição
ponente é constituída por conteúdos definidos localmente como sendo
centralizada está a passar-se paulatinamente para um Estado descentralizado
relevantes, para a integração da criança na sua comunidade». (INDE
em que as estruturas centrais se auto-compreendem como «reguladoras» e não
2003,1). exactamente «provedoras». O Estado moçambicano está a reestruturar-se se-
gundo uma lógica de atribuir maiores poderes ao nível local e das autarquias.
O mesmo documento considera que o objectivo da introdução do CL é o
Também poderemos ver a tendência de descentralização como consequên-
de «formar cidadãos capazes de contribuir para a melhoria da sua vida, a vida
cia óbvia da tendência para a economia neo-liberal que vai ganhando maior
da sua família, da comunidade e do país, partindo da consideração dos saberes lo-
popularidade. Esta baseia-se na ideia de que o indivíduo é livre de fazer as
cais das comunidades onde a escola se situa»3. A ideia de comunidade expressa
suas escolhas racionais e que tem acesso e oportunidades iguais ao mercado
no documento é precisada mais tarde num documento de trabalho intitulado
(também à escola). Assim, pensa-se que uma das formas de reconhecer a di-
O Currículo Local no Ensino Básico elaborado em Agosto de 2003. Aqui define-
ferenciação entre os indivíduos e grupos sócio-culturais de Moçambique seria
-se por comunidade «todos os intervenientes na educação da criança» nomea-
conferir maior grau de autonomia administrativa aos órgãos locais de deci-
damente professores, alunos, líderes e autoridades locais, pais e encarregados
são. A gestão das escolas não poderia continuar a ser uma ilha no meio deste
de educação, representantes das diferentes instituições locais (saúde, cultura,
processo de descentralização. Em termos mais gerais, o processo de mudança
agricultura, ambiente, polícia, etc.), representantes das confissões religiosas e
na administração da coisa pública é consubstanciado na chamada Reforma
organizações comunitárias. A intenção com o CL, portanto, é de abrir mais
do Sector Público orientada pelo Ministério da Administração Estatal. Em
espaço para que os saberes locais possam entrar na escola básica. Em confor-
termos mais concretos, a reforma do MINED e organizações a ele atinentes
midade, cada escola deverá prever, nos programas de ensino, «uma margem de
é consubstanciada pelo projecto de «Modernização e Reconstrução do MI-
tempo» para que se tratem conteúdos locais relevantes para a inserção do alu-
NED», praticamente concebido na base de uma consultoria e assessoria téc-
nica da firma Ernst Young. Sob o ponto de vista mais sociológico podemos
3 Itálico nosso.

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inferir que a pressão para a descentralização resulta do facto de os actores Vamos dedicar um pouco mais de atenção ao referido Plano de Moder-
sociais locais estarem a ganhar maior protagonismo na negociação com o po- nização do MINED, embora ainda seja muito cedo para tecer qualquer juízo
der central. De facto, nas escolas primárias e secundárias existem professores de valor sobre ele. De facto, como já se deu a entender antes, a descentra-
com maior formação do que nos períodos anteriores. Estes estão em melhores lização é justificada oficialmente como sendo para responder ao imperativo
condições de produzir um texto de apoio, de criticarem os exames nacionais de se adaptar às novas condições da globalização a que o nosso Estado está
sob o ponto de vista pedagógico e de conteúdos, de avaliarem melhor os pro- actualmente sujeito. Já nenhum Estado pode governar ou gerir a coisa pública
blemas do sistema. A sua autonomia científica vai desvanecendo aos poucos sem ter em conta as particularidades culturais ou as «narrativas particulares»
o mito de que quem vem da «nação» (termo utilizado pelos professores para no sentido de Lyotard (1989). Para isso ele tem de se ajustar estruturalmente.
referir aos mandatários do MINED para as províncias) é uma autoridade não Já não pode usar a camisa de ferro fornecida pelo centralismo que não seja
só política, mas também científica. Assim, o peso da responsabilidade sobre os permeável aos processos que decorrem a nível micro.
próprios processos locais somado à capacidade crítica vai redimensionando e A figura a seguir ilustra a forma actual (Fevereiro 2004) como o MINED
renegociando as regras e a extensão das autoridades nacionais perante as pro- está organizado:
víncias. O MINED obriga-se, cada vez, mais a organizar «consultas» às bases
para definir as políticas educativas. Por outro lado, a tomada de consciência
da diferença (seja ela cultural ou política) entre os moçambicanos tem conse-
quências na administração da educação: as escolas ganham maior consciência
do carácter determinante do contexto e meio em que estão para o sucesso
dos seus programas e ganham maior desconfiança relativamente a soluções
generalizadas que o poder central esporadicamente tenta impor. Esta atitude
de desconfiança para com os poderes centrais é de certa forma compreensível
se tivermos em conta o crescimento e a magnitude de problemas que somente
podem ser resolvidos a nível local. Por exemplo, com a introdução das línguas
locais como meio de ensino, uma grande parte da responsabilidade na elabo-
ração do material de ensino só pode recair sobre os professores que conhecem
a língua local e retira muito da competência «centra!», pelo menos na sua ver-
tente académica, restando ao centro a regulação de aspectos administrativos.
O eixo do melhoramento da capacidade de administração e de gestão do
sistema de educação compreende, evidentemente, o já referido Plano de Mo-
dernização do MINED, a formação e capacitação dos directores das escolas e
gestores do sistema a nível das províncias e dos distritos, assim como a criação
de parcerias mais estreitas entre o Estado e organizações da Sociedade Civil
(comunidades, ONGs, congregações religiosas, etc.).

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A rvlar"cha duma «Educação par"a Todos» em
José P Castiano • Sever"ino E. Ngoenha

Figura 3: Organograma do MINED (2004)


Segundo o relatório sobre a reestruturação, todo o MlNED comporta
338 colaboradores da estrutura central do MlNED, sem incluir os 109 f1m-
cionários que trabalham no lNDE e no lAP. Do total, 67% são homens e os
restantes 33% mulheres. Ainda do total dos funcionários do MlNED, cerca
de 63% são profissionais técnicos de educação e gestão (dos quais 52% têm o
nível de bacharelato ou de licenciatura) sendo o resto pessoal de apoio (esta-
fetas, pessoal de limpeza, recepcionistas, secretárias, etc.) (MlNED Agosto
2002).
O quadro do MlNED acima apresentado mostra a existência de uma
estrutura complexa. Aliás, entre as principais constatações (sobre o funciona-
mento do MlNED) de uma equipe de consultores destacam-se as seguintes:
quase toda a estrutura do MlNED é fragmentada e os 22 órgãos que a com-
põem dependem do Ministro; há uma «elevada departamentalização», ou seja,
no dizer do relatório «uma grande diferenciação horizontal para execução de
funções semelhantes». Os consultores também notaram uma «linha vertical
hierárquica extensa», ausência de objectivos bem definidos para cada unidade,
o que não facilita o entendimento do papel dos vários órgãos e cria dificulda-
des de funcionamento. Por último, segundo o relatório, há uma «repetição»
de funções entre as unidades de desenvolvimento de ensino em si, e entre
estas e os institutos «anexos» ao MlNED, concretamente o lNDE e o lAP.
No que diz respeito à gestão do plano estratégico para o desenvolvimento
da educação verificou-se que nem todos os objectivos estariam quantificados,
que haveria um desfasamento entre orçamento e Plano de Actividades, que
não há um processo de controlo mensal formal, alinhado ao Plano Estratégi-
co, que permitiria avaliar a peiformance de cada unidade do MlNED. Há falta
de mecanismos de controlo e acompanhamento das decisões tomadas. Tam-
bém se carece de um sistema padronizado de prestação de contas e circulação
de relatórios e, quase sempre, os dirigentes das diferentes repartições estão
ausentes em reuniões. Para adicionar a este quadro os consultores notam uma
«cultura incipiente» na utilização dos poucos meios informáticos existentes e
a ausência de um cadastro sobre os meios existentes.
Desde 2000 o JVIINED vem ensaiando, na base das constatações acima
referidas, uma reestruturação e um processo de descentralização de algumas
competências para os escalões mais baixos. Na verdade, o processo é bem

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José P Castiano • Sever-ino E. A Mar-cha duma «Educação par-a Todos» em fvloçambique

mais longo. As primeiras reflexões sobre descentralização e desconcentração um assessor para a vertente de descentralização e desconcentração, uma as-
no sector da educação são fornecidas, desde 1993, quando são formadas as sessora para a assuntos jurídicos e um assessor para o sistema informático. O
chamadas «Comissões Técnicas» no MINED, grupos de trabalho que preten- Secretário Permanente do MINED é o coordenador de todas as actividades,
diam reflectir sobre os eixos principais de mudança. Um desses grupos deveria incluindo o contacto com as denominadas unidades de reforma em todas as
ocupar-se da descentralização. O que é talvez novo no processo agora deno- Direcções Centrais, Departamentos Autônomos e Direcções Provinciais de
minado de «modernização» é que este é mais amplo, abrangendo a reforma de Educação. A consultoria técnica ficou a cargo da firma Ernst & Young.
todo o aparelho do Estado, assente, portanto, numa filosofia e princípios mais Numa primeira fàse, a equipe «mapeou» o sector de educação, signi-
amplos. Esta abertura ampla é reconhecida no próprio documento/relatório ficando isto a recolha e pesquisa da legislação educacional e a realização de
produzido pelo MINED intitulado Riforma e Modernização do MINED, do- inquéritos a alguns administradores seleccionados para identificar os cons-
cumento apresentado durante a XXVIII sessão do Conselho Coordenador do trangimentos da estrutura educativa. Basicamente, foi uma avaliação mais ou
MINED (Agosto 2003,3) onde se declara o MINED como um de entre os menos completa dos processos e actividades de cada sector, das estruturas e
ministérios-piloto seleccionados para testar e dinamizar a implementação da das respectivas funções, da forma como a comunicação entre as diferentes
reforma no sector público. A descrição que a seguir se fàz sobre a reforma da estruturas decorre, dos recursos humanos e a avaliação das competências do
administração no sector da educação baseia-se neste documento. pessoal, assim como a análise das tecnologias e sistemas que suportam a circu-
A Filosofia que rege toda a «modernização» da administração da edu- lação da informação. O mesmo documento define como objectivos principais
cação resume-se na ideia de «garantir uma estrutura flexível orientada para da modernização a melhoria da eficiência e qualidade de serviços, a adequação
a definição e supervisão de políticas e estratégias» (MINED 2003,11). Ou da estrutura do MINED aos recursos humanos, a optimização dos mecanis-
seja, o MINED como entidade central do processo de educação passará a ser mos de articulação e controlo e tornar a circulação da informação mais efecti-
somente um organismo de definição e supervisão de políticas de educação. va por meio dos sistema tecnológicos modernos.
Como é que vai fazer isto? Segundo o mesmo texto, o princípio de gestão já Como visão do MINED define-se o seguinte: «Garantir e promover um
não será de formar estruturas rígidas (na prática quer dizer Departamentos e sistema educativo que responda às necessidades e expectativas dos Moçambi-
Direcções) mas sim a formação de equipas «multidisciplinares e polivalentes» canos e seja consistente com as exigências da sociedade moçambicana» (MI-
que se organizam por competências. A ideia que se deixa no ar é a de for- NED 2003,8). Qyanto aos objectivos reafirmam-se alguns como «aumentar o
mação de grupos de trabalhos «tarefeiros» e com base em objectivos a curto acesso às oportunidades educativas a todos os moçambicanos e em particular
prazo, à semelhança de como o Ministério do Ensino Superior, Ciência e às mulheres» e «melhorar a qualidade da educação». É, porém, em parte re-
Tecnologia funciona actualmente (onde não há praticamente Direcções Na- definido o terceiro eixo que fica assim: «desenvolver um quadro institucional
cionais, senão uma espécie de comissões de trabalho formadas em jornadas). e financeiro sustentável». Imperceptivelmente, há um objectivo muito salutar
A justificação mais próxima para estas mudanças é a utilização «racional» dos que é tornar o sistema de educação financeiramente «sustentável».
recursos (financeiros e humanos), o que é o mesmo que dizer, em termos mais O documento apresenta três cenários de transformação, onde o cenário C
claros, que o despedimento de muitos funcionários ministeriais e do Estado é o produto final. Por isso vamos limitar-nos a ele. Na prática, o MINED vai
em geral, está próximo. ter uma organização horizontal e vertical mais simplificada. Horizontalmente,
Para gerir a transformação foi formado o Gabinete de Gestão e Mudan- o MINED vai dividir-se em dois tipos de organismos: um de planeamento e
ça composto por quatro (4) elementos: um Coordenador do Gabinete e, ao suporte e outro de desenvolvimento do ensino. O planeamento e suporte con-
mesmo tempo, Assessor para a Modernização e Reestruturação do MINED, templa o sector de planeamento e desenvolvimento (mais ou menos uma mis-

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José P Castiano • Sevel'ino E. ~Jgoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal'a Todos» em Moçambique

tura entre um Gabinete de Estudos Estratégicos, planificação e coordenação para os sectores da agricultura, indústria e agro-industrial bem como avaliar-
nacional e internacional), o sector de administração e finanças (uma mistura mos a estrutura da produtividade de algumas empresas. Faremos a descrição
entre a gestão financeira, o património, aquisições e arquivos/bibliotecas), o da situação económica com base no texto da Agenda 2025 (2003,16-36).
sector dos recursos humanos (que vai definir políticas de formação tanto dos Moçambique inaugura a década de noventa com um clima sombrio, pelo
professores como do pessoal técnico-administrativo) e, finalmente, o sector de menos sob o ponto de vista económico. Uma notícia que corre pelo mundo
sistemas de informação para administrar redes e sistemas de informação intra em 1990: Moçambique, com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita de
e inter institucional. Por outro lado, teremos horizontalmente os organismos 90 dólares americanos e cerca de 60% da população, vive em pobreza abso-
que fazem parte da linha de Desenvolvimento do Ensino e que, em suma, se luta, é o país que está na cauda em termos de desenvolvimento. No entanto,
vai ocupar mais das questões relativas ao ensino (orientação pedagógica de to- de 1994, ano das primeiras eleições multi partidárias, a 2002, o PIB cresce em
dos os níveis de ensino, gestão escolar, certificação e equivalência e os chama- média 6.4% ao ano, tendo, em alguns anos, ultrapassado dois dígitos. O maior
dos «programas especiais» [ensino à distância, envolvimento da comunidade, crescimento resulta da retomada da produção agrícola, do reassentamento da
saúde e desporto e educação especial.]). população e crescimento das indústrias de construção, turismo e energia. Já
Na vertical, o MINED vai possuir três níveis: no topo teremos o Ministro em 2000 o PIB sobe 32% em relação a 1994. Em termos monetários, esta
do pelouro com as diferentes comissões e gabinetes. As comissões, organis- subida correspondeu a um PIB per capita de US$ 167.0 em 1996, para US$
mos mais flexíveis, serão formadas de acordo com os imperativos políticos de 243.0 em 1999. Estes números são médios. O crescimento não foi igual em
educação. Os gabinetes estão mais ou menos fixos (inspecção, comunicação e todas as regiões. A título de exemplo, a cidade de Maputo registou um rendi-
imagem, jurídico, modernização, e do ministro). No nível intermédio estão as mento médio per capita superior a US$ 1.000 por ano comparado com a mé-
áreas de planeamento e suporte, assim como de desenvolvimento de educação. dia de US$ 250.0 do resto do país. No período de 1987 a 1996, no entanto e
O nível inferior é formado por institutos de suporte ao MINED, como sejam apesar do crescimento, registou-se uma inflação relativamente elevada (56.5%
o Instituto Nacional de Educação Física, o Instituto de Apoio Pedagógico, os em 1995). Na prática, significa que os preços duplicam em cada 1.2 anos
Institutos do Magistério Primários (estes para a área de planeamento e supor- (AGENDA 2025,20).
te) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação (INDE) assim A continuação das políticas liberais sob o auspício do FMI e do BM
como o Instituto Nacional de Alfabetização de Adultos (INAA). resultou numa deterioração sucessiva das despesas públicas que, na prática,
Um outro elemento interessante é o de analisar quais são as transfor- significou cortes significativos nas verbas destinadas aos sectores de educação
mações verificadas na coordenação da ajuda. Como se viu em períodos ante- e saúde. Para corrigir as taxas de câmbio, promover a exportação e atrair in-
riores, o maior bolo para cobrir as despesas da educação provém do exterior. vestimentos externos, o Governo teve que recorrer à desvalorização sucessiva
Nos anos em análise (1992-2002) há uma mudança na forma como é gerida do metical.
a ajuda internacional para o sector da educação. Deixa de ser baseada em As implicações destas medidas variam por sector da economia. No sec-
projectos concretos para se passar a adoptar uma estratégia de apoio multisec- tor agrícola, que ocupa a maior parte da população activa de Moçambique,
torial, que em inglês se denomina de Sector- Wide Approach ou simplesmente convém sublinhar que somente um quinto (1/5) dos 36 milhões de hectares
S WA Concept. aráveis estão sendo cultivados. Da superfície cultivada, a área que beneficia de
Mas antes de nos determos em detalhes da ajuda financeira e em termos irrigação sistemática é muito pouca. O tipo de agricultura mais praticado é o
de assistência técnica ao sector da educação, vejamos alguns indicadores ma- de pequena escala, fundamentalmente familiar e de subsistência. A população
cro-económicos, para depois analisarmos as implicações de políticas liberais rural (71% dela) é a mais atingida pela pobreza. Um dos maiores problemas

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa Mal"cha duma «Educação em rvloçambique

dos produtos agrícolas é a sua comercialização. A ausência de estradas terná- da indústria de refrigerantes, moageiras e turismo. O sector bancário é maio-
rias suficientemente transitáveis desencoraja toda e qualquer iniciativa para a ritariamente controlado pelos portugueses, mas também procura expandir-se
comercialização ou, quando é o caso, o custo do transporte encarece o produ- para o sector dos seguros e de construção. O texto que vimos referindo é pe-
to. A tudo isto se junta a temporária paralisação das indústrias de açúcar, do remptório ao referir que as decisões sobre os sectores de maiores investimen-
chá e do tabaco. Também a produção de algodão, de oleaginosas, girassol e tos (alumínio, areias pesadas, gás natural, açúcar e cervejas) estão nas mãos de
gergelim conheceram fortes retrocessos, apesar dos esforços para reabilitá-la. corporações sul-africanas (Agenda 2025,24p.).
Uma consequência pouco calculada da paralisação temporal destas indústrias Em Moçambique, num determinado período de cada ano, apresentam-
é a perca consequente do know how: efectivamente, muita mão-de-obra espe- -se as 100 maiores empresas, exercício este que permite às pessoas, que no
cializada passou a dedicar-se mais ao comércio, distorcendo o capital humano seu dia-a-dia não lidam com dados estatísticos, visualizarem a economia com
alguma competência. Segundo os dados de 1999, das 100 maiores empresas,
que estaria à disposição para a sua recuperação.
No texto da Agenda 2025 (p.23) constata-se que o sector industrial, no 52 são da área comercial, bancos e seguros, 17 da área da indústria, cinco
das pescas e somente oito da agricultura. O sector das construções tem seis
geral, mostra sinais muito fortes de desaceleração e tendência para a estag-
empresas representadas. O paradoxo está claro: um país que é agrícola tem
nação. Continua constatando que, tirando a MOZAL (Mozambique Alimi-
somente este número de empresas neste ramo, enquanto que nos serviços as
nium), o peso do valor acrescentado da indústria transformadora no PIE em
empresas crescem como cogumelos. Isto torna-se mais dramático se tivermos
2001, ficaria ao nível de 1971. Isto demonstra que há um processo de excessi-
em conta que somente seis empresas (do sector de energia e comercialização
va concentração da produção industrial em algumas empresas: só a MOZAL
de combustíveis) efectua 25% do volume total de negócios. Não admira, pois,
mais a indústria de tabaco e alimentar representam mais de 80% do produto
que o volume de crédito à agricultura tenha decrescido de 39% a 20% nos
industrial total. A indústria de processamento do caju quase que desapareceu.
últimos seis anos. Os bancos, na sua maioria de capitais portugueses e sofren-
Só a MOZAL exportara em 2001 três quartos (3/4) do total das exportações.
do fraudes constantes, não emprestam o seu dinheiro aos investimentos na
Esta extrema unilateralidade em termos de crescimento diz muito em relação
agricultura porque não têm segurança de retorno. Investimentos a médio e a
à tecnologia existente, quanto à vulnerabilidade da economia em relação a um longo prazo quase que não existem. Praticamente não existe nenhuma insti-
só ramo económico e em relação à distribuição regional dos ganhos relati- tuição financeira para fomentar o desenvolvimento.
vos. A estrutura do investimento também não nos dá muitas manobras rumo Também interessa acrescentar que, por a base tributária ser fraca, os pou-
ao desenvolvimento: somente 7% do investimento privado total é de origem cos contribuintes são chamad~s à caixa de uma forma pesada, que os obriga
doméstica, sendo o resto de proveniência externa. Mesmo este investimento muitas vezes a fugir ao fisco. E quase que «normal» hoje para o cliente optar
privado externo concentra-se mais nos chamados «megaprojectos» tais como se quer pagar com Imposto de Valor Acrescentado (IVA) ou simplesmente
(mais uma vez) a MOZAL, areias pesadas, açúcar, cervejas e cimento. Sob sem ele. Isto sucede nas casas comerciais de renome. Com taxas de juros ele-
o ponto de vista da sua distribuição regional, temos de novo Maputo a co- vadíssimas praticadas pelos bancos aliada a uma fraca capacidade de poupança
lher vantagens extraordinárias porque esta cidade sozinha consome 60% do do cidadão, o sector financeiro não tem meios para acumular capital suficiente
volume total de investimentos e 75% de todo o investimento directo estran- capaz de ser aplicado para o desenvolvimento nacional.
geiro. Somente 25% deste capital estrangeiro se aventura para fora da capital O país fica, assim, dependente do estrangeiro, tanto em políticas como
moçambicana. O maior parceiro no investimento é o big brother - a África do na escolha de alternativas ao desenvolvimento. É neste ambiente, pois, que
Sul. Efectivamente, ocupando 35% dos fluxos de investimento, as terras do ele deve começar a traçar políticas próprias para todos os sectores, incluindo
rand olham mais para a MOZAL, para o açúcar e para a cerveja, para além o da educação.

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pai-a Todos» em Moçambique

Como se desenvolve o envolvimento externo na educação durante este Já fizemos referência à entrada do BM desde 1987 no contexto da po-
período? Um dos poucos estudos que se concentra nas actividades das agên- lítica de reajustamento estrutural. Este banco entra apoiando directamente
cias internacionais em Moçambique no sector de educação foi terminado em alguns sectores da educação ou prestando assistência técnica ao sector. O BM
Janeiro de 2002. Este estudo foi realizado por Toumas Takala que trabalha continua a actuar no sector de construção das escolas primárias e secundárias,
como consultor na educação em Moçambique desde 1992. O estudo também no procurel1lent para o fornecimento do livro escolar, no sector de formação
contou com a colaboração da senhora Mmantsetsa Marope, conhecida con- de professores, na planificação curricular, na gestão educacional e, particular-
sultora originária do Botswana. O texto final deste estudo resulta de uma série mente, no desenvolvimento da Universidade Eduardo Mondlane.
de entrevistas (no total 28) que os autores fazem a representantes do governo, A UNESCO e o PNUD preferiram concentrar-se no processo da prepa-
funcionários do MINED e a alguns representantes das organizações interna- ração do Plano Estratégico da Educação (PEE) a que fizemos referência. Um
cionais e bilaterais que operam em Moçambique. O estudo foi financiado pela passo importante para este efeito foi a organização de uma reunião, em 1995,
ADEA e, simultaneamente, levado a cabo em Moçambique, Burkina Faso e entre os representantes do governo/MINED e representantes das agências in-
Gana. A exposição sobre o desenvolvimento da ajuda externa nos anos 90, ternacionais no sentido de estabelecer as linhas principais daquilo que seria o
que iremos fazer a seguir, é um resumo deste estudo. PEE. Uma reunião subsequente foi realizada em Paris onde participam, para
Nos anos 90, as maiores agências bilaterais a agirem no sector de educa- além do MINED, representantes do Ministério de Planificação e Finanças
ção foram a ASDI e o governo da Holanda, seguidas pela DANIDA e a FIN- (MPF) e ainda representantes das maiores agências doadoras no sector de
NIDA. Escusado será mencionar neste ponto que estas agências já tinham a educação. O objectivo desta reunião era discutir a forma de coordenar a doa-
tradição de apoiar massivamente o governo de Moçambique. Na segunda me- ção de fundos entre os diferentes sectores e a nível da macro-economia. Em
tade dos anos noventa, assistimos ao aumento substancial de outras agências Maio de 1998 volta a reunir-se a comissão conjunta do MINED, do MPF e
como o DFID (Departl1lent for International Developl1lent), o governo da Ir- uma missão dos doadores externos onde estes indicam o volume do seu apoio
landa e a CIDA (Canadian Internacional Devel0pl1lentAgency). Estas agências ao PEE. Nesta reunião também se acordaram os princípios para a harmoni-
financiam, principalmente, a provisão de livros escolares para o ensino básico, zação dos procedimentos para a gestão dos fundos provenientes de fontes ex-
a formação inicial e em serviço de professores, o ensino técnico e profissionais ternas. Nesta senda, foi fixado que a implementação do PEE para o primeiro
assim como a planificação e a gestão da educação (capacity building). período de cinco anos, iria custar US$700.0 milhões, sendo ~ desta quantia
Mas nos anos 90 algo interessante sucede: as agências com uma presença da responsabilidade do governo de Moçambique, NGOs e comunidades.
mais significativa no sector de educação «entram num acordo tácito» para uma Porque algumas agências levam o seu tempo a desembolsar os valores
divisão regional em que cada uma delas tenta oferecer uma ajuda multi-secto- que se comprometem a contribuir, e outras não chegam mesmo a fazê-lo nos
riaI. Assim, por exemplo, o governo da Holanda concentra-se mais na Provín- termos acordados, o MINED com o apoio do BM e IDA, cria um fundo
cia de Nampula; a GTZ da Alemanha procura o seu nicho nas províncias de de maneio dentro do PEE que, funcionando a partir de 1999, visa assegurar
Manica, Sofala e Inhambane; outras emigram para Cabo Delgado e Niassa. o andamento das actividades de sectores prioritários do PEE. Este progra-
Outras ONGs mais insignificantes fixam-se regionalmente, aproveitando os ma de apoio subsequenciado decorre segundo os procedimentos do BM, o
fundos da União Europeia (EU) para desenvolverem as suas actividades. que evidentemente inclui um sistema de auditoria externa e independente.

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José P Castiano • Severino [ Ngoenha

o memorando de entendimento para a gestão deste fundo foi assinado em todos os moçambicanos ainda está longe de terminar. Ainda há inúmeros
2001. As agências e países que inicialmente contribuem para este fundo são o problemas por resolver antes desta caminhada. Como vimos antes, a econo-
BM, a ASDI, a Holanda, a Irlanda, DANIDA, CIDA4 e a Finlândia. Hoje mia, que enfrenta muitos problemas, não assegura que Moçambique deL\:e de
são 18 organizações internacionais e bilaterais que, sob os auspícios do BM, estar susceptível ao interesse externo e ganhe autonomia suficiente para tomar
contribuem para a verba educacional, segundo informações do BM5. Com as suas decisões em termos de políticas educativas de uma forma soberana.
este tipo de flexibilidade no financiamento espera-se que haja mais liquidez Assim, a escola moçambicana debate-se com imensos problemas de finan-
no pagamento das actividades inseridas no PEE, ao mesmo tempo que se ciamento, mas sobretudo e mais do que nunca, com problemas de qualidade
pretende criar alguma capacidade de gestão. Convém também dizer que algu- muito baixa. O primeiro, na linguagem económica, traduz a falta de liquidez
mas organizações bilaterais, para além de participarem no fundo global, ainda crónica do sistema: os seus planos são sempre aquém das suas possibilidades.
continuam a exercer as suas actividades a coberto de acordos bilaterais. Tal é O segundo, pensamos que o eixo mais fraco sob o ponto de vista prático, é a
o caso de CIDA, da GTZ, do ]IC, etc. Ainda outros países (como a Espanha formação de professores. Voltaremos a este ponto.
e a França) e o Banco Islâmico de Desenvolvimento preferem actuar mais ou Há algumas questões que permanecem por responder: não seria mais um
menos à margem dos mecanismos criados pelas agências internacionais, mas daqueles planos que se fazem confiando em meios externos que chegam aos
participando nas discussões para a harmonização dos planos educacionais. O pingos e condicionados? O que estaria «errado» em todos os planos feitos até
que é notável é a ausência de Portugal nas tais comissões, embora a antiga agora? Onde se encontram as contradições fundamentais de todo este proces-
metrópole esteja engajada no ensino secundário e no ensino superior. so histórico descrito até agora? Podem identificar-se tendências contraditórias
Pela mesma altura foi estabelecida uma comissão conjunta para fazer a que nos ajudem a equacionar melhor o caminho a seguir e as decisões a tomar?
supervisão da implementação do PEE. Nela encontram-se representantes da A utilidade do capítulo sobre a «história» da educação em Moçambique
comunidade de doadores (que tiveram de chegar a um acordo acerca da sua que escrevemos reside no facto de procurarmos nela elementos que nos pos-
representatividade) conjuntamente com elementos do MINED. Anualmen- sam iluminar para reequacionarmos a educação em Moçambique. As dificul-
te, desde 1999, realizam-se as chamadas Reuniões Anuais de Consulta com dades reveladas no percurso histórico clamam por uma «paragem» estratégica
os Doadores ou, simplesmente, Reunião Anual de Revisão (RAR) do PEE. para reflectir sobre o instrumentário analítico. Clama pela racionalização da
Talvez o mais importante é saber que, a partir de 2000, as reuniões da RAR nossa história da educação. Clama por um diálogo mais aberto entre os po-
são precedidas por uma Missão Técnica de Revisão. líticos e os pensadores de educação. É o que vamos fazer no capítulo II ao
Efectivamente, apesar da participação em massa de organismos estran- revisitarmos as aparias de educação em Moçambique.
geiros, o objectivo de estender as oportunidades educativas para todos e o de
oferecer uma boa qualidade de ensino para a maioria das crianças continua
ainda muito longe de se alcançar. A «Longa Marcha» para educação para

4 Segundo a página electrónica da CIDA, esta organização vai providenciar uma ajuda
à educação entre 2003 até 2007 de cerca de US$ 10 milhões a Moçambique e Tanzâ-
nia. In: www.acdi-cida.gc.ca/cida_ind.nsf/0/6e0476b6705fe5c285256c76005febc4?
Open Document (consultada a 25 de Janeiro 2004).
In: World Bani<:: and Education Partnership www1.worldbank.org/eelucation/part-
5

nerships.asp (página electrónica consultada a 26 ele Janeiro ele 2004).

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Capítulo 11:
Aporias da Educação em Moçambique

Segundo o seu sentido literário, o termo aporia significa beco sem saí-
da, dificuldade de resolver qualquer problema. Também pode significar uma
antinomia ou um paradoxo. Não o usamos neste texto no sentido kantiano-
como algo que deriva da aplicação da razão pura à realidade e especialmente às
proposições cosmológicas. Aqui usamos o termo aporia para nos referirmos às
dificuldades práticas que o sistema de educação de Moçambique vem enfren-
tando ao longo da História pós-colonial para se afirmar como um paradigma
próprio.
A análise do processo da educação desde o período colonial até ao pre-
sente permitiu que identificássemos algumas aporias.
Moçambique é antropologicamente um mosaico de culturas diferentes e
politicamente um projecto «nacionah>. Entretanto o projecto nacional é um
<0á e ainda não é», nas palavras de Ngoenha. Por isso, a primeira aporia do
sistema de educação é estar entre legitimar as identidades nacional (em cons-
trução) e as mini-nacionalidades culturo-tradicionais que formam o país. É
possível encontrar e construir um paradigma educacional que introduza no
aluno moçambicano a identidade cultural de cariz «nacional», mas que ao
mesmo tempo o ensine a reconhecer e preservar as tradições e os ecossistemas
locais de socialização?
A segunda aporia deriva do fàcto de haver imperativos políticos e de de-
senvolvimento para estender o ensino básico a todas as crianças, mas, por
outro lado, ao mesmo tempo e à custa da expansão, a qualidade das ofertas
educativas ter deteriorado: como é possível uma «expansão com qualidade» e
o que significa qualidade nas condições de Moçambique?
A terceira aporia provém do facto de o sistema educativo exigir mais
recursos financeiros e materiais do que aqueles que o Estado moçambicano
pode disponibilizar. Este facto torna o sistema muito vulnerável perante a
ajuda externa, tanto em meios financeiros como na assistência técnica. Em

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José P Castiano • Sevel-ino E. I\lgoenha A Longa Marcha duma «Educação em Moçambique

palavras mais acutilantes é o paradoxo entre, de um lado, o sistema que se neste contexto, da identidade nacional. Por outras palavras, a escola deveria
quer afirmar como «nacional» e independente, que, portanto deve reflectir as ser a instituição mais activa na formação da identidade que se considera con-
necessidades educativas de moçambicanos, e, do outro, uma «intervenção» dição básica para que se erga a nação - a identidade nacional. A formação das
cada vez mais crescente de actores externos (internacionais e bilaterais), apoio identidades particulares (etnias linguísticas), em contrapartida e para o caso
este que não se limita só a «dar dinheiro», mas que se estende à definição de da nação moçambicana, é relegada para o plano familiar ou privado. Da edu-
políticas. Como é possível conceber um sistema «nacional» autónomo num cação espera-se um papel modernizador porque é por ela que se pensava que
contexto de dependência externa para o desenvolvimento da educação? cada cidadão iria reconhecer-se como parte integrante e activa de uma nação.
A quarta e última aporia relaciona-se directamente com a qualidade ex- Por sua vez, a nação é vista como a porta pela qual o cidadão se pode afirmar
terna do sistema de educação. O sistema de educação oficial herdado foi con- como universal. Sob o ponto de vista prático é absolutamente natural que
cebido de forma a proporcionar uma formação muito geral e académica aos assim fosse: todos os países estavam organizados em nações e a representati-
alunos. Mesmo as predisposições e expectativas criadas aos utentes do sistema vidade nos fora internacionais não poderia ser na base desta ou daquela tribo.
de educação são no sentido de terem o mais alto nível de educação possível. O que estamos a pretender explicar é que se, por um lado e internamente, a
Mas, em contrapartida, a estrutura social do mercado do emprego e os impe- educação deveria garantir o mínimo de fidelidade de cada cidadão ao Estado
rativos do desenvolvimento pressionam para que a educação seja mais virada moçambicano, por outro, ela, ao constituir a identidade nacional, garantia as
ao «saber fazer» que ao «saber conhecer». Como conciliar a formação geral e a relações com os outros países, principalmente num contexto em que a afirma-
formação para o emprego ou uma que vise o auto-sustento? ção da soberania se apresenta como um valor.
É sobre estas as questões que, fruto da reconstrução histórica que fizemos O caminho da endoutrinação dos utentes do sistema parecia ser o mais
no capítulo anterior, propomos que haja um debate mais aprofundado na bus- curto e eficaz para estes objectivos: o Estado deveria ser legitimado através
ca de um paradigma educacional genuinamente moçambicano. de uma propaganda endoutrinária. Chamamos endoutrinária para referir
o fàcto de superpontuar «uma só linha política», isto é, a linha política do
1. Entre Identidade Nacional e Culturas Particulares partido no poder. Em nome da unidade nacional foi-se transmitindo uma
História única e foram-se relegando as diferenças culturais, linguísticas, so-
Sem dúvida que a educação desempenha um papel importante para a le- ciais constituintes da realidade moçambicana, para o segundo plano. A tribo
gitimação da cultura dominante. E este papel de legitimação é feito de várias deveria «morrer» para se construir a nação, segundo uma passagem do texto
formas. Uma das mais evidentes decorre do facto de que os professores, para da Agenda 2025.
além de transmitirem conhecimentos, transmitem também normas, valores, Para enaltecer a nação ou a unidade nacional são usados símbolos cuja
padrões de comportamento e de interpretação da realidade aos estudantes. omnipresença visa representar e apelar a todos: é desenhada e disseminada
As normas, os valores e os padrões de interpretação dos fenómenos tendem a uma bandeira nacional, é composto um hino nacional, um emblema nacional,
concorrer para estabilizar e dar uma certa continuidade às sociedades. Entre são promulgados feriados nacionais, etc. O discurso em volta deles é apelativo:
elas encontramos, naturalmente, aquelas que visam reconhecer as instâncias todos os nacionais devem obedecer. Fora disso, a adjectivação de «nacional»
políticas nacionais como sendo legítimas (bandeira, hino, presidente, Estado, que se dá às diferentes direcções e/ou estruturas, devem lembrar-nos frequen-
temente a presença da nação: sistema nacional de educação, sistema nacional
território, etc.).
C211ando atingiram a sua independência, os sistemas de educação dos pa- de saúde, direcção nacional para a economia e finanças e por aí fora. Os pro-
íses africanos assumiram o papel de contribuir para a construção da nação e, blemas começam quando nos perguntamos simplesmente, sobre que valores

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A Mat-cha duma «Educação em JVloçambique
José P Castiano • Sevet-ino E. i'lgoenha

se ergue, por exemplo, aquilo que se chama sistema «nacional» de ensino? para a construção de uma nova sociedade ditaram, em nossa opinião, a toma-
da de elementos autoritários na construção desta visão. Um aspecto positivo
Existirão também valores «nacionais»?
Por trás desta prática está a assunção de que a unidade e identidade na- desta medida é que, realmente, ela abriu as portas da escola para todas as
cionais só podem repousar num sistema também nacional de educação. Uma camadas, sem discriminação na base da cor da pele ou do género. Portanto,
pluralidade identitária, que, por exemplo, passasse pela promoção das línguas abriu-se a porta à «nação».
nacionais no ensino, estaria em contradição com a política da unidade nacional. O outro elemento foi a chamada «Doutrina do Homem Novo». No novo
Qye instrumentos e estratégias usou o Estado moçambicano para pôr lVloçambique, educar passou a significar formar o «Homem Novo», um cida-
a educação ao serviço da «construção da moçambicanidade»? Foi através da dão política, científica, técnica, cultural e fisicamente preparado para realizar
nacionalização do ensino, da propagação da Filosofia do Homem Novo assim as tarefas do desenvolvimento do País. O homem novo é visto como aquele
como da formação de professores comprometidos com a formação do «ho- que nega e se sobrepõe duplamente às «sequelas» do colonialismo e do sistema
tradicional. Ele devia negar o colonialismo, sobretudo devido ao seu carácter
mem novo». Vejamos em seguida, cada um deles.
Em primeiro lugar, o Estado tratou de estratificar a educação, processo elitista e aos valores adjacentes a este carácter. De facto, o individualismo, a
que descrevemos como sendo de «nacionalizações». Efectivamente, uma das exploração do homem pelo homem, mas sobretudo a discriminação de qual-
medidas que marcara profundamente o sistema moçambicano de educação, quer espécie, são elementos da educação capitalista que o homem novo deve-
logo após a independência, foram as «nacionalizações». Elas surgem, como ria negar e superar.
foi dito no capítulo anterior, na sequência da primeira sessão do Conselho de Mas, também, o homem novo devia confrontar-se com os aspectos nega-
Ministros e do discurso presidencial proferido no dia 24 de Julho de 1975. tivos da educação tradicional. O documento final da III Reunião Nacional do
Mas foram consubstanciadas pelo decreto 12/75, de 6 de Setembro, que pro- MEC (Abril de 1979) é um dos poucos documentos oficiais que se confronta
íbe o exercício a título privado de actividades de ensino em Moçambique, com a educação tradicional. Nele identificam-se como sequelas da educação
que passa a ser exclusivo do Estado. De acordo com este decreto, todos os tradicional as seguintes: os métodos autoritários tanto dos funcionários di-
estabelecimentos de ensino, incluindo as escolas missionárias ou de outras rigentes na administração escolar como dos professores nas salas de aulas,
organizações religiosas e ainda as que ministravam qualquer outro tipo de a fraca representação da mulher na escola e a sua desistência, a não partici-
ensino estranho ao plano oficial, foram colocados sob a administração directa pação da mulher nas aulas de educação física e a resistência dos homens em
participarem nas campanhas de alfabetização. Os «métodos autoritários» são
do então Ministério da Educação e Cultura.
O objectivo da estatização da educação era o de substituir a «educação vistos como sendo sequelas da educação tradicional já que nesta a autoridade
colonialista», vista como um instrumento para consolidar o poder e os inte- (paterna ou dos chefes) é exercida obedecendo a métodos não democráticos.
resses da classe dominante, por uma «educação socialista» que oficialmente Segundo este documento, os dirigentes de vários organismos e estabelecimen-
visava servir os interesses de todos os trabalhadores (operários e camponeses). tos escolares, de uma forma consciente ou não, reflectiam esta educação tra-
Mas o objectivo prático era a massificação da educação, isto é, a extensão das dicional ao serem resistentes aos métodos democráticos. Assim, também são
oportunidades educativas para todas as camadas sociais. O Estado só podia ter classificados os professores que não deL"am os alunos colocarem as suas ques-
a garantia da extensão do sistema socialista e a sua correspondente ideologia tões nas salas de aulas, assumindo uma atitude de comando perante eles. À
se, de facto, tivesse o controlo administrativo de todos os estabelecimentos de semelhança da participação da mulher na luta de libertação, a educação nova
ensino e também controlasse os conteúdos que se transmitiam. Os impera- não deveria discriminar a mulher. Neste documento recomenda-se vivamen-
tivos históricos de eliminar rapidamente os restos do colonialismo e avançar te uma nova relação Homem-Mulher. Estes aspectos todos são vistos como

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Mal-cha duma «Educação pai-a Todos» ern

negativos para a educação no contexto da revolução e deveriam, portanto, ser e Cívica) e, consequentemente, a produção de novos materiais que respon-
combatidos pelo Homem Novo. dessem a esta necessidade político-ideológica. A introdução da disciplina de
Um aspecto importante na luta contra as sequelas da sociedade tradi- Educação Política, sobre a qual já fizemos referência, enquadra -se neste âmbito.
cional é o «obscurantismo». Não encontramos uma definição muito clara do Por outro lado, o projecto de nacionalização do ensino implicou, já na
que se pretende dizer com este conceito. Nos parece, porém, que ele se quer sua implementação prática, a «uniformização do ensino». Este projecto, à par-
referir às práticas do «curandeirismo», pois, na sua essência esta prática é vis- tida, resvalou para uma negação da diversidade cultural e das especificidades
ta como rodeada de um misticismo com alguma magia negra. A esta visão regionais, embora em teoria se apelasse para o atendimento às necessidades
do tradicional opunha-se uma nova educação que devia iluminar as pesso- locais. Na realidade, embora o projecto de construir a identidade moçambica-
as. E é interessante a forma como os planificadores da educação propunham na implicasse um certo grau de uniformização das regras de acesso ao ensino,
contrapor-se ao obscurantismo. No documento é recomendado ao sistema de da formação dos professores e dos conteúdos de aprendizagem, essa missão
educação dar uma «explicação científica» sobre as fases mais importantes da não implicava, necessariamente, o escamoteamento do direito do respeito à
vida: nascimento, puberdade, casamento e morte. Não devia haver misticismo diferença. Pese embora esta dificuldade, não se pode deixar de reconhecer
à volta destas fàses. que dos esforços feitos na área da educação nasceu uma certa consciência,
O Homem Novo deveria superar as práticas coloniais e tradicionais. uma certa forma de estar, uma certa compreensão da História que é genuina-
Donde viria a sua inspiração? Ele a ganharia das experiências da Luta Armada mente moçambicana. Não seria exagerado afirmar-se que a tarefa da criação
de Libertação Nacional. A assunção é a de que a guerra contra o colonialismo da Nação moçambicana é um dos poucos feitos que o sistema de educação
foi ganha devido, sobretudo, à unidade de pensamento e de acção. Assim, os nacionalista, criado logo após a independência, conseguiu dar um contributo
valores do Homem Novo deviam ser patriotismo, espírito da unidade nacio- válido. Na verdade «criou-se um sentido de pertença à moçambicanidade que
nal, colectivismo e materialmente desinteressado. Exige-se dele que os seus não passava por Lisboa, mas passava por uma ideologia que, num segundo
interesses não se sobreponham aos da nação. Afinal, os que se engajaram na momento, resultou nefasta» - como escreve Ngoenha (2000,79). Não terá
luta também tinham deixado para trás os seus interesses pessoais, as suas fa- resultado nefasta pelo simples facto de a ideologia por que passou não estar
mílias, o seu bem-estar para «libertarem a pátria» do jugo colonial. assente, de facto, sobre os alicerces das diferenças culturais em Moçambique,
Mas a doutrina do Homem Novo não se limitava a uma dimensão mo- mas sim sobre modelos que mais uma vez tinham sido importados?
ralista. Ela também procurava abranger aquilo que era a inserção do homem Uma outra dificuldade ligada ao fracasso na formação do «homem novo»
moçambicano na sociedade socialista moderna. Daí que, numa dimensão parece-nos ter sido o facto de a escola moçambicana no pós-independência
mais global, formar o homem novo significava (i) preparar os operários para ter estado praticamente sozinha neste empreendimento. Tendo em conta que
dominarem a Ciência e a Técnica, (ii) preparar os camponeses para produzi- a educação deveria ter sido direccionada para que o homem encontrasse so-
rem segundo métodos científicos e (iii) criar técnicos, cientistas e intelectuais luções face aos problemas imediatos com que o país se debatia (analfabe-
com uma mentalidade nova para servir o Povo e a Revolução. tismo, pobreza, enfim, subdesenvolvimento), a tarefa de formar um homem
A adopção geral da formação do Homem Novo levou à adequação dos totalmente novo era gigante demais para ser tomada e realizada por uma só
materiais de ensino àquela Filosofia. Isto pressupunha, por um lado, a abo- instituição, a escola. Para uma educação que se propunha preparar os ope-
lição da maior parte dos materiais didácticos utilizados no período colonial, rários para dominarem a Ciência e a Técnica, os camponeses para produ-
sobretudo no que se refere às matérias ou disciplinas susceptíveis de estarem zirem segundo métodos científicos e criar técnicos, cientistas e intelectuais
carregadas de conotações ideológicas (História, Geografia, Educação Moral com uma mentalidade nova para servir o Povo e a Revolução moçambicanos,

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A Longa Mal-cha duma «Educação em Moçambique
José P. Castiano • Sevel-ino E. i'-Igoenha

seria necessário que o Estado moçambicano se engajasse em buscar parcerias margem de liberdade de escolha e gestão sob a responsabilidade do próprio
sociais. O esforço do Estado deveria ser complementado por outras institui- homem que se pretende beneficiário do sistema.
ções socialmente activas. Mas, em contrapartida, este foi marcado por uma Outro aspecto, de certo modo ligado àquilo que deveria ser o produto da
espécie de exclusão das Igrejas e da sociedade civil. Entretanto, a experiência escola moçambicana no pós-independência, é o perfil dos graduados nos di-
ferentes níveis de ensino do sistema. O objectivo da educação nacionalista foi
das igrejas na formação de homens virados para a vida prática é inquestioná-
o de formar o Homem Novo. De facto, Moçambique precisava de formar o
vel. Eram elas as detentoras de um sem número de escolas politécnicas onde
Homem Novo, no sentido de homem preparado para enfrentar os desafios do
os alunos aprendiam a desenvolver uma profissão. As «novas» alianças sociais
futuro que se pretendia construir, que se resume no desenvolvimento econó-
que o Estado cria para o ajudarem nesta tarefa de moralização e politização
mico e social do país, o que não implica necessariamente formar um homem
da sociedade - e aqui referimo-nos às "organizações democráticas de massas"
novo à moda do leste europeu socialista como aconteceu. O modelo poderia
como a OJM e a OMM - não estavam à altura de tamanha responsabili-
ter sido um bom ponto de partida, mas moldado às características sociocultu-
dade porque, pura e simplesmente, não detinham nem capital social, nem
rais do país. O que aconteceu foi que se passou de um modelo de escola eu-
experiência histórica para assumirem tamanha tarefa. Embora muitas dessas
ropeia concebido para funcionar numa sociedade que se pretendia capitalista
organizações de massas tivessem à frente pessoas com experiência individual
para um modelo de escola europeia concebido para funcionar numa sociedade
na organização, proveniente da sua participação na Luta de Libertação (pois
que se pretendia socialista, ou seja, de valores externos a valores externos, mas
muitos são veteranos de luta), não tinham, porém, a magnitude da experiência
todos eles distantes da realidade dos moçambicanos que deveriam ser os prin-
institucional das Igrejas que se tinham enraizado há bastante tempo. A expe- cipais beneficiários do sistema.
riência da Alemanha pode mostrar a magnitude desta dificuldade. De facto, Por outro lado, nota-se, logo após a independência, uma ausência de um
a disseminação do chamado Hochdeutsch - o alemão oficial - foi devido ao sistema que se dedicasse exclusivamente à formação de professores, cuja fun-
papel que a Igreja teve na sua propagação. C2,:yando Martin Lutero traduziu a ção seria indispensável no processo de ensino-aprendizagem. O primeiro sinal
Bíblia do latim para o alemão, os camponeses passaram a ter grande interesse dos esforços do Estado moçambicano tendente a cobrir a lacuna da falta de
em saber o conteúdo daquele livro sagrado que antes, porque estava escrito em professores, resultante da vaga de abandonos que se registou após o golpe de
latim, não percebiam. A partir da tradução para o alemão que hoje é oficial, Estado, surge em 8 de Março de 1977 quando o então Presidente da Repúbli-
muitos começaram a entender a mensagem e a própria Igreja se engajou na ca, numa reunião com os estudantes do 6.° e 7.° anos do liceu, anuncia as me-
alfabetização para que as pessoas entendessem a Bíblia e, assim, melhor as didas tendentes a colmatar a fàlta de quadros no Aparelho do Estado, decide
moralizava. Ou seja, o ponto é: no caso de Moçambique, a Igreja poderia ter integrar a maioria deles no professorado, fechando-se, deste modo, este ciclo
sido e ainda é um potencial parceiro não só para a alfabetização, mas também liceal. Ainda na sequência desta medida, todos os estudantes que terminas-
para a moralização das camadas mais jovens e para o alcance rápido da edu- sem a 9. a classe (5.° ano do liceu) deveriam ser encaminhados para cursos de
cação para todos. formação profissional para cobrirem a falta de quadros nos sectores-chave da
A uniformização, por si, quando entendida em termos de objectivos ma- economia nacional, incluindo o da educação. É neste âmbito que nascem as
cro que se pretendem alcançar com a educação (projecto nacionalista, por Escolas de Formação e Educação de Professores Primários (EFEPP's), cuja
exemplo), não nos parece negativa. A uniformização deveria significar que vocação era formar professores para a 6. a e 7. a classes e a Faculdade de Edu-
todas as crianças têm direito às mesmas oportunidades no que respeita ao en- cação, na Universidade Eduardo Mondlane, para a formação de professores
sino, no sentido do acesso e dos objectivos mais gerais que se pretendia atin- para a 7. a , 8. a e 9. a classes.
gir com a educação do homem moçambicano, deixando-se, entretanto, uma

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José P Castiano • Sevenno E. A ["bl'cha duma «Educação pal'a Todos» em ["Ioçambique

o debate sobre a construção da identidade nacional também passa pela vê dois modelos de escolarização inicial: um em língua portuguesa e outro em
redefinição, ou melhor, pelo reequacionamento da política linguística na edu- línguas moçambicanas com uma introdução progressiva da língua portuguesa 1•
cação. Até 1992 vive-se num cenário de total ausência de um diálogo sobre Ora, a questão que se levanta, por enquanto circunscrita apenas às línguas
o lugar dos valores culturais moçambicanos na escola. Segundo a Lei 4/83, o no ensino, tem a ver com o facto de que a redefinição do lugar das línguas mo-
Sistema Nacional de Educação deveria (apenas) "contribuir para o estudo e a çambicanas parece-nos ocorrer numa altura em que elas devem ombrear com
valorização das línguas, cultura e história moçambicanas, com o objectivo de outras já bem "desenvolvidas", portanto em condições vantajosas, comparati-
preservar e desenvolver o património cultural da Nação" (art.5. o). Enquanto vamente àquelas. Falamos aqui das línguas inglesa e francesa. Lembre-se que
isso, por outro lado, um dos objectivos do SNE era difundir, através do en- o inglês, no novo currículo do ensino básico, é introduzido no terceiro ciclo
sino, a utilização da língua portuguesa contribuindo para a consolidação da (6. a e 7. a classes). Por outro lado, as condições de oferta destas línguas, que
unidade nacional. Portanto, as línguas locais, que deveriam servir de veículos têm a ver com o seu estatuto, e que se reforçam com o quadro sócio-económico
primários de todos os valores das várias culturas moçambicanas estão relega- que se funda numa economia de mercado (falar inglês é condição sine qua non
das para último plano, com valor simplesmente folclórico, porque se pretendia para se conseguir emprego hoje em lVloçambique), e ainda com as políticas
preservar (construir) a unidade nacional através da língua portuguesa. de globalização, são maiores e, consequentemente, a sua promoção também o
A partir de 1992, o estatuto das línguas moçambicanas e, consequente- é. Pelo contrário, as línguas moçambicanas, ao longo dos anos relegadas para
mente, de vários aspectos que têm a ver com os valores culturais, é redefinido. último plano, não têm um universo de utilização que ultrapasse o nível local.
Com a Lei 6/92, o Sistema Nacional de Educação aparentemente deveria Isto remete-nos, logo, para a questão da vitalidade linguística, para a qual são
passar a "valorizar e desenvolver as línguas nacionais, promovendo a sua in- determinantes factores como o estatuto, número de falantes e suporte institu-
trodução progressiva na educação dos cidadãos" (artA.o). Como se nota, o in- cional. Em nenhum destes factores se pode fàlar de vantagens em relação às
teresse por estas línguas situa-se já num outro nível. Fala-se da sua introdução línguas nacionais. De facto, aprender numa língua local poderá significar, para
nos currícula do ensino primário. Aqui já não se trata de valorizar as línguas muitos pais, reduzir o horizonte desta criança em relação àquela que aprende
para preservar o património cultural, mas sim porque se lhes reconhece a utili- numa língua europeia (inglês, francês e mesmo português). Instituições como
dade que têm no processo de ensino-aprendizagem. Com efeito, o Ministério a British Council, Centro Cultural Franco-Moçambicano e Instituto Camões
da Educação, através do INDE, entre 1993 e 1997 leva a cabo um programa não medem esforços para promover as línguas europeias. Entretanto, quando
experimental denominado Projecto de Educação Bilingue em Moçambique se fala de estudo de línguas nacionais identifica-se em Moçambique apenas o
(PEBIMO) em algumas províncias do país como Tete e Gaza, que viriam a Núcleo de Estudo de Línguas Moçambicanas (NELIMO), que se situa ao ní-
legitimar a decisão da introdução do ensino bilingue no País. vel de uma instituição universitária, portanto com um nível de acesso bastante
Entretanto, esforços visando a introdução destas línguas no ensino só se limitado e confrontando-se com todo o tipo de dificuldades que são próprias
notam, de facto, a partir de 1997, quando se inicia o projecto "Promoção da de uma instituição de um país pobre como é Moçambique.
Transformação Curricular da Educação Básica em Moçambique" que culmi-
nou com a apresentação, em 2000, do novo currículo do ensino básico, que pre-
1 Uma discussão à volta ela viabilidade do modelo ele educação bilingue no novo currícu-
lo do ensino básico poderá ter lugar mais adiante, reconhecendo-se, no entanto, que já
em alguns círculos se começa a questionar a sua practicidade, prevendo-se um futuro
assombrado com a sua introdução, sobretudo devido aos elevados custos para a forma-
ção de professores e para a produção dos materiais de ensino que este modelo acarreta.

