Você está na página 1de 6

ESMA-DF – Escola de Magistratura do Distrito Federal

Professor: Dr. Fábio Francisco Esteves


Aluno: Daniel Gallo Pereira
Data: 20 de outubro de 2020.
Matéria: Direito Constitucional

PARECER

Ref.: Conflitos de princípios e regras na fase de investigação social em concurso


público
AC: Professor de Direito Constitucional - Fábio Esteve - ESMA-DF

Ementa: Investigação social, Concurso


público para carreiras policiais, Conflitos
legislativos de regras e princípios.

Trata-se de parecer jurídico facultativo com objetivos didáticos, para analisar a


possibilidade de êxito numa eventual ação judicial. A ação visaria anular a
eliminação de candidato em concurso público de carreiras policiais, na fase de
investigação social, por ato infracional cometido na adolescência.

2. No caso em tela, Pedro foi excluído do concurso público para provimento de cargo
de agente policial tendo em vista que consta informação de prática de ato infracional
de homicídio no ano de 1997 (o conhecido caso do índio Galdino). Pedro foi
condenado a medida socioeducativa de internação, devidamente cumprida. Nos
últimos 23 anos não teve nenhuma imputação de fato criminoso, concluiu o ensino
superior e se prepara para concursos públicos. Pretende continuar no concurso.

3. Na administração pública, o processo seletivo para investidura em cargo ou


emprego público é o concurso público, consagrado na Constituição (art. 37, inciso
II). Todas as carreiras públicas devem ter como fundamento os princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, previstos no caput
do art. 37 da Constituição. Para atender o princípio da moralidade no quadro de
servidores, os processos de seletivos nas carreiras de segurança utilizam de
procedimentos seletivos específicos: a sindicância da vida pregressa e a
investigação social.

4. A investigação social é um procedimento seletivo, necessariamente previsto em


edital de concurso, que visa avaliar a idoneidade social e moral de um candidato.
Ela verifica se houveram fatos na vida pregressa do candidato que sejam
incompatíveis com a conduta na carreira pública. Normalmente, são investigados
fatos antecedentes de natureza criminal, social, familiar e profissional. O caso mais
comum é a investigação de antecedentes criminais que prejudicam o provimento do
candidato em carreiras policiais.

5. A legalidade da eliminação de candidato, na fase da investigação social de concurso


público das carreiras policiais, por crimes transitados em julgados, é pacífica na
doutrina e nas jurisprudências dos tribunais superiores. Não se trata de uma
exclusão pessoal ante concorrencial, nem da violação do princípio da presunção de
inocência, e nem de uma sanção vitalícia ao candidato. Na essência, trata-se de um
requisito negativo de edital de concurso público ao provimento de um cargo
específico. É um requisito que o candidato não pode ter.

6. A eliminação do candidato é um ato administrativo vinculado as regras previstas


no edital. Não cabem inferências nas regras do edital, elas devem ser mais objetivas
possível, especificando os tipos de fatos prejudiciais ao provimento no cargo.
Assim, obrigatoriamente, os fatos que possibilitam a eliminação do candidato na
fase de investigação social devem ser listados no edital do concurso.

7. Contudo, a existência de um fato editalício que preveja a eliminação de candidato


por possuir registros criminais suscita a análise e discussão a luz das regras e dos
princípios normativos. No ordenamento, o registro pregresso de um ato infracional
de natureza penal, cometido na adolescência, seria um fato análogo a crime apto a
eliminar um candidato a vaga na carreira policial?

8. Pela regra do art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei


8.069/1.990), o ato infracional é a conduta descrita como crime ou contravenção
penal. No caso, o candidato, na adolescência, cometeu um ato infracional grave,
homicídio qualificado (inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal, Decreto Lei
2.848/1.940). A conduta do ato infracional é classificada como crime hediondo
(inciso I do art. 1º da Lei de Crimes Hediondos, Lei 8.072/1.990).

9. A diferenciação entre os institutos: ato infracional e crime, possui base


constitucional nos art. 228 e 227. O art. 228 considera os adolescentes inimputáveis,
sujeitos a legislação especial do ECA. O art. 227, § 3º, inciso IV dispões que o
conhecimento da atribuição do ato infracional é um direito a proteção especial do
adolescente. A proteção especial do adolescente, nos casos de ato infracional cujo
a cominação é a medida privativa de liberdade, é fundada nos princípios de
brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento. Por isso, as medidas sancionatórias do Estatuto da Criança e do
Adolescente são diversas das sanções do Código Penal para uma conduta penal
ilícita equivalente. Portanto, o ato infracional e o crime são institutos diferentes.

10. Pela doutrina penal, a infração penal, também conhecida como crime no sentido
lato, é um gênero. Ela se divide em duas espécies o crime em sentido estrito,
aplicado aos imputáveis, e ato infracional, aplicado aos inimputáveis adolescentes.
Assim, quanto ao edital do concurso, resta uma questão de interpretativa. A cláusula
editalícia que prever a exclusão de candidatos na fase de investigação social por
fatos pretéritos definidos como crime deve ser interpretada de forma restritiva ou
expansiva, como gênero ou como espécie?

