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Soberania: poder limitado (parte I)

Ronaldo Guimarães Gallo

Sumário
1. Introdução. 2. Evolução histórica. 3. Con-
ceito e características. 4. Soberania e o titular
do seu exercício. 5. Soberania e poder constitu-
inte originário. 5.1. Poder Constituinte – con-
ceito e natureza. 5.2 Atributos do Poder Cons-
tituinte.

1. Introdução
A proposta deste trabalho é analisar os
limites da soberania, ou melhor, perquirir
se há limites a serem impostos ao fenôme-
no. Pautados nesse propósito, inúmeros ins-
titutos deverão ser desvendados, propician-
do que se trilhe uma base sólida sob a qual
poder-se-ão desenvolver as idéias que
(des)constituirão o cerne da questão.
Fica consignado que nosso compromisso
não reflete uma análise perfunctória dos te-
mas adjacentes que circundam a soberania,
sob pena de, em vez de subsidiarmos a evolu-
ção do trabalho, inviabilizá-la por completo.
Tendo como foco as elucidações traça-
das, daremos início ao trabalho analisando
a evolução histórica do instituto, salientan-
do as diferentes feições que o mesmo incor-
pora, dependendo das necessidades apre-
sentadas pelo momento histórico. Observa-
remos que a soberania é tingida com a forte
coloração dos interesses, é dizer, seu con-
teúdo e sua força gravitam de acordo com as
Ronaldo Guimarães Gallo é Procurador Fe- contingências de um determinado período.
deral (SP) e especialista em direito constitucio- Da evolução histórica, adentraremos ao
nal. estudo do conceito da soberania, bem como
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apresentaremos suas principais caracterís- 2. Evolução histórica
ticas e atributos, tópicos intransponíveis
para a compreensão do tema. De forma com- Para o pretendido neste trabalho, enten-
plementar, porém não menos importante, demos ser essencial, ab initio, a análise do
avaliaremos quem é o titular do seu exercí- desenvolvimento histórico da soberania.
cio, ponderando acerca das teorias que in- Com base nesse procedimento, poderemos
tentam desvendar o questionamento. delinear a gênese do fenômeno jurídico, fa-
Feito isso, observaremos que existe uma tos que culminaram por agregar determina-
interessante ligação entre o instituto da so- das características ao mesmo, ou então fin-
berania e o Poder Constituinte, sendo certo daram por enrijecer crenças que não mais
que referido liame em muito nos interessa se coadunam com o momento político-his-
para os propósitos deste trabalho. Portanto, tórico atual.
faremos uma breve incursão na matéria Po- Diferente do que normalmente ocorre
der Constituinte, com o fito de apresentar um com outros temas, quando então a relevân-
esboço consistente do fenômeno. cia do desenvolvimento histórico é adjacen-
Essa análise implicará alinhavarmos um te, com o fenômeno da soberania tal não se
dá. A síntese histórica lança informações
mínimo de informação para o entendimen-
importantes, que voltarão a ser lembradas
to do Poder Constituinte, logo, de forma im-
quando do avançar do tema, emergindo, por
preterível, deveremos analisar seu conceito,
vezes, como fundamento para intrigantes
principais características e atributos.
confrontos.
Quando estivermos desvendando as pre-
De se ver, portanto, a atenção que merece
missas básicas do fenômeno constituinte, cons-
o presente tópico, cujo início já se faz tarde.
tataremos que elas não são suficientes para
Na Antiguidade, a nota fundamental que
a elaboração de um resultado convincente caracteriza o Estado, apartando-o das de-
que importe num fechamento adequado ao mais comunidades humanas, é o que Aris-
presente estudo. Denotaremos que suas ba- tóteles denomina autarquia. Esta, por sua
ses desembocam num terreno por demais vez, implica a auto-suficiência do Estado
nebuloso, cuja dubiedade é a marca mais que, mediante os esforços da comunidade
significativa. que o compõe, finda por suprir todas as suas
Nesse ponto nos deteremos, o que não necessidades, não dependendo de qualquer
implica o esgotamento do tema, nem a con- auxílio externo.
clusão do nosso intento. Ao contrário, apre- Não obstante a autarquia ser, na Antigui-
sentaremos numa segunda parte do traba- dade, adjetivo essencial do Estado, não tem
lho, a ser publicada na próxima edição, a qualquer ligação com o moderno conceito
evolução do Poder Constituinte e sua inte- de soberania, aliás, muito mais se asseme-
ressante relação com o instituto do jus co- lha ao que se entende por autodetermina-
gens, que, por sua vez, merecerá toda nossa ção. A somar com o entendimento esposa-
atenção e análise; análise essa que imbrica- do, tem-se o fato de que a autarquia não per-
rá num embate entre os institutos da sobe- faz uma categoria jurídica, mas sim ética,
rania e do jus cogens, propiciando novos en- ao primar pela realização da “vida perfei-
tendimentos acerca dos temas e, finalmen- ta” como condição fundamental a ser alcan-
te, a nossa conclusão acerca da limitação, çada pelo Estado.
ou não, da soberania. Em consonância, ressalta Jellinek (1970,
É este o estudo que nos propusemos de- p. 328) que “la antigua polis posee la posibi-
senvolver e que passamos a apresentar, por lidad moral de aislarse del resto del mundo,
ora, com ênfase na soberania e no poder cons- porque lo tiene todo em sí misma, no sólo lo
tituinte. que puede ser necesario a la vida, sino tam-

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bién lo que da a los hombres um valor. La tadas. Vale a transcrição do entendimento:
polis no necesita del mundo bárbaro, ni tam- “O conceito aristotélico de ‘autarquia’, defi-
poco de sus hermanas las ciudades griegas, nida como nota característica do Estado, que
para cumplir su fin. El concepto de la autar- o diferencia das demais comunidades hu-
quia no nos enseña nada acerca de la libre manas, distingue-se radicalmente da con-
determinación del Estado em su conducta, cepção moderna de soberania. Ou seja, do
sobre su derecho y administración, sobre su conceito de autarquia não se deduz nenhu-
política interior y exterior”. ma conseqüência relativa às condições mú-
Assim, tem-se que “o Estado antigo na tuas dos Estados empíricos, nem a respeito
concepção grega era uma comunidade soci- da amplitude do poder de dominação que
al perfeita, a única organização política, lhe corresponde em seu interior”.
aquela que abrangia o homem em toda a Na verdade, o mundo antigo restou im-
exteriorização e largueza de sua vida soci- possibilitado de desenvolver um conceito,
al, caracterizando-se, segundo Aristóteles, ainda que assemelhado, de soberania, fato
como autarquia, noção inteiramente diver- que se justifica pelo próprio ambiente histó-
sa da moderna soberania e que permitia dis- rico de então: não existia oposição ao poder
tinguir o Estado das demais formas de soci- estatal, principalmente perante outros po-
edade” (BONAVIDES, 1986, p. 131). deres.
Sem prejuízo da distância existente en- A concepção das autarquias, subsisten-
tre a autarquia e o fenômeno jurídico da so- tes por si próprias, em todos os sentidos,
berania, pode-se constatar naquela a gêne- bem está a demonstrar a inocorrência do
se desta, principalmente no que diz respei- confronto de poderes estatais, dificultando
to à supremacia do poder estatal, conferida que se desenvolvesse um conceito de sobe-
pelo instituto jurídico hodiernamente. rania, pois que sem qualquer utilidade1.
A característica atual da soberania (ali- O Estado Moderno, diferentemente do
nhavada por alguns), de independência que se passou com o antigo – capturado
extremada, de poder incontrastável, é utili- pelos delineamentos acima sublevados –,
zada pelos Estados como alicerce para os teve que afirmar sua existência ultrapassan-
mais diversos desmandos, remetendo às con- do árduos conflitos que, por fim, forjaram
dições encampadas na polis com a sutil, suas características. Três foram os poderes
porém mui relevante, diferença da falta de que se entrechocaram para, medindo forças,
auto-suficiência a lhes permitir ignorar os apresentarem a substância do ente estatal,
demais poderes que com eles coabitam o que lhes parecia consentânea com seus pro-
mundo globalizado. Algumas das condições pósitos. São eles: a igreja, que intentou colo-
especiais que decorriam do ser autarquia ain- car o Estado a seu serviço; após, o império
da permeiam o centro de poder de alguns romano, que conferia aos Estados o poder
Estados sob os eflúvios da concepção equi- equivalente ao observado às suas provínci-
vocada da soberania. Desses traços é que as; finalmente, os grandes senhores e cor-
apanhamos a autarquia como a gênese, in- porações, que entendiam ser um poder in-
cipiente é certo, do que hoje se entende por dependente dentro do próprio Estado.
soberania (não obstante, como já ressalta- Como resultado da luta entre esses três
do, a total falta de parentesco entre o insti- poderes, nasceu a idéia de soberania. Sen-
tuto ético-político e o fenômeno jurídico). do assim, verificaremos, rapidamente, o de-
Entretanto, vale anotar que do raciocí- senrolar dos embates que propiciarão uma
nio acima desenvolvido discorda o Profes- melhor noção do instituto foco do presente
sor Mário Lúcio Quintão Soares (2002, p. estudo.
544), ainda que destacando as mesmas im- Na luta entre o Estado e a Igreja, três eram
portantes distinções por nós também apon- os pontos de vista que sobressaíam: a Igreja