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A Mar'cha duma «Educação par'a Todos» em Moçambique
José P Castiano • Sever'ino E. Ngoenha

Em capítulos anteriores debruçamo-nos sobre a transformação curricular sim de defesa e desenvolvimento das «identidades nacionais» e de «melhorar
na educação básica que ocorre desde 1999, cujo documento básico se in ti- a sua própria vida». Mas a questão da Unidade Nacional, porque relevante,
é ressalvada mais adiante quando se faz uma alusão ao desenvolvimento dos
tula Plano Curricular do Ensino Básico: Objectivos, Política, Estrutura, Planos
indivíduos e das identidades «dentro do espírito da preservação da unidade
de Estudos e Estratégias de Implementação. Voltemos a analisar este texto na
nacional>;. Numa leitura atenta vemos como sendo valores a Unidade Na-
perspectiva de como equaciona o papel da tradição em relação à educação no
Moçambique contemporâneo e de como equaciona a questão da aporia entre cional, a manutenção da Paz e Estabilidade, a Democracia e o respeito pelos
Direitos Humanos.
a identidade nacional e a diversidade. Para esse equacionamento serve-nos o
Embora no fim da introdução se ressalte a questão da Unidade Nacional,
texto introdutório e o trecho do texto onde se (re)definem os objectivos da
notemos, no entanto, que a grande revolução conceptual que encontramos,
educação em Moçambique.
O texto introdutório deste documento é muito expressivo, embora ocupe pelo menos no texto da transformação curricular, é a abertura do sistema edu-
cativo para a «diversidade». Efectivamente, no texto afirma-se que:
somente duas páginas e meia. Começa por apresentar uma definição funcio-
nalista da educação: «é um processo pelo qual a sociedade prepara os seus «(A) visão da relevância do currículo fundamenta-se na percepção de
membros para garantir a sua continuidade e o seu desenvolvimento» (INDE que a educação tem de ter em conta a diversidade dos indivíduos e dos
1999,7), implicando, porém, que a sociedade moçambicana se encontra em grupos sociais, para que se torne num factor, por excelência, de coesão
transformações profundas. Na introdução sublinha-se a necessidade de pre- social e não de exclusão»3 (INDE 1999,8).
parar os educandos para responder aos <<novos desafios» da sociedade. Qgais
seriam estes desafios? Em primeiro lugar menciona-se como desafio fazer A noção de diversidade veiculada na introdução é muito mais abrangente
face ao «dilema da construção da aldeia global e a pertinência da defesa e do que aquela que ao longo de todo o texto se faz subentender. Não se trata só
desenvolvimento das identidades nacionaiJ2»» (p.7) Ou seja, os planificadores da diversidade cultural, mas também em termos de talentos, de imaginação,
da educação vêem como grande prioridade desenvolver estratégias educativas atitudes, habilidades, etc. No entanto, mais adiante (p.ll) aponta-se como
para aquilo que Ricouer chama uma antinomia da educação, nomeadamente problema, que a transformação curricular quer resolver, a multiculturalidade e
a de inserir o cidadão ao mesmo tempo numa «tradição viva» e num mundo hábitos etno-linguísticos diferentes dado que «pesquisas antropológicas» so-
global diverso. Um segundo desafio que o texto destaca, embora sem o men- bre a interacção entre a cultura tradicional e a escola oficial chegaram à con-
cionar como tal, diz respeito aos valores que a educação em Moçambique clusão de que há um desfasamento entre a acção educativa e a cultura e tradi-
deve desenvolver. O próprio texto menciona como desafio «tornar o ensino ções locais. Os instrumentos analíticos usados para «medir» este desfasamento
mais relevante» (p.7), mas quando lemos o texto mais adiante notamos que, são a língua de ensino, os ritos de iniciação, as práticas sócio-económicas e
efectivamente, se trata de alguns valores que se devem cultivar. Para tornar o os estereótipos relacionados com o género. Enquanto que o ensino, usando
ensino relevante dever-se-ão «formar cidadãos capazes de contribuir para a exclusivamente a língua portuguesa, faz com que muitas competências e habi-
melhoria da sua vida, da sua família, da sua comunidade e do país». Este tre- lidades adquiridas pelos alunos na fase pré-escolar não sejam aproveitadas, já
cho mostra uma grande viragem na justificativa para uma reforma curricular os valores que são transmitidos pela educação tradicional, e em particular du-
em Moçambique comparado com a justificativa da transformação curricular rante os ritos de iniciação, chocam com a cultura que é veiculada pela escola.
de 1983: já não se trata em primeiro lugar a N ação como um todo unido, mas

3 O Itálico é do texto original.


2 O Itálico é do texto original.

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José P Castlano • Sevel-íno E. A Longa I"lal"cha dUllla «Educação em Moçambíque

Em relação às actividades sócio-económicas destaca-se o facto de que muitas zado, mas de «inculcar na criança, no jovem e no adulto padrões aceitá·veis4 de
crianças se vêem obrigadas a participar em actividades produtivas cujo ciclo e comportamento: lealdade, respeito, disciplina e responsabilidade». Qtando
tempo contrasta com o calendário escolar. Por último, o facto de, nas socie- se explora o texto encontram-se como padrões aceitáveis uma atitude de gos-
dades tradicionais, se atribuir muito cedo várias responsabilidades à rapariga, to pelo belo (portanto, o sentido estético), o amor à pátria, o respeito pelas
dificulta muito o seu acesso à escola. culturas locais, o espírito de unidade nacional, paz, tolerância, respeito pelos
O texto lança, a dado passo, um desafio que, a nosso ver, revela uma direitos humanos, pelos órgãos da soberania e pela Constituição. O que é
visão muito abrangente daquilo que deve ser a educação contemporânea em notório no texto é que não há uma hierarquia visível entre os valores próprios
Moçambique e em África em geral. Proclama-se: que traduzem o «educar para a cidadania». Sobretudo, não se reflecte já a
«Não se trata de transformar a escola num instrumento privilegiado preocupação, a nível da formação para a cidadania, de equacionar os «valores
para a preservação das culturas tradicionais, mas sim num espaço de tradicionais» correspondentes, na esteira do que esta transformação curricular
interacção entre as culturas das comunidades e os novos paradigmas da pretende ser: espaço de encontro entre a tradição e a modernidade.
O mesmo problema encontramos nos dois objectivos seguintes. Na edu-
cientificidade» (INDE 1999,13).
cação para o desenvolvimento económico e social focam-se como objectivos a
Naturalmente que isto é um grande desafio e, sobretudo, um desafio que erradicação do analfabetismo, a garantia do ensino básico para todo o cidadão,
a educação não pode pretender carregar nas suas costas sozinha. Como todos a promoção da rapariga na educação e, através dela, o respeito pelo ambiente
os desafios desta magnitude, surgem mais questões do que respostas. Porque é e ecossistemas, a formação básica na comunicação, ciência e cultura, a inves-
que a escola básica não se pode transformar só num espaço de preservação das tigação, a vocação e a profissionalidade. São, portanto, objectivos que não nos
culturas tradicionais? Como é que a escola pretende ser um espaço de interac- informam muito sobre o que é educar para o desenvolvimento económico
ção entre o moderno e o tradicional? Qle valores do parceiro tradicional vão e social e, mais uma vez, desligam-se totalmente da intenção profunda da
entrar na escola (dado que os modernos já estão mais ou menos identificados)? transformação que é tornar a escola um espaço de convivência multicultural.
Por fim, o que o texto não responde: o que são estes <<novos paradigmas» da Por último, o objectivo de educar para as práticas ocupacionais dá-nos uma
primeira interpretação que seria a de ensinar a criança a ser auto-suficiente
cien tificidade?
Não se torna fácil este objectivo de fàzer coexistir o tradicional com o ou a auto-ocupar-se. Um engano. O que se pretende com este objectivo é
moderno, do local com o universal. Uma leitura rápida aos objectivos gerais desenvolver na criança, no jovem e no adulto, por um lado, «o interesse pelos
do sistema nacional de educação que depois são delineados faz-nos notar que exercícios físicos, desporto e recreação», mas por outro, «hábitos de manu-
a linha divisória não está entre o moderno e o tradicional, mas sim entre o tenção de um corpo saudável através da higiene, prática de actividade física e
que a educação pretende que o aluno venha a ser mais tarde e os «desafios» da desportiva, nutrição e cuidados sanitários». Portanto, «práticas ocupacionais»
sociedade moçambicana (retorna-se ao funcionalismo). São, pois, reiterados resumem-se a cuidados com a saúde e com o sentido estético do corpo!
os três objectivos previstos na lei n.O 6/92, nomeadamente: educar para a ci- O que podemos concluir é que, baseados na actual reforma curricular e
dadania, educar para o desenvolvimento económico e social e educar para as nas conclusões da Agenda 2025 sobre a educação, há cada vez maior tendência
para aceitar a tese da «unidade na diversidade» como uma tentativa de resolver
práticas ocupacionais.
Em relação ao primeiro objectivo é evidente a sua função política. Aqui a aparia que está em debate. No entanto, parece que a maior dificuldade dos
não se trata de desenvolver um espírito crítico e um pensamento individuali-
4 Itálico nosso.

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José P CastiarlO • Sever-ino E. Ngoenha A Mar"cha duma «Educação par"a Todos» em Moçarnbique

sistemas de educação é traduzir este princípio tanto para o nível de práticas de estabelecimentos de ensino era gritante. A preocupação do governo colo-
educacionais como para o nível de políticas do sector. O desafio de cultivar a nial em termos de criação de condições para a educação tinha sido direcciona-
diferença na unidade e de cultivar a unidade na diferença ainda não foi pen- da para as cidades, onde viviam as populações colo nas e uma ínfima parte dos
sado consequentemente para a sua aplicação na sala de aulas quando se está moçambicanos assimilados. O novo governo tinha de contrariar rapidamente
perante alunos concretos. esta realidade.
Entretanto, se, por um lado, a nacionalização significou a massificação
2. Entre «Educação Para Todos» e «Qya1idade para Poucos» do ensino para níveis nunca registados até então, por outro, esta medida sig-
nificou que o Estado moçambicano herdava do governo colonial um sistema
O termo usado no debate para estender a escolarização para todos os que, dada a sua natureza elitista, estava muito longe de poder administrar.
moçambicanos foi «massificação» da educação. Este termo inclui mais do que Há uma sintomática falta de recursos humanos capazes de formular políticas
proporcionar o acesso às crianças em idade escolar. Na visão educacional da e geri-las em conformidade com a nova realidade que se desenhava no país e,
altura inclui também adultos (operários e camponeses), campanhas específicas como sublinhámos, há uma grande escassez de recursos financeiros que pode-
para mulheres, para jovens e para velhos. A educação assume-se, com este riam suportar as despesas ligadas às construções de escolas, à contratação de
termo, «uma tarefa de todos nós», como dizia Samora Machel. professores e à produção dos materiais escolares para todos. É que o governo
A política educacional do novo Estado de 1975 orienta-se por uma série moçambicano chamou para si toda a administração e gestão do sistema edu-
de princípios gerais que se pensava serem prática bem sucedida em todos os cativo moçambicano numa altura em que não dispunha de meios suficientes
países socialistas, entre os quais o mais sagrado é o acesso de todas as crianças para tal. Substituiu-se ao papel dos gestores privados e das Igrejas, sob a res-
à educação, através da nacionalização/estatização. A educação é declarada um ponsabilidade dos quais estava a maior parte das escolas no período colonial.
direito e um dever de todo o cidadão, que se traduz na igualdade de opor- N esta medida se coloca a questão: por que nacionalizar sem ter professo-
tunidades de acesso a todos os níveis de ensino e na educação permanente res nem infra-estruturas capazes de assegurar uma educação adequada? Esta
e sistemática de todos. No entanto, a efectivação desta massificação exige a questão só pode encontrar resposta no campo político e não, necessariamente,
criação de um sistema de educação único e centralizado em que o Estado de- pragmático. Com a Independência, a educação deveria participar na criação
tém o monopólio da educação. De facto, a consolidação deste princípio viria da nação moçambicana, no sentido em que a finalidade da educação era o
a ser possível com a criação do Sistema Nacional de Educação (Lei 4/83, de nacionalismo moçambicano. Por isso, com a nacionalização da educação, o
23 de Março) através do qual, como fizemos referência, o Estado pretendia ensino tomou-se um instrumento privilegiado para servir os interesses políti-
garantir uma educação uniforme não só a todas as crianças, mas também aos cos da geração libertadora, cuja finalidade é a criação do sentido de pertença
jovens, mulheres, adultos, idosos, camponeses, operários, antigos combaten- à nação moçambicana.
tes da luta armada, etc. Mas, se, por um lado, o objectivo do governo moçambicano de massi-
Entretanto, para atingir toda esta gente de várias camadas etárias e so- ficar a educação se tomara aparentemente numa realidade, porque de facto
ciais, o novo Estado deveria criar condições infra-estruturais, isto é, a estender entre 1975 e 1977 estendeu-se a rede escolar a um número de crianças nunca
a rede escolar. Sem contar com as escassas infra-estruturas deixadas pelo go- igualado, por outro, esta massificação poderá não ter passado de vontade política
verno colonial, o Estado moçambicano deveria encontrar formas de estender a cuja realização foi parcial, pois ela não foi acompanhada de medidas estruturais
rede escolar para todo o país, sobretudo para as zonas rurais onde a exiguidade que permitiriam uma boa qualidade e de um equilíbrio de oferta a todos os níveis
e nas diferentes regiões do país. No esforço de massificação levantam-se questões

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A Longa rv1archa duma «Educação para Todos» em
José P Castiano • Sevel'ino E.

Em 1990, em J omtien, é colocado ao mundo o desafio de, até 2000, todos


como as assimetrias que ela poderá ter produzido ao longo do tempo. Tam-
os estados oferecerem obrigatoriamente uma educação básica universal. Este
bém o simples facto de a escola não poder atingir uma parte considerável de
objectivo é elaborado em conformidade com a convenção das Nações Unidas
moçambicanos significou que a politização social não atingiu a todos. Embo-
sobre os direitos da criança e, posteriormente, apoiado e ratificado em vários
ra este défice quantitativo de, através da educação, politizar toda a socieda-
encontros internacionais, entre os quais o Fórum Mundial para a Criança
de moçambicana tivesse sido complementado por elementos de propaganda
(1990), a Conferência das Nações sobre o Meio Ambiente e Desenvolvi-
extra-escolares como jornais do povo, rádios, discursos/comícios repetidos,
mento (1992), a Conferencia Mundial sobre os Direitos Humanos (1993), a
etc., para a passagem da mensagem exigia-se que, pelo menos, as pessoas
Conferencia Mundial sobre Necessidades Especiais em Educação (1994), a
soubessem ler ou perceber português.
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (1994), o Fó-
Esta massificação terá sido respondida, do ponto de vista de recursos
rum Mundial para o Desenvolvimento Social (1995), a (hlarta Conferência
humanos (professores, técnicos pedagógicos e outros quadros que deveriam
Mundial para a Mulher (1995), a ChIinta Conferência Internacional sobre a
formular e gerir políticas), de recursos financeiros e de infra-estruturas ca-
Educação de Adultos (1997), a Conferência Internacional sobre o Trabalho
pazes de assegurar a qualidade de ensino, ao mesmo tempo que se garantia o
Infantil (1997), e a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentá-
acesso ao ensino a todas as camadas e nas diferentes regiões do país? A opção
vel (2002). As resoluções emanadas destas conferências mostram que o mun-
foi, conscientemente, aumentar o número de alunos que frequentam a escola
do continua preocupado com a implementação de uma educação universal.
o que, consequentemente, concorreu directamente para a redução da qualida-
Em relação ao continente africano, o plano de acção aprovado em Dacar
de de ensino que se forneceu. Ou seja, substituiu-se o objectivo de educar as
tem servido de documento básico para o trabalho dos governos e das ONGs.
crianças pelo de as crianças terem acesso à escola.
Este documento procura apontar objectivos e estratégias para a efectivação do
Hoje o objectivo da massificação da educação foi substituído pelo ob-
compromisso de Jomtien. Este plano assinado em 2000 é o compromisso dos
jectivo de «Educação para Todos». De novo, este objectivo antigo, mas rea-
estados africanos em prosseguir e concentrar esforços para a efectivação da
firmado em novos termos, levanta as seguintes questões básicas: Há recursos
educação universal ao nível do continente. Efectivamente, ele considera que,
humanos, materiais e financeiros para implementá-lo? O que é diferente da
embora carregado de entusiasmo, o plano de implementação da educação para
massificação? ChIe tipo de educação será possível trazer para todos? A mesma
todos em 2015 é, na verdade, «realista». Não obstante isso, o plano de Dacar
ou uma diferenciada? ChIais são então os critérios de diferenciação? Este de-
chama a atenção para os obstáculos específicos no continente africano. Ele
bate tem, portanto, elementos quantitativos e qualitativos.
define seis objectivos principais e propõe doze estratégias para os alcançar.
A avaliação feita em Dacar, Senegal, em Abril de 2000, da declaração da
De entre as estratégias, vinca o papel de promotores da educação universal
conferência de Jomtiem, Tailândia, em 1990, cujo lema foi «Educação para
dos Estados africanos e reitera que estes devem ser apoiados por parcerias
todos até 2000», mostra que, a nível mundial, mais de 800 milhões de adul-
mais amplas e audaciosas com a Sociedade Civil em todos os níveis e áreas de
tos, dois terços dos quais mulheres, são analfabetos e mais de 113 milhões de
educação. Esta ideia de parcerias necessárias tem-se mostrado bastante pro-
crianças não têm acesso à educação básica. Por outro lado, a taxa de analfa-
dutiva para o caso particular do continente africano, dado que o compromisso
betismo tem vindo a decrescer significativamente na África subsahariana. Es-
de educação para todos ultrapassa a capacidade financeira e organizacional
timada em 69%, em 1965, reduziu-se para 59%, em 1985, e caiu para 43.1%
dos estados africanos. Mas também comporta limitações. O termo «parceria»
em 1997. Em Moçambique a taxa de analfabetismo perfaz hoje 56.7%, o que
deixa, no entanto, muita margem à vontade própria, ao arbítrio na interven-
representa uma queda de 36.3% em 27 anos contra os 93% em 1975.
ção. No actual contexto dos esforços pela educação para todos, emergem dois

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José P. Castiano • Severino E, Ngoenha A l.onga Mar'cha duma «Educação par'a Todos» em rvloçarnbique

desafios. O primeiro é conceptual: em relação à definição do que é a educação de 2.644.400 crianças contra as cerca de 2.053.000 em 1999. Ao nível da sexta
básica no contexto actual e indicação das áreas que ela deve abarcar; o segundo e sétima classes (EP2), o número de escolas subiu para 823 em 2002, contra as
desafio é em relação ao desenvolvimento de esquemas alternativos ou mesmo 448 em 1999, o que significa uma duplicação. Da mesma maneira, o número
novos de parcerias entre o Estado e a Sociedade Civil. Como veremos adiante, de alunos do EP1 subiu de cerca de 187.000 para 277.500 de 1999 a 2002,
a nossa ideia é que se elaborem «pactos» educacionais, se houver a necessidade respectivamente.
de responsabilizar cada um dos intervenientes. Uma das apostas renovadas actualmente, no âmbito do plano «Educação
O compromisso assinado pelo governo de Moçambique em Dacar é de Básica Para Todos» é a retomada das campanhas de alfabetização e de educa-
que, tal como todos os países africanos, deve elaborar um plano nacional e ção de adultos. No entanto, o peso dos aHàbetizandos ainda está aquém das
definir estratégias para que, até 2015, todas as crianças em idade escolar este- necessidades num país em que se estima que, em média, cerca de 57 de 100
jam a frequentar a escola. Os esforços mais visíveis no sentido de se conseguir pessoas adultas não sabem ler, escrever e nem realizar operações básicas de
esta escolarização universal têm-se concentrado no aumento do número de cálculo. É de destacar que o grau de analfabetismo é maior entre as mulheres
escolas e de salas de aulas, ou seja, no aumento da rede escolar. Com efeito, o (71.2%) do que entre os homens (40.2%). O grau de analfabetismo entre os
ano de 2002 iniciou com 7.771 escolas do ensino primário do primeiro nível jovens do grupo etário de 15 a 19 anos perfaz 41 % (INE [1] 2001,21-22). Es-
da primeira à quinta classes (EP1) contra as 6.605 escolas que havia em 1999. tes números não tomam em conta as acções de alfabetização realizadas pelas
Em três anos, a rede neste nível de ensino cresceu em 17,6%. Este aumento de Organizações Não Governamentais assim como por outras instituições da
escolas fez subir a taxa líquida de escolarizaçã0 5 de 43,6% (1999) para 62,6% Sociedade Civil, como as confissões religiosas.
(2002), representando uma média anual de crescimento de 0,7%. Traduzidas Se compararmos os dados do EP1 com os do EP2 notamos logo uma
em termos mais claros, estas taxas significam que, se em 1999 em cada 100 forte distorção da rede escolar: há uma base muito larga no EP1 contra uma
crianças com idade compreendida entre seis e dez anos só se escolarizaram bastante estreita no EP2! Efectivamente, as escolas do EP2 representam ape-
44, em contrapartida, em 2002 o número dos escolarizados subiu, em média, nas 9.5% da rede total do ensino básico. Assim, muitas crianças que com-
para 64 em cada 100 crianças. As restantes 36 crianças de cada 100 ficam sem pletam a quinta classe não conseguem vagas para continuarem os estudos na
escola. Em termos de números de alunos: em 2002 frequentam o EP1 cerca sexta classe. Mesmo que recorram às escolas técnicas do nível elementar, que
são aquelas que aceitam os finalistas da quinta classe e proporcionam uma for-
5 A taxa líquida de escolarizarão obtém-se da divisão do total de alunos matriculados
mação profissional rudimentar, só existem oito escolas em todas as províncias
cuja idade coincide com a idade oficial para a frequência do EP1, neste caso, com a
população total do grupo etário correspondente para o ensino primário do primeiro
e comportam apenas 1.050 alunos presentemente (1999 eram somente quatro
grau. Em muitos documentos também vem expressa a taxa bruta de escolarização que escolas com 499 alunos em todo o país!). Como vemos, o principal e o pri-
corresponderia ao resultado da divisão entre o número total de alunos matriculados, meiro nó de estrangulamento do sistema situa-se a este nível de escolarização
independentemente da sua idade, e a população total do grupo etário que oficialmente básica porque aqui, repetimos, «despedem-se» muitos alunos do sistema. De
deveria frequentar um determinado nível de ensino. Assim, para o caso de Moçambi- facto, estes voltam a cair num anaHàbetismo funcional dado que as bases ad-
que (2002) a taxa bruta de admissão no EP1 é de 118%; já a taxa líquida é de, como se
quiridas a este nível não são sólidas. Assim, o «sonho» de educação básica para
disse, 62,6%. O facto de a ta,xa bruta ultrapassar os 100% indica um dado importante
todos até 2015, na probabilidade de ser atingido, será provavelmente reduzido
do sistema: a existência de um elevado número de alunos cuja idade é superior à míni-
ma definida oficialmente para a frequência do EP1. Em termos claros, quero dizer que
para termos quantitativos, havendo, de facto, «anaHàbetos» sob o ponto de
há muitos pais que matriculam as suas crianças na primeira classe só depois de terem vista de capacidade de usar os conhecimentos e desenvolver as habilidades
completado dez anos. (INE 2001,24) aprendidas na escola tais como a leitura, a escrita e o cálculo.

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A L.onga Mal'cha duma «Educação em 1'1oçambique
José P Castiano • Severino E, Ngoenha

que a escola tem para a vida das pessoas e a distância longa que tinham que
Assim, num ambiente em que os recursos educacionais são escassos reina
percorrer diariamente de casa para a escola. O motivo mais frequentemente
uma grande desigualdade de acesso. Esta reflecte-se em três âmbitos: em pri-
indicado nas faixas etárias de seis a doze anos foi o da distância, enquanto que
meiro lugar entre campo e cidade; em segundo lugar entre as regiões Norte,
dos treze aos dezassete é o casamento. Tendo em conta que a maior parte dos
Centro e Sul no que diz respeito ao acesso aos níveis superiores de formação
desistentes são as meninas, e que elas têm um grande peso na produção da ali-
e, em terceiro, entre os rapazes e as raparigas. Apesar dos esforços visíveis, o
mentação e nos serviços sociais nas aldeias (educação e saúde), a pobreza será
sistema ainda penaliza as populações da periferia da nossa sociedade na dis-
dificilmente combatida com a exclusão delas do sistema de ensino.
tribuição das oportunidades educativas. Este tàcto deve ser visto com muita
preocupação por todos porque pode perigar o processo da construção da paz
A tabela 11 ilustra o que foi referido acima:
social.
O sistema de educação, tal e qual ele se encontra desenhado, é ineficiente. Tabela 11: Aprovações, Desistências e Reprovações no EPl e no EP2 (1999,2002)
Este aspecto revela-se num índice muito alto de desistências e de reprovações
em todos os níveis de educação. Em palavras mais compreensíveis, o número
de graduados que sai do sistema e que cumpriu de forma regular e em tempo
previsto, é muito inferior ao número que entra. Isto torna o sistema muito
oneroso. O insucesso escolar afecta principalmente as camadas sociais mais
vulneráveis como sendo os pobres e, de entre estes, particularmente as rapa- Como garantir o binómio massificação/igualdade no acesso, tanto no
rigas. Um dado adiantado referente a 2000 indica que em 100 crianças que que respeita aos conteúdos como aos níveis? Será que esta massificação atin-
ingressam na primeira classe, apenas 37, em média, concluem a quinta classe giu todos os níveis (o secundário e o superior) ou não foi para além do nível
no período regular de cinco anos. Muitas dessas crianças terminam a segunda primário? Há que reflectir sobre as assimetrias que esta massificação pode-
classe sem saber ler, escrever e nem calcular correctamente simples somas e rá ter produzido, tendo em consideração os diferentes níveis de ensino em
subtracções. Ora, este alto grau de desperdício escolar representa, no fundo, Moçambique. É preciso reflectir sobre as condições da administração de um
uma ameaça latente para os investimentos no âmbito da educação para todos: ensino que, à partida, foi planificado para servir uma minoria e que passa a
as pessoas que abandonam a escola antes de terminar o ensino básico não se- absorver grandes quantidades de crianças e adultos.
Actualmente não se pode isolar a questão da planificação do aumento da
rão consideradas «alfabetizadas».
O fenómeno de desistências revela, em parte, o significado e o grau de rede escolar sem equacionar o desenvolvimento do HIV/SIDA. O alastra-
satisfação que as pessoas atribuem à escola para a vida prática. O inquérito mento do vírus do HIV nos anos oitenta, mas principalmente na década de
realizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas em 2001 revela que cerca de noventa, é o elemento novo que deve entrar no debate sobre a «massificação»
10.7% das crianças inquiridas haviam frequentado a escola e a abandonaram ou, se quisermos, no projecto de «Educação para Todos». E isto é particular-
por diversas razões. A maioria dos desistentes são meninas (12% contra 9.5%). mente importante para os países africanos que se encontram à beira de um
O abandono escolar tende a ser maior entre os treze e os dezassete anos. Por holocausto total se nos próximos anos não se descobrir uma cura definitiva
outro lado, constata-se que, contrariamente ao que geralmente se supõe, a e se não se intensificarem as campanhas de consciencialização, de prevenção
diferença das percentagens de desistência entre as zonas rurais e as urbanas e, sobretudo, se as drogas retrovirais não forem postas ao alcance dos mais
é muito pequena (cerca de 1%). As causas principais apontadas para as de- pobres. A propagação do HIV/SIDA deve ser proclamada uma emergência
sistências são a onerosidade dos estudos, a pouca ou quase nula importância nacional e como tal tratada.

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o SIDA é uma doença surrealista: penetra no corpo e pode ficar alojada do com menos de $1,0 por dia. Como se não bastasse, vem acrescentar-se
no corpo por seis a oito anos até que o vírus do HIV o infecte e mate. Mesmo a epidemia do HIV/SIDA. Se existem no mundo inteiro aproximadamente
assim, não mata imediatamente: o HIV entra no corpo, permanece escondido 34 milhões de pessoas infectadas pelo vírus do HIV, cerca de 25 milhões
e irreconhecível durante algum tempo nas células humanas enquanto se dupli- destes vivem em África, um continente que de todos é o menos capacitado
ca constantemente. Qyando tiver feito cópias bastante numerosas de si mes- para enfrentar a doença. Os continentes europeu e americano, de certa forma,
mo, o HIV começa a atacar o sistema de defesa do corpo, vencendo-o. Então, conseguiram já «domesticar» a doença graças a uma educação muito efectiva
basta contrair uma pequena doença que um sistema de imunidade qualquer e graças à distribuição dos retrovirais que custam mais ou menos $12.000 por
poderia resolver rapidamente. Este corpo infectado já não pode combater. A paciente/ano, uma quantia que um africano médio não pode pagar. As Nações
doença começou a matar. Começa, portanto, por destruir o sistema de imuni- Unidas fazem uma previsão de que em 2020 morrerão cerca de 65 milhões
dade pouco e pouco até que o corpo não tenha nenhuma defesa mesmo contra de pessoas desta doença. A vizinha África do Sul, um país com maiores pos-
as doenças mais comuns como a constipação, malária, até as mais perigosas sibilidades que as nossas, não pode escapar a esta doença, sendo um dos mais
com a tuberculose ou a pneumonia. O mais dramático é que se passa a vida afectados hoje. Dos seus 41 milhões de habitantes, cerca de 4,2 milhões estão
a combater os efeitos (que são as outras doenças) e não a própria SIDA por- afectados pelo pior vírus da História. Projecções indicam que em 2016 cerca
que esta não tem cura. Em algumas famílias estes tratamentos levam anos de 6 milhões de sul-africanos irão morrer desta doença (Sparks 2003,284).
consumindo a parte principal do seu budget. Em muitas também provoca um Em Moçambique, a acreditar pelos números anunciados, a situação é alar-
retraimento social perante amigos, familiares, vizinhos, mais porque a doença mante. Se a situação do alastramento e desenvolvimento da pandemia HIV/
ainda está ligada a tabus e estigmas sociais. O surrealismo da doença ainda é SIDA continuar tal e qual hoje, teremos consequências dramáticas (quase que
acentuado depois da morte do doente: os fàmiliares que restam são sujeitos ao um holocausto) a nível demográfico, social e económico, reconhece o texto da
escrutínio social (estarão eles também infectados ou não?), sobretudo quando Agenda 2025 (p.6). Efectivamente, o país regista um nível de prevalência mé-
se tratar de viúva ou viúvo. O estigma vai até ao serviço onde estas pessoas dia de 12.2% com variações segundo as zonas. A maior incidência é na zona
acabam «desaparecendo» aos poucos. central de Moçambique onde os índices de prevalência média são de 16.5% e
Actualmente, existem duas linhas de pesquisa para combater esta doen- a menos afectada é a zona norte com 5.7%. Há, porém, localidades isoladas,
ça: por um lado é a busca de anti-retrovirais para tratar pessoas que já con- sobretudo fronteiriças, onde os valores oscilam entre os 25% e 30%, ou seja,
traíram a doença e impedir que o HIV ataque as células não afectadas; por afectando, na prática, um em cada quatro habitantes destas regiões! Assim, no
outro, a busca de uma vacina de prevenção da doença. Mesmo que as drogas a texto da Agenda 2025 estima-se que em 2000 cerca de 1,1 milhão de moçam-
serem testadas nos Estados Unidos, no Brasil e outros países para a cura desta bicanos estejam infectados pelo HIV/SIDA, dos quais 68 mil crianças, 443
doença dêem certo, ou seja, se descubra uma vacina contra a doença, segundo mil homens e 597 mil mulheres. No mesmo ano supõe-se existirem cerca de
Russel Kaufmann da Duke University Medica! Center em Durham (Carolina 233.000 órfãos de mães seropositivas com previsões de aumento para 900.000
do Norte, EU), para que a cura esteja ao alcance de muitos incluindo fases de em 2010. Mesmo com uma intervenção médica eficaz para parar o alastra-
teste, comercialização e distribuição, terão passado vinte a vinte e cinco anos mento, até 2008 terão morrido cerca de 1 milhão de pessoas desta doença. O
(Sparks 2003,296). Mas a luta maior é a de descobrir uma vacina que possa texto da Agenda 2025 dá muita ênfase à necessidade de o Programa Nacional
prevenir a contracção da doença. de Prevenção e Combate ao HIV/SIDA ser mais eficaz.
África é o continente mais marginalizado do mundo. Enfrenta cheias, Entretanto, o Director do Departamento de Apoio aos Países e Regiões
secas, fome e miséria com mais de 250 milhões dos seus habitantes viven- da ONUSIDA, Michel Sibde, revelou em Maputo, em Março de 2004, que

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até 2005 haverá mais de 3 milhões de moçambicanos que precisarão de re-


ceber anti-retrovirais para que não morram de SIDA. As infecções atingem
mais a faixa etária entre os 15 e os 21 anos, onde a maioria dos infectados são O discurso sobre «qualidade» referente ao campo de educação desen-
mulheres. Segundo Sibde, isto é grave porque «a situação está a dificultar as volve-se nos fins dos anos oitenta como uma descontinuidade do discurso
possibilidades de garantir cuidados médicos, a educação e a nutrição de crian- sobre a democratização do ensino. O conceito daquilo a que consideramos de
ças, funções que normalmente são garantidas pela mulher». Assim, se a situa- «qualidade de educação» é complexo. A emergência do debate em torno da
ção não melhorar haverá um aumento repentino de crianças abandonadas nas qualidade de educação está na continuidade do debate sobre o caminho mais
ruas, outras enveredando pelo trabalho infantil ou prostituição para garantir o adequado para fazer com que ao menos todas as crianças tenham acesso à
seu sustento (Notícias, 29.03.2004). É impressionante como, num espaço de escola nas próximas décadas.
não mais de um ano, as previsões sobre as infecções aumentam. Na escala mundial, e em África em particular, não há dúvidas de que o
As consequências serão nefastas para a sociedade. Afectando a população século passado foi o da massificação da escola. A ampliação das oportunidades
adulta principalmente, ou seja, o grupo etário maioritariamente produtivo e educativas para as diversas camadas sociais, acompanhadas de reformas edu-
reprodutivo (entre os 15 e 49 anos), os efeitos em termos de recursos huma- cacionais como sendo o convite aos vários parceiros (igrejas, ONGs, etc.) para
nos serão catastróficos, especialmente para os ramos da construção civil, de que participem na educação, acabou por assegurar maior ou menor acesso das
estradas, mineiros, forças de defesa e segurança e professores. Por não ter um camadas mais abrangentes a uma educação básica e, de certa forma, abriram-
tratamento eficaz, esta doença alastra-se por longo tempo, o que irá afectar a -se perspectivas para que uma parte considerável do público aspire ao ensino
produtividade no trabalho, tanto por causa de ausências constantes, como por secundário ou mesmo ao universitário. Portanto, nesta etapa, a demanda das
causa de uma presença entremeada de fadigas constantes provocadas pelos pessoas concentra-se no acesso à escola. Esta demanda vinha ao encontro das
efeitos secundários da doença. O SIDA também destrói os pilares da estrutu- autoridades e Estados porque, estando a democratizar-se, viam na educação
ra social - a família - por privá-la dos suportes financeiros e materiais. uma forma de mostrar a sua vontade de melhorar as condições do povo. Não
Em relação à educação, o HIV/SIDA constitui uma séria ameaça ao pro- havia, portanto, muita energia para se questionar sobre a qualidade do ensino
jecto de expansão e melhoria da qualidade. Prevê-se que, até 2010, as escolas oferecido. O importante era poder estudar. Os desejos de cada um é que se
tenham menos 13% das crianças que teria sem a epidemia do SIDA e que se deviam ajustar ao que a escola pública oferecia e não o contrário. Não pode-
registe a perda de 17% dos professores em relação ao ano 2000. Mas as perdas mos descurar que, com a massificação da escola, o que era exclusivo para uma
não podem ser vistas só do ponto de vista quantitativo, senão também e, so- pequena elite no tempo colonial ficou perdido. Mas mesmo depois da inde-
bretudo, qualitativo, pois é evidente que os professores infectados pela doença pendência, particularmente nos anos oitenta e noventa, o ensino secundário e
faltam muitas vezes às aulas, apresentam fraquezas físicas que dificultam uma universitário é elitista.
planificação adequada e um acompanhamento enérgico dos alunos. Também, Com a abertura de várias escolas secundárias nas províncias, o elitismo
no caso de ocuparem cargos administrativos, a qualidade de gestão escolar do ensino universitário começou a ser um problema político que se traduziu
diminui. Muitos directores provinciais acusam faltas constantes e prolonga- em debate sobre a «expansão do ensino superior» para as outras regiões do
das dos seus funcionários por motivo de «doenças prolongadas» - como com país. Portanto, perdeu-se a exclusividade da educação. A incorporação de no-
eufemismo é tratada a doença provocada pelo vírus do HIV/SIDA. Eviden- vas camadas sociais e grupos regionais tornou eminente a questão de «em que
temente que o trabalho destes professores compromete, em grande medida, a escola ou universidade matriculas a tua criança». Esta questão é fundamen-
educação de qualidade. talmente colocada pelas elites urbanas na expectativa de manter as vantagens

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competitivas que tinham antes do crescimento de escolas nas zonas rurais. São de o Estado moçambicano ter alocado, nos primeiros anos da independência,
estas elites que forçam o discurso sobre a melhoria da «qualidade» de educação uma parte considerável do seu budget à educação, correspondia à natureza do
que é oferecida aos <<nossos filhos». O discurso sobre a «igualdade de acesso» Estado optado. Assistimos, portanto numa primeira fase, ao enfoque mais
é empurrado para a segunda fila, embora formalmente nos planos estratégicos ou menos economicista sobre a qualidade de educação. Parte-se da ideia de
apareça ao lado da necessidade de melhorar o acesso. O debate sobre a educa- que quanto mais se injectar dinheiro nas actividades educativas, melhor será a
ção em Moçambique pode ser caracterizado por uma certa hesitaçã%scilação qualidade dos serviços. A educação funciona como uma empresa. Não é, pois,
entre o valor extrínseco (luta pelo acesso, pela matrícula, contra a exclusão) e por acaso que o sector empresarial é o primeiro a questionar a qualidade da
o valor intrínseco da educação (luta por se matricular em «boas» escolas, onde educação que é dada aos alunos. É natural que vejam neles os futuros traba-
se ensina bem). lhadores.
Embora começando individualmente e em famílias, a questão da qua- Entretanto, numa fase posterior, o discurso centrado no investimento foi
lidade transforma-se num problema do sistema para satisfazer as demandas. trocado pelo que se centra na eficácia do processo. Essa viragem é compreen-
A criação e a proliferação das escolas privadas (primeiro a nível primário, de- sível porque os parlamentares e o governo, depois de algum tempo a votarem
pois secundário e hoje o universitário) corresponde ao anseio da elite de criar por mais recursos para a educação, exigem dos educadores mais eficácia no
nichos de formação de qualidade aos seus filhos, que a escola pública já não uso dos recursos e, sobretudo, que mostrem resultados. Também com a crise
podia garantir. eco nó mica dos anos noventa, havia que se conseguir o má,-x:imo, aplicando
No entanto, a abertura de muitas escolas privadas vem pressionar a escola poucos recursos. Novos indicadores como as taxas de retenção, taxas de pro-
pública em si. Por pudor ou não, as políticas públicas educacionais abraçam, moção, rendimentos escolares, etc começam a ganhar terreno na medição da
ao longo de toda a década de noventa, um discurso de qualidade (para aten- qualidade. A pressão do político sobre o educador para uma boa qualidade,
der as demandas elitistas), sem, no entanto, esquecer de incluir o discurso do também na escola pública, é tanta que este acaba por encontrar formas de jus-
acesso (pela natureza da própria génese de Moçambique como país socialista tificar as passagens automáticas (na verdade chamam-se «semi-automáticas»).
e por força eleitoralista). A pressão para a democratização da administração da coisa pública nos
países africanos, a introdução de novas tecnologias, principalmente ao nível
da informática, as transformações de uma economia centralizada para uma
economia liberal de mercado, a globalização (não só sob o ponto de vista
Num contexto mais amplo, o discurso de qualidade foi inicialmente li- económico, mas político e dos sistemas de educação), etc. são factores que
gado ao apetrechamento das escolas e repartições administrativas da educação conjugados concorreram para o encarecimento ou aumento do valor da educa-
por meios humanos e materiais. Numa perspectiva nacional, isto era com- ção. Foram circunstâncias felizes que permitiram aos defensores de uma boa
parado à proporção (absoluta e relativa) do produto interno bruto alocado qualidade começarem a «comprar» a boa qualidade em escolas privadas ou no
à educação. A absoluta determina, de certa forma, o quanto exactamente, estrangeiro.
medido em dólares americanos, a educação de um determinado país recebe, O que levou os intelectuais e pedagogos a «desistirem» da luta pela de-
ou melhor, é investido a nível das escolas, da formação e no pagamento dos mocratização e a abraçarem cada vez mais o discurso neo-liberal de qualida-
salários dos professores. A parte relativa mostra, sobretudo, o engajamento do de de educação? Gentili (1994,125), analisando o mesmo fenómeno para a
governo para com a educação, ao comparar-se, por exemplo, o bolo que a edu- América Latina, refere-se ao processo de «co-optação intelectual» que decorre
cação recebe com o bolo que vai para as forças de defesa e segurança. O facto naquele continente no início dos anos noventa. Segundo ele, as agências de

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financiamento internacional e os governos começam a projectar uma política de preparação de aulas muito fraca. Em 2001 existiam um total de 7.175 pro-
de sujeição co-optativa dos intelectuais que aderiram ou ainda se reconheciam fessores (dos quais 1.253 são mulheres) que, tendo concluído somente a séti-
dentro do paradigma crítico. O mecanismo de co-optação, segundo Gentili, ma classe, foram contratados para leccionarem no ensino básico, sem terem
funciona através do rápido acesso a elevadas remunerações facilitadas pelas passado por uma formação. Outros cerca de 10.620 professores sem forma-
consultorias (uma só corresponde aos vários salários normais), ou ainda atra- ção, mas que concluíram a décima classe, encontram-se a leccionar. A adicio-
vés de contratos internacionais a que os intelectuais locais têm acesso através nar, devido ao crescimento da rede escolar, o MINED contrata anualmente
dos organismos internacionais ou do governo. No contexto africano decorreu mais pessoas sem formação para darem aulas nas escolas primárias. Segundo
o mesmo fenómeno. Os intelectuais africanos foram «engolidos» pela máqui- informações do XXVII Conselho Coordenador da Educação, o sistema de
na desenvolvimentista das organizações internacionais e ONGs, o que levou educação, num ritmo normal, deveria graduar anualmente 4.000 professores,
ao esmorecimento de posições críticas em relação às posições políticas dos mas presentemente só gradua 1.600 professores para o nível primário. Ou
estados em geral, e das políticas educativas em particular. O mais dramático seja, há um déficit anual de cerca 2.400 professores contratados sem formação
foi a ausência de reflexões sobre sistemas alternativos às políticas liberais. para as diversas escolas primárias existentes no país. Esses professores com
Nos debates em Moçambique tem se ressaltado que uma boa qualidade baixa formação profissional ou sem ela mostram deficiente competência para
de educação infere-se pelo grau de satisfação das pessoas individuais, famílias a implementação do novo currículo. Também o seu currículo de capacitação e
e instituições em relação ao desempenho da escola no seu meio. Neste con- de formação deixa muito a desejar, daí que assistamos a fenómenos de profes-
texto, no seio dos alunos e da sociedade civil parece existir alguma insatisfação sores que vêem a sua missão como sendo a de ditar e expor os apontamentos.
em relação ao desempenho da escola. No inquérito realizado pelo Instituto Da mesma forma, as condições de trabalho são difíceis, particularmente no
Nacional de Estatísticas (2001,52) pôde notar-se que, em média, 55.4% dos que toca a baixos salários e estarem também sujeitos à fome e doenças como
alunos «não estão satisfeitos com a escola», verificando-se o maior nível de malária e SIDA.
insatisfação entre os alunos das escolas primárias (56.8%) e, entre esses, nas O segundo factor chamado ao debate de qualidade são os alunos, parti-
escolas sob o controlo do governo (57%). Comparadas as zonas urbanas e cularmente no que diz respeito às condições em que vivem. Efectivamente, a
as rurais, verificou-se que os alunos nas zonas rurais (66.6%) mostram mais maior parte dos alunos frequenta as aulas sem tomar o pequeno almoço, ex-
insatisfação. As principais causas da insatisfação apontadas são, por ordem de postos às mais variadas doenças, os pais detêm muito pouco poder de compra
peso, a situação das instalações escolares inadequadas, a falta de materiais de dos materiais adequados ao ensino. Nestas condições de ensino e aprendi-
ensino e livros, a falta de professores e a qualidade de ensino. zagem os alunos são os que saem mais desfavorecidos, porque lhes faltam as
Para o caso da educação, a qualidade é produto de esforços conjugados de energias físicas e mentais mínimas para a aprendizagem.
diversos factores, sendo os professores, os alunos, a escola e a comunidade os Em terceiro lugar encontramos a escola como o principal factor de qua-
mais importantes. Estes são os intervenientes directos do processo de ensino lidade. Em muitas situações, o ambiente institucional que reina na escola não
e aprendizagem. é favorável à aprendizagem, por um lado devido às condições precárias do
O primeiro factor de qualidade que se adianta nos debates é o desempe- edifício e à falta de investimentos, e, por outro, devido à predominância de
nho e a qualificação do professor. Olhando para a realidade, nota-se que em um clima tenso entre os professores e a direcção e a administração. A fàlta de
muitas escolas, sobretudo do campo, há uma grande percentagem de profes- um ambiente democrático e uma gestão aberta dos recursos e dos assuntos
sores sem formação ou qualificação pedagógica mínima. Estes professores são escolares criam constrangimentos sérios, concorrendo para um clima nefàsto
colocados face aos alunos sem o apoio necessário, oferecendo uma qualidade de organização do ensino e da aprendizagem.

