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HISTÓRIA

ANTIGA

Ana Cristina Zecchinelli Alves


A História Antiga:
recortes, temas e fontes
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Discutir as relações entre religião e política na História Antiga.


 Reconhecer a presença da servidão e da escravidão na História Antiga.
 Analisar a História Antiga retratada no cinema.

Introdução
Didaticamente, a história pode ser dividida por temporalidades e te-
máticas. Quando se estuda a História Antiga, é necessário considerar as
relações entre religião e política, as formas de submissão por meio da
escravidão e dos trabalhos compulsórios, bem como as interpretações
feitas sobre esse período ao longo do tempo.
Neste capítulo, você vai descobrir a íntima relação que existia entre po-
lítica e religião na Antiguidade. Você também vai estudar o trabalho com-
pulsório na prática da corveia e o seu formato mais ignóbil, a escravidão.
Além disso, você vai ver como o cinema representa a Antiguidade. Como
você vai notar, embora romanceadas para as telas e descomprometidas
com a realidade histórica, as narrativas cinematográficas sobre a História
Antiga podem ser instrumentos pedagógicos e fontes interessantes.

Religião e política na História Antiga


Tratar da relação entre política e religião na Antiguidade é complicado. Afinal,
a História Antiga é um período longo que apresenta uma variedade de divisões
políticas, cujos registros nem sempre estão disponíveis. Muitas sociedades não
deixaram fontes escritas e outras ainda não foram estudadas em profundidade.
Por isso, a seguir, você vai estudar as sociedades mais conhecidas. Por meio
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delas, é possível obter uma imagem generalizada das relações entre religião e
política na Antiguidade Clássica e Tardia. Consideram-se, para isso, os estudos
de grandes mestres como Fustel de Coulanges e Ciro Flamarion Cardoso.

Oriente Próximo
No Oriente Próximo, na Antiguidade, a religião era central no pensamento
social e político. As monarquias se assentavam sobre ela para justificar e
fundamentar o seu poder. Contudo, as relações entre religião e política apresen-
tavam diversas modalidades (CARDOSO, 1990). Os faraós, por exemplo, eram
considerados deuses que regiam o Egito; outros monarcas eram intermediários
entre os deuses e a humanidade. O temor da ofensa aos deuses era imenso, por
isso mantinham-se o formalismo e o ritualismo e evitavam-se as impurezas.
Segundo Cardoso (1990), no que tange ao Oriente Próximo na Antigui-
dade, somente de forma artificial e para fins analíticos ou didáticos pode-se
separar política, religião e economia. Os templos eram parte integrante do
complexo do Estado. Embora elementos produtivos fossem entregues pelo rei à
administração dos templos, isso era apenas uma forma de gerenciar riquezas,
e não uma entrega definitiva.
No Império Assírio, o imperador tudo fazia em nome e para o deus Assur,
que assume a primazia no referido período. Os neobabilônicos de Nabucodono-
sor tinham Marduc como seu deus principal. Já os judeus tinham Yaveh, para
quem construíram o Templo de Jerusalém — seu único lugar de culto, onde
inicialmente outros deuses também eram aceitos. Somente depois da divisão
do reino e do exílio na Babilônia, com a compilação dos textos sagrados e
a revisão deuteronômica, é que os judeus se tornam totalmente refratários a
outros deuses, praticando um monoteísmo radical e único para a época. Yaveh,
durante milênios, foi o condutor das decisões dos judeus em todos os campos.

Mesopotâmicos

Para os mesopotâmicos, o mundo humano, o natural e o divino são contínuos;


tudo é animado. O que surge na Terra é projetado pelos deuses, inclusive
cidades-estados, monarquias e impérios. A monarquia é uma criação divina
que “desceu dos céus” duas vezes: antes e depois do dilúvio. O Estado é
organizado pelos deuses de forma hierárquica, tendo estes também uma assem-
bleia divina. Tudo e todos, a começar pelo rei, são servidores das divindades
(CARDOSO, 1990).
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Nos diversos impérios surgidos na região mesopotâmica, o politeísmo


esteve presente. Os deuses das cidades eram cultuados. Durante o Império
Assírio, o deus Assur assume a primazia e a ele se seguem os demais deuses.
É Assur o deus que determina a ação dos reis, que tudo fazem em seu nome.
No Império Babilônico sob Hammurabi e no neobablônico caldeu, é Marduc
o deus principal a quem servem e obedecem aos reis.

Egípcios

No Egito, antes da unificação, as associações administrativas territoriais


regionais iniciais formavam nomos ou spat, que reuniam pessoas em traba-
lhos de irrigação e armazenavam grãos e metais, o que pressupunha alguma
forma de tributação. Esses nomos se tornaram províncias no Egito unificado.
O primeiro rei era a divindade Hórus, que assumiu o trono após a morte de
seu pai, o deus Osíris; os monarcas que se seguem são a sua encarnação. Veja:

Na teoria político-religiosa da monarquia egípcia, formada muito cedo e


mantida por quase três milênios com poucas alterações [...], o rei se define
literalmente como o centro de todas as coisas, incluindo mesmo os países
estrangeiros, destinados à subordinação por ele [...] O rei, como deus, é a
origem de todos os poderes (CARDOSO, 1990, p. 41–43).

O faraó é também chamado filho de Rá (Sol), podendo falar pelos deuses


e por si mesmo. No Egito, os cultos aos deuses locais dos nomos se mantêm,
embora os deuses monárquicos possam variar conforme o momento e a dinastia.
Alguns deuses locais acabaram por se tornar nacionais por conta da escolha
monárquica. O que transformava o rei em Hórus vivo era sua entronização,
e a partir da quinta dinastia ele se tornou filho de Rá. Havia uma série de
regras de hereditariedade, que cobriam por meio de casamentos os casos em
que o rei não era o filho do último faraó. De qualquer forma, era a coroação
que o fazia divino, e não o nascimento. No processo, o faraó vinculava-se à
linha sucessória divina e simbolizava a união entre o cosmos e a humanidade.
Também a partir da quinta dinastia os sacerdotes adquirem importância e se
hierarquizam (CARDOSO, 1990).
No Egito, a visão do faraó como um deus vivo demonstra a inseparabilidade
da religião e da política, embora nem sempre os sacerdotes dos diversos templos
tivessem ingerência direta sobre o faraó, o que não obstava sua força política.
No reinado de Akhenaton, ocorreu uma revolução religiosa de cima para
baixo: o faraó decidiu ser Aton, o deus único, uma tentativa de monoteísmo
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que pereceu com o próprio faraó, assim como Amarna, cidade que fundou
para Aton e na qual obrigou a corte a permanecer. Sobre o período, Cardoso
(1990, p. 11) explica:

A historiografia de há algumas décadas costumava explicar a reforma religiosa


empreendida pelo soberano egípcio Akhenaten (1353–1335 a.C.) como algo
análogo à luta entre imperadores e papas na Idade Média, com motivações
mais políticas e econômicas do que religiosas. O culto de um novo deus so-
lar — Aten —, surgido na corte já antes de Akhenaten, e posteriormente sua
imposição como deus único do Egito, seriam formas de reação dos faraós [...]
contra o incremento exagerado do poder político e da riqueza do clero das
divindades tradicionais, em especial o do deus Amon-Ra — incremento que
teria ocorrido em detrimento do poder e da riqueza do próprio rei.

