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GENÉTICA E SOCIEDADE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Biológico e social andam


juntos: como a genética
pode nos ajudar a entender
a complexidade da
constituição de sexo/gênero

Carolina Moraes Martins de Barros1, Maíra Batistoni e Silva2


1
Programa de Pós-Graduação Interunidades de Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo
2
Laboratório de Pesquisa em Práticas Científicas e Epistêmicas no Ensino de Ciências,
Departamento de Fisiologia, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP

Autor para correspondência – carolina.moraes.barros@usp.br


Palavras-chave: sexo/gênero, cariótipo, determinação sexual, tema gancho

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A participação de mulheres no esporte veio junto com a regulação dos corpos, ou seja, a defi-
nição de características que servem para identificar o que é masculino ou feminino e a tenta-
tiva de adequar as pessoas, especialmente mulheres, nessa classificação. Nesse contexto, um
caso emblemático é o da atleta María-José Martinez Patiño, uma mulher que foi banida das
competições esportivas por apresentar cariótipo XY, ainda que não possuísse características
físicas ou genitais associadas aos corpos masculinos. Usamos esse caso como motivador para
discutir quais são as bases genéticas para a determinação e a diferenciação sexual, além dos
cromossomos X ou Y, e como esses conceitos podem ser usados como temas gancho para
reflexões na educação básica.

Como olhar para um olhar que já é defendido por filósofas


da ciência e pesquisadoras das questões de
sexo/gênero pela gênero. Ao invés de pensarmos sexo e gêne-
ro separadamente, olharmos para eles como
ótica da Biologia uma dualidade, sexo/gênero. As expressões
de gênero são moduladas pelo que é enten-
Costumamos ouvir ou dizer que a identi- dido socialmente como sexo - olhando pela
dade de gênero se constrói para além dos visão da biologia, isso é simples de se en-
limites da biologia. Usualmente, faz-se uma tender. A novidade dessa interpretação dos
separação entre o que é sexo e entre o que é conceitos é compreender que as concepções
gênero: o primeiro, uma construção bioló- sobre gênero também influenciam, bioló-
gica; o segundo, uma construção social. No gica e fisicamente, os corpos de cada um
entanto, essa separação dicotômica pode dos sexos. Assim, é impossível desvincular
fazer com que gênero não seja um objeto um do outro e, o tempo todo, o que esta-
recorrente das aulas de biologia, somente mos olhando é sexo/gênero: a identidade
sexo. de gênero se constrói também nos limites
da biologia, como sexo se constrói também
Queremos trazer a proposta de um outro para além desses limites. Essa interação está
olhar, como biólogas, para esses conceitos; representada na Figura 1.

Figura 1.
Representação de como sexo
e gênero interagem ao longo
do desenvolvimento para
determinar a sua expressão no
indivíduo. Adaptado de Regitz-
-Zagrosek (2012).

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As expressões de sexo/gênero variam em cada tir na categoria feminina, com o argumento


indivíduo, mas socialmente há uma pressão de que deveriam garantir que todas as atletas
para se atender às expectativas do que é fe- competissem em igualdade, considerando
minino e do que é masculino. As pessoas só suas condições físicas. Em 1936, nas Olim-
são compreendidas como pessoas a partir de píadas de Berlim, houve o primeiro caso
leituras externas de seus corpos como corpos em que o sexo de uma das competidoras foi
sexuados. Nas discussões sobre sexo/gênero, questionado por uma concorrente, acarre-
a complexidade para formação da identidade tando a necessidade do COI se posicionar
de gênero é bastante abordada, mas a forma- oficialmente quanto à regularidade da par-
ção de sexo é retratada como uma etapa mais ticipação da atleta, após conduzir exames
trivial da questão. Queremos mostrar, a par- médicos. Nos anos seguintes, em diferentes
tir da análise de um caso emblemático, como eventos, outras atletas foram contestadas,
a complexidade das expressões corporais de especialmente as que apresentavam caracte-
sexo/gênero já começam desde a própria rísticas físicas consideradas masculinizadas.
determinação biológica (e genética) de sexo,
pois essa pode ocorrer em um espectro de A constante ocorrência desses casos, ao
variação e nem sempre em uma divisão exata longo do tempo, levou o COI, em conjunto
entre o que é masculino e feminino - e isso com a Federação Internacional de Atletismo
influencia na percepção social dos corpos que (IAAF), a propor uma política obrigatória de
destoam do que é esperado. averiguação de sexo para as atletas que plei-
teavam vagas nas categorias femininas. Para