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o que, porém, parece ser o maior nó de estrangulamento é a barreira que (MINED 2002,51). <21ler dizer: há uma institucionalização do hábito de ela-
parece ter-se erguido entre a escola e a comunidade circundante. Muitas ve- borar planos irrealistas que estão além das capacidades nacionais e que levam
zes, os valores culturais dominantes nas comunidades rurais (lugar da mulher, à dependência eterna das doações externas.
atitude perante o saber e as competências, etc.) não facilitam o diálogo entre Não havendo capacidade financeira interna, nem para formular políti-
a escola e a própria comunidade. cas nem para administrar abre-se espaço para a ajuda externa. A questão de
Efectivamente, a forma como o sistema está estruturado e é gerido não é ajuda, provenha ela do Ocidente ou do Leste, é periférica para os próprios
permeável e nem flexível de modo a acolher as aspirações de diversos sectores países doadores. Ela reveste-se de grande importância, quer queiramos ou
sócio-eco nó micos e nem a associar os diferentes actores na educação para um não, para nós próprios. É, na nossa perspectiva, uma questão de sobrevivência
projecto nacional, embora com o processo da autarcização se tenha aberto do sistema. Afinal somos ou não independentes para formularmos as nossas
uma oportunidade histórica que pode ser ainda mais explorada. políticas? O que significa ser «independente» num mundo de hoje? Ajuda-nos
O acesso às tecnologias de informação é de grande importância para a uma atitude de «conluio universal» dos ricos contra os pobres? Afinal os países
melhoria de qualidade de vida em geral, e do ensino em particular. Moçambi- ricos querem ou não ajudar o nosso desenvolvimento? Existe hoje autonomia?
que é um país com um grande atraso em Ciência e Tecnologia. Não obstante <21lal é a melhor forma de enfrentarmos a globalização? Estas e outras ques-
as campanhas de alfabetização e ao aumento gradual do número de crianças tões colocam-se hoje.
que tem acesso à escola, Moçambique ainda não deu passos significativos na Não há dúvida de que estamos perante um problema de dois gumes, por-
popularização da ciência e tecnologia e ainda não conseguiu pôr os resultados que temos dois intervenientes numa mesma batalha que é a de oferecermos
da pequena pesquisa que realiza para resolver os problemas na área de segu- uma educação condigna para todos no século XXI. Por um lado, são os países
rança alimentar, saúde preventiva e pública assim como para o desenvolvi- doadores que devem equacionar o contexto de realização das suas políticas
mento dos vários sectores da economia, em particular a agricultura, as pescas, de ajuda nos nossos países; por outro, estão as responsabilidades internas de
a produção de energia e regadios. Por isso, enquanto não se puser a tecnologia elites que têm o privilégio de contracenar no palco da ajuda.
ao serviço da aprendizagem, não se conseguirá alcançar nenhuma qualidade O conceito de «parceria» parece merecer uma análise mais aprofundada.
considerável. Em si, ela aparece como sendo muito imparcial, moralmente inquestionável
e promissora em termos de desenvolvimento do país em geral e da educação
3. Entre a Autonomia e a Dependência em particular. A tal ponto que foi recentemente tomado como base funda-
mental para o programa mais amplo conhecido como Nova Parceria para o
O sistema de educação, como por várias vias se referiu, sempre teve uma Desenvolvimento de África (NEPAD) na qual, a África, mais uma vez, vai
falta de liquidez crónica em todos os períodos identificados. Efectivamente, ao ocidente para pedir ajuda para o seu desenvolvimento. Entendemos que os
os meios financeiros que o Estado tinha e tem à disposição para sustentar os países industrializados são nossos «parceiros» no investimento para desenvol-
próprios planos de educação estão muito aquém do necessário. Um docu- ver os nossos países. Também durante muito tempo de desenvolveu a noção
mento posto a circular pelo MINED reza que o crescimento do volume de de «parceria inteligente», articuladamente virada para a cooperação de Mo-
recursos colocados pelo governo à disposição da educação tem uma grande çambique com os países asiáticos. Supunha-se ser uma parceria em que todos
fragilidade: mais de metade da despesa da educação é financiada com fundos ganham, no dizer de alguns políticos moçambicanos. O que fascina tanto
externos onde «a proporção do financiamento externo que é mais expressiva nesta noção de parceria? <21wis são as limitações na sua aplicação prática no
nas despesas de capital, variou entre 63 por cento em 1994 e 66% em 2002» campo de educação? Os doadores têm responsabilidades nesta parceria por

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uma educação para todos? Se as têm, como chamar a atenção para elas? Por O ambiente moral-ético em que deve decorrer a parceria é deveras dúbio.
outra, que instrumentos legais existem para que, na responsabilidade que par- Como dissemos no parágrafo anterior, ela decorre oscilando entre o respeito
tilham com o Estado de garantir o «Direito» a uma boa educação a todas as pelos princípios morais sob os quais uma parceria ideal se deveria assentar
crianças moçambicanas, ambos sejam responsabilizados pelas promessas não (tais como confiança mútua, respeito, reciprocidade de compreensão, comu-
realizadas? No último capítulo voltaremos a estes aspectos, quando propor- nicação clara e desinteressada, diálogo aberto, etc.) e, por outro, a existência
mos a ideia do «Pacto Educacional» para substituir a política de «parceria». de contra-valores (tais como desonestidade, paternalismo, predominância de
Os anos de experiência moçambicana na implementação da parceria interesses, alianças individuais e colectivas, divisões internas, negligência, trá-
mostram que existem várias dimensões críticas. Assim, como T akala e Maro- fego de influências, sonegação premeditada de informações, etc.). A conflitu-
pe (2002,7p.) concluíram nas entrevistas feitas aos f'llUcionários do MINED e osidade da dimensão ética é importante porque desmitifica a ideia de que os
aos representantes das principais organizações doadoras no sector de educação parceiros são, por definição, despidos de quaisquer interesses. Chama-nos a
em Moçambique (e em África, no geral), há uma variação muito grande na atenção para a necessidade de reflectirmos sobre os nossos próprios interesses
forma como os diferentes actores identificam os momentos críticos da «par- e, na base deles, discernirmos os verdadeiros parceiros dos falsos.
ceria» na educação. Em parte, as diferenças dependem, opinam os autores, do Porém, a dimensão processual da «parceria» parece ser a mais problemá-
grau de reflexão interna das organizações ou países sobre a forma como im- tica, porque, na verdade, trata-se do momento em que se chocam as diferentes
plementam as suas políticas e interesses no campo de educação. Na tentativa lógicas e percepções sobre as prioridades e os procedimentos administrativos
de sistematizar as opiniões dos entrevistados sobre esses momentos críticos, para, por exemplo, «desembolsar-se» o dinheiro prometido. Os parceiros de-
os autores apontam quatro dimensões que teriam encontrado: a política, a vem definir e estar de acordo sobre as normas e os procedimentos operacionais
moral-ética, a substantiva e a processual. No contexto desta parte do trabalho sob os quais um determinado projecto será financiado ou não. Segundo a per-
não nos interessa desenvolver a dimensão substantiva. cepção de muitos funcionários das agências doadoras, este constitui o maior
A dimensão política define, no geral, o âmbito da sua acção em Moçam- problema da parceria: opinam que as repartições burocráticas moçambicanas
bique. É nesta que se delineiam as formas, a estrutura e as metas da política da não têm procedimentos que favoreçam uma cooperação fluída, sobretudo no
cooperação multilateral e bilateral das organizações internacionais e nacionais que diz respeito aos actos administrativos. Os funcionários do Estado, das di-
para com os países africanos. Na perspectiva dos funcionários estrangeiros, esta recções da educação a nível nacional e provincial, queixam-se de que as regras
dimensão expressa a obrigatoriedade que têm de, periodicamente, prestarem (burocráticas) para por exemplo obter o financiamento para um determinado
relatórios sobre o seu próprio desempenho e de estarem sujeitos a inspecções projecto, são muito diferentes entre organizações e países. Por isso, é fre-
ou missões de avaliação do seu próprio trabalho em Moçambique. Esses rela- quente encontrar comentários entre os funcionários de certas repartições edu-
tórios devem ser enviados para os ministérios de cooperação dos seus próprios cacionais ou mesmo nas escolas que referem que seria mais fácil «trabalhar»
países ou centrais de organizações como o EM ou o FMI. Desta forma, para com uma determinada organização do que com outra. A questão processual
essas agências, «parceria» ou «ajuda» ao desenvolvimento de educação, não em levanta a questão da administração da ajuda na educação. Como fazer com
primeira linha uma «boa» acção, ou seja somente uma acção moral. É, em certa esta seja mais efectiva?
medida, um dever inerente às funções que exercem, é uma obrigação que resul- Nos anos 80 e princípios dos anos 90, a forma mais eficaz que as organi-
ta dos respectivos contratos de trabalho individuais. Na verdade, na sua forma zações de apoio encontraram para agir no campo da educação, foi por via de
de actuar, os funcionários destas organizações, mistura-se bastante um certo projectos. Efectivamente, como descrevemos para os casos dos primeiros me-
missionarismo e uma situação de contratado em que devem cumprir os prazos. ga-programas na área da educação para Moçambique - os casos de «Educação

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I» e «Educação lI» - financiados pelas agências multilaterais com uma forte para fazer parte da Unidade de Implementação. A prestação de contas destas
participação de agências bilaterais, o desenho destes programas baseia-se em unidades de implementação está dividida entre as agências financiadoras e o
projectos concretos em que as organizações doadoras decidiam praticamente MINED.
se queriam ou não agir numa determinada área. Para administrar os projectos Em terceiro lugar coloca-se o problema de que, ao fim do dia, os coorde-
considerados de grande envergadura criam-se Unidades de Implementação nadores dos projectos, e através deles as próprias agências internacionais, aca-
ou Unidades Gestoras dos Projectos (tal foi o exemplo da GEPE) em que os bariam por ter conhecimentos mais detalhados e dados actualizados sobre a
coordenadores dos projectos e o quadro pessoal central e relevante para a im- situação dos projectos e das escolas do que as autoridades moçambicanas. Ali-
plantação deste determinado projecto são nomeados na base da confiança por ás, em certa altura, estas se informam por meio daquelas, para emitir as suas
parte do doador maiúsculo com a anuência das autoridades moçambicanas. próprias opiniões e traçar as suas políticas educacionais. Dados mais simples
No âmbito da assistência financeira por projecto também é promovida a as- sobre Moçambique, por exemplo sobre a cobertura escolar, o ratio da escola-
sistência técnica mais direccionada para assuntos específicos de cada projecto. ridade, são mais acessíveis e fiáveis por via do EM, UNESCO, UNICEF, etc.
No entanto, esta forma de gerir e implementar a parceria seria rapida- do que pelas próprias autoridades locais. Em parte isto explica-se pela grande
mente alvo de muitas críticas. Continuamos a fazer uso do estudo feito por diferença entre os meios (materiais, de transporte, de comunicação, etc.) que
Takala e Marope (2002,11-13) para a descrição das críticas levantadas, que a os parceiros internacionais tinham e têm, comparados com os disponíveis nas
seguir vamos comentar. repartições nacionais.
A primeira e que é muito frequente ouvir entre os moçambicanos, que A dificuldade apontada no parágrafo anterior leva, naturalmente, a esta
de alguma forma estão na gestão da parceria nos finais de 80 e princípios de quarta: uma implementação separada dos diferentes projectos, ou seja, em
90, é que a comunidade de doadores preocupa-se mais em definir as suas palavras mais exactas, uma fragmentação de jàcto do sistema de educação por
próprias prioridades e de implementá-las e prestava pouca atenção ao que os fàlta de actualização de dados sobre quais são as actividades em curso. Na
moçambicanos definiam como sendo as suas prioridades dentro da política realidade, o sistema de gestão da parceria por projectos, enfraqueceu a capa-
de desenvolvimento da educação. Por seu turnno, as agências doadoras in- cidade administrativa e de gestão do MINED, das repartições provinciais e
sistem na ideia de que aquilo que os moçambicanos definem como sendo as distritais de educação. A sobrecarga sobre elas para responder às solicitações
suas prioridades são muito vagas e, em alguns casos, deficientemente funda- dos diferentes agentes e agências foi enorme. Durante as nossas pesquisas na
mentadas. Como poderiam apresentar prioridades «infundadas» para os seus Província de Manica, testemunhamos como foi difícil contactar com alguns
respectivos países e estruturas centrais? Consequência visível foi que o ponto funcionários da DPEC porque constantemente tinham que participar em se-
focal dos projectos não era o mesmo entre o MINED e as organizações ou minários, ou ainda atender aos funcionários das diferentes agências multilate-
países doadores. Os funcionários destas agências, por regra mais tecnicamente rais ou bilaterais que actuam na província. A sobrecarga que recai sobre essas
preparados, desdobram-se em ajudar os moçambicanos a definirem as suas pessoas para satisfazer as diferentes expectativas é enorme.
próprias prioridades. Um quinto elemento crítico diz respeito, como ressaltámos quando abor-
Uma segunda crítica levantada foi a da duplicação em termos de gestão dámos as dimensões, aos mecanismos, procedimentos e interesses diferentes
dos projectos. Efectivamente, há projectos que são geridos pelas organiza- entre as agências. As autoridades moçambicanas levaram tempo a acumular
ções internacionais ou bilaterais, mas ao mesmo tempo são apontadas pesso- experiência para compreender as formas diferentes de gestão, de procurement,
as dentro do MINED ou das DPECs para «acompanharem» o projecto ou de requisição de meios, de justificação da utilização de fundos, de recruta-

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mento e de emprego da força de trabalho, de prestação de contas e modelos Críticas substanciais também foram feitas em relação aos salários e ou-
de relatórios, de monitorização, de avaliação, enfim, de toda uma máquina tros benefícios inerentes aos consultores e funcionários que prestam a assis-
tência técnica, que eram de longe mais atractivos que os da sua contraparte
burocrática que estava por trás de cada parceiro.
Ao MINED pareceu, numa dada altura, que os projectos estavam pouco moçambicana. E, de certa forma, um elevado número de coordenadores de
claros, ou seja, com tendência a não haver transparência e prestação de contas projectos vindos dos respectivos países contribuiria para o retorno de uma
por parte das organizações internacionais ou bilaterais, especialmente por par- parte considerável dos fundos dos projectos.
lV1as para além destas críticas aqui mencionadas, torna-se claro que o
te daquelas que escolheram, como forma de intervir, alocar os seus fundos não
exercício da parceria, ou melhor, a coordenação das actividades que tem uma
directamente ao governo por via do MINED, mas sim a determinadas ONGs
base na ajuda externa é complexa em interesses e não é um exercício isento
que concorriam para esses fundos (este é o caso, por exemplo, da União Eu-
de complicações para os funcionários que devem representar a política nacio-
ropeia). O MINED, por falta de uma visão nacional, teria dificuldades em
nal sectorial. A complexidade resulta, desta feita, das várias perspectivas das
relatar ao Ministério das Finanças acerca do volume e do grau de implemen-
parcerias. Por um lado, está o imperativo de gerir as actividades de parceria
tação da ajuda no seu sector. Exemplos muito citados são de casos em que as
entre os diferentes organismos internacionais e bilaterais com a contraparte
autoridades educacionais locais tomam conhecimento da existência de deter-
moçambicana. Alguns destes organismos, como se viu, têm maior intervenção
minadas escolas construídas pelas ONGs, quando estas já vêm pedir isenção
que outros, portanto maior influência na decisão sobre as políticas sectoriais
para importação do material escolar ou, simplesmente, algumas facilidades
que eles apoiamo Para gerir esta diversidade de interesses e natureza de par-
fiscais. Em muitos casos quando já precisam da colaboração das autoridades
ceiros, os funcionários do MINED (mas também de outros sectores do go-
locais para a identificação e o recrutamento dos professores, ou ainda para
verno) precisam de se especializar em diferentes áreas ao mesmo tempo. De
que aquelas suportem os custos de manutenção do edifício construído. Este
facto, não só precisam de ser especialistas na gestão da educação, mas muitas
constitui o sexto elemento crítico da administração da parceria por projectos. vezes lhes são requeridos conhecimentos na área de informática, de contabi-
O sétimo elemento crítico diz respeito às desigualdades que naturalmen- lidade, de gestão de projectos, em áreas científicas específicas (por exemplo
te começaram a surgir entre os projectos: alguns têm um «bom» financiador, para negociar laboratórios), etc. Mas também precisam de se informar sobre a
que cumpre com os prazos e suas obrigações, enquanto que outros projec- natureza específica de cada uma das instituições que recebem como parceiro,
tos tiveram pior sorte. Para além disso, haveria a tendência de cada projecto isto é, o seu papel, a sua «ideologia», a sua história, a sua seriedade, as suas
guardar os meios para si mesmo, sem que encontrasse mecanismos para que, potencialidades, etc. Mas isto é só um lado da moeda.
num quadro mais global, houvesse a possibilidade de transferir fundos de um Por outro lado, será necessário compreender a dinâmica das relações entre
projecto para outro, se as autoridades responsáveis pela harmonização do in- as próprias agências internacionais e bilaterais. Muitas vezes, elas reproduzem
vestimento educacional assim o entendessem. Assim, por exemplo, o PMA a nível micro a sua relação de conflitos ou cooperação, dependendo dos casos,
poderia ser muito eficiente na distribuição de alimentos básicos para os inter- a nível internacional. Uma relação de insegurança e desconfiança mútua entre
natos a fim de permitir que os alunos comam bem, mas aos mesmos alunos duas ou mais agências doadoras afecta necessariamente a sua relação conjunta
faltar por algum tempo, o material escolar necessário, dado que este, para ou particular com o MINED. Para dar um exemplo positivo, a forma como
ser adquirido, dependeria da libertação dos respectivos fundos por parte de a Holanda, a Finlândia, a Suécia e a Noruega coordenam a sua ajuda particu-
uma outra organização que apoia um projecto diferente. As assimetrias não se larmente na área da educação facilita bastante o contacto destas agências com
verificam só a nível de projectos, mas também entre as diferentes províncias. o MINED e vice-versa. Mas também significa que o espaço de manobra de

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entidades nacionais como as ONGs, para encontrar meios de diversificação «The meaning of 'partnership' seems to be shared between MINED
dos fundos, se torna bastante reduzido. Um pedido do MINED ou de uma and agency personnel, and across agencies, at least at the rhetoricalle-
direcção desta à AS DI será provavelmente do conhecimento da FINNIDA vel, denoting above alI a wish to move towards discussing policy issues
ou ainda da DANIDA ... É, pois evidente que, neste caso, o espaço de mano- and conducting technical analysis on more equal terms than has been
bra se torna mais reduzido, mas, ao mesmo tempo, claro e simplificado. the case in the pasto It is acknowledged that realization of the ideal of
Podem colocar-se algumas questões no sentido de encontrar a origem partnership is not only a question of attitudes and an atmosphere of
dos problemas ligados à parceria: está na própria concepção, isto é, no subs- mutual respect, but is dependent of respective capacities of the partners,
tracto e forma da parceria como estratégia sectorial (portanto trata-se de um and that this process is a learning experience for alI actors»6
problema estrutural)? Ou são simplesmente problemas isolados do ponto de
vista processual e de atitudes, mas que não devem pôr em causa a parceria No entanto, embora a parceria por projecto tenha sido uma prática que
como pedra angular? É a parceria a melhor opção para uma «Educação para se prolongou pela década de 80 e princípios de 90 no campo da educação, ela
Todos»? é residual. Acompanhando atentamente a intervenção dos parceiros externos
Porque vamos desenvolver este ponto no último capítulo, onde discuti- no processo da concepção dos Planos Estratégicos para o sector da Educação
remos as perspectivas, basta desde já clarificar a nossa posição: pensamos que (PEE) nos anos noventa, é visível, pelo menos a nível central das autoridades
é um problema estrutural. Como iremos argumentar, a educação evoluiu para educacionais, uma mudança de estratégia de uma parceria baseada no apoio
um «direito» humano para partilhar o desenvolvimento. A responsabilidade por projectos-programa para uma parceria baseada num apoio multi-sectorial.
de implementar e não violar este direito é do Estado e dos parceiros que se Ao nível das províncias ainda não há sinais evidentes desta mudança.
comprometem a ajudar. No entanto, a implementação deste direito vai aquém O que, afinal, levou a uma mudança na forma como é gerida a ajuda no
de uma retórica de parceria baseada em imperativos morais de ajuda ao desen- sector da educação? Há duas formas distintas de ver. Por um lado, ela pode
volvimento. Os que têm o direito à educação, têm também o direito natural ser vista como sendo a tomada de consciência dos problemas anteriormente
de reclamarem se esse direito não lhes é dado, o que, duvidamos, seja possível apontados no seio dos órgãos centrais do MINED que operam com os planos
no âmbito do desenho estrutural das «parcerias». e mantêm contactos com os doadores no sector. A tomada de consciência
U ma conclusão que se pode inferir é que a parceria gerida por via de pro- desses problemas pode ter resultado da visível fraca capacidade do MINED
jectos perpetua a dependência estrutural, pessoal e financeira de Moçambique em ser, ao mesmo tempo, o gestor principal de todo o sistema de educação e
para com os seus parceiros estrangeiros. Afasta mais o caminho para a autono- do crescente volume da ajuda. Mas, o que é mais importante, o debate sobre
mia. No entanto, é possível reduzir esta dependência. O que não é possível e os problemas relacionados com a ajuda no sector traria consigo a necessidade
nem desejável é eliminar a interdependência. O que fica evidente é que os ór-
gãos governamentais que negoceiam com os parceiros (e aqui referimo-nos es- 6 O significado de «parceria» parece ser compartilhado entre o MINED, os funcioná-
pecificamente aos ministérios) precisam de se capacitar não só na planificação rios das agências e entre as agências, pelo menos a nível da retórica, que mostram,
sobretudo, o desejo de avançar para um debate sobre questões de políticas e para a
e na supervisão, mas cada vez mais em diferentes ramos de políticas e relações
condução de análises técnicas numa base mais igualitária em relação ao passado. Há
internacionais, de se capacitar para compreender a dinâmica destas relações e
um reconhecimento geral de que a realização do ideal da parceria não é só uma ques-
de constantemente medir os campos de manobras que se lhes oferecem. tão de atitudes e de respeito mútuo entre as partes, mas depende também da respec-
No seu estudo, Takala e Marope chegam à seguinte conclusão acerca da tiva capacidade dos parceiros. Esta é uma experiência de aprendizagem para todos os
parceria entre o MINED e as agências doadoras: actores. (Tradução livre).

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José P Castiallo • Sevel·illo E. Ngoenha A i'1an:ha duma «EcluCdÇão pai-a Todos» em

natural de o MINED desenhar uma política nacional mais coerente para o feitas às autoridades para clarificar. Não bastava, para estas agências, saber
campo da educação e não só. Também havia que se harmonizar os planos de que se precisava de tantas escolas. Era necessário dizer onde, quando, quanto
educação para todos com os outros planos de desenvolvimento nos sectores da custa cada sala de aulas, quanto custa um laboratório, por exemplo, qual era
agricultura, desenvolvimento rural, saúde, etc. Em outras palavras, a mudança a perspectiva para os cinco anos seguintes em termos de formação de profes-
nas formas de gestão da ajuda resulta do reconhecimento de actores internos sores, de formação profissional. O Banco Mundial é visto, nesta perspectiva,
em contextualizarem socialmente a educação, enquadrando-a e definindo o como sendo a instituição que veio impulsionar a mudança, quando, num qua-
seu papel numa perspectiva desenvolvimentista. Em termos práticos, significa dro mais amplo de ajuda, e juntamente com o FMI, cria o Grupo Consultivo
o desenho de uma visão a longo prazo para a educação que serviria de luz para dos Doadores para Moçambique. Em termos ainda mais amplos, esta criação
os planos mais reduzidos. aparece no repensar global sobre o papel da ajuda no desenvolvimento dos
Assim, nesta perspectiva, a motivação para a mudança de gestão da aju- países africanos e na necessidade das organizações bilaterais terem melhor
da parte principalmente de actores internos. E isso implicava criar condições justificação para drenar dinheiro para a ajuda devido a pressões internas que
para uma melhor gestão de ambos: do sistema e da ajuda. É nesta perspectiva os países da Europa sofrem por parte dos seus contribuintes. Assim, o Banco
que são enviados para Paris quadros seniores do MINED, incluindo minis- Mundial teria «forçado» a mudança para uma estratégia multisectorial da aju-
tros e vice-ministros. Aqui eles recebem treinamento em gestão no Interna- da. Em termos da educação, significaria que havia de se coordenar os planos
tional Institute for Educational Planning (IIEP), uma instituição criada pela com o Ministério de Plano e Finanças assim como com os outros ministérios
UNESCO em 1963 em Paris. Embora financiada pela UNESCO e fazendo com maior bolo da ajuda.
parte dela, há muitos contribuintes voluntários e mantém uma grande au- De qualquer das formas, sendo a mudança dos termos de gestão da ajuda
tonomia no seu trabalho. A missão do IIEP é ajudar os estados membros a resultado de motivações internas ou exteriores, o certo é que houve mudança
melhorarem a qualidade dos sistemas de educação. Uma vez regressados, são de atitudes em ambos os lados. De facto, os doadores, embora retirando-se
esses profissionais que desenham as primeiras políticas educacionais a longo visivelmente da dimensão política da parceria, procuraram mecanismos mais
prazo, que serviriam de base para a cooperação e actividades de parceria. Mas, refinados para continuarem a intervir no processo de formulação de políticas
ao mesmo tempo, abre-se uma série de cursos virados para a gestão educa- educacionais, desta feita a coberto de consultorias e assistência puramente
cional, principalmente na Universidade Pedagógica em Maputo, ou ainda são técnica. Tentaremos descrever estas formas à luz do PEE.
enviados quadros a nível provincial e distrital para Portugal a fim de cursarem A origem do actual PEE enquadra -se no plano geral quinquenal do go-
gestão educacional ao nível de bacharelato. verno de Moçambique, adoptado como Programa de Reconstrução N acio-
Também se pode olhar para um ângulo externo. De facto, após 1994, naI, para os períodos de 1991 a 1994. Naquele plano, a preocupação maior
com as primeiras eleições multipartidárias, mas sobretudo devido à «história expressa era o reassentamento da população e o restabelecimento das infra-
de sucesso» do acordo de paz, muitas organizações internacionais e do siste- -estruhlras básicas. No entanto, um programa mais amplo viria a ser aprovado
ma das Nações Unidas em particular, mostram o seu desejo de participar na para o período eleitoral de 1995 a 1999. É, sem dúvidas, na sombra deste
consolidação da paz. O sector de educação é considerado prioritário para o plano que surgem tanto a Política Nacional para a Educação assim como o
reassentamento das populações e a reestruturação do tecido social. O proble- PEE, adoptado em Agosto de 1995 e em 1998, respectivamente pelo governo
ma era, no entanto, na perspectiva destas organizações, a direcção que devia de Moçambique.
tomar o apoio que se queria prestar: como canalizar a ajuda ao MINED? O plano estratégico para o sector de educação a que fizemos referência é,
Havia planos concretos? (hle sector priorizar? Estas e outras perguntas eram de certa forma, pelo menos na sua estrutura e na forma de apresentação dos

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José P Castiano • Severino E, Ngoenha A Mal'cha duma «Educação para Todos» em Moçambique

problemas, uma continuação dos Master Plans sobre os quais já nos referimos. autonomia em escolher os elegíveis consultores nacionais ou estrangeiros, mas
Seria, no entanto, importante, neste passo, chamar à memória que aqueles fo- que carece sempre de um «no objectíom/ da central do Banco em Washington.
ram financiados e realizados sob os auspícios do Banco Mundial, UNESCO, As recomendações produzidas por esses estudos são então apresentadas em
UNICEF, etc. Não seria justo, entrementes, reduzir os esforços do MINED fora, onde participam quadro centrais do MINED, e constituem base para
na disseminação do Plano. De facto, sob a pressão do processo de democra- o delineamento de políticas. Ou então são depositados no sector ministerial
tização do país, o que, entre outros, inclui a prestação anual de relatórios no (Gabinete de Estudos) para análise.
parlamento, o MINED levou a cabo um amplo debate com a sociedade civil, Uma outra forma que parece natural é a presença regular de «missões
incluindo também as agências estrangeiras de menor peso na ajuda. do Banco» - tal é a expressão usada pelos gestores dos projectos financiados
Um dos papéis jogado pelo Banco Mundial no processo de concepção do pelo Banco Mundial - para indicar um grupo daquele organismo que vem
PEE é o de, se podemos assim chamar, «harmonizador de procedimentos». supervisionar o modo como os seus projectos estão sendo administrados. Des-
De facto, o Banco disponibiliza toda a especialização necessária para que os ta forma, não servem apenas os relatórios que são mandados para ambos, o
funcionários moçambicanos ligados aos projectos na educação, conheçam ou Governo e o Banco, mas também precisa de se complementar com a presença
estejam familiarizados com as técnicas mais elementares do procurement. Nos física para a fiscalização. As missões do Banco que chegam a escalar as pro-
meandros dos funcionários da administração educacional, é sobejamente co- víncias são geralmente acompanhadas por funcionários locais dos ministérios
nhecido o rigor, mas também a flexibilidade que o Banco Mundial tem, tanto de pelouro (neste caso referimo-nos ao MINED e ao MESCT [Ministério
em disponibilizar a assistência técnica necessária por meio dos seus funcio- do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia]). Naturalmente que esta imagem
nários como pela contratação de consultores provenientes de terceiros países. contrasta com a visão de propriedade do dinheiro usado para financiar os pro-
Também é conhecida a expressão socialmente construída dos «procedimentos jectos. Se ele é um empréstimo que Moçambique terá que pagar, então porque
do Banco» como sendo algo rigoroso e inflexível, que ninguém deve ousar mu- é que o Banco deve supervisar? Esta é uma pergunta que ocorre principalmen-
dar. Em todo o caso, o Banco Mundial jogou um papel importante na capaci- te nos corredores dos estabelecimentos do ensino superior.
tação dos quadros do MINED e das Instituições Públicas do Ensino Superior De certa forma, podemos dizer que há uma retirada aparente de uma in-
nos seus próprios procedimentos burocráticos, relativamente aos procurements. tervenção directa na formulação de políticas nacionais educacionais por parte
Ou seja, a capacidade de gestão aumentou em relação aos seus projectos. de organismos internacionais e estrangeiros e sua consequente e aparente con-
Na mesma senda, há vários caminhos através dos quais as agências in- centração, no Banco .Mundial, do papel de gestor e harmonizador dos proce-
ternacionais, e ainda particularmente o Banco Mundial, apresentam os seus dimentos burocráticos dos projectos. Mas, ao mesmo tempo, formalizam-se
pontos de vista sobre as políticas de desenvolvimento educacional. Uma das os fora de debate e consulta sobre o grau de implementação do PEE, dos
formas mais clássicas e usadas é através do comissionamento directo de estu- quais a RAR é um exemplo.
dos pelas agências. Para efeito, são contratados consultores, na sua maioria
externos, mas também cada vez mais internos nas universidades, para realiza-
rem certos estudos que, porventura, o Banco mostra interesse em apoiar. Mas
também há estudos requeridos pelo próprio MINED com fundos do Banco
Mundial. Nestes casos, as autoridades nacionais da educação têm uma maior
7 Esta expressão tornou-se gíria entre funcionários ligados aos projectos para significar,
entre outras, que a ordem de pagamento já viera de Washington, onde está a sede do
Banco Mundial.

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José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha A Longa Mar-cha duma «Educação para Todos» em

4. Entre a Educação Geral e a Formação para o Trabalho Num estudo feito pelo Ministério do Ensino Superior, Ciência e Tecno-
logia e que serviu de base para o debate da política nacional de ciência e tecno-
Nos debates para a elaboração da Agenda 2025, um dos problemas que logia, apontam-se como dificuldades, para além da concentração tanto do orça-
permanentemente se levantou, particularmente por participantes ligados ao mento de pesquisa como de pesquisadores numa instituição (UEM), também
mundo empresarial, é o da ligação entre a educação e a economia. Muitos par- um desfasamento entre o conteúdo de pesquisa e os conhecimentos existentes
ticipantes, efectivamente, consideram um dado adquirido que os graduados no sector produtivo e nas camadas sociais. Assim, os resultados das pesquisas
que saem do sistema de educação não estão habilitados a exercer imediata- não retroalimentam necessariamente a produção (MESCT Janeiro 2003,24-
mente a profissão ou o emprego para o qual foram formados. Para serem em- 26). Enfim, constata-se haver um tremendo atraso científico e tecnológico de
pregáveis, acabam por recorrer às formas adicionais de formação, procurando Moçambique, o que não pode impulsionar o desenvolvimento da economia.
cobrir as lacunas de formação do período escolar. Assim, no global, os custos O atraso na produção científica é deveras notório se compararmos com
de formação por indivíduo acabam por ser muito elevados devido às qualifica- os países vizinhos em termos de artigos publicados em revistas científicas. O
ções pós e extra-escolares que os indivíduos têm que adquirir mesmo depois mesmo estudo indica que enquanto a África do Sul publicou 1.927 artigos,
de terem completado a sua formação e, este é o pressuposto, considerarem-se o Zimbabwe 100, Moçambique está na cauda da produção com apenas 38
formalmente à altura das exigências do mercado. artigos publicados. Mas não é só pelo número de pesquisas publicadas que o
O que ainda constitui um problema, segundo a mesma ala economicista atraso de Moçambique nesta área é visível. Uma visita rápida às escolas pri-
da educação, é o facto de os graduados não terem aquilo que nos debates sem- márias e secundárias dos dois países permite notar diferenças muito grandes
pre se denominou «espírito empreendedor», que quer expressar a capacidade no grau de informatização e no nível de formação científica e técnica nos
de cada indivíduo se auto-empregar e gerar, ele próprio, emprego para outros estudantes de ambos países, estando Moçambique muito em baixo na escala
a partir do seu conhecimento. de classificação.
Nesta sequência, muitos manifestaram-se preocupados com o número Ora, para iluminar os argumentos arrolados para que o sistema de edu-
reduzido de escolas que oferecem formação profissional. No ano de 2002 há cação preste mais atenção ao «saber fazer», que seja convertível no sistema de
somente oito escolas técnicas de nível elementar (contra somente cinco no emprego e ocupacional, seria interessante recorrer à História da Educação,
ano de 1999). Estas escolas abrangem 1050 alunos. É notório que as provín- em particular à relação entre o sistema educacional e o sistema económico.
cias de Niassa, Nampula e Sofala não têm (em 2002) escolas deste nível. No Nos finais do século XIX e princípios do século XX, o mundo assistiu a
nível básico há, no mesmo ano, onze escolas do ensino industrial e comercial, um grande desenvolvimento tecnológico que levou a uma rápida industriali-
enquanto que oito escolas são do ensino agrário, albergando no total 15.083 zação, urbanização e emigração de pessoas, principalmente na Europa e nos
alunos. Já para o nível médio há, no mesmo ano, sete institutos para os ramos Estados Unidos. O sistema laboral começou a ser flexível e muito dinâmico,
industrial, comercial e agrário, perfazendo um total de somente 3.271 alunos. o que levou as organizações sindicais dos trabalhadores a concentrarem mais
Os conteúdos e capacidades transmitidos na escola não são relevantes atenção, nas negociações com o patronato, nas questões relativas à formação
para a economia e nem para as comunidades locais; as duvidosas competên- dos trabalhadores. O sistema salarial e mesmo o sistema de direito começam
cias que os alunos adquirem não servem directamente para o meio circundan- a ajustar-se cada vez mais à necessidade de qualificação dos trabalhadores.
te devido ao seu carácter demasiadamente universalista e pouco prático. Este Ao mesmo tempo, nesta fase da industrialização, muitas empresas, fá-
é o outro argumento dado para criticar a escola moçambicana de hoje. bricas, minas, etc. começam a produzir riquezas e os seus proprietários a acu-
mularem riquezas fabulosas, em parte à custa do uso massivo de trabalhadores

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A L.onga Mar'cha duma «Educação par'a Todos» em Moçambique

mas com custos salariais mínimos (horas de trabalhos muito longas, salários as famílias não se opunham ao trabalho infantil porque viam nele uma forma
baixos uso de mão-de-obra infantil e uma legislação que favorece o patrona- de aumentar os seus rendimentos, portanto uma necessidade económica. Por
to). São os factores que contribuíram para enriquecimento dos capitalistas. seu turno, os empregadores vêem no trabalho infantil um meio de ter mais
Perante a deterioração das condições sociais e o aumento das desigualda- lucros por lhes pagarem salários muito baLxos. O grupo dos religiosos, cujas
des sociais, os sindicatos começam a reagir no sentido de pressionar o patro- posições eram influentes na formulação de políticas públicas, argumentam a
nato e o Estado para melhorar as condições dos trabalhadores. É nesta senda favor do trabalho infantil porque evita que as crianças se dediquem a acções
que se vêem obrigados a prestar atenção aos assuntos da formação e educação pecadoras e é uma forma de as manter longe das tentações. Esta estranha co-
dos trabalhadores. Eles começam a exigir que a educação seja pública, ou seja, ligação perdura até o emprego das crianças ser proibido por lei em 1938 nos
a fundação de escolas públicas. O motivo que leva os líderes sindicais a insis- Estados Unidos (Parelius & Parelius 1987,54).
tirem na escola pública é a esperança de que, através dela, haveria um nivela- Os sindicatos, porém, recusam permanentemente o trabalho infantil
mento do sistema desigual de educação que até então predomina, favorecendo porque a continuar esta situação, os operários adultos ver-se-iam obrigados
a aristocracia, uma vez que maioritariamente há escolas privadas ligadas à a baixarem as suas exigências salariais, uma vez que estariam em competição
aristocracia ou às igrejas. Só crianças de famílias nobres poderiam atender a com as crianças. As suas pressões resultaram, pois, no estabelecimento da
estas escolas. Assim, a ide ia dos sindicatos era abrir mais oportunidades aos escola pública.
filhos dos operários para que estes pudessem ter acesso a profissões melhor As primeiras escolas foram muito teóricas, pois seguiram o modelo le-
remuneradas. Mas, ao mesmo tempo, acreditam que a escola pública irá con- gado pelas escolas medievais em que a cultura do espírito era mais importan-
tribuir para uma melhor democratização da sociedade, dado que vêem nela te que a preparação para uma ocupação eco nó mica. Além disso, tentavam
a possibilidade de maior participação dos trabalhadores no sistema político. igualar-se ao que se ensinava nas escolas privadas. Assim, logo no início, as
Na sua luta pela educação, os sindicatos insistem fundamentalmente em disciplinas englobavam leitura, escrita, oralidade, aritmética, geografia, histó-
dois aspectos: o estabelecimento de escolas públicas que abrissem oportuni- ria e gramática. Mas cedo se nota que os filhos dos operários, no geral, perdem
dades aos filhos dos operários e que os fundos para sustentar estas escolas motivação para se dedicar aos estudos, por razões óbvias: nem eles próprios,
fossem da responsabilidade do Estado. Na prática, isto significa que as escolas nem os seus familiares, viam a funcionalidade destas disciplinas.
deviam, por um lado, oferecer cadeiras universais e teóricas como escrita, lei- Não é por acaso que começa a haver descontentamento sobre o trabalho
tura, matemática e ciência, mas, ao mesmo tempo, a escola pública tinha de da escola pública. Começa a existir pressão para que o currículo providencias-
oferecer qualificação básica e prática nos ramos da agricultura e outro treina- se elementos práticos de aprendizagem que os alunos, uma vez terminada a
mento específico. Não admira, pois, que como resultado desta pressão social assistência às aulas, pudessem converter o conhecimento em algo com valor
generalizada, mas também porque o crescimento eco nó mico o havia permiti- material. Esta pressão vem de diversos estratos sociais, incluindo os educado-
do, se estabelecesse a escola pública nos meados do século XIX na maior parte res. Para os educadores, a inclusão de elementos práticos apresenta-se como
dos países mais industrializados. No entanto, considerando o custo dos livros uma forma de consolidar a democracia, dado que, para eles, o respeito pelos
necessários e o facto de ainda haver muitas crianças que trabalhavam, estas trabalhos manuais constitui uma forma importante de preparação dos mais
escolas não tiveram muita adesão, numa primeira fase. jovens para a sua participação numa sociedade industrializada. Devia, pois,
A barreira dos livros e outros materiais foi relativamente fácil de resolver, haver um equilíbrio entre a preparação intelectual e o exercício de trabalhos
uma vez que os Estados começaram a tomar conta das despesas. Mas o mais manuais. Assim defende, por exemplo, John Dewey. Por seu lado, os empre-
difícil foi a barreira do trabalho das crianças. Há razões para isso. Por um lado, gadores querem ver as matérias práticas inclusas no currículo porque acredi-

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tam que o treino dos jovens em operações manuais específicas nas escolas, iria A dificuldade do primeiro argumento foi demonstrada pelos estudos fei-
livrá-los dos custos de formação que até então suportavam. Por seu turno, os tos por Berg. Depois de rever todos os argumentos economicistas da edu-
sindicalistas viam na introdução de matérias práticas uma forma de aumentar cação, Berg, centrando-se na relação entre a educação e o emprego, conclui
as chances de as crianças provenientes de famílias pobres conseguirem melho- que esta ilusão provém do [1.cto de que os empregadores desenvolveram uma
rar as suas oportunidades de emprego. confiança cega no sistema de certificados. O certificado foi confundido com
Mas a transformação do currículo e a abertura das oportunidades edu- a produtividade. No entanto, nas suas pesquisas ele nota que é precisamente
cativas para os mais pobres não são as únicas transformações importantes entre os graduados que o grau de insatisfação pelo trabalho que fazem é muito
daquela altura. Ao mesmo tempo, verifica-se uma espécie de revolução na maior. Segundo ele, aproximadamente quatro de cada cinco trabalhadores
pedagogia dominante, particularmente devido aos esforços de John Dewey. altamente qualificados não tinham muita motivação porque achavam que o
A maior crítica dirigida por Dewey à escola da altura é o facto de os conteú- emprego que exerciam exigia muito pouco das capacidades reais que julgavam
dos da escola não terem muita coisa a ver com os trabalhos práticos e com a possuir. Isto levou Berg a concluir que as competências exigidas no emprego
experiência que cada escola traz de casa. Para ele, um bom sistema de ensino não tinham muito a ver com o sucesso escolar, ou seja, que não havia formas
deveria estar impreterivelmente em condições de ensinar as crianças a partir de provar que existia uma relação directa entre o nível escolar e a produtivida-
das suas experiências positivas. de do indivíduo (Parelius & Parelius 1987,68).
Desde esta altura, as reflexões sobre a ligação entre a escola e o mundo A crença de que quanto mais o indivíduo investir na educação maior
familiar de onde a criança provém, mas particularmente com o sistema ocu- retorno terá também foi objecto de análise, tendo sido encontrados alguns
pacional, foram sendo desenvolvidas a ponto de se tornarem, com o tempo, problemas. O primeiro contra-argumento é o chamado lost income, ou seja,
teorias sólidas. Uma delas é a chamada Teoria do Capital Humano. rendimento perdido. Este contra-argumento parte do pressuposto de que o
A Teoria do Capital Humano, em inglês Human Capital1heory, defende estudante não trabalha ao longo do tempo em que passa na escola e na uni-
principalmente e de uma forma simples que o aumento do nível geral da edu- versidade, «perdendo», portanto, teoricamente oportunidade de gerar o seu
cação da classe trabalhadora contribui, em geral, para incrementar a produti- rendimento pessoal. Ainda por cima gasta dinheiro em propinas, material
vidade dos trabalhadores colectiva e individualmente; assim aumenta também escolar, em transporte, etc. Tudo isto, calculado, constitui o tal rendimento
o Produto Nacional Bruto. Portanto, trata o investimento na educação tal e perdido. J\!Iuitos economicistas da educação, tentando calcular o resultado,
qual como se de investimento numa fábrica se tratasse. Embora muitas objec- notaram que os rendimentos individuais após estes gastos não são tão altos
ções fossem levantadas em relação ao pressuposto básico desta teoria (que a como imagina o senso comum. Isso por uma razão muito simples: é que a
educação tem uma relação directa com a produtividade individual e colectiva), formação escolar superior por si só, embora seja já um bom critério para o
ela parece ter resistido ao longo dos tempos e ressurgir sempre em momentos acesso rápido a empregos bem pagos, não é, no entanto, em muitas sociedade
de crise económica. Não é, pois, por acaso que os argumentos que arrolamos o único critério de selecção. Em alguns casos não constitui o critério básico
no âmbito da Agenda 2025 estejam na mesma esteira de argumentação. para um bom emprego que permita ao indivíduo recuperar, individualmente,
Desta teoria, devemos reter dois elementos de argumentação. O primeiro o investimento que fez, tendo em conta também o que foi perdido por não ter
pressupõe o aumento da produtividade colectiva em geral na sociedade se se estado a trabalhar numa boa parte da sua vida. Outros critérios como o estrato
aumentar o nível geral da educação. O segundo pressupõe que o aumento do social da pessoa, a etnia, a família, a raça, a situação política do país, etc., ou
investimento na educação individual terá como resultado maior capacidade de seja, o capital social e o capital cultural do indivíduo jogam um papel funda-
gerar rendimento individual. mental no acesso aos recursos. Estes outros critérios fora dos certificados para