Perceba que o faraó decidiu que haveria um único deus e a sociedade se


tornou oficialmente, naquele período, monoteísta, retornando ao politeísmo
quando da assunção do novo faraó. Isso não significa que as pessoas comuns
tenham deixado de crer nos seus deuses, apenas que o culto oficial e público
era dirigido a um único deus, Aton. Nas guerras religiosas europeias, os reinos,
em um primeiro momento, eram seguidores da religião de seu rei ou príncipe.
Quando este mudava de religião, em teoria, todo o reino e os seus súditos
também o faziam. Alguns exemplos do poder e da relação entre religião e
política são emblemáticos: a conversão de Henrique de Navarra (“Paris bem
vale uma missa”) para tornar-se rei da França (nesse caso, a maioria do povo
era católico sem conversão e não haveria condições de assumir e permanecer
no trono); o rompimento de Henrique VIII com a Igreja Católica, por lhe negar
o divórcio, levando-o a criar a Igreja Anglicana, da qual se tornou o chefe;
e o apoio dos príncipes alemães a Lutero, que acabou por permitir que se
livrassem do domínio papal. Voltando ao Antigo Egito e ao seu rápido período
de monoteísmo, veja as conclusões de Cardoso (1990, p. 12):

O faraó Akhenaten, como senhor supremo dos bens do Estado, fechou os


templos e confiscou os seus bens, em seu próprio proveito e no dos santuários
do seu deus Aten, sem encontrar qualquer resistência, já que a concepção e a
tradição da monarquia egípcia lhe davam pleno direito de o fazer. Mais tarde,
morto Akhenaten, outro rei reverteu tais medidas e restaurou os deuses e suas
propriedades: mas não como efeito de uma luta ou resistência do “clero de
Amon”, ou de qualquer outro corpo sacerdotal. A impopularidade da reforma
tentada deve ter influído na decisão de encerrar a experiência; mas foi só
depois de encerrada que se geraram, por monárquica, textos e outras reações
desfavoráveis à mesma e ao rei já falecido que a empreendera.
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Uma diferença que deve ser considerada é a que existe entre as monarquias
egípcias e mesopotâmicas e as siropalestinas. Segundo Cardoso (1990), as
primeiras eram mais estáveis devido à sua ecologia. Por conta de sua alta
produtividade agrícola, da densidade populacional e da mão de obra para
prestar corveias, havia estabilidade, o que permitia a formação de complexos
político-econômicos duradouros. Na região da sírio-palestina, a situação era
diferente. Como o local era menos povoado e produtivo, tornava-se propor-
cionalmente mais complicado para a sociedade manter os luxos e gastos das
monarquias, classes dominantes e burocratas, reduzindo o tempo de duração
desses sistemas — que, embora pareçam mudar, são reconhecíveis — de
milhares de anos no caso do Egito e da Mesopotâmia para centenas de anos
no caso da Siría Palestina, com renovações ocorrendo a partir de guerras,
rebeliões, migrações e invasões (CARDOSO, 1990).

Hititas

Os hititas viviam na Ásia Menor e apresentavam condições bastante diferen-


ciadas em sua estrutura ecológica, com qualidade de pastagens e fertilidade
variada em seu território. Porém, a sua agropecuária era de rendimento inferior
à dos povos mesopotâmicos e egípcios. A sua população era pequena e rarefeita.
Durante a sua história, os hititas sofreram ataques e invasões de diversos
povos que os influenciaram em diferentes dimensões. Os deuses próprios ou
importados de outros povos eram cultuados conforme o rito original e não
se praticava sincretismo. Entre os hititas do período imperial, o rei era tam-
bém, e acima de tudo, o sumo sacerdote mediador entre os deuses e homens,
agindo sob a tutela da divindade; a sua esposa era a sacerdotisa principal.
Ao morrerem, os reis eram divinizados (CARDOSO, 1990).
O Antigo Império Hitita (cerca de 1650 a.C.) surgiu aos poucos a partir da
Anatólia Central, conquistando cidades ou saqueando-as, inclusive a Babilônia
na Baixa Mesopotâmia (1595 a.C.), sem, no entanto, permanecer por longo
tempo na região. Era um reino com problemas internos (lutas dinásticas e
aristocráticas) e externos (adversários). Em 1525 a.C., Telepinush chega ao
trono hitita e estabelece regras dinásticas de sucessão, procurando consolidar
o seu poder e a monarquia. Durante o Médio Império, ocorre a expansão. No
reinado de Supiluliuma I (cerca de 1380 a 1346 a.C.), o reino hitita se transforma
num vasto império com capital em Hattusha (atual Boghazköy). A Ásia Menor,
no entanto, não se unificou politicamente; reinos subordinados aos hititas
possuíam autonomia interna considerável, o que também ocorria com relação
a povos não estatais, como os kasha, asi e kayasa a eles submetidos. A sua
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organização política era em forma de estados confederados, preservando-se


alternadamente por via de casamentos dinásticos, tratados, juramentos ou
guerras punitivas, de forma a “[...] manter o fluxo de tributos e o envio de
tropas auxiliares” (CARDOSO, 1990, p. 53). Havia variação no tratamento
dado às províncias conforme sua importância estratégica e sua localização.
Entre 1306 e 1250 a.C., aproximadamente, hititas e egípcios disputaram a
área da sírio-palestina, chegando a um acordo por conta da pressão exercida
sobre eles pelos assírios. Nesse período imperial, os reis se autorreferiam pela
expressão “meu Sol”; eram sumo sacerdotes, generais supremos, exercendo
ainda as funções de legislador e, se necessário, juiz. É interessante notar a
posição da rainha hitita:

A rainha tinha uma posição própria no Estado e na religião, e uma sucessão


separada (ou seja, só ao morrer a rainha anterior a esposa do soberano atual se
tornava rainha). Ela recebia cartas e intervinha na diplomacia paralelamente
ao rei (CARDOSO, 1990, p. 54).

As mulheres encontraram poder real entre hititas, no reino de Kush, no


período meroítico e no Egito, onde algumas se fizeram faraós e outras inter-
feriram ativamente no governo.

Judeus

Os judeus se consideram o povo eleito pelo deus Yaveh. Moisés seria o homem
escolhido por Yaveh como seu líder, responsável por tirá-los do cativeiro
egípcio. De seu retorno à síria-palestina até o período do pós-exílio babilônico,
os judeus percorreram um longo caminho. Houve episódios de retorno ao
politeísmo e de monolatria, até que chegaram finalmente a um monoteísmo
radical, origem do judaísmo. As regras dessa religião foram desenvolvidas
juntamente à compilação dos textos sagrados salvos da destruição do templo
pelos deuteronomistas durante o exílio.
Suas tribos, já na Palestina, eram governadas por líderes que aos poucos
formaram ligas ou confederações, reunindo-se “[...] em santuários como Gigal
ou Silo para consultar a divindade, Iahweh, por ocasião de certas festas anuais”
(CARDOSO, 1990, p. 62). Nesse período de confederações e ligas, surgiram os
juízes, que emergiam como elementos carismáticos em momentos de crise ou
perigo. Posteriormente, o profeta Samuel unge o primeiro dos reis israelitas:
Saul (cerca de 1020 a 1000 a.C.), sucedido por David (cerca de 1000 a 961
a.C.), que vence os filisteus, também ungido por Samuel.
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Entre os governos de Saul e David, dá-se a formação do Estado dos israeli-


tas. David organiza a administração, a cobrança de impostos e o recrutamento
militar, amplia o território e faz povos tributários e acordos com Hiram, rei
de Tiro, na Fenícia. Ele foi ungido por deus e aclamado pelo povo. Seu filho
Salomão (961–922 a.C.) é escolhido por David em vida como sucessor no trono,
sendo então ungido e aclamado, iniciando assim a hereditariedade na monarquia
israelita. Salomão reinou pacificamente e construiu o templo de Yaveh em
Jerusalém, cidade que David havia conquistado e que se tornou sede do reino.
As religiões dos povos mesopotâmicos, egípcios e hititas tinham em comum
o fato de serem não reveladas, desenvolvidas com base em cultos locais, não
diferenciando as esferas do humano, do divino e do natural. Já o javismo (de
Yaveh) é considerado uma religião revelada: Yaveh, o deus, escolheu o povo
israelita como seu povo e com ele fez uma aliança; ele falou com Moisés, a
quem entregou os mandamentos gravados a fogo celeste em pedra. Yaveh é
visto pelos teólogos israelitas:

[...] como entidade radicalmente heterogênea, descontínua, em relação aos


homens e ao universo que criara. Deus garante a fertilidade e a abundância,
mas não é um deus da fertilidade; comanda os astros e cavalga a tempestade,
sem poder ser, em si, na sua natureza, associado a qualquer destas coisas
(CARDOSO, 1990, p. 67–68).

