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OS INQUÉRITOS 4.781, 4.921, 4.

922 E A AFRONTA AO PRINCÍPIO


ACUSATÓRIO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DO ACUSADO

Sabemos que o garantismo penal, que tem em Luigi Ferrajoli, jurista e


professor italiano, um dos seus expoentes teóricos, busca a tutela dos direitos e
garantias fundamentais, em especial nos Direitos Penal e Processual Penal,
pregando respeito máximo a estes direitos e garantias a fim de coibir abusos
estatais, em especial aqueles oriundos do Poder Judiciário.
A lição de Ferrajoli permanece perene nas suas páginas:
"El modelo garantista […] presenta las diez condiciones, límites o
prohibiciones que hemos identificado como garantías del ciudadano contra el
arbitrio o el error penal: según este modelo, no se admite ninguna imposición de
pena sin que se produzcan la comisión de un delito, su previsión por la ley como
delito, la necesidad de su prohibición y punición, sus efectos lesivos para
terceros, el carácter exterior o material de la acción criminosa, la imputabilidad y
la culpabilidad de su autor y, además, su prueba empírica llevada por una
acusación ante un juez imparcial en un proceso público y contradictorio con la
defensa y mediante procedimientos legalmente preestablecidos". 1
Tendo isto em vista, podemos afirmar que o sistema processual
acusatório é o que se coaduna com os princípios garantistas, e com aqueles que
norteiam a nossa Constituição Federal de 1988. A despeito de não ser escolha
expressa da nossa Carta Magna, é este sistema que nela se revela.
Assim leciona o Professor Douglas Fischer:
“Desde já deixamos expresso e claro que, segundo nossa leitura, não há
previsão expressa na Constituição Federal de 1988 de que o sistema adotado
no Brasil seria o acusatório. Mas tal circunstância não impede que, a partir da
compreensão (aberta e sistêmica) dos princípios, regras e valores insertos na
Carta dirigente, possa ser extraída conclusão que o nosso sistema se pauta pelo
princípio acusatório.”2

1 FERRAJOLI, Luigi.Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal.4 ed. Madrid: Trotta, 2000, p. 103-4.

2FISCHER, Douglas. O SISTEMA ACUSATÓRIO BRASILEIRO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E


O PL 156. http://www.prrj.mpf.mp.br/, acesso em 29/04/2023. Disponível em:
http://www.prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista_2011/2011_Dir_Penal_fischer.pdf
Ora, assim sendo é de se asseverar que tal sistema faz parte do
arcabouço de garantias constitucionais do acusado e do seu defensor. Isto pode
ser certificado através das seguintes disposições constitucionais:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal;
(...)
XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
E, por fim, mas não sendo tal elenco exaustivo, temos o que dispõe o
art.129, inciso I:
Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:
I – Promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
Diante do quanto exposto, não podemos deixar de nos espantar com o
fato de que o nosso Tribunal Máximo, ao que parece, vem esquecendo de tais
garantias constitucionais, não amoldando as suas decisões ao estabelecido na
Constituição e Leis, mas amoldando tais normas a subjetivismos e orientações
ideológicas.
Recordemos o caso do malfadado Inquérito n° 4.781, instaurado em 14
de março de 2019, em que o Presidente, à época, daquele Tribunal além de
instaurar inquérito acerca de suposto delito que não ocorreu nas dependências
do Tribunal, exceção legal que permitiria o ato, designou, ele próprio, o juiz que
presidiria o procedimento de investigação. Além do mais, não se pode esquecer
que o referido Presidente era uma das vítimas apontadas na própria portaria, dos
atos que ali se investigavam. Desta forma, feriu de morte a garantia do devido
processo legal, juiz natural e imparcialidade do julgador, corolários do sistema
acusatório.
Recentemente, verificamos semelhante situação de desrespeito ao
sistema constitucional, com o advento dos Inquéritos 4921 e 4922,
encaminhados ao mesmo Tribunal.
A denúncia de quarenta e três páginas oferecida naqueles autos pelo
Subprocurador-Geral da República, em que foram denunciados cem acusados
com a mesma peça, trocando-se apenas os nomes, foi recebida por oito votos a
dois, pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
Apenas lendo a peça que se serviu a todos os cinquenta acusados de
apenas um dos inquéritos (o outro também contou com cinquenta denunciados,
acusados genericamente da mesma forma), vemos que se feriu de morte o
princípio do devido processo legal, ao verificar-se que não houve qualquer
individualização de condutas. A imputação de participação em organização
criminosa não é individualizada para qualquer um dos denunciados, não se
referindo a inicial acusatória a qualquer indício de que eles estivessem reunidos
no local em que se aponta, sendo de uma generalidade ímpar, e onde se fez
constar sem qualquer pudor:
“No dia 8 de janeiro de 2023, alguns dos acampados, embora não se
tenha notícia até o presente momento de que o denunciado estivesse entre
eles, participaram dos atos de depredação ocorridos na Praça dos Três Poderes,
quando uma turba violenta e antidemocrática avançou contra os prédios do
Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal.”3
(grifo nosso).
Por outro lado, verifica-se também ofensa mortal ao princípio do Juiz
Natural. Ora, o Tribunal Supremo não detém competência originária, cujo rol
constitucional é taxativo, para o julgamento de tais atos. As pessoas ali
denunciadas não detêm prerrogativa de foro, não há qualquer indícios de que
tenham relação direta com quem detenha, e os atos narrados nas denúncias dos
inquéritos 4921 e 4922 não ocorreram nas dependências do STF.
Estes três exemplos nos indicam como o próprio Estado, através do órgão
máximo do Poder Judiciário, tão facilmente, pode passar por cima da estrutura
garantista de direitos da nossa Constituição Federal, o que nos deve levar a
refletir acerca da necessidade de retornarmos aos fundamentos de tais
garantias, para que sejam aplicadas livres de máculas ideológicas e
subjetivistas, a fim de que o Estado Democrático de Direito possa cumprir
fielmente os poderes que lhes competem e lhe foram conferidos, sem perder de
vista que o Estado existe para as pessoas, e não as pessoas para o Estado.

3
Denúncia obtida através do site de consultas do Superior Tribunal Federal
https://sistemas.stf.jus.br/cas/login

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