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7.

O CORPO COMO CAPITAL: CONSTRUÇÕES DO EU, CULTURA E SAÚDE

Apoiando-se nas obras de Mauss, Freyre e Malysse, Goldenberg analisa as construções sobre o corpo
feita especialmente no Brasil. Chama atenção que a relação entre corpo, cultura e construção identitária se
faz presente a longo tempo nas teorias sociológicas. Segundo Goellner, o corpo é entendido como uma
construção, mutável e mutante, suscetível a mudanças e intervenções concernentes ao desenvolvimento
científico e tecnológico de cada cultura - suas leis, códigos morais e do modo de produção de significados na
vida cotidiana. No entanto, na contemporaneidade as relações estabelecidas têm efeito singular na construção
social do corpo, que se reflete na saúde física e mental não só de mulheres, mas também de homens, meninos
e meninas.
Segundo Marcel Mauss (1974), é através da “imitação prestigiosa” que os indivíduos de cada cultura
constroem seus corpos e comportamentos. Há uma construção cultural do corpo, com uma valorização de
certos atributos e comportamentos em detrimento de outros, fazendo com que haja um corpo típico para cada
sociedade. Esse corpo, que pode variar de acordo com o contexto histórico e cultural, é adquirido pelos
membros da sociedade por meio da "imitação prestigiosa". Os indivíduos imitam atos, comportamentos e
corpos que obtiveram êxito e que viram ser bem sucedidos.
Mas, em Modos de Homem, modas de mulher (1987), Freyre chamava atenção para o efeito da
interferência do que ele chama de “impacto norte-europeizante”. Segundo ele, “as brasileiras não ficam velhas,
ficam loiras”. A brasileira é uma das maiores consumidoras de tintura de cabelo em todo o mundo, reflexo do
ideal de beleza instituído aqui - Vera Fischer, Xuxa e, posteriormente, Giselle Bündchen. Freyre afirmava que
“pode-se dizer da mulher que tende a ser, quanto a modas para seus vestidos, seus sapatos, seus penteados,
um tanto maria-vai-com-as-outras. Portanto, a corresponder ao que a moda tem de uniformizante. Mas, é da
argúcia feminina a iniciativa de reagir contra essa uniformização absoluta, de acordo com características
pessoais que não se ajustem a imposições de uma moda disto ou daquilo. Neste particular, é preciso
reconhecer-se, na brasileira morena, o direito de repudiar modas norte-europeias destinadas a mulheres louras
e alvas”.
Em seus escritos, Freyre enalteceu o corpo da mulher brasileira - “miscigenado”, um “corpo equilibrado
de contrastes” - e propunha uma “consciência brasileira”, dizendo que a brasileira deveria seguir modas
adaptadas ao clima tropical, em vez de “seguir passivamente e, por vezes, grotescamente, modas de todo
europeias ou norte-americanas”. Ele apontava ainda para os excessos cometidos pelas mulheres,
especialmente “as menos jovens, para as quais, modas sempre novas surgiriam como suas aliadas contra o
envelhecimento (...) é que há modas novas que concorrem para o rejuvenescimento de tais aparências,
favorecido notavelmente por cosméticos, tinturas e cirurgias plásticas”.
O antropólogo francês Stéphane Malysse (2002) ao comparar o corpo da mulher brasileira com o da
francesa constatou que “enquanto na França, a produção da aparência pessoal continua centrada
essencialmente na própria roupa, no Brasil é o corpo que parece estar no centro das estratégias do vestir. As
francesas procuram se produzir com roupas, reestruturam artificialmente seus corpos, disfarçando algumas
formas (particularmente as nádegas e a barriga); as brasileiras expõem o corpo e frequentemente reduzem a
roupa a um simples instrumento de sua valorização; em suma, uma espécie de ornamento”.
O corpo e a aparência juvenil é, no Brasil, um verdadeiro capital, como diria Pierre Bourdieu (1987).
Analisando, o Rio de Janeiro, Malysse ratifica que não há uma distinção clara entre roupa de praia, roupa de
cidade e roupa esportiva: “as roupas brincam com as partes escondidas/expostas sem que o corpo se cubra
muito mais ao passar da praia para a rua. No Rio, as roupas são usadas sobretudo para valorizar as formas
do corpo feminino, para exibi-las”. O corpo não só é mais importante do que a roupa, ele é a verdadeira roupa.
