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Ensaios sobre
a América Portuguesa
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Ensaios sobre
a América Portuguesa

ORGANIZADORES:
Carla Mary S. Oliveira
Mozart Vergetti de Menezes
Regina Célia Gonçalves

PREFÁCIO DE
Adriana Romeiro

João Pessoa - PB
2009
4

Copyright © 2009 - Organizadores


ISBN 978-85-7745-403-7

Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira

Ilustração da Capa: America, desenho atribuído a Marten de Vos, c. 1600;


pena e nanquim sobre papel; ø 12,5 cm.
Acervo: The University of Michigan Museum of Art, Dearborn, EUA.

Contato com os autores: <ppgh@cchla.ufpb.br>

Impresso no Brasil - Printed in Brazil

Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional,


conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

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Dados de Catalogação na Publicação


Biblioteca Central - UFPB - Universidade Federal da Paraíba

E59 Ensaios sobre a América portuguesa/


Carla Mary da Silva Oliveira; Mozart Vergetti de Menezes;
Regina Célia Gonçalves (organizadores). - João Pessoa:
Editora Universitária/ UFPB, 2009.

ISBN 978-85-7745-403-7
206 p.: il. - inclui notas.

1. Brasil - História - Período Colonial. I. Oliveira, Carla Mary S.


II. Menezes, Mozart Vergetti de. III. Gonçalves, Regina Célia.

UFPB / BC CDU 981


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SUMÁRIO
Apresentação ....................................................................................................................... 7

Prefácio ................................................................................................................................. 9
Adriana Romeiro

Jesuítas e missões: representações das fronteiras na Capitania do Rio Grande ..... 23


Maria Emilia Monteiro Porto

Povos indígenas no período do domínio holandês:


uma análise dos documentos tupis (1630-1656) ........................................................... 39
Regina Célia Gonçalves, Halisson Seabra Cardoso e João Paulo C. R. Pereira

Vidal de Negreiros: um homem do Atlântico no século XVII .....................................53


Ângelo Emílio da Silva Pessoa

Festa e memória da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graças


pela Restauração da Capitania de Pernambuco contra os holandeses ..................... 67
Kalina Vanderlei Silva

Patrimônio, territorialidade, jurisdição e conflito na América


portuguesa: Pernambuco, século XVIII .......................................................................... 81
George F. Cabral de Souza

Capitães Mores das ordenanças de índios: novos interlocutores nas


vilas de índios da Capitania do Rio Grande .................................................................... 97
Fátima Martins Lopes

Contatos, conflitos e redução: trajetórias de povos indígenas e índios


aldeados na Capitania da Paraíba durante o século XVIII ........................................... 115
Ricardo Pinto de Medeiros

Celebrando a monarquia nos extremos da América portuguesa:


Natal e a Colônia do Sacramento no século XVIII ........................................................ 131
Paulo César Possamai

Alegoria e status na Paraíba colonial: o forro da Casa de Orações


dos Terceiros no Convento de Santo Antônio ............................................................. 149
Carla Mary S. Oliveira

Ilustração, população e circuitos mercantis:


a Capitania da Paraíba na virada do século XVIII ........................................................... 161
Mozart Vergetti de Menezes e Yamê Galdino de Paiva
6

O comércio colonial e suas relações complementares:


Santos, Bahia e Pernambuco, 1765-1822 .......................................................................... 181
Denise A. Soares de Moura

A oficina dos ritos: artífices no Arsenal de Guerra de Pernambuco ....................... 197


Acácio José Lopes Catarino
7

APRESENTAÇÃO

ntregamos agora ao leitor não apenas um livro: Ensaios sobre


a América Portuguesa representa um projeto coletivo regional,
pois reúne textos de historiadores que vêm se articulando,
desde 2005, no intuito de estabelecer uma rede de pesquisa
entre os grupos vinculados aos programas de pós graduação
em História das Universidade Federais da Paraíba, do Rio Grande do Norte e
de Pernambuco e que se dedicam ao universo de Clio delimitado pelos
séculos XVI e XVIII no Novo Mundo.
As dificuldades inerentes a este tipo de intercâmbio vêm sendo
superadas cotidianamente, e desde o início se compreendeu que havia a
necessidade de ampliar os contatos entre os profissionais e estudantes
dedicados a este campo e tornar visível a produção destes grupos de
pesquisa, o que se concretizou, inicialmente, através da organização do I
Encontro Nordestino de História Colonial, realizado em João Pessoa, em
setembro de 2006. O evento e seus resultados extrapolaram
significativamente as perspectivas iniciais, contando com a participação de
pesquisadores de todo o Brasil e também de Portugal e de Cabo Verde.
Com o II Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Natal em
setembro de 2008, esse caráter ampliado se consolidou, e mais uma vez as
expectativas superaram, em muito, o que se imaginava para o evento.
Esta coletânea vem a público no momento em que nos preparamos
para a realização do III Encontro Internacional de História Colonial, em Recife,
em setembro de 2010. É um livro que resulta não só destes contatos, trocas
e articulações acadêmicas que vimos consolidando nos últimos quatro anos,
mas que também aponta para a expressiva ampliação das possibilidades
para o estabelecimento de uma rede de pesquisa de alcance nacional no
campo da História Colonial, com seu foco estabelecido na região que
constituía as antigas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, fato significativo
no cenário da historiografia brasileira contemporânea. Além disso, o projeto
de cooperação acadêmica recentemente estabelecido entre os programas
de pós graduação em História da Universidade Federal da Paraíba e da
Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento da Capes e que
se estenderá até 2012, permitiu que convidássemos a professora Adriana
Romeiro para participar desta publicação, abrindo-a com seu prefácio.
8

Desse modo, leitor, esperamos que os ensaios aqui apresentados se


constituam não como um ponto de chegada, mas sim numa partida para
voos mais altos e instigantes, tanto para os pesquisadores que os
apresentam, como também para a rede de grupos de pesquisa que estamos
consolidando entre Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco.

Os organizadores.
João Pessoa, novembro de 2009.
9

PREFÁCIO

presente livro reúne um conjunto de ensaios que abordam


diferentes aspectos da história das capitanias do Norte, entre
os séculos XVI e XIX, proporcionando, ao mesmo tempo, um
excelente panorama das principais tendências teóricas e
metodológicas vigentes na atual historiografia brasileira. Sob
a multiplicidade dos temas abordados – que vão desde as festas barrocas
em Pernambuco, no século XVII, até as representações sobre a fronteira,
na Paraíba colonial, passando pelo papel do porto de Santos no comércio
entre o centro-sul e as capitanias do Norte entre fins do século XVIII e início
do XIX –, é possível acompanhar os contornos da verdadeira revolução
historiográfica em curso, cujos impactos e consequências ainda estão por
estudar.
Uma série de fatores confluiu para propiciar essa espécie de tempo
forte que a historiografia brasileira vive hoje. A explosão dos objetos de
estudo, seguindo a trilha inaugurada pela Escola dos Annales, teve entre
nós uma repercussão extraordinária, coincidindo com a consolidação dos
Programas de Pós-Graduação junto às Universidades brasileiras e a
consequente multiplicação do contingente de pesquisadores, acelerando
o processo de expansão dos temas de estudo, em curso desde a década de
70. As novas gerações lançaram-se com vigor ao estudo de aspectos até
então desconhecidos da história colonial, subvertendo as hierarquias
tradicionais sobre os gêneros, interessando-se tanto pelo domínio do
imaginário e da cultura quanto pelas minúcias mais áridas do funcionamento
das instituições políticas, promovendo a renovação da biografia e o retorno
triunfante da história econômica, revigorada, sobretudo, nas últimas
décadas.
No Brasil, a explosão dos objetos não acarretou, como apontam os críticos
da Escola dos Annales, a fragmentação da história, vítima da multiplicação
desordenada das áreas de interesse, da especialização excessiva e da
desarticulação dos tempos históricos, degenerando numa historiografia
alheia à percepção do todo. Sob este aspecto, é bem singular a trajetória da
historiografia brasileira: se conquistamos um olhar mais afeito ao particular
e ao local, não é menos verdade que o conceito de império, inspirado na
clássica obra de C. R. Boxer e na tradição da historiografia anglosaxônica,
10 ADRIANA ROMEIRO

privilegiou o estudo das conexões do mundo colonial com uma entidade


mais ampla.
Longe da noção de um Império homogêneo e sistêmico, como se Macau
e Salvador, por exemplo, pudessem constituir experiências de colonização
similares, o que está em jogo é, sobretudo, a dinâmica da circulação de
valores, práticas e homens numa unidade mais vasta, em que as histórias se
conectam, as regiões se articulam, as experiências se acumulam. A “voga
do Império”, tomando de empréstimo a expressão de Laura de Mello e
Souza, oferece-nos uma espécie de imenso ponto de fuga, a partir do qual
se redimensiona a nossa perspectiva histórica. Para além das possibilidades
de uma história comparada, capaz de articular realidades tão distantes,
como o Oriente e a América, a perspectiva do Império colocou em evidência
as simetrias e assimetrias, privilegiando as relações entre o centro e a
periferia, o global e o local, a conjuntura e o evento, alterando
significativamente as temporalidades de nossos temas de pesquisa, na
medida em que a própria experiência do local é inseparável da experiência
global tecida em escala imperial.
A par da dimensão imperial, os novos estudos incidem sobre o peso das
mentalidades do Antigo Regime na organização das sociedades coloniais,
colocando em relevo os elementos comuns entre a Europa e as conquistas
ultramarinas. A percepção da existência de realidades comuns em todo o
Império português, aproximando as regiões mais afastadas por meio de
instituições administrativas, comerciais e políticas, não estava ausente na
tradição historiográfica que se estabeleceu a partir de meados do século
XX. Autores da estirpe de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre
dedicaram toda uma vida ao estudo do nosso legado português, de uma
perspectiva inovadora, posto que sensível aos complexos culturais que
mediaram o processo de transplantação da cultura ibérica nos trópicos:
valores e práticas políticas, religiosas e econômicas confluíram para a
construção de uma América portuguesa – ainda que não completamente
portuguesa.
Um dos principais efeitos da retomada do conceito de Império diz
respeito, sem dúvida, à natureza das relações entre colônia e metrópole.
As interpretações tradicionais tenderam a reforçar o jogo das dicotomias,
tributárias das tradições historiográficas que, ainda no século XIX, no
contexto de afirmação da nação brasileira, haviam estabelecido o axioma
do conflito essencial entre o centro e a periferia, separados de forma
irreconciliável por interesses contraditórios. A fórmula “colônia vs.
metrópole” assumiu diferentes conotações desde então, instrumentalizada
no bojo de interpretações teóricas radicalmente opostas, aproximando
historiadores nativistas de pensadores marxistas, orientados pelo parti pris
teórico segundo o qual o conflito não só perpassava todas as esferas da
PREFÁCIO 11

vida cotidiana, mas organizava a própria sociedade.


A dimensão imperial subverteu o princípio do antagonismo. Uma série
de estudos apontou para a lógica particular das sociedades de Antigo
Regime, estruturadas em torno da economia do dom, nas quais o poder se
distribuía em cadeias, desdobrando-se da figura do monarca em direção
aos vassalos, fragmentando-se em complexas redes clientelares. À imagem
clássica de uma monarquia absolutista, constituída por um poder
centralizado que a tudo abarcava, num movimento centrípeto, sobrepôs-
se a imagem de uma monarquia descentralizada, permeada por múltiplos
poderes que, organizados em cadeia, se estendiam até os rincões mais
distantes do Império, aproximando homens, emaranhando interesses
públicos e privados, imiscuindo-se nas práticas políticas e econômicas. O
império do político sobre todas as esferas da existência, característica
principal destas sociedades, impôs-se também sobre a economia, submetida
aos privilégios, às mercês e aos dons que mediavam as relações entre os
homens. Tal configuração política não só permitiu a formação de elites
locais, encasteladas nos cargos, postos e instituições da administração, a
exemplo das câmaras, mas também a fusão dos interesses metropolitanos
aos interesses destas elites, que souberam explorar as possibilidades de
enriquecimento, instrumentalizando-o para galgar posições sociais mais
destacadas. As teses tradicionais sobre a opressão da metrópole sobre seus
vassalos ultramarinos, ancorada no conceito de Pacto Colonial, foram
rechaçadas e substituídas pela imagem de elites integradas à Metrópole e
ao Império, inseridas nos valores e práticas do Antigo Regime, no interior
dos quais construíram um espaço de diálogo e também de confronto.
É bem verdade que, muitas vezes, os historiadores têm se mostrado
mais afeitos à perspectiva da identidade entre colônia e metrópole do que
às rupturas reveladoras do conflito, tendendo, de forma inadvertida, a
contemplar o vasto e vário Império português sob uma ótica excessivamente
idealizada, pouco compatível com a visão realista de seus administradores,
que jamais se deixaram iludir pela fantasia de um Império perfeitamente
centrado em Lisboa, como uma projeção fiel das formulações ali elaboradas.
Se hoje é possível constatar a existência de uma identidade comum entre
colônia e metrópole, sua construção não foi, porém, pacífica, implicando
um processo mediado tanto pela acomodação e negociação, quanto pelo
confronto e ruptura.
O revival da história política nos últimos anos orientou-se pela
investigação sobre as formas de exercício e reprodução do poder
metropolitano – entendido na sua acepção mais ampla e não meramente
política – , focalizando os mecanismos através dos quais o mundo ibérico se
projetou nas conquistas ultramarinas. No emaranhado das redes que se
disseminavam a partir de Portugal, circulavam - em múltiplas rotas e caminhos
12 ADRIANA ROMEIRO

– mercadorias, homens, idéias e práticas, veículos privilegiados de difusão


das mentalidades ibéricas, tais como a instituição das câmaras, as festas
públicas, o comércio, as manifestações artísticas e as devoções católicas.
Nenhum mecanismo, contudo, teve tanta importância na constituição de
uma identidade comum quanto a lógica da sociedade portuguesa do Antigo
Regime, fundada na economia do dom, nos privilégios e nas hierarquias.
Tal configuração social estaria na origem, segundo alguns autores, não só
da reprodução da sociedade do Antigo Regime nos trópicos, mas da relativa
unidade do Império, todo ele sedimentado e alicerçado em torno da difusão
destes valores.
A guinada historiográfica dos últimos anos parece derivar de um
movimento pendular: depois de uma longa tradição baseada no
antagonismo irreconciliável entre colônia e metrópole, as novas tendências
tendem a privilegiar as conexões e as convergências, revelando opções
teóricas que são históricas também, posto que inseparáveis do presente.
Talvez um dos maiores desafios que se impõem ao historiador, em nossos
dias, seja perscrutar, para além de uma identidade comum e da imagem de
um Império mais ou menos coeso, a dimensão dos conflitos que perpassaram
o seu processo de constituição, desvelando as tensões entre a periferia e o
centro, entre o local e o global, e – por que não ? – entre a colônia e a
metrópole. A zona cinzenta, situada entre as projeções ideológicas e as
injunções da realidade histórica, é o locus privilegiado para a compreensão
da complexidade da obra de colonização em todo o Império. Ao historiador
cabe indagar, por exemplo, como os poderes locais se impuseram frente à
autoridade da Coroa, construindo um espaço de negociação efetiva; como
os valores do Antigo Regime foram subvertidos na cultura política dos
potentados; como os antagonismos entre os modelos europeus e as
populações indígenas se processaram nas regiões de fronteira; indagar,
enfim, sobre os processos envolvidos na constituição de uma sociedade
colonial e escravista, em muito diferente das sociedades européias da Época
Moderna, malgrado o peso da herança ibérica.
Os ensaios que se seguem iluminam diferentes aspectos desta sociedade,
propondo novas interpretações e leituras, inspiradas nas atuais tendências
historiográficas, com as quais mantêm um diálogo fecundo e original. Em
conjunto, todos eles ensejam um esforço de revisão da historiografia
tradicional, apoiando-se numa sistemática pesquisa de fontes e em
sofisticados referenciais teóricos.
A problemática do comércio e seu papel como fator de articulação entre
as diferentes regiões do Império, aproximando centro e periferia através
de suas redes e circuitos, encontra-se aqui contemplada por dois ensaios.
O primeiro, sob o título “Ilustração, população e circuitos mercantis: a
Capitania da Paraíba na virada do século XVIII”, de autoria de Mozart Vergetti
PREFÁCIO 13

de Menezes e Yamê Galdino de Paiva, oferece um estudo da dinâmica


econômica, na capitania da Paraíba, entre os fins do século XVIII e primeiros
anos do XIX, relativizando as teses tradicionais sobre o isolamento da região.
Com base em mapas de importação e exportação, fruto do trabalho de
capitães mores ilustrados, os autores desvelam um cenário caracterizado
pelo vigor da agricultura e da pecuária, inserido nos circuitos mercantis que
se estendiam até o Rio Grande do Norte, o Ceará e Pernambuco, contexto
onde o porto da Paraíba ocupava um importante papel de escoamento da
produção local. Dessa forma, os sertões da Paraíba conectavam-se aos
principais portos das capitanias do Norte, ao contrário da tradicional imagem
de atraso econômico, indicando uma economia vigorosa, com grandes
potencialidades de crescimento, principalmente alavancado pela agricultura
e pecuária.
Em chave interpretativa semelhante, Denise A. Soares de Moura
investiga, no ensaio “O comércio colonial e suas relações complementares:
Santos, Bahia e Pernambuco”, os circuitos mercantis entre o centro-sul e
as capitanias da Bahia e Pernambuco, no período entre 1765 e 1822,
mostrando a integração dessas regiões com Portugal e os principais centros
mercantis europeus, sobretudo depois da abertura dos portos em 1808. De
acordo com a autora, o porto de Santos desempenhou um papel importante
nas relações mercantis complementares entre o centro-sul e as capitanias
do norte, sobretudo na distribuição das mercadorias européias, asiáticas e
indianas para a região centro-oeste do Brasil. Na nova conjuntura política, a
vila de Santos consolida-se como porto exportador e importador, sobretudo
de gêneros alimentícios, essenciais ao abastecimento interno de regiões
como Minas Gerais, atuando como uma praça comercial complementar à
do Rio de Janeiro.
É também sob a perspectiva da circulação e articulação que o gênero
biográfico está aqui representado, no ensaio “Vidal de Negreiros: um
homem do Atlântico no século XVII”, de Ângelo Emilio da Silva Pessoa.
Ultrapassando os limites da biografia convencional, o autor, inspirado nos
recentes estudos sobre a trajetória dos funcionários administrativos no
universo ultramarino, elege uma personagem a um só tempo atípica e típica.
Atípica pela ascensão social vertiginosa em meio a uma sociedade pautada
por critérios de hierarquização social: nascido na Paraíba e, a julgar pelos
relatos, em uma família bastante modesta, Vidal de Negreiros alcançou
uma posição destacada como funcionário colonial, à frente do governo de
regiões estratégicas no Império. Seu nome viria depois a figurar no panteão
nativista da nação, alçado à condição de herói nas lutas de Restauração.
Aliás, a trajetória incomum de Vidal de Negreiros se iniciou com a brilhante
atuação militar contra os holandeses, feito que lhe renderia honras e mercês
significativas, como a indicação para o governo do Maranhão e, depois, de
14 ADRIANA ROMEIRO

Pernambuco, capitania de primeira grandeza na hierarquia das capitanias


do Império. Obedecendo ao padrão típico da trajetória dos governadores
ultramarinos, alcançaria o gosto de governador em Angola, onde enfrentaria
a conjuntura especialmente crítica que se seguiu à ocupação do território
pela Companhia das Índias Ocidentais. A África que Vidal de Negreiros
encontrou estava mergulhada num ambiente de forte instabilidade,
acentuada pela resistência dos chefes aliados locais em prestar lealdade à
Coroa portuguesa, impondo a necessidade de restabelecer as alianças do
passado.
A circulação dos funcionários régios no âmbito do Império proporcionou-
lhes acumular um aprendizado das artes da governança, forjado em
contextos muito diferentes, resultando num conjunto de saberes
essencialmente empíricos sobre a colonização, referenciado no exercício
cotidiano da administração. Talvez a brilhante trajetória de Vidal tenha sido
eclipsada pelo herói nativista celebrado por gerações e gerações de
historiadores, ficando em segundo plano a dimensão atlântica de sua
carreira na administração colonial.
Com os homens, circulavam também práticas culturais, disseminando
as mentalidades ibéricas por todo o Império, a exemplo das festas. Tema
caro aos estudiosos da cultura barroca, as festas constituem o domínio
privilegiado das representações em curso na sociedade colonial, na medida
em que dão a ver a ritualização teatral dos seus códigos, hierarquias e
organização. No belo ensaio “Festa e memória da elite açucareira no século
XVII: a Ação de Graças pela Restauração da capitania de Pernambuco contra
os holandeses”, Kalina Vanderlei Silva analisa uma faceta original do vasto
imaginário da Restauração: as celebrações festivas da vitória pernambucana
sobre o adversário holandês. Ao calendário festivo tradicional, como as
entradas de governadores, os casamentos, nascimentos e mortes da realeza
portuguesa, celebradas com pompa e magnificência barrocas, a nobreza
pernambucana acrescentou a encenação festiva de sua empresa histórica,
através da qual fixou a representação idealizada de si mesma. Nas festas da
Restauração, a autora identifica uma estratégia de afirmação do status
social, que visava conferir prestígio e honra a seus protagonistas,
demarcando os lugares sociais, exibindo hierarquias, estabelecendo
distinções.
Consolidada nas guerras da Restauração, a elite açucareira conformou
as celebrações festivas do passado glorioso como via privilegiada para
legitimar a posição alcançada, exibindo nelas os códigos e padrões de
conduta ibéricos, identificando-se com as elites portuguesas e castelhanas.
Discurso sobre o presente, nelas também se fixou a memória de sua
participação heróica nas lutas contra os holandeses, representadas como a
expressão da lealdade ao monarca – o topos com que legitimava as suas
PREFÁCIO 15

pretensões políticas.
Festa barroca mas, sobretudo, política – como bem observou Maravall –
o que nela se celebrava era sobretudo a própria sociedade, estamental e
hierarquizada, que ali se dava a ver. É o que revela também o ensaio
“Celebrando a monarquia nos extremos da América Portuguesa: Natal e a
Colônia do Sacramento no século XVIII”, no qual Paulo César Possamai
propõe uma démarche arrojada: o estudo comparado entre as festas públicas
realizadas, no século XVIII, em dois extremos da América – Natal e a Colônia
do Sacramento, regiões muito distintas. De um lado, a pobreza de Natal,
com um contingente demográfico pouco expressivo. De outro, a Colônia
do Sacramento, um dos mais prósperos entrepostos comerciais do Império
e, ao mesmo tempo, posto avançado de fronteira. O brilho e a pompa
barrocos da corte joanina alcançavam, ainda que numa versão esmaecida,
esses territórios tão distantes, onde também os grandes eventos da
monarquia – como nascimentos, casamentos, exéquias fúnebres – eram
celebrados com solenidade. Em Natal, por exemplo, o casamento dos
príncipes do Brasil e das Astúrias com as infantas Maria Vitória de Bourbon
e Maria Bárbara de Bragança, realizado em 1729, deu lugar a nove dias de
comemorações: malgrado a pobreza do lugar, agravada sobremaneira pelas
secas que dizimavam o gado no sertão, a pequena população local assistiu
a comédias, máscaras, cavalhadas, fogos de artifício, salvas de artilharia,
missa solene cantada e procissão. Tudo por obra do capitão mor de
Pernambuco, que tudo fizera para festejar condignamente os casamentos
dos príncipes, posto que a Câmara local parecia pouco inclinada a financiar
as festas – eventos dispendiosos, que demandavam tempo e recursos – ,
preferindo investir nas festas locais, sobretudo as que celebravam o orago
de invocação do lugar. Afinal, se as festas constituíam um poderoso
instrumento de representação do poder e afirmação da elite local, as
localidades mais pobres tendiam naturalmente a se concentrar nas festas
locais, de caráter religioso, mais adequadas para a expressão de prestígio e
status. Diferente era a situação dos funcionários régios, que viam em tais
festividades uma forma de expressar a fidelidade à Coroa, abrindo caminho
para a ascensão nos quadros administrativos do Reino.
A Colônia do Sacramento trazia uma peculiaridade que a distinguia de
Natal: numa região de fronteira, a exibição de poder e magnificência
funcionava como um estratagema político, direcionado para impressionar
os vizinhos, amenizando as tensões entre eles. As celebrações cívicas
destinavam-se a afirmar a glória do monarca português diante dos
espanhóis, e a expressar a fidelidade e a obediência de vassalos afastados
do centro da monarquia.
De uma perspectiva muito semelhante, também centrada na tese da
circulação das concepções e práticas do Antigo Regime, Carla Mary S.
16 ADRIANA ROMEIRO

Oliveira destaca a dimensão social das manifestações artísticas, explorando


as possibilidades analíticas dos usos da arte numa sociedade permeada pela
noção de distinção. Em “Alegoria e status na Paraíba colonial: o forro da
Casa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio”, a autora
nos brinda com a beleza do forro setecentista, que ainda hoje continua a
fascinar os seus visitantes. De autoria desconhecida, pintada no século XVIII,
a obra se destaca por suas características barrocas, sobretudo os efeitos de
trompe l’oeil e a engenhosa falsa arquitetura. Diante da qualidade
excepcional do conjunto, Carla Mary propõe uma indagação instigante:
como explicar a sua produção numa capitania em franca decadência
econômica, relegada a uma posição subalterna, em relação às demais? Uma
das contribuições mais relevantes da autora é a leitura inovadora sobre a
cena representada no teto, atribuída por engano à ascensão de Santo Elias
em direção aos céus. Esmiuçando os detalhes da hagiografia de São
Francisco, ela o associa ao episódio, referido pelos biógrafos do poverello
de Assis, da aparição do santo, montado em um carro de fogo, a alguns
frades menores. O tema, tratado por Giotto – o qual, ainda no século XII,
havia lançado as bases da iconografia franciscana – encontrava-se presente
em outras regiões da América Portuguesa, a exemplo da Igreja dos Terceiros
de São Paulo, sugerindo a possibilidade de uma matriz comum, disseminada
por meio de gravuras e ilustrações. Ordem religiosa das mais prestigiosas, a
Ordem Terceira de São Francisco congregava à sua volta as elites locais,
que nela buscavam status e distinção social, fosse por aqueles que haviam
percorrido uma trajetória de ascensão econômica, fosse por aqueles que
estavam em busca dela. Reside aí, segundo Carla Mary, a explicação para o
aparente paradoxo entre uma capitania marcada pela pobreza e a
suntuosidade da Casa de Orações, com seu magnificente teto pintado:
esse último refletia as estratégias de auto-afirmação de uma elite que,
relegada a uma posição periférica no Império, buscava reforçar as
hierarquias e diferenciar os lugares sociais.
O processo de ordenação do espaço colonial, com a imposição do poder
metropolitano sobre territórios fora do controle da Coroa, é o tema do
ensaio “Jesuítas e missões: representações das fronteiras na capitania do
Rio Grande”. Nele, Maria Emília Monteiro Porto explora o universo das
vivências em zonas de fronteira, a partir dos relatos jesuíticos sobre as
missões localizadas na capitania do Rio Grande desentranhando, da
correspondência mantida com o Conselho Ultramarino, os múltiplos
sentidos da noção de fronteira, que se aplicavam a um território ainda em
processo de integração à ordem colonial. Da fronteira entendida como
conquista, enunciada em linguagem militar, à fronteira como zona de
confronto cultural, a história da capitania do Rio Grande pode ser descrita
nos termos de um processo de ordenação política e cultural que visava
PREFÁCIO 17

submetê-la à órbita do Império, ainda que fadada a uma posição de


isolamento no contexto geopolítico da América. Zona privilegiada de
contatos de toda ordem, a capitania se tornou o palco dos confrontos
culturais e políticos, em que se atritavam as diretrizes estabelecidas em
Lisboa, as vivências dos jesuítas e as sociedades indígenas ali estabelecidas.
A questão indígena é objeto de três ensaios originais. Em “Povos
indígenas no período do domínio holandês: uma análise dos documentos
tupis (1630-1656)”, Regina Célia Gonçalves, Halisson Seabra Cardoso e João
Paulo C. R. Pereira exploram uma documentação preciosa, de autoria de
índios Potiguara, escrita em língua Tupi. Seus autores extraem deste
material, praticamente desconhecido pela historiografia, a visão dos
indígenas acerca das alianças estabelecidas com os europeus durante a
guerra luso-brasileira (1630-1654). Descoberta nos arquivos da WIC, em Haia,
pelo pesquisador pernambucano José Higino Duarte, as chamadas “cartas
Tupi” foram escritas por Pedro Poty, cristão reformado, e Antônio Felipe
Camarão, ambos da nação Potiguara. Outra correspondência examinada
são as “Remonstrâncias”, escritas por Antônio Paraupaba, que ocupava o
cargo de Regedor dos Índios do Rio Grande durante o governo holandês.
Experimentados na interlocução com o outro, graças a um talento especial
para a negociação, estes homens demonstram uma capacidade incomum
de assimilação e compreensão das culturas européias, com as quais
dialogam intensamente. Dominando os códigos e padrões dos
interlocutores, os índios apresentam-se como indivíduos plenamente
inseridos no universo cultural europeu, capazes de articular os próprios
interesses com o discurso do outro, numa estratégia retórica eficiente.
Assim, a participação na guerra lusobrasileira, por meio de alianças e
coalizões, foi alvo de cuidadosa negociação, cujo âmago residia na defesa
intransigente da posse da terra aos que aqui estavam bem antes do advento
dos europeus. É desta perspectiva que os indígenas se posicionam na
negociação dos tratados e acordos celebrados com os brancos, defendendo,
de forma estratégica, os benefícios que poderiam extrair deles. Na
abordagem proposta pelos autores, o que se destaca é, sobretudo, a
mobilização de determinados aspectos da cultura indígena, passíveis de
aproximação com as culturas européias, explicitando as zonas de contato
– e também de atrito – que existiam entre elas. Neste processo dinâmico,
fica evidente a intensa capacidade de apropriação dos argumentos dos
aliados, de modo a reinterpretá-los à luz da própria cultura, explicitando
uma série de convergências entre o universo indígena e o europeu,
indispensável ao estabelecimento de um espaço de troca e diálogo cultural.
Análises desta natureza lançam por terra as teses sobre o caráter passivo
das culturas indígenas, descritos como meros títeres nos conflitos entre
europeus, relegados a uma posição marginal e subserviente às injunções
18 ADRIANA ROMEIRO

de uma conjuntura política que não conseguiam compreender. Ao contrário,


o ensaio abre um novo campo de abordagem sobre a atuação política das
populações indígenas, na medida em que põe em relevo os artifícios
retóricos que, em vez de exprimirem a completa e passiva adesão aos
valores dos europeus, sinalizavam, antes de tudo, um posicionamento
político contundente, ditado por uma avaliação objetiva da conjuntura. O
grande mérito de estudos como este reside na ênfase dada à noção de
estratégia, entendida, grosso modo, como a instrumentalização do discurso
com vistas à obtenção de vantagens, distinguindo-a claramente daquilo
que concerne à adesão do universo cultural do outro. Tal distinção não é
banal, sobretudo num contexto em que noções conservadoras, como
sentimento de pertença ao Império ou assimilação dos valores do Antigo
Regime, têm sido confundidas com a manipulação ideológica e retórica
deles, esmaecendo as fronteiras entre ideologia e realidade.
É também sobre a noção de estratégia que se assenta o ensaio
“Contatos, conflitos e redução: trajetórias de povos indígenas e índios
aldeados na Capitania da Paraíba, durante o século XVIII”, de autoria de
Ricardo Pinto de Medeiros. Ao autor interessa analisar o impacto da política
indígena pombalina no processo de desenraizamento espacial e cultural
das identidades étnicas, bem como a construção de novas identidades entre
as populações indígenas da Paraíba. A participação dessas no processo de
conquista e colonização do sertão, associando-se aos conquistadores
através de uma política de aliança e guerra, põe em evidência o fato de que
os povos indígenas souberam valer-se das possibilidades abertas pela Coroa,
para conquistar, na ordem colonial que se estabeleceu, um espaço de
negociação, onde puderam barganhar posições melhores, garantindo,
entre outros, a obtenção de sesmarias, vital para a sua sobrevivência étnica.
Na Paraíba, um dos principais reflexos da nova política pombalina foi a
transferência compulsória dos índios para vilas maiores, compostas pela
união de várias aldeias, em clara oposição ao que preconizava o Diretório
dos Índios. Os efeitos deste processo foram devastadores: ao contrário
daquelas que se associaram aos conquistadores, buscando garantir a própria
sobrevivência, muitas das populações indígenas foram violentamente
desenraizadas, removidas de suas aldeias e instaladas nas vilas recém
criadas. O papel estratégico e militar que ocupavam nos sertões da Paraíba
sofreu uma profunda inflexão, logo depois da implantação da nova legislação
pombalina, transformando-as em grupos desprovidos de identidade étnica,
desarticulados na nova configuração política das vilas. Conflito, estratégia
e violência são noções inseparáveis da história indígena na Paraíba do século
XVIII, revelando a outra face – a face sombria e perversa – da transplantação
do Antigo Regime nos trópicos.
O ensaio de Fátima Martins Lopes, intitulado “Capitães mores das
PREFÁCIO 19

ordenanças de índios: novos interlocutores nas vilas de índios da Capitania


do Rio Grande”, retoma o mesmo cenário, situando-se no processo posterior
de ordenamento político das vilas criadas a partir das aldeias indígenas. As
chamadas Leis de Liberdade, promulgadas em 1755, objetivavam não só
restituir a liberdade aos índios do Grão Pará e Maranhão, transformando as
missões jesuíticas em vilas, mas também instalar nas câmaras as principais
lideranças indígenas, sob o imperativo da inserção política das populações
nativas, alçadas à condição de “verdadeiros vassalos”, aptos a ocupar os
cargos administrativos locais. Tratava-se, sem dúvida, de uma sofisticada
estratégia de dominação, posto que cooptava, por meio da promessa de
mercês, recompensas e honrarias, as lideranças indígenas, estabelecendo
divisões nas comunidades, dilacerando o potencial de resistência das chefias
e infligindo a todos uma organização social profundamente hierarquizada.
A concessão da patente de capitão mor às principais lideranças, em cujas
mãos estava o comando das companhias de Ordenanças, inseria-se num
projeto de conquista e colonização que se chocava com os critérios
tradicionais, vigentes nas sociedades indígenas, de escolha das lideranças.
Nas vilas, o critério que regia a indicação aos principais cargos nem sempre
respeitava as chefias indígenas, sendo mais decisiva a adesão deles às
imposições coloniais. Nas vilas de índios do Rio Grande, por exemplo, a
escolha ficava a cargo do governador de Pernambuco, que nomeava os
indivíduos que se mostrassem mais receptivos à sua autoridade, garantindo
assim o controle sobre as populações indígenas por ele comandadas. Como
bem observa a autora, o papel destes capitães mores não diferia muito
daquele exercido pelos tradicionais mediadores entre os universos colonial
e indígena, sobre os quais recaía a obrigação de cumprimento das
determinações emanadas do Reino. Por meio de tais nomeações, a Coroa
ensejava uma eficiente política de cooptação, colocando as populações
indígenas sob a órbita do Império, ao mesmo tempo em que desarticulava
suas lideranças tradicionais. Desta política fazia parte também a introdução
de um processo de individualização nas relações econômicas entre os índios,
uma vez que os oficiais contavam com privilégios especiais, que os
diferenciavam do restante da comunidade. Neste caso, a diferenciação
social deitava raízes num processo mais amplo de transformação cultural,
indispensável à dominação colonial: o capitão mor – e também os oficiais
das Ordenanças – projetavam-se como interlocutores entre o mundo
colonial e o indígena, beneficiados pelos privilégios econômicos e políticos
inerentes à posição que ocupavam, cabendo a eles um papel fundamental
nas configurações culturais então em curso.
Os estudos sobre as Câmaras coloniais vive, hoje, a sua Idade de Ouro,
inspirados nas pioneiras observações de C. R. Boxer sobre o papel de
integração que desempenharam ao longo do Império português,
20 ADRIANA ROMEIRO

conformando práticas e vivências políticas nos moldes dos concelhios


lusitanos. São as relações turbulentas entre as câmaras do Recife e de Olinda
que o ensaio “Patrimônio, territorialidade, jurisdição e conflito na América
Portuguesa: Pernambuco, século XVIII”, de George F. Cabral de Souza
investiga, privilegiando os aspectos econômicos derivados da
desconcertante proximidade geográfica entre ambas as instituições. A
criação da câmara do Recife, como resultado de sua elevação à vila, em
1710, não aplacou os ódios que a separavam de Olinda. Situadas a menos de
uma légua de distância, as duas sedes do governo municipal engalfinharam-
se numa disputa em torno da jurisdição e do patrimônio que lhes pertenciam.
E não foram poucos os objetos de litígio, a começar pela dificuldade em se
estabelecer tanto a jurisdição dos ofícios municipais, quanto o patrimônio
territorial de vilas tão próximas, envolvendo a delicada questão sobre as
antigas doações e seus respectivos foros. Lançando mão de uma rica
documentação, o autor investiga a administração financeira das câmaras –
tema pouco estudado entre nós – , às voltas, frequentemente, com
minguados rendimentos, insuficientes para fazer frente às suas obrigações
básicas. O quadro econômico, porém, não encerra o horizonte da análise,
mas atenta, sobretudo, às implicações políticas advindas da criação da
Câmara de Recife, nas quais se entrelaçavam argumentos de natureza
econômica e política. Nos conflitos entre a auto-intitulada nobreza da terra
e a elite mercantil, o autor identifica as culturas políticas aí em jogo, cujas
concepções se materializavam nas questões relativas às formas de
administração do poder local, à natureza das reivindicações de ambos os
lados, aos arranjos e acordos. Se as câmaras constituíam, como uma espécie
de microcosmo da sociedade colonial, uma das arenas – e não a única – de
luta política em que os interesses se confrontavam, o estudo de George F.
Cabral de Souza atesta as potencialidades de abordagens voltadas para a
sua dinâmica econômica, e, principalmente, para as suas interações com os
concelhios próximos.
Por fim, Acácio José Lopes Catarino traz à cena, no ensaio “A oficina dos
ritos: artífices no Arsenal de Guerra de Pernambuco”, o cotidiano nas
oficinas do Arsenal de Guerra, em Pernambuco, focalizando o impacto das
reformas pombalinas relativas à modernização sobre a organização do
trabalho e ao perfil dos trabalhadores. A dimensão militar destas oficinas
permitiu uma apropriação cívica, situando o trabalhador na defesa da nação
e da soberania, tornando-o alvo de um processo de institucionalização
burocrática, apoiada num discurso racionalizante, em franco contraste com
as formas tradicionais então vigentes. A passagem das oficinas para a
manufatura em novos moldes administrativos levou ao surgimento de novas
formas de controle sobre os trabalhadores, submetidos a uma série de
expedientes disciplinadores, como a cuidadosa inspeção das faltas e saídas.
Delas resultou a criação de uma burocracia interposta entre as oficinas e o
PREFÁCIO 21

mundo exterior, encarregada da regulamentação das atividades ali


desenvolvidas, que impactou profundamente no cotidiano dos
trabalhadores, rompendo os vínculos corporativos e rebaixando o estatuto
dos oficiais.
Todos estes ensaios põem em relevo o processo de renovação
historiográfica da última década, trazendo, cada um deles, uma contribuição
decisiva na atual reflexão sobre a história brasileira do século XVI ao século
XIX. A circulação – uma noção tão cara aos historiadores – dos saberes
históricos continua a conectar as mais diferentes regiões, no sentido tanto
de aproximar esquemas teóricos e metodológicos, quanto de submetê-los
à prova em campos de investigação muito particulares. É certamente este
intenso diálogo historiográfico entre os quatro cantos do país que fecunda
e revigora o nosso horizonte, incitando-nos a apreender as nossas conexões
com as outras partes da América portuguesa, antes de nos lançarmos no
Império.
Excelente amostra da vigorosa historiografia que se produz hoje no
Nordeste brasileiro, o presente livro atesta a vitalidade da tradição intelectual
construída em torno de nomes como Gilberto Freyre, Capistrano de Abreu
e Câmara Cascudo, apenas para citar alguns nomes. Ao leitor, fica o convite
para uma incursão profunda pela história dessas capitanias, com especial
destaque para a da Paraíba, entre os séculos XVI e XIX.

Adriana Romeiro
Belo Horizonte, outubro de 2009.
23

JESUÍTAS E MISSÕES:
REPRESENTAÇÕES DAS FRONTEIRAS
NA CAPITANIA DO RIO GRANDE

Maria Emilia Monteiro Porto1

presentamos aqui um pequeno estudo sobre as fronteiras


missionárias lançando sobre elas uma reflexão acerca do viver
nelas, tomando como ponto de partida as representações
presentes nos relatos das missões jesuíticas organizadas na
Capitania do Rio Grande entre 1597 e 1750. Estes relatos, em
diálogo com as consultas ao Conselho Ultramarino a partir de 1681, ampliam
e orientam nossa perspectiva. Entendemos que as formas sob as quais essa
vida foi representada, pode nos levar a compreender as forças de ordem
material que atuam sobre a sociedade (seus índios, soldados, missionários,
poucos moradores e clérigos) e sobre o Estado (a representação da política
monárquica através da correspondência do Conselho Ultramarino com a
Câmara de Natal). Nessas correspondências pudemos verificar a presença de
uma noção bem definida de fronteira como espaço bélico e fronteira como
espaço de trocas culturais: os movimentos de conquista e contra-conquista
do território, as políticas monárquicas e das forças coloniais, a administração
da fronteira cultural e política, a das sociedades indígenas e as tentativas de
movimentos engendrados pelos diversos setores da sociedade local no intuito
de superar tal condição.
Sérgio Buarque de Holanda entendia que o símbolo do Brasil era o
bandeirante, que abriu os caminhos e fronteiras, enquanto os jesuítas se
mantinham vinculados ao controle europeu do espaço. É certo que o saber
controlado pela Companhia estava relacionado à ordem de idéias européias,
mas devemos considerar que o conjunto das idéias européias vivia, justamente
nesta época, uma crise e que diante dela e como parte dessa crise, a Companhia
de Jesus apresentou, de forma incisiva, um projeto de reforma da sociedade.
Por outro lado, a descoberta de um Novo Mundo e a ação sobre ele gerou um
novo impacto sobre este universo de idéias. Apesar de idéias constituídas
segundo padrões de reforma europeus, era justamente no novo espaço
1
Pós-Doutora em História pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha.
Doutora em História pela Universidade de Salamanca. Pesquisadora dos Grupos de
Pesquisa Jesuítas nas Américas (UNISINOS/ Diretório CNPq), História do Direito e das
Instituições (UNIRIO/ Diretório CNPq), Filosofia na História (UFRRJ/ Diretório CNPq) e
Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/ Diretório
CNPq). Professora Associada do Departamento de História e Docente Permanente do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Pesquisa de Doutoramento realizada com apoio do CNPq. E-Mail:
<mariaporto2@yahoo.com.br>.
24 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

americano que eles se veriam transtornados pela experiência cotidiana, com


as realidades que aqui se apresentavam. Por sua vez, a missão foi uma forma
de intervenção típica das fronteiras sendo, ao mesmo tempo, a forma
privilegiada da Contra-Reforma agir sobre as populações2.

A noção de fronteira

A noção de fronteira possui longa fortuna. Como demarcação de limites


territoriais tem sua formulação mais espetacular nos marcos imperialistas da
Roma antiga, que só conhecia o limes. No entanto, a experiência histórica que
envolveu a construção dos limes já anunciava um aspecto fundamental para
a construção de fronteira como conceito: zona de transição, comércio e
comunicação entre o mundo romano e o bárbaro. Vem da história da
topografia a noção de fronteira viva, significando uma área sob tensão, móvel,
sujeita a várias alterações, em função de guerras e conflitos armados,
indicando ainda outras acepções, como a de fronteira de acumulação ou de
tensão, o que nos leva a ver a identidade entre essas noções3.
Da Idade Média até finais do século XV a fronteira não é um interdito -
zona proibida por convenções políticas ou nacionais - mas zona de delimitação
militar pertencente ou subordinada a diferentes Estados territoriais
soberanos. Quando essa linha é resultado de um encontro de territórios
estruturados a partir de pontos de onde irradiava o poder, o seu sentido vai
mudando para a idéia de uma zona: são as zonas de contenda, espaços
disputados entre algumas comunidades de moradores. A fronteira vai
ganhando consistência: ela é zona neutra, a justiça não vai além dos limites
fronteiriços4. Com a formação dos Estados nacionais e o Renascimento,
fronteira tenderá a participar do conceito de nação, pois a consolidação
nacional vem com a fixação de fronteiras, de modo que durante um longo
processo de formação das idéias ocidentais, a idéia de fronteira como linha
divisória foi se impondo à de fronteira como zona.

2
BOXER, Charles. A Igreja e a expansão ibérica. Lisboa: Edições 70, 1981. MULLET Michel.
A Contra-Reforma. Lisboa, Gradiva, 1985. PROSPERI, Adriano. Tribunali della coscienza.
Inquisitore, confessori, missionari. Turim: Einaudi, 1996. RODRÍGUEZ DE LA FLOR,
Fernando. De las Batuecas a las Hurdes: fragmentos para una historia mítica de
Extremadura. Mérida: ERE, 1989, p.17.
3
DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
4
Caso do âmbito francês, cerca de 1213, onde fronteira está definida como a vanguarda
das tropas militares e, por volta de 1292, como praça fortificada que está em frente do
inimigo. FEBVRE, Lucien. Frontière: le mot et la notion. In: ______. Pour un histoire à part
entière. Paris: École de Hautes Études en Sciences Sociales, 1962, p. 11-24. Já a fronteira
do Alentejo, no início do século XVI, não era cobiçada pela monarquia por ser área de
conflito, de modo que D. Manuel (1495-1521) a propõe como presente a D. Maria,
infanta de Castela. MAGALHÃES, Joaquim Romero. Fronteras y espacios: Portugal y
Castilla. In: TORRES, Ana Maria C. (org.). Las relaciones entre Portugal y Castilla en la época
de los descubrimientos y la expansión colonial. Salamanca: Ediciones Universidad de
Salamanca, 1994, p. 91-101.
JESUÍTAS E MISSÕES 25

Com a entrada em cena do mundo americano se dará uma nova percepção


da realidade que incidirá sobre o conceito. No período colonial, o limite era a
linha que separava territórios sob distinta soberania e a fronteira era um
espaço marginal aos centros de poder econômico, social e político, que podia
estar ou não em contato com os domínios de outra potência, de modo que
uma fronteira podia ser um limite ou uma zona. A ocupação da fronteira era
o primeiro requisito para chegar a conhecer e tornar efetivo o limite. Aqui
vemos de que maneira as duas noções – fronteira como zona de trocas e
fronteira como limite subordinado à idéia de nação – conviveram de forma
produtiva. Também por conta do mundo americano, não podemos perder de
vista que fronteira como linha divisória é próprio das idéias ocidentais e noção
desconhecida pelas sociedades nômades ou seminômades que entraram na
cena do Ocidente a partir da expansão dos Estados ibéricos, Portugal e
Espanha.
O século XIX vai interromper essa acepção fluida, pois a idéia de fronteira
como linha divisória assegurava uma territorialidade que viria a configurar a
idéia de nação. José Carlos de Macedo Soares, por exemplo, concebe a
fronteira como linha divisória bem de acordo com a agenda do século XIX5. O
processo de colonização norte-americano adquiriu grande importância para
o conceito de fronteira desencadeando questões acerca das consequências
políticas e culturais da especificidade da conquista do oeste norte-americano,
sobre a identidade da experiência de fronteira em todo o Novo Mundo a
partir do estudo das zonas missionais e daí desencadeando o interesse pelas
especificidades latino-americanas. Os americanistas se dirigiram, então, para
as consequências do avanço das fronteiras metropolitanas, demonstrando a
existência de fronteiras regionais fechadas, ocupadas basicamente por missões
evangelizadoras ou por entidades indígenas ainda íntegras e fronteiras
regionais abertas, estabelecidas a partir de novas fundações. Na atualidade,
fronteira vem absorvendo uma dimensão antropológica que resgata as
relações interétnicas e a multiplicidade de horizontes culturais que existem
em determinados espaços. Aplicada à história política e cultural, vem lançando
uma perspectiva histórica que assume o jogo das relações de poder e da
dinâmica da expansão fronteiriça, tal como o faz Lucena Giraldo reconstituindo
sua gênese na história da ocupação das Guianas, mostrando com isso a
vitalidade do conceito6. Importantes trabalhos vêm sendo desenvolvidos no
fluxo dos estudos sócioculturais. Laura de Mello e Souza7, ao estudar a
5
“Por toda a parte a fronteira é o continente do conteúdo nacional. A fronteira completa, define
e especifica o país sede de um povo organizado. A fronteira assegura o instinto de propriedade,
tão natural e imperioso nos povos, como nos indivíduos. O território, quer dizer, o que se
contém dentro das fronteiras, está para as nações como a casa está para as famílias”. SOARES,
José Carlos de Macedo. Fronteiras do Brasil no regime colonial. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1939.
6
GIRALDO, Manuel Lucena. Laboratorio tropical. Caracas: Monte Ávila/ CSIC, 1993.
7
SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos
caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.) &
NOVAIS, Fernando A. (coord.). História da vida privada no Brasil - Vol. 1: cotidiano e vida
26 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

formação colonial a partir da ação social dos bandeirantes em São Paulo, nos
remete a uma história social das fronteiras brasileiras reconhecendo a
importância dos espaços abertos e zonas distantes na história da colonização
lusitana na América: “longe das igrejas e conventos...”, assim como outros
trabalhos ligados à história regional que recuperam, sob uma nova ótica,
uma história de espaços que continuam oferecendo questões por
compreender, mas que ainda não encontraram visibilidade na historiografia
nacional. Janice Theodoro tem se dedicado às distintas mestiçagens e
entrecruzamentos muito próprios do mundo americano, pois aí estão os
agentes sociais que operam o diálogo entre universos aparentemente
incompatíveis favorecendo a sua articulação e permeabilização. Isso nos leva
a considerar o conceito de fronteira em sua dimensão de espaço de trocas e
negociações com o outro, especialmente com os grupos étnicos que cabia às
missões controlar8.
As limitações ou estímulos ao desenvolvimento de uma região obedecem
ao posicionamento geopolítico que ela ocupa no contexto geral da trajetória
e expansão da colonização e essa foi a tendência que criou regiões centrais e
marginais no sistema colonial. A necessidade de protegê-la das sublevações
indígenas, da expansão do contrabando e das interferências estrangeiras é
característico da fronteira. Ali os gastos eram reduzidos, vigorava a escravidão
indígena e o papel das instituições, como as missões ou as guarnições de
soldados pagos estacionados nos fortes ou nas áreas de conflito, era
significativo. Já nas regiões centrais originárias, a conquista decisiva foi
seguida rapidamente de uma desmilitarização e de um longo período de
consolidação. As formas de intervenção nas regiões de fronteira obedeciam
a uma política de conquista e de redução de toda oposição. A região que
resistia à dominação não apresentava a menor possibilidade de integrar-se
na dinâmica ocidentalizada do sistema colonial. Isso é algo que nos remete a
outra importante característica das fronteiras que é justamente sua
mobilidade, ao contrário da zona-limite, cuja maior virtude é, pelo menos,
garantir uma soberania política e é algo evidente tanto no processo natural
de fuga das populações indígenas das zonas ocupadas, como nas
transferências de populações operadas pelas forças coloniais9.

privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 42.
8
THEODORO, Janice. O barroco como conceito. In: SCHUMM, Petra (org.). Barrocos y
modernos: nuevos caminos en la investigación del Barroco Iberoamericano. Frankfurt:
Vervuert; Madri: Iberoamericana, 1998.
9
A crônica jesuítica sobre a conquista da Paraíba nos aproxima do deslocamento da
fronteira em direção ao Rio Grande que se conformava, então, como espaço de
concentração de forças dos índios Potiguares que fugiam progressivamente das etapas
de conquistas portuguesas: “... e em toda a parte a miúdo eram salteados, ou se passariam
todos além do Rio Grande, como já muitos tinham feito...”. ANÔNIMO. Summario das
armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do Rio Parahiba. Revista
do Instituto Histórico e Geográphico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, n. 36, 1873, p. 63.
Provavelmente escrito, em 1586, a pedido do visitador Christóvão de Gouveia S.J.
pelo P. Simão Travassos S.J.
JESUÍTAS E MISSÕES 27

No Rio Grande em três momentos a condição clássica de fronteira foi


mantida: na expedição fracassada de João de Barros em 1534 até a conquista
efetiva de 1597; entre 1633 com a ocupação holandesa e 1654 com a
Restauração; e por volta de 1680 até 1720, com a importante rebelião das
nações tapuias das capitanias do Norte, reuniram-se em diferentes medidas,
algumas ou todas estas circunstâncias. A estabilização de sua vida política e
produtiva que poderia atrair uma população civil que possibilitaria sua
integração na ordem do ocidente tomou outra dinâmica por conta disso,
configurando, assim, um conjunto de formas arcaicas de conquista. Nos
espaços conquistados sob estas formas arcaicas vigorava a precariedade de
técnicas e apenas uma mínima expressão da cultura letrada e visual do
ocidente. Ali se mantiveram ausentes, por muito tempo, os recursos
persuasivos que o conjunto de uma vida colonial oferece, materializados na
organização de cidades e tudo o que supõe o poder de uma cultura urbana.
Os marcos de descobrimento chantados nas costas brasileiras desenhavam
um espaço que se desejava conquistar efetivamente, um símbolo da presença
portuguesa. No Rio Grande isto se deu em 1501 com o marco de Touros, mas
esse gesto ainda estava circunscrito ao processo expansionista geral
português, algo ainda pós medieval e não tomado pelo fato americano. Em
1534, quando da expedição fracassada à então Capitania de João de Barros e
de sua inclusão efetiva no campo de visão da cultura ocidental, começaram a
se desenvolver estratégias de ocupação. A imagem básica que a Capitania
apresentava, neste momento, era a de porto de corsários: uma primeira
imagem da fronteira. A partir de então, embora ainda não conquistada, as
forças coloniais possuíam um plano minimamente traçado sobre o local a
partir da divisão em Capitanias hereditárias no mapa da colônia.
A conquista do Rio Grande fazia parte de uma política cujo objetivo final
era a grande região do Amazônia, espaço de interesse estatal por conta da
necessidade de proteger seus limites da grande rede de comércio legal e
ilegal, e também para participar dele. Por isso foi um espaço transitório, um
ponto de apoio e abastecimento de forças em cada avanço da etapa da
conquista. Como atesta Câmara Cascudo, se constituía: “mais em uma posição
bélica, de vigilância e guarda, que a expressão regular e produtora de Capitania”.
Ali se investia mais com o pessoal da guerra do que o que se produzia, que se
limitava, em 1618, ao “rendimento do engenho de Cunhaú”10. Sertanistas,
moradores, índios e missionários encontraram nas fronteiras um território
novo e nelas foram autorizados, de acordo com o vai e vem das políticas
monárquicas, da consciência moral da cultura de então e da desobediência
civil, a desempenhar um papel. Muitas ações foram levadas pelos padres da
Companhia nessa Capitania. No entanto, porque a circunstância da fronteira
costuma ser belicosa, complexa e intensa, e porque o missionário é, por
excelência, um homem de fronteiras, o contexto que destacamos para a análise
10
CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: s.r., 1955,
p.59.
28 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

é o da guerra – a guerra de conquista em 1597 e, a partir de 1680, a Guerra dos


Bárbaros.

A primeira imagem da fronteira – a conquista

Os jesuítas entram no Rio Grande apoiados no Alvará de 1596 que permitia


apenas a sua entrada no sertão e que regulava a exploração de seu trabalho
entre os portugueses. No contexto dos conflitos iniciais entre indígenas e
colonos a intervenção da Companhia de Jesus se materializou na tentativa de
pacificação, introduzindo formas da cultura ocidental: os princípios do credo
cristão através de suas formas litúrgicas e da catequese, difundidas em
intervenções retóricas dentro de um espaço político de refúgio que as missões
jesuíticas representaram e que, naquele momento, ainda não eram objeto
das radicais disputas que ocorreriam no período seguinte.
No primeiro momento da conquista, em 1597, a ação conjunta com os
capitães-mores de Pernambuco e Paraíba está descrita em termos do
contingente de guerreiros e armamentos, infantaria, cavalaria, índios aliados
e escravos africanos, as estratégias e táticas do capitão, a trajetória da
expedição, o material, o poder técnico, a súbita interrupção de assaltos,
computando dados e os incorporando em uma linguagem militar. Há também
o sentido hierárquico da descrição: a anterior descrição da Capitania de
Pernambuco definindo o lugar que ocupa a nova conquista nesta trajetória,
o socorro que enviava Felipe II a seus vassalos, o governador-geral, os
capitães-mores, os soldados, os índios aliados, os escravos da Guiné e o
restante da maquinaria de guerra - munições e petrechos, entre os quais, as
flechas dos índios. O léxico militar se amplia com outras passagens: “o desenho
do capitão era ir destruindo as Aldeias pelo sertão até chegar ao Rio Grande”,
ou: “espantados com o jogar da artilharia, não teve efeito o seu desenho”.
A conquista é colocada claramente como iniciativa civil e militar na qual os
jesuítas são os coadjuvantes imprescindíveis. Os franciscanos enviaram dois
padres experimentados, Cosme de S. Damião e Manoel da Piedade.
Comandava a expedição Jerônimo de Albuquerque, mestiço, 65 anos, “grande
conhecedor da psicologia nativa”, que ia pelas aldeias de índios missionados
recrutando voluntários11. A participação dos padres na guerra era efetiva
“...não se negando a nenhuns trabalhos, de dia e de noite, (...) que o perigo da
guerra traz consigo...”. De suas aldeias desceram parte deste arsenal militar,
em 1603, com o Pe. Diogo Nunes, 800 índios flecheiros para lutar contra os
Aimorés na Bahia. Em outro momento tocou aos jesuítas enviar 370 arqueiros
de suas missões e dois padres, Manoel Gomes e Diogo Nunes. Mas também
foi negada tal cooperação, como demonstram alguns documentos que nos
11
Testemunho de Alexandre de Moura, 20 out. 1620. In: BARÃO de Studart (ed.). Documentos
para a história do Brasil e especialmente a do Ceará. 4 vol. Fortaleza: s.r., 1908-1921, vol. 2,
p. 194-195. MORAES. Francisco Teixeira de. Relação histórica e política dos tumultos que
succederam na cidade de S.Luis do Maranhão, 1692. Revista do Instituto Histórico e
Geográphico Brasileiro, Rio de Janeiro, IHGB, n. 82, 1877, p. 40.
JESUÍTAS E MISSÕES 29

aproximam aos conflitos entre jesuítas e autoridades civis, como na ocasião


em que se recusaram a enviar seus guerreiros Paiaiá em uma expedição
causando, em seguida, relações animosas com o Governador geral.
O Pe. Gaspar de Samperes era outro homem com ofícios especializados
que atuou nas fileiras da Companhia e quem projetou o desenho da fortaleza,
“porque sabia bem dessa arte e a exercitara, em Espanha e no Brasil, antes de
entrar na Companhia, quando professava a milícia”. Somos enviados à
representação dos homens de guerra, quando o clima de perplexidade que
envolveu a todos após um embate nos momentos iniciais da conquista do Rio
Grande se oferece como espaço para refletir sobre a moral do soldado. É a
cena de um massacre: “Fêz-se grande estrago neste gentio (...) alguns soldados
honrados, que neste ministério ajudavam também aos Padres, se edificavam e
davam graças a Deus, dizendo: salva-se um filho de um selvagem e eu não sei o
que será de mim”12. A participação na conquista era uma combinação de
intervenções materiais e espirituais: “administrando os sacramentos à gente
por não haver outros clérigos, servindo os enfermos, que houve muitos, e dando
a traça e ordem para se fazer o forte, e às vezes trabalhando com suas pessoas,
para animar a gente”13. Em geral, se aplicam metáforas militares para definir a
atuação missionária da Companhia de Jesus. No entanto, a imagem militar
aplicada ao corpo eclesiástico é comum desde a Igreja primitiva assim como a
expressão “soldado de Cristo” ou a idéia de Cristo como um chefe militar,
tendo sido poucas e discutíveis as opiniões que consideraram que as armas
não se conciliavam com a moral do Evangelho. Configura-se como uma milícia
especial, disposta, por princípio, a seguir diferentes destinos, mas
unitariamente a serviço de Roma e do Papa.
Parte do acordo inicial com os potiguares, em 1597, implicou em um
deslocamento de tribos com o objetivo de assegurar os limites entre terra
conquistada e produtiva e as fronteiras. O Pe. Francisco Pinto, como o
intérprete da estratégia do capitão-mor, incluiu como parte do acordo, que
algumas tribos fossem povoar a vila de Pernambuco entre os portugueses,
tendo ido a tribo de um irmão do Camarão Grande. A carta Ânua de Luis
Figueira, 1602-160314 ,que nos mostra a situação da região após seu controle
inicial, nos envia a essa mesma dispersão. Entre 1602 e 1604, se tinha
estabelecido uma aliança entre os potiguares e os portugueses, rompendo
assim a aliança anterior entre aqueles e os franceses. Submetidos os
potiguares, resolveu-se usá-los nas guerras em Ilhéus e Porto Seguro, de
onde foram, em seguida, desviados para reprimir um quilombo de escravos
africanos fugidos das plantações da Bahia. Não retornam para o norte e
acabam por se fixar na Bahia para povoar suas terras.
12
Carta de Pero Rodrigues, 1599. In: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no
Brasil. 10 vols. Lisboa; Rio de Janeiro: s.r., 1938-1950, vol. I, pp. 515, 518, 519, 520. Daqui
em diante,citado como HCJB.
13
Relação de Samperes, 1607. HCJB, vol. I, p. 557.
14
Ânua de 1602-1603, P. Luis Figueira, 1604. Archivo Romano Societatis Iesu, Roma,
Fundo do Brasil, maço 8, f. 40v-41. Daqui em diante, citado como ARSI, Bras.
30 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

Como testemunho da dispersão e fragmentação do espaço indígena, o


encontramos desfigurado, suas aldeias transformadas em “aldeotas”: “...
que já lhes não guarda outro nome (pois além de serem pequenas, não há naquela
capitania hoje mais de oito, sendo há dez anos 64)...”15.
As instruções do Padre Geral Aquaviva, enviadas de Roma para o Provincial
Pero Rodrigues, no Colégio de Olinda entre 1599 e 1601, nos fornecem detalhes
do cotidiano e nos remetem às estratégias para a realidade dessas missões
“tan distantes” e ao processo de adaptação destas instruções à realidade da
fronteira16. Nelas, se exigia, entre outras coisas menos notáveis, um mínimo
de quatro religiosos para iniciar a missão, estabelecia de antemão certos
critérios e hierarquias para o contato direto com os índios, indicava
supervisores ou temia pela integridade física e espiritual dos missionários. O
Pe. Pero Rodrigues, em carta de 160017, ao oferecer ao General um quadro
mais realista das missões, contesta as instruções que, ao fim são organizadas,
apesar de não se adequarem à estrutura missionária ideal. A imagem das
circunstâncias precárias destas missões se expressa na nostalgia contra a
qual deviam proteger-se: “Não tínhamos remédio algum humano de físico ou
mezinhas, bem nos lembrava dos regalos, quando adoecemos nos Colégios, dum
pedaço de açúcar para beber uma pouca de água, ou uma talhada de marmelada
e outras coisas que a caridade da Companhia costuma”18.
A possibilidade que estava colocada para a Capitania, após este primeiro
momento da conquista, seria sua integração na ordem colonial, ocupando
uma posição marginal em relação à dinâmica da economia central. No entanto,
a ocupação holandesa representou uma interrupção no processo, pois o Rio
Grande ocupava um lugar secundário na política dos novos conquistadores.
Comentam os historiadores que, no Rio Grande, os colonos se mantiveram
alheios ao tema da conquista e mais dedicados a seus assuntos administrativos
e disputas internas, tendo sido para a Capitania um período precário, território
ocupado sem maiores inversões do que convinha para a manutenção da
guerra e da produção do açúcar nos engenhos de Pernambuco, imagem
certamente amparada nas denúncias dos massacres de índios e moradores
ocorridos em Uruaçú e Cunhaú por parte dos “pérfidos holandeses”, já no
contexto da Reconquista19.

