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A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL: ANÁLISE DO

CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA E DA ADPF 153.

Aderruan Rodrigues Tavares(*)1

RESUMO: Este artigo visa contribuir com a compreensão atual da soberania


inserida no direito internacional e, em certa medida, no direito interno. Para
tanto, necessita-se rever algumas concepções históricas do conceito da
soberania. Nesse estudo, será revista a atuação dos Estados no atual
panorama internacional, principalmente quanto ao cumprimento de decisões de
cortes internacionais. Assim, traremos a relação entre a decisão do Supremo
Tribunal Federal na ADPF 153 e a da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso Guerrilha do Araguaia, buscando uma possível conformação
entre essas duas importantes decisões.

Palavras-chaves: Soberania, Direito Internacional, ADPF 53/DF, Caso


Guerrilha do Araguaia

ABSTRACT: This article aims to contribute with the actual comprehension of


the sovereignty in the international law and, somehow, in the national law. Thus,
it´s necessary review some history conception of sovereignty´s concept. In this
study, the performance of States will be review in the actual international
panorama, mainly in relation to the fulfillment of International Courts´ decisions.
Therefore, we´ll reflect in the relation between the Supremo Tribunal Federal´s
decision in the ADPF 153 and the Corte Interamericana de Diretos Humanos´
decision in the case Guerrilha do Araguaia, seeking a possible solution between
these decisions.

                                                                                                                         
1
 Assessor  de  Juiz  auxiliar  da  Presidência  do  Conselho  Nacional  de  Justiça.  Graduado  em  Direito  pela  
UDF.  Pós-­‐graduando  em  Direito  Constitucional  pelo  Instituto  Brasiliense  de  Direito  Público  –  IDP.  
Membro  do  Conselho  Administrativo  Editorial  da  Revista  Direito  Público.  
Keywords: Sovereignty, International Law, ADPF 53/DF, Case Guerrilha do
Araguaia.

1 – INTRODUÇÃO

O conceito de soberania é um dos temas mais tormentosos que a


doutrina internacionalista e a constitucionalista têm enfrentado recentemente. A
soberania para alguns é ínsita ao Estado, não podendo pensar nele sem ela.

O presente trabalho não tem o condão de fazer um buscado dos


mais variados entendimentos sobre a soberania. Tem, todavia, o intuito de,
partindo de algumas concepções, contribuir para situar a soberania no atual
contexto contemporâneo.

Nesse sentido, o pensamento vanguardista de HANS KELSEN


sobre a relação entre soberania e direito internacional, aliado à síntese
doutrinária de DALMO DE ABREU DALLARI sobre o mesmo tema, dá o norte
deste estudo. Contudo, as ideias de UMBERTO CAMPAGNOLO,
representando a teoria do dualismo na relação entre direito interno e direito
internacional, também são de grande valia para o enriquecimento deste
trabalho, até para ser fiel ao pensamento contrário da linha seguida por esse
estudo.

Defender-se-á aqui a tese da relativização da soberania estatal


para que os Estados possam conviver harmonicamente uns com os outros,
com fim de uma sociedade internacional livre de guerras armadas, o que gera
desrespeito com os direitos humanos. Assim, os Estados são partes de um
sistema jurídico mais evoluído, que preza a qualificação e intensificação das
relações internacionais, com a devida proteção dos direitos humanos.

Entretanto, embora tal tese não seja nova no campo do


conhecimento jurídico, ainda encontra diversas resistências em algumas
instituições internas dos Estados, ainda mais, naquelas que exercem parcelas
de poder. Trata-se, pois, de um processo longínquo, e, quiçá, maçante, da
realidade de vários países, entre eles, da República Federativa do Brasil.

Assim, o recorte exemplificativo utilizado para a denotação de tal


processo é a relação entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF
153, em que o STF considerou válida e recepcionada, nos termos da
Constituição de 1988, a Lei de Anistia, e a decisão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no Caso Guerrilha do Araguaia ou Caso Gomes Lund e
outros, em que essa Corte condenou o Brasil por diversas violações à
Convenção Americana de Direitos Humanos e determinando que o Brasil adote
bastantes medidas para saná-las. A problemática é saber qual decisão dessas
duas vale: se a do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da jurisdição
brasileira, ou se a da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instância
última na proteção dos direitos humanos no continente americano.

2 – DA SOBERANIA

No ordenamento jurídico brasileiro, a soberania é tida como um


fundamento da República Federativa do Brasil, encartada no inciso I do art. 1º
da nossa Constituição Federal de 1988.

Constitucionalizada, a soberania passa a vincular todas as ações


dos atores internos da sociedade brasileira e dos externos que de alguma
forma se sujeitam ao ordenamento jurídico pátrio.

Nessa perspectiva, entender o conceito e a natureza jurídica, bem


como sua natureza política, da soberania é de fundamental importância na
atual conformação moderno-contextual do direito constitucional e do direito
internacional. Assim, nessa parte do trabalho, cabe apenas uma simplificada
passagem sobre o conceito e as características da soberania, sob pena de
desvio do foco do presente estudo.
MIGUEL REALE conceitua soberania como “o poder de organizar-
se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de
suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.2”

Busca-se em DALMO DE ABREU DALLARI as ditas


características da soberania3. Vejamos:

a) una: a soberania é assim tida pois “não se admite no


mesmo Estado a convivência de duas soberanias”. Assim, o poder soberano se
manifesta como um poder superior a todos que eventualmente possam existir,
não sendo, portanto, possível existir, num mesmo espaço territorial duas forças
com tal característica;

b) indivisível: é que “além das razões que impõem sua


unidade, ela se aplica à universidade dos fatos ocorridos no Estado, sendo
inadmissível, por isso mesmo, a existência de várias partes separadas da
mesma soberania”.

c) Inalienável: “pois aquele que a detém desaparece quando


ficar sem ela, seja o povo, a nação, ou o Estado”.

d) Imprescritível: “porque jamais seria verdadeiramente


superior se tivesse prazo certo de duração. Todo poder soberano aspira a
existir permanente e só desaparece quando forçado por uma vontade superior.”

2.1.- A SOBERANIA PARA DALMO DE ABREU DALLARI.

Para DALMO DE ABREU DALLARI, a soberania é uma


característica fundamental do Estado, sem a qual, não podemos pensá-lo.4

Para o citado autor, o conceito de soberania, que tem despertado


a atenção de todos desde o século XVI, é tido como um termo político e um
termo jurídico, ao mesmo tempo. Devido a isso, surgiram diversas teorias sobre

                                                                                                                         
2
 DALLARI,  Dalmo  de  Abreu.  Elementos  de  Teoria  Geral  do  Estado.  21ª  ed.  São  Paulo:  Ed.  Saraiva,  2011,  
p.  87  
3
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit.,  p.  82-­‐83  
4
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit.,  p.  82  
o conceito, o que, de certa forma, prejudicou o real entendimento do conceito,
por torná-lo mais impreciso. A soberania comporta um conteúdo
intrinsecamente político, “apesar de todo o esforço, relativamente bem-
sucedido, para discipliná-lo juridicamente”.5 Nessa relação, entre a percepção
jurídica e política sobre o conceito de soberania que DALMO DE ABREU
DALLARI desenvolve esse tema.

