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HISTÓRIA DO

BRASIL
COLÔNIA

Caroline Silveira Bauer


Antigo Regime português
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Analisar o contexto europeu em que ocorreu o Antigo Regime


português.
 Descrever os aspectos econômicos que caracterizavam o Antigo
Regime português.
 Definir a estrutura social portuguesa no Antigo Regime.

Introdução
“Antigo Regime” foi um termo cunhado no final do século XVIII para
se referir ao status quo que era preciso ser transformado: a economia
mercantilista, o Estado absolutista e a sociedade estamental, rigidamente
hierarquizada. Essa configuração econômica, política e social se originou
na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, com diferentes
características e ritmos nos diferentes países da Europa Ocidental. Cabe
então questionar como se deu esse processo no território que hoje cha-
mamos de Portugal.
Neste capítulo, você vai estudar o contexto europeu de passagem do
medievo para a modernidade, no qual será inserido o caso português.
A partir daí, vai também analisar a organização econômica do Antigo
Regime em Portugal e suas características. Por fim, verá como se estru-
turava a sociedade portuguesa durante a Idade Moderna.

1 A Europa durante a Idade Moderna


O conceito de “modernidade” possui muitas definições, sendo a referência
à Idade Moderna uma de suas acepções. Em termos gerais, tal período foi
inaugurado pelas transformações ocorridas na Europa durante os séculos XV
e XVI, cujas consequências estendem-se até hoje. Examinemos, antes de mais
nada, os principais aspectos dessas mudanças.
2 Antigo Regime português

Do ponto de vista político, houve uma progressiva centralização do poder e,


paralelamente, um fortalecimento da figura do rei, o que levou à organização
do Estado moderno, ou das monarquias nacionais, caracterizadas por práticas
políticas absolutistas. Contudo, essa transformação não ocorreu da mesma
forma, nem no mesmo período, em todas nações europeias. Há historiadores,
como António Manuel Hespanha, que negam o caráter absolutista da monarquia
portuguesa, principalmente nos séculos XVI e XVII. Para ele, a monarquia
portuguesa trazia consigo uma série de características herdadas do medievo: o
corporativismo, o respeito a certos códigos jurídicos e a existência de múltiplos
centros de poder, uma herança da escolástica e de práticas de autogoverno que
eram originárias do cristianismo e sua disciplina social (amorosa, consentida
e voluntária) (FRAGOSO, 2012, p. 120).

Essa lógica cristã que orientou a administração política do Império Português baseava-
-se numa complexa economia chamada sistema de mercês. Sua origem remonta
às guerras de reconquista da Península Ibérica, quando o rei concedia terras e títulos
aos aristocratas que lhes prestassem serviços. Criava-se, dessa forma, uma relação de
devoção e subserviência ao monarca que, por sua vez, assumia relações clientelistas
e corporativas com os aristocratas que realizassem atividades interessantes à coroa
(HESPANHA, 2001).

Nas palavras de Hespanha:

[...] o poder real partilhava o espaço político com poderes de maior ou menor
hierarquia; o direito legislativo da Coroa era limitado e enquadrado pela dou-
trina jurídica [...] e pelos usos e práticas jurídicos locais; os deveres políticos
cediam perante os deveres morais (graça, piedade, misericórdia, gratidão)
ou afetivos, decorrentes de laços de amizade, institucionalizados em redes
de amigos e de clientes; os oficiais régios gozavam de uma proteção muito
alargada dos seus direitos e atribuições, podendo fazê-los valer mesmo em
confronto com rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar o poder real
(HESPANHA, 2001, p. 166).

Essa mudança interpretativa também tingiu a compreensão das relações


entre a metrópole e a colônia. Para além da visão de uma relação de dependência
e subordinação, Portugal e suas colônias passaram a ser compreendidas como
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uma monarquia pluricontinental, partes integrantes do Império Português.