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a colocação das pessoas, podem, se forem mais a regra do que a excepção, em Da mesma forma, os cursos do ensino superior são, em regra, muito lon-
certas fases, baralhar a argumentação economicista de que o investimento na gos (cinco anos em média) em relação às mudanças na economia. A decisão
educação corresponde ao retorno. Isto pura e simplesmente porque perpetua em frequentar ou abrir um determinado curso, em contrapartida, deve ser
a colocação de pessoas em empregos para os quais não foram formados. Esta tomada sem ter a certeza absoluta da evolução do mercado de trabalho em
argumentação é compreensível. Nem o indivíduo, nem a sociedade ganham termos de necessidade.
ou rendem mais a partir do investimento global na educação se, depois da Mesmo os cursos de capacitação não parecem ser uma solução adequada
sua formação, os médicos na sua maior parte trabalham na administração do ao problema estrutural da relação entre a formação e o emprego. Realmente,
sistema ou na política, ou se os agrónomos em vez de irem para o campo abrir estes cursos são mais desenhados para responder aos problemas pontuais de
machambas ficam nos ministérios; idem se os professores que são formados desemprego ou, na maioria dos casos, de subemprego. Ou ainda da ameaça
acabam por se dedicar a outras ocupações que não a de ensinar. Será óbvio que de se cair no desemprego por parte dos cursantes. Na prática, eles aumentam
o retorno, ou seja, a suposição que assim se aumenta a produtividade fica, no mais os custos de formação por cada indivíduo, embora os custos das capaci-
mínimo, muito problemática. tações sejam, na maioria dos casos, suportados pelos empregadores. Mas, na
Mas há uma outra dificuldade em aceitar a visão economicista da edu- realidade actual, eles extrapolam o restrito âmbito privado para passar a ser
cação. É a dificuldade de estabelecer uma relação temporal entre o tempo de um problema estrutural, clamando, portanto, por uma solução mais global.
formação e a dinâmica estrutural da própria economia. Nos últimos anos, A ideia de tornar a relação entre a educação e o sistema de ocupação
mais estreita tem uma dimensão pedagógica, nomeadamente na forma como
devido ao fenómeno da globalização, há muita flutuação em termos de ne-
o material escolar é desenhado e apresentado, mas também na forma como a
cessidades em técnicos especializados para determinadas áreas. Por exemplo,
escola organiza ou não organiza os serviços de aconselhamento dos finalistas.
foi notório que em Moçambique, ao longo dos anos 90 houve formação de
Efectivamente, a forma como, por exemplo, os materiais escolares apre-
muitos cientistas sociais e do ramo do Direito, talvez por causa dos problemas
sentam os papéis sociais das pessoas influencia muito a forma como os alunos
sociais que então havia. Mas, com o crescimento das empresas, usando cada
encaram o seu próprio futuro na carreira profissional. Diversos estudos mos-
vez mais a informática, a tendência da empregabilidade foi virada para aque-
tram, por exemplo, que a imagem da mulher nos materiais escolares é a de
les ramos. A viragem na estrutura eco nó mica foi tão rápida que a educação,
uma mãe compreensível, ou de uma enfermeira, duma vendedora ou outros
em particular o sistema de formação superior foi mais lento a adaptar-se a
exemplos de género. Estas imagens penetram na mundividência das alunas e
ela, originando, em parte, a proliferação de Universidades técnicas privadas
são assumidas também pelos parceiros como «normais». Um outro exemplo
para suprir este déficit. O quadro da relação entre a economia e a educação
pode ser dado na forma como se apresenta, nos livros, a vida no campo: é
torna-se mais complexo se tivermos em conta que as mudanças estruturais na
harmónica, idolatra as tradições locais, sem dinâmicas contraditórias, como se
economia mudam também a estrutura salarial, que também obedece à procura
todos os habitantes falassem numa só voz, e os velhos fossem os mais sábios e
e à oferta. Enquanto os advogados eram bem pagos por haver muita procura que não se enganam.
dos seus serviços na fase de fixação de empresas e seu enquadramento legal, já Os materiais assim desenhados cumprem a função de, em termos de ocu-
na fase da sua expansão e produção, os engenheiros electrónicos, por exemplo, pação, cada grupo se sentir identificado no seu meio e assim não empreen-
são os mais procurados até que o mercado se sature. Assim, criam-se condi- der «aventuras» de grande vulto na sua carreira. Em linguagem pedagógica
ções para maior migração entre as profissões e «desorganiza» toda a relação chama-se a isto mais ou menos «produzir manuais adaptados às necessidades
harmoniosa entre a formação e o emprego. relevantes de aprendizagem» em que o aluno se identifica com o seu meio. A
mensagem de preservação ocupacional no seu meio está patente em materiais

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José P Castiano • Sevel-ino E. A Longa Mal-cha duma «Educação em

assim desenhados porque condicionam as aspirações profissionais dos paren- O quadro 2 visualiza os saberes discriminados por sectores de economia
tes e alunos de acordo com a classe social, grupo étnico, ou ainda se se trata de e categoriza-os pelo tipo de formalização e modernização (tradicional-local,
um rapaz ou de uma menina. informal e moderno). Embora com fortes margens de imprecisão, este quadro
Por outro lado, esta aparia entre a orientação profissional ou uma orien- é um ponto de partida para sistematizar os saberes em termos de actividades
tação geral no desenho do sistema de educação verifica-se na contradição (recuperando o sentido de «actividade» de «relevância») atendendo aos ecos-
entre o discurso público e a acção privada das elites que planificam e projec- sistemas circundantes, basicamente de ocupação eco nó mica.
tam políticas de educação. Uma breve análise por nós realizada mostra que a Em contrapartida, se olharmos para a estrutura dos cursos de formação
maioria dos políticos e empresários que pressionam o Estado a enveredar por profissional que a escola pública proporciona, notamos de imediato o des-
formações profissionais mais baixas ao nível das Escolas de Artes e Ofícios, fàsamento entre a estrutura da educação e a estrutura micro-económica nas
enviam, eles próprios, os seus filhos para escolas de carácter muito geral, cujo comunidades que a escola pretende servir. O maior déficit na formação profis-
fim é a formação universitária. Esta incoerência entre o discurso público e as sional recai sobre o sector informal dado que este não tem longa tradição nas
práticas na esfera privada, mostra o quão superficial é a vontade e o esforço daí medidas de auto-formação dos seus próprios trabalhadores como possuem os
resultante em desenhar realmente o sistema na base do «saber fazer». sectores moderno e tradicional (apesar das limitações tecnológicas).
Mas há um problema estrutural que é característico dos países como Mo- Pelo seu papel preponderante na sobrevivência de muitas famílias e pelo
çambique: diz respeito à relação entre os cursos que são oferecidos nas escolas crescimento que vem tendo desde os anos 70, tudo indica que o sector infor-
profissionais e a estrutura ocupacional dividida em formal, informal e tradi- mal ainda vai jogar um papel maior, apesar de ser praticamente combatido
cional. Num estudo realizado na província de Manica (Castiano, 2003) no pelas estruturas administrativas estatais. O sector informal ganha uma aten-
âmbito do Currículo Local foi elaborado um quadro bastante amplo naquilo ção especial por parte da Organização Internacional do Trabalho a partir dos
que são as ocupações das pessoas que, portanto, garantem o seu sustento. Na anos 70 (Lenhart 1989,197). A mesma organização fornece as características
tentativa de estabelecer uma «Tipologia de Saberes Locais» (confinados ao fundamentais deste sector: fácil possibilidade de entrada, alimenta-se funda-
«saber fazer») resultou o quadro abaixo que foi inspirado pelas pesquisas de mentalmente dos recursos internos, baseia-se fundamentalmente na estrutura
Lenhart (1993), desenvolvidas e adaptada por Castiano (1997). Neste quadro organizacional familiar, pouca diversidade de actividades e divisão de traba-
incluímos elementos novos resultantes da recolha feita nas escolas. lho, trabalho intensivo, usa tecnologias adaptadas, «qualificações» fora ou pa-
ralelas ao sistema formal de formação, certa irregularidade na concorrência,
Quadro 2: Tipologia do Saber Fazer
produção em pequena escala, horas de trabalho muito flexíveis, mas mais pro-
Sector Primário Sector Secundário Sector Terciário
TI-adicional-Local Ofícios (construção e Cura POI- plantas
longadas que as do sector formal, uso intensivo da força de trabalho feminina
Agricultura de
subsistência, cobel-tura de casas, olal-ia, medicinais locais, e infantil, etc. De facto, o sector informal ocupa a maior parte das pessoas
pesca artesanato, cesta ria, parteiras, administl'ação
pintura etc), técnicas de local, mestl-es de em Moçambique, com tendência a subir, depois da agricultura. Assim, seria
apl-ovisionamento cel'imónias inútil traçar planos do seu desaparecimento a curto e a médio prazo. Um dos
Informal Tratamento e Cal-pintarias, latoarias, Comét-cio nas bancas problemas do sistema de formação provém do facto de este sector não servir
conservação dos sapatal'ia de venda, transpol-tes
produtos agl-ícolas de fonte de modelos de formação mais flexíveis e adaptados às necessidades
Moderno Agricultura empl-esarial Indústt-ias locais Sei-viços, educação, relevantes de formação.
saúde, comel-cialização
agrícola
Fontes: Castiano 2003; 1997,164 (inspirado POI- Lenhart 1993,78),

206 207
Capítulo 111:
,
A Escola em Mrica:
Entre a Universalização e a Afrlcanização

Mesmo que, de uma forma geral, os sistemas de educação nas nações


africanas apresentem especificidades próprias, podem encontrar-se, ao mes-
mo tempo, problemas e tendências comuns que lhes empresta uma particula-
ridade africana. De facto, a experiência colonial por que passaram estes países
traçou certas similaridades no que respeita, particularmente, aos desafios dos
sistemas de educação para se libertarem desse passado. Ou seja, fora da expe-
riência colonial, quase todos os sistemas de educação lutam com o problema
da falta de fundos suficientes para os seus programas, devem realizar-se num
contexto de pobreza, e têm em comum o desejo de verem a educação como o
instrumento básico na luta pela independência eco nó mica, política e cultural.
Antes da chegada e da penetração dos missionários, muitos grupos po-
pulacionais africanos mantinham um complexo sistema de educação que, em-
bora tendo o seu eixo em rituais de passagem de idade de criança para a fase
adulta, se estendia ao longo de toda a vida e respeitava principalmente os
ciclos produtivos locais. Da mesma forma, o complexo sistema de valores,
tabus, valores e correspondentes rituais era transmitido de acordo com a ne-
cessidade básica de manter a sociedade coesa. Os valores específicos, conheci-
mentos e habilidades transmitidos pelos tutores dependem fundamentalmen-
te do género e da idade da pessoa tutorada. Através de danças, canções, rituais
de ocasião, ritos de iniciação e outros, as crianças africanas eram introduzidas
na vida social e iam aprendendo e interiorizando a hierarquia social. Dos fi-
nais do século XIX até ao início da Primeira Guerra Mundial o contacto que
muitos povos africanos (sobretudo do interior) tiveram com os europeus foi
muito limitado. Os mais visíveis eram comerciantes, missionários e os chama-
dos «exploradores» que faziam as suas viagens para o interior naquele espírito
aventureiro. No período imediatamente a seguir, a Europa, no geral, começa
efectivamente a pretender-se afirmar como colonizadora e, nesta senda, refi-
na os seus instrumentos de colonização, procurando sobretudo multiplicar a

209
José P Castiano • Sevel-ino E. A Marcha duma «Educação em Moçambique

sua presença pessoal e institucional. Usando muitas vezes métodos violentos, Por ironia, podemos notar que, enquanto para o continente europeu a
os europeus começam a impor o seu sistema de administração, de valores e providência em educação para as massas conduziu à formação de uma classe
crenças nas populações indígenas. É uma campanha para conquistar as terras operária forte e, ao lado dela, de elites e intelectuais culturais críticos à sua so-
e as almas. Foram construídas doutrinas com a pretensão de mostrar a supe- ciedade, no continente africano o sistema de educação foi principalmente um
rioridade do branco perante o negro. Não é demais recordar que só em 1994 é instrumento de aculturação dos povos indígenas e um instrumento de afàsta-
que o último regime baseado num racismo institucionalizado cai: o apartheid. mento das elites (ou de «extroversão», para empregar o termo de Hountondji)
Na sua avidez de colonizar, os europeus vieram institucionalizar a esco- das suas raízes culturais. As elites africanas começam a emular os sistemas eu-
larização. Escolas missionárias foram estabelecidas para ensinar às crianças ropeus. Mas também, no seio deles, como veremos, surgiram os reformadores
africanas a mensagem cristã para «salvar as suas almas». Os governos colonia- da educação que queriam desenvolver uma forma de educação mais contextu-
listas também estabeleceram escolas ao estilo europeu com o propósito prático alizada e responsável no continente africano. Já na idade média na Europa se
de fazer com que alguns africanos os pudessem ajudar a administrar o sistema consagraram verdadeiras universidades de renome (Salermo, Bolonha, Paris),
e as colónias. Para a sua integração no sistema de administração colonial, verdadeiros centros do saber da época, perseguindo a verdade e incorporando
porém, eram-lhes reservados os níveis mais baixos e locais, principalmente o espírito da época; em África foram erguidos estabelecimentos escolares de
como tradutores, empregados de balcão, estafetas, ou serviços de primeira baixa qualidade preocupadas mais com a legitimação da dominação colonial
triagem em diversas repartições administrativas. Esta «integração» de uma do que com o seu verdadeiro propósito: transmitir conhecimentos e habilida-
elite africana levava consigo implícita a aceitação da legislação, da ordem e des correspondentes ao contexto.
da cosmovisão europeia. A escola devia, noutras palavras, ser uma instância Presentemente, os governos e as elites africanas estão perante o desafio
de administração e política colonial. Mas não só. As crianças e as elites es- de desenhar um sistema de educação que seja responsável face aos desafios
colarizadas eram endoutrinadas no sentido de reconhecerem a superioridade da modernização (industrialização, racionalização, globalização, etc.), mas, ao
do branco, de, ao mesmo tempo, implicitamente, desprezarem a sua cultura, mesmo tempo, responsável em relação às tradições locais que continuam a
ou no mínimo, de reduzirem as suas culturas locais de origem a uma esfera governar grande parte da vida das pessoas. É um combate que a situação de
privada, fora da vida pública. pobreza e do atraso económico não favorece.
Mas a atitude dos europeus em meter uma parte de africanos nas escolas Afi'icanização ou Modernização? Eis a questão! O debate em torno da
foi ambivalente porque eles temiam que, uma vez nas escolas, estas mesmas responsabilidade da educação no contexto africano é, no fundo, um debate
pessoas se revoltassem contra o sistema. A educação poderia aumentar as ex- epistemológico, pois ele reflecte não só a questão «do que» e de «como ensi-
pectativas de promoção social destes negros, que poderiam resultar em atitu- nar». Ele questiona, sobretudo, os pressupostos daquilo que uma determinada
des críticas contra as próprias instituições coloniais. Este temor levou a que, sociedade considera como conhecimento válido ou legitimado para ser trans-
quando os europeus facilitassem a educação aos negros, o fizessem ou para mitido às novas gerações. Por isso, começaremos por discutir como é que o
limitar o nível ao básico, ou de forma a poder limitar a educação ao treino téc- problema da africanização ou modernidade se coloca no contexto africano.
nico e profissional, particularmente na agricultura,. Eram formados naquelas Este capítulo procura contextualizar o debate em Moçambique num
profissões que seriam úteis aos brancos e missionários no cultivo de terras e âmbito mais amplo do continente africano, concretamente enquadrando-o
nas obras de construção. Ao mesmo tempo, foram sendo treinados polícias, na questão da Escola entre a Modernidade e a Tradição Africana. Assim,
militares e guardas para a segurança do sistema colonial. pensamos que, à luz de referências teóricas, tornar-se-á o actual debate mais
frutífero.

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José P. Castiano • Sevet-ino E. Ngoenha A Longa Marcha duma «Educação pat-a Todos» em

o debate sobre que tipo de educação seria apropriado para os africanos africanos que habitavam originalmente aqueles países. Até importaram as for-
tem urna tradição longa. Este debate não começa - corno Christe Addick mas de vestir dos seus antigos senhores nas Américas, tornando praticamente
demonstra no seu livro Modernisierung der modernen Schule - com as indepen- o seu lugar na relação social com os «irmãos» que cá ficaram, chegando ao
dências africanas, ou seja, com as novas elites políticas dos países indepen- ponto de, em alguns casos, se evitar deliberadamente a miscigenação através
dentes. O certo é que, quando tornam o poder, as elites políticas que substi- de casamentos entre os «regressados» e civilizados e os «nativos» que ficaram.
tuíram o colonialismo vêem-se na contingência de estender as oportunidades Não é, por isso, um acaso que o debate sobre a educação tenha tido o seu
educativas e administrar o sistema de educação que os colonialistas haviam auge nesta altura e nos países indicados. É que naquele ambiente social via-se
deixado. Pode ter sido neste contexto que o debate tenha assumido urna nova necessariamente a educação corno o meio de, rapidamente, não só conseguir
qualidade. um progresso económico da maioria, mas sobretudo corno elemento básico
Nos inícios do século XX, sobretudo na Libéria e na Serra Leoa, pensa- de luta contra a discriminação racial e social, assim corno um meio de recon-
dores corno James Africanus Beale Horton, Pastor James Johnston, Mojola quista da dignidade africana. Foi, pois, neste ambiente, que a Serra Leoa e
Agbebi, Edward Willmot B1yden, Henry Rawlinson Carr, entre outros, in- a, Libéria se tornaram o centro de debate e de expansão da educação para a
fluenciaram o debate entre a modernização e a africanização da educação. No Africa Ocidental, criando as referências epistemológicas para outros cantos do
fundo, discutia-se o papel da educação no contexto do desenvolvimento do continente. Daí que, se quisermos discutir o contexto histórico e epistemoló-
continente. Este debate é bem reportado pelo filósofo africano de educação gico do debate sobre a educação em Moçambique, se torna imperioso revisitar
Akimpelu no seu livro An Introduction to Philosophy of Education que, essen- este debate a partir dos pensadores africanos daquela época que, no fundo,
cialmente, vamos seguir corno referência da nossa exposição. constituem «fontes de inspiração».
Não é por acaso que este debate se desenvolve naqueles países. Ambos, a Foi, pois, na Libéria e na Serra Leoa onde se estabeleceram centros de
Libéria e a Serra Leoa, receberam no início do século XX ondas de afro-ame- educação com modelos ocidentais já nos meados do século XIX. Segundo
ricanos que regressavam às terras da mãe África. Este movimento de regresso Akimpelu (1981:89), foi na Serra Leoa que se fundou o primeiro estabele-
serviu de porta para a expansão da civilização ocidental no campo do ensino cimento de formação de professores pela Church Missionary Society em 1827,
para o resto da África. Mas, ao mesmo tempo, foram o ponto de encontro enquanto que a primeira escola secundária gramatical só viria a ser estabele-
entre as três culturas: a tradicional africana, a islâmica e a cristã ocidental. cida em 1845. Mas daqui se expande para a Nigéria onde se funda a primeira
Aparentemente, ambas, a cultura ocidental e a cristã, eram vistas corno sendo escola primária em 1841. Estas primeiras escolas, particularmente as secundá-
urna e a mesma coisa dado o facto de provirem do continente europeu. Ao rias, estavam filiadas a escolas na Europa. Este é o caso, por exemplo, da Fou-
mesmo tempo eram vistas corno culturas «superiores» em relação às culturas rah Bay College na Serra Leoa onde se formaram os grandes educacionalistas
africanas e muçulmanas, discurso sobretudo suportado pelos antropólogos e corno o Bispo James Johnston (1859) e Henry Carr (1882) que estava filiada
pelas «Sociedades de Geografia» espalhadas pelas capitais da Europa. Efecti- à Universidade de Durham, na Inglaterra.
vamente, antropólogos desta época desenvolveram urna porção de ideias que Ao mesmo tempo que crescia a demanda pelo alargamento da educação
mostravam directamente ou levavam implícita a ide ia da superioridade da cul- formal, crescia um certo criticismo sistemático à escola colonial, particular-
tura europeia, chamando de «primitivos» os povos africanos. A superioridade mente no que diz respeito à qualidade do ensino para os negros. Estas vozes
da raça branca não era só urna doutrina praticada na Europa. Também foi críticas tornaram-se importantes para o debate posterior sobre o tipo de edu-
assimilada pelos «mulatos» e negros que das Américas regressavam à África. cação em África. Duas delas interessam-nos: as vozes de James Africanus De-
Muitos deles tiveram urna atitude altiva, chegando a evitar misturar-se com os ale Horton e as de Wilmot B1yden porque representam, de certa forma, dois

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José P Castiallo • Severino E. Ngoenha A Longa rvlar'cha duma «Educação par'a Todos» em Moçarnbique

paradigmas diferentes em debate. Ou melhor, equacionam a educação formal prestar grande atenção à escolarização da rapariga; devia-se também estender
ocidental a partir de perspectivas diferentes. as oportunidades educativas para todas as cidades e aldeias de acordo com o
tamanho da população, aliás toda a colónia (Serra Leoa) devia ser distribuída
em «distritos educacionais» para permitir uma maior e melhor administra-
1. James Africanus Beale Horton
ção; o sistema de educação deveria ser centralizado e único, o que significava
Horton nasceu em 1835, perto de Freetown na Serra Leoa, de pais antigos oferecer um leque uniforme de disciplinas, os mesmos livros, os mesmos con-
teúdos, os mesmos métodos de ensino e de acordo com o mesmo calendário
escravos dos Ibos l . Fez o ensino primário numa escola missionária da Chur-
escolar; a supervisão escolar deveria ser estatal e visava garantir, sobretudo, a
ch Missionary Society e o ensino secundário em Freetown. Aprendeu grego,
latim, matemática, geografia, inglês, história, estudos bíblicos, astronomia e uniformidade das oportunidades educativas e o cumprimento do processo es-
música. Depois frequentou a escola missionária superior Fourah Bay somente colar; a formação de professores deveria ser também uma tarefa estritamente
durante dois anos no fim dos quais obteve uma bolsa para ir estudar medicina estatal (ele advoga a constmção de uma e mesma escola de treinamento de
na Inglaterra. Uma vez neste país começa por estudar na King's-Col!ege em professores em Freetown onde o governo formaria professores para as escolas
Londres e continua os estudos de medicina na Royal College of Surgeom of públicas); os professores deveriam ter bons salários de forma que só os melho-
England. A sua graduação como médico é, porém, feita em Edimburgh em res poderiam entrar para esta carreira.
1859. O estudo da medicina enquadrava-se nos planos coloniais para apetre- As ide ias de Horton sobre a educação expostas no parágrafo anterior
char o exército de médicos nativos. Entre várias outras, Horton deixou uma poderiam fazer dele um dos grandes pensadores da escola no contexto mais
obra intitulada West African Countries and Peoples editada em 1868. O que é geral da História .lVloderna. No entanto, ele também se preocupou em con-
interessante neste livro é que ele emprega o termo «nação» para se referir aos textualizar a escola atendendo às condições específicas do continente africano.
diferentes povos, no lugar do termo «tribos» que era usual. Ele usou os seus Neste preocupação ele insistia que a expansão da escola deveria ocorrer duma
conhecimentos científicos para rebater a tese da inferioridade dos africanos forma pragmática, isto é, sempre partindo das instituições existentes. O que
perante os europeus assim como para negar a existência de raças. realmente ele advoga é a ideia de que, dado que naquela altura as escolas
Horton engajou-se, sobretudo, na educação. Ele não tinha dúvidas de missionárias estavam espalhadas por diversas zonas, a expansão das escolas
que a educação devia ser providenciada, administrada, financiada e super- formais deveria apoiar-se nesta situação positiva, mas mantendo a perspectiva
visada pelo Estado. Não obstante a sua forte ligação com a Igreja Católica, de virem a secularizar-se, isto é, passarem para o controle do Estado para ga-
Horton era apologista de uma educação secular. Nesta óptica, as escolas mis- rantirem a obrigatoriedade de as crianças frequentarem a escola. Portanto, ele
sionárias deveriam submeter-se aos planos estatais. Mesmo a presença inglesa mantinha uma certa visão realista em relação aos meios limitados do Estado
era vista por ele como para dar «impulsos para a modernização» do sistema para construir novas escolas, ao mesmo tempo que aproveitava os estabele-
educacional, dado que todo o sistema deveria ser administrado pelos africanos. cimentos de ensino existentes como ponto de partida. Horton também era
As suas ideias de uma escola moderna resumiam-se no seguinte: escolari- apologista da ideia de as línguas africanas passarem a ser escritas (ele louvava
dade obrigatória para todas as crianças entre os sete e os catorze anos; devia-se a experiência da missão basílica que tinha iniciado um ensino baseado nas lín-
guas locais e criticava os metodistas por ainda não terem iniciado um trabalho
1 Os dados biográficos foram compilados de duas fontes: Acldick,C.: Die Universalisie-
idêntico). A língua inglesa deveria continuar a ser «diplomática». C2.1tanto ao
rung de modernen Schule. Paderborn, Münchell, Wiell, Zürich.1992 e Akimpelu,J.A.: currículo, ele «abria a mão» para que os alunos, para além de aprenderem a ler,
Introduction to Philosophy of Educatioll, Macmillan, 1981. escrever e contar, também tivessem algumas matérias ou mesmo disciplinas

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Longa Mal"Cha duma «Educação pal'a Todos» em

que se julgassem adequadas às condições regionais (para Gâmbia, por exem- deveriam iàzer parte de todas as faculdades para eliminar alguns defeitos nas
plo, ele admitia o ensino em árabe para facilitar a comunicação). faculdades mentais dos estudantes. Como é evidente, Horton era apologista
Para Horton, o ensino geral deveria ser combinado e complementado de uma formação superior particularmente iorte em Ciências Naturais, que
pelo ensino técnico profissional e por possibilidades de formação em agri- ele achava estarem fracamente representadas, a tal ponto que deixa um testa-
cultura. Este não devia, no entanto, perder de vista o mercado internacional. mento para a construção de uma Horton's Collegiate High School em Freetown,
Desta forma, queria que houvesse uma Industrial School para formar mecânicos, onde se ensinasse Mineralogia, Geologia, Botânica e Ciências associadas.
carpinteiros, sapateiros, pintores, construtores e mesmo construtores de bar- Dado que Horton nunca tinha sido professor ou trabalhado no sector de
cos que iriam melhorar as canoas. Na agricultura ele insistia no melhoramento educação, ele nunca foi capaz de desenvolver ide ias sobre didáctica, metodo-
da cultura para exportações, por exemplo das plantações da banana. logias ou mesmo sobre pedagogia no contexto africano. Ele limitou-se, como
As ide ias de Horton também se estenderam aos ensinos secundário e su- vimos, a aspectos concernentes a políticas de educação. Talvez por isso é que
perior. Segundo ele, os africanos deveriam ter a oportunidade de fazer os seus as suas ide ias nunca foram postas em prática. Pelo contrário, foram ignoradas
estudos secundários e universitários na própria África e não terem que viajar pelas autoridades inglesas em Londres e na própria Serra Leoa.
para a Europa para continuarem os seus estudos, como era prática na altura No entanto, é inegável uma certa influência de Horton no posterior de-
em quase toda a África. Insistia na ide ia de que a escola secundária deveria bate sobre a educação em África. Assim, as suas ide ias sobre como deveria ser
ser de carácter oficial e geral. Em todos os distritos educacionais deveria haver melhorado o sistema de educação foram por ele mesmo retrabalhadas para
uma escola secundária. Os professores formados pelo Estado para estas esco- responder a um pedido formulado pelas autoridades coloniais inglesas. Nas
las deveriam, no mínimo, servir dez anos. Talvez pela sua própria formação, suas propostas, ele voltava a insistir naquilo que considerava fundamental: no
Horton queria fundar um colégio de medicina para toda a África ocidental controle estatal, na construção de escolas secundárias e superiores para garan-
para formar médicos melhores do que os que saíam das faculdades inglesas. tir a continuidade de estudos nas colónias, os professores deveriam ser bem
Neste colégio haveriam disciplinas como Anatomia, Psicologia, Qlímica, pagos, montagem de uma inspecção escolar, exames oficiais e gerais entre
Botânica (que teriam o adjectivo «africana»), para além de Farmácia, Enfer- outras. Como dissemos, embora estas ide ias não fossem aceites pelos ingleses,
maria e outras disciplinas afins mais gerais e clássicas. O mais interessante é foram, no entanto, percursoras do debate sobre a universalização e a secula-
que Horton insistia que o professor (mastn) deveria ser insubstituivelmente rização da escola no contexto africano, se considerarmos o contexto daquele
«africano» porque este estaria mais interessado em desenvolver o seu país que tempo. A sua insistência na fundação de uma universidade na África ocidental
os professores europeus. foi mais tarde apoiada por B1yden e outras confissões religiosas africanas, ser-
Horton foi um dos primeiros a exigir estabelecimentos universitários vindo de pressão para os governantes ingleses. No mínimo, o Fourah Bay-Col-
para a África onde se ensinasse teorias e práticas de educação, matemática, fi- lege foi, em 1876, transformado numa delegação exterior da Universidade de
losofia da natureza, ciências bibliográficas, literatura inglesa, alemão, hebreu, Durbam, na Inglaterra, de forma que os primeiros graus académicos passaram
história, mineralogia, fisiologia, botânica, moral, filosofia política, direito civil ser adquiridos internamente. Pelo contrário, a sua proposta de se reforçar as
e comercial, música e desenho. No entanto, ele insistia no ensino daquelas faculdades dos ramos das ciências naturais e técnicas no ensino superior não
ciências naturais que tivessem uma relação mais directa com a vida que, na sua tiveram continuidade. Foram deixadas de lado por opções que favoreceriam
óptica, eram a aritmética, álgebra, trigonometria, geometria. Estas disciplinas formações mais baixas e mais dirigidas para artes e ofícios.

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2. Edward Wümot Blyden experiência racial nos Estados Unidos, ele desenvolveu as suas ide ias de «re-
vitalização culhlral» dos africanos. Assim, ele concebe como seu objectivo de
o nome de Blyden é raras vezes associado às teorias de educação. Muitas vida mobilizar o maior número possível de negros para regressarem à Libéria
vezes é referido nos livros de História de África em geral porque as suas ideias e, a partir daqui, espalhar a mensagem da integração assim como a consciên-
sobre a educação eram por ele concebidas no contexto mais vasto da luta pela cia para o pan-americanismo para o resto da África. B1yden pensava, assim,
reconquista da dignidade e História dos africanos. Ele via na educação não um iniciar um movimento de fortalecimento cultural dos africanos que os iria
fim em si, mas um instrumento importante Qunto ao missionarismo) que foi devolver o lugar que merecem na cultura universal. Estas suas ideias foram
usado pelo colonialismo para transmitir o sentimento de inferioridade no afri- postas num memorável artigo escrito e publicado em 1857 na Monróvia com
cano, mas também simultaneamente um instrumento de libertação do negro. o título A Vendicatiol1 ofNegro Race.
Blyden nasceu na Ilha caraíbica de St. Thomas em Agosto de 1832. Na Dado o fàcto de, por algum tempo, ter sido secretário de Estado no Go-
altura, a ilha estava sob o domínio dinamarquês. Foi filho de parentes que verno da Libéria, Blyden teve ocasião de, naquela qualidade ou mesmo por
eram possivelmente puros descendentes dos Ibos. A expressão «puros» pre- iniciativa própria, fazer várias viagens para o interior da Libéria onde estabe-
tende sublinhar que, contrariamente aos outros regressados das Américas que leceu muitos contactos com as populações locais. Estes contactos foram im-
na maioria eram mulatos, Blyden era puramente negro, facto significante para portantes para que ele tivesse uma imagem objectiva de todo o país, sobretudo
as suas ideias não muito amáveis em relação àqueles a quem ele considerava no que diz respeito aos povos islamizados que habitavam o interior. Também
terem «sangue misturado». Também este facto o inspirava pessoalmente para fez uma viagem com objectivo autodidacta ao Egipto (para conhecer uma das
se sentir o verdadeiro porta-voz dos povos africanos. A mãe era professora e culhlras mais antigas da História), ao Líbano e à Síria (para se esclarecer a si
o pai alfaiate. Um seu tutor - um branco americano de nome John P. Knox, próprio sobre a relação entre o islão e o cristianismo). Com este último objec-
pastor na Igreja Reformada holandesa - tentou patrocinar os seus estudos teo- tivo chegou a aprender árabe, mais tarde insistindo na sua introdução como
lógicos nos Estados Unidos. No entanto, as (três) tentativas para se matricular disciplina na Liberia College.
em 1850 foram todas recusadas por razões que se prendiam com a sua raça Devido a uma situação política turbulenta na Libéria, B1yden é obriga-
negra. Revoltado por esta discriminação, Blyden tenta voltar para a sua terra do a permanecer a partir de 1871 na Serra Leoa. Aqui ele funda o jornal lhe
natal. Em vez disso, ele aceita uma viagem de barco gratuita de «regresso» Negro cujo objectivo era o de lutar contra a superioridade racial do branco.
à África (para Libéria, que em 1847 se torna uma República independente Nesta «luta» ele dava particular enfoque ao domínio de missionários brancos
dirigida por afro-americanos) patrocinada pela New York Colonization Society, no seio das Igrejas. Entretanto, regressa a Libéria em 1873 onde retoma vá-
um ramo da American Colonization Society, uma organização que incentivava rias funções, entre as quais as de director do Liberia College (posição pela qual
o movimento de regresso. ele lutou para diminuir a influência da classe mestiça na direcção da escola),
B1yden chega a Monróvia em 1851 onde se matricula na Alexander High ministro do Interior e secretário do Estado para Assuntos da Educação. Em
School. Nesta escola ele aprende Latim, Grego, Geografia e Matemática. Mais 1885 chegou a candidatar-se, sem sucesso, ao cargo de Presidente da Repú-
tarde (1858), viria a ser ordenado pastor presbiteriano e, ao mesmo tempo, blica. Morreu em Fevereiro de 1912 em Serra Leoa.
torna-se director daquele estabelecimento de ensino. Durante dez anos - de As preocupações básicas de Blyden circunscreviam-se ao seguinte: Como
1861 a 1871 - ele ensina línguas clássicas (Latim e Grego) no novo colégio combater o mito da superioridade europeia perante os africanos? Como trans-
na Libéria. Foi durante este tempo que, confrontando-se com a influência formar a África Negra numa região importante e respeitada na comunidade
missionária cristã-ocidental, com a situação política na Libéria, com a sua das nações do mundo? Como melhorar a condição de existência dos africanos

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José P Castiano • Sevel-ino E, A Mal-cha duma «Educação pai-a Todos» em i"loçambique

do seu tempo e do futuro? B1yden passou quase toda a sua vida e despendeu a é Deus; (2) a igualdade e particularidade de cada cultura, ou seja, cada cultura
sua energia física e intelectual buscando respostas a estas questões. Para isso, é de natureza única e tem uma contribuição específica para a cultura univer-
servia-lhe de referência tanto as suas amargas experiências na sua passagem sal; (3) a complementaridade, o que significa que cada cultura contribui para a
por América, assim como a grande diferenciação social que constatou na Li- cultura universal com os elementos e os aspectos que faltam noutras culturas.
béria, cuja base de separação era a cor da pele. Ele não podia alhear-se a esta Vista a coisa desta maneira, podemos compreender a posição de Blyden
realidade que o impulsionou para aquilo que se considera a «filosofia da africa- ao defender que a cada cultura deveria ser dada a oportunidade de se desen-
nidade total» porque no centro das suas reflexões estava a condição do negro e volver separadamente sem a influência negativa de outras, numa clara alusão
o que poderia ser a sua contribuição para o mundo (Akimpelu 1993,93). à influência (para ele negativa) da cultura europeia sobre as culturas africanas.
Para Blyden estava claro: os europeus eram diferentes dos africanos. Eles Para Blyden estava claro que a educação colonial e as actividades missioná-
são duros, individualistas, competitivos e combativos. A sociedade europeia é rias foram os meios para influenciar negativamente, senão mesmo destmir as
materialista e a veneração que desenvolveu pela ciência e pela indústria fê-la culturas locais africanas. De facto, a racionalidade das missões europeias na
esquecer Deus. Pelo contrário, os africanos são, por natureza, amenos, cari- época de B1yden era «civilizar» os povos indígenas, isto é, substituir os aspec-
nhosos, prontos para prestar serviços. Blyden negava, assim, que existissem tos e crenças religiosas locais existentes por uma religião considerada a mais
raças superiores a outras. No seu entender, todas as raças e culturas teriam o civilizada. A confiança dos africanos nos seus próprios valores religiosos e
mesmo valor, mas não as mesmas características. Ou seja: às teorias racistas culturas foi ficando cada vez mais minada; a educação foi o instmmento mais
baseadas em «estudos científicos antropológicos» que defendiam a superiori- poderoso neste processo.
dade da raça branca ele negava que houvesse tal hierarquia, mas mantinha a Como quase todos os africanistas, Blyden começa por criticar aspectos
ideia da existência de diferenças básicas de carácter entre as raças. As diferen- da educação colonial, especialmente nos moldes do cristianismo. O problema
ças entre as culturas são assumidas por Blyden não como algo acidentais, mas não estava na educação em si, mas na influência externa de que ela padecia. O
como desígnios divinos para que as culturas possam ser complementares: o resultado daquela educação era uma criança que, na óptica de B1yden, era me-
que uma cultura precisar (porque tem em falta), poderá encontrar numa ou- tade europeia e metade africana, uma criança em dois mundos. Isto contraria
tra. No entanto, há uma espécie de «unidade essencial» de todas as culturas, e o objectivo mais sagrado de qualquer educação que é o de formar nas pessoas
Deus é o obreiro desta «cultura universal». aquelas qualidades que lhes permitam mais tarde uma óptima inserção na sua
Mas se todas as culturas são uma e a mesma coisa, isso não significa própria sociedade e cultura.
que todas as raças contribuem da mesma forma e com os mesmos elementos Não admira, pois, que a primeira ideia de B1yden foi repensar no currí-
para a «cultura universal», ou que todas elas devem usar os mesmos métodos culo para que fosse mais relevante para a sociedade africana. Assim, ele pro-
e as mesmas instituições para contribuir para aquela cultura. A natureza das punha a introdução de disciplinas como Leis e Costumes Indígenas, Religiões
capacidades da humanidade difere de modo que o caminho para o progresso Africanas, Sistemas Políticos Indígenas, Música Africana, Mitologia Africa-
total da humanidade não é o mesmo para todas as culturas. É nesta senda de na, assim como História, Geografia, Geologia e Botânica de África. A disci-
pensamento que B1yden opinava que os africanos deveriam encontrar o seu plina de História interessou B1yden em particular. Ele via nela uma forma de
próprio caminho e o seu método. Este é o grande problema que Blyden en- defender a cultura africana contra a ideia de que a África não teria História e
frenta e a educação seria o caminho para tal, tanto para os jovens assim como nem cultura. Assim, ele insistia que os programas escolares deveriam enfati-
para os adultos. Assim, falamos de três princípios que caracterizam a filosofia zar mais a História da Antiguidade assim como as Línguas Clássicas porque
africanista de B1yden: (1) Unidade de todas as culturas numa só, cujo centro aí não há nenhuma intencionalidade discriminatória para com os africanos.

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Estas atitudes começam com a História Moderna que deveria ser desasso- contexto, ele opunha-se, por exemplo, a que os africanos fossem estudar na
ciada dos gregos e romanos. Na História Moderna, pois, começa a ideia de Europa por várias razões: as diferenças de temperatura poderiam afectar a sua
inferioridade do negro, sobretudo quando ele é levado para as Américas como saúde e desempenho, os estragos que essa saída poderia trazer para a «alma»
escravo. Na óptica de B1yden, a forma como esta matéria é tratada nas escolas do negro ao receber uma educação estranha, etc. Mas, entre outras conse-
teria efeitos muito negativos no orgulho dos estudantes africanos para com o quências, ele destacava a de aquela educação (no exterior) não ir ao encontro
seu próprio passado. das necessidades das sociedades africanas. Por isso é que ele, numa série de
N estas circunstâncias, dois passos seriam tomados por Blyden: primeiro artigos publicados, defendia fortemente a fundação de instituições do ensi-
- trata-se de uma inovação de B1yden no âmbito do currículo - foi introduzir no superior, nomeadamente uma Universidade da África Ocidental na Serra
o Árabe e algumas línguas africanas no ensino. O segundo passo seria o de Leoa e um Instituto Industrial em Lagos. Convém acrescentar que, em vida,
secularizar o ensino. B1yden nunca chegou a ver estas instituições fundadas, se excluirmos a ele-
Com a introdução destas línguas ele pretendia estimular uma comunica- vação do Fourah Bay College a uma delegação de uma universidade inglesa,
ção «inteligente» com milhões de pessoas vivendo no interior e aprender mais como veremos adiante. Só após a sua morte é que, por exemplo, se fundou um
das culturas africanas. Efectivamente, no interior da Libéria viviam milhões colégio superior na Nigéria. Mas «africanizar» a escola para Blyden significava
de africanos que professavam a religião muçulmana e mantinham também as também pôr nativos à frente das instituições e a ensinar no lugar de crioulos ou
instituições correspondentes. O contacto com estas pessoas, sobretudo com missionários brancos.
os estudiosos desta religião, só podia ser frutífero através da sua língua. Assim B1yden estava também preocupado em desenvolver um sistema do Ensi-
que teve a oportunidade oferecida pela sua posição como director da Ale- no Superior porque isso fazia parte da sua grande estratégia africanística: ele
xander High School, introduziu a língua árabe e o islão como disciplinas em reconhecia que este nível de ensino poderia mais rapidamente providenciar
1858. Ele próprio ensinava árabe aos cristãos e inglês aos árabes como uma uma liderança africana intelectual e iluminada e que poderia influenciar mais
forma de promover a compreensão mútua. Ele também convidou muitos sá- rapidamente os outros níveis de educação. E, desta forma, reagir mais rápida
bios islâmicos (ulamas) como professores visitantes. Essas sua iniciativas, que e eficientemente contra o processo de destruição da personalidade africana
hoje poderíamos chamar de «diálogo intercultural», valeram-lhe o posto no perpetrada diariamente pelo tipo de educação ocidental. As iniciativas de Bly-
governo de Lagos para os Assuntos Nativos assim como, quase que simul- den para fundar uma universidade começaram em 1872 (um ano depois de
taneamente, de director para a educação islâmica na Serra Leoa entre 1901 Horton ter desistido da ideia) quando, por carta e usando o jornal lhe Negro
e 1907. B1yden pôde entrar para a História da educação não só como um para fazer chegar as suas ideias à elite intelectual africana e inglesa, começa
teórico do multiculturalismo, mas também como uma pessoa que, na prática, a tentar convencer William Grant - um comerciante rico, influente e mem-
procurou implementar as suas ide ias ao tentar integrar os dois sistemas num bro do parlamento na Serra Leoa - a apoiar esta sua ide ia. No mesmo ano,
só. A introdução do árabe como disciplina numa escola oficial e o convite de ele elabora uma proposta mais consistente dirigida ao Governador J. Pope-
ulamas para professarem naquelas escolas tornava-se o símbolo da tentativa de -Hanessey (conhecido pelas suas posições pró-africanas) em que justificava
aproximação e diálogo entre culturas diferentes. a sua ide ia a partir da necessidade de formar quadros africanos capazes de
Embora importante, para Blyden não bastava pensar na dimensão dos assumir a administração do país. No entanto, a ideia não foi aprovada pelo
conteúdos a ensinar nas escolas. Ele achava que seria necessário fundar um Governo Colonial. Melhor, foi aprovada na condição de os africanos (crioulos)
novo tipo de instituições ou estabelecimentos escolares, isto é, que fossem autofinanciarem uma instituição daquele género. Pelos vistos, estes não esta-
não só secularizados mas também e sobretudo mais «africanizados». Neste vam financeiramente preparados, nem politicamente maduros para tal empre-

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Mar-cha duma «Educação para Todos» em i"1oçambique

endimento. «Politicamente» porque havia no seio dos crioulos influentes uma O conselho da administração da escola tinha sido bem fixado: devia
certa divergência de opiniões quanto à natureza da instituição, particularmente contemplar três representantes europeus e doze africanos. Para demonstrar
entre os comerciantes e uma ala missionária católica chefiada pelo pastor James a sua vontade de abrir uma escola do género, os africanos deveriam estar em
Johnston (um outro influente pensador da educação, contemporâneo de Bly- condições de a autofinanciar. Começou uma campanha de reuniões e artigos
den). No meio de tudo isto foi possível chegar-se a um compromisso: o Fourah nos jornais para angariar os fundos necessários para tal empreendimento. A
Bay College seria filiado à universidade inglesa de Durham e seria aberta para soma inicial necessária estava calculada em 1.000 libras esterlinas. De facto,
todas as confissões religiosas, portanto não só católica. Pelo menos assim se para além das razões apontadas acima para o caso da universidade, esta soma
abriam «estudos universitários» (como foi o caso de Moçambique em 1962) e não foi conseguida porque ainda não estava presente a prontidão para finan-
se dava um passo na «secularização» do ensino no sentido que B1yden entendia. ciar o início de formação profissional deste tipo de escolas: as pessoas ainda
Mas, neste contexto, a ideia de Byden de os professores para as insti- acreditavam na superioridade do modelo europeu na formação. Um outro
tuições do ensino superior virem de outras regiões africanas como Egipto, aspecto foi a falta de professores qualificados e preparados para este tipo de
Tumbucto ou Futah - porque assim se corrigiriam as falácias educativas do escolas alternativas. Além disso, o governo inglês só apoiou oralmente, sem,
ocidente - ficou parcialmente de lado. Só foi possível implementá-la no âm- no entanto, estar disposto a financiar e mostrou muita ambiguidade em todo
bito das suas aulas e enquanto ele esteve à frente da instituição. o processo.
Nos finais do século XIX há um debate intenso acerca da natureza da As ideias de Blyden sobre a escola influenciaram muito os debates con-
reforma. Se, por um lado, seria necessário africanizar a escola, por outro, os temporâneos e posteriores sobre a formação. Fora do que expusemos resul-
sectores comerciais exigiam uma formação mais técnico-profissionalizante. tante da sua confrontação teórica e prática (muitas vezes através do jornal lhe
Blyden, James Johnson, Mojola Agbebi e outros tentam acoplar à ideia de Negro que ele funda), tal como os seus correligionários James Johnson, Mo-
abrir uma instituição de ensino superior o início de uma formação técnico- jola Agbebi e outros, B1yden influenciou debates pedagógico afro-americanos
-profissional. O debate, que foi deveras «quente» e muito veiculado nos jor- através dos contactos que teve com Booker T. Washington que alimentava
nais e nas associações, girava em volta da Industrial Educatiol1 e havia nele uma também a ideia de Industrial Education, em contraposição com o seu contem-
crítica velada contra a educação missionária dominante na altura. Mojola, por porâneo americano William Du Bois que defendia uma formação mais geral
exemplo, falava de um tipo de educação para formar pessoas que se pudessem para os negros recém-libertados da escravatura. Efectivamente, entre 1850 e
«auto-sustentar» (Adick 1992,252). 1895, B1yden visitou oito vezes os Estados Unidos não só para angariar fun-
A estratégia do grupo foi de juntar, no mesmo colégio, as formações em dos, mas também como conferencista ou para receber diversos prémios.
humanidades e técnico-profissionais. O grupo que prepara o projecto em 1896
divide o plano em dois departamentos, nomeadamente Industrial e Literary 3. MwalimuJulius Kamabarage Nyerere
Department. O currículum para este último departamento é preparado por
B1yden e contempla Latim, Grego e Matemática como disciplinas nucleares. Nyerere (1922-1999), talvez por pertencer a uma época e região africana
Como objectivos, Blyden aponta «pensamento lógico, capacidade de formular diferentes, mas também por estar numa situação política diferente (foi pre-
juízos de valor, boa memória e disciplina na aprendizagem». Obviamente que sidente da República da Tanzânia), apresenta-nos pensamentos contextua-
o currículo para este departamento foi, de longe, melhor preparado que o ou- lizados e particulares sobre a educação. Também ele vê o papel da educação
tro. Mesmo assim, a formação industrial previa, para além dos cursos normais no contexto mais amplo da sua filosofia político-social baseada no socialismo
como carpintaria, serralharia, mecânica, etc., uma formação em agricultura.

