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Não há dúvidas de que existe uma íntima correlação entre a forma de Estado
estabelecida e o processo penal. Estados nitidamente autoritários ou totalitários3
empregam em seus programas de persecução características que lhes são inerentes: o
sistema inquisitorial, em que a figura do acusador se confunde com a figura do julgador;
procedimentos sigilosos, escondendo da população as ferramentas empregadas para
violação da intimidade do investigado; flexibilização de garantias; abandono da cláusula
de reserva de jurisdição, deixando todas as decisões a cargo de um ente que atenda aos
interesses do detentor do poder.
Como afirma Piero Calamandrei, o processo penal da maneira como é conduzido
reflete o tipo de Estado em que se insere.4 Assim, Estados Democráticos de Direito
tendem a respeitar o contraditório, a ampla defesa, as garantias do cidadão previamente
fixadas pelo Poder Constituinte Originário e também pelo legislador ordinário ao
estabelecer novas proteções individuais contra os arbítrios estatais. Nesse sentido,
afirma Geraldo Prado que o modelo de processo penal acaba sendo um espelho dos
valores sociais vigentes em uma determinada sociedade, em um determinado momento
histórico. (PRADO; 2002; p. 144)5
3
Em uma breve análise sobre o tema, o totalitarismo é um regime de exceção imposto pela maioria sobre
a minoria oprimida, enquanto o autoritarismo é um regime imposto por um grupo, não majoritária, para a
maioria da população, com o domínio dos organismos de massa. Sob esse prisma, o regime nazista de
Hitler era um regime totalitário, enquanto o regime estalinista foi um regime autoritário. Sobre o tema
escreve Hannah Arendt: “Nada caracteriza melhor os movimentos totalitários em geral — e
principalmente a fama de que desfrutam os seus líderes — do que a surpreendente facilidade com que são
substituídos. Stálin conseguiu legitimar-se como herdeiro político de Lênin à custa de amargas lutas
intrapartidárias e de vastas concessões à memória do antecessor. Já os sucessores de Stálin procuraram
substituí-lo sem tais condescendências, embora ele houvesse permanecido no poder por trinta anos e
dispusesse de uma máquina de propaganda, desconhecida ao tempo de Lênin, para imortalizar o seu
nome. O mesmo se aplica a Hitler, que durante toda a vida exerceu um fascínio que supostamente
cativava a todos, e que, depois de derrotado e morto, está hoje tão completamente esquecido que mal
representa alguma coisa, mesmo entre os grupos neofascistas e neonazistas da Alemanha. Essa
impermanência tem certamente algo a ver com a volubilidade das massas e da fama que as tem por base;
mas seria talvez mais correto atribuí-la à essência dos movimentos totalitários, que só podem permanecer
no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia. (...) Os
movimentos totalitários objetivam e conseguem organizar as massas — e não as classes, como o faziam
os partidos de interesses dos Estados nacionais do continente europeu, nem os cidadãos com suas
opiniões peculiares quanto à condução dos negócios públicos, como o fazem os partidos dos países anglo-
saxões. Todos os grupos políticos dependem da força numérica, mas não na escala dos movimentos
totalitários, que dependem da força bruta, a tal ponto que os regimes totalitários parecem impossíveis em
países de população relativamente pequena, mesmo que outras condições lhes sejam favoráveis.”
HANNAH, Arendt. Origens do Totalitarismo. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1979, p. 339-
340. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/
anthist/marcos/hdh_arendt_origens_totalitarismo.pdf>.
4
CALAMANDREI, Pietro. Processo e Democracia. Tradução de Mauro Fonseca Andrade. 2ª ed. Porto
Alegre, 2018, p. 26-27.
5
PRADO, Geraldo. A REFORMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA. Revista Brasileira de
Ciências Criminais | vol. 40/2002 | p. 143 - 154 | Out - Dez / 2002.
3
Além disso, é importante frisar que, com o final da Segunda Guerra Mundial e o
restabelecimento da eficácia normativa da Constituição, além da questão da efetivação
dos direitos fundamentais, a Constituição passa a ser um norte em todo o ordenamento
jurídico, sendo que suas garantias atingem todos os ramos do direito. Assim, o jurista
argentino Ricardo Lorenzetti efetua uma comparação interessante entre o ordenamento
jurídico pós-Segunda Guerra Mundial e o sistema solar, comparando a Constituição ao
Sol, e os demais ramos do direito seriam os planetas que orbitam ao seu redor,
emanando energia para os demais sistemas.6
Definindo, Direitos Fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas,
(físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram
caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício
do poder estatal em face da liberdade individual.7
Dentro da lógica do direito penal e processual penal como fonte de garantia do
cidadão, não se pode olvidar as normas internacionais de direitos humanos. A leitura do
direito processual penal não deve se limitar às normas internas de um país, sendo
necessária uma leitura conjunta entre o ordenamento interno e os tratados internacionais
inseridos na lógica de proteção dos direitos humanos e seus sistemas globais e
regionais.
Apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº.
466.343/SP, que estabeleceu a tese da supralegalidade dos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos quando aprovados por quórum simples, nossa jurisprudência ainda é
muito tímida no que se refere à aplicação desses tratados na prática forense. Tanto é
assim que, apesar de a Convenção Interamericana de Direitos Humanos ter sido
ratificada pelo Brasil em 1992, prevendo no seu artigo 7.5 que a pessoa detida deve ser
conduzida à presença de um juiz, somente recentemente, em 2015, o Conselho Nacional
de Justiça editou a Resolução nº. 213 obrigando a realização de audiência de custódia
para o réu que for preso em flagrante ou cautelarmente (preventiva ou temporária)8.