Além disso, considere o seguinte:

O Deus de Israel não se associa aos acontecimentos repetitivos e até certo


ponto previsíveis da natureza, mas à história, que ele comanda numa forma em
geral inescrutável. Ao contrário das outras civilizações orientais, a israelita era
dotada de um firme sentido de finalidade histórica, garantido pela crença na
providência divina e na aliança com o Deus nacional (CARDOSO, 1990, p. 68).

A teocracia é o regime político decorrente da aliança. É em nome de


Yaveh que líderes carismáticos, juízes e posteriormente monarcas governam,
tributam, fazem guerra, etc. Todos eles tinham de receber tanto sanção divina
quanto aclamação ou eleição humana. Para Cardoso (1990), durante o reinado
de Davi, forjou-se a teoria político-religiosa pela qual uma nova aliança era
realizada vinculando Yaveh, Jesuralém e a casa de David (CARDOSO, 1990).
Durante os séculos seguintes, no que tange ao pensamento do povo hebreu-
-israelita-judeu, em todas as instâncias da vida, tudo está relacionado ao
cumprimento das regras da aliança com Yaveh. Quando descumpridas, este
se afasta e pune o povo.
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Os reis persas, como os mesopotâmicos, reinavam e agiam pela graça e


pelo apoio dos deuses, em especial sob Dario I (521–486 a.C.), vinculado ao
deus supremo Ahuramazda. Sua religião principal, cujo profeta era Zaratustra
(por volta dos séculos VII e VI a.C.) era o zoroastrismo ou mazdeísmo, uma
religião que pregava uma concepção dualista do mundo e que predominou
na região até o advento do islamismo, no século VII d.C. (PINTO, [201-?]).
Com isso, pode-se afirmar que, no Oriente Próximo, religião e política
estiveram sempre entrelaçadas. A única exceção é o povo judeu, cujo deus
Yaveh estava radicalmente separado das demais dimensões da realidade. Yaveh
era seu criador, mas não era parte da criação. A monarquia era ungida, eleita
e aclamada. Nela, o rei algumas vezes assumia o papel de sacerdote. O corpo
sacerdotal se desenvolveu de forma paralela e os profetas tinham ingerência
sobre o todo político, social e religioso. No entanto, nem sempre o palácio e os
sacerdotes concordavam. Embora o rei devesse seguir os ditames da aliança
com Yaveh, não era o mediador entre o deus e os homens.

Gregos e romanos
Coulanges (2006) trata da importância das crenças para os homens da Anti-
guidade, reconhecendo que tais crenças se modificam com o tempo, a partir
das mudanças dos próprios homens. Para Coulanges (2006), é impossível
entender as instituições sem compreender as crenças dos homens. Ele refere-
-se aos cultos familiares — aos mortos, ao fogo sagrado —, aos domésticos
e àqueles da Cidade — aos fundadores, aos deuses da cidade e, na Roma
Imperial, ao imperador.
De acordo com Coulanges (2006), as famílias gregas e romanas foram
constituídas a partir de uma religião primitiva, que estabeleceu algumas pre-
missas: as formas de casamento, a autoridade paterna, os direitos de sucessão
e propriedade. Posteriormente, da associação de famílias, originou-se uma
instituição maior: a cidade (pólis e civita), que herdou os seus princípios da
religião. Tais princípios foram adaptados e modificados, evoluindo ao sabor
das transformações sociais.
Para esse autor, as estruturas mentais dos homens guardam memórias
de outros tempos e crenças que, mesmo não deixando vestígios materiais ou
escritos, se fazem presentes nas estruturas linguísticas. Assim, ele entende
que a partir de tais memórias seria possível conhecer as crenças mais antigas.
Para Coulanges (2006), as crenças dos homens afetaram a constituição da
família e a constituição e as instituições das cidades: religião, política e direito.
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Para Coulanges (2006), a constituição do direito privado foi realizada


da família para a cidade. Caso contrário, seria diferente, posto que talvez
o patriarca não tivesse tanto poder em suas mãos. Ele considera que a ideia
religiosa e a sociedade caminharam juntas. Grupos de famílias gregas forma-
ram frátrias, enquanto as latinas formaram cúrias, concebendo, no momento
em que se uniam, uma divindade superior às domésticas, que pertenceria a
vários grupos, velando por eles. Para essa divindade, criavam altares e cultos,
tornando-a a protetora do grupo. Frátrias e cúrias constituíam assembleias que
tinham direito a promulgar decretos. Crescendo, as associações de frátrias e
cúrias formavam tribos e o processo (altar/culto) se repetia. Em geral, o deus
da tribo era um herói ou um homem divinizado. As tribos tinham assembleia
e tribunal com direito de justiça sobre seus membros.
Aos deuses humanos, antepassados divinizados, provenientes da formação
familiar, somam-se outros deuses que Coulanges (2006) classifica como deuses
de natureza física (Zeus, Hera, Juno, Marte, etc.). Duas religiões distintas,
mas não concorrentes, passam a coexistir: uma, a religão doméstica de cunho
familiar e privado; outra, a religião da cidade, de cunho público, social e
político. Com relação à última, muitas vezes, seus deuses eram apropriados
de forma personalizada pelas famílias.
Da união das tribos (voluntária ou não), surgiram as cidades, tendo como
vínculo constituinte o culto, o fogo sagrado aceso no templo no meio da nova
cidade e uma religião comum. Era erguido um templo (Vesta em Roma e
Primateu entre os gregos) onde ficava o altar da cidade; nele, o fogo sagrado
permanecia sempre aceso. Em Roma, as sacerdotisas de Vesta, as vestais,
eram muito respeitadas e levavam vidas de dedicação exclusiva, sendo pe-
nalizadas caso deixassem o fogo apagar ou cometessem atos que de alguma
forma maculassem o culto ou a sua castidade, o que era entendido como um
perigo para a cidade. Os cultos dos deuses da cidade eram interditados a
estrangeiros. Por sua vez, os sacerdotes eram vinculados às suas cidades e
templos (COULANGES, 2006).
Os deuses das cidades eram força e sustentáculo e estavam presentes em
todas as situações que a ela se referiam: políticas, sociais, culturais, econômicas
e bélicas. Gregos e romanos, especialmente, tinham tanto respeito pelos deuses
das cidades, que antes das batalhas conjuravam seus deuses a não abandonarem
a cidade e faziam agrados e oferendas aos deuses dos inimigos, para que lhes
abandonassem e ficassem ao lado de Roma, pelo que receberiam templos e
cultos. Algumas vezes, os gregos preferiam roubar a estátua dos deuses dos
templos inimigos. As cidades sitiadas, por sua vez, tudo faziam para proteger
seus deuses. Clausewitz (2005, p. 90) afirma “[...] que a guerra é simplesmente
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a continuação da política por outros meios”. No caso dos gregos e romanos, a


religião e a política estavam juntas e eram inseparáveis, posto que os deuses
eram a força e cuidavam da fortuna da cidade. O seu apoio e a sua proteção
eram alvo de suborno ou furto. Dessa forma, pode-se dizer que os antigos
começavam a guerra — continuação da política — pelo ato religioso, não
havendo separação entre religião e política.