15
Relação de Pero de Castilho, 1614. HCJB, vol. V, p. 511.
16
Instruções do Padre General Claudio Aquaviva para o Provincial P. Pero Rodrigues.
Roma, 1597-1598, ARSI, Bras, maço 2, f. 131-132v; Algumas advertências para a Provincia
do Brasil, Roma, 1601, Biblioteca Vittorino Emanuele, Roma, Fundo dos Jesuítas, maço
1255, f. 10-14. Daqui em diante, citado como Bib. Vittº Em., Gesuitici.
17
Carta do Provincial Pero Rodrigues ao Padre General Claudio Aquaviva, Baía, 20 de
Setembro de 1600. ARSI, Bras., maço 3-I, f. 194-194v.
18
Carta de Pero Rodrigues, 1599. HCJB, vol. I, p. 524.
19
Conforme o panfleto de Lopo Curado Garro: Breve, verdadeira autêntica Relação das
últimas tiranias e crueldades que os pérfidos Holandeses usaram com os moradores
do Rio Grande, 23 out. 1645. Publicações do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1929.
JESUÍTAS E MISSÕES 31

Uma segunda imagem: a Guerra dos Bárbaros


Por volta de 1650 a população do Rio Grande iniciava sua expansão para
Oeste, alcançando outra onda povoadora que irradiava do Vale do Jaguaribe
no Ceará para Leste, e desde ai se dirigia, espalhando-se, por toda uma zona
interior que se detinha na Serra da Borborema20. Com o fim da ocupação
holandesa, o Rio Grande se integra ao plano colonial português e, com isso,
se retoma toda a movimentação de colonos, que passam a se dedicar à
potencial economia agropecuária. Integrava-se na economia colonial como
zona marginal em relação à economia açucareira com centros em Pernambuco
e Bahia, mantendo um papel abastecedor durante os períodos de estabilidade,
fornecendo gado, couro, sal, pesca e índios aplicados no trabalho servil, como
guerreiros nas conquistas de outras fronteiras ou como povoadores de seus
limites.
A extensão das fazendas de gado – principal e rentável atividade econômica
– em terras indígenas, tanto nas já formalmente concedidas como nas áreas
inconquistadas do interior da região gerou uma série de conflitos entre índios
por suas terras e integridade física, e colonos, por suas necessidades de
grandes extensões de terra para o gado e da força de trabalho indígena. Os
conflitos envolvem diversos episódios nos quais as autoridades locais e os
moradores formalizavam a violência em relação aos índios. O argumento do
colono era que a mão de obra indígena era indispensável para integrar a
Capitania em uma ordem economicamente produtiva. Mas existia um discurso
ético que se traduzia em leis que limitavam o direito de escravização e
procuravam regulamentar a apropriação do trabalho. Seu recurso era, então,
incentivar as guerras entre tribos para justificar uma guerra justa. Aos
condutores desta guerra não convinha que houvesse índios de paz porque
esses estavam protegidos pela legislação e, portanto, não podiam ser
cativados.
Os índios Janduí da nação dos Tapuias Cariri começavam, então, a atacar
os moradores de Natal. Domingos Jorge Velho, um dos líderes dos paulistas
e maior representante do que foi a eficácia das forças bandeirantes, estava
dedicado, neste momento, a destruir o Quilombo dos Palmares e se desviou
com suas tropas, a convite do governador geral, para socorrer o Rio Grande.
O conflito havia se deslocado para terras do Piauí e Ceará seguindo o trajeto
dos paulistas, retornando, nestes momentos, para os limites da Capitania do
Rio Grande. A demanda de gado como alimento, meio de transporte e energia
expandiu o mercado para outras regiões criando, a partir de então, as
peculiaridades da sociedade do sertão.
A política de controle da guerra dos Bárbaros era concentrar em algumas
aldeias, os remanescentes das populações indígenas que iam sendo reduzidos
em Guajiru (Estremoz), Guaraíras (Arez), Apodi (Vila do Regente, depois

20
BRUNO, Ernani da. Silva. História do Brasil geral e regional - Vol. 2: Nordeste. São Paulo:
Cultrix, 1967.
32 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

Portalegre), Gramació (Vila Flor) e Mipibu (S. José de Mipibu). Neste contexto,
os jesuítas são outra vez convocados para pacificar as fronteiras, assim como
as forças especializadas do Terço dos Paulistas. Quando se estabelecem, no
momento e lugar mais tenso de todo conflito, servem a um plano pragmático
de controlar o espaço, evitar a dispersão dos grupos indígenas remanescentes,
negociar com a natureza desolada e precária e com a moral da colônia.
Esta nova aproximação compreendia duas aldeias de índios Paiacus, a de
S. João Batista do Apodi e outra, às margens do rio Jaguaribe, já no Ceará,
que além de terem funcionado como apoio institucional a um importante
fluxo de povoamento que se dirigia para a região do Açu, integrando-os,
segundo a perversa lógica do colono, nas formas e frentes de trabalho
ocidentais, obedecia também à lógica missionária de afastar os aldeamentos
das proximidades das guarnições de soldados no litoral. Mas a pressão
escravista levou os missionários a afastarem os núcleos indígenas de catequese
também dos povoamentos dos colonos, estabelecendo aldeamentos mais
eficientes e estáveis, conclusão a que, aliás, já haviam chegado os missionários
do tempo de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. Organizaram duas outras
missões cerca do litoral, as aldeias de Guaraíras e Guajiru que se mantinham
em tensão direta com as duas outras do interior.
As correspondências entre os centros administrativos da Colônia, como
esta de 1699, nos vão dando conta da intensidade dos conflitos entre colonos
e índios e nos recordam a precariedade da situação do Rio Grande durante a
Guerra dos Bárbaros: “Das Capitanias do Norte tinham ido várias e repetidas
vezes a fazer guerra aos Bárbaros do Rio Grande, 37 cabos dos de maior nome e
suposição, havendo algum que levou mais de 700 homens brancos, e que todos
estes não conseguiram outro feito mais que só o das consideráveis despesas que
fizeram aos miseráveis povos das ditas Capitanias”21.
A fronteira, como zona militar, torna-se visível a partir dos conflitos pela
conquista do espaço, nos quais aparecem as estratégias utilizadas e o conjunto
da política monárquica e colonial22. É notável, neste momento, que se tratava
mais de defender uma posição estratégica na fronteira do que propriamente
defender uma população civil organizada. Segundo o documento, e também
conforme o discurso dos Oficiais da Câmara, esta população civil se reduzia
“a quatro moradores que ali habitavam” enquanto o auxílio em forças militares
teria sido de 200 homens. Certos dados, como a criação do Posto de Coronel
de Cavalaria da Ordenança em 1686 para socorrer os colonos nas áreas de
conflitos com os índios, a aparição da noção de fronteira na linguagem militar
em documento de 1694, com o sentido de um espaço fortalecido por
21
Carta de D. João de Lencastro, Governador Geral do Brasil a D. Fernando Martins
Mascarenhas de Lencastro, Baía, 11 nov. 1699. Documentos Históricos da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 1937, pp. 39, 88, 83, 72, 117, 118.
22
As referências que vem a seguir são encontradas nos seguintes documentos: Livro de
Cartas e Provisões do Senado da Câmara de Natal (LCPSC), Livro de Termos de Vereação
(LTV), Documentos do Arquivo Ultramarino (AHU), cobrindo o período de 1686, 1689,
1694, 1696, 1701, 1704, 1710, 1713, 1725 e 1730.
JESUÍTAS E MISSÕES 33

armamentos e homens de guerra cujo objetivo era conquistar uma nova


frente, a requisição de índios da Aldeia de Guajiru para apoiar a abertura de
duas novas frentes (ribeira do Ceará-mirim, no sítio chamado Capela, sob
responsabilidade do Mestre-de-Campo Paulista, Mathias Cardoso da Silva, e
outra em Utinga), são índices de uma especialização de forças na fronteira. O
Governador Geral de Pernambuco e Capitanias Anexas manda, em 1701,
publicar ao “som de caixas” um Bando ordenando a retirada dos soldados
das missões do Rio Grande, Ceará e Jaguaribe, deixando apenas dez
subordinados ao Reverendo missionário, caso se apresente necessário, ou
seja, reforçando a autoridade dos missionários e, com isso, reforçando as
fronteiras para a defesa contra o gentio bárbaro.
Com a guerra, aumentava o número de tapuias rendidos que deveriam
submeter-se à legislação indígena que regulamentava a prestação de seus
serviços nas terras dos moradores e nas guerras. Em 1696, quando os Oficiais
da Câmara solicitam aos Padres da Aldeia de Guaraíras que reúnam quinze
índios e um encarregado que pudesse trabalhar na abertura de uma passagem
na lagoa, o Padre Sebastião de Figueiredo da Companhia de Jesus nega o
pedido. Responde aos Oficiais que, na aldeia, havia 88 índios de serviço,
sendo 63 deles ocupados em outros serviços, conforme a Ordem do
Governador Geral, que proibia que saíssem da Aldeia mais da metade dos
índios, portanto os quinze índios solicitados não poderiam ser cedidos; que
esperassem sua volta se ainda os necessitasse. O aspecto movediço da
legislação indigenista levou a que D. Pedro II permitisse que os índios do Rio
Grande fossem empregados nas guerras das fronteiras. No entanto, em 1704,
a Câmara de Natal pedia que se deixassem os índios do Rio Grande para o
serviço dos moradores, alegando que na capitania do Ceará havia muitos
índios. Isso nos leva a observar tanto o aspecto móvel da fronteira, que ia se
estendendo para a Capitania vizinha, como a expressão do desejo dos
moradores de Natal de que a Capitania saísse desta circunstância. Entendemos
esta atitude como um gesto de recusa da condição de fronteira, integrando a
comunidade no cotidiano de uma vida social e não nas urgências introduzidas
pela guerra. Seis anos depois, João V se ocupa em controlar, junto ao
Governador de Pernambuco e Capitanias Anexas, a posse de terra por parte
dos vigários, párocos e missionários das aldeias de índios nos sertões.
Mas o Rio Grande prossegue ainda como fronteira, da qual se pode retirar
os índios pacíficos e levá-los para as novas frentes coloniais, tal como se
depreende da política da Coroa. A Junta das Missões, reunida a 30 de março
de 1726, no Estado do Maranhão e formada pelo Governador João da Maya
da Gama, pela Companhia de Jesus na figura do Visitador Geral das Missões e
o Reitor do Colégio, enfrentava as séries de levantamento e ataques das
nações Guanarez, Aroazes e Barbados às aldeias dos índios Caicaizes,
pacificados e aldeados com o missionário Gabriel Malagrida. Diante da situação
de São Luiz do Maranhão, “sem índios, nem forças, por andarem em contínua
guerra (...) estan as aldeyas acabadas, sem que se possa dar muda aos precisos
34 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

índios”, decidem pela transferência estratégica das tribos pacificadas das


regiões vizinhas, solicitando, como ordem real aos Governadores de
Pernambuco e Paraíba, ao Padre superior da Serra de Ibiapaba e aos Capitães
do Ceará e Rio Grande “para lhe mandarem os Índios determinados pelo dito
Senhor para esta Guerra, e Conquista, para a qual não tem dado até o presente
Índio algum”. A recusa à esta solicitação por parte das autoridades regionais,
apesar das “... repetidas ordens de Sua Mag.... todos esses quatro anos”23 nos
leva a entender que, neste momento, a dispersão das comunidades indígenas
encontrava, nas missões, um lugar ordenador capaz de excluí-la do círculo
vicioso das fronteiras. Esta luta pela ordenação do espaço se revela em
diversos episódios expressos na documentação.
Apesar de o Rio Grande ser reserva de guerreiros, os documentos de 1725/
1726 e de 1730 descrevem um ambiente melhor controlado, no qual as aldeias
eram tomadas como uma realidade na ordem missionária, ou seja, integradas
em uma ordem produtiva e a uma melhor ordenação do espaço no sentido de
uma busca por sair da circunstância de fronteira. Em um requerimento de
1726 o Pe. Jerônimo de Sousa, Superior da Aldeia de Guajiru, solicitava a
demarcação de mais e melhores terras para a comunidade indígena que
administrava em uma região chamada Cidade dos Veados, a duas léguas de
Guajiru, “nas Lagoas da Cidade de Natal do Rio Grande” a D. João V, que já não
tinham onde plantar, porque as terras de lavoura já estavam cansadas e cheias
de formigueiros. Em 1730 o Pe. João de Melo, então o Superior da Aldeia do
Guajiru, pede a D. João V a confirmação de uma doação de sesmaria na costa
das salinas, no sitio dos Galos e de Guamaré “com dois sítios de pescaria e tres
léguas de terra de comprido e uma de largo”, feita pelo capitão-mor Domingos
de Morais Navarro (1728-1731), em 1729, em nome de Sua Magestade. A
conf irmação vem a 15 de outubro de 1732, notando-se, assim, o
prosseguimento desta política territorial por parte de certos setores políticos
da Capitania. Essa tendência de reordenação do espaço pode ser considerada
também a partir da atuação deste capitão-mor, Moraes Navarro, quando, em
1728, conduziu os trabalhos de restauração da Fortaleza e da capela24.
Apesar da piedade e simpatia de D. Pedro II pela Companhia de Jesus a
guerra desordenava e suspendia os direitos. Documentos de 1689 nos
remetem a este ambiente que suspendia toda a ordem. Nele, os oficiais da
Câmara relatam ao Bispo e Governador de Pernambuco que a guerra na região
do Açu obrigava os moradores a viverem fortificados sem poderem sair para
cumprir os ofícios e sacramentos religiosos, sem um padre que os atendesse
e ainda sem condições de pagar pelos seus serviços.
O comentário do Pe. Pero Dias, Reitor do Colégio de Olinda, de 1689, nos

23
Termo da Junta das Missões em S. Luiz do Maranhão, 30 mar. 1726. HCJB, vol. III, p. 442-
443.
24
Manuscrito do Arquivo do IHGRN, Pasta 32, maço 7, folha 2. Apud GALVÃO, Helio.
História da Fortaleza da Barra do Rio Grande. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura,
1979, p. 209.
JESUÍTAS E MISSÕES 35

oferece uma imagem da Aldeia de Guajiru durante este processo de


organização da reconquista da fronteira riograndense e nos introduz no
ambiente de guerra que se desenvolvia quando as aldeias de índios
catequizados passam a ser um dos alvos dos Tapuias rebelados e dos ataques
dos moradores. Nos leva a considerar o ceticismo geral quanto à defesa da
integridade indígena ou quanto aos recursos legais e petições como forma
eficiente de intervenção: “...mas era impossível o castigo por causa da Guerra
dos Bárbaros...”. Relata ainda que, apesar de todo o trabalho propriamente
espiritual, os padres tiveram que usar de “instrumentos belicosos de estacadas
e trincheiras (...) sempre com as armas na mão”25. Em 1713 essa situação se
acentua com a dificuldade em controlar os índios aldeados e a imagem da
missão do Guajiru como destino dos Tapuias dispersos26.
As notícias que chegavam do sertão eram de epidemias, ataques dos
Janduin e as grandes dificuldades que sofria o Padre Filipe Bourel na Missão
do Apodi e seus planos de transferir a Residência. Assim, o espaço se fragmenta
em outra imagem: “...e a maior parte dos nossos Paiacus fugiram e vagueiam no
sertão”27.
Outra visão desta época sobre a Aldeia de Guajiru se apresenta também
em João Maia da Gama, Governador do Maranhão, no seu “Diário de Viagem”
de 1729. Em meio às solicitações de instalações públicas, de educadores e
missionários feitas pelo Vigário e Oficiais da Câmara de Natal, ele presenciou
algumas manifestações religiosas e sermões dos Ofícios Divinos da Semana
Santa. Sua impressão reproduz uma imagem compassiva da região: “tive
uma grande consolação de que naquela pobreza se fizesse tudo com muita devoção
e piedade, e com muita modéstia...”28.
A carta dos oficiais da Câmara de Natal ao Conselho Ultramarino solicitando
uma casa de religiosos, da Companhia ou da ordem de S. Francisco, reflete
uma situação na qual os moradores desejam a integração de seus filhos na
cultura letrada que as Ordens manejavam, mas esta petição recebeu parecer
desfavorável do Governo de Pernambuco, mantendo a região, já entrado o
século XVIII, no plano secundário em relação ao conjunto da política colonial29.
Os documentos de 1731 revelam, com mais precisão, esta circunstância de
fronteira da qual a Capitania começava a sair. A própria exaltação por parte
dos moradores da sua precariedade, neste momento, é em si mesma

25
Carta do Pe. Pero Dias. Olinda, 30 jul. 1689. HCJB, vol. V, p. 529.
26
LCPSC, Recife, 24 mai. 1713, Bando do Governador Geral de Pernambuco, José Félix
Machado de Mendonça, Cx. 75, Lv. 5, f. 133v-134; LCPSC, Natal, 28 jul. 1713, “papel de
pazes” feitas entre os índios tapuias e o Capitão Teodósio da Rocha, Cx. 99, Lv. 6, f.
8v.
27
HCJB, vol. V, p. 545.
28
Diário da Viagem de Regresso para o Reino, de João da Maia da Gama, e de inspeção
das barras dos rios do Maranhão e das Capitanias do Norte, em 1728. In: GALVÃO,
História..., p. 277-285, p.282.
29
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 5 jun. 1731. AHU, Doc. 153:
1731, 05 de Junho, Lisboa, rolo 02, 232.
36 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

reveladora de um desejo de mudança ou até de uma estratégia de atuação,


quando expressam sua precariedade material, a “incógnita de seu assento”,
indicando aqui já uma consciência de memória, a inutilidade que vinha
apresentando para seus moradores e se queixam de que a Capitania vinha
sendo a de menos merecimento na trajetória das conquistas: “A dita cidade o
hé somente no nome porque nella não haverá mais de 20 moradores todos pobres,
e os mais existem pellas suas fazendas que são a maior parte de currais de gados
e cavallos”30. A solicitação de bens culturais de uma maneira bastante incisiva
e em uma espécie de acordo mínimo quanto a certas virtudes dos missionários,
mostram os Padres como um elemento para a composição do lugar.
Considerações Finais
Quando a Capitania se integrava na ordem econômica local por volta de
1720 e, portanto, seu mundo de possibilidades estava aberto, a atividade da
Companhia é interrompida alguns decênios depois, em 1759. A maior atenção
de Portugal em relação ao Brasil eram as fronteiras da Amazônia e as do Sul
do território. Desse modo, as políticas estabelecidas para estas regiões
acabaram por se estender ao conjunto do território, dando-nos, assim, o
sentido da mobilidade das fronteiras. O Tratado de Madri marcou o fim da
fase de expansão colonial para oeste da linha de Tordesilhas dividindo, em
áreas de influência, o rio da Prata para Espanha e o Amazonas para Portugal.
Esta expansão havia sido determinada pela exploração aurífera no interior da
colônia, mas na década de 1750 ocorre justamente o auge e também o declínio
da produção aurífera, quando o Brasil começava a superar Portugal em termos
de economia e demografia. Daí vem, então, toda a política modernizadora,
que não é apenas a do Marquês de Pombal, senão a da nova modernidade
iluminista pressionando o curso da historia. A posição de isolamento para a
região, determinada seja pela política dos latifundiários do gado que queriam
preservar seus domínios, seja pela política monárquica portuguesa, a quem
não interessava o desenvolvimento incontrolado da Colônia, ensaiava já a
ordenação geopolítica do espaço que aparece com mais nitidez no século
XIX.
O projeto de legislação indigenista no contexto das reformas pombalinas,
quando, entre 1757 e 1798, se organizou o Diretório de Índios, código
legislativo que extinguiu o sistema de missões e secularizou a administração
dos aldeamentos de índios e a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil,
estimulou a secularização das aldeias e sua integração na organização formal
das instituições urbanas européias: freguesias e vilas. As aldeias tornaram-se
vilas e suas terras foram repartidas. Desde 1654 se havia iniciado esta tendência
na administração urbana mas, em 1750, com o fim da ação missionária oficial
na região e com as novas determinações que a estabilização da posse da terra
ocasionava, começa, com maior determinação, a organização de novas

30
Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D. João V. Lisboa, 5 jun. 1731. AHU, Doc. 153:
1731, 05 de Junho, Lisboa, rolo 02, 232.
JESUÍTAS E MISSÕES 37

cidades. Tem início, então, uma política de mestiçagem entre índios e


portugueses como forma de aumentar a população das fronteiras. Os índios
se converteriam em súditos da Coroa, aculturados, assalariados e aptos para
trabalhar ou desempenhar funções militares. Os civis assumiriam a direção
das aldeias nas quais se elaborava esta política cultural racial e linguística,
proibindo-se a difusão da língua-geral tupi-guarani e formando escolas para
os jovens índios, e é quando, então, o moderno passa a ser o laico e civil.
O governo de Pombal termina em 1776 e durante esse tempo manteve
uma política dura contra índios, negros e mestiços, traduzidas em uma
estabilização do espaço e da economia sem eliminar as revoltas indígenas que
seguiram de forma intermitente no espaço riograndense. Em 1798, quando
havia menos de 20.000 índios nas aldeias da bacia amazônica e nos interiores
do Brasil, o Diretório dos Índios foi dissolvido diante das denúncias de
corrupção e abusos cometidos pelos administradores e demais autoridades.
Na época da abolição do Diretório, o Alvará de 23 de Novembro de 1799
concedia a posse da terra, a regulamentação interna da administração e a
condição civil aos índios aldeados. Foi justamente neste período que ocorreu
uma baixa demográfica na vilas e essas terras indígenas coletivas foram
espoliadas pelos colonos. Carta de 1804 do capitão-mor do Rio Grande, Lopo
Joaquim de Almeida Henriques, ao príncipe regente D. João, informa sobre a
inexistência de Corporações Religiosas na Capitania, havendo apenas visitas
irregulares de religiosos das corporações da Paraíba e Pernambuco. Enquanto
uma importante dinâmica econômica, política e social se desenvolvia nas
regiões do sudeste do país, desde finais meados do século XVIII, especialmente
Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, a cultura e economia açucareira com
centro em Pernambuco e Bahia se encerrava em seus processos internos
desenvolvidos ao longo dos séculos XVI e XVII.
A circunstância de fronteira experimentada pela Capitania do Rio Grande
ao longo de sua história colonial não foi vivida passivamente por nenhum de
seus setores – moradores, índios, oficiais. Seria nos caminhos da segunda
modernidade, a modernidade Iluminista, que desautorizou o discurso do
humanismo cristão, que haveria que buscar os novos problemas lançados à
região. Existe uma tensão entre as culturas que se deu no contexto da história
da América, mas também nas fronteiras européias, projetando uma dimensão
do processo não exclusiva ao mundo americano, que nos coloca na dimensão
da cultura moderna.
Contemplar esta cultura transtornada que se desenvolvia nas fronteiras
como fenômeno existente por direito próprio, certamente levou os
missionários a prescindirem das descrições idílicas, abundantes e generosas
do primeiro período e limitar-se ao que se poderia configurar como a ordem
do dia: administrar os conflitos. Quando estes se tornam intensos, a descrição
se desvia do discurso sobre a diferença étnica e se detém no que já é
propriamente a cultura local, tornando-se então inventário e diagnóstico da
realidade política. Deste modo, a compreensão, a última etapa do processo
38 MARIA EMILIA MONTEIRO PORTO

de conhecimento, vai derivar no entendimento do que ocorre e deve ser


feito, um momento bastante pragmático. Neste momento “a humanidade é
uma”30 nas cartas jesuíticas do Rio Grande porque todos os índios com os
quais contataram os padres eram compreendidos como integrados na ordem
humana do mundo enquanto um dever-ser: deviam adequar-se a uma
determinada ordem econômica e cultural que se vinha impondo
vitoriosamente desde a conquista da fronteira em 1597, e já antes, e que aos
jesuítas cabia administrar eticamente.

31
HANKE, Lewis. La Humanidad es una: estudio acerca de la querella que sobre la capacidad
intelectual y religiosa de los indígenas americanos sostuvieron en 1550 Bartolomé de
las Casas y Juan inés Sepúlveda. Ciudad del México: FCE, 1985 [1974].
39

POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO


HOLANDÊS: UMA ANÁLISE DOS DOCUMENTOS TUPIS
(1630-1656)1

Regina Célia Gonçalves2


Halisson Seabra Cardoso3
João Paulo Costa Rolim Pereira4

este ensaio apresentamos os resultados da análise de dois


conjuntos de fontes de origem indígena, escritas por índios
Potiguara 5 em sua língua nativa, o Tupi, que são pouco
conhecidas e/ ou discutidas pela historiografia brasileira. Através
delas, e a partir da argumentação sustentada em princípios
religiosos e políticos, pretendemos perceber a perspectiva dos indígenas em
relação às alianças estabelecidas com os europeus durante a guerra luso-
holandesa (1630-1654)6.
1
Este texto é resultado do desenvolvimento do projeto de pesquisa de mesmo título,
financiado pelo PIBIC/ UFPB/ CNPq e executado entre agosto de 2007 e julho de 2009.
2
Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do
Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Paraíba. Líder dos Grupos de Pesquisas Estado e
Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e Saberes Históricos:
Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios (PPGH-UFPB/
Diretório CNPq). E-Mail: <reginacg@terra.com.br>.
3
Graduando em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/
CNPq. E-Mail: <passolargo_16@hotmail.com>.
4
Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/
CNPq. E-Mail: <jpauloramones@gmail.com>.
5
Antes da conquista portuguesa da foz do Rio Paraíba, em 1585, o território Potiguara
estendia-se pela faixa litorânea compreendida entre este rio e o baixo Jaguaribe, no
Ceará. A partir daquela data a ocupação colonial foi, aos poucos, estendendo-se para
o norte e promovendo o despovoamento indígena da área. Os remanescentes dos
Potiguara vivem atualmente nos municípios da Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto,
no litoral norte da Paraíba. “Variantes do nome nos documentos históricos são: Potygoar,
Potyuara, Pitiguara, Pitagoar, Petigoar, entre outros. Não há acordo sobre o significado do
nome, que geralmente é traduzido como ‘pescadores de camarão’ ou ‘comedores de
camarão’”. MOONEN, Frans & MAIA, Luciano. Mariz. Etnohistória dos Índios Potiguara.
João Pessoa: Procuradoria Geral da República - PB/ SEC-PB, 1992, p. 93.
6
Para um entendimento geral, não só das razões que levaram à ocupação das Capitanias
do Norte (Pernambuco, Paraíba e Rio Grande) do Estado do Brasil pela Companhia das
Índias Ocidentais, mas também da guerra travada pela disputa do território e da
organização do Brasil holandês, é indispensável consultar as obras de Evaldo Cabral
de Mello. Ver: MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste,
1630-1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio:
o imaginário da restauração pernambucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
40 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

O primeiro conjunto é composto pelas chamadas “cartas Tupi”, escritas


em 1645 e 1646, em meio à Guerra de Restauração, por Pedro Poty7, cristão
reformado, Regedor dos Índios da Paraíba, aliado dos holandeses e Antonio
Felipe Camarão8, cristão de fé católica, Capitão-mor dos Índios, súdito fiel do
rei de Portugal, ambos da nação Potiguara. Esses documentos fazem parte
de um conjunto de cartas que foram trocadas entre os principais líderes das
tropas de índios que se encontravam em lados opostos no conflito luso-
holandês9. Ainda no século XVII foram enviadas para a Holanda, aos cuidados
dos administradores da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) no intuito de
que fossem traduzidas por algum dos religiosos protestantes que estiveram
em missão no Brasil e que, portanto, tivessem conhecimento da língua Tupi.
Por fim, coube ao pastor Johannes Eduardus fazer a tradução.
Encontradas, na década de 1880, no arquivo da WIC em Haia, pelo
pesquisador pernambucano José Higino Duarte, que as fez copiar, algumas
dessas cartas, traduzidas do tupi para o português, foram, em 1906,
publicadas pelo historiador Pedro Souto Maior, na Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (vol. XII) sob o título “Cartas
Tupis dos Camarões”. Em nossa pesquisa usamos também a edição de Darcy
Ribeiro e Carlos Moreira Neto10. A partir de inferências que faz com base nas
Atas Diárias do Governo Holandês do Recife, Frans Schalkwijk11 afirma que,
além das publicadas por Souto Maior, existiriam outras cartas (dez no total),
parte delas traduzida para o holandês, nos arquivos da Holanda.
A carta de Pedro Poty é uma resposta às várias correspondências enviadas
por Antonio Felipe Camarão e seus subordinados. Através dela podemos
concluir que Poty vinha sendo constantemente instado a deixar os holandeses
e se submeter à autoridade da Coroa portuguesa. Ele, por sua vez, responde
rebatendo os argumentos do Capitão-mor, desafiando-o a fazer o mesmo e
7
Em 1625, depois da derrota na Bahia, a esquadra holandesa comandada pelo Almirante
Hendrykzoon aportou na Baía da Traição (Capitania da Paraíba) onde recebeu o socorro
dos Potiguara que ali viviam. A repressão portuguesa que se seguiu dizimou inúmeros
índios e escravizou outros tantos. Vários fugiram para os sertões, enquanto que alguns
foram levados, pelos holandeses, para a Europa onde foram educados e convertidos
ao cristianismo sob a fé da igreja reformada. Dentre esses estava Pedro Poty que
retornaria, em 1634, para organizar e comandar parte de seu povo na luta contra os
portugueses, ao lado dos holandeses. Sobre o tema, consultar: GONÇALVES, Regina
Célia. Guerras e Açúcares: política e Economia na Capitania da Paraíba (1585-1630).
Bauru: Edusc, 2007, p.83-85.
8
Sobre sua biografia, consultar: MELLO, José Antônio Gonsalves de. D.A ntonio Felipe
Camarão: capitão mor dos índios da costa do Nordeste do Brasil. Recife: Universidade
do Recife, 1940.
9
Apesar de haver outras cartas enviadas por subordinados de Antonio Felipe Camarão,
tais como o Sargento-mor Diogo Camarão, para Pedro Poty e Antônio Paraupaba, nos
restringimos a analisar apenas as que foram assinadas por ele.
10
RIBEIRO, D. & MOREIRA NETO, C. de A. A fundação do Brasil: testemunhos: 1500-1700.
Petrópolis: Vozes, 1992.
11
SCHALKWIK, F. L. Igreja e Estado no Brasil Holandês. 3ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2004,
p. 249.
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 41

se unir aos holandeses:


Eu me envergonho da nossa família e nação ao me ver induzido por
tantas cartas vossas à traição e deslealdade, isto é, a abandonar os
meus legítimos chefes, de quem tenho recebido tantos benefícios
(...) Não, Felippe, vós vos deixais illudir (...) Abandonai, portanto,
primo Camarão, esses perversos e perigosos Portugueses e vinde
juntar-vos comnosco (...) Formaremos uma força respeitável e
expulsaremos esses trapaceiros e traidores. Mantenhamo-nos com
os extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na nossa terra
(...). [Sou] christão e melhor do que vós: creio só em Christo, sem
macular a religião com idolatria, como fazeis com a vossa. Aprendi
a religião christã e a pratico diariamente, se vós a tivésseis
aprendido, não servirieis com os perfidos e perjuros portugueses
(...). 12
A missiva de Camarão é uma circular enviada a todos os índios aliados dos
holandeses e, nela, ao mesmo tempo em que os ameaça e acusa Pedro Poty e
Antonio Paraupaba13 de heresia, insiste em oferecer uma nova oportunidade
de arrependimento conclamando-os a aceitarem a autoridade da Coroa
portuguesa e da igreja católica. Camarão se põe, na carta, como o verdadeiro
chefe indígena Potiguara que tem por obrigação zelar pelos seus: “Não posso
deixar de cumprir as promessas e deveres contrahidos com meus avós, isso é, de
vos guardar assim como a todos os da nossa raça (...)”. Nesse sentido, em todo
o texto mostrará grande preocupação com a “salvação” desses irmãos
“insurgentes”, fosse ela física ou espiritual, tentando convencê-los a deixarem
os holandeses. Acusa Pedro Poty e Antônio Paraupaba de os induzirem à
“perdição”, por serem tão “hereges” quanto os holandeses. É bastante
emblemática a maneira como finaliza a carta:
E pensai na vossa salvação, porquanto; como verdadeiros christãos
que sois, tendes não somente de cuidar da vida mas também da
alma, e deveis saber que eu, vós e todos que estão convosco somos
subditos de Sua M. Catholica o Rei de Portugal (...).14
É importante percebermos que essas expressões de cunho religioso usadas
nas cartas vão além de uma contenda entre católicos e protestantes. Podemos
considerar que, ao proferirem tais considerações acerca de suas respectivas
crenças, e atacando a fé do outro, estão, implicitamente, evidenciando um
posicionamento político. Essa idéia fica ainda mais patente no segundo
conjunto documental por nós analisado.
12
SOUTO MAIOR, Pedro. Cartas Tupis dos Camarões. Revista do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, IAHGP, v.XII, 1912.
13
Filho de Gaspar Paraupaba que, junto com Poty e outros índios da Baía da Traição, foi
levado para a Holanda em 1625 e, como ele, ocuparia papel central no comando dos
Potiguara aliados dos holandeses durante a guerra no Brasil.
14
SOUTO MAIOR, Cartas Tupis...
42 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

Este é constituído pelas “Remonstrâncias” de Antônio Paraupaba, Regedor


dos Índios do Rio Grande durante o governo holandês. Trata-se de duas
representações em que pedia, aos Estados Gerais15, ajuda aos indígenas aliados
dos holandeses que, após a capitulação em 1654, haviam se refugiado na
Serra da Ibiapaba, sertão do Ceará. Esses documentos também foram
traduzidos por Souto Maior. Concentramos, no entanto, nosso estudo na
versão do pesquisador holandês Lodewijk Hulsman reproduzida em artigo
publicado, em 2006, na Revista de História da Universidade de São Paulo.
Além de proceder à atualização da língua conforme o português corrente, o
autor compara a versão de Souto Maior com o texto original que se encontra
nos arquivos holandeses, identificando novos trechos que haviam sido
omitidos e que são importantes para o avanço nos estudos a respeito da
relação entre os Potiguara e os holandeses. As “Remonstrâncias” foram
escritas logo que Paraupaba retornou aos Países Baixos, ao final do conflito
luso-holandês no Brasil, em 1654. Ainda naquele ano escreveu sua primeira
exposição, um curto requerimento aos Estados Gerais, em nome dos Potiguara
que sempre lhes haviam sido fiéis e que assim se mantinham, embora
continuassem a sofrer, mais do que antes, a perseguição dos portugueses.
Dois anos mais tarde, ainda vivendo na Holanda, escreveu sua segunda
exposição e, nela, ficam explícitos o seu descontentamento e a sua indignação
com as autoridades pelo fato de não terem ainda atendido o seu pedido de
ajuda. Por conta disso, faz uma espécie de retrospectiva das relações e alianças
firmadas entre seu povo e os holandeses. Na realidade o seu intuito, ao fazer
uma “renovação da memória”, é mostrar que os Potiguara foram fiéis e
cumpriram suas obrigações em relação aos Estados Gerais e à Igreja Cristã
Reformada, conforme haviam sempre “acordado”. Trata-se da reclamação
que um parceiro faz a outro pelo descumprimento de um trato. Cobra o
cumprimento, pelos holandeses, da sua obrigação de zelar pelos Potiguara
enquanto estes fossem fiéis ao estado e à fé reformada:
Declarando em nome de Deus que isso será feito com nenhum outro
objetivo no mundo a não ser o de renovar a memória daqueles
nessa presente reunião ilustre de V.as Ex.as, que ainda se lembra do
que se passou, e informar àqueles que desconhecem, sobre os
serviços prestados por essa nação com toda lealdade, para assim
despertar nos corações de ambos uma compaixão cristã para com
esta nação (...) queiram V.as Ex.as observar que tudo que essa nação
miserável encontrou no serviço das V.as Ex.as e que foi agüentado e
suportado por ela tão corajosamente, não foi feito por um povo
sem conhecimento do Deus verdadeiro, mas por um povo que com

15
Nome pelo qual era conhecido o conselho soberano da República dos Países Baixos
Unidos. HULSMAN, Lodewijk. Índios do Brasil na República dos Países Baixos: as
representações de Antônio Paraupaba para os Estudos Gerais. Revista de História. São
Paulo, n.154, 2006, p.39.
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 43

a aliança com V.as Ex.as também abraçou e adotou a verdadeira


Religião Reformada Cristã.16
Além disso, ao longo do texto nos deparamos com várias expressões que
aludem a ensinamentos bíblicos, a exemplo da “parábola dos talentos
escondidos”. Paraupaba a utiliza para lembrar as autoridades neerlandesas
que elas têm um dever, diante de Deus, de promover a propagação da
verdadeira fé: “Como agradou a sua Majestade Divina chamar e usar as V.as Ex.as
(que também foram redimidos do paganismo) para pregar a eles [os índios] o
seu evangelho”17. Ou seja, argumenta que eles têm que ajudar àquele povo
que se converteu ao protestantismo por sua causa, e que sem o seu auxílio,
se acabará, será destruído, e toda a obra evangelizadora terá sido em vão, e
Deus, enfim, haverá de os chamar para prestar contas dos “talentos” que não
utilizaram. O interessante aqui é notar que Paraupaba utiliza a parábola cristã,
ensinada pelos holandeses, e a reverte em uma retórica própria para cobrá-
los em sua própria “linguagem”.
Contudo, aquilo que nos parece mais emblemático nesse documento é a
análise que faz da figura de Pedro Poty que, ao tempo desta exposição, já
havia sido morto pelos portugueses. Ele o usa como um exemplo de fidelidade
e respeito à aliança firmada entre as duas nações, e que, sobretudo,
pressupunha a fidelidade aos Estados Gerais e à fé reformada:
Aquele Grande Deus de misericórdia fortaleceu aquela cana frágil
(...) transformando-a em um forte pilar da fé (...) Finalmente, que
estava pronto a morrer firme no seu alto juramento feito a Deus e
aos Estados Gerais (...) morri como súdito fiel. E dizei aos da minha
nação que os exorto a permanecerem por toda a vida fiéis a Deus e
aos Estados Gerais.18
Por que é tão importante para Paraupaba, sempre que possível, reafirmar
a lealdade à fé reformada? Além de ser uma espécie de “cláusula contratual”,
nos parece que, ao fazê-lo, está demonstrando também um posicionamento
político e militar, que precisa ser constantemente reforçado, de solidariedade
àqueles com quem compartilhavam o objetivo de derrotar os portugueses.
Se lermos os documentos de maneira menos cuidadosa, ou de uma forma
mais literal, poderíamos concluir que Poty, Paraupaba e Camarão,
incorporaram de tal maneira a cultura cristã européia, que acabaram por
professar sua fé e sua lei para si. Contudo, a pesquisa nos revelou que algo na
cultura Tupi abria a possibilidade de adesão à novas formas de interações, e
isso, de certa maneira, possibilitou a articulação com outros povos, o que
lhes permitiu, inclusive, resistirem na luta em defesa do seu território.
Segundo Eduardo Viveiros de Castro, a cultura Tupi assim se coloca, pois
é receptiva à presença do outro, e quanto a isso é bastante diferente da
16
HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 55.
17
HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 55.
18
HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 59.
44 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

cultura cristã para a qual o outro é uma ameaça constante e precisa ser
transformado. Nesse sentido, quando aqueles líderes utilizam um discurso
com elementos alheios à sua cultura, estão interagindo e dialogando com
aquela a partir da sua própria. Portanto, ao lermos os documentos, temos
que ser sensíveis para perceber que ali se encontra o produto de contatos
culturais complexos, rearticulados através de anos de convivência – quase
sempre não pacífica, muito pelo contrário, em que ambos os lados se
transformam e são transformados.
Os estudos realizados por inúmeros pesquisadores, dentre eles, Florestan
Fernandes 19 , John Manuel Monteiro 20 e Eduardo Viveiros de Castro 21
ressaltaram que, pelo menos os Tupi, o grupo que é melhor conhecido por
nós, emergem, desde os primeiros relatos dos cronistas quinhentistas, como
portadores de um cultura especialmente atenta à lógica de outros povos.
Viveiros de Castro no ensaio “O mármore e a murta: sobre a inconstância da
alma selvagem”, aprofunda a análise desta característica indígena e nos
fornece a chave para o entendimento da autoconstrução de sua identidade –
especialmente dos Tupi –, a partir da análise do Sermão da Sexagésima de
Antonio Vieira (1655), em que o pregador se refere aos índios comparando-
os à murta, que não se deixa esculpir, a não ser aparentemente e por breve
tempo, nem pelo mais competente dos jardineiros. Tal como a murta, afirma
um desalentado Vieira, os “brasis” se deixam evangelizar para, logo em
seguida, retomarem os antigos hábitos, o seu ancestral modo de vida,
esquecendo todos os ensinamentos dos soldados de Cristo22. Neste sermão,
o jesuíta faz uma comparação entre a murta e o mármore, que representam,
respectivamente, o indígena do Brasil e o nativo do Oriente. Essa analogia se
refere à aparente “facilidade” com que os missionários catequizavam os índios,
assim como o jardineiro trabalharia uma escultura de murta. Dizia Vieira:
Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina
da fé. Há umas nações naturalmente duras, tenazes, e constantes,
as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus
antepassados; resistem com as armas, duvidam com o
entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam,
argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem; mas,
uma vez rendidas, uma vez que recebem a fé, ficam nelas firmes e
constantes, como estátuas de mármore: não é necessário trabalhar
19
FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2. ed. São
Paulo: Pioneira; Edusp, 1970.
20
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São
Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MONTEIRO, John Manuel. Tupis, tapuias
e historiadores: estudos de História Indígena e do indigenismo. Tese de Livre Docência.
Universidade Estadual de Campinas, 2001.
21
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de
Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
22
VIEIRA, António. Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001, p. 53-
70.
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 45

mais com elas. Há outras nações, pelo contrário – e estas são as do


Brasil – que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade
e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem
resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a
tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza
antiga e natural, e a ser mato como dantes eram (...).23
Foi buscando desvendar essa dita inconstância que Viveiros de Castro
levanta a tese de que os Tupi tinham uma maneira totalmente diferente do
modo ocidental de se relacionar com outras culturas. Enquanto, para os
ocidentais, a sociedade tem que se preservar para não perder sua identidade,
pois, uma vez que um dos elementos que a constituem seja modificado, tende
a acreditar que ela já não é mais a mesma e, principalmente, que não voltará
a ser a mesma, para os Tupi, a lógica é inversa. Ela pressupõe a interação com
o outro. A alteridade é uma constante para essa sociedade; nesse sentido são
povos abertos a novas formas, assimilam e incorporam práticas e costumes
do outro, mas isso não os torna menos si próprios, ao contrário, agindo
assim, reafirmam a sua cultura:
Nossa idéia de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada
de estátuas de mármore, não de murta (...) entendemos que toda
sociedade tende a perseverar no seu próprio ser (...), mas,
sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a
memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a
cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras
que si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm
volta (...) talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é a
relação aos outros, não a coincidência de si mesmas, nada disso
faça o menor sentido.24
Essa “inconstância” indígena no tocante à guerra também impressionava
os europeus, que tinham dificuldade para compreender a facilidade com que
os grupos se aliavam para guerrear e, ao mesmo tempo, desfaziam tais alianças
se unindo a outros para lutarem contra os “ex-aliados”. Apesar disso, no
entanto, os europeus souberam utilizar astutamente esta característica dos
Tupi a seu favor ao longo da colonização.
Enfim, o que julgamos importante destacar é que este período foi marcado
por um intenso “processo de trocas” culturais, um verdadeiro contato entre
os mundos e, a complexa comunicação dos índios com o cristianismo e as
alianças militares com os europeus, são exemplos que reafirmam tal
intensidade. Tais aspectos revelam, também, o vigoroso caráter “negociador”
dos povos Tupi, que fica muito visível nas alianças estabelecidas com os
europeus; são provas de que os índios atendiam a intenções próprias nesses
diversos momentos. Eles processavam aspectos da lógica da guerra européia
23
VIEIRA, Sermões, p. 54.
24
CASTRO, A inconstância..., p. 195.
46 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

em razão de suas lógicas tradicionais, se mostrando hábeis interlocutores


com os costumes dos conquistadores. A assimilação do que é “do outro”, das
lógicas e características alheias já era comum das tradições indígenas.
Os relatos mais antigos sobre eles, como já dissemos, são elucidativos a
este respeito, e é possível perceber tal característica, por exemplo, nas práticas
rituais antropofágicas. Isso se evidencia em relatos como o de Hans Staden25.
O guerreiro ali sacrificado seria ingerido em banquete ritual partilhado pelos
integrantes do grupo e as suas qualidades seriam, então, absorvidas por
eles. Dessa forma, se o cativo demonstrasse covardia frente à morte iminente,
revelando-se fraco e comportando-se de forma inadequada para um bom
guerreiro, os comensais se sentiam “enojados”, incomodados por assimilarem
uma característica negativa. Outra prática em que se faz notar a capacidade
de percepção da alteridade pelos índios e seu cuidado quanto a isto eram
seus tabus alimentares. Eles se privavam da ingestão de animais que
demonstrassem fraqueza e lentidão, por exemplo, pois ambas eram
características que não coadunavam com as de um valoroso guerreiro.
O espanto do europeu diante dessa “inconstância” é, por exemplo, ainda
visível dezenove anos depois do contato com os holandeses, quando o Alto
Conselho do governo da WIC no Brasil se refere a seus aliados, Pedro Poty e
Antônio Paraupaba, como sendo “mais perversos e selvagens na maneira de
viver do que os outros brasilianos”26, ou ainda que os cronistas do século XVII –
inclusive catequizadores católicos – se referindo aos índios aliados dos
portugueses, não cansem de mencioná-la porque continua a dificultar o bom
andamento da conversão deste gentio.
Talvez o mais interessante na discussão sobre o nosso corpus documental
seja o fato de que seus autores escrevem como “membros” inseridos na
sociedade colonial, inclusive usando as regras de conduta da mesma para se
comunicarem. Apesar disso, no entanto, é possível perceber evidências da
tradição indígena que revelam um entendimento claro, por parte dessas
lideranças, do que significava a estrutura social que se implantava nas terras
da “América portuguesa” depois da conquista e da colonização européia. Poty
expressa a visão indígena: “Vinde, pois, enquanto é tempo para o nosso lado
afim de que possamos com o auxílio dos nossos amigos viver juntos neste paiz que
é a nossa pátria e no seio de toda a nossa família”, ou ainda mais esclarecedor,
“Mantenhamo-nos com os extrangeiros que nos reconhecem e tratam bem na
nossa terra”, diz Poty falando dos holandeses27.
Como já dissemos, alianças e coalizões, em diversos âmbitos das suas
sociedades, já eram comuns entre os povos Tupi, que mantinham acordos
intergrupais e extragrupais com o intuito, dentre outros, de servirem-se na
guerra. O fato é que essas alianças não implicavam a perda de suas terras
para os novos aliados e, talvez, tenha sido por isso que apoiaram os franceses
25
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. São Paulo: Beca, 2000.
26
HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 43,
27
RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230. Destaques nossos.
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 47

– envolvidos no negócio do pau-brasil – que chegavam sem pretensões de


ocupação e domínio territorial (pelo menos em princípio) e, depois, os
holandeses que, por mais que se empenhassem em uma colonização
propriamente dita, tomaram o cuidado de manter políticas essenciais para a
manutenção do apoio indígena, inclusive lhes “permitindo viver como índios”.
Essa política talvez explique, inclusive, a manutenção dos nomes indígenas –
Poty e Paraupaba – dos Potiguara aliados dos holandeses, em contraponto
aos católicos conversos, inclusive no nome, Antonio Felipe e Diogo Camarão,
aliados dos portugueses.
O fato é que, nessa passagem de Poty, é possível perceber um dos aspectos
da visão indígena em relação aos holandeses, a de que esses seriam, um
aliado “estrangeiro”, externo, portanto. Um aliado que conhecia e respeitava
os direitos indígenas e que estava disposto a ajudar a expulsar os portugueses
e, ao mesmo tempo, viver em paz na terra. Logo, a intenção era unir-se com
estes “estrangeiros” “afim de que possamos com o auxílio dos nossos amigos
viver juntos neste paiz que é a nossa pátria”28. A posse da terra seria, então,
dos detentores de direito, isto é, os que aqui estavam antes mesmo da chegada
de qualquer caravela. Este era um argumento muito forte.
Ao apontarmos o caráter negociador das sociedades nativas da América
portuguesa, da vinculação do que era tradicional ao que era novo, falamos
também da capacidade dessas mesmas sociedades de perceber, assimilar e
reconhecer a alteridade; sociedades que elaboram a re-interpretação do novo
e o enquadram, em certa medida, no que lhes é tradicional. Os casos em que
os índios interagem com a cultura dos colonizadores na expectativa de
obterem algo em troca são inúmeros e são relatados tanto pelos cronistas da
igreja empenhados na conversão e catequização dos índios, como Vieira,
quanto por pessoas vinculadas aos setores militares, às guerras, inclusive
com e contra nativos, como Hans Staden. Os casos não eram poucos e, mais
uma vez, Viveiros de Castro é elucidativo a este respeito. A inconstância da
alma selvagem está geralmente presente em qualquer escrito que mencione
os primeiros habitantes destas terras. Eles agem, procuram, ao longo do
tempo, garantir sua sobrevivência e a de seu povo em um novo sistema social.
É importante lembrar que esta característica não é exclusivamente indígena,
nem muito menos só dos indígenas aliados aos holandeses. Outros povos
também a manifestavam, inclusive os colonizadores. Exemplo disso foi a
atuação da Companhia de Jesus na catequização, na América e na Ásia, ao
fazer uso das tradições dos povos locais para levar adiante a sua intenção de
remissão dos “bárbaros”.
Na passagem da segunda exposição de Paraupaba aos Estados Gerais
falando sobre a situação de Poty no cativeiro, tal aspecto fica evidente:
Além disso, [os portugueses] empregaram todos os meios para que

28
RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230.
48 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

Poti [sic] induzisse os outros da sua nação, que se conservavam fiéis


no serviço de V.as Ex.as, a passarem para o partido deles,
prometendo dar-lhes imediatamente a patente de capitão e
garantindo-lhes maiores vantagens para o futuro.29
Estes benefícios são, sem dúvida, uma das molas mestras das alianças
indígenas. A guerra estava em suas veias sociais e, cerca de um século e meio
antes, um novo participante direto havia entrado neste processo. As alianças
e as dissidências neste mundo onde isto já era comum, não podiam ser muito
diferentes neste caso específico.
Na organização social dos povos nativos americanos, que Florestan
Fernandes estudou especificamente quanto aos tupinambás, povos que
sintetizavam os fundamentos sociais da maior parte dos povos tupis da região
nordeste do Brasil, a guerra desempenhava, sem resquício de dúvida, um
fator crucial. Ela atendia a lógica de uma relativa “subordinação” de aldeias,
garantia alguma vantagem com relação ao mantimento e o controle de
melhores nichos ecológicos, fundamentava, em parte, a estrutura dos núcleos
familiares, definia a organização de trabalho, incidia sobre a educação das
crianças e permeava o imaginário a partir da concepção de morte que advinha
do campo de batalha. Não é à toa que, como demonstram pontos coincidentes
nos relatos dos cronistas dos séculos XVI e XVII, a guerra era um fator social
de extrema importância nestas sociedades.
Levando em consideração toda a influência e importância da guerra em
uma sociedade como essa havemos de convir que colocá-la em um novo
confronto não haveria de ser, nem seria, uma das coisas mais difíceis do
mundo; desde que se conhecesse a fundo parte dos processos necessários
para isso. Foi o que fizeram os colonizadores europeus. A aliança com os
indígenas respondia a grande parte do problema de estarem em terras
estranhas, cercados por potenciais inimigos. Atendia também à necessidade
de contingentes militares para a operação da conquista e do estabelecimento
da colonização.
Assim, os índios serviam a este fim motivados por algo que já lhes era
próprio, que era característico de sua própria sociedade e uniam suas lógicas
tradicionais à dos recém-chegados para tentar obter proveito de toda essa
situação, ao mesmo tempo em que se defendiam. Logo, se faz necessário
também analisar o outro lado deste processo, já que seu usufruto não foi
benefício exclusivo dos colonizadores. A guerra aos inimigos, como já foi
dito, era intrínseca à sociedade indígena. As alianças com outros grupos eram,
muitas vezes, definidoras destas guerras contra seus inimigos.
Essa constante de guerras e alianças fazia parte da dinâmica dos povos
tupis, e é nesta dinâmica que os europeus são inseridos. Em princípio, os
europeus foram inimigos ou aliados dos índios contra outros índios, depois
com a presença de outros europeus, inimigos entre si, estes passaram também
29
RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 231.
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 49

a serem incorporados à mesma lógica, vistos como potenciais aliados contra


outros brancos. Sendo assim, o apoio destes novos aliados que, saídos do
mar, portavam artefatos nunca vistos, mas bastante úteis, acabava sendo
considerado importante pelos grupos nativos.
A força motriz da guerra indígena era a vingança. Não é à toa que tão
repetidas vezes se remetam a esta nos documentos tupis; ela se mantém
“fresca” na memória mesmo com toda a aproximação com os europeus e
toda intervenção de suas culturas. Esta vingança era alimentada no decorrer
das gerações e apregoada nas suas tradições pela lembrança dos
antepassados, pelo embate iminente entre tribos rivais que, por sua vez,
tinham uma origem comum, como nos revelam, entre outras pistas, alguns
aspectos da língua tupi. A vingança se faz presente no cotidiano, é alimentada,
desde a infância, pela imagem dos guerreiros de destaque das tribos, com
seus nomes enormes e seus corpos marcados por tatuagens, ambos
decorrentes da assimilação dos daqueles inimigos tornados reféns e, depois,
sacrificados. É avivada também pelo sacrifício ritual. Não só o ato da bordoada
é símbolo do desejo de vingança, mas todo o processo que envolve a troca de
xingamentos, o juramento que, por sua vez, o refém faz de que também será
vingado até, e principalmente, o diálogo final entre as partes diretamente
envolvidas, a vítima e seu carrasco. A vingança, no entanto, não era apenas
uma maneira de se eliminar as tensões entre os grupos pela morte de um
parente, como entende Florestan Fernandes. Mais que isso, era a reafirmação
dos laços sociais e das alianças. Ela não se encerrava na morte do cativo,
antes ela era renovada, envolvento todo o grupo naquele evento: “(...) a
continuidade da vindita era fundamental para uma sociedade em que sua única
cerimônia coletiva tinha, em seu centro, o inimigo, e não a imagem unificadora
da chefia”.
Como se pode perceber, a reutilização de aspectos da tradição indígena,
adicionando-se a esta, outros de culturas alheias, não era algo incomum entre
eles. Um bom exemplo é a “re-interpretação”, por parte deles, da vingança
relacionada ao processo ritualístico da guerra. Como já vimos, a vingança
ritualística era culturalmente a força motriz das guerras entre nações
indígenas, já que cumpria a função de realizar o intuito dos homens de
vingarem seus antepassados; vingança que se processava por meio da
captura de reféns a serem sacrificados e devorados em cerimônias e banquetes
rituais. Podemos, à luz disto, enunciar o fato de que a vingança seria, então,
obra dos homens, decorrente de responsabilidades adquiridas em relação
aos seus antepassados.
Após o contato com os europeus e, depois das constantes e inúmeras
ondas evangelizadoras por parte das igrejas cristãs com intuito de conversão
– em parte “aceitas” pelos indígenas –, a propagação dos aldeamentos, a
30
FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura Tupinambá: da etnologia como
instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela C. da Cunha
(org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 393.
50 R. C. GONÇALVES, H. S. CARDOSO & J. P. C. R. PEREIRA

educação dos índios pela igreja, as capturas com pretensões escravistas, as


descidas dos tapuias, dentre outros fatores, os convertidos e as comunidades
aldeadas que, então, começavam a engrossar as fileiras das tropas de batalha
dos europeus, passaram a lidar de outra maneira com a vingança. Paraupaba,
cristão reformado, educado nos Estados Gerais, Regente das tropas indígenas
do Rio Grande, cita a bíblia e expressa esse novo sentido:
O primeiro contato com V.as. Ex.as foi pago tão caro que esta nação
pode dizer com razão que a sua primeira união com este Estado foi
assinada e selada, de sua parte, com o sangue das suas mais
valorosas jóias, através do ódio eterno e intransigente contra aqueles
Portugueses sanguinários. Quais torturas, quais tormentas e quais
massacres eles sofreram e suportaram desde aquele tempo até a
chegada do General Waerdenborgh. Nem a língua pode falar, nem
a caneta pode escrever. Só o conhece o onisciente Deus que diz: a
vingança é Minha (...).31
Esta é apenas uma das muitas passagens dos documentos Tupis que se
referem à vingança a partir deste ponto de vista. Agora, quem supre esta
necessidade é o deus cristão. Podemos nos perguntar: o que vemos neste
caso, em vez de uma “re-interpretação” não seria uma sobreposição da cultura
européia em detrimento da cultura dos nativos da América portuguesa? Na
verdade não. Parece-nos que o que mudou foi o agente da vingança, porém,
o processo permaneceu em clara relação com o formato anterior no sentido
de que ainda causava, sob uma perspectiva cultural, certa influência sobre a
mente dos aborígines. Esse aspecto também fica explícito, por exemplo, nas
palavras de Poty: “Os ultrajes que nos têm feito mais do que aos negros e a
carnificina dos da nossa raça, executada porelles na bahia da Traição, ainda
estão bem frescos na nossa memória”32. As guerras continuaram ocorrendo,
porém, agora, respondendo aos desígnios divinos com forte caráter
ritualístico.
Nestes documentos encontramos mais do que as impressões destes
indivíduos sobre o conflito ou sua conjuntura. Neles observamos uma retórica
peculiar pautada em argumentos de diferentes naturezas, nos quais podemos
perceber elementos culturais dos agentes envolvidos na guerra. Para nós, tal
presença expressa o profundo contato, quase nunca pacífico, que os
indígenas da região em que ocorreu o conflito tiveram com os portugueses
ao longo de um século, desde o início da colonização na década de 1530, e
com os holandeses, desde o início da guerra, em 1630. Procuramos, assim, o
entrelaço dos elementos culturais dos agentes envolvidos, para perceber de
que maneira a cultura do outro foi sendo incorporada e rearticulada conforme
se intensificavam os contatos e, conseqüentemente, os conflitos. É possível
observar no discurso elaborado por lideranças indígenas que estavam

31
HULSMAN, Índios do Brasil..., p. 56. Destaque nosso.
32
RIBEIRO & MOREIRA NETO, A fundação..., p. 230.
POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DO DOMÍNIO HOLANDÊS 51

diretamente ligadas às esferas de comando, e que, portanto, tinham o


conhecimento das conjunturas interna e externa dos acontecimentos, as
rearticulações simbólico-culturais que fundamentaram a política de alianças
que estabeleceram com os europeus.
Além de nos darem uma idéia de como aqueles agentes conheciam bem
toda a conjuntura da guerra, tecendo argumentos de variada natureza para
convencerem seus interlocutores, os documentos nos revelam aspectos dos
mais diversos a respeito da relação entre nativos, portugueses e holandeses.
Ao lermos esse material nos saltam aos olhos várias passagens em que os
autores fazem uso de expressões provenientes, por exemplo, da doutrina
cristã – seja católica, como a dos portugueses, ou reformada, tal qual a dos
holandeses. Perceber isso é imprescindível para compreendermos o contato
estabelecido entre os agentes, atentando para a dinâmica de suas relações.
Considerando essa relação, analisamos o discurso cristão/ocidental presente
na documentação, observando de que maneira aqueles indígenas se
apropriaram de argumentos dos seus aliados, declarando a todo o momento
a fé do outro para si, rearticulando-os a partir de elementos da sua própria
cultura, criando um discurso próprio.
Nesse sentido, questionamos o mito da passividade indígena, recorrente
durante longo tempo na historiografia brasileira, mas que, infelizmente, ainda
está presente na cultura histórica de grande parte da nossa sociedade.
Buscamos mostrar que, ao contrário do papel de coadjuvantes atribuído aos
povos indígenas por aquela historiografia, não apenas na ocasião dessa
guerra, mas também em toda a formação histórico-social do Brasil, na nossa
perspectiva, estes são agentes, e como tais, ativos em todo o processo. São
sujeitos que operam e continuam a operar com certo grau de autonomia e
capacidade de decisão, tanto que, dependendo do posicionamento tomado
por eles, como podemos verificar em diversos momentos do período que
estudamos, alguns episódios estariam fadados ao sucesso ou ao fracasso.
Assim, os aspectos característicos da religião cristã, contidos nos
documentos, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, não
significam simplesmente mais um modo de submissão indígena à cultura
européia, mas, também, podem ser lidos como um artifício usado para
firmarem alianças que lhe fossem úteis, tanto com os católicos portugueses
quanto com os reformados batavos Desta forma, aquilo que pareceria
estritamente argumento ou simples retórica religiosa, para nós, marca um
posicionamento político dessas lideranças indígenas frente ao conflito que
ocorre em suas terras ancestrais.
53

VIDAL DE NEGREIROS:
UM HOMEM DO ATLÂNTICO NO SÉCULO XVII1
Ângelo Emílio da Silva Pessoa2
De André Vidal direi a V.M. o que não atrevi até agora, por me não apressar; e,
porque tenho conhecido tantos homens, sei que há mister muito tempo para se
conhecer um homem. Tem V. M. mui poucos nos seus reinos que sejam como
André Vidal; eu o conhecia pouco mais que de vista e fama: é tanto para tudo o
demais como para soldado: muito cristão, muito executivo, muito amigo da
justiça e da razão, muito zeloso do serviço de V.M. e observador das suas reais
ordens, e sobretudo muito desinteressado, e que entende mui bem todas as
matérias, posto que não fale em verso, que é a falta que lhe achava certo ministro
grande da corte de V.M.
Pelo que tem ajudado a esta cristandade lhe tenho obrigação; mas pelo que toca
ao serviço de V.M. (de que nem ainda cá me posso esquecer) digo a V.M. que
está André Vidal perdido no Maranhão, e que não estivera a Índia perdida se
V.M. lha entregara.
Carta do Pe. Antônio Vieira ao Rei D. João IV, Pará, 6 dez. 1655.3

oi nesses termos que o grande pregador seiscentista Padre


Antônio Vieira se referiu ao então Governador do Maranhão
André Vidal de Negreiros, quando este se afastava do governo
daquela Capitania para assumir a governança de Pernambuco
naquele mesmo ano. A fama de Vidal vinha desde os tempos
das lutas contra os holandeses pela restauração do nordeste açucareiro para
a Coroa portuguesa. Ao longo de sua vida obteve posições de importância
no âmbito do mundo colonial, e sua trajetória é, sob todos os aspectos, uma
interessante caminhada de um filho de portugueses que nasceu na colônia e
alcançou uma destacada posição na hierarquia do poder no âmbito do Império.
Vidal nascera na Paraíba, em data ignorada, no início do século XVII; as
fontes secundárias discordam quanto a datas possíveis que vão de 1602 a
16204. Sua filiação também não é das mais conhecidas, se para alguns se
1
Este ensaio é resultado preliminar de uma pesquisa que desenvolvemos junto ao
Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. O autor agradece as
sugestões de Rosa Godoy Silveira e Paulo Valadares.
2
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisador dos Grupos de
Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e
Saberes Históricos: Ensino de História, Historiografia, História da Educação e Patrimônios
(PPGH-UFPB/ Diretório CNPq). Professor Adjunto do Departamento de História,
Coordenador do Curso de Graduação em História e Docente Permanente do Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. E-Mail:
<angelopessoa@ibest.com.br>. Blog: <http://terrasdehistoria.blogspot.com/>.
3
VIEIRA, Pe. Antônio (1608-1697). Cartas do Brasil. Organização de João Adolfo Hansen.
São Paulo: Hedra, 2003, p. 455-456.
4
Não há indicações precisas sobre o nascimento de Vidal, mas tudo indica que o mesmo
era nascido na Paraíba, entre esses anos. Seu principal biógrafo, Luiz Pinto, indica que
54 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA

atribui ao seu pai a condição de dono de engenho, de pequeno lavrador de


canas ou um bombardeiro, para uma sarcástica fonte holandesa da época
seu pai era um modesto carpinteiro: “André Vidal de Negreiros apareceu em
Recife, sob o pretexto transparentemente frágil de dizer adeus ao velho pai,
que era um pobre carpinteiro da Paraíba, a quem estava ele tão ansioso de rever
quanto eu estaria de ver o rei do Congo”5. O certo, porém, é que o jovem Vidal
tornou-se, em sua carreira, um militar de renome, homem de fortuna e
desempenhou importantes cargos nos governos das colônias. Nos séculos
que se seguiram à sua morte, foi elevado à condição de um dos heróis do
nativismo brasileiro, com direito a estátuas, nome de praças e avenidas,
imagem em selos postais, entre outras6.
Essa questão do nascimento é elemento importante para entender as
possibilidades de ascensão de um homem naquela sociedade. Um nascimento
numa determinada família conferia distinção aos seus membros e certas
marcas – ou defeitos de sangue ou mecânicos, na linguagem da época –
poderiam criar sérios obstáculos aos mesmos. O drama de Filipe Pais Barreto
nos primeiros anos do século XVIII, impedido de integrar os quadros da Ordem
de Nosso Senhor Jesus Cristo, em função de uma suposta ascendência cristã-
nova de uma de suas avós, explorada por seus inimigos, retrata bem essa
questão7. De forma similar, em 1740, o Capitão Mor da Paraíba, Pedro Monteiro
de Macedo, reclamava, em Carta na qual solicitava o Hábito da Ordem de
Cristo, que certos padres franciscanos satirizavam os governantes locais com
a difamação de judeus8. Não obstante, apesar do nascimento, os méritos ou
a riqueza poderiam, em alguns casos, atenuar ou até mesmo apagar algumas
marcas desfavoráveis do nascimento. O caso de João Fernandes Vieira era
singular; sua origem relativamente obscura para a época, na cidade de
Funchal, na Ilha da Madeira, chegou a ser alvo de comentários considerados

à época da ocupação holandesa da Bahia, em 1624, sua idade era de 18 anos, o que
coloca o seu nascimento por volta de 1606; também se refere ao fato de ser filho de
um senhor de engenho. PINTO, Luiz. Vidal de Negreiros: afirmação e grandeza de uma
raça. São Paulo: Alba, 1960, p. 28.
5
BOXER, Charles R. Os Holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1961, p. 228.
6
Em 1942 seus restos mortais, junto aos de João Fernandes Vieira, foram transferidos em
préstito solene para a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes,
onde repousam na condição de heróis do nativismo brasileiro. Na ocasião o Arcebispo
da Paraíba, D. Moisés Coelho, fez o elogio do herói: “Aqui ao clarão destes sepulcros,
onde repousam em cinzas gloriosas os corpos de Vidal de Negreiros e João Vieira, estará o
Brasil, em constantes romarias, não só para cultuar seus nomes, mas também para inspirar-
se nos seus exemplos de patriotismo e de fé, e ainda para afinar seus próprios sentimentos
naqueles sentimentos de verdadeiro patriota e brasileiro, os quais sempre animaram o
coração e a alma dos ímclitos [sic] lutadores”. In: Revista do Instituto Arqueológico Histórico
e Geográfico Pernambucano, Recife, n. 38, 1943, p. 224.
7
Esse drama está estudado com argúcia em MELLO, Evaldo Cabral de. O nome o sangue:
uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
8
AHU_ACL_CU_014, Cx. 11, D. 927.
VIDAL DE NEGREIROS 55

desairosos, conforme um anônimo coevo: “veyo este Senhor a esta terra e


Capitania de Pernambuco da Ilha da Madeira donde he natural e filho de uma
mulata rameira a quem chamão a Bemfeitinha e de hum homem que lhe dão por
pay, que foi ali degredado em titolo de ladrão”9. Entretanto, independente da
veracidade dessa suposta origem desabonadora – há outras possibilidades
nesse caso – Vieira tornou-se membro proeminente da sociedade local e
homem respeitado por seus pares.
O caso de Vidal de Negreiros é pouco claro e essa questão continua
dependente de novas investigações. Na História da Guerra Brasílica, de
Francisco de Brito Freire, o primeiro comentário sobre Vidal é o seguinte:
o ajudante André Vidal de Negreiros; donde o feriram pelos peitos
de um chuçasso. E donde, com esforço singular e singular fortuna,
principiando a crescer nos postos por que foi subindo a mestre-de-
campo e aos governos do Maranhão, Pernambuco e Angola, não
teve pequena parte, assim no trabalho como na glória de quanto se
foi obrando na guerra e na restauração do Brasil.10
Assim, de acordo com a fonte holandesa já citada – provavelmente
interessada em desqualificar Vidal – esse era homem de modestas origens;
seu biógrafo e seus panegiristas já fizeram questão de aludir uma origem
ligada à propriedade da terra, tal como as principais famílias da colônia; já
Brito Freire, embora não faça menção às suas origens, destaca seus méritos,
o que, ao final, serviu de base para apagar qualquer mancha ou defeito que,
por acaso, seu passado familiar pudesse apresentar. Sobre essa questão,
valem as considerações de Eduardo d’Oliveira França sobre as origens de
vários homens e famílias enriquecidos no mundo colonial:
O magnata colonial, em que pesem suas genealogias indígenas, não
foi geralmente fidalgo de linhagem. Um senhor de engenho era um
burguês com a vida afidalgada pela fortuna... Homens que sobre o
trabalho escravo nos canaviais tinham erigido um edifício de poder.11

No Mundo dos Engenhos


O mundo no qual Vidal de Negreiros nasceu era uma das mais recentes
fronteiras da conquista portuguesa em terras americanas. Como já
mencionamos, as fontes secundárias indicam datas de nascimento em 1602,
1606 e 1620 Considerando-se essas marcas cronológicas, Vidal nascera entre
17 e 35 anos após a fundação da Cidade de Filipéia de Nossa Senhora das
9
MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre de Campo do Terço de
Infantaria de Pernambuco. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses; Centro de Estudos de História do Atlântico, 2000, p. 23.
10
FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica [1675]. São Paulo:
Beca, 2001, p. 236-237. Grifo nosso.
11
FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997,
p. 175.
56 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA

Neves, que marcara a conquista portuguesa da região e a instalação da


Capitania Real da Paraíba, após longas lutas envolvendo portugueses,
franceses, potiguaras e tabajaras. Essa conquista, ainda instável, demandava
um esforço intenso para consolidar a presença portuguesa nessa fronteira; a
penetração do litoral para áreas mais interioranas mal começara através de
explorações na Serra da Copaoba e da concessão de sesmarias na várzea do
Paraíba12. Os relatos de Brandônio e do Governador holandês da Paraíba Elias
Herckmans, escritos na segunda e na quarta décadas do século XVII, dão
notícias das penetrações realizadas, até aquele momento, no sertão da
Capitania da Paraíba, que mal era conhecido e explorado. O mapa holandês
de George Marcgrave, que cartografou a Paraíba na primeira metade do século
XVII, dá uma representação que mostra, para o sertão, de maneira um pouco
mais detalhada, o Rio Mamanguape até suas nascentes na Serra da Copaoba
(Serra da Raiz), no norte da Capitania, e o resto do território não está
representado, pelo pouco conhecimento que se tinha da área13.
As complexas relações com os povos indígenas na região significavam um
elemento central para a expansão das atividades econômicas pretendidas
pelos colonos, uma vez que a Capitania Real da Paraíba representava uma
expansão da economia açucareira que se desenvolvia a partir de Pernambuco.
A instalação dos primeiros engenhos e fazendas implicava na necessidade de
ocupar terras com condições favoráveis, de obter mão de obra abundante e
a custos acessíveis, de garantir a segurança dos colonos e seu abastecimento;
questões essas cruciais para o sucesso da empreitada. A escravização de índios
apresentava problemas consideráveis, envolvendo não apenas indígenas e
colonos (o que, não raro, levava a enfrentamentos armados de diferentes
magnitudes), mas também missionários das ordens Católicas, que instalaram
os primeiros aldeamentos nas cercanias da Cidade nas décadas imediatas à
fundação. A relação entre essas Ordens, os colonos e as autoridades,
especialmente no que tange aos jesuítas, tornou-se um ponto importante de
conflitos que se estabeleceram em todo o território da colônia14. Também

12
As complexas situações referentes à conquista e consolidação da presença portuguesa
no território da Capitania Real da Paraíba podem ser vistos em PRADO, João Fernando
de Almeida. A conquista da Paraíba. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. LINS,
Guilherme Gomes da Silveira d’Ávila. Páginas de História da Paraíba: revisão crítica sobre
a identificação e localização dos dois primeiros engenhos de açúcar na Paraíba. João
Pessoa: Empório dos Livros, 1999. GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: política
e economia na Capitania da Paraíba (1585-1630). Bauru: EDUSC, 2007.
13
Veja-se BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das grandezas do Brasil [1618]. 3. ed.
Recife: Fundaj/ Massangana, 1997. HERCKMANS, Elias. Descrição geral da Capitania da
Paraíba [1639]. João Pessoa: A União, 1982.
14
Nos anos que se seguiram à fundação da Capitania da Parahyba, entre finais do século
XVI e início do XVII, ordens como os jesuítas, os franciscanos, os beneditinos e os
carmelitas se estabeleceram na região e desenvolveram atividades ligadas à catequese
dos índios, tal como acontecera em Pernambuco anos antes. Veja-se HOORNAERT,
Eduardo et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo.
(Primeira Época). Tomo II, vol. 1. 4 ed. Petrópolis: Paulinas; Vozes, 1992.
VIDAL DE NEGREIROS 57

começava por esse momento a se generalizar, estabilizar e regularizar o


problemático emprego da mão-de-obra escrava africana, através da
consolidação de fluxos oceânicos que envolviam portos brasileiros e africanos,
muito embora esse processo demandasse situações bastante conflituosas,
que se demonstraram um dos pontos nevrálgicos da expansão da colonização
lusitana em território americano.
Assim, o jovem Vidal deve ter vivido num mundo marcado pela incerteza e
pela presença da guerra no horizonte próximo. A instalação dos engenhos, a
partir do próprio Regimento do Governador Tomé de Souza (em 1549, em
torno de seis a oito décadas antes do nascimento de Vidal), pressupunha a
construção de torres e o seu aparelhamento com armas, em função das
prementes necessidades de defesa. As incursões de índios contra colonos ou
de colonos contra índios, ou ainda de corsários europeus, era um fator presente
na vida cotidiana. Se analisarmos o conjunto da colônia, mesmo regiões de
ocupação mais antiga e consolidada como a Bahia, São Vicente, Rio de Janeiro,
ou a vizinha Capitania de Pernambuco, ainda tinham a incerteza e o temor da
guerra como fatores marcantes na vida dos moradores15. Por outro lado, essa
presença constante da guerra no horizonte de possibilidades, abria condições
para que homens de origens modestas aspirassem uma ascensão social, em
função de notórios feitos de armas que viessem a realizar.
O Açúcar, a Guerra e outros conflitos
Em 1630, a sociedade açucareira que se construía em Pernambuco e nas
Capitanias vizinhas foi sacudida com o assalto holandês a Olinda, que se
tornou o primeiro ato de um conflito de décadas pelos territórios do nordeste
açucareiro. As diversas fases da ocupação holandesa, estudadas por Evaldo
Cabral de Mello em seu clássico Olinda Restaurada16, resultaram numa ordem
quase que permanente de conflitos e na necessidade de reconfiguração das
estruturas de produção e comércio do açúcar, bem como do trato de escravos
na África, para atender às novas demandas que se impunham. Ao final de 24
anos de presença batava, a restituição da região aos domínios lusitanos,
através de uma prolongada guerra em que se notabilizaram indivíduos como
Vidal, João Fernandes Vieira, Antônio Filipe Camarão e Henrique Dias, não
significou a imediata resolução dos problemas, mas trouxe à tona toda uma
série de questões que marcariam aquela sociedade ao longo dos anos
seguintes. Por outro lado, a situação mesma da metrópole, restaurada da
esfera de controle espanhol a partir de 1640, permaneceu periclitante nas
15
Para as dificuldades e incertezas que acompanharam as conquistas dessas Capitanias
e da instalação das suas Cidades, Vilas, engenhos e fazendas veja-se para o Rio de
Janeiro. Ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século
XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de.
Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
16
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630/1654.
Rio de Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: Edusp, 1975.
58 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA

próximas décadas e não foi tarefa fácil garantir a própria independência


portuguesa e a integridade de seus domínios coloniais, frente às forças
européias que se digladiavam no cenário mundial.
Inicialmente, a questão da reorganização da produção açucareira implicava
na necessidade de fontes de financiamento para compra de escravos e re-
equipamento dos engenhos, mas os capitais eram escassos e a situação se
agravou gradualmente com a entrada em cena, nas décadas subsequentes,
do açúcar das Antilhas, que passou a fazer concorrência ao açúcar nordestino.
Por outro lado, instalou-se um conflito generalizado em torno do direito de
propriedade sobre terras confiscadas pelos holandeses e compradas por
particulares. O retorno de antigos proprietários, anteriores à ocupação
holandesa, que reivindicavam a devolução de suas antigas propriedades,
resultou em batalhas jurídicas e ódios pessoais que sacudiram a vida da
Capitania.
Os orgulhosos donos de engenhos e escravos da região (chamados por
Cabral de Mello de açucarocracia) se viam endividados com comerciantes da
praça portuária de Recife e reivindicavam proteção e benesses à Coroa, uma
vez que entendiam que tinham devolvido as Capitanias do Nordeste à Coroa
por seu próprio esforço, à custa de seu sangue e fazendas, sendo súditos
mais do que leais, que faziam jus a um tratamento todo especial.
Como os governantes nomeados para a região iriam resolver esses conflitos
era questão das mais delicadas. Além de tudo, a reorganização administrativa
resultava na disputa sobre a amplitude de certas jurisdições, que opunham
autoridades diversas, seja por motivos substantivos e negócios, seja por
rivalidades e ódios pessoais que contribuíam para envenenar ainda mais o
ambiente.
Assim como outros chefes restauradores, Vidal recebeu, da Coroa, honrarias
e o reconhecimento de seus serviços, através de sua nomeação para o governo
do Maranhão, onde chegou em 1655 e permaneceu até o ano seguinte. Em
terras maranhenses Vidal se defrontou com uma precária presença portuguesa
na região, após a expulsão dos franceses em 1615 e uma breve ocupação
holandesa entre 1641 e 1642; tal situação se agravava com um crescente conflito
entre colonos locais e a Companhia de Jesus pela catequese e controle da
mão-de-obra indígena. Nessa acesa questão, Vidal estava munido de um
Regimento e usou seu prestígio para impor alguns limites a determinadas
práticas dos colonos, de acordo com reivindicações dos Jesuítas, o que lhe
valeu o reconhecimento do Pe. Antônio Vieira que, então, estava envolvido
com atividades missionárias na região. Assim, determinava o item 3 do
Regimento:
favorecereis muito aos Religiosos e Pregadores, e a todas as outras
pessoas Eclesiásticas que nele hão de tratar da conversão dos Infiéis,
procurando que sejam muito respeitados dos Portugueses, e de
toda a outra gente, como é devido, para que com este exemplo, se
movam mais os gentios e sejam de mais frutos as pregações entre
VIDAL DE NEGREIROS 59

eles.17

Fig. 1 – Retrato de Vidal de Negreiros, anônimo do século XVII.