Entre os inúmeros diplomas internacionais, damos destaque à Convenção
Americana de Direitos Humanos, que prevê nos seus artigos 7 e 8 uma série de
6
LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. Tradução de Bruno
Miragem. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
7
Dimoulis, Dimitri. (2014, p.130) Teoria Geral dos Direitos Fundamentais/ Dimitri Dimoulis, Leonardo
Martins. – 5. Ed. rev., atua e ampl. – São Paulo: Atlas, 2014
8
Importante ressaltar que a Lei Federal nº 13.964/19 (denominado de Pacote Anticrime) modificou a
redação do artigo 310 do Código de Processo Penal e obrigou a realização de audiência de custódia em no
máximo de 24 horas após a prisão. O disposto pelo artigo 310, §4º, do Código de Processo Penal teve sua
eficácia suspensa por decisão cautelar monocrática do Ministro Luiz Fux proferida em sede da ADI 6298
MC/DF
4
garantias processuais, sendo a primeira destinada ao preso e a segunda, aos acusados em
geral. A primeira garantia que merece destaque é a celeridade e a temporariedade das
prisões cautelares. No Brasil não há um prazo legal estabelecido para as prisões
preventivas, o que viola expressamente o disposto no artigo 7.5 do Decreto 678/929, que
garante a celeridade processual, ou então que o réu seja posto em liberdade
Um dos artigos mais importantes que reafirmam uma série de garantais já
expostas no presente trabalho é o artigo 8.2, que garante os seguintes direitos: a
comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada, o que ressalta o direito de
informação presente na noção de contraditório; concessão de tempo e meios adequados
para elaboração da defesa, que mostra que a ampla defesa não se resume à nomeação de
um profissional habilitado, sendo necessária a concessão de tempo para que esse realize
o seu trabalho da melhor forma possível; direito do acusado de defender-se
pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua confiança e de se comunicar
com ele de forma livre e em particular, o que mostra a íntima ligação entre a autodefesa
e a defesa técnica e a preocupação em realizar uma defesa técnica qualificada; a
irrenunciabilidade da defesa técnica, devendo o Estado promover um defensor no caso
de hipossuficiência; o direito de reação através da produção probatória; a vedação da
produção de prova contra si mesmo; e o duplo grau de jurisdição.
Além disso, para ilustrar essa concepção garantista do processo penal, temos o
caso “Herrera Ulloa vs. Costa Rica”10, julgado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, em que julgou procedente a reclamação da Comissão declarando que houve
violação de direitos humanos por parte da Costa Rica ao condenar o jornalista Maurício
Herrera Ulloa por crime de expressão. Como apontam Caio Paiva e Thimotie Aragon
Heemann:
O caso se relaciona com a denúncia do CIDH, por meio da qual alega ter o
senhor Mauricio Herrera Ulloa sido vítima de violação de direitos humanos à
liberdade de expressão em razão de sentença penal condenatória que recebeu
por ter publicado no jornal La Nacion, em 1995, diversos artigos que
reproduziam parcialmente informações de alguns jornais europeus referentes
a atividades ilícitas praticadas pelo diplomata Félix Przedborski,
9
Artigo 7º, item 5 do Decreto 678/92 possui a seguinte redação: “Toda pessoa detida ou retida deve ser
conduzida, sem demora, á presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções
judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo
de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condiciona a garantias que assegurem o seu
comparecimento em juízo.”
10
Caso denunciado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 28 de janeiro de 2003, sendo
a Costa Rica condenada em 02 de julho de 2004. A sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos pode ser encontrada no site: https://www.corteidh.or.cr/docs/canes/articulos/seriec_107_esp.pdf
.
5
representante da Costa Rica na Organização Internacional de Energia
Atômica na Áustria.11
A leitura do caso demonstra o uso tanto do direito penal como do processo penal
como meio de perseguição política, com o fim de atender aos anseios dos detentores do
poder político. Para enfatizar esse aspecto do caso, e reforçar a necessidade de
considerar o processo penal como uma garantia do cidadão em um Estado Democrático
de Direito, o juiz da Corte García Ramirez, em seu voto, que será transcrito a seguir,
utilizou a expressão “governar com o Código Penal na mão”12. Segue o voto que ilustra
a questão:
6
ao acusado todas as ferramentas processuais úteis para que possa ser exercida a ampla
defesa e respeitado o Estado Constitucional.
Portanto, tanto o Direito Penal como o Processual Penal possuem como base
epistemológica a Constituição Federal, que passa a ser, além da tradicional fonte de
validade do ordenamento, na visão de Kelsen, um norte de interpretação e a principal
fonte normativa do processo penal. Esses reflexos permitem a conclusão de que
qualquer relativização das garantias constitucionais do direito material e processual
penal fere o próprio propósito de ser desse ramo do direito, tornando a punição estatal
ilegítima e arbitrária.
Aliás, em um clássico artigo acadêmico ao escrever sobre o devido processo
penal, o professor Rogério Lauria Tucci14 (TUCCI; 1993; p. 467) aponta que o termo é
utilizado de maneira técnica, impondo que dentro de um Estado Constitucional de
Direito, para a incidência de uma sanção penal deve impor leis que respeitem a
razoabilidade e os mandamentos constitucionais, evitando normas extremamente
rigorosas ou que inviabilizem o exercício de direitos e garantias fundamentais (a essa
característica do devido processual o termo em inglês substantive due processo f law,
em razão de sua origem estadunidense). Além disso, o devido processo legal garante a
aplicação da norma posta abstratamente, por meio de um processo de interpretação
judicial, o que inclui a garantia do juiz natural fixado de maneira abstrata por uma lei
cuja vigência ocorreu antes do fato, e também a paridade de armas devendo ser
garantida a igualdade substancial entre as partes, o que garante um tratamento
diferenciado para a parte que encontra-se em desvantagem (quase sempre o investigado
ou o réu que enfrenta todo o aparato estatal, sem uma adequada reação defensiva à
imputação).
