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Quando os índios

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' _ eram vassalos.
Colonização
e relações de poder
■ no Norte do Brasil
na segunda metade
do século XVIII
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COMISSÃO NACIONAL
PARA AS COMEMORAÇÕES
-
Ângela Domingues

QUANDO OS ÍNDIOS ERAM VASSALOS


CO LO N IZA ÇÃ O E RELAÇÕES DE PODER
N O NORTE D O BRASIL NA SEG U N D A METADE
D O SÉCULO XVIII

Apresentação de Joaquim Romero Magalhães

SBD-FFLCH-USP

C o m iss ã o N a c io n a l p a ra a s C o m e m o r a ç õ e s d o s D e sc o b rim e n to s Portugueses


L I S B O A 2000
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C o l e c ç ã o O u r a s M a r g e n s

Título: Quando os índios eram vassalos.


Colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século xvill

Autor: Ângela Domingues

© 2000 Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses


Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

Revisão: Fernanda Abreu


Capa: Fernando Felgueiras
Paginação: Américo Silva
Impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro, SA

1.* edição: Janeiro de 2000

ISBN: 972-787-003-1
Depósito legal: 146498/00

DEDALUS - Acervo - FFLCH

CNCDP - Catalogação na Fonte

DOMINGUES, Ângela
Q uando os índios eram vassalos: colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do século xvm /

/ Ângela Domingues; apresentação de Joaquim Romero


Magalhães. - Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
- 388 p; 24 cm. - (Outras Margens). ISBN-972-787-003-1
A P R ESEN TA Ç Ã O
9

Quando os índios eram vassalos é a proposta desde logo temporal


de Angela Domingues. O que significa o estudo da colonização e rela­
ções de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século xvm,
segundo se especifica ainda. Insistência na determinação cronoló­
gica. Relevante. Porque a política portuguesa variou frequente­
mente, tendo grande dificuldade em fixar uma linha contínua de
actuação quanto ao relacionamento dos colonos com as populações
indígenas do Brasil.
A proibição de escravizar os índios, que se formula e publica
logo no século xvi, nunca teve a concretização que as normas escri­
tas pareciam impor. Os colonos foram sempre procurando cativar
uma mão-de-obra que também sempre tentava escapar-lhes.
Mesmo os jesuítas, que aparentavam uma posição sem mácula de
defesa da liberdade indígena, afinal confinavam os catecúmenos às
aldeias em que obrigatoriamente os faziam trabalhar. Com mão de
ferro regulamentavam toda a sua vida. Sempre ad majorem Dei gloria.
E, afinal, fosse qual fosse o grupo actuante, o resultado prático
ia sendo o mesmo: o confinamento e a submissão de muitos grupos
indígenas ou a sua retirada para paragens onde pudessem manter as
suas vidas livres e as suas formas de organização social e cultural.
Enquanto isso, não poucos ainda eram seduzidos pela proximidade
da civilização europeia transplantada para os trópicos. Processo
longo, marcado por muitos momentos conflituais e por vezes
mesmo de extrema violência. Que a restruturação do Brasil em fun­
ção da realidade mineira da primeira metade do século xviii ainda
tornava mais dramática. E com menos soluções. A forte presença
religiosa no Maranhão, em especial dos jesuítas, desencadeia uma
conflitualidade que põe em causa o próprio Estado. E as autoridades
de Lisboa têm de escolher uma solução. E de nela persistir.
Em meados de Setecentos os espaços administrativamente
designados Estado do Maranhão e Pará — que englobava a imensi-

7
APRESENTAÇÃO

dade amazônica — e bem assim o próprio Estado do Brasil prefe­


riam a aquisição de escravos africanos à escravização de índios. Mas
nem todas as regiões estavam abastecidas com esse produto de
importação. E nem todos os que precisavam de mão-de-obra tinham
meios para a adquirir. Problema em aberto, política que era preciso
redefinir.
É o que vai tentar Sebastião José de Carvalho e Melo, o crescen­
temente poderoso secretário de Estado. Que inicialmente conta com
a inestimável colaboração de Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, irmão de coração e inspirador de política. Governador do
Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier observa in loco o que se
passa na Amazônia. E propõe medidas que Lisboa vai acolhendo e
decretando. Com resultados variáveis. Mas com uma claríssima
diferenciação relativamente ao que fora. E com uma firmeza que até
então faltara.
É desse novo ordenamento, dos seus êxitos e fracassos que nos
fala Angela Domingues. Em investigação que soube questionar a
documentação de que dispôs e não poucas vezes corrigir idéias fei­
tas. E que a Comissão Nacional para as Comemorações dos Desco­
brimentos Portugueses põe à disposição dos leitores. Para nos ajudar
a compreender muitos dos fenômenos que ainda hoje têm fortes
incidências na reflexão dos Brasileiros sobre eles mesmos.

Joaquim Romero Magalhães


Comissário-Geral

8
A G R A D ECIM EN TO S

Muitas foram as pessoas e as instituições que, de alguma forma,


contribuíram para a concretização deste trabalho.
Importa, antes de mais, agradecer às instituições que nos finan­
ciaram e acolheram. A Fundação Calouste Gulbenkian, a Junta
Nacional de Investigação Científica e Tecnológica e a Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento permitiram que a investi­
gação fosse processada no Brasil e nos Estados Unidos da América.
Queremos relevar as facilidades e o auxílio prestados nos vários
arquivos e bibliotecas em que trabalhámos: no Arquivo Histórico
Ultramarino, onde destacamos a colaboração e amizade de Fer­
nando Almeida e Jorge Nascimento; na Biblioteca Nacional; no
Arquivo Público Estadual do Pará, na pessoa da Dr.a Alda Gonçal­
ves; na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Dr. Valdir da
Cunha; no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no Arquivo
da Universidade de Coimbra, a colaboração da Dr.a Maria João
Padez; no Consejo Superior de Investigaciones Científicas, o acolhi­
mento do Professor Francisco de Solano; e na John Carter Brown
Library, o empenho e confiança do Dr. Norman Fiering e a amizade
de Gwen Jones e Adelina Axelrod.
As conversas com amigos e colegas ajudaram na construção de
problemáticas e na identificação de bibliografia relevante. Correndo
o risco de omissão involuntária, impõem-se os nomes de A. J. R.
Russel-Wood, André Ferrand de Almeida, Eduardo Costa Dias,
Ernest Pijning, João Carlos Garcia, João Pedro Marques, Jorge
Couto, Luís Frederico Dias Antunes, Manuel Lucena Giraldo, Mário
Ferreira, Nancy van Deusen e Wim Klooster. Um abraço amigo é
devido aos Drs. Inácio Guerreiro e Antônio Melo. Deve-se um agra­
decimento especial à Professora Maria Beatriz Nizza da Silva pela
sua amizade, incentivo e ajuda.
Estou grata aos Professores Artur Teodoro de Matos e Jill R.
Dias pela inteligência e rigor com que orientaram esta dissertação

9
AGRADECIM ENTOS

e pela disponibilidade, incentivo e dedicação com que sempre me


têm honrado.
Devo ainda agradecer à Comissão Nacional para as Comemo­
rações dos Descobrimentos Portugueses, nas pessoas do seu Comis-
sário-Geral, Prof. Doutor Joaquim Romero Magalhães, e do Dr. João
Paulo Salvado, pela prontidão com que acederam a publicar este
livro.
Um agradecimento final é devido: aos meus pais, ao João e à
Inês.

10
LISTA DE A B R E V IA T U R A S

AHI — Arquivo Histórico do Itamarati


AHU — Arquivo Histórico Ultramarino
ANRJ — Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
AN/TT — Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre
do Tombo
APEP — Arquivo Público do Estado do Pará
AUC — Arquivo da Universidade de Coimbra
BA — Biblioteca da Ajuda
BN — Biblioteca Nacional
BNRJ — Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
BPADE — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora
IHGB — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
JCB — John Carter Brown Library
MB — Museu Bocage
AGRADECIM ENTOS

e pela disponibilidade, incentivo e dedicação com que sempre me


têm honrado.
Devo ainda agradecer à Comissão Nacional para as Comemo­
rações dos Descobrimentos Portugueses, nas pessoas do seu Comis-
sário-Geral, Prof. Doutor Joaquim Romero Magalhães, e do Dr. João
Paulo Salvado, pela prontidão com que acederam a publicar este
livro.
Um agradecimento final é devido: aos meus pais, ao João e à
Inês.

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LISTA DE A B R E V IA T U R A S

AHI — Arquivo Histórico do Itamarati


AHU — Arquivo Histórico Ultramarino
ANRJ — Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
AN/TT — Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre
do Tombo
APEP — Arquivo Público do Estado do Pará
AUC — Arquivo da Universidade de Coimbra
BA — Biblioteca da Ajuda
BN — Biblioteca Nacional
BNRJ — Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)
BPADE — Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora
IHGB — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
JCB — John Carter Brown Library
MB — Museu Bocage
-
Um estudo sobre as sociedades ameríndias habitantes do sertão
amazônico da segunda metade do século xviil constitui um duplo
desafio: para quem o escreve, que se propõe dar uma visão lúcida e
clara do assunto; e para quem o lê, que será confrontado com uma
perspectiva que não é nova, mas polêmica, das relações de poder
estabelecidas entre os habitantes de um vasto espaço que tem
vindo, cada vez mais, a sensibilizar uma multidão de interessados
por questões ecológicas, políticas e sociais.
Os povos da floresta amazônica não surgem, aqui, como os ven­
cidos. Não ignoramos que o processo de extinção das etnias amerín­
dias no Norte brasileiro já se tinha iniciado com a colonização euro­
péia nessa área, acentuando-se com o acesso dos povos europeus a
regiões cada vez mais afastadas dos centros de implantação colonial.
Não omitimos a correspondência entre a descaracterização de muitos
grupos ameríndios e a afirmação de poder das coroas europeias sobre
o espaço geográfico amazônico, ocorrida, fundamentalmente, a par­
tir da segunda metade de Setecentos. Imposições de natureza polí­
tica, estratégica e diplomática, ao mesmo tempo que determinaram
um conhecimento mais abrangente do ecossistema fluvial amazô­
nico e mais detalhado de cada rio que o constituía, permitiram, de
igual modo, contactos e confrontos com novos grupos. Não desco­
nhecemos as consequências devastadoras provocadas pela transcul-
turação, doenças e necessidade compulsiva de mão-de-obra indígena.
Queremos, no entanto, lembrar a seguinte afirmação de Marcos
Terena, deputado da Assembléia da República brasileira: «De 1900 a
1930 é que se registou o maior massacre.»1
Os índios da Amazônia não são descritos, tão-pouco, como ele­
mentos de sociedades pequenas, isoladas e autônomas. Desde tem­
pos imemoriais que as comunidades ameríndias da área geográfica
em questão se tinham ligado por laços de parentesco, de comércio
ou de guerra, os quais punham em contacto grupos afastados e

1 Carlos Cáceres Monteiro, Amazônia proibida. Viagem proibida no território dos


Waimiri-Atroari, Lisboa, Edições O Jornal, 1987, p. 27.

15
INTRO DUÇÃO

áreas distantes. Antes da chegada dos primeiros europeus estavam


já constituídas cadeias de comunicação e troca, vias de circulação de
pessoas e mercadorias. Os poderes coloniais com interesses expan-
sionistas no território sul-americano beneficiaram dessas estruturas
para obter, de forma mais rápida e eficiente, conhecimentos, mão-
-de-obra e mercado para as suas manufacturas. E, ao fazê-lo, alte­
raram o sistema de relações estabelecido, agudizando tensões
preexistentes ou incentivando o confronto de novos inimigos.
Aqui, os índios também não são definidos de maneira plana e
uniformizada, ou seja, como um estereótipo. Antes de mais, porque
se na sua avaliação pelos luso-brasileiros de meados de Setecentos, o
índio era considerado como preguiçoso, indolente, lascivo, bêbedo,
há, também, que referir que em muitas descrições da época se enu­
meravam os diferentes grupos e se enfatizavam as suas diversidades
civilizacionais e culturais. É esta sensibilidade na percepção de várias
civilizações e culturas, construída à medida que os contactos se inten­
sificavam, que determinou o discurso colonial que se foi construindo
sobre os indígenas ao longo de cerca de meio século. A uniformidade
jurídica e política que considerava o índio como um dos elementos
formativos da sociedade colonial deu, pois, lugar a adaptações e alte­
rações suscitadas à medida que as autoridades coloniais iam perce­
bendo a existência de situações particulares e de diferenças locais.
Depois, porque ao serem integrados na sociedade colonial, os
ameríndios assimilaram dos luso-brasileiros noções de comando e
de hierarquia. Os chefes das comunidades, ao adquirirem um maior
prestígio político e social e ao serem favorecidos com privilégios
concedidos pelas autoridades administrativas, projectavam-se do
colectivo constituído pelos seus subordinados. De igual forma, tam­
bém outros índios, ao tirarem partido da especialização profissional,
tiveram possibilidades de ascensão que eram não só permitidas
como favorecidas pela sociedade luso-brasileira.
São estas as linhas condutoras que se vão estruturando ao longo
desta dissertação. Sem as limitarmos a capítulos específicos, preten­
demos utilizá-las para reconstruir a visão que os portugueses e os
luso-brasileiros iam formando dos índios da Amazônia ao longo de
cerca de cinquenta anos. Pretendemos, para além disso, reformular a
nossa própria perspectiva: da forma como os outros (luso-brasileiros
e europeus) viram e do modo como nós (autora e leitores) vemos as
etnias ameríndias da Amazônia.
A metodologia escolhida e algumas das questões levantadas
poderão ser definidas de europocêntricas. Assumimos isso conscien-

16
INTRO DUÇÃO

temente, certos de que a nossa formação e a nossa tradiç^p cultural


e historiográfica assim o determinam e condicionam. A natureza
das fontes consultadas, na sua maioria geradas com o propósito de
informar os diferentes níveis da cadeia hierárquica de administração
e comando, e, em última instância, a coroa portuguesa, é, igual­
mente, um dos limites à nossa investigação. Questões tão importan­
tes como as que se relacionam com sistemas simbólicos e cosmoló-
gicos encontram-se afastadas do nosso propósito porque os homens
do século xviii estavam temporalmente condicionados para descre­
verem a organização social, econômica e política das comunidades
indígenas, os contactos e conflitos entre culturas ou os ritos, danças,
máscaras e hábitos quotidianos ameríndios. Adoptando tanto posi­
ções de desprezo e recusa como de condescendência, o objectivo
dos luso-brasileiros consistia na modificação de povos que conside­
ravam inferiores em função de um paradigma: a cultura portuguesa.
Contudo, não pretendemos apresentar uma visão triunfalista
dos contactos e confrontos culturais ocorridos na Amazônia da
segunda metade de Setecentos. Nem, tão-pouco, queremos apresen­
tar dos índios uma imagem paternalista e condoída. Se conseguir­
mos transmitir ao leitor que as inter-relações e os intercâmbios ocor­
ridos na Amazônia da segunda metade do século xviii foram
produto de uma época determinada e de mentalidades e ideologias
específicas e que, enquanto tal, devem ser entendidos sem que juí­
zos de valor ou apreciações morais interfiram, consideraremos que
parte dos objectivos propostos foram cumpridos. A outra parte é
exclusivamente da nossa responsabilidade e engenho...
Enquanto análise de um discurso colonial aplicado a uma área
geográfica circunscrita e a uma época determinada, o nosso estudo
optou por considerar as etnias da bacia hidrográfica amazônica na
sua globalidade, porque como tal eram consideradas na política
indigenista de Setecentos. Por isso, e ao invés do que foi escolhido
pela maioria dos estudiosos do passado do Norte brasileiro, arris-
cámo-nos a estudar um espaço e não um grupo ou um caso. Na
nossa avaliação tivemos, sobretudo, em consideração que a política
colonial definida para as capitanias do Pará e Rio Negro se circuns­
creveu a esta área geográfica e que a sua execução foi confrontada
com questões que lhe eram específicas.
Nesta avaliação considerámos também que esta uniformidade
política contrastava com uma diversidade de soluções, imposta quer
pela multiplicidade de culturas e etnias quer pela prioridade de inte­
resses coloniais imperantes num determinado momento. E, nesta

17
INTRO DUÇÃO

acepção, as coordenadas tempo e espaço, imprescindíveis em qual­


quer estudo histórico, revestem-se aqui de uma dupla importância.
Muitas das resoluções tomadas em relação aos ameríndios expli­
cam-se em função, por exemplo, de jogos de poder entre potências
europeias e de interesses geo-estratégicos que, em determinado
momento, privilegiavam a paz e a estabilidade internas em detri­
mento da supremacia colonial portuguesa sobre os povos indígenas.
Outras foram seguidas porque a experiência ditava que, com alguns
grupos índios, era preferível a tolerância à força e que a violência
exercida pelos luso-brasileiros suscitaria uma retaliação proporcio­
nal por parte dos ameríndios.
Foi, sobretudo, uma preocupação nossa contextualizar as rela­
ções entre índios e luso-brasileiros na Amazônia da segunda metade
de Setecentos como um produto dos programas ideológicos, polí­
ticos e econômicos portugueses, ibéricos e europeus. E, no que res­
peita a esta questão, confirmamos a tese de Pedro Armillas quando
afirma que «en la determinación de los acontecimientos de expan-
sión europea en el Nuevo Mundo tuvieran más importância la distri-
bución geográfica de recursos naturales y las particularidades cultu-
rales y densidad demográfica de las sociedades aborígenes, que la
diversidad de motivaciones y afiliación nacional de los grupos inva­
sores»2.
No nosso estudo defendemos que existem maiores afinidades
entre a colonização estabelecida por Portugal e Espanha no ecossis­
tema amazônico do que entre a colonização lusa em outras partes
do Império Português: na Ásia, na África ou, até mesmo, no vice-rei-
nado do Brasil3. No entanto, não podemos deixar de referir que as
diferentes colônias portuguesas estavam unificadas por uma política
e uma ideologia política colonial que irradiavam da capital do Impé­
rio. Contudo, os resultados desse discurso político dependeram das
sociedades a que se destinava.
É por isso que recorremos, com frequência, ao estabelecimento
de semelhanças ou antagonismos com o vice-reinado de Nova Gra­
nada e Peru ou com os Llanos colombinos. As remissões para a colo­
nização espanhola ocorrem frequentemente porque, face às mesmas

2 Pedro Armillas, «La ecologia dei Colonialismo en el Nuevo Mundo», in Revista


de índias, vol. 171, 1983, p. 296.
3 Sobre a importância dos estudos de história colonial da América Latina na
compreensão da realidade colonial brasileira veja-se, por exemplo, Ronald Raminelli,
«Simbolismos do espaço urbano colonial» in América em tempo de conquista, coorde­
nado por Ronaldo Vainfas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, pp. 163-164.
INTRO DUÇÃO

situações, tendo as mesmas referências e pretendendo os mesmos


objectivos, os colonizadores de pátrias distintas actuaram de modo
parecido. Como veremos, o discurso colonial baseava-se nos mes­
mos fundamentos ideológicos, ordem moral e religiosa e nos mes­
mos objectivos estratégicos e políticos.
Na Amazônia de Setecentos, as afinidades firmadas ultrapassa­
ram as rivalidades coloniais e as relações abstractas entre Estados.
De facto, entre os povos que habitavam os limites dos impérios, as
ligações civilizacionais e culturais eram de tal modo relevantes que,
em alguns casos, se sobrepunham à inimizade formal que devia
regular as relações entre Coroas e se impunham no relacionamento
entre indivíduos.
Face a estas considerações é, agora, pertinente enquadrar este
estudo na imensa produção historiográfica produzida recentemente
sobre os ameríndios da Amazônia. Quer o assunto quer a área geo­
gráfica são, sem dúvida, aliciantes. Aliás, a proliferação de livros e
artigos de grande rigor científico é disso comprovativo.
Em nosso entender, uma nova perspectiva nos estudos ame­
ríndios na Amazônia surgiu em finais dos anos 80 com as obras
de Carlos de Araújo Moreira Neto e John Hemming. Partindo do
mesmo período histórico, o das reformas implantadas por Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, ambos os autores procuraram traçar o
trajecto da população indígena da Amazônia de acordo com ritmos
marcados por acontecimentos políticos e econômicos relevantes
ocorridos entre meados do século xvni e finais de XIX: o Directório, a
Independência, a Cabanagem, o ciclo da Borracha4.
Nos anos seguintes, esta tentativa de estabelecer de forma glo­
bal grandes sínteses sobre o passado histórico das etnias ameríndias
da bacia hidrográfica amazônica esbateu-se. O interesse por ques­
tões relacionadas com a preservação do patrimônio natural e hu­
mano da floresta equatorial atribuiu uma nova importância ao pas­
sado das etnias ameríndias enquanto vector de compreensão e
forma de perpetuação de grupos extintos ou em vias de desapareci­
mento. Os estudos surgidos valorizaram, particularmente, o «pe­
ríodo de contacto», de encontro das sociedades nativas com coloni­
zadores europeus e procuraram avaliar os efeitos devastadores dessa
4 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-
-1850), Petrópoles, Editorial Vozes, 1988; John Hemming, Amazon frontier. The defeat of
the Brazilian Indians, Londres, Macmillan, 1987. Este livro do antropólogo inglês
encontra-se articulado com um outro, Red Gold. The conquest of the Brazilian Indians,
Londres, Macmillan, 1.* edição, 1978.

19
IN TRO D U ÇÃ O

interacção. Sobretudo, atribuíram à história uma função imprescin­


dível na compreensão de fenômenos de natureza antropológica e
sociológica.
Tendo em conta esta nova orientação, Anna Roosevelt e
Manuela Carneiro da Cunha organizaram duas obras com uma pro­
blemática incidente em temas de história e antropologia, acerca dos
ameríndios (da Amazônia, do Brasil), com a colaboração de especia­
listas em diversas áreas de saber5. Estes estudos são resultantes de
uma nova leitura sobre o passado, decorrente de escavações arqueo­
lógicas, da reinterpretação de documentos e de investigação de
campo e permitiram a reformulação de noções constituídas, desde
há muito tempo, sobre as sociedades da bacia fluvial amazônica:
acerca da sua complexidade e do seu dinamismo ou das suas capaci­
dades de adaptação ao ecossistema e a novas situações.
Assim, e utilizando metodologias diferentes, Anna Roosevelt e
Antônio Porro concluíram que as sociedades amazônicas do período
de pré-contacto eram mais complexas do que aquelas que resulta­
ram da colonização6. Anne Christine Taylor, com E M. Renard-Case-
vitz e Th. Saignes deram um novo significado às relações entre
sociedades indígenas andinas e amazônicas7. Os estudos de Marta
Rosa Amoroso, Nádia Farage ou Miguel Menéndez vieram esclare­
cer os processos de aculturação e resistência de algumas etnias,
como os Mura, ou em algumas áreas, como o vale do rio Branco ou
a bacia do rio Madeira8. Embora fazendo incidir o seu objecto de
trabalho sobre a segunda metade de Setecentos, estes últimos histo­
riadores particularizaram casos ou regiões, não os enquadrando
num projecto político geral aplicado ao Norte do Brasil.

5 Manuela Carneiro da Cunha (organização), História dos índios do Brasil, São


Paulo, Fapesp, Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992; Anna
C. Roosevelt (edição), Amazonian lndians. From Prehistory to the present. Anthropological
perspectives, Tucson e Londres, The University of Arizona Press, 1994.
6 Anna C. Roosevelt, «Aimazonian Anthropology: strategy for a new syntesis»,
in Amazonian lndians. From Prehistory to the present..., pp. 1 e ss; Antônio Porro, «Social
organization and political power in the Amazon floodplain: the Ethnohistorical sour-
ces», in ibidem, pp. 79 e ss.
7 Ainne Christine Taylor, «História pós-columbiana da Alta Amazônia», in Histó­
ria dos Índios do Brasil, pp. 213 e ss.; F. M. Renard-Casevitz, Th. Saignes, A. C. Taylor,
Vinca, 1'espagnol et les sauvages, Paris, Editions Recherches sur les Civilizations, 1986.
3 Marta Rosa Amoroso, «Corsários no caminho fluvial: os Mura do rio Madeira»,
in História dos índios do Brasil, pp. 297 e ss.; Miguel Menéndez, «A área Tapajós-
-Madeira: situação de contacto e relações entre colonizador e indígenas», in ibidem,
pp. 281 e ss.; Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas do rio Branco e a
colonização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Anpocs, 1991.

20
INTRO DUÇÃO

O estudo do Directório enquanto lei colonial reguladora da acção


dos luso-brasileiros ao longo da segunda metade do século xviii é
apresentado pela primeira vez num trabalho de Rita Heloísa de
Almeida recentemente editado9. E, assim sendo, esta autora parte de
um pressuposto idêntico ao que nos serve de base. Salientando
aspectos tão importantes como a educação, a economia, a felicidade
dos povos e o bem comum, a formação de núcleos de povoamento
ou a instalação de aparelhos jurídicos, políticos e administrativos
enquanto elementos de suporte ao processo de colonização, esta
autora justifica o Directório como uma consequência de falhas legisla­
tivas decorrentes do Regimento das missões (1686)10. Procura explicá-
-lo num contexto histórico que é, simultaneamente, o da expansão
portuguesa, das noções estruturantes do pensamento filosófico e
político europeu e do processo civilizador dos índios enquanto
decorrente da colonização da Amazônia11.
Na nossa perspectiva, concebemos o Directório e o corpo legisla­
tivo que o enquadrou como um projecto político que estruturava
uma alternativa ao sistema das missões. A sua concepção e, acima
de tudo, o seu «êxito» relacionaram-se com a conjunção de circuns­
tâncias políticas, econômicas, ideológicas e sociais que atribuíam ao
Brasil e, neste caso particular, ao Estado de Grão-Pará uma impor­
tância fundamental nos jogos de poder que Portugal estabelecia com
as outras coroas europeias.
Definido em meados de Setecentos, o Directório enquanto dis­
curso político colonial de base vigorou durante quase cinquenta
anos. Contudo, contrapondo-se à sua durabilidade enquanto pro­
jecto, aponta-se a multiplicidade de soluções e de resoluções que
permitia. Estas foram tomadas pelas entidades administrativas do
Estado em função das áreas geográficas a que se destinavam, deter­
minadas pelos grupos humanos existentes ou tendo em conta condi-
cionantes de política interna e externa. É a escolha de opções que
particulariza cada situação, bem como a avaliação das prioridades
que se impõem em determinados momentos que transformam o
período cronológico em estudo em um dos mais interessantes da
história da colonização portuguesa no Norte do Brasil.

9 Rita Heloísa de Almeida, O Directório dos índios. Um projecto de «civilização» no


Brasil do século x v iii , Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997.
10 Ibidem, pp. 162 e 194.
11 Ibidem, pp. 14, 22 e 234.

21
C A P ÍT U L O I

A PROMO ÇÃ O DOS AMERÍNDIOS A VASSALOS


AS CO NTR AD IÇÕES DA LIBERDADE
Foi a 6 de Junho de 1755 que D. José I aprovou a lei da liber­
dade dos índios do Norte do Brasil1. No entanto, a certeza prévia de
que a aplicação de tal diploma suscitaria junto dos moradores e dos
missionários do Estado do Grão-Pará uma forte contestação explica
a razão pela qual as autoridades administativas do Estado só o tives­
sem publicitado cerca de dois anos mais tarde, em 1757.
Aparentemente, a existência de tais cautelas podería parecer des­
necessária, como aliás se podería considerar uma redundância a pro­
mulgação de semelhante legislação. De facto, os ameríndios do Brasil
eram considerados homens livres, quer de acordo com as leis do reino
quer em concordância com as leis de Deus. Decretos reais e bulas
papais repetiam-se, já desde o século xvi, em considerações sobre a
humanidade dos índios e a liberdade das pessoas e dos bens dos habi­
tantes naturais dos territórios americanos pertencentes às monarquias
peninsulares2.
Sem aqui querermos estabelecer uma relação cronológica ou
uma análise pormenorizada dessa legislação aplicada em território
luso-brasileiro, importa, apesar de tudo, esclarecer que nela o esta­
tuto indígena oscilou, ainda que por curtos lapsos de tempo, entre a
liberdade absoluta, tal como era expressa pelo alvará de 30 de Julho
de 1609 e pela lei de 1 de Abril de 1680, e o cativeiro legal condicio­
nado3. Apesar do âmbito deste trabalho se restringir à segunda
metade do século XVIII, consideramos que é de suma pertinência ana­
lisar a legislação antecedente e, particularmente, os enunciados sobre
o cativeiro legal, aqui avaliados como uma condição imprescindível
para uma abordagem mais clara e dinâmica da lei da liberdade dos
índios de 6 de Junho de 1755.

1AHU, Conselho Ultramarino, códice 336, fls. 53 v-65; também BN, cód. 8396, doc. n.
2 José Vicente César, «Situação legal do índio durante o período colonial (1500-
-1822)», in America Indígena, ano xlv, vol. XLV (2), Abril-Junho de 1985.
3 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos. Os princípios da legis­
lação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVlll)», in História dos índios do Bra­
sil, organização de Manuela Carneiro da Cunha, São Paulo, Fapesp, Companhia das
Letras e Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp. 123-128.

25
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

A s le is da e s c r a v id ã o : g u e rra ju sta e r e sg a te s

As opções escolhidas para sistematizar a situação legal do índio


implicam a consideração de três tipos de legislação que, estando
interligadas entre si, se esclarecem e clarificam mutuamente: a legis­
lação de carácter geral que estabelece e legitima os casos de escrava­
tura dos índios por guerra justa e por resgate; a legislação específica
sobre os índios, que regulamenta e normaliza as relações de depen­
dência, de trabalho e as ligações entre os indivíduos e as institui­
ções; e um outro tipo de legislação que, ainda que de âmbito dife­
rente, menciona, marginalmente, a relação dos índios com os
poderes ou os indivíduos.
Vários autores abordaram a questão do estatuto legal dos indí­
genas. No entanto, este assunto foi sistematizado de forma clara
tanto por Beatriz Perrone-Moisés4 como por Nádia Farage5. A pri­
meira autora distingue de entre o aparente caos legislativo promul­
gado pela coroa portuguesa durante três séculos duas vertentes que
dão coerência à legislação sobre a liberdade e a escravidão índia.
Estas consistem na contraposição entre as opções jurídicas tomadas
para os índios aldeados e aliados e para os índios inimigos. Já Nádia
Farage acentua a função econômica desempenhada pelos indígenas,
estabelecendo, a partir deste fenômeno, uma classificação com base
na distinção feita entre índios escravos e índios livres. É a partir daí
que parte para a análise da legislação.
Partindo destas premissas, analise-se com mais detalhe os
aspectos relacionados com a guerra justa e o resgate. Segundo Per­
rone-Moisés, a liberdade foi assegurada aos índios aliados durante
toda a colonização. Reconhecia-se que eram a principal fonte de
mão-de-obra e o principal meio de defesa da colônia; admitia-se-
-lhes também o direito de posse sobre as suas terras, bem como o
direito a uma justa remuneração a troco de serviços prestados. Na
medida em que não ofereciam resistência ao projecto colonizador
luso-brasileiro, eram objecto dos esforços de instituições governati­
vas e religiosas no sentido de proceder à sua aculturação. O pro­
jecto colonial definido na segunda metade do século xviii baseava-
-se na crença de que o programa implantado era um bem para os

4 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos...», pp. 116-131; «A


guerra justa em Portugal no século xvi», in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa
Histórica, n.° 5, 1989-1990, pp. 5-10.
5 Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas no rio Branco e a coloni­
zação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Anpocs, 1991, pp. 26-34.

26
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

índios6. E se, até essa altura, esses valores assentavam na ideia da


salvação da alma e da «europeização» dos ameríndios, a partir daí
passaram claramente a residir nos princípios de felicidade e de bem
comum, entendidos como direitos inerentes a qualquer súbdito do
monarca. Resta acrescentar que os objectivos pretendidos eram,
sensivelmente, os mesmos: a salvação das almas e o «melhora­
mento» civilizacional dos ameríndios.
A liberdade oficial, reconhecida aos aliados, opunha-se à escra­
vidão, destinada aos inimigos. A. legitimação da escravatura
baseava-se em duas justificações: a guerra justa e o resgate. No
entanto, estes conceitos foram objecto de controvérsia, quer quando
aplicados ao Brasil quer quando pensados no contexto mais abran­
gente da Hispanoamérica. As causas que legalizariam a sujeição de
um povo ou de um grupo a outros, apesar de frequentemente deba­
tidas e inúmeras vezes reformuladas, nunca foram assunto claro, ou
sequer pacífico. Não obstante, há que ter em conta que os debates e
as elaborações jurídicas produzidas em Espanha tiveram uma
expressão mais contida e menos original em Portugal7.
As causas pelas quais uma guerra era considerada justa foram,
ao longo do tempo, diversas e, sobretudo, adaptadas à evolução da
«ideologia de expansão» que se foi formando a partir dos primeiros
contactos tidos entre povos ibéricos e africanos ou ameríndios8. Se,
até ao início dos descobrimentos, a escravização por guerra justa era
justificada pela prática tradicional da dominação de infiéis que,
conscientemente, rejeitavam a fé católica, com o encontro de povos
pagãos que não recusavam cabalmente a difusão da religião cristã, a
escravidão passou a fundamentar-se na diferença entre indivíduos
mansos e civilizáveis e indivíduos bravos e aguerridos: era precisa­
mente no rompimento desta situação de amizade e paz que residia
a necessidade prática e a justificativa moral para a escravidão9.
O principal fundamento da guerra justa continuava a consistir
no serviço de Deus e na propagação da fé, quer junto de infiéis quer
junto de pagãos. A recusa à conversão, o impedimento da expansão

6 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos...», p. 122.


7 Beatriz Perrone-Moisés, «A guerra justa em Portugal no século xvi», p. 5; A. J. R.
Russell-Wood, «Iberian expansion in the issue of black slavery: changing Portuguese
atittudes, 1440-1770», in The American Historical Review, vol. 83 (1), February, 1978,
pp. 23 e 33.
8 A. J. R. Russell-Wood, «Iberian expansion in the issue of black slavery...», p. 29.
9 John Manuel Monteiro, Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens de
S. Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 134-135.

27
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

do catolicismo, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados


dos luso-brasileiros e a quebra de pactos celebrados eram motivos a
considerar na declaração da justeza de uma guerra. Os fundamentos
para legitimar uma acção guerreira consistiam, consequentemente,
na defesa da paz, segurança e religião, mas os aspectos econômicos
e civilizacionais também concorriam para essa decisão. A antropofa­
gia parece, se exceptuarmos unicamente os dois anos em que a lei
de 17 de Novembro de 1653 esteve vigente, não ter constituído
causa suficiente para declarar guerra justa. Era, apenas, motivo agra­
vante, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, na Hispanoamé-
rica, onde foram promulgadas várias leis legitimando a escravatura
de índios canibais10.
Se considerarmos que a guerra justa era uma das formas de
legalizar a escravização de mão-de-obra, percebe-se o poder que a
autoridade para a declarar enquanto legítima forma de apreensão de
escravos conferia a uma determinada entidade. Houve guerras ofen­
sivas movidas pelos colonos com o único objectivo de obter escra­
vos, as quais ao serem posteriormente declaradas injustas, acaba­
riam por conferir a liberdade aos prisioneiros capturados. Este
julgamento implicava um processo, por vezes moroso, que consistia
na inquirição de testemunhos, no pedido de pareceres e informa­
ções e na elaboração de relatórios. Era com base nestes processos
que se justificava uma guerra justa. A capacidade para deliberar
sobre este assunto variou ao longo do tempo, sendo um atributo do
rei, mas podendo, em determinadas alturas, estar delegada nas pes­
soas dos governadores, de capitães-mores ou de juntas.
A escravidão não era lícita apenas aos inimigos da coroa. Podia
ainda compreender os índios que fossem comprados ou resgatados
a seus inimigos, conquanto a sua aquisição fosse uma forma de
salvá-los a ritos antropofágicos ou, então, se o seu aprisionamento
fosse considerado como resultado de uma guerra intertribal «justa».
Ao adquiri-los, os moradores passariam a ter o dever de os conver­
ter e civilizar e o direito de usufruírem do seu trabalho por um
determinado período de tempo: uma vez pago o preço do resgate, o
indivíduo seria, pelo menos de direito, livre.
As questões jurídicas que regulamentavam as relações dos luso-
-brasileiros com os ameríndios foram, desta forma, enunciadas nos

10 Michael Palencia-Roth, «The cannibal law of 1503», in Early images of the Amé­
ricas: transfer and invention, editado por Jerry M. Williams e Robert E. Lewis, Arizona,
The University of Arizona Press, pp. 21-63.

28
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

seus princípios gerais e, portanto, de forma incipiente e sem tomar


em conta as alterações ocorridas ao longo de três séculos. Aliás, na
capitania do Pará, a aplicação dos princípios jurídicos mencionados
suscitava «problemas técnicos», reflectidos, por exemplo, num
Memorial que aprezentam os religiosos capuchos que ora estão no Pará os
quais pedem ao rei lhes mande dar resolução de como se hão de haver no
serviço de Deus e de Sua Magestade sobre algumas dúvidas que se lhes
oferecemn. Dizia o memorando que as leis gerais não eram esclarece­
doras em relação a casos pontuais, ficavam irresolvidas questões
como a especificação do tempo que os índios resgatados deviam
servir; se se deviam considerar os hábitos indígenas acerca do esta­
tuto dos descendentes de escravos; sobre o regime que deviam usu­
fruir os índios que auxiliavam os luso-brasileiros nas guerras; e,
finalmente, com a legalidade de se preservar na escravidão indiví­
duos aprisionados por etnias inimigas dos luso-brasileiros, contra as
quais se tivesse movido uma guerra justa.
Este Memorial é, apenas, um reflexo da complexidade deparada
quando se tenta aplicar a legislação geral a um caso específico. Ou,
tal como sublinha Beatriz Perrone-Moisés, a política indigenista não
era uma mera aplicação de um projecto a uma massa indiferenciada
de habitantes da terra1112. E, por isso, afigura-se de importância funda­
mental confrontar a aplicação destas leis com uma situação especí­
fica: a política colonial ameríndia no Norte do Brasil na segunda
metade do século xviii.

O s m e c a n is m o s de cap tu ra

A aplicação das determinações legais às particularidades de um


caso concreto foi feita por Nádia Farage no seu estudo sobre os
índios do rio Branco. A autora particulariza a questão ao considerar
a existência de tropas de resgate, instituídas legalmente pelo padre
Antônio Vieira, e quando refere a existência de um tráfico clandes­
tino, por ela considerado como de muito maior porte que a escravi-
zação efectuada pelas tropas de resgate oficiais e tropas de guerra

11 AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 1116, doc. 52, pp. 593 e ss., Memorial que
apresentam os Religiosos capuchos que ora estão no Pará, os quais pedem ao rei lhes
mande dar resolução de como se hão de haver no serviço de Deus e de S. Mage.
sobre algumas dúvidas que se lhes ofereçem, s/d [talvez da primeira metade do
século xvn],
12 Beatriz Perrone-Moisés, «índios livres e índios escravos...», p. 129.

