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O género deve ser perspectivado como uma construção histórica das relações de poder entre
homens e mulheres, e deve contemplar definições plurais de masculinidade e feminilidade
(Connell, 1990). Assim, o conceito de género varia ao longo do tempo e de cultura para cultura.
Acima de tudo, género refere-se às relações sociais nas quais indivíduos e grupos actuam
(Connell, 2002).
A distinção e a interacção entre sexo e género ou entre biologia e cultura não são claras. Na
verdade não podemos definir com precisão onde acaba o domínio da biologia e começa o da
cultura, além de que parece evidente que o significado de uma diferença sexual biológica
também pode variar consoante a cultura (Fasting, 1992). Se, por um lado, a biologia por si só
não providencia claras justificações de uma dicotómica visão de sexo, por outro, a sua
interacção com a cultura parece ser constante, complexa e frequentemente não reconhecida.
No mundo hodierno, o género constitui-se como uma relação social mas também como uma
relação de dominação. Tanto para mulheres como para homens o entendimento de conceitos
como anatomia, biologia, corporalidade, sexualidade e reprodução estão parcialmente
impressos pelas já existentes relações de género, bem como as reflectem e as justificam (ou
mesmo as desafiam). Por sua vez, a existência das relações de género ajuda-nos a ordenar e
compreender os factos da existência humana. Simplificando, o género pode tornar-se uma
metáfora para a biologia tal como a biologia pode tornar-se uma metáfora para o género. No
sentido de compreender o género como uma relação social, Flax (1990) aconselha as teóricas
feministas a continuarem o processo de desconstrução dos significados associados a
biologia/sexo/género/natureza, processo que está longe de estar completo e que não é uma
tarefa nada fácil. Para que as relações de género sejam úteis como categoria de análise social
temos que ser social e pessoalmente tão críticos/as quanto possível, tanto acerca dos
significados que usualmente atribuímos a essas relações, como aos modos como pensamos
acerca delas. De outra forma corremos o risco de replicar as mesmas relações sociais que
estamos a tentar compreender.
Na sociedade do futuro Vale de Almeida (2004) perspectiva que uma parte do debate
político irá centrar-se na definição das fronteiras entre o natural e o cultural, ou seja, na
explicação do absurdo que é querer continuar a estabelecer essas fronteiras.
A prática desportiva centraliza-se na sua relação com o corpo. O corpo movimenta-se, actua,
reage, modifica-se, molda-se, transgride, expressa, recupera, transfigura-se de modo a
responder às solicitações que aquela prática desportiva exige. Pode fazê-lo com maior ou
menor prazer, com mais ou menos esforço e visando objectivos diferentes. É um corpo de
múltiplas configurações, de idades variadas, que expressa etnias, de diferentes raças, que sofre
ou beneficia dos tratos que lhe são dados, portador ou não de deficiência, e é um corpo
sexuado. É uma multiplicidade de corpos, o corpo que pratica desporto.
O desporto é uma área onde o corpo é dominante mas largamente ignorado como ente
social. Cada vez temos mais informação relacionada com as funções e movimentos do corpo
mas tampouco relacionada com as suas experiências e significados sociais (Fasting et al., s/d).
O corpo no e do desporto deve ser visto em si mesmo e nos modos como é incorporado na
construção do género. As desigualdades e injustiças entre mulheres e homens que o desporto
demonstra, estão também presentes, com maior ou menor extensão, na sociedade em geral. O
desporto não existe fora da sociedade mas, pelo contrário, contribui activamente para a
construção do género noutras esferas da vida da pessoa (Kirk, 2003).
O corpo como sujeito subentende toda a actividade física incluindo o desporto, e este
representa o protótipo do corpo-sujeito. O desporto é, então, o modelo ideal do corpo-sujeito.
A cultura patriarcal, por sua vez, definiu mulher como o outro, o objecto, mais especificamente
o corpo-objecto. Daqui deriva que quando associamos mulheres e desporto a cultura, e
considerando que esta, a cultura, define desporto como corpo-sujeito e mulher como corpo-
objecto, deparamo-nos com uma incompatibilidade (Hall, 1990). O que aqui parece manifesto é
que as mulheres sempre foram excluídas dos símbolos, práticas e instituições do desporto, ou,
quando aí participavam, o que faziam não era considerado como verdadeiro desporto, ou em
alguns casos elas não eram vistas como verdadeiras mulheres, ou seja, elas teriam que provar
sempre a sua heterossexualidade (Lenskyj, 1986). "Mostrar ou exercer a sua força, entregar-se
a um combate, dar ou levar golpes e assumir riscos corporais são atributos que as mulheres
parecem não poder fazer seus e que, portanto, pertenceriam, em exclusivo, à masculinidade"
(Louveau, 2000).