Museu do Estado de Pernambuco.

Seja como for, Vidal não permaneceu tempo suficiente para se envolver
de forma mais aguda no desgaste dos conflitos maranhenses e, nos anos
seguintes à sua saída, essas disputas recrudesceram e os jesuítas acabaram
expulsos, em 1661, por colonos descontentes.
Assumiu o governo de Pernambuco em 1657, o que atestava seu prestígio
estando à frente de uma das Capitanias mais importantes do Império
português. Substituía a Francisco Barreto de Menezes, que exercera o governo
no momento delicado da restauração, para o que obtivera poderes muito
amplos e especiais. Vidal lutou para confirmar essas prerrogativas para seu
governo e entrou em atritos com o mesmo Francisco Barreto que, então,
acabara de assumir o Governo Geral na Bahia. Nessa contendas por jurisdição
com a Bahia, além do fogo das vaidades e brios pessoais, pesava o controle
de importantes postos de governo e a definição de políticas que interessavam
diretamente à açucarocracia local e influíam nos negócios de produtores e
comerciantes de açúcar.

17
O Regimento de Vidal de Negreiros está reproduzido em MENDONÇA, Marcos Carneiro
de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Tomo II. Rio de Janeiro: IHGB; Brasília:
Conselho Federal de Cultura, 1972, p. 695-714.
60 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA

O confronto entre Vidal e Barreto opunha, de certa forma, as aspirações


de maior autonomia dos senhores de engenho pernambucanos, que
aspiravam um governo mais ao seu talante, para determinarem as políticas a
serem aplicadas para a recuperação econômica da região, desejavam se livrar
das amarras políticas mais estreitas das autoridades da Coroa, bem como das
amarras econômicas dos comerciantes portugueses instalados na praça do
Recife. Restabelecer a plenitude da economia açucareira, livrar-se do peso
sufocante das dívidas e obter benesses governamentais eram objetivos dos
grandes proprietários e de suas famílias. Subordinar-se às autoridades
baianas, além de ferir os orgulhos locais, significava perder certas
prerrogativas de ação. Vidal, que representava os interesses da açucarocracia,
tendo ele mesmo se tornado um importante senhor de engenhos, procurou
garantir a nomeação dos principais cargos, a definição de certas questões em
alçadas governamentais das Capitanias vizinhas, a execução de determinações
da Coroa que estariam na esfera do Governo-geral, entre outras questões.
Barreto revidou institucionalmente e essa situação de conflito de autoridade
se exacerbou, usando Vidal de todo o seu prestígio para garantir essas
prerrogativas18. Esse enfrentamento entre autoridades, que representavam
os diferentes grupos de interesses em conflito, prolongou-se nas décadas
seguintes e teve seu ápice no início do século XVIII, quando os senhores de
engenho pernambucanos, especialmente organizados em torno da Câmara
de Olinda, partiram para o enfrentamento armado contra os comerciantes de
origem lusitana, que dominavam a Câmara da Vila do Recife, que então obtinha
a sua autonomia, no episódio que ficou celebrizado como a Guerra dos
Mascates.
A luta pelas mãos e pés do senhor de engenho
A célebre frase de Antonil, que comparava os escravos às mãos e pés dos
senhores de engenho, tinha toda a razão de ser no universo do mundo
colonial. Desde as últimas décadas do século XVI a escravidão se generalizou
e, além da sempre controversa escravidão indígena, se estabeleceu um fluxo
crescente e contínuo de escravos africanos, que abasteciam os portos da
Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco com cativos para servir de mão-de-obra
para as lavouras, mineração e diversas outras atividades econômicas que se
estabeleciam na colônia.
Essa questão capital se mostrou com toda a sua amplitude quando se deu
a ocupação holandesa de Pernambuco e das Capitanias vizinhas a partir de
1630. Ciente de que, para efetivar o domínio do Brasil e a produção açucareira,
era necessário garantir as fontes de abastecimento de escravos na África, a
Companhia das Índias Ocidentais determinou as atividades de corso contra
navios traficantes de escravos portugueses e acabou por determinar a efetiva

18
Um interessante estudo sobre esses conflitos entre Vidal e Barreto é o de ACIOLI, Vera
Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos: aspectos da administração colonial – Pernambuco –
Século XVIII. Recife: Ed. UFPE, 1997.
VIDAL DE NEGREIROS 61

ocupação dos principais entrepostos escravistas africanos, e assim se deu,


em 1637, com a ocupação de São Jorge da Mina, na costa da Guiné, e em 1641,
de São Paulo de Luanda, em Angola. Havia uma clara consciência dos
contemporâneos sobre a importância vital do tráfico escravista, como disse
Puntoni, a partir de diversos documentos coevos, “perder a África era perder
o Brasil”19.
A recuperação das praças africanas era, assim, condição não apenas para
a eventual recuperação de Pernambuco e das Capitanias vizinhas, mas também
para a manutenção e exploração econômica da Bahia e do Rio de Janeiro.
Tanto assim que, em 1648, Salvador Correia de Sá e Benevides, comandando
forças que saíram do Rio de Janeiro, retomou as praças de Luanda, Benguela
e São Tomé20. Nesse contexto, além da restauração do poder da Coroa
portuguesa sobre Angola, era inegável a influência da presença de interesses
de colonos do Brasil na região. Era, como denominado por Luiz Filipe de
Alencastro, uma Angola brasílica que se delineava, uma espécie de controle
muito direto de interesses de colonos do Brasil na região, que se colocava de
certa forma à margem do controle mais direto de autoridades metropolitanas.
Reconstruir as rotas de tráfico de escravos se tornou objetivo imediato dos
restauradores de Angola ao âmbito da monarquia lusa.
Após o Governo de Salvador de Sá (1648-1652) e seus sucessores imediatos
em Angola, coube o seu governo a João Fernandes Vieira (1658-1661), que
acabara de sair do Governo da Paraíba, o qual havia recebido logo após à
restauração pernambucana. No governo angolano, Fernandes Vieira dedicou-
se a restabelecer a plenitude do tráfico de escravos e entreteve relações com
as chefias locais, no sentido de explorar as guerras africanas em benefício do
apresamento de escravos. Vidal se afastou do governo de Pernambuco, em
1661, para assumir o governo de Angola no ano seguinte.
Em Angola, Vidal continuou a política de João Fernandes Vieira de
reestruturação das complexas redes de tráfico de escravos. Desde a retomada
luso-brasileira de Luanda, a situação na região se mostrava bastante instável.
As ofensivas desenvolvidas nos anos subsequentes a partir do governo de
Luanda visavam garantir a lealdade dos chefes aliados e submeter a ferro e
fogo os inimigos. Pressão especial passou a ser exercida sobre o Rei do Congo
que, apesar de ser considerado pela Monarquia portuguesa um aliado cristão,
acabava por opor alguns obstáculos à expansão dos interesses escravistas,
vitais para a reorganização da produção açucareira na outra margem do
Atlântico. Os Reis do Congo ostentavam o título de reis cristãos e aliados dos
portugueses, tendo recebido do próprio Papa, em Roma, uma Coroa que
simbolizava esse reconhecimento de integrar o grêmio da Igreja Católica, mas

19
Essa questão pela disputa do tráfico atlântico de escravos entre portugueses e holandeses
pode ser vista em PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil
holandês e as guerras do tráfico no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999.
20
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola (1602-1686). São Paulo:
Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973.
62 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA

Vidal buscou contornar os obstáculos de ordem jurídica e religiosa para


construir uma justificativa para atacar o reino do Congo.
Em 1665, Vidal manobrava junto a autoridades religiosas locais para atribuir
ao Rei D. Antônio I do Congo, o Mani Mulaza, o caráter de rei cismático e
idólatra, criando um pretexto para um ataque justo àquele reino. Obtendo
concordância de algumas dessas autoridades, as tropas de Vidal desbarataram
o exército de D. Antônio I, na Batalha de Ambuíla, nesse mesmo ano, matando
o Rei e determinando o fim da monarquia congolesa. A Coroa foi remetida a
Pernambuco para ser depois enviada a Lisboa, mas Antônio Curado Vidal,
sobrinho do Governador, responsável pela sua guarda, provavelmente deu
sumiço na mesma. Depois da batalha de Ambuíla o reino do Congo foi dividido
por lutas intestinas e os interesses dos mercadores de escravos foram
bastante favorecidos21.
O retorno e o legado de Vidal
Do outro lado do Oceano as coisas se precipitavam. O governador de
Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado, conhecido com Xumbregas,
enfrentava forte oposição da açucarocracia local para impor certas
determinações da Coroa, além de negócios que realizava à socapa, e tais
divergências evoluíram para um conflito agudo. Em 1666, num hábil engodo,
alguns senhores de engenho de Olinda aprisionaram o governador e o
enviaram de volta a Portugal, com um vasto rol de queixas ao Rei. Os ecos da
deposição do governador agravaram uma forte tensão política que se
agudizou até às primeiras décadas do século seguinte22.
De retorno a Pernambuco no início do ano seguinte, após o cumprimento
de seu governo angolano, Vidal foi escolhido pela açucarocracia para substituir
Mendonça Furtado. A Coroa prudentemente aguardou o desenlace do caso
para evitar ferir suscetibilidades e agravar ainda mais o quadro. Assim, manteve
Vidal temporariamente no governo (até pelo seu grande prestígio) e escolheu
o novo Governador para sucedê-lo alguns meses depois. Apesar da ousadia
dos senhores de engenho pernambucanos de aprisionar um governador
nomeado pelo Rei e colocar outro no seu lugar, a Coroa evitou uma reação
mais enérgica, até devido às circunstâncias muito particulares do momento,
com a extrema delicadeza do controle luso sobre o conjunto de suas vastas
possessões.
Após essa segunda passagem pelo governo, Vidal já estava envelhecido e
retirou-se da esfera política passando a administrar mais diretamente os seus
negócios. Nos anos seguintes instalou-se em seu engenho Itambé, onde
faleceu em 1680. Em seu testamento instituiu o Morgado de Nossa Senhora

21
ALENCASTRO, Luís Filipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico sul.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
22
MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates - Pernambuco
1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VIDAL DE NEGREIROS 63

do Desterro, em favor de seu filho Matias Vidal de Negreiros, mas a fortuna


não permaneceu nas mãos da família, que se engalfinhou em acerbas disputas
pelos bens e acabou por dispersá-los entre vários herdeiros. Mais de um
século depois, acusações ainda eram trocadas por descendentes de Vidal
sobre o destino dos bens. Em carta atribuída a Manuel Arruda da Câmara ao
Padre João Ribeiro, em 1810, o cientista fazia acusações sobre os destinos
dos bens de André Vidal, que seria antepassado do destinatário e que “padre
Matias Vidal de Negreiros e Marquês de Cascais hão despojado dos bens do dito
general furtivamente”23.
A par de não ter conseguido consolidar uma posição de maior proeminência
ou de poder para seus descendentes, o que fora conseguido por algumas
outras famílias da colônia, esse homem notável foi elevado à condição de um
dos heróis da nacionalidade, destacado por Francisco Adolfo de Varnhagen
como o legítimo representante dos brasileiros na gloriosa restauração do
solo nordestino ao corpo da nação. Nos termos do próprio historiador em
sua História Geral do Brasil:
André Vidal era homem tão superior que necessitara um Plutarco
para apreciá-lo. Enquanto empreendeu, sempre com muito esforço
e valor, não levara a mira no prêmio, nem talvez nesse mesmo
fantasma da glória que tantas vezes nos embriaga; tudo fez pelo
zelo e amor do Brasil, ou por caridade cristã.24
Segundo essa perspectiva, as lutas em torno da expulsão dos holandeses,
especialmente as Batalhas dos Guararapes representavam os germes da
nacionalidade que brotava no combate ao invasor estrangeiro e não-católico.
Na tetrarquia de heróis que se criou posteriormente em torno da restauração,
Vidal representou o elemento branco de origem brasileira, que unido a um
reinol (Vieira), a um índio (Camarão) e a um negro (Dias), representariam a
síntese do nativismo que se afirmaria na luta contra o invasor. Ainda, segundo
Varnhagen, o papel de Vidal seria superior ao de Vieira e outros restauradores
e caberia a ele o lugar de verdadeiro e inequívoco herói da nacionalidade.
Erigida como uma ermida por Francisco Barreto de Menezes, por volta de
1654/1655, a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes,
serviu para marcar a memória dos soldados que combateram nas Batalhas
dos Guararapes (1648 e 1649). No século XVIII recebeu acréscimos e
embelezamento. Foi tombada como Patrimônio Histórico Nacional em 193825.
Em 1942 foram trasladados, para a sua Capela Mor, os restos de André Vidal
de Negreiros, João Fernandes Vieira, Francisco Barreto de Menezes (os restos
23
Carta atribuída a Manuel Arruda da Câmara, endereçada ao padre João Ribeiro. In:
CÂMARA, Manuel Arruda da. Obras Reunidas c.1752-1811 (coligida e com estudo biográfico
de José Antônio Gonsalves de Mello). Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife,
1982, p. 263.
24
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Tomo III. 8. ed. São Paulo:
Melhoramentos; Brasília: INL, 1975, p. 94.
25
Processo IPHAN 05-T-38.
64 ÂNGELO EMÍLIO DA SILVA PESSOA

Fig. 2 - Igreja de Nossa Senhora dos Guararapes, erguida no século XVII, no atual
Parque Histórico Nacional dos Guararapes, local de importante celebração dos eventos
relativos à guerra contra os holandeses (Jaboatão dos Guararapes - PE).
Foto: Ângelo Pessoa, 2008.

de Henrique Dias e Filipe Camarão não foram encontrados), reunindo os


chamados heróis restauradores. Em 1961 foi criado o Parque Histórico Nacional
dos Guararapes26, pertencente ao exército. À entrada, placas indicam que o
visitante está entrando no território onde se forjou o sentimento nativista, o
berço da nacionalidade e do exército brasileiro. Na Igreja realizam-se, ainda
hoje, romarias em homenagem a Nossa Senhora dos Guararapes. É nesse
ambiente que se forjou todo um ideário heróico que tem a restauração
pernambucana como marco de estabelecimento do sentimento nativista em
terras brasileiras27.
Além de ter sido exaltado, por parte da historiografia, à condição de herói
nacional, Vidal de Negreiros também contou com uma trajetória peculiar e
mais pontual para ser elevado à condição de herói local. Na esteira do que se
estabeleceu a partir do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o seu
congênere, Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, trabalhou para
enaltecer Vidal como herói paraibano28. Diversos logradouros de João Pessoa,
26
Processo IPHAN 523-T-54.
27
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
28
A historiadora Ana Beatriz R. B. Silva escreveu instigante artigo sobre a construção
desse herói paraibano, especialmente a partir da obra do historiador Luiz Pinto. Ver:
SILVA, Ana Beatriz Ribeiro Barros. André Vidal de Negreiros: a necessidade da construção
VIDAL DE NEGREIROS 65

Fig. 3 - Lápide da Sepultura do General André Vidal de Negreiros,


onde se exalta a sua condição de herói nacional.
Foto: Mirza Pellicciotta, 2008.

o 15° Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército, além de outras


homenagens levam seu nome e rendem tributo à sua memória como herói.
Considerando essas questões, em âmbito ainda bastante preliminar,
podemos enxergar esse personagem como um verdadeiro homem do Atlântico
no século XVII, que esteve ligado às vicissitudes do Império colonial português
que então se reconfigurava em função do avanço de novos impérios que
lutavam pela hegemonia no mundo colonial. Portugal, que estivera na
dianteira da expansão marítima de fins do século XV e início do XVI, recuava
frente ao surgimento de novas potências, que acabaram por impor pesadas
perdas ao império lusitano. Boa parte das possessões asiáticas foram perdidas
para os concorrentes e foram necessários muitos esforços para garantir a
sobrevivência, mesmo de Portugal, nessa nova ordem, ou como disse com
felicidade o historiador Luciano Figueiredo, o “Império estava em apuros”29.
De acordo com as esperanças do Padre Vieira, a Índia não estaria perdida,
caso houvesse por lá homens como Vidal de Negreiros. Não poderíamos
garantir que tal acontecesse, mas podemos deduzir que começou a se forjar
por ali a legenda do herói.

de um herói verdadeiramente paraibano. Saeculum - Revista de História, João Pessoa,


DH/PPGH-UFPB, n. 14, jan./jun. 2006, p. 159-171.
29
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. O Império em apuros: notas para o estudo
das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império Colonial português,
séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais
e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 197-254.
67

FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA


NO SÉCULO XVII:
A AÇÃO DE GRAÇAS PELA RESTAURAÇÃO DA
CAPITANIA DE PERNAMBUCO
CONTRA OS HOLANDESES

Kalina Vanderlei Silva 1

o século XVII o Império Português, dentro do contexto da União


Ibérica e depois dela, susteve um calendário de festas públicas
que exaltavam a glória do rei e da Igreja com celebrações
ritualizadas, onde a pompa estava nos objetos de cena, como
altares, arcos de triunfos, mas também nos gestos das
autoridades que delas participavam. Essas festas, de caráter nitidamente
barroco, abundavam nas cortes ibéricas, mas também nas grandes cidades
dos dois impérios, e incluíam desde entradas solenes, como as dos Filipes em
Lisboa, até datas sagradas como Corpus Christi e comemorações de
conquistas, como a celebração da vitória castelhana sobre Barcelona em 16522.
Organizadas pelas câmaras municipais, as festas barrocas tinham, assim,
a função principal de celebrar a glória da Coroa e garantir a lealdade de seus
vassalos, além de marcar as hierarquias de poder das autoridades da cidade
que a organizava perante os olhares dos expectadores. E, nesse contexto, a
comemoração de uma vitória bélica constituía um dos momentos privilegiados
para essas festas, pois permitia à cidade afirmar sua lealdade ao rei e ao
mesmo tempo cantar sua própria magnificência.
Nesse sentido, a festa barroca que comemorava o sucesso das armas do

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do GEHSCAL -
Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina (UPE/ Diretório CNPq).
Professora Adjunta da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré da Mata, da
Universidade de Pernambuco, e Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisadora financiada
pela FACEPE. E-Mail: <gehscal@uol.com.br>.
2
Para as festas barrocas, ver: SILVA, Kalina Vanderlei. Cerimônias públicas de manifestação
de júbilo: símbolos barrocos e os significados políticos das festas públicas nas vilas
açucareiras de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. In: ______ (org.). Ensaios culturais
sobre a América Açucareira. Recife: Edupe, 2008. Já para as comemorações das entradas
reais em Lisboa, ver: MEGIANI, Ana Paula. O rei ausente: festa e cultura política na visita
dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. Para a comemoração
das armas de Castela contra Barcelona, ver: DE LA FLOR, Fernando & BLASCO, Esther.
Política y fiesta en el Barroco - 1652: descripción, oración y relación de fiestas en Salamanca
con motivo de la conquista de Barcelona. Salamanca: Ediciones Universidad de
Salamanca, 1994.
68 KALINA VANDERLEI SILVA

rei se traduzia em uma tentativa da elite urbana reafirmar seu próprio status,
demarcando a hierarquia entre seus pares, demonstrando seu prestígio
perante o povo e, ao mesmo tempo, sua lealdade perante a Coroa. Sem
esquecer que a elite local aproveitava ainda para relembrar ao rei seus serviços
prestados.
Imagem paradigmática dessa funcionalidade foi a comemoração da
conquista de Barcelona pela Coroa castelhana em uma festa organizada e
celebrada em Salamanca em 1652, com direito a toda a pompa barroca e
publicação de relação comemorativa. E se tais eventos não eram raros na
Península Ibérica de então, também as câmaras municipais americanas do
período procuravam se manter ao corrente dos padrões festivos europeus.
Assim foi que, poucas décadas depois, Olinda seguiu muito de perto o modelo
de Castela ao promover a festa de ação de graças pela Restauração da Capitania
de Pernambuco contra os holandeses. Festejo que, assim como sua congênere
castelhana, assumiu uma função múltipla de espaço de demarcação de
prestígios locais, lealdades régias e de reafirmação de uma identidade fidalga
por parte da elite açucareira. Identidade essa construída em torno da
Restauração de Pernambuco e da memória desse fato.
Olinda, a Elite Açucareira e a Restauração
Em 1654 terminava a ocupação da Capitania de Pernambuco, e anexas,
pela WIC, a Companhia das Índias Ocidentais, que desde 1630 controlava a
região. A chamada guerra de Restauração, que opusera os senhores de
engenho de Pernambuco e seus aliados à WIC, durara de 1648 a 1654 e deixara
um saldo de destruição nos canaviais, nas cidades e nas fortunas, permitindo
à Coroa portuguesa retomar o poder sobre a Capitania, inclusive de forma
mais presente e intrusiva que antes de 1630, visto que nesse segundo período
de governo português os donatários de Pernambuco haviam dado lugar aos
governadores metropolitanos3.
As muitas modificações sociais, econômicas e políticas da Capitania haviam
atingido todos os grupos sociais, dos escravos que fugiram para o quilombo
de Palmares, passando pelos homens livres ingressos nas inchadas fileiras do
exército ou moradores da crescente povoação do Recife, até a elite de
senhores de engenho que encabeçara a guerra. Esses senhores, que se
denominavam restauradores, viram seu prestígio perante a Coroa atingir o
ápice com os sempre lembrados serviços prestados na devolução da capitania
ao império. Um prestígio que lhes garantiu a manutenção de seu poder político
mesmo quando, no século XVIII, os mercadores já haviam se tornado um
grupo hegemônico4.

3
A guerra de Restauração é bastante conhecida a partir do estudo clássico de MELLO,
Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo:
Topbooks, 1998.
4
A situação da capitania no pós-guerra pode ser vista em SILVA, Kalina Vanderlei. ‘Nas
Solidões vastas e assustadoras’: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 69

Foi essa elite de senhores, auto-intitulada ‘nobreza da terra’, que projetou


e realizou a festa da Restauração em celebração de seus próprios feitos
heróicos, conseguindo, para tanto, o beneplácito da Coroa portuguesa.
Foram eles que, no século XVII, após retornarem à jurisdição portuguesa,
esmeraram-se em fazer das ruas de Olinda, e mais tarde de Igarassu, palco
para as festividades barrocas do calendário régio, adotando as festas
regulares e extraordinárias da Coroa portuguesa, com procissões, entradas
de governadores, celebrações de casamentos e mortes da realeza, em
cerimônias que desfilavam nas ruas e praças e tomavam espaços especiais
nas igrejas. Nelas encontrando o perfeito cenário para o desenvolvimento de
seus papéis de ‘fiéis vassalos’ da Coroa.
Nessas ocasiões, os senhores de engenho, traduzidos em oficiais das
câmaras, realizavam performances que afirmavam ou confirmavam seus
status sociais, assegurando-lhes prestígio e honra. Em cada festa, fosse
procissão pelas ruas ou celebração na Igreja da Sé, os espaços de poder eram
rigidamente demarcados: nas procissões, estar mais próximo aos símbolos
de autoridade religiosa ou leiga, como o pálio que guardava o Santíssimo
Sacramento, informava aos espectadores a importância daquele ator. Não
poucas vezes, governadores, bispos e oficiais das câmaras de Olinda e
Igarassu se engajaram em disputas entre si devido a diferenças de opinião
sobre onde deveria se sentar o governador quando em presença do Santíssimo
Sacramento, ou onde, na procissão, deveria ser alocado o pendão que
simbolizava a câmara, ou ainda onde deveria se situar o governador durante
a assistência de uma cerimônia organizada pela câmara5.
Exemplo dessas querelas foi a disputa entre a Câmara de Olinda e o
Governador de Pernambuco, no final do século XVIII, em torno do ritual de
encontro entre essas duas instâncias de poder. Nessa ocasião, a câmara
escreveu ao príncipe regente, então D João, sobre o assunto:
Porquanto Vossa Alteza Real pelas cartas régias que vão insertas
nas certidões em anexo decidiu que este Senado, debaixo do
estandarte de que jamais nunca se devia separar, não representava
menos a Sua Real Pessoa do que os governadores. Porquanto sem
embargo de se achar assim decidido, os governadores pretendem,

açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2009. E a ascensão da elite mercantil
em SOUZA, George Cabral. Elite y ejercicio de poder en el Brasil Colonial: La Cámara
Municipal de Recife (1710-1822). Tesis Doctoral. Facultad de Geografía y Historia de la
Universidad de Salamanca. Salamenca, 2007.
5
Por exemplo, REQUERIMENTO do Bispo de Pernambuco ao Rei pedindo se remeta ao
Desembargador do Paço a representação dos conflitos com o governador de
Pernambuco sobre o cerimonial romano e o lugar que deve ocupar o assento do
governador na Igreja. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa- AHU_ACL_CU_015, cx. 16.
1636; PARECER incluso na carta do capitão-mor de Igarassu, Francisco Xavier Carneiro
da Cunha, ao rei, D Jose I, sobre as dúvidas a respeito dos assentos nas festas e
procissões daquela vila assistidas pela câmara. AHU_ACL_CU_015, Cx. 081, D. 6751.
70 KALINA VANDERLEI SILVA

quando este senado se encontra com eles por ocasião das festas
reais, que este senado debaixo de estandarte os vá receber aos
adros das igrejas, como se este senado representasse pessoa inferior
a que eles representam. E porquanto finalmente nos parece que os
governadores não podem pretender semelhante obséquio, que
somente lhes deveria ser feito se este senado não representasse a
Real Pessoa de Vossa Alteza assim e do mesmo modo que lhes
representam. Portanto suplicamos a vossa alteza real aja por bem
decidir em que lugar deve esse senado receber aos governadores,
e aos excelentíssimos reverendíssimos bispos em semelhantes
ocasiões.6
Nessa carta, a Câmara de Olinda insistia nas mesmas reivindicações que já
vinha fazendo desde o século XVII sobre seu papel como representante da
Coroa. A mesma reivindicação que fez, por exemplo, em 1677, quando, depois
do estabelecimento dos governadores do rei na capitania, em geral sediados
no Recife, os senhores de Olinda começaram a disputar com eles a posição de
representantes da Coroa, como podemos ver na ordem régia passada em
julho daquele ano:
Oficiais da Câmara da Capitania de Pernambuco. Eu o Príncipe vos
envio muito saudar. Havendo mandado ver o que me escrevestes
em carta de 10 de junho do ano passado, sobre as diferenças que
tivésseis com o Vigário Geral da Matriz da Vila de Olinda acerca do
lugar em que nas procissões havia de ir o pendão da Câmara, por
querer que saísse adiante do pálio, fora do corpo da câmara e o que
sobre isso resolveu o governador D. Pedro de Almeida, e porque
convém atalhar diferenças, me pareceu dizer-vos que o governador
não representa mais minha pessoa do que a representa o senado: e
assim não havia de resolver que nas procissões que não fosse o
pendão porque só quando eu vou nelas deixa de ir o pendão e nas
mais começa do pendão o corpo do senado da câmara, e nesta
forma se deve observar daqui em diante; e assim o mando advertir
ao Vigário Geral, e que não inquiete meus ministros contra o estilo
dos [ ] de que não registra indecência alguma.7
Essa reclamação da Câmara de Olinda é eloquente sobre sua vontade e
insistência em ser reconhecida pelos altos funcionários da burocracia régia
como parte integrante e importante do poder imperial, representando ela
mesma o rei. Uma representação que deveria ser feita através da investidura

6
CARTA dos oficiais da Câmara de Olinda ao Príncipe Regente, D João, sobre as dúvidas
acerca de onde deveria ir o pendão da câmara nas procissões. AHU_ACL_CU_015, Cx.
212, D. 14418.
7
REGISTRO da carta de S. majestade escrita aos oficiais da câmara, sobre ir, ou não o
pendão da câmara nas procissões. Escrita a 18 de julho de 1677. Livro de Registro de
cartas, provisões e ordens régias. L. 1º. Arquivo Público Jordão Emerenciano - APEJE.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 71

de símbolos, aqui o pendão da câmara. É sabido que o Antigo Regime


enfatizava a representação do rei ausente nas muitas localidades do império
a partir de uma série de símbolos que assumiam a papel do rei em pessoa,
como os retratos reais, da mesma forma que o Santíssimo Sacramento era
investido da função de representar o corpo de Deus nas cerimônias. Nesse
mesmo contexto, o pendão da câmara assumia, para o Senado de Olinda, um
papel vital no espetáculo festivo, representando não apenas a câmara, mas o
próprio rei8.
A carta de 1799, por sua vez, continuou a insistir no mesmo tema, deixando
claro ainda o importante papel que a etiqueta barroca tinha nesse cenário:
nas festas reais todos os gestos e espaços eram rigidamente hierarquizados,
ocupados de acordo com uma escala de prestígio que deveria informar quem
estava submisso a quem. Nesse sentido, se os oficiais da Câmara de Olinda
fossem obrigados a ir receber o governador fora das igrejas, mesmo estando
em formação oficial junto ao pendão que simbolizava a câmara, estariam se
colocando em posição inferior ao governador. Contra isso, invocavam perante
o rei o seu próprio papel de representantes da Coroa.
Essa situação de eterna competição com os governadores pelo privilégio
de simular a Coroa em solo americano tornava cada festa um momento de
disputa, compreensível quando se entende que o status público da elite estava
vinculado ao papel que representariam na encenação pública.
As festas barrocas foram sempre, na Península Ibérica, uma vitrine para a
demonstração do status e prestígio das autoridades perante o povo, a Coroa
e entre elas mesmas. O mesmo ocorreu com a América açucareira, onde os
senhores, assentados nas câmaras, tanto tinham o dever de organizar e
promover as festas anuais e extraordinárias do calendário régio, quanto o
direito de aproveitarem esse momento para ostentar seu status. Em geral, as
festas camarárias eram as mesmas para todo o império, pois seguiam um
calendário ditado pela Coroa, no caso das anuais, e ordens específicas, no
caso das extraordinárias9. Existia, dessa forma, um modelo imperial pré-
estabelecido, e ao passar as ordens para as festas extraordinárias, por
exemplo, que deveriam comemorar as vitórias e efemérides da realeza, a Coroa
já determinava como ela deveria ser feita: com luminárias e salvas de artilharia,
8
Para Roger Chartier as sociedades do Antigo Regime empregavam a noção de
representação em dois sentidos: como manifestação de uma ausência ou como
apresentação pública de algo. Os festejos camarários apontam os dois significados
dessa noção, pois as festas funcionavam como espaços de representação do rei ausente,
mas também como espaço de apresentação pública da hierarquia da elite açucareira.
Nesse caso específico, do pendão da câmara, era o papel de representação do rei que
se sobressaia. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietudes.
Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002, p. 74.
9
Para as festas barrocas camarárias no Império Português ver: SANTIAGO, Camila
Fernandes. A vila em ricas festas: celebrações promovidas pela Câmara de Vila Rica –
1711-1744. Belo Horizonte: Fumec-Face; C/Arte, 2003; CATÃO, Beatriz. O Corpo de Deus na
América: a festa de Corpus Christi nas cidades da América Portuguesa, século XVIII. São
Paulo: Annablume, 2005.
72 KALINA VANDERLEI SILVA

como na celebração da paz com Castela, ordenada à Câmara de Olinda em


171510.
Mas, em Pernambuco, a festa de Ação de Graças pela Restauração da
Capitania contra os holandeses assumiu um caráter nitidamente local,
elaborada e organizada pela elite açucareira, tendo por base o padrão festivo
ibérico. Celebração por excelência de Olinda, seu caráter localista ilustrava a
ativa manutenção do calendário festivo régio na capitania e a adaptação e
transformação que a elite açucareira realizava sobre os valores ibéricos.
Essa elite, no Pernambuco seiscentista, grupo social que controlava a
política da capitania, batendo-se com governadores e outros representantes
régios, era constituída por senhores de engenho e lavradores de cana11. Até a
ascensão de uma elite mercantil sediada na vila do Recife, no século XVIII,
esses senhores, que tinham Olinda como base, foram hegemônicos no cenário
político e cultural da sociedade açucareira, dominando os principais núcleos
urbanos de Pernambuco, como Igarassu, e mantendo relações de parentesco
com os senhores das capitanias anexas.
Ocupando os assentos na Câmara de Olinda, mas também em outras
instituições como a Santa Casa de Misericórdia e a Irmandade do Santíssimo
Sacramento, a elite açucareira não apenas exercia controle sobre a política
local, mas ditava as normas cultas da sociedade, traduzindo um imaginário
influenciado pela Igreja, pela Coroa e pela cultura fidalga ibérica. Em todo o
império era tarefa das câmaras patrocinarem as festas públicas e dever da
Irmandade do Santíssimo se encarregar de algumas das cerimônias mais
importantes da vida católica dessas cidades, como a procissão do viático e a
festa de Corpus Christi. Funções que a elite açucareira assumiu de forma
entusiástica em Pernambuco, por lhe permitir ocupar esses espaços de poder
e aparecer como responsável pelo cerimonial oficial da capitania, além de
atuar como uma nobreza local12.

10
“Juiz, Vereadores e Procurador da Cidade de Olinda. Eu El Rei vos envio muito saudar: Por
estar confirmada e ratificada a paz que celebrei com El Rei de Castela, e ser esta nova de
grande gosto, é justo que como tal se festeje no Reino, a mandeis publicar no 1º do presente
mês de maio na [forma] que vereis na cópia inclusa, com a demonstração de luminárias,
repique, e salvas de artilharia na noite do dia da publicação e nos dias seguintes, e da mesma
sorte o fareis assim executar pela parte que vos toca”. REGISTRO da carta de S. Majestade
para os oficiais da câmara pela qual manda se festeje a paz que se celebrou com el rei
de Castela. Escrita em 15 mai. 1715. LIVRO de registro de cartas, provisões e ordens
régias da Câmara de Olinda. L 1º, fl. 125. APEJE.
11
Para a definição da elite açucareira, ver: ACIOLI, Vera Lúcia. Jurisdição e conflito: aspectos
da Administração Colonial. Recife: Ed. UFPE, 1997; FERLINI, Vera Lúcia. Terra, trabalho
e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Em Acioli encontramos também os conflitos dessa elite com os governadores de
Pernambuco e Bahia.
12
O imaginário da fidalguia ibérica pode ser visto em: FRANÇA, Eduardo D’Oliveira.
Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec. 1997. Sobre o viático e seus rituais,
ver: CAVALCANTI, Viviane. Religiosidade e morte: instrumentos do projeto colonial
português. Columbia: The University of South Carolina, 1995. A Irmandade do Santíssimo
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 73

Que tal elite se esmerava em se manter dentro de padrões culturais


aceitáveis pela nobreza reinol vemos no pedido daqueles dentre seus membros
que ocupavam assentos na Santa Casa de Misericórdia em Olinda, em 1672,
ao solicitarem ao rei que esta instituição gozasse dos mesmos privilégios
concedidos à Santa Casa da Bahia, que, por sua vez, já gozava dos privilégios
da Santa Casa de Lisboa. Diziam os irmãos de Olinda servirem com todo o zelo
e que sua casa “no ornato e dispêndio lhe não excede a da Bahia”13. Afirmação
com a qual esperavam demonstrar a lealdade apropriada aos valores da
nobreza ibérica, como o zelo devocional e a ostentação pública.
Assim como os papéis de ‘irmãos’ das Santas Casas e irmandades do
Santíssimo conferiam fidalguia, a participação dos senhores nas câmaras por
todo o império lhes garantia acesso permanente aos meios para a manutenção
do prestígio social e de um permanente estado de ostentação de luxo,
exigência para o status de ‘nobreza da terra’. Não apenas pela natureza oficial
do cargo em si, mas pelas possibilidades que suas muitas cerimônias públicas
e símbolos ofereciam de tornarem mais visíveis seus portadores para um
público de espectadores. Os cargos camarários faziam os senhores visíveis
também, e principalmente, para a Coroa, garantindo que pudessem
comprovar sua lealdade e vassalagem ao celebrarem a glória real nas festas
públicas, o que abria as portas para futuras solicitações de mercês.
E, na segunda metade o século XVII, os senhores de Olinda empregaram
todos os meios possíveis para conservar os favores da Coroa. Nesse momento
ainda sustinham o poder político da capitania, mas enfrentavam a contestação
dessa posição pelos governadores régios, tanto na própria capitania quanto
na Bahia. Por outro lado, a ascendente elite mercantil do Recife estava para
se tornar um problema bem maior, que estouraria nas primeiras décadas do
século XVIII. Assim, os senhores olindenses, de seus assentos como oficiais
da câmara, tentavam se manter no controle travando brigas pela sede da
capitania e promovendo festas públicas para reafirmarem status de nobreza
da terra e fiéis vassalos.
E nesse contexto procuravam sempre recordar a restauração da capitania,
fosse em seus pedidos de pensões e cargos, fosse na própria festa de ação de
graças. A guerra em si abrira as portas para múltiplas possibilidades de
ascensão social em Pernambuco, principalmente através de serviços militares
prestados. Mesmo soldados e henriques, os milicianos pretos, conseguiram
regalias a partir de solicitações com base nas justificativas desses serviços. Já
Sacramento e a Santa Casa de Misericórdia enquanto instituições de elite, em ASSIS,
Virgínia Almoêdo de. Pretos e brancos: a serviço de uma ideologia de dominação (Caso
das Irmandades do Recife). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Pernambuco. Recife,1988; e RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa
da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. UnB, 1981.
13
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao Príncipe Regente D. Pedro sobre requerimento
do provedor e irmãos da Santa Casa de Misericórdia de Olinda, pedindo a concessão
de um alvará para que a dita casa goze dos privilégios e provisões concedido a Casa da
Bahia. AHU_ACL_CU_015, Cx. 10, D. 946. 16 jun. 1672.
74 KALINA VANDERLEI SILVA

em 1651, a Câmara de Olinda solicitara da Coroa que seus heróis, os futuros


restauradores, fossem aproveitados nos principais postos de comando da
capitania, no que foram atendidos quando terminou a guerra14. E todas as
reivindicações pós-restauração foram feitas empregando fórmulas que
relembravam à Coroa portuguesa os benefícios que os mazombos de
Pernambuco lhe haviam feito: ‘às custas de nosso sangue, vida e despesas’,
afirmavam os oficiais da Câmara de Olinda ainda em 165115. Os mesmos que
mais tarde se apresentariam como ‘fiéis vassalos’ da Coroa16.
Assim, se por um lado as últimas décadas do Seiscentos viram os senhores
de Olinda entrarem em disputas políticas com os representantes da Coroa,
por outro os viram também sustentar, perante a mesma, um prestígio em alta
devido a seu status de restauradores da capitania, responsáveis pela
devolução desta ao Império português. E aproveitaram esse prestígio para
solicitar mercês e aumentar seu status pessoal e privilégios camarários. Nesse
sentido, a comemoração da expulsão dos holandeses assumia uma
importância vital ao recordar à Coroa os serviços prestados por seus vassalos
pernambucanos. Mas tudo isso, recordar serviços prestados e manter uma
imagem pública prestigiosa, passava pela construção de uma memória em
que essa elite era a responsável pela conquista da capitania aos holandeses.
Ou seja, uma memória que deveria ser preservada a todo custo, razão pela
qual foi elaborada a festa de Restauração.
A Festa, a Identidade Fidalga e a Memória da Restauração:
A festa de ação de graças pela Restauração data da segunda metade do
século XVII, quando começou a ser celebrada em Olinda pela câmara que,
seguindo a tradição das festas régias, esperava que essa cerimônia pudesse
ser, a cada ano, uma recordação dos feitos heróicos da elite açucareira. As
festas barrocas que almejavam celebrar as glórias da monarquia em geral
costumavam ser pródigas construtoras de memória17. E nesse aspecto a ação
de graças pela Restauração se constituiu no principal fenômeno de construção

14
ACIOLI, Jurisdição e conflito, p. 18.
15
CÂMARA de Pernambuco e Povos das Capitanias do Norte do Brasil a D João IV.
Biblioteca da Ajuda, 1654, apud MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da
Restauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008, p. 92.
16
A expressão “fiéis vassalos” vem do próprio discurso da câmara de Olinda e da Coroa
portuguesa, como no expresso no REGISTRO da Carta de S. Majestade para a câmara,
de agradecimento pelas festas que fizeram no nascimento da Infanta. 12 out. 1699.
Livro de registro de Cartas, Provisões e ordens régias da Câmara de Olinda. L. 1º, fl. 95.
APEJE, onde o rei agradece as festas que em Olinda se fizeram pelo “nascimento da
Sereníssima Infanta, minha muito amada e prezada filha”, afirmando que “pareceu de tão
bons, fiéis e honrados vassalos, que não faltam a mostrar nela o vosso amor, por ser tanto
gosto para esse reino e de todos os seus domínios”.
17
O fenômeno de fabricação de memória nas festas públicas foi estudado por LOPES,
Emílio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudo sobre as
manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo: EDUSP,
2004.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 75

da identidade dos restauradores em Pernambuco, juntamente com a


elaboração de obras literárias como o Valeroso Lucideno, publicada em 1648 e
escrita pelo frei Manuel Calado de Salvador, e o Castrioto Lusitano, de 1679, do
Frei Rafael de Jesus. Ambas encomendadas pelo principal líder da restauração,
João Fernandes Vieira18.
Nessas obras apologéticas, assim como nos retratos e murais também
feitos por encomenda tanto quanto na festa de Restauração, transparece a
intencionalidade da criação de uma imagem de lealdade e heroísmo na qual
investiram os restauradores pernambucanos. O frei Manuel Calado, por
exemplo, não se furtou a fazer os mais altos elogios a João Fernandes Vieira
em seu O Valeroso Lucideno, seguindo um modelo ibérico de panegírico que
procurava ressaltar o valor heróico da nobreza. Assim, cantou o frei:
A Liberdade restaurada canto,
Obrada por a espada portuguesa
Guiada pela luz do Pólo Santo,
(terrena obra, mas celeste empresa)
Canto um João, que é terror, e espanto
Do belga, e quebrantou sua braveza,
E de seus esquadrões em tempo breve
Muitos triunfos, e vitórias teve.”19
Nas palavras de Calado a imagem de bravura cultivada por seu patrono,
Vieira, e pelos restauradores de Olinda.
Com essas práticas a elite açucareira apenas se situava no sistema de valores
da fidalguia ibérica, ávida por construir uma imagem ideal de si através de
obras encomendadas, fossem pinturas, peças, panegíricos ou mesmo festas
públicas. E o caráter de encomenda que as obras artísticas barrocas possuíam
marcou o ato de criar memória e identidade tanto na nobreza ibérica quanto
na elite açucareira.
Assim foi que, seguindo os padrões ibéricos, os senhores de Pernambuco
se esmeraram em encomendar crônicas de seus feitos heróicos e retratos
pintados. E muito comum ao mundo ibérico do Seiscentos e Setecentos eram
os textos panegíricos dentre os quais as descrições de festas públicas eram
tão populares que constituíam um gênero literário próprio, a relação. Desse
gênero são exemplos a relação das festas celebradas em Salamanca pela vitória
da Coroa espanhola sobre a revolta de Barcelona em 1652, e as memórias
impressas das entradas solenes dos Filipes em Portugal ao longo do XVI e
XVII.
Da América portuguesa, por sua vez, partiram descrições de festividades
públicas de intrínseco caráter barroco no século XVIII, celebradas com o recurso
à arquitetura efêmera, com arcos de triunfo, decoração nas janelas, luminárias
18
MELLO, Rubro veio, p. 63.
19
CALADO, Frei Manuel. O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade. 2 vols. Recife:
FUNDARPE, 1985, Vol. 1, p. 25.
76 KALINA VANDERLEI SILVA

à noite e cortejos rigidamente hierarquizados nos quais tremulavam os


pendões de câmaras e outros símbolos políticos e que eram acompanhados
por coreografias de corporações de ofício e outros grupos populares20.
Exemplo de minuciosas memórias de celebrações barrocas são o Triunfo
Eucarístico, de Simão Ferreira Machado, publicado em Lisboa em 1734 e que
descrevia a inauguração da Igreja de Nossa Senhora do Pilar em Vila Rica em
1733, e o Áureo Trono Episcopal, publicado em Lisboa em 1749 por Francisco
Ribeiro da Silva, descrevendo a festa realizada por ocasião da investidura de
dom frei Manuel da Cruz como bispo de Mariana em 174821.
Pernambuco também conheceu memórias escritas de festas celebradas
em seu solo, aparentemente todas datadas do século XVIII: sobre a festa de
aclamação de d José I, Relação das Festas que se Fizeram em Pernambuco pela
feliz aclamação do alto e poderoso rei de Portugal, d José I. 1751-1752, e sobre a
festa de São Gonçalo Garcia, em 1745, a Súmula Triunfal da Nova e grande
Celebridade do Glorioso e Invicto Mártir São Gonçalo Garcia, de Sotério da Silva
Ribeiro, e o Discurso Histórico, Geográfico, genealógico e político e encomiástico,
de Frei Jaboatão22.
Todas essas obras esperavam criar uma memória a partir de uma efeméride
festiva significada como marco de algum momento solene para a Coroa, fosse
espanhola ou portuguesa. Por outro lado, como toda obra barroca, seu caráter
de encomenda dizia muito sobre os personagens que a encomendavam: além
de celebrar os feitos da monarquia, as festas e suas relações enfatizavam a
importância fundamental dos encomendadores, as elites locais, na celebração
em questão.
As obras panegíricas patrocinadas pelos restauradores de Pernambuco,
como o Valeroso Lucideno, reproduzem tanto quanto a festa de Restauração,
muito dos valores barrocos que a elite açucareira procurava assimilar e
demonstrar, em sua busca por nobilização: valores como heroísmo, lealdade
e coragem eram idealizados pela nobreza ibérica, reproduzidos nas obras
literárias espanholas e portuguesas do século XVII e assimilados pela elite

20
O modelo ibérico de festas barrocas, assim como a descrição de suas práticas, pode ser
visto em ÁVILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco - Vol. 1: uma linguagem
a dos cortes, uma consciência a dos Luces. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 144-154.
21
MACHADO, Simão Ferreira. Triunfo Eucarístico, Exemplar da Cristandade Lusitana em Pública
Exaltação da Fé na solene Transladação do Diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora do
Rosário, para um novo Templo da Senhora do Pilar em Vila Rica, etc. Lisboa Ocidental: Oficina
de Música, 1734, apud ÁVILA, O Lúdico...; AUREO Trono Episcopal, Collocado nas Minas de
Ouro, ou Notícia Breve da Criação do Novo Bispado marianense, da sua felicíssima posse, e
pomposa entrada do seu meritíssimo primeiro Bispo,e da Jornada, que fez do Maranhão, etc.
Lisboa: Oficina de Miguel Manascal da Costa, 1749, apud ÁVILA, O Lúdico...
22
Ambas as relações, assim como a da aclamação de d José, foram transcritas por José
Aderaldo Castello em O Movimento Academicista Brasileiro, apud ARAÚJO, Rita de Cássia.
A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745. In: JANCSÓ,
Istvan & KANTOR, Iris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. Vol.
1. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2001, p. 419-444.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 77

açucareira de Pernambuco que se queria barroca23.


A festa da Restauração tentava celebrar esses valores e, ao mesmo tempo,
marcar no imaginário coletivo a importância dos feitos heróicos da elite. Era
realizada em Olinda todo dia 27 de janeiro, com sermão, Te Deum, missa
cantada na Sé e desfile dos corpos militares. Mas aparentemente ela nunca
mereceu uma relação impressa. O único de seus sermões panegíricos que se
viu publicado foi o pregado por Frei Jaboatão em 1731, publicado muito mais
tarde pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 186024.
Essa festa era agrupada pela Câmara de Olinda, desde 1690, com as festas
anuais pelas quais o tesoureiro-geral solicitava à Fazenda Real pagamento de
propinas, gratificações, para os oficiais que delas haviam participado. As outras
festas anuais eram as de São Sebastião e a de Corpus Christi, pelos registros
de 1690, às quais se somava o Anjo Custódio em registros de 1738. O
tesoureiro, ao contabilizar os gastos totais da câmara com as festas naquele
ano, e que somavam a quantia de 78 mil e 280 réis, descreveu os itens festivos
nos quais esse valor havia sido alocado: cera para as velas, castiçais, missa
cantada e sermão, sacristão, escravos carregadores, além de outros gastos
não especificados 25 . Objetos que iam compor o cenário para aqueles
espetáculos festivos nas igrejas e nos cortejos, bem iluminados à luz de muitas
velas e embalados pelo som de música religiosa e sermões em latim. Já então,
em 1690, o tesoureiro listava a festa da Restauração como anual, o que sugere
que aquele não era o primeiro ano em que era celebrada.
E era celebrada sempre em Olinda, pelo menos até a década de 1740 quando
a Câmara de Igarassu procurou também implantá-la. O caráter de celebração
da elite açucareira era tão marcante que a festa não parece ter sido realizada
no Recife apesar dessa povoação, depois de elevada à vila em 1711, tentar se
adaptar ao padrão festivo da Coroa, promovendo sua cota de festas públicas.
A câmara da nova vila estava ansiosa por demonstrar sua lealdade à Coroa e
angariar para seus oficiais uma quantidade respeitável de prestígio. E, para
isso, insistiu na realização de sua própria festa de Corpus Christi, a mais
importante celebração dos impérios português e espanhol, concorrendo e
23
Vemos esses valores em MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: análise de uma
estrutura histórica. São Paulo: Imprensa Oficial; Edusp, 1997; e FRANÇA, Portugal ... Que
os mesmos eram conhecidos e reproduzidos pela elite açucareira vemos na obra de
um de seus expoentes máximos, Duarte de Albuquerque Coelho. COELHO, Duarte de
Albuquerque. Memórias diárias da Guerra do Brasil. São Paulo: BECA, 2003.
24
MELLO, Rubro veio, p. 28.
25
REQUERIMENTO do tesoureiro-geral da câmara de Olinda, cap. Feliciano de Mello da
Silva, aos oficiais dela, para que se passasse mandado de despesas das festas religiosas
que o senado mandou fazer este ano. AHU_ACL_CU_015, D. 1537. Já em documento de
1738, vemos a Coroa estabelecendo a quantia de 30 mil réis para a realização das
festas de São Sebastião, da Restauração e do Anjo Custódio do Reino, todas realizadas
na catedral com o Santíssimo Sacramento exposto. CARTA dos oficiais da câmara de
Olinda ao rei, d. João V, pedindo um aumento nas verbas concedidas ás despesas com
as festas de são Sebastião, da Restauração frente ao holandês e do anjo custódio do
reino. AHU_ACL_CU_015, Cx. 52, D. 4537.
78 KALINA VANDERLEI SILVA

disputando com a de Olinda. Por outro lado, a ação de graças pela Restauração
não atraiu sua atenção, celebração que era dos feitos dos senhores de
engenho olindenses, enquanto em Recife dominavam os comerciantes de
grosso trato26.
E não apenas o Recife não organizou festa semelhante, como não
prestigiou a comemoração em Olinda, como demonstra a reclamação que a
câmara daquela cidade fez ao rei a respeito da ausência do governador, então
sediado em Recife, e demais autoridades na ação de graças de 1725 e 1726.
Em 1725, escreveu o rei ao governador de Pernambuco, então D. Manuel
Rolim de Moura, reproduzindo a queixa dos oficiais da Câmara de Olinda
sobre a ausência das autoridades na comemoração da “memória da gloriosa
restauração da capitania” que se fazia por ordem régia todos os anos. A carta
régia descreve a organização da cerimônia com missa, Santíssimo Sacramento
exposto e sermão na Santa Sé, assistida pelos terços de Olinda e Recife, além
dos ministros, oficiais de Justiça e Fazenda. Mas no ano em questão só se
achavam presentes os oficiais da Câmara de Olinda. A essa reclamação
respondeu então o governador dizendo que
Sempre a assisti e os ditos ministros em a dita festa, como também
todo o terço inteiro da cidade marcha para a Sé como é estilo, e
não tenho notícias que o terço do Recife se achasse também em
outros anos na tal celebridade, como afirmam os ditos oficiais.27
No ano seguinte os oficiais de Olinda voltaram a reclamar ao rei, solicitando
que, como era costume em anos anteriores, na festa da Restauração
marchassem os dois terços, o de Olinda e o de Recife, com seus mestres de
campos, além do terço dos henriques com mestre de campo, e que todos
recebessem pólvora para uma salva de artilharia em memória do dia. Além
disso, reiteravam seu pedido de que o governador, ministros e oficiais, e
todas as “pessoas da nobreza” dentro de duas léguas da cidade fossem
obrigados a comparecer a festa28.