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se sobrepõe ao Estado; os dois se equiva- sob os eflúvios da propalada independên-
lem; o ente estatal deve ter supremacia pe- cia do Estado perante a Igreja. O fundamen-
rante o religioso. Inúmeras foram as teorias to era fincado no argumento de que o rei
que amparavam todos os pontos menciona- não reconhece nenhum senhor superior aci-
dos, porém, foi na França do século VII que ma de si. Desenvolveu-se uma teoria imper-
nasceu a idéia da supremacia estatal ante a feita de Estado, afastada dos ideais aristoté-
igreja. licos, mas que se mostrou diferente e propi-
A segunda força, na Idade Média, que ciou o desenvolvimento de um novo pensa-
lutou contra a teoria do estado independen- mento acerca da natureza estatal, o elemen-
te foi o império. Preponderava na época a to independência.
idéia de que os Estados (cristãos) eram sub- Contra essa nova doutrina acerca do
metidos ao poder imperial, somente a este Estado não se contrapunham apenas a Igreja
cabendo a feitura de leis, a integridade do e o Império, eis que o feudalismo também
poder monárquico, enfim, a plenitudo potes- engrossava essas fileiras, desenvolvendo
tatis (JELLINEK, 1970, p. 332). O poder im- relações com a população que findavam por
perial provia de entendimentos, como os de negar por completo a natureza estatal que
Bartolo (JELLINEK, 1970, p. 332), que pro- se desenhava.
fessava a heresia daquele que afirmasse não Os senhores feudais, dotados de pode-
ser o imperador senhor e monarca de toda a res análogos aos provindos do Estado, o
orbe; ou então do papa Pio II (JELLINEK, qual lhes servia como se fosse uma posses-
1970, p. 333), que escreve a Frederico III que são privada, desenvolvem instituições com
todos os povos estão submetidos a ele de características inerentes às de caráter pú-
direito. blico e que não se submetiam a um regra-
Com a derrocada dos Hohenstaufen, mento superior, findando por atender a po-
essa doutrina oficial passa a ser contradita- pulação diretamente interessada, é dizer,
da. França e Inglaterra passam a negar a su- aqueles que se encontravam estabelecidos
perioridade do Império, bem como importan- na circunscrição territorial atendida pelo
tes cidades italianas (Florença e Pisa) deixam feudo.
de reconhecer a supremacia imperial. Como decorrência desse cenário, o rei
Entretanto, a concepção de direito pri- via-se impedido de ter um contato direto com
vado reinante à época professava a inde- a população, ainda mais porque, normal-
pendência do Império como decorrência de mente, ao ceder um feudo, aquele que o rece-
um privilégio provindo da prescrição e pos- bia ficava subordinado diretamente a um
se imemorial do Imperador, não se conside- barão, afastando-se ainda mais do poder
rando, pois, tal poder como decorrente da real. Fazia-se necessária, portanto, a quebra
natureza do Estado, sob pena de essa dou- da barreira que distanciava o rei dos seus
trina implodir utilizando como munição sua súditos, o afastamento dos que se encontra-
própria retórica. Por isso, os reis que conse- vam como intermediários do poder estatal.
guiam afastar-se da superioridade imperi- E assim procederam Inglaterra e França,
al, não obstante, permaneciam nas cercani- aquela reconhecendo e criando poderes sub-
as do império, mesmo porque o Imperador metidos diretamente à coroa e que findaram
era o único que tinha em mãos o direito de por integrar o próprio Estado; e esta por meio
conceder o título de rei. O que havia, por- da aniquilação de todos os elementos polí-
tanto, eram reis que exerciam “poderes im- ticos que se contrapunham ao rei.
periais” nas terras do Império por conces- Narra Jellinek (1970, p. 337)que o movi-
são do Imperador. mento de fortalecimento do poder do rei e,
Todavia, novamente na França, eclodia conseqüentemente, do Estado começou “en
o inconformismo à superioridade imperial, Francia a principios del siglo XII con Luis VI;

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proceso que mediante Felipe Augusto alcanza quias absolutas (séculos XV a XVIII), firman-
una significación permanente en la Historia. En do-se o poder soberano do rei e do Estado
el año 1202 había treinta y ocho distritos judici- dentro do seu território contra quaisquer
ales reales (prévôtés), y al final del gobierno de outros organismos que intentassem a repar-
aquel rey (1223) existían noventa y cuatro. Con tição do domínio.
el aumento del dominio real aumenta también la O instituto da soberania passa a ter como
fuerza del rey frente a los barones. El rey adqui- característica a “não limitação”, conforme
ere el poder supremo de justicia, y asume igual- nos explica Machado Paupério (1958, p. 45)
mente en sí el poder legislativo y el de policía. Al “O conceito de soberania, pode-se
final del siglo XIII aparece por vez primera el dizer, evolveu com o conceito de Esta-
principio de que el rey era sovrains de todo el do. Mas, no limiar do mundo moder-
reino sobre los barones, a quienes igualmente se no, quando começou a ser vulgariza-
les llamaba soberanos. Como signos de esta sobe- do, compreendia, além da completa
ranía senãla Beaumanoirs el derecho del rey a independência em relação a todo e
juzgar como órgano supremo de justicia y le qualquer país estrangeiro e do máxi-
général garde de son roiaume, y de donde mo poder interno, um caráter de ilimi-
deduce el jurista, anticipándose a su tiempo, el tação, que se encontra, como vamos
derecho libre del rey a legislar por le porfit du ver, nas várias definições dos teoris-
royaume. Los legistas exaltan más tarde la doc- tas do Estado, da época. As limitações
trina abolutista del Bajo Império acerca de él, y que porventura surgem ao poder do
deducen de ella el poder ilimitado del rey de Fran- Estado são de ordem casuística ou
cia, mediante la cual llegan a la negación de que moral, nunca de ordem jurídica”.
haya un poder substantivo frente al del rey. Es- Com o movimento humanista, a doutri-
tos legistas son los que forman a la vanguardia na que unia o poder em torno da Igreja e do
en la lucha por la unidad del Estado, y atacan de Império desaba. A Reforma iniciada por Lu-
un modo decisivo al Estado feudal por su falta tero propicia o avanço do poder temporal
de punto de unión, el cual, más que un Estado, es ante o espiritual, saindo vencedor aquele,
un conglomerado de una diversidad de señoríos. consubstanciando a divindade do Estado. A
De este modo se transforma el concepto de la so- doutrina luterana, pela via transversa, fin-
beranía del rey, que en un comienzo era concepto da por angariar um aumento do poder esta-
relativo, comparativo, en un concepto absoluto. tal.
De superior que era adviene supremus”. Lutero pretendia, com sua nova doutri-
A nova doutrina que nascia trazia o rei na, imprimir profundas modificações na
acima do direito positivo (embora submeti- Igreja, que esta não podia permitir. Sendo
do ao direito natural), passando os Estados assim, aliou-se o Mestre do trabalhismo in-
a possuírem fundamento na autoridade do glês ao Império, para que este, com seu po-
monarca e não na autoridade do direito. der, fosse-lhe útil para impor força às novas
Essa concepção de soberania somente viria teorias que desenhava. Mas o Imperador
a declinar com a Revolução Francesa. mostrou-se vacilante diante das propostas
Na época de transição para o Estado de Lutero, voltando-se este, por sua vez, aos
moderno, restou evidenciada a necessida- príncipes.
de da concentração do poder nas mãos do Percebendo-se que para a derrocada da
príncipe, quer para implementar a união do Igreja seria necessária a contraposição de
Estado, quer para dizimar forças regiona- outro poder, também considerado divino,
listas que atuavam de forma a imprimir des- Lutero passa a reafirmar a divindade do
membramentos no ente estatal. A concen- poder dos príncipes, culminando por esbo-
tração do poder, unificando o Estado, foi çar o Estado nacional que se desenharia. O
possível graças ao aparecimento das monar- Estado passa a encerrar-se no príncipe e a