29
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

somadas13. Ou seja, dá claramente a entender que existiam diver­


gências de interesse entre as entidades que promulgavam as leis e os
indivíduos que as deviam cumprir. Dessa situação resultavam dis-
sensões e conflitos que perturbavam a estabilidade das capitanias do
Norte14.
Tal como Farage, optámos igualmente por recuar até à primeira
metade do século xvin para compreender de forma mais abrangente
as permanências e as transformações que ocorreram durante a
segunda metade. É óbvio que, num período de tempo tão vasto
como a primeira metade de Setecentos, houve várias políticas e
opções que não podem ser aqui levadas em consideração. No en­
tanto, entendemos que os objectivos propostos ficam plenamente
cumpridos com a consideração de questões específicas, tais como: a
competência das instituições, as formas de apresamento legal de
ameríndios e as infracções às normas.
Desde inícios do século xvn e até meados da centúria seguinte, a
Junta das Missões, composta por prelados Jesuítas, Carmelitas, Mer-
cedários, Capuchos e da Piedade, pelo governador, pelo ouvidor-
-geral e pelo bispo15, era a instituição que maior importância tinha
para determinar assuntos que respeitassem aos índios e ao seu
governo16. Este organismo era juridicamente responsável pelos ame­
ríndios, que deviam ser tratados «com suavidade, prudência & arte,
guardando lhe infalivelmente as prerrogativas de seus postos & a
estimação que couber nas suas pessoas & procedendo no castigo
das suas culpas com a suavidade & caridade que elas permitirem
para que o temor & o rigor os não obrigue a desemparar as ditas
aldeias & seja ocasião de não quererem vir outros para elas»17.
De igual modo, a câmara de Belém, por intermédio do vereador
mais velho e pelo seu procurador, tinha autoridade para interferir
em questões de política indígena na medida em que lhe eram atri-

13 Nádia Farage, As muralhas do sertão..., p. 30.


14 Um estudo pormenorizado dos conflitos ocorridos na capitania do Pará rela­
cionados com o estatuto e a utilização de índios continua a ser a obra de João Lúcio
de Azevedo, Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colonização, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1930.
15 A aprovação régia sobre a participação desta autoridade na Junta das Missões
da capitania do Pará parece datar de 1725 (BN, cód. 11 750, pp. 760 e ss., Carta régia
ao bispo do Pará aprovando o plano de actuação episcopal, de 31 de Março de 1725).
16 AHU, Pará, caixa 3 (729), Representação da câmara de Belém às instituições
centrais, de 28 de Fevereiro de 1705.
17 BN, Res. 2434 A, Carta régia aos Ministros da Junta das Missões do Estado do
Maranhão, de 3 de Fevereiro de 1701, p. 71.

30
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

buídas competências para deliberar sobre a ida de indivíduos ao ser­


tão, o envio de tropas de comércio e de resgate e a repartição dos
índios13.
As duas instituições deviam sempre nortear-se pelas leis e regi­
mentos vigentes, uns vigorando para todo o vice-reinado do Brasil,
outros restringindo-se unicamente às capitanias do Maranhão e do
Pará1819. De entre estes, uns diziam respeito especificamente aos
índios, enquanto outros mencionavam os indígenas como um de
entre muitos assuntos. ,
Para além de um corpo legislativo que servia de suporte teórico
à sua actuação, a Junta das Missões e a câmara usufruíam de uma
série de informações que lhes advinham dos relatórios e representa­
ções dos missionários espalhados pelo sertão, e dos informes de
moradores, soldados e funcionários que, por vezes, pertenciam às
tropas de resgate ou às tropas de guerra. Era, em parte, com base
nas considerações suscitadas por este conjunto de informações, que
a Junta decidia sobre a declaração de guerra justa a uma etnia. Essas
decisões davam origem a um processo, depositado no Cartório da
Ouvidoria-Geral20. A declaração de guerra justa não exigia unanimi­
dade por parte de todos os membros constituintes da Junta das Mis­
sões, como o justifica a oposição movida pelos Carmelitas à guerra
contra as etnias Cahivionas e Purinas do rio Solimões, nos anos
30 do século xviii21. O mesmo aconteceu, nesta época, com os
Manaus, do rio Negro. As instituições governativas e as ordens reli­
giosas eram regularmente informadas pelos prelados e por escoltas e
tropas sobre as mortes, danos e invasões feitos sob a chefia de Aju-
ricaba. Com base nas queixas que de todo o rio Negro surgiam, a
Junta das Missões verificou estarem reunidas as condições para se
declarar guerra justa aos principais das nações Manaus e Maiapena
e se prender e castigar o principal mentor das insurreições, Ajuri-

18 AHU, Pará, caixa 3 (729), Parecer do Conselho Ultramarino sobre a represen­


tação da câmara de Belém acerca da constituição da Junta das Missões, de 23 de
Setembro de 1705; BN, R 2434 A, de 6 de Dezembro de 1705, pp. 55 e 56.
19 Sobre a terminologia administrativa utilizada, veja-se os seguintes artigos:
«Estado do Brasil», cols. 312-313, «Estado do Grão-Pará e Maranhão», cols. 314-319,
«Estado do Maranhão», cols. 319-321, «Maranhão, capitania do», cols. 516-521, «Rio
Negro, capitania do», cols. 718-722, «Pará, capitania do», cols. 611-612, «Vice-rei-
nado», cols. 830-835, in Dicionário de História da Colonização Portuguesa no Brasil (coor­
denado por Maria Beatriz Nizza da Silva), Lisboa, Editorial Verbo, 1994.
20 BN, cód. 11 570, Representação do governador do Estado do Maranhão, Ale­
xandre de Sousa Freire, s/d [de aprox. 1730], p. 330.
21 lbidem, p. 330.

31
A PRO M O ÇÃ O D O S AM ERÍNDIOS A VASSALOS

caba22. A decisão contou, no entanto, com a oposição do padre rei­


tor do Colégio da Companhia de Jesus.
Este episódio, talvez um dos mais célebres ocorridos no rio
Negro na primeira metade de Setecentos, bem como outros menos
notórios, permitem, também, elucidar como a captação das etnias
não-aculturadas era feita no terreno. Na abordagem deste assunto,
utilizaremos as categorias explicitadas por Beatriz Perrone-Moisés e
consideraremos as etnias ameríndias como amigas e aliadas e como
inimigas, enquanto nos permitimos também lembrar que os amerín­
dios eram objecto da protecção real e, na maioria dos casos, consi­
derados livres. No entanto, dizem as fontes, ainda que «isto se lhes
cumpra e guarde tão inteiramente quanto se lhes promete [as leis
régias e a protecção pessoal] ainda é grande a eficácia da graça
divina que homens gentios e bárbaros criados sem nenhuma lei,
nem ainda a da natureza, queiram ser arrancados de suas pátrias e
vir para terras estranhas receber a fé de um Deus e a sujeição de um
Rei que não conhecem e obrigar-se em tudo a tão diferentes estilos
e preceitos de vida»23.
Até meados do século xviii, o descimento dos ameríndios ami­
gos e aliados de seus territórios devia ser feito, sempre que possível,
de forma suave e branda, numa missão confiada a missionários, a
índios ou a colonos24. Aos padres cumpriría aldear os indígenas num
núcleo urbano, catequizá-los e prepará-los para as tarefas econômi­
cas que se esperavam que prestassem às ordens religiosas, aos
moradores ou à coroa, muitas vezes em locais afastados dos núcleos
onde inicialmente se tinham sediado. Em contraposição, aos índios
inimigos era reservada a actuação das tropas de guerra, as quais
deviam ser, pelo menos teoricamente, expedidas pelo governador
ou pela Junta das Missões. O objectivo destas tropas era suprir a
falta de mão-de-obra sentida na capitania do Pará e aumentar o erá­
rio régio pela integração do produto dos quintos e das jóias na
Fazenda Real. Paralelamente, os resgates seriam objecto das tropas
de paz ou bandeiras que, entre outros objectivos, teriam igualmente
a finalidade de resgatar índios. Estas tropas, instituídas legalmente

22 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de João da Maia da Gama ao Conselho


Ultramarino, de 26 de Setembro de 1727.
23 BN, Reservados, códice 11 570, Resposta dos títulos que o Procurador do
Maranhão Jorge de Sampaio deu contra a Companhia de Jesus, s/d [aprox. finais do
século xvii], p. 673.
24 Sobre o conceito de descimento, confronte-se o capítulo III «Em cumprimento
do real serviço: o reordenamento do território e a integração dos vassalos».

32
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

em meados do século XVII, deviam ser acompanhadas por missioná­


rios que, para além de providenciarem o fornecimento de alimentos,
medicamentos, intérpretes e remeiros, eram responsáveis pela
inquirição do modo como a captura tinha sido feita, por forma a dar
legitimidade à escravidão25.
O que a leitura da documentação deixa inferir é que inúmeras
irregularidades confundem as funções desempenhadas por quem
efectuava os descimentos, os resgates ou a escravização. As tropas
de resgate realizavam, frequentemente, apreensões indevidas de
escravos, não respeitando as especificidades estabelecidas pela
guerra justa ou pelos resgates, como era o caso do morador José da
Costa, que tinha provocado capturas de índios e índias nos rios
Negro e Japurá26.
Por vezes, os descimentos não eram mais do que a captura e
transporte compulsivo de mão-de-obra para junto dos núcleos urba­
nos luso-brasileiros e para as fazendas dos moradores. Os índios
eram levados contra sua vontade, vendidos e obrigados a servir os
colonos sem receberem qualquer remuneração. A título de exemplo
mencione-se unicamente a situação caótica provocada por vários
indivíduos que ficaram no rio Negro e no rio Uaupés desde o tempo
das tropas de resgate e dos quais se destacam Francisco Portilho de
Melo e Pedro de Braga. Nas décadas de 40 e 50 do século xviii, pro­
vocaram muitas das revoltas índias ocorridas no rio Negro devido às
violências e mortes cometidas junto das etnias ameríndias da região
e efectuaram o descimento de centenas ou, talvez, de milhares de
índios dos sertões para as áreas em redor da cidade de Santa Maria
de Belém27.
Também as tropas de guerra, por seu turno, apreendiam etnias
inimigas, mas também índios aliados. Eram responsáveis pela extin­
ção de inúmeros grupos e pela desertificação de algumas áreas geo­
gráficas, para além de provocarem a revolta e a desconfiança junto
dos ameríndios. Tal foi o caso do contingente que actuou nos rios
Negro, Cavaboris, Mariá e Meguá na década de 30, acusado de

25 AHU, Pará, caixa 59 (774), Representação de frei Matias de S. Boaventura, car­


melita e missionário no rio Cauaboris, à Junta das Missões, de 10 de Agosto de 1734.
26 BN, Colecção Pombalina, códice 622, fls. 10-llv, Carta de José Pereira de Abreu
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 29 de Janeiro de 1753.
27 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço de Belfort a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Fevereiro de 1753, ibidem, códice 622,
fl. 10, Carta de José Pereira de Abreu a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 29
de Janeiro de 1753.

33
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

debelar principais e nações que não eram criminosos, mas antes


amigos e aliados dos luso-brasileiros e que com eles mantinham
comércio. Estes grupos haviam auxiliado, em tempos, as tropas que
faziam resgate na região com mantimentos ou com contingentes
armados na luta contra inimigos28.
Em suma, os missionários queixavam-se contra as exacções dos
colonos, que desviavam os descimentos dirigidos às suas missões
para as fazendas dos moradores, tornando cativos aqueles índios
que, de direito, eram livres29. Os moradores representavam ao rei
que os missionários não lhes davam a mão-de-obra determinada
pelos repartimentos, utilizando-a em benefício dos colégios, mis­
sões e fazendas eclesiásticas30. As autoridades davam conta que os
particulares traficavam nos sertões, comprando índios contra as leis
do rei e do governador e não permitindo que os descimentos fossem
contabilizados por forma a se cobrarem os impostos devidos à
coroa31. Os funcionários das fortalezas, encarregados de vigiar o trá­
fico clandestino, não podiam ou não queriam controlá-lo. Os mis­
sionários assinavam registos em branco ou, ameaçados pelas tropas,
declaravam escravos os índios que, legalmente, eram livres. Os go­
vernadores beneficiavam os seus amigos e lucravam com o apresa-
mento clandestino.
Esta actividade reflectia-se no incremento das guerras intertri-
bais e da captura de prisioneiros de guerra, no desequilíbrio do sis­
tema de alianças já estabelecidas quer com outras etnias quer com
outros europeus. Incidia, ainda, na migração dos grupos étnicos para
zonas afastadas da sua residência habitual e na redefinição do esta­
tuto do prisioneiro de guerra transformado em escravo32.
Consequentemente, da leitura da documentação infere-se que,
durante toda a primeira metade do século xviii, houve conflitos de
interesse entre os diferentes grupos constituintes da sociedade colo-

28 AHU, Pará, caixa 59 (774), Representação de frei Matias de S. Boaventura, car­


melita e missionário no rio Cauaboris, de 10 de Agosto de 1734.
29 BNRJ, 12-2-6, Queixas apresentadas ao soberano contra Alexandre de Sousa
Freire, de 15 de Fevereiro de 1730.
30 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fls. 6v-7, Carta régia de D. João V
sobre o fornecimento de índios, de 24 de Maio de 1743, e BN, Colecção Pomhalina,
códice 622, fl. 33, Ofício de José Antônio de Freitas Guimarães a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, de 13 de Fevereiro de 1753.
31 BN, Colecção Pomhalina, códice 622, fl. 25, Ofício de Ricardo Antônio da Silva
Leitão, de 9 de Fevereiro de 1753; ibidem, fl. 31, Ofício de Manuel [...] da Silva a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 13 de Fevereiro de 1753.
32 John Manuel Monteiro, Negros da terra..., p. 33.

34
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

nial paraense e que todos os estratos sociais estiveram, por seu


turno, implicados e comprometidos no tráfico ilegal de escravos33.
Do lado ameríndio, se muitos indígenas foram mantidos libertos
devido ao esforço de missionários ou das autoridades administrati­
vas, muitos outros continuaram a ser escravizados ou obrigados a
trabalhar em condições equiparadas às dos escravos. O vasto corpo
legislativo destinado a proteger os índios era constantemente infrin­
gido.
As ilegalidades cometidas no sertão amazônico comprovam que
as condições de guerra justa e de resgate previamente enunciadas
não eram de todo cumpridas. Se, por um lado, a legislação admitia
abertamente que a situação caótica existente na capitania do Pará
encontrava as suas causas nos cativeiros ilegítimos e violentos prati­
cados pelos colonos, por outro, a mesma legislação reconhecia que a
opulência da colônia dependia da exploração e subordinação dos
ameríndios34.
Tendo em vista a observância das leis da liberdade e da escrava­
tura dos índios decretadas a partir do reinado de D. Sebastião, o
governo central derrogava velhos decretos e promulgava outros com
uma rapidez vertiginosa. Estas leis deviam abranger todos os índios
brasileiros ou aplicar-se somente ao Estado do Maranhão. Suce-
diam-se, favorecendo ora missionários ora colonos com o poder
para administrar os ameríndios. A legislação emitida pelo reino e,
logo, as opções da política colonial tomadas pelo poder central, não
eram, em alguns casos, decisões «puras» pensadas pelo governo de
Lisboa sobre o destino da colônia ou, neste caso específico, dos
ameríndios; expressavam também o peso ou a predominância que
um determinado grupo tinha num momento específico em Portugal;
reflectiam as alianças e os contactos que esse grupo detinha junto
do monarca ou de um indivíduo, uma família ou uma instituição;
eram determinadas por jogos de poder e de influência.
Aparentemente, o que um estudo imediato faz depreender é
que as mudanças subjacentes à legislação ameríndia destinavam-se a
uma efectiva protecção aos índios. Um exemplo óbvio do que afir­
mamos reside nas razões apresentadas por D. Pedro II em alvará
régio de 28 de Abril de 1688, no qual derrogava a lei de 1 de Abril
de 1680, que concedia a liberdade irrestringível dos índios, e reacti-
vava o diploma de 3 de Abril de 1655, reinstaurando o sistema dos

33 Nádia Farage, As muralhas do sertão..., p. 30.


34 Jonh M. Monteiro, Negros da terra..., p. 36.

35
A PRO M O ÇÃ O D O S AM ERÍNDIOS A VASSALOS

resgates. Dizia o monarca que, devido a interpretação errônea da


legislação, os índios derrotados em guerras eram vendidos a estran­
geiros, mortos pelos luso-brasileiros ou, ainda, comidos pelos seus
inimigos35. No sentido de evitar esta perda, contrária às leis divina e
humana, o monarca legalizava, de novo, a lei dos resgates, que se
deviam fazer por conta da Fazenda Real e com a colaboração dos
Padres da Companhia.
E óbvio que a acção «filantrópica» do soberano atentava contra
os interesses ameríndios e contra a sua liberdade, mas beneficiava a
sociedade colonial que via, assim, reactivada uma das suas fontes de
fornecimento de mão-de-obra: os índios resgatados. Esta atitude
política não resultava de ponderações éticas, mas da influência e
da representatividade que alguns estratos da sociedade colonial
paraense tinham junto do poder político central.
A mão-de-obra indígena era tão imprescindível para o desenvol­
vimento econômico local como para o próprio sistema colonial.
Pensamos que, no Estado do Grão-Pará, a verdadeira riqueza residia
não na terra, na exploração agrícola, na recolha das drogas-do-ser-
tão, na produção artesanal ou na criação de gado, mas sim na força
de trabalho que impulsionava essas actividades. Ou, como se afir­
mava numa fonte contemporânea, «No Estado do Maranhão,
senhor, não há outro ouro nem outra prata mais que o sangue e o
suor dos índios: o sangue se vende nos que cativam e o suor se con­
verte no tabaco, açúcar e nas mais drogas com que os índios se
lavram e fabricam»36. Na área geográfica em questão, essa mão-de-
-obra era obtida de forma mais fácil e rápida e com custos reduzidos
junto das comunidades ameríndias da bacia hidrográfica amazônica.
Assim se tentou explicar os inúmeros antagonismos, confrontos
e revoltas que opuseram os diferentes estratos da sociedade colonial
paraense durante a primeira metade do século xvm quando os seus
interesses não coincidiam em relação a um assunto tão delicado
como era o apresamento e a repartição dos ameríndios37.

35 Alvará de 28 de Abril de 1688, in Regimento e leis sobre as missões do Estado do


Maranhão e Pará sobre a liberdade dos Índios, Lisboa, Officina de Antônio Manescal,
1724, pp. 20 e 21.
36 BN, Reservados, cód. 11 570, Resposta aos capítulos que Jorge de Sampaio, Pro­
curador do Maranhão, deu contra a Companhia, s/d [aprox. fim do século xvn], p. 669.
37 Para este assunto, confronte-se, mais uma vez, João Lúcio de Azevedo,
Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e colonização. Veja-se capítulo m «Em cumpri­
mento do real serviço: o reordenamento do espaço e a integração dos ameríndios».

36
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

A s le is da lib e r d a d e :
a p r o m o ç ã o d o s ín d io s a v a s s a lo s

Em meados de Setecentos, o estatuto jurídico dos índios era


assunto delicado que continuava a estar no centro das atenções de
governantes, de legisladores e de colonos luso-brasileiros. Os inú­
meros contingentes de índios descidos do interior do Estado do
Grão-Pará eram rapidamente absorvidos pela sociedade civil e ecle­
siástica luso-brasileira em serviços domésticos, agrícolas, pecuários
e artesanais, na busca de drogas-do-sertão, na condução de canoas;
eram, ainda, rapidamente dizimados pelas epidemias de sarampo e
varíola que assolavam o Pará nos anos imediatamente anteriores e
subsequentes ao governo de Mendonça Furtado38; muitos índios
procuravam, também, refúgio na floresta, individualmente ou em
pequenos grupos, podendo ainda organizar-se em quilombos39.
Paralelamente, a taxa de natalidade era diminuta, não repondo os
nascimentos a mão-de-obra indígena que era consumida pelos tra­
balhos, pelas doenças e pela idade.
Por muitos ameríndios, escravos ou não, que descessem da pla­
nície hidrográfica amazônica, parecia nunca serem suficientes para
os moradores e missionários luso-brasileiros, que reclamavam cada
vez mais mão-de-obra. Parecia também não serem bastantes para os
serviços oficiais e particulares das entidades administrativas e da
própria coroa. E deve-se desde logo sublinhar que estas queixas irão
ser uma constante ao longo de todo o período em análise.
No entanto, logo em 1751, D. José I estipulava nas Instruções
dadas ao novo governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará
e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que o «[...] in­
teresse público, e as conveniências do Estado que hides governar,
estão indispensavelmente unidas aos negócios pertencentes à con­
quista e liberdade dos índios, e juntamente às missões de tal sorte
que a decadência e ruína do mesmo Estado, e a infelicidade que nele

38 AHU, Pará, caixa 59 (774), Carta régia ao governador e capitão-general do


Estado do Grão-Pará, de 8 de Julho de 1750; Dauril Alden e Joseph Miller, «Out of
África: the slave trade and the transmission of smallpox to Brazil, 1560-1831», in Jour­
nal of Interdisciplinary History, XVIII (2), Autumn 1987, p. 221.
39 A notícia de quilombos em tomo da cidade de Santa Maria de Belém ou em
outros locais recônditos, próximos ou não de povoados luso-brasileiros, é uma cons­
tante na documentação analisada. Como exemplo, veja-se BN, Colecção Pombalina,
códice 621, fl. 44, Carta régia ao governador do Estado do Grão-Pará, de 18 de Maio
de 1751.

37
A PR O M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

se tem sentido, são efeitos de se não acertarem, ou de se não exe­


cutarem (por má inteligência) as minhas reais ordens»40. Ou seja, o
monarca, para além de procurar claramente impor e fazer respeitar
as leis que os seus antecessores tinham publicado sobre a liberdade
dos índios, atribuía ao não cumprimento das mesmas o declínio do
Norte brasileiro.
Parece haver, à partida, uma clara contradição entre o discurso
legislativo que procurava impor a liberdade das pessoas e bens dos
ameríndios, facultando a tomada de opções e promovendo a livre
circulação, com a necessidade crônica de uma mão-de-obra que, se
fosse mantida escrava, poderia ser mais facilmente explorada. O que
terá levado a coroa, que durante tanto tempo tinha promulgado
uma sucessão de decretos e alvarás sobre a liberdade dos índios, a
empenhar-se de forma tão decidida e directa em semelhante ques­
tão, colocando-a como uma das prioridades da administração de
Mendonça Furtado?
Uma das hipóteses que se podem considerar para explicar este
interesse da coroa'pelos índios reside na vontade expressa dos pode­
res centrais em tomar os indígenas em cidadãos de pleno direito, em
tudo semelhantes aos luso-brasileiros. Nesta perspectiva, a lei da
liberdade dos índios, promulgada em 1755, é um aspecto impor­
tante, especialmente se a avaliarmos no corpo legislativo em que
está integrada.
Esta premissa afigura-se complexa, porque há a considerar que,
no discurso colonial, a transformação dos ameríndios em vassalos
do monarca formaliza-se em duas vertentes: por um lado, nas medi­
das legislativas que promoviam o índio a pessoa livre, tendendo a
equipará-lo a qualquer vassalo luso-brasileiro; e, por outro, nas
medidas civilizacionais e educativas, que visavam transformá-lo em
verdadeiro vassalo luso-brasileiro. Enquanto o primeiro aspecto é
fundamental para a compreensão da questão que nos propusemos,
o segundo relaciona-se com questões de aculturação e de europeiza­
ção que mais à frente serão retomadas.
A lei da liberdade dos ameríndios encontra-se enquadrada por
outras medidas legislativas, que acabariam, em última instância, por
concorrer para um único objectivo: o índio, para além de ser um
homem livre, devia ser, fundamentalmente, um vassalo do soberano
português. E, nesse sentido, a coroa promulgou três leis fundamen-

40 BN, Cotecção Pombalina, códice 626, fl. 7, Instruções régias dadas a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Maio de 1751.

38
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

tais, que visavam equiparar ou promover o ameríndio a vassalo luso-


-brasileiro. Foram eles o Alvará estipulando que os vassalos casados com
índios não sofrerão de infâmia mas se farão dignos da atenção real e serão
preferidos nas terras em que se estabelecerem para ocupações e postos; e os
seus filhos e descendentes serão hábeis para quaisquer postos41; a já men­
cionada carta régia estabelecendo a liberdade das pessoas e bens dos
ameríndios, «primários e naturais senhores» da terra que, vivendo
em grande miséria e barbárie, importava civilizar por meio da reli­
gião, da instrução e do incentivo ao'desenvolvimento agrícola e
comercial42; e, finalmente, o Alvará estabelecendo a inviolável observân­
cia da lei de 12 de Setembro de 1653, estabelecendo que os índios do Pará
e Maranhão sejam governados no temporal por governadores e principais e
justiças seculares com inibição das administrações dos regulares43.
Pensamos que é imprescindível enquadrar esta legislação num
outro contexto mais abrangente que contempla o Império Português
do Oriente. As semelhanças entre as medidas reformistas desenca­
deadas por Mendonça Furtado no Norte brasileiro e o discurso legis­
lativo que, paralelamente, se aplicou no Oriente são notórias. Não
deixa de ser pertinente confrontar a liberdade concedida aos amerín­
dios do Norte do Brasil, imposta ao vice-reinado só três anos mais
tarde, com a proibição da escravatura chinesa, datada de 28 de
Março de 175844.
De igual forma, é interessante relacionar a equidade de direitos
que, na mesma época, é dada aos vassalos índios e aos súbditos
indianos e macaenses do Rei Fidelíssimo. Dos dois lados do Império
tomavam-se medidas semelhantes, numa intenção que, tal como
notou Maria de Jesus dos Mártires Lopes para a sociedade goesa,
tinha de, por um lado, agradar e assegurar a fidelidade da população
nativa à Coroa Portuguesa; por outro, diminuir o poder das grandes
ordens religiosas45.

41 BN, Res. 3610 V, alvará de 4 de Abril de 1755.


42 AHU, Conselho Ultramarino, códice 336, fls. 53v-65; BN, Reservados, códice
8396, doc. li.
43 Alvará de 7 de Junho de 1755, in Collecção das leis, decretos e alvarás que compre-
hende o feliz reinado dei rei ftdelissimo D. José I nosso senhor desde o anno de 17JO até ao de
1760 e a pragmática do Sr. Rei D. João V do anno de 1 7 4 9 , Tomo I, Lisboa, Oficina de
Antônio Rodrigues Galhardo, 1797.
44 BNRJ, II 33-21-51, Carta régia dirigida ao Conde de Arcos ampliando as leis
de 6 e 7 de Junho de 1755, de 8 de Maio de 1758; também em JCB, 71-341-1.
45 Maria de Jesus dos Mártires Lopes, Coa Setecentista: tradição e modernidade
(1750-1800), Lisboa, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portu­
guesa, Universidade Católica Portuguesa, 1996, p. 42.

39
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Entre o Norte brasileiro e a índia ou Macau o processo legisla­


tivo era semelhante, apenas separado por uma diferença mínima de
tempo. Assim, o alvará de 4 de Abril de 1755 encontrava correspon­
dência em diplomas régios de 2 de Abril de 1761, pelos quais se
determinava que os vassalos naturais do Estado da índia, conquanto
cristãos, passassem a usufruir das mesmas honras, privilégios e
prerrogativas e a deter os mesmos direitos, ou até preferência, na
habilitação ao exercício de cargos administrativos. De igual modo,
proibia-se que fossem injuriados de negros46. A igualdade jurídica
imposta entre reinóis e autóctones possibilitava o acesso quer de
índios quer de indianos aos quadros eclesiásticos e aos postos mili­
tares. De igual modo, os filhos das aristocracias dos dois lados do
Império tinham acesso a seminários e colégios47. A intenção era
semelhante: formar um grupo de indivíduos que fizessem a ligação
entre as duas sociedades, a colonial e a indígena, tanto pelo nasci­
mento quanto pela formação.
No entanto, diferenças fundamentais separavam as sociedades
que se pretendiam implantar em locais tão distantes. Enquanto nas
sociedades ameríndias não havia diferenciações sociais relevantes,
exceptuado o principal ou chefe militar e o pagé ou xamã, a estru­
tura social indiana encontrava-se fortemente estratificada, composta
por «realidades sociais diferentes e até mesmo paradoxais», resultan­
tes da fusão de uma sociedade ancestral com elementos novos trazi­
dos pela expansão portuguesa48. Por outro lado, as sociedades colo­
niais implantadas nos diferentes pontos do Império eram, também,
diferentes na sua constituição, na sua organização e nos seus inte­
resses49. Terá, possivelmente, sido por isso que o decreto de 1761,

46 Ibidem, p. 39. Antônio Alberto de Andrade, «A política portuguesa em África


no século xviii», in separata da Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos, 9-10, 1953,
p. 17.
47 Fundou-se um seminário em Goa e intentou-se o mesmo para Moçambique.
Veja-se Antônio Alberto de Andrade, «A política portuguesa em África...», p. 18;
O tradicional anti-racismo e a acção civilizadora dos portugueses, Lisboa, 1952, pp. 36-37.
48 Maria de Jesus Mártires Lopes, ibidem, p. 75.
49 Talvez assim se explique que a mesma lei de 2 de Abril de 1761, que devia
contemplar goeses e macaenses, não tenha sido executada de imediato em Macau
«provavelmente pela resistência criada pelas elites» (Maria de Jesus dos Mártires
Lopes, «Mendicidade e “maus costumes” em Macau e Goa na segunda metade do
século xvill», in As relações entre a índia Portuguesa, a Ásia do Sueste e o Extremo Oriente.
Actas do Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, edição de Artur Teodoro de
Matos e Luís Filipe F. Reis Thomaz, Macau e Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Oriente, 1993, p. 67).

40
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

enviado ao governador e capitão-general de Moçambique, Calixto


Rangel Pereira de Sá, só teve cumprimento na administração de João
Pereira da Silva Barba50.
A compreensão da questão passa, obviamente, pela percepção
da ideologia política colonial definida em Lisboa51. Não é por acaso
que, quando se difundiu ao resto do Império este corpo jurídico,
fosse secretário de Estado do Ultramar o antigo governador do Pará,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1760-1769)52. Foi o irmão
de Pombal o responsável pela aplicação das mesmas medidas tanto
no Brasil quanto no Oriente.

A lib e r d a d e in d íg e n a e as su a s c o n tr a d iç õ e s

Através dos diplomas aplicados ao Norte brasileiro, os amerín­


dios eram, pela lei, equiparados aos habitantes reinóis ou luso-brasi-
leiros. O discurso oficial procurava, portanto, estabelecer a igual­
dade entre índios e luso-brasileiros: igualdade de direitos, de opções,
de possibilidades. Mas será que a liberdade dos índios era igual à
liberdade dos luso-brasileiros? Quantas acepções da palavra «liber­
dade» podem ser inferidas da leitura do discurso oficial luso-brasi-
leiro?
Ao tentar tomar os índios em cidadãos de pleno direito, em
tudo semelhantes aos súbditos luso-brasileiros, este conjunto do­
cumental em análise vai tentar aproximar os dois grupos. Este pro­
grama baseou-se, por exemplo, no incentivo à miscigenação pelo
casamento de vassalos portugueses com ameríndias; na preferência
dadas aos índios e a seus descendentes para o exercício de certos

50 Antônio Alberto de Andrade, O tradicional anti-racismo e a acção civilizadora dos


portugueses, p. 40.
51 É Nuno Gonçalo Monteiro que afirma que falar do governo de Lisboa antes
do século xviii faz pouco sentido. No entanto, na época em análise, tinha já ocorrido
um crescimento significativo do aparelho «burocrático» central («O central, o local, e
o inexistente regional», in História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade
Média à União Européia), direcção de César de Oliveira, Lisboa, Círculo de Leitores,
1996, pp. 80-81).
52 Marcelo Caetano, «As reformas pombalinas e post-pombalinas respeitantes
ao Ultramar. O novo espírito em que são concebidas», in História da Expansão Portu­
guesa no Mundo, vol. m, Lisboa, Editorial Ática, 1940, pp. 251-252. Afigura-se-nos que,
apesar da sua pertinência, as questões de «ideologia política colonial» não cabem no
âmbito desta dissertação, mas em estudos que se centrem na organização e nas atitu­
des políticas do governo de Lisboa e nas suas relações com o Império.

41
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

cargos públicos; na prioridade que se dava aos luso-brasileiros casa­


dos com mulheres indígenas para desempenhar funções administra­
tivas nas povoações; na legitimação das pretensões índias para se
candidatarem como irmãos leigos às ordens religiosas53.
Na medida em que os ameríndios eram súbditos tão aptos
como quaisquer outros, reconhecia-se-lhes, por seu turno, a capaci­
dade de se governarem. E, nesse sentido, o discurso legislativo esti­
pulava que os missionários, que até à data tinham o controlo das
missões, fossem substituídos pelos ameríndios naturais das vilas e
aldeias do Estado54. Os indígenas estavam, assim, integrados nos
mesmos circuitos administrativos e jurídico-institucionais que os
luso-brasileiros, uma vez que deixavam de ter uma autoridade tute­
lar que os regesse na administração das suas povoações. Esta ideia
de integração foi, ainda, reforçada quando se lhes reconheceu a
capacidade de recorrerem aos governadores, ministros e tribunais
reais em caso de agravo55.
Ora, se esta é a face oficial do discurso jurídico, o que se verifica
é que, de facto, há inúmeras contradições ou, então, e mais precisa­
mente, imensos ajustamentos. Estes processaram-se, antes de mais,
a nível legislativo. O Directório que, nas palavras de Carlos de Araújo
Moreira Neto, é um «instrumento de intervenção e de submissão
das comunidades indígenas aos interesses do sistema colonial»56, é,
nesta óptica, também um meio de educação e de aculturação. Ou
seja, é uma forma de tomar o índio, a quem já se tinha formalmente
concedido o estatuto de vassalo, num verdadeiro súbdito, num luso-
-brasileiro ao serviço dos interesses da coroa e útil à política colonial.
Este objectivo é conseguido, primeiramente, pelo afastamento
dos missionários da administração das aldeias e pela sua substitui­
ção por directores, porque os índios, como de antemão se previa,
não poderíam corresponder, naquele momento, às exigências admi­
nistrativas luso-brasileiras.
Os directores, com base num programa de colonização, o Direc­
tório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e do Maranhão

53 BN, Res. 3610 V, alvará de 4 de Abril de 1755.


54 BN, Res. 2434 A, alvará de 7 de Junho de 1755.
55 Uma análise desta legislação encontra-se em Angela Domingues, «As socieda­
des e as culturas indígenas face à expansão territorial luso-brasileira na segunda
metade do século xviii», in Nas vésperas do mundo moderno. Brasil, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, pp. 186-188.
56 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-
-1850), Petrópolis, Editorial Vozes, 1988, pp. 20 e 27.

42
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

enquanto Sua Magestade não mandar o contrário, tinham por objectivo


principal a transformação dos ameríndios57, cuja liberdade e sujeição
eram consideradas como assuntos de interesse público, para além de
coincidirem com as conveniências do Estado. Este programa de
colonização e os seus mecanismos serão, em devido tempo, objecto
de análise detalhada.
Estatutariamente, os indígenas passavam a ser considerados não
como integralmente responsáveis pelos seus actos, mas como indiví­
duos em estado de menoridade: menoridade civilizacional, porque se
considerava que a «civilização índia» ocupava um estádio inferior na
evolução da humanidade; menoridade individual, porque se concebiam
os indígenas como súbditos não totalmente responsáveis pelos seus
actos, mas como «pessoas miseráveis», simples e rústicas, incapazes de
avaliar, de forma total, as consequências do seu comportamento58.
O que era, portanto, a liberdade de um índio que vivesse no
Estado de Grão-Pará e Maranhão na segunda metade do século xviii?
Importa, antes de mais, destrinçar uma diferença fundamental entre
liberdade pessoal e liberdade profissional. No que diz respeito ao
primeiro aspecto, os índios deviam usufruir de um tratamento idên­
tico àquele concedido aos luso-brasileiros, porque o seu estatuto era
o de súbdito do monarca português. Dessa forma, integravam-se os
indígenas nas cadeias jurídicas normais, podendo, como qualquer
outro indivíduo, endereçar ao rei, ao governador ou aos tribunais
petições, pretensões e queixas se considerassem que os seus direitos
tinham sido infringidos ou desrespeitados59; o seu trabalho era, tal
como o dos luso-brasileiros, sujeito a impostos; estavam, tal como
os luso-brasileiros, integrados em companhias de ordenanças e tro­

57Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto
Sua Magestade não mandar o contrário, Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, 1758.
58 Este conceito aplicado aos índios é uma constante na legislação peninsular,
claramente expresso em obras de tratadistas espanhóis como Don Alonso de La Pena
Montenegro e Juan de Solorzano Pereira, em quem os legisladores pombalinos se
terão inspirado. Será retomado no capítulo VI «A construção de imagens: definições
de ameríndios nos discursos coloniais». A título de curiosidade, mencione-se que um
dos exemplares por nós utilizado da obra de Juan de Solorzano Pereira pertencia à
biblioteca de Paulo de Carvalho e Mendonça, irmão do Marquês de Pombal e de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (BN, SC 6530 A).
59 Como exemplo, queremos mencionar uma petição da índia Petronilha
pedindo para se conservar em Belém e ficar independente do director de Beja (AHU,
Pará, caixa 104 (819), s/d [ant. a 1779]); petição da índia Josefa Martinha, tomada de
soldada contra sua vontade (AHU, Pará, caixa 95 (810), s/d [ant. a 1779]); representa­
ção dos principais e moradores de Borba-a-Nova acusando o seu director de abusos e
exacções (AHU, Pará, caixa 29 (745), s/d [ant. a 1769]).