Com exceção dos hebreus, em geral, os povos da História Antiga não separavam a
política da religião, nem o divino do humano e do natural. Os casos distintos se devem
à influência da filosofia, em determinado momento na Grécia, e do cristianismo, que
em princípio separa os poderes espirituais dos temporais, mas não deixa de influenciar
a política.

O cristianismo
O cristianismo surge entre os judeus na época da dominação romana. Ini-
cialmente, é considerado mais uma entre diversas seitas judaicas, certamente
incômoda para os sacerdotes judeus, dada a perseguição que sofrem os após-
tolos depois da morte de Jesus. Da Palestina, o cristianismo espalha-se para o
mundo antigo. No norte e no nordeste da África, entre os séculos I e IV d.C., a
religião encontra abrigo e acolhimento para a sua vanguarda intelectual, que,
mais tarde, no século VII d.C., sucumbiria com o advento de outra religião,
o islamismo (BRANCO, 2015). Por volta de 350 d.C., a Etiópia, antigo reino
de Axum, se converte ao cristianismo a partir da conversão do rei Ezana, da
rainha e da família real. Então, os templos dos antigos deuses são transfor-
mados em igrejas.
Com o advento do cristianismo e a sua relação com o Império Romano,
especialmente após se tornar a religião oficial do Império, algumas mudanças
se verificam na relação entre Estado e religião. O governante político não é
mais o pontífice máximo da religião romana e, embora a Igreja Cristã seja a
religião oficial do Império, ela é também universal, portanto sem fronteiras.
Os deuses pagãos, que em geral conviviam em harmonia respeitosa, são
excluídos, considerados falsos ídolos, vencidos pelo poder do deus cristão.
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O imperador e os reis, no entendimento dos cristãos, não são deuses, mas


estão a serviço do deus cristão, empoderados por ele.
O deus cristão, que na época em que Jesus viveu era o mesmo deus dos
judeus (Yaveh), deste se distancia e se diferencia religiosamente, sendo in-
terpretado de outra forma: aquela descrita pelo Novo Testamento, baseada
na doutrina pregada por Jesus e pelos apóstolos. Com a queda de Jerusalém,
a destruição do segundo templo e a diáspora judaica, em 70 d.C., cristãos e
judeus definitivamente se separam. Daí em diante, o cristianismo cresce em
volume de adeptos e em relação às classes que a ele aderem. Torna-se, assim,
a religião oficial do maior império daqueles tempos.
Para além do Império, e antes mesmo de conquistá-lo, a religião já havia
se espalhado pelo norte da África e por diversos pontos do Oriente. Também
se infiltrara entre os povos bárbaros. O cristianismo adquiriu força espiritual
e moral e moldou consciências, inclusive as dos senhores do poder. Nos anos
finais de Roma, o cristianismo já havia convertido muitos reis e chefes “bár-
baros”. Assim, a religião se converteu numa potência espiritual e temporal,
de modo que a política se realizava dentro e fora da Igreja. Em síntese, o
cristianismo adquiriu poder e estrutura financeira.
Para Friguetto (2010), na Antiguidade Tardia, época de grandes transforma-
ções religiosas, políticas, sociais, culturais e econômicas, o cristianismo foi um
dos elementos principais que contribuíram para o processo de transformação e
renovação ocorrido. O cristianismo católico serviu como veículo de afirmação
de poder político durante a Antiguidade Tardia. Se os imperadores, a partir
dos concílios de Niceia (325 a.C.) e Constantinopla I (381 a.C.), se tornam
defensores da comunidade dos homens, também se vinculam ao divino por
meio da fé. Dessa forma, o imperador aparece como “eleito”, escolhido como
representante da unidade da eclésia. Com o fim do Império, duas figuras
despontam como substitutas no que tange à defesa e à manutenção da unidade:
bispos e monarcas romano-bárbaros (rex). Friguetto (2010, p. 126) pontua que
a sociedade política na Antiguidade Tardia era composta por um:

[...] conjunto de indivíduos detentores de importantes cargos e funções políticas,


administrativas e militares, integrantes dos grupos sociais mais destacados,
inclusive do ponto de vista cultural, das instituições políticas existentes na
Antiguidade Tardia, como o império e os reinos. Aqui encontramos os partí-
cipes das aristocracias regionais de origem senatorial romana e pré-romana,
que envolviam tanto os segmentos laicos como os eclesiásticos, ao lado dos
líderes tribais bárbaros presentes, de forma efetiva, desde os primórdios do
século V nos territórios romanos ocidentais. Foram estes grupos políticos e
12 A História Antiga: recortes, temas e fontes

sociais os maiores interessados pela construção de princípios teóricos e ide-


ológicos que defendiam a noção de unidade presente no discurso eclesiástico
desde Niceia com uma lógica extensão ao conjunto das instituições políticas
e sociais que indicavam o imperador, o rei e o bispo como responsáveis pela
preservação unitária do universo político e religioso no ocidente tardo-antigo.

O autor refere-se a cristianismos que podiam ser entendidos como legítimos


ou não. De qualquer forma, forneciam uma:

[...] explicação lógica sobre a natureza do Deus cristão e a sua conexão ao


mundo terrestre, especialmente seu vínculo com a máxima autoridade política
e secular, legitimando-a e, em teoria, fortalecendo-a ideologicamente diante
das ameaças existentes (FRIGUETTO, 2010, documento on-line).

O bispo era a figura mais emblemática e representativa dessa ideia.


Num período em que a alteridade e a identidade, a heresia e o paganismo,
a civilização e a barbárie eram conceitos em conflito e em busca de definição,
ser cristão podia estar muito próximo de ser civilizado, urbano, conhecedor
da lei e da fé. Por outro lado, os que se retiraram para o mundo rural eram
tidos como camponeses, rústicos, agrestes, cultuadores de ídolos e pagãos.
Os “homens santos cristãos” buscam no ambiente rural e nas dificuldades que
apresenta tanto se aperfeiçoar quanto combater o paganismo.
Desde o século III a.C., o Império vinha assinando tratados e fazendo
alianças com povos bárbaros, criando novos foedus. Ele utilizava esses povos
tanto nos limes quanto no exército, internalizando-os. Muitos desses povos se
tornaram cristãos (católicos ou arianos), embora nem todos os clãs aceitassem
o cristianismo, o que resultou em conflitos internos. Para Friguetto (2010),
a evangelização e a conversão de bárbaros ao cristianismo (em especial ao
cristianismo ariano), principalmente no século IV d.C., tem a ver com uma
busca, por parte desses povos, de “[...] inserção e aceitação no interior da
romana civitas” (cidadania romana, no caso, indicando a busca por aceitação
de sua cidadania legal para que se torne real ante os romanos) (FRIGHETTO,
2010, documento on-line). Entre bárbaros, cristãos e pagãos, constrói-se a
diferença: uns cristianizados e interiorizados no território imperial e partícipes
da romana civitas e outros que, permanecendo pagãos, continuam considera-
dos “bárbaros”, “incivilizados”. Nesse caso, religião e política permanecem
caminhando juntas, como elementos complementares entre si, sem relação
de subalternidade.
A História Antiga: recortes, temas e fontes 13

Na Antiguidade Clássica, não parece ter havido o que se conhece hoje como Estado
laico. Religião e Estado andavam de mãos dadas, quando não eram representados
por um único elemento real ou família. A Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média
demonstram que mesmo a separação entre Estado (reino, império) e Igreja não significa
realmente uma divisão entre a religião e o poder governante temporal. Essa ligação se
torna evidente em 800 d.C., quando Leão III (750–816), após solicitar e receber a ajuda
de Carlos Magno (747–814), o rei dos francos, o coroa como imperador romano, o que
sob vários aspectos foi uma demonstração do poder da Igreja.