Imaginando o império como um corpo, a monarquia seria a cabeça e as ins-
tituições que auxiliavam na governança, órgãos indispensáveis a esse corpo
(HESPANHA, 2001). Essa mudança de perspectiva do ponto de vista político
também influenciou as compreensões sobre a economia, pois a maior fonte de
riqueza para Portugal era proveniente da renda das conquistas ultramarinas,
e não do comércio de produtos manufaturados.
O ouro proveniente da América portuguesa, somado ao comércio de afri-
canos escravizados, teria sido o responsável, nos séculos seguintes, pela
opulência da monarquia lusitana, que, nesse aspecto, viria a se assemelhar às
demais monarquias absolutas europeias, mas ainda com grandes diferenças,
como na aliança entre o Estado e a Igreja:

Ao pensar em Portugal no Antigo Regime, talvez a primeira imagem que


nos surja seja a de D. João V, cercado por belos palácios, igrejas e conventos
ricamente adornados. O universo de fausto no qual viveu “o Magnânimo” de
Portugal foi reflexo da entrada aparentemente infindável de ouro brasileiro.
Ao mesmo tempo em que Portugal ganhava uma vida de corte que, grosso
modo, podemos aproximar dos hábitos da corte francesa, eram também re-
forçados os laços entre o Estado e a Igreja. A ligação do monarca com o setor
religioso legou a Portugal a imagem de atraso — especialmente no que diz
respeito ao pensamento — quando comparado aos seus vizinhos europeus
(CONTI, 2018, p. 405).

Quanto ao aspecto econômico, importantes modificações na passagem da


Idade Média para a Idade Moderna estabeleceram a economia do Antigo Re-
gime português. O incremento das atividades comerciais, somado às mudanças
nas relações de produção e de trabalho, configuraram as práticas econômicas
mercantilistas. A busca por novos mercados incentivou a expansão comercial
e marítima europeia.
Em relação à sociedade, o desenvolvimento do comércio foi acompanhado
pelo surgimento e fortalecimento da burguesia, que passou a ganhar impor-
tância social, gerando conflitos com a nobreza, frente a seus privilégios, e aos
camponeses, devido à exploração.
Já quanto à cultura e à religião, o Antigo Regime se caracterizou por uma
paulatina transformação nas mentalidades, incutindo valores renascentistas
e iluministas, que transformaram a ciência, a filosofia e a superstição. Não
esqueçamos das transformações ocorridas na Europa em função dos contatos
estabelecidos com outras culturas e outros povos, em função das rotas co-
merciais marítimas e terrestres. Nesses contatos, houve muitos intercâmbios
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de conhecimentos e ideias. Assim, o Renascimento e o Iluminismo não são


movimentos unicamente europeus, pois foram enriquecidos pela interação
dos europeus com outros povos.
Mas, afinal, de que forma Portugal se insere nesse contexto? Aprofunda-
remos a formação do Estado nacional português e suas características nas
Unidades de Aprendizagem seguintes, cabendo, neste capítulo, apenas uma
introdução sobre o tema.
A lógica do Antigo Regime português, que será transferido posteriormente
como forma de administração do restante do Império ultramarino — as
colônias portuguesas africanas, americanas e asiáticas eram concebidas
como partes do Império Português —, era a seguinte, de acordo com Navarro
(2019, p. 235):

Trata-se de um sistema corporativo, em que cada membro do corpo social


tem sua função. Nesse contexto, a monarquia ocuparia o lugar da cabeça,
tendo funções mais dominantes, mas não sendo capaz de concentrar todo
o poder ou de por fim aos os demais membros ou polos de poder. A função
da monarquia seria a de trazer harmonia ao corpo social, respeitando suas
inclinações naturais e exercendo a justiça. Assim sendo, há uma aproxi-
mação evidente do poder com o direito [...]. Juntamente com o poder real
da monarquia, havia uma variedade de poderes locais que também eram
exercidos. A mesma lógica vale para o direito do período, em que também
havia mais de uma fonte de normatividade. Além do direito comum, o
direito local e costumeiro era sempre privilegiado, visando a resolução de
problemas de forma casuística.

Como afirmado anteriormente, e corroborado por Maria Fernanda Bicalho


(2005), do ponto de vista político, o Antigo Regime português se caracterizaria
por uma série de instituições e práticas norteadas por um ideário de conquistas,
pelo sistema de mercês e por poderes municipais descentralizados. Ainda de
acordo com a autora, o que vigia então na Península Ibérica era:

[...] uma visão corporativa da sociedade, difundida pelo paradigma ju-


risdicionalista dos séculos XVI e XVII, apontando para uma concepção
limitada do poder régio, segundo a qual o monarca representava simbo-
licamente o corpo social e político, mantendo seu equilíbrio e harmonia,
zelando pela religião, preservando a paz e a ordem, garantindo, sobretudo,
a justiça. O atributo mais importante da realeza, a justiça, correspondia
ao princípio de “dar a cada um o que é seu”, repartindo prêmio e castigo,
respeitando direitos e privilégios, cumprindo contratos estabelecidos
(BICALHO, 2005, p. 22).
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Essa abordagem, que se coaduna com as investigações mais recentes sobre


o Antigo Regime em Portugal, nos ajudam a desconstruir certas representações
sobre o Estado absolutista e generalizações que são feitas a partir de algumas
experiências para toda a realidade europeia da modernidade.