43

I
A PRO M O ÇÃO D OS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

pas regulares; era-lhes reconhecido o direito de intervirem na vida


comunitária, exercendo, por exemplo, cargos relacionados com as
formas de governo coloniais (oficios camarários60) ou com as formas
indígenas de organização (principalato, concelhos de anciãos61); não
podiam ser objecto de abusos e de maus tratos; e a alguns indiví­
duos, tal como acontecia com os luso-brasileiros, era-lhes reconhe­
cido o usufruto de benefícios, isenções e privilégios62.
A nível profissional, a liberdade do índio incidia, prioritaria­
mente, no direito à remuneração, ou seja, o índio, tal como o luso-
-brasileiro, enquanto prestador de serviços domésticos, agrícolas ou
artesanais, devia ser remunerado de acordo com as tabelas de salários
estabelecidas pelos órgãos governativos da capitania63; paralela­
mente, era-lhe concedido o direito de optar pela profissão que queria
seguir, bem como o de escolher a pessoa com quem queria traba­
lhar64. Consequentemente, o discurso colonial sobre a liberdade índi-
gena considerava como direitos inalienáveis dos índios a igualdade
de tratamento, o direito de queixa, o acesso a uma «justa remunera­
ção»; a salvaguarda da vontade indígena em relação ao tipo e local de
trabalho; mas opunha-se terminantemente ao ócio e à vadiagem.
Sendo uma das bases da riqueza do Estado do Grão-Pará a sua
mão-de-obra, era inadmissível para os órgãos governamentais e ina­
ceitável para as entidades particulares a inactividade e a vadiagem
dos ameríndios. Reconhecendo a existência de gmpos de amerín­
dios ociosos e prevendo o aumento da ociosidade como uma das
reacções índias à promulgação da lei da liberdade, Francisco Xavier
de Mendonça Furtado tentou, logo em 1754, eliminar uma situação
e evitar a outra. Nesse sentido, promulgou um bando a 12 de Feve­
reiro, cedo confirmado por carta real de 14 de Março de 1755, esti­
pulando que todos os índios que não tivessem ocupação fossem

60 APEP, códice 101, doc. 62, Representação da câmara de Santarém ao governa­


dor da capitania de Pará, de 6 de Abril de 1774.
61 AHU, Rio Negro, caixa 9, doc. 1, Ofício de João Bemardes Borralho a João
Pereira Caldas, de 10 de Julho de 1784.
62 Confronte-se o capítulo III «Em cumprimento do real serviço: o reordena-
mento do território e a integração dos vassalos».
63 AHU, Pará, caixa 22 (742), Bando promulgado por João Pereira Caldas re­
gulando o salário dos índios, de 30 de Maio de 1773: também em ibidem, caixa 34
(749).
64 AHU, Pará, caixa 104 (819), Petição da índia Petronilha pedindo para se con­
servar na cidade de Belém, s/d [ant. a 1779]; ibidem, caixa 95 (810), Petição da índia
Josefa Martinha, de Belém, dada de soldada a Hilário de Morais Bettencourt, s/d [ant.
a 1779],

44
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

dados de soldada aos moradores de acordo com despachos governa­


tivos65. Assim se evitava as frequentes disputas e inimizades que
havia entre os moradores que, com o objectivo de congregarem
mais mão-de-obra, aliciavam os índios dos moradores vizinhos a
trabalhar nas suas terras66.
As entidades administrativas planificaram o processo condu-
cente à liberdade índia com grande cautela. Talvez seja este planea-
mento que já está subjacente à isenção de direitos de entradas sobre
escravos negros, concedida aos moradores do Pará em carta régia de
18 de Abril de 175367. Mas está claramente comprovada na anteci­
pação de Mendonça Furtado expressa no bando de 1754 com vista a
evitar a ociosidade. Encontra-se ainda explícita no interregno havido
entre a data de promulgação dos alvarás régios de 1755 e a sua
divulgação em 1757. Importa salientar que, aliás, a publicação das
leis da liberdade dos índios e da privação do governo temporal aos
Regulares ficaria ao discernimento de Mendonça Furtado, que as
deveria publicar quando achasse mais oportuno, ou seja, quando as
forças militares estivessem reunidas em Belém68.
As autoridades temiam reacções violentas por parte da popula­
ção do Estado do Grão-Pará e Maranhão quando se visse privada da
sua principal fonte de trabalho e rendimentos69. Este perigo era tão
mais premente quanto se adivinhava que pouca colaboração para
dominar uma possível revolta poderia advir dos militares, também
eles detentores de escravos índios70.

65 AHU, Pará, caixa 110 (825), Carta régia aprovando a promulgação de um


bando de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 14 de Março de 1755; também
em Conselho Ultramarino, códice 272, fl. 16v.
66 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 325-325v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre as decisões de Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre índios
livres e alforriados, de 5 de Março de 1755.
67 AHU, Conselho Ultramarino, cód. 271, fl. 235, Carta régia aos oficiais da câmara
de Belém sobre os dízimos; também em ibidem, cód. 1275, fl. 147. O principal objec­
tivo desta isenção era colmatar a falta de mão-de-obra sentida pelos moradores do
Pará devido a uma epidemia que tinha dizimado um grande número de índios
(AHU, Pará, caixa 59 (774), Carta régia ao governador e capitão-general do Mara­
nhão, de 8 de Julho de 1750).
68 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Sebastião José de Carvalho e Melo a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Junho de 1756.
69 Nádia Farage, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas no rio Branco e a coloni­
zação, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Ampocs, 1991, p. 36.
70 Marcos Carneiro de Mendonça, A Amazônia na era pombalina. Correspondência
inédita do governador e capitão-general do estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, 175‘I-'I7Ô9, 1 ° tomo, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1963, p. 84.

45
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Como se sabe, a sociedade colonial protestou violentamente. Para


além das manifestações formais endereçadas à coroa e ao governador,
comprovou-se a existência de uma aliança entre alguns moradores e a
coroa francesa, na qual os colonos prometiam a cedência do Estado do
Norte brasileiro ao rei de França, conquanto este se comprometesse a
manter o estatuto da escravidão indígena71. Os envolvidos eram desig­
nados como sendo homens rústicos e tirados do mato. Simultanea­
mente, insinuava-se o envolvimento da Companhia de Jesus, pela par­
ticipação do padre Roque Hundertpfundt na traição.
E no que diz respeito aos vassalos ameríndios de Sua Majestade
Fidelíssima? Se é certo que o monarca não fazia distinção entre
«brancos» e índios, diziam as leis, e se os índios tinham deixado de
ser escravos porque todo o homem era naturalmente livre, dizia o
direito natural, como justificar os inúmeros protestos feitos por
ameríndios, cristãos e vassalos do rei, que se queixavam de exacções
e de infracções ao direito natural e divino?
Pensa-se que é interessante salientar que esta questão se põe ao
longo de todo o período em análise, não se restringindo unicamente
aos anos subsequentes à promulgação da lei da liberdade. Os direi­
tos índios mais básicos eram postos em causa através da actuação
de governadores, dos moradores, de clérigos, de directores, que
eram acusados de desrespeitar as leis reais.
As petições e as representações que dão conta destes abusos são
da autoria de funcionários administrativos e eclesiásticos, de mora­
dores, mas também de alguns índios, os quais seriam, sem sombra
de dúvida, os mais lesados nas disputas de domínio e poder que
caracterizavam a sociedade colonial paraense e rionegrina de mea­
dos de Setecentos.
Importa, antes de mais, deixar claro que a avaliação do incum-
primento ou inobservância da lei só se pode verificar através da aná­
lise de casos pontuais, isto é, de exemplos que, na sua maioria, inci­
dem sobre as contravenções. Seguidamente, há que sublinhar que as
queixas são em número reduzido, quer pelo tipo de documentação
existente nos núcleos arquivísticos consultados quer também por­
que a maior parte dos índios desconhecia os mecanismos que lhe
eram legalmente atribuídos para defesa dos seus direitos.
Desta situação dá claramente conta uma sentença de liberdade
dada a favor de Celestino Barbosa, filho da índia Mariana, que devia

71 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de João da Cruz Dinis Pinheiro, de 4 de
Setembro de 1755.

46
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

ser livre porque sua mãe também o era, não obstante ter estado
como escrava em casa de André Fernandes Gavinho e lhes ter ven­
dido o filho «porque nem uma nem outra coisa prova a escravidão
de tal índia tanto por esta ser como todas as mais ignorantes faltas
de inteligência de se livrarem das opressões padecidas por este
meio, como também por serem os factos alegados cumum e geral­
mente justificados por meros e injustos detentores dos índios que
por serem tidos por livres não justificam a posse sem haver junta­
mente o título porque tenham passado a escravos e entrado no
comércio dos homens estando, aliás, fora dele»72.
É nesta falta de registos ou de processos individuais que com­
provassem a escravidão dos índios descidos que radicaram muitas
pretensões de liberdade73. Como foi analisado, a escravidão legal
estava condicionada aos casos de guerra justa e de resgate e a legiti­
midade desses cativeiros dependia dos exames feitos pelos missio­
nários que acompanhavam as tropas e que interrogavam os índios
sobre a situação em que tinham sido aprisionados74. Há, ainda, a
considerar que estes registos podiam ser manipulados por falsos tes­
temunhos da tropa, pelas ameaças ou incompreensão dos índios
interrogados e pelos interesses dos missionários. Durante a adminis­
tração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado alguns índios ape­
laram à Junta das Missões, recorrendo do registo de cativeiro ou,
então, do estatuto de escravidão. Foram libertados porque, diziam
as autoridades, «sendo todo o homem naturalmente livre, de nada
valia a posse, alegada pelos réus, enquanto não apresentavam os
títulos da escravidão, por ser uma posse contra o direito natural, a
qual não podia constituir ao possuidor em boa fé»75.
A utilização reduzida dos mecanismos que defendiam os direi­
tos dos índios relacionava-se, também, com o facto de os princípios
que determinavam a escravidão serem diferentes na sociedade colo­
nial luso-brasileira e nas sociedades ameríndias. Para além de os

72 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Sentença dada a favor do mameluco Celestino
Barbosa contra o réu André Fernandes Gavinho, de 21 de Setembro de 1755.
73 Alguns destes «registos de escravidão» de «negros da terra» referentes a gru­
pos Manau, Ubitiena, Maribuena, Marabitena, Cunapitena encontram-se no Instituto
de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (Arlinda Rocha Nogueira,
Heloísa Liberalli Bellotto, Lucy Maffei Hutter, Inventário analítico da Colecção Lamego,
São Paulo, IEB, vol. i, 1983, pp. 239-242.
74 Nádia Farage, As muralhas do sertão. Os povos indígenas do rio Branco e a coloniza­
ção, pp. 28-29.
75 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício do Bispo do Pará, frei Miguel de Bulhões,
a Sebastião José de Carvalho e Melo, de 9 de Setembro de 1756.

47
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

recém-promovidos súbditos ameríndios do monarca português não


terem consciência das consequências legais determinadas pela
mudança de estatuto jurídico, é preciso considerar que as regras que
justificavam a escravatura nas sociedades ameríndias eram diferen­
tes das que se estabeleciam no direito colonial. Por exemplo, o facto
de um índio ser apanhado durante uma guerra pela facção oposta
era justificação suficiente para se considerar escravo, apesar de tal
situação não ser reconhecida pela legislação76. As referências que os
índios tomavam eram obviamente as do seu povo, pelas quais sem­
pre se tinham regido, e não aquelas que as leis coloniais tinham pas­
sado a ditar. Ora, ao tomar por parâmetro os costumes ancestrais, as
referências dos ameríndios da Amazônia de meados de Setecentos
não se diferenciavam em muito das atitudes de um europeu menos
esclarecido na mesma época.
Ao abordar tal questão há que ter em conta que a problemática
que lhe está subjacente consiste em perceber o que é que liberdade
significava para os ameríndios. Ora esta é uma questão insolúvel: a
documentação analisada revela que tal preocupação não existia nos
testemunhos europeus da segunda metade do século xvni. O que se
pode inferir através da documentação de tipo jurídico é que, nalguns
casos, os índios utilizaram os mecanismos a que legalmente tinham
acesso para se queixarem dos abusos de autoridades e colonos.
Não obstante a massa legislativa publicada, o empenho de algu­
mas autoridades e o tempo passado, não se deve pensar que a escra­
vidão indígena foi uma questão resolvida com a viragem da segunda
metade do século xvill. A menção à escravatura aparece de forma
concreta, por exemplo, em Janeiro de 1764, isto é, dez anos volvidos
sobre a promulgação da liberdade. Nesta altura, o desembargador
Francisco Raimundo de Morais, um oficial real, foi acusado de
enviar tropas ao rio Canary para fazerem escravos77. Ainda mais
tarde, em 1779, a índia Josefa Martinha afirmava que era perseguida
pelas «tropas de escravos» de Hilário de Morais Bettencourt, a quem
tinha sido dada de soldada contra sua vontade78.

76 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Sentença dada a favor do mameluco Celestino
Barbosa contra o réu André Fernandes Gavinho, de 21 de Setembro de 1755.
77 AHU, Pará, caixa 60 (775), Ofício de [?] para Manuel Machado, procurador da
Fazenda Real e dos índios do Pará, de Janeiro de 1764.
78 AHU, Pará, caixa 95 (810), Petição da índia Josefa Martinha dada de soldada
contra sua vontade a Hilário Morais Bettencourt, s/d [ant. a 1779], Hilário de Morais
Bettencourt era senhor-de-engenho com propriedades em tomo de Belém, como o
Engenho do Carmelo em Carapajá. Produzia açúcar, cacau, arroz e legumes; tinha

48
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Há também referências a uma escravatura velada. Destas, uma


das mais interessantes consiste no testemunho de Antônio José
Landi que, ao referir-se à aquisição de um engenho de açúcar em
Mortecú, mencionava a existência de 70 índios, como se, com a
aquisição do terreno, viesse adstrita uma quantidade determinada
de servos79. Ou então quando, em 1787, Martinho de Sousa e Albu­
querque aludia aos índios subordinados à Igreja da Misericódia de
Belém como tendo sido a renda mais importante da instituição80. De
igual forma, em data aproximada a 1796, Simão Fernandes, morador
no Cametá, afirmava ter em sua posse 53 índios, uns comprados aos
resgates das tropas, outros nascidos em sua casa. Pretendia o luso-
-brasileiro obter do monarca uma provisão que estipulasse que os
índios, embora livres, eram obrigados a prestar ao suplicante os seus
serviços enquanto fosse vivo81. Não se fazia menção a salários ou
mantimentos.
O estatuto dos vassalos ameríndios do monarca português era
contrastante com a situação que, de facto, ocupavam, sendo um
procedimento corrente a infracção dos direitos básicos estipulados
na lei da liberdade. Os salários não eram pagos. O tempo de conces­
são da mão-de-obra índia estipulado nas portarias governamentais
não era respeitado, como o comprova a promulgação dos bandos de
3 de Maio de 1764 e 9 de Junho de 1780, em tudo semelhantes ao
bando de 12 de Fevereiro de 175482. Os indivíduos não podiam cir­
cular livremente, sendo-lhes restringida a mobilidade; nem, tão-

olaria, curtumes e pequenas roças arrendadas (Anaiza Virgolino-Henry e Arthur


Napoleão Azevedo, A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica,
Belém, Arquivo Público do Pará, 1990, p. 54).
79 AHU, Pará, caixa 40 (754), Requerimento de Antônio José Landi ao governa­
dor da capitania, de 19 de Novembro de 1780. Landi era um desenhador, naturalista e
arquitecto bolonhês integrado nas partidas de demarcação de limites de 1750 e resi­
dente no estado do Grão-Pará até à sua morte (Augusto Meira Filho, Landi, esse desco­
nhecido (o naturalista), s/1, Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos
Culturais, 1976); sobre a sua actuação como arquitecto de monumentos religiosos no
Pará, veja-se Maria de Lourdes Sobral, As missões religiosas e o Barroco no Pará, Belém,
Universidade Federal do Pará, 1986.
80 AHU, Pará, caixa 44 (758), Ofício de Martinho de Sousa e Albuquerque às ins­
tituições centrais, de 22 de Janeiro de 1787.
81 AHU, Pará, caixa 17 (733), Petição de Simão Fernandes [ant. a 20 de Maio de
1796],
82 AHU, Pará, caixa 40 (752), Bando de José Nápoles Telo de Meneses sobre a
repartição dos índios, de 9 de Junho de 1780; ANRJ, códice 101, vol. 1, fls. 115v-116,
Bando de José Nápoles Telo de Meneses sobre o mesmo assunto, de 30 de Junho de
1780. Nestes diplomas apenas variavam as punições, que eram, gradualmente, maiores.

49
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

-pouco, estavam aptos a decidir a sua morada de residência, sendo


transferidos para outros locais contra sua vontade83. Não tinham,
também, a capacidade de decidir sobre o seu ofício. Em suma, os
ameríndios eram vítimas de abusos e de maus tratos físicos.
Representações de moradores ou protestos individuais dão conta
que alguns directores espancavam os índigenas sob sua administra­
ção. Era o caso do alferes Luís da Cunha de Eça e Castro, director de
Borba-a-Nova, que tinha esbofeteado o principal Miguel do Rego,
tinha dado pancadas e cutiladas ao índio Pissô, espancado os amerín­
dios Pamás recém-descidos, atirado das escadas e agredido a índia
Tomásia Francisca e oprimido ainda todas as mulheres índias «que lhe
faziam resistência», batendo-lhes, desterrando-as ou mandando-as
executar funções desapropriadas ao seu sexo ou estatuto social84. Para
além dos maus tratos físicos, de que este caso é unicamente um exem­
plo, os directores eram também acusados de explorar a mão-de-obra
indígena em proveito próprio ou em benefício dos seus amigos e apa­
niguados, não lhes pagando os salários devidos e fazendo-os trabalhar
nos serviços de moradores mais tempo do que aquele prescrito por lei.
A acusações deste tipo não ficavam incólumes os funcionários
reais que ocupavam os cargos mais elevados. Como se apontou,
cabia ao governador e capitão-general da capitania repartir os índios
de soldada pela concessão de provisões, nas quais se estipulava o
número, a remuneração e o tempo de serviço dos ameríndios nos
serviços de particulares. No entanto, em meados dos anos de 60,
diziam os moradores das novas povoações da capitania do Rio
Negro que o governador e capitão-general Joaquim Tinoco Valente
se recusava a repartir os índios, concedendo-os, no entanto, aos seus
amigos bagateleiros, taberneiros, directores e cabos de canoa, a
troco de somas de dinheiro85.
Também José Nápoles Telo de Meneses era acusado de não
fazer distinção entre homens livres e escravos. O juiz-de-fora José

83 AHU, Pará, caixa 79 (794), Petição de Antônio José, filho da índia Andreza, de
Mondim, pedindo lhe fosse concedida uma provisão que lhe permitisse empregar-se
numa fazenda de gado na ilha Grande de Joanes, s/d [cerca 1786]; ibidem, Represen­
tação de Jorge Francisco de Brito, filho da índia Cristina Furtado, solicitando a con­
cessão de uma provisão que lhe possibilitasse a liberdade de deslocação, s/d [cerca
1786].
84 AHU, Pará, caixa 29 (745), Representação dos principais e moradores de
Borba-a-Nova sobre as exacções do director, alferes Luís da Cunha de Eça e Castro,
s/d [aprox. 1769],
85 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 47 A, Representação dos moradores das novas
povoações do Rio Negro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Julho de 1766.

50
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

de Oliveira Peixoto referia, em carta de 1781, que, com a lei das


liberdades, alguns índios de Belém tinham conseguido obter uma
certa prosperidade, detendo bens, fundos e casas próprias, exer­
cendo ofícios mecânicos, cultivando terras suas ou arrendadas,
assoldados nas lavouras e em manufacturas. Ao governador incul-
cava-se responsabilidades na pilhagem das casas, lojas e roças dos
moradores, no abuso e violação das mulheres e filhas e no realoja-
mento forçado dos índios em outras povoações ou no Arsenal Real.
Diziam que não respeitava as pessoas»e os bens dos vassalos8687. No
ano seguinte, semelhante queixa foi feita por João Gonçalves de
Figueiredo que acusava a mesma entidade de mandar açoitar nus e
atar às grades da cadeia pública todos os súbditos reais37.

U m a m ã o -d e -o b r a a lte r n a tiv a :
o s e s c r a v o s a fr ic a n o s

A concessão da liberdade aos ameríndios criou às instituições


administrativas um problema real que consistia em lidar com a falta
de mão-de-obra que semelhante medida provocaria. A solução
encontrada passou pelo aumento da importação de escravos africa­
nos, viabilizada pela criação da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão em 6 de Junho de 1755 e, após a sua extin­
ção, pelo estabelecimento do «contracto de Cacheu e Cabo Verde»
com contratadores-armadores88. Tal como referiu Kenneth Maxwell,

86 AHU, Pará, caixa 75 (790), Carta do Juiz de Fora José de Oliveira Peixoto
sobre as exacções de José Nápoles Telo de Meneses, de 26 de Agosto de 1781; tam­
bém em ibidem, caixa 44 (758); ibidem, caixa 111 (826), Carta incompleta, faltando o
nome do autor e data, sobre as violências cometidas por José Nápoles Telo de Mene­
ses, s/d.
87AHU, Pará, caixa 75 (790), Carta de João Gonçalves Figueiredo à rainha sobre as
exacções de José Nápoles Telo de Meneses, s/d [aprox. de 12 de Agosto de 1782].
88 Sobre a actuação das companhias monopolistas, veja-se Bailey W. Diffie,
A History of Colonial Brazil, 1500-179Z, Malabar, Florida, Robert E. Krieger Publishing
Company, 1987, pp. 403-411; José Álvaro Ferreira da Silva e M. Manuela Marques
Rocha, «A Companhia do Grão-Pará e Maranhão», in História e Sociedade, n.° 10,
Dezembro, 1982, pp. 43 e ss.; sobre o «assento de escravos», confronte-se BNRJ, 7-3-
-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de Sousa Cou-
tinho, de 21 de Agosto de 1797. Joaquim José Coimbra é apontado como um dos
contratadores (vejam-se breves referências em Anaiza Virgolino-Henry e Arthur
Napoleão Azevedo, A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica,
Belém, Arquivo Público do Pará, 1990, p. 41).

51
A PRO M O ÇÃ O D O S AM ERÍNDIOS A VASSALOS

um aumento significativo de africanos não só diminuiría a depen­


dência da sociedade colonial em relação à escravaria indígena como
daria origem a uma fonte de trabalho indispensável ao desenvolvi­
mento agrícola e comercial do Estado89.
Desde já importa referir que não é propósito imediato proceder
ao estudo dos africanos e da sua actuação no Norte brasileiro. Tal
assunto, ainda que de interesse e novidade, debater-se-ia com
alguns problemas: as informações sobre este grupo rácico, cujo lugar
na sociedade paraense parece ser cada vez mais relevante, são relati­
vamente escassas. Os estudiosos que sobre o assunto se debruça­
ram, como Antônio Carreira90, Manuel Nunes Dias91, Artur Cezar
Ferreira Reis92 ou Ciro Flamarion Cardoso93, para além de, nalguns
casos, apresentarem dados contraditórios, em outras situações
fazem interpretações divergentes das mesmas informações. Os seus
estudos reflectem, sobretudo, as inúmeras dificuldades com que
deparam. Estas englobam desde a quantificação dos contingentes
importados e identificação das regiões de origem geográfica e étnica
às áreas de fixação em continente americano, ocupação profissional
e formas de agregação e de organização94.
Atentemos, por exemplo, nos desacordos de opinião que sur­
gem entre Manuel Nunes Dias e Ciro Flamarion Cardoso. Ba­
seando-se nos mesmos dados de natureza quantitativa, o primeiro
considera que o impacte da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão foi considerável no que diz respeito à intro­
dução de escravos negros95. Contudo, o segundo afirma que se

89 Kenneth Maxwell, «Pombal and the nacionalization of the Luso-Brazilian eco-


nomy», in Hispanic American Historical Review, 48 (4), November, 1968, p. 622.
90 Antônio Carreira, As Companhias pombalinas de Grão-Pará e Maranhão e Per­
nambuco e Paraíba, Lisboa, Editorial Presença, 2,a edição, 1983, pp. 86 e ss.
91 Manuel Nunes Dias, A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778),
l.° vol., s/l, Universidade Federal do Pará, 1970, pp. 459-500.
92 Arthur Cezar Ferreira Reis, «O negro na empresa colonial dos portugueses na
Amazônia», in Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, vol. v,
parte n, Lisboa, 1961, pp. 347 a 357.
93 Ciro Flamarion S. Cardoso, Economia e Sociedade em áreas coloniais periféricas,
Guiana Francesa e Pará (1750-1817), Rio de Janeiro, Edições Graal, L.dt, 1984, pp, 123-124.
94 Anaiza Virgolino-Henry e Arthur Napoleão Azevedo conseguiram identificar
algumas das etnias africanas enviadas para o Pará. São Angolas, Congo, Benguelas,
Cabinda, Moçambique, Moxicongo, Macua, Caçange, Mina, Fanti-Ashanti, Mali,
Mandinga, Fula, Fulupe, Bijagó, Calabar, Peul (A presença africana na Amazônia colonial:
uma notícia histórica, p. 65)
95 Em 1780, João Pereira Caldas afirmava que os escravos com que se tinham
socorrido os moradores das duas capitanias eram insignificantes (AHU, Pará, caixa 40

52
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

«Quanto aos escravos negros, não dispomos de dados completos ou


seguidos acerca da sua importação, [...] [apesar de ser] indiscutível
que seu número aumentou progressivamente no Pará durante o
período que nos ocupa. [...] Sabemos, porém, que na sua maioria
passaram a Mato Grosso, devido à pobreza local»96.
A maioria destes indivíduos saiu dos portos da costa ocidental afri­
cana de Cacheu e Bissau, enquanto outra parte embarcou de portos
angolanos, como São Paulo de Assunção, Luanda e Benguela97. De
acordo com opiniões expressadas recentemente por um especialista da
história da escravatura africana como Joseph Miller, o que parece ter
sucedido no litoral angolano é que as Companhias monopolistas con­
correram, até finais dos anos de 60, com os contratadores do tráfico
negreiro que controlavam a maior parte dos capitais e redes comerciais
organizados em tomo do comércio de escravos. Para além disso, as
áreas onde lhes era permitido adquirir e comercializar a mão-de-obra
africana eram secundárias no sistema atlântico português98.
A problemática que, a este ponto, é pertinente colocar reside na
constatação de um paradoxo: ao mesmo tempo que estabelecia uma
legislação proteccionista determinando a liberdade de ameríndios
(lei de 1755) e de chineses (lei de 1758), a política colonial da coroa
portuguesa dinamizava, paralelamente, a escravatura de negros para
o Adântico e para o Índico99. Em meados do século xvm, Portugal
era uma das grandes nações esclavagistas europeias, drenando escra­
vos do continente africano de portos como Luanda, Benguela,
Cacheu, Bissau e Moçambique e, ainda, da Costa da Mina.

(752), Ofício de João Pereira Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 26 de Janeiro de


1780). Dezassete anos mais tarde D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho atestava
essa insuficiência (BNRJ, 7-3-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, de 21 de Agosto de 1797).
96 Ciro Flamarion Cardoso, Economia e sociedade em áreas periféricas..., p. 123.
É Manuel Nunes Dias que menciona este tráfico de escravos para Mato Grosso, justi­
ficando-o com os grandes lucros que daí advinham: um escravo adquirido pelo
máximo preço no Pará por 80$000 ou 120J000 réis chegava a ser vendido por
300$000 nas regiões auríferas (A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, p. 498).
97 AHU, Pará, caixa 59 (774), Carta régia ao governador e capitão-general do
Estado do Maranhão, de 8 de Julho de 1750.
98 Joseph Miller, «A marginal institution on the margin of the Atlantic system:
the Portuguese Southern Adantic slave trade in the eighteenth century», in Slavery
and the rise of the Atlantic System, editado por Barbara L. Solow, Cambridge, Cambridge
University Press, 1993, p. 131.
99Joseph C. Miller, «A marginal institution on the margin of the Adantic System:
the Portuguese Southern Adantic slave trade in the eighteenth century», pp. 123-124
e 141.

53
A PRO M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Como em qualquer parte do Império Português, mas também


dos Impérios Espanhol ou Inglês, o fortalecimento e a prosperidade
da colonização dependiam de mão-de-obra. Tal como o vice-rei-
nado do Peru e Nova Granada na mesma época, o Estado de Grão-
-Pará viu-se confrontado com dois problemas relacionados com o
trabalho indígena: de um lado, a legislação proteccionista promul­
gada pela coroa e, de outro, o declínio populacional causado por
doenças100. Ora se, tal como vimos, as intenções reais podiam ser
logradas pelas instituições e infringidas por particulares, as catástro­
fes demográficas provocadas pelos surtos epidêmicos não podiam
ser contornadas.
Face a esta panorâmica, a alternativa consistia na escravatura
negra, afigurada como bastante mais vantajosa que a mão-de-obra
ameríndia. A maior parte dos Africanos estava habituada a uma dis­
ciplina e regularidade de trabalho que eram implícitas às práticas de
agricultura em larga escala. Muitos dos negros, ao contrário dos
índios, dominavam a técnica de fabrico do ferro e a sua utilização.
Não estavam, igualmente, abrangidos pela legislação proteccionista
que englobava, unicamente, os vassalos americanos. E, para além do
mais, os negros provinham de regiões que conheciam o mesmo tipo
de doenças que as europeias. Eram, consequentemente, menos sus­
ceptíveis às moléstias trazidas pelos colonos que os nativos da Amé­
rica. Possuíam, igualmente, mais resistência que os europeus a cer­
tas doenças tropicais101.
De igual modo, os negros eram frequentemente identificados
com os muçulmanos ou infiéis. Mesmo quando não eram islamiza-
dos, assumia-se que tinham tido conhecimento ou contacto com o
esforço missionário cristão e com a palavra de Deus. Sendo assim, a
recusa em converterem-se só podia ser «punida» com a sua redução
à condição de escravos102.

100 Veja-se capítulo III «Em cumprimento do real serviço: o reordenamento do


território e a integração dos vassalos».
101 A resistência negra a determinadas doenças era uma justificativa utilizada
pelo governador do Maranhão para pedir o aumento de importação de escravos, em
1750. Grande parte dos índios tinha sido dizimada por um surto de varíola (AHU,
Conselho Ultramarino, cód. 209, fls. 215-216, Ofício do governador do Maranhão
dando conta do estado em que se encontrava o Pará, de 16 de Maio de 1750). Veja-se
também William D. Phillips, «The Old World background of slavery in the Améri­
cas», in Slavery and the rise of the Atlantic system, pp. 46-47.
102 D. B. Davis, The problem of slavery in Western Culture, New York, Comell Uni-
versity Press, 1966, p. 170.

54
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Importa, ainda, relacionar estas questões com aspectos rácicos.


Este assunto é claramente formulado por John Elliot quando afirma
que a cor da pele era concebida, no que às etnias ameríndias dizia
respeito, em termos neutros. A diferença estabelecida entre euro­
peus e ameríndios era, frequentemente, justificada e desculpada
como sendo resultado de uma vida ao ar livre, à directa exposição
ao sol. A mesma justificação não podería ser aplicada ao caso afri­
cano, à negritude africana, cuja cor tinha uma outra conotação his­
tórica e emocional103. «
Nas correntes ideológicas e na vivência quotidiana do século
xviii, a escravatura ameríndia e a negra eram duas coisas distintas. Se
a redução dos ameríndios à condição de escravos tinha sido questio­
nada desde os primeiros contactos, a escravização dos negros não
era posta em causa. Mesmo aqueles que se pronunciavam contra a
primeira eram defensores da segunda104.
Até ao século xviii, a escravatura não encontrou em Portugal, ao
contrário do que acontecia no resto da Península Ibérica, teóricos
defensores ou opositores da instituição105. A coroa atendia à pro­
mulgação das bulas papais e decretava que unicamente os habitan­
tes da América Portuguesa deviam ser livres ou escravizados apenas
em situações concretas, como em casos de guerra justa e resgate. Os
súbditos discutiam o assunto entre si, utilizando, por exemplo, cor­
respondência epistolar e dissertações, publicadas em tiragens redu­

103 Sobre este assunto, veja-se, por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira,
«Observações gerais e particulares sobre a classe dos mamíferos observados nos terri­
tórios dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira: com descrições circunstancia­
das que quase todos eles deram os antigos e modernos naturalistas, e principalmente,
com a dos tapuios», in Viagem filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá, Memórias de Zoologia e Botânica, s/1, Conselho Federal de Cultura,
1972, pp. 75-76. Veja-se ainda J. H. Elliott, The discovery of America and the discovery of
man, Londres, Oxford University Press, Ely House, 1972, p. 10; D. B. Davis, The pro-
blem of slavery in Western Culture, p. 49; e Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao fundo
das consciências. A escravatura na Época Moderna, Lisboa, Edições Colibri, 1995,
pp. 177-181 e 188.
104 Maria José Gomes Párias Dias, Manoel Ribeiro Rocha. Escravidão e recta consciên­
cia (1758), dissertação de Mestrado em História Ibero-Americana apresentada à Uni­
versidade Portucalense Infante D. Henrique, Porto, 1996, p. 64. Esta corrente de opi­
nião ocorreu também na América Espanhola (D. B. Davies, The probtem of slavery in
Western Cultures..., p. 171).
105 Como um excelente estudo sobre as atitudes portuguesas em relação à
escravatura africana, consulte-se o já citado artigo de A. J. R. Russell-Wood, «Iberian
expansion and the issue of black slavery: changing Portuguese attitudes, 1440-1770»,
pp. 16-42.

55
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

zidas e acessíveis a poucos, que punham em causa os abusos e maus


tratos a que os negros eram submetidos106.
Inspirado nos sermões de Antônio Vieira sobre os índios, o
jesuíta Jorge Benci elaborou, em 1700, um tratado sobre a «regra,
norma e modelo por onde se devem governar os senhores cristãos
para satisfazer às suas obrigações de verdadeiros senhores»107. Par­
tindo do princípio que todas as criaturas eram seres racionais, filiava
a escravidão no pecado original e nas guerras que dele decorreram e
considerava-a como o «estado mais infeliz a que pode chegar uma
criatura racional»108. Por isso mesmo, concebia que as relações cons­
tituídas entre servos e senhores pressupunham uma reciprocidade
de obrigações, fundamentadas tanto no direito civil como no canô­
nico. Se os escravos deviam trabalhar e ser fiéis aos seus amos, os
senhores tinham, de igual forma, obrigações: de conservar a vida
dos seus servos, sustentando-os, vestindo-os e assistindo-os; de os
amparar espiritualmente, através da sua catequização e pelo bom
exemplo; de os castigar com moderação, por forma a impedir a
delinquência e os vícios; e, finalmente, de lhes dar trabalho, para
evitar a ociosidade e a insolência. Para este jesuíta, a escravatura era
uma condição natural e, portanto, não questionava a sua duração,
ao contrário do que Manuel Ribeiro da Rocha fez cerca de sessenta
anos mais tarde.
Num escrito de 1758, este autor partia de um pressuposto
semelhante: a escravidão era a maior infelicidade do mundo porque
«com ela lhe vêm adjuntas todas aquelas misérias e todos aqueles
incômodos que são contrários e repugnantes à natureza e condição

106 Veja-se, por exemplo, Nova e curiosa Relação de hum abuzo emendado ou evidên­
cias da Razão; expostas a favor dos homens pretos em hum diálogo entre hum letrado e hum
mineiro, Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1764, publ. in Maria José
Gomes Párias Dias, Manoel Ribeiro Rocha. Escravidão e recta consciência, Apendix doc.;
A. J. R. Russell-Wood, «Iberian expansion and the issue of black slavery...», pp. 37-
-38. Os debates sobre a abolição da escravatura só ganharam dimensão pública com
os inícios do século XIX e com a sua discussão na imprensa (João Pedro Marques,
«A abolição do tráfico de escravos na imprensa portuguesa (1810-1842)», in Revista
Internacional de Estudos Africanos, n.“ 16-17, 1992-1994, pp. 8 e ss.); para um ponto de
situação sobre a discussão gerada em tomo da escravatura africana tanto em Portugal
como na Europa, veja-se Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao fundo das consciências,
parte u «Do escravismo ao antiescravismo», pp. 133 e ss.
107 Jorge Benci, Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (livro de 1700),
preparado, prefaciado e anotado por Serafim Leite, Porto, Livraria Apostulado da
Imprensa, 1954.
108 Ibidem, p. 193.

56
-

A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

do homem»109. Contudo, o que o autor censurava na instituição era


a condição de cativeiro perpétuo e os maus tratamentos. Conside­
rava que era lícito adquirir escravos por motivos de guerra justa,
devido a delitos graves ou através de compra a familiares por ques­
tões materiais de sobrevivência. Mas defendia que os proprietários
deviam conservar temporariamente os escravos, apenas o tempo
necessário para que fossem indemnizados dos gastos na sua com­
pra, alimentação e manutenção (jure pignoris). No decurso desse
período, os senhores tinham a obrigíção de sustentar, corrigir, ins­
truir e educar na fé e nos bons costumes os seus servos.
Já em finais de Setecentos e princípios da centúria seguinte, José
Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, bispo de Eivas, conti­
nuava a defender a legitimidade da escravatura africana, baseando-se
em razões semelhantes às de Ribeiro Rocha110. Contudo, enquanto
defendia a escravatura africana pronunciava-se pela liberdade ame­
ríndia. O seu argumento partia do seguinte pressuposto: a escravi­
dão era uma instituição social nas sociedades africanas. O facto de
os portugueses resgatarem negros que tinham sido condenados e
que seriam punidos pelas leis africanas constituía razão suficiente
para justificar o tráfico negreiro. Ao chegarem a África não criaram a
instituição, limitando-se a utilizar e a dinamizar as estruturas de
comércio humano já existentes. Ao invés, no Brasil, não encontra­
ram os habitantes organizados em nações ou sujeitos a qualquer
tipo de subordinação ou governo. A escravatura não existia, tendo
sido, consequentemente, os portugueses os seus introdutores.
Enquanto os negros eram mão-de-obra resistente, aptos a serem uti­
lizados na agricultura e no comércio e responsáveis pela transforma­
ção das sociedades europeias no expoente civilizacional de então,
porque tinham libertado os europeus do trabalho braçal, os índios
revelavam-se escravos indomáveis, fugitivos ou débeis, podendo
mais facilmente ser subjugados e utilizados pela «força» da tolerân­
cia e da religião que pela da coacção.

109 Manuel Ribeiro da Rocha, Ethiope resgatado, empenhado e sustentado, corregido,


instruído e libertado. Discurso theologico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver
e possuir validamente quanto a hum e outro foro os Pretos cativos Africanos e as principais
obrigações, que correm a quem delles se servir, Lisboa, Officina Patriarcal de Francisco
Luiz Ameno, 1758, Argumento.
110 D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Concordância das leis de Por­
tugal e das bulas pontifícias das quaes humas permittem a escravidão dos pretos d'África e
outras prohibem a escravidão dos índios do Brasil, Lisboa, Oficina de João Rodrigues,
1808, pp. 3-21.