Os deuses, a política e os sacrifícios


Como você viu, para os povos da Antiguidade, política e religião eram uma
dimensão contínua, sem divisas claras (embora pudessem parecer separadas,
por exemplo, no binômio palácio/templo). Também é necessário reconhecer
que, até advento do cristianismo, as demais religiões, além de orações, ofe-
reciam aos seus deuses: fogos, frutas, alimentos da terra, água e sacrifícios
de diversos tipos de animais (em alguns casos, até de seres humanos). Não
orar, não oferendar e não sacrificar aos deuses, ou seja, não respeitá-los, eram
atitudes consideradas impiedades e podiam causar diversos transtornos: fomes,
guerras, perdas, doenças, pestes, morte, destruição.
A literatura, a mitologia e as escavações apontam para a realização de
sacrifícios humanos de diversos tipos. Os sacrifícios não eram meros assas-
sinatos, mas rituais em que se oferecia a vítima como algo que, se já não era
sagrado, sacralizava-se no próprio ritual. Na Íliada, de Homero, por exemplo,
para vencer a Guerra de Troia, Agamenon, o líder dos gregos, sacrifica a
sua filha Ifigênia à deusa Ártemis para vencer a guerra. Nenhuma rogativa
da esposa ou da filha foi capaz de demovê-lo. Agradar a deusa para obter a
vitória dos gregos sobre Troia era mais importante do que a própria família.
O preço de sangue foi cobrado a Atenas pelo rei Minos, de Creta, cujo
filho Androgeu, campeão dos jogos ginásticos, havia sido assassinado por
rivais atenienses (PLATÃO, 1991; CANDIDO, 2007). A compensação foi
exigida na forma do envio periódico de sete moços e sete moças atenienses
a serem sacrificados ao Minotauro em seu labirinto. Isso se repetiu até que
Teseu, um jovem ateniense determinado a pôr fim ao Minotauro, embarcou
junto aos demais destinados ao sacrifício com a finalidade de matar o mons-
tro. Ao chegar a Creta, foi visto por Ariadne, filha de Minos e Pasífae, que
14 A História Antiga: recortes, temas e fontes

se apaixonou por ele, entregando-lhe um novelo e permitindo que, por uma


artimanha, conseguisse entrar no labirinto, derrotar o Minotauro e sair de lá
vivo (BULFINCH, 2002; GRIMAL, 2009).
Os faraós egípcios, dada a sua crença em outra vida em que tudo era melhor,
construíram pirâmides e tumbas. Nelas, para além das pinturas de cenas do
processo de passagem ao outro mundo, das cerimônias, dos textos de evoca-
ção e invocação, das oferendas aos deuses e das representações da vida no
além, eram colocados o enxoval mortuário e comidas e bebidas. Inicialmente,
também eram enterrados nas tumbas — sacrificados — servos que pereciam
para servir aos faraós na outra vida. Aos poucos, contudo, o corpo dos servos
foi sendo substituído pelos shabti ou ushabti, “pequenas estatuetas, colocadas
nas tumbas, representando servos cuja função era substituir o morto em seus
trabalhos na pós-vida”.
Os fenícios e cartagineses praticavam sacrifícios humanos ou “sacrifícios
Moloc” (KORMIKIARI, 2017), além de sacrifícios infantis. Eles consideravam
tais sacrifícios rituais de devoção, que também se refletiam em uma posição
privilegiada da sociedade junto aos deuses. Embora pesquisadores discutam se
o que havia era sacrifício infantil ou uma necrópole para crianças, a tendência
é considerar que realmente havia espaços da sacrifício de crianças e animais
aos deuses Baal Harmom e Tanit (KORMIKIARI, 2017).

Moloc (2019) é o nome de um antigo deus amonita. A adoração de Moloc foi praticada
pelos cananeus, pelos fenícios e por culturas relacionadas no norte da África e no
Levante. Como um deus adorado pelos fenícios e pelos cananeus, Moloc estava
associado com um tipo especial de sacrifício infantil propiciatório realizado pelos pais.

Arqueólogos encontraram diversos tofetes, espaços sagrados, cercados e


abertos onde eram depositadas:

[...] urnas contendo bebês ou crianças muito pequenas e/ou animais bebês,
normalmente cordeiros, cremados, por vezes sob marcadores de pedra (as
chamadas estelas), e com vários tipos de altares, capelas e outros tipos de ins-
talações de culto ali posicionados. (KORMIKIARI, 2017, documento on-line).
A História Antiga: recortes, temas e fontes 15

Na Bíblia, uma peroração demonstra que o deus dos judeus, Yaveh, des-
gostava dos atos que vinham sendo praticados:

Porque os filhos de Judá fizeram o que era mau aos meus olhos, diz o Senhor;
puseram as suas abominações na casa que se chama pelo meu nome, para
contaminá-la.
E edificaram os altos de Tofete, que está no Vale do Filho de Hinom, para
queimarem no fogo a seus filhos e a suas filhas, o que nunca ordenei, nem
me subiu ao coração.
Portanto, eis que vêm dias, diz o Senhor, em que não se chamará mais
Tofete, nem Vale do Filho de Hinom, mas o Vale da Matança; e enter-
rarão em Tofete, por não haver outro lugar (JEREMIAS, 7:30-32, 2019,
documento on-line).

Disso é possível concluir que, além dos fenícios, parte dos judeus tam-
bém praticava sacrifícios humanos. Em Levítico (18:21, 2019, documento
on-line), aparece uma ordem de Yaveh: “E da tua descendência não darás
nenhum para dedicar-se a Moloque, nem profanarás o nome de teu Deus.
Eu sou o SENHOR”. César relata que celtas realizavam sacrifícios humanos
aos deuses e ofereciam a Marte todo o “butim animado”. Diodoro da Sicília
e Estrabão também relatam sacrifícios humanos realizados aos deuses pelos
celtas (MARCO-SIMÓN, 1999). Langer (2004) estuda sacrifícios humanos
entre os vikings. Segundo as suas pesquisas, os escravos, por sua condição
jurídica entre vikings até o cristianismo, eram considerados seres semelhantes
aos animais, sendo por isso a maior parte das vítimas imoladas, juntamente
a prisioneiros de guerra e criminosos.
Na Anatólia (atual Turquia), durante a ocupação celta, no período helenís-
tico (cerca de 360 a 110 a.C.), também eram praticados sacrifícios humanos
cujos vestígios físicos foram encontrados na cidade de Gordion, em uma
microrregião denominada Lower Town. Posteriormente, no período romano,
os vestígios indicam que eram realizadas práticas funerárias de enterramento
de tipo convencional (CARDOSO, 2014). Especialistas e estudiosos do
assunto são capazes de diferenciar por meio de análises a morte sacrificial
do enterramento.
16 A História Antiga: recortes, temas e fontes

Como você viu, na Antiguidade, o sacrifício humano esteve presente em algumas so-
ciedades: fenícia, cartaginesa, grega, celta da Anatólia, númida, egípcia. Não cabe ao
pesquisador julgar tais práticas, mas compreendê-las a partir do contexto histórico-cultural
em que eram realizadas. Como ensina Carr (1978 apud LANGER, 2004), “O historiador sério
é aquele que reconhece o caráter de todos os valores historicamente condicionados,
não aquele que reivindica para seus próprios valores uma objetividade acima da história”.