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doutrina da superioridade do Império é ani- alguma ou de outro poder. (...) Assim, é o
quilada. poder originário de impor a um povo em
No final do século XVI, o rei da França um território uma ordem jurídica e um go-
passa a ser considerado “como o mais ele- verno”.
vado da terra” (PAUPÉRIO, 1958, p. 45), o No mesmo sentido, mas com acabamen-
primeiro rei do mundo, não encontrando to diferente, Hermann Heller (1965, p. 197)
poder superior em qualquer fundamento salienta que “la soberania es la cualidad de
fático ou jurídico. O reinado cresce com ta- la independencia absoluta de una unidad
manha força que o rei passa a ter direitos de voluntad frente a cualquiera otra volun-
sobre a própria Igreja, chegando a impor- tad decisoria universal efectiva. Este con-
lhe o pagamento de impostos, independen- cepto, en su aspecto positivo, significa que
temente de qualquer audiência com o Papa. la unidad de voluntad a la que corresponde
Do que restou alinhavado, até o momen- la soberania es la unidad decisoria univer-
to, abstrai-se três significações distintas sal suprema dentro del orden de poder de
para o conceito de soberania (PAUPÉRIO, que se trate”.
1958, p. 48): O Professor Paulo Bonavides (1986, p.
“1. A princípio, a soberania apre- 129), por sua vez, informa que a soberania é
senta apenas uma superioridade re- apresentada, por inúmeros publicistas,
lativa ao domínio em que se exercita. como um conceito histórico e relativo. “His-
2. Paulatinamente, de comparati- tórico, porquanto a Antigüidade o desconhe-
vo passa a soberania a ter caráter su- ceu em suas formas de organização políti-
perlativo, considerando ora o Rei ca. Haja vista o exemplo da polis grega, do
como órgão de uma autoridade que Estado-cidade na Grécia clássica3. A sobe-
pertence ao Estado, ora como o pro- rania surge apenas com o advento do Esta-
prietário de todo o poder. do moderno, sem que nada por outra parte
3. Finalmente a soberania, exce- lhe assegure, de futuro, a continuidade”.
dendo-se, vai compreender o conjun- “Relativo, uma vez que tomado de início
to dos poderes próprios do Estado, por elemento essencial do Estado – confor-
tendendo à supremacia definitiva e me sucedeu ainda entre juristas do século
absoluta”. XIX – raro o autor hoje que após os traba-
lhos exaustivos de Jellinek ainda se ocupa
3. Conceito e características da soberania sob o prisma do direito inter-
nacional, como de um dado essencial cons-
O termo soberania traz consigo a adjeti- titutivo do Estado. Há Estados soberanos e
vação de poder incontrastável, acima do Estados não soberanos. Do ponto de vista
qual não existe qualquer outro; é o poder externo, a soberania é apenas qualidade do
“de decisão em última instância de todos os poder, que a organização estatal poderá os-
seus assuntos, internos ou externos, não de- tentar ou deixar de ostentar”.
pendendo de ninguém e a ninguém precisan- Tendo em vista o enfoque suso apresen-
do consultar”2 (AZEVEDO, [19- -?], p. 20-21). tado, o mesmo doutrinador salienta que, “do
Segundo Paulo Dourado de Gusmão ponto de vista interno, porém, a soberania,
(1992, p. 367), “pode-se definir soberania como conceito jurídico e social, se apresen-
como o poder supremo e originário de go- ta menos controvertida, visto que é da es-
vernar e organizar juridicamente a vida de sência do ordenamento estatal uma superi-
um povo, em um território sem a ingerência oridade e supremacia, a qual, resumindo já
de outro poder, ou de outro Estado ou de a noção de soberania, faz que o poder do
outra ordem jurídica. É, assim, poder origi- Estado se sobreponha incontrastavelmente
nário, que não provém de ordem jurídica aos demais poderes sociais, que lhes ficam

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subordinados. A soberania assim entendi- na posição de supremacia, de inexistência
da como soberania interna fixa a noção de de poder superior.
predomínio que o ordenamento estatal exer- Segundo Víctor Flores Olea (1975, p. 92),
ce num certo território e numa determinada “la soberanía del Estado no es, en consecuencia,
população sobre os demais ordenamentos el poder del Estado; ni siquiera uno de los atri-
sociais. Aparece então o Estado como por- butos de su poder, sino la cualidad de suprema-
tador de uma vontade suprema e soberana cia y universalidad propia de la estructura es-
– a suprema potestas – que deflui de seu pa- tatal, considerada como un todo”4.
pel privilegiado de ordenamento político No entanto, não se pode olvidar que a
monopolizador da coação incondicionada soberania é uma noção traçada pela Ciên-
na sociedade. Estado ou poder estatal e so- cia Jurídica, o que não equivale dizer que
berania assim concebidos, debaixo desse perfaz um aspecto do direito positivo. O ins-
pressuposto, coincidem amplamente. Onde tituto é elaborado pela Ciência Jurídica, mas
houver Estado haverá pois soberania” (BO- não como forma de imprimir determinada
NAVIDES, 1986, p. 130). qualidade ao direito positivo, pois este não
No mesmo sentido, Márcio Monteiro Reis tem a capacidade de centrar em si a quali-
(2000, p. 197) descreve a soberania como dade de supremacia máxima, própria da
“poder originário, incondicionado, exclusi- soberania (BARACHO, 1986-1987, p. 14-15).
vo e coativo. O poder soberano nasce no Nessa linha de raciocínio, a soberania
mesmo momento em que nasce o Estado, daí estaria conectada ao poder e à autoridade,
dizer-se originário, além disso não depen- logo, “se a Soberania acompanha por forma
de de outros para justificar sua existência. necessária o Poder ou Autoridade, e, por seu
Só pode ser possuído pelos Estados, embo- turno, o Poder ou Autoridade acompanham
ra nem todo o Estado o possua, portanto é necessariamente a noção de sociedade, de-
uma característica exclusiva de Estados. riva em linha reta do originário por nós en-
Outra característica importante a ser desta- contrado, temos que assentar no seguinte: a
cada é a coatividade. Só o poder soberano é Soberania está numa relação direta e sem
autorizado a empregar a força material, atra- interrupção com o originário” (BARACHO,
vés de elementos de coação, que possam 1986-1987, p. 15), concluindo-se que o po-
obrigar os indivíduos ao cumprimento da der/autoridade ligados à soberania não
ordem jurídica”. derivam de outro poder, ao contrário, são a
Se nem todo Estado possui soberania, gênese, a fonte que ingressa regulamentan-
consoante ecoa nas conceituações alinha- do e construindo.
vadas, cabe perquirir, antes de se dar pros- Com a ligação detectada entre a sobera-
seguimento, se o atributo da soberania é es- nia e o poder, o que se tem, portanto, é aque-
sencial à definição de Estado, eis que, po- la atuando como uma qualidade deste. “A
sitiva a resposta, os delineamentos sob ênfa- Soberania, tida como superioridade, recla-
se não nos ajudarão no desenlace dos obstá- ma imediatamente para sua compreensão
culos que virão; contrariamente, sendo nega- plena o conceito de Poder”.
tiva, importante apontar os delineamentos “A autêntica superioridade e domínio
que propiciarão uma explicação a contento. residem na conjugação das entidades entre
O Professor José Alfredo de Oliveira Ba- si que se dispõem numa hierarquia, não em
racho (1986-1987, p. 14), também perscru- nenhuma dessas entidades mesmas. As
tando se, entre as notas essenciais do con- noções de supremacia que se resumem na
ceito de Estado, está a soberania, aponta que conceituação de Soberania ligam-se às no-
este instituto revela um atributo, um predi- ções de Poder e Sociedade. A Soberania, para
cado que acompanha e caracteriza o Esta- alguns, não é concebida sem o Poder. Esta
do. Referido “atributo” pode ser constatado afirmativa não é suficiente para acreditar-

