Você está na página 1de 6

Federico Palomo – A Contra Reforma em Portugal (1540-1700)

I Introdução: Confessionalização e disciplinamento social como categorias para


a história religiosa da Época Moderna

Nos séculos XVI e XVII em Portugal, as crenças consideradas heterodoxas pela


Igreja Católica transformaram-se em objeto de extremo interesse, pois deveriam ser, a
seu ver, combatidas e norteadas pela fé católica. Isso consistiu num esforço feito pelos
eclesiásticos de controlar os territórios portugueses e em especial aqueles mais afastados
do calor dos centros urbanos, onde eles tinham maior influência, lançando-se em
direção à população campesina. Por outro lado, a presença de ordens religiosos nesse
controle, em especial os jesuítas, fez com que o Santo Ofício operasse de uma forma
cada vez mais expansiva.1 A pedagogia repressiva, implementada através de castigos e
suplícios foi acompanhada da pedagogia formativa, com vistas a estabelecer a
propagação da fé católica nestes territórios.

Com relação ao termo Contra-Reforma, Palomo afirma que ele é utilizado sem o
seu caráter ideológico que tem sido utilizado corriqueiramente pela historiografia. A
escolha se deu em razão do recorte temporal de análise, os séculos XVI e XVII e por ter
se centrado no reino, e não o Império. Por outro lado, os conceitos de
confessionalização e disciplinamento social respondem à análise sobre a atuação das
diferentes confissões na Europa ocidental no período. Os termos surgiram pelo esforço
de superar as análises que escanteavam os aspectos culturais da análise histórica. Foi o
historiador alemão Gerhard Oistreich que cunhou a ideia de uma ação disciplinar que
norteou processos dos mais variados tipos, políticos, religiosos, sociais, culturais.
Depois dele, foram outros dois historiadores alemães, Wolfgang Reinhard e heinz
Schilling, que acentuaram o papel do disciplinamento nas configurações políticas do
Dezesseis e Dezessete através do conceito de confessionalização.2

Esse conceito nega a ideia presente nas categorias de Reforma e Contra-


Reforma, principalmente pela proximidade da atuação política de ambas as esferas
religiosas que se referem a elas, e entendê-las como processos de confesionalização
católica, luterana e calvinista.
1
P.10
2
P.12 .
“Procurava-se, deste modo, a adesão das populações à realização de projectos
que tinham essencialmente um caráter político, propiciando, ao mesmo tempo, o reforço
das identidades territoriais, em função de critérios de caráter religioso ou confessional.”3

Fica a questão de pensar a posição dos conservadores com relação a este


argumento que reduz, inclusive de forma bastante justificada, a atuação religiosa a uma
esfera essencialmente política. Mas, a ação disciplinadora das autoridades eclesiásticas,
dividida em três vertentes, a instrucional, a comportamental e a reformulação dos ritos,
foram relevantes durante os séculos XVI e XVII. Inclusive, a perspectiva religiosa-
confssional era, ao menos à época da escrita do texto, centrada na Itália e na Europa
central. Em outros países, “a historiografia francesa, bem como a espanhola e a
portuguesa, têm vindo a mostrar uma certa relutância ou impermeabilidade – não
desconhecimento – face aos pressupostos de interpretação que fornecem ambas as
noções.”4 Outro aspecto, que serviu de critica à teoria proposta, é o âmbito de alcance
dos projetos confessionais, por isso a necessidade da utilização da ideia de escalas, de
níveis, graus, de enraizamento de ambos os projetos.

II: As bases da confessionalização católica em Portugal: os poderes – a


monarquia portuguesa e a definição do Portugal católico

Critérios religiosos advindos do catolicismo serviram, assim como em outros


lugares, para Portugal como elemento de pertencimento à sua comunidade política,
durante a Época Moderna. O caráter local do estatuto de limpeza de sangue, por
exemplo, servira de distintivo dos outros grupos que professavam outras religiões, ou
que eram mantidos em suspeição pela sua recente chegada à comunidade católica. A
ideia de uma intervenção providencialista nas ações dos portugueses durante o período
da Restauração, isto é, durante meados do Dezessete, estava presente, não obstante,
segundo Palomo, em Portugal do Dezesseis. Este esforço com vistas a unir aspectos
religiosos inerentes ao catolicismo com a figura do monarca português teria sido feito
também, e antes, pela monarquia espanhola, na figura de Felipe II, o que acabou,
posteriormente, por potencializar o poder e a influência política deste.5

