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HOMESCHOOLING E ABANDONO INTELECTUAL

Homeschooling, educação escolar em casa ou educação domiciliar, é a


modalidade de educação de criança exercida em casa, por pais e preceptores,
visando a formação de educação clássica de crianças e adolescentes fora do
ambiente escolar.

No Brasil, onde não há previsão legal expressa autorizando esta forma de


educação, muito se discute sobre se tal modalidade de formação escolar pode
ser tipificada como abandono intelectual. Para refutar esta intenção, devemos
fazer uma análise da conduta, norteando-se pelos conceitos de norma penal,
tipicidade e antijuridicidade.

Reza o art. 246 do Código Penal: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução
primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias a um mês,
ou multa.”

Ora, estando estabelecido na norma constitucional, no seu art. 205, que a


educação é direito de todos e dever do Estado e da família, e visará o pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho, os pais que optam em educar o seu filho em casa
estão cumprindo o seu dever constitucional.
A norma penal incriminadora define o ilícito criminal, descrevendo a conduta
vedada pelo ordenamento jurídico estabelecido pelo Estado. Para tal produção,
o legislador deve balizar-se por alguns princípios, dentre os quais:

Princípio da reserva legal - Nullum crimen nulla pena sine lege – “Não há crime
nem pena sem (prévia) lei (que o defina)”. Tal princípio está concretizado na lei,
sendo expresso no artigo primeiro do Código Penal, que dispõe: “Não há crime
sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Tal princípio, em um Estado Democrático de Direito, mister se faz interpretá-lo


sob a lente do seu fundamento político, que é proteger o indivíduo das
ingerências infundadas, desmedidas e arbitrárias do Estado.

Assim, pais que ensinam de forma sistemática e efetiva os seus filhos nas suas
casas, não estão ofendendo o seu direito a uma educação de qualidade,
mormente quando o próprio Estado, por si só, não está garantindo a qualidade
deste direito.

Deve-se ter em mente, por consequência, o princípio da ofensividade ou


lesividade, segundo o qual não há infração se não houver lesão ao bem jurídico
tutelado. A lesividade é imprescindível à caracterização do ilícito penal, conforme
se verá adiante.

Ainda analisando a existência de infração penal na conduta dos pais que


praticam o homeschooling, deve-se lembrar do princípio da culpabilidade – só
se admite a penalização do agente que atuou com dolo ou culpa, sob pena de
se incorrer em responsabilidade objetiva, que não reclama vínculo subjetivo
entre a conduta e o resultado.

Por fim, mire-se o princípio da exclusiva proteção do bem jurídico, ou seja, o


direito penal objetiva a proteção a bens jurídicos determinados. Não pode haver
aplicação penal sob qualquer outra fundamentação – ética, religiosa, moral, sob
pena de incorrer-se em perseguição a ideias, e não a condutas.

Ultrapassando-se a análise da normatização penal e dos seus princípios


norteadores, passemos a uma perfunctória menção a dois dos elementos
norteadores do conceito analítico de crime, quais seja, a antijuridicidade e a
tipicidade, cujo simples olhar afasta quaisquer intenção de criminalizar a conduta
do ensino domiciliar.

A antijuridicidade é a relação de contrariedade entre o fato típico e a ordem


jurídica. A ordem dispõe de um regramento de condutas. Quando o agente age
em desacordo com tal regramento, a sua conduta é antijurídica, ou ilícita.

A ilicitude da conduta é formal quando se dá a simples relação de contrariedade


entre a conduta e a ordem, e material, quando se observa, com a ação, a efetiva
lesão ao bem jurídico tutelado.

A educação domiciliar não contraria a ordem jurídica uma vez que, como já
salientado, os pais que optam pelo sistema estão cumprindo o seu dever
constitucional.

A tipicidade, a seu turno, também tem os seus aspectos formal e material. A


tipicidade formal é o simples ajustamento da conduta ao tipo penal normatizado.
A tipicidade material se consubstancia na efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.

Sobre a ofensividade, que deve caracterizar a ilicitude e a tipicidade, assim


observa Daniel Leonhardt dos Santos: “A ofensividade é o reflexo de um Direito
Penal liberal cuja principal expressão consiste na função de garantia, atrelada
ao princípio da legalidade. Apenas será crime o fato que não só está previsto na
lei como tal, mas que constitui uma necessária ofensa ao específico interesse
tutelado pela norma penal.”1

No mesmo artigo, o autor ainda afirma: “A ofensividade em Direito Penal consiste


em uma perspectiva de ilícito na qual sua base está estabelecida “na ofensa a
interesses objetivos, no desvalor que expressa a lesão ou pôr-em-perigo bens
juridicamente protegidos”, opondo-se à concepção de ilícito centrada na mera
violação subjetiva do dever. Segundo esta concepção, centrada na ofensa a
bens jurídicos, não é suficiente apenas preencher os requisitos formais de
tipicidade para caracterizar o ilícito-típico; é necessária, pois, a observância dos
preceitos da ofensividade – desvalor da ação e desvalor de resultado, ambos
são necessários para a sua caracterização”

De todo o exposto, vemos que não há possibilidade de se enquadrar a conduta


de pais que praticam o homeschooling no tipo penal estabelecido no art. 246, do
Código Penal. A conduta não se adequa ao tipo, carecendo de tipicidade e
antijuridicidade.

O Estado, omitindo-se em regulamentar a forma como tal educação será


exercida, não pode intentar criminalizá-la, ainda menos enquadrá-la em um tipo
que vela por um bem jurídico que não está sendo ofendido com a conduta dos
pais que optam pelo homeschooling, qual seja, o direito à educação.

Se uma das bases do Estado Democrático de Direito consiste na proteção e


garantia aos direitos fundamentais do indivíduo, não se pode negar que a
criminalização da conduta homeschooling vai de encontro a tal proteção, e
demonstra a ingerência do Estado de forma arbitrária utilizando-se o Direito

1
In OFENSIVIDADE E BEM JURÍDICO-PENAL: CONCEITOS E FUNDAMENTOS DO MODELO DE CRIME COMO OFENSA AO BEM

JURÍDICO-PENAL - Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 121/2016 | p. 13 - 50 | Jul - Ago / 2016 - DTR\2016\21993
Penal, de ultima racio, para perseguir condutas que não atingem bens jurídicos
constitucionalmente tutelados, ao contrário, os protegem.

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