26
As querelas de jurisdição entre Olinda e Recife em torno da festa de Corpus Christi
estão registradas em documentos como a CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao
rei [d João v], sobre a pretensão da câmara de Recife de fazer a procissão do corpo de
Deus no mesmo dia em que se faz em Olinda. AHU_ACL_CU_015, cx 63, D. 5386, e
CARTA dos Oficiais da Câmara do Recife ao rei [D João V], sobre se realizar a procissão
de Corpo de Deus no Recife devido à isenção do seu povo e clero de comparecerem à
de Olinda. AHU_ ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3499.
27
CARTA do governador da capitania de Pernambuco ao rei sobre a ordem para que
todos os ministros, oficiais de justiça e fazenda, governador, senado e todos os terços
de Recife e Olinda participem dos festejos da Restauração. AHU_ACL_CU_015, Cx. 31,
D. 2849. Pernambuco, 18 jul. 1725.
28
CARTA dos oficiais da câmara de Olinda ao rei, d. João V, sobre a ordem para que na
festa de ação de graças de 27 de janeiro, marchem os terços e compareçam o
governador, ministros e oficiais. AHU_ACL_CU_015, Cx. 32, D. 2950.
FESTA E MEMÓRIA DA ELITE AÇUCAREIRA NO SÉCULO XVII 79

Essa repetida queixa deixa claro o desrespeito das elites de Recife com a
celebração da nobreza olindense, que se queria fidalga. Clara também fica a
insistência dessa ‘nobreza da terra’, já então em pleno processo de perda de
hegemonia política sobre a capitania, na festa como marco de sua importância
social e política. Uma insistência que enfatizava a memória do feito que esta
celebração deveria comemorar.
E, apesar dessa decadência, ou por causa dela, a elite açucareira continuou
a insistir na festa da Restauração pelo menos até a década de 1740, quando a
implantou também em Igarassu:
Prostrados aos benignos pés de Vossa Real Majestade, que Deus
guarde, como mais leais e fiéis vassalos, damos conta a Vossa
Majestade, que sendo essa vila de Santos Cosme e Damião de
Igarassu a mais antiga desta capitania de Pernambuco, e fazendo
na cidade de Olinda no dia vinte e sete de janeiro, anualmente
ação de graças a Deus Nosso Senhor por ser o dia em que se restaurou
esta terra do poder do holandês, nesta vila se não faz ato algum de
lembrança, e parecendo ser necessário, fazermos a mesma ação
de graças no dito dia, para lembrar aos presentes o que fielmente
obraram os nossos antepassados; Demos conta a Vossa majestade,
que sendo servido, nos mandar ordem para a podermos fazer, com
a mesma despesa, que se costuma fazer nesta vila a do Anjo
Custódio, paga das sobras do Concelho.29
Era a reafirmação da memória dos feitos gloriosos dos senhores de
engenho que, em 1740, enfrentavam o crescimento do Recife e sua elite
comercial. Uma última tentativa de fixar na memória coletiva da capitania os
feitos pelos quais a elite açucareira tanto se orgulhava e sobre os quais baseava
todas as suas reivindicações de nobreza. Uma tentativa de “lembrar aos
presentes o que fielmente obraram os nossos antepassados”, segundo as
palavras da própria câmara. Afirmação que enfatiza a função da festa como
ato de criar e cristalizar uma memória, ao mesmo tempo oficial e coletiva, em
torno dos fatos em questão.
Se as festas públicas do Antigo Regime deveriam instituir memória ao
cristalizarem determinadas representações sobre o passado, representações
essas que traziam a público uma memória selecionada, um passado que se
queria recordar, tal papel foi assumido à perfeição pela festa de ação de
graças pela Restauração da capitania de Pernambuco que procurava
comemorar e construir uma dada memória de feitos heróicos da elite
açucareira.
Mas se a festa barroca tinha a função de construir memória, também tinha

29
CARTA dos oficiais da câmara de Igarassu ao rei, d. João V, pedindo ordem para fazer
ação de graças pela Restauração da capitania de Pernambuco do poder dos holandeses,
como se faz anualmente em Olinda, no dia 27 de janeiro. AHU_ACL_CU_015, Cx. 59, D.
5054.
80 KALINA VANDERLEI SILVA

a de reafirmar privilégios, o que dependia de rígidas definições nos papéis


sociais de cada personagem no cerimonial, e do estabelecimento bem definido
da geografia política dos espaços de privilégio nessas festividades. E como
todas as cerimônias públicas barrocas, a festa da Restauração demarcava
lugares de poder, fosse na procissão, fosse na Igreja. As autoridades, como
governador, ministros, mestres de campos, tinham seus lugares pré-
determinados, seguidos de personagens de menor status mas cuja presença
servia para validar a das grandes autoridades, como os soldados que deveriam
acompanhar os mestres de campos. Os gestos eram medidos, como as salvas
de artilharia e os sermões. Os símbolos do poder absoluto da Igreja e da
Coroa estavam presentes, como no Santíssimo Sacramento. E em torno deles
se repartiam as posições hierarquicamente predeterminadas de prestigio,
equivalente ao status de cada participante.
A elite açucareira de Pernambuco muito fez para ser lembrada como
restauradora. Esse epíteto lhe dava privilégios perante a Coroa portuguesa
para quem, a seu ver, tinha restituído uma parte importante do império.
Muitos dos discursos dessa elite pós 1654, então, giraram em torno da
comemoração da Restauração, tanto os discursos políticos expressos nas
petições e requerimentos endereçados à Coroa, quanto o discurso artístico
em obras devidamente encomendadas pelos líderes da guerra. E se a festa da
Restauração era o ápice desse espírito de celebração/construção de uma
memória, visto que reproduzia os bens sucedidos mecanismos de espetáculo
do barroco ibérico, por outro lado ela não cresceu para além da sede da elite
açucareira, nunca conseguindo convencer os opositores, a elite mercantil do
Recife. Enquanto durou, todavia, foi responsável pela fixação pública da
identidade da elite açucareira enquanto fidalguia, pelo menos no imaginário
da própria elite açucareira.
81

PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E


CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA:
PERNAMBUCO, SÉCULO XVIII
George F. Cabral de Souza1
s origens da Câmara do Recife estiveram marcadas pelo conflito.
Desde a segunda metade do século XVII as diferenças entre os
senhores de engenho e os mascates deram o tom das tensões
políticas em Pernambuco. Um dos seus reflexos mais visíveis foi
a disputa pelo poder municipal. Ainda que a solução mais simples
fosse a transferência da sede da capitania de Olinda ao Recife e a abertura
dos cargos municipais aos comerciantes, a coroa optou por uma saída mais
aparatosa: a criação de uma nova municipalidade aberta também aos
negociantes do Recife, a maioria deles de origem portuguesa.
O fato de que entre as duas sedes dos dois governos municipais não
houvesse mais que uma légua de distância não foi levado em conta. Segundo
as normas da coroa portuguesa para a colônia, devia-se observar uma
distância de pelo menos seis léguas entre uma vila e outra. Isso garantia um
espaço mínimo de três léguas entre duas sedes municipais. O imenso território
e os poucos recursos, muito mais que a recomendação legal, acabaram por
fazer a dispersão muito mais frequente que a concentração de sedes
municipais. O fato mais usual na América Portuguesa foi a grande distância
entre os centros urbanos e as instâncias administrativas, distâncias estas que
constantemente provocavam ocos de poder em largas extensões territoriais2.
A conflituosa coexistência de dois centros tão ativos política e
economicamente representa, pois, um especial atrativo para o historiador.
No momento da elevação do Recife à qualidade de vila não foram tomadas
medidas para determinar os limites de jurisdição dos ofícios municipais
secundários entre os dois poderes locais. Em relação ao patrimônio territorial
do Recife, não ficou claro se a separação do termo de Olinda compreendia
tanto a administração como a posse. Assim, no ambiente inflamado dos anos
pós Guerra dos Mascates, nos quais a nobreza da terra sofreu duros golpes

1
Doutor em História pela Universidade de Salamanca. Pesquisador do Grupo de Pesquisas
O Mundo Atlântico (PPGH-UFPE/ Diretório CNPq). Professor Adjunto do Departamento
de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco. Associado efetivo do Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano. Pesquisador financiado pela FACEPE. E-Mail:
<georgecabral@yahoo.com>.
2
LOBO, E. M. L. Processo administrativo ibero-americano. Rio de Janeiro: Bibliex Editora,
1962, p. 144. VIANNA, O. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999,
p. 133 e ss. OMEGNA, N. A cidade colonial. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1961, p.
34-35.
82 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

políticos, foi necessário também definir claramente toda uma série de questões
de escopo político, administrativo, econômico e, inclusive, religioso, uma vez
que a existência do padroado régio mesclava os temas eclesiásticos com os
demais. Observemos alguns aspectos específ icos destes conflitos,
concretamente no que tange às questões relacionadas com a formação do
patrimônio da câmara do Recife, ao longo do século XVIII.
As câmaras municipais possuíam um conjunto de despesas e receitas que
deviam gerenciar para cumprir suas obrigações legais. As municipalidades
desfrutavam de alguma autonomia fiscal, mas as fontes de renda costumavam
ser exíguas e pouco estáveis. Os recursos para custear as despesas municipais
eram arrecadados pela própria câmara, e a origem deles era local. Segundo
Hespanha, as principais fontes de financiamento das câmaras eram: 1) os
rendimentos de bens patrimoniais como edifícios alugados na sede da vila ou
em seu termo; 2) direitos cobrados pela utilização dos bens comunais como
pastos e bosques; 3) multas por descumprimento das posturas; 4) as
penalidades aplicadas pelos almotacés; 5) as penas pecuniárias aplicadas pelos
juízes; e, também, 6) os tributos municipais, como as portagens, as taxas
cobradas sobre o valor das mercadorias que entravam ou saíam da sede da
vila, e os terrádigos, um imposto cobrado sobre as transferências de terrenos
por venda. No caso de necessidade, se recorria às fintas e talhas. Essas
contribuições oficialmente eram voluntárias e se adequavam a cada um de
acordo com o nível de propriedade3. Na realidade, eram contribuições
obrigatórias para custear obras de defesa, pontes, estradas, caminhos, o
envio de procuradores à corte, festas, procissões ou para colaborar no esforço
de defesa mais amplo juntamente com outras municipalidades.
No quesito de despesas, ainda segundo Hespanha, figuravam como
principais gastos: 1) um terço da arrecadação que era repassada ao tesouro
régio; 2) o pagamento de funcionários da câmara e a profissionais de interesse
público (boticários, médicos, professores entre outros); 3) o salário dos juízes
de fora sempre que estes não recebessem diretamente do tesouro real; 4) a
assistência aos expostos, pobres e doentes; 5) gastos para as solenidades,
procissões, festas, casamentos ou funerais reais; 6) envio de procuradores;
7) gastos com correios; 8) solicitações extraordinárias do Rei (pedido do Rei);
e, finalmente, 9) os pequenos gastos cotidianos da câmara.
Na realidade colonial, este perfil nem sempre se aplicava completamente,
existindo variações consideráveis segundo as características econômicas e
demográficas locais. A falta de recursos costumava ser comum e as fintas
eram impostas à população com alguma frequência e nem sempre dentro do
espírito de equilíbrio previsto na lei. Zenha, em seu estudo sobre as

3
VIDIGAL, L. O municipalismo em Portugal no século XVIII. Lisboa: Horizonte, 1989. p. 76-77.
ZENHA, E. O município no Brasil, 1532-1700. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948,
p. 125-126. HESPANHA, A. M. História das instituições: épocas medieval e moderna.
Coimbra: Livraria Almedina, 1982, p. 240-241. Ordenações Filipinas, Livro I, tít. 66, par.
40.
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 83

municipalidades coloniais nos século XVI e XVII, questiona como instituições


economicamente tão débeis puderam impor-se social e politicamente como o
fizeram as câmaras.
No caso da Câmara de Olinda, condições particulares locais fizeram com
que a municipalidade assumisse a administração de praticamente todo o
orçamento da capitania de Pernambuco. Para compreender os problemas
surgidos com o desmembramento da municipalidade recifense, sobretudo
aqueles vinculados com os conflitos sobre a propriedade territorial, temos
que atentar, ainda que tangencialmente, para alguns aspectos do patrimônio
municipal de Olinda.
O primeiro grande aporte patrimonial recebido pela edilidade olindense
teve lugar no início da colonização efetiva de Pernambuco. Duarte Coelho
realizou, no momento da fundação da vila, a doação de vastas extensões de
terrenos através do Foral de Olinda. Entre os locais doados aparecia “o Recife
dos navios com suas praias”, referência mais remota à localidade onde se
ergueria o povoado ao redor do principal porto da capitania4. A Câmara de
Olinda dispunha, assim, da possibilidade de tributar os ocupantes destes
terrenos através da cobrança dos foros. Naquele momento, muitos destes
terrenos eram nada mais que areia ou manguezais. Mas, o incremento da
população e a ampliação das áreas ocupadas, modificaram o quadro. Ao
longo de seus quase cinco séculos de existência, a administração municipal
de Olinda continuou (e continua) a cobrar esta taxa.
No século XVII, novas atribuições foram concedidas ao poder municipal
olindense. A invasão da West Indische Compagnie em Pernambuco, em 1630, e
os posteriores esforços para sua expulsão entre 1645 e 1654, fizeram da
Câmara de Olinda o epicentro político da resistência pernambucana. Desde
então, coube a ela a arrecadação e a administração dos tributos na capitania,
fato que garantia sua preeminência como a “cabeça do povo de Pernambuco”.
Em 1713, por exemplo, o montante total de recursos geridos pela Câmara de
Olinda alcançou os 26:000$000. O grosso deste orçamento vinha da
administração dos contratos de arrecadação de tributos. Este era um dos
principais atrativos do poder municipal em Olinda, pois as concessões, muitas
vezes dadas através de leilões fraudulentos, permitiam a formação de clientelas
políticas5. Esta posição destacada se manteve até 1727, quando mudanças
administrativas retiraram de Olinda suas atribuições supramunicipais em

4
PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais pernambucanos. 2. ed. Recife: Fundarpe, 1983. Vol. I, p.
267; Vol. II, p. 135.
5
MELLO, E. C. de. Fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 62-67. A grande quantidade de rendas
administradas pela Câmara de Olinda despertava cobiça entre os funcionários
metropolitanos em Pernambuco. Além disso, as irregularidades eram frequentes e as
contas, no mínimo, obscuras. Daí que depois da Restauração, vários governadores e
outros funcionários terem tentado limitar as atribuições fiscais da “Câmara de
Pernambuco”, agravando as tensões entre os interesses locais e o poder central.
84 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

matérias fiscais, passando-as à Provedoria6.


Em 1710 a criação da nova vila do Recife provocou uma série de questões
sobre o patrimônio. Primeiro a separação das três freguesias rurais do termo
de Olinda e sua incorporação ao Recife. As freguesias eram as da Muribeca,
Ipojuca e Cabo. De acordo com as normas do Antigo Regime, retirar territórios
e jurisdição de uma vila ou cidade era considerado uma violação de privilégios
garantidos pela coroa. Este tipo de acontecimento costumava provocar
grandes disputas judiciais. Os oficiais da câmara que perdia território no
processo de criação de uma nova unidade administrativa protestavam
inclusive por questões práticas de repercussão imediata: a redução de
importância do concelho7; o aumento das taxas per capita, pois cada vizinho
tinha que suportar um valor mais alto a pagar; a mesma situação se dava
quando uma finta era convocada, já que uma quantidade menor de vizinhos
também significava uma carga tributária maior para cada um deles8.
A gestão e o aproveitamento do patrimônio territorial municipal foram
sempre uma questão delicada. Às vezes os conflitos por esse tema
ultrapassavam os limites jurisdicionais do município envolvendo funcionários
reais e o poder central. Bicalho chama a atenção para os constantes problemas
relacionados com a distribuição de terrenos nas praias pertencentes à
municipalidade do Rio de Janeiro e os conflitos que houve sobre a questão
com as autoridades reais e a coroa. A Câmara do Rio de Janeiro gozava da
prerrogativa de arrendar entes terrenos a interessados em construir neles.
Essa era uma das principais fontes de renda para a edilidade. Era também
uma excelente oportunidade de auferir ganhos privados para os oficiais
municipais, seus parentes e achegados. Em 1732, o governador da capitania
do Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro, denunciou à coroa que as concessões
de terrenos públicos nunca eram feitas de forma a atender o bem comum,
senão que aos interesses dos que controlavam o poder municipal e os seus
apaniguados.

6
MELLO, E. C. de. Rubro veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. 2. ed. São
Paulo: Topbooks, 1997, p. 150-151. Veja-se ainda: AHU_ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2307, 12
set. 1713.
7
“Cada novo concelho era uma amputação a um outro território concelhio, era uma limitação
não apenas espacial, mas social da jurisdição. O que não deixava de ser recebido da pior
maneira. Onde os interesses em jogo eram relativamente insignificantes a luta podia
estender-se durante longos anos sem turbulências, enredando-se os papéis nos tribunais régios
pela chicana dos procuradores”. MAGALHÃES, J. R. Reflexões sobre a estrutura municipal
portuguesa e a sociedade colonial brasileira. Revista de história económica e social. Lisboa,
v. 16, 1985, p. 18.
8
HESPANHA, A. M. Vísperas del Leviatán. Madrid: Taurus, 1989, p. 83-84; MELLO, Fronda
dos mazombos, p. 228-229. Mello destaca que os vereadores de Olinda tentaram uma
saída jurídica baseada na salvaguarda desse tipo de privilégios jurisdicionais para
fechar a recém-instalada Câmara do Recife. Para um interessante caso de disputa
patrimonial na América Hispânica ver: PÉREZ, J. M. S. Élites, poder local y régimen colonial:
el Cabildo y los regidores de Santiago de Guatemala, 1700-1787. Cádiz: Universidad de
Cádiz, 1999, p. 274-303.
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 85

Em fins dos anos 1770 uma denúncia assinada pelos moradores do Rio de
Janeiro informava à coroa que os protegidos dos oficiais municipais enchiam
suas arcas sub-arrendando parcelas de terrenos urbanos concedidos pela
edilidade. O mecanismo era simples e lucrativo: os vereadores arrendavam
terras públicas por foros baixíssimos a pessoas próximas a quem não
interessava construir, e sim repassar as concessões aos que de fato buscavam
espaço para novas edificações. Estes últimos se viam obrigados a pagar foros
muito mais elevados aos primeiros arrendatários. Com o respaldo da
municipalidade aplicavam cobranças cada vez mais altas segundo o valor da
área se incrementava, novas construções eram feitas ou as já existentes eram
melhoradas9.
Por outro lado, além do problema das freguesias rurais anexadas à nova
vila, chegou de Lisboa a ordem de que se procedesse ao inventário dos bens
patrimoniais de Olinda, exatamente na época em que ocorriam os momentos
críticos do enfrentamento entre nobres e mascates. O trâmite era necessário
para que se comprovasse a confirmação real das doações de terrenos feitas
por Duarte Coelho à Câmara de Olinda em 1537. A câmara solicitava esta
confirmação porque os documentos originais se perderam durante a invasão
holandesa. Em 1678 a coroa confirmou uma parte das possessões de Olinda,
mas os terrenos ocupados por particulares deviam ser judicialmente
reivindicados. Daí a necessidade de proceder a catalogação, o que dava uma
excelente oportunidade para importunar a gente do Recife, pois muitos
ocupavam terrenos de Olinda sem pagar o foro devido10.
A autonomia política do Recife ficou garantida com a retomada definitiva
do funcionamento da nova municipalidade sob o governo de Félix José de
Machado em 18 de novembro de 1711. Ainda assim, o suporte financeiro da
instituição tardaria várias décadas até se consolidar. A falta de recursos
impedia o cumprimento das obrigações básicas de uma municipalidade
lusitana. Uma das ocasiões mais importantes do calendário litúrgico era a
procissão de Corpus Christi, e sua realização era uma das atribuições das
câmaras. Além do mais, era o momento ideal para as representações simbólicas
do poder no Antigo Regime. Há um longo rol de contendas entre as duas

9
BICALHO, M. F. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 190, 210-220. Também sobre os conflitos entre a Câmara
do Rio e os funcionários da coroa acerca de questões patrimoniais ver os seguintes
artigos: SANCHES, M. G. O rei visita os seus súditos...: a Ouvidoria do Sul e as correições
na Câmara do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, IHGB, ano 164, n. 421, 2003, p. 130-131. IGREJAS, C. dos A. F. Centralização
joanina e realidade colonial: a ação de Luís Vaía Monteiro no Rio de Janeiro. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, IHGB, ano 164, n. 421, 2003,p.
175-177.
10
A provisão régia foi passada em 20 fev. 1709 atendendo a um requerimento da Câmara
de Olinda. A conclusão do trâmite, levado a cabo pelo ouvidor de Pernambuco, José
Inácio de Arouche, se deu em 23 set. 1710. PEREIRA DA COSTA, Anais pernambucanos,
vol. V, p. 154-157. MELLO, Fronda dos mazombos, p. 232-233.
86 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

câmaras sobre a realização destas solenidades11.


Para o leitor atual, essencialmente laico, isso poderá parecer uma questão
menor. Mas não era para aquelas pessoas. Figurar em uma procissão ou
participar de uma irmandade representava, no mundo colonial ibero-
americano, muito mais que um ato de fé. Eram oportunidades inigualáveis
para ostentar limpeza de sangue e status, em uma sociedade tão hierarquizada
e cheia de preconceitos. Participar em uma procissão significava, sobretudo,
marcar uma clara clivagem frente à plebe que tinha que se contentar em ver
passar o cortejo.
Por outro lado, as festas promoviam a consolidação de uma identidade
comum, permitindo a interiorização de valores e práticas coletivas
fundamentais para a legitimação de estruturas coloniais e reinóis, ao mesmo
tempo em que estreitavam os laços mentais de unidade dos dois lados do
Atlântico. As ordens religiosas e as irmandades realizavam muitos destes
eventos, mas eram as câmaras as que habitualmente organizavam este tipo
de celebrações12.
Apesar de sua importância as procissões foram suspensas em várias
ocasiões por falta de recursos. A meados do século XVIII, o ouvidor da capitania
enviou um informe sobre a petição de dinheiro para a realização das procissões
e o pagamento das propinas que os oficiais municipais deviam receber nestas
ocasiões. Neste documento, a máxima autoridade judicial em Pernambuco
ponderava que “não havendo vila donde não se celebre esta grande festividade,
ainda nas mais ordinárias, não é bom que se não faça nesta, que pela sua grandeza
podia ser tida como uma das maiores cidades do Reino”.
Houve ocasiões, como na morte de D. João V, em que os vereadores tiveram
que pedir empréstimos para patrocinar as manifestações de luto ou de júbilo
pela família real. Em outros momentos, arrecadou-se entre os vereadores as
quantias necessárias para realizar as festas e procissões, ou para os consertos
necessários na casa de câmara e cadeia. Em 1752 se queixavam de que apesar
da Câmara do Recife não ter patrimônio, não recebia nenhuma ajuda da
Fazenda Real para este tipo de celebrações, enquanto que outras
municipalidades tinham patrimônio e recebiam recursos das arcas régias para
a realização das festas13.

11
Ver SOUZA, G. F. C. de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de
Recife (1710-1822). Tese de doutorado. Universidade de Salamanca, 2007.
12
BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 145.
“Muitos poucos tinham entre suas fileiras a dignidade da representação e estar entre os que
desfilavam significava se diferenciar da plebe”. FURTADO, J. F. Homens de negócio: a
interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec,
1999, p. 31, 141 e 220. RAMINELLI, R. Festa. In: VAINFAS, R. (org.). Dicionário do Brasil
Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 233-234.
13
Consulta do Conselho Ultramarino a D. José I, 2 dez. 1754, AHU_ACL_CU_015, Cx. 77, D.
6450. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D.
6134. Certificado do escrivão da Câmara do Recife que atesta os ingressos desta câmara,
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 87

Os problemas causados pela falta de recursos para os gastos da câmara


provocavam também efeitos mais “terrenais”. Uma das rubricas do orçamento
de um município colonial estava destinada à assistência aos expostos e aos
doentes. As Santas Casas de Misericórdia normalmente se encarregavam de
construir as rodas de enjeitados, e muitas vezes estas instituições recebiam
fundos especiais destinados à sua manutenção e ao cuidado destas crianças.
Não obstante, a responsabilidade de organizar e financiar as casas de expostos
e as amas-de-leite ou famílias para cuidar deles correspondia às câmaras.
Em Olinda, por exemplo, a câmara destinou, em 1765, 120$000 para o
pagamento das mulheres responsáveis pelos cuidados dos enjeitados. Isso
representava cerca de 10% do total das despesas municipais. Por essa época
este tipo de despesa ainda não aparecia nas contas do Recife, ainda que em
muitas ocasiões os vereadores tenham solicitado ao Rei fundos para esse
fim. Já em 1729 a câmara informava ao monarca que a falta de recursos para
a manutenção de um local adequado para acolher as crianças fazia com que
fossem abandonados à sua sorte pelas ruas, resultando disso “amanhecerem
muitos meninos comidos dos cães e porcos”.
A assistência aos enfermos também ficava comprometida pela falta de
meios. Em 1722, o médico Domingos Felipe Gusmão solicitava ao governador
da capitania que seu salário, pago pela edilidade recifense, “fosse de cento e
cinquenta mil réis anuais, à imitação do médico da cidade de Olinda”. Os
vereadores responderam ao governador que não havia dúvida da conveniência
que a presença de um médico representava para a população da vila.
Entretanto, afirmavam também que “é menos sem dúvida que esta câmara,
por ser recentemente criada, se acha ainda sem patrimônio, nem renda alguma
em que se possa fazer tal côngrua, nem nenhuma de outras coisas de que
necessita, para o que se espera a Real Providência”14.
Segundo os vereadores, a pobreza do Senado do Recife era tão grande
em 1738 que a casa de câmara e cadeia não possuía um sino, utilizado pelas
instituições municipais para indicar a realização de atos da câmara e do toque
de recolher pela noite. As obras de conservação urbana também estavam
comprometidas. Dada a configuração geográfica da sede da vila, as principais
estruturas urbanas eram as pontes. Através delas se dava a circulação de
pessoas e mercadorias entre a hinterland e o porto, assim como entre o Recife
e a Ilha de Antônio Vaz.

5 mar. 1759, AHU_ACL_CU_015, Cx. 90, D. 7250. Carta dos oficiais da Câmara do Recife
a D. José I, 28 jun. 1752, AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D. 6134.
14
SILVA, M. B. N. da. História da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998, p. 208-209. FARIA, S. de C. Roda dos expostos. In: VAINFAS, Dicionário..., p. 512-
513. Receita e despesa da Câmara de Olinda, 1766, e Receita e despesa da Câmara do
Recife, 1766, ambos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 104, D. 8069. Carta da Câmara do
Recife ao Rei D. João V sobre as rendas e despesas da câmara, 17 mai. 1729,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671. Carta da Câmara do Recife ao Governador de
Pernambuco, 26 mar. 1722. Registros da Câmara (LRCMR), 1733-1808, f. 109v, Instituto
Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).
88 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

A manutenção das pontes excedia a capacidade financeira da vila e


dependia, portanto, das quantias arrecadadas nas povoações de
Pernambuco. Como sabemos, a administração fiscal de Pernambuco
permaneceu até 1727 sob controle da Câmara de Olinda. Devido aos choques
políticos entre as duas municipalidades, a transferência destes recursos
sempre provocou tensões. Em 1720, o Rei determinou que fosse usada uma
parte das rendas dos impostos do Dote da Rainha da Grã-Bretanha e da Paz
de Holanda para custear a reforma das pontes da Boa Vista e de Afogados.
No ano seguinte os vereadores do Recife denunciaram que, não obstante
tivessem sido agraciados pela coroa com esta decisão, as pontes continuavam
sem os devidos consertos, “pelo que já têm acontecido algumas mortes e outros
desastres”, acrescentavam com evidente exagero15.
Os terrenos do Foral de Olinda passaram, então, a ser objeto de cobiça
por parte da Câmara do Recife. As manobras para impedir a transferência das
freguesias rurais para a jurisdição do Recife não tiveram o êxito esperado.
Entretanto, apesar de possuir autoridade administrativa e jurídica sobre estes
territórios meridionais da capitania, a Câmara do Recife não detinha a posse
e o direito de cobrar foros, inclusive nos terrenos centrais da vila. Os
vereadores recifenses repetiram as súplicas para que a propriedade entrasse
no patrimônio da vila. Foram feitas pelo menos oito representações entre
1718 e 175216.
Em todas elas a argumentação refletia a tensão gerada pelo
desmembramento do termo da cidade de Olinda. Os vereadores do Recife
reconheciam que antes da criação da nova vila, a Câmara de Olinda cobrava
os foros a que tinha direito, pois os territórios do que era então a povoação
do Recife estavam sob jurisdição da cidade duartina. Mas, uma vez que se
procedeu a separação dos territórios, lhes parecia que se anulava a
subordinação à jurisdição de Olinda, ficando os habitantes do Recife isentos
de pagar qualquer taxa à edilidade vizinha. Alegavam que a permanência da
cobrança destes foros constituía uma invasão de jurisdição e uma
desobediência à vontade régia que, dando autonomia a uma vila, lhe concedia
também automaticamente a posse e o atributo de cobrar as rendas dos
terrenos sob seu poder. Em uma representação feita em 1733, os vereadores

15
Carta da Câmara do Recife a D. João V, 20 mar. 1738, LRCMR, f. 177, IAHGP. Por outro
lado, “o sino da casa de câmara era um verdadeiro símbolo edilício, a par do pelourinho, que
demarcava esta espécie de ‘noblesse de cloche’ ainda que o símbolo português fosse mais
sonoro…”. VIDIGAL, O municipalismo..., p. 62. ACIOLI, V. L. C. Jurisdição e conflito. Recife:
UFPE, 1997. p. 37-38. Carta da Câmara do Recife a D. João V, 28 abr. 1721, LRCMR, f.
103v, IAHGP.
16
MELLO, Fronda dos mazombos, p. 233 e ss. 3º volume de Cartas de Pernambuco (CP),
AHU, Cód. 258, f. 184v, 21 mar. 1718. 4º volume de CP, AHU, Cód. 259, f. 192.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497, 20 jul. 1729. AHU_ACL_CU_015, Cx. 41, D. 3671, 15/
9/1730. AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4002, 20 jun. 1733. Carta da Câmara do Recife a D.
João V, 20 mar. 1738, LRCMR 1733-1808, hoja 177, IAHGP. AHU_ACL_CU_015, Cx. 73, D.
6134, 28 jun. 1752.
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 89

do Recife lamentavam que, ainda que a vila fosse a mais importante da


capitania, a situação financeira de sua câmara era das piores.
A pretensão da Câmara do Recife não se concretizou. Os foros continuaram
a ser cobrados por Olinda, e os documentos que se conservaram da
municipalidade olindense nos permitem ver que, nas ruas principais da vila
do Recife, muitos dos moradores pagavam o foro, inclusive os que ocupavam
os cargos municipais. As irmandades e ordens também tinham de pagar os
foros sobre algumas das propriedades incorporadas por herança ou doação
dos fiéis17.
A correspondência entre os dois órgãos locais e a coroa não esclarece
quando o governo central negou definitivamente a solicitação recifense. A
última notícia, em 1752, não é conclusiva. Por outro lado, não localizamos
novos pedidos posteriores a esta data. Desde o principio da disputa, os
informes das autoridades locais eram desfavoráveis ao pedido do Recife. O
governador Duarte Sodré Pereira Tibão, por exemplo, que tomava sempre
posições favoráveis à câmara, chegando inclusive a declarar, em carta ao Rei,
que “este Senado da Câmara serve à Vossa Majestade com muito zelo e fidelidade
(...) e na execução das ordens de Vossa Majestade são prontíssimos e por estas
razões deve Vossa Majestade honrá-los”. Entretanto, na mesma carta declarava
que não acreditava que fosse conveniente conceder a súplica dos recifenses
para evitar choques com a Câmara de Olinda18. Era evidente que não seria
politicamente prudente reduzir as fontes de renda da municipalidade
olindense que, como sabemos, já havia perdido a administração dos contratos
e tributos da capitania em 1727.
Se, por um lado, a Câmara do Recife não conseguiu adquirir a potestade
sobre os terrenos pertencentes a Olinda, por outro, conseguiu a posse de
alguns ofícios locais. Estes também foram solicitados com frequência,
aparecendo normalmente associados à petição por foros de Olinda. Outra
vez, como no caso da definição da posse das terras municipais, a coroa hesitou
em decidir, temendo acirrar os conflitos entre as duas municipalidades. Neste
caso a situação foi consideravelmente mais complexa, pois estavam envolvidos,
além dos interesses institucionais, os dos particulares que eram proprietários
dos ofícios ou os de quem os arrendavam.
Observemos dois casos em que houve problemas no momento de definir
a jurisdição e a propriedade dos ofícios municipais secundários de Olinda por

17
Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 29 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx.
39, D. 3497. Carta dos of iciais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 44, D. 4002. O conjunto de documentos que registra os
pagamentos e as dívidas dos foros de Olinda se encontra em vários volumes, já
devidamente transcritos e catalogados disponíveis na Secretaria da Fazenda de Olinda.
Os índices permitem localizar as unidades tanto pelo nome do proprietário do imóvel,
como pelo terreno tributado.
18
Carta do governador de Pernambuco a D. João V, 15 set. 1730, AHU_ACL_CU_015, Cx.
41, D. 3671.
90 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

ocasião da criação da vila do Recife. Os dois ofícios eram o de alcaide e o de


escrivão da câmara. Esses eram remunerados de acordo com as solicitações
de seus serviços através da cobrança de emolumentos aos usuários. Seus
proprietários ou arrendatários adquiriam o ofício e eram compensados com
estes emolumentos. Tratava-se de um arranjo muito comum na administração
portuguesa, que assim conseguia garantir o adiantamento da arrecadação
dos tributos sem a necessidade de aumentar o número de funcionários.
Normalmente se associa esta prática ao império espanhol, mas sua presença
no mundo colonial português é considerável19.
Outra maneira de aceder a um cargo deste tipo era como recompensa por
serviços prestados à coroa. Por serviços prestados devemos entender uma
variada gama de ações, desde a participação direta ou indireta na defesa da
capitania até o empréstimo a autoridades locais para acudir a gastos urgentes,
quase nunca previstos nos deficitários orçamentos imperiais. No caso
concreto de Olinda e Recife, no momento da separação administrativa em
1710-1711, os proprietários se encontraram numa situação pouco usual.
Em primeiro lugar existia a dúvida sobre a extensão de sua autoridade no
termo da nova vila. Para o escrivão, esta questão era ainda mais importante,
pois, além da questão patrimonial, havia o problema político. O proprietário
do oficio era Manuel de Miranda de Almeida, que exercia pessoalmente o
cargo. Dada a tensão existente entre os dois “partidos” locais – mazombos e
mascates – qualquer possibilidade de ingerência da Câmara de Olinda na
nova Câmara do Recife, era capaz de suscitar desconfianças entre os oficiais
desta última.
O escrivão de uma câmara exercia uma posição fulcral. Além de ser o
responsável pela produção e guarda dos documentos do Senado, era o
encarregado da correspondência com a coroa e com as autoridades, fossem
as locais, as da sede do governo-geral em Salvador ou as metropolitanas. A
presença de um mesmo escrivão nas duas municipalidades era simplesmente
impossível no contexto das relações Olinda-Recife do século XVIII.
Como se isto não bastasse, o escrivão em questão havia tido sérios
problemas durante a Guerra dos Mascates. Nos meses cruciais do conflito,
quando governava Pernambuco Sebastião de Castro e Caldas – o governador
que era o alvo de todo o ódio mazombo por seu posicionamento pró-mascates
– a Câmara de Olinda tentou enviar Manuel de Miranda de Almeida a Lisboa.
Ia como procurador especial e levava consigo cartas com denúncias contra a
19
A lista completa das atribuições dos alcaides e de todos os ofícios citados aquí pode ser
encontrada em SALGADO, G. (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil Colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. HESPANHA, A. M. A constituição do Império
português: revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M.
F.; GOUVÊA, M. de F. (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 182 e ss. GALLO, A. La
venalidad de ofícios públicos en Brasil durante el siglo XVIII. In: BELLINGERI, M. (org.).
Dinámicas de Antiguo Régimen y Orden Constitucional: representación, justicia y
administración en Iberoamérica, siglos XVIII-XIX. Turín: Otto Editore, 2000. p. 97-175.
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 91

“tirania” do governador. O plano foi tecido em segredo, mas as más condições


climáticas não permitiram a saída da frota na qual o escrivão tentava passar
ao reino escondido. Descoberto o plano, e estando a frota ainda ancorada, o
governador ordenou a prisão do enviado de Olinda. Já desde este momento,
isto é, da primeira vereação do Recife, a que não conseguiu concluir seu
mandato devido ao levantamento da nobreza em 1710, se discutia a separação
do oficio de escrivão.
Para a Câmara do Recife, a presença de um escrivão que ao mesmo tempo
servia na Câmara de Olinda e que esteve envolvido nos planos de rebelião
dos mazombos era uma ameaça. A carta da Câmara do Recife de 9 de agosto
de 1715 esclarece bem o risco que representava a presença deste escrivão de
Olinda em suas reuniões. Queixavam-se os vereadores que ele “fica sabendo
dos segredos desta vila”. Ademais, era interessante dispor do ofício como
parte do patrimônio da câmara, pois se tratava de uma fonte de ingressos.
Por outro lado, interessava à Câmara de Olinda poder controlar os
movimentos dos seus inimigos políticos. Hespanha destaca que, muitas vezes,
o interesse nos ofícios deste tipo se dava mais pelas possibilidades políticas,
pois, “nesse tipo de cultura política – que era o da Europa moderna e das suas
colônias –, os documentos escritos eram decisivos para certificar matérias
decisivas, desde o estatuto pessoal aos direitos e deveres patrimoniais”20.
Em toda esta peleja não podemos esquecer a posição do escrivão. É difícil
supor até que ponto ele se envolveu nas tensões políticas daquele momento
por afeto à causa ou por pressões de seus companheiros na municipalidade
olindense. Talvez pouco lhe importasse o que os vereadores do Recife
escrevessem ou deixassem de escrever ao Rei. Possivelmente, o que mais o
preocupava em toda a disputa era a considerável redução que seus
rendimentos experimentariam se perdesse o direito de exercer o cargo no
Recife. Sabemos que a praça desde meados do século XVII, havia superado
em importância econômica e demográfica a cidade. Logo, era no Recife e não
em Olinda – onde poucos viviam e não havia o mesmo nível de relações entre
particulares e instituições no âmbito jurídico-legal – onde se necessitava dos
ofícios de um funcionário deste tipo.
O outro ofício em questão era de alcaide e também exemplifica bem as
complicadas negociações para a formação do patrimônio da Câmara do Recife,
negociações nas quais se mesclavam aspectos institucionais e interesses
privados. Naquele momento o alcaide de Olinda e seu termo exercia também
a posição de carcereiro. Em 1693 a propriedade do ofício fora dada, por João
Salvador, à sua filha infanta Ana Lara, como dote para seu casamento.
Durante algum tempo esteve arrendado e rendia à sua proprietária 50$000.
Já em 1713, Ana Lara requisitou ao monarca que a jurisdição do cargo que

20
MELLO, Fronda dos mazombos, p. 243. Carta do governador de Pernambuco a D. João V,
24 jul. 1710, AHU_ACL_CU_015, Cx. 24, D. 2174. Carta dos oficiais da Câmara do Recife
a D. João V, 9 ago. 1715, AHU_ACL_CU_015, Cx. 27, D. 2458. HESPANHA, A constituição...,
p. 186.
92 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

possuía continuasse sendo a antiga, isto é, abarcando os termos das duas


municipalidades. Queixava-se ao Rei que a Câmara do Recife proibira ao
arrendatário do ofício exercer no termo da nova vila, o que lhe parecia um
abuso, pois o ofício tinha sido dado ao seu pai pelo Rei, por serviços prestados,
e esse tipo de concessão real não costumava ser revogável.
Na noticia seguinte que temos sobre o ofício, este aparece sendo exercido
por Sebastião Pereira da Costa, cunhado de Ana Lara. Em 1717 ele solicitou ao
Rei que, se por fim fosse obrigado a renunciar à jurisdição de seu cargo em
um dos dois municípios, que pudesse ao menos escolher a praça do Recife,
pois ali teria mais rendas que em Olinda. Depois de informar estes aspectos,
apontava os prejuízos que tinha tido o escrivão Manuel de Miranda, ao qual
já nos referimos. A seu favor estava a opinião do ouvidor-geral da capitania21.
Manuel de Miranda de Almeida teve que se contentar com seu posto menos
lucrativo em Olinda. Mas a disputa pelo posto de carcereiro havia apenas
começado. Com o passar do tempo, o crescimento do Recife fez com que o
ofício de alcaide e carcereiro se tornasse mais lucrativo. A princípios da década
de 1730, Recife já possuía sua prisão. Segundo os vereadores, havia sido
construída com as contribuições voluntárias do povo através de uma finta. A
recém-construída prisão da vila, pela sua segurança, se transformou
rapidamente no local preferencial para a custódia de prisioneiros oriundos de
todos os rincões da capitania de Pernambuco e de suas anexas. No Recife
eram reunidos os presos que eram enviados para julgamento na Relação da
Bahia bem como os que tinham recebido sentença de desterro para Angola.
Deve-se considerar também que no Recife permaneciam, quase
continuamente, as autoridades principais, apesar do fato de que Olinda
continuava a ser a capital.
O rendimento do ofício de carcereiro triplicou desde o começo do século.
Seus proprietários tinham conseguido manter a unidade da jurisdição nas
duas municipalidades. O posto de alcaide e carcereiro oferecia menos riscos
políticos que o de escrivão naqueles momentos iniciais da municipalidade
recifense. Mas, quando em 1733 morreu o titular do ofício, os vereadores do
Recife viram a possibilidade de açambarcar um rendimento nada desprezível
para o patrimônio municipal. Imediatamente solicitaram ao Rei que concedesse
a propriedade do posto à câmara. Em 1757, a Câmara do Recife voltou a solicitar
o ofício para seu patrimônio, mas, estranhamente, a representação somente
passou pelo Conselho Ultramarino e foi posta “na real presença” da rainha
21
Requerimento da infanta Ana de Lara a D. João V, ant. a 29 abr. 1713, AHU_ACL_CU_015,
Cx. 25, D. 2285. O costume de recompensar os vassalos por serviços prestados à Coroa
era uma constante no Império Português. Inclusive nas camadas superiores da
administração os pedidos dos herdeiros de governadores e vice-reis eram frequentes
e muitas vezes as recompensas eram concedidas não só às esposas e filhos, mas
também a netos, cunhados ou sogros. MONTEIRO, N. G. F. Trajetórias sociais e governo
das conquistas: notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e
da Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA (orgs.), O Antigo
Regime..., p. 270-274. AHU_ACL_CU_015, Cx. 28, D. 2506, 9 mar. 1717.
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 93

Maria I em 1779. O governador de Pernambuco naquele momento, José César


de Menezes, confirmou a vacância do citado ofício22, mas outra vez a
solicitação se emaranhou nas teias burocráticas de Lisboa e até 1782, data em
perdemos seu rastro, não havia ainda sido resolvida23.
A Câmara do Recife conseguiu a propriedade de outros ofícios. A eles se
juntou a administração de alguns contratos de arrecadação. Para isso teve
também que enviar representações repetidas vezes, expressando nelas a
pobreza do Senado. Vimos os problemas acerca da propriedade dos ofícios
de escrivão e alcaide-carcereiro. Já em 1715 o Rei ordenou ao ouvidor de
Pernambuco que informasse sobre a petição dos vereadores da concessão
de uma parte da renda do contrato das carnes. Em 1729, pediu-se a propriedade
do ofício de escrivão do alcaide fosse acrescentada ao patrimônio municipal.
Em data anterior a 1732, os vereadores solicitaram a propriedade de três
ofícios vinculados ao juiz de fora e dos órfãos de Olinda e Recife, os de
requeridor, inquiridor e contador, que deveriam ser exercidos por um só
oficial. Além disso, pediram a propriedade do cargo de escrivão da almotaçaria.
O informe do governador Duarte Sodré Pereira Tibão foi favorável ao pedido
dos vereadores do Recife com a condição de que o ofício de escrivão da
almotaçaria tivesse jurisdição separada da de Olinda, opinião acatada pelo
Conselho Ultramarino. No final da década de 1740, a câmara dispunha dos
ingressos oriundos do contrato da verificação dos pesos e balanças, mas
reclamava que este rendia muito pouco. Para compensar a pouca
rentabilidade deste contrato, pediam os ofícios de juiz, escrivão e feitor da
alfândega, que eram muito mais rentáveis24.

22
Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015, Cx.
44, D. 4006. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 19 ago. 1769,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 107, D. 8315. O Recife se tornou a capital de Pernambuco somente
em 1827. MELO, M. Genealogia municipal de Pernambuco. Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, IAHGP, v. XXXII, n. 151-154, p.
23-25. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jun. 1733, AHU_ACL_CU_015,
Cx. 44, D. 4006. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 25 mai.1757, Ordem
Régia de 21 jul. 1779 e Carta do Governador de Pernambuco a D. Maria I, 22 mar. 1780.
Todos em: AHU_ACL_CU_015, Cx. 84, D. 6977.
23
No despacho do Conselho, datado de 1º de março de 1782, na carta do Governador
citada na nota anterior, se pedia informe sobre as receitas e despesas da Câmara do
Recife, provavelmente para verificar a real necessidade de concessão do ofício,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 84, D. 6977.
24
Carta de D. João V ao Ouvidor de Pernambuco, 25 mai. 1715, 3º volume de CP, AHU,
Cód. 258, f. 74. Salgado não define as atribuições do oficio de escrivão do alcaide, mas
podemos supor que sua principal obrigação fosse registrar as incidências policiais
chegadas ao conhecimento do alcaide a quem estava subordinado. Carta dos oficiais
da Câmara do Recife a D. João V, 29 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3497. Carta
de D. João V ao governador de Pernambuco, 13 out. 1732, Carta do governador de
Pernambuco a D. João V, 27 jun. 1734 e despacho do Conselho Ultramarino sobre
pedido da Câmara do Recife, 30 abr. 1735, todos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 47, D. 4158.
Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 8 jul. 1747, AHU_ACL_CU_015, Cx.
66, D. 5586.
94 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

Nem sempre a solicitação era feita pelos vereadores para que se desse um
oficio. Houve um caso em que se pediu que fosse extinto o ofício de cordeador
e arruador25, e que o salário pago pela Fazenda Real ao seu ocupante fosse
destinado à câmara 26 . Em outra ocasião, a câmara tentou vincular
indevidamente os ofícios de justiça da capitania submetidos ao mando do juiz
de fora. Sabemos que a câmara recebeu a concessão real da propriedade dos
postos secundários vinculados ao juiz de fora em 1735. Quando João de Souza
Menezes Lobo, que era juiz de fora de Olinda e Recife em 1744, assumiu também
o posto de provedor dos defuntos e ausentes, os vereadores do Recife
trataram de açambarcar os ofícios de avaliador e partidor27 daquela repartição.
Isso provocou uma disputa entre o juiz de fora e a câmara. O ministro régio
alegava que os ofícios eram independentes uns dos outros e, ao mesmo
tempo, ordenou à câmara que justificasse sua pretensão de nomear para o
ofício em questão. Como não havia nenhum registro de nomeações feitas
pelo senado e como também não houve manifestação similar da Câmara de
Olinda, a disputa acabou resolvida de forma desfavorável para a
municipalidade recifense.
A concessão por parte da coroa da propriedade de um cargo não significava
em absoluto garantia de que os ingressos gerados pela função concedida
fossem regularmente arrecadados. Também não estava garantida a não
interferência de outras autoridades na nomeação. Havendo recebido a
propriedade do ofício de escrivão do alcaide e da almotaçaria, a câmara viu
suas atribuições violadas pelo governador Henrique Luis Pereira Freire. Os
vereadores se queixaram ao ouvidor, em 1749, que o governador desacatou
o privilégio real que a câmara ostentava de designar ocupante para estas
funções, e estava exigindo que os arrendatários pagassem um donativo para
receber provimento para a função. A obrigação de pagar essa taxa reduzia o
valor dos ofícios e causava prejuízo às combalidas finanças municipais
recifenses. Anos depois, os vereadores exigiam outra vez que as nomeações
feitas pela câmara para os cargos de sua propriedade não dependessem da
aprovação dos governadores.
Por outro lado, os ocupantes dos cargos arrendados pela câmara nem
sempre cumpriam suas obrigações, recusando-se a pagar o valor definido
pela avaliação dos ofícios. Em 1759 a municipalidade denunciou ao Rei que o

25
Pereira da Costa define o termo “cordear”: “determinar o alinhamento de uma rua, ou de
um prédio que se vai construir, de acordo com o traçado do respectivo arruamento; cordear,
dar cordeação, cujo serviço era feito pelo cordeador da municipalidade, depois engenheiro
cordeador”. PEREIRA DA COSTA, F. A. Vocabulário pernambucano. 2. ed. Recife: Secretaria
de Educação e Cultura do Governo de Pernambuco, 1976, p. 266.
26
Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 20 jul. 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx.
39, D. 3501.
27
Na obra organizada por Salgado, o mais completo guia dos cargos da administração
colonial, não há referência a estes ofícios, mas podemos supor que se tratavam dos
encarregados de avaliar os bens deixados e proceder a divisão destes bens, nos casos
nos quais houvesse mais de um herdeiro.
PATRIMÔNIO, TERRITORIALIDADE, JURISDIÇÃO E CONFLITO NA AMÉRICA PORTUGUESA 95

ocupante dos ofícios de inquiridor, distribuidor e contador do juiz de fora


insistia em pagar as rendas de seu ofício pelo valor antigo, anterior à nova
avaliação feita pelo juiz28.
Fracassada a pretensão de tributar os terrenos pertencentes a Olinda, a
Câmara do Recife utilizou o recurso de alugar propriedades imóveis
pertencentes à municipalidade. Há referências, por exemplo, ao aluguel de
lojas construídas sobre a ponte do Recife a princípios dos anos 1740. A câmara
foi autorizada a cobrar as rendas destas pequenas lojas, pois, antes de sua
construção já existia a prática de cobrar pelas permissões para vender tecidos
e miudezas na referida ponte. As antigas autorizações custavam 5$000 anuais.
Com a edificação das lojas, os rendimentos poderiam alcançar até a
considerável soma de um conto de réis anuais. A preocupação dos vereadores
radicava na possibilidade de que este dinheiro fosse desviado de seu objetivo
inicial que era o de custear a manutenção das pontes, e escapasse, portanto,
ao controle da municipalidade. Por isso pediam garantias ao Rei de que não
houvesse intervenções externas na gestão destes fundos, ao mesmo tempo
em que se comprometiam a prestar contas anualmente da aplicação das
rendas.
Em 1788, a câmara inaugurou, com grande solenidade, as casinhas, os
pequenos estabelecimentos do novo mercado da Praça da Polé, atual praça
da Independência, uma das mais movimentadas da cidade do Recife. Na
inauguração estiveram presentes inclusive as mais altas autoridades da
capitania: o governador e o bispo. Para financiar a obra, a municipalidade
levantou um empréstimo de pouco mais de 800$000 junto ao Hospital dos
Lázaros29. Eram um total de 62 lojinhas que foram alugadas a comerciantes e
quitandeiros, gerando ingressos anuais de quase um conto de réis. Doze
anos depois encontramos duas quitandeiras negras tentando alugar uma
destas lojinhas da Praça da Polé, “que foram edificadas (...) para aformosear a
mesma Praça, para fazer-se patrimônio e rendimento para o Senado, e finalmente
para o Mercado Público comodidade para os que vendem”30.
O longo processo de formação do patrimônio municipal da Câmara do

28
Carta do governador de Pernambuco, a D. João V, 3 out. 1744, carta do Juiz de Fora de
Olinda e Recife ao governador de Pernambuco, 5 mar. 1746 e certificado do escrivão
da Câmara do Recife, 4 mar. 1746, todos em AHU_ACL_CU_015, Cx. 62, D. 5346. Carta
da Câmara de Recife ao ouvidor geral de Pernambuco, 20 abr. 1749, AHU_ACL_CU_015,
Cx. 69, D. 5816. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I, 16 mai. 1756,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 81, D. 6738. Carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. José I,
21 mar. 1759, AHU_ACL_CU_015, Cx. 90, D. 7248.
29
Certificado do escrivão da Câmara do Recife, 3 out. 1744, carta de D. João V ao governador
de Pernambuco, 28 jan. 1744 e carta dos oficiais da Câmara do Recife a D. João V, 3 out.
1744, todos em: AHU_ACL_CU_015, Cx. 61, D. 5189. Ata de sessão, 21 set. 1788, Livro de
Atas da Câmara do Recife, n. 4, f. 46, IAHGP. PEREIRA DA COSTA, Anais pernambucanos,
vol. VI, p. 138.
30
Carta da Câmara do Recife ao governador de Pernambuco, 18/6/1800, LRCMR 1733-
1808, f. 94, IAHGP.
96 GEORGE F. CABRAL DE SOUZA

Recife reflete, em seus meandros, várias facetas da sociedade de Antigo


Regime nos trópicos. Interesses privados se mesclam com questões públicas
de ordenamento administrativo. Poderes locais exercidos por frações
antagônicas das elites locais se atritam na defesa de seus interesses.
Funcionários régios e autoridades locais se aliam e se combatem em torno a
temas tão variados como a alimentação de crianças e enfermos ou a realização
de procissões e festas. Percebemos assim como o estudo das municipalidades
coloniais e das elites que as ocupavam pode resultar em interessantes miradas
sobre a sociedade colonial ibero-americana e sua cultura política.
97

CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS:


NOVOS INTERLOCUTORES NAS VILAS DE ÍNDIOS DA
CAPITANIA DO RIO GRANDE1

Fátima Martins Lopes2

o governo de D. José I as muitas Missões jesuíticas que existiam


nas capitanias do Norte do Brasil foram elevadas à situação de
Vilas coloniais, com Câmaras, pelourinhos e vereadores, como já
havia acontecido nas capitanias do Estado do Maranhão e Grão-
Pará. A criação dessas Vilas foi desdobramento das chamadas
“Leis de Liberdade”, especialmente a de 6 de junho de 1755, que restituía aos
índios do Maranhão e Grão-Pará a liberdade, e também o Alvará de 7 de junho
do mesmo ano, que aboliu o poder temporal dos missionários sobre os índios
aldeados. Ambas foram estendidas ao Estado do Brasil pelo Alvará em Forma
de Lei, de 8 de maio de 1758.
Quando cópias do Alvará chegaram à Capitania de Pernambuco e suas
anexas em fins de 1758, uma das primeiras providências do Governador
General, Luiz Diogo Lobo da Silva, encarregado de criar as novas Vilas, foi
convocar os Principais3 dos povos moradores nas Missões Jesuíticas do Ceará
e Rio Grande do Norte que seriam elevadas a Vilas, para comparecerem ao
Recife para serem informados sobre as novas leis. O Governador temia que a
ordem de saída dos missionários dessas Missões causasse distúrbios e conflitos
entre os índios e os novos funcionários régios que deveriam assumir o lugar
dos religiosos4.
Além disso, a necessidade de preparar a instalação das Vilas, conforme as
imposições das novas leis, fazia o Governador procurar estabelecer bons
relacionamentos com os Principais, concedendo-lhes honrarias para que as
conversações pudessem surtir o efeito desejado, isto é, facilitar a execução
do projeto de controle laico da população indígena, contando com eles para
intermediação.
1
O presente texto faz parte da tese Em nome da liberdade: as vilas e índios do Rio Grande do
Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII, defendida na Universidade Federal de
Pernambuco em 2005, com apoio da CAPES.
2
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Líder do Grupo de
Pesquisas Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/
Diretório CNPq). Professora Adjunta do Departamento de História e Docente
Permanente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. E-Mail: <fatimamlopes@uol.com.br>.
3
Principal é a forma encontrada na documentação consultada para o tratamento dos
chefes indígenas tradicionais.
4
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) – II-33,6,10, doc. 2, fl. 7-12, Carta do Gov.
de Pernambuco ao Secretário de Estado, 13 jun. 1759.
98 FÁTIMA MARTINS LOPES

Na chegada dos Principais convidados ao Recife, o Governador deu-lhes,


e às suas mulheres, trajes de presente5, conforme a determinação do Diretório
dos Índios, que era o novo regimento utilizado para a administração dos
índios vilados e que incitava que se introduzisse entre eles o uso de
vestimentas “decorosas e decentes”, persuadindo-os a “... que se possam vestir
à proporção da qualidade de suas pessoas e das graduações dos seus postos...”6.
Já não bastava mais que se vestissem para esconder a nudez, como já eram
obrigados pelos missionários, mas sim que o fizessem diferentemente entre
si, de acordo com os seus cargos e posições, como uma forma de identificação
visual da distribuição do poder dentro do grupo, a fim de facilitar uma mudança
na cultura e na identidade étnica, contribuindo para o estabelecimento da
hierarquização social pretendida pela colonização.
Como adverte Maria Regina Almeida, essa distinção hierárquica através
das vestimentas diferenciadoras era típica do Antigo Regime e, ao ser
introduzida entre os índios aldeados, será assumida pelos detentores de cargos
e funções de destaque para se adequarem ao modelo do “fidalgo ibérico”,
como apontado por Serge Gruzinski, ou para afirmarem a sua proeminência
econômica e social, como afirmou Nathan Wachtel7.
É nesse sentido que se entende a petição dos índios Oficiais da Câmara da
Nova Vila de Arez, na capitania do Rio Grande, no ano de 1761. Beneficiados
com pequenas porções de gado na repartição dos bens da antiga Missão,
eles desejaram ter roupas distintas daquelas de tecidos grosseiros usualmente
utilizadas pelos índios, e consultaram o Diretor dos Índios da nova Vila se
poderiam vender algumas cabeças para comprarem roupas e poderem vestir-
se “adequadamente”8.
Tais atitudes eram as desejadas pela Coroa, pois, na nova legislação
pombalina, principalmente os Principais deveriam ser tratados como
“verdadeiros vassalos”, através das distinções que lhes eram oferecidas, como
as vestes, porque participariam na administração das novas Vilas, atuando
como Capitães Mores ou outros cargos das Ordenanças, ou como Vereadores
nas Câmaras, mesmo que dirigidos pelo Diretor dos Índios9.
5
Ibidem.
6
DIRETÓRIO que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão
enquanto Sua Majestade não mandar o contrário [1757]. Boletim de Pesquisa da CEDEAM,
Manaus, v. 3, n. 4, jan./ dez. 1984. Parágrafo 15. Foi estendido ao Estado do Brasil pelo
Alvará em forma de Lei de 17 de agosto de 1758. O Diretório foi o criado pelo Governador
do Maranhão e Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a ser usado pelos
Diretores das Vilas de Índios na administração dos índios das novas Vilas.
7
ALMEIDA, Maria Regina. Metamorfoses indígenas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2003, p. 159.
8
BNRJ–I-12,3,35, fl. 83-84, Carta do Gov. de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 22
ago. 1761. Diretores de Índios são os novos funcionários régios que deveriam administrar
os índios nas Vilas recém-formadas.
9
Sobre o aliciamento dos Principais na colonização cf. DOMINGUES, Ângela. Quando os
índios eram vassalos. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 169-176. PIRES, Maria Idalina. Resistência
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 99

No Diretório dos Índios, acusava-se os missionários de terem mantido os


índios na “rusticidade e abatimento” através da não observância às “honrarias
e os privilégios” referentes aos postos oficiais ocupados por alguns indígenas.
Advertia-se que, nas novas Vilas, deveria se respeitar a “diversa graduação de
pessoas a proporção dos ministérios que exercitam” e, por isso, dispunha que
os índios deveriam ser tratados com as honrarias que se deviam aos cargos
oficiais, “conforme as suas respectivas graduações, empregos e cabedais”, tanto
pública como privativamente, extensivo a sua família. Seu objetivo foi
claramente apresentado no regimento: “... para que vendo-se estimados
publicamente, e particularmente, cuidem em merecer com o seu bom
procedimento as distintas honras com que são tratados...”10.
Entende-se que as honrarias que deveriam ser prestadas aos Principais,
aos Oficiais Militares e àqueles que eram designados a cargos de administração
a partir do Alvará de 7 de junho de 1755 (Vereadores, Juizes Ordinários e
demais Oficiais da Justiça que comporiam as novas Câmaras) seriam uma
forma de inserção desses elementos indígenas na estrutura social hierarquizada
da colônia. Ao mesmo tempo, as distinções sociais impingidas dividiriam o
grupo, diminuindo a força da resistência, tornando-se, nesse entendimento,
uma estratégia de dominação de elementos que se sobressaiam na
comunidade e que poderiam eventualmente encabeçar novas revoltas.
Tal forma de dominar não era novidade, pois foi posta em prática desde o
início da conquista com o estabelecimento dos Terços dos Índios e seus
respectivos cargos militares, distribuídos entre os guerreiros daqueles povos
que estabeleceram alianças com os conquistadores para lutarem contra outros
grupos indígenas resistentes à conquista11. Vale ressaltar que essas medidas
ocorriam em momentos de redefinição das relações internas dos grupos
indígenas que sofriam a pressão da conquista, e não se pode descartar o
poder de atração que títulos e cargos militares fariam em povos
tradicionalmente guerreiros.
Para Carlos de Araújo Moreira Neto, os principais “passos da dominação”
da população indígena na colonização no norte do Brasil foram o descimento
e a “... sistemática destruição dos modos tradicionais de organização e de controle
social do grupo e de sua herança cultural”. Essa destruição se alcançaria através

indígena nos sertões nordestinos na pós-conquista territorial: legislação, conflito e


negociação nas vilas pombalinas. Tese de Doutorado. Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2004, p. 99-102. SAMPAIO, Patrícia. Espelhos partidos: etnia,
legislação e desigualdade na colônia. Tese de Doutorado. Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2001, p. 195-196. SILVA, Isabelle Braz. Vilas de Índios no Ceará Grande:
dinâmicas locais sob o Diretório Pombalino. Tese de Doutorado. Universidade Estadual
de Campinas. Campinas, 2002, p. 182-188. FARAGE, Nádia. Muralhas do sertão. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 161.
10
DIRETÓRIO..., parágrafo 19.
11
Cf. MONTEIRO, John. Negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 29-36;
LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio
Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado, 2003, p. 27-51.
100 FÁTIMA MARTINS LOPES

do combate a seus pajés e chefias tradicionais, da eventual eliminação de


seus mitos e língua, substituídos por rudimentos de valores e crenças cristãos
e pela introdução da língua geral. E o elemento viabilizador deste processo,
era a constante presença dos missionários e de seus prepostos indígenas,
isto é, os “capitães” 12.
Para ele, os chamados “capitães” eram indígenas especialmente escolhidos
e “... colocados na direção de grupos e povoações indígenas por autoridades
oficiais, missionários ou simples particulares, como seus delegados...”.
Geralmente, em substituição dos líderes tradicionais, eram indicados aqueles
mais “dóceis aos interesses do colonizador”, para servirem de contato ou
“intermediários entre seus grupos e as autoridades coloniais”13. Esses Capitães,
ou também chamados Capitães Mores, dirigiam as companhias de Ordenanças
que foram criadas ainda nas Missões tanto para segurança das mesmas
quanto para a da Coroa, principalmente contra outros grupos indígenas
resistentes à colonização ou mesmo contra povos estrangeiros.
Com a mesma perspectiva sobre a valorização das lideranças nativas no
período colonial, como parte do projeto de conquista e colonização, Maria
Regina Almeida lembra que os cargos de chefia entre os povos Tupi eram
alcançados tradicionalmente pelo prestígio que o escolhido tinha entre seus
pares, baseado em qualidades e méritos individuais, principalmente de
liderança guerreira. Na colonização, porém, o enobrecimento através dos
cargos de chefia tornou-se delegado pela Coroa ou seus funcionários, sendo
“... firmado com base na própria tradição tupi, porém acrescida dos novos
elementos introduzidos pelos portugueses e incorporados pelos índios ao seu
próprio modo”14. Como, por exemplo, o uso das vestimentas diferenciadoras.
Nas Missões, apesar de haver vários líderes, inclusive de etnias diferentes
por causa dos descimentos impostos, o chamado Capitão Mor da Aldeia,
principal líder do aldeamento, era geralmente o Principal do grupo dominante
à época do seu estabelecimento e recebia provisão escrita pelos Governadores.
Para Maria Regina Almeida, os missionários e colonizadores
(...) preocupavam-se em tratar especialmente os Principais a fim
de que convencessem seus seguidores às alianças, chegando a
instituir uma ‘nobreza indígena’ por meio de concessão de favores,
títulos, patentes militares e nomes portugueses de prestígio a
algumas chefias que desempenhavam papel fundamental no

12
MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850).
Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47.
13
MOREIRA NETO, Índios da Amazônia..., p. 56.
14
ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 155. Sobre o papel das lideranças, ver também:
DOMINGUES, Quando os índios..., p. 169. Para ela os Principais eram identificados pelos
colonizadores entre os indivíduos “com prestígio social ou com atitudes de comando”
que detinham “poder político e social persuasivo e pouco coercitivo”, e tornaram-se os
“interlocutores por excelência no processo de negociação nos descimentos e aldeamentos”.
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 101

processo de integração de seus subordinados ao sistema colonial.15


A mesma autora concluiu que a introdução da nova política metropolitana,
detalhada no Diretório dos Índios na segunda metade do século XVIII,
aprofundaria essa política de enobrecimento através da concessão de cargos
oficiais nas novas Câmaras e nas Ordenanças, estabelecendo como dever
dos Diretores persuadirem aos Capitães Mores de que os serviços na terra
não os inabilitariam aos empregos honoríficos16. Concordando com esta idéia,
Moreira Neto adverte, porém, para uma pequena diferença entre as lideranças
indígenas nas Missões e nas Vilas: nestas últimas, “... a autoridade (pouco
convincente e de duvidosa legitimidade) de índios e mestiços convertidos em
juizes e vereadores – [eram] funções vedadas, via de regra, às lideranças
tradicionais do grupo”17.
Com efeito, nas Vilas de Índios do Rio Grande do Norte observou-se que
os postos mais elevados das Ordenanças eram exercidos continuamente por
aqueles indicados e nomeados pelo Governador de Pernambuco18 até que
fossem substituídos, ou por não mais aguentarem o cargo ou por não serem
mais interessantes à Coroa. Nessas indicações ou nas substituições por
confronto com as determinações da Coroa, foi possível observar que as
nomeações poderiam não recair sobre aqueles designados como Principais
tradicionais, mas sim naqueles que eram mais favoráveis às imposições
coloniais.
Em 1760, na nova Vila de São José do Rio Grande, Leandro de Souza,
Principal tradicional, era Capitão Mor dos Índios desde o tempo dos
missionários capuchinhos, mas teve conflitos com o último missionário, Frei
Aníbal de Gênova, que se queixara ao Governador de Pernambuco e tentara
tirá-lo do cargo. Na época da extinção de Missão e criação da nova Vila, o
Governador decidiu mantê-lo na função, mas o advertiu que cumprisse as
Ordens Régias e o Diretório, que obedecesse ao Diretor e estivesse sempre
“... pronto no cuidado de animar os seus índios a obedecerem-lhe e a concorrerem
com inteira vontade ao adiantarem as suas lavouras e fazendo florente esta
povoação”19.
Observa-se que a tradicionalidade no cargo não era o que tinha feito o
Principal Leandro ser mantido na função de Capitão Mor, mas sim a
possibilidade de que mantivesse seus subordinados sob controle num
momento de transição que poderia suscitar confrontos.
Apesar das Câmaras terem o poder de indicar um nome para ocupar o
Cargo de Capitão Mor, a aceitação do Governador de Pernambuco era
15
DOMINGUES, Quando os índios..., p. 158.
16
DOMINGUES, Quando os índios..., p. 159.
17
MOREIRA NETO, Índios da Amazônia..., p. 245.
18
A Capitania do Rio Grande era Anexa à Capitania Geral de Pernambuco desde 1701,
devendo partir do Governador de Pernambuco as provisões aos cargos militares.
19
BNRJ– I-12,3,35, fl. 8-8v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Capitão-mor dos Índios da
Aldeia de Mipibu, 29 dez. 1760.
102 FÁTIMA MARTINS LOPES

essencial, pois era dele a jurisdição de confirmar o indicado no cargo através


de Carta Patente e também só a ele cabia o direito de tirá-lo. Isso é o que se
pode perceber no episódio ocorrido na mesma Vila de São José, já em 1779,
quando os Oficiais da Câmara queixaram-se ao Ouvidor Geral e Corregedor,
Sebastião José Rebelo de Gouveia e Melo, sobre “os desaforos que o Capitão-
mor dos Índios dessa Vila obra e tem obrado” e pediam para tirá-lo da função.
O Corregedor respondeu que ele não podia suspender o Capitão Mor por ser
função pertinente apenas ao Governador de Pernambuco, porém, eles o
podiam suspender interinamente enquanto davam parte ao Governador e o
esperavam deliberar sobre a matéria20.
Em outra ocasião, em março de 1784, os Oficiais da mesma Câmara de São
José se queixaram do Capitão Mor dos Índios diretamente ao Governador de
Pernambuco sobre o “... estado deplorável em que se acha esta Vila por causa
da incapacidade do Capitão-mor dela, que continuamente anda embriagado
cometendo várias desordens.” O Governador ordenou, então, que os Oficiais
fizessem uma nova indicação de “... pessoas mais beneméritas... para servir
com honra o dito posto de Capitão-mor, a qual me será enviada para mandar
passar patente a quem me parecer mais justo e para este fim lhe mostrarão
Vossas mercês esta carta”21. A indicação dos “mais beneméritos” queria dizer a
indicação daqueles que, se presumia, cumprissem o que lhes fosse ordenado
pelas autoridades coloniais e agissem em conformidade com os desígnios
morais da metrópole.
Assim, de fato, após a escolha feita pela Câmara, o Governador de
Pernambuco, em 12 de dezembro, passou Carta Patente ao índio Juvenal
Batista Pereira para o cargo de Capitão Mor dos índios da Vila de São José,
af irmando que era “... em respeito... e em reconhecimento do bom
procedimento do mesmo, no posto de Capitão-mor”22. A Carta Patente incluía
também as obrigações e direitos do novo Capitão Mor:
Esperar dele que nas obrigações do dito posto se haverá muito
como deve a boa confiança que na sua pessoa faço. Hei por bem na
conformidade das Reais Ordens de onze de abril de 1723, referendar
o dito índio Juvenal Batista no posto de Capitão-mor dos Índios da
Vila de São José da Capitania do Rio Grande do Norte, com o qual
posto não haverá soldo algum, mas gozará de todas as honras,
graças, franquias, liberdades, privilégios e isenções com que em
razão dele lhes pertencerem.23

20
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), Livro de Cartas e
Provisões da Câmara de São José de Mipibu, fl. 139, Carta do Ouvidor Geral e Corregedor
da Comarca à Câmara da Vila de São José, 7 out. 1779.
21
Idem, fl. 163v., Carta do Gov. de Pernambuco à Câmara de São José de Mipibu, 4 mar.
1784.
22
Idem, fl. 177-177v., Carta Patente do Capitão-mor do Índio Juvenal Batista Pereira, 12
dez. 1789.
23
Ibidem.
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 103

De forma semelhante, em Vila Flor, os Oficiais da Câmara, em 1777,


presididos pelo Corregedor da Comarca, indicaram o índio Francisco Xavier
Machado, para o cargo de Capitão Mor das Ordenanças que estava vago
porque o antecessor, Caetano Freire de Melo (também índio), renunciou por
estar adoentado e idoso. O Governador de Pernambuco, José Cezar de
Menezes, confirmou-o no posto por Carta Patente, enfatizando que “... com
o qual [posto] não haverá soldo algum, mas gozará de todas as honras, graças,
despachos, liberdades, privilégios e isenções que em razão dele lhe competem...”
e advertia ao indicado que “...satisfaça inteiramente as obrigações que lhe
competem, bem como deve a boa confiança que faz de sua pessoa”24. Dentre
essas obrigações estavam arrolados o combate à ociosidade e à embriaguez:
Será obrigado a remover dos índios seus subordinados os vícios da
ociosidade e ebriedade, fazendo-os aplicar às culturas de suas
lavouras, pelo que ordeno ao respectivo Diretor e Câmara por tal o
reconheçam, honrem e estimem, conferindo-lhe a posse e juramento
de estilo, do que se fará assento nas costas desta, e a todos os seus
subordinados que lhe obedeçam e cumpram as suas ordens relativas
ao Serviço Real, assim como devem e são obrigados.25
Vê-se que as obrigações do novo Capitão Mor eram aquelas mesmas
impostas, desde longa data, pelos missionários aos interlocutores escolhidos
para intermediar os dois mundos – o colonial e o indígena –, e em nada eram
ligadas às obrigações tradicionais das lideranças indígenas. Eram, ao contrário,
impostas para se cumprir as determinações legais do Reino e com elas modificar
culturalmente as populações indígenas.
Quando os novos indicados não cumpriam corretamente essas
“obrigações” eram substituídos. Foi o que ocorreu com o Capitão Mor da Vila
de Arez, quando, em 1761, o Diretor da Vila, Domingos Jacques da Costa,
informara ao Governador Luiz Diogo Lobo da Silva as “desordens” que o
Capitão Mor Sebastião Lopes fazia, como: “... dar rapazes e trabalhadores
para circunvizinhos, sem que intervenha ajuste do Diretor, na conformidade do
Diretório...” e sair da Vila sem a prévia licença do Diretor, como havia feito
naquele momento ao ir a Recife falar com o Governador, levando outros
índios com ele. O Governador respondeu ao Diretor que, de fato, o Capitão
Mor tinha estado em Recife, que ele o havia recebido e ouvido, mas não
aceitara as suas desculpas por sair sem permissão. Por isso, havia mandado
prendê-lo na Fortaleza das Cinco Pontas e repreendeu a todos os demais
índios que o acompanharam, mandando-os de volta ao Rio Grande26. O

24
IHGRN, Livro de Registro da Antiga Vila Flor, fl. 150-150v., Carta Patente do Governador
de Pernambuco ao posto de Capitão-mor das Ordenanças dos Índios de Vila Flor, 4
fev. 1777.
25
Ibidem.
26
BNRJ – I-12,3,35, fl. 84-84v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 24
ago. 1761.
104 FÁTIMA MARTINS LOPES

Governador apontava o exemplo da prisão do Capitão Mor na frente dos


seus subordinados como forma de manter os índios sob controle:
Persuado-me que a vista do procedimento que viram praticar com
o dito Capitão-mor e a advertência que lhes fiz, de que não deviam
sair para parte alguma fora dessa Vila, sem permissão de V. M.,
nem intrometer-se de dar rapazes e trabalhadores... ficarão
inteiramente certos para se absterem de seguir este desmancho, a
que os encaminha a persuasão daquelas pessoas que solicitam com
mão coberta os progressos desses estabelecimentos.27
Ainda tratando desse mesmo episódio, os Oficiais da Câmara de Arez
fizeram um requerimento ao Governador em que pediam que depusesse o
Capitão Mor Sebastião Lopes de seu posto, alegando:
(...) as repetidas desordens que tem cometido, contra as Reais
Ordens, e notório prejuízo do adiantamento dessa V ila e
tranquilidade de seus moradores; mormente quando com pernicioso
exemplo e renitente desobediência se opunha ao fim da civilidade
dos seus habitadores para que devia concorrer como era obrigação.28
Isto é, para os Oficiais da Câmara, a substituição do Capitão Mor devia ser
feita porque ele não era o agente dócil esperado. Frente a essas informações,
o Governador resolveu que ele era incapaz para o cargo, mandando prendê-
lo em Fernando de Noronha, “... aonde existiria o tempo competente a purificar
as suas culpas”29.
Utilizando o exemplo e a ameaça como forma de controlar os oficiais
militares índios, o Governador nomeou outro índio, Francisco Xavier da Silva,
para ocupar o cargo que ficara vago na Vila de Arez, porém advertiu-o para
proceder com obediência, pois, caso contrário, sofreria “... da mesma sorte
que todo aquele que faltar em concorrer para a boa harmonia e em se mostrar
menos ativo e obediente ao Diretor e justiças”30.
Ao mesmo tempo, o Governador advertiu aos Oficiais da Câmara que a
obediência era o principal requisito para a manutenção dos postos ocupados,
pois também eles poderiam perder os seus próprios cargos, caso não agissem
em conformidade com as necessidades e interesses da Coroa e de seus
funcionários em comando:
Espero que Vs. Ms. da sua parte ajudem ao dito Diretor no
adiantamento dessa Vila e não consintam se dêem índios ou rapazes
para os trabalhos e casas dos moradores circunvizinhos, sem a sua
intervenção e ajuste, animando a conservação da escola e ensino
27
Ibidem.
28
BNRJ – I-12,3,35, fl. 84v-85, Carta do Governador de Pernambuco aos Oficiais da Vila de
Arez, 24 ago. 1761. (grifo nosso).
29
Ibidem.
30
Ibidem.
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 105

das raparigas e fazendo aumentar quanto possível a cultura e


criações de gado, para o que é necessário não faltarem ao castigo
daqueles que justamente o merecem, quando assim o
desempenhem terão a minha vontade muito pronta para em tudo
lhes dar gosto.31
Na nova configuração das Vilas de Índios, as Câmaras investiram-se a si
como protetoras das leis, como se esperava de um órgão administrativo
colonial, principalmente porque nelas também passaram a atuar os novos
moradores brancos. Há que se considerar que, desde a formação das Câmaras
nas novas Vilas de Índios do Rio Grande, os colonos lusobrasileiros começaram
a participar das eleições, tanto como eleitores como eleitos, tal como os índios,
daí não ser difícil entender os pedidos de substituição dos Capitães Mores
das Ordenanças dos Índios que não atendessem aos interesses da Coroa.
Entretanto, os índios que atuavam como Capitães Mores ou como Oficiais
das Câmaras eram importantes para a colonização por exercerem a função de
intermediários entre o mundo colonial e os seus subordinados, fiscalizando
as próprias instituições coloniais, assim como a população vilada em geral.
Assim como os camaristas lusobrasileiros, também os Párocos tentavam
influir na indicação ou substituição dos Oficiais das Ordenanças, apesar de
não terem mais poder para atuar no âmbito temporal, e um episódio que
ocorreu na Vila de Estremoz é um bom exemplo. O Capitão Mor dos Índios,
Marcelino Carneiro, queixou-se, por carta, ao Governador de Pernambuco,
de que o Vigário Antônio de Souza e Magalhães lhe encarregou de cobrar as
conhecenças32 que alguns moradores lhe deviam. Executando a tarefa por
“obséquio” – como asseverou, pois não era sua obrigação – verificou que
muitos devedores precisavam de um tempo maior para fazer o pagamento, o
que foi informado ao Pároco na Igreja. Não contente com o resultado obtido,
o Vigário teria xingado o Capitão Mor, “... descompondo-o de ridículo
publicamente e outros nomes injuriosos”33. Provavelmente, o Vigário o chamou
de “ridículo” por este não ter a autoridade que seu cargo pressupunha e não
conseguir fazer com que seus subalternos fizessem o pagamento que deviam.
Ao que parece, a precariedade da autoridade dos Capitães Mores era
evidente aos colonos, como Henry Koster registrou mais tarde, em 1810,
quando visitava as Vilas de Índios de Pernambuco e suas anexas:
Os indígenas têm também seus Capitães-mores cujo título é vitalício
e dá algum poder sobre os seus companheiros, mas como não há
salário, o Capitão-mor é muito ridicularizado pelos brancos e, com

31
Ibidem. (grifo nosso).
32
Conhecença é a oferta pecuniária dada a um cura, em lugar de rendimentos regidos por
dízimos.
33
BNRJ – I-12,3,35, p. 42-42v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Vigário de Estremoz, 25
mai. 1761.
106 FÁTIMA MARTINS LOPES

efeito, um oficial meio nu, com sua bengala de castão de ouro na


mão, é um personagem que desperta o riso aos nervos mais rijos. 34
Frente a este tipo de atitude de menosprezo, o Capitão Mor Marcelino
relatou que, movido pelos xingamentos do Pároco e “... levado por uma pouca
cólera de se ver desatendido contra as Ordens de Sua Maj. F. na presença das
pessoas que governa...”, revidou, chamando também o Vigário de “ridículo”.
Talvez, motivado pela mesma precariedade de autoridade dos novos Párocos,
comparada ao poder que os antigos missionários regulares tinham. Frente
ao revide, o Pároco declarou publicamente que o Capitão Mor estava
excomungado e destituído da autoridade do seu posto, e começou a formar
um Sumário de Testemunhas contra ele, acusando-o também de
amancebamento e outros crimes35.
Ambos queixaram-se ao Governador e, em resposta ao Vigário, o
Governador lembrou que as testemunhas que o Pároco arrolara eram inimigas
do Capitão Mor, como, por exemplo, o Capitão Constantino Dias, de quem
tivera “notícias do espírito de parcialidade que o predomina” e que já tentara
ficar com o cargo do Capitão Mor. Ordenou, então, que o Pároco cancelasse
o Sumário, pois não era da sua competência. Da mesma forma, cancelava a
destituição do cargo de Capitão Mor, que também não lhe cabia. Além disso,
declarou que, no seu entendimento, o Capitão Mor Marcelino não era homem
de causar problemas, pois, num tempo que permaneceu em Recife por três
meses, não tivera notícia do
(...) mais leve desmancho seu, e só muito cuidado em que a sua
gente vivesse em paz e observassem as Ordens Régias, pode ser
essa a culpa que se lhe ache, e que aqueles que não gostam de as
verem executadas por quererem indiretamente fazer renovar os
antigos abusos, sejam os mesmos que lhe procurem semelhantes
embaraços.36
Isto é, para o Governador de Pernambuco, o Capitão Mor Marcelino estava
devidamente envolvido pela colonização, servia aos interesses da Coroa e,
portanto, deveria ser mantido no cargo que ocupava, apesar dos apelos
contrários do Pároco que queria exercer uma autoridade sobre os índios que
lhe era impedida.
Por outro lado, percebe-se também que a fidelidade encontrada no Capitão
Mor Marcelino não era a mesma que o Governador observava no Capitão
Constantino Dias, o pretendente ao cargo do Capitão Mor. Por isso, em carta
ao Diretor de Estremoz, Antônio de Barros Passos, o Governador afirmou
que, mesmo que o índio Marcelino fosse culpado, o índio Constantino “...

