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MESTRADO EM HISTÓRIA

HUGO FACCION GUIMARÃES


PROFESSOR: LUIZ FRANCISCO MIRANDA

CARGOS COMISSIONADOS: UMA HERANÇA ESTRUTURAL


PATRIMONIALISTA OU A REPÚBLICA COMO EMOLUMENTO?

São João Del Rei


2019
CARGOS COMISSIONADOS: UMA HERANÇA ESTRUTURAL
PATRIMONIALISTA OU A REPÚBLICA COMO EMOLUMENTO?

Resumo: O artigo busca mostrar como que de alguma forma, há uma herança
patrimonialista atualmente, herdada de períodos que precederam a República. Como que
essa estrutura se tornou tão capilar a ponto de fincar raízes que comprometem o sentido de
“coisa pública” nos dias atuais. Pretende-se tomar algumas precauções metodológicas,
utilizando categorias de análise que possam dar conta de tais complexidades conjunturais e
comparações históricas. Levando em conta que há uma constituição federal em vigor e que
a sociedade mudou durante todo esse tempo, será feita uma análise dos períodos, inclusive
o atual. Serão apontadas algumas “similaridades” diante das estruturas coloniais e
republicanas, tomando cuidado para não ocorrer em comparações que permitam exageros
anacrônicos.

Palavras-chave: Patrimonialismo, colônia, República, herança.


Ao adentrar o fértil terreno dos estudos feitos sobre a criação dos Estados, poderia
se elencar elementos característicos de sociedades do Antigo Regime em tempos
contemporâneos? Apesar de se viver em tempos republicanos, qual o limite da “coisa
pública”? É possível demonstrar as raízes do patrimonialismo que norteou tanto a colônia
quanto o império, nas entranhas da República brasileira?

É claro que se deve tomar alguns cuidados ao analisar conjunturas tão dispares no
tempo. Quando se olha para cada conjuntura é possível ver algumas estruturas que nos
parecem familiar, o Brasil colonial por exemplo, é possível ver um tipo de relação
interpessoal calcada no clã, que nortearia toda estrutura da colônia, bem expostas nas
palavras de Caio Prado Junior:

Constituído assim numa sólida base econômica e centralizando a vida social da


colônia, o grande domínio adquirirá aos poucos os demais caracteres que o
definirão. De simples unidade produtiva, torna-se desde logo célula orgânica da
sociedade colonial; mais um passo, e será berço do nosso “clã”, da grande família
patriarcal brasileira. (PRADO JUNIOR, 1961, p. 286)

Quando comparados o período colonial e republicano são cristalinas as diferenças,


mas não é essa a proposta desse artigo. Porém há algumas estruturas que não só resistiram
ao tempo e as mudanças, mas se aprimoraram ao ponto de remeter a tais períodos. O clã
como é dito por Prado Junior, está intimamente ligado ao cotidiano colonial, mas não só. A
contemporaneidade também goza de tais relações patriarcais, já que a família é o cordão
umbilical de toda sociedade.

Após a Revolução dos Avis o Reino de Portugal passou a modificar a dinâmica de


todo estamento. A nobreza outrora militar, agora esfacelada por quebrar o pacto e ficar ao
lado do reino de Castela, é desmantelada de seu status, tornando-se agora uma nobreza
burocrática, renovada, com cargos e a serviço do rei. A burguesia emergente é captada por
essa “nova” nobreza, tornando-se atrofiada pela regulação real, onde somente o rei poderia
mercadejar e conferindo a essa burguesia aquilo que é privilégio de uma nobreza, opulência
e ociosidade. (FAORO, 2001.)

O poder real estava muito distante, era necessário se fazer presente em terras do
além-mar. A sombra do poder do rei deveria ser sentida, mas de uma forma que se
permitisse que os homens da colônia não se sentissem poderosos o suficiente para
confronta-lo. Há uma estruturação da colônia por meio da fidalguia dos cargos, essa
estrutura não só dava poderes os homens que serviam ao rei, como também sustentava o
poder do rei. O rei não acreditava nos seus súditos e isso levou a criação de diversos cargos,
para que ambos os agentes da coroa se vigiassem, criando assim a sombra do poder real.
(PRADO JUNIOR, 1961.)