Para DALMO DE ABREU DALLARI a noção de soberania


encontra-se “sempre ligada a uma concepção de poder”. Em termos políticos,
isso significa que a soberania pode ser conceituada como “o poder
incontrastável de querer coercitivamente e de fixar as competências”. Com
esse vetor, o poder soberano é absoluto, não admitindo qualquer subversão e
não se preocupando, pois, em ser legítimo ou de acordo com o ordenamento
jurídico. A consequência disso resultou num forte egoísmo entre os Estados,
principalmente entre os mais fortes, que invocavam suas soberanias para
agirem do modo que lhes conviessem.6

Já com uma percepção jurídica, a soberania é tida como o “poder


de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer,
sobre a eficácia do direito”. Ou seja, a soberania “é poder jurídico utilizado para
fins jurídicos”, cabendo ao Estado o poder de decidir qual a regra jurídica a ser
aplicada em cada caso. Em tal sentido, não há que se falar em Estados “mais
fortes ou mais fracos”, vez que a noção de direito é a mesma para todos. “A
grande vantagem dessa conceituação jurídica é que mesmo os atos praticados
pelos Estados mais fortes podem ser qualificados como antijurídicos,
permitindo e favorecendo a reação de todos os demais Estados.”7

Ademais, para DALMO DE ABREU DALLARI a soberania ainda é


aceita como independência e poder jurídico mais alto. Naquela concepção, o
Estado não aceita ser submisso a qualquer outro, invocando para tanto
autoafirmação de seu povo. Para esse, o Estado, dentro de seus limites

                                                                                                                         
5
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 81  
6
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 86  
7
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 86  
territoriais, exercerá a jurisdição, decidindo a sua situação eventualmente
guerreada em detrimento de qualquer norma jurídica.8

É óbvio que a afirmação de soberania, no sentido de


independência, se apóia no poder de fato que tenha o Estado,
de fazer prevalecer sua vontade dentro de seus limites
jurisdicionais. A conceituação jurídica de soberania, no entanto,
considera irrelevante, em princípio, o potencial de força
material, uma vez que se baseia na igualdade jurídica dos
Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de
convivência. Neste caso, a prevalência da vontade de um
Estado mais forte nos limites da jurisdição de um mais fraco, é
sempre um ato irregular, antijurídico, configurando uma
violação de soberania, passível de sanções jurídicas. E mesmo
que tais sanções não possam ser aplicadas imediatamente, por
deficiência de meios materiais, o caráter antijurídico da
violação permanece, podendo servir de base a futuras
reivindicações bem como à obtenção de solidariedade de
outros Estados.9

Com essas premissas, DALMO DE ABREU DALLARI entende


que o Estado soberano, dentro de seus limites territoriais, exercerá com
exclusividade sua jurisdição, por meio de normas ou produzidas por eles ou
aceitas do direito internacional. Em relação à comunidade internacional, o autor
pontua a necessidade de independência entre os Estados, de modo que
nenhum Estado subverta outro Estado.

2.2. A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PARA HANS KELSEN

HANS KELSEN talvez seja um dos maiores críticos do conceito


de soberania, principalmente se considerando o seu viés político apresentado
por DALMO DE ABREU DALLARI, em que refuta com certa veemência.
Ademais, HANS KELSEN é um dos principais defensores da teoria monista,
com prevalência do direito internacional.

                                                                                                                         
8
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 90  
9
 DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 90  
Para o autor austríaco, “o dogma da soberania leva
necessariamente a uma negação judicial do direito internacional”10

HANS KELSEN critica principalmente a teoria do reconhecimento


do direito internacional pelos Estados nacionais. Ao sustentarem essa tese, os
Estados negam que o Direito internacional seja uma norma jurídica superior
aos próprios e Estados e suas ordens jurídicas.11 Em sua doutrina, pela teoria
do reconhecimento a norma fundamental seria uma norma do ordenamento
nacional, sendo que o direito internacional só teria validade caso estivesse em
sintonia com essa norma fundamental. Assim, o direito internacional somente
fundamentaria e determinaria a esfera do direito nacional, caso fosse aceito
pelo Estado nacional.12

Ele vê, na discussão de se afirmar que um Estado é realmente


soberano, em que “a ordem jurídica nacional é uma ordem acima da qual não
existe nenhuma outra”, não existindo, inclusive ordenamento superior, no caso
o direito internacional, o ponto central para definir se o direito internacional é
superior ou não ao direito nacional.13

O resultado da nossa análise foi o de que o Direito


internacional, através do princípio de eficácia, determina a
esfera e o fundamento de validade da ordem do Direito
nacional, e, desse modo, a superioridade do Direito
internacional sobre o Direito nacional parece ser imposta pelo
conteúdo do próprio Direito.14

Nessa linha de raciocínio, HANS KELSEN entende que um


Estado não pode ser ou não soberano. No máximo, o que se pode é pressupor
que um Estado seja ou não soberano. Essa pressuposição é constatada a
partir de qual teoria é aceita pelo Estado. Caso seja aceita a teoria da primazia
do direito internacional, então se pressupõe que o Estado não é soberano.

                                                                                                                         
10
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto.  Direito  Internacional  e  Estado  Soberano.  Org:  Mario  Losano.  
São  Paulo:  Martins  Fontes,  2002,  p.  131  
11
 KELSEN,  Hans.  Teoria  geral  do  direito  e  do  estado.  Tradução  de  Luís  Carlos  Borges.  4.  ed.  São  Paulo:  
Martins  Fontes,  2005,  p. 544  
12
 KELSEN,  Hans,  op,  cit,  p.  546  
13
 KELSEN,  Hans,  op,  cit,  p.  545  
14
 KELSEN,  Hans,  op,  cit,  p.  546  
Com isso, a “soberania” do Estado seria em termos relativos, sendo que
somente o direito internacional seria superior ao ordenamento jurídico nacional,
com exclusão de qualquer outro direito nacional. Mas, se por outro lado, houver
a validação da teoria do reconhecimento, pressupõe-se que o Estado é, então,
soberano.15

HANS KELSEN prega a unidade do direito. Assim, não entende


possível que houvesse diversos “direitos estatais”, além do direito internacional.
A começar pela tese da soberania do Estado, HANS KELSEN sustenta a sua
impossibilidade, sendo apenas o direito internacional “soberano”, absoluto, em
que todos os Estados nacionais retiram do direito internacional a sua validade.
Dessa forma, os Estados gozariam de uma soberania relativa, preservando
cada Estado uma ordem jurídica que, na visão do direito internacional, essas
demais ordens jurídicas seriam “válidas exclusivamente para as suas esferas
territoriais e pessoais específicas, e podem ser criadas e modificadas em
conformidade com as suas próprias constituições”. Para HANS KELSEN, “a
soberania de um Estado exclui a soberania de todos os outros Estados”16.

