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Ensaios de colonização: das feitorias ao governo geral

Saldanha, António Vasconcelos de. “A criação das capitanias”. In: Saldanha, António
Vasconcelos de. As capitanias do Brasil: antecedentes, desenvolvimento e extinção de
um fenômeno atlântico. Lisboa, CNCDP, 2001, pp. 95-105.
As feitorias

• Feitorias africanas e asiáticas: papel comercial e político


• Feitorias na América portuguesa: extração do pau-brasil e servir de espantalho
para assustar contrabandistas franceses

• Primeiras instalações:
– Expedição de Gaspar de Lemos, 1501
– Contratadores do pau-brasil
– Expedições guarda-costas

• Pelo menos duas serviram de suporte inicial para a instalação de capitanias:


São Vicente e Pernambuco

• Mais conhecidas: Bahia, Cabo Frio, Igaraçu (PE), Porto Seguro, Santa Cruz,
Santa Cruz (PE), São Vicente e Rio de Janeiro
A conjuntura europeia

• Início do governo de D. João III (1521-1557)


• Ascensão de Carlos V (1516) e crescimento do poder Habsburgo
• Cresce atuação de normandos e bretões no Brasil
• Viagem de Caboto ao Prata, 1526/30

• Expedição de Cristóvão Jacques, 1527: repressão violenta aos barcos franceses


• Tratado de Saragoça, 1529: resolve pendência com a Espanha com relação às
Molucas (restam portuguesas) - D. João livre para tratar do Atlântico Sul

• 1530: Martim Afonso de Sousa – Governador da Terra do Brasil


– 1532: São Vicente e Santo André da Borda do Campo: abastecimento e acesso à
rede fluvial interior
• Falta de recursos, temor de franceses e espanhóis: projeto de capitanias
– Doações: 1534-36
Cortes de madeira do Brasil, sec. XVI.
Rouen, Musée Départamentaux des Antiquités.
As capitanias-donatarias

• Instrumentos poderosos de implantação em territórios desertos, ou de


população escassa, sem capacidade de resistência, onde se pretendia a
introdução duradoura e relativamente pacífica da influência portuguesa
• Cabia ao donatário: estimular o povoamento, distribuir e administrar as terras
de sesmaria

• Hereditárias, inalienáveis e indivisíveis


• Sujeitas a regras especiais de sucessão da mesma família, incluindo a dispensa
da Lei Mental (“primogenitura”), pelo que ficariam habilitados à sucessão, no
caso de inexistência de filhos ou filhas legítimos, os bastardos masculinos ou
femininos, os ascendentes e os colaterais
• Titulares tinham direito à designação de capitães e governadores
• Monarca delegou nos capitães-governadores:
– Toda a jurisdição cível e crime, incluindo a alta justiça (pena de morte e
talhamento de membro), relacionada a peões, índios e escravos
– Decisão sobre a fundação de povoações e a criação de concelhos, sem
quaisquer restrições, desde que se situassem no litoral ou junto de rios
navegáveis; no sertão, distância mínima de 6 léguas
– Organização da defesa:
• Edificação de estruturas defensivas em locais estratégicos
• Construção de navios de patrulha
• Formar milícias
– Concessão de terras em regime de sesmaria, exceto para si próprio, mulher
e herdeiros
– Circulação:
• Permitido o comércio entre capitanias
• Isenções para os produtos oriundos do Brasil (pagariam no Reino somente a
sisa)
• D. João III reservou à Coroa:

– Nomeação dos oficiais ligados à arrecadação dos tributos devidos à Fazenda Real
(almoxarife, provedor, contador e tabeliães)

– Criar novos ofícios é poder, jurisdição e preeminência tão particular e reservada ao


supremo domínio do Príncipe soberano, que não entra em nenhuma doação por
longa e geral que seja

– Capitães não podem criar novo ofício, mas podem criar mais ofícios de novo dos
que há
Fisco

• Para a Coroa
– Dízimo do pescado, produtos exportados para fora do reino e mercadorias
importadas do estrangeiro
– Quinto da pedraria e metais preciosos
– Monopólio do pau-brasil

