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Paraíso deslocado

O C T

Douglas Wilson

Tradução
Márcio Santana Sobrinho
Para L J ,
pai de gerações fiéis,
cheio de esperança e amor.
Copyright © 2008, de Douglas Wilson
Publicado originalmente em inglês sob o título
Heaven Misplaced: Christ’s Kingdom on Earth
pela Canon Press,
P.O. Box 8729, Moscow, ID, 83843, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP
70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Tradução: Márcio Santana Sobrinho


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto

P , ,
.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista Atualizada 21 (ARA)
salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Wilson, Douglas
Paraíso deslocado: o reino de Cristo na Terra / Douglas Wilson, tradução Márcio
Santana Sobrinho — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2020.
Título original: Heaven Misplaced: Christ’s Kingdom on Earth
1. Escatologia 2. Cristianismo — profecia 3. Cristianismo — história
da Igreja I. Título
CDD 236
Sumário

Introdução
1. No monte do Senhor
2. Paraíso deslocado
3. O que Abraão viu
4. Esperança encarnada
5. Amor inexorável
6. O homem forte amarrado
7. O que os anjos disseram
8. Ao nome de Jesus
10. Todos os confins da terra
11. Aprendendo a ler as promessas
12. As estrelas cairão do firmamento
13. 666 e toda aquela conversa
14. A nova humanidade
15. Completamente maluco
Epílogo
Breve glossário
Leituras adicionais
Introdução

Este é um livro sobre a história futura do nosso mundo, sobre


o futuro e o destino da raça humana. Como o futuro não é algo que
nos é permitido ver diretamente — só Deus vê o fim desde o
princípio — para que este livro não seja uma espécie de exercício
de adivinhação, ele deve ser baseado diretamente no que Deus nos
revelou em sua Palavra. O que Deus realmente nos prometeu?
Somente Deus conhece o fim desde o princípio e, embora não nos
tenha dado todos os detalhes sobre o futuro, ele de fato nos revelou
muito.
Infelizmente, contudo, o que nos foi dado tem sido sobremodo
obscurecido por premissas desencorajadoras e equivocadas. De
uma maneira ou de outra, a maioria dos cristãos acredita que a
história do nosso planeta vai de mal a pior, agravando-se conforme
chegamos mais perto do fim. Ao mesmo tempo, todos os cristãos
creem que depois de finda a história humana, e passado o dia da
ressurreição, nossa experiência no mundo sem fim será de uma
glória substituída por outra maior, uma após a outra. Nenhum
cristão é pessimista sobre a glória final. Mas a maioria dos cristãos
é pessimista sobre o rumo da história antes da Segunda Vinda de
Cristo. Nesta visão, o mundo é o Vietnã de Deus, e o retorno de
Cristo consiste em uns poucos sortudos sendo resgatados de
helicóptero de um telhado durante a queda de Saigon. Quando
sairmos daqui, haverá bons momentos, mas não antes.
A visão desenvolvida neste livro é quase precisamente a
inversa. Este livro é uma introdução ao otimismo histórico. Esta é a
visão de que o evangelho continuará a crescer e a prosperar em
todo o mundo, mais e mais indivíduos serão convertidos, as nações
se achegarão a Cristo, e a Grande Comissão será finalmente
completada com sucesso. A terra será tão cheia do conhecimento
do Senhor quanto as águas cobrem o mar. Quando isso acontecer,
geração após geração amará e servirá ao Senhor com fidelidade. E
então virá o fim.
Mas já destaquei que a maioria dos cristãos não pensa assim,
por isso reconheço que essa será uma negociação difícil. Nessa
maioria provavelmente incluem-se muitos dos que decidiram (por
motivos diversos) ler este livro. Assim, façamos um trato, leitor.
Sempre que alguém toma uma obra de ficção, há um acordo
tácito entre o autor e o leitor, algo que o autor dá como certo e o
leitor aceita, e que é chamado de “suspensão voluntária da
descrença”. Alguém pode realmente gostar de O Senhor dos Anéis
e concordar em deixar temporariamente de lado seu conhecimento
de que orcs e elfos não são exatamente reais. Mas uma vez que o
leitor está no domínio da narrativa, aquela história ganha vida e é
real para ele por causa dessa suspensão voluntária da descrença.
Mesmo que o leitor realmente não “acredite nisso” depois de fechar
o livro, ele ainda conhece a história muito melhor do que se tivesse
dito “aham, sei” a cada página. Ele conhece a história “por dentro”,
mesmo que não possa aceitá-la ao final.
Então, vamos usar o exemplo da excelente obra de Tolkien.
Uma vez perguntaram-lhe se ele acreditava que a Terra-média era
real. Sua resposta foi: “É isso o que se espera”. Mesmo uma obra
de ficção, se for suficientemente convincente, pode despertar um
profundo desejo de que tivesse sido verdadeira. Então, eis aqui a
minha oferta. Há muitos cristãos que acreditam que o futuro do
nosso mundo (antes da Segunda Vinda) é realmente desolador. Eu
estou pedindo que leiam este pequeno livro como se fosse uma
obra de ficção. Só por um curto período, estou pedindo essa
suspensão voluntária da descrença. E se esse pedido for atendido,
acredito que então uma característica marcante desse tipo de
otimismo histórico se tornará clara. Todo cristão pode concordar
com uma coisa pelo menos. Não seria glorioso se realmente fosse
verdade?
Da minha parte, quero escrever como se fosse uma história,
porque de fato diz respeito à história mais maravilhosa do mundo —
a qual, como se verá, é a história do mundo. E isso significa que
algumas coisas serão diferentes. Por exemplo, esta história, sobre a
qual estou pedindo para você suspender a descrença, é construída
sobre passagens que provavelmente lhe são familiares. Contudo,
existem diferentes maneiras de entender muitas delas, e vou sugerir
uma interpretação que pode não ser familiar — você verá a
diferença quando a história é contada dessa maneira. Então, sim,
essa é uma obra de teologia, e farei referência a muitas passagens
das Escrituras. Mas não quero juntar uma pilha de textos para
provar alguma coisa. Meu objetivo, correspondente ao pedido que
fiz ao leitor, será tentar demonstrar quão amável é essa crença.
Este é um exercício, não tanto de teologia sistemática, † mas de
teologia lírica.† É claro que, se ela não for verdadeira, não importa o
quão amável seja. Todos já tivemos alguns devaneios muito bons.
Mas talvez alguns possam ser persuadidos a reconsiderar se ela
realmente pode ser verdade, visto ser completamente amável. E se
esse ponto for alcançado, será possível construir uma vida cristã
tendo todo o encorajamento como base.
Eu realmente acredito que, antes do retorno de Cristo, a terra
será tão cheia do conhecimento do Senhor quanto as águas cobrem
o mar? Realmente acredito que todas as nações da terra se
achegarão ao nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo? Realmente
acredito que Jesus Cristo é o desejado de todas as nações? Sim,
eu realmente acredito. E espero que, no momento em que
terminarmos este pequeno livro, o leitor não convencido, pelo
menos seja capaz de dizer: “É isso o que se espera”.

† Teologia sistemática: Tentativa de organizar a doutrina cristã em


um padrão articulado.
† Teologia lírica: Termo usado pela primeira vez em 1984 por S. T.
Kimbrough, Jr. para descrever uma teologia formulada em poesia,
hinos e canções, e na liturgia. É caracterizada por emoções e
sentimentos rítmicos e expressivos.
(http://theologytoday.ptsem.edu/tt-V63-1-abstracts.htm)
1. No monte do Senhor
Vinhos envelhecidos bem clarificados

Em seu grande sermão “O peso da glória”, C. S. Lewis faz


uma observação perspicaz — ele se refere deste modo à realidade
da ressurreição vindoura: “Não nos misturamos aos esplendores
que avistamos. Mas todas as páginas do Novo Testamento estão
farfalhando o rumor de que nem sempre será assim. Algum dia,
queira Deus, entraremos lá”.[1]
O foco aqui não é diminuir em nada a glória da observação de
Lewis. Mas é preciso dizer que as páginas do Antigo Testamento
também estavam farfalhando com essa expectativa magnífica.
Essas profecias e vislumbres e esboços gloriosos, aguardavam com
expectativa a vinda do Messias, e não apenas isso, mas tudo o que
ele traria consigo. Celebramos essa expectativa a cada Natal, mas
às vezes não prestamos atenção suficiente à redação desses
rumores e murmúrios inspirados. No capítulo sete de Isaías, lemos:
Portanto, o S mesmo vos dará um sinal: eis que a virgem
conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel. (Is 7.14)

Dois capítulos depois, continuando o mesmo grande tema, o


profeta nos diz que o Messias virá da Galileia dos gentios:
O povo que andava em trevas viu grande luz, e aos que viviam na
região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz. (Is 9.2; cf. Mt 4.16)

O que devemos entender é que essas profecias dizem


respeito a muito mais do que apenas a chegada do menino Jesus.
O profeta Isaías queria mais do que fornecer belas citações para os
nossos cartões de Natal. Aqui está o que ele vai dizer na sequência,
e que tem aparecido em inúmeros cartões de Natal. Mas
precisamos parar por um momento e refletir sobre o que ele
realmente está dizendo:
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está
sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro,
Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz; para que se aumente o
seu governo, e venha paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu
reino, para o estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde
agora e para sempre. O zelo do S dos Exércitos fará isto. (Is 9.6-
7)

Quando o Cristo vier, ele nascerá de uma virgem. Quando


vier, ele será Emanuel — Deus conosco. Quando ele vier, nós o
chamaremos de Príncipe da Paz. Isso é tudo? É só isso? Não, o
profeta nos diz explicitamente que o Messias vai realizar uma
revolução no governo do céu e da terra. Este Filho que nos é dado
levará o governo sobre os seus ombros. Os resultados serão
graduais, não instantâneos, contudo, persistentes e estáveis. Não
haverá fim para o crescimento e paz de seu governo. Quando o
Messias vier, ele assumirá o seu lugar legítimo no trono de Davi,
como de fato o fez, e estabelecerá seu reino em juízo e justiça.
Esse processo começará quando a criança nascer, e a profecia
será cumprida de modo pleno “desde agora e para sempre”. Se
alguém ainda duvida, lembre-se de que o zelo do Senhor dos
Exércitos garantirá que aconteça.
O otimismo histórico sobre o reino de Cristo na Terra significa
que acreditamos — porque a criança nasceu há dois milênios —
que, desde então, o crescimento de seu governo e paz têm sido
incessantes. Acreditamos que o governo já está nos ombros dele,
não que deveria estar. Jesus também cria nisso, porque quando
enviou seus discípulos, essa verdade foi a base para a comissão.
“Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra” (Mt 28.18, NVI).
Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos
debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. (1Co
15.25-26)

Na suposição comum compartilhada por muitos cristãos, no


retorno do Senhor, o primeiro inimigo a ser destruído é a morte. Mas
o apóstolo aqui afirma que ela é o último inimigo a ser destruído. O
Senhor governará do céu, subjugando progressivamente todos os
seus inimigos através do poder do evangelho, levado às nações por
sua Igreja. E então, quando achamos que não teria como ficar
melhor, o Senhor virá e entregará o reino ao Pai, e Deus será tudo
em todos.
Porém, há algo mais. Como será que o seu reino cresce e se
expande? O que acontecerá com nosso mundo assolado de pecado
à medida que seu governo e paz aumentam?
O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito;
o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um
pequenino os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, e as suas crias
juntas se deitarão; o leão comerá palha como o boi. A criança de peito
brincará sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá a mão na
cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu
santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do S ,
como as águas cobrem o mar. Naquele dia, recorrerão as nações à raiz
de Jessé† que está posta por estandarte dos povos; a glória lhe será a
morada. (Is 11.6-10)

Ora, essa linguagem é claramente fora do comum. Tão fora


do comum que a maioria dos cristãos simplesmente a considera
como referindo-se a algum momento após o retorno do Senhor.
Essa é a única maneira de enxergarem um possível cumprimento
dessas palavras.
Mas há um pequeno problema com essa visão. A linguagem
gloriosa, a linguagem do tipo boa demais para ser verdade, está na
primeira metade desta passagem: animais predadores se tornam
herbívoros e criancinhas estão brincando com cobras. Isso deve ser
depois da ressurreição, certo? Deve ser após o fim da história, não
é? Não, porque o versículo 10, aquele que começa com as
palavras, “naquele dia”, foi citado pelo apóstolo Paulo, em Romanos
15, há dois mil anos, para justificar sua missão aos gentios:
Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para
governar os gentios; nele os gentios esperarão. (Rm 15.12)

O grande apóstolo Paulo está recorrendo a Isaías como


justificativa para sua pregação aos gentios. E desde então, tivemos
dois mil anos de crescentes governo e paz do Senhor.
Perguntei antes quais seriam as características de seu reino.
A passagem de Isaías 11 deve tirar nosso fôlego. A terra será tão
cheia do conhecimento de Deus quanto o Oceano Pacífico de água.
A raiz de Jessé será levantada como um estandarte, e todas as
nações dos gentios se achegarão a ele. E quando puserem nele a
confiança, se tornarão povo de Deus e serão levadas ao santo
monte do Senhor. Como é esse monte?
O S dos Exércitos dará neste monte a todos os povos um
banquete de coisas gordurosas, uma festa com vinhos velhos, pratos
gordurosos com tutanos e vinhos velhos bem clarificados. Destruirá
neste monte a coberta que envolve todos os povos e o véu que está
posto sobre todas as nações. Tragará a morte para sempre, e, assim,
enxugará o S Deus as lágrimas de todos os rostos, e tirará de
toda a terra o opróbrio do seu povo, porque o S falou. (Is 25.6-8)
O Senhor mesmo dará um banquete para encerrar todos os
banquetes. A festa será para todos, e será cheia de carne vermelha
marmoreada. O melhor vinho, o envelhecido, será servido a todos
os homens e, à medida que o banquete é servido, virá a cume a
destruição da própria morte. O Senhor enxugará toda lágrima.
E, como vemos em Romanos, tudo isso acontece no decurso
da história, não quando ela acabar. Quando a morte é destruída,
como mencionado aqui, é aí que o Senhor virá. Mas a vinda do
Senhor desfere o golpe de misericórdia no último e mais persistente
inimigo, a morte. O crescimento do reino de Deus até esse
desfecho — o estabelecimento do monte do Senhor na terra — terá
subjugado todo inimigo menor.
Jesus Cristo ascendeu à mão direita de Deus Pai e, nesse
posto, recebeu autoridade imediata e universal. E a Bíblia diz que
ele permanecerá sentado lá até que todos os inimigos dele sejam
colocados debaixo dos seus pés:
Disse o S ao meu senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu
ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés. (Sl 110.1)

O Senhor reina do céu, exercendo todo reino e domínio. Dali,


destruirá todo inimigo, e todo pensamento que se opõe ao
conhecimento de Deus (2Co 10.1-5).
As promessas do Senhor para nós são realmente
estarrecedoras, e não é de surpreender que não possamos captá-
las por completo com nossa mente. Mas ele se deleita em dar
presentes ao seu povo, e um dos maiores que ele nos deu é o
futuro.
Como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles
que o amam. (1Co 2.9)

Devemos firmar em nosso coração e mente que essas


promessas estarrecedoras não começarão a ser cumpridas no final
da história. Elas começaram a ser cumpridas quando um menino
nasceu, quando um Filho nos foi dado. Como será o futuro deste
mundo até o retorno do Senhor? Não podemos dizer, porque nada
desta dádiva jamais penetrou em coração humano. Somos tardos
para crer em tudo o que é prometido, todavia, seguimos rumo à
gloriosa fruição.

Questões para discussão:


Quando há a “suspensão voluntária da descrença”, ela afeta a
leitura de muitas passagens cujo significado real é bem diferente
daquele com o qual estamos acostumados.

1. Com a vinda do Messias, o que a sua paz e governo fariam?


Quais as implicações disto?
2. Qual o apóstolo Paulo aponta ser o início do cumprimento da
grande profecia de Isaías?
3. Quando a raiz de Jessé for estabelecida como um estandarte,
que farão todos os povos gentios?

† Raiz de Jessé: No início desse capítulo, Isaías profetiza que “Do


tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo” (Is
11.1). Esse rebento é Jesus, descendente do rei Davi, cujo pai era
Jessé.
2. Paraíso deslocado
Vivendo nas colônias do céu

A primeira páscoa cristã ocorreu na época da páscoa judaica,


no período em que os primeiros frutos do cultivo da cevada eram
apresentados ao Senhor. Pentecostes, que viria logo depois, era o
momento de serem apresentados os primeiros frutos da colheita de
trigo. À medida que consideramos as implicações da ressurreição
de Jesus, precisamos pensar nela da maneira correta, o que
significa que devemos refletir sobre o significado dos primeiros
frutos. Quando entendermos esse ponto, nossa compreensão da
história humana será transformada. Na verdade, isso transformará a
nossa compreensão do céu e da terra, e de todas as coisas entre
eles.
De fato, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias
dos que dormem. Visto que a morte veio por um homem, também por
um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em
Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em
Cristo. Cada um, porém, por sua própria ordem: Cristo, as primícias;
depois, os que são de Cristo, na sua vinda. E, então, virá o fim,
quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído
todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque convém
que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés. O
último inimigo a ser destruído é a morte. (1Co 15.20-26)

Cristo ressurgiu do sepulcro, e ele o fez em um corpo físico


glorificado, o mesmo corpo (mas transformado) que havia jazido no
túmulo (v. 20). Ele fez isso como “primícias” (v. 20), o que significa
que sua ressurreição era uma pequena parte da ressurreição geral
porvir. Adão introduziu a morte no mundo, e o último Adão introduziu
no mundo a vida ressurreta (v. 21). Todos os que irão morrer neste
mundo devem isto a Adão, e assim todos os que irão viver neste
mundo devem isto a Cristo (v. 22).
Mas devemos captar a ordem certa — as primícias vêm
primeiro, e depois a colheita geral que ocorre na vinda de Cristo (v.
23). Quando Cristo voltar, o reino que ele estabeleceu (com toda
autoridade e poder) será entregue ao Pai (v. 24). Pois Cristo deve
reinar (à destra do Pai) até que todos os seus inimigos sejam
subjugados (v. 25). O último inimigo a ser subjugado neste processo
será a morte (v. 26), após o que Cristo virá novamente e entregará
todas as coisas de volta ao Pai.
Assim, precisamos ter essa imagem correta em nossa mente e
coração. Uma das coisas que temos de combater é uma falsa
imagem da história humana, por mais ortodoxos que creiamos ser
quanto à historicidade da ressurreição de Cristo. Esta falsa imagem
funciona desta maneira: pensamos que a história humana é
basicamente sempre a mesma, pelo menos da queda até a
Segunda Vinda. As coisas continuam mais ou menos como sempre
foram. No meio dessa triste história, Deus colocou a cruz e a
ressurreição, essa ressurreição como sendo um evento
completamente anômalo em um mundo de outra forma inalterado.
Esta cruz e ressurreição são “o evangelho”, o que significa que
podemos ser “salvos”, o que significa que vamos ao céu quando
morrermos.
Mas, em lugar disso, tente esta imagem. Com a queda, a
história humana tornou-se um filme que estamos assistindo num
tom de preto e branco granulado. Quando Cristo ressurgiu do
sepulcro, um ponto de luz ofuscante apareceu naquele lugar e, a
partir daquele lugar, coisas estranhas começaram a acontecer — a
princípio, não nas linhas do enredo, mas na natureza da própria
narrativa. A cor começou a se espalhar lentamente desde o ponto
da ressurreição, a granulação começou a desaparecer lentamente e
gradualmente a imagem transformou-se em tipo de alta definição. E,
claro, ao longo do tempo, a própria linha da história foi também
afetada. Todos já vimos esse tipo de coisa inúmeras vezes. Quando
Aslam soprou sobre as estátuas de pedra e todos começaram a
voltar a viver em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, isso fornece o
tipo de imagem que deveríamos ter. Quando esse tipo de coisa
começa a acontecer, todos olhamos atentamente para a tela,
expectantes.
Então, isso significa que a ressurreição não foi um evento
esquisito no primeiro século, com todas as coisas “normais” ficando
exatamente as mesmas. A ressurreição foi o evento central de toda
a história, mas é necessário tomá-lo como o evento central para
toda a história. Ela define a história; estabelece a trajetória dos
acontecimentos restantes.
Perdemos isso, em parte, porque nos distraímos com uma
conclusão extraída de nossas premissas individualistas. Porque
começamos pela salvação do “nosso próprio ramo de trigo”,
deixamos de fora a história da colheita geral. Mas se
começássemos pela colheita, nosso próprio ramo não seria deixado
de fora.
Eis como isso funciona. Quando morremos, antes da colheita
de toda a história, o que nos acontece? Habitaremos com o Senhor,
é claro (2Co 5.8). Mas, ao longo do tempo, esse estado
intermediário, esse estado de coisas muito temporário, de alguma
forma torna-se para nós a nossa esperança central, aquilo que
chamamos de “ir para o céu”. Nós nos apegamos a uma ideia muito
grega de imortalidade da alma, em algum lugar de outra dimensão
celestial, e perdemos a verdade hebraica da ressurreição dos
mortos. Em vez do físico, temos o espiritual, e em vez do “aqui”,
temos o “além”. Mas essa não é a esperança bíblica.
A Bíblia geralmente não se expressa, como popularmente
falamos, em termos de “ir para o céu quando morremos” — não que
isso seja tecnicamente errado. Se morrermos antes da Segunda
Vinda, iremos habitar com o Senhor. Nós vamos para o céu ao
morrermos. O problema é que este estado intermediário tornou-se
nosso paradigma central, substituindo a esperança bíblica. A
esperança bíblica última é o céu vindo à terra. “Venha o teu reino;
faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). “Bem-
aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5.5). Olhamos
para o céu não tanto porque é para lá que estamos indo para
finalmente sermos salvos, mas porque é de lá que está vindo a
nossa salvação (Fp 3.20-21).
Assim, a ressurreição não é simplesmente um evento peculiar
em um mundo antigo e decadente. É antes o evento decisivo da
nova criação, os novos céus e a nova terra. É um prenúncio de
todas as coisas feitas novas. Portanto, não podemos entender a
ressurreição de uma maneira antiga. A vida ressurreta é o novo
ordinário.
O materialismo advindo do Iluminismo foi uma forma
orquestrada de nos levar de volta à antiga maneira de pensar, de
nos relacionar com as autoridades, e de morrer. Estamos sendo
convidados a “conhecer” o mundo como se Jesus não tivesse
surgido no meio da história. Mas ele surgiu, e é agora Senhor, e
César não pode competir com ele. Esta nova ordem foi estabelecida
na ressurreição.
Se os mortos não ressuscitam, então os governantes podem
reger à velha maneira — “cortem a cabeça desse homem!”. Esse foi
um argumento para o qual (como pareceu por um tempo) não havia
uma resposta adequada. Mas os mortos ressuscitam e, além disso,
os mortos ressuscitam dentro da história humana. A colheita
começou, e as primícias já foram apresentadas a Deus. O que
poderia ser mais perturbador para os tiranos? Marx estava correto
sobre certo tipo de religião — a religião do tipo “torta-celeste-para-
quem-morrer-pela-fé” é o ópio do povo. Porém, a vida e o poder da
ressurreição no meio da história é um pesadelo para os principados
e potestades, e seu único recurso é persuadir as igrejas a deixarem
de falar sobre isso. Mas cremos, e, portanto, devemos falar.
Ora, isso significa que se as primícias ocorreram há dois mil
anos, e a colheita geral se dá em algum momento no futuro, este
ínterim histórico não é um tempo em que “nada está acontecendo”.
Em vez disso, retornando ao foco de Paulo, é o tempo em que nós,
por meio da autoridade do evangelho da ressurreição, estamos
trabalhando para derrubar todos os reinos, autoridades e poderes,
levando todo pensamento cativo.
Tudo isso foi estabelecido em princípio na ressurreição (Rm
1.4), mas foi formalmente inaugurado quando Cristo subiu aos
lugares celestiais para ser recebido em glória pelo Ancião de Dias. A
ascensão foi a gloriosa coroação do Senhor Jesus. Após sua
ressurreição, ele deixou claro aos seus discípulos que estava vivo
para sempre, e então ascendeu aos céus. Ao fazer isso, foi recebido
pelo Ancião de Dias, e recebeu autoridade universal sobre todas as
nações. A terra agora tem uma nova capital — o paraíso — e somos
chamados a aprender a viver nos termos dessa nova capital. E, à
medida que aprendemos, devemos ensinar.
Pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo
de humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a
eficácia do poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas.
(Fp 3.20-21)

Como N. T. Wright observa, César Augusto estabeleceu a


colônia romana de Filipos após a batalha de Filipos em 42 a.C. e a
batalha de Actio em 31 a.C. Ele fez isso estabelecendo seus
veteranos ali, muitos dos quais eram cidadãos romanos. Este é o
pano de fundo do comentário de Paulo à igreja localizada nesta
mesma Filipos. Os cidadãos romanos de Filipos estavam ali como
colonos romanos, destinados a ampliar o alcance e a força da
influência romana por todo o mundo mediterrâneo. Não estavam ali
para deixar Filipos e voltar em busca da aposentadoria em Roma.
Nesta passagem, Paulo está usando essa metáfora notável
por uma razão. Ele diz que nossa cidadania está no céu (v. 20).
Olhamos para o céu porque é para lá que Jesus foi, o que significa
que o céu é o lugar de onde ele virá quando retornar à terra.
Traduzida, a metáfora significa que Jesus viria de “Roma” para
“Filipos”. Ele não levaria “Filipos” para “Roma”. E em sua vinda o
Salvador, o Senhor Jesus, transformará nosso corpo humilde para
que se torne igual ao seu corpo glorioso (v. 21). O que ele faz nessa
transformação final está totalmente de acordo com a autoridade que
agora exerce enquanto sujeita a si todas as coisas (v. 21). Em várias
partes, o Novo Testamento nos diz que ele está fazendo isso.
Se tomarmos essa metáfora simples de Paulo em seu valor
nominal, esclareceremos algo importante para nós. Os cristãos
agora vivem nas colônias do céu. Sendo que, as colônias não são
estabelecidas como cidades para alimentar a pátria-mãe — na
verdade, é o exato oposto. A pátria-mãe alimenta as colônias.
A forma como encaramos o curso da narrativa faz toda a
diferença. Muitos cristãos acreditam que o cosmos tem uma história
superior e inferior, com a terra como a inferior e o céu como a
superior. Você vive aqui os primeiros capítulos da sua vida. Então
você morre e se muda para o andar de cima para viver com pessoas
bacanas — porque só pessoas bacanas podem participar da
segunda história. Pode haver algum tipo de sequência depois disso,
mas tudo é meio obscuro. Talvez estejam falando de vivermos no
sótão. Mas o movimento básico neste pensamento é de uma Filipos
“abaixo” e uma Roma “acima”.
Porém, o que Paulo nos ensina aqui é bastante diferente.
Estamos estabelecendo as colônias do céu aqui, agora. Quando
morremos, temos o privilégio de visitar a pátria celestial, o que é
bem distinto de se mudar para lá de modo permanente. Após essa
breve visita, o Senhor nos trará de volta aqui para a grande e final
transformação dos colonos (e das colônias). Em suma, nosso tempo
no céu é o estado intermediário, e não o nosso tempo aqui. Há uma
antiga música popular que diz: “Este mundo não é minha casa, eu
apenas estou passando”. Isso ilustra o erro quase que
perfeitamente. Mas, enquanto os santos se reúnem no céu — que é
o verdadeiro estado intermediário — a questão que toma forma é:
“quando devemos voltar para casa?”. E isso então significa que o
céu é o lugar em que estamos apenas “passando”.
As ideias aqui — Jesus como Salvador, Jesus o Senhor, nossa
cidadania, um retorno transformador — são todas imagens reais e
políticas. E o que isso significa é que o imperador está vindo aqui, e
somos a linha de frente trabalhando na preparação para essa
gloriosa visita.
Mas, apesar de Paulo se basear nessa imagem derivada de
certos conceitos do Império Romano, há partes em que a analogia
(obviamente) se rompe. Os imperadores pagãos não elevaram as
pessoas a quem governavam; antes, sentaram-se no topo de uma
montanha de peões. Mas Cristo pretende transformar nosso corpo
humilde para que se torne como o dele. Isso significa que está nos
promovendo; estamos nos tornando realeza. E as colônias se
tornarão tão gloriosas quanto a pátria-mãe.
Fazer a realeza representada e estabelecida na terra tem sido
o projeto e propósito de Deus desde o início. Um dos indicadores,
geralmente não levado em conta, desse propósito e intenção, é
aquela famosa expressão, “imagem de Deus”. A frase “imagem de
Deus” era algo no mundo antigo que indicava a concessão divina de
um status de realeza. Mas, diferentemente do uso pagão da frase,
essa realeza em Gênesis foi concedida a cada homem e mulher, e
não apenas a um governante solitário. Por meio do nosso pecado,
acabamos por desfigurar essa imagem de realeza, mas, a despeito
disto, Deus nunca abandonou sua determinação de estabelecê-la
entre nós. Eis por que Jesus começou aquela jornada — para
restaurar a imagem de Deus no homem. Eis por que Pedro pode
dizer que somos sacerdócio real (1Pe 2.9), e é também o que Paulo
está falando em Filipenses. Cristo vai transformar nosso corpo de
humilhação para que se torne como seu corpo glorioso.
A menos que entendamos isso, o paraíso continuará fora de
lugar para nós. Cristo está para vir do céu em seu retorno. E até
retornar, ele governa do céu — o que sabemos com base na
ascensão. Considere o que foi dado a Cristo quando ascendeu à
sala do trono de Deus. “Assenta-te à minha mão direita, até que eu
ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés” (Sl 110.1). “Ao qual é
necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de
todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos
profetas desde a antiguidade” (At 3.21). “Foi-lhe dado domínio, e
glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as
línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não
passará, e o seu reino jamais será destruído” (Dn 7.14). E assim,
sabendo disso, esperamos e trabalhamos em preparação,
pacientemente, sabendo que nosso esforço aqui não é vão. Nessa
esperança, nos preocupamos em não “deslocar o paraíso”. O reino
virá; ele não irá. Assim, Cristo virá do céu, e, neste ínterim, ele
governa do céu.
Nossa fé a respeito da ascensão de Cristo é a base para a
nossa fé na vinda de Cristo. Se pararmos a história na ascensão,
estamos perdendo de vista o céu. Se pararmos a história quando
seguimos Cristo para o céu no momento da nossa morte, também
estamos perdendo o céu de vista. Cristo subiu, e é por isso que a
terra será redimida. E toda a criação está gemendo, desejando que
isso aconteça. Nós, que temos o Espírito, também por isso
ansiamos. Um dos propósitos deste pequeno livro é nos ensinar a
aguardar esse evento com mais atenção.
A progressão é gloriosa — da Páscoa à ascensão, e da
ascensão ao Pentecostes. No domingo de Pentecostes, nos
regozijamos com o fato de que o Consolador nos foi dado,
derramado sobre nós, para que o mundo esteja preparado para a
consumação final. Este é um papel central do Espírito no mundo, e
se relaciona diretamente com aquilo de que temos tratado, os
propósitos de Deus para este mundo:
Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre
os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os
mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu
Espírito, que em vós habita. Assim, pois, irmãos, somos devedores,
não à carne como se constrangidos a viver segundo a carne. A
ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de
Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas
por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria
criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da
glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a um
só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela,
mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente
gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a
redenção do nosso corpo... Também o Espírito, semelhantemente,
nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como
convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com
gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é
a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele
intercede pelos santos. Sabemos que todas as coisas cooperam para
o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados
segundo o seu propósito. (Rm 8.11-12, 19-23, 26-28)

O Espírito de ressurreição é o Espírito que em nós habita (v.


