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Resumo: O artigo busca mostrar como que de alguma forma, há uma herança
patrimonialista atualmente, herdada de períodos que precederam a República. Como que
essa estrutura se tornou tão capilar a ponto de fincar raízes que comprometem o sentido de
“coisa pública” nos dias atuais. Pretende-se tomar algumas precauções metodológicas,
utilizando categorias de análise que possam dar conta de tais complexidades conjunturais e
comparações históricas. Levando em conta que há uma constituição federal em vigor e que
a sociedade mudou durante todo esse tempo, será feita uma análise dos períodos, inclusive
o atual. Serão apontadas algumas “similaridades” diante das estruturas coloniais e
republicanas, tomando cuidado para não ocorrer em comparações que permitam exageros
anacrônicos.
É claro que se deve tomar alguns cuidados ao analisar conjunturas tão dispares no
tempo. Quando se olha para cada conjuntura é possível ver algumas estruturas que nos
parecem familiar, o Brasil colonial por exemplo, é possível ver um tipo de relação
interpessoal calcada no clã, que nortearia toda estrutura da colônia, bem expostas nas
palavras de Caio Prado Junior:
O poder real estava muito distante, era necessário se fazer presente em terras do
além-mar. A sombra do poder do rei deveria ser sentida, mas de uma forma que se
permitisse que os homens da colônia não se sentissem poderosos o suficiente para
confronta-lo. Há uma estruturação da colônia por meio da fidalguia dos cargos, essa
estrutura não só dava poderes os homens que serviam ao rei, como também sustentava o
poder do rei. O rei não acreditava nos seus súditos e isso levou a criação de diversos cargos,
para que ambos os agentes da coroa se vigiassem, criando assim a sombra do poder real.
(PRADO JUNIOR, 1961.)
Pode-se ver que as determinações da Constituição Federal são claras, porém não tão
especificas, o que permite as mais diversas interpretações. Mas não são as interpretações
que fazem com que os cargos comissionados sejam um terreno fértil para o nepotismo e
distribuição do poder patrimonial, formando teias de relações calcadas no favorecimento
mutuo, na manutenção do poder por meio do corporativismo, ignorando assim a coisa
pública.
Esse possível uso da administração pública segundo Weber (2000), seria o uso do
poder político do soberano, retratado nesse caso pelas pessoas que de forma discricional,
apontam os cargos comissionados de forma análoga ao poder exercitado em casa,
caracterizando assim o patrimonialismo. Não era fácil aos detentores das posições públicas
de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental
entre os domínios do privado e do público. (HOLANDA, 1995, p. 145)
Holanda aponta para a espinha dorsal que liga todos esses pontos conjunturais no
tempo, os costumes. O tal ambiente citado acima é a cultura de tal conjuntura, imposta por
Portugal ainda no período colonial e apropriada pelos colonos a sua forma, dando sentido
ao termo dominação cunhado por Max Weber, pois toda dominação é consentida, do
contrário não teria razão de sê-la.
[...] muitas das análises sobre a herança que condiciona a cultura política
no Brasil destacam características negativas, como clientelismo,
corporativismo, patrimonialismo, formalismo e nepotismo, disseminando
a ideia de que algumas delas são recorrentes e difíceis, ou até mesmo
impossíveis, de serem superadas. (SCHOMMER, apud HELAL;
DIEGUES, 2009, p.30)
É possível visualizar por trás de toda estrutura burocrática (WEBER, 2000), parte
da apropriação dos cargos por uma estrutura patrimonialista sendo praticada. Levantando
uma breve comparação, segundo Boxer (1969) no período colonial o desvio de finalidade
do erário do rei e súditos eram “norma”, mas devemos levar em conta todo contexto
colonial, onde as elites locais e os funcionários da coroa entendiam que o rei contava com
seus serviços em terras distantes, tão logo, isso fazia com que o rei fosse condescendente
com tal ato (roubo do erário).
Mas o que foi apontado anteriormente é diferente do que acontece hoje se levarmos
em conta toda estrutura racional burocrática, além do Estado não ser uma extensão do
indivíduo, mas a ferramenta que torna possível diminuir a diferença entre esses mesmos
indivíduos. O que aumenta a diferença e o poder desses indivíduos são suas relações,
principalmente quando calcadas em estreitos laços de afinidade e familiaridade. O que
caracterizaria um desvio de finalidade da máquina do Estado, tornando-o ineficiente e
constantemente espoliado.
São diversos os casos somente no ano de 2019 sobre peculato-desvio nas câmaras
municipais, atos praticados por vereadores e chefes do poder executivo, demonstrando o
aspecto mais clientelístico da política/administração pública. Retornando ao período
colonial, assim como em Portugal, no Brasil os vereadores se tornaram uma oligarquia auto
perpetuadora, de um caráter quase que "clientelista" (BOXER, 1969). Deve-se apontar que
há uma diferença entre o que se busca em cada estrutura clientelista. A primeira e atual
estrutura clientelista busca o desvio do erário como forma de enriquecimento, enquanto a
segunda buscava status na sociedade colonial (adquirir fidalguia), o que geraria facilidades
financeiras e de oportunidades.