Diversidade de participar das competições, era necessário


que a atleta possuísse uma carteirinha que
corpos no esporte: atestasse que havia sido reconhecida como
mulher pelos órgãos oficiais esportivos. Na
o que a genética década de 1960, foram usados como crité-
rios os aspectos físicos externos das atletas
tem a ver com isso? participantes. A comissão médica do COI
analisava as atletas nuas, enfileiradas, avalia-
A inserção de mulheres no esporte, em even- va suas genitálias e as submetia a um exame
tos oficiais, aconteceu de maneira tardia. A ginecológico. Isso, claro, foi considerado uma
primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era enorme violência e humilhação. O número
Moderna ocorreu em 1896, quando a parti- de reclamações e posicionamentos oficiais
cipação feminina não foi autorizada. Atletas das atletas e suas delegações contra esse tipo
e ativistas se posicionaram contra a decisão de averiguação fez com que o COI precisasse
do Comitê Olímpico Internacional (COI) buscar uma maneira alternativa de testagem
da época, levando à inclusão de mulheres dessas mulheres. Assim, em 1968, os crité-
na segunda edição dos Jogos Olímpicos, em rios precisaram ser alterados e foi então que,
1900. A participação feminina com certe- explicitamente, entraram os conhecimentos
za foi uma vitória, mas iniciou de maneira advindos da genética.
tímida: dos cerca de 900 atletas mundiais,
somente 22 eram mulheres, que só podiam A decisão do COI foi que todas as atletas
participar em duas modalidades, golfe e da categoria feminina precisavam passar por
tênis. Foi só no pós-segunda-guerra que a um teste para identificar a presença de dois
participação feminina se tornou mais repre- cromossomos X. Nessa análise, buscava-
sentativa e todas as modalidades puderam -se averiguar ao microscópio a presença da
ser acessadas por atletas mulheres, mas, até cromatina sexual (um dos cromossomos X
hoje, ainda não houve nenhuma edição com fica inativado e condensado), o que só ocorre
a mesma proporção de atletas das categorias quando há cromossomos X em dose dupla,
masculina e feminina. ou seja, em pessoas com cariótipo XX. Em
pessoas com cariótipo XY não há esse cro-
Com o aumento das mulheres participantes, mossomo mais condensado, pois o único cro-
criou-se um problema para as entidades es- mossomo X permanece ativo e descondensa-
portivas: definir quem estaria apta a compe- do. As diferenças entre os cromossomos X e

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Y podem ser observadas na Figura 2. O teste conclusivos ou não considerados adequados


para avaliar a presença da cromatina sexual à categoria feminina, a atleta era submetida Esfregaço bucal - método de
era realizado por coleta de amostra por meio a uma bateria de exames mais aprofunda- coleta de células epiteliais da
bochecha, a partir de cotonete.
de esfregaço bucal, seguida da aplicação em dos, determinados caso a caso pela comissão Após coleta, o material é
lâmina e posterior avaliação em análise mi- médica do evento, mas sem um parâmetro colocado sobre lâmina de vidro
croscópica. Caso os resultados fossem in- preestabelecido em regulamento. para exame microscópico.

Figura 2.
Cariótipo humano, incluindo
os cromossomos X e Y, obtido
a partir de metáfases mitóticas
após cultura de linfócitos
de sangue periférico. Já no
núcleo interfásico, quando há
cromossomos X em dose dupla,
um deles fica mais condensado,
pois está inativado, formando
a cromatina sexual, que pode
ser visualizada após esfregaço
de células da mucosa oral.
O processo de inativação de
um dos cromossomos X em
indivíduos com dois X permite
que haja compensação da dose
da expressão dos genes do
cromossomo X em relação ao
cromossomo Y, que é menor
que o cromossomo X, e não
possui muitos dos genes que
estão presentes no cromossomo
X. Fonte: WikiMedia Commons,
cortesia do National Human
Genome Research Institute.