Entender que cada Estado equivale a uma ordem jurídica nacional


isolada, todas soberanas, com o direito internacional fazendo parte de cada
uma, para HANS KELSEN, é conceber que existam “tantas ordens jurídicas
internacionais diferentes quanto há Estados ou ordens jurídicas nacionais”.
Tendo em vista que cada Estado irá aplicar o direito internacional do modo que
suas leis lhe permitirem. Ele não vê problemas quando cada Estado se
pressuponha soberano, entendido aqui a primazia do direito nacional, desde
que o direito internacional estabeleça “as relações com as ordens jurídicas dos
outros Estados e essas ordens jurídicas nacionais como partes da ordem
jurídica do seu próprio Estado, concebido como uma ordem jurídica
universal”.17

Ou seja, HANS KELSEN apenas aceita a soberania em termos


relativos, com a primazia do direito internacional sobre os ordenamentos
jurídicos nacionais, refutando, pois, a teoria do reconhecimento pelo Estado
                                                                                                                         
15
 KELSEN,  Hans,  op,  cit,  pp.  546-­‐547  
16
 KELSEN,  Hans,  op,  cit,  pp.  547-­‐548  
17
 KELSEN,  Hans,  op,  cit,  pp.  548  
das normas internacionais. Nesse caso, essas normas existem e são válidas
juridicamente independente da “aceitabilidade” ou não do Estado.

Com efeito, analisando os estudos de UMBERTO


CAMPAGNOLO, HANS KELSEN “reconhece o Estado apenas como um
ordenamento jurídico ao lado ou acima de outros ordenamentos jurídicos,
deixando, assim, aberta a possibilidade de um direito internacional não
coincidente com o direito estatal”18.

Destarte, para HANS KELSEN, a unidade do direito só seria


possível quando todas as normas de direito, advindas de todos os Estados e
do direito internacional, estiverem em apenas um sistema normativo, sem
contradições, em que o próprio direito internacional seria essa unidade
unificadora dos ordenamentos jurídicos, e que os Estados nacionais
receberiam uma delegação judicante para atuar por meio de sua constituição,
mas de acordo com o sistema jurídico internacional.19

Por fim, por consequência dessas ideias apresentadas, o autor


austríaco defende a constituição de um Estado universal, sendo dois meios
possíveis para sua concepção, uma por meio do imperialismo, em que um
Estado por meio de sua força econômica e/ou militar estende sua soberania
sobre os outros Estados, e a outra pelo federalismo, com os Estados se unindo
no sentido da formação de uma confederação universal.20

2.3. A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PARA UMBERTO


CAMPAGNOLO

UMBERTO CAMPAGNOLO foi um grande crítico da doutrina pura


do direito apresentada por HANS KELSEN, especificamente, quando o assunto
é relação entre soberania e direito internacional.

                                                                                                                         
18
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  121  
19
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  132  
20
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  134  
O autor italiano, que inclusive foi aluno de HANS KELSEN,
defende a teoria do reconhecimento, em que o direito internacional só tem
validade caso seja validado pelo direito nacional.

Em sua visão, a soberania é inseparável da ideia de Estado, por


que aquela é essencial a esse21. Assim, a soberania define a relação de
autoridade entre o Estado e os seus nacionais, que são chamados por
UMBERTO CAMPAGNOLO de súditos22. Nesse sentido, ele não vê a
possibilidade de que um súdito possa estar “contemporaneamente sujeito a
dois ordenamentos jurídicos”23, o que de plano refuta o direito internacional
como um ordenamento jurídico.

Para UMBETO CAMPAGNOLO, o direito internacional não


poderia, em hipótese alguma, ser superior aos ordenamentos jurídicos
nacionais, visto que o direito representa a reação do Estado contra seus
súditos, não podendo haver duas possibilidades reacionárias contemporâneas.
“Se Estados fossem incluídos num sistema jurídico mais vasto (direito
internacional), o Estado seria esse sistema mesmo e, em relação a esse, os
assim chamados Estados seriam apenas províncias”24.

Na minha opinião, é indiscutível que a experiência concreta do


direito internacional não possa ser definida soberana mais do
que aquela do direito interno, como por outro lado a lei dos
Estados considerados totalitários não parece aos seus súditos
mais soberana do que a Lei dos Estados liberais. Na minha
tese, demonstrei não ser possível separar a ideia de soberania
da ideia de Estado e de direito demonstrei ainda que Hans
Kelsen, tendo-as separado, não consegue oferecer um
conceito científico de Estado. De fato, ele mesmo define o seu
conceito de Estado como uma norma consuetudinária do direito
internacional25.

Assim, UMBERTO CAMPAGNOLO entende que “o direito


internacional não é o resultado da colaboração dos outros Estados com o

                                                                                                                         
21
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  165  
22
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  163  
23
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  161  
24
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  161  
25
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  173  
Estado do qual emana porque a sua validade, ou seja, a sua existência
mesma, depende exclusivamente do Estado da qual faz parte”26.

2.4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOBERANIA E O DIREITO


INTERNACIONAL.

É necessária a reanálise do conceito e dos efeitos da soberania


na busca de novos elementos que possam dar-lhe novo sentido, diante do
atual panorama das relações internacionais, sob pena de se estar diante de um
conceito falacioso e inútil para o desenvolvimento humano e do próprio
conceito de Estado pós-moderno.

Para FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN, a soberania foi


dogmatizada para “justificar a superioridade de um poder, livre de qualquer
sujeição”. Dessa forma, “tomava-se a soberania pelo mais alto poder, a
supremitas, traço essencial para distinguir o Estado dos demais poderes que
com ele disputavam27”. Nesse sentido, também, como se viu acima, é a teoria
de UMBERTO CAMPAGNOLO.

Tal perspectiva do conceito de soberania parece não encontrar


mais guarida na atualidade, em que o “sentimento nacional de soberania” cede
lugar às ideologias nas relações entre Estados, ao que podemos chamar de
relatividade da soberania. Certamente, no plano internacional, as relações
interestatais limitam a força irrestrita da soberania.28

Daí advém a necessidade de perceber a soberania como um


conceito relativo na sua relação com o Estado, para que ela não possa, de
alguma forma, impedir que a interação do Estado com dos outros, quer em
nível regional, quer, internacional29.