A possibilidade de comparações não fica restrita somente aos fatos enunciados, mas
também as categorias de analises empregadas para estudar tal fenômeno. É importante ter
claro qual categoria empregar para que não haja confusão em expressar aquilo que se
pretende. Segundo José Murilo de Carvalho (1997), clientelismo seria um termo muito
amplo para explicar o que até aqui foi nomeado de patrimonialismo. O próprio termo
patrimonialismo não é bem aceito por José Murilo de Carvalho, porém é necessário
utilizar-se desse termo, do contrário seria improvável conseguir atingir alguma
inteligibilidade.
1
Pratica de nomeação para cargos públicos de natureza política (ministro, secretários), que diverge das
nomeações para cargos administrativos (chefes e diretores). Essas práticas são feitas por parlamentares, no
caso, um parlamentar nomeia o parente de outro parlamentar para cargos em seu respectivo gabinete, a outra
parte faz o mesmo.
2
Legitimavam no sentido de que eram os agentes do rei nessas terras e que sem eles não haveria ordem,
um acordo sem o qual o rei não conseguiria manter o funcionamento de uma colônia tão distante. Ou seja,
era de interesse mutuo essa “regularidade”, segundo Weber uma “ordem legitima”. (WEBER, 2000, p.19)
Tanto Faoro quanto Uricoechea deixam escapar em suas analises a proeminência
dessas forças locais, traçando um cabo de guerra no qual o Estado acabaria ganhando na
visão dos autores. É necessário fazer algumas digressões sobre a criação do Estado
baseadas no princípio da dominação burocrática de Max Weber.
3
Tratando de leis (regras), essas leis quando não especificas, permitem apropriação e destorcimento da
estrutura burocrática. Os agentes usam de brechas na interpretação das leis para validarem suas ações, ou
seja, a dominação burocrática não é praticada em sua integralidade.
5. O salário fixo é o normal. (Denominamos “prebendas” as receitas
apropriadas de emolumentos; sobre o conceito, veja §8.) Também normal
é o salário em dinheiro. Esta não é; de modo algum, uma característica
substancial do conceito; mas corresponde forma mais pura ao tipo,
(Emolumentos em espécie tem caráter de “prebenda”. A prebenda é
normalmente uma categoria de apropriação de oportunidades de aquisição
e de cargos.) Mas as transições aqui são totalmente fluidas, conforme
mostram precisamente estes exemplos. As apropriações em virtude de
arrendamento, compra ou penhora de cargos não pertencem à burocracia
pura, mas, sim, a outra categoria (§7 a, 3, no final). (WEBER, 2000,
p.145)
4
Como regra geral, é o Decreto nº 8.821/2016 (substituído pelo DECRETO Nº 9.794, DE 14 DE MAIO DE
2019) que dispõe sobre as competências para os atos de nomeação e designação para funções e cargos
comissionados no Executivo Federal. São os ministros de Estado que têm autoridade para nomear e designar
funções e cargos de níveis 1, 2, 3 e 4 (esses dois últimos no caso de assessoramento). Já a indicação para
espelho para muitas praticas que ocorrem nas esferas estaduais e municipais, casos até aqui
já mencionados.
cargos de direção de nível 3 e 4 são encaminhados para apreciação prévia da Casa Civil da Presidência da
República.
No caso de DAS 5, 6 ou equivalentes, só o ministro chefe da Casa Civil pode determinar as nomeações –
também após avaliação. Ele é a única autoridade que pode nomear o chefe da Assessoria Parlamentar e o
titular de órgão jurídico da Procuradoria-Geral Federal das autarquias e fundações do governo federal.
(www.cgu.gov.br) acessado: 29/07/2019.
a União é a última instância e permanece distante (União é materializada no DF = Distrito
Federal), para isso são necessárias ferramentas 5 (federais, ou seja, da União) que
possibilitem auditorias e vigilância constante da ordem legal e administrativa nos estados e
municípios. O terceiro e último ponto poderia ser acoplado ao primeiro, mas para melhor
explica-lo, é preferível separa-lo. Nesse ponto, falta uma reformulação da Constituição
Federal e na autonomia das instâncias estaduais e municipais, lembrando que as últimas
agem como espelho da primeira. Do contrário a Constituição Federal não daria conta de
toda especificidade e burocracia de uma nação tão grande e diversa.
Conclui-se que nossa herança patrimonial criou raízes tão profundas, criando e
aprimorando a estrutura burocrática ao seu gosto, não permitindo uma dominação
burocrática pura. O que se tem é uma mistura de dois tipos de dominação (burocrática e
tradicional), um hibrido que é difícil de definir. O texto buscou apontar esse fio condutor
que tem raízes no Brasil colonial e ainda hoje na república é bastante visível. O que se pode
apontar por fim é que o Estado brasileiro dificilmente conseguirá superar essa herança
patrimonial, ou levará muito tempo para vislumbrar no horizonte uma mudança
estruturalmente significativa, uma mudança real, seja dos agentes da máquina ou de seus
cidadãos. Mudança que não permita apropriação pelos agentes patrimoniais e que não
permita captação de agentes para dentro dessa estrutura patrimonial. Ainda maior do que
essa macula patrimonial, são os desafios a serem enfrentados para tornar essa mudança uma
realidade material, objetiva.
5
É importante aqui, fazer referência aos conselhos do período colonial. Conselhos que permitiam um
controle um pouco mais preciso por parte da coroa (no sentido de evitar caos e anarquia). Segundo Faoro
(2001) os conselhos devem ser de muitos, para suprir matérias que não chegam a outros, porém não muitos
para perturbar as resoluções.
Referências