Demonstrado parte desse itinerário da estrutura colonial, se faz necessário uma


menção ao poder das elites locais (clãs), que ao se tornar legitimo (adquirir fidalguia) vira
centro de toda estrutura e poder colonial. As Câmaras seriam a ferramenta para que essas
elites se tornassem ainda mais poderosas, adquirindo um status frente a comunidade local e
permitindo barganhar frente ao poder dos conselhos ultramarinos e coroa. Essas Câmaras
possibilitam uma base jurídica para as demandas dessas elites, perpetuando-se no poder e
conferindo aos seus, poder de mando. Segundo Faoro (2001), o patrimônio já não é mais o
feudo, é o próprio poder.

O contexto contemporâneo de estruturação da sociedade em tese é diferente, já que


vivemos sob a tutela de uma constituição federal e republicana, mas será mesmo que essa
estrutura não está viciada de atitudes calcadas no poder patrimonial, como vimos antes em
Faoro? Há de se fazer algumas explanações para tornar possível responder essa questão.

A Constituição Federal brasileira em seu inciso V (quinto) do artigo 37, determina:

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores


ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos
por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos
previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e
assessoramento;

Pode-se ver que as determinações da Constituição Federal são claras, porém não tão
especificas, o que permite as mais diversas interpretações. Mas não são as interpretações
que fazem com que os cargos comissionados sejam um terreno fértil para o nepotismo e
distribuição do poder patrimonial, formando teias de relações calcadas no favorecimento
mutuo, na manutenção do poder por meio do corporativismo, ignorando assim a coisa
pública.

Esse possível uso da administração pública segundo Weber (2000), seria o uso do
poder político do soberano, retratado nesse caso pelas pessoas que de forma discricional,
apontam os cargos comissionados de forma análoga ao poder exercitado em casa,
caracterizando assim o patrimonialismo. Não era fácil aos detentores das posições públicas
de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental
entre os domínios do privado e do público. (HOLANDA, 1995, p. 145)

Holanda aponta para a espinha dorsal que liga todos esses pontos conjunturais no
tempo, os costumes. O tal ambiente citado acima é a cultura de tal conjuntura, imposta por
Portugal ainda no período colonial e apropriada pelos colonos a sua forma, dando sentido
ao termo dominação cunhado por Max Weber, pois toda dominação é consentida, do
contrário não teria razão de sê-la.

[...] muitas das análises sobre a herança que condiciona a cultura política
no Brasil destacam características negativas, como clientelismo,
corporativismo, patrimonialismo, formalismo e nepotismo, disseminando
a ideia de que algumas delas são recorrentes e difíceis, ou até mesmo
impossíveis, de serem superadas. (SCHOMMER, apud HELAL;
DIEGUES, 2009, p.30)

A citação apesar de otimista no campo da administração pública, demonstra bem o


que diversos historiadores, sociólogos e juristas, vem dizendo em suas obras. Que toda
prática política e de administração pública no Brasil é calcada nesses fundamentos citados
acima. São esses fundamentos que nos interessam, não como forma de culpar períodos que
precederam a república, mas como forma de mostrar algo personalista da cultura brasileira,
com bases solidas o suficiente para serem apropriados e difundidos nos dias atuais.

Na pesquisa feita sobre a administração pública no município de Caeté-MG,


HELAL e DIEGUES (2009) mostram que:

Inicialmente, constatou-se que, em torno de trinta servidores deveriam ser


exonerados. Após análise criteriosa dos casos em questão, a Assessoria
Jurídica entendeu e deferiu que não seriam alcançados pela súmula os
servidores ocupantes de cargos idênticos, ou seja, na mesma linha
hierárquica. A justificativa é que, estando no mesmo nível hierárquico, o
servidor não poderia, em tese, utilizar os poderes do cargo para nomear
parente em outra colocação comissionada. (p.39)

É possível visualizar por trás de toda estrutura burocrática (WEBER, 2000), parte
da apropriação dos cargos por uma estrutura patrimonialista sendo praticada. Levantando
uma breve comparação, segundo Boxer (1969) no período colonial o desvio de finalidade
do erário do rei e súditos eram “norma”, mas devemos levar em conta todo contexto
colonial, onde as elites locais e os funcionários da coroa entendiam que o rei contava com
seus serviços em terras distantes, tão logo, isso fazia com que o rei fosse condescendente
com tal ato (roubo do erário).