Com efeito, CELSO DE ALBURQUERQUE DE MELLO aduz que:

                                                                                                                         
26
 KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  180  
27
 FURLAN,  Fernando  de  Magalhães.  Integração  e  Soberania  –  O  Brasil  e  o  Mercosul.  São  Paulo:  Ed.  
Aduaneiras,  2004,  p.  21  
28
 FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  21  
29
 FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  60  
Esta (a soberania) passa a ser uma noção quase que formal,
vez que seu conteúdo é cada vez mais diminuído pela criação
e desenvolvimento das organizações internacionais. Muitas
vezes, a própria palavra soberania é evitada, como ocorre na
Carta da ONU, que prefere usar expressões como ‘jurisdição
doméstica’ ou ‘domínio reservado30.

Assim, diante da relativização do conceito de soberania, os


Estados, sob pena de isolamento, são tidos por unidades jurídicas autônomas,
em que são competentes para criar o direito de acordo com suas
peculiaridades culturais, econômicas e sociais, mas que não podem
desrespeitar o direito internacional, sob pena de sanção econômica, por
exemplo.

Dessa forma, cada Estado deve estar em consonância com os


preceitos do direito internacional, das relações internacionais (no tocante a
relações econômicas, diplomáticas, etc.) e da prevalência de proteção aos
direitos humanos.

Embora proponha-se a autonomia jurídica de cada Estado, ainda


subsiste a tese de que nenhum outro Estado poderá adentrar na jurisdição
alheia sem o respectivo consentimento. Consequentemente, caso essa invasão
aconteça, o próprio direito internacional se encarregará de solucionar a
questão.

Destarte, a soberania é a atribuição exclusiva que tem o Estado


de executar suas decisões ou de órgãos internacionais competentes, com
exclusividade dentro do seu próprio território. Ademais, ainda assim, nenhum
outro Estado poderá expedir qualquer determinação vinculante para outro
Estado, sem o devido consentimento deste, sendo possível ser visualizada a
competência de um órgão superior aos Estados em expedição de decisões ou
normas vinculantes internacional, como, por exemplo, as decisões da Corte
Internacional de Justiça. Ou seja, mesmo que a decisão seja internacional,
apenas o Estado em seu próprio território poderá executá-la.

                                                                                                                         
30
 FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  60  
Dessa forma, o direito nacional tem a obrigação de estar em
sintonia com o direito internacional, sendo este um ordenamento jurídico
coordenador e agregador das vontades Estatais, coordenado-as com a
finalidade de proteção dos direitos humanos31.

2.5. O CONSTITUCIONALISMO E O DIREITO INTERNACIONAL NA


ANÁLISE DA SOBERANIA

A maioria dos Estados se regula por meio de uma Constituição,


ou uma norma fundamental que faça as vias daquela. Além da relação da
soberania, que, em muitos Estados, é quista pela Constituição32. Com o direito
internacional, interessante estudo também é a relação entre o
constitucionalismo e o direito internacional sob a ótica do estudo sobre a
soberania.

Para CELSO DE ALBURQUERQUE DE MELLO, não há


Constituição, ou mesmo entendimento de tribunal constitucional, que permita a
“alienação” da soberania estatal, “porque fazê-lo seria consagrar o fim do
Estado”33.

Com efeito, não é, para as Cortes Constitucionais, das mais


confortáveis teses afirmar que o direito internacional tem prevalência a suas
decisões. Para tanto, é necessário um pensamento institucionalizado
vanguardista dessas Cortes, mas, faticamente, parecem ainda não estar
preparadas para lidar com as decisões e/ou jurisprudências dos órgãos
internacionais.

                                                                                                                         
31
 “Na  interconexão  do  direito  interno  com  o  direito  internacional,  a  limitação  das  competências  do  
Estado,  pela  atribuição  conferida  aos  órgãos  que  produzem  as  normas  supranacionais,  constitui,  
iniludivelmente,  uma  limitação  à  própria  soberania  do  Estado,  considerada  esta  em  sua  concepção  mais  
vinculada  à  ideia  de  capacidade  suprema  de  produzir,  por  si  e  internamente,  uma  ordem  jurídica”.  
FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  59  
32
 “Se  de  um  lado  o  conceito  tradicional  e  hermético  de  soberania  já  não  mais  prevalece,  até  mesmo  
porque  desatende  aos  reclamos  da  sociedade  contemporânea,  é  certo  que  ele  ainda  é  proclamado,  
inclusive  nas  Constituições,  por  resguardar  o  direito  de  cada  povo  de  decidir  a  sua  forma  política  de  ser  
e  de  fazer-­‐se  construir  em  sua  história  de  maneira  a  não  se  subordinar  aos  comandos  de  potências  
estrangeiras”  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  59  
33
 FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  60  
Todavia, o constitucionalismo, apoiando-se na soberania estatal,
não pode estar alheio ao processo de internacionalização do direito, bem como
afastado das decisões internacionais. Não pode, pois, servir de barreira para a
efetivação dos direitos humanos decorrente dos institutos do Direito
Internacional. Os direitos fundamentais e os direitos humanos não podem ser
duas esferas isoladas e ciumentas entre si; mas devem atentar que a finalidade
do direito é a proteção do indivíduo em todas as suas esferas, pois os Estados
existem para somente isso.

Conceber duas esferas protetivas distantes e sem diálogo é


conceber dois direitos que não protegem ninguém ao cabo, tendo em vista que
uma via sempre vai querer a prevalência de sua decisão, e não havendo uma
confirmação ao final desse processo. A decisão a ser cumprida no caso
concreto é sempre a mais benéfica para os indivíduos, seja ela de cunho
constitucional ou de cunho internacional, não podendo de forma alguma o
Estado se utilizar de uma pretenciosa soberania para descumprir decisões
internacionais.

3. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF 153.

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº


153/DF – ADPF 153 foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil – CFOAB contra a Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de
1979 – Lei de Anistia com o intuito de que o Supremo Tribunal Federal – STF
considerasse tal lei não recepcionada pela Constituição Federal de 1988.

Segundo essa lei acatada, todos aqueles que cometeram crimes


políticos ou conexos com estes, no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de
agosto de 1979, foram anistiados. Para o CFOAB não é

possível, consoante o texto da Constituição do Brasil,


considerar válida a interpretação segundo a qual a Lei n. 6.683
anistiaria vários agentes públicos responsáveis, entre outras
violências, pela prática de homicídios, desaparecimentos
forçados, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e
atentado violento ao pudor, Sustenta que essa interpretação
violaria frontalmente diversos preceitos fundamentais.34

Diante disso, O STF afirmou, em suma, que: (a) a lei de anistia se


deu por solução consensual das partes (em plena época da ditadura)35; (b) que
não era aplicável a jurisprudência internacional, porque não seria hipótese de
anistia ‘unilateral’, mas sim recíproca, sem questionar, contudo, quem foi que
se autoconcedeu a anistia; e (c) que o cidadão tinha direito à verdade, mas fez
questão de frisar que eventual ‘Comissão de Verdade’ não teria nem poderia
ter qualquer finalidade de persecução penal”36.