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se legitimamente que a Soberania se define zida pela grande maioria dos doutrinado-
como atributo ou qualidade do Poder. A res, que, por sua vez, imputam à Soberania
Soberania como atributo ou qualidade do a qualidade de una, indivisível, imprescri-
Poder não se confunde com ele, por inteiro. tível e inalienável5. “Una, por não ser possí-
A distinção entre Poder e Soberania não é vel a convivência simultânea de dois pode-
completa. Como qualidade ou atributo do res soberanos. Soberano é aquele poder que
Poder, reconhece-se que entre ambos existe se situa acima de todos os demais, não es-
a conexão e condicionamentos recíprocos tando submetido a nenhum outro. Não é
de relação” (BARACHO, 1986-1987, p. 17). compatível a convivência de mais de um
Nessa seara, pontuando e complemen- poder soberano no mesmo âmbito. Indivisí-
tando, estabelecendo a dependência e a di- vel, por conclusão lógica ante a sua unida-
ferenciação, os posicionamentos são os mais de. No entanto, a indivisibilidade da sobe-
variados e, talvez bem por isso, muito inte- rania não impede a divisão do seu exercí-
ressantes. Vale a observação do seguinte tre- cio. A teoria da divisão de poderes importa,
cho: “Reparemos que, se a soberania inclui na verdade, em uma divisão de funções. Não
o Poder, o Poder, conforme vimos no pará- se deve confundir isto com a divisão da pró-
grafo anterior, também em si a noção de So- pria soberania. Imprescritível e inalienável,
berania e, portanto, nenhum destes concei- pois encarna o poder supremo, insuscetível
tos pode ser mais extenso do que o outro. de lesão e indisponível. Na verdade, a inali-
São, pois, de extensão igual. Mas como é que enabilidade não é uma característica da so-
duas noções de igual extensão estão incluí- berania. O que ocorre é que a renúncia do
das uma dentro da outra? De uma única poder soberano equivale a sua própria mor-
maneira: coincidindo plena e perfeitamen- te. O poder soberano que renuncia deixa de
te. Partindo da hipótese de um Poder e de ser soberano” (REIS, 2000, p. 922).
uma Soberania separados, temos de chegar O Professor A. de Sampaio Dória (1953,
à conclusão que a Soberania e o Poder são p. 55-57 apud AZEVEDO, (19- -?), p. 30-31),
círculos coincidentes, isto é, uma realidade quando examinando o fenômeno da sobe-
só. Soberania e Poder convertem-se um no rania, imputa-lhe três atributos essenciais:
outro. A Soberania é soberania, ou seja, é supremacia, exclusividade e autodetermina-
supremacia radical, ausência de superior, ção. Assim, “a supremacia indica que, ao
etc., porque é Poder, Autoridade, unidade contrário de algumas formas sociais de coa-
que reduz todo o resto (toda a pluralidade) ção subalternas como o pátrio poder do se-
a si; e por sua vez o Poder, ou seja vínculo nhor sobre o escravo na época do escrava-
unificador do plural e do particular, porque gismo, as quais dependem da lei, a coação
é Soberania, porque é supremo, último, sem exercida pela soberania é suprema e exclu-
nada acima de si. Por conseqüência, Poder siva, isto é, acima dela não existe qualquer
e Soberania constituem uma mesma coisa e outro poder. A exclusividade significa que
esta última, em lugar de ser uma qualidade a coação não pode ser exercida por qual-
ou atributo daquele, confunde-se com ele, quer particular ou organização, mas ape-
quando corretamente apreendida na sua nas pelo próprio Estado, cujo poder neces-
substância. A Soberania é o Poder expresso sita ser invocado por qualquer pessoa, sin-
numa noção certa e verídica ou, se quiser- gular ou coletiva, que haja de exigir de ou-
mos, a Soberania é a verdade do Poder e vice- trem o cumprimento de obrigação ou encar-
versa” (BRITO, [198-?], p. 457 apud BARA- go que assumiu. Por fim, a autodetermina-
CHO, 1986-1987, p. 17). ção assinala que o Estado é o árbitro último
Ultrapassado os rápidos comentários a de sua própria competência, podendo agir
respeito do conceito e natureza do instituto em última instância, sem necessidade de
em comento, vale traçar a classificação adu- consultar a quem quer que seja”.

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Haja vista o conteúdo assinalado a res- hierárquica dos órgãos governativos da co-
peito dos principais delineamentos da so- munidade política e sobretudo na justifica-
berania, fez-se concreta a base que nos pro- ção da autoridade conferida ao sujeito ou
piciará prosseguir com o objetivo deste tra- titular do poder supremo” (BONAVIDES,
balho. Entretanto, antes de avançarmos, é 1986, p. 135).
de bom alvitre apontar a conexão existente Facilmente se constata que o objeto deste
entre a soberania (principalmente no que trabalho condiz com a análise da soberania
tange ao ordenamento jurídico interno) e o enquanto “poder estatal”, porém, já que tan-
Poder Constituinte Originário, eis que este genciado o assunto, prosseguiremos na aná-
também, segundo a doutrina majoritária, lise das teorias que tentam desvendar quem é
não encontra limites às suas proposições, o sujeito de direito de soberania no Estado.
não deriva de outro poder ou condiciona- Destacam-se, nessa seara, duas doutri-
mento normativo e finda por constituir um nas: a que sustenta o poder divino do rei
novo ordenamento jurídico. A ligação que como legitimador da titularidade e a que
se intenta deixar clara é a força incontrastá- assenta no povo a sede da soberania. As te-
vel advinda da soberania e do Poder Cons- ses que se amoldam à primeira facção são
tituinte Originário, mas os desdobramentos, conhecidas como “doutrinas teocráticas”, e
conseqüências e efeitos dessa ilação serão as que encontram fundamento na segunda
oportunamente acentuados. são denominadas “doutrinas democráti-
cas”.
4. Soberania e o titular do seu exercício Entre as “doutrinas teocráticas”, a mais
exagerada é denominada “doutrina da na-
Como já verificado no presente trabalho, tureza divina dos governantes”, que tem
a soberania apresentou-se, num primeiro como fundamento alçar os governantes ao
momento, como forma de confrontar o Im- patamar de deuses vivos, e nesta condição
pério e a Igreja, afastando sua ingerência e são legitimados ao exercício do poder 6.
concretizando o “poder estatal” nas mãos Outra vertente é a “doutrina da investi-
do rei. Ocorre que, com tal manobra, o insti- dura divina”; menos extremada, não consi-
tuto passou também a designar aquele que dera seus governantes divindades, ao con-
detinha o poder – soberano –, personifican- trário, são pessoas intituladas como dele-
do o poder estatal. O verbete passou a apre- gados diretos e imediatos de Deus, que lhes
sentar verdadeira confusão do seu signifi- investe na condição de governantes com ori-
cado, o que era muito proveitoso ao rei. gem divina.
Entretanto, com o surgimento do pensa- “Essa variante do pensamento teocráti-
mento democrático e com a revolução bur- co não somente entende o poder como insti-
guesa, a coincidência acima sublinhada co- tuído por Deus para conservação da socie-
meçou a ser desfeita, distinguindo-se a “so- dade, senão que faz da escolha deste ou
berania do Estado” da “soberania no Esta- daquele governante, neste ou naquele país,
do”. um ato da vontade divina. Designadas por
“A soberania do Estado diz respeito por Deus para o exercício da autoridade, as di-
conseqüência à questão dos elementos e ca- nastias revestem caráter sagrado” (BONA-
racterísticas do poder estatal que o distin- VIDES, 1986, p. 137).
guem (...) dos demais poderes e instituições Como última variável da teoria teocráti-
sociais. A soberania no Estado formaria ao ca de legitimação da titularidade do exercí-
revés outra categoria de problemas de rele- cio da soberania tem-se a “doutrina da in-
vante importância, concentrados sumaria- vestidura providencial”, que tem como mar-
mente na determinação da autoridade su- ca apenas a origem divina do poder, o que
prema no interior do Estado, na verificação implica dizer que os atos praticados pelo