34
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Gov. do Estado de Pernambuco,
1987, p. 133.
35
BNRJ – I-12,3,35, p. 42-42v., Carta do Gov. de Pernambuco ao Vigário de Estremoz, 25
mai. 1761.
36
Ibidem. (Grifo nosso).
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 107

nunca seria admitido a suceder-lhe nele, mormente sendo de gênio inquieto e


apto a formar parcialidades”37.
Observa-se, então, uma luta pelo poder entre os índios: o Capitão Mor
Marcelino parecia bem acomodado ao cargo por sua aceitação do comando
colonial, como queria o Governador. Já seu opositor, o Capitão Constantino,
parecia querer insuflar sua gente contra as Ordens Régias, daí sua luta para
tentar obter o cargo o Capitão Mor. Entende-se, portanto, porque o
Governador apoiava o Capitão Mor contra o que pretendia o seu opositor.
A proteção que o Governador fazia em favor do Capitão Mor Marcelino foi
vista também em outras oportunidades, como, por exemplo, quando ele foi
denunciado pelo Diretor de Estremoz de portar aguardente, o que era proibido
pelo Diretório. O Governador alegou que o Capitão Mor seria inocente porque
estaria acompanhado de 30 homens que estavam tirando casca do mangue,
e que a quantidade da bebida era apenas para “... as arranhaduras que tivessem,
por ser natural experimentá-las entre os mangues e taliças das praias”38. No
entanto, em um episódio semelhante envolvendo outros índios, o Governador
reafirmou peremptório o impedimento do uso da aguardente:
Não duvido do prejuízo e distúrbios que seguem entre os índios por
conta da aguardente e do conhecimento do muito que lhe é nocivo
o uso deste gênero, tem Sua Maj. F. dado e insinua o Diretório os
meios por que se deve embaraçar a liberdade de o venderem, que
V. M. deve executar inviolavelmente.39
Em outra feita, o Governador defendeu-o também contra a acusação de
que teria sonegado farinha que serviria à comitiva do Ouvidor que fora criar
a Vila, dizendo que, ao contrário, o Capitão-mor fora previdente, pois “... ele
as não tirou a seus donos e só lhe segurou as não vendessem enquanto se não
viam se eram necessárias para a Comitiva, pagando-as pelo seu dinheiro”40.
Porém, em outra ocasião, o Governador admoestara o Capitão Mor da
Capitania do Rio Grande do Norte a conseguir farinha a qualquer custo, pois
era para o serviço real.
Portanto, conclui-se que era a capacidade dos índios indicados aos cargos
oficiais em concordar com as determinações do Governador e das leis que
garantia a indicação e a permanência neles, mesmo contra a vontade de outras
autoridades e mesmo tendo-se que relevar os pequenos defeitos e infrações
que cometiam, contanto que se conformassem aos interesses da Coroa.
Se as indicações aos cargos oficiais carreavam poder e prestígio aos

37
BNRJ – I-12,3,35, fl. 43-44, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz,
25 mai. 1761. (Grifo nosso).
38
Ibidem.
39
BNRJ – I-12,3,35, fl. 161v.-162v., Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de
Estremoz, 22 dez. 1761.
40
Idem, fl. 43-44, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor de Estremoz, 25 mai.
1761.
108 FÁTIMA MARTINS LOPES

beneficiados, a ponto de suscitar articulações para suas substituições, por


outro lado, os títulos e cargos definidos pelas novas Leis de Liberdade também
garantiam um diferencial nas relações econômicas entre os índios. Conforme
o Diretório, os oficiais e camaristas índios não poderiam ser repartidos para
os trabalhos aos colonos e não precisariam ir pessoalmente coletar os produtos
silvestres – como as cascas do mangue – mas poderiam mandar outros índios
em seus lugares. Assim, os Principais poderiam mandar até seis índios ao
sertão; os Oficiais Militares até quatro índios; e os demais Oficiais, dois índios,
pagando-lhes o devido salário pelo trabalho41. Na falta de dinheiro para o
pagamento devido, os Oficiais deveriam assinar um “escrito de dívida”
(promissória), para ser pago ao final dos trabalhos com os resultados
obtidos42.
Essas práticas pretendiam a introdução de um processo de individualização
nas relações de produção entre os índios, pois os Oficiais passariam a ter
privilégios no campo econômico-produtivo distintamente dos demais índios,
conformando uma diferenciação social como parte de um processo de
transformação cultural necessária à dominação colonial e exploração do
trabalho indígena. Conforme Maria Regina Almeida, aceita-se que a
(...) política de enobrecimento de parte das lideranças indígenas
fazia-se com concessão de privilégios e títulos que visavam introduzir
hábitos e costumes e valores do mundo mercantilista e cristão para
envolver esses homens na ordem colonial, de forma a que
conduzissem seus liderados à obediência e disciplina nas aldeias.43
Afinal, os postos de comando, as vestimentas, os papéis de concessão
(Cartas Patentes) e os privilégios especiais eram símbolos de poder e prestígio
valorizados no novo mundo em que os índios viviam e foram assumidos pelos
Oficiais e Capitães Mores indicados pelo Governador.
Na compreensão desses “direitos”, o mesmo Capitão Mor dos índios,
Marcelino Carneiro, queixou-se que alguns de seus privilégios anteriores foram
retirados pelas novas determinações do Diretório e pediu ao Governador de
Pernambuco que eles fossem restaurados. Em carta datada de julho de 1759,
o Capitão Mor queixava-se que fora dito aos Oficiais das Ordenanças da
antiga Missão de Guajiru que:
(...) daqui por diante não podiam estes, nem ainda eu, como Capitão-
mor desta Missão, valer-me de serviço algum dos índios deste
continente sem lhes satisfazer seu diário trabalho; se impossibilita
poder haver nas Missões capitães-maiores, pois impedidos estes a
que os tais índios o sustentem com lhes fazerem uma costumada
roça, e ainda por se ir eles pescarem e darem água necessariamente,
há de o Capitão-mor e sua mulher sem distinção carregarem a
41
DIRETÓRIO... , parágrafo 50.
42
Idem, parágrafo 71.
43
ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 161.
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 109

precisa para o seu gasto, e irem roçar para se poderem manter,


com cujo contínuo trabalho forçosamente não poderão assistir mais
nas povoações de suas Missões, por lhes ser necessário fazerem a
tal assistência em roçados, pescarias e o mais conducente para
conservação da vida, e assim espero de V. Excia. a providência
necessária nesta matéria ou haver-me por escuso de meu posto por
me ser impossível com este poder sustentar-me e viver com distinção
que pelo dito posto se me permite, e sempre me submeterei
obediente a tudo quanto me ordenar V. Excia.44
Efetivamente, segundo o Diretório, no parágrafo 63, da mesma forma
que os índios não poderiam prestar serviços aos colonos sem pagamento,
também não mais poderiam prestar serviços aos Principais e Oficiais sem
pagamento. Isso bem lembrou o Diretor da Vila de Estremoz, Antônio de
Barros Passos, ao Governador, ao pedir conselho sobre o que deveria fazer
quanto à prática proibida pelo Diretório, principalmente porque o Capitão
Mor Marcelino Carneiro alegava que “... ir trabalhar, carregar água e lenha”
era impróprio ao seu posto e que seria melhor não ser mais Capitão Mor, “...
pois o não sendo era como os mais para trabalhar para se sustentar”. O Diretor
informava ainda ao Governador que, sem que ele os mandasse, os índios já
haviam deixado de trabalhar de graça para o Capitão-mor45.
Percebe-se que as diferenciações de privilégios tinham sido incorporadas
pelo Capitão Mor Marcelino e mesmo que ele não tivesse todos os privilégios
que pretendia, aqueles que ele efetivamente possuía (como o de dirigir
petições diretamente ao Governador) o colocavam em situação social
diferenciada na comunidade. Como foi bem observado por Patrícia Sampaio,
(...) o Diretório, ao enfatizar a diferenciação social como indicador
da civilização, criou um mecanismo que podia funcionar como um
significativo fator de cooptação, mas que no limite, resultava na
diferenciação econômica e social desses indivíduos do conjunto da
população aldeada.46
Tudo isso poderia gerar conflitos entre os Capitães das Ordenanças e os
seus comandados, sem que, no entanto, os afastassem de seu papel de
liderança. No entanto, com a garantia de privilégios distintivos, criavam-se
efetivamente novas práticas culturais que possibilitavam a consolidação da
colonização. E, esse processo de individualização poderia também contribuir
para uma diferenciação econômica entre os índios, que foi iniciada através da
distribuição diferenciada de bens e terras a elementos escolhidos.
Para o Governador de Pernambuco, Luiz Diogo Lobo da Silva, no momento

44
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cód. 1822, fl. 34 v.-35, Carta do Capitão-mor dos
Índios da Missão de Guajiru ao Governador de Pernambuco, 3 jul. 1759.
45
Idem, fl. 38-42, Carta do Diretor de Estremoz ao Governador de Pernambuco, 2 jul. 1759.
46
SAMPAIO, Espelhos partidos, p. 195.
110 FÁTIMA MARTINS LOPES

mesmo da criação das primeiras Vilas entre 1759 e 1762, devia-se premiar alguns
índios escolhidos com mais terras que outros, principalmente porque
acreditava que, além da diferenciação social, isso os levaria ao desenvolvimento
econômico da povoação e ao aumento consequente dos dízimos a serem
recolhidos. Assim, determinara ao responsável pelo estabelecimento das novas
vilas que “... além das [terras] que tivessem bem fabricadas e povoadas lhes
desse as que lhes tocam pelo Diretório, querendo-as e sendo-lhes precisas”47.
Como justificativa as suas decisões de dar a alguns índios de sua jurisdição
mais terras do que estava previsto no Diretório dos Índios, o Governador
alegava que incentivava a “boa disposição” dos Principais em acatar as novas
leis:
Da nova forma que se lhes dá, se mostram contentes e protestam
em todo o tempo ser pela sua Fidelidade agradecidos, sujeitando-
se a esquecerem-se da língua em que até agora os entretinha e
aplicarem-se com cuidado à Portuguesa e a toda instrução
necessária a civilizarem-se e serem bons cultores para por estes
meios se poderem habilitar a igualdade que aspiram lograr com os
mais vassalos que temos a honra de o ser de S. Mag. F. em que lhes
segurei que para o conseguirem se careciam de se fazerem dignos
pela regularidade de seu bom procedimento.48
Porém, nesta passagem, muito mais do que incentivar a “boa disposição”
dos Principais, se percebe que o Governador os ameaçava com seu poder.
Assim, da mesma maneira que os índios Principais poderiam contar com o seu
apreço, enquanto se f izessem “dignos pela regularidade de seu bom
procedimento”, também poderiam contar com a sua oposição quando assim
não agissem, como se viu nos episódios relatados anteriormente sobre a
substituição nos cargos oficiais.
Constata-se, portanto, que sob os acordos, negociações e privilégios dos
Principais existiam as ameaças e o controle da colonização. O que demonstra
que o “governo” que esses Principais tinham sobre seus pares era parcial,
posto que controlado pelas ameaças das autoridades. A aceitação das novas
leis, ou, pelo menos, a disposição em aceitarem-nas, era forjada pela força de
coerção.
Apesar de tudo, conforme Maria Regina Almeida, estas diferenças
econômicas e sociais permitiam aos Oficiais das Ordenanças uma acumulação,
ainda que em pequena escala, identificada pela posse de gado, terras próprias
e por rendimentos anuais superiores aos demais índios49.
No Rio Grande do Norte, viu-se através de algumas listagens de índios
pagadores de dízimos que, efetivamente, os Capitães Mores das Ordenanças

47
BNRJ – II-33, 6, 10, doc. 2, fl. 7-12. Carta do Governador de Pernambuco ao Secretário de
Estado, 13 jun. 1759.
48
Ibidem (Grifo nosso).
49
ALMEIDA, Metamorfoses indígenas, p. 160.
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 111

de Índios e seus oficiais tinham uma renda que ficava pouco acima da média
dos demais moradores. Na maioria dos casos, eles não apareceram como os
maiores pagadores de dízimos, mas também não ficaram entre os menores.
De qualquer forma, a sua identificação nominal na lista já é uma boa indicação
de que tinham uma posição social diferenciada nas comunidades, visto que
nenhuma outra forma de distinção, prof issional ou hierárquica, foi
encontrada.
As listagens de índios pagadores de dízimos identificadas foram de três
Vilas do Rio Grande: Estremoz, Vila Flor e São José. Foram as únicas encontradas
e apenas para os anos identificados, mas possibilitam uma mostra da realidade
que se percebe comum nas três Vilas. Observa-se que, na análise das listas de
índios pagadores de dízimos, alguns nomes dos pagadores não se repetem
em todos os anos. Talvez porque não tenham produzido o suficiente para ser
avaliado para a cobrança. Talvez se deva à forma de se recolher a informação,
muitas vezes anotada nos Cadernos dos Diretores e só muito mais tarde
passada à Provedoria.
Na série de cinco anos dos índios pagadores da Vila de Estremoz, a média
dos valores pagos pelos Oficiais das Ordenanças foi de 392 réis e ficou pouco
acima do que foi pago pela maioria dos índios listados: em 1783, 69,3% dos
homens listados pagaram menos que $320 de dízimo; em 1784, foram 87,5%;
em 1785, 50%; em 1786, 70%; e em 1787, 66,6% pagaram menos que trezentos
e vinte réis de dízimo50.
Ressalta-se que as funções militares das Ordenanças não eram
remuneradas e que os dízimos eram calculados apenas sobre o que era
produzido na terra ou obtido nos trabalhos prestados a colonos ou obtido
com o trabalho de outros índios, não havendo, portanto, ligação direta entre
o valor do dízimo e a hierarquia dos postos da Ordenança. Por isso, encontrou-
se um Sargento ou um Tenente pagando dízimo maior que um Capitão Mor.
Sobre os índios pagadores de dízimo de Vila Flor, podem ser feitas as
mesmas observações: inexistência de relação entre os valores pagos e a
hierarquia militar e pagamento de dízimos pelos Oficiais das Ordenanças acima
da média do restante da população indígena. A maioria da população (58,9%)
pagou valores abaixo de 120 réis, mas os Oficiais das Ordenanças identificados
pagaram valores médios de 211 réis. O que indica que também tinham uma
renda superior ao da maioria da população, mesmo que em pequena escala51.
Para a Vila de São José só foi encontrada a listagem de índios pagadores
de dízimos do ano de 1787, que, apesar da pequena mostra, também indica
situações semelhantes às já vistas nas outras Vilas: os Oficiais pagaram valores
superiores aos 160 réis pagos pela maioria dos demais índios listados.

50
IHGRN, Cx. Dízimos Reais (1773-1826), Dízimos dos Índios da Vila de Estremoz (1783 a
1787).
51
Idem, Dízimos cobrados dos Índios de Vila Flor (1783 a 1794).
112 FÁTIMA MARTINS LOPES

Nas mesmas listas de pagadores de dízimos, encontraram-se alguns índios


que se distinguiram da maioria pelo valor pago muito acima da média
observada e que não faziam parte das Ordenanças e nem tinham qualquer
outra forma de informação que os identificasse socialmente.
Por exemplo, em Estremoz, em 1783, o índio Antônio Pinto pagou 1920
réis de dízimo. No ano seguinte, dois índios, Ângelo Mendes e Miguel Coelho,
pagaram cada um 960 réis. Em 1785, Florêncio da Rocha pagou 1000 réis, e
em 1792, o valor de 960 foi pago pelo índio João Soares Jr.52. Todos eram
exceções, pois os valores médios pagos pela população, e mesmo pelos oficiais
das Ordenanças, como se viu, estavam muito abaixo disso53.
Como não se encontrou listas nominais de colonos lusobrasileiros
pagadores de dízimos, não se pôde fazer uma comparação com os valores
pagos pelos índios para se avaliar o nível de acumulação que alguns poderiam
ter. Mas, de qualquer forma, admite-se que era uma pequena acumulação, se
pensarmos na afirmação de Henry Koster que viajou por Pernambuco e suas
anexas e percorreu as Vilas de Índios: “Não há exemplo de um indígena rico”54.
Também não foi possível identificar a atividade que permitia um maior
rendimento entre alguns índios, mas se pode afirmar que as situações
econômicas diferenciadas dentro das Vilas envolviam outros índios, além dos
componentes do Oficialato das Ordenanças. Por exemplo, alguns desses
pagadores dos maiores valores poderiam ser aqueles que prestavam serviço
à Coroa, como o caso do “criador” do gado de Arez, como se verá a seguir.
Quando os missionários das Missões partiram do Rio Grande em 1759, os
bens das Missões, principalmente o gado, ficaram com um responsável – o
criador – para cuidar dele enquanto não se decidia como seria feita a sua
distribuição. O índio Jerônimo de Andrade era o criador da Vila de Arez que
deveria receber, em pagamento pelo serviço prestado, a quarta parte das
cabeças nascidas durante o seu cuidado. Contudo, apesar de já ter o seu
gado garantido, ele não se satisfazia e agia de forma a obter maiores cabedais:
na ocasião da distribuição dos bens da Missão, em 1762, o criador pleiteou ao
Diretor, que além da quarta parte que lhe era devida, deveria receber uma
quantia maior pelo trabalho como depositário 55.
Além dos benefícios econômicos, ele também pleiteava privilégios especiais,
como quando solicitou ao Governador de Pernambuco permissão para manter

52
Idem, Dízimos dos Índios da Vila de Estremoz (1783 a 1787).
53
Idem, Dízimos cobrados dos Índios de Vila Flor (1783 a 1794): em Vila Flor, um único
índio, Manuel de Sepúlveda, foi o detentor do título de maior pagador: em 1789,
pagou $480; em 1790, $320; em 1791, $640; em 1792, $480 e em 1794, pagou $620; Idem,
Dízimos dos Índios da Vila de São José (1787): na Vila de São José, em 1787, o maior
valor pago foi $640.
54
KOSTER, Viagens ao Nordeste..., p. 35.
55
BNRJ – I-12,3,35, fl. 83-84, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor da Vila de
Arez, 22 ago. 1761.
CAPITÃES MORES DAS ORDENANÇAS DE ÍNDIOS 113

o gado sem pastor e sem recolhê-los aos currais à noite56. Ou ainda, quando
pleiteou que seu filho não fosse alistado para o serviço nas Ordenanças, nem
prestasse serviço a terceiros fora da Vila57.
Os pedidos quanto ao gado foram negados pelo Governador que ordenou
ao Diretor Domingos Jacques da Costa que o criador fosse preso por dez dias
na Cadeia da Vila, por ter se ausentado da Vila sem licença, “... para que tenha
o castigo da liberdade e insolência com que se houve.” Quanto aos pedidos
para o filho, o Governador resolveu que o jovem, “visto ter qualidade de
índio,” deveria ser alistado nas Ordenanças e “... regular-lhe o serviço pela
escala com aos demais soldados...”58.
As respostas negativas aos seus pedidos não impede que se perceba que
o criador tinha uma situação econômica diferenciada dos outros índios para
poder sustentar o filho sem que fosse necessário que ele trabalhasse, como
era ordenado no Diretório. Além disso, o que é ainda mais interessante é que
ele desejava se beneficiar de privilégios diferenciadores e que acreditava que
poderia pleiteá-los livremente.
Este episódio, somado à constatação da existência de índios pagadores
de dízimos bem mais elevados que a maioria, demonstra que a política colonial
de diferenciação social e econômica acabou por tocar outros elementos da
comunidade e não apenas o Oficialato das Ordenanças, sem prejuízo deste
ter sido o alvo favorito do Diretório.
Apesar de os Oficiais das Ordenanças, principalmente os Capitães Mores,
não serem os únicos a se integrarem a essa política diferenciadora, eram,
porém, aqueles que tinham o direito de fazer requerimentos e por isso mesmo,
em muitos casos, continuavam a ser os interlocutores entre as comunidades
e as autoridades coloniais. Interlocutores que, como se viu, muitas vezes
utilizaram seus direitos de pleito para benef iciarem-se econômica e
socialmente. Conclui-se, portanto, que ao se apropriarem dos valores
europeus em benefício próprio, constituíram-se em novos interlocutores entre
o mundo colonial e o indígena, podendo ter contribuído para muitas das
redefinições culturais desses últimos frente à colonização.

56
Idem, fl. 27-27v., Carta do Governador de Pernambuco aos Oficiais da Câmara da Vila
de Arez, 15 abr. 1761.
57
Idem, fl. 28-29, Carta do Governador de Pernambuco ao Diretor da Vila de Arez, 16 abr.
1761.
58
Ibidem.
115

CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO: TRAJETÓRIAS DE


POVOS INDÍGENAS E ÍNDIOS ALDEADOS NA CAPITANIA
DA PARAÍBA DURANTE O SÉCULO XVIII

Ricardo Pinto de Medeiros1

ste ensaio pretende, a partir da pesquisa em fontes primárias


oriundas do Arquivo Histórico Ultramarino e da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, acompanhar a trajetória de alguns
grupos indígenas existentes no sertão da capitania da Paraíba
no século XVIII. Para tanto, analisa a política de alianças e as
guerras contra os conquistadores, a participação de lideranças militares
indígenas da capitania na implantação da política pombalina e suas
consequências para as populações indígenas reduzidas em vilas.
A história dos povos indígenas que se encontravam no século XVIII no
território do que hoje é o Estado da Paraíba, e mais especificamente, nas
regiões atuais do Agreste e Sertão, apresenta-se como um desafio para o
pesquisador, principalmente em função das dificuldades relativas à pouca
documentação, e ao fato de que praticamente tudo o que foi escrito, o foi na
perspectiva e na visão dos brancos e vencedores. Além disso, existe um
problema quanto aos etnônimos, e o que eles traduzem de fato, das
conformações socioculturais e da identidade étnica dos povos a que se
referem. Basta pensar em um povo que se encontrava espalhado por um
espaço determinado, que não tinha nada a ver com a organização espacial
imposta pelos colonizadores e que foi recebendo denominações diferentes,
à medida que foi sendo contatado.
Uma situação bastante comum é a modificação do etnônimo, que é
substituído no processo de contato, pelo nome de um principal importante
do grupo. É o caso dos Ariú, trazidos por Teodósio de Oliveira Ledo, no ano
de 1697, ao aldeamento chamado Campina Grande, cujo principal se chamava
Cavalcanti.
No princípio de dezembro do ano de 97 veio a esta cidade o capitão-
mor das Piranhas e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, (...) trouxe
consigo, Senhor uma nação de tapuias chamados Ariús, que estão
aldeados junto aos Cariris aonde chamam Campina Grande, e
querem viver como vassalos de Vossa Majestade e reduzirem-se a
1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto do
Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco. Docente Colaborador do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Líder do
Grupo de Pesquisas Etnoarqueologia no Nordeste (PPGA-UFPE/ Diretório CNPq) e
pesquisador do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-
UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail: <rpinto@elogica.com.br>.
116 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

nossa santa Fé Católica dos quais é principal um tapuia de muito


boa traça e muito fiel segundo o que até o presente tem mostrado
chamado Cavalcanti (...).2
Em 1761, em uma relação das aldeias que há no distrito do governo de
Pernambuco, e capitanias anexas, de diversas nações de índios, podemos
observar que a mesma aldeia da Campina Grande é agora habitada por índios
da nação Cavalcanti3.
Apesar das dificuldades acima mencionadas, acreditamos que alguns
etnônimos como Pega, Panati, Corema, Cariri, Xucuru e Icó, que aparecem
com bastante frequência na documentação do século XVIII, relativa ao sertão
da Capitania da Paraíba, referem-se a situações étnicas diferenciadas e que
vão se transformando ao longo do processo de contato. A opção de trabalhar
com o século XVIII, deve-se ao fato de que é o momento onde se encontrou
um volume maior de documentos que fazem menção a estes etnônimos, que
vão desaparecendo na segunda metade do mesmo século, à medida que os
índios que estabeleceram pazes e foram reduzidos em aldeias, tiveram as
suas aldeias transformadas em vilas e povoados, dentro das transformações
impostas pela política indígena do período pombalino.
Assim, esse foi um século em que os povos indígenas do sertão da capitania
que fizeram pazes e se aldearam junto aos portugueses desde o final do
século anterior, vivenciaram diversas situações relativas ao contato: guerras,
acordos de paz, redução, participação militar nos conflitos com outros grupos
indígenas e o impacto que a política pombalina teve no processo de
desenraizamento espacial e cultural das identidades étnicas existentes e a
construção de novas identidades.
Uma das primeiras referências aos Corema encontradas na pesquisa é do
final do século XVII. Trata-se de uma carta do capitão mor dos sertões de
Piranhas, Cariris e Piancó, Teodósio de Oliveira Ledo, ao Governador da Paraíba
Manoel Soares de Albergaria em 6 de agosto de 1698.
(...) com o favor de Deus cheguei com tudo a salvo e em paz a este
Arraial do Pau Ferrado nos primeiros de abril e dali a nove dias de
minha chegada me veio um aviso do meu gentio, que distante do
arraial três léguas estavam em como com eles se haviam encontrado
trinta ou quarenta tapuias brabos, que vinham em busca de paz e
que em todo caso os socorresse pelo receio que tinham de que lhe
sucedesse algum dano, o que fiz logo (...) eram de uma aldeia
chamada Corema a pedir-me paz dizendo que queriam ser leais a El
Rei meu Senhor; eu lhes concedi com ditame de procederem contra
os nossos inimigos e com obrigação de conduzirem o seu mulherio
para o arraial debaixo das armas; aceitaram o partido (...).4

2
Carta do Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria ao Rei de Portugal D.
Pedro II, de 14 mai. 1699. AHU_ACL_CU_014, Cx. 3, D. 226.
3
AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, p. 298-304.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 117

Em julho de 1709, em correspondência ao governador de Pernambuco, o


rei comenta uma carta que havia recebido do capitão mor da Paraíba,
informando que o capitão mor dos sertões daquela capitania, Teodósio de
Oliveira, teria comunicado que havia, naqueles sertões, uma nação de Tapuias
chamados Pega, e outra, chamada de Corema, que inquietavam os moradores.
O motivo da inquietação era por se achar a nação Pega com cabo e com mais
de mil e tantos arcos, de que se procedia não se povoarem aqueles sertões e
se aumentarem os currais. Na mesma data, o rei escreve ao capitão mor da
Paraíba ordenando mandar o capitão mor Teodósio de Oliveira, com sua gente
e índios, reprimir os danos que os índios levantados tentavam fazer, e se não
fosse possível, escrevesse ao governador de Pernambuco para dar o socorro
necessário para empreender essa guerra5.
Logo em seguida, encontramos uma consulta do conselho ultramarino de
19 de janeiro de 1711, sobre o que escreveu o capitão mor da Paraíba a respeito
da devassa da guerra que os moradores das Piranhas fizeram aos tapuias,
que apurou que os tapuias atacavam isoladamente para furtar e não em
comum e, dessa forma, os moradores das Piranhas não poderiam ter-lhes
declarado guerra6. No dia 09 de março do mesmo ano o rei escreve ao capitão
mor da Paraíba, mandando castigar os índios e soldados que foram
considerados culpados e ordena que, suposto o que diz o juiz Pantaleão
Lobo, que os moradores da Piranhas não querem consentir que o gentio
Panati torne para as terras que lhes foram assinadas naquele sítio, donde o
lançaram fora com a injusta guerra que lhes deram, lhe dê posse das ditas
terras7.
É interessante observar como a presença e participação do elemento
indígena no processo de conquista e colonização das terras situadas no sertão,
na primeira metade do século XVIII, aparece na distribuição de sesmarias na
capitania da Paraíba. A análise das obras de Irineu Joffily e João de Lyra
Tavares8, que apresentam praticamente as mesmas doações de terras, nos
permite identificar as estratégias de alguns povos da região em sua dinâmica
com a sociedade colonial. Grande parte das doações de terras é feita como
4
Carta do capitão-mor dos Sertões de Piranhas, Cariris e Piancó Teodósio de Oliveira
Ledo ao Governador da Paraíba Manoel Soares de Albergaria, de 06 ago. 1698.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 3, D. 226.
5
LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do
Conselho Ultramarino. 1698-1713. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 257,
f. 250-250v.
6
Consulta do Conselho Ultramarino. 19 jan. 1711. LIVRO DE REGISTO de consultas de
Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1673-1712. AHU_ACL_CU_CONSULTAS DE
PERNAMBUCO. Cód. 265, f. 238-239.
7
Carta do rei ao capitão mor da Paraíba. 9 mar. 1711. LIVRO DE REGISTO de cartas régias,
provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1698-1713.
AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 257, f. 312 e 312v.
8
C.f. JOFFILY, Irinêo. Synopsis das sesmarias da Capitania da Paraíba. Tomo I. Cidade da
Parahyba do Norte: s.r., 1894. TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a História
Territorial da Parahyba. Cidade da Parahyba do Norte: Impressa Official, 1910.
118 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

prêmio pela conquista e pazes com os índios, como é o caso da doação feita
em 1708, ao sargento mor Antônio José da Cunha, que solicita doação de
terras próximas a um riacho descoberto por ele chamado do Peixe, habitado
pela nação Icó-Pequeno, com os quais dizia, o suplicante, ter estabelecido
paz9. Mas, o mais interessante são as doações de terras feitas aos Cariri, Pega
e Xucuru na primeira metade do século XVIII. Em 1714, Os Cariri, através do
seu governador D. Pedro Valcacer, situados na missão de N.S. do Pilar do
Taipu, solicitam terras no lugar chamado Bultrins, em remuneração dos seus
serviços como leais vassalos no que são atendidos10. Em 1718 é a vez dos
Xucuru:
Os Índios Sucurus, representados por seo capitão-mor Sebastião
da Silva, dizem que por ordem do meu antecessor vieram com sua
aldeia para esta capitania a defender e reparar os assaltos que
davão os Tapuias barbaros levantados, em que faziam grande
estrago e se situaram na serra Boa Vista, no olho d’agua, aonde
estavão assistindo de baixo de missão; e como para sua assistencia
era mais conveniente para defensão desta capitania a dita paragem,
por estar nas cabeceiras do districto della, como era entre o
Curimataú e Araçagy, por onde estavão os Tapuias levantados a
fazer o maior damno nesta capitania – requerião uma legoa de
terra em quadro fazendo peão no Olho d’agua do meio –(...)para
que podesse elle supplicante com sua aldeia viver e plantar suas
lavouras para se sustentarem.Fez-se a concessão com a clausula de
não poder ser alheiada a terra e ficar devoluta no caso de mudança
da aldeia, uma legoa em quadro aos 4 de Agôsto de 1718.11
Finalmente, em 1738, os Pega, através do seu capitão mor, Francisco de
Oliveira Ledo, solicitam doação de terras no sertão das Piranhas, para que
nelas possam situar sua aldeia, no que são atendidos12.
Essas doações de terras mostram que alguns povos indígenas
aproveitaram as brechas oferecidas pela Coroa portuguesa e conquistaram
um espaço dentro da nova ordem estabelecida, mesmo que de forma
subalterna; estratégia que garantiu um pouco mais a sua sobrevivência étnica.
O que se observa paralelamente a essas doações são os constantes conflitos
com os índios pela posse da terra. Esses conflitos podem ser exemplificados
pelo ocorrido com os Corema, entre 1733 e 1736. Por uma sentença conseguida
pelos moradores do Piancó, os Corema foram transferidos para o lugar Riacho
do Aguiar, tendo voltado para o seu local de origem, o que gerou insatisfação
entre os moradores. Baseado no ocorrido o rei solicita ao governador da
Paraíba um parecer sobre o assunto13.

9
Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 40; e TAVARES, Apontamentos..., p. 70.
10
Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 60 e TAVARES, Apontamentos..., p. 87.
11
Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 74.
12
Cf. JOFFILLY, Synopsis..., p. 127-128.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 119

A resposta do capitão mor ao rei de Portugal é contra a transferência e


bastante ilustrativa dos conflitos existentes entre os índios e os fazendeiros
do sertão. Nela informa que:
É sem dúvida que os índios fazem grande dano aos gados, matando
muitos para comer, porém a necessidade em que os põem os naturais
os precisa a maior excesso, por que esta gente estava acostumada
a viver, como eles dizem de corso andando continuamente pelos
matos a buscar o mel que produzem as abelhas em grande
quantidade nos troços das árvores, e debaixo da terra, frutas, todo
o gênero de caça, não perdoando à imundície alguma, e para a sua
vivenda necessitam de que as terras tenham a comodidade referida,
o que nada acharão no Riacho do Aguiar (...) e como no sítio em que
se acham de presente lhes impedem as suas caças, e ainda operem
roças nas mesmas terras que lhes deu o procurador da torre como
consta das suas mesmas petições, e ainda a tirar pedra para fazer
igreja, forçosamente há de cometer grandes excessos, enquanto se
não reduzirem a forma de viver enquanto homens, o que se deve
esperar, se o missionário que de presente está se não retirar como
pretende, tendo as perseguições com que lhe impedem a redução
daquelas almas, (...).14
Os Panati também sofreram com a tentativa de mudança do local de sua
aldeia. Em 1752, encontramos uma certidão do ouvidor-geral da Paraíba, em
que relata a transferência realizada por ele dos Panati para uma terras na
travessia do Pajaú.
(...) vindo em correição neste sertão do Piancó, achei ao tapuia da
nação Panati, quase levantado; em razão de não querer ir, para
donde a Junta das Missões determinava, por terem morto quase o
gado todo das fazendas deste distrito e achando-se já algumas
despovoadas, e sem missionário, por este se ter retirado, com receio
do dito tapuio, que andava tudo no mato, ao qual reduzindo, para
que obedecesse, e se retirasse deste distrito, (...) e tendo notícia
de algumas que se achavam na Travessia do Pajeú, recomendei ao
coronel da cavalaria João leite Ferreira, para que por serviço de
Sua Majestade fosse descobrir as ditas terras, o qual foi com varias
pessoas, e os tapuias a sua custa;(...), para assistência dos ditos
tapuias para donde se conduziram, ficando os moradores em
sossego, concorrendo o dito coronel, com toda a atividade e
diligência, para se fazer a dita condução, em que fez um grande

13
Carta do rei ao capitão-mor da Paraíba. 14 fev. 1733. LIVRO DE REGISTO de cartas régias,
provisões e outras ordens para Pernambuco, do Conselho Ultramarino. 1731-1744.
AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 260, f. 109.
14
Carta do capitão-mor da Paraíba Pedro Monteiro de Macedo ao Rei de Portugal D. João
V. 22 abr. 1736. AHU_ACL_CU_014, Cx. 10, D. 798.
120 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

serviço a Deus e Sua Majestade e se faz digno, o dito senhor, lhe


faça toda a graça, e favor, que a sua real grandeza for servido.15
A versão dos Panati pode ser percebida na carta endereçada ao rei de
Portugal, assinada por Vicente Ferreira Coelho, em cinco de maio de 1755:
(...) No distrito da capitania da Paraíba estavam os índios Panatis
aldeados e tiveram os moradores do sertão do Piancó
principalmente o capitão-mor José Gomes de Sá poderes e astúcia
de os fazerem despejar com o pretexto de que comiam e furtavam-
lhes os gados, e indo todos os índios com o seu missionário o padre
Custódio de Oliveira para se acomodarem no sertão do Pajaú, não
os consentiram, nem acharam modos e o necessário para se
aldearem, e menos os quiseram no sertão das Piranhas, aonde
foram, e correram os moradores com estes dizendo-lhes que fossem
para a sua aldeia da Casa Forte donde haviam sido despejados por
cuja razão se viram precisados a recorrer ao governador da Paraíba
que os mandou para o excelentíssimo general de Pernambuco, o
qual ordenou que se metessem e ficassem na sua mesma antiga
aldeia, contanto que o capitão-mor dos índios fizesse prender
qualquer que cometesse furto dos gados e o entregasse ao capitão-
mor para o remeter para Pernambuco, cuja ordem o capitão-mor
índio fez publicar na Matriz do Piancó e na sua aldeia (...).16
Esse incidente provocou a ira dos moradores contra os índios,
principalmente o seu capitão mor, que acaba sendo preso, torturado e
assassinado. Isto teria ocorrido em 1753 e em 1755, outro índio chamado
Antônio Dias, foi morto com um tiro, tendo o juiz de Piancó, mandado soltar
os acusados. Diante disto, os índios dirigem-se nos seguintes termos ao rei:
Nestes termos os índios da nação dos Panatis com toda humildade
representam a Vossa Majestade que sendo os mais leais vassalos
que nunca em tempo algum deixaram de merecer o mesmo nome,
nem tomaram vinganças dos brancos nas ocasiões que lhes têm
dado, se vêm hoje os mais perseguidos e desgraçados, sem proteção
das justiças por serem muito pobres, que não possuem que lhes dar,
assim como tem os delinquentes, e só de Vossa Majestade se valem,
e pedem vingança das mortes referidas do seu capitão-mor e do
outro índio, e esperam que Vossa Majestade os não desampare, e
dê a providência o castigo merecido como for servido: e por não
sabermos escrever pedimos a Vicente Ferreira Coelho esta por nós
fizesse e se assinasse.17

15
Certidão do ouvidor-geral da Paraíba, José Ferreira Gil. 25 jan. 1752. AHU_ACL_CU_014,
Cx. 16, D. 1321.
16
Carta de Vicente Ferreira Coelho ao Rei de Portugal D. José I. 5 mai. 1755.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 18, D. 1435.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 121

Baseado na seguinte representação dos índios Panati o rei envia em 15 de


outubro de 1755 uma carta ao ouvidor da Paraíba ordenando tirar uma devassa
contra os excessos cometidos contra eles. Na mesma data, escreve outra
carta ao governador da capitania da Paraíba, ordenando ter especial cuidado
com estes índios para que se conservem nas suas aldeias e castigar com rigor
os culpados18.
É interessante ressaltar, que em função de características particulares dos
povos indígenas que se encontravam no sertão da capitania da Paraíba no
século XVIII: sua mobilidade, o reduzido número de índios nas aldeias, a
constante falta de missionários,em comparação com as aldeias do litoral; o
processo de transformação de aldeias em vilas do período pombalino, ao
contrário com o que aconteceu com as aldeias maiores, principalmente as
jesuíticas, resultou na transferência compulsória de uma parte destes índios
para vilas maiores, criadas com a união de várias aldeias e “índios dispersos”
e na manutenção de alguns povoados e aldeias de índios no sertão.
A escassez de missionários nas aldeias do sertão da Paraíba é constante
na primeira metade do século XVIII. Em 1715, o capitão mor da Paraíba escreve
ao Rei de Portugal, informando que a nação dos Corema, Panati, Fagundes,
Icós, Pegas, Canindé e Caburé, se achavam sem missionário, embora a maior
parte deles já tivessem tido19.
A situação parece não ter melhorado, pois em maio de 1726 o rei escreve
ao bispo sobre o que havia informado o capitão mor da Paraíba de que se
achavam naquela capitania diferentes aldeias de índios e nações de Tapuia
sem missionários e algumas delas não os tiveram nunca, como eram os
Fagundes, Cavalcanti e Corema e outras que pela falta de zelo dos que tinham
essa obrigação ficaram sem missionário, como era a aldeia dos Cariri que os
Padres de São Francisco haviam deixado havia três anos e a dos Xucuru em
que estava um clérigo provido pelo cabido, que nela nunca assistira. Diante
disto, o rei ordena dar a providência necessária em matéria tão importante.
Dois anos depois, o rei escreve ao mesmo bispo, agradecendo ter provido de
missionários todas as aldeias da capitania da Paraíba20.
Em reunião do Conselho Ultramarino de outubro de 1735 é discutida uma
carta do bispo de Pernambuco onde informava o miserável estado em que se
achavam os índios da dita capitania pela falta de missionários, das côngruas
que havia arbitrado a estes, e o parecer que havia dado de como as missões
deveriam ser distribuídas entre as ordens religiosas. A lista compunha-se de
17
Idem.
18
LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do
Conselho Ultramarino. 1744-1757. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 261,
f. 235-235v.
19
Carta do capitão-mor da Paraíba João da Maia da Gama ao Rei de Portugal D. João V.
11 ago. 1715. AHU_ACL_CU_014, Cx. 5, D. 349.
20
LIVRO DE REGISTO de cartas régias, provisões e outras ordens para Pernambuco, do
Conselho Ultramarino. 1724-1731. AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 259,
f. 64v e 155.
122 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

cinquenta e três aldeias, com a informação das que tinham missionário.


Segundo ele, aos capuchinhos italianos seria muito conveniente se lhes
entregassem as do distrito da capitania do Piancó se eles tivessem para isso
religiosos de que estavam faltos21.
Na reunião da Junta das Missões de Pernambuco de 17 de outubro 1739, o
padre superior dos capuchinhos italianos não duvidou em tomar todas as
três aldeias do Piancó: dos Panati, Corema e Icó, unindo os Panati com os
Corema no sítio do Boqueirão, onde estavam os Corema, e quanto aos Icó,
situados na Serra Branca, tomaria a aldeia quando esta fosse reposta no sítio
do Jardim, de onde a retiraram22.
A “relação das aldeias que há no distrito de Pernambuco e capitanias da
Paraíba sujeitas à Junta das Missões deste bispado” publicada na Descrição de
Pernambuco em 1746, nos dá uma idéia de como se encontrava a distribuição

R EGIÃO ALDEIA MISSIONÁRIO POVOS


Caboclos de Língua
Paraíba Jacoca Beneditino
Geral

Caboclos de Língua
Paraíba Utinga Beneditino
Geral

Caboclos de Língua
Mamanguape Baía da Traição Carmelita da Reforma
Geral

Caboclos de Língua
Mamanguape Preguiça Carmelita da Reforma
Geral

Religioso de Sta.
Mamanguape Boa Vista Canindé e Xucuru
Teresa

Taipu Cariris Capuchinho Tapuia

Cariri Campina Grande Hábito de S. Pedro Cavalcanti

Cariri Brejo Capuchinho Fagundes

Religioso de Sta.
Piancó Pan at i Tapuia
Teresa

Piancó Corema Jesuíta Tapuia

Piranhas Pega s/ missionário Tapuia

Rio do Peixe Icó Pequeno s/ missionário Tapuia

21
AHU_ACL_CU_CARTAS DE PERNAMBUCO, Cód. 911, f. 125-126v.
22
AHU PE – documentos avulsos (d a). 10 dez. 1739.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 123

das aldeias no sertão da capitania da Paraíba pelas ordens religiosas e os


povos indígenas por elas missionados23.
O conhecimento sobre a relação das populações indígenas com os atuais
municípios e a transformação de aldeias em vilas e povoados na capitania da
Paraíba no período pombalino é um tema que apesar de ter sido explorado
pela historiografia paraibana, merece um aprofundamento ainda maior, por
possibilitar uma visibilidade maior à presença e ressaltar a importância dos
povos indígenas na história do Estado da Paraíba.
Horácio de Almeida, na sua História da Paraíba, indica a posição de algumas
aldeias, relacionando-as a municípios atuais:
São oito as aldeias carirys, mencionadas nos documentos públicos:
aldeia Icós Pequenos, (Souza); aldeia dos Pegas, (Pombal); aldeia
da N. S. do Rosário do Curema; aldeia de S. José do Panaty, (Piancó);
aldeia de S. João do Brejo de Fagundes; aldeia do Pilar; aldeia de
Santa Thereza e S. Antonio da Boa Vista, das tribos Sucurús e
Canindés; não falando na primeira de todas, a do Boqueirão, no rio
Paraíba.24
Ainda segundo ele “A primeira vila que se criou na Paraíba foi a de Alhandra,
sediada na aldeia de Aratagui, dos índios potiguaras. Sua criação data de 1758,
mas só foi instalada em 1765”25.
Celso Mariz, nos seu Apanhados Históricos da Paraíba apresenta as
seguintes informações, no entanto não fornece uma cronologia precisa para
a fundação das vilas e povoados:
Souza formou-se de uma aldeia ou missão de Icós; Pombal, funda-
se de uma tribo de Pegas, Teodósio de Oliveira Ledo que também
em 1697 traz os Arius e inicia com ele a atual cidade de Campina
Grande; Manuel de Araújo instala, no Boqueirão do Piancó, os seus
coremas domados, e Luís Soares, obtendo na guerra dos Tapuias a
defecção dos Sucurus, vem aldeá-los no Araçagi.26
Elza Régis de Oliveira fornece a seguinte cronologia para a elevação das
povoações à categoria de vilas no século XVIII: 1758- Alhandra e Pilar; 1762,
São Miguel da Bahia da Traição e Monte-Mor da Preguiça, 1768 – Conde, 1772-

23
A mesma relação encontra-se com pequenas alterações na “Informação geral da Capitania
de Pernambuco em 1749”, publicada nos Anais da Biblioteca Nacional. Descrição de
Pernambuco com parte de sua história e legislação até o governo de D. Marcos
Noronha, em 1746: e mais alguns documentos até 1758. Revista do Instituto Arqueológico
Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, n. 11, 1904, p. 168-180; e Anais da Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, v. 28, 1906, p. 117-496.
24
ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/
UFPB, 1978, Vol. II, p.120.
25
Cf. ALMEIDA, História da Paraíba, Vol.II, p.70.
26
Cf. MARIZ, Celso. Apanhados históricos da Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/
UFPB, 1980, p. 42.
124 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

Pombal, 1790- Campina Grande, 1800 – Cariris Velhos, posteriormente Vila


Real de São João e Jardim do Rio do Peixe, posteriormente Sousa27.
Após um primeiro momento da implantação da política indigenista
pombalina, que se dirigiu especificamente às aldeias administradas pelos
jesuítas e que foram transformadas em vilas, a responsabilidade pela ereção
das vilas e povoados foi atribuída pelo governador de Pernambuco ao juiz de
fora, Miguel Carlos de Pina Castelo Branco que ficou responsável por 23 aldeias
nas capitanias do Ceará, Paraíba e Pernambuco e ao ouvidor geral das Alagoas,
Manuel de Gouveia Alvares, que ficou responsável por 24 aldeias da região
sul da Capitania de Pernambuco28, onde estavam localizadas as missões dos
franciscanos e dos capuchinhos italianos, que também foram expulsos das
suas missões e os seus bens inventariados e vendidos, tendo o fruto da venda
sido aplicado nas vilas e povoações criadas.
Na parte do sertão da capitania da Paraíba, que coube ao juiz de fora
Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, observou-se um processo de
redução e transferência compulsórias. Em julho de 1761, o governador de
Pernambuco escreve ao Secretário de Marinha e Ultramar informando que
sabendo da pouca utilidade que tinham as terras das aldeias dos Pega, foi
investigar e constatou que as terras eram impróprias para a agricultura, mas
boas para o gado. A povoação possuía pouco mais de uma dúzia de casas de
palha sem igreja. Por essa razão, resolveu unir os Pega aos de Mipibú, porém
não consultou os índios sobre a mudança de lugar da sua aldeia, contrariando
as normas do Diretório dos Índios. Propôs aos índios irem para o Apodi, mas
eles alegaram que eram inimigos dos vizinhos de lá.
A estratégia para convencer os índios para irem para Mipibú foi publicar
que queria lhes passar mostra. No dia combinado os Pega compareceram
com algumas espingardas e todos de arco e flecha. À medida que os índios
iam se alistando seus arcos e flechas iam sendo recolhidos com o argumento
que aquelas armas eram reprovadas pelo rei que só queria que os seus
soldados usassem espingardas. Em seguida os colocou em marcha para a
nova localidade no Mipibú.

27
OLIVEIRA, Elza Régis de.Capitania da Paraíba. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.).
Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994, p. 614.
28
Ano de 1761 – Relação das aldeias a que vai o dr. ouvidor geral da comarca das Alagoas,
Manuel de Gouveia Álvares, por ordem de S. Magestade Fidelíssima, dar nova forma
de vilas, e lugares, reduzindo-as ao número competente, e estabelecendo-lhe o regime,
e polícia que as leis, e bulas pontificiais transcrevem, e reconheceu a inata piedade do
mesmo senhor, ser indispensável para se acabarem de cristianizar os seus habitantes,
e florescerem como se procura, com o meio mais apto a brindar os índios silvestres
que residiam no mato, despidos das luzes do Evangelho, a unirem-se as mesmas, e
cessarem as irregularidades com que até agora eram dirigidas, de que se seguia o
horror com que as desamparavam e se perpetuavam no paganismo e Relação das
aldeias a que vai o Dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco, por
ordem de S. Magestade F idelíssima, dar nova forma de vilas, e lugares, (...) ,
ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 322-337.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 125

Depois os bens dos Pega foram inventariados, a serra em que viviam e o


terreno de suas roças foram arrendados e os seus animais vendidos, devendo
o dinheiro ser empregado na construção de novas casas para os mesmos.
Informou também que os índios da nação Icozinho eram de agrado se unir
aos do Apodi e que havia juntado a nação dos Caboré também naquela vila
do Apodi e pretendia juntar a aldeia do Panati à do Miranda. Um mês depois,
em carta escrita ao dito secretário, o referido governador informa que os
Pega aldeados no Mipibu, fugiram motivados pelos seus principais, mas foram
alcançados em Mamanguape e presos29.
Pelo termo oriundo da junta realizada em 24 de agosto de 1761 no Palácio
Episcopal da Soledade em Recife, com a presença do Bispo da diocese, do
governador e do juiz de fora, ficamos sabendo que o juiz havia mudado:
as nações Pegas e Icozinhos, aqueles para a aldeia de Mipibu e estes
para a do Apodi, aonde tinha ajuntado e aldeado o resto que hoje
existia da nação dos Caburés, e vários casais, que residiam nas serras
e fazendas dos sertões do Piancó e Açu, e porque querendo erigir
em vila a dita povoação do Apodi, foi informado pelo seu diretor
José Gonçalves da Silva não havia terra capaz de plantas, que se
repartisse a todos os moradores, e lhe constou que dentro do espaço
de 12 léguas há a serra chamada dos Martins, extensa, fertilíssima,
de grande negociação, e muitos habitantes, os quais, congregados
com os índios do Apodi, constituirão talvez a maior vila deste
governo depois da sua capital, julgava seria de grande conveniência
a translação da vila para a dita serra, dando-se ao sesmeiro desta
em troca todas as terras do referido lugar do Apodi, ou parte delas,
(...), transferindo-se as imagens da Paróquia para a Igreja do Apodi,
e as desta para uma capela que há na serra. Aonde com a finta dos
fregueses da dita paróquia para a sua matriz, se constituiria a da
futura vila.30
O juiz também havia ponderado que a Casa da Torre pretenderia apossar-
se das terras dos índios Panatis, quando estes fossem unidos à missão do
Miranda, na capitania do Ceará, porque as havendo dado para a habitação
dos ditos índios, julgaria que as deixando estes, lhe deveriam ser restituídas,
como tinha intentado em casos semelhantes, no rio de São Francisco, mas
como a dita Casa havia feito a doação das ditas terras, não a podia revogar,
nem tomar a si o que uma vez deixou de ser seu. A junta resolveu a

29
IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) códice 1.1.14 – Correspondência do
Governador de Pernambuco – 1753-1770.Cartas do governador de Pernambuco a
Francisco Xavier Mendonça Furtado. 15 jul. 1761, f. 277v-284v, e 9 ago. 1761, f. 284v-
285v.
30
Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo
Branco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles se contém. Recife,
24 ago. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88.
126 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

transferência da aldeia do Apodi para a Serra dos Martins, assentando que


para os trânsitos dos índios de umas aldeias para outras, se fintassem os
moradores que tivessem conveniências em separar aqueles das vizinhanças
das suas fazendas. Em 27 de setembro do mesmo ano, os moradores da dita
serra escrevem uma petição ao governador solicitando que a transferência
não seja feita, no entanto, não são inicialmente atendidos. Finalmente, após
vários entendimentos, os índios da missão do Apodi foram transferidos para
a Serra do Regente, onde foi criada a vila de Portalegre31.
Não foi possível ainda acompanhar todas as transferências, reduções e
ereção de vilas e povoados realizadas na capitania de Paraíba, tarefa que foi
confiada inicialmente ao juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo
Branco. No entanto, através dos autos de uma devassa sobre as vilas de
índios, posterior a 1763, identificamos mais algumas transferências na capitania
da Paraíba: os índios Fagundes, da Povoação do Brejo do Sertão do Cariri de
Fora, foram transferidos para a Baía de São Miguel, antiga Baía da Traição, e
os índios da aldeia da Campina Grande, para Monte-mor-o novo32. Segundo
Fátima Lopes, na criação de Vila Flor, na Capitania do Rio Grande, também são
agregadas as aldeias de Macacau, Tapissurema e Utinga, esta última da
capitania da Paraíba33.
O mapa geral de todas as vilas e lugares que se tem erigido de 20 de maio de
1759 até o último de agosto de 1763 das antigas aldeias do gov.de PE e suas
capitanias anexas, apresenta aalgumas informações interessantes sobre a ação
do Juiz de Fora na Capitania da Paraíba. Nessa Capitania foram criadas as
seguintes vilas e lugares, a partir de antigos aldeamentos indígenas: Vila da
Baía de São Miguel, em 28 de novembro de 1762; Vila de Montemor, em 8 de
dezembro de 1762, Vila de Nossa Senhora do Pilar, em 5 de janeiro de 1763; e
dois que são citados de forma incompleta, sem informar nome ou data de
criação: um de língua geral a que se uniu os Panati, e outro, de Aratahuy, a
que se uniu a aldeia do Ciry34.
É interessante observar que nos sertões da capitania de Pernambuco e
das capitanias anexas, além das aldeias existentes, havia ainda grupos
indígenas que não estavam aldeados, vivendo ou tendo voltado a viver de

31
Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo
Branco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles se contém. Recife,
24 ago. 1761; Petição dos moradores da serra dos Martins para que se não mude para
ela a missão do Apodi e despacho nela proferido. 27 set. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88
e 102-103; e LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio
Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese (Doutorado em
História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2005, p.141-144.
32
Processo dos autos de devassa sobre as vilas de índios. [post. 10 fev. 1763]
AHU_ACL_CU_015, Cx. 99, D. 7735.
33
LOPES, Em nome..., p. 159.
34
Livro Composto, principalmente de cartas, portarias e Mapas versando sobre vários
assuntos, relacionados com a administração de Pernambuco e das capitanias anexas.
Recife, 1760-1762. Biblioteca Nacional – Códice: I – 12,3,35.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 127

“corso”, tendo sido fundamental no processo de implantação da ordem


pombalina no sertão de Pernambuco, o trabalho inicialmente realizado pelo
sargento mor Jerônimo Mendes da Paz, que contou com a participação dos
índios do sertão da capitania da Paraíba.
Em 23 de dezembro de 1759, o governador de Pernambuco e capitanias
anexas, Luiz Lobo Diogo da Silva, expede portaria ordenando que os capitães
mores dos distritos e aldeias, a quem o sargento mor Jerônimo Mendes da
Paz entregaria carta sua, providenciassem relação da gente necessária
acompanhada da dita portaria, e a remetessem com toda brevidade ao lugar
designado, para se unirem com ele e seguirem suas ordens35.
A instrução passada ao sargento mor Jerônimo Mendes da Paz pelo
governador, no dia seis de janeiro do ano seguinte, fornece informações
preciosas de como foi pensada a implantação das modificações do período
pombalino nos sertões de Pernambuco. Segundo as informações recebidas,
os índios da nação Paraquio e Pipipam haviam voltado a viver de corso, com
mais vigor, por se unirem aos Mangueza, Guegue e Xocó, com os quais haviam
acertado fazerem um levante contra os moradores das ribeiras do Moxotó e
Buíque. O resultado foi a prisão dos índios Paraquió criminosos, sendo
transferidos cento e sessenta e tanto menos culpados para a missão de
Nossa Senhora das Montanhas do Ararobá. Não foi possível reduzir à paz as
outras nações, que passavam de 400 arcos, tendo-se determinado, em junta,
que o sargento mor, Jerônimo Mendes da Paz, fosse ao dito distrito
acompanhado das milícias e índios que achasse necessário, procurando línguas
capazes de expor às ditas nações que delas se pretendia a paz e sujeição à sua
Majestade Fidelíssima. O projeto seria repartir estas nações nas novas vilas a
serem erigidas. Na documentação encontra-se também a recomendação a
respeito de que, nos distritos onde ele iria atuar, havia muitas aldeias
compostas de poucos casais, e as ordens mais recentes não consentiam que
tais vilas se formassem com menos de cento e cinquenta deles. Assim, há
também a recomendação de que ele procurasse unir o competente número
de casais, situando as aldeias em terras que facilitassem o adiantamento da
agricultura36.
Logo em seguida às ordens recebidas do governador de Pernambuco, o
dito Sargento Mor escreve, do Ararobá, ao Capitão Mor do Piancó, Francisco
de Oliveira, em fevereiro de 1760, solicitando brancos e índios para a empresa
que estava iniciando:
É preciso que vossa mercê dessa parte do Piancó faça por prontos
até trezentos homens capazes de guerra moços os mais robustos,
acostumados a entrar nos matos municiados de munições de guerra
35
Portaria do governador general de Pernambuco e suas capitanias anexas. 23 dez. 1759.
ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f.65-65v.
36
Instrução do governador general de Pernambuco Luiz Diogo Lobo da Silva a Jerônimo
Mendes da Paz. Recife, 6 jan. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919,
f.65v-72.
128 RICARDO PINTO DE MEDEIROS

e balas e armados das melhores armas e entre elles alguns índios


dos mais fiéis e valorosos que houverem nesse distrito armados de
seus arcos e flechas quando não tenham boas armas de fogo. 37
Em carta de 2 de julho de 1760, o sargento mor escreve do Alojamento das
Flores da Ribeira do Pajaú, no sertão da Capitania de Pernambuco, a Frutuoso
Barbosa da Cunha, capitão mor dos índios da nação Icozinho, localizada no
sertão da capitania da Paraíba:
E assim me parece dizer a vossa merce, e por esta ordenar-lhe que
faça logo voltar todos os soldados que se retiraram e fugiram
vergonhosamente da bandeira do Piancó e busque que até encontrar
os Xocós, os Oguêz, ou Pipipans, ou Humans, ou Caracuis, (...) que
lhes não hei de fazer mal; por que eu não venho mais que a reduzi-
los por bem à obediência de nosso rei, e pô-las em estado de eles
gozarem das muitas felicidades que lhe quer logrem todos os seus
vassalos e muito principalmente os indios a quem o nosso rei quer
muito bem. Porem se eles não quiserem obedecer os prenda a todos
e os traga a minha presença nesta Ribeira do Pajaú. (...) se recear
que sejam muitos ajuntem-se com os Panatis, ou Pegas, ou com a
gente do rio de São Francisco, ou com qualquer outra bandeira. 38
Dois dias depois, Jerônimo Mendes da Paz ordena também a Pedro Soares
de Mendonça, este sargento mor dos índios da mesma nação, que com sua
gente auxiliem no combate aos índios das nações Xocós, Oguês, Mangueses,
Pipipans, Umans e Caracuis, desde Santa Luzia e cabeceiras do Rio Piranhas,
no sertão da Capitania da Paraíba até o rio Pajau, no de Pernambuco, e
recomenda que os Icós soldados não cometam mortes, nem crueldades, nem
maltratem os presos, nem façam agravos aos moradores onde passarem e
nem causem prejuízos nos gados e lavouras39. Três dias depois, Jerônimo
Mendes da Paz passa uma ordem aos capitães dos Panatis, Cosme Dias da
Silva e João Reis da Cunha, dando instruções na condução da bandeira contra
os “Xocoz Oguez Pepipans Manguenzes Caracuiz, Humary40.
O mesmo Jerônimo Mendes da Paz, em carta ao governador de
Pernambuco escrita da Ribeira do Pajeú, em 6 de julho de 1760, narra que
soube que no distrito do Piancó os índios Corema haviam se levantado. Estes

37
Carta de Jerônimo Mendes da Paz para o capitão mor do Piancó Francisco de Oliveira
Ledo. Ararobá, 19 fev. 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 100-100v.
38
Carta de Jerônimo Mendes da Paz para Frutuoso Barbosa da Cunha Capitão Mor dos
índios da nação Icozinho. Alojamento das Flores da Ribeira do Pajaú, 2 jul. 1760,
ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 115.
39
Cópia da ordem passada por Jerônimo Mendes da Paz a Pedro Soares de Mendonça
sargento Mor dos indios da nação Icozinho da Aldeia de Santa Luzia. Alojamento das
Flores. 4 jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919, f. 116.
40
Cópia da ordem passada a Cosme Dias da Silva e Joam Roiz da Cunha capitães dos
índios Panatis. 7 jul. 1760. AHU_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cód. 1919.
CONTATOS, CONFLITOS E REDUÇÃO 129

eram do missionário capuchinho italiano Frei Próspero. Informa também que


foram aprendidos alguns mangueses pela bandeira do Piancó, composta pelos
índios da nação Icozinhos, Panatis e Oguês. Mas todos os Icozinho e alguns
Panati desertaram, só ficando dos Icozinho o cabo que era seu sargento
mor41.
A correspondência de Jerônimo Mendes da Paz com capitães mores índios
da capitania da Paraíba demonstra, especialmente, como os povos indígenas
do sertão da capitania da Paraíba tinham uma importância significativa do
ponto de vista estratégico e militar, posição essa que foi perdendo força à
medida que os índios perdiam as suas terras e eram transferidos para as
novas vilas criadas. Esse processo teve como resultado o encobrimento e, em
muitos casos, o desaparecimento de sua identidade étnica, processo que
perdura até os dias atuais. Atualmente não há, nessa região que compreendia
o sertão da capitania da Paraíba, nenhum grupo indígena reivindicando sua
identidade étnica.