57
A PR O M O ÇÃ O DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

Uma das justificações que escorava a defesa da liberdade indí­


gena consistia, portanto, em razões de ordem social e civilizacional.
Uma outra justificação residia na razão de Estado. Na segunda metade
do século xvill, a coroa portuguesa só podia colonizar o vasto territó­
rio do Norte brasileiro, disputado por outras potências europeias,
com súbditos fiéis. É preciso ter em conta que a ocupação estável do
território era um dos princípios evocados nos tratados de limites cele­
brados entre as coroas peninsulares. Ora, uma colonização nestes
moldes, nos confins do território do Norte brasileiro, nunca podería
depender de luso-brasileiros que, face à imensidão territorial da Ama­
zônia, às inúmeras alternativas do Império e ao reduzido contingente
demográfico disponível no reino e em outros locais da colônia,
seriam sempre poucos. A alternativa possível, escolhida pelos órgãos
administrativos centrais, assentou em dois pontos fundamentais: tor­
nar o índio num vassalo de jure e transformar os ameríndios em súb­
ditos fiéis e confiáveis através de um plano civilizacional111.
Este era mais um aspecto que justificava a divergência de opi­
niões sobre a escravatura dos índios e a dos negros. É Davis que,
referindo-se genericamente à questão nos domínios coloniais ameri­
canos, confirma esta premissa ao afirmar que «A double standard in
judging Negrões and Indians enabled colonists of various nacionali-
ties to channel moral concern toward the aborígene, whose free-
dom was often essential for commercial and military security»112.
A introdução de um maior contingente de africanos em territó­
rio rionegrino e, sobretudo, paraense, pela Companhia Geral de
Comércio de Grão-Pará e Maranhão, visava colmatar as eventuais
faltas resultantes da libertação dos índios e das epidemias de mea­
dos do século. O Estado precisava de mão-de-obra para a dinamiza-
ção da economia do território, como bem o reconhecia D. Frei
Miguel de Bulhões113: «A estes dois pólos que, a meu parecer, serão
sempre invariáveis, isto é, a Pretos e índios, se reduz solidamente a

111 Confronte-se capítulo II «A transformação dos índios em vassalos: um plano


de colonização».
112 D. B. Davis, The problem of slavery in Western Culture, p. 10.
113 O dominicano D. Frei Miguel de Bulhões e Sousa era bispo de Malaca
quando, a 8 de Dezembro de 1748, foi transferido para o Pará. Foi um aliado incondi­
cional de Francisco Xavier de Mendonça Furtado na luta contra os Jesuítas. Exerceu o
governo interino da capitania e do Estado durante a deslocação do irmão do então
conde de Oeiras ao Rio Negro. Criou, em 13 de Abril de 1755, a Vigairaria-Geral
dessa capitania, para a qual nomeou o padre José Monteiro de Noronha. Regressou
ao reino em 1759 (Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. II, Porto e
Lisboa, Livraria Civilização Ed., 2.a edição, 1968, p. 714; Arthur Cezar Ferreira Reis,

58
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

felicidade deste Estado sem os quais julgo seria impensável que os


moradores desta Capitania cheguem a ver-se livres da suma miséria
a que se acham reduzidos por falta de operários.»114 Os negros, mais
resistentes, mais rubustos, mais habituados à agricultura, escassos e
caros, vinham complementar a actividade dos índios, mais aptos na
exploração da floresta tropical e na condução dos meios de trans­
porte, abundantes e baratos115.
As autoridades estimulavam os luso-brasileiros a adquirir mão-
-de-obra oriunda de África, quer pondo em relevo a produtividade do
trabalho africano116, quer concedendo isenções fiscais e crédito117,
quer, ainda, desencorajando a sua importação para o reino, canali­
zando-a para outros locais118. No programa político definido por teó­
ricos e altos funcionários administrativos a existência de mão-de-
-obra africana estava indissociavelmente ligada ao desenvolvimento
do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Mas, não obstante os estímulos
concedidos aos moradores, estes queixavam-se que a sua pobreza os
impedia de comprar negros e que os preços praticados pela Compa­
nhia eram proibitivos119. Por seu tumo, esta instituição afirmava que
o débito relativo ao pagamento dos escravos era grande e que os
moradores não podiam pagar as suas dívidas, apesar de os juros

História do Amazonas, Belo Horizonte e Manaus, Editorial Itatiaia, Superintendência


Cultural do Amazonas, 2.‘ edição, 1989, pp. 112-114).
1,4 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de frei Miguel de Bulhões à Secretaria de
Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos, de 16 de Agosto de 1755.
115 AHU, Pará, caixa 19 (739 H), de 8 de Agosto de 1755.
116 AHU, Pará, caixa 21 (729 H), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 22 de Junho de 1761.
117 AHU, Pará, caixa 26 (741), Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 19 Fevereiro de 1764. No entanto, a Com­
panhia era acusada de vender os escravos a preços exorbitantes (AHU, Pará, caixa 33
(748), Memória das acções do Ex.mo Senhor General do Pará, Fernando da Costa
de Ataíde Teive, as quais se vêm declaradas nos seguintes capítulos repartidos e se­
guindo os três Estados Político, Militar e Eclesiástico por João Baptista Mardel, de 6 de
Novembro de 1772 e ibidem, caixa 111 (826), Proposta para melhorar os fracassos tidos
pela Companhia Geral de Comércio na introdução de escravos negros no Pará, s/d
[post. a 1774]). Esta política de protecção fiscal continuou ao longo de toda a segunda
metade do século xviii. Assim, veja-se J. C. B., b CB, P 8539, 1799, 2, Carta régia isen­
tando o pagamento de direitos de entrada sobre os escravos introduzidos no Pará de
Cacheu, Bissau ou Moçambique, já em vigor em relação aos de Angola por decreto de
19 de Outubro de 1798, de 16 de Janeiro de 1799.
118 Sistema ou collecção de regimentos, vol. n, pp. 117-118.
119 AHU, Pará, caixa 111 (826), Proposta para melhorar os fracassos tidos pela
Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão na introdução de escravos negros no
Pará, s/d [post. a 1774],

59
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

terem sido indultados120. Para se satisfazerem essas obrigações finan­


ceiras, penhoravam-se os engenhos e os escravos dos senhores.
Era, fundamentalmente, em torno da cidade de Santa Maria de
Belém, dos núcleos urbanos com maior presença luso-brasileira e
das fazendas localizadas junto da orla marítima que se concentrava
a mão-de-obra escrava, ou seja, onde economicamente era mais
necessária e onde os colonos tinham maior representatividade e
poder. Apesar de um número considerável ter sido introduzido pela
Companhia Geral de Comércio — 11654 escravos segundo uma
representação de cerca de 1775, 16077 escravos, segundo Antônio
Carreira, 25365 segundo Manuel Nunes Dias —, as queixas dos
moradores sobre a falta de mão-de-obra foram uma constante ao
longo do período em análise121.
Destinados aos serviços domésticos e agrícolas, ao corte e trans­
porte de madeiras, à moagem de arroz, à remagem de canoas e à
construção de fortificações, os negros encontravam-se distribuídos
desigualmente pelo Norte brasileiro122. Apesar de autoridades e
moradores afirmarem constantemente que o seu número era insufi­
ciente, a mão-de-obra escrava devia ser maior na capitania do Pará
do que na do Rio Negro. Desta forma, o «Mapa geral da população
dos índios aldeados em todas as povoações nas capitanias do Grão-
-Pará e S. José do Rio Negro no primeiro de Janeiro de 1792» refere a
existência de 288 escravos na capitania do Pará, excluída a capital e
as vilas de «brancos» nesta contagem123. O Rio Negro não apresenta

120 AHU, Pará, caixa 17 (733), Petição da Junta da Companhia Geral de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão à coroa pedindo fosse devassada a sua administração antes
da tomada de posse de uma nova junta, s/d; ibidem, caixa 97 (812), Parecer do Conse­
lho Ultramarino a uma petição dos senhores de engenho e fábricas de açúcar no Pará
pedindo para as penhoras não serem executadas, de 4 de Março de 1779.
121 BNRJ, 13-4-18, Representação de um anônimo dirigida à rainha sobre a pror­
rogação por mais 10 anos da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, s/d [post a
1775]; Manuel Nunes Dias, A Companhia Geral de Grão-Pará e Maranhão, pp. 465 e
496.
122 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a introdução de 150 a 200 escravos para
os cortes de madeiras, de 22 de Junho de 1761; ibidem, caixa 32 (746), Ofício de João
Pereira Caldas a Martinho de Melo e Castro, de 15 de Dezembro de 1772.
123J. A. Pinto Ferreira, «Mapa geral da população dos índios aldeados em todas as
povoações das capitanias do Estado do Grão-Pará e S. José do Rio Negro no primeiro
de Janeiro de 1792», in Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, vol. iv,
Coimbra, 1965, pp. 281 e ss. Entendemos por vilas de «brancos» aquelas que, como
Gurupá, Mazagão e Macapá, eram constituídas por uma maioria de luso-brasileiros.
Estas deviam ter na sua constituição um número considerável de escravos africanos.

60
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

qualquer contagem de africanos. Mas, cinco anos mais tarde, o


governador Francisco de Sousa Coutinho afirmava que nesta capita­
nia existiam 592, número aproximado a um outro referido no censo
realizado três anos antes124. Um estudo monográfico baseado na
consulta dos arquivos de algumas pequenas localidades da capitania
do Pará conclui que, mesmo aqui, a mão-de-obra escrava era dimi­
nuta e que se encontrava sobretudo concentrada em Belém,
Macapá, Vila Vistosa, Mazagão, Cametá e Bragança125.
No entanto, e para além da já mencionada presença africana em
tomo da capital do Estado e próximo das fazendas e povoações de
luso-brasileiros, mencione-se, também, que alguns negros se encon­
travam disseminados pelo sertão, organizados, por exemplo, em
mocambos126. Constituídos por africanos mas também por amerín­
dios, os quilombos ou mocambos não parecem ter constituído uma
forma de resistência organizada, tal como ocorreu em outros locais
do Brasil127. Consideramo-los como factores de instabilidade na
medida em que, para a alimentação, os quilombolas recorriam tam­
bém a saques de roças e fazendas de moradores. Para além disso, os
mocambos eram, para escravos e índios, uma alternativa à fuga
para o sertão e, para os moradores, significavam um repositório
cobiçado de mão-de-obra128. Não obstante, há mais que uma refe-

124 BNRJ, 7-3-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo


de Sousa Coutinho, de 21 de Agosto de 1797. O mapa dos habitantes e fogos exis­
tentes em cada uma das freguesias do Rio Negro, datado de 1795, refere a existência
de 576 escravos (BNRJ, 1-17-12-1).
125 Se, no ano de 1782, existiam 124 africanos no Gurupá, 38 em Porto de Mós,
7 em Vilarinho e Sousel e 1 em Pombal, Carrazedo e Veiros não tinham nenhum. As
contagens do censo de 1789 revelam que Gurupá contava com 147 africanos (27.43%
da população), Vilarinho com 26 (10.02%), Porto de Mós 43 (8.79%), anexo de
Gurupá 4 (7.41%), Sousel 6 (0.76%). Para o censo de 1797 a presença africana nas
povoações mencionadas é a seguinte: Gurupá 131, Vilarinho 28, Porto de Mós 74,
anexo de Gurupá, Sousel e Pombal 1, Veiros e Carrazedo 0. Veja-se Arlene M. Kelly,
Family, church and crown: a social and demographic history of the lower Xingu valley and the
municipality of Gurupá, 1623-1889, dissertação de doutoramento, Florida, Universi­
dade de Florida, 1984 (dactilografada), pp. 143, 152-157 e 179-189.
126 Consulte-se o artigo de Stuart Schwartz, «Quilombos ou mocambos», in Dicio­
nário da Colonização Portuguesa no Brasil, cols. 673-676. Este assunto será retomado no
capítulo II «A transformação dos índios em vassalos: um plano de colonização».
127 AHU, Pará, caixa 67 (782), Ordem de Manuel Joaquim de Abreu, coman­
dante de Chaves, a Diogo de Mendonça Corte Real, de 13 de Abril de 1778.
128 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 220-221v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a representação feita pelos oficiais da câmara de Belém, de 21 de
Maio de 1750.

61

_
A PRO M O ÇÃO DOS AM ERÍNDIOS A VASSALOS

rência às relações pacíficas que se estabeleciam entre quilombolas e


colonos129.
É importante também salientar a função de alguns negros, mui­
tos deles escravos fugidos, como intermediários entre luso-
-brasileiros e ameríndios130: serviam de intérpretes, estabeleciam os
primeiros contactos, tinham ascendência sobre as comunidades
indígenas131.

129 Anaiza Virgolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo, A presença africana na


Amazônia colonial..., p. 61.
130 Esta função que o negro tinha como intermediário entre espanhóis e popula­
ção nativa americana ocorre igualmente em território norte-americano (William
D. Phillips, «The Old World background of slavery...», p. 47).
131 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 1, Ofício de Teodósio Constantino de Cher-
mont a João Pereira Caldas, de 29 de Março de 1783; idem, Rio Negro, caixa 9, doc. 1,
Ofício de Henrique João Wilkens a João Pereira Caldas, de 5 de Março de 1784;
ibidem, doc. 1, Ofício de Custódio de Matos Pimpim, director de Olivença, a João
Baptista Mardel, de 7 de Maio de 1784. Dois destes escravos negros, fugidos para ter­
ritório espanhol, foram particularmente úteis a D. Francisco de Requena e Errea nas
demarcações decorrentes do Tratado Preliminar de Santo Ildefonso, facultando infor­
mações sobre o território rionegrino e entrando em contacto com muitas etnias, cuja
língua era unicamente falada por eles (AHU, Rio Negro, caixa 7, doc. 1, Ofício de Teo­
dósio Constantino de Chermont a João Pereira Caldas, de 29 de Março de 1783).
Confronte-se Ângela Domingues, «O papel do índio como língua/intérprete entre as
sociedades ameríndias e luso-brasileira no Norte do Brasil, em finais do século xviii»,
in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (10); 1995, pp. 15-16.

62
C A P Í T U L O II

A T RA N S FO RM A ÇÃ O DOS ÍNDIOS EM VASSALOS


UM PLANO DE C O LO N I Z A Ç Ã O
O Directório foi a estrutura legislativa que suportou o programa
civilizacional do Estado português em terras do Norte brasileiro, o
qual visava a transformação dos ameríndios em vassalos portugueses
e em católicos fiéis. Historiadores e antropólogos referem-se ao
Directório como sendo o instrumento da política colonial portuguesa
que espelhou todas as transformações que o governo colonial queria
implementar em território amazônico ao longo da segunda metade
do século xviii.
Em nosso parecer, todavia, a análise das transformações ocorri­
das naquele espaço geográfico durante o período em questão é bem
mais complexa. O programa civilizacional consubstanciou-se, de
facto, no Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará
e Maranhão. A sua concretização dependeu, no entanto, de várias
medidas, umas claramente expressas na documentação oficial das
instituições, outras mais subterrâneas, mas, contudo, imprescindíveis
aos objectivos que a coroa pretendia atingir em território amazô­
nico. Ora, o que o aparelho estatal pretendia traduziu-se, em última
instância, na «produção de um espaço ocidentalizado», ou seja, na
organização do território entendida como prática cultural, transfor­
mando regiões marginais e quase desconhecidas em áreas com uma
sólida rede de povoações e com uma economia em expansão, con­
troladas eficazmente pelo aparelho institucional central, reinol e
estadual1. Contudo, e por razões de ordem política e estratégica,
este espaço ocidentalizado devia ter por modelo e identificar-se com
o território português reinol2. Assim se interpretam algumas das

1Manuel Lucena Giraldo, «De la ambiguedad de la Geometria. Las expedicíones de


limites y la ocupacion dei espacio americano», in Limites do mar e da terra. Actas da VIII
Reunião de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimónia, 1998, pp. 277 e ss.
Sobre a noção de cultura como referência básica para o entendimento do social e do polí­
tico de uma sociedade e como produto social que se cria e transmite ao longo do tempo,
veja-se Cassiano Reimão, «A cultura enquanto suporte de identidade, de tradição e de
memória», in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n.° 9, 1996, pp. 309 e ss.
2 Stuart B. Schwartz, «The formation of a Colonial Identity in Brazil», in Colonial
Identity in the Atlantic World, 1500-1800, editado por Nicolas Canny e Anthony Pagden,

65
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM V ASSALO S

medidas tomadas pela política colonial de Setecentos abordadas


neste capítulo. Revelam-se, por exemplo, na insistência da coroa
portuguesa em implantar o português como a única língua e não,
simplesmente, a língua oficial falada em território amazônico, em
renomear antigos aldeamentos ou atribuir a novas povoações os
nomes de núcleos populacionais do reino. As transformações im­
plantadas incidiram, também, sobre a técnica de construção de
casas, que tomavam por modelo as habitações lusas e, até, sobre a
aclimatação de novas sementes e novas plantas destinadas a serem
integradas nos circuitos econômicos portugueses ou a satisfazer o
paladar dos colonos recém-emigrados. Para além de tudo, tomavam
familiar e controlada uma paisagem completamente estranha aos
olhos dos europeus de Setecentos. Esta procura de identidade da
colônia com o reino não é unicamente válida para a América Portu­
guesa, como se reflecte, também, nos propósitos coloniais para a
Hispanoamérica ou a Nova Inglaterra3.
A ocidentalização do espaço amazônico foi definida no pensa­
mento político colonial do período em análise em função de três
grandes linhas, consideradas fundamentais na estruturação da pre­
sença colonizadora luso-brasileira: os casamentos mistos entre luso-
-brasileiros e índias, a educação e o ensino da língua portuguesa a
todas as camadas da população e o desenvolvimento econômico4.
À simplicidade destes princípios enunciados, contrapõe-se a com­
plexidade dos problemas que lhes estavam implícitos e subjacentes,
tais como o da imposição de uma autoridade política sobre novas
etnias e um novo espaço; o do reconhecimento dessa autoridade por
parte das etnias, expressado pela lealdade política e pelo sentimento
de identificação com um espaço colonial «artificial» que lhes era im­
posto pela potência dominante; o da legitimidade da posse sobre
um território disputado por outras potências coloniais europeias; o
da perturbação da ordem social e étnica existente; o da integração
de uma economia periférica no sistema econômico nacional e euro­
peu; o de alterações no equilíbrio do ecossistema...

Princeton, Princeton University Press, 1987, p. 19. Esta ideia está também subjacente
em Eugênio dos Santos, «A civilização dos índios do Brasil na transição das Luzes para o
Liberalismo: uma proposta concreta», in Maré Liberum (10), Dezembro de 1995, p. 206.
3 Veja-se Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800, especialmente os capí­
tulos 1, 2, 3 e 5.
4 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joa­
quim da Costa Corte-Real, de 21 de Dezembro de 1758; também em idem, Rio Negro,
caixa 1, doc. 18, de 21 de Dezembro de 1758.

66
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

U m c ó d ig o le g is la tiv o c o m o e x p r e s s ã o
da p o lític a c o lo n ia l: o D ir e c tó r io

A identificação do território amazônico com um espaço ocidenta­


lizado e português é um dos princípios de base do sistema jurídico que
esteve vigente nas capitanias do Pará, Rio Negro e Maranhão durante
grande parte da segunda metade do século xviii. De facto, o Directório
esteve em vigor desde 1757, data em que foi implantado por Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, até 1798rf altura em que foi abolido por
D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho. A sua autoria é atribuída ao
primeiro governador do Estado de Grão-Pará, que o elaborou tendo
presente as características do Estado onde primeiro foi aplicado5.
Inúmeros estudiosos têm analisado este corpo legislativo e feito
ressaltar as consequências que teve na área geográfica em questão
durante o período em análise6. No entanto, o que muitos deles não
referem é que o Directório, enquanto conjunto de regras que tenta­
vam a transformação rápida e radical da Amazônia, teve implícito
uma série de idéias e de medidas claramente expressas nos anos que
antecederam, de imediato, o seu aparecimento. O que queremos, a
este ponto, relevar é que a filosofia de colonização subjacente ao
corpo legislativo estava já expressa no princípio dos anos 50, quer na
correspondência de Mendonça Furtado quer nas cartas e relatórios
de outras entidades laicas ou eclesiásticas. Uma e os outros teriam
servido, provavelmente, tanto para sistematizar idéias quanto para
preparar o caminho da sua elaboração e aplicação.
Esta filosofia de colonização, que se começou, então, a delinear
nos primeiros anos da década de 50, manter-se-á sem grandes alte-

5 O Directório foi, por decreto real de 1758, extensível a todo o Brasil, apesar dos
protestos de D. Marcos de Noronha, 6 ° conde de Arcos, 7.° vice-rei (BNRJ, 11-30-32-
-30, Carta régia aos governadores e capitães-generais do Brasil censurando a posição
crítica do conde de Arcos em relação ao Directório, de 20 de Abril de 1761); veja-se,
também, John Manuel Monteiro, «Directório dos índios», artigo do Dicionário da His­
tória da Colonização Portuguesa no Brasil, coordenado por Maria Beatriz Nizza da Silva,
Lisboa, Editorial Verbo, 1994, cols. 261 e 262.
6 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-
-1850), Petrópolis, Editorial Vozes, 1988, pp. 20 e 27-30, Colin MacLachland, «The
Indian Directorate: forced acculturation in Portuguese America», in The Américas.
A cfuaterly Review of Inter American Cultural History, vol. xxvill, (4), April 1972, pp. 357-
-387; Angela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão ter­
ritorial luso-brasileira da segunda metade do século XVIII», in Nas vésperas do mundo
moderno. Brasil, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimen­
tos Portugueses, 1992, pp. 186-188.

67
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

rações durante a década seguinte. O seu objectivo imediato tradu-


ziu-se na colonização efectiva do espaço amazônico, através de um
processo que pretenderemos clarificar ao longo deste capítulo. Em
nossa opinião, o Directório, mais do que o responsável pelas modifi­
cações ocorridas no espaço amazônico durante o período em ques­
tão, foi a expressão jurídica de uma série de medidas que trans­
formaram a face da Amazônia, encontrando-se, portanto, nelas
inserido.
O Directório foi, também, a forma pela qual os portugueses fize­
ram a passagem ou a adaptação de uma ideologia de colonização
globalmente delineada a uma situação concreta, ou seja, o meca­
nismo jurídico e político através do qual se conseguiria atingir no
Estado do Grão-Pará os desígnios pretendidos de maneira abstracta
no reino7. Assim, foi concebido em função da avaliação que Men­
donça Furtado fez da situação social, econômica e política da Ama­
zônia, tendo como alvo específico os índios do Norte do Brasil8.
Pretendia-se tomar os ameríndios em súbditos leais e católicos
fiéis9; procurava-se «destribalizar» e aculturar os indígenas, por for­
ma a, por um lado, criar um estrato camponês ameríndio integrado
na economia de mercado como assalariado e, por outro, transfor­
mar os índios em veículos da colonização portuguesa no Norte do
Brasil10. São estes dois objectivos que, grosso modo, estruturam os
95 parágrafos que constituem o Directório.
Como já foi referido, os diplomas régios concedendo aos índios
do Norte do Brasil a liberdade das suas pessoas e bens e estipulando
a administração laica das aldeias indígenas, embora datados de
1755, só foram publicados dois anos depois. É de salientar que, para

7 Confronte-se com o capítulo I «Ameríndios do Norte do Brasil na segunda


metade do século XVIII: as contradições da liberdade».
8 Esta ideia, expressa de outro modo e utilizada em contexto diferente, encon-
tra-se em Colin MacLachlan quando define o Directório como «a curious mixture of
pragmatic instructions interlaced with philosophical justifications for ending the tem­
poral authority of the missionaries», in «The Indian Directorate: forced acculturation
in Portuguese America (1757-1799)», p. 361.
9 Sobre a importância das noções de «português» e «católico», veja-se Ana Cris­
tina Nogueira da Silva e Antônio Manuel Hespanha, «A identidade portuguesa», in
História de Portugal, dirigida por José Mattoso, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores,
1993, p. 21.
10 Stuart B. Schwartz, «Indian labor and New World plantations: European
demands and Indian responses in Northeastern Brazil», in The American Historical
Review, vol. 83 (1), February, 1978, p. 50; Eugênio dos Santos, «A civilização dos
índios do Brasil na transição das Luzes para o Liberalismo...», p. 206.

68
A TR A N SFO R M A Ç Ã O DOS ÍNDIOS EM VASSALOS

o vice-reinado esta legislação só viria a ser implantada por alvará de


8 de Maio de 175811.
A promulgação deste conjunto legislativo criava junto dos pode­
res governativos algumas apreensões, decorrentes dos aspectos prá­
ticos da sua aplicação e, sobretudo, das reacções que provocaria
junto da sociedade colonial. Designadamente, temia-se que, ao ser
divulgada a lei da liberdade, os ameríndios repartidos pelo serviço
dos colonos, dos missionários ou da coroa abandonassem o seu tra­
balho e regressassem às suas aldeias ou voltassem para a floresta,
deixando os campos sem cultivo, os senhores sem criados e gerando
uma crise de mão-de-obra que os escassos escravos africanos não
poderiam suprir.
Um outro problema residia no facto de a legislação reconhecer a
equidade de oportunidades, de privilégios, de direitos entre índios e
luso-brasileiros. Ora, essa igualdade não era admitida pelos luso-bra-
sileiros, que se consideravam cultural e civilizacionalmente superio­
res, nem, paradoxalmente, pela própria coroa, que concedia aos seus
súbditos ameríndios um estatuto especial, o de pessoas miseráveis,
por considerar que os índios não eram totalmente responsáveis por si
nem pelos seus actos12. Esta questão está relacionada com a da substi­
tuição do poder temporal dos missionários pela autoridade de outro
organismo que governasse eficientemente os aldeamentos indígenas,
uma vez que, tal como era depreendido pela potência colonial, os
ameríndios não tinham capacidade para se autogovemarem.
A resolução destes problemas surgiu com o Directório, que,
enquanto código legal, conferia poder e legitimidade às regras de
conduta impostas pelo Estado josefino, separava o legítimo do ilegí­
timo, estabelecia as fronteiras entre o permissível e o inadmissível e
definia o novo plano civilizacional a que se pretendia dar início no
Norte brasileiro13. A sua aplicação regulamentava uma fase transitó-

11 «Alvará por que S. M. é servida ordenar que a liberdade que havia concedido
aos índios do Maranhão para as suas pessoas, bens e comércio por alvarás de 6 e 7 de
Junho de 1755 se estenda a todos os índios que habitam o continente brasileiro, sem
restrição, interpretação ou modificação», J. C. B., 71-341-1, de 8 de Maio de 1758.
12 Veja-se capítulo vi «A construção de imagens: definição de ameríndios nos dis­
cursos coloniais».
13 Para o conceito de lei enquanto veículo de legitimação dos poderes coloniais,
veja-se Patrícia Seed, Ceremonies of posscssion in Europe's conquest of the New World,
1492-1640, Cambridge MA, Cambridge University Press, 1995, pp. 6-7: «If language
and gestures of everyday life were the cultural media through which European States
created their autority and communicated it overseas, Iaw was the means by wich
States created their legitimacy.»

69
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

ria, ao longo da qual os índios seriam objecto de tutela e de educa­


ção, cristianização e civilização, por forma a tornarem-se vassalos
úteis e súbditos leais de Sua Majestade Fidelíssima e, portanto, inte­
grados harmoniosamente na sociedade colonial luso-brasileira14.
A concretização deste processo fundamentou-se, antes de mais,
na criação de um sistema administrativo alternativo ao das ordens
religiosas: o Directório estabeleceu a cisão entre os poderes temporal
e espiritual, cabendo ao director e à câmara gerir vilas e aldeias e ao
missionário orientar espiritualmente a população (§1, §2, §4). Mas,
ao mesmo tempo que definia a divisão de poderes e de funções,
estipulava que entre directores, câmaras e missionários deveria
haver uma estreita colaboração e pressupunha que a acção das auto­
ridades laicas e eclesiásticas devia confluir para um único fim: a civi­
lização dos ameríndios, a opulência da terra, a glória de Deus e o
poder do soberano (§4).
Antes de mais, há que referir que cumpria ao governador e capi-
tão-general da capitania nomear os directores (§1). Estes são defini­
dos como sendo os tutores dos índios, devendo administrá-los «em
quanto se conservão na bárbara, e incivil rusticidade, em que até
agora foram educados»15. Intervinham em quase todos os aspectos
da vida quotidiana: deviam proibir a utilização da «língua geral» e
fazê-la substituir pela portuguesa (§6), respeitar e fazer respeitar os
privilégios dos índios e impedir que fossem insultados (§9, §10,
§89); incentivar a construção de casas unifamiliares, o uso de ves­
tuário e controlar o consumo de bebidas alcoólicas, bem como o
comportamento dos indígenas (§12, §13, §14, §15); deviam prestar
auxílio aos novos colonos e incentivar os casamentos mistos (§80,
§88); eram considerados responsáveis pela construção da igreja, das
casas da câmara e da cadeia, bem como pelo ordenamento urbano
da povoação (§12, §74); deviam fazer aumentar a população das
suas aldeias, pelo incremento de descimentos e pela anexação de
pequenos povoados às aldeias que administravam (§76, §78, §79);
eram responsáveis localmente pela repartição dos ameríndios (§60,
§62); deviam integrá-los na economia colonial, incentivando-os a
dedicar-se à agricultura, a produzir excedentes e a comerciá-los (§16,
§17, §36, §39); eram responsáveis pela armação das canoas que se

14 Directório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão
enquanto Sua Magestade não mandar o contrário, Lisboa, Officina de Miguel Rodrigues,
1758, pp. 1-3.
15 Directório, § 92, p. 37.

70
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

destinavam à recolha de drogas do sertão (§48, §50); deviam super­


visionar as transacções comerciais, bem como superintender na
cobrança do dízimo (§27).
Era-lhes recomendado amiudadamente que no seu contacto
quotidiano com os ameríndios se regulassem pela brandura, prudên­
cia e suavidade, sem recorrer ao uso de violência e se norteassem
pela defesa do bem público, prioritário aos interesses dos particula­
res (§14, §93, §95).
De tudo o que ocorresse na sua ptfvoação, os directores deviam
dar conta às competentes instituições da capitania. Ora, na medida
em que estipulava que o director devia informar o governador e capi-
tão-general, a provedoria da Fazenda Real ou a ouvidoria da produ­
ção agrícola, do movimento comercial ou dos contigentes demográ­
ficos do núcleo urbano sob sua dependência, o Directório estava, ao
mesmo tempo, a centralizar informações para fins fiscais, militares
ou jurídicos, a estabelecer mecanismos de vigilância sobre a actuação
dos directores e a delinear uma relação hierárquica de dependência e
de poder. O que, em última instância, se pretendia através das dispo­
sições legislativas era o incremento dos dispositivos de vigilância do
território por parte das instituições centrais, incluído o poder gover­
nativo da capitania, através do controlo da informação.
Pelo Directório ficavam os directores obrigados a registar as
informações relacionadas com a comunidade que geriam em listas,
mapas e guias. Estas eram remetidas, na sua globalidade, ao gover­
nador e, parcelarmente, ao provedor da Fazenda, ao tesoureiro-
-geral e ao ouvidor. Registavam-se em vários livros rubricados: dos
Dízimos, do Comércio, da Matrícula, que permaneciam nas povoa-
ções. Pela legislação, estabelecia-se que esses documentos deviam
conter informações sobre a produção agrícola e sobre a percentagem
sujeita à taxação do dízimo, sobre os gêneros vendidos e permuta-
dos, sobre a esquipação das canoas para colecta de drogas do sertão
e o movimento comercial gerado por esta actividade, sobre o
número de indivíduos activos sujeitos à repartição, bem como sobre
as movimentações populacionais causadas pelas deserções, desci-
mentos e anexações16.

16 Consideramos que o registo da informação e a sua veiculação aos órgãos de


poder, tal como estão expressos no Directório, são uma forma de vigilância à actuação
dos directores. No entanto, criaram-se outros mecanismos de controlo de que dare­
mos conta quando confrontarmos as funções estabelecidas legalmente com a actua­
ção dos directores na administração das povoações (veja-se capítulo m «Em cumpri­
mento do real serviço: o reordenamento do território e a integração dos vassalos»).

71

j-
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

O Directório criou, portanto, um sistema alternativo à adminis­


tração dos missionários e deste novo sistema pretendia-se que saísse
fortalecido o poder central através de uma «reforma administrativa»
que visava tornar uma entidade laica, o director, num representante
do poder colonial junto da população.
Uma outra mudança fundamental preconizada neste corpo
legislativo consistia em tomar os ameríndios em representantes lídi­
mos da colonização luso-brasileira. Esta medida revelou-se, pri­
meiro que tudo, pelo fim da separação entre índios e luso-brasilei-
ros. Entre estes deviam estabelecer-se «reciprocas as utilidades e
communicaveis os interesses», uma vez que ambos eram súbditos
de um mesmo soberano17.
Já por alvará de 4 de Abril de 1755 se tinha decretado que os
luso-brasileiros casados com índias não deviam ser discriminados,
mas antes dignos do favor real, que lhes concedia, a si e a seus des­
cendentes, a preferência para o exercício de cargos públicos18. O Di­
rectório retomou o conteúdo deste alvará, e reforçou-o ao determinar
que os ameríndios não deviam ser considerados inferiores, nem cha­
mados de negros (§10)19. O Directório definia os índios como incapa­
zes de se autogovemarem e, por conseguinte, de estarem aptos para
o exercício de cargos administrativos. Considerava-os também
como incapazes de medirem as consequências totais dos seus actos
e, consequentemente, concedia-lhes o estatuto de menores, sujeitos
a leis especiais e à tutela de um «director» (§92). Referia-se-lhes
como bárbaros, ignorantes, desinteressados, rudes e gentios (§2, §39,
§58 e §92).
É no sentido de destruir estas características que os diferenciam
dos luso-brasileiros que o Directório se assumiu também como um
«programa civilizacional». Se as medidas mais imediatas consistiam
em decretar que os ameríndios tomassem como nomes e sobreno­
mes os das famílias de Portugal (§11) ou se incentivassem os luso-
-brasileiros a morar nas mesmas povoações (§80) e se miscigenassem
com os índios (§88), as transformações mais profundas implicavam

17 Directório..., § 16, p. 8.
18 BN, R3610 V, Alvará de 4 de Abril de 1755.
19 Na terminologia colonial, os ameríndios eram definidos como «negros da
terra» por paralelismo à designação dos africanos como «negros da Guiné». Para os
portugueses, «negro» era sinônimo de escravo e estava conotado com servidão (Stuart
B. Schwartz, «Indian labor and new demands...», p. 61; atente-se também no livro de
John Manuel Monteiro, Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens de S. Paulo, São
Paulo, Companhia das Letras, 1994).

72
-

A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V ASSALO S

a mudança da língua (§6), a reforma dos costumes (§14) e a integra­


ção dos índios no sistema econômico colonial (§17).
Os ameríndios deviam ser motivados a reformar o seu compor­
tamento e as suas crenças bárbaros (§14), a habitar em casas e aldea-
mentos construídos de acordo com as normas urbanísticas euro­
péias (§12), a controlar o consumo de bebidas alcoólicas (§13), a
utilizar vestuário decente e compatível com a posição social do uti­
lizador (§15), deviam trabalhar (§20) e, nomeadamente, deviam
dedicar-se ao cultivo das suas terras e das dos moradores, por forma
a satisfazerem o consumo interno, a subsistência das suas casas e
famílias (§17) e a produção de excedentes, destinados ao abasteci­
mento da recém-criada capitania de S. José do Rio Negro e à ex­
portação (§17, §22). E, assim, incentivava-se a cultura dos produtos
tradicionalmente criados pelos ameríndios, tanto quanto se incre­
mentava o cultivo de milho, feijão, arroz, algodão, tabaco e do café,
cacau, anil e linho cânhamo (§23, §24, §25). Do desenvolvimento
agrícola deveria decorrer o desenvolvimento comercial baseado na
venda e permuta de drogas do sertão, produtos agrícolas, manufac-
turas e outros gêneros que fossem necessários e úteis à vida dos
ameríndios (§35).
Com as reformas preconizadas, o Directório pretendia incutir
junto das comunidades indígenas não só o padrão de comporta­
mento moral europeu como introduzia ainda hábitos de trabalho
ocidentais. Contudo, no código, a atenção do legislador centrou-se
com particular incidência em questões de ordem econômica e de
administração do território, na especificação de funções e na defini­
ção de mecanismos de controlo, relegando os problemas de natu­
reza ética ou moral a reduzidos parágrafos. Como já foi afirmado, o
Directório partia do pressuposto de que as povoações deviam ser
administradas através de uma actuação conjunta e consonante de
directores e missionários. A partir do momento em que as reformas
da segunda metade do século xvill se processaram, assistiu-se a uma
transferência do poder temporal para o director, cuja actuação se
regulamenta em pormenor no corpo legislativo. Apesar de estar cla­
ramente expresso que os directores eram responsáveis pela civili­
dade dos ameríndios, será que se confiavam os aspectos relaciona­
dos não só com a assistência religiosa mas também com a conduta
moral e social aos missionários20? Será que, porque o que se preten­
dia instaurar nas novas aldeias e povoações não constituía novidade

20 Directório, § 5, p. 3.

73

_
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

em relação ao que os padres tinham querido instaurar nas missões,


o legislador não considerou «a reforma dos costumes» com a mesma
minúcia que as reformas do foro administrativo? Ou será que se
pressupunha que os directores deviam ser pessoas de comporta­
mento íntegro e, portanto, se considerava supérfluo a reflexão sobre
as normas de conduta e comportamentais21?
Contrariamente ao que acontece com as questões morais e éti­
cas, os aspectos relacionados com a economia e o trabalho foram tra­
tados com detalhe. Entendia-se que a colaboração dos ameríndios,
enquanto fonte de trabalho, era imprescindível para o desenvolvi­
mento econômico local, bem como para a integração econômica de
uma área geográfica marginal como era a Amazônia da segunda
metade do século xvni no sistema colonial. Esta dependência da mão-
-de-obra indígena revelou-se também como uma das preocupações do
Directório. E, por isso, o corpo legislativo regulamentava a forma pela
qual as entidades administrativas deviam proceder à sua gestão.
A unidade de interesses que se estipulava como imprescindível
entre ameríndios, colonos e a coroa passava, obviamente, pelo desen­
volvimento agrícola e econômico do Estado do Grão-Pará. Pretendia-
-se que os ameríndios participassem activamente deste processo, quer
como mão-de-obra ao serviço dos colonos quer como proprietários
dos seus próprios bens22. Desta forma se justifica a tarefa confiada ao
director no sentido de fomentar, junto dos índios, o aumento da pro­
dução agrícola, a comercialização de excedentes e o desenvolvi­
mento da actividade comercial (§19, §43, §45, §49); neste sentido,
procura-se que os indígenas colaborem no comércio das drogas do
sertão como parte interessada (§50, §57); e tenta-se introduzir junto
dos ameríndios os conceitos de riqueza e opulência (§17).
Perante isto, percebe-se a razão pela qual a gestão dos índios,
enquanto fonte de trabalho, ocupa um lugar de tanta importância no
Directório. Também em relação a este aspecto se introduziram altera­
ções: o sistema que, anteriormente, distribuía a mão-de-obra indí­
gena por três fracções, contemplando os colonos, a coroa e os mis­
sionários, deu lugar a uma repartição bipartida entre, por um lado,
as povoações e o serviço da coroa e, por outro, os moradores, as

21 O papel educador do director através do exemplo está mencionado no Directó­


rio, § 4, p. 3.
22 Ao relacionarmos o Directório com a legislação anteriormente publicada, pen­
samos que se deve lembrar que o alvará régio de 6 de Abril concedia aos índios a
liberdade não só das suas pessoas como dos seus bens (AHU, Conselho Ultramarino,
códice 336, fl. 53v a 65; BN, Reservados, códice 8396, doc. II).

74
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

equipações de canoas, a extracção das drogas-do-sertão e o cultivo


de tabaco, açúcar e algodão (§63). No entanto, determinava-se que
todos deviam receber pelos serviços que prestavam uma justa remu­
neração (§68).
Com a introdução de factores como o desenvolvimento agrícola
e comercial, os excedentes, os salários, a riqueza e o lucro, pensamos
que, a longo prazo, o Directório procuraria transformar o trabalho
indígena de compulsório em voluntário. Este objectivo seria concre­
tizado quer pela necessidade criada junto das sociedades ameríndias
de realizar fundos que lhes permitissem o consumo de novos produ­
tos alheios à produção local e lançados no mercado pelo comércio
colonial; quer pela introdução de noções de lucro, de riqueza, de
bem-estar e de conforto pessoal ligados ao prestígio social; quer,
numa fase ideal, pela identificação e integração dos índios no sis­
tema colonial luso-brasileiro enquanto vassalos e, consequente­
mente, em total sintonia com os «interesses e utilidades» do reino.
A chave para transformar povos rústicos, bárbaros, ignorantes e
incíveis em indivíduos civilizados e úteis à comunidade e ao reino
consistia na educação. E, por isso, o Directório insistia na criação de
escolas em todas as povoações, onde mestres, «pessoas dotadas de
bons costumes, prudência e capacidade», instruiriam os meninos e
meninas índios na doutrina cristã, na leitura e na escrita e, os pri­
meiros, na aritmética, enquanto as segundas, em algumas «prendas
domésticas» (§7, §8)23. Mas, com prioridade sobre tudo, ensinariam
a língua portuguesa, considerada pelos homens de Estado de Sete­
centos como uma forma legitimadora da autoridade colonial portu­
guesa, como um dos «meios mais efficazes para desterrar dos Povos
rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a
experiencia, que ao mesmo passo que se introduz nelles o uso da
Lingua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o
affecto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe»24.
Assim, de acordo com a legislação colonial da segunda metade
do século xv iii, pelo ensino da língua civilizavam-se os povos e
transmitia-se-lhes noções de identidade e de lealdade. Em suma, a
imposição do português como língua única e «nacional» incutiría
junto dos ameríndios noções de sujeição a um soberano, dono e
senhor de um vasto território que, à época, era disputado por outras
potências europeias rivais. A legitimidade da pertença encontrava as

23 Directório, § 8, p. 4.
24 Directório, § 6, p. 3.

75
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

suas bases jurídicas na colonização efectiva do território. Ora, que


melhor argumento havería para o provar do que a utilização da lín­
gua portuguesa pelos seus habitantes?
As mudanças que, através do Directório, o poder real pretendeu
aplicar em território amazônico e a autoridade em que se funda­
mentava para as executar encontravam legitimidade numa missão
civilizadora e cristianizadora que, em meados do século xviii, era
não só apanágio como obrigação dos soberanos absolutistas euro­
peus com possessões coloniais. Era dever moral dos monarcas civili­
zar os povos que se consideravam rústicos, ignorantes, bárbaros e
pagãos em nome da felicidade e do progresso dos povos e do inte­
resse da «república» e do bem comum. Civilizar e cristianizar eram
actos de caridade, de humanidade e de justiça. Foi nestes princípios,
que, à época, eram entendidos como uma obrigação dos povos civi­
lizados face a outros desfavorecidos, que a legislação produzida em
meados de Setecentos e, particularmente, o Directório, fundamentou
o programa político colonial em relação à população indígena25.