11). Porque nosso corpo será ressuscitado, temos de aprender a
lidar com ele agora (v. 12). Os que vivem pela carne, morrerão; os
que não, viverão (v. 13). Os que são liderados pelo Espírito deste
modo, estes são filhos de Deus (v. 14). Nosso relacionamento com o
Pai é íntimo e sagrado (v. 15). É assim que o Espírito testifica,
purificando nossos atos (v. 16). Mas infância e adoção não podem
ser separadas das questões de herança (v. 17). Esta é uma herança
de glória (v. 18).
A criação inteira está desejando esse momento, ansiando por
ele (v. 19). A criação foi originalmente submetida à vaidade, mas em
esperança (v. 20). Isso ocorre porque, tal como nós, a criação
também experimentará liberdade da corrupção (v. 21). Toda a
criação geme com dores de parto (v. 22). Não só a criação, mas
nós, que temos o Espírito também gememos tendo a ressurreição
em vista (v. 23). Esse gemido é em esperança e paciente espera (v.
24-25). O Espírito Santo nos ajuda nessa tarefa (v. 26). O Espírito
intercede por nós com este fim (v. 27). E é disso que Paulo está
falando quando diz que todas as coisas cooperam para o nosso
bem (v. 28). Isso nos fornece uma linha direta para a glória (v. 29-
30).
Quando Adão pecou e caiu, a criação inteira foi submetida à
escravidão da corrupção. Adão era senhor sobre a criação, tendo
recebido domínio e, na posição de vice-regente, isso significava que
quando ele caísse, tudo o mais cairia. Quando o rei cai, com ele cai
o reino. De modo similar, quando o segundo Adão veio ao mundo,
veio fazer uma obra de restauração. Mas a queda foi grande e a
restauração não será realizada sem muitos gemidos. O gemido aqui
é uma imagem das dores de parto (v. 22). A ordem criada está
prenhe, e na consumação de todas as coisas, dará origem à nova
ordem. Isso não é algo a que assistimos incólumes. A criação geme
a seu modo (v. 22). E nós — que temos o Espírito — também
gememos de semelhante modo (v. 23). E o Espírito conhece nossa
fraqueza — ele sabe que nem sequer conhecemos o tipo de bebê
que nascerá. Somos como Eva antes de seu primeiro filho —
imagine o que foi nem mesmo saber o que estava acontecendo. E
assim o Espírito participa desse gemido de parto (v. 26).
Aqui há dois equívocos a evitar. Estamos falando de uma
transformação completa — não de um pequeno reparo. Um primeiro
equívoco é o de pensar que esta criação será reduzida a cinzas e
não substituída, ou trocada por algo completamente diferente. O
outro equívoco é pensar que será dado um jeitinho nesta criação,
com o devido polimento e brilho. O Senhor retorna para fazer um
tipo de retoque na pintura, e hostes de anjos espalham-se pelo
mundo para aplicar nossos tratamentos de botox.
Mas devemos tomar o exemplo do corpo ressurreto de Cristo e
de nosso próprio corpo ressuscitado. Esse corpo faz parte desta
criação, certo? No entanto, ele será transferido para a próxima. Seu
corpo ressuscitado precisará de algo para ficar de pé. O corpo que
entra no chão é como um caroço de milho (1Co 15.36). Há
continuidade entre o corpo antigo e o novo, é claro, mas há uma
descontinuidade de glória. O mesmo se dá com a criação. A criação
inteira morrerá, e será reerguida gloriosamente. Ou, para usar outra
imagem, a antiga criação dará à luz a nova, e não podemos nem
mesmo começar a entender quão gloriosa a nova será.
Lembre-se de que Jesus também nasceu aqui. Ele também
anseia voltar. Mas quando começa a se internalizar em nós a ideia
de que Deus não desistiu deste mundo, mas pretende transformá-lo
em glória, algumas questões sempre surgem. Jesus não disse aos
discípulos que estava subindo ao céu para “preparar-vos lugar”?
Não disse que “na casa de meu Pai há muitas moradas”? Sim — a
palavra é mone, e a ESV traduz como “quartos”. A palavra indica
hospedagem temporária, a mesma que você acharia em um hotel.
Neste caso, teria de ser o melhor resort hotel de que você jamais
ouviu falar — um 5.000 estrelas.
Mas Pedro não nos diz que os elementos se desfarão
abrasados e em estrepitoso estrondo (2Pe 3.10)? A palavra para
“elementos” é stoichea, e é a mesma palavra que Paulo usa para as
forças espirituais elementais que mantinham os gálatas presos na
antiga aliança. Quando lemos “elementos”, tendemos a pensar na
tabela periódica, e não nas forças espirituais que governavam o
velho mundo. Então, a meu ver, Pedro está falando sobre o governo
espiritual do mundo — ele compara esse evento ao dilúvio, que
alcançou o mesmo resultado (v. 6). Mas mesmo que o leitor não
compre a ideia, e queira tomá-la como se referindo ao colapso do
cosmos, Romanos 8 exige que este seja um colapso transformador,
não um aniquilador. Se o nosso corpo for desfeito nesta
conflagração, ele será, todavia, ressurreto.
Por causa da presença do Espírito no mundo, temos uma
grande esperança. Qual é a natureza do gemido? O que o Espírito
está nos ajudando a fazer? O Espírito nos liberta de nossas dívidas
à carne (v. 12). O Espírito nos conduz à virtude (v. 13), mortificando
as transgressões do corpo. O Espírito nos incita a orar ao Pai (v.
15). O Espírito sela nossa herança vindoura na glória (v. 17). O
Espírito nos ensina a gemer por dias melhores (v. 23, 26), e a não
interpretar a palavra “melhor” com nossas categorias limitadas,
redutoras e patéticas (v. 27). Ele é aquele que perscruta as coisas
profundas de Deus, é aquele que sabe o que está por vir. Ele é
aquele que geme com mais expectativa.
Questões para discussão:
Muitos cristãos confundiram nossa esperança final de ressurreição
com a esperança interina que Deus nos oferece quando morremos
e vamos ter com ele. Isso levou a algumas distorções graves, e não
é demais dizer que o paraíso foi deslocado.

1. Quando Jesus ressuscitou dos mortos, dentro da história


humana, este era simplesmente um evento muito estranho ou tinha
ramificações para a própria história?
2. Quando subiu ao céu e se aproximou do Ancião de Dias, o que
foi entregue a Jesus?
3. Quando Jesus derramou o Espírito Santo no dia do Pentecostes,
em quais três sentidos isso criou um anseio, um “gemido”, pelo dia
da ressurreição?
3. O que Abraão viu
Uma cidade à distância

Abraão tinha muito menos para prosseguir do que nós, mas


ele ainda assim creu em tudo isso. Ele se alegrou por ver esse dia.
Ele viu a glória vindoura:
É o caso de Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi imputado para
justiça. Sabei, pois, que os da fé é que são filhos de Abraão. Ora, tendo
a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou
o evangelho a Abraão: Em ti, serão abençoados todos os povos. De
modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão. Todos
quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque
está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as
coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las. E é evidente que, pela
lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé.
Ora, a lei não procede de fé, mas: Aquele que observar os seus
preceitos por eles viverá. (Gl 3.6-12)

Abraão confiou em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça


(v. 6). E os que fazem o mesmo que Abraão podem, com razão, ser
considerados seus filhos (v. 7). A Escritura profetizou, por meio do
evangelho declarado a Abraão (v. 8), que isso de fato aconteceria.
Esse evangelho foi expresso desta forma: por meio de Abraão,
todas as nações serão abençoadas. Há uma ênfase aqui. Quando
Deus pregou o evangelho, o que ele disse? Disse que todas as
nações seriam abençoadas — esse é o evangelho. Essa bênção é
identificada como a oportunidade de ser abençoado com Abraão (v.
9), e é para todos os que são “da fé”.
Então, Deus disse algo a Abraão, e Abraão creu em Deus a
esse respeito. Primeiro, perceba que o objeto da fé de Abraão era
Deus. A “mensagem” dessa fé, aquilo em que Abraão viria a crer,
era que todas as nações seriam abençoadas por meio dele.
Isso é muito importante. A sentença é Abraão creu em Deus,
e não Abraão creu em seu próprio modo de entendimento. É dito
que ele creu em Deus. O evangelho, tal como declarado a Abraão,
era que os gentios se converteriam. Esse é o evangelho. Foi nisso
que Abraão creu. Foi isso o que Abraão viu. “Abraão, vosso pai,
alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se” (Jo 8.56).
Mas como os gentios participam? O contraste é entre os que
são “da fé” e os que são “das obras da lei”. Porém, devemos ter
muito cuidado aqui. O contraste não é entre a graça de “não ter de
fazer” e a obra de “ter de fazer”. Isso é um retrocesso. O contraste é
entre a graça de “chegar a fazer” e a condenação de “não ser capaz
de fazer”.
Por que os homens nunca são justificados pelas obras da lei?
Não é porque as fazem e só depois descobrem que são inúteis. A
razão por que cumprir a lei não funciona é que os homens, na
verdade, não a cumprem. Os que são das obras da lei estão sob
maldição, pois: “Maldito todo aquele que não permanece” (Gl 3.10).
Lembre-se de que estamos sob a graça, não sob a lei. Portanto, o
pecado já não é nosso mestre (Rm 6.14).
Herdamos o mundo pela fé (juntamente com Abraão), porque
o justo viverá pela fé. Ninguém é justificado pela lei. O contexto
deste argumento é que nenhum homem é justificado por guardar as
obras da lei nos termos mosaicos. Porém, se formos
espiritualmente sábios, aplicaremos esse princípio bíblico central a
todas as modalidades de “guarda da lei”. Os homens são chamados
a crer em Deus simplesmente, e não a buscar justificar-se por meio
da circuncisão, da observância da páscoa, do zelo mosaico ou
declarando “sola fide”† em voz alta.
O que vemos se avançarmos para o final de Gálatas 3? O que
distingue os gentios que creram dos que não creram (Gl 3.27-29)?
Temos de lembrar duas coisas. Primeiro, o batismo é a marca desta
promessa a todas as nações (substituindo a marca da circuncisão,
que se limitava à nação de Israel). A verdadeira fé era tão visível a
olho nu no primeiro século quanto é hoje. Em segundo lugar,
aqueles que são batizados precisam lembrar-se das advertências
solenes feitas por Paulo aos gentios batizados. Ele ordenou que
não cometessem o mesmo erro dos judeus — nós não sustentamos
a raiz; a raiz nos sustenta (Rm 11.19-22).
Assim, aprendemos que aqueles que estão sob a lei estão sob
maldição. Isto porque “estar sob a lei” não significa guardar a lei em
vão; em vez disso, significa simplesmente não guardá-la, e estar,
portanto, debaixo de condenação. E não se engane: todos são
igualmente pecadores. Então, como homens pecadores podem ser
libertos desse estado de condenação?
Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição
em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro), para que a bênção de Abraão chegasse aos
gentios, em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito
prometido. Irmãos, falo como homem. Ainda que uma aliança seja
meramente humana, uma vez ratificada, ninguém a revoga ou lhe
acrescenta alguma coisa. Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao
seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como se falando de
muitos, porém como de um só: E ao teu descendente, que é Cristo. E
digo isto: uma aliança já anteriormente confirmada por Deus, a lei, que
veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ab-rogar, de forma
que venha a desfazer a promessa. Porque, se a herança provém de lei,
já não decorre de promessa; mas foi pela promessa que Deus a
concedeu gratuitamente a Abraão. (Gl 3.13-18)

Somos resgatados de nossa maldição porque Cristo se fez


maldição em nosso lugar. A Bíblia pronuncia maldição sobre todo
aquele que é pendurado no madeiro, e Cristo foi de fato pendurado
em um (v. 13). Ele fez isso para que a bênção de Abraão pudesse
chegar aos gentios, isto é, a promessa do Espírito pela fé (v. 14).
Usando uma ilustração humana, Paulo diz que mesmo uma aliança
feita entre dois homens não pode ser mudada depois de firmado o
acordo (v. 15). Ora, a promessa † foi feita a Abraão e ao seu
descendente, falando de Cristo (v. 16). Mas a lei mosaica veio
séculos após essa promessa ser confirmada em Cristo (v. 17).
Portanto, a lei, que veio depois, não era o instrumento ordenado
pelo qual a promessa deveria ser cumprida (v. 18). E lembre-se de
que essa promessa do evangelho era nada menos do que uma
bênção para o mundo inteiro.
Nesta passagem, Paulo está insistindo que a promessa a
Cristo em Abraão era fundacional, e que a lei fora adicionada
posteriormente, por razões suplementares. Portanto, a lei era um
instrumento subordinado à promessa. A promessa não era
subordinada à lei.
Ora, a promessa foi feita ao descendente, isto é, a Cristo, e
assim o cumprimento da promessa está disponível para os
descendentes de Abraão, isto é, para todos os que têm fé em
Cristo. Paulo não está fazendo alegações a partir da lei para Cristo;
ele está argumentando a partir de Cristo em sentido à lei. Esta
promessa gloriosa somente é possível em Cristo e, portanto, o
descendente em Gênesis deve se referir a ele.
A promessa de bênção para os gentios (os filhos de Adão) foi
dada a Abraão e ao seu descendente. Contudo, toda a
descendência natural de Abraão pôs-se debaixo da condenação da
lei por não cumpri-la. Muito longe de trazer bênçãos aos filhos de
Adão, o que eles faziam era arrastar a linhagem de Abraão à
desobediência de Adão. Com suas distorções judaicas, tornaram o
colete salva-vidas em bigorna. Eis por que a referência ao
descendente de Abraão na promessa tem de ser uma referência a
Cristo — caso contrário, a promessa não poderia ser cumprida.
Judeus e gentios, filhos naturais de Adão, estavam ambos debaixo
de condenação.
A condição para ser livre era ser filho da promessa. Mas
ninguém poderia ser filho da promessa sem ser também filho da
grande transação. Cristo fez-se maldição por nós no madeiro, para
que nele nos tornássemos justiça de Deus (2Co 5.21). Cristo leva a
nossa maldição, e nós levamos a sua bênção. Somos amaldiçoados
nele, e abençoados nele. Somos crucificados nele, e ressurretos
nele.
Assim, temos não apenas um contraste entre o antigo e o
novo Israel, mas Paulo também nos dá um contraste entre o antigo
e o novo mundo, entre os velhos céus e terra e o novo céu e nova
terra. O evangelho é o cumprimento da promessa a Abraão, a qual
mostra que o evangelho é o meio pelo qual todas as famílias da
terra serão abençoadas.
Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que, por
natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo
conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos
fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos?
Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu
trabalhado em vão para convosco. (Gl 4.8-11)

Antes, quando os gentios não conheciam a Deus, eles


ofereciam culto ou obediência a entidades que, por natureza, não
eram deuses verdadeiros (v. 8). Mas agora esses gentios conhecem
a Deus, ou melhor — diz Paulo, esclarecendo-se — são conhecidos
por Deus. Como, então, retornam à escravidão? Por que voltam
àqueles rudimentos fracos e pobres (v. 9)? E como essa “volta” se
manifesta? Ela se manifesta através do zelo por dias, meses,
tempos e anos — todas as variadas maneiras de limpar o exterior
do copo (v. 10). Paulo teme por eles, receando que todo o seu
trabalho para com eles fosse em vão (v. 11).
A antiga ordem caducou. Isso inclui o testemunho que Deus
estabeleceu para si mesmo naquela antiga ordem, que era o antigo
Israel. Na antiga ordem, os gentios estavam atados aos rudimentos,
e os judeus estavam atados à obrigação de aprender suas lições
rudimentares. Naquela antiga ordem, os judeus eram o povo eleito
de Deus, mas agora os gentios foram incluídos na família da fé no
novo mundo, de modo que, para tais gentios, retornar à piedade da
antiga ordem era o mesmo que voltar à antiga ordem.
O conhecimento de Deus que os gentios recebem é resultado
da graça de Deus. Mas, se expressamos isso de um modo muito
direto, podemos esquecer o que é, de fato, graça. Assim,
lembremos de que os gentios foram conhecidos por Deus primeiro,
e, como resultado, o conheceram.
Desse modo, a fé é uma das grandes graças da doutrina
cristã. Abraão, pai de todos os que creem, serviu-nos de modelo
nisto. Deus lhe disse que o mundo seria transformado através de
seu descendente. Abraão simplesmente creu e Deus lhe imputou
isto como justiça. Abraão se alegrou por ver o dia de Cristo, e se
regozijou nisso. Mas Abraão não apenas se alegrou por ver um
Cristo sem uma descrição específica do que ele faria. Ele se
alegrou por ver o Cristo que seria para ele o cumprimento da
promessa de Deus, a promessa de que Abraão herdaria o mundo.
Às vezes, pensamos que a fé de Abraão se limitava a crer que uma
mulher idosa teria um filho. Mas a promessa ia muito além. O que
esse filho faria? O que ele representava? Ele era o instrumento
designado, o filho da promessa, por meio do qual Abraão herdaria o
mundo. Isso não seria feito por meio da lei, e sim pela justiça da fé
(Rm 4.13). E isso certamente está acontecendo e continuará a
acontecer. Como não iria Abraão herdar o mundo? Deus prometeu.
Sendo assim, precisamos imitar a fé de Abraão. Se somos
seus filhos pela fé, devemos realmente crer nas mesmas coisas em
que ele cria. Se somos filhos de Abraão, faremos as obras de
Abraão. E a obra de Abraão é crer naquele que foi enviado como o
Salvador de todo o mundo.

Questões para discussão:


Este capítulo e os dois próximos focam nas graças da fé, esperança
e amor. Este capítulo diz respeito ao dom da fé.
1. Quando Abraão creu na promessa de Deus, exatamente em qual
promessa ele creu?
2. Se Jesus morreu para que a bênção de Abraão pudesse chegar
aos gentios, isso significa que Deus prometeu a Abraão que Cristo
viria a morrer como um sacrifício, a fim de que a promessa de
Abraão pudesse ser cumprida? Abraão compreendeu isso?
3. Por que Paulo argumenta que voltar à antiga ordem pré-
messiânica era uma impossibilidade?

† Sola fide: Expressão latina para “somente pela fé”. Esse termo foi
usado em declarações dos reformadores no século XVI (contrários à
igreja romana), de que as obras não cooperam para a nossa
salvação: somos salvos somente pela fé.
† Gênesis 17.3-8: “Prostrou-se Abrão, rosto em terra, e Deus lhe
falou: Quanto a mim, será contigo a minha aliança; serás pai de
numerosas nações. Abrão já não será o teu nome, e sim Abraão;
porque por pai de numerosas nações te constituí. Far-te-ei fecundo
extraordinariamente, de ti farei nações, e reis procederão de ti.
Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua descendência
no decurso das suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu
Deus e da tua descendência. Dar-te-ei e à tua descendência a terra
das tuas peregrinações, toda a terra de Canaã, em possessão
perpétua, e serei o seu Deus”.
4. Esperança encarnada
A vida cresce na morte

A ressurreição do Senhor Jesus não foi um evento isolado.


Em princípio, seu retorno da morte trouxe consigo a ressurreição de
todas as coisas dentre os mortos. O poder da morte, que havia
subjugado o mundo inteiro, foi revertido naquele ponto, dois
milênios atrás e, desde então, o poder desta nova vida tem
trabalhado no mundo, como o fermento em um pedaço de pão. Por
esta razão, somos filhos da esperança.
Se, porém, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por
causa do pecado, mas o espírito é vida, por causa da justiça. Se habita
em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos,
esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará
também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós
habita. (Rm 8.10-11)

Nesta passagem, encontramos o que só pode ser descrito


como um argumento glorioso. Se Cristo está em você, seu corpo
ainda morrerá (v. 10). Como já observamos no segundo capítulo, o
Espírito de vida que ressuscitou Jesus está habitando em você, e
isso significa que você será ressuscitado dentre os mortos por esse
poder interior (v. 11). Mas a ressurreição de Jesus não foi algo
isolado, e a ressurreição de cada um de nós não será uma série de
eventos isolados. Acompanhe o raciocínio. Se o Espírito da vida
está em nós, somos devedores a ele e não à carne que perece (v.
12). Se estamos em dívida com o passado carnal, morreremos. Mas
se (por meio do Espírito) mortificarmos os feitos da carne,
viveremos (v. 13). Estamos em dívida com o futuro. Os que são
guiados desse modo, estes são filhos de Deus (v. 14).
Há dois espíritos — o espírito de escravidão ao medo e o
Espírito de adoção (v. 15). O Espírito testifica com o nosso espírito
que a ressurreição está vindo e que somos os filhos adotivos de
Deus (v. 16). Mas, se somos filhos, somos herdeiros. Se somos
herdeiros, somos coerdeiros com Cristo. Se com ele sofremos, com
ele seremos glorificados (v. 17). E, portanto, os sofrimentos deste
mundo não são nem mesmo dignos de comparação com a glória
porvir (v. 18). E, assim, a criação aguarda que sejamos claramente
revelados como filhos de Deus (v. 19). A criação foi submetida à
vaidade, em esperança (v. 20). Essa criação será liberta da
corrupção e posta à nossa liberdade (v. 21). Por esta razão, toda a
criação geme (v. 22). E nós, cristãos, que temos os primeiros frutos
do Espírito, também gememos pela ressurreição (v. 23). Pois somos
salvos para alguma coisa (v. 24), e aguardamos pacientemente
esse dia de ressurreição (v. 25). Porque somos salvos para alguma
coisa é que temos esperança. E o Espírito nos auxilia neste gemer
(v. 26). E Cristo sabe como orar porque ele conhece a mente do
Espírito (v. 27). Ora, neste sentido, todas as coisas cooperam para
o nosso bem (v. 28). Aqueles que são de antemão conhecidos são
tanto justificados quanto glorificados (v. 29-30). Como devemos
responder a tudo isso? Se Deus é por nós, quem pode estar contra
nós (v. 31)?
Há algumas coisas surpreendentes postas aqui, diante de
nós. Mas podemos perdê-las de vista se buscamos orientação na
carne. Para os que são mundanos, para os que não mortificam as
transgressões da carne, todas essas palavras de glória serão
simplesmente incompreensíveis. Mas para aqueles de nós que
compreendem essas realidades pela fé, é necessário reconhecer
que ainda falhamos quanto ao projeto final de Deus; razão pela
qual, neste caso, nosso entendimento é expresso com gemidos. A
criação geme, nós que temos as primícias do Espírito gememos, e
o próprio Espírito geme conosco, auxiliando-nos em nossa
fraqueza. Isso significa que vivemos em fraqueza aqui na terra e
precisamos de auxílio. Ainda não se revelou o que devemos ser,
mas o Espírito nos auxilia enquanto ansiamos por isso. E quando
Paulo nos diz que o Espírito nos auxilia em nossa fraqueza, o verbo
que ele usa significa “baixar junto”, como se estivéssemos
carregando um fardo pesado — estamos segurando numa
extremidade e o Espírito na outra. Precisamos de ajuda porque não
chegamos lá. Mas pelo menos sabemos que há algo a que ainda
não chegamos.
Pois bem, a ressurreição dos mortos em Jesus começou no
meio da história. Nossa ressurreição está ligada à dele. Jesus
ressuscitou dentre os mortos pelo poder do Espírito (v. 11). Esse
mesmo Espírito, com os mesmos planos e a mesma intenção,
habita também em nós. A primícia dos novos céus e da nova terra
foi a ressurreição de Cristo, e nos foram dadas as primícias do
Espírito (v. 23). Ora, porque o Espírito da ressurreição de Cristo
está em nós, e porque estamos no mundo, logo, o Espírito da
ressurreição de Cristo está no mundo — e, aliás, o mundo o
conhece. O poder da ressurreição de Cristo está à nossa volta,
hoje, aqui. E toda a criação anseia pelo que está por vir (v. 19). A
ressurreição do Cristo é uma ressurreição e redenção cósmicas (Cl
1.20).
Paulo diz que aqueles que são filhos de Deus são herdeiros
de Deus, e herdarão todas as coisas em Cristo (Rm 8.17). Mas
quem são os filhos de Deus? Quem é habitado pelo Espírito de
Cristo? O Espírito está sempre em nós como algum tipo de
substância inerte? Não, o Espírito de Cristo, que opera em nós,
opera de forma ativa. E se o Espírito de Cristo está ausente, então
tal indivíduo não pertence a Cristo (v. 9). Assim, o que faz esse
Espírito ativo? Ele habita em nós (v. 11). Fortalece o nosso corpo
mortal (v. 11). Capacita-nos a mortificar os feitos da carne (v. 13).
Além disso, leva-nos a mortificar a carne (v. 14), e todos os que
assim são guiados, estes são filhos de Deus. Anima-nos a clamar:
“Aba, Pai” (v. 15). Testemunha com o nosso espírito de que somos
filhos de Deus (v. 16). Impele-nos a gemer pela ressurreição (v. 23).
E é sensível à nossa fraqueza em todas essas coisas, auxiliando-
nos (v. 26).
Então, o apóstolo Paulo quer nos ajudar a vermos a nossa
vida dessa maneira. Temos duas direções nas quais podemos
mirar, e são as seguintes. Do ponto de vista dos nossos sofrimentos
presentes, podemos olhar para trás, para a antiga criação, uma
criação que termina na morte de todos os seres viventes. Podemos
olhar de um modo carnal, mas os dias da carne estão contados. Se
olharmos desse modo, morreremos. Mas, do ponto de vista da
presente obra do Espírito, em meio aos nossos sofrimentos, a única
alternativa é olhar para o futuro, mas não para o futuro imediato, o
dia seguinte. Estamos olhando para um mundo novo, não porque
negamos este mundo presente, mas, antes, porque entendemos o
que já está acontecendo nele. Tudo isso será rejeitado por
escarnecedores como quimera, mas não devemos ser demovidos
por eles. Dos que rejeitam as “quimeras” celestiais não devemos
acolher as quimeras terrenas.
Por maiores que sejam os nossos sofrimentos presentes, não
são dignos de comparação com a glória vindoura (v. 18). Ora, aqui
está a mudança importante que deve ocorrer em nosso pensamento
se quisermos entender isso, se quisermos crescer como
deveríamos na esperança da glória. Todos os cristãos acreditam
que a Segunda Vinda será gloriosa, ab-rupta e repentina. Além
disso, muitos cristãos veem esse acontecimento como vindo
inteiramente de fora do nosso mundo, uma invasão do espaço
sobrenatural. Mas se você ler novamente este capítulo, você deve
perceber que a coisa impressionante sobre a Segunda Vinda é que
ela será o culminar do que está acontecendo aqui e agora. A nova
humanidade está para ser formada e nascida de um modo completo
e final, mas é este mundo que está prenhe dessa glória. O alívio
será grande, mas será o alívio das dores de parto deste mundo.
Em outras palavras, Jesus surgirá do céu para o mundo, e
ressuscitará os mortos, e nós o encontraremos no ar em sua
descida. Porém, ele não vem a um mundo inalterado, mas a um
mundo transformado por sua ressurreição. À medida que mais e
mais nações afluem a Cristo, o poder da sua ressurreição passa a
residir tanto em indivíduos como em nações. E, assim, a esperança
bendita do final da história é algo que está agora “em construção”.
Temos de lidar com o fato de que, quando Deus se tornou
homem, esse evento em si alterou a história humana para sempre.
Jesus não nasceu de uma virgem para realizar “uma breve visita”
de trinta e três anos, após a qual tudo voltou ao normal. A
encarnação† foi o início da grande transformação. João a descreve
deste modo:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus... E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de
verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. (Jo. 1.1,
14)