O caso da atleta po, o que a desqualificava para competir na


categoria feminina.
que desafiou o A atleta realizou exames mais completos

cariótipo (e o COI) para confirmação, como a análise de carió-


tipo por método de banda-G (Figura 2).
Banda-G - método de
Após dois meses de espera, os resultados
Em 1983, a atleta espanhola María-José Pa- coloração dos cromossomos,
confirmaram os testes preliminares: o carió- muito importante para a análise
tiño se sentia realizada pela classificação para
tipo de Patiño era 46, XY. A atleta conta que, de cariótipo. Já o cariótipo
uma competição de elite do esporte que trei- é uma técnica que inclui a
crescendo, nunca suspeitou que houvesse
nava desde criança: a prova de 100 m com preparação dos cromossomos
nada de diferente em seu corpo. Passou por
barreira. Aos 22 anos, ela viajou para Hel- em uma lâmina para
exames médicos e ginecológicos ao longo dos visualização ao microscópio,
sinki, na Finlândia, para competir pela pri-
anos, possuía vagina e mamas, se considerava seguida da análise do número
meira vez em um campeonato mundial. Lá,
e sempre fora percebida como uma mulher. e da forma dos cromossomos
passou pelos testes de averiguação de sexo presentes em cada célula.
exigidos pela IAAF, recebeu sua carteirinha Apesar dessa reviravolta na sua vida pessoal,
de mulher e correu, fazendo seu melhor Patiño continuava se dedicando ao esporte
tempo pessoal. Dois anos depois, Patiño e estava classificada para competir no Cam-
viajou para Kobe, no Japão, para compe- peonato Nacional de Atletismo espanhol, em
tir nos Jogos Universitários Mundiais. Em 1986. Como era uma competição nacional,
1985, no entanto, sua participação foi bar- as regras de testagem de sexo eram diferentes
rada pela organização do evento: seu teste das previstas pelo COI ou pela IAAF, sem
de análise de cromatina sexual não indicou a a obrigatoriedade de uma comprovação das
presença de dois cromossomos X no carióti- atletas mulheres. No entanto, a delegação de

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Diferenciação Sexual
atletismo espanhola orientou Patiño a se re- Diferenciação Sexual Diferente (DSD), Diferente (DSD) - termo
tirar da prova, declarar que tinha uma lesão e mas que fisiologicamente não teriam vanta- usado para descrever o grupo
se aposentar permanentemente do atletismo. gens no desempenho esportivo, como Patiño. de pessoas que possuem
alterações no desenvolvimento
Ela se recusou, competiu e venceu a prova de Apesar da ampla oposição, o COI e a IAAF típico dos caracteres sexuais,
60 m com barreira. Ao cruzar a linha de che- mantiveram a política de testagem durante algumas das quais podem
gada, com a repercussão de sua vitória, suas as décadas de 1980 e 1990, argumentando dificultar enquadrar o
informações médicas foram vazadas para a que o objetivo não era classificar as pessoas indivíduo no sexo masculino
ou feminino. O termo tem
imprensa. Com a divulgação do resultado em um dos dois sexos, mas impedir que ho-
sido utilizado em substituição
do exame de cariótipo, Patiño foi expulsa mens se passassem por mulheres para conse- a termos mais antigos como
do time de atletismo espanhol, perdeu seu guir vantagens competitivas. Com as críticas, intersexo ou anomalia da
auxílio, a residência para atletas e sua bolsa houve mudanças nos métodos de testagem. diferenciação sexual (ADS),
universitária. Seus recordes a nível nacional Ao invés de cariótipo, passou-se a se realizar por ser considerado menos
estigmatizante.
foram apagados do histórico da modalidade, um teste genético que utiliza uma técnica
como se ela tivesse trapaceado para conquis- mais moderna, a reação em cadeia da po-
Reação em cadeia da
tá-los. limerase (PCR), para avaliar a presença do polimerase - técnica
gene SRY, gene crucial na determinação do biomolecular por meio da
Ainda assim, ela não se conformou e lutou sexo masculino localizado no cromossomo qual moléculas de DNA são
por uma revogação da desqualificação. Pa- Y. Apesar da modernização da técnica, o ob- replicadas sucessivamente, em
tiño não acreditava possuir qualquer vanta- jetivo da testagem continuava a ser a distin-
tubo de ensaio, o que resulta na
gem física e, apesar do resultado de cariótipo, sua amplificação. Essa técnica é
ção genética entre homens e mulheres. baseada no processo pelo qual
defendia que era uma mulher como qualquer ocorre a replicação de DNA
outra, inclusive fisicamente. Nos dois anos naturalmente.
seguintes, a atleta recebeu apoio de ativistas
do esporte e pesquisadores da área médica e,