2 A economia portuguesa
Nos últimos anos, houve significativas mudanças na forma de compreender
a economia de Portugal durante o Antigo Regime, principalmente no que diz
respeito às práticas coloniais. Para tanto, foi necessário que os autores passassem a
encarar Portugal e suas colônias como partes constitutivas de um mesmo espaço, o
Império Luso ou Português, organizado segundo uma monarquia pluricontinental.
Assim, foi possível extrapolar a compreensão da América Portuguesa como uma
colônia que exportava matérias-primas e importava produtos manufaturados, na
lógica do pacto colonial mercantilista, e problematizar a noção de capitalismo
comercial e de Estado absolutista para Portugal (FRAGOSO, 2012).
Vejamos algumas teses, vinculadas a uma historiografia marxista ortodoxa,
para a economia portuguesa durante a modernidade. Nessa concepção, Portugal
se encontraria em um estágio econômico chamado de capitalismo comercial
ou mercantilismo, que seriam os conjuntos de práticas econômicas adotadas
pelas monarquias absolutistas durante a Idade Moderna, em que o comércio
e a possessão de metais preciosos (metalismo) eram considerados as fontes
de geração de riquezas para os Estados europeus.
De acordo com Magalhães (1964, p. 66):

[...] foram os descobrimentos marítimos de portugueses e espanhóis que, provocando


uma transformação profunda nas condições dos países ibéricos, fizeram surgir dos
espíritos a ideia da supremacia da riqueza monetária, sobretudo a partir do século
XVI. A constituição do vasto império português, absorvido em 1580 no ainda mais
vasto império espanhol de Filipe II, e o espetáculo de grandeza e opulência nunca
vistas que este último ofereceu à Europa, em conjunção com o considerável afluxo
de metais preciosos provindos do continente americano, foram os fatores determi-
nantes da convicção de que a riqueza das nações estava diretamente relacionada
com as suas reservas de metais preciosos, o seu estoque monetário.

O Estado interviria na economia mediante a cobrança de impostos, de prá-


ticas protecionistas, do controle da balança comercial e do estabelecimento de
monopólios. Além disso, o mercantilismo seria indissociável do colonialismo.
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João Fragoso (2012) afirma que Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Fernando
Novais são representantes dessa abordagem, defendendo “que a sociedade da
América lusa dos séculos XVII e XVIII fora construída com o propósito de
fomentar a transição do feudalismo para o capitalismo na Europa, ou ainda
com o intuito de viabilizar a revolução industrial inglesa do século XIX”
(FRAGOSO, 2012, p. 107).
Para essa vertente historiográfica, a América estaria em uma posição de
subordinação em relação a Portugal com a três finalidades (FRAGOSO, 2012):

 produzir mercadorias a baixo custo, o que permitiria revendê-las a


lucros fabulosos para o capital mercantil europeu;
 gerar um mercado americano ávido por produtos manufaturados, de
modo a fomentar a produção industrial europeia;
 atrair mão-de-obra africana e com isto ampliar o comércio de homens
e mulheres no Atlântico Sul, atividade controlada pelos negreiros
europeus.

Ainda de acordo com Fragoso (2012, p. 107):

O resultado destas vontades do capitalismo comercial europeu seria a cons-


tituição, na América lusa da passagem do século XVI para o XVII, grosso
modo, de um grande canavial gerenciado por senhores de engenhos, porém
dirigidos por um “capital não residente” (ou seja, vinculado à metrópole).
Assim, a economia colonial não tinha dinâmica própria, e seu destino de-
pendia dos humores do mercado europeu. Outra consequência seria a ine-
xistência de um mercado interno ou ainda de produções mercantis in loco
voltadas para o abastecimento da América. Estas atividades não podiam
existir, pois colocariam em perigo o sentido da colonização. Quando tais
lavouras de abastecimento ou currais surgiam, isto se dava em razão dos
interesses das atividades exportadoras. E, consequentemente, as produções
mercantis ligadas ao consumo interno estavam também subordinadas à
lógica das flutuações do sistema econômico maior ao qual pertencia aquele
imenso canavial.

