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A administração colonial e o poder local

Hespanha, António Manuel. “A constituição do Império português. Revisão de alguns


enviesamentos correntes”. In: Fragoso, João; Bicalho, Maria Fernanda, e Gouvêa, Maria
de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 163-188
Debate historiográfico sobre o caráter da administração colonial

• Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo

• Caracterização da administração portuguesa (p. 309)

• Restrição de poderes, estreito controle, fiscalização opressiva das atividades funcionais.


Sistema que não é ditado por um espírito superior de ordem e método, mas reflexo da
atividade de desconfiança generalizada que o governo central assume com relação a todos
seus agentes, com presunção muito mal disfarçada de desleixo, incapacidade,
desonestidade mesmo em todos eles. A confiança com outorga de autonomia,
contrabalançadas embora por uma responsabilidade efetiva, é coisa que não penetrou
nunca nos processos da administração portuguesa.
• Atenção inovadora para a historicidade das estruturas de poder do Antigo Regime

• Advertência para o anacronismo em se falar de separação de “funções” ou “poderes”


do Estado

• Legislativo, executivo, judiciário

• Geral, provincial, local

• Diferenciação, no indivíduo, de dois planos distintos, de origem diferente e


regulados diversamente: o das suas relações externas e jurídicas, que cabiam no
Direito, e o do seu foro íntimo (...), regulado pela Religião (p. 298).
• A administração colonial nada ou muito pouco apresenta daquela uniformidade e simetria
que estamos hoje habituados a ver nas administrações contemporâneas. Isto é, funções
bem discriminadas, competências bem definidas, disposição ordenada, segundo um
princípio uniforme de hierarquia e simetria, dos diferentes órgãos administrativos. Não
existem, ou existem muito poucas normas gerais que no direito público da monarquia
portuguesa regulassem de uma forma completa e definitiva, à feição moderna, atribuições e
competência, a estrutura da administração e de seus vários departamentos. Percorra-se a
legislação administrativa da colônia: encontrar-se-á um amontoado que nos parecerá
inteiramente desconexo, de determinações particulares e casuísticas, de regras que se
acrescentam umas às outras sem obedecerem a plano algum de conjunto (p. 299-300)
• Ênfase na ineficiência e nas brechas no sistema administrativo:

– Complexidade dos órgãos


– Confusão de funções e competências
– Ausência de método e clareza na confecção das leis
– Regulamentação esparsa, desencontrada e contraditória
– Verborragia abundante
– Excesso de burocracia nos órgãos centrais
– Rarefação de agentes efetivos
– Centralização administrativa (distâncias)

• Administração segue, de modo estreito, o “sentido da colonização”:

• Portugal sempre interpretou mesquinhamente este objetivo primordial e latente em todas as


colonizações de caráter oficial. Suas vistas raramente foram além dos proveitos imediatos
que sob a forma de tributos podia auferir da colônia (...). Um objetivo fiscal, nada mais do
que isto, é o que anima a metrópole na colonização do Brasil (p. 336-7)
• Raymundo Faoro (Os donos do poder, 1958)

– Enfatiza a ação centralizadora da metrópole, que, segundo ele, foi bastante eficaz 
visão oposto à de Caio Prado
• Estado como o empreendedor da empresa ultramarina
• Para tanto, criação de um sistema administrativo racional e coeso que controla,
por meio do estamento burocrático, todas as instâncias locais de poder.

• A partir da década de 1960, trabalhos que analisam, empiricamente, a dinâmica do


funcionamento dos órgãos administrativos, e suas relações com as sociedades coloniais
locais.
• Charles Boxer: relativa autonomia das câmaras municipais no governo do Império
ultramarino: descentralização, portanto
– Portuguese Society in the Tropics. The municipal councils of Goa, Macau, Bahia and Luanda, 1510-
1800 (1965)
– O império marítimo português, 1969/2002

• Dauril Alden, Royal Government in Brazil, 1969


• Stuart Schwartz, Burocracia e sociedade no Brasil colonial. A Suprema Corte da Bahia e
seus juízes, 1609-1751 (1973)
• Laura de Mello e Souza, Desclassificados do ouro, 1983: tentativa de síntese entre Caio
Prado Jr. e Raymundo Faoro.