https://www.sport.es/labolsadelcorredor/wp-content/uploads/2017/08/Maria-Jose-Martinez-Patino001.jpg
após uma intensa investigação, concluiu-se
que seu corpo não possuía sensibilidade à
testosterona. Ou seja, mesmo durante o de-
senvolvimento embrionário, não houve qual-
quer resposta à ação hormonal de andróge-
nos. Efetivamente, apesar de seu cariótipo
XY, seu corpo não respondia à testosterona.
Em 1988, a comissão médica da IAAF au-
torizou-a a retornar às competições - foi a
primeira pessoa a ser requalificada como mu-
lher em eventos esportivos. Porém, devido
ao tempo sem competir profissionalmente,
Patiño não se classificou para os Jogos Olím-
picos de 1992 e sua carreira esportiva termi-
nou. Atualmente, ela é pesquisadora política
e da ciência do esporte, atuando pelos direi-
tos humanos e inclusão esportiva.
O caso de Patiño fortaleceu as críticas à tes-
tagem de sexo, servindo como evidência de
que a comunidade esportiva deveria se opor Andrógenos - hormônios
esteroides associados às
à compulsoriedade desses testes. Os testes de A obrigatoriedade dos testes de sexo perma- características sexuais
sexo, como realizados até então, foram criti- neceu até os anos 2000, quando finalmente secundárias masculinas, dentre
cados inclusive por geneticistas, endocrino- o COI e outras entidades esportivas revoga- os quais o mais conhecido é a
logistas e outros especialistas da saúde. Es- ram a necessidade desse tipo de procedimen- testosterona.
sas pessoas indicavam que os critérios para to. Atualmente, testes de averiguação de sexo
o teste eram excludentes para mulheres que ainda são conduzidos quando há alguma de-
Gônadas - órgãos responsáveis
tinham alterações do desenvolvimento se- núncia de fraude contra uma competidora,
pela produção de células
xual envolvendo suas gônadas e genitália ex- mas não são realizados de forma compulsó- germinativas e hormônios
terna, ou para outras pessoas que possuíam ria em todas as atletas. sexuais.

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A determinação tanto, a medicina utiliza outros termos para


descrever essa determinação, que ocorre por
genética do sexo processos sequenciais em etapas dependen-
tes: a determinação genética do sexo, a de-
e a diferenciação terminação gonadal e, por fim, a diferencia-
ção sexual. Primeiro, acontece a fertilização,
sexual: para além quando o zigoto recebe os cromossomos se-
xuais de seus genitores, o que leva à determi-
do cariótipo nação genética do sexo do embrião. Depois,
ocorre a determinação gonadal, quando ha-
O caso da atleta María-José Patiño, além verá a transformação da gônada bipotencial
de nos estimular a pensar sobre aspectos Gônada bipotencial:
em ovário ou testículo. Após esse processo estágio do desenvolvimento
de cunho social e político para inclusão de de transformação gonadal, estímulos gerados embrionário das gônadas,
diversidade de corpos no esporte, também pela gônada diferenciada, principalmente no qual ela ainda está
desperta a curiosidade sobre um problema hormonais, acarretam o início do processo indiferenciada, ou seja, tem
de cunho genético: quais são os mecanis- o mesmo aspecto tanto nos
de diferenciação sexual, que corresponde à indivíduos do sexo masculino
mos que levam uma pessoa de cariótipo XY diferenciação da genitália externa e de duc- quanto feminino.
a possuir características físicas reconheci- tos internos, levando ao fenótipo final que é
das como características típicas do sexo fe- socialmente compreendido como masculino
minino? ou feminino. Assim, vemos diferentes cama-
Cotidianamente, usamos o termo determi- das para, a partir da determinação genética
nação sexual para descrever um processo am- de sexo, chegar-se à diferenciação sexual:
plo, responsável pelo desenvolvimento de um cromossômica, genética, transcricional e
ser vivo como macho ou como fêmea. No en- hormonal, representadas na Figura 3.

Figura 3.
Esquema de etapas para
diferenciação sexual. Adaptado
de Fausto-Sterling (2012).