O evangelho de João começa com as palavras no princípio,


deliberadamente fazendo eco às primeiras palavras de Gênesis (Gn
1.1). Assim como Deus criou os céus e a terra, na vinda de Jesus
ele estava recriando os céus e a terra (Jo 1.1). No princípio era o
Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. O que isso
significa? A ligação íntima aqui é definida pelo “Verbo”. O Verbo
estava com Deus Pai da mesma forma que nossas palavras estão
conosco. Um e outras não são a mesma coisa. No entanto, nossas
palavras revelam ao mesmo tempo quem somos e como devemos
ser identificados. Somos aquilo que falamos. A boca fala daquilo
que está cheio o coração, e somos assim porque Deus é da mesma
forma. Ele fala daquilo que seu coração está cheio.†
Ora, o que fez esta Palavra perfeita, Palavra que veio do Pai
sem qualquer degradação de sentido, Palavra que deveria também
ser identificada com Deus? Tornou-se carne, diz João, e habitou
entre nós (v. 14). Isso degradou a Palavra? Não, João diz: “vimos a
sua glória” (v. 14). Que glória? A glória do unigênito do Pai. Que
glória? Uma glória cheia de graça e de verdade.
Jesus disse ser o único que, em certo sentido, tinha visto o
Pai (Jo 6.46). Mas em seu conhecido encontro com Filipe, adiante
neste mesmo evangelho, Jesus também disse isto:
Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens
conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o
Pai? (Jo 14.9)
Isso significa que Deus falou a si mesmo, e de um modo
perfeito, em um mundo sobremodo imperfeito e despedaçado.
Quais são as implicações disto? Isso não poderia acontecer sem
trazer o mundo à vida. Simplificando, João 1 nos diz que Deus
entrou no mundo como homem, e em João 5 descobrimos o porquê
disto — para dar vida (Jo 5.26).
Jesus é o Salvador do mundo, e é, necessariamente, o
Salvador do mundo. Mas o homem em sua condição pecaminosa
não quer ser salvo. Isso é parte do que significa ser um pecador.
Significa que o homem tenta, por meio de várias estratégias, estar
fora do alcance de Deus. Alguns querem fazê-lo com arrogância,
como os ateus de hoje em dia, dizendo que não há Deus. A
comunicação não é possível, e o problema ou a falha está em
Deus: ele é culpado por não existir. Mas outros querem fingir uma
espécie de humildade, e assim agem como se o problema estivesse
em nossa audição, e não no discurso divino. “Sim”, dizem eles,
“Deus fala perfeitamente, mas somos finitos, limitados e egoístas.
Não podemos fazer de conta que sabemos o que ele nos disse
porque só podemos ouvi-lo de modo imperfeito. Quem disser que
entendeu o que ele disse deve ser realmente arrogante”. Esse tipo
de pensamento é tolice. Faz-se um grande estardalhaço
enfatizando nossos limites, mas há uma recusa em considerar as
implicações da encarnação. Francis Schaeffer respondeu bem com
o ótimo título de seu livro: Ele está aí e não está em silêncio. Muitos
pensadores atuais creem que qualquer coisa que seja “derivada” de
uma fonte é necessariamente uma degradação. Somente a fonte
pode ser pura.
Mas o problema nisto é que se esquecem de que Deus é
triúno, e que o seu Verbo é a imagem exata de sua pessoa (Hb 1.3).
Não é como uma sequência de cópias numa máquina de xerox,
cada uma se tornando cada vez mais desfocada, ou alguma versão
da brincadeira do telefone-sem-fio, onde a mensagem fica cada vez
mais distorcida. Esqueça tudo isso! Nós somos cristãos.
Deus o Verbo (Logos) não é o “AUM” do misticismo oriental.
Ele não permeia todas as coisas. Ele se articula; ele fala. Nosso
Senhor engloba, encarna e exibe tudo o que as palavras fazem —
exclamações, sentenças, poemas, histórias, parábolas, sermões,
aulas, contos, conversas privadas, proposições, perguntas e mais
poesia. Deus fala e nós somos chamados a ouvir.
Nosso Deus triúno não é uma palavra congelada, eternamente
imóvel. A conversa é eterna, gloriosa, imediata, e além do que
esperamos. Se essa conversa fosse como a água, não imagine um
oceano estático e infinito, mas sim uma cachoeira em cascata
infinita. Sem topo, sem piso, sem limites laterais, sem nada por trás
ou na frente, a cair com rapidez infinita. Deus, o Pai fala tudo isto, e
o Verbo é tudo o que é falado. Mas quem poderia entender isso? O
Espírito Santo é a Sabedoria que compreende essa conversa
infinita, por inteiro.
Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as
coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. (1Co 2.10)

Agora, considere a natureza do milagre que celebramos no


Natal. Sem perder nada “na tradução”, Deus trouxe sua conversa
para este mundo, começando no ventre de uma jovem judaica. O
Verbo (a Palavra de quem falamos) tornou-se carne, e toda a
filosofia e sabedoria carnais são debilitadas por esta encarnação.
Mas nada disso foi feito para firmar nossos ídolos ou livrá-los
de cambalear. O que Deus realmente disse neste grande e
surpreendente milagre é uma ameaça para todas as nossas “boas
obras” fajutas — todas as coisas que gostaríamos que o Verbo
eterno de Deus tivesse dito e feito. Mas o que esta Palavra faz?
Conversa com prostitutas e viciados em drogas. Grita com terrível
sede dependurado. Prega fogo do inferno e promete tortura para o
obstinado. Perdoa os homens que o esfolam.
Deus Pai não parou de falar. Ele continua falando, e Jesus
ainda é essa Palavra. Nosso Deus não é um Deus silencioso, que
falou brevemente dois mil anos atrás. Naquele momento da história
— a vida de perfeita obediência do Senhor, a sua morte na cruz, a
ressurreição e a ascensão à destra do Pai — foram o capítulo
crítico da longa história do mundo. Se não entendemos o que foi
dito e feito nesse capítulo, não seremos capazes de entender nada
mais. Todavia, se entendermos tal capítulo, avançaremos com
sabedoria pelo capítulo em que estamos e pelos vindouros. E é por
isso que estamos contando a história da salvação do mundo.
Precisamos entender o rumo dessa conversa. Deus falou a si
mesmo em nosso mundo, e o fez para salvar este mundo. Isso
significa que não podemos espiritualizar a nossa salvação. Cristo a
trouxe para cá, o que significa que não devemos tentar transformá-
la numa crença abstrata. Não devemos ser gnósticos. † Cristo
nasceu neste mundo, em uma cidade que ainda permanece, e que
muitos de nós já visitou. Cristo viveu sua vida neste mundo. Foi
crucificado aqui e, em sua ressurreição, plantou esta nova vida no
meio deste mundo morto e prometeu a seu Pai que ela cresceria e
se espalharia. Espiritualizar isso, ou relegar tudo para um céu
futuro, é uma forma bastante trágica de incredulidade. Cristo não
apenas se levantou dos mortos e simplesmente correu de volta ao
céu. Ele tocou as pessoas aqui antes de partir (1Jo 1.1-3), e
devemos entender que a vida dele é contagiosa. Ela deve se
espalhar até que todo o mundo viva.

Questões para discussão:


Este capítulo, o anterior e o próximo se concentram, acima de tudo,
nas graças da fé, da esperança e do amor. Este capítulo trata do
dom da esperança divina.
1. Por que é importante que o Espírito que ressuscitou Jesus de
dentre os mortos seja o mesmo que habita em todos os cristãos
hoje? Quais as implicações disso para a história humana?
2. Em que sentido a Segunda Vinda de Cristo é um evento
descontínuo? E em que sentido é superior ao que Deus já está
fazendo?
3. Quando Deus falou sua Palavra na história da humanidade, essa
Palavra disse alguma coisa surpreendente? Como o quê?
† Encarnação: Ato no qual Jesus (o Filho de Deus, a Segunda
Pessoa da Trindade) assume a forma humana.
† Lucas 6.45: O homem bom do bom tesouro do coração tira o
bem, e o mau do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que
está cheio o coração.
† Gnóstico: Alguém que desdenha das coisas materiais em favor
das espirituais, acreditando que a matéria (aquilo de que nosso
mundo é feito) é intrinsicamente má e inferior àquilo às abstrações
(pensamentos, crenças, ideias, filosofias, etc.).
5. Amor inexorável
Para que o mundo fosse salvo por ele

Tendemos a nos desviar para um de dois erros em nossa


visão da história futura. Mergulhamos em um estudo muito
emocionante dos “últimos tempos” e ficamos fissurados com o livro
de Apocalipse e as notícias sobre a União Europeia, abelhas
assassinas, problemas no Oriente Médio, e assim por diante; ou
descartamos tudo com um aceno de mão e uma piada — e
geralmente é a mesma piada. “Eu sou um pan-milenarista. Todos
irão subir no final.” Porém, há muito mais está envolvido neste
assunto do que a “cronologia” específica que estabelecemos para
os eventos do fim do mundo. Os cristãos devem entender que
nossa doutrina do poder da cruz — e o amor de Deus ali exibido —
necessariamente estará no cerne da nossa doutrina da história
futura da raça humana.
E nós temos visto e testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como
Salvador do mundo. (1Jo 4.14)

O apóstolo João nos diz que ele, juntamente com outros,


tinham visto algo e testemunharam a respeito. Ora, nosso dever
como cristãos é nos manter com os apóstolos, e unir o nosso
testemunho ao deles. Mas como podemos fazer isso se não vemos
o que eles viram? E como podemos testemunhar de algo que não
vimos? Eles viram que o Pai enviou o Filho com um propósito
específico em mente — esta é a vontade do Pai, à qual Cristo se
submeteu no jardim quando se preparou para ir à cruz. O Pai
enviou o Filho como Salvador do mundo. As palavras são
claríssimas, e palavras muitíssimo semelhantes a estas são
encontradas ao longo de toda a Escritura. Este é o testemunho dos
apóstolos. É também o nosso? Temos visto? Se não o temos, é
possível que apenas não estivéssemos prestando a devida
atenção?
Qual era a missão de Jesus? Ou, antes, qual não era a
missão? “Se alguém ouvir as minhas palavras e não as guardar, eu
não o julgo; porque eu não vim para julgar o mundo, e sim para
salvá-lo” (Jo 12.47). Ora, Jesus diz que não veio para julgar o
mundo. Mas o que a maioria dos cristãos pensa que Jesus fará
quando tudo tiver sido dito e feito? Exato! Julgar o mundo.
Vemos o mesmo em uma passagem realmente muito famosa.
“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a
vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para
que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”
(Jo 3.16-17). O motivo pelo qual Cristo veio ao mundo foi para
salvá-lo — e está muito explícito que a sua missão não era a de
tentar salvá-lo.
Os samaritanos sem instrução no evangelho de João sabiam
mais sobre isso do que muitos cristãos contemporâneos. “E
sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo
4.42). Por que Cristo deu a sua carne na cruz? Pela vida do mundo
(Jo 6.33, 51).
Este é o poder da propiciação. Ora, a propiciação é a evasão
ou afastamento da ira. A ira de Deus estava sobre o nosso mundo
por sua pecaminosidade e, na cruz, Cristo proporcionou propiciação
para todo o mundo. “Ele é a propiciação pelos nossos pecados e
não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo
inteiro” (1Jo 2.2). Perceba que Deus não está “tentando” coisa
alguma — ele está, de fato, fazendo alguma coisa. “No dia seguinte,
viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1.29). Ele não se oferece
para tirar o pecado do mundo; ele o retira dali.
Por causa disso, temos um ministério da reconciliação. “A
saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo,
não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a
palavra da reconciliação” (2Co 5.19, cf. Rm 11.15). Exercemos o
ministério que foi primeiramente confiado aos apóstolos, e esse
ministério é proclamar a palavra de reconciliação. Agora isto nos foi
empenhado, nos foi confiado. O que pode ser dito a emissários
infiéis que alteram a mensagem? Já não dizemos às pessoas que
Deus de fato reconciliou o mundo consigo, porque não pensamos
que ele de fato fez isso. Neste ponto, estamos tão cheios de
incredulidade quanto as pessoas às quais pregamos!
Existem duas escolhas populares, ambas ruins. O
evangelicalismo popular quer que a expiação † alcance a cada
homem, mulher e criança do universo. Mas, para que seja assim,
tornam o chamado ineficaz. Por outro lado, os calvinistas
pessimistas querem que esse alcance seja potente e eficaz... para
umas poucas centenas de pessoas. Mas somos chamados a pregar
uma cruz efetiva, uma cruz eficaz† que se manifestará entre todos
os que ouvirem — e todos ouvirão — como nada menos do que a
salvação do mundo inteiro. Esta salvação é garantida pela fé. “Não
foi por intermédio da lei que a Abraão ou a sua descendência coube
a promessa de ser herdeiro do mundo, e sim mediante a justiça da
fé” (Rm 4.13).
Nosso Senhor Jesus Cristo foi “a verdadeira luz, que, vinda ao
mundo, ilumina a todo o homem” (Jo 1.9). Realmente achamos
isso? Realmente acreditamos nisso? Jesus foi crucificado de forma
pública e, assim, sua morte deve ter ramificações públicas. Não há
como ser totalmente fiel à mensagem da sua morte e ressurreição
de um modo privado. A fé privada neste evento público não pode,
pela própria natureza do caso, permanecer privada. O amor de
Deus, tal como demonstrado na cruz, foi tão público quanto poderia.
Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este
crucificado. (...) Entretanto, expomos sabedoria entre os
experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos
poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas falamos a
sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou
desde a eternidade para a nossa glória; sabedoria essa que nenhum
dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem
conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória. (1Co 2.2, 6-8)

Muitas coisas maravilhosas são declaradas neste texto, e


algumas outras (ainda mais gloriosas) apenas sugeridas. Quando foi
ter com os coríntios, Paulo não chegou contando vantagens, como
um pregador de homens, dizendo: “Vejam todo esse conhecimento
que eu tenho!” (v. 1). Pelo contrário, resolveu não saber nada entre
eles, exceto a Cristo e este crucificado, para mantê-lo como o centro
— a fonte da verdade (v. 2). Paulo chega até a dizer que, aos olhos
humanos, ele estava desqualificado para o ensino (v. 3). Ele recorda
que suas mensagens foram do mesmo modo: não entregues em
“linguagem persuasiva de sabedoria”, mas no poder de Deus (v. 4).
E assim o fez porque não queria que eles tivessem fé na coisa
errada — nele ou em pregadores metrossexuais em vez do poder
de Deus (v. 5). Expomos sabedoria, ele diz, mas essa não é a
sabedoria dos príncipes deste mundo, que se reduzem a nada (v. 6).
Expomos uma sabedoria oculta, agora revelada (na cruz, lembre-
se), a qual Deus ordenou para a nossa glória antes que houvesse
mundo (v. 7). Se os príncipes deste mundo soubessem o que estava
acontecendo, não teriam crucificado o Senhor da glória (v. 8). Ao
fazer isso, providenciaram uma bênção espetacular para aqueles
que amam a Deus (v. 9). E o Espírito nos revelou em que essa
bênção consiste (v. 10).
O perigo do individualismo radical pode ser claramente visto
nesta frase do versículo 2: “nada saber entre vós, senão a Jesus
Cristo e este crucificado”. Cresci em uma igreja que achava que sua
responsabilidade era pregar o evangelho todos os domingos, com
um apelo a cada domingo. E por quê? Porque aquela igreja assumiu
que a pregação “Cristo e este crucificado” era apenas levar as
almas ao céu e nada mais. E porque as palavras de Paulo foram
interpretadas de modo equivocado, este evangelho foi limitado à
salvação de almas invisíveis após partirem deste mundo. Este
evangelho tinha pouco a dizer sobre a vida aqui na terra.
Mas perceba como Paulo trata disto. Sua mensagem
desbanca os príncipes deste mundo, e tudo o que anteriormente
estava sob a jurisdição deles — e isso diz respeito às artes, política,
educação, pesquisa científica, construção de cercas, culinária e
qualquer outra coisa que os homens pudessem fazer. Quando
corretamente compreendido, pregar “Cristo e este crucificado” é
algo tão amplo quanto o mundo.
Na história da Igreja, desenvolveram-se três teorias básicas da
expiação. Elas geralmente são articuladas em oposição umas às
outras, mas isso é desnecessário. Todas elas têm uma base bíblica,
e temos de aprender a vê-las todas juntas. Se o fizermos, em vez de
opô-las entre si, começaremos a ver algo do que Paulo está
tratando aqui. E se adotarmos uma visão sem considerar as demais,
começaremos a nos desviar rumo à rejeição do que Paulo está
descrevendo nessa passagem.
A primeira visão tem sido enfatizada no mundo protestante
reformado. Essa linha de pensamento tem uma longa linhagem e
culminou na visão protestante de que Cristo morreu como um
substituto, levando sobre si a penalidade pelo nosso pecado.[2] “Pois
também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos
injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas
vivificado no espírito” (1Pe 3.18).
Abelardo está associado à segunda posição — a visão de que
Cristo morreu para nos deixar exemplo a ser seguido. A ideia é que,
ao sacrificar-se deste modo, Cristo nos deixa um padrão de
influência moral. Imediatamente, percebemos que isso, se
considerado isoladamente, é muito pouco adequado, mas está na
Bíblia. “Porquanto para isto mesmo fostes chamados, pois que
também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para
seguirdes os seus passos” (1Pe 2.21). Diferentemente da
substituição penal, Cristo não teve de morrer por essa razão.
Porém, a Bíblia nos diz que ele realmente o fez.
A terceira é a do lema Christus Victor. Nesta visão, a morte de
Jesus é vista como um triunfo dele sobre o diabo e seus anjos. Isso
também é bíblico, mas, novamente, não de forma isolada.
E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela
incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele,
perdoando todos os nossos delitos; tendo cancelado o escrito de dívida,
que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era
prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz; e,
despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao
desprezo, triunfando deles na cruz. (Cl 2.13-15)

Mais poderia ser dito a respeito, mas observe que quando


vemos tudo isso em conjunto, como partes de um todo, ao invés de
vê-las como teorias concorrentes, podemos perceber que, na cruz,
Cristo estava exercendo todos os seus ofícios — profeta (Abelardo),
sacerdote (protestante) e rei (Christus Victor).
Assim, isso nos leva à questão da nova humanidade e dos
antigos príncipes. Haverá mais a respeito no próximo capítulo, mas
temos de pincelar isto agora. Jesus não foi assassinado em secreto
por bandidos, apenas para voltar dos mortos em segredo, com um
grupo seleto de seguidores tendo de sussurrar a notícia a outro
punhado: “Psiu! Passe adiante”. Não, ele foi executado
publicamente pelas autoridades, e ressuscitou dos mortos, de modo
a declarar sua autoridade absoluta sobre todos os reinos dos
homens e sobre tudo o que neles há. Temos de aprender a ver a
cruz nestes termos, e é nisto que Paulo está insistindo em nosso
texto.
Quando pregamos a Cristo e este crucificado, estamos
pregando a esperança e a glória do mundo. O que Deus tem
preparado para nós aqui, sobre esta terra, para os que o amam,
jamais penetrou em coração humano. O que Deus está preparando
para derramar sobre todo este planeta? O que ele está planejando
nos dar? Qual é seu propósito de salvação para este mundo? Ele
vai inundar o nosso mundo infeliz e pecaminoso com as coisas
profundas de Deus. Quando a Terra finalmente estiver tão cheia do
conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar, esses
“mares” serão infinitamente profundos. Ao pensar sobre a grandeza
da Grande Comissão, jamais tema superestimar tal grandeza.
A crucificação, portanto, é poderosa, mas somente porque a
ressurreição nos habilita a falar a respeito dela. E assim
testemunhamos a realidade da ressurreição de Jesus Cristo. Ele foi
crucificado, morto e sepultado. Ressurgiu dos mortos ao terceiro dia,
conforme as Escrituras. Isto confessamos, e confessamos de bom
grado. Mas não é suficiente declarar que Jesus ressuscitou;
devemos também declarar as ramificações deste fato estupendo.
Não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém,
notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam;
porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com
justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos,
ressuscitando-o dentre os mortos. (At 17.30-31)

Muitos apologistas† modernos pensam na ressurreição como


algo que precisa ser comprovado. Ela é desafiada pelos incrédulos,
e assim juntamos nossos argumentos para demonstrar que Jesus
também se elevou dos mortos. Isso pode ser adequado em
determinada ocasião, mas nunca devemos esquecer de que o Novo
Testamento não trata a ressurreição como algo que carece de
prova, senão que é, em si, uma prova. Quem é Jesus? Ele foi
declarado, com poder, como o Filho de Deus, por causa da sua
ressurreição dentre os mortos (Rm 1.4). A ressurreição não está
esperando para ser confirmada; a ressurreição é a confirmação.
Nesta passagem, o que é confirmado pela ressurreição é o
fato de que Jesus Cristo julgará o mundo. Temos certeza de que ele
julgará o mundo porque Deus, o Pai, o ressuscitou dentre os mortos.
Este não é um julgamento com caos e destruição gerais, o qual
(como vimos anteriormente) Jesus disse que não faria. É um
julgamento de salvação e justiça, e é por sua ressurreição que
sabemos que o mundo será julgado “em justiça”. Esta é a nossa
base para dizer aos homens que não é mais admissível permanecer
na ignorância: Deus notifica agora a todos os homens em todos os
lugares que se arrependam. Esta notificação veio na ressurreição, e
é a natureza de tal notificação que estamos agora considerando.
Não devemos achar que, se Jesus julgará o mundo com base
nisto, automaticamente sabemos como será tal julgamento. É muita
verbosidade dizer que sua ressurreição mostra que ele tem muito
poder e que certamente usará muita força bruta para julgar o
mundo, e que assim ele julgará o mundo, como qualquer um de nós
faria, só que de uma forma maior e mais poderosa. Não. A
ressurreição não mostra apenas que ele tem a autoridade para
julgar (embora certamente tenha); ela também nos revela algo sobre
o tipo de padrão que será usado e o tipo de bênção salvadora
contida em seu julgamento. A mensagem não é “Jesus está vindo
de novo e, meu amigo, ele está bravo”.
Quem é esse juiz? Ele é a vítima ressuscitada de um
assassinato após um julgamento fraudulento. Cristo está
retornando, e retorna trazendo libertação dos velhos caminhos de
morte disfarçados de “justiça”. Antes desse retorno, ele ordena seu
povo a declarar seus padrões de justiça, seus caminhos de justiça,
que são completamente contrários aos caminhos de morte pagãos.
Podemos ter conforto no amor de Deus porque o pecado do qual
devemos ser libertos é o de confundir o Espírito de Deus, o
Consolador, com o espírito de Satanás, o acusador. E essa é uma
tremenda confusão — que a ressurreição desfaz por completo.
Cristo está, agora mesmo, no processo de derrubada da
civilização satânica. O nome Satanás significa acusador. Ele é
aquele que se deleita em apontar o dedo para a injustiça, para os
erros e falhas alheios. Ele é o acusador dos irmãos, dia e noite (Ap
12.10). Ele é aquele que vem à presença de Deus preparado para
acusar Jó. A palavra diabo vem da palavra diabolos, que significa
“caluniador, acusador blasfemo”. Satanás se deleita em fazer
confusões mirabolantes, remexer em problemas, circular
informações falsas, e encorajar as pessoas a não darem aos outros
nenhuma colher de chá. Esse é seu jeito de ser. Mas isso é feito
com um propósito; não é apenas um comportamento travesso e
levado.
As civilizações pagãs sempre foram erigidas à base do
assassinato de bodes expiatórios — esse tipo de convulsão é
gerenciada até chegar a um ponto crítico e, em seguida, todos se
viram para uma vítima designada. Após o assassinato desta vítima,
tudo fica tranquilo novamente. Esses tipos de assassinatos
sacrificais e rituais costumavam funcionar. Desde Édipo em Tebas, a
Remo e Júlio César em Roma, vemos isso acontecer
repetidamente. Para o homem carnal, esta é a coisa mais natural do
mundo. Acusação equivale a culpa, e a condenação de alguém é a
minha salvação. Isso é satânico — mas não confunda esse
satanismo (biblicamente definido) com coisas fantasmagóricas.
Esse tipo de satanismo é mais respeitável.
Do início ao fim, as Escrituras se põem diretamente contra
essa mentalidade pagã — a mentalidade sempre serena e
autoconfiante sobre a culpa de uma vítima designada.
Consistentemente, de Gênesis ao fim da Bíblia, as Escrituras
contam esta mesma história do ponto de vista da vítima inocente.
Esse mecanismo, encontrado em todas as sociedades pagãs,
também é encontrado ao longo da Escritura — a diferença é que as
Escrituras narram, de modo consistente, o outro lado da história.
Pense em José, acusado falsamente, vendido como escravo por
seus irmãos. Pense em Jó, acusado falsamente por Satanás nos
tribunais celestiais e por seus supostos consoladores aqui na terra.
Pense em todos os profetas, de Abel a Zacarias, filho de Berequias.
E pense no salmista. Nos interrogatórios stalinistas (que eram
essencialmente pagãos), parte do simulacro consistia em levar o
acusado a também se acusar, como uma espécie de revide do
“sistema”. Veja, o sistema funciona! Mas o salmista, frequentemente
escolhido como o culpado por uma multidão que se aproxima para
linchá-lo, é tão pouco cooperativo quanto qualquer vítima seria. E
vemos aqui uma profunda ironia nos problemas que muitos cristãos
de hoje em dia têm com os salmos imprecatórios† e com os salmos
que reivindicam inocência. Achamos que as coisas passam dos
limites. O sujeito está sentado na garupa de um cavalo, com as
mãos amarradas nas costas e uma corda enrolada no pescoço. Ele
olha para os touros de Basã ao redor e os chama de raça de
víboras. “Olha lá!”, pensamos. “Esse tipo de linguagem é um pouco
inadequada.”
Outro detalhe importante que podemos ver nas Escrituras é o
fato de que a divisão não é entre o príncipe e o servo, mas entre
acusador e acusado. Às vezes, o acusador é uma escrava (pense
em Pedro), e às vezes é um líder do povo (pense em Caifás). Às
vezes, o acusado está inteiramente indefeso (pense em João
Batista) e às vezes é o rei (pense em Davi). A questão, sempre, é a
da justiça bíblica em contraposição à justiça mundana.
Acusadores perversos têm problemas de consciência. Havia
uma razão para Herodes achar que Jesus fosse João Batista de
volta à vida. E, por causa disso, a ressurreição de Jesus foi a má
notícia definitiva para a “respeitabilidade da justiça humana”. A
ressurreição de Jesus foi a morte das acusações falsas; foi a morte
do reinado da carne; foi a morte da morte. Na ressurreição, Jesus
esmagou de maneira completa e definitiva a cabeça da serpente
mentirosa, sedutora e acusadora. Portanto, a ressurreição de Jesus
é para a nossa justificação† (Rm 4.25). Isso não é condenação — é
condenação apenas para aqueles que se apegam à antiga ordem
satânica, a qual está por um fio.
Ora, porque Cristo ressuscitou, podemos andar no poder de
sua ressurreição (Rm 6.8). “Aquele que diz estar na luz e odeia a
seu irmão, até agora, está nas trevas. Aquele que ama a seu irmão
permanece na luz, e nele não há nenhum tropeço” (1Jo 2.9-10). A
cruz é um escândalo para a justiça mundana porque a justiça
mundana é um escândalo para os caminhos de Deus. Sendo assim,
somos chamados a amar uns aos outros.
A morte de Jesus foi um ato de amor, como todos os
evangélicos confessam. Mas devemos chegar a uma visão mais
ampla — foi um ato de amor para o mundo inteiro e tudo o que ele
contém. Não foi apenas um ato de amor por uns poucos.
Ele veio para fazer suas benções fluírem por onde quer que
haja maldição. E são muitos os lugares — em nossas casas
legislativas, em nossos tribunais de justiça, em nossas ruas. Jesus,
o Crucificado, não veio para julgar o mundo, mas para que o mundo
fosse salvo por ele.