Mas o que foi apontado anteriormente é diferente do que acontece hoje se levarmos
em conta toda estrutura racional burocrática, além do Estado não ser uma extensão do
indivíduo, mas a ferramenta que torna possível diminuir a diferença entre esses mesmos
indivíduos. O que aumenta a diferença e o poder desses indivíduos são suas relações,
principalmente quando calcadas em estreitos laços de afinidade e familiaridade. O que
caracterizaria um desvio de finalidade da máquina do Estado, tornando-o ineficiente e
constantemente espoliado.

São diversos os casos somente no ano de 2019 sobre peculato-desvio nas câmaras
municipais, atos praticados por vereadores e chefes do poder executivo, demonstrando o
aspecto mais clientelístico da política/administração pública. Retornando ao período
colonial, assim como em Portugal, no Brasil os vereadores se tornaram uma oligarquia auto
perpetuadora, de um caráter quase que "clientelista" (BOXER, 1969). Deve-se apontar que
há uma diferença entre o que se busca em cada estrutura clientelista. A primeira e atual
estrutura clientelista busca o desvio do erário como forma de enriquecimento, enquanto a
segunda buscava status na sociedade colonial (adquirir fidalguia), o que geraria facilidades
financeiras e de oportunidades.

Para contrastar comparações e buscar similaridades em períodos tão distantes no


tempo, temos em Boxer (1969):

Deve, no entanto, ser reconhecido que, se bem que os Conselhos coloniais


fossem geralmente constituídos por indivíduos conscienciosos que
tomavam a sério os seus deveres – como o prova uma leitura cuidadosa
dos seus arquivos -, houve inevitavelmente casos de nepotismo corrupção
e desvio de fundos. (p.273)

Também temos em matéria do jornal Estado de Minas, publicada pela jornalista


Flávia Ayer no dia 08/04/2019:

Novato na política, o vereador de Belo Horizonte Cláudio Duarte (PSL)


foi preso esta semana em investigação que aponta desvio de R$ 1 milhão
do Legislativo. O parlamentar, que está em seu primeiro mandato, é
suspeito de prática ilegal que é velha conhecida dos políticos, a chamada
“rachadinha” – a exigência de que funcionários repassem a eles parte dos
salários.
As investigações indicam que o caso não é o único na Câmara Municipal
de BH. Uma vez confirmadas essas práticas vão se somar a dezenas
ocorridas no país. Somente em Ipatinga, no Vale do Aço, cinco
vereadores foram presos e afastados em fevereiro por causa da
“rachadinha”.

A possibilidade de comparações não fica restrita somente aos fatos enunciados, mas
também as categorias de analises empregadas para estudar tal fenômeno. É importante ter
claro qual categoria empregar para que não haja confusão em expressar aquilo que se
pretende. Segundo José Murilo de Carvalho (1997), clientelismo seria um termo muito
amplo para explicar o que até aqui foi nomeado de patrimonialismo. O próprio termo
patrimonialismo não é bem aceito por José Murilo de Carvalho, porém é necessário
utilizar-se desse termo, do contrário seria improvável conseguir atingir alguma
inteligibilidade.

Carvalho (1997) aponta uma dualidade ao tratar o termo patrimonialismo em um


contexto burocrático, aquilo que autores como Faoro (2001) e Uricoechea (1978) colocam
como burocracia patrimonial em suas interpretações do Brasil colonial e imperial.

Partindo de sólida base weberiana, Uricoechea interpreta o Brasil imperial


com o auxílio do tipo ideal de burocracia patrimonial. Os dois termos são
em parte conflitantes, desde que burocracia é tomada no sentido
weberiano de racionalização e modernização da máquina do Estado,
enquanto o patrimonial tem a ver com uma forma de dominação
tradicional ligada à expansão do poder pessoal do monarca.
(CARVALHO, 1997)

Contudo não é clara a forma de administração colonial e imperial, levando-se em


conta tudo que foi mostrado é possível captar o cerne de toda argumentação, esse é
exatamente a herança de períodos onde o tipo de dominação tradicional e burocrática
(WEBER, 2000) entrelaçavam-se.