Portanto o devido processo penal, como base fundante do processo penal em um
Estado Democrático de Direito, impõe ao Estado não só um dever de abstenção,
impedindo que este limite garantias fundamentais além daqueles permitidos pela
Constituição, como também impõe um dever de promoção criando mecanismos para
que o indivíduo que enfrenta todo aparato estatal penal, possa reagir de maneira
adequada ao que lhe é imputado, sob pena de tornar a sanção penal arbitrária, autoritária
e ilegítima.
14
Tucci, Rogério de Lauria. “Devido processo penal e alguns dos seus mais importantes corolários”.
Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 880, p. 463-484. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67232 (Acessado em 27 de maio de 2021).
7
2 A FUNÇÃO DE GARANTIA DO PROCESSO PENAL EM UM ESTADO
CONSTITUCIONAL DE DIREITOS
Por isso, trabalhamos com a ideia de que é eficiente o processo composto por
procedimento que assegura aos três sujeitos que nele atuam condições para
agirem em consonância com as suas missões específicas e, ainda, às partes os
meios para defenderem seus direitos e fazerem respeitar suas garantias. A
maior ou menor eficácia do processo dependerá de como ele, concretamente,
assegurou tudo isso aos sujeitos que nele atuaram. A análise da efetividade
vai além. Consiste no exame do que se espera do processo, na verificação de
seus objetivos: a realização da justiça, a asseguração do bem comum e da
pacificação.15 (Fernandes; 2008, p. 528)
8
extraídas desse e de anteriores estudos: 1. Não deve existir
antagonismo entre eficiência e garantismo. O processo somente será
eficiente se observar as garantias do devido processo legal. [...]”
17
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Prefácio da 1ª edição italiana de
Noberto Bobbio. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 15-63.
18
Ibidem, p. 71.
9
impar sendo condição sine qua non para a incidência da tutela penal. O processo é um
meio de garantia, pois, como afirma Luigi Ferrajoli,
10
modificações, são especialmente relevantes para o desenvolvimento do processo
penal.23
23
SIEBER, Ulrich. Limites do direito penal: princípios e desafios do novo programa de pesquisa em
direito penal no Instituto Max-Planck de direito penal estrangeiro e internacional. São Paul , v. 4, n. 1, p.
269-330, June 2008.
24
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2015, p. 61.
25
BADARÓ, Gustavo. Juiz Natural no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 43-
47.
26
BADARÓ, Gustavo. Juiz Natural no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
27
Ibidem, p. 46-47.
11
essa foi a primeira vez que se reconheceu o direito ao juiz local, com a vedação das
formações de tribunais de exceção, representados pelas Comissões Reais, que afastavam
os juízes locais competentes. Nas palavras do autor:
12
representou uma mudança radical nos âmbitos político e jurídico, principalmente com a
consolidação do principio da legalidade, preconizando como válido e existente as
normas escritas de maneira geral e abstrata, por uma autoridade competente. Assim, o
critério de validade do ordenamento jurídico não é mais o conteúdo normativo ser justo
ou injusto, mas sim se a referida norma posta foi estabelecida por uma autoridade
dotada de poder legiferante. Assim abandona-se os valores jusnaturalistas e impõe-se
uma visão positivista normativa.30
A conclusão de que a garantia do juiz natural historicamente nasce da
competência territorial (locus commissi delicti) nos parece óbvia, então é intrigante que
os tribunais superiores tenham fixado o entendimento de que a violação dos critérios de
competência fixados pela norma infraconstitucional, que estabelece a competência
territorial nos artigos 69 a 91 do Código de Processo Penal, configura uma nulidade
relativa, devendo a parte demonstrar que houve prejuízo, e inclusive afirmando que a
não apresentação pela defesa de exceção de incompetência gera a prorrogação da
competência31.
Pela exposição até o momento demonstrada, observa-se que a garantia do direito
ao juízo natural tem seus fundamentos históricos no combate aos regimes absolutistas,
que promoviam graves violações aos direitos humanos, sendo a base do juiz natural o
locus commissi delicti, nitidamente negada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo
Superior Tribunal de Justiça. Ao que parece, esse descaso das Cortes Supremas à
garantia do juiz natural, ou seja, um juízo previamente fixado por lei anterior ao fato
objeto de análise pelo Poder Judiciário, possui duas possíveis explicações. A primeira é
que não há a real compreensão do significado do juiz natural, tanto na sua função de
garantir o julgamento por um juiz imparcial (escopo que será analisado adiante) como o
fato de que a sua fixação começa pelo território onde ocorreu o delito (fumus commissi
delicti).
Outra causa que agrava ainda mais este problema que merece destaque é o
errôneo entendimento de que o processo penal se funda nas mesmas bases
epistemológicas que o processo civil, quando na realidade não têm os mesmos
fundamentos, e deveria ser estudado não como um ramo de uma Teoria Geral do
Processo, em que estaria inserido junto com o processo civil. O processo civil é uma
área do Direito Público que visa a pacificação social com heterocomposição de uma
lide. Já o processo penal é a garantia do cidadão frente ao ius puniendi estatal, somente
30
MARTINS NETO, João dos Passos; THOMASELLI, Bárbara Lebarbenchon Moura. Do Estado de
Direito ao Estado de Justiça. Florianópolis , n. 67, p. 315, Dec. 2013 .
31
Neste sentido: HC 88.759 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJe de 2/5/2008
13
podendo incidir a tutela penal se percorridas as garantias penais e processuais penais
estabelecidas, ou seja, impossível identificar uma “lide”.
Essa problemática acima apresentada não é nova no campo de estudos das
ciências processuais penais. Segundo Aury Lopes Junior32, Carnelutti abordou o tema
em um artigo publicado em 1946 em que comparou a relação entre o Direito Penal,
Direito Processual Penal e Direito Processual Civil com a fábula da “Cinderela” (2020;
p. 65).