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governante são humanos, advindos do in- 5. Soberania e Poder
teresse e vontade dos mesmos (segundo essa Constituinte Originário
doutrina, os governantes devem observar de
forma escrupulosa o bem comum na utili- Tendo em vista os contornos traçados
zação do poder). Com essa proposição, pas- sobre o instituto da “soberania”, compete
sou a surgir, de forma incipiente, entendi- dizer que a sua materialização incide na atu-
mento no sentido da possibilidade de os ação do Poder Constituinte, em especial o
governados escolherem seus governantes, originário7. “Poder constituinte equivale à
eis que tais não necessitavam de qualquer capacidade de escolher entre um ou outro
qualidade divina para o exercício do poder. rumo, nessas circunstâncias. E nele consis-
Com relação às “doutrinas democráti- te o conteúdo essencial da soberania (na
cas”, denota-se o desenvolvimento da “dou- ordem interna), porquanto soberania signi-
trina da soberania popular”, que consagra fica faculdade originária de livre regência
o povo como detentor de direito da sobera- da comunidade política mediante a insti-
nia. Mais especificamente, soberania popu- tuição de um poder e a definição do seu es-
lar seria “tão-somente a soma das distintas tatuto jurídico” (MIRANDA, 2000, p. 77-78).
frações de soberania, que pertencem como Logo, já que a soberania toma corpo com
atributo a cada indivíduo, o qual, membro a atuação do poder constituinte, vale uma
da comunidade estatal e detentor dessa par- rápida análise do instituto com o pertinente
cela do poder soberano fragmentado, parti- traço das suas principais características.
cipa ativamente na escolha dos governan-
tes” (BONAVIDES, 1986, p. 140). 5.1. Poder Constituinte – conceito e natureza
A outra teoria que integra a vertente de- Do Poder Constituinte pode-se começar
mocrática é a “doutrina da soberania naci- dizendo, com Luís Roberto Barroso (1996,
onal”, que detém como grande diferencial p. 104), que é revolucionário nas suas raí-
da anterior o fato de a titularidade da sobe- zes históricas e político na sua essência. A
rania residir na nação e não em cada mem- primeira característica decorre da atuação
bro do povo, de forma fracionada. “A dou- de o instituto implicar um total rompimento
trina democrática da soberania que os po- com o ordenamento jurídico anterior (ou as
deres da Revolução (francesa) fundaram e regras em que se encontra estabelecido o
fizeram prevalecer na Assembléia Consti- ente estatal – adiante melhor explicitado) e
tuinte foi a doutrina da soberania nacional. a segunda por perfazer a expressão da von-
A nação surge nessa concepção como depo- tade do poder político de uma determinada
sitária única e exclusiva da autoridade so- comunidade8.
berana. Aquela imagem do indivíduo titu- Para o Professor José Afonso da Silva
lar de uma fração da soberania, com milhões (2000, p. 67), “poder constituinte é o poder
de soberanos em cada coletividade, cede que cabe ao povo de dar-se uma constitui-
lugar à concepção de uma pessoa privilegi- ção. É a mais alta expressão do poder políti-
adamente soberana: a Nação. Povo e Nação co, porque é aquela energia capaz de organi-
formam uma só entidade, compreendida zar política e juridicamente a Nação”.
organicamente como ser novo, distinto e Prossegue o eminente doutrinador res-
abstratamente personificado, dotado de saltando que Fischbach (apud SILVA, 2000,
vontade própria, superior às vontades indi- p. 68) “define o poder constituinte como a
viduais que o compõem. A Nação, assim “genuína e original expressão da soberania
constituída, apresenta-se nessa doutrina do povo. É o poder supremo que o povo tem
como um corpo político vivo, real, atuante, de dar-se uma constituição e de reformar a
que detém a soberania e a exerce através de vigente”. Aí, ele inclui também o poder de
seus representantes”. reforma constitucional, que, em geral, é de

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competência do Poder Legislativo ordiná- tico que é (?), fica relegado seu estudo à soci-
rio. Segue, assim, a doutrina que concebe ologia?
dois tipos de poder constituinte: o poder cons- Podemos iniciar respondendo ao ques-
tituinte originário, que serve de fundamento tionamento amparados em duas correntes
à criação de uma constituição nova, e o po- doutrinárias – a dos jusnaturalistas e a dos
der constituinte derivado (ou poder de emen- juspositivistas – que nos trazem diferentes
da ou de reforma da constituição), que não é fundamentos para a solução da controvér-
propriamente poder constituinte, mas com- sia. De súbito, ressaltamos que aqueles en-
petência para modificar a constituição exis- tendem o poder constituinte como sendo
tente – ou seja, poder constituinte derivado jurídico, enquanto estes o compreendem
é simples competência constituinte (...)”. como metajurídico, social. Ressaltamos, en-
Trazendo novos contornos ao tema, o tretanto, que, não obstante a divergência das
Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho teorias quanto à natureza do poder consti-
(1994, p. 19) esclarece que “o reconhecimen- tuinte, constata-se que há uniformidade de
to de um poder capaz de estabelecer as re- entendimento quanto ao fato de ser este o
gras constitucionais, diverso do de estabe- fenômeno que provê a Constituição e, conse-
lecer regras segundo a Constituição, é, des- qüentemente, é desta Carta que se abstrai a
de que se pretenda serem aquelas superio- organização estatal e o ordenamento jurídi-
res a estas, uma exigência lógica. A superio- co. Analisemos as teorias.
ridade daquelas, que se impõe aos próprios A escola jusnaturalista carrega como
órgãos do Estado, deriva de terem uma ori- mérito a façanha de alçar à categoria de ci-
gem distinta, provindo de um poder que é ência autônoma, desvinculada da teologia
fonte de todos os demais, pois é o que cons- e do direito canônico, o Direito e o Estado.
titui o Estado, estabelecendo seus poderes, Com o Estado Moderno e o início do consti-
atribuindo-lhes e limitando-lhes a compe- tucionalismo (século XVIII, mais especifica-
tência: Poder Constituinte. mente com a Constituição dos Estados Uni-
Deve-se, portanto, reconhecer a existên- dos da América do Norte de 1787 e a Cons-
cia de um Poder Constituinte do Estado e tituição Francesa de 179110), passou-se ao
dos poderes deste (os quais são, por esse questionamento acerca da existência de um
motivo, ditos constituídos). Esse Poder Cons- poder anterior que deflagrasse a constitui-
tituinte é que estabelece a organização jurí- ção de regras que subsumiriam à condição
dica fundamental, é que estabelece o con- organizacional jurídica do Estado.
junto de regras jurídicas concernentes à for- Como precursor da idéia de que o poder
ma do Estado, do governo, ao modo de aqui- que constitui, que cria a Carta Política tem
sição e exercício do governo, ao estabeleci- natureza diferente da mesma, com ela não
mento de seus órgãos e aos limites de sua se confundindo, o padre, político e jurista
ação, bem como as referentes às bases do Emmanuel Joseph Sieyès (1997), em sua obra
ordenamento econômico e social”. “Que é o Terceiro Estado?”, forjou a deno-
Os delineamentos fornecidos a respeito minação Poder Constituinte.
do instituto propiciam a visualização do Afora o caráter político inerente à obra
mesmo e sua compreensão, em linhas ge- do abade, pré-revolucionário (início de
rais. No entanto, tal não se faz suficiente 1789) e com fulcro na tentativa de arquitetar
para a estreita ligação que ora se pretende uma organização estatal para a França, a
com a soberania, o que nos impele a uma descoberta do poder constituinte despertou o
observação mais detida, imediatamente interesse para o fenômeno, importante para
transmutada em questionamento: o Poder a elaboração da Constituição, mas que a
Constituinte (originário!)9 encontra-se abar- precede e não a integra. A descoberta culmi-
cado pela ciência do direito ou, poder polí- nou em uma teoria que tentou desvendar e