A ld e ia s , v ila s e fo r tific a ç õ e s

A ocupação do território foi uma prioridade da política colonial


portuguesa na segunda metade de Setecentos. Por ela, os luso-brasi-
leiros manifestavam a sua vontade de dominar o «sertão» consti­
tuído pela bacia hidrográfica amazônica. Ao contrário da política de
colonização formulada por outros países europeus para o Novo
Mundo, designadamente pela Inglaterra isabelina que punha a
tônica unicamente na posse da terra, a coroa portuguesa, visava tor­
nar doméstico, útil e civil não só o solo como os homens26.

25 Entendemos que o tratamento exaustivo dado aqui ao Directório se justifica


porque, não obstante ser um dos documentos mais utilizados por quem se dedica ao
estudo do Norte brasileiro da segunda metade do século XVIII, é pouco explorado em
determinados aspectos. Contém dados que normalmente são ignorados ou secunda-
rizados, apesar de serem importantes para o entendimento da política pombalina na
área em estudo. Uma outra perspectiva deste documento é encontrada em Rita
Heloísa de Almeida, O Directório dos índios. Um projecto de •civilização» no Brasil do século
XVlll, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997, segunda parte «As transposi­
ções», pp. 149 e ss.
26 Patrícia Seed, «Taking possession and reading texts c tablishing the authority
of Overseas Empires», in Early images of the Américas: transfer and invention, editado por
Jerry M. Williams e Robert E. Lewis, Arizona, The University of Arizona Press, 1993,
pp. 113-114.

76
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

O território amazônico, habitado desde tempos imemoriais


pelas etnias indígenas, era considerado à luz do direito colonial euro­
peu da época como terra livre, porque sobre ela não se exercia a auto­
ridade de outro soberano cristão, nem nela viviam povos cristãos27.
Assim, juridicamente, a autoridade da coroa portuguesa sobre solo
amazônico só encontraria contestação legítima quando a colonização
luso-brasileira colidisse com a colonização de outro país europeu.
Para tomar sólida e fundamentada a sua autoridade, o príncipe cris­
tão devia proceder à ocupação física do espaço e manifestar o desejo
de integrá-lo, de forma permanente, na sua área de soberania. Ora, na
Amazônia da segunda metade do século xvili, esta vontade revela-se
no estabelecimento de aldeias, vilas e fortificações, mas também na
renomeação dos antigos povoados, que tomam nomes portugueses;
ou seja, a autoridade da coroa sobre o território exerce-se através de
uma presença efectiva e por referências simbólicas28.
Quando se alude à colonização luso-brasileira estabelecida no
Norte do Brasil durante a primeira metade do século XVIII há que tomar
em consideração a existência de núcleos administrados por autorida­
des laicas e de aldeamentos confiados à administração religiosa.
Os representantes administrativos laicos exerciam a sua autori­
dade fundamentalmente na cidade de Santa Maria de Belém, nos
núcleos urbanos em seu redor e nas fortificações localizadas no lito­
ral e ao longo do curso do rio Amazonas. Esta ocupação do espaço

27 Patrícia Seed, «Taking possession and reading texts...», p. 117. Sobre a história
da Amazônia antes dos contactos com os europeus, veja-se, por exemplo, Anna Cor-
tenius Roosevelt, «Sociedades pré-históricas do Amazonas brasileiro», in Nas vésperas
do mundo moderno. Brasil, pp. 17 e ss.; «Resource management in Amazônia before
conquest: beyond Ethnografic projection», in Advances in Economic Bothany, 7, 1989,
pp. 30 e ss.; «Lost civilizations of the Lower Amazon. Archeologists discover the com-
plex societies that ruled South America’s tropics», in Natural History, 2, 1989, pp. 76 e
ss.; «Arqueologia amazônica», in História dos índios do Brasil, organização de Manuela
Carneiro da Cunha, São Paulo, FAPESP, Companhia das Letras, Secretaria Municipal
de Cultura, 1992, pp. 53 e ss.
28 Ângela Domingues, «Urbanismo e colonização na Amazônia em meados do
século xvill: a aplicação das reformas pombalinas na capitania de S. José do Rio
Negro», in Revista de Ciências Históricas, n.° x, 1995, p. 265. Ao invés do que foi afir­
mado por outros autores, estamos crentes que a renomeação das povoaçôes pouco
teve a ver com o local de origem dos povoadores. Se excluirmos o caso de Vila Nova
de Mazagão, verificamos que os topónimos utilizados durante o período estudado
estão relacionados com as povoaçôes da Coroa, da Casa da Rainha e Infantado e,
eventualmente, com as terras de origem ou patrimoniais dos governadores que as
fundavam ou intitulavam (confronte-se Rita Heloísa de Almeida, O Directório dos
índios, p. 67).

78

in .
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V ASSALO S

pode relacionar-se com as prioridades que norteavam a fixação luso-


-brasileira no Pará. Face às tentativas desencadeadas por holandeses,
franceses, irlandeses e ingleses, desde o século anterior, para ocupar
aquela área geográfica, as iniciativas oficiais portuguesas só se
podiam centrar em áreas que fossem, com mais probabilidade, o
alvo de cobiça por parte de potências estrangeiras: o litoral e os cur­
sos fluviais que davam acesso ao interior29. Construíram-se, conse­
cutivamente, fortificações em Belém, Páuxis, Tapajós, Parú e na
Barra do rio Negro, que tinham a finalidade de controlar a navega­
ção dos rios, tanto com fins militares como fiscais, e de reprimir ata­
ques das etnias ameríndias da região. A presença de colonos encon­
trava-se concentrada na cidade e em seu redor e disseminada por
pequenos povoados, engenhos e fazendas, até porque estava vedada
a fixação de luso-brasileiros em aldeias de índios30.
No interior, fazia-se sentir fortemente a presença das ordens
religiosas, regulamentada pelo Regimento das Missões do Estado do
Maranhão e Grão-Pará, promulgado em 1686, e por legislação subse­
quente31. Os missionários, detentores da jurisdição temporal e espi­
ritual sobre os ameríndios aldeados, foram responsáveis pela funda­
ção de inúmeras aldeias ao longo do rio Amazonas e dos seus
afluentes32. Esta vasta área geográfica encontrava-se repartida pelas

29 English and Irish Settlement on the river Amazon (1550-1646), edição de Joyce
Lorimer, Londres, Hakluyt Society, 1968; AAW, História Naval Brasileira, vol. I,
tomo II, Rio de Janeiro, Ministério da Marinha, Serviço de Documentação-Geral da
Marinha, 1975, capítulo 11; Ângela Domingues, «Estado de Grão-Pará e Maranhão»,
in Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil, Lisboa, Editorial Estampa,
1994, cols. 314-316.
30 Directório, § 80, p. 34.
31 Regimento e Leis sobre as missões do Estado do Maranhão e Pará e sobre a liberdade
dos índios, Lisboa, Oficina de Antônio Menescal, 1724; Mathias C. Kiemen, «The
Indian policy of Portugal in America, with special reference of the old State of Mara­
nhão, 1500-1755», in The Américas. A Quaterly Review of Inter-American Cultural History,
vol. v, (4), Abril de 1949, pp. 439-447.
32 A primeira ordem religiosa a estabelecer-se na Amazônia foi a dos Franciscanos
da Província de Santo Antônio fixados no território em 1617; seguiram-se outros ramos
da mesma ordem: os da Piedade, chegados em 1693 devido a solicitação de Manuel
Guedes Aranha; e os Capuchos da Conceição da Beira e Minho, em 1706. Os Carmeli­
tas iniciaram a sua missão no Pará em 1627 e os Jesuítas surgiram em 1636, quando o
padre Luís Figueira se estabeleceu em Belém e percorreu os rios Tocantins, Pacajás e
Xingú. Os Mercedários foram trazidos por Pedro Teixeira na sua viagem de regresso de
Quito, em 1639, começando no ano seguinte a construção da igreja e convento das
Mercês (veja-se Carlos de Araújo Moreira Neto, «Os principais grupos missionários que
actuaram na Amazônia brasileira entre 1607 e 1759», in História da Igreja na Amazônia,
coordenada por Eduardo Hoomaert, Petrópolis, Editorial Vozes, 1992, pp. 63-105.

79
w

A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

diferentes ordens religiosas, que exerciam a sua influência sobre


zonas específicas. Assim, à Companhia de Jesus pertencia o distrito
sul do Amazonas; as terras da margem norte até ao rio Urubu repar-
tiam-se pelos religiosos franciscanos de evocação de Santo Antônio
e da Piedade; o rio Urubu constituía outra área de influência jesuí-
tica e o rio Negro era partilhado por esta ordem e pelos carmelitas; a
estes e a mercedários tinha sido entregue o rio Madeira33.
Segundo Mathias Kiemen, nos anos 50 de Setecentos o gover­
nador e capitão-general Francisco Xavier de Mendonça Furtado deu
conta da existência de 63 aldeias no Estado do Maranhão, das quais
19 pertenciam aos jesuítas, 15 aos carmelitas, 26 aos franciscanos e
3 aos mercedários34.
Foi esta a situação encontrada por Francisco Xavier de Mendonça
Furtado quando se decidiu aplicar, cerca de dois anos após a data da
promulgação, o já referido alvará de 7 de Junho de 1755. Como sis­
tema administrativo alternativo às missões elevavam-se os antigos
aldeamentos missionários à categoria de vilas ou de aldeias, que se
passavam a gerir de acordo com as normas regulamentadas pelo
Directório. De igual forma, delegava-se a gestão administrativa tem­
poral às câmaras ou aos directores. A acompanhar esta transferência
de poder, assistiu-se também, entre 1753 e 1760, à renomeação das
povoações que perdiam o seu nome indígena em detrimento dos
nomes das povoações pertencentes à coroa, às Casas da Rainha, de
Bragança, do Infantado e à Ordem de Cristo35. Esta alteração mera-

33 João Lúcio de Azevedo, Os jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e colonização,


Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 242; Manuel Maria Wermers, «O esta­
belecimento das missões carmelitas no Rio Negro e Solimões (1695-1711)», in Actas
do V Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, vol. II, Coimbra, 1965, pp. 527-572; Angela
Domingues, «A importância das visitações para o conhecimento das etnias amerín­
dias da Amazônia e do Pará em meados de Setecentos», in Actas do Congresso Inter­
nacional de História. Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, vol. II, Braga, Uni­
versidade Católica Portuguesa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, Fundação Evangelização e Culturas, 1993, p. 454.
34 Mathias C. Kiemen, «The Indian policy of Portugal in America, with special
reference to the old State of Maranhão...», p. 448; estes números diferem ligeira­
mente dos apresentados por João Antônio da Cruz Diniz Pinheiro na sua «Notícia do
que contém o Estado do Maranhão em commum e em particular succintamente den­
tro do seu distrito», cit. em Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De
maioria a minoria, pp. 145-151.
35 Assim, S. José de Arapijó transformou-se em Carrazedo, Pauxis em Óbidos,
Santo Antônio de Sorubiú em Alenquer, S. Francisco de Gurupatuba em Montalegre, Ita-
ticoara em Serpa, Bararoá em Borba (Antônio Ladislau Monteiro de Baiena, Compêndio
das eras da Província do Pará, Belém, Universidade do Pará, 1969, pp. 160, 165, 168-169).

80
A TR A N SFO R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

mente formal foi, sem dúvida, significativa, apesar de simbólica, por­


que expressava a autoridade do poder central. Ao querer impor a lín­
gua portuguesa como única, a coroa abolia igualmente os nomes
indígenas das povoações por outros legitimamente portugueses,
como forma de comprovar a eficácia da colonização luso-brasileira
sobre o Estado do Grão-Pará; ao mesmo tempo, questionava o poder
dos missionários, acusados de fomentarem a utilização da língua
geral e de punirem os índios que se expressassem em português36.
As reformas pombalinas privilegiavam os núcleos urbanos na
medida em que estes eram um meio altamente eficaz de aculturação
e de europeização da população indígena. Pelo estabelecimento de
aldeamentos pretendia-se, primeiro que tudo, proceder à sedentari-
zação das etnias que ainda eram nômadas; depois, queria-se concen­
trar alguma da população que já vivia em aldeamentos indígenas,
mas que ainda se encontrava dispersa pelo sertão; e visava-se proce­
dem ruralização dos ameríndios, pelo incentivo à sua participação
activa na agricultura e na criação de gado. A existência de aldeias
como núcleos de concentração de indígenas permitia uma assistên­
cia religiosa mais fácil e um maior controlo sobre o comportamento
moral e ético da população; ou seja, na política colonial portuguesa
do século xviii, tal como na que a coroa espanhola determinava para
as suas colônias durante o mesmo período, era nos núcleos urbanos
que a passagem dos ameríndios para uma «forma superior de civili­
zação», ocidental e católica, era processada37.
De igual modo, era nas aldeias e vilas luso-brasileiras que se pre­
tendia proceder à anulação da identidade das comunidades amerín­
dias. No discurso colonial da época entendia-se que a incorporação
de várias etnias, com línguas, hábitos e comportamentos diversos
num mesmo povoado concorria para o desaparecimento gradual,
mas eficaz, das suas especificidades culturais enquanto grupo. Assim,
haveria mais facilidade em implantar a civilização luso-brasileira.
A legislação portuguesa apenas especificava que não se devia incor-

36 Veja-se, por exemplo, BN, Colecção Pombalina, cód. 622, fl. 33, Oficio de José
Antônio de Freitas Guimarães a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 13 de
Fevereiro de 1753.
37 O papel que os núcleos urbanos tiveram em território luso-brasileiro é seme­
lhante ao que exerceram em território hispano-americano. Veja-se Francisco de
Solano, «Urbanizacion y municipalízacion de la poblacion indígena», in Estúdios sobre
la ciudad iberoamericana, coordenação de Francisco de Solano, Madrid, Consejo Supe­
rior de Investigaciones Científicas, Instituto Gonzalo Femandez de Oviedo, 1983,
pp. 241-245.

81
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V ASSALO S

porar no mesmo local etnias inimigas, pela instabilidade que os con­


frontos daí resultantes causaria à colonização do território.
A criação de núcleos urbanos individuais motivou a formação
de uma rede de aldeias que tinha o objectivo de servir de suporte ao
abastecimento da cidade e dos aldeamentos recém-formados, de
permitir o apoio à navegação militar e comercial, de fornecer o mer­
cado de mão-de-obra com ameríndios cooperantes e preparados
para um trabalho regular e sistemático e, ainda, de defender locais
tácticos e consolidar a posse e o controlo do poder colonial sobre
zonas de interesse estratégico.
Na Amazônia de Setecentos assiste-se, na designação expressada
por David Davidson, à formação de «a kind of water-bome society in
formation where most communication, travei and settlement was gui-
ded along rivers», que são simultaneamente artérias de comunicação e
de comércio, linhas estratégicas de defesa e canais de conflito38. Os
rios eram a via da expansão e da consolidação da presença luso-brasi-
leira na Amazônia39. Para além deste condicionalismo imposto pelas
características ecológicas, outros factores determinavam a escolha dos
locais para a fundação dos núcleos representativos da presença luso-
-brasileira: a benignidade das condições climatéricas; a proximidade
de terras férteis e de recursos naturais; a improbabilidade de situações
de risco, causadas por ataques de etnias hostis ou de mosquitos e ver­
mes; a pertinência da defesa de um local face a pretensões estrangeiras
ou a necessidade de controlo e de apoio à circulação fluvial.
A partir da segunda metade do século xvni, projectou-se transfor­
mar as aldeias e vilas da Amazônia em locais de residência de índios e
colonos. Esta intenção moldou a fisionomia urbana dos povoados
luso-brasileiros na Amazônia, que passaram a ser constituídos por
bairros de «brancos» e de indígenas. Ao promover a coabitação entre
estes dois grupos, as intenções dos legisladores eram variadas. Através
do exemplo, os luso-brasileiros deviam incentivar os ameríndios a cul­
tivar as suas terras e a utilizar novas técnicas e culturas agrícolas, bem
como incutir-lhes apetências pelo lucro e pela prosperidade. Um outro
objectivo resultante desta convivência devia resultar na miscigenação

38 David M. Davidson, «How the Brazilian West was won: Freelance & State on
the Mato Grosso frontier, 1737-1752», in Colonial roots of Modem Brazil. Papers of the
Newherry Library Conference, editado por Dauril Alden, Berkeley, Los Angeles, Lon­
dres, University of Califórnia Press, 1973, p. 66.
39 A referência aos rios como vias de penetração e de colonização encontra-se
também em Carmen Aranovich, «Notas sobre urbanizacion colonial en la America
Portuguesa», in Estúdios sobre la ciudad iberoamericana, p. 396.

82
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

dos luso-brasileiros com as mulheres índias e assimilação, por estas e


seus descendentes, dos hábitos e costumes portugueses.
Os núcleos urbanos surgiam, portanto, como o meio privile­
giado para promover estes contactos e, consequentemente, como
uma forma eficiente para «destribalizar» e aculturar os índios, tão
eficaz como a miscigenação na adopção dos hábitos luso-brasileiros.
Era nas povoações que se ensinava de forma mais eficiente e mais
rápida os novos comportamentos e a nova língua. Era aí que o poli­
ciamento e o controlo dos ameríndios se exercia de forma mais
válida. Era, também, nos centros habitacionais que se fomentava o
contacto entre diversas etnias para que, do confronto das várias lín­
guas e\culturas ameríndias, beneficiasse a língua e a cultura luso-bra-
sileira4?. Deparada com um espaço tão vasto e incontrolável como
era a Amazônia de Setecentos, a coroa concentrava as faces visíveis
do seu poder nos centros urbanos.
Pretendia-se que as missões recém-transformadas e os novos
núcleos populacionais fossem um «reflexo ideal» das povoações do
reino, adaptado à realidade amazônica. Essa intenção está, antes de
mais, expressa nos nomes que as povoações tomavam. Depois, revela-
-se nos princípios urbanísticos que eram enunciados no Directório (§12,
§74), nos documentos de fundação das vilas e nas posturas camarárias.
Assim, a legislação estipulava que as povoações deviam ser construí­
das sobre uma malha urbana quadriculada e as fachadas dos edifícios
deviam ser semelhantes no estilo e estar alinhadas perpendicular­
mente às ruas. Estas deviam ser largas e direitas. O espaço urbano
ordenar-se-ia em tomo de uma praça, no centro da qual se erguería o
pelourinho. Os edifícios aos quais se devia dar particular importância
eram a igreja e a casa do pároco, as casas de vereação e audições e a
cadeia ou a residência do director e outras instalações públicas4041. Para­
lelamente, deveria dar-se início à reserva de uma habitação para
escola, onde se ensinariam às crianças a língua portuguesa, a doutrina
cristã, a escrita, e às índias também algumas prendas domésticas.
Eram estes os princípios aos quais os governadores e capitães-
-generais procuravam dar cumprimento durante as suas visitas ao

40 O reagrupamento da várias etnias em estádios civilizacionais diferentes nas


mesmas povoações foi, também, uma opção política colonial na Hispanoamérica (Fran­
cisco de Solano, «Urbanizacion y municipalizacion de la poblacion indígena», p. 251).
41 Salientem-se, por exemplo, os armazéns. Veja-se BNRJ, 1-31-28-41, n.° 4,
fl. 115v, Carta régia de fundação da capitania de S. José do Rio Negro e da vila de
S. Pedro do Javari (Barcelos), bem como da definição dos privilégios e regalias dos
seus moradores, de 12 de Novembro de 1755.

83
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

sertão. Foi durante a administração de Francisco Xavier de Men­


donça Furtado, o primeiro governador e capitão-general do Estado
do Grão-Pará, e de Manuel Bernardo de Melo e Castro, o primeiro
governador e capitão-general da capitania do Rio Negro, que se ini­
ciou este processo na bacia fluvial amazônica. As viagens dos gover­
nadores tinham, entre outros fins, o de renomear as povoações,
supervisionar a eleição dos órgãos administrativos, observar a cons­
trução e conservação dos edifícios públicos, religiosos e particulares,
incrementar o desenvolvimento econômico das povoações e incenti­
var a escolarização das crianças índias42.
Uma outra preocupação presente durante estas visitas oficiais
consistia no reconhecimento das capacidades defensivas das capita­
nias do Pará e Rio Negro. Ora, quando na segunda metade do século
xviii, a documentação se refere a este aspecto, devemos sublinhar
que contempla não só o estado de conservação das fortificações já
existentes como também considera a construção de mais edifícios
de arquitectura militar em regiões onde, até aquela data, a coloniza­
ção luso-brasileira do Norte do Brasil não se tinha implantado de
forma significativa.
Pensamos poder sustentar com segurança que, entre a primeira
e a segunda metade do século, surgiu uma multiplicidade de opções
no eixo colonizador da região estudada. Como em outra parte já
afirmámos, até à primeira metade de Setecentos a presença luso-
-brasileira fez-se particularmente sentir na cidade de Belém e em seu
redor. Era nessa área que se concentravam as fazendas e residências
de ordens religiosas, moradores e funcionários. Para a capital e as
«missões de baixo», localizadas entre o litoral e o rio Tocantins, diri­
gia-se grande parte dos contingentes indígenas que era aprezada no
sertão ou que pertencia às aldeias dos missionários43.

42 Como exemplo desta actuação, veja-se AHU, Pará, caixa 18 (739F), Ofício de
Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, de 21 de Dezembro de
1758 (também em Rio Negro, caixa 1, doc. 18); AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51,
fl. 30, Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e
Castro, de 15 de Junho de 1760; AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Ber­
nardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Abril de
1761; ibidem, caixa 21 (7391), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Abril de 1761; ibidem, caixa 22 (742), Ofício de
Feliciano Ramos Nobre Mourão a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de
Junho de 1761; ibidem, caixa 25 (739 J), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro ao
Dezembargador Intendente-Geral, de 16 de Agosto de 1763.
43 Ângela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão
territorial luso-brasileira na segunda metade do século xviii», p. 189.

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As fortificações reflectiam esta linha de colonização, ao concen­


trarem-se em torno da cidade e ao longo da via fluvial constituída
pelos rios Amazonas-Solimões. Na estratégia seguida até à primeira
metade do século xvm, as fortalezas construídas pretendiam defender
a capitania do Pará de ataques que vinham do mar, servir de escala a
comerciantes e de reduto a moradores, ao mesmo tempo que deviam
fiscalizar a navegação e o tráfico que se fazia de/e para a cidade.
Contudo, durante a época em estudo, as prioridades coloniza-
doras diversificaram-se, reflectindo uma alteração global na estraté­
gia de colonização. Na tentativa de justificar o domínio e defender o
território, a Coroa passou a considerar importante a consolidação da
presença portuguesa nas zonas de fronteira, fossem estas constitui­
r á s pela orla costeira ou pelo sertão. De acordo com a política colo­
nial, importava defender o Estado do Grão-Pará não só dos perigos
externos que vinham do mar como também dos que ameaçavam os
territórios portugueses confinantes com a Caiena, com a Guiana
Holandesa e com o vice-reinado de Nova Granada. O Norte do Bra­
sil era, durante a segunda metade do século x v iii , uma área de ten­
são, porque as fronteiras políticas que determinavam a soberania
territorial dos países europeus sobre as colônias da América do Sul
não estavam definidas.
Paralelamente, também se modificou a fronteira interna44. As
etnias que importava controlar e pacificar já não eram as que se
localizavam ao longo do rio Amazonas, mas as que se encontravam
nos limites do Império Português no Norte do Brasil. A expansão
colonial pela bacia hidrográfica amazônica trouxe como consequên­
cia a intensificação de contactos entre luso-brasileiros e ameríndios
dos rios de ambas as margens do Amazonas, mas com especial inci­
dência nos tributários da margem direita e nos cursos fluviais que,
a oeste, permitiam o acesso ao interior do Brasil ou estabeleciam a
linha fronteiriça com território espanhol.

44 Para uma definição de fronteira, tomamos como referência Weber e Rausch:


«We would prefer to regard frontiers more broadly and neutrally, defining them as
geographic zones of interaction between two or more distinctive cultures [...], places
where culture contend with one another and with their physical environment to pro-
duce a dynamic that is unique to time and place», in Where cultures meet. Frontiers in
Latin American History, editado por David J. Weber e Jane M. Rausch, Wilmington,
Scholarly Resources Inc., 1994, p. XIV. No nosso texto, e só para clareza de exposição,
diferenciamos agora «fronteira interna» como correspondente aos limites geográficos
internos controlados pela sociedade colonial (núcleos urbanos, trajectos fluviais) por
oposição ao sertão; e «fronteira externa» como aquela que se pretendia definir com os
outros países europeus com interesses em território sul-americano.

85
1

A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Ao longo da segunda metade de Setecentos, a construção ou


reparação de fortificações militares incidiu, uma vez mais, sobre o
delta do rio Amazonas — fortalezas de S. José de Macapá, Santo
Antônio de Gurupá, de Santarém, do Parú, forte da ilha dos Periqui­
tos, reduto de S. José, batería de Vale de Cans — e difundiu-se pelas
fronteiras norte e oeste — fortes de S. Gabriel, de S. Joaquim do rio
Negro, de S. José de Marabitanas, de Tabatinga, de S. Joaquim do
rio Branco, do Príncipe da Beira45.
Estas obras de engenharia militar, apesar de, na sua globalidade,
se destinarem a defender a integridade do território luso-brasileiro
no Norte do Brasil, foram construídas de acordo com uma concep­
ção estratégica que tinha os seguintes objectivos: a defesa da orla
costeira e dos rios que davam acesso ao interior do Pará pelo litoral;
o controlo dos rios que nasciam ou percorriam colônias de outras
potências europeias e que, consequentemente, facilitavam o acesso
ao interior das capitanias do Pará e Rio Negro; e, finalmente, o mo­
nopólio da navegação no sistema fluvial Madeira-Guaporé, para
defender da presença de espanhóis os rios que ligavam as capitanias
de S. José do Rio Negro e Mato Grosso e que constituíam uma das
passagens ao interior do Brasil e às minas de ouro e diamantes.
De acordo com a geo-estratégia colonial para o Norte do Brasil,
a existência destas fortificações era importante, mas era necessário
fortalecer a sua posição com uma colonização efectiva. E, mais uma
vez, as opções tomadas pelo poder colonial confirmam estes três
vectores.
No litoral do Pará, para além da construção das fortalezas de
Macapá e Gurupá e dos fortins que defendiam a foz do rio Amazo­
nas, a posição defensiva portuguesa consolidou-se no policiamento
da costa por canoas da flotilha da Guarda da Costa e canoas de
observação, no estabelecimento ou reabilitação de povoados, tais
como Vila Nova de Mazagão e S. José do Macapá, e no incentivo à
fixação de luso-brasileiros na região: soldados, degredados e colo­
nos, muitos deles vindos do reino, dos arquipélagos da Madeira e

45 Fortificações construídas pelos portugueses no Brasil, coordenação de Antônio Hen­


rique Osório de Noronha, Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1982, quadros referen­
tes à Região Norte: Amapá, Pará, Amazonas; Angela Domingues, «Fortalezas portu­
guesas na Amazônia em finais do século xvm», in Actas do V Congresso sobre
monumentos militares portugueses, Abril de 1990 (no prelo); «O forte do Príncipe da
Beira na estratégia de Luís de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres», in Portugaliae
Histórica, nova série, vol. II (no prelo); Miguel Faria, «Príncipe da Beira: a fortaleza para
além dos limites», in Oceanos, n.° 28, Outubro-Dezembro de 1996, pp. 55-68.

86

l
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Açores e do Norte de África46. Com a fundação de novos aldeamen-


tos e através do incentivo à fixação de colonos procurava-se estabe­
lecer uma presença luso-brasileira efectiva num território que se
reconhecia estar, em determinadas áreas, mal povoado, ser fértil,
rico em metais, e estar confinante com potências estrangeiras47.
Contrariamente ao que acontecia em redor da cidade de Belém,
a presença de colonos luso-brasileiros era diminuta nos domínios da
capitania de S. José do Rio Negro, sobretudo nas áreas geografica­
mente periféricas confinantes com território espanhol. Limitava-se
quase exclusivamente à guarnição das fortalezas e a raros morado­
res. Por isso, a reclamação do direito de uti possidetis sobre vastas
régiões repousava, embora com fortes sobressaltos, nos recém-pro-
piovidos súbditos ameríndios. Assim, em torno das fortificações
construídas nos rios Negro e Branco edificaram-se, a partir da dé­
cada de 50, núdeos-satélites com etnias oriundas das regiões circun­
dantes. Esta era uma das formas que a coroa portuguesa tinha para
garantir alguma segurança aos poucos moradores, controlar o terri­
tório e as etnias ameríndias e para justificar, face ao direito que
regulava as relações entre as potências europeias, as suas preten­
sões: pela pacificação, sedentarização e aculturação dos índios e
pela sua incorporação na colonização luso-brasileira da fronteira.
A título de exemplo, em 1769 o governador Joaquim Tinoco
Valente noticiava ao governo reinol a construção de sete povoações
no rio Içana, distantes da fortaleza de S. Gabriel cinco dias, uma no
rio Içá e ainda outra no rio Japurá, «[...] tudo bastantemente deza-
gradável aos ditos espanhóis porque lhes vou impedindo os passos
do seu destino»48. Também em 1776, os principais Camarabi e Jami-
rim tinham fundado cada um a sua povoação, localizadas, a do pri­
meiro, acima da fortaleza de S. Joaquim do rio Branco e a do se­
gundo abaixo da mesma fortificação49.

46 Sobre Vila Nova de Mazagão, veja-se o trabalho inédito de Zelinda Cohen,


«Retrato dos mazaganistas através de um documento», cedido por gentileza da
autora; sobre Macapá, consulte-se Renata Malcher de Araújo, «As cidades da Amazô­
nia no século xvill: Belém, Macapá e Mazagão», dissertação de Mestrado em História
de Arte apresentada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova
de Lisboa, 1992, vol. I, pp. 243 e ss.
47 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de João da Cruz Diniz Pinheiro, Ouvi-
dor-geral do Pará, intendente do ouro e procurador dos índios a [?], de 12 de Feve­
reiro de 1755.
48 AHU, Rio. Negro, caixa 2, doc. 8, Ofício de Joaquim Tinoco Valente a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 6 de Agosto de 1769.
49 AHU, Pará, caixa 37, doc. de 29 de Setembro de 1776.

87
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

No entanto, e apesar da utilidade táctica do projecto, a fixação


de núcleos populacionais recém-constituídos com índios da região
tornou a colonização luso-brasileira altamente instável. Os índios,
sediados próximo dos locais donde eram oriundos, rebelavam-se
facilmente contra a imposição de normas éticas e religiosas ou con­
tra um trabalho que se requeria quotidiano e regular, e abandona­
vam as aldeias, regressando ao mato. Esta atitude que, frequente­
mente, era tomada por um indivíduo ou por um pequeno grupo,
podia, nas povoações dos rios Negro e Branco, ser levada a cabo
pela comunidade ou por um conjunto de aldeias. Foi o que ocorreu
em 1757, no rio Negro, com a celebração de uma aliança entre prin­
cipais índios de povoações luso-brasileiras que se rebelaram e ataca­
ram Lamalonga, Moreira e Tomar, refugiando-se, em seguida, na
ilha Timoni50; ou o que ocorreu em 1780, no rio Branco, na aldeia de
S. Filipe, composta, segundo dados da época, por 266 pessoas, as
quais se retiraram para a floresta51.
O terceiro vector enunciado consistiu, como já apontámos, na
exclusividade da navegação do complexo fluvial Madeira-Guaporé e
na sua defesa em relação a pretensões espanholas. A defesa desta
linha de comunicação, por onde, a partir de 1752, se passaram ofi­
cialmente a processar as ligações entre o Norte e o Oeste brasileiro,
dependeu da acção concertada dos governadores de S. José do Rio
Negro e de Mato Grosso e do apoio financeiro da Companhia Geral
de Comércio de Grão-Pará e Maranhão52. As fortificações que ser­
viam de reduto a esta importante via foram, primeiramente, a forta­
leza de Nossa Senhora da Conceição que, iniciada em 1765, se
encontrava destruída cinco anos mais tarde; e, depois, o Forte do
Príncipe da Beira, iniciado em 1776 sob os auspícios de Luís de

50 Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, Diário da viagem que em visita e correição


das povoações da capitania dt S. José do Rio Negro fez o ouvidor-geral e intendente da mesma
no anno de 1774-1775, Lisboa, Academia de Ciências de Lisboa, 1825, p. 106; Alexan­
dre Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica ao Rio Negro, s/1, CNPq, Museu Paraense Hmi-
lio Goeldi, s/d, pp. 55-57.
51 AHU, Rio Negro, caixa 4, doc. 3, Mapa de todos os habitantes que existiam nas
povoações do rio Branco, de 1 de Janeiro de 1781.
52 Entre 1749 e 1750, o Conselho Ultramarino divergiu em relação à exclusivi­
dade das ligações entre o Pará e o Mato Grosso pelo rio Madeira, mas, durante algum
tempo, o monopólio desta ligação efectuou-se exclusivamente por este rio (AHU,
Pará, caixa 3, s/d [cerca de 1749-1750]); sobre o apoio prestado pela Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão na colonização do eixo Madeira-Gua­
poré, veja-se Angela Domingues, «O forte do Príncipe da Beira na estratégia de Luís
de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres».

88
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

Albuquerque de Melo Pereira Cáceres53. A colonização luso-brasi-


leira fazia-se sentir nesta vasta área geográfica através de um núcleo
de povoamento, a antiga missão de Trocano, renomeada Borba-a-
-Nova em 1756, por feirarias, como Viseu (1777) e Crato (1795), e
por «poisos» espalhados ao longo do curso54.
A importância estratégica e econômica que o eixo fluvial Ma-
deira-Guaporé passou a ttr k partir de 1752, altura em que foi ofi­
cialmente permitida a comunicação entre o Norte e o Oeste bra­
sileiro por esta via, de/e estar na'origem da fundação de um
aldeamento por iniciativa particular, levada a cabo em 1756 porTeo-
tónio da Silva Gusmão, juiz de fora de Mato Grosso. Cerca de um
ano mais tardep^oacharel requeria ao soberano uma recompensa
pelos serviços prestados porque, dizia, com a aprovação de D. An­
tônio Rolim de Moura, tinha dado início a uma povoação na ca­
choeira do Salto Grande, conduzindo às suas custas mais de ses­
senta brancos, pretos, índios e mulatos, forros, solteiros e casados,
gastando 2000 cruzados nos transportes, aquisição de ferramentas,
roupa, botica, alimentos e materiais para construção de casas55.

A c o r o a e as o r d e n s r e lig io s a s

O controlo do Norte brasileiro pela coroa portuguesa na se­


gunda metade do século xvni implicou também vigiar a actuação das
ordens religiosas e limitar os poderes que a Igreja detinha junto dos
índios e no território. Ora, quando se considera a actividade e a
importância que as ordens religiosas conservaram na bacia hidrográ­
fica amazônica na época em estudo é imprescindível ter como refe­
rência a acção por elas desempenhada em todo o Brasil e o prestígio
e força que tal actuação tinha dado às instituições religiosas.

53 Cavaleiro-fidalgo da Casa Real, 10.° morgado de Casal Vasco, 9.° morgado


dos Melo da Lousã, 5.° senhor da ínsua e Espichei, comendador da Ordem de Cristo,
coronel de infantaria e mestre de campo de auxiliares. Foi nomeado, por carta
patente de 3 de Julho de 1771, 4.° governador da capitania de Mato Grosso, cargo
que exerceu entre 1772 e 1789 (Gilberto Freyre, Contribuição para uma sociologia da bio­
grafia. O exemplo de Luís de Albuquerque, governador do Mato Grosso no fim do século xvm,
Lisboa, Academia Internacional de Cultura, vol. i, 1960, p. 140.)
54J. R. Amaral Lapa, Economia Colonial, São Paulo, Editora Perspectiva, 1973, pp. 51
e 70-71.
55 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Requerimento do Bacharel Teotónio da Silva
Gusmão pedindo ao rei recompensa pelos serviços prestados, s/d [aprox. 20 de Maio
de 1757],

89
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

Antes de mais, a presença missionária no Norte do Brasil era,


nesta época, herdeira de uma tradição resultante da experiência mis­
sionária desenvolvida em todo o vice-reinado desde os primórdios
da colonização. Quando, com a promulgação da Bula Intercaetera em
1493, os países peninsulares consideraram a conversão dos índios
não unicamente um dever moral, mas uma obrigação jurídica, os
monarcas de Portugal e Espanha concederam aos missionários uma
actuação relevante: como agentes privilegiados de aculturação dos
índios, intermediários excepcionais entre colonos e indígenas e
motores imprescindíveis para a conversão dos infiéis. Esta asserção
é, obviamente, tão válida para a colonização portuguesa do Brasil
como para a actuação hispânica na América56.
Desde o início da colonização europeia que os missionários se
esforçaram por assegurar que o contacto entre culturas fosse feito de
forma pacífica, servindo, no caso do Brasil, de barreira amortece-
dora em relação aos contactos entre luso-brasileiros e ameríndios.
Foram eles que mais frequentemente se fizeram ouvir na defesa da
liberdade e dos direitos indígenas. Lembre-se só, a título de exem­
plo, os tratados e os debates de frei Bartolomé de Las Casas na
Espanha do século xvi ou, em época mais recente e em local mais
próximo, as relações e representações do padre Antônio Vieira em
defesa dos índios do Maranhão57.
Para avaliar da actividade dos missionários em território brasi­
leiro considere-se que, fora dos núcleos urbanos de maior importân­
cia, actuavam individualmente ou em pequenos grupos e eram ele­
mentos portadores de uma cultura e religião estranhas junto de
comunidades com civilizações e religiões diversas, por vezes desco­
nhecidas e hostis. Entravam em contacto com estes grupos nos seus
territórios e procuravam iniciá-los a uma outra civilização, a ociden­
tal, e convertê-los a uma nova religião, a católica, sem se deixar
influenciar ou «corromper» pelos homens e pelo ambiente. Utiliza­
vam guias, raras vezes intérpretes. Viviam em aldeias, entre os indí­
genas, comiam a sua comida, falavam a sua língua. E, no entanto,
esperava-se que não coabitassem com eles ou adoptassem certos
hábitos, devendo manter-se fiéis a um mundo com o qual conserva-

56 Veja-se, por exemplo, Christian Duverger, La conversion des Indiens de Nouvelle


Espagne, Paris, Éditions du Seuil, 1987.
57 Bartolomé de Las Casas, Brevíssima relação da destruição das índias, Lisboa,
Antígona, 1990; Obra indigenista, edição de José Alcina Franch, Madrid, Alianza Edi­
torial; 1985; Antônio Vieira, Escritos instrumentais sobre os índios, ensaio introdutório de
J. C. Sebe Bom Meihy, São Paulo, EDUC, Loyola, Giordano, 1992.