• Para os donatários:
– Pensão anual de 500.000 reais pagos por cada tabelião
– Vintena do dízimo do pescado
– Redízima dos tributos devidos à Fazenda Real e à Ordem de Cristo
– Vintena dos direitos cobrados pela Coroa sobre a exportação do pau-brasil
– Direitos banais (moendas de água, marinhas de sal e engenhos de açúcar)
– Rendimentos das alcaidarias-mor
– Cobrança de direitos de passagem das barcas nos rios
– Possibilidade de enviar escravos para o Reino sem pagar direitos
Problemas

• Donatários
– Custo excessivo, riscos
– Problemas com moradores, especialmente na aplicação da justiça (não isenta)
– Continuidade da presença de franceses

• Coroa
– Crescimento das colônias castelhanas na década de 1540 (vice reinados, bispados)
– Paz entre Espanha e França: liberadas para a expansão marítima
– Falta de unidade administrativa e de ação (justiça, militar)
– Absenteísmo dos donatários

• Ainda em 1553 o Governador-Geral Tomé de Sousa expunha ao Monarca que


“se um homem não pode viver sem cabeça, Vossa Alteza deve mandar que os
capitães próprios residam nas suas capitanias. / E quando isto não foi, por
alguns justos respeitos, ponham pessoas de que Vossa Alteza seja contente
porque os que agora servem de capitães não os conhece a mãe que os pariu...”
Governo Geral, 1548

• Fracasso comprovado do sistema


• Privilégios originais abalados pela nova estrutura
• Mais tarde, os reis Felipes (União Ibérica) iniciarão um processo organizado
de controle da eficácia da ação dos donatários, pela imposição de condições,
revogação de privilégios (como em PE) e até puras e simples renúncias de
caráter compulsivo (Cabo Frio, 1619)
• Entendimento possível: restringir ao máximo a existência ou autonomia dos
capitães em zonas de crescente interesse para a Coroa, fomentando a sua
criação em zonas de colonização inexistente ou incipiente

• Governo Geral
– Coordena a defesa e a relação com os indígenas
– O ouvidor-geral implica na retirada substancial dos poderes dos capitães donatários
e respectivos ouvidores
– Provedor mor da Fazenda: concessão de sesmarias e exploração do pau-brasil
Caráter jurídico das concessões

• O enunciado jurídico do regime de capitanias tornou-se elemento essencial


mas repetitivo em quase todas as obras dedicas à expansão ultramarina.
• Capitanias = feudalismo
– (Ruy Ulrich, 1916): “um tipo perfeito do regime feudal – fato estupendo este, pois o
feudalismo rigorosamente caracterizado nunca existiu no Portugal europeu. O que
aqui não existira julgou-se, porém, adequado para as Colônias e lá se usou...”
– (C. Boxer, 1969): “sistema donatarial com sua mistura de elementos feudais e
capitalistas”
– (Paulo Merêa, 1923): “o sistema de colonização por donatarias apresentava-se
como uma inteligente e fecunda adaptação das doações de bens da Coroa, que
entre nós eram tão frequentes e representavam até certo ponto um equivalente das
concessões feudais”
• (Saldanha, 2001): “foi este um dos pontos que mais se têm prestado a
equívocos, consubstanciados na ideia de que concedida a Capitania,
concedida estava a terra correspondente. Ora, nada de mais errado: as
capitanias são senhorios eminentemente jurisdicionais, a que anda
potencialmente agregada uma parcela fundiária, destacada do patrimônio do
Rei”
Motivações para as doações

• Recompensa do mérito próprio ou herdado do súdito beneficiado


• A prossecução de estratégias oficiais de ordem política e econômica
• A satisfação de obrigações inerentes à defesa e progresso da Fé in partibus
infidellium

• Cf. Fr. Cristóvão de Lisboa, Bispo de Angola, 1697: “parece justa, acertada e
conveniente a doação da nova Capitania, além de que na presente conjuntura
é bom que se busque por todas as vias coisas de que V. Majestade possa fazer
doações, sem detrimento de sua fazenda, par ter com que pagar serviços e
animar os homens até fazer muitos outros. A mercê das doações tira dois fins,
um enriquecer a pessoa particular que recebe tal benefício pelos seus
serviços, outra a utilidade que daí resulta ao Reino, porque quantas mais
capitanias povoadas, tantos mais navios virão carregados de açúcar e outros
frutos”.
O Poder Real