Apesar das precauções apontadas por Carvalho (1997), o autor esquece da


apropriação feita de tempos em tempos dos conceitos, não somente dos conceitos, mas
também da própria estrutura que é objeto de estudo, nesse caso a herança patrimonialista.
Não seria absurdo dizer que algo tão bem enraizado na cultura brasileira, tornar-se solido o
bastante para criar divergências nas análises weberianas. Dito isto, é possível sim, utilizar
de tais categorias de analises mais ou menos frouxas e contraditórias a priori.
É importante mostrar outra grande diferença entre os cargos na colônia e na
república. Os cargos na colônia tinham duas categorias, de investidura (real, empossado) e
delegação (mandato, vereadores), eram os principais atores da centralização colonial,
projetores da sombra real e da burocracia patrimonial. A priori a república deveria ser
movida pela disposição dos cargos calcados na dominação burocrática/racional, os cargos
comissionados são um obstáculo a essa disposição, uma vez sendo de livre indicação.

Um dos argumentos que torna esses exemplos tão similares é o distanciamento do


poder central, dificultando o controle do cumprimento da regra, caso essa regra exista. O
contexto da república é bastante curioso se for levar em conta as consequências jurídicas e
a probabilidade de ser denunciado aos órgãos competentes. Ainda que a centralização da
república brasileira cause certa ineficiência em apurar os casos mais isolados (municipais),
poderia se apontar as nomeações cruzadas 1, realizadas por parlamentares em Brasília, que a
luz da constituição não é crime, mas funcionaria de forma similar as nomeações feitas no
âmbito municipal, desviando a finalidade (nepotismo indireto) da máquina do Estado,
sendo causa de sua ineficiência e o tratando como extensão do privado.

O mesmo distanciamento do poder central pode ser demonstrado no contexto


colonial, como dito antes, os funcionários e as elites locais eram a sombra do poder do rei
em terras além-mar. O rei se assentava sobre essas elites locais, elites que legitimavam2 o
poder do rei, isso traria um aspecto de ordem em um contexto aparentemente caótico. Em
contrapartida eles eram a lei, daí pode se partir para uma questão que norteia esse debate, é
possível dizer que o Estado (monárquico) ainda em no período colonial, foi estruturado
sobre solidas bases patrimoniais? Ou seja, não o poder central, mas sim o poder local
(privado) sendo responsável por sua edificação, cravando suas garras e deixando marcas
que impossibilitam o entendimento do Estado (antes e agora) como coisa pública?

1
Pratica de nomeação para cargos públicos de natureza política (ministro, secretários), que diverge das
nomeações para cargos administrativos (chefes e diretores). Essas práticas são feitas por parlamentares, no
caso, um parlamentar nomeia o parente de outro parlamentar para cargos em seu respectivo gabinete, a outra
parte faz o mesmo.
2
Legitimavam no sentido de que eram os agentes do rei nessas terras e que sem eles não haveria ordem,
um acordo sem o qual o rei não conseguiria manter o funcionamento de uma colônia tão distante. Ou seja,
era de interesse mutuo essa “regularidade”, segundo Weber uma “ordem legitima”. (WEBER, 2000, p.19)
Tanto Faoro quanto Uricoechea deixam escapar em suas analises a proeminência
dessas forças locais, traçando um cabo de guerra no qual o Estado acabaria ganhando na
visão dos autores. É necessário fazer algumas digressões sobre a criação do Estado
baseadas no princípio da dominação burocrática de Max Weber.

I. O cargo é profissão. Isto se manifesta, em primeiro lugar, na exigência


de uma formação fixamente prescrita, que na maioria dos casos requer o
emprego da plena força de trabalho por um período prolongado, e em
exames específicos prescritos, de forma geral, como pressupostos da
nomeação. Além disso, manifesta-se no caráter de dever do cargo do
funcionário, caráter que determina, da forma seguinte, a estrutura interna
de suas relações: a ocupação de um cargo, juridicamente e de fato, não é
considerada equivalente à posse de uma fonte de rendas ou emolumentos
explorável em troca do cumprimento de determinados deveres - como era
o caso, em regra, na Idade Média, e muitas vezes até em tempos mais
recentes -, nem uma troca normal, remunerada, de determinados serviços,
como ocorre no caso do livre contrato de trabalho. Mas sim, ao contrário,
a ocupação de um cargo, também na economia privada, é considerada
equivalente à aceitação de um específico dever de fidelidade ao cargo, em
troca de uma existência assegurada. Decisivo para o caráter específico da
fidelidade ao cargo moderna é o fato de que ela, em seu tipo puro, não
estabelece - como ocorre, por exemplo, na relação de dominação feudal
ou patrimonial - uma relação com uma pessoa, à maneira da fidelidade de
um vassalo ou discípulo, mas se destina a uma finalidade impessoal,
objetiva. (WEBER, 2004, p. 200-201)

