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A Origem do Mito de Deus e o Desenvolvimento do Cristianismo

Por Tali De Mavie

Para entender a origem do mito de Deus, é crucial examinar o contexto histórico no qual ele surge. Por volta de 4000-
3000 a.C., os Semitas - diversas pequenas populações nômades do deserto que compartilhavam apenas semelhanças
linguísticas - eram poucos desenvolvidos em relação as inovações tecnológicas da época, como o domínio dos metais e
agricultura, o avanço da arquitetura e o advento da escrita e da moeda. Essas comunidades enfrentaram um grande choque ao
entrar em contato as avançadas civilizações mesopotâmicas e desejo de desfrutar desse novo mundo.

Nessas grandes civilizações a realidade material e o universo sagrado se fundiam. Os líderes sociais eram considerados
divindades ou descendentes delas, e suas posições eram inquestionáveis. As crenças religiosas ditavam a autoridade e a ordem
social, em um regime autoritário caracterizado pela servidão e a escravidão.

Os Semitas - em destaque os hebreus - tentaram estabelecer-se nas margens férteis dos rios das bacias mediterrâneas.
Mas, muitas vezes falharam e foram escravizados pelas grandes civilizações. Durante cerca de 1000 anos, essas populações
permaneceram divididas por crenças individuais, sem uma identidade unificadora, o que resultou em fraqueza coletiva.

Em resposta à esse contexto, surge os contos de Abraão - embora não haja evidências históricas concretas de sua
existência. A pedra dos Dez Mandamentos é notavelmente inspirada no Código de Hamurabi do Império Babilônico, o qual os
hebreus habitavam sob regime de servidão. Para criar uma identidade espiritual unificadora, os Semitas conceberam um Deus
imaterial, inatingível e criador de tudo, mais poderoso do que os deuses e semideuses que governavam o Mediterrâneo.

Por volta de 1700 a.C., os patriarcas semitas, cansados da exploração do regime, decidem deixar a Babilônia e migrar
para o Egito, onde se juntaram aos Hicsos. No entanto, acabaram enfrentando um regime ainda mais opressivo. Durante quase
400 anos de escravidão no Egito, as promessas de uma vida digna contidas nos contos de Abraão ganharam força entre os
hebreus.

Quando Moisés, um hebreu adotado e educado na corte do Faraó, lidera a libertação do seu povo, inicia-se uma nova
era judaica. Moisés começa a escrever o Velho Testamento, estabelecendo as bases das crenças abraâmicas. Muitas dessas
histórias foram inspiradas na Epopeia de Gilgamesh, um poema sumério, e nos contos egípcios, como o mito da criação, a
origem do homem no barro e a grande inundação da Arca de Noé. Esse último mito merece uma discussão isolada, pois,
possivelmente, descreve um marcante acontecimento na história da humanidade datado aproximadamente de 12.000a.C. Sendo
ele, o término da última Era Glacial, marcando o recuo das calotas polares e o início dos períodos de inundações das bacias do
Mediterrâneo. Esses acontecimentos proporcionaram o avanço da agricultura em grande escala, o sedentarismo do homem e o
surgimento de grandes civilizações. E consequentemente, o ócio - no sentido de tempo livre de obrigações essenciais à
manutenção da vida - permitiu ao homem explorar outros recursos naturais e desenvolver a criatividade necessária para o
advento de tantas outras coisas.

Durante a peregrinação de Moisés e seus seguidores, os hebreus entraram em contato - pela primeira vez - com a
cultura grega emergente. A civilização grega, por sua vez, trazia para o comércio mediterrâneo inovações sociais significativas,
como a democracia, baseada no poder do povo; o antropocentrismo, que colocava o ser humano no centro do universo; e a
prática da dialética, que questionava as ordens até então concebidas como naturais e imutáveis. Esses novos comportamentos
sociais chocaram-se com as crenças judaicas devido sua estrutura hierárquica e autoritária. Porém, o judaísmo resiste à
influência grega por quase mil anos intensificando sua intolerância e punição à desobediência religiosa. O conceito de "diabo” e
“demônio” foram então relacionados ao novo comportamento social, representando oposição e contestação às ordens
religiosas.

A repressão à inovadora cultura grega foi fundamental na criação da estrutura dualista, que opõe o bem ao mal,
presente nas religiões abraâmicas. A origem etimológica da palavra grega "daimon” , originalmente, significa “ser dotado de
sabedoria", começa aparecer nas escrituras hebraicas como "diabholos" e “daemonios” em sinonimo de "opositor, contestador,
questionador, maldizente, caluniador". Esses termos foram assimilados às novas dinâmicas sociais e religiosas, ganhando
conotações negativas e sendo associados à figura do mal e da tentação.