O desporto rege-se por uma particular forma de dominação masculina, e quando uma
prática desportiva e quem a pratica não se encaixa nesta esfera de masculinidade hegemónica
então é situada no/a 'outro'. Esta categoria de 'outro' é plural, onde cabem homens e mulheres
desportistas. As fronteiras culturais e sociais nunca deixam de existir e, também no desporto,
elas estão constantemente a ser reconstruídas num qualquer lugar. Aquele/a que transgride os
limites torna-se parte integrante de um processo de transformação social que delimita um novo
"eu" mas, também, um novo "outro". A vigilância destas fronteiras é uma das principais
características das sociedades actuais, que, embora permitam a mobilidade dos seus limites, as
reconfiguram ou as reconstroem de modo a fazerem prevalecer a construção do "outro" (Louro,
2001).
As mulheres que praticam desporto parecem incorrer em múltiplos riscos. Não falamos de
riscos enquanto danos biológicos ou físicos no seu corpo decorrentes de uma prática desportiva
mais ou menos intensa, mas referimo-nos a todo um conjunto de riscos subsequentes da
observação dos seus corpos de atletas, pelo tipo de modelação que apresentam e que a prática
desportiva desenvolve, e pelos movimentos que expressam. Um corpo feminino actuante,
desportista, é, não um corpo libertado, mas um corpo aprisionado por uma cultura masculina
hegemónica.
A maioria dos estudos e análises do desporto parece ainda não se ter afastado da base
patriarcal que sustentou o seu desenvolvimento. Nem tampouco podemos afirmar que se tenha
desenvolvido uma visão reconstruída do desporto a partir de uma perspectiva feminista. Sem
uma ruptura com os esquemas patriarcais que regem, ainda, a maioria dos estudos no
desporto, as questões da mulher no desporto permanecem como experiências problemáticas
pela 'natureza' inferior e desviante dos seus comportamentos e rendimentos, e os homens só
cabem numa masculinidade hegemónica que glorifica a virilidade e certifica a dominância do
masculino no desporto. Nas arenas do desporto, nos mais diversificados cenários, actuam, com
excelência, uma feminilização acentuada e uma masculinização hegemónica. Mas as actuações
dos corpos desportistas transgridem, não raras vezes, estas tácitas configurações de controlo -
um controlo social exercido sobre a sexualidade dos homens e das mulheres que praticam
desporto, e que ratificam o desporto como uma instituição de controlo social.
Parece evidente que a nossa sociedade se rege por uma cultura homofóbica que se expressa
em diversos domínios entre os quais o das práticas de actividades físicas e desportivas.
Homofobia pode definir o medo ou o desprezo pelos homossexuais mas esta definição não
capta o seu real significado nos nossos dias. Homofobia raramente assume o seu significado
literal de verdadeira fobia ou medo do seu semelhante, como o termo grego 'homos' sugere.
Esta palavra é comummente usada com um significado mais abrangente, referindo-se ao receio
das próprias pessoas serem homossexuais e, principalmente, de que os/as outros/as pensem
que elas o são. Ao falarmos de homofobia estamos implicitamente a falar de heterossexismo 1 e
de uma institucionalizada orientação sexual de cada pessoa. Numa sociedade heterossexista
todas as pessoas são consideradas heterossexuais até prova em contrário. Tal como o sexismo
e o racismo, o heterossexismo discrimina e ostraciza pessoas.
Estudos que reflectem acerca da hegemonia masculina no desporto (Bryson, 1990, 1994;
Messner, 1994; Whitson, 1994; Theberge, 1994) e acerca de uma cultura homofóbica no
desporto (Griffin e Genasci, 1990; Griffin, 1992; Iannotta e Mary, 2002, Fasting et al, 2002)
contribuíram para uma consciencialização de como a prática de uma modalidade desportiva
pode adaptar-se ou desafiar a cultura dominante.
A homofobia pode reforçar os estereótipos ligados ao género e influenciar a prática só no
grupo de actividades desportivas consideradas 'apropriadas ao género' (Coakley, 1994),
condicionando, deste modo, a participação de rapazes e de raparigas noutras actividades físicas
e desportivas. Alguns estudos (Young, 1997; Scraton et al, 1999) salientam a complexa relação
entre o praticar um desporto tradicionalmente masculino e as construções de feminilidade e de
sexualidade. Tal é particularmente notório no contexto que Butler (1990) descreve como de
'matriz heterossexual', isto é, o modo como a heterossexualidade estrutura e codifica a vida do
dia-a-dia. O clima homofóbico no desporto pressiona as mulheres atletas a apresentarem uma
imagem feminina heterossexual que evite suspeitas e confrontações (Cox e Thompson, 2000),
como também parece exercer uma vincada necessidade de rapazes e homens reforçarem a
imagem da sua masculinidade quando os padrões de movimentos das actividades desportivas
que praticam não lhe estão associados (Williamson, 1996).
Pelo que temos vindo a expor, parece que o desporto, enquanto bem cultural, ainda não se
pode considerar como um meio de libertação. Há ainda guetos e preconceitos a abater.
Nota
Referências bibliográficas