É o corpo que entra e sai da moda. A roupa, neste caso, é apenas um acessório para a valorização e exposição
deste corpo da moda. Se o corpo é a imagem da sociedade, que sociedade é essa que está representada nos
corpos dos brasileiros? Qual é o corpo que é imitado (ou desejado) pelas mulheres e, também, pelos homens?
Na obra Nu & Vestido (Goldenberg, 2002), a autora retoma a idéia de que a cultura da beleza e aparência
física, a partir de determinadas práticas, transforma o corpo “natural” em um corpo distintivo (Bourdieu, 1988).
Rodrigues (1979) destaca que “a Cultura dita normas em relação ao corpo; normas a que o indivíduo
tenderá, à custa de castigos e recompensas, a se conformar, até o ponto de estes padrões de comportamento
se lhe apresentarem como tão naturais quanto o desenvolvimento dos seres vivos, a sucessão das estações.
Entretanto, mesmo assumindo para nós este caráter ‘natural’ e ‘universal’, a mais simples observação em torno
de nós poderá demonstrar que o corpo humano como sistema biológico é afetado pela religião, pela ocupação,
pelo grupo familiar, pela classe e outros intervenientes sociais e culturais”.
Bourdieu (1999) criticou a “dominação masculina” que obriga homens a serem fortes, potentes e viris,
enquanto as mulheres devem ser delicadas, submissas, apagadas. Os homens tendem a se mostrar
insatisfeitos com as partes de seu corpo que consideram “pequenas demais” enquanto as mulheres dirigem
suas críticas às regiões de seu corpo que lhe parecem “grandes demais”. Para ele, a dominação masculina,
que constitui as mulheres como objetos simbólicos, tem por efeito colocá-las em permanente estado de
insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos
outros, como objetos receptivos, atraentes, disponíveis. Delas se espera que sejam “femininas” - sorridentes,
simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas. Neste caso, ser magra
contribui para esta concepção de “ser mulher”. Sob o olhar dos outros, as mulheres se veem obrigadas a
experimentar constantemente a distância entre o corpo real, a que estão presas, e o corpo ideal, o qual
procuram infatigavelmente alcançar.
Gilles Lipovetsky (2000) analisou a “febre da beleza-magreza-juventude” que exerce uma “tirania implacável
sobre a condição das mulheres”. Para o autor, “a obsessão da magreza, a multiplicação dos regimes e das
atividades de modelagem do corpo, os pedidos de redução de culotes e de modelagem até dos narizinhos
arrebitados testemunham o poder normalizador dos modelos, um desejo maior de conformidade estética que
se choca frontalmente com o ideal individualista e sua exigência de personalização dos sujeitos” (p.143).
Acrescentou, ainda, que, de forma contraditória, quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais
se aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais de corpo.
No Brasil, o desenvolvimento do individualismo e a intensificação das pressões sociais das normas do corpo
caminham juntas. De um lado, o corpo da brasileira se emancipou amplamente de suas antigas servidões -
sexuais, procriadoras ou indumentárias -; de outro, encontra-se, atualmente, submetido a coerções estéticas
mais regulares, mais imperativas e mais geradoras de ansiedade do que antigamente. Vivemos, então, um
“equilíbrio de antagonismos”, conforme Freyre. Um dos momentos de maior independência e liberdade
femininas é também aquele em que o alto grau de controle em relação ao corpo e à aparência se impõe à
mulher brasileira.
Há séculos, a busca pelo padrão de beleza tem resultado em sacrifícios aos quais, principalmente, as
mulheres se submetiam e continuam a se submeter. O desejo de magreza do início do século XVI, descrito
por Vigarello (2005), nos faz pensar no surto da magreza, instituído nos últimos séculos como ideal de beleza.
Havia algumas práticas extremas em que se conseguia uma verdadeira desidratação interior: jovens mulheres
eram acoitadas para introduzir um pó de giz a fim de que, desta maneira dura e desidratante, pudessem ficar
magras e os corpos esbeltos (2005, pp. 42-43).