A determinação gonadal sempre se colocou SRY, do inglês Sex-determining region on the


como uma questão para estudiosos da gené- Y chromosome (região de determinação se-
tica e biologia reprodutiva, principalmente xual no cromossomo Y) que, na maioria dos
ao se pensar sobre qual seria o evento que casos, define que se desenvolvam testículos.
leva, durante o desenvolvimento embrio- Porém, situações empíricas encontradas na
nário, da gônada bipotencial aos ovários ou medicina mostraram que a presença do cro-
testículos. Na década de 1950, a presença ou mossomo Y não era suficiente para resolver
ausência do cromossomo Y era entendida a questão da determinação gonadal: algu-
como único responsável pela determinação mas pessoas, apesar de possuírem cariótipo
gonadal, conhecimento adquirido a partir 46, XY, não desenvolviam testículo (como
de experimentos com roedores e análises em vimos, por exemplo, no caso da Patiño); ao
humanos. A busca pelo gene no cromosso- mesmo tempo, a ausência do cromossomo Y
mo Y que iniciaria a determinação gonadal também não impedia que algumas pessoas
da gônada bipotencial em testículo se esten- de cariótipo 46, XX apresentassem desen-
deu por 30 anos, até a descoberta do gene volvimento testicular.

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No início do desenvolvimento embrionário, A mudança da gônada bipotencial em ová-


todos os embriões apresentam semelhanças rio ou testículo ocorre por duas vias possí-
em suas estruturas sexuais, por possuírem veis de sinalização: a via FGF9/SOX9 e a
gônada bipotencial e genitália externa indi- via WTN4/β-catenina. Quando há pre-
ferenciada, independente dos cromossomos sença do gene SRY, há inibição da via da
sexuais presentes no cariótipo do embrião. β-catenina, o que estimula a expressão do
O gene SRY, presente no cromossomo Y, é gene FGF9. A expressão deste gene resulta
responsável por iniciar a etapa de determi- na diferenciação testicular e manutenção da
nação gonadal em indivíduos que desenvol- expressão do gene SOX9. Quando há dose
verão testículos, mas esse processo depende dupla de cromossomos X, há também pre-
também de outros genes. A presença ou não sença em dose dupla do gene WNT4, já que
do gene SRY, ainda que fundamental para é um gene presente nesse cromossomo. A
a determinação gonadal, é somente o ponto presença em dose dupla de WNT4 e esti-
de início de uma cascata que, inclusive, de- mula a ação de β-catenina, responsável por
pende de genes ligados ao cromossomo X e inibir a expressão do gene SOX9 e desenca-
genes autossômicos. dear o desenvolvimento dos ovários. Assim,
alterações na expressão dos genes SOX9 e
Exatamente quais são todos esses genes DAX1 podem levar a alterações na deter-
ainda é algo indefinido e desvendar isso é minação gonadal.
um importante campo de investigação, mas
alguns deles já foram descritos e sabe-se que A próxima etapa é quando ocorre efetiva-
são genes que desencadeiam processos an- mente a diferenciação sexual, que está liga-
tes e depois da determinação testicular. Um da a características do fenótipo final desen-
exemplo são os genes DAX1 e WNT4, que volvidas por ação hormonal. Em indivíduos
estão presentes em indivíduos de ambos os com testículos, há a produção de hormônio
sexos, estarem localizados no cromossomos antimulleriano e andrógenos, que vão atuar
X, se apresentando em dose simples em in- na diferenciação das estruturas e tecidos
divíduos que possuem apenas um cromos- ligados ao sistema reprodutor masculino.
somo X e em dose dupla em indivíduos que Nesse caso, a testosterona tem um papel
possuem dois cromossomos X. Em indiví- fundamental: ela atua nos tecidos em re-
duos XY com excesso de expressão gênica ceptores androgênicos que vão desencadear
de algum desses dois genes, pode ocorrer a a formação das estruturas reprodutivas in-
produção de fatores antagônicos para o de- ternas (epidídimo, dutos deferentes, vesícu-
senvolvimento dos testículos, podendo cau- las seminais e próstata) e das estruturas da
sar inclusive “reversão” gonadal e desenvol- genitália externa, levando ao processo que
vimento de ovários, pois a expressão mais é conhecido como virilização. Já em indiví-
alta é similar à de um indivíduo que tem duos com ovário, a via WNT4/β-catenina
dois cromossomos X. estimula a formação dos dutos mullerianos
e produção de hormônios esteroides. Os
Outro ponto que diverge das hipóteses ini- dutos originarão as estruturas reprodutivas
ciais é a descoberta de que genes localizados internas (trompas, útero e canal vaginal) e
nos autossomos também desempenham há, ao mesmo tempo, a formação da genitá-
funções no processo de determinação go- lia externa masculina ou feminina.
nadal. Um exemplo é o gene SOX9, locali-
zado no cromossomo 17. Após a realização No caso da atleta María-José Patiño, me-
de experimentos com camundongos, foi dicamente sua condição é conhecida como
observado que esse gene atua nas gônadas síndrome da Insensibilidade à Testostero-
femininas e masculinas no início do desen- na ou da Insensibilidade Androgênica, na
volvimento embrionário, mas que não se forma completa, conhecida como uma das
expressa nos tecidos femininos ao longo da principais causas da diferenciação sexual
maturação. diferente em pessoas com cariótipo 46, XY.