Segundo Weber, são claras as disposições do funcionalismo em uma estrutura


puramente burocrática/racional. O que tem se visto durante toda analise dos contextos
históricos coloniais e republicanos, é um modus operandi patrimonialista,
independentemente de qualquer estrutura burocrática formal e suas regras. É importante
fazer uma diferenciação ainda em Weber da dominação burocrática, pura ou formal. Se
tratando do caráter formal3, ou seja, aquilo que pertence a forma, a dominação burocrática
permite certo nível de patrimonialismo o qual foi demonstrado durante o texto. Seu caráter
puro, seria o respeito integral da dominação burocrática, não subvertendo seus valores
básicos como impessoalidade, objetividade e competências fixas.

A forma como os funcionários recebem seus pagamentos é ponto central para


elucidar parte da argumentação. Como pode-se ver, a dominação burocrática é explicita em
definir alguns mecanismos para seu funcionamento:

3
Tratando de leis (regras), essas leis quando não especificas, permitem apropriação e destorcimento da
estrutura burocrática. Os agentes usam de brechas na interpretação das leis para validarem suas ações, ou
seja, a dominação burocrática não é praticada em sua integralidade.
5. O salário fixo é o normal. (Denominamos “prebendas” as receitas
apropriadas de emolumentos; sobre o conceito, veja §8.) Também normal
é o salário em dinheiro. Esta não é; de modo algum, uma característica
substancial do conceito; mas corresponde forma mais pura ao tipo,
(Emolumentos em espécie tem caráter de “prebenda”. A prebenda é
normalmente uma categoria de apropriação de oportunidades de aquisição
e de cargos.) Mas as transições aqui são totalmente fluidas, conforme
mostram precisamente estes exemplos. As apropriações em virtude de
arrendamento, compra ou penhora de cargos não pertencem à burocracia
pura, mas, sim, a outra categoria (§7 a, 3, no final). (WEBER, 2000,
p.145)

O que difere do modo de dominação tradicional, que carrega o germe do


patrimonialismo. O quadro administrativo da dominação tradicional é baseado em:

Pessoas tradicionalmente ligadas ao senhor, por vínculos de piedade


(“recrutamento patrimonial”);
a) Membros do clã;
b) Escravos;
c) Funcionários domésticos dependentes, particularmente
“ministeriais”;
d) Clientes;
e) Colonos;
f) Libertados;
(“recrutamento extrapatrimonial”, em virtude de);
a) Relações pessoais de confiança (“favoritos” independentes, de todas
as espécies), ou
b) Pacto de fidelidade com o senhor legitimado (vassalos) e, por fim,
c) Funcionários livres que entram na relação de piedade para com o
senhor. (WEBER, 2000, p.148-149)

É interessante observar que o “recrutamento extrapatrimonial” é a forma que os


Estados patrimoniais se constituíram quando necessitados de um aparato burocrático.
Apesar de soar contraditório, já que extrapatrimonial significaria além do patrimônio,
enquanto patrimonialismo significaria semanticamente, patrimônio. Feita essa ressalva,
volta-se aos apontamentos feitos durante o texto, de uma herança patrimonialista na
estrutura burocrática brasileira.

Nos casos apontados de irregularidades nas nomeações de cargos comissionados, é


interessante observar pelo menos quatro dos pontos que Weber nos elencou. Membros do
clã (de forma indireta, indicação cruzada), clientes (na forma de insinuação privada em
campanhas eleitorais), relações pessoais de confiança (falta de impessoalidade nas
escolhas), funcionários livres que entram na relação de piedade (troca de favores,
subvertendo a coisa pública).