Contudo, a partir do desenvolvimento nas décadas de 1970, 1980 e 1990


de pesquisas com a utilização de fontes primárias do período da América
Portuguesa, descobriu-se outra realidade, que contrastava com o esquematismo
e a generalização característicos dessa abordagem ortodoxa. Essas novas
interpretações questionaram as análises desenvolvidas sobre a relação entre
a metrópole e a colônia, sobre o tráfico e a escravidão e sobre o mercado
interno, problematizando a suposta “dependência” da América Portuguesa em
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relação à Portugal e sua função como mera exportadora de matérias-primas


(FRAGOSO, 2012). Além disso, esses autores chamaram a atenção para o
possível anacronismo em compreender a economia do período colonial com
pressupostos do século XIX, quando o Brasil já era um império.
Assim, torna-se importante compreender de que forma o mercantilismo
se materializou nas práticas econômicas do Império Português. Dessa forma,
podemos elencar a legislação de proibição de exportação de metais preciosos, a
publicação de doutrinas coibindo o luxo e a importação de produtos caros (em
ambos os casos, explicita-se o controle da balança comercial), o fomento de
manufaturas nacionais e a criação de companhias para o comércio ultramarino
(MAGALHÃES, 1964, p. 77).
Além disso, é fundamental destacar que a economia de Portugal durante
o Antigo Regime era totalmente vinculada ao império ultramarino, seja no
comércio marítimo ou no incremento do mercado interno dele consequente.
Segundo Monteiro (2010, p. 254), “em 1506 e em 1518–1519, as receitas do
ouro da Mina, das especiarias asiáticas, do pau-brasil e das ilhas do Atlântico,
entre outras, representavam cerca de dois terços das receitas régias, superando
em muito as rendas fornecidas pelo próprio reino”.

No vídeo disponível no link a seguir, o professor Ricardo Ramos Rugai aprofunda as


relações entre o mercantilismo e o colonialismo portugueses.

https://qrgo.page.link/EbPTB

Ainda assim, isso não significa que, na prática, o Império Português tenha
conseguido seguir os preceitos da política econômica mercantilista. Em termos
dos problemas relativos aos monopólios, por exemplo, Ronaldo Vainfas (2000)
comenta que a exclusividade mercantil nunca foi rigorosamente aplicada.
Medidas como a de D. Sebastião, em 1571, determinando que apenas navios
portugueses poderiam comerciar com o Brasil não funcionaram na prática,
tendo em vista a frequência com que os navios holandeses aportavam no
Nordeste, região que distribuía boa parte do açúcar luso-brasileiro na Europa.
“Durante a União Ibérica, estabeleceu-se um sistema de frota única, prove-
niente de Portugal, mantido após a Restauração em 1640. Muitos mercadores
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se queixaram pela perda de negócios, mas essa estratégia foi mantida até a
abertura dos portos no Brasil em 1808” (VAINFAS, 2000, p. 392).
Acredita-se que somente durante o reinado de D. José I (1750–1777), com
a administração do Marquês de Pombal, é que Portugal teria realizado um
esforço para o desenvolvimento da metrópole com base no modelo mercan-
tilista, promovido pela reestruturação da economia do império ultramarino,
principalmente com o fortalecimento das companhias comerciais portuguesas.
O monarca antecessor, D. João V (1706-1750), havia implementado diversos
mecanismos para garantir o monopólio português em relação às minas de
ouro e diamantes, durante o auge do ciclo de ouro. Porém, ainda segundo
Vainfas (2000, p. 393):

[...] foram vários, sempre, os obstáculos à adoção de uma política rigorosamente


mercantilista em Portugal, antes de tudo pelo arcaísmo de sua estrutura social e
institucional, agrária e patrimonialista. Exemplifica-o o fracasso das companhias
de comércio pombalinas, que restringiam o monopólio a um estreito círculo de
acionistas. Isso contrariava o estilo monopolista português que concedia, no
comércio colonial, a “liberdade total” aos portos lusitanos, mas funcionava à
base de arrematação de estancos e direitos fiscais por contratadores particulares,
mecanismo no qual intervinham clientelas e relações pessoais.