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Essas pessoas não passam pelo processo las de Ciência e Biologia, como questões de
completo de virilização fetal, o que pode gênero e sexualidade, se torna possível pelo
acontecer quando há falta de receptores uso de temas gancho. Os temas gancho são
periféricos nos tecidos capazes de desenca- conteúdos conceituais tradicionalmente as-
dear uma resposta à ação de testosterona. sociados às aulas de Ciências e Biologia, mas
Isso ocorre em decorrência de mutações no que podem ser motivadores para trabalhar
gene que codifica o receptor androgênico. com outros conceitos, que geralmente estão
Esse gene, conhecido como gene AR (do marginalizados nos documentos oficiais cur-
inglês androgen receptor), está localizado no riculares.
cromossomo X humano. Em pessoas com
mutações que acarretam a perda da função No exposto neste texto, indicamos uma pos-
dos receptores de andrógenos, ainda que a sibilidade de usar o caso da atleta María-José
gônada masculina produza androgênios, os Patiño para trabalhar conteúdos conceituais
tecidos alvo não respondem aos hormônios. mais tradicionais, como cariótipo, determi-
Pessoas com essa condição geralmente se nação de sexo genético, determinação go-
identificam e são identificadas como mulhe- nadal e diferenciação sexual. Usando esses
res, por apresentarem características físicas conteúdos conceituais como motivadores, é
socialmente associadas a esse sexo/gênero. possível estimular discussões e reflexões em
aula sobre a diversidade de corpos existentes
Conhecer todos esses processos é importan- e os estereótipos de gênero que vigoram na
te para entender que, mesmo quando olha- nossa sociedade. É possível, a partir desses
mos para determinação de sexo apenas por temas ganchos, falar sobre identidades de
uma visão estritamente biológica e voltada gênero possíveis e como são constituídas a
para o campo da genética, há uma multipli- partir de um espectro. É também possível
cidade de fatores envolvidos que vão levar a problematizar como argumentos biológicos
diferentes expressões de sexo e a uma varie- podem servir para sustentar preconceitos de
dade de corpos - somente pensar em XX ou gênero ou transfobia e indicar que conhecer a
XY não basta. A complexidade do assunto complexidade da diferenciação sexual e a di-
aumenta quando expandimos essa visão para versidade de corpos como algo natural serve
abarcar outros aspectos biológicos, como as para combater esse tipo de preconceito utili-
interações hormonais e, mais ainda, quando zando também argumentos biológicos, além
levamos em conta aspectos psicossociais. dos sociais; ainda, podem servir para discutir
sexualidade e diferenciar orientação sexual
A determinação de identidade de gênero, um tema bastante
relevante ao se pensar o contexto pessoal de
de sexo e a estudantes da educação básica.

diferenciação Para saber mais


sexual como tema BASTOS, F. “Eu fico meio sem saber como eu vou

gancho para
falar isso, assim do nada”. Currículo, diversidade
sexual e ensino de biologia. In: TEIXEIRA, P.;
DALMO, R.; PESSOA, G. (Orgs). Conteúdos
questões sociais cordiais. Editora Livraria da Física, 2019.

CARAKUSHANSKY, G.; BICA, D.; CARA-


Nos documentos oficiais para se pensar o KUSHANSKY, M. Desordens da diferenciação
currículo de Ciências e Biologia pouco se sexual. In: CAPLAUCH, R. (Org.). Endocrinolo-
fala sobre aspectos sociais ligados a sexo e gia Feminina e Andrologia. Grupo Editorial Na-
gênero. O enfoque é primordialmente tec- cional, 2012.
nicista, voltado a um olhar biológico sobre PATIÑO, M. J. Personal Account: A woman tried and
a reprodução e o desenvolvimento do corpo tested. Lancet, v. 366, p. S38, 2005.
humano. Pensando pela perspectiva des-
WOLFF, D. Políticas de gênero em competições esporti-
ses documentos oficiais, a possibilidade de vas. Monografia para obtenção do título de Ba-
explorar aspectos sociais pertinentes às au- charel em Direito. Uniceub, 2020.

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