Questões para discussão:


Este capítulo, e os dois anteriores, se concentram nas graças da fé,
esperança e amor. Este capítulo é sobre o amor que Deus mostrou
ao nosso mundo rebelde na cruz de Cristo.
1. Qual é a relação entre o amor de Deus pelo mundo e sua
intenção de salvar o mundo? Será que o amor dele resultará em um
mundo salvo, ou em um mundo que ele tentou salvar, mas não
conseguiu?
2. Qual a importância de que Cristo fosse crucificado em público,
pelas autoridades?
3. Quais são as três posições sobre a natureza da expiação de
Cristo? Essas posições são mutuamente excludentes? Por que sim
ou por que não?
† Expiação: Ato pelo qual nossos pecados são perdoados por
Deus e somos reconciliados com ele. A morte de Cristo na cruz
tornou essa reconciliação possível.
† Eficaz: Dizer que a cruz é “eficaz” é dizer que ela simplesmente
realizou algo.
† Apologista: Cristão que busca defender e apresentar a fé como
superior às religiões e sistemas filosóficos do mundo descrente.
† Salmos imprecatórios: Os salmos que pedem que Deus puna os
perversos, normalmente em linguagem nada meiga ou delicada.
† Justificação: Ato pelo qual Deus declara o pecador como “reto”
ou “justo” aos seus olhos.
6. O homem forte amarrado
Nenhum substituto para a vitória[3]

Há muitos cristãos usando uma frase de Lutero sem a fé de


Lutero. Eles acreditam que este mundo está “repleto de demônios”,
mas não conhecem aquela “pequena palavra” que repele o maligno.
“Cruz” é essa pequena palavra. Cristo é o Salvador do mundo, não
só porque morreu pelo mundo e pela humanidade perdida, mas
porque em sua morte despojou os principados e potestades que
então reinavam. A morte, sepultamento e ressurreição de Jesus
constituíram uma revolução no governo espiritual do nosso mundo.
Tragicamente, muitos cristãos enxergam a guerra espiritual como se
Cristo nunca tivesse morrido, ou como se a morte dele não tivesse
relevância histórica. Mas não é isso o que a Bíblia ensina.
Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe
será expulso. E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim
mesmo. Isto dizia, significando de que gênero de morte estava para
morrer. (Jo 12.31-33)

Como era o mundo antigo? Ao longo do Antigo Testamento,


vemos um governo celestial e angélico sobre as nações dos
homens, pois os deuses dos vários povos eram intimamente
identificados com suas nações. Por exemplo, seres angélicos
estavam por trás das nações da Pérsia (Dn 10.13) e Tiro (Ez 28.11-
16). Deus é contrastado com tais seres, nestas declarações gerais,
e embora eles sejam chamados deuses, o Deus Criador está em
uma categoria totalmente diferente.
Não há entre os deuses semelhante a ti, S ; e nada existe que se
compare às tuas obras. (Sl 86.8)
Deus era soberano sobre estas entidades celestiais até então,
mas ele exerceu sua soberania† sobre elas e por meio delas. Elas
eram, em algum sentido significativo, príncipes mediadores. Mas na
era cristã, Deus as aboliu e estabeleceu apenas um Príncipe, e ele
(aquele Príncipe) é um de nós, um homem.
Eis por que a era cristã é o momento em que o homem chega
à maturidade. O período do Novo Testamento é o tempo de
transição entre o reinado dos príncipes celestiais e o domínio do
homem em Cristo.
Pois não foi a anjos que sujeitou o mundo que há de vir, sobre o qual
estamos falando; antes, alguém, em certo lugar, deu pleno testemunho,
dizendo: Que é o homem, que dele te lembres? Ou o filho do homem,
que o visites? [...] Todas as coisas sujeitaste debaixo dos seus pés. Ora,
desde que lhe sujeitou todas as coisas, nada deixou fora do seu
domínio. Agora, porém, ainda não vemos todas as coisas a ele sujeitas.
(Hb 2.5-6, 8-9)

O autor de Hebreus não chegou a ver cumprida a promessa


feita à humanidade. No entanto, ele vê seu cumprimento como
realizada e centrada em Cristo.
Agora é necessária uma distinção importante. Por definição,
Deus sempre exerceu o controle soberano sobre todo o mundo e
sobre todos os detalhes dele. Os cabelos de cada cabeça sempre
estiveram contados. Mas na missão cumprida por Cristo, a cruz e a
ressurreição, Deus estabeleceu um novo reino mediador no mundo.
Cristo, como a eterna Palavra de Deus, sempre foi soberano. Mas,
nos acontecimentos da Encarnação até a Ascensão, Deus
estabeleceu seu Filho como um novo Príncipe mediador,
substituindo os principados e potestades (bons, maus ou
indiferentes), e aqueles que confiam em Cristo estão agora
sentados e entronizados com ele nos lugares celestiais.
Portanto, devemos nos lembrar do poder da cruz
conquistadora. É desse modo que o Novo Testamento a descreve
sempre e sempre. Se não atentarmos a isso, estamos perdendo
uma parte central do impacto do evangelho. Note especialmente o
itálico neste trecho da Escritura:
Expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria
deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a
nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a
qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória;
sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu;
porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da
glória; mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram,
nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado
para aqueles que o amam. (1Co 2.6-9)

O que esses poderosos não conheciam? Eles não sabiam que


a cruz os despojaria e glorificaria os santos. Jesus disse sobre o
governante deles: “o príncipe deste mundo já está julgado” (Jo
16.11). Paulo exulta nesta conquista: “Despojando os principados e
as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles
na cruz” (Cl 2.15). Triunfo era um costume romano, um desfile para
o general vitorioso que incluía a humilhação pública dos derrotados,
marchando acorrentados no desfile.
Logo, qual era o objetivo da cruz? “Que, por sua morte,
destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb
2.14). Cristo recusou o que Satanás ofereceu na tentação no
deserto. Mas não recusou a oferta por não querer o que lhe fora
oferecido. Ele não o queria naqueles termos, mas a razão pela qual
ele veio à Terra foi justamente obter aqueles reinos. Ele recusou a
oferta do tentador porque planejava derrotá-lo e tirar os reinos dos
homens dele. “Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-
lhe os bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a
casa” (Mc 3.27). Esta é uma parte central da mensagem do Novo
Testamento — Jesus tomou os despojos do diabo.
Eis por que agora declaramos que Jesus é o rei dos reis da
terra. Jesus é o Deus deste mundo, o Deus deste século — “Jesus
Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano
dos reis da terra” (Ap 1.5, cf. 11.15; Hb 6.5). Não podemos declarar
com fidelidade a cruz de Cristo sem declarar o que ela de fato fez. O
que ela fez foi abalar o velho e estabelecer o novo. Quando isso
aconteceu, Satanás era o deus desse século (2Co 4.4), o que não é
o mesmo que dizer que ele é o deus de todos os séculos.
Há muitas passagens no Antigo Testamento nas quais os
profetas falam da grande renovação da Igreja e do juízo de Deus
sobre o judaísmo infiel com a aproximação da Nova Aliança. Há
muitas passagens nas quais a Bíblia descreve a dissolução iminente
da ordem da Velha Aliança.
Ora, pois, sê forte, Zorobabel, diz o S , e sê forte, Josué, filho de
Jozadaque, o sumo sacerdote, e tu, todo o povo da terra, sê forte, diz o
S , e trabalhai, porque eu sou convosco, diz o S dos
Exércitos; segundo a palavra da aliança que fiz convosco, quando
saístes do Egito, o meu Espírito habita no meio de vós; não temais. Pois
assim diz o S dos Exércitos: Ainda uma vez, dentro em pouco,
farei abalar o céu, a terra, o mar e a terra seca; farei abalar todas as
nações, e as coisas preciosas de todas as nações virão, e encherei de
glória esta casa, diz o S dos Exércitos. Minha é a prata, meu é o
ouro, diz o S dos Exércitos. A glória desta última casa será maior
do que a da primeira, diz o S dos Exércitos; e, neste lugar, darei
a paz, diz o S dos Exércitos. (Ag 2.4-9)

Considere como o autor de Hebreus interpreta esse “abalo”.


Tende cuidado, não recuseis ao que fala. Pois, se não escaparam
aqueles que recusaram ouvir quem, divinamente, os advertia sobre a
terra, muito menos nós, os que nos desviamos daquele que dos céus
nos adverte, aquele, cuja voz abalou, então, a terra; agora, porém, ele
promete, dizendo:
Ainda uma vez por todas, farei abalar não só a terra, mas também o
céu. Ora, esta palavra: Ainda uma vez por todas significa a remoção
dessas coisas abaladas, como tinham sido feitas, para que as coisas
que não são abaladas permaneçam. Por isso, recebendo nós um reino
inabalável, retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus de modo
agradável, com reverência e santo temor; porque o nosso Deus é fogo
consumidor. (Hb 12.25-29)

O autor de Hebreus está ensinando claramente a seus leitores


que o abalo do céu e da terra é a remoção da antiga ordem de
principados e potestades, o que inclui a antiga ordem judaica, para
que o reino de Deus possa ser firmemente estabelecido por toda a
terra.
Os escritores do Novo Testamento estavam vivendo no grande
ponto de transição. Eles sabiam que a velha ordem estava
chegando ao fim e que a nova ordem estava sendo estabelecida.
Como Paulo disse, a “aparência deste mundo passa” (1Co 7.31).
Deus quebrou o molde antigo, e em Cristo iniciou um novo padrão.
É dentro deste novo molde ou padrão que somos chamados a
crescer.
Há muitas outras passagens também. O profeta Oséias se
refere à chegada do grande castigo.
Chegaram os dias do castigo, chegaram os dias da retribuição; Israel o
saberá; o seu profeta é um insensato, o homem de espírito é um louco,
por causa da abundância da tua iniquidade, ó Israel, e o muito do teu
ódio. (Os 9.7)

Por que não tomamos isso como apenas mais uma profecia
geral de julgamento? Por que temos de aplicá-la à mudança das
eras no primeiro século? Em razão das palavras de Cristo.
Porque estes dias são de vingança, para se cumprir tudo o que está
escrito. (Lc 21.22)

E quando falou desta maneira, nos dizia que tal ocorreria


dentro de uma geração:
Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto
aconteça. (Mt 24.34)

Questões para discussão:


Quando Cristo morreu na cruz, ele não estava sendo derrotado. Na
verdade, foi o contrário, ele estava empenhado em sobrepujar os
principados e potestades.

1. Qual a diferença entre o governo soberano de Deus em todos os


períodos da história humana e seu domínio sobre as nações agora
por meio de Cristo?
2. Qual o impacto da morte de Jesus sobre os poderes espirituais
deste mundo?
3. Depois que amarrou o “homem forte”, o que Jesus fez? Que luz
isto lança sobre Cristo ter recusado, durante a tentação no deserto,
a oferta do diabo de conceder todos os reinos do mundo?
† Soberania: Ter o poder completo e supremo que pertence a um
rei.
7. O que os anjos disseram
Boa vontade para com os homens

Essa visão do otimismo histórico† não é tão comum no mundo


cristão, e por isso pode parecer bem peculiar às vezes. Mas,
felizmente, uma vez por ano a nação inteira parece aderir à nossa
maneira de pensar. Você pode estar comprando aqueles produtos
de último minuto e não se surpreender ao ouvir os alto-falantes
lembrando que “ele vem para fazer suas bênçãos fluírem aonde
houver maldição”. Pense neste livro como um pequeno esforço para
fazer com que os cristãos creiam em suas canções de Natal o ano
inteiro.
Temos problemas com isso porque o Natal é sobre graça, e
uma das coisas mais difíceis neste mundo é o pecador entender o
que é a graça. E, então, tão logo nos damos conta dessa
dificuldade, começamos a competir para ver quem “entendeu”,
dando aos que apresentam a “resposta certa” o prêmio de melhor
da competição. Mas a graça não segue as nossas regras. Graça
implica dizer que alguns cujas respostas estavam erradas serão
salvos e outros, cujas respostas estavam certas, não.
Ora, havia naquela mesma comarca pastores que estavam no campo, e
guardavam, durante as vigílias da noite, o seu rebanho. E eis que o anjo
do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de
resplendor, e tiveram grande temor. E o anjo lhes disse: Não temais,
porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o
povo: Pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo,
o Senhor. E isto vos será por sinal: Achareis o menino envolto em
panos, e deitado numa manjedoura. E, no mesmo instante, apareceu
com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus, e
dizendo: Glória a Deus nas alturas, Paz na terra, boa vontade para com
os homens. (Lc 2.8-14, ACF)

Como todos já ouvimos muitas vezes, havia pastores naquela


área, vigiando seus rebanhos pela noite (v. 8). Mas não imagine
uma pitoresca cena pastoril — esse grupo estava mais para um
bando de brutamontes tatuados do que para qualquer outra coisa.
Os pastores não faziam parte dos estratos superiores da sociedade
israelita. Um anjo apareceu a eles, e a glória do Senhor brilhou em
redor, e eles ficaram apavorados (v. 9). Há boas chances de que o
anjo os tenha interrompido no meio de uma piada. O anjo lhes disse
que não temessem — ele trouxe boas novas, novas de grande
alegria, e a mensagem era para todas as pessoas (v. 10). A base de
tal alegria era o fato de que Cristo, o Senhor, havia nascido em
Belém naquele dia (v. 11). Um sinal foi dado — o bebê seria envolto
e posto em uma manjedoura (v. 12). Depois que o anjo do Senhor
terminou, esta grande mensagem de paz foi reforçada por um
exército celestial (v. 13). A multidão (muitos milhares) disse isto (v.
13) em seu louvor a Deus:
1. Glória a Deus nas alturas
2. Paz na terra
3. Boa vontade para com os homens

A diferença entre a versão Almeida Corrigida Fiel e algumas


outras traduções é uma questão de manuscrito, não de tradução, e
por razões que se tornarão evidentes em breve, continuaremos
seguindo aqui a ACF.
Temos problemas com algo tão direto como “boa vontade para
com os homens”. Temos medo de nos entusiasmar demais com a
graça e por isso queremos inserir na frase algumas restrições. Isso
surge em algumas das outras leituras. “Glória a Deus nas maiores
alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc
2.14, ARA). Isso é consistente com a visão de que a paz é limitada a
umas vinte e oito pessoas — certamente, Deus não ficaria satisfeito
com mais do que isso. Boa vontade e paz são dispensadas com
uma colher de chá a um clube seleto, e não precisamos mais nos
preocupar com os modos aparentemente pródigos de Deus.
Mas há muitas passagens que tornam clara e evidente a
intenção salvadora e graciosa de Deus para com o mundo inteiro. E
nós simplesmente as ignoramos ou as transferimos para algum
lugar celestial, em um outro mundo, para que não se apliquem a nós
aqui e agora. Mas temos de fazer algo com os versículos que
geralmente aparecem nos cartões de Natal. Será que não significam
realmente que a boa vontade de Deus é estendida a todos os
homens em geral? Significam, sim! Primeiro, fora da questão
manuscriturística, observe o que o anjo do Senhor disse antes de
que todo o exército celestial aparecesse e cantasse em coro. Ele
disse que aquela era uma “boa nova de grande alegria” e era “para
todo o povo” (v. 10).
Ora, a graça se espalha à sua própria maneira. O fato de Deus
ter toda a intenção de salvar o mundo inteiro é uma mensagem
graciosa. E aqueles que temem que nos deixemos levar pela
conversa da graça indiscriminada não precisam se preocupar.
Herodes não era um mensageiro desta graça (embora fosse dela
instrumento involuntário). Os falsos mestres não são mensageiros
desta graça (embora também estejam incluídos nos propósitos de
Deus). A graça é firme e sabe definir-se. A graça não é uma palavra
que devemos usar como “abre-te, sésamo” da igreja. A graça não é
algo que fazemos. A graça não é algo que podemos controlar. A
graça não é algo que podemos administrar. E isso significa que nós,
na igreja, precisamos reconhecer que os guardiões da graça são
geralmente os inimigos mais perigosos. A graça é a intenção
declarada de favor de Deus para o mundo inteiro, quer gostemos
disso ou não.
A palavra usada aqui para “boa vontade” é semelhante às
expressões de prazer que Deus pronunciou a respeito de seu Filho.
“Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.17).
Claramente não nos encontramos nesta posição de favor por causa
de alguma grande realização moral própria — na cidade de Davi
nasceu um Salvador. O Salvador trouxe libertação e perdão, os
quais nós, em nosso estado de pecado, precisávamos
desesperadamente. Isto declaramos, pregamos e anunciamos, pois
é o modo divino de espalhar esta boa notícia. E se Deus disse a
toda a humanidade naquela primeira noite de Natal: “Não me
importa o seu passado de podridão... aqui, na cidade de Davi,
nasceu um Salvador”, quanto mais disposto ele estaria a dizer a
você: “Não me importa o seu passado de podridão. Entendeu isso?
Eu não me importo”?
Conhecemos a Bíblia o bastaste para saber que a graça,
devidamente compreendida, não leva a uma vida de indignidade
moral. “Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que
seja a graça mais abundante?” (Rm 6.1). De modo nenhum!
Conhecemos as Escrituras a esse respeito, mas receio que não
conheçamos o nosso próprio coração. A graça de Deus é um
tsunami que nos arrastará e nos deixará em lugares que não
imaginávamos — e tudo bem com isso. Analisamos essa questão
com cuidado e queremos que a graça seja para nós como água
verdadeira e real, tal qual a de um tsunami, mas que esteja na forma
de um plácido lago em um dia de verão, o qual possamos
atravessar sem perigos, com pezinhos de bailarina sobre o que
pensamos ser o leito seguro da nossa própria moralidade. Como diz
aquele velho blues, todos querem ir ao céu, mas ninguém quer
morrer. Todos querem atravessar o Jordão, mas ninguém quer se
molhar.
Mas precisamos voltar aos pastores. Deus declarou, por meio
de seus emissários angélicos, sua boa vontade para com o nosso
mundo. Declarou suas intenções de paz. Se não o fizesse, teria
restringido drasticamente a mensagem a um minúsculo “clube da
paz e boa vontade”. O evangelho é para o mundo. E a razão de
termos problemas com isso é que pensamos que isso significa que
o mundo se encaixaria em nosso minúsculo clube. Mas não se
encaixará, e nem quer. Isso não resolveria nada. Então, Deus tomou
uma ação decisiva e, através de seus anjos, fez uma declaração
bastante unilateral a alguns pastores.
E, assim, houve tarde e manhã, o oitavo dia. Não devemos
nos surpreender com o padrão de luz após trevas, padrão que
vemos não só na criação do mundo, mas também na recriação de
todas as coisas.
Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas às igrejas.
Eu sou a Raiz e a Geração de Davi, a brilhante Estrela da manhã. (Ap
22.16)

Vários destes eventos do primeiro Natal ocorreram à noite. Os


anjos anunciaram as boas novas aos pastores enquanto estes
observavam seus rebanhos à noite (Lc 2.8). Os sábios seguiram a
estrela para Jerusalém e depois para Belém, o que significava que a
observavam de noite (Mt 2.9). José fugiu para o Egito com Maria e
Jesus, e o fez de noite (Mt 2.14). E uma das coisas mais óbvias
sobre o Natal, quando damos um passo atrás e o observamos, é
que o primeiro Natal aconteceu na noite escura do mundo. Noite, e
então manhã, o oitavo dia. Não é sem motivo que nossas canções
de Natal tocam neste tema — “ele veio na luz da meia-noite”,
“acorda, acorda, pois a noite já vai indo”, “quão linda brilha a estrela
da manhã”, “como a Luz das luzes desce sobre os reinos num dia
sem fim, que as forças do inferno se dissipem junto com a
escuridão”, “no meio do frio do inverno, quando já ia alta a noite” e
“dispersa as nuvens tenebrosas da noite e faz fugir as sombras
escuras da morte”.
Mas quando o sol nasce, ele não é como a luz que se acende
na sala quando você liga o interruptor. O sol nasce lentamente. No
começo, você não sabe que algo aconteceu. Pode estar tão escuro
quanto um momento atrás, mas talvez não. E algum tempo depois,
você percebe que o lado leste do céu não está como antes. Há um
pouco de luz ali. As estrelas, visíveis durante toda a noite,
começaram a desaparecer. Logo há apenas uma de um lado — a
estrela da manhã, o planeta Vênus, a última da noite. O que
acontece a seguir é que o sol realmente se levanta para o dia que
começa. Cristo nasceu de noite, e seu nascimento foi a chegada da
estrela da manhã.
Observe a linguagem de João novamente. Cristo é a raiz e
geração de Davi, e é a estrela da manhã. Ele é aquele que nasceu à
noite, e seu nascimento foi a chegada da estrela da manhã. É
importante deixarmos que as Escrituras nos digam que horas são.
Se você ainda não soubesse que hora é, não poderia distinguir a
diferença entre a escuridão que precede o alvorecer e a do ocaso. O
sol está subindo ou descendo? A Bíblia nos diz.
Cristo mesmo é a Palavra de Deus, e ainda assim os cristãos
podem ter a Palavra de Deus em suas mãos e lê-la. Cristo mesmo é
a Estrela da manhã, a estrela da alva, e, no entanto, Pedro nos diz
que prestar atenção às Escrituras é ter a Estrela da manhã em
nosso coração.
Temos, assim, tanto mais confirmada a palavra profética, e fazeis bem
em atendê-la, como a uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até
que o dia clareie e a estrela da alva nasça em vosso coração, sabendo,
primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de
particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada
por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de
Deus, movidos pelo Espírito Santo. (2Pe 1.19-21)

Jesus Cristo é a luz do mundo. No coração de cada pessoa


convertida, ele é a luz interior, a estrela da alva no coração. Mas
sejam os homens convertidos ou não, cegos ou não, ele é a Estrela
da manhã do mundo, o sol nascente do mundo inteiro.
A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas
trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela. Houve um homem
enviado por Deus cujo nome era João. Este veio como testemunha para
que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por
intermédio dele. Ele não era a luz, mas veio para que testificasse da luz,
a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem.
(Jo 1.4-9)

Não devemos pensar que, quando os homens são


convertidos, cada um deles se torna uma pequena lâmpada, e que
se gente o bastante se converter, poderão criar uma concessionária
de energia e juntar as lâmpadas para tentar formar um sol. A visão
da vindoura glória do sol pleno não depende em nada da nossa
tentativa de cooperação. O sol raiou, e continuará a fazer o que faz
um sol nascente.
Claro, uma resposta individual é importante, mas é igualmente
importante perceber ao que estamos respondendo. O sol nasceu.
Cristo chegou. Ele é o rei. A luz raiou sobre o mundo. Um retorno à
meia-noite pagã é uma impossibilidade. Aqueles que agora andam
em trevas o fazem em um mundo banhado de luz. E isso não é fácil
— você precisa permanecer cego ou se esconder nas sombras. Há
maneiras de permanecer longe da luz solar, mas não é nada
simples. E não só isso, à medida que o dia avança, vai ficando
ainda mais difícil.
Todavia, vos escrevo novo mandamento, aquilo que é verdadeiro nele e
em vós, porque as trevas se vão dissipando, e a verdadeira luz já brilha.
Aquele que diz estar na luz e odeia a seu irmão, até agora, está nas
trevas. Aquele que ama a seu irmão permanece na luz, e nele não há
nenhum tropeço. Aquele, porém, que odeia a seu irmão está nas trevas,
e anda nas trevas, e não sabe para onde vai, porque as trevas lhe
cegaram os olhos. (1Jo 2.8-11)

A tarefa do evangelismo, agora que Cristo ressuscitou, não é


tanto correr pela noite apontando nossas lanternas para as esquinas
e porões escuros. Antes, a tarefa evangelística está mais para abrir
cortinas. “Mas todas as coisas, quando reprovadas pela luz, se
tornam manifestas; porque tudo que se manifesta é luz. Pelo que
diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e
Cristo te iluminará” (Ef 5.13-14). Saia dessa cama! Cristo brilhará
em você!
É por isso que os secularistas não gostam do primeiro Natal, e
tampouco dos subsequentes. O que eles vão fazer? Aprovar uma
lei? Isso seria pior do que a parábola apresentada pelo rei Canuto
quando ordenou que a maré não subisse — seria assim se o
Congresso aprovasse uma lei que ordenasse ao sol não brilhar nos
locais onde a constituição estiver em vigor.
A boa nova do “alvorecer” não implica dizer que não existem
trevas espirituais ou um julgamento final sobre a humanidade.
Significa que a luz prevalece sobre as trevas (Jo 1.5). Tais leis, tais
resistências tolas, podem causar alguns problemas a curto prazo.
Pense novamente em Herodes e nos bebês que ele assassinou.
Mas pense também em quão ineficaz isso foi. Ele deteve o
surgimento da estrela da manhã? Impediu a chegada do dia? Do
mesmo modo, devemos saber que a mensagem do Natal não é que
temos de persuadir alguém de coisa alguma. A mensagem é muito
mais uma declaração de boas notícias do que uma argumentação.