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esquematizar o instituto, denominada “Te- na, fundada no direito natural, tudo pode,
oria Racional Ideal”. exceto contrariar os princípios do jusnatu-
A referida teoria vem embasada na liber- ralismo. E, sendo ela a legítima detentora do
dade individual do Homem, anterior ao poder de criar a Constituição, logo, do Po-
advento do próprio Estado, logo, prevale- der Constituinte, conclui-se que, para a “Te-
cendo sobre o mesmo, bem como na liberda- oria Racional Ideal”, esse instituto não é
de de auto-organização, cujo direito seria estranho ao mundo jurídico, pois que se con-
inerente à nação e não ao povo11. Então o cretiza em poder do Direito Natural.
que se tem é o Homem livre e que deve se or- Lançamos o entendimento de Sieyès
ganizar segundo a vontade da nação (depo- (1997) sobre a natureza social ou política
sitária e detentora da liberdade dos Homens). do Poder Constituinte, eis que somente com
Não se pode olvidar, deparando-se com os estudos do abade se vislumbrou a dife-
as considerações iniciais sobre a Teoria de rença entre a força que cria uma Constitui-
Sieyès, que as mesmas são pautadas sob for- ção e as regras inerentes à própria.
te influência da teoria jusnaturalista (na No entanto, como passaremos a notar, a
verdade “contratualista-jusnaturalista”12). conclusão do mestre francês acerca da na-
De qualquer forma, aquelas premissas de- tureza jurídica do instituto não destoa do
veriam ser utilizadas como fundamento para resultado encontrado pelos estudiosos vin-
a elaboração de uma Constituição escrita. culados à corrente jusnaturalista, mesmo
A obra de Sieyès (1997) atinge seu ápice porque Sieyès (1997) também nela ancora
exatamente neste ponto, quando o cura per- seus estudos para exprimir sua tese. De qual-
cebe que anterior à Constituição existia um quer maneira, entendemos importante a re-
poder que a concebia. Mais importante, de- ferência à descoberta do cura, pois que gê-
notou o sábio jurista que se tratava de pode- nese do fenômeno ora focado. Passo adian-
res distintos e inconfundíveis, ou seja, a te, averigüemos as considerações dos jus-
Constituição era o resultado provindo de um naturalistas sobre o Poder Constituinte.
poder especial, qual seja, o Poder Constituinte. Entre as inúmeras Escolas do Direito
Arremata o mestre ressaltando que o po- Natural, daremos maior destaque, pela pro-
der especial está fundado na vontade da na- eminência, às que expressaram os pensa-
ção, detentora da liberdade da comunida- mentos de Santo Tomás de Aquino (apud
de. Evidentemente que, não possuindo mei- SANTOS, 1980) e Hugo Grócio (apud SAN-
os instrumentais para a manifestação da TOS, 1980), sem embargo das importantes
comunidade, Sieyès elaborou um sistema de contribuições conferidas por Emmanuel
representação, segundo o qual a nação se Kant (apud SANTOS, 1980), merecedoras da
expressaria por meio de mandatários por nossa atenção.
ela designados. Como principal destaque da doutrina de
Portanto, ante os aspectos enunciados, Santo Tomás (apud SANTOS, 1980), tem-se
tem-se como elementos identificadores da a razão e a inclinação do Homem em se so-
“Teoria Racional Ideal”: “a) princípio da cializar.
liberdade, sob o qual se estrutura a nação; Quanto à razão, explica, parte dela é re-
b) a nação, como ente de direito natural; c) o velada pela Igreja e a outra parcela é desco-
sistema de representação-imputação, como berta pelo próprio Homem por meio do uso
sistema procedimental para o exercício do da razão. Os dois elementos compõem um
Poder Constituinte; d) a criação do Poder todo – Lei Eterna provinda da razão de Deus
Constituinte como poder estabelecedor da – cuja parcela que cabe ao Homem desven-
Constituição” (SANTOS, 1980, p. 23). dar perfaz a Lei Natural.
Novamente ressaltamos que, segundo a A maior contribuição dessa vertente teó-
doutrina de Sieyès (1997), a nação sobera- rica do jusnaturalismo condiz com a instin-

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tiva necessidade de associação dos Homens, A teoria elaborada por Kant (apud SAN-
decorrente de uma força inata provinda de TOS, 1980, p. 30) encontra-se fundamenta-
Deus, que legitima a criação dos Estados. da em dois pressupostos: “pelo primeiro (ra-
Tal poder (de criação dos Estados) resi- zão pura) estabelece que o homem reconhe-
de no povo (por outorga de Deus), conse- ce ser a causa necessária e livre de suas
qüentemente operando-se uma distinção ações; pelo segundo (imperativo categórico)
entre o poder espiritual e o poder temporal. estabelece que o homem deve obediência às
Igual consideração merece a Escola do normas prefixadas pela razão prática”.
Direito Natural e das Gentes, surgida em Portanto, sobressaem na teoria de Kant
1625 com a publicação do primeiro livro de (apud SANTOS, 1980) o Direito e o Estado
Direito Natural, De Jure Belli ac Pacis, da lavra como garantia da indispensável liberdade do
de Hugo Grócio (Cf. SANTOS, 1980, p. 28). Homem, princípio esse em que aqueles ele-
A obra de Grócio (apud SANTOS) tem mentos obrigatoriamente encontram-se as-
como importante marco o estudo científico sentados.
do direito de forma autônoma, desvincula- O que se pode abstrair, ante os elemen-
da da Teologia, bem como conferiu funda- tos essenciais pinçados dos fundamentos
mento terreno ao Estado, apartando-o de encontrados nas principais Escolas do Di-
alicerces doutrinários religiosos. No desen- reito Natural, de forma a conferir alicerce
volvimento das suas teses, o jurista conce- comum à corrente científica, é a idéia de liber-
beu o princípio da Justiça como fundamento dade, a inclinação social do Homem e o poder
eterno do direito, alertando que a regra é de auto-organização política da comunidade.
observada como cerne das ciências jurídi- Como característica marcante da corrente
cas independentemente da vontade divina. jusnaturalista, tem-se a distinção, evidente,
De forma concatenada, Grócio (apud entre o Direito Natural e o Positivo, sendo
SANTOS, 1980, p. 29), “repetindo Aristóte- que o direito posto somente é detentor de
les, proclamou a natureza social do homem validade quando devidamente fundamen-
e a inclinação inata deste à vida em socie- tado nos princípios que dão suporte e sus-
dade. Sua concepção de uma sociedade jus- tentação ao direito natural.
ta conduziu seu pensamento a edificá-la de Voltando ao laço que une os jusnatura-
molde a assegurar os direitos fundamentais listas e o Poder Constituinte, ressaltamos que
do homem. No seu dizer, não basta ao ho- aquela doutrina, desde sempre, confere ao
mem viver, pois carece ele de viver bem, e povo o poder de se auto-organizar. Ocorre
para isso a sociedade deve se firmar sob a que, com o movimento constitucionalista do
égide do Direito e se estabelecer sob o império século XVIII, tal capacidade inseriu-se no
de uma ordem justa. Só a ordem justa é legíti- poder de criar uma Constituição, daí deno-
ma, por sua adequação à racionalidade”. tando-se a importância do Poder Constitu-
Alinhavadas as principais correntes jus- inte para a ciência do Direito Natural.
naturalistas, faz-se de bom alvitre a obser- Para o jusnaturalismo, o Poder Consti-
vância do pensamento de Emmanuel Kant tuinte é caracterizado por ser um poder ini-
(apud SANTOS, 1980), a quem se atribui a cial e incondicionado, porém limitado. Os
sistematização do Direito Natural. A sua limites balizadores desse poder são os pró-
doutrina contratualista-jusnaturalista tem prios princípios que fundamentam o direito
como base as excelências e virtudes do Ho- natural, em especial o princípio da liberdade.
mem em seu estado de natureza, é dizer, ser Dessa forma, a conclusão a que se chega
livre e de boa índole, dotado de inclinação quanto à natureza do Poder Constituinte,
social, concluindo o filósofo que a própria para a corrente jusnaturalista, é de verda-
razão impinge aos Homens a associação deiro poder jurídico, advindo de uma ordem
para o alcance de seus objetivos. jurídica natural que o contempla.