90
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

vam raros contactos. Urs Bitterii dá conta desta complexidade


quando constata que «Nevertheless, the relationship cultivated by
the missionaries was a highly pfoblematic undertaking: for while
missionaries differed from the.trader and the colonist in endeavou-
ring to approuch the natives/éympathetically, they still remained at
bottom exponents of European culture...»58.
A presença missionária no Norte do Brasil da segunda metade
de Setecentos beneficiava de uma estrutura já montada e eficaz. Por
exemplo, os missionários haviam adquirido, ao longo de três séculos
de contacto com os ameríndios, conhecimentos linguísticos suficien­
tes para utilizarem a «língua geral» ou nehengatu, usada em todo o
Brasil desde os primórdios da colonização e implantada com êxito
na Amazônia devido à existência de inúmeros grupos que falavam a
língua tupi. A «língua geral» constituiu, portanto, «um instrumento
de comunicação e dominação», aprendida por muitos luso-brasilei-
ros desde a nascença ou, então, estudada graças aos trabalhos lin­
guísticos realizados predominantemente por eclesiásticos e, sobre­
tudo, jesuítas59.
Fica, portanto, claro que não eram os padres os únicos a conhe­
cer a «língua geral» ou as técnicas do discurso indígena, mas mani­
pulavam esse conhecimento como um instrumento que lhes conce­
dia um estatuto privilegiado e único e que isolava a comunidade das
influências trazidas por aventureiros, funcionários, colonos e solda­
dos em viagem. Usufruíam, também, de uma longa experiência
transmitida por outros religiosos e utilizavam um profundo conheci­
mento compilado em dicionários, gramáticas e catecismos. Era utili­
zando esse saber linguístico, aperfeiçoado ao longo de gerações, que
procuravam transmitir aos índios os dogmas e noções da religião
católica e familiarizá-los na doutrina cristã, desobedeçendo às
ordens reais que, desde finais do século xvn, recomendavam o
ensino da língua portuguesa na Amazônia.
A par da cristianização dos índios, um outro papel que se espe­
rava do desempenho dos missionários consistia na transformação
dos ameríndios. As instituições e a sociedade coloniais pretendiam
que os indígenas alterassem os seus hábitos comportamentais, reli­
giosos, éticos e se adaptassem às normas europeias. Arno Kern
explica esta ideia quando afirma que, de acordo com o que era

58 Urs Bitterii, Cultures in conflict. Encounters between European and non-European


cultures, -1492-1800, Cambridge, Polity Press, 1993, p. 46.
59 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria, pp. 43-44.

91
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM V ASSALO S

entendido na época, os índios para abandonar a sua situação de


«infiéis» e serem convertidos ao cristianismo, deviam ser, primeiro
que tudo, «homens», isto é, abandonar os seus hábitos e padrões
culturais indígenas considerados selvagens e adaptar os costumes
considerados civilizados pelos europeus60. Os missionários apare­
ciam, pois, numa posição privilegiada para incutir nestas sociedades
hábitos de sedentarização, de trabalho regular, de sobriedade, de
castidade e, ainda, de tornar os índios em mão-de-obra eficiente.
O veículo para atingir estes objectivos, tanto no Brasil quanto
na América Hispânica, era a missão ou a redução, da mesma forma
que, com a segunda metade do século xv iii , seriam as aldeias e as
vilas61. Segundo Kem, era nesse espaço urbano que poderíam ser
abandonadas as atitudes e os padrões culturais julgados impróprios
e substituídos pelas normas comportamentais julgadas como ideais
na organização política, econômica ou cultural62. Aqui se devia
abandonar as bebedeiras rituais, o canibalismo, o enterramento em
umas cerâmicas e juntar à caça, à pesca e à recolecção de drogas-do-
-sertão a prática da agricultura e a produção de artesanato, construir
casas unifamiliares e incentivar a utilização de vestuário, proibir a
poligamia e alterar o sistema de prestígio e autoridade, as relações
entre idades e sexos e as regras de parentescos e casamentos63. Im­
plicitamente, esperava-se também que as missões fornecessem com
regularidade às entidades administrativas e aos moradores abasteci­
mentos de mão-de-obra apta e preparada para ser utilizada em ser­
viços domésticos, na agricultura, na remagem de canoas ou em tra­
balhos públicos.
O sucesso dos missionários junto das comunidades ameríndias
dependia não só da sua capacidade de comunicação e persuasão ou
da relação pacífica e pacificadora que estabeleciam com os índios.
Advinha-lhes, fundamentalmente, do facto de actuarem junto de

60 Amo Alvarez Kem, «Acções evangelizadoras e culturais de missionários por­


tugueses e espanhóis no Rio da Prata nos séculos XVI, xvn e XVIII, em território do sul
do Brasil», in Actas do Congresso Internacional. Missionação Portuguesa e Encontro de Cul­
turas, vol. II, Braga, Universidade Católica Portuguesa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Evangelização e Cultu­
ras, 1993, p. 481.
61 Era a partir de um núcleo populacional já existente ou novamente fundado
que os evangelizadores procuravam captar a fixação dos indígenas e chamar ao
povoado vários grupos.
62 Amo Kem, «Acções evangelizadoras e culturais...», p. 485.
63 Maxime Haubert, Índios e jesuítas no tempo das missões, séculos xvn-xvm, São
Paulo, Companhia das Letras, Círculo do Livro, 1990, p. 183.

92
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM V ASSALO S

sociedades em desestruturação, desmoralizadas pelos ataques de


tropas, colonos e caçadores de escravos e afectadas por confrontos
com outros grupos ameríndios, pela^jfopâgàçãCKíJe epidemias cau­
sadas por doenças estranhas ou pela necessidade dernipãréhTpara
regiões desconhecidas. Da mesma forma, resulta va do facto de os
evangelizadores terem conhecimentos médicos, transmitirem técni­
cas e fornecerem produtos de que as sociedades indígenas estavam
cada vez mais dependentes, tais como instrumentos de ferro, armas
de fogo ou quinquilharia. ,
Na sua actividade civilizadora, os missionários portugueses
eram apoiados pela coroa que os considerava como instrumentos de
colonização do sertão brasileiro. E, nessa medida, eram submissos
ao poder do soberano e das instituições, a quem deviam informar
regularmente da sua actividade e de quem dependiam, em parte,
para financiamento e fornecimento de bens e produtos junto das
missões64. No entanto, os missionários queixavam-se frequente­
mente que a ajuda da Fazenda Real para fundação e manutenção
das missões era insuficiente e demorada, tendo que socorrer-se de
recursos pessoais, crédito e esmolas65.
Com a segunda metade do século xv iii , o plano civilizador que
se começou a definir em relação aos índios do Pará considerava
como imprescindível a colaboração das ordens religiosas, sobretudo
da Companhia de Jesus, cujos missionários eram considerados
como «os que tratão os índios com maes caridade, e os que milhor
sabem conçervar as Aldeyas, e cuidareis [Francisco Xavier de Men­
donça Furtado] no principio destes estabelecimentos, evitar quanto
vos for possível o poder temporal dos missionários sobre os mes­
mos índios, restringindo-o quanto parecer conveniente»66.
Assim, o programa de aculturação indígena definido pelo gabi­
nete josefino pressupunha, pelo menos numa fase inicial, uma cola­
boração estreita de todas as ordens religiosas com o poder gover­
nativo e, ao mesmo tempo, um cerceamento da jurisdição dos
missionários e uma maior interferência da autoridade real. Desde o
princípio da colonização que os padres insistiam que as aldeias

64 BAPDE, CXV/2-14, fl. 266, Carta do Padre Antônio Machado ao Padre Bento
da Fonseca, de 24 de Agosto de 1753.
65 BN, Coltcção Pombalina, códice 625, fl. 179v, Carta do Padre Antônio Machado
a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 29 de Maio de 1754.
66 BN, Colecção Pombalina, códice 686, fl. lOv, Instruções dadas por D. José I a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 30 de Maio de 1751. Também citado em João
Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colonização, pp. 283-284.

93
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

eram dos indígenas e não das Ordens67. No entanto, detinham sobre


as missões tanto a autoridade espiritual quanto a temporal, facto
que dava azo a protestos por parte do colonos desde os anos 60 do
século xvi. Era este poder que a coroa procurava limitar na Amazô­
nia da segunda metade de Setecentos.
Uma das formas utilizadas para fortalecimento da autoridade
real consistia na promulgação de novas leis proibindo a interferência
dos ministros eclesiásticos no governo secular e estabelecendo que o
exercício de cargos públicos fosse confiado a ministros laicos, tanto
luso-brasileiros quanto ameríndios68. Outra via consistia em fazer
com que os missionários reconhecessem o direito da interferência
real junto das suas missões, se considerassem como representantes
do soberano junto dos indígenas e obedecessem às determinações
reais relacionadas com a fundação dos núcleos populacionais e com
o aldeamento dos índios. E assim, enquanto súbditos do rei portu­
guês, os padres deviam empregar «toda a sua deligencia, em fazer
comprehender a estes Barbaros, que a Real intenção de Sua Mages-
tade he só de governa lios pelas suas Reaes Leys como a quaisquer
outros Vassalos»69.
A promulgação das reformas pela coroa portuguesa no sentido
de deter um maior controlo sobre o território do Norte brasileiro
e sobre os ameríndios provocou uma violenta reacção junto das
ordens religiosas e, particularmente, por parte da Companhia de
Jesus. Os Jesuítas exerciam a administração de grande parte das
aldeias do interior da Amazônia e detinham um prestígio imenso,
quer na sociedade reinol quer na sociedade colonial.
O seu poder passava pelo predomínio que alguns membros da
Ordem tinham junto da corte e pelas ligações pessoais que estabele­
ciam junto de figuras proeminentes do reino. No caso dos Jesuítas,
esta influência provinha, por exemplo, da ascendência que tinham
tido junto de D. João V, como tutores e conselheiros reais, e que
continuavam a exercer sobre a rainha D. Maria Ana de Áustria,

67 Dauril Alden, The maleing ofatt entrefrise. The Society ofJesus in Portugal, its Empire
and beyond, /I540-'I750, Stanford, Califórnia, Stanford University Press, 1996, p. 476.
68 BN, Reservados, 2434 A, de 7 de Junho de 1755; também em AHU, Conselho
Ultramarino, códice 336, fl. 65.
69 «Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Padre Manuel dos Santos
para fundar uma aldeia na boca oriental do rio Javari», de 11 de Fevereiro de 1752 in
Collecção dos crimes e decretos pelos cjuaes vinte e hum jesuítas foram mandados sahir do
Estado do Cram Pará e Maranhão, editado por Manuel Lopes de Almeida com notas de
Serafim Leite, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1947, p. 53.

94
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

enquanto confessores da mãe de D. José I. É o jesuíta Eckart que o


afirma peremptoriamente: «Esta piedosíssima rainha, em toda a sua
vida estimou sempre a Companhia, amou-a, protegeu-a, defendeu-
-a.»70 Foram também confessores de D. José I até 1757, altura em
que foram expulsos dessa função71.
Depois, o facto de terem um estatuto jurídico distinto do da
sociedade civil permitia-lhes oporem-se, também, às inspecções e
visitações que altos funcionários eclesiásticos e leigos intentavam
fazer às aldeias que estavam sob a administração dos missionários.
Quando, em 1748, surgiu a ordem para que as aldeias se sujeitassem
à visita do padre ordinário, as comunidades dos jesuítas recusaram72.
Finalmente, eram detentores de um poder econômico imenso
que, no Norte brasileiro nesta época, resultava do controlo apertado
sobre parte da mão-de-obra indígena, de não pagarem impostos e
taxas alfandegárias sobre os produtos que enviavam do e para o
reino, de dominarem o comércio lucrativo das drogas-do-sertão, de
controlarem os mercados abastecedores de Belém e de possuírem
inúmeras cabeças de gado vacum e cavalar73. Assim, afirmava-se
que Jesuítas, Carmelitas e Mercedários tinham extraído do sertão,
em 1744, mais de 25000 arrobas de cacau, cravo e salsa, e que entre
esse ano e o de 1746 as três ordens tinham exportado 16280 arrobas
das especiarias mencionadas, isentas de direitos e do ver-o-peso74.

70 Anselmo Eckart, Memórias de umJesuíta prisioneiro de Pombal, Braga, São Paulo,


Livraria A.I., Edições Loyola, 1987, p. 17.
71 A influência dos confessores junto dos monarcas e da família real encontra-se
também apontada em Jorge Couto, «O poder temporal nas aldeias dos índios do
Estado do Grão-Pará e Maranhão no período pombalino: foco de conflitos entre os
Jesuítas e a coroa (1751-1759)», in Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz, coordena­
ção de Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, pp. 65-66.
72João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e colonização, p. 311.
73 BN, Reservados, códice 11415, fls. 9-15, Inventariação dos bens e gado dos cur­
rais jesuíticos no Pará, de 30 de Julho de 1759; Dauril Alden, «Economic aspects of
the expulsion of the Jesuits from Brazil: a preliminary report», in Conflict <Sé continuity
in Brazilian society, editado por Henry El. Keith e S. F. Edwards, Columbia e South
Carolina, University of South Carolina Press, 1969, p. 43; The making of an entreprise...,
pp. 546 e ss. Estas acusações eram refutadas pelos Jesuítas. Confronte-se José Caeiro,
História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (século xvm), vol. I,
Lisboa, Editorial Verbo, 1991, pp. 263 e ss.
74 AHU, Pará, caixa 13 (736), Carta régia sobre uma representação da Câmara do
Pará acerca da actividade das ordens religiosas na extracção de especiarias dos rios da
capitania, de 11 de Março de 1747. Veja-se, também, Kenneth R. Maxwell, «Pombal
and the nationalization of the Luso-Brazilian economy», in Hispanic American Histori-
cal Review, 48 (4), November 1968, p. 616.

95
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Os missionários de todas as ordens eram acusados pelas autori­


dades governativas do Estado do Grão-Pará de terem transformado
as suas aldeias em repúblicas independentes da autoridade real,
onde o nome do soberano e a língua portuguesa eram desconheci­
dos e de boicotarem as decisões reais, sonegando ameríndios às
repartições e instigando à deserção os índios destinados às obras
reais, às demarcações de limites e ao serviço de moradores75: «Todas
as providências conducentes ao bem comum tem aqui por obstáculo
invencível as inconveniências dos Missionários. Elles cada vez
vivem mais régulos e absolutos, porque não obstante a insinuação
que lhes fez o Senhor General em nome de S. Magestade para fazer
conter os índios no serviço do mesmo Senhor, elles a observão tanto
pello contrário, que poucos são os dias em que os índios não este­
jam fugindo do trabalho.»76
No entanto, os Jesuítas eram considerados como capazes de se
oporem com mais determinação aos desígnios governamentais e de
serem mais «absolutos». Alguns defrontaram o governador quando
este se recusou a conceder-lhes o poder temporal sobre as aldeias
fundadas nos rios Javari e Japurá: recusavam-se a repartir a adminis­
tração das aldeias com autoridades laicas e não aceitavam a tutela
do bispo sobre o exercício do seu ministério77. Retiravam-se das
aldeias em sinal de protesto, levando consigo, e contra as leis reais,
alfaias religiosas e instrumentos de culto, canoas e bens móveis das
residências dos padres78.
Como já foi afirmado, há, com o decorrer da govemação de Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado no Norte do Brasil, um nítido
agravamento de tensões entre o irmão do conde de Oeiras, futuro
Marquês de Pombal, e os Jesuítas79. As divergências tinham-se já ini-

75 É José Caeiro quem afirma que não foram só os índios sob administração de
Jesuítas que fugiram como também os que estavam sujeitos à autoridade dos missio­
nários das outras ordens. E atribui essas «deserções» à fome e ao trabalho (José
Caeiro, História da expulsão da Companhia de Jesus, pp. 270-271).
76 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 213, Ofício do Bispo do Pará a
Sebastião José de Carvalho e Melo, de 8 de Março de 1754.
77 BNRJ, 1-28-32-24, Ofício de frei Miguel de Bulhões a Tomé Joaquim da Costa
Corte Real, de 1 de Março de 1759.
78 João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará..., p. 322; Jorge Couto, «O po­
der temporal das aldeias dos índios do Estado do Grão-Pará e Maranhão no período
pombalino...», pp. 53 e ss.
79 Para além dos autores já mencionados pensamos ser importante referir ainda
José Caeiro, História da expulsão da Companhia de Jesus da Província de Portugal (século
xvill), vol. I, Lisboa, São Paulo, Editorial Verbo, 1991.

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A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

ciado antes da chegada do governador e foram-se avolumando com


as acusações de que o tráfico ilegal de índios era, em parte, feito pelos
missionários ou, então, com o seu conhecimento e conivência; com a
avaliação mandada fazer por Mendonça Furtado aos bens e fazendas
jesuíticos; pela recusa dos padres em ensinarem português; pela acusa­
ção de controlo excessivo sobre a mão-de-obra índia e sobre as activi-
dades extractivas de drogas-do-sertão80. Sobretudo, Mendonça Fur­
tado tinha credibilidade para convencer a coroa de que a actividade
comercial dos Jesuítas limitava o desenvolvimento econômico do
Norte brasileiro e privava a coroa de obter avultados lucros81. Em
suma, os missionários e, com particular incidência, os Jesuítas, eram
acusados de contribuir de todas as formas para o incumprimento dos
desígnios reais e de prejudicarem os interesses do Estado82.
Face a esta conjuntura, importa, fundamentalmente, considerar
que os confrontos entre as entidades administrativas e os Jesuítas
resultam de um processo complexo que ocorreu paralelamente no
reino e na colônia83. Os Jesuítas não foram expulsos do Pará e Rio
Negro, em Julho de 1757, porque eram especificamente acusados de
serem os autores de uma conspiração contra o Estado Português,
como também não foram banidos do reinado do Brasil devido à
aliança que tinham com os Guarani e à oposição que moveram às
partidas de demarcação de limites durante a sua actuação no Sul do
Brasil. Não foi apenas o facto de terem um grande poder econômico
ou de exercerem em relação aos índios uma política divergente da

80 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 142, Ofício de Manuel Sarmento,
Dezembargador e Ouvidor-Geral do Maranhão, a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 2 de Janeiro de 1753; ibidem, códice 622, fl. 33, Ofício de José Antônio de
Freitas Guimarães a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 13 de Fevereiro de
1753; AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 213, Carta do Bispo do Pará a
Sebastião José de Carvalho e Melo, de 8 de Março de 1754; Pará, caixa 20 (739 G),
Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de
10 de Setembro de 1760.
81 Dauril Alden, «Economic aspects of the expulsion of the Jesuits from Brazil»,
p. 51.
82 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 177, Carta de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado ao Marquês de Pombal, de 14 de Junho de 1754.
83 Semelhante afirmação encontra-se também documentada em Dauril Alden,
«Economic aspects...», pp. 54-55. Na sua opinião, a expulsão dos Jesuítas do Brasil
dependeu, em grande medida, de factores econômicos; consulte-se, ainda, Kenneth
R. Maxwell, «Eighteenth century Portugal: faith and reason, tradition and innovation
during a Golden Age», in The Age of the Baroque in Portugal, editado por Jay A. Leven-
son, Washington, New Haven, Londres, The National Gallery of Art e Yale Univer-
sity Press, 1993, pp. 120-121.

97
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

da coroa que levou ao seu afastamento. Também não constitui jus­


tificação suficiente as acusações que foram feitas aos Jesuítas de
envolvimento na tentativa de assassinato de D. José I. E certo que
todas estas razões se encontram evocadas na Lei pela qual S.M. é ser­
vido exterminar, proscrever e mandar expulsar dos seus reinos e domínios os
regulares da Companhia denominada de Jesus84. Mas é importante dizer
também que o processo de expulsão da Companhia ocorreu com
um desfasamento cronológico mínimo, quer na França (1764) quer
na Espanha (1767), e que, também nestes locais, foi a confluência de
vários acontecimentos, muitos deles pouco claros, que concorreram
para a expulsão dos Jesuítas8485.
Importa acima de tudo relevar que, num determinado momento,
agora em análise, houve uma conjuntura que congregou vários casos,
ocorridos tanto na colônia quanto no reino e na Europa, os quais con-
fluíram na limitação do campo de actividade das ordens. De entre
estes, o episódio que mais se destaca pela sua importância é o da
expulsão da Companhia de Jesus. As variantes que constituíram essa
conjuntura não podem ser dissociadas entre si, tanto mais porque con­
tribuem para a compreensão do absolutismo político do Estado Portu­
guês e da supremacia do poder do Estado sobre o da Igreja. Ora, a con­
sideração destes aspectos é imprescindível para a compreensão da
política colonial aplicada ao Estado do Grão-Pará durante a segunda
metade de Setecentos e, consequentemente, para a avaliação das
repercussões da sua execução junto das comunidades ameríndias.

C o l o n o s , s o ld a d o s e d e g r e d a d o s

Impõe-se, desde já, uma observação, que é, simultaneamente, a


constatação de uma dificuldade. Consistindo o fulcro desta investiga­
ção nos contactos que se estabeleceram no Norte do Brasil, ao longo da
segunda metade de Setecentos, entre luso-brasileiros e ameríndios e no

84 Sebastião José de Carvalho e Melo, Memórias secretíssimas do Marquês de Pom­


bal e outros escritos, Mem Martins, Publicações Europa-América, s/d, p. 124.
85 Para a Espanha e a América espanhola, veja-se Magnus Momer, «The expulsion
of the Jesuits from Spain and Spanish America in 1767 in light of eighteenth century
regalism», in The Américas, vol. XXIU, Julho de 1966-Abril de 1967, pp. 156 e ss.; D. A.
Brading, «Bourbon Spain and its American empire», in Colonial Spanish America, editado
porLeslie Bethell, Cambridge, Cambridge University Press, 4.a edição, 1993, pp. 124-125;
James Lockhart e Stuart B. Schwartz, Early Latin America. A history of colonial Spanish Ame­
rica and Brazil, Cambridge, Cambridge University Press, 8.“ edição, 1993, pp. 350-351.

98
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

lugar que os índios desta área geográfica ocupavam na ideologia e nas


práticas coloniais portuguesas da época, houve determinados aspectos
que se nos afiguraram imprescindíveis à sua compreensão, mas parale­
los ao desenrolar do tema. A emigração luso-brasileira foi um deles. No
entanto, ao longo da investigação em curso, deparámos com esta difi­
culdade: se, para o Sul do Brasil, as migrações populacionais do reino
para a colônia são relativamente bem conhecidas, o mesmo já não se
poderá afirmar em relação às correntes migratórias dirigidas para a
bacia hidrográfica amazônica86. A emigração de soldados, colonos e
degredados, apesar de ser um dos aspectos imprescindíveis para a com­
preensão da Amazônia de ontem e de hoje, não tem sido, até à data,
objecto de estudos ordenados por parte da historiografia colonial.
Os fundamentos que incentivam a emigração voluntária portu­
guesa para o Norte do Brasil na segunda metade do século xvm con­
sistem, basicamente, em dois pressupostos. Por um lado, há que
considerar a existência de motivações externas relacionadas com a
geopolítica nacional da época, que considerava o Norte do Brasil
como uma área que importava ocupar e dinamizar. Por outro lado, é
necessário contar com razões internas ao grupo que se deslocava e
que se podem relacionar com a existência de excedentes demográ­
ficos e com crises alimentares ou, então, com áreas inseguras, sujei­
tas a ataques de piratas ou de inimigos, ou, ainda, tacticamente
desinteressantes. Sobretudo a pobreza constituía um incentivo de
peso à emigração insular e reinol para o Estado do Grão-Pará87.

86Virgínia Rau et alii, «Dados para a emigração madeirense para o Brasil no século
Xviii», in Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, 1963. vol. i,
pp. 495 e ss.; Walter F. Piazza, A epopeia açorico-madeirense, 1748-1796, Florianópolis,
Editora da UFCSC, Editora Lunardelli, 1992; Adelaide Barbosa Couto, Edina Nogueira
da Gama e Maurício de Barcellos Sant’Anna, «O povoamento da ilha de Santa Catarina
e a vinda dos casais de ilhéus», in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira,
pp. 247 e ss.; Avelino de Freitas de Meneses, «O giro das gentes: migrações açorianas
nos espaços insular e metropolitano em meados do século xviii», in Ler História, (31),
1996, pp. 69 e ss.; «Gentes dos Açores. O número e a mobilidade em meados do século
xvm», Provas de Agregação apresentadas à Universidade dos Açores, Ponta Delgada,
1997. Uma nova via de abordagem surge em Maria Beatriz Nizza da Silva, «Família e
emigração: açorianos no Brasil no fim do período colonial», in Colóquio O Faia! e a perife­
ria açoriana nos séculos xva xix, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 1995, pp. 391 e ss.
87 Confronte-se com Avelino de Freitas de Meneses, «Gentes dos Açores. O nú­
mero e a mobilidade em meados do século xvm». O autor é de opinião que «Neste caso,
prevalecem inequivocamente as necessidades do Brasil sobre as conveniências dos
Açores», p. 79. O mesmo autor refere, igualmente, a ocorrência de uma crise cerealífera
nas ilhas do arquipélago central açoriano nos anos de 40 (p. 81) e considera ainda as
calamidades sismo-vulcânicas como irrelevantes no êxodo das populações (p. 85).

99
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

O grande incentivo apresentado às populações baseava-se no


facto de os «novos territórios» serem constituídos, na sua maioria,
por terras devolutas e férteis. A emigração para o Norte do Brasil
facultava a indivíduos subempregados ou assalariados a possibili­
dade de terem a sua própria terra e de viverem desafogadamente.
Por isso, ao contrário do que se passava, por exemplo, nas ilhas
atlânticas, onde o espaço agrícola era limitado e a propriedade
estava concentrada nas mãos de alguns, o Pará e o Rio Negro apre­
sentavam um sem-número de opções a quem se quisesse dedicar à
agricultura, à pecuária ou ao comércio.
Mas esta vasta área geográfica permitia também que grupos
desenraizados de locais que deixavam de ter importância na estraté­
gia nacional, como por exemplo Mazagão, se fixassem em outras
regiões com utilidade na geopolítica colonial, como o Norte do Bra­
sil, considerados também mais seguros e com potencialidades eco­
nômicas a desenvolver. Assim se procedeu à transferência dos maza-
ganistas do Norte de África para Macapá, Vila Nova de Mazagão e
outras povoações da capitania do Pará, onde podiam manter a sua
SB D / FFLCH / USP

identidade e a sua coesão e hierarquia enquanto grupo88.


Como em qualquer império colonial, os portugueses candidatos
a colonos eram aliciados com promessas de abundância, riqueza e
facilidades89. Estes são os principais atractivos mencionados nos
folhetos e na «propaganda de prosperidade» que, na segunda me­
tade do século xviii, começaram a circular no reino e, possivelmente,
nas ilhas com o objectivo de incentivar a emigração para o Norte do
Brasil. Assim se difundiu junto das populações, ainda que de uma
forma idílica, as potencialidades das regiões a colonizar90.
A imagem que esta vasta área geográfica devia ter aos olhos dos
colonos da época seria a de uma região «forsaken by God and un-
known to civilised man [...] as the embodiment of a disruptive,
potentially dangerous force»91. A política colonial portuguesa tentou
inverter este conceito com a publicação de «folhetos de propaganda»
à emigração. Destinados a «noticiar a plebe o que são as terras do

88 Veja-se Zelinda Cohen, «Retrato dos mazaganistas através de um documento».


89 J. M. Powell, Mirrors of the New World: images and image-makers in the settlement
process, Connecticut, Dawson-Archon Books, 1977, p. 40.
90Esta propaganda de prosperidade é também referida em Avelino de Freitas de Me­
neses, «Gentes dos Açores. O número e a mobilidade em meados do século xvm», p. 80.
91 A. J. R. Russell-Wood, «The frontier concept: its past, present and future
influence», in Papers of the third seminar on the acquisition of Latin American Lihrary Mate­
rials, Novo México, Albuquerque, 1990, p. 37.

100
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Pará, e ainda que os doutos o saibão, e melhor, para estes não


escrevo, sim para os que o não sabem», desfazem a noção do Pará
enquanto «uma nova cafraria», como até então tinha sido conside­
rado92. O Norte do Brasil na segunda metade de Setecentos era des­
crito como o havia sido, cerca de dois centénios antes, o vice-rei-
nado93: um «paraizo na terra», notável pela benignidade do clima,
pela ausência de doenças, pela abundância de mantimentos e pela
exuberância da vegetação, «caindo lhe dentro das mesmas canoas os
frutos que as mesmas árvores sem mais cultura que a da natureza
lhe estão espontaneamente oferecendo»94. Os folhetos ressaltavam a
premência da ocupação do território: «Por agora he toda esta terra
summamente agréste, mas espera-se em Deos, que conduzida que
seja do Reyno mais gente, se fação povoaçoens, e com ellas, e com o
trato, e communicação, brevemente chegarão a outro estado.»95
Assiste-se à intervenção directa do Estado português na transfe­
rência, para as capitanias do Pará e Maranhão, não só dos habitantes
do reino e dos arquipélagos da Madeira e dos Açores como também
de Mazagão e de outros países europeus, conquanto não fossem
«vassalos de soberanos que tenham domínios na América a que pos-
são passarsse»96. Simultaneamente, as instituições dificultavam a
saída de indivíduos do Estado do Grão-Pará, estipulando que as des-
locações dos colonos só se fizessem com autorização superior e
proibindo os capitães de navios de embarcarem passageiros, deser­
tores ou mulheres, sem licença do governador97.

92 Relação curioza do sitio do Grão Pará terras de Mato-Grosso bondade do clima e fer­
tilidade daquellas terras escrita por um curiozo experiente daqueHe Paiz, Lisboa, cerca 1750
0- C. B., 66-151, p. 8).
93 Serafim Leite S.I., Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, vol. III, São Paulo,
Comissão do IV Centenário da Cidade de S. Paulo, 1954, pp. 296-297.
94 Relação curioza..., pp. 4 e 6.
95 Caetano Paes Silva, Relaçam e noticia Da gente, que nesta segunda monçaõ chegou
ao sitio do Grão-Pará, e às terras de Matto Grosso, caminhos que ftzerão por aquellas terras,
com outras muitas curiosas, e agradaveis de Rios, Fontes, fructos, que naquelle Paiz acharão.
Copia tudo de uma Carta, que a esta Cidade mandou Isidoro de Couto, Lisboa, Oficina de
Bernardo Antônio de Oliveira, 1754.
96 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 162-162v, Carta régia ao governa­
dor do Maranhão sobre a resolução que o rei teve de mandar contratar o transporte
de 1000 pessoas dos Açores para o Pará, de 13 de Maio de 1751; também em Timoty
Joel Coates, Exiles and orphans: forced and State sponsored colonizers in the Portuguese
Empire, 1550-1720, Michigan, Ann Harbour Dissertation Services, 1993, vol. 2, p. 442.
97 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ordem régia aos capitães dos navios para não
levarem passageiros, desertores ou mulheres sem autorização do governador sob
pena de pagarem 200 000 réis, de 27 de Novembro de 1761.

101
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

À semelhança do que acontecia com a emigração insular para o


Sul do Brasil, a coroa estabeleceu assentos com armadores para efec-
tuar o transporte dos casais de colonos da Madeira e dos Açores
para o porto de Belém. José Alves Torres foi um dos responsáveis
pelo transporte de cerca de mil açorianos para o Estado do Grão-
-Pará, desconhecendo-se, no entanto, se teria usufruído de alguns
privilégios comerciais, tal como acontecia com certos mercadores
envolvidos no transporte de insulanos para Santa Catarina e Rio
Grande do Sul93. Tal como este indivíduo, houve outros armadores
que receberam dinheiro da coroa para transportarem cerca de 900
soldados e suas famílias para o Norte do Brasil9
899.
O empenho do reino em reforçar a presença portuguesa no Pará
e Rio Negro manifestou-se logo a partir dos primeiros anos da
década de 1750 e revelou-se, portanto, não só no envio de colonos
como também de soldados do reino e das ilhas e, ainda, de vadios,
órfãos e degredados100. A coordenação do empreendimento foi,
obviamente, responsabilidade do Conselho Ultramarino, que surgiu
também como o grande financiador: no pagamento de transportes e
no suporte das despesas indispensáveis à fixação e à manutenção
das novas populações.
Os «dotes» concedidos pela coroa a quem se dispusesse a ir
colonizar o Norte do Brasil eram considerados pelos órgãos admi­
nistrativos como um incentivo à emigração. O mesmo acontecia
com as instituições espanholas que, para colonizarem áreas que, na
Hispanoamérica, pudessem ser ocupadas por outras potências rivais,
concediam aos emigrantes regalias de fixação, traduzidas na conces­
são de terras, casas, sementes, ferramentas e alimentos101. É de

98 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 162, Carta régia ao governador do
Maranhão sobre a resolução que o rei teve em mandar contratar o transporte de 1000
pessoas dos Açores para o Pará, de 13 de Maio de 1751; Avelino de Meneses, «Os
Açores e o Brasil: as analogias humanas e econômicas no século xvill», in Revista da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n.° 10, 1995, p. 32.
99 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1214, fl. 270, Ordem de pagamento dada
ao Conde de Penalva para pagar 2 692 304 réis a dois donos de navios, de 10 de
Junho de 1753.
100 AHU, ibidem, códice 271, fl. 188, Carta régia dirigida ao governador do Mara­
nhão sobre o envio de degredados julgados na corte e das levas da índia, de 24 de
Maio de 1751.
101 Nicolás Sánchez-Albomoz, «The first transadantic transfer: Spanish migra-
tion to the New World, 1493-1810», in Europeans on the move. Studies on European
migration. -1500-1800, editado por Nicholas Canny, Oxford, Clarendon Press, 1994,
pp. 33-34.

1 02
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

salientar que os financiamentos suportados pelas instituições portu­


guesas no Norte do Brasil não foram sempre iguais102.
É interessante relevar que, neste esforço colonizador levado a
cabo pelo poder central a partir da segunda metade do século xviii,
tanto degredados como vadios eram, primeiro que tudo, considera­
dos como possíveis colonos. Constituíam aquilo que Timothy Coa-
tes considera como força de trabalho móvel ao serviço da coroa,
destinada a ocupar e a desenvolver economicamente e a defender
militarmente os territórios coloniais103. Alguns eram utilizados como
canteiros, pedreiros e cabouqueiros nas obras públicas e nas das for­
tificações do Estado, outros eram integrados no exército real104.
Era-lhes permitida a mobilidade social. Desta forma, as ordens
reais previam que os vagabundos que se transferissem para a colô­
nia tivessem o direito de receber metade das dádivas que eram con­
cedidas aos moradores açorianos; deixavam, ainda, em aberto possi­
bilidades de reabilitação social para os prisioneiros degredados que

102 As leis reais estipulavam, em 1751, que cada casal de ilhéus ou de estrangeiros
que se dispusesse a ir povoar os domínios portugueses do Norte da América recebería
uma espingarda, duas enxadas, um machado, um enxó, um martelo, um facão, duas
facas, duas verrumas, uma serra com lima e travadoira, dois alqueires de sementes,
duas vacas, uma égua e, de tudo o mais importante, uma sesmaria de um quarto de
légua em quadra, sem direitos ou salários. Durante o primeiro ano teriam direito a uma
ração de três quartas de alqueire de farinha por cada indivíduo adulto maior de 14 anos
e os mais pequenos, até aos 7 anos, uma quarta e meia de alqueire. As mulheres rece­
beríam 1000 réis por cada criança e os artífices teriam direito a ajudas de custo na pro­
porção directa às suas capacidades (AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 162,
Carta régia ao governador do Maranhão, de 13 de Maio de 1751); os mazaganistas
receberam, na década de 1770, o mesmo alimento, uma «propriedade de casas» e um
número mais reduzido de ferramentas (ihidem, códice 1257, «Relação dos mazaganistas
estabelecidos na Vila Nova de Mazagão e suas vizinhanças; com uma particular e indi­
vidual informação relativa a cada família», s/d; Zelinda Cohen, «Retrato dos mazaga­
nistas...»); em 1760, os povoadores que chegassem do reino e do estrangeiro deviam
usufruir de uma quantidade não especificada de ferramentas, 6000 réis por mês
durante um ano, terras para a lavoura, doze vacas, um touro e um cavalo. Embora con­
templando todos os que chegassem ao Estado, a documentação referia-se concreta­
mente a Manuel Barbosa, português, e a José Azeite, armênio, que se iam fixar em
Macapá (AHU, Pará, caixa 20 (739 G), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Outubro de 1760).
103 Timothy Joel Coates, Exiles and orphans: forced and state-sponsored colonizers in
the Portuguese Empire, pp. 72 e 106.
104 ANRJ, códice 99, vol. 1, fl. 100, Ofício de Fernando da Costa de Ataíde Teive
a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 17 de Outubro de 1766; AHU, Pará,
caixa 40 (754), Ofício de José Nápoles Telo de Meneses noticiando a chegada do
navio N.“ Sr.“ da Praça e S. João transportando degredados para assentar praça, de 14
de Agosto de 1780.

103
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

se quisessem casar nas capitanias do Norte e que, assim, auferiríam


dos mesmos benefícios dados aos casais de colonos105. Para além
disso, as penas de degredo podiam ser comutadas pelos serviços que
os degredados prestavam nas povoações em benefício do bem
comum e da coroa. Semelhantes medidas eram aplicadas para o
Norte e Sul do Brasil, mas não para o vice-reinado, porque em causa
estavam os limites do império, colônias distantes, simultaneamente
estratégicas e indesejáveis, para as quais a coroa não conseguia
atrair voluntários em número suficiente.
Os soldados foram, durante a segunda metade do século xviii,
outra fonte de fornecimento de colonos. Ora, há que salientar que
existiram na área geográfica em questão corpos militares destinados
a demarcar no terreno os acordos diplomáticos estabelecidos pelos
tratados de limites de 1750 e 1777; mas é preciso lembrar que para
aqui eram também transferidos jovens solteiros, arrolados voluntária
ou compulsivamente, para servirem como soldados e cuja principal
finalidade se prendia mais com a ocupação colonial do que com o
exercício de uma função armada. Muitos destes indivíduos viam nos
casamentos com colonas ou com índias uma forma eficaz para se
desligarem do serviço militar e de se dedicarem ao cultivo da terra ou
a uma actividade artesanal. Assim, o provedor da Fazenda Real,
Matias de Sousa da Costa, noticiava que, nos inícios dos anos 50, os
trinta algarvios que se tinham alistado como soldados não se tinham
matriculado em companhias, nem recebido fardamento, optando por
se dedicar à pesca106. Também em 1761, o governador e capitão-
-general Manuel Bernardo de Melo e Castro informava que os casa­
mentos estabelecidos entre soldados e índias eram uma das causas
por que havia grande falta de homens nos regimentos. A outra con­
sistia no facto de muitos serem velhos, incapazes e doentes107.
No entanto, as autoridades coloniais apontavam claramente que
uma das formas de se introduzir a «civilização» junto dos amerín­
dios consistia na realização destes casamentos. De acordo com o
pensamento colonial setecentista, os soldados casados com índias
deviam ser os promotores da transformação de «seres bárbaros» em

105 AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 188, Carta régia dirigida ao gover­
nador do Maranhão, de 24 de Maio de 1751.
106 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 279v, Parecer do Conselho Ultra­
marino sobre o pagamento das rações de farinha a algarvios que no Pará se ocupa­
vam da pescaria, de 27 de Maio de 1754.
107 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Julho de 1761.