• A intervenção real se faz sentir imediatamente no âmbito das capitanias


através dos seus representantes diretos:
– No âmbito da Fazenda: Provedor e um quadro de funcionários furtados por inteiro
à administração senhorial
– No âmbito da Justiça: pela submissão expressa das justiças senhoriais aos
ouvidores-gerais, aos corregedores ou a tribunais régios, como o da Relação da
Bahia
– No âmbito político e da guerra: sujeição inconteste da administração senhorial às
diretivas políticas ou militares promovidas por delegados reais, como
governadores ou vice-reis, no exercício puro do seu arbítrio ou na mera
transmissão de diretivas recebidas de Lisboa
– Constante invocação e aplicação prática do direito superior de fiscalizar, corrigir e
punir os eventuais desmandos de administrações inferiores, como a das justiças
concelhias ou senhoriais
Capitanias hereditárias, séculos XVI e XVII
• Pará, anterior a 06/1535 • Itaparica, 1556
• Maranhão, anterior a 06/1535 • Peroaçu, 1557
• Ceará, 1535 • Cabo Frio, séc. XVII
• Rio Grande, 1535 e séc. XVII • Campos de Goitacazes, séc. XVII
• Itamaracá, 1534 • Ilha de Santa Catarina, séc. XVII
• Pernambuco, 1534 • Cumá, séc. XVII
• Bahia, 1534 • Cabo do Norte, séc. XVII
• Ilhéus, 1534 • Ilha Grande de Joanes, séc. XVII
• Porto Seguro, 1534 • Camutá, 1633
• Espírito Santo, 1534 e 1675 • Caeté, 1646
• São Tomé, 1536 • Paraíba, 1657
• Rio de Janeiro, anterior a 10/1534 • Fernando de Noronha, 1674
• Santo Amaro, 1534 • Rio da Prata, 1675
• São Vicente, anterior a 10/1534 • Xingu, 1685
• Santana, 1534
Fontes: Jorge Couto, António Vasconcelos de Saldanha
• Surgimento de vontade de abater a autonomia senhorial em locais que,
como Pernambuco, se vinham tornando vitais para os interesses da Coroa por
razões militares ou econômicas
• Mas coexiste com o recurso à concessão de capitanias como expediente de
colonização - a falta de meios humanos e pecuniários da Coroa a forçava a
considerar e a validar o recurso ao velho sistema das capitanias como
expediente ótimo de superação de dificuldades, que de outro modo seriam
insolúveis

• São Vicente: venda lavrada em escritura de 19 de setembro de 1711: mas, e


Santo Amaro?

• Política de absorção das capitanias não pode ser inteiramente relacionada a


Pombal, pois surge ainda no XVI; extinção definitiva do regime é sua ação
• Em suma, as capitanias viveram três fases distintas:

1. Como fator importante de colonização

2. Fórmula de administração local

3. Expediente de percepção da rendimentos e suporte de honras nobiliárquicas


Jorge Pimentel Cintra,
“Reconstruindo o Mapa das
Capitanias Hereditárias” (2013).
Bibliografia

ARANHA, Graça (org.) Fiscais e Meirinhos. A Administração no Brasil Colonial. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira-Arquivo Nacional, 1985.
BOXER, Charles. O Império Marítimo Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
CINTRA, Jorge Pimentel. “Reconstruindo o Mapa das Capitanias Hereditárias”. In: Anais do
Museu Paulista, São Paulo, N. Sér. V.21 n.2 p. 11-45, jul.-dez. 2013.
COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Ameríndios, portugueses e africanos, do início do
povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos, 1998.
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. “Administração”. In: Vainfas, Ronaldo (dir). Dicionário do
Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
HESPANHA, António Manuel. “A constituição do Império português”. In: Bicalho, Maria
Fernanda, Gouvêa, Maria de Fátima, e Fragoso, João (orgs.) Antigo Regime nos
Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séc.XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.
JOHNSON, Harold B. “The donatary captaincy in perspective: Portuguese background to the
settlement of Brazil”. In: The Hispanic American Historical Review, 52:2, maio de
1972.
SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil. Antecedentes,
desenvolvimento e extinção de um fenômeno atlântico. Lisboa: Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.

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