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Coronelismo, Enxada e Voto (Victor Nunes Leal, 1949)

Victor Nunes Leal analisa o Brasil colônia até a redemocratização de 1946, a fim de compreender a
relação política de compromissos e trocas assimétricas que se estabelece em um regime político de
extensas bases representativas, unidas a um poder privado. O “coronelismo”, ao contrário do que era
sugerido na época, é fruto da decadência dos chefes locais, não da sua opulência. O poder público se
sobrepôs ao mandonismo e ao poder privado, ao remoto passado colonial, onde o poder dos particulares
se mostrava incontrastável diante da tibieza de recursos materiais da Metrópole.
O autor mostra que o voto clientelista, vinculado à figura do coronel, expõe a fragilidade e a falta de
autonomia das cidades brasileiras. Repousa o “coronelismo” num sistema de favores e reciprocidade,
atando numa das pontas o senhorio rural e local decadente, e na outra, o poder público cada vez mais
robustecido. Sobrevive em governos representativos, de onde se infere que o “coronelismo” se trata de
fenômeno intimamente associado a nossa história republicana.
Os termos do sistema de reciprocidade que definem o sistema do “coronelismo” são inevitavelmente
objeto de uma primeira indagação: o que leva o poder público uma vez fortalecido, como na República a
depender dos chefes políticos locais? Não seria a hora de simplesmente eliminá-los ou de suplantá-los?
Apesar de estarem em meio a uma lavoura economicamente decadente, os coronéis continuaram a
manter uma moeda de valor inestimável: a influência absoluta sobre a vontade e os destinos de todos
aqueles – empregados, meeiros, agregados – cujas vidas orbitavam em torno do grande latifúndio. O valor
dessa moeda iria aumentar com a democratização formal do país, sobretudo no período republicano
quando se universaliza o direito ao voto: o “coronel” passa a ser então o elo entre o poder estadual e os
eleitores, os quais se situavam de forma esmagadora no campo e se achavam, portanto, na zona de
influência dos chefes locais, zona privada, impermeável à influência dos governos estaduais.

“De um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que conduzem magotes de eleitores


como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado,
que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o
cofre das graças e o poder da desgraça”.

Competia, então, aos “coronéis”, nos termos do pacto com as autoridades superiores, tanger a horda
de dependentes de sua propriedade e dos demais fazendeiros sobre os quais dispunham de ascendência,
a sufragarem pelo voto, voto de cabresto, os candidatos da situação estadual. Ao governo do Estado cabia,
como contrapartida, o reconhecimento da autoridade do chefe local e o reforço dessa autoridade, por meio
da cessão de alguns recursos vitais à liderança local do “coronel”: empréstimos, empregos e, sobretudo, os
favores das forças policiais. Se na base do coronelismo, repousa, então, um sistema de reciprocidade entre
o chefe local e a situação estadual, onde o primeiro arregimenta votos em troca de recursos de poder, é
igualmente importante assinalar que para Victor Nunes a raiz mais profunda do sistema consiste na
superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social
inadequada.
A decadência econômica do fazendeiro encontrou, no regime republicano, um atenuante com a
valorização de seu papel político, derivado especialmente do manancial de votos sob seu controle. De fato
o “coronelismo”, a liderança do coronel, ao se fundarem em grande medida no dividendo em votos que o
fazendeiro é capaz de extrair das famílias economicamente submetidas a ele, só pode sobreviver em
regimes representativos. Ao mesmo tempo, e é essa a preocupação central de Victor Nunes ao longo de
seu livro, se a liderança do coronel exige o sistema representativo, demanda um ambiente rural específico,
aquele baseado na estrutura arcaica do latifúndio.
Com dados censitários da década de 1940, Victor Nunes nos mostra que na época os grandes
latifúndios ocupavam mais de 75% em área das terras disponíveis no país, ao passo que as pequenas
propriedades não chegavam a alcançar a cifra de 10%. Ainda segundo os mesmos dados, 70% da
população ativa pertenciam a categoria dos não-proprietários, cifra que chegava a 90%, somados os
pequenos proprietários, cuja situação era da mais total precariedade, na maior parte dos lugares do país. A
estrutura da terra fortemente concentrada traduzia-se na pobreza e dependência da grande maioria da
população do campo – requisitos básicos da ascendência social dos coronéis. Ao se computar, ainda, que
na época, 73% dos eleitores se localizavam no interior, pode-se aferir a importância das lideranças locais e
sua ascendência sobre a população rural como elos na cadeia de reprodução das situações estaduais.
Como sublinha Victor Nunes, no entanto, no sistema coronelista, o chefe político local é o elo fraco da
cadeia, o governo estadual, o elo forte. Imerso num sistema rural decadente, atuando em municípios com
baixíssima autonomia legal, o chefe político local é dependente dos favores do governo do Estado para o
exercício de sua liderança: sem o auxílio financeiro do governo do estado, dificilmente poderia empreender
as obras mais necessárias, como estradas, pontes, energia elétrica.
Um indicador claro da fraqueza dos “coronéis” é o caráter governista do sistema – os chefes políticos
locais aderem inevitavelmente às situações estaduais, como forma de obterem os recursos para suas
pobres municipalidades. Em se tratando da autonomia do município, os chefes municipais, embora
desprovidos de prerrogativas legais, sempre gozaram de uma ampla autonomia extralegal. E é
precisamente essa autonomia extralegal que consiste a carta branca que o governo estadual outorga aos
correligionários locais, em cumprimento de sua prestação no compromisso típico do coronelismo.