• Fiscais e Meirinhos (1985): esforço para dar inteligibilidade à confusão de órgãos e cargos
da administração colonial
– Ponto de partida: colônia, como extensão da ordem jurídico-institucional metropolitana,
submetia-se à mesma lógica dos padrões administrativos peculiares ao Estado
absolutista (p. 16)
– Autores enxergam uma tendência contínua à centralização administrativa entre XVI e
XVIII
• A despeito das idas e vindas, comprovadas pela subperiodização adotada
• A despeito da dificuldade de elaborar os cronogramas = aplicação de uma lógica de
classificação administrativa, hierárquica, racional e burocratizada que é completamente
estranha ao Antigo Regime)
• António Manuel Hespanha (As vésperas do Leviathan, 1984)
– “A constituição do Império português” in: Fragoso, Bicalho e Gouvêa, Antigo Regime nos Trópicos
– “As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna” in: Tengarrinha, História de Portugal.

– O poder real partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor hierarquia;
– O direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius
commune) e pelos usos e práticas jurídicos locais;
– Os deveres políticos cediam perante os deveres morais (graça, piedade, misericórdia,
gratidão) ou afetivos, decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes
de amigos e de clientes;
– Os oficiais régios gozavam de uma proteção muito alargada dos seus direitos e
atribuições, podendo fazê-los valer mesmo em confronto com o rei e tendendo, por
isso, a minar e expropriar o poder real.’

• Concepções sobre o Império fundadas em interpretações marcantes:

– Do ponto de vista do colonizador, a imagem de um Império centralizado era a única


que fazia suficientemente jus ao gênio colonizador da metrópole. Em contrapartida,
admitir um papel constitutivo das forças periféricas reduziria o brilho da empresa
colonial. Do ponto de vista das elites coloniais, um colonialismo absoluto e
centralizado condiz melhor com uma visão histórica celebradora da independência.
(130 b)
– No que se refere à eficácia da máquina administrativa da Coroa
• O aparelho administrativo é débil
• Faltam constantemente recursos financeiros para a Coroa
• Deficiência no conhecimento do território e dificuldades de comunicações
• Há uma profunda repartição do poder (128 b)

– Com o poder da Coroa coexistiam o poder da Igreja, o dos concelhos ou


comunas, o dos senhores, o de instituições como as universidades ou
corporações de artífices, o das famílias = atribuições exclusivas
– Pluralidade de direitos: o direito do rei não era o único direito. Ao lado dele,
vigorava o direito da Igreja (canônico) , o direito dos concelhos (usos e
costumes locais, posturas das câmaras) e os usos da vida (consensos de
há muito estabelecidos).
– Vontade do rei, no que se refere às decisões políticas, sujeita a muitos
limites: normas religiosas, direito, normas morais
• Administração do Império: princípios gerais

• “... A revisão de algumas concepções correntes sobre a história política e institucional do


Império Português carece de uma profunda revisão, já que a visão dominante é a da
centralidade da Coroa, com as suas instituições, o seu direito e os seus oficiais. (130 b)