Questões para discussão:


Todos os pontos do evangelho apontam na direção da salvação do
mundo. Mas por alguma razão, mais pessoas estão preparadas
para ouvir sobre isso no Natal. Talvez possamos começar aí e abrir
espaço em alguns dos outros feriados.
1. A quem primeiro foi anunciada a mensagem de Natal? Que
significado isso carrega?
2. Quando Cristo veio, ele era a estrela da manhã ou a estrela da
noite? Um sol nascente ou poente? Que diferença isso faz?
3. Se evangelismo consiste em trazer luz aos não crentes, que
métodos normalmente usamos com esse objetivo? Quais métodos
podem ser mais eficazes?

† Otimismo histórico: A convicção de que a história vai terminar


em gloriosa vitória, não em catástrofe.
8. Ao nome de Jesus
Toda língua confessará

A ascensão de Jesus Cristo é sua coroação. Este é o ponto no


qual Deus concede formalmente a ele toda autoridade no céu e na
terra.
Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que
está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo
joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que
Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. (Fp 2.9-11)

Nos versículos imediatamente anteriores a este texto, vemos a


humildade de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele se humilhou. Ele não
se vangloriou de sua igualdade com Deus. Ele assumiu a forma de
servo. E, portanto, Deus o exaltou. Vemos aqui a encarnação
definitiva do ensino de nosso Senhor de que o primeiro será o último
e o último primeiro. Vemos que aquele que se humilha é realmente
exaltado. Jamais houve maior humilhação do que essa. Jamais
haverá maior exaltação do que essa. E é aí que começa o nosso
texto.
Deus exaltou Jesus Cristo sobremaneira (v. 9). Nenhuma
promoção mais elevada é possível, pois Jesus recebeu um nome
que está acima de qualquer outro. Tanto é assim que esta não deve
ser considerada uma espécie de verdade espiritual invisível.
Qualquer outro nome abaixo de Jesus é chamado a reconhecer isso
— todo joelho deve se dobrar, seja no céu, na terra ou debaixo da
terra (v. 10). Nenhum lugar ou localização estão excluídos. Além
disso, toda língua tem a obrigação de confessar o senhorio de Jesus
Cristo, sendo dada a glória a Deus Pai (v. 11).
Obviamente, o Senhor Jesus é o exemplo dado a nós para
que possamos caminhar em seus passos. E essa atitude de
humildade é o desafio fundamental que nos está posto. Quando
Jesus nos diz para irmos para o fim da fila, ele realmente está nos
ensinando como Deus quer que caminhemos. Quando fala sobre os
assentos principais nas sinagogas, ou os assentos de honra nos
banquetes, ele não nos fala de alguma forma revolucionária para
remover tais assentos. Ele nos ensina como obtê-los. Você pode
pensar que esse ensinamento é tão nitidamente claro que todos
entenderiam. Todos buscaremos o lugar mais humilde e, como
resultado, todos chegaremos no mais elevado, sem distinção de
honra, uma vez que todos nos humilhamos igualmente. (Esta
igualdade completa em status e honra é o que alguns chamariam de
paraíso igualitário.) Mas a capacidade de pensar de forma
equivocada (e a desobediência que daí resulta) nunca deve ser
subestimada.
Desobedecemos ao exemplo do Senhor de duas maneiras. A
primeira é o erro do pietista permanente — aquele cuja fé descansa
em seu próprio desejo de ser santo. Ele toma o assento mais
humilde e recusa mover-se quando convidado. Ele é santo demais
para receber a promoção divina. Ele é, de fato, como todos os
pietistas, mais santo do que Jesus. O segundo erro é o do alpinista
social que, apesar das advertências diretas de Cristo, se esforça
abertamente pelo assento mais elevado. Mas bem disse Bonhoeffer
ao falar que quando Cristo chama um homem, propõe que ele
venha e morra. É o que nosso batismo significa. Ignorais, argumenta
Paulo em Romanos 6, que fomos batizados na morte de Cristo?
A autoridade divina somente pode ser confiada a pecadores
que tenham morrido. Sem essa morte, tudo o que eles tocam se
corrompe, seja a recusa em exercer domínio (que é a religião
escapista) ou o abuso de domínio (que é religião despótica). Assim,
os pregadores cristãos têm (pelo menos) dois deveres importantes a
cumprir. Um é pregar o evangelho (euangelizo), as boas novas,
dizendo aos pecadores que devem se arrepender e crer, clamando
ao Senhor por salvação. O outro dever é representado pelo verbo
grego kerusso, que tem o sentido de proclamar ou anunciar. Nesse
sentido, o dever do pregador cristão é o de anunciar ao mundo
aquele que é o novo Príncipe, aquele que está estabelecido como
Rei.
A Escritura ensina que Deus deu a Jesus o nome que está
acima de todo nome. Isso é exaltação em seu grau mais elevado. A
exaltação de Cristo é tal que, ao nome de Jesus, todo joelho é
intimado a se curvar. Toda língua é chamada a confessar. Vê-se a
infidelidade da igreja contemporânea precisamente aqui. Com base
em várias desculpas doutrinárias, a igreja resolveu criar exceções e
tem feito isso contrariando aquilo que lhe foi expressamente dito
para fazer. Assim como a igreja medieval costumava vender
indulgências para vários pecados, assim as igrejas modernas
concedem indulgências aos magistrados, dizendo: “Vocês não
precisam realmente reconhecer que Jesus é o Senhor”.
Todo joelho e toda língua incluem todo joelho e língua na Casa
Branca e no Congresso. Inclui todas as nove línguas da Suprema
Corte e seus dezoito joelhos. Nossos juízes corruptos estão deste
modo informados, em nome de Jesus Cristo, de que foram
intimados. Eles respondem a uma autoridade superior, uma
autoridade que está muito além deles. Isso abrange a Assembleia
Geral da ONU e todo o futuro da humanidade.
Não declaramos coisa alguma com o fim de tornar as coisas
desse modo. Fazemos tal declaração a respeito de Jesus porque
Deus já tornou as coisas desse modo. A Grande Comissão não é o
processo de dar autoridade a Jesus. A Grande Comissão é o
processo de declarar a autoridade que ele já possui e que já está
exercendo em e por meio da nossa pregação e adoração.
A fé cristã é uma fé pública. As reivindicações de Jesus Cristo
são absolutas, e não temos autoridade para diminuir a autoridade
que Deus concedeu a ele de fazer tais reivindicações. Não podemos
dizer que qualquer outro nome tenha o direito de se recusar a
reconhecer que o nome de Jesus é a autoridade última. Ninguém,
no juízo final, terá o direito de dizer que teria reconhecido a
autoridade de Jesus, mas certas interpretações essenciais da
Primeira Emenda o proibiram. Naquele grande dia, quando o céu e
a terra fugirem para esconder-se, ninguém estará autorizado a
clamar pelo “muro de separação” de Jefferson entre Igreja e Estado.
Não existe um muro de separação entre a autoridade de Jesus
Cristo e a autoridade do magistrado civil. Os cristãos americanos
devem atentar para isso. Não haverá salvação para nossa nação
sem um Salvador. E porque há um Salvador, nossa nação,
juntamente com todas as outras, será salva.
Muitos cristãos querem evitar discussões sobre o milênio † e,
de uma maneira positiva, eles estão certos. Não faz sentido lutar
uns com os outros sobre quando a paz divina virá. Porém, outros
cristãos querem evitar o debate sobre o assunto por crerem que é
algo trivial ou sem importância. “O ‘milênio’ não é aquela coisa que
está lá no capítulo vinte do livro do Apocalipse, um capítulo
notavelmente difícil de um livro notavelmente difícil? Não
deveríamos simplesmente deixar isso de lado?” Se estivéssemos
limitados à palavra milênio, esse argumento poderia fazer sentido.
Mas o que acontece quando consideramos a palavra “reino”? Como
acabamos de ver, Cristo é o rei diante de quem todos devem se
curvar, mas isso não exige um reino?
Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque
está próximo o reino dos céus. [...] Percorria Jesus toda a Galileia,
ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando
toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. (Mt 4.17, 23; cf.
9.35)

Um dever central da igreja cristã é o de pregar o reino. E o


reino de Deus é um assunto imenso — tão grande quanto o amor de
Deus, isto é, tão grande quanto o evangelho. Um tema central nas
referências bíblicas ao reino é o modo como essa história se
desenvolverá até o retorno do Rei. Isto significa que a nossa
pregação do evangelho, se for bíblica, deve conter esse elemento
histórico. Mas com que frequência os evangelistas cristãos de hoje
pregam o reino?
Temos um evangelho do reino, e por isso devemos pregar um
evangelho do reino.
E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para
testemunho a todas as nações. Então, virá o fim. (Mt 24.14)

Também encontramos o arrependimento ligado à proclamação


do reino.
Naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judeia e
dizia: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus. (Mt 3.1-2)
O Novo Testamento contém o ensino do reino. O
conhecimento do reino foi central para Cristo no discipulado de seus
seguidores após a ressurreição, e ele certamente esperava que tais
discípulos seguissem com esse tema instruindo a outros.
A estes também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com
muitas provas incontestáveis, aparecendo-lhes durante quarenta dias e
falando das coisas concernentes ao reino de Deus. (At 1.3)

Não é de surpreender que exista também uma pregação do


reino, uma proclamação real.
No entanto, quando Filipe lhes pregou as boas novas do reino de Deus
e do nome de Jesus Cristo, creram nele, e foram batizados, tanto
homens como mulheres. (At 8.12, NVI; cf. 20.25; 28.31)

E há uma apologética do reino. A apologética do Novo


Testamento era sobre o significado e a direção da história, não era
sobre o tipo de coisa que surge nas aulas de filosofia.
Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava
ousadamente, dissertando e persuadindo com respeito ao reino de
Deus. (Atos 19.8)

O que é esse reino então? O reino de Deus é nada menos que


o domínio e soberania do Senhor Jesus Cristo, manifestos na
história de acordo com sua vontade e agrado. Ele não é o rei? Não
é assim que oramos? “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade,
assim na terra como no céu” (Mt 6.10).
Não somos ensinados a orar para que ele “nos leve ao seu
reino”. Não somos ensinados a orar para que a vontade de Deus
seja feita no céu quando nós finalmente estivermos lá. Oramos para
que a vontade de Deus seja feita na terra como já é no céu.
O beneplácito de Deus foi fazer seu reino começar muito
pequeno e gradualmente crescer até encher a terra.
Outra parábola lhes propôs, dizendo: O reino dos céus é semelhante a
um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou no seu campo; o
qual é, na verdade, a menor de todas as sementes, e, crescida, é maior
do que as hortaliças, e se faz árvore, de modo que as aves do céu vêm
aninhar-se nos seus ramos. (Mt 13.31-32)

Quando o reino crescer até o tamanho devido, o Senhor virá.


E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando
houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder.
Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos
debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. (1Co 15.24-
26)

Mas a Bíblia não diz que o caminho da salvação é estreito?


Como pode então o reino de Deus encher a terra? Por mais
interessante que isso possa parecer, não há versículos contrários na
Bíblia? Sim, a Bíblia contém passagens que parecem contrárias — à
primeira vista. Isso inclui passagens como “estreito é o caminho” (Mt
7.14). Porém, precisamos aprender os caminhos do reino.
Considere Lucas 13.22-30. O portão estreito era para o
remanescente de judeus do primeiro século e então, imediatamente
depois, na mesma passagem, os gentios passariam por ele. Em
outro lugar, Jesus ensina aos judeus: “Portanto, vos digo que o reino
de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que lhe produza
os respectivos frutos” (Mt 21.43). Quando disse que o caminho era
estreito, e que apenas alguns o atravessariam, Jesus estava falando
especificamente sobre o judaísmo do primeiro século. Daquele
grupo de pessoas, apenas um remanescente foi salvo, e então os
gentios foram ajuntados. Vemos isso novamente quando Jesus faz a
mesma reivindicação de exiguidade em Mateus 8: “Digo-vos que
muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa
com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus” (Mt 8.11).
Este grande reino não é um reino terrestre estabelecido pelo
domínio carnal. Não é apenas mais um reino, é um tipo diferente de
reino. “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18.36).
E sempre devemos nos lembrar do comportamento e caráter
de seus cidadãos. O fato de que o reino não é “daqui” não o torna
etéreo. Em vez disso, esse reino opera à base de sacrifício, em vez
de ambição, a qual é característica dos reinos dos homens.
Não seja, pois, vituperado o vosso bem. Porque o reino de Deus não é
comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo. (Rm
14.16-17)

E, claro, nos regozijamos com o presente que nos foi dado —


um reino que não pode ser abalado.
Por isso, recebendo nós um reino inabalável, retenhamos a graça, pela
qual sirvamos a Deus de modo agradável, com reverência e santo
temor. (Hb 12.28)

Questões para discussão:


A Bíblia ensina que Cristo recebeu um nome que está acima de
qualquer outro nome. É importante notar que isso não se limitou às
nações que não têm uma “separação entre Igreja e Estado”.
1. Se Jesus recebeu um nome acima de todo nome, quais são as
implicações disto para a vida pública nas sociedades secularistas?
As culturas têm o direito de ser seculares?
2. O que significa pregar “o reino”? Quando os pregadores de hoje
pregam “o evangelho” também estão pregando o reino?
3. O que Jesus quer dizer quando afirmou que o caminho é
“estreito”? Explique.
† Milênio: Referente aos mil anos de paz profetizados pelo apóstolo
João em Apocalipse 20.
9. Ide, portanto

A magnitude da Grande Comissão

Jesus não nos disse para ir e discipular as nações. Ele nos


disse “ide, portanto”.
Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi
dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as
nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;
ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis
que estou convosco todos os dias até à consumação do século. (Mt
28.18-20)

Nossa compreensão do fundamento desta ordem afeta a


nossa compreensão da própria ordem. Neste texto, Jesus diz que
tem todo o poder (ou autoridade), e tem essa autoridade porque ela
lhe foi dada.
Ele tem tal autoridade no céu, e tem tal autoridade na terra.
Não só isso, mas ele diz que tem, no céu e na terra, toda a
autoridade. Não há agora uma autoridade no céu ou na terra que
não esteja subordinada à autoridade dele. Isso inclui a Suprema
Corte dos Estados Unidos, os governantes muçulmanos da Arábia
Saudita, todos os parlamentos do continente europeu, a Assembleia
Geral das Nações Unidas, o Congresso dos EUA, os legisladores de
Dakota do Sul, os bandidos comunistas que dirigem a Coréia do
Norte, todas as reuniões secretas convocadas pelos illuminati, seja
lá quem eles forem, e a federação de beisebol.
Ora, se esta é a razão dada para o mandamento, faz sentido
que a nossa compreensão ou negligência deste princípio venha a
afetar a nossa obediência ao mandamento. Se começarmos com
toda a autoridade, terminaremos com todas as nações. Se
começarmos com uma autoridade invisível e muito espiritual, então
findaremos com pequenos grupos de crentes, em cada nação,
debaixo desta autoridade invisível e muito espiritual. Mas Jesus não
queria um pequeno grupo de igrejas em apuros no Paquistão; ele
quer o próprio Paquistão. Ele está feliz de começar com um
pequeno trecho de praia em uma nação incrédula, mas esse trecho
de praia não deve confundir-se com a ocupação que está porvir.
Mas Jesus Cristo não ordenou à sua igreja o impossível. E
devemos notar que não somos ordenados a dar a todos no mundo
uma chance de serem salvos — nos foi ordenado: “fazei que todas
as nações se tornem discípulos” (Mt 28.19, Bíblia de Jerusalém).
Esta é a tarefa terrena da igreja, e nada mais. O apóstolo Paulo
traça o mesmo argumento no final de Romanos.
Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu
evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do
mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, se
tornou manifesto e foi dado a conhecer por meio das Escrituras
proféticas, segundo o mandamento do Deus eterno, para a obediência
por fé, entre todas as nações, ao Deus único e sábio seja dada glória,
por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém! (Rm 16.25-
27)

A razão pela qual o evangelho foi agora revelado às nações é


para que elas possam vir à obediência pela fé. Isto é o que Deus
ordena que façam. A Igreja é ordenada a pregar, o mundo é
ordenado a crer, e a Igreja é ordenada a pregar até que o mundo
creia.
Assim, Jesus não disse “ide”. Ele disse “ide, portanto”. Esta
autoridade sobre a qual a ordem se baseia é crucial para a nossa
compreensão da Grande Comissão. Mas também é importante para
nos lembrar de que Jesus não estava simplesmente criando algo
novo. Ele vivia com base em sua fé absoluta de que a Palavra de
Deus não poderia ser quebrada, e sua declaração de que possuía
toda a autoridade estava fundamentada em inúmeras passagens no
Antigo Testamento.
Em vários lugares, inclusive em seu julgamento, Jesus referiu-
se a si mesmo como o Filho do Homem, vindo nas nuvens do céu.
Normalmente se imagina que isto seja uma referência à Segunda
Vinda, e uma vez que a Segunda Vinda ainda não ocorreu, ao
menos não até este livro ir para a gráfica, então deve estar
aguardando uma realização futura. O que mais poderia “vir nas
nuvens do céu”? Bem, a questão pode ser mais bem respondida
observando a passagem que Jesus citava quando falou:
Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as
nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de
Dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e o
reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o
servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu
reino jamais será destruído. (Dn 7.13-14)

Quando aplicou tais palavras a si mesmo, Jesus não estava


descrevendo sua Segunda Vinda, mas sim a ascensão. E depois de
sua ascensão e entronização, seu primeiro grande ato de autoridade
foi decretar a destruição de Jerusalém, vista por aqueles que o
traspassaram. A “vinda com as nuvens” é o momento em que o
Filho do Homem entra na sala do trono do Todo-Poderoso, o Ancião
de Dias, e recebe domínio universal. Jesus sabia que isso
aconteceria, e sabia disso com base no que os profetas haviam
falado. E com base nisto ele disse a seus discípulos que pregassem
o evangelho a todas as nações.
Quando o Filho do Homem vem com as nuvens do céu, ele é
apresentado ao Ancião de Dias. A autoridade foi então dada a ele —
descrita como domínio, glória e reino. E para que não interpretemos
isso como domínio, glória e reino em algum lugar espiritual invisível,
a profecia segue para nos dizer qual seria o resultado dessa
entronização. O resultado foi que todas as pessoas, nações e
línguas iriam servi-lo. Quando Jesus disse que toda autoridade no
céu e na terra lhe fora dada, é disso que ele estava falando. E seu
domínio, uma vez estabelecido, seria eterno. Não pode chegar ao
fim. Isso significa que quando contou aos discípulos a respeito de
sua autoridade, Jesus não falava sobre uma autoridade temporária
ou provisória. Ela durará até ao dia da ressurreição no fim do
mundo, quando o reino será devolvido a Deus. O reino não
desapareceria ou seria destruído — o que não é algo que se possa
dizer de qualquer outro reino da história da raça humana.
Ora, essa compreensão afeta radicalmente o que estamos
fazendo quando buscamos cumprir a Grande Comissão. Estamos
tentando fazer algo, ou estamos contando ao mundo sobre o que já
foi feito? Estamos lutando a batalha principal, ou estamos
anunciando a vitória ocorrida?
Não estamos em uma campanha na qual tentamos fazer
Jesus ser eleito para qualquer coisa. Ele já está assentado à direita
de Deus, o Pai, e já é o rei de Idaho, Virgínia, Brasília e
Massachusetts. Temos a tarefa de anunciar aos rebeldes restantes
no interior que a capital já caiu, os governantes foram destronados e
resistir é inútil.
Isto é o que significa “ide, portanto”. Jesus já tem toda a
autoridade e não estamos tentando obter nada mais para ele. Com
base nesta autoridade estabelecida, devemos pregar às nações e
anunciar a elas a responsabilidade de submeter-se à autoridade do
Senhor Jesus.
Assim, nas visões noturnas, Daniel vê alguém como o Filho do
homem vindo com as nuvens do céu (v. 13). Aquele como o Filho do
homem se aproxima do Ancião de Dias (Deus Pai), e é levado até
ele (v. 13). Quando esta figura misteriosa se aproxima do Ancião de
Dias, o resultado final é que domínio universal lhe é conferido —
domínio, glória e reino. A natureza deste reino era que todas as
pessoas, nações e línguas o serviriam (v. 14). Seu domínio deve ser
eterno, e o reino que recebeu jamais será destruído (v. 14). Pregar o
reino de Deus, entre outras coisas, significa pregar isso. Ora, ainda
pregamos um evangelho de arrependimento individual, pessoal, fé e
piedade. Ainda conhecemos muito claramente a diferença entre
uma nação onde Jesus é rei e isso não é reconhecido, e uma nação
que reconhece isso. E a vitória deste reino ainda é regada pelo
sangue dos mártires, de modo figurativo e literal: o caminho da cruz
ainda é o único caminho para a glória duradoura.
A primeira coisa a notar é como Jesus se identifica com esta
frase — “o Filho do homem”. Embora a frase seja comum no Antigo
Testamento, esta é a única passagem em todo o Antigo Testamento,
onde é usada em um sentido messiânico. Assim, é um termo
messiânico, mas não um termo comum. O Senhor Jesus a usa, e
ela simultaneamente esconde e revela sua identidade. Alguns
exemplos comuns incluem Marcos 2.10, 8.38 e 10.33. O Senhor não
queria que seus discípulos proclamassem a identidade dele até que
fosse o momento. Após a sua ressurreição e ascensão (Rm 1.4),
era o momento perfeito, de modo que essa realidade deve agora ser
declarada até o fim do mundo. Isto é o que somos encarregados de
declarar: o senhorio universal de Cristo sobre o (e consequente
salvação do) mundo inteiro. A salvação do mundo não significa a
salvação de todas as pessoas ou de cada uma delas. Significa a
salvação do mundo.
Devemos deixar que a Bíblia nos diga o que essa frase
significa. Quando pensamos em “o Filho do homem vindo com as
nuvens do céu”, no que pensamos? Quase sempre pensamos na
Segunda Vinda, com Jesus descendo à terra. Mas de forma alguma
é esse o significado.
O fato de que Jesus subiu ao céu nas nuvens (evento que a
Igreja comemora no dia da Ascensão) não se destina (no que tange
a esta profecia) a apontar para outro evento muitos milhares de
anos depois. Embora Jesus venha novamente do mesmo modo
como se foi, o seu jeito de ir foi o começo do próprio cumprimento.
Ditas estas palavras, foi Jesus elevado às alturas, à vista deles, e uma
nuvem o encobriu dos seus olhos. E, estando eles com os olhos fitos no
céu, enquanto Jesus subia, eis que dois varões vestidos de branco se
puseram ao lado deles e lhes disseram: Varões galileus, por que estais
olhando para as alturas? Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu
virá do modo como o vistes subir. (At 1.9-11)

Os judeus que levaram Jesus a julgamento entenderam as


ramificações desta frase melhor do que muitos cristãos de hoje. É
por isso que, rasgando suas roupas, o sumo sacerdote considerou a
declaração blasfema.
Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que,
desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-
Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu. Então, o sumo sacerdote
rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou! Que necessidade mais
temos de testemunhas? Eis que ouvistes agora a blasfêmia! (Mt 26.64-
65; cf. Mc 14.62-64)

Devemos prestar muita atenção a isso — pois esta foi a


passagem que redundou na condenação de Jesus.
Voltando a Daniel, o que o Senhor Jesus recebeu depois de
que, nas nuvens, não mais foi visto pelos discípulos? O que recebeu
quando se aproximou do Ancião de Dias? As Escrituras são
sobejamente claras sobre o assunto. Ele recebeu o domínio eterno,
a glória e um reino indestrutível e universal (Dn 7.13-14). Recebeu
os pagãos por herança e as extremidades longínquas da terra por
sua possessão (Sl 2.8). Recebe a adoração de todas as famílias na
terra e é lembrado em todos os limites da terra (Sl 22.27). Receberá
todos os homens à medida que fluem para ele, o estandarte de
Jessé (Is 11.10), e o seu descanso será glorioso. A terra será tão
cheia do conhecimento do Senhor Jesus quanto o Pacífico de águas
(Is 11.9). Ele receberá todos os seus adversários, postos debaixo
dos seus pés (Sl 110.1). Receberá a raça humana, renovada (Is
25.7), e preparará um banquete maravilhoso, cheio de carne, cheio
de gordura, e de vinhos velhos bem clarificados (Is 25.6).
Este mundo, aquele em que agora vivemos, será consertado
antes da Segunda Vinda, antes do fim de todas as coisas. O único
inimigo não destruído através do avanço do evangelho será a
própria morte (1Co 15.26) — e mesmo aquele inimigo estará em
debandada, derrotado (Is 65.20). Isso tem muitas ramificações, mas
uma das delas é que, no Senhor, o seu trabalho não é vão.
Jesus veio para estabelecer o reino de Deus, e este reino não
era uma ideia nova. Nem era novidade o entendimento correto a
respeito da natureza do seu crescimento.
Nos dias destes reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será
jamais destruído; este reino não passará a outro povo; esmiuçará e
consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre,
como viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e
ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro. O Grande
Deus fez saber ao rei o que há de ser futuramente. Certo é o sonho, e
fiel, a sua interpretação. (Dn 2.44-45)

Como a visão deixa claro, a rocha em questão, que é o reino


de Deus, cresce gradualmente até preencher toda a Terra. O sonho
é certo e sua interpretação é clara.
O tema, traçado repetidamente no Antigo Testamento, não
estava completamente perdido nos escritores do Novo. O irmão do
Senhor disse isto no concílio de Jerusalém:
Cumpridas estas coisas, voltarei e reedificarei o tabernáculo caído de
Davi; e, levantando-o de suas ruínas, restaurá-lo-ei. Para que os demais
homens busquem o Senhor, e também todos os gentios sobre os quais
tem sido invocado o meu nome. (At 15.16-17)

Esta citação de Amós por Tiago é uma das mais doces


expressões desta expectativa no Novo Testamento. Mas mesmo
aqui “os demais homens” buscarão ao Senhor. A expectativa é bem
fundamentada e abrangente.

Questões para discussão:


A Grande Comissão tem sido descrita corretamente como a
“instrução de batalha” da Igreja. Se esse é o caso, devemos ser
cuidadosos em entender o que Jesus nos disse para fazer.
1. Qual é a diferença entre ajuntar discípulos de todas as nações e
discipular as nações?
2. Qual a diferença entre “ide” e “ide, portanto”?
3. Reconhecemos a autoridade a Cristo ao cumprir a Grande
Comissão? Sim ou não? Por quê?

† Messiânico: Relativo ao libertador prometido e aguardado pelo


antigo Israel.
10. Todos os confins da terra
O que o Senhor tinha em mente em sua morte?