41
Carta do Sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz ao governador e capitão geral de
Pernambuco. Alojamento das Flores Ribeira do Pajaú. 6 jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DE
PERNAMBUCO, Cód. 1919, f.89-92v.
131

CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA


AMÉRICA PORTUGUESA:
NATAL E A COLÔNIA DO SACRAMENTO
NO SÉCULO XVIII

Paulo César Possamai1

retendemos fazer uma análise comparativa entre as principais


festas públicas realizadas na Colônia do Sacramento e em Natal,
durante o século XVIII, que visavam à representação do poder
da monarquia portuguesa na América. Tomamos como ponto
de análise essas duas localidades, situadas nas extremidades sul
e norte da América portuguesa a fim de melhor avaliarmos o quanto as
condições específicas de cada uma interferiam na padronização das
celebrações que eram ordenadas pela Coroa, na metrópole e nas suas colônias.
Natal foi fundada no fim do século XVI, numa data que ainda gera polêmica,
do mesmo modo que a sua condição jurídica inicial, se povoado ou cidade2.
De qualquer modo, surgiu nas proximidades da fortaleza dos Reis Magos,
criada para afastar os franceses do litoral e servir como ponta-de-lança para a
conquista da região aos indígenas e garantir o avanço para os territórios
situados a oeste e noroeste3.
Por volta de 1730, Sebastião da Rocha Pitta assim descrevia a cidade de
Natal:
(...) de mediana grandeza, e habitação, com matriz suntuosa e
boas igrejas. Está fundada meia légua distante do seu porto, capaz
de todo o gênero de embarcações, em cuja entrada tem a fortaleza
dos Santos Reis das mais capazes do Brasil em sítio, firmeza,
regularidade e artilharia, edificada sobre uma penha de grandeza
desmedida com quatro torreões. Há na cidade capitão-mor que a
governa, sargento-mor e outros cabos, com bom presídio: abunda
de todos os mantimentos necessários para o sustento de um povo
1
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do
Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas. Pesquisador dos Grupos
de Pesquisa Formação dos Espaços Coloniais: economia, sociedade e cultura (PPGH-UFRN/
Diretório CNPq), América Platina: poder, idéias e relações regionais (UFPel/ Diretório CNPq)
e Sociedades de Antigo Regime no Atlântico Sul (IFCH-UFRGS/ Diretório CNPq). E-Mail:
<paulocpossamai@hotmail.com>.
2
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte. João Pessoa:
UNIPE, 2001, p. 54-59.
3
LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos, missionários na colonização da capitania do Rio
Grande do Norte. Mossoró: Fundação Vingt-Un Rosado; Natal: Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, 2003, p. 54-55.
132 PAULO CÉSAR POSSAMAI

maior que o de que ela consta 4, pois não passa de quinhentos


vizinhos. 5
No ano de 1744, o bispo de Olinda, frei Dom Frei Luís de Santa Teresa,
visitou Natal. No seu relatório, de 1746, descreve-a “tão pequena, que além do
título de Cidade, Igreja Paroquial e poucas casas, nada tem que represente a
forma de Cidade”. Não deixou de anotar um gracejo sobre a “cidade de Natal,
ou não tal (como em vista do seu tamanho, por graça se diz)...”6.
A próxima descrição da cidade que temos conhecimento é datada de 1756,
ano em que foi elaborada uma Relação de toda a extensão desta Capitania do
Rio Grande, enviada pelo Senado da Câmara do Natal ao Ouvidor Geral
Domingos Monteiro da Rocha:
Em toda esta Capitania acham-se cinco freguesias. A primeira de N.
Senhora da Apresentação; nesta tem uma cidade chamada Natal,
que terá de povoado quatrocentas braças de comprido e de largo
cinquenta, com cento e dezoito casas; no fim desta, no lugar chamado
a Ribeira, há um rio de água salgada, a que chamam Rio Grande, e
tem sua barra, donde há uma fortaleza da invocação dos Santos
Reis, que nasce no mesmo mar, navegável, e entra pela terra a
dentro quatro léguas.7
Em 1810, o inglês Henry Koster foi mais um visitante que se espantou com
o reduzido tamanho de Natal, exclamando: “se lugares como esses são
chamados cidades, como seriam as vilas e aldeias?” Ele mesmo deu a resposta:
“muitas aldeias, no Brasil mesmo, ultrapassam esta cidade. O predicamento não
lhe foi dado pelo que é, ou pelo que haja sido, mas na expectativa do que venha
a ser para o futuro”. Observou que a cidade concentrava-se ao redor da praça,
que era cercada de casas térreas. Ainda segundo Koster, três ruas sem
calçamento desembocavam na praça. Os principais edifícios eram três igrejas,
o palácio do governador, a Câmara e a prisão. Calculou a população da Natal
de então entre setecentos e oitocentos habitantes8.

4
Não conhecemos um estudo sobre o abastecimento interno da capitania até a primeira
metade do século XVIII. Dessa data em diante temos a pesquisa de Thiago Alves Dias,
que contradiz o cronista, pois existe farta documentação que mostra a precariedade
do abastecimento da cidade de Natal. Consultar: DIAS, Thiago Alves. Carne, farinha e
aguardente: o Senado da Câmara de Natal e o abastecimento alimentício interno (1750-
1808). Monografia (Bacharelado em História). Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Natal, 2007.
5
PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. São Paulo: W. M. Jackson
Editores, 1958, p. 75-76.
6
O que era Natal em 1746 (Do relatório de Frei Luís de Santa Teresa à Santa Sé, em 1746).
In: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terra natalense. Natal: Fundação José Augusto, 1991, p.
101.
7
Relação de toda a extensão desta Capitania do Rio Grande (1756). In: MEDEIROS FILHO,
Terra natalense, p. 111.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 133

Porém, ou o cronista se limitou a contar os homens brancos ou a maior


parte da população se encontrava na área rural da cidade, pois um mapa da
população da Capitania do Rio Grande do Norte, de 1805, registra um total de
6.693 habitantes em Natal. A população dividia-se então em 1.416 brancos,
1.082 brancas, 634 negros, 618 negras, 1.371 mulatos e 1.572 mulatas9. Deve-
se considerar que, se por volta de 1730, Natal já teria cerca de quinhentos
vizinhos, ou seja, moradores chefes de famílias, a população deveria ser ainda
maior, já que os escravos não entravam nessa categoria, assim como muitos
dos desclassificados da sociedade colonial que não tinham moradia fixa sendo,
por isso, chamados de vagabundos10.
Em todo o caso, Natal não se distinguia por sua população ou riqueza no
contexto da América portuguesa, muito pelo contrário. Inexistia comércio
direto entre o Rio Grande e a metrópole, pois não havia grande produção
açucareira na capitania, não havia alfândega e, desde 1701, ela estava
subordinada ao governo de Pernambuco. Portanto, a maior parte do comércio
era feita com a Capitania Geral de Pernambuco, que se constituía no principal
mercado consumidor dos produtos do Rio Grande11.
A maior riqueza da região era o gado. As primeiras fazendas se instalaram
no sertão no último quartel do século XVII, gerando atritos entre colonos e
indígenas que desencadearam a chamada “Guerra dos Bárbaros”. Com a
destruição das tribos que impediam o avanço da colonização, o século XVIII
foi marcado pela expansão da pecuária, mas Natal não se tornou o centro
onde se comercializavam as manadas, que seguiam pelo interior até a zona da
mata das capitanias vizinhas, especialmente para Pernambuco12.
O conhecimento das condições socioeconômicas da Natal setecentista,
que apontamos acima, é necessário para analisarmos em que medida as
autoridades locais, representadas na Câmara e a autoridade nomeada pela
Coroa, o capitão-mor, se engajaram nas celebrações em honra à monarquia
portuguesa.
Por sua vez, a Colônia do Sacramento foi fundada à margem esquerda do
Rio da Prata, em 1680, por D. Manuel Lobo, obedecendo ao plano do príncipe
regente D. Pedro de expandir os domínios portugueses na América a fim de
assegurar vantagens territoriais e econômicas à Coroa portuguesa. O

8
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora
Massangana, 2002, p. 158-159.
9
Mapa da população da Capitania do Rio Grande do Norte. AHU_ACL_CU_18, CX 9, D.
623.
10
Sobre a questão da “vizinhança” em Portugal e em suas colônias, consultar: HESPANHA,
António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? ou o
revisionismo nos trópicos. Lisboa: s.r., s.d., p. 13. Disponível em: <http://www.
hespanha.net/papers/2005_porque-foi-portuguesa-a-expansao-portuguesa.pdf>.
Acesso em: 8 mar. 2008.
11
LOPES, Índios..., p. 62.
12
MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do Norte. 3. ed. Natal:
EDUFRN, 2007, p. 63-64.
134 PAULO CÉSAR POSSAMAI

fundador planejava criar uma cidade que se chamaria Lusitânia, nas


proximidades da fortaleza do Santíssimo Sacramento que estava a erguer.
Porém, a isolada fortaleza de D. Manuel Lobo não pôde resistir ao ataque
combinado das forças coloniais espanholas e dos exércitos indígenas das
missões jesuíticas, grupos para os quais a presença portuguesa no Rio da
Prata constituía uma grande ameaça. A destruição de Colônia, levada a cabo
oito meses após sua fundação, levou a Coroa portuguesa a ameaçar a Espanha
com uma guerra, impasse que foi resolvido com a restituição do território de
Sacramento através do Tratado Provisional de 1681. A Coroa espanhola foi
obrigada a ceder por meio da diplomacia o que seus vassalos na América
haviam conquistado pelas armas, situação que voltaria a se repetir em 1715 e
ainda em 1763, refletindo a contradição que podia haver entre os interesses
na defesa dos domínios ultramarinos e a posição da metrópole na conjuntura
européia13.
A história da Colônia do Sacramento apresenta diversas facetas que foram
diferentemente realçadas pelos historiadores. Centro de contrabandistas,
mas também posto avançado da fronteira e núcleo de povoamento,
Sacramento é um tema fascinante pela sua história sui generis dentro do
quadro do sistema colonial da América portuguesa, onde a riqueza estava na
agricultura ou nas minas e as invasões estrangeiras constituíram-se em
episódios isolados e inconstantes.
A Colônia do Sacramento constituía-se num dos mais rentáveis entrepostos
comerciais portugueses. Além da possibilidade de trocar, com muita
vantagem, produtos coloniais brasileiros e tecidos europeus por couros (da
região) e prata (do Alto Peru), o comércio realizado em Colônia tinha ainda a
vantagem de ser geralmente feito à vista, ao contrário do que ocorria na
maior parte dos domínios portugueses, uma vez que o caráter ilícito das
relações comerciais travadas entre portugueses e espanhóis na região platina
impedia a criação de um eficiente sistema de crédito.
Temos uma idéia do tamanho da população e do número de casas da
Colônia do Sacramento através das cartas que os governadores enviaram ao
rei. Em 1718, o governador Manuel Gomes Barbosa informava ao rei que viviam
em Colônia e em seus arredores mais de 1.040 habitantes14. No ano seguinte,
o mesmo escrevia que se erguiam no recinto interno da praça cinquenta e
uma casas de pedra e barro e dezesseis ou dezessete feitas de couro, onde
viviam os soldados casados pobres15.
Em outubro de 1722, o governador Antônio Pedro de Vasconcelos
relacionou em Sacramento e nas suas proximidades, 235 fogos, cuja população
foi calculada em 630 homens, 172 mulheres, 99 meninas, 123 meninos, 45
13
POSSAMAI, Paulo. A vida quotidiana na Colônia do Sacramento: um bastião português em
terras do futuro Uruguai. Lisboa: Livros do Brasil, 2006, p. 21-23.
14
Carta de Gomes Barbosa ao vice-rei, 12 de abril de 1718, in: Documentos Históricos, vol.
LXXI, p. 31.
15
Carta de Gomes Barbosa ao rei, 9 de dezembro de 1719: AHU_ACL_CU_012, cx. 1, D. 44.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 135

índios, 16 índias, 204 escravos e 90 escravas. O Terço de infantaria estava


constituído de 267 homens, enquanto havia 129 inscritos na cavalaria e
artilharia16. Em 1730, o governador indicava a existência de 329 fogos, sendo
que rara a casa que não estivesse coberta de telhas e que deixasse de ter
suficientes alfaias17.
Em 1735, Silvestre Ferreira da Sylva, alferes que descreveu o cerco imposto
pelos espanhóis entre 1735 e 1737, escrevia que o povoado era formado por
327 casas, térreas na sua maioria, distribuídas ao longo de dezoito ruas,
dezesseis travessas e quatro praças. O mesmo calculou a população de Colônia
em duas mil e seiscentas pessoas, entre as quais estavam incluídos os efetivos
da guarnição. No interior da fortaleza, situavam-se a igreja paroquial, a casa
do governador, o hospital real, a residência dos franciscanos, a casa da
artilharia, os quartéis e o corpo da guarda principal18.
A monarquia e sua representação no Antigo Regime
Antes de analisarmos as festas realizadas nos espaços que delimitamos
para nosso estudo, salientaremos a importância das celebrações públicas no
contexto do barroco ibérico. Entendemos o barroco não somente como um
estilo artístico, mas também como um estilo de vida. Segundo D’Oliveira
França, o barroco “é a expressão da época da hegemonia ibérica na Europa,
associada à reação católica procedente do Concílio de Trento. Educada pelos
jesuítas. Policiada pela Inquisição. Governada por um rei absoluto, autoritário”19.
Se o barroco marcou a Espanha do século XVII, foi no século XVIII que ele se
instalou em sua plenitude em Portugal, com a consolidação da dinastia de
Bragança e a descoberta de minas de ouro no Brasil.
O modelo cortesão espanhol, “grave, austero e circunspecto, fundado
naquele que, nos alvores do século XVI, Carlos V trouxera da Borgonha, destinado
a realçar a essência sagrada da realeza”20, lentamente foi cedendo lugar em
Lisboa ao modelo cortesão francês, desde o casamento de D. Afonso VI com
Maria Francisca Isabel de Sabóia (1666), que selou a aliança entre Portugal e
a França. Durante os reinados de D. Pedro II e D. João V a influência cultural
francesa aumentou, não só em Portugal, mas em todas as cortes européias,
que criaram suas próprias versões de Versalhes.
O monarca que, por excelência, encarnou o absolutismo foi o rei Luís XIV
da França. A hierarquização da sociedade francesa, representada pela etiqueta
que regia a vida na corte, foi admirada e serviu de modelo para as outras
monarquias européias. A estrita obediência da etiqueta, com a qual o soberano
16
Mapa geral… AHU_ACL_CU_012, Cx. 1, D. 86.
17
Carta de Vasconcelos ao rei. 5 abr. 1730: AHU_ACL_CU_012, Cx. 2, D. 220.
18
SYLVA, Silvestre Ferreira da. Relação do sítio da Nova Colônia do Sacramento. Facsímile da
edição de 1748. Porto Alegre: Arcano 17, 1993, p. 61-71.
19
FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997,
p. 50.
20
BRAGA, Paulo Drumond. D. Pedro II (1648-1706): uma biografia. Lisboa: Tribuna, 2006, p.
187.
136 PAULO CÉSAR POSSAMAI

“aproveitava suas atividades mais particulares para marcar as diferenças de


nível, distribuindo suas distinções, provas de favorecimento ou desagrado”21,
garantia a proeminência do rei na sua corte. Porém, para manifestar o poder
do monarca fora da sua capital havia dois meios: as guerras expansionistas
ou a representação do poder da Coroa por meio de festas espetaculares. Luís
XIV utilizou ambas as estratégias.
Enquanto as monarquias rivais preferencialmente se serviam da guerra
como instrumento de prestígio, D. João V buscou o mesmo através da
diplomacia, desviando para os domínios ultramarinos todas as ambições de
glória de seus vassalos através do serviço militar. Mas, se a política de
pacifismo iniciou-se com o fim da Guerra de Sucessão Espanhola, a ambição
de equiparar a monarquia portuguesa com as principais cortes católicas
européias era um sonho antigo, que vinha do tempo da Restauração.
Timidamente esboçada durante o reinado de D. Pedro II, no período joanino
desenvolver-se-ia uma política de espetáculo que seria utilizada pela Coroa
como afirmação grandiosa de soberania e instrumento de negociação22.
Segundo Jaime Cortesão, foi o ouro brasileiro que deu a D. João V as
condições necessárias para implementar a sua política de espetáculo, situação
que explica o anacronismo de Portugal se tornar o país mais tipicamente
barroco no século XVIII, quando esse estilo de arte e de vida já não era mais
predominante na maior parte da Europa. Outro fator que teria contribuído
para a duração da era barroca em Portugal, na análise de Cortesão, seria a
constituição da sociedade portuguesa, na qual faltava uma burguesia forte,
circunstância que tornava o domínio da aristocracia incontestável23.
Contudo, não bastava organizar festas magníficas para a corte, pois a
exaltação da monarquia deveria ser pública a fim de ser vista por todos os
súditos. De fato, “a introdução do conceito cênico do barroco revela-se essencial
ao exercício do poder, que se afirma perante os súditos pelo seu caráter visual”24.
Segundo Santiago: “Nas comemorações dos nascimentos e casamentos de
membros da Família Real, os festejos visavam construir, por meio de suposto
regozijo comum, uma identidade entre a Coroa e os súditos das mais distantes
paragens”25.

21
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 102.
22
PIMENTEL, António Filipe. Arquitectura e poder: o real edifício de Mafra. Coimbra: Instituto
de História da Arte, Universidade de Coimbra, 1992, p. 76.
23
Para Cortesão: “O barroco foi em Portugal, mais do que em nenhures, um estilo de império.
Para exprimir, quer a onipotência dum regime – o absolutismo – e duma classe – a nobreza,
quer a majestade do divino, o artista, na lógica do barroco, funde todos os elementos do fausto
imperial. (...) E é no Brasil, que o barroco, de origem e importação portuguesa, se tornou por
definição o estilo dum Estado colonizador e absolutista e, por consequência, o mais apropriado
para exprimir em arte, por todos os ilusionismos duma força e grandeza sem limites, o domínio
da Coroa sobre os seus vassalos”. CORTESÃO, Jaime. O tratado de Madrid. Brasília: Senado
Federal, 2001, tomo 1, p. 85-86.
24
PEREIRA, Ana Cristina Duarte. Princesas e Infantas de Portugal (1640-1736). Lisboa: Colibri,
2008, p. 31.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 137

Para Lopez, os festejos se relacionavam com o espaço vivido, pois se


desenvolviam no palácio, onde a corte deveria mostrar sua fidelidade ao
monarca, e na rua, onde arcos, luminárias e fogos de artifício serviam para
congregar todos os súditos à ordem monárquica: “Havia assim uma ‘geografia
da festa’. A rua era vista pelos dirigentes como espaços do povo; o Paço era o
local da nobreza, e as Igrejas o lugar do clero. Os grandes festejos, como as
Aclamações reais, entrelaçavam esses vários lugares, permitindo o contato entre
múltiplos segmentos sociais”26. Mas, se as celebrações públicas visavam antes
de tudo o enaltecimento da monarquia, também serviam para que as elites
locais mostrassem seu poder e riqueza. Nas procissões, os desfiles dos juízes
e oficiais da Câmara eram um modo eficiente de mostrar o poder das elites
locais, que não podia prescindir do espaço urbano, onde a população se
concentrava para ver a representação da sociedade hierarquizada27.
D. João V, respaldado pelos quintos do ouro brasileiro, iniciou um reinado
inspirado no de Luís XIV. Em 1708, uma brilhante embaixada portuguesa foi
enviada a Viena para ajustar o casamento do rei com a arquiduquesa Mariana.
Em 1713 e 1714, foram dadas festas memoráveis em Utrecht em comemoração
aos nascimentos dos príncipes D. Pedro (em breve falecido) e D. José, o futuro
herdeiro do trono. Em 1715, o embaixador português fez uma esplêndida
entrada em Paris, quando foram distribuídos, à mão larga, dinheiro e objetos
de valor entre os cortesãos de Luís XIV, enquanto às pessoas que
acompanharam o cortejo foram distribuídas duzentas medalhas de ouro e mil
de prata com a efígie do rei de Portugal.
O fausto da entrada em Paris seria superado, três anos depois, quando
André de Melo e Castro, elevado ao cargo de embaixador extraordinário
junto à Santa Sé, fez sua entrada oficial em Roma. Foi tão rica a comitiva
portuguesa que, por muitos anos, os demais países europeus deixaram de
organizar entradas solenes de embaixadores na Cidade Eterna, já que nenhum
se propôs a igualar a cerimônia patrocinada pelos portugueses. Outra
embaixada, desta vez enviada à corte de Pequim, entre 1725 e 1728, serviu de
nova ocasião para alardear a riqueza e o poder de D. João V, quando foram
enviados riquíssimos presentes ao imperador da China28.
Se a representação faustosa da Coroa portuguesa era importante nas
cortes estrangeiras e na metrópole, também o era no império colonial, onde,
“embora o rei não estivesse presente fisicamente, de certo o estava no que dizia
respeito ao seu segundo corpo, político ou místico, como queiramos chamar”29.

25
SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. A vila em ricas festas: celebrações promovidas
pela Câmara de Vila Rica, 1711-1744. Belo Horizonte: FACE-FUMEC, 2003, p. 41.
26
LOPEZ, Emilio Carlos Rodrigues. Festas públicas, memória e representação: um estudo
sobre manifestações políticas na Corte do Rio de Janeiro, 1808-1822. São Paulo:
Humanitas;FFLCH-USP, 2004, p. 30.
27
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 53.
28
BEBIANO, Rui. D. João V, poder e espectáculo. Aveiro: Estante, 1987, p. 109-118.
138 PAULO CÉSAR POSSAMAI

D. João V incentivou a proliferação de festejos em todos os domínios


portugueses, “na medida em que enrijeceu o cerimonial, normatizando
minuciosamente, de acordo com a etiqueta, a forma das celebrações. As festas
se tornariam artifícios de representação e exaltação do monarca, especialmente
importantes nos confins ultramarinos, devido à distância do centro do poder”30.
De fato, todas as ocasiões propícias ao enaltecimento da monarquia
deveriam ser convenientemente festejadas. A chegada de um bispo, a
aclamação do soberano, seu casamento, seu funeral, o nascimento do futuro
soberano, o aniversário do rei, da rainha, dos príncipes ou o do supremo
representante do rei na colônia deveriam ser enaltecidos através de festas
públicas. Mais que estimular, as autoridades obrigavam a participação da
população nessas solenidades. As leis do Reino, as Ordenações Filipinas,
mandavam que assim fosse até para o morador a menos de uma légua da vila
ou cidade em que se fizesse uma procissão31. “Assim todo mundo já esperava,
por exemplo, que o governador mandasse ‘lançar bando, com todas as caixas do
presídio, publicando o efeito que aquela noite e nas duas seguintes todos os
moradores ornassem suas janelas com luminárias”32.
Características das festas barrocas, as luminárias e os fogos de artifício
garantiam o caráter espetacular da comemoração. Segundo Maravall, “com
suas luzes, essas artes correspondiam ao afã de deslocar o dia para a noite,
vencendo a escuridão por meio de puro artifício humano”33. Outro elemento
importante da celebração era o caráter religioso vinculado à mesma, com a
realização de missa solene e procissão, pois assim “a potestade divina e a
potestade civil que amparava e honrava a primeira na terra ficavam igualmente
enaltecidas”34.
As festas oficiais do Antigo Regime português dividiam-se em anuais ou
ordinárias, ligadas ao calendário litúrgico católico (Corpus Christi, Anjo
Custódio do Reino e Visitação de Nossa Senhora a Santa Izabel) e reais ou
extraordinárias (nascimentos, casamentos, aclamações e exéquias da família
real)35.
Dentre as festas reais que marcaram o fausto do período joanino cumpre
destacar os casamentos entre os príncipes do Brasil e das Astúrias com as
infantas Mariana Vitória de Bourbon e Maria Bárbara de Bragança, na fronteira
luso-espanhola, em 1729. Os matrimônios dos príncipes herdeiros de Portugal
e da Espanha deram lugar “a um dos mais impressionantes momentos de
29
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização
da América, 1640-1720. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2002, p. 168.
30
SANTIAGO, A vila..., p. 20.
31
Código Filipino ou Ordenação e Leis do Reino de Portugal, livro 1, título 66, parágrafo 48.
32
ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana
colonial. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 131.
33
MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco: análise de uma estrutura histórica. São
Paulo: Edusp, 1997, p. 384.
34
MARAVALL, A cultura..., p. 378.
35
SANTIAGO, A vila..., p. 41
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 139

visualização do fausto joanino, num espetáculo sem precedentes de rivalidade e


emulação entre duas Cortes que coincidem no mesmo local”36.
As festas da monarquia em Natal
Em 10 de maio de 1729, o capitão-mor do Rio Grande, Domingos de Morais
Navarro, escrevia ao rei informando que, conforme lhe fora ordenado pelo
capitão-geral de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Tibão, festejara
condignamente os casamentos dos príncipes. Antes da descrição das
celebrações, Navarro começou seu relato salientando seu esforço em
organizar os festejos “não obstante a esterilidade e a limitação do país e de
suas posses”. As celebrações duraram nove dias sucessivos, com comédias,
máscaras, cavalhadas, fogos de artifício, salvas de artilharia e missa solene
cantada e procissão. Ordenou três noites de luminárias e, para dar o exemplo,
Navarro mandou acender mais de oitenta luzes cada noite no frontispício da
casa onde morava. Não deixou de ressaltar que as festividades causaram
muita alegria aos vassalos, “por nunca terem visto outra semelhante celebridade
e especialmente aos muitos índios e tapuias das aldeias desta capitania, que
ficaram admirados, fazendo mais apreensão da Real Grandeza de Vossa
Majestade” 37.
O capitão-mor estava realmente muito empolgado com as festas que
organizou, pois, arrematava dizendo que “da capitania de Pernambuco para
as mais do norte [a do Rio Grande] se avantajou a todas na magnificência dos
aplausos que nas outras se fizeram” 38. Porém, para iluminar a sua casa recorrera
aos recursos da capitania e, como não havia legislação que garantisse essa
apropriação, dizia que merecia a mesma regalia que o governo da Paraíba,
que tinha o subsídio de quatro arrobas de cera para celebrar semelhantes
solenidades. Caso o rei julgasse que ele não deveria ter usado os recursos da
capitania para o pagamento da cera, se comprometia a devolver o valor
retirado.
Por sua vez, D. João V escreveu ao governador de Pernambuco solicitando
seu parecer com relação ao pedido feito pelo capitão-mor do Rio Grande.
Duarte Sodré respondeu que Navarro havia festejado os casamentos dos
príncipes “com mais aplauso do que pedia a terra” 39, ressaltando assim o
empenho do capitão-mor na realização de celebrações numa região que era
conhecida pela sua pobreza. De fato, em 18 de maio de 1729, o Senado da
Câmara de Natal havia pedido ao rei a suspensão dos tributos que ele mandara
cobrar para financiar os casamentos dos príncipes, tendo em vista que sete
anos sucessivos de seca haviam dizimado o gado do sertão40. Por isso, Duarte
36
PIMENTEL, Arquitectura e poder, p. 78.
37
Carta de Domingos de Morais Navarro ao rei. 10 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D.
136.
38
Carta de Domingos de Morais Navarro ao rei. 10 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D.
136.
39
Carta de Duarte Sodré Pereira Tibão ao rei. 13 mar. 1732. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D.
3801.
140 PAULO CÉSAR POSSAMAI

Sodré era favorável a que Navarro recebesse uma arroba e meia de cera, pois
“além das referidas despesas, serviu a Vossa Majestade com bom procedimento
neste lugar”41. O parecer do governador de Pernambuco foi aprovado pelo
Conselho Ultramarino que, em 1732, manifestou-se favoravelmente à entrega
uma arroba e meia de cera a Domingos de Morais Navarro.
O problema do financiamento da iluminação pública durante os festejos
era antigo. Já em julho de 1713 a Câmara de Natal pedia ao rei os mesmos
subsídios que a Câmara da Paraíba recebia da Coroa para a realização de
festas religiosas42. Embora a Coroa tenha formalmente regulamentado a
hierarquia entre as diferentes autoridades coloniais, na prática, ela encorajava
a autonomia das capitanias com o objetivo de “dissipar o aparecimento de
uma mentalidade colonial separada, ou de uma estrutura colonial interna que
pudesse desenvolver-se independentemente do controle metropolitano”43. A
desigualdade de tratamento que a Coroa dava às diferentes capitanias era
norma durante o Antigo Regime, quando as relações entre os monarcas e as
cidades ou províncias eram regidas de acordo com as circunstâncias, que
ditavam as mercês concedidas pelos reis, mas, como vimos acima, nem por
isso os pedidos de equiparação entre as diferentes circunscrições
administrativas deixavam de ser feitos.
A falta de recursos para as celebrações oficiais era constante e talvez os
membros do Senado da Câmara de Natal estivessem satisfeitos em responder
que não havia dinheiro para as cerimônias que deveriam ser realizadas por
ocasião da morte de D. José I44. O protesto contra a falta de verbas era dirigido
contra a própria instituição monárquica, pois os funerais da família real tinham
um importante caráter de celebração litúrgica 45. Situação semelhante
aconteceu em 1786, quando o Senado da Câmara escreveu ao ouvidor geral
e ao corregedor que, devido à falta de verbas, não se realizaram as celebrações
ordenadas pelo corregedor em honra aos casamentos dos príncipes. Não
houve o Te Deum cantado na matriz e a única homenagem prestada foi a
iluminação da casa da Câmara46.
Possuímos ainda alguns registros de festas religiosas que foram realizadas
em Natal de acordo com ordens vindas de Lisboa. Em primeiro de maio de

40
Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 18 mai. 1729. AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D.
140.
41
Carta de Duarte Sodré Pereira Tibão ao rei. 13 mar. 1732. AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D.
3801.
42
Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 17 jul. 1713. AHU_ACL_CU_018, Cx. 1, D. 69.
43
SCHWARTZ, Stuart. O Brasil no sistema colonial. In: BETHENCOURT, Francisco &
CHAUDHURI, Kirti (orgs.). História da expansão portuguesa - vol. III: O Brasil na Balança
do Império, 1697-1808. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 148.
44
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN). Senado da Câmara de
Natal, Livro de Termos de Vereação, Cx. 1, f. 226v-227, 18 jun. 1777.
45
MARTINS, Maria Cristina Bohn. Sobre festas e celebrações: as reduções do Paraguai
(séculos XVII e XVIII). Passo Fundo: UPF Editora, 2006, p. 46.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 141

1757, a Câmara informava a D. José I que registrara os decretos reais que


ordenavam a realização de festas em honra a São Francisco de Borja e a Nossa
Senhora47. Deve ter havido algum pedido de subsídio para financiar os gastos
com os festejos, pois, em 1759, a Câmara voltou a informar o recebimento das
ordens para a realização das mesmas festas, porém desta vez acrescentou:
“sem fazermos despesas para as ditas solenidades e nem levarmos propina
alguma”48.
Era importante para os camaristas salientar o não recebimento de propinas,
pois, como eles não recebiam salários, mas propinas relativas a serviços
prestados, as mesmas eram cobiçadas por compensar gastos e serviços. As
festas públicas podiam ser interessantes financeiramente, já que criavam
oportunidades para os membros da Câmara obterem benefícios monetários,
como destaca Camila Santiago, que estudou as festas patrocinadas pela
Câmara de Vila Rica49. Porém, no caso de Natal, observamos que a Câmara
buscava subtrair-se da responsabilidade de financiar as celebrações em honra
à monarquia ou à religião, provavelmente devido às dificuldades financeiras
da cidade, que impediam o ressarcimento dos gastos realizados. A
documentação não mostra muito entusiasmo da Câmara em promover as
celebrações, mesmo as de caráter estritamente religioso. O termo de vereação
de 26 de abril de 1712 registra laconicamente: “Decidiram fazer a festa do
Corpo de Deus por ser Festa Real e o senado é obrigado a fazê-la”50.
Com relação às festas locais parece ter havido mais interesse. O termo de
vereação de 07 de dezembro de 1767 registra que os camaristas “acordaram
mais em mandar ao procurador comprar seis velas de libra para se darem à
Câmara e ao governo no dia seguinte na festa da Nossa Senhora da Apresentação,
orago da matriz desta cidade e de tarde acompanhar a procissão como de costume
antigo”51. Se havia pouco entusiasmo em efetuar gastos que dificilmente seriam
ressarcidos, era importante marcar a presença da Câmara na festa em honra
à padroeira da cidade. Além disso, “ostentar velas na procissão era um elemento
a mais de representação, distinguindo seus portadores e favorecendo o
reconhecimento de seu status social”52.
O fenômeno observado por Chartier nas cidades francesas do Antigo

46
IHGRN. Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 2, liv. 1784-1803,
f. 23.
47
Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 1 mai. 1757. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D.
403. Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 1 mai. 1757. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7,
D. 404.
48
Carta dos oficiais da Câmara de Natal ao rei. 6 fev. 1759. AHU_ACL_CU_018, Cx. 7, D.
414.
49
SANTIAGO, A vila..., p. 117.
50
IHGRN. Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 1, liv. 1709-1721,
f. 59v.
51
IHGRN, Senado da Câmara de Natal, Livro de Termos de Vereação. Cx. 2, liv. 1793-1802,
f. 10-10v.
142 PAULO CÉSAR POSSAMAI

Regime, onde: “a festa urbana tornou-se assim um instrumento político que


permite a afirmação da cidade perante o príncipe, a nobreza e as outras
cidades”53, também se deu no Novo Mundo, especialmente nas cidades mais
ricas. Santiago afirma que, em Minas Gerais, “é possível afirmar que a Câmara
de Vila Rica apropriava-se das festas que promovia com fim de representação
de seu poder”54.
Tanto as festas ligadas à celebração da monarquia como as religiosas eram
uma ocasião propícia para a representação do poder das Câmaras, que podiam
até vender seus bens para patrocinar os festejos, como aconteceu em Salvador
em 1641, quando os camaristas votaram a favor da venda da prataria da Câmara
a fim de financiar a procissão de Santo Antônio, pois os recursos destinados
a ela já haviam sido gastos nas festas pela aclamação de D. João IV55.
Como vimos anteriormente, o maior empenho em celebrar a monarquia
em Natal foi obra do capitão-mor do Rio Grande, Domingos de Morais Navarro,
e não do Senado da Câmara. A última festa em homenagem à Coroa
portuguesa em Natal que conhecemos foi registrada em 14 de outubro de
1821, quando o governador da província do Rio Grande do Norte, José Inácio
Borges, escreveu ao secretário de Estado, da Marinha e do Ultramar que a
notícia da chegada a salvo do rei a Lisboa fora comemorada com salvas de
artilharia, três noites de luminárias e um solene Te Deum na matriz da cidade56.
Outra vez observamos que a iniciativa partiu do governador e não do Senado
da Câmara.
Nossa análise da documentação nos leva a crer que o pouco entusiasmo
da elite natalense em financiar celebrações públicas devia-se à dificuldade de
ressarcimento dos gastos efetuados. A constante falta de recursos da Câmara
de Natal refletia o pequeno desenvolvimento econômico da cidade, que
impedia a elite local de afirmar seu poder através de celebrações memoráveis,
a exemplo do que ocorria nas cidades mais ricas da América portuguesa. Por
sua vez, os representantes diretos da Coroa na Capitania estavam interessados
em celebrar as datas importantes da monarquia a fim de ressaltar a sua
fidelidade à dinastia, para garantir deste modo sua ascensão nos quadros
administrativos no Reino ou nas colônias. A elite local preferia concentrar
seus poucos recursos na celebração das festas religiosas, particularmente da
padroeira da cidade, ocasião em que mostrava seu poder à população, assim
como sua ligação a terra em que vivia.
As festas reais na Colônia do Sacramento
Como praça fronteira ao império colonial espanhol, a Colônia do

52
SANTIAGO, A vila..., p. 93
53
CHARTIER, Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Unesp, 2004, p. 31.
54
SANTIAGO, A vila..., p. 71.
55
SCHWARTZ, Stuart. Cerimonies of public authority in a colonial capital. Anais de história
de além-mar. Lisboa, 2004, v. 5, p. 11.
56
Carta de José Inácio Borges ao rei. 14 out. 1821. AHU_ACL_CU_018, Cx. 10, D. 655.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 143

Sacramento não deixou de participar da política de glorificação da monarquia


portuguesa. Para festejar o casamento do príncipe D. José com a infanta D.
Mariana Vitória, o governador Antônio Pedro de Vasconcelos tomou por
encargo a realização de uma grande festa, uma vez que o povoado não tinha
Câmara, a quem incumbia a organização de semelhantes eventos. O
governador salientou a importância da realização do festejo em Colônia,
dizendo que “foi forçoso encarregar-se dele e sem atender à despesa nem à
circunstância de cair em empenho, por ser aquela praça fronteira, e irem
testemunhá-lo de Buenos Aires pessoas graves e de caráter, que aceitaram seu
convite”. As festividades constaram de “três noites de luminárias, fogos de
artifício e descargas de artilharia, festa de igreja acabando por uma solene
procissão, cavalhadas, touradas e comédias, dando trinta dias sucessivos, que
durou a festividade, mesa pública às pessoas de distinção e aos vizinhos
hóspedes”57.
Para além da função de glorificação da monarquia, a festa contribuía para
a aproximação dos povos, pois tudo indica que o convite “à nobreza e [aos]
militares da cidade de Buenos Aires” para celebrar os casamentos reais em
Sacramento ajudou a melhorar as relações entre portugueses e espanhóis. O
governador Antônio Pedro de Vasconcelos informou à Coroa que o
governador de Buenos Aires lhe escrevera que “os convidados voltavam mui
agradados do agasalho e cortejo que lhe fez pelo decurso de trinta dias que ali se
detiveram, experimentando desde então distinta correspondência do que até
ali tinham”58.
As celebrações não deveriam cair no esquecimento, por isso se deu a
publicação, em castelhano, da relação dos festejos. Também foi publicado o
sermão a São Pedro de Alcântara, pregado em Colônia por ocasião da
dedicação de uma nova capela em homenagem ao santo durante as festas
em comemoração ao casamento dos príncipes59. Como ressalta Megiani, a
impressão dos relatos das festas oficiais era um elemento muito importante
da propaganda monárquica, pois visava transformar as imagens em
memória60. Deve ser ainda ressaltado que “o sermão servia para exaltar a data
religiosa ou o monarca que se homenageava, muito mais do que para evocar uma
reflexão de tipo moral ou dogmática”61.
A maior parte dos gastos com os festejos correu por conta do governador,
orçados em cinco mil cruzados, segundo o mesmo. Vasconcelos buscou
ressarcimento dessa quantia através de um pedido de aumento do seu soldo
em mil cruzados anuais, retroativo ao dia da sua posse no governo da Colônia

57
Consulta do Conselho Ultramarino. 3 jul. 1734. IHGB, Arq. 1.1.26.
58
Consulta do Conselho Ultramarino. 19 abr. 1730. IHGB, Arq. 1.1.26, f. 67-71v.
59
ALMEIDA, Manuel Lopes de (org.). Notícias históricas de Portugal e Brasil (1715-1750).
Coimbra: Coimbra Editora, 1961, p. 165.
60
MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes
a Portugal (1581 a 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p. 189.
61
MARTINS, Sobre festas..., p. 53.
144 PAULO CÉSAR POSSAMAI

do Sacramento. Seu pedido recebeu parecer favorável do Procurador da


Fazenda do Rio de Janeiro e do Conselho Ultramarino, que ressaltou que ele
procedia “com probidade, zelo e acerto” no governo da praça 62 .
A preocupação em garantir que os grandes acontecimentos da corte
fossem condignamente festejados na Colônia do Sacramento servia para fazer
ver aos estrangeiros, principalmente aos súditos da Coroa da Espanha, o
poder e a riqueza do monarca lusitano. Negligenciar as festividades seria
ofuscar o brilho da Coroa portuguesa frente à espanhola, uma vez que em
Buenos Aires realizavam-se festas públicas por ocasião da aclamação dos
monarcas espanhóis. A preservação da memória também era uma
preocupação dos espanhóis, seja pela publicação dos relatos das festas seja
através da distribuição de medalhas comemorativas, como veremos a seguir.
A primeira celebração pela aclamação de um novo rei em Buenos Aires
ocorreu em 16 de janeiro de 1600, em homenagem a Filipe III. A pobreza da
cidade não possibilitou uma comemoração faustosa. Do alto de um tablado,
erguido na Praça Maior, o governador aclamou o novo soberano diante do
estandarte real, enquanto os soldados davam tiros e a fortaleza fazia uma
salva de canhão. O desenvolvimento da cidade proporcionou mais grandeza
às celebrações que se seguiram. As mais faustosas se deram por ocasião da
aclamação de Carlos III, iniciadas em 10 de novembro de 1760. O alferes real,
don Jerônimo Matorras presidiu às celebrações, tendo em vista a ausência do
governador, dom Pedro de Cevallos. Um cortejo iniciado por músicos, seguidos
por um esquadrão de dragões, precedia a elite portenha, liderada pelo alferes,
que empunhava o estandarte real. A procissão se dirigiu à Praça Maior, onde
se erguiam dois estrados, um ocupado por um grupo de músicos, enquanto
o outro era ocupado pelo alferes real, pelo alcalde de primeiro voto e pelo
escrivão do Cabildo. Então o alferes pediu por três vezes silêncio à multidão
que assistia e desfraldou o estandarte real proclamando: “España y las Yndias;
España y las Yndias; España y las Yndias por el Rey Nuestro Señor Don Carlos III” 63.
Seguiram-se à proclamação as salvas dos canhões da fortaleza e o repique
dos sinos da catedral. Para recordar o acontecimento, D. Jerônimo Matorras
distribuiu entre a população seiscentas medalhas de prata com a efígie do
novo rei e as armas da cidade no verso, enquanto as pessoas de distinção
receberam medalhas de ouro. A mesma cerimônia foi repetida em outras
praças da cidade e nos dias seguintes os festejos prosseguiram com cerimônias
religiosas, banquetes, saraus, representações teatrais, fogos de artifício e
três noites de luminárias. As festas prosseguiram por vinte e um dias
consecutivos, dos quais os três últimos foram destinados a saraus realizados
no pátio da casa do alferes real, onde o mesmo mandou instalar um retrato
equestre do novo soberano.
Outra festa realizada na Colônia do Sacramento, cujo relato possuímos,
62
Carta de Vasconcelos ao rei. 30 dez. 1734. AHU_ACL_CU_012, Cx. 3, D. 301.
63
TORRE REVELLO, José. Cronicas del Buenos Aires Colonial. Buenos Aires: Taurus, 2004, p.
61-71.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 145

deu-se em 1752 para celebrar a aclamação de D. José I. Em primeiro de fevereiro,


acompanhado pelos oficiais militares, o governador Luiz Garcia de Bivar dirigiu-
se à igreja matriz para assistir à benção do estandarte real. O fim da cerimônia
foi saudado com uma salva de artilharia. No seguimento, o meirinho, o escrivão
e o porteiro saíram acompanhados de trombetas para proclamar pela praça o
bando do governador que ordenava três dias de luminárias em honra ao
novo monarca.
Na manhã do dia 2, reuniram-se na casa do governador os funcionários
reais, os oficiais militares, o clero e seis representantes da comunidade dos
comerciantes. Procedido por trombetas e timbales e escoltado pela companhia
de granadeiros, o grupo percorreu as principais ruas do povoado até chegar
ao arco triunfal montado na praça. Ali, à vista da tropa formada, o governador
subiu numa plataforma onde fez correr as cortinas de dossel, apresentando,
assim, o retrato do novo rei de Portugal à população e à tropa. Aos vivas
juntaram-se descargas de mosquete e salvas da artilharia da praça, da fortaleza
da ilha de São Gabriel e dos navios que se encontravam no porto. O cortejo
então se dirigiu para a igreja matriz, especialmente enfeitada e iluminada
para a ocasião, onde se entoou um solene Te Deum, acompanhado pelos
músicos que o governador contratou em Buenos Aires. Após colocar-se o
estandarte real ao lado do evangelho, celebrou-se a missa, cujo fim foi
saudado por nova salva de artilharia.
Durante três dias, Luiz Garcia de Bivar ofereceu bailes de máscaras e jantares
a mais de setenta “pessoas de distinção”, entre as quais, alguns convidados
de Buenos Aires. No terreiro em frente ao portão, realizaram-se as atividades
ao ar livre que incluíram a apresentação de exercícios militares realizados pela
companhia dos granadeiros, cavalhadas e touradas, para as quais foram
contratados toureiros espanhóis. Numa sala do trem, os convidados puderam
assistir a danças, uma tragicomédia apresentada pelos estudantes, e duas
comédias, uma portuguesa e uma espanhola.
Todavia, os festejos não se limitaram à elite, pois o governador libertou os
presos e fez repartir esmolas entre os pobres. Durante os seis dias de festa,
liberou-se o uso de máscaras, mas o governador fez questão de recomendar
“sossego com a ameaça do castigo”. Bivar fez questão de frisar na relação das
festas que elas foram realizadas sem os recursos da Fazenda Real, mas com
seus próprios meios, sendo ajudado nas despesas por seis pessoas dentre os
principais moradores da Colônia do Sacramento 64 . Contribuir para as
comemorações ligadas à casa real significava mostrar engajamento e fidelidade
à instituição monárquica. Como ressalta Maravall, a festa na época barroca
era “um instrumento, até mesmo uma arma, de caráter político”65.
Em janeiro do ano seguinte, foram realizados novos festejos, por ocasião
da chegada a Colônia do general Gomes Freire de Andrade, encarregado pela

64
RELAÇÃO das festas que fez Luiz Garcia de Bivar. Lisboa: Oficina de Pedro Ferreira, 1753.
65
MARAVALL, A cultura do barroco, p. 382.
146 PAULO CÉSAR POSSAMAI

Coroa de chefiar a comissão demarcadora portuguesa do Tratado de Madri


no Sul. No dia 25, Gomes Freire se encontrou com o governador Luiz Garcia de
Bivar a um quarto de légua de Colônia. O governador o esperava
acompanhado de trinta dragões montados, com seus oficiais. A comitiva
seguiu, então, para o povoado, encontrando-se com a infantaria, próximo à
chácara do almoxarife, ainda fora dos muros da praça. Ao chegar ao portão,
todos desmontaram, sendo que o general foi recebido por seis oficiais das
ordenanças, que representavam os oficiais da Câmara, inexistente em
Sacramento. Sob o pálio que sustentavam os oficiais, Gomes Freire ouviu o
discurso do governador e recebeu do sargento-mor as chaves da praça numa
bandeja de prata.
O cortejo seguiu então para a igreja, sendo o pálio acompanhado pela
Companhia de Granadeiros, que seguia o general em duas alas. Antes de
chegar à matriz, onde foi cantado um Te Deum, Gomes Freire foi saudado pela
artilharia da praça e do forte de São Gabriel com 21 tiros, o que voltou a se
repetir quando o cortejo deixou a igreja. O general foi hospedado na casa do
governador, onde foi brindado com uma ceia na qual compareceram mais de
trinta pessoas. Os banquetes se repetiram nos dias seguintes com a
participação dos oficiais e na noite do dia 26 foi realizado um sarau com mais
de trinta mascarados, todos vestidos com guarnições de ouro e prata e
ensaiados pelo mestre de dança André da Costa, bem conhecido em Lisboa.
Na noite do dia 27, houve um concerto de cinco rebecas, sendo tocadas muitas
sonatas e cantadas muitas árias italianas.
No dia 19 de fevereiro chegou ao Arraial de Veras o marquês de Valdelírios,
comissário espanhol para a demarcação no sul. Gomes Freire foi buscá-lo na
carruagem do governador, acompanhado de alguns oficiais. A artilharia da
praça saudou o marquês com 21 tiros e a infantaria com três descargas. Nos
dias seguintes, renovaram-se as festas. No dia 20 houve um concerto de
música; no dia seguinte, sarau com mais de cinquenta mascarados, e grande
mesa de doces e no dia 25 cavalhadas durante o dia e sarau à noite66.
A Colônia do Sacramento nunca contou com uma Câmara durante o
domínio lusitano e as festas reais ficaram ao encargo dos governadores.
Embora Natal tivesse uma Câmara, ela não parece ter se interessado tanto
quanto os governadores em patrocinar as celebrações em homenagem à
dinastia reinante. Em dois espaços muito diversos, um, rico pelo comércio, e
outro, frequentemente em dif iculdade por causa das secas que
periodicamente desorganizavam a economia local, os representantes da Coroa
faziam o que podiam para festejar com brilho a casa real portuguesa. Os
interesses se interligavam: para a Coroa, se tratava de assegurar a fidelidade
dos vassalos à monarquia; para os governadores o empenho na organização
das festas representava uma oportunidade garantir sua ascensão nos

66
GOLIN, Tau. A guerra guaranítica. Porto Alegre: UFRGS; Passo Fundo: Ediupf, 1998, p.
255-261.
CELEBRANDO A MONARQUIA NOS EXTREMOS DA AMÉRICA PORTUGUESA 147

quadros administrativos; para as elites locais era um momento para mostrar


seu poder e riqueza e, para o povo, que participava ou se limitava a assistir,
uma ocasião de romper com monotonia do cotidiano.
149

ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL:


O FORRO DA CASA DE ORAÇÕES DOS TERCEIROS
NO CONVENTO DE SANTO ANTÔNIO1

Carla Mary S. Oliveira2

Casa de Oração – ou Casa de Exercícios – da Venerável Ordem


Terceira da Penitência do Convento de Santo Antônio da Paraíba
é uma das mais significativas capelas erguidas durante o século
XVIII na velha sede da Capitania. Seu forro é mais uma, dentre
as inúmeras pinturas existentes em igrejas barrocas no Brasil,
das quais não se conhece a autoria e, tampouco, se encontrou, até hoje,
algum documento que aponte qualquer pista a este respeito.
O apuro da execução da pintura do forro, com inúmeras sacadas e
balaustradas em efeito trompe l’oeil3 e vários querubins completando o
conjunto, não deixa nada a desejar se a compararmos a outras obras do
mesmo período existentes nos maiores centros de então, como Recife,
Salvador, Vila Rica ou Mariana. Mas há uma pequena diferença: a Paraíba da
segunda metade do século XVIII era uma Capitania em franca decadência

1
Este trabalho foi apresentado, numa versão reduzida e preliminar, sob o título “O forro
da Casa de Orações dos Terceiros no Convento de Santo Antônio da Paraíba: algumas
questões sobre suas imagens e a vida de São Francisco de Assis”, no Simpósio Temático
“Imagens de Arte: fronteiras disciplinares entre história da imagem e história da arte”,
durante o XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUH - “História e
Multidisciplinaridade: Territórios e Deslocamentos”, realizado na UNISINOS, em São
Leopoldo (RS), entre 15 e 20 de julho de 2007.
2
Historiadora, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professora
Adjunta do Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Coordenadora do projeto
de cooperação acadêmica “Patrimônios - Conexões Históricas” (PROCAD-NF Capes no
2338/2008 - PPGH-UFPB/ PPGHis-UFMG). Líder do Grupo de Pesquisas Estado e Sociedade
no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq) e pesquisadora dos Grupos de
Pesquisa Saberes Históricos: Ensino de História, Historiografia, História da Educação e
Patrimônios (PPGH-UFPB/ Diretório CNPq) e Perspectiva Pictorum (PPGHis-UFMG/ Diretório
CNPq). No segundo semestre de 2009 desenvolveu Estágio Pós-Doutoral junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, com
a pesquisa “O Barroco no Brasil: (des) conexões entre Minas Gerais e o litoral do
Nordeste”, sob supervisão da Profa Dra. Adalgisa Arantes Campos, com bolsa financiada
pela Capes. E-Mail: <cms-oliveira@uol.com.br>. Sítio eletrônico: <http://cms-
oliveira.sites.uol.com.br/>.
3
Expressão francesa utilizada para designar uma pintura que contenha artifícios de
perspectiva, cores e formas a fim de criar uma ilusão de realidade para o observador,
como se o espaço da pintura fosse uma continuação do ambiente que a abriga.
Literalmente, a expressão pode ser traduzida como “engana o olho”.
150 CARLA MARY S. OLIVEIRA

econômica – situação que se arrastava desde o século anterior, mas que se


tornou mais evidente com a anexação a Pernambuco, em dezembro de 17554.
Qual seria, então, a função de uma obra artística dessa envergadura, numa
Capitania periférica que enfrentava dificuldades comerciais, de produção –
seus engenhos nunca mais renderam como antes da invasão pela West Indische
Compagnie5, no século anterior – e administrativas?
Embora não haja, necessariamente, uma ligação direta entre opulência
decorativa e aumento da riqueza local, o inverso é paradoxalmente mais
comum do que se imagina: ostentar riqueza, quando ela não existe, pode ser
muito importante numa sociedade permeada por interesses e poderes
simbólicos, tal como o era a do Brasil colonial.
O Forro da Capela e a vida de São Francisco
Com 268 metros quadrados, o forro da Casa de Orações é pintura com
forte efeito trompe l’oeil, apresentando sacadas e colunas de um prédio
imaginário que se avoluma em formas sinuosas sobre as cabeças dos fiéis. Há
vários detalhes que merecem atenção nesta obra – a começar pela tez
amorenada de alguns dos querubins que brincam entre as balaustradas e os
quatro homens negros que, como atlantes, sustentam os arremates do forro
sobre o altar e acima da entrada da sacristia – mas certamente o espectador é
logo atraído para seu tema principal: numa área elíptica, ao centro, aparece
uma carruagem subindo aos céus, puxada por dois cavalos e conduzida por
um homem barbado, adulto, trajando um hábito franciscano, com a cabeça
coberta. Por trás do condutor, chamas flamejantes dão um aspecto fantástico
à cena.
Até hoje perdura certa indefinição sobre que cena está ali retratada. O
Cônego Florentino Barbosa – padre secular e um dos primeiros estudiosos do
Barroco local – acreditava que ela seria a representação do profeta Elias sendo
arrebatado aos céus6. Sua versão foi aceita localmente, e os historiadores
que estudaram os franciscanos e sua arte na Paraíba sempre tangenciaram
essa discussão7.
4
É possível considerar que o ato administrativo que extinguiu o governo local e submeteu
a Capitania da Paraíba à de Pernambuco, uma Resolução Real datada de 29 de dezembro
de 1755, quase dois meses depois do terremoto que devastou Lisboa em 1º de novembro
do mesmo ano, tenha sido apenas uma dentre inúmeras outras medidas que visavam
diminuir as despesas da Coroa nas colônias, com o intuito de concentrar os gastos do
Tesouro na reconstrução da capital do Império, tarefa a que o Marquês de Pombal se
dedicou com extremo afinco por vários anos. Levando-se em conta que a decadência
econômica da Paraíba já se arrastava desde o século anterior, e que essa decisão
administrativa poderia ter sido tomada bem antes e não deve ter ocorrido apenas por
interesses e acordos políticos, não é de se estranhar que o cataclismo que se abateu
sobre o Reino a precipitasse.
5
Companhia das Índias Ocidentais.
6
BARBOSA, Cônego Florentino. Monumentos históricos e artísticos da Paraíba. João Pessoa:
A União, 1953, p. 51.
7
Refiro-me aqui, especialmente, a Glauce Burity e Humberto Nóbrega. Ver: BURITY, Glauce
Maria Navarro. A presença dos franciscanos na Paraíba através do Convento de Santo Antônio.
ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 151

Fig. 1 - Anônimo; Querubim; segunda metade do


século XVIII. Madeira policromada; detalhe do
forro, Casa de Oração dos Terceiros;
Convento de Santo Antônio da Paraíba,
João Pessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001.

Fig. 2 - Anônimo; Atlante Negro;


segunda metade do século XVIII.
Madeira policromada; detalhe do
arremate do forro sobre a
entrada da sacristia, Casa de
Oração dos Terceiros; Convento
de Santo Antônio da Paraíba,
João Pessoa.
Foto: C.M.S. Oliveira, 2001.

Fig. 3 - Anônimo; São Francisco no carro de


fogo; segunda metade do século XVIII. Madeira
policromada; detalhe do forro, medalhão
central, Casa de Oração dos Terceiros;
Convento de Santo Antônio da Paraíba, João
Pessoa. Foto: C.M.S. Oliveira, 2001.
152 CARLA MARY S. OLIVEIRA

Contudo, há outra possibilidade para a interpretação desta imagem, e um


dos principais motivos reside no fato de que não há qualquer ligação, na
liturgia franciscana, entre Elias e a Ordem Seráfica. Ao contrário: o profeta é
considerado como um dos fundadores da Ordem Carmelita, e em muitas das
igrejas e capelas desta Ordem espalhadas pelo Brasil há representações de
cenas de sua vida, inclusive desse arrebatamento aos céus. Possivelmente a
mais conhecida dentre elas seja a do forro da Igreja de Nossa Senhora do
Carmo em Sabará, pintada por Joaquim Gonçalves da Rocha entre 1812 e 1813.

Fig. 4 - Joaquim Gonçalves da Rocha, Santo Elias subindo aos céus observado por São
Eliseu, 1812-1813. Madeira policromada; detalhe do forro, medalhão central; nave
principal da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo,
Sabará, Minas Gerais8.

Rio de Janeiro: Bloch, 1988. NÓBREGA, Humberto Carneiro da Cunha. Arte colonial da
Paraíba. João Pessoa: UFPB, 1974.
8
Fonte da ilustração: FALCÃO, Edgard de Cerqueira. Relíquias da Terra do Ouro. São Paulo:
F. Lanzara, 1946.
ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 153

Fig. 5 - Giotto da Bondone, Legenda de São Francisco, Oitava Cena: Visão do Carro de Fogo,
1297-1299. Afresco em painel de parede lateral; 270 X 230 cm;
nave central da Basílica Superior de São Francisco, Assis, Itália9.

Se houve equívoco quanto à identificação inicial da pintura paraibana, ele


não é de explicação difícil: talvez o episódio da vida de Elias narrado no
Segundo Livro dos Reis do Antigo Testamento seja dos mais conhecidos entre
os cristãos em geral. Quando o Cônego Barbosa começou a estudar o Barroco
na Paraíba há muito já não funcionava o convento franciscano, nem havia
atividades regulares dos Terceiros na cidade. Mas qualquer Terceiro, Frade
Menor ou Clarissa conhece o episódio da vida de São Francisco a que, muito
provavelmente, se refere a pintura da Casa de Exercícios do Convento de
Santo Antônio: sua primeira representação pictórica conhecida foi feita pouco
mais de setenta anos após a morte do fundador da Ordem Seráfica, ainda no
século XIII, por Giotto da Bondone, em um dos afrescos laterais da nave
central da Basílica Superior de Assis, na Úmbria.
Para Rosalind Brooke, a ligação de São Francisco ao sol ou a imagens de
luzes e fogo, ao menos em descrições orais, iniciaram-se menos de dois anos
após sua morte, ocorrida na noite de 3 de outubro de 1226, e sua expressão
mais clara seria a descrição do poverello d’Assisi 10 presente no sermão proferido
pelo papa Gregório IX – amigo próximo e protetor de Francisco e seus
seguidores – na cerimônia oficial de canonização, ocorrida em Assis no dia 16

9
Fonte da ilustração: <http://www.sanfrancescoassisi.org/>.
10
Forma carinhosa pela qual contemporâneos de São Francisco o chamavam e que, entre
seus devotos, se perpetuou até nossos dias. Literalmente, pode ser traduzida como
“pobrezinho de Assis”.
154 CARLA MARY S. OLIVEIRA

de julho de 1228: “como a estrela da manhã entre as nuvens,/ como a lua em seu
completo esplendor,/ como o sol brilhando no Templo do Altíssimo” 11.
A cena do carro de fogo, por sua vez, foi detalhadamente narrada em
várias das biografias do santo escritas por membros da Ordem àquela época.
Tomás de Celano, frade que conviveu com Francisco, provavelmente foi
incumbido pelo próprio Gregório IX de escrever uma “vida” do religioso recém
canonizado, trabalho que deve ter concluído entre 1229 e 1230. Conhecido
como Primeira Vida de São Francisco, o texto descreve brevemente em seu
capítulo XVIII a aparição do santo, num carro de fogo, a alguns frades menores
em oração, e talvez este seja o primeiro relato escrito daquela cena fantástica:
Lá pela meia-noite, quando alguns frades descansavam e outros
rezavam em silêncio com devoção, entrou pela pequena porta um
rutilante carro de fogo, deu duas ou três voltas para cá e para lá na
casa, tendo sobre ele um globo enorme, que era parecido com o sol
e iluminou a noite. Os que estavam acordados se espantaram e os
que estavam dormindo se assustaram, pois sentiram uma claridade
não só corporal mas também interior.12
Outra das muitas descrições desta aparição está também na Vida de São
Francisco13 de Juliani di Spira14, que foi escrita por volta de 1232 para uso na
França, onde o frade alemão desenvolvia trabalho missionário. Entretanto, a
versão mais difundida do episódio talvez seja aquela presente na Legenda
Maior, escrita por São Boaventura15 após o Capítulo16 de Narbonne (1260) e

11
BROOKE, Rosalind B. The image of St. Francis: responses to sainthood in the Thirteenth
century. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 8. O texto da versão em
inglês: “like the morning star among the clouds,/ like the moon at the full,/ like the sun shining
on the Temple of the Most High”.
12
TOMÁS DE CELANO. Primeira vida de São Francisco de Assis. São Paulo: Província dos
Capuchinhos de São Paulo, s.d. [c. 1229-1230], cap. XVIII, § 47: 3-4. Disponível em:
<http://www.procasp.org.br/>. Acesso em: 21 out. 2006.
13
Considerada, em sua maior parte, como cópia resumida da obra de Celano, salvo em
seus trechos finais.
14
JULIANI DI SPIRA. Vida de São Francisco. São Paulo: Província dos Capuchinhos de São
Paulo, s.d. [c. 1232-1235], cap. V, § 29. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>.
Acesso em: 21 out. 2006.
15
Nascido em 1221, em Bagnorea, nas cercanias de Viterbo, e batizado com o nome de
Giovanni di Fidanza, conta-se que foi curado de grave doença, ainda criança, através da
intercessão do próprio São Francisco, que ao recebê-lo nos braços teria exclamado “oh!
Buona Ventura”, e a partir daí o menino passou a ser chamado por este nome. Foi
teólogo, doutor da Igreja, Cardeal de Albano e Ministro Geral dos franciscanos, tendo
morrido em Lyon, em 16 de julho de 1274. Foi canonizado em 14 de abril de 1482, pelo
papa Sisto IV. ROBINSON, Pascal. “St. Bonaventura” (verbete). In: New Advent Catholic
Encyclopedia. Vol. II. New York: Robert Appleton Company, 1907. Disponível em: <http:/
/www.newadvent.org/>. Acesso em: 15 jan. 2007.
16
Nome dado à assembléia de religiosos que decide sobre matérias relativas à província,
congregação ou ordem católica de que seus membros fazem parte ou, por extensão, o
local em que se reúne essa assembléia.
ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 155

publicada em 1263, no Capítulo de Pisa, para uso oficial em todas as Províncias


Franciscanas a partir de então:
Como o varão devotado a Deus pernoitasse na oração a Deus, como
costumava, num tugúrio que ficava na horta dos cônegos, ausente
corporalmente dos filhos, eis que, lá pela meia-noite, enquanto
alguns frades descansavam e outros continuavam rezando, um carro
de fogo de admirável esplendor entrou pela porta da casa e virando
de um lado para o outro por três vezes no domicílio. Sobre ele
permanecia um globo luminoso, com o aspecto do sol, e fez a noite
ficar clara. Os que estavam acordados ficaram estupefatos, os que
dormiam foram acordados apavorados, e não sentiram menos a
claridade do coração que a do corpo, pois em virtude da luz
admirável, a consciência de cada um ficou despida diante dos
outros. Compreenderam, todos de acordo, vendo cada um tudo
que havia nos corações dos outros, que o santo pai, ausente de
corpo, estava presente em espírito, transfigurado naquela imagem,
irradiado pelos fulgores supernos, e inflamado pelos ardores. O
carro resplandecente pela virtude sobrenatural e ao mesmo tempo
de fogo, lhes estava sendo mostrado pelo Senhor para que como
verdadeiros israelitas caminhassem atrás daquele que, como outro
Elias, tinha sido feito para Deus carro e condutor dos varões
espirituais.17
É interessante que São Boaventura compare Francisco a Elias, no entanto
parece muito mais provável que a cena retratada no teto da Casa de Oração
dos Terceiros da Paraíba seja a da vida de São Francisco. Não bastassem as
descrições existentes em suas biografias medievais, há também outro detalhe
que justifica essa identificação: o santo italiano teria aparecido desse modo a
seus irmãos frades que, recolhidos à noite, rezavam contritamente num
casebre nas cercanias de Assis. Não seria esse um episódio extremamente
apropriado para decorar uma Casa de Exercícios franciscana e incentivar a
prática da oração?
Não se pode esquecer que havia, no Brasil colonial, o costume de fazer
circular entre os fiéis e religiosos um sem número de breviários ilustrados e
gravuras avulsas que, quase sempre reproduziam, mesmo que toscamente,
pinturas sacras de mestres europeus consagrados 18. A imagem de São
Francisco no carro de fogo feita por Giotto, portanto, além de retratar um
fato que não devia ser novidade para os Terceiros, por estar presente nas
biografias do santo, também era, provavelmente, conhecida dos irmãos e
dos frades através desse tipo de reprodução.
17
SÃO BOAVENTURA. Legenda Maior de São Francisco. São Paulo: Província dos Capuchinhos
de São Paulo, s.d. [1263], cap. IV, § 4: 2-4. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/>.
Acesso em: 21 out. 2006.
18
A esse respeito, ver: LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, SPHAN, n. 8, 1944, p. 7-66.
156 CARLA MARY S. OLIVEIRA

Exemplo disso é o forro da Igreja da Ordem Terceira da Penitência de São


Francisco, em São Paulo, em que aparece a mesma cena, com um desenho
mais próximo, até, daquele do afresco de Giotto, salvo pela ausência dos
cavalos à frente da carruagem. Lá estão, atônitos, os frades menores que
presenciaram a aparição de seu mestre no meio da noite de vigília e oração,
detalhe que falta à cena de João Pessoa. Ao contrário da pintura existente na
Paraíba, o forro da Igreja dos Terceiros de São Paulo tem sua execução, possível
autoria e pagamentos correspondentes documentados nos livros contábeis
da ordem. Sua feitura se deu por volta de 1792, e teria sido obra do mestre-
pintor paulista José Patrício da Silva Manso19.