O processo penal é a Cinderela, que tinha que se vestir com as sobras das roupas
das suas outras duas irmãs, o direito penal e o processo civil. Como aponta Aury Lopes
Junior, a maior problemática reside na relação com o processo civil, já que suas roupas
(bases epistemológicas) foram feitas sobre medida para esta, obrigando o processo penal
a usar uma roupagem que não tem sua medida e nem sua finalidade. (2020; p. 66)
Os reflexos desse pensamento são claros quando vislumbrada a possibilidade de
modificação da competência posteriormente à propositura da demanda, principalmente
com relação a competência relativa. O artigo 65 do Código de Processo Civil dispõe que
a competência relativa se prorroga-se caso o réu não a alegue em preliminar de
contestação. Dentro do campo do processo civil esse dispositivo tem sua razão fundada
principalmente na rápida solução da lide, buscando a pacificação social por meio da
heterocomposição. Portanto, a competência territorial não é um fator fundamental do
processo civil, podendo prorrogar-se sem que seus fundamentos sejam violados.
Já o referencial da fixação do juízo criminal competente está fundado na garantia
do juízo previamente fixado em lei, não sendo uma disposição de pequena monta. A
competência territorial, deve ser vista como absoluta dentro do processo penal pois está
fundada na garantia da imparcialidade e vedação da manipulação de foro.
O Estado somente poderá exercer o ius puniendi se respeitado o juiz fixado
previamente pela norma (ou como visto anteriormente somente pode ser julgado by the
law of the land). Como expõe o jurista italiano Roberto Romboli o juiz natural é a
garantia do indivíduo que será julgado por um órgão, seja esta singular ou colegiado,
imparcial e previamente estabelecido33.
Reforçando os argumentos acima esposados Tucci (1993; p. 476-475) ao
dissertar sobre a contraditoriedade no inquérito policial, expõe que o incisos LV da
Constituição Federal, separou de maneira expressa os “litigantes” dos “acusados”. Ao
assim fazer o constituinte estabeleceu uma clara diferença entre o objeto do processo
32
Lopes Junior, Aury. Fundamentos do Processo Penal. 6ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
33
Romboli, Roberto. Il giudice naturale, Milão : Giuffrè, 1981, v. I, p. 131
14
civil (solução dos litígios), e o objeto do processo penal (aplicação da sanção penal
sobre o autor do delito).
Na mesma linha, criticando a Teoria Unitária do Processo, Jacinto Nelson
Mirando Coutinho aponta que a sanção penal, ao contrário das soluções apresentadas
pelo processo civil, somente pode ser aplicada com o percurso de todo processo penal,
atendendo as garantias constitucionais (1989; p. 134). Assim, a Teoria Geral do
Processo, segundo Jacinto Coutinho visa somente legitimar posturas autoritárias e
arbitrárias que em nada respeitam os mandamentos constitucionais e transforma o
julgador em mero robô (1989; p. 136).
Sobre a questão sistematiza Aury Lopes Junior ao mencionar as patologias
geradas pela tentativa de gerar uma teoria geral do processo abarcando o processo civil
e o processo penal. Esse equivoco metodológico, esquece que a roupagem de ambos os
ramos do Direito possui razões de ser distintas, sendo que o instituto de um não pode ser
aplicado indistintamente no outro, devendo o ordenamento diferenciar ambos e impedir
que um influencie o outro como se fossem subáreas da mesma ciência.34
Os acertos doutrinários expostos deixam evidente que o juiz natural no processo
penal não é o mesmo que o desenvolvido na teoria do direito processual civil. Na seara
cível, flexibilização é justificada pelo pleno exercício da jurisdição na busca de uma
tutela adequada, efetiva e tempestiva35. No processo penal, porém, é garantia do réu e
tem sua origem histórica na limitação do poder arbitrário estatal.
A imparcialidade visa à isenção de ânimos e neutralidade de interesses do juiz
para com o objeto da lide. Justifica a exigência do juiz natural (CF, art. 5º, incs.
XXXVII e LIII), impedindo a instalação de tribunais de exceção ou a designação de
magistrados post factum e ad hoc. Justifica, além do mais, hipóteses legais de
impedimentos e suspeições, previstas nos Códigos de Processo Civil e Penal, relativas
ao magistrado. Já a independência tem conotação institucional. Outorga ao magistrado
uma espécie de blindagem legítima e necessária para não se ver suscetível a desafrontas.
Objetiva impedir que o juiz seja alvo de retaliações ou perseguições em decorrência de
sua atuação jurisdicional. A independência do juiz não se limita aos sujeitos do
processo. Projeta-se, igualmente, em relação aos demais poderes do Estado, ao poder
econômico, à mídia e até perante eventuais clamores da opinião pública, que, sob brados
34
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5ª ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019, p. 64-65.
35
MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Comentários ao código de processo civil. v. 1.
Artigos 1º ao 69. São Paulo: revista dos Tribunais, 2018, p. 58.
15
de Justiça, podem albergar sentimentos velados de vindicta em rota de colisão com os
direitos humanos.
Os princípios norteadores do processo penal encontram-se basicamente no artigo
5º da Constituição da República Federativa do Brasil. Dentre eles merecem destaque: a
dignidade da pessoa humana e o tratamento isonômico; a presunção de inocência; o
respeito à integridade física e moral do preso; o devido processo legal; o contraditório e
a ampla defesa; o juiz natural; a proibição ao uso de provas ilícitas; a razoável duração
do processo; e o tribunal do júri.36
O princípio do juiz natural é a essência da jurisdição, por isso tem o título de Lei
Fundamental e de Garantia. Visa coibir a criação de tribunais excepcionais ou de
tribunais provisórios, ou seja, proibir a formação de juízes para julgar casos específicos.
Pode-se dizer que o princípio dos juízes naturais pode proteger as comunidades da
criação de tribunais que não tenham investido recursos na constituição, especialmente
para fatos especiais ou pessoas específicas, tais julgamentos são punidos política ou
sociologicamente. Considera-se, ainda, que os princípios mencionados são aqueles
contidos no inciso LIII do art. 5º da Constituição Federal, que prevê a garantia de
julgamento do órgão competente.37
Superada a breve análise histórica do tema, é inegável que, após a Segunda
Guerra Mundial e a fixação dos direitos humanos em sede global e regional, o tema do
juízo natural ganha relevância e acaba sendo tipificado em diversas Constituições
Democráticas.