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No que tange à corrente juspositivista, reito se resume no Direito posto pelo Esta-
que tem em Hans Kelsen (1998) e sua obra do, a Constituição, como estabelecedora do
“Teoria Pura do Direito” a retórica mais pro- Estado e da ordem jurídica, não passa de
eminente, faz-se necessário uma realocação um fato.
de habitat doutrinário para o devido enqua- À vista dessa colocação positivista, não
dramento do Poder Constituinte, bem como cogita igualmente o positivismo do Poder
sua natureza, segundo a corrente que ora se Constituinte, por entender dita corrente que
empresta atenção. esse poder constitui mera força social, uma
Contrariamente ao que se passa com a força metajurídica, a ser estudada pela So-
doutrina jusnaturalista, para os juspositi- ciologia e por outras ciências, mas, nunca,
vistas não se admite a intromissão filosófi- pela Ciência do Direito”.
ca, social ou metajurídica, como elementos Como resultado das elucubrações acima
integrantes (ou de sustentação) do direito. formuladas, temos que, para a corrente en-
O positivismo jurídico circunscreve o direi- cabeçada pelos jusnaturalistas, o Poder
to às regras que compõem o direito posto. Constituinte transverte-se em conteúdo ju-
Dessa feita, “o positivismo, ao sustentar rídico; para os positivistas, o mesmo poder
que o direito é um sistema de normas, expli- não passa de fato social, desprovido de qual-
cita, por conseqüência, que a positividade quer fundamento de Direito. Finalmente, tra-
constitui, em verdade, a forma de manifes- zemos à colação o entendimento do Profes-
tação e de realização do Direito. Decorre dis- sor Aricê Amaral Santos (1980, p. 84), que,
so que, para o positivismo jurídico, tanto a em excelente trabalho acerca da natureza
Constituição13 como o poder que a cria nada do Poder Constituinte e não se submetendo
de jurídico significam” (SANTOS, 1980, p. 34). às idéias preconcebidas provindas das inú-
Como Hans Kensen (1998) expurgou do meras correntes doutrinárias que analisou,
conceito de Direito qualquer elemento não- assim concluiu: “Essa idéia de Direito, que
jurídico, a conclusão a que se chega, com não se pode qualificar como de um Direito
relação ao Poder Constituinte, é no sentido sui generis, caracteriza-se, por seus atribu-
de que, não obstante, poder, que expressa a tos, como força jurígena ou pára-jurídica.
gênese do Direito e do Estado, não é poder de Conclui-se, assim, que o Poder Constituinte
direito, é dizer, não tem natureza jurídica. é força jurígena ou pára-jurídica (sociológi-
A norma, para o positivismo kelsenia- ca-política quanto à origem e natureza, jurí-
no, é válida porque obedece a uma forma dica quanto aos seus efeitos)”.
determinada e atende a um procedimento A discussão que ora se empreendeu no
específico, desembocando no chamado di- presente tópico não foi em vão, ela servirá
reito posto, que se insere num sistema gradu- de substrato para as discussões subseqüen-
al de normas que alcança sua unidade14 na tes e de fundamento para a análise de deter-
norma hipotética fundamental15. minados atributos do Poder Constituinte, em
Como essa teoria não admite, como já especial aqueles intitulados desprovidos de
referido, a intrusão de elementos não jurídi- limites. Sendo assim, passemos à análise dos
cos a compô-la, no ápice do sistema, a vali- atributos do Poder Constituinte.
dá-la, encontra-se a norma hipotética funda-
mental, propiciando, assim, ao autor alemão 5.2. Atributos do Poder Constituinte
explicar juridicamente a obrigatoriedade da
Constituição sem reconhecer a existência, na São citados como atributos do Poder
sua origem, de um fenômeno não jurídico. Constituinte a anterioridade, a ausência de vin-
Explica, com propriedade, o Professor culação, a inalienabilidade, a permanência e a
Aricê Moacyr Amaral Santos (1980, p. 36) superioridade. O Professor José Horácio
que, “como para o positivismo jurídico o Di- Meirelles Teixeira (1991, p. 212-215) confe-

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re o seguinte conteúdo aos atributos menci- da Constituição, isto é, da organização po-
onados: lítico-jurídica fundamental da Nação, é sem-
“a) Anterioridade. O Poder Constituinte é pre possível, porque, sendo inalienável, o
um poder originário, anterior a qualquer Poder Constituinte permanece no povo, per-
outro poder, expressão primeira da sobera- durando através e acima da ordem jurídica
nia nacional. Daí seu caráter transcendental, constituída. Daí dizer Schmitt que ‘o povo, a
metaconstitucional. É nesse sentido que Nação, seguem sendo a base de toda a evolução
Hauriou (...) o denomina ‘fundador’ e Bur- política, a fonte de toda a força, que se manifesta
deau, ‘primário’. Ele constitui, realmente, a em formas sempre novas, que tira sempre de si
primeira e suprema oportunidade de manifesta- mesma novas formas e organizações, não subor-
ção da soberania, e Sieyès já o comparava ao dinando nunca, entretanto, sua existência polí-
Fiat da Criação. Criando as normas jurídi- tica a uma formulação definitiva’. Isto signifi-
cas fundamentais (produção originária das ca, em última análise, que não existe consti-
normas jurídicas), é o Poder Constituinte, tuição, nem formas de Estado, ou de gover-
realmente, anterior a qualquer outro poder. no, irrevogáveis ou irreformáveis, em face do
b) Ausência de vinculação. A atividade, as Poder Constituinte” .
diretrizes, as decisões fundamentais do Po- Denota-se das explicações lançadas
der Constituinte não podem, por definição acerca de cada um dos atributos do Poder
e essência, achar-se juridicamente vincula- Constituinte que a característica condizen-
das, pois, segundo vimos, na situação consti- te com a ausência de vinculação é a que mais
tuinte não existe normatividade nem ordenamen- nos interessa, isso porque, como posta, pro-
to jurídico definitivos, nem poderes constituí- picia o entendimento de que o fenômeno é
dos. Não podem existir, nem são imagináveis, desprovido de limites. Ora, em não haven-
portanto, vinculações prévias, preceitos jurídi- do vinculação, preceitos jurídicos ou limites a
cos a observar, limitações ou restrições positivas observar, a reta conclusão a que se desembo-
de nenhum gênero ao Poder Constituinte, ne- ca concerne à qualidade de ausência de li-
nhuma ligação, em sua atividade criadora, a mites para o poder criador/fundador da
normas ou procedimentos jurídicos prévios. É a Constituição.
isso que Friedrich denomina ‘potencialida- Entretanto, talvez com o intuito de evitar
des’ revolucionárias do Poder Constituinte, o resultado acima antecipado, o próprio Pro-
pois este acha-se, realmente, em condições fessor Meirelles Teixeira (1991, p. 212-215)
de modificar totalmente a estrutura política alerta que a ausência de vinculação “não sig-
e o ordenamento jurídico vigentes. nifica (...), e nem poderia significar, que o
c) Superioridade. Decorre da anterioridade Poder Constituinte seja um poder arbitrá-
e da ausência de vinculação. O Poder Consti- rio, absoluto, que não conheça quaisquer li-
tuinte estabelece os demais poderes constitu- mitações. Ao contrário, tanto quanto a sobera-
ídos, traça-lhes as normas fundamentais de nia nacional, da qual é apenas expressão máxi-
ação, expressas na Constituição. É-lhes, por- ma e primeira, está o Poder Constituinte limita-
tanto, não só anterior como também superior. do pelos grandes princípios do Bem Comum, do
d) Inalienabilidade. A Nação pode dele- Direito Natural, da Moral, da Razão”.
gar o exercício do Poder Constituinte a re- Nova luz e perspectiva é posta ao tema e
presentantes, como geralmente ocorre. A ta- o foco agora insinua a limitação do poder
refa constituinte é realizada, então, por As- constituinte (por conseqüência, da sobera-
sembléias Constituintes, compostas de re- nia) por meio de amarras advindas dos prin-
presentantes da Nação, eleitos especialmen- cípios norteadores do direito natural. Sen-
te para elaborarem a Constituição. do assim, o que se tem é a caracterização do
e) Permanência. É uma conseqüência da poder constituinte/soberania como poder
inalienabilidade. Significa que a modificação limitado, desde que o intérprete adote como