Diferentemente do padrão estético da cultura do corpo do exercício físico, a saber, o corpo malhado –
músculos em ascensão e abdômen bem definido –, verificamos na sociedade brasileira, outro tipo de ideal
estético que se espelha nas modelos do mundo da moda, ou seja, a beleza esquelética. Villaça & Góes
apontam a crise, na sociedade contemporânea, dos pontos de referência para construção identitária, como
família, nação, escola para explicar a tendência de revelar no corpo a identidade. Atribuímos essa ideia de
construção do corpo, que Villaça & Góes (1998) discutem, à mudança de valores própria da era pós-industrial.
A espetacularização do cotidiano põe o corpo humano no cenário público, o que resultou, entre outras formas,
no ideal de perfeição (processo esse que se iniciou no movimento do body buildingii), bem como para a
expressão da identidade através da condição corporal. Dentro dessa lógica de se pensar o corpo, acreditamos
que é a imperfeição que move a busca do ideal de construção corpórea.
Numa relação dualista, a perfeição e a imperfeição se articulam, de modo que a primeira é marcada por um
corpo utópico e a segunda por uma ausência que assegura a intensificação do desejo de atingir o corpo ideal.
Em suma, o olhar que a sociedade tem da corporeidade masculina e feminina baliza as ambições do aparecer
no cotidiano, nas academias de ginásticas, nas solicitações de remodelação, bem como nas relações sexuais.
Desse modo, as estratégias de construções corporais seguem não apenas uma qualificação entre perfeito e
imperfeito, mas, antes de tudo, desenham no indivíduo diferenças de gêneros.
A sensação de autoestima, de sentir-se bem e feliz consigo mesma envolve, indubitavelmente, alcançar os
padrões de beleza impostos “pelos modelos vigentes ou pelo poder das normas organizadoras do ethos
sociocultural” (NOVAES, 2011). O estar fora desses padrões pode chegar à representatividade de um defeito
e, geralmente, quando se tem condições financeiras, o caminho eficaz tem sido, invariavelmente, as
intervenções cirúrgicas, amplamente, oferecidas pela medicina da beleza (RIBEIRO, 2006; NETO; CAPARI,
2007) Na maioria das vezes, a busca por esses padrões de beleza é o que interliga uma variedade de
fenômenos que se tornam cada vez mais comuns, como a maior incidência de bulimia e anorexia, as
malhações, as ‘dietas duvidosas’ e as cirurgias plásticas estéticas (NETO; CAPARI, 2007). Naomi Wolf, em
sua obra O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contras as mulheres (1992), afirma que o
crescimento da cirurgia estética estaria relacionado a uma estratégia para desempoderar a própria mulher. As
novas tecnologias de cirurgias estéticas foram desenvolvidas com o objetivo de retomar sobre as mulheres
antigas formas de controle médico (WOLF, 1992). Se assim for, como explicar a intencionalidade e autonomia
da mulher atual? Vive-se uma situação em que certos valores atuais parecem contrapor àqueles que, na
década de 1970, balizaram os movimentos feministas, quando estas buscavam o agenciamento dos seus
próprios corpos e à liberdade sexual, as mulheres gritavam ‘nosso corpo nos pertence’ Novaes (2011). Teria
o desejo de liberdade que marcaram o ideal feminino de emancipação, que alicerçaram os movimentos
feministas, sucumbido à ditadura de uma estética corporal que se opõe veemente à obesidade e ao
envelhecimento?
Foucault (2010), que apresenta alguns elementos que contribuem para o entendimento do processo de
naturalização das relações construídas social e culturalmente. O autor sustenta o entendimento de que houve,
em meados do século XVII até o século XIX, um deslocamento do eixo de poder, que se inscreve de forma
discursiva entre as pessoas, tendo como alvo o “corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para
aprimorá-lo, adestrá-lo” (FOUCAULT, 2008, P.47). Enfim, o corpo se tornou objeto de uma das mais fortes
regulações sociais (FOUCAULT, 1987). Pode-se afirmar que há um longo processo histórico e social de
construção dos significados do corpo que levam a considerar diferentes formas de atribuições e usos do corpo
pelo sujeito na sociedade atual.

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