36
RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes; MACHADO, Igor Suzano; SILVA, Klarissa Almeida. A reforma
processual penal de 2008 e a efetivação dos direitos humanos do acusado. Revista Direito Gv, São Paulo,
v. 8, n. 2. 2012.p.678.
37
FERNANDES, Cristina Wanderley. O princípio do Juiz Natural e os Tribunais de Exceção. 2004.
38
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5ª ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019, p. 61.
16
as partes, em condições de paridade, diante um juiz terceiro e imparcial”. A
Constituição espanhola de 1978, por sua vez, assegura, no artigo 24.2, o direito a um
juiz predeterminado por lei, dispondo:
17
todo o direito, nesse sentido, tem caráter político.43 Desta forma, constitui-se uma
impropriedade quando se denomina a Constituição de um Estado com sendo sua Carta
Política”. Ela é, antes, seu estatuto Jurídico.
Por fim, o jurista coloca uma terceira conclusão da leitura do dispositivo
constitucional, que é a incidência do princípio da taxatividade na fixação do juiz
competente no campo do processo penal. As normas devem ser claras, evitando ao
máximo as interpretações que modifiquem as regras de competência, limitando o campo
da interpretação do estabelecimento do juízo competente. Assim, o texto normativo
deve ser o mais objetivo possível, evitando o subjetivismo e garantindo ao cidadão
conhecimento prévio do juiz competente antes da prática da conduta delitiva.
No ordenamento jurídico brasileiro não há menção expressa ao termo juiz
natural. Porém, não há como negar que da interpretação extraída do artigo 5º, inciso
LIII, da Constituição Federal, pode-se claramente extrair implicitamente essa garantia
ao dizer “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Outrossim, escrevendo sobre o tema, esclarece Jacinto Coutinho44 que o constituinte
originário de 1988 não tipificou expressamente o princípio do juiz no texto
constitucional como o fez, por exemplo, o constituinte italiano no artigo 25. Porém, isso
não significa que tal princípio não esteja disposto de maneira implícita e sistemática no
artigo 5º, inciso LIII, da Constituição Federal ao garantir que ninguém será processado e
nem sentenciado se não pela autoridade competente. Sobre o tema o doutrinador
português Jorge de Figueiredo Dias escreve que o juiz natural possui uma dupla
dimensão, sendo uma positiva que obriga o Estado a criar normas escritas, claras e
predefinidas estabelecendo qual órgão estatal irá julgar o fato antes mesmo da sua
ocorrência.
A outra dimensão é impedir que o Estado crie um órgão julgador ex post factum,
ou seja, que manipule o foro e estabeleça o órgão julgador depois da ocorrência do
fato45. Percebe-se que claramente uma das funções da garantia do juiz natural, além é
claro de garantir a imparcialidade, é proteger a confiança que o cidadão depositou no
Estado, de que este cumprirá as promessas e as regras que este mesmo preestabeleceu.
18
como um direito fundamental constitucional, sendo inclusive uma cláusula pétrea,
inadmitindo qualquer mudança pelo Poder Constituinte Derivado, estando abarcado
pelo efeito non cliquet. Também não se pode olvidar que a Constituição Federal veda no
mesmo artigo 5º, XXXVII, a criação de tribunais ou juízos de exceção, que são aqueles,
em breve síntese, criados após a ocorrência do fato julgado, sendo mais uma expressão
que indica que o juiz natural é uma garantia constitucional.
O ordenamento jurídico brasileiro não se limita aos textos normativos
produzidos pelos órgãos internos, também abrange aqueles firmados pelo Estado
brasileiro perante os órgãos internacionais. No mesmo sentido, o pacto de São José da
Costa Rica, incorporado no nosso ordenamento pelo Decreto 678/92, diz em seu artigo
8º, 1, que “Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro
de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei [...]”. O princípio do juiz natural possui fundamento
não só na Constituição Federal como também em tratados internacionais de direitos
humanos, tanto nos diplomas do sistema global como em diplomas do sistema regional
da Organização dos Estados Americanos.
O princípio do juiz natural gera, como apontado por Guilherme Madeira Dezem,
três garantias: a primeira é a vedação de criação de tribunais ex post facto; depois, a
garantia do juiz competente; por fim, somente exercem jurisdição os órgãos instituídos
pela Constituição Federal.46 Sobre o tema, é importante apontar o que escreve Vicente
Greco Filho:
46
DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2017, p. 324-325.
47
GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 109.
48
PECES-BARBA, Gregório. Curso de Derechos Fundamentales: teoria general. Madrid: Universidad
Carlos III, 1995, p. 37
19
Portanto, garantia do juiz natural, como corolário do devido processo legal, é um
escudo protetor do indivíduo em face do Estado, possuindo a manifestação substancial e
a manifestação procedimental. Logo, não cabe ao Estado flexibilizar essa garantia,
devendo ser integralmente respeitada, cabendo ao Poder Judiciário reforçar esse
instituto, pois esse Poder é o último garantidor das promessas constitucionais e
convencionais.
O ordenamento jurídico brasileiro também passou por um processo histórico de
desenvolvimento da garantia do juiz natural, tendo certamente nas disposições da
Constituicao pos período ditatorial de 64 a sua maior consolidação, pois como visto
anteriormente quanto maior a efetividade das garantias penais e processuais penais,
mais Democrático será o Estado. Sobre a evolução histórica do tema aponta Badaró
(2014; p. 124) que a Constituição Imperial, de 1824 em seu artigo 179, inciso XI, já
prescrita não só a necessidade de fixação por meio de lei do órgão jurisdicional
competente para analisar o ius puniendi estatal, como também exigia que a norma
deveria ser estabelecida anteriormente a prática delitiva.