Compreende-se que as formas de dominação tradicional foram importantes para


manutenção tanto do poder central, quanto do poder local na colônia. Na mão de toda
evolução das sociedades ocidentais, o advento do capitalismo, da criação dos Estados
nacionais, é bastante evidente que haja a adoção de uma dominação burocrática/racional
que permita o funcionamento de sociedades tão grandes e difusas. Também parece evidente
que as transformações que operam a dominação burocrática não poderiam erradicar
completamente o patrimonialismo de um antigo Estado patrimonial. Mas os mecanismos
patrimoniais uma vez enraizados e com a máquina do Estado em suas mãos, se apropriarem
das estruturas burocráticas ou pior, ser parte fundante dessa estrutura burocrática.

A implicação imediata do patrimonialismo como fundador da estrutura burocrática é


a criação de leis não tão rígidas e especificas, o que permitiria o modus operandi
patrimonial. Já a implicação mais longa, seria a da captação de novos agentes, permitindo a
manutenção dessa estrutura hibrida (burocrática na forma, patrimonial/tradicional na
pratica). É como se as engrenagens que operam a máquina do Estado estivessem podres, ao
invés de troca-las, é jogado um lubrificante nessas peças, perpetuando assim seu ineficiente
funcionamento. São necessárias mudanças que permitam um aperfeiçoamento da máquina
do Estado, alguns passos são dados muito lentamente, mas permite um vislumbre de uma
eficiência maior da burocracia.

O decreto Nº 9.727, de 15 de março de 2019, é um exemplo de aperfeiçoamento do


aparato burocrático do Estado. O decreto torna mais especificas as regras para
nomeação/admissão de cargos comissionados, os requisitos de profissionalização. Ainda é
possível ver brechas no decreto que se tornam terreno fértil para o patrimonialismo. Os
quesitos de impessoalidade, nepotismo cruzado e aparelhamento de posições mais altas
pelo governo4. Vale ressaltar que as práticas cometidas pelo Governo Federal, servem de

4
Como regra geral, é o Decreto nº 8.821/2016 (substituído pelo DECRETO Nº 9.794, DE 14 DE MAIO DE
2019) que dispõe sobre as competências para os atos de nomeação e designação para funções e cargos
comissionados no Executivo Federal. São os ministros de Estado que têm autoridade para nomear e designar
funções e cargos de níveis 1, 2, 3 e 4 (esses dois últimos no caso de assessoramento). Já a indicação para
espelho para muitas praticas que ocorrem nas esferas estaduais e municipais, casos até aqui
já mencionados.

Regras mais ou menos frouxas são um convite ao patrimonialismo já anunciado, é


importante um despertar de esclarecimento por parte de novas lideranças políticas, em
qualquer esfera supracitada. Uma reformulação do Pacto Federativo, com introdução de
mais burocracia racional, constantemente vigiada por esferas superiores de poder.

Federação é uma forma de organização do Estado, composta por diversas


entidades territoriais, com autonomia relativa e governo próprio para
assuntos locais, unidas numa parceria que visa ao bem comum. Essa
parceria é regulada pela constituição de cada país, que estabelece a
divisão do poder e a dinâmica das relações entre as unidades federadas,
além de toda a moldura jurídica, como direitos e deveres que determinam
a atuação dos entes federados.
De acordo com a Constituição de 1988, a República Federativa do Brasil
é composta pela parceria indissolúvel de estados, municípios e distrito
federal. A organização político-administrativa brasileira compreende a
União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos,
nos termos da Constituição.
O pacto federativo é o conjunto de dispositivos constitucionais que
configuram a moldura jurídica, as obrigações financeiras, a arrecadação
de recurso e os campos de atuação dos entes federados. O debate em torno
do pacto federativo que está sendo travado atualmente no Congresso
Nacional gira em torno, sobretudo, de questões fiscais.
(www12.senado.leg.br)

Essas são as disposições do Pacto Federativo atualmente. Como a União


(centralização) é responsável pela maior parte das atribuições político-administrativas, sua
ineficiência é prenunciada por alguns pontos que serão destrinchados a seguir. Primeiro
deles é intimamente ligado a eficiência da dominação burocrática, este é a disposição das
leis gerais. O problema não fica restrito somente a interpretação de uma lei geral muito
abrangente, mas a forma genérica com que é tratada, ou seja, só é revista em última
instância (STF), o que gera ineficiência jurídica. O segundo ponto é a disposição territorial
muito grande, o que causa ineficiência na aplicação de leis não tão especificas, uma vez que