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africano: tdamaa. Desta forma, ele representa um modelo de «resistência» ao política activa, acabando por retornar a Butiana, sua terra natal. Em 1990,
projecto educativo colonial e uma alternativa paradigmática àquele modelo. deixou também a direcção do partido passando a dedicar-se inteiramente ao
Nyerere nasceu a 13 de Abril de 1922 em Butiana, próximo do Lago Centro Intergovernamental do Sul, uma instituição activa nas relações entre
Victória2 • O seu pai foi chefe da tribo Zanaki. Começou a frequentar a escola o Norte e o Sul. Em 1996 mediou o conflito no Burundi. Veio a morrer num
aos 12 anos, mesmo assim debai.xo de muitas dificuldades porque teve que dos hospitais londrinos a 14 de Outubro de 1999.
caminhar diariamente cerca de 12 milhas para Musoma onde se situava a sua Nos anos 60, a Tanzânia era um dos países mais pobres do mundo: tinha
escola. Os seus estudos secundários foram feitos em Tabora, numa Escola Se- um grande peso da dívida externa, a ajuda externa estava a diminuir após a
cundária do Governo. A sua extrema inteligência foi imediatamente reconhe- Independência e sofreu um grande aumento dos preços. Esta situação fez com
cida pelos padres católicos que o ensinavam, tendo-o ajudado a matricular-se que Nyerere buscasse caminhos alternativos para tirar o seu país da miséria. É
na Universidade de Makerere em Campala (Uganda). Depois de três anos a neste contexto que surge a Declaração de Arusha, em 1967, que basicamente
trabalhar como professor, ele ingressa na Universidade de Edimburgo na In- tentava reorganizar a sociedade tanzaniana em torno das ide ias do socialismo
glaterra onde termina o seu mestrado em História e Economia Política. Nye- africano, conceito que discutiremos mais tarde.
rere foi o primeiro tanzaniano a estudar numa universidade britânica. Foi na O termo Mwalimo significa professor, um título dado inicialmente pelo
Inglaterra, durante os seus estudos, que ele começa a desenvolver a sua visão facto de ter sido professor secundário, mas também no sentido de que ele era
sobre o socialismo contextualizado na vida comunitária africana. Depois do «guia» do seu povo. Neste sentido, Nyerere pode ser considerado um filóso-
seu regresso a Tanzânia foi obrigado a escolher entre o ensino e as actividades fo que teve a «sorte» de, como Chefe de Estado, poder implementar as suas
políticas. Ele sempre defendeu que era professor por escolha e político por ideias através de programas e políticas concretas. Também deve destacar-se
acidente. Em 1954 formou a Tanganyica African National Union (TANU) a o facto de que as ide ias educacionais de Nyerere não foram expressas de uma
partir de diferentes grupos nacionalistas que, entretanto, se haviam constitu- forma sistemática. Elas foram, sim, compiladas de vários discursos e artigos
ído na Tanzânia. Foi presidente da TANU até 1977. Em 1961 a Tanzânia de ocasião. No entanto, para assuntos respectivos às suas concepções sobre
tornou-se independente e, em Dezembro de 1961, Nyerere foi eleito o seu educação, três artigos ou documentos são importantes: a Arusha Declaration,
primeiro presidente. Education for Se!fReliance e Man and Development. Nestes artigos ele especi-
Entre as qualidades pessoais de Nyerere reconhecidas por todos, avultam fica as suas concepções de desenvolvimento centrado no homem (humanis-
a sua capacidade de mobilizar diferentes grupos para uma mesma causa, a sua mo). No entanto, como compilação dos diversos artigos, podemos mencio-
integridade e as suas qualidades de orador exímio. Foram estas qualidades nar os seguintes livros da sua autoria: Freedom and Socialismo A Selection fi'om
que permitiram que a Tanzânia conquistasse a sua independência sem der- Writing and Speeches, 1965-1967 (1968), Freedom and Development, Uhuru na
rame de sangue. Em 1964 foi criada a República da Tanzânia, resultado de Maendeleo (1974), Ujamaa-Essays 071 Socialism (1977), Crusadefor Liberation
uma união com a ilha de Zanzibar. Em 1985, Nyerere desistiu de ser presi- (1979), todos publicados pela Oxford University Press.
dente, mas permaneceu presidente do partido (que, entretanto, tinha mudado Tal como Blyden, Nyerere vê na educação um instrumento de reabilita-
o nome para Chama Cha Mapinduzi). Gradualmente, foi-se retirando da vida ção social e de crítica ao sistema de valores coloniais. Ele lutou pelo reconhe-
cimento da tradição da Tanzânia através do sistema de educação. Ele percebia
a educação como um instrumento de reestruturação e reorganização social a
2 Os dados biográficos de Nyerere foram retirados do artigo Julius Nyerere, life10ng le-
partir da comunidade. A educação deveria ser organizada de acordo com os
arning anel informal education na página e1ectrónica http://www.infe1d.org!thinkers/
et-nye.htm consultada a 14/09/2003. valores culturais e de acordo com os objectivos políticos.

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José P Castiano • Sever'ino E. Ngoenha A Longa i'1ar"Cha durna «Educação para Todos» ern Moçarnbique

As ideias de Nyerere interessam-nos neste âmbito porque, como vimos, assenta pedagogicamente no facto de os talentos individuais serem diferentes.
a luta de libertação de Moçambique iniciou na Tanzânia e uma das primeiras Desta forma, Nyerere percebe o capitalismo como um sistema que reforça o
decisões políticas feitas foi sobre o papel da educação no contexto desta luta. individualismo, ao invés de o combater; promove a competição ao invés da
Por outro lado, na contingência de organizar a administração da educação nas cooperação; encoraja as desigualdades sociais ao invés de equidade; aceita,
aldeias que foram sendo libertadas do jugo colonial, os ideólogos da Frelimo enfim, a exploração do homem pelo homem, dividindo os homens de uma
tiveram certamente que «integrar» os pontos de vistas influentes de Mwali- mesma sociedade em grupos hostis e potencialmente aguerridos.
mu, embora não os adoptassem totalmente. A questão, pois, é até que ponto Ora, estes valores foram introduzidos no contexto africano na sua forma
estas ide ias influenciaram o debate por uma educação alternativa ao sistema mais selvagem. Eles são ainda mais contraproducentes e prejudiciais para uma
colonial e ainda servem de referência hoje no debate da educação para o de- sociedade tradicional que não estava preparada. O sistema educacional colo-
senvolvimento. nial reforçava estes valores, contrariando o próprio sentido original do termo
Qyais são estes objectivos sociais? Como todos, antes de tecer a sua Filo- «educar»: tal e qual ele estava montado reforçava o individualismo, a hostili-
sofia, Nyerere começa por criticar o sistema colonial estabelecido na Tanzânia dade social, desestimulava a solidariedade para com o próximo.
(Nyerere teve sempre o cuidado de se referir ao facto de que as suas ideias Pelas razões expostas, Nyerere propunha substituir o sistema capitalista
tinham como base a sua pátria e seriam lá aplicáveis). Segundo ele, o sistema colonial por um sistema novo: o socialismo. Socialismo, tal e qual como a
de educação colonial baseava-se na filosofia de liberdades individuais. Ou seja: democracia, é sobretudo uma «atitude mental» (Nyerere 1967,170). Como
olhava para os interesses e os direitos individuais como sendo superiores aos sistema está impregnado e desenvolve-se naturalmente no indivíduo em todo
da comunidade e sociedade como um todo. Daí se deduz que a missão do o processo de socialização desde a família até a sociedade mais ampla. Nyerere
Estado e do Governo é fundamentalmente a de proteger os interesses indivi- estava profundamente convencido que os africanos adquirem esta atitude (so-
duais, o que quer dizer que, sob o ponto de vista económico, o Estado deveria cialista) individualmente durante o seu crescimento normal na família, parti-
estimular e proteger a propriedade privada dos meios de produção e fàvore- cularmente na família alargada. O que chamaria de ujamaa ou o «socialismo
cer o crescimento desta mesma propriedade. Como consequência desta ideia africano» teria o seu embrião, assim, na família alargada africana, mas poderia
básica, o Estado deveria proteger e até estimular a acumulação de lucros em ser alargado a toda a sociedade tanzaniana. Os princípios básicos seriam: pri-
mãos individuais e, ao mesmo tempo, estimular o reinvestimento do capital. meiro, não haveria exploração do homem pelo homem; segundo, os recursos
Mas o ponto a que Nyerere queria chegar é o de destacar que este siste- seriam produzidos colectivamente e, por isso, distribuídos na base da justiça
ma, assim concebido, é sustentado por uma série de valores que eram contrá- social; em terceiro lugar, a sociedade seria baseada em valores de igualdade e
rios aos valores tradicionais africanos. Alguns valores seriam mesmo indese- de respeito pela dignidade humana. Cada membro da sociedade contribuiria
jáveis. O capitalismo promove, por exemplo, a competitividade, dado que os para o bem-estar da sua comunidade através do seu trabalho.
recursos são escassos e limitados. O sucesso na criação de lucros dependeria, Em relação ao primeiro princípio: segundo Nyerere, todas as sociedades
assim, da capacidade e criatividade individuais. É um sistema de luta em que africanas pré-coloniais, exceptuando naquelas poucas em que havia escrava-
cada um sobrevive na medida em que consegue expandir-se, eliminando os tura endógena, eram baseadas no trabalho de cada um para o bem comum e
outros concorrentes mais fracos. Um outro valor inerente à sociedade capita- não para obter mais lucros e nem explorar o trabalho do outro. O sistema tra-
lista seria o de «aceitar as desigualdades sociais como sendo algo natural», até dicional tinha como característica uma hospitalidade universal. Mas, no con-
ao ponto de conceber como sendo necessária ao desenvolvimento a existência texto do projecto social ujamaa, a hospitalidade tinha que ser limitada. A este
de possuidores e não-possuidores. A naturalidade das desigualdades sociais respeito, Nyerere gostava de citar o provérbio africano: «trata o visitante como

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tal durante somente dois dias; no terceiro dá-lhe uma enxada». Ele acrescen- da sociedade socialista africana existe a priori um conjunto de predisposições
tava a este provérbio que o visitante haveria de perguntar por uma enxada (hospitalidade, dignidade, humanismo, espírito de trabalho colectivo, etc.)
mesmo antes de o dono da casa sentir-se obrigado a oferecer-lhe uma porque que fàcilitam a vida democrática. Não seria, pois, por acaso que, nas aldeias
ele estaria consciente das expectativas que se tinham dele como visitante. De africanas, os mais velhos nas famílias estão sempre dispostos a resolver os
facto, o visitante não esperaria passar pela vergonha de não ter perguntado problemas individuais e da comunidade. Também é notável a sua disposição
pela eru::ada (Nyerere 1967:165). Portanto, o sistema tradicional não tolerava de se sentarem à sombra de uma árvore para discutirem qualquer questão até
preguiçosos e nem exploradores e a satisfação de cada indivíduo jazia na sua que ela seja totalmente resolvida. Nyerere baseava-se, sobretudo, nesta sua
contribuição para o bem comum. ideia de «atitude mental» democrática para justificar que, para as democracias
Qyanto ao segundo princípio: o sistema tradicional do socialismo afri- africanas, um sistema de (dois) partidos não é fundamental. A democracia
cano é superior ao capitalismo em vários aspectos, sendo fundamental o facto africana é, na essência, monopartidária.
de ele basear-se numa distribuição equitativa do bem-estar e o princípio da O centro da Filosofia social de Nyerere é ocupado pelo conceito de self-
sua organização social basear-se nas necessidades dos seus membros e não na -reliance o que significa «auto-confiança», «autonomia», «auto-suficiência».
mais-valia. Para além disso, ele garante a segurança individual e colectiva, não Este conceito parte da análise que Nyerere faz da situação eco nó mica da Tan-
só em vida, mas também depois da morte as pessoas continuam a fazer parte zânia e dos países do terceiro mundo em geral. A preocupação de Nyerere
da comunidade. Porque o socialismo africano se baseava na redistribuição do era conceber caminhos para o desenvolvimento destes povos. Assim, Nyerere
bem-estar na base da justiça social, nenhum membro poderia morrer à fome constrói a sua ideia: para o desenvolvimento precisamos de duas coisas, o di-
e todos eram dignos de si mesmos. A sociedade encarregava-se naturalmente nheiro e as pessoas (recursos materiais e humanos). A Tanzânia, estava claro
de oferecer a cada um uma base de vida condigna. para ele, não possuía recursos financeiros o que significava que devia confiar
Em relação ao terceiro princípio - o da igualdade e respeito pela digni- no segundo facto r - as pessoas. Seria, pois, fatal para o desenvolvimento se a
dade de cada um - Nyerere derivava-o dos anteriores: cada pessoa só podia Tanzânia começasse a pensar no desenvolvimento contando com os recursos
manter a sua dignidade se desse à comunidade aquilo que pode e pedisse dela que tivessem que vir do exterior porque estes poderiam esgotar-se. Mesmo
somente aquilo de que necessitasse. Este era o princípio básico para que cada que não se esgotassem, o povo pagaria caro porque teria de ceder em mui-
um mantivesse a sua auto-estima e não estivesse volúvel à falta de respeito por tos aspectos da sua independência política. Haveria interferência externa nos
parte dos outros. Como vemos, este princípio trata da dimensão axiológica do direitos fundamentais da liberdade de se determinar o caminho do desen-
ujamaa onde se superpontua a dignidade, o auto-respeito, a humildade e o volvimento. A ajuda externa tinha, para Nyerere, uma fórmula muito clara:
humanismo como valores básicos do socialismo africano. «viva agora e pague depois». Assim, estraga-se a vida das futuras gerações.
O que é importante e inovador em Nyerere é o facto de, por um lado, ter Nyerere era também contra os investimentos porque estes poriam a economia
justificado o «socialismo africano» a partir de uma base tradicional africana e em mãos estrangeiras.
ter estendido esta percepção ao ponto de formular uma espécie de Filosofia lVIas havia algo mais importante (para além das razões políticas e econó-
Social; mas, por outro - e isto é importante para o seu ponto de partida edu- micas) pelo qual Nyerere rejeitava a ajuda externa só como princípio e adop-
cacional -, o de ter fundamentado que os princípio democráticos são, antes tava a política de se!:freliance. A razão é que a ideia de desenvolvimento do
de mais, uma atitude mental (digamos, em contraposição a ser primeiramente homem ou de uma nação não pode ser para o homem ou nação: só pode ser
um sistema). Esta atitude mental democrática é inculcada naturalmente a to- feita pelo próprio homem ou pela própria nação. Este é o tema principal do
dos os membros da sociedade tradicional africana. Ou seja, em cada membro seu artigo Man and Development. Aqui (p.27) ele escreve:

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«People cannot be developed; they can only develop themselves. For de educação para os adultos. Na óptica de Nyerere isto haveria de permitir
while, it is possible for an outsider to build a man's house, an outsider ter retornos económicos mais imediatos. As crianças não teriam um impacto
cannot give the man pride and self-confidence in himself as a human imediato (cinco ou seis anos) na produção. Primeiro deveriam educar-se os
being. Those things a man has to create in himself by his own actions. adultos porque a sua atitude tem impacto imediato não só na produção como
He develops himself by what he does, he develops himself by making na educação das próprias crianças. Não foi por acaso que, pela primeira vez,
his own decisions, by increasing understanding of what he is doing, a educação dos adultos passou a constituir uma parte do sistema de educa-
and why; by increasing his own knowledge and ability, and his own full ção com igual prioridade que o sistema de educação formal mais dedicado às
participation - as an equal - in the life of the community he lives in».3 crianças. Este foi um passo firme para uma «educação para todos» levada às
suas últimas consequências.
Esta citação demonstra que o princípio de se!l-reliance tem um funda- Nyerere via o tipo de educação colonial herdado como próprio para o
mento muito mais ético que o político e o económico, ou seja, ele funda- sistema capitalista. Portanto, ele não integrava as pessoas que formava na so-
menta-se nos valores de «auto-respeito» e de «autoconfiança» que tanto cada ciedade. A própria escola não fazia parte da sociedade. As crianças, depois de
indivíduo como uma sociedade inteira deverão ter como condição para se de- frequentarem a escola, não conseguiam inserir-se como agricultores na pró-
senvolverem. No entanto, é necessário não sobrepor este princípio à negação pria aldeia onde nasceram e cresceram. Particularmente as escolas secundá-
total da ajuda externa. O ponto de Nyerere é o de querer mostrar que qual- rias, com o seu sistema de internatos, separavam deliberadamente a juventude
quer ajuda externa, se pretende ser no sentido de desenvolvimento, deve ser da sua realidade sócio-económica. O ensino universitário só servia para dar
feita nos moldes do respeito pela autonomia e consciência das pessoas de uma certificados e/ou diplomas aos estudantes, o que lhes dava acesso automático a
determinada sociedade. A este ponto não seria demais repetir o pensamento salários atractivos e um estatuto social. Pelo seu conteúdo e métodos, o ensino
de Nyerere de que as pessoas não são desenvolvidas, elas desenvolvem-se a si universitário estava mais dirigido para o Mercado de trabalho internacional
mesmas. A Declaração de Arusha é um sumário extraordinário destas ide ias que para o nacional.
de Nyerere. Da mesma forma, o currículo da escola colonial baseava-se na aprendiza-
Naturalmente que a educação era considerada crucial para a Filosofia gem por meio dos livros. O sistema de educação cria a impressão de que o ver-
da SelJ-Reliance. Para pôr a educação ao serviço desta filosofia, havia que dadeiro conhecimento é aquele que é adquirido dos livros ou de pessoas com
reformular não só o sistema de educação formal. Este teria efeitos a longo uma formação académica superior. Consequentemente, os conhecimentos e
prazo. Paralelamente, tornava-se também necessário estender as actividade saberes das pessoas comuns e velhas nas aldeias eram considerados de segunda
classe. Assim, o acesso ao emprego e às posições sociais mais vantajosas não se
.1 "Pessoas não podem ser desenvolvidas; elas só se podem desenvohJer por si mesmas. Por efectua na base de competências e atitudes comprovadas, mas sim na base dos
algum tempo é possível para um estranho construir uma casa para o outro homem, (mas) graus académicos ou do diploma. O próprio governo estimulava esta situação
um estranho não pode dar ao outro homem o orgulho e a autocol'ifiança em si mesmo como ao fazer do diploma condição de acesso a certas funções, em detrimento do
ser humano. Estas coisas devem ser criadas por si mesmo através das sum próprias acções. desempenho das pessoas. Os diplomas só são comprovativos das habilidades
Ele desenvolve-se por si mesmo através do quefilz, ele desencuolve-se a si mesmo através da
académicas, mas não dizem muito das capacidades práticas e nem das atitudes
tomada de decisões por si mesmo, através do aumento da sua própria compreemão do que
perante o trabalho.
ele está a fozer, e porque está a finer; atra'ués do aumento do seu próprio conhecimento e
habilidades, e através da sua própria participação - como um igual aos outros - na vida da
Ora, este diagnóstico do sistema de educação colonial que Nyerere pro-
comunidade em que ele vi've» (tradução livre dos autores). porciona seria o ponto de partida para repensar o novo sistema tanzaniano,

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José P. Castiallo • Severino E. Ngoellha A LOllga Marcha duma «Educação par'a Todos» em Moçambique

baseado na ide ia do sel-reliance. C2.11ais seriam os objectivos de uma tal educa- que estariam a sair para o mercado de trabalho, e não por aqueles que teriam
ção? Ela deveria inculcar e recalcar os valores do socialismo africanos, nome- feito o ensino superior. Esta inovação parece-nos interessante porque, o que é
adamente a igualdade, o cooperativismo, a autoconfiança e o humanismo. A prática é que sejam as universidades ou os quadros superiores afectos aos mi-
educação teria a função de desenvolver um espírito de solidariedade colectiva nistérios de educação a desenharem os currícula para o ensino secundário. No
em todas as pessoas e um senso de cometimento à comunidade inteira. Os geral, Nyerere insistia na ideia de que os estudantes que conseguissem seguir
alunos deveriam aprender na escola a ligar o trabalho prático ao trabalho inte- para o ensino secundário e universitário, deveriam ver isto como um privilégio
lectual. Deviam, sobretudo, aprender a respeitar o trabalho manual e prático. para servir as suas comunidades e não como um mérito pessoal.
Aqui a ideia de Nyerere era que os alunos pudessem estar em condições de ir C2.11ando à organização escolar, Nyerere propunha uma viragem total na
trabalhar num meio rural, e não estudarem para olharem para um emprego maneira de conceber a escola: ela deveria ser organizada como uma ujamaa,
bem remunerado nas cidades, Além disso, deviam saber que o conhecimen- ou seja, uma comunidade institucional que visasse o autodesenvolvimento e
to ou os saberes não se medem pelo facto de provirem de livros ou de uma onde os membros da comunidade seriam os professores e alunos. No fundo, o
pessoa que é académica. Há muitos saberes que estão depositados em pessoas que Nyerere queria propor é que a escola combinasse as funções de aprendiza-
que não foram à escola, mas que também merecem ser respeitadas. Enfim, a gem com as de produção para contrapor o ensino colonial que, na sua óptica
educação deverá ter como objectivo produzir um cidadão crítico, que pense e como vimos, tendia mais a separar os alunos das suas comunidades. Assim,
autonomamente, capaz de produzir juízos de valores e com capacidade de devia fazer-se de cada escola uma farm ou então uma oficina de trabalhos
viver e produzir nas aldeias e comunidades. manuais, cujos resultados de produção haveriam de ser vendidos e os lucros
Para que se alcancem os objectivos acima referidos, dever-se-ia, no en- reverteriam para a escola. O próprio horário escolar deveria submeter-se às
tender de Nyerere, fazer uma reforma profunda no sistema de educação vi- necessidades do ciclo agrícola. Haveriam, pois, momentos em que os alunos
gente nos termos de idade de entrada, dos conteúdos programáticos, da orga- seriam alternativamente dispensados para irem participar em campanhas agrí-
nização escolar e do sistema de exames. colas em estações, por exemplo, de colheitas.
Em relação à idade de escolarização no nível primário devia-se passar Esta ideia de juntar a teoria a prática foi muito advogada pela FRELI-
dos na altura cinco a seis anos para os sete ou oito anos. Na ideia de Nyerere, MO, como vimos no capítulo da História da Educação em Moçambique. De
as crianças entrariam para a escola mais maduros, mas, o mais importante, facto, tanto Nyerere como a FRELIMO nas suas escolas, tentavam responder
terminariam a sétima classe com uma idade entre os 14 e 15 anos, que lhes ao problema da baixa produção e não se poderiam dar ao luxo de, em nome da
permitiria entrar imediatamente para o mercado do trabalho. Esta mudança, modernidade, dispensar a força de trabalho proveniente dos alunos.
portanto, era em função do mercado de emprego. O exercício da democracia deveria começar nas escolas. Nyerere defende
No que diz respeito ao currículo, a grande inovação de Nyerere é a de que qualquer decisão que diz respeito aos assuntos escolares, deveria ser toma-
concebê-lo de uma forma terminal. Na perspectiva de o ensino primário da pela «comunidade» escolar por meio de mecanismos democráticos. A ajuda
não ser concebido em função da sua preparação e continuidade para o en- do governo seria mínima e só em caso de ter sido comprovada a sua extrema
sino secundário, o conteúdo deveria ser o mais prático possível de modo a necessidade.
que, depois de terminada a sétima classe, fosse possível o emprego ou o auto- C2.11anto ao sistema de exames, Nyerere propunha que o teste escrito fosse
-emprego dos graduados. Só muito poucos é que haveriam de continuar no combinado com provas práticas de agricultura ou outros trabalhos. Ambos te-
ensino secundário. Para o nível do secundário, o currículo ou os conteúdos riam o mesmo peso para seleccionar as pessoas que seguiriam para os ensinos
de aprendizagem seriam determinados a partir das necessidades das pessoas primário e secundário.

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José P Castiano • Sevel"ino E. Ngoenha A Longa Minha duma «Educação pal"a lodos» em Moçambique

É evidente que as ideias de Nyerere constituem uma continuidade das posições comuns, principalmente no que diz respeito a aspectos económicos,
ide ias de B1yden e, em muitos aspectos, são mais avançadas. Em comum te- à administração territorial das fronteiras, à migração das populações ou mes-
riam a preocupação de conceber um sistema de educação que se adaptasse ao mo à resolução de conflitos (como o de Burundi, Congo e Zimbabwe, só para
contexto africano, ou seja, um sistema africanizado. A grande diferença é que, focar alguns exemplos recentes).
enquanto Blyden via na educação uma fase de preparação para a recuperação A quarta razão é que o «quartel general» da Nova Parceria para o De-
da dignidade africana e para o desenvolvimento, Nyerere vê a mesma educa- senvolvimento da África (NEPAD), particularmente para a área de Recur-
ção como um processo de desenvolvimento e contextualiza o desenvolvimento sos Humanos e Educação se encontra na África do Sul. Isto significa que os
em comunidades e numa nação concreta. programas de desenvolvimento, as estratégias de implementação, a definição
de elementos macro-políticos da educação, os fundos de financiamento para
4. África do Sul: do Bantu Education Act (1953) ao National a pesquisa, etc. serão de certa forma desenhados por uma grande massa inte-
lectual e burocrática situada naquele país e que, por esta via, será influenciada
Education Policy Act (1996)
pelos debates educacionais naquele território vizinho.
Por fim, embora de nenhuma forma seja a última razão, quando em .Mo-
o estudo do caso da transformação da educação na África do Sul tem um
çambique se introduzem experiências para o Ensino Bilíngue, uma das fontes
interesse particular para o caso moçambicano. Este interesse resulta de várias
para o material didáctico (textos de apoio, livros, professores, etc.) foi a África
razões.
do Sul dado que lá existe já uma tradição enraizada (pelo Bantu Education) de
Em primeiro lugar é o facto de ser um vizinho dos mais poderosos eco-
ensino em línguas maternas. Por esta via, não só penetravam em Moçambique
nomicamente. Isto faz, queiramos ou não, com que qualquer transformação na
os conteúdos, mas também as formas de encarar a educação e as metodologias
terra do rand tenha um impacto mais ou menos directo em Moçambique. Só
de ensino praticadas naquela terra influenciam os seus colegas moçambicanos
pelo facto de muitos moçambicanos presentemente continuarem ou mesmo
que embarcam pela primeira vez nesta área de ensino em línguas maternas.
começarem a frequentar a escola na RSA, especialmente na zona de Joanes-
Mas há uma razão mais interessante porque é comparativa aos dois
burgo, pode influenciar bastante no pensamento sobre a equivalência e a es-
processos de educação: enquanto em Moçambique durante o colonialismo
trutura da educação em Moçambique. Qyando muitas vezes, no debate sobre
a política de educação primava pelo assimilacionismo dos negros africanos
a reforma do sistema actual se argumenta na necessidade de «adequar o nosso
(segregando quase que indirectamente), na vizinha África do Sul o regime do
sistema ao da região», o termo região para muitos significa a África do Sul.
apartheid implantou uma política de segregação baseada em leis separatistas.
Em segundo lugar, há afinidades culturais e históricas que nos ligam
Daí que a educação dos negros tenha estado sob a égide de um departamento
àquela terra: há muitas línguas do Sul que são também faladas na África do
próprio e se ensinava nas línguas faladas pelos africanos o que, de certa for-
Sul; os laços foram-se cimentando com a longa história do trabalho migra-
ma, possibilitou o desenvolvimento não só da fala, mas também de uma certa
tório de moçambicanos para a África do Sul e, nos últimos anos, tem havido
competência na escrita em línguas africanas. Mesmo depois da independência
uma miscigenação linguística e social intensa. Na zona de Nelspruit o mo-
de Moçambique, como já se fez notar, apesar de se ter adoptado uma política
çambicano quase que já não é tratado como «Makwerekwere» como o estran-
educacionallinguística em que o português se torna a única língua de ensino
geiro africano é popularmente denominado.
(embora alguns autores moçambicanos [Balegamire, Dhorsan e Tembe 2003]
A terceira razão pode ser política e estratégica: Moçambique e África do
vejam esta adopção no sentido de ter «dividido» a sociedade moçambicana em
Sul fazem parte do SADC e, neste âmbito, os seus dirigentes têm concertado
uma minoria urbana falante do português e outra maioria rural falante de lín-

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José P Castiano • Sevel-ino E. A Longa I"lal·cha duma «Educação pai-a Todos» em IVln,,"rYlhlnl

guas locais), prevalece como espírito da educação a unidade linguística do ter- do Sul (tal como em Moçambique), os missionários vinham de diferentes pa-
ritório nacional. O mais interessante em termos comparativos sucede quando íses tais como Inglaterra, Alemanha, França, Noruega e Suíça, representando,
a África do Sul se torna livre do regime do apartheid: Abole-se a educação se- assim, grupos diferentes de missões (metodistas, católicos romanos, congre-
paratista e assume-se a unidade da «Nação Arco-Íris» - como Mandela gosta gacionistas, luteranos, anglicanos, presbiterianos, etc.). As primeiras missões
de a chamar. Portanto, a luta pela igualdade social arrasta consigo a necessi- surgiram no Cabo e no Natal donde se espalharam para o interior. Embora
dade de um sistema de educação unificado, culminando com o que se con- fossem diferentes, elas no entanto, tinham um objectivo comum: divulgar a
vencionou chamar «Currículo 2005» (entretanto estendido para «Currículo mensagem cristã entre os negros africanos. Este objectivo comum levou a
2010», mas também conhecido por OBE [Outcomes-based EducationJ) , como que, praticamente, onde fosse instalada uma igreja também era instalada uma
se descreve a seguir. Moçambique, por seu turno, luta por uma «diversifica- escola missionária para os negros. As escolas estavam, portanto, subordinadas
ção» do currículo, o que, em termos práticos, significa recomeçar a ensinar nas ao objectivo missionário.
línguas maternas e atender aos aspectos culturais locais, como se pode avaliar Segundo Pam Christie (1991,72), no seu livro lhe Right to Learn, as es-
na Reforma Curricular para o Ensino Básico. Estaremos perante processos colas missionárias levaram a cabo três diferentes actividades: (i) ensinavam
históricos contrários na educação? O que significa, no entanto, se assim for, rudimentos de escrita e leitura juntamente com a doutrina cristã, usando a Bí-
«harmonização» da educação com os países vizinhos? Ou seja, há uma gama blia como livro de leitura e cantando músicas religiosas. A educação básica era
de processos e assuntos paralelos e contraditórios no processo sul-africano e instrumento de conversão para a religião; (ii) ao mesmo tempo as pessoas re-
moçambicano que se influenciam mutuamente. Estas e outras razões, que não cebiam um treinamento em trabalhos práticos manuais procurando, com isto,
interessa alongar no âmbito deste livro, justificam que nos dediquemos mais inculcar o valor de «afinco e disciplina no trabalho» nos negros. Este ensino
profundamente à compreensão do processo sul-africano na educação. prático era também uma forma de se sustentarem as missões e as actividades
O termo 'Bantu' estava política e ideologicamente carregado, tal e qual da própria igreja no geral, pois alguns negros trabalhavam nas fàrms, outros
ele foi usado para classificar a Bantu Education. Tal e qual como descreve- aprendiam ofícios de carpintaria, ourivesaria, construtores de casas, etc. ;(iii)
mos o sistema de educação em Moçambique no tempo colonial, o sistema do os missionários precisavam dos negros para os ajudarem na sua missão de
apartheid na África do Sul desenhou a Bantu Education especialmente para os evangelização. Para isso formavam catequistas, mas também professores que
negros, no quadro da sua política separatista, vulgarmente conhecida por apar- organizavam serviços nas capelas ou ensinavam os seus compatriotas a ler e a
theid. Esta política foi oficialmente estabelecida em 1948, mas viria a ser con- escrever, utilizando o catecismo e a Bíblia.
cretizada para o sector da educação através do Bantu Education Act em 1953. As escolas missionárias ofereciam, no entanto, currículo diferente, o que,
Não era, no entanto, por puro altruísmo que o regime minoritário se de certa forma, ditava uma qualidade diferente. Algumas seguiam o mode-
preocupava pela educação dos negros. Antes do Bantu Education Act, 90% das lo mais europeu, incluindo no seu currículo, portanto, Latim e Grego como
escolas que eram frequentadas pelos negros pertenciam às missões. Os missio- disciplinas. Estes acreditavam que não deveria haver uma diferenciação entre
nários tinham interesses em abrir escolas. Alguns destes interesses eram com- os negros e os brancos quanto ao grau académico. Outros entravam na linha
patíveis tanto com os farmeiros (ensinavam que o afinco ao trabalho era bom) da «africanização» dos conteúdos, isto é, defendendo a contextualização da
assim como com o governo (ensinavam a obediência e docilidade), mas havia aprendizagem ao incluírem valores locais e ensinando nas línguas locais. Ha-
outros interesses que não eram compatíveis, sobretudo de algumas missões via ainda outras escolas missionárias que só se preocuparam com o ensino de
marginais. É importante não generalizar a tese de que os missionários eram trabalhos manuais ou ofícios básicos sem enfatizar uma formação académica.
todos uma coisa parecida com «agentes do colonialismo». No caso da África Algumas escolas eram de grande qualidade como, por exemplo, a Lovendale

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José P Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa MalTha duma «Educação pal"a Todos» em Moçambique

estabelecida em 1841 na província do Cabo. Outras davam uma educação de Como vimos, o regime do apartheid não tinha, portanto, o controlo sobre
baixa qualidade. No entanto, quase todas elas não eram só escolas, mas tam- o tipo de educação que os negros recebiam. Em 1949, o governo da África do
bém organizavam internatos para os estudantes e formavam professores para Sul cria a «Comissão Eiselen» com a tarefa de reconsiderar as formas de pro-
o ensino primário. videnciar educação para os nativos (negros) da África do Sul. Esta comissão
Segundo ainda Christie, o criticismo à volta do papel das escolas missio- recomendou o estabelecimento de «medidas radicais» se se queria fornecer
nárias pode ser resumido em três aspectos. O primeiro é dirigido ao modelo uma educação especial aos Bantu. Esta recomendação recaiu, principalmente,
da «educação manual e industrial», o que no contexto moçambicano corres- sobre as escolas missionárias. Segundo as suas conclusões, as escolas missio-
ponde ao tipo de educação recebido nas «escolas de artes e ofícios». O criticis- nárias não exerciam a missão que propalavam, que era a de fornecer uma
mo era dirigido ao facto de que as pessoas não estavam preparadas o suficiente educação própria para os negros. Em vez de os formar para se inserirem na
para poderem assumir também empregos bem pagos na hierarquia económica sua cultura, as missões contribuíam para a alienação cultural do próprio negro.
da África do Sul. Eram formados só para fazerem trabalhos duros que os Mesmo sob o ponto de vista económico, as formações profissionais que os
próprios brancos não podiam e nem estavam dispostos a realizar. Daí que o negros recebiam não eram adequadas à indústria em crescimento na África
equipamento para as práticas e experiências fosse também de baixa qualidade. do Sul. Esta comissão também criticou a forma como a administração da
O segundo aspecto criticado é o de «racismo e subordinação». Elas eram, de educação estava estruturada, contribuindo mais para atiçar os conflitos entre
facto, só para os negros. Embora algumas escolas admitissem brancos (como os interesses educacionais das missões e do Estado em vez de facilitar a sua
a de Lovendale de que fizemos referência), estes só se misturavam com os arbitragem. Daí que esta comissão recomende uma mudança «radical» no tipo
negros nas salas de aulas, mas tendo dormitórios e alimentação diferentes. de educação para os Bantu.
Da mesma forma, o currículo era segregacionista. O exemplo mais clássico é Não é por acaso, pois, que o Bantu Education Act (1953) exigisse, em
o da disciplina de História em que se ensinava somente a história de sucessos primeiro lugar, que todas as escolas missionárias deveriam ser registadas pelas
do apartheid contra as tribos locais. Para além disso, argumenta-se, os valores autoridades estatais e o seu controlo deveria passar para as autoridades estatais
que as escolas missionárias tentavam inculcar nos negros (humildade, paci-
provinciais. O controlo central seria feito pelo Bantu Education Department
ência, caridade, disciplina, afinco no trabalho) eram funcionais ao sistema
no Ministério para os Assuntos dos Nativos. Este departamento seria o res-
do apartheid, dado que os negros ocupariam uma posição de subordinação e
ponsável por manter um sistema segregado de educação. O acto não dizia
socialmente inferior. Finalmente, o facto de os negros geralmente só terem
directamente que as escolas missionárias deveriam fechar, mas colocava tan-
oportunidade de receber uma educação básica, limitava-lhes a possibilidade
tas barreiras administrativas para essas que, na sequência destas exigências,
de ascensão social por via do emprego. O terceiro aspecto criticado é o de
quase todas as escolas missionárias acabaram por fechar. Por exemplo, o acto
«sexismo e subordinação da mulher». Na educação missionária, o lugar da
separava o financiamento destinado às escolas para os negros do financia-
mulher era de uma boa mãe, doméstica e servil. Elas não deviam ser direc-
mento para os brancos. O orçamento para as escolas dos negros (que na sua
tamente envolvidas na produção ou na política. Assim, enquanto os rapazes,
maioria eram missionárias) era deduzido directamente e proporcionalmente
para além de aprenderem a ler, escrever e contar, aprendiam uma gama de
dos impostos que provinham dos negros, portanto muito mais baixo que os
ofícios que dissemos acima, as raparigas, pelo contrário, aprendiam costura,
dos brancos. Um outro exemplo dizia respeito à formação dos professores.
culinária, lavagem de roupa e pratos, a cuidar da casa, etc. Uma barreira adi-
cional colocava-se à raparigas: não tinham grandes oportunidades de estudar Segundo o acto, os professores passariam a ser treinados somente nos centros
para além do ensino básico. Desta forma, as missões limitavam também o de formação criados e controlados pelos departamentos estatais. Os profes-
sores que recebessem a sua formação em instituições religiosas e outras não
papel social da mulher.

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José P Castiano • Sever-irlo E. Ngoenha A ["linha dunlii «Educação par-a Todos» em

eram reconhecidos como tal, não se outorgando, portanto, as qualificações e verno acabou arrancando a instituição. A Igreja Católica tomou uma decisão
os diplomas. Na base destas normas, as escolas missionárias tinham que ser insólita: decidiu manter as escolas mesmo sem o apoio do governo porque
vendidas ou alugadas aos departamentos provinciais (Estado). As missões que achava ser importante manter as escolas católicas como meio de garantir a
decidissem manter as suas escolas tinham que aceitar as seguintes condições: evangelização. Em reacção, o governo do apartheid reduziu drasticamente os
ensinar nas línguas locais, submeter-se à inspecção regular do Estado, seguir subsídios para estas escolas que caíram numa extrema crise financeira que
o currículo determinado pelo Estado e as crianças só poderiam continuar a obrigou, por exemplo, a cortar os salários dos professores em mais de 25%.
frequentar na condição de não haver uma escola alternativa (estatal) nas re- Muitos professores abandonaram as escolas católicas e, como consequência,
dondezas. Nessas condições impostas, tornar-se-ia difícil às missões mante- baixou a qualidade do ensino oferecido por estas escolas. Não tardou muito,
rem o estatuto de «escolas privadas», isto é, não estatais porque veriam o seu pois, que estas escolas vergassem perante as exigências decorrentes do Bemtu
financiamento cortado e teriam falta de professores. Educatíon Act. A Igreja Católica passou a ser cúmplice do apartheid porque
O arquitecto do Bantu Educatíon Act foi Hendrik Verwoerd, na altura passou a colaborar com ele. Obrigada ou não, o fàcto é que ela passou da resis-
Ministro para os Assuntos dos Nativos, que mais tarde veio a ser primeiro- tência à colaboração. No entanto, como anota Christie (1991,88), uma parte
-ministro da África do Sul. Ele partia da ideia que não havia lugar para os significante das Igrejas não reagiu contra a essência do acto governamental,
negros africanos dentro da comunidade branca da África do Sul, a não ser mas argumentavam apenas numa perspectiva religiosa.
para certas formas de trabalho. Nesta perspectiva, o negro africano deveria Mas a reacção de resistência não veio só das igrejas. O African Nacional
ser educado para tomar este lugar. Assim, a legislação do Bantu Educatíon Act Congress (ANC) organizou uma série de boicotes às escolas em 1955. Este
enquadra-se no âmbito geral da política segregacionista do apartheíd. partido planificava retirar as crianças das escolas do Bantu Education e encon-
Muitas Igrejas reagiram contra o Bantu Educatíon Act, exceptuando a trar formas alternativas de educação através de actividades culturais-educati-
Dutch Rejormed Church. As igrejas protestantes objectaram contra este tipo de vas. As Igrejas criticaram a táctica do boicote às escolas e não viam como é que
educação porque acreditavam que era uma educação que negava aos negros este movimento poderia conceber e pôr em prática uma educação alternativa
o direito de participarem como iguais nas áreas fora dos bantustões. A Igreja para os negros. Faltariam meios e professores para tal empreendimento. Esta
Metodista expressa o seu desagrado porque «condicionava ao povo prede- posição da Igreja perante o boicote mostra, sem dúvidas, a sua posição am-
terminação para a subordinação». Nos mesmos moldes expressou-se a Igreja bígua perante o regime do apartheid. Uma das tácticas «pragmáticas» usadas
da Escócia. Aparentemente, o argumento fll11damental é que a educação se- pela Igreja foi o movimento denominado open schools que, na prática e a partir
paratista ia contra os princípios cristãos. Os Metodistas, Presbiterianos e os de 1976, procurava abrir as escolas privadas, onde frequentavam os brancos,
Congregacionistas decidiram alugar as suas instalações a organizações que também a estudantes negros. As escolas abertas eram geralmente pequenas e
representavam as comunidades locais para garantir a continuidade da pro- para os brancos. Eram acopladas às igrejas por «questão de fé». Mas neste mo-
vidência em educação. A Igreja Anglicana decidiu fechar as suas escolas ao vimento, por mais pró-negro que fosse, havia muitos factores que impediam
invés de outorgá-las ao Estado. Uma das escolas secundárias mais famosas e a integração aberta dos negros naquele tipo de escolas: eram muito caras, elas
que estava sob o auspício desta igreja, a escola de St Peter em Rosettenville, perfaziam somente 2% de todos os alunos da África do Sul, estavam locali-
decidiu fechar depois de os estudantes terminarem o seu curso. A Amerícan zadas nas áreas reservadas aos brancos, a maior parte dos professores eram
Board Missíon enveredou pelo caminho de encontrar lacunas legais que lhes brancos (os professores negros eram para as línguas locais), o seu currículo era
permitisse continuar a controlar o colégio nas suas mãos (Adams College), mais orientado para a realidade e para as condições em que os brancos viviam.
tentando registar o colégio como uma companhia não lucrativa. Mas o go-

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José P Casllano • Sevel'ino E. Ngoenha A Marcha duma «Educação pal'a Todos» em Moçambique

Para além das igrejas, a resistência mais veemente contra a educação se- Em Maio do mesmo ano, o ANC havia formado o African Education
paratista instituída pelo Bantu Education Act veio da camada de professores. Movement (AEM) para organizar o boicote às aulas. Uma das tarefas deste
Este grupo profissional estava, de facto, mais afectado pelas mudanças in- movimento era evitar que as crianças ficassem prejudicadas com o boicote
troduzidas no sector da educação: tinham que passar a trabalhar dois turnos às escolas. Assim, a AEM procurou formas alternativas para pôr as crianças
por dia, o seu salário continuaria na mesma ou, em muitos casos, diminuiu, que estivessem fora da escola a aprenderem. Foram fundadas praticamente
receberiam turmas com mais alunos devido ao encerramento de muitas esco- escolas clandestinas já que o governo do apartheid não admitia aulas fora das
las, entre outras consequências. O movimento dos professores contra a Ban- escolas registadas. Mas as «escolas clandestinas» funcionaram mais sob a capa
tu Education foi encabeçado pelas organizações sindicais dos professores tais de «clubes culturais». A ideia era, através de canções, histórias e jogos, ensinar
como: Cape African Teachers' Association (CATA) formada em 1952 e que as crianças conteúdos básicos em matemática, geografia, história assim como
apelou aos pais e professores para fazerem tudo por tudo para se oporem ao outros conhecimentos gerais. Estes clubes constituíram um verdadeiro viveiro
novo sistema de educação; Transvaal African Teachers' Association (T ATA) de novas experiências em termos de objectivos, métodos e mesmo organização
que organizou encontros com os professores e parentes com o intuito de or- escolar. Algumas pessoas que frequentaram os clubes culturais chegaram mes-
ganizar o boicote contra a Bantu Education. mo a ter a possibilidade de passar nos exames da 6. a classe nas escolas formais.
Da mesma forma, o ANC organiza, a partir de Maio de 1954, uma cam- Em alguns momentos eram superiores em termos de qualidade de ensino.
panha mais abrangente sob o nome de Resist apartheid Campaign. O elemento Alguns clubes chegaram a ter cerca de 700 membros (p.e. o de Barkpan). No
mais importante nesta campanha era a visão mais ampla sobre as diferentes entanto, muitos deles tiveram que fechar devido à falta de recursos financeiros
formas como a política do apartheid começava a afectar a vida das pessoas. assim como ao banimento dos seus membros mais influentes pelo regime do
Por isso, o boicote à educação Bantu, embora fizesse parte da política a boi- apartheid. Até 1960 já haviam fechado todos os clubes culturais. As razões do
cotar, não era, no entanto, o ponto central da campanha. Os outros pontos fracasso desta estratégia de educação alternativa na África do Sul podem ser
de resistência eram a lei do passe (Pass Law), o decreto sobre reservas (Group duas: em primeiro lugar porque os clubes não forneciam uma garantia para
Areas Act), o decreto para o assentamento dos nativos (Native Resettlement manter as crianças ocupadas, havia poucas escolas, os pais tinham lutado para
Act), o decreto que condenava o comunismo (Suppression Communism Act), poder matricular as suas crianças nas poucas escolas e não viam com bons
etc. O verdadeiro boicote começa numa segunda-feira, 12 de Abril de 1955 olhos retirarem as crianças da escola sem, no entanto, proporcionar uma ou-
- o primeiro dia do trimestre escolar -, atingindo duas áreas: o Easten Cape e tra alternativa. Em segundo lugar porque o próprio sistema do apartheid era
East Rand. Nesse dia, cerca de 3000 crianças de várias áreas da região do East muito forte.
Rand, nomeadamente Benoni, Germiston, Katlehong, Brakpan e Alexandra, Em 1957, através do University Act, a educação separatista foi esten-
não foram à escola. Da mesma forma procederam as crianças provenientes das dida às universidades. O University Act proíbe que os negros frequentem as
escolas Uitenhage, New Brighton, Korsten, Kirkwood, Missionvale, Klein- universidades dos brancos. Outras legislações separatistas para completar o
vee, Kleinschool e Walmer, todas da região da Eastem Cape. Em reacção, apartheid seguem-se: em 1963 é aprovado o Coulered Peop/e's Ar! e em 1965 o
o então Ministro para os Assuntos Nativos, Verwoerd, ameaça expulsar das lndian Education Act, criando os departamentos de educação para os mestiços
escolas os alunos que não se apresentassem nas aulas até ao dia 25 de Abril. e os indianos, respectivamente. No seu lugar são criadas universidades «tri-
Esse anúncio dividiu a cúpula do ANC quanto à atitude a tomar: uma parte bais». Assim, foram criados os colégios universitários em Fort Hare (para os
começou a mobilizar as pessoas para regressarem à escola, mas outra parte Xhosas), em Turfloop (para os Tswana/Sotho), em Durban-Westville (para
preferiu não se apresentar nas escolas.