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premissa os fundamentos do direito natu- domínio cujo feudo ou senhorio dependia somente
ral, não ocorrendo a mesma conclusão caso o do rei, tendo, contudo, outros feudos que lhe rendi-
am vassalagem ou lhe pagavam tributo). Entretan-
mesmo hermeneuta tenha como ponto de to, é certo que a referida palavra nos chegou atra-
partida, exempli gratia, a doutrina positivista. vés da formação francesa souveraineté, do direito
Com fundamento no positivismo, o que gaulês (MEYER; REHM, [19 - -?] apud CARRÉ DE
se tem é o poder constituinte como não jurí- MALBERG, 1948). Gerber (apud CARRÉ DE MAL-
dico, perfazendo uma força social; conse- BERG, 1948) definiu a soberania como um poder
de dominação – Herrschergewalt – de império”.
qüentemente, as limitações (ou não) acerca 3
Vide capítulo I deste trabalho.
da força do fenômeno serão estipuladas pela 4
Ainda segundo Víctor Flores Olea (1975, p.
própria comunidade (ou melhor, seus repre- 101-102): “(...) la comunidad, en cuanto se unifica
sentantes), o que se traduz, indubitavelmen- políticamente, es decir, en cuanto llega a constituir
te, numa força ilimitada. una estructura social organizada para la realizaci-
ón de ciertos fines y para la ejecución de determina-
A caracterização do poder constituinte das funciores, constituye el Estado. Esa estructura
como poder ilimitado ou limitado, então, social, cuyos fines y funciones pueden tomar reali-
depende da doutrina que alicerça o precei- dad, únicamente, porque forma, a través de órga-
to? Se é assim, qualquer dos resultados é nos, una unidad de decisión y acción, tiene la cuali-
correto, apenas dependendo a evolução do dad de ser soberana, es decir, suprema y universal en
el radio de actividad dentro del cual la estructura
entendimento da vocação do intérprete (jus- actúa. Esos peculiares fines y funciones del Estado,
naturalista ou juspositivista)? también hemos dicho, son solo posibles porque el
É o que iniciaremos a perquirir na se- Estado es soberano, esto es, porque sobre la estruc-
gunda parte do nosso estudo, a ser publica- tura estatal no hay ninguna instancia de voluntad
da na próxima edição. que determine, por una parte, el ser y forma de la
estructura, y, por outro, el contenido de cada deci-
sión que, para el logro de sus metas, ha de tomar,
ante cada nueva situación a la que se enfrenta, la
unidad de decisión y acción que forma la misma
Notas estructura. (...) La estructura estatal es soberana
porque se da, a sí misma, forma concreta de existen-
1
“Si el Estado autárquico es la forma suprema de los cia política y porque, al decidir, no sólo sobre el
fenómenos de la vida política, entonces es posible para el modo y forma de su ser, sino también, sobre cualqui-
Estado formado de esta suerte mantenerse extraño a los er exigencia que plantee el cumplimiento de sus
demás; pero no es posible concebir entre él y las otras fines y funciones, no está sujeta a ninguma instan-
comunidades estatistas unas relaciones de cambio, per- cia de voluntad que se imponga. El Estado es sobe-
manentes y amistosas, encaminadas al desenvolvimiento rano porque es una organización supraordenada en
de la cultura. Todo cambio descansa por necesidad psico- relación con las demás oranizaciones y unidades de
lógica en las necesidades económicas y espirituales, medi- voluntad existentes dentro de los limites de su com-
ante las cuales se completan los hombres unos a otros, petencia”.
necesidades que, según consideraba la antigua doctrina, 5
A Constituição Francesa de 1791, no seu arti-
hallaban su satisfacción absoluta dentro del própio Esta- go 1o, título terceiro, já conferia à soberania as qua-
do.” (JELLINEK, 1970, p. 329-330). lidades assinaladas – nota do autor.
2
O mesmo autor salienta, no que tange à ori- 6
“A história anda cheia de exemplos de reis
gem do termo, ser o mesmo proveniente do latim, que fielmente professavam essa doutrina e se repu-
“segundo alguns do latim medieval, de super omnia tavam divindades, como os faraós do Egito, os
ou de superanus ou supremitas (caráter dos domíni- imperadores romanos, os príncipes orientais e até
os que não dependem senão de Deus). ‘Provavel- mesmo o Imperador do Japão até o fim da Segun-
mente, derivou-se o termo soberania de superanus, da Guerra Mundial” (BONAVIDES, 1986, p. 137).
vocábulo do baixo latim equivalente a superior. De 7
“(...) as constituições foram sempre o reflexo
valor comparativo, de início, passou depois ao de da ocorrência do poder soberano dos Estados naci-
superlativo absoluto, ao significado de supremitas’ onais dotados de um território – elemento objetivo,
(Cf. SOVRANITÁ, 1972). Embora haja uma certa e de um povo – elemento subjetivo, sobre e para os
divergência etimológica quanto à palavra sobera- quais se constituíam e organizavam em um docu-
nia, entende-se que venha de superanus, que, por mento legislativo supremo as formas e os conteú-
sua vez, teria originado com a alteração do prefixo, dos da vida política e social da comunidade”
ao termo suserano (nome dado ao senhor de um (MORAIS, 2002, p. 530-531).

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Observe-se que nos referimos à comunidade e expressão do direito positivo. Segundo Hans Kel-
não ao Estado, isso porque o poder político é ante- sen (1998, p. 247): “Se começarmos levando em
rior ao próprio Estado, é a força que funda o Esta- conta apenas a ordem jurídica estadual, a Consti-
do, conferindo-lhe uma Constituição, organizan- tuição representa o escalão de Direito positivo mais
do-o, impondo-lhe limites e dispondo sobre fins a elevado. A Constituição é aqui entendida num sen-
serem alcançados – nota do autor. tido material, quer dizer: com esta palavra signifi-
9
Sempre que nos referirmos ao Poder Constitu- ca-se a norma positiva ou as normas positivas atra-
inte, deste momento em diante, assim o faremos vés das quais é regulada a produção das normas
com foco no poder constituinte originário, pela impli- jurídicas gerais. Esta Constituição pode ser produ-
cação que estamos a desenvolver com relação à zida por via consuetudinária ou através de um ato
soberania. Quando a referência for ao poder consti- de um ou vários indivíduos a tal fim dirigido, isto
tuinte derivado, enunciaremos expressamente – nota é, através de um ato legislativo. Como, neste se-
do autor. gundo caso, ela é sempre condensada num docu-
10
Segundo Carlos Sanchez Viamante (1957, p. mento, fala-se de uma Constituição ‘escrita’, para
240), “A Sieyès se le debe la verdadera y definitiva a distinguir de uma Constituição não escrita, cria-
consagración doctrinaria del Estado de derecho, con- da por via consuetudinária. A Constituição mate-
cebido com alguma claridad por Francisco Suárez rial pode consistir, em parte, de normas escritas,
en el siglo XVII, y realizado prácticamente por los noutra parte, de normas não escritas, de Direito
Estados Unidos, a partir de la Declaración de los criado consuetudinariamente. As normas não es-
derechos del hombre, del Estado de Virginia, em critas da Constituição, criadas consuetudinaria-
1776”. mente, podem ser codificadas; e, então, quando
11
No que pertine a essa distinção conceitual esta codificação é realizada por um órgão legislati-
(nação – povo), vale a transcrição do entendimento vo, e, portanto, tem caráter vinculante, elas trans-
abalizado do Professor Manoel Gonçalves Ferreira formam-se em Constituição escrita”.
Filho (1974, p. 27 apud SANTOS, 1980, p. 25): 14
“Como a norma fundamental é o fundamen-
“Povo para ele (Sieyès) é o conjunto de indivíduos, to de validade de todas as normas pertencentes a
é um coletivo, uma reunião de indivíduos sujeitos uma e mesma ordem jurídica, ela constitui a uni-
a um poder. Ao passo que a nação é mais do que dade da pluralidade destas normas” (KELSEN,
isso, porque a nação é a encarnação de uma comu- 1998, p. 228).
nidade em sua permanência, nos seus interesses, 15
“A função desta norma fundamental é: fun-
interesses que eventualmente não se confundem nem damentar a validade objetiva de uma ordem jurí-
se reduzem aos interesses dos indivíduos que a dica positiva, isto é, das normas, postas através de
compõem em determinado momento”. atos de vontade humanos, de uma ordem coerciva
12
A doutrina contratualista a que se faz referên- globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o senti-
cia diz com a doutrina de Rousseau, utilizada pelo do subjetivo destes atos como seu sentido objetivo.
abade juntamente com os preceitos jusnaturalis- A fundamentação da validade de uma norma po-
tas. No entanto, novamente nos valendo dos traços sitiva (isto é, estabelecida através de um ato de
do Professor Argentino Carlos Sanchez Viamante vontade) que prescreve uma determinada conduta
(1957, p. 242), “aquí está lo fundamental de la realiza-se através de um processo silogístico. Neste
doctrina: lo que no se le ocurrió a Rousseau, por no silogismo a premissa maior é uma norma conside-
haber admitido tampoco la existencia de um poder rada como objetivamente válida (melhor, a afirma-
legislativo ordinario, que actuase como cuerpo, por ção de uma tal norma), por força da qual devemos
delegación y representación del pueblo, y por no obedecer aos comandos de uma determinada pes-
haber diferenciado la Constitución de la ley ordina- soa, quer dizer, nos atos de comando; a premissa
ria. Es verdad que Rousseau supone, sin discrimi- menor é a afirmação do fato de que essa pessoa
nación alguna, que toda ley es expresión de la von- ordenou que nos devemos conduzir de determina-
tad general soberana y, por consiguiente, sólo tiene da maneira; e a conclusão, a afirmação da validade
valor cuando es el pueblo reunido quien la dicta. da norma: que nos devemos conduzir de determi-
Pero también es verdad que él reconocía las dificul- nada maneira. A norma cuja validade é afirmada
tades del sistema democrático, y hasta llegó a decir na premissa maior legitima, assim, o sentido subje-
que era impossible su aplicación (...). No sería justo tivo do ato de comando, cuja existência é afirmada
pasar por alto la circunstancia de haber escrito Rous- na premissa menor, como seu sentido objetivo. Por
seau su obra cuando aun no existia ninguna verda- exemplo: devemos obedecer às ordens de Deus.
dera Constitución, lo que daba a su doctrina el ca- Deus ordenou que obedeçamos às ordens dos nos-
ráter de una construcción utópica o, por lo menos, sos pais. Logo, devemos obedecer às ordens de nos-
puramente teórica”. sos pais” (KELSEN, 1998, p. 226).
13
Neste ponto ousamos discordar do ilustre
professor, eis que entendemos ser a Constituição

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