Os Ministros EROS GRAU, CÁRMEM LÚCIA, GILMAR MENDES,


ELLEN GRACIE, MARCO AURÉLIO, CELSO DE MELLO e o presidente do
Supremo CÉSAR PELUSO votaram pela recepção da Lei de Anistia. Ficaram
vencidos o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI e o Ministro CARLOS AYRES
BRITTO. O Ministro JOAQUIM BARBOSA, quando do julgamento, estava
licenciado e o Ministro DIAS TÓFFOLI estava impedido de julgar, vez que tinha
atuado no caso na função de Advogado Geral da União.

A partir de agora, destacam-se as principais fundamentações dos


ministros do STF levadas a efeito para o desfecho do caso posto, que têm
alguma relevância para o estudo do presente artigo, qual seja, a soberania e o
direito internacional.

O relator da ADPF 153, Ministro EROS GRAU, voto condutor do


julgamento, pautou seu voto pela posição restritiva do Supremo (self restraint),
vez que afirma que não é o caso do Poder Judiciário proceder à modificação da

                                                                                                                         
34
 Trecho  do  relatório  do  Ministro  EROS  ROBERTO  GRAU,  relator  da  ADPF  153.  
35
 CF.  PIOVESAN,  Flávia.  Lei  de  Anistia,  Sistema  Interamericano  e  o  caso  brasileiro.  In:  Crimes  da  
Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  Interamericana  de  Diretos  
Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  
Tribunais,  2011,  pp.  73-­‐86,  p.  81  
36
 BALDI,  César  Augusto.  Guerrilha  do  Araguaia  e  direitos  humanos:  considerações  sobre  a  decisão  da  
Corte  Interamericana.  In:  Crimes  da  Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  
Corte  Interamericana  de  Diretos  Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  
São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  Tribunais,  2011,  pp  154-­‐173,  p.  154  
situação fático-jurídica dos anistiados, cabendo isso, tão somente, ao Poder
Legislativo.37

A Ministra CÁRMEM LÚCIA, embora tenha votado pela recepção


da Lei de Anistia, nos termos do voto do relator, reconheceu a injustiça do art
1º da Lei de Anistia, mesmo tisnando os direitos humanos, mas que a esfera
judicial não é a própria para revisão desse ato.38

O Ministro CELSO DE MELLO também votou de acordo com o


relator, mas teve o cuidado de analisar decisões da Corte Interamericana de
Direitos Humanos sobre leis de anistia, embora tenha chegado a um
entendimento diverso da Corte:

Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos,


em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos
casos contra o Peru (‘Barrios Altos’, em 2001, e ‘Loyaza
Tamayo’, em 1998) e contra o Chile (‘Almonacid Arellano e
outros’, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade,
com os princípios consagrados na Convenção Americana de
Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia,
unicamente, a agentes estatais, as denominadas ‘leis de
autoanistia’.

A razão dos diversos precedentes firmados pela Corte


Interamericana de Direitos Humanos apóia-se no
reconhecimento de que o Pacto de São José da Costa Rica
não tolera o esquecimento pela de violações aos direitos
fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais
que amparam e protegem criminosos que ultrajaram, de modo
sistemático, valores essenciais protegidos pela Convenção
Americana de Direitos Humanos e que perpetraram,
covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura e
que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o
homicídio, o sequestro, o desaparecimento forçado das
vítimas, o estupro, a tortura e outros atentados às pessoas
daqueles que se opuserem aos regimes de exceção que
vigoraram, em determinados momentos históricos, em
inúmeros países da América Latina.

É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de


anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não
pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna
                                                                                                                         
37
 RAMOS,  André  de  Carvalho.  Crimes  da  ditadura  militar:  A  ADPF  e  a  Corte  Interamericana  de  Direitos  
Humanos.  In:  Crimes  da  Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  
Interamericana  de  Diretos  Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  
Paulo:  Ed.  Revista  dos  Tribunais,  2011,  pp.  174-­‐226,  p.  186  
38
 RAMOS,  André  de  Carvalho,  op,  cit,  p.  186  
inconsistente, para os fins deste julgamento, a inovação dos
mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos
Humanos.

Destaca-se, de igual forma uma passagem do voto do Ministro


GILMAR MENDES entendendo que a Lei de Anistia não deve ser modificada
tendo em vista à época da entrada da sua vigência:

Devemos refletir, então, sobre a própria legitimidade


constitucional de qualquer ato tendente a revisar ou restringir a
anistia incorporada à EC 26/1985. Parece certo que estamos,
dessa forma, diante de uma hipótese na qual estão em jogo os
próprios fundamentos de nossa ordem constitucional. Enfim, a
EC 26/1985 incorporou a anistia como um dos fundamentos da
nova ordem constitucional que se construía à época, fato que
torna praticamente impensável qualquer modificação de seus
contornos originais que não repercuta nas próprias bases de
nossa Constituição e, portanto, de toda a vida político-
institucional pós-1988.

O Ministro RICARDO LEWANDOWSKI foi o primeiro a se


manifestar contrariamente ao voto do relator. Para ele, aqueles que cometeram
crimes comuns não poderiam ser anistiados, somente os que por ventura
cometeram crimes políticos.

Para o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, a Lei de Anistia


impede que as partes envolvidas busquem a tutela jurisdicional, em claro
desrespeito ao inc. XXXV do art. 5º da Constituição. Ademais, aduz que:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os


Estados Partes da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos - também internalizada pelo Brasil - têm o dever de
investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos
humanos, obrigação que nasce a partir do momento da
retificação de seu texto, conforme estabelece o seu art. 1.1. A
Corte Interamericana acrescentou, ainda, que o
descumprimento dessa obrigação configura uma violação à
Convenção, gerando a responsabilidade internacional do
Estado, em face da ação ou omissão de qualquer de seus
poderes ou órgãos
O Ministro CARLOS AYRES BRITTO, foi o outro vencido nesse
julgamento, na esteira do pensamento do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI,
não entende cabível conceder anistia àqueles que cometeram crimes comuns,
dando parcial provimento à ADPF, seguindo o entendimento da Corte
Interamericana de Direito Humanos, embora, em nenhum momento, a ela faça
referência.

4 – A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


NO CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA

4.1 – DO DEVER DE INVESTIGAR OS CRIMES OCORRIDOS NA


GUERRILHA DO ARAGUAIA

No Caso Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana de


Direitos Humanos condenou o Brasil por violação a direitos humanos, em
virtude de crimes cometidos contra o desaparecimento de 62 pessoas na
Guerrilha do Araguaia, não se tendo informações sobre o paradeiro de 60 deles
até a data da decisão no caso, que é datada de 24.11.2010, quase 7 (sete)
meses após a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF
153, que foi no dia 29.04.2010.