Percebe-se que, apesar do caráter autoritário da entrada em vigência da
Constituição de 1824, que foi outorgada ou imposta pelo então imperador do Brasil
Dom Pedro I, esta possui um conteúdo liberal e de maneira pioneira não só estabeleceu
os aspectos positivos e negativos do juiz natural como também garantiu a independência
da atuação dos membros do Poder Judiciário, por meio da persuasão racional,
protegendo-os de avocações e vedando o foro privilegiado como regra, nos termos dos
incisos XII e XVII, do mesmo artigo 179 da Constituição Federal. Neste sentido, cobe
uma ressalva de Badaró que coloca que a práxis não gerava a concretização destas
garantias em abstrato (Badaró; 2014; p. 125).
Com o fim do regime monárquico e o estabelecimento da República Velha, foi
proclamada a Constituição de 1891, que em seu artigo 11, nº 3 vedava a retroação
normativa, prescrevendo de maneira abstrata, não direcionando ao princípio do juiz
natural, o que não impediu a sua incidência, mesmo porque o próprio artigo 72, § 15 já
o fazia de maneira expressa. No mais, não houve uma significativa mudança com
relação ao diploma constitucional anteriormente vigente (Badaró, 2014; p. 127).
A primeira mudança significativa sobre o tema ocorreu com o advento da
Constituição de 1934, que teve seu processo de formação por meio de promulgação
(participação política e não imposição). Neste sentido, o artigo 113 números 25 e 26
realçam novamente os aspectos positivos, dever de promoção do Estado para criação de
lei prévias fixando o órgão jurisdicional competente, e os aspectos negativos, dever de
20
abstenção impedindo que o estado crie tribunais ex post factum, tendo nesta última
previsão a sua maior efetividade (Badaró, 2014; p.129).
Essa conquista social, o que parece ser um fenômeno corrente da história da
humanidade49, sofreu um abrupto retrocesso como nunca antes o ordenamento jurídico
havia experimentado. Como aponta Badaró (2014; p. 131), houve a expansão para os
civis da competência da justiça militar, em casos previstos em lei ou que atentem contra
a segurança externa e a integridade estatal (2014; p. 131), Essa matéria que surge de
maneira inovadora no ordenamento jurídico pátrio, no âmbito dos Direitos Humanos
principalmente dentro do sistema regional americano de proteção de direitos humanos
tem reafirmado peremptoriamente que viola os preceitos fundantes do Estado de Direito
ao submeter o civil a uma regra ao qual este não é obrigado a respeita (hierarquia e
disciplina), gera uma desproporção e um sistema de justiça desarrazoado, sendo objeto
de várias críticas doutrinarias e dos órgãos de proteção de direitos humanos50. Para
ilustrar a questão a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que possui outros
julgamentos no mesmo sentido, assim discorreu no Caso XXXXXX51 sobre o tema
(2015; p. 119):
396. La Corte considera necesario precisar en primer lugar que, en relación
con las presuntas víctimas en el presente caso, la jurisdicción militar sólo
conoció de las alegadas ejecuciones extrajudiciales de Herma Luz Meléndez
Cueva y Víctor Salomón Peceros Pedraza, y no de la de Eduardo Nicolás
Cruz Sánchez (supra párr. 185). 397. La Corte recuerda que su jurisprudencia
relativa a los límites de la competencia de la jurisdicción militar para conocer
hechos que constituyen violaciones a derechos humanos ha sido constante, en
el sentido de afirmar que en un Estado democrático de derecho, la
jurisdicción penal militar ha de tener un alcance restrictivo y excepcional y
estar encaminada a la protección de intereses jurídicos especiales, vinculados
49
Somente a título de demonstração, equiparando essa nota a um obter dictum desse fenômeno
intrigante que insiste em se repetir durante a história humana, em que muitos comparam a um pendulo,
momentos que antecederam grandes catástrofes humanitárias, em que o ser humano demonstrou seu
lado mais perverso, foram momentos de grandes conquistas sociais, relativa paz e de um início de
concretização dos direitos fundamentais. O período anterior a Primeira Guerra Mundial, escreve o poeta
austríaco Stefan Zweih (que morou e faleceu no Brasil) relata que até a primavera de 1914, período
conhecido como bele époque, viajava para o mundo sem passaporte, conhecia pessoas do mundo todo
e que era amigo de várias, não se pensava em guerra ou qualquer conflito armado massivo (ZWEIG,
2014, p.291). Como se sabe, após o fim da bele époque, deu‐se início ao maior conflito até então
vivenciado pelo ser humano matando milhões de pessoas indistintamente. O mesmo ocorreu com a
ascensão do nazismo e a Segunda Guerra Mundial, em que momento antes houve a consolidação no
plano constitucional dos direitos sociais ou de segunda dimensão com a Constituição Mexicana de 1917
e a Constituição de Weimer de 1919. A garantia do juiz natural não foi diferente, as conquistas da
Constituição de 1934 devam vazão ao maior retrocesso social até então vivido que é a Constituição de
1937. Parece que chega a determinado ponto que a humanidade se cansa das conquistas e envereda
para um sentimentalismo autoritário, punitivista e revanchista.
50
Em âmbito doutrinário destaca-se Eugênio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeri (ZAFFARONI,
Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, p. 143.) e
Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli (GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira. Direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008)
51
Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_292_esp.pdf . Consultado em
30 de maio de 2021.