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José P Castiallo • Sevel'illo E. Ngoenha A Longa M,lI"Cha duma «Educação par'a Todos» em 1"1oçambique

os indianos), em Capetown-Bellville (para os 'couleredr') e em Ngoye no Kwa- falar em público ou escrever artigos para publicar), mas continuando a traba-
zulu Natal (para os Zulus). lhar para a organização, acabando por ser condenado acusado de terrorismo.
Contrariamente ao Bantu Aducation Act, contra o University Act não exis- Foi levado para Porth Elisabeth onde veio a ser submetido a torturas desuma-
te uma resistência baseada no stay away frOllZ school ou campanhas milit,m- nas até à morte. A causa da morte foi apontada como «problemas cerebrais»
teso A reacção veio das universidades Wits e de Cape Town que se declaram (Sparks 2003). Entre 1969 e 1972 Biko, como membro do Movimento Black
«Universidades Abertas», organizando para tal um dia de conferências abertas Comciousness, escreveu uma série de artigos e entrevistas compilados hoje num
a todos uma vez por ano, os chamados Academic Preeedom Lecture. Ainda hoje livro intitulado I write what Ilike (escrevo o que gosto), escritos que levam a
existe esta tradição. Mas na altura eram conferências que se transformavam considerá-lo o «pai» da Black Comciousness. Num dos artigos contidos no livro
em reuniões de boicote às aulas normais entremeadas por marchas nas es- lhe Difinition cf Black Comciousness, escrito em Dezembro de 1971 para um
tradas, protestando contra o acto. Os estudantes negros, que não sentiam os curso de capacitação dos dirigentes da SASO, Biko dá uma definição daquilo
seus interesses devidamente representados numa organização em que também que considera ser Black: Aquele que, pela lei ou tradição está política, econó-
havia estudantes brancos, formam o movimento da Black Comciousness (Cons- mica e socialmente discriminado. Assim, segundo Biko, ser negro não é uma
ciência Negra). Entendiam o Black não de uma forma restritiva ao negro sul- questão da pigmentação da pele; ser negro é uma atitude mental. Por isso, o
-africano, mas sim incluindo «todos os povos oprimidos e marginalizados» simples facto de alguém se retratar como negro já é o início da estrada para a
pelos brancos (negros, indianos e mestiços). Embora tendo começado nas emancipação e da luta contra aqueles que tentam usar a raça como pretexto
universidades, este movimento espalhou-se rapidamente nos anos 70 por toda de discriminação (Biko 1987,48). Portanto, ser negro era para Biko uma con-
a África do Sul, transformando-se num movimento político que chegou a dição (de oprimido) e não, em primeira linha, uma questão de pigmentação,
incluir jornalistas, grupos culturais, teólogos, etc. Usando principalmente a mesmo reconhecendo que, embora oprimidos pelo mesmo sistema, o grau de
slogan «Black man, you are on your own», o movimento declarava-se contra opressão para cada grupo dos «negros» era diferente (Biko 1987,52).
todas as formas (política, económica, psicológica) de opressão dos brancos Mas o auge da resistência contra a Bantu Education foi em Junho de 1976
para com as outras raças. em Soweto, acrónimo de South West TO~Vll, uma zona suburbana de Johannes-
Nesta altura destaca-se Stephen Bantu Biko, mais conhecido por Steve burgo Um ano antes, o ministro para a Bantu Education determinou que me-
Biko. Nascido em Dezembro de 1946 viria a morrer a 12 de Dezembro de tade das disciplinas leccionadas nas escolas primárias frequentadas por negros
1977, após ter sido submetido a torturas na prisão. Estudou na escola médica deveriam ser ensinadas usando o Africam, uma língua derivada do holandês
da Universidade de Natal (para brancos) no departamento para «não-euro- falada pelos Boers na África do SuL Esta ordem provocou a ira dos estudantes
peus» em Durban em 1966. Foi activo na União Nacional de Estudantes Sul- e dos pais: alguns argumentam contra esta medida adiantando argumentos de
-africanos (NUSA - National Union cf South African Students) . Veio a romper natureza política, isto é, vendo nesta medida mais uma forma de prolongar a
com esta organização juntamente com outros estudantes negros que sentiam dominação cultural; outros opõem-se por razões estritamente educacionais,
os seus interesses não bem representados, fundando em 1968 a Organização temendo que os negros viessem a ter enorme desvantagem no aproveitamento
de Estudantes Sul-africanos (SASO - South African Students' Organization). por não se tratar da sua língua materna. A 16 de Junho de 1976 ocorrem de-
Tornou-se presidente da SASO em Julho de 1969. Uma vez terminado o seu monstrações em que participaram cerca de 20.000 estudantes que marcharam
curso, integra em 1972 o Projecto da Comunidade Negra (BCP - Black Com- no Soweto protestando contra o Africam como língua de ensino. A polícia
munity Project) em Durban que, mais tarde, em 1973, foi banido pelo sistema dispara e é morto, em primeiro lugar, o estudante Hector Petersen, o que en-
do apartheid. Biko sofre uma prisão domiciliária (Biko foi proibido de viajar, furece a multidão. Em resposta destroem os edifícios estatais, carros, queimam

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Mar-cha duma «Educação pal'a Todos» em Moçambique

as lojas, o banco, hotéis e os correios. No parlamento falava-se da necessidade racial profundamente institucionalizado foi montado de modo a prejudicar
de se manter a ordem a todo custo. Entretanto, a violência atingira os outros sistematicamente os negros de todo o tipo de benefícios sociais (educação,
subúrbios em redor de Joanesburgo e Pretória e outras cidades como Nels- saúde, emprego, acesso à terra, etc.). Cada uma das partes reclama a per-
pruit, Kimberley, Cape Town, etc. Em Julho era quase toda a África do Sul tença à terra: os negros vêem a África do Sul como a sua terra natal onde os
atingida por ondas de violência, em particular nos homelands, queimando-se seus antepassados viveram e criaram as suas tradições institucionais que foram
quase tudo o que pertencia aos brancos. A Polícia responde usando armas de pouco e pouco sendo eliminadas deliberadamente pelos brancos; os brancos
fogo, cães, gás lacrimogéneo, helicópteros, etc. Muitos dirigentes são presos, Afrikaners, baseados numa interpretação própria da teologia calvinista vêem a
entre eles Steve Biko. África do Sul como uma terra que lhes foi dada há mais de 350 anos por Deus
No entanto, não podemos reduzir estas manifestações a causas educa- (comparando com os Estados Unidos) e, portanto, com direito a explorarem.
cionais (introdução do Africans como língua de ensino). Tratava-se de mani- Mas, ao mesmo tempo, temos o desafio de construir uma África do Sul mul-
festações contra a crise eco nó mica e contra o sistema de apartheid em geral. ticultural, ou seja, que supere a segregação entre as próprias culturas africa-
Havia muito desemprego entre os negros, os poucos que conseguiam traba- nas (Zulu, Xosa, Khoi- Khoi, San, Swazi, etc.) oficialmente separadas em dez
lho recebiam salários miseráveis (uma família no Soweto tinha, em média, bantustões (supostamente independentes) e outros grupos como os indianos,
um rendimento mensal de 75 randes) e os preços dos produtos básicos eram os mistos considerados coulereds. Para o sistema de educação isto implica não
muito caros. O bairro do Soweto estava superpovoado e sem facilidades de só eliminar todas as barreiras legislativas e documentos legais do apartheid,
transporte e casas. O controlo da polícia tinha aumentado e reinava a pass law. mas também e na prática redistribuir todo um sistema de benefícios sociais
Para além disso, havia aquilo que se considerou uma «atmosfera de revolta» que, se para uma minoria branca se apresentava como suficiente, agora para
(Molteno citado por Christie 1991,243) nos anos 70 causada pelas guerras de uma maioria que inclui os negros, poderia não ser capaz de manter o nível de
libertação e consequentes independências em Moçambique, Angola, Zimba- eficiência do sistema.
bwe e Namíbia combinadas pelas ondas internas de protesto. Portanto, todas A segunda «revolução» mencionada por Sparks é a da transformação de
estas manifestações deveriam ser vistas neste contexto. Um exemplo disto são uma economia isolada e fechada em si mesma para uma economia que jogasse
as Viva Frelimo Rallies, manifestações organizadas em Setembro de 1974 na um papel importante no mercado mundial globalizado. Em outras palavras,
sequência da assinatura do acordo de Lusaca e da queda do regime de Salazar de uma economia dirigida para o mercado fechado interno e altamente pro-
em Portugal. Estas manifestações uniram multidões em Durban e Turfloop, teccionista para um tipo de economia competitiva, aberta ao mercado, que
principalmente estudantes, terminando em mais detenções. Por todo o lado reduzisse as barreiras, o controle sobre as taxas de trocas da moeda expondo a
as pessoas gritavam o slogan «Viva a Frelimo», evocando a luta pela indepen- sua moeda - o rand - às vicissitudes do mercado global. Era um salto para se
dência de Moçambique. expor, pela primeira vez, à instabilidade do mercado financeiro internacional.
De acordo com o jornalista investigador sul-africano Allister Sparks No fundo, significaria que a África do Sul estava exposta ao imperativo de
(2003,16-20), a África do Sul pós-apartheid vê-se confrontada com «três se tornar e submeter ao sistema capitalista internacional de mercado livre e
revoluções» (que ele denomina lhe lhree-in-one Revolution). A primeira é a quaisquer medidas sociais que tomasse seriam restringidas no âmbito deste
transformação de uma sociedade baseada na segregação racial numa sociedade sistema. Uma das consequências a nível da política macro-económica, por
multirracial e multicultural com Mandela assumindo o papel de «pai» desta exemplo, foi o abandono, nos meados dos anos 90, das tendências pró-so-
revolução. Por um lado, havia a questão racial que opunha fundamentalmen- cialistas de nacionalização das grandes indústrias, como a mineira, por exem-
te os brancos de origem boer e inglesa aos negros. O sistema de segregação plo. Efectivamente, após várias discussões, seria aprovado pelo parlamento

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José P Castíano • Sever-íno E. Ngoenha A Longa Mal~cha duma «Educação par-d Todos» em rvloçambíque

em 1996 o documento preparado por uma equipa do ANC, que se denomina ram diferentes visões «ideológicas» sobre o que deveria ser a educação na era
GEAR (Growth, Employment and Redistribution). Este reconhece abertamen- pós-apartheiel. Sem nos determos nos detalhes em termos de conteúdos inte-
te a adesão ao sistema económico de mercado livre, neo-liberal e orientado ressa sublinhar que, no debate para o futuro da educação na RSA, vamo-nos
pelo chamado «consenso de Washington», uma combinação de taxas de troca referir, em seguida, a alguns documentos cruciais para o desenho da política
livres, privatização dos sectores importantes, disciplina fiscal e abertura da educacional contemporânea da África do Sul. É uma série de documentos
participação do sector privado na exportação. que, embora oficiais, retratam o grau de complexidade do processo de trans-
Por último, teríamos ainda a terceira «revolução» que deveria transformar formações que está a ser vivido naquele país.
uma economia sul-africana baseada na produção agrícola e mineira para uma Desta feita surgem, em 1992, dois documentos que abrem institucio-
economia baseada na exportação de bens manufacturados. O motivo deste nalmente o debate sobre a transformação do sistema: referimo-nos ao lhe
desafio era simples: tratava-se da sobrevivência do país. Efectivamente, se em Edueational Renewal Strategy ([ERS] Estratégia de Renovação da Educação)
1980 a venda do ouro - principal produto de exportação - contribuía para os assim como o lhe National Education Poliey Investigation ([NEPI-Report]
cofres do Estado (PNB) em 15%, já em 2000 desceu para 3% somente (Spa- Pesquisa sobre a Política N acionaI de Educação). Este último resume cerca
rks 2003,19). Por seu turno, a agricultura praticada pelos farmeiros brancos de doze projectos diferentes de investigação sobre assuntos como planificação
só era rentável na base de um forte sistema de subsídios proteccionista que, da educação, desenho de sistemas, desenvolvimento de recursos humanos,
só em 2001, consumiu cerca de 346 milhões de dólares americanos. Ora uma gestão e administração da educação, línguas, serviços de apoio assim como
transformação estrutural tão radical exigia também repensar o sistema de qua- currículo (Dekker & Lemmer 1993,442). O NEPI indica que uma das gran-
lificação da força de trabalho para que esta se adaptasse às novas condições. des prioridades do novo sistema de educação seria não só a elaboração de um
É neste último aspecto que nos vamos deter um pouco. Como transfor- novo currículo, mas também desenhar e implementar uma abordagem mais
mar um sistema de educação que, ao mesmo tempo, atenda às desigualdades participativa na elaboração do currículo e permitir abrir mecanismos para o
sociais, mas esteja à altura de acompanhar as transformações estruturais im- controlo público do processo. O NEPI sublinha que o sistema de educação
postas pelo sistema capitalista global? O problema é que a formação para o deveria basear-se numa análise profunda das circunstâncias actuais da RSA,
trabalho leva muito tempo e é onerosa. O sistema de educação herdado era, de mas sobretudo deveria ser intrinsecamente interconexado com os desafios so-
certa forma, disfuncional relativamente ao sistema económico: por um lado, a ciais, numa clara alusão à necessidade de a educação ser um factor de trans-
força de trabalho branca, que era uma das melhores que se poderia encontrar formação social.
no mundo contemporâneo e, por outro, os negros cuja formação era uma das Por seu lado, o ANC publica o que chamou de The ANC Poliey Fra-
piores no terceiro mundo. Apesar da introdução do ensino obrigatório que mework for Edueation anel Training (Qyadro Geral da Política do AN C para
abrange os negros e do aumento do budget para a educação (de 31,8 bilhões a Educação e a Formação) em 1994 em que, entre outros, se queixa da falta
de randes em 1994 para 54,1 bilhões em 2000), a África do Sul ainda tem de mecanismos para o controlo democrático no sistema de educação anterior
uma percentagem considerável (cerca de 26%) de professores sem qualifica- e insiste na necessidade de incluir os vários grupos sociais (professores, pais e
ções adequadas para ensinar. encarregados de educação, estudantes e alunos, trabalhadores e empregado-
As negociações para a transformação e criação de um novo sistema de res, etc.) no debate sobre a transformação educacional. Nestes documentos
educação na África do Sul foram, de certa forma, complexas. Isto porque, com ainda podemos notar uma grande vontade política de transformar rapidamen-
o levantamento do banimento dos movimentos nacionalistas como o ANC, o te uma educação elitista e separatista, que era a fàvor e privilegiava a minoria
Partido Comunista Sul-africano e o Congresso Pan-Africano (PAC) surgi- dos brancos, numa educação democrática e multicultural.

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No entanto, se a ideologia política pareceu ter dominado na primeira fase, ração de um Qyadro Nacional Integrado de Qyalificação que integrasse num
cada vez mais os imperativos económicos começam a ser determinantes no só esquema as qualificações a nível nacional e internacional. Este foi desenvol-
debate sobre a educação. De facto, depois da saga de libertação do período de vido conjuntamente envolvendo representantes dos Ministérios de Educação
1994 a 1998 em que a figura moral de Mandela de certa forma apaziguava os e de Trabalho da África do Sul e toma em atenção os resultados do NEPI de
espíritos e a ansiedade pela libertação, o período que se segue a Mandela com 1992. O White Papel' é que vem resumir toda a política educacional, insistindo
o Presidente Mbeki, pode ser considerado de chave para o desenvolvimento: sobretudo na necessidade de unir o sistema, ou seja, construir um «sistema
de diversas camadas sociais se começa a exigir os «frutos» da libertação, prin- nacional» que fosse organizado na base das nove províncias que compõem a
cipalmente da maioria negra e dos sindicatos de trabalhadores. Para ter uma RSA (na legislação sul-africana as iniciativas e competências legislativas para
imagem da forma como o currículo seguido até então passou a ser classificado o sector de educação recaem, ao mesmo tempo, sobre o parlamento nacional
de «irrelevante» (Department of Education 1997,10) basta ter-se presente os e os legislaturas provinciais. Estas últimas são investidas de poderes substan-
seguintes dados: no período de 1910 a 1920 o sector primário representava ciais). De qualquer das formas, o resultado do que se vai chamar OBE - como
cerca de 45% na economia nacional para, em contrapartida, em 1990 passar a veremos nos parágrafos seguintes - reflecte uma grande preocupação por de-
ser apenas 15,1%. Ao mesmo tempo, o sector industrial subiu de somente 8% senvolver competências para os diferentes sectores económicos.
para 32% no mesmo período (Idem). Por trás destas mudanças estruturais na De facto, a vertente curricular do «Currículo 2005» foi consubstanciada
economia está uma grande mudança em termos de qualificações necessárias pela adopção do que se conhece como a Outcomes-based Education (OBE),
para o emprego, ou seja, a formação da força de trabalho. A educação, em par- uma espécie de credo educacional de John Dewey no debate actual contem-
ticular o treinamento profissional, passa a ser vista como a chave para adaptar porâneo sul-africano. Qyais são as bases epistemológicas do OBE? Em que
a juventude ao emprego e para impulsionar o desenvolvimento económico da consiste esta nova reforma curricular? Qye problemas novos trouxe para o
África do Sul. Não admira, pois, que o processo da concepção do chamado debate sobre o desenvolvimento da educação?
»Currículo 2005» tenha sido influenciado e até, de certa forma, iniciado pelo Segundo o documento oficial distribuído pelo Departtnent oi Education
poderoso movimento sindical sul-africano, a COSATU - Congress oi South para os professores e docentes em Março de 1997 intitulado Outcomes-Based
African Trade Unions, segundo escreve o professor negro sul-africano espe- Education in South Africa: Backgrozmd Iriformation for Educators, o OBE pre-
cialista em assuntos educacionais, Jonathan Jansen, actualmente (2004) do tende ser uma mudança de paradigma porque a África do Sul está em trans-
Departamento de Educação na Universidade de Pretória (1997,1). formação em todas as esferas da vida, incluindo o da educação e formação.
Para ler esta influência da economia no desenvolvimento curricular no O imperativo para a mudança de paradigma justifica-se porque o currículo
caso sul-africano - a que Jansen chama de «instrumentalismo» na sua crítica anterior está sujeito aos constrangimentos do tempo e é orientado obedecen-
ao OBI, como veremos mais adiante - seria suficiente analisar dois documen- do a um calendário fixo. Esta maneira de organizar o currículo, segundo o do-
tos oficiais, nomeadamente National Training Strategy Initiative (Iniciativa cumento, representa um paradigma demasiadamente estruturado e inflexível
Nacional de Formação), de 1994, que veio mais tarde a ter um papel deter- do currículo e está ameaçado pelo fracasso devido à qualidade muito pobre do
minante nos conteúdos do White Paper on Education and Training (Políticas material de ensino. É um paradigma - continua o documento - que não de-
Gerais sobre a Educação e Formação), de 1995. O primeiro recomenda ver senvolve uma visão de cidadania e não educa para um papel activo na política
a educação como um processo ao longo da vida e, o mais importante, reco- nacional. Portanto, mudar de paradigma significaria mudar a visão e a abor-
menda uma visão integrada entre a educação formal nas escolas e a formação dagem educacional. Basicamente, a mudança de paradigma seria a dois níveis:
profissional através de um National Qualifications Framework, ou seja, a elabo- por um lado, a mudança de uma abordagem educacional que põe ênfase no

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carácter regulador dos organismos estatais centrais e no tempo que os alunos manufacturas, engenheira e tecnologia, (7) estudos sociais e humanos, (8) di-
despendem na escola para um paradigma que põe ênfase numa «especificação reito, ciências militares e segurança, (9) estudos de saúde e sociais, (10) ciên-
rigorosa dos resultados e do sucesso» dos alunos na escola. Mas a um segundo cias físicas, matemáticas e computação, (11) serviços e ciências da vida, assim
nível - reclama o documento - é uma mudança de um paradigma educacional como (12) planificação física e construção.
centrado nos objectivos e conteúdos definidos pelo professor para um para- Para a elaboração da lista dos resultados (outcomes) do OBE em cada uma
digma em que o processo de ensino e aprendizagem se centra nos resultados das áreas de aprendizagem foram formados Comités de Áreas de Aprendi-
dos alunos (Department of Education 1997,6f.). zagem, portanto oito no total. Estes, no seu funcionamento, dependiam do
Algumas transformações de carácter administrativo (<<para garantir um Comité para o Desenvolvimento Curricular; este, por sua vez, subordina-se
processo participativo efectivo no desenvolvimento curricular no qual pro- ao Comité dos Chefes de Departamento de Educação.
fessores, educadores, especialistas de disciplinas científicas, aprendizes assim Jansen (1997) critica em dez pontos o plano de reforma curricular num
como académicos e pesquisadores jogam um papel decisivo» e para garantir artigo intitulado, Why OBE Will Fail (Porquê o OBE vai falhar). Ele começa
transparência e o exercício da crítica [Department of Education 1997,12]) por escrever que a sua tese principal é que o OBE vai falhar não porque os
foram feitas. O Departamento de Educação no Ministério passaria a ter a políticos e os burocratas são mal-intencionados. Segundo ele vai falhar porque
função de estabelecer as normas e o standard em relação ao quadro curricular, esta nova política educacional está sendo implementada isoladamente e igno-
processo de exames e certificação. Foi instituído o Conselho de Ministros de rando as experiências de 50 anos acumuladas no campo da transformação cur-
Educação (CEM) que integra o Ministro (Nacional) de Educação e os nove ricular, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.
Ministros (Provinciais) de Educação. Este é um corpo consultor junto ao Mi- As razões que alega são, como dissemos, dez.
nistro, à semelhança do Conselho Coordenador do MINED em Moçambi- A primeira razão provém do facto de o texto do OBE estar escrito em
que onde participam os directores provinciais de educação. Paralelamente foi linguagem e conceitos complexos que um professor normal não terá a capa-
criado um corpo mais largo - o Heads ri Education Departments Committee, cidade de entender. De facto, no texto são perfilados mais de 50 conceitos
Comité dos Chefes de Departamentos de Educação - composto pelos che- básicos como pressupostos para entender o OBE, mas que parecem estar num
fes dos departamentos de educação a nível nacional e provincial cuja função emaranhado labirinto de definições tortuosas simplesmente inacessíveis para
principal é a de assessorar o CEM e ser um fórum de debate para as questões a maioria dos professores poderem dar conta do que esta nova política signi-
de implementação do sistema. Para coordenar as áreas de interesse entre o fica para a sua prática na sala de aula. E um dos conceitos fundamentais que
lVlinistério de Educação e de Trabalho foi formado um Grupo de Trabalho Jansen discute veementemente é a diferença entre «competências» (do inglês
Inter-Ministerial que inclui representantes de comerciantes e sindicatos, cuja competences) e «resultados» (do inglês outcomes). Este último conceito foi, aliás,
competência principal seria estabelecer o Qyadro Nacional de Qyalificações. adoptado para o discurso oficial em substituição daquele.
O currículo do OBE está centrado em oito áreas de aprendizagem: (1) Neste aspecto, a transformação curricular em Moçambique é visivelmen-
língua, alfabetização e comunicação, (2) matemática, (3) ciências humanas e te diferente. Pelo menos os conceitos usados e o texto dos documentos fun-
sociais, (4) ciências naturais, (5) tecnologia, (6) arte e cultura, (7) economia e damentais têm sido acessíveis aos professores. <211ando estávamos a realizar
ciências de gestão e (8) orientação para a vida. Estas áreas estão directamente pesquisas de campo na província de Manica foi notória e até certo ponto
relacionadas com as doze áreas do sistema de qualificações que são: (1) agri- surpreendente o grau de compreensão que professores primários tinham so-
cultura e conservação da natureza, (2) cultura e artes, (3) comércio e gestão, bre o texto da reforma curricular e também sobre as razões por trás daquele
(4) comunicação e linguagem, (5) educação, formação e desenvolvimento, (6) movimento

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Uma segunda crítica diz respeito à relação implícita no documento oficial Se quisermos comparar esta crítica à realidade da transformação curricu-
entre currículo e sociedade, especialmente o assumido impacto do OBE na lar no ensino básico em J\!Ioçambique, o paralelismo que podemos encontrar
economia. Segundo Jansen, esta relação directa é infundada e enganosa. Ain- é que, de facto, a preparação atempada dos professores para enfrentarem os
da segundo ele, não há evidências na literatura sobre a transformação curricu- desafios da transformação curricular (planificação de aulas, novos métodos de
lar que possa demonstrar que uma mudança no currículo das escolas se tradu- avaliação, formação inicial nas disciplinas consideradas novas no novo currí-
za numa mudança na economia. Em países pobres, onde o curso da economia culo [inglês, ofícios, línguas nacionais], etc.) constitui realmente o elo mais
é muito problemático por ser muito volúvel ao desenvolvimento externo, a fraco da cadeia de medidas que se devem tomar. Esta é a opinião que conse-
relação entre o que se passa na escola e o que se passa na sociedade, particu- guimos recolher nas entrevistas feitas tanto a nível do INDE como ao nível
larmente na economia, tende a ser muito distante. Jansen reconhece que o das DPEs que visitámos.
estabelecimento desta relação só pode ter fundamentos políticos, mas não tem Em quarto lugar, Jansen acusa praticamente o OBE de «instrumentali-
nenhuma fundamentação baseada em resultados de pesquisa relacionada com zar» o conhecimento. A ideia é que, partindo do princípio de que um currícu-
mudanças curriculares nos outros países. O mais ridículo para Jansen é que lo é um conjunto de conhecimentos e capacidades que se devem transmitir no
esta mudança curricular não é só «vendida» como um pacote de soluções para aluno, o OBE só sublinha o elemento prático do conhecimento em detrimen-
os problemas económicos que a África do Sul enfrenta (desemprego, cresci- to de disciplinas nas quais os conhecimentos devem ser válidos por si mesmos
mento lento da economia [em vez dos desejados 6%, ela cresce anualmente e, por isso, não são convertíeis, pelo menos facilmente, em algo prático e evi-
3%], falta de mão-de-obra altamente especializada, maioria de trabalhadores dentemente útil. Um exemplo destes oferece-nos a literatura e a poesia, cujo
industriais analfabetos, etc.), mas também e sobretudo como um pacote de sentido estético é intrínseco, sem qualquer ligação com resultados práticos.
soluções para os problemas pedagógicos e educacionais resultantes da era pós- A quinta crítica relaciona-se com os princípios: na organização curricular
-apartheid. Esta assunção sobre as potencialidades de uma reforma curricular pode-se ou focalizar no processo de ensino-aprendizagem, ou então nos fins/
é muito comum nos países africanos. No caso de Moçambique, para além resultados. A primeira opção vê o processo de ensino-aprendizagem como um
de se esperar que a reforma curricular do ensino básico resolva os problemas fim em si mesmo. No segundo elemento, a educação torna-se um meio para
económicos (neste caso para aqueles que o completarem possam ser capazes atingir um fim, neste caso a empregabilidade. Na sequência do ponto anterior,
de desenvolver uma actividade concreta na sua comunidade para o seu susten- o professor Jansen pergunta-se se esta é uma opção correcta.
to), também se espera que ela venha a cobrir o gap cultural entre a escola e as A sexta crítica parece interessante. O OBE, segundo Jansen, coloca o seu
tradições comunitárias. foco em resultados, o que vai permitir aos políticos no fim do seu mandato
A terceira crítica levantada por Jansen diz respeito ao facto de o OBE não mostrar o quão eficazes cumpriram com as suas promessas. Mas esquece uma
equacionar correctamente as qualificações dos professores necessários para questão importante para qualquer sistema de educação, particularmente para
implementar esta transformação curricular. De facto, o OBE quer transfor- os países africanos em transição democrática: para que serve educação? Os
mar a cultura escolar em mais colaborativa, flexível, transdisciplinar, centrada resultados de aprendizagem apenas aludem a alguns valores e princípios, mas,
no aluno, etc. Esta crítica levanta sérias reservas: os professores (qualificados na sua opinião, eles são insípidos, descontextualizados, declarações globais
e não qualificados) estarão em condições de implementar esta mudança de que farão muito pouca diferença numa sociedade que emerge de apartheid e
paradigma e, sobretudo, estarão em condições de avaliar o impacto corres- do colonialismo. Não se verifica nenhum cometimento em combater o racis-
pondente? mo, o sexismo, em desenvolver valores pan-africanos, democracia, etc.

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o mesmo articulista teme que a gestão de OBE viria a multiplicar o Capítulo IV:
fardo administrativo e as exigências colocadas aos professores pouco prepa-
rados. Sem apoio adequado em termos de tempo, assistência, diminuição do Educação Para Todos: Reequacionando
tamanho das turmas de crianças com idade menor, etc., o OBE falhará. Isto Contextos, Valores e Estratégias
ainda somado ao facto de as políticas actuais tenderem para a racionalização
do número de professores e o aumento subsequente do número médio de alu-
nos por turma, o OBE começa a funcionar num ambiente que está, na prática,
Neste capítulo final iremos reequacionar os contextos, o estatuto axio-
directamente contra seu próprio sucesso. Esta é a sétima crítica.
lógico e as estratégias para a implementação da visão ampliada de Educação
Em oitavo lugar, o OBE trivializa os conteúdos e conhecimentos do
para Todos em Moçambique. Embora centrados no caso de Moçambique,
currículo em detrimento dos resultados. Contudo, as crianças não aprendem
serão, porém, chamados ao debate aspectos mais gerais do futuro da educação
resultados num vazio. Segundo o pensamento de Jansen, os conteúdos cur-
no contexto moçambicano e africano. Naturalmente que neste perguntar se
riculares são um veículo importante para desenvolver a capacidade de atingir
tornam frutíferos os aspectos discutidos em capítulos anteriores, particular-
certos resultados.
mente do capítulo onde sistematizámos as aporias.
A nona e décima crítica podem resumir-se num apelo para uma trans-
O desafio assumido em Dacar, o de estender a Educação Básica para
formação radical tanto nas formas de formação de professores, na organização
Todos até ao ano de 2015, não é novo. Mas é um desafio de que a África
escolar, na inspecção e avaliação, na gestão e treinamento dos directores de
não se pode dar ao luxo de desistir de pensar e repisar nos seus planos de
escolas, etc.
desenvolvimento. É uma questão de direito. Mas também é uma questão de
As críticas que Jansen faz ao OBE podem ser correctas, mas são, o nosso
vida ou perecer para o continente africano, como disse o historiador africa-
ver, exageradas. Pelo menos ele exagera na conclusão final de que a imple-
no Joseph Ki-Zerbo. É um direito de todo o ser humano partilhar com os
mentação vai falhar, segundo o seu próprio título. Estes problemas podem ser
outros os frutos do desenvolvimento de cada época. O acesso aos benefícios
vistos como desafios que ainda estão por ser assumidos para transformar um
e às facilidades educativas conseguidas no mundo contemporâneo, em parte
currículo que durante muito tempo foi baseado na cor da pele num currículo
graças ao desenvolvimento da tecnologia, devem ser compartilhados não só
multi cultural.
pelo homem do norte e pela elite do sul, mas por todos. A todos se deve dar
a oportunidade de ter acesso à informação. A todos se deve dar o direito de
votar conscientemente, isto é, de votar após ter analisado (lido) os diferentes
programas por si mesmo e tomado uma decisão pessoal sobre a que partido ou
candidato entreaar
b
o seu voto. A todos e a cada um dos africanos se deve ga-
rantir uma perspectiva profissional ou de ocupação em pé de igualdade com os
outros. A todos se deve garantir a escolha da língua em que se quer expressar e
educar-se, desenvolver e criticar atitudes. Aos africanos e às africanas se deve
dar oportunidades iguais para o emprego, para a política, para a participação
na vida da sua comunidade, etc.
Por isso, o desafio expresso em Dacar não é só quantitativo em relação
ao número de escolas a construir ou ao número de crianças a matricular. É

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um desafio também qualitativo. Os planificadores e gestores da educação são a mensagem dos riscos. As mensagens e troca de experiências no combate a
cada vez mais chamados a responder a questões tanto de políticas de educação esses problemas não chegam a todas pessoas desfavorecidas no acesso à edu-
assim como pedagógicas tais como: O que ensinar? Onde ensinar? Em que cação. O dilema da África reside no facto de ter de realizar os seus planos,
condições ensinar? Em que língua ensinar? Terão todos os alunos o mínimo partindo deste contexto desfavorecido.
para aprenderem? Como é que as comunidades estão integradas no projecto A conferência africana de Adis Abeba realizada em 1961 tinha determi-
educacional de cada escola? Teremos atendido às necessidades do investido- nado que até ao ano de 1980 a África deveria ter atingido a educação univer-
res? E dos doadores? Os alunos sabem fazer qualquer coisa para o seu sustento sal, isto é, teria garantido o acesso às crianças, jovens e adultos analfabetos.
depois da escola? C2..1tal é a hierarquia de valores que queremos atingir com a Chegados a 1980 só se tinha atingido 78% das crianças. Mas nesta luta, a
educação? Olle camadas sociais atingimos? Mas também chegam a um ponto África também fez progressos significativos, embora regionalmente diferen-
em que começam a transpirar perguntas de carácter mais filosófico do que de tes: 20 dos seus 53 países conseguiram hoje atingir a meta da educação básica
planificação e gestão do dia-a-dia. São questões que pretendem cavar até ao universal.
substracto que apoia o acto educativo. Isto sucede quando paramos e nos abs- O fracasso da primeira década na implementação da Educação para To-
traímos com as seguintes questões: O que queremos com a educação? C2..1tal é dos, mas sobretudo a falta de alternativas sérias de como se iria alcançar esta
o fim de todo este esforço? Será só o de encher as escolas com os nossos filhos visão ampliada da educação, leva-nos a, num primeiro momento, reequacio-
e mostrarmos que estamos a desenvolver? C2..1tal é, afinal, a essência da apren- nar os contextos actuais para tornar a Educação para Todos uma realidade.
dizagem? O que é o currículo? C2..1te conjunto de conhecimentos e como deve- Analisamos as condições externas ao sistema de educação que, porém, terão
mos arrumá-los para atingirem o objectivo? C2..1tais são os critérios de selecção uma influência directa na realização do sonho de Educação para Todos. Num
destes conteúdos? Ollem os legitima como eticamente válidos e politicamente segundo momento, vamos reequacionar o estatuto axiológico da educação em
correctos? Será a comunidade ou o MINED? C2..1tal é a nossa imagem sobre a Moçambique. Exploraremos as dimensões global, africana e moçambicana
criança que pretendemos educar? C2..1tal é a imagem do Homem que preten- dos valores morais que devem orientar o acto educativo. E num terceiro mo-
demos formar? mento reequacionamos as estratégias até aqui usadas para a implementação.
Naturalmente que, embora o desafio à primeira vista seja meramente
quantitativo, se torna também, à luz destas e outras questões, um desafio à 1. Reequacionando os Contextos
própria lógica da estrutura e do modelo do sistema de educação. Isto significa
que uma Educação para Todos passará por reequacionar os fundamentos do Há uma série de factores contextuais que deverão ser equacionados na
sistema de educação: quais são os valores que estão por trás da actual configu- medida em que constituem e constituirão as condições sob as quais a política
ração, estrutura e currículo? A quem ele serve e como deve passar a servir os de educação, particularmente em relação ao objectivo de atingir a educação
que não estão a ser servidos por ele? universal, se irão realizar. Estes factores são diversas vezes referenciados como
Nunca é demais reiterar que a educação é uma das armas mais potentes importantes quando se debatem os problemas da educação em Moçambi-
que os africanos têm para combater os problemas que hoje enfrentam, tais que. São, nomeadamente, a evolução da economia, o grau de disseminação
como a pobreza, conflitos sociais, a marginalização social e política, infec- e utilização das novas tecnologias, a evolução da propagação ou contenção
ções muito rápidas pelo HIV/SIDA, doenças como a malária, a tuberculose da propagação do vírus do HIV/SIDA, o processo da globalização e suas
e outras, etc. Porque para atingir um nível onde a maior parte pode entrar implicações para o desenvolvimento do sistema de educação, as assimetrias
num diálogo aberto necessário sobre estes problemas será preciso fazer passar regionais, as políticas das instituições financeiras, as estratégias adoptadas no

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José P. Castiano • Sevel-ino E. A Mal'cha duma «Educação pai-a Todos» em Moçambique

âmbito da NEPAD, a política nacional de línguas, as estratégias adoptadas no pressionar os pesquisadores para que apresentem resultados, apelando muitas
âmbito da Agenda 2025, entre outras. vezes para a noção de «responsabilidade social» dos pesquisadores. Pensamos
É evidente que o desenvolvimento da educação nos próximos anos de- que perante esta dificuldade prática, os pesquisadores educacionais deverão
penderá muito da evolução da economia no seu aspecto geral, mas muito em procurar entrar na lógica da economia, mas sem perder de vista o seu compro-
particular da política orçamental que for adoptada. O Governo terá que tomar misso social com a educação. Na esteira deste princípio, os grupos de pesqui-
opções claras em termos da percentagem do orçamento para a área da educa- sa devem estabelecer prazos claros e esforçar-se por mostrar (se necessário e
ção. Também deverá usar este instrumento para forçar certos desenvolvimen- possível) as vantagens económicas a longo prazo de se investir num determi-
tos. Por exemplo, ao determinar uma relação fixa entre aquilo que se investe nado projecto de pesquisa. Por exemplo, há estudos que tentam demonstrar
para os diferentes níveis de educação (FRASE INCOMPLETA!!!). Assim, a relação entre o ensino básico e a economia, incidindo principalmente sobre
a política que guia o Governo é a de estender a educação básica para todos. as vantagens económicas (produtividade, poupança, espírito empreendedor,
Este objectivo deverá fazer-se reflectir na alocação de fundos. Mas, se a opção etc.) entre um camponês que não sabe ler e escrever e um outro alfabetizado.
for a de reforçar o ensino técnico-profissional então esta opção terá que ser A evolução da educação no futuro dependerá também de como as cha-
visível no parcela do «bolo orçamental». Funcionários ministeriais no ramo da madas Novas Tecnologias de Informação e Comunicação como o computa-
educação devem dominar as regras que ditam a alocação dos fundos a aprovar dor, a Internet, as redes de telefonia móvel, etc. vão ser estendidas e usadas.
pelo parlamento; devem dominar os «corredores» do parlamento; devem es- Embora o MINED e o MESCT tenham já traçado as políticas sectoriais
tar na posse de argumentos eco nó micos para justificar as opções estratégicas em relação ao incentivo do uso das novas tecnologias, o que parece ainda ser
do desenvolvimento educacional para poderem argumentar com propriedade, necessário é descer para planos, políticas de implementação e práticas mais
competência e de forma soberana quando se tratar de defender o investimento concretas a nível de cada escola ou universidade, ou ainda ao nível de cada
na área da educação. Embora de uma forma geral toda a gente veja o valor da sector da educação. A percepção geral que existe é que as novas tecnologias
educação, temos que ter em conta que os parlamentares estão quase sempre são mais aplicáveis no domínio do ensino à distância. As potencialidades que
sob pressão e têm muitos assuntos a tratar, documentos a ler, leis a analisar, nelas jazem para a melhoria didáctica numa sala de aula concreta ainda estão
etc. Então, a competência com que os políticos da educação fundamentam as por ser maximizadas, mesmo nas zonas urbanas onde, em princípio, as es-
suas opções é de uma importância enorme para a aceitação desta ou daquela colas secundárias possuem computadores (ou uma sala de informática). Em
estratégia, deste ou daquele plano da educação. muitos casos, o computador ainda é utilizado como uma máquina de escre-
Um segundo elemento - é difícil convencer os sectores orçamentais a ver. Da mesma forma, os serviços administrativos educacionais estão aquém
abrirem mais a sua mão - é sobre a importância e o papel que a pesquisa edu- de esgotar as potencialidades da comunicação virtual. A informatização de
cacional aplicada tem para o desenvolvimento da educação, em particular para dados respeitantes às escolas, dos requerimentos e mesmo das provas «na-
a implementação das políticas. A origem deste problema reside, por um lado, cionais», são, entre outras, iniciativas que podem descongestionar a máquina
no facto de que as pesquisas normalmente levam muito tempo e, por outro, burocrático-administrativa e facilitar a troca de informações. Por certo, num
os resultados da pesquisa também levam muito tempo até se tornarem prá- futuro breve, terá que se equacionar por via de que passos práticos as novas
ticos. Em contrapartida, os diferentes sectores eco nó micos orientam-se nor- tecnologias poderão contribuir para avançar mais rapidamente na extensão da
malmente por uma lógica de retorno do investimento e quanto mais rápido, educação básica para todas as crianças.
melhor. É fácil advir daqui a ideia de que o pesquisador «só gasta dinheiro» A rápida evolução dos níveis de propagação do HIV/SIDA em Mo-
e os seus resultados práticos não se vêem. Assim e no geral, o político tenta çambique surpreendeu praticamente todos os sistemas e o da educação em

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José P. Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Longa Marcha duma «Educação pai-a Todos» em Moçambique

particular: efectivamente, não estávamos preparados para fazer face a este assim como com o resto do mundo. Por isso, por este lado a globalização
flagelo (dissemos atrás que as últimas previsões indicam para mais de três pode ser vista como uma chance. Mas ela pode também ser vista como um
milhões de moçambicanos infectados pelo vírus da SIDA em 2005). No con- perigo se não se atender às necessidades locais e, sobretudo, às culturas locais.
texto da Educação para Todos, o flagelo do HIV/SIDA propõe três tipos de Uma educação adequada ao momento histórico deverá equacionar as possi-
desafios. O primeiro diz respeito à planificação da educação porque, como é bilidades de coexistência de modelos e valores educacionais que permitam ao
evidente, a Educação para Todos é, em primeira linha, uma meta formulada aluno aproveitar as oportunidades que a globalização oferece (por exemplo no
numa perspectiva quantitativa, o que quer dizer que tem a ver com a evolução campo da ciência, das tecnologias de informação, do emprego, etc.), mas ao
da população em geral e infantil em particular. Porque poderemos planificar mesmo tempo lhe dê oportunidade de se confrontar com os valores e modelos
construir escolas em regiões que ninguém vai frequentar ou porque podere- educacionais locais. Dada a sua importância, os desafios que a globalização
mos planificar mais escolas do que as que serão necessárias, ou ainda formar impõe ao sistema de educação serão reequacionados num ponto à parte.
mais professores do que os necessários. Em segundo lugar, um desafio peda- A educação é um recurso social que não está igualmente distribuído pelo
gógico, pois cada vez mais se ensina crianças órfãs ou com pais em situação país. Já mostrámos em capítulos anteriores que as assimetrias regionais se
instável. É preciso pensar em estratégias de ensino adaptadas a esta realidade. consubstanciam principalmente em grande diferenças de oportunidades para
Para além disso, há faltas constantes de professores às aulas por motivos de a frequência do ensino superior. Senão não se justificaria o facto de o governo
doenças. O terceiro desafio é em termos de pesquisa. Dever-se-ão explorar os estar a insistir numa política de expansão do ensino superior. Aqui a mão do
conhecimentos e as estratégias locais-tradicionais na prevenção e combate a Estado deverá ser mais interventora do que tem vindo a ser, no sentido de
esta doença e disseminar essas práticas nos conteúdos educacionais e manuais «incentivar» e mesmo «normal'» regionalmente a abertura das universidades
do Ensino Básico. Esta disseminação é de importância estratégica dado que novas, mesmo tratando-se de privadas. De preferência, as universidades pú-
dará oportunidade às crianças e aos professores de se confrontarem com as blicas deveriam apresentar um plano concreto da sua expansão para outras
manifestações locais da doença assim como com as respectivas práticas de pre- províncias, abrindo delegações físicas, ou ainda, abrindo cursos dirigidos a
venção. É um espaço que a educação irá criar para se desmitificarem algumas públicos focalizados, ou ainda por meio do ensino à distância. Um dos pontos
práticas e crenças que se revelam propagadoras da doença. importantes a equacionar neste processo de expansão seria o uso racional dos
Os processos inerentes à chamada Clobalização têm um efeito profundo, docentes especialistas em determinadas áreas. A «migração» dos professores e
principalmente na harmonização dos sistemas de ensino. As mudanças no especialistas entre as instituições universitárias deverá ser encarada como uma
calendário escolar para aumentar o número de horas de cada aluno no ensino necessidade e não como um «mal» na educação. Há uma razão social para que
primário, as mudanças dos currícula e dos respectivos graus terminais de for- a educação encare as assimetrias regionais: elas são potenciais focos de confli-
mação no ensino superior e inclusivamente as mudanças nos paradigmas me- tos sociais na competição pelo acesso ao saber científico e tecnológico.
todológico e didáctico de uma educação «centrada no professor» para meto- Como foi referido, o nosso sistema de educação depende financeira-
dologias e didácticas «centradas no aluno» ou ainda «culturalmente sensíveis», mente da ajuda/cooperação externa. Por isso, será de extrema importância o
a introdução das línguas inglesa (no EP2) e francesa (no ESC), entre outras acompanhamento da evolução das políticas das instituições financeiras inter-
mudanças que o sistema de educação moçambicano está a sofrer, constituem nacionais e regionais tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Inter-
claramente sinais da globalização que a prática educacional vem sofrendo. nacional, o Banco Africano de Desenvolvimento, etc. Também como vimos,
De fàcto, é necessário harmonizar os sistemas educacionais com os países estas influenciam as opções de importação tecnológica assim como, através de
vizinhos (no âmbito do SADC, o que, aliás, é objecto de acordos específicos), experts, a configuração e disseminação do saber científico. Da mesma forma,

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José P. Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Longa Mal-cha duma «Educação para Todos» em

a União Europeia, como uma nova força emergente na arena das relações crita de textos literários nas línguas maternas e o seu estudo na sala de aulas.
internacionais, exerce cada vez maior influência nas áreas educacionais e tec- Programas educativos usando a rádio e a televisão locais deveriam ser reforça-
nológicas, particularmente na pesquisa e na transformação curricular. O NE- dos. Os noticiários não deveriam ser maioritariamente baseados na tradução
P AD propõe novas opções tecnológicas para África, particularmente para o dos noticiários nacionais.
ramo agrícola e industrial e levanta desafios estratégicos para Moçambique. Se a complexidade de variáveis não for equacionada na perspectiva de-
Por isso, acompanhar o processo de desenvolvimento das estratégias e polí- vida de alargar cada vez mais os espaços que cada uma delas oferece para se
ticas destes organismos é de extrema importância para o sector de educação concretizar o sonho de uma Educação para Todos, então a probabilidade de
e formação. O importante é adoptar uma atitude pragmática e não se deixar se alcançar este sonho tenderá para o negativo. Assim, esta complexidade de
envolver numa argumentação que favoreça «teorias de conluio» como se todas determinantes e constrangimentos informa-nos sobre os espaços de manobra
as forças do exterior estivessem preocupadas em prejudicar o desenvolvimento que os que concebem e os decisores de políticas de educação têm para po-
de Moçambique. Moçambique terá que explorar espaços reais que se lhe ofe- derem fazer valer o interesse de estender as oportunidades educativas para a
rece para maximizar o proveito a tirar das políticas destas organizações. Para implementação da Educação para Todos com qualidade.
isto, o Estado moçambicano terá que equacionar seriamente a necessidade
de transformar o ISRI e o Centro dos Estudos Estratégico numa instituição
As Aspirações da Agenda 2025
de formação «elitista» para atender ao objectivo específico de quadros bem
formados para assegurarem o aparelho do Estado interna e externamente. O
O processo da formulação da Agenda 2025 criou, por si só, um momento
Centro de Estudos Estratégicos deverá tornar-se uma espécie de think tank
de debate sobre o futuro da política de educação. Foi uma oportunidade para
para o Estado moçambicano. Aí se deveria reunir a massa mais inteligente
se confrontar com a visão nacional sobre o desenvolvimento da educação.
moçambicana para estudar estratégias e propor políticas fundamentadas em
Embora a Agenda em si tenha sido sujeita a muitas críticas - questionando
evidências. Isto porque o acto de governar na era da globalização, para além de
sobretudo a legitimidade de um grupo de moçambicanos traçar uma agenda
ser um acto político, incorpora cada vez mais pressupostos técnicos, sobretudo
nacional- mais que o seu resultado, o processo foi deveras interessante. Um
na fase de concepção ou preparação de políticas e estratégias.
dos autores destas linhas foi protagonista deste processo e esteve à frente do
A futura Política Nacional de Línguas é um outro evento que vai deter-
grupo que devia reflectir sobre o futuro da educação e tecnologia no quadro
minar, por exemplo, quais são as línguas e em que condições formais elas de-
da Agenda. A Agenda foi uma oportunidade de, ao longo de meses, se deba-
verão ser usadas. Em particular, a evolução da educação dependerá da política
terem vários assuntos do país, em particular os assuntos que dizem respeito
em relação às línguas locais e à língua inglesa. Os passos dados pelo novo cur-
à educação. Daí que ela tenha constituído um momento privilegiado de ree-
rículo, embora positivos, instrumentalizam as línguas moçambicanas: são um
quacionamento dos contextos para a realização e do redesenho da visão para a
instrumento de auxilio para se aprender ou adquirir bem a língua portuguesa.
educação em Moçambique.
A sua aprendizagem não é um fim em si. Seria necessário que as línguas locais
Segundo Prakash Ratilal (2004), economista de profissão e um dos prin-
passassem também a ser usadas localmente na administração, na política e na
cipais protagonistas da Agenda 2025, este documento representa a busca de
economia duma forma oral e escrita para que os alunos vissem a ligação entre
resposta às seguintes questões: (1) Como fazer crescer a produtividade nos vá-
o que aprendem e a prática. Assim também iriam valorizar as suas línguas.
rios sectores da economia? (2) Como resolver a questão da dívida interna que
Um instrumento importante e básico para o desenvolvimento das línguas na-
beneficia altamente alguns bancos e é uma das responsáveis por manter os ju-
cionais moçambicanas seriam os dicionários, mas também o incentivo de es-

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José P Castiano • Sever"ino E. Ngoenha A Longa Mar"cha duma «Educação par"a Todos» em Moçambique

ros de empréstimos a níveis elevados? (3) Como constituir instituições finan- a perspectiva do auto-sustento do indivíduo, mas também numa perspectiva
ceiras nacionais que permitam implementar as políticas do governo, perante mais ampla em relação à economia do mercado.
o domínio dos bancos comerciais por capitais estrangeiros? (4) Como facilitar Os cultores da Agenda 2025 esperam que a escola se empenhe mais na
a criação da base de acumulação de empréstimos nacionais? Sem acumulação moralização da sociedade. Este aspecto expressa-se como se segue:
primitiva não há investimentos de origem interna e sem privados nacionais
«A Visão [da Agenda para a área da educação] aponta para a necessi-
sólidos e uma classe média, como sustentar o mercado de uma forma coeren-
dade de se cultivar, desde cedo nas escolas pré e primárias, a educação
te? (5) Como desenvolver um educação e formação integral que permita aos
cívica, ética, moral, patriótica e a educação para uma cultura de Paz. As
moçambicanos saber ser, saber conhecer, saber fazer e saber estar com os ou-
regras de bom comportamento, boa educação, a boa postura, a atitude
tros? (6) Como ampliar a democracia por forma que ela seja participativa? (7)
civilizada, a ordem, a limpeza e higiene, o pudor, o amor próprio, o
Como assegurar sucessos na luta contra o HIV/SIDA que tem consequências
respeito devido ao próximo e à sociedade são práticas a inculcar nos
extremas na economia e na sociedade? (8) Como gerir os recursos dos doado-
cidadãos, contribuindo para que todos nos orgulhemos de ser moçam-
res com transparência e de forma a produzir resultados palpáveis na sociedade
bicanos.»
e na economia?
Sem menosprezar outras questões, ir-nos-emos concentrar, em seguida,
O que é notório neste grito que exige o incremento da educação moral e
naquelas que dizem respeito à educação e formação. De facto, a preocupação
cívica (mas mais moral do que cívica) é o seu fim: para que nos orgulhemos de
básica expressa para com a educação foi como transmitir o saberfazer aos nossos
ser moçambicanos. Interpretada, esta preocupação quer dizer que deverá ha-
filhos para que saibam fazer algo para o seu auto-sustento? Por trás desta preo-
ver uma ética e valor superior, ou seja, a moçambicanidade. Há uma elevação
cupação está expressa a ideia de que a escola se tornara irrelevante para a vida
intrínseca da moçambicanidade a um valor. A moçambicanidade torna-se em
individual e colectiva. Eis a seguinte citação que demonstra esta preocupaçã0 1:
si mesma fim e valor. Por este aspecto ser de extrema importância no debate
«É aspiração expressa por todos os cidadãos, ao longo dos debates, que sobre o estatuto axiológico da educação em Moçambique, voltaremos a ele
o sistema de educação e o de formação profissional sejam orientados mais adiante.
para criar riqueza e recursos de vida para si e para os seus dependentes e No entanto, a moçambicanidade não é entendida como uma identidade
para o País, auto-em pregando-se e empregando outros moçambicanos, única e essencial. Ela deve ser equacionada no sentido de todos, independen-
contribuindo com a sua produção material e intelectual, para que Mo- temente do seu grupo etno-linguístico, religioso, camada social, etc. possam
çambique conheça um futuro próspero.» conviver aceitando serem diferentes. Este aspecto é ressaltado na seguinte
afirmação:
Pensa-se, portanto, que dando maior ênfase à dimensão do saber fazer
«A educação ética e cívica deve responder à diversidade da sociedade
no ensino, a escola recupere a sua relevância para a vida. A preocupação pela
moçambicana nas esferas cultural, linguística, religiosa, racial, política
relevância da escola, como se depreende da citação, não só se manifesta para
e social. Neste sentido, todo o esforço educativo e formativo deve ser
feito no sentido de sabermos viver e conviver juntos num ambiente de
Paz, tolerância, reconhecendo e aceitando as diferenças uns dos outros.»
I Vamos usar um dos documentos do relatório inicial da Agenda 2025 porque, em nosso
entender, ainda continha pormenores que, por óbvias razões de resumo de estrutura
final, não estão contidas no documento final publicado.