104
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA L O S

«civilizados», os mediadores entre as culturas ameríndias e a civili­


zação europeia108.
A emigração voluntária ou compulsiva foi uma das vias privile­
giadas pela coroa para firmar a presença portuguesa sobre uma área
interna e externamente não controlada como era o Norte do Brasil.
Contudo, era óbvio que por muito que a presença luso-brasileira
fosse aumentada, seria sempre insuficiente para ser eficaz face à
vastidão do espaço a ocupar. Além disso, e não obstante o incentivo
que a coroa dava à transferência de casâis, órfãs e viúvas, esta emi­
gração era predominantemente masculina, tal como acontecia para
outras parte dos Impérios Português e Espanhol109.
Desta forma deve-se entender a legislação já estudada no capí­
tulo anterior, promulgada desde o início dos anos de 1750 no sen­
tido de estabelecer legalmente a igualdade entre vassalos europeus
e ameríndios, de estipular que os casamentos entre luso-brasileiros e
ameríndias teriam a aprovação real e de conferir aos cônjuges luso-
-brasileiros casados com índias e a seus descendentes a preferência
no exercício de cargos públicos110.
Os casamentos mistos eram um dos sustentáculos da política
colonial portuguesa para o Norte do Brasil no período em análise,
sendo incentivados pela coroa111. Este patrocínio manifestava-se,
por exemplo, na concessão de dotes, constituídos por espingardas e
ferramentas, com que a Fazenda Real premiava os novos casais112.
Revelava-se, também, na possibilidade que os soldados tinham de,
ao casarem-se com índias, ficarem livres das obrigações, serviços e
destacamentos, usufruindo, assim, da liberdade de colonos113.

108 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joa­
quim da Costa Corte Real, de 21 de Dezembro de 1758; também em Rio Negro, caixa 1,
doc. 18.
im Para a emigração, que era fundamentalmente masculina, ocorrida nas fases
iniciais da expansão espanhola, veja-se Francisco de Solano, «El conquistador His­
pano: sehas de identidad», in Proceso historico al conquistador, coordenado por Francisco
de Solano, Madrid, Editorial Alianza, 1988, pp. 15 e ss.
110 BN, Reservados 3610 V, Alvará de 4 de Abril de 1755.
111 AHU, Pará, caixa 20 (739 G), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 18 de Outubro de 1760; ihidem, caixa 19
(739 H), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão, ouvidor-geral do Pará, a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, de 10 de Novembro de 1760.
112 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 33, Ofício de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 21 de Junho de 1760.
113 AHU, Pará, caixa 19 (739 Fl), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 10 de Novembro de 1760.

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O fim de r é g u lo s e de q u ilo m b o s

A defesa da liberdade dos ameríndios e o controlo do território


do Norte brasileiro pela coroa em meados de Setecentos não signifi­
cou apenas uma tomada de opções políticas e jurídicas relevantes ou
uma edificação planeada de monumentos representativos do poder
militar português na bacia hidrográfica amazônica. Prendeu-se, tam­
bém, com a existência de um pequeno número de indivíduos res­
ponsável pelo tráfico ilegal de ameríndios e com capacidade de, até
ao início do período em análise, estabelecer pontes de ligação entre
ameríndios e luso-brasileiros.
Estes homens podiam ser brancos, mestiços ou mulatos, mas
encontravam-se no meio caminho entre culturas. Não se identifica­
vam totalmente com a sua cultura de origem, nem tão-pouco adopta-
vam integralmente os hábitos comportamentais dos grupos com que
contactavam de novo. Antes, utilizavam padrões de comportamento
de ambos. De igual forma, tinham poder e prestígio junto dos chefes e
das comunidades ameríndias e usufruíam da protecção e da cumplici­
dade de alguns estratos da sociedade colonial. Exerciam um papel
semelhante ao que os lançados tinham nas sociedades africanas ou em
etnias do vice-reinado do Brasil114. Eram, no entanto, considerados
pelo Estado português como um desafio e uma ameaça à sua autori­
dade no Norte do Brasil e, por isso, a sua neutralização tornou-se num
dos alvos da política colonial portuguesa da década de 50.
A existência destes indivíduos leva a repensar a avaliação das dis­
tinções raciais no estudo do Brasil colonial. Não negamos a importân­
cia do conceito de raça enquanto factor incontomável no estudo das
relações sociais e na distribuição de poder e riqueza nas sociedades
coloniais, a par de classe ou sexo115. Contudo, consideramos que é
imprescindível reavaliar a função dos intermediários nessas socieda­
des, sejam eles traficantes, intérpretes ou cônjuges, porque o papel
que brancos, índios ou negros desempenham não é, frequentemente,
concordante com o que seria previsível ou predeterminado.
Antes de mais, é necessário salientar que a origem rácica e étnica

114 Para uma noção comparativa do papel dos lançados no Império Português,
veja-se o artigo e a bibliografia indicada em Jorge Couto, «Lançados», in Dicionário de
História dos Descobrimentos, dirigido por Luís de Albuquerque, vol. n, Lisboa, Círculo
de Leitores, 1994.
115 Gary B. Nash e David G. Sweet, «General Introduction», in Struggle and survi-
val in Colonial America, editado por David G. Sweet e Gary B. Nash, Berkeley, Los
Angeles, Londres, University of Califórnia Press, 1991, pp. 3-4.

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dos indivíduos que, em meados de Setecentos, desafiaram a autori­


dade portuguesa sobre o território norte-brasileiro é heterogênea.
Entre eles encontram-se brancos, mulatos, mamelucos, soldados, sar­
gentos, capitães-do-mato, filhos de nobres. Alguns pertencem às tro­
pas de resgate oficialmente organizadas para capturar escravos de
acordo com os parâmetros legalmente estabelecidos, acabando por
ficar no sertão após a desmobilização das mesmas116. Outros são des­
critos como malfeitores perseguidos pelas autoridades judiciais, que
procuraram refúgio nos sertões da bacia Jiidrográfica amazônica117.
No entanto, todos eles eram acusados de, a par do tráfico legal,
fazerem escravos contra as leis reais. Ou seja, deles se dizia que vio­
lavam os princípios da guerra justa e dos resgates e que levavam
ameríndios para as «missões de baixo» contra sua vontade. Ao
terem a sua culpabilidade apurada através de devassas baseadas nos
casos previstos pelo Regimento das Missões, tomavam-se procurados
nos imensos sertões do Rio Negro e do Pará118. Pretendia-se que a
sua prisão e castigo servissem de exemplo a quem se dedicasse à
captura ilícita de ameríndios.
Não obstante, as prisões destes homens era tarefa difícil, quer
pela imensidade do território a que estendiam a sua actividade, quer
pelas alianças que faziam com os chefes das etnias ameríndias, quer
pela protecção que lhes era dada por moradores e ordens religiosas,
quer, ainda, pelos subornos que davam a soldados e oficiais119. A es­
tas dificuldades juntava-se ainda outra: alguns destes indivíduos
tinham verdadeiros exércitos particulares, compostos por índios
numerosos, bem armados e treinados em combate de guerrilha.

116 BN, Colecção Pombalina, códice 205, fl. 123, Carta de Francisco Xavier de
Andrade a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752.
117 AF1U, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 257v-259v, Parecer do Conselho
Ultramarino sobre o procedimento a ter com Francisco Portilho de Melo, de 13 de
Abril de 1753. Sobre esta noção de sertão como local de refúgio e, igualmente, de opor­
tunidade dos que eram rejeitados pela sociedade colonial, dos que dela se tinham colo­
cado à margem ou dos que fugiam da igreja, da justiça ou da opressão, veja-se A. J. R.
Russell-Wood, «The frontier concept. Its past, present and future influence», p. 37.
118 De entre os mais relevantes régulos do sertão, saliente-se Francisco Portilho
de Melo, Pedro de Braga, José da Costa Bacelar, João Gonçalves Chaves, Euquério
Ribeiro e João Baptista, Francisco Alberto do Amaral, Antônio Braga, João Duarte
Ourives, o mameluco Jacob, o mulato Isidoro, Antônio Carlos e Antônio Ribeiro da
Silva (AHU, Conselho Ultramarino, códice 271, fl. 175, Carta régia ao ouvidor da capi­
tania do Pará, de 20 de Abril de 1751; ibidem, fl. 184, Carta régia ao Governador do
Estado do Maranhão, de 12 de Maio de 1751).
1,9 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
a [? ], de 3 de Novembro de 1753.

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Por isso, é interessante notar que estes homens não procuravam


passar desapercebidos às autoridades coloniais. Se é certo que iam à
cidade de Santa Maria de Belém de noite e a altas horas por forma a
evitarem a sua captura pelas autoridades, no sertão, onde a força do
poder central era diminuta e defrontável, eles desafiavam as tropas
regulares e derrotavam-nas. Seja apontado como exemplo a ameaça
feita pelos índios de Pedro de Braga às tropas de Lourenço Belfort
quando este tentou prender Braga ou, mais tarde, o ataque que este
fez às tropas de Belfort: «E cuidando eu que nesta forma ficava o ryo
pacifico, despedi bandeiras, como he estillo para várias partes a res­
gatar escravos e tendo disposto tudo me despedi para o meu arraial
[...] mas poucos dias depois da minha partida em lugar do dito Pedro
Braga resgatar alguns escravos como lhe tinha ordenado, tratou de
fazer uma emboscada junto com o gentio seu apaniguado e pas­
sando huma bandeira as cachoeiras, de repente sahirão e matarão
dois homens brancos, sete indios, ferindo mais de vinte e escapar
algum se pode atribuir a milagre pelo número de gentio armado
com armas de fogo cujas se conheceram ser do dito Pedro de
Braga»120. De resto, o poder destes homens era tal que os coman­
dantes das fortalezas ou das tropas de resgate não se atreviam a
combatê-los.
Na maioria das vezes ludibriavam ou opunham-se abertamente
à inspecção e contagem dos ameríndios que transportavam consigo
quando os soldados das fortalezas se propunham fazê-lo. Tal ocorreu
com Francisco Antônio Banholi que evitou a passagem pela fortaleza
de Tapajós para impedir a contagem dos índios que trazia do Rio
Negro em uma canoa, «comprados contra as leys de El Rey e de V.a
Ex.V 21. Também Francisco Portilho de Melo não deixava contar nem
os ameríndios que descia, nem os brancos que o acompanhavam nos
descimentos e dava uma resposta ilusiva, dizendo que eram mais
que duzentos ou menos de trezentos e que apenas daria contas ao
governador da capitania sobre a gente que transportava. Os descidos
pareciam rondar, frequentemente, o número de novecentos122.

120 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço Belfort a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 8 de Fevereiro de 1753.
121 Ibidem, códice 622, fl. 25, Ofício de Ricardo Antônio da Silva Leitão a [Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado?], de 9 de Fevereiro de 1753.
122 Ibidem, códice 622, fl. 33, Ofício de José Antônio de Freitas Guimarães a
[Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 13 de Fevereiro de 1753; ibidem, fl. 31,
Ofício de Manuel da Silva a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 13 de Feve­
reiro de 1753.

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A ilação que seguramente podemos fazer e que explica as ambi­


guidades da sociedade colonial face a estas figuras é a de que existia,
até meados de Setecentos, um tráfico de escravos que se sabia ser ile­
gal mas que se fazia claramente, ou seja, com a condenação das auto­
ridades, mas com a aprovação tácita da sociedade colonial que dele
beneficiava. Quando a política colonial portuguesa tentou reprimir
esta actividade — e é de relevar que tal se fez ainda antes da nomea­
ção de Francisco Xavier de Mendonça Furtado para o governo do
Estado do Grão-Pará —, esbarrou com a,oposição velada dos mora­
dores e das ordens religiosas que oficialmente reprovavam este trá­
fico ilegal mas que, oficiosamente, protegiam os indivíduos capazes
de lhes fornecerem a mão-de-obra de que necessitavam.
De outra forma, como explicar que, não obstante se tivesse dado
ordem de prisão a Pedro Braga, os padres da província da Conceição
lhe pedissem para empreender um descimento para as suas
aldeias123? Ou como compreender o desaparecimento da devassa em
que se achava culpado Clemente Luís Neto, cunhado do secretário
José Gonçalves da Fonseca124? Como também justificar que, não obs­
tante a condenação oficial das autoridades administrativas e religio­
sas, se notificasse a cada instante a participação de missionários e lei­
gos no tráfico ilegal e nos «descimentos» forçados de ameríndios125?
Toma-se igualmente relevante apontar que não há clareza ou
constância nas ligações ou nas alianças que se estabeleciam entre os
diferentes estratos da sociedade colonial em relação ao tráfico ilegal
de ameríndios. Assim, se nalguns casos os «régulos do sertão» con­
tavam com a protecção e eram aliados de missionários, em outros
não se coibiam de atacar as missões para fazer tomadas de escravos.
As aldeias carmelitas foram atacadas por Francisco Portilho de
Melo, enquanto Pedro Braga recebia pedidos dos padres da provín­
cia da Conceição para obter mão-de-obra indígena126.
Contudo, estes indivíduos não contavam apenas com a protec­
ção da sociedade colonial. Ao estabelecerem contactos com as

123 AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
a [?], de 3 de Novembro de 1753.
124 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço Belfort a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a devassa feita a Pedro Braga, de 8 de Feve­
reiro de 1753.
125 Ibidem, códice 625, fl. 123, Carta de Francisco Xavier de Andrade a [Francisco
Xavier de Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752; ibidem, códice 622, fl. 11,
Ofício de José Pereira de Abreu a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 29 de
Janeiro de 1753.

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sociedades ameríndias, fomentavam alianças com os seus chefes e


estabeleciam ligações familiares dentro do grupo.
Mas, e ao contrário do que aconteceu em muitos episódios da
história colonial europeia apreciados por Bitterli, que dão conta de
inúmeros exemplos de comerciantes, colonos, soldados e, até, mis­
sionários de tal forma integrados nas culturas não europeias que os
seus compatriotas notificavam que estavam completamente adapta­
dos a outros modos de vida e que a comunicação com eles se pro­
cessava com sérias dificuldades, estes homens não se desligavam
completamente da civilização ocidental126127. Se estavam integrados
nas comunidades ameríndias e eram por elas «absorvidos», conti­
nuavam a manter ligações com a sociedade colonial, colaborando
com ela e recebendo dela protecção.
Uma das formas seguidas para se integrarem nas comunidades
índias consistia nos «casamentos» realizados, na sua maioria, à mar­
gem dos rituais católicos com as filhas ou as parentes dos amerín­
dios com mais importância na comunidade. De igual modo, a poli­
gamia e o concubinato conferiam prestígio e poder a estes
indivíduos e reforçavam as alianças estabelecidas com os chefes das
etnias ameríndias. Assim, Pedro de Braga era casado com uma sobri­
nha do principal Aquipi128. Também muitos dos luso-brasileiros que
andavam pelo sertão chegavam a ter mais de 10 ou 12 mulheres
com vista a aumentar a sua influência junto das comunidades índias
e o seu poder face às autoridades coloniais129.
Outro meio de incorporação utilizado consistia no seguimento
de outros hábitos reprováveis ao olhar europeu. Por exemplo, dizia
José Pereira de Abreu que a tanto tinha chegado a desenvoltura de
Francisco Portilho «que com o mesmo jentio se embebedava, e che­
gou a tanto o seu exceço que se asoutou junto com elles; a isto che­
gam os homens que asistem nestes sertois»130.

126Ibidem, códice 622, £1. 22, Ofício de João Rodrigues da Cruz a [Francisco Xavier
de Mendonça Furtado], de 5 de Fevereiro de 1753; AHU, Pará, caixa 59 (774), Ofício de
Francisco Xavier de Mendonça Furtado a [?], de 3 de Novembro de 1753.
127 Urs Bitterli, Cultures in conflict. Encounters between European and non-European
cultures, 1492-1800, p. 50.
128 BN, Colecção Pombalina, códice 621, fl. 214, Ofício de Lourenço Belfort a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado sobre a devassa feita a Pedro Braga, de 8 de Feve­
reiro de 1753.
129 Esta prática foi proibida por Carta régia de 4 de Dezembro de 1752 (AHU,
Pará, caixa 110 (825)).
130 BN, Colecção Pombalina, códice 622, fl. 10, Ofício de José Pereira de Abreu a
[Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 29 de Janeiro de 1753.
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Estes homens «de vida estragada» eram temidos pelas autorida­


des coloniais porque sob a sua autoridade directa ou sob comando
dos seus aliados contava-se um número indeterminado de índios
guerreiros. Chefiavam exércitos particulares suficientemente pode­
rosos para serem temidos pelas tropas e pelas autoridades governa­
mentais. Ora, tal permitia-lhes que, a par dos descimentos e resgates,
aprisionassem e forçassem muitos índios, alimentando um tráfico
que se fazia contra as ordens reais. Apesar de estes aprisionamentos
serem do conhecimento público, quer os governadores quer o exér­
cito eram inoperantes, porque se por um lado precisavam da mão-
-de-obra que só aqueles indivíduos tinham aptidão para extrair da
floresta, por outro, também não tinham capacidade militar para
defrontar estes régulos. E, por isso, solicitavam frequentemente os
seus serviços, apesar de terem um conhecimento claro das ilegalida­
des operadas. Desta forma, quando Lourenço de Belfort soltou Pedro
de Braga por se sentir ameaçado pelos índios sob comando deste
indivíduo, encarregou-o, ainda assim, de resgatar ameríndios que
tinham sido escravizados. Dizia que esperava uma altura mais opor­
tuna para o prender131.
Face a esta situação, os poderes governamentais tentavam supe­
rar a falta de poder com a habilidade política. De entre os nomes já
mencionados, Pedro de Braga e Francisco Portilho de Melo eram dos
indivíduos com mais prestígio junto dos índios e mais receados pela
coroa portuguesa. Ambos tinham aldeias, roças e homens armados
sob a sua chefia, bem como a protecção e a cumplicidade de muitos
luso-brasileiros. Deles se dizia também que eram responsáveis por
muitas mortes e assassínios. Por exemplo, dizia-se que Portilho de
Melo tinha sob seu comando seis aldeias de grandes dimensões e
mais de setecentas pessoas e que Pedro de Braga tinha no rio Negro
três roças enormes para alimentar a gente sob sua protecção132.

131 Ibidem, códice 621, fl. 214v, Ofício de Lourenço Belfort a Francisco Xavier de
Mendonça Furtado sobre a devassa feita a Pedro Braga, de 8 de Fevereiro de 1753.
132 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 257v, Parecer do Conselho Ultra­
marino sobre o procedimento a ter com Francisco Portilho, de 13 de Abril de 1753;
ibidem, códice 271, fl. 184, Carta régia ao governador do Maranhão sobre as devassas
feitas a crimes de apreensão de escravos, de 12 de Maio de 1751; BN, Colecção Pomba­
lina, códice 625, fl. 123, Carta de Francisco Xavier de Andrade a [Francisco Xavier de
Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752. Sobre a actuação de Francisco Portilho,
veja-se também João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas missões e a colo­
nização, pp. 287-288 e Ciro Flamarion S. Cardoso, Economia e sociedade em áreas colo­
niais periféricas. Guiana Francesa e Pará fl 750-'/<§'/7J, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1984, pp. 111-112.

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Se Braga foi denunciado, preso e remetido para o reino, a Porti-


lho foram oferecidos, por João de Abreu Castelo Branco, o cargo de
capitão na fortaleza de Macapá e, por Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, a patente de governador de várias aldeias de índios
em tomo da fortaleza, porque «a necessidade não tinha ley e as
razões que ponderava o governador eram muito atendiveis»133. Estas
razões consistiam em terminar com a ameaça que constituía o exér­
cito particular que comandava, em contar com um enorme desci-
mento já prometido a vários governadores e em obter o seu auxílio
na destruição de mocambos compostos por negros e índios fugidos.
As acções de Portilho, Braga e outros indivíduos envolvidos nos
descimentos, resgates e aprisionamento de índios trouxeram como
consequência uma alteração ao equilíbrio de poderes junto das
etnias ameríndias do Norte do Brasil de meados do século XVIII.
A presença de luso-brasileiros junto destas comunidades significava
um acesso facilitado a armas de fogo, munições e outros instrumen­
tos que se tomavam cada vez mais imprescindíveis ao funciona­
mento das sociedades indígenas e aos novos padrões de guerra. Por
outro lado, a celebração de alianças entre chefes ameríndios e luso-
-brasileiros significava para os primeiros uma mais fácil derrota dos
seus adversários tradicionais e para os segundos a obtenção de um
maior número de escravos134.
As áreas dos rios Negro, Branco, Tapajós e Uaupés foram parti­
cularmente afectadas pela interferência destes régulos. Inúmeras
etnias que tinham uma relação pacífica com os luso-brasileiros
revoltavam-se após os ataques levados a cabo por Portilho, Braga,
José da Costa Bacelar e tantos outros. Tal foi, por exemplo, o caso
de uma etnia ameríndia do rio Negro que se revoltou contra os luso-
-brasileiros depois dos ataques de Frederico Aranha, Inácio Magro,
Inácio Sanches, Antônio de Braga e o soldado Manuel Mendes
Balieiro135. Paralelamente, relata se um declínio demográfico acen­
tuado nas áreas geográficas me: ionadas: «porque como o gentio
pacifico e domado que neste Rio [Negro] havia, todo tem hido Des­
cido, para as Aldeyas de baixo não se achão hoje mais do que os
que estão Missionados, que ainda que, informem a V.a Ex.a que são

133 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fl. 258v, de 13 de Abril de 1753.
134 A vantagem destas alianças era uma constante no relacionamento de índios e
luso-brasileiros. Veja-se John Manuel Monteiro, «Brasil indígena no século xvi: dinâmica
histórica tupi e as origens da sociedade colonial», in Ler História, 19,1990, pp. 91-95.
135 BN, Colecção PombaUna, códice 625, fl. 123, Ofício de Francisco Xavier de
Andrade a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 12 de Agosto de 1752.

1 12
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populozas as Aldeyas vão-se pondo na ultima consternação»136. A so­


lução apontada para resolver esta situação consistia na fundação de
aldeias luso-brasileiras e na fixação de colonos.
O controlo absoluto que a Coroa Portuguesa queria ter sobre o
território amazônico dependia também, neste meio centénio em
análise, da destruição dos mocambos. Tal como tinha ocorrido no
vice-reinado do Brasil e em África, os quilombos surgiam por todo o
Estado do Grão-Pará, congregando «uma multidão de gente ociosa e
inútil que nelles vivia em continua vadiasção e sem utilidade alguma
do Publico; antes muito a cargo delle pelos contínuos roubos e insul­
tos que dos mesmos se commettiam»137.
As medidas legislativas tomadas pela coroa desde o início dos
anos 50 do século xvm para destruir os mocambos revelaram-se
infrutíferas, quase tanto como as escoltas armadas chefiadas por
capitães-do-mato e enviadas pelos poderes locais e por moradores
com a missão de destruir estas comunidades de fugitivos138.
Constituídos por uma maioria de indígenas e por escravos
negros, desertores e criminosos fugidos à justiça, os mocambos pro­
liferavam pelos rios das capitanias do Pará e do Rio Negro. Para
além de devastarem as roças dos moradores e atacarem as povoa-
ções e fazendas luso-brasileiras, os quilombos surgiam como
núcleos mais ou menos organizados de resistência ameríndia ao

136 Ibidem, códice 625, fl. 123, de 12 de Agosto de 1752. Para a insubordinação
indígena aliada à resistência armada e ao declínio demográfico em relação ao vice-rei-
nado, veja-se John Manuel Monteiro, Negros da terra. índios e bandeirantes nas origens
de S. Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p. 35.
137 AHU, Pará, caixa 40 (754), Ofício de José de Nápoles Telo de Meneses a Mar-
tinho de Melo e Castro, de 21 de Agosto de 1780; para o vice-reinado do Brasil, veja-
se Benjamin Péret, O quilombo de Palmares. Crônica da •República de Escravos». Brasil,
1640-1695, Lisboa, Fenda Edições, L.da, s/d; Mário José Maestri Filho, Quilombos e qui-
lombolas em terras gaúchas, Porto Alegre, Escola Superior de Teologia, Universidade de
Caxias, 1979. Sobre o conceito de quilombo como espaço físico, mas também social
e mítico, e percebido como uma estrutura de identidade e solidariedade alternativa à
sociedade esclavagista (neste caso africana), veja-se Aida Freudenthal, «Os quilombos
de Angola no século XIX: a recusa da escravidão», in Revista de Estudos Afro-Asiáticos,
32, 1997.
138 AHU, Conselho Ultramarino, códice 209, fls. 220 e ss., Parecer do Conselho
Ultramarino sobre a representação feita aos oficiais da câmara do Pará sobre o envio
de escoltas armadas para captura de escravos e índios fugidos, de 21 de Maio de
1750; Pará, caixa 94 (809), Atestação de Pedro Gorjão de Mendonça sobre o compor­
tamento do principal Gonçalo de Sousa, de 4 de Maio de 1754, BN, Colecção Pomba-
lina, códice 621, fl. 239, Ofício de Manuel de Sarmento a Francisco Xavier de Men­
donça Furtado, de 20 de Março de 1753.

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A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

poder colonial e como uma possibilidade de os índios manterem a


sua identidade étnica e cultural139. As fugas dos descontentes era
uma constante, chegando-se ao ponto de, em 1787, o director de
Alvelos ficar em riscos de ver a sua povoação reduzida a uma tapera
ou a um deserto porque a população sob sua administração tinha
fugido para um mocambo existente no rio Coary140.
Não podemos afirmar seguramente se os mocambos existentes
no Estado do Pará teriam constituído uma força de resistência tão
forte como os quilombos de Minas Gerais ou Palmares. Houve,
como é óbvio, lutas e confrontos entre mocambitas e luso-brasilei-
ros resultantes das tentativas do poder colonial para destruir estas
comunidades141.
Houve, no entanto, situações de contacto pacífico com as insti­
tuições e, sobretudo, com os índios aldeados. Dessa forma, celebra-
ram-se, frequentemente, casamentos entre índias das povoações
luso-brasileiras e quilombolas, o que pressupõe uma certa condes­
cendência por parte dos missionários que oficiavam a cerimônia142.
Também em 1770, Manuel Carlos da Silva dava conta de uma
aliança entre Caetano de Lira, irmão do tabelião da cidade, mestre
de meninos em Borba e soldado em Baião, e os quilombos de Mata-
cora e Manaperi: «está [a comunidade amocambada] juntamente
com o seu letrado Lira furtando e roubando os cacoais dos morado­
res tudo para beberronias alia gente para mocambos faz retirar o
grandioso mocambo de matacora que estava a coaze sahindo para
Bayão agora não se acha»143. Do testemunho do director de Cametá
infere-se que, apesar de se saber claramente a localização do mo­
cambo, nada se tinha feito para o destruir e que, após a actuação de
Lira, o grande problema tinha passado a ser a indeterminação do
sítio onde os mocambitas se tinham estabelecido.

139 AHU, Conselho Ultramarino, códice 273, fls. 18-18v, Carta régia ao governador
da capitania sobre os índios vádios que se organizavam em mocambos, de 22 de
Agosto de 1781.
140 AHU, Rio Negro, caixa 14, doc. 19, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 14 de Agosto de 1787.
141 AHU, Rio Negro, caixa 15, doc. 8, Ofício de Marcelino José Cordeiro a João
Pereira Caldas, de 15 de Agosto de 1787.
142 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Carta de D. Frei João de S. José Queirós ao
padre Custódio da Cunha Ferreira, de 11 de Setembro de 1762.
143 APEP, códice 103, doc. 55, Ofício de Manuel Carlos da Silva a Fernando da
Costa de Ataíde Teive, de 14 de Maio de 1770.

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A d ifu s ã o da lín g u a p o r tu g u e s a e o e n s in o
d o s m e n in o s ín d io s

No plano colonizador que se tentou implantar no Estado de


Grão-Pará e Maranhão ao longo da segunda metade do século xviii,
a língua portuguesa e o ensino dos meninos índios foram utilizados
como instrumento de colonização e concebidos como um dos
meios para tomar os índios em portugueses. Quer a utilização do
português quer a educação das crianças ameríndias foram concebi­
das como um instrumento fundamental na política colonial, na
medida em que serviam como elementos de unificação e de identi­
dade144.
Ao definir o novo programa político para a Amazônia, a coroa
portuguesa percebeu claramente que era difícil, quando não impos­
sível, suportar uma colonização efectiva do vasto território amazô­
nico com os escassos recursos humanos de que dispunha. Contudo,
motivos de natureza política e estratégica determinavam a impres-
cindibilidade desse procedimento, tanto mais porque a bacia hidro­
gráfica amazônica era, à época, tenazmente disputada por outras
potências europeias rivais. Como consequência, houve que se
encontrar um elemento de unificação de todo o território sob domí­
nio português, ainda que esse factor fosse artificial para as etnias
ameríndias e para o próprio espaço: a língua portuguesa, tal como
era concebida pela política colonial de Setecentos, servia para redefi­
nir a identidade dos povos e a integridade da terra. Era um «instru­
mento político»145. Importava ensiná-la à população e fazer com
que, por seu intermédio, os índios se sentissem súbditos da coroa
portuguesa e tivessem com o soberano português uma relação de
fidelidade e de unidade.
Neste âmbito, as instituições executoras reconheciam que a apli­
cação deste princípio nunca poderia ter consequências imediatas. Os
índios adultos recusavam-se abertamente, resistiam de forma velada
ou revelavam-se incapazes de uma rápida aculturação. O projecto só
podia resultar a médio prazo e dependia, de forma imprescindível,
do incentivo à miscigenação e da educação das crianças índias e mes­
tiças em escolas, seminários e casas de luso-brasileiros.

144 Sobre este assunto, veja-se o artigo de Ângela Domingues, «A educação dos
meninos índios no Norte do Brasil na segunda metade do século xviii», in Cultura por­
tuguesa na Terra de Santa Cruz, coordenação de Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa,
Editorial Estampa, 1995, pp. 67 e ss.
145 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria, p. 26.

115
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM VASSALOS

À luz da política colonial portuguesa, a língua surgia, para além


do mais, como um elemento civilizador, capaz de acabar com a bar­
baridade em que os povos viviam e com a rusticidade dos costumes,
ao mesmo tempo que incutia nos povos o sentimento de afecto,
veneração e obediência ao príncipe146. Estes princípios encontram-se
enunciados no Directório que, tal como em muitos outros domínios
da vida dos povos da Amazônia, estabeleceu os parâmetros legislati­
vos subjacentes às alterações educativas e pedagógicas. No entanto,
a importância do ensino do português encontra-se explícita nos dife­
rentes planos de colonização produzidos tanto em período anterior
quanto em época posterior ao corpo legislativo mencionado147.
A legislação instituía a obrigatoriedade de fundar escolas em
todas as povoações do Estado com o propósito de ensinar aos meni­
nos a doutrina cristã, a leitura, a escrita e a aritmética, e às meninas,
o catecismo, as letras e algumas «prendas domésticas»148. A respon­
sabilidade do ensino cabia a mestres e mestras de bons costumes, de
prudência e capacidade reconhecidas e que actuariam sob estreita
vigilância dos directores e que seriam pagos por uma renda cobrada
aos pais e tutores das crianças149. Ora, o que importa relevar é que a
escola e os professores surgiam não só como veículo de «instrução»
— ensinar a ler e escrever — mas como uma forma eficaz de acultu­
ração. E, enquanto tal, não se dirigiam à formação exclusiva de uma
elite letrada, mas deviam abranger «toda» a população infantil.
Da leitura dos parágrafos anteriores infere-se que, na política
educativa luso-brasileira relativa aos estudos menores, há que consi­
derar quatro aspectos150: antes de mais, a utilização do português
como língua única de comunicação e de aprendizagem; depois, a
preocupação em ministrar no ensino básico uma formação religiosa;
seguidamente, a secularização dos agentes de ensino; e, por fim, há

146 Directório, § 6.
147 AHU, Pará, caixa 18 (739 F), Ofício de Joaquim de Melo Póvoas a Tomé Joa­
quim da Costa Corte-Real, de 21 de Dezembro de 1758; também em Rio Negro, caixa 1,
doc. 18.
148 O ensino da escrita e da aritmética não era recomendado às meninas.
149 Directório, § 7 e 8. Estas ordens foram repetidas na década de 60 a Manuel
Bernardo de Melo e Castro. Os ordenados dos professores deviam ser pagos pelos
bens sequestrados à Companhia de Jesus (AN/TT, Manuscritos do Brasil, número 51,
fls. 63-63v, de 9 de Junho de 1761).
150 Sobre a definição das diferentes categorias de ensino ministrado nas escolas e
universidades portuguesas, veja-se Antônio Alberto Banha de Andrade, A reforma
pombalina dos Estudos Secundários no Brasil, São Paulo, Edições Saraiva, Editora Univer­
sidade de São Paulo, 1978, pp. 1 e ss.

1 16
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

que sublinhar que o alvo deste programa educativo eram as crian­


ças, porque, no projecto de educação definido para o Norte brasi­
leiro, pretendia-se que a obrigatoriedade imposta a todas as crianças
de frequentarem escolas conduzisse ao abandono dos hábitos dos
antepassados e à desistência dos ritos ancestrais151.
Em relação ao aspecto linguístico, há que salientar que as etnias
habitantes da bacia hidrográfica amazônica falavam dialectos distin­
tos, existindo um sentimento de identificação entre língua e etnia152.
Havia, no entanto, famílias linguísticas»principais, como as Arawak,
Tucano, Macu e Tupi. A «língua geral», mescla de tupi com portu­
guês, foi rapidamente adoptada por muitas comunidades tupi que
habitavam a foz do rio Amazonas e os rios Guamá, Tocantins,
Pacajá e, apesar de não ser conhecida por muitas das nações que
habitavam os rios Negro, Branco ou Madeira, era facilmente apren­
dida pelos índios e correntemente utilizada na comunicação de indí­
genas e luso-brasileiros153.
Um dos propósitos da política linguística implementada no
Norte brasileiro da segunda metade do século xvin consistiu na irra­
diação da «língua geral». Pretendia-se que as intenções expressas
pela coroa em épocas anteriores fossem, finalmente, obedecidas.
E, nesse sentido, o governador e capitão-general do Estado do Grão-
-Pará deu instruções para que a legislação se cumprisse, obrigando
todas as crianças a frequentar a escola e a aprender a língua portu­
guesa que, como já foi mencionado, devia ser o único idioma a ser
falado num território unido sob a égide do monarca português. No
entanto, estas ordens depararam com a resistência da maioria dos
missionários154.

151 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1275, fl. 336, Carta régia ao governador
e capitão-general do Estado do Maranhão recomendando a protecção das missões e
das liberdades dos índios, de 29 de Maio de 1750.
152 Omar E. González Nánez, «Lenguas indígenas e identidad en la cuenca dei
Guaiania-Rio Negro. Território Federal Amazonas Venezuela», in Indianismo e indigenismo
en América, compilação de José Alcina Franch, Madrid, Alianza Editorial, 1990, p. 291.
153 Carlos de Araújo Moreira Neto, índios da Amazônia. De maioria a minoria, p. 44.
154 Era Freitas de Guimarães que, ao dar conta da ocorrência, afirmava: «Çertifi-
cam-me que os Missionários destas Aldeyas do rio Tapajoz não observão o perceito,
que V* Ex.a lhes impoz para que admittissem nas Escollas aos índios e índias, com
todo o cuidado, e julgo por certa esta notícia porque o Missionário da Aldeya de
Cumamú cuida muito pouco em os aplicar a ler e a escrever, nem tão pouco consente
que os índios da sua Missão fallem portuguez, e tem castigado a alguns por este res­
peito» (BN, Colecção Pomhalina, códice 622, fl. 33, Carta de José Antônio de Freitas
Guimarães a [Francisco Xavier de Mendonça Furtado], de 13 de Fevereiro de 1753).

117
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S fN D IO S EM V A SSA LO S

Estes opuseram-se, tanto quanto lhes era possível, ao abandono


da «língua geral», recusando-se a pôr de parte a base em que a sua
obra espiritual e temporal junto dos ameríndios tinha sido cons­
truída. Contudo, tanto as instituições laicas quanto as ordens reli­
giosas concordavam que a implantação da fé e a civilização dos
povos brasílicos só se poderiam implantar com êxito pela educação
das crianças155.
Através dos ensinamentos ministrados por mestres e mestras
laicas, mas também por professores de ordens religiosas, pretendeu-
-se incutir junto dos estratos mais novos, ainda em formação, o que
se reconhecia como difícil, se não impossível, de inculcar nos adul­
tos: a obediência e o respeito ao príncipe e ao deus cristão, a ética e
o comportamento que se exigia a quem era português e católico156.
Não obstante contemplar de forma teórica todas as crianças
índias, a política educacional direccionou-se para os filhos dos prin­
cipais, dos capitães-mores e sargentos-mores e de outros indivíduos
índios que tivessem lugar de destaque na comunidade. A alfabetiza­
ção e a cristianização eram dirigidas àqueles que, prioritariamente,
viriam a ser os futuros chefes das comunidades indígenas e que, em
época futura, poderiam servir de exemplo junto da comunidade e
sobre ela exercer a sua influência157.
A formação de uma elite de meninos índios deve ainda relacio­
nar-se com uma outra questão. Entre as medidas legislativas promul­
gadas pelo monarca para promover a identidade índia, decretou-se,
por alvará de 4 de Abril de 1755, a paridade entre vassalos do reino e
da América Portuguesa, estipulando ainda a preferência de amerín­
dios e de seus descendentes para o exercício de cargos públicos158.
Pergunta-se, portanto, até que ponto é que, ao promover pela educa­
ção uma elite de nascimento, a administração colonial não estaria a
tentar formar um grupo de «filhos-da-terra» apto e fiel, tão capaz de
administrar localmente as comunidades como de exercer algumas
funções no âmbito dos mecanismos de poder governamentais e da

155 lbidem, códice 625, EL 179v, Carta do padre Antônio Machado a [Francisco
Xavier de Mendonça Furtado], de 29 de Maio de 1754.
156 Ângela Domingues, «As sociedades e as culturas indígenas face à expansão
territorial luso-brasileira na segunda metade do século xviil», pp. 187-188.
157 O mesmo ocorreu em relação à América Espanhola. Veja-se Documentos sobre
política linguística en Hispanoamérica (1492-1800), compilação, estudo preliminar e edi­
ção de Francisco de Solano, Madrid, CSIC/Centro de Estudos de História, 1991,
pp. LVI-LXII.
158 BN, Res. 3609 V.