A transição entre o velho e um novo tempo foi realizada em


Cristo — na morte, sepultamento e ressurreição de Cristo. A história
humana foi completamente transformada porque ele ascendeu e
agora está à mão direita de Deus Pai. Podemos ver a força dessa
transição no salmo 22, que contém uma das grandes
representações do evangelho no Antigo Testamento. Junto com
Isaías 53, aprendemos aqui que a morte de Cristo pelos pecados do
mundo não foi uma consideração a posteriori. O Cordeiro de Deus
foi, na verdade, morto antes da fundação do mundo. Foi isso o que
Abraão viu. E o que o salmista viu também.
Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que se acham
longe de minha salvação as palavras de meu bramido? Deus meu,
clamo de dia, e não me respondes; também de noite, porém não tenho
sossego. (Sl 22.1-2)

Cristo clama, desamparado por seu Pai (v. 1). Mesmo não
recebendo resposta (v. 2), ele sabe que Deus, aquele que habita
nos louvores de Israel, é santo (v. 3). Nossos pais clamaram a Deus,
e foram ouvidos (v. 4-5). Mas o Senhor, ao menos no presente, está
em um lugar diferente. Eles o desprezam (v. 6-7), e zombam dele
por sua fé (v. 8). A resposta do Senhor Jesus é lembrar-se de sua
vida contínua de fé em Deus (v. 9-10). Ele então renova o pedido a
Deus para ajudá-lo (v. 11, 19). Entre esses dois versos, vemos quão
aflitivas eram as suas circunstâncias — ele foi cercado por touros
ameaçadores (v. 12-13), foi derramado como água e seus ossos
estavam desconjuntados (v. 14), seu coração é como cera (v. 14),
sua força seca-se como um caco de barro e ele é derrubado sobre o
pó da morte (v. 15), os cães o cercaram e suas mãos e pés são
perfurados (v. 16), ele pode sentir seus ossos (v. 17), e competem
com apostas por suas roupas (v. 18). Seu clamor por libertação
resume tudo. Ele clama para ser salvo do leão e dos búfalos (v. 20-
21).
A segunda metade do salmo é um triunfante clamor de fé,
sucedendo ao seu clamor de fé grandemente aflito. Ele louvará a
Deus na congregação (v. 22). Todos os que temem a Deus são
convocados para participar dos louvores (v. 23). Por que isso? Deus
responde a oração dos fiéis, inclusive a deste (v. 24). Cristo deve
louvar a Deus na grande congregação (v. 25). Os mansos (que
herdarão a terra) também comerão e ficarão satisfeitos (v. 26).
Lembrar-se-ão do Senhor e a ele se converterão os confins da terra;
perante ele se prostrarão (v. 27). O Senhor conquistou o mundo por
meio de sua piedosa aflição (v. 28). Os ricos e os pobres o servirão
(v. 29), e o Senhor terá a sua posteridade, que será gloriosa (v. 30).
E eles testemunharão que o Senhor fez isso (v. 31).
Uma antiga tradição cristã dizia que Cristo na cruz começou a
citar o salmo 22 e não interrompeu o saltério até chegar ao salmo
31.5 — “nas tuas mãos, entrego o meu espírito”. Embora não
possamos afirmar isso dogmaticamente, certamente é algo que está
de acordo com o que acontece aqui. Este momento na cruz é o
cumprimento de todos os propósitos de Deus, expressos tão
claramente em todo o Antigo Testamento, e mais particularmente
neste salmo. Um homem teria de estar cego (e, infelizmente, muitos
estão) para não ver como todas essas palavras antigas culminam
numa gloriosa concretização.
As palavras deste salmo foram escritas cerca de mil anos
antes de Cristo. Não estamos apenas falando sobre o que Abraão
viu, mas sobre o que Davi viu também. E, cronologicamente, Davi
era para Cristo o que Guilherme I, rei da Inglaterra, é para nós. Mil
anos antes de tudo acontecer, Davi enxergou, através do Espírito,
que as mãos e os pés de Cristo seriam perfurados (v. 16), que
Cristo morreria nas mãos de seus inimigos (v. 12-13, 16), que sua
roupa seria arrancada (v. 18), e que morreria em agonia (v. 15, 17).
Bem, somos cristãos, então acreditamos em tudo isso. Mas, e o
restante do salmo? Para aqueles de nós que tropeçam na fé, somos
informados de que todas essas coisas, tomadas em conjunto,
conquistarão o mundo (v. 27). Tão certo como os pregos entraram
nas mãos de Cristo, certamente todos os confins da terra se
tornarão cristãos. Além disso, todos esses detalhes da morte de
Cristo foram pormenorizados em profecia, e homens perversos os
cumpriram cegamente, estimando-se senhores da terra (1Co 2.8; Jo
12.32).
Há muitas razões para levar a maldade desses homens
perversos a sério. Eles são descritos aqui como touros furiosos
(muito poderosos). Eles abrem a boca de uma maneira apavorante.
Os cachorros são soltos, e a imagem é a de um animal caçado,
como um cervo, sem local de fuga. Cães assustadores cercam a
vítima do Senhor. E fazem mais do que ameaçar. O Senhor cai nas
mãos deles — o prato está na mesa. Zombam dele, mas também o
perfuram. Eles venceram, e o achincalham convencidos de que
venceram. Eles têm o poder de touros, de cães raivosos, de um leão
rugindo, de um búfalo galopando. Eles exultam ao pendurar o
Messias de Deus sobre o madeiro e o levantar… E por sua ação
perversa realizam a salvação do mundo inteiro. Essa maldade
assassina foi o instrumento da minha salvação, e da sua; e não
apenas da nossa, mas também da salvação de todos os confins da
terra.
Aqui vemos Cristo desamparado pelo Pai. Isso não quer dizer
que a Trindade se desentendeu, mas, sim, que a comunhão
ininterrupta entre Deus e seu Filho encarnado foi interrompida. Este
não é um grito de uma fé agonizante, mas, antes, um grito de aflição
piedosa. Quando Cristo experimenta tal abandono por parte do Pai,
ele cita as Escrituras; o Pai ainda é: “Meu Deus, meu Deus”, e o
salmo continua, expressando que, embora estivesse pendurado na
cruz, Cristo teve, bem diante de si, a gloriosa visão do triunfo de
Deus. As extremidades da terra se converterão, e a alegria diante
dele foi gloriosa (Hb 12.2).
No que isso resulta? “Aquele que não conheceu pecado, ele o
fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”
(2Co 5.21). Na cruz, a fé de Cristo lançou fora todo o desespero,
pecado, rebelião e perversidade. E porque Cristo morreu como o
substituto perfeito para o seu povo, conquistou o mundo.

Questões para discussão:


Quando morreu na cruz, Cristo o fez sabendo que voltaria dos
mortos. Ele não sabia disso porque estava secretamente olhando o
final da história. Ele o sabia por que Deus havia prometido, ao longo
do Antigo Testamento, que era o que faria. Ele cantava os salmos
desde que era um menino pequeno. Deus havia publicado o plano
do jogo com antecedência.
1. Quando Cristo clamou em agonia sobre a cruz, qual era o
significado da passagem que ele escolheu citar?
2. Como começa o salmo 22? Como termina? Jesus sabia?
3. O que a crucificação de Cristo nos fala sobre a oposição dos
homens pecadores ao evangelho?
11. Aprendendo a ler as promessas
Um tutorial apostólico

Não seria maravilhoso ter uma aula de um dos apóstolos


sobre como ler as Escrituras? Sentar-se à mesa do apóstolo Paulo
ou Pedro e pedir-lhes para explicar do que estas densas passagens
de Isaías realmente estão falando?
Neste breve livro temos apresentado aquilo que, para muitos,
é uma maneira bem diferente de olhar para as Escrituras.
Discutimos o otimismo histórico, em oposição ao pessimismo
histórico, muito comum no mundo evangélico moderno.
Se aprendemos a ler a Bíblia a partir do que os apóstolos nos
deixaram, uma das bênçãos imediatas (no que diz respeito a este
assunto) será sabermos o que fazer com inúmeras passagens que
atualmente nos deixam coçando a cabeça.
Uma das coisas que praticamente todos os cristãos percebem
ao ler o Novo Testamento é a expectativa generalizada quanto a “o
Dia”. Quando essa percepção vem acompanhada do pressuposto
de que as passagens estão falando sobre o fim do mundo, essas
referências se tornam um problema, porque aqui estamos, dois mil
anos depois, e ainda não aconteceu. Por que o Novo Testamento
parece tão urgente se o cumprimento dessas declarações estava a
milhares de anos de distância? Você já se perguntou por que
estamos todos aqui, ainda vivos, quando o Novo Testamento diz
coisas assim? Seja honesto.
Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto
aconteça. (Mt 24.34)
Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra; porque
em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de
Israel, até que venha o Filho do Homem. (Mt 10.23)
Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes,
façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se
aproxima. (Hb 10.25)
Sede vós também pacientes e fortalecei o vosso coração, pois a vinda
do Senhor está próxima. Irmãos, não vos queixeis uns dos outros, para
não serdes julgados. Eis que o juiz está às portas. (Tg 5.8-9)
Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo,
também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos
que é a última hora. (1Jo 2.18)
Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus
servos as coisas que em breve devem acontecer e que ele, enviando
por intermédio do seu anjo, notificou ao seu servo João. (Ap 1.1)
Bem-aventurados aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras
da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está
próximo. (Ap 1.3)
Venho sem demora. Conserva o que tens, para que ninguém tome a tua
coroa. (Ap 3.11)
Eis que venho sem demora. Bem-aventurado aquele que guarda as
palavras da profecia deste livro. (Ap 22.7)
E eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para
retribuir a cada um segundo as suas obras. (Ap 22.12)
Aquele que dá testemunho destas coisas diz: Certamente, venho sem

demora. Amém! Vem, Senhor Jesus! (Ap 22.20)[4]

Nenhuma dessas passagens nos leva a pensar que


precisamos esperar dois mil anos ou mais. Quando confrontados
com tais passagens (e há muitas outras), o leitor do Novo
Testamento tem basicamente três opções. A primeira é seguir o
caminho do liberalismo incrédulo e dizer que os escritores do Novo
Testamento esperavam um fim espetacular para o mundo em seus
dias e que estavam tristemente enganados. A segunda é dizer que a
expectativa não foi cumprida porque as profecias de alguma
maneira se referem ao fim do mundo. Sendo assim, o significado
natural das palavras que indicam sua proximidade no tempo deve
ser “espiritualizado”. Em terceiro lugar, podemos dizer que os
escritores do Novo Testamento esperavam ver essas coisas
acontecerem em seus dias, e estavam corretos. Suas expectativas
foram cumpridas. Ler desse modo é o que acontece quando
permitimos que os apóstolos do primeiro século nos digam o que
significam tais passagens.
Imagine o Antigo Testamento em uma única folha de papel,
lançada em uma mesa de desenho à sua frente. Em seguida, tome
o Novo Testamento como uma sobreposição transparente e o
coloque em cima do Antigo Testamento. Então — se você aprender
de Jesus e dos apóstolos — trace uma linha e conduza-a através
dos dois testamentos em todos os lugares nos quais o Novo
Testamento esclarece o significado do Antigo. Isso ocorre em muitos
lugares, e não demora muito para que você possa começar a ver os
padrões.
Na primeira vez em que trabalhei nisto, comprei uma Bíblia
que eu pudesse marcar bastante. Passei algumas semanas
procurando cada passagem do Antigo Testamento citada no Novo.
Muitas Bíblias marcarão tais referências cruzadas no Novo
Testamento, mas raramente isso é feito no Antigo. Destaquei cada
citação do Antigo Testamento no Novo, em seguida procurei no
Antigo Testamento e destaquei ali também. Então escrevi na
margem do Antigo o local no qual aquela passagem era citada no
Novo. Quando terminei, eu havia inventado uma edição tosca de
uma Bíblia de Estudo Apostólica. Quando estava lendo o Antigo
Testamento, eu poderia imediatamente dizer se Jesus, Pedro ou
Paulo já haviam discutido a passagem que eu estava imaginando.
Então eu olhava o que eles disseram, e a coisa impressionante é
que eles quase sempre me surpreendiam. Eles geralmente diziam
que a passagem que eu estava lendo não era sobre o que eu
pensava que era.
Nosso padrão, portanto, deve ser permitir que o Novo
Testamento explique o que significam as passagens do Antigo
Testamento. Devemos aprender a ler a Escritura como discípulos.
Pois os apóstolos não só nos ensinam sobre Jesus; eles também
nos ensinam sobre Deuteronômio. Eles também nos ensinam a ler a
Bíblia. E, sobre o assunto que estamos considerando, nos ensinam
a pensar sobre o futuro do nosso mundo.
Vamos considerar alguns exemplos. Como estamos tratando
do otimismo histórico, olharemos porções que lidam com esse
assunto específico, mas o processo envolvido deve dirigir todos os
nossos estudos. Devemos nos esforçar para permitir que o Novo
Testamento nos ensine o Antigo. Deixe a Bíblia ensinar a Bíblia. No
exercício que descrevi há pouco, descobri os livros “favoritos” dos
escritores do Novo Testamento. Gênesis, Deuteronômio, Salmos e
Isaías foram citados com mais frequência do que quaisquer outros.
Assim, vamos considerar textos de cada um deles sobre o futuro do
nosso mundo.
Em Gênesis, como observamos no capítulo dois, Deus fez
algumas promessas espetaculares a Abraão.
Ora, disse o S a Abrão: Sai da tua terra (...) de ti farei uma grande
nação (...) em ti serão benditas todas as famílias da terra. (Gn 12.1-3)
Então, conduziu-o até fora e disse: Olha para os céus e conta as
estrelas, se é que o podes. E lhe disse: Será assim a tua posteridade.
Ele creu no S , e isso lhe foi imputado para justiça. (Gn 15.5-6)
Farei uma aliança entre mim e ti e te multiplicarei extraordinariamente.
(Gn 17.2)

Agora, o procedimento aqui é simples. Devemos deixar o Novo


Testamento nos dizer o que significa isso.
Não foi por intermédio da lei que a Abraão ou a sua descendência
coube a promessa de ser herdeiro do mundo, e sim mediante a justiça
da fé. (Rm 4.13)

Nós, os que cremos, somos a descendência de Abraão, como


o Novo Testamento ensina em várias partes. Herdaremos o mundo
juntamente com Abraão, e faremos isso não por meio da lei, mas
pela justificação pela fé. O que é que vence o mundo? A nossa fé.
Somos chamados não só a crer em Deus, como Abraão, mas a crer
no que ele creu. E no que ele creu? Ele creu que Deus lhe
prometera o mundo. Ele não prometeu o céu, afinal de contas,
embora Abraão esteja no céu. Ele prometeu-lhe o mundo, e nós, os
que cremos, somos o instrumento do cumprimento dessa promessa.
Pensamos ansiar por uma cidade espiritualizada chamada Nova
Jerusalém. Mas Abraão também, segundo Hebreus 11.10, e o que
ele ansiava (de acordo com Romanos 4.13) não era nada menos do
que o mundo inteiro. Portanto, a Nova Jerusalém engloba todo o
mundo.
Então chegamos ao Deuteronômio. Por meio de Moisés, Deus
prometeu ao povo de Israel um profeta como Moisés. Essa
promessa foi citada por Estêvão em Atos 7.37 e aplicada a Cristo.
Atos 3.22-23 traz a mesma identificação, mas com um pouco mais
de informação.
E que ele envie o Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual é
necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas
as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a
antiguidade. Disse, na verdade, Moisés:
O Senhor Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um profeta
semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser.
Acontecerá que toda alma que não ouvir a esse profeta será
exterminada do meio do povo.
E todos os profetas, a começar com Samuel, assim como todos quantos
depois falaram, também anunciaram estes dias. Vós sois os filhos dos
profetas e da aliança que Deus estabeleceu com vossos pais, dizendo a
Abraão:
Na tua descendência, serão abençoadas todas as nações da terra.
Tendo Deus ressuscitado o seu Servo, enviou-o primeiramente a vós
outros para vos abençoar, no sentido de que cada um se aparte das
suas perversidades. (At 3.20-26)

Isso é importante. Dizemos aqui que todas as profecias eram


sobre “estes dias”. Essas realizações não acontecerão num futuro
adiante de nós; ao invés disso, começaram a ser cumpridas há dois
mil anos.
Esta passagem contém uma ordem e uma promessa. A ordem
envolve a responsabilidade individual pelo pecado: “arrependei-vos
e convertei-vos” (v. 19). Vemos que o motor que impulsiona essa
esperança otimista não é uma visão falsamente otimista da natureza
humana, mas a confiança na eficácia do evangelho para vencer a
natureza humana depravada. No evangelho, Deus trata o pecado.
Perceba que nos é dito aqui qual é o ponto de referência para todas
as profecias do Antigo Testamento: “estes dias”. Somos informados
de que Moisés profetizou esta era do evangelho, e todos os
profetas, de Samuel em diante, falaram o mesmo.
O salmo 2 é citado diversas vezes no Novo Testamento (At
4.25-26; Hb 1.5; 5.5; At 13.33; Ap 2.27; 19.15), e ele só tem doze
versículos. Os dois primeiros são citados em Atos 4 e aplicados à
crucificação. Este seria um exemplo de uma daquelas linhas —
conduza-a por Atos 4.25-26 e por Salmos 2.1-2, e você saberá que
as primeiras palavras deste salmo são sobre a crucificação de
Jesus.
Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs? Os
reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o S e
contra o seu Ungido, dizendo: Rompamos os seus laços. (Sl 2.1-3a)

A resposta de Deus a esse atentado inútil contra a sua


soberana obra de salvação é o riso. Ele então se declara a respeito
de seu Filho. O versículo 7 é citado três vezes no Novo Testamento
e, a cada vez, a referência é a Cristo tornando-se algo após
completar a sua obra. E Atos 13.33 faz isso explicitamente quando
trata da ressurreição:
Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus,
como também está escrito no Salmo segundo: Tu és meu Filho, eu,
hoje, te gerei. (At 13.33)

O Novo Testamento faz esta afirmação (“hoje, te gerei”) sobre


a ressurreição dos mortos — Cristo é o primogênito dentre os
mortos.
Agora, no versículo 8, logo após a ressurreição, Cristo recebe
as nações.
Pede-me, e eu te darei as nações por herança e as extremidades da
terra por tua possessão. (Sl 2.8)
A razão de cremos que Cristo possui agora todas as nações é,
em suma, que o Pai o convidou a pedi-las imediatamente após a
ressurreição. Por que o Senhor compraria todas as nações com seu
sangue e depois não as pediria? Jesus sabia que esse pedido seria
concedido, pois sabia que toda autoridade lhe fora dada no céu e na
terra (Mt 28.18).
Também vemos isso no versículo 9 deste salmo, citado duas
vezes em Apocalipse. Na primeira, Cristo compartilha a sua
autoridade com os crentes que venceram; a segunda vez se aplica
apenas a Cristo.
Ao vencedor, que guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei
autoridade sobre as nações, e com cetro de ferro as regerá e as
reduzirá a pedaços como se fossem objetos de barro; assim como
também eu recebi de meu Pai, dar-lhe-ei ainda a estrela da manhã. (Ap
2.26-28; cf. Ap 19.15)

Jesus recebeu toda autoridade de seu Pai, e compartilha essa


autoridade com aqueles que nele creem.
O salmo conclui com um apelo aos reis da terra para fazerem
a paz com o Cristo. “Beijai o Filho para que se não irrite”. A
conclusão do salmo é que todos os governantes políticos do mundo
são obrigados a se tornar cristãos e a trazer sua glória e honra para
a Nova Jerusalém. Jesus pediu as nações como um presente, e já
recebeu aquilo que pediu (Ap 21.24).
Vamos tomar outro exemplo rápido dos Salmos. O salmo 110
também é citado muitas vezes no Novo Testamento (Mt 22.44; Mc
12.36; Lc 20.42-43; At 2.34-35; Hb 1.13; 5.6; 7.17, 21). O salmo
termina com Cristo esmagando os governantes de toda a terra. Mas
como isso acontece? Nos evangelhos, Cristo cita o salmo para
mostrar que o Senhor de Davi é também o Filho de Davi. Porém, em
Atos 2.33-35, a passagem é aplicada ao reinado presente de Cristo
à destra do Pai. O restante das citações refere-se a ele como
príncipe e sacerdote em termos de uma realidade presente. Isso
significa que ele permanecerá à destra de Deus até que sua obra do
evangelho seja concluída.
E quanto a Isaías? Em seu capítulo 11 nos é dada a grande
visão de glória e paz, e nós a conhecemos bem. O leão se deitará
com o cordeiro.
Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a
terra se encherá do conhecimento do S , como as águas cobrem o
mar. Naquele dia, recorrerão as nações à raiz de Jessé que está posta
por estandarte dos povos; a glória lhe será a morada. (Is 11.9-10)

Mas quando isso acontecerá? Deixe o Novo Testamento nos


dizer. Lembre-se de que Paulo cita isso em Romanos 15.12.
Digo, pois, que Cristo foi constituído ministro da circuncisão, em prol da
verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais;
e para que os gentios glorifiquem a Deus por causa da sua misericórdia,
como está escrito: Por isso, eu te glorificarei entre os gentios e cantarei
louvores ao teu nome. (...) Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé,
aquele que se levanta para governar os gentios; nele os gentios
esperarão. (Rm 15.8-9, 12)

Em termos práticos, Paulo nos diz que a visão de Isaías


começou a se concretizar em sua época, na missão de Paulo aos
gentios, há dois mil anos.

Questões para discussão:


Quando queremos aprender a lidar com as Escrituras, uma das
primeiras coisas que devemos fazer é voltar aos apóstolos. Eles
interpretaram o Antigo Testamento o tempo todo. Devemos aprender
com eles.
1. Dentre os livros do Antigos Testamento, quais eram os favoritos
dos escritores do Novo? Como podemos dizer isso?
2. De que forma o Novo Testamento pode estabelecer parâmetros
para nós enquanto buscamos interpretar as passagens do Antigo?
3. Como sabemos que o salmo 2 contém profecias da crucificação e
também da ressurreição? Quais são as implicações para o
cumprimento da Grande Comissão?
12. As estrelas cairão do firmamento
Resquícios do velho modo de pensar, parte 1

As palavras de Cristo em Mateus 24 causaram muito mais


consternação e confusão do que deveriam. Como aprendemos no
capítulo anterior, é fundamental ver como as passagens do Antigo
Testamento são usadas no Novo, e depois como os eventos do
primeiro século realmente se desenrolaram.
Tendo Jesus saído do templo, ia-se retirando, quando se aproximaram
dele os seus discípulos para lhe mostrar as construções do templo. Ele,
porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não
ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada. (Mt 24.1-2)

A primeira coisa a fazer é posicionar a profecia. Quando


buscamos entender onde esta profecia deve ser posta na linha do
tempo, devemos procurar um ensino claro em alguma passagem
sobre ela. E, felizmente, é isso que encontramos.
Jesus disse aos discípulos que não ficaria pedra sobre pedra
(v. 1-2). Esta declaração leva os discípulos a uma série de
perguntas. Contudo, pela maneira como geralmente são lidas, tais
perguntas parecem isoladas e não relacionadas. “Quando isso
acontecerá? E quando um monte de outras coisas acontecerá?”
Mas é muito mais natural considerar as perguntas dos discípulos
como relacionadas a uma mesma série de eventos — a destruição
do templo, o sinal da vinda de Cristo (em juízo sobre Jerusalém) e o
sinal do fim da era (judaica). Isto — o fluxo natural da conversa — é
o indicador de tempo.
O segundo indicador é a expressão “esta geração”. Usando
um método “literal” de interpretação, como podemos entender as
palavras de Jesus no versículo 34: “Em verdade vos digo que não
passará esta geração sem que tudo isto aconteça”? Tomemos suas
palavras pelo valor nominal — todas as coisas que ele mencionou
antes do versículo 34 ocorreriam dentro de uma geração (ou seja,
dentro de aproximadamente quarenta anos). Isso nos levaria aos
eventos culminantes de 70 a.C., quando os romanos arrasaram
Jerusalém.
Mas... como isso é possível? Quando lemos sobre algumas
das coisas mencionadas antes do versículo 34, e depois vamos lá
fora e olhamos para o céu, parece que as coisas não aconteceram.
Escarnecedores têm enfatizado esse ponto com frequência,
pensando que Cristo estava obviamente errado sobre quando o fim
do mundo ocorreria. Mas o problema é que ele simplesmente não
estava falando sobre o fim do mundo. Ele não foi questionado sobre
o fim do continuum espaço-tempo. Ele foi questionado sobre a
destruição de Jerusalém, e respondeu à questão. Ele estava falando
sobre o fim da era de Israel.
Aqui estão algumas questões-chave. Se cremos que nosso
Senhor exige que posicionemos suas palavras no primeiro século,
como isso deve ser compreendido sem violentar o texto?
Primeiro, considere a frase “ainda não é o fim”. A primeira
série de problemas (v. 3-13) nesta passagem é comumente citada
como sinais do fim do mundo. Isso é curioso, porque Jesus os
mencionou para nos dizer que não significavam que o fim havia
chegado. Guerras e rumores de guerras significam que não
devemos nos preocupar.
Depois, devemos notar o “testemunho às nações”. O
evangelho deveria seguir e ser proclamado debaixo do céu. E então
o fim viria. Isso aconteceu? A Bíblia diz que sim. Note que este
testemunho não é o mesmo que o cumprimento da Grande
Comissão.
Primeiramente, dou graças a meu Deus, mediante Jesus Cristo, no
tocante a todos vós, porque, em todo o mundo, é proclamada a vossa
fé. (Rm 1.8)
Se é que permaneceis na fé, alicerçados e firmes, não vos deixando
afastar da esperança do evangelho que ouvistes e que foi pregado a
toda criatura debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro. (Cl
1.23)

Terceiro, temos de lidar com nossa curiosidade sobre a


“abominação da desolação”. † Esta abominação já havia ocorrido
uma vez, sob a tirania de Antíoco Epifânio. Jesus diz que isso
aconteceria novamente no santo lugar (v. 15), e afetaria a todos na
Judeia (v. 16). Isso provavelmente se refere à profanação do templo
ocorrida sob os rebeldes judeus contra Roma, embora alguns
apliquem isto aos próprios romanos.
Em seguida, há a questão das “nuvens do céu”. No versículo
30, vemos o sinal do Filho do homem, que está no céu. Este é seu
ato judicial contra Jerusalém, e ele envia seus mensageiros por todo
o mundo gentio (v. 31). Lembre-se de considerar Daniel 7.13.
Aquele semelhante ao Filho do Homem vem nas nuvens do céu e
adentra as cortes celestiais. Isso não é uma descida à terra. Não se
refere ao que chamamos de Segunda Vinda, mas sim à Ascensão.
Este é o primeiro ato formal do governo de Cristo, estabelecido na
Ascensão, dez anos antes.
Devemos também aprender a lição da figueira, não
negligenciando o fato de que essa foi uma parábola promulgada
sobre a destruição do Templo. Dentro de uma geração, Jesus disse
que esses sinais surgiriam, e que o verão (não o inverno) estava
próximo. Ele reforçou suas palavras com uma expressão forte: céu e
terra podem passar, mas as palavras dele jamais. E tudo o que ele
disse aconteceu no decurso de uma geração. Longe de ser uma
previsão vergonhosa, este capítulo é um dos grandes meios de
autenticar Cristo como verdadeiro profeta de Deus. Obviamente, ele
era muito mais do que isso, e assim devemos nos curvar diante dele
e adorá-lo.
E, por último, “onde está aquele povo barulhento?”. Qual o
significado de “um será tomado, e deixado o outro”? É comum
pensar que isso se refere ao arrebatamento — um é levado para o
céu e outro fica na terra se lamentando por não ter feito a oração do
pecador quando teve chance. O lado positivo é que haverá um
monte de carros não tripulados disponíveis sem custo. Mas compare
Lucas 17.35-37 † com a passagem paralela, Mateus 24.36-51. † O
que é levado é levado ao juízo, assim como aqueles julgados por
Deus nos dias de Noé. Aquele que é deixado é poupado. Não se
está falando de arrebatamento.
Como foi mostrado no início do capítulo, é importante notar
que os discípulos não estão fazendo uma série de perguntas
desconexas. As perguntas deles estão ligadas umas às outras, e
não devemos tentar pôr vários milhares de anos entre as respostas.
Em Mateus 24.4-13, Jesus adverte seus discípulos para que
estejam precavidos quanto a falsos sinais do fim antes da chegada
do fim. Haveria grande convulsão no Império Romano (não
relacionada a Israel) antes da destruição de Jerusalém, e Jesus não
queria que eles entrassem em pânico a cada nova crise. Ele então
chega ao cerne da pergunta dos discípulos — quando seria o fim da
era, não o fim do cosmos.
Porém, e quanto a algumas coisas neste capítulo que
obviamente não poderiam ter acontecido no primeiro século?
Logo em seguida à tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua não
dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento, e os poderes
dos céus serão abalados. Então, aparecerá no céu o sinal do Filho do
Homem; todos os povos da terra se lamentarão e verão o Filho do
Homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder e muita glória. E ele
enviará os seus anjos, com grande clangor de trombeta, os quais
reunirão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra
extremidade dos céus. (Mt 24.29-31)

Esta é a passagem que confunde a muitos. Como esses


eventos poderiam se referir ao primeiro século? A resposta é
encontrada nas passagens do Antigo Testamento que Jesus está
citando. Vimos no último capítulo que devemos deixar que os
escritores do Novo Testamento nos instruam sobre o que as
passagens do Antigo Testamento significam. Aqui temos um
exemplo no qual o esclarecimento flui no sentido oposto — do
Antigo para o Novo.
À primeira vista, parece o fim do mundo, mas o versículo é
uma citação de Isaías 13.10 e 34.4. Como ele é usado ali? Nas
passagens originais, as imagens se referiam à destruição da
Babilônia (13.1) e significavam o mesmo para Edom (34.5).
Portanto, devemos supor que Jesus está falando sobre o mesmo
tipo de coisa quando cita essas passagens. Ele está profetizando a
destruição de Jerusalém em 70 d.C. Ele está dizendo a Jerusalém:
“Suas luzes vão apagar. Seu sol está se pondo”.
Alguém pode alegar que Jesus estava citando Isaías, mas
usando suas palavras para um propósito muito diferente. Isso é
improvável. Por toda parte, no Antigo Testamento, há imagens
semelhantes do “sistema solar em colapso” (veja Ez 32.7, Am 8.9 e
Jl 2.28-32), a referência é sempre à mesma coisa — a destruição de
nações e cidades. Não há nenhuma razão bíblica para lidar com tais
passagens de forma diferente quando são citadas no Novo
Testamento, especialmente quando citadas em resposta a uma
pergunta sobre quando Jerusalém seria destruída. Por toda parte, a
Bíblia usa esse tipo de linguagem aplicando-a ao derramamento do
juízo de Deus sobre uma determinada nação ou cidade — Babilônia,
Edom, Egito, o reino norte de Israel. Não há nenhuma razão bíblica
para pensar que se trata de algo diferente em Mateus 24.
No rescaldo do julgamento catastrófico de Jerusalém, os
mensageiros de Cristo (anjos) são enviados para reunir os eleitos.
Isso se refere à grande proclamação do evangelho de Cristo por
toda a terra.
E então, nos próximos versos, Jesus nos ensina a lição da
figueira.
Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se
renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim
também vós: quando virdes todas estas coisas, sabei que está próximo,
às portas. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que
tudo isto aconteça. Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras
não passarão. (Mt 24.32-35)

Aqui, Cristo nos ensina que todos esses eventos do primeiro


século são sinais do verão — e não do longo inverno que o
pessimismo histórico supõe ser característico de nosso tempo.
Jesus também resolve o assunto de quando todas estas coisas
acontecerão: dentro de uma geração. A geração daqueles homens a
quem Jesus ensinava. E tudo aconteceu em 70 d.C., tal como ele
disse. Ele foi, de fato, um grande profeta.