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José P. Castiano • Sever'ino [ A Longa Mal"Cha duma «Educação para Todos» em rvloçambique

A capacidade de criticar o processo assim como a autonomia do pensa- ralismo e da individualização crescente das formas de vida. Ele não foi capaz
mento é o outro aspecto que os cultores da Agenda exigem que a educação de transcender o liberalismo.
seja capaz de inculcar nos utentes do sistema: As formulações da Agenda não se concentram no essencial: o estatuto
axiológico da educação em Moçambique. Embora o debate sobre os valores
«A educação é chamada a criar uma massa crítica constituída por mo-
estejam implícito nas suas conjecturas, a própria natureza da Agenda (o facto
çambicanos de ambos os sexos, capazes de analisar, com autonomia, os
de congregar pessoas de diferentes áreas) só poderia resultar numa visão tec-
fenómenos e processos políticos, económicos e sociais, formular juízos
nocrática do futuro da educação.
de valor e tomar decisões na base da sua consciência.»

A preocupação de retornar ao papel nuclear da fàmília e das comunidades 2. Reequacionando o Estatuto Axiológico
para a educação das crianças foi um dos aspectos vistos como uma necessidade
urgente do sistema de educação em Moçambique. Também se faz uma alusão Há um consenso entre os filósofos da educação que o seu estatuto axioló-
sublinhada à questão das «tradições africanas» como referencial para o sistema gico abrange, pelo menos, três dimensões. De acordo com a primeira dimen-
de educação, tradições essas que devem ser reequacionadas no quadro dos va- são, educar implica a transmissão daquilo que se considera útil, ou melhor,
lores universais e imperativos da modernidade. O texto a seguir testemunha: a transmissão daqueles valores necessários para que a pessoa que «recebe» a
educação possa agir e comportar-se segundo os padrões axiológicos mais ou
Do ponto de vista social, a educação deve basear-se nos valores da famí-
menos aceitáveis na sociedade ou comunidade onde ela vive. A segunda di-
lia, da comunidade e no respeito pelas tradições africanas e moçambica-
mensão é a que se refere ao conhecimento: no acto educativo estão sempre
nas, compatibilizados com os valores universais da modernidade.
envolvidos uma série de conhecimentos dosificados e sincronizados segundo
a idade, aptidões e interesses dos educandos - o que se denomina por curri-
O debate no quadro da formulação da Agenda 2025 centrara-se muito no
culum.
papel do professor. A tónica dominante foi o reconhecimento de que o profes-
Cada sociedade tenta desenhar, na medida do possível, diferentes tipos
sor é o elo principal e determinante para a realização da visão. Insistiu-se mui-
e níveis de conhecimento adequados aos utentes ou aos interesses políticos,
to na valorização da carreira do professor: não deve basear-se só no aumento
económicos e culturais das respectivas sociedades ou comunidades. Os co-
salarial, mas sobretudo na melhoria das condições de vida e de trabalho.
nhecimentos são organizados de tal forma que não podem ferir o objectivo
Os factores cruciais para o progresso da educação a longo prazo relacio-
de inculcar os valores subjacentes ao acto educativo. O contrário seria con-
nam-se com a melhoria da qualidade de formação de professores, reconheci-
traproducente. Numa sociedade autoritária, por exemplo, seria contraprodu-
mento do seu nobre papel social, e pagamento de incentivos ao seu trabalho
cente o governo autoritário incluir nas escolas conteúdos que levam valores
para que produza melhor qualidade e aproveitamento.
de sociedades democráticas, tais como a tolerância, a multiculturalidade, etc.
Sem dúvida que os debates em torno da Agenda 2025 criaram um mo-
Desta forma, pelo tipo de conhecimentos que se incluem no curriculum se
mento ímpar de reflexão e troca de ideias para o futuro da educação em Mo-
pode adquirir referências axiológicas da sociedade ou comunidade em causa.
çambique. Mas o problema é que destas discussões não saíram estratégias
Uma terceira dimensão do estatuto axiológico da educação está nos mé-
muito sólidas que constituíssem alternativas para o sistema em vigor. O al-
todos. No acto educativo estão envolvidos métodos ou procedimentos ade-
cance da Agenda só podia circunscrever-se ao momento eco nó mico do libe-
quados para ensinar os conteúdos que, de novo, não contrariem os valores.

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José P. Castlano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa rvlarcha duma «Educação para Todos» em Moçambique

Métodos não são, no entanto, simples meios para transmitir os conhecimen- fazer o melhor possível o seu trabalho e não se imiscuindo no trabalho dos
tos duma forma mais fácil ou difícil. Os métodos que utilizamos ensinam por outros. Só tendo este horizonte é que podemos entender a divisão de traba-
si. Um exemplo simples: seria infrutífero «ensinar» os professores a usarem lho que ele estabelece de acordo com a área de especialização de cada um no
os chamados métodos participativos centrados no aluno, enquanto o próprio quadro da administração do Estado. As áreas por ele definidas no quadro da
formador está usando métodos centrados no professor. O resultado, de certe- administração estatal eram a legislativa, a executiva, a organização da segu-
za, é que os professores irão também usar, com os seus alunos mais tarde no rança pública da cidade, os serviços de divisão eco nó mica, etc. Obviamente
exercício das suas funções, os mesmos métodos que experimentaram durante que o Filósofo- Rei seria aquele que iria dirigir a cidade, os guardas (soldados
a sua formação. e polícias) iriam defender a cidade e a populaça (hoi polloi) constituída por
O parágrafo anterior sublinha a importância e a centralidade dos valores fàrmeiros, artesãos, etc. produziriam os bens materiais necessários. A tarefa
no debate sobre a educação, ou seja, o estatuto axiológico da educação. A pro- da educação na República é a de fazer com que cada uma destes pessoas possa
posta de leitura sobre a educação em Moçambique que O Estatuto de Severino ser eficiente e competente no exercício das suas responsabilidades em função
Ngoenha nos faz resume-se no seguinte: É preciso voltar ao fundamental, da divisão de trabalho. Em outras palavras, a educação deveria ser organizada
isto é, discutir o problema dos valores da educação antes de abrirmos o debate em volta dos valores de Justiça e Harmonia Social.
sobre o processo e a estrutura da educação, antes de fazermos uma revisão cur- Já para o seu discípulo Aristóteles, a tarefa da educação é a de ajudar a
ricular, antes de traçarmos a estratégia para a Educação para Todos. Educar criança a crescer e a tornar-se um adulto honrado. A honra, portanto, é o fim
para quê em Moçambique? último da educação. No livro V (capítulo IH) da Política Aristóteles escreve
Para fundamentar esta pergunta podemos recorrer a alguns exemplos na que «é preciso, pois, colocar [no acto educativo] em primeiro lugar a honra e
história do pensamento de natureza filosófica sobre a educação. não a felicidade» porque «os lobos e os animais selvagens não arrostariam um
Platão foi um dos primeiros pensadores a pôr os valores na centralidade perigo em nome da honra; só o homem bravo disso é capaz». Mas quando
do acto educativo. Ele estava particularmente preocupado com a falta de cui- perguntamos a Aristóteles, o que seria um adulto honrado, já entramos nas
dado pela educação na sua Cidade-Estado. O que mais o incomodava era o suas posições éticas da educação. Para Aristóteles a finalidade do Homem é
facto de não haver uma educação especial para treinar as pessoas a servirem o ser honrado. Por honra Aristóteles não entende ser uma vida cheia de prazeres
aparelho administrativo dado que ele considerava que os assuntos públicos exi- ou com poderes sobre outras pessoas. Honra é uma vida em que o homem
giam qualidades especiais dos seus funcionários. Platão comparava as questões consegue desenvolver em pleno todas as suas capacidades. A maior capacidade
administrativas com a medicina ou a advocacia que exigem um treinamento que o homem tem e que o distingue dos outros seres, segundo Aristóteles, é a
especial. Na República -onde ele expõe a sua doutrina de «Estado ideal» - os razão ou o intelecto. Assim, uma vida honrada, seria, no sentido aristotélico,
valores predominantes são ajustiça e a harmonia social. Para Platão, contudo, uma vida em que o exercício intelectual é plenamente realizado. A educação
a noção de justiça social não estava nada ligada à ideia de uma distribuição submeter-se-ia ao projecto de fazer com que o homem use o seu intelecto para
equitativa do «bolo», isto é, da riqueza nacional; também não tinha nada a ver viver honradamente (Aristóteles 1995,171-187).
com devolver as coisas a quem se deve, o que Platão demonstrou poder passar Entretanto, sejam justiça e harmonia social em Platão, ou ainda a honra
a ser injustiça. Justiça definia-se em função das responsabilidades que cada um em Aristóteles definidas como objectivos educacionais, estes estão ainda fora
tinha para com o Estado e era medida pela forma como cada um dos cidadãos da experiência vivida. São valores absolutos que tornariam difícil a sua ava-
poderia dar a sua contribuição para o bem-estar do Estado na base dos seus liação: Qyando é que alcançamos a justiça? Em que estado podemos dizer
talentos naturais e da sua formação específica. Era cada homem procurando que há uma harmonia social? Será que a felicidade ou a honra é mensurável?

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José P Castiano • Severino E, Ngoenha A Mal-cha duma «Educação em

Estas e outras perguntas estão na base da crítica pragmática, particularmente negações do que de valores positivos. Efectivamente, a doutrina do Homem
a norte-americana, que nega a ideia de «verdades ou valores supremos» que Novo caracteriza-se por descrever o conjunto de contra-valores que não que-
devem orientar a educação. Particularmente Dewey dá uma outra perspectiva ria desenvolver como a negação dos valores que eram considerados sequelas
à educação ao defini-la como uma «reconstrução permanente da experiência do colonialismo (exploração do homem pelo homem, discriminação racial,
humana.» Para ele não é o conhecimento que é importante, mas a moralidade etc.), a negação de valores que eram sequelas da sociedade tradicional (triba-
que resulta da experiência: uma ideia é correcta moralmente e, por isso, verda- lismo, etnocentrismo, obscurantismo, discriminação da mulher, etc.). Apesar
deira, se ela funciona. Neste aspecto, não há e nem pode haver valores eternos dos esforços feitos por edificar um sistema de valores positivos que estivessem
e válidos para todos os tempos. O exemplo mais clássico é o valor da hones- no substracto de todo o acto educativo, estes foram, na prática, adoptados de
tidade ou mesmo da honra aristotélica: as pessoas valorizam-na e definem-na países socialistas do que propriamente de uma reflexão intelectual endógena.
não a partir de uma situação comum, mas a partir de experiências individuais Mas também o mérito da doutrina de Homem Novo é o de ter dado a
contextualizadas. Assim, para um soldado que foi capturado e esteja a ser este homem uma dimensão metafísica (ao inferir qualidade humanas univer-
interrogado sobre o que sabe das posições dos seus camaradas, «enganar» os sais), mas ao mesmo tempo ter tentado concretizar estas qualidades numa
seus captores seria um acto de honestidade e honra, embora não esteja a dizer realidade concreta (Moçambique) e enquadrá-las numa luta concreta: a luta
a verdade. Mesmo o valor felicidade é demasiado relativo. O que pode consti- pela liberdade. Mas hoje a equação sobre o tipo de homem que se deve formar
tuir o padrão de felicidade para uma mulher na Europa ocidental (autonomia em Moçambique deverá ter outros parâmetros.
na decisão da escolha do parceiro, por exemplo) não pode ser levado como um Para nós, assim, o estatuto axiológico da educação em Moçambique de-
padrão aplicável a culturas diferentes. ve-se submeter a uma tripla dimensão axiológica do homem moçambicano:
Embora muitas críticas possam ser feitas a cada uma destas concepções a dimensão axiológica da globalidade, a dimensão axiológica da africanidade
diferentes, o mais claro, porém, é que eles constituem formas diferentes de e a própria dimensão da moçambicanidade. A cada uma destas dimensões
ver o estatuto axiológico da educação. Mas também serviu para discutirmos, correspondem certos valores.
brevemente porque não se trata de um manual de Filosofia de Educação, duas
formas de definir os valores para a educação: a primeira de Platão e Aristóteles A Globalidade
destaca valores que podemos classificar de ideias absolutas metajúicas que se
abstraem da realidade do quotidiano, mas alimentadas por ela. Na verdade, as O primeiro desafio axiológico da educação em Moçambique é o de for-
generalizações tanto de Platão como de Aristóteles giram numa órbita metafí- mar um homem capaz de inserir-se criticamente no mundo global de hoje, ou
sica sob as quais assentam ou tentam assentar os pressupostos educacionais. A seja, capaz de reconhecer os aspectos negativos da globalização que tendem a
segunda, o pragmatismo, com a sua obsessão de terminar a discussão infrutí- impedir a nossa autonomia. Via educação temos que abraçar os valores uni-
fera sobre ideias metafísicas que nunca chegaria ao fim, oferece-nos a vertente versais, sem, no entanto, vergar perante as tendências de um imperialismo
de valores pragmáticos, que são os valores que vão sendo ganhos pelo indivíduo cultural. Como conseguir isto? Em primeira linha, isto implica discutir as
no exercício prático de actividades (experiência), particularmente a produtiva. condições de existência de uma ética global que não seja a soma de interesses
Voltando para Moçambique: o mérito, mas ao mesmo tempo a limita- de países ou culturas dominantes, que os ultrapasse e se coloque numa plata-
ção essencial da doutrina de educar para a formação do Homem Novo, a que forma racional de entendimento. Em segunda linha, implica desenhar conte-
já nos referimos várias vezes nos capítulos anteriores, foi o de ter sido capaz údos curriculares e adoptar uma estratégia pedagógica à altura deste desafio de
de conceber um sistema de educação mais na base de contra-valores ou de viver numa «aldeia global» sem perder a identidade.

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A Mal-cha durna «Educação pai-a Todos» ern Moçarnbique
José P. Castiano • Severino E. Ngoenha

põe de pensarmos num estatuto axiológico da educação com uma dimensão


A possibilidade de existência ou não de uma ética global, supranacional
global.
ou ainda internacional resulta do processo crescente de interligação sistémica e
A globalização tem vários efeitos no desenho dos sistemas nacionais de
individual nas sociedades contemporâneas, contrariamente aos tempos passa-
educação, incluindo o moçambicano. Não obstante o facto de que as primei-
dos. A possibilidade que hoje se coloca de haver acções locais com consequên-
ras escolarizações foram há cerca de 5000 anos, a sua universalização, porém,
cias globais - pensemos só nas consequências mundiais que teve o desastre
é um fenómeno recente da modernidade. Antes a escola constituía um privi-
em Tchernobil, ou ainda na celeridade com que os diferentes vírus e doenças
légio de certos grupos sociais. Hoje matricular uma criança na escola parece
são transfronteiriças devido à mobilidade social -, mas também o acumular
ser uma actividade normal que os pais em todos os países fazem anualmente.
de problemas de carácter global (mais no sentido de que a sua resolução exige
De facto, a Conferência de Educação para Todos em Jomtien (1990) assim
uma acção globalmente coordenada) como os da degradação das condições
como a conferência seguinte em Dacar (2000) defenderam claramente que
ambientais para a vida, a pobreza absoluta, o analfabetismo, etc. exigem, de
a educação se torna um direito humano universal. Assim, quando se fala de
facto, reflexões éticas também de alcance global e que estejam plasmadas nos
globalização da educação, o primeiro elemento fundamental que devemos ter
sistemas de educação.
em conta é a aceitação da escolarização universal como um desafio mundial
Nesta perspectiva, Hans Jonas (1979) procura reformular a ética indi-
para o século XXI.
vidual kantiana do imperativo categórico tendo em conta a degradação pro-
Ao mesmo tempo que se globaliza a universalidade da educação, tam-
gressiva do ambiente mundial. Nisto ele projecta a noção de «Ética da Res-
bém se globalizam algumas das estruturas e elementos fundamentais do que
ponsabilidade» no sentido de regular as acções do homem actual em função
deve ser uma escola. Scheunpflug (2003,159-172), por exemplo, descreve o
do direito das gerações vindouras de encontrarem um ambiente são. O marco
impacto da globalização na educação não só sob o ângulo da globalização dos
característico desta ética é que não é recíproca, ou seja, o Homem ou os ho-
próprios sistemas de educação (no sentido de ser hoje natural que os estados
mens não devem esperar reconhecimento ou benefícios imediatos em troca
tenham um sistema de ensino oficial), mas também e sobretudo em termos
da sua acção boa no sentido de responsável. Hans Jonas funda, assim, uma
da estandardização dos processos internos dos sistemas de educação a nível
ética que chama a atenção para um tipo de acções que tenham em conta as
mundial. A estandardização dos sistemas de educação verifica-se principal-
necessidades, a integração e a vida das futuras gerações, principalmente no seu
mente por meio das concertações curriculares e do Bildungsmonitoring global
direito de agirem também responsavelmente em relação às gerações que para
(monitoria internacional). De facto, quando hoje falamos da instituição escola,
elas também serão futuras. Enquanto que a ética kantiana reserva ao indivíduo
ocorre-nos uma característica global de um modelo de escola que é controlado
alternativas de acção por decisão autónoma, para Jonas não temos alternati-
pelo Estado. Pelo menos na fase primária, as crianças são matriculadas quando
vas: só podemos agir em função do futuro.
atingem mais ou menos a mesma idade, existem turmas que obedecem mais
O elemento de base que Hans Jonas nos coloca (agir em função do fu-
ou menos à mesma idade e nível de assimilação da matéria, também teremos
turo) tem uma dimensão discutível, mas ao mesmo tempo uma outra que se
a imagem da existência de professores que devem ensinar, quase todos os
pode tornar frutífera para os sistemas de educação contemporâneos. O que é
sistemas escolares estão estruturados por níveis permeados por determinados
discutível é se, como se questiona no Retorno do Bom Selvagem de Severino
critérios de selecção, na passagem de um nível para o outro os alunos recebem
Ngoenha, é legítimo preocuparmo-nos com o homem do futuro enquanto
uma espécie de certificado que tende a ser o passaporte para os níveis superio-
que o homem de hoje vive na miséria, no analfabetismo, em conflitos. Mas
res ou para o mercado do trabalho, etc. Estes processos e características são,
o que se pode aproveitar para este trabalho é a possibilidade que Jonas nos
no geral, aceites ou tomados como pressupostos básicos para a escola na era

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José P Castiano • Sever'ino E. Ngoenha A MarTha duma «Educação par'a Todos» em Moçambique

da globalização. Até certo ponto podemos defender com Adick (2002,46-47) que ter em conta esta hierarquia de poder. Mais exactamente, as gerações
que, em comparação com outros agentes da socialização (família, instrução futuras como cidadãs de um mundo global devem ser educadas com uma
religiosa, outro tipo de educação informal e não formal), a escola tornou-se o componente forte de atitude crítica adequada à sua condição periférica global.
agente de socialização com mais similaridades internacionais. O que estamos a dizer é que qualquer reflexão ética global para que tenha uma
Mas a globalização da escola nota-se também, em terceiro lugar, na te- dimensão axiológica para com a educação, para que tenha, aliás, a prerrogativa
mática das preocupações teóricas e práticas. As políticas educacionais, as re- de global, deve tomar em conta a realidade periférica sob o ponto de vista ético.
formas ou transformações curriculares, o discurso pedagógico, etc., já não po- Formulando de outra forma e com Zifras (2002,219), uma ética com
dem ser formulados inteiramente em vista dos planos e políticas nacionais. Há prerrogativa de ser global deve reflectir problemáticas morais e conflitos que
uma cada vez maior internacionalização das alternativas que se tomam a este estão ao nível do ponto de encontro entre a localidade e a globalidade (da
respeito, provocada pelo índice crescente de debates e conferências interna- acção humana). Isto é possível quando esta ética global mostrar-se suficiente-
cionais onde se debatem estas questões, assim como pelo aumento de institui- mente aberta para debruçar-se sobre a própria conflituosidade que envolve o
ções internacionais (associações profissionais e institucionais, instituições da processo da abordagem deste ponto de encontro. O ponto de encontro entre
ONU, etc.) que actuam e influenciam directamente o rumo das alternativas o local e o universal torna-se, ele próprio, tema da ética global. Por exemplo,
tomadas. Um exemplo claro da «internacionalização» dos conteúdos é ofere- sob o ponto de vista da ética global, as guerras não deverão somente ser abor-
cido pela disseminação rápida que o método de ensino-aprendizagem centra- dadas como um conflito de interesses entre as partes beligerantes, mas tam-
do no aluno teve na sequência também do triunfo e disseminações das ide ias bém e sobretudo sob o ponto de vista da violação do Direito Humano à vida.
liberais por um lado, mas também na sequência do surgimento do paradigma Na perspectiva de debater as condições de preservação do ponto de en-
teórico do construtivismo que sustenta estes métodos. Um outro exemplo se- contro entre o global e o local, estaremos necessariamente a ultrapassar a ética
ria a tentativa quase universal de internacionalizar os certificados equivalentes universalista kantiana expressa no seu imperativo categórico e que se polariza
ao nível universitário. nos conflitos de interesses, da consciência e do desejo, para chegar a assuntos
Seria, no entanto, ingénuo acreditar que os modelos de escola assim mais concretos de conflitos religiosos, de identidade, das culturas, de normas,
como os conteúdos de ensino que estão a ser globalizados estejam dissociados como das visões de cada um sobre uma boa vida. Trata-se, portanto e em
das estruturas do poder e da tendência para aquilo que é chamado «imperia- consequência, de uma ética global que terá, necessariamente, de questionar
lismo cultural» (Adick 2002,49). É exactamente pelo facto de a globalização se realmente existe algo que se pode considerar Moral do Ocidente à qual ne-
dos modelos escolares estar a par e passo com a tendência para a globalização cessariamente se opõe uma Moral do Oriente. Naturalmente que um debate
do capital, das economias, do desenvolvimento tecnológico, da comunicação desta natureza irá desaguar numa ética global que não é um somatório das éti-
assim como dos estilos de vida, os sistemas nacionais de ensino vão perdendo cas particulares, mas é, acima de tudo, um produto de um debate comunicativo
paulatinamente maior campo de aculturação dos processos educativos. Assim, sobre as condições e as possibilidades de uma ética global.
se é dado como adquirido que o sistema económico mundial está hierarqui- A ética global só pode basear-se no reconhecimento da condição humana
zado em consonância com os países mais desenvolvidos industrializados, os como o suficiente para a participação no debate. Neste sentido, Habermas
emergentes e os não-desenvolvidos, também é de inferir que o desenvolvi- (1998,77) fala de «Bewusstseín kosmopolítíscher Zwangssolidarísíerung» para
mento da educação reflicta esta hierarquia de poder internacional. ressaltar que esta ética global deve basear-se na consciência do imperativo
Daí que qualquer reflexão sobre a dimensão global do estatuto axiológico da solidariedade e não da competição. O objectivo deste debate seria uma
da educação no contexto de um país da periferia como Moçambique, tenha solidariedade mundial (weltbiirgerlíche Solídarítat) que se baseasse, mas não

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal'a Todos» em Moçambique

fosse a soma das éticas locais. O debate a partir do local dever-se-ia, assim, mento para se manter a diversidade deve buscar-se na própria diversidade da
concentrar nos valores normativos particulares universalizáveis. A ética global primeira assim como da segunda natureza (cultura). A defesa e conservação
seria baseada (ou reclama) numa teoria baseada no reconhecimento do outro do meio natural e dos bens culturais é um imperativo individual e colectivo
e numa justiça global. do homem de hoje. É um imperativo que resulta do processo nivelador da
Do ponto de vista da educação, a ética global corporiza-se na educação globalização
multi(inter)cultural. Uma educação ética na sua dimensão global deverá ne-
cessariamente ter como fundamento uma teoria que leva ao reconhecimento A Mricanidade
do outro, uma teoria da reciprocidade, uma filosofia de auto-respeito e, so-
bretudo, uma filosofia da alteridade. Basear-se-ia numa pedagogia que leve a Uma segunda questão no debate sobre o estatuto axiológico da educação
descobrir a universalidade do particular ou, se quisermos, o particular do uni- deverá reequacionar a dimensão africana ou a africanidade. A pertinência des-
versalismo. Ulrich Beck (1997) fala em termos de kontextueller Universalismus ta dimensão não resulta só do facto de Moçambique se situar geograficamente
ou seja, Universalismo Contextual, conceito com que quer abarcar uma ética no continente africano. Ela resulta, sobrehldo, do facto de que o pensamento
global que equacione a relação entre o global e o particular. sobre a condição da existência do negro africano desde o primórdio é uma
Mas uma educação multi(inter)cultural que tenha como fundamento uma história de pensamento sobre as condições da sua própria libertação. Primeiro
ética global e uma teoria de reconhecimento recíproco teria necessariamente da escravatura, segundo do colonialismo e actualmente do neocolonialismo.
que ultrapassar, ou pelo menos não se limitar a, uma ética comunicativa cuja E esta história de busca das condições de libertação influenciou a própria his-
pretensão de validade seria o entendimento e o consenso (Habermas) para se tória do debate sobre a educação pós-colonial. Para isso, basta chamarmos de
elevar para o domínio da justiça global, da economia global e da política tam- novo as preocupações de Blyden ao debate recordando que, para ele, a educa-
bém global. Assim, à luz desta ética global do reconhecimento recíproco, uma ção deveria circunscrever-se ao projecto de combate ao mito da superiorida-
educação multiculturalista para Moçambique teria imperativamente que abor- de europeia perante os africanos, ao projecto de transformar a África Negra
dar questões ligadas aos valores e contra-valores culturais locais com possibili- numa região importante e respeitada na comunidade das nações do mundo e
dades de serem globalizáveis ou não, reflectir sobre as bases jurídicas, políticas, ao projecto de melhorar a condição de existência dos africanos do seu tempo
sociais e pedagógicas da interculturalidade assim como fornecer aos discentes e do futuro.
instrumentos de se precaverem contra um imperialismo ético-cultural. Q.yando falamos da africanidade não nos referimos, em primeiro lugar,
Este último aspecto abordado chama-nos a atenção para uma reflexão à cor da pele e nem simplesmente às culturas africanas. Se esta forma de con-
mais cuidada sobre as estratégias de conservação cultural (através do sistema ceber a africanidade foi funcional e legítima na hora da luta contra a escra-
de educação) num mundo globalizado. Se é importante conferir à educação vatura e contra o colonialismo político, hoje, nas condições da globalidade,
moçambicana esta dimensão global, o que não é menos certo é a necessidade urge alargar o seu sentido sem, no entanto, perder a perspectiva de luta pela
de elementos de vigilância contra o imperialismo cultural. dignidade. Assim, ao referirmo-nos à africanidade temos como ponto de par-
Mas não são só razões negativas (evitar que o imperialismo cultural en- tida para a reflexão axiológica a condição de existência do africano na história
gula as nossas culturas locais) que nos levam a apelar para uma atitude vigilan- moderna. Aliás, esta percepção da africanidade aqui proposta resulta do es-
te perante a ética global. Há uma razão positiva: a preservação da diversidade forço teórico de superar, mas aproveitando, a noção de Black man tal gerada
cultural do mundo. O melhor do nosso universo é esta unidade mantida no pelo movimento da Black Consciousness (como vimos no capítulo anterior)
seio de tanta diferença de opiniões e diversidade cultural. De facto, o funda- segundo a qual Black não era entendido duma forma restritiva referindo-se

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José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal'a Todos» em Moçambique

ao negro sul-africano, mas incluindo todos os povos oprimidos e marginalizados A africanidade, ou seja a solidariedade, deve definir-se pela positiva. Ela
pelos brancos. Na mesma senda de pensamento, ser negro era para Biko uma deve transformar-se em projectos políticos, sociais e culturais práticos e con-
condição de existência como oprimido e não, em primeira linha, uma questão cretos. Ela deve desafiar os imaginários dos diferentes povos africanos.
de pigmentação da pele. Em relação à educação em Moçambique ela deverá tornar-se o espaço
Se retirarmos desta definição da africanidade os seus elementos racialistas privilegiado para pôr o universal e o local africano em debate. A forma mais
no sentido em que Appiah emprega (teremos que compreender que aquelas prática de o fazer é explorar as potencialidades que o currículo local oferece.
definições se enquadravam na luta anti-racial), poderemos hoje conceber a De facto, com ele, os saberes locais até então marginalizados pelos diferentes
africanidade como uma forma própria de existência, de pensamento e de agir dos sistemas de educação em Moçambique (embora em papel tenham sido sem-
africanos na sua condição periférica e neocolonial. pre advogados) são um espaço concreto que se cria para que os valores africa-
A africanidade, vista neste ângulo, torna-se necessariamente uma atitu- nos, não só de Moçambique, entrem na escola. E quando falamos de «valores
de de solidariedade para com os que nas épocas passadas da História foram africanos» não nos ~eferimos só aos tradicionais, mas também aos que estão
submetidos à condição de escravos e oprimidos e, como que numa certa con- sendo criados pela Africa Moderna, como o da nacionalidade.
tinuidade, hoje são submetidos à condição de existência neocolonial no con- Mas não chega reconhecer a africanidade como um valor a cultivar. É
tinente africano. Esta atitude de solidariedade não é e nem pode ser, assim, necessário desafiar o imaginário dos intelectuais e educadores africanos a en-
propriedade só das pessoas com pigmentação negra. Encontramos vários mo- contrarem paradigmas próprios resultantes dos anos de experiência africana
çambicanos luso-descendentes, luso-cino-descendentes, árabo-descendentes, pós-Independência na luta contra o intervencionismo externo na educação.
etc. que comungam o valor da solidariedade; também encontramos moçambi- Para isso fizemos um exercício analítico que permitiu identificar algumas ten-
canos de pele negra que, no seu comportamento, não se solidarizam com esta dências paradigmáticas desenvolvidas no contexto africano. Elas revelam pro-
postas de valores educacionais diferentes.
condição de existência histórica.
Na verdade, as propostas de paradigmas que fazemos devem ser vistas
Por isso, quando falamos do novo espírito de solidariedade africana, que-
como uma tentativa de compreender o que é proprium da experiência africana
remos referir o tipo de solidariedade que, necessariamente, deve ser produto
na educação. Estas propostas permaneceram e ainda permanecem em forma
da condição de existência periférica e marginalizada dos povos africanos e da
de experiências particulares ou projectos pilotos isolados que, em muitos ca-
sua história. Ela se manifesta e condiciona as formas de pensamento, de agir,
sos, não tiveram sucesso em diferentes países onde foram implementados.
assim como a sua própria auto-definição ontológica. Solidarizam-se não em
Trata-se de diferentes tendências de africanização dos sistemas educativos
volta da raça, mas em volta do sofrimento e da marginalização secular.
africanos.
No entanto, a africanidade não pode basear-se somente na lamentação
pelo facto de terem sido oprimidos no passado e de viverem na periferia no
Eis pois as tendências paradigmáticas identificadas:
presente. É necessário que ao lado do discurso de desconstrução do colonialis-
mo e do neocolonialismo cresça um discurso de construção do que queremos A primeira pode ser identificada como tendência de um Paradigma Polí-
ser. A nossa condição de existência não pode continuar a ter como epicentro tico-Cultural. O fundamento desta tendência paradigmática reside na neces-
as diversas formas de neocolonização. O nosso pensar sobre nós próprios não sidade de o projecto educacional participar na construção de uma identidade
pode continuar a ter como referência só o Ocidente. Desta forma, embora «nacional» e legitimar o poder político. É à luz deste projecto que, no centro
refinando constantemente a nossa arte de criticar o Ocidente, não sairemos de toda a acção educativa, se encontra a formação identitária, ou seja, a con-
da condição periférica. figuração da educação virada essencialmente para a formação da «nação». No

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José P. Castiano • Sevel-ino E. hlo,")pnh" A Mal-cha duma «Educação pal-a Todos» em Moçambique

âmbito normativo procura-se reformular e autenticar os conteúdos programá- confrontar-se com as tradições e costumes locais. Repare que falamos em
ticos e a introdução de línguas locais nos primeiros anos de aprendizagem e na «confrontar-se» e não simplesmente em aprender. Isto porque os valores tra-
alfabetização de adultos, entre outras. Os valores adjacentes a este paradigma dicionais não deverão ser matéria de endoutrinação. A escola deverá ser, sim,
seriam de fidelidade para com o Estado e Unidade Nacional. um espaço vigilante e crítico de reavaliação das tradições em função dos desa-
A segunda receberá a denominação de tendência para um Paradigma da fios colectivos de Moçambique.
Ruralização. Este tem como fundamento os ecossistemas sociais e epistemo-
lógicos da maioria da população vivendo nas zonas rurais. O projecto educa- A Moçambicanidade
cional visava particularmente integrar a juventude no meio social e económico
rural, partindo da ideia de que as sociedades africanas seriam essencialmente O desafio é criar um discurso sobre a moçambicanidade não só como um
agrícolas. Organiza-se o sistema educativo para fazer com que os jovens te- fim a atingir (construir a nação moçambicana), mas sobretudo como um valor.
nham uma formação profissional virada para a prática da agricultura baseada A moçambicanidade como valor deve ser o substracto axiológico sob o qual
em condições locais. Os valores adjacentes seriam o «trabalho colectivo» e o se deve basear a construção de todo o sistema de educação em Moçambique.
«humanismo africano». O exemplo da educação no contexto do UJamaa ins-
pirado pelos ideais do antigo presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, pode ser Os cultores do sistema de educação de orientação socialista em Moçam-
referido como o exemplo mais clássico neste debate. bique souberam formular um discurso de contra-valores com muita acuti-
A terceira tendência é o Paradigma Cientifico-Moderno. Este visa o de- lância, ou seja, o tipo de qualidades que não queriam que o Homem Novo
senvolvimento de competências individuais priorizando, no entanto, a trans- tivesse. Para eles estava claro que o racismo, o tribalismo, o regionalismo,
missão de conhecimentos e habilidades técnico-científicos com vista a um a despersonalização, a alienação cultural, a ignorância e o analfabetismo, a
emprego no sector moderno. Este paradigma desenvolve, na prática, a visão superstição e o obscurantismo, a discriminação religiosa e o desrespeito pela
historicamente europeia de construir um sistema de educação à imagem do pessoa humana e outros vícios ou valores decadentes da burguesia constituem
ocidente em que o saber científico e o indivíduo estão no centro. É, por exem- valores da herança colonial, que não teriam espaço na nova república. São
plo, esta perspectiva que Horton tenta desenvolver ao melhorar a escola afri- valores contra os quais deveria haver um combate cerrado. Em termos mais
cana sem se preocupar muito com os seus fundamentos. elaborados, são valores sobre os quais se devia formular um discurso de des-
A quarta tendência paradigmática (que se vem mostrando cada vez mais construção.
imponente) seria a societário-comunitária. Esta prima pela integração da escola Na fase da educação liberal, como vimos, os valores de Homem Novo
na comunidade onde ela se encontra. Procura vincar e valorizar os valores lo- não conseguiram ser reelaborados segundo as novas condições sociais o exi-
cais, particularmente os de natureza cultural. Esta última estaria muito perto giam.
do discurso pós-modernista sobre a educação em que a diversidade e uma Hoje importa submeter a educação ao projecto da moçambicanidade.
autonomia relativa na decisão sobre os conteúdos locais a serem aprendidos Ora a este projecto pertence duas ideias e valores básicos: unidade e diver-
seriam valores a respeitar. Aqui cultiva-se o particularismo com uma tendên- sidade ou ainda unidade na diversidade. A educação da fase socialista forjou
cia localista. e construiu o discurso da unidade nacional. A fase liberal ou da dólar-cracia,
Assim, usando estas perspectivas paradigmáticas como referencial te- como Ngoenha a chama, pareceu «deitar a água suja com o bebé». De facto,
órico, quando falamos na africanização da escola em Moçambique, temos aparentemente, nesta fase parece que a unidade nacional como valor, se não
naturalmente em vista a introdução de matérias em que os alunos possam

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José P Castiano • Sever'ino E. Ngoenha A Mar'cha duma «Educação par'a Todos» em

foi abandonado, pelo menos não foi continuado na sua acepção básica de so- Há ainda uma terceira dimensão da diversidade: a política. Efectivamen-
te, com o multipartidarismo acentua-se o pluralismo de ideias políticas que
lidariedade nacional.
Moçambique actual tem o dever de não pôr a unidade nacional à dispo- não se esgota nos partidos, embora estes sejam a forma mais organizada de
sição. No entanto, a prática da unidade hoje não se deve limitar a discursos de expressão. Neste aspecto, os programas de educação cívica devem ser adopta-
ocasião ou transformar-se em letra morta nos documentos partidários. dos segundo esta realidade, não confundindo isenção com o não se referir aos
Nos anos pós-Independência, por exemplo, era frequente a educação or- partidos nas salas de aulas. Os alunos devem confrontar-se com os programas
ganizar festivais nacionais de desportos e cultura, ver jovens que cruzavam o dos partidos, associações cívicas e ideias políticas de individualidades na sala
país para se entregarem aos projectos comuns, jovens e adultos a cantarem e de aulas. O que é controverso na sociedade deve também ser controverso na
dançarem juntos independentemente da sua proveniência. Nivelavam-se as sala de aulas. Não podemos esperar que, de repente, o cidadão desenvolva e
culturas particulares em benefício de um valor que se considerava maior. En- cultive a tolerância já adulto quando não aprendeu a confrontar-se com ela
tregamos a nossa particularidade em benefício da unidade. A unidade nacio- desde pequeno.
nal construía-se, então, com actos concretos. O problema, no entanto, residia
no facto de que estes actos não estavam sistematizados, obedecendo, muitas 3. Reequacionando as Estratégias
vezes, à vontade política do momento. A política instrumentalizava o mo-
mento. O erro, assim, não radicava na tentativa de construir a unidade, mas C2.11ando o mundo assina em ]omtien o compromisso de atingir a educa-
sim na ausência de oportunidades e espaços bem definidos oferecidos ao aluno ção para todos, havia na altura (1990) em todo o mundo cerca de 100 milhões
para que pudesse conhecer e confrontar-se com a particularidade, com a sua de crianças (das quais 60 milhões eram meninas) sem acesso à escola, cerca de
cultura. A educação ainda não tinha maximizado este espaço de diálogo. 960 milhões de adultos (dos quais dois terços mulheres) que não sabiam ler e
Assim vemos que a unidade está intrinsecamente ligada ao valor da diver- nem escrever e cerca de 100 milhões de crianças não conseguiam terminar a
sidade. A unidade não o será sem que se preserve o diferente. Aliás, o próprio escola primária. Segundo Torres (2001,20), o mérito da Conferência foi o de
sentido da unidade é buscado no pulsar de cada componente desta unidade. recolocar a questão educativa no centro, chamando a atenção mundial para a
Qyando se fala em diversidade, não se deve ter só em conta a cultu- importância e a prioridade da educação, principalmente da educação básica.
ra. Portanto, a diversidade não se restringe à diversidade cultural-linguística, Perante este desafio foram colocadas metas quantitativas mais ou menos
embora esta seja a mais importante. O nosso país conhece nos últimos anos claras, nomeadamente: expandir o atendimento educacional às crianças na
uma grande mobilidade social das pessoas de modo que cada vez mais a so- fase da primeira infância, concluir o acesso universal à educação básica até
lidariedade identitária não se baseia em primeiro na cultura de origem, mas ao ano 2000, melhorar os resultados da aprendizagem de modo mensurável,
sim nas afinidades de origem social (profissão, zona de habitação, status social, reduzir o número de analfabetos adultos para metade em 2000 comparados
etc.). Dois moçambicanos provenientes de culturas diferentes, mas que estão com o total em 1990, etc.
numa mesma empresa talvez tenham mais em comum do que com os seus Consoante estas metas, foram traçadas as estratégias consideradas ade-
respectivos conterrâneos. A etnia está cada vez mais a deixar de ser referência quadas, nomeadamente as seguintes:
identitária para as novas gerações de moçambicanos. Por isso, seria contra
• satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem de todos, isto é,
a evolução da história se a educação para a diversidade pudesse ser somente
crianças, jovens e adultos, ressalvando o facto de que aquilo que se con-
interpretada no seu sentido cultural. sidera como «necessidades básicas» ser diferente de acordo com a idade;

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Marcha duma «Educ,1ção para Todos» em Moçambique

• eliminar os obstáculos que impedem o maior acesso e retenção das me- antever a boa dose de criticismo e cepticismo com que a autora vê o processo
ninas na educação para aumentar visivelmente o número destas nos da implementação do pacto de Jomtien.
bancos da escola; Neste livro, Torres declara ser seu objectivo analisar se, e até que ponto,
• dar atenção especial aos grupos de pessoas com dificuldades específicas conseguiu plasmar a visão ampliada da educação básica e a visão renovada da
de aprendizagem; política educativa e da cooperação internacional, como foi acordado na Con-
• concentrar-se mais na aprendizagem e não nos aspectos formais desta ferência de Jomtien. A tese fundamental que ela defende no livro é: houve um
aprendizagem (número de anos de escolaridade, certificados, etc.) o que «encolhimento» no conceito e na prática do ideário e nas metas originais da
implica desenhar um sistema de ensino centrado no aluno e nos seus Educação para Todos (Torres 2001,13). A visão ampliada da educação básica
interesses de aprendizagem; acordada em Jomtien - continua Torres - não se entranhou nas formulações
• garantir bom ambiente de aprendizagem, o que não só implica condi- nem nas acções das políticas e reformas educativas impulsionadas na década
ções materiais e físicas, mas também e sobretudo as condições de natu- de 90. Ou seja, apesar de todos os esforços de ampliar a visão, esta manteve-
reza emocional; -se, porém, basicamente restrita. Ela defende que, chegado o momento da
• necessidade de reforçar as responsabilidades do Estado na implementa- execução e sob a pressão internacional para se chagar a resultados palpáveis, os
ção das metas educacionais definidas, mas ao mesmo tempo a necessi- governos nacionais e as organizações internacionais foram tomando medidas
dade de os Estados Nacionais se assumirem como centro de uma acção de solução mais fácil nas quais a quantidade esteve sempre acima da qualida-
mais coordenada com as organizações da sociedade civil tais como o de, a visão ampliada nem chegou sequer a ganhar forma. Esta tese de Torres
sector privado, as comunidades locais, grupos religiosos e famílias; sugere-nos uma série de reequacionamentos no que diz respeito a práticas
• ampliar a ideia da «educação básica» não a reduzindo a um período de educativas na implementação da Educação para Todos em Moçambique. É o
vida (por exemplo à infância), nem a uma instituição particular como que vamos fazer a seguir: aproveitar os encolhimentos para reequacionarmos as
a escola e nem ainda a um tipo de conhecimento específico veiculado práticas na implementação na nossa realidade.
pelo currículo escolar. O primeiro reequacionamento a tomar a sério reside no facto de que, em
vez de as políticas terem reforçado uma educação para todos, o «todos» aca-
Neste pé do discurso devemos reequacionar também estas estratégias bou sendo reduzido a uma parte da população com necessidades educativas,
adoptadas pelos governos nacionais a partir das estratégias gerais. em muitos casos reduzido à educação de rapazes e raparigas, e, mesmo assim,
concentrado somente nas crianças mais pobres de entre os pobres. Na prática,
As Estratégias da ((Visão Ampliada» argumenta a autora, tudo se reduziu de maneira ostensiva à infância - nem
sequer a todos os meninos e meninas- mas, cada vez mais, aos meninos e meni-
A educacionalista originária do Equador, Rosa Maria Torres, que duran- nas «desfavorecidos», «desamparados», «sem assistência», «carentes», «vulne-
te muito tempo trabalhou para os diversos organismos da ONU para a área ráveis», «em circunstâncias especialmente difíceis» e «em risco» de acordo com
da educação (UNESCO e UNICEF) e actualmente funcionária do Instituto as diferentes terminologias que cada país foi achando mais adequado usar para
Internacional de Planejamento da Educação em Buenos Aires, escreveu um «encolher» a visão. Este encolhimento foi traduzido em programas restritivos
livro bastante elucidativo sobre a problemática das políticas de implementa- àquela faixa das crianças consideradas estando a viver na pobreza absoluta,
ção da Educação para Todos. O livro leva o título sugestivo de Educação para ou então em programas de discriminação positiva, particularmente a favor
Todos: a Tarefa por Fazer. Já a segunda parte do título a Tarefa por Fazer deixa das meninas e mulheres. Duma forma geral não se incentivaram programas