21
a las funciones propias de las fuerzas militares. Por ello, la Corte ha señalado
que en el fuero militar sólo se debe juzgar a militares activos por la comisión
de delitos o faltas que por su propia naturaleza atenten contra bienes jurídicos
propios del orden militar.52
52
Em tradução livre: “396. A Corte considera necessário especificar em primeiro lugar que, em relação
às supostas vítimas no presente caso, a jurisdição militar só ouviu falar das supostas execuções
extrajudiciais de Herma Luz Meléndez Cueva e Víctor Salomón Peceros Pedraza, e não de Eduardo
Nicolás Cruz Sánchez (par. 185 supra). 397. A Corte recorda que sua jurisprudência a respeito dos limites
da competência da jurisdição militar para conhecer de fatos que configuram violações de direitos
humanos tem sido constante, no sentido de afirmar que em um estado de direito democrático, a
jurisdição penal militar deve ter de âmbito restritivo e excepcional e visar a proteção de interesses
jurídicos especiais, vinculados às funções das forças militares. Por este motivo, o Tribunal indicou que,
na jurisdição militar, apenas os militares em atividade devem ser julgados pela prática de crimes ou
contravenções que, por sua própria natureza, violam os direitos legais da ordem militar.”
22
5 FUNDAMENTO EPISTEMOLÓGICO DA GARANTIA DO JUIZ NATURAL -
IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO
23
processual pode indicar tendenciosidade e inclinação para um dos lados. Por exemplo, o
juiz que produz provas de ofício na tentativa de afastar eventuais dúvidas, tomando
frente da instrução probatória acusatória, que em um Estado de Direito é da acusação,
seja o Ministério Público ou o querelante.
Outrossim, cabe mencionar um exemplo diverso no caso em que um juiz que
recuse a denúncia e, nessa decisão deixe evidenciado, por exemplo, que entende tal fato
ser atípico por conta do princípio da insignificância. Ora, mesmo que o Ministério
Público recorra e o Tribunal a quo determine o recebimento da denúncia, aquele juiz já
demonstrou que acredita que aquele valor faz incidir o princípio da bagatela – e
dificilmente, em uma acusação de tentativa de furto de pequeno valor em mercado, a
instrução vai conseguir (ou sequer tentar) provar que aquele valor estava errado e era
algo mais valioso.
Nesse sentido, não basta que não estejam presentes as hipóteses de impedimento
(previstas no artigo 252, incisos I a IV, do Código de Processo Penal, que possuem
natureza objetiva) e de suspeição (previstas no artigo 255, incisos I a VI, do Código de
Processo Penal), devendo a sociedade encarar aquele julgador como parcial, sob pena de
perda da confiança. Sobre a questão, emblemática a discussão estabelecida sobre a
prevenção de foro realizada durante a persecução penal da denominada “Operação Lava
Jato”, em que o juízo da 14ª Vara Federal de Curitiba declarou-se competente de uma
série de condutas que ocorreram mesmo em locais diferentes de sua jurisdição,
sustentando, nos termos do artigo 76, inciso III, do Código de Processo Penal, a ligação
destas condutas pela conexão probatória.55
A decisão exarada pela 14ª Vara Federal de Curitiba, não é imune a críticas, pois
essa postura de avocar todas as condutas ligadas a um determinado grupo, muitos fatos
inclusive em nada relacionados aos crimes cometidos contra a sociedade de economia
mista Petrobrás S/A, viola a garantia do juiz natural e já aponta que o Magistrado está
direcionado a atender aos pleitos da acusação.
Aliás, esse foi o entendimento adotado pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal
no Habeas Corpus nº 193726, de relatoria do Ministro Edson Fachin, por maioria de
votos encampou o raciocino acima defendido e restabeleceu o princípio do juiz natural,
55
A questão pode ser integralmente consultada no sitio:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6043118 . Consulta realizada em 30 de maio de
2021.
24
colocando-o novamente no status de direito fundamental de prima grandeza ao qual
nunca deveria ter saído.56
Essa decisão, porém tem se demonstrado um ponto fora da curva e por vezes os
Tribunais Superiores têm relativizado esse princípio, a ponto de inclusive torna-lo
inócuo.Esse desrespeito à garantia do juiz natural não é um fato isolado do caso “Lava
Jato”. Diversas decisões dos tribunais superiores57 simplesmente ignoram a garantia do
juiz natural arguindo a nulidade gerada pelo desrespeito às normas de fixação da
competência territorial. Assim, o Superior Tribunal de Justiça tem estendido algumas
súmulas, como a de número 706 do STF, que sustenta ser relativa a nulidade decorrente
da inobservância da competência penal por prevenção, a que relativizam a competência
territorial no âmbito do processo civil para o processo penal. Nesse sentido, cabe
ressaltar as o que escreve Anderson Vichinkeski Teixeira:
O magistrado, em todas as instâncias jurisdicionais, é chamado a atender
demandas cujo elevado e crescente grau de complexização impede que ele se
mantenha adstrito ao padrão de racionalidade jurídica, bem como às técnicas
hermenêuticas e decisórias, que fundamentavam a era do apogeu do
positivismo jurídico ocidental, durante o século XIX e a primeira metade do
XX. Com isso, elementos tradicionais foram alterados nas suas concepções
mais fundamentais, outros surgiram e se consolidaram, mas o resultado
circunstancial desse processo social de modificação de categorias
elementares do Direito e da Política culmina em uma nova ideia de
racionalidade jurídica.58
Um primeiro caso é o Conflito de Competência nº. 134272/RO, de relatoria do
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca e julgado em 14 de outubro de 2015, que
estabeleceu a incidência da súmula 33 do STJ, aplicada ao processo civil, no processo
penal. Segue um breve trecho do julgado: “3. A competência em razão do local é
relativa, não podendo ser decretada de ofício pelo juiz.”
56
STF. Plenário. HC 193726 AgR‐AgR/PR e HC 193726 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em
14/4/2021 (Info 1014).
57
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900) em que o
STF, por meio de uma atividade interpretativa duvidosa flexibilizou a regra do foro por prerrogativa de
função, entendendo que a sua incidência somente ocorreria O Plenário do STF firmou entendimento no
sentido de que o foro por prerrogativa de função aplica‐se apenas aos crimes cometidos durante o
exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; STF. 1ª Turma. Inq 4624 AgR, Rel. Min.