Como não poderia ser diverso, o pensamento eclesiológico dos teólogos


portugueses foi determinante neste constructo que Palomo denomina identitário. Teria
3
P.12
4
P.13
5
p..18
sido os escolásticos os teóricos da dupla concepção de organização política concebida
ainda na Idade Média que alcançaria a modernidade: o modelo individualista e o
corporativo. O primeiro, de caráter racionalista, voluntarista e igualitário, oposto ao
segundo, foi defendido por Scoto e Guilherme Ockham, este então crítico do principal
representante do último, São Tomás, defensor do modelo escatológico, afetivo
comunitário e desigual de organização da sociedade. Para o Portugal do século XVI e
XVII, o jesuíta Francisco Suárez, representante da Segunda Escolástica salmantina no
reino, é o seu principal expoente.6

Essa visão, comunitária, universal, que conferia um sentido unívoco para a


ordem social estabelecida com base em desígnios divinos, que parte de premissas
tomistas, é fundamental para entender, por exemplo, a proeminência de aspectos morais
dentro da sociedade lusitana, neste exemplo, que nortearia ações políticas não só no
reino, mas no império de um modo geral. 7 Porém, era admitida a necessária divisão das
ações dentro da lógica que aquele corpo social possuía para funcionar, e as suas
instituições viram-se obrigadas a exigir uma autonomia politica e jurídica para atuar,
isso expressão, por sua vez, da própria maneira como a sociedade se organizava.

O monarca se via, portanto, obrigado a não exercer um poder absoluto, ao passo


que era compelido a conferir às diversas instâncias, municípios, universidades nobreza,
o exercício de suas atribuições “naturais”. Assim, a moral católica expõe-se
proeminentemente, pois “constituía o alicerce da concepção comunitária que
caracterizou as sociedades do Antigo Regime, nas quais, em contraponto com a
importância actual do individuo, era atribuído um peso maior às estruturas em que a
8
pessoa estava inserida (família e comunidade).” Tão importante foi essa concepção
que ela engendraria uma organização social baseada em princípios afetivos, tais como o
“amor” e a “amizade”, que não eram entendidos a partir da ideia comum que tais
conceitos recebem atualmente, mas sim como elementos aglutinadores, de coesão
social, responsáveis pela estabilidade, “prescrevendo ainda um exercício ‘amoroso’ da
autoridade, bem como a preferência pelo recurso a certas formas de regulação das
relações sociais, como o perdão, a graça, a restituição, etc.”p.20 Movimento diferente
do visto em outras sociedades, as quais não se restringiam em atuar em estrita
conformidade com a moral católica, aceitando outras formas de atuação política.
6
P.19.
7

8
P.20
Os instrumentos do poder régio

O que decorre dessa condição relacional em Portugal é que a Igreja vê em sua


moral um papel que se sobressai e condiciona o âmbito de atuação régia. Segundo
Palomo, a atuação régia em Portugal buscou o aumento de sua influência no que toca
aos assuntos relacionados à Igreja, e, para tanto, ela incidiu sobre as suas hierarquias,
impossibilitando uma maior intervenção externa, a exemplo de Roma, ou da hierarquia
das ordens religiosas existentes no reino. Mas não só isso, a recíproca é verdadeira e
denota a relação complexa entre ambas. A escolha de bispos e superiores por parte da
monarquia seria um exemplo disso. Deste movimento pôde ser visto o surgimento da
Mesa da Consciência, a qual “foi, de facto, um instrumento eficaz de intervenção sobre
a própria jurisdição eclesiástica, tendo sido originariamente pensada como instância
através da qual se podia garantir a primazia da justiça régia sobre a eclesiástica.”P.24.
Após isso, também se viu em 1536 a criação do Santo Ofício, semelhante ao tribunal
instaurando na Espanha em 1478, estimulado pela imensa quantidade de conversos no
reino. Esta instituição tinha, de um lado, a ratificação de sua atuação advinda do papado
e, por outro lado, o apoio do monarca português que, após um período de intensa
dependência do poder régio, acabou por alcançar certa autonomia a ele. Isso seria
expressão da proximidade entre as deliberações romanas e a política confessional
presente no reino português.p.27. Isso seria a força da ortodoxia religiosa presentes na
corte a partir da presença intensa de teólogos desde o inicio do século XVI.

Assim, teria sido o cardeal D. Henrique a personagem principal da conformação


de uma política confessional em Portugal do século XVI. Palomo afirma que a sua
atuação não esteve afastada das decisões que nortearam a confessionalização noutras
partes da Europa no período. A expressão disso seria a de definição dos paradigmas
teológicos que norteavam a atuação religiosa em Portugal a partir das deliberações do
Concilio de Trento entre 1545 e 1563, voltados para a defesa da ortodoxia confessional
em diversas esferas de poder. Quando da influência espanhola sobre Portugal, já na
metade do século XVI, isto não resultou em grandes diferenças quando se pensa na
atuação institucional da Igreja.