1 18
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

estrutura religiosa159? A insistência em formar «vassalos úteis ao


Estado» era, aliás, uma das grandes preocupações do monarca que, já
em Setembro de 1770, continuava a insistir na aprendizagem cor­
recta da língua portuguesa como um dos aspectos fundamentais
para a civilização dos povos, para o entendimento das leis e para a
compreensão da religião. Importa salientar que esta medida não se
dirigia especificamente ao Norte brasileiro, mas a todo o Império160.
A reforma do ensino no Estado do Grão-Pará, apesar de tomar
por parâmetro os estatutos que regiaih as alterações em campo
idêntico no reino, apresentou, contudo, particularidades e adapta­
ções à realidade colonial161. Neste aspecto, como em tantos outros,
havia uma clara discordância entre o que se tentava impor e o que
era possível cumprir. A intenção de criar escolas em todas as povoa-
ções esteve, antes de mais, dependente do empenho e da vontade
das autoridades administrativas locais, nomeadamente de directores
e de câmaras, bem como dos recursos econômicos que instituições e
particulares podiam e queriam disponibilizar.
Resultava, também, da existência de professores, ou seja, de indi­
víduos que soubessem ler e escrever e estivessem na disposição de
ensinar. Os mestres e mestras competentes, dados como aptos através
de um exame rigoroso e adeptos de um ensino laico e com juramento
prestado aos Santos Evangelhos em como cumpriríam eficientemente
as suas funções, davam, no Norte brasileiro, lugar a um punhado de
pessoas que, muitas vezes, mal sabiam ler e escrever162. Soldados,

159 Este programa teve êxito, por exemplo, na índia, onde muitos «filhos da
terra» desempenharam funções religiosas e tiveram um papel primordial na concilia­
ção de duas heranças culturais distintas (Maria de Jesus dos Mártires Lopes, Goa Sete-
centista: tradição e modernidade, p. 339).
160 AHU, Conselho Ultramarino, códice 1275, fls. 400-402, Carta régia decretando
a obrigatoriedade do ensino da gramática portuguesa nas aulas de língua latina, de 30
de Setembro de 1770.
161 «Alvará pelo que se concede à Real Mesa Censória toda a administração e
direcção dos estudos das escolas menores do reino e dos domínios, com remissão à
legislação de 28 de Junho de 1759», in Sistema e collecção de regimentos, vol. iii, p. 541,
de 4 de Junho de 1777; AN/TT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, livro 127, carta 1,
fl. 1, Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Martinho de Melo e Castro,
de 22 de Julho de 1759; ANRJ, códice 99, vol. 4, fl. 47, Ofício de José Nápoles Telo de
Meneses a Martinho de Melo e Castro, de 30 de Maio de 1783.
162 AHU, Pará, caixa 104 (819), Provimento do padre Fernando Félix da Concei­
ção por D. Francisco de Sousa Coutinho no cargo de professor de estudos menores
da cidade do Pará, de 23 de Setembro de 1799; veja-se, ainda, Antônio de Camões
Gouveia, «Estratégias de interiorização da disciplina», in História de Portugal, dirigida
por José Mattoso, vol. iv, pp. 433-434.

119
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

colonos, escrivães de câmaras, religiosos e directores, mais ou menos


zelosos, mais ou menos desaforados, de melhores ou piores costu­
mes, tinham a missão de ensinar as primeiras letras, a língua portu­
guesa e o catecismo; deviam, ainda, influir na correcção de vários
hábitos indígenas e incentivar as crianças a vestir-se e a calçar-se.
A falta de professores seculares estava na origem de, em muitas
povoações, o ensino estar confiado a padres163. Estes autorizavam os
jovens a expressarem-se na «língua geral» e eram acusados de indu­
zir as crianças em erros (?)164. Outras vezes, cumpriam eficazmente
a sua função, dando uma «boa educação» aos filhos dos índios165.
A existência de escolas locais apresentava graves inconvenientes
para o programa colonizador. Antes de mais, permitia que os jovens
índios permanecessem em contacto com os pais e com a etnia,
dando azo a que, por intermédio do discurso oral, continuasse a
haver transmissão de conhecimentos. Ora, a preservação de contac­
tos orais é, na opinião de Walter Mignolo, contraditória aos esforços
feitos para ensinar a ler e a escrever, permitindo que a cultura pre­
sente na vida quotidiana continue a ser transmitida166. Há ainda a
considerar que a permanência de crianças nas aldeias e vilas dava
ainda azo a que directores, vigários e particulares os usassem no cul­
tivo de roças, no pastoreio de gado, na recolha de drogas do sertão,
nos serviços domésticos ou no reparo de casas167.
A criação de seminários seculares ou colégios em regime de
internato foi uma das alternativas seguidas para obviar o problema.
A outra consistiu no alojamento das crianças índias nas casas da
elite socioeconómica e cultural luso-brasileira, ou seja, em casa dos
governadores, dos bispos, de ouvidores e de altos funcionários civis
e militares. Ora, se as escolas podiam e deviam ser frequentadas por
todas as crianças sem excepção, os seminários e as casas particulares
eram acessíveis apenas a um reduzido número de indivíduos: aque­
les que na comunidade se distinguiam pelo nascimento, pelo prestí­
gio de seus pais ou, na definição do governador Manuel Bernardo de

163 AHU, Pará, caixa 24 (739 D), Ofício de Luís Gomes de Faria e Sousa a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 15 de Setembro de 1762.
164 lbidem.
165 lbidem, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Abril de 1761.
166 Walter Mignolo, «On the colonization of Amerindian languages and memo-
ries: renaissance theories of writing and the discontinuity of the classical tradition»,
in Society for Comparative Study of Society and History, 1992, p. 326.
167 APEP, códice 108, doc. 69, Ofício de Francisco Pimentel ao govemdor e capi-
tão-general da capitania, de 6 de Agosto de 1770.

120
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

Melo e Castro, «os filhos de Principaes, Officiaes e dos da Câmara


porque na nobreza de seus Pays deve fazer com que se destinem
seus filhos a outros empregos honrosos para o que se lhe ha de pro­
porcionar e dispor o espírito na primeira criação»168.
Considerados por Francisco Xavier de Mendonça Furtado como
«o meyo mais próprio para civilizar os índios», os seminários apare­
ceram em funcionamento em 1761, depois de se terem consultado
várias autoridades sobre as suas funções169. O seu programa baseou-
-se no aperfeiçoamento do ensino ministrado nas escolas locais, na
aprendizagem de latim, gramática, filosofia, teologia, retórica e na
prática de algumas artes e ofícios. Mas o principal propósito que
presidiu à fundação destes estabelecimentos foi o evitar que as
crianças «bem-nascidas» continuassem a ter contacto com os ritos e
abusos gentílicos praticados por seus pais, com a barbaridade e rus-
ticidade dos índios aldeados, com a língua geral que estes continua­
vam a falar e a impedir que continuassem a ser utilizados em traba­
lhos públicos170. Um outro objectivo consistia em fomentar o
contacto entre os filhos da aristocracia luso-brasileira e os descen­
dentes da «nobreza» ameríndia, por forma a estes poderem receber
uma influência directa do comportamento dos seus companheiros.
Pela frequência dos seminários, impedia-se, pois, que os indiví­
duos que estavam destinados a governar as comunidades índias
tivessem um contacto simultâneo com duas culturas antagônicas,
tantas vezes num confronto em que o elemento vencedor era o indí­
gena. Paralelamente, tentava-se incutir junto das crianças ameríndias
uma educação europeia, ministrada por mestres laicos e religiosos,
reinóis ou que tivessem frequentado escolas no reino, por forma a
constituir uma elite que proporcionaria uma integração sólida das
sociedades ameríndias na sociedade colonial luso-brasileira.
O curto espaço de tempo que medeia entre as ordens de funda­
ção e o funcionamento dos colégios só pode ser compreendido se

168 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 23 de Abril de 1761.
169 A N /1 1, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 43v, Ofício de Francisco Xavier de
Mendonça Furtado a Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 30 de Junho de 1760.
170 AHU, Pará, caixa 20 (729 G), Parecer de José Monteiro de Noronha sobre a
fundação de seminários para meninos índios, de 7 de Outubro de 1760; ibidem, Pare­
cer de D. Frei João de S. José Queirós, bispo do Pará, sobre a instituição de seminá­
rios para meninos índios, s/d [ant. a 11 de Novembro de 1760]; ibidem, Parecer do
desembargador intendente Luís Gomes de Faria e Sousa e do ouvidor-geral Feliciano
Nobre Ramos Mourão sobre a fundação de seminários para meninos índios, de 11 de
Novembro de 1760.

121
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

considerarmos que os seminários aproveitaram uma estrutura já


existente. O sequestro dos bens da Companhia permitia não só a
existência de numerário para pagar aos professores como também
possibilitava a reutilização das instalações do seminário dos jesuítas
de Belém, destinadas ao Colégio dos Nobres, e da livraria do Con­
vento da vila da Vigia, doada pelo monarca à mesma instituição171.
Concomitantemente, a remoção dos padres da Conceição e da Pie­
dade permitiu a vacatura de conventos e de hospícios no Gurupá,
Vigia e Cametá, também eles disponibilizados para o funciona­
mento de colégios e de escolas.
Mas não foram unicamente as instalações e os livros que passa­
ram a ser integrados nos colégios. Dada a escassez de professores,
alguns missionários foram reconduzidos na leccionação, tal como
aconteceu ao jesuíta Roberto Pereira, que por decisão da Junta da
Fazenda do Estado, foi designado, em 1760, para ensinar Filosofia
com um ordenado de 100$000 por ano, logo rectificado para 200$000
no ano seguinte172. Também o presbítero secular Fernando Felix da
Conceição foi utilizado como professor de ler, escrever, contar e cate-
quista na cidade de Santa Maria de Belém, em finais do século173.
De resto, só o prestígio e a tradição que o ensino eclesiástico
tinha é que justificam que o professor régio de Gramática Latina e
de Retórica, Eusébio Luís Pereira Ludon, residente no Pará a partir
de 1760, não tivesse, volvidos dez anos, um número de alunos sufi­
ciente que justificasse a manutenção daquelas aulas. Todos os estu­
dantes frequentavam as lições dadas no seminário174. Também a fre­
quência das aulas régias de Primeiras Letras era tão reduzida que, na
década de 80, ali passaram a funcionar175.

171 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro
comunicando a intenção de doar a livraria dos Jesuítas da vila de Vigia ao Colégio dos
Nobres e a integração da do Colégio de Santo Alexandre na do Bispo do Pará, de 18
de Outubro de 1761. O colégio jesuíta do Pará fora encerrado a 12 de Setembro de
1759 (Antônio Alberto Banha de Andrade, A reforma pombalina dos estudos secundários
no Brasil, São Paulo, Edição Saraiva, Editora Universidade de São Paulo, 1978, p. 5).
172 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 18 de Junho de 1761; e ibidem, caixa 22
(742), Extracto de ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro, de 6 de Novembro de
1760.
173 Ibidem, caixa 104 (819), Petição de Fernando Felix da Conceição para se con­
firmar o seu provimento como professor por aprovação régia, s/d.
174 Ibidem, caixa 32 (746), Ofício de Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio a Mar-
tinho de Melo e Castro, de 21 de Fevereiro de 1771.
175 Ibidem, caixa 77 (792), de 1799.

122
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

Para viabilizar o êxito da educação das crianças índias sugeriu-


-se a instalação de uma rede de colégios, espalhada pelo Norte brasi­
leiro: em Belém, Monsarás, Gurupá, Santarém, Barcelos e Ega176 No
entanto, os seminários ficaram restringidos à cidade — aberto a
crianças vindas do território compreendido entre a fortaleza do Parú
e Portei — e ao Gurupá — frequentado pelos jovens que viessem da
zona compreendida entre Almeirim e a capitania de S. José do Rio
Negro177. A não utilização deste estabelecimento conduziu ao seu
encerramento poucos anos volvidos.'No entanto, em finais do
século, voltava-se a insistir na pertinência do seu funcionamento
para a educação dos meninos índios.
Tal como foi dito, os colégios eram apenas uma das alternativas
para educar as crianças da elite indígena. A outra consistiu na sua inte­
gração nas casas de governadores, bispos, ouvidores e altos funcioná­
rios. Introduzidos, desta forma, nas «famílias» dos indivíduos que
constituíam a elite luso-brasileira, eram alimentados, vestidos e calça­
dos e obrigados a frequentar a escola e aprender alguns ofícios178.
Se alguns deles eram trazidos pelos governadores e altos funcio­
nários em viagem, outros havia que eram mandados por seus pais
para a cidade, como é exemplo o filho do principal Xavier de Men­
donça, enviado por seu pai para se civilizar sob o patrocínio do
governador179; outros iam por iniciativa própria, como é o caso do
índio Francisco, filho do principal Curetú e afilhado de João Baptista
Mardel, que pediu ao pai autorização para ir para Barcelos porque
não se conseguia habituar à vida agreste do mato180.
O culminar de todo este processo de apreensão e aprendizagem
do que era a «civilização» e o «progresso» imperante nos domínios
de Sua Majestade Fidelíssima está patente no envio de inúmeros
índios, filhos de gente notável, à corte, para virem beijar as mãos do
monarca, verem a civilidade com que viviam os vassalos do rei e

176 Ibidem, caixa 20 (729 G), Parecer de José Monteiro de Noronha, de 7 de Outu­
bro de 1760.
177 AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 68v, Carta régia a Bernardo de Melo e
Castro sobre a educação dos filhos da elite índia, de 11 de Junho de 1761.
178 AHU, Pará, caixa 22 (742), Ofício de Feliciano Ramos Nobre Mourão a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 28 de Junho de 1761; ibidem, caixa 21 (739 I),
Ofício de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, de 23 de Abril de 1761.
179 APEP, cód. 108, doc. 7, Ofício de Lucas José Espinosa de Brito Coelho Folq-
man, director da vila de Pombal, de 7 de Agosto de 1770.
180 AHU, Rio Negro, caixa 16, doc. 9, Ofício de Henrique João Wilkens a João
Pereira Caldas, de 6 de Junho de 1788.

123
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

«para que suprivivendo os supplicantes a seus Pays, possam instruir


os índios das suas nações conforme as Reaes Leys de Vossa Mages-
tade»181. Era desta forma que os descendentes dos principais com­
pletavam de forma ideal a sua educação, uma educação que já
pouco teria a ver com os hábitos quotidianos da etnia de que eram
originários e que, sem dúvida, conduziría a inadaptações, patentes,
por exemplo, nas dificuldades que o citado índio Francisco tinha em
viver a vida agreste da floresta; ou, então, se bem que de forma
menos notória, nos pedidos feitos ao monarca de patentes remune­
radas para os índios que tinham vindo à corte e que reconheciam
que nas suas terras «lhes faltão os meyos de poderem viver com a
descência correspondente às suas pessoas»182.
Importa, seguidamente, ver de que forma é que as intenções
propostas na reforma educativa e pedagógica analisada foram ou
não concretizadas. Para além dos problemas com que a estrutura
escolar se debateu, e que são notórios na falta de instalações, na
dificuldade em encontrar professores e na carência de livros, papel e
outros materiais, o que se verifica é que há uma resistência indígena
à frequência das escolas. Primeiro que tudo, porque nas sociedades
ameríndias as crianças eram estreitas colaboradoras na economia
familiar, auxiliando nos trabalhos do campo, especialmente em épo­
cas de colheita e sementeira, na caça e na pesca. Depois, é ainda de
notar que, numa altura em que faltavam adultos, a mão-de-obra
infantil era requerida para serviços comunitários e particulares183.
Para além destes motivos de natureza econômica, outros exis­
tiam, definidos pelas autoridades administrativas da época, como o
descuido, omissão e rebeldia dos pais e incumprimento da lei184.
A inércia indígena justificava-se nas contradições entre as formas de
ensino tradicional, com base no valor da tradição, da acção e do
exemplo, onde qualquer indivíduo podia ser agente educador, e uma
educação dissociada da vida quotidiana, que pretendia derrotar e

181 AHU, Pará, caixa 60 (775), Petição de índios, filhos de principais, vindos a
Lisboa, de patentes e soidos para viverem condignamente na sua terra, de 7 de Julho
de 1764.
182 Ibidem.
183 Angela Domingues, «Comunicação entre sociedades de fronteira: o papel do
intérprete como intermediário nos contactos entre ibero-americanos e ameríndios na
Amazônia de finais do século xvm», in Limites domar e da terra. Actas da VIII Reunião Inter­
nacional de História da Náutica e da Hidrografia, Cascais, Patrimónia, 1998, pp. 255 e ss.
184 AHU, Pará, caixa 21 (739 I), Ordem de Manuel Bernardo de Melo e Castro
aos oficiais da câmara da vila de Santa Cruz do Cametá e de Vila Viçosa, de 17 e 18
de Janeiro de 1761.

124
A T R A N SF O R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALO S

substituir as tradições e a memória colectiva, e onde os mestres eram


raros e iniciados e repressores dos usos e costumes indígenas185.
Não obstante, havia índios «cultos» e «educados». O que já foi
dito comprova-o. No entanto, a documentação analisada quase não
fornece indicações sobre o seu papel na sociedade colonial. Even­
tualmente, detinham atribuições significativas na vida comunitária,
como principais, como sargentos-mores e capitães-mores, nos cor­
pos de milícias ou como membros das câmaras. Porém, na estrutura
administrativa do Estado do Grão-Pará,«não se encontraram, até à
data, ameríndios no exercício de cargos públicos, ficando por cum­
prir um dos objectivos do já citado alvará de 4 de Abril de 1755.
Aponte-se para uma única, mas irônica, excepção. O principal
objectivo da educação promovida pela sociedade colonial consistia
na formação de indivíduos que fossem concordantes com a socie­
dade colonial e que estivessem ao seu serviço. Ora, no rio Apapóris,
em 1788, dava-se conta da acção sediciosa de três estudantes letra­
dos, Pedro, Leandro e Cuiga, acusados por João Henrique Wilkens
como sendo apóstatas e motores de desordens ocorridas entre os
Muras. Eram também acusados de «darem maus conselhos aos gen­
tios do mato», dificultando os descimentos186.
Uma outra finalidade da reforma educativa consistiu, como men­
cionámos, na implantação do português como língua única falada na
bacia hidrográfica amazônica. Volvidos cerca de cinquenta anos, há
que admitir que, também neste aspecto, o projecto inicial falhou. De
outra forma, como explicar a preponderância que os intérpretes conti­
nuaram a ter na comunicação entre luso-brasileiros e índios?187 Ou,
então, como justificar o ressurgimento dos Dicionários de Portu-
guês/Brasiliano em finais do século xvm, alvores do século xix, para
uso de missionários e da população, mas também de estudiosos de
Geografia e de História Natural?188 De resto, não deixa de ser irônico

185 Florestan Fernandes, «Notas sobre a educação na sociedade tupinambá», in


A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Petrópolis, Editorial Vozes, 1975,
pp. 43, 50 e 55-57.
186 AHU, Rio Negro, caixa 17, doc. 6, Escrito do soldado Julião Alves da Costa a
Henrique João Wilkens, de 16 de Outubro de 1788.
187 Ângela Domingues, «Comunicação entre sociedades de fronteira...» e «O pa­
pel do índio como língua/intérprete entre sociedades ameríndias e luso-brasileiras no
Norte do Brasil em finais do século xviii», in Anais da Sociedade Brasileira de Pesquisa
Histórica, 10, 1995, pp. 11 e ss.
188 Diccionário Português e Brasiliano, obra necessária aos ministros do altar que empre-
hendem a conversão de tantos milhares de almas que ainda se achão dispersas pelos vastos cer-
tões do Brasil, sem o lume dafée baptismo. Aos que parocheao missões antigas, pelo embaraço

125
n
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S Í N D IO S EM V A S S A L O S

que muitos destes compêndios fossem recuperações dos trabalhos lin­


guísticos que os missionários e, particularmente, os Jesuítas fizeram
até à primeira metade do século. É este o caso de Betendorf e Figueira.
O que sobre a política linguística ocorre dizer, é que o esforço bila­
teral feito para que sociedades que falavam línguas diferentes comuni­
cassem confluiu na utilização de uma língua que era estranha mas, no
entanto, acessível a luso-brasileiros e ameríndios, uma língua intermé­
dia, através da qual os naturais do país «sabiam exprimir muito melhor
as suas affecçõens do que ainda mesmo pelo Português»189. A priori­
dade dada à aculturação eficiente dos índios justificou, já em finais do
século XVIII, o retomo à língua geral. A retoma da língua franca de comu­
nicação pelos missionários junto dos seus paroquianos tomava-se, uma
vez mais, lícita porque era considerada eficaz190. E, desta forma, reco-
nhecia-se o fracasso da implantação do português como língua «nacio­
nal». No entanto, a língua do luso-brasileiro, a língua do colonizador,
teoricamente ensinada nas escolas luso-brasileiras a todos os habitantes
do Norte do Brasil como a língua da sujeição, era a forma pela qual os
indígenas se expressavam quando recorriam às instituições deliberati­
vas e ao monarca para reivindicarem os seus direitos.

O s e x e c u to r e s d o p la n o de c o lo n iz a ç ã o

A política colonial definida em relação ao Império colonial por­


tuguês da segunda metade de Setecentos deu ao Norte do Brasil
uma posição de destaque. As linhas pelas quais esta orientação polí-

com que riellas se falia a língua portugueza para melhor poder conhecer o estado interior das
suas consciências. A todos os que se empregarem no estudo da História Natural e Geografia
daquelle Paiz; pois conserva constantemente os seus nomes originários e primitivos, Lisboa,
Officina Patriarcal, 1795; Padre Luís Figueira, Arte da Grammatica da lingua do Brazil,
composta pelo..., Lisboa, Officina Patriarcal, 1795; Padre João Filipe Betendorf, Compên­
dio da doutrina christãa na lingua portugueza e brasilica composto por... e reimpresso de ordem
de S. Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor por Frei Mariano da Conceição Vellozo, Lis­
boa, Officina de Simão Tadeu Ferreira, 1800.
189 AHU, Pará, caixa 50 (760), Carta de Domingos Correia Dinis, médico, a
D. Francisco de Sousa Coutinho, de 30 de Abril de 1799.
190 BNRJ, 7-1-19, «Questões apologéticas enunciadas e dirigidas a mostrar que
em nada peca o Pároco que na língua vulgar dos índios os instrui espiritualmente, não
sabendo eles entender a Portuguesa que por ordem real se lhes deve introduzir, nem
também o que persuade os índios à compustura do calçado e manto ou mantilha e a
reforma juntamente de suas camisas degoladas, nem o que disser que periga o que o
Espírito Santo lhe dita, nem o que na Igreja repreender alguém em particular por
causa pública», s/d [de finais do século XVIII].

126
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SS A L O S

tica se estabelece são múltiplas, complexas e intervenientes em


vários domínios. Aquelas que, em nosso entender, tiveram uma
maior interferência junto das comunidades ameríndias foram enun­
ciadas já neste capítulo. Foi através dessas medidas que o aparelho
institucional central planeou recuperar e consolidar um poder e um
controlo que não tinha até à primeira metade do século.
A atenção que se dá ao Norte do Brasil só pode explicar-se pela
reavaliação da importância do território. Com a segunda metade do
século xvni, valoriza-se a importância que o Brasil tem para o Impé­
rio. E, dentro deste imenso Império, concede-se uma posição de
destaque à bacia hidrográfica amazônica, não apenas porque «do
que correrão os Portugueses o melhor he o Brazil & o Maranhão he
Brazil melhor & mais perto de Portugal»191. É a definição de novas
conjunturas internas e internacionais que assim o determinam, pro­
vocadas por alterações do pensamento político, pela redefinição das
correntes econômicas, pelo repensar da política estratégica e de
equilíbrio de poder entre as potências192.
Este redimensionamento do Norte do Brasil dentro do Império,
durante a segunda metade do século xvm, revela-se no cuidado
extremo havido com a nomeação das pessoas que ocuparam o cargo
de governadores e capitães-generais, tanto do Estado quanto das
capitanias. Ou, tal como diria D. Rodrigo de Sousa Coutinho, já em
finais do século: «a escolha dos Governadores deve ser o primeiro
objecto da attenção dos Soberanos, e que enquanto a distancia de
taes Governos necessita a confiança de hum Grande Poder e Jurisdi­
ção, devem ficar sujeitos, a huma grande responsabilidade»193.
Era da escolha acertada dos indivíduos que iam governar o
Estado do Grão-Pará que dependia a felicidade dos povos e a pros-

191 Simão Estácio da Silveira, Relação Sumária das Covsas do Maranhão dirigida aos
pobres deste Reyno de Portugal, s/1, edição de Eugênio do Canto, s/d, p. 35.
192 Veja-se, por exemplo, Andrée Mansuy-Diniz Silva, «Imperial re-organiza-
tion», in Colonial Brazil, edição de Leslie Bethell, Cambridge, Cambridge University
Press, 1987, pp. 244 e ss., Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do Antigo Sis­
tema Colonial (‘1777-1808), São Paulo, Editora HUCITEC, 1986, pp. 198 e ss.; José Luís
Cardoso, O pensamento econômico em Portugal nos finais do século xvm, Lisboa, Editorial
Estampa, 1989, pp. 193 e ss.; Valentim Alexandre, Os sentidos do Império. Questão
nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português, Porto, Edições Afronta-
mento, 1993, pp. 93 e ss.
193 D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Memória escrita pelo Senhor..., de que se remete
copia ao Senhor D. João de Almeida ao Rio de Janeiro, em Julho de 1810 (minuta) Sobre o
melhoramento dos domínios de Sua Magestade na América, Lisboa, Arquivo Histórico
Ultramarino, p. 1; também publicada in Brasília, vol. rv, 1949, p. 405.

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A T R A N S F O R M A Ç A O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

peridade e bem-estar dos súbditos, o cumprimento acertado das


ordens reais e a conciliação do serviço do Rei e de Deus. E, por isso,
a concretização das medidas que se pretendiam implantar no Norte
brasileiro da segunda metade de Setecentos dependia da escolha dos
ministros honrados, fiéis, inteligentes e zelosos194.
Assim, o aparelho estatal reconheceu que o sucesso do plano de
colonização a estabelecer sobre o território ultramarino dependia,
de forma indissociável, das pessoas que escolhia para o exercício do
mais alto cargo governativo no Norte da colônia. Na nomeação dos
governadores do Estado do Grão-Pará, a coroa jogou com relações
nítidas de dependência e de fidelidade, que pressupuseram não só
questões de natureza ideológica como também tiveram implícitos
vínculos familiares e noções de gratidão pessoal por parte dos indi­
víduos designados para o cargo. Paralelamente, esta nomeação devia
ser prestigiante quer para o escolhido quer para a família a que per­
tencia.
Ào longo da segunda metade do século, o apelido dos governa­
dores apontados está associado às famílias mais prestigiadas do reino
e, eventualmente, relacionadas com cargos de poder no panorama
político reinol195. A escolha de Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado para a govemação do Estado, em 1751, não foi, por isso, aleató­
ria: o 19.° governador e capitão-general era irmão de Sebastião José
de Carvalho e Melo, ao tempo conde de Oeiras e poderoso secretá­
rio de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de D. José I196.
O seu sucessor, Manuel Bernardo de Melo e Castro, era irmão
de outra figura relevante na administração central, o secretário de
Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos Martinho de Melo
e Castro197. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, governador e

194 João Abel da Fonseca, «A propósito do tratado de limites a Norte do Brasil:


cartas secretas de Sebastião José de Carvalho e Melo, 1752-1756», in Mare Liberum,
10, Dezembro de 1995, p. 295.
195 Para uma listagem dos governadores e capitães-generais do Estado e capita­
nia do Pará, veja-se Visconde de Porto Seguro, História CeraI do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal, São Paulo, Companhia Melhoramentos de
São Paulo, s/d, pp. 346-348; e, ainda, Antônio Ladislau Monteiro Baena, Compêndio
das Eras da província do Pará.
196 Angela Domingues, «Francisco Xavier de Mendonça Furtado», in Dicionário de
História da Colonização Portuguesa do Brasil, coordenação de Maria Beatriz Nizza da
Silva, cols. 359-362; a sua nomeação foi comunicada à câmara de Belém por carta
régia de 5 de Junho de 1751 (AF1U, Conselho Ultramarino, códice 1275, fl. 143).
197 Jorge Couto, «Martinho de Melo e Castro», in Dicionário da História da Coloni­
zação..., cols. 149-151.

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A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

capitão-general da capitania do Pará entre 1790 e 1803, era filho de


D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, governador de Angola e
Benguela e embaixador em Espanha, e irmão de D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, secretário de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos,
ainda nomeado, em 1801, ministro da Fazenda e presidente do Erá­
rio Régio198. Quanto às nomeações dos outros governadores, pare­
cem fazer-se em famílias ilustres do reino e de entre pessoas que
tinham já dado provas de competência e fidelidade. De tal é exemplo
João Pereira Caldas, governador e capkão-general do Estado entre
1772 e 1780 e chefe da comissão de limites de 1780, que tinha já sido
ajudante de sala de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, durante
o serviço das demarcações de 1750199; ou D. Marcos de Noronha e
Brito, 8.° conde de Arcos e futuro vice-rei do Brasil200.
No que dizia respeito à capitania do Rio Negro, as instituições
centrais pensaram nomear como primeiro governador e capitão-
general João Egas de Bulhões, irmão de D. Miguel, Bispo do Pará,
que era fidelíssimo à causa do conde de Oeiras e governador inte­
rino da capitania do Pará durante a ausência de Mendonça Furtado
nas demarcações de limites resultantes do Tratado de Madrid de
1750201. No entanto, o designado foi Joaquim de Melo e Póvoas que,
na correspondência dirigida a Francisco Xavier de Mendonça Fur­
tado, chamava este de tio202. O mesmo indivíduo foi, aliás, no-

198 Sobre D. Francisco Maurício, veja-se Artur César Ferreira Reis, «Francisco de
Sousa Coutinho 2», in Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, vol. II,
Porto, Livraria Figueirinhas, 1981, pp. 222-223; confrontem-se estes dados com
Andrée Mansuy Diniz Silva, «D. Rodrigo de Sousa Coutinho», in Dicionário de História
da Colonização..., cols. 222-225; e com Kenneth Maxwell, «Condicionalismos da inde­
pendência do Brasil», in Nova História da Expansão Portuguesa. O Império Luso-Brasileiro
(1750-18ZZ), coordenação de Maria Beatriz Nizza da Silva, vol. VIII, Lisboa, Editorial
Estampa, 1986, pp. 374-382; sobre o pensamento político e econômico deste minis­
tro, veja-se, ainda, José Luís Cardoso, O pensamento econômico em Portugal..., pp. 127 e
ss.; e Guilherme Pereira das Neves, «Do império luso-brasileiro ao império do Brasil
(1789-1822)», in Ler História (27-28), 1995, pp. 79 e ss.
199 Artur César Ferreira Reis, «João Pereira Caldas», in Dicionário de História de
Portugal, vol. i, p. 433; AHU, Pará, caixa 61 (776), Carta patente nomeando João
Pereira Caldas como governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará por três
anos, de 13 de Julho de 1770.
200 Raúl da Silva Veiga, Diplomas régios e outros documentos dados no governo do Bra­
sil (Colecção Conde de Arcos), Catálogo, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1988, p. 9,
nota 1.
201 Marcos Carneiro de Mendonça, A Amazônia na era pombalina, vol. n, p. 682.
202 AHU, Rio Negro, caixa 1, doc. 24, Ofício de Joaquim de Melo e Póvoas a Fran­
cisco Xavier de Mendonça Furtado, de 20 de Agosto de 1760.

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A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

meado de seguida para o governo da capitania do Maranhão por


diploma régio de 12 de Janeiro de 1760203.
Após a govemação de Gabriel de Sousa Felgueiras, a administra­
ção de capitania repartiu-se entre governadores interinos, governado­
res nomeados pelo soberano e juntas governativas204. A partir de
1786, com a designação do antigo comandante da fortaleza de S. José
de Macapá para a capitania do Rio Negro, deu-se início a um período
em que à frente dos desígnios da Amazônia estiveram oficiais milita­
res de reconhecidos prestígio e competência: Manuel da Gama Lobo
de Almada205, José Simões de Carvalho206, José Joaquim Victório da
Costa207. Todos eles tinham participado das partidas de demarcações
de limites com território hispânico decorrentes do Tratado de Santo
Ildefonso. As nomeações destes indivíduos para governadores do Rio
Negro surgem como um louvor e uma recompensa às suas activida-
des enquanto demarcadores e exploradores, a par das designações de
Antônio Pires da Silva Pontes para a capitania do Espírito Santo e a de
Francisco José de Lacerda e Almeida para os Rios de Sena.
Foram estes alguns dos governadores nomeados para dar cum­
primento ao plano de colonização do Norte do Brasil na segunda
metade do século xviii. Escolhidos de entre famílias ilustres do reino,
foram, durante meio século, a face pública do soberano junto da
sociedade colonial e os responsáveis pela execução das directrizes
coloniais em território brasileiro.
Há que salientar que se tenta escolher para o exercício dos mais
altos cargos administrativos da colônia uma nobreza de corte, habi-

203 AN/TT, Manuscritos do Brasil, n.° 51, fl. 8.


204 Uma listagem dos governadores do Rio Negro pode, por exemplo, encontrar-
-se em Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil antes da sua separação e inde­
pendência de Portugal, pp. 372-374.
205 Tinha sido degredado para a praça de Mazagão, em África. Por serviços pres­
tados à coroa, foi-lhe comutado o degredo e honrado com o posto de sargento-mor e
a govemação de S. José do Macapá (AHU, Pará, caixa 30 (744), Ofício de Manuel da
Gama Lobo de Almada a Martinho de Melo e Castro, de 17 de Julho de 1770); em
1786 foi nomeado para a govemação da capitania do Rio Negro (AN7TT, Brasil, Avul­
sos, n.° 1, doc. 6, s/d [cerca 18 de Agosto de 1786]); concederam-lhe o posto de briga­
deiro do Exército Real por carta patente de 20 de Agosto de 1798 (AHU, Rio Negro,
caixa 19, doc. 1).
206 Nomeado tenente-coronel do Real Corpo de Engenheiros em 1799, foi pro­
vido no governo de S. José do Rio Negro em 1804 (AHU, Rio Negro, caixa 19, doc. 12,
de 3 de Agosto de 1799; ibidem, caixa 20, doc. 1, de 4 de Abril de 1804).
207 AHU, Rio Negro, caixa 20, doc. 11, Carta régia nomeando o capitão-de-fragata
e intendente da Marinha do Pará, José Joaquim Vitorio da Costa, governador da capi­
tania do Rio Negro, de 4 de Fevereiro de 1806.

130
A TR A N SFO R M A Ç Ã O D O S ÍN DIO S EM VASSALOS

tuada ao comando e ao exercício de funções burocráticas. Muitos


deles tinham já dado provas das suas capacidades em cargos de che­
fia. Detinham postos no exército ou na marinha reais e tinham já
comandado campanhas, praças ou regiões. A relevância dos serviços
prestados reflectia-se no facto de beneficiarem de comendas das
ordens militares, distribuídas pela coroa como fonte de rendimento
e relevante distinção nobiliárquica.
Depois, eram indivíduos que tinham uma forte consciência de
pertencer a um grupo e que prolongavam os laços e as ligações pes­
soais a nível institucional. O facto de muitos deles serem aparenta­
dos aos indivíduos que, no reino, definiam as opções políticas e che­
fiavam as facções no poder era uma garantia de que, na colônia, se
obedeceria fielmente e se daria continuidade às opções ideológicas.
As redes clientelares que se instituíam no reino como «uma estraté­
gia de execução mais eficaz das decisões do centro administrativo»
formavam-se também em relação às colônias e, especificamente, ao
Norte brasileiro208. E estavam relacionadas não apenas a aspectos de
eficácia de execução como também a questões de fidelidade e de
obediência devidas ao rei, à casa e à família a que pertenciam209.
A escolha dos governadores para o Estado do Grão-Pará fez-se,
portanto, de entre a «corte de funcionários do aparelho estatal», for­
mada de acordo com noções de funcionalidade e aberta a um pensa­
mento racional e empírico210. O seu recrutamento ocorreu, também,
em grande parte, em famílias de estrangeirados e de indivíduos que
permaneceram e adquiriram experiência em cortes europeias, como é
o caso de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Manuel Bernardo
de Melo e Castro ou Francisco Maurício de Sousa Coutinho211.
A ideologia colonial que serviu de suporte à actuação destes
indivíduos foi única e imperante ao longo da segunda metade do
século xviii. Baseava-se no reconhecimento do Brasil como elemento
vital para a sobrevivência do reino e na necessidade de defender a
soberania portuguesa e a integridade do território colonial. Apoiou-
-se na defesa do poder absoluto da monarquia através de um pro­
cesso que pressupunha a existência de estruturas fortes e centraliza-

2°8 Ângela Barreto Xavier e Antônio Manuel Hespanha, «As redes clientelares»,

in História de Portugal, dirigida por José Mattoso, vol. IV, p. 390.


209 Nuno Gonçalo Monteiro, «Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocra­
cia», in História de Portugal, cit., vol. iv, p. 365.
210 Guilherme Pereira das Neves, «Do império luso-brasileiro ao império do Bra­
sil», p. 77.
211 Andrée Mansuy-Diniz Silva, «Imperial re-organization», p. 246.

131
A T R A N S F O R M A Ç Ã O D O S ÍN D IO S EM V A SSA LO S

das a nível burocrático, militar e judicial, que se tentaram implantar


na colônia. Partiu do pressuposto que a economia colonial se devia
desenvolver para benefício exclusivo do reino e na sujeição das
directrizes definidas pelo pacto colonial.
Nesta concepção, o Norte do Brasil surgia como um elemento
imprescindível da geo-estratégia colonial, tanto mais importante
quanto sobre ele aumentava a cobiça das potências vizinhas212. Na
disputa territorial ocorrida entre as duas coroas ibéricas durante
toda a segunda metade do século XVIII, a bacia hidrográfica amazô­
nica foi, inquestionavelmente, o território que importava defender
como parte integrante da soberania portuguesa na América do Sul.
Já Alexandre de Gusmão especificava claramente esta situação
quando, às censuras do brigadeiro Antônio Pedro de Vasconcelos
sobre o abandono de Sacramento, respondia que: «nenhuma pro­
priedade há que não possa e deva prudentemente largar-se por um
equivalente, se ele fôr mais vantajoso que a mesma propriedade»213.
E as capitanias do Pará e Rio Negro surgiam aos olhos dos estadistas
da segunda metade de Setecentos como o território que importava
defender porque o Norte brasileiro era considerado na ideologia
política da época como «a chave do interior de todo o Brazil e dos
Dominios Meridionaes de Hespanha que se não pode abandonar
sem gravissimas consequências»214.

212 Manuel Nunes Dias, «Conquista e colonização da Amazônia no século XVIII»,


in Portugal no Mundo, direcção de Luís de Albuquerque, vol. v, Lisboa, Publicações
Alfa, 1989, p. 238.
213 J. M. T. de C., Collecção de vários escritos inéditos, políticos e litterários de Alexandre
de Gusmão, conselheiro do Conselho Ultramarino e Secretário Privado d'el rei D. João Quinto,
que dá à luz pública..., Porto, Tipografia de Faria Guimarães, 1841, p. 177.
214 BNRJ, 7-3-39, n.° 1, Ofício de D. Francisco de Sousa Coutinho a D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, de 21 de Agosto de 1797.

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