11. No caso, a interpretação do edital compete a autoridade administrativa responsável


pelo procedimento de seleção “concurso público”. Na interpretação do requisito
negativo de forma extensiva, o crime como gênero, a autoridade administrativa,
com base no interesse público secundário, preserva a instituição de riscos ao
princípio da moralidade e da probidade. Contudo, no caso da interpretação do
requisito negativo de forma restritiva, o crime como espécie, ela preserva a os
direitos individuais do candidato com base no princípio da igualdade concorrencial.
Em qualquer um dos casos, a interpretação da autoridade competente permanece
dentro dos limites da legalidade, comtemplando princípios constitucionais e tendo
o condão de excluir, ou não, o candidato na fase da investigação social.

12. Em favor da interpretação restritiva de não conhecer o ato infracional como crime,
pesam dois princípios constitucionais referentes a direitos e garantias individuais:
a) o princípio da igualdade (caput do art. 5º), em relação aos outros candidatos,
mantendo o candidato no concurso; e b) o princípio do respeito à condição peculiar
de pessoa em desenvolvimento para o adolescente (art. 227, § 3º, inciso IV). Porém,
ao se aplicar a interpretação restritiva do termo crime, que incluem o candidato com
antecedente de ato infracional, coloca-se em risco a violação do princípio
constitucional da moralidade administrativa (art. 37).

13. Em favor da interpretação expansiva de conhecer o ato infracional como crime,


pesa o princípio constitucional da moralidade administrativa (art. 37) e o princípio
do interesse público secundário (art. 2º, da Lei 9.784/1999) e o princípio da
probidade administrativa. Porém, ao se aplicar a interpretação extensiva do termo
crime, que exclui o candidato com antecedente de ato infracional, coloca-se em
risco a violação de princípios constitucionais referentes a direitos e garantias
individuais.

14. Assim, qualquer interpretação do termo crime no edital, restritiva ou expansiva,


leva a um conflito de valores enunciados em princípios constitucionais. Pela boa
doutrina, os princípios não contêm um mandamento definitivo, apenas um
enunciado valorativo de “prima face”. O caráter definitivo da norma principiológica
é atingindo quando se atende os requisitos fáticos e jurídicos da norma. Como não
existe hierarquia entre princípios e nem princípios absolutos, eles devem ser
ponderados no caso concreto.

Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que


o resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios
representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A
forma pela qual deve ser determinada a relação entre a razão e a contra-
razão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios,
portanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos
princípios colidentes e das possibilidades fáticas. (ALEXY, Robert,
Teoria dos Direitos Fundamentais, Ed.: Malheiros Editores LTDA,
2006, p. 103 e 104)

15. Para a melhor interpretação, expansiva ou restritiva, do item editalício é necessária


a ponderação de princípios constitucionais. Deve-se ponderar os princípios com
dois critérios em sequência. O primeiro critério deve ser o espírito da norma do
edital e o segundo deve ser a proporcionalidade dos princípios envolvidos no
espírito da norma do edital.

16. Quanto ao espírito da norma editalícia, a norma de investigação social é excludente


para a concorrência ao provimento do cargo, com base em valoração posta
previamente no edital em critério objetivo “antecedente de crime”. Então, numa
posição de precaução, o espírito desta norma é proteger o quadro de servidores do
órgão da inclusão de pessoas com baixa valoração social e moral.

17. Quanto ao segundo critério, a proporcionalidade se divide em três elementos: (1) a


adequação “razoabilidade entre os meios e os fins”; (2) a exigibilidade “deve ser
necessário” e (3) a proporcionalidade em sentido estrito “quando as vantagens
superam superarem as desvantagens”. Aplicando estes elementos ao espirito da
norma editalícia, temos: (1) a aplicação do princípio da moralidade é mais adequada
ao caso que dos princípios referentes aos direitos e garantias individuais (igualdade
e pessoa em desenvolvimento); (2) a exigibilidade do princípio da moralidade é
mais necessária ao órgão público que a exigibilidade dos princípios referentes aos
direitos e garantias individuais do candidato, pois a natureza excludente da norma
já limita a igualdade entre os candidatos; e (3) vantagem de manter um quadro de
reputação inquestionável na corporação supera a desvantagem excluir um individuo
de reputação questionável.

18. Considerando os dois critérios, a interpretação do termo crime deve ser expansiva,
excluindo o candidato do concurso.

19. A decisão da autoridade administrativa de exclusão do candidato Pedro foi um ato


administrativo vinculado a um edital válido. Este ato administrativo foi
fundamentado numa interpretação expansiva do termo crime na norma do edital.
Esta interpretação expansiva, que ensejou a exclusão do candidato Pedro, é passível
de judiciaização pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso
XXXV da Constituição). Porém, a probabilidade de êxito na via judicial é baixa.
Pois, pela melhor técnica hermenêutica, a ponderação dos princípios
constitucionais envolvidos não favorece interpretação restritiva do termo “crime”,
prejudicando o provimento no cargo público do candidato Pedro.

20. Diante do exposto, a recomendação é o Pedro não insistir na via judiciária para
alcançar o provimento no cargo público de carreira policial. Eventualmente, pela
fumaça do bom direito e pelo perigo da demora, uma tutela liminar para seguir no
concurso poderá ser alcançada. Entretanto esta tutela deverá ser meramente
procrastinatória, pois o direito a vaga não assiste ao candidato Pedro.

21. Essas são as considerações relevantes, quanto às questões suscitadas para análise
jurídica.

É o parecer. SMJ.
Brasília, 25 de outubro de 2020.

Daniel Gallo Pereira

Você também pode gostar