O trabalho compulsório e a escravidão


na História Antiga
A escravidão parece ter surgido quando o homem se deu conta de que po-
deria submeter outros à sua vontade. As teorias sobre a escravidão mais
antiga supõem que ela começou com o desenvolvimento das sociedades. Nas
sociedades antigas, era usual o estatuto da escravidão. Ela se dava por meio
de condições diversas: guerra, dívidas, crimes. Além disso, podia apresentar
várias faces: escravidão urbana, rural, sexual, para prestação de serviço nas
galés, construção civil, minas. Ademais, podia apresentar diversificados níveis
de direitos: de nenhum a quase todos menos a liberdade.
A escravidão era legislada pelo menos desde Hammurabi e, antes disso,
organizada pelos costumes. O escravo era o outro, o estrangeiro, na maioria
das vezes. Porém, no caso da escravidão por dívidas ou por crime, o escravo
podia ser compatriota, tornado outro devido à sua condição. A escravidão
podia ser uma condição individual ou coletiva. Sendo coletiva, referia-se a
um grupo de soldados, por exemplo, ou a uma cidade ou nação.
Entre os filósofos da Grécia Antiga, Platão concebia e defendia a escra-
vidão, mas não que se escravizassem gregos. Aristóteles refletia que há os
que nascem para ser livres e mandar e os que nascem para ser escravos e
obedecer. Ao mesmo tempo, admitia exceções. Segundo Anderson (1991, p.
23), Aristóteles também observava que os Estados tendiam a conter grande
número de escravos. Para Xenofonte, uma das formas de reconstituir as fortunas
atenienses era que o Estado possuísse “[...] escravos públicos até que houvesse
três para cada cidadão ateniense”.
Entre o povo hebreu, as regras eram bem definidas tanto em relação à
escravidão do estrangeiro e ao direito dos herdeiros sobre os escravos quanto
no que tange à escravização de judeus por outros povos ou pela venda de si
mesmo. Veja como a dinâmica se dava entre judeus:
A História Antiga: recortes, temas e fontes 17

Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra
de Canaã, para ser vosso Deus. Quando também teu irmão empobrecer, estando
ele contigo, e vender-se a ti, não o farás servir como escravo. Como diarista,
como peregrino estará contigo; até ao ano do jubileu te servirá; então sairá
do teu serviço, ele e seus filhos com ele, e tornará à sua família e à possessão
de seus pais. Porque são meus servos, que tirei da terra do Egito; não serão
vendidos como se vendem os escravos. Não te assenhorearás dele com rigor,
mas do teu Deus terás temor (LEVÍTICO, 25:38-43, 2019, documento on-line).

Entre judeus e estrangeiros:

Quanto a teu escravo ou a tua escrava que tiveres, serão das nações que estão
ao redor de vós; deles comprareis escravos e escravas. Também os comprareis
dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós, deles e das suas famílias
que estiverem convosco, que tiverem gerado na vossa terra; e vos serão por
possessão. E possuí-los-eis por herança para vossos filhos depois de vós,
para herdarem a possessão; perpetuamente os fareis servir; mas sobre vossos
irmãos, os filhos de Israel, não vos assenhoreareis com rigor, uns sobre os
outros (LEVÍTICO, 25:44-46, 2019, documento on-line).

Entre estrangeiros e judeus:

E se o estrangeiro ou peregrino que está contigo alcançar riqueza, e teu irmão,


que está com ele, empobrecer, e vender-se ao estrangeiro ou peregrino que está
contigo, ou a alguém da família do estrangeiro, depois que se houver vendido,
haverá resgate para ele; um de seus irmãos o poderá resgatar (LEVÍTICO,
25:47-48, 2019, documento on-line).

No entanto, o livro anterior ao Velho Testamento, o Êxodo, legisla de modo


diferente, demonstrando claramente que havia escravidão entre judeus:

Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas ao sétimo sairá livre,
de graça. Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá; se ele era
homem casado, sua mulher sairá com ele.
Se seu senhor lhe houver dado uma mulher e ela lhe houver dado filhos ou
filhas, a mulher e seus filhos serão de seu senhor, e ele sairá sozinho. Mas se
aquele servo expressamente disser: eu amo a meu senhor, e a minha mulher,
e a meus filhos; não quero sair livre, então seu senhor o levará aos juízes, e
o fará chegar à porta, ou ao umbral da porta, e seu senhor lhe furará a orelha
com uma sovela; e ele o servirá para sempre.
E se um homem vender sua filha para ser serva, ela não sairá como saem os
servos. Se ela não agradar ao seu senhor, e ele não se desposar com ela, fará
que se resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, agindo deslealmente
18 A História Antiga: recortes, temas e fontes

com ela. Mas se a desposar com seu filho, fará com ela conforme ao direito
das filhas. Se lhe tomar outra, não diminuirá o mantimento desta, nem o seu
vestido, nem a sua obrigação marital. E se lhe não fizer estas três coisas, sairá
de graça, sem dar dinheiro (ÊXODO 21:2-11).

Havia hierarquia entre os escravos dos judeus. Os judeus escravos estavam


hierarquicamente acima dos escravos estrangeiros. Entre estes, os netínim
— “escravos sagrados”, aqueles que serviam no templo — eram superiores
(CAMPOS, 2007). Outro tipo de escravidão muito comum no Oriente era aquela
resultante da venda direta de crianças, fosse praticada em forma de venda ou
de adoção, realizada por contrato. Havia também a autovenda, realizada para
saldar dívidas ou em troca de roupa e comida.
Os escravos eram marcados fisicamente de maneiras diversas. As condições
referentes a casamentos, filhos e direitos diversos, inclusive o de comprar-se
a si mesmo e os referentes à herança e à manumissão, variam conforme a
sociedade e a época; em geral, são legislados. Há sociedades em que os escra-
vos desempenham um papel econômico importante, e outras em que as suas
funções não impactam a economia. Em outras ainda, os escravos convivem
com os senhores como “parte da família”, ou, por serem mulheres e crianças,
acabam se agregando à tribo.
No Egito, os escravos não causam grandes impactos na economia, e as
grandes obras são realizadas por corveia. A corveia é um entre vários tipos de
trabalho compulsório, como a peonagem, a clientela, o colonato e a servidão.
A escravidão é a sua face mais terrível. Em Roma, os escravos fazem toda a
diferença em tempos imperiais. A redução de seu número, ocasionada pelo
término da expansão territorial e pela ampliação da cidadania, foi um dos
fatores que colaboraram para o declínio da economia romana. Outros povos,
como judeus, a depender da ocasião, podiam se ver forçados a prestar serviços
de corveia ou impô-los a outros. Na Antiguidade Tardia, o colonato, prévia da
servidão, também se enquadra na categoria de trabalho compulsório.
Para Anderson (1991), embora a escravidão existisse no mundo antigo sob
várias formas — com relação ao Oriente Próximo, ele chama de juridicamente
“impuras” (servidão por débitos ou trabalho penal, entre outros tipos) —, “[...]
o modo de produção escravo foi uma invenção decisiva do mundo greco-
-romano, que constituiu a base definitiva tanto para suas realizações quanto
para seu eclipse” (ANDERSON, 1991, p. 21). Para ele, as cidades gregas foram
as responsáveis por tornar “[...] a escravidão absoluta na forma e dominante
na extensão, transformando-a assim de um sistema auxiliar em um modo
sistemático de produção” (ANDERSON, 1991, p. 21). Esse modo de produção
foi dominante tanto na Grécia Clássica quanto em Roma.
A História Antiga: recortes, temas e fontes 19