“Opera-se, pois, uma curiosa inversão no exercício da autonomia local. Se garantida juridicamente
contra as intromissões do poder estadual e assentada em sólida base financeira, a autonomia do
município seria naturalmente exercida no regime representativo, pela maioria do eleitorado, através
dos seus mandatários nomeados nas urnas (…). mas com a autonomia legal cerceada de diversas
formas, já não será um direito da maioria do eleitorado, será uma dádiva do poder”.

Votos de cabresto no plano municipal e dádivas de poder, no plano estadual, são os dois termos da
relação assimétrica que caracteriza o “compromisso coronelista”, assimetria que traduz a ascendência das
situações estaduais sobre potentados locais decadentes.
Victor Nunes analisa em que medida se tem ampliado ou restringido a esfera própria do município em
nosso país, comparando diversas fases, da Colônia à República. Com exceção do período colonial e de
alguns interregnos na legislação, nossa história tem sido palco de crescentes limitações impostas à
autonomia do município. No período colonial, as câmaras municipais eletivas, centro do poder local,
gozavam de ampla faixa de atribuições: ostentavam função, ao mesmo tempo, administrativa, executiva,
judiciária e policial, o que caracterizava a total ausência de distinção de poderes no âmbito local. Tinham
por composição básica dois juízes ordinários, servindo um de cada vez, ou um juiz de fora, e três
vereadores.
As câmaras municipais na Colônia representaram o apogeu do poder local no Brasil, mais
precisamente espelhavam a dominação quase exclusiva do senhorio rural sobre nossas terras. Como
afirma Nunes Leal, na época em questão, o poder político de fato se achava investido nos proprietários
rurais, que o exerciam através das câmaras municipais. Entre as causas do gigantismo nas atribuições das
câmaras e do poder privado ressaltava a insuficiência do aparelho administrativo num território extenso,
inculto e quase que despovoado, numa palavra, ocupava lugar de relevo a fraqueza do poder público.
A reação da Coroa ao privatismo, ao domínio político incontrastável dos senhores rurais por intermédio
das câmaras municipais, se esboça na segunda metade do século XVII. Com o crescimento da atividade
econômica na Colônia, e, sobretudo, com o início da atividade mineradora, desloca-se cada vez mais o
controle e o interesse da Metrópole sobre as atividades aqui desenvolvidas. A partir de então, assistir-se-á
ao aumento das atividades e do escopo dos encargos dos prepostos metropolitanos em terras coloniais, a
saber, os juízes de fora, ouvidores e governadores. A partir da transferência da Corte para o Brasil em
1808, da constitucionalização do país em 1824 e da reação conservadora dos anos 1840, assiste-se a
paulatina erosão do poder privado, processo que irá se estender por toda a quadra imperial, atravessando
inclusive o período republicano.
Desde a Colônia até a Constituição de 1946 o poder municipal foi paulatinamente se fortalecendo. E
ao mesmo tempo se consolidaram condições de extinção do poder dos chefes locais, tais como a mudança
na estrutura familiar, a abolição da escravatura, a decadência do modelo agrário-exportador. Não havia
mais concentração de riqueza ou poder suficiente para os senhores rurais, o que fazia com que eles
buscassem amparo dos poderes estaduais.
A descentralização e o aumento do poder tributário, legislativo e executivo do âmbito municipal seriam
o meio enfraquecedor do sistema coronelista, que tem seu auge na República Velha. Analisando a vida
municipal desde a Colônia, onde a principal instância política eram as Câmaras, passando pelo império e
chegando até a República, onde cada vez mais o poder político se centralizava, deslizando das mãos
privadas para a administração pública, o autor analisa o desenvolvimento das diversas atribuições
administrativas dos municípios, da eletividade para os cargos administrativos, das fontes de receita, da
organização judicial e das polícias e da legislação eleitoral. Contudo, engana-se quem considera tal
questão política como datada. O autor argumenta que
a morte aparente dos “coronéis” no Estado Novo não se deve, pois, aos prefeitos nomeados, mas
à abolição do regime representativo em nossa terra. Convocai o povo para as urnas, como
sucedeu em 1945, e o “coronelismo” ressurgirá das próprias cinzas, porque a seixa que o alimenta
é a estrutura agrária do país (LEAL; 1976: 134).

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