O caso foi levado à esta Corte, após a denúncia de que em


virtude da Lei de Anistia, o Estado não realizou uma investigação penal com a
finalidade de julgar e punir as pessoas responsáveis pelo desaparecimento
forçado de 70 vítimas e a execução extrajudicial de outra pessoa.39

Diante disso, a Corte enfatizou que os Estados signatários do


Pacto de San José da Costa Rica têm:

“(...) a obrigação, conforme o Direito Internacional, de


processar e, caso de determine sua responsabilidade penal,
punir os autores de violações de direitos humanos, decorre da
obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção
Americana. Essa obrigação implica o dever dos Estados-Partes
de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas

                                                                                                                         
39
 Parágrafo  2  do  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.    
as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do
poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar
juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos.
Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem
prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos
reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o
restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se
for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação
dos direitos humanos. Se o aparato estatal age de modo que
essa violação fique impune e não se reestabelece, na medida
das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-
se afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas
sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno exercícios de seus
direitos.

Assim, gera-se a obrigação de investigar e punir aqueles que


deram causa ao desaparecimento forçado de pessoas, bem como daqueles
que cometeram crimes de torturas e homicídios. Em relação ao crime de
desaparecimento forçado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
entende que este crime tem um caráter permanente, não cessando até que se
tenham notícias sobre o paradeiro do indivíduo:

No Direito Internacional, a jurisprudência deste Tribunal foi


precursora da consolidação de uma perspectiva abrangente
da gravidade e do caráter continuado ou permanente da
figura do desaparecimento forçado de pessoas, na qual o ato
de desaparecimento e sua execução se iniciam com a
privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de
informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se
conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine
com certeza sua identidade. Em conformidade com todo o
exposto, a Corte reiterou que o desaparecimento forçado
constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos
pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um
estado de completa desproteção e acarreta outras violações
conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um
padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo
Estado.40

Com isso, mesmo que se entenda que o Brasil não estava


obrigado a investigar fatos ocorridos antes de 10 de dezembro de 1998,
quando foi reconhecida a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
                                                                                                                         
40
 Parágrafo  103  da  caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.  
Humanos, a obrigação subsiste após essa data, tendo em vista o caráter
permanente do crime de desaparecimento forçado de pessoas.

Assim, o Brasil está sendo obrigado pela Corte Interamericana de


Direitos Humanos a investigar e, se for o caso, punir os violadores de direitos
humanos, com intuito de informar os familiares sobre o paradeiro dos
desaparecidos na região do Araguaia, quando da Guerrilha:

Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a


importância do dever estatal de investigar e punir as violações
de direitos humanos. A obrigação de investigar e, se for o caso,
julgar e punir, adquire particular importância ante a gravidade
dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos,
especialmente em vista de que a proibição do desaparecimento
forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e
punir aos responsáveis há muito alcançaram o caráter de jus
cogens.41

4.2. AS LEIS DE ANISTIAS E A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS


HUMANOS

Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, as leis de


anistias, relativas a graves violações de direitos humanos, são incompatíveis
com o direito internacional e as obrigações internacionais dos Estados,42 tendo
em vista que elas contribuem para a perpetuação da impunidade:

(...) são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições


de prescrição e o estabelecimento de excludentes de
responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e
punição dos responsáveis por graves violações dos direitos
humanos, como a tortura, as execuções sumárias,
extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados,
todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis

                                                                                                                         
41
 Parágrafo  137,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.    
42
 Parágrafo  147,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.    
reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos
Humanos.43

Nessa esteira, para a Corte Interamericana de Direitos Humanos


não só as leis de autoanistias são consideradas contrárias ao Direito
Internacional, mas igualmente, a lei de anistia, nos moldes que foi aprovada
pelo Brasil. Para a Corte, o mais importante não está na forma como fora
concebida a norma de anistia, se por acordo político, ou se tratando de lei de
autoanistia, mas sim no aspecto material da lei, em que essa é obstáculo para
investigação e punição de graves violações de direitos humanos.44

4.3 – DA OBRIGAÇÃO DO BRASIL EM CUMPRIR A DECISÃO DA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A Corte Interamericana de Direitos Humanos é a ultima instância,


quando o assunto é direitos humanos no continente americano45. Assim, suas
decisões devem ser atendidas por todos aqueles Estados que reconhecem sua
jurisdição, como é o caso do Brasil, sob pena de transgressão do art. 68, §1º,
da Convenção de Americana de Direitos Humanos46 e do artigo 2747 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

Dessa forma, a República Federativa do Brasil, conforme a


decisão da Corte no caso Guerrilha do Araguaia está obrigado a:

a) investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os


responsáveis, em que a Lei de Anistia não sirva de obstáculo a essa
determinação48;

b) determinar do paradeiro das vítimas49;

                                                                                                                         
43
 Parágrafo  171,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
44
 Parágrafo  175,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
45
 Parágrafo  176,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
46
 “Artigo  68  -­‐  1.  Os  Estados-­‐partes  na  Convenção  comprometem-­‐se  a  cumprir  a  decisão  da  Corte  em  
todo  caso  em  que  forem  partes”.  
47
 “Artigo  27  -­‐  Uma  parte  não  pode  invocar  as  disposições  de  seu  direito  interno  para  justificar  o  
inadimplemento  de  um  tratado”  
48
 Parágrafo  253  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
c) publicar da sentença da Corte50, que aliás, já foi cumprida,
quando a Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da
República, disponibilizou a sentença em seu sítio eletrônico;

d) editar ato público de reconhecimento de responsabilidade


internacional, em que a Corte determina que o Brasil reconheça sua
responsabilidade internacional, bem como celebre atos de importância
simbólica, que assegurem a não repetição das violações ocorridas no presente
caso51;

e) tipificar do delito de desaparecimento forçado, em que a Corte


determinou que o Brasil continue com as proposições legislativas para essa
tipificação (PL 4038/08 e PL 301/07)52;

f) instituir a Comissão da Verdade, com o intuito de vasculhar o


passado referente às pessoas desaparecidas, em busca de elementos que
possam determinar seu paradeiro. Todavia, a Corte ressalva que a instituição
dessa Comissão, não exclui a obrigatoriedade do Brasil de investigar e punir os
violadores de direitos humanos da época em questão5354.

Diante de tais mandamentos, para VALERIO DE OLIVEIRA


MAZZUOLI e LUIZ FLAVIO GOMES, o Brasil tem a obrigação de cumprir a
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não tendo qualquer
“valor jurídico a Lei de Anistia brasileira”55.