Essa dualidade entre o bem e o mal tornou-se um elemento central nas religiões abraâmicas, como o Judaísmo, o
Cristianismo e o Islamismo. A necessidade de explicar e confrontar as diferenças e contradições entre essas visões de mundo
deu origem a uma dinâmica dualista, que permeia essas religiões até os dias de hoje.
Após quase 500 anos de consolidação da cultura judaica, os hebreus adentraram um período de prosperidade e
afirmação de identidade, conhecido como a Era dos Grandes Reis, com figuras como Saul, Davi e Salomão. Nesse contexto de
abundância, a fé judaica começou a se flexibilizar e a moral da civilização a declinar, especialmente influenciada pelo contato
com a cultura helenística, que valorizava a virtude, tranquilidade e felicidade, trazida pela expansão da Macedônia pelo Oriente.

Uma parcela não conservadora da sociedade judaica começou a simpatizar com as novas ideologias humanistas e
liberais do Ocidente. Com a expansão do Império Romano sobre Jerusalém, os judeus mais uma vez tornaram-se servos, o que
acabou por gerar um movimento de oposição dentro da cultura judaica.

Neste contexto, o Cristianismo surge como um movimento jovem e rebelde contra a cultura conservadora e inflexível
judaica e contra o domínio de servidão romano. No centro desse movimento está uma nova concepção de Deus, benevolente e
universal, que prega a igualdade de todos perante Ele, pacifismo, tolerância e amor infinito. No entanto, diferentemente dos
helenos, que questionavam os deuses e valorizavam a liberdade de pensamento e a dialética, o novo modelo de fé judaica
preferia manter a obediência e inquestionabilidade à religião.

Após a conquista romana, ocorreu a execução de Cristo, líder do movimento, um fato que inflamou ainda mais os
ânimos dos seus seguidores e contribuiu para a propagação da nova religião. Em 37 d.C., Roma tomou Jerusalém, subjugando
os judeus mais uma vez à escravidão, provocando a diáspora judaica. Muitos judeus e cristãos migraram para territórios
europeus, fugindo da opressão, levando consigo suas crenças. O Cristianismo, como religião, prosperou em tempos de crise,
conquistando uma grande massa de escravos e plebeus - população romana pobre - que se encontrava extremamente
explorada pelo Império. Isso contribuiu para o declínio do Império Romano ao intensificar a crise do escravismo e desafiar a
autoridade imperial.

A crise escravista e militar foi resultante de sua abordagem brutal para com os povos conquistados e da falta de
recompensa adequada para seus soldados. Nesse clima de desespero, os poucos escravos sobreviventes reduziram sua
procriação. Com o tempo, a demanda por escravos excedeu a oferta. O aumento da escassez de escravos resultou em preços
mais altos para os recursos de subsistência de pebleus e soldados, resultando em preços mais altos e tornando o sistema menos
rentável. A participação do Cristianismo no declínio é indiscutível. Os desfavorecidos encontraram consolo nos ensinamentos
cristãos. Ao se converterem ao monoteísmo, recusavam-se a reconhecer o título de Augustus, atribuído ao Imperador como
descendente dos deuses. Inspirados pela cultura pacifista e passiva do Cristianismo, baseada nos exemplos de virtude e
santidade presentes no sofrimento e morte de Cristo, os escravos perderam o medo dos castigos físicos. A morte passou a ser
vista como uma recompensa, uma elevação espiritual, ocorrendo em glória ao se recusarem a se curvar perante o Império.

Com a pressão social e desprestígio do cargo, o Imperador Constantino converteu-se ao Cristianismo em 312 d.C.,
admitindo-se mais um homem entre os homens, mas não impôs a religião. No entanto, em 380 d.C., o Imperador Teodósio
promulgou o Édito de Tessalônica, tornando o Cristianismo a religião oficial e obrigatória no Império Romano. Ele se
autointitulou o Chefe da Igreja, controlando assim as crenças e a moralidade em serviço do Império, inaugurando assim a era da
Igreja.

Após quase 100 anos de organização da Igreja, Roma caiu com a invasão dos povos germânicos. No entanto, a Igreja
sobreviveu, trazendo consigo o imperialismo romano. Em vez de expandir territórios físicos, a Igreja passou a exercer controle
sobre as pessoas que regiam os territórios. Isso marcou o início do feudalismo e da Idade Média, um período de extrema
violência, intolerância e obscuridade.

Pouco do Cristianismo primitivo sobreviveu ao domínio do Império Romano, que caçava e destruía seus integrantes e
escrituras. Após o advento da Igreja, censurou e restringiu os cânones sagrados ao clero, proibindo seu acesso ao restante da
população para proteger seus próprios interesses políticos.

O contexto histórico do desenvolvimento do Cristianismo como religião que emergiu da repaginação de diversas
crenças do povo semita e provocou uma crise no ambicioso, violento e controlador Império Romano, é fundamental para
entender como a religiosidade foi utilizada como uma expressão popular para perpetuar o poder. Até hoje, a sociedade
ocidental carrega consigo os valores opressores, exploratórios, dualistas, controlares, intolerantes e hierárquicos miscigenados a
moralidade judaica-romana.

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