Questões para discussão:


Quando os profetas bíblicos começam a falar de maneira diferente
da que estamos acostumados, uma das coisas que devemos fazer é
recorrer à Bíblia para saber como interpretar esse tipo de
linguagem.
1. O que a linguagem descrevendo um “sistema solar em colapso”
significa no Antigo Testamento? Será que isso se encaixa no
contexto do Novo Testamento?
2. Quando veio nas nuvens do céu, para onde foi o Filho do
Homem?
3. Se tomarmos Mateus 24 como se aplicando à destruição de
Jerusalém em 70 d.C., que impacto isso tem em nossa visão de
Cristo como profeta?
† A “abominação da desolação”: Um ato monumental de
profanação. Historicamente, essa frase costuma se referir aos atos
de Antíoco Epifânio, que profanou o templo judeu ao sacrificar um
porco em seu altar.
† Lucas 17.35-37: Duas mulheres estarão juntas moendo; uma será
tomada, e deixada a outra. [Dois estarão no campo; um será
tomado, e o outro, deixado.] Então, lhe perguntaram: Onde será
isso, Senhor? Respondeu-lhes: Onde estiver o corpo, aí se
ajuntarão também os abutres.
† Mateus 24.36-41: Mas a respeito daquele dia e hora ninguém
sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão o Pai. Pois assim
como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem.
Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e
bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que
Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão quando veio o
dilúvio e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do
Homem. Então, dois estarão no campo, um será tomado, e deixado
o outro; duas estarão trabalhando num moinho, uma será tomada, e
deixada a outra.
13. 666 e toda aquela conversa
Resquícios do velho modo de pensar, parte 2

O sombrio e réprobo Ambrose Bierce definiu assim o livro de


Apocalipse: “Famoso livro em que o apóstolo João escondeu tudo o
que sabe. A revelação é feita pelos comentaristas, que não sabem
de nada”.[5] É de fato lamentável que nós, por nossa preguiça,
tornamos o que era para ser uma revelação em um dos mais
obscuros livros da Bíblia.
À medida que buscamos entender o Apocalipse, surgirá a
pergunta: “Vocês tomam este livro de modo literal?”. Bem, somos
cristãos, e isso significa que acreditamos no livro. Mas se a pergunta
é se “este livro é uma explicação pormenorizada da maneira exata
como esses eventos se desenrolarão”, a resposta é que tomamos
partes dele literalmente, o que significa que outras porções não
podem ser tomadas dessa forma. A maioria dos cristãos
contemporâneos inverte a ordem, mas todo mundo sempre toma
algumas partes literalmente e outras simbolicamente.
Aqui estão algumas diretrizes. A posição defendida aqui
sustenta que o livro de Apocalipse, com exceção dos últimos três
capítulos, cumpriu-se há dois mil anos. Isso significa, fatalmente,
que consideramos que o livro foi escrito antes de 70 d.C.
As duas escolhas são entre uma data prévia (antes de 70 d.C.)
e uma data tardia (após 70 d.C., provavelmente por volta do ano
90). Há muitos bons estudiosos que defendem uma destas
posições. A evidência em favor de uma data tardia é geralmente
externa ao próprio livro — isto é, depende em grande parte de uma
referência ambígua nos escritos de Irineu, Pai da Igreja Primitiva.
A posição aqui defendida é que o Apocalipse foi escrito antes
de 70 d.C., em grande parte porque tomamos literalmente certas
declarações claras do livro. Podemos datar o livro internamente.
Primeiro, isso é o que o livro diz diretamente:
Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus
servos as coisas que em breve devem acontecer. (Ap 1.1; cf. 1.3, 19;
22.6-7, 12, 20)

Em um ou outro caso, escrito cedo ou tarde, o Apocalipse


ensina que os eventos nele preditos deveriam ocorrer pouco tempo
depois. Então, isso significa que o Apocalipse não está falando
sobre o fim do mundo.
Em segundo lugar, é isso o que o livro diz indiretamente. Em
Daniel 8.26, é dito ao profeta que sele sua profecia porque ela
estava ainda muito distante. O cumprimento provou que estava a
aproximadamente quatrocentos anos de distância. Mas João ouve
isto: “Disse-me ainda: Não seles as palavras da profecia deste livro,
porque o tempo está próximo” (Ap 22.10). O que isso significa para
nós, dois mil anos depois? Parece provável que Daniel e João
estejam falando a mesma coisa.
Em terceiro lugar, isso nos permite entender as profecias de
um modo que se encaixem “literalmente” e também situem a data de
escrita do livro. A história aconteceu de determinada forma, mas,
para alguém criativo, o futuro é infinitamente maleável.
Em quarto lugar, isso significa que o livro não era sem sentido
para seus destinatários originais, as sete igrejas da Ásia. João diz
aos seus primeiros leitores: “Aquele que tem entendimento...” (Ap
13.18).
Uma das razões pelas quais somos tão confusos sobre o livro
do Apocalipse é que, em tempos passados, nos afastamos da
educação clássica. Esse tipo de educação proporcionava, em
pequena medida, o tipo de informação que os moradores dessas
cidades tinham em seus “jornais”. Nero era um animal pervertido.
Ele matou uma de suas esposas grávidas com um chute. Matou a
própria mãe. Incendiou cristãos para que servissem de lâmpadas
para um jantar. Vestia-se como um animal e estuprou prisioneiros,
homens e mulheres. E era o cabeça pactual de Roma — aquele
grande Satanás.
Ele tinha o número de um homem. Latim, grego e hebraico
usavam letras como numerais. Nós usamos letras romanas e
algarismos arábicos, mas eles usavam letras para as palavras e os
números. Em hebraico, usando seu sistema de numeração, o nome
Neron Kesar somava 666. Não há necessidade de “massagear” os
números. E se você tomar isso em outra ortografia e em latim, como
um antigo escriba o faria inequivocamente, obteria 616, uma das
variantes textuais do número em nossos manuscritos.
João também aponta para a linhagem de imperadores. A besta
era o Império Romano, uma cidade assentada sobre sete colinas.
Mas as sete cabeças da besta tinham outro significado. “São
também sete reis, dos quais caíram cinco, um existe, e o outro ainda
não chegou” (Ap 17.9-10). Os cinco primeiros Césares foram Júlio,
Augusto, Tibério, Calígula e Cláudio. O sexto César era Nero, que
reinava quando o Apocalipse foi escrito. Cinco caíram, e um ainda
estava de pé.
Então há a questão dos quarenta e dois meses: “Foi-lhe dada
uma boca que proferia arrogâncias e blasfêmias e autoridade para
agir quarenta e dois meses” (Ap 13.5-7). Nero foi o primeiro
imperador romano a perseguir os santos, e ele o fez de novembro a
junho de 68... quarenta e dois meses.
Nero era blasfemo. A Ásia era o centro da adoração do
imperador, e era onde nossas sete igrejas estavam localizadas.
Nero certamente acolheu “arrogâncias e blasfêmias”. Ele tinha uma
imensa estátua de si mesmo em seu palácio e recebia elogios como
“O Eterno! Augusto! Voz sagrada!”. Nero foi um dos grandes
blasfemadores da história.
Temos muitos outros motivos para identificar Nero como a
figura principal neste livro. Ele era a cabeça da besta, que é o foco
da ira de nosso Senhor Jesus Cristo, o governante dos reis da terra.
Vemos também que Nero nos fornece um estudo de caso do
que o Senhor Jesus faz quando usa a vara de ferro. A rebelião
contra o céu é castigada. Por causa de tais julgamentos, lemos que
os reis da terra (ao fim) trarão sua honra e glória para a Nova
Jerusalém (Ap 21.24). Mas por que eles veriam a coisa dessa
maneira quando nós mesmos não enxergamos assim? Como
podemos nós pregar aos reis quando não cremos no que eles foram
ordenados a crer?
Muitas coisas parecem estranhas para nós, mas apenas
porque não conhecemos os eventos históricos do primeiro século.
Uma vez que estejamos familiarizados com o que aconteceu na
época, ela se torna um momento muito plausível para o
cumprimento dessas profecias.
O primeiro imperador de Roma foi Júlio César. Embora ele
nunca tenha tomado o título de imperador por causa do preconceito
dos romanos para com a monarquia, era um imperador de fato, e foi
considerado como tal. Ele reinou de 49 a 44 a.C. Depois dele veio
César Augusto. Cristo nasceu durante o reinado de Augusto.
Embora fosse um líder digno no nível político, ele se permitiu ser
adorado como uma divindade. O culto ao imperador começou sob
seu reinado e foi particularmente forte na Ásia Menor. As sete
igrejas dos primeiros capítulos do Apocalipse estavam localizadas
nessa mesma Ásia Menor. Augusto reinou de 27 a.C. a 14 d.C. Seu
reinado foi considerado a era de ouro do Império Romano. Após
Augusto, o caráter moral dos imperadores submergiu drasticamente.
O próximo foi Tibério César, que reinou a partir de 14-37 d.C.
e sob cujo reinado Jesus foi crucificado. Depois disso veio Caio
César, mais popularmente conhecido como Calígula. Ele reinou de
37-41 d.C. É importante perceber que era Calígula quem estava
reinando durante os anos de formação da Igreja cristã. Ele também
foi o instigador de um incidente que parece estar indicado no Novo
Testamento. Ele ordenou que uma estátua de si mesmo fosse
instalada no Templo em Jerusalém e enviou um homem chamado
Petrônio com um exército para fazer cumprir o édito. Apenas a
morte de Calígula impediu uma guerra naquele momento. A fome
por adoração, por honras divinas, era muito evidente, e não era
difícil para os primeiros cristãos ver o surgimento da besta na
arrogância de seus imperadores.
Então veio Cláudio. Ele reinou a partir de 41-54 d.C. O
próximo foi o mais infame de todos, Nero César. Seu reinado foi de
54-68 d.C. Ele se matou no verão de 68, levando a um ano
tumultuado, que pode ser chamado de “O ano dos quatro
imperadores”. A morte de Nero resultou em guerra civil. Ele foi
sucedido por Galba, que conseguiu segurar o trono por apenas sete
meses. Galba foi substituído por Otão, que por sua vez foi
substituído por Vitélio. Este foi substituído pelo general Vespasiano
que estava conduzindo a guerra na Judeia, guerra que ainda não
havia terminado. Vespasiano deixou seu filho Tito a cargo do que
restava da guerra. Depois de restaurar a ordem, Vespasiano tornou-
se imperador, e seu filho depois dele.
A formação da Igreja coincide com esses eventos. Cristo
nasceu por volta de 4 a.C., e seu ministério terminou em meados de
20 d.C. A Igreja se expandiu amplamente pouco depois, segundo o
dom do Espírito no Pentecostes. O primeiro livro do Novo
Testamento foi, provavelmente, Gálatas, escrito no início dos anos
40. O restante do Novo Testamento foi concluído, provavelmente,
nos trinta anos seguintes. Faz todo o sentido, diante das
informações que temos, ver que todo o cânon do Novo Testamento
foi escrito antes da destruição do Templo em 70 d.C. Alguns livros
foram escritos bem tarde, só alguns anos antes disso, como a carta
aos Hebreus. Mas praticamente todos os livros do Novo Testamento
têm em si um clima de expectativa. Todos estão aguardando por
algo drástico que acontecerá em breve, e nenhum deles sequer
menciona o evento mais cataclísmico da história judaica — a queda
de Jerusalém em 70 d.C. — como sendo algo já ocorrido. Esse
evento foi a destruição da antiga ordem judaica e sua substituição
pela Igreja cristã, o novo Israel.
O Antigo Testamento e o Novo nos fazem esperar por um
evento significativo como este em 70 d.C., ou algo próximo. A
linguagem do Apocalipse é cheia de referências e alusões ao Antigo
Testamento, todas elas nos fazendo buscar por um evento que
inclua a destruição do Templo e o julgamento de Israel, bem como
grandes mudanças no cenário político mundial. E, com toda certeza,
podemos confirmar que as mudanças políticas de fato ocorreram e
que João estava claramente se referindo a imperadores específicos.
Em outras palavras, devemos nos lembrar de que, se
pudéssemos ler todos os “jornais” da época, isso lançaria uma luz
completamente diferente sobre o conteúdo do Novo Testamento. E
embora não tenhamos toda essa informação, temos muito mais do
que costumamos reparar. Essa foi uma época muito bem
documentada da história. É importante buscar a intenção de cada
escritor do Novo Testamento em respeito à compreensão de seus
primeiros leitores.
A revolta judaica, quando aconteceu, foi completamente
esmagada. Mas, quando começou, parecia bastante promissora.
Nero morreu em 68 d.C. A revolta começou por volta dessa mesma
época (67-68) e não terminou até três anos depois, quando Tito
tomou a cidade de Jerusalém no ano 70. Lembre-se de que, nessa
mesma época, Roma estava envolvida em suas próprias guerras
civis e lutas pelo trono, e os bárbaros na fronteira do norte estavam
inquietos. Foi um momento de grande convulsão e incerteza civil
para os romanos. No entanto, a guerra terminou em 70 d.C. com a
total destruição do Estado judeu, tal como Jesus havia previsto. Os
judeus vinham sendo os principais perseguidores dos cristãos e
esse obstáculo havia desaparecido — embora os romanos os
tivessem substituído rapidamente. Primeiro, a grande prostituta da
Babilônia cavalgou na besta. Depois, a besta continuou perseguindo
a igreja por conta própria.
Questões para discussão:
Quando lemos a Bíblia, temos de ter uma certa quantidade de
“conhecimento de fundo”, o tipo de conhecimento que você pode
obter de jornais ou livros de história. E, quando lemos certas
passagens, temos de perguntar se os jornais do primeiro século ou
os jornais do século XXI completam melhor o contexto.
1. Essa abordagem ao Apocalipse toma o livro “literalmente”?
2. Quais são alguns dos motivos básicos para uma data não tardia
para o livro de Apocalipse?
3. Quem eram os imperadores romanos correspondentes às “sete
cabeças” de João?
14. A nova humanidade
A oeste do Éden

Gênesis é o livro dos inícios. Muitas vezes, isso é


negligenciado pelos cristãos. Aqui vemos, obviamente, o início do
mundo, mas também o início do casamento, do trabalho, do
descanso, da música e de muitas outras dádivas maravilhosas. Em
suma, o livro de Gênesis nos fornece uma compreensão básica de
nossa relação com o mundo que nos rodeia. O que deveríamos
fazer enquanto estamos aqui?
E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. (Gn 1.28)
Abençoou Deus a Noé e a seus filhos e lhes disse: Sede fecundos,
multiplicai-vos e enchei a terra. Pavor e medo de vós virão sobre todos
os animais da terra e sobre todas as aves dos céus; tudo o que se move
sobre a terra e todos os peixes do mar nas vossas mãos serão
entregues. Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento; como
vos dei a erva verde, tudo vos dou agora. (Gn 9.1-3)

Então, eis aqui as instruções de guerra. Este comando de


Deus historicamente vem sendo chamado de mandato cultural.
Antes da Queda, Deus expressamente deu domínio à humanidade
sobre toda a criação. Isso é visto na passagem citada do primeiro
capítulo de Gênesis. Mas Deus reitera esse mandato a Noé. Noé
viveu após a Queda, e este mandato é dado imediatamente após
um julgamento colossal sobre o pecado. A presença de pecado,
obviamente, não suprime ou remove o mandato cultural.
Nos círculos ambientalistas radicais, o dogma atual diz que o
homem é o câncer do planeta. Na esteira de muitas das
controvérsias políticas de nossos dias está uma visão antibíblica da
realidade que pressupõe que tudo no mundo está em pé de
igualdade, com a estranha exceção do homem. Eis o que guia o
ambientalismo contemporâneo. Ao mesmo tempo, os extremistas
ambientais acabam por revelar uma espécie de reconhecimento da
existência desse mandato cultural, já que somos nós os
responsáveis por consertar a coisa toda. Mas, na visão cristã, o
problema não é a poluição, é o pecado. Devemos ter cuidado para
não simplesmente reagir aos extremistas contemporâneos, aos
loucos pelos animais, etc. Nossa posição é bíblica, não reacionária.
Considere o seguinte, para dar apenas alguns exemplos:
Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não
haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra! (Is
5.8)
O justo atenta para a vida dos seus animais, mas o coração dos
perversos é cruel. (Pv 12.10)

Isaías deixa claro que os cristãos não devem “pavimentar o


planeta”. E, em Provérbios, Salomão deixa claro que os crentes
devem tratar os animais com decência e respeito. Esses deveres
devem ser definidos pelas Escrituras, não por ambientalistas
extremistas, mas, ainda assim, são deveres. Então, o problema é o
pecado, não a existência do homem em si. A Bíblia ensina que a
criação caiu e geme como em dores de parto (Rm 8). Isso é
resultado do pecado, não é pecado em si. A Bíblia sempre define o
pecado em termos de desobediência à lei de Deus. O pecado não é
encontrado no mundo material ou em uma parte do mundo material
(isto é, na presença da humanidade).
O mandato cultural é nada mais, nada menos do que a
obrigação da humanidade de ser culturalmente responsável. Essa
responsabilidade deve ser definida pelo que Deus diz na Escritura, e
não pela última coisa que os incrédulos secularistas creem estar em
voga. Palavras como “responsabilidade” não são neutras, e sempre
devemos nos fundamentar nas Escrituras. Portanto, essa
responsabilidade cultural sempre deve ter o evangelho em seu
cerne, e daí transbordam vários detalhes da aplicação cultural.
Considere o salmo 8, que inclui uma promessa de restauração
de todas as coisas em Cristo. O autor do livro de Hebreus toma
essa passagem dos Salmos e a aplica claramente à humanidade
em Cristo. Considere sua aplicação do salmo. O mandato
permanece em vigor para o homem impotente, mas isso
simplesmente significa que não temos o poder de fazer
corretamente aquilo que Deus exige que façamos. Mas parte da boa
notícia é que essa impotência foi finalmente removida em Cristo.
Pois não foi a anjos que sujeitou o mundo que há de vir, sobre o qual
estamos falando; antes, alguém, em certo lugar, deu pleno testemunho,
dizendo: Que é o homem, que dele te lembres? Ou o filho do homem,
que o visites? Fizeste-o, por um pouco, menor que os anjos, de glória e
de honra o coroaste [e o constituíste sobre as obras das tuas mãos].
Todas as coisas sujeitaste debaixo dos seus pés. Ora, desde que lhe
sujeitou todas as coisas, nada deixou fora do seu domínio. Agora,
porém, ainda não vemos todas as coisas a ele sujeitas; vemos, todavia,
aquele que, por um pouco, tendo sido feito menor que os anjos, Jesus,
por causa do sofrimento da morte, foi coroado de glória e de honra, para
que, pela graça de Deus, provasse a morte por todo homem. Porque
convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas
existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de
sofrimentos, o Autor da salvação deles. (Hb 2.5-10)

Há três respostas possíveis a isso. Uma é a do homem que


enterrou seu talento no chão porque temia um senhor severo. A
responsabilidade cultural de exercer domínio no mundo é muito
difícil e dura, e daí nasce a religião escapista. Outra é a do homem
que gosta da ideia de “domínio” e então começa a comer, a beber e
a bater nos conservos, resultando uma religião despótica. A terceira
se humilha e exerce domínio piedoso em Cristo e por meio dele.
A Igreja continua a ser prejudicada em sua obra de reforma
por conta de certas “verdades inquestionáveis” que ainda circulam
entre nós. Uma dessas “verdades” é que a lei de Deus equivale a
escravidão e não a liberdade. Porém, no evangelho, todas as coisas
nos libertam, incluindo a lei de Deus. Considere o prefácio aos Dez
Mandamentos e observe como Deus está dizendo às pessoas que
sua lei é simplesmente a que liberta. Isso só faz sentido no contexto
do evangelho, é claro, mas é necessário insistir no fato de que faz
sentido no contexto do evangelho.
Eu sou o S teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da
servidão. (Êx 20.2)

As Escrituras, desde o Gênesis até o Apocalipse, nos contam


a história da salvação, e ainda nos dizem que a salvação é uma
história. A salvação do povo de Deus nunca foi uma questão de
verdades etéreas para almas desencarnadas. Tanto é assim que os
Dez Mandamentos não são leis abstratas, mas leis introduzidas por
Deus, que as colocou no momento certo da história. Os dez
mandamentos começam com o “Era uma vez”. Deus redimiu o seu
povo do Egito e em gratidão a isso, e à luz desta realidade histórica,
eles entram em um pacto solene de viver demonstrando uma
determinada forma de gratidão. A graça é seguida pela gratidão, e a
gratidão não conhece outra resposta senão a obediência vinda do
coração.
Mas os falsos deuses contam uma história falsa. Vivemos em
um Estado secular (anticristão), em uma era secular, e ambos estão
ansiosos para se livrar de qualquer vestígio que possa haver da
ordem cristã mais antiga. Como isso aconteceu? Deuses falsos e
falsos evangelhos têm de funcionar dentro do mundo que Deus
criou, e isso significa que devem operar dentro das categorias de
Deus, mesmo quando tentam distorcê-las e destruí-las. Isso
significa que também devem contar uma história de “libertação do
Egito”.
No nosso caso, a história que ouvimos inúmeras vezes diz
respeito a como o Estado secular, nosso suposto “salvador”, veio a
existir. Como geralmente se conta, depois da Reforma† a Europa foi
rasgada com conflitos religiosos. As infames “guerras da religião”
assolaram a Europa até que finalmente, com um grande suspiro de
alívio, nossos pais tropeçaram nas virtudes da tolerância e o Estado
secular tomou a esfera pública. Nossa “libertação” foi que as
convicções religiosas sanguinárias foram finalmente banidas para o
domínio da “crença pessoal” — um domínio, é claro, que não tinha
efeito sobre o comportamento público. Nesta narrativa, não só
somos salvos por algo que não é o evangelho cristão, mas também
somos salvos do evangelho cristão. A narrativa é convincente,
disseminada, constantemente reiterada e quase inteiramente falsa.
Infelizmente, mesmo muitos cristãos foram enganados por certos
aspectos dessa narrativa. Eis como a maioria dos cristãos no
Ocidente fez a paz com a opção “escapista” mencionada
anteriormente. A religião não deve ter efeito sobre a nossa visão
quanto ao que deve e o que não deve ser permitido na esfera
pública, mas pode-se permitir que ela nos instrua sobre o que nos
salvará na próxima vida.
A Igreja tem sido relegada a uma posição de menor
importância, mesmo nos Estados Unidos, onde cristãos professos
constituem um grande segmento da população. Em grande medida,
isso se dá porque muitos cristãos creem na narrativa secular que
lhes foi contada. No fundo de suas mentes, estão preocupados com
o pandemônio cultural que seria provocado se os cristãos
ganhassem uma influência indevida. Banir o aborto, e depois o quê?
Obviamente, derramamento de sangue entre Estados luteranos e
católicos, como nos velhos tempos. A narrativa fez seu trabalho em
nós.
Portanto, os cristãos tendem a se dividir em duas categorias
principais. Os primeiros são habitantes satisfeitos do gueto
evangélico. Eles querem escapar de todas as responsabilidades
públicas, e concebem a fé como algo que nos permitirá escapar
desse mundo maligno. O Estado secular está errado, mas é
invencível. Satanás é o deus deste mundo, e o que precisamos
fazer é orar pelo arrebatamento para sermos poupados disso aqui
— como se, como mencionei anteriormente, a obra de Deus neste
mundo fosse como o envolvimento desastroso dos Estados Unidos
no Vietnã, e o fim do mundo fosse simplesmente uma versão
cósmica da evacuação de Saigon. Alguns advogam que isso
acontecerá em massa, tudo de uma vez, perto do fim do mundo.
Outros acreditam que Deus nos salva um por um enquanto
morremos — esta é a opção “Jesus, me leve para casa”. Mas o foco
em tudo isso é chegar ao céu quando morrer.
O segundo grupo quer um lugar à mesa. Eles não gostam de
ser marginalizados, de ter a voz completamente silenciada, e
querem ser convidados para as discussões. Eles aceitam a ideia do
Estado secular e o ethos democrático que o acompanha, mas
simplesmente querem que sua voz seja registrada junto a todas as
outras. O Estado secular é correto, mas atualmente não está
cumprindo seu potencial promissor porque os cristãos são
inexplicavelmente excluídos. À medida que o balbuciar de vozes
interessadas ascende ao trono secular, tais cristãos querem garantir
que uma voz evangélica representativa seja numerada entre as
demais.
Mas a adoração cristã é a declaração de que Deus está
criando uma nova humanidade em Cristo, e onde quer que a nova
humanidade se reúna, um novo ponto central é constituído, uma
nova esfera pública é estabelecida. Rejeitamos a guetização da fé,
que quer adorar a Deus sem realmente criar uma cidade. A única
maneira de conseguir isso é distorcendo o que as Escrituras
realmente dizem. Valorizando o texto, mas sem abraçar suas
consequências.
Então, também rejeitamos a ideia de que Cristo pode ser
considerado “um aventureiro”. Ele não faz apostas; é o Senhor dos
céus e da terra. Como isso se dá? A resposta bíblica é que, do
começo ao fim, tais coisas são sempre feitas pela fé. O poder do
Espírito Santo opera quando a Palavra de Deus é declarada em fé.
“Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a
vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5.4). Como devemos
subjugar os reinos? Pela fé, como nos é dito em Hebreus (11.33).
Como devemos trazer todo pensamento cativo (2Co 10.3-6)? Não
por meios carnais, mas pela fé.
A Igreja cristã é muito mais do que a mãe dos fiéis. Ela é
chamada a ser mãe das cidades. E onde será plantada a raiz
dessas novas cidades? Onde quer que estejam a Palavra e os
sacramentos. Se Deus conceder uma reforma genuína, será como a
que foi concedida no século dezesseis, e a característica mais óbvia
em comum com aquela primeira reforma será o desafio aos
governantes desta era. Nenhuma acusação maior do que esta pode
ser encontrada contra a Igreja contemporânea: o Estado secular
está operando a todo vapor e, contudo, em sua maior parte, o
púlpito cristão continua sendo um lugar seguro.
Mais pastores devem se questionar sobre isso. Os ministros e
as igrejas não deveriam estar mais preocupados do que agora estão
com o fato de não enfrentarem oposição? E não deveriam estar
dispostos a considerar se isso não é resultado da diluição da
mensagem? É possível falar sobre o julgamento final e o senhorio
de Jesus Cristo de tal forma a deixar que fique claro que ele é
apenas senhor sobre as áreas que os secularistas estão felizes em
deixar que ele tenha para si — a vida após a morte, por exemplo?
Quem se importa se Jesus é Senhor de uma forma que nunca faz
diferença alguma para nós?
Não é assim que deveria ser. A adoração da igreja cristã é a
Nova Jerusalém, descida do céu. À medida que as igrejas são
edificadas e a adoração fiel é estabelecida, os convertidos são
batizados e ensinados, os pais criam seus filhos na instrução e
admoestação do Senhor e as nações são trazidas à fé, são
incorporadas à Nova Jerusalém, a cidade da nova humanidade.
Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa
espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios
espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo. Pois isso
está na Escritura: Eis que ponho em Sião uma pedra angular, eleita e
preciosa; e quem nela crer não será, de modo algum, envergonhado.
(1Pe 2.5-6)