cargos de direção de nível 3 e 4 são encaminhados para apreciação prévia da Casa Civil da Presidência da
República.
No caso de DAS 5, 6 ou equivalentes, só o ministro chefe da Casa Civil pode determinar as nomeações –
também após avaliação. Ele é a única autoridade que pode nomear o chefe da Assessoria Parlamentar e o
titular de órgão jurídico da Procuradoria-Geral Federal das autarquias e fundações do governo federal.
(www.cgu.gov.br) acessado: 29/07/2019.
a União é a última instância e permanece distante (União é materializada no DF = Distrito
Federal), para isso são necessárias ferramentas 5 (federais, ou seja, da União) que
possibilitem auditorias e vigilância constante da ordem legal e administrativa nos estados e
municípios. O terceiro e último ponto poderia ser acoplado ao primeiro, mas para melhor
explica-lo, é preferível separa-lo. Nesse ponto, falta uma reformulação da Constituição
Federal e na autonomia das instâncias estaduais e municipais, lembrando que as últimas
agem como espelho da primeira. Do contrário a Constituição Federal não daria conta de
toda especificidade e burocracia de uma nação tão grande e diversa.

Não se pode esperar um vislumbre de esclarecimento dos agentes da máquina do


Estado. É necessário apontar as brechas no aparato burocrático do Estado e cobrar
mudanças dos agentes políticos ligados ao legislativo para que se aprimorem as leis
(tornando-as mais especificas), criando ferramentas que possibilitem um melhor
funcionamento e que haja responsabilização jurídica daqueles que desviarem a finalidade
da máquina do Estado.

Conclui-se que nossa herança patrimonial criou raízes tão profundas, criando e
aprimorando a estrutura burocrática ao seu gosto, não permitindo uma dominação
burocrática pura. O que se tem é uma mistura de dois tipos de dominação (burocrática e
tradicional), um hibrido que é difícil de definir. O texto buscou apontar esse fio condutor
que tem raízes no Brasil colonial e ainda hoje na república é bastante visível. O que se pode
apontar por fim é que o Estado brasileiro dificilmente conseguirá superar essa herança
patrimonial, ou levará muito tempo para vislumbrar no horizonte uma mudança
estruturalmente significativa, uma mudança real, seja dos agentes da máquina ou de seus
cidadãos. Mudança que não permita apropriação pelos agentes patrimoniais e que não
permita captação de agentes para dentro dessa estrutura patrimonial. Ainda maior do que
essa macula patrimonial, são os desafios a serem enfrentados para tornar essa mudança uma
realidade material, objetiva.

5
É importante aqui, fazer referência aos conselhos do período colonial. Conselhos que permitiam um
controle um pouco mais preciso por parte da coroa (no sentido de evitar caos e anarquia). Segundo Faoro
(2001) os conselhos devem ser de muitos, para suprir matérias que não chegam a outros, porém não muitos
para perturbar as resoluções.
Referências

BOXER, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969.


CARVALHO, José M. de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão
conceitual” In. Dados, Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2, 1997, pp,
229-250.
FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3º Edição,
Revista, Porto Alegre: Globo, 2001.
HELAL, D. H. DIEGUES, G. C. Do patrimonialismo ao paradigma gerencial: paradoxos na
administração pública municipal de Caeté – MG. APGS, Viçosa, v1. n.1, pp. 23-45,
jan/mar 2009.
HOLANDA, Sérgio B. de. Raízes do Brasil. 10 ed. Editora Globo: 1938.
URICOECHEA, F. O Minotauro Imperial. A Burocratização do Estado Patrimonial
Brasileiro no Século XIX. São Paulo, Difel: 1978.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol.1/ Max
Weber; tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; Revisão técnica de Gabriel
Cohn, 3º ed. - Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: 2000.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol.2/ Max
Weber; tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; Revisão técnica de Gabriel
Cohn - Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo 2004.
https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/pacto-federativo (consulta:
29/07/2019)
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/04/08/interna_politica,1044598/vereadore
s-sao-investigados-por-rachadinha-em-seis-estados.shtml (consulta:28/07/2019)
https://www.cgu.gov.br/noticias/2019/03/executivo-federal-tera-novas-regras-para-contrata
cao-de-cargos-comissionados-1 (consulta: 28/07/2019)

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