Fig. 6 - José Patrício da Silva Manso (atribuído),


São Francisco no Carro de Fogo, c. 1792.
Madeira policromada; detalhe do forro, nave
central da Igreja da Ordem Terceira da Penitência
de São Francisco, São Paulo, capital20.
A força simbólica desta passagem da vida de São Francisco de Assis é
inegável: trata-se de uma representação da transcendência do santo ainda
quando estava entre seus seguidores, e mostraria que sua santidade já se
firmava antes mesmo de ele deixar o mundo dos vivos, pois tal tipo de
arrebatamento aos céus, em meio a labaredas ou algo semelhante, nas
histórias bíblicas e na hagiografia cristã, só se dava quando o indivíduo
deixava o plano dos simples mortais e ia ocupar seu lugar na morada celeste.
A imagem pode ser vista como uma representação emblemática da própria
visão que os Terceiros tinham sobre a Ordem dos Frades Menores, sobre seu
fundador e também sobre si mesmos: se São Francisco era tão especial, ao
ponto de protagonizar tal cena fantástica, seus seguidores também o seriam,
19
ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. O painel do forro da capela-mor da igreja dos terceiros
franciscanos. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, NEHAC-UFU, v. 3,
n. 3, jul./ set. 2006, p. 9-10. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/>. Acesso em:
16 out. 2006.
20
Fonte da ilustração: ARAÚJO, O painel....
ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 157

pois trilhavam o caminho por ele iniciado...


Os Terceiros Franciscanos: alegoria e status na Paraíba colonial
Até hoje não se sabe de registros documentais do surgimento dos Terceiros
Franciscanos em terras paraibanas. Contudo, Frei Antônio de Santa Maria
Jaboatão destaca, em seu Novo Orbe Seraphico Brasilico, que havia menção,
em um sumário da ordem21, a um terceiro que atuava como “syndico da caza
da Paraiba” já no século XVII22, o que leva o cronista a inferir que a Ordem
Terceira deve ter surgido poucos anos após a instalação dos Frades Menores
na cidade.
É certo que os Terceiros utilizavam, ao menos durante a primeira metade
do século XVIII, outro espaço do conjunto franciscano para seus serviços,
novenas, exercícios espirituais e orações: a Capela da Ordem Terceira – ou
Capela Dourada, perpendicular à nave da igreja principal do convento – que
os padres da mesa23 decidiram mandar erigir em setembro de 1704. Ainda
segundo Jaboatão, “não consta, porem, quando se lhe desse principio, nem se
dicesse a primeyra missa” 24.
A Casa de Exercícios, contudo, já estava em uso – mas possivelmente ainda
com sua decoração por terminar – quando Jaboatão escrevia sua crônica, em
175125, ano em que foi Guardião do convento paraibano:
(...) e se lhe lançou a prymeira [pedra] no seo alicerce a vinte de
Mayo de 1748, sendo comissario da ordem o Irmão Pregador Fr.
Manoel das Chagas, Ministro o R. cura do Taypú Joseph de Andrade
Souza, e vice-Ministro Domingos Baptista de Siqueira.26
Construída paralelamente à Igreja de Santo Antônio e comunicando-se
com ela pela sacristia da Capela Dourada e por uma varanda que dá acesso à
galilé27, na entrada do convento, a Casa de Exercícios é templo espaçoso, com
uma nave iluminada por amplos janelões que se abrem para o poente e a
21
Provavelmente Jaboatão se refere a uma crônica da ordem escrita por Frei Vicente do
Salvador antes de sua História do Brasil, de 1627, mas hoje perdida. ILHA, Frei Manuel
da. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil (1584-1621). Edição bilíngue, traduzida
do manuscrito original em latim e comentada por Fr. Ildefonso Silveira, OFM. Petrópolis:
Vozes, 1975, p. 144, nota 30.
22
JABOATAM, Frei Antonio de Santa Maria. Novo Orbe Seraphico Brasilico ou Chronica dos
frades menores da Provincia do Brasil. Reprodução facsimilar da edição de 1888. 2 vols.
Recife: Assembléia Legislativa de Pernambuco, 1980 [1761], vol. 2, parte II, p. 386.
23
Os padres da mesa atuam como conselheiros do superior - no caso dos franciscanos,
do guardião - de um convento.
24
JABOATAM, Novo Orbe..., vol. 2, parte II, p. 387.
25
Terminada somente dez anos depois.
26
JABOATAM, Novo Orbe..., vol. 2, parte II, p. 387.
27
Termo com origem no francês medieval (galilée), por sua vez inspirado pelo topônimo
latino Galilæa, considerada no Antigo Testamento como a região dos gentios, em
oposição à Judæa, terra do povo eleito. Por extensão, passou a designar o átrio ou
varanda de entrada nas igrejas, único local de onde os pagãos ainda não batizados
158 CARLA MARY S. OLIVEIRA

paisagem do antigo Varadouro. Em seu subsolo há um carneiro – ou cripta –


que servia como ossuário para os Terceiros28, a que se tem acesso por uma
escada de calcário, coberta por um gradil de madeira-de-lei, logo em frente ao
altar-mor – passagem que possivelmente ficava oculta por um tapete durante
o uso cotidiano do templo.
O delicado acabamento das sanefas sobre as janelas, bem como a refinada
talha de seu altar-mor e de seus altares laterais juntam todas as características
do barroco franciscano que se espalham pelo Convento e que a Ordem foi
sistematizando no litoral do Nordeste brasileiro entre os séculos XVI e XVIII.
Decorados com colunas salomônicas recobertas de folhagens e detalhes a
ouro, os altares da Casa de Oração mostram bem o gosto requintado – ou, ao
menos, a tentativa de mostrar certo requinte – por parte dos Irmãos Terceiros
da Paraíba.
Se em outras capitanias a Venerável Ordem Terceira da Penitência de São
Francisco reunia sempre os chamados bons homens da elite local, o padrão
devia se repetir na Paraíba. Por isso mesmo, o ar de requinte que os altares
cedem ao ambiente da Casa de Exercícios se justifica, exatamente pela
necessidade de marcar o status de seus frequentadores em relação à sociedade
em que viviam.
A existência de uma representação de São Francisco no carro de fogo na
Paraíba, nesse sentido, pode ser entendida através de diversos prismas: talvez
o mais interessante seja o de tentar compreendê-la como uma alegoria
relacionada ao lugar social dos frequentadores daquele espaço. O templo
normalmente não devia ficar aberto para uso cotidiano da população da
cidade, salvo em ocasiões especiais, como festas do calendário litúrgico ou
exéquias de algum irmão terceiro, o que era usual no caso das capelas e
igrejas de irmandades das Ordens Terceiras no Brasil colonial.
Assim, aquela aparição de um santo, tal qual teria acontecido no século
XIII, poderia significar que os bons homens que tinham livre acesso àquela

podiam assistir aos serviços religiosos, sendo de uso corrente a partir do século XVII.
No Brasil colonial, muitas vezes servia de local de reunião para as irmandades, quando
estas não possuíam capela ou igreja própria. Trata-se de solução arquitetônica comum
nos conventos franciscanos e nas capelas rurais setecentistas do Nordeste. CORONA,
Eduardo & LEMOS, Carlos A. C. Dicionário da arquitetura brasileira. São Paulo: EDART,
1972, p. 236. HOUAISS, Antônio (ed.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Edição on
line. São Paulo: Objetiva, s.d. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/>. Acesso em: 11
mar. 2007.
28
O uso do carneiro parece ter sido interrompido a partir da década de 1830. Irineu
Ferreira Pinto transcreve, em seu Datas e Notas para a Historia da Parahyba, um ofício do
presidente da Província ao Guardião do Convento, de 23 de dezembro de 1831,
reafirmando a determinação de construir um cemitério no terreno dos franciscanos,
“tão necessaria quão vantajosa obra”, que serviria a toda a população da cidade e não
apenas aos Frades Menores e Irmãos Terceiros. A obra, contudo, nunca foi efetivada.
PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Historia da Parahyba. Volume II. Cidade da
Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1916, p. 119.
ALEGORIA E STATUS NA PARAÍBA COLONIAL 159

igreja e faziam parte da Ordem Terceira Franciscana se colocavam no mesmo


patamar dos Frades Menores que presenciaram a cena miraculosa, ou seja,
por serem Terceiros Franciscanos, esses irmãos se diferenciavam do restante
dos moradores da cidade, eram parte de um petit cortège que gravitava as
esferas do poder local, frequentando cargos e disputando campos de
influência política, utilizando-se, para isso, de um capital simbólico específico.
Ora, a idéia fulcral da alegoria barroca é justamente esta: deixar claro,
somente aos iniciados, uma mensagem específica, transcrita em símbolos e
representações que adquirem um novo sentido, dependendo do contexto e
local em que são utilizados.
À guisa de conclusão...
Discutir a arte barroca existente na Paraíba é, também, uma forma de
tentar compreender as relações de poder que ali se construíam durante o
período colonial. Especialmente no século XVIII se configura uma situação sui
generis: apesar da decadência econômica e da falta de força política na relação
com a metrópole, a Capitania viu surgir os mais rebuscados templos barrocos
de sua história.
São justamente desse período as obras de finalização do conjunto
franciscano, incluindo a decoração dos tetos da igreja conventual e da capela
dos Terceiros, e a reconstrução e finalização da Igreja do Carmo e da Igreja de
Santa Teresa. Todas obras de acabamento esmerado e significativa importância
nos ritos sociais – sagrados e profanos – dos moradores da sede da Capitania.
A situação de periferia na estrutura colonial – que a Paraíba sempre
ocupou, aliás – não basta para explicar os motivos de tanto fausto presente
na decoração destas igrejas. Na verdade, certos tipos de representação
presente nas pinturas do conjunto franciscano só podem existir, certamente,
por se encontrarem na periferia: jocosas citações a papas, cardeais e bispos,
como as da igreja conventual franciscana, não existiriam em centros mais
nevrálgicos do Brasil colonial. Assim, a representação da cena fantástica no
forro da Casa de Orações dos Terceiros ganha um outro contorno, bem mais
político e hierárquico, dentro dessa sociedade de lugares sociais que se
diferenciavam, às vezes, apenas no campo simbólico. Como alegoria, trata-se
de uma cena que nem todos estavam aptos a compreender, tanto que com o
fim das atividades da irmandade na cidade se passou a interpretá-la com
outro sentido.
Como alegoria, portanto, o forro da Casa de Orações no Convento de
Santo Antônio da Paraíba só tinha sentido enquanto ela era frequentada
pelos Terceiros. Servia como um lembrete de sua distinção. Parece-me ser
esta, exatamente, a função do São Francisco no carro de fogo no forro
paraibano: mostrar que os irmãos Terceiros estavam, na “hierarquia celeste”,
um degrau acima dos outros simples mortais que porventura vislumbrassem
aquela imagem. Trata-se, sem dúvida, de um sinal de que os irmãos faziam
parte de uma casta privilegiada, num mundo em que quase sempre eram o
160 CARLA MARY S. OLIVEIRA

status e o prestígio entre os pares que contavam pontos decisivos e serviam


de moeda de troca para a obtenção dos disputadíssimos cargos públicos – e
suas correspondentes rendas, monetárias ou simbólicas – e das raríssimas
mercês da Coroa29.

29
Sobre a formação da elite paraibana nas primeiras décadas da colonização e o jogo de
poderes e interesses envolvido neste processo, que certamente se estendeu pelos
séculos seguintes, ver: GONÇALVES, Regina Célia. Guerra e açúcar: a formação da elite
política na Capitania da Paraíba (sécs. XVI-XVII). Portuguese Studies Review, Peterborough,
Canadá, Trent University, v. 14, n. 1, 2006, p. 35-64.
161

ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS:


A CAPITANIA DA PARAÍBA NA VIRADA DO SÉCULO XVIII1

Mozart Vergetti de Menezes2


Yamê Galdino de Paiva3

or quarenta e quatros anos esteve a Capitania da Paraíba


subordinada a Pernambuco. Segundo o decreto real de
anexação, datado de 29 de dezembro de 1755, D. José, após
consulta ao Conselho Ultramarino, resolveu extinguir o governo
da Paraíba. Se a posição favorável do Conselho sobre a anexação
externava, de um lado, a falência da Provedoria da Fazenda paraibana, quanto
a sua capacidade de reproduzir a administração local, por outro, antecipava
as prédicas da política pombalina de centralização e racionalização do Estado
português, principalmente no que diz respeito à contenção de gastos e
concentração de recursos4.
Durante o período da anexação, o capitão-mor, Jerônimo José de Melo e
Castro, relatou exaustivamente as dificuldades de se administrar um governo
subordinado. Estando à frente da Paraíba por 33 anos, com certeza o governo
mais longo numa capitania, Melo e Castro escrevia reiteradamente o quão
inviável era manter-se sem a autoridade de governador que deveria revestir
sua função, uma vez que devia obediência ao general governador de
Pernambuco, necessitando da aprovação deste para resoluções de questões
administrativas e militares. Os conflitos de jurisdição incrementavam o rol de
queixas do capitão-mor da Paraíba. As súplicas rogadas ao rei para que “se
compadeça de quem há 29 anos geme na rigorosa Subordinação” e o transfira
para um governo livre a fim de que “possa testificar a honra com que sirvo a
Vossa Majestade”5 foram inúteis. Melo e Castro faleceu em 1797 na Paraíba
sem ter presenciado a realização de seu principal desiderato: o fim da

1
Este texto deriva de um projeto de iniciação científica intitulado Fernando Delgado Freire
de Castilho, governador da Capitania da Paraíba: um ilustrado nos trópicos, financiado pelo
PIBIC/UFPB/CNPq e executado entre agosto de 2007 e julho de 2009.
2
Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do
Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas Estado
e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq). E-Mail:
<mozartvergetti@uol.com.br>.
3
Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Exbolsista PIBIC/UFPB/
CNPq. E-Mail: <yamepaiva@yahoo.com.br>.
4
MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em Ação: fiscalismo, economia e sociedade
na Capitania da Paraíba (1647-1755). Tese de Doutorado (História Econômica). Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.
5
AHU_ACL_CU_014, Cx. 31, D. 2264 e AHU_ACL_CU_014, Cx. 30, D. 2229, respectivamente.
162 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

anexação.
Desta feita, o desenlace político-administrativo separando as duas
capitanias só foi anunciado pela carta de 17 de janeiro de 17996, ou seja,
durante o governo de Fernando Delgado Freire de Castilho. Sendo o último
capitão-mor subordinado e o primeiro da situação subsequente, Fernando
Delgado é considerado um dos porta-vozes da desanexação.
Designado, por carta régia de 23 de outubro de 1797, para investigar a
situação da Capitania, principalmente nos aspectos fiscais e produtivos,
Fernando Delgado assumiu o governo da Paraíba com uma importante missão:
analisar as vantagens ou desvantagens da subordinação da Paraíba a
Pernambuco. Em cumprimento às determinações metropolitanas, escreveu
uma memória sobre a Capitania na qual descreveu suas características naturais,
as produções desenvolvidas e comercializadas, a situação da segurança, os
corpos militares, os obstáculos que retardavam seu crescimento, os prejuízos
provocados pela subordinação a Pernambuco, o desprezo da autoridade e as
vantagens que a Fazenda Real e os habitantes obteriam com a separação de
Pernambuco7.
Em diversas correspondências à Secretaria de Estado da Marinha e Domínios
Ultramarinos, Fernando Delgado foi categórico e incisivo nos seus argumentos
sobre as agruras da anexação. Reclamava da falta de regimento pelo qual
pudesse se guiar, das arbitrariedades e abusos do general governador de
Pernambuco, dos prejuízos do comércio e da falta de negociantes. Ressaltava
também as potencialidades da Paraíba e suas possibilidades de crescimento.
Pode-se inferir que as demonstrações favoráveis de Castilho sobre a capitania
que administrava embasaram a decisão régia pela desanexação.
Incumbido de apresentar, como dissemos, as inconveniências ou não de
se manter na Paraíba um governo subordinado, Fernando Delgado, nas suas
missivas, apresentara uma postura ilustrada que pode ser visualizada na
maneira como conduz e constrói seu discurso8. Seus ofícios, memórias e cartas
compõem preciosas informações acerca da Paraíba de fins do século XVIII.
Seu olhar ilustrado, aprimorado, num sentido mais amplo, pelo movimento
de profusão das ciências naturais em Portugal, captou as potencialidades da
Capitania, legando à posteridade valorosas avaliações sobre o quadro natural,
humano e econômico destas fainas setentrionais.
No conjunto de levantamentos realizados sobre a Capitania, em
atendimento à referida ordem de 23 de outubro de 1797, insere-se uma
sequência de dados relativos à produção/ consumo/ exportação/ importação,
número de habitantes, de casamentos, nascimentos e mortes, moléstias

6
A carta régia que determina o fim da subordinação da Paraíba a Pernambuco encontra-
se em: PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Historia da Parahyba. Volume I. Cidade
da Parahyba do Norte: Imprensa Official, 1908, p. 214.
7
AHU_ACL_CU_014, CX. 34, D. 2471.
8
Fernando Delgado frequentou a Universidade de Coimbra e possuía estudos
matemáticos, conferir em: AHU_ACL_CU_014, Cx. 32, D. 2372.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 163

obituárias e ocupação dos habitantes da Paraíba. Esses dados encontram-se


disponíveis para os anos de 1798 a 1805 (não há, contudo mapas para o ano
de 1803), extrapolando, portanto, o governo de Fernando Delgado e
abrangendo o dos seus dois sucessores, Luís da Motta Fêo e Amaro Joaquim
Raposo de Albuquerque. O escopo da avaliação neste texto incide na análise
dos mapas de exportação/ importação e dos números de habitantes da
Capitania9. Procuramos, então, através dos mesmos, verificar as comunicações
comerciais da Capitania, os produtos exportados e importados, os valores
dessas transações e levantar quantitativamente sua composição demográfica.
A Capitania da Paraíba, da mesma forma que o restante da colônia
brasileira, sentia os efeitos das mudanças políticas vivenciadas em Portugal.
Para compreender de maneira mais apropriada as manifestações ocorridas
na dimensão local, faz-se necessário unir os extremos do Atlântico, uma vez
que os ditames políticos metropolitanos encontravam acolhida, ou ecoavam
de maneira mais sutil, nas administrações ultramarinas. É adequada, portanto,
uma breve digressão a fim de observar como as mudanças ocorridas no
Portugal setecentista repercutiram na formação e nas ações de Fernando
Delgado.
Certo isolamento cultural caracterizava Portugal até a primeira metade do
século XVIII10. O diminuto país, circunscrito pelas terras de Espanha e pelas
águas do Atlântico, compensava sua pequenez geográfica projetando-se no
além-mar através de suas possessões, que margeavam a própria circunferência
do planeta, formando uma área de poder e influência caracterizada pela
descontinuidade territorial e pluralidade cultural11.
Uma habilidade administrativa dotou Lisboa, centro político do mundo
português e do ultramar, de faculdades que lhe permitiu gerenciar tão vasto
e diversificado império. Derivada da confluência de pessoas de diversas partes
do mundo e de variadas posições sociais, Lisboa, desde o século XVI, era
considerada uma cidade cosmopolita, ambiente “colorido e multiétnico”12.
Estranhamente, o Portugal agregador de povos de diferentes origens,
especialmente da África e Ásia, distanciava-se do restante da Europa. A
privilegiada abertura marítima o levou a conectar-se muito mais com os outros

9
A documentação em tela integra o conjunto de documentos avulsos da Capitania da
Paraíba existentes no Arquivo Histórico Ultramarino.
10
NOVAIS, Fernando Antônio. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São
Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 167.
11
HESPANHA, Antônio Manuel & SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num Império
oceânico. In: MATTOSO, José (dir). História de Portugal. Quarto volume: o Antigo Regime
(1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998. BICALHO, Maria Fernanda Baptista.
Mediação, pureza de sangue e oficiais mecânicos. As câmaras, as festas e a representação
do Império Português. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTÁCIA, Carla Maria Junho
(orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e viver (séculos XVI a XIX). São Paulo:
Annablume; PPGHis-UFMG, 2002.
12
GRUZINSKI, Serge. 1480-1520: as origens da colonização. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 53.
164 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

continentes do que com seus “irmãos europeus”. Essa atitude promoveu o


encapsulamento português com relação à cultura desenvolvida pelos países
de vanguarda, ou seja, França, Inglaterra, Alemanha e Itália. Durante muito
tempo, Portugal não recebeu a iluminação do ideário da Razão num fluxo
contínuo. O “obscurantismo” que o acometia na esfera das ciências começou,
timidamente, a dissipar-se no alvorecer do século XVIII. Contudo, teria que
esperar mais alguns decênios para que esse quadro fosse revertido e Portugal
pudesse compartilhar do que havia de mais sofisticado em termos de
Ilustração.
A Ilustração portuguesa possui uma singularidade: a da precocidade das
reformas e da importação das idéias. Característica esta decorrente do
fechamento de Portugal para com a cultura desenvolvida nos centros
irradiadores do movimento ilustrado, bem como do seu atraso econômico.
Este constituía motivo de preocupação dos homens de governo desde fins
do século XVII. Visando à reversão dessa situação, buscou-se compreender
as causas de tal retardamento e os meios para superá-lo.

Na medida em que o ‘atraso’ era visto em relação à Europa de


além-Pirineus, é claro que se entendia que, para explicá-lo, se
impunha a mobilização da nova Filosofia dos países adiantados –
daí o caráter de importação das idéias, de atualização. Por outro
lado, as reformas eram vistas não apenas como a ‘promoção das
Luzes’, mas também como uma maneira de superar o atraso, tirar
a diferença (...).13

Inicialmente, a discussão sobre temas ilustrados ficou circunscrita às


sociedades filosóficas e aos debates privados, assim como no restante da
Europa. No caso português, os padres oratorianos tiveram atuação
importante na penetração e difusão das idéias iluministas. Um outro reduto
de florescimento da filosofia racionalista foi o do grupo dos “estrangeirados”,
assim chamados, pejorativamente, “devido à sua obsessão por modelos
estrangeiros”. Composto por homens pertencentes ao governo metropolitano
e ultramarino, os estrangeirados discutiam essencialmente sobre economia e
política. Um dos principais expoentes do grupo foi D. Luís da Cunha. Sua
estada na Inglaterra, França e outros países como embaixador português
proporcionou-lhe uma larga experiência em diplomacia. Amparado em sua
vivência internacional, Luís da Cunha buscou compreender a fragilidade de
Portugal no contexto europeu e do império e a sua dependência para com a
Inglaterra. Ele atribuía a situação econômica de Portugal, em parte, a um
estado mental da população, isenta de empreendedorismo. O excesso de
religiosos, a funesta Inquisição e a perseguição aos judeus também
contribuíam para a fraqueza do Estado português, segundo Da Cunha14.
13
NOVAIS, Aproximações, p. 168.
14
A Congregação do Oratório ingressou em Portugal após 1640 e seus representantes
foram notáveis defensores das ciências naturais, das experimentações científicas e de
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 165

Ao báratro do fanatismo e ignorância em que a alma portuguesa,


no meado do século XVIII, mergulhava, alguns privilegiados espíritos
escapavam ainda. Na muralha que oprimia as inteligências havia
fendas.15
D. Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, Sebastião José de Carvalho e
Melo e posteriormente Rodrigo de Sousa Coutinho eram os indivíduos
dotados de um apanágio que lhes permitia uma ampla e aguçada visão sobre
a administração e o governo portugueses. Sebastião José, o ministro
plenipotenciário de D. José I (1750-1777), foi um dos ávidos representantes
das idéias ilustradas. Como enviado português em Viena (1744-1749) e
embaixador na Inglaterra (1739-1743), o futuro Marquês de Pombal amealhou
conhecimentos sobre economia, política e diplomacia que foram
indispensáveis para sua compreensão acerca do descompasso entre Portugal
e os centros difusores do Iluminismo. Mais especificamente, Pombal estava
interessado em entender os fatores que promoviam o crescimento econômico
da Inglaterra, visando, com isso, ao sobrepujamento da dependência
portuguesa para com aquele país.
Inspirado em teóricos clássicos, especialmente Colbert, Pombal procedeu
a uma política econômica amparada no mercantilismo. Um mercantilismo
bastante ibérico, tendo em vista que não atendia exclusivamente o âmago da
política mercantilista, isto é, a ação do Estado na busca da manutenção de
uma balança comercial favorável. “Seu objetivo era utilizar técnicas
mercantilistas – companhias de comércio, regulamentação, taxação e subsídios
– para facilitar a acumulação de capital por comerciantes portugueses,
individualmente”16. Sebastião José buscava, com tais medidas, fomentar uma
camada de comerciantes portugueses capazes de competir
internacionalmente e de rivalizar com os ingleses. Portanto, o mercantilismo
pombalino intentava menos aumentar o fluxo de metais preciosos para
Portugal do que mantê-lo internamente. Afinal, os metais preciosos,
especialmente o ouro brasileiro, que chegavam a Lisboa eram transferidos,
majoritariamente, para a Inglaterra em decorrência dos tratados comerciais
existentes entre os dois países, a exemplo do Tratado de Methuen (1703), o
que acarretava graves prejuízos para o Estado português.
Durante os 27 anos que esteve à frente da Secretaria de Estado do Reino
(1750-1777), Pombal realizou mudanças substanciais, tanto em Portugal
métodos pedagógicos baseados no aprendizado da ortografia e gramática portuguesas
diretamente, sem a intermediação do latim. Um dos oratorianos mais atuantes em
Portugal, especialmente na área pedagógica, foi Luís Antônio Vernei, autor de O
verdadeiro método de estudar que lhe rendeu vários agraves com os jesuítas, principais
responsáveis pelo ensino superior em Portugal. Sobre isto e sobre a geração dos
estadistas estrangeirados: MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do
Iluminismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 11-16.
15
AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época. São Paulo: Alameda, 2004,
p.96.
16
MAXWELL, Marquês de Pombal, p. 67.
166 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

quanto no restante do império. Suas ações incidiram basicamente nos campos


administrativo, econômico, fiscal, político, legislativo, religioso e educacional.
As reformas pombalinas ambicionavam a modernização do Estado português
e a racionalização da máquina administrativa. O Estado passava a ampliar sua
área de influência e a agir de maneira mais contundente nas diversas esferas
da sociedade. Na educação, as ações do Marquês estavam direcionadas ao
ensino de técnicas – a exemplo da difusão das partidas dobradas –, para os
comerciantes, através das Aulas de Comércio e à formação de um corpo
burocrático que desse prosseguimento às suas reformas. Visava, assim, numa
dimensão mais ampla, à criação de uma burguesia nacional forte. Ademais,
reformou a Universidade de Coimbra (1772) e incluiu nos currículos escolares
disciplinas de latim, retórica, filosofia, química, etc., ou seja, campos
valorizados pela Ilustração. Outrossim, ganhou destaque a medicina pelo
estabelecimento de laboratórios nas universidades e pela possibilidade de
dissecação de cadáveres, prática antes não permitida pela influência dos
jesuítas na cultura e educação portuguesas17.
Com relação às políticas voltadas para a colônia brasileira, destacam-se a
criação das Companhias de Comércio do Grão Pará e Maranhão (1755) e a de
Pernambuco e Paraíba (1759), o fim da discriminação dos ameríndios e o
incentivo à miscigenação entre estes e os brancos, a instituição da derrama, a
proibição de comércio com os comissários volantes, a expulsão dos jesuítas,
a transferência da capital política de Salvador para o Rio de Janeiro, a
diversificação agrícola, entre outras. Carvalho e Melo procurava, com isto,
reforçar os laços comerciais entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa.
A dependência de Portugal para com o Brasil era evidente e a crise do Sistema
Colonial já se anunciava, daí a necessidade de revigorar os vínculos entre os
dois lados do Atlântico.
As políticas pombalinas não foram de todo desfeitas com a Viradeira,
designação dada ao governo de D. Maria I por reverter o direcionamento
político e econômico do Marquês. É certo que parte do corpo de funcionários
foi mudada e que algumas realizações empreendidas por Pombal foram
alteradas, como a extinção das referidas Companhias de Comércio. Apesar
disto, muitos dos direcionamentos de Pombal foram mantidos e outros,
intensificados.
(...) a queda do marquês de Pombal, que ocorreu em seguida à
morte de José I, sua perseguição, a libertação dos presos políticos,
enfim, a “viradeira”, não passaram de fenômenos conjunturais. A
equipe dirigente, de índole ilustrada, continuou basicamente a
mesma, com novos acréscimos. Ainda mais: as reformas ensejando
os primeiros frutos, as iniciativas foram avante, ampliando o raio
de ação. O final do século, longe de um retrocesso, marca um
17
Para um panorama geral do período pombalino ver: MAXWELL, Marquês de Pombal.
Para a política econômica, ver: FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina:
política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 167

avanço, aparece como um desdobramento: o ponto mais alto da


Ilustração em Portugal.18
No reinado de D. Maria I (1777-1816)19, a presença fisiocrática fez-se sentir
de maneira mais aguda. A atenção dada durante o governo pombalino às
práticas agrícolas ficou mais circunscrita ao mundo ultramarino, o qual deveria
fornecer matérias-primas para a incipiente indústria portuguesa. Na regência
mariana, a agricultura ganhou um destaque especial. Incentivaram-se vários
estudos sobre os recursos e as potencialidades da natureza em Portugal e
nas colônias, a fim de se elaborar uma História Natural do Reino e Ultramar.
Nesse sentido, a atuação da Academia Real de Ciências de Lisboa20, criada em
1779, foi fundamental. As viagens filosóficas, estimuladas pelo governo,
tinham como principal finalidade o inventário do Novo Mundo. Imbuídos de
uma olhar cientificista, naturalistas e viajantes deveriam diagnosticar de
maneira pragmática a natureza, coletando e identificando espécies e
descrevendo o povo e os ambientes. Os agentes da Coroa também
participavam desse levantamento empírico de dados, através da confecção
de memórias sobre as terras de sua jurisdição. “Das memórias (...), várias
podem ser consideradas ‘regionais’, isto é, dizem respeito a uma província,
região, capitania, ou um simples conselho”21.
As memórias constituíram um importante instrumento de conhecimento
do Novo Mundo, uma vez que apresentavam, em sua maioria, a geografia
física e econômica de determinada área, incluindo-se aí o caráter moral do
elemento humano, além de apontar os problemas e sugerir soluções. Assim,
a mineração, as matérias-primas, o sal, os pigmentos, as madeiras e a
agricultura foram temas sobressaltantes nesse tipo de documentação. A
natureza passava a adquirir um sentido utilitário e inteligível pela razão. Como
a intenção da metrópole lusa era promover o desenvolvimento econômico
do reino, tornava-se imprescindível a perscrutação das virtualidades da sua
principal colônia – o Brasil.
No bojo das transformações sofridas por Portugal através das reformas
pombalinas, do despertar de um cientificismo visualizado nas mudanças
pedagógicas, do estímulo às ciências naturais, do tumultuado governo de D.
Maria I e do avanço da cultura ilustrada, insere-se Fernando Delgado Freire
de Castilho. Designado a assumir o governo da Capitania da Paraíba em 1797,

18
NOVAIS, Aproximações, p. 168.
19
A partir de 1792, em virtude dos problemas de saúde de D. Maria, seu filho D. João VI
assume o trono como príncipe regente.
20
Um interessante estudo sobre a atuação e o significado das práticas ilustradas
promovidas pela Academia Real das Ciências de Lisboa encontra-se em: MUNTEAL
FILHO, Oswaldo. A Academia Real das Ciências de Lisboa e o Império Colonial
Ultramarino (1779-1808). In: FURTADO, Júnia Ferreira (org). Diálogos Oceânicos: Minas
Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
21
NOVAIS, Aproximações, p. 169.
168 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

Fernando Delgado sintetiza a nova fase da ilustração portuguesa. “Filho”


das reformas pombalinas, especialmente no concernente às alterações no
campo econômico, com a criação da Escola do Comércio, e às pretensões do
marquês em formar funcionários com uma mentalidade e conhecimentos
teóricos adequados à etapa de reestruturação do Império português que
iniciava, e sendo coevo da ampliação do campo científico promovido pela
Academia Real das Ciências de Lisboa, pode-se considerar Fernando Delgado
como um ilustrado a serviço da Coroa.
No contexto de investigação das plagas brasileiras, acima falado, Castilho
recebeu ordens régias para realizar um levantamento da capitania que iria
assumir. Muito mais do que um estudo direcionado a conhecer os fatores
bióticos e abióticos da Capitania, as instruções dadas ao mesmo tinham um
objetivo mais específico: o de averiguar a conveniência ou não da anexação
da Paraíba a Pernambuco. Segundo a resolução de D. Maria I,
Havendo S. Mag.e nomeado V. Mce para o governo da Paraíba, é a
mesma senhora servida, que eu lhe dê as seguintes instruções, que
é consequente às suas luzes, conhecimentos e zelo com que
procurará distinguir-se no real serviço. Havendo-se essa capitania
da Paraíba incorporado na de Pernambuco, a que está sujeita, em
consequência de uma Consulta do Conselho Ultramarino, ordena S.
Mag.e que V. Mce examine com a maior imparcialidade se a utilização
que tira a Real Fazenda desta incorporação pela economia que se
pode resultar de não manter um governo totalmente independente,
e equivale aos prejuízos que pode receber seja da falta de execução
das reais ordens, seja da menos ativa cobrança das dívidas reais
dependente de Pernambuco, seja de se manter um conflito de
jurisdição igualmente nocivo ao Real Serviço e aos interesses dos
habitantes da capitania, que também podem receber algum
vexame de um sistema, que os faz dependentes para o seu comércio
da praça de Pernambuco.
V. Mce fará subir a Real Presença não só a fiel exposição de tudo o
que acabo de notar-lhe, mais ainda as reflexões que lhe sugerir o
estado atual da capitania e das suas produções afim de V. Mce abrace
a mais justa resolução sobre a conveniência de fazer esse governo
independente ou de o conservar dependente. 22
Esta era, pois, a missão precípua de Fernando Delgado. Procedendo a um
exame da situação econômica da Capitania, suas produções e comércio, dos
recursos existentes, da segurança e do corpo militar, o atual capitão-mor
deveria, após a exposição e análise de tais aspectos, informar à Secretaria de
Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos se a subordinação da Paraíba à
Capitania de Pernambuco era onerosa ou não para aquela e para a Fazenda
Real. Como governador, era sua obrigação “animar e promover as culturas já
22
PINTO, Datas e notas..., p. 180.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 169

existentes e introduzir as que possam ser novas e venham a concorrer para


enriquecer esta capitania”. Não obstante, era responsável também por
“promover o consumo de todos os produtos do Reino como são, vinhos, azeite,
sal e todas as manufaturas”23.
As luzes de Castilho extrapolavam, contudo, essa resolução específica.
Além da memória escrita sobre a Capitania, que abordava os itens expostos
nas instruções recebidas, ele foi autor de outras cartas, relatórios e memórias
nas quais expunha as potencialidades da Capitania da Paraíba e de outros
espaços24. Em suas correspondências, Fernando Delgado fala da abundância
de ricas matas, de rios navegáveis, bons portos e ancoradouros, da fertilidade
da terra para o desenvolvimento de diversas produções, desde o açúcar até
os gêneros alimentares, das excelentes ribeiras propícias para a criação de
gado, da prontidão e lealdade dos habitantes para com os interesses da Coroa,
entre outros aspectos. A seu ver, o principal problema da capitania encontrava-
se na subordinação da mesma à vizinha Pernambuco. Para ele, o fim da
anexação seria o passo inicial e mais importante para melhorar o estado da
Capitania, especialmente através da agricultura e comércio, considerados “os
mais importantes ao aumento e riqueza desta capitania e que necessitam de
uma independência absoluta de Pernambuco”25.
Como resultado da supracitada ordem régia de 1797, foi confeccionada
uma série de mapas sobre produção/ consumo/ exportação/ importação e
população – número de habitantes, de casamentos, nascimentos e mortes,
das principais moléstias obituárias e de ocupação dos habitantes – da Capitania
da Paraíba entre os anos de 1798 e 1805. Antes de apresentarmos as
informações relativas aos circuitos mercantis e à população da Capitania da
Paraíba, no intervalo de 1798 a 1805, faz-se necessário uma reflexão sobre a
situação econômica da mesma no período final da anexação.
A historiografia clássica paraibana é consensual quanto à debilidade
financeira e produtiva da Capitania da Paraíba. A exiguidade das rendas, a
baixa lucratividade do açúcar, a escassez de mão-de-obra escrava africana, o
diminuto nível de produção dos gêneros de subsistência e o fraco e quase
23
PINTO, Datas e notas..., p. 181-182.
24
Dentre a produção de Fernando Delgado destacam-se a memória escrita sobre a
capitania (AHU_ACL_CU_014, Cx. 34, D. 2471); a descrição das técnicas e culturas da
cana-de-açúcar e do algodão (PINTO, Datas e notas..., p.189-198) e as memórias sobre as
matas da Paraíba e sobre a Ilha de Fernando de Noronha (AHU_ACL_CU_014, Cx. 33,
D. 2436). Outrossim, durante seu governo (1798-1802), foram enviadas amostras de
espécies vegetais e um relatório sobre a fauna e flora do sertão da Capitania
(AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2509) elaborado por Manuel de Arruda Câmara, incumbido
também de fazer uma memória sobre as potencialidades para o fabrico de linho na
Paraíba (AHU_ACL_CU_014, Cx. 36, D. 2610). Segundo Celso Mariz, Fernando Delgado
era favorável à substituição das bolandeiras de descaroçar algodão, bastante
rudimentares, pela invenção de Francisco de Arruda Câmara. MARIZ, Celso. Evolução
econômica da Paraíba. 2 ed. João Pessoa: A União, 1978, p.15-16.
25
Narração de Fernando Delgado sobre o estado em que se acha a Capitania da Paraíba
em 1799. PINTO, Datas e notas..., p. 209.
170 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

inexistente comércio interno são os principais fatores apontados para explicar


o estado crítico no qual estava mergulhada a Paraíba. Segundo Horácio de
Almeida,
(...) o estado em que [Fernando Delgado] encontrou a Capitania
era de estagnação geral.
Fontes de rendas esgotadas. Engenhos desprovidos de safra e
escravos. Aparelhamentos fabris estragados. Produtos agrícolas
sem preço no mercado. Comércio inexistente. Os negociantes da
praça não passavam de meros agentes do Recife e nesta qualidade
oprimiam o povo.26
É certo que o período de subordinação (1755-1799) da Paraíba a
Pernambuco correspondeu a uma difícil fase para a primeira. Não se pode,
todavia, reduzir unicamente esse “atraso” da Capitania ao julgo político-
administrativo no qual esteve submetida por mais de quarenta anos. Vários
fatores concursaram para debilitá-la. Às dificuldades de gerenciar um governo
subordinado, somam-se as discutidas consequências provocadas pela atuação
da Companhia de Comércio, as secas que assolavam as produções e a
população, e os próprios obstáculos impostos à reestruturação da Capitania
após a expulsão definitiva dos holandeses em 1654. Não se deve esquecer
ainda das iniquidades e usurpações dos administradores, práticas comuns à
colônia como um todo, que prejudicavam qualquer esforço direcionado à
promoção da agricultura, comércio e aumento das rendas reais. Havia também,
no caso da Paraíba, o entrave colocado pelo eterno atraso do envio do dízimo27
pela Alfândega de Pernambuco para esta Capitania.
Não obstante a fragilidade da Capitania da Paraíba no momento em que
Fernando Delgado foi investido no cargo de capitão-mor, os mapas de
produção, importação e exportação mostram as principais produções da
Capitania, destinadas ao consumo interno e/ou à exportação, bem como os
artigos importados pela mesma. Se os números relativos à totalidade da
produção, consumo, exportação e importação apresentam verossimilhança
com o estado da capitania acima exposto, significa que a Paraíba tinha ótimas
possibilidades de crescimento mediante sua agricultura e comércio. Mas,
parece-nos haver uma incoerência entre os dados e uma economia
praticamente paralisada, como dizem os coevos e os historiadores clássicos.

26
ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba – Vol. II. João Pessoa: Editora Universitária/
UFPB, 1978, p. 87.
27
Desde 1723 a arrematação do dízimo da Paraíba se dava na praça de Pernambuco, em
um só contrato. Pernambuco ficava responsável por enviar vinte mil réis anuais à
Paraíba, quantia, teoricamente, considerada equivalente à arrecadação desse imposto
nesta capitania. As delongas no envio desta importância e mesmo a sua não remessa
geravam atritos entre o governador da Paraíba e o de Pernambuco. Não raro, aquele
subia à real presença a pouca atenção e mesmo o descuido do general governador de
Pernambuco na execução de sua obrigação. Para mais informações, ver: MENEZES,
Colonialismo..., capítulo IV.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 171

A quantidade do que era produzido e exportado e os respectivos valores em


dinheiro arrecadado evidentemente não caracterizam uma opulência.
Contudo, espelha a potencialidade econômica da mesma. Os artigos
importados e seu consumo interno, especialmente para a área do sertão da
Capitania, corroboram para a sustentação dessa idéia: a Paraíba não parecia
tão decadente quanto se coloca(va).
Os mapas de exportação e importação das vilas e freguesias da Capitania
da Paraíba explicitam a existência de circuitos mercantis envolvendo essas
localidades e as demais Capitanias do Norte – Rio Grande do Norte, Ceará e
Pernambuco. Sempre se apontou o porto do Recife como sendo a principal,
e/ ou mesmo, a única via de escoamento das produções da Paraíba. Segundo
esse entendimento o porto da Paraíba nunca apresentou grande atividade.
Permaneceu sufocado pelo da capitania vizinha que embarcava quase a
totalidade das mercadorias da Paraíba, seja do litoral ou do interior, como
afirma Almeida:
A estrada principal que vinha do sertão fazia ligação direta com o
Recife, que absorvia tudo quanto a Paraíba produzia. Uma variante
é a que tomava rumo da capital paraibana. Pela estrada principal
escoavam-se os produtos do sertão. 28
Mais recentemente, a mesma acepção é encontrada em Roberto Smith,
que, ao falar do perímetro da Capitania de Pernambuco, composto por
Alagoas (parte integrante do seu território) e as capitanias a ela anexas, isto
é, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, afirma que essa área correspondia à
“região de controle mercantil e colonial exercida a partir da cidade e porto de
Recife, único ponto de entrada e saída do comércio monopolizado através da
Capitania com a Metrópole”29.
Algumas vias de comunicação da Capitania da Paraíba com suas vizinhas
foram reverenciadas por alguns autores como Caio Prado Júnior e Irineu
Joffily. O primeiro, no capítulo sobre vias de comunicação e transporte de
Formação do Brasil Contemporâneo, diz que o ponto central desses caminhos
que interligavam o espaço que hoje compõe o atual Nordeste encontrava-se
no Piauí. Daí partia três outras vias, dirigidas para leste, sudeste e sul. A linha
do leste atingia parte do território da Capitania da Paraíba, mais
especificamente Pombal e Patos, incrustados no sertão paraibano, mas
também passando pela atual Itabaiana – localizada na área que hoje
corresponde ao agreste –, onde se bifurcava em duas direções, uma que
conduzia à Cidade da Paraíba, e outra que descia para Pernambuco. Em suas
palavras:

28
ALMEIDA, História da Paraíba, p. 87.
29
SMITH, Roberto. A presença da componente populacional indígena na demografia
histórica da Capitania de Pernambuco e suas anexas na segunda metade do século
XVIII. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Anais... Ouro
Preto: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2002, p.7.
172 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

A linha leste dirige-se para o Ceará, onde passa por Arneirós e Icó;
daí se dirige à Paraíba, que atravessa pelo eixo do seu território,
tocando em Pombal e Patos, alcançando o rio Paraíba que
acompanha até o lugar onde hoje está Itabaiana. Aí se bifurca,
continuando um ramo pelo mesmo rio até a capital da capitania;
infletindo o outro para o sul em demanda de Pernambuco.300
Irineu Joffily também distingue alguns caminhos que intercomunicava
comercialmente a Paraíba às capitanias vicinais. Reconhecendo Campina
Grande como importante conduto de integração entre litoral e sertão, visto
que a mesma constituía uma feira de gado, Jofilly identifica-a como o ponto
de união das duas artérias do sertão, denominadas estradas do Seridó e de
Espinharas. Diz o autor:
A primeira [estrada do Seridó] tomava o rumo de noroeste, passando
pelos lugares onde hoje estão as povoações de Pocinhos e S.
Francisco e territórios adjacente à de Pedra Lavrada, onde descia a
Borborema (fralda ocidental), dava no rio Seridó, e acompanhando-
lhe as margens penetrava na Capitania do Rio Grande do Norte até
os sertões do baixo Piranhas e Apody.Transpondo os limites desta
capitania, de um lado, procurava de novo o Paraíba pela ribeira de
Porcos ou Patú, e de outro atingia as águas do baixo Jaguaribe, no
Ceará.
A estrada de Espinharas tomava a direção de oeste passando por
grandes travessias; tocava na pequena ribeira de Santa Rosa, a
dez léguas, e nove mais adiante na povoação dos Milagres, no rio
Taperoá; e acompanhando mais ou menos as margens deste rio,
tocava na lagoa do Batalhão, e descendo a Borborema seis léguas
além dava nas águas do rio Piranhas ou Espinharas, que
acompanhava até o lugar onde hoje é a vila de Patos. Aí dividia-se
a estrada; à esquerda dirigia-se para o Piancó, tendo um
desenvolvimento de cerca de 40 léguas até os confins da respectiva
ribeira; à direita seguia em linha reta para a povoação das Piranhas,
depois vila e cidade de Pombal; continuando para Sousa, no rio do
Peixe, passaria depois mais ou menos próximo aos lugares hoje
ocupados pela Vila de S. João do rio do Peixe e cidade de Cajazeiras,
em seguida penetrava na capitania do Ceará, onde subdividia-se
servindo a todo o vale dos Cariris Novos e sertões do Icó, Inhamúns
e Crateús, por onde entrava na capitania de Piauí.
Esta foi a grande artéria que ligava à capital aos sertões mais
afastados da capitania, ligando igualmente estes aos de suas
vizinhas, e esta comunicação tem-se mantido sem a menor

30
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense,
2004, p. 241.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 173

interrupção até hoje. 31


Estas estradas constituíam algumas vias pelas quais circulavam os produtos
idos da e vindos para a Paraíba. Os mapas de exportação e importação indicam
os portos de origem e destino dessas mercadorias. Aracati, Açú, Mossoró,
Paraíba, Recife, Goiana, Itamaracá, Olinda, Lisboa e Porto compunham os
pontos de embarque das produções da capitania e/ ou de recebimento dos
artigos enviados da metrópole. Esta constatação rompe o monopólio exclusivo
exercido pelo porto do Recife sobre as produções da Paraíba. Certamente,
Recife continuava a ser o principal local de escoamento dos produtos daquela
e de entrada de outros, mas deixa de ser pensado como a única via de fluxo
de mercadorias, seja saída ou abastecimento.
O litoral compreende as paróquias da Cidade de Nossa Senhora das Neves,
do Conde, Alhandra, Taipú, Bahia de São Miguel, Mamanguape e Monte Mór.
Já o sertão corresponde às paróquias de Pombal, Patos, Pilar, Sousa, Vila
Nova da Rainha, Cariri Velho, Cariri de Fora (posterior Vila Real de São João do
Cariri), Santo Antônio do Piancó. Sabemos da tenuidade que é dividir a
Capitania da Paraíba em dois grupos tão rígidos. Contudo, essa separação
permite uma profícua visualização das atividades econômicas e da distribuição
da população. O critério adotado foi o da produção econômica local. Assim,
as localidades cuja principal atividade estava direcionada à agroexportação
açucareira foram classificadas como pertencentes ao litoral. Já àquelas
voltadas para as culturas do algodão e da pecuária e seus derivados passaram
para o grupo do sertão. A vila de Pilar gerou uma dificuldade. Segundo a
GRÁFICO 1: EXPORTAÇÃO E IMPORTAÇÃO NA CAPITANIA DA PARAÍBA
(1798-1805)32

31
JOFFILY, Irenêo. Notas sobre a Parahyba. 2. ed. facsimilar. Brasília: Thesaurus, 1977, p.
225-226.
32
AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2423, AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2510, AHU_ACL_CU_014,
Cx. 36, D. 2617, AHU_ACL_CU_014, Cx. 38, D. 2711, AHU_ACL_CU_014, Cx. 39, D. 2764,
AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2890, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2891,
AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3274,
AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3318, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3319.
174 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

atual classificação geográfica, Pilar pertence à região geográfica da Depressão


e à mesoregião da Mata Paraibana. Considerando-a no limiar dos dois grupos,
optamos por colocá-la no Sertão, visto que, segundo os mapas econômicos
trabalhados, os principais gêneros produzidos e exportados pela vila eram
algodão e couros.
As quantias resultantes dos movimentos de importação e exportação para
as paróquias do litoral e do sertão da Capitania da Paraíba revelam a
predominância do primeiro espaço nas rendas da Capitania.O litoral, lugar
por excelência da agromanufatura açucareira, era responsável por mais de
50% do volume das importações e exportações da Capitania. Em
contraposição, ao sertão é reservada a importância de até 40% dessas
demandas. Não diminuindo a influência da economia litorânea para as receitas
da Paraíba, queremos destacar a atuação do sertão para o aumento daquelas.
Em outro estudo constatamos, já para 1732, a importância do imposto do
subsídio da carne para o incremento da receita paraibana. Apesar de o
fornecimento da carne ser uma atividade de abastecimento interno,
chamamos a atenção para esse espaço, que a partir da primeira metade do
século XVIII começa a florescer economicamente 33.
Isto pode ser verificado nas ligações mantidas pelas vilas do sertão com as
Capitanias de Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e a própria Paraíba. A
documentação permite evidenciar um afluxo de manufaturas e mercadorias
variadas vindas pelos portos dessas capitanias. Se produtos como tecidos
finos, chapéus, louças, etc., afluíam para aí, é porque havia um mercado
consumidor para os mesmos. Consequentemente, as atividades econômicas
sertanejas deveriam gerar condições para comercialização e consumo desses
tipos de bens.
Os produtos exportados pela Capitania da Paraíba consoam com a sua
condição colonial. São gêneros de subsistência, couro e seus derivados, açúcar,
tabaco, algodão, gado vacum e cavalar, farinha, mel, aguardente, azeite,
madeira, entre outros. Quanto à importação destacavam-se tecidos de
variados tipos (panos de algodão, linho e seda; cassas finas e grossas; crês;
durantes; druguetes; chitas; bretanhas; holandas; baetas; riscados; lila;
gangas; casimiras), vinho, pólvora, louça, vinagre, carne seca, sal, ferro,
manteiga, chapéus e papel. A circulação dessas mercadorias pelas Capitanias
do Norte e a renda derivada dessa movimentação comercial ratificam a idéia
exposta de não total apatia da economia da Paraíba. Evidentemente, o volume
das transações comerciais da capitania, quando comparado com a da
totalidade do território colonial, possuía um peso pouco significativo34 No
33
MENEZES, Colonialismo..., p. 132.
34
Segundo José Jobson de Arruda a Paraíba, nos anos 1796 e 1797, ocupou o sétimo lugar
no comércio de importação da colônia brasileira, subindo para a sexta posição a partir
de 1798, ocupada antes por Santos. Com relação à exportação, aparece na sexta
posição em 1796, não constando na Balança Comercial (1796-1811) em 1797 e 1798,
reaparecendo em 1799 e 1800, para voltar a sumir nos anos seguintes. Diz ainda que,
“uma comparação com as demais colônias portuguesas demonstra-nos a insignificância do
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 175

entanto, não está em questão aqui o valor da mesma para a Coroa. Cabe
apenas verificar, através desses dados, que a capitania não produzia apenas
para consumo interno. Atendendo ao seu próprio status de colônia, ela gerava
riquezas, comprava manufaturas da metrópole e ainda contribuía para a
própria reprodução do corpo de oficiais régios no além-mar, sendo
responsável pela manutenção do aparato administrativo da Capitania da
Paraíba. Cumpria, pois, o papel a ela designado.
População da Capitania da Paraíba na virada para o século XIX
Tarefa árdua é lidar com população do período colonial brasileiro. Fontes
fragmentadas, esparsas, mal conservadas tornam-se cotidiano do historiador
afeito pela demografia. Para o século XVIII há alguns recenseamentos
realizados na área das Capitanias do Norte. Por não apresentarem um padrão
homogêneo, é difícil traçar uma evolução da população a partir dos seus
componentes. Quando um deles aparece em determinado ano, somem no
seguinte, ressurgindo no subsequente. Se atualmente uma idéia exata da
população não pode ser garantida, muito menos se deve esperar exatidão
para os homens coloniais. Contudo, isto não invalida os dados por eles
fornecidos.
Dentre os levantamentos realizados durante o século XVIII, os que se
iniciam em 1797, prolongando-se até 1830, são os que apresentam mais
detalhes, sendo, por isso, os mais completos. A partir daí se “introduz
aperfeiçoamentos no processo de recenseamento das populações no Brasil.
O recenseamento passa a incorporar um conjunto de informações econômico-
mercantis e maior abrangência das informações populacionais”35. Segundo
Smith, amparado na divisão (fase proto-estatística) proposta por Marcílio36, a
etapa 1797-1830 se inicia com a ordem régia de D. Maria I, datada de 21 de
outubro de 179737. A partir dela, o Conselho Ultramarino emite um dispositivo
dirigido aos capitães-mores do Brasil expressando:
Desejando Sua Majestade que a esta corte cheguem anualmente
noções muito exatas, e individuais de cada uma das capitanias do
Brasil, foi servida ordenar que se preparassem os mappas que
acompanham esta carta, e que os remettesse a VMCE, afim de que
se principie um trabalho, por meio do qual se possa chegar ao
conhecimento: 1) dos habitantes que existem na Capitania; 2) das
occupações dos mesmos habitantes; 3) dos casamentos annuais,
movimento comercial da Paraíba. É inferior ao comércio da África e das Ilhas. Assim como
Santos”. ARRUDA, José Jobson de. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980,
p. 271-272.
35
SMITH, A presença..., p. 2. Neste trabalho o autor da uma idéia da população das
Capitanias de Pernambuco e suas anexas com base nos recenseamentos realizados no
século XVIII.
36
MARCÍLIO, Maria Luíza. Levantamentos censitários da fase proto-estatística do Brasil.
Anais de História, Assis, v. II, p. 63-75 (apud SMITH, A presença..., p. 2).
37
MARCÍLIO apud SMITH, A presença..., p. 2.
176 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

nascimentos e mortes; 4) da importação; 5) da exportação; 6) das


produções da Capitania, consumo e exportação das mesmas
produções; 7) dos preços correntes dos gêneros; 8) do número dos
navios que entram e saem. A estes 8 mappas se ajunta uma instrução
para o modo de os formar, a qual com os referidos mappas Vmce
comunicará a pessoa incumbida d’este trabalho.38
Muito provavelmente, Fernando Delgado, como capitão-mor nomeado
em 1797, recebeu exatamente estas instruções, uma vez que esse conjunto
de informações foi por ele recolhido nos moldes que acima se apresentam. Já
nos referimos aos mapas de produção, exportação e importação. Passemos
agora aos de habitantes da Capitania.
A Capitania da Paraíba apresentava, nos anos 1798 a 1805 uma população
entre 40 e 60 mil habitantes. Quando dividida entre litoral e sertão, os números
denotam um certo equilíbrio entre os valores totais de habitantes para essa
duas áreas. No entanto, ao passo que tomadas em sua dimensão territorial,
verifica-se que a população do sertão encontra-se diluída num amplo espaço,
enquanto que a do litoral concentra-se numa curta faixa de terra. Isto é
justificado pelo fato de o litoral ser o espaço inicial de ocupação da Capitania,
enquanto que as fronteiras do sertão só foram “abertas” a partir da segunda
metade do século XVII. Não obstante o retardamento do povoamento dessa
área, sua ocupação foi relativamente rápida ao longo do século XVIII. Se para
o ano de 1798, o sertão aparece como responsável por 38% do total de
habitantes da Capitania, o que nos infere a acreditar numa sub escrituração
por faltar algumas freguesias, presentes nos outros anos posteriores, vemos,
de maneira mais consistente, o salto nos números para o ano de 1800, com
51%; e seguintes: 1801, 43%; 1802, 48%; 1804, 56% e 1805, 54%.
No atinente à composição da população livre, os resultados mostram que
os mulatos eram responsáveis pelo maior montante na Capitania, chegando,
em média, para os anos em tela, a cerca de: 32%, em 1798; 39% em 1799, 38% em
1800, 36% em 1801, 40% em 1802, 33% em 1804 e 38% em 1805. Contrário,
portanto, ao número de brancos que representavam apenas 32%, 26%, 28%,
31%, 28%, 30% e 26% respectivamente para os mesmos anos.
Quanto aos cativos, contudo, a Capitania da Paraíba apresenta um baixo
percentual demográfico, verificando-se, para o período como um todo, um
número nunca superior a 25%. Valor esse que, no que tange a relação entre
litoral e sertão, apresenta certa proporcionalidade para os anos de 1800,
1804, 1805, como demonstra a tabela a seguir, desmistificando a idéia de que
o litoral sempre esteve hegemonicamente mais servido de escravos que o
interior.
O que chama a atenção são os valores de negros, principalmente os pretos
escravos, para a área do sertão. A historiografia paraibana tendeu a
desconsiderar a última categoria nesse espaço. Apoiados em autores clássicos,

38
AHU - Mato Grosso, maço 24. In: MARCÍLIO, apud SMITH, A presença..., p. 2-3.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 177

TABELA 1: PRETOS E MULATOS CATIVOS NA CAPITANIA DA PARAÍBA ENTRE OS


ANOS 1798 E 1805, COM A ESPECIFICAÇÃO ENTRE LITORAL E SERTÃO39

LITORAL SERTÃO
ANO
PRETOS CATIVOS MULATOS CATIVOS PRETOS CATIVOS MULATOS CATIVOS

1 7 98 12 % 2% 5% 2%

1 800 7% 2% 8% 1%

1 801 10 % 3% 6% 1%

1 802 8% 2% 5% 2%

1 804 7% 2% 8% 2%

como José Américo de Almeida e o já citado Irineu Jôffily, reitera-se a


concepção da ausência ou pouca importância do negro na economia sertaneja,
especialmente na atividade da pecuária. Diz Américo de Almeida:
(...) no sertão o cruzamento se operou entre índios e portugueses,
quase com a exclusão do negro. As condições do meio, que não
permitiam o trabalho agrícola, prescindiam da escravaria. Demais,
o indígena é, de seu natural, apto ao pastoreio.40
A mesma idéia está presente em Joffily:
Depois que a colonização estendeu-se à todo o território da
capitania, com o desenvolvimento da cultura do algodão nas
caatingas, aumentou o elemento africano, sem que contudo, ele
chegasse a preponderar em parte alguma pelo número;
principalmente no sertão, onde foi sempre fraco, porque para os
trabalhos pastoris era muito mais apropriado o americano.41
No fim da década de 1970, Diana Galliza, em O declínio da escravidão na
Paraíba (1850-1888), caminha na contramão da noção exposta pelos autores
supracitados, ao reconhecer que “embora tenha sido desprezada pelos
estudiosos da história da Paraíba a participação do escravo na zona criatória,
sua presença foi marcante no sertão paraibano. Durante a segunda metade do
século XIX, foi acentuado o número de escravos na área sertaneja”42. Desde o
fim do século XVIII é possível atestar a presença do elemento negro, seja ele
livre ou escravo, no sertão da Capitania da Paraíba. Para 1798, primeiro ano
39
AHU_ACL_CU_014, Cx. 33, D. 2423, AHU_ACL_CU_014, Cx. 35, D. 2510, AHU_ACL_CU_014,
Cx. 36, D. 2617, AHU_ACL_CU_014, Cx. 38, D. 2711, AHU_ACL_CU_014, Cx. 39, D. 2764,
AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2890, AHU_ACL_CU_014, Cx. 41, D. 2891,
AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273, AHU_ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3274,
AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3318, AHU_ACL_CU_014, Cx. 47, D. 3319.
40
ALMEIDA, José Américo de. A Paraíba e seus problemas. 3 ed. João Pessoa: A União,
1980, p. 524.
41
JOFFILY, Notas..., p. 235.
178 M. V. DE MENEZES & Y. G. DE PAIVA

para o qual possuímos o conjunto de informações levantado por Fernando


Delgado, os valores de pretos e mulatos cativos não são nem um pouco
tímidos, seja para sertão ou para o litoral. Os livres, no entanto, suplantam
numericamente aqueles e representam boa parcela da população total.
Por fim, é importante salientar o diminuto percentual, para todos os anos,
de índios quer no sertão, que não passava de 1%, ou do litoral, cuja população
não ultrapassava os 7%. Todavia, apesar de a documentação não deixar claro,
acreditamos que os índios computados nos mapas sejam os aldeados, daí sua
pouca presença naquele espaço43. Uma hipótese para o elevado índice de
mulatos parece-nos ser a de miscigenação entre brancos, negros e índios.
Principalmente como resultado dos estímulos de Pombal que tinha na
miscigenação do índio fator determinante para o aumento demográfico na
colônia. Segundo essa conjectura, os mulatos não corresponderiam apenas à
população mestiça de cor, na concepção comum que só a enxerga no tocante
ao cruzamento de brancos e negros, mas a qualquer cruzamento entre os
grupos anteriormente citados.
Considerações Finais
Os mapas de consumo, exportação e importação da Capitania da Paraíba,
correspondentes aos anos de 1798 a 1805, legados por Castilho e seus dois
sucessores, evidenciam ligações comerciais existentes entre a Paraíba e as
capitanias vizinhas a ela, isto é, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará. A
percepção desses circuitos mercantis torna-se fundamental para matizar a
exclusividade exercida pelo porto do Recife quanto ao escoamento das
produções e abastecimento da Paraíba. A documentação exibe outros
trânsitos portuários existentes que promoviam as transações de compra e
venda das mercadorias exportadas e importadas. Vale ressaltar que o
desvelamento dessas outras vias de comunicação mercantil não retira a
importância de Recife para o fluxo mercatório da Paraíba, mas suaviza qualquer

42
GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba (1850-1888). João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 1979, p. 54.
43
Segundo Ricardo Medeiros, Pombal ordenara que se transformassem “em vilas as
missões de Pernambuco e suas anexas administradas pelos jesuítas [...], que nas missões de
sua jurisdição, que eram administradas pelos jesuítas, fossem criadas vigarias colativas,
substituindo os missionários por clérigos regulares”. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Política
indigenista do Período Pombalino e seus reflexos nas Capitanias do Norte da América
portuguesa In: OLIVEIRA, Carla Mary S. & MEDEIROS, Ricardo Pinto de (orgs.). Novos
Olhares sobre as Capitanias do Norte do Estado do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária,
2007, p.128. Além disso, Maria do Céu Medeiros diz que “como a legislação sobre o índio
previa a união de aldeias, quando estas não atingiam um determinado número de casais, o
Governador de Pernambuco ordenou a transferência de índios do interior para o litoral, no ano
de 1780”. Daí a desproporcionalidade existente entre as aldeias do litoral e as do
interior. MEDEIROS, Maria do Céu. O trabalho na Paraíba escravista (1585-1850). In:
MEDEIROS, Maria do Céu & SÁ, Ariane Norma de Menezes. O trabalho na Paraíba: das
origens à transição para o trabalho livre. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB,
1999, p.46.
ILUSTRAÇÃO, POPULAÇÃO E CIRCUITOS MERCANTIS 179

inconteste monopólio dado àquela praça. Além disso, inviabiliza a idéia de


esterilidade da Capitania como consequência dos quarenta e quatro anos de
subordinação. Os mapas de habitantes, por sua vez, permitem estabelecer
uma idéia acerca da população da capitania. Pode-se perceber, a partir deles,
um não esvaziamento do sertão. Se tomados em valores absolutos, o número
de habitantes do sertão, com exceção dos anos 1798 e 1799, apresentam
oscilações entre 45 e 55%. Evidentemente, a densidade demográfica dessa
área é mais baixa do que a do litoral, tendo-se em vista sua amplitude territorial.
Muito mais do que apresentar um retrato da Capitania, a documentação
pesquisada possibilita voltar o olhar para o sertão. A imagem da “civilização
do couro”, legada por Capistrano de Abreu, apresenta o sertão como
metonímia da pecuária e sua indústria. Assim, as boiadas, vaqueiros rústicos
e índios revoltos tornam-se os símbolos desse espaço. Os mapas de exportação
e importação viabilizam a percepção da movimentação da economia sertaneja.
Exportava-se gado, couros miúdos, atanados, sola, algodão e tabaco em
corda e importava-se, basicamente, vinho, tecidos diversos, chapéus e sal. O
contato das paróquias do sertão com os portos de Aracati, Açú, Mossoró,
Goiana e Recife são nítidos. Havia uma integração comercial entre os sertões
das Capitanias do Norte, evidenciada pelos circuitos mercantis. Dessa maneira,
o sertão nos é apresentado não como um ambiente hostil e marcado pelo
marasmo, mas, em termos econômicos, bastante dinâmico, pulsante e gerador
de um mercado interno através da circulação de produtos ainda muito pouco
estudado.
181

O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES


COMPLEMENTARES:
SANTOS, BAHIA E PERNAMBUCO, 1765-18221
Denise A. Soares de Moura2

ste texto tem apenas a intenção de problematizar as relações


mercantis entre o centro-sul e as capitanias mais ao norte,
especialmente as da Bahia e de Pernambuco, ao longo de
algumas conjunturas do período 1765-1822 e sugerir que através
do giro das mercadorias coloniais e européias havia a integração
destas partes do território do Brasil ao conjunto da Monarquia portuguesa e
aos principais centros mercantis europeus especialmente após a abertura
dos portos em 1808.
Essas relações mercantis serão chamadas de complementares porque os
dados levantados na documentação demonstraram que, embora o maior
volume das importações do segundo principal porto da costa centro-sul,
Santos, proviesse do Rio de Janeiro, pólo de redistribuição das mercadorias
européias, asiáticas e africanas obtidas no comércio atlântico e índico, existiu
um intercâmbio com as capitanias do norte, especialmente a Bahia, que não
se restringiu ao circuito mercantil do sal.
Entende-se que este comércio com os dois principais pólos mercantis das
capitanias do norte completava a demanda por mercadorias européias,
africanas e asiáticas existente no centro-oeste-sul e que a praça do Rio de
Janeiro não dava conta de atender.
O caráter mais inquiridor das linhas que seguem deve-se à dificuldade do
assunto, apesar da vasta produção bibliográfica existente3, tanto nacional

1
Pesquisa parcialmente financiada pelo CNPq e pelo programa de Estágio Pós-Doutoral
promovido pela UNESP/ Banco Santander, que me permitiu a permanência de dois
meses e meio em Lisboa, onde me beneficiei de pesquisas realizadas na Torre do
Tombo e de muitas idéias discutidas nos seminários promovidos pelo Centro de Estudos
de Além Mar (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa e pelo Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa. Parte das indagações levantadas nestas linhas
foram provocadas por seminários e reuniões ocorridas no núcleo Dinâmicas Econômicas
e Sociais no Império português do Atlântico, da Cátedra Jaime Cortesão, da Universidade
de São Paulo. Meus mais sinceros agradecimentos a Maximiliano Max Menz por ceder
cópia dos mapas de importação e exportação que digitalizou para sua pesquisa sobre
o Rio Grande.
2
Pós-Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa, Doutora em História
Econômica pela Universidade de São Paulo. Professora Assistente do Departamento
de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de
Franca.
3
Três teses norte americanas podem ser consideradas ponta de lança para as pesquisas
sobre o comércio na América portuguesa e, especialmente, na Bahia. Duas foram
182 DENISE A. SOARES DE MOURA

como estrangeira, à ausência de dados alfandegários regulares, o que obriga


o investigador a permanecer no plano indagativo das fontes administrativas
e à própria extensão da pesquisa que o tema exige.
A opção pelo termo monarquia, ao invés de império, como amplamente
debatido e usado pela historiografia4, diz respeito à forma de governo. Em
todos os territórios sob domínio português, da América a Goa, o chefe de
estado tem título de rei ou rainha. Império pode ter ou não governo
monárquico.
Em termos políticos, a coroa, o cetro e o trono português uniram partes
heterogêneas, estabelecendo um elemento comum, bem definido pela
manifestação dos deputados da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas
e Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinos ao juiz da alfândega
do porto de Santos, ao solicitarem a confecção de mapas de importação e
exportação. Falavam em nome de “Dom João por graça de Deus Príncipe Regente
defendidas no Texas e uma em Nova York. Em data muito próxima à defesa destas
teses foi publicado no Brasil, por José Jobson de Arruda, um trabalho de fôlego,
redigido em 1973, sobre o comércio colonial nas várias partes do Brasil. Um trabalho
que inaugurou uma nova linha teórico-metodológica fundado no debate dos anos 80,
em torno da categoria de Antigo Sistema Colonial, foi o de João Fragoso. Na
historiografia portuguesa destacam-se os importantes trabalhos de Jorge Pedreira,
com investigação prosopográfica que muito tem influenciado a historiografia brasileira,
e de Leonor Costa. SMITH, David Grant. The mercantile class of Portugal and Brazil in the
seventeenth century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and Bahia,
1620-1690. PhD Thesis. The University of Texas. Austin, 1975; FLORY, Rae Jean Dell.
Bahian Society in the mid-colonial period the sugar planters, tobacco growers, merchants
and artisans of Salvador and the Reconcavo, 1680-1725. PhD Thesis. The University of
Texas. Austin, 1978; LUGAR, Catherine. The merchants community of Salvador, Bahia,
1780-1830. PhD Thesis. State University of New York. Stoney Brook, 1980. ARRUDA,
José Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980. FRAGOSO,
João Luís R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Jorge Miguel de
Melo Viana. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao vintismo (1755-1822).
Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa, Universidade
Nova de Lisboa, 1995. COSTA, Leonor Freire. Império e grupos mercantis: entre o Oriente
e o Atlântico. Lisboa, Livros Horizonte, 2002.
4
A historiografia nacional e estrangeira há tempo tem tomado emprestado e aplicado
reflexivamente o conceito de Império de Charles Boxer, explicando a realidade colonial
dos domínios das várias coroas européias de modo mais complexo, colocando
questões novas e, no caso do Brasil, ampliando muitas daquelas pioneiramente
lançadas por clássicos da historiografia, como Formação do Brasil Contemporâneo e
Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial. Cf. BOXER, Charles. O Império
Marítimo Português: 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; FRAGOSO, J. L.
R. (org.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; BICALHO, M. F. B & FERLINI, Vera
Lúcia A. (orgs.). Modos de governar: idéias e práticas políticas no Império Português. São
Paulo:. Alameda, 2005; ELLIOT, J. H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in
America, 1492-1830. New Haven & Londres: Yale University Press, 2007; FRAGOSO, J. L.
R. (org.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo
português. Vitória: EDUFES; Lisboa: IICT, 2006.
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 183

de Portugal dos Algarves, daquém, dalém Mar em África de Guiné”5.