5. A RELAÇÃO ENTRE A DECISÃO DA CORTE E A DO STF

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
49
 Parágrafo  258  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
50
 Parágrafo  270  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
51
 Parágrafo  274  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
52
 Parágrafo  284  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
53
 Parágrafo  297  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
54
 Cumprindo  essa  decisão,  o  Brasil  editou  a  Lei  nº  12.528,  de  18  de  novembro  de  2011,  que  cria  a  
Comissão  Nacional  da  Verdade  no  âmbito  da  Casa  Civil  da  Presidência  da  República.    
55
 GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  Crimes  da  ditadura  militar  e  o  “Caso  Araguaia”:  
aplicação  do  direito  internacional  dos  direitos  humanos  pelos  juízes  e  tribunais  brasileiros.  In:  Crimes  da  
Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  Interamericana  de  Diretos  
Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  
Tribunais,  2011,  pp.  49-­‐72,  p.  72  
Assim, como pensam VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI e LUIZ
FLÁVIO GOMES, também entendemos que a República Federativa do Brasil
deverá acatar e cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Veja-se, que a obrigação de cumprir a decisão da Corte
Interamericana recai sobre todas as funções (ou poder) do Estado brasileiro,
não somente, sobre o Poder Executivo.

Assim, é bom repisar que a Corte Interamericana de Direitos


Humanos não revogou a decisão do Supremo Tribunal Federal e nem retirou
do ordenamento jurídico brasileiro a Lei de Anistia, até porque sua função não
é essa, apenas atuou dentro de seu âmbito de competência56. A Corte, em
relação ao STF, apenas conclui que órgão brasileiro não levou em
consideração os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo
Brasil, não analisando a Lei de Anistia sob o controle de convencionalidade57:

Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é


consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao
império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as
disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto,
quando um Estado é Parte de tratado internacional, como a
Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive juízes,
também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para
que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam
enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu
objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos
jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está
internacionalmente obrigado a exercer um “controle de
convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a
Convenção Americana, evidentemente no marco de suas
respectivas competências e das regulamentações processuais
correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar
em conta não somente o tratado, mas também a interpretação
que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da
Convenção Americana.58

                                                                                                                         
56
   “Primeiro:  que  a  punição  do  Brasil  “não  revoga,  não  anula,  não  caça  a  decisão  do  Supremo”.  Correto,  
realmente.  Cada  qual  analisou  no  seu  âmbito  de  competência.  E,  no  plano  do  direito  internacional,  a  lei  
“carece  de  efeitos  jurídicos”.  E  como  a  própria  já  decidiu,  tampouco  impediria  que  a  Constituição  tivesse  
que  ser  alterada  para  se  conformar  aos  parâmetros  do  direito  internacional”.  BALDI,  César  Augusto.  Op,  
cit,  p.  171  
57
 GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira,  op,  cit,  pp.  52-­‐53  
58
 Parágrafo  176,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
Ainda no juízo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a
proteção dos direitos humanos exercida pelos órgãos internacionais tem um
viés subsidiário, cabendo aos órgãos judiciais internos a imediatividade dessa
proteção. Assim, os órgãos internacionais, segundo a Corte, nos quais ela se
inclui, não têm o condão de revisar ou cassar as decisões internas dos Estados
que julguem casos práticos sobre direitos humanos, mas apenas verificar se
tais decisões estão de acordo ou não com as normas internacionais de
proteção aos direitos humanos59.

Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, o direito internacional


considera todos os atos internos (leis, atos administrativos, decisões judiciais,
etc.) expressões da vontade de um Estado, “que devem ser compatíveis com
seus engajamentos internacionais anteriores, sob pena de ser o Estado
responsabilizado internacionalmente”. Dessa forma, na esteira do visto acima,
o Estado não poderá se utilizar de nenhum ato interno para descumprir
obrigação internacional assumida, podendo, caso descumpra, ser coagido a
reparar os eventuais danos causados. Assim, mesmo a norma constitucional
de um Estado é vista não como “norma suprema”, mas como mero fato, que,
caso venha a violar norma jurídica internacional, acarretará a responsabilização
internacional do Estado infrator”60.

Com efeito, outra não seria a conclusão diante de tal assunto,


tendo em vista que a própria Constituição Federal, por meio do art. 7º61, dos
Atos de Disposições Transitórias Constitucionais, determina a subordinação
jurídica brasileira a um tribunal internacional de direitos humanos, ou seja, a
jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos é um
ditame constitucional.

Após sabedores da decisão da Corte Interamericana de Direitos


Humanos, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal deram declarações a
respeito dos efeitos jurídicos (ou não) dessa decisão internacional.

                                                                                                                         
59
 Parágrafo  32,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  
60
 RAMOS,  André  de  Carvalho,  op,  cit,  pp.  209-­‐210  
61
 “Art.  7º.  O  Brasil  propugnará  pela  formação  de  um  tribunal  internacional  dos  direitos  humanos”  
Para o Ministro CÉSAR PELUSO, a decisão da Corte
Interamericana apenas gera efeitos na seara da Convenção Americana de
Direitos Humanos, não gerando qualquer efeito para os anistiados pela lei
brasileira. Se, porventura, a decisão internacional gerar algum efeito a essas
pessoas, essas poderão recorrer com pedido de habeas corpus, que "O
Supremo vai conceder na hora."62

Essas declarações do atual Ministro Presidente do STF, ao que


parece, vão de encontro com a passagem de seu voto na Ext. 1085, mais
conhecido como caso Battisti, em que invocando o art. 2663 da Convenção de
Viena afirmou categoricamente que um Estado não pode descumprir tratado ao
qual se vinculou, “este é principal capital da teoria e da prática dos tratados,
pois não tem nexo nem senso conceber que sejam celebrados para não ser
cumpridos por nenhum dos Estados contratantes”. Ademais, tais declarações
não se alinham ao entendimento do próprio Ministro no julgamento do HC
87585, que tratava de um dos julgamentos que o STF se debruçou sobre a
questão da prisão civil do depositário infiel:

Eu estava até recentemente algo hesitante à taxonomia dos


tratados em face da nossa Constituição, mas estou
seguramente convencido, hoje, de que o que a globalização faz
e opera em termos de economia, no mundo, a temática dos
direitos humanos deve operar no campo jurídico. Os direitos
humanos já não são propriedade de alguns países, mas
constituem valor fundante de interesse de toda a humanidade.