No Império Romano, do final do século III ao século V, as soluções pas-


saram pelos foedus, que assentavam bárbaros nas terras, e pelo cololonato,
legislado pelo Império como forma de manter braços no campo e, com isso,
a produção, a tributação, a ocupação dos espaços de forma útil, entre outros
fatores. A escravidão também era um comércio. Os cartagineses comercia-
vam escravos a longa distância. Os escravos de guerra, muitas vezes, faziam
parte do “butim” de alguns graduados dos exércitos, que ficavam com eles
ou os vendiam. Mulheres e crianças eram vendidas para fins de casamento,
prostituição ou concubinato. Quando necessitavam de braços, os judeus com-
pravam escravos aos seus vizinhos (CAMPOS, 2007). A escravidão penal
era uma forma de aproveitar o criminoso em serviço útil à sociedade em vez
de prendê-lo.
Em suma, diversas formas de trabalho compulsório e escravidão foram
praticadas na Antiguidade. E houve várias formas de legislar sobre o assunto,
que não ficava descuidado pelos governos. Há situações interessantes, como
o caso dos gregos, que, por sua cultura, eram empregados pelos romanos na
educação de seus filhos. Os escravos podiam ser tratados como animais, como
bens móveis, como humanos inferiores ou como quase iguais aos livres. Uma
série de fatores interferia para gerar este ou aquele tratamento. Assim, apesar
de hoje ser extremamente condenada, na Antiguidade, a escravidão era aceita
como algo normal.

Atualmente, em alguns lugares, ainda se apreendem e vendem pessoas como escravas


de forma aberta ou velada. O tráfico de pessoas continua a existir. A escravidão sexual, a
escravidão infantil e os trabalhos compulsório, forçado e semiescravo são encontrados
em vários lugares do globo. Infelizmente, em muitos casos, a ideia de direitos humanos
é totalmente desconsiderada ou desconhecida; ou, ainda pior, só vale para alguns.

Cinema e História Antiga


O cinema vem retratando a Antiguidade há muito tempo. Alguns dos mais
famosos clássicos do cinema são filmes épicos que giram em torno desse
período histórico, como Cleópatra, Julio César e Ben-Hur. Muitas dessas
obras têm sido regravadas como filmes e séries. Elas discutem não apenas
20 A História Antiga: recortes, temas e fontes

o episódio central que inspira a produção (como a escravidão e a revolta em


Spartacus), mas outras questões de fundo cultural, social, político e religioso.
Além do cinema, as histórias em quadrinhos adaptam muitos episódios da
História Antiga; considere, por exemplo, os casos de Asterix e dos Trezentos
de Esparta.

O filme Apocalypto, de Mel Gibson, busca retratar, embora de forma romantizada, a


civilização maia. A produção destaca os costumes, a cultura, a religião e a política
daquele povo, bem como as suas relações de dominação para com outros povos.
Apocalypto traz um detalhe interessante: é falado na língua dos povos da época.

Os filmes sobre a Antiguidade servem como base para análises sobre a


História Antiga, porém devem ser encarados, naturalmente, como ficções
sobre eventos históricos. Eles apresentam situações, sociedades e culturas, mas
não estão restritos ou comprometidos com a fidelidade à realidade histórica.
Trabalhar com cinema em sala de aula requer alguns reconhecimentos por
parte dos professores. Os alunos devem compreender que a imagem (e não
apenas a imagem fílmica) não é somente ilustração, não é algo que apenas
reproduz a realidade; ela a reconstrói por meio de uma linguagem própria que
é produzida num dado contexto histórico.
No momento em que a história se abriu a novos tempos, novas contribuições,
novos campos e novas fontes, o filme, nas suas diversas tipologias (ficção,
documentário, cinejornal, etc.), adquiriu importância. Ele pode ser utilizado
como fonte para apreciação e compreensão de valores, comportamentos, visões
de mundo, identidades e ideologias de dadas sociedades (KORNIS, 1992).
Tudo, no entanto, deve ser contextualizado: não somente o filme produzido,
mas também o momento histórico de sua produção, os seus realizadores, as
mensagens enviadas, etc.
Como você sabe, o mundo contemporâneo é caracterizado pela alta tecno-
logia, que permite o uso de imagens, a sua análise e a sua crítica em sala de
aula. Mas a inclusão do filme como instrumento didático requer preparação
por parte do professor, tanto em relação à sua formação quanto à sua prática.
Considere o seguinte:
A História Antiga: recortes, temas e fontes 21

Um trabalho com o uso de imagens na formação do professor de História


tem que privilegiar, além das reflexões relativas ao novo estatuto teórico
desse campo de conhecimento, pelo menos duas perspectivas consideradas
relevantes para a prática de sala de aula. Uma delas é considerar as imagens
como documento histórico e a outra é atentar para o seu estatuto enquanto
recurso imagético, com uma linguagem cuja especificidade requer tratamento
próprio, sejam as imagens móveis como o filme, ou imóveis, como a fotografia,
a publicidade, o cartaz etc (SCHMIDT, 2002, p. 175).

O estudo de Gimouski (2009) sobre o uso das televisões multimídias em


escolas públicas do Paraná complementa a ideia. A utilização desse tipo de
recurso didático, principalmente nas aulas de história, se tornou uma estratégia
comum. Veja:

Muitos jovens e até mesmo adultos têm contato com certos temas históricos
apenas pelo cinema e, diga-se de passagem, entendem como uma verdade
histórica. O cinema nos transmite esta sensação do real. A linguagem audio-
visual consegue trabalhar com a emoção e traz a impressão de realidade. A
noção de documento na História vem aumentando, todos os vestígios deixados
pela humanidade são dignos de análise e servem de objeto de estudo para o
historiador, o cinema inclui-se nestes novos documentos (GIMOUSKI, 2009,
documento on-line).

Para Carvalho e Funari (2007), os estudos da História Antiga e, consequen-


temente, os historiadores antiquistas foram beneficiados pela nouvelle histoire,
que permitiu a pesquisa de novos temas, assim como pela expansão da história
cultural a partir da década de 1990. A isso se somam o desenvolvimento de
novas tecnologias e as possibilidades de análises a partir das filmografias.
Assim, há boas oportunidades de utilizar esse instrumental imagético e fílmico
em sala de aula, desde que haja interesse e preparo por parte dos professores.
Em especial, são necessárias práticas como:

O respeito pelo trato documental, sua datação e autoria, críticas internas e


externas dos discursos, sua linguagem metafórica, enfim, a desconstrução do
discurso [...] Sempre aliados ao conhecimento documental e historiográfico,
os investigadores antiquistas escolherão seus métodos, técnicas e teorias de
abordagem, associando tais interpretações à análise iconográfica e à cultura
material (CARVALHO; FUNARI, 2007, documento on-line).

Com relação à crítica das fontes, pode-se inserir a filmografia e a sua


análise. Também é importante perceber que imagens e filmes são fontes para
além de sua óbvia função de “ilustrar e representar” uma realidade (política,
22 A História Antiga: recortes, temas e fontes

social, cultural, etc.). Elas expressam igualmente os imperativos históricos


vigentes no momento de sua produção.
Assim, cabe ao professor escolher o filme (ou trecho de filme) adequado.
Para isso, ele deve considerar roteiro, diálogos, cenários, objetos, vestimen-
tas, costumes reais da época, tecnologias, etc. Também é tarefa do professor
verificar as condições técnicas (salas, equipamentos, tomadas). Além disso,
ele deve decidir que uso fará do filme. Ele pode, por exemplo:

 utilizar a história contada para fazer paralelos entre a interpretação


fílmica da história e a história real, como meio de chamar a atenção
para determinadas instituições (políticas, religiosas, sociais) ou aspec-
tos culturais e econômicos (arte, cerâmica, indústrias, vestimentas,
ferramentas, armamentos, navios);
 apresentar as representações realizadas pelos homens de cada época e
mostrar como são encaradas por cineastas de diferentes períodos, para
levantar um debate sobre uma temática ou temporalidade determinada.