– Inexistência de um modelo ou estratégia geral para a expansão portuguesa, pelo


menos até meados do XVIII
– Multiplicidade de discursos legitimadores da empresa colonial: justificativas para a
expansão variam ao longo do tempo e espaço
– Estatuto colonial múltiplo: inexistência de uma constituição colonial unificada
• Ausência de um estatuto unificado da população colonial
• Um direito pluralista para as colônias
– Uma estrutura administrativa centrífuga
• Hespanha se concentra na administração civil e judiciária, deixando de lado a eclesiástica,
militar e fazendária
• Vice-reis e governadores gerais
– Autonomia dos poderes na hierarquia política imperial
• Nos regimentos que lhes eram outorgados, estava sempre inserida a cláusula de
que poderiam desobedecer ao regimento, sempre que uma avaliação pontual do
serviço real o justificasse (133 b)
– Atuação num universo em constante mutação, isolamento das fontes de
poder
• Donatários, governadores locais e juízes: dupla sujeição
– Ao governo geral e aos secretários de Estado em Lisboa
– Criação de um espaço de incerteza hierárquica: espaço para poder
autônomo efetivo
– Governadores das capitanias:
» Autônomos no que diz respeito ao governo local (“econômico”)
» Sujeitos em matérias referentes à política geral e à defesa
» Um dos atos de poder mais importantes em uma colônia de
“plantation” – concessão de terras – dependia dos governadores das
capitanias: avaliação do uso: magistrados relacionados à elite local
• Relações e desembargadores - autonomia na administração da justiça
– Schwartz: estabelecimento progressivo de redes de solidariedade entre desembargadores e
senhores da elite local
• Câmaras municipais
– Principal via que as elites locais usam para controlar a administração
– Conflitos freqüentes com os administradores imperiais

– Maria Fernanda Bicalho (“As Câmaras ultramarinas e o governo do Império”, 2001)


• A noção de “economia política de privilégios” (Boxer + Hespanha)
• Ao mesmo tempo que a Coroa tenta instrumentalizar as Câmaras, a partir de fins
do XVII, como instrumento de controle político, elites coloniais procuram ter
acesso à honra e distinção por meio do controle das câmaras e ordenanças
• Importância das Câmaras para o jogo de poder local: “espaço de negociação com
a Coroa”
• É por meio do controle das Câmaras que as elites coloniais participam do
governo político do Império
• “Pacto político” entre a “nobreza da terra” e a Coroa, mediado pelas Câmaras
ultramarinas: economia política de privilégios
– Ato régio de conferir honras, cargos e privilégios
– Em troca de serviços prestados (conquista e colonização): requer mercê,
privilégio ou cargo
• Câmara: lugar e veículo de nobilitação, de obtenção de privilégios e, sobretudo,
de negociação com o centro (Coroa) no desempenho do governo político do
Império (220)
• Ponto de chegada de Hespanha: parece difícil sustentar a partir do quadro descrito a
tradicional imagem de um império centrado, dirigido e drenado unilateralmente pela
metrópole (139 b)

• Administração militar

– Tropas de linha, permanente, profissional: regimentos portugueses + colonos


recrutados (brancos, com mulatos tolerados)
– Milícias, regulares, serviço militar obrigatório, mas não remunerado
• Por freguesias e por critérios estamentais (hierarquias sociais e raciais)
– Ordenanças, toda a pop. masculina livre, 18 a 60 anos; caráter local

• Caio Prado Jr. (FBC, 324-7): ordenanças é que “tornaram possível a ordem legal e
administrativa neste território imenso, de população dispersa e escassez de funcionários
regulares”
– “capilaridade” do poder, auxiliando
• Na manutenção da ordem pública
• Na realização de obras públicas
• Na organização da força necessária à extração fiscal
• Administração fazendária

• Provedorias: 1548, Provedor mor


• Arrematação por leilão pelos contratadores, exceto o quinto do ouro.

• Como conclusão:

• A interação entre poder local e agentes coloniais que representam o centro do poder é
negociada. Trata-se de uma estratégia deliberada da Coroa portuguesa, que difunde sua
autoridade por diferentes instâncias (governadores, câmaras, ouvidor, provedor da fazenda,
juiz de fora, bispo) como forma de manter o controle sobre o Império.