A fé cristã não é “um sistema de crenças”; é o futuro da raça


humana. Em Jesus Cristo, Deus reconstituiu a nossa humanidade, e
crescemos nele à medida que Deus restaura sua própria imagem
em nós. Essa imagem foi desfigurada (não aniquilada) na rebelião
de Adão, mas Deus criou a oportunidade de retornarmos a uma
humanidade completa e restaurada — em Cristo. Ele não só nos
reviveu dessa forma, mas também nos deu um lugar para vivermos.
A Nova Jerusalém.
A Nova Jerusalém é claramente um símbolo para a igreja
cristã, fornecido a nós pela leitura conjunta de certas passagens.
Este é um símbolo glorioso que existe mesmo fora do livro de
Apocalipse. Considere isto:
Mas o da escrava nasceu segundo a carne; o da livre, mediante a
promessa. Estas coisas são alegóricas; porque estas mulheres são
duas alianças; uma, na verdade, se refere ao monte Sinai, que gera
para escravidão; esta é Agar. Ora, Agar é o monte Sinai, na Arábia, e
corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com seus
filhos. Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe; porque
está escrito: Alegra-te, ó estéril, que não dás à luz, exulta e clama, tu
que não estás de parto; porque são mais numerosos os filhos da
abandonada que os da que tem marido. (Gl 4.23-27)

O mesmo é ensinado em Hebreus:


Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a
Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à universal
assembleia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o
Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados, e a Jesus, o
Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala coisas
superiores ao que fala o próprio Abel. (Hb 12.22-24)

Isso nos ajuda a entender o simbolismo das últimas páginas


da Bíblia, simbolismo de um convite de boas-vindas. A antiga
humanidade é convocada para se tornar a nova humanidade em
Cristo.
Então, veio um dos sete anjos que têm as sete taças cheias dos últimos
sete flagelos e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a noiva, a
esposa do Cordeiro; e me transportou, em espírito, até a uma grande e
elevada montanha e me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia
do céu, da parte de Deus. (Ap 21.9-10)

A Jerusalém acima é a mãe de todos os que creem. Nós, os


que cremos, chegaremos a um monte Sião que não pode ser
tocado, isto é, chegaremos à Jerusalém celestial. E quando o anjo
mostrou a João a grande cidade, a santa Jerusalém descida do céu
de Deus, o que ele estava vendo era a noiva de Cristo. A Igreja
cristã é, portanto, a noiva de Cristo, a esposa do Cordeiro. A Igreja
cristã é a Nova Jerusalém. Todos os cristãos são pedras vivas nesta
grande cidade e templo (1Pe 2.4). A Igreja cristã está avançando
pelo mundo, como uma noiva atravessando o corredor de entrada
em sua glória.

Questões para discussão:


Embora a Bíblia seja uma coleção de 66 livros, é importante
reconhecermos que há um Autor guiando-a do começo ao fim, e
isso significa que temos de aprender a ler, de Gênesis a Apocalipse,
enxergando os mesmos temas centrais.
1. Qual é o mandato cultural? Como isso se relaciona com as
obrigações de um cristão moderno em relação à responsabilidade
cultural?
2. Quais são os três tipos básicos de religião?
3. Quais são os argumentos para identificar a Nova Jerusalém com
a Igreja Cristã?

† A Reforma: Avivamento do cristianismo no século XVI que


buscou firmar nossas crenças na Escritura e negar que nossas boas
obras são responsáveis pela nossa salvação em qualquer medida.
Esse avivamento não foi bem recebido pela Igreja de Roma da
época, que excomungou e perseguiu muitos dos reformadores.
Como resultado, surgiu o protestantismo.
15. Completamente maluco
A fé é exegeticamente indefensável

Às vezes, supomos que uma boa exegese da Escritura é uma


operação científica na qual um crente ou um incrédulo — munidos
do conhecimento das “regras” — podem extrair uma compreensão
correta do que a Bíblia diz. Obviamente que há um elemento de
verdade nisto — significados gramaticais e lexicais podem ser
bastante objetivos. Dito isto, temos que reconhecer, contudo, que a
visão central apresentada nas Escrituras é algo que só a fé genuína
pode enxergar.
Qual é a intersecção correta entre a Escritura e o mundo, e
qual é o papel que a fé deve desempenhar para entender tudo isso
corretamente? Suponha que um jovem precoce, depois que seu pai
acabou de agradecer pelo jantar, pergunte algo assim: “Pai, como
sabemos que Deus nos deu esse alimento como uma bênção? Ele
não poderia estar nos engordando para o dia do abate?”. A resposta
do pai é simples: “Sabemos porque a Bíblia assim o diz”. O pai pode
dizer isso, ainda que o sobrenome da família não apareça na
Concordância Bíblica e não possa ser encontrado em parte alguma
das Escrituras.
De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus. (Rm
10.17, ACF)
Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos
que se não veem. (Hb 11.1)

A fé é a resposta natural à fidelidade que percebemos da parte


de Deus. E a fidelidade de Deus é vista de forma preeminente em
suas promessas. “Pela fé, também, a própria Sara recebeu poder
para ser mãe, não obstante o avançado de sua idade, pois teve por
fiel aquele que lhe havia feito a promessa” (Hb 11.11).
A Escritura nos diz que o homem colhe o que semeia (Gl 6.7).
A Bíblia nos diz que todos os que desejam viver piedosamente em
Cristo Jesus serão perseguidos (2Tm 3.12). Isso nos apresenta um
problema interpretativo. Manassés foi posto em grilhões para que
pudesse se arrepender (2Cr 33.11-12). Paulo foi posto em grilhões
para se alegrar e cantar hinos a Deus (At 16.25). Esta é uma
questão hermenêutica, mas o que estamos interpretando? A fé deve
interpretar o texto para interpretar o mundo. Não interpretamos o
texto ao invés de interpretar o mundo.
Aqui temos de ter cuidado para não cairmos na armadilha de
achar que tem de ser ou uma coisa ou outra. Você tem um primo em
Oklahoma que está ocupado “decretando e tomando posse” de cada
coisa espalhafatosa que lhe vem à mente, incluindo carros de
colecionador e jatinhos particulares. E você tem outro primo em
Grand Rapids que é um pessimista histórico e que está vivendo os
dias que lhe restam em um triste recolhimento.
Mas considere a quantidade de coisas diferentes que a fé
realiza. O itálico indica uma mudança de tom:
E que mais direi? Certamente, me faltará o tempo necessário para
referir o que há a respeito de Gideão, de Baraque, de Sansão, de Jefté,
de Davi, de Samuel e dos profetas, os quais, por meio da fé,
subjugaram reinos, praticaram a justiça, obtiveram promessas, fecharam
a boca de leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da
espada, da fraqueza tiraram força, fizeram-se poderosos em guerra,
puseram em fuga exércitos de estrangeiros. Mulheres receberam, pela
ressurreição, os seus mortos. Alguns foram torturados, não aceitando
seu resgate, para obterem superior ressurreição; outros, por sua vez,
passaram pela prova de escárnios e açoites, sim, até de algemas e
prisões. Foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos a fio
de espada; andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de
cabras, necessitados, afligidos, maltratados (homens dos quais o mundo
não era digno), errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas,
pelos antros da terra. Ora, todos estes que obtiveram bom testemunho
por sua fé não obtiveram, contudo, a concretização da promessa, por
haver Deus provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem
nós, não fossem aperfeiçoados. (Hb 11.32-40)

Consideremos três exemplos de promessas. Primeiro,


considere a promessa de salvação (Rm 10.9-10). Mas nem toda fé é
genuína (Tg 2.19), e nenhum versículo da Bíblia faz menção
específica a qualquer de nós. E quanto à promessa da oração
respondida (Jo 16.23)? A Bíblia também nos ensina que nem todos
os pedidos são segundo a vontade de Deus (Tg 4.3). E temos a
promessa de que nossos filhos serão fiéis (Sl 103.17). Mas, então, o
que devemos fazer dos filhos de Esaú e de Samuel, e dos muitos
casos de infidelidade à aliança que vemos pessoalmente?
O que isso significa é que toda vez que você confiar em Deus
para algo que ele prometeu, haverá sempre a possibilidade de que
você seja (e provavelmente será) desafiado por meio de
argumentações em contrário retiradas da própria Bíblia. Isso porque
a fé não pode ser imposta a partir do texto de forma a compelir o
descrente a enxergá-la. Mas tais desafios são realmente descrença
disfarçada de apreço pelo texto bíblico. Uma das realidades centrais
das Escrituras, a qual devemos retornar, é que a fé vence o mundo
(1Jo 5.4).

Questões para discussão:


Voltando ao início do livro, quando Abraão viu o que fez, não teria
sido capaz de provar sua posição para um espectador “objetivo”.
Deus falou e Abraão creu. E, como disse George MacDonald, “a
obediência é o que mais desvenda os nossos olhos”.
1. É realmente possível uma exegese “objetiva” — de tal forma que
fé ou incredulidade sejam irrelevantes? Por quê?
2. A fé nas promessas de Deus exige o “decretar e tomar posse”?
3. Como podemos saber que as promessas das Escrituras
realmente são para nós se os nossos nomes não estão escritos ali?
Quais são algumas dessas promessas?
Epílogo

Concede ao rei, ó Deus, os teus juízos e a tua justiça, ao filho do rei.


Julgue ele com justiça o teu povo e os teus aflitos, com equidade. (Sl
72.1-2)

À medida que caminhamos para a conclusão, uma coisa boa


para se ter em mente é a necessidade de voltarmos constantemente
a fixar os nossos olhos em Jesus, o autor e consumador da nossa
fé. Quando pensamos cuidadosamente nessas questões, devemos
reconhecer que a questão básica é realmente a visão que temos a
respeito dele.
Jesus Cristo realmente é o Senhor de todas as coisas no céu
e na terra. Considere o que Paulo nos diz em Filipenses 2.9-11.
Perante o nome de Jesus, todo joelho deve se curvar, e não apenas
no céu. Todos, no céu, e na terra, e debaixo da terra louvarão a
Jesus Cristo. E assim não buscamos nada menos do que exaltá-lo
em toda parte.
Jesus Cristo é o Salvador do mundo. “E nós temos visto e
testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do
mundo” (1Jo 4.14). Jesus não veio para tentar salvar o mundo, caso
esse mundo não-cooperativo o permitisse. Ele veio para salvar o
mundo; e não estará satisfeito com nada menos do que um mundo
salvo. É disso que se trata. É claro que isso não deve significar que
todos os seres humanos que já viveram serão finalmente salvos. O
ensinamento de nosso Senhor sobre a natureza terrível do fogo
eterno exclui essa possibilidade. Assim, o fato de que Cristo salvará
o mundo não significa que ele salvará cada indivíduo que já tenha
existido. Antes, significa que ele salvará o mundo, e precisamos
interpretar a palavra “mundo” de tal maneira que abranja mais do
que um minúsculo grupinho de eleitos, que consiste em não mais do
que treze ou catorze pessoas. Todo aquele que crê na Bíblia deve
rejeitar o universalismo, que nega a terrível realidade do julgamento
final para os incrédulos. Mas, ao mesmo tempo, Deus enviou seu
Filho para ser o Salvador do mundo.
Jesus Cristo é o conquistador dos principados e potestades.
“Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o seu
príncipe será expulso. E eu, quando for levantado da terra, atrairei
todos a mim mesmo” (Jo 12.31-32). Antes de ser levado à presença
de Cristo, o homem caído era governado pelos principados e
potestades e várias outras agências mediadoras. Deus, por
definição, sempre foi soberano, mas, no tempo do Antigo
Testamento, ficou satisfeito em mediar essa soberania através de
vários poderes celestes. Porém, agora, Deus reina através de uma
humanidade reconstituída, de um novo homem em Cristo.
A obra de Deus através de Cristo — o último Adão que cumpre
a missão fracassada e abandonada do primeiro — é aquela que
estabelece o Reino de Deus. Em certo sentido, e por definição, a
soberania de Deus (sua autoridade real) sempre existiu. Deus é
sempre Deus. Mas o reino anunciado no Novo Testamento é um
reino no qual a despedaçada autoridade do homem sobre todas as
coisas está sendo restaurada. Portanto, o Reino de Deus no Novo
Testamento não é o momento em que Deus, de repente, ganha sua
soberania. É o ponto em que o homem (em Cristo) graciosamente
recebe uma autoridade restaurada sobre o mundo.
Jesus Cristo é o recriador dos céus e da terra. “Nós, porém,
segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos
quais habita justiça” (2Pe 3.13). O Pai fez o mundo através do Filho,
e o Pai refez o mundo através do Filho. É por isso que observamos
o primeiro dia da semana... dia em que Cristo descansou após sua
obra de recriação (Hb 4.10).
Jesus Cristo é rei no Reino de Deus.
E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando
houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder.
Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos
debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. (1Co 15.
24-26)

A igreja cristã não é uma organização voluntária da qual


podemos entrar e sair quando quisermos. A Igreja de Cristo é uma
monarquia, e nós somos os súditos do Senhor Jesus.
Jesus Cristo também é o grande Profeta.
Disse, na verdade, Moisés: O Senhor Deus vos suscitará dentre vossos
irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos
disser. Acontecerá que toda alma que não ouvir a esse profeta será
exterminada do meio do povo. (At 3.22-23)

Nossa visão do futuro deve ser formada em submissão às


palavras de Jesus Cristo. Isso inclui as palavras que nos falam
sobre a natureza do reino e o cumprimento das profecias do
passado. Devemos crer no que elas nos dizem, mesmo que tudo
pareça bom demais para ser verdade. Olhos não viram, nem
ouvidos ouviram o que Deus preparou para aqueles que o amam.
Jesus Cristo é o conquistador dos reis da terra.
E da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos
mortos e o Soberano dos reis da terra. Àquele que nos ama, e, pelo seu
sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino,
sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos
séculos dos séculos. Amém! (Ap 1.5-6)
Nesse sentido, devemos cuidar para evitar a corrupção dos
pressupostos filosóficos incrédulos. Cristo não é o Senhor de algum
lugar celestial invisível; é o Senhor e Mestre da cidade onde você
mora — e, é claro, de qualquer outro lugar. Ele adquiriu este mundo
e seus habitantes com seu sangue, e nenhum magistrado insolente
terá sucesso em negar isto a ele. Ele terá o que lhe pertence. Grave
isto: Cristo governa aqui. Mas, ao mesmo tempo, sua autoridade se
estende por meios espirituais, não por meios políticos. Ela tem
resultados políticos, mas seu reino não avança da mesma maneira
que outros reinos.
Jesus Cristo é Senhor da Igreja. “Cedo de manhã, ao voltar
para a cidade, teve fome; e, vendo uma figueira à beira do caminho,
aproximou-se dela; e, não tendo achado senão folhas, disse-lhe:
Nunca mais nasça fruto de ti! E a figueira secou imediatamente” (Mt
21.18-19; 24.32). Nosso Senhor é perito em tratar de seu povo.
Quando os ramos devem ser cortados, ele corta. Quando a árvore
deve ser nutrida, ele a nutre. Ele rejeitou a maioria dos judeus por
causa da incredulidade deles. Ele nos adverte contra tolices
semelhantes, pois fará coisas semelhantes àquelas. Mas este
Jardineiro não só corta os ramos, como também promete restaurá-
los, sendo a restauração dos judeus o exemplo preeminente.
Assim, nossa confissão essencial nestes assuntos é a
seguinte: Jesus Cristo é o Senhor.
Comecei este pequeno livro pedindo uma suspensão
voluntária da descrença. E se o mundo fosse salvo? E se a Grande
Comissão realmente se realizasse? E se as nações afluíssem a
Jesus Cristo, crendo nele? Quão maravilhoso tudo isso seria se tudo
isso fosse verdade. A melhor parte da história é que é verdade.
Breve glossário
Apêndice A

Neste breve livro, tentei evitar palavras mirabolantes e


simplesmente falei sobre os próprios conceitos. Mas há um
vocabulário estabelecido para muitas dessas coisas, e se desejar
avançar nisto, você precisará de uma breve orientação nesse
vocabulário. Para aqueles que já têm uma formação escatológica,
isso pode ser útil para classificar as coisas também.

O que é escatologia?
Escatologia é o estudo dos últimos dias; a escatologia de alguém é
sua visão a respeito dos “últimos dias”. A palavra é menos
frequentemente aplicada à doutrina do céu e do inferno.

Os últimos dias de quê?


A resposta a essa pergunta é o que divide os cristãos em várias
escolas de pensamento. Por exemplo, alguns pensam se referir aos
últimos dias do mundo, enquanto outros acreditam que os “últimos
dias” no Novo Testamento fazem referência aos últimos dias da era
judaica, bem como aos últimos dias do mundo tal como o
conhecemos.

O que significa “hermenêutica”?


Hermenêutica refere-se à arte, ciência e metodologia da
interpretação bíblica. Obviamente, a maneira como alguém
interpreta a Bíblia terá um impacto na interpretação das profecias da
Bíblia. Assim, a questão da hermenêutica é muito importante nos
debates sobre escatologia.

O que é um futurista?
Futurista é aquele que acredita que a profecia do Apocalipse ainda
está por se cumprir (isto é, ainda é futura).

O que é um historicista?
Historicista é alguém que acredita que a profecia do Apocalipse foi e
está sendo cumprida ao longo de toda a história da igreja.

O que é um preterista?
Preterista é aquele que acredita que a profecia do Apocalipse foi
amplamente cumprida no primeiro século. Este livro sustenta uma
visão preterista.

O que é um idealista?
Idealista é alguém que acredita que a profecia do Apocalipse é
simbólica e se aplica a toda a história humana de um modo não
literal.

Essas escolas de pensamento restringem-se ao Apocalipse?


Não. As diferenças são vistas mais claramente lá, mas geralmente
se aplicam a outras profecias de natureza semelhante, como se
pode encontrar em Mateus 24 ou Isaías 52.
O que é o milênio?
Milênio é um período de mil anos de paz profetizado pelo apóstolo
João em Apocalipse 20. É importante destacar que há vários
intérpretes não tomam isto como mil viagens literais em torno do sol.
O milênio são os mil anos de paz que os cristãos desfrutam
enquanto lutam.

Como posso memorizar as diferentes escolas de pensamento?


O que significam os vários termos?
A maneira mais fácil de lembrar o que os nomes significam é
concentrar-se no prefixo antes da palavra milênio. Esse prefixo
conta quando o retorno de Cristo é aguardado com respeito ao
milênio. Mas é importante lembrar de que todas as escolas
evangélicas de pensamento listadas abaixo sustentam firmemente a
crença no retorno literal e físico de Cristo no final da história.

O que é pré-milenarismo histórico?


Pré-milenarismo histórico é a visão de que Cristo retornará antes do
milênio, e que reinará na terra durante o milênio. A palavra histórico
é usada porque alguns dos primeiros Pais da Igreja (como Justino
Mártir) defenderam essa posição.

O que é pré-milenarismo dispensacionalista?


Pré-milenarismo dispensacionalista é uma forma variante de
prémilenarismo surgida no século XIX e que hoje é sustentada por
uma grande parcela dos evangélicos americanos. Um número ainda
maior de cristãos que não se chamariam dispensacionalistas
apanharam, no entanto, algumas suposições distintamente
dispensacionais (como se vê em seus pressupostos sobre o
Armagedon, a Besta, 666, o Anticristo, etc.). Esta é a visão de que
Cristo retornará antes do milênio, mas há muitos aspectos
adicionais para essa posição além do que se pode encontrar no
prémilenarismo histórico.

O que é único no pré-milenarismo dispensacionalista?


Os distintivos do dispensacionalismo são numerosos. Entre outros,
é que haverá uma vinda secreta de Cristo sete anos antes do
milênio, e um outro é que Cristo presidirá um Estado judaico
restabelecido durante o milênio, com sacrifícios no templo e tudo
mais.

O que é o amilenarismo?
O amilenarismo afirma que não haverá um milênio terreno literal. O
prefixo, portanto, é de negação. O amilenarista não crê que haverá
um milênio literal na terra. Em vez disso, ele interpreta o milênio em
um sentido espiritual, com os santos glorificados reinando com
Cristo no céu. Assim, estamos no milênio agora, mas em um sentido
espiritual.

O que é pós-milenarismo?
Pós-milenarismo é a visão de que Cristo retornará no final do
milênio. O milênio geralmente é entendido como uma era de ouro da
expansão do evangelho, em que a Grande Comissão é cumprida.
No final desse período, quando todas as nações forem trazidas ao
discipulado de Cristo, ele retornará e destruirá o último inimigo, que
é a morte. A posição defendida neste livro tem sido uma posição
pós-milenar.
A maioria dos pós-milenaristas hoje afirmam que o milênio está
acontecendo agora, o que significa que o milênio não significa
literalmente mil anos. Alguns pós-milenaristas do século XIX
sustentavam que o milênio tinha uma duração literal de mil anos, e
que eram os últimos mil anos da era da Igreja, a qual deveria durar
para além desses mil anos.

Algum dos termos acima pode ser combinado?


Sim. Os pré-milenaristas de todos os matizes são futuristas. Eles
acreditam que as profecias dos “tempos finais”, em grande parte,
estão por se cumprir. Pós-milenaristas e amilenaristas podem ser
historicistas ou preteristas. Ao mesmo tempo, a maioria dos pós-
milenaristas são preteristas, e a maioria dos amilenaristas é
idealista.
Leituras adicionais
Apêndice B

Campbell, Roderick. Israel and the New Covenant. Tyler: Geneva


Divinity School Press, 1980.
Chilton, David. The Days of Vengeance. Fort Worth: Dominion
Press, 1987.
Chilton, David. The Great Tribulation. Fort Worth: Dominion Press,
1987.
Chilton, David. Paradise Restored. Tyler: Reconstruction Press,
1985.
Davis, John Jefferson. A vitória do Reino de Cristo. Brasília:
Monergismo, 2009. Este é um tratamento introdutório muito curto do
assunto. Uma leitura rápida e boa para uma orientação resumida.
DeMar, Gary. Last Days Madness. Brentwood: Wolgemuth & Hyatt,
1991. Neste livro, DeMar faz um bom trabalho ao mostrar o quanto a
loucura especulativa afetou nossas visões escatológicas.
Gentry, Ken. Before Jerusalem Fell. Tyler: I.C.E., 1989. Este livro
advoga em favor de uma data não tardia para o Apocalipse — isto é,
que o livro foi escrito antes da destruição do Templo em 70 d.C. Se
tivesse sido escrito depois disso, seria difícil torná-lo uma “profecia”
de algo que já aconteceu.
Gentry, Ken. The Greatness of the Great Commission. Tyler: I.C.E.,
1990.
Gentry, Ken. He Shall Have Dominion. Tyler: I.C.E., 1992. Esta é a
abordagem introdutória mais completa disponível das questões
escatológicas.
Hardyman, Julian. Glory Days. Nottingham: Inter-Varsity Press,
2006.
Hegeman, David. Plowing in Hope. Moscow: Canon Press, 2007.
Cuidadosa introdução a uma abordagem bíblica e afirmativa do
mandato cultural.
Herman, Arthur. A história de decadência na história ocidental. Rio
de Janeiro: Record, 1999.
Kik, J. Marcellus. An Eschatology of Victory. Phillipsburg: P&R
Publishing, 1991. Esta é uma abordagem restrita ao Apocalipse e às
seções apocalípticas de Mateus.
Leithart, Peter. Against Christianity. Moscow: Canon Press, 2003.
Neste livro breve, Leithart mostra como usamos vários truques e
“ismos” para espiritualizar o reino das mãos de Cristo. Que bom que
não funcionou.
Mathison, Keith. Postmillennialism. Phillipsburg: P&R Publishing,
1999. Esta é a melhor abordagem introdutória disponível das
questões escatológicas básicas.
Symington, William. Messiah the Prince. Filadélfia: Christian
Statesman Press, 1884. Um bom exemplo do pensamento pós-
milenarista do século XIX.
Wright, N.T. Surpreendido pela esperança. Viçosa, MG: Ultimato,
2009. Wright não usa nenhum vocabulário escatológico padrão, mas
sua abordagem de várias passagens-chave é muito útil.

[1]
C.S. Lewis, The Weight of Glory (Grand Rapids: Eerdmans, 1949), p. 3.
[2]
Para uma história abrangente desta visão, vide Steve Jeffery, Michael Ovey e Andrew
Sach, Pierced for Our Transgressions: Rediscovering the Glory of Penal Substitution
(Wheaton: Crossway Books, 2007).
[3]
“In war there is no substitute for victory” [Na guerra não há nenhum substituto para a
vitória], frase do general americano Douglas MacArthur. [N. do T.]
[4]
Neste contexto, “sem demora” não significa “repentinamente”, mas “em breve” e “de
forma iminente”.
[5]
Ambrose Bierce, The Devil’s Dictionary (Nova Iorque: Dover Publications, 1958), p. 113.

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