As séries Vikings, Roma, Rei Tut, Troia, A legião, A legião perdida, Asterix,
Gladiador, Júlio César, Spartacus, Roma: Império de sangue, por exemplo,
têm em comum o fato de tentarem retratar a Antiguidade. Por meio delas, o
professor pode levar os alunos a se interessarem pelo assunto, partindo da ficção
e da história romantizada e fazendo uma ponte para introduzir o conteúdo
histórico. Para além disso, as representações de algumas produções resultam
de pesquisa e têm acompanhamento de especialistas em Antiguidade. Desse
modo, diversas obras de ficção possibilitam a realização de um bom traba-
lho em sala de aula quanto a costumes, crenças, moda, escravidão, política,
etc. Como você sabe, nunca é possível reproduzir fielmente a história, mas
ferramentas como o cinema são capazes de despertar o interesse dos alunos.
Em geral, a Antiguidade é retratada como uma época glamourosa, cheia
de valores como honra, fidelidade, lealdade e cumprimento do dever, além de
ideais de glória, piedade, sacrifício e martírio (em especial em filmes sobre
o cristianismo). Considere o seguinte:

A História Antiga no Brasil, durante muito tempo, esteve associada a um plano


secundário. Civilizações exóticas e pouco importantes, há muito desaparecidas,
direcionadas por um sentimento romântico e pela curiosidade. O cinema tratou
de reforçar esse romantismo exacerbado sobre o tema. Amor e aventura em
um mundo perfeito, sem pobreza, miséria, fome. Apenas homens musculo-
sos e mulheres curvilíneas. Hollywood, desde os primórdios da História do
Cinema, tratou de absorver essa ideia (CARLAN, 2010, documento on-line).
A História Antiga: recortes, temas e fontes 23

Apesar da acertada crítica de Carlan (2010), em sala de aula, um olhar


direcionado pelo professor permite que os alunos percebam, entre os ele-
mentos retratados nos filmes, a vida dura do povo, bem como as suas formas
de reagir a situações como escravidão, fome, doenças, violência da guerra e
do cotidiano, traição, ambição, ganância, fé, etc. O direcionamento do olhar
deve ser realizado pelo professor. Por isso, o conhecimento prévio tanto da
obra fílmica quanto da história real e de seus detalhes é fundamental para o
trabalho didático com filmes em sala de aula.

Para Ferro (1992, p. 13), no cinema, como em outros textos e fontes, sempre está em jogo
a intencionalidade de escritores, produtores e diretores: “Desde que o cinema se tornou
uma arte, seus pioneiros passaram a intervir na história com filmes, documentários ou de
ficção, que, desde sua origem, sob aparência de representação, doutrinam e glorificam”. Se
você analisar com atenção, a própria escolha do que filmar em cada época corresponde a
uma imagem, mensagem ou ideologia que se quer divulgar para o público. As abordagens
cinematográficas, assim como as das ciências, impactam os resultados do texto, posto
que o seu ponto de vista é construído de lugares diferenciados.

Há uma extensa filmografia sobre os deuses antigos e a sua interferência no


mundo dos humanos. Igualmente, são retratadas histórias bíblicas de diferentes
épocas. Filmes como Os dez mandamentos, Êxodo: Deuses e Reis e Noé versam
sobre as histórias dos judeus, de Jesus e dos cristãos. A história de Moisés virou
desenho animado, alcançando o público infantil, e outras histórias bíblicas se-
guem o mesmo caminho. No Brasil, vêm sendo produzidas novelas e séries sobre
as histórias bíblicas. Embora de viés teológico, com algum esforço, essas obras
permitem a introdução da história dos judeus, de sua religião monoteísta e do
nascimento do cristianismo. Como em todos os demais casos, cabe ao professor
separar a história fundamentada pelas pesquisas daquela ainda por esclarecer, ou
seja, do que é mito, fantasia ou inverdade. Nesse sentido, é necessário diferenciar
o que é história do que é construção religiosa, ideológica ou comercial. Esta é
uma questão importante: como as crenças religiosas de cada época interferem
no pensamento social, nos atos culturais, políticos e econômicos?
Quando se separa o histórico do romantizado e do fantasioso e se distingue a
ideologia apresentada pelos filmes, é possível comparar imagens representativas
e realidades históricas. Na última gravação de Troia, o diretor buscou evitar
24 A História Antiga: recortes, temas e fontes

a referência aos deuses e às suas interferências, disputas e guerras paralelas,


deixando a história de Troia na conta das decisões e realizações dos homens.
Isso, por um lado, permite observar a história da Guerra de Troia por um viés
menos religioso, mas, por outro, retira da produção o pensamento religioso
que estava internalizado, naturalizado nos homens da Antiguidade, vinculado
à política e às práticas sociais.
Você ainda deve considerar que os filmes permitem perceber a visão sobre
a Antiguidade que se tinha na época em que foram produzidos. Para perceber
isso, é necessário atentar aos fatores são privilegiados em cada filmagem sobre
o mesmo tema. Muitas perguntas podem ser feitas, como você pode ver a seguir.

 Quais são as intencionalidades envolvidas?


 Que tipo de propaganda e “ideal” são oferecidos ao público?
 O que muda entre as gravações de épicos hollywoodianos do século
passado e os filmes sobre a Antiguidade do século XXI?
 Por que os temas da Antiguidade voltam a ser gravados, inclusive
virando séries?

Naturalmente, há um público consumidor amplo interessado na História


Antiga. Além disso, as tecnologias atuais permitem inúmeros efeitos especiais
antes impossíveis e muito custosos (considere, por exemplo, a quantidade de
pessoas que era necessário contratar para cenas de batalhas, hoje produzidas
por meio de programas de computador, com custo reduzido).
Outro tipo de filme, em geral mais apropriado para as aulas, porém nem
sempre atrativo para os alunos, é o documentário. Os documentários, prin-
cipalmente aqueles que conseguem equilibrar boas imagens e uma narrativa
que não seja monótona ou muito técnica, são capazes de prender a atenção
e despertar o interesse dos educandos. Eles podem ser utilizados como con-
traponto e elemento de comparação em relação à história romantizada nos
filmes. Documentários de arqueólogos costumam ser muito bons para tratar
da cultura material em sala de aula, mostrando-a como uma importante fonte
de informação sobre a história dos povos.
Em suma, é possível fazer um bom trabalho utilizando filmes como recurso
didático em sala de aula. Para isso, as representações da Antiguidade precisam
passar por uma crítica severa. Também é necessário comparar o mundo antigo
expresso pelos produtores nas imagens e nos diálogos com a Antiguidade
histórica real. Além disso, é preciso apontar anacronismos, explicitar a diver-
sidade das sociedades e, no interior delas, relacionar elementos do passado
com suas rupturas e permanências até o presente.
A História Antiga: recortes, temas e fontes 25

A seguir, veja alguns filmes sobre temas clássicos da Antiguidade.


 Spartacus (1960), de Stanley Kubrick
 Cleópatra (1963), de Joseph L. Mankiewicz
 Quo Vadis (1951), de Mervyn LeRoy
 Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille
 Ben-Hur (1959), de William Wyler
 Os 300 de Esparta (1962), de Rudolph Maté
 Alexandre (2004), de Oliver Stone
 Troia (2004), de Wolfgang Petersen
 Gladiador (2000), de Ridley Scott
 Helena de Troia (2003), de John Kent Harrison
 Pompeia (2014), de Paul W. S. Anderson

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