3 A sociedade portuguesa
Durante a Idade Moderna, configurou-se em Portugal uma forma de organi-
zação social chamada por alguns autores de corporativa. Em outras palavras,
criava-se uma cadeia de obrigações recíprocas entre o rei e seus súditos, que
lhe prestavam serviços e, em troca deles, exigiam “mercês”, como explicado
anteriormente, o que gerava engrandecimento e atribuição de status, honra e
posição mais elevada na hierarquia social ao súdito, que retribuía ao monarca
com agradecimento e profundo reconhecimento (BICALHO, 2005). Eis aí
uma das marcas do feudalismo ainda existentes na modernidade: uma relação
baseada na submissão e na lealdade, como a vassalagem medieval, além da
obediência:

Na verdade, aquela disciplina social católica, na época moderna, conferia


certa uniformidade à monarquia pluricontinental. E aqui não custa insistir
na ideia de obediência, pois ela era capaz de exercer o papel dos mecanismos
de controle visíveis de um Estado absolutista. Aquela disciplina possibilita-
va que a subordinação às autoridades e, especialmente a Sua Majestade, se
confundisse com o amor a Deus (FRAGOSO, 2012, p. 121).
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Falaremos da mobilidade social mais adiante, mas cabe já destacar que


uma das poucas possibilidades de mobilidade socialmente reconhecidas no
Antigo Regime era a graça régia, as benesses recebidas do monarca em razão
do desempenho de uma função. O enriquecimento, por exemplo, não era visto
com bons olhos, e não era forma legitimada socialmente de ascensão social,
em razão das crenças católicas predominantes, que condenavam o lucro e a
usura (HESPANHA, 2006).
Além dessas características da sociedade portuguesa, é importante destacar
que tanto a monarquia quanto a aristocracia eram dependentes economica-
mente das possessões portuguesas e riquezas ultramarinas. De acordo com
Fragoso (2012, p. 118), o rei e a nobreza “viviam de recursos oriundos não
tanto dos camponeses europeus (agricultura e cobrança de impostos), como
em outras partes do Velho Mundo, mas do ultramar”. Ou seja, viviam sobre-
tudo da produção dos indígenas e depois dos escravos africanos levados às
plantações americanas. A monarquia e a nobreza tinham, então, “na periferia
a sua centralidade e o seu sustento, e isto era feito pelo comércio, tendo por
base produtiva a partir do século XVII principalmente a escravidão africana
na América.” Em outras palavras, o desenvolvimento de Portugal se deveu
ao tráfico, a fonte principal de seu sustento.
De acordo com Raminelli (2013), a sociedade portuguesa estava ca-
racterizada por estamentos, organizados da seguinte forma: o primeiro
estrato social era formado por fidalgos e nobres, que haviam recebido esse
título; um segundo estrato era composto por juízes, vereadores, oficiais de
tropas pagas, milícias e ordenanças, licenciados e negociantes de grosso
trato (como eram chamados os traficantes de escravizados). Essa nobreza
podia ser hereditária, originando os fidalgos, ou então civil e/ou política,
formada por indivíduos tornados nobres pelo soberano em função de mé-
ritos ou serviços prestados. A primeira era considerada a “alta nobreza” e
a segunda, a “baixa nobreza”.

Como se relacionava essa nobreza com as hierarquias que se formavam nas colônias?
Alguns autores propuseram o conceito de “nobreza da terra” para se referir àqueles que
conquistavam títulos de nobreza, mas eram nascidos na América portuguesa. Esses
autores também se dedicaram a estudar os conflitos existentes entre as nobrezas da
colônia e da metrópole (MACHADO, 2017).
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Nesse sentido, Portugal se assemelhava às demais monarquias da Europa,


de acordo com a análise de Raminelli (2013, p. 89):

Desde a Restauração portuguesa, sobretudo no século XVIII, a Coroa pro-


moveu a atrofia da alta nobreza, ao mesmo tempo em que distribuía mercês e
ampliava a baixa nobreza. Assim, a monarquia preservou por muito tempo os
privilégios dos titulados e grandes e impossibilitou a introdução de plebeus
no cume da pirâmide social. Para manter a estrutura hierárquica, a doutrina
jurídica lusa criou o “estado do meio” ou a “nobreza política”, categoria
equidistante entre a fidalguia e o povo mecânico. No reino português, a alta
nobreza era fechada, como na Inglaterra, enquanto a baixa nobreza aumentava
ao sabor das mercês e alianças tramadas pela monarquia.

Podemos afirmar que essa era uma semelhança de Portugal com os demais
Estados modernos: a sociedade estamental e a vigência de privilégios, além
da dificuldade de mobilidade social para as classes menos abastadas.