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José P. Castiano • Severino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pal'a Todos» em rvloçambique

educativos para os adultos. Mesmo os programas criados para estes também alunos na escola e na aprendizagem dos conteúdos. Uma outra latitude de
experimentaram um «encolhimento», isto é, efeminizou-se (em muitas regi- encolhimento diz respeito ao envolvimento de outras instituições e agentes
ões quase que foi exclusivamente para mulheres), rejuvenesceu (a população- de educação. Por exemplo, embora se tenha definido a comunidade como um
-alvo abrangeu maioritariamente os jovens da fab;:a etária entre os 15 e os 24 agente decisivo para a implementação das políticas educativas no âmbito da
anos porque os governos pretendiam com isto diminuir o desemprego e a educação básica para todos, na prática, em muitos países a operacionalização
criminalidade) assim como se ruralizou (isto é, os programas passaram a ser do conceito de comunidade passou a ser encolhida para pais e encarregados de
desenhados priorizando, e em alguns casos quase exclusivamente, as zonas educação.
rurais). Para além disso, a meta correspondente à ampliação da compreensão O terceiro tipo de reequação que devemos fazer às estratégias de imple-
clássica da Educação Básica como estritamente a formal para outras compo- mentação do compromisso de Jomtien pode ser formulado - continuando a
nentes e competências necessárias em diferentes grupos etários e sociais para tornar frutíferas as palavras de Torres para o nosso propósito - nos termos da
conseguirem um autodesenvolvimento, também falhou. De facto, diz Torres, confrontação entre necessidades básicas e as necessidades mínimas de apren-
não foram desenvolvidos indicadores de controle e de avaliação que permi- dizagem. De facto, a Conferência de Educação para Todos teria ampliado o
tissem produzir uma ideia clara no fim da década. Concluindo este primeiro conceito de necessidades básicas para compreender tudo o que uma pessoa
«encolhimento» Torres afirma que: «o 'foco na pobreza' acabou focalizando precisava não só para sobreviver, mas também para poder exercer em pleno os
e reduzindo a própria educação, a política educacional e a reforma educativa à seus direitos políticos, para desenvolver as suas capacidades de tomar decisões
educação dos mais pobres» (Torres 2001,34). autónomas e, sobretudo, para poder continuar a aprender autonomamente ao
O segundo reequacionamento relativo às estratégias resulta do que é longo da vida. Porém, na sua aplicação, o básico passou a ser o tecto e não o piso
referido por Torres como encolhimento de uma educação básica para uma (Torres 2001,40), ou seja, as necessidades básicas passaram a ser entendidas
educação escolar ou primária. O termo básico pretende sublinhar que não é no sentido de o mínimo, um pacote restrito e elementar de capacidades úteis
só com a formação escolar primária que se podem cobrir as necessidades bá- para satisfazer as necessidades imediatas. Ademais, na sua aplicação nos pro-
sicas de aprendizagem. Aquilo que se pode considerar de necessidades básicas gramas de ensino, passou a ter a conotação de programa mínimo, conteúdos
para um indivíduo estende-se ao longo de toda a vida e, por isso mesmo, a mínimos, ou ainda padrões mínimos de aprendizagem. Este debate foi acom-
implementação de educação básica para todos precisaria de reformas educa- panhado em Moçambique com a noção de «relevância» do currículo, o que se
tivas mais alargadas que pudessem viabilizar o reforço do papel da família e traduz na inventariação de elementos culturais, económicos, naturais e sociais
das comunidades na satisfação dessas necessidades básicas de aprendizagem. que o aluno deve aprender, particularmente no âmbito da implementação do
Neste aspecto, para além da Conferência de Jomtien ter repisado a centrali- currículo local. Fora disso, notamos aqui também que o alvo desta aprendi-
dade do sistema escolar - em particular do ensino primário como ponta de zagem passou a ser fundamentalmente a criança, havendo pouco campo para
lança - enfatizou, ao mesmo tempo, a necessidade de se extrapolarem os sis- atender às necessidades básicas da juventude e dos adultos. Por outro lado, os
temas convencionais e formais de educação. Apesar desta orientação, o que se esquemas montados para a formação de professores não equacionaram e nem
verificou na prática é que as reformas educativas levadas a cabo pelos governos esgotaram as implicações da viragem da educação para as necessidades básicas.
no geral reduziram-se, de facto, a reformas escolares relegando as outras insti- O esperado novo papel do professor, que se devia fundamentar no quadro des-
tuições educacionais informais e não formais para a margem do sistema geral tas necessidades básicas, ficou confinado, como bem diz Torres, às necessidades
de educação. Segundo Torres, a ênfase continuou mais no acesso à escola e básicas de seus alunos e às reformas curriculares (supostamente) orientadas pelas
nas medidas para incrementá-lo do que nas medidas para a permanência dos necessidades destes últimos. Por constrangimentos orçamentais e de tempo, as

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha A Longa Mal'cha duma «Educação pai-a Todos» em Moçambique

acções de formação de professores na base do novo currículo para o ensino quando houve o alargamento do calendário escolar com a mudança do regime
básico em Moçambique, passaram a ser essencialmente uma série de informa- semestral para o regime trimestral, esperando com essa medida melhorar a
ções sobre o PCEB, sobre as inovações do currículo assim como a distribuição qualidade de ensino com o aumento da permanência do aluno na escola.
e leitura de alguns documentos considerados instrumentos importantes para Em muitos países, incluindo Moçambique, tomou-se como estratégia um
o ensino. avanço gradual para se atingir a educação para todos. Os governos deveriam
Em quarto lugar deve-se reequacionar a noção de aprendizagem confron- concentrar-se primeiro na efectivação do ensino básico/primário universal e
tada com aquilo que, de forma comum, em termos de políticas de educação é só depois avançar-se-ia para os níveis posteriores, nomeadamente os secun-
referido como rendimento escolar. Na verdade, segundo Torres, houve maior dário e terciário. Nesta corrida, o alcance da primeira meta (educação básica)
ênfase nos resultados da aprendizagem (expressos em formas de rendimentos tornou-se ela mesma tão importante que passou a ser um fim em si mesmo,
semestrais e anuais) do que no próprio processo. Este quarto «encolhimen- o que sacrificou estratégias de desenvolvimento de um sistema educativo com
to» (da aprendizagem para o rendimento, como a ele se refere Torres) tem a horizontes mais ampliados e com um alcance para além do ensino primário.
sua origem na velha confusão entre as noções de ensino e de aprendizagem, Esta graduação criou uma visão muito parcelar dos sistemas de educação. Por
onde se infere que uma boa preparação para um melhor ensino leva automa- isso, em sexto lugar, propõe-se o reequacionar deste processo que, ao invés de
ticamente também a uma boa aprendizagem. Uma tal confusão é verificável implementar a educação básica como alicerce de aprendizagem para o presente
quando se abarrotam as salas de aulas com muito material didáctico, livros e e futuro, tornou-a um fim em si mesma. No caso de Moçambique tem sido
textos, etc., mas, no entanto, há pouca preocupação sobre a efectividade com sintomática a sensação de «missão cumprida» quando se acabou de se dese-
que este material é usado na sala de aulas. Por trás deste encolhimento está o nhar o currículo para o ensino básico. Durante o período em que se lavrava o
problema que debatemos no capítulo sobre as aporias da educação referente currículo do ensino básico, os outros níveis (particularmente o secundário e o
ao binómio quantidade-qualidade: a qualidade passou a ser restringida na sua ensino profissional) caíram num relativo «esquecimento» em termos de pensar
vertente interna (relativamente aos próprios objectivos do sistema de educa- o sistema na sua globalidade. Caiu-se numa parcelagem de reformas educati-
ção) e pouco na sua vertente externa (relativamente à peifrmnance e à respon- vas. De facto, enquanto decorria a reforma dos conteúdos e da organização do
sabilidade do sistema de educação para com a sociedade). ensino básico, ao mesmo tempo decorriam «reformas» curriculares parcelares
A ideia do quinto reequacionamento a fazer-se ao processo de imple- em várias instituições do ensino superior como a UP, a UEM, o ISPU, etc.
mentação da Educação para Todos é simples: é que ao invés de se ampliar a Tudo isto sem antes haver uma visão ampliada do que deve ser o sistema,
visão da educação básica, a tendência foi a de restringir a ampliação da visão ou por outra, sem ainda se ter formulado um discurso básico que responda à
ao prolongamento do tempo da escolaridade obrigatória ou da permanência questão «educar para quê?».
dos alunos na escola (número de anos, prolongamento do calendário anual, Uma certa confusão entre a melhoria das condições de aprendizagem e a
aumento das horas de estudo, etc.). Assim, hoje, a escolarização básica cobre melhoria das condições materiais da escola predomina nos planificadores das
geralmente os nove ou dez anos de aprendizagem escolar, particularmente os políticas educativas. Temos que reequacionar, tornando frutífera esta ideia
da América Latina, enquanto que nos países africanos é entre seis e sete anos aproveitada de Torres, o que realmente fàz parte das condições de aprendiza-
de escolaridade. O que muitos países fizeram, na base disto, foi ampliar o gem do aluno no contexto dos países que são classificados subdesenvolvidos
tempo de permanência do aluno na escola, pressupondo que o aumento da va- como Moçambique. Esta interrogação torna-se óbvia porque, na prática das
riável tempo teria implicações positivas quase que seguras, ou seja, resultariam políticas educativas para a melhoria da qualidade, tomaram-se medidas tais
numa melhor aprendizagem. É, de facto, o que sucedeu em Moçambique como apetrechar as escolas com carteiras, pintar os estabelecimentos escolares

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A Longa Mar'cha duma «Educação em Moçambique
José P. Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha

«3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de


e as salas de aulas, providenciar quadros e outros instrumentos de trabalho,
educação a dar aos filhos.»
melhorar as salas dos professores, etc., medidas essas que, embora e sem dú-
vida pertinentes, vincam uma imagem mutilada e sectorizada do ambiente de
Este articulado constitui a base do direito à educação plasmado em todos
aprendizagem, pois confinam e restringem a aprendizagem ao melhoramen-
os países do mundo. Porém, escrito debaixo do entusiasmo da vitória sobre
to das condições materiais e institucionais. Elas chamam para o centro da
o fascismo na sequência da II Guerra Mundial, desde lá para cá o mundo
atenção programas e estratégias de melhoria de qualidade delineadas a partir
mudou muito a favor de uma internacionalização dos processos e políticas da
duma visão institucionalista (escola e MINED). No entanto, às condições
educação e, ao mesmo tempo, a favor de uma visão desenvolvimentista neo-
de aprendizagem pertence, para além do institucional, também o ambiente
-liberal economicista da educação.
social imediato do aluno, nomeadamente o familiar e o comunitário. Da mes-
De lá para cá houve muitas mudanças estruturais que sugerem o reequa-
ma forma, à aprendizagem na óptica da visão alargada pertencem também as
cionamento das condições para a implementação do Direito à educação para
condições económicas (pobreza), culturais (visões sobre os papéis da menina
Todos. De que mudanças se trata?
e menino) assim como sociais (estrato social dos alunos e dos professores).
A obrigatoriedade a que se refere o art.26.o é para o ensino primário.
Efectivamente, há muitas crianças que vão com fome para a escola, mesmo
Tendo em conta que a configuração tradicional dos sistemas de educação está
nas zonas urbanas. Este facto não garante uma boa condição de aprendiza-
baseada em idades ou em períodos distintos de aprendizagem (a infância para
gem, por mais que a escola tenha boas condições materiais e haja sido gratui-
o ensino primário; a juventude para o ensino secundário e o técnico-profis-
tamente distribuído o livro por todas as crianças.
sional), olhando para o processo rápido de alargamento das oportunidades de
acesso à informação disponível e para as mudanças estruturais do capitalismo
Mudanças Estruturais
actual, o que cada indivíduo aprendeu na sua juventude já provavelmente não
Qyando se fala em educação neste século, estamos a falar de um direito lhe serve muito para o auto-sustento, quando o mesmo indivíduo atinge a
fase adulta. Ou seja, não há conhecimento e habilidades que sirvam para toda
fundamental assumido como tal pela comunidade internacional e pela Hu-
a vida. As necessidades educativas sofrem mutações muito mais rápidas nos
manidade desde 1950. O art.26.O da Declaração Universal dos Direitos do
tempos de hoje. Assim, junto à necessidade de pormos todas as crianças e
Homem, assinado naquele ano, reza:
adultos na escola, uma outra questão se torna cada vez mais importante: a que
«1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratui- tipo de educação se tem direito? Ora isto deu azo a que visões neo-liberais
ta, pelo menos a correspondente ao ensino primário fundamental. ganhassem terreno para insistir num tipo de educação básica que tem como
O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos alicerce a possibilidade de auto-sustento do indivíduo ou ainda a possibilida-
estudos superiores deve ser aberto a todos em plena igualdade, em de de ele ser empregável à saída do ensino básico. Exigências que nos termos
função do seu mérito. tradicionais eram reservadas para níveis mais altos, são hoje impostas para o
«2. A educação deve visar a plena expansão da personalidade humana nível mais baixo e primário da educação.
e o reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais O ponto anterior tem uma relação íntima com estoutro: de facto, no
e favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as Moçambique desde os anos 90, surge uma diversidade de ofertas educativas
nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desen- mas também «des-educativas». A influência educativa ou muitas vezes des-
volvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção controladamente deseducativa das instituições não escolares como a televisão,
da paz.

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José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha A l_onga Mar-cha duma «Educação em fvloçambique

a rádio, o vídeo, a política, a sociedade civil, etc. cresceu, sem crescer, no en- assim também os compromissos na relação conjugal entre homem e mulher se
tanto, a responsabilidade formal e social educativa destas instituições. Houve tornaram cada vez mais dependentes da mobilidade social e de factores extra-
mudanças estruturais que fizeram com que a escola pública moçambicana já -culturais. No entanto, continuamos a imaginar um modelo de educação em
não tenha o monopólio da educação. Enquanto os meios de informação po- que a (santa) família, neste caso a mãe, tem um papel preponderante. Este é o
dem lançar e lançam à sociedade moçambicana livremente um conjunto de caso, pelo menos o mostrado pelo texto da Agenda 2025, que assume a educa-
contravalores (p.e. violência gratuita e sexismo), a escola ainda continua a ção familiar como sendo a pedra angular. A expressão «educar uma mulher é
assumir a total responsabilidade formal de educar a todos. Praticamente, a educar uma nação, e educar um homem é educar um indivíduo», que também
escola deve limpar o que os outros meios e instituições de educação sujam por foi muito veiculada durante os debates da Agenda 2025, é da mesma forma
falta de controlo. Por isso, dada a magnitude desta responsabilidade, hoje a expressiva para essa persistência. A mulher e mãe moçambicana conseguiu
escola está mais propensa a alianças e parcerias com outras instituições que emancipar-se na vida pública, mas duvidamos que tenha tido o mesmo tipo
estão em seu redor. Entre elas, as provenientes do exterior que ocupam cada de sucessos na vida privada. (b}ando sai do serviço e da escola, ela ainda se
vez maiores espaços sociais, sobretudo de uma forma pouco responsável rela- prende ao fogão e à lavagem da roupa assim como à educação das crianças. Na
tivamente aos desafios nacionais. tentativa de se libertar, acabou por receber um fardo maior. ..
Houve mudanças estruturais no sector da economia que tiveram como
consequência mudanças na noção de qualificação prrfissional. Esta está sendo As Estratégias Pedagógicas
cada vez mais obsoleta em relação ao acesso ao emprego ou às oportunidades
de auto-emprego. Está sendo adicionada (mesmo até substituída) pela noção As estratégias pedagógicas ou metodologias «centradas no aluno» e os
de competência e disponibilidade em trabalhar em qualquer lugar e a qualquer princípios da pedagogia «culturalmente sensível» e seus derivados, são dadas
hora. É nesta ordem que países como a N amíbia denominam o seu ~urrículo como as estratégias pedagógicas e metodológicas que a reforma curricular no
de Competence-Based Curriculum (baseado em competências) ou a Africa do ensino básico privilegiam. Espera-se com elas que o ensino acomode e po-
Sul por Outcome Based Curriculum (baseado nos resultados), como tivemos tencie a vivência cultural e as experiências do mundo da vida trazidas pelos
oportunidade de ver nos capítulos anteriores. Também a educação se está a alunos. Estas metodologias ou, se quisermos, estas estratégias ou ainda prin-
render ao economicismo das políticas liberais cunhadas pelo chamado Con- cípios metodológicos, escondem, porém, a forma e modo local de absorver e
senso de Washington. Assim, o termo competências está cada vez mais a ser concretizar em práticas educacionais os pressupostos e correntes filosóficos,
determinado em função das necessidades de emprego e condicionado pela respectivamente construtivistas e fenomenológicas. Donde provêm estas me-
revolução técnico-científica. A isto se junta o saber fàlar fluentemente a língua todologias ou princípios tornados quase que «sagrados» pela reforma curricu-
inglesa. Talvez numa economia liberal e economicista como a nossa, e se o lar do INDE? O nosso estatuto de «vigilantes das epistemologias» que vêm
capitalismo quisesse ser sério consigo mesmo, o termo cunhado por Educação até nós confere-nos a legitimidade necessária para essa pergunta.
para Todos mereceria ser substituído pelo termo competências para Todos. Pode-se, de facto, traçar uma linha que mostre a derivação dos métodos
Em quarto lugar, não podemos passar ao lado das mudanças nas relações ou metodologias centradas no aluno com as filosofias construtivista (onde o
de género: os papéis sociais da mulher moçambicana e africana estão a mudar conhecimento é considerado produto de uma construção social, e não produto
muito na sequência do processo de individualização da sociedade, tal e qual da actividade cognitiva do indivíduo isolado) e liberais (onde o indivíduo é o
como o alemão Ulrich Beck descreve no seu livro Risikogesellschaft. Segundo centro de toda a reflexão, sobretudo económica e política). Da mesma forma
ele, aumentou o número de raparigas na escola e o número de trabalhadoras; se pode traçar uma linha que mostre o pressuposto filosófico da chamada pe-

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dagogia culturalmente sensível a partir da fenomenologia (Husserl, Schütz) e Educação e Desenvolvimento


do existencialismo (Heidegger, Sartre, Levi-Strauss). Mas, contrariamente a
isto, não vamos aqui perseguir uma linha de pensamento filosófico. O nosso Passemos agora a examinar um aspecto importante em debate em Mo-
interesse está virado para o que denominamos política de educação. Port,m- çambique: o desenvolvimento. E isto por uma razão muito simples: na justi-
to, uma análise virada para os interesses e motivações escondidas por trás do ficação de todo o esforço das políticas educativas, está patente que o fim é o
abraçar estes princípios por parte das elites planificadoras de educação mo- desenvolvimento.
çambicanas por via de organizações internacionais e doadores bilaterais que O texto da Agenda 2025 (2003) a que já recorremos enfatiza, no seu ca-
actuam na educação em Moçambique. pítulo de cenários, da seguinte forma os pressupostos que Moçambique tem:
O interesse pela pedagogia centrada no aluno que orienta as reformas «Para vencer o subdesenvolvimento, o País conta com importantes re-
curriculares em países africanos tais como a N amíbia, a África do Sul, o cursos como a disponibilidade de solo arável, de água, de recursos flores-
Botswana, Moçambique, etc. foi introduzido (ou, pelo menos, induzido) pe- tais e marinhos, do potencial turístico, potencial hidroeléctrico, carvão e
las agências internacionais e bilaterais de ajuda na sequência do processo da gás, de um ambiente favorável, de potencialidades pouco exploradas no
«democratização», praticamente após a queda do muro de Berlim em 1989, sector mineiro e de acesso aos mercados dos países do SADC.»
como indica o pesquisador educacionalista do Botswana Richard Tabulawa
(2002,4). Tabulawa parte da hipótese apresentada por Guthrie (1980) que A estratégia adoptada pelos cultores da Agenda 2025 resume perfeita-
defende a ideia de ainda não terem sido mostradas evidências duma relação mente o debate sobre o desenvolvimento em Moçambique. No texto a seguir
causal directa entre a pedagogia centrada no aluno e o rendimento dos alunos se pode concluir com muita facilidade que o ponto de partida para o desen-
ou que aquela pedagogia seja superior, em termos de qualidade, à pedagogia volvimento deverá ser a agricultura, e o indicador de sucesso neste projecto é
tradicional centrada no professor. Tabulawa continua esta tese, radicalizando- a eliminação da pobreza. Voltemos ao texto da Agenda 2025 um pouco lon-
-a. Segundo este, a pedagogia centrada no aluno é um «artefacto político», gamente:
uma ideologia que pretende impor uma certa visão do mundo e da organiza-
ção social. O interesse das agências internacionais em estender este artefacto é
«o desenvolvimento agrário joga um papel importante na redução da pobre-
za, porque as famílias rurais obtêm os seus rendimentos directamente da pro-
parte, na óptica de Tabulawa, dum desenho mais amplo das agências interna-
dução agrícola, e de actividades não agrícolas que têm uma forte ligação com a
cionais para facilitar a penetração da ideologia capitalista nos países africanos
economia agrícola local. Por isso, o crescimento agrícola, incluindo o aumento
da periferia. Há uma hidden agenda. Esta agenda escondida por trás dos méto-
da produtividade e o acesso a temologias e a mercados, éfim da men tal para
dos centrados no aluno é, de facto, motivada mais por imperativos ideológicos
a redução da pobreza rural. [ ... ] A traniformação estrutural da economia
do que educacionais. No entanto, as receitas e transferências desta pedagogia
deve assentar no desenvolvimento agrícola. Assim, reqfirma-se o princípio
são vendidas duma forma ideologicamente inofensiva como se o problema
constitucional de que a terra pertence ao Estado, que deve garantir o seu aces-
fosse o conhecimento e não as ideologias por trás. Tabulawa, à boa maneira
so, posse e o uSlifruto aos moçambicanos, promover a sua alocação ificiente e
de Foucault, vê o poder por trás da aparente ingénua pedagogia centrada no
regular as transações mercantis relativas ao uso e aproveitamento. Moçam-
aluno. Se não, porquê tanta insistência, mesmo uma certa condicionalidade
bique tem um grande potencial agrícola cujo sucesso depende de uma política
para o apoio na educação, em que a condição é esta pedagogia?
de desenvolvimento rural que valorize ojáctor humano, particularmente a
mulher que é a maioria no conjunto da população rural. Sem o envolvimento

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A Longa Mal'cha duma «Educação pai-a lodos» em Moçambique
José P Castiano • Sevel'ino E. Ngoenha

ducentes à Agenda 2025 foi frequente ouvir dos colegas economistas o argu-
e a participarão activa das comunidades locais e da mulher, não é possível
mento - tenho que reconhecer, de certa forma compreensível - segundo o qual
atingir os objectivos do desenvolvimento, em especial, o desenvolvimento ru-
«não se pode distribuir o que não se tem».
ral. [ ... ] Os pilares de uma estratégia de desenvolvimento agrícola consistem
O paradoxo seguinte é que, embora o desenvolvimento se planifique em
(i) na melhoria dos canais de comercializarão agrícola; (ii) na promorão das
nome da igualdade, no processo de aplicação das políticas sempre haverá sa-
agro-indústrias; (iii) tornar o processo de obtenrão de títulos de uso e de apro-
crificados. A desigualdade, particularmente a social, é encarada como algo
veitamento da terra mais célere e transparente; (iv) tornar a investigarão e a
natural. Daí surge e se justifica a ideia de haver e de se formar uma «burgue-
extensão agrícolas mais eficazes de modo a responder às necessidades imedia-
sia nacional», ide ia que também foi muito debatida durante os trabalhos da
tas dos camponeses; (v) o aumento da produtividade através da extensão e a
Agenda 2025. Esta burguesia terá um carácter novo: será empreendedora. De-
utilizarão de sementes melhoradas, (vi) conceder incentivos para a produrão
fende-se, assim, a emergência de «moçambicanos ricos sim, mas com ética».
e exportarão de produtos agrícolas, da pesca e da pecuária.»
Por outras palavras, advoga-se a acumulação de recursos em poucas mãos para
ampliar a capacidade de investimentos. A desigualdade inicial é apresentada
Em redor do desenvolvimento há paradoxos que importa pôr em relevo.
como algo «natural» para o desenvolvimento. Numa perspectiva sociológica,
Propomos, antes de podermos responder à questão «o que significa educar
significa que se nuclearizam os actores sociais do desenvolvimento.
para o desenvolvimento», examinar os paradoxos do desenvolvimento.
O quarto paradoxo: a maior parte dos discursantes em prol do desen-
O primeiro paradoxo é que se, por um lado, o desenvolvimento é plani-
volvimento «reconhece» que a agricultura e as zonas rurais deve ser a base do
ficado (p.e. através do P ARPA [Plano de Redução da Pobreza Absoluta em
desenvolvimento. Até aqui tudo bem. O problema começa quando, parado-
Moçambique], Agenda 2025, etc.) o mesmo desenvolvimento não tem fim.
xalmente, a sociedade industrial moderna aparece como modelo de práticas e
Ou seja: ninguém pode garantir que chegados ao ano 2025 estaremos «desen-
valores. C2..!.Jando se fala em desenvolvimento rural, no fundo não se trata de
volvidos», por mais que se garanta o cumprimento das metas desenhadas. Não
outra coisa senão de trazer a cidade para o campo. Para dizê-lo de forma mais
tendo fim, o desenvolvimento não tem início. Ou seja: o que geralmente nos
elegante: estender os serviços estatais modernos para as zonas rurais.
planos de desenvolvimento se chama de «análise situacional» ou ainda «ponto
O quinto paradoxo: o desenvolvimento não tem critérios fL-xos: é cultural?
de partida» não é o ponto de início do processo de desenvolvimento porque as
é político~ é económico? É tudo ao mesmo tempo? No seu artigo conjunto «A
raízes de uma determinada situação que empena o desenvolvimento podem
Ideia de Africa - alguns Subsídios para a Reflexão», publicado no suplemento
estar ainda mais recuadas na História do que podemos imaginar. Sob o ponto
do jornal Notícias do dia 10 de Julho 2003, Ngoenha e Macamo, escrevem:
de vista puramente lógico, a análise do «ponto de partida» para o desenvolvi-
«Podia-se [ ... ] dizer que a África é o continente subdesenvolvido. Aqui o de-
mento seria uma regressão eterna; assim também o «ponto de chegada» seria
safio iria residir na especificação do significado «subdesenvolvimento». Um
o infinito no futuro.
exemplo simples, em muitos países europeus, onde a xenofobia muitas vezes
O segundo paradoxo é prático: é a primazia do eco nó mico na planifi-
assume um carácter agressivo [ ... ] é normal as pessoas apregoarem a sua hos-
cação do desenvolvimento, embora se articule muito, ao nível dos discursos,
pitalidade com base no argumento segundo o qual na sua cidade, aldeia ou vila
com a questão social. Se as metas do crescimento forem atingidas, será mais
não se bate em estrangeiros. Nós, contudo, retemos ainda na memória o senti-
fácil financiar as outras como, por exemplo, a educação e a saúde. Desta forma
do de hospitalidade do meio em que crescemos (no qual) hospitalidade é quan-
se apela sempre ao apertar dos cintos das camadas mais desfavorecidas que
do se oferece água ao forasteiro e não [ ... ] quando não se bate nele ... C2..!.Jem é
deverão aguentar sacrifícios até que essas metas sejam atingidas. A política de
mais desenvolvido nestas circunstâncias?», terminam eles, perguntando.
crescimento encerra entre parêntesis as políticas sociais. Nos trabalhos con-

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Perante estes paradoxos se compreende que Walter Rodney defina o de- as crianças, particularmente as raparigas, crianças provenientes de famílias
senvolvimento como a «capacidade que o indivíduo tem de actuar sobre o seu pobres e de minorias em desvantagem, tenham acesso a uma educação básica
meio». Ou seja, quando falamos em «educação para o desenvolvimento» te- completamente gratuita e de boa qualidade; (3) garantir que as necessidades
mos de ter na mente que a educação básica passa a ter o sentido de um proces- de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam cobertas através de um
so de transmissão de competências básicas para que cada indivíduo possa agir acesso equitativo à aprendizagem e à aquisição de capacidades necessárias para
no seu meio. Essas competências básicas são as comunicativas (ler, escrever e a vida; (4) aumentar as taxas de alfabetização em 50%, principalmente entre
falar argumentativamente), as de manter uma qualidade de vida sã (educação as mulheres; (5) eliminar as disparidades entre raparigas e rapazes no acesso
sanitária, higiene, reprodução, etc.) assim como as competências produtivas ao ensino primário e secundário até 2005 e atingir uma equidade completa
para o auto-sustento. Por isso, o direito à educação visa potenciar cada cida- entre eles no ano 2015 e (6) melhorar a qualidade da educação e ser capaz de
dão para poder e saber tirar dividendos do desenvolvimento nacional. Mas, assegurar a obtenção de resultados de aprendizagem mensuráveis para todos,
por outro, e sobretudo, capacitar este mesmo cidadão a actuar sobre o seu especialmente, leitura, aritmética e capacidades de vida essenciais.
meio. Portanto, uma educação concebida nestes moldes explode as fronteiras Embora os objectivos sejam gerais para todos os países africanos, o NE-
de um sistema meramente formal de educação. Ele convida os outros agen- P AD iria insistir para que hajam planos nacionais claros a nível de cada nação
tes intervenientes na educação a vincularem-se com mais responsabilidade na assinante do compromisso de Dacar. Mas, simultaneamente, iria ajudar as
Educação para Todos. nações na angariação dos fundos necessários, junto à comunidade interna-
cional, para atingir estes objectivos. O próprio NEP AD se auto-compreende
NEPAD e Educação como um fórum político que, aproveitando a presença dos chefes de Estados
membros, pode pressionar no sentido de se alcançarem os objectivos preten-
O maior plano actual de cariz neo-liberal e que supostamente deverá tirar didos, usando sobretudo os mecanismos de consulta preestabelecidos a nível
a África do subdesenvolvimento é o NEPAD. Este oferece aquilo que chama da União Africana.
a sua «visão» para o sector de educação por, mais uma vez e tal e qual como Ora, segundo o Banco Mundial, este mega plano educacional iria cus-
em planos pan-africanos anteriores, considerar que ela tem um papel impor- tar pelo menos entre a US$10 a US$15 bilhões para todos os 171 países em
tante no desenvolvimento. A visão do NEPAD para a educação é composta vias de desenvolvimento, dinheiro que viria principalmente de fontes internas
por quatro áreas prioritárias: educação para todos - com qualidade -, ensino e internacionais. A UNICEF, a OXFAM e a UNESCO também fizeram
superior, HIV/SIDA e, por último, o fornecimento do material escolar e re- os seus cálculos sobre a quantia necessária para cobrir as despesas relativas à
levância do currículo em relação ao contexto social. educação para todos com qualidade. Estas organizações defendem mais ou
Embora na essência ratificando o plano de Dacar, o texto do NEPAD menos os mesmos números. O NEPAD vê como seu papel aqui especificar
sobre a educação para todos chama-nos atenção para uma ligeira, mas im- ainda mais os custos porque os que as organizações mencionadas fornecem
portante modificação: fala de educação para todos, mas «com qualidade». Por parecem-lhe ainda muito gerais.
isso, o texto do NEPAD selecciona alguns princípios de Dacar que aceita, No documento do NEPAD são apontadas várias ameaças ao plano de
sem no entanto especificar qual a posição perante os outros princípios. Neste educação para todos. Em primeiro lugar, está o HIV/SIDA. O papel do NE-
contexto, a NEPAD ratifica os seguintes objectivos: (1) expandir e promo- PAD aqui seria exigir para que todos os planos educacionais dos países mem-
ver a educação pré-escolar, especialmente para as crianças provenientes das bros contenham uma avaliação ou prognósticos dos efeitos da prevalência do
camadas socialmente mais discriminadas; (2) assegurar que em 2015 todas HIV/SIDA e de como este vírus iria afectar a capacidade do sistema de edu-

302 303
A l.onga Mat-cha duma «Educação pat-a Todos» em IVloçambique
José P Castiano • SeVet-lno E.

cação em responder ao desafio. Também deverá incluir medidas para mitigar esforço para não duplicar as tarefas. Ela pressupõe uma grande dose de boa
os efeitos precisos, mais precisamente as medidas previstas para garantir que vontade (portanto de imperativo moral) de cada lado. Até aqui tudo bem.
os órfãos tenham oportunidades iguais. Uma outra ameaça apontada poderia :Mas os problemas começam quando eu - como parceiro africano - meter na
provir das desigualdades de acesso à escola entre os rapazes e as raparigas. Os minha cabeça que teremos somente vantagens mútuas e que, quando estamos
planos nacionais, segundo o NEPAD, deverão incluir também planos con- em parceria, os interesses particulares jogam um papel secundário. Aí estarei
cretos sobre como cada nação iria alcançar a equidade do género. Por último, a ser ingénuo. Pensamos que, na política de parcerias, o cálculo deve jogar
a ameaça ao plano de educação para todos poderá provir das condições pre- um papel maior no sentido de, a dado passo, nos perguntarmos se o resultado
cárias de aprendizagem da maioria das crianças, devido sobretudo à fome. da parceria relativamente à educação se traduz na melhoria da qualidade de
Neste âmbito o NEPAD iria trabalhar com o PMA para desenhar esquemas educação.
de melhoria de nutrição, especialmente das crianças. A estimativa para este Um outro problema das parcerias é o carácter pouco vinculativo delas.
Efectivamente, as ONGs que constróem escolas por exemplo, retiram-se da
programa de nutrição é de US$2 bilhões até 2015.
localidade depois de acabar o seu projecto dei,'{ando a escola nas mãos do Es-
tado ou da comunidade. Ou ainda: depois de construir um regadio, a ONG já
4. Por um Pacto Educacional não se sente vinculada às desigualdades sociais que advêm do acesso desigual
à agua.
As políticas públicas no sector da educação preconizam o aumento do Mas em relação à educação, o maior problema das parcerias é a possibi-
acesso à educação assim como a melhoria da qualidade. E no Plano Estratégi- lidade real que existe no controlo ou supervisão da implementação do direito
co da Educação sublinha-se o facto de que o Estado não pode estar sozinho. à educação. Este encontra-se altamente dependente da capacidade do Estado
Deve haver parcerias, particularmente com as ONGs, com as comunidades moçambicano em exercer uma pressão moral sobre os parceiros internacio-
religiosas entre outras instituições da sociedade civil. Esta ideia de parcerias nais. Não existem sanções legalmente construídas no caso de o Estado ou os
disseminou-se em todas as esferas, desde a eco nó mica até a política. Mas tam- seus parceiros não cumprirem, por exemplo, com o Plano de Educação para
bém é omnipresente nas relações regionais com os países vizinhos e do resto Todos até 2015. Mas, pelo menos, o Estado tem o dever moral de, no fim de
do mundo. Ela teve muitos adjectivos qualificativos, entre os quais se destaca cada período, divulgar um relatório sobre o cumprimento deste plano. Aqui
a ideia de «parceria inteligente». Já problematizámos este aspecto no capítulo deveria haver uma instância formalizada que arbitrasse este direito e não ser
sobre as aporias. No entanto, chegados a este momento importa pôr a seguinte deixado apenas sob a forma de uma pressão moral. Mas, por outro lado, o
questão: será que a ideia de parceria é suficientemente vinculativa dando res- próprio Estado só pode, sempre que fizer um plano, apelar para que os seus
ponsabilidade aos intervenientes na tarefa de implementar a Educação Para «parceiros» contribuam para a sua implementação. De acordo com a experi-
Todos? Esta questão torna-se ainda mais pertinente se, como dissemos atrás, ência, a política pública na educação é refém da boa vontade de parceiros, mas
tivermos em conta que estamos a tratar a educação básica na perspectiva de as responsabilidades sociais destes parceiros externos não são vinculativas. O
um Direito fundamental hoje. Estado não tem como se queixar no fim e apontar um dedo acusatório a uma
A nossa percepção, porém, é de que o substracto moral das parcerias - em- organização internacional que, embora tenha desembolsado alguns valores,
bora desejável - instala-se com alguma dificuldade num mundo de interesses não cumpriu cabalmente com os seus deveres.
sobretudo económicos. Explicamo-nos: a parceria é um convite a que duas ou Pensamos que, se continuarmos a apostar em parcerias como estratégia,
mais instituições ou empresas façam juntos um determinado projecto num não alcançaremos o sonho deste século que é o de dar o direito à educação

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José P Castiano • Sevel-illo E. Ngoenha A Longa i"liwcha duma «Educação pai-a Todos» em iVloçambique

básica a todas as crianças e adultos, segundo reza a visão ampliada. É preciso cativas se fazem omnipresentes e, portanto, se repisam mais as áreas de inter-
responsabilizar e vincular mais os parceiros na educação. As políticas públicas venção. Já a nível nacional a ênfase seria mais nas regras de implementação
educacionais terão que seguir o princípio de assinar pactos com os diferentes dos diferentes agentes educacionais.
actores na área da educação. Nestes pactos definem-se as áreas de intervenção, Naturalmente que a ideia de Pactos Educacionais não pode florir num
mas, para além disso e sobretudo, as regras de jogo dos intervenientes. Estes Estado administrativamente muito centralizado. Seria, na prática, um exem-
pactos devem ser juridicamente válidos, portanto, susceptíveis de sanções por plo de como se fariam os dois processos (ou «movimentos»), «de cima para
parte dos intervenientes que não os cumpram. Mas, sobretudo, eles devem baixo» e de «baixo para cima», em que os pólos de demanda e decisão locais
realçar o compromisso dos parceiros em alcançarem as metas indicadas. exerceriam uma pressão que iria forçar à mudança dos planos nacionais, ou
Os «assinantes», ou se quisermos, os participantes do Pacto Educacional seja, para nos repetirmos a nós próprios, haveria momentos, sectores e de-
seriam: cisões em que a actividade do aparelho administrativo central se adaptasse
às necessidades e demandas educacionais locais. Daí o termos discutido este
• o Estado: responsável pela definição de políticas públicas, pela coorde-
aspecto mais acima.
nação de todas acções para a implementação da Educação Básica para
Todos, pela formação de professores para o Ensino Básico e de super-
visão;
o Papel do Estado
• o sector empresarial: qualificação profissional e financiamento desta
De particular importância para o pacto funcionar é o papel que o Estado
qualificação através de impostos, por exemplo;
• as Famílias: encarregam-se da educação pré-escolar e moral-espiritual deve jogar. É evidente que o desenho de qualquer sistema de educação res-
ponde ou está em estreita ligação com a forma como o Estado está organi-
das crianças;
• a sociedade civil (ONGs e Instituições religiosas): financiamento, qua- zado. Ou seja: a relação entre a organização e os conteúdos de educação com
lificação e educação cívico-moral das crianças fora da escola no quadro a forma de organização do próprio Estado é mais estreita do que à primeira
das competências e capacidade definidas pelas políticas públicas; e vista parece ser. Assim, por exemplo, as medidas de gestão local e autonomia
• os meios de comunicação: compromisso social em divulgar uma deter- duma escola em qualquer distrito enquadram-se sempre no âmbito mais geral
minada percentagem de programas educativos, particularmente cívicos das reformas da administração pública que envolvem dimensões política, ad-
e morais; também devem assumir um compromisso social de não pas- ministrativa, económica, etc. Por isso, debater o papel do Estado na educação
sarem programas com publicidade nociva (fumo, consumo de bebidas pressupõe antes equacionar a organização e os fundamentos do Estado.
alcoólicas, sexismo, etc.) ou passarem-nos de forma controlada É a partir da segunda metade da década de 80 do século passado que
começa o debate, embora tímido, sobre os fundamentos do Estado moçam-
A ideia do «Pacto Educacional» significa que os diferentes actores deve- bicano. Em 1990, a Constituição abriu portas para um repensar mais amplo
rão fazer parte dos planos estratégicos quinquenais da educação (comunitário, e aberto. Concomitantemente é no âmbito da reforma do sector público em
provincial e nacional) com as responsabilidades respectivas divididas e esse Moçambique que circula alguma literatura com ideias reformistas do Estado
deve ser um instrumento legal de pressão para que os assinantes cumpram moçambicano e alguma até que visa repensar os fundamentos do próprio Es-
com as suas responsabilidades. tado Moderno no nosso contexto. Todo o debate em torno do Estado assenta
Uma última palavra sobre o processo da construção deste pacto: a nossa então em dois factores de crise: por um lado o Estado, por herança do modelo
ideia é que se comece a nível comunitário/distrital onde as necessidades edu- centralista, encontrava-se sobrecarregado. Referindo-se a essa sobrecarga já

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José P. Castiano • Sevel~ino E. Ngoenha A Longa 1"1aI~cha duma «Educação em

Samora Machel dizia que o «Estado não pode administrar desde a fábrica explica-se dizendo que se «compreende» o fascínio «... por o Estado moder-
até a agulha» (citação de memória). Por outro lado, há a questão da «crise da no ser um instrumento privilegiado para realizar de uma maneira rápida os
legitimidade» consubstanciada por um certo afastamento entre o Estado e a projectos que corporizam a independência, pela sua eficácia, modernidade e
Sociedade. Efectivamente, as zonas rurais passam a viver mais na periferia abrangência». Porém, segundo o próprio Monteiro reconhece, houve duas
sem acesso aos serviços básicos fundamentais tais com a educação, saúde, água limitantes, sendo uma de carácter prático e outra de carácter teórico. A pri-
potável, etc. meira é que «esse» Estado ainda não realizou o objectivo de servir a formação
Para nos ajudar no debate em torno dos fundamentos do Estado moçam- da Nação porque nem todos os cidadãos se identificam com a mesma bandeira
bicano recorremos a escritos de José O. Monteiro. Entre os escritos por ele e Pátria; segundo ele, alguns «instrumentos concretos de unificação» como
publicados, há um que, deveras, nos chama atenção pelo título interessante escolas, serviços públicos, língua comum, estão pouco presentes. A segunda
e pretensioso que ostenta, a saber, Em Busca de um Reencontro entre o Est~do dificuldade apontada - a teórica - é que «esqueceu-se» (ele utiliza este termo)
Necessário e a Sociedade Real. Já no título notamos uma posição de base de Os- de avaliar com rigor se uma réplica do Estado europeu, nascido e concebi-
car Monteiro: que, por um lado, existe um Estado moçambicano e por outro do para servir interesses de dominação eco nó mica externa, quando aplicado
uma Sociedade que ele adjectiva de real. Ambos, porém, precisam de se :een- em condições de libertação, se adaptava perfeitamente aos novos objectivos
contrar, informa-nos o título. Para explicar o «desencontro» implícito, Oscar e desafios. O que é mais interessante em tudo isto, porém, é que no passo
Monteiro recorre primeiro à História de Moçambique. No seu entender, o seguinte, o articulista coloca a equação se, hoje, ainda se trata de melhorar
Estado moderno moçambicano tem a sua origem na imposição histórica do o processo de extensão do Estado moderno ou se se trata de ter uma <<l1ova
Estado colonial. Segundo ele, já na época colonial o Estado se divide em duas abordagem». Citamos, em seguida, a forma como ele exactamente coloca a
formas de gestão política: por um lado, havia uma forma de administração questão para o debate: «Uma questão estratégica coloca-se porém: saber se se
«efectiva» colonial, abrangendo sobretudo zonas e sectores onde a colonização trata no essencial de melhorar estendendo com eficácia o Estado moderno ou
poderia ter maiores benefícios. Estas zonas coincidem regionalmente com as se se trata também de ir buscar nas raízes da organização social local um outro
zonas costeiras. Mas havia, por outro, zonas ou lugares mais distantes dos fundamento para a res publica» (p.3).
grandes centros costeiros que, no entender de Óscar Monteiro, constituem A conclusão do artigo é fácil de antever: ele acaba advogando, já na pá-
uma espécie de «segunda zona» onde a autoridade não é efectiva. Nas suas gina 7 da versão que possuímos, a necessidade de se encontrar um «Ponto
palavras, «... a distinção entre os concelhos e circunscrições d? alguma forma de Encontro» (note-se que já não é um «reencontro» como o título anuncia)
vem reflectir esta diferença». Portanto e resumidamente, o Oscar Monteiro entre o Estado e as Comunidades (locais). Este encontro resultaria, segundo
quer nos dizer que o carácter duplo e, portanto de exclusão no desenho do o nosso autor, de dois processos (ou «movimentos»): um que denomina «de
Estado actual, é uma herança do Estado colonial. cima para baixo» que seria uma «vontade deliberada» do aparelho central do
Mais adiante, referindo-se já ao Estado que se ergueu no pós-indepen- Governo em transferir competências e poderes de decisão para níveis territo-
dência, o mesmo autor defende que o modelo de governação adoptado pela riais inferiores (descentralização/desconcentração); um segundo processo se-
«geração que lutou pela independência» procura incorporar o Estado moder- ria o de «baixo para cima» em que os pólos de demanda e decisão locais exer-
no exógeno nas experiências de organização social e estatal durante a luta ceriam uma pressão que iria forçar à mudança organizacional, ou seja, haveria
(às quais ele chama de «natureza participativa»). E duma forma elegante ele momentos, sectores e decisões em que a actividade do aparelho administrativo
admira-se pela «fascinação que o Estado moderno exerce sobre a geração que central se adaptava às necessidades e demandas locais.
lutou pela independência!». Ao tentar compreender este «fascínio», Monteiro

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José P Castiano • Sevel-ino E. Ngoenha

Para Monteiro, a resultante destes dois momentos seria aquilo que ele Bibliografia
chama de «uma simbiose» mais adequada à realidade, ou seja, à «Sociedade
Real». O Estado perderia, assim, para visionar com ele, a pouco e pouco o seu
carácter essencialmente externo «sem perder o seu potencial de modernida-
de». No entanto, para que a «simbiose» seja genuína, seria necessário antes,
segundo Monteiro, olhar para a sociedade rural e para as comunidades onde
vivem pessoas como «entidades que têm demonstrado capacidades para re- AGENDA 2025. Visão e Estratégias da Nação. Documento Preliminar. Comité de
solver os seus problemas». Ele parte do pressuposto de que há «riquezas ig- Conselheiros (Ed.). Maputo-Moçambique, 25 de Junho 2003.
noradas» que primeiro precisam de ser identificadas para enriquecer o «ponto ABRAHAMSON, Hans e NILSON, Anders: Moçambique em Transição. Um Estu-
de encontro». Monteiro pensa ter «salvo» o Estado Moderno, mas ao mesmo do da História do Desenvolvimento durante o Período 1974-1992. Padrigu-CEEI-
-ISRI. Maputo, 1994.
tempo ter incorporado os elementos locais. Ele pensa, assim, ter desenhado
um Estado capaz de lutar de forma mais eficaz contra a pobreza, rumo ao ADICK, Christel: The Impact of Globalísation on National Education Systems. In:
Wulf,C. & Merkel,C. (Ed.): Globalisierung a1s Herausforderung der Erziehung.
desenvolvimento.
Theorien, Grundfragen, Fallstudien. Waxmann MunsterlNew York, Munchen/
Berlin, 2002. (45-58)
Uma outra visão de Estado foi apresentada pela agenda 2025. É uma ver- ADICK, Christel: Die Universalisierung der modemen Schule. Eine theoretische
são que tenta conciliar um Estado liberal e pragmático, mas ao mesmo tempo Problemskizze zur Erklãrung der weltweiten Verbreitung der modernen Schule in den
forte e controlador. letzten 200 Jahren mit Falstudien aus Westcifrika. Ferdinand-Schõningh. Pader-
Em relação à educação, o Estado não deve abdicar das suas responsabili- bom, München, Wien, Zürich, 1992.
dades. No pacto educacional deverá estar claro que a educação básica (na sua ADICK, Christel; GROSSE-OETRINGHAUS, Hans-Martin·, NESTVOGEL ,
versão ampliada) e a formação dos professores é da responsabilidade do Esta- Renate: Bildungsprobleme Afrikas. Z'1.vischen Kolonialísmus lmd Emanzipation.
Berliner Studien zur intemationalen Politik. Berlin, 1985.
do. Nesta ordem de ideias pensamos que o MINED deveria restringir a sua
área de actuação para o ensino básico e a respectiva formação de professores. ALMEIDA, Adelino A. M.: Para a compreensão do evoluir do ensino em Moçambique,
1926-1974. In: Africana n.O 1, Setembro 1987. (l-lOS).
Há muita coisa a fazer ainda a este nível. O Estado não deve abdicar da sua
responsabilidade de distribuir gratuitamente o livro e o material básico para ALl\IIEIDA, Adelino A. M.: Moçambique e o seu ensino eJpecifico: as escolas de artes e
~fícios, 1878-1974. In: Africana, n.O 2 (Mar. 1988) (25-237).
que as crianças estudem. Os professores devem ser formados no sentido de
que sejam capazes de explorar o imaginário cultural e as experiências sociais ALMEIDA, Américo Chaves de: Política Escolar Ultramarina. In: Broteria, vol.
XXII, n.O 1. Lisboa, s/e, 1936. (48-58).
do local onde a escola está inserida e transformá-las em conteúdos de ensino.
Também se deverá preocupar mais em ocupar as crianças que estão fora da ALMEIDA, Luís Moreira de: A Instrufão Pública em Moçambique e sua Evolução.
Lisboa: Didrio da Manhã, n. o extraordinário da viagem do Sr. Presidente da Repúbli-
escola, enquanto não entram. ca à Província Ultramarina de Moçambique, ano 30 (Set. 1956). (pp.10).
Em suma, o Estado moçambicano tem o compromisso histórico de não
ÀKESSON, Gunilla: School-Books and Buying Power. A Study ofschooú anel pres-
deixar só o povo na sua longa marcha por uma «Educação para Todos», sob cribed books in the rural areas of Mozambique. Education Division Documents
pena de perder a sua própria legitimidade e soberania. Esta deve ser assumida Nr.5. SIDA. Estocolmo, 1992.
como uma tarefa permanente da qual depende a nossa sobrevivência e afirma- AKIMPELU,J.A.: An Introduction to Philosophy of Education. Macmillan. London
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310 311
José P Castiano • Sever-ino E. Ngoenha
A Mar'cha duma «Educação para 1üdos» em Moçambique

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