• “Por todos esses titulares, que gozavam do privilégio de se corresponderem diretamente


com o monarca, a Coroa difundira astutamente a sua autoridade, num jogo instável de
pesos e contrapesos a se limitarem e vigiarem por trás de linhas de jurisdição
intencionalmente vagas ou fluídas. Em resumo, essa estratégia segue uma concepção
arbitral do poder real” (Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos Mazombos, 1995, 194-5)
• Enorme sucesso dessa estratégia de difusão do poder pela sociedade colonial: os próprios
vassalos cuidam da ordem do Império.
• Mesmo em épocas de crise ou revolta, eram raras as ameaças à soberania real e as
reclamações dos moradores da colônia eram sempre dirigidas contra homens ou leis
específicas e não contra os princípios do governo real. Da mesma forma, durante grande
parte da história da colônia, a Coroa reconheceu que os esforços e investimentos
econômicos privados faziam do Brasil uma possessão de grande valor. Assim, desde que
fosse reconhecida a soberania real, que os impostos fossem recolhidos e mantido o esboço
geral da administração, os fazendeiros relativamente tinham carta branca na vida social e
econômica da colônia, contando com pouca interferência por parte da Coroa.

• Para muitos brasileiros, especialmente das áreas rurais, a justiça estava na ponta do
chicote ou da bota do fazendeiro. A existência de tal situação era possibilitada em parte
pela aquiescência da Coroa e em parte pela capacidade da elite colonial em integrar os
funcionários da Coroa no sistema de relações primárias. (Schwartz, Burocracia e
Sociedade no Brasil Colonial, 1973, 293-4)
Anexo

• A organização administrativa

• 1548 - Governo Geral


• 1608 - Repartição do Sul (São Vicente, Espírito Santo e Rio de Janeiro ) – D. Francisco de
Sousa

• 1621 – Estado do Maranhão (Ceará, Maranhão e Pará): extinto em 1774

• 1640: 1º Vice- Rei, Jorge de Mascarenhas (Estado do Brasil) / (intervalo) / 2º Vice-Rei, D.


Vasco de Mascarenhas, 1663
– Rivalidade de RJ (Governador das capitanias do Sul, 1697) e Recife (Governador das capitanias do
Norte, 1715)
• 1763 – capital, RJ

• A organização judiciária

• 1548, Ouvidor-geral - Casa da Suplicação - Desembargo do Paço


• 1609, Relação do Estado do Brasil – extinta 1626
• 1626-30, Ouvidorias gerais: Estado MA, Estado do BR e Repartição do Sul
• 1650, Recriada a Relação do Estado do Brasil (Salvador)
• 1751, Relação do Rio de Janeiro
Bibliografia

• Alden, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil, with special reference to the
administration of the Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779. Berkeley: University
of California Press, 1968.
• Aranha, Graça (org.) Fiscais e Meirinhos. A Administração no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira-Arquivo Nacional, 1985.
• Bicalho, Maria Fernanda. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: Maria
Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa, João Fragoso (org.) Antigo Regime
nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séc.XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
• Boxer, Charles. O Império Marítimo Português. (1ª.ed: 1969). Lisboa: Edições 70, 1995.
• Boxer, Charles. Portuguese Society in the Tropics. The municipal councils of Goa, Macau,
Bahia and Luanda, 1510-1800. Madison: The University of Wisconsin Press, 1965.
• Faoro, Raimundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro.
(2ª.edição revista: 1975). Rio de Janeiro: Globo, 1989.
• Gouvêa, Maria de Fátima Silva. “Administração” In: R.Vainfas (dir). Dicionário do Brasil
Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
• Hespanha, António Manuel. “A constituição do Império português”. In: Maria Fernanda
Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa, João Fragoso (org.) Antigo Regime nos
Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séc.XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
• Hespanha, António Manuel. “As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna”. In:
José Tengarrinha (org.). História de Portugal. 2ª.ed. Bauru: Edusc-Unesp, 2001.
• Mello, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra mascates, Pernambuco,
1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
• Prado Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. (1ª.ed: 1942). São Paulo:
Brasiliense, 1973.
• Schwartz, Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. A Suprema Corte da Bahia e
seus Juízes, 1609-1751 (1ª.ed: 1973). São Paulo: Perspectiva, 1979.
• Souza, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio
de Janeiro, Graal, 1983.
• Vieira, Dorival Teixeira. “A Política Financeira”. In: Sérgio Buarque de Holanda (org.)
História Geral da Civilização Brasileira. t.1. A Época Colonial, v.2, Administração,
Economia, Sociedade. São Paulo: Difel, 1960.

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