Quais estratos sociais podiam adquirir títulos de nobreza política em função das
mercês? De acordo com Hespanha (2006, p. 136), a nobreza obtida pela prestação de
serviços ao monarca, “nas terras em que fosse costume reservar este lugar a nobres”,
poderia ser adquirida:
 pela ciência (doutores, licenciados, mestres de artes, bacharéis;
 pela milícia armada (cavaleiros de ordens militares, oficiais militares);
 pela milícia inerme;
 pelo exercício de certos ofícios — governos de armas das províncias, presidentes
dos tribunais de justiça da corte; conselheiros régios; chanceler-mor; juízes das
chancelarias e audiências; corregedores; provedores; juízes régios; juízes ordinários,
vereadores, almotacés e alguazis, procuradores dos concelhos, meirinhos e alcaides.
Isso demonstra como a nobreza política foi crescendo exponencialmente, gerando maiores
custos para a monarquia e, no futuro, problemas do ponto de vista do confronto de poderes.

A esse respeito, Hespanha (2006, p. 122) é taxativo quanto à mobilidade


social da sociedade portuguesa:

Alguma mobilidade começava, desde logo, por ser impossível. Não se podia
deixar de ser mulher, por exemplo. Demente era também um estado tendencial-
mente definitivo. Menor, deixava-se naturalmente de se ser, mas pela passagem
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objetiva e natural do tempo, a menos que interviesse algo de extraordinário,


como a graça real da emancipação. Selvagens e rústicos podiam, relativamente,
aperfeiçoar-se. Mas os progressos eram problemáticos e lentos, ligados a um êxito
educativo mais longo e mais incerto do que o das crianças. Menos definitivo
era o estado de mecânico ou de pobre. Mas, mesmo nestes casos, a mudança
tinha que respeitar ritmos e passos que não dependiam senão em muito pouco
da vontade própria. Não quero com isto dizer que a situação (econômica, so-
cial, cultural) das pessoas não mudasse, para melhor ou para pior. Quero antes
sugerir que isto: a) quase não se via; b) pouco se esperava; c) e mal se desejava.

O que se tinha, então, era uma sociedade fundada nos privilégios de nasci-
mento ou na conquista de títulos de nobreza mediante o sistema de mercês e na
preeminência do clero, para além da força da Igreja Católica, da Inquisição e da
intolerância religiosa (VILLALTA, 2016). A Inquisição, nesse sentido, pode nos
ensinar muito sobre a sociedade portuguesa do Antigo Regime. Conforme Schaub
(2000, p. 125), a inquisição era “produtora de distinção social e garantidora de
pureza de sangue de seus oficiais e confidentes” e, portanto, era

[...] legitimada por famílias que desejavam adquirir uma dignidade social
definitiva. [...] Em vez do Santo Ofício aparecer como o tribunal onde o con-
junto da sociedade acorre a prestar contas, [...] a inquisição era uma instituição
imersa numa complexa dinâmica social e cultural, definida e configurada
pelas pretensões daqueles que a integram em benefício próprio.

Assim, a missão dos inquisidores era não somente disciplinar a sociedade,


mas também marcar distâncias entre os grupos sociais e fortalecer as relações
de dominação.

BICALHO, M. F. B. Conquista, mercês e poder local: a nobreza da terra na américa


portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack Braziliense, n. 2, p. 21–34,
nov. 2005.
CONTI, P. F. S. A ilustração tardia em Portugal e os espaços de sociabilidade intelectual
em Pernambuco. Revista Tempos Históricos, v. 22, n. 2, p. 402–432, 2018.
FRAGOSO, J. Modelos explicativos da chamada economia colonial e a ideia de Monar-
quia Pluricontinental: notas de um ensaio. História (São Paulo), v. 31, n. 2, p. 106–145,
jul./dez. 2012.
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HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamen-


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MACHADO, E. H. O ideal nobiliárquico e a busca por distinção social no antigo regime
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VILLALTA, L. C. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788–1822). Rio de Janeiro:
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Leituras recomendadas
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no Império Português - séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 91–105.
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HESPANHA, A. M. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político — Portugal —
séc. XVII. São Paulo: Almedina, 1994.
HESPANHA, A. M. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. Coimbra: Almedina, 2012.
HESPANHA, A. M. (Org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime: coletânea de
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Antigo Regime português 13

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