Percepção que teve Caio Prado Jr. ao definir em ensaio que o que havia
nesta parte do oceano, aos olhos da administração metropolitana “eram várias
colônias ou províncias, até mesmo ‘países’, se dizia às vezes, que, sob o nome
oficial de capitanias, se integravam no conjunto da monarquia portuguesa e a
constituíam de parceria com as demais partes dela: as províncias do Reino de
Portugal e as dos de Algarve, os estabelecimentos da África e do Oriente”.
Acrescentando ainda que “a monarquia forma um complexo heterogêneo de
reinos, estados, províncias européias e ultramarinas, capitanias e outras
circunscrições sem título certo”6.
Esta compreensão dos domínios como reino ou estados da monarquia
portuguesa está no título das balanças ou mapas de exportação e importação:
resumo dos mapas de importação e exportação dos estados da Índia, África
e Brasil. Sendo o Brasil, ainda, formado por partes distintas: a “capital do Rio
de Janeiro”, os Estados do Brasil (Santos e parte meridional); Bahia e
Pernambuco.
Monarquia mercantil porque em termos econômicos o comércio integrava
estas partes heterogêneas, estabelecendo unidade na diversidade. As
mercadorias circulavam de um território a outro da monarquia portuguesa,
ligando direta ou indiretamente as partes. O comércio foi um norteador da
expansão marítima européia desde o século XV e especialmente da sociedade
portuguesa 7.
Nos territórios onde inexistiam mercadorias para pronta troca, os
portugueses criaram uma sociedade original, ocuparam, transplantaram
instituições administrativas, implantaram um sistema produtivo, almejando
atingir os “tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da expansão
ultramarina da Europa”8.
Desde o final do século XVII os domínios americanos da monarquia
mercantil portuguesa tornaram-se o centro de seus interesses mercantis, em
especial a parte centro-sul, devido a mineração. O esgotamento do potencial
aurífero do interior do continente coincidiu com crises internas da economia
portuguesa e a reação régia para criar oportunidades favoráveis.
A crise da segunda metade do século XVIII forçou um novo modelo de
5
Alfândega – almoxarifado 1722-1822. AESP. Santos, C. 00227, ordem 227, maço 1, pasta
21, doc. 1-21-3.
6
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Martins, 1942, p.
301-302.
7
PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 16-17.
8
PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 25. Em Fernando Novaes este sentido mercantil da
colonização moderna corporificou-se no conceito de Antigo Sistema Colonial: “a
colonização guardou na sua essência o sentido do empreendimento comercial donde proveio;
a não existência de produtos comercializáveis levou à sua produção e disto resultou a ação
colonizadora. Assim se ajustavam as novas áreas aos quadros das necessidades de
crescimento da economia européia”. NOVAES, Fernando. Portugal e a crise do Antigo
Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: HUCITEC, 1979, p. 68.
184 DENISE A. SOARES DE MOURA

colonização9, que na América portuguesa representou intensificação e


diversificação produtiva e mercantil e deslocamento do foco de interesses
políticos para o centro-sul.
Nos domínios americanos o coração da monarquia mercantil portuguesa
passou a ser a zona centro-meridional, tendo em vista a própria necessidade
de assegurar o domínio luso em áreas há muito ambicionadas e disputadas
pelos castelhanos, como as zonas fronteiriças do Rio Grande e Mato Grosso.
Transformar o Rio de Janeiro em sede administrativa do vice-reino, em
1763 e reabilitar a autonomia administrativa de São Paulo em 1765 foram duas
medidas chave para a realização de um novo modelo de colonização que
visava, a partir do centro-sul, preservar a parte americana da monarquia
mercantil portuguesa que mais mercadorias poderia proporcionar para a
inserção competitiva da economia lusa no comércio europeu.
Portos periféricos, como o de Santos, na capitania de São Paulo, foram
estratégicos neste processo por proporcionarem uma via de escoamento de
mercadorias européias, asiáticas e africanas na costa e no interior do
continente.
O comércio atlântico e índico, dado seu alto nível de investimentos e custos,
concentrava-se nas mãos de uma pequena parcela de grandes negociantes10,
mas a distribuição das mercadorias adquiridas nestes empreendimentos
marítimos exigia um esforço de distribuição pela costa que nem sempre
interessava ao grande negociante e abria um campo de oportunidades para
os negociantes das praças periféricas.
Desde o início do século XVIII a tendência da política metropolitana foi de
estreitar as ligações entre o Rio de Janeiro e as zonas auríferas tradicionais de
Minas Gerais, inclusive com propósitos tributários e para melhor enfrentar a
realidade concreta do contrabando do ouro.
As terras do sertão da Farinha Podre, no centro oeste mineiro, passagem
para Goiás e Mato Grosso, onde em 1736 foi fundada uma povoação, o
Desemboque11, ao lado esquerdo do Rio das Velhas, áreas de povoamento e
exploração tardia do metal, tenderam a permanecer sob a órbita de São Paulo.
A movimentação de paulistas em direção a estas áreas, indicada pela
documentação, sugere a existência de uma demanda por mercadorias
européias, asiáticas e africanas nesta parte interior do continente, que a
integrava ao conjunto da monarquia mercantil portuguesa. A vila marítima

9
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Decadence or crisis in the Luso-Brazilian Empire: a
new model of colonization in the Eigtheenth Century. Hispanic American Historical
Review, v. 80, n. 4, 2000, p. 865-878.
10
FRAGOSO, Homens de grossa...; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Os homens de negócio
do Rio de Janeiro e sua atuação nos quadros do Império português (1701-1750). In:
FRAGOSO, O antigo regime...
11
DANTAS, Sandra Mara. A fabricação do urbano: civilidade, modernidade e progresso em
Uberabinha - MG (1888-1929). Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho. , 2009.
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 185

de Santos, o Caminho do Mar e a cidade de São Paulo formaram um sistema


que promoveu esta integração.
Embora a maior atividade mercantil da praça de Santos ocorresse com o
Rio de Janeiro, havia relações com as praças do norte, especialmente com a
Bahia e em segundo lugar com Pernambuco. Se o circuito não se restringia à
praça carioca, certamente existia demanda notória nas zonas de povoamento
e exploração aurífera tardia e autonomia dos negociantes que atuavam em
Santos em relação aos do Rio de Janeiro, pois esta praça não dava conta da
demanda interior da parte centro oeste do continente.
Este texto explorará esta questão. A idéia central é a de que existiram
relações mercantis complementares entre o centro-sul e as capitanias do norte
e o porto de Santos, na parte centro-sul, desempenhou o papel de distribuidor
de mercadorias européias, africanas e asiáticas no centro-oeste do território
do Brasil.
O nível de atividade de exportação costeira deste porto periférico foi baixo,
o que sugere a existência de uma economia interior capitalizada, que não
fazia giro do comércio com mercadorias, mas com valores monetários, que
ainda não é possível quantificar, mas apenas inferir na documentação
administrativa e alfandegária.
A argumentação será construída em documentação que parte da base da
monarquia, ou seja, a câmara municipal e se estende até aquela de ordem
central, como a correspondência trocada entre autoridades régias coloniais e
metropolitanas e os mapas de importação e exportação ou balanças de
comércio da vila de Santos, Bahia e Pernambuco.
O caráter integrador dos portos periféricos
Ainda existem questões a serem levantadas na investigação sobre o
funcionamento do comércio colonial, pois os portos que poderiam mostrar
outros patamares hierárquicos do seu funcionamento despertaram pouco
interesse, como as praças marítimas menores, integradas e integradoras de
regiões ao conjunto da Monarquia portuguesa, indiretamente e por intermédio
de outras praças, como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco12. Tais praças
formaram sub-sistemas econômicos, como o porto de Santos e a Paraíba,
centros polarizadores de mercadorias coloniais e européias em suas
respectivas capitanias.
Qual o papel político e econômico que uma vila marítima periférica no
centro-sul pode ter tido no Estado do Brasil e no conjunto da Monarquia
mercantil portuguesa? Em termos econômicos e tendo em vista o sistema da
exploração colonial, a função econômica destas vilas foi a de centralizar a
exportação de produtos coloniais e importação de mercadorias européias,

12
Exceção ao trabalho de Maximiliano Menz. MENZ, Maximiliano M. Centro e periferias
coloniais: o comércio do Rio de Janeiro com Santos e Rio Grande (1802-1818). Revista
de História, São Paulo, n. 154, 2006, p. 251-266.
186 DENISE A. SOARES DE MOURA

africanas e asiáticas nas principais praças mercantis que praticavam o comércio


atlântico, como o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.
Como parte de um território pensado como unidade administrativa desde
o final do século XVII, a vila de Santos tinha articulações mercantis mais diretas
com ao Rio de Janeiro, mas as demandas abertas pelo novo padrão de
colonização da segunda metade do século XVIII fez com que tivesse certo
nível de integração com as capitanias do norte, que funcionaram como centros
complementares do comércio colonial no centro-oeste-sul do continente do
Brasil.
A vila de Santos não só manteve relações comerciais com Bahia e
Pernambuco, como foi um pólo de atração para negociantes e homens de
navegação que atuavam nestas duas praças e que movimentaram-se no
território atraídos pelas novas expectativas político-econômicas apresentadas
pelo centro-sul desde a transferência da sede administrativa da América
portuguesa para o Rio de Janeiro13.
Os produtos coloniais, europeus e do estado da Índia, os escravos d’África
comercializados pela cidade marítima de Santos integravam14 partes do interior
do continente, como a capitania de São Paulo, o oeste mineiro, Goiás e Mato
Grosso ao Recife e Bahia e, indiretamente, através destes portos, a Lisboa,
costa da África e Goa confirmando o que, em certa medida, já havia intuído
Caio Prado Júnior: de que existiam outros sistemas que asseguravam o sentido
original da colonização.
A vila de Santos funcionou como parte de um conjunto territorial e unidade
administrativa mais larga, o centro-sul, formado e articulado pela exploração
aurífera. A criação da Repartição Sul15, em 1608, demonstra o redirecionamento
dos interesses econômicos e da política administrativa da Coroa portuguesa
para esta região desde o século XVII.

13
Esta constatação deve-se à pesquisa realizada nas Habilitações de Familiar do Santo
Ofício e Ordem de Cristo, na Torre do Tombo, em Lisboa. Um banco de informações
construído a partir dos Maços de População de Santos, disponível no Arquivo do
Estado de São Paulo, permitiu chegar aos nomes de negociantes. De onze habilitados
na Familiatura, seis estabeleceram-se primeiro no Rio de Janeiro, Bahia, Recife ou
minas de Goiazes.
14
Júnia Furtado constatou processo semelhante no circuito Minas-Gerais/Bahia. Não se
tratava de movimento unidirecional, litoral-interior, mas interior-litoral, pois os
viandantes de volta de Minas levavam para o porto de Salvador produtos coloniais,
como couro e tabaco, empregado no comércio de escravos na África. As zonas
tradicionais da extração do ouro faziam parte de um amplo circuito envolvendo Salvador,
Lisboa e África. Devo fazer a mesma conexão, como o circuito Santos/ Recife combinava
o interior, outros portos do sul e capitania, África e Lisboa. FURTADO, Júnia Ferreira.
Teias de negócio: conexões mercantis entre as Minas do ouro e a Bahia, durante o
século XVIII. In: FRAGOSO, Nas rotas..., p. 170.
15
Divisão formada pelas capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Rio de Janeiro,
separada da Bahia e outras capitanias que constituíam o Estado do Brasil. Apud
BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do
Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. ed. São Paulo: Alameda, 2007, p. 22.
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 187

São Paulo e Bahia foram irradiadores originais do povoamento do interior


do continente, onde surgiu uma constelação de núcleos urbanos. Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso, os mais densos, formaram as três principais
capitanias do centro-oeste, administrativamente articuladas ao Rio de Janeiro
pela política da Coroa portuguesa somente nos primeiros anos do século
XVIII.
O povoamento do interior do território da colônia provocado pela
mineração levou a monarquia portuguesa a organizar administrativamente o
centro-sul em conjunto em dois momentos do século XVIII: nas quatro
primeiras décadas e na segunda metade. Neste processo, a importância
geopolítica da capitania de São Paulo colocou-a no foco das ações régias,
com reflexos na vila de Santos.
Em 1709, um ano após o conflito dos emboabas e respondendo ao esforço
dos paulistas de interiorização e descoberta das minas metalíferas, foi criada
a capitania de São Paulo e Minas do Ouro16, em substituição à capitania de
São Vicente, cuja sede, desde 1681 estava situada na vila de São Paulo.
A preocupação despertada na Coroa portuguesa por esta ação expansiva
dos paulistas e a necessidade de controlar com maior rigor as zonas auríferas,
com total potencial de enriquecimento da fazenda real, levaram à oficialização
da autonomia de Minas Gerais em 1720 e à criação, em 1747, das capitanias de
Goiás e Mato Grosso.
A parte meridional do território do Brasil correspondente ao Rio Grande e
a ilha de Santa Catarina foi agregada à capitania do Rio de Janeiro. Restava a
São Paulo apenas o território que envolve atualmente o estado do Paraná e o
processo de retalhamento territorial e das atribuições jurisdicionais desta
capitania, foi definitivamente concluído com a abolição de sua autonomia
político-administrativa em 174817.
A valorização e o caráter estratégico de pontos da costa centrossul no
processo de reordenamento administrativo desse período, pode ser
evidenciado não apenas pela ampliação das prerrogativas políticas e
administrativas da futura sede do vicereinado – o Rio de Janeiro – , mas pela
atribuição da autoridade militar da capitania de São Paulo ao governador da
praça de Santos, que por sua vez ficaria sob a jurisdição do governador do
Rio de Janeiro. Mas na prática as obrigações deste governador foram mais
amplas do que as meramente militares, conforme queixou-se Luis de Sá e
Queiroga a Gomes Freire de Andrade18.
Se a metrópole procurou restringir as ligações terrestres entre a capitania
de São Paulo e as áreas tradicionais mineiras de exploração aurífera,
16
Para uma interpretação sobre a política de concessões e mercês da Coroa portuguesa
em relação aos paulistas, ver: BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de
mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas; FFLCH-USP;
FAPESP, 2002.
17
QUEIROZ, Suely Robles Reis. São Paulo. Madri: Editorial Mapfre, 1992.
18
BELLOTTO, Autoridade e conflito..., p. 32.
188 DENISE A. SOARES DE MOURA

colocando-as diretamente na órbita do Rio de Janeiro, o mesmo não ocorreu


com as zonas de povoamento e exploração metalífera tardia, como o oeste
de Minas, Goiás e Mato Grosso, onde foram encontrados os aluviões mais
prósperos somente a partir de 1718.
A centralização dos esforços tributário-administrativos metropolitanos nas
áreas tradicionais, a extensão do interior do continente, território com muitas
partes ainda por desbravar e difíceis caminhos por abrir e percorrer, habitado
por brava gente indígena, pode ter levado a Coroa a fazer vistas grossas à
ação dos paulistas na parte centro-oeste do interior, deixando-a gravitar na
órbita de seus interesses. Esta hipótese em grande medida pode explicar a
grande ligação que existe ainda hoje entre esta região e São Paulo.
Para penetrar na parte centro-oeste do continente o caminho se dava por
terra e rio. Ao norte, por Mogi, havia o caminho terrestre dos Guaiases, que
levava às minas de Goiás, na direção do atual Triângulo mineiro. O caminho
para o Mato Grosso era basicamente fluvial, pelo Tietê, a rota das monções, o
que estimulou a formação do porto de Araritaguaba, um porto de embarque,
posteriormente denominado Porto Feliz19.
A integração da parte centro-oeste do continente no conjunto da
Monarquia portuguesa ocorria, portanto, através destas duas rotas, a
terrestre dos Guaiases ou a fluvial das monções. Primeiro o desembarque se
dava no porto de Santos, com a “sua barra profunda, larga e bem abrigada
pela ilha fronteira de Santo Amaro”. A vila de Santos tinha o único porto natural
da costa centro-sul20.
Separando o litoral do planalto havia a Serra do Mar. Sua subida, conhecida
como Caminho do Mar, iniciada por Cubatão, onde havia um registro, formava
com São Paulo o sistema de cidade conjugada que Caio Prado Jr. identificou
ao longo de toda a Serra21. Pode-se dizer que o sistema Santos/ Caminho do
Mar/ São Paulo foi o integrador do oeste de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso
ao conjunto da Monarquia portuguesa e através do comércio costeiro efetivo
com o Rio de Janeiro e complementar com Bahia e Pernambuco.
O comércio como re-integrador dos domínios da Monarquia portuguesa
A reabilitação da autonomia administrativa da capitania de São Paulo levada
à cabo por D. Luis de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, foi parte
de um esforço maior e oficial da Coroa portuguesa em assegurar os domínios
do centro-oeste-sul do continente do Brasil, que não se restringiu aos aspectos
militarizadores22, mas incluiu também o incentivo ao comércio e à produção.

19
PRADO JÚNIOR, Caio. O fator geográfico na formação e desenvolvimento da cidade de
São Paulo. In: Evolução política do Brasil e outros estudos. 8. ed. São Paulo: Brasiliense,
1972, p. 104.
20
PRADO JÚNIOR, Caio. Contribuição para a geografia urbana da cidade de São Paulo. In:
Evolução política..., p. 117.
21
PRADO JÚNIOR, Contribuição..., p. 117.
22
Heloisa Liberalli Bellotto enfatiza os aspectos militares. BELLOTTO, Autoridade e conflito...
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 189

Para a Monarquia portuguesa a segunda metade do século XVIII foi de


reintegração de seus domínios na América. Na parte correspondente à
capitania de São Paulo, parcela do conjunto territorial do centro-oeste-sul,
onde se centralizaram os interesses político-tributários metropolitanos, foi
necessária a ação conjunta das autoridades régias e homens de negócio para
exteriorizar sua economia.
Até então a política da Metrópole fora a de estimular a interiorização dos
colonos de São Paulo, pois o projeto político da Monarquia era o de pacificar
as partes do interior do Brasil e descobrir metais preciosos. Na segunda metade
do XVIII, como parte de suas intenções oficiais de inserção competitiva no
comércio europeu, Portugal tornara-se um dos principais re-exportadores de
mercadorias européias e asiáticas, especialmente tecidos da Índia.
O ajustamento do centro-oeste-sul do território do Brasil a esta nova fase
da política metropolitana obrigava reorientar a economia da capitania paulista
e incentivar a atividade mercantil em sua costa. É neste contexto que se
entende o reposicionamento da vila de Santos, a importância política e
econômica que adquiriu, a atenção que passou a receber da política régia, a
atração que exerceu sobre os homens de negócios locais e de outras partes
do Brasil.
Este processo de exteriorização ocorreu deixando um rastro de conflitos
com a tradição interiorizadora dos caçadores de metais e com as tendências
dominantes, mas não exclusivas, do senado da Câmara de São Paulo, cabeça
administrativa da capitania, certamente mais cioso de firmar a autoridade e
autonomia recém reconquistada através da manutenção do bom governo da
localidade.
No fim do governo de D. Luís de Sousa Botelho Mourão, os oficiais da
Câmara escreveram uma carta a D. Maria I, sugerindo que houvesse
novamente permissão para desentranharem ouro. Viam com muita dificuldade
a vida dos moradores que recorriam às mercancias, trazendo bebidas e
fazendas com “evidente risco de suas vidas e perda de seus bens principalmente
no mar o qual necessariamente se navega” 23.
O governador D. Luís e os negociantes, alguns ligados ao senado da
Câmara de São Paulo, outros atuantes na vila de Santos coincidiam em seus
interesses de estimular o comércio externo da capitania, o que implicava em
levar a produção do interior para o litoral, onde arribavam, com frequências
distintas, sumacas e bergantins das várias partes da Monarquia portuguesa.
O governador queria que este comércio se desse diretamente com o Reino,
mas os negociantes, conforme mostrou o tempo, agiam movidos pela lógica
do comércio e se concordaram em juntar-se à voz do governador foi porque
naquele momento ela era a oportunidade para realizarem seus negócios.

23
Carta dos oficiais da Câmara de São Paulo à rainha [D. Maria I] expondo as dificuldades
de comércio de São Paulo com as outras capitanias. AHU - São Paulo, Cx. 7, D. 13, D. 469
no catálogo, 1777.
190 DENISE A. SOARES DE MOURA

A exportação dos gêneros coloniais produzidos serra acima, na capitania


ou áreas limítrofes à cidade de São Paulo, como a parte sul de Minas Gerais,
prejudicava o abastecimento da cidade, situada a meio caminho entre o interior
e o litoral e a efetivação dos contratos públicos de venda de gêneros
alimentícios, que geravam renda municipal.
Conjunturas de maior demanda interna por alimentos podem ter
exasperado os conflitos entre a tradição do bom governo das cidades das
câmaras e o projeto atlantizador e mercantil da metrópole e dos negociantes
de atuação local, pois a câmara manifestou-se indignada em certas ocasiões
quanto “a falta de mantimentos que tem experimentado os povos de
Pernambuco, Bahia, Angola e Benguela” que ao soar aos ouvidos de vários
comerciantes, “entraram a formar negociações destes gêneros”. Com isso,
começaram a “atravessar pelos portos da marinha desta capitania toda a farinha,
feijão e arroz que lhes foi possível; e não satisfeitos com este monopólio, passaram
a mandar várias pessoas disfarçadas para esta cidade e seu termo, onde tem
atravessado para cima de 850 porcos e considerável número de alqueires de
farinha, e feijão, tudo para transportarem para os diversos portos, que lhes dita
a sua ambição”. Os atravessadores que andavam por Nazareth, Atibaya,
Jaguary e outras partes eram acusados de atravessarem “todos quantos porcos
acharam colhido e toda quanta mandioca acharam em termos de colheita”24.
A defesa da câmara de São Paulo ao bom governo da cidade, procurando
assegurar a política de abastecimento local, setor que também fortalecia sua
autoridade e assegurava a governabilidade pode ter sido um obstáculo para
a política régia de exteriorizar a economia da capitania através do comércio
de sua produção de gêneros coloniais, mas a exteriorização através da
importação de gêneros europeus e asiáticos não enfrentou obstáculos locais
e pode ser considerada a área de interesses dos negociantes que atuavam em
São Paulo e Santos.
O radicamento de interesses dos negociantes paulistas no comércio de
importação pode ter deixado o comércio exportador num plano secundário,
dificultado ainda pelos interesses da Câmara em garantir o abastecimento
local, antes de permitir que os cargueiros de alimentos descessem a serra do
mar.
A tradição de comércio costeiro da capitania e centralizado pelo porto de
Santos pode ter sido reforçada pelos interesses do município de São Paulo
em torno da conservação do comércio de abastecimento local. Ao governador
e de acordo com o interesse da Coroa coube a tarefa de lutar contra este
costume, como fez em 1768, condenando em ofício o costume antigo de
correspondência dos negociantes da vila de Santos com o Rio de Janeiro,
donde lhes vinha fazendas de Inglaterra, não comprando gêneros da terra
para carregá-los para o Reino. Neste ano 4 navios haviam arribado no porto,
mas foram carregar na Bahia e no Rio de Janeiro.

24
Atas da Câmara, vol. XIX, 1793, p. 368-372.
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 191

João Francisco de Oliveira, produtor de açúcar e correspondente de


negociantes da praça de Lisboa atuante em Santos ao ser advertido pelo
governador, alegou que toda a carga de um navio sob sua responsabilidade
estava pronta na Bahia e que ele não tinha ordens do dono para comprar
efeitos na capitania “o que sucederia se em Lisboa soubessem que neste porto e
capitania há efeitos que se possa carregar (...) e para isto se conseguir era
preciso que os lavradores dos efeitos e serradores de madeiras se antecipassem
a fabricá-las, te-los promptos para quando chegasse qualquer navio, pois do
contrário será preciso estar aqui um navio hum ano de espera de alguma carga,
e isto he perdição para os donos” 25.
Da Bahia e do Rio de Janeiro vinham fazendas e este deveria ser um negócio
promissor para o negociante estabelecido na capitania, pois as embarcações
arcavam com os custos de não carregar no porto, mas apenas descarregar.
Certamente estes custos eram repassados para os preços, como acontecia
com o sal, mais caro em São Paulo do que em qualquer outro ponto da costa.
Nesse caso, os negociantes atuantes na vila de Santos, serra acima, em
São Paulo e no interior dispunham de recursos monetários suficientes para
adquirir as fazendas em valores elevados e as repassava por custo alto e o
giro do comércio na região não se restringia a mercadorias, pois o a aquisição
de tecidos, por exemplo, era feita apenas em dinheiro.
Os poucos dados gerais de entrada e saída de sumacas no porto de Santos
de fato comprovam que as entradas eram superiores às saídas. Tendo em
vista que o foco deste texto é o do comércio complementar de Santos com as
capitanias do norte os dados estão restritos à Bahia e Pernambuco.
TABELA 1: NÚMERO DE EMBARCAÇÕES QUE ENTRARAM
NO PORTO DE SANTOS PROVENIENTES DE CAPITANIAS DO NORTE

ANOS BAHIA PERNAMBUCO

1 808 15 01

1 81 8 11 03

Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227.

TABELA 2: NÚMERO DE EMBARCAÇÕES QUE SAÍRAM


DO PORTO DE SANTOS COM DESTINO ÀS CAPITANIAS DO NORTE

ANOS BAHIA PERNAMBUCO

1 808 02 01

1 81 8 07 05
Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227.

25
Relação das cartas de serviço do governador e capitão general da capitania de São
Paulo, Morgado de Mateus. AHU - São Paulo, Cx. 5, D. 24, D. 340 no catálogo, 1768.
192 DENISE A. SOARES DE MOURA

Apenas com propósito comparativo, em 1808, 29 embarcações


provenientes do Rio de Janeiro entraram no porto de Santos. Estas
embarcações eram de natureza variada, conforme demonstram dados de
1818. Incluíam navios, bergantins, sumacas e lanchas. Predominaram as
sumacas (31), pequena embarcações de dois mastros, seguidas das lanchas
(18), bergantins (7) e navios (1). As entradas no porto de Santos oriundas do
Rio de Janeiro tenderam a aumentar, pois nesse ano de 1818 o total de
embarcações subiu para 57.
A principal praça que mantinha negócios com o porto de Santos, portanto,
era o Rio de Janeiro e em termos de circuitos mercantis complementares
prevalecia a Bahia, devido a proximidade entre os dois portos, mas deve-se
também considerar o papel conjunto destas duas regiões – Bahia e São Paulo
- no processo de ocupação das áreas tradicionais da mineração, o que pode
ter promovido a formação de uma rede de conhecimentos e contatos entre
negociantes atuantes nas duas áreas.
Antonio da Silva Prado, negociante de animais e arrematador de contratos
públicos, no início do século XIX comprava escravos também na Bahia, em
Caetité26. No século XVIII o comércio de tecidos serra acima, em direção ao
centro-oeste era conjunto ao comércio de escravos realizado com a Bahia.
Francisco Pereira Mendes, natural da região do Minho, como a maioria
dos negociantes portugueses estabelecidos no continente do Brasil, morava
em São Paulo e tinha negócios em Goiás. Com dinheiro, conforme informaram
todas as testemunhas do seu processo de habilitação à Ordem de Cristo,
comprava fazendas do Rio Janeiro.
Este negócio era firmado na vila de Santos, pois casou-se com uma filha
da região. Almocreves conduziam estas fazendas para Goiás, por via terrestre,
seguindo o caminho dos Goiases, pelo oeste de Minas Gerais. Em Goiás estas
fazendas eram vendidas em loja, “com receita enfardadas e atacadas”.
O dinheiro gerado nestas vendas era empregado na aquisição de escravos
da Bahia. De fato os registros das balanças de comércio da Bahia com Santos
mostram a entrada de cativos, 28 e 100 escravos novos adquiridos,
respectivamente em 1814 e 1821. Pernambuco também vendeu escravos para
Santos, totalizando 5 em 1816.
O recurso monetário era a base desta negociação, ou seja, tratava-se de
uma economia monetarizada que contava com um suporte creditício de
antigos negociantes estabelecidos neste circuito, pois o início dos
empreendimentos de Francisco Pereira Mendes só foi possível graças a um
parente já estabelecido em Goiás, que “deu-lhe crédito e abonos para ir ao
Rio de Janeiro comprar fazendas e algumas vezes escravos”27.
Os dados das duas tabelas acima não permitem falar sobre a evolução dos

26
PETRONE, Maria Teresa. O Barão de Iguape: um empresário da época da independência.
São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1976 (Col. Brasiliana, vol. 361).
27
Francisco Pereira Mendes. ANTT, Hábitos da Ordem de Cristo, Maço 4, D. 7, 1753.
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 193

negócios no porto, pois envolvem apenas dois anos que representam


conjunturas muito específicas, de transferência da corte para o Rio de Janeiro
e de conflitos independentistas no norte. Ambos interferiram diretamente
nos ritmos da navegação mercantil.
Mas esses números possibilitam pensar sobre a existência de relações
complementares ligando partes da Monarquia portuguesa e que no interior
do território, a partir da vila de Santos, subindo a serra do mar e seguindo na
direção centro-oeste havia uma demanda por importação de mercadorias
européias e uma capacidade inferior de exportação de mercadorias coloniais.
Pesquisas já demonstraram o caráter deficitário da praça de Santos28,
característica inclusive das grandes praças, como indica a leitura dos dados
das balanças de comércio. No caso de São Paulo, o comércio de animais e o de
tecidos de luxo no oeste de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás pode ter
monetarizado a economia da capitania a ponto de evitar o estrangulamento
de seu principal porto.
Embora deficitária, a tendência das exportações em Santos foi de
crescimento. Já no final do século XVIII era informado que a praça exportava
para “Lisboa e Rio de Janeiro oitenta mil arrobas de açúcar, pouco mais ou
menos que se vai em cavalgaduras da vila de Itu e outras de serra acima para
esta, aonde se encaixou e como também outros feitos e mantimentos e
produções das ditas vilas que nesta se exportam para a Bahia, Rio de Janeiro
e Rio Grande e que tudo aqui faz e maior tráfico, como vila, porto de mar mais
notável e interessante a esta capitania29.
Essa tendência pode ser observada ao longo dos primeiros anos do século
XIX no caso do açúcar e de outros gêneros coloniais:

ANOS N O DE B ARCOS EXPORTAÇÃO TOTAL EXPORTAÇÃO DO AÇÚCAR

1 801 2 21 ;235$1 00 1 9:1 4 1 $200

1 802 2 66:01 5$000 60:01 5$500

1 803 3 7 6:282$64 0 60:1 7 1 $4 00

1 804 4 1 94 :04 1 $1 4 0 1 4 1 :94 4 $4 80

1 805 8 27 3:930$54 0 1 96:254 $200

1 806 7 1 95:4 60$1 4 0 1 03:227 $200

1 807 10 229:020$060 86:7 32$900

Fonte: Holanda, S. B. op. cit., p. 419.

28
MENZ, Centro e periferias..., p. 251-266.
29
Mapa da exportação dos produtos da paróquia da vila de Santos no ano de 1798.
Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-2.
194 DENISE A. SOARES DE MOURA

TABELA 4: CÁLCULO REALIZADO SOBRE OS DADOS DA TABELA 3

ANOS VALOR TOTAL DAS EXPORTAÇÕES DE OUTROS GÊNEROS

1 801 2:093$900

1 802 5:999$500

1 803 16:111$24 0

1 804 52:096$960

1 805 77:676$34 0

1 806 92:232$94 0

1 807 142:287$160

Da praça de Santos exportava-se couros, café, tabaco e algodão. A


diminuição do volume de exportações do açúcar foi relativamente
compensada pelo crescimento vertical das exportações de couro e arroz, que
passaram respectivamente, entre 1801 e 1807, de 298$400 a 52:389$480 e de
79$500 a 45:618$24030.
O mapa de exportação de 1798 oferece um quadro mais amplo, indicando,
aguardente, goma, farinha de mandioca, madeira com tabuado, azeite de
baleia, peixe seco31. Parte destas mercadorias exportadas eram produzidas
na própria vila, pois em 1815 a Câmara informava que os produtos locais eram
aguardente, farinha de mandioca, arroz em casca, feijão, milho e café,
perfazendo um total de 12:240$000, sendo que a farinha de mandioca
englobava os maiores valores, 5:698$80032.
Em dados da alfândega de Santos para os anos de 1816 e 1818 nota-se uma
maior diversificação das importações da Bahia e Pernambuco em Santos,
especialmente com relação a gêneros produzidos em Minas Gerais, como os
derivados do porco, queijos, fumo ou tabaco e doces33.
Nenhum destes gêneros da indústria mineira aparecem nos mapas de
exportação da Bahia e Pernambuco, o que indica que eram estritamente
empregados no consumo interno da região.
No caso da Bahia, ao cruzar os gêneros importados de Santos entre 1808
e 1809 com os exportados para outras partes da Monarquia percebe-se que
arroz, café e tabaco seguiram para Portugal, Ilha da Madeira; tabaco para a
Costa da Mina e Goa. Parte destas mercadorias exportadas certamente era
30
HOLANDA, Sérgio Buarque. São Paulo. História Geral da Civilização Brasileira - tomo 2 -
vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 420.
31
Mapa comparativo das produções da paróquia da vila de Santos com a especificação
do que se consumiu na mesma e dela se exportou no ano de 1798. Alfândega –
almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-1.
32
Câmara Municipal, Ofícios, 1721-1822. Santos. AESP COO236, D. 10-7-19
33
PRADO JÚNIOR, Formação..., p. 148, p. 197-198, p. 203.
O COMÉRCIO COLONIAL E SUAS RELAÇÕES COMPLEMENTARES 195

TABELA 5: GÊNEROS EXPORTADOS PARA AS CAPITANIAS DO NORTE


ANOS B AHIA PERNAMBUCO MARANHÃO

Tou cin h o, ban h a,


v el as de s ebo,
pipas de azeite
Tou cin h o,
de peixe, car n e
ar r oz, ban h a,
de por co, ar r oz,
feijão, qu eijos
feijão, far in h a de
de min as ,
1 81 6 man dioca, far in h a -
caixetas de
de tr ig o, qu eijos
mar mel ada,
de min as ,
fu mo de s er r a
caixetas de
acima
mar mel ada, fu mo
de s er r a acima,
taboado, café

Tou cin h o,
ban h a, car n e
de por co,
Açú car , tou cin h o,
fu mo de
car n e de por co,
min as , feijão,
ban h a, fu mo de
far in h a de Toicin h o, ban h a, car n e
min as , far in h a de
man dioca, de por co, fu mo de
man dioca, feijão,
1 81 8 mil h o, qu eijos min as , ar r oz, feijão,
ar r oz, caixetas de
de min as , far in h a, qu eijos da
mar mel ada,
caixetas de ter r a
mil h o, qu eijos da
mar mel ada,
ter r a, taboado,
azeite de peixe
g amel as
g r os so, cer a
da ter r a, v el as
de s ebo

Fonte: Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227.

proveniente de Santos. Pernambuco não teve, entre 1811-1815, qualquer tipo


de comércio com a Ásia, ao contrário da Bahia e exportou para o Porto e
Lisboa arroz, um dos produtos que também adquiria em Santos.
Arroz, tabaco, café, mercadorias que faziam parte do conjunto de
exportações de Santos para Bahia e Pernambuco eram resultado de um circuito
mercantil controlado por este porto na costa da capitania e que envolvia
Ubatuba, Ilhabela, São Sebastião, Iguape, Paranaguá e Santa Catarina.
O comércio de Santos com as capitanias do norte foi complementar ao do
Rio de Janeiro porque o conjunto das mercadorias importadas era bastante
semelhante. Em 1798 foram importados vinhos de Lisboa, azeite, vinagres,
panos de lã, baetas, chapéus, fitas, lenços, todos finos e ordinários, meias de
seda, chitas finas e ordinárias, sal de contrato, vinho do porto, linhas finas,
ordinárias e grossas, panos de linho fino e ordinário, baetas dos países
estrangeiros, bertanhas, baetões, durantes finos e ordinários, duquetes
castores e ordinários, melanias, retrós do porto, enxadas, pregos, pomadas,
louça dos portos do Brasil, pano de algodão, aguardente, feijão, toicinho34.
Observando os mapas de importação e exportação das duas principais
praças deBahia e Pernambuco, entre os anos 1808-1809 e 1811-1815, nota-se
que tecidos de luxo vinham especialmente do Recife. Essa praça não teve
34
Mapa dos preços correntes na paróquia da vila de Santos nos meses do ano de 1798.
Alfândega – almoxarifado, AESP, 1772-1822, Santos, C00227, D. 1-25-4.
196 DENISE A. SOARES DE MOURA

comércio com a Ásia neste intervalo, o que indica que a mercadorias vinha
especialmente da Europa, Portugal e Grã Bretanha, tendo em vista que a
liberdade de comércio já estava estabelecida. Da Bahia vinham vários tecidos
adquiridos em Goa, mas todos ordinários.
Em 1809 a pauta de importações da Bahia em Goa incluía anil, baetas,
canela, chá, chalés, chitas, coromandeis, drogas, gangas, gantaz, gengibre,
golas, linhas surrates, lenços, maragazes, manodiz, morins, pimentas,
prócolos, pimenta, sanas, zuartes35. Entre 1814-1816-1817-1821 Santos importou
da Bahia baetas, chalés de seda, sanas, gangas (tecido vulgar), zuarte (tecido
de algodão ordinário) e drogas, mercadorias que este porto comprava
também na Ásia36.
As mercadorias de luxo também eram provenientes de Pernambuco.
Tomando apenas o ano de 1816 aparecem na listagem das mercadorias
importadas: chapéus finos, vestidos, guarda sol, chalés, meias, tudo em seda.
Seguiam ainda gêneros de consumo alimentar europeu, como manteiga,
queijos flamengos, bacalhau, vinho, azeite, vinagre. Como produto colonial
destacam-se os “cocos de cumer”. Estes “cocos de cumer” eram
comercializados na costa sul, especialmente em Santa Catarina.
O que leva a crer que os tecidos e vestimentas de luxo adquiridas nos
portos das capitanias do norte, complementado o que já vinha do Rio de
Janeiro, subia a serra é a constatação, através dos registros de exportação de
Santos, que estas mercadorias não eram distribuídas na costa da capitania.
Para Iguape, Paranaguá, Rio de São Francisco seguiram apenas panos ou
varas de panos de algodão e pacotes de fazenda.
As mercadorias européias, asiáticas e escravos da costa da África adquiridos
por Santos via capitanias do norte integravam, portanto, o interior da capitania
e o oeste de Minas Gerais e Goiás à Monarquia portuguesa. Os portos menores
da costa eram agregados ao conjunto da Monarquia portuguesa como
fornecedores de mercadorias coloniais, seguidos via Santos para as principais
praças atlânticas e para Goa.
O comércio complementar aperfeiçoava o comércio colonial, possibilitando
o acesso às mercadorias européias, viabilizando sua redistribuição em partes
isoladas e distantes da costa, ampliando a margem de circulação das
mercadorias coloniais e assegurando a organicidade da Monarquia
portuguesa.

35
Mapa da importação que fez Portugal e navios estrangeiros, África, Ásia e Portos do
Brasil sobre a Bahia em todo o ano de 1808.
36
Mapa da Importação e Exportação do Porto de Santos nos anos de 1814, 1816, 1817,
1821.
197

A OFICINA DOS RITOS: ARTÍFICES


NO ARSENAL DE GUERRA DE PERNAMBUCO

Acácio José Lopes Catarino1

s compromissos dos agentes da Coroa nos domínios colonizados


têm, por muito tempo, sido descritos nos termos de suas relações
junto a grupos bem situados nas redes políticas e econômicas
do Império. A outros sujeitos sociais caberiam, no mais das vezes,
disposições reativas e pontuais, em especial de caráter
repressivo.
As investigações vêm crescentemente considerando estes poderes para
bem além da imagem usual de entidades distantes, irresolutas e paquidérmicas.
Entretanto, sem recair numa visão dicotômica2, é necessário problematizar a
presença dos delegados da Coroa nos diversos âmbitos espaciais e
institucionais nas quais se insere.
A partir de uma série documental sobre o Arsenal de Guerra de Pernambuco
(referenciado até os anos 1820 como o Trem de Artilharia), pretende-se aqui
abrir uma pequena janela sobre como impactos fundamentais nas condições
de trabalho de muitos homens livres, como os artífices, não teriam se efetivado
sem o concurso dos órgãos da Coroa.
O período que decorre das reformas empreendidas por Lisboa desde o
Marquês de Pombal representa, para a vila do Recife e seus habitantes, o
momento em que novos atores adquirem visibilidade nos registros das
autoridades, seja originadas pelos delegados da Corte ou pelos representantes
dos poderes locais. No caso dos primeiros, percebe-se o estabelecimento de
canais diretos com a população livre urbana de modos muito diversos, que
vão desde sua participação nas obras públicas até o apoio direto a associações
caracteristicamente pertencentes a estes moradores, como a Irmandade de
São José do Ribamar dos Quatro Sagrados Ofícios3.
Nesse sentido, as necessidades de abastecimento dos corpos militares de
primeira linha ou de milícias vão gerar um circuito de produção e consumo
que se inicialmente limitou-se à compra de gêneros e artefatos para os quartéis
1
Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto do
Departamento de História e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do Grupo de Pesquisas Estado
e Sociedade no Nordeste Colonial (NDIHR-UFPB/ Diretório CNPq).
2
Como exemplar entre muitas obras neste sentido, ver: MELLO E SOUZA, L. O sol e a
sombra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
3
Para maiores aprofundamentos, ver o primeiro capítulo de: CATARINO, Acácio José
Lopes. A interface regional: militares e redes institucionais na construção do Brasil
(1780-1830). Tese de Doutorado (História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas; Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.
198 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

e vilas, iriam progressivamente incluir a contratação de artífices e mesmo sua


conscrição. Uma relação nova e problemática institui-se então para estes
soldados-especialistas, até então forjados pelos padrões da economia moral4
em suas oficinas, e que os coloca sob uma hierarquia que é não só
burocratizada como também militarizada, com suas lógicas próprias.
Este jogo iria se desdobrar para além da esfera dos mestres e oficiais,
chegando ao estabelecimento de oficinas de aprendizes, assim afetando
profundamente a reprodução de toda esta camada A atribuição de sua
(possível) decadência pela concorrência das mercadorias européias após a
abertura dos portos (a partir de 1808-10) tem que ser assim relativizada pela
intervenção destes aparatos militares.
Nos limites deste trabalho, será privilegiada a experimentação de moldes
burocráticos adequados ao gerenciamento de grupos de trabalhadores nas
oficinas do Arsenal de Pernambuco a partir de 1811, quando se inicia a série
documental, ao final do Primeiro Reinado, após o qual se assiste a profundas
revisões no papel dos militares na construção do Estado. Entretanto, para
que não sejam entendidas como uma série de ações localizadas é importante
retomar brevemente como os formuladores das políticas de modernização
absolutista5 na cultura política luso-brasileira pretendiam refazer este setor.
Com relação aos artífices, já há algum tempo estavam sob pressão da
própria Corte. Marcelo Caetano demonstrou como desde 1761 decretos régios
proporcionaram à Junta de Comércio assumir uma jurisdição paracorporativa,
deslocando a anterior autonomia da Casa dos Vinte e Quatro e da Câmara6. D.
José I pôs-se à frente das reformas dos regimentos dos mesteres de Lisboa a
partir de 1771, cujas consequências seriam o aperto sobre os jornais pagos e a
uniformização dos padrões produtivos.
Estas intervenções caminham a par de um renovado interesse pelas
manufaturas, a princípio associadas ao fornecimento da Casa do Rei e dos
regimentos do exército (como os lanifícios da Covilhã, Fundão e Porto Alegre).
Há movimentos entretanto num sentido mais articulado ao Império, como a
obrigatoriedade de todos os teares de seda de Lisboa e seu termo a integrarem
uma única corporação, o que possibilitava à Real Fábrica de Sedas do Rato
concentrar a limitada e dispersa produção doméstica e das oficinas de modo
a estabelecer um fluxo regular, adequado à exploração pelas companhias de
comércio dos monopolizados mercados coloniais. Não demorou muito para
que este circuito fosse considerado por um contemporâneo de D. Maria I “o
4
No sentido indicado Por E. Thompson: “O meu objeto de análise era (...) a cultura política,
as expectativas, as tradições e até as superstições dos trabalhadores (...); e as relações – às
vezes negociações – entre a multidão e seus governantes (...)”. THOMPSON, E. Costumes
em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 204.
5
Nos termos do segundo capítulo, “La modernidad absolutista” de F. Guerra. GUERRA, F.
Modernidad e independencias: ensayos sobre las Revoluciones Hispánicas. 2. ed. Ciudad
del México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 55 e ss.
6
CAETANO, M. A Antiga Organização dos Mesteres da Cidade de Lisboa. In: LANGHANS,
F. As corporações dos ofícios mecânicos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1943, p. IX-LXXV.
A OFICINA DOS RITOS 199

esteio do império”.
No entanto, o alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibia manufaturas de
linho, lã, seda e algodão nos domínios da América, reconhece que “a verdadeira
e sólida riqueza [consiste] nos frutos e produções da terra, os quais somente se
conseguem por meio de colonos e cultivadores e não de artistas e fabricantes”7.
Mas seria enganoso deixar-se levar apenas pela sua implícita valoração
fisiocrática, ou assumir que com a política de contenção do contrabando
fossem os únicos móveis a respaldar os interesses em torno desta questão.
O lugar reservado às atividades dos artífices em textos econômicos de um
doutrinador paradigmático pode exemplificar outras razões por onde se
buscava encaminhar este setor na virada do século XVIII para o XIX8. Tomando
como ponto de partida e de chegada de sua reflexão a articulação equilibrada
entre as diferentes partes do Império, Azeredo Coutinho admite sua
necessidade para a autonomia do Reino frente a outras monarquias da Europa,
mas adverte para os cuidados na implementação dos estabelecimentos.
A todo custo deveria ser evitado o excessivo afluxo de riquezas neste
setor para não desequilibrar aos demais nem encarecer em demasia a mão-
de-obra. O fabrico de artigos de luxo exigiria artífices qualificados, aliás mais
comuns nas potências concorrentes e, portanto, não deveriam ser
consentidos. Mas o mais interessante é a relação que tece entre razão de
Estado e os homens livres que andavam à margem dos benefícios do progresso
material do Império. Os estabelecimentos a serem fundados deviam
simultaneamente promover a fixação dos pobres e ocupá-los nos serviços
vitais à República, ou seja, na produção de vestuário e armas para o exército,
velas e cordas para a marinha, além do couro e do papel.
Deste modo, os arsenais de guerra (e de marinha) tinham uma função
implícita de integrar os desocupados ao impedi-los de servir a si próprios,
guiando-os em direção aos interesses maiores da nação. Na capitania de
Pernambuco, este papel pode ser creditado primordialmente à Inspetoria do
Trem Militar. Como o Trem encontrou a sua forçada clientela e como pode
adaptá-la aos seus propósitos?
Para isto é importante avaliar as dimensões externas e internas que
conformaram a oficina urbana. Em primeiro lugar, o serviço de Sua Majestade
requeria não apenas homens livres mas também sua fixação, sua constância,
sua regularidade. Estas premissas estavam ausentes das experiências
cotidianas dos artífices coloniais e, por conseguinte, sua integração trazia a
necessidade de modificar, pelo menos em parte, a postura de incorporação
eventual em favor de outros modos de controle, mais sofisticados que os
usuais e mais adequados ao manejo de homens e coisas nas atividades
artesanais.
7
NOVAIS, F. A proibição das manufaturas no Brasil e a política econômica portuguesa no
fim do século XVIII. Revista de História, São Paulo, n. 67, p. 165.
8
COUTINHO, J. de A. Ensaio sobre o comércio de Portugal e suas colônias. In: HOLANDA,
S. B. de (org.). Obras econômicas de Azeredo Coutinho (1794-1808). São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1966, p. 55-172.
200 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Seria necessário, desse modo, inserir uma cunha regeneradora nos hábitos
destas camadas. Não havendo possibilidade de maiores reformulações
tecnológicas ou de importação maciça de mão-de-obra qual poderia ser a
saída? A resposta poderia estar na subversão da hierarquia tradicional da
oficina pela sua subordinação ao controle militar direto.
O que representava subverter esta hierarquia? Já não se tratava apenas
de encaminhar novas ordens e diretivas gerais e esperar vê-las atendidas;
significava, de um só golpe, penetrar na normatividade consuetudinária da
oficina para enfraquecê-la em seu interior e reconstruí-la num outro campo
do jogo de representações simbólicas do trabalho. A burocracia busca então
ser o elemento coesionador ao romper com alguns dos pontos-chave destas
relações tradicionais, pois ao submetê-la a uma ambiência institucionalizada
emprestou-lhe um caráter como que obrigatório, dotado de uma lógica fixa,
ao contrário do personalismo e da aleatoriedade que regiam a oficina na
cidade colonial.
De qualquer modo, é possível começar a caracterizar quais são as balizas
desta mudança de perspectivas ao rever o comportamento dos personagens
inseridos na oficina tradicional. Uma gravura de Debret sintetiza um dia na
oficina de um sapateiro. Embora as prateleiras envidraçadas e os calçados de
seda colorida demonstrem uma boa situação do mestre, também o mostra
trabalhando cercado por seus escravos, desvelando uma ambiência comum a
outros artífices. A punição como parte do rito cotidiano é assinalada pelo
texto explicativo que acompanha a gravura, como um castigo recebido “de

Fig. 1 – Jean-Baptiste Debret, A Loja do Sapateiro.


Gravura publicada no Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.
A OFICINA DOS RITOS 201

acordo com a falta” – para aquele que a aplica e inclusive para quem a sofre9.
Esta cena, que é registrada com certa ansiedade por outro dos escravos
presentes, é observada por sua mulher através da porta que comunica a
oficina aos aposentos domésticos. Esta aparente intimidade é ainda mais
ressaltada por estar amamentando uma criança. Ao mesmo tempo, o interior
da of icina não parece estar vedado à entrada livre de fregueses ou
companheiros dos sapateiros
A partir da identificação da oficina como ponto de interseção do espaço
doméstico com a rua, o artesão reagia costumeiramente aos diversos estímulos
destes ambientes de forma mais ou menos livre, retardando ou acelerando
encomendas segundo sua conveniência, num procedimento que
possivelmente causava estranheza a estrangeiros, oriundos de sociedades
aonde a ética do trabalho abstrato já se vulgarizara em amplos setores.
Neste enquadramento oficinal também a compulsão tinha seu lugar –
como foi dito, um dos trabalhadores é punido de forma dolorosa –, mas esta
hierarquização centrada na figura do mestre era contrabalançada pelo fato
de que a tradição limitava seu alcance ao inscrever num mesmo horizonte
cultural os integrantes da oficina. Num quadro de escassa mobilidade social e
cultural-valorativa, isto acabava por gerar um encadeamento de atitudes e
expectativas circulares quanto à sua inserção no local de trabalho e na vida
social – neste período fortemente imbricados –, que se por um lado
estabilizaram a rotina das oficinas, por outro lado as tornaram pouco
adaptáveis às novas necessidades do século XIX, que no Brasil também foi
um período de mutações generalizadas.
O Trem impacta-se à esta iniciação pela sabedoria “comum”, tradicional.
Ao controle pessoal, opõe a ordenação institucional e impessoal; ao saber
implícito no fazer, explicita um discurso racionalizante e transcendental, que
apela ao serviço da Pátria e do imperador. Um mantém-se pela reiteração dos
atos cotidianos, outro procura reproduzir-se pelo efeito teatral ou coercivo,
adaptável segundo as exigências das diferentes conjunturas.
A superposição do militarismo ajudou a este tráfego: vincula-se melhor o
trabalhador à defesa da nação, à manutenção da soberania. Na fala dos
inspetores foi muito forte a perspectiva ordenadora universalizante: No Trem,
“como Casa Real”, trabalha-se “por conta da Nação” porquanto “é a primeira
obrigação do vassalo habilitar-se no exercício das armas para defender o seu
soberano e sua Pátria”. Não por acaso os inspetores estavam no epicentro do
poder militar da capitania, assinando seus documentos a partir do “Quartel
de Pernambuco” 10.
O Trem, portanto, foi um dos efetivadores desta passagem vital – necessária

9
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. 2 vol. São Paulo: Martins;
Edusp, 1972, p. 251.
10
Respectivamente, Arsenal de Guerra (AG). AG-1, 5.6.1818, f. 242; AG-1, 29.9.1823, f. 150;
AG-1, 11.3.1819, f. 277.
202 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

mas não suficiente para instalar mecanismos de controle especificamente


capitalistas – da inversão da equação:

TRABALHO = ESPAÇO DA RUA + ESPAÇO DOMÉSTICO

para a relação:

TRABALHO = CONTROLE INSTITUCIONAL X NÃO-TRABALHO = CASA/RUA.

Se a primeira equação tendia a equilibrar os laços que unem os estímulos


da rua às exigências da casa, a segunda operou uma ruptura ao instituir uma
polarização completa entre estes espaços, absolutizando a prioridade do
tempo de trabalho sobre as demais atividades do artífice.
Estes instrumentos de controle do trabalhador generalizaram-se a tal ponto
que por vezes se torna difícil percebê-los como fatos históricos, isto é,
construídos; mas para os que sofreram esta implementação, devem ter
adquirido uma dimensão bem mais chocante do que poderia parecer
atualmente. Como alguém já disse, os homens do século XIX não sabiam que
atitude tomar frente ao trabalho; já no século XX não se sabe o que fazer fora
do trabalho.
Estas modificações podem ser inicialmente diferenciadas segundo suas
consequências diretas ou indiretas sobre o processo de produção. As
instalações do Trem dispunham-se de modo trinário, com oficinas, quartel
dos educandos e armazéns. Isto dará origem a um dos maiores problemas
enfrentados pelos inspetores: a dispersão por vários pontos da cidade da
estrutura física do Trem.
As oficinas ocupavam parte do antigo Colégio dos jesuítas (também
utilizado como Palácio de despachos dos governadores desde o final do século
XVIII), defronte ao cais que passou a ser chamado “do arsenal”, facilitando o
recebimento de materiais de grande porte ou número por via marítimo-fluvial.
O parque do Trem estava situado em uma casa no extremo norte do bairro
de Santo Antônio, junto ao Palácio Velho; armazenando madeirame, reparos
e carros de artilharia de posição e de campanha11. A ele estava anexo o
Laboratório pirotécnico, que devido ao manejo de materiais explosivos não
podia situar-se dentro do arruado12. Já o quartel dos educandos ficou próximo
ao Trem, permitindo que circulassem por duas vezes a cada expediente entre
as oficinas e o quartel para as refeições, aulas e dormida13.
Esta configuração tornou quase impossível o acompanhamento imediato
dos serviços e deixou certamente aberturas para o enraizamento de atitudes
independentes nas oficinas. No mínimo trouxe dificuldades para uma
coordenação ampliada das oficinas, condição básica para sua transformação
11
Respectivamente, AG-1, 2.11.1818, f. 253 e 8.2.1819, f. 265.
12
Apesar de que por vantagens na vigilância o inspetor procurou trazê-lo para o Convento
do Carmo. AG-1, 23.2.1818, f. 240.
13
AG-2, 10.2.1824, f. 175 e 175 v.
A OFICINA DOS RITOS 203

em manufatura orgânica. Não é de admirar que o inspetor Amaro de Moura


tenha proposto em 1828 o desligamento do parque (que deveria voltar ao
controle do regimento de artilharia) e dos educandos, que poderiam ficar
adscritos ao Liceu provincial14.
Já o inspetor Michiles considerava que o problema principal do Trem não
estava tanto no sistema de administração e nem mesmo na prejudicial forma
de compras pela Fazenda Real, mas na falta de controle da entrada e saída
dos trabalhadores; por algum tempo sua preocupação girou em torno da
construção de um novo edifício, cujo plano deveria ordenar os fluxos segundo
as necessidades do trabalho contínuo nas oficinas, evitando deste modo a
intromissão de particulares, as ausências dos artífices e o sumiço dos produtos:
sem isso, “as faltas continuam e só se podem conhecer segurando o contorno do
Trem e fechando algumas oficinas”15.
Parecia que ao tentar estabelecer registros contábeis e dispor as instalações
físicas de modo a disciplinar o artífice, a nova ordem precisava ao mesmo
tempo murar-se para resguardar-se de um ambiente hostil. A segregação se
exprimiu através de diversos modos de controle destes intercâmbios.
Em uma relação enviada ao presidente da província caracteristicamente
dividiram-se os empregados do setor de apoio burocrático entre os que
cuidavam da guarda (dos objetos), da vigilância (dos trabalhadores) e da
escrituração 16. O controle diário de presença era realizado pelo fiel do
almoxarife, mas a barreira que gerou mais tensões no dia-a-dia foi a efetivada
pelo porteiro, encarregado não só da abertura do expediente como da
inspeção no encerramento, acompanhado do oficial ajudante-de-ordens do
inspetor, o que resultou em diversas prisões e rixas17.
As licenças também permitiram regular as saídas mais prolongadas,
intermediadas pela autoridade dos médicos do Hospital Militar ou abonadas
pelo inspetor àqueles mais disciplinados, constituindo-se em mais um espaço
de negociação entre as partes18.
A melhor expressão pictórica desta mudança é o mapa de presença: dividido
uniformemente, sequenciado de oficina em oficina pela escala hierárquica,
não apresenta nomes e sim uma contabilidade que diz respeito ao tamanho
do plantel empregado e às somas despendidas em pessoal e material.
Esta contabilidade (que tinha sua origem também nas demandas dos
demais órgãos públicos, claro) exigia e justificava a presença de uma
burocracia anexa, guardiã das regulamentações e canal privilegiado das
relações do Trem com o mundo exterior, do qual tentará filtrar apenas aqueles
estímulos condizentes com os fins ideais da instituição. Muitas vezes os
14
AG-2, 17.6.1828, f. 37. Deve ser lembrado que não só as armas dos milicianos foram
controladas pelos inspetores, como também a ferraria da intendência.
15
AG-1, 19.11.1818, f. 255; AG-1, 2.11.1818, f. 252 v e AG-1, 28.11.1818, f. 256 v.
16
AG-1.21.10.1825, f. 113.
17
AG-1, 1.10.1821, f. 219; AG-1,14.10.1825, f. 98; AG-2, 9.9.1831, f. 163.
18
AG-1, 18.6.1824, f. 188; AG-1, 24.4.1823, f. 128; AG-1, 28.7.1820, f. 311.
204 ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

inspetores não aceitaram ordens “bocais”, como diziam, insistindo na


transmissão escrita dos requerimentos.
Estas regulamentações acabam por imprimir um sentido diverso do
cotidiano das oficinas, manifestado pela precoce autoconsciência destes
empregados. Contrariamente ao que ocorria na área empenhada na
produção, onde prevalece a improvisação (que às vezes é uma virtude no
artífice), estes funcionários estavam em boa posição para barganhar
vantagens. Conhecedores dos códigos do aparelho do Estado e munidos de
informação a que somente eles poderiam ter acesso (como por exemplo os
salários na intendência e no Erário), demonstram a tendência de
homogeneização do incipiente organismo público entre os serviços-meio,
introduzindo por vias transversas no Trem princípios mais sofisticados e
abstratos de avaliação e valorização da força de trabalho.
Embora procurando inserir suas atividades “no meio deste comum
Laboratório” para melhor justificarem suas necessidades, sua especificidade
como articuladores bem pode ser aquilatada pelas consequências da fuga e
prisão do fiel do almoxarife durante o cerco da Junta de Goiana: fome entre
os setenta e três educandos, atraso nos jornais dos artífices, descontrole dos
registros de presença e perda durante semanas dos contatos com a Fazenda
Real19.
Através desta burocracia, portanto, se produziam novos modos de
referenciação do trabalho, que repercutiram do um modo ou de outro no
interior das oficinas. Procurou-se estabilizar uma mecânica disciplinar através
da regulamentação das funções, de modo a uniformizar os castigos segundo
a hierarquia; se, como diz Mello e Souza, a pena e o castigo são o próprio meio
de conversão do desclassificado em homem livre útil, os inspetores do Trem
procuraram ultrapassar a simples resolução deste ônus, tanto ao considerar
que a eficácia dependia de contrapartidas – “o Estado ganha em lhes pagar
bem e castigá-los melhor” – como ao buscar a reprodução em novos termos
dos trabalhadores ao constituírem uma oficina de educandos20.
Estes inspetores, inclusive, aliavam à sua autoridade o conhecimento do
especialista na artilharia e engenharia – alguns deles chegaram a publicar
escritos em Portugal e no Brasil. Na Europa, foi através de construtores –
como Brunelleschi – e principalmente através dos militares – como Vauban,
fundador da engenharia militar, a “matriz das engenharias” – que a
racionalidade realista e funcional abriu brechas iniciais no domínio dos ofícios
pelas corporações artesanais; “o soldado da engenharia é o soldado coletivo,
programado”, que fornecia modelo para a organização manufatureira do
trabalho21.
A lógica do soldado casa-se até certo ponto com a do artífice: foram dos
19
AG-1, 10, 16, 21 e 28.2.1821, f. 207 a 210 v; AG-1, 1 e 16.10.1821, f. 219 e 221.
20
AG-1, 28.11.1818, f. 256; AG-1, 28.2.1821, f. 208 v. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados
do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 74.
21
GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 243.
A OFICINA DOS RITOS 205

primeiros a viverem de soldo na cidade colonial, bem como sua gradação


corporativa possuía elementos comuns – seus graduados se identificavam
como “mestres” e “oficiais”. Mas não há dúvidas que as sobreposições
hierárquicas ocorridas no Trem indicavam a predominância dos componentes
militarizantes: “O Trem é um estabelecimento militar, o inspetor dele um oficial
militar e sobre um e outro (exceto o caso da compatibilidade) só Vossa Excelência
governa” 22. Os artífices nele “assentam praça”, as oficinas são supervisionadas
por militares de alta patente e ponto capital para o provimento do mestre era
sua subordinação – a existência de oficinas sem mestres pode também dever-
se a essas exigências.
Entretanto, os limites técnicos deste controle não apenas faziam com que
a coerção direta fosse utilizada alternadamente a outros meios, como se
expressavam inclusive pela manutenção das anteriores subdivisões dos ofícios,
posto que favoreciam a vigilância mais estrita dos mestres e diminuía os meios
humanos e materiais postos a sua disposição, como o mostra a punição do
mestre da ferraria – que havia destratado o coronel de artilharia encarregado
das oficinas de fundidores e funileiros:
Remeti-o outra vez para a cadeia e rogo a / V. Excelência que no
caso em que ele insista / em não vir ao Trem, o mande carregar de
ferros / e que se disser que está doente o faça curar / preso no
Hospital Real Militar à sua custa. Este / homem tem a seu cargo e
responsabilidade muito / ferro, aço, limas e ferramentas, e
mostrando-se / ressentido por haver sido preso pelo Major Michiles
/ ou não querendo trabalhar no Trem por / assistir o Capitão Miranda
torna-se uma cabeça de / motins. 23
Como se pode depreender, todas aquelas modificações introduzidas pela
burocratização do trabalho na oficina foram na prática vivenciadas como
uma desqualificação no estatuto destes trabalhadores, seja através das
penalidades ou pela assimilação ao trabalho compulsório, seja pelo
rompimento dos laços corporativos ou pela perda de sua relação direta com
o mercado. De qualquer modo, seria a Coroa que por meio de suas vertentes
militares tentou recriar a figura do artífice na urbe, concretizada através da
sua instrumentalização pelos arsenais régios, seguindo os objetivos da
proposta coutiniana de manufatura.

22
AG-1, 29.4.1819, f. 295 v.
23
AG-1, 4.3.1819, f. 273 v.
206

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em papel Pólen 80g/m2 (miolo) e papel Supremo 240g/m2 (capa),
com tiragem de 500 exemplares, em dezembro de 2009.
Sua editoração utilizou os softwares Adobe PageMaker e CorelDRAW!
O corpo do texto foi composto com a fonte Candara.
As capitulares foram retiradas do livro Les singvlarites de la France
Antartiqve, avtrement nommée Ameriqve: & de plvsievrs Terres et Isles
decouuerts de nostre Temps, do Fr. André Theuet, publicado em Paris no ano
de 1557 pelos herdeiros de Maurice de la Porte, com privilégio real
(exemplar da Biblioteca do Congresso dos EUA,
disponível no portal web Google Books).

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