Por isso, adiro à posição do grande publicista Paulo Borba


Casella, o qual sustenta que a temática dos direitos humanos,
por dizer respeito aos direitos fundamentais, que têm primazia
na Constituição, é sempre ipso facto material constitucional. E
é possível extrair da conjugação dos §§2º e 3º do art. 5º que o
que temos aí é, pura e simplesmente, uma distinção entre os
tratados sem status de emenda constitucional, que são
materialmente constitucionais, e os do §3º, que são material e
formalmente constitucionais. Qual a substância da distinção? A
de regimes jurídicos. Com qual consequência? Com uma única
conseqüência: saber os efeitos ou os requisitos do ato de
denúncia pelo qual o Estado pode desligar-se dos seus
compromissos internacionais. Esta é a única relevância na
distinção entre as hipóteses do §2º e do §3º. E acho que o
Tribunal não deve, com o devido respeito, ter receio de
                                                                                                                         
62
 Jornal  Estadão,  dia  16.12.2010.  
63
 “Artigo  26.  Todo  tratado  em  vigor  obriga  as  partes  e  deve  ser  cumprido  por  elas  de  boa  fé”.  
perquirir qual a extensão dos direitos fundamentais, até porque
eles são históricos. Ou seja, é que preciso que a Corte, no
curso da história, diante de fatos concretos, vá descobrindo e
revelando os direitos humanos que estejam previstos nos
tratados internacionais, enquanto objeto da nossa
interpretação, e lhes dispense a necessária tutela jurídico-
constitucional" (negritos no original, sublinhado pelo autor)

De igual forma, O Ministro MARCO AURÉLIO aduziu que o


executivo brasileiro está submetido ao julgamento do STF, não podendo
afrontá-lo para seguir a Corte Interamericana de Direitos Humanos. "É uma
decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas não implica
cassação da decisão do STF", disse. "Quando não prevalecer a decisão do
Supremo, estaremos muito mal."64

Mais preocupado com os efeitos internacionais sobre um eventual


descumprimento da decisão internacional, o Ministro CARLOS AYRES BRITTO
acentuou que prevalece a decisão do Supremo, mas entendeu a situação
ímpar em que se encontra o Brasil: "é uma saia-justa, um constrangimento para
o País, criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade
(o Judiciário)"65.

Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, caso o Supremo Tribunal


Federal mantenha esse “posicionamento negacionista”, o art. 68, I, da
Convenção Americana de Direitos Humanos, que trata da força vinculante das
decisões da Corte Interamericana, está fadado a ser considerado
inconstitucional ou sofrer uma interpretação conforme a Constituição de 198866.

6 – UMA CONCLUSÃO NECESSÁRIA: O CUMPRIMENTO DA DECISÃO DA


CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS FERE A SOBERANIA
BRASILEIRA?

Com a teoria da relativização da soberania, o Brasil, ao atender


as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cumpre com
                                                                                                                         
64
 Jornal  Estadão,  dia  16.12.2010.  
65
 Jornal  Estadão,  dia  16.12.2010.  
66
 RAMOS,  André  de  Carvalho,  op,  cit,  p.  214  
seu papel internacional, e em nada menoscaba a sua parcela de soberania,
que, como visto, restará intocável, no sentido de preservação do seu território e
de cumprimento de decisões internas ou internacionais.

A soberania não poderá servir de escudo para o não cumprimento


de decisões internacionais por qualquer que seja a entidade ou órgão do
Estado. Ainda mais quando essas decisões vêm de uma Corte que a própria
Constituição Federal pugnou pela sua criação, e que o Brasil aceitou sua
jurisdição. Aceitar a jurisdição de um Tribunal implica necessariamente
obedecer as suas decisões.

Como defendido neste trabalho, cada Estado representa no direito


internacional uma unidade jurídica autônoma, em que a soberania de cada
Estado seria relativizada para reconhecer a primazia dos direitos humanos em
toda a comunidade internacional. Assim, os Estados seriam competentes para
disciplinar quaisquer matérias, inclusive sobre direitos humanos, que restaria
qualificados como direitos fundamentais, mas que não poderiam estar em
contraste com as normas de direito internacional, nem com as decisões das
Cortes responsáveis pela defesa dos direitos humanos. Nessa esteira,
entende-se serem infelizes as passagens acima transcritas pelos Ministros do
Supremo, não reconhecendo a jurisdição e vinculação jurídico-operacional da
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não contribuindo em
nada para o desenvolvimento do diálogo entre o STF e a CIDH.

Ademais, frise-se que a Corte não vê nenhuma diferença entre


decisão do Supremo, ou decreto legislativo, por exemplo, ou qualquer ato
administrativo no âmbito do Poder Executivo. São todos esses exemplos de
atos internos da República Federativa do Brasil.

Buscando uma aparente conciliação entre essas duas decisões,


pode-se supor que a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
apenas limitou a eficácia da decisão do Supremo Tribunal Federal ao que
tange ao espaço da região do Araguaia, ao período de 1972 a 1975 aos crimes
de tortura, homicídios, estupros e outros crimes graves, bem como o
desaparecimento forçado de pessoas, durante esse período observado nesse
espaço. Assim, em tese, a Lei de Anistia, considerada recepcionada pela
Constituição Federal de 1988, conforme decisão do Supremo, valeria para
todos os outros casos que não foram atacados na Corte de Direitos Humanos.

Com efeito, essa ainda não é a melhor das soluções, pois a Corte
Interamericana de Direitos Humanos foi enfática ao decidir que as leis de
anistias são contrárias à Convenção Americana de Direitos Humanos. O que
não se entende é como o STF considerou a Lei de Anistia válida diante do nível
de proteção que a Constituição Federal de 1988 dispensa aos direitos
fundamentais. Todavia, pode ser uma aparente solução para o problema a
proposta no parágrafo anterior.

Assim, cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos


Humanos, no caso Guerrilha do Araguaia, é o mínimo que se espera por parte
da República Federativa do Brasil. Aliás, também se espera que o Supremo
cumpra seu papel como protetor máximo, no território brasileiro, dos direitos e
garantias individuais de toda a sociedade brasileira, ainda mais, nesse caso,
dos direitos e garantias dos familiares dos mortos e desaparecidos em virtude
da Guerrilha do Araguaia. Não podemos conceber que um Estado vanguardista
na proteção dos direitos fundamentais ponha a salvo a responsabilização de
criminosos. Realmente isso não se coaduna com a sinceridade do Estado
brasileiro para com seus nacionais, e o STF parece estar na contramão da
história.

Por fim, cumpre ressaltar que o STF, cumprindo a decisão da


Corte, não estaria de forma alguma caindo em descrédito perante a sociedade
brasileira. Muito pelo contrário. Ao consentir na investigação dos responsáveis
pelos violadores de direitos humanos, estaria o Supremo a reconhecer a
primazia dos direitos humanos em solo brasileiro, sinalizando para um futuro
em que os direitos fundamentais estarão mais efetivados.

7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALDI, César Augusto. Guerrilha do Araguaia e direitos humanos:
considerações sobre a decisão da Corte Interamericana. In: Crimes da
Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte
Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp
154-173

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São
Paulo: Ed. Saraiva, 2011

FURLAN, Fernando de Magalhães. Integração e Soberania – O Brasil e o


Mercosul. São Paulo: Ed. Aduaneiras, 2004,

GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar


e o “Caso Araguaia”: aplicação do direito internacional dos direitos humanos
pelos juízes e tribunais brasileiros. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma
análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos
Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 49-72

KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado


Soberano. Org: Mario Losano. São Paulo: Martins Fontes, 2002

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos


Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005

PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o caso brasileiro.


In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da
Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio,
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2011, pp. 73-86,

RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: A ADPF e a Corte


Interamericana de Direitos Humanos. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma
análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos
Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São
Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 174-226.

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