Marco Aurélio, julgado em 8/10/2019 (Info 955); Corte Especial. QO na APn 874‐DF, Rel. Min. Nancy
Andrighi, julgado em 15/05/2019 (Info 649); STF. 1ª Turma. AP 962/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/
o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 16/10/2018 (Info 920); STJ. Corte Especial. APn 295‐RR, Rel. Min.
Jorge Mussi, julgado em 17/12/2014 (Info 555), que considera que o recebimento da denúncia por
autoridade relativamente competente interrompe a prescrição; STJ. APn 878/DF QO, Rel. Min. Benedito
Gonçalves, julgado em 21/11/2018; STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em
03/05/2018 (Info 900); STF. 1ª Turma.Inq 4506 AgR/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min.
Alexandre de Moraes, julgado em 14/11/2017 (Info 885). Este último caso merece destaque, pois o STF
analisou a conveniência ou não do desmembramento segundo o bom andamento das investigações,
como se o juiz natural fosse uma barreira a ser transposta.
58
TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre racionalidade jurídica e decisão
política. Rev. direito GV, São Paulo , v. 8, n. 1, p. 39, June 2012.
25
Outra grave violação à garantia do juiz natural é o entendimento já adotado tanto
pelo do Supremo Tribunal Federal, como pelo e do Superior Tribunal de Justiça de que
a incompetência territorial é relativa, e sendo assim, quando não arguida no momento
processual oportuno, gera a prorrogação da competência (STF, RHC 123949/SP,
relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgado em 06 de outubro de 2015; STJ, RHC
73637/SP, relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 06 de
setembro de 2016). Ora, o que as cortes superiores estão fixando em seus precedentes
são verdadeiros tribunais ex post factum, pois, se a regra estabelecida na data do fato era
uma e, por um lapso da defesa que não utilizou a ferramenta processual adequada – a
exceção de incompetência – modifica-se o órgão julgador, caracterizando a criação de
um tribunal de exceção, que somente tinha prévia investidura para o exercício da
jurisdição, e não era o competente para fazê-lo.
Além disso, como consequência desse entendimento de existir uma teoria geral
do processo fragmentada em processo civil e processo penal, têm surgido decisões que
acabam tornando absolutamente ineficaz a garantia do juiz natural. Uma situação que
expõe essa situação é a aplicação, por analogia do artigo 43 do Código de Processo
Civil no âmbito do processo penal. O artigo 43 do Código de Processo Civil (antigo
artigo 87 do Código de Processo Civil) prevê que: “Determina-se a competência no
momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as
modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando
suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.” Dentro da lógica
do processo civil que busca tutela jurisdicional adequada, efetiva e tempestiva, o artigo
atende sobremaneira as funções desse ramo do direito.
Ocorre que os tribunais superiores, em julgados ainda sob a vigência do Código
de Processo Civil de 1973, entendiam que, no caso de criação de varas criminais
especializadas por leis ou normas de organização judiciária, os processos ainda não
sentenciados deveriam ser remetidos a esse novo juízo (STJ, Resp 1558124/MT,
relatoria do Ministro Sebastião Reis Junior, julgado em 23 de agosto de 2016). Esse
entendimento é uma grave afronta ao juiz natural, uma vez que, ao determinar que
processos em curso sejam remetidos a outro juízo, aniquila a garantia do juiz natural, o
que, aliás, aconteceu no famoso caso da “Chacina da Candelária”, em que se modificou
a competência da justiça militar estadual vigente na data dos fatos para o tribunal do
júri, e pior, via lei ordinária (Lei 9299/96). No caso em tela, o Supremo Tribunal
Federal, decidiu no Recurso Extraordinário nº 260404/RJ, relatoria do Ministro Moreira
Alves e julgado em 22 de março de 2001, que a competência para apreciar o caso seria
26
da justiça comum, e não da militar, afrontando as regras do juízo natural. Sobre o tema
acrescenta Anderson Vichinkeski Teixeira:
Se nos EUA o ativismo judicial possui longa data e continua gerando
polêmica, no Brasil esse fenômeno é relativamente recente e ainda deverá ter
ulteriores desenvolvimentos. Um juiz ativista, em sentido positivo, atua na
busca da proteção dos direitos fundamentais e da garantia da supremacia da
Constituição, assumindo uma postura concretizadora quando diante da
abstração de princípios constitucionais, como dignidade da pessoa humana,
proteção ao menor, assistência aos desamparados, etc. A realização da
Constituição passa pela atividade intelectual de interpretar/aplicar conceitos e
categorias jurídicas de elevado grau de generalidade e abstração, mesmo que
para tanto seja necessário abraçar competências institucionais que
ordinariamente tocam a outros Poderes. O problema com essa sorte de
postura seria estarmos substituindo a vontade do soberano que criou a lei e a
Constituição pela vontade do intérprete.59
Por fim, outra crítica que merece apontamento diz respeito à aplicação da
Súmula 235 do STJ, que diz “A conexão não determina a reunião dos processos, se um
deles já foi julgado”, criada para o processo civil e frequentemente usada pelo Superior
Tribunal de Justiça para negar a violação do princípio do juiz natural (REsp 1829744
SP, relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado dia 12 de fevereiro de 2020).
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo. Juiz Natural no Processo Penal. Editora Revista dos Tribunais:
2014. P. 33.
27
DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 3ª edição, atualizada e
ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. P 324 e 325.
DIMOULIS, Dimitri. (2014, p.130) Teoria Geral dos Direitos Fundamentais/ Dimitri
Dimoulis, Leonardo Martins. – 5. Ed. rev., atua e ampl. – São Paulo: Atlas, 2014.
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 5. ed. – São
Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 64 e 65
28
MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Comentários ao código de
processo civil. v. 1. Artigos 1º ao 69. São Paulo: revista dos Tribunais, 2018, p. 58.
29
______. Autobiografia: o mundo de ontem. Tradução Kristina Michahelles. Rio de
Janeiro:
Zahar, 2014.
30