O poder eclesiástico: Agentes e instituições. Dispositivos de controlo de coerção

Além do Santo Ofício, objeto de estudos privilegiado pela historiografia que se


debruça sobre a relação entre a esfera religiosa e a atuação política, outras instituições
tiveram papel fundamental nesse processo. O poder episcopal e as ordens religiosas são
exemplos disso.

O poder episcopal

O reforço da moralização da atuação bispal com relação à sua atuação de pastor


elevou-se durante o início do Período Moderno em Portugal. Isso tentara responder às
exigências de uma hierarquia eclesiástica mais atuante no reino. Escritos teológicos no
sentido de conformar uma personalidade ideal dos bispos portugueses, que
influenciariam nas deliberações em Trento, inclusive, nesse interim surgem, a exemplo
do tratado de Bartolemé de Carranza e do arcebispo de Braga, Bartolomeu dos Mártires.
Aliado a esse crescendo das exigências em torno da figura do bispo, outros mecanismos
foram pensados para aumentar o seu âmbito de atuação. O Concilio de Trento reforçou,
para isso, a sua autoridade para que as reformas na Igreja se seguissem. Novos
regimentos foram redigidos nesse sentido. Junto a eles, as visitações tornaram-se um
instrumento de atuação privilegiado dos bispos no controle de suas dioceses. Ela
possuía três funções primordiais, a fiscalização da estrutura física das paróquias, a
vigilância mesma do clero presente nelas, e o controle sobre o comportamento religioso
e moral da população.9 As visitações em Portugal assumiram um papel de protagonismo
maior do que em outras partes da Europa católica, pois ela fiscalizava aspectos que iam
além da vigilância sobre as práticas religiosas. Os pecados/delitos visualizados durante
as visitações de caráter privado, sendo reconhecidos no momento da confissão, por um
lado, restringiam-se ao âmbito de atuação episcopal, e os que assumiam elementos
heréticos, por sua vez, caiam sobre a atuação da Inquisição.

Assim, “a visita permitiu, sobretudo, desenvolver uma acção sistemática de


controle do território diocesano e dos agentes eclesiásticos aí presentes, bem como de
vigilância e normalização das condutas religiosas e morais dos fiéis.” P.38.

As ordens religiosas auxiliavam nesse processo através da sua entrada em


territórios que estavam mais distantes do âmbito de atuação do arcebispado. No entanto,
aos bispos destinou-se a atuação na fiscalização dos cristãos-velhos enquanto que para a
Inquisição deixou-se o trato para com os neófitos.

A Inquisição

9
P. 36.
Foi através de D. João III em 1536 que o Tribunal instalou-se em Portugal com a
aprovação de Clemente VII. Porém, foi através da figura do cardeal D. Henrique, que se
tornaria Inquisidor Geral, que o tribunal ganhou seus traços mais distintivos. Este tópico
parte, segundo Palomo, dos estudos feitos por Francisco Bethencourt sobre a instituição
portuguesa. Com relação à Inquisição espanhola, a figura do Inquisidor Geral português
possuía uma maior proeminência na escolha de seus deputados, uma vez que diferente
de lá o monarca era apenas consultado sobre a pertinência ou não dos deputados
escolhidos por ele. O Santo Oficio encarnou uma força centrípeta relativa aos tribunais
de distrito. Neles, as heresias eram perseguidas e combatidas, e alargou-se o âmbito de
atuação de tribunais, a exemplo do que se achava em Lisboa, para outras partes do
império, a exemplo do Brasil. 10 Os inquisidores responsáveis por atuar nestes tribunais,
geralmente graduados em Direito canônico, eram nomeados pelo inquisidor geral, o que
garantia esse aspecto centralizado. Tinham a ajuda de comissários e dos chamados
familiares, que se tratavam de leigos que eram responsáveis, por exemplo, pela prisão
de suspeitos de crimes contra a fé. As heresias constituem um objeto interessante de
análise, pois o alargamento da semântica por trás deles conferiu um poder de atuação
cada vez maior ao Santo Ofício. A Inquisição, assim como o episcopado, valeu-se de
visitações e das denúncias feitas durante elas para a expansão do controle sobre os
comportamentos.11

10
P